Décadas da Ásia [J]

Compilado para PDF a partir do CD-ROM da colecção OPHIR - Biblioteca Virtual dos Descobrimentos Portugueses. Contém as Q

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Portuguese Pages [2202] Year 1998

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Décadas da Ásia [J]

Table of contents :
Introdução
Década 1
Livro I
D1-L1-C1
D1-L1-C2
D1-L1-C3
D1-L1-C4
D1-L1-C5
D1-L1-C6
D1-L1-C7
D1-L1-C8
D1-L1-C9
D1-L1-C10
D1-L1-C11
D1-L1-C12
D1-L1-C13
D1-L1-C14
D1-L1-C15
D1-L1-C16
Livro II
D1-L2-C1
D1-L2-C2
Livro III
D1-L3-C1
D1-L3-C2
D1-L3-C3
D1-L3-C4
D1-L3-C5
D1-L3-C6
D1-L3-C7
D1-L3-C8
D1-L3-C9
D1-L3-C10
D1-L3-C11
D1-L3-C12
Livro IV
D1-L4-C1
D1-L4-C2
D1-L4-C3
D1-L4-C4
D1-L4-C5
D1-L4-C6
D1-L4-C7
D1-L4-C8
D1-L4-C9
D1-L4-C10
D1-L4-C11
D1-L4-C12
Livro V
D1-L5-C1
D1-L5-C2
D1-L5-C3
D1-L5-C4
D1-L5-C5
D1-L5-C6
D1-L5-C7
D1-L5-C8
D1-L5-C9
D1-L5-C10
Livro VI
D1-L6-C1
D1-L6-C2
D1-L6-C3
D1-L6-C4
D1-L6-C5
D1-L6-C6
D1-L6-C7
Livro VII
D1-L7-C1
D1-L7-C2
D1-L7-C3
D1-L7-C4
D1-L7-C5
D1-L7-C6
D1-L7-C7
D1-L7-C8
D1-L7-C9
D1-L7-C10
D1-L7-C11
Livro VIII
D1-L8-C1
D1-L8-C2
D1-L8-C3
D1-L8-C4
D1-L8-C5
D1-L8-C6
D1-L8-C7
D1-L8-C8
D1-L8-C9
D1-L8-C10
Livro IX.pdf
D2-L9-C1
D2-L9-C2
D2-L9-C3
D2-L9-C4
D2-L9-C5
D2-L9-C6
D2-L9-C7
Livro X
D1-L10-C1
D1-L10-C2
D1-L10-C3
D1-L10-C4
D1-L10-C5
D1-L10-C6
Década 2
Livro I
D2-L1-C1
D2-L1-C2
D2-L1-C3
D2-L1-C4
D2-L1-C5
D2-L1-C6
Livro II
D2-L2-C1
D2-L2-C2
D2-L2-C3
D2-L2-C4
D2-L2-C5
D2-L2-C6
D2-L2-C7
D2-L2-C8
D2-L2-C9
Livro III
D2-L3-C1
D2-L3-C2
D2-L3-C3
D2-L3-C4
D2-L3-C5
D2-L3-C6
D2-L3-C7
D2-L3-C8
D2-L3-C9
Livro IV
D2-L4-C1
D2-L4-C2
D2-L4-C3
D2-L4-C4
D2-L4-C5
Livro V
D2-L5-C1
D2-L5-C2
D2-L5-C3
D2-L5-C4
D2-L5-C5
D2-L5-C6
D2-L5-C7
D2-L5-C8
D2-L5-C9
D2-L5-C10
D2-L5-C11
Livro VI
D2-L6-C1
D2-L6-C2
D2-L6-C3
D2-L6-C4
D2-L6-C5
D2-L6-C6
D2-L6-C7
D2-L6-C8
D2-L6-C9
D2-L6-C10
Livro VII
D2-L7-C1
D2-L7-C2
D2-L7-C3
D2-L7-C4
D2-L7-C5
D2-L7-C6
D2-L7-C7
D2-L7-C8
D2-L7-C9
D2-L7-C10
Livro VIII
D2-L8-C1
D2-L8-C2
D2-L8-C3
D2-L8-C4
D2-L8-C5
D2-L8-C6
Livro IX
D2-L9-C1
D2-L9-C2
D2-L9-C3
D2-L9-C4
D2-L9-C5
D2-L9-C6
D2-L9-C7
Livro X
D2-L10-C1
D2-L10-C2
D2-L10-C3
D2-L10-C4
D2-L10-C5
D2-L10-C6
D2-L10-C7
D2-L10-C8
Década 3
Livro I
D3-L1-C1
D3-L1-C2
D3-L1-C3
D3-L1-C4
D3-L1-C5
D3-L1-C6
D3-L1-C7
D3-L1-C8
D3-L1-C9
D3-L1-C10
Livro II
D3-L2-C1
D3-L2-C2
D3-L2-C3
D3-L2-C4
D3-L2-C5
D3-L2-C6
D3-L2-C7
D3-L2-C8
D3-L2-C9
Livro III
D3-L3-C1
D3-L3-C2
D3-L3-C3
D3-L3-C4
D3-L3-C5
D3-L3-C6
D3-L3-C7
D3-L3-C8
D3-L3-C9
D3-L3-C10
Livro IV
D3-L4-C1
D3-L4-C2
D3-L4-C3
D3-L4-C4
D3-L4-C5
D3-L4-C6
D3-L4-C7
D3-L4-C8
D3-L4-C9
D3-L4-C10
Livro V
D3-L5-C1
D3-L5-C2
D3-L5-C3
D3-L5-C4
D3-L5-C5
D3-L5-C6
D3-L5-C7
D3-L5-C8
D3-L5-C9
D3-L5-C10
Livro VI
D3-L6-C1
D3-L6-C2
D3-L6-C3
D3-L6-C4
D3-L6-C5
D3-L6-C6
D3-L6-C7
D3-L6-C8
D3-L6-C9
D3-L6-C10
Livro VII
D3-L7-C1
D3-L7-C2
D3-L7-C3
D3-L7-C4
D3-L7-C5
D3-L7-C6
D3-L7-C7
D3-L7-C8
D3-L7-C9
D3-L7-C10
D3-L7-C11
Livro VIII
D3-L8-C1
D3-L8-C2
D3-L8-C3
D3-L8-C4
D3-L8-C5
D3-L8-C6
D3-L8-C7
D3-L8-C8
D3-L8-C9
D3-L8-C10
Livro IX
D3-L9-C1
D3-L9-C2
D3-L9-C3
D3-L9-C4
D3-L9-C5
D3-L9-C6
D3-L9-C7
D3-L9-C8
D3-L9-C9
D3-L9-C10
Livro X
D3-L10-C1
D3-L10-C2
D3-L10-C3
D3-L10-C4
D3-L10-C5
D3-L10-C6
D3-L10-C7
D3-L10-C8
D3-L10-C9
D3-L10-C10
Década 4
Introdução
Prólogo
Livro I
D4-L1-C1
D4-L1-C2
D4-L1-C3
D4-L1-C4
D4-L1-C5
D4-L1-C6
D4-L1-C7
D4-L1-C8
D4-L1-C9
D4-L1-C10
D4-L1-C11
D4-L1-C12
D4-L1-C13
D4-L1-C14
D4-L1-C15
D4-L1-C16
D4-L1-C17
D4-L1-C18
Livro II
D4-L2-C1
D4-L2-C2
D4-L2-C3
D4-L2-C4
D4-L2-C5
D4-L2-C6
D4-L2-C7
D4-L2-C8
D4-L2-C9
D4-L2-C10
D4-L2-C11
D4-L2-C12
D4-L2-C13
D4-L2-C14
D4-L2-C15
D4-L2-C16
D4-L2-C17
D4-L2-C18
D4-L2-C19
D4-L2-C20
Livro III
D4-L3-C1
D4-L3-C2
D4-L3-C3
D4-L3-C4
D4-L3-C5
D4-L3-C6
D4-L3-C7
D4-L3-C8
D4-L3-C9
D4-L3-C10
D4-L3-C11
D4-L3-C12
D4-L3-C13
D4-L3-C14
D4-L3-C15
D4-L3-C16
D4-L3-C17
D4-L3-C18
D4-L3-C19
Livro IV
D4-L4-C1
D4-L4-C2
D4-L4-C3
D4-L4-C4
D4-L4-C5
D4-L4-C6
D4-L4-C7
D4-L4-C8
D4-L4-C9
D4-L4-C10
D4-L4-C11
D4-L4-C12
D4-L4-C13
D4-L4-C14
D4-L4-C15
D4-L4-C16
D4-L4-C17
D4-L4-C18
D4-L4-C19
D4-L4-C20
D4-L4-C21
D4-L4-C22
D4-L4-C23
D4-L4-C24
D4-L4-C25
D4-L4-C26
D4-L4-C27
Livro V
D4-L5-C1
D4-L5-C2
D4-L5-C3
D4-L5-C4
D4-L5-C5
D4-L5-C6
D4-L5-C7
D4-L5-C8
D4-L5-C9
D4-L5-C10
D4-L5-C11
D4-L5-C12
D4-L5-C13
D4-L5-C14
D4-L5-C15
D4-L5-C16
Livro VI
D4-L6-C1
D4-L6-C2
D4-L6-C3
D4-L6-C4
D4-L6-C5
D4-L6-C6
D4-L6-C7
D4-L6-C8
D4-L6-C9
D4-L6-C10
D4-L6-C11
D4-L6-C12
D4-L6-C13
D4-L6-C14
D4-L6-C15
D4-L6-C16
D4-L6-C17
D4-L6-C18
D4-L6-C19
D4-L6-C20
D4-L6-C21
D4-L6-C22
D4-L6-C23
D4-L6-C24
D4-L6-C25
D4-L6-C26
Livro VII
D4-L7-C1
D4-L7-C2
D4-L7-C3
D4-L7-C4
D4-L7-C5
D4-L7-C6
D4-L7-C7
D4-L7-C8
D4-L7-C9
D4-L7-C10
D4-L7-C11
D4-L7-C12
D4-L7-C13
D4-L7-C14
D4-L7-C15
D4-L7-C16
D4-L7-C17
D4-L7-C18
D4-L7-C19
D4-L7-C20
D4-L7-C21
D4-L7-C22
Livro VIII
D4-L8-C1
D4-L8-C2
D4-L8-C3
D4-L8-C4
D4-L8-C5
D4-L8-C6
D4-L8-C7
D4-L8-C8
D4-L8-C9
D4-L8-C10
D4-L8-C11
D4-L8-C12
D4-L8-C13
D4-L8-C14
D4-L8-C15
D4-L8-C16
Livro IX
D4-L9-C1
D4-L9-C2
D4-L9-C3
D4-L9-C4
D4-L9-C5
D4-L9-C6
D4-L9-C7
D4-L9-C8
D4-L9-C9
D4-L9-C10
D4-L9-C11
D4-L9-C12
D4-L9-C13
D4-L9-C14
D4-L9-C15
D4-L9-C16
D4-L9-C17
D4-L9-C18
D4-L9-C19
D4-L9-C20
D4-L9-C21
D4-L9-C22
Livro X
D4-L10-C1
D4-L10-C2
D4-L10-C3
D4-L10-C4
D4-L10-C5
D4-L10-C6
D4-L10-C7
D4-L10-C8
D4-L10-C9
D4-L10-C10
D4-L10-C11
D4-L10-C12
D4-L10-C13
D4-L10-C14
D4-L10-C15
D4-L10-C16
D4-L10-C17
D4-L10-C18
D4-L10-C19
D4-L10-C20
D4-L10-C21
D4-L10-C22
Índice

Citation preview

INTRODUÇÃO Com esta edição electrónica pretendemos dar a todos os que se interessam pela grande aventura que foram os Descobrimentos Portugueses uma versão acessível das Décadas da Ásia, obra prima do historiador humanista João de Barros. O meio electrónico permite que o texto de Barros, de extensão imponente e de estrutura complexa, possa ser consultado, sem fatigante esforço muscular, de três maneiras distintas: a leitura contínua tradicional; a leitura descontínua de uma série de trechos seleccionados, à escolha do utilizador, a partir do índice geral; e finalmente a pesquisa de elementos isolados através dos comandos de procura. Para obter um maior rendimento da procura de nomes pessoais e geográficos, incorporámos um índice minucioso (compilado em grande parte por Lisa Barber), que permite distinguir os vários membros da mesma família, quer seja portuguesa quer seja oriental, e identificar os inúmeros topónimos mencionados ao longo das Décadas. Sendo os nossos fins puramente de divulgação, não pretendemos oferecer ao leitor uma edição crítica da obra de Barros, tarefa que consideramos necessária e que o nosso trabalho facilitará, mas que por ora não faz parte dos nossos propósitos. Em vez disso, a nossa edição foi concebida como meio de abordagem à edição, ainda incompleta, da Imprensa Nacional–Casa da Moeda, que até agora só chegou à terceira Década (as Décadas 1 e 2 são uma reprodução em fac-símile da edição diplomática de António Baião e Luís F. Lindley Cintra, de 1932-74; a Década 3 é uma reprodução em fac-símile da 1a edição de 1563). Com o fim de ajudar o leitor, optamos por uma versão modernizada, tendo seguido, por isso, a única edição completa deste tipo, a de Hernâni Cidade (Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1945). Desta edição rectificámos os múltiplos erros de transcrição, apoiando-nos em concordâncias tiradas do texto electrónico. Corrigimos também muitos outros passos duvidosos, confrontando-os com as leituras da edição IN–CM ou, no caso da Década 4a, com as da primeira edição de 1615.

Como se sabe, João de Barros não chegou a completar a Década 4a,, cuja primeira edição se deve ao esforço de João Baptista Lavanha, cronista-mor de Felipe III de Espanha. Lavanha reformou o texto do seu predecessor, como ele próprio nos informa, acrescentando muito material novo. Na nossa edição a parte do texto que é da autoria de Lavanha é distinguida assim: Autor_L. As notas de rodapé que se encontram ao fim dos vários capítulos da Década 4a são também da responsibilidade de Lavanha. O leitor dispõe de uma outra maneira de consulta através dos números de notas de rodapé incluídos no texto. Para ter acesso ao maior número de referências possíveis, o utilizador encontrará três sequências de paginação encaixadas no texto, em conformidade com a tábua que se segue: Década 1 2 3 4

Pagina_Indice paginação da ed. IN-CM paginação da ed. IN-CM foliação corrigida da 1ª ed paginação da 1ª ed.

Fol_INC foliação da 1ª ed.

Pagina_ED paginação da ed. Cidade

foliação da 1ª ed.

paginação da ed. Cidade

foliação da 1ª ed

paginação da ed. Cidade

(paginação da 1ª ed.)

paginação da ed. Cidade

Convenções do Índice 1. Fixação da forma de entradas principais. As variações da nomenclatura oriental podem por vezes causar problemas ao leitor. Escolhemos sempre, portanto, como entrada principal, a forma modernizada de um determinado nome próprio, tal como aparece no texto electrónico. Logo a seguir vêm as outras formas da mesma palavra que se encontram na edição IN-CM ou na Década 4a. Sempre que possível tentamos identificar indivíduos não-europeus, utilizando, nestes casos, a transcrição moderna apropriada à língua em questão. 2. Função dos parênteses. A matéria incluída entre parênteses rectos [ ] é da responsabilidade dos editores. Glosas ou identificações derivadas da própria obra de Barros vêm entre parênteses redondas ( ). 3. Função do ponto de interrogação (?): • se vem depois de uma tentativa de identificação, entre parênteses rectas, indica incerteza relativa ao indivíduo em questão; • se vem depois de uma referência a uma página, indica incerteza relativa à identidade da pessoa referida no texto; • se vem depois da forma alternativa de um nome próprio, indica incerteza acerca da validade desta forma. 4. Tratamento a dar à preposição de: Na edição IN-CM e na Década 4a, é frequente grafar a preposição de junto com a palavra seguinte, se esta começa com uma vogal (p.e., Darzira por de Arzira). Tentamos dividir as palavras segundo o uso moderno, mas continua a haver incertezas relativas a certos indivíduos e topónimos cuja existência é documentada unicamente na obra de Barros.

*** OPHIR - Biblioteca Virtual dos Descobrimentos Portugueses Center for the Studies of the Portuguese Discoveries - Oxford & Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Coordenação Executiva: Anabela Mourato, Nuno Camarinhas, Rita Garnel. Coordenação do CD-ROM: Thomas Earle, Stephen Parkinson. Consultor Técnico: Rui Pereira. Equipa de Digitalização, conferência e edição: António Coelho, Joana Subtil e Vânia Calinas. Sistema implantado por Paper-bits Design: Patrícia Proença Impressão Duplicação: Duplisoft, Lda. 1998 *** Compilado para PDF - 2014 - RLJ

PRIMEIRA DÉCADA

LIVRO I 5 3 7 Capítulo primeiro. Como os mouros vieram tomar Espanha e, depois que Portugal foi intitulado em reino, os reis dele os lançaram além-mar, onde os foram conquistar, ali nas partes de África como nas de Ásia, e a causa do título desta escritura. Alevantado em terra de Arábia aquele grande antecristo Mafamede, quási nos anos de quinhentos noventa e três de nossa Redenção, assi lavrou a fúria de seu ferro e fogo de sua infernal seita, per meio de seus capitães e califas, que em espaço de cem anos, conquistaram em Ásia toda Arábia e parte da Síria e Pérsia, e em África todo Egipto aquém e além do Nilo. E segundo escrevem os arábios no seu Zarigh, que é um sumário dos feitos que fizeram os seus califas na conquista daquelas partes do Oriente, neste mesmo tempo, de lá se levantaram e vieram grandes exames deles povoar estas do Ponente a que eles chamam Algarb e nós corruptamente Algarve de Além-Mar. Os quais a força de armas devastando e assolando as terras, se fizeram senhores da maior parte da Mauritânia Tingitânia, em que se compreendem os reinos de Fez e Marrocos, sem até este tempo a nossa Europa sentir a perseguição desta praga. Peró vindo o tempo té o qual Deus quis dissimular os pecados de Espanha, esperando sua penitência acerca das heresias de Arrio, Elvídio e Pelágio de que ela andou mui iscada (posto que já per santos concílios nela celebrados fossem desterradas), em lugar de penitência acrescentou outros mui graves e púbricos pecados, e que mais acabaram de encher a medida de sua condenação, que a força feita à Cava, 8 filha do Conde Julião (ainda que esta foi a causa última e acidental, segundo querem alguns escritores). Com as quais cousas provocada a justiça de Deus, usou de seu divino e antigo juízo, que sempre foi castigar púbricos e gerais pecados, com púbricos e notáveis pecadores, e permitir que um herege seja açoute de outro, vingando-se per esta maneira de seus imigos per outros maiores imigos. E como naquele tempo estes arábios eram os mais notáveis que ele tinha, infestando o império romano e perseguindo sua católica 6 Igreja, primeiro que per eles castigasse Espanha os quis castigar na sua heresia, acendendo antre eles um fogo de compitência, sobre quem se assentaria na cadeira do pontificado de sua abominação com este título de califa, que naquele tempo era a maior dinidade da sua seita. E depois de Arábia, Síria e parte da Pérsia arderem com guerras de confusão a quem prevaleceria neste estado, em que morreu grande número deles, tendo cada parentela enlegido califa antre si, vieram alguns naquela parte interior de Arábia onde está situada a cidade Cufá per concórdia de sua cisma babilónica, enleger por califa a um arábio chamado Safá dizendo que a ele pertencia aquele ponteficado por ser o mais chegado parente de Mafamede, ca ele vinha per linha direita de Abás, seu tio, à linhagem do qual Abás eles chamam Abázcion. E porque, quando o alevantaram por seu califa, foi com lhe darem juramento que havia de ir destruir o califa que então residia na cidade Damasco, que era da linhagem a que eles chamam Maraunion, em a qual havia muitos anos que andava o califado per modo de tirania mais que per eleição, e por isso era esta geração mui avorrecida antre 3v a maior parte dos arábios, ordenou logo este novo califa um seu parente per nome Abedalá ben Alé, que com grande número de gente de cavalo fosse sobre o califa de Damasco. O qual Abedalá, sendo com este exército junto do rio Eufrates, topou o mesmo califa que ia buscar, que vinha de dar υa batalha a outro Califa novamente alevantado nas partes da Mesopotâmia; e rompendo ambos seus exércitos, houve antre eles υa mui crua batalha, em que o

LIVRO I

Califa de Damasco foi vencido. E temendo ele a fúria deste seu imigo Abedalá, quis-se recolher na cidade Damasco, de que tantos tempos fora senhor, mas os moradores dela 9 lhe fecharam as portas sem o quererem receber; com que lhe conveo fugir pera a cidade do Cairo, onde achou pior gasalhado, dizendo todolos cidadãos que Deus os tinha livrado de um tam mau homem como ele sempre fora. Vendo-se ele em todalas partes tam mal recebido, já desemparado dos seus, como homem desesperado do adjutório deles, quis-se passar aos gregos; e indo com um escravo seu, foi ter a υa ilha onde, sendo conhecido, o mataram, no qual acabaram todolos califas de Damasco. Abedalá, seu imigo, tanto que o venceu e soube quam mal recebido era dos próprios seus, sem o querer mais perseguir, foi-se dereitamente a Damasco; e, tomada posse da cidade, a primeira cousa que fez foi mandar desenterrar o Califa Yázit, que era dos primeiros que ali foram daquela linhagem Maraunion, havendo já muitos anos que era falecido, os ossos do qual com um auto púbrico mandou queimar. Porque sendo Hocém neto de Mafamede, seu legislador, filho de sua filha Aira e de Ali, seu sobrinho, dereitamente enlegido por califa como fora seu pai, Yázit, não somente 7 lhe não quisera obedecer, mas ainda teve modo como Hocém fosse morto, tudo por ele, Yázit, se levantar com o califado, o qual pessuiu tiranicamente, e assi todolos de sua linhagem, per muitos tempos. E não contente este Abedalá com tomar tal vingança deste Yázit, geralmente a toda sua parentela mandava matar com mil géneros de tormentos e lançar seus corpos no campo às feras e aves dele, dizendo serem todos escomungados e dinos de não ter sepultura, pois eram do sangue daquele péssimo homem que mandou derramar o do justo Hocém, ungido naquela dinidade de califa per o testamento de seu avô Mafamede. Da fúria e fogo das quais cruezas que este Abedalá fazia, saltou υa faísca que veo abrasar toda Espanha, e o caso procedeu per esta maneira: Antre alguns desta linhagem Maraunion que este capitão Abedalá perseguia, havia um homem poderoso, chamado Abedirramon, filho de Mauhiá e neto de Hóron, e bisneto de Abbedelmalec, o qual avô e bisavô em tempo passado foram também califas daquela cidade Damasco. E vendo ele a perseguição de sua linhagem e as cruezas que Abedalá nela fazia, temendo receber outros tais em sua pessoa, recolheu pera si os mais parentes que pôde, com outra gente solta, cuja vida era andar em guerras e roubos, e feito um grande exército de gente por autorizar sua pessoa, meio fugindo, veo ter a estas partes do Ponente. Onde, assi por ser da linhagem dos califas de Damasco, como por ser homem valeroso e cavaleiro de sua pessoa, foi mui bem recebido, e concorreu a ele tanta gente 10 arábia, da que já cá andava nestas partes dos Algarves de Além-mar, que, vendo-se tam poderoso em gente e opinião de seita, tomou ousadia a se intitular com novo nome, chamando-se príncipe dos crentes, nesta palavra arábia Miralmuminim, a que nós corruptamente chamamos Miramulim, e isto quási em opróbrio e reprovação dos califas da linhagem de Abás, que novamente foram levantados na Arábia, por cuja causa ele se desterrou daquelas partes de Damasco. E não se contentando ainda com este novo e soberbo nome, fundou a cidade Marrocos pera cadeira de seu estado e motrópoli daquela região (posto que algυas crónicas dos arábicos querem que a edificou Josep, filho de Jesfim, e outros que outro príncipe, como veremos em a nossa Geografia. A causa da fundação da qual cidade, dizem alguns deles que não foi tanto por glória que este Abedirramon teve da memória do seu nome, quanto em reprovação doutra que ouviu dizer que fundava o Califa Bujafar, irmão e sucessor do Califa Safá, que foi causa de se ele vir a estas partes. A qual cidade que este Bujafar fundou também era pera cadeira onde havia sempre de

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residir o seu ponteficado de califa, e é aquela a que ora os mouros chamam Bagodad, situada na província de Babilónia, nas 4 correntes do rio Eufrates. E segundo escrevem os párseos e arábios 8 no seu Zarigh, que alegamos, o qual temos em nosso poder em língua pársea, foi esta cidade Bagodad, fundada per conselho de um astrólogo gentio per nome Nobach, e tem por acendente o signo Sagitário, e acabou-se em quatro anos, e custou dezoito contos de ouro, da qual em a nossa Geografia faremos maior relação. Pois estando este novo Miralmuminim com potência em estado e número de gente, feito outro Nabucdenosor, pera castigo do povo de Espanha, totalmente seu filho Ulide que o sucedeu em nome e poder se fez senhor dela, per Muça e per outros seus capitães, em tempo del-Rei Dom Rodrigo, o derradeiro dos godos. Mas aprouve à divina misericórdia que este açoute de sua justiça tornasse logo atrás daquele ímpeto de vitórias, que per espaço de trinta meses teve, dando ânimo e favor àquele bem-aventurado príncipe Dom Pelaio, com que logo começou ganhar as terras que já estavam súbditas ao ferro e cruezas destes alarves. E procedendo estas vitórias em recobrar 11 Espanha per discurso de trezentos quorenta e tantos anos, vieram ter a el-Rei Dom Afonso, o sexto deste nome, de alcunha o Bravo, que tomou Toledo aos mouros. O qual, querendo satisfazer aos serviços e ajudas que lhe o Conde Dom Hanrique nesta guerra dos mouros tinha feito e dado, não achou cousa mais dina de sua pessoa, nem de maior galardão, que aceitá-lo por filho, dando-lhe por mulher a sua filha Dona Tareija e, em dote, todalas terras que naquele tempo eram tomadas aos mouros nesta parte da Lusitânia que ora é reino de Portugal, com todalas mais que ele podesse conquistar deles, em que entravam algυas de Andaluzia, porque em todas estas ele e seu filho el-Rei Dom Afonso Hanriques verteram seu sangue por as ganhar das mãos e poder dos mouros (como se verá em a outra parte da nossa escritura, chamada Europa). O qual dote e herança parece que foi dado com tal bênção per este católico rei Dom Afonso, que todolos seus descendentes que a herdassem, sempre tevessem contínua guerra com esta pérfida gente dos arábios. Porque, começando deste tempo té o presente, que é discurso de quatro-centos e tantos anos de idade deste reino de Portugal, depois que apartado da Coroa de Espanha teve este nome, assi permaneceu em continua guerra destes infiéis, que com verdade se pode dizer por ele, ter vestido mais armas que pelotes. Donde podemos afirmar que esta casa da Coroa de Portugal está fundada sobre sangue de mártires, e que mártires a dilatam e estendem por todo o Universo, se este nome podem merecer aqueles que, militando pola fé, oferecem suas vidas a Deus em sacrefício, e dotam suas fazendas a sumptuosos templos que fundaram; como vemos que fez el-Rei Dom Afonso Hanriques, primeiro fundador desta Casa Real, e o Conde Dom Hanrique, seu padre, e toda a nobreza e fidalguia que os seguia nesta confissão e defensão da fé, da qual verdade são testemunho mui dotados e 9 magníficos templos deste reino. E passados os primeiros anos da infância dele, que foi todo o tempo que esteve no berço em que nasceu, limitado na costa do Mar Oceano (porque o mais do sertão da terra, ficou na Coroa de Castela e a ele lhe não coube mais em sorte nesta nossa Europa), todo o trabalho daqueles príncipes que então o governavam, foi alimpar a casa desta infiel gente dos arábios que lha tinham ocupada do tempo da perdição de Espanha, té totalmente, a poder de ferro, os lançarem além-mar, com que se intitularam reis de Portugal e do Algarve. E assi estava limpa deles no tempo del-Rei Dom João o primeiro, que desejando ele derramar seu sangue na guerra dos infiéis, por haver a 12

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bênção de seus avós, esteve determinado de fazer guerra aos mouros do reino de Grada e por alguns inconvenientes de Castela, e assi por maior glória sua, passou além-mar em as partes de África, onde tomou aquela Metrópoli Ceita, cidade tam cruel competidora de Espanha, como Cartago foi de Itália. Da qual cidade se logo intitulou por senhor, como quem tomava posse daquela parte de África e deixava porta aberta a seus filhos e netos pera irem mais avante. O que eles mui bem compriram, porque não somente tomaram cidades, vilas e lugares, nos principais portos e forças dos reinos de Fez e Marrocos, restituindo à Igreja Romana a jurdição que naquelas partes tinha perdida depois da perdição de Espanha, como obedientes filhos e primeiros capitães pola fé nestas partes de África, mas ainda foram despregar aquela divina e real bandeira da milícia 4v de Cristo (que eles fundaram pera esta guerra dos infiéis) nas partes orientais da Ásia, em meio das infernais mesquitas da Arábia e Pérsia, e de todolos pagodes da gentilidade da Índia de aquém e de além do Gange, parte onde (segundo escritores gregos e latinos) excepto a ilustre Semirames, Baco e o grande Alexandre, ninguém ousou cometer. Com as quais vitórias que os reis deste reino houveram nestas três partes da terra - Europa, África e Ásia - ganhando reinos e estados, acrescentaram sua Coroa com novos e ilustres títulos que lhe deram com mais justiça do que alguns príncipes desta nossa Europa tem nos estados de que se intitulam, dos quais está em posse esta bárbara gente de mouros, sem os poderem vindicar per lei de armas. E os reis deste reino, sendo senhores do reino de Ormuz, cujo estado tem boa parte e a milhor da terra marítima da Arábia e da Pérsia, e senhores do reino de Cambaia com lhe ter tomado o marítimo dele, e senhores do reino de Goa, com as terras e ilhas a ela adjacentes, e senhores da riquíssima Malaca, situada na Áurea Quersoneso, tam celebrada dos geógrafos, e senhores das ilhas orientais de Maluco, Banda, etc., somente se intitulam por Reis de Portugal e dos Algarves, de Aquém e de Além-mar, senhores de Guiné e da conquista, 10 navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, como se estoutros reinos e senhorios nomeados não se governassem per suas leis e ordenaç“es e lhe não pagassem tributos e rendas, e eles lhe não tivessem o pescoço debaixo do escabelo de seus péis. 13 Mas como de cada υa destas partes em seu lugar mais copiosamente fazemos relação, ao presente (leixadas elas), pera se milhor entender o fundamento desta nossa Ásia, convém que saibamos como no título da real Coroa destes reinos, se compreendem três cousas distintas υa da outra, posto que antre si sejam tam correlativas, que υa não pode ser sem adjutório da outra, comunicando-se pera sua conservação: A primeira é conquista, a qual trata de milícia; a segunda navegação, a que responde a geografia, e a terceira comércio, que convém à mercadaria. Das quais partes querendo nós escrever sucessivamente como elas se foram adquerindo e ajuntando à Coroa deste reino, em lugar e tempo, por não confundir os méritos de cada υa das matérias, com adjutório divino que pera isso imploramos, per este modo trataremos delas. Quanto à parte da conquista, que é própria da milícia, esta, porque foi em todalas partes da terra, fazemos dela quatro partes de escritura (posto que em seis em a nossa Geografia dividamos todo o Universo): A primeira parte desta milícia chamamos Europa, começando do tempo que os romanos conquistaram Espanha, na qual guerra os portugueses per feitos ilustres teveram grã nome acerca deles, e del-Rei Dom Afonso Hanriques e seus sucessores. ‘ segunda parte chamamos África, cujo princípio é a tomada de Ceita. A terceira, que é esta que temos antre as mãos, o seu nome é Ásia, por tratar do descobrimento e conquista das terras e mares do Oriente, começando do tempo do Infante Dom Hanrique, que foi o primeiro inventor desta milícia austral e oriental. E a quarta (porque assi chamamos em a nossa Geografia à terra do Brasil) haverá nome Santa Cruz, nome próprio posto per Pedro Álvares Cabral, quando o ano de mil e quinhentos, indo pera a Índia, a descobriu, e aqui terá seu princípio. E de todas estas quatro partes da milícia, esta Oriental fenece ao presente no ano de mil e quinhentos e trinta e nove, onde acabamos de cerrar o número de quorenta

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livros, que compoem quatro Décadas, que quisemos tirar a luz, por mostra do nosso trabalho, té que venha outro curso de anos, que seguirá a estes na mesma ordem de Décadas, dando-nos Deus vida e lugar pera o poder fazer. Quanto ao título da navegação, a este respodemos com υa universal Geografia de todo o descoberto, assi em graduação de távoas como de comentário sobre elas, aplicando o moderno ao antigo, a qual não sofre compostura em linguagem, e por isso irá em latim. A parte do comércio, porque ele geralmente andava per 11 todalas gentes sem lei nem regras de prudência, somente se governava e regia pelo ímpeto da cobiça que cada um tinha, nós o reduzimos e posemos em arte com regras universais e particulares, como tem todalas ciências e artes activas pera boa polícia. Onde particularmente se verão todalas cousas de que os homens tem uso, ora sejam naturais, ora arteficiais, 5 com a natureza e calidade de cada υa delas (segundo o que podemos alcançar), com as mais partes de pesos, medidas, etc., que a esta matéria convém. E Deus é testemunha que em cada υa destas três partes, Conquista, 14 Navegação e Comércio, fizemos a diligência possível a nós e mais do que a ocupação do ofício e profissão de vida nos tem dado lugar. E quando em algυa delas desfalecermos na diligência e eloquência que convinha à verdade e majestade da mesma cousa, esse Deus onde estão todalas verdades, ordene que venha alguém menos ocupado e mais douto do que eu sou, pera que emende meus defeitos, os quais bem se podem recompensar com o zelo e amor que tenho à Pátria, por tirar a infâmia dalgυas fábulas e ignorâncias que andam na boca do vulgo, e per papéis escritos dinos de seus autores. Leixados meus defeitos, e assi esta geral preparação de toda a obra quási em modo de argumento e divisão dela, venhamos às causas que o Infante Dom Hanrique teve pera tomar tam ilustre impresa, como foi o descobrimento e conquista que deu fundamento a esta nossa Ásia, dos feitos que os portugueses fizeram no descobrimento e conquista das terras e mares do Oriente, como o diz o título desta nossa escritura.

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11 5 14 Capítulo II. Das causas que o Infante Dom Hanrique teve pera descobrir a costa ocidental da terra de África, e como João Gonçalves e Tristão Vaz descobriram a ilha do Porto Santo, por razão de um temporal que os ali levou. Depois que el-Rei Dom João, de gloriosa memória, o primeiro deste nome em Portugal, per força de armas tomou a cidade Ceita aos mouros, na passagem que fez em África, ficou o Infante Dom Hanrique, seu filho, terceiro génito, muito mais desejoso de fazer guerra aos infiéis. Porque se acrescentou à natural inclinação, que sempre teve, de exercitar este ofício de milícia por exalçamento da fé católica, não somente a gloriosa vitória que seu padre com tanto louvor de Deus e glória da Coroa deste reino alcançou na tomada desta cidade Ceita, de que ele, Infante, foi parte mui principal (segundo escrevemos em a outra nossa parte intitulada África, de que neste precedente capítulo fizemos menção), mas ainda foi acerca dele outra causa muito mais eficaz, que era a obrigação do cargo e administração 12 que tinha de governador da Ordem da Cavalaria de Nosso Senhor Iesu Cristo, que el-Rei Dom Dinis, seu tresavô, pera esta guerra dos infiéis ordenou e novamente constituiu. E se ante da tomada de Ceita, não pôs em obra este seu natural desejo foi porque já em seu tempo neste reino não havia mouros que conquistar, porque os reis seus avós (segundo dissemos) a poder de ferro os tinham lançado além-mar em as partes de África. E pera os ele lá ir buscar a comprir 15 o que lhe ficara por avoengo, e convinha per ofício, era necessário passar tam poderosamente como fez seu padre, na tomada de Ceita, pera que lhe conveo poer grande parte de seu estado, e ainda com tanto segredo, indústria e cautelas como nisso teve. Quanto mais que a mesma passagem que seu padre per muito tempo trazia guardada no peito, lhe foi maior empedimento, ca nunca quis que os mouros fossem encetados com entradas e saltos que os espertassem, e ele perdesse υa tam grande imprensa, como foi o cometimento e tomada daquela cidade Ceita. E posto que, com a posse dela, parecia este negócio de conquistar os mouros muito leve, por a entrada e porta que per aqui estava aberta, o Infante Dom Hanrique pera seu propósito achava tudo ao contrairo. Porque, vendo ele como os mouros do reino de Fez e Marrocos 5v ficavam per conquista metidos na Coroa destes reinos, por o novo título que seu pai tomou de senhor de Ceita, e que per esta posse real a impresa daquela guerra era própria dos reis deste reino, e ele não podia entrevir nisso como conquistador mas como capitão enviado, em o processo da qual guerra ele havia de seguir a vontade del-Rei e a desposição do reino e não a sua, assentou em mudar esta conquista pera outras partes mais remotas de Espanha, do que eram os reinos de Fez e Marrocos, com que a despesa deste caso fosse própria dele e não taxada per outrem, e os méritos de seu trabalho ficassem metidos na Ordem da Cavalaria de Cristo, que ele governava, de cujo tesouro podia despender, e também porque acerca dos homens lhe ficasse nome de primeiro conquistador e descobridor da gente idólatra, impresa que té o seu tempo nenhum príncipe tentou. Com o qual fundamento, pera que este seu propósito houvesse efeito, era mui deligente e curioso na inquisição das terras e seus moradores e de todalas cousas que pertenciam à geografia, dando-se muito a ela. Donde assi na tomada de Ceita, como as outras vezes que lá passou, sempre inqueria dos mouros as cousas de dentro do sertão da terra, principalmente das partes remotas aos reinos de Fez e Marrocos. A qual deligência lhe respondeu com o prémio que ele desejava, porque veo saber per eles, não somente das terras dos Algarves que são vezinhos aos desertos de África, a que eles chamam Sahará, mas ainda das que habitam os povos azenegues, que confinam com os negros de Jalof, onde se começa a região 13

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de Guiné, a que os mesmos mouros chamam Guinauha, dos quais recebemos este nome. Pois tendo o Infante esta informação aprovada per muitos que concorriam em υa mesma cousa, começou a poer em execuçao esta obra que 16 tanto desejava, mandando cada ano dous e três navios que lhe fossem descobrindo a costa além do Cabo de Não, que é adiante do Cabo da Guilo obra de doze léguas. O qual Cabo de Não era o termo da terra descoberta que os navegantes de Espanha tinham posto à navegação daquelas partes. E dado que, por causa das diligências e modos que nisto teve, ante que armasse os primeiros navios, ele estava bem informado das cousas de toda a costa da terra que os mouros habitavam, per meio deles, alguns quiseram afirmar, que, como era príncipe católico e de vida mui pura e religiosa, esta impresa mais lhe fora revelada que per ele movida. Porque, estando em υa vila que novamente fundara no reino do Algarve, na angra de Sagres, a que pôs nome Terçanabal, e ora se chama a Vila do Infante, um dia, em se levantando, sem preceredem mais cousas que as diligências que fazia pera ter informação das terras, mandou com tanta diligência armar dous navios, que foram os primeiros, como se naquela noite lhe fora dito que sem mais dilação nem inquirição do que perguntava mandasse descobrir. E não somente per conjectura desta pressa, mas ainda per outras que os seus notaram, dizem ser ele exortado per oráculo divino que logo o fizesse. Mas os navios que daquela vez e doutras foram e vieram nam descobriram mais que até o Cabo Bojador, que será de avante de Cabo de Não obra de sessenta léguas, e ali paravam todos, sem alguns ousar de cometer a passagem dele. Porque como este cabo começa de incurvar a terra de mui longe e, ao respeito da costa que atrás tinham descoberto, lança e boja pera Aloeste perto de quorenta léguas (donde deste muito bojar lhe chamaram Bojador), era para eles cousa mui nova apartar-se do rumo que levavam e seguir outro pera Aloeste de tantas léguas. Principalmente porque no rosto do cabo achavam υa restinga que lançava pera o mesmo rumo de Aloeste obra de seis léguas, onde, por razão das águas que ali correm naquele espaço, o baixo as move de maneira que parecem saltar e ferver, a vista das quais era a todos tam temerosa que não ousavam de as cometer, e mais quando viam o baixo. O qual temor cegava a todos, pera não entenderem que, afastando-se do cabo o espaço das seis léguas que ocupava o baixo, podiam passar além; porque, como eram costumados às navegações que então faziam de Levante a Ponente, levando sempre a costa na mão por rumo de agulha, não sabiam cortar tam largo que salvassem o espaço da restinga, somente com a vista do ferver destas águas e baixo que achavam, concebiam que o mar dali por diante era todo aparcelado, e que não se podia navegar, e que esta fora acausa por que os povoadores 14 desta parte da Europa não se estenderam a navegar contra aquelas regiões. Alguns que entendiam acerca das cousas naturais queriam dar causa 17 por que o mar daquelas terras quentes não era tam profundo como o das terras frias, dizendo que o sol queimava tanto as terras que jaziam debaixo do seu curso, que com justa causa estava assentado per todolos filósofos serem terras onde se não podia habitar por razão do ardor dele, e que este ardor era o que consumia as águas doces, que geralmente se produzem do coração da terra, e as salgadas eram das que o mar frio espraiava naquelas praias quentes, de maneira 6 que a navegação das tais regiões eram mais praias cobertas de baixos que mar navegável. Os capitães que o Infante enviava a este descobrimento, quando se tornavam pera este reino, parecendo-lhe que o compraziam por saberem que sua natureza e inclinação era fazer guerra aos mouros, vinham-se pela costa da Berberia té o Estreito, onde faziam algυas entradas e saltos nas povoações deles, com que se apresentavam ante ele alegres de suas vitórias. Mas o desejo do Infante com estas tais presas não ficava satisfeito, porque todo estava posto na esperança que lhe o espírito prometia se prosseguisse naquela impresa, da qual algυas vezes desistia, porque os negócios do reino e as passagens que fez aos lugares de África o empediam a não levar o fio deste

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descobrimento tam continuado como ele desejava. E vindo do grande cerco de Ceita (como se na parte de África contém), depois que estes negócios algum tanto lhe deram lugar, falaram-lhe dous cavaleiros de sua casa que naquelas idas de Além o tinham mui bem servido, pedindo-lhe muito que, pois sua mercê armava navios pera descobrir a costa de Berberia e Guiné, lhe aprouvesse irem eles em algum navio a este descobrimento, ca sentiam em si que nele o poderiam bem servir O Infante, vendo suas boas vontades e conhecendo deles serem homens pera qualquer honrado feito pela experiência que tinha de seus serviços, mandou-lhe armar um navio, a que chamavam barca naquele tempo, e deu-lhes regimento que corressem a costa de Berberia té passarem aquele temeroso Cabo Bojador, e ali fossem descobrindo o que mais achassem; a qual terra, segundo mostravam as Távoas de Ptolomeu, e assi pela informação que tinha dos alarves, sabia ser contínua υa a υa, té se meter debaixo da Linha Equinocial, peró que nam tevesse notícia da navegação da sua costa. Nosso Senhor, como por sua misericórdia queria abrir as portas de tanta infidelidade e idolatria pera salvação de tantas mil almas, que o demónio no centro daquelas regiões e províncias bárbaras tinha cativas, sem notícia dos méritos da nossa Redenção, partidos estes dous cavaleiros em sua barca, começou nesta viagem obrar seus mistérios, demonstrado-nos e descobrindo a grandeza dos mundos e terras que pera nós tinha criado 15 com tantos tesouros e riquezas como em si continham. As quais terras havia tantos mil anos que por nossos pecados, ou pelas 18 enormes e torpes idolatrias de seus moradores, ou per outro qualquer juízo oculto, estavam cerradas e de nós bem esquecidas, sem haver príncipe ou rei de quantos foram em Espanha que este descobrimento cometesse, como lemos que tomaram outras impresas que nam trouxeram tanto louvor à Igreja de Deus, nem a suas Coroas tanta glória e acrecentamento como lhe esta podia dar. Parece que assi como em o Velho Testamento lemos que Deus não consentiu que Davide, sendo a ele tam aceito, lhe edificasse templo por ser barão que trazia as mãos tintas de sangue humano das guerras que teve, e quis que este templo material lhe edificasse Salamão, seu filho, por ser rei pacífico e limpo deste sangue, assi permetiu estar parte do Mundo tantas centenas de anos encoberta e escondida. Porque tam grande cousa como era a edificação da sua Igreja nestas partes da idolatria, convinha que fosse per um barão tam puro, tam limpo, e de coração tam virginal como foi este Infante Dom Hanrique que abriu os aliceces dela, e per outro tam cristianíssimo e zelador da Fé e honra de Deus, como foi el-Rei Dom Manuel, seu sobrinho e neto adoutivo, que depois, como adiante veremos, muito trabalhou na edificação desta Igreja oriental, metendo grande parte do povo idólatra em o curral do Senhor, e como um novo apóstolo levou o seu nome per todalas gentes. E assi permitiu que este descobrimento, pela majestade dele, passasse pela lei que tem as grandes cousas, as quais, quando se querem mostrar a nós, tem uns princípios trabalhosos e casos não pensados e de tanto perigo, como passaram estes dous cavaleiros que o Infante mandou descobrir. Porque, ante que chegassem à costa de África, saltou com eles tamanho temporal com força de ventos contrairos à sua viagem, que perderam a esperança das vidas, por o navio ser tam pequeno e o mar tam grosso que os comia, correndo a árvore seca, à vontade dele. E como os marinheiros naquele tempo não eram costumados a se engolfar tanto no pego do mar, e toda sua navegação era per singraduras sempre à vista de terra, e segundo lhes parecia eram mui afastados da costa deste reino, andavam todos tam torvados e fora do seu juízo pelo 6v temor lhe ter tomado a maior parte dele, que não sabiam julgar em que paragem eram. Mas aprouve à piadade de Deus, que o tempo cessou, e, posto que os ventos lhe fizeram perder a viagem que levavam segundo o regimento do Infante, não os desviou de sua boa fortuna, descobrindo a ilha a que agora chamamos Porto Santo, o qual nome lhe eles então poseram, porque os segurou do perigo que nos dias da fortuna passaram. E bem lhe pareceu que terra em parte não

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esperada, não somente lha deparava Deus pera sua salvação, mas ainda pera bem e proveito 16 destes reinos, vendo a desposição e sítio dela, e 19 mais não ser povoada de tam fera gente como naquele tempo eram as Ilhas Canárias, de que já tinham notícia. Com a qual nova, sem ir mais avante, se tornaram ao reino, de que o Infante recebeu o maior prazer que té aquele tempo desta sua impresa tinha visto, parecendo-lhe que era Deus servido dela, pois já começava ver o fructo de seus trabalhos. E acrecentava mais a este seu prazer, dizerem aqueles dous cavaleiros, a um dos quais chamavam João Gonçalves Zarco, de alcunha, e ao outro Tristão Vaz, que vinham tam contentes dos ares, sítio e fresquidão da terra, que se queriam lá tornar a povoá-la, por verem que era mui grossa e azada pera fructificar todalas sementes e plantas de proveito. E não somente eles e os outros de sua companhia que a viram, mas ainda muitos polo que dela ouviam, e também por comprazer ao Infante, se ofereceram a ele com este propósito de a povoar; antre os quais foi υa pessoa notável, chamado Bertolameu Perestrelo, que era fidalgo da casa do Infante Dom João, seu irmão. Vendo ele, Infante Dom Hanrique, o alvoroço com que se já os homens despunham a este negócio, convertia-se a Deus, dando-lhe muitas graças, pois lhe aprouvera ser ele o primeiro que descobrisse a este reino, princípio de outros em que o coração da gente português se estendesse pera seu serviço. Pera a qual ida logo com muita deligência mandou armar três navios, um dos quais deu a Bertolameu Perestrelo, e os outros dous a João Gonçalves e a Tristão Vaz, primeiros descobridores, indo mui apercebidos de todalas sementes e plantas e outras cousas, como quem esperava de povoar e assentar na terra. Antre as quais era υa coelha, que Bertolameu Perestrelo levava prenhe, metida em υa gaiola, que pelo mar acertou de partir, de que todos houveram muito prazer e teveram por bom pronóstico, pois já pelo caminho começavam dar fructo as sementes que levavam, e aquela coelha lhe dava esperança da grande multiplicação que haviam de ter na terra. E certo que esta esperança da multiplicação da coelha os não enganou, mas foi com mais pesar que prazer de todos; porque, chegados à Ilha e solta a coelha com seu fructo, em breve tempo multiplicou em tanta maneira, que não semeavam ou plantavam cousa que logo não fosse roída. O que foi em tanto crecimento per espaço de dous anos que ali esteveram, que quási importunados daquela praga, começou de avorrecer a todos o trabalho e modo de vida que ali tinham, donde Bertolameu Perestrelo determinou de se vir pera o reino, ou per qualquer outra necessidade que pera isto teve.

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17 6v 20 Capítulo III. Como João Gonçalves e Tristão Vaz, partindo Bertolameu Perestrelo, descobriram a ilha a que agora chamam da Madeira, a qual o Infante Dom Hanrique repartiu em duas capitanias, υa chamada do Funchal, que deu a João Gonçalves, e a outra Machico, que houve Tristão Vaz. João Gonçalves e Tristão Vaz, como eram chamados pera milhor fortuna e mais prosperidade, não se quiseram vir pera o reino nem menos fazer assento naquela ilha, mas, partido Bertolameu Perestrelo, determinaram de ir ver se era terra υa grande sombra que lhe fazia a Ilha a que ora chamamos da Madeira. Na qual havia muitos dias que se não determinavam, porque, por razão da grande humidade que em si continha com a espessura do arvoredo, sempre a viam afumada daqueles vapores, e parecia-lhe serem nuvens grossas e outras vezes afirmavam que era terra, porque, demarcando aquele lugar com a vista, não o viam 7 desassombrado como as outras partes. Assi que, movidos deste desejo, em dous barcos que fizeram da madeira da ilha em que estavam, vendo o mar pera isso desposto, passaram-se a ela, a que chamaram da Madeira, por causa do grande e mui espesso arvoredo de que era coberta. Nome já mui celebrado e sabido per toda a nossa Europa, e assi em muitas partes de África e Ásia, por os fructos da terra de que todas participam, e ela tam nobre, fértil e generosa em seus moradores, que, tirando Ingraterra, mui antiquíssima em povoação e ilustre com majestade dos seus reis, em todo o Mar Oceano, ocidental a esta nossa Europa, ela se pode chamar princesa de todas. O que a fama tem da ida destes dous capitães e sua saída em terra, é que João Gonçalves com o seu barco saiu onde ora chamam Câmara de Lobos, junto do Funchal, e Tristão Vaz saiu na Ponta de Tristão, a que ele então deu nome, e que da saída que cada um fez nestes lugares lhe coube a sorte da terra que lhe foi dada pelo Infante em capitania. Os herdeiros de João Gonçalves tem escritura mui particular deste descobrimento, e querem que toda a honra e trabalho dele lhe seja dada, dizendo que Tristão Vaz não era homem de tanta idade nem calidade como João Gonçalves, somente que era chegado a ele per amizade e companhia, e que, como homem mancebo e desta conta, sempre era nomeado por Tristão. Os quais, chegando ambos em um barco do mesmo João Gonçalves, saíram naquele lugar chamado ora a Ponta de Tristão, e ali o leixou João Gonçalves, dizendo que em quanto ele ia no batel dar υa volta à ilha buscar outro porto, que entrasse ele ver a terra per dentro. E que ficando ali Tristão, ele viera em seu barco ter a parte a que ora 18 chamam o Funchal, do qual sítio 21 e desposição de terra, quanto de fora se podia julgar, ele ficou contente. E tornado onde leixara Tristão, lhe deu toda aquela terra que lhe depois foi dada em capitania, isto em nome do Infante, por trazer regimento e comissão sua pera o poder fazer. Gomes Eanes de Zurara, que foi cronista destes reinos, de cuja escritura nós tomamos quási todo o processo do descobrimento de Guiné (como se adiante verá) em soma diz que ambos estes cavaleiros descobriram esta ilha, peró sempre nomea a Tristão Vaz por Tristão, como pessoa menos principal. Nós, leixado o particular desta precedência, basta pera nossa história saber como ao tempo que João Gonçalves saiu em terra, era ela tam coberta de espesso e forte arvoredo, que não havia outro lugar mais descoberto que υa grande lapa, ao modo de câmara abobadada que se fazia

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debaixo de υa terra soberba sobre o mar, o chão da qual lapa estava mui sovado dos pés dos lobos marinhos que ali vinham retouçar; ao qual lugar ele chamou Câmara de Lobos, e tomou este apelido em memória que naquele lugar foi a primeira entrada de sua povoação. O qual apelido ficou a todolos seus herdeiros, e alguns se chamam da Câmara somente, e peró todos trazem por armas - se são as que deram a João Gonçalves - um escudo verde e υa torre de menagem de prata coberta, e dous lobos de sua cor pegados nela, e na ponta do coruchéu da torre υa cruz de ouro. O Infante, depois que estes capitães vieram ao reino com a nova desta ilha, per consentimento del-Rei Dom João, seu padre, a repartiu em duas capitanias: a João Gonçalves, deu a que chamamos do Funchal, onde está a cidade nomeada deste lugar com as demarcações que a ela pertencem, de que ora seus herdeiros são capitães de juro e herdade, segundo se contém em suas doações; e a Tristão Vaz deu a outra onde está a povoação de Machico, cujos sucessores a teveram té o ano de quinhentos e quorenta , onde se quebrou seu legítimo herdeiro, segundo tinham per sua doação, da qual el-Rei Dom João o terceiro, nosso senhor, neste mesmo tempo fez doação dela de juro e herdade a António da Silveira de Meneses, filho de Nuno Martins da Silveira, senhor de Góis, em satisfação dos serviços que fez na Índia em o cerco da cidade Dio do reino Guzarate, onde estava por capitão quando foi cercado per Soleimão Bassá, Capitão-mor da armada do Turco, (como se verá em seu lugar). E afora o mérito que estes capitães teveram naquele descobrimento pera lhes ser feita mercê daquelas capitanias, havia outros de suas pessoas e serviço per que cabia neles toda a honra: porque, em as idas de além, principalmente em o cerco de Ceita, quando foi o desbarato dos mouros no dia da chegada onde se eles acharam, e assi no cerco de Tânger, ambos o fizeram honradamente e o Infante os armou cavaleiros. E que nesta parte os méritos de ambos fossem comuns, 19 em João 7v Gonçalves particularmente havia os da nobreza do seu sangue, o que parece 22 responder a lhe ser dada maior parte na repartição da ilha; sempre depois precedeu em honra aos capitães de Machico. Porém quanto aos trabalhos que cada um teve em povoar o que lhe coube em sorte, ambos são dinos de muito louvor; e começaram esta obra da povoação no ano do nacimento de Nosso Senhor Iesu Cristo de mil quatro centos e vinte. No princípio da qual povoação, poendo João Gonçalves fogo naquela parte onde se ora chama o Funchal, em υa roça que fez pera descobrir a terra do arvoredo e rama que tinha per baixo e nela lançar algυas sementes, assi tomou o fogo posse da roça e do mais arvoredo, que sete anos andou vivo no bravio daquelas grandes matas que a natureza tinha criado havia tantas centenas de anos. A qual destruição de madeira, posto que foi proveitosa pera os primeiros povoadores - logo em breve começarem lograr as novidades da terra - os presentes sentem bem este dano, por a falta que tem de madeira e lenha; porque mais queimou aquele primeiro fogo do que de então té ora podera decepar força de braço e machado. Cousa que o Infante muito sentiu e parece que como profecia viu esta necessidade presente que a ilha tem de lenha, porque dizem que mandava que todos plantassem matas, polo negócio dos açúcares, de que a ilha logo deu mostra, gastar tanta que era certo vir a esta necessidade. E a primeira igreja que o Infante mandou fundar foi Nossa Senhora do Calhau; e depois que a ilha começou a multiplicar em povoações, se fundou Nossa Senhora da Assunção que ora é Sé Catedral, Arcebispado Primaz das Índias. Depois, no ano de mil quatrocentos trinta e três, em a vila de Sintra, a vinte seis de Setembro, el-Rei Dom Duarte, irmão deste Infante, lhe fez doação dela em dias de sua vida, e, no ano seguinte, em a mesma vila, a vinte seis de Outubro, deu todo o espiritual dela à Ordem de Cristo; as quais doações depois lhe foram confirmadas per el-Rei Dom Afonso, seu sobrinho, o ano de mil quatro centos e trinta e nove. E por as cousas desta ilha serem a nós já mui manifestas e sabidas, deixamos de escrever da

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fertilidade dela; somente se pode notar ser cousa tam grossa, que alguns anos rendeu o quinto dos açúcares ao Mestrado de Cristo passante de sessenta mil arrobas, e esta novidade se havia em terra que ocupava pouco mais de três léguas. A Ilha do Porto Santo deu o Infante a Bertolameu Perestrelo que a povoasse, o que lhe foi mui trabalhosa cousa, por causa dos coelhos que os moradores não podiam vencer; dos quais ainda hoje em um ilhéu que está pegado a ela, é tanta a multidão que parecem bichos, e passou já de três mil υa matança que se neles fez. Também houve outra causa de se esta ilha não povoar como a da Madeira, e foi por não haver nela ribeiras de regadio pera as fazendas dos moradores, com que Bertolameu 20 Perestrelo ficou com menos sorte que os outros capitães, cuidando o Infante naquele tempo que lhe ficava a milhor.

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20 7v 23 Capítulo IV. Das murmurações que o povo do reino fazia contra este descobrimento. E como, havendo doze anos que nele se prosseguia, um Gil Eanes passou o Cabo Bojador tão temeroso na opinião das gentes. Com o descobrimento destas duas ilhas, começou o Infante a se esforçar mais em o seu principal intento, que era descobrir a terra de Guiné, por haver já doze anos que trabalhava nisso contra parecer de muitos, sem achar algum final pera satisfação daqueles que haviam este negócio por cousa sem fructo e mui perigosa a todolos que andavam nesta carreira, por este comum provérbio que traziam os mareantes: Quem passar o Cabo de Não, ou tornará ou não. E era tam assentado o temor desta passagem no coração de todos, por herdarem esta opinião de seus avós, que com muito trabalho achava o Infante quem nisso o quisesse servir, peró que já o descobrimento da ilha da Madeira desse algum ânimo aos navegantes. Porque diziam muitos, que como se havia de passar um cabo que os mareantes de Espanha poseram por termo e fim da navegação daquelas partes, como homens que sabiam não se poder navegar 8 o mar que estava além dele, assi por as grandes correntes, como por ser mui aparcelado, e com tanto fervor das aguagens que sorvia os navios? E mais que a terra que o Infante mandava buscar não era terra, mas uns areais como os desertos de Líbia de que falavam os escritores, por ela ser υa parte a mais ocidental dela, de que já tinha experiência em as sessenta léguas de costa que estavam ante do cabo Bojador. E não somente os mareantes, mas ainda outras pessoas de mais calidade diziam: Certamente nós não sabemos que opinião foi esta do Infante, nem que fructo ele espera deste seu descobrimento, senão perdição de quanta gente vai em os navios, pera ficarem muitos órfãos e viúvas no reino, além da despesa de suas fazendas, pois o perigo e o gasto ambos estão manifestos e o proveito tam incerto como todos sabemos. Porque sempre aí houve reis e príncipes em Espanha desejosos de grandes impresas, e tam cobiçosos de buscar e descobrir novos estados como o Infante, e não vemos nem lemos em suas crónicas que mandassem descobrir esta terra, tendo-a por tam vezinha. Mas como cousa de que não esperavam honra ou proveito algum leixaram de a descobrir, contentando-se com a terra que ora temos, a qual Deus deu por termo e habitação dos homens; e se algυa houver onde o Infante diz, devemos crer que ele a deixou pera pasto dos brutos. Ca, 21 segundo os antigos escreveram das partes do Mundo, todos afirmam que esta per que o sol anda a que eles chamam tórrida zona, não é habitada. Ora onde o Infante manda descobrir, é já tanto dentro no fervor do sol, que de brancos que os homens 24 são, se lá for algum de nós, ficará (se escapar) tam negro como são os guinéus, vezinhos a esta quentura. Se ao Infante parece que, como ora achou estas duas ilhas que o tem mais elevado neste descobrimento, pode achar outras terras ermas, grossas e fértiles, como dizem que elas são, terras e maninhos há no reino pera romper e aproveitar sem perigo de mar, nem despesas desordenadas. E mais temos exemplos contrairos a esta sua opinião, porque os reis passados deste reino sempre dos reinos alheos pera o seu trouxeram gente a este a fazer novas povoações, e ele quere levar os naturais portugueses a povoar terras ermas per tantos perigos de mar, de fome e sede, como vemos que passam os que lá vão. Certo que outro exemplo lhe deu seu padre poucos dias há, dando os maninhos de Lavra junto de Coruche a Lambert de Orches, alemão, que os rompesse e povoasse com obrigação de

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trazer a ele moradores estrangeiros de Alemanha; e não mandou seus vassalos passar além-mar, romper terras que Deus deu por pasto dos brutos. E bem se viu quanto mais naturais são pera eles que pera nós, pois em tam poucos dias υa coelha multiplicou tanto que os lançou fora da primeira ilha, quási como amoestação de Deus que há por bem ser aquela terra pastada de alimárias e não habitada per nós. E quando quere que nestas terras de Guiné se achasse tanta gente como o Infante diz, não sabemos que gente é, nem o modo de sua peleja; e quando fosse tam bárbara como sabemos que é a das Canárias, a qual anda de penedo em penedo como cabras às pedradas contra quem os quere ofender, nós que proveito podemos ter de terra tam estérele e áspera e cativar gente tam mesquinha? Certo nós não sabemos outro, senão virem eles encarentar o mantimento da terra e comerem nossos trabalhos, e por cobrarmos um comedor destes, perdermos os amigos e parentes! Estas e outras cousas dizia a gente naquele tempo, vendo com quanto fervor e desejo o Infante procedia neste descobrimento de Guiné. A qual conquista durou per espaço de doze anos, sem neste tempo algum de quantos navios mandou ousar passar o Cabo Bojador. Porém quando os capitães tornavam, faziam algυas antradas na costa de Berberia (como atrás dissemos) com que eles refaziam parte da despesa, o que o Infante passava com sofrimento, sem por isso mostrar aos homens descontentamento de seu serviço, dado que não comprissem o principal a que eram enviados. Porque, como era príncipe católico e todalas suas cousas punha em as mãos de Deus, parecia-lhe que não era merecedor que per ele fosse descoberto o que tanto tempo havia que estava escondido aos príncipes passados de Espanha. Contudo, 22 porque sentia em si um estímulo de virtuosa perfia que o não deixava descansar em outra cousa, parecia-lhe que era ingratidão Deus dar-lhe estes movimentos que não desistisse da obra, e ele ser a isso negligente. 25 As quais inspirações assi o incitavam, que mandou armar υa barca, a capitania da qual deu a um Gil Eanes, 8v seu criado, natural da vila de Lagos, que já o ano passado fora a este descobrimento. E por lhe os tempos não terçarem bem, se foi às Canárias, e em alguns saltos que fez, tomou certos cativos, com que se tornou pera o reino. E porque o Infante se mostrou mal servido dele por este feito, ficou tam descontente de si, que nesta segunda viagem determinou de oferecer a vida a todolos perigos, e não vir ante o Infante sem mais certo recado do que trouxera o ano passado. E a este seu propósito se ajuntou a boa fortuna, ou, por melhor dizer, a hora em que Deus tinha limitado o curso de tanto receo como todos tinham de passar aquele Cabo Bojador, o qual nome lhe ele então pôs pelas razões que atrás dissemos, não tendo té àquele tempo algum acerca de nós, e segundo a sua situação, podemos dizer ser aquele o cabo a que Ptolomeu chama Ganaria Promontório. E posto que a obra desta passagem não foi grande em si (quanto agora), então lhe foi contada por um grande feito, e houveram que era igual a um dos trabalhos de Hércules. Porque com esta passagem desfez a vã opinião que toda Espanha tinha, e deu ânimo àqueles que não ousavam seguir este descobrimento. Tornado Gil Eanes ao reino com esta nova, foi recebido do Infante com aquele prazer que se tem das cousas tam desejadas e per tanto tempo e trabalho requeridas como eram aquelas, e agalardoou sua pessoa, e assi os da sua companhia, com honra e mercê. E o que mais animou o Infante a esta impresa, foi contar-lhe Gil Eanes como saíra em a terra sem achar gente ou povoação algυa, e que lhe parecera mui fresca e graciosa, e que em sinal de não ser tam estérele como as gentes diziam, trazia ali a Sua Mercê, em um barril cheo de terra, υas ervas que se pareciam com outras que cá no reino tem υas flores a que chamam rosas de Santa Maria. As quais, sendo trazidas ante o Infante, ele as cheirava e tanto se gloriava de as ver, como se fora algum fructo e mostra da Terra de Promissão, dando muitos louvores a Deus; e pedia a Nossa Senhora, cujo nome aquelas ervas tinham, que encaminhasse as cousas daquele descobrimento pera louvor e glória de Deus e

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acrescentamento de sua santa Fé. E não somente o Infante cuja era esta impresa, mas ainda el-Rei Dom Duarte, seu irmão, que então reinava, ficou mui contente deste feito, tanto pela honra do Infante, por saber as murmurações que andavam no reino desta sua impresa, como por o proveito que ele e os seus naturais nisso podiam ter. O qual logo pubricamente quis mostrar este contentamento, porque estando em a vila de Sintra onde lhe foi dada 23 pelo Infante esta nova, ele fez doação de todo o espiritual das Ilhas da Madeira, Porto Santo e Deserta ao Mestrado de Cristo, de que ele, Infante, era governador, e disso lhe passou 26 carta a vinte seis de Outubro da era de mil quatrocentos trinta e três anos, pedindo nela ao papa que o confirmasse. E no mesmo tempo lhe fez mercê a ele, Infante, das ditas ilhas em dias de sua vida, com toda jurdição de cível e crime, segundo em a doação se contém.

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23 8v 26 Capítulo V. Como o Infante mandou Afonso Gonçalves Baldaia, seu copeiro, por capitão de um barinel, e Gil Eanes, o que passou o Cabo Bojador, em sua barca, e como tornaram segunda vez no ano seguinte, e da peleja que houveram com uns alarves dous moços que saíram em terra. O ano seguinte de trinta e quatro, como o Infante estava informado per Gil Eanes da maneira da terra e da navegação ser menos perigosa do que se dizia, mandou armar um barinel, que foi o maior navio que té então timha enviado, por já estar fora da suspeita que se tinha dos baixos e parcel que diziam haver além do cabo, a capitania do qual deu a Afonso Gonçalves Baldaia, seu copeiro; e em sua companhia foi Gil Eanes em sua barca, os quais com tempo, além do cabo já descoberto, correram obra de trinta léguas. E, saídos em terra, acharam rasto de homens e camelos, como que passavam em cáfila de υa parte a outra, e, sem mais outra cousa, depois de notarem a maneira e desposição da terra, ou porque assi lhe fora mandado, 9 ou per qualquer outra necessidade que a isso os obrigou, se tornaram pera o reino, e ficou nome àquele lugar onde chegaram - Angra dos Ruivos, pola grande pescaria que ali fizeram deles. O Infante, sabendo per eles o que acharam, no seguinte ano os tornou enviar, encomendando-lhe que trabalhassem por passar mais avante, té chegar a terra povoada onde podesse ver língua pera se informar dela. Nesta segunda viagem, como já navegavam com menos temor, em breve tempo passaram além do que tinham descoberto doze léguas, e onde lhe a terra pareceu chã e descoberta, lançaram fora dous cavalos que o Infante mandara levar pera aquele mister, em os quais Afonso Gonçalves mandou cavalgar dous moços. E por os não cansarem pera qualquer corrida, se lhe necessário fosse, não consentiu que levassem armas defensivas, e também, por lhe não dar nelas confiança pera poderem pelejar, somente levaram lanças e espadas, e 27 recado que não fizessem mais que descobrir a terra, e isto sem se apartar um do outro, nem menos se apeassem; e porém vendo algυa pessoa que eles sem seu perigo podesse prender, que o fizessem. Seria cada um destes mancebos de quinze 24 até dezassete anos, e bem mostraram no acometimento deste feito quem depois haviam de ser. Porque com tanto ânimo partiram ao que lhe Afonso Gonçalves mandava, como se toram passear a um campo mui sabido e seguro. E quis Deus que a este seu esforço não desfaleceu bom acontecimento; porque, sendo já passada a maior parte do dia da menhã que partiram, acharam juntos dezanove homens, cada um com seu dardo na mão à maneira de azagaias. E como deram de súbito sobre eles, sem ter lugar pera não serem vistos e se tornar ao navio dar esta nova, peró que lhe era defeso cometerem tal cousa, houveram que caíam mais em culpa de suas honras, se lhe fugissem, que em desobediência de seu capitão, se os cometessem. Com o qual propósito remeteram a eles, cuidando que os podesse alcançar, mas os mouros teveram milhor cuidado de si; porque, tanto que os viram, espantados de tamanha novidade, primeiro que se eles determinassem, se acolheram a υa furna que estava debaixo de uns penedos. Os mancebos, vendo que se não podiam ajudar deles à sua vontade, depois que pelejaram um bom pedaço, - feriram alguns, e um deles também ficou ferido em um pé de υa azagaia de arremesso, deixaram-nos de todo, e vieram em busca do navio que, por serem mui apartados já dele, não

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poderam tomar senão ao outro dia pela menhã. Onde foram recebidos com grande festa e honra, de que eles eram merecedores, ca não foi este seu caso tam pequeno que não possa ser estimado por um honrado feito. Porque quem consirar a idade deles e a estranheza de terra. e quanta fábula a gente de Espanha dela dizia, e os temores que tinham concebido do que nela havia, haverá que foi obra de generoso e esforçado ânimo, entrar per ela tam longe, quanto mais cometer dezanove homens de figura tam disforme, que somente esperar a vista deles era assaz ousado. Mas isto é próprio da virtude e nobreza do sangue: em qualquer idade logo se mostra, ainda que seja nos maiores perigos da vida. E por não ficarem sem o mérito que se deve àqueles que à custa do seu suor e sangue servem a Deus e a seu Rei; e mais, pois estes foram os primeiros que por estas duas causas o derramaram naquelas partes, é bem que se saiba que a um chamavam Heitor Homem, e a outro Diogo Lopes de Almeida, ambos homens fidalgos e especiais cavaleiros, criados na escola da nobreza e virtude daquele tempo, que foi a casa deste excelente príncipe Infante Dom Hanrique. Afonso Gonçalves, informado per eles do lugar onde ficavam os 28 mouros, determinou com gente de os ir buscar, peró todo seu trabalho se converteu em trazer o despojo que aquela gente bárbara com temor deixou na furna da contenda, o qual despojo de pobreza foi mais por sinal da vitória daqueles novéis cavaleiros que por sua valia. Com o qual feito, além do nome que eles ganharam pera si, também o deram com a sua saída àquele lugar que 25 ora chama a Angra dos Cavalos, que com mais razão se podia chamar dos primeiros cavaleiros naquela parte da Líbia Deserta. Partido dali Afonso Gonçalves, obra de doze léguas, foi dar em um rio, à entrada do qual, em υa coroa que se fazia no meio, viram jazer tanta multidão de lobos marinhos, que foram assomados em número de cinco mil, dos quais mataram boa soma, de que trouxeram as peles, por naquele tempo ser cousa mui estimada. Mas como nenhυa destas cousas contentava a Afonso Gonçalves, pois não levava ao Infante um daqueles mouros, com desejo de achar outros passou mais adiante, té υa ponta a que ora chamam a Pedra de Galé, nome que lhe ele 9v então pôs, por a semelhança que mostra a quem a vê de longe; no qual lugar achou υas redes de pescar que parescia ser feito o fiado delas do entrecasco dalgum pau, como ora vemos o fiado da palma que se faz em Guiné. E porque aqueles eram sinais da terra povoada, fez pera aquela costa algυas saídas, sem achar povoação nem poder haver o que desejava levar ao Infante; e sem mais outro feito, por ter os mantimentos gastados, se tornou pera o reino.

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25 9v 28 Capítulo VI. Como Antão Gonçalves foi fazer matança de lobos marinhos, e das saídas que fez em terra por si e com Nuno Tristão que depois se ajuntou com ele, em que tomaram doze almas; e do mais que passou Nuno Tristão. Até o ano de trinta e nove não achamos cousa notável que se fizesse neste descobrimento, porque em este meio tempo faleceu el-Rei Dom Duarte, irmão do Infante Dom Hanrique, e leixou o Príncipe Dom Afonso, seu filho, que reinou em idade de seis anos; e por causa das suas tutorias houve tantas dissensões e diferenças no reino, que cessaram todalas cousas deste descobrimento, té o ano de quorenta, em que o 29 Infante mandou duas caravelas, as quais, per tempos contrairos e acontecimentos não muito prósperos, se tornaram ao reino sem cousa dina deste lugar. E no seguinte ano, por as cousas do reino andarem já mais em algum assossego e o Infante livre pera poder entender nesta sua impresa, mandou armar um navio pequeno em que foi por capitão Antão Gonçalves, seu guarda-roupa, que ainda era homem mancebo, afim que, quando não podesse haver algυa língua da terra, carregasse o navio de coirama das peles dos lobos marinhos, no lugar que dissemos que Afonso Gonçalves fez a matança deles. Peró Antão Gonçalves, como era homem a quem a honra mais obrigava que a cobiça da coirama e azeite de lobos, dado que em breve tempo, tanto que chegou, fez sua matança com que se podera tornar bem carregado, chamou a um Afonso Goteres, moço da câmara do Infante, que ia por escrivão do navio, e assi toda a mais companha dele, que 26 seriam per todos vinte υa pessoa, e disse-lhes: - Amigos, nós temos feito parte daquilo a que somos enviados, que era carregar este navio. E dado que os servos muito mereçam em acabar os mandados de quem os envia, maior louvor será se fizermos o que o Infante mais deseja, que é levar-lhe algυa língua desta terra. Porque a sua tenção neste descobrimento não é afim da mercadoria que levamos, mas buscar gente desta terra, tam remota da Igreja, e a trazer ao baptismo, e, depois, ter com eles comunicação e comércio pera honra e proveito do reino. - E pois isto a todos é mui notório, justa cousa me parece trabalharmos por levar algum dos moradores desta terra; porque, a meu ver, se Afonso Gonçalves per esta comarca, per onde este rio vem, achou gente, buscando nós bem, per força devemos achar algυa povoação. - Acerca do qual caso me parece, que seria bem sairmos esta noite dez ou doze homens em terra, daqueles que mais dispostos se achassem pera isso. E espero em Nosso Senhor que com vossa ajuda nos iremos desta terra mais honrados que quantos té ora vieram a ela. Afonso Goteres e toda a companha do navio louvou esta determinação de Antão Gonçalves, mas não aprovaram sair ele em terra, por ser capitão a quem convinha ficar em o navio pera o que sucedesse; e depois que nisto altercaram e debateram um bom pedaço, por as muitas razões que Antão Gonçalves pera isso deu, foi um dos nove que aquela noite entraram pela terra. E sendo já bem três léguas alongados do navio, viram atravessar um homem nu com dous dardos na mão, tangendo um camelo que levava ante si. o qual, tanto que ouviu o estrupido dos nossos e os viu correr contra si, assi ficou cortado de medo sem se bulir, que ante de tomar outro ânimo, era já com ele Afonso Goteres, por ser homem mancebo, ligeiro e bem despachado nestes negócios. Feita esta presa, que foi pera todos de grande prazer, começaram caminhar contra o navio,

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porque entre eles não havia quem o entendesse pera 30 tomarem informação da terra e irem mais avante. E tendo andado um bom pedaço, acharam a gente cujo rasto eles traziam, que seriam até quorenta pessoas, da companhia dos quais era este cativo, e assi υa moura que também tomaram à vista deles. Os quais, tanto que viram os nossos, saíram-se do caminho 10 pera um teso, e ali se apinhoaram todos, a olhar tamanha novidade. Os mais dos nossos, desejosos de se revolver com eles, foram em conselho que os cometessem no outeiro onde estavam, mas Antão Gonçalves, peró que homem mancebo fosse, cobiçoso de ganhar honra - e a isso era ali vindo - obedeceu mais ao ofício de capitão que aos desejos de sua idade. E disse que não lhe parecia bem cometê-los por ser já o sol posto e mui grã pedaço do navio, e tam cansados e sequiosos de grande calma, que somente o caminho que tinham por andar bastava por trabalho; que assaz os cometiam, pois na face deles lhe tomaram aquela mulher que podia ser dalgum; que seu voto 27 era fazer seu caminho pera o navio; e que, quando os mouros os viessem cometer, então aí lhe ficava fazer cada um seu ofício de cavaleiro; e o mais lhe parecia leviandade e não cousa de homens prudentes e obrigados a dar conta a quem os enviava, cujo regimento tinham em contrário do que lhes parecia. Nesta detença que Antão Gonçalves fez de palavras, os mouros, peró que bárbaros eram per natureza, o temor os fez prudentes pera entenderem que o apinhoar dos nossos e detença que fizeram sem se mover, fora consulta acerca de os cometerem ou não; e como gente que tinha mais conta com a vida que com a honra, viraram-lhe as costas, escoando-se contra a outra parte do teso, pera se encobrirem do nossos. Aos quais Antão Gonçalves não quis seguir, porque houve que servia mais o Infante na presa dos cativos que levava, que aventurar a vida dalguns da companhia, por levar mais um cativo. Tornado ao navio e estando já pera se partir ao seguinte dia, chegou outro navio do reino, em que vinha por capitão um cavaleiro da casa do Infante, chamado Nuno Tristão, que ele criara na sua câmara, de moço pequeno. E era assi ardido e tanto de sua pessoa, que o mandava o Infante que lhe passasse a ponta da Pedra da Galé e trabalhasse por lhe haver algυa língua da terra. O qual, sabendo o feito de Antão Gonçalves e movido de υa virtuosa enveja, trabalhou tanto com ele - que essa noite fossem ambos em busca dos mouros que acharam - que concedeu Antão Gonçalves em seu requerimento, partindo logo, tanto que anoiteceu; em cuja companhia iam Diogo de Valadares, que depois foi alcaide-mor da Vila Franca, e Gonçalo de Sintra, cujo esforço se verá nesta conquista. E foi tal sua boa ventura, que foram dar com os mouros onde jaziam 31 recolhidos - ora fossem os que Antão Gonçalves achou ou quaisquer outros -; chegando aos quais, começaram com grande grita dizer: - Portugal! Portugal! Santiago! Quando aquela bárbara gente ouviu vozes não costumadas, como cousa tam nova e espantosa a eles, bem poderam tomar estas vozes por sonho, se juntamente com elas, naquela escuridade da noite, não sentiram que os nossos lhe punham as mãos asperamente pera os prender. E porém algum deles, dado que o medo lhe quebrasse a ousadia, a dor do mal que recebiam lhe fazia acudir, defendendo-se com sua coragem, a qual lhe ministrava as armas de pau, pedra, dentes e unhas, porque tudo ali servia. E como o negócio era feito àquelas horas, nisto eram conhecidos uns dos outros - andarem eles nus e os nossos vestidos. E que a batalha não fosse crua, todavia foi perigosa por ser em tal tempo; e se os nossos não falaram e bradaram, em sinal de quem eram, sempre uns dos outros receberam dano.

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E prouve a Deus que todo perigo caiu sobre os mouros, porque ficaram logo ali estirados três e cativaram dez. E dos mortos um deles matou Nuno Tristão com grande perigo de sua pessoa, vindo a braços; porque, como o mouro era 28 nervudo e forçoso, e tinha vantage na luta por andar nu, se não foram as armas, sempre Nuno Tristão padecera mal. E outro que também se houve esforçadamente neste negócio, foi um Gomes Vinagre, moço da câmara do Infante, em que mostrou quem depois havia de ser. Com a qual vitória se tornaram pera os navios já algum tanto de dia. E ante que entrassem em os navios, pediram todos a Antão Gonçalves que, em memória daquele feito, que se fizera com tanta honra sua, lhe aprouvesse dar nome àquele lugar com se armar ali cavaleiro. Antão Gonçalves, peró que não quisera aceitar a tal honra de cavalaria, negando ser merecedor dela, por comprazer a todos, foi armado cavaleiro per mão de Nuno Tristão, com que o lugar, segundo lhe todos diziam, ficou com o nome que hoje tem, que é Porto do Cavaleiro. Recolhidos os capitães a seus navios, acertou que entre os cativos vinha um da casta dos alarves, que se entendeu com o mouro língua que Nuno Tristão levava, e pela prática que com ele teveram, pareceu bem aos capitães lançarem a moura em terra e com ela o mouro língua, para por meio deles virem alguns mouros resgatar daqueles cativos. Como de feito aconteceu, porque 10v di a dous dias que lançaram estes fora, acudiram ao porto obra de cento e cinquenta homens, antre de cavalo e camelos, os quais na primeira vista quiseram usar de υa sagacidade - mandando 32 três ou quatro diante que provocassem os nossos a sair em terra, e os mais ficavam detrás de uns médãos, em cilada. Peró, vendo que os nossos não saíram do batel tam prestes como eles cuidavam, parecendo-lhe serem entendidos, começaram a se descobrir, trazendo consigo preso o mouro língua; o qual avisou os capitães que em nenhυa maneira saíssem fora, porque aquela gente vinha mui indinada contra eles, como logo começaram mostrar, tirando às pedradas aos batéis, depois que foram desenganados que os nossos não queriam sair em terra. Os capitães, dissimulando com a fúria deles, por comprir com o regimento do Infante, tornaram-se aos navios sem lhe fazer dano; e havido conselho do que fariam, assentaram que Antão Gonçalves se tornasse pera o reino com os cativos que lhe coubessem à sua parte, e Nuno Tristão, porque o Infante lhe mandava ir mais avante, deu querena à caravela, e, depois de espalmada, começou fazer seu caminho, seguindo a costa, té chegar a um cabo que, per a semelhança dele, lhe pôs nome Branco. E posto que ali achou rasto de homens com redes de pescar, e per muitas vezes fizesse entradas na terra, sem poder haver à mão algυa língua dela, porque a costa começava ali tomar outro rumo à maneira de enseada pera onde as águas corriam, temendo que, na volta do cabo, por razão desta corrente, gastasse todo o mantimento por já estar desfalecido dele, sem ir mais avante nem fazer cousa algυa dina deste lugar, se tornou pera o reino. Onde já achou Antão Gonçalves, a quem o Infante, assi per outros serviços, como polos deste descobrimento, deu a 29 alcaidaria-mor de Tomar e υa comenda, e o fez escrivão de sua puridade.

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29 10v 32 Capítulo VII. Da suplicação que o Infante fez ao Papa e lhe concedeu, e a doação dos quintos que lhe o Infante Dom Pedro, seu irmão, regente deste reino, deu em nome de El-Rei, e do que Antão Gonçalves e Nuno Tristão passaram em a viagem que cada um fez. O Infante, como seu principal intento em descobrir estas terras era atraer as bárbaras nações ao jugo de Cristo, e des i a glória e louvor destes reinos, com acrescentamento do património real, sabendo per os cativos que Antão Gonçalves e Nuno Tristão trouxeram as cousas dos moradores daquelas partes, quis mandar esta nova ao Papa Martinho Quinto, que então presedia na Igreja, como primícias que a ele eram dividas, por serem obras feitas em louvor de Deus e acrescentamento da fé de Cristo, pedindo-lhe que, por quanto havia tantos anos que ele continuava este descobrimento, em que tinha feito grandes despesas de sua fazenda, e assi os naturais 33 deste reino que nele andavam, lhe aprouvesse conceder perpétua doação à Coroa destes reinos de toda a terra que se descobrisse per este nosso Mar Oceano, do Cabo Bojador té as Índias, inclusive; e pera aqueles que na tal conquista perecessem indulgência plenária pera suas almas, pois Deus o posera na cadeira de São Pedro, pera assi dos bens temporais que estavam em poder de injustos possuidores, como dos espirituais do tesouro da Igreja, podesse repartir per seus fiéis. Porque a gente português, assi nos feitos desta parte da Europa, como depois que entraram na de África em a tomada de Ceita, e des i no descobrimento e conquista da Etiópia, tinham merecido o jornal diurno, que se dá àqueles obreiros que bem trabalham nesta vinha militante do Senhor. Com o qual negócio, por ser de tanta importância, mandou um cavaleiro da Ordem de Cristo per nome Fernão Lopes de Azevedo, do conselho del-Rei e homem de grande prudência e autoridade, que depois foi Comendador-mor da dita Ordem. E nesta ida que fez, não somente foi concedida ao Infante esta sua petição, mas ainda bula pera Santa Maria de África, que ele fundara em Ceita, e assi outras muitas graças e privilégios que a Ordem tem, tanto estimou o Papa e o Colégio dos Cardiaes a nova deste descobrimento. Depois o Papa Eugénio Quarto e o Papa Nicolau Quinto, té o Papa Sixto, a suplicação del-Rei Dom Afonso e del-Rei Dom João seu filho, concederam a eles e a 11 seus sucessores, per suas bulas, doação perpétua de tudo o que descobrissem per este Mar Oceano, demarcando do Cabo Bojador té a oriental plaga da Índia, inclusive, com todolos reinos, senhorios, terras, 30 conquistas, portos, ilhas, tratos, resgates, pescarias, sob inumeráveis e graves excomunhões defesas e interditos que outros alguns reis, príncipes, senhorios, comunidades, não entrem nem possam entrar em as tais partes e mares adjacentes, segundo se mais largamente contém em suas bulas. E onde este Papa Sixto IV mais corroborou a doação geral deste descobrimento, foi na fim das pazes que houve entre el-Rei Dom Fernando de Castela e el-Rei Dom Afonso de Portugal, em que foram apontadas por parte deste reino o descobrimento que ora temos, começando do Cabo de Não té a Índia, inclusive etc., como se contém na Crónica do mesmo rei Dom Afonso, e mais copiosamente na própria confirmação, rectificação e corroboração de pazes se pode ver, per a bula do dito Papa Sixto, dada ad perpetuam rei memoriam. Também em satisfação dos trabalhos e despesas que o Infante Dom Hanrique tinha feito neste descobrimento, o Infante Dom Pedro, seu irmão, que então era regente destes reinos por el-Rei Dom Afonso, seu sobrinho, em seu nome lhe fez doação do quinto que pertencia a el-Rei desta conquista, e mais lhe passou carta que nenhυa pessoa pudesse lá ir sem sua especial licença.

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Com as quais graças e doações que seguraram ao Infante no prémio de seus trabalhos, e também vendo que já na opinião da gente do reino estava 34 julgada esta sua imprensa por cousa proveitosa e de maior louvor do que se dava a ele, Infante, no princípio dela, começou dobrar os navios e despesas. E porque Antão Gonçalves lhe disse que o mouro principal que tomara em companhia dos outros, dizia que, se o tornassem a sua terra, daria por si seis ou sete escravos de Guiné, e também que na companhia daqueles cativos estavam dous moços filhos de dous homens principais daquela terra, que dariam pola mesma maneira outro tal resgate, ordenou o Infante de o despachar logo em um navio, fazendo fundamento que, quando Antão Gonçalves não podesse haver tantos negros a troco destes três mouros, já de quantos quer que fossem ganhava almas, porque se converteriam à Fé, o que ele não podia acabar com os mouros, e também por serem do sertão daquelas terras, dos ardores das quais a gente tanto fabulava, podia per eles ter verdadeira informação. E aconteceu que, ao tempo que se fazia prestes este navio em que havia de ir Antão Gonçalves, estava em casa do Infante um gentil homem da casa do Emperador Frederico III, a que chamavam Baltasar; o qual, com desejo de ganhar honra, viera dirigido pelo mesmo Emperador ao Infante, pera o mandar a Ceita fazer cavaleiro, como de feito se fez pelos méritos de sua pessoa. E porque este Baltasar era homem curioso e que desejava ver novas terras, e neste tempo per toda a Europa se falava neste descobrimento de Guiné como na mais nova cousa que se podia dizer, e os homens que o seguiam eram estimados em preço de cavaleiros e de grande ânimo, pediu ao Infante que houvesse por bem ir ele em companhia de Antão Gonçalves, 31 porque desejava de se ver em υa grande tormenta de mar, pera depois poder contar em sua terra; ca, segundo lhe diziam os mareantes desta carreira, as tormentas e mares daquelas partes eram mui diferentes destes nossos. O qual desejo, ele, Baltasar, compriu, porque, partido Antão Gonçalves, teve no caminho um temporal tam grande, que dizia Baltasar que já vira o que desejava, mas não sabia se o poderia contar, tão incerta tinha a esperança de sua vida, de maneira que arribou Antão Gonçalves a este reino. E depois que se refez dos mantimentos e cousas que alijou, feito bom tempo, tornou a sua viagem, e Baltasar com ele, dizendo que, pois já tinha visto as tormentas do mar, também queria levar nova da terra. Chegado Antão Gonçalves onde os mouros haviam de vir fazer o resgate, porque assi lhe era mandado pelo Infante, lançou em terra o próprio mouro que o ali fez vir, cuidando que, pelo bom tratamento que lhe o Infante mandara fazer, seria fiel em suas promessas; mas ele, como se viu livre, lembrou-se mal da fé que leixava empenhada. Somente parece que deu nova nas povoações da chegada do navio, e como trazia os moços pera resgatar; porque, sendo já passados oito dias, vieram mais de cem pessoas ao resgate deles, por serem filhos dos mais nobres daqueles alarves. A troco dos quais deram 35 dez negros de terras diferentes, e υa boa quantidade de ouro em pó, que foi o primeiro que se nestas partes resgatou, donde ficou a este lugar por nome Rio do Ouro, sendo somente um esteiro de água salgada que entra pela terra obra de seis léguas. Houve-se mais em este resgate υa adarga 11v de coiro de anta cru, e muitos ovos de ema, os quais, tornando Antão Gonçalves a este reino sem fazer mais outra cousa, foram apresentados à mesa do Infante tam frescos, que os estimou ele por a milhor iguaria do mundo. E pelas novas que lhe Antão Gonçalves deu das cousas da terra, segundo o tinha sabido dos alarves, e principalmente, pela quantidade de ouro que houve, que era sinal de muito que ao diante se podia descobrir, despachou logo a Nuno Tristão que, como atrás fica, foi o que chegou ao Cabo Branco.

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O qual Nuno Tristão desta viagem passou avante té υa ilha, cujo nome per os da terra se chama Adeget, que é υa das a que nós ora chamamos de Arguim. Sendo à vista da qual, viu que da terra firme para ela, por lhe ser mui vezinha, atravessavam obra de vinte cinco almadias, e sobre cada υa delas iam três e quatro homens nus escanchados, de maneira que as pernas lhe ficavam em lugar de remos, que pera os nossos foi cousa de admiração. E ante que houvessem conhecimento do que era, pareceu-lhe serem aves marinhas; peró, depois que viram o que era, como levavam batel fora, saltaram nele sete homens, e despacharam-se tam bem, que houveram a mão catorze, com que encheram o batel; e os outros, posto que escaparam no mar, foram tomados no ilhéu, porque o batel, leixando estes no navio, foi buscar os outro que se acolheram a ele. Feita esta presa, com que 32 o ilhéu ficou despejado, passaram-se a outra ilha junto desta, a que poseram nome das Garças, por as muitas que ali acharam, e assi outras aves que se parecem com elas, as quais se ajuntavam ali por ser tempo da sua criação, e, como não eram traquejadas de gente, às mãos tomaram tanta quantidade delas, que ficou por refresco ao navio. E nos dias que Nuno Tristão ali esteve, fez algυas entradas na terra firme, mas não pôde haver mais presa que aquela primeira do mar. E por a terra já andar mui alvoraçada, se tornou pera o reino o ano de quatro centos e quorenta e três.

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32 11v 36 Capítulo VIII. Dos louvores que o povo do reino dava ao Infante por este descobrimento, e como por sua licença os moradores de Lagos armaram seis caravelas, e do que passaram nesta ida. Chegado Nuno Tristão com tam honrada presa, sem fazer a demora que os outros navios faziam, e passar vinte e tantas léguas além donde os outros chegaram e achar ilhas e todalas cousas mui diferentes da opinião que a gente tinha, quando o Infante começou este descobrimento, trocaram as murmurações e juízos que lançaram sobre este negócio. E já não diziam por ele que mandara descobrir terras ermas e desertas com perdição dos naturais do reino, mas louvavam seus feitos, dizendo que ele fora o primeiro que abrira novos caminhos aos portugueses de ganhar muita honra e tesouros que nunca foram descobertos depois da criação do Mundo, e que por isto merecia terem-lhe as gentes mais amor que a nenhum dos príncipes passados, pois com tanta de sua despesa, sem opressão dos naturais, lhe buscara novo modo de vida. Porque das guerras passadas entre este reino e o de Castela, e assi idas de Ceita, Tânger e outras despesas e lançamentos de fintas, estava a gente tam necessitada, que com grande trabalho se podia manter. Acrescentava também neste louvor verem que aqueles que seguiam esta carreira se engrossavam em substância com os retornos e escravos que traziam daquelas partes, de maneira que o geral do reino estava movido com nova cobiça pera seguir este caminho de Guiné. O Infante a este tempo estava no Algarve em a vila de Terçanabal, que novamente fundara, como já dissemos, e esta vivenda assentou ali depois da vinda de Tânger, o qual caso foi azo de alguns dias se apartar da Corte e negócios dela. E porque todolos navios que vinham de Guiné por esta causa descarregavam em Lagos, os primeiros que moveram partido ao Infante pera ir lá a sua própria custa foram os moradores desta vila, com partido de pagarem um tanto do que trouxessem a ele, Infante, segundo o tinha per doação del-Rei. O principal dos quais que moveu esta ida, foi um escudeiro que se chamava Lançarote, que fora moço da câmara do mesmo Infante, ao qual ele dera o almoxerifado de Lagos, 33 e ali estava casado; e os outros eram Gil Eanes, 12 que foi o primeiro que passou o Cabo Bojador, e um Estêvão Afonso, que depois morreu em as Canárias na conquista delas, e Rodrigo Álvares e João Dias, todos homens honrados, com que fizeram número de seis caravelas, de que ele, Lançarote, per ordenança do Infante foi por Capitão-mor. 37 A frota partida de Lagos o ano de quatrocentos e quorenta e quatro, chegou à Ilha das Garças, béspora de Corpo de Deus, onde os capitães fizeram grã matança, por ser no tempo da criação delas, e assi teveram conselho sobre o modo de darem primeiro em a Ilha Nar, porque era mui perto dali, ca, segundo os mouros que Nuno Tristão levou informaram o Infante, haveria nela mais de duzentas almas. E foi assentado per o capitão Lançarote, que por quanto podiam ser vistos destes mouros, indo todolos navios à vista da ilha, Martim Vicente e Gil Vasques que ali estavam, por serem homens que já foram junto delas, deviam ir em os batéis somente com gente que os remasse, a espiar os mouros, e, depois que lá fossem, enviassem um deles com recado, e os outros se metessem entre a ilha e a terra firme, porque, querendo os mouros passar a ela, achassem o caminho tomado té eles chegarem com os navios e darem juntamente neles. Aprovado este conselho, partiram Martim Vicente e Gil Vasques, aos quais sucedeu o

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negócio mui diferente do que cuidaram, porque não poderam chegar à ilha senão a tempo que o sol rompia. E parecendo-lhe que podiam ser vistos de υa povoação que estava junto da praia e que o tempo e disposição do lugar dava azo a fazerem um honrado feito, o qual podiam perder tornando com recado aos navios, deram de súbito sobre a povoação, onde tomaram cento e cinquenta e cinco almas, e outras pereceram em se defender. E como eles eram somente trinta homens, de que os mais vinham pera remar, e os cativos eram tantos que os não podiam todos recolher nos batéis, ficaram deles em terra com alguns, e os outros levaram aos navios, onde foram recebidos com muita festa, posto que antre todos havia υa tristeza por se não acharem em aquele feito. O capitão Lançarote, com desejo de empregar sua pessoa em as tais impresas, mandou logo a grã pressa concertar os batéis, porque soube daqueles cativos que na outra ilha que estava perto, a que chamavam Tider, podia fazer outra tal presa; mas nesta ida não fez cousa algυa, por achar a ilha despejada. E porque um daqueles mouros, segundo seu parecer, o fez lá ir maliciosamente, o meteu a tormento, té que lhe prometeu de o levar a outra ilha onde emendasse o erro que fizera; mas quando lá chegaram houve tanta detença por dúvidas se era engano ou verdade, não se fiando do mouro, que teveram os da ilha tempo de se passarem a terra firme, e contudo ainda prearam alguns. E em dous dias que per ali andaram de ilha em ilha, e 34 assi em alguns saltos que fizeram na terra firme, tomaram quorenta e cinco almas, com que se tornaram aos navios, que ficavam atrás cinco léguas. Parece que a ventura de Lançarote e dos outros esteve por aquela vez no mar, porque, em muitas entradas que depois fizeram na terra firme, andavam 38 já os mouros tam traquejados, que somente houveram em υa aldea υa moça que ficou dormindo, e no Cabo Branco, fazendo sua volta pera o reino, tomaram quinze pescadores. E porque os mantimentos com os muitos cativos lhe começaram desfalecer, tornaram-se pera o reino, onde o capitão Lançarote foi recebido com tanta honra do Infante, que per sua pessoa o armou cavaleiro com acrescentamento de mais nobreza, e assi gratificou os outros que o bem serviam naquela jornada. Porque υa das cousas que o Infante naquele tempo trazia ante os olhos e em que o mais podiam complazer e servir, era em aquele descobrimento, por ser cousa que ele plantara e criara com tanta indústria e despesa.

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34 12 38 Capítulo IX. Como Gonçalo de Sintra com outros foi morto na angra que se ora chama do seu nome. E da ida que Antão Gonçalves fez ao Rio do Ouro, e depois Nuno Tristão, onde tomou υa aldea de mouros.E como Dinis Fernandes passou a terra dos negros e descobriu o Cabo a que agora chamamos Verde. 12v Este ano de quatrocentos quorenta e cinco, mandou o Infante armar um navio, a capitania do qual deu a um Gonçalo de Sintra, escudeiro de sua casa, que, segundo diziam, já o servira de moço de esporas, mas, por ser homem pera muito e cavaleiro de sua pessoa, sempre o trouxe em cargos honrados. Este Gonçalo de Sintra, com desejo de se aventajar dos outros que lá eram idos, partido do reino, per conselho de um mouro azenegue que levava consigo pera lhe servir de língua, se foi à ilha de Arguim, que está avante do Cabo Branco obra de doze léguas, prometendo-lhe o mouro grandes presas em terra. Mas isto sucedeu bem ao contrairo do que ele esperava, porque, ante que chegassem ao Cabo Branco, em υa angra a que ele deu nome (como veremos), fugiu-lhe esta língua, e assi lhe fugiu um mouro velho, que se veo lançar com ele, dizendo que pelos navios passados foram ali cativos certos mouros seus parentes, e por o amor que lhe tinha ante com eles queria morrer em cativeiro, que sem eles na liberdade de sua própria terra. O que era grande falsidade, ca sua tenção era somente vir ver as cousas do navio a que era enviado. E com estas palavras segurou tanto Gonçalo de Sintra, que se tornou pera terra. E vendo ele que estes descuidos o culpavam, desejoso de os emendar com algum honrado feito, meteu-se aquela noite em um batel com doze homens pera passar a terra 35 firme e dar em algυa aldea. Mas quis sua má 39 fortuna que se foi meter em um esteiro que, quando a maré vazou, ficou em seco, e vinda a menhã, em que o batel foi visto pelos mouros, acudiram obra de duzentos, onde Gonçalo de Sintra, por se defender, naquela vasa pereceu com estes sete homens: Lopo Caldeira, Lopo de Alvelos, ambos moços da câmara do Infante, Jorge, moço de esporas, e Álvaro Gonçalves, piloto, com três marinheiros; e os mais que iam no batel, por saberem nadar, se salvaram. E como na caravela não havia pessoa que governasse a outra gente, e todos eram homens do mar, tornaram-se pera o reino com duas mouras que tinham tomado naquela costa, que custaram a vida destes homens, os primeiros que naquela terra morreram a ferro, e deram nome ao lugar de sua sepultura, ca se chama ora a Angra de Gonçalo de Sintra, que será além do Rio do Ouro catorze léguas. O Infante, posto que isto muito sentiu, por ser a primeira perda de homens que naquelas partes houve, não deixou logo no seguinte ano de mandar três caravelas, cujos capitães eram Antão Gonçalves, de que já falamos, e Diogo Afonso e Gomes Pires, patrão del-Rei. O qual mandava o Infante Dom Pedro, que então era regente destes reinos, levando todos por regimento que entrassem no Rio do Ouro e trabalhassem por converter à Fé de Cristo aquela bárbara gente, e, quando não recebessem o baptismo, assentassem com eles paz e trato, das quais cousas não aceitaram algυa. Vendo os capitães que seu trabalho neste negócio era perdido, ou porque lhe assi foi mandado, ou por qualquer outra causa, se tornaram ao reino, somente com um negro que ali houveram per resgate e um mouro velho que por sua própria vontade quis vir ver o Infante, o qual depois o mandou tornar a sua terra. E assi como este mouro desejou vir ao reino por ver as cousas dele, o mesmo desejo teve um escudeiro a que chamavam João Fernandes, pera particularmente ver

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as cousas daquele sertão que habitavam os azenegues e delas dar razão ao Infante, confiado na língua deles que sabia, o qual depois tornou ao reino, como veremos. E neste mesmo tempo fez Nuno Tristão outra viagem, e em υa aldea que entrou, além deste Rio do Ouro, tomou vinte almas, com que em breve tempo se tornou ao reino. Também neste ano Dinis Fernandes, morador em Lisboa, escudeiro del-Rei Dom João, movido per os favores e mercês que lhe o Infante fez, por ser homem abastado e de honrados feitos, armou um navio pera ir a este descobrimento, propondo de passar o termo aonde os outros capitães tinham chegado, como de feito fez. Porque, passado o rio que ora chamam Sanagá, o qual divide a terra dos mouros azenegues dos primeiros negros da Guiné, chamados jalofos, houve vista de υas almadias em que andavam a pescar uns negros, das quais, com o batel que levava per popa, 40 alcançou υa com quatro deles, que foram os primeiros que a este reino 36 vieram. E posto que Dinis Fernandes achasse ali muitos sinais de povoação, como seu propósito mais era descobrir terra por servir o Infante que trazer cativos pera seu próprio proveito, não se quis ali deter em saltos e tomadia de escravos, mas passou avante, té chegar a um notável cabo que a 13 terra lança contra o Ponente, ao qual ele chamou Cabo Verde, por causa da mostra e parecer com que então se mostrou. O qual cabo e nome é ao presente dos mais notáveis e celebrados que temos neste grande Oceano Ocidental, e de que em a nossa Geografia copiosamente tratamos. E como este grande cabo já fazia outros temporais na volta dele, os quais empediram a Dinis Fernandes não proseguir mais adiante, como ele desejava, contentou-se, por então, de sair em υa ilheta que está pegada nele, onde fizeram grã matança em muitas cabras que ali acharam, que lhe foi muito bom refresco. E sem mais outra cousa se tornou ao reino onde foi recebido pelo Infante com muita honra e mercê que lhe fez. Porque a novidade da terra que descobriu e a gente que trouxe, não resgatada das mãos dos mouros, como eram os outros negros vindos ao reino, mas tomados em suas próprias terras, assi contentaram ao Infante, que sempre lhe parecia pouco o que fazia àqueles que lhe vinham com estas mostras e sinais de outra maior esperança que ele tinha.

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36 13 40 Capítulo X. Como Antão Gonçalves, por mandado do Infante, tornou a buscar João Fernandes, que ficou por sua vontade entre os mouros; e do que passou nesta viagem, e assi os navios que com ele foram. A este tempo eram já passados sete meses que Antão Gonçalves viera do Rio do Ouro, onde leixara João Fernandes, que (como dissemos) per sua própria vontade quis ficar entre os mouros, pera saber as cousas do sertão. E, parecendo ao Infante que já teria sabido muitas, porque o espírito o não deixava assossegar nestas que desejava saber daquelas partes, tornou a mandar o mesmo Antão Gonçalves em busca dele, e em sua companhia foram Garcia Mendes e Diogo Afonso, cada um em sua caravela. Dos quais, com um temporal que teveram, o primeiro que chegou ao Cabo Branco, que foi Diogo Afonso, por dar sinal aos companheiros, mandou 41 arvorar υa grande cruz de pau, que depois durou naquele lugar muitos anos, e passou a diante aos ilhéus de Arguim; porque naquele tempo pera fazer algum proveito todos os iam demandar, e tinha por certo que haviam eles de ir dar com ele, por ser aquela costa e os ilhéus a mais povoada parte de quantas té então tinham descoberto. E a causa de ser mais povoada, era por razão da pescaria de que aquela mísera gente de mouros azenegues se mantinha, porque em toda aquela 37 costa não havia lugar mais abrigado do ímpeto dos grandes mares que quebram nas suas praias, senão na paragem daquelas ilhas de Arguim, onde o pescado tinha algυa acolheita e lambugem da povoação dos mouros, posto que as ilhas em si não são mais que uns ilhéus escaldados dos ventos e rocio da água das ondas do mar. Os quais ilhéus, seis ou sete que eles são, cada um per si tinha o nome próprio per que nesta escritura os nomeamos, posto que ao presente todos se chamam per nome comum os ilhéus de Arguim, por causa de υa fortaleza que el-Rei Dom Afonso (como adiante veremos) mandou fundar em um deles, chamado Arguim. Diogo Afonso, enquanto os companheiros não vinham, posto que fez algυas entradas na terra firme, logo como dobrou o Cabo Branco, não preou cousa algυa, somente com a vinda deles na ilha de Arguim por os mouros terem já sentido os navios, houveram um moço e um velho; e per indústria dele, vendo que a aldea era dali levantada, em batéis se passaram à terra firme pera darem em outra aldea. E porque suspeitaram que o mouro se leixara ali ficar com tenção de os levar a esta aldea, onde os meteria em algυa cilada, deteveram-se tanto em determinar se iriam ou não, que quando já chegaram à aldea era alto dia e os mouros postos em salvo. Contudo houveram à mão uns vinte cinco quási tomados a cosso dos que se esconderam nas fraldas da aldea, porque andavam eles já tam escozidos das armas dos nossos, que a sua guerra (se o podiam fazer) era porem-se em fugida sem esperar dar e tomar; o qual modo de vitória foi aos nossos mui trabalhoso por irem já mui cansados do caminho. E quem se milhor houve nesta corrida e caso, foi um Lourenço Dias, morador em 13v Setúval, porque ele só tomou sete mouros por ser mui ligeiro. No fim do qual trabalho, por a vitória ser de maior prazer e festa, quando tornaram, acharam João Fernandes, que eles vinham buscar, o qual havia dias que acudia à praia per aquela costa que tinha dito, esperando se via algum navio que o tomasse e trouxesse daquele desterro voluntário em que se ele pôs.

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Em o qual desterro ele se houve tão sesudamente com aqueles bárbaros que tratou, que, quando se deles partiu, mostraram ter sentimento de sua partida, e vieram alguns com ele por o segurar dos pescadores, e também a 42 resgatar com os navios. Dos quais Antão Gonçalves houve nove negros e assi um pouco de ouro em pó; e por causa deste resgate que se então ali fez, tem aquele lugar por nome o Cabo do Resgate. E como a principal cousa que os ali trouxe era virem buscar João Fernandes, que já tinham achado, com o mais que dissemos, de que não estavam pouco contentes, por celebrar mais esta festa foi ali armado cavaleiro um Fernão Tavares, homem nobre e de idade. O qual se tinha visto em honrados feitos de armas, e em nenhυa parte quis aceitar esta honra senão 38 nesta terra novamente descoberta (tam gloriosa cousa era poer os pés nela), o qual acabou depois em religião, catolicamente. Antão Gonçalves, tornando-se pera este reino, veo pelo Cabo Branco, onde, em υa entrada que fez em υa aldea, tomou cinquenta e cinco almas, afora outras que pereceram em seu defendimento, com a qual presa rota batida se fez via do reino, onde chegou a salvamento. O Infante, posto que estas noventa almas e ouro que Antão Gonçalves trazia, era cousa de preço e muito pera estimar, tudo havia que era pouco em comparação de ver ante si João Fernandes são e salvo, e cheo de tanta novidade e estranheza da terra como ele contava. Dalgυas das quais cousas faremos relação por memória dos trabalhos de João Fernandes, porque em a nossa Geografia, por ser mais próprio lugar, tratamos desta terra e dos seus moradores mais copiosamente do que então alcançou João Fernandes. Segundo ele disse, os mouros em cuja companhia ficou eram pastores e parentes do mouro que veo pera o reino com Antão Gonçalves. Estes, depois que o levaram pela terra dentro, a primeira honra e gasalhado que lhe fizeram, foi esbulharem-no de quanto levava, assi de vestido e roupa como de um pouco de biscoito, trigo e legumes de seu comer, e em satisfação disto lhe deram um alquicé roto pera cobrir suas carnes, que foi diferente entrada da que o Infante fez ao seu parente, quando chegou ao reino; e tal que ainda se não quis vir com Antão Gonçalves, quando tornou buscar João Fernandes, porque em casa do Infante se achava livre e na sua pátria cativo destas misérias que ora diremos. Mas como João Fernandes ia oferecido a todolos trabalhos, enquanto lhe não tocavam na vida, peró que per força lhe apanharam tudo, não resestiu muito em o defender nem menos que ficava por isso escandalizado, e di em diante ficou naquela triste vida que todos tem. Porque o seu comer era υa pouca de semente que o campo per si dá, que se parece com painço de Espanha, e assi raízes e gomos dalgυas poucas de ervas, e não ainda em abastança, e toda maneira de imundícia de lagartixas e gafanhotos torrados àquela fervura do sol que sempre reina naquele solstício do Trópico de Cancro, que passa per cima daquela região. E os mais meses do ano seu certo comer (porque estoutro às vezes lhe falece com os temporais) é leite do gado que pastoram, que também lhe serve de beber, por a terra ser tam estérele que não tem mais águas que em certos lugares alguns poços meios solobros, 43 dos quais, quando se apartam por levar o gado a outro pasto, o leite lhe fica em lugar de água, das quais cousas ainda não são muito abastados. Carne, se algυa comem, é de gazelas e muitas veações e aves que matam; e no gado não tocam, senão por festa, no macho, e nunca no outro, por lhe dar leite que é toda sua vida. E estes são os de dentro do sertão, porque os da costa do mar 39 pescado é o seu geral comer, seco, sem sal, e o fresco muitas vezes por ser mais húmido e lhe fazer menos sede. Ainda que agora, com a nossa fortaleza de Arguim, são já mais mimosos, por viverem dela e do trigo que lhe mandamos; e em tudo todos, quando per caso lhe vai ter à mão um pouco, assi o comem à mão como nós comemos os confeitos.

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A terra em si é meio areal, a mais viçosa é como a mais pobre e rasa charneca que cá temos, onde há algυas palmeiras e árvores que querem parecer as figueiras que cá chamamos do inferno; e destas ainda tam poucas, segundo o grande espaço de terra, porque estão derramadas, 14 que parecem postas à mão pera dar sombra, o que elas não fazem por a pouca rama que tem (tam pobremente cria as árvores). O sítio desta terra todo é chão e tam mau de conhecer por não ser notável per montes, arvoredos e outras diferenças que a boa terra tem, que poucos em caminho de muito espaço de terra, podem atinar o lugar onde vão. Somente per estas cousas se guiam no caminhar, pelos ventos, per estrela e pelas aves que andam no ar, principalmente corvos, abutres e outras que seguem as imundícias do povoado, porque estas demonstram as povoações (ou, por milhor dizer, o lugar onde andam aquelas cabildas), por ser a terra tal que como pastam um dia υa folha, ao outro se mudam a outra, e assaz de boa é a terra que os detem oito dias em a pastar. Suas casas são tendilhões, e o trajo comum coiros do gado que guardam, e os mais honrados, alquicés; e os principais de todos, panos de milhor sorte, e assi nos cavalos como concertos deles tem a mesma vantage. O geral ofício de todos é pastorar o seu gado, porque nele está toda sua fazenda e substância da vida. A sua língua e escritura não é comum com os alarves da Berberia, e peró em tudo quási tem υa conveniência como nós temos com os castelhanos. Antre eles não há rei ou príncipe, tudo são cabildas de parentelas, e assi andam apartados; e o de maior poder é o maioral que os governa; e muitas vezes entre si estas cabildas υas com as outras tem guerra e contenda sobre o pastar desta triste terra e beber dos poços. E quando esta não é a causa, a natureza humana dá outras pera sempre contender com os vezinhos; e quando os não tem, toma assi mesma por contenda. Esta vida e polícia viu João Fernandes um pouco de tempo entre aqueles 44 pastores, e depois, andando em um aduar de um principal mouro daqueles azenegues, a que chamavam Huade Meimõ, homem que se tratava de sua pessoa mui bem, e que tratou a João Fernandes com tanta verdade, que o deixou vir buscar os nossos navios mandando com ele alguns homens. O qual, quando chegou a eles, (como já dissemos), peró que vinha azenegue no trajo e no carão dos coiros, parece que a natureza se contentou com comer e beber leite, por que ele veo bem pensado e gordo.

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40 14 44 Capítulo XI. Da viagem que fez Dinis Eanes com as caravelas que de Lisboa foram em sua companhia; e do que fez o capitão Lançarote, com as XIV caravelas de Lagos de sua capitania; em a qual viagem mataram e cativaram muitos mouros à custa da vida de alguns nossos. E como Soeiro da Costa, tendo-se visto nos mais ilustres feitos de Espanha, nesta ida se fez cavaleiro. Havia em Lisboa, ao tempo que estas cousas procediam em bem, um homem honrado que fora criado do Infante Dom Hanrique, já apousentado com ofício de tesoureiro-mor da casa de Ceita, a que chamavam Gonçalo Pacheco, o qual, como era homem de grossa fazenda, e que armava navios pera algυas partes, houve licença do Infante pera mandar um navio a este descobrimento. A capitania do qual deu a um, Dinis Eanes da Grã, escudeiro do Infante Dom Pedro e sobrinho no primeiro grau da mulher dele, Gonçalo Pacheco, em companhia do qual foram Álvaro Gil, ensaiador da moeda de Lisboa, e Mafaldo, morador em Setúval, cada um em sua caravela. E porque naquele tempo todos iam demandar o Cabo Branco, chegados a ele, acharam um escrito de Antão Gonçalves, posto em um sinal notável, em que amoestava a todos que não tomassem trabalho por sair em terra em busca da aldea que ali estava, porquanto ele a tinha destruído pela maneira que atrás fica. Com o qual aviso, per conselho de um João Gonçalves, galego piloto, se foram à ilha de Arguim, onde tomaram sete almas e per ardil de um daqueles mouros cativos, deu o capitão Mafaldo em υa aldea na terra firme, de cujo conselho pendeu todo aquele feito, em que tomaram quorenta e sete almas. Depois saíram algυas vezes sem poder haver mais que um mouro velho, o qual trouxeram mais por ele receber salvação mediante o baptismo, que esperarem de suas forças algum serviço. 45 E porque os 14v mouros per suas atalaias andavam já com o olho neles, foram-se pela costa adiante obra de oitenta léguas, e na ida e vinda, té tornar à Ilha das Garças, fazer carnagem, per vezes que saíram na terra firme tomariam cinquenta almas, que custaram υa batelada de sete homens dos nossos, que, per desastre de ficarem em seco, morreram às mãos dos mouros. E nesta Ilha das Garças acharam Lourenço Dias com um navio, o qual vinha em companhia de outros que ainda não eram chegados; a causa da vinda dos quais era esta: Os moradores da vila de Lagos, porque o Infante fazia ali todas suas armações, e nisto e em outras cousas recebia deles serviço, houveram licença sua que armassem pera estas partes de Guiné, pera o qual negócio se fizeram prestes com catorze caravelas em um corpo. A capitania-mór das quais deu o Infante a 41 Lançarote, de que atrás falamos, por ser homem mui experimentado nesta viagem e bem afortunado nela, peró que em sua companhia iam homens fidalgos por capitães dos navios, e alguns deles mui aprovados em feitos de armas: assi como Soeiro da Costa, sogro do mesmo Lançarote, o qual em sua mocidade fora moço da câmara del-Rei Dom Duarte, e depois, indo fora deste reino, se achou na batalha de Monuedro com el-Rei Dom Fernando de Aragão contra os de Valença, e no cerco de Balanguer , onde se fizeram honrados feitos, e andou com el-Rei Luís de Proença em toda a sua guerra, e assi se achou na batalha de Ajancurt que foi entre os reis de França e Ingraterra, e foi na batalha de Valamont, e na de Mont Seguro, e na tomada de Sansões, e no cerco de Ras ,e além no de Ceita, em as quais cousas sempre se mostrou valente homem de armas. E assi ia em outro navio Álvaro de Freitas, comendador de Aljazur, homem bem fidalgo, e que nos mouros de Grada e Belamarim tinha feito grandes presas. Os outros capitães eram Rodrigo Eanes Travaços, criado do

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Infante Dom Pedro, e Palaçano, que na guerra dos mouros tinha empregado o mais de sua vida, e Gomes Pires, patrão del-Rei, e assi outras pessoas honradas de Lagos. E além destes catorze navios foram da Ilha da Madeira Tristão Vaz, capitão de Machico, e Álvaro Dornelas, cada um em sua caravela; mas estes, 46 ante de chegar ao Cabo Branco, se tornaram com tempo. O que não fez Álvaro Fernandes com outra caravela de seu tio João Gonçalves, capitão do Funchal na mesma Ilha da Madeira, ante nesta viagem, como veremos, foi avante de todos. E os outros capitães eram Dinis Fernandes, o primeiro que passou a terra dos negros em υa caravela de Dom Álvaro de Castro, camareiro-mor del-Rei Dom Afonso, que depois foi Conde de Monsanto, e João de Castilha em outra caravela de Álvaro Gonçalves de Taíde, aio del-Rei, que também foi Conde de Atouguia, e outras caravelas que per todas fizeram número de vinte seis, afora a fusta em que ia Palaçano; e cada υa partiu do porto onde se armou. As catorze que eram de Lagos partiram juntas a dez de Agosto de quatrocentos quorenta e cinco anos, mas, em saindo da costa do Algarve, um temporal que deu nelas as apartou. O capitão Lançarote, como tinha provido que, acontecendo tal caso, todos fizessem sua via à Ilha das Garças, onde se haviam de ajuntar, o primeiro que tomou esta ilha foi um Lourenço Dias, de que atrás fizemos menção, o qual ali estava fazendo aguada, quando Dinis Eanes da Grã chegou com as três caravelas. O qual Dinis Eanes, sabendo per ele da grã frota que vinha atrás com tenção de destruir aquelas Ilhas de Arguim, onde lhe a ele mataram os sete homens, determinou esperar a vinda das caravelas, pera vingar a morte dos que perdera. E quis sua dita que dai a dous dias chegou o capitão Lançarote, 42 e em sua companhia Soeiro da Costa, Álvaro de Freitas, Rodrigo Eanes, Gomes Pires, o Picanço, e outros com que fizeram número de nove caravelas. Assentado o que haviam de fazer logo, ante que a terra houvesse vista de tanto navio, segundo a informação que Dinis Eanes deu do estado da terra, per muita cautela que nisso teveram, os mouros se passaram todos a terra firme e eles acharam na Ilha de Arguim doze almas somente, quatro que tomaram e oito que morreram por se não quererem render, do qual feito um dos nossos ficou tam mal ferido, que a poucos dias morreu. E posto que o feito não foi igual aos em que Soeiro da Costa se tinha achado, como ora dissemos, achou ele em sua consciência que não merecia honra de cavalaria em guerra contra cristãos, e que no cerco de Ceita não fizera cousa per que lha dessem e que nesta parte, assi por ser com mouros como polo que aqui fez, e principalmente em terra tam estranha, 15 era merecedor que Álvaro de Freitas, comendador de Aljezur, o armasse cavaleiro como armou, com grande prazer e solenidade de todos, vendo que enjeitara aquela honra entre tam poderosos Príncipes e aqui se havia por mais honrado dela. Em companhia do qual foi também armado cavaleiro Dinis Eanes de Grã, com que ficou algum tanto satisfeito do desastre que lhe ali acontecera. E porque depois que este caso foi feito, chegaram as outras caravelas da companhia de Lançarote, e ele, Dinis Eanes, tinha já despeso quási todolos mantimentos, tornou-se pera o reino com as suas três caravelas com que partira. Lançarote, com os outros capitães que ficaram em sua companhia, pôs 47 logo em conselho tornar a entrar a Ilha Tider, e ordenou que três caravelas se metessem entre ela e a terra firme, em um passo per que se os mouros baldeavam de υa parte a outra. Mas eles andavam tam escozidos das armas dos nossos, que de noite se passaram todos a terra firme, sem o eles sentirem, de maneira que, quando veo pela menhã, vendo eles que se tornaram os nossos como quem não achara a prea que iam buscar à ilha, começaram na praia a vista deles dar υa grande grita em modo de zombaria. Havia neste passo, antre a ilha e terra firme, obra de um tiro de pedra que se não podia passar a vau e outro tanto espaço que de baixa-mar dava água per o giolho, onde estavam

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as três caravelas que Lançarote ali mandou pera tolher a passagem. Em υa das quais estava um moço da câmara do Infante a que chamavam Diogo Gonçalves, que com υa ardideza de espírito que lhe moveu a ira contra os mouros, pelas algazarras e desprezos que lhes faziam, disse a um Pedro Alemão, natural de Lagos, que se queria saltar com ele em terra, vingar aquelas injúrias que lhe os mouros estavam fazendo, ao que Pedro Alemão respondeu que de mui boa vontade; e sem o mais praticar com algυa pessoa, tomando as armas que lhe eram necessárias para ofender, lançaram-se a 43 nado. Os mouros, quando os viram vir, vieram-se a eles com υa grita que fez espertar aos outros da caravela que sabiam nadar, porque, movidos de υa virtuosa enveja, começaram de os seguir: os primeiros dos quais foram Gil Gonçalves, escudeiro do Infante, e Lionel Gil, filho do alferes da bandeira da cruzada. Os quais, juntos em um corpo com os primeiros, eles por tomarem a terra e os mouros por lha defender (como quem tinha consigo mulheres e filhos), foi antre todos υa tam travada peleja, que, no meio daquela vasa, ficaram doze mouros enterrados, e depois em terra outros, e cativos foram cinquenta e sete. E com todo este trabalho do dia, ainda alguns destes, com outros que estavam folgados, aquela noite foram dar em υa aldea que estava dali sete léguas ao longo da costa, parecendo-lhe que se acolheriam a ela os que escaparam das mãos dos nadadores, segundo alguns dos cativos afirmavam. Peró eles iam de maneira que não somente se afastaram da costa do mar, mas ainda foram dar aviso aos outros que viviam na aldea, com que os nossos trabalharam debalde naquela ida, posto que, quando tornaram ao outro dia, acharam uns cinco mouros que do dia passado, quando iam fugindo, se embrenharam. E como o negócio a que eram idos àquela ilha era já acabado, ao seguinte dia ajuntou o capitão Lançarote todolos capitães e pessoas principais da armada, e propôs-lhe estas palavras: Bem sabeis, senhores e amigos, que a principal tenção por que aprouve ao senhor Infante virmos todos em 48 um corpo, e eu por capitão desta frota, foi pera que levemente podéssemos destruir esta Ilha de Arguim, de que os nossos, quando aqui vinham, recebiam dano. Ora - Deus seja louvado! - vós o tendes feito tam honradamente e tanto a seu serviço e prazer do Infante, que vos é ele por isso em obrigação de honra e mercê, o que todos deveis esperar, cada um em seu grau; porque esta lei tem os serviços acabados a vontade de quem os manda, principalmente quando o senhor é grato e liberal. Estas cousas, por parte de vossos méritos, estão ganhadas, e por parte da real condição do Infante, concedidas; o que nos agora fica por fazer, é comprir o que mais manda em seu regimento: que, feito este negócio que temos acabado, cada um se pode partir a fazer seu resgate e proveito, onde lhe Deus ministrar. Eu de hoje avante fico sem aquela superioridade que o senhor Infante me tinha dada acerca da governação deste negócio, a que principalmente viemos. E de mi lhe sei dizer, não por parte da honra, porque, a Deus mercês, com vossa ajuda eu a tenho ganhada nesta terra pera poder ir contente pera o reino, mas por parte da pouca presa que levamos, segundo as caravelas são muitas e os cativos poucos, minha tenção é não ir de cá tam 15v boiante; se alguém quiser ir fazer seu proveito mais avante pela costa, eu lhe manterei companhia. Soeiro da Costa, sogro dele, Lançarote, Vicente 44 Dias, Rodrigo Eanes, Martim Vicente e o Picanço, por terem as caravelas mais pequenas de toda a frota, responderam que eles não podiam esperar o inverno que já lá começava, e que, quanto o desejo os obrigava ir em sua companhia, tanto a necessidade os constrangia a se tornar ao reino. Gomes Pires, capitão da caravela del-Rei, e Álvaro de Freitas, Rodrigo Eanes Travaços, Lourenço Dias, mercador, foram todos em um propósito de seguir o capitão Lançarote, com desejo de passar a terra Sahará, dos azenegues, e ver a de Guiné, dos negros, por lhe dizerem ser mais

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fresca e grossa em todalas cousas. Partidos per esta maneira uns pera o reino e outros pera Guiné, de que eram estas duas cabeças - Soeiro da Costa e Lançarote - tomou cada um sua derrota. Soeiro da Costa, como era alcaide-mor de Lagos, a quem todos obedeciam na terra, por os mais deles serem daquela vila, assi no mar lhe quiseram obedecer, ca os obrigou a que passassem pelo Cabo Branco. Em o qual entrando per um esteiro em batéis, obra de quatro léguas, deram em υa aldea de que somente houveram nove mouros, porque os mais se poseram em salvo, por lhe ser dado aviso primeiro que chegassem à aldea. E porque esta presa o não satisfaz (peró que fosse aconselhado que o não fizesse) disse aos outros capitães que a ele lhe convinha muito tornar à Ilha 49 Tider, porque entre aqueles cativos que levava, era υa moura e um moço filho de um homem principal, os quais prometiam por si grande resgate. Soeiro da Costa, espedido dos outros capitães com este propósito, chegou à ilha, onde logo acudiram alguns mouros a este negócio do resgate; e por segurança de ambas as partes os mouros entregaram por reféns um homem dos principais deles, e Soeiro da Costa entregou o mestre do seu navio e um judeu que do reino fora em sua companhia. E sendo já o moço do resgate posto entre os seus, vendo a moura azo pera isso, confiada mais em nadar, que ela mui bem sabia, que na possibilidade dos seus, de quem esperava o grande resgate que prometia por si, lançou-se ao mar e pôs-se em salvo. Os mouros, como lá teveram a esta moura e o moço, não quiseram dar o mestre e o judeu que já tinham em poder a troco do mouro honrado, se não com mais outros três. Soeiro da Costa, posto que lhe foi grave cousa, todavia o fez por salvar o mestre; e sem mais ganhar cousa que lhe fizesse perder o nojo deste aquecimento , se tornou a este reino. E vindo com propósito de caminho fazerem um salto nas Canárias, toparam com a caravela de Álvaro Gonçalves de Taíde, de que era capitão João de Castilha. E quando souberam dele a via que levava, disseram que lhe parecia sua ida debalde, por quanto o feito de Arguim era acabado, e o inverno começava naquelas partes, com que corria risco de se perder; que eles levavam propósito de passar pelas Ilhas Canárias, e fazer um salto na Ilha da Palma, onde esperavam fazer algυa presa de proveito; 45 que ele devia tomar sua companhia, pois vinha tam tarde pera ir às partes de Guiné. João de Castilha, forçado das razões destes capitães das caravelas, seguiu seu conselho, e o primeiro porto que tomaram foi a Ilha Gomeira, onde logo os vieram receber dous capitães que governavam a terra, fazendo ofertas aos nossos do que houvessem mister, dizendo serem devedores ao Infante Dom Hanrique de tudo o que por seu serviço fizessem, porque eles esteveram em casa del-Rei de Castela e del-Rei de Portugal, e de nenhum deles receberam tanto favor e mercê como dele, Infante. Os capitães das caravelas, vendo que nestas ofertas tinham ajuda, por saber serem os desta ilha grandes imigos dos da Ilha de Palma, que eles iam buscar, descobriram-lhe seu propósito, pedindo-lhe que houvessem por bem de irem com algυa gente sobre aqueles seus imigos, de quem o Infante estava mui escandalizado, por ser má e revel, e que eles iriam em sua companhia. Estes dous capitães canários, cujos nomes eram Piste e Brucho, por mostrar o desejo que tinham de servir ao Infante, sem mais demora meteram-se em os navios com bom golpe de gente, e, feita vela, surgiram em rompendo o dia no porto da Palma. E, per conselho deles, os nossos, ante de serem vistos, 50 saíram em terra e o primeiro encontro que acharam foram uns poucos de pastores, que traziam grande fato de ovelhas. Os quais, tanto que houveram vista dos nossos, assi tinham costumado este gado, que a um certo sinal de apupos que deram começou todo correr pera um vale que estava antre duas serras de ásperos rochedos, 16 como se lhe disseram: - Aqui são os imigos! - Os nossos, quando viram que os canários começavam

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trepar com seus capitães per aquelas rochas trás os pastores que fugiam, seguiram o seu modo; mas como não eram costumados àqueles saltos, caíram alguns per lugares de perigo, entre os quais foi um mancebo que, quando chegou a baixo da altura donde caiu, veo feito em pedaços. E per este modo também pereceram alguns canários, porque, como eram confiados no uso daqueles lugares, corriam mais sem tento. E dos nossos, o que milhor se havia neste modo de prear a cosso, foi Diogo Gonçalves, moço da câmara do Infante, aquele que se lançou ao mar em Arguim contra os mouros que estavam fazendo algazarras na praia. Os canários, cujas eram as criações, tanto que sentiram a entrada de seus imigos, acudiram com muita gente; peró, como sentiram as armas dos nossos, não ousavam de os esperar de perto, e embarravam-se em as penedias de onde faziam seus arremessos, e se lhe os nossos tiravam assi eram leves em furtar o corpo, que de maravilha os podiam ofender. Contudo, entre os tomados a cosso e outros que houveram depois que se ajuntou a gente, foram dezassete almas, entre as quais vinha υa mulher de espantosa grandeza, a qual quisera dizer ser rainha de υa parte daquela ilha. Tornados os nossos à Ilha Gomeira, leixaram os capitães canários em o lugar onde os tomaram, 46 e o que chamavam Piste faleceu depois neste reino, andando em negócios da ilha; ao qual o Infante sempre fez gasalhado e mercê. João de Castilha, porque não vinha contente da pequena presa que lhe coube em repartição, e também por se refazer da perda que houve em não se achar no feito de Arguim, donde estoutros vinham, fez com eles que na mesma Gomeira onde estavam fizessem algυa presa. E posto que a todos pareceu maldade cativar aqueles de quem receberam amizade, pôde mais neles a cobiça que esta lembrança; e como que per esta maneira ficavam menos culpados, passaram-se deste porto a outro da mesma ilha, onde prearam vinte e υa almas, com que se fizeram à vela, caminho deste reino. O qual engano, sabido pelo Infante, ficou mui indinado contra os capitães, e vestidos à sua custa mandou depois, como se adiante verá, tornar todolos cativos onde os tomaram; porque, como o Infante por esta gente das Canárias tinha feito grandes cousas, segundo veremos neste seguinte capítulo, sentia muito qualquer ofensa que lhe faziam.

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46 16 51 Capítulo XII. Como as ilhas a que ora chamam Canárias foram descobertas por um fidalgo francês chamado mossior João de Betancor; e depois o Infante Dom Hanrique teve o senhorio delas e converteu à Fé a maior parte dos seus povoadores; e de alguns costumes deles. Em tempo del-Rei Dom Hanrique, o terceiro de Castela, filho del-Rei Dom João, o primeiro, veo de França a estas partes de Espanha um francês por nome mossior João de Betancor , homem nobre, com tenção de conquistar as Ilhas das Canárias, por ter sabido serem povoadas de gente pagã. E, segundo fama, a notícia delas soube per υa nau ingresa ou francesa que lá esgarrou com tempo, vindo daquelas partes a estas de Espanha. E posto que ele trouxe navios, gente e munições pera esta conquista, em Castela, onde primeiro veo ter, se reformou de mais gente com que subjugou estas três ilhas - Lançarote, Forte Ventura e a Ferro - e isto com tanto trabalho e custo, que de cansado e ter despeso todo o cabedal que trouxe, tornou a França, a se reformar, leixando ali um seu sobrinho, chamado Maciot Betancor, mas ele não tornou mais. Diziam alguns que por graves doenças que teve, e outros que el-Rei de França o empediu por causa da guerra que então tinha com Ingraterra. Mossior Maciot Betancor, vendo que passavam tempos sem acudir seu tio a tam grande impresa como lhe leixara, a qual não podia sustentar, posto que , em ausência sua, com ajuda de alguns castelhanos, conquistara a Gomeira, concertou-se com o Infante Dom Hanrique sobre o que nelas tinha, e ele passou-se à Ilha da Madeira, onde 47 assentou sua vivenda, porque começavam naquele tempo florecer as cousas dela, e os homens que se lá passavam a viver, engrossavam muito em fazenda, como também aconteceu a este Maciot. O qual com o que houve do Infante, que foram as saboarias e outras rendas na ilha, e depois 16v com sua indústria, ganhou tanto, que casou υa só filha que teve, chamada Dona Maria Betancor, com Rui Gonçalves da Câmara, capitão da Ilha São Miguel, filho de João Gonçalves, primeiro capitão da Ilha da Madeira, da parte do Funchal. E porque não houve filhos dela, herdaram Hanrique de Betancor e Gaspar de Betancor, sobrinhos deste Maciot de Betancor, a sua herença dele, da qual hoje possuem seus herdeiros boa parte, os quais são fidalgos mui honrados e tem o seu apelido de Betancor. 52 E porque, de doze ilhas que elas são, ainda ficavam por conquistar estas - Grã Canária, Palma, Graciosa, Inferno, Alegrança, Santa Clara, Roque e a dos Lobos - determinou o Infante Dom Hanrique, por louvor de Deus, de as mandar conquistar e trazer ao baptismo os seus moradores. Pera a qual obra se fez υa armada o ano de quatrocentos e vinte quatro, em que foram dous mil e quinhentos homens de pé, cento e vinte de cavalo, e por capitão-mor Dom Fernando de Castro, governador de sua casa, padre de Dom Álvaro de Castro, Conde de Monsanto, e camareiro-mor del-Rei Dom Afonso, o quinto deste nome. E porque a gente era muita e a terra desfalecida de mantimentos, deteve-se Dom Fernando mui pouco tempo nesta conquista, porque também era custosa ao reino, e somente a passagem da gente que foi a ela, segundo vimos nos livros das contas do reino, custou trinta e nove mil dobras. E nesse pouco tempo que esteve, grande número daquele povo pagão recebeu o baptismo. Depois, pera favorecer estes cristãos contra aqueles que não queriam vir à Fé mandou o Infante algυa gente, e por capitão dela Antão Gonçalves, seu guarda-roupa. E passados alguns anos que estas ilhas, per causa do descobrimento da Ilha da Madeira e

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assi de Guiné, começaram ter nome e sabor na opinião da gente de Espanha, desistiu o Infante delas, porque se entremeteu nisso el-Rei de Castela, dizendo que lhe pertenciam. Por quanto Mossior João Betancor, que primeiro conquistara as três, no reino de Castela se armara, e ali recebera todalas ajudas de gente, mantimentos e munições pera as conquistar; e, depois de sua partida, Maciot, seu sobrinho, sempre recebera as mesmas ajudas de Castela, e a Gomeira que ele tinha conquistado com a gente de Castela fora, e aos reis dela dava obediência e reconhecia por senhores; e que se ele, Maciot, vendera a fazenda e terras que tinha aproveitado, não podia vender o senhorio e jurdição, que era da Coroa de Castela. O Infante, como sua tenção em conquistar estas ilhas mais era por salvar as almas dos seus moradores pagãos, que por algum proveito que delas tevesse, ante lhe tinham feito muita despesa em as 48 conquistar e suster, não prosseguiu mais em o que tinha começado. Depois, em tempo del-Rei Dom Hanrique, o quarto deste nome, em Castela, quando casou com a Rainha Dona Joana, filha del-Rei Dom Duarte de Portugal, Dom Martinho de Taíde, Conde de Atouguia, que a levou a Castela, houve del-Rei Dom Hanrique estas ilhas das Canárias per doação que lhe delas fez, e ele as vendeu depois ao Marquês Dom Pedro de Meneses, o primeiro deste nome, e o Marquês as vendeu ao Infante Dom Fernando, irmão del-Rei Dom Afonso. O qual Infante folgou de as comprar, porque, como era filho adoptivo do Infante Dom Hanrique, seu tio, que já tevera o senhorio destas ilhas, parecia-lhe que as não comprava, mas que as herdava dele. E, tanto que as houve, mandou tomar posse delas e a conquistar alguns revéis; ao qual negócio enviou Diogo da Silva, que depois foi Conde de Portalegre. Em meio do qual tempo, veo a estes reinos um cavaleiro castelhano, 53 per nome Fernão Peraça, pedindo a el-Rei Dom Afonso e ao Infante que. houvessem por bem de o restituir em posse das ditas ilhas, por quanto ele as tinha comprado a um Guilhen de las Casas, o qual as comprara a Dom Hanrique, Conde de Nebla, em quem Maciot Betancor as trespassara per via de doação com procuração que tinha de seu tio João de Betancor, de que apresentava escrituras e provisões dos Reis de Castela, em confirmação das tais compras. E porque per elas e per outras razões, el-Rei e o Infante viram a justiça dele, Fernão Peraça, desestiram delas. Per morte do qual Fernão Peraça, herdou esta herança υa sua filha, per nome Dona Inês de Peraça, com quem casou um fidalgo castelhano, chamado Diogo Gracia de Herrera. E entre os filhos que houve dela, foi Dona Maria de Ayala, com quem casou Diogo da Silva, estando ainda lá por parte do Infante na conquista e governança delas. E porque as Ilhas da Gomeira e Ferro eram feitas em morgado, de que hoje é 17 intitulado Conde Dom Guilhen de Peraça, seu filho, ficaram partíveis as Ilhas de Lançarote e Forte Ventura, em que Dom João da Silva, segundo Conde de Portalegre por parte de sua madre a Condessa, tem herança que ao presente lhe renderá até trezentos mil reais. Parece que permitiu Deus que ficasse esta memória em Portugal por os trabalhos que o Infante Dom Hanrique levou na conversão e conquista dos povos destas ilhas, posto que o senhorio e jurdição delas fosse trespassado em Castela, na maneira que dissemos. E por razão desta acção que este reino tinha nestas Ilhas Canárias, pola despesa que era feita na conquista e conversão de seus povos, quando se fizeram as pazes entre Portugal e Castela por causa das guerras que houve entre el-Rei Dom Afonso, o quinto deste reino, e el-Rei Dom Fernando de Castela, nomeadamente em os capítulos das pazes, ficou com Castela a conquista e senhorio destas ilhas e a conquista do reino de Grada, como com Portugal a do reino de Fez 49 e de Guiné, etc., segundo se contém na Crónica deste Rei Dom Afonso. Este foi o fundamento da conquista e conversão destas ilhas, posto que em a Crónica del-Rei Dom João o segundo, de Castela, o cronista, por dar posse à sua Coroa, leve outro caminho

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na relação do descobrimento delas. E também pode ser que não teria notícia de todas estas cousas. E por louvor deste Infante Dom Hanrique, trataremos dos ritos e costumes que o povo pagão destas ilhas naquele tempo tinha, quando per indústria sua foram trazidos ao baptismo. Haveria naquele tempo em todas estas ilhas treze ou catorze mil homens de peleja, e posto que todos fossem pagãos, não convinham em uns ritos e costumes, somente em conhecimento de um Criador de todalas cousas, o qual dava galardão aos bons e pena aos maus. Os moradores da Grã Canária tinham dous homens principais que os governavam: a um chamavam o rei e a outro duque, e porém o regimento da justiça e governo da terra era feito per número de cento e noventa homens, 54 sem poderem ser mais ou menos. E, como algum morria, logo era enlegido outro da linhagem daqueles que governavam, e estes tinham a ciência e os preceitos daquilo que cada um devia crer, e eles os davam ao povo, de maneira que não sabiam mais dizer do que criam e adoravam, somente que naquilo que criam os seus cavaleiros, que eram estes cento e noventa homens. As mulheres não podiam casar sem primeiro as corromper um destes cavaleiros, e quando lhas apresentavam, haviam de vir bem gordas de leite, que era a ceva com que as cevavam pera isso; e se eram magras diziam que ainda não estavam em disposição pera casar, por quanto tinham o ventre pequeno e estreito pera criar nele grandes filhos, de maneira que não haviam por autas pera casamento senão as de grande barriga. A peleja deles era às pedradas e com paus curtos, à maneira de rejeitos de remesso; e ao tempo do pelejar era bem ardida e esforçada. Seu vestido era os coiros da carne somente; e em os lugares desonestos traziam υa maneira de bragas de folhas de palma tintas de cores. Entre eles não havia ferro, e à míngua dele rapavam as barbas com pedras agudas: se haviam algum à mão, era mui estimado e faziam anzolos dele. Ouro, prata, nem outro metal não o queriam, ante haviam que era sandice desejar alguém o que lhe não servia de instrumento mecânico pera suas necessidades. Trigo e cevada tinham em grande cópia, e desfalecia-lhe engenho pera o amassar em pão, somente comiam a farinha cozida com carne e manteiga. Haviam por cousa mui torpe esfolar alguém gado, e neste mister de magarefes lhe serviam os cativos que tomavam; e quando lhe estes faleciam, buscavam homens dos mais baixos do povo pera este ofício, os quais viviam apartados da outra gente, e não os comunicavam em aquele mister. As madres não criavam de boa vontade seus filhos ao peito, e quási todos eram criados 50 às tetas das cabras. Os moradores da Gomeira em alguns ritos e costumes se conformavam com estes, peró seu comer geralmente era leite, ervas e raizes de juncos e toda a imundícia, assi como cobras, lagartos, ratos e outras cousas desta calidade. As mulheres eram quási comυas, e quando se visitavam uns a outros davam as mulheres por gasalhado e boa hospedagem, de onde se causava que não herdavam os filhos, senão os sobrinhos da irmã. O mais do tempo despendiam em cantar, bailar e uso de mulheres, que entre eles era estimado por o maior bem da vida. Os da Ilha Tanarife eram mais abastados de mantimentos, ca entre eles havia trigo, cevada, legumes de toda 17v sorte e grandes fatos de gado meúdo, de cujas peles se vestiam. E todos eram repartidos em oito ou nove bandos de gerações, cada um dos quais tinha próprio rei, e sempre havia de trazer consigo dous, um morto e outro vivo, e morto este enlegiam outro. E o primeiro 55 defunto ao tempo que o queriam enterrar, havia de ser per o mais honrado homem; o qual o levava às costas, e quando o punham na sepultura todos a υa voz diziam: - Vai-te à salvação! - Tinham mulheres próprias, todo seu exercício eram bandos, e isto os fazia ser gente mais guerreira que os das outras ilhas, e também viviam com mais razão em todas suas cousas. Os da Ilha da Palma seriam até quinhentos homens, os quais acerca do juízo e uso das

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cousas eram mais bestiais que os das outras ilhas, tendo também muita parte dos seus costumes. Seu mantimento era ervas, leite e mel. E porque ao presente toda esta gentilidade bárbara se perdeu, e em seu lugar é recebida a fé e polícia espanhol , e as outras cousas dos fructos e disposição da terra são já mui notórias a nós, basta o que dissemos por glória de Deus e louvor do Infante Dom Hanrique, que plantou este fructo na sua Igreja.

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50 17v Capítulo XIII. Como o capitão Lançarote, depois que leixou estas caravelas de sua conserva que se vieram pera o reino, com as outras que o seguiram descobriu o grande rio a que ora chamamos Sanagá, e di foi ter a υa ilheta pegada com o Cabo Verde. O capitão Lançarote, depois que Soeiro da Costa, seu sogro, se espediu dele, começou de seguir sua viagem, sempre ao longo da costa, té passar a terra a que os mouros chamam Sahará e os nossos corruptamente Zará, que é parte dos desertos de Líbia; e veo ter às duas palmeiras que Dinis Fernandes, quando ali foi, demarcou como cousa notável, onde os da terra dizem que se apartam os azenegues mouros dos negros idólatras , peró que nestes nossos tempos aqui já sejam todos da seita de Mafamede. E seguindo mais avante obra de vinte léguas, acharam um rio mui notável, a que nós ao 51 presente chamamos Sanagá, por razão que o principal resgate que pelo tempo em diante se ali começou fazer, foi com um negro dos principais da terra, chamado per este nome Sanagá. Porque o verdadeiro nome do rio, logo ali na entrada é Ovedech (segundo a língua dos negros que habitam naquela sua foz), e quanto mais se penetra o sertão per onde ele vem, tantos nomes lhe dão os povos que bebem as suas águas, dos quais nomes, curso e nascimento dele se verá adiante. E não somente pelo que os nossos então souberam dele, mas pela informação que os mouros azenegues 56 deram ao Infante de como vinha das partes orientais correndo per grandes reinos e provincias, houveram que era um braço do rio Nilo. O capitão Lançarote, depois que entrou à barra deste rio, lançando um batel fora, meteu-se nele Estêvão Afonso pera sair em terra e descobrir o que alcançasse com a vista; e na primeira que tomou onde se fazia um médão de area, viu estar υa cabana que lhe pareceu ser dalgum pescador, na qual foram tomados um moço e υa moça, ambos irmãos, mais pera sua salvação que pera receber cativeiro. Porque, vindos a este reino, o moço mandou-o o Infante criar e doutrinar em letras pera poder receber ordem sacerdotal, e tornar a esta parte a pregar o baptismo e fé de Cristo, e ante de chegar a madura idade, faleceu; e a irmã, já polos méritos de seu irmão, teve criação e vida mais de livre que cativa. E posto que ali não houvesse língua que entendesse estes dous irmãos, pera deles tomar algυa informação, na idade deles entenderam que o pai ou mãe não deviam ser mui longe; e começando descobrir derredor da casa contra onde se fazia um arvoredo, ouviram pancadas, como que cortavam algυa cousa. E porque, indo juntos, podiam fazer rebuliço, disse Estêvão Afonso que o deixassem ir só, pera mansamente espreitar quem era o que dava aquelas pancadas. E indo assi ao tom delas, foi dar com um negro, o qual estava tam atento no cortar de um pau, que o não sentiu senão quando lançou mão dele. O qual atrevimento lhe houvera de custar a vida; porque, como o negro era grande e forçoso e andava nu, e Estêvão Afonso, homem pequeno e roupado do vestido, no primeiro bracejar, peró que o negro ficou cortado com aquele novo 18 temor, levou Estêvão Afonso debaixo de si; e ainda que a peleja era a punho e a dentes, ele passara mal, senão sobrevieram seus companheiros, com a vista dos quais o negro escapuliu e fugiu pera dentro do arvoredo. Estêvão Afonso, quando se viu desapressado com o favor dos companheiros que corriam trás ele contra a mata, começou de o seguir, dizendo que rodeassem o arvoredo, té que viessem alguns cães do navio que o lançassem fora. Mas o negro, como levava o cuidado nos filhos, ainda

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não entrou per υa parte quando saiu pela outra, e não os achando na cabana, começou de seguir o rastro que os nossos levavam com eles contra a praia, onde Vicente Dias, mercador 52 senhorio do navio cujo era aquele batel, andava passeando tam seguro como se estevera em Tavila , donde ele vivia, tendo somente por arma um bicheiro que tomou no batel por ajuda de bordão. O negro, tanto que o viu, sem temor algum, com a fúria do amor que trazia dos filhos, lançou-se a ele, depois que lhe rompeu υa queixada com υa azagaia de remesso, e porém, primeiro que viessem a braços, também levou υa boa ferida com o bicheiro per cima da cabeça. 57 E andando Vicente Dias com este perigo, peró que trouxesse seu imigo debaixo, sobreveo outro negro, filho deste, já homem valente, e assi se ajudaram ambos, que o traziam mui mal tratado, se a vinda de Estêvão Afonso e de seus companheiros o não salvara, porque os negros, tanto que os viram correr contra si, como eram legeiros, desapressaram a ele e poseram-se em salvo. Chegados onde estava Vicente Dias, como já na companhia havia dous injuriados do negro, antre riso e pesar de lhe assi escapulir das mãos se tornaram à caravela, onde Vicente Dias foi curado; e assi ele, como Estêvão Afonso, eram visitados da gente das outras caravelas, gracejando todos como o negro era milhor lutador que quantos havia no batel. Passado aquele dia, tendo o capitão Lançarote assentado com os outros capitães pera irem per o rio acima descobrir, por ser a cousa que o Infante mais desejava, levantou-se um tempo de maneira que os fez a todos sair de onde estavam, com o qual tempo se apartaram da companhia de Lançarote, Rodrigues Eanes Travaços e Dinis Dias, que se vieram na volta do reino, onde chegaram a salvamento. Lançarote, com cinco caravelas, correndo contra o Cabo Verde, foi surgir em υa ilheta pegada com a terra firme, em que acharam muitas cabras, que lhe foi mui bom refresco, e assi acharam peles frescas de outras, como que havia poucos dias que se fizera ali algυa matança delas. E o que lhe certificou ser aquela obra dos nossos, foi acharem escrito em a casca de υas grandes árvores este moto da divisa do Infante: Talent de bien faire, o qual sinal leixou Álvaro Fernandes, sobrinho de João Gonçalves, capitão da parte do Funchal na ilha da Madeira, que veo ali ter e pelejou com seis almadias de negros que o vieram cometer, de que somente tomou υa com dous deles, porque os mais se salvaram a nado. E desta viagem passou ainda té onde ora chamam o Cabo dos Mastos, nome que lhe ele então pôs por razão de υas palmeiras secas que à vista representavam mastros arvorados, e daqui se tornou pera o reino. O capitão Lançarote, em dous dias que esteve com as cinco caravelas nesta ilha onde Álvaro Fernandes pôs o moto, fez sua aguada e matança de cabras, e des i passou-se à terra firme, com a vista do qual acudiram à praia muitos negros. Gomes Pires, a quem o capitão Lançarote mandou em um batel que fosse a eles, parecendo-lhe 53 que os provocava mais a paz que lhe o Infante muito encomendava em seu regimento, lançou-lhe em terra um bolo, um espelho e υa folha de papel em que ia debuxada υa cruz. Mas eles estavam tam safaros da cobiça daquelas cousas e tam escandalizados do que lhe Álvaro Fernandes fez, que não somente as não quiseram, mas ainda as quebraram 58 e romperam tudo, como se nelas fora algυa peçonha ou peste que lhes podia empecer; e sobre isso começaram de tirar às frechadas ao batel. Vendo Gomes Pires que com eles não havia algum modo de paz, mandou a uns besteiros que consigo tinha que lhe respondessem com o seu almazém, dando-lhe esta espedida. Os capitães, com esta mostra que os negros deram de si, atentaram de ao outro dia darem neles da maneira que costumavam dar nas aldeas dos mouros, mas sobreveo tam subitamente um temporal, que os fez correr como cada um pôde marear seu navio.

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Lourenço Dias, escudeiro do Infante, foi ter ao lugar onde o negro luitou com Vicente Dias, e vendo-se mal apercebido de mantimento, 18v armas e outras cousas que lhe convinham pera descobrimento do rio, não ousou de o cometer e veo-se na volta do reino. Gomes Pires, patrão, que era outro desta conserva de Lançarote, veo-se per o Rio do Ouro, e ali tratou com os mouros, dos quais houve per resgate um negro, prometendo-lhe que ao seguinte ano, se ali tornasse, os acharia apercebidos de ouro e escravos com que podesse carregar o navio. Porque começavam já de gostar do proveito que lhe os nossos davam com as cousas que haviam deles, de maneira que, os dias que Gomes Pires ali esteve, vinham ao navio seguramente; e, mais por amizade que per resgate, eles lhe deram υa boa soma de peles de lobos marinhos, com que se veo pera o reino. Lançarote, Álvaro de Freitas e Vicente Dias, assi como todos três naquela tormenta que lhe deu no Cabo Verde, mantiveram conserva. Assi foram todos em conselho que de caminho dessem na Ilha Tider, onde tomaram cinquenta e nove almas, com que se vieram ao reino com mais proveito que os outros. Dinis Fernandes, capitão da caravela de Dom Álvaro de Castro, e Palaçano, capitão da fusta, como ambos mantiveram companhia na ida das catorze caravelas que este ano partiram deste reino, quando chegaram a Arguim e acharam nova em as outras caravelas que foram no feito da Ilha Tider, como as ilhas eram já despejadas, determinaram de passar adiante, té o rio Sanagá, e entrar dentro da fusta, por Dinis Fernandes saber já aquela costa, quando ali veo ter. E tendo passado a ponta chamada de Santana, que é aquém do Rio Sanagá obra de cinquenta léguas, por levarem calmarias quiseram lançar um homem fora, que descobrisse se havia algυa povoação junto da praia. Mas como o mar com a calmaria andava banzeiro, eram tam grandes as vagas que não ousava 54 algum dos mareantes de se lançar a nado. Contudo, movidos dalgυas palavras com que Palaçano quis envergonhar doze homens mancebos que sabiam nadar, levando somente armas ofensivas, puseram o peito à água. Tomada a praia per caminho, começaram de a seguir té irem dar com doze mouros que caminhavam per ela, dos quais tomaram nove, com que se tornaram recolher ao navio. E parece que o tempo os estava esperando que se recolhessem, porque sobre aquele grande prazer da presa que trouxeram, 59 sobreveo tanto tempo subitamente, que abriu a fusta de Palaçano, e a grande dita se salvou toda a gente em o navio de Dinis Fernandes. O qual com a fúria do temporal correu ao Cabo Verde, onde não fez mais que haver vista dos negros que defendiam a praia com frechas de erva; e, com outra mudança que fez o tempo, tornou ao lugar onde perdeu a fusta, de que ainda acharam o casco, que os mouros não quiseram desfazer, com propósito que seria anagaça aos nossos, quando ali tornassem. Como houvera de ser, se não saíram com boa vegia, porque detrás de uns médãos estavam lançados obra de setenta mouros em cilada, os quais não fizeram mais que receberem dano, perecendo a maior parte deles, e os outros que se salvaram haviam de ter que curar. Acabado este feito com que Dinis Fernandes e Palaçano, na honra dele, recobraram a perda da fusta que lhe ali ficou, e da pouca fazenda que tinham havido per toda aquela costa, fizeram-se à vela, passando pela Ponta de Tira, onde somente tomaram dous mouros a cosso, por andarem já tam temerosos do ferro dos nossos, que tomavam os pés por armas de sua salvação. E daqui se fizeram na volta deste reino, onde chegaram a salvamento; e neles se acabaram de recolher todalas caravelas que aquele ano partiram deste reino, de que somente se perdeu a fusta de Palaçano, como dissemos.

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54 18v 59 Capítulo XIV. Como Nuno Tristão e dezoito homens foram mortos com erva das frechadas que houveram em υa peleja com os negros em um rio de Guiné em que entraram. E como passou Álvaro Fernandes além do Cabo Verde cem léguas. E do que também aconteceu a cinco caravelas que foram a este descobrimento. 19 O ano de quatrocentos e quorenta e seis, tornou Nuno Tristão em υa caravela per mandado do Infante a descobrir mais costa além do que Álvaro Fernandes leixava descoberto, que foi té o Cabo dos Mastos. E como era diligente nestas cousas, passou além do Cabo Verde obra de sessenta e tantas léguas, té chegar onde ora chamam o Rio Grande; e 55 surto o navio na boca dele, meteu-se no batel com vinte e dous homens, com tenção de entrar pelo rio acima, descobrir algυa povoação, por ter υa grande entrada. A qual entrada fez a tempo que a maré subia tam tesa pera dentro, que em breve espaço os afastou da barra um 60 bom pedaço, té irem dar em meio de treze almadias, em que haveria até oitenta negros, homens valentes e que se escolheram pera aquele feito, como quem tinha primeiro visto o pouso do nosso navio e depois a entrada do batel pelo rio. Nuno Tristão, quando viu as almadias juntas e com sua chegada se apartaram υas pera υa parte e outras pera outra, pareceu-lhe que, de gente bárbara e não costumada a ver aquela maneira de homens, fugiam pera terra, porque os negros mostravam que se queriam acolher a ela. Peró, como viram o nosso batel em meio deles, de maneira que uns ficavam abaixo e outros acima, remeteram a força de remo todos com υa grande grita, e lançaram sobre ele υa chuva de frechas; assi repartidos e adestrados pera este modo de peleja, que, quando o nosso batel remava contra uns, acudiam da outra parte outros, andando às voltas com ele da maneira que se hão os genetes com a gente de armas. E como as frechas eram ervadas e a fúria da peleja lhe acendia mais o sangue, começaram alguns dos nossos embarbascar e cair, que causou tornar-se Nuno Tristão ao navio, a tempo que decia a maré. Mas pouco lhe aproveitou esta ajuda dela; porque assi tinha lavrado a erva, que, primeiro que chegassem ao navio, iam a maior parte deles mortos, o que Nuno Tristão sentiu tanto, que, entre dor e peçonha , também os acompanhou na morte. Os quais mortos foram João Correa, Duarte de Holanda, Estêvão de Almeida, Diogo Machado, todos homens de sangue e que de moços se criaram na câmara do Infante, e assi outros escudeiros e homens de pé de sua criação, que com os mareantes podiam ser dezanove pessoas. E ainda pera maior desaventura, de sete que ficavam, dous entrando em o navio, per cajão υa âncora os feriu, de maneira que acompanharam na morte aos outros. Alguns dizem que este caso aconteceu em o rio a que ora chamamos de Nuno, que é além do Rio Grande vinte léguas, e que desta morte de Nuno Tristão lhe ficou o nome que ora tem - de Nuno. E o que neste caso se pode haver por mais maravilhoso, é que, cortadas as amarras por não haver quem as levasse, não ficando em o navio mais que um moço da câmara do Infante, chamado Aires Tinoco, natural de Olivença, que viera por escrivão, com quatro moços, per espaço de dous meses assi os ajudou Deus em governar o navio, que o trouxeram a Lagos, não tendo nenhum deles saber pera isso. O Infante, porque a este tempo estava naquela vila, quando soube parte de tam desaventurado caso, ficou mui triste, porque a maior parte dos mortos criara de pequenos, e era

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príncipe mui 56 mavioso pera os criados. Mas como em outra cousa lhe não podia aproveitar, mostrou o amor que lhe tinha em o amparo dos filhos e mulheres daqueles que as tinham. E de quam desestrado aquecimento foi este de Nuno Tristão, tam próspero 61 aconteceu a Álvaro Fernandes, sobrinho de João Gonçalves, capitão da Ilha da Madeira. O qual neste mesmo ano tornou outra vez a Guiné, passando desta viagem mais de cem léguas além de Cabo Verde. E a primeira cousa que fez, foi dar em υa aldea, o senhor da qual matou per suas próprias mãos, por ele, como homem animoso, vir ante os seus cometer os nossos, cuja morte assi os espantou, que tomaram por salvação os pés. Os quais, como eram ligeiros e despejados de roupa, não houve algum dos nossos que se atrevesse aos alcançar, nem menos se quiseram meter no mato, onde se embrenharam; e tornando-se ao navio, tomaram duas negras que andavam mariscando. Álvaro Fernandes, como se queria vantajar dos outros descobridores, passou mais avante, té chegar à boca de um rio a que ora chamam Tabite, que 19v será além do Rio do Nuno trinta e duas léguas, onde o logo cinco almadias vieram receber. E porque o caso de Nuno Tristão os fazia temer estas entradas dos rios, não se quis meter em lugar estreito, e contudo não se pôde livrar de perigo, porque υa das almadias, confiada em sua ligeireza, tanto se chegou ao batel, té que fizeram seu emprego de setas em a própria pessoa de Álvaro Fernandes. O qual, como já de cá ia provido pera esta erva de que os negros ali usavam, a poder de triaga e de outras mezinhas escapou da morte, e assi maltratado, como era homem de ânimo, passou mais avante, té υa ponta de area onde quisera sair, vendo a terra escampada e descoberta pera isso, mas obra de cento vinte negros que lhe saíram ao encontro lha defenderam com muita frechada, toda com erva. E porque o Infante encomendava muito aos capitães que não rompessem guerra com os moradores da terra que descobrissem, senão mui forçados, e isto depois de lhe fazer suas amoestações e requerimentos da fé, paz e amizade, vendo Álvaro Fernandes que a sua saída, segundo se os negros dispunham e davam pouco pelos sinais de paz, não podia ser sem custar a vida de algum dos nossos, não os quis aventurar à peçonha de que ele já tinha experiência, e contentou-se com ter descoberto mais terra que quantos capitães té então tinham ido àquelas partes. Com a qual determinação partiu pera este reino, onde foi recebido do Infante Dom Hanrique com muita honra, e assi do Infante Dom Pedro, seu irmão, que então era regente, cada um dos quais lhe fez mercê de cem cruzados. Estas mercês e honras animavam mais aos homens a seguir este descobrimento do que os metia em temor o caso de Nuno Tristão, de maneira que neste mesmo ano se armaram dez caravelas, de que estes eram os capitães: Gil Eanes, 57 cavaleiro morador em Lagos, Fernão Valarinho, homem mui experimentado nas cousas da guerra, principalmente em Ceita, onde ele fez honrados feitos, Estêvão Afonso, Lourenço Dias e João Bernaldes, piloto, todos homens mui honrados, e os mais deles criados do Infante, com os quais 62 ia também υa caravela do Bispo do Algarve e outras três dos moradores de Lagos. Os quais, juntos em υa conserva per mandado do Infante, passaram pela Ilha da Madeira pera tomar algum mantimento, e também porque com eles se haviam de ajuntar duas caravelas mais: υa de Tristão Vaz, capitão de Machico, e outra de Garcia Homem, genro de João Gonçalves, capitão do Funchal. E de aqui da ilha foram todos a Gomeira, a levar os canários que atrás dissemos que João de Castilha e os outros capitães saltearam, os quais iam em os navios de Lagos per mandado do Infante, mui contentes e satisfeitos das mercês e dádivas que lhe deu.

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Com ajuda dos quais quiseram os nossos fazer υa entrada na Ilha da Palma, e por serem sentidos não lhe sucedeu a saída como cuidaram, que foi causa de os capitães das caravelas da Ilha da Madeira se tornarem dali, porque parece serem somente vindos a este feito da Ilha da Palma; e os outros fizeram sua derrota, caminho do Cabo Verde. Na qual parte, por razão da terra ser mui apaulada e chea de arvoredo, no modo de peleja ajudavam-se dos negros tam mal, que sempre recebiam mais dano deles do que lhe faziam, como lhe aconteceu esta vez, perdendo cinco homens que morreram às frechadas por causa da erva de que usavam, e assi perderam em um banco de area a caravela do Bispo do Algarve. E porque sempre dos mouros levavam mais vitória que destes negros, tornaram-se a Arguim, e no cabo do resgate em υa aldea tomaram quorenta e oito almas; e, como de caminho, (vindo-se os outros pera o reino), passou Estêvão Afonso pela Ilha da Palma, onde tomou duas mulheres que houveram de custar a vida de quantos saíram em terra, se não fora pelo esforço de Diogo Gonçalves. O qual, vendo que um homem de pé se embaraçava com υa besta que tinha, tomou-lha das mãos, e assi se ajudou dela que derribou sete canários, entre os quais foi um rei que por insígnias de seu estado real trazia um ramo de palma na mão. E aprouve a Deus que desta feita, ficando ele morto com sua palma, os nossos levaram a vitória, porque, com a morte dele, todolos seus se poseram em fugida, e os nossos em salvo em Portugal.

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58 20 63 Capítulo XV. Como o Infante mandou Gomes Pires ao Rio do Ouro, onde cativou oitenta almas. E assi mandou a Diogo Gil assentar trato em Meça, e Antão Gonçalves ao mesmo Rio do Ouro. E como veo a este reino um gentil homem da casa del-Rei de Dinamarca, com desejo de ver as cousas de Guiné, e o Infante o mandou em um navio, e lá pereceu. Como vimos atrás, os mouros que no Rio do Ouro deram as peles dos lobos marinhos a Gomes Pires, prometeram-lhe de fazer com ele resgate de ouro e escravos, se lá tornasse. O Infante, porque o tempo desta promessa era chegado, mandou-lhe armar dous navios, com os quais chegando ao Rio, achou que a verdade dos mouros era conforme a sua seita, porque, em lugar de paz e resgate que lhe tinham prometido, armavam muitas traições, que causou tomar Gomes Pires emenda deles, per oitenta almas que cativou, com se que veo pera o reino no mesmo ano de quatrosentos e quorenta e sete em que dele partiu. E no seguinte, mandou o Infante a um Diogo Gil, homem de mui bom saber, que fosse assentar trato com os mouros de Meça, que é doze léguas além do Cabo de Gué, e seis aquém do Cabo de Não, tam pouco tempo havia tam temeroso, na opinião dos mareantes. E isto porque os mouros do Rio do Ouro eram alevantados, e tinham por informação que estes de Meça desejavam nossa paz e comércio. E pera se isto milhor fazer, dos mouros que eram vindos daquelas partes, houve alguns da comarca de Meça que prometiam por si υa boa soma de negros. Em companhia do qual foi João Fernandes, o que ficou entre os mouros na terra de Arguim; per meio do qual, tendo já Diogo Gil resgatados cinquenta negros per dezoito mouros que levou, de súbito sobreveo tamanho vento travessão na costa, que se fez à vela, ficando João Fernandes em terra, e trouxeram um lião ao Infante, o qual ele mandou a um fidalgo ingrês, grande seu servidor, que vivia em Galveu . Como a fama destes navios, que descobriram novas regiões e povos, corria per toda a Cristandade, foi ter à Corte del-Rei de Dinamarca, em casa do qual andava um homem fidalgo per nome Balarte, mui curioso de cousas novas. E desejando de se experimentar em as deste descobrimento, havendo licença del-Rei de Dinamarca, veo ter a este reino, encomendado ao Infante Dom Hanrique. A requerimento do qual Balarte, o Infante lhe mandou armar um 64 navio, e polo mais honrar, mandou com ele um cavaleiro da Ordem de Cristo, a que chamavam Fernando Afonso, o qual ia em modo de embaixador ao Rei de Cabo Verde, levando dous negros por língua, per meio dos quais o Infante lhe mandava que se trabalhasse por converter aquela gente pagã. Balarte, como era desejoso de ver a costa que os nossos tinham 59 descoberta por ser povoada de mouros e negros, pediu a Fernando Afonso que fizessem sua viagem ao longo dela; e assi a esta causa como polos tempos lhe serem contrairos, do dia que partiram té chegar ao Cabo Verde poseram seis meses. Os negros da terra, por já serem costumados ver os nossos navios, tinham olho no mar, como quem se vigiava, e havendo vista deste, vieram a ele em suas almadias com mão armada e tenção de fazer algum dano, se podesse. Mas quando acharam as línguas que lhe falaram, per as quais souberam o fundamento a que o Infante mandava o navio, e que vinha nele embaixador e algυas cousas, pera o seu Rei, ficaram com ânimo menos indinado, respondendo a propósito, de maneira que foram levar recado ao regedor da terra, por o Rei ser dentro oito jornadas, em υa guerra que tinha. Sabido este recado per o governador da terra a que eles chamam Farim, veo à praia mui

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acompanhado, onde Fernando Afonso e Balarte assentaram paz e se deram reféns, enquanto ele enviava recado a el-Rei da chegada dos nossos. Da sua parte se deu um dos honrados da terra e da nossa um dos línguas, com que entre todos começou haver comércio; e entre as cousas que se houveram dos negros foram uns dentes de elefante, que alvoraçaram tanto a Balarte, que tratou com os negros se poderia ver um elefante vivo, e quando não, que lhe trouxessem a pele ou ossada de algum, prometendo por isso grande prémio. Os negros, como lhe prometeram preço, disseram que logo lhe trariam um elefante a lugar onde 20v o visse, e, tornados di a três dias, vieram chamar Balarte, dizendo trazerem o que lhe tinham prometido. Balarte, entrado no batel do navio somente com os marinheiros que o remavam, chegou a terra; e, sobre tomar υa cabaça de vinho de palma que um negro dava a um marinheiro, debruçou-se tanto no bordo do batel, que caiu o marinheiro ao mar. E na pressa de recolher o maririnheiro, descuidaram-se do batel, de maneira que deram as ondas com ele em terra, por o mar andar um pouco empolado. Os negros, vendo que os nossos não podiam ser socorridos do navio, deram sobre eles, dos quais não escapou mais que um que sabia nadar, o qual deu razão deste caso, e que, vindo nadando, olhara pera trás e vira estar Balarte em a popa do batel, pelejando como homem esforçado. Per esta maneira acabou este gentil homem, com desejo de ganhar honra fora de sua pátria. Tam remontado anda o desejo dos homens, que sendo este Balarte nascido em Dinamarca, veo buscar per própria vontade sua sepultura em Guiné, terra a ela tam contrária em todalas cousas! Com a morte do qual (que todos muito sentiram, assi por sua pessoa, que o merecia, como por ir acompanhada de tantos), Fernando Afonso se 65 tornou pera o reino, ficando os negros no próprio estado em que dante estavam, sem os nossos com eles poderem ter algυa prática, porque pela maldade que tinham feito 60 nunca mais vieram almadias ao navio, nem os nossos poderam ir a terra, por causa do batel que tinham perdido. E porque neste ano el-Rei Dom Afonso, sobrinho deste Infante, saiu da tutoria do Infante Dom Pedro, seu tio, e houve inteiramente posse do governo de seus reinos em idade de dezassete anos, posto que o Infante viveu até o ano de quatrocentos sessenta e três, sempre prosseguindo neste descobrimento, entraremos com o novo Rei em os feitos que em seu tempo passaram, pois já em seu nome o mesmo negócio procedia. Peró, ante que saiamos destes fundamentos da nossa Ásia, aos quais podemos chamar trabalhos e indústrias deste Infante, e posto que em as Crónicas do reino se pode ver parte dos seus feitos, aqui, como em lugar mais próprio, trataremos particularmente dele.

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60 20v 65 Capítulo XVI. Das feições da pessoa do Infante Dom Hanrique, e dos costumes que teve em todo o discurso de sua vida. Este excelente príncipe foi filho terceiro del-Rei Dom João, o primeiro, de gloriosa memória, e da Rainha Dona Felipa, sua mulher, filha do Duque João de Lencastro e irmã del-Rei Dom Hanrique, o quarto, de Inglaterra. E como da excelência do sangue pola maior parte procedem todalas inclinações da pessoa, podemos crer que, sobre este fundamento, Deus edificou nele as outras de alma que enquanto viveu mostrou em suas obras. Dizem que a estatura de seu corpo era de compassada medida e de largos e fortes membros, acompanhados de carne, a cor do qual era branca e corada, em que bem mostrava a boa compleição dos humores. Tinha os cabelos algum tanto alevantados, e o acatamento, à primeira vista (por a gravidade de sua pessoa) um pouco temeroso a quem dele não tinha conhecimento. E quando era provocado à ira mostrava υa vista esquiva, e isto poucas vezes, porque na maior força de qualquer desprazer que lhe fizessem, estas eram as mais escandalosas palavras que dizia: - Dou-vos a Deus! Sejais de boa ventura! A continência do seu vulto era assossegada, a palavra mansa e constante no que dizia, e sempre eram castas e honestas. E esta religião de honestidade guardou não somente em as obras, mas ainda nos vestidos, trajos de sua pessoa e serviço de casa. Todas estas cousas procediam da limpeza de sua alma, porque se crê 66 que foi virgem . Em seus trabalhos e paixões, era mui sofrido e senhor de si, e em ambas as fortunas humildoso, e tam benigno em perdoar erros que lhe foi tachado . Teve grande memória e conselho acerca dos negócios, e muita autoridade pera os graves e de muito peso. Foi magnífico em despender e edificar, e folgava de provar novas experiências em proveito comum, ainda que fosse com própria despesa de sua fazenda. Foi mui amador da criação dos fidalgos por os 61 doutrinar em bons costumes; e tanto zelou esta criação, que se pode dizer sua casa ser υa escola 21 de virtuosa nobreza, onde a maior parte da fidalguia deste reino se criou, aos quais ele liberalmente mantinha e satisfazia de seus serviços. E era assi confiado da criação e pessoa de cada um deles, que em seu testamento, encomendando ele a el-Rei Dom Afonso e ao Infante Dom Fernando, que ele adoptou per filho, que lhes aprouvesse que seus criados houvessem as tenças e cousas que tinham dele, disse que lhes pedia que recebessem seu serviço como de criados, porque, a Deus louvores, tais eram eles, que haveriam por bem empregada toda a mercê que lhes fizessem. E dado que em a honestidade de seu trajo, palavras, jejuns, rezar de ofício divino e institutos de sua capela, toda a sua vida pareceu υa perfeita religião, não lhe faleceram pensamentos de altas impresas e obras de generoso ânimo, quais convem aos de real sangue. Parte das quais se viram quando se achou em África, principalmente na tomada de Ceita, de que já tratámos na parte de África, e assi nesta impresa tam nova de descobrir o que té o seu tempo estava encoberto. Em que não somente encomendou as cousas ao bom sucedimento delas, mas ainda teve nele muita indústria e prudência pera conseguirem próspero fim. Porque, pera este descobrimento, mandou vir da Ilha de Malhorca um Mestre Jácome, homem mui douto na arte de navegar, que fazia cartas e instrumentos, o qual lhe custou muito polo trazer a este reino, pera ensinar sua ciência aos oficiais portugueses daquele mister. E também pera a Ilha da Madeira mandou vir de Sicília canas de açúcar que se nela

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plantassem, e mestres deste labor, mostrando em estas e outras cousas que cometeu de bem comum, ter no coração plantada a vontade de bem fazer, como ele trazia per moto de sua divisa nestas palavras francesas: Talent de bien faire. Pois acerca das letras, não tratando das sagradas, que ele per devoção e veneração muito amava, acerca das humanas era mui estudioso, principalmente na ciência da Cosmografia, de cujo fructo tem ora este reino o senhorio de Guiné, com todolos mais títulos que depois se acrescentaram à sua Coroa. E não somente aqui leixou este testemunho do amor e inclinação que 67 tinha às letras, mas ainda na liberalidade de que usou com os estudos de Lisboa, dando suas próprias casas pera eles, com outras cousas, cuja memória sempre neles é celebrada em o princípio de cada um ano, passadas as vacações dele. Deixou em sua vida descoberto, do Cabo Bojador, que está em trinta e sete graus de altura da parte do Norte, té a Serra Lioa, que está em sete e dous terços, que fazem de costa trezentas e setenta léguas, da qual terra o derradeiro descobridor foi um Pedro de Sintra, cavaleiro de sua casa. E posto que nos princípios deste descobrimento houve grandes dificuldades, 62 e foi mui murmurado (como atrás dissemos), teve tanta constância e fé na esperança que lhe o seu espírito, favorecido de Deus, prometia, que nunca desistiu deste descobrimento (enquanto pôde) per espaço de quorenta anos, começando em o de quatrocentos e vinte (não contando os atrás que foram sem fructo) em que a Ilha da Madeira foi descoberta, té treze de Novembro de quatrocentos sessenta e três, que em Sagres faleceu, sendo de sessenta e sete de sua idade. E foi sepultado em a vila de Lagos, e di passado ao mosteiro de Santa Maria da Vitória, a que chamam a Batalha, na capela del-Rei, seu padre. O qual Infante e príncipe de grandes impresas, segundo suas obras e vida, devemos crer que está em o Paraíso, entre os eleitos de Deus.

LIVRO II 63 21v 69 Capítulo primeiro. Como El-Rei Dom Afonso, o quinto deste nome, houve posse da governança deste reino, por sair da tutoria em que estava. E peró que o Infante Dom Hanrique enquanto viveu prosseguiu neste descobrimento, continuamos a história com El-Rei e não com ele. E das causas que houve por que não escrevemos mais feitos do tempo deste Rei. Como el-Rei Dom Afonso saiu da tutoria em que estava por sua tenra idade, e começou governar sendo de dezassete anos, logo mandou alguns navios a este descobrimento, posto que o Infante por sua parte também nele prosseguisse, e el-Rei em Santarém, a dous de Setembro de quatrocentos quorenta e oito, lhe passasse carta que nenhυa pessoa podesse descobrir do Cabo Bojador em diante, e assi houvesse, enquanto fosse sua mercê, o quinto e dízimo de tudo o que as partes de lá trouxessem, da qual doação o Infante usou enquanto viveu. Mas como logo no princípio que el-Rei começou governar, antre ele e o Infante Dom Pedro, seu tio, que fora regente destes reinos, houve a diferença, que na parte de Europa relatamos, e assi idas de África e Castela que quási ocuparam a vida del-Rei, causou não levar o fio deste descobrimento tam continuado como no tempo do Infante Dom Hanrique foi. De escrever os quais feitos teve cuidado Gomes Eanes de Zurara, cronista destes reinos, homem neste mister da história assaz diligente, e que bem mereceu o nome do ofício que teve. Porque, se algυa cousa há bem escrita das Crónicas deste reino, é da sua mão, e assi dos tempos em que ele concorreu como dalguns atrás, de cousas de que não havia 70 escritura. E estas que ele escreveu deste descobrimento do tempo do Infante Dom Hanrique (segundo ele diz), já as recebeu de um 64 Afonso Cerveira, que foi o primeiro que as pôs em ordem. Do qual Afonso Cerveira nós achamos algυas cartas escritas em Beni, estando ele ali feitorizando por parte del-Rei Dom Afonso. E posto que tudo ou a maior parte do que té qui escrevemos seja tirado da escritura de Gomes Eanes, e assi deste Afonso Cerveira, não foi pequeno o trabalho que tivemos em ajuntar cousas derramadas, e por papéis rotos e fora da ordem que ele, Gomes Eanes, levou no processo deste descobrimento. As cousas do tempo del-Rei Dom Afonso, como ele prometeu, não as achámos: parece que teria a vontade e não o tempo; ou se as escreveu eram perdidas, como outras escrituras que o tempo consumiu. Portanto o que escrevemos do tempo del-Rei Dom Afonso não são mais que algυas lembranças que achamos no Tombo e nos livros da sua fazenda, sem aquela ordem de anos que seguimos atrás, somente uns fragmentos deste descobrimento. Nas quais lembranças, achamos que no ano de quatrocentos quorenta e nove, deu el-Rei licença ao Infante Dom Hanrique que podesse mandar povoar as sete ilhas dos Açores, as quais já naquele tempo eram descobertas e nelas lançado algum gado, per mandado do mesmo Infante, per um Gonçalo Velho, comendador de Almourol, junto da vila de Tancos. E no ano de quatrocentos cinquenta e sete, fez el-Rei mercê ao Infante Dom Fernando, seu irmão, de todalas ilhas que até então eram descobertas, com jurdição de cível e crime e com certas limitações. E no de quatrocentos e sessenta, fez o Infante Dom Hanrique doação ao Infante Dom Fernando, seu sobrinho e filho adoptivo, destas duas ilhas: Jesu e Graciosa, reservando somente pera si a espiritualidade que era da Ordem de Cristo que ele governava, a qual doação confirmou el-Rei em 22 Lisboa, a dous de Setembro do mesmo ano. E em o seguinte de quatrocentos sessenta e um, porque às ilhas de Arguim concorria resgate de ouro e negros de Guiné, mandou el-Rei fazer o castelo de Arguim, que hoje está em pé, por Soeiro Mendes, fidalgo de sua casa, morador em Évora, ao qual deu a alcaidaria-mor, pera si e pera seus filhos. Neste mesmo tempo achamos também que se descobriram as ilhas a que ora chamamos do

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Cabo Verde, per um António de Nole, genoês de nação e homem nobre, que per alguns desgostos da pátria veo a este reino com duas naus e um barinel, em companhia do qual vinha um Bartolomeu de Nole, seu irmão, e Rafael de Nole, seu sobrinho. Aos quais o Infante deu licença que fossem descobrir, e do dia que partiram da cidade de Lisboa a dezasseis dias, foram ter à Ilha de Maio, à qual poseram este nome, porque a viram em tal dia. E no seguinte, que era de Santiago e São Filipe, descobriram duas, que tem ora o nome destes santos. 71 No qual tempo eram também idos ao descobrimento delas uns criados do Infante Dom Fernando, os quais 65 descobriram as outras, que per todas são dez, chamadas per comum nome Ilhas do Cabo Verde, por estarem ao Ponente dele per distância de cem léguas, e por os antigos geógrafos as Fortunadas, de que em a nossa Geografia falamos largamente. Das quais el-Rei fez doação ao Infante Dom Fernando, seu irmão, em dezanove de Setembro, do ano de mil e quatrocentos sessenta e dous. E a primeira que se povoou, foi a chamada Santiago per o mesmo Infante Dom Fernando, a quem el-Rei deu as liberdades que ora tem per carta feita a doze de junho de quatrocentos sessenta e seis. Mas depois, porque os moradores usavam destas primeiras liberdades acerca de tratar em Guiné, com mais licença do que a vontade del-Rei queria, per outra carta lhe deu a limitação delas, conforme a tenção que teve quando lhe fez a primeira mercê.

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65 22 71 Capítulo II. Como El-Rei arrendou o resgate de Guiné a Fernão Gomes por tempo de cinco anos, com obrigação que neste tempo havia de descobrir quinhentas léguas de costa. E porque descobriu o resgate do ouro da Mina, foi dado a Fernão Gomes apelido «da Mina», com armas desta nobreza. Neste tempo o negócio de Guiné andava já mui corrente entre os nossos e os moradores daquelas partes, e uns com os outros se comunicavam em as cousas do comércio com paz e amor, sem aquelas entradas e saltos de roubos de guerra que no princípio houve. O que não pode ser doutra maneira, principalmente acerca de gente tam agreste e bárbara, assi em lei e costumes, como no uso das cousas desta nossa Europa. A qual gente, em quanto não gostou delas, sempre se mostrou mui esquiva; peró, depois que tiveram algυa notícia da verdade pelos benefícios que recebiam, assi na alma como no intendimento, e cousas pera seus usos, ficaram tam domésticos, que não havia mais que partirem os navios deste reino, e, chegados a seus portos, concorriam muitos povos do sertão ao comércio de nossas mercadorias, que lhe davam a troco de almas, as quais mais vinham receber salvação que cativeiro. E andando assi estas cousas, tam correntes e ordinárias em as partes de costa já descoberta, como el-Rei pelos negócios do reino andava ocupado, e não havia por seu serviço per si mandar grangear esta propriedade do comércio, nem menos deixá-lo correr no modo que andava acerca do que as partes pagavam, por lhe ser cometido em Novembro do ano de mil e quatrocentos 72 e sessenta nove, o arrendou por tempo de cinco anos a Fernão Gomes, um cidadão honrado de Lisboa, por duzentos mil réis cada ano, com condição, que, em cada um destes cinco anos, fosse 66 obrigado descobrir pela costa em diante cem léguas, de maneira que no cabo do seu arrendamento, desse quinhentas léguas descobertas. O qual descobrimento havia de começar na serra Lioa, onde acabaram Pero de Sintra e Soeiro da Costa, que foram ante deste arrendamento os derradeiros descobridores; porque depois este Soeiro da Costa descobriu o rio a que ora chamamos o de Soeiro, que está entre o Cabo das Palmas e as Três Pontas, 22v vezinho a casa de Axém, onde se faz a feitoria do resgate do ouro. E entre outras condições que se continham neste contrato, era que todo o marfim havia de ser del-Rei, a preço de mil e quinhentos reais por quintal, e el-Rei o dava a outro maior preço a um Martim Anes Boviage, por lhe ser obrigado per outro contrato feito ante deste, a todo o marfim que se resgatasse em Guiné. E por cousa mui estimada naquele tempo, tinha Fernão Gomes licença pera poder resgatar em cada um dos ditos cinco anos, um gato de algália. O qual contrato foi feito no ano de quatrocentos sessenta e nove, com limitação que não resgatasse em a terra firme defronte das Ilhas do Cabo Verde, por ficar pera os moradores delas, por serem do Infante Dom Fernando. Nem menos lhe foi concedido o resgate do castelo de Arguim por El-Rei o ter dado ao príncipe Dom João, seu filho, em parte do assentamento que dele tinha. Peró depois houve o mesmo Fernão Gomes do Príncipe este resgate de Arguim por certos anos, por preço de cem mil reais em cada um deles. E foi Fernão Gomes tão diligente e ditoso em este descobrimento e resgate dele, que logo no Janeiro de quatrocentos setenta e um, descobriu o resgate do ouro onde ora chamamos a Mina, per João de Santarém e Pero Escovar, ambos cavaleiros da casa del-Rei; e eram pilotos Martim Fernandes, morador em Lisboa, e Álvaro Esteves, morador em Lagos, o qual Álvaro Esteves naquele tempo foi o mais estremado homem que havia em Espanha de

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seu ofício. O primeiro resgate do ouro que se fez nesta terra, foi em υa aldea chamada Samá, que naquele tempo seria de quinhentos vezinhos, e depois se fez mais abaixo contra onde ora está a fortaleza que el-Rei Dom João mandou fazer (como veremos em seu lugar), o qual lugar se chamava pelos nossos Aldea das Duas Partes. E não somente descobriu Fernão Gomes este resgate do ouro, mas chegaram os seus descobridores pela obrigação do seu contrato té o Cabo de Santa Caterina, que é além do Cabo de Lopo Gonçalves trinta e sete léguas, e em dous graus e meio de altura da parte do Sul. No qual tempo ganhou Fernão Gomes mui grossa fazenda, com que depois serviu el-Rei, assi em Ceita como na tomada de Alcácer, Arzila e Tânger, onde el-Rei o fez cavaleiro. E no ano de quatrocentos setenta e 73 quatro, que foi o derradeiro de seu arrendamento, lhe deu nobreza de 67 novas armas, um escudo timbrado com o campo de prata e três cabeças de negros, cada um com três arriéis de ouro nas orelhas e narizes, e um colar de ouro ao colo, e por apelido da Mina, em memória do descobrimento dela, e disso lhe passou carta a vinte nove de Agosto do dito ano. Depois, passados quatro anos, o fez do seu conselho, porque já neste tempo era o comércio de Guiné e resgate da Mina de tanto proveito, e ajudava tanto em substância ao estado do reino, pela boa indústria de Fernão Gomes, que assi por este serviço como por outros particulares de sua pessoa, merecia toda a honra e mercê que lhe fosse feita. Neste tempo se descobriu também a Ilha Fermosa per um Fernão do Pó, a qual tem ora o nome de seu descobridor, e perdeu o que lhe ele então pôs. E o derradeiro descobridor em vida deste Rei Dom Afonso, foi um de Sequeira, cavaleiro de sua casa, o qual descobriu o cabo a que chamamos de Caterina, nome que lhe ele então pôs pelo descobrir em o dia desta santa. E não somente neste tempo, por mandado del-Rei, depois que começou governar, mas ainda per o mesmo Infante Dom Hanrique, que, como atrás vimos, viveu té o ano de quatrocentos sessenta e três, sempre houve conquistas e descobrimentos, assi como da costa donde veo a primeira malagueta, que se fez per o Infante Dom Hanrique. Da qual algυa que em Itália se havia, ante deste descobrimento, era per mãos dos mouros destas partes de Guiné, que atravessavam a grande região de Mandinga e os desertos da Líbia, a que eles chamam Sahará, té aportarem em o mar Mediterrâneo em um porto per eles chamado Mundi Barca, e corruptamente Monte da Barca. E de lhe os italianos não saberem o lugar de seu nascimento, por ser especearia tam preciosa, lhe chamaram, Grana Paradisi, que é nome que tem antre eles. Também se descobriu a Ilha de São Tomé, Ano Bom e a do Príncipe per mandado del-Rei Dom Afonso, e outros resgates e ilhas, das quais não tratamos em particular por não termos quando e per que capitães foram descobertas. Porém sabemos na voz comum serem mais cousas passadas e descobertas no tempo deste Rei do que temos escrito, assi como υa ilha que ainda hoje per nós não 23 é sabida e foi achada no ano de quatrocentos trinta e oito anos. E por não parecer estranho o que digo, trarei um testemunho, em que entram muitas testemunhas desta verdade: Atravessando o ano de quinhentos e vinte cinco υa armada de Castela, da costa de Guiné pera a costa do Brasil, a qual ia pera as nossas Ilhas de Maluco, de que era Capitão-mor Frei Garcia de Loais, comendador da Ordem de São João, da qual viagem nós houvemos um roteiro, conta o autor dele υas razões que nesta paragem houveram um Dom Rodrigo da Cunha, fidalgo andaluz, capitão da nau Santiago daquela armada, e Santiago Guevara, biscainho, capitão de υa pataxa chamada 68 também Santiago - isto

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74 sobre competência de quem levaria ante o Capitão-mor um navio português a que ambos arribaram, o qual vinha da Ilha de São Tomé carregado de negros e açúcares, - e de palavras vieram estes capitães às bombardas, e tudo a caravela foi levada ante o Capitão-mor. O qual teve prática com o piloto pera o levar consigo, mas leixou de o fazer por estar o navio em paragem que carregaria sobre ele a morte de tantas almas como nela vinham, por lhe não ficar pessoa que as soubesse navegar pera este reino; na qual determinação o trouxe um dia consigo em perguntas das cousas do mar, té que o espediu, sem lhe fazer dano algum. Do qual piloto (segundo conta o autor do Roteiro) souberam como os portugueses estavam em Maluco, onde tinham feito υa fortaleza, e que, seguindo eles sua viagem, sendo dous graus da parte do Sul, acharam υa ilha despovoada de gente, chamada São Mateus, em que havia duas aguadas, υa muito boa e outra não tal. E em duas árvores estava escrito que havia oitenta e sete anos que nela estiveram portugueses; e tinha maneira de ser já aproveitada, por haver nela muita fructa, especialmente laranjas doces, palmeiras e galinhas, como as destas partes de Espanha, de que mataram muitas à besta, que andavam per cima do arvoredo. Conta mais outras 23v cousas que acharam nela, de que somente tomei estas por testemunho do que acima dissemos: terem os nossos mais terras descobertas naquele tempo do que achamos na escritura de Gomes Eanes de Zurara. E não é novidade achar-se esta memória de escritura em as árvores, porque os nossos naquele tempo o costumavam muito; e alguns por louvor do Infante Dom Hanrique, escreviam o moto de sua divisa, que como vimos atrás, era: Talent de bien faire. Porque somente esta memória escrita na casca dos dragoeiros haviam que bastava por posse do que descobriam, e algυas cruzes de pau. Depois (como adiante veremos), el-Rei Dom João, o segundo, em seu tempo mandou poer padrões de pedra com letreiro em que diz o tempo e per quem aquela terra foi descoberta, e isto bastava por posse real; e ao presente ainda as fortalezas feitas na própria terra não bastam, porque veo a cobiça dos homens a inventar leis conformes a ela. E como todolos príncipes a maior parte da vida gastam nas obras de sua inclinação, veo el-Rei Dom Afonso a se descuidar das cousas deste descobrimento e celebrar muito as da guerra de África, com a tomada das vilas de Alcácer e Arzila e cidade de Tânger (segundo contamos em a nossa África) as vezes que lá passou em pessoa. Na qual guerra de África teve tanto contentamento, por as boas venturas que nele houve, que emprendeu (se lhe os negócios do governo do reino deram lugar) ir tomar per sua pessoa a cidade de Fez e todo seu reino, pera 75 que tinha ordenado υa ordem chamada da Espada. E assi mandou 69 a Gomes Eanes de Zurara, seu cronista-mor, à vila de Alcácer-Seguer, em África, pera que com fé de vista podesse escrever os feitos daquela guerra. Ao qual escreveu υa carta de sua própria mão, em louvor do trabalho que lá tinha, por razão da obra que fazia, e isto não com palavras taxadas e avaras, segundo o uso dos príncipes, mas em modo eloquente e de pródigo orador, como quem se prezava disso. O qual Gomes Eanes, vendo a deleitação que el-Rei tinha nas cousas desta milícia, escreveu a Crónica da Tomada de Ceita, e outra Crónica dos feitos do Conde Dom Pedro de Meneses e do Conde Dom Duarte, seu filho, relatando os feitos daquela guerra mui particularmente, e per estilo claro e tal que bem mereceu o nome do ofício que teve. E porque cada um não perca seu trabalho, também escreveu a Crónica deste rei Dom Afonso té a morte do Infante Dom Pedro, e a Crónica del-Rei Dom Duarte, seu padre, as quais Rui de Pina que o sucedeu no ofício fez suas, pelo que emendou e acrescentou nelas, principalmente na

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del-Rei Dom Afonso, acerca das cousas que passaram depois da morte do Infante Dom Pedro. Fez ainda Gomes Eanes outra obra no Tombo deste reino, que alumiou muito as cousas dele, que foram os livros dos registros, recopilando em certos volumes as forças de muita escritura que andava solta, começando em el-Rei Dom Pedro té el-Rei Dom João, de gloriosa memória. Isto por razão de ser guarda-mor do mesmo Tombo, ofício mui próprio dos cronistas, por ser υa custódia de toda a escritura do reino. A qual convém ser passada pelos olhos do cronista dele, pera com mais verdade e cópia de cousas poder escrever todo o discurso dos feitos do Rei de que é oficial. Porque aqui se acham ordenações, cortes, casamentos, contratos, armadas, festas, obras, doações, mercês, assi per registro da chancelaria e fazenda como per contas de todo o reino, se ele quiser e souber usar da cópia de tanta escritura. E verdadeiramente (tornando a Gomes Eanes em quem concorreu cronista e guarda-mor da Torre do Tombo) eu não sei quanto ele viveu, nem o tempo que teve estes ofícios, mas sei, segundo o que deixou feito per sua mão, que não foi servo sem proveito, mas dino dos cargos que teve, assi pelo estilo como diligência das cousas que tratou.

LIVRO III 71 24 77 Capítulo primeiro. Como El-Rei Dom João, sucedendo no reino por falecimento del-Rei Dom Afonso, seu pai, mandou logo υa grande armada às partes de Guiné, a fazer o castelo que agora chamamos de São Jorge da Mina, da qual armada foi Capitão-mor Diogo de Azambuja; e como se viu com Caramansa, senhor daquele lugar. El-Rei Dom João, como já em vida del-Rei Dom Afonso, seu pai, tinha o negócio de Guiné em parte do assentamento da sua casa, e per experiência dele sabia responder com ouro, marfim, escravos e outras cousas que enriqueciam o seu reino, e cada ano se descobriam novas terras e povos com que a esperança do descobrimento da Índia per estes seus mares se acendia mais nele, com fundamentos de cristianíssimo príncipe e barão de grande prudência, ordenou de mandar fazer υa fortaleza como primeira pedra da Igreja oriental, que ele em louvor e glória de Deus desejava edificar, per meio desta posse real que tomava de todo o descoberto e por descobrir, segundo tinha per doações dos Sumos Pontífices (como atrás dissemos). E sabendo que na terra onde acudia o resgate do ouro folgavam os negros com panos de seda, de lã, linho e outras cousas do serviço e polícia de casa e que em seu trato tinham mais claro intendimento que os outros daquela costa, e que no modo de seu negociar e comunicar com os nossos davam de si sinais pera facilmente receberem o baptismo, ordenou que esta fortaleza se fizesse em aquela parte onde os nossos ordinariamente faziam o resgate do ouro. Porque com esta isca de bens temporais que sempre ali haviam de achar, recebessem os da Fé, mediante a doutrina dos nossos, o qual efeito era o seu principal intento. 78 E dado que pera esta obra da fortaleza houvesse em seu conselho contrairas opiniões, representando 72 a distância do caminho, e os ares da terra serem pestíferos à saúde dos homens que lá estivessem, e assi os mantimentos da terra e o trabalho de navegar, houve el-Rei por maior bem υa só alma, que por causa da fortaleza podia vir à Fé per baptismo, que todolos outros inconvenientes, dizendo que Deus proveria neles, pois aquela obra se fazia em seu louvor, e afim pera que seus vassalos podesse fazer algum proveito, e também o património deste reino fosse acrescentado. Assentando que se fizesse esta fortaleza, mandou aperceber υa armada de dez caravelas e duas urcas, em que fosse pedra lavrada, telha, madeira, e assi todalas outras munições e mantimentos pera seiscentos homens de que os cento eram oficiais pera esta obra e os quinhentos de peleja. Dos quais navios era Capitão-mor Diogo de Azambuja, pessoa mui experimentada nas cousas da guerra, e os outros capitães eram Gonçalo da Fonseca , Rui de Oliveira, João Rodrigues Gante, João Afonso, que depois mataram em Arguim, sendo capitão daquela fortaleza, João de Moura, Diogo Rodrigues Ingrês, Bartolomeu Dias, Pero de Évora e Gomes Aires, escudeiro del-Rei Dom Pedro de Aragão, o qual entrou em lugar de Pero de Azambuja, irmão dele, Diogo de Azambuja, por morrer de peste primeiro que partissem de Lisboa, que a este tempo andava nela, todos homens nobres e criados del-Rei. E os capitães das urcas eram Pero de Sintra e Fernando Afonso. Por levarem toda a munição desta fortaleza, partiram diante alguns dias, e em sua companhia Pero de Évora em um navio pequeno, pera que, se as urcas não podesse chegar a fazer a pescaria no porto de Bezeguiche, onde haviam de esperar, que este navio a fizesse. O 24v qual negócio Pero de Évora fez com muita diligência, e outro mais principal, que foi fazer paz com Bezeguiche, senhor daquela costa, donde ficou o nome que hoje tem aquele porto. Diogo de Azambuja, acabando de confirmar esta paz depois que ali chegou, que foi béspora de Natal do ano de quatrocentos oitenta e um, havendo doze dias que partira de Lisboa, tornou a sua

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derrota, e deu-lhe Deus tam boa viagem, posto que teve algum trabalho com υa urca que fazia muita água, que a dezanove de janeiro daquele ano seguinte, chegou ao lugar onde se havia de fazer o castelo, que naquele tempo se chamava Aldea das Duas Partes. No qual lugar achou João Bernaldes com um navio del-Rei, fazendo resgate de ouro com Caramansa, senhor daquela aldea, e per ele lhe mandou dizer que era ali vindo com aquela grande frota, que el-Rei de Portugal, seu senhor, mandava, em a qual vinha muita gente nobre pera bem e honra de sua pessoa, como depois per ele mesmo saberia; que lhe rogava houvesse por bem de se verem ambos ao outro dia, em que ele esperava de sair em terra. 79 Vinda a reposta de Caramansa, mostrando contentamento de sua chegada, saiu Diogo de Azambuja em terra com toda 73 sua gente vestida de louçainha e suas armas secretas, se o tempo as pedisse. E da primeira cousa que tomou posse foi de υa grande árvore que estava em um teso afastada algum tanto da aldea, lugar mui disposto pera se fazer a fortaleza. Em a qual árvore mandou arvorar υa bandeira das quinas reais e ao pé dela armar um altar, onde se celebrou a primeira missa dita naquelas partes da Etiópia. A qual foi ouvida dos nossos com muitas lágrimas de devação, dando muitos louvores a Deus em os fazer dinos que na força de tanta idolatria o podesse louvar e glorificar em sacrifício de louvor, pedindo-lhe, pois lhe aprouvera serem eles os primeiros que levantassem altar de tam alto sacrifício, que lhe desse saber e graça pera atrair aquele povo idólatra a sua fé, com que a Igreja que ali fundassem fosse durável té fim do Mundo. Acabada esta missa, que foi em dia de São Sebastião, (em memória do qual ficou este nome a um vale per que corre um esteiro onde primeiro saíram), porque Diogo de Azambuja esperava por Caramansa, o qual abalava já de sua aldea, pôs em ordem a toda sua gente: ele, assentado em υa cadeira alta, vestido em um pelote de brocado, e com um colar de ouro e pedraria, e os outros capitães todos vestidos de festa; e assi ordenada a outra gente, que faziam υa comprida e larga rua, pera que, quando Caramansa viesse, que o visse naquele aparato. Caramansa, como também era homem que queria mostrar seu estado, veo com muita gente posta em ordenança de guerra, com grande matinada de atabaques, bozinas, chocalhos e outras cousas que mais estrugiam que deleitavam os ouvidos. Os trajos de suas pessoas eram os naturais de sua própria carne, untados e mui luzidos, que davam mais pretidão aos coiros, coisa que eles costumavam por louçainha. Somente as partes vergonhosas eram cobertas, deles com peles de bugios, outros com panos de palma, e os mais principais com alguns pintados que per resgate houveram dos nossos navios que ali iam resgatar ouro. Porém geralmente em seu modo todos vinham armados, uns com azagaias e escudos, outros com arcos e coldres de frechas, e muitos, em lugar de arma da cabeça, υa pele de bugio, o casco da qual todo era encravado de dentes de alimárias, todos tam disformes com suas invenções por mostrar ferocidade de homens de guerra, que mais moviam a riso que a temor. Os que entre eles eram estimados por nobres, como insígnias de sua nobreza, traziam dous pages trás si: um lhe trazia um assento redondo de pau pera se assentar a tomar repouso onde quisesse, e outro o escudo da peleja; e estes nobres pela cabeça e barba traziam alguns arriéis e jóias de ouro. O seu Rei, Caramansa, em meio de todos, vinha coberto, pernas e 80 braços, de braceletes e argolas de ouro, e ao pescoço um colar, do qual dependiam υas campainhas meúdas, e pela barba retorcidas υas vergas de ouro, 74 que assi lhe chumbavam os cabelos dela, que de retorcidos os faziam corredios. A continência de sua pessoa, era vir com uns passos mui vagarosos, pé ante pé, sem mover o rostro a parte algυa. Diogo de Azambuja, enquanto ele vinha com esta gravidade, esteve quedo em seu estrado, té que, sendo já metido entre a nossa gente, abalou a ele, e ajuntando-se ambos, tomou Caramansa a

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mão a Diogo de Azambuja, e tornando-a a recolher, deu um trinco com os dedos, dizendo esta palavra: - Bere! Bere! - que quere dizer: - Paz! Paz! - o qual trinco entre eles é o sinal da maior cortesia 25 que se pode fazer. Afastado el-Rei a υa parte, deu lugar que chegassem os seus fazer outro tanto a Diogo de Azambuja, mas, no modo de tocar os dedos, fizeram esta diferência del-Rei, molhando o dedo na boca, e des i limpo, no peito o tocaram - cousa que se faz do menor ao maior, em final de salva, que se cá toma aos príncipes, porque dizem eles que pode levar peçonha neste dedo, se ante o não alimparem per este modo. Acabadas estas cerimónias de cortesia, que duraram um bom pedaço, por ser muita a gente que Caramansa trazia, e feito silêncio, começou Diogo de Azambuja per meio de υa língua a lhe propoer a causa de sua ida: a qual era ter el-Rei, seu senhor, sabido a vontade e desejo dele, Caramansa, acerca das cousas de seu serviço, e quanto trabalhava de o mostrar no bom e breve aviamento que dava aos seus navios que àquele porto chegavam. e que por estas cousas procederem de amor, el-Rei lhas queria pagar com amor que tinha mais vantaje que o seu, que era amor da salvação de sua alma, cousa mais preciosa que os homens tinham, por ela ser a que lhe dava vida, intendimento pera conhecer e entender todalas cousas, e per a qual o homem era diferente dos brutos. E aquele que a quisesse conhecer, era necessário ter primeiro conhecimento do Senhor que a fizera, o qual era Deus, que fizera o céu, sol, lυa e terra, com todalas cousas que nela há; aquele que fazia o dia e noite, chuivas, trovões, relâmpados, e criava todalas novidades de que se os homens mantinham. Ao qual Deus, el-Rei de Portugal, seu senhor, todos os outros príncipes da Cristandade (que era υa grande parte da terra do Mundo) reconheciam por criador e senhor, e a ele adoravam e nele criam, como aquele de quem tinham recebido todalas cousas, e a quem a sua alma havia de ir dar conta, depois da morte, do bem e mal que nesta vida fizera, por ser um senhor tam justo, que aos bons levava ao Céu, onde ele estava, e aos maus lançava no abismo da terra, lugar chamado Inferno, habitação dos diabos, atormentadores destas almas. 81 As quais cousas pera ele, Caramansa, poder entender, era necessário ser lavado em υa água santa, a que os cristãos chamam baptismo da Fé. Porque, bem como as águas do rio lavam os olhos pera milhor verem quando estão pegados de algum pó ou cousa que os 75 cega, assi esta água baptismal lavava os olhos de alma pera poderem ver e entender as cousas que tratam da mesma alma, e este Deus era o que el-Rei Dom João, seu senhor, lhe mandava pedir que reconhecesse por seu criador pera o adorar, protestando de viver e morrer em sua Fé e aceitando o baptismo em testemunho dela. O qual baptismo, se ele, Caramansa, aceitasse e recebesse, ele, Diogo de Azambuja, em nome del-Rei, seu senhor, lhe prometia dali em diante de o haver por amigo e irmão nesta Fé de Cristo que professava, e de o ajudar em todalas cousas que dele tevesse necessidade. E que, em sinal deste prometimento, ele era ali vindo com toda aquela gente pera o que comprisse a sua honra e bem de seu estado, e não somente per aquela vez acharia aquela ajuda, mas em todo o tempo que ele permanecesse naquela Fé de Cristo, Deus e senhor nosso, que lhe ele amoestava. E porque ao presente ele vinha bem provido de mercadorias e cousas mui ricas que ainda ali não foram vistas, pera guarda das quais lhe era necessário fazer υa casa forte em que estevessem recolhidas, e assi alguns aposentos onde se podesse agasalhar aquela gente honrada que com ele vinha, lhe pedia que houvesse por bem que ele fizesse este recolhimento. O qual ele esperava em Deus que seria penhor pera el-Rei ordinariamente mandar fazer ali resgate, com que ele, Caramansa, seria poderoso em terras e senhor dos comarcãos, sem alguém o poder anojar, porque a mesma casa e o poder del-Rei, que nela estaria, o defenderiam. E dado que Baio, Rei de Sama, e outros príncipes seus vezinhos, houvessem por grande honra ser esta fortaleza feita em suas terras, e

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ainda por isso faziam um grande serviço a el-Rei, ele houve por bem ser esta obra feita ante em sua terra, que polo amor e amizade que ele, Caramansa, tratava as cousas de seu serviço.

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75 25 82 Capítulo II. Do que respondeu o príncipe Caramansa às palavras de Diogo de Azambuja. E do consentimento que deu a se fazer a fortaleza, com a qual ficou o trato do Comércio assentado em paz té hoje. 25v Caramansa, peró que fosse homem bárbaro, assi per sua natureza como pela comunicação que tinha com a gente dos navios que vinham ao resgate, era de bom intendimento e tinha o juízo claro pera receber qualquer cousa que estevesse em boa razão. E como quem desejava entender as cousas que lhe eram propostas, não somente esteve pronto a ouvir quando lhas a língua resumia, mas ainda esguardava todalas continências que Diogo de Azambuja fazia, e em todo o tempo que isto passou, assi ele como os seus, esteveram em um perpétuo silêncio, sem haver quem somente escarrasse, tam obedientes e ensinados os trazia. 76 E como homem que queria recorrer pela memória o que ouvira e consirar o que havia de responder, acabada a fala, pregou os olhos no chão per um pequeno espaço, e des i disse: Que ele tinha em mercê a el-Rei, seu senhor, a vontade que lhe mostrava, assi na salvação de sua alma como em as outras cousas de sua honra, e que certo ele lho merecia em o bom despacho dos seus navios que àquele porto vinham resgatar, sendo mui bem tratados com toda fé e verdade em seus comércios e resgates. Em o qual tempo nunca em a gente deles vira cousa de que se podesse tanto espantar como daquela sua vinda, porque em os navios passados via homens rotos e mal roupados, os quais se contentavam com qualquer cousa que lhe davam a troco de suas mercadorias - e este era o fim de sua vinda àquelas partes, e todo seu requerimento era que os despachassem logo, como quem fazia mais fundamento da sua pátria que da habitação das terras alheas. Mas nele, capitão, via outra cousa, que era muita gente, e muito mais ouro e jóias do que havia naquelas partes onde ele nascia, e com isto novo requerimento de querer fazer casa de vivenda em terra; donde conjecturava duas cousas: a primeira, que ele não podia ser senão mui chegado parente del-Rei de Portugal; e a segunda, que um homem tam principal como ele era, não podia vir senão a grandes cousas, e tais como eram as que ele dizia do Deus que fazia o dia e noite, e de quem tantas cousas dissera, cujo servidor era o seu Rei. Porém, querendo esguardar a natureza de um homem tam principal como ele, capitão, era, e assi daquela luzida gente que o acompanhava, via que homens de tal calidade sempre haviam de querer cousas conformes a eles. E porque o ânimo de tam generosa gente como era a sua, mal se poderia conformar com a pobreza e simplicidade daquela bárbara terra de Guiné, donde às vezes podiam recrecer contendas e paixões entre todos, lhe pedia houvesse por bem que os navios fossem e viessem como soíam, ca per esta 83 maneira sempre estariam em paz e concórdia, porque os amigos que se viam de tarde em tarde com mais amor se tratavam, que quando se vezinham. E isto causava o coração do homem, por ser como as ondas do mar que batiam naquele recife de pedras que ali estava; o qual mar, pela vezinhança que tinha com ele, e lhe empedir estender-se pela terra à sua vontade, quebrava tam fortemente no vezinho, que de bravo e soberbo levantava suas ondas té o céu, e com esta fúria fazia dous danos: um a si mesmo, assanhando-se, e outro ao vezinho, em o ferir. Que isto não dezia por se escusar de obedecer aos mandados del-Rei de Portugal, mas por aconselhar ao bem da paz, e à muita prestança que ele desejava ter com todolos naturais do seu reino que àquele porto viessem, e também porque, havendo esta paz entre ambos, todo aquele seu povo com mais

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77 amor folgaria de ouvir as cousas do seu Deus, que lhe ele vinha dar a conhecer. Porisso, enquanto o tempo mostrava a experiência destes inconvenientes, lhe pedia que os evitassem, leixando correr o resgate no modo em que estava. A estas palavras e dúvidas, que pareciam empedir fazer-se a fortaleza, respondeu Diogo de Azambuja: Que a causa del-Rei, seu senhor, o enviar com tam grande aparato àquela terra, fora desejar paz e mais estreita amizade com ele do que té então teveram. E como penhor deste desejo, queria ali fazer casa em que se pusesse sua fazenda, em a qual obra Sua Alteza mostrava a muita confiança que tinha nele, Caramansa, e em seus vassalos, porque ninguém punha sua fazenda em lugar suspeitoso de enganos. Que quando aí houvesse algυa cousa que temer, a ele, Diogo de Azambuja, e a toda aquela gente que o acompanhava convinha este temor, pois confiavam suas vidas e fazendas da terra estranha e mais tam alongada do adjutório da sua. 26 E posto que o coração do homem, como ele dizia, era per sua natureza livre, estes eram aqueles que não tinham Rei tam amigo da justiça como era el-Rei, seu senhor, donde os seus vassalos assi eram obedientes a seus mandados, que mais temiam desobedecer-lhe que a mesma morte. Que ele não era filho nem irmão del-Rei, como ele cuidava, mas um dos mais pequenos vassalos de seu reino, e tam obrigado a comprir o que lhe mandava acerca da paz e concórdia em a obra daquela casa, que ante perderia a vida que traspassar seu mandado. Da qual palavra os negros, vendo que el-Rei se espantava de tanta obediência, e que, segundo seu costume, dava com υa mão na outra, eles, por sinal de obedientes, deram também outras palmadas com que romperam a palavra de Diogo de Azambuja. E ante que mais procedesse, acabado o rumor, Caramansa lhe atalhou, tomando por conclusão que era contente fazer-se a casa que pedia, amoestando-lhe a paz e verdade, porque fazendo os seus o contrairo, mais enganavam e danavam a si que a ele, porque a terra era grande e, onde quer que chegassem ele e os seus, não lhe faleceriam uns poucos de paus e rama com que fizessem outra morada. 84 Acabando el-Rei sua conclusão sobre o fazer da casa, sem responder ao mais do bautismo que lhe foi amoestado, espediu-se do capitão, tornando na ordem em que veo, e ele ficou com os mestres da obra entendendo no eleger donde se fundaria a fortaleza. Ao seguinte dia, começando os pedreiros quebrar uns penedos que estavam sobre o mar, junto onde tinham elegido os aliceces da fortaleza, não podendo os negros sofrer tamanha injúria como se fazia àquela santidade, que eles adoravam por Deus, acendidos em fúria que lhe o Demónio atiçava pera todos ali perecerem ante do bautismo que depois alguns deles receberam, tomaram suas armas e, com aquele primeiro ímpeto, 78 deram rijo em os oficiais que andavam nesta obra. Diogo de Azambuja, como a este tempo estava com os capitães fazendo tirar as munições dos navios, tanto que viu correr a gente contra a praia, acudiu rijo. E, porque soube da língua dos negros que a causa principal do alvoroço deles fora por ainda não terem recebido o presente que esperavam, e que maior mágoa tinham por a tardança que por a injúria dos seus deuses, entreteve a gente o melhor que pôde, de maneira que não houvesse sangue, e mandou a grã pressa ao feitor que trouxesse dobrados lambéis, manilhas, bacias e outras cousas que tinha mandado que levasse a el-Rei e a seus cavaleiros, por assi estar em costume. E ainda por mais comprazer aos negros, pubricamente entre eles bradou com ele. Com o qual presente, depois que o receberam, assi ficaram contentes e brandos da fúria, que entregaram os filhos, quanto mais os penedos; tanto poder tem o dar que, como dizem, quebrantou Diogo de Azambuja as pedras que eram os corações daqueles negros em sua indinação, e mais quebrou os penedos que eles defendiam. Porém enquanto a obra durou, sempre se teve grande vigia e tento neles, não se lhe antolhasse outra vaidade algυa. Em fazer a qual obra se deu tal despacho, que em vinte dias poseram a cerca do castelo em boa altura, e a torre da menagem em o primeiro sobrado. E por a singular devação que el-Rei tinha

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neste santo, foi chamada esta fortaleza São Jorge, a qual depois, em o ano de quatrocentos oitenta e seis, a quinze de Março, em Santarém, el-Rei a fez cidade, dando-lhe per sua carta patente todalas liberdades, privilégios e preminências de cidade. Posto que por parte dos nossos, enquanto durou esta obra, se trabalhava não haver com os negros rompimento, fizeram eles tantos furtos e maldades, que conveo a Diogo de Azambuja queimar-lhe a aldea, com que, entre este castigo e benefícios que mais parte tinham neles, ficaram em segura paz. Acabada a obra e a terra corrente em resgate, espediu Diogo de Azambuja os navios e a gente sobressalente que se veo pera o reino com boa cópia de ouro que resgataram, e ele ficou com sessenta homens ordenados à fortaleza, segundo ia per regimento del-Rei, e outros ficaram enterrados ao pé da árvore onde se disse a primeira missa, que ficou em adro da igreja de vocação de São Jorge, em que hoje Deus é louvado e glorificado, não somente 85 dos nossos que vão àquela cidade, mas ainda dos etiopas da sua comarca, que per bautismo são contados em o número dos fiéis. Na qual igreja, em memória dos trabalhos do Infante Dom Hanrique, por ser autor deste descobrimento, se diz υa missa quotidiana por sua alma, 26v com próprio capelão a ela ordenado. E em dous anos e sete meses que Diogo de Azambuja ali esteve, aprouve a Deus que na terra não houve tanta enfermidade como se receava, e assentou com tanta prudência os preços 79 e modo do resgate das cousas, que ainda hoje dura a maior parte deste seu bom regimento, por onde, quando veo, el-Rei o galardoou com acrescentamento de honra.

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79 26v 85 Capítulo III. Como foi descoberto o reino de Congo per Diogo Cão, cavaleiro da casa de el-Rei; e além dele descobriu duzentas e tantas léguas, em o qual descobrimento assentou três padrões que foram os primeiros de pedra, das quais terras trouxe algυas pessoas que foram baptizados per el-Rei. E também foi descoberto o reino de Beni. Ao tempo que el-Rei mandou fazer esta fortaleza de São Jorge da Mina, já foi com propósito que per ela tomava posse de toda aquela terra que habitavam os negros, com a qual posse esperava de acrescentar à sua Coroa novo título de estado, por haver a bênção de seus avós, cujos títulos eles sempre conquistaram da mão dos infiéis. E também por haverem efeito às doações que os Sumos Pontífices tinham concedidas ao Infante Dom Hanrique, seu tio, e a el-Rei Dom Afonso, seu padre, e a ele, de todo o que descobrissem do Cabo Bojador, té as Índias, inclusive (como atrás fica). Peró não quis notificar este título de senhor de Guiné em suas cartas e doações, senão di a três anos que este castelo de São Jorge era fundado, que foi depois que Diogo de Azambuja veo a este reino. Nem di por diante consentiu que os capitães que mandava a descobrir esta costa posessem cruzes de pau per os lugares notáveis dele, como se fazia em tempo de Fernão Gomes, quando descobria as quinhentas léguas de costa, per condição do contrato que fez com el-Rei Dom Afonso. Mas ordenou que levassem 86 um padrão de pedra de altura de dous estados de homem com o escudo das armas reais deste reino, e nas costas dele um letreiro em latim e outro em português, os quais diziam que Rei mandara descobrir aquela terra, e em que tempo, e per que capitão fora aquele padrão ali posto, e encima, no topo, υa cruz de pedra embutida com chumbo. E o primeiro descobridor que levou este padrão, foi Diogo Cão, cavaleiro de sua casa, o ano de quatrocentos e oitenta e quatro, indo já pela Mina como lugar onde se podia prover dalgυa necessidade, e di foi demandar o Cabo de Lopo Gonçalves, que está um grau da banda do Sul. Passado o qual cabo, e assi o de Caterina, que foi a derradeira terra que se descobriu em tempo del-Rei Dom Afonso, chegou a um notável rio, na boca do qual, da parte do Sul, meteu este padrão, como quem tomava posse por parte del-Rei de toda a costa que leixava atrás. Por causa do qual padrão, peró que ele se chamava São 80 Jorge, por a singular devação que el-Rei tinha neste santo, muito tempo foi nomeado este rio do Padrão, e ora lhe chamam de Congo, por correr per um reino assi chamado, que Diogo Cão esta viagem descobriu, posto que o seu próprio nome do rio entre os naturais é Zaire, mais notável e ilustre per águas que per nome. Porque o tempo que naquelas partes é o inverno, entra tam soberbo pelo mar, que a vinte léguas da costa se acham as suas águas doces. Diogo Cão, depois que assentou o padrão, por ver a grandeza que o rio mostrava em boca e em cópia de águas, bem lhe pareceu que tam grande rio havia de ser mui habitado de povos; e entrando per ele acima um pequeno espaço, viu que pela margem dele aparecia muita gente da que era costumado ver pela costa atrás, toda mui negra com seu cabelo revolto. E posto que levava algυas línguas da gente que tinham descoberto, em nenhυa cousa se poderam entender com esta, de maneira que se converteu aos acenos, per os quais entendeu terem Rei mui poderoso, o qual estava dentro pela terra tantos dias de andadura. Vendo ele o modo da gente e a segurança com que o esperavam, ordenou de enviar com alguns deles certos dos nossos com um presente ao Rei da terra, dando por isso algυa cousa, 27

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como aqueles que os haviam de encaminhar, com promessa que di a tantos dias seria sua tornada. Mas o termo do tempo que eles tomaram passou dobrado, sem Diogo Cão ver recado algum, e em todo ele os que ali ficavam, e outros muitos que concorreram aos panos e cousas que lhe ele mandava dar, assi entravam e saíam em o navio tam seguramente, como se houvera muito tempo que se conheciam. Diogo Cão, vendo quanto os outros tardavam, determinou de acolher alguns daqueles negros que entravam em o navio, e vir-se com eles pera este reino, com fundamento que entretanto os nossos lá onde eram podiam aprender 87 a língua e ver as cousas da terra, e os negros que ele trouxesse também aprenderiam a nossa, com que el-Rei poderia ser informado do que havia entre eles. E porque, partindo-se ele sem leixar algum recado, poderia danar aos nossos que ficavam, tanto que recolheu em o navio quatro homens deles, disse aos outros per seus acenos que ele se partia pera levar a mostrar ao seu Rei aqueles homens, porque os desejava ver, e que di a quinze lυas ele os tornaria, e que pera mais segurança ele leixava entre eles os homens que tinha enviado ao seu Rei. Chegado Diogo Cão a este reino, folgou el-Rei Dom João muito em ver gente de tam bom intendimento; porque, como eram homens nobres, assi aprenderam o que lhe Diogo Cão ensinou pelo caminho, que quando chegaram a este reino davam já razão das cousas que lhe preguntavam. El-Rei, por causa do tempo em que Diogo Cão limitou sua tornada, por os nossos não padecerem algum mal, mandou que tornasse logo, levando muitas cousas a 81 el-Rei de Congo, e com elas lhe encomendava que se quisesse converter à Fé de Cristo. Chegado Diogo Cão à barra do Rio do Padrão, foi recebido pelos da terra com muito prazer, vendo os seus naturais que ele trouxera vivos e tam bem tratados como iam. E pelo regimento que ele levava del-Rei Dom João, mandou um dos quatro negros, com alguns da terra que ele conhecia, com recado a el-Rei de Congo, fazendo-lhe saber como era chegado e trazia os seus vassalos que dali levara, segundo lhe aquele deria, pedindo que, por quanto lhe el-Rei, seu senhor, mandava que passasse mais avante per aquela costa, a fazer algυas cousas de seu serviço, lhe enviasse os portugueses que tinha per algum seu capitão, ao qual ele entregaria os outros três vassalos que trazia, e que da tornada que em boa ora viesse, ele lhe iria falar algυas cousas que el-Rei, seu senhor, mandava que com ele praticasse, e assi apresentar outras que lhe enviava. Vindo os nossos em poder de um capitão que el-Rei de Congo enviou, ao qual Diogo Cão entregou os seus com algυas dádivas pera el-Rei, espediu-se deles, entrando em seu descobrimento pela costa adiante. Na qual viagem, passou ele, Diogo Cão, além deste reino de Congo obra de duzentas léguas, onde pôs dous padrões: um chamado Santo Agostinho, que deu o nome do padrão ao mesmo lugar, o qual está em treze graus de altura da parte do Sul, e outro junto da manga das areas, por razão do qual se chama o lugar o Cabo do Padrão, em altura de vinte e dous graus. E neste caminho fez alguns saltos na terra, nos quais tomou algυas almas pera línguas do que descobrisse, como levava per regimento, e depois de ensinados os tornarem ali, como veremos. Tornado Diogo Cão deste descobrimento ao Rio do Padrão, do reino de Congo, foi-se ver com el-Rei, o qual, pola informação que já tinha dos 88 seus que se conformavam com os nossos do que lhe tinham dito das cousas deste reino, quando viu Diogo Cão, assi pelo que lhe disse e deu da parte del-Rei Dom João, não sabia que honra lhe fizesse, e era tam ceoso dele que o não fiava de ninguém. E no tempo que Diogo Cão esteve com ele, como já o Espírito Santo começava obrar seus mistérios na alma daquele Rei pagão, assi andava namorado do que lhe Diogo Cão dizia das cousas de nossa fé, que nunca o leixava, perguntando-lhe algυas de espírito já alumiado. O que logo começou mostrar, mandando com Diogo Cão a este reino um dos fidalgos que já cá viera chamado Caçuta, e assi alguns moços em modo de embaixada, pedindo a el-Rei que lhe

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aprouvesse de lhe enviar sacerdotes pera o baptizar e a todo seu reino, e lhe darem doutrina de sua salvação. Que aqueles moços, por serem filhos dos principais do seu reino, lhe pedia que os mandasse baptizar e doutrinar em as cousas da fé, pera per eles poder ser multiplicada entre os seus naturais, quando em boora tornassem e com este requerimento 82 mandou a el-Rei um presente de marfim e panos de palma, por em sua terra 27v não haver outras polícias. El-Rei Dom João, vindo Diogo Cão com este requerimento de conversão de um príncipe, senhor de tam grande povo como este era, o mais principal intento que tinha nestes descobrimentos, por mostrar o contentamento desta obra e louvar a Deus nela, estando em Beja, levou o embaixador Caçuta à pia a o fazer cristão, e assi aos moços que com ele vieram, e a Rainha foi a madrinha, vestindo-se ela e el-Rei de festa por mais solenizar este auto. O qual Caçuta houve nome Dom João, por amor del-Rei, com apelido da Silva, do outro padrinho que foi Aires da Silva, camareiro-mor del-Rei; e os moços tomaram os nomes e apelidos dos padrinhos que os apresentaram. E quanto fructificou em louvor de Deus a Cristandade destes homens de Congo pela conversão do seu Rei (como adiante veremos), tam pouco aproveitou o que el-Rei fez em o requerimento del-Rei de Beni, cujo reino jaz entre o reino de Congo e o castelo de São Jorge da Mina. Porque neste tempo em que Diogo Cão veo da primeira vez de Congo, que foi no ano de quatrocentos e oitenta e seis, também este Rei de Beni mandou pedir a el-Rei que lhe mandasse lá sacerdotes pera o doutrinarem em fé, sendo já vindo o ano passado um Fernão do Pó, que também com esta costa descobriu a ilha que se ora chama do seu nome, que está vezinha à terra firme, à qual por sua grandeza ele chamou a Ilha Fermosa, e ela perdeu este e ficou com o nome do seu descobridor. Este embaixador del-Rei de Beni trouxe-o João Afonso de Aveiro, que era ido a descobrir esta costa per mandado del-Rei, e assi trouxe a primeira pimenta que veo daquelas partes de Guiné a este reino, a que nós ora chamamos de rabo, pola diferença que tem da outra da Índia, por nela vir pegado o pé em que nace, a qual el-Rei mandou a Frandes, mas não foi tida em 89 tanta estima como a da Índia. E porque este reino de Beni era perto do Castelo de São Jorge da Mina, e os negros que traziam ouro ao resgate dela folgavam de comprar escravos pera levar suas mercadorias, mandou el-Rei assentar feitoria em um porto de Beni, a que chamam Gató, onde se resgatavam grande número deles, de que na Mina se fazia muito proveito, porque os mercadores de ouro os compravam por dobrado preço do que valiam cá no reino. Mas como el-Rei de Beni era mui sujeito a suas idolatrias, e mais pedia os sacerdotes por se fazer poderoso contra seus vezinhos com favor nosso que com desejo de bautismo, aproveitaram mui pouco os ministros dele, que lhe el-Rei lá mandou. Donde se causou mandá-los vir, e assi aos oficiais da feitoria, por o lugar ser mui doentio; e entre as pessoas de nome que nela faleceram, foi o mesmo João Afonso de Aveiro, que a primeiro assentou. Porém depois per muito tempo, assi em vida 83 del-Rei Dom João como del-Rei Dom Manuel, correu este resgate de escravos de Beni pera a Mina, ca ordinariamente os navios que partiram deste reino os iam lá resgatar e di os levavam à Mina, té que este negócio se mudou por grandes inconvenientes que nisso havia. Ordenando-se andar um caravelão da Ilha de São Tomé, onde concorriam assi os escravos da costa de Beni, como os do reino de Congo, por aqui virem ter todalas armações que se faziam pera estas partes, e desta ilha os levava este caravelão à Mina . E vendo el-Rei Dom João, o terceiro, nosso senhor, que ora reina, como esta gente pagã, que já estava em nosso poder, tornava outra vez às mãos dos infiéis, com que perdiam o mérito do bautismo, e suas almas ficavam eternamente perdidas, peró que lhe foi dito que nisto perdia muito, como príncipe cristianíssimo, mais lembrado da salvação destas almas, que do proveito de sua fazenda, mandou que cessasse este trato deles. E per este modo ficaram metidos em o conto dos

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fiéis da Igreja mais de mil almas, que cada um ano ante deste santo preceito eram postas em perpétua servidão do Demónio, ficando gentios como eram, ou se faziam mouros, quando per via do resgate que os mouros fazem com os negros da província de Mandiga os haviam a seu poder. A qual obra, por ser em seu louvor, Deus deu logo o galardão a el-Rei porque, como ele antepôs a salvação das almas destes pagãos ao muito ouro que lhe diziam perder no resgate destes escravos, abriu-lhe outra mina abaixo da cidade São Jorge, de onde começou a correr té hoje grande cópia de ouro, a soma do qual importa mais do que se havia por venda dos escravos.

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83 27v 90 Capítulo IV. Como el-Rei pelo que soube de João Afonso de Aveiro e assi dos embaixadores que ele trouxe do reino de Beni, mandou Bartolomeu Dias e João Infante a descobrir; na qual viagem descobriram o grande Cabo de Boa Esperança. 28 Entre muitas cousas que el-Rei Dom João soube do embaixador del-Rei de Beni, e assi de João Afonso de Aveiro, das que lhe contaram os moradores daquelas partes, foi que, ao Oriente del-Rei de Beni, per vinte lυas de andadura que, segundo a conta deles e do pouco caminho que andam, podiam ser até duzentas e cinquenta léguas das nossas, havia um Rei, o mais poderoso daquelas partes, a que eles chamavam Ogané, que entre os príncipes pagãos das comarcas de Beni era havido em tanta veneração, como acerca de nós os Sumos Pontífices. Ao qual per costume antiquíssimo os Reis de Beni, quando novamente reinavam, enviavam seus embaixadores com grã presente, notificando-lhe 84 como, per falecimento de Fuão, sucederam naquele reino de Beni, no qual lhe pediam que os houvesse por confirmados. Em sinal da qual confirmação, este príncipe Ogané lhes mandava um bordão e υa cobertura da cabeça, da feição dos capacetes de Espanha, tudo de latão luzente, em lugar de cetro e coroa, e assi lhe enviava υa cruz do mesmo latão pera trazer ao pescoço, como cousa religiosa e santa, da feição das que trazem os comendadores da Ordem de São João, sem as quais peças o povo havia que não reinavam justamente nem se podiam chamar verdadeiros reis. E em todo o tempo que este embaixador andava na corte deste Ogané, como cousa religiosa nunca era visto dele, somente via υas cortinas de seda em que ele andava metido; e ao tempo que despachavam o embaixador, de dentro das cortinas lhe mostravam um pé, em sinal que estava ali dentro e concedia nas peças que levava, ao qual pé faziam reverência como a cousa santa. E também, em modo de prémio do trabalho de tanto caminho, era dada ao embaixador υa cruz pequena, da feição da que levava pera el-Rei que lhe lançavam ao colo, com a qual ele ficava livre e isento de toda servidão, e previlegiado na terra donde era natural, ao modo que entre nós são os comendadores. Sabendo eu isto, pera com mais verdade o poder escrever (peró que el-Rei Dom João em seu tempo o tinha bem inquirido), o ano de quinhentos e quorenta , vindo a este reino certos embaixadores del-Rei de Beni, trazia um deles, que seria homem de setenta anos, υa cruz destas; e perguntando-lhe eu por a causa dela, respondeu conforme ao acima escrito. E porque neste tempo del-Rei Dom João, quando falavam na Índia, sempre era nomeado um rei mui poderoso a que chamavam Preste João das Índias, o qual diziam ser cristão, parecia a el-Rei que, per via deste, podia ter algυa entrada 91 na Índia. Porque per os abexis religiosos que vem a estas partes de Espanha, e assi per alguns frades que de cá foram a Jerusalém, a que ele encomendou que se informassem deste príncipe, tinha sabido que seu estado era a terra que estava sobre Egipto, a qual se estendia té o mar do Sul. Donde tomando el-Rei com os cosmógrafos deste reino a tábua geral de Ptolomeu da descripção de toda África, e os padrões da costa dela, segundo per os seus descobridores estavam arrumados, e assi a distância de duzentas e cinquenta léguas pera Leste, onde estes de Beni diziam ser o estado do príncipe Ogané, achavam que ele devia ser o Preste João, por ambos andarem metidos em cortinas de seda, e trazerem o sinal da cruz em grande veneração. E também lhe parecia que, prosseguindo os seus navios a costa que iam descobrindo, não podiam leixar de dar na terra onde estava o Praso

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Promontório, fim daquela terra. Assi que, conferindo todas estas cousas que o mais acendiam em 85 desejo do descobrimento da Índia, determinou de enviar, logo neste ano de quatrocentos e oitenta e seis, dobrados navios per mar e homens per terra, pera ver o fim destas cousas, que lhe tanta esperança davam. Armados dous navios de até cinquenta tonéis cada um, e υa naveta pera levar mantimentos sobressalentes, por causa de muitas vezes desfalecerem aos navios deste descobrimento, com que se tornavam 28v pera o reino, partiram na fim de Agosto do dito ano. A capitania da qual viagem deu a Bartolomeu Dias, cavaleiro de sua casa, que era um dos descobridores desta costa, o qual ia em um navio de que era piloto Pero de Alanquer e mestre o Leitão; e João Infante, outro cavaleiro, era capitão do segundo navio, piloto Álvaro Martins e mestre João Grego. E em a nau que levava os mantimentos, ia por capitão Pero Dias, irmão de Bartolomeu Dias, de que era piloto João de Santiago e mestre João Álvares, todos, cada um em seu mister, mui espertos. E posto que Diogo Cão tinha descoberto per duas vezes trezentas e setenta e cinco léguas de costa, começando do Cabo de Caterina té o cabo chamado do Padrão, todavia, passado o Rio de Congo, começou Bartolomeu Dias seguir a costa té chegar onde ora se chama a Angra do Salto, por razão de dous negros que Diogo Cão ali salteou. Os quais el-Rei, per ele, Bartolomeu Dias, já ensinados do que haviam de fazer, mandava tornar àquele lugar, e assi levava quatro negras destoutra costa de Guiné. A primeira das quais leixou na Angra dos Ilhéus, onde assentou o primeiro padrão, e a segunda na Angra das Voltas, e a terceira morreu, e a quarta ficou na Angra dos Ilhéus de Santa Cruz, com duas que ali tomaram, que andavam mariscando, e não as quiseram trazer, porque mandava el-Rei que não fizessem força nem escândalo aos moradores das terras que descobrissem. A causa de el-Rei mandar lançar esta gente per toda aquela costa, vestidos e bem tratados com mostra da prata, ouro e espeçarias, era porque, indo ter a povoado, podesse notificar de uns em outros a grandeza do seu reino e as cousas que nele havia, e como per toda aquela costa andavam os seus navios, e que mandava descobrir a Índia, e principalmente um príncipe 92 que se chamava Preste João, o qual lhe diziam que habitava naquela terra. Tudo a fim que podesse ir ter esta fama ao Preste, e fosse azo pera ele mandar de lá de dentro donde habitasse a esta costa do mar; porque pera todas estas cousas os negros e negras iam ensinados, e principalmente as negras, que, como não eram naturais da terra, ficavam com esperança de tornarem os navios per ali e as trazerem a este reino. Que entre tanto elas entrassem pelo sertão, e aos moradores notificassem estas cousas, e aprendessem muito bem as que podesse saber das que lhe eram encomendadas, e que podiam ficar seguras, porque, como eram mulheres com 86 quem os homens não tem guerra, não lhes haviam de fazer mal algum. Além de assentarem os padrões que levavam nas distâncias do comprimento da costa que lhe bem parecia, eram postos em lugares notáveis, assi como o primeiro padrão, chamado Santiago, no lugar a que poseram o nome Serra Parda, que está em altura de vinte e quatro graus, cento e vinte léguas além do derradeiro que pôs Diogo Cão. Punham também os nomes aos cabos, angras e mostras da terra que descobriam, ou por razão do dia que ali chegavam, ou por qualquer outra causa: como angra a que ora chamamos das Voltas, que por as muitas em que então ali andaram lhe deram este nome - Angra das Voltas, onde se Bartolomeu Dias teve cinco dias com tempos que lhe não leixavam fazer caminho, a qual angra está em vinte nove graus da parte do Sul. Partidos daqui na volta do mar, o mesmo tempo os fez correr treze dias com as velas a meio masto; e como os navios eram pequenos e os mares já mais frios e não tais como os da terra de Guiné, posto que os da costa de Espanha em tempo de tormenta eram mui feios, estes houveram por

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mortais; mas, cessando o tempo que fazia naquela fúria do mar, vieram demandar a terra pelo rumo de Leste, cuidando que corria ainda a costa Norte-Sul em geral, como té ali a trouxeram. Porém, vendo que por alguns dias cortavam sem dar com ela, carregaram sobre o rumo do Norte, com que vieram ter a υa angra a que chamaram dos Vaqueiros, por as muitas vacas que viram andar na terra guardadas per seus pastores. E como não levavam língua que os entendesse, não poderam haver fala deles, ante como gente espantada de tal novidade carearam seu gado pera dentro da terra, com que os nossos não poderam saber mais deles, que verem ser negros de cabelo revolto como os de Guiné. Correndo mais avante a costa já per novo rumo, de que os capitães iam mui contentes, chegaram a um ilhéu que está em trinta e três graus e três quartos da parte do Sul, onde poseram o padrão chamado da Cruz que deu nome ao ilhéu, que está da terra firme pouco mais de meia légua, e porque nele estavam duas 29 fontes, muitos lhe chamam o Penedo das Fontes. Aqui, como a gente vinha cansada e mui temerosa dos grandes mares que passaram, toda a υa voz começou de se queixar e requerer que não fossem mais avante, dizendo como os mantimentos se gastavam pera tornar 93 a buscar a nau que leixaram atrás com os sobressalentes, a qual ficava já tam longe, que, quando a ela chegassem, seriam todos mortos à fome, quanto mais passar avante. Que assaz era de υa viagem descobrirem tanta costa, e que já levavam a maior novidade que se daquele descobrimento levou: acharem que a terra se corria quási em geral pera Leste, donde parecia que atrás ficava algum grande cabo, o qual seria milhor conselho tornarem, de caminho, a descobrir. 87 Bartolomeu Dias, por satisfazer aos queixumes de tanta gente, saiu em terra com os capitães e oficiais e alguns marinheiros principais, e dando-lhes juramento, mandou-lhes que dissessem a verdade do que lhes parecia que deviam fazer por serviço del-Rei, e todos assentaram que se tornassem pera o reino, dando as razões de cima e outras de tanta necessidade, do qual parecer mandou fazer um auto em que todos assinaram. Peró, como seu desejo era ir avante, e somente quis fazer este comprimento com a obrigação de seu ofício e regimento del-Rei, per que lhe mandava que as cousas de importância fossem consultadas com as principais pessoas que levava, pediu a todos, quando veo ao assinar da determinação em que assentaram, que houvessem por bem correrem mais dous ou três dias a costa, e quando não achassem cousa que os obrigasse prosseguir mais avante, que então fariam a volta, o que lhe foi concedido. Mas no fim destes dias que pediu, não fizeram mais que chegar a um rio, que está vinte cinco léguas avante do Ilhéu da Cruz, em altura de trinta e dous graus e dous terços. E porque João Infante, capitão do navio São Pantalião, foi o primeiro que saiu em terra, houve o rio o nome que ora tem do Infante, donde se tornaram, por a gente tornar repetir seus queixumes. Chegados ao Ilhéu da Cruz, quando Bartolomeu Dias se apartou do padrão que ali assentou, foi com tanta dor e sentimento, como se leixara um filho desterrado pera sempre, lembrando-lhe com quanto perigo de sua pessoa e de toda aquela gente, de tam longe vieram somente àquele efeito, pois lhe Deus não concedera o principal. Partidos dali, houveram vista daquele grande e notável cabo, encoberto per tantas centenas de anos, como aquele que, quando se mostrasse, não descobria somente a si, mas a outro novo mundo de terras. Ao qual Bartolomeu Dias e os de sua companhia, per causa dos perigos e tormentas que em o dobrar dele passaram, lhe poseram nome Tormentoso, mas el-Rei Dom João, vindo eles ao reino, lhe deu outro nome mais ilustre, chamando-lhe Cabo de Boa Esperança, pola que ele prometia deste descobrimento da Índia, tam esperada e per tantos anos requerida. O qual nome como foi dado per Rei, e tal que Espanha se gloria dele, permanecerá com louvor de quem o mandou descobrir, enquanto esta nossa lembrança durar; a descripção e figura do qual descrevemos em a nossa Geografia, por ser lugar mais próprio, peró que aqui se espere.

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Bartolomeu Dias, depois que notou dele o que convinha à navegação 94 e assentou um padrão chamado São Felipe, porque o tempo lhe não deu lugar a sair em terra, tornou a seguir sua costa em busca da nau dos mantimentos, à qual chegaram, havendo nove meses justos que dela eram partidos. E de nove homens que ali ficaram eram vivos três somente, um dos quais, a que chamavam Fernão Colaço, natural do 88 Lumiar, termo de Lisboa, que era escrivão, assi pasmou de prazer em ver os companheiros, que morreu logo, andando bem fraco de enfermidade. E a razão que deram dos mortos, foi fiarem-se dos negros da terra com quem vieram ter comunicação, os quais sobre cobiça dalgυas cousas que resgatavam os mataram. Tomados muitos mantimentos que acharam e posto fogo à naveta, que já estava bem comesta do busano, por não haver quem a podesse marear, vieram ter à Ilha do Príncipe, onde acharam Duarte Pacheco, cavaleiro da casa del-Rei, mui doente. O qual, por não estar em disposição pera per si ir descobrir os rios da costa a que o el-Rei mandava, enviou o navio a fazer algum resgate; onde se perdeu, salvando-se parte da gente, que com ele se veo em estes navios de Bartolomeu Dias. E porque já a este tempo era sabido um rio que se chama do Resgate, polo que se ali fazia de negros, por não virem com as mãos vazias, passaram per ele, e assi pelo castelo de São Jorge da Mina, estando nele João Fogaça por capitão, 29v o qual lhe entregou o ouro que tinha resgatado, com que se vieram pera este reino, onde chegaram em Dezembro do ano de quatrocentos e oitenta e sete, havendo dezasseis meses e dezassete dias que eram partidos dele, leixando Bartolomeu Dias descoberto nesta viagem trezentas e cinquenta léguas per costa, que é outro tanto como Diogo Cão descobriu per duas vezes. Em o qual espaço de setecentas e cinquenta léguas, que estes dous principais capitães descobriram, estão seis padrões: o primeiro chamado São Jorge, em o rio Zaire, que é do reino de Congo; o segundo, Santo Agostinho, está em um cabo do nome do mesmo padrão; o terceiro, que é o derradeiro de Diogo Cão, na Manga das Areas; o quarto em ordem e primeiro de Bartolomeu Dias, na Serra Parda; o quinto, São Felipe, no grande e notável Cabo de Boa Esperança, e o sexto, Santa Cruz, no ilhéu deste nome, onde se acabaram os padrões que pôs Bartolomeu Dias e acabou o derradeiro descobrimento que se fez em tempo del-Rei Dom João.

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88 29v 95 Capítulo V. Como el-Rei mandou per terra dous criados seus, um a descobrir os portos de navegação da Índia, e outro com cartas ao Preste João; e como de Roma foi enviado a el-Rei um abexi religioso daquelas partes, por meio do qual ele também enviou algυas cartas ao Preste. Por causa das cousas que atrás escrevemos e da informação que el-Rei Dom João tinha da província em que o Preste João habitava, ante que Bartolomeu Dias viesse deste descobrimento, determinou de o mandar descobrir per terra, tendo já a isso enviado duas pessoas 89 per via de Jerusalém, por saber que vinham àquela Santa Casa em romaria muitos religiosos do seu reino, mas não houve efeito esta ida como el-Rei desejava. Porque um Frei António de Lisboa e um Pero de Montarroio, que ele mandou a isso, por não saberem o arávigo, não se atreveram irem em companhia destes religiosos que acharam em Jerusalém. E vendo el-Rei quão necessária cousa pera fazer este caminho era a língua arábia, mandou a este negócio um Pero de Covilhã, cavaleiro de sua casa, que era homem que a sabia mui bem, e em sua companhia outro, per nome Afonso de Paiva, os quais foram despachados em Santarém, a sete de Maio, do ano de quatrocentos oitenta e sete, sendo presente ao seu despacho o Duque de Beja, Dom Manuel. E despedidos ambos del-Rei, foram ter à cidade de Nápole, onde embarcaram pera a Ilha de Rodes, e, chegando a ela, pousaram em casa de Frei Gonçalo e Frei Fernando, dous cavaleiros da religião que eram portugueses, os quais lhe deram todo aviamento com que se passaram a Alexandria, onde se deteveram algum tempo, por adoecerem de febres à morte. Tanto que esteveram pera poder caminhar, passaram-se ao Cairo, e di foram ter ao Toro, em companhia de mouros de Tremecém e de Fez que passavam a Adem ; e por ser tempo da navegação daquelas partes, apartaram-se um do outro, Afonso de Paiva pera a terra de Etiópia, e Pero de Covilhã pera a Índia, concertando ambos que a um certo tempo se ajuntassem na cidade do Cairo. Embarcado Pero de Covilhã em υa nau que partia de Adem, foi ter a Cananor e di a Calecute e a Goa, cidades principais da costa da Índia, e aqui embarcou pera a Mina de Sofala, que é na Etiópia, sobre Egipto. Tornado outra vez à cidade Adem, que está situada na boca do estreito do Mar Roxo, 96 na parte de Arábia Félix, embarcou-se pera o Cairo, onde achou nova que seu companheiro Afonso de Paiva na própria cidade havia pouco que era falecido de doença. E estando pera se vir a este reino com recado destas cousas que tinha sabido, soube que andavam ali dous judeus de Espanha em sua busca, com os quais se viu mui secretamente. A um chamavam Rabi Abrão, natural de Beja, e a outro Josepe, sapateiro de Lamego. O qual Josepe havia pouco tempo que viera daquelas partes, e como soube cá no reino o grande desejo que el-Rei tinha da informação das cousas da Índia, foi-lhe dar conta como estevera em a cidade de Babilónia, a que ora chamam Bagodad, situada no rio 30 Eufrates, e que ali ouvira falar do trato da ilha chamada Ormuz , que estava na boca do mar da Pérsia. Em a qual havia υa cidade, a mais célebre de todas aquelas partes, por a ela concorrerem todalas espeçarias e riquezas da Índia, as quais per cáfilas de camelos vinham ter às cidades de Alepo e Damasco. El-Rei, porque ao tempo que soube destas e outras cousas deste judeu, era já Pero de 90

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Covilhã partido, ordenou de o mandar em busca dele, e assi o outro chamado Rabi Abrão: o Josepe, pera lhe trazer recado das cartas que per eles mandava a Pero de Covilhã, e Abrão, pera ir com ele ver a Ilha de Ormuz e aí se informar das cousas da Índia. Em as quais cartas el-Rei encomendava muito a Pero de Covilhã que, se ainda não tinha achado o Preste João, que não receasse o trabalho, té se ver com ele e lhe dar sua carta e recado; e que enquanto a isto fosse, per aquele judeu Josepe lhe escrevesse tudo o que tinha visto e sabido, porque a este efeito somente o enviava a ele. Pero de Covilhã, ainda que andava cansado de tanta navegação e caminhos, como tinha visto e sabido, além de escrever a el-Rei, informou meudamente a Josepe. Espedindo-se do qual, foi com o outro judeu Abrão à cidade Adem, onde ambos embarcaram pera Ormuz; e notadas todalas cousas dela, leixou ali o judeu Abrão pera vir per via das califas de Alepo, e ele, Pero de Covilhã, tornou-se ao Mar Roxo, e di foi ter à Corte do Preste, per nome Alexandre, a que eles chamam Escander. O qual o recebeu com honra e gasalhado, estimando em muito príncipe da Cristandade das partes da Europa mandar a ele embaixador, o que deu esperança a Pero de Covilhã poder ser bem despachado. Porém, como este Alexandre, depois de sua chegada a poucos dias, faleceu e em seu lugar reinou Naut, seu irmão, que fez mui pouca conta dele e sobre isso ainda lhe não quis dar licença que saísse do seu reino, por terem costume, que se lá acolhem um homem destas partes, não o leixam mais tornar, perdeu Pero de Covilhã toda a esperança de mais tornar a este reino. Depois, passados muitos anos, em o de quinhentos e quinze, reinando David, 97 filho deste Naut, requerendo-lhe por este Pero de Covilhã Dom Rodrigo de Lima, que lá estava por embaixador del-Rei Dom Manuel, ainda lhe negou a vinda, dizendo que seus antecessores lhe deram terras e heranças, que as comesse e lograsse com sua mulher e filhos que tinha. E per via desta embaixada que levou Dom Rodrigo (da qual em seu lugar faremos relação) viemos a saber todo o discurso desta viagem de Pero de Covilhã. Porque entre os portugueses que foram com ele, era um Francisco Álvares, clérigo de missa, a quem ele, Pero de Covilhã, deu conta de sua vida e se confessou a ele, do qual Francisco Álvares e assi de um tratado que ele fez da viagem desta embaixada que levou Dom Rodrigo, soubemos estas e outras cousas daquelas partes. E logo no ano seguinte, havendo pouco mais de nove meses que Pero de Covilhã era partido, por el-Rei ter em todalas partes de Levante inteligências pera este negócio, enviaram-lhe de Roma um sacerdote da terra do Preste, o qual havia nome Lucas Marcos, homem de que el-Rei ficou mui satisfeito na prática que teve com ele, por dar boa razão das cousas. E ordenou logo que da sua parte fosse ao 91 Preste com cartas, ca, por ele ser natural da terra e conversado naquelas partes com os bárbaros, podia fazer este caminho mais certo do que o faria um seu mensajeiro que o ano passado enviara a ele. Ordenou mais el-Rei com o mesmo Marcos que trasladasse υa carta per três ou quatro vias, a qual mostrava ser dele, Marcos, enviada ao Preste, dando-lhe conta como era vindo a este reino a instância del-Rei, e o desejo que tinha de sua amizade e modo de sua navegação per toda a costa de África e Etiópia, e os reis e povos que tinha descoberto, e os sinais das cousas que naquelas partes havia, e costumes que as gentes entre si tinham, e muitos vocábulos que usavam nas cousas gerais em sua linguagem, assi como - Deus, céu, sol, lυa, fogo, ar, água, terra. Porque, per notícia dos tais vocábulos, veria em conhecimento se estava perto da gente que os usava; a qual toda habitava na fralda da terra que cerca o Mar Oceano, per o qual navegavam os navios del-Rei. Na qual carta também particularizava todalas informações que el-Rei tinha da grandeza das terras de seu império. E pera que o Preste lhe desse crédito, se ante ele fosse a carta, nomeava-se Marcos por seu nome, e cujo filho era, e de que comarca e povoação e freguesia. Feitas estas cartas, mandou el-Rei a Levante que as entregassem aos religiosos da sua nação abexi, as 30v

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quais, peró que não fossem per pessoas mui certas, algυa podia ir ter a mão do Preste, com que acreditasse a Pero de Covilhã, se lá fosse ter, quando doutra cousa não servissem. E per ele, Lucas Marcos, também escreveu el-Rei ao Preste, per o estilo das cousas que iam nas cartas de Marcos, dando-lhe conta como mandara a Roma buscar este 98 seu natural, a fim de lhe poder escrever per ele, Lucas, ao qual podia dar fé como a vassalo, pedindo-lhe que houvesse por bem enviar-lhe um mensajeiro pera em sua companhia lhe poder enviar outro; porque alguns que lá eram, e assi cartas derramadas per mãos de homens seus naturais, não sabia se poderiam passar per as terras dos infiéis, que se metiam entre eles e a Cristandade da Europa. E como ele, por causa da vizinhança que tinha com o Soldão do Cairo, seguramente lhe mandava seus embaixadores, e di vinham a Jerusalém e a Roma, segundo este seu vassalo Lucas contava, podia ser este um caminho pera per cartas e embaixadas se conhecerem, e depois Nosso Senhor mostraria outro com que, sem empedimento dos mouros imigos do nome cristão, se podiam prestar com obras de irmãos, pois que o eram em fé.

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92 30v 98 Capítulo VI. Como um Príncipe das partes de Guiné chamado Bemoí veo a este reino, por causa de υa guerra que teve, em que perdeu seu estado; e como el-Rei, por o grande conhecimento que tinha dele, o recebeu, fazendo-lhe muita honra. Sobre a vinda deste Lucas Marcos, sendo já a este tempo despachado del-Rei e mui satisfeito das mercês que lhe fez, sucedeu outra de outro etiópia de não menos contentamento del-Rei. Porque, estando em Setúval, lhe veo nova como a Lisboa era chegado um navio do castelo de Arguim, em o qual vinha um príncipe da terra de Jalofe, chamado Bemoí, acompanhado de parentes e homens nobres daquela província. El-Rei, como, per as razões que abaixo diremos, tinha muito conhecimento dele, mandou a Lisboa que o agasalhassem bem e di o passassem honradamente ao castelo da vila de Palmela. Em o qual esteve alguns dias enquanto ele e os seus fossem vestidos e encavalgados, pera poderem ir ante ele, sendo sempre servido em todalas cousas, não como príncipe bárbaro e fora da lei, mas como podia ser um dos senhores da Europa, costumado às polícias e serviços dela. E outro tanto lhe foi feito em o dia da sua entrada na Corte, vindo por ele Dom Francisco Coutinho, Conde de Marialva, acompanhado de muita 99 fidalguia. Pera o qual dia el-Rei e a Rainha se aperceberam com aparato de casas armadas cada um em a sua: el-Rei na sala em estrado alto, com um dossel de brocado rico, acompanhado do Duque de Beja, Dom Manuel, irmão da Rainha, e assi de condes, bispos e outras pessoas notáveis; e com a Rainha estava o Príncipe Dom Afonso, seu filho, e muitos dos nobres da Corte, com todalas damas vestidas de festa. E porque na fala que Bemoí fez nesta primeira chegada e vista del-Rei, segundo anda escrita per Rui de Pina, cronista-mor que foi deste reino, assi na Crónica que deste Rei compôs, a relação da fortuna deste Príncipe Bemoí está tam curta quanto é copiosa em os louvores del-Rei e admirações que ele Bemoí, fazia de ver seu estado, leixaremos a eloquência dela nesta parte e tomaremos o nosso intento, que é contar os fundamentos do seu desterro e o que sucedeu desta sua vinda, por isso ser próprio da história. No princípio, quando o comércio de Guiné começou correr entre os nossos e os povos da região de Jalofe, a qual jaz entre estes dous notáveis rios Sanagá e Gâmbia, havia um Rei mui poderoso naquelas partes, chamado Bor Birão, o qual, posto que fosse do sangue gentio dos príncipes de Guiné, era já feito mouro pela comunicação que tinham com os mouros chamados azenegues. E entre os filhos que leixou per sua morte de mulheres diferentes (segundo seu uso), foram Cibitah e 93 Camba, que eram de υa mulher, e Birão, de outra, que já fora casada com outro marido, do qual marido ela tinha havido este Bemoí de que falámos. E porque naquela terra, as mais vezes, morto el-Rei, o povo toma um dos filhos que o governe, qual lhe mais apraz, elegeram por seu rei a Birão. O qual, metido em 31 posse de governo da terra, fez mui pouca conta destes dous irmãos Cibitah e Camba, por serem seus competidores no reino por parte do pai, e muita estima de Bemoí, seu irmão da parte da mãe, com quem não tinha competência desta herança. Ao qual em ódio dos outros, não somente deu o regimento de todo seu estado per ofício, segundo seu costume, mas ainda se descuidou tanto do governo e ocupou em cousas de seu prazer, que o povo não conhecia nem obedecia já senão à pessoa de Bemoí. E como ele era homem prudente, vendo que com os nossos navios que andavam

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no resgate daquela costa, a terra engrossava com cavalos e outras mercadorias de que ela carecia, as quais cousas, se lhe viessem à mão, o podiam fazer mais poderoso, leixou as terras do sertão e veo buscar os portos do mar, onde nossos navios iam fazer resgate. Na maneira de contratar com os quais usava desta prudência: mandar pagar qualquer cavalo que morria em o navio, e bastava por testemunho mostrarem-lhe o cabo dele, porque dizia que, quando o tal cavalo se embarcara, já fora em seu nome, e que não era razão que os homens perdessem o seu, pois iam tam longe a lhe levar o que ele havia mister. E não somente 100 tinha este modo de contentar as partes, mas ainda em as cousas do serviço del-Rei Dom João, em cujo tempo ele concorreu, como homem que esperava de se aproveitar de sua amizade, tanto que os seus navios vinham ao porto, logo eram com diligência despachados; e sobre isso mandava-lhe alguns presentes das cousas da terra. Com que el-Rei, além do desejo geral que tinha de trazer à Fé todos aqueles príncipes de Guiné, a este mais particularmente tinha afeição, por lhe também dizerem ter pessoa, engenho e um claro juízo pera receber a doutrina evangélica. E a esta causa sempre encomendava aos capitães que iam no resgate daqueles seus portos, que tevessem prática com ele sobre as cousas da Fé, e per algυas vezes lhe mandou mensajeiros com este requerimento, levando-lhe dádivas e presentes, e muitas ofertas de acrescentamento de seu estado por o mais animar. Mas ele, ou porque no tal tempo não merecia a Deus tamanha mercê, ou porque lhe estava prometida per outros meios de mais sua honra, com que a sua memória andasse em as Crónicas dos Reis deste reino, por então não aceitou o bautismo, dando sempre de si muita esperança no contentamento que tinha em folgar de ouvir a quem lhe falava nestas cousas da Fé. E esta prosperidade sua, causou a morte a seu irmão, que lhe deu o governo do reino, e a ele 94 ser desterrado, porque os dous irmãos Cibitah e Camba à traição mataram a el-Rei Bor Birão, intitulando-se por Rei Cibitah, que era mais velho, o qual cruamente começou fazer guerra a Bemoí. E como a guerra necessita os homens, principalmente se é comprida, por o trabalho que Bemoí nesta teve, perdendo algυas batalhas, começou descair do poder que tinha; mas, confiado nos serviços que fazia a el-Rei Dom João, em um navio do resgate mandou a ele um seu sobrinho, pedindo-lhe ajuda de cavalos, armas e gente. Ao qual requerimento el-Rei respondeu que, se ele algum adjutório dele queria, recebesse o bautismo, e então que o ajudaria como irmão per lei e fé, e como amigo por as obras que dele tinha recebido. Porém polo consolar em sua necessidade e animar a se converter, mandou-lhe cinco cavalos ajaezados pera sua pessoa, e o Duque de Beja, Dom Manuel, lhe mandou um, e arreos pera outros. As quais cousas levou Gonçalo Coelho, que depois foi escrivão da fazenda dos contos da cidade de Lisboa (de quem nós soubemos a maior parte destas cousas), e em sua companhia foi o mensajeiro que veo de Bemoí, e assi alguns clérigos pera praticarem com ele em as cousas da Fé. Com a qual ida de Gonçalo Coelho, algυa gente da que ia em os navios do resgate tomou ousadia de entrar pela terra firme em sua companhia, pera poderem milhor vender suas mercadorias, porque já por razão da guerra não corria resgate costumado aos portos de mar. E foi este negócio 101 de os nossos irem e virem ao arraial de Bemoí em tanto crescimento, e ele por causa da guerra pera a qual os havia mister, tomava tantos cavalos sem os poder pagar, que andava lá muita gente, uns por arrecadar o que lhe deviam, e outros por desbaratar o que não podiam vender em os portos de mar. Bemoí, como era homem sagaz, vendo que em a detença do despacho, assi Gonçalo Coelho como as partes que ali andavam, o favoreciam em os seus negócios da guerra, trouxe-o lá em esperança de sua conversão perto de um ano. Gonçalo Coelho, sentindo esta sua tenção, e mais vendo 31v como se os homens perdiam em as mercadorias que davam fiadas a Bemoí, escreveu a el-Rei o pouco fructo que fazia e o dano que causava a sua estada lá. El-Rei, vista a carta de Gonçalo

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Coelho, mandou que logo se viesse, espedindo-se de Bemoí, sem escândalo, e que notificasse às partes que lá andavam que se viessem em sua companhia, sob graves penas não o querendo fazer. Bemoí, quando lhe Gonçalo Coelho disse de sua vinda, ficou mui triste, porque via chegar-se sua perdição, por o grande favor que com ele recebia pera as cousas da guerra, e também porque lhe convinha, por não perder o crédito, pagar o que devia às partes. Porém vendo ele que não podia deter Gonçalo Coelho, com ajuda dos seus pagou o que devia, e mandou o mesmo sobrinho, que do reino viera com Gonçalo 95 Coelho, que tornasse em sua companhia, enviando per ele a el-Rei cem peças de escravos bem dispostos, dos que havia na guerra, e assi υa grossa manilha de ouro como carta de crença, segundo seu costume. E entre algυas causas per que se mandou desculpar a el-Rei de não aceitar o bautismo, foi que o povo que o seguia andava alevantado com a guerra, e que mudar ele lei e modo de vida, era necessário obrigar a todos que fizessem outro tanto. E como é cousa dura em breve tempo a gente bárbara leixar os ritos e usos em que se criaram, seria causa que per este modo primeiro leixariam a ele que a eles , donde se perderia azo de em outro tempo per ele todos poderem receber bautismo, o qual tempo ele esperava em Deus que o daria com assossego daqueles trabalhos em que andava com seus imigos. Finalmente parece que assi o queria Deus, que per esta fortuna e trabalho viesse este Príncipe Bemoí ao bautismo porque assi ficou desbaratado e desemparado dos seus em υa batalha que lhe deram, que tomou por emparo de sua vida vir ao longo do mar per espaço de mais de setenta léguas buscar a nossa fortaleza de Arguim, onde embarcou com aqueles poucos que o seguiram, posto na esperança da grandeza e liberalidade del-Rei, de quem tanta oferta em palavras e tanta honra e mercê em obras tinha recebido. A qual confiança o não enganou: porque, lembrando a el-Rei quanta 102 verdade sempre achou em Bemoí em tempo de sua prosperidade, e também com desejo de o trazer per tais benefícios ao bautismo, causou recebê-lo com tanta honra e aparato; porque também grande consolação é aos tristes a facilidade com que os recebem na primeira entrada de seu requerimento. E sendo ele já dentro na sala onde el-Rei o estava esperando (como dissemos) saiu dous ou três passos do estrado com o barrete um pouco fora, Bemoí, segundo seu costume, tanto que se viu ante el-Rei, com todolos seus se debruçou aos seus pés, mostrando que tomava a terra debaixo deles e a lançava sobre sua cabeça, em sinal de humildade e obediência; o qual el-Rei fez alevantar, e tornando-se ao estrado, encostou-se em pé a υa cadeira, mandando ao intérprete que lhe dissesse que falasse. Bemoí, como era homem grande de corpo, bem disposto e de bom aspecto, e estava em idade de quorenta anos, com υa barba crescida e bem posta, representava não homem de suas cores, mas um príncipe a quem se devia todo acatamento, com a qual majestade de pessoa começou e acabou sua oração, com tantos afectos de provocar a se condoerem do caso miserável de seu desterro, que somente vendo estas notícias naturais, elas per si mostravam o que o intérprete depois dizia. E acabando de relatar seu caso, como podia fazer um natural orador, pondo todo o remédio dele na grandeza del-Rei, em que se deteve um bom pedaço, respondeu-lhe em poucas palavras tanto a seu 96 contentamento, que logo este prazer deu a ele, Bemoí, outro rostro, outro ânimo, outro ar e graça. E, espedindo-se del-Rei, foi bejar a mão à Rainha e ao Príncipe, a quem disse poucas palavras, no fim das quais pediu que fossem seus intercessores ante el-Rei; e di foi levado a seu apousentamento, per toda aquela fidalguia que o acompanhava.

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96 31v 102 Capítulo VII. Como o Príncipe Bemoí recebeu água de baptismo e houve nome Dom João Bemoí, e das festas que el-Rei por sua causa mandou fazer; e assi foram feitos cristãos todolos outros que vieram em sua companhia. 32 Passado este dia da chegada de Bemoí, depois per muitas vezes esteve el-Rei com ele em prática particular, da qual ficou tam contente como da pessoa: porque assi no que dezia e perguntava como no que respondia ao que era perguntado, mostrava ser dotado de mui claro intendimento. Entre as quais cousas, as de que el-Rei muito lançou mão, foram as que contava dalguns reis e príncipes daquelas partes, principalmente de um que ele chamava Rei dos povos moses, cujo estado começava 103 além de Tungubutu e estendia contra o Oriente, o qual não era mouro nem gentio, e que em muitas cousas se conformava em costumes com o povo cristão, donde el-Rei vinha a conjecturar que o dezia por o Preste João, que ele tanto desejava descobrir, as quais cousas muito aproveitaram pera o bom despecho de Bemoí, polos fundamentos que sobre elas fazia. E a primeira em que el-Rei entendeu de seus negócios, foi entregá-lo a teólogos que lhe praticassem as cousas da Fé, pera estar mais disposto pera receber o baptismo; o qual sacramento recebeu a três de Novembro deste ano de quatrocentos oitenta e nove, υa noite em casa da Rainha, sendo el-Rei e ela, o Príncipe, o Duque de Beja, um comissairo do Papa, o Bispo de Tânger e o de Ceita, que fez o ofício, padrinhos dele e doutros dous fidalgos dos principais de sua companhia, e houve nome Dom João, por amor del-Rei. Ao outro dia, sobre esta honra de alma que é eterna, houve outra temporal, fazendo-o el-Rei cavaleiro e dando-lhe armas de nobreza: υa cruz de ouro em campo vermelho, e as quinas de Portugal por orla; e ele, em retorno desta honra, fez menage a el-Rei de todo o estado que ganhasse e tevesse, e per o comissairo do Papa lhe mandou sua obediência em forma, como qualquer príncipe cristão. Depois dele receberam baptismo vinte quatro homens fidalgos dos seus, pera o qual auto se armou de tapeçaria a Casa dos Contos da dita vila; e enquanto duraram estas honras do baptismo de Dom João Bemoí e dos seus, sempre houve festas de canas, touros, momos e grandes serões, polo contentamento 97 que el-Rei tinha de sua conversão. Ele, Dom João Bemoí, também a seu modo quis fazer as suas: porque como trazia alguns homens grandes cavalgadores, diante del-Rei corriam a carreira em pé, virando-se e assentando-se, e tornando-se levantar, tudo em υa corrida; e com a mão no arção da sela saltavam no chão, correndo a toda força do cavalo, e tornavam-se à sela tam soltos como o podiam fazer a pé quedo. E da mesma sela a grã correr apanhavam quantas pedras lhe punham ao longo da carreira; e outras muitas desenvolturas mui aprazíveis de ver, em que mostravam serem mais soltos a cavalo e a pé do que eram os alarves de África, que se prezam muito destas solturas. Passados estes dias de festa, começou el-Rei entender em o despacho pera o tornar a restituir em seu estado, sobre que houve alguns conselhos, em que se assentou mandar el-Rei com ele vinte caravelas armadas de gente e munições, assi pera sua restituição como pera υa fortaleza que se havia de fazer à borda do rio Sanagá. E porque a causa del-Rei mandar fazer esta fortaleza não foi por ser tam necessária a restituição deste príncipe, quanto por outro fundamento que fez depois que dele soube o estado da terra e o curso do rio que té aquele tempo foi havido por um braço do Nilo,

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104 primeiro que mais procedamos na armada, convém tratarmos dele e assi desta província de Jalofe, porque se saiba com quanto fundamento de prudência el-Rei fez tam grande aparato e despesa.

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97 32 104 Capítulo VIII. Em que se descreve a terra que jaz entre os dous rios Sanagá e Gâmbia, e do curso deles. E como Pero Vaz Bisagudo, que levou o Príncipe Dom João Bemoí, o matou, mal-dizendo que armava traição, a qual morte el-Rei muito sentiu. Esta terra que per comum vocábulo dos naturais é chamada Jalofe, jaz entre estes dous notáveis rios - Sanagá e Gâmbia - os quais, pelo comprido curso que trazem, recebem diversos nomes, segundo os povos que os vezinham. Porque onde o chamado Sanagá per nós se mete no Mar Oceano ocidental, os povos jalofos lhe chamam Dengueh, e os tucurões mais acima Maio, e os seragolés, Cole; e quando corre per υa comarca chamada 32v Bagano, que é mais oriental, chamam-lhe Zimbalá, donde às vezes por causa dele à comarca dão este mesmo nome; e no reino de Tungubutu lhe chamam Iça. E posto que corre per muita distância de terras, vindo das fontes orientais dos lagos a que Ptolomeu chama Chelonides, Nuba e Rio Gir, quási per direito curso, té se meter no Oceano, em altura de quinze graus e meio, não lhe sabemos o nome que lhe os outros povos dão. Acerca de nós geralmente é chamado Sanagá, do 98 nome de um senhor da terra com quem os nossos, no princípio do descobrimento dele, tiveram comércio, ca lhe não sabiam chamar senão o Rio de Sanagá. E sendo rio que vem de tam longe, não traz tanto peso de água, nem a maré sobe tanto per ele como o rio Gâmbia, de Cantor. Faz algυas ilhas, as mais delas povoadas de animais e imundícias por sua aspereza, e em certos lugares se não leixa navegar, com penedia que o atravessa, principalmente obra de cento e cinquenta léguas da barra, onde se ele chama Cole, porque ali faz quási outras cataratas como as do Nilo. Ao qual lugar os moradores chamam Huaba, e per elas corre tam teso e assi está cortada a pique a penedia sobre a terra onde ele cai com aquela fúria, que podem passar per baixo a pé enxuto ao longo desta agrura da penedia. Isto, porém (segundo dizem os da terra), se pode fazer quando venta de cima, e debaixo não, porque então o vento rebate as águas contra a penedia, de maneira que empedem esta passagem; e a este lugar chamam os negros Burto, que quere dizer arco, polo que faz o jorro de água no ar, enquanto não cai no chão. 105 Metem-se neste rio outros mui cabedais em água, que por virem per despovoado de gente e multidão de animais, entre os povos com que temos comércio, não tem nome, nem menos acerca dos nossos, peró que em as távoas da nossa Geografia situemos seu curso em graduação. Entre alguns rios que nele entram, é um que vem da parte do Sul das terras a que os negros propriamente chamam Guiné, ou Geni (como abaixo veremos), o qual por vir per lugares barrentos traz suas águas um pouco vermelhas, e ele, Sanagá, tem as suas dali pera acima brancas; e ao lugar onde se ambos ajuntam chamam-lhe os povos saragolés gufitembó, que quere dizer branco e vermelho. Dizem eles que são ambos competidores e contrairos, porque bebendo das águas de um, e logo do outro, fazem arravessar, o que cada um per si só não faz, nem menos depois que se ajuntam e correm. O outro rio Gâmbia, do resgate de Cantor, não tem tanta variação em nome, porque quási todo ele, té o Resgate do Ouro onde vão os nossos navios, que será da barra, por razão das suas voltas, cento e oitenta léguas, e per linha dereita oitenta, chamam-lhe os negros da terra Gambu e nós Gâmbia. A maior parte do qual corre tortuoso, em voltas meúdas, principalmente do Resgate pera baixo, té se meter no mar, em altura de treze graus e meio, ao Sueste do cabo a que chamamos Verde. Traz maior peso de água que o Sanagá e muito mais profunda, porque se metem nele alguns rios bárbaros mui cabedais, que tem seu nascimento no sertão da terra chamada Mandinga, e as

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principais fontes suas são as do rio a que Ptolomeu chama Nieger e a lagoa Líbia. Em vir tortuoso, quebram as águas de maneira que não vem com ímpeto contra os nossos navios, quando 99 sobem per ele, e quási a meio caminho, ante que cheguem ao resgate, faz υa ilheta a que os nossos, pelos muitos elefantes que ali havia, lhe chamam dos Elefantes. Acima do Resgate do Ouro, tem υa pedra, que, por totalmente impedir a passagem, este Rei Dom João, de que falamos, mandou lá oficiais pera a quebrarem, o que se não fez por ser cousa mui custosa e de grande trabalho. Ambos estes rios Gâmbia e Sanagá, geralmente criam grã variedade de pescado e animais aquáticos, assi como cavalos a que chamamos marinhos, e mui grandes lagartos que em figura e natureza são os crocodilos do Nilo, celebrados per tantos escritores, e também serpentes que tem, mas pequenas e não tam monstruosas como pintam e fabulam as gentes. Animais terrestres que bebem as suas águas, é cousa sem número a multidão e variedade deles, porque assi andam os elefantes em manadas, como cá vemos os gados. Gazelas, porcos, onças e todo género de veação, sem nome entre nós, aqui se mostrou a natureza fecunda e pródiga em a multidão e variação dela. A terra que jaz entre estes dous rios faz um notável cabo, a que os nossos chamam Verde e Ptolomeu Arsinário Promontório; e posto que ele o 106 situe em largura de dez graus e dous terços, 33 e per nós seja verificado em catorze e um terço, segundo a figura dele, e as ilhas que ao Ocidente lhe estão opósitas (a que nós por razão dele per nome geral chamamos do Cabo Verde, e ele Hespéridas) não pode ser outro; e também por ficar entre dous notáveis rios, a que ele chama Darago , que é Sanagá, e Stachiris, Gâmbia, os quais na entrada do mar quási imitam a verdade que nós ora temos, peró no curso de cada um desfaleceu, pois lhe dá o nascimento mui curto e eles vem das fontes que acima dissemos, aos quais Ptolomeu não dá saída, como mostra a sua Távoa. Geralmente a terra que jaz entre eles estendendo-se contra Oriente, até cento e setenta léguas, se chama Jalofe, e os povos jalofos, posto que em si compreendem muito mais gerações das que Ptolomeu terminou dentro nas correntes de Darado e Stachio. A terra em si é grossa e mui fértil na criação de todalas cousas, e assi forte, principalmente a que leixam regada estes dous rios no tempo de suas cheas, que quando vem no verão com a força do sol faz greta que podem nela enterrar um cavalo. E pera dar os milhos de maçaroca a que chamamos zaburro, que é o comum mantimento daqueles povos, porque lhe possa nacer, depois de limpo o cisco que leixou o enxurro, lançam a semente sem mais lavrar, e com υa tona de area per cima o cobrem. Porque, ficando enterrado com a terra, faz υ[a] côdea per cima tam dura, que a quentura do sol aperta, com a muita humidade debaixo, que não leixa sair a semente acima, o qual impedimento lhe não faz a area; e basta, pera a corrupção e criação da semente, o lastro da terra que tem 100 debaixo mui húmido das águas passadas e os grandes orvalhos da noite que traspassam a area. Trigo e outras sementes que temos nestas partes não usam delas, nem parece que o clima as consentiria que viessem a madurecer, por serem terras mui húmidas, principalmente as vezinhas a Gâmbia. Somente em as terras que habitam os povos saragolés, em algυas várzeas já vezinhas aos desertos, colhem algum trigo mais hortado à enxada que lavrado com arado, muito mais grosso e fermoso que o de Espanha (segundo eles dizem). Este rio Sanagá, per a divisão nossa, é o que aparta a terra dos mouros dos negros, posto que ao longo de suas águas todos são mestiços, em cor, vida e costumes, por razão da cópula, que, segundo costume dos mouros, toda mulher aceitam. Peró, quanto à calidade da terra, parece que a natureza lançou aquele rio entre ambas como marco e divisão, porque, a que jaz da parte do Norte, que propriamente os mouros habitam, começando no Mar Oceano ocidental, 107

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em largura de cem léguas, e às vezes mais e menos, à maneira de υa faixa de que o rio Sanagá é a ourela, se vai estendendo contra Oriente, té ir beber nas águas do Nilo, e tomando ali algυa humidade da corrente delas, torna com aquela secura e esterilidade que leva té dar consigo em as águas salgadas do Mar Roxo. O qual deserto não é assi tam estéril per todo, que algυa parte não seja povoado em empolas, que são os abases, de que escreve Estrabo, e o mais é pastado de muitos alarves que per ele andam em cabildas, e por razão das calidades que tem, lhe dão diferentes nomes. Porque a terra que é toda area meúda, sem cousa verde, a esta chamam eles Sahel, à que é coberta dalgυa erva ou mata como de charneca pobre, que é a parte que eles chamam Azagar, e à que é de pedregulho meúdo, em modo de grossa area, Saará. E a esta causa, os mais dos moradores desta triste terra se achegam a este rio Sanagá, e outros andam buscando as empolas que dissemos, que lhe ficam em lugar de pomares. Por razão do qual rio, a terra mais povoada é a que jaz ao longo dele onde há algυas cidades, a principal das quais é Tungubutu, que está três léguas afastada dele da banda do Norte, onde, por causa do ouro que vem ter a ela da grande província de Mandinga, concorrem muitos mercadores do Cairo, de Tunes, de Ourão, Tremecém, Fez, Marrocos e doutros reinos e senhorios de mouros. E assi concorriam a outra cidade que está nas correntes deste rio, chamada Gená, a qual em outro tempo era mais célebre que Tungubutu; e ou que ela desse nome ao reino, ou que o reino desse a ela, daqui se chama acerca de nós toda aquela região de Sanagá por diante Guiné, posto que entre os negros uns lhe chamam Gená, outros Jani, e outros Geni. E como está mais 33v ocidental que Tungubutu, geralmente concorriam a ela 101 os povos que lhe são mais vezinhos, assi como os saragoléis, fulos, jalofos, azanegues, brabaxis, tiguraris, ludaias, da mão dos quais, per via do Castelo de Arguim e de toda aquela costa, vinha o ouro a nossas mãos, e outros povos do interior de Mandinga acudiam ao Resgate de Cantor, a que vão os nossos navios, per o Rio Gâmbia. E não trazendo as areas destes dous notáveis rios Sanagá e Gâmbia tanto ouro como as do nosso Tejo e Mondego, está bem trocada a opinião dos homens, que menos estimam o que tem acerca de si, que o que esperam per tantos perigos e trabalhos como passam em o ir buscar a estes dous rios bárbaros. E porque destas e doutras cousas de que copiosamente tratamos em a nossa Geografia, el-Rei Dom João, de que falamos, era já informado ante da vinda de Bemoí, e ele o confirmou mais nelas, pareceu-lhe cousa mui proveitosa a seu estado e a bem de seus naturais, fazer fortaleza neste Rio Sanagá, como porta per que, com ajuda destes povos jalofos, que ele esperava em 108 Deus, per meio deste Príncipe Dom João Bemoí, se converteriam à fé (como se converteu o reino do Congo), podia entrar ao interior daquela grã terra, té chegar ao Preste, de quem ele tanto fundamento fazia pera as cousas da Índia. Também como per o Castelo de Arguim, Resgate de Cantor, Serra Lioa e Fortaleza da Mina, grande parte da terra de Guiné era sangrada do ouro que em si continha, com esta fortaleza do rio Sanagá ficava sangrada do outro ouro que corria às duas feiras que dissemos, por ambas estarem situadas ao longo das águas dele, com que não iria ter às mãos dos mouros, os quais o vinham buscar per tantos desertos em cáfila de camelos, que muitas vezes ficavam enterrados em as areas da Líbia, per que caminhavam. Assi que, com estes fundamentos e outros de muita prudência, mandou el-Rei fazer a armada de vinte caravelas que dissemos, a capitania da qual deu a Pero Vaz da Cunha, de alcunha Bisagudo, em que foi muita e luzida gente, assi de armas como oficiais, pera obra de fortaleza; e pera a conservação dos bárbaros, alguns religiosos, o maioral dos quais era mestre Álvaro, frade da Ordem de São Domingos e seu confessor, pessoa mui notável em vida e letras. Mas parece que ainda aqueles povos não tinham merecido a Deus o mérito do bautismo, porque, entrando Pero Vaz em o rio Sanagá com aquele grã poder que espantou a todolos bárbaros da terra, estando já na obra da fortaleza (a qual, segundo dizem, foi elegida em mau lugar, por razão

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das cheas do rio), dentro em o seu navio matou Bemoí às punhaladas, dizendo que lhe ordenava traição. Alguns afirmam que Pero Vaz neste caso foi enganado, e que mais condenou à morte Dom João Bemoí começar algυa gente adoecer por ser lugar doentio, que ele, Pero Vaz, mais temeu que a traição, como quem havia de ficar na fortaleza, depois que fosse feita. 102 Com a morte do qual príncipe, Pero Vaz se tornou a este reino, do qual caso el-Rei ficou mui descontente, e per aquela vez cessaram os seus fundamentos da fortaleza que mandava fazer naquele rio Sanagá, de que hoje (segundo alguns dos nossos dizem) ainda se mostram parte das suas paredes.

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102 33v 109 Capítulo IX. Como el-Rei mandou o embaixador e moços que vieram de Congo em três navios, de que era capitão Gonçalo de Sousa, fidalgo de sua casa, em companhia do qual iam religiosos e sacerdotes pera a conversão da gente daquela parte; da obra que fizeram, té a tornada dos navios. A este tempo passava de dous anos, que era feito cristão o embaixador del-Rei de Congo e os moços que com ele vieram. E porque já entendiam bem a língua de que eles principalmente haviam de servir na conversão del-Rei e de todo o reino de Congo, e também em as cousas da Fé estavam doutrinados, segundo a capacidade de seu intendimento, mandou el-Rei que pera esta passagem deles e dos religiosos que haviam de ministrar as cousas desta 34 conversão, se fizessem prestes três navios já na fim do ano de quatrocentos e noventa. A capitania-mor da qual viagem deu a Gonçalo de Sousa, fidalgo da sua casa, e dos outros dous navios eram capitães Fernão do Avelar e Afonso de Moura, também cavaleiros da sua casa. Os quais, porque, ao tempo que partiram de Lisboa, faleciam nela de peste que havia anos que andava, não se poderam tanto resguardar que não fossem iscados dela, de maneira que, no Cabo Verde, faleceu Gonçalo de Sousa e Dom João de Sousa, embaixador, e o escrivão da armada e outras pessoas, que fez grande confusão em todos, temendo que poucos e poucos fossem morrendo todos per esse mar e também pola diferença que entre eles houve - qual dos capitães sucederia naquele cargo. E como os pilotos eram Pero de Alenquer e Pero Escobar, pessoas mui estimadas por razão de seu cargo, e cada um favorecia seu capitão, e com eles se ia toda a gente do mar, veo o caso a se poer em juízo diante de Fernão de Góis, capitão da Ilha Santiago, polo Duque Dom Diogo. Finalmente, per favor dele, e por tirar escândalo entre os outros, vieram a fazer capitão-mor a Rui de Sousa, sobrinho de Gonçalo de Sousa, defunto, posto que fosse naquela armada sem cargo algum, somente em companhia de seu tio. Com a qual eleição todalas diferenças se acabaram; e tornando a sua derrota caminho de Congo, a primeira terra que tomaram dele, foi dum senhorio a que chamavam Sono, de que era senhor um tio del-Rei. O qual, como soube da chegada 103 dos nossos e do que traziam, movido do espírito de Deus, acompanhado com grande número de vassalos, estrondo de buzinas, tabaques e outros tangeres a seu modo por festa, veo receber Rui de Sousa, mostrando o contentamento de sua vinda, e do que trazia a el-Rei, seu sobrinho. E per meio de um dos moços doutrinados, pedia logo que lhe 110 mandasse dar o bautismo, porque, como era homem velho, e que na tardança de irem a el-Rei e tornarem a ele podia correr risco de morte, não queria perder aquela mercê de Deus que tinha em casa. Rui de Sousa, vendo a instância do seu requerimento, deu logo ordem com que os religiosos em meio de um campo mandaram fazer υa grande casa de rama, que os mesmos criados de Mani Sono cortaram, onde se armaram três altares com ricos ornamentos que levavam pera este santo auto, sendo a ele presentes todolos filhos que Mani Sono tinha, e os principais da terra. Aos quais, ante que o bautizassem, ele, Mani Sono, fez um arrazoamento, não de homem bárbaro, mas daquele a quem o espírito de Deus movia os beiços, representando o error em que té li esteveram, e a mercê e piadade que Deus com ele obrava em lhe mandar a sua casa doutrina de salvação; e que se ele tomava a salva dela a el-Rei, seu sobrinho, era por ser tam velho, com que ficava desculpado ante ele, e que também em sua companhia havia de receber bautismo aquele filho que tinha pela mão,

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por ter tam pouca idade, que per si o não podia pedir. Ouvindo isto seu filho maior, que também na vontade estava disposto pera receber o bautismo, começou de se queixar com seu pai, dizendo que não lhe negasse aquela mercê de o acompanhar naquela honra que recebia de Deus, pois da herança que tinha na terra o leixava por seu herdeiro, e não quisesse antepoer a ele aquele menino em outros maiores bens. Finalmente, passadas muitas razões entre o filho e o pai, ele o satisfez, dizendo que, assi convinha por então, pola obediência que deviam a el-Rei, seu sobrinho, a cuja instância e requerimento el-Rei de Portugal mandava aquelas cousas que viam. Acabando suas razões, que em seu modo eram de homem alumiado, se entregou em mãos dos sacerdotes que o bautizaram, e houve nome Manuel, por lhe dizerem que assi se chamava o maior senhor do reino, que era irmão da Rainha e primo com-irmão del-Rei, e o filho houve nome António. Os quais depois, pola nobreza do seu sangue, tiveram o dom, que responde em significado a este vocábulo que anda entre eles - mani, que quere dizer senhor, e, junto a Sono, nome daquela comarca de terra, quando dizem Mani Sono, se entende o Senhor de Sono, porque todalas nações tem seus termos de nobreza e honra, causa dos maiores trabalhos da vida. O qual bautismo foi o primeiro que naquelas partes da idolatria se fez, dia de Páscoa, a três do mês de Abril 104 do ano de quatrocentos 34v noventa e um, sendo a ele presentes passante de vinte cinco mil homens vassalos deste Príncipe de Sono, Dom Manuel, que com ele estavam oferecidos a receber o bautismo, se o ele não empedira por as cousas que deu a seu filho. E como a nova deste bautismo chegou a el-Rei de Congo, que estava dali cinquenta léguas, foi tam grande o contentamento que teve desta obra, que, pera exemplo de todos, logo, com as graças que mandou a seu tio, também, segundo seu uso, lhe mandou υa doação de mais trinta léguas de costa, e dez pelo sertão, em acrescentamento de seu estado. Com o qual sinal de contentamento, que 111 el-Rei mostrou polo que ele fez, se atreveu ao que lhe aconselhavam os religiosos, que era queimar quantos ídolos havia em sua terra, com auto solene. E os dias que os nossos ali esteveram, enquanto não vinha recado del-Rei pera partirem, ouvia Dom Manuel missa e ofícios que os sacerdotes diziam naquela igreja de rama, mostrando ele, em o modo de sua adoração, sinais da obra que nele tinha feito o sacramento do bautismo. Porque, como homem que desejava sua salvação, sempre perguntava das cousas de Deus, e como lhe poderia ser aceito naqueles derradeiros dias de sua vida em que estava, pois o principal da sua idade gastara em serviço do Demónio. E trazia tanto o tento na doutrina que lhe davam e na veneração das cousas de Deus, que acertando uns seus criados fazer à porta da igreja um arroído, os mandava matar, por o pouco acatamento que lhe teveram, se os religiosos o não empediram, por não dar causa a que a gente se escandalizasse, por estes culpados serem dos principais da terra. Vindo o recado del-Rei pera irem a ele, leixou Rui de Sousa a gente necessária pera guarda dos navios, e com a outra se partiu pera a cidade onde ele estava, indo em sua companhia um capitão do Príncipe Dom Manuel com duzentos homens de sua guarda, e outros que serviam de levar à cabeça toda a fardagem dos nossos, entre os quais havia compitência a quem levaria as cousas que serviam no altar, a que eles chamavam santas. Sendo Rui de Sousa em meio caminho da cidade de Ambasse Congo, onde estava el-Rei, veo ter com ele um capitão seu, acompanhado de muita gente, e mais adiante outro; e no dia de sua entrada, duas léguas da cidade, vieram outros três já em mais ordenança. Ca estes vinham em três batalhas, armados a seu modo, com grande estrondo de atabaques, vozinas e outros bárbaros instrumentos, assi ordenados em fieiras e em modo de cantar, que pareciam virem na ordem das procissões da invocação e prezes dos santos, cantando três ou quatro um verso, e o corpo de toda a outra gente lhe respondia, assi entoadamente, que se deleitavam os nossos em os ouvir, e de quando

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em quando, davam υa grita que parecia romperem os ares; as palavras do 105 qual canto eram louvores del-Rei de Portugal por as cousas que mandava ao seu Rei. Tornando estes capitães na ordem que vinham, e em meio de si aos nossos, foram levados ante el-Rei, que os estava esperando em um grande terreiro dos seus paços, tam coberto de povo que com grande trabalho a gente dos capitães podia fazer lugar pera que os nossos chegassem a el-Rei. O qual, em um cadafalso de madeira, tam alto que podia ser visto de todalas partes, estava assentado em υa cadeira de marfim com algυas peças de pau, lavrada ao seu modo mui bem; os vestidos do qual, da cinta pera acima, eram os coiros da sua carne mui pretos e luzidios, e per baixo se cobria 112 com um pano de damasco, que lhe dera Diogo Cão, e no braço esquerdo um bracelete de latão, e neste ombro um rabo de cavalo guarnecido, cousa tida entre eles por insígnia real, e na cabeça um barrete alto como mitra, feita de pano de palma muito fino e delgado, com lavores altos e baixos, a maneira que acerca de nós é a tecedura de cetim avelutado. Rui de Sousa chegado a ele, fez-se a cortesia ao modo deste nosso reino, e el-Rei também a sua, segundo o seu - pondo a mão direita no chão, como que tomava pó dele, e correu esta mão pelos peitos de Rui de Sousa, e depois pelos seus, que era a maior cortesia que entre eles se podia fazer. Acabado este auto da chegada de Rui de Sousa, com algυas palavras que disse a el-Rei, como ele estava desejoso de ver as cousas santas que lhe traziam pera o auto do seu bautismo, quis logo que diante daquele povo lhe fossem mostradas, pera 35 que todos tomassem sabor e gosto na vista delas, e o seguissem em seu propósito. A qual demostração se fez per mãos dos religiosos, tirando peça a peça com grande reverência e acatamento. E porque, quando vieram amostrar υa cruz, todolos nossos fizeram aquela adoração de latria que se lhe deve, por seu sinificado, que é Cristo Jesu, estava el-Rei com tam bom tento em quantas continências via fazer aos nossos, e os seus no que ele fazia, que quási juntamente cristãos e pagãos, ao alevantar dela, se poseram em giolhos. Finalmente, acabando de apresentar todas estas peças, sobre as quais ele fez muitas perguntas, e assi sobre as que lhe el-Rei mandava pera sua pessoa, recolheu-se da vista daquela multidão de povo pera os seus paços, que eram de madeira lavrada no cabo daquele grã terreiro, onde outra vez com sua mulher, filhos e alguns fidalgos mais aceitos, quis muito de vagar ver estas peças. E já quando lhas mostraram esta segunda vez, assi lhe ficou na memória o que os religiosos diziam de cada υa, que ele mesmo declarou à Rainha muitas cousas da significação delas, e ambos receberam as que vinham pera suas pessoas. Na entrega das quais e declaração das outras da Igreja, por que ele perguntava mui particularmente, se passou todo o dia e bom pedaço da 106 noite, em que espediu os nossos, os quais foram levados per um seu capitão ao lugar onde os tinham apousentados. Rui de Sousa com os sacerdotes e religiosos de que o maioral deles era Frei João, da Ordem de São Domingos, passados os primeiros dias de sua chegada, ordenaram que se fizesse υa igreja de pedra e cal, segundo lhe per el-Rei Dom João era mandado, pera a qual obra traziam seus oficiais. E ainda que no sítio da cidade não havia pedra, deu el-Rei cuidado a um seu capitão, que com toda sua gente donde quer que achasse trouxesse a necessária; e a outro deu da madeira, repartindo o trabalho per todos, pera se fazer com mais brevidade. De maneira que, chegando os nossos à cidade Ambasse Congo, 113 a vinte nove dias de Abril, a três de Maio foi posta a primeira pedra e acabou-se o primeiro de Junho, cujo orago é de Santa Cruz, em memória da festa da Invenção da Cruz, que a Igreja soleniza neste dia em que esta se começou a fundar; a qual depois foi Sé Catedral, com bispo da mesma

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gente. E porque, quási em chegando os nossos, veo nova a el-Rei que os povos mundequetes, que habitam certas ilhas que estão em um grande lago donde sai o Rio Zaire, que corre per este reino de Congo, eram rebelados e faziam muito dano em as terras a eles comarcãs, a que compria acudir el-Rei em pessoa, foi causa que se bautizasse el-Rei, não com aquela solenidade que ele tinha ordenado depois que a igreja fosse feita. O qual sacramento pera sua salvação recebeu no próprio dia que se pôs a primeira pedra dela. E por el-Rei Dom João ser autor desta obra, quis ele que lhe fosse posto o seu nome - Joane -, sendo com ele bautizados seis principais fidalgos, dos que haviam de ir àquela guerra, e juntas mais de cem mil almas, que eram vindos, assi por causa dela, como da chegada dos nossos. Pera a qual guerra levou υa bandeira com υa cruz que lhe Rui de Sousa entregou, em virtude do qual sinal lhe prometeu que havia de vencer seus imigos; a qual bandeira lhe mandava el-Rei, que era de Santa Cruzada, que lhe concedera o Papa Inocêncio VIII pera a guerra dos infiéis. A Rainha, vendo que el-Rei se partia e que Frei João, o principal dos religiosos, era falecido, e outros estavam doentes por logo os apalpar a terra, começou de se queixar a el-Rei, pedindo-lhe que houvesse por bem, ante de sua partida, ela ser bautizada, porque esperar que viesse o Príncipe, que estava na frontaria dos imigos, como ele leixava ordenado, dizendo que a este tempo seria já a igreja acabada, era este termo mui comprido e temia falecerem os ministros deste sacramento, segundo já começavam. El-Rei, vendo quanta razão ela tinha deste requerimento, houve por bem que fosse bautizada, e poseram-lhe nome Lionor, como a Rainha de Portugal, mulher del-Rei Dom João, com que ambos, marido e mulher, ficando cristãos, ficaram 107 com o mesmo nome que tinham estes dous cristianíssimos príncipes conjuntos per matromónio e sangue, como netos que eram del-Rei Dom Duarte e autores desta Cristandade. Partido el-Rei pera aquela guerra que o apressava, em a qual, segundo diziam alguns dos nossos que lá foram, seriam juntos passante de oitenta mil homens, mais levemente houve vitória com a fé e sinal que levava, do que foi o apercebimento de sua ida. 35v E tornando à cidade, espediu-se Rui de Sousa pera este reino, leixando-lhe pera a conversão dos povos Frei António, que era a segunda pessoa depois de Frei João, e outros quatro frades, e assi alguns homens leigos pera os acompanharem, e outros pera entrarem o sertão da terra com alguns naturais, como el-Rei Dom João mandava, pera descobrir o interior daquele grã reino e passarem além do grande lago que dissemos.

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107 35v 114 Capítulo X. Como entre el-Rei Dom João de Congo e seu filho, o Príncipe Dom Afonso, houve algυas diferenças que se acabaram per falecimento do dito Rei. E ficou por herdeiro pacífico do reino este Príncipe Dom Afonso, o qual té fim de seus dias fez obras de cristianíssimo príncipe. Partido Rui de Sousa pera este reino, e o Príncipe, filho del-Rei Dom João de Congo, vindo da frontaria dos imigos onde estava, sendo já a igreja acabada, foi ele bautizado com muitos fidalgos, assi dos que andavam com ele como outros que a este auto eram vindos, e por amor do Príncipe Dom Afonso, filho del-Rei Dom João de Portugal, houve ele o mesmo nome. Mas como o Demónio, com estas obras de se baptizar cada dia muita gente, ele perdia grande jurdição, trabalhou por lhe ficar em penhor algυa pessoa real, per a qual podesse cobrar o perdido; e foi um filho del-Rei, chamado Panso Aquitimo, o qual não queria receber água de bautismo, afastando-se da conversão de seu pai e recolhendo pera si alguns daqueles que eram conformes a seu propósito. Acrescentou mais o Demónio a esta dureza do filho um novo estímulo a el-Rei, polo quererem obrigar os religiosos que se apartasse das muitas mulheres que tinha e ficasse com υa só, como mandava a Igreja. As quais, porque com este preceito dos religiosos perdiam o estado de mulheres de rei, tinham seus meios com outras mulheres dos privados del-Rei, que também polo que lhes tocava trabalhavam com seus maridos que aconselhassem a el-Rei que tal não consentisse. El-Rei, como era homem velho, entregue a conselho dos seus, e muito mais inclinado à vida passada, começou de se esfriar daquele primeiro fervor que mostrou, tornando a seus ritos e costumes. O Príncipe Dom Afonso, em quem as cousas da Fé estavam 108 mais firmes, como não era contente desta mudança e a todo seu poder defendia o que confessava, começaram aqueles a quem ele reprendia de indinar el-Rei contra ele, té que o lançaram de sua graça e meteram nela o filho pagão Panso Aquitimo, com fundamento que, ficando este por Rei, viviriam em seus costumes passados. E como toda a gente desta Etiópia é mui dada a feitiços, e neles está toda a sua crença e fé, disseram a el-Rei os ministros do Demónio que teciam estas obras, que soubesse certo que seu filho Dom Afonso, do cabo do reino onde estava, que eram oitenta léguas, todalas noites, per 115 artes que lhe os cristãos ensinaram, vinha avoando e entrava com suas mulheres, aquelas que lhe a ele tolhiam, com as quais tinha ajuntamento, e logo à mesma noite se tornava. E que, além desta injúria que lhe fazia, sabia tanto que secava os rios e tolhia as novidades não serem boas, tudo a fim dele não haver tanto tributo do reino como soía, pera não ter que dar àqueles que o serviam fielmente, e ele se levantar com o reino. El-Rei, com estas e outras fábulas indinado contra o filho, tirou-lhe as rendas que lhe dava pera se manter, e como disso fosse repreendido per alguns fidalgos amigos do Príncipe, dizendo serem aquelas cousas engano, por quanto seu filho de dia e de noite era visto nas terras onde estava, por se mais certificar na verdade acerca do filho, ordenou el-Rei um feitiço que se usava antre eles. Atado o qual feitiço em um pano, o mandou per um moço a υa das suas mulheres, em que ele tinha suspeita, chamada Cufua Coanfulo, dizendo da parte do Príncipe Dom Afonso, que ele lhe mandava aquele feitiço, pera se livrar da morte que lhe el-Rei ordenava, e assi a todalas outras suas mulheres. Mas ela, como estava inocente da 36

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causa por que lhe era aquele presente mandado, disse ao moço que posesse o pano no chão, e foi-se a el-Rei, notificando-lhe a oferta de seu filho e outras palavras, com que el-Rei viu sua inocência e assentou que quanto lhe diziam do filho era maldade. E di a poucos dias, não dando conta do caso a alguém, mandou vir o Príncipe e o restituiu em suas rendas com mais acrescentamento de terras; e sobre isso lhe fez υa fala púbrica, sendo presentes os movedores desta suspeita que ele tevera pera maior sua confusão, os quais logo mandou matar. Peró não tardou muito que o Demónio buscou outro novo caminho. Porque, tornando-se o Príncipe a suas terras, como ia alumiado per Deus e favorecido do pai, mandou lançar pregão que qualquer pessoa a que fosse achado ídolo em casa, que morresse por isso . O qual feito logo foi notificado a el-Rei per os contrairos do Príncipe, agravando tanto este caso, que lhe fizeram crer que andava o povo tam alvoraçado, que, se a isso não acudisse levantar-se-ia contra sua real pessoa. Chamado o Príncipe sobre este negócio à Corte, assentou ele ante perder a vida, que nesta 109 parte obedecer a seu pai, e não leixou de prosseguir na obra que era em louvor de Deus. E porque em sua companhia andava um Dom Gonçalo, dos que foram bautizados com ele, homem prudente e cristão per fé e zelo de honra de Deus, trabalhava el-Rei por o haver à mão. Mas ele com a sua prudência e o Príncipe com suas palavras, e Deus que os governava, assi ordenaram e dilataram sua ida, fingindo ora υa cousa ora outra, tudo aplicando ao serviço del-Rei e ocupações do governo da terra e arrecadação 116 de suas rendas que lhe mandavam, té que Deus quis tirar esta perseguição ao Príncipe, dando tal infirmidade a seu pai, de que faleceu . A qual morte também descansou os nossos, muitos dos quais, pola vida que el-Rei tinha e pouco fructo que com ele faziam, andavam lançados com o Príncipe, e per meio dos religiosos tinha o Príncipe convertido e bautizado grande parte do seu senhorio, a que chamam Isúndi, que era a causa de maior indinação a el-Rei e àqueles que eram tornados a seu primeiro viver. Da qual indinação o Príncipe era sabedor; e por isso, enquanto o pai foi doente, posto que fosse chamado per alguns fidalgos, que lhe davam conta como estava em termo de morte, e que seu irmão Panso se vinha chegando pera a cidade com propósito de se apoderar dela com a gente que trazia, nunca confiou nestes recados, parecendo-lhe ser esta doença fingida pera o acolherem. Porém, como foi certificado da morte del-Rei, em três dias chegou à cidade, porque já se vinha cercando a ela, depois que começaram enviar nova desta sua doença. E ante que entrasse nela, foi avisado pela Rainha sua mãe, que esta entrada fosse de noite, secretamente, sem estrondo de gente, e que quanta viesse em sua companhia, fosse pouca a pouca, com cestos na cabeça em que trouxessem suas armas, dizendo que era mantimento que vinha para ela. Feita a entrada dele per este modo, ao outro dia saiu o Príncipe ao grande terreiro dos paços, onde mandou ajuntar os principais da terra que eram na cidade e lhe fez um arrazoamento. No fim do qual, eles, segundo seu costume, primeiro que se dali mudassem, o levantaram por rei com grande festa de tangeres e gritas, de maneira que este rumor foi ouvido nos alojamentos fora da cidade onde estava seu irmão, esperando mais gente pera per força de armas se fazer rei. E quando foi certificado da causa daquele estrondo, e a pouca gente que seu irmão consigo tinha, sem mais aguardar pela gente que esperava, cometeu a entrada da cidade. Eram a este tempo com el-Rei Dom Afonso trinta e sete cristãos somente, e como homem industrioso naquele mister da guerra, e mais governado per Deus, mandou aos seus que não bulissem consigo, mas que esperassem a entrada do irmão naquele grande curral, porque ele esperava em a piadade de Deus, em que ele cria, que lhe daria vitória de seus imigos. A qual esperança lhe 110 não faleceu, porque, vinda a batalha do irmão, que foi a primeira que entrou no curral, da qual choviam frechas, foi cousa milagrosa, que com aqueles poucos que acompanhavam el-Rei, chamando todos polo Apóstolo Santiago, e ele o nome de Jesu por ajuda, nunca leixou de o invocar,

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té que esta batalha do irmão lhe virou as costas, a qual foi dar na segunda, e υa desbaratou a outra. E por Deus dar inteira vitória a este católico Rei, nesta fugida que o 117 irmão levava por um mato, foi cair em um cepo que estava armado pera algυa fera, onde tomado per aqueles que o 36v seguiam, e com ele um seu principal capitão. O qual capitão, desconfiado de sua vida, ante de chegar a el-Rei, lhe mandou pedir que polo Deus em que ele cria lhe aprouvesse que fosse bautizado ante de sua morte, ca não queria perder a alma, pois já tinha perdido o corpo; porque ele cria ser aquele o verdadeiro Deus que os homens devem adorar, porquanto, ao tempo de sua peleja, ele vira muita gente a cavalo armada que seguia um sinal tal como aquele que adoravam os cristãos, causa de todo seu estrago, por esta ser a gente que pelejava. El-Rei, sabendo a penitência deste e como pedia o bautismo, não somente lho mandou dar, mais ainda lhe perdoou, e por memória deste feito, ele e todolos de sua linhagem ficaram obrigados de varrer e alimpar a igreja e trazer água pera se bautizarem todolos pagãos. O qual penitenciado foi entregue àquele honrado e católico barão Dom Gonçalo, que muito ajudou a este Rei nas cousas da fé, e porque ao tempo que se bautizou este capitão tomou o nome dele, Dom Gonçalo, ele o fez capitão de algυa parte das suas terras em o recolhimento de suas rendas. Panso Aquitimo, irmão del-Rei, assi das feridas do cepo em que caiu, como de nojo do seu caso, faleceu em sua indinação. El-Rei, assentadas suas cousas, ficou pacífico em seu reino, posto que teve muito trabalho com alguns principais dele, que per muitas partes se rebelavam por razão da idolatria; mas Deus lhe deu sempre vitória deles. Ao qual Nosso Senhor deu tanta vida naquele estado real, que reinou cinquenta e tantos anos e faleceu em idade de oitenta e cinco, e em todo o tempo, depois que recebeu a Fé té o último dia de sua vida, mostrou não somente virtudes de cristianíssimo príncipe, mas ainda exercitou ofício de apóstolo, pregando e convertendo per si grande parte do seu povo, zelando tanto a honra de Deus, que neste exercício empregou o mais de sua vida. E pera melhor exercitar este ofício de pregador, aprendeu a ler a nossa linguagem e estudava per a vida de Cristo e seus Evangelhos, vidas dos Santos e outras doutrinas católicas que ele com algυa insinança dos nossos sacerdotes podia aprender, declarando tudo àquele seu bárbaro povo. Mandou também a este reino de Portugal filhos, netos, sobrinhos e alguns moços nobres 111 aprender letras, não somente as nossas, mas as latinas e sagradas, de maneira que de sua linhagem houve já naquele seu reino dous bispos, que, exercitando seu ofício, serviram a Deus e deram contentamento aos Reis deste reino de Portugal, a cujas despesas todas estas obras eram feitas. E por memória desta miraculosa vitória que Nosso Senhor concedeu a este Rei Dom Afonso, em a qual os seus imigos viram o sinal da cruz e a cavalaria celeste dos anjos, em companhia do Apóstolo Santiago; e assi porque em dia da Invenção da Cruz seu padre recebeu água de bautismo, e também porque, mediante este sinal que lhe el-Rei Dom João mandou (como atrás fica), ele houve grandes vitórias dos povos mundequetes, tomou por armas 118 υa cruz branca de prata florida em campo vermelho, e o chefe do escudo azul, e em cada canto do chefe duas vieiras de ouro, por memória do Apóstolo Santiago, e o pé de prata, com mais um escudo dos cinco de Portugal, que é azul, com cinco visantes de prata em aspa, etc.

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111 36v 118 Capítulo XI. Como a este reino veo ter um Cristóvão Colom, o qual vinha de descobrir as Ilhas Ocidentais, a que agora chamamos Antilhas, por ser lá ido per mandado del-Rei Dom Fernando de Castela; e do que el-Rei Dom João sobre isso fez, e depois per o tempo em diante sucedeu sobre este caso. Procedendo per esta maneira as cousas deste descobrimento, estando el-Rei o ano de quatrocentos noventa e três, a seis de Março, em Vale-do-Paraíso, junto do Mosteiro de Nossa Senhora das Virtudes, termo de Santarém, por razão da peste que andava per aquela comarca, foi-lhe dito que ao porto de Lisboa era chegado um Cristóvão Colom , o qual diziam que vinha da Ilha Cipango e trazia muito ouro e riquezas da terra. El-Rei, porque conhecia este Colom, e sabia que per el-Rei Dom Fernando de Castela fora enviado a este descobrimento, mandou-lhe rogar que quisesse 37 vir a ele pera saber o que achara naquela viagem, o que ele fez de boa vontade, não tanto por aprazer a el-Rei, quanto por o magoar com sua vista. Porque, primeiro que fosse a Castela, andou com ele mesmo, Rei Dom João, que o armasse pera este negócio, o que ele não quis fazer por as razões que abaixo diremos. Chegado Colom ante el-Rei, peró que o recebeu com gasalhado, ficou mui triste quando viu a gente da terra que com ele vinha não ser negra de cabelo revolto e do vulto como a de Guiné, mas conforme em aspecto, cor e cabelo como lhe diziam ser a da Índia, sobre que ele tanto trabalhava. E porque Colom falava maiores grandezas e cousas da terra do que nela havia, e isto com 112 υa soltura de palavras, acusando e repreendendo a el-Rei em não aceitar sua oferta, indinou tanto esta maneira de falar a alguns fidalgos, que, ajuntando este avorrecimento de sua soltura, com a mágoa que viam ter a el-Rei de perder aquela impresa, ofereceram-se deles que o queriam matar, e com isto se evitaria ir 119 este homem a Castela. Ca verdadeiramente lhe parecia que a vinda dele havia de prejudicar a este reino e causar algum desassossego a Sua Alteza, por razão da conquista que lhe era concedida pelos Sumos Pontífices, da qual conquista parecia que este Colom trazia aquela gente. As quais ofertas el-Rei não aceitou, ante as repreendeu como príncipe católico, posto que deste feito de si mesmo tevesse escândalo, e em lugar disso fez mercê a Colom e mandou dar de vestir de grã aos homens que trazia daquele novo descobrimento. E com isto o espediu. E porque a vinda e descobrimento deste Cristóvão Colom (como então alguns pronosticaram) causou logo entre estes dous Reis, e depois a seus sucessores algυas paixões e contendas, com que de um reino a outro houve embaixadas, assentos e pactos, tudo sobre o negócio da Índia, que é a matéria desta nossa escritura, não parecerá estranho dela tratar do princípio deste descobrimento e do que dele ao diante sucedeu. Segundo todos afirmam, Cristóvão Colom era genoês de nação, homem esperto, eloquente e bom latino, e mui glorioso em seus negócios. E como naquele tempo υa das potências de Itália que mais navegava, por razão de suas mercadorias e comércios, era a nação genoês, este, seguindo o uso de sua pátria e mais sua própria inclinação, andou navegando per o mar de Levante tanto tempo, té que veo a estas partes de Espanha, e deu-se à navegação do Mar Oceano, seguindo a ordem de vida que ante tinha. E vendo ele que el-Rei Dom João ordinariamente mandava descobrir a costa de África com intenção de per ela ir ter à Índia, como era homem latino e curioso em as cousas da geografia e lia per Marco Paulo, que falava modernamente das cousas orientais do reino Cataio, e

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assi da grande Ilha Cipango, veo a fantesiar que per este Mar Oceano ocidental se podia navegar tanto, té que fossem dar nesta Ilha Cipango, e em outras terras incógnitas. Porque, como em o tempo do Infante Dom Hanrique se descobriram as Ilhas Terceiras e tanta parte de terra de África nunca sabida nem cuidada dos espanhóis, assi poderia mais ao Ponente haver outras ilhas e terras, porque a natureza não havia de ser tam desordenada na composição do Orbe Universal, que quisesse dar-lhe mais parte do elemento da água que da terra descoberta, pera vida e criação dos animais. Com as quais imaginações que lhe deu a continuação de navegar e prática dos homens desta profissão que havia neste reino mui espertos com os descobrimentos passados, veo requerer a el-Rei Dom João 113 que lhe desse alguns navios pera ir descobrir a Ilha Cipango per este Mar Ocidental, não confiado tanto em o que tinha sabido (ou, por melhor dizer, sonhado) dalgυas ilhas ocidentais, como querem dizer alguns escritores de Castela, 120 quanto na experiência que tinha em estes negócios - serem mui acreditados os estrangeiros, assi como António de Nole, seu natural, o qual tinha descoberto a Ilha de Santiago, de que seus sucessores tinham parte da capitania, e um João Baptista, francês de nação, tinha a Ilha de Maio, e Jos Dutra, framengo, outra do Faial. E per esta maneira, ainda que mais não achasse que algυa ilha erma, segundo logo eram mandadas povoar, ela bastava pera satisfazer a despesa que com ele fizessem. Esta é a mais certa causa de sua impresa que algυas ficções que, como dissemos, dizem escritores de Castela, e assi Jerónimo Cardano, médico milanês, barão certo, douto e ingenioso, mas em este negócio mal informado. Porque escreve em o livro que compôs De Sapientia que a causa de Colom tomar 37v esta impresa, foi daquele dito de Aristóteles: - que no Mar Oceano, além de África, havia terra pera a qual navegavam os cartaginenses, e por decreto púbrico foi defeso que ninguém navegasse pera ela, porque com abastança e molícias dela se não apartassem das cousas do exercício de guerra. El-Rei, porque via ser este Cristóvão Colom homem falador e glorioso em mostrar suas habilidades, e mais fantástico e de imaginações com sua Ilha Cipango, que certo no que dizia, dava-lhe pouco crédito. Contudo, a força de suas importunações, mandou que estivesse com Dom Diogo Ortiz, Bispo de Ceita, e com Mestre Rodrigo e Mestre Josepe, a quem ele cometia estas cousas da cosmografia e seus descobrimentos, e todos houveram por vaidade as palavras de Cristóvão Colom, por tudo ser fundado em imaginações e cousas da Ilha Cipango, de Marco Paulo, e não em o que Jerónimo Cardano diz. E com este desengano espedido ele del-Rei, se foi pera Castela, onde também andou ladrando este requerimento em a corte del-Rei Dom Fernando, sem o querer ouvir, té que per meio do Arcebispo de Toledo, Dom Pero Gonçalves de Mendoça, el-Rei o ouviu. Finalmente recebida sua oferta, el-Rei lhe mandou armar três caravelas em Palos de Moguer, donde partiu a três dias de Agosto do ano de mil quatrocentos noventa e dous, e deste dia a dous meses e meio, que foram a onze de Outubro, viram a ilha a que os da terra chamam Guanahani, que é υa daquelas a que ora os castelhanos chamam as Ilhas Brancas dos Lucaios, e ele lhe pôs nome As Princesas, por serem as primeiras que se viram; e a esta Guanahani chamou São Salvador. E dali se passou à Ilha Cuba, e dela à que os da terra chamam Haite, e os castelhanos Espanhola. E porque ele perguntava aos moradores por Cipango, que era a ilha do seu propósito, e eles entendiam por 114 Cibau, que é um lugar das minas da Ilha Haite, o levaram a ela, onde foi mui bem recebido do Rei da terra, a que eles chamam 121

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Cacique. E porque acharam nele e na gente muita facilidade, leixou ali trinta e oito homens em um acolhimento de madeira em modo de fortaleza; e trazendo consigo dez ou doze naturais daquela terra, fez-se na volta de Espanha, e chegou a Lisboa a seis de Março do ano seguinte, como dissemos. El-Rei Dom João, com a nova do sítio e lugar que lhe Colom disse da terra deste seu descobrimento, ficou mui confuso, e creu verdadeiramente que esta terra descoberta lhe pertencia, e assi lho davam a entender as pessoas de seu conselho, principalmente aqueles que eram oficiais deste mister da geografia, por a pouca distância que havia das Ilhas Terceiras a estas que descobrira Colom. Sobre o qual negócio teve muitos conselhos, em que assentou de mandar logo a Dom Francisco de Almeida, filho do Conde de Abrantes, Dom Lopo, com υa armada a esta parte. Da qual armada, sendo el-Rei Dom Fernando certificado, per seus mensajeiros e cartas se mandou queixar a el-Rei, requerendo-lhe que a não enviasse, té se determinar se era da sua conquista, e que pera prática do caso podia mandar seus embaixadores. El-Rei, como sua tenção nesta armada que fazia era por lhe parecer que no descoberto tinha justiça, por comprazer a el-Rei Dom Fernando, mandou cessar dela, té primeiro se determinar. E pera isso mandou a Castela, logo no Junho seguinte deste mesmo ano, ao Doutor Pero Dias e Rui de Pina, cavaleiro de sua casa, estando el-Rei Dom Fernando em Barcelona, ao tempo que per el-Rei Carlos de França se fez a segunda concórdia e entrega de Perpinhão e condado de Russilhão, com que el-Rei Dom Fernando ficou tam próspero em seus negócios, que estas pessoas que el-Rei tinha mandado a ele se vieram sem conclusão, somente que ele lha enviaria per seus embaixadores. Os quais, estando el-Rei em Lisboa, vieram: a um chamavam Pero de Ayala e a outro Dom Garcia de Carvajal, irmão do Cardeal Santa Cruz. E como a tenção del-Rei Dom Fernando era dilatar este caso, té lhe virem outros navios que tinha enviado a estas ilhas que descobrira Colom, pera que, segundo a calidade da cousa, assi fazer a estima dela, começaram os embaixadores tratar em outras matérias, com tanta variadade por se deter, que, entendendo el-Rei Dom João o caso, disse que aquela embaixada del-Rei seu primo não tinha pés nem cabeça, aludindo isto a Pero de Ayala, que era manco de um pé, e a Dom Garcia, por ser homem um pouco enlevado e vão. E sem outra conclusão se tornaram pera Castela. Pera o qual caso se acabar de concluir, enviou el-Rei a Castela Rui de Sousa e seu filho Dom João de Sousa, e Aires de Almada, corregedor 38 da sua Corte, e a Estêvão Vaz, que depois foi feitor da Casa da Índia, por secretário 122 da embaixada; e vistas 115 as razões e justiça de ambos os Reis, foi assentado e determinado este descobrimento não pertencer a este reino, mas ser próprio de Castela. E por evitar escândalos e debates, que ao diante podiam recrecer, do que cada um descobrisse ou seus sucessores, demarcaram e partiram todo o Universo em duas partes iguais, per dous meridianos, um opósito ao outro, dentro dos quais ficasse a demarcação de cada um: o primeiro meridiano se lançou vinte um graus ao Ponente das Ilhas do Cabo Verde, em que se embebessem trezentas sessenta e tantas léguas pera Loeste; e deste meridiano té o outro a ele opósito pera a parte do Ponente ao respeito daqueles que vivemos em Espanha, ficasse a terra, ilhas e mares que se entre ambos tém da Coroa de Castela; e a outra parte que está no Oriente dela, também ao respeito da nossa habitação, em que se inclue toda a Índia com o grande número das ilhas orientais, ficasse à Coroa de Portugal, com todalas cláusulas e condições que se nos contratos tém. Os quais foram jurados pelos ditos Reis, e os houveram por firmes e válidos per si e per seus sucessores, e prometeram serem pera sempre guardados, sem algum outro novo intendimento. Com o qual concerto este negócio ficou na vontade destes dous príncipes por acabado, sem de um reino ao outro esta matéria ser mais praticada, té o ano de mil quinhentos vinte e cinco, que entre el-Rei Dom João, o terceiro, nosso senhor, e o Emperador Carlos Quinto, Rei de Castela, houve

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algυas diferências, por razão de υa armada que per via de Castela levou às Ilhas de Maluco, que eram deste reino, um Fernão de Magalhães, natural português, em ódio del-Rei Dom Manuel, por se ir agravado dele a Castela, como veremos em seu lugar.

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115 38 122 Capítulo XII. Do que sucedeu por causa da grande armada que el-Rei mandou em ajuda do Príncipe Dom João Bemoí, assi nas lianças e amizades que El-Rei teve com alguns senhores do sertão daquele Guiné, como no descobrimento que teve dele per alguns homens que lá mandou, té o Nosso Senhor levar desta vida. Ainda que a morte do Príncipe Dom João Bemoí (como atrás contámos) mudou todolos fundamentos que el-Rei fazia com sua ida e fortaleza que mandava fazer, não leixou de mandar que se continuassem os resgates do Rio Sanagá e Gâmbia, como ordinariamente ante deste caso em cada um ano se fazia. E per os navios que de lá vieram, soube que a armada que enviou a Sanagá não foi tam sem fructo como ele cuidava, ca, se não serviu à restituição de Bemoí, aproveitou a bem 123 dos resgates e a se melhor descobrir o sertão daquela terra do que ante 116 se podia fazer. Porque os príncipes daquelas partes, como eram costumados ver somente um ou dous navios em seus portos, em que ia gente do mar prove e mal roupada, tinham pequena opinião do estado del-Rei, posto que os línguas lhe dissessem o que havia cá no reino. Porém quando eles viram tantos navios, tanta e tam luzida gente e tamanho aparato de guerra como foi naquela armada, assi os espantou, que duns em outros per todo aquele Guiné correu aquela fama, com que alevantaram mais a estima acerca da amizade del-Rei. E como os mais deles andavam em grandes contendas e guerras entre si, vendo que el-Rei somente pera restituição de Bemoí mandava tam grossa armada, sem da parte dele, Bemoí, haver mais méritos ante ele que o bom despacho dos seus navios, quando vinham ao resgate, movidos de seu interesse, com fundamento de poderem achar em el-Rei outra tal ajuda, se lhe necessária fosse, ou com temor de o anojarem, começaram todos, cada um em seu modo, a quem o faria melhor no despacho dos navios, e enviar presentes e recados a el-Rei de grandes ofertas. Donde procedeu haver tanta entrada naquela terra, que começou el-Rei já mais seguramente per seus mensajeiros mandar recados aos maiores príncipes dela, e entrevir em os negócios e guerras que uns com os outros traziam, como amigo conhecido e estimado deles. 38v Porque neste tempo mandou Pero de Évora e Gonçalo Eanes a el-Rei de Tucurol, e assi a el-Rei de Tungubutu, e per outras vezes mandou a Mandi Mansa per via do Rio Cantor, o qual príncipe era dos mais poderosos daquelas partes da província Mandinga. Ao qual negócio foi um Rodrigo Rabelo, sendeiro de sua casa, e Pero Reinel, moço de esporas, e João Colaço, besteiro da câmara, com outros homens de serviço, que faziam número de oito pessoas. E levaram-lhe de presente cavalos, azêmalas e mulas com seus arreos, e algυas sortes de cousas estimadas entre eles, por já lá ter mandado outra vez. E de todos estes escapou Pero Reinel, por ser homem costumado andar naquelas partes, e os mais faleceram de doença, vindo este Rei fazer guerra a outro Rei dos Fulos, chamado Temalá. E assi ficou desta e doutras idas que el-Rei lá mandou tanta amizade entre os nossos e este Rei Mandi Mansa, que enviando eu, por razão do meu cargo de feitor destas casas de Guiné e Índias, o ano de mil quinhentos trinta e quatro, a um Pero Fernandes a este reino de Mandi Mansa, em nome del-Rei Dom João, o terceiro, nosso senhor, que ora reina, por razão do resgate de Cantor, estimou o Rei muito este recado que lhe foi dado da parte del-Rei, dizendo que havia em boa ventura ser-lhe enviado este mensajeiro, porque a seu avô, que tinha o seu próprio nome, fora enviado outro 124 mensajeiro doutro Rei Dom João de Portugal - tanta memória, sem terem letras, havia entre estes bárbaros das cousas

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117 del-Rei Dom João. E não somente per estes e per Pero de Évora, mas ainda per um Mem Rodrigues, escudeiro de sua casa, e per Pero de Astúniga, seu moço de esporas, que ele levava por companheiro, mandou el-Rei algυas vezes recados a el-Rei de Tungubutu, e ao mesmo Temalá, que se chamava Rei dos Fulos. O qual Temalá nestes tempos foi naquelas partes um incêndio de guerra, levantando-se da parte do Sul, em υa comarca chamada Futa, com tanto número de gentes, que secavam um rio quando a ele chegavam; e assi era esquivo e bárbaro este açoute daquela gente pagã, que assolava quanto se lhe punha diante. E como com esta ferocidade tinha feito grande dano em os amigos e servidores del-Rei, principalmente a el-Rei de Tungubutu, Mandi Mansa e Uli Mansa, mandou-lhe per algυas vezes seus recados de amizade e outros de rogo sobre os negócios da guerra que tinha com estes. Também neste mesmo tempo escreveu per um abexi chamado Lucas, que foi, per via de Jerusalém, a el-Rei dos moses, nome mui celebrado entre os negros destas partes de Guiné de que falámos, o qual príncipe naquele tempo fazia guerra a el-Rei Mandi Mansa. E segundo a notícia que el-Rei Dom João tinha deste Rei dos moses e de seus usos e costumes, havia presunção ser algum vassalo ou vezinho do Preste João ou agente dos nóbis, por ele e os seus terem modo de cristandade, ca os mais deles se nomeavam per os nomes dos apóstolos de Cristo, o qual eles confessavam, também per via da fortaleza da Mina mandou a Mahamede ben Manzugal e neto de Muça, Rei de Songo, que é υa cidade das mais populosas daquela grã província, a que nós comumente chamamos Mandinga, a qual cidade jaz no paralelo do Cabo das Palmas, metida dentro no sertão, per distância de cento quorenta léguas (segundo a situação das távoas da nossa Geografia). O qual rei mouro, respondendo a este recado del-Rei, quási como espantado de tal novidade (segundo vimos em as cartas destas mensajes que temos em nosso poder), dezia que nenhum dos quatro mil quatro centos e quatro reis de que ele descendia, ouviu recado nem viu mensajeiro del-Rei cristão, nem ele tinha notícia de mais reis poderosos que destes quatro: del-Rei de Alimaem, del-Rei de Baldac, del-Rei do Cairo e del-Rei de Tucurol. Neste mesmo tempo que el-Rei Dom João se visitava e carteava com estes príncipes bárbaros, mandou também, per via do Castelo de Arguim à cidade Uadém, que está ao Oriente dele obra de setenta léguas, assentar υa feitoria com os mouros, por ali concorrer algum resgate de ouro, ao qual negócio foram Rodrigo Reinel, por feitor, Diogo Borges, escrivão, e Gonçalo Dantes, por homem da feitoria. Onde esteveram pouco tempo, por a terra ser mui deserta e somente virem a ela os mesmos alarves que às vezes vinham ao Castelo de Arguim, que são 118 azenegues, ludaias e brabaxis, dos quais não se podia haver informação do interior da terra de que ele 125 desejava ter notícia, porque sua tenção, nestas feitorias que mandava fazer no sertão, tanto era por saber as cousas dele e poder penetrar as terras do Preste 39 João e Oriente, como por o resgate do ouro que a elas concorria. As pessoas de que se el-Rei servia neste mister de recados e descobrimento per dentro do sertão, eram os que nomeámos, e assi Rodrigo Rabelo, João Lourenço, seus criados, e Vicente Anes e João Bispo, línguas, aos quais ele agalardoava de seus trabalhos, posto que não conseguissem o fim principal a que os mandava. E não somente per estes seus naturais, mas ainda per estrangeiros, assi como abexis e alguns alarves que vinham ao Castelo de Arguim, cometia este descobrimento do sertão, por lhe não ficar cousa algυa por tentar. Tam ocupado e solícito o trazia este negócio, principalmente depois que viu e gostou de muitas cousas de que os antigos escritores não teveram notícia, falando desta parte de África, que não lhe repousava o espírito. E bem como um lião faminto a quem a caça se esconde com temor

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dele, em meio dalgυa grande e espinhosa balsa, a qual ele rodea e comete per muitas partes, e, ferido e espinhado das entradas e saídas, já cansado, se lança com o sentido e tento posto na prea escondida, assi el-Rei, cometendo per muitas partes e vezes esta grã balsa de Guiné, que té hoje se não leixou penetrar, cansado desta continuação e despesa de sua fazenda, e assi dos grandes cuidados que lhe deram os negócios do reino, principalmente no tempo das traições, se leixou algum tanto repousar deste fervor que trazia - não porém que leixassem os navios ordinários de fazer suas viagens - té que aprouve a Deus de o levar pera si, e lhe sucedeu no reino o Duque de Beja, Dom Manuel, seu primo, que (como veremos) no segundo ano de seu reinado conseguiu, na primeira viagem, a esperança de setenta e cinco anos, em que seus antecessores tinham trabalhado. Parece que assi o ordena aquela divina Providência - que uns plantem e outros colham o fructo da planta. E que isto vejamos algυas vezes, não temos licença pera julgar estes juízos de Deus, somente podemos crer que ninguém perde o mérito de suas boas obras, aqui per fama e na outra vida per glória. Portanto, pois lhe a ele aprouve que, não per ofício, mas per inclinação, não por prémio, mas de graça, e mais oferecido que convidado, eu tomasse cuidado de escrever as cousas que passaram neste descobrimento e conquista do Oriente, não permitirá que eu perca algum prémio, se deste trabalho o posso ter, trocando ou negando os méritos de cada um. A qual fé e verdade guardando nós ao que el-Rei Dom João fez em todo o discurso de sua vida acerca deste descobrimento, posto que particularmente atrás fica escrito, aqui em soma queremos notar três cousas que lhe este reino deve: υa trata de 119 louvor de Deus, outra da glória e honra da Coroa Real e outra do acrescentamento do seu património. Quanto ao louvor de Deus, que maior pode haver na sua Igreja, que per indústria deste príncipe, no mais remoto lugar da terra e na gente mais 126 safara do nome de Cristo, onde podemos crer que não chegou a pregação dos Apóstolos, hoje em Sé Catedral estarem altares cheos de oblações e sacrifícios, oferecidos a este mesmo Deus, em nome de Cristo Jesu, nossa redenção e seu filho? O qual Cristo Jesu crê, adora e confessa um Rei bárbaro per sangue e católico per fé, com tam grande povo como tem o reino de Congo, que havendo sessenta anos que está metido na Igreja de Deus per fé e bautismo, em todo este tempo sempre foi em acrescentamento que professa, com termos dele bispos, sacerdotes, teólogos e ministros da pubricação evangélica. A segunda cousa que leixou a este reino, que trata da honra e glória da sua Coroa, são duas fortalezas: υa em Arguim, acabada per sua indústria, peró que fosse começada em vida del-Rei Dom Afonso, seu padre, e a outra a de São Jorge da Mina, no meio da grande região da Etiópia. Por razão das quais fortalezas, fundadas como posse real e autual do que tinha descoberto e esperava descobrir per este caminho, acrescentou à Coroa deste reino o senhorio de Guiné que ora tem. Na qual posse, como prudente barão e animoso príncipe, por não leixar dúvidas a seus sucessores com os príncipes da Cristandade, logo se determinou com el-Rei Dom Fernando de Castela, assinando termos e demarcações do que cada um podia conquistar (como atrás fica), e mais copiosamente se contém nos assentos e pactos que se fizeram entre eles. Quanto ao acrescentamento do património real, eu não sei em este reino julgada, portage, dízima, sisa ou algum outro direito real mais certo, nem que regularmente cadano assi responda, sem rendeiros alegarem esterilidade ou perda, do que é o rendimento do Comércio de Guiné, e tal que, se o soubermos agricultar e grangear, 39v com pouca semente nos responderá com maior novidade que os reguengos do reino e liziras do campo de Santarém. E mais é propriadade tam pacífica, mansa e obediente, que sem termos υa mão em o murrão aceso sobre a escorva da bombarda e a lança na outra, nos dá ouro, marfim, cera, coirama, açúcar, pimenta, malagueta, e daria mais cousas, se tanto quiséssemos dela descobrir, como descobrimos além dos povos japões, que passam acerca de nós por antípodes e antictones.

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Finalmente dá muito e bom povo, fiel católico, serviçal, e que nos ajuda em nossas necessidades e tam animoso pera com ele conquistar as outras regiões que conquistamos, e que isto não dão, que se fosse criado na doutrina militar, de melhor vontade iria fazer gente à terra de Guiné que à terra dos suíços. E ainda mal, porque os mouros de África, e principalmente o Xerife de Marrocos, 120 neste nosso tempo em este uso de guerra se servem mais deles que nós. E não falando em as polícias ou molícias de Ásia, cuja gente é mui viciosa neste uso delas, de que Salústio já clamou, por serem causa da corrupção da modéstia e temperança do povo romano, culpa em que a maior parte da nação portuguesa ao presente jaz, mas tratando dos fructos da natureza sem humano artifício que esta terra da Etiópia dá, bem lhe podemos chamar paraíso de naturais delícias. Porque não somente dá os necessários e proveitosos à vida humana, mas ainda dá almas criadas na inocência de seus primeiros padres, que com mansidão e obediência metem o pescoço per fé e baptismo debaixo do jugo evangélico. Mas parece que por nossos pecados ou per algum juízo de Deus, oculto a nós, nas entradas desta grande Etiópia que nós navegamos, pôs um anjo percuciente com υa espada de fogo de mortais febres, que nos empede não poder penetrar ao interior das fontes deste horto, de que procedem estes rios de ouro, que per tantas partes da nossa conquista saem ao mar. Quanto à majestade da conquista da Índia e à fama que temos alcançado de tam ilustres vitórias como dela houvemos, e os títulos que a Coroa deste reino por isso conseguiu, depois do falecimento deste rei Dom João, nos livros seguintes o escrevemos.

LIVRO IV 129 Capítulo primeiro. Como el-Rei Dom Manuel, no segundo ano do seu reinado, mandou Vasco da Gama com quatro velas ao descobrimento da Índia. Falecido el-Rei Dom João sem legítimo filho que o sucedesse no reino, foi alevantado por rei (segundo ele leixava em seu testamento) o Duque de Beja, Dom Manuel, seu primo com-irmão, filho do Infante Dom Fernando, irmão del-Rei Dom Afonso, a quem per legítima sucessão era devida esta real herança, da qual recebeu posse pelo cetro dela, que lhe foi entregue em Alcácer do Sal, a vinte sete dias de Outubro do ano de nossa Redenção de mil quatrocentos noventa e cinco, sendo em idade de vinte e seis anos, quatro meses e vinte cinco dias (como mais particularmente escrevemos em a outra nossa parte intitulada Europa, e assi em sua própria crónica). E porque com estes reinos e senhorios também herdava o prosseguimento de tam alta impresa como seus antecessores tinham tomado, que era o descobrimento do Oriente per este nosso Mar Oceano, que tanta indústria, tanto trabalho e despesa, per discurso de setenta e cinco anos, tinha custado, quis logo no primeiro ano de seu reinado mostrar quanto desejo tinha de acrescentar à Coroa deste reino novos títulos sobre o senhorio de Guiné, que por razão deste descobrimento el-Rei Dom João, seu primo, tomou, como posse da esperança de outros maiores estados que per esta via estavam por descobrir. E não falando em as polícias ou molícias de Ásia, cuja gente é mui viciosa neste uso delas, de que Salústio já clamou, por serem causa da corrução da modéstia e temperança do povo romano, culpa em que a maior parte da nação portuguesa ao presente jaz, mas tratando dos fructos da natureza sem humano artifício que esta terra da Etiópia dá, bem lhe podemos chamar paraíso de naturais delícias. Porque não somente ela dá os necessários e proveitosos à vida humana, mas ainda dá almas criadas na inocência de seus primeiros padres, que com mansidão e obediência metem o pescoço per fé e bautismo debaixo do jugo evangélico. Mas parece que por nossos pecados ou per algum juízo de Deus, oculto a nós, nas entradas desta grande Etiópia que nós navegamos, pôs um anjo percuciente com ua espada de fogo de mortais febres, que nos empede não poder penetrar ao interior das fontes deste horto, de que procedem estes rios de ouro, que per tantas partes da nossa conquista saem ao mar. Quanto à majestade da conquista da Índia e à fama que temos alcançado de tam ilustres vitórias como dela houvemos, e os títulos que a Coroa deste reino por isso conseguiu, depois do falecimento deste rei Dom João, nos livros seguintes o escrevemos. 130 Sobre o qual caso, no ano seguinte de noventa e seis, estando em Montemor-o-Novo, teve alguns gerais conselhos, em que houve muitos e diferentes votos, e os mais foram que a Índia não se devia descobrir. Porque, além de trazer consigo muitas obrigações por ser estado mui remoto pera poder conquistar e conservar, debilitaria tanto as forças do reino, que ficaria sem as necessárias pera sua conservação. Quanto mais que, sendo descoberta, podia cobrar este reino novos competidores, do qual caso já tinham experiência no que se moveu entre el-Rei Dom João e el-Rei Dom Fernando de Castela, sobre o descobrimento das Antilhas, chegando a tanto, que vieram repartir o Mundo em duas partes iguais, pera o poder descobrir e conquistar. E pois desejo de estados não sabidos movia já esta repartição, não tendo mais ante os olhos que esperança deles e alguas mostras do que se tirava do bárbaro Guiné, que seria, vindo a este reino quanto se dizia daquelas partes orientais? Porém a estas razões houve outras em contrairo, que, por serem conformes ao desejo del-Rei, lhe foram mais aceitas. E as principais que o moveram foram herdar esta obrigação com a herança do reino, e o Infante Dom Fernando, seu pai, ter trabalhado neste descobrimento, quando per seu mandado se descobriram as Ilhas do Cabo Verde, e mais por a singular afeição que tinha à memória das cousas do Infante Dom Hanrique, seu tio, que fora o autor do novo título do senhorio

LIVRO IV

de Guiné, que este reino houve, sendo propriedade mui proveitosa sem custo de armas e outras despesas que tem muito menores estados do que ele era. Dando por razão final, àqueles que punham os inconvenientes a se a Índia descobrir, que Deus, em cujas mãos ele punha este caso, daria os meios que convinham a bem do estado do reino. Finalmente el-Rei assentou de prosseguir neste descobrimento, e depois, estando em Estremoz, declarou a Vasco da Gama, fidalgo de sua casa, por Capitão-mor das velas que havia de mandar a ele, assi pola confiança que tinha de sua pessoa, como por ter aução nesta ida, ca, segundo se dizia, Estêvão da Gama, seu pai, já defunto, estava ordenado pera fazer esta viagem em vida del-Rei Dom João. O qual, depois que Bartolomeu Dias veo do descobrimento do Cabo de Boa Esperança, tinha mandado cortar a madeira pera os navios desta viagem, por a qual razão el-Rei Dom Manuel mandou ao mesmo Bartolomeu Dias que tevesse cuidado de os mandar acabar segundo ele sabia que convinham, pera sofrer a fúria dos mares daquele grã Cabo de Boa Esperança, que na opinião dos mareantes começava criar outra fábula de perigos, como antiguamente fora a do Cabo Bojador, de que no princípio falámos. E assi polo 131 trabalho que Bartolomeu Dias levou no apercebimento destes navios, como pera ir acompanhando Vasco da Gama té o pôr na paragem que lhe era necessária a sua derrota, el-Rei lhe deu a capitania de um dos navios que ordinariamente iam à cidade de São Jorge da Mina. E sendo já no ano de quatrocentos noventa e sete, em que a frota pera esta viagem estava de todo prestes, mandou el-Rei, estando em Montemor-o-Novo, chamar Vasco da Gama e aos outros capitães que haviam de ir em sua companhia, os quais eram Paulo da Gama, seu irmão, e Nicolau Coelho, ambos pessoas de quem el-Rei confiava este cargo. E posto que per alguas vezes lhe tivesse dito sua tenção acerca desta viagem, e disso lhe tinha mandado fazer sua instrução, pola novidade da impresa que levava, quis usar com ele da solenidade que convém a tais casos, fazendo esta fala púbrica, a ele e aos outros capitães, perante alguas pessoas notáveis que eram presentes, e pera isso chamadas: - Depois que aprouve a Nosso Senhor que eu recebesse o cetro desta real herança de Portugal, mediante a sua graça, assi por haver a bênção de meus avós, de quem a eu herdei, os quais com gloriosos feitos e vitórias que houveram de seus imigos a tem acrescentado per ajuda de tam leais vassalos e cavaleiros como foram aqueles donde vós vindes, como por causa de agalardoar a natural lealdade e amor com que todos me servis, a mais principal cousa que trago na memória depois do cuidado de vos reger e governar em paz e justiça é como poderei acrescentar o património deste meu reino, pera que mais liberalmente possa distribuir per cada um o galardão de seus serviços. E consirando eu per muitas vezes qual seria a mais proveitosa e honrada impresa e dina de maior glória que podia tomar pera conseguir esta minha tenção, - pois, louvado Deus, destas partes da Europa em as de África, a poder de ferro, temos lançado os mouros e lá tomando os principais lugares dos portos do reino de Fez que é da nossa conquista - achei que nenhua outra é mais conveniente a este meu reino (como alguas vezes convosco tenho consultado) que o descobrimento da Índia e daquelas terras orientais. Em as quais partes, peró que sejam mui remotas da Igreja Romana, espero na piedade de Deus que não somente a Fé de Nosso Senhor Jesu Cristo, seu filho, seja per nossa administração pubricada e recebida, com que ganharemos galardão ante ele, fama e louvor acerca dos homens, mas ainda reinos e novos estados com muitas riquezas vendicadas per armas das mãos dos bárbaros, dos quais meus avós com ajuda e serviço dos vossos e vosso, tem conquistado este meu reino de Portugal e acrescentado a Coroa dele. Porque, se da costa da Etiópia, que quási de caminho é descoberta, este meu reino tem adquirido novos títulos, novos proveitos e renda, que se pode esperar, indo mais adiante com este descobrimento, senão podermos conseguir aquelas orientais riquezas tam celebradas dos antigos escritores, parte das quais per comércio tem feito tamanhas potências, como são Veneza, Génoa, Florença e outras mui grandes comunidades de Itália? 132 Assi que, consideradas todas estas cousas de que temos experiência, e também como era

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ingratidão a Deus enjeitar o que nos tam favoravelmente oferece e injúria àqueles príncipes de louvada memória, de quem eu herdei este descobrimento, e ofensa a vós outros, que nisso fostes, descuidar-me eu dele per muito tempo, mandei armar quatro velas que (como sabeis) em Lisboa estão de todo prestes pera seguir esta viagem de boa esperança. E tendo eu na memória como Vasco da Gama, que está presente, em todalas cousas que lhe de meu serviço foram entregues e encomendadas, deu boa conta de si, eu o tenho escolhido pera esta ida, como leal vassalo e esforçado cavaleiro, merecedor de tam honrada impresa. A qual espero que lhe Nosso Senhor leixará acabar, e nela a ele e a mim faça tais serviços com que o seu galardão fique por memória nele e naqueles que o ajudarem nos trabalhos desta viagem, porque com esta confiança, pela experiência que tenho de todos, eu os escolhi por seus ajudadores pera em todo o que tocar a meu serviço lhe obedecerem. E eu, Vasco da Gama, vo-los encomendo e a eles a vós, e juntamente a todos a paz e concórdia, a qual é tam poderosa que vence e passa todolos perigos e trabalhos, e os maiores da vida faz leves de sofrer, quanto mais os deste caminho, que espero em Deus serem menores que os passados, e que per vós este meu reino consiga o fructo deles. Acabando el-Rei de propor estas palavras, Vasco da Gama e todalas notáveis pessoas lhe beijaram a mão, assi pola mercê que fazia a ele como ao reino, em mandar a este descobrimento, continuado per tantos anos que já era feito herança dele. Tornada a casa ao silêncio que tinha ante deste auto de gratificação, assentou-se Vasco da Gama em giolhos ante el-Rei, e foi trazida ua bandeira de seda com ua cruz no meio das da Ordem da Cavalaria de Cristo, de que el-Rei era governador e perpétuo administrador, a qual estendendo o escrivão da puridade entre os braços, em modo de menagem, disse Vasco da Gama em alta voz estas palavras: - Eu, Vasco da Gama, que ora per mandado de vós, mui alto e muito poderoso Rei, meu senhor, vou descobrir os mares e terras do Oriente da Índia, juro em o sinal desta cruz em que ponho as mãos, que por serviço de Deus e vosso, eu a ponha hasteada e não dobrada ante a vista de mouros, gentios e de todo género de povo onde eu for, e que per todolos perigos de água, fogo e ferro, sempre a guarde e defenda até morte. E assi juro que na execução e obra deste descobrimento que vós, meu Rei e Senhor, me mandais fazer, com toda fé, lealdade, vigia e diligência eu vos sirva, guardando e comprindo vossos regimentos que pera isso me forem dados, até tornar onde ora estou, ante a presença de Vossa Real Alteza, mediante a graça de Deus, em cujo serviço me enviais. 133 Feita esta menagem, foi-lhe entregue a mesma bandeira e um regimento em que se continha o que havia de fazer na viagem, e alguas cartas pera os Príncipes e Reis a que propriamente era enviado, assi como ao Preste João das Índias, tam nomeado neste reino, e a el-Rei de Calecute com as mais informações e avisos que el-Rei Dom João tinha havido daquelas partes, segundo já dissemos, recebidas as quais cousas el-Rei o espediu e ele se veo a Lisboa com os outros capitães.

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125 41 133 Capítulo II. Como Vasco da Gama partiu de Lisboa, e do que passou té chegar ao padrão que Bartolomeu Dias pôs além do Cabo de Boa Esperança. Chegado Vasco da Gama com os outros capitães a Lisboa, na entrada de Julho do ano de mil quatrocentos noventa e sete, tanto que os navios foram prestes, recolheu sua gente pera se partir, sem guardar a eleição dos meses de que ora usamos pera ir tomar os ventos gerais que cursam naquelas partes; porque naquele tempo tam escura era a notícia da terra que ia buscar, como os ventos que serviam pera boa navegação. Mas parece que, como a manifestação deste novo mundo, tantas centenas de anos encoberto, Deus a pôs neste termo, quando el-Rei Dom Manuel houvesse a herança deste reino, assi permitiu que sem a ordem dos meses naturais desta navegação fosse a partida de Vasco da Gama. Porque entendamos que as cousas que procedem do seu querer, ele, que as ordena pera algum fim que nós não alcançamos, dá os meios pera se virem efeituar no tempo pera que as ele guarda. E como Vasco da Gama, pera poder partir, não esperava mais que navios prestes e um pouco de norte, que naqueles meses do verão é geral nesta costa de Espanha, postos os navios em Rastelo, lugar de ancoragem antígua, um dia ante da sua partida, foi ter vigília com os outros capitães a casa de Nossa Senhora da vocação de Belém, situada neste lugar de Rastelo. A qual naquele tempo era ua ermida que o Infante Dom Hanrique mandou fundar, onde estavam alguns freires do convento de Tomar pera administrarem os sacramentos aos mareantes. Ao seguinte dia, que era sábado, oito de Julho, por ser dedicado a Nossa Senhora e a casa de muita romagem, assi por esta devação, como por 134 se irem espedir dos que iam na armada, concorreu grande número de gente a ela. E quando foi ao embarcar de Vasco da Gama, os freires da casa com alguns sacerdotes que da cidade lá eram idos dizer missa, ordenaram ua devota procissão com que o levaram ante 41v si nesta ordem: ele e os seus com círios nas mãos, e toda a gente da cidade ficava detrás, respondendo a ua ledainha que os sacerdotes diante iam cantando, té os porem junto dos batéis em que se haviam de recolher. Onde, feito silêncio, e todos postos em giolhos, o vigairo da casa fez em voz alta ua confissão geral, e no fim dela os absolveu na forma das bulas que o Infante Dom Hanrique tinha havido pera aqueles que neste descobrimento e conquista falecessem (como atrás dissemos). No qual auto foi tanta a lágrima de todos, que neste dia tomou aquela praia posse das muitas que nela se derramam na partida das armadas que cada ano vão a estas partes que Vasco da Gama ia descobrir; donde com razão lhe podemos 126 chamar praia de lágrimas pera os que vão, e terra de prazer aos que vem. E quando veo ao desfraldar das velas, que os mareantes, segundo seu uso, deram aquele alegre princípio de caminho, dizendo: - Boa viagem! - todolos que estavam prontos na vista deles, com ua piadosa humanidade dobraram estas lágrimas e começaram de os encomendar a Deus e lançar juízos, segundo o que cada um sentia daquela partida. Os navegantes, dado que com o fervor da obra e alvoroço daquela impresa embarcaram contentes, também passado o termo do desferir das velas, vendo ficar em terra seus parentes e amigos e lembrando-lhe que sua viagem estava posta em esperança, e não em tempo certo nem lugar sabido, assi os acompanhavam em lágrimas como em o pensamento das cousas que em tam novos casos se representam na memória dos homens. Assi que uns olhando pera a terra e outros

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pera o mar, e juntamente todos ocupados em lágrimas e pensamento daquela incerta viagem, tanto esteveram prontos nisso, té que os navios se alongaram do porto. Seria a companha desta bem fortunada viagem, entre mareantes e homens de armas, até cento e setenta pessoas, e os três navios pouco mais ou menos de cento até cento vinte tonéis cada um. Do primeiro chamado São Gabriel, em que ia Vasco da Gama, era piloto Pero de Alanquer, que fora no descobrimento do Cabo de Boa Esperança, e escrivão Diogo Dias, irmão de Bartolomeu Dias. Do segundo, per nome São Rafael, capitão Paulo da Gama, era piloto João de Coimbra e escrivão João de Sá. Do terceiro, a que chamavam Bérrio, capitão Nicolau Coelho, era piloto Pero Escolar, e escrivão Álvaro de Braga. E da nau era capitão um Gonçalo Nunes, criado dele, Vasco da Gama, a qual ia somente amarinhada, pera, depois que os mantimentos dos navios se fossem gastando, tomarem os que ela levava sobressalentes e a gente se passar a eles. Partidas estas quatro velas, e Bartolomeu Dias em sua companhia em 135 o navio pera a Mina, como estava assentado, com bom tempo que teveram em treze dias foram ter à Ilha de Santiago, que é a principal das do Cabo Verde, onde tomaram algum refresco. Depois da partida da qual ilha, Bartolomeu Dias os acompanhou té se pôr no caminho da derrota pera a Mina, Vasco da Gama na sua. E a primeira terra que tomou ante de chegar ao Cabo de Boa Esperança, foi a baía a que ora chamam de Santa Helena, havendo cinco meses que era partido de Lisboa; onde saiu em terra por fazer aguada e assi tomar a altura do sol. Porque, como do uso do astrolábio pera aquele mister da navegação, havia pouco tempo que os mareantes deste reino se aproveitavam, e os navios eram pequenos, não confiava muito de a tomar dentro neles por causa do seu arfar. Principalmente com um astrolábio de pau de três palmos de diâmetro, o qual armavam em três paus à maneira de cábrea, por melhor segurar a linha solar, e mais verificada 127 e distintamente poderem saber a verdadeira altura daquele lugar, posto que levassem outros de latão mais pequenos, tam rusticamente começou esta arte que tanto fructo tem dado, ao navegar. E porque em este reino de Portugal se achou o primeiro uso dele em a navegação (peró que em a nossa Geografia largamente tratamos desta matéria em os primeiros livros dela), não será estranho deste lugar dizermos quando e per quem foi achado, pois não é de menos louvor este seu trabalho que o doutros novos inventores que acharam cousas proveitosas pera uso dos homens. No tempo que o Infante Dom Hanrique começou o descobrimento de Guiné, toda a navegação dos mareantes era ao longo da costa, levando-a sempre por rumo; da qual tinham suas notícias per sinais de que faziam roteiros, como ainda ao presente usam em algua maneira, e pera aquele modo de descobrir isto bastava. Peró, depois que eles quiseram navegar a descoberto, perdendo a vista da costa e engolfando-se no pego do mar, conheceram quantos enganos recebiam na 42 estimativa e juízo das singraduras que, segundo seu modo, em vinte quatro horas davam de caminho ao navio, assi por razão das correntes como doutros segredos que o mar tem, da qual verdade de caminho a altura é mui certa mostrador . Peró, como a necessidade é mestra de todalas artes, em tempo del-Rei Dom João, o segundo, foi per ele encomendado este negócio a mestre Rodrigo e a mestre Josepe Judeu, ambos seus médicos, e a um Martim de Boémia, natural daquelas partes , o qual se gloriava ser discípulo de Joane de Monte Régio, afamado astrónomo entre os professores desta ciência. Os 136 quais acharam esta maneira de navegar per altura do sol, de que fizeram suas tavoadas pera declinação dele, como se ora usa entre os navegantes, já mais apuradamente do que começou, em que serviam estes grandes astrolábios de pau. Pois, estando Vasco da Gama com os pilotos pronto no tomar altura do sol per este modo, deram-lhe aviso que detrás de um teso viram andar dous negros baixos à maneira de quem apanhava

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alguas ervas. E como isto era o principal que ele desejava - achar quem lhe desse algua rezão da terra - com muito prazer mansamente mandou rodear os negros per ua encoberta pera serem tomados. Os quais, como andavam curvos e prontos em apanhar mel aos pés das moutas com um tição de fogo na mão, nunca sentiram a gente que os rodeava, senão quando remeteram a eles, dos quais tomaram um. Vasco da Gama, porque não tinha língua que o entendesse, e ele de assombrado daquela novidade, não acudia aos acenos que a natureza fez comuns a todolos homens, mandou vir dous grumetes, um dos quais era negro, que se assentaram junto dele a comer e beber, apartando-se deles por o desassombrar. O qual modo aproveitou muito, porque os grumetes o provocaram a comer, com que, quando Vasco da Gama tornou a ele já estava desassombrado, e per 128 acenos mostrou uas serras, que seriam dali duas léguas, dando a entender que ao pé delas estava a povoação da sua gente. Vasco da Gama, porque não podia enviar melhor descobridor pera apelidar os outros, com alguns brincos de cascavéis e contas de cristalino e um barrete, mandou que o soltassem, acenando-lhe que fosse e tornasse com seus companheiros, pera lhe darem outro tanto. O que ele fez logo, trazendo aquela tarde dez ou doze que vinham buscar o que ele levou, que também lhe foi dado, e de quantas mostras de ouro, prata, especearia lhe apresentaram, de nenhua deram notícia. Quando veo a outro dia, já com estes vieram mais de quorenta , tam familiares, que pediu um homem de armas, chamado Fernão Veloso, a Vasco da Gama que o leixasse ir com eles, ver a povoação que tinham pera trazer algua mais notícia da terra do que eles davam, o que lhe Vasco da Gama concedeu, quási a rogo de Paulo da Gama, seu irmão.

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128 42 137 Capítulo III. Como Vasco da Gama foi ferido em ua revolta que os negros da Baía de Santa Helena fizeram, e seguindo sua viagem descobriu alguns rios notáveis, té chegar a Moçambique. Partido Fernão Veloso com os negros e Vasco da Gama recolhido ao seu navio, ficou Nicolau Coelho em terra a dar guarda à gente enquanto apanhava lenha, e outros mariscavam lagostas, por haver ali muitas. Paulo da Gama, por não estar ocioso, vendo que entre os navios andavam muitos baleatos trás o cardume do pexe meúdo, ajuntou dous batéis pera andar com fisga e arpões a eles, o qual passatempo lhe houvera de custar a vida. Porque foram os marinheiros do batel em que ele andava amarrar duas arpoeiras das fisgas com que tiravam, nas tostes do batel que estavam atochadas, e, acertando de ferir um baleato, assi barafustou com a fúria da dor, que houvera de trebucar o batel, se a arpoeira não fora comprida e o mar de pouco fundo, que causou dar o baleato em seco sem mais poder nadar, o qual lhe serviu de refresco. E sendo já sobre a tarde, querendo-se todos recolher aos navios, viram vir Fernão Veloso per um teso abaixo mui apressado. Vasco da Gama, como tinha os olhos em sua tornada, quando o viu com aquela pressa, mandou bradar ao batel de Nicolau Coelho que vinha da terra, que tornassem a ele a o recolher. Os marinheiros do batel, porque Fernão Veloso nunca leixava de falar em valentias, quando o viram sobre a praia decer com passos a meio chouto, acinte deteveram-se em o recolher. A qual detenção 42v deu suspeita aos negros que estavam em cilada, esperando a saída deles em terra, que o mesmo Fernão Veloso fizera algum sinal que não saíssem. E em querendo entrar ao batel, meteram dous negros a ele polo entreter, da qual ousadia saíram com os focinhos lavados em sangue, a que acudiram 129 os outros; e foi tanta a pedrada e frechada sobre o batel, que quando Vasco da Gama chegou polos apaziguar, foi frechado per ua perna, e Gonçalo Álvares, mestre do navio São Gabriel, e dous marinheiros levaram cada um sua. Vendo Vasco da Gama que com eles não havia meio de paz, mandou remar pera os navios, e porém à espedida alguns besteiros dos nossos empregaram neles seu almazém, por não ficarem sem castigo; e di a dous dias, com tempo feito, mandou Vasco da Gama dar à vela sem levar algua informação da terra, como desejava. Porque Fernão Veloso não viu cousa que 138 contar, senão o perigo que ele dezia passar entre aqueles negros, os quais, tanto que se apartaram da praia, o fizeram tornar, quási como que o queriam ter nela por anagaça, pera quando o fossem recolher cometerem algua maldade, da maneira que mostraram. Seguindo Vasco da Gama seu caminho na volta do mar, por se desabrigar da terra, quando veo ao terceiro dia, que eram vinte de Novembro, passou aquele grã Cabo de Boa Esperança, com menos tormenta e perigo do que os marinheiros esperavam, pela opinião que entre eles andava, donde lhe chamavam o Cabo das Tormentas, e dia de Santa Caterina chegaram onde se ora chama Aguada de São Brás, que é além dele sessenta léguas. E posto que ali acharam negros de cabelo revolto como os passados, estes sem receo chegaram aos batéis a receber qualquer cousa que lhe lançavam na praia, e per acenos começaram logo de se entender com os nossos, de maneira que houve entre eles comutação de darem carneiros a troco de cousas que lhe os nossos davam. Porém de quanto gado vacum traziam, nunca poderam haver deles ua só cabeça. Parece que o estimavam,

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porque alguns bois mochos que os nossos viram andavam gordos e limpos, e vinham as mulheres sobre eles com uas albardas da tabua. E em três dias que Vasco da Gama se deteve aqui, teveram os nossos muito prazer com eles por ser gente prazenteira, dada a tanger e bailar; entre os quais havia alguns que tangiam com ua maneira de frautas pastoris, que em seu modo pareciam bem. Do qual lugar Vasco da Gama se mudou pera outro porto perto daquele, porque entre os negros e os nossos começou haver algua perfia sobre resgate de gado, indo eles sempre a vista dos navios ao longo da praia, té ancorarem. E porque quando chegaram ia já grande número deles, mais em modo de guerra que de paz, mandou-lhe tirar com alguns berços somente por os assombrar, sem lhe fazer dano, e foi tomar outro pouso di duas léguas, onde recolheu todolos mantimentos que levava em a nau, e ela ficou queimada. Partido deste lugar dia de Nossa Senhora da Conceição, quando veo ao quarto, que era béspora de Santa Luzia, saltou com ele tam grande temporal, que per outros tantos dias o fez correr árvore seca. E como esta era a primeira tormenta em que os mareantes se tinham visto, em mares e climas não sabidos, andavam tam fora de si, que não havia mais acordo entre eles que clamar por Deus, curando 130 mais na penitência de seus pecados que na mareagem das velas, porque tudo era sombra da morte. Mas aprouve à piedade de Deus que nestes casos consola com bonança, que os tirou de tanta tribulação e os levou onde ora chamam os Ilhéus Chãos, cinco léguas avante do da Cruz, onde Bartolomeu Dias pôs o seu derradeiro padrão, passando per ele polo tempo lhe não dar lugar, té irem tomar os outros ilhéus. Na qual paragem, por causa das grandes correntes, andaram ora ganhando, ora perdendo caminho, até que dia de Natal passaram pela costa do Natal, a que eles deram este nome; e dia dos Reis entraram no rio deles, e alguns lhe chamam do Cobre, por o resgate dele em manilhas, e assi marfim 139 e mantimentos que os negros da terra com ele resgataram, tendo com os nossos tanta comunicação, por Vasco da Gama os satisfazer com dádivas, que foi um Martim Afonso, marinheiro, à aldea deles per licença do capitão. O qual veo mais contente do gasalhado que lhe fizeram, do que Fernão Veloso veo dos outros; porque não somente o senhor da aldea o recebeu com grande festa, mas ainda, quando tornou ao navio, polo honrar, mandou com ele mais de duzentos homens. Depois este mesmo senhor com outros mui acompanhados vieram ver os navios, e em seu tratamento mostravam habitar em terra fria, por virem alguns vestidos de peles, e que tinham comunicação com gente de boa razão. E por causa da muita familiaridade que os nossos teveram com eles, em cinco dias que Vasco da Gama se deteve neste lugar, lhe pôs nome Aguada da Boa Paz. E daqui por diante, 43 começou de se afastar algum tanto da terra com que de noite passou o cabo a que ora chamamos das Correntes, porque começa a costa encurvar-se tanto pera dentro, passado ele, que, sentindo Vasco da Gama que as águas o apanhavam pera dentro, temeu ser algua enseada penetrante, donde não pudesse sair. O qual temor lhe fez dar tanto resguardo por fugir a terra, que passou sem haver vista da povoação de Sofala, tam celebrada naquelas partes por causa do muito ouro que os mouros ali hão dos negros da terra, per via do comércio (segundo ele adiante soube), e foi entrar em um rio mui grande abaixo dela cinquenta léguas, vendo entrar per ele uns barcos com velas de palma. A entrada do qual rio, depois que viram o gentio que habitava à borda dele, deu grande ânimo a toda a gente, pera quam quebrado o levava, tendo tanto navegado sem achar mais que negros bárbaros como os de Guiné vezinhos de Portugal. E a gente deste rio, peró que também fosse da cor e cabelo como eles eram, havia entre eles homens fulos que pareciam mestiços de negros e mouros, e alguns entendiam palavras do arávigo que lhe falava um marinheiro per nome Fernão Martins, mas a outra língua própria nenhum dos nossos a entendia, donde Vasco da Gama suspeitava que estes negros, assi na cor como nas palavras do arábio, podiam ter comunicação com

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os mouros, da maneira que os negros de Jalofe tem com os azenegues. E 131 os mais deles traziam derredor de si uns panos de algodão tintos de azul, e os outros toucas e panos de seda, até carapuças de chamalote de cores. Com os quais sinais e outros que eles deram, dizendo que contra o nacimento do sol havia gente branca que navegava em naus como aquelas suas, as quais eles viam passar pera baixo e pera cima daquela costa, pôs Vasco da Gama nome a este rio dos Bons Sinais. Finalmente, com estas novas e segurança da gente na comunicação que tinham com os nossos per modo de comércio de mantimentos da terra, quis 140 ele dar pendor aos navios, por virem já mui sujos; no qual tempo, com ajuda dos da terra, pôs um padrão per nome São Rafael, dos que levava lavrados pera este descobrimento, da maneira dos outros que ficaram postos do tempo del-Rei Dom João. E peró que neste Rio dos Bons Sinais foi o maior sinal que té ali tinham visto, e que lhe deu grande esperança do que iam descobrir, por este prazer não ir puro sem algum desconto de trabalho, per espaço de um mês que ali esteveram no corregimento dos navios, adoeceu muita gente, de que morreu algua. A maior parte foi de herisípolas e de lhe crescer tanto a carne das gengivas, que quási não cabia na boca aos homens, e assi como crecia apodrecia e cortavam nela como em carne morta, cousa mui piadosa de ver; a qual doença vieram depois conhecer que procedia das carnes, pescado salgado e biscoito corrompido de tanto tempo. Teveram mais sobre este trabalho, até saírem deste Rio dos Bons Sinais, dous grandes perigos: Um foi, que, estando Vasco da Gama a bordo do navio de seu irmão Paulo da Gama em ua bateira pequena, somente com dous marinheiros que a remavam, e tendo as mãos pegadas nas cadeas da enxárcea enquanto falava com ele, decia água tam tesa, que lhe furtou a bateira per baixo, e ele e os marinheiros não teveram mais salvação que ficarem dependurados nas cadeas, té que lhe acudiram. O outro perigo aconteceu a este mesmo navio o dia de sua partida, que foi a vinte quatro de Fevereiro: saindo pela barra do rio, foi dar em seco em um banco de area onde esteve em termo de ficar pera sempre; mas, vindo a maré, saiu do perigo, com que fez seu caminho sempre a vista da costa, té que di a cinco dias chegou a ua povoação chamada Moçambique, e foi pousar em uns ilhéus apartados dela pouco mais de légua ao mar. Surto nestes ilhéus, os quais ora se chamam de São Jorge, por causa de um padrão deste nome que Vasco da Gama neles pôs, viram vir três ou quatro barcos a que os da terra chamam zambucos, com suas velas de palma e a remo. A gente dos quais vinha tangendo e cantando, a mais dela bem tratada, e entre eles homens brancos com toucas na cabeça e vestido de algodão a modo dos mouros de África, que foi pera os nossos muito grande prazer. Chegados estes barcos ao navio de Vasco da Gama, levantou-se um daqueles homens bem vestidos e começou per arávigo perguntar que 132 gente era e o que buscavam. Ao que Vasco da Gama mandou responder per Fernão Martins, língua, que eram portugueses, vassalos del-Rei de Portugal; e quanto ao que buscavam, depois que soubessem cuja aquela povoação era, então responderiam a isso. O mouro que falava (segundo se depois soube), era natural do reino de Fez; e, vendo que o trajo dos nossos não era de turcos, como eles cuidavam, creu que diziam verdade, e como 43v homem sagaz, simulando contentamento de sua vinda, respondeu que aquela povoação se chamava Moçambique, da qual era Xeque um senhor chamado Sacoeja, cujo costume era: - tanto que ali chegavam navios estrangeiros, mandar saber deles o que queriam; e se 141 fossem mercadores, tratariam na terra, e sendo navegantes que passavam pera outra parte, provê-los do que houvesse nela. Vasco da Gama a estas palavras respondeu, que sua vinda àquele porto era passagem pera a

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Índia, fazer alguns negócios a que el-Rei, seu senhor, o enviava, principalmente com el-Rei de Calecute; e porquanto ele não tinha feito aquele caminho, lhe pedia que dissesse ao Xeque que lhe mandasse dar algum piloto daquelas partes, que ele o pagaria mui bem. E quanto ao negócio do tratar, ele não trazia mercadorias pera isso, somente alguas pera a troco delas haver o que houvesse mister, e tudo o mais eram cousas pera dar aos reis e senhores de que recebesse bom gasalhado. E porque ele esperava de o achar ali, segundo trazia por notícia, apresentasse ao Xeque algua fructa que lhe queria mandar, pera saber o que havia na terra donde ele vinha. O mouro, como homem esperto, respondeu atentadamente, dizendo que todas aquelas cousas ele as diria a seu senhor, e que se algua queria mandar, ele lha presentaria da sua parte; e quanto ao piloto, que descansasse, porque ali havia muitos que sabiam a navegação da Índia. Vasco da Gama, com esta facilidade que o mouro mostrou e nova que deu, mandou logo tirar alguas conservas da Ilha da Madeira pera o Xeque, e a ele deu um capelhar de grã, e outras cousas desta sorte, com que se partiu contente.

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132 43v 141 Capítulo IV. Como depois que Vasco da Gama assentou paz, com o Xeque de Moçambique, e ele lhe prometer piloto pera o levar à Índia se rompeu a paz, e do que sobre isso sucedeu. Partido o mouro mui alegre das peças que levava, mais que por ver os nossos naquelas partes, começaram eles festejar a nova que deu, dando louvores a Deus, pois já tinham visto gente que lhe falava na Índia, e sobre isso prometia piloto pera os levar a ela. Vasco da Gama, peró que sem comparação algua dava estes louvores a Deus e mostrava maior prazer, assi polo haver nele como por animar a companha dos trabalhos que tinham passado, todavia como quem esguardava as cousas com mais atenção, não ficou mui 133 satisfeito dos modos e cautelas que sintiu no mouro, falando com ele, porque entendeu não ficar tam contente como mostrou, 142 quando soube que eram portugueses. E sem saber que era do reino de Fez, escola militar deles, do ferro dos quais podia ele ou cousa sua andar assinado, atribuiu que a tristeza que lhe viu seria por saber que eram cristãos; e por não desconsolar a gente em tanto prazer como tinha, não quis comunicar isso que entendeu nele com pessoa algua. O mouro também, porque na diligência de sua tornada mostrasse que lhe tinha boa vontade, veo logo, dizendo quam contente o Xeque estava com as novas que lhe deu de quem eram e quanto estimara seu presente, trazendo em retorno algum refresco da terra. E assi lhe disse da parte do Xeque tais palavras sobre a estância que tinha mui longe da povoação pera se comunicarem de mais perto, que moveu Vasco da Gama a entrar dentro no porto. E posto que nisso houve resguardo dos pilotos do lugar, quando foi a entrada, levando diante o navio de Nicolau Coelho, por ser mais pequeno, e ele a sonda na mão, deu em parte que lhe lançou o leme fora; e contudo, salvo o barco, surgiram diante da povoação, um pouco afastados dela. A qual estava assentada em um pedaço de terra torneado de água salgada, com que fica em ilha, tudo terra baixa e alagadiça, donde se causa ser ela mui doentia; cujas casas eram palhaças, somente ua mesquita, e as do Xeque, que eram de taipa com eirados per cima. Os povoadores da qual eram mouros vindos de fora, os quais fizeram aquela povoação como escala da cidade Quíloa que estava diante, e da Mina Sofala, que ficava atrás; porque a terra em si era de pouco trato, e os naturais, que eram negros de cabelo revolto, como de Guiné, habitavam na terra firme. A qual povoação Moçambique daquele dia tomou tanta posse de nós, que em nome, é hoje a mais nomeada escala de todo o Mundo, e per frequentação a maior que tem os portugueses, e tanto, que poucas cidades há no reino que, de cinquenta anos a esta parte, enterrasse em si tanto defunto como ela tem dos nossos. Ca, depois que nesta viagem à Índia foi descoberta té ora, poucos anos passaram que à ida ou à vinda não invernassem 44 ali as nossas naus; e alguns invernou quási toda ua armada, onde ficou sepultada a maior parte da gente, por causa da terra ser mui doentia. Porque como o sítio dela é um cotovelo à maneira de cabo, que está em altura de catorze graus e meio, do qual convém que as naus que pera aquelas partes navegam hajam vista pera irem bem navegadas, quando os ventos lhe não servem pera passar adiante, à ida ou vinda, tomam aquele remédio de invernar ali; e desta necessidade e doutras (como adiante veremos na descripção de toda esta costa), procedeu eleger-se, pera escala de nossas naus, um lugar tam doentio e bárbaro, leixando na mesma costa outros mais célebres e nobres. Vasco da Gama, depois que tomou o pouso diante desta povoação

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143 Moçambique, ao seguinte dia, em companhia do mouro do recado que o veo visitar, mandou o escrivão 134 do seu navio com alguas cousas ao Xeque. O qual presente obrou tanto, depois que o ele recebeu, que começaram logo de vir barcos aos navios a trazer mantimento da terra, como gente que começava ter sabor no retorno que haviam destas cousas. E per espaço de dez dias em que se deteveram esperando tempo, assentou Vasco da Gama paz com o Xeque, e em sinal dela meteu na ilha São Jorge o padrão deste nome que dissemos, e ao pé dele se pôs um altar onde se disse missa, e tomaram todos o sacramento. Porque aqui fizeram o primeiro termo e de maior esperança do seu descobrimento, pera que convinha desporem-se com as consciências em estado, que suas preces fossem aceitas a Deus, e mais por ser tempo de quaresma, em que a Igreja obriga a isso. Neste tempo, entre alguns mouros que vinham vender aos navios mantimentos, vieram três abexis da terra do Preste João. Os quais, posto que seguissem o error dos mouros, como foram criados naquela maneira de religião e fé de Cristo que seus padres tinham, ainda que não conforme a Igreja Romana, em vendo a imagem do Anjo Gabriel pintada em o navio do seu nome, que era o de Vasco da Gama, como cousa nota a eles por em sua pátria haver muitas igrejas que tem estas images dos anjos, e alguas do próprio nome, assentaram-se em giolhos e fizeram sua adoração. Quando o capitão soube de eles serem de nação abexi, cujo rei nestas partes era celebrado por Preste João das Índias, cousa a ele tam encomendada, começou de os enquerir per Fernão Martins, língua; os quais, posto que intendiam o arábigo, a muitas palavras não respondiam ao propósito, como que diferiam na língua, e doutras não davam razão, dizendo saírem de sua terra de tam pequena idade, que não eram já lembrados. Os mouros, como intenderam que o capitão folgava de falar com eles, polo sinal que lhe via da Cristandade, fizeram-se mui apressados pera se tornar a terra, e quási por força levaram os abexis, e assi os esconderam, que, por muito que Vasco da Gama trabalhou por tornar a falar com eles, nunca mais os pôde haver. Assi que per estes sinais e outras cautelas que usavam com ele, quis saber se tinha certo os pilotos que lhe prometeram, e mandou-os pedir ao Xeque. O qual, como tinha assentado o que esperava fazer, levemente lhe mandou dous mouros que acerca da navegação a seu modo praticaram bem, dos quais o capitão ficou contente e assentou com eles que, por prémio de seu trabalho, havia de dar a cada um valia de trinta meticais de ouro, peso da terra, que poderam ser até catorze mil reais dos nossos, e mais ua marlota de grã. As quais cousas eles quiseram logo levar na mão, dizendo que não podiam doutra maneira partir, por quanto as haviam de leixar a suas mulheres, pera sua mantença. 144 Vasco da Gama, peró que se não fiava deles polos sinais que já tinha visto, levemente o fez, assentando que, quando um fosse em terra, ficasse outro em o navio, polo haver mister pera a prática 135 da navegação. Passados dous dias que Vasco da Gama tinha feito este concerto com eles, acertou mandar a menhã seguinte dous batéis buscar lenha e água, que os negros da terra soíam a pôr na praia com prémio que lhe davam; no recolher da qual, de súbito saíram a eles sete zambucos cheos de gente armada a seu modo, e com ua grande grita começaram de os frechar, de que houveram seu retorno com bestas e espingardas que os nossos levavam por resguardo. Com o qual rompimento de paz ficaram em tal estado, que nunca mais apareceu barco, e tudo se recolheu diante da vista dos nossos pera detrás da ilha. Vasco da Gama, temendo que per algum modo lhe empedissem seu caminho, havido conselho com os capitães e pilotos, um domingo, onze de Março, saiu de ante a povoação e foi tomar o pouso na Ilha de São Jorge; e depois que ouviu ua missa, se fez à vela caminho da Índia, levando consigo um dos pilotos, porque ao tempo do rompimento estava o outro em terra. E parece 44v

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que os trabalhos que ali haviam de passar ainda não se acabavam com sua partida, porque, como ela foi mais por evitar outro maior desastre, que polo tempo ser bom pera navegação, aos quatro dias da sua partida acharam-se quatro ou cinco léguas aquém do Cabo de Moçambique, polas águas correrem tam tesas a ele, que lhe abateram todo aquele caminho. E vendo Vasco da Gama que lhe convinha esperar vento de mais força pera romper esta das correntes, a qual mudança seria com a lua nova (segundo o mouro piloto lhe dezia), foi surgir à Ilha de São Jorge, donde partira, sem querer ter comunicação com os de Moçambique. Porém, porque a água se lhe ia gastando e havia já seis ou sete dias que era chegado, per conselho do mouro piloto, que prometeu levar de noite a gente a lugar onde fizesse aguada, mandou com ele dous batéis armados a isso. E ou que o mouro queria dar muitas voltas pela terra per onde os levou, porque nelas tevesse algum modo de escapulir da mão de quem o levava, ou que verdadeiramente se embaraçou, por ser de noite, entre um grande arvoredo de mangues, nunca pôde dar com os poços que ele dizia, com que obrigou a Vasco da Gama mandar de dia a isso dous batéis mui bem armados, que, apesar dos negros que a vinham defender, tomaram água. E porque nesta ida fugiu a nado o mouro piloto e um negro grumete, ao seguinte dia com mão armada foi demandar a povoação, onde os mouros em um grande escampado que estava ante ela e a praia, lhe deram mostra de até dous mil homens, recolhendo-se logo detrás dum repairo de madeira entulhado de terra, que fizeram naqueles dias. Vasco da Gama, vendo seu mau propósito, mandou fazer sinal de paz como que queria estar à fala por saber o que tinha neles, e acudindo a isso o mouro dos recados, começou ele de se queixar do que lhe era feito e da pouca verdade que lhe trataram, tomando por conclusão, que não queria proceder 136 145 no mais que mereciam as tais obras, que lhe mandasse entregar um negro que lhe fugira e mais os pilotos que tinha pagos pera aquela navegação e com isto ficaria satisfeito. O mouro, sem outra palavra, disse que ele tornaria logo com resposta, a qual foi que o Xeque estava muito mais escandalizado da sua gente, porque, querendo os seus folgar com ela em modo de festa, segundo uso da terra, ao tempo que iam buscar água, saltaram com eles, matando e ferindo alguns, e mais meteram um zambuco no fundo com muita fazenda, das quais cousas lhe havia de fazer emenda. E, quanto aos pilotos, ele não sabia parte deles, por serem homens estrangeiros; que se lhe algua cousa deviam, bem podia mandar a terra homens que os fossem buscar, que a ele bastava-lhe tê-los já enviado e isto em tempo que lhe parecia ser ele capitão e os seus gente segura e que falava verdade, mas ao presente o que tinha entendido, era serem homens vadios, que andavam roubando os portos do mar. No fim das quais palavras, sem mais esperar reposta, se recolheu pera o Xeque, donde saiu ua grita, e trás ela começaram de chover setas, chegando-se aos batéis por fazerem melhor emprego, como quem ainda não tinha experimentado a fúria da nossa artelharia. A qual, dos primeiros tiros que lhe Vasco da Gama mandou tirar, assi os castigou, que por detrás da ilha onde tinham os zambucos, se passaram à terra firme. Na qual passagem, rodeando um dos nossos batéis a ilha pera lhe defender o passo, tomou um zambuco carregado de fato; e de quanta gente ia nele, somente houveram a mão um mouro velho e dous negros da terra, porque toda a mais se salvou a nado. Desemperado o lugar per esta maneira, posto que Vasco da Gama lho podera queimar, como sua tenção era assombrá-los, pera haver os pilotos e grumete que fugiu, não quis por aquela vez fazer mais dano, que ficarem ante os pés do Xeque quatro ou cinco homens mortos de artelharia, que foi a causa de todos se porem em salvo. Tornado aos navios, fez logo per tormento perguntas ao mouro, do qual soube a causa daquela fugida, e o trato da terra ouro de Sofala, especeria da Índia, e que dali a Calecute, segundo ouvira dizer, seria caminho de um mês; e quanto aos poços pera fazerem aguada, aqueles dous negros, que eram naturais da terra, podiam mui bem encaminhar a gente que lá houvesse de ir. Sabidas estas cousas, que foram pera Vasco da Gama grande contentamento, por serem as

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mais certas que té então tinha sabido, ante que o Xeque mandasse pôr guarda nos poços, mandou logo aquela noite os batéis apercebidos de todo o necessário, levando consigo este mouro pera falar aos negros e eles pera encaminhar a gente ao lugar dos poços, onde chegaram com assaz trabalho, por ser de noite e per muitos alagadiços, de maneira que quando tornaram era já alto dia.

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137 45 146 Capítulo V. Como o Xeque veo em concerto com Vasco da Gama e lhe deu um piloto que o levou té a cidade Mombaça, donde fugiu a tempo que os mouros da mesma cidade lhe tinham ordenado, ua traição de que escapou, e di foi ter a Melinde. O Xeque, temendo que, se negasse o que lhe pediam, indinaria os nossos a virem queimar a povoação e navios, com que, além da perda, ficava ele entre os negros da terra firme que o podiam vir roubar; aconselhado deste temor, logo ao seguinte dia, com alguas desculpas, mandou pedir a Vasco da Gama paz e concórdia. E quanto aos pilotos que este fogo acenderam, um deles era ausentado e metido pelo sertão, temendo o castigo que por isso lhe poderiam dar, e o outro estava já castigado pera sempre, por ser morto com artelharia. Que as marlotas e o mais, que houveram tudo fora tomado a suas mulheres, e ali o mandava; e em lugar deles outro piloto, homem que o havia de servir melhor, por ser mais exercitado naquele caminho da Índia, e assi o negro fugido. Vasco da Gama, vendo que o tempo não era pera muitas réplicas, e mais lhe convinha o piloto que outra algua emenda deles, com palavras conformes ao caso, aceitou o piloto, e as marlotas, com o mais, mandou que se tornassem ao Xeque pera as dar a quem quisesse, e soltou o mouro e negros da terra, vestidos a seu prazer. Acabando estas cousas, ao seguinte dia recolheu-se à Ilha de São Jorge, onde ainda esteve três dias, esperando tempo, té o primeiro de Abril, que partiu, levando consigo mais verdadeiramente um mortal imigo que piloto. Porque aquele que lhe foi dado, ou pelo ódio que nos tinha ou porque assi lho mandava o Xeque, deu com os navios entre uas ilhas, afirmando-se que era ua ponta de terra firme. Por causa da qual mentira foi mui bem açoutado, donde ficou às ilhas nome do Açoutado, que hoje tem entre os nossos, que serão adiante de Moçambique sessenta léguas. O mouro, como sobre um ódio natural se lhe acrescentou este outro do castigo, determinou meter os navios no porto da cidade Quíloa, por ser povo grosso, que poderia per força de armas desbaratar os nossos navios. Pera fazer a qual maldade mais a seu salvo, disse a Vasco da Gama em modo de o querer comprazer, que adiante estava ua cidade per nome Quíloa, a qual era mea povoada de cristãos abexis e doutros da Índia; que, se mandasse, ele o levaria a ela. Mas aprouve a Deus que, posto que Vasco da Gama lhe disse que o levasse a esta cidade, não sucedeu o negócio como o mouro desejava, porque, com as grandes correntes, ua noite escorreu o porto ; e contudo ainda 147 os meteu em outro perigo, que foi dar, com o navio São Rafael em seco, em uns baixos de que saiu com a maré, 138 donde aquele lugar se chama os Baixos de São Rafael, não tanto por esta vez, quanto porque à vinda se veo ali perder. Tornando a sua viagem aos sete dias de Abril, béspora do Domingo de Ramos, chegaram ao porto de ua cidade chamada Mombaça, em a qual o mouro disse que havia cristãos abexis e da Índia, por causa de ser mui abastada de todalas mercadorias. A situação da qual cidade estava metida per um esteiro que torneava a terra, fazendo duas bocas, com que ficava em modo de ilha tam encoberta aos nossos, que não houveram vista dela, senão quando ampararam com a garganta do porto. Descoberta a cidade, como os seus edifícios eram de pedra e cal com janelas e eirados à maneira de Espanha, e ela ficava em ua chapa que dava grã vista ao mar, estava tam fermosa que houveram os nossos que entravam em algum porto deste reino. E posto que a vista dela namorasse a

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todos, não consentiu Vasco da Gama ao piloto que metesse os navios dentro como ele quisera, por vir já suspeitoso contra ele, e surgiu de fora. Os da cidade, tanto que houveram vista dos navios, mandaram logo a eles em um barco quatro homens que pareciam dos principais, segundo vinham bem tratados. Chegando a bordo, perguntaram que gente era e o que buscavam. Ao que Vasco da Gama mandou responder, dizendo quem eram e o caminho que faziam e a necessidade que tinham dalguns mantimentos. Os mouros, depois que mostraram em palavras o prazer que tinham e teria el-Rei de Mombaça de sua chegada, e fazerem ofertas de todo o necessário pera sua viagem, espediram-se dele. Os quais não tardaram muito com a resposta, dizendo que eles foram notificar a el-Rei quem era, de que recebeu muito prazer com sua 45v vinda; e que, quanto às cousas que haviam mister, de boa vontade lhas mandaria dar, e assi carga de espeçaria, pola muita que tinha. Porém convinha, pera estas cousas lhe serem dadas, entrarem dentro no porto, como era costume das naus que ali chegavam, por ordenança da cidade, quando algua cousa queriam dela; e os que o não faziam, eram havidos por gente suspeitosa e de mau trato, como alguns que havia per aquela costa, aos quais muitas vezes os seus com mão armada vinham lançar dali, o que podiam também fazer a eles, não entrando pera dentro. Que lhe mandava este aviso como a gente estrangeira, que escolhessem ou entrar no porto pera lhe ser dado o que pediam, ou passassem avante. Vasco da Gama, por segurar a suspeita que se dele podia ter, aceitou a entrada pera dentro ao seguinte dia; e pediu àqueles que traziam este recado que, quando fosse tempo, lhe mandassem algum piloto pera o meterem dentro. E posto que se teve muito resguardo que o piloto de Moçambique não 148 falasse à parte com eles senão perante Fernão Martins, língua, per qualquer modo que foi, ele lhe disse o que tinha passado com os nossos; a qual nova os mouros dissimularam, e como 139 gente contente do gasalhado que lhe Vasco da Gama mandou fazer, e dádivas que receberam, se espediram dele. Ao seguinte dia, tornando um batel a bordo com alguns mouros honrados, em modo de o visitar, mandou com eles dous homens que levassem um presente a el-Rei, desculpando-se de não poder entrar aqueles dous dias, porque acerca dos cristãos eram solenes, em que não faziam obra algua por serem da sua Páscoa; mas a tenção sua era mandar per estes homens espiar o estado da cidade e povo dela e que navios havia dentro. Os mouros, ou que entenderam o artefício ou porque sempre usam de cautelas, posto que levaram os homens, mostrando contentamento de o fazer, sempre foram trazidos per mão, e de passada notaram somente o que se lhe ofereceu à vista: que tudo foi a multidão do povo que concorreu polas ver, e a nobreza dos paços del-Rei, e a maneira de como os recebeu. Vasco da Gama, passados dous dias, por não dar má suspeita de si, quando veo ao terceiro em que assentou sua entrada , vieram da cidade muitos barcos com gente vestida de festa e tangeres, mostrando que pelo honrar vinham naquele auto de prazer, repartindo-se pelos navios. E porque entre Vasco da Gama e os outros capitães estava assentado, que não consentissem entrar em os navios mais que dez ou doze pessoas, cometendo eles esta entrada, foram a mão aos muitos, dizendo que pejavam a mareagem, que depois na cidade tempo lhe ficava pera os verem. No qual tempo, feito um sinal, mandou Vasco da Gama desferir a vela, com grande prazer de todos: dos mouros, parecendo-lhe levar a presa que desejavam, e dos nossos, cuidando que, em achar tam luzida gente e as novas que lhe davam da Índia, tinham acabado o fim de seus trabalhos, estando eles àquela hora em perigo de perderem as vidas, segundo a tenção com que eram levados. Mas Deus, em cujo poder estava a guarda deles neste caminho tanto de seu serviço, não permitiu que a vontade dos mouros fosse posta em obra; porque quási milagrosamente os livrou, descobrindo suas tenções per este modo: não querendo o navio de Vasco da Gama fazer cabeça pera a vela tomar

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vento, começou de ir descaindo sobre um baixo; e vendo ele o perigo, a grandes brados mandou soltar ua âncora. E com isto, segundo costume dos mareantes nos tais tempos, não se pode fazer sem per todo o navio correr de ua parte a outra aos aparelhos, tanto que os mouros que estavam per os outros navios viram esta revolta, parecendo-lhe que a traição que eles levavam no peito era descoberta, todos uns per cima dos outros lançaram-se aos barcos. Os que estavam em o navio de Vasco da Gama, vendo o que estes 149 faziam, fizeram outro tanto; até o piloto de Moçambique, que se lançou dos castelos de popa ao mar, tamanho foi o temor em todos. Quando Vasco da Gama e os outros capitães viram tam súbita novidade, abriu-lhe Deus o juízo pera 140 entenderem a causa dela; e sem mais demora assentaram logo de se partir ao longo daquela costa, por terem já sabido ser mui povoada, e que podiam achar per ela navios de mouros de que houvessem algum piloto. Os mouros, porque entenderam o que eles haviam de fazer, logo aquela noite vieram a remo surdo pera cortar as amarras dos navios; mas não houve efeito sua maldade, por serem sentidos. Partido Vasco da Gama daquele lugar de perigo, ao seguinte dia achou dous zambucos que vinham pera aquela cidade, de que tomaram um com treze mouros, porque os mais se lançaram ao mar, e deles soube 46 como adiante estava ua vila chamada Melinde, cujo rei era homem humano, per meio do qual podia haver piloto pera a Índia. Vendo ele que perguntado cada um destes à parte, todos concorriam na bondade del-Rei de Melinde, e que no seu porto ficavam três ou quatro navios de mercadores da Índia, per a pilotagem destes seguiu a costa, com tenção de chegar a Melinde pera haver um piloto, pois em todos aqueles treze mouros não havia algum que se atrevesse de o levar à Índia. Porque se o achara, sem mais experimentar os mouros daquela costa, rota batida houvera de atravessar a outra da Índia, que, segundo lhe eles diziam, podia ser dali até setencentas léguas per sua conta.

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140 46 149 Capítulo VI. Como Vasco da Gama chegou à vila de Melinde, onde assentou paz com o rei dela e pôs um padrão; e havido piloto se partiu pera a Índia, onde chegou. Seguindo Vasco da Gama seu caminho com esta presa de mouros, ao outro dia, que era de Páscoa da Ressurreição, indo com todolos navios embandeirados e a companha deles com grandes folias por solenidade da festa, chegou a Melinde. Aonde logo per um degredado em companhia de um dos mouros mandou dizer a el-Rei quem era e o caminho que fazia e a necessidade que tinha de piloto, e que esta fora a causa de tomar aqueles homens, pedindo que lhe mandasse dar um. El-Rei, havido este recado, posto que ao nome cristão tivesse aquele natural ódio que lhe tem todolos mouros, como era homem bem inclinado e sesudo, sabendo per este mouro o modo de como os nossos se houveram com eles, e que lhe pareciam homens de grande ânimo no feito da guerra e na conversação brandos e caridosos, segundo o bom tratamento que lhe fizeram, depois de os tomarem, não querendo 150 perder amizade de tal gente com más obras, como perderam os outros príncipes per cujos portos passaram, assentou de levar outro modo com eles enquanto não visse sinal contrairo do que lhe este mouro contava. E logo per ele e pelo degredado mandou dous homens ao capitão, mostrando em palavras o contentamento que tinha de sua vinda: que descansasse, porque 141 pilotos e amizade tudo acharia naquele seu porto, e que, em sinal de seguridade, lhe mandava aquele anel de ouro e lhe pedia houvesse por bem de sair em terra, pera se ver com ele. Ao que Vasco da Gama respondeu conforme à vontade del-Rei, peró quanto ao sair em terra a se ver com ele, ao presente não o podia fazer, por el-Rei, seu senhor, lho defender, té levar seu recado a el-Rei de Calecute e a outros príncipes da Índia. Que pera eles ambos assentarem paz e amizade, por ser a cousa que lhe el-Rei, seu senhor, mais encomendava, nenhum outro modo lhe parecia melhor, por não sair do seu regimento, que ir ele em seus batéis té junto da praia e sua real senhoria meterse naqueles zambucos, com que ambos se poderiam ver no mar; porque pera ele ganhar por amigo tam poderoso príncipe como era el-Rei de Portugal, cujo capitão ele era, maiores cousas devia fazer. Espedidos estes dous mouros, contentes do que lhe Vasco da Gama disse e deu, com alguas peças que também levaram pera el-Rei, assi aproveitou ante ele o recado e presente, que concedeu nas vistas da maneira que Vasco da Gama pedia. A qual facilidade os nossos atribuíram mais a obra de Deus que a outra cousa, porque, segundo achavam os mouros daquelas partes ciosos de suas terras, não podiam dar outra causa; pois um rei sem ter deles mais notícia que a que lhe dera o mouro, e sem algua necessidade, se vinha meter no mar tam confiadamente. E praticando todos sobre este caso e do modo que teriam nestas vistas, assentou Vasco da Gama que seu irmão e Nicolau Coelho ficassem em os navios a bom recado, e tanto a pique, que podesse acudir a qualquer necessidade; e ele, com todolos batéis e a mais limpa gente da frota, vestidos de festa per fora e armas secretas, com grande aparato, de bandeiras e toldo no batel, foi-se ao lugar das vistas. A qual ordem se teve quando veo ao dia delas, partindo Vasco da Gama dos navios com grande estrondo de trombetas, o que tudo respondia com as vozes de gente, animando-se uns aos outros em prazer daquela festa; porque, como era na terceira oitava da Páscoa, tempo em que eles cá no reino eram costumados a festas e prazer, parecia-lhes que estavam entre os seus. 46v Vasco da Gama, indo assi neste auto, a meio caminho mandou suspender o remo, por el-Rei não ser ainda recolhido ao seu zambuco; o qual vinha ao longo da praia metido em um esparavel de seda com as cortinas da parte do mar alevantadas, e ele lançado em um andor sobre os ombros de

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quatro homens, cercado de muita gente nobre, e a do povo diante e detrás bem afastada pera darem vista aos nossos, todos com grande aparato de festa e tangeres a seu modo. Entrando el-Rei no zambuco com alguas pessoas principais e menestréis 151 que tangiam, toda a mais gente que pôde se embarcou per outros barcos, cercando el-Rei per todalas partes; somente leixaram ua aberta que tinha a vista pera os nossos, em modo de cortesia. E o primeiro sinal de 142 paz que lhe Vasco da Gama mandou fazer, calando-se os estromentos de festa, foi mandar tirar os da guerra, que eram alguns berços espingardas, e no fim deles ua grande grita, ao que responderam os nossos navios com outra tal obra, até tirarem as câmaras da artelharia. A qual trovoada, como era cousa nova nas orelhas daquela gente, foi para eles tam grande espanto que houve entre todos rumor de se colher a terra. Peró, sentindo Vasco da Gama a torvoação deles, mandou fazer sinal com que cessou aquele tom que os assombrava, e de si chegou-se ao zambuco del-Rei, o qual o recebeu como homem em cujo peito não havia má tenção; e em toda a prática que ambos teveram, que durou um bom pedaço, tudo foi com tanta segurança de ambalas partes, como se entre eles houvera conhecimento de mais dias. E desta prática e modo que Vasco da Gama teve com el-Rei, ficou ele tam seguro e contente de sua amizade, que logo quis ir ver os nossos navios, rodeando a todos; e por honra de sua ida lhe mandou Vasco da Gama entregar todolos mouros que tomou no zambuco, os quais guardou pera lhe dar naquele dia das vistas. O que el-Rei muito estimou, e muito mais dizer-lhe Vasco da Gama como el-Rei, seu senhor, tinha tanta artelharia e tantas maiores naus que aquelas, que poderiam cobrir os mares da Índia, com as quais o poderia ajudar contra seus imigos; porque fazia el-Rei conta que a pouco custo per aquela via tinha ganhado um Rei poderoso pera suas necessidades. Espedido Vasco da Gama dele, depois que o leixou desembarcado, tornou-se aos navios, e os dias que ali esteve sempre foi visitado dele com muitos refrescos, que deu causa a ser também visitado de uns mouros que ali estavam, do reino de Cambaia, em as naus que lhe tinham dito os mouros que tomou no zambuco. Entre os quais vieram certos homens a que chamam baneanes, do mesmo gentio do reino de Cambaia, gente tam religiosa na seita de Pitágoras , que até a imundícia que criam em si não matam nem comem cousa viva, dos quais copiosamente tratamos em a nossa Geografia. Estes, entrando em o navio de Vasco da Gama e vendo na sua câmara ua imagem de nossa Senhora em um retávolo de pincel, e que os nossos lhe faziam reverência, fizeram eles adoração com muito maior acatamento; e como gente que se deleitava na vista daquela imagem, logo ao outro dia tornaram a ela, oferecendo-lhe cravo, pimenta e outras mostras de especeria das que vieram ali vender. E se foram contentes dos nossos pelo gasalhado que receberam e maneira de sua adoração, também eles ficaram satisfeitos do seu modo, parecendo-lhe ser aquela gente mostra dalgua cristandade que haveria na Índia do tempo de São Tomé. Entre os quais vinha um mouro, guzarate de nação, chamado Malemo Caná, o qual, assi pelo contentamento que teve da conversação dos nossos, como por comprazer a el-Rei que buscava 143 piloto pera lhe dar, aceitou querer 152 ir com eles. Do saber do qual Vasco da Gama, depois que praticou com ele, ficou muito contente: principalmente quando lhe mostrou ua carta de toda a costa da Índia, arrumada ao modo dos mouros, que era em meridianos e paralelos mui meúdos, sem outro rumo dos ventos. Porque, como o quadrado daqueles meridianos e paralelos era mui pequeno, ficava a costa per aqueles dous rumos de Norte-Sul e Leste-Oeste mui certa, sem ter aquela multiplicação de ventos, de agulha comum da nossa carta, que serve de raiz das outras. E amostrando-lhe Vasco da Gama o grande astrolábio de pau que levava, e outros de metal com que tomava a altura do sol, não se espantou o mouro disso, dizendo que alguns pilotos do Mar Roxo usavam de instrumentos de latão de figura triangular e quadrantes, com que tomavam a altura do sol, e principalmente da estrela de que se mais serviam

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em a navegação. Mas que ele e os mareantes de Cambaia e de toda a 47 Índia, peró que a sua navegação era per certas estrelas, assi do Norte como do Sul, e outras notáveis que cursavam per meio do céu de Oriente a Ponente, não tomavam a sua distância per instrumentos semelháveis àqueles, mas per outro de que se ele servia, o qual instrumento lhe trouxe logo a mostrar, que era de três távoas. E porque da figura e uso delas tratámos em a nossa Geografia, em o capítulo dos instrumentos da navegação, baste aqui saber que servem a eles, naquela operação, que ora acerca de nós serve o instrumento que os mareantes chamam balhestilha, de que também no capítulo que dissemos se dará razão dele e dos seus inventores. Vasco da Gama, com esta e outras práticas que per vezes teve com este piloto, parecia-lhe ter nele um gram tesouro; e por o não perder, o mais em breve que pôde, depois que meteu por consentimento del-Rei um padrão per nome Santo Espírito na povoação, dizendo, ser em testemunho da paz e amizade que com ele assentara, se fez à vela caminho da Índia, a vinte quatro dias de Abril. E atravessando aquele grande golfão de setecentas léguas que há de ua à outra costa, per espaço de vinte dous dias, sem achar cousa que o empedisse, a primeira terra que tomou foi abaixo da cidade Calecute, obra de duas léguas, e daqui, per pescadores da terra que logo acudiram aos navios, foi levado a ela. A qual como era o termo de sua navegação, e na instrução que levava nenhua outra cousa lhe era mais encomendada, e pera o rei dela nomeadamente levava cartas e embaixada, como ao mais poderoso príncipe daquelas partes e senhor de todalas especearias, segundo a notícia que naquele tempo neste reino de Portugal tínhamos dele, pareceu aos nossos, vendo-se diante dela, que tinham acabado o fim de seus trabalhos. E posto que adiante particularmente descrevemos o sítio desta cidade Calecute e da região Malabar em que ela está, a qual região é ua parte da província da Índia, 144 aqui, por 153 ser a primeira entrada em que os nossos tomaram posse deste descobrimento, per tantos anos continuado e requerido, faremos ua universal relação da província da Índia, pera melhor intendimento desta chegada de Vasco da Gama.

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144 47 153 Capítulo VII. Em que se descreve o sítio da terra a que propriamente chamamos Índia dentro do Gange, na qual se contém a província chamada Malabar, um dos reinos da qual é o em que está a cidade Calecute, onde Vasco da Gama aportou. A região a que os geógrafos propriamente chamam Índia, é a terra que jaz entre os dous ilustres e celebrados rios, Indo e Gange, do qual Indo ela tomou o nome, e os povos do antiquíssimo reino de Eli, cabeça per sítio e poder de toda esta região, e assi a gente pársea a ela vezinha, ao presente per nome próprio lhe chamam Indostão. E segundo a diliniação da távoa que Ptolomeu faz dela, e mais verdadeiramente pela notícia que ora com o nosso descobrimento temos, per excelência bem lhe podemos chamar a Grã Mesopotâmia. Porque, se os gregos deram este nome, que quere dizer entre os rios, àquela pequena parte da região babilónica que abraçam os dous rios Eufrates e Tigres, assi pela situação desta entre as correntes dos notáveis Indo e Gange, que descarregam e vasam suas águas em o grande Oceano Oriental, por fazermos diferença dela mais notável do que se faz em dizer Índia dentro do Gange, e Índia além do Gange, bem lhe podemos chamar a Grã Mesopotâmia ou Indostão, que é o próprio nome que lhe dão os povos que a habitam e vezinham, por nos conformarmos com eles. A qual região as correntes destes dous rios, per ua parte, e o grande Oceano Índico per outra, a cercam de maneira, que quási fica ua Quersoneso entre terras de figura de lijonja, a que os geómetras chamam rombos, que é de iguais lados e não de ângulos rectos. Cujos ângulos opósitos em maior distância, jazem Norte-Sul: o ângulo desta parte do Sul faz o cabo Comori, e o da parte do Norte, as fontes dos mesmos rios. As quais, peró que sobre a terra arrebentem distintas em os montes a que Ptolomeu chama Imao, e os habitadores deles Dalanguer e Nangracot, são estes tam conjuntos uns aos outros, que quási querem esconder as fontes destes dous rios. E segundo 154 fama do gentio comarcão, parece que ambos nacem 47v de ua vea comum, donde naceu a fábula dos dous irmãos que anda entre eles, a qual recitamos em a nossa Geografia. A distância destas fontes ao cabo Comori, a elas opósito, será pouco mais ou menos, per linha directa, quatrocentas léguas; e os outros dous ângulos, que per contraira linha jazem de Levante a Ponente, per distância de 145 trezentas léguas, fazem as bocas dos mesmos rios Indo e Gange, ambos mui soberbos com as águas do grande número dos outros, que se neles metem. E quási tanta é a parte da terra que eles abraçam, quanta a que per os outros dous lados cerca o Mar Oceano, que ambos se ajuntam no Cabo Comori, a fazer aquele agudo canto que ele tem, com que fica a figura da lijonja que dissemos. E posto que toda esta província Indostão seja povoada de dous géneros de povo em crença, um idólatra e outro mahometa, é mui vária em ritos e costumes, e todos entre si a tem repartida em muitos reinos e estados, assi como em os reinos de Moltão , Deli, Cospetir, Bengala em parte, Orixá, Mando , Chitor, Guzarate, a que comumente chamamos Cambaia. E no reino Dacão, dividido em muitos senhorios que tem estado de reis com o de Pale que jaz entre um e o outro, e no grande reino de Bisnagá que tem debaixo de si alguns régulos com toda a província do Malabar, repartida entre muitos reis e príncipes de mui pequenos estados, em comparação dos outros maiores que calamos, parte dos quais são isentos e outros súbditos destes nomeados. E segundo estes povos entre si são belicosos e de pouca fé, já toda esta grande região fora súbdita ao mais poderoso, se a natureza não atalhara à cobiça dos homens com grandes e notáveis rios, montes, lagos, matas e desertos, habitação de muitas e diversas alimárias, que empedem passar

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de um reino a outro. Principalmente alguns notáveis rios, parte dos quais, não entrando na madre do Indo e Gange, mas regando as terras que estes dous abraçam com muitas voltas, vem sair ao grande Oceano, e assi muitos esteiros de água salgada tão penetrantes a terra, que retalham a marítima de maneira que se navega per dentro. E a mais notável divisão que a natureza pôs nesta terra, é ua corda de montes a que os naturais per nome comum, por o não terem próprio, chamam Gate, que quere dizer serra; os quais montes, tendo seu nacimento na parte do Norte, vem correndo contra o Sul, assi como a costa do mar vai a vista dele, leixando entre as suas praias e o sertão da terra ua faixa dela, chã e alagadiça, retalhada de água, em modo de 155 leziras em alguas partes, té irem fenecer no cabo Comori, o qual curso de montes se estende perto de duzentas léguas. Peró começando no rio chamado Carnate, vezinho ao cabo e monte de Li, mui notável aos navegantes daquela costa e altura de doze graus e meio da parte do Norte, entra ua faixa de terra, que jaz entre este Gate e o mar, de largura de dez té seis léguas, segundo as enseadas e cotovelos se encolhem ou bojam, a qual faixa de terra se chama Malabar, que terá de comprimento obra de oitenta léguas, onde está situada a cidade Calecute. Neste tempo que Vasco da Gama chegou a ela, posto que geralmente toda esta terra Malabar fosse habitada de gentios, nos portos do mar viviam alguns mouros, mais por 146 razão da mercadoria e trato que por ter algum estado na terra, porque todolos reis e príncipes dela eram do género gentio e da linhagem dos brâmanes, gente a mais douta e religiosa em seu mode de crença de todas aquelas partes. E o mais poderoso príncipe daquele Malabar era el-Rei de Calecute, o qual por excelência se chamava Samori, que acerca deles é como entre nós o título de emperador. Cuja metrópoli de seu estado, da qual o reino tomou o nome, é a cidade Calecute, situada em ua costa brava, não com grandes e altos edifícios, somente tinha alguas casas nobres de mercadores mouros da terra e doutros do Cairo e Meca ali residentes, por causa do trato da especearia, onde recolhiam sua fazenda com temor do fogo. Toda a mais povoação era de madeira coberta de um género de folha de palma, a que eles chamam ola. E como nesta cidade havia grande concurso de várias nações, e o gentio dela mui supersticioso em se tocar com gente fora de seu sangue, principalmente os que se chamavam brâmanes e naires, destes dous géneros de gente, sendo a mais nobre da terra, viviam nela mui poucos, toda a outra povoação era de mouros e gentio mecânico. Pola qual causa também el-Rei estava fora da cidade, em uns paços que seriam dela quási meia légua entre palmares; e a gente nobre apousentada per derredor, ao modo que cá temos as quintãs. E porque (segundo dissemos) adiante particularmente escrevemos as cousas deste reino Calecute, não procedemos aqui mais na relação delas.

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146 48 156 Capítulo VIII. Como Vasco da Gama mandou recado a el-Rei de Calecute, que era chegado ao porto de sua cidade, e depois per sua licença se viu com ele duas vezes. Ao tempo que Vasco da Gama chegou a esta cidade Calecute, que era a vinte de Maio, princípio do inverno naquela costa, não havia no porto o grã tráfego e número de naus que nele estão à carga nos meses do verão, porque as estrangeiras que ali costumavam vir eram tornadas a suas terras, e as do mesmo reino de Calecute per os rios e esteiros estavam metidas em fossas cobertas com folha de palma, segundo costumam per toda aquela costa; e por esta chegada ser fora do tempo da sua navegação, tanto espanto fez aos da terra como a feição e mareagem dos navios, e logo lhe pareceu gente nova e não costumada navegar aqueles mares. Vasco da Gama, tanto que ancorou um pouco largo do porto por causa de um recife em que o mar quebrava, mandou em terra o mouro piloto e um degredado, notificando per eles a el-Rei sua chegada e o recado que lhe trazia, pedindo que lhe mandasse dizer quando havia por bem que fosse a ele, porque sem sua licença não sairia dos navios. O mouro Malemo Caná, como quem sabia a terra, foi-se 147 logo aos paços del-Rei, e, porque achou nova que era um lugar que seria dali cinco léguas, sem tornar aos navios com recado se foi a ele. Vasco da Gama, por lhe este Caná ter dito quão pequena distância havia da cidade aos paços del-Rei, vendo que não vinha aquele dia e que era passado a maior parte do outro, começou tomar má suspeita dele, e principalmente porque, de quantos barcos saíam a pescar, todos se afastavam dos navios, como gente temerosa, ou per qualquer outra causa que fosse. Porém quando veo ao outro dia à tarde tirou toda esta suspeita, com a vinda deles e de um piloto do Samori, per o qual ele lhe fazia saber o contentamento que tinha de sua vinda, e que, postos os navios em um porto seguro, onde lhe ele mandava que os levassem por causa do inverno, depois lhe mandaria dizer quando havia por bem que fosse a ele. Com o qual recado Vasco da Gama ficou mui satisfeito, principalmente na mudança dos navios daquela costa a lugar mais seguro, porque nisto mostrava el-Rei per obra o que lhe mandava dizer per palavra, acerca do contentamento que tinha de sua vinda, e que de tal acolhimento do primeiro recado que lhe mandava podia esperar ser bem despachado. E por mostrar maior confiança a este piloto que lhe el-Rei mandou, disse que ele podia mandar naqueles navios o que quisesse, porque todos lhe obedeceriam, e assi se fez: ca, pela ordenança do piloto, se passaram a um porto chamado Capocate, 157 perto dali, onde Vasco da Gama esteve esperando dous dias recado del-Rei, sem da terra virem aos navios nem deles irem a ela. Ante que ele viesse com os navios a este porto, o dia que o piloto del-Rei lhe trouxesse seu recado pera se mudar aqui, entre alguns oficiais da arrecadação dos direitos del-Rei, que vieram com ele, foi um mouro per nome Monsaide, cujo ofício era corrector de mercadorias; o qual, por ser conhecente do piloto Malemo Caná, ele o agasalhou em sua casa, e assi o degredado, a noite que dormiram em terra. Este Monçaide (segundo ele depois contou) era natural do reino de Tunes e tevera já comunicação com os portugueses em a cidade Ourão, quando ali iam as naus deste reino per mandado del-Rei Dom João, o segundo, buscar lambéis pera o resgate do ouro da Mina; e ou que a lembrança destas partes do Ocidente, onde nacera, ou qualquer outra boa disposição, assi o demoveram, vendo e praticando com os nossos per língua castelhana, que ele sabia, que da hora que entrou em os navios assi se fez familiar a Vasco da Gama, que se veo com ele pera este reino, onde morreu cristão. O qual, como esperava acabar neste estado, era tam fiel a nossas cousas, que per

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meio dele foi Vasco da Gama avisado de muitas; e parece que Deus o trouxe àquelas partes pera proveito nosso, segundo o que passou, como veremos. E logo em dous dias que Vasco da Gama esteve esperando por recado do Samori, este Monçaide o avisou dalguas cousas, por razão das quais ele teve conselho com os capitães do modo que teria em ir ao 148 Samori, quando o mandasse chamar; e assentou que seu irmão e Nicolau Coelho ficassem em os navios, dando-lhe regimento do que haviam de fazer. Vindo o recado do Samori que fosse, saiu Vasco da Gama com doze pessoas em terra, onde o recebeu um homem nobre a que eles chamam Catual, acompanhado de duzentos homens a pé, deles pera levarem o fato dos nossos e deles que serviam de espada e adargas 48v como guarda de sua pessoa, e outros de o trazer aos ombros em um andor, porque em toda aquela terra Malabar não se serve de bestas, um dos quais andores foi também apresentado a Vasco da Gama pera ir nele. Posto o Catual e ele em caminho pera Calecute, que seria dali cinco léguas, começaram os doze que levava ficar de dous em dous, porque, além de o caminho ser de area e eles desacostumados de caminhar, era tam grande o curso dos que levavam o andor, que em todo o caminho foi Vasco da Gama sem eles, té a noite se ajuntarem em um lugar onde o Catual dormiu. Quando veo ao outro dia, que tornaram caminhar, chegaram a um grande templo de gentio da terra, mui bem lavrado de cantaria com um coruchéu coberto de tijolo, à porta do qual estava um padrão grande de latão e encima, por remate, um galo. E dentro, no corpo do templo, 158 estava um portal, cujas portas eram de metal, per que entravam a ua escada que subia ao coruchéu, ao pé do qual, onde ficava o redondo dele em modo de charola, estavam alguas imagens da sua adoração. Os nossos, como iam crentes ser aquela gente dos convertidos pelo apóstolo São Tomé, segundo a fama que cá nestas partes havia, e eles achavam per dito dos mouros, alguns se assentaram em giolhos a fazer oração àquelas imagens, cuidando serem dignas de adoração. Do qual auto o gentio da terra houve muito prazer, parecendo-lhe sermos dados ao culto de adorar imagens, o que eles não viam fazer aos mouros. Partidos deste templo, chegaram a outro junto de ua povoação onde estava apousentado outro Catual, pessoa mais notável que vinha per mandado do Samori receber Vasco da Gama. O qual, quando saiu a ele, era com muita gente de guerra, todos adargados a seu modo, tam postos em ordem com seus instrumentos de tanger pera os animar, que folgaram os nossos em os ver naquela ordenança, e mais, sendo feita por honra de sua vinda. Chegado o Catual a Vasco da Gama, depois que, segundo seu uso, o recebeu com muita cortesia, mandou-lhe dar outro andor que trazia adestro, melhor concertado que aquele em que vinha, e sem fazer mais detença, seguiram seu caminho aos paços del-Rei. Onde Vasco da Gama esperou polos seus, que não podiam aturar o curso daqueles que levavam o andor, e o maior dano que recebiam era do grande povo, que quási os levava afogados polos ver. E ainda sobre isso, à entrada de um grande terreiro cercado, era tanta pressa por entrarem na volta deles, que veo o negócio às punhadas e di ao ferro, 149 em que houve feridos e um morto, primeiro que os oficiais del-Rei apagassem o arruído; e porém sempre teveram tanto resguardo em as pessoas dos nossos, que em toda a revolta não lhe foi feito algum desacatamento. Passado aquele terreiro, entraram em um pátio de alpendres, onde acharam Vasco da Gama e o Catual com algua gente mais limpa esperando por eles; e sem tomar algum repouso daquela afronta em que vinham, entraram todos em ua grã casa térrea, em que estava aquele grande Samori da província Malabar, per eles tam desejado de ver. De junto do qual se alevantou um homem de

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grande idade, que era o seu brâmane maior, vestindo uas vestiduras brancas, representando nelas e em sua idade e continência ser homem religioso. E chegando ao meio da casa, tomou Vasco da Gama pela mão e o foi apresentar ao Samori. O qual estava no cabo da casa, lançado em ua camilha coberta de panos de seda, posto em um leito a que eles chamam cátel, e ele, vestido com um pano de algodão burnido com alguas rosas de ouro batido, semeadas per ele, e na cabeça ua carapuça de brocado, alta, a maneira de mitra cerrada, chea de perlas e pedraria, e per os braços e pernas, que estavam descobertos, tinha braceletes de ouro e pedraria. E a ua ilarga deste leito, em que jazia com a cabeça posta sobre ua almofada de seda rasa, com lavores de ouro a maneira de broslado, estava um homem que parecia em trajo e ofício dos mais principais da terra, o 159 qual tinha na mão um prato de ouro com folhas de bétel e que eles usam remoer por lhe confortar o estômago. O Samori, posto que no ar do rosto recebeu Vasco da Gama com graça, tinha tamanha majestade, e assi estava grave naquele seu cátel, que não fez mais movimento para ele quando lhe falou, que levantar a cabeça da almofada, e des i acenou ao brâmane que o fizesse assentar em uns degraus do estrado em que tinha o cátel, e aos de sua companhia em outra parte um pedaço afastados, por ver que havia mister tomar algum repouso, segundo vinham afrontados do caminho. E depois que per um espaço grande esteve notando as pessoas, trajos e autos deles, e praticando em palavras gerais com Vasco da Gama, recebidas dele duas cartas que lhe mandava el-Rei Dom Manuel, ua escrita em arábigo 49 e outra em língua português, que era da mesma substância, disse-lhe que ele as veria, e depois mais de vagar ouveria a ele; que por então se fosse a repousar. Que, quanto ao seu gasalhado, visse com quem queria que fosse, se com mouros ou com os naturais da terra, pois ali não havia gente da sua nação, segundo tinha sabido. Ao que Vasco da Gama respondeu, que entre os mouros e cristãos havia diferença acerca da lei que tinham, e outras paixões particulares, e que com os seus vassalos, por ele e os de sua companhia não saberem seus costumes e temiam de os poder enojar, pedia a sua real senhoria que os mandasse apousentar sem companhia algua. O que aprouve ao 150 Samori, mandando ao Catual que o contentasse; e louvou Vasco da Gama de homem prudente e cauteloso nas cousas da paz, segundo o mouro Monçaide lhe veo contando pelo caminho, até chegarem à cidade Calecute, já bem noite. E entre alguas cousas que o Catual fez, de que Vasco da Gama teve dele boa esperança pera seus negócios, foi mandar a este Monçaide que se não apartasse dele, pera poder requerer o que houvesse mister, vendo que lhe era aceito por se entender em algua maneira com ele, o que Monçaide aceitou de boa vontade, e quási ele se ofereceu a isso. Parece que o chamava Deus por algua boa disposição que nele havia pera se salvar, segundo logo mostrou na verdade que tratava e fiéis conselhos que deu, um dos quais foi este: Querendo Vasco da Gama, ao seguinte dia, ir ao Samori, a lhe dar a embaixada que levava, o Catual o entreteve, dizendo que os embaixadores que vinham ao Samori e a todolos príncipes daquelas partes da Índia, tinham per costume não irem ante o príncipe, senão quando ele os mandava chamar; e mais, que primeiro repousavam alguns dias. No qual caso, aconselhou Monçaide, pera esta ida ser mais prestes, dizendo que o mais certo costume dos príncipes daquelas partes era não ouvirem alguém sem lhe primeiro levar algua cousa, e quanto o embaixador era mais estranho, tanto maior presente esperavam, e que dele não ter isto feito el-Rei o não ouviu logo; portanto, 160 se queria ser bem aviado, começasse de usar do costume da terra, porque ante o Rei não pode ir alguém com as mãos vazias. E também os seus oficiais, per cuja mão os negócios corriam, convinha per este modo serem contentes, ca doutra maneira seria tarde ouvido e sobre isso mal despachado.

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Vasco da Gama, posto que não lhe esquecia ser esta a entrada e saída com que se acabam os negócios em toda parte, não lhe pareceu que tardava em um dia; mas, sabendo per Monçaide quanto lhe importava, mandou logo a el-Rei alguas cousas, as quais foram com este recado de desculpa: Que quando partira de Portugal, por não ter certo que podia passar à Índia e ver sua real pessoa, não fora apercebido como devia; que aquelas cousas eram das que trazia pera seu uso, que lhas enviava, não tanto por sua valia, quanto por mostra das que havia em Portugal, e ainda aquelas escaparam da humidade do mar, por haver muito tempo que andava nele. Tanto que o Samori teve este presente, e os seus oficiais foram satisfeitos, segundo o conselho de Monçaide, foi Vasco da Gama levado ante ele, ao qual recebeu já com mais honra em outra casa; e mandando-o assentar, lhe disse: Que ele tinha visto ua das cartas que lhe dera escrita em arábigo e nela se continha a boa vontade e amor que el-Rei de Portugal, seu senhor, lhe mostrava ter, e assi enviá-lo a ele pera alguas cousas que faziam a bem de paz e comércio de entre ambos que lhe ele diria; portanto podia falar nisso. Vasco da Gama, havida esta licença, como já 151 estava amoestado per Monçaide do uso daqueles príncipes - que é serem mui taxados em ouvir e responder e terem as orelhas mais prontas no seu proveito que na eloquência da embaixada, e mais quando é relatada per terceiro, os quais intérpretes geralmente dizem a substância da cousa e não as vivas razões dela - por se conformar com o modo da terra, nestas palavras resumiu o que lhe era mandado: Que a causa principal que movera a el-Rei, seu senhor, enviá-lo àquelas partes orientais, tam remotas do seu estado, fora ser ante ele mui celebrada a fama da real pessoa dele, Samori, e da grandeza do seu senhoria, e estarem em seu poder a maior parte das especearias que per mãos dos mouros se navegavam pera as partes da Cristandade. E porque ele tinha descoberto per seus capitães novo caminho pera entre eles haver amor, prestança e comunicação de comércio, com que o reino dele, Samori, fosse mais rico por causa do muito ouro, prata, sedas e outra muita sorte de preciosas mercadorias, de que o seu reino de Portugal era tão abastado quanto o de Calecute de pimenta, ele, senhor Rei, o enviava 49v com aqueles três navios a lhe notificar esta sua tenção; e sendo-lhe aceita, armaria mui grossas naus carregadas desta fazenda, e a ordem e modo do comércio e preço das cousas seria aquele que fosse em proveito de ambos. O Samori a estas palavras respondeu com outras muito mais breves, em que mostrou ter contentamento da causa da vinda dele, Vasco da Gama; e acabou dizendo que ele o despacharia mui cedo, e com isto o espediu.

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151 49v 161 Capítulo IX. Da consulta que os principais mouros de Calecute teveram sobre a ida de Vasco da Gama àquelas partes, e como o Samori por causa deles o espediu. Os mouros, assi naturais da terra como alguns estrangeiros que estavam naquela cidade Calecute, por razão do trato da especearia, do qual negócio eles eram senhores, navegando-a per o Mar Roixo, quando viram que a embaixada de Vasco da Gama era a fim do comércio destas especearias, ficaram mui tristes, principalmente sabendo o contentamento que o Samori tinha de um Rei de tam longe terra, como era o Ponente, lhe enviar embaixada, e que louvava os nossos, dizendo que lhe parecia gente de boa razão e que seria proveitosa, vindo àquele seu reino, pois eram senhores de tantas mercadorias, como diziam. Sobre o qual caso os principais a que isto mais tocava teveram consulta, e entre muitas razões que foram trazidas do grande dano que todos receberiam, se entrássemos na Índia, foi o que contou um deles, dizendo que o ano passado, sobre duas naus de Meca, que tardavam, em que lhe vinha fazendo, fizera pergunta a alguas 152 pessoas que usam do ofício de astrologia e doutras artes que daqui dependem ua das quais pessoas, que ele daria por testemunha como autor da obra, em um vaso de água lhe mostrara as naus perdidas, e mais outras a vela, que dezia partirem de mui longe pera vir à Índia, que a gente delas seria total destruição dos mouros daquelas partes. E porque em verdade elas eram perdidas, como todos sabiam, pois a todos tocara esta perda, podia-se tomar suspeita do mais na vinda daqueles navios ali chegados, pois a gente deles era cristã, capital imiga de mouros. Finalmente com esta história, ora fosse fingida pera induzir os outros (posto que sem ela eles estavam bem movidos contra os nossos) ora que o demónio lhe quis representar aquele seu futuro mal, a conclusão da consulta acabou que buscassem todolos modos possíveis pera sumir os nossos navios no fundo do mar, e que as pessoas, como ficassem em terra, um e um os iriam gastando, com que não houvesse memória deles nem do que tinham descoberto. Porém, temendo que o Samori se podia escandalizar, se pubricamente nisso fizessem algua cousa, pareceu-lhe mais seguro modo ser este caso cometido pelo executor de todalas más sentenças, que é o dinheiro, subornando com ele ao Catual, que tinha cargo dos nossos, pera que indinasse a el-Rei contra eles com alguas razões aparentes que lhe deram pera o caso, afirmando serem verdadeiras e que convinham ao bem e paz da terra. 162 O Catual, como lhe encheram as mãos e as orelhas, começou logo fazer seu ofício, e a primeira obra foi não consentir que os nossos saíssem da casa em que estavam, por não verem a cidade nem o trato dela, dando entender a Vasco da Gama que, enquanto não fosse despachado, não tinham licença pera andar soltamente pela cidade, e mais convinha a ele ser isto assi, por evitar algum escândalo que podiam receber dos mouros, pois entre todos havia paixões por razão do que cada um cria acerca das cousas de Deus. Com as quais palavras, per que ele mostrava ordenar tudo a bem de paz, em obras negava-lhe o necessário que haviam mister, em que Vasco da Gama intendia parte da sua tenção; e começou logo requerer seu despacho sem outra carga de especearia. Porque, tornando ele a este reino com nova do que tinha descoberto, tempo ficava pera el-Rei mandar frota com que haveria quanta quisesse, sem temer as naus de Meca, com a vinda das quais o asombrava o mouro Monsaide, dizendo serem grandes e poderosas, de que poderia receber dano; portanto trabalhasse por se espedir daquela terra, ante que eles viessem. Vasco da Gama, como per estes e outros avisos que lhe tinha dado, intendeu ser homem fiel, per ele escreveu a seu irmão Paulo da Gama, fazendo-lhe saber o que passava e sentia dos

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mouros, encomendando-lhe resguardo na comunicação 50 da gente da terra que fossem a bordo dos navios, porque os mouros tudo haviam de tentar pera os meter em ódio com o gentio da terra. O Catual, tanto que viu tempo pera isso, disse ao Samori que geralmente todolos 153 homens do Ponente, que estavam naquela cidade, diziam que aqueles que ali eram vindos na sua própria terra viviam mais deste ofício de cossairos que de trato e mercadoria; e como homens perseguidos na terra de seus naturais se desterravam pera parte onde não fossem conhecidos. Que as cartas que lhe deram em nome de embaixadores que traziam, tudo era artefício pera encobrir a infâmia de vagabundos, ca não estava em razão, um Rei de tam longe como era o Ocidente da terra da Franquia, mandar-lhe embaixada que não trazia mais fundamento que desejo de sua amizade, e que a mesma cousa per si mostrava não poder ser, porque ua das razões da amizade era a comunicação das pessoas e prestança nas obras, e que estas entre eles eram mui contrairas, assi por razão da crença diferente que cada um tinha, como por a grande distância de seus estados. E mais que um Rei tam poderoso e rico como eles diziam ser o seu, mal mostrava este poder no presente que lhe mandara, pois eram peças que qualquer mercador que vinha do Estreito as dava melhores. Quanto a dizerem ser enviados por razão de especearia, eles não traziam mercadoria que dessem sinal disso; e ainda que tudo fosse como eles diziam, não devia querer perder proveito tam certo, como tinha nos mouros, pelo que prometiam homens que habitavam nos fins da terra, os quais haviam mister dous anos de navegação. Quanto mais que, vendo os 163 mouros como sua real senhoria favorecia homens novos e de que se tanto mal dizia, e sobre tudo seus imigos, era causa de grande escândalo para eles, e não seria muito perdê-los - cousa que ele devia muito temer, pois perdendo a eles, perdia vassalos, e não virem mais a seu porto naus de Meca, Judá, Adem, Ormuz e doutras muitas partes, no comércio das quais estava todo seu estado. Que ele em dizer isto compria com a obrigação que lhe devia, que era representar-lhe as cousas de seu serviço; que, além do seu, devia tomar parecer doutras pessoas, apontando-lhe logo em alguns seus oficiais que ele, Catual, sabia já estarem da parte dos mouros, ca pelo testemunho destes ficavam suas palavras com maior fé. El-Rei, ainda que era homem prudente e tinha tenteado quanto proveito podia receber neste novo caminho que os nossos abriram pera dar maior saída às suas especearias, tanto poder teveram nele estas palavras do Catual, que, sem mais examinar a verdade, com os outros testemunhos que lhe o mesmo Catual nomeou, depois que lhe pediu seu parecer, ficou assi transtornado, que teve os nossos na conta que lhe eles pintaram; de maneira que faleceu pouco de lhe ordenarem cousa com que nunca cá vieram. Mas como as que Deus ordena não se podem contrairar pelos homens, ainda que em algua maneira pareça que as empedem, o modo que estes mouros buscaram de os destruir, essa foi a causa de serem mais 154 cedo despachados, ante que viessem as naus de Meca. Porque tanto que o Samori concebeu o que lhe deziam, mandou chamar Vasco da Gama, e disse que lhe descobrisse ua verdade, que ele lhe prometia de lha perdoar, por ser cousa natural aos homens buscarem cautelas e modos de sua abonação pera fazerem seu proveito; e que se andavam desterrados por algum caso, ele os ajudaria em tudo; ca, segundo tinha sabido dalguns homens das partes da Franquia, donde diziam ser, eles não tinham rei, ou, se o havia na sua pátria, o seu ofício mais era andar pelo mar de armada a maneira de cossairos, que por razão do comércio. Vasco da Gama, quando ouviu tais palavras, sem leixar ir el-Rei mais avante com elas, disse: Que verdadeiramente ele não punha culpa cuidarem deles muitas cousas, porque grã novidade devia ser a todolos seus vassalos verem naquelas partes nova gente em religião e costumes, e mais vindos per caminho nunca navegado, com embaixada de um poderoso Rei, que

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não pretendia mais interesse que sua amizade e comunicação de comércio, pera dar nova saída às especearias daquele seu reino Calecute. Porque homens, armas, cavalos, ouro, prata, seda e outras cousas à humana vida necessárias no seu reino as havia, tam abastadamente que não tinha necessidade de as ir buscar aos alheos, e mais tam remotos como eram os da Índia. Porém sabendo ele, Samori, o que el-Rei, seu senhor, quis de mil e seiscentas léguas de costa que 164 ele e seus antecessores mandaram descobrir, haveria não ser nova cousa enviar mais avante per esta 50v mesma costa, té chegar a sua real senhoria, cuja fama era mui celebrada nas partes da Cristandade. E nestas mil e seiscentas léguas que mandou descobrir, achando-se muitos reis e príncipes do género gentio, nenhua cousa quis deles, somente doutriná-los em a fé de Cristo Jesu, Redentor do Mundo, senhor do Céu e da Terra, que ele confessava e adorava por seu Deus, por louvor e serviço do qual ele tomava esta impresa de novos descobrimentos da terra. E com este benefício da salvação das almas, que el-Rei Dom Manuel procurava àqueles reis e povos que novamente descobria, também lhe enviava navios carregados de cousas de que eles careciam, assi como cavalos, prata, seda, panos e outras mercadorias. Em retorno das quais, os seus capitães traziam outras que havia na terra, que era marfim, ouro, malagueta, pimenta - dous géneros de especearia de tanto proveito e tam estimada nas partes da Cristandade, como a pimenta daquele seu reino de Calecute. Com as quais comutações, os reinos que sua amizade aceitavam, de bárbaros eram feitos políticos; de fracos, poderosos, e ricos de pobres, tudo à custa dos trabalhos e indústria dos portugeses. Nas quais obras el-Rei, seu senhor, não buscava mais que a glória de acabar grandes cousas por serviço de seu Deus e fama dos portugueses. Porém com os mouros, por 155 serem seus contrairos, contrairamente se havia, ca per força de armas, nas partes de África que eles habitam, lhe tinha tomado quatro principais forças e portos de mar do reino de Fez, por isso, onde quer que se achavam, não somente infamavam de boca o nome português, mas ainda maliciosamente lhe procuravam a morte, e não rostro a rostro, por terem experimentado o seu ferro. O testemunho da qual verdade se viu no que lhe fizeram em Moçambique e Mombaça, como sua real pessoa já teria sabido do piloto Caná, o qual engano e traição nunca achara, per quantas terras de gentios tinha descoberto. Porque estes naturalmente eram amigos do povo cristão, por todos virem de ua geração e serem mui conformes em alguns costumes e no modo dos seus templos, segundo tinha visto naquele seu reino de Calecute. Até os seus brâmanes, na religião que tinham da Trindade de três pessoas e um só Deus, que acerca dos cristãos era o fundamento de toda sua fé, se conformavam com eles, (peró que per outro modo mui diferente), a qual cousa os mouros contradizem. E de eles saberem esta conformidade de antre o povo gentio e cristão, trabalhavam que os portugueses ante ele, Samori, fossem infamados e avorrecidos, sendo-lhe já tam obrigado aos defender, pois não precedendo mais causas pera el-Rei, seu senhor, desejar sua amizade que ua fama da grandeza dele, Samori, folgara de o enviar a ele polas causas que lhe tinha dito. E isto não cometera somente aquele ano, mas era já tam continuado per tantos e el-Rei tam desejoso de ter descoberto este caminho de Portugal 165 pera a Índia, que ainda que ele, Vasco da Gama, per qualquer desastre não tornasse a Portugal, soubesse certo que el-Rei havia de continuar tanto este descobrimento, té lhe levarem recado dele, Samori. Portanto lhe pedia, como a emperador de toda aquela região Malabar, pois Deus a ele, Vasco da Gama, e aos seus companheiros tinha feito tanta mercê que fossem os primeiros que vieram ante ele, quisesse meter a mão de seu poder neste ódio que lhe os mouros tinham, e não consentisse serem eles causa dalgum grande incêndio de guerra naquelas partes, porque a gente português não dissimulava injúrias, e principalmente a mouros, dos quais tinha havido grandes vitórias.

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Mui atento esteve o Samori a todas estas palavras de Vasco da Gama, olhando muito a continência com que as dezia, como homem que do fervor e constância que lhe visse, queria conjecturar a verdade delas. E que de seu natural fosse homem prudente, e nos sinais que esguardou julgasse a verdade do caso, quis comprazer em parte à tenção dos mouros, que foi espedir Vasco da Gama, mandando-lhe que se tornasse aos navios e que ali lhe mandaria o despacho de sua embaixada, dizendo que por então isto lhe parecia convir a ele, Vasco da Gama, pois confessava que entre eles e os mouros havia aqueles 156 ódios, porque, ficando mais tempo na cidade, per ventura uns com os outros travariam em palavras, que fosse causa dele receber contra sua vontade algum dano, de que ele, Samori, teria desprazer. E com isto o espediu.

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156 51 165 Capítulo X. Como per indústria dos mouros Vasco da Gama e os que com ele estavam foram reteúdos. E, depois de recolhido aos navios e, postos em terras, Diogo Dias e Álvaro de Braga também foram presos, té que o Samori mandou prover nisso e os espediu de todo. Os mouros, quando souberam o que el-Rei mandava a Vasco da Gama, não ficaram mui satisfeitos, porque todo seu trabalho era ordenar que os seus navios fossem metidos no fundo, com fundamento que, ficando a gente em terra, poucos e poucos os iriam gastando; e, pera executar este propósito, fizeram com o Catual que os retevesse e obrigasse a tirar os navios em terra, pera de noite lhe porem fogo. O Catual, como em tudo queria comprazer aos mouros, levou Vasco da Gama fora de Calecute, mostrando que o acompanhava té o meio caminho de sua embarcação, e secretamente tinha mandado aos oficiais del-Rei 166 que estavam em Capocate, onde se espediu dele, que o retivessem, como homens que faziam aquilo por razão de seus ofícios . Quando ele viu que o retinham, bem lhe pareceu ser mais indústria dos mouros que mandado pelo Samori; e, porque pudesse ir ter a sua notícia, começou de se queixar gravemente com os ministros do caso, os quais responderam que ele se queixava mais sem causa do que a eles tinham em o reter como oficiais que eram del-Rei, obrigados a olhar o bem e segurança da terra. Porque a ele não o retinham com tenção de o querer anojar, mas com receo de ele fazer algum nojo à gente da terra, depois que se visse em os navios, segundo se dezia que eles fizeram nos portos per onde vinham. Que se ele e os seus eram gente pacífica, deviam usar o costume daquelas partes, principalmente naquele tempo do inverno, varando seus navios em terra e não estar sempre com a verga de alto, como gente que tinha ânimo de cometer algum mal. Ao que Vasco da Gama respondeu que os seus navios eram de quilha e não de feição dos da terra, e porisso era cousa impossível poderem ser varados, por não haver ali os aparelhos que no reino de Portugal havia pera aquela necessidade. Finalmente, tanto aperfiaram sobre o varar dos navios, ou que leixasse em terra alguns homens com mercadoria - e isto em modo de reféns, enquanto o Samori o não despachava, dizendo que a gente do mar lho queria, pera poderem ir pescar seguramente deles -, que conveo a Vasco da Gama leixar em terra, com algua pouquidade disso que levavam pera compra de mantimentos, a Diogo Dias por feitor, Álvaro de Braga por escrivão, Fernão 157 Martins, língua, e quatro homens do seu serviço, até ver em que parava o despacho do Samori. Os ministros desta obra, tanto que por ela ficaram seguros, consentiram que Vasco da Gama se embarcasse; mas, quanto a dar modo pera que Diogo Dias comprasse algua cousa, tudo eram artifícios pera o não poderem fazer; de maneira que, per espaço de seis ou sete dias, eles se haviam por presos e não por feitores. Té que, a força de queixumes de Vasco da Gama, acudiu o Catual, que era o autor destas cousas, e mandou-se desculpar ante ele, fingindo não ser disso sabedor, e porém que os oficiais tinham razão, por quanto o Samori o não tinha de todo despachado. E que por haver pouco que comprar ou vender naquele lugar, ele mandava levar os seus feitores a Calecute, onde havia cópia de tudo; portanto lhe parecia bom conselho que ele com os seus navios se fosse ao porto da cidade, por ser mais perto donde estava o Samori, pera seus negócios serem mais em breve despachados. Vasco da Gama, posto que sentisse que todos estes artifícios eram dilações pera o deter, té a vinda das naus de Meca, segundo lhe tinha dito

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167 o mouro Monçaide (o qual já neste tempo escondidamente vinha comunicar com ele), todavia, porque, estando mais perto del-Rei, per meio do mesmo Monçaide lhe poderia mandar algum recado, e mais saber o que se fazia com Diogo Dias e Álvaro de Braga, foi-se com os navios poer ante a cidade de Calecute, onde soube per Monçaide que, se os mouros não temeram poder com isso indinar o Samori, já os teveram mortos. Vasco da Gama, vendo este negócio tam danado e que o Samori era mudado dos paços donde lhe falara pera mais longe, sem haver comemoração de seu despacho, e que eles não tinham outro meio pera o requerer senão Monçaide, que já não ousava comunicar com eles, senão dando a entender aos mouros que era sua espia, ajuntou-se com Paulo 51v da Gama, Nicolau Coelho e os principais da companha dos navios, e teve conselho sobre o que deviam fazer. E determinaram-se que não devia esperar mais resposta del-Rei que os desenganos que lhe tinha dado em palavras e no modo de os espedir, leixando-os em poder de seus imigos tanto tempo sem lhe mandar resposta. Assentado este conselho, escreveu Vasco da Gama per Monçaide a Diogo Dias que, o mais secreto que pudessem, pera tal dia ante menhã se viessem à praia, porque ali achariam batéis pera os recolher; peró, como os mouros tinham vigia sobre eles, tanto que os sentiram, saltaram com eles e os prenderam, tomando-lhe quanta fazenda levavam. Vasco da Gama, vendo que a maldade dos mouros não se podia remedear com a paciência e sofrimento que com eles teve, nem tinha esperança dalgum despacho del-Rei, houve a mão obra de vinte tantos pescadores que vinham pescar ao mar, e com eles se fez à vela, que foi pera os mouros grande prazer, vendo alvoroçado todo o gentio com a grita e brados das mulheres destes 158 pescadores. A nova do qual caso, tanto que foi ao Samori, posto que os mouros per seus meios o queriam indinar contra os nossos, dizendo que per ali veria quem eles eram, todavia, por ter sentido o ódio que lhe tinham, ante de se determinar em outra cousa, mandou dous homens principais dos gentios sem suspeita, que lhe viessem saber como aquele negócio passava. Per os quais sendo informado como aquilo parecia ser mais represália por os seus homens que lhe os mouros prenderam que por outra causa, e mais que ele, capitão, andava a vela ua volta ao mar e outra a terra, como quem queria fazer razão de si, se a fizessem com ele, tornou logo a enviar estes mesmos homens, que levassem ante ele Diogo Dias e os outros que com ele estavam, com os quais teve prática sobre o modo de seu despacho. E mandou-lhe que escrevessem a Vasco da Gama que tratasse bem os homens que tomara, porque ele e seus companheiros estavam mui bem tratados em poder dele, Samori, e per eles lhe queria mandar o despacho. 168 Vasco da Gama com esta carta ficou mui contente, peró, temendo algua malícia dos mouros, duas ou três vezes se fez na volta do mar e outras tantas surgiu diante da cidade, porque as partes a que tocava a liberdade da gente que tinha tomado, clamassem ao Samori sua liberdade a troco dos nossos. Finalmente, pela informação que teve da verdade, despachou Diogo Dias, mandando per ele a Vasco da Gama ua carta que escreveu a el-Rei Dom Manuel, em que lhe dezia como recebera outra sua e ouvira seu embaixador e lhe respondera, e que a causa de sua partida per aquele modo foram diferenças antiguas de antre cristãos e mouros. Que ele teria muito contentamento de sua amizade e do comércio das cousas do seu reino, podendo ser sem aqueles escândalos, porque os mouros ele os havia por naturais do seu reino, por ser gente mui antígua naquele auto do comércio. Com a qual carta e alguas cousas que deu a Diogo Dias, o espediu, mandando àqueles dous senhores gentios que o entregassem a Vasco da Gama com a fazenda que lhe era tomada e houvessem dele os pescadores que tinha em represália. O que eles fizeram com alguas cautelas no modo da entrega, querendo ainda os mouros usar de suas maldades; mas contudo, recolhidos

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todolos nossos, por causa dalgua fazenda que lhe não quiseram entregar, Vasco da Gama reteve certos índios que trouxe consigo, e assi o fiel Monçaide, partindo logo aquele dia, que eram vinte nove de Agosto, havendo setenta e quatro dias que chegara àquela cidade Calecute.

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159 51v 168 Capítulo XI. Como Vasco da Gama se partiu do porto de Calecute, e foi ter à Ilha Anchediva, onde veo um judeu, o qual Vasco da Gama prendeu, e ele se fez cristão. E do mais que passou na sua viagem, té chegar a este reino. Partido Vasco da Gama não mui contente da espedida que houve em seu despacho, quando veo ao seguinte dia, andando em calma pouco mais de légua e meia de Calecute, vieram a ele obra de sessenta tonés, que são barcos pequenos, atulhados de gente, parecendo-lhe que por ser muita tinham pouco que fazer com a nossa; peró, como sentiram seu dano com a artelharia que ao longe os foi receber e principalmente com ua trovoada que os 52 derramou, eles tomaram por acolhita a terra e os nossos o mar, seguindo seu caminho a vista da costa. E desejando Vasco da Gama meter nela um dos padrões que levava, porque outro que mandou ao Samori per Diogo Dias pera se poer na cidade, segundo ficava na vontade dos mouros, era certo que não havia de estar muitas horas em pé, tanto se chegou 169 à terra pera escolher lugar notável onde o pusesse, que veo dar com ele um toné de pescadores. Per o qual escreveu ao Samori per mão de Monçaide, em que se queixou dos enganos que com ele usaram na entrega da gente e fazenda que tinha em terra, onde lhe ficava boa parte. E que não houvesse por mal levar ele consigo alguns dos seus naturais, porque não era afim de represária da fazenda, mas pera el-Rei, seu senhor, per eles se poder informar de seu estado e das cousas do seu reino, e ele, Samori, per o mesmo modo saber as de Portugal, quando ele, Vasco da Gama, ou outro capitão tornasse àquela sua cidade, que seria o ano seguinte, como ele esperava em Deus, pera confusão dos mouros. Espedido este barco, tornou seguir seu caminho com desejo de meter o padrão que dissemos; e por não achar lugar mais à sua vontade, em uns ilhéus pegados com terra, meteu um per nome Santa Maria, donde os ilhéus se chamam ora de Santa Maria, os quais estão entre Bacanor e Baticalá, dous lugares notáveis daquela costa; e no arvorar dele se achou algum gentio da terra que o fizeram com muito prazer, por o bom tratamento que lhe Vasco da Gama fazia e cousas que dava. Assi que, com este padrão, que foi o derradeiro em tempo, leixou Vasco da Gama nesta viagem postos cinco padrões: São Rafael, no Rio dos Bons Sinais; São Jorge, em Moçambique; Santo Espírito, em Melinde; Santa Maria, nestes ilhéus; e o último per sítio em Calecute, chamado São Gabriel. Os quais, peró que não sejam postos per nação tão gloriosa de escrever, como foi a gente grega, nem o nosso estilo possa alevantar a glória deste feito no grau que ele merece, ao menos será recompensado 160 com a pureza da verdade que em si contém, não contando os fabulosos trabalhos de Hércules em poer suas colunas; nem pintando algua argonáutica de capitães gregos, em tam curta e segura navegação como é de Grécia ao Rio Faso, sempre a vista da terra, jantando em um porto e ceando em outro; nem escrevendo os errores de Ulisses, sem sair de um clima, nem os vários casos de Eneas em tam breve caminho; nem outras fábulas da gentilidade grega e romana, que com grande engenho na sua escritura assi decantaram e celebraram a impresa que cada um tomou, que não se contentaram com dar nome de ilustres capitães na terra aos autores destas obras, mas ainda com nome de deuses os quiseram colocar no céu. E a gente português, católica per fé e verdadeira adoração do culto que se deve a Deus, arvorando aquela divina bandeira de Cristo, sinal de nossa Redenção, de que a Igreja canta Vexilla regis prodeunt, não somente a vista dos mouros de África, Pérsia e Índia, pérfidos a ela, mas diante de todo o pagaismo destas partes que dela nunca teveram

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notícia - e isto navegando per tantas mil léguas que vem a ser antípodas de sua 170 própria pátria, cousa tam nova e maravilhosa na opinião das gentes, que até doutos e mui graves barões em suas escrituras puseram em dúvida de os haver; nas quais partes eles houveram vitórias de todas estas nações, contendendo com os perigos do mar, trabalhos de fome e sede, dores de novas enfermidades, e finalmente com as malícias, traições e enganos dos homens, que é mais duro de sofrer - assi são próprias todas estas cousas em a nação português, e as tem por tam natural mantimento depois que nacem, que os faz fastientos no trabalho de as querer contar e escrever, como se tevesse a seus próprios feitos ódio pera os ouvir, depois que os faz, como são apetitosos pera os cometer, e apressados no auto de os fazer, e constantes em os segurar. Certo, grave e piadosa cousa de ouvir, ver ua nação a que Deus deu tanto ânimo, que se tevera criado outros mundos já lá tevera metido outros padrões de vitórias, assi é descuidada na posteridade do seu nome, como se não fosse tam grande louvor dilatá-lo per pena, como ganhá-lo pela lança . E tornando a Vasco da Gama, autor de tão ilustre feito - que na distância da terra em que pôs estes cinco padrões per linha direita de Ponente a Levante, descobriu mil e duzentas léguas, começando no Rio do Infante, onde acabou Bartolomeu Dias, té o porto da cidade Calecute - tanto que leixou posto este padrão Santa Maria, foi ter per enculca do gentio da terra, desejando de espalmar os navios, em outros ilhéus pegados com terra firme, aos quais 52v nós agora chamamos Angedivida e os canaris Anchediva (anche quere dizer cinco, diva ilhas, por eles serem cinco) posto que o notável é um de que ao diante faremos maior relação, por causa de ua fortaleza que el-Rei Dom Manuel nele mandou fazer. 161 Na qual parte, estando Vasco da Gama em trabalho de espalmar seus navios e fazendo aguada, por ser a melhor de toda aquela costa, onde geralmente todalas naus que per ali navegam a vem fazer, e o gentio dali mui satisfeito pelas cousas que lhe mandava dar, veo a ele um cossairo, per nome Timoja, que depois, como adiante se verá, foi grande nosso amigo. Este, 171 tanto que teve notícia dos nossos navios e que a gente deles era estrangeira, saiu de um lugar onde ele vivia, chamado Onor, perto dali, e, como homem sagaz, quis cometer os nossos per este artifício, ajuntando oito navios de remo pegados uns em outros, todos cobertos de rama que pareciam ua grande balsa dela. Vasco da Gama, quando viu que de terra esta balsa vinha contra ele, preguntou aos índios que ali andavam familiares que visão era aquela, ao que eles responderam que não se espantasse dela, que eram invenções de um fraco cossairo que costumava cometer alguns navios que per ali passavam. Todavia Vasco da Gama, ante que Timoja se chegasse mais a ele, mandou a seu irmão Paulo da Gama e a Nicolau Coelho que o fossem salvar com artelharia, como eles fizeram, e foi a salva de maneira que os barcos enramados se derramaram logo acolhendo-se a terra. Na qual fugida Nicolau Coelho tomou um deles, em que acharam arroz e outro mantimento da terra com algua pobreza de suas provisões. Passado o dia deste cossairo Timoja, que per aquele modo quisera cometer os nossos navios, como a terra era já chea da estância que eles ali faziam, sobreveo outro caso que, se fora avante, lhe houvera de dar muito trabalho, e foi este: Um senhor mouro chamado Sabaio, cuja era ua cidade per nome Goa, que ora é a metrópoli que este reino tem naquelas partes, daquela ilha de Anchediva até doze léguas, como era homem que tinha consigo arábios, párseos, turcos e alguns levantiscos arrenegados, com ajuda e indústria dos quais tinha naquelas partes adquerido grande estado, tanto que soube como os nossos navios eram de gente destas partes da Cristandade, desejando haver informação dela, chamou um judeu natural de Polónia, que lhe servia de Xabandar, e perguntou-lhe se tinha sabido de que nação era a gente que vinha naqueles navios. Ao que este judeu respondeu ter sabido que se chamavam

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portugueses, que habitavam nos fins da terra da Cristandade, a qual gente sempre ouvira nomear por guerreira, sofredor de trabalho e mui leal ao senhor que serviam; que se ela era a que lhe diziam, devia trabalhar pola haver a seu serviço, porque com os tais homens se podiam fazer grandes conquistas. O Sabaio, ouvindo este louvor dos nossos, como procurava haver em seu serviço gente de guerra, mandou a este judeu que fosse a eles e os cometesse da sua parte com algum partido favorável, e quando o não aceitassem, ele mandaria três ou quatro navios armados que estevessem em seu resguardo, pera que, dando-lhe aviso, os viessem cometer; que se partisse ele, porque os navios iriam logo nas 162 suas costas. Partido o judeu com este fundamento, veo ter em um pequeno barco 172 junto de ua ponta da terra firme que estava sobre os nossos navios; e, posto sobre aquele teso, começou em altas vozes bradar que queria falar ao capitão, e que o assegurassem per aquele sinal, mostrando ua cruz de pau. Vasco da Gama, quando viu a cruz, fez-lhe em seu coração reverência, dizendo que, debaixo daquele sinal de sua Redenção, ele não esperava engano ou mal que lhe fosse feito; e convertendo-se aos gentios que ali andavam, familiares com ele, perguntou-lhe se conheciam aquele homem que bradava. Os quais, como andavam contentes do bem que lhe ele mandava fazer, disseram: - Senhor, não te fies deste, porque é soldado do senhor de ua cidade chamada Goa, que está perto daqui, e como é mouro - gente com que vós outros estais em ódio - per ventura virá com algum engano. Vasco da Gama, como teve esta notícia dele, mandou-lhe responder que, se queria algua cousa e ele era homem seguro, que o segurava. Ao que o judeu respondeu que ele vinha com muita verdade, e que na confiança dela se entregava em seu poder. Com as quais palavras deceu do lugar onde estava e se veo a ele, mostrando ua seguridade como quem não trazia no peito outra cousa; mas Vasco da Gama de boa entrada lho descobriu, logo querendo-o meter a tormento. Quando o judeu se viu naquele estado, começou de pedir que por amor de Deus o não mandasse atormentar, que ele diria toda a verdade a que era vindo, e que, primeiro de vir a este caso, lhe queria contar o princípio de seu nacimento e vida, per 53 a qual e pelo que ao presente sentia dela e da vinda deles naquelas partes, lhe parecia que não era somente por salvação dele, mas ainda pola de tantas mil almas como havia no gentio daquelas partes. Porque não estava em razão homens tam ocidentais como era a gente português, os quais viviam nos fins da terra, virem às partes do Oriente per tanta distância de mares e caminhos não sabidos, senão pera algum grande mistério que Deus queria obrar per eles. Então começou a contar o princípio de sua vida, dizendo que, no ano de Cristo de mil quatrocentos e cinquenta, el-Rei de Polónia mandara lançar um pregão per todo seu reino, que quantos judeus nele houvesse, dentro de trinta dias se fizessem cristãos, ou se saíssem do seu reino; e passado este termo de tempo, os que achassem fossem queimados. Donde se causou que a maior parte dos judeus se saíram fora do reino pera diversas partes, e nesta saída fora seu pai e sua mãe, que eram moradores em ua cidade chamada Bosna. Os quais vieram ter a Jerusalém, e di se passaram à cidade Alexandria, onde ele naceu; e depois que chegou a perfeita idade, descorrendo per 173 muitas partes, fora ter àquelas da Índia, ao serviço do Sabaio, senhor de Goa, per cujo mandado era ali vindo, provocar a ele e aos seus que o quisessem ir servir a soldo, da maneira que com ele lá andavam alguns levantiscos. E 163

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que este desejo tomara ao Sabaio de os querer em sua ajuda, por lhe ele gabar a gente português, e que verdadeiramente esta era a causa de sua vinda; que lhe pedia não recebesse mal dele e houvesse por bem de o receber como a gente cristã costuma àqueles que se chegam ao bautismo, por quanto ele o queria aceitar e morrer na fé de Cristo. Vasco da Gama, como viu nesta prática e em outras que com ele teve, ser homem esperto e que mui particularmente dava razão das cousas daquelas partes, começou de o consolar, e que quanto ao filho e fazenda que dezia ficar-lhe em Goa, que se não agastasse. Porque el-Rei, seu senhor, tanto que ele chegasse, com ajuda de Deus, ao reino de Portugal, logo havia de mandar ua grossa armada àquelas partes, em que ele tornaria, na qual viagem poderia cobrar seu filho e muito mais fazenda, nas mercês que lhe el-Rei faria, que quanta leixava em Goa. Finalmente ele foi bautizado e houve nome Gaspar, tomando por apelido Gama, por causa de Vasco da Gama, que o trouxe àquele estado; e, per aviso dele, logo ao seguinte dia, ante que viessem os navios que o Sabaio havia de mandar, Vasco da Gama, por estar já prestes, se fez à vela, via deste reino, atravessando aquele grande golfão que há da costa da Índia a estoutra de Melinde, na terra de África, em que lhe adoeceu e morreu muita gente das enfermidades passadas, por razão de grandes calmarias que teve. E a primeira terra que tomou foi abaixo da cidade Magadaxó, situada na costa brava, per a qual passou sem fazer mais detença que salvá-la com artelharia, por ver no aparato de seus edifícios ser tam grande cousa, que não quis fazer mais experiência da verdade dos mouros daquela costa. Peró não se pôde espedir sem algum encontro deles, ca, sendo tanto avante como outra chamada Pate, lhe saíram ao caminho sete ou oito zambucos da terra, mui bem armados, com fundamento de o cometer; aos quais ele salvou de maneira com artelharia, que não o quiseram mais seguir. Chegado a Melinde, onde ele levava posta a proa, foi recebido pelo Rei nosso amigo com muito prazer, e a gente enferma que trazia recebeu refeição com os refrescos da terra, posto que alguns ficaram ali enterrados, em cinco dias que se deteve, em tal estado vinham. E tornado a seu caminho, no lugar dos baixos onde o navio São Rafael tocou (como atrás dissemos), deu outro toque, com que ficou ali pera sempre, que não deu muita paixão a Vasco da Gama, por vir já tam falecido de gente pera marear três navios, que pera dous ainda toda a deste era pouca. A qual, repartida per eles, chegaram aos Ilhéus de São Jorge, defronte de Moçambique, onde, ao pé do padrão chamado São Jorge, que deu nome ao ilhéu, dia da Purificação de Nossa Senhora, em seu louvor ouviram ua missa, e outra na aguada de São Brás, e a vinte de Março dobraram o grã Cabo da 174 Boa Esperança, na qual paragem a gente começou a convalecer, 164 pera poderem todos servir em a navegação. Chegados com assaz trabalho junto das Ilhas de Cabo Verde, com um temporal forte que ali teveram, Nicolau Coelho se apartou de Vasco da Gama; e, cuidando ele que o trazia ante si, veo ter à barra de Lisboa, a dez de Julho daquele ano de quatrocentos noventa e nove, havendo dous anos que saíra per ela, e quando soube que Vasco da Gama não era ainda chegado, quisera fazer volta ao mar em sua busca; peró, sabendo el-Rei, 53v que então estava na cidade, da sua chegada, e como queria tornar em busca de seu capitão, mandou que entrasse pera dentro. Vasco da Gama com aquele temporal foi ter à Ilha de Santiago, e por trazer seu irmão Paulo da Gama mui doente, leixou por capitão em o seu navio a João de Sá, que se viesse a Lisboa, e ele, por remedear a saúde de seu irmão, em ua caravela que fretou, passou-se à Ilha Terceira, onde o veo enterrar no mosteiro de São Francisco, por vir já mui debilitado. A morte do qual deu muita dor a Vasco da Gama, porque, além de perder irmão, tinha Paulo da Gama calidades pera sentir sua morte quem dele tivesse conhecimento, e mais por falecer às portas do galardão de seus trabalhos. Partido Vasco da Gama daquela Ilha Terceira, a vinte nove de Agosto, chegou ao porto de

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Lisboa, e sem entrar na cidade, teve uas novenas em a casa de Nossa Senhora de Belém, donde ele partiu a este descobrimento. E aqui foi visitado de todolos senhores da Corte té o dia de sua entrada, que se fez com grande solenidade; e por se mais celebrar sua vinda, houve touros, canas, momos e outras festas em que el-Rei quis mostrar o grande contentamento que tinha de tão ilustre serviço, como lhe Vasco da Gama fez, que foi um dos maiores que se viu feito per vassalo, em tam breve tempo e com tam pouco custo. Por causa do qual, como adiante se dirá, el-Rei acrescentou a sua Coroa os títulos que ora tem, de Senhor da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia. E na satisfação deste grande serviço, mostrou el-Rei quanto o estimava, fazendo logo e depois mercê a Vasco da Gama destas cousas: que ele e seus irmãos se chamassem de Dom, e que, no escudo das armas de sua linhagem, acrescentasse ua peça das armas reais deste reino, e o ofício de Almirante dos Mares da Índia, e mais trezentos mil reais de renda; e que em cada um ano pudesse empregar na Índia duzentos cruzados em mercadorias, os quais regularmente, na especearia que lhe vem do emprego deles, respondem cá no reino dous contos e oito centos mil reais, e tudo isto de juro, e assi Conde da Vidigueira, correndo depois o tempo, em que as cousas da Índia mostraram ter a grandeza delas maior do que parecia nos primeiros anos. E se Vasco da Gama fora de nação tam gloriosa 175 como eram os romanos, per ventura acrescentara ao apelido da sua linhagem posto que fosse tam nobre como é esta alcunha - da Índia, pois sabemos ser mais gloriosa 165 cousa pera insígnias de honra o adquirido que o herdado, e que Scipião mais se gloriava do feito que lhe deu por alcunha, Africano, que do apelido de Cornélio, que era da sua linhagem.

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165 53v 175 Capítulo XII. Como el-Rei Dom Manuel, em louvor de Nossa Senhora,fundou na sua ermida de Belém, que estava em Rastelo, sumptuoso templo que depois tomou por jazigo de sua sepultura. O Infante Dom Hanrique (como atrás escrevemos), por razão desta impresa que tomou de mandar descobrir novas terras, em as partes de onde as suas armadas partiam a estes descobrimento, por louvor de Nossa Senhora, mandara-lhe fazer ua casa, ua das quais foi a de Restelo, em Lisboa, da vocação de Belém. Na qual tinha certos freires da Ordem da Milícia de Cristo, de que ele era governador e administrador, à qual Ordem ele tinha dado esta casa com todalas terras, pomares e águas que para ela comprar. Isto com encargo que o capelão obrigado a ela, cada sábado, dissesse por ele, Infante, ua missa a Nossa Senhora, e quando fosse ao lavar das mãos se volvesse ao povo, e em alta voz lhe pedisse quisesse dizer um Pater noster e ua Ave Maria pola alma dele, Infante, por mandar fazer aquela igreja, e assi polos cavaleiros da Ordem de Cristo e por aqueles a que ele era obrigado. O fundamento das quais casas, e principalmente desta de Belém, era pera que os sacerdotes que ali residessem, ministrassem os sacramentos da confissão e comunhão aos mareantes que partiam pera fora, e, enquanto esperavam tempo (por ser quási ua légua da cidade), tevessem onde ouvir missa. El-Rei Dom Manuel, como imitador deste santo e católico avoengo, vendo que sucedera a este Infante em ser governador e perpétuo administrador da Ordem da Milícia de Cristo, e assi em prosseguir este descobrimento, tanto que veo Vasco da Gama, em que se terminou a esperança de tantos anos que era o descobrimento 54 da Índia, quis, como premícias desta mercê que recebia de Deus em louvor de sua Madre, (a quem o Infante tinha tomado por sua protector pera esta obra), fundar um sumptuoso templo na 176 sua ermida da vocação de Belém. E aceitou ante este que outro lugar, por ser o primeiro posto donde haviam de partir todalas armadas a este descobrimento e conquista, e também porque, como a causa que ele teve de fazer tamanha despesa, como se neste templo tem feito, procedeu da mais notável e maravilhosa obra que os homens viram, pois per ela o Mundo foi estimado em mais do que se dele cuidava ante que descobríssemos esta sua tam grande parte, convinha que ua tal memória de gratificação fosse feita em lugar onde as nações de tam várias gentes como o mesmo Mundo 166 tem, quando entrassem neste reino, a primeira cousa que vissem fosse aquele sumptuoso edifício, fundado das vitórias de toda a redondeza dele. E como o lugar de Rastelo é o mais célebre e ilustre que este reino de Portugal tem, por ser nos arrabaldes de Lisboa, monarca desta oriental conquista e porta per onde haviam de entrar neste reino os triunfos dela, nesta entrada convinha ser feito, não um pórtico de pompa humana, nenhum templo a Júpiter Protector, como os romanos tinham em Roma no tempo de seu império, a que ofereciam as insígnias de suas vitórias, mas um templo dedicado àquele vivo e divino templo que é a Madre de Deus da vocação de Belém. Porque, como neste auto de ser madre e virgem triunfou do Príncipe das Trevas, dando espiritual vitória a todo género humano, assi era cousa mui justa que os triunfos das temporais vitórias que per suas intercessões os portugueses haviam de haver dos príncipes e reis das trevas da infidelidade de todo o pagaismo e mouros daquelas partes do Oriente, quando entrassem pela barra de Rastelo, com as naus carregadas deles, achassem casa sua tam grande pera os recolher, como ela fora liberal em

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conceder as petições deles, nos autos de suas necessidades. A qual casa el-Rei deu aos religiosos da Ordem de São Jerónimo pola singular devação que tinha neste santo, e por a mesma causa a elegeu por jazigo de sua sepultura. E porque a ermida com todalas propriedades da casa (como dissemos) era da Ordem de Cristo, por a ter dotada o Infante ao convento dele, que está em a vila de Tomar, per autoridade apostólica deu el-Rei por ela ao mesmo convento a igreja de Nossa Senhora da Conceição, de Lisboa, a qual ele fez de esnoga que era dos judeus, onde ora residem freires da mesma Ordem de Cristo, e lhe aplicou renda, não somente pera os freires, mas ainda pera ua comenda que fez daquela casa. E foi ainda el-Rei Dom Manuel tam magnânimo na glória da edificação deste templo de Belém, que tomou pera o lugar de sua imagem e da Rainha Dona Maria, sua mulher, a porta mais pequena fronteira ao altar-mor, e mandou pôr a imagem daquele excelente príncipe, Infante Dom Hanrique, na porta travessa por ser mais principal em vista, armado como hoje aparece sobre a coluna do meio. E mais por se não perder a memória do que ele, Infante, mandava que à sua missa o sacerdote pedisse ao povo que o encomendassem a Deus, per este mesmo modo são obrigados os religiosos a outra missa que el-Rei ordenou que se dissesse por ele, que o sacerdote peça 177 também ao povo que roguem a Deus pola alma do Infante Dom Hanrique, primeiro fundador daquela casa, e assi por el-Rei e por seus sucessores. Com a qual obra fica o Infante Dom Hanrique louvado no que fez por louvor de Nossa Senhora, 167 e el-Rei Dom Manuel com muito maior, porque então se consegue ele dobrado ante Deus per glória, e acerca dos homens per fama, quando das nossas obras, por razão dalgua pequena parte que nelas outrem pôs, lhe queremos dar o todo; e o contrairo, quando queremos esconder o todo, pola parte que nela posemos.

LIVRO V 169 54v 179 Capítulo primeiro. Como el-Rei, por razão da nova que Dom Vasco da Gama trouxe da Índia, mandou fazer ua armada de treze velas, da qual foi por Capitão-mor Pedrálvares Cabral. El-Rei Dom Manuel, como era príncipe católico e que todas suas cousas oferecia a Deus, por esta mercê que dele tinha recebido, dava-lhe muitos louvores, pois lhe aprouvera ser ele o instrumento per quem quisera conceder um bem tam universal como era abrir as portas doutro novo mundo de infiéis, onde o seu nome podia ser conhecido e louvado e as chagas de seu precioso filho, Cristo Jesu, recebidas per fé e bautismo, pera redenção de tantas mil almas como o Demónio naquelas partes da Infidelidade imperava. Pera gratificação da qual mercê, que tinha recebida de Deus, e porque o seu povo se gloriasse nela, escreveu a todalas cidades e vilas notáveis do reino, notificando-lhe a chegada de Dom Vasco da Gama e os grandes trabalhos que tinha passado e o que aprouve a Nosso Senhor que no fim deles descobrisse, encomendando-lhe que solenizassem tamanha mercê como este reino tinha recebido de Deus, com muitas procissões e festas espirituais em seu louvor. E como nos tais ajuntamentos sempre concorrem diversos pareceres em tam novos casos, leixando aqueles que perderam pai, irmão, filho ou parente nesta viagem, cuja dor não leixava julgar a verdade do caso, toda a outra gente a ua voz era no louvor deste descobrimento, quando viam neste reino pimenta, cravo, canela, aljofre e pedraria, que os nossos trouxeram, 180 como mostra das riquezas daquela oriental parte que descobriram, lembrando-lhe quam espantados os fazia algua destas cousas, que as galés de Veneza traziam 170 a este reino. As quais práticas todas se convertiam em louvores del-Rei, dizendo que ele era o mais bem afortunado rei da Cristandade, pois nos primeiros dous anos de seu reinado descobrira maior estado à Coroa deste reino, do que era o património que com ele herdara - cousa que Deus não concedera a nenhum príncipe de Espanha, nem a seus antecessores que nisso bem trabalharam per discurso de tantos anos. Nem se achava escritura de gregos, romanos, ou dalgua outra nação, que contasse tamanho feito, como era três navios com obra de cento e sessenta homens, quási todos doentes de novas doenças de que muitos faleceram, com a mudança de tam vários climas per que passaram, diferença dos mantimentos que comiam, mares perigosos que navegavam e com fome, sede, frio e temor, que mais atormenta que todalas outras necessidades, obrar neles tanto a virtude da constância e preceito de seu Rei que, propostas todas estas cousas, navegaram três mil e tantas léguas, e contenderam com três ou quatro reis tam diferentes em lei, costumes e linguagem, sempre com vitória de todalas indústrias e enganos da guerra que lhe fizeram. Por razão das quais cousas, posto que muito se devesse ao esforço de tal capitão e vassalos como el-Rei mandara, mais se havia de atribuir à boa fortuna deste seu Rei; porque não era em poder ou saber de homens tam grande e tam nova cousa como eles acabaram. El-Rei de todas estas práticas e louvores do caso era sabedor, porque naqueles dias não se falava em outra cousa, que era para ele dobrado contentamento, saber quam pronta estava a vontade de seu povo pera prosseguir esta conquista. E porque pela informação que tinha da navegação daquelas partes, o principal tempo era partir daqui em Março, e por ser já muito curto 55 pera no seguinte do ano de mil quinhentos se fazer prestes a armada, teve logo conselhos no modo que se teria nesta conquista; ca, segundo o negócio ficava suspeitoso polas cousas que Dom Vasco da Gama passara, parecia que mais havia de obrar neles temor de armas, que amor de boas obras.

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Finalmente, assentou el-Rei que, enquanto o negócio de si não dava outro conselho, o mais seguro e melhor era ir logo poder de naus e gente, porque nesta primeira vista que sua armada desse àquelas partes, que já ao tempo de sua chegada toda a terra havia de estar posta em armas contra ela, convinha mostrar-se mui poderosa em armas, e em gente luzida. Das quais duas cousas os moradores daquelas partes podiam conjecturar, que o reino de Portugal era mui poderoso pera prosseguir esta impresa; e a outra, vendo gente luzida, a riqueza dele, e quam proveitoso lhe seria terem sua amizade. E não somente se assentou no conselho o número das naus e gente de armas que havia de ir nesta armada, mas ainda o capitão-mor dela, que 181 por as calidades de sua pessoa, foi escolhido 171 Pedrálvares Cabral, filho de Fernão Cabral. Chegado o tempo que as naus estavam prestes pera poderem partir, foi el-Rei, que então estava em Lisboa, um domingo, oito dias de Março, do ano de mil e quinhentos, com toda a Corte ouvir missa a Nossa Senhora de Belém, que é em Rastelo, onde já as naus estavam com seu alardo da gente de armas feito. Na qual missa houve sermão, que fez Dom Diogo Ortiz, Bispo de Ceuta, que depois foi de Viseu, todo fundado sobre o argumento desta impresa, estando no altar, enquanto se disse a missa, arvorada ua bandeira da cruz da Ordem da Cavalaria de Cristo, que no fim da missa o mesmo Bispo benzeu, e desi el-Rei a entregou a Pedrálvares Cabral com aquela solenidade de palavras que os tais autos requerem, ao qual, enquanto se disse a missa, el-Rei, por honra do cargo que levava, teve consigo dentro na cortina. Acabado este auto, assi como estava arvorada, com ua solene procissão de relíquias e cruzes, foi levada aquela bandeira, sinal de nossas espirituais e temporais vitórias, a qual el-Rei acompanhou té Pedrálvares com seus capitães na praia lhe beijarem a mão e espedirem dele. A qual espedida geralmente a todos foi de grande contemplação, porque a maior parte do povo de Lisboa, por ser dia de festa e mais tam celebrada per el-Rei, cobria aquelas praias e campos de Belém, e muitos, em batéis que rodeavam as naus, levando uns, trazendo outros, assi serviam todos com suas librés e bandeiras de cores diversas, que não parecia mar, mas um campo de flores, com a frol daquela mancebia juvenil que embarcava. E o que mais levantava o espírito destas cousas, eram as trombetas, atabaques, cestros, tambores, frautas, pandeiros e até gaitas cuja ventura foi andar em os campos no apascentar dos gados, naquele dia tomaram posse de ir sobre as águas salgadas do mar, nesta e outras armadas que depois a seguiram, porque pera viagem de tanto tempo tudo os homens buscavam pera tirar a tristeza do mar. Com as quais diferenças que a vista e ouvidos sentiam, o coração de todos estava entre prazer e lágrimas, por esta ser a mais fermosa e poderosa armada que té aquele tempo pera tam longe deste reino partira. A qual armada era de treze velas, entre naus, navios e caravelas, cujos capitães eram estes: Pedrálvares Cabral, capitão-mor; Sancho de Toar, filho de Martim Fernandes de Toar; Simão de Miranda, filho de Diogo de Azevedo; Aires Gomes da Silva, filho de Pero da Silva; Vasco de Taíde e Pero de Taíde, de alcunha Inferno; Nicolau Coelho, que fora com Vasco da Gama; Bartolomeu Dias, o que descobriu o Cabo de Boa Esperança, e seu irmão Pero Dias; Nuno Leitão, Gaspar de Lemos, Luís Pires e Simão de Pina. Seria o número da gente que ia nesta frota, entre mareantes e homens de armas, até mil e duzentas pessoas, toda gente escolhida, limpa, bem armada e provida pera tam comprida viage. E além 172 das armas materiais que cada um levava pera seu uso, mandava el-Rei outras espirituais, que eram oito frades da Ordem de São Francisco, de que era guardião Frei Hanrique, 182 que depois foi Bispo de Ceuta e confessor del-Rei, barão de vida mui religiosa e de grã prudência, com mais oito capelães e um vigairo pera administrar em terra os sacramentos na fortaleza que el-Rei mandava fazer, todos barões escolhidos pera aquela obra evangélica. E a principal cousa do regimento que Pedrálvares levava, era: primeiro que cometesse os mouros e gente idólatra daquelas

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partes com o gládio material e secular, leixasse a estes sacerdotes e religiosos usar do seu espiritual, que era denunciar-lhes 55v o Evangelho, com amoestações e requerimentos da parte da Igreja Romana, pedindo-lhe que leixassem suas idolatrias, diabólicos ritos e costumes, e se convertessem à Fé de Cristo, pera todos sermos unidos e ajuntados em caridade de lei e amor, pois todos éramos obra de um Criador e remidos per um Redentor, que era este Cristo Jesu, prometido per profetas e esperado per patriarcas tantos mil anos ante que viesse. Pera o qual caso lhe trouxessem todalas razões naturais e legais, usando daquelas cerimónias que o direito canónico dispõe. E quando fossem tam contumaces que não aceitassem esta lei de fé e negassem a lei de paz que se deve ter entre os homens pera conservação da espécie humana, e defendessem o comércio e comutação, que é o meio per que se concilia e trata a paz e amor entre todolos homens, por este comércio ser o fundamento de toda a humana polícia, peró que os contratantes diferam em lei e crença de verdade que cada um é obrigado ter e crer de Deus, em tal caso lhe pusessem ferro e fogo e lhe fizessem crua guerra. E de todas estas cousas levava mui copiosos regimentos.

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172 55v 182 Capítulo II. Como, partido Pedrálvares, teve um temporal na paragem do Cabo Verde, e seguindo sua derrota, descobriu a grande terra a que comumente chamamos Brasil, à qual ele pôs nome Santa Cruz. E como ante de chegar a Moçambique passou um temporal, em que perdeu quatro velas. Ao seguinte dia, que eram nove do mês de Março, desferindo suas velas, que estavam a pique, saiu Pedrálvares com toda a frota, fazendo sua viagem às Ilhas do Cabo Verde, pera i fazer aguada, onde chegou em treze dias. Peró, ante de tomar este cabo, sendo entre estas ilhas, lhe deu um tempo que lhe fez perder de sua companha o navio de que era capitão Luís Pires, o qual se tornou a Lisboa. Junta a frota depois que passou o temporal, por fugir da terra de Guiné, onde as calmarias 183 lhe podiam 173 empedir seu caminho, empegou-se muito no mar, por lhe ficar seguro poder dobrar o Cabo de Boa Esperança. E havendo já um mês que ia naquela grã volta, quando veo à segunda oitava da Páscoa, que eram vinte quatro de Abril, foi dar em outra costa de terra firme, a qual, segundo a estimação dos pilotos, lhe pareceu que podia distar pera Loeste da costa de Guiné quatrocentos cinquenta léguas, e em altura do Polo Antártico, da parte do Sul, dez graus. A qual terra estavam os homens tam crentes em não haver algua firme ocidental a toda a costa de África, que os mais dos pilotos se afirmavam ser algua grande ilha, assi como as Terceiras, e as que se acharam per Cristóvão Colom, que eram de Castela, a que os castelhanos comumente chamam Antilhas. E por se afirmar no certo se era ilha ou terra firme, foi cortando ao longo dela todo um dia, e onde lhe pareceu mais azada pera poder ancorar, mandou lançar um batel fora. O qual, tanto que foi com terra, viram ao longo da praia muita gente nua, não preta e de cabelo torcido, como a de Guiné, mas toda de cor baça e de cabelo comprido e corredio, e a figura do rostro cousa mui nova. Porque era tam amassado e sem a comum semelhança da outra gente que tinham visto, que se tornaram logo os do batel a dar razão do que viram, e que o porto lhe parecia bom surgidouro. Pedrálvares, por haver notícia da terra, encaminhou ao porto com toda a frota, mandando ao batel que se chegasse bem a terra e trabalhasse por haver à mão algua pessoa das que viram, sem os amedrontar com algum tiro que os fizesse acolher. Mas eles não esperaram por isso, porque, como viram que a frota se vinha contra eles e que o batel tornava outra vez à praia, fugiram dela e poseram-se em um teso soberbo, todos apinhoados a ver o que os nossos faziam. Os do batel, enquanto Pedrálvares surgia um pouco largo do porto, por não amedrontar aquela nova gente mais do que o mostrava em se acolher ao teso, poseram-se debaixo no mesmo batel e começou um negro grumete falar a língua de Guiné, e outros que sabiam alguas palavras do arávigo, mas eles nem à língua nem aos acenos em que a natureza foi comum a todalas gentes nunca acudiram. Vendo os do batel que nem 56 aos acenos nem às cousas que lhe lançaram na praia acudiam, cansados de esperar algum sinal de intendimento deles, tornaram-se a Pedrálvares, contando o que viram. Tendo ele determinado ao outro dia de mandar lançar mais batéis e gente fora, saltou aquela noite tanto tempo com eles, que lhe conveo levar as âncoras, e correram contra o Sul, sempre ao longo da costa, por lhe ser per

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aquele rumo o vento largo, té que chegaram a um porto de mui bom surgidoiro, que os segurou do tempo que levavam, ao qual por esta razão Pedrálvares pos o nome que ora tem, que é Porto Seguro. Ao outro dia, como a gente da terra houve vista da frota, posto que toda aquela fosse ua, parece que permetiu Deus não ser 174 esta tam esquiva 184 como a primeira, segundo logo veremos. E porque em a quarta parte da escritura da nossa conquista, a qual, como no princípio dissemos, se chama Santa Cruz, e o princípio dela começa neste descobrimento, lá fazemos mais particular menção desta chegada de Pedrálvares e assi do sítio e cousas da terra, ao presente basta saber que, ao segundo dia da chegada, que era Domingo de Páscoa, ele, Pedrálvares, saiu em terra com a maior parte da gente e ao pé de ua grande árvore se armou um altar, em o qual disse missa cantada Frei Hanrique, guardião dos religiosos, e houve pregação. E naquela bárbara terra, nunca trilhada de povo cristão, aprouve a Nosso Senhor, per os méritos daquele santo sacrifício, memória de nossa Redenção, ser louvado e glorificado, não somente daquele povo fiel da armada, mas ainda do pagão da terra, o qual podemos crer estar ainda na lei da natureza. Com o qual logo Deus obrou suas misericórdias, dando-lhe notícia de si naquele santíssimo sacramento, porque todos se punham em giolhos, usando dos autos que viam fazer aos nossos, como se teveram notícia da Divindade a que se humildavam. E ao sermão esteveram mui prontos, mostrando terem contentamento na paciência e quietação que tinham, por seguir o que viam fazer aos nossos, que foi causa de maior contemplação e devação, vendo quam oferecido estava aquele povo pagão a receber doutrina de sua salvação, se ali houvera pessoa que os podera entender. Pedrálvares, vendo que, por razão de sua viagem, outra cousa não podia fazer, dali espediu um navio - capitão Gaspar de Lemos - com nova pera el-Rei Dom Manuel do que tinha descoberto, o qual navio com sua chegada deu muito prazer a el-Rei e a todo o reino, assi por saber da boa viagem que a frota levava, como pola terra que descobrira. Passados alguns dias, enquanto o tempo não servia e fizeram sua aguada, quando veo a três de Maio que Pedrálvares se quis partir, por dar nome àquela terra per ele novamente achada, mandou arvorar ua cruz mui grande no mais alto lugar de ua árvore, e ao pé dela se disse missa. A qual foi posta com solenidade de bênções dos sacerdotes, dando este nome à terra - Santa Cruz. Quási como que por reverência do sacrifício que se celebrou ao pé daquela árvore e sinal que se nela arvorou com tantas bênções e orações, ficava toda aquela terra dedicada a Deus, onde ele por sua misericórdia haveria por bem ser adorado per culto de católico povo, posto que ao presente tam sáfaro dele estevesse aquele gentio. E como primícias desta esperança, dalguns degredados que iam na armada, leixou Pedrálvares ali dous, um dos quais veo depois a este reino e servia de língua naquelas partes, como veremos em seu lugar. Per o qual nome Santa Cruz foi aquela terra nomeada os primeiros anos; e a cruz arvorada alguns durou naquele lugar. 175 Porém como o Demónio per o sinal da cruz perdeu o domínio que tinha sobre nós, mediante a paixão 185 de Cristo Jesu consumada nela, tanto que daquela terra começou de vir o pau vermelho chamado brasil, trabalhou que este nome ficasse na boca do povo e que se perdesse o de Santa Cruz. Como que importava mais o nome de um pau que tinge panos, que daquele pau que deu tintura a todolos sacramentos per que somos salvos, per o sangue de Cristo Jesu que nele foi derramado. E pois em outra cousa nesta parte me não posso vingar do Demónio, amoesto da parte da cruz de Cristo Jesu e todolos que este lugar lerem, que dem a esta terra o nome que com tanta solenidade lhe foi posto, sob pena de a mesma Cruz que nos há-de ser mostrada no dia final, os acusar de mais devotos do

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pau brasil que dela. E por honra de tam grande terra chamemos-lhe província e digamos a Província de Santa Cruz, que soa melhor entre prudentes que Brasil, posto per vulgo sem consideração e não habilitado pera dar nome às propriedades da Real Coroa. Tornando a Pedrálvares 56v que se partiu do Porto Seguro, daquela Província Santa Cruz, sendo ele na grande travessa que há entre aquela terra de Santa Cruz ao Cabo de Boa Esperança, aos doze dias do mês de Maio apareceu no ar ua grande cometa com um raio que demorava contra o Cabo de Boa Esperança, a qual foi vista per todolos da armada per espaço de oito dias, sem se mover daquele lugar; parece que pronosticava o triste caso que logo viram. Porque como desapareceu, ao seguinte dia, que foram vinte três de Maio, depois do meio-dia, indo a frota já do dia passado com um mar grosso empolado como que vinha feito de longe, armou-se contra o Norte um negrume no ar a que os marinheiros de Guiné chamam bulcão, com o qual acalmou o vento, como que aquele negrume o sorvera todo em si, pera depois lançar o fôlego mais furioso. A qual cousa logo se viu rompendo em um instante tam furiosamente, que sem dar tempo a que se mareassem as velas, sessobrou quatro, de que estes eram os capitães: Aires Gomes da Silva, Simão de Pina, Vasco de Taíde e Bartolomeu Dias. O qual, tendo passado tantos perigos de mar nos descobrimentos que fez, e principalmente no Cabo de Boa Esperança (como atrás contamos), esta fúria de vento deu fim a ele e aos outros, metendo-os no abismo da grandeza daquele Mar Oceano, que naquele dia encetou em nós, dando ceva de corpos humanos aos pexes daqueles mares, os quais corpos podemos crer serem os primeiros, pois o foram em aquela incógnita navegação. Posto que o auto deste ímpeto do vento foi a todos a cousa mais espantosa que quantas tinham visto, por se verem uns aos outros junta e tam miseravelmente perder; muito mais temeroso lhe pareceu verem sobre si ua escuríssima noite que a negridão do tempo derramou sobre aquela região do ar, de maneira 176 que uns aos outros não se podiam ver, e com o assoprar do vento muito menos ouvir. Somente sentiam que o ímpeto dos mares às vezes punha as naus tanto no cume das ondas, que parecia que as lançava fora de si na região do ar, e logo subitamente as queria sorver e ir enterrar no abismo da terra. Finalmente, assi cortou o temor destas cousas o ânimo de todos, que no geral da gente não havia mais que o nome de 186 Jesu, o de sua Madre, pedindo perdão de seus pecados, que é a última palavra daqueles que tem a morte presente. E como as naus com a fúria do mar e fraqueza dos mareantes andavam à vontade das ondas, sem acudir a leme, as quais com aqueles ímpetos muitas vezes parecia cortarem pelo ar e não pela água, ajuntou-se a nau de Simão de Miranda com a de Pedrálvares, e quis a piadade de Deus que a mesma fúria dos mares que as ajuntava, quando veo ao segundo movimento, furtou-se cada ua pera sua parte, com que ficaram livres daquele grande perigo. Peró nem por isso elas e as outras escaparam de muita fortuna em que cada dia se lhe representava a morte, per espaço de vinte dias que correram a árvore seca, sem neste tempo darem mais vela que cinco vezes cometerem meter algum bolso pequeno, mas o vento não consentia ante si cousa que o impedisse. E porque cada um per si passou tanto trabalho, que daria muitos anos em o escrever, e muito maior a quem o houvesse de ouvir, se particularizássemos os passos dele, basta saber que, de toda esta frota, Pedrálvares se achou, a dezasseis dias de Julho, no parcel de Sofala, com seis velas, tam desaparelhadas de mastos, vergas, velas e enxárcea, que mais estavam pera se tornar a este reino, se fora perto dele, que ir avante a conquistar os alheos. E ainda que a gente português naturalmente é sofredor e mui paciente em trabalhos, e nos casos de tanto perigo e necessidade se sabe bem animar, como, nesta primeira mostra de boa ventura que à Índia iam buscar, à vista de seus olhos perderam parentes e amigos, era tamanha confusão em toda a gente, não costumada a navegar, que per toda a nau de Pedrálvares se apartavam os homens uns com outros, principalmente a gente comum, tratando de dúvidas e inconvenientes de prosseguir aquele caminho. A qual cousa sentindo Pedrálvares, com palavra e favor no que podia, animava e confortava a todos, té que o

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tempo cessou e lhe trouxe cousa ante os olhos que os alvoroçou, perdendo da memória o temor passado. Porque, sendo tanto avante como as ilhas a que ora chamam as Primeiras, houveram vista de duas naus que lhe ficavam entre elas e a terra, as quais vendo tamanha frota, começaram de se coser com terra pera tomar algum porto. Pedrálvares, quando entendeu que o temor lhe fazia tomar aquele caminho, mandou a elas e não poderam os nossos navios fazer isto tam prestes, 57 que quando chegaram já 177 ua tinha dado consigo em terra e a gente estava posta em salvo, e a outra foi tomada. Na qual acharam um mouro que deu razão a Pedrálvares que o temor dele os fizera varar em seco, e que daquelas duas naus vinha por capitão um mouro principal, chamado Xeque Foteima, que era tio del-Rei de Melinde, qual viera a Sofala 187 fazer resgate com fazenda que trouxera naquelas duas naus, e que se tornava pera Melinde. Sabendo Pedrálvares vir ali pessoa tam principal, o mandou segurar, e veo a ele Xeque Foteima, homem de idade e que em sua presença representava quem ele disse ser, ao qual Pedrálvares fez honra e gasalhado por ser tio del-Rei de Melinde, de quem Dom Vasco da Gama, quando per ali passou, tinha recebido o gasalhado, que atrás vimos. E peró que ele confessasse vir da mina de Sofala, como todos eram ciosos dela, não descobriu o que se depois soube per outros, nem menos Pedrálvares lhe quis sobre isso fazer muitas perguntas, por lhe não dar mais suspeita, antes, dando-lhe alguas cousas, o espediu de si com palavras de que foi contente, e muito mais espantado, vendo quam bom tratamento lhe fizeram os nossos, tendo per aquela costa entre os mouros fama de mui cruéis, e que não perdoavam à fazenda nem às pessoas. Tornado Xeque Foteima a sua nau a se ajuntar com a outra, seguiu Pedrálvares seu caminho, té chegar a Moçambique, a vinte dias de Julho, onde foi mui bem recebido da gente da terra, por quanto dano que tinham feito a Dom Vasco da Gama, e assi do que dele receberam estavam tam temorizados de lhe sobrevir outro maior, que mostraram grande prazer com sua chegada. E em seis dias que Pedrálvares ali esteve se repairou do dano que lhe a tormenta fez nas cousas da mareagem e houve piloto mais facilmente do que se deu a Dom Vasco da Gama, quando per ali passou.

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177 57 187 Capítulo III. Como Pedrálvares Cabral se viu com el-Rei de Quíloa e do pouco que acabou com ele; e depois foi ter a Melinde, onde el-Rei o recebeu com muito prazer, e di se partiu pera a Índia. Partido Pedrálvares de Moçambique com as seis velas que lhe ficaram, veo sempre ao longo da costa com resguardo de não escorrer a cidade Quíloa, onde chegou a vinte seis de Julho. Na qual reinava um mouro per nome Habrahemo, que per aquela costa era homem mui estimado, e a cidade ua das mais antiguas que se ali fundaram (da qual ao diante faremos maior relação); o qual, polo trato de Sofala estar muito tempo debaixo de sua mão, se tinha feito rico e poderoso, e com ele mandava el-Rei a Pedrálvares que se visse e assentasse paz, e sobre isso lhe trazia cartas. Surto ele diante da cidade, mandou em 178 um batel Afonso Furtado, que ia por escrivão da feitoria que se havia de fazer em Sofala, com recado a 188 el-Rei, fazendo-lhe saber como el-Rei de Portugal, seu senhor, lhe mandava que chegasse àquele seu porto e lhe desse certos recados, que lhe pedia houvesse por bem que se vissem ambos. Ao que el-Rei respondeu com palavras de contentamento de sua chegada; e, quanto a se verem ambos, ele era contente, e pera isso podia sair em terra quando mandasse; e com este recado lhe enviou refresco de carneiros e outros mantimentos da terra, pedindo-lhe perdão por o tomar em tempo que ela estava um pouco seca e mal provida pera tal pessoa. Pedrálvares, com os agradecimentos do presente e retorno dalguas cousas do reino, lhe mandou dizer que, quanto a ele sair em terra pera se verem, o regimento del-Rei, seu senhor, lho defendia, e somente lhe era concedido sair em terra pera dar ua batalha a quem não aceitasse sua amizade. Porém por honra de um tal príncipe como ele era, o mais que faria naquele caso de se verem ambos, seria ele, Pedrálvares, sair da sua nau em algum navio ou batel, e que ele se podia meter em um zambuco, e que defronte da cidade, no mar, se veriam. El-Rei, vendo este recado, per espaço de dous dias andou pairando com cautelas e modos pera escusar esta vista; mas, porque os recados e réplicas de Pedrálvares o apretaram muito, concedeu nisso, mais 57v com temor, que com boa vontade. E o dia que havia de ser quis ele mostrar o aparato de seu estado, vindo em dous zambucos junto um ao outro com a princial gente; e o outro povo comum nos outros zambucos o acompanhavam, mas não que ele se afastasse da terra. Pedrálvares também em seus batéis embandeirados, e gente vestida de louçainha e, ao longo das tostes dos batéis, resguardo de armas, chegou a el-Rei, onde cessou o estrondo das trombetas e atabales e começaram entrar na prática, depois que se trataram as cortesias e cerimónias da primeira vista. E porque Pedrálvares gastou muitas razões acerca de contentamento que el-Rei, seu senhor, teria em ele aceitar as cousas da nossa fé, leixou el-Rei de responder a em que lhe apontou acerca do trato de Sofala, e tomou argumento pera se espedir delas, dizendo que estas cousas, por serem novas e fora do costume e crença em que ele e todolos seus naturais se criaram, compria, pera poder responder a elas, ter mais tempo do que ambos ali tinham, e mais, sendo de qualidade pera se haverem de comunicar com os principais de seu conselho, a maior parte dos quais não era presente, que lhe pedia que por aquele dia houvesse por bem ser gastado em se ambos verem, e ele poder dizer, per si, o contentamento que tinha de el-Rei de Portugal folgar de o ter por servidor. E com estas palavras concertando que di a dous dias daria reposta do mais, se espediram ambos.

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El-Rei, quando veo ao outro dia, por mostrar 179 que estava contente da prática, mandou muito mais refresco da terra, e soltou que alguns mouros 189 viessem vender às naus mantimentos, e isto mais em modo de espiar o número da nossa gente e poder que traziam, que a outro algum fim. Pedrálvares, como entendeu neles ao que vinham, mandou a todolos capitães que tevessem suas naus como homens que estavam a ponto de sair em terra cada hora que lho mandassem; e que aqueles mouros tudo vissem armas, porém que fossem bem tratados, e no modo de comprar e vender se houvessem liberalmente com eles, porque esta maneira tinha com aqueles que vinham a sua nau. E ainda pera os mais segurar, se entre os que vinham vender mantimentos acertava de virem alguns que pareciam homens honrados, dava-lhe alguas peças com que iam contentes, mas não convertidos de seu mau propósito; porque mais podia o ódio que nos tinham, que os dões que lhe davam. Finalmente, em três dias que Pedrálvares ali esteve depois das vistas, nunca pôde haver del-Rei conclusão algua, e tudo eram escusas - que os principais homens de seu conselho eram idos a ua guerra que tinha com os cafres; que, como viessem, tomaria determinação nas cousas em que praticaram; que lhe pedia e rogava muito que se não agastasse, porque não podiam tardar, por os ter já mandados vir. Porém nestes dias todo seu cuidado era meter muita gente dos cafres dentro consigo e repairar a cidade, como quem esperava de a defender, e que este havia de ser o fim de sua reposta, das quais cousas Pedrálvares era avisado. Porque acertou de estar ali com ua nau fazendo mercadorias um mouro chamado Xeque Homar, irmão del-Rei de Melinde, o qual era presente às amizades que Dom Vasco da Gama assentou com seu irmão, quando passou por Melinde, e daqui ficou tanto nosso amigo, e mais vendo o poder da nossa armada, que foi Pedrálvares avisado per ele do que passava dentro. E mais houve-lhe secretamente algua água, a qual el-Rei tinha prometido; e depois, indo os nossos por ela, acharam os calões, que são uns vasos de barro em que os da terra a traziam, todos quebrados e água vertida à borda da praia, dizendo ser isto feito per um mouro chamado Habraemo, meio sandeu. Pedrálvares, quando per derradeiro viu que este negócio não se podia determinar senão com sair em terra, posto o caso em conselho, assentou-se nele ser grande inconveniente, por castigar a maldade daquele mouro, aventurar gente em tam baixo emprego, e que era mais serviço del-Rei seguirem sua viagem e leixar este castigo pera outro tempo. Posto que a Pedrálvares fosse grande tormento leixar aquele mouro sem castigo, teve mais conta com seguir o principal intento a que era mandado àquelas partes, que a sua paixão. e sem lhe mais mandar algum recado, ao terceiro dia das vistas, partiu-se pera Melinde, onde chegou a dous dias de Agosto e foi mui bem 180 recebido 190 e festejado del-Rei. Porque, além da amizade que connosco tinha, dobrou esta boa vontade a nova que lhe deu Xeque Foteima da honra que lhe Pedrálvares fizera, e a razão porquê. E mais com a nossa armada ficou 58 mui favorecido, porque, polo gasalhado que fizera a Dom Vasco da Gama, el-Rei de Mombaça estava com ele em guerra de fogo e sangue, em que ele tinha perdido muita gente e fazenda, por el-Rei de Mombaça ser mais poderoso do que ele era. E ainda por não pubricar tanto a amizade que tinha connosco, escondeu o padrão de mámore que Dom Vasco da Gama ali leixara metido (como atrás fica), porque, indo João de Sá com um recado a ele de Pedrálvares, no primeiro dia da chegada, como homem que fora ali com Dom Vasco da Gama, a primeira cousa por que lhe preguntou foi polo padrão, dizendo que o não via onde ele o ajudara meter. Ao que el-Rei respondeu que ele o tinha mui bem guardado em ua casa; e tomando João de Sá pela mão o levou a casa onde o tinha, almagradas as armas de fresco, como que havia algum dia que fora feito, pera

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quando lhe fosse pedido conta dele o mostrar assi, como cousa tida em veneração, dando-lhe por desculpa que, enquanto o tevera no lugar púbrico onde se ele meteu, foi tam perseguido del-Rei de Mombaça, fazendo-lhe crua guerra, que lhe conveo mandá-lo esconder naquela casa por conselho de seus vassalos, com esperança de vir aquela armada del-Rei de Portugal e lhe fazer queixume daquele mau vezinho, que tanto dano lhe tinha feito, tudo por ser leal amigo aos portugueses. Tornado João de Sá com recado a Pedrálvares, e sobre ele enviados per el-Rei dous homens principais com presente de refresco, ao seguinte dia mandou Pedrálvares ao feitor Aires Correa bem acompanhado com as cousas que levava pera este Rei, levando diante do presente muitas trombetas. O qual presente el-Rei mandou receber com grã solenidade, porque ao batel donde Aires Correa desembarcou vieram dos mais principais homens que el-Rei tinha, e com muita honra e festa o foram acompanhando, té o presentarem ante el-Rei. E em todalas ruas per onde ia estavam às portas perfumes cheirosos, mostrando todo o povo em seu modo tanto contentamento, como se aquela festa fosse feita ao próprio senhor da terra, tanto estimou el-Rei aquela lembrança e conta que se com ele tevera. E foi tamanho o seu contentamento, depois que leu a carta que lhe el-Rei escrevia (a qual era em arábio), que não consentiu que Aires Correa se tornasse à nau, e mandou dizer a Pedrálvares que lhe pedia houvesse por bem que Aires Correa ficasse lá aquela noite e ao dia seguinte, pera praticar nas cousas del-Rei de Portugal. Que pera segurança da pessoa de Aires Correa lá ficar, ele mandava a Sua Mercê o anel do seu sinete, onde estava toda a verdade real, posto que bem tinha mostrado sua fé nos trabalhos de guerra que 181 el-Rei de Mombaça lhe fazia, por ser leal amigo e servidor 191 del-Rei de Portugal. O qual rogo lhe Pedrálvares concedeu polo comprazer, e também porque na prática que Aires Correa com ele tevesse, pois havia de ser comprida, o confirmasse mais no amor e lealdade que mostrava ter ao serviço del-Rei, seu senhor. E assi foi, porque logo assentou como se ambos vissem no mar ao modo que se vira com el-Rei de Quíloa, o que ele fez sem as cautelas que o outro teve. Na qual vista houve grandes confirmações de paz e ofertas del-Rei, dizendo ele que todo seu estado e pessoa daquele dia pera sempre ele o submetia à vontade del-Rei de Portugal, como do mais poderoso príncipe da terra. E per espaço de dous dias que depois desta visitação Pedrálvares ali esteve, sempre de ua e outra parte houve recados e obras de grande amizade. Neste lugar leixou Pedrálvares dous degredados dos que levava, e a causa de os aqui lançar, era porque lhe mandava el-Rei Dom Manuel que, como fosse nesta costa, leixasse nela alguns dos degredados que levava pera irem per terra descobrir o Preste João, por ter já sabido que per esta costa podiam ir ao interior da terra daquele sertão onde ele tinha seu estado. Isto com grandes promessas de mercê, se descobrissem este príncipe tam desejado. Um havia nome João Machado e o outro Luís de Moura; mas eles tomaram outro caminho, como veremos em seu lugar. E o que João Machado fez foi de mais serviço del-Rei naquele tempo, que este do Preste que lhe mandavam fazer. Pedrálvares, leixando a estes dous homens a provisão pera sua despesa e cartas del-Rei Dom Manuel pera o Preste, espediu-se del-Rei de Melinde, o qual lhe deu dous pilotos guzarates pera o levarem à Índia, pera onde partiu a sete de Agosto.

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181 58v 191 Capítulo IV. Como Pedrálvares chegou à Ilha de Anchediva onde esteve alguns dias reparando-se do necessário, e di chegou a Calecute, onde por recados que teve com el-Rei, concertaram ambos que se vissem. Atravessando Pedrálvares Cabral aquele grande golfão de mar de setecentas léguas que pode haver de Melinde, que é na costa da terra de África, à costa da Índia, chegou a vinte três dias de Agosto, béspora de São Bartolomeu, à Ilha Anchediva, de que atrás fizemos menção, onde esteve quinze dias repairando as naus e provendo-se de água e lenha, principalmente também por esperar a passagem dalguas naus de Meca, que com a mesma necessidade e por melhor navegação sempre iam 192 demandar aquela ilha; das quais naus muitas eram já passadas e alguas estavam em Calecute, onde Pedrálvares as achou, e outras per esses portos de Malabar, 182 fazendo seus proveitos. E os dias que esteve nesta ilha, os gentios da terra lhe traziam mantimento e fructa da terra, folgando ter a comunicação dos nossos, porque, como era gente pobre e por qualquer cousa que traziam lhe davam muito, acudiam tantos, que os haviam já por importunos. Muitos dos quais, quando os nossos ouviam missa e receberam o sacramento da comunhão, estavam a estes ofícios com atenção; mas como os religiosos e sacerdotes da armada, a quem pertencia a conversão deles, não sabiam a língua da terra, que era o principal instrumento pera vir a efeito a boa disposição que neles estava, não se pôde por então mais fazer que prepará-los com boas obras, pera quando a oportunidade do tempo desse a isso lugar. Pedrálvares, partido dali, via de Calecute, chegou ao seu porto a treze de Setembro, onde logo, ante de surgir, foram de redor dele muitos barcos da terra, todos como gente que mostrava contentamento de sua chegada, e sobre eles veo um zambuco em que vinha um mercador guzarate, homem em seu trajo e presença de autoridade, que da parte del-Rei visitou Pedrálvares. O qual ele recebeu e espediu com gasalhado, mandando a el-Rei as graças de sua visitação, e ao mouro satisfez com alguas peças, por ser costume da terra partirem os mensageiros contentes da pessoa a que levam os tais recados. E como esta visitação foi ante de ele, Pedrálvares, mandar salvar a cidade, além de as naus chegarem muito embandeiradas, e per seu costume na chegada de tal porto tiravam algua artelharia, aqui mandou dobrar a fúria dela, mostrando-se tudo por festa da visitação del-Rei. A trovoada da qual, não somente avorreceu ao mouro que foi com a visitação, por a levar toda nas costas, astrogindo-lhe as orelhas, mas ainda na cidade fez tamanho espanto, que, estando a praia coberta do povo na vista das naus, desempararam tudo, recolhendo-se muito dele a suas casas. Passado aquele dia, que todo se despendeu em amarrar as naus e aperceber pera a segurança delas, quando veo ao outro dia, mandou Pedrálvares recado a el-Rei per João de Sá, que sabia a terra, por ser um daqueles que foram com Dom Vasco da Gama, e com ele ua língua do arávigo, pedindo-lhe dia pera lhe mandar certos recados que trazia del-Rei de Portugal, seu senhor, e isto té se ambos verem. Ao que el-Rei respondeu com boas palavras; e quanto ao dia pera ouvir novas del-Rei de Portugal, não podia mandar este recado tam cedo, que não fosse tarde para ele, segundo o desejo que tinha de ouvir novas de sua disposição. Pedrálvares, sem cautela algua de reféns por não mostrar desconfiança del-Rei, ao outro dia enviou a ele Aires Correa, e Afonso Furtado e João de Sá que o acompanhavam, e por língua Gaspar da Índia. Per o qual Aires Correa lhe enviou dizer,que a principal cousa que o trazia àquele seu porto mais que a outro dalgum rei ou príncipe da

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Índia, era o que já per 183 outro capitão del-Rei, seu senhor, tinha sabido: - ser 193 o seu nome tam celebrado nas partes ocidentais da Cristandade, que, desejando el-Rei de Portugal, seu senhor, ter com ele amizade e comunicação per trato de comércio, mandara a ele um capitão seu, chamado Vasco da Gama. Ao qual ele agalardoou com honra e mercê, somente por lhe levar tam boa nova, como era ter achado caminho pera se comunicar com ele, Samori. Da qual nova procedera mandar logo fazer ua armada de treze naus com que ele, Pedrálvares, partira 59 de Portugal, das quais no caminho tinha perdido cinco com um grande temporal que lhe dera. E pois ele, louvado Deus, com aquelas poucas era chegado ante aquela sua real cidade, que era o lugar onde el-Rei, seu senhor, o enviava, sobre esta amizade e comércio que dezia - e isto eram cousas de calidade que requeriam verem-se ambos - pedia a sua Real Senhoria ordenasse como e quando podia ser. As quais vistas fossem de maneira que pudesse ele comprir o que lhe el-Rei, seu senhor, mandava, que era em nenhum modo sair em terra; e, quando se não podesse al fazer, fosse em parte tam pegada no mar e com tantos reféns, que não dezia a pessoa dele próprio, capitão, mas o mais pequeno homem que viesse naquela armada estevesse mui seguro, e isto em Calecute, onde sabia haver mouros que procuravam traições aos seus. Porém, pera castigar aos mesmos mouros quando comprisse, não dezia ele por os péis em terra , mas que per todalas partes os perseguisse a força de ferro. El-Rei a este recado que lhe levou Aires Correa, toda a conclusão dele foi responder com palavras do contentamento da chegada dele, capitão; e que, como ele estevesse em disposição pera se verem, tudo se faria no melhor modo que podesse ser. Peró Pedrálvares, como já sabia que a maneira de negociar del-Rei, naquelas cousas que ele não fazia de boa vontade, tudo eram dilações, começou logo com outros recados apertar que se vissem. O qual, posto que não podia sofrer dar os reféns que lhe Pedrálvares pedia, e toda sua escusa era serem homens velhos e da geração dos brâmanes, os quais, por razão de sua religião, não podiam comer nem dormir senão em sua própria casa, e, quando se tocavam com gente fora de sua geração, tinham suas purificações e cerimónias de que não podiam usar, estando no mar, todavia houve de conceder em os dar, e assi no modo das vistas como Pedrálvares quis, porque o temor da gente, naus e artelharia que via ante si, lhe fizeram comprir o que negava per vontade. E este modo e lugar foi em um cerame que estava sobre o mar, que como um eirado coberto, armado sobre madeira muito bem lavrada, onde os Reis por seu passatempo e recreação às vezes vinham dar ua vista 194 ao mar. O qual cerame el-Rei mandou aparamentar de panos de seda, segundo o uso que eles tem nestes autos de vistas com pessoas de estado, e tudo mandou fazer 184 de maneira que parecesse vir ele àquele lugar, mais por seu prazer e por folgar de ouvir aquela embaixada, que por outro algum temor. Pedrálvares também, por mais segurar el-Rei e não serem aquelas vistas com tanta desconfiança, que pera conciliar e adquerir amizade era cousa prejudicial, não quis que tudo fossem cautelas, e mais porque nelas mostrava temor. E como nesta segurança de que ele quis usar o maior risco era sua fazenda, e não em cousas de que podesse dar conta que tevera pouco resguardo em se confiar, no tempo que andaram estes recados de suas vistas, depois que assentou com el-Rei onde haviam de ser, mandou-lhe pedir ua casa junto daquele seu cerame, onde mandasse levar algum fato seu pera estar aí esses dias que a prática dentre eles durasse, por não ir e vir tantas vezes ao mar. A qual casa lhe foi dada; e a primeira cousa que Pedrálvares mandou levar a ela, foi a sua prata e cousas do serviço de sua pessoa, quási a vista de todos, porque soubesse el-Rei que, como homem confiado, mandava aquelas cousas, e também que eram sinal que fazia tanto fundamento da terra

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como do mar, posto que no modo de se verem e reféns que pediu mostrava algua desconfiança. Vindo o dia destas vistas, escolheu Pedrálvares pera levar consigo os capitães e pessoas notáveis, leixando porém alguns com cuidado do que havia de fazer, quando algum caso não esperado sobreviesse. E estava assi ordenado que, em Pedrálvares abalando das naus pera terra, de lá haviam de vir os arreféns, de maneira que, quando eles entrassem em as naus, ele chegasse ao cerame. Os quais em número eram seis, todos apontados per Aires Correa per rol que de cá do reino levava, per indústria de Monçaide, por estes serem dos principais da terra, segundo também confirmaram os gentios que Dom Vasco da Gama consigo trouxe, os quais Pedrálvares levou pera lá darem nova da grandeza de Lisboa e tráfego das mercadorias e naus que a ela concorriam. E um destes arreféns era o Catual que tanto trabalho deu a Dom Vasco da Gama (como dissemos atrás); e os dous mais principais, ambos oficiais da fazenda del-Rei, haviam nome Peringora Raxemenoca, todos homens já de dias e mui religiosos na sua gentilidade.

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184 59v 195 Capítulo V. Como passaram as vistas entre el-Rei e Pedrálvares Cabral e a represária que per fim delas houve de ua parte a outra, por razão de uns arreféns; e per derradeiro concertados saiu Aires Correa em terra a fazer negócio. Como estas vistas que Pedrálvares tinha assentado com o Samori, eram ua mostra per que se podia julgar a polícia e riqueza deste reino, mandou aos que estavam apontados pera sair em terra com ele, que 185 se vestissem e atabiassem do seu e do emprestado o melhor que pudessem. O que todos fizeram à compitência de quem levaria mais seda e mais jóias, e nos batéis cada capitão mais bandeiras, com todolos instrumentos de tanger, sem tiro algum de artelharia, por não assombrar aquela gente no auto de tanta festa. E ele, Pedrálvares, ia vestido com ua opa de brocado e o mais que dezia com ela, trajo que naquele tempo era mui usado neste reino. Chegado com esta pompa à praia, porque não podia sair a pé enxuto, foi levado em colos de homens em um andor dos da terra, té o meterem entre os principais do gentio que o Samori mandou que o viessem receber à praia: o qual Samori estava já no cerame em vista dele, esperando que viesse. E posto que ele, Samori, não tinha tanto pano, seda, ouro e opa de brocado como os nossos levavam, e um pano de algodão bornido com uas rosas de ouro de pão semeadas por ele, a que chamam puravá (trajo de brâmanes), cobria seus coiros, entre baços e pretos, a pedraria das orelheiras, barrete da cabeça, pateca cengida e braceletes dos braços e pernas, eram estas cousas de tam grande estima que não haviam enveja às jóias dos nossos. Finalmente naquele estado em que ele estava, assi em coiros e descalço, e fora daquelas oparlandas de muito pano que cá usamos em seu modo cercado daqueles seus vassalos, ele representava bem a dinidade real que tinha. Ao qual chegando Pedrálvares, ele se levantou em pé de ua cadeira em que estava, chapada de ouro com algua pedraria, e o veo receber, fazendo-lhe muito acatamento té o lugar onde se assentaram. E passadas as cerimónias da primeira vista, deu-lhe Pedrálvares a carta que levava del-Rei Dom Manuel. O Samori, depois que lha interpretaram do arávigo em que ia escrita, disse a Pedrálvares que per aquela carta del-Rei de Portugal tinha entendido sua boa vontade, e como ele, capitão, era enviado àquele seu porto pera tratar cousas de paz e amizade com ele e assi do comércio das especearias; e que acerca destas e outras cousas que ele, capitão, trazia em sua memória, lhe podia dar 196 fé, e por todas serem da vontade dele mesmo, Rei, seu senhor, ele podia praticar em alguas ou ficassem pera outro dia, se lhe a ele bem parecesse. Pedrálvares, por estar avisado que todo este gentio é sujeito a muitos agoiros, e, se atravessa ua gralha ou qualquer cousa que se lhe antolha, leixa tudo, dizendo que não é boa hora pera negócio, principalmente quando lhe a eles não contenta, e sobre isso são mui taxados na prática, receando que lhe podia isto acontecer, em breves palavras disse que a causa de sua vinda, e com quantas naus partira deste reino e as que perdera, e a mercê que el-Rei fizera a Dom Vasco da Gama por descobrir aquele caminho. Finalmente que aquelas naus vinham ali a dous fins: o primeiro pera que se ele, Samori, 186 tevesse algua necessidade de gente ou armas pera defensão de seu reino, que el-Rei, seu senhor, mandava que lhas oferecesse; o segundo fim era pera as carregar de especearia, pera compra da qual trazia ouro, prata e muitas mercadorias de toda a sorte que naquelas partes serviam. E porque ele, Pedrálvares, tinha sabido que Sua Real Senhoria estava em paz com seus vezinhos, cessava a

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primeira causa da vinda das naus, e ele, Samori, ficava na obrigação da segunda, pois já lhe era manifesto per duas armadas que el-Rei Dom Manuel tinha mandado àquele seu porto, quanto nisso podia despender, tudo afim de querer ter amizade e comércio com ele. Portanto lhe pedia por mercê que ordenasse como lhe fossem dadas as casas que lhe já dissera Aires Correa, pera ele, feitor, se vir a elas com os oficiais da fazenda del-Rei e trazerem as mercadorias que vinham em as naus pera aquele mister; do qual negócio 60 Aires Correa, depois que estevessem em terra, daria razão aos seus oficiais, pera eles sobre isso fazerem conta das especearias que haveriam mister pera a carga. Que, quanto ao preço, ele não queria novidade, somente dar e receber segundo costume da terra, conformando-se com os mercadores de Meca que ali eram mais continos. El-Rei a estas palavras respondeu com outras mais ao propósito do que ele desejava que a conclusão do que Pedrálvares lhe requeria, resumindo-se nisto: que a casa que pedia ele a tinha mandado despejar, e por já ser tarde e os homens que lhe mandara à nau em reféns eram velhos e debilitados e não podiam comer segundo sua lei e costume, té serem limpos do tocamento que teveram com gente fora de sua geração, por esta ser ua das principais partes de sua religião, lhe rogava que os mandasse logo vir. Acerca dos quais reféns por que Pedrálvares dilatava sua vinda, ensistiu el-Rei tanto que viessem, que lhe não valeu dizer que em nenhua maneira podiam vir, senão indo ele mesmo, Pedrálvares, a isso, porque os capitães tinham consagrado em sua lei, ainda que fossem recados seus, não os darem, senão depois que vissem a sua pessoa dentro em as naus. Da qual perfia conveo a Pedrálvares 197 por ver el-Rei meo arrufado e se espedir sem algua conclusão, recolher-se em os batéis em que veo, dizendo que ele os mandava logo, parecendo-lhe que todo este apertar del-Rei era mais por razão das cerimónias gentílicas de que eles são mui religiosos, que por outra algua maldade. Mas segundo se logo viu, eles pretendiam mais engano que religião, e parece que assi o tinham os reféns ordenado com el-Rei, que quási per fim da prática, tempo em que os das naus algum tanto se podiam descuidar deles, se lançassem ao mar e se salvassem em os barcos da terra, os quais pera isso andariam derredor das naus. E desta feita, ainda que lhe não ficasse em terra mais presa que a fazenda do capitão que lá estava e os homens da guarda dela, bastava 187 pera fazerem suas cousas mais a sua vontade. E tudo isto eram indústrias dos mouros. O qual negócio como o tinham assentado assi foi, porque quási no tempo que el-Rei se espedia de Pedrálvares, os reféns se lançaram todos ao mar, de que três se salvaram e outros três foram tomados; o que Pedrálvares muito sentiu quando chegou à nau e o soube, porque já aquele modo de paz eram começos de guerra. E temendo que fizessem os três que ficavam outro tanto, por os ter mais seguros e menos mimosos, foram metidos no baixo da bomba, com homens que estevessem com eles, té el-Rei fazer razão de si dos homens e fazenda que ele, Pedrálvares, mandara a terra. E como ele a este tempo andava quartanário, com estes desconcertos del-Rei vinham-lhe dobradas as sezões, lembrando-lhe os trabalhos que passara no mar e quanto maiores tinha por diante na terra. Sobre o qual negócio, por ficar daquela maneira desatado com el-Rei, teve conselho com os capitães da armada, no qual conselho assentaram que per espaço de dous dias não se movessem nem mandassem recado algum a el-Rei, porque nisto lhe davam mais em que cuidar, e entretanto se ordenassem como se ao outro dia houvessem de sair em terra a destruir a cidade, porque as cousas que o ódio nega o temor as concede. Parece que ou este modo de conselho aproveitou, ou que el-Rei se arrependeu do que fez, e também podia ter outro conselho com os gentios que desejavam tanto nossa amizade, quanto a estrovavam os mouros: porque, quando veo ao segundo dia, mandou dizer a Pedrálvares que ele estava um pouco descontente do dia em que se viram passarem alguas cousas de que lhe parecia ele, capitão, poder ter algum desprazer, portanto lhe pedia que ambos se tornassem a ver naquele lugar,

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e que não houvesse cautelas de reféns, por não haver azo de paixões, que procediam de homens fracos e temerosos de se ver sujeitos, sendo livres. Assentada esta vista, foi naquele lugar do cerame entre o Samori e Pedrálvares jurada a paz, e disso se passaram seus pactos e fizeram contratos da especearia; com a qual paz e concerto Pedrálvares mandou logo a Aires 198 Correa que se fosse aposentar nas casas que el-Rei mandou dar junto da praia, levando consigo, não somente os oficiais da feitoria e sessenta homens que lhe Pedrálvares ordenou pera lá estarem com ele, mas ainda Frei Hanrique com os seus religiosos pera entenderem na prática e conversão da gente, atentando este negócio com grande prudência, por não mover algum escândalo entre gente tam sáfara do 60v nome de Cristo e tam costumada a seus ritos e diabólicos usos, e sobre tudo induzidos contra nós per todolos mouros. E como todos esteveram em terra, que uns e outros vinham à casa da feitoria, Aires Correa tinha cuidado do que pertencia a seu ofício e Frei Hanrique, como carecia do principal instrumento, que era língua malabar, não podia usar do 188 seu tam liberalmente como quisera, posto que à casa concorria muita gente. Porém todo este concurso de ir e vir à feitoria, mais era a ver que a comprar, nem receber doutrina, de maneira que se Frei Hanrique tinha pouco que fazer, Aires Correa menos. Nem os nossos que tinham licença pera andarem pela cidade tam cautelosamente se haviam com eles, que não achavam quem lhe quisesse vender mais pimenta pubricamente que pera comer um pouco de pescado, e se algua cousa haviam, era do gentio, que o não vissem os mouros. Os quais mouros (principalmente os estrangeiros de Meca), assi tinham tecido as cousas contra nós, que, começando Aires Correa a praticar com os oficiais que lhe o Samori ordenou pera darem a especearia com que se haviam de carregar as naus, começaram eles mais descobertamente mostrar quanto engano neles havia, buscando escusas por dilatar a carga e gastar o tempo da partida dos nossos. Pedrálvares, como cada hora lhe vinham recados de Aires Correa, destes modos e escusas que tinham com ele, as quais sabia procederem mais dos oficiais del-Rei, por serem peitados dos mouros, que da vontade dele, Samori, (como aconteceu a Dom Vasco da Gama), determinou de lho mandar dizer per o mesmo Aires Correa, pera melhor relatar o que faziam com ele. Entre os quais queixumes era que seus oficiais, por comprazer aos mouros, lhe não davam carga, e secretamente de noite a davam às naus de Meca que ali estavam, a qual cousa ele não podia crer ser mandado por ele, Samori, porque as palavras de um tal príncipe nam podiam desfalecer, e mais quando estavam obrigadas a juramento como ele tinha obrigado as suas a dar carga às suas naus e não às de Meca. El-Rei, como já tinha facilidade com Aires Correa por as vezes que foi a ele, por meio de Gaspar da Índia, que era o intérprete, se começou desculpar, dizendo que os mercadores da pimenta não a tinham ainda recolhida da mão dos lavradores por ser um pouco cedo, ca eram costumados andar neste recolhimento com a monção das naus de Meca e não com as nossas, e algua pouca com que ele, Aires Correa, tinha já quási carregado duas naus (segundo lhe os seus oficiais disseram), esta era pimenta velha que ficara do ano passado, e não se podia mais fazer, segundo lhe deziam os oficiais seus, a que tinha encomendado este seu despacho. 199 Aires Correa, como todalas palavras del-Rei eram desculpas e a soma e conclusão delas acabava dizendo que se não podia mais fazer, desta e doutras vezes que lá foi sobre o mesmo caso não vinha contente dele; e quem lhe fazia ter maior escândalo del-Rei e o mais indinava sobre este caso eram paixões e compitências que entre si traziam dous mouros que se mostravam grandes amigos dele, Aires Correa, e o caso era este:

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189 60v 199 Capítulo VI. Das paixões e compitências que havia entre dous mouros principais de Calecute, donde se causou os nossos irem tomar ua nau carregada de elefantes, que vinham de Cochi; e do que nisso passou. Havia nesta cidade de Calecute dous mouros, homens mui principais: a um chamavam Coje Bequi, e a outro Coge Cemeceri; este tinha o governo das cousas do mar e o outro das da terra. E como entre os governadores de ua mesma cidade, pela maior parte, se acham envejas e paixões de jurdição, entre estes dous, peró que se falassem e tratassem por razão dos ofícios, havia no peito de cada um ódio mortal, e com a vinda dos nossos se acrescentou mais. Porque Aires Correa, depois que esteve em terra, por achar em Coge Bequi, em cujas casas ele pousava, mais verdade que no outro, folgava de o favorecer, o que Coje Cemeceri sofria mui mal, porque sentia que com esta amizade seu imigo recebia mais honra e algum proveito que o mais magoava. A qual dor o fazia trabalhar que não se desse carga às nossas naus, e ainda sobreveo cousa com que lhe pareceu que o seu desejo haveria melhor efeito. E o caso foi este: Soube 61 ele que de Cochi, ua cidade obra de vinte léguas dali, era saída ua nau, a qual vinha da Ilha Ceilão e trazia sete elefantes que levava por mercadoria ao reino de Cambaia, e era de dous mercadores do mesmo Cochi, a que chamavam Mamale Mercar e Cherina Mercar. Esta nau como havia de passar à vista das nossas, pareceu-lhe que com ela podia executar seu ódio à nossa custa. Porque, per qualquer via que travassem com ela, por ser nau mui poderosa de até seiscentos tonéis, receberiam os nossos muito dano, e quando o ela recebesse, ficavam em ódio com os mercadores de Cochi e de toda aquela costa, com que não achassem acolheita em porto algum. Com a qual tenção foi-se a Aires Correa e, simulando que lhe fazia nisto serviço, disse-lhe como ele tinha recado que do porto de Coulão partira ua nau, a qual vinha carregada de toda sorte de especearia, que bem poderia carregar duas das nossas, e ia pera Meca, e de caminho havia de tomar algum gengivre em Cananor. E por quanto a maior parte desta fazenda era 200 de mercadores de Meca, de quem ele tinha recebido certas ofensas e o Samori desserviços, lhe confessava que teria contentamento de a tomarem, e o Samori folgaria muito com isso, principalmente por nela ir um elefante que o mesmo Samori muito desejava, o qual lhe não quiseram vender e o levavam pera baldear em Cambaia. E como isto eram apetites de príncipes e também haviam por afronta das terras de sua jurdição levarem pera outras algua cousa em seu desprazer, e mais desejando-a ele verdadeiramente, podia ele, Aires 190 Correa, crer, se ordenasse como o Samori houvesse aquele elefante, daria por ele carga de pimenta a duas naus. E que deste aviso que lhe dava ua só mercê queria dele - que lhe mantivesse segredo, porque naquela cidade de Calecute havia alguns mercadores que tinham trato com estes de Meca, e, sabendo como sua mercê era sabedor desta nau, lhe mandariam aviso com que se salvasse. E também não os queria ter por imigos, sabendo ser ele o autor disso; e que desta verdade que lhe descobria não dava mais penhor de ser assi, senão a mesma nau que seria ali ante de dous dias, como veria se a mandasse vigiar; e ainda teve tal modo que fez com o Samori que mandasse um recado a ele, Aires Correa, sobre este elefante, dizendo quanto contentamento teria de o haver. Aires Correa, porque este mouro desejava de se meter com ele e sentia que as paixões dantre ele e Coge Bequi era grande parte favorecer mais ao outro que a ele, creu verdadeiramente

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que descobrir-lhe a vinda desta nau tirava a duas cousas: a se vingar dos mercadores de Meca, com que tinha paixões, e a se congraçar com ele, pera fazer seus negócios, e com o Samori, por causa do elefante. Do qual caso foi logo dar conta a Pedrálvares, dando-lhe aviso que o guardasse em segredo, té o dia que o mouro dezia que a nau seria ali. Pedrálvares, por as razões que lhe Aires Correa deu, bem lhe pareceu que o mouro tirava àqueles dous fins: a se vingar de seus imigos e a lhe darem por este aviso algua cousa, e mais haver mercê do Samori, tomando-se o elefante, cousa que ele tanto desejava; do qual Samori sobre o mesmo elefante teve outro recado, que fez acreditar mais as palavras de Coge Cemeceri. Vindo este dia em que se a nau esperava, mandou Pedrálvares ter vigia no mar, parecendo-lhe que se ela soubesse estarem ali, per ventura passaria tanto a la mar da nossa armada que não fosse vista. Mas como ela era inocente desta trama que tinha urdido Coge Cemeceri, e também confiada em sua grandeza e na gente que trazia, ou per qualquer causa outra que fosse, não quis perder seu caminho e começou aparecer vindo ao longo da costa, de maneira que, amparando com a nossa frota, ficasse entre ela e a terra. Pedrálvares, porque tinha já dado o cuidado de a ir demandar a Pero de Taíde, capitão do navio São Pedro, tanto que foi vista, meteram-se com 201 ele Vasco da Silveira, Duarte Pacheco Pereira, João de Sá, que fora com Dom Vasco da Gama, e outras pessoas de calidade que Pedrálvares escolheu, e foram a ela. A nau, como entendeu que a iam demandar, porque vinha já emparando quási com as nossas, começou de se meter mais na terra, na volta de Cananor, porque tinha aviso de Coge Cemeceri, que tecia este negócio, que indo alguns nossos navios demandá-la, se metesse em Cananor, ca ele por amor de Mamale Mercar e Cherina Mercar, que eram seus amigos, mandaria 191 recado a Cananor que se metesse algua gente dentro pera a defenderem. E como tinha enviado este aviso à nau, assi mandou recado a certos mouros estantes em 61v Cananor, que lhe pedia em toda maneira, chegando a nau àquele porto, de noite, secretamente lhe metessem a mais gente que podesse, que ele pagaria a despesa que se nisso fizesse, porque mais devia a Mamale Mercar e a Cherina Mercar, cuja ela era. A nau, vendo que somente um navio a ia demandar, fez tam pouca conta dele, que mais se alvoroçou pera o meter no fundo, que temeu poder receber dano dele; e toda ia em cantares e tangeres, sem dar por Pero de Taíde que lhe mandava que amainasse, quási como quem o não tinha em conta. Porém depois que o navio a salvou com ua bombarda grossa ao lume de água, e per cima a varejou com a artelharia meúda, não somente os pelouros lhe fizeram muito dano, mas ainda as rachas que levaram em sua passagem feriram muitos homens, com que ela começou de se acolher ao abrigo da terra, leixando ela também em o nosso navio, perpassando per ele, ua grossa chuva de setas e alguns pelouros de uas bombardas de ferro, que feriram e encravaram dos nossos. Pero de Taíde, quando viu que tam cedo lhe não convinha achegar-se muito a ela, di té Cananor, onde se foi meter quási sobre a noite, sempre a foi servindo já com mais fúria polo dano que recebeu dela. A qual, metida dentro em a concha de Cananor, entre quatro naus que i estavam, não a quis Pero de Taíde mais afrontar, té saber de Pedrálvares se havia por bem que a tomasse dentro naquele porto, por ser del-Rei de Cananor, do qual tinham sabido desejar nossa amizade e per ventura haveria por injúria ser tomada no seu porto. Pedrálvares, como de noite houve este recado per um toné da terra que Pero de Taíde a grã pressa mandou, respondeu-lhe que não leixassem de a tomar, porque, depois de a terem em poder, aí lhe ficava lugar pera fazerem qualquer comprimento com el-Rei de Cananor. Pero de Taíde, como teve este recado de noite, ordenou-se pera o outro dia pelejar com ela, mas teve nisso pouco que fazer; porque, como do dia de ante muita gente da que ela trazia foi ferida e morta, de noite todolos feridos e parte dos sãos se acolheram a terra. E os que Coge Cemeceri mandava meter nela, vendo como estes saíam bem feridos, não quiseram ir tomar experiência

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doutro tal dano; e per este modo os nossos foram senhores da nau sem afronta, porque ainda alguns poucos que ficavam se renderam sem ela. 202 Tirada esta nau do porto de Cananor, foi levada a Pedrálvares, que a recebeu com muito prazer, por não ser tam custosa de sangue como esperava. E o que deu maior prazer à gente comum, foi um novo mantimento que ali comeram, que foi carne de elefante, porque com artelharia um dos sete que a nau levava foi morto, e como a gente 192 estava desejosa de carne fresca, esta se repartia per todalas naus. Pedrálvares, vendo como era falso a nau levar especearia e tudo se converteu naqueles sete elefantes, ficou muito descontente, e mais quando soube não ser fazenda dos mouros de Meca, senão de dous mercadores de Cochi, como atrás dissemos. E porque não respondia a carga da nau com as informações que Aires Correa tinha per Coge Cemeceri, e em seus modos o tinham por homem falso, sentiu que tudo isto eram indústrias suas, a fim que toda a terra estevesse mal connosco, posto que não soubesse os artefícios que pera isto teve, e avisou a Aires Correa que não confiasse mais de suas palavras. E se a tomada desta nau não servia à malícia de Coge Cemeceri, servia pera temorizar aos mouros de Calecute e ao Samori, o qual com esses mais principais, quando viram a grandeza da nau e souberam a gente que trazia, comparando isto ao navio São Pedro, que seria de até cem tonéis, ficaram mui assombrados e sem esperança de nos poderem ofender per guerra. E serviu também pera se ganhar amizade com el-Rei de Cochi, ordenando ele, Coge Cemeceri, de meter em ódio os nossos per toda aquela costa. Porque, sabendo Pedrálvares ser a nau daqueles mercadores de Cochi, mandou chamar o capitão dela, pedindo-lhe perdão do dano que era feito, porque sua tenção, quando mandara ir sobre ela, foi por lhe dizerem alguas pessoas de Calecute que era nau dos mouros de Meca, com os quais os portugueses tinham guerra. Que, em ser feito aquele dano, ele, capitão, tinha a culpa, porque, se dissera donde e cuja era a nau, quando lhe foi perguntado, não recebera algum mal. Mas pois o caso era feito, aí não havia mais que tornar-lhe a entregar sua nau, pera fazer embora sua viagem; porque as cousas del-Rei de Cochi, onde quer que as achasse, sempre dele receberiam boas obras, por a fama que tinha ser mais verdadeiro príncipe daquela terra. E que, se lhe comprisse 62 algua cousa pera sua viagem, ele folgaria de o favorecer. Com as quais palavras o capitão se lançou a seus péis, e confessou ele ser o culpado; e com mercê que lhe Pedrálvares fez dalguas cousas, se espediu, contente dele.

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193 62 203 Capítulo VII. Como por causa de ua nau dos mouros que os nossos tomaram, a qual estava no porto de Calecute, cuidando estar carregada de pimenta, saltou todo o gentio da cidade com o favor dos mouros e mataram Aires Correa, na casa da feitoria, com a maior parte dos que estavam com ele; e do que Pedrálvares sobre isso fez. Pedrálvares, porque eram já passados três meses de sua chegada àquele porto, e não tinha havido carga mais que pera duas naus e cada quintal de especearia lhe custava ua quartãa dobrada, por os vagares e artifício com que se havia das mãos daqueles oficiais, a que o Samori tinha mandado que o despachassem, e sentia claramente que tudo isto faziam os mouros, principalmente Coge Cemeceri, mandou-se gravemente aqueixar a el-Rei per Aires Correa. E porque desta vez que Aires Correa lá foi, repetiu muitas vezes que os mouros davam carga de noite às naus de Meca que estavam naquele porto, viu-se o Samori tam apertado dele, que lhe disse que, se ele tinha por certo que os mouros davam de noite carga às naus de Meca, que a mandasse o Capitão-mor tomar, porque ele dava pera isso licença, e que per aqui compria com o Capitão-mor, nos queixumes que lhe mandava fazer de seus oficiais. Porque, se assi era que eles davam azo a que os mouros carregassem de noite, os mouros perderiam a pimenta que tinham carregada e seus oficiais haveriam bom castigo; e com isto espediu Aires Correa. O qual, como andava cheo desta presunção - que as naus de Meca que estavam no porto tinham carga de pimenta - não cuidou que na licença que levava del-Rei tinha pouco despacho. Do qual caso foi logo dar conta a Pedrálvares, e assentou com ele que ao seguinte dia, que eram dezasseis de Novembro, dessem, em rompendo alva, os batéis em ua nau que havia suspeita estar carregada, e achando-lhe pimenta, a tirassem do porto e levassem a bordo das naus pera a baldear nelas, com fundamento de a pagarem a cuja fosse, sem embargo de lhe el-Rei dizer que a tomassem, por pena de ele ter mandado que, ante das nossas naus haverem carga, nenhua nau a tomasse. O qual negócio sucedeu mui mal, porque a nau estava carregada de mantimentos, e tudo foi indústria dos mouros, por indinarem a gente da terra contra nós, como fizeram. Ca não houve mais detença; que, entrados os nossos em a nau, como iam com aquele alvoroço de gente de guerra, e mais com ódio que tinham aos mouros, peró que não achassem pimenta, começaram de revolver a nau; da qual fugindo, os mouros que nela estavam deram rebate em terra, fazendo tamanho alvoroço na cidade, que começaram matar alguns dos que estavam com Aires Correa, os quais andavam seguros per ela. Aires 194 Correa, quando sentiu a revolta e viu vir um tropel de gente sobre alguns que se vinham amparando, acudiu a os recolher, já mui feridos 204 da multidão dos mouros e gentio que os perseguiam. Mas pouco aproveitou a eles e a ele, ante foi causa de o matarem mais cedo e a muitos dos que estavam com ele dentro das casas, porque entraram todos de envolta, sem lhe darem tempo de se poder entreter com as portas fechadas, té que das naus lhe acudissem, posto que no alto da casa foi per um dos nossos arvorada ua bandeira, que era sinal de haverem mister socorro. Pedrálvares a este tempo estava com a sezão das quartãas, e quando lhe disseram que nas casas da feitoria era arvorada bandeira e que havia gente derredor delas, pareceu-lhe que seria algum arroído dos nossos; e como a cousa particular mandou dous batéis com gente que acudissem. Peró, depois que lhe disseram que as casas estavam todas cercadas e que isto parecia furor do povo,

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a grã pressa mandou os capitães com todolos batéis e a mais gente que podesse levar. Mas foi a tempo que já nas casas não havia vivo nenhum dos nossos, e alguns que se quiseram acolher ao mar, vinham os mouros e gentios às 62v frechadas e lançadas pola praia, sem lhe darem tempo pera embarcar. E ainda pera se melhor vingarem deles, os mouros que ordenaram esta maldade a noite passada teveram esta indústria: mandaram fazer a praia em montes de area e covas donde tiraram os montes; porque, querendo-se os nossos acolher aos batéis, quando viessem trás eles, isto lhe fosse empedimento pera se não recolher tam prestes, e entretanto os matariam às frechadas. Neste recolhimento de tanto trabalho escapou Frei Hanrique com alguas feridas pelas costas, o qual, como puríssimo religioso que era, as recebeu em lugar de martírio, e assi escaparam quatro frades dos seus. Nuno Leitão, capitão do navio Nunciada, vendo vir António Correa, filho de Aires Correa, moço de até doze anos, do qual por sua pouca idade os mouros não faziam conta, meteu-se em meio deles, e polo salvar às costas foi primeiro mui bem ferido. E posto que este cavaleiro Nuno Leitão (que depois alguns tempos serviu de almoxerife do almazém das armas) per si não vingasse este dano que aqui recebeu, António Correa o fez em mui honrados feitos nestas partes, em que também vingou a morte de seu pai. E certo que se o ímpeto com que os mouros e toda gente da cidade cometeu a casa, eles seguiram alguns dos nossos que teveram lugar pera vir buscar a praia, não escaparam obra de vinte pessoas de sessenta que eram em terra. Mas como toda a fúria parou em furtar a fazenda que Aires Correa lá tinha, teveram espaço pera escapulir da casa os que vieram demandar a praia, dos quais ainda alguns ficaram ali mortos e os outros mui mal feridos, e quatro ou cinco se esconderam em casa de Coge Bequi, nosso amigo. Quando 195 Pedrálvares viu ante si aquela gente tam mal ferida e soube 205 que tudo procedera da tomada da nau per conselho de Coge Cemeceri, e que ele acendera aquele fogo, havendo-se por agravado de Aires Correa, por alguas palavras que lhe disse sobre o engano da nau dos elefantes, disse àqueles capitães que eram presentes: - Louvado seja Deus, pois é mais poderoso pera vos destruir um amigo simulado, que um imigo descoberto! Aires Correa tinha por amigo aquele mouro Cemeceri e confiava em suas palavras, e eu descansava nas suas; e assi ele morreu desenganado já dele e eu moiro, porque enganei a muitos, parecendo-me que acertava em seguir seu parecer. Verdadeiramente, ainda que ele morreu como cavaleiro e os outros que com ele vão, e todos por servir el-Rei, nosso Senhor, acabaram em bom lugar, e eu lhe tenha mais enveja à sua morte do que se pode ter a estas minhas quartãas, todavia dera por ua hora de vida de Aires Correa dez anos da minha, somente pera o poder arguir em alguas cousas destas que eu adevinhei e me ele não cria. Porém, pois aprouve a Nosso Senhor que viéssemos a estar com este Samori em pior estado do que estávamos ao tempo de nossa chegada, tomemos este desastre à conta dos mortos, pois acabaram nele, e à nossa, por princípio de bom despacho, pois nos dá causa a não dissimular quantos enganos há três meses que sofremos. Finalmente, praticando Pedrálvares com os capitães o modo que haviam de ter pera tomarem conclusão com o Samori, depois que se trouxeram muitos inconvenientes de ua e doutra parte, assentaram que nenhum outro conselho era mais proveitoso que as armas; ca dissimular enganos, ainda que fizeram mal, não era tam manifesta injúria como morte de tanta gente. E vendo el-Rei e os da terra que não acudiam a isso com grande ímpeto de vingança, ante que arrefecesse o sangue daqueles que ali pereceram, haveriam serem eles homens que por injúrias faziam pouco e por cobiça muito. Porém aquele dia não podia ser e era mais proveitoso ser ao outro, por duas causas: a primeira por lhe darem azo a que se metesse algua gente em guarda das naus, e quanta mais fosse mais culpados haveriam castigo; e a segunda por lhe ficar o dia todo inteiro pera, depois de

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queimadas as naus, esbombardearam a cidade. Posto este conselho em obra, foram queimadas mais de quinze velas que estavam juntas no porto, em que entravam oito naus grossas, a maior parte das quais estavam carregadas de mantimentos daquela costa Malabar, em cuja entrada morreu muita gente que estava em guarda delas. Acabado este incêndio das naus, começou outro da nossa artelharia, que foi varejar a cidade, não fazendo aquele dia e o seguinte outra cousa, com que muita parte dela ficou danificada, e, segundo se depois soube em Cochi, assi desta artelharia como em as naus morreram mais de quinhentas pessoas.

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196 63 206 Capítulo VIII. Como Pedrálvares Cabral foi ter a Cochi, onde o Rei da terra lhe deu carga de especearia; e, estando já no fim dela, veo sobre ele ua grossa armada do Samori de Calecute, e o que nisso fez. Feito este estrago naqueles dous dias, quando veo o terceiro, mandou Pedrálvares que se não fizesse mais dano, dando aquele dia por trégua, parecendo-lhe que enviasse el-Rei algum recado; mas quando viu que estava mais indinado que arrependido do feito da morte de Aires Correa e dos que com ele morreram, fez-se à vela caminho de Cochi. O qual lugar é cabeça de um reino assi chamado, que está abaixo de Calecute contra o Sul pela mesma costa trinta léguas, e nele, segundo Gaspar da Índia afirmava a Pedrálvares, havia mais pimenta que em Calecute, posto que o Rei fosse menos poderoso e não tam rico como ele. E a causa era por em Cochi naquele tempo haver pouco trato e poucos mouros, que eram os que Pedrálvares mais receava, por danarem todas nossas cousas, do qual reino e assi dos outros desta costa Malabar, onde pelo tempo em diante fizemos fortalezas e tivemos comércio, em outra parte mais própria desta relação escrevemos particularmente. Posto Pedrálvares em caminho, via de Cochi, por esta informação que lhe Gaspar da Índia deu, topou duas naus que, segundo parecia e se depois soube, vinham do mesmo Cochi; e, dando-lhe caça, pera saber se eram de Calecute, foram-se meter no rio de Panane, doze léguas de Calecute, entre outras naus que aí estavam surtas, as quais ele leixou, temendo ser já aquele lugar del-Rei de Cochi, e, fazendo-lhe algum dano, podia fazer outro segundo escândalo, como fez na tomada da nau dos elefantes que Coge Cemeceri maliciosamente fez tomar. Com a qual cousa ele ia temeroso, parecendo-lhe ter nisso ofendido a el-Rei de Cochi, e, tomando estoutras, achá-lo-ia mais em termos de guerra que de paz. E se leixou estas, mais adiante na paragem de Cranganor tomou duas que vinham com mantimentos pera Calecute e, por saber per os mouros que as navegavam serem doutros da mesma cidade, com a qual ficava em ódio, as queimou. Chegado ao porto de Cochi, que seria dali cinco léguas, porque soube que el-Rei estava em ua povoação metida pelo rio acima, mandou a ele um brâmane dos daquela costa Malabar. O qual era de uns que tomam por religião andarem em penitência per todo o Mundo, nus, com uas cadeas de redor de si, cheos de bosta de vacas por mais desprezo de suas pessoas, e geralmente os que tomam esta vida, se são do género gentio, chamando-lhe 207 jogues, e se são mouros, calandares; do qual modo de religião escreveremos adiante, e principalmente em os livros da nossa 197 Geografia. Este, ou que o costume da vida de peregrinar per terras estranhas, ou que verdadeiramente o seu zelo era desejar salvação, estando Pedrálvares em Calecute no tempo que Frei Hanrique procurava a conversão dalguns gentios, veo-se a ele, dizendo que queria ser cristão e vir com ele pera este reino, ao qual deram bautismo e houve nome Miguel. El-Rei de Cochi, posto que já tivesse sabido muita parte das cousas que os nossos passaram em Calecute, e também estivesse informado per os dous irmãos cuja era a nau dos elefantes, do que Pedrálvares fez e disse ao seu capitão, além desta informação, obrou tanto o que Miguel disse, que houve el-Rei de Cochi que os mouros de Calecute, e o Samori em lho consentir, tinham feito grande traição contra os nossos e muito dano a si, por ser gente que ganhava mais em os ter por amigos que anojados. Finalmente, por esta razão e outras de paixões e diferenças que entre ele e o Samori havia,

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e principalmente por causas de seu proveito, que ele tenteou, houve que nenhua cousa fazia mais a seu propósito que dar carga de especearia às nossas naus, e estimou em muito irem ter a seu porto. Porque com isto fazia duas cousas: ganhar nossa amizade, pera nos ter contra o Samori, quando lhe comprisse, e a segunda que haveria das nossas mãos muitas e boas mercadorias e dinheiro em ouro (segundo lhe contava Miguel), que é o nervo que sustém os estados no tempo de sua necessidade. Consultado o qual negócio entre os seus, não somente este foi o parecer dos gentios, mas ainda dalguns mouros, principalmente dos 63v dous irmãos que tinham recebido aquela nau de Pedrálvares, que foi ua obra que muito ajudou a nosso despacho. Porque el-Rei grande parte dela pôs à sua conta, sabendo que Pedrálvares por sua causa a soltara, sendo tomada de boa guerra; e mais entre os mouros irmãos havia já presunção dos artefícios que sobre esta nau tivera Coge Cemeceri, quando souberam como em Cananor a sua própria custa mandara meter dentro nela gente pera a defender, não estando eles muito correntes na amizade. E conforme a esta determinação, trouxe Miguel reposta del-Rei a Pedrálvares, dizendo que sua vinda fosse mui boa e que lhe pesava muito dos danos e trabalhos que tinha recebido em Calecute; que verdadeiramente, se ele não fora enformado per pessoas dinas de fé que a culpa destas cousas procedera do Samori, ele posera muita dúvida em lhe dar acolheita naquele seu porto, quanto mais carga de especearia. Por esta ser a lei de boa vezinhança - acudir às injúrias dos vezinhos - e mais sendo feito per pessoas tam estranhas em religião, costumes e pátria, como eram os portugueses, à gente malabar. Mas como ele, Rei, ficava desobrigado deste adjutório ao Samori, por ser em causas contra a lei e verdade que se deve aos estrangeiros que trazem bem e proveito ao próprio reino, ele, Pedrálvares, 198 podia seguramente esperar dele tudo em que o podesse ajudar. Pedrálvares, porque esta entrada de boas palavras sempre a ouviu naqueles 208 reis com que tiveram prática, ensinado do fim que com eles teve usou com este dalguns resguardos sobre o negócio da carga da especearia. Porém não quis tratar com ele que se vissem, porque o tempo era mui breve pera se partir via deste reino, e eles nestas vistas serem mui supersticiosos acerca da eleição dos dias em que devem contratar. Assi que, por evitar estes inconvenientes com que podia perder muito tempo, veo logo com ele a conclusão de dar carga da especiaria que prometia. Finalmente, sem haver entre eles mais cautelas, mandou el-Rei quatro pessoas honradas da linhagem dos brâmanes por arreféns de nove pessoas que Pedrálvares mandou a terra pera feitorizar a carga: Gonçalo Gil Barbosa, pera feitor; Lourenço Moreno e Bastião Álvares, por seus escrivães, e Gonçalo Madeira, de Tânger, por língua; e os outros eram degredados e homens da feitoria. Porque era aquela gente malabar tam suspeitosa, que houve Pedrálvares por mais seguro mandar menos gente que mais. E aprouve a Deus que assi se contentaram eles dos nossos, que geralmente todos, assi os oficiais del-Rei, que eram gentios, como os mercadores mouros, andavam a quem daria melhor aviamento à carga. A qual cousa dava muito contentamento a Pedrálvares, posto que em algua maneira os arreféns lha entretinham por causa da sua religião, que não haviam de comer em a nau onde Pedrálvares os tinha, té virem a terra a se lavar do tocamento que tiveram com os nossos. E enquanto iam comer uns, vinham outros em seu lugar, cousa que atormentava muito a Pedrálvares, ver os vagares com que isto faziam. Contudo, em espaço de vinte dias aqui, em Cochi e no rio Cranganor, que será dali cinco léguas mais acima contra o Norte, carregaram todalas naus muita pimenta e alguas drogas, somente gengivre, que depois foram tomar a Cananor. E neste porto de Cranganor acharam os nossos que ali foram carregar muitos cristãos de São Tomé, por ele leixar naquele lugar alguas igrejas feitas no tempo que ali pregou o Evangelho, da qual denunciação e gente que converteu ali e em Coromandel, onde foi a principal habitação sua, adiante faremos relação, e principalmente em a nossa Geografia.

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Dos quais cristãos de Cranganor dous chamados Matias e Josepe, irmãos, segundo eles diziam, doutrinados per bispos arménios que ali residiam, quiseram vir com Pedrálvares a este reino pera passarem a Roma e di a Jerusalém e Arménia, a ver o seu Patriarca. Porém o Matias, depois de ser neste reino, faleceu, e Josepe foi ter a Roma e a Veneza, e do que lá disse da sua cristandade e costumes os italianos, que nisto são mais curiosos que nós, fizeram um sumário que está incorporado em um volume em língua latina, 209 intitulado 199 Novus Orbis, onde andam alguas das nossas navegações escritas não como elas merecem e o caso passou. Tornando à carga da especearia que os nossos faziam per modo tam pacífico, neste tempo correu por toda aquela costa Malabar nova da nossa armada e das cousas que passara em Calecute, a qual nova parece que não foi tanto em louvor do Samori como nosso, havendo todos que usara de traição 64 em mandar matar homens que debaixo da fé dele estavam em terra tratando em cousas do comércio e não de guerra, dizendo todos que mandara fazer tal insulto mais por lhe roubar a fazenda que tinham que por outra algua culpa. E porque (segundo dissemos) este Samori era como Emperador naquela região Malabar (de que ao diante mais particularmente diremos a causa) e os outros Reis vezinhos sofriam mui mal esta sua potência, principalmente el-Rei de Cochi, que demarcava com ele pela parte de baixo contra o Sul, e el-Rei de Cananor, pela de cima do Norte, desejavam todos sua destruição e haver aí causa pera isso. A potência do qual Samori como procedia do comércio das especearias que se faziam no seu porto de Calecute, e ele tinha modos de avocar a si todalas naus dos mouros que vinham àquele trato, do qual comércio estes outros Reis gostavam pouco, por isso, vendo as nossas naus na Índia, com a informação que tinham do proveito que delas podiam receber, e ódio em que os nossos estavam com o Samori, cada um desejava de os recolher pera si. Donde se causou que el-Rei de Cananor e os governadores de Coulão, reino que confina com Cochi, pela parte de baixo contra o Sul, mandaram seus mensageiros a Pedrálvares Cabral pedindo-lhe que quisesse ir a seus portos, porque eles lhe dariam toda a carga de especearia que houvesse mister. Aos quais ele respondeu, dando-lhe agardecimento daquela oferta e boa vontade que mostravam ter às cousas del-Rei de Portugal, seu senhor; e podiam ser certos que, vindo ele a Portugal, como esperava, o dito senhor lhe gratificaria aquele seu desejo, como eles veriam na primeira armada que ali tornasse. Que ao presente ele não podia tomar carga, pola ter já recebido del-Rei de Cochi, no qual achara muito gasalhado, muita verdade e poucas cautelas, o que não achara em Calecute, vindo ele primeiro àquele porto que a outro algum da Índia. Pola qual razão, e assi polo proveito que ele trazia, o Samori não devera tratar tanta traição como com ele usou, aconselhado da sua cobiça e da maldade dos mouros, as quais cousas, por serem mui pubricamente feitas, seriam notórias per toda a Índia, e por isso lhe não fazia relação do caso como passara. Somente ele, Capitão-mor, tomava por testemunha da sua inocência, acerca do que passaram em Calecute, o agasalhado que achara em el-Rei de Cochi e as ofertas que eles, príncipes, lhe mandavam fazer; porque nestes 200 claros e verdadeiros sinais se mostrava que as armadas del-Rei Dom Manuel, seu senhor, entraram naquela região da Índia com título de paz e comércio e não de guerra acerca dos príncipes e povo gentio 210 daquelas partes orientais. Porque, vendo-se ao diante outras armadas del-Rei, seu senhor, naquelas partes a tomar emenda da maldade que el-Rei de Calecute cometeu, que se soubesse ser ele a causa disso.

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Pedrálvares, posto que geralmente espediu estes mensageiros que a ele vieram, escusando-se de ir tomar a especearia que lhe vinham oferecer, todavia em particular mandou dizer a el-Rei de Cananor que de caminho ele passaria pelo seu porto e tomaria algum gengivre, que entre tanto lho mandasse ter prestes. Partidos estes mensageiros e Pedrálvares também em bésporas da sua partida, mandou-lhe el-Rei de Cochi dizer que ele tinha nova certa como de Calecute era partida ua grossa armada; que lho fazia saber polo não tomar descuidado, e também pera que tivesse tempo de recolher algua gente da que ele lhe oferecia; porque os seus naturais estavam tam satisfeitos e contentes do tratamento e modo dos portugueses, que com amor levemente se ofereciam a morte polos defender de seus imigos. O que Pedrálvares lhe mandou muito agradecer, dizendo mais que os portugueses eram tam costumados a pelejar com mouros e haver vitórias deles e dos enfiéis acerca de Deus e dos homens, que os não tinham em conta, ante se deleitavam na milícia deles. Portanto ele não tinha necessidade dos seus vassalos, e pola oferta deles beijava as mãos a sua Real Senhoria, como a um príncipe tam conjunto a el-Rei, seu senhor, per razão de paz e amor, como são aqueles que nas partes da Europa ele aceita por seus irmãos em armas, que é ser amigo dos amigos e imigo dos contrairos. E quanto aos seus naturais estarem prontos nesta ajuda que queriam dar aos portugueses, polo contentamento que tinham de suas pessoas, ele se não espantava disso, porque a lei de Deus era permetir que o coração leal e verdadeiro fosse pago com outro tal coração, quanto mais que toda esta boa vontade dos seus procedia da que eles viam ter a sua Real Senhoria às cousas del-Rei, 64v seu senhor. Que estas tais obras, ele, Pedrálvares, ao presente não era poderoso pera as poder pagar, somente em as levar na memória em mais estima que todas as riquezas da Índia, pera as representar a el-Rei, seu senhor. De quem ele podia esperar, tanto que em Portugal fosse, vir logo ua armada em seu favor contra o Samori e todolos seus imigos, por el-Rei, seu senhor, ser um príncipe mui agradecido de benefícios e muito temeroso quando era ofendido. Enviada esta resposta, quando veo ao seguinte dia a nove de Janeiro do ano de quinhentos e um, em se o sol pondo, ex-aqui começa de aparecer esta armada que el-Rei de Cochi dizia mais medonha em número 201 de velas que poderosa no ânimo de quem nela vinha, porque seriam até sessenta velas, de que vinte cinco eram naus grossas. A qual armada não vinha a fim de pelejar, somente mostrar-se, parecendo-lhe que, por ser grande número de velas, tanto 211 que fosse vista dos nossos, faria despejarem eles o porto, e vir-se caminho do reino sem carga de especearia, que era todo o intento dos mouros. Porque, além de tomarem o pouso tanto a-la-mar das nossas naus, que seria ua légua, quando veo de noite que Pedrálvares se fazia prestes pera ante menhã, com o terrenho, ir sobre eles, per vigia que eles tinham, teveram tal modo, que ficaram pegados com terra, onde Pedrálvares não podia ir, por lhe servir o vento mais ao mar que pera a terra. E ou que o terrenho o fez, ou estarem já com carga que haviam mister, ainda que Pedrálvares quisera ir aos imigos, ele o não podera fazer, porque a nau de Sancho de Toar ia muito na volta do mar; e como era das mais poderosas, e as outras também a seguiam, fez a Pedrálvares por a proa nelas, apanhando ua e ua, té se fazer em um corpo na volta de Cananor, ficando os imigos muito satisfeitos com os verem partir, em que mostraram não irem a outro efeito. Na qual partida quis Pedrálvares usar ante da prudência e cautelas de capitão, que do ofício de cavaleiro que ele era, temendo que, se cometera os imigos, podera suceder cousa que lhe fizera perder sua vinda, que importava mais ao serviço del-Rei e a bem de todo o reino, que destruir aquela armada, posto que com aquelas naus tam carregadas fora possível poder-se fazer.

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201 64v 211 Capítulo IX. Como Pedrálvares foi ter a Cananor, onde el-Rei lhe mandou dar a mais especearia que havia mister. E partido dali, fez sua viagem pera Portugal; e do que passou no caminho té chegar a ele. Partido Pedrálvares Cabral per este modo do porto de Cochi, via de Cananor, passou a vista de Calecute, e a principal causa que o moveu a fazer este caminho foi ter mandado dizer a el-Rei de Cananor que havia de passar pela sua cidade a tomar gengivre; e se o não fizera, ficava infamado ante ele de duas cousas: que não compria sua palavra, e mais que de assombrado da armada de el-Rei de Calecute, não ousara de vir àquele seu porto; a qual presunção tirava, não somente indo a comprir o que lhe mandara dizer, mas com a mostra que deu de si a Calecute. 212 Também teve Pedrálvares respeito a outra cousa que lhe ficava por fazer, que muito importava a estima e openião em que éramos tidos ante el-Rei de Cochi; e se com ele não fizera algum comprimento, pelo modo de como se ele, Pedrálvares, partiu, sem se dele espedir, ficávamos ante ele mui infamados; e porque de Cananor esperava de o fazer por razão de todas 202 estas cousas, conveo ir tomar aquele porto, como tomou. Onde a primeira cousa que fez foi, per homens da terra que lhe o governador da cidade deu, per duas ou três vias escrever a Gonçalo Gil Barbosa e aos oficiais que com ele ficavam, dizendo que, como eles sabiam, leixá-los em Cochi não fora per acidente e acaso, mas por ordenança del-Rei, seu senhor. O qual, pelo regimento que lhe dera de fazer feitoria em Calecute ou em qualquer outra parte, onde o senhor da terra aceitasse sua amizade, mandava que ficassem eles por oficiais, pera terem cargo de comprar as especearias de seu vagar e as terem prestes, quando as naus do reino lá chegassem, segundo se continha no regimento que lhe ele leixara. Somente ia ele, Pedrálvares, descontente polo modo apressado de sua partida, o qual tolheu não lhe dar os derradeiros abraços que se costumam entre os amigos nas tais 65 espedidas - cousa mui racional e que a mesma natureza obrigou aos homens pera mostrarem um sinal de paz e amor que entre eles havia. O qual sinal a ele, Pedrálvares, convinha mais que a outra pessoa algua, porque como ele, por razão do seu cargo, era obrigado dar conta da vida, saúde e estado de cada um daqueles que levava debaixo da bandeira que lhe el-Rei, seu senhor, entregara em Lisboa, na casa de Nossa Senhora de Belém, muito mais lhe convinha dar esta conta de suas pessoas, assi por razão dos cargos em que ficavam, que muito importava ao serviço del-Rei, como por ele particularmente lhe ter muito amor. Porém como o serviço del-Rei, seu senhor, precedia a todolos efeitos humanos, e por causa dele seus vassalos eram obrigados despir a natureza e a vida, se comprisse, como eles sempre fizeram, conveo que ele se partisse per aquele modo, quanto mais que a eles não foi cousa nova nem escondida, pois com todos tinha consultado que assi se devia fazer, por evitar os inconvenientes e impedimentos que lhe a armada do Samori podia dar em sua partida. Que quanto pera com eles, ele, Pedrálvares, não levava nenhum escrúpulo, somente ante el-Rei de Cochi lhe parecia mui necessário fazer todo comprimento; e por isso lhe escrevia aquela carta que com a sua lhe enviava, e por ser de crença em que se ele reportava a eles, da sua parte lhe podiam dizer tudo o que convinha pera desculpa de sua partida e a bem da honra dos portugueses. Tornando ao que el-Rei de Cananor fez, quando Pedrálvares apareceu à vela, como homem temeroso que ele passasse de largo obra de duas léguas, ante de chegar ao porto, mandou a ele dous zambucos. Em um dos 213

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quais ia um homem principal per que lhe mandou pedir que não passasse sem tomar aquele seu porto; porque ele desejava tanto amizade del-Rei de Portugal, que estimaria muito, primeiro que se fosse daquela terra, querer levar algua cousa sua. E também, pois ele, Capitão-mor, o tomava por testemunha da paz com que os portugueses entraram na Índia, e assi do que lhe nela era feito, segundo lhe mandou dizer de Cochi; ele, Rei 203 de Cananor, pelo mesmo modo o queria tomar por testemunha com obras mui diferentes das que lhe foram feito em Calecute. Porque não queria que se dissesse nas partes da Cristandade, que os reis e príncipes da Índia não eram dinos da amizade e comércio dos reis e príncipes dela. Portanto também protestava ter ele, Capitão-mor, naquela sua cidade Cananor toda a especearia que houvesse mister, onde acharia gasalhado, amor e verdade, como achou em el-Rei de Cochi. Ao qual Pedrálvares respondeu, que os portugueses de nenhua cousa eram mais lembrados que dos benefícios que recebiam e de comprir sua palavra; portanto Sua Real Senhoria esperasse dele que ambas estas cousas iria comprir, porque ele não passava, mas vinha como lhe mandara dizer. Chegado Pedrálvares logo nas costas deste mensajeiro, assi tinha el-Rei provido pera lhe dar carga de especearia, que ainda ele não surgia fora do porto, quando derredor das naus eram muitos paraus e barcos carregados de gengivre e canela, parecendo-lhe que, se logo o não aviassem, que faria seu caminho. E porque Pedrálvares ia já tam carregado que não pôde tomar tanta especearia quanta os oficiais del-Rei quiseram e somente tomou ua soma de gengivre e ua pouca de canela, mandou-lhe dizer el-Rei que ele tinha sabido como em Calecute lhe roubaram muita fazenda; que, se por ventura a míngua de não ter cabedal, leixava de tomar mais especearia, não leixasse de a tomar; porque ele confiava tanto na verdade dos portugueses, que esta bastava pera ele ser pago de quanto lhe ali desse na outra vez que tornassem. Pedrálvares, por não leixar a el-Rei com esta presunção que, a míngua de cabedal, não tomava mais carga, mandou mostrar aos seus oficiais que andavam neste negócio dous ou três cofres cheos de dinheiro em ouro, dizendo que ele tinha ainda tanto dinheiro que bem podera carregar cinco ou seis naus que lhe o mar comera, porque pera todas levava cabedal; mas como aquelas que ali trazia iam já abarrotadas com a carga que lhe dera el-Rei de Cochi, não podia levar mais, nem sua vinda àquele porto fora por razão de carga, somente por servir el-Rei. Que quanto à confiança que el-Rei tinha na verdade dos portugueses, Sua Real Senhoria no ano seguinte veria quanto el-Rei de Portugal, seu senhor, estimava esta confiança, porque em retribuição dela mandaria ua grossa armada com muito ouro, prata e mercadorias de grã preço, e corações mui esforçados e leais pera ajudarem a el-Rei de Cananor contra seus imigos, se lhe necessário fosse, e bem assi pera tratarem e comutarem suas mercadorias, com que fizessem aquela cidade Cananor muito mais 214 rica, nobre e poderosa do que era Calecute. Finalmente, com este e outros recados que, per espaço de um dia que Pedrálvares se ali teve, passaram entre ele e el-Rei, assi ficou este gentio confiado em nós, que, sabendo 65v como Pedrálvares levava dous embaixadores del-Rei de Cochi, mandou também outro com ele, com alguns presentes pera el-Rei Dom Manuel. A 204 substância da qual embaixada eram oferecimentos de sua pessoa e do seu reino e quanto desejava sua amizade e comércio das cousas que em Portugal havia, per comutação das que tinha o seu reino. Pedrálvares, leixando estes dous Reis de Cochi e Cananor em tanta paz e concórdia, fez-se à vela caminho deste reino, a dezasseis dias de Janeiro, dando louvores a Deus, pois partira da Índia mais contente do que chegara a ela, atribuindo a perda das naus a seus pecados, e as desavenças dantre ele e el-Rei de Calecute a bem e prosperidade das cousas del-Rei Dom Manuel. Porque, segundo aquele gentio Samori estava danado com a comunicação dos mouros que tinha em seu reino, parece que não merecia a Deus estar em nossa amizade, e permitira a morte de Aires Correa e

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dos outros que com ele pereceram, pera ele, Pedrálvares, ir buscar el-Rei de Cochi e depois el-Rei de Cananor. Os quais com estes embaixadores que enviaram a este reino, e depois per muito contentamento que tiveram das obras del-Rei Dom Manuel, assi ficaram estes dous príncipes os maiores do Malabar (depois do Samori) tam fiéis e leais amigos a seu serviço, quanto no discurso desta história se verá. Seguindo Pedrálvares sua derrota, via deste reino, não mui longe da costa de Melinde, topou ua nau mui grossa carregada de muita fazenda, a qual vinha do mesmo lugar de Melinde e ia pera Cambaia, e por ser de um mouro, segundo ela dezia, dos principais daquele reino, que se chamava Milicupi, senhor de Baroche, ele a leixou ir em paz, dizendo-lhe que, se fora de Calecute ou dos mouros de Meca, houvera de tomar nela emenda dos danos que deles tinha recebido; porém, como não era deles, todalas outras nações da Índia sempre achariam nos portugueses paz e amizade; e com isto a espediu, somente lhe tomou um piloto guzarate de nação, por dele ter necessidade pera aquela costa de Sofala. Tornando a seu caminho e sendo já mui perto da costa de Melinde, saltou com ele um tempo travessão que deu com a nau de Sancho de Toar em um baixo onde se perdeu, salvando-se, porém, toda a gente; e porque ficava um pouco descoberta de água, mandou-lhe Pedrálvares por fogo, porque os mouros daquela costa não viessem a ela e se aproveitassem dalgua cousa. Mas com todas estas cautelas de Pedrálvares, el-Rei de Mombaça mandou depois a lhe tirar toda a artelharia de mergulho e com ela nos fez guerra, como adiante veremos. E correndo com este tempo à povoação de Melinde, fez Pedrálvares seu caminho a Moçambique, onde repairou as naus dalgum dano que levavam. E porque, quando deste reino partiu, el-Rei 215 Dom Manuel ordenou que Bartolomeu Dias e Diogo Dias, seu irmão, fossem à Mina de Sofala descobrir e assentar aquele resgate, o qual negócio não houve efeito, por se perder Bartolomeu Dias no dia que se perderam outras três velas, e Diogo Dias era desaparecido, mandou Pedrálvares a este negócio 205 Sancho de Toar em um dos navios pequenos, dando-lhe o regimento do que devia fazer. Espedido Sancho de Toar, partiu-se Pedrálvares pera este reino, e a primeira terra que tomou foi a Ilha do Cabo Verde, onde achou Pero Dias, que era desaparecido, como acima dissemos. O qual, entre muitas cousas que contou a Pedrálvares dos trabalhos que teve em sua navegação, foi ir ter ao porto da cidade Magadaxó, contra o Cabo de Guardafu, onde achou duas naus carregadas de especearia, que ali eram vindas de Cambaia. Os mouros das quais e assi os da cidade, temendo que podiam receber algum dano dele pola artelharia que lhe ouviram quando os salvou, foi de todos mui bem recebido, dando-lhe muitos mantimentos e refresco da terra. Porém, despois que teveram as naus descarregadas da fazenda que tinham, ordenaram de o tomar; e pera o poderem fazer mais a seu salvo, dilataram isto pera um certo dia em que ele, Pero Dias, quis fazer aguada, dizendo os mouros da cidade que a água vinha de longe pela terra dentro, que pera isto se fazer mais em breve, mandasse tal dia o batel com as mais vasilhas que podesse, e assi gente pera as encher; e chegando ao qual lugar, com a confiança do bom gasalhado que lhe tinham feito nos dias passados, não tiveram resguardo em si, com que o batel e eles ficaram em poder dos mouros. Os quais mouros, logo em continente mui armados em alguns zambucos da terra, vieram sobre ele; na qual chegada, ele, Pero Dias, se viu em tanta pressa por não ter consigo mais de sete pessoas, que lhe conveo cortar as amarras e fazer-se à vela via deste reino, a Deus misericórdia, sem piloto nem pessoa que soubesse per onde vinham, té Deus o trazer àquele lugar onde o achara. Pedrálvares, porque havia este navio por tam 66 perdido como os que sessobraram no dia da grã tormenta que teve, houve que Deus lhe ressuscitava todos aqueles homens. E pera maior seu contentamento, depois de ser chegado a Portugal, que foi béspora de São João Baptista, chegaram outros dous navios que ainda lá leixava: um era de Pero de Taíde que se dele apartou ante de chegar ao Cabo das Correntes com um temporal que ali teve, e o

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outro foi Sancho de Toar, com nova do descobrimento de Sofala.

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205 66 216 Capítulo X. Como ante que Pedrálvares chegasse a Portugal, o Março daquele ano tinha el-Rei enviado ua armada de quatro naus; e o que passaram nesta viagem e na Índia, onde carregaram de especearia. El-Rei Dom Manuel, ante da vinda de Pedrálvares, posto que não tevesse recado do que lhe sucedeu na viagem (porque sua tenção era em cada um ano fazer ua armada pera este descobrimento e comércio da Índia no mês de Março, pera ir tomar os temporais com que se naquelas 206 partes navega), neste ano de quinhentos e um mandou armar quatro velas. A capitania-mor das quais deu a João da Nova, alcaide pequeno da cidade de Lisboa, galego de nação e de nobre linhagem, por ser homem que entendia bem os negócios do mar e ter gastado muito tempo em armadas que se neste reino fizeram pera os lugares de Além, onde sempre andou em honrados cargos. Por razão dos quais serviços, quási em satisfação, lhe foi dada a alcaidaria de Lisboa, que naquele tempo era um dos principais cargos dela, e andarem em homens fidalgos por ser ua só vara de toda a cidade. Os capitães dos outros navios eram Diogo Barbosa, criado de Dom Álvaro, irmão do Duque de Bragança, polo navio ser seu, e Francisco de Novais, criado del-Rei, e o outro era Fernão Vinet, florentim de nação, polo navio em que ele ia ser de Bartolomeu Marchioni, também florentim, o qual era morador em Lisboa e o mais principal em substância de fazenda que ela naquele tempo tinha feito. Ca ordenou el-Rei, pera que os homens deste reino cujo negócio era comércio, tevessem em que poder tratar, dar-lhe licença que armassem naus pera estas partes, delas a certos partidos e outras a frete, o qual modo de trazer a especearia a frete ainda hoje se usa. E porque as pessoas a que el-Rei concedia esta mercê tinham per condição de seus contratos, que eles haviam de apresentar os capitães das naus ou navios que armassem, os quais el-Rei confirmava, muitas vezes apresentavam pessoas mais suficientes pera o negócio da viagem e carga que haviam de fazer do que eram nobres per sangue. Fizemos aqui esta declaração, porque se saiba, quando se acharem capitães em todo o discurso desta nossa história, que não sejam homens fidalgos, serão daqueles que os armadores das naus apresentavam ou homens 217 que per sua própria pessoa, ainda que não tinham muita nobreza de sangue, havia neles calidades pera isso; e também por darmos notícia do modo que levamos em nomear os homens, que é este: Quando nomeamos algum capitão, se é homem fidalgo e tão conhecido per sua nobreza e criação na casa del-Rei logo em falando nele a primeira vez dizemos cujo filho é, sem mais tornar a repetir seu pai; e se é homem fidalgo de muitos que há no reino, destes tais não podemos dar tanta notícia, porque não vieram ao lugar onde se os homens habilitam em honra e nome, que é na casa del-Rei, por isso podem-nos perdoar; e também, a dizer verdade, os escritores dos indivíduos não podem dar conta, e quem muito procura por eles quebra o nervo da história, parte onde está toda a força dela. Todavia nesta digressão duas cousas pretendemos: notificar a todos que nossa tenção é dar a cada um, não somente o nome de suas obras, mas ainda o de seu avoengo, se ambas estas duas vierem a nossa notícia; e a segunda que, quando fizermos algum grande catálogo de capitães (porque estes sempre hão-de ser nomeados), ora sejam de naus ou navios, sempre devem entender que as pessoas mais 207 principais, per sangue e per feitos, andavam nas melhores peças da armada.

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E tornando a João da Nova e aos capitães de sua conserva, por causa da calidade dos quais, pera maior declaração desta nossa história, fizemos esta: tanto que foram prestes, se fizeram à vela do porto de Belém a cinco dias de Março do ano de quinhentos e um. Na qual viagem, passados oito graus além da Linha Equinocial contra o Sul, acharam ua ilha a que poseram nome da 66v Conceição, e a sete de Julho foram surgir na Aguada de São Brás, que é além do Cabo de Boa Esperança, onde Pero de Taíde foi ter, quando com o temporal que naquela paragem deu a Pedrálvares Cabral se apartou dele. O qual Pero de Taíde, metida em um sapato, no lugar da Aguada, leixou ua carta escrita, em a qual dezia como ele passara per ali, e a causa por quê, e também avisava a todolos capitães que fossem pera a Índia do que Pedrálvares lá passara, e que em Mombaça achariam cartas suas em mão de um António Fernandes, degredado, que ali estava, e que a feitoria de Sofala não se assentara, e a causa por quê. João da Nova e os outros capitães, com as cousas que acharam nesta carta, foi para eles um novo espírito, sabendo que na Índia tinham já dous portos tam pacíficos e tam seguros, onde podiam tomar carga, como eram o de Cochi e de Cananor, e mais tendo lá feitoria com oficiais pera isso ordenados. Porque, como da Índia não tinham mais nova que a que trouxera Dom Vasco da Gama, e a navegação daquelas partes não era sabida, ante de toparem esta carta iam às escuras e mui confusos em sua viagem. Feita sua aguada e resgate de gado, com alguns negros que ali vieram ter, fizeram-se à vela caminho de Moçambique, onde chegaram na entrada de Agosto, e di foram ter à cidade Quíloa. Aos quais o Rei da terra, com palavras mais que com obras recebeu, e ali acharam António Fernandes, 218 carpinteiro de naus, degredado, que Pedrálvares leixou, e ua carta sua que lhe enviou de Moçambique per um zambuco de mouros, quando per ali passou, vindo pera este reino; e assi outra carta pera qualquer capitão que per ali passasse, do teor da de Pero de Taíde. E entre alguas cousas de que lhe António Fernandes deu conta do que passava entre aquela bárbora e infiel gente, foi que ali estava um mouro chamado Mafamede Anconi, que lhe tinha feito muita honra, e tanta que se por ele não fora, alguns mouros o mataram. Porém como ele era escrivão da fazenda de el-Rei de Quíloa, homem poderoso na terra, por amor dele e também receando el-Rei que por isso os poderia castigar, a gente cevil não ousava de o cometer, por esta ser a que o mais perseguia. E que além deste benefício que recebia de Mafamede Anconi, sentia dele ser homem fiel a nossas cousas, por muitas de que lhe dava conta que faziam bem e favor delas, e que isto sentira dele Pedrálvares Cabral, os dias que ali estevera. João da Nova, por tomar experiência do que lhe António Fernandes dezia deste Mafamede, 208 começou de lançar mão dele, o qual achou tam fiel que, segundo as traições que lhe el-Rei armava polo acolher, se per ele não fora avisado, sempre lhe houvera de acontecer algum desastre. E por não mostrar que desconfiava dele, com maior cautela que João da Nova pôde, espedido dele, foi ter a Melinde, e di à Índia, e a primeira terra que viu dela foram os Ilhéus de Santa Maria. Donde começou ir correndo a costa, té que, tanto avante como o Monte de Eli, topou duas naus, ua das quais, por ser melhor da vela e já sobre a noite, se pôs em salvo e a outra tomou ele, na entrada da qual lhe matou sessenta homens e, depois de esbulhada, lhe poseram fogo. Acabada a presa desta nau, na entrada da qual alguns dos nossos ficaram frechados e feridos, foi-se pera Cananor, onde o Rei o recebeu com muito gasalhado; e como homem que temia o que João da Nova logo havia de fazer - que era ir tomar primeiro carga a Cochi por razão dos nossos que lá ficaram pera este efeito de a feitorizar - quisera-o deter ali em lhe dar primeiro as suas especearias. Porém João da Nova com boas palavras se escusou, dizendo que trazia por regimento del-Rei, seu senhor, que primeiro tomasse carga de especearias no lugar onde estevessem seus feitores, que em outra parte algua, por muitas causas no regimento apontadas. E que Pedrálvares Cabral (à capitania do qual ele vinha submetido pelo regimento, se o ainda achasse na Índia) per

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cartas e recados seus, que achou em Moçambique, Quíloa e Melinde, lhe mandava da parte del-Rei que se fosse a Cochi, onde acharia o feitor Gonçalo Gil Barbosa, a quem ficara fazenda e cuidado pera ter feito parte da carga às naus que sobreviessem do reino, e depois, quando tornasse, viesse àquele porto de Cananor, onde sua Real Senhoria lhe mandaria dar gengivre e outras sortes de especearia, que havia naquele seu reino. Por tanto houvesse por bem que comprisse o regimento del-Rei, seu senhor; e, enquanto ia a Cochi, lhe mandasse ter prestes gengivre, canela e alguas 219 outras drogas, até ua tanta contia, porque estas veria ali receber polo servir, as quais tomaria menos em Cochi, posto que as lá houvesse. El-Rei, ainda que estas razões de João da Nova lhe pareceram de capitão obediente aos regimentos de seu Rei, todavia aperfiou com ele, como quem queria que fizesse mais 67 o que ele desejava (que era tomar ali primeiro as especearias que em Cochi) que se conformasse ele, João da Nova, com o regimento que levava. E ainda quando per esta via viu que o não podia obrigar, em três ou quatro dias que se ele, João da Nova, ali deteve, mandou-lhe dizer que lhe requeria, polo amor que tinha às cousas del-Rei de Portugal, que ele se não partisse pera Cochi. Porquanto tinha por nova mui certa que em Calecute se fazia ua grande armada de mais de quorenta naus grossas, pera o aguardarem no caminho, que seu voto era ele se leixar estar naquele porto, onde se podia defender com gente que lhe mandaria dar pera sua ajuda. 209 A qual armada, segundo lhe era dito, os mouros davam grã pressa, por razão de ua nau que lhe levou nova que ia fugindo dele e que outra sua companheira lhe ficava nas mãos. João da Nova, sendo certificado ser verdade o que el-Rei dezia, depois que com os capitães que levava teve conselho, resumiu-se nesta determinação: que por honra do nome português não convinha mostrar aos mouros de Cananor que temiam a armada do Samori, porque eles e os de Calecute não queriam outra cousa pera se gloriar per toda a Índia, e que desta glória tomariam ousadia pera os vir cometer dentro naquele porto. Quanto mais que, tomando o conselho del-Rei de Cananor, se a armada de Calecute tivesse ânimo sobre âncora, e mais em lugar tam estreito como era aquela concha de Cananor, a juízo de homens mais tomados estavam que em outra parte. Mas este poder lhe não daria Deus, pois lho não concedeu em tam grande frota como levaram contra Pedrálvares, ante, segundo mostravam, todo seu poder estava mais em grande número de velas que em ânimo de gente nem em fúria de artelharia. As quais cousas, louvado Deus, neles era por contrairo; porque, se não tinham muitas velas, tinham muita e mui boa artelharia, e mais todos eram costumados a pelejar com mouros e a não temer seus alardos. E porque, quanto se mais detivessem, mais tempo davam aos imigos pera se melhor aperceber, logo deviam partir pera Cochi; porque, se quando fossem, achassem armada dos mouros e os viessem cometer, indo boiantes, iam mais lestes pera se revolver com eles que à tornada, vindo carregadas. Finalmente, assentando João da Nova nesta partida pera Cochi, mandou dizer a el-Rei de Cananor que lhe tinha em mercê a vontade e amor que mostrava às cousas del-Rei de Portugal, seu senhor, com todolos oferecimentos de sua ajuda, e que ele os estimava tanto como se os recebesse; porém, como os portugueses eram costumados àqueles grandes aparatos e mostras com que os mouros faziam a guerra, mais que com forças de ânimo, já neles não faziam impressão de temor algum, e por isso ele não leixaria seu caminho de Cochi, pera ir fazer o que lhe el-Rei, seu senhor, mandava. Ante esperava em Deus, 220 que quando em boora tornasse, tam carregadas havia de trazer as naus da vitória daquela armada de Calecute, como da pimenta de Cochi; que entretanto pedia a sua Real Pessoa que lhe mandasse fazer prestes a carga que havia de tomar quando em boora tornasse de Cochi, pera penhor da qual vinda queria ali leixar quatro ou cinco homens com algua fazenda, pera que, enquanto ele fosse, poderem comprar alguas cousas. Com o qual recado el-Rei ficou mui satisfeito e muito mais contente depois que viu que João da Nova lhe leixava cinco homens com nome de feitores, ao modo de como estavam em

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Cochi; que ele houve por grande honra, porque assi lho deu a entender João da Nova. Os quais, ainda que não eram oficiais del-Rei, feitores eram de 210 partes: um deles leixava Diogo Barbosa, capitão de um navio de Dom Álvaro, irmão do Duque de Bragança, ao qual chamavam Paio Rodrigues, com fazenda que havia de feitorizar do mesmo Dom Álvaro; e outro era um feitor de Bartolomeu Florentim, que o capitão Fernão Vinet do seu navio pelo mesmo modo leixava ali feitorizando; e os três, dous eram homens de serviço e um degredado, ficando todos debaixo da governança de Paio Rodrigues, a quem ele, João da Nova, deu poderes e regimento em nome del-Rei pera aquele caso. Feita a entrega destes homens a el-Rei de Cananor, que ele com muitas palavras recebeu em sua guarda e emparo, fez-se João da Nova à vela via de Cochi um pouco afastado da costa; porque vindo a armada del-Rei de Calecute a eles, melhor se ajudassem dela, andando às voltas, porque quatro velas com obra de trezentos e cinquenta homens que eles eram, não lhe convinha envestir nenhua nau dos imigos, nem menos chegar-se muito à terra, pois não tinham mais abrigo nem defensão que artelharia, com a qual havia de ser toda a sua peleja. O qual conselho aproveitou muito, porque, indo a-la-mar, um pouco largos da costa, sendo na paragem de Calecute, como a armada que se fazia 67v prestes houve vista deles, assi os serviram os nossos com pilouros de sua furiosa artelharia, aquele dia até noite e parte do seguinte, sem nunca perderem tiro, que meteram no fundo cinco naus grossas e nove paraus, em que morreu muita gente. As outras, vendo esta destruição e o dano que tinha recebido de muita gente que lhe era morta e ferida, seguiram os nossos até Cranganor, onde se leixaram ficar, e di se foram pera Calecute. João da Nova e os outros capitães, vendo a mercê que lhe Nosso Senhor fez em os salvar de tanta nuvem de frechas e espingardas, e assi dalgua artelharia fraca, davam-lhe muitos louvores em ficarem livres de tanto 221 perigo, posto que per alguns dias muitos teveram que curar nas frechadas que ali houveram. Chegados a Cochi, foram recebidos de Gonçalo Gil e dos outros que com ele estavam com muito prazer, tanto polos verem como pola vitória que houveram, da qual el-Rei de Cochi também teve grã contentamento, por razão do ódio que lhe já o Samori tinha, e das nossas vitórias dependia a segurança de seu estado. E porque a dilação da carga que se devia de dar às naus, daria causa a que o Samori apercebesse maior frota, mandou el-Rei de Cochi, com muita diligência, dar despacho a João da Nova. O qual, tanto que se fez prestes, leixando com Gonçalo Gil mais seis ou sete homens, tornou-se a Cananor, no qual caminho tomou ua nau que, depois de esbulhada, queimou, por ser de Calecute. El-Rei de Cananor, quando viu João da Nova em tam poucos dias tornar com as naus, como ele dezia, tam carregadas de vitória como de especearia, também o quis festejar com bom despacho, acabando de lhe dar toda a carga que havia mister, e ainda pera o mais contentar, mandou-lhe dizer que não cuidasse que tinha feito 211 pouco dano ao Samori, ca, segundo tinha nova, naquela peleja lhe matara per conta quatrocentas e dezassete pessoas, por causa das quais todo Calecute era posto em pranto. A qual nova certificou um Gonçalo Pexoto, que era dos que se acolheram a casa de Coje Biqui, quando mataram Aires Correa, per o qual o Samori mandou dizer a João da Nova quam descontente estava daquele cometimento que os mouros fizeram, porque o seu ânimo sempre estevera puro pera os portugueses e mui desejoso da amizade del-Rei de Portugal, mas que o Demónio, imigo de toda paz, ordenara que entre os portugueses e os mouros houvesse ódios antigos, donde procederam as cousas passadas. E porque ele, Samori, tinha castigado os principais que foram causa dalguas cousas acidentais em que os portugueses teveram culpa em lhe tomarem

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suas naus, lhe rogava que, esquecidas todas estas cousas, quisesse levar consigo dous embaixadores, que queria enviar a el-Rei de Portugal, pera assentar paz com ele. Porque esperava que esta paz, que nunca podera assentar com seus capitães, estes embaixadores que mandasse assentariam com el-Rei; e que se per ventura tevesse algum escrúpulo, por razão dalguas cousas que foram tomadas na casa em que estava o feitor Aires Correa, ele as queria pagar, e pera isso podia ir ao porto de Calecute, onde lhe entregaria tanta especearia, quanta elas, valessem. João da Nova, informado per Gonçalo Pexoto do que lhe mandava dizer Coge Biqui, que não confiasse nestas palavras do Samori, porque tudo eram indústrias e artifícios dos mouros, não lhe quis responder, porque também Gonçalo Pexoto, vendo-se livre, disse que não queria tornar ao cativeiro onde estava. Finalmente, leixando João da Nova mais alguns homens a Paio Rodrigues, 222 a requerimento del-Rei, partiu-se de Cananor, com a mais carga que ali recebeu; e de caminho, tanto avante com o Monte de Eli, tomou ua nau de mouros que era de Calecute. Espedido João da Nova da costa da Índia com tantas vitórias e boas venturas que lhe Deus deu, fez sua viagem caminho deste reino; e ainda neste caminho, passado o Cabo de Boa Esperança, teve outra boa fortuna, que lhe deparou Deus ua ilha mui pequena, a que ele pôs nome Santa Helena, em que fez sua aguada, posto que da Índia té li tinha feito duas: ua em Melinde, outra em Moçambique. A qual ilha parece que a criou Deus naquele lugar pera dar vida a quantos homens vem da Índia, porque, depois que foi achada até hoje, todos trabalham de a tomar, por terem melhor aguada de toda esta carreira, ao menos a mais necessária que se toma quando vem da Índia. E tanto, que as naus que ali vem ter se hão por salvas e navegadas, pola necessidade que elas trazem polo muito refresco que nela acham, como adiante veremos, dando razão de quem foi causa disso. Partido da qual, João da Nova chegou a este reino, a onze de Setembro de quinhentos e dous, onde o el-Rei recebeu com grande honra pola muita que ele ganhou como cavaleiro e como prudente em os negócios que fez e acabou.

LIVRO VI 213 68 223 Capítulo primeiro. Como el-rei Dom Manuel, depois que Pedrálvares Cabral veo da Índia por razão deste descobrimento e conquista dela, tomou o título que ora tem a Coroa deste reino de Portugal, e a razão e causas dele. Ante que João da Nova viesse desta viagem que fez à Índia (segundo neste precedente livro fica), per quem el-Rei Dom Manuel soube como fora recebido nela, e nossas cousas eram aceitas acerca do gentio e mouros daquelas partes, já deste reino, no Março passado de quinhentos e dous, era partido Dom Vasco da Gama com ua frota de vinte velas a esta conquista. Ante da partida do qual, teve el-Rei muitos conselhos, porque, como a sua ida assi poderosamente se causou por razão dos trabalhos do mar e perigos da terra que Pedrálvares Cabral passou, e por outras cousas que viu e experimentou na comunicação que teve com os príncipes daquelas partes, fizeram todas estas cousas muita dúvida no parecer de pessoas notáveis deste reino, se seria proveitoso a ele ua conquista tam remota e de tantos perigos (peró que alguas destas pessoas, quando el-Rei teve conselho na primeira ida de Dom Vasco da Gama, aprovaram este descobrimento que ele ia fazer, e depois a ida de Pedrálvares); porque nestas primeiras viagens não mostrou o negócio tanto de si como com a vinda deles, posto que a sua informação ainda foi mui confusa, pera o que nas seguintes armadas se soube da grandeza daquela conquista. Porém somente com as cousas que Pedrálvares passou faziam esta diferença, dizendo que ua cousa era tratar se seria bem descobrir terra não sabida, parecendo-lhe ser habitada 224 de gentio tam pacífico e obediente como era o de Guiné e de toda Etiópia com que tínhamos comunicação, que sem armas ou outro algum apercebimento de guerra, per comutação de cousas de pouco valor, havíamos muito ouro, especearia e outras de tanto preço, e outra cousa era consultar se seria conveniente e 214 proveitoso a este reino, por razão do comércio das cousas da Índia, emprender querê-las haver per força de armas. Porque, segundo a experiência mostrava e os mouros defendiam que as não houvéssemos da mão do gentio da terra, mais havia de valer acerca deles grande número de naus e muita gente de armas, que outra mercadoria algua. E ainda a muitos, vendo somente na carta de marear ua tam grande costa de terra pintada, e tantas voltas de rumos que parecia rodearem as nossas naus duas vezes o mundo sabido, por entrar no caminho doutro novo que queríamos descobrir, fazia neles esta pintura ua tam espantosa imaginação, que lhe assombrava o juízo. E se esta pintura fazia nojo à vista, ao modo que faz ver sobre os ombros de Hércules o Mundo que lhe os poetas poseram, que quási a nossa natureza se move com afectos a se condoer dos ombros daquela imagem pintada, como se não condoeria um prudente homem em sua consideração, ver este reino (de que ele era membro) tomar sobre os ombros de sua obrigação um Mundo, não pintado, mas verdadeiro, que às vezes o podia fazer acurvar com o grã peso da terra, do mar, do vento e ardor do sol que em si continha; e o que era muito mais grave e pesado que estes elementos - a variedade de tantas gentes como nele habitavam?... Porque, ainda que a experiência tinha mostrado quam grandes trabalhos eram os daquele caminho, pois de treze naus da armada de Pedrálvares, as quatro levaram carga de homens pera mantimento dos pexes daqueles mares incógnitos que navegaram, as quais em um instante foram metidas no profundo do mar, isto fúria foi dos elementos que tem seus ímpetos a tempo, e como são efeitos da natureza, que é regulada, levemente se evitam os tais perigos, 68v quando os homens tem prudência pera saber eleger o curso dos temporais. Peró comunicar,

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conversar e contratar com gente da Índia, cujas idolatrias, abusos, vícios, opiniões e seitas, um Apóstolo de Cristo Jesu, per ele enviado como foi São Tomé, temeu e receou ir a ela somente a lhe dar doutrina de paz e salvação pera suas almas como se podia esperar que a nossa doutrina, ainda que católica fosse, por ser com mão armada e não per boca de Apóstolos, mas de homens sujeitos mais a seus particulares proveitos que à salvação daquele povo gentio, podia fazer neles impressão, principalmente acerca dos mouros que, por razão desta doutrina evangélica, eram nossos capitais imigos? Os quais eram já tantos entre aquele gentio, assi dos naturais da terra, a que eles chamam naiteás , como estrangeiros, que, não contando os de 225 toda a costa da Índia, somente começando da cidade Goa, que estará quási no meio dela, té Cochi, que serão pouco mais ou menos cento e vinte léguas per costa (segundo se dezia, e depois se soube em verdade), havia mais mouros que em toda a costa de África que temos defronte, entre a nossa cidade Ceita e Alexandria. A maior parte dos quais, principalmente os estrangeiros, como tinham usurpado do 215 gentio daquelas partes todo o navegar das especearias e comiam este fructo delas, eram feitos tam absolutos senhores de toda a riqueza dos portos de mar, que alguns deles em substância de fazenda eram tam poderosos, que mais levemente podiam fazer ua guerra e comportar as despesas dela per muito tempo, do que o podem fazer os reis de Belez, Tremecém, Ourão, Argel, Bugia e Tunes, que é a frol de todolos príncipes que tem a costa de África que vezinhamos. E como com a nossa entrada na Índia, estes mouros tam poderosos perdiam o trato das especearias e comércio que lhe dava este grã poder, todos conjuraram em nossa destruição, e pera isso convocavam as ajudas do gentio da terra, como fizeram per mão do grande Samori, de Calecute. Outros homens do mesmo conselho del-Rei Dom Manuel e pessoas mui notáveis do reino também faziam estas considerações e tenteavam estas cousas que apontamos, porém contra elas punham outros bens que prevaleciam sobre estes temores. Os quais eram a denunciação do Evangelho, ainda que não fosse per boca dos Apóstolos, nem per o modo com que eles o denunciavam, porque então assi conveo pera glória de Cristo no princípio da congregação da sua Igreja, mas, ao presente, per qualquer modo e pessoa católica que fosse, muito havia de acrescentar no estado da Igreja Romana a nossa entrada na Índia. E, quanto às contradições que tínhamos nos mouros e Samori, por parte deles, também tínhamos dous reis pola nossa mui amigos e leais, como eram el-Rei de Cochi e Cananor, e assi o reino de Coulão. Os quais desejavam tanto nossa amizade, que começavam entre si contender a quem nos daria carga de especearia e nos teria por amigos, por verem logo naquela primeira ida de Pedrálvares Cabral quam proveitoso lhes era o nosso comércio, assi no que recebiam como no que davam. E mais, como a substância da guerra é o dinheiro - e este ajunta naus, artelharia, homens e toda outra munição dela - era tamanho o proveito que se havia da mão daqueles dous reis nossos amigos, por eles serem senhores da frol dela, que deste grande proveito se podiam suprir as necessidades da guerra (quando os mouros a quisessem connosco), e mais faria este reino de Portugal mui rico. Porque foi tamanho o ganho das mercadorias que foram naquela armada de Pedrálvares, que em muitas cousas, com um se fez de proveito, no retorno, cinco, dez, vinte e trinta, até cinquenta; per experiência das quais cousas ficavam todalas outras razões súbditas a este bem de proveito, que sempre prevaleceu em todo conselho. 226 Porém, as primeiras nem as segundas razões que acima apontámos, que procediam do parecer e juízo dos homens principais do reino, não tinham no coração del-Rei Dom Manuel tanta parte pera o mover a este descobrimento e conquista, quanta teveram as inspirações de Deus, que o 216

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demoviam pera efeito dela. E ainda parece que o mesmo Deus permitia as razões e dúvidas movidas, pera com mais cuidado e providência se proverem as cousas pera este descobrimento e conquista. Finalmente el-Rei se determinou que, pois Nosso Senhor lhe abrira este caminho nunca descoberto, no qual seus antecessores tanto trabalharam, per continuação de setenta e tantos anos, ele o havia de prosseguir - e mais vendo ser já maior o fructo dele naquela primeira ida de Pedrálvares, do que eram os trabalhos 69 passados e temores do que estava por vir. Quanto mais que as grandes cousas (e principalmente esta, de que toda a Europa se espantou), não se podiam conseguir senão per muitos e mui vários casos e perigos, dos quais exemplos o mundo estava cheo, por ser cousa mui racional que os grandes edifícios, pera serem perpétuos e firmes, sobre profundos aliceces de trabalho se fundam . A qual determinação, que foi logo como Pedrálvares veo, obrigou também a el-Rei fazer outra obra de muita prudência e de tal ânimo, como convém aos príncipes que se prezam de leixar nome de feitos gloriosos. Nenhum dos quais se pode comparar àqueles em que a coroa do seu reino é aumentada, não per acrescentamento de rendas dele, nem per sumptuosidade de grandes e magníficos edifícios, ou qualquer outra útil e proveitosa obra, mas per acrescentamento dalgum novo título a seu estado. Porque, como acerca dos homens a que Deus não concedeu esta dignidade real, posto que adquiram muita substância de fazenda e com ela se façam poderosos em edificar, plantar e obras mecânicas que procedem mais da cópia do dinheiro que da grandeza do ânimo e forças do engenho, e em sua vida e depois da morte, nenhua obra, por grande que seja, lhe dá mais louvor, que mudar o nome com que nasceram com algua denotação de honra, segundo o reino onde vivem, assi acerca dos reis, por muitas cousas que façam de qualquer género que sejam, nenhua lhe dá maior nome que aquela pela qual acrescentaram à sua coroa algum justo e ilustre título. E é este desejo de crescer em nome tam natural aos homens de claro intendimento, que até adquerir e ajuntar dinheiro, o fim dele é pera este crescer em nome, posto que os meios às vezes o fazem deminuir e de todo perder, porque poucas se ajunta o muito sem infâmia. Porém, como de cousa suspeitosa, fazem os homens esta diferença do dinheiro: na vida é mui aceito, porque sabem que a ele obedecem todalas cousas, e que não há monte, por alto que seja, a que um asno carregado de ouro não suba, como dezia Felipo, pai de Alexandre; 227 mas quando vem a hora da morte onde este dinheiro já não o serve, não querem os homens que na crónica de sua vida, que é a campã de sua sepultura, se faça menção dele (posto que a capela em que ela está com ele se fizesse, e o morgado aplicado a ela dele se constituisse). Somente 217 querem que, naquele sumário de todalas honras, se ponha e se escreva algum bom nome de honra, se o tiveram na vida, por saberem, per sentença daquele sapientíssimo Salamão, que mais vale o bom nome que todalas riquezas da terra. E que isto assi seja acerca do geral dos homens, entre eles e os reis há esta diferença: os homens, como são súbditos, pera terem nome, basta qualquer obra com que aprazem a seu rei, porque esta complacência lhe pode dar o que eles estimam pera sua sepultura; peró os reis, como não tem superior de quem possam receber algum novo e ilustre nome pera a campã de sua sepultura, que é a crónica do discurso de sua vida, lançam mão não de obras comuas e possíveis a todo homem poderoso em dinheiro, mas de feitos excelentes que lhe podem dar títulos, não em nome, mas em acrescentamento dalgum justo e novo estado que per si ganharam. Assi que, falando propriamente, os homens, como são súbditos e não soberanos, toda a honra que adquirem é neles nome, e nos reis, quanto conquistarem é neles título. Pois, vendo el-Rei Dom Manuel esta universal regra do Mundo, e que seus antecessores sempre trabalharam per conquista dos infiéis, mais que per outro injusto título acrescentar ao de sua coroa, e el-Rei Dom João, seu primo, como de caminho por razão da impresa que este reino tomou

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em descobrir a Índia, tinha tomado por título senhor de Guiné, continuando com ele, acrescentou estes três: senhor da navegação, conquista e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia. O qual título não tomou sem causa ou acaso, mas com muita aução, justiça e prudência, porque, com a vinda de Dom Vasco da Gama e principalmente de Pedrálvares Cabral, em efeito per eles tomou posse de tudo o que tinham descoberto, e pelos Sumos Pontífices lhe era concedido e dado. A qual doação se fundou nas muitas e grandes despesas que neste reino eram feitas, e no sangue e vidas de tanta gente português como neste descobrimento per ferro, per água, doenças e outros mil géneros de trabalhos e perigos pereceram. E porque pode ser que alguas pessoas não entenderam este título que el-Rei tomou, ante que se mais proceda, faremos ua declaração, dizendo que cousa é título e que direito compreende em si 69v este del-Rei. Este nome título acerca dos juristas tem diversos significados, por ser um nome comum que lhe serve de género, debaixo do qual estão muitas espécias de cousas: porque às vezes sinifica preminência de honra, a que chamam dinidade, como é a do duque, marquês, conde, etc., e outras vezes sinifica senhorio de propriedade, donde às mesmas escrituras que cada um tem de sua fazenda se chamam títulos. Porém, falando propriamente e a nosso propósito, títulos não é outra cousa senão um sinal e denotação do direito 228 e justiça que cada um tem no que possue, ora seja por razão de dinidade, 218 ora por causa de propriedade. O uso dos quais títulos acerca dos reis é um, e toda outra pessoa que vive súbdita a eles tem nisso outro modo, ca o título dos reis não requere mais escritura do ditado com que se eles intitulam que suas próprias cartas, quando no princípio delas se nomeam; e os homens, pera se lhe guardar o título de sua dinidade (se a tem), hão de ter escritura dos reis, de cuja mão receberam a tal honra; e se forem propriedades, apresentarão escritura donde as houveram. Assi que, falando propriamente, ao título da honra podemos-lhe chamar dinidade, e ao título da propriedade senhorio, per este seguinte exemplo: Este nome rei tem dous respeitos: quando se refere à dinidade real, denota jurdição sobre todolos que vivem no seu reino; e referido ao reino e não aos vassalos, denota senhorio, como cada um o tem sobre as propriedades de sua fazenda, as quais pode dar, vender, etc., o que ele não pode fazer dos vassalos, falando conforme a dereito. Assi que, quanto a este nome rei, se havemos de guardar a etimologia do verbo donde ele procede, que é de reger, propriamente diremos rei dos portugueses, rei dos castelhanos, e senhor de Portugal, senhor de Castela; e porque per este nome rei eles se intitulam do melhor sujeito, que é da jurdição dos homens, chamam-se reis e não senhores; ou diremos que o fazem, porque, nomeando-se por reis da terra, entende-se que o são dos homens que vivem nela. Isto seja dito quanto à declaração deste título de rei e senhor. Conforme ao qual direito e propriedade de nome, el-rei Dom João o segundo (como atrás fica) se intitulou por senhor e não rei de Guiné, porque sobre os povos da terra não tinha jurdição, e porém teve senhorio dela. Ca ninguém lha defendeu, nem entre os negros havia demarcações de estados; e podera-se esta terra conceder ao primeiro acupante, quanto mais a ele, que tinha a doação dos Sumos Pontífices, que são senhores universais pera destribuir pelos fiéis da Católica Igreja as terras que estão em poder daqueles que não são súbditos ao jugo dela. Per o qual modo e aução el-Rei Dom Manuel também se chamou senhor da conquista, navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, porque (como já repetimos per vezes) os Sumos Pontífices tinham concedido a este reino tudo o que descobrissem do Cabo Bojador até a oriental plaga, em que se compreendia toda a Índia, ilhas, mares, portos, pescarias, etc., segundo mais compridamente se contém nas próprias doações. E como ele neste descobrimento que mandou fazer per Dom Vasco da Gama e Pedrálvares Cabral, descobriu três cousas, as quais nunca nenhum rei nem príncipe de toda a Europa cuidou nem tentou descobrir, destas três que eram as essenciais de todo Oriente quis tomar

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título. Descobriu navegação de mares incógnitos per os quais se navega destas partes de 219 Portugal per aquelas orientais da Índia; tomou posse deste caminho da navegação per o título dela. Descobriu terras habitadas de gentio idólatra e mouros heréticos, pera se poderem conquistar e tomar das mãos deles como de injustos possuidores, 229 pois negam a glória que devem a seu Criador e Remidor; intitulou-se por senhor delas. Descobriu o comércio das especearias, as quais eram tratadas e navegadas per aqueles povos infiéis; per o mesmo modo, pois era senhor do caminho e da conquista da terra, também lhe convinha o senhorio do comércio dela. Pera os quais títulos não houve mister mais escritura que a primeira doação apostólica, e trazê-los ele em seu ditado, quanto mais que ao presente já são confirmados per o direito de usucapionis (como dizem os juristas) de mais de cinquenta e tantos anos de posse, segundo se verá no processo desta nossa história per este modo. Quanto à Navegação, foi sempre tam grande a potência de nossas armadas naquelas partes orientais, que por sermos com elas senhores dos seus mares, quem quere navegar, ora seja gentio, ora mouro, pera segura e pacificamente 70 o poder fazer, pede um salvo-conduto aos nossos capitães que lá andam, ao qual eles comumente chamam cartaz; e se este infiel é achado, não sendo dos lugares onde temos fortalezas, ou que estão em nossa amizade, com justo título o podemos tomar de boa guerra. Porque, ainda que per direito comum os mares são comuns e patentes aos navegantes, e também per o mesmo direito somos obrigados dar servidão às propriedades que cada um tem confrontadas connosco, ou pera que lhe convenha ir por não ter outra via púbrica, esta lei há lugar somente em toda a Europa acerca do povo cristão, que, como por fé e bautismo está metido no grémio da Igreja Romana, assi no governo de sua polícia se rege pelo Direito Romano. Não que os reis e príncipes cristãos sejam súbditos a este direito imperial, principalmente este nosso reino de Portugal, e outros que são imediatos ao Papa per obediência, e não por serem feudatários, mas aceitam estas leis enquanto são justas e conformes à razão, que é madre do direito. Peró acerca dos mouros e gentios que estão fora da lei de Cristo Jesu, que é a verdadeira que todo homem é obrigado ter e guardar, sob pena de ser condenado a fogo eterno, quem no principal, que é alma, está condenado, a parte que ela anima não pode ser privilegiada nos benefícios das nossas leis, pois não são membros da congregação evangélica, posto que sejam próximos por racionais, e estão enquanto vivem em potência e caminho pera poderem entrar nela. E ainda conformando-nos com o mesmo direito comum, não falando nestes mouros e gentios que tem perdida esta aução por não receberem nossa fé, mas qualquer membro dela não pode pera aquelas partes orientais pedir servidão, porque, ante da nossa entrada na 220 Índia, com a qual tomamos posse dela, não havia algum que lá tivesse propriedade herdada ou conquistada, e onde não há aução precedente, não há servidão presente ou futura. Porque como todo auto, pera se continuar per muito tempo, requere princípio natural, 230 assi as auções, pera serem justas, dependem de um princípio de precedente justiça, que no direito comum é um centro universal, a que hão-de concorrer todolos autos dos homens que vivem segundo a lei de Deus. Quanto ao título da Conquista, hoje per ela são metidos na Coroa deste reino estes reinos Sofala, Quíloa, Mombaça, Ormuz, Goa, Malaca, Maluco, com todalas ilhas do seu estado; e os senhorios da cidade Diu e Baçaim, com todas suas terras que são do reino de Cambaia, e adiante Chaúl, Baticalá, em todalas quais partes temos nossas fortalezas com oficiais e ministros do governo da terra. Peró ao presente temos leixado Quíloa e Mombaça, por serem partes mui doentias, custosas e sem fructo, como leixámos a Ilha Socotorá e Anchediva, por não serem necessárias. E assi temos também outras muitas terras, posto que não sejam intituladas em reinos, cujos portos

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estão à nossa obediência e recebem nossas naus com reverência, como suas superioras. Do título do Comércio, como ele requere duas vontades contraentes em ua cousa, o qual acto pressupõe paz, amizade e obediência, o testemunho que temos da posse dele são quantas naus cadano vem carregados daquelas partes a este reino, com muita especearia e todo género de cousas que se nelas produzem e fazem. Isto é falando em geral, que em particular deste comércio temos uso per três modos: O primeiro é quando se faz nas terras e senhorios acima nomeados que houvemos per conquista, contratamos com os povos da terra como vassalo com vassalo de um senhor, cujos direitos das entradas e saídas são da Coroa deste reino. O segundo modo, é termos contratos prepétuos com os reis e senhores da terra, de a certo preço nos darem suas mercadorias e receberem as nossas, assi como está assentado com os Reis de Cananor, de Chale, de Cochi, de Coulão e Ceilão, os quais são senhores da frol de toda a especearia que há na Índia. E porém este modo de contratar é somente acerca das especearias que eles dão aos oficiais del-Rei que ali residem em suas feitorias pera carga das naus que vem a este reino; e todalas outras cousas que não são especearia, estas tais são livres e comuas pera todo português e natural da terra poder tratar, o preço das quais cousas está na vontade dos contraentes, sem ser atado nem taxado a ua justa valia. O terceiro modo é navegarem nossas naus e navios per todas aquelas partes e conformando-nos com o uso da terra, contraemos com os naturais dela, per comutação de ua cousa per outra ao seu preço e ao nosso. E posto que estes três títulos - Conquista, 221 70v Navegação e Comércio - sejam actos, em tempo, não terminados e finitos, e, em lugar, tam grandes que compreendem tudo o que jaz do Cabo Bojador té o fim da terra oriental, etc., e neste ano de quinhentos e um, que el-Rei Dom Manuel se intitulou deles, não podia tomar outros mais próprios à justiça e aução que tinha na quela oriental propriedade, ao presente, salvos eles, bem se pode a Coroa deste reino intitular destes reinos que tem conquistado: Na Etiópia, de Sofala, Quíloa e Mombaça. E na Arábia e Pérsia, do grande reino Ormuz, cujo estado com muitas vilas e lugares está nestas duas partes de terra. E na Índia, dos reinos 231 de Goa, Malaca e Maluco, com todolos mais senhorios que nestas quatro províncias tem navegado e conquistado. E assi na província de Santa Cruz, ocidental a estas, a qual, ao presente, el-Rei Dom João o terceiro, nosso senhor, repartiu em doze capitanias, dadas de juro e herdade às pessoas que as tem, como particularmente escrevemos em a nossa parte intitulada Santa Cruz. Os feitos da qual, por eu ter ua destas capitanias, me tem custado muita substância de fazenda, por razão de ua armada que, em praçaria de Aires da Cunha e Fernão de Álvares de Andrade, tesoureiro-mor deste reino, todos fizemos pera aquelas partes o ano de quinhentos trinta e cinco. A qual armada foi de novecentos homens, em que entravam cento e treze de cavalo, cousa que pera tam longe nunca saiu deste reino; da qual era capitão-mor o mesmo Aires da Cunha; e por isso o princípio da milícia desta terra, ainda que seja o último de nossos trabalhos, na memória eu o tenho mui vivo, por quam morto me leixou o grande custo desta armada sem fructo algum.

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221 70v 231 Capítulo II. Como o Almirante Dom Vasco da Gama partiu deste reino o ano de quinhentos e dous, com ua grande frota; e o que passou neste caminho, té chegar a Moçambique. Por as causas que atrás apontamos, com que se el-Rei Dom Manuel determinou prosseguir o descobrimento e conquista da Índia e tomar os títulos dela, quis neste ano de quinhentos e dous mandar vinte velas. Cinco delas haviam de ficar de armada na Índia, em favor de duas feitorias, ua em Cananor, outra em Cochi, que haviam de estar em terra com oficiais a elas ordenados, por causa da amizade e comércio que estes dous reis desejavam ter com ele, como lhe enviaram dizer per seus embaixadores, que Pedrálvares Cabral trouxe. E, além destas cinco velas ficarem pera favor destas duas feitorias, também no verão alguns meses haviam de ir guardar a boca do estreito do Mar Roxo, pera defender que não entrassem e saíssem per ele as naus dos mouros de Meca, que eram 222 aqueles que maior ódio nos tinham e que mais empediam nossa entrada na Índia, por causa de trazerem entre as mãos o maneo das especearias que vinham a estas partes da Europa per via do Cairo e Alexandria. A capitania-mor das quais velas deu el-Rei a Vicente Sodré, tio de Dom Vasco da Gama, irmão de sua mãe; e os outros capitães que haviam de andar com ele eram Brás Sodré, seu irmão, e Álvaro de Taíde, natural do 232 Algarve, e Fernão Rodrigues, Badarças de alcunha, filho de Rui Fernandes de Almada, e António Fernandes, o qual, posto que logo daqui não fosse em navio, em Moçambique lhe havia de ser dada ua caravela que se ali havia de armar, da qual a madeira ia daqui lavrada, como se fez. E por razão que esta armada havia de ficar na Índia pera este fundamento que el-Rei fazia, quis que partisse diante das outras quinze velas que aquele ano também iam. Pedrálvares Cabral, a quem el-Rei tinha dada a capitania-mor de toda esta armada, quando viu este apartamento de velas e ainda o regimento que el-Rei dava a Vicente Sodré, em modo que quási o fazia isento dele, não ficou contente. E como ele era homem de muitos primores acerca de pontos de honra, teve sobre este negócio alguns requirimentos, a que el-Rei lhe não satisfez. Finalmente ele não foi, e a armada toda deu el-Rei a Dom Vasco da Gama, com o qual juntamente partiu Vicente Sodré, que levava a sucessão dele. E porque ao tempo da sua partida outras cinco velas não eram de todo prestes, ficaram e partiram o primeiro dia de Abril; a capitania-mor das quais levou Estêvão da Gama, filho de Aires da Gama, 71 e primo com-irmão dele, Dom Vasco da Gama. E os capitães que iam debaixo de sua bandeira eram Lopo Mendes de Vasconcelos, filho de Luís Mendes Vasconcelos, Tomás de Carmona, Lopo Dias, criado de Dom Álvaro, irmão do Duque de Bragança, João de Bonagracia, italiano. E os capitães que partiram a dez de Fevereiro, juntamente com Dom Vasco da Gama, eram Dom Luís Coutinho, filho de Dom Gonçalo Coutinho, de alcunha Ramiro, o segundo Conde de Marialva, Francisco da Cunha, das Ilhas Terceiras, João Lopes Perestrelo, Pedro Afonso de Aguiar, filho de Diogo Afonso de Aguiar, Gil Matoso, Rui de Castanheda, Gil Fernandes, Diogo Fernandes Correa, que ia por feitor pera ficar em Cochi, e António do Campo. E somente este, de todas estas vinte velas aquele ano não foi à Índia, do qual ao diante faremos relação. E ante de partir esta frota, estando el-Rei em Lisboa, a trinta de Janeiro, foi ouvir missa à Sé, e, depois de acabada, com solene fala, relatando os méritos de Dom Vasco da Gama, o fez Almirante dos mares de Arábia, Pérsia, Índia, e de todo Oriente. No fim do qual auto el-Rei lhe entregou a bandeira do cargo que levava, e di foi levado per todolos principais senhores e fidalgos

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que eram presentes, 223 com grande pompa, até os Cais da Ribeira, onde embarcou. Partido de Restelo, fazendo sua derrota via do Cabo Verde, o derradeiro dia de Fevereiro surgiu no rosto dele, onde os nossos chamam Porto Dale. No qual esteve seis dias, fazendo sua aguada e algua pescaria, e ali veo ter com ele ua caravela que vinha da Mina, de que era capitão Fernando de Montarroio, o qual trazia duzentos e cinquenta marcos de ouro todo em manilhas e jóias que os negros costumam trazer. O Almirante, porque levava consigo Gaspar da Índia, que ele tomou em Anchediva, e assi os embaixadores del-Rei de Cananor e del-Rei de Cochi, 233 quis-lhe dar mostra dele, não tanto pola quantidade, quanto porque o vissem assi como vinha por lavrar, e soubessem ser el-Rei Dom Manuel senhor da mina dele, e que ordinariamente em cada um ano lhe vinham doze e quinze navios que traziam outra tanta quantidade. A vista do qual ouro houveram estes índios por tam grande cousa, que vieram descobrir a Dom Vasco da Gama ua prática que em Lisboa teveram com eles uns venezeanos, em que lhe fizeram crer que as cousas deste reino de Portugal eram bem diferentes do que eles viam naquela soma de ouro, e o caso foi per esta maneira: Ao tempo que esta armada da Índia se fazia em Lisboa prestes, estava nela um embaixador dos venezeanos, homem nobre e prudente, a vinda do qual a este reino era pedirem eles a el-Rei Dom Manuel ajuda contra o Turco que lhe tinha tomado Modon , e procedia na guerra contra eles, de que se esperava poder sobrevir grã dano à Cristandade, o qual socorro lhe ele mandou, segundo escrevemos em a nossa África. E como este negócio do comércio das especearias era ua grã parte de que o estado de Veneza se sustentava, vendo estes embaixadores da Índia em Lisboa, ou per mandado do embaixador venezeano, ou per qualquer outro modo que fosse, alguns familiares seus, mostrando curiosidade de querer saber as cousas da Índia, foram falar com eles. Tendo secretamente prática sobre o trato da especearia, assi os induziram, que lhes fizeram crer que o embaixador de Veneza era vindo a este reino, a dar adjutório de dinheiro e mercadorias pera se fazer aquela armada em que eles haviam de tornar pera a Índia. Porque este reino de Portugal era mui pequeno e pobre, e não se atrevia a tamanho negócio como era o trato da especearia, e a senhoria de Veneza era a maior potência de toda a Cristandade, a qual senhoria, des que houve trato no Mundo, sempre negoceara com os mouros do Cairo que traziam esta especearia pelo Mar Roxo, do reino de Calecute e de toda a costa Malabar, donde eles eram naturais. Que o sinal desta verdade eles o podiam lá ver e saber, porque quanta moeda de ouro os mouros levavam pera a compra dela, tudo eram ducados venezeanos, e as sedas escarlatas como todalas outras polícias que estes mouros levavam, da 224 mão dos venezeanos se havia em os portos de Alexandria e Barute onde eles mandavam suas naus a fazer com os mouros comutação destas cousas com a especearia que ali traziam. Que se espantavam muito como os reis e príncipes daquelas partes leixavam de contratar com os mouros como té li fizeram, pois per eles podiam haver todalas cousas que a Senhoria de Veneza tinha per modo tam pacífico, como sempre usaram. O qual modo eles eram testemunha não terem os portugueses, porque, 71v como eram homens da guerra e não usados na mercadoria, todo o seu negócio, per este novo e comprido caminho que tinham descoberto, havia 234 de ser a força de armas, e trabalharem por destruir os mouros daquelas partes por serem seus capitais imigos nestas ocidentais de África, por andarem em contínua guerra com eles. Finalmente per este modo assi encheram os venezeanos as orelhas dos embaixadores, que levavam eles maior opinião do estado de Veneza que deste reino, e que o mais daquela armada era

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ajudas desta grande Senhoria. Peró quando eles viram o ouro que lhe o Almirante Dom Vasco amostrou, ainda que não era muito em peso, como vinha em manilhas e jóias parte dele, e outro assi como nace, fazia tam grande volume, que houveram eles que Portugal, em ter aquela mina, era mais poderoso e rico que todolos reis da Índia, porque nela, principalmente em todo o Malabar, não há ouro, e todo lhe vai de fora. O Almirante, porque el-Rei Dom Manuel soubesse gratificar ao embaixador de Veneza, que ficava em Lisboa, esta informação que os seus deram a estes índios, per o mesmo capitão Fernão de Montarroio lho escreveu. E acabada de fazer sua aguada, um domingo, seis de Março, com a maior parte da gente saiu em ua ilheta, a que chamam Palma, pegada no porto de Bezeguiche, onde ouviu missa e pregação, e ao seguinte dia se fez à vela, fazendo sua viage. Na qual, té o parcel de Sofala teve alguns temporais, que lhe desaparelhou alguas naus, e, chegado àquele parcel, na paragem dela, mandou a Vicente Sodré, seu tio, que se fosse a Moçambique com todalas naus grossas, enquanto ele ia dar ua vista a Sofala, com quatro navios pequenos, por lho el-Rei mandar em seu regimento. Na qual ida, ele, Almirante, não fez mais que algum resgate de ouro com os mouros que estavam na povoação, porisso a relação das cousas desta terra leixamos pera outro lugar, e continuamos com Vicente Sodré, que chegou a Moçambique, onde armou ua caravela de que a madeira ia de cá lavrada, a qual, quando o Almirante chegou a Moçambique, que foi a quatro de Junho, achou já quási de todo acabada, havendo quinze dias que Vicente Sodré era chegado.

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225 71v 235 Capítulo III. Como, partido o Almirante de Moçambique, foi ter à cidade Quíloa, onde se viu com o Rei dela e o fez tributário; e di se partiu pera a Índia, onde, ante de chegar a Cananor, tomou a nau Meri, do Soldão do Cairo. O Almirante Dom Vasco da Gama, depois que chegou a Moçambique, deu pressa a se lançar ao mar a caravela que estava armada e fez capitão dela a João Serrão, um cavaleiro da casa del-Rei. E em quatro dias que se ali deteve, por alguas naus fazerem água pelo costado, lhe mandou dar pendor. E também assentou paz com um Xeque da povoação, que já era outro e não aquele com quem tinha passado o que atrás fica, quando descobriu aquele caminho. Na mão do qual achou ua carta de João da Nova, em que dava conta a qualquer capitão que per ali passasse do que lhe acontecera per toda aquela costa e na Índia, dando-lhe aviso dalguas cousas. Por razão da qual carta, o Almirante leixou na mão do Xeque ua pera Estêvão da Gama, que partira deste reino com cinco naus e ainda não era chegado, e outra pera Luís Fernandes e António do Campo, dous capitães que, ante de chegar ao Cabo das Correntes, com um temporal que ali teve, se apartaram dele, Almirante, nas quais cartas dava regimento a todos do que haviam de fazer, que era diferente do que lhe dera ante que partisse deste reino, e isto por causa dos que achou na carta de João da Nova. Feitas estas cousas, partiu-se pera Quíloa, onde chegou a doze de Julho, a qual cidade ficou assombrada, vendo o terror com que o Almirante entrou, por ser tudo fogo e um contínuo torvão de artelharia; porque, como o Rei desta cidade estava mui isento e com Pedrálvares Cabral e João da Nova tinha usado de cautelas de muita maldade que nele havia, quis o Almirante entrar com este furor polo assombrar. E posto que também com ele quisera andar em dilações, enquanto metia dentro na ilha gente pera se defender, o Almirante lhe não deu tempo pera usar destes seus modos, ca teve com ele outros de mais conclusão, com que o 72 fez vir à praia, e se meteu em um batel com cinco homens principais a lhe falar aos batéis em que o Almirante já vinha pera sair em terra e meter a cidade a fogo e sangue. Ao qual Rei, per nome Habraemo, o Almirante fez mais gasalhado e honra do que ele merecia, polo que tinha feito aos capitães passados, e por quam revel fora em querer vir ali. Finalmente o Almirante lhe deu ua carta del-Rei Dom Manuel, sobre ela tratou com ele que se fizesse seu vassalo, pera ficar em sua amizade e debaixo de sua proteição, com tributo de quinhentos miticais de ouro, peso que, amoedado, podiam ser, da nossa moeda, quinhentos oitenta e quatro 226 cruzados; isto mais em sinal de obediência que por a quantidade dele. Em 236 retorno do qual, o Almirante lhe mandou ua patente em nome del-Rei Dom Manuel, em que relatava aceitá-lo por vassalo com aquele tributo, prometendo de o defender e amparar, etc., e mais lhe mandou ua bandeira das quinas reais deste reino, como sinal da honra da vassalagem que recebia, e alguas peças pera sua pessoa. A qual bandeira foi arvorada em ua haste e levada em um batel, acompanhado doutros com muita gente vestida de festa, e trombetas; e el-Rei a veo receber à praia, fazendo-lhe reverência como quem reconhecia aquele sinal de sua proteição. E tomada per suas próprias mãos a levou um bom pedaço, e des i a entregou a um mouro dos principais, o qual andou per toda a cidade, e o povo trás ele, bradando: - Portugal! Portugal! - e per derradeiro foi posta a vista das nossas naus em ua torre das casas del-Rei. Acabada esta solenidade, espediu-se o Almirante dele, e assi de Mahamede Enconi, que foi

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parte mui principal pera el-Rei vir àquela obediência; e o Almirante folgou muito de o ver por quam fiel amigo sempre se mostrou aos capitães que ali foram. E posto que ele, Almirante, depois que partiu desta cidade Quíloa, levasse determinado de passar per Melinde, pera ver el-Rei e lhe gratificar o gasalhado que dele recebeu, quando per ali passou, eram tam grandes as correntes, que o escorreu e foi tomar ua enseada abaixo, que seria de Melinde oito léguas. El-Rei, quando soube que ele estava ali, escreveu-lhe ua carta per mão de Luís de Moura, que era um dos degredados que Pedrálvares ali leixou; e ele lhe respondeu, dizendo a causa de ir ter àquela parte, não trazendo cousa que mais desejasse ver que sua pessoa; mais pois o tempo lhe não deu lugar, quando embora tornasse da Índia, esperava em Deus de o ter melhor pera se ver com ele. Partido o Almirante daquela enseada, atravessou o grã golfão caminho da Índia, no qual foi dar com ele Estêvão da Gama com três naus; e depois que chegaram à Ilha de Anchediva, vieram as mais de toda aquela armada, somente António do Campo, que não passou aquele ano à Índia. E nesta ilha convaleceu toda a gente que levava enferma, e di se foi lançar ao Monte de Eli, por ser um cabo mui notável que está no princípio da costa da Malabar. Na qual parte ordenou suas naus, ua em vista doutra, começando no rosto do cabo até quinze léguas ao mar, porque não passasse vela algua sem ser vista; e per outros navios pequenos mandou correr toda a costa daquela paragem. E como achavam até um barco, era logo levado ante ele, Almirante, a dar rezão de si; a maior parte dos quais, que ali foram tomados, por serem de Cananor, mandou soltar, e aos de Calecute reter por causa de ser nosso imigo. 237 El-Rei de Cananor, tanto que soube parte destas obras que ele andava fazendo, tam vezinhas ao 227 seu porto, o mandou visitar, e assi lhe escreveram os nossos que lá estavam com ele, dando-lhe novas do estado da terra; aos quais ele respondeu e a el-Rei de Cananor, dando-lhe agradecimento polo bom tratamento deles. Também nestes dias que ali andou respondeu a certos mercadores de Calecute que lhe escreveram per mão de um português, chamado Fernão Gomes, que era dos cativos que lá ficaram do tempo de Pedrálvares, e a reposta foi mui diferente do que eles esperavam. Porque a substância da carta que eles escreveram era espantarem-se como ele tratava mal as cousas de Calecute, o qual estava com grande desejo de o receber pera assentar paz, amizade e comércio da maneira que ele quisesse, por terem sentido que o Samori nenhua cousa mais desejava; e ele, Almirante, respondeu-lhe que ainda não fizera cousa contra Calecute igual à maldade que cometera na morte e roubo dos portugueses; e que té não haver emenda disto, ele não compria o que el-Rei Dom Manuel, seu senhor, lhe mandava fazer sobre isto. Que estas novas podiam dar ao seu Samori, enquanto lhe não mandava outras acerca dalguas naus de Meca que ele ali andava esperando; e a primeira seria a chamada Meri, tam esperada de todos. 72v Passados alguns dias, nos quais sempre o Almirante teve que fazer em dar audiência a mouros que lhe levavam estes navios que andavam ao longo da terra, veo lhe cair na mão ua nau que ele esperava, de que tinha nova per alguas perguntas que fazia a estes mouros, que, segundo lhe tinham dito, era do Soldão do Cairo, capitão e feitor um mouro per nome Joar Faquim; a qual, partida de Calecute carregada de especearia e por ser mui grande e segura, foram nela muitos mouros honrados em romaria à sua abominação de Meca, e tornava com estes romeiros e também carregada de muita riqueza. O Almirante, como viu que o navio capitão Gil Matoso a tinha rendido, por vir dar primeiro com ele, quási a vista de todos, meteu-se em o batel grande da sua nau com o feitor Diogo Fernandes Correa, Diogo Godinho e Diogo Lopes, escrivães, e foi-se ao navio de Gil Matoso, porque o tempo acalmou e não podia vir a ele. E tanto que foi em o navio, per o batel mandou vir ante si o capitão da nau e os principais mercadores dela, a que fez alguas perguntas: entre as quais

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foi saber que cabedal traziam pera empregar em especearia. E levemente, sem os forçar muito, disse que se tornassem à nau e que as cousas de pouco volume que traziam pera este emprego que lhas trouxessem. 238 Os mouros, parecendo-lhes que isto era ua honesta maneira que o capitão tinha de lhe pedir algua cousa, assentaram terem feito um grande siso em se render ao navio, porque, com algum presente que levassem ao Capitão-mor, acabariam tudo; ca, se eles presumiram o que depois passou, caro houvera de custar sua entrega. Finalmente, tornados ante o Almirante com ua soma de dinheiro amoedado em ouro e algua 228 prata lavrada, brocados, sedas, que todo poderia valer até doze mil cruzados, mandou ele entregar tudo ao feitor, e eles que se tornassem a sua nau, que ao outro dia os despacharia, por ser já mui tarde. Quando veo a menhã, que as naus da frota estavam já i juntas derredor desta que todos andavam esperando, entrou o Almirante com alguas pessoas nela e mandou-lhe tirar sobre coberta mais fazenda e entregá-la a Diogo Fernandes; e depois que per este modo não pôde haver mais dos mouros, tornou-se a sua nau São Hierónimo. E vindo pera se por ao longo do costado da nau dos mouros e mandar baldear dela na sua toda fazenda que trazia, per desastre ficou um criado dele, Almirante, entalado entre os costados das naus, de que morreu; com que ele houve tanto pesar, que se fastou da nau, e mandou a Estêvão da Gama e ao feitor Diogo Fernandes Correa que a levassem mais ao pego, por não fazer nojo às nossas velas, e depois que lhe fizessem baldear quanta fazenda trazia, lhe posessem o fogo. Haveria nesta nau duzentos e sessenta homens de peleja e mulheres e meninos mais de cinquenta; os quais mouros, enquanto lhe tomaram a fazenda e armas, vendo tanta nau derredor de si, sofreram o que té li lhe foi feito. Peró quando eles viram que os batéis das nossas naus estavam em torno da sua, poendo-lhe fogo, que era perigo da vida e não dano da fazenda, determinados de morrer como cavaleiros, com alguas armas que esconderam e às pedradas, fizeram apartar os batéis. A este tempo um dos nossos navios, que andava em vigia doutras naus vinha à vela demandar a nau capitânia; e quando viu os batéis andar derredor desta nau, veo envestir com ela. Mas como o navio era pequeno e a nau mui grande, e os mouros não faziam já conta das vidas e queriam morrer vingados, em o navio chegando, saltaram no castelo da vante, metendo-se tam rijo com os nossos, que os fizeram recolher aos castelos da popa grã parte deles, de que feriram muitos e mataram três ou quatro. Na qual entrada, havendo eles alguas armas dos nossos, peró que andavam mui feridos, a fúria os trazia tam vivos, que lhe houvera de ficar o navio em poder. Porém sobreveo a nau Julioa, capitão Lopo Mendes de Vasconcelos, com que os mouros se recolheram a sua própria nau; e em esta de Lopo Mendes, prepassando per ela, cuidando que a aferrava, lançaram-lhe dentro ua chuva de pedras que lhe escalavrou muita gente. O Almirante, que estava de largo, vendo como esta nau espedia de si os que chegavam a ela, passou-se ao navio São Gabriel, de Gil Matoso, e, chegando a ela, achou que a tinha aferrado Dom Luís Coutinho com a sua 239 nau Lionarda, ao qual se ele passou, donde pelejaram tanto com ela, matando-lhe muita gente, té que a noite apartou a peleja. Quando veo ao outro dia, ainda com muito trabalho e perigo dos nossos a poder de fogo acabaram com ela; e somente deste incêndio, por lhe 229 quererem dar vida, mandou o Almirante recolher vinte e tantos mininos, e um mouro corcovado que era 73

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piloto, os quais meninos ele mandou fazer cristãos. E porque no feito desta nau, António de Sá, moço da câmara del-Rei Dom Manuel, foi o primeiro que entrou nela, e o fez como homem de sua pessoa que ele era, o armou cavaleiro.

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229 73 239 Capítulo IV. Como o Almirante se recolheu pera Cananor, e das vistas que houve entre ele e el-Rei; e depois, sobre o assentar do preço das especearias, se partiu pera Cochi, desavindo dele, e o que sobre isso sucedeu. Acabando o Almirante de se desapressar desta nau, que era a principal cousa que o fazia andar naquela paragem, pola fama que tinha dela, assi de sua riqueza (da qual ele houve mui pouca em comparação do que trazia), como dos mouros de Calecute, que vinham nela, recolheu-se dentro no porto de Cananor. Onde, depois que foi visitado del-Rei per recados assentou com ele que se vissem em ua ponte tam metida dentro no mar, que podesse ele, Almirante, estar em ua caravela, e ele na ponte, praticando ambos. Feita esta ponte e assentado o dia destas vistas, saiu o Almirante das naus na sua caravela toldada de veludo verde e roxo, com muitas bandeiras de seda e per derredor todolos batéis também embandeirados, e neles e na caravela a mais limpa gente da armada; e em guarda de sua pessoa vinha outra caravela, que tudo era artelharia e gente armada, porque quem oulhasse pera a galantaria das cores dos vestidos, também visse reluzir armas, e se ouvisse trombetas, ouveria bombardas. El-Rei, como soube que o Almirante partia das naus com este aparato, também, por lhe mostrar o seu, saiu de suas casas que estavam a um cabo da povoação, tomando ao longo da praia pera lhe verem sua pompa. Diante do qual vinha muita gente solta, cujo ofício nas tais cousas é poer-se onde melhor possa ver; e detrás deste povo vinham dous elefantes adestrados 240 per dous índios, que de cima deles, em modo de porteiros, faziam afastar a gente, leixando um grande terreiro ante a pessoa del-Rei. E de quando em quando remetiam os elefantes ao cardume dos homens, como que os queriam fazer apartar, e em modo de prazer tomavam um com a tromba e andavam volteando com ele no ar, e per derradeiro o lançavam encima da outra gente. El-Rei vinha em um andor dos que eles usam, às costas de certos homens vestidos a seu modo com panos de seda, e per cima o cobriam três ou quatro sombreiros de pé de copa de um grande esparavel, que faziam sombra não somente à pessoa del-Rei, mas ainda àqueles que o traziam aos ombros. Outros traziam uns 230 abanos altos com que abanavam, como quem lhe queria refrescar o ar per onde passava; e junto dele vinha um homem que lhe trazia um vaso de prata dourado, a modo de copa, pera lançar a seiba que fazem do bétel que o mais do tempo andam remoendo, cousa entre eles mui costumada, do qual em os livros do nosso Comércio, no capítulo deste bétel, mui particularmente tratamos dele e deste uso geral daquelas partes. Toda a outra gente que acompanhava el-Rei vinha posta em ordenança, parte detrás e parte diante, os quais seriam quatro mil homens de espada e adarga; e deles alguns, por festa, em mui boa ordem se saíam do fio do seu lugar e jogavam de esgrima mui leve e soltamente, quási ao som dos estromentos que traziam pera animar o furor da guerra, como vemos usar na ordenança dos suíços nesta nossa Europa. Posto cada um em seu lugar, el-Rei no cadafalso da ponte e o Almirante na popa da caravela, tam chegados um a outro que parecia estar em um mesmo assento, falaram um pedaço per meio de seus intérpretes. Na qual prática não houve mais que oferecimentos de parte a parte, e apresentar um ao outro o que traziam pera se darem, segundo o uso da terra. El-Rei, como era homem que parecia de sessenta anos, debilitado em suas carnes e mui

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escrupuloso em sua religião, por ter ua certa dinidade acerca dos brâmanes, a quem sob grave escomunhão é defeso tocar-se com outra gente por haverem que é profana, e sobretudo mui temeroso das nossas armas e medos que lhe os mouros faziam ter de nós, espediu-se do Almirante, dizendo que, 73v como homem velho, já não podia sofrer a grande calma, que lhe perdoasse; que se queria recolher. Que quanto ao negócio do trato da especearia, ele mandaria logo ao outro dia os seus oficiais e assi os principais mercadores da terra pera estarem com ele nisso, e que tudo se faria pera que el-Rei de Portugal, seu irmão, fosse servido. E sem mais prática el-Rei se recolheu a seus paços na ordem em que veo, e o Almirante pera as naus, dando também sua mostra. Tanto que passaram estas vistas, quis o Almirante escrever ao Samori por lhe confundir seus propósitos e artifícios, dando modo como os mercadores de Calecute lhe escrevessem a carta que ante da tomada da nau Meri eles lhe escreveram, mostrando ser feita sem o Samori o saber. A substância da qual era denunciar-lhe ele, Almirante, como ficava naquele porto del-Rei 241 de Cananor; e porquanto ele tinha mandado dizer a alguns seus naturais que lhe escreveram, andando naquela paragem de Cananor, que, como acabasse ua obra que ali tinha por fazer, logo lhe havia de mandar recado dela, a obra era ter queimado a nau Meri do Soldão, e que aquele mouro, portador da carta, que fora piloto dela, lhe daria razão do caso. E porque per ventura ele não contaria todalas novas, lhe fazia saber que, de duzentos e sessenta homens que vinham nela, somente àquele mandou dar vida e a vinte e tantos 231 meninos: os homens foram mortos a conta dos quorenta e tantos portugueses que mataram em Calecute e os meninos foram bautizados a conta de um moço que os mouros levaram a Meca a fazer mouro. Que isto era ua mostra do modo que os portugueses tinham em tomar emenda do dano que recebiam, que o mais seria na própria cidade Calecute, onde ele esperava ser mui cedo. Dada esta carta ao mouro que o Almirante mandou vestir de cores, foi levado per Pedrafonso de Aguiar, capitão da nau São Pantalião que o pôs em Pandârani, que era perto de Calecute; o qual, quando chegou ante o Samori, ele era sabedor da tomada da nau Meri per cartas de mouros de Cananor. Ao dia seguinte, que el-Rei de Cananor disse ao Almirante que lhe havia de mandar homens que assentassem com ele o negócio do trato, vieram quatro dos principais da terra, dous mouros e dous gentios, aos quais o Almirante recebeu com honra e gasalhado. E começando de praticar com eles em os preços da especearia, achou-os em suas palavras mui diferentes do que lhe el-Rei tinha dito, dizendo eles que el-Rei não tinha das especearias, assi das que se davam na terra como das que vinham de fora, somente os direitos delas: tudo o mais era dos mercadores que nisso tratavam. Que ele não podia poer preço a fazenda alhea; e mais per este preço que lhe eles diziam levara o capitão João da Nova as que ali carregou; e em Calecute, ante que fosse o alevantamento, as que Aires Correa houve a este preço foram. O Almirante, posto que replicou, repetindo sempre que per os preços por que as davam aos mouros de Meca a esse lhe haviam de ser dadas, espediram-se estes mouros dele, dizendo que iriam dar disso conta a el-Rei. O que ele, Almirante, não houve por estranho, parecendo-lhe serem modos de contratar a seu prazer, segundo o tinha avisado Gonçalo Gil, que estava em Cochi, e assi Paio Rodrigues, que ficara ali em Cananor, da armada de João da Nova. Porém depois que ele viu que não tomavam conclusão e que tudo era querer dilatar o negócio pera se chegar o tempo de sua partida, e que el-Rei estava dali duas léguas com título que se afastava do mar, por lhe fazer nojo à sua má disposição, mandou a ele António de Sá, acompanhado de três ou quatro homens com uns apontamentos, pedindo-lhe que se 242 determinasse, segundo forma deles. Em reposta dos quais, António de Sá trouxe que pois ele, Almirante, não era contente dos preços e modo per que se lhe dava a especearia, podia ir em boa

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hora a Cochi, e, segundo o partido que lá fizesse, assi o fariam os mercadores de Cananor. Da qual reposta o Almirante ficou tam indinado, que mandou logo chamar a Paio Rodrigues e os que ficam com ele, dizendo que se recolhessem, porquanto ele se mandava per ua carta espedir del-Rei, com tais palavras que não convinha ficar ali algum português. Paio 232 Rodrigues, vendo a determinação do Almirante, pediu-lhe que houvesse por bem ser ele a pessoa que havia de enviar a el-Rei, contanto que a carta fosse um pouco moderada; porque, sendo assi, esperava tomar com ele algua boa conclusão, por saber já o modo de negociar com aquela gente. 74 O Almirante, porque lhe pareceu que não se perdia muito tempo em tentar el-Rei outra vez per Paio Rodrigues, o mandou a ele, aqueixando-se da mudança que achava em suas palavras, tomando por conclusão que, pois os mouros de Cananor tinham tanto poder em sua vontade que lha faziam mudar, ele também pela menhã se mudava dali pera Cochi, onde estava um Rei de muita verdade e que tinha mais conta com os portugueses que com os mouros. Que leixava ali ua caravela pera recolher aquele mensajeiro e os outros de sua companhia, e lhe fazia saber que, onde quer que achasse mouros de Cananor, havia de tratar como aos de Calecute, e lhe havia por alevantados os seguros que lhe tinha dado, pera poderem navegar. Porque gente perturbador de paz e concórdia, não merecia que alguém a tivesse com eles. E com este recado espediu Paio Rodrigues, e ele, Almirante, partiu-se ante menhã, leixando naquele porto de Cananor a Vicente Sodré em sua nau e ua caravela pera recolher Paio Rodrigues.

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232 74 242 Capítulo V. Como o Almirante se partiu via de Calecute e o que fez, chegando a ele; e di se partiu caminho de Cochi, ficando em maior quebra com o Samori do que estava dantes. Partido o Almirante desavindo del-Rei de Cananor e fazendo seu caminho ao longo da costa, veo ter com ele um zambuco em que vinham quatro homens gentios, do mais nobre sangue da terra, os quais lhe deram ua carta del-Rei de Calecute. A substância da qual era: se ele, Capitão-mor, leixara de ir a seu porto por razão do dano que fora feito ao feitor Aires Correa, ele lhe entregaria os autores daquela união; e que, além disto, por amor da amizade que desejava conservar com el-Rei de Portugal, naquela cidade Calecute lhe seria dado carga de especearia pera todalas naus que levava. Que pera isso mandava aqueles quatro homens, dos 243 mais nobres de sua casa, dos quais ficaria um com ele, enquanto os três lhe tornavam com reposta. O Almirante, como vinha quebrado com el-Rei de Cananor, recebeu estes naires com honra e gasalhado, mostrando ter muito contentamento del-Rei, por lhe mandar este seu recado per tais pessoas, dizendo que lhe parecia que esta vinda deles havia de suceder em bem, por não entrar neste negócio homem da casta dos mouros. Per o qual modo respondeu a el-Rei; e quanto à sua ida a Calecute, ele estava em caminho, que assi o faria como lhe mandava pedir. Espedidos os três 233 naires e ficando um per sua própria vontade com o Almirante, veo dar entre as caravelas que iam ao longo da terra, um zambuco com obra de trinta almas, naturais de Cananor, aos quais leixou ir em paz por ter já da noite passada vindo a ele um criado de Paio Rodrigues com ua carta em que lhe dava razão do que passara com el-Rei, e como estava submetido a toda razão e a conceder os capítulos que lhe mandara, e que Vicente Sodré levaria resolução de tudo per carta assinada del-Rei. Seguindo o Almirante seu caminho sempre pegado com terra, per três vezes o foi detendo o Samori com recados: um no porto de Chomba, outro em Pandârani e outro duas léguas ante de chegar a Calecute. E a este derradeiro porto, em reposta do que o Almirante lhe requeria, lhe mandou dizer, que, quanto ao pagamento da fazenda que os portugueses perderam no alvoroço que o povo de Calecute cometeu, por as afrontas que lhe os mesmos portugueses faziam, que ele, Capitão-mor, se devia contentar com a tomada da nau de Meca, que importou mais em substância de fazenda e em morte de gente, que dez vezes o que Pedrálvares tinha perdido. Que se de ua parte e da outra se houvessem de assomar perdas, danos e mortes, que ele, Samori, era o mais ofendido; e pois não requeria destas cousas restituição, sendo requerido com muitos clamores do seu povo que lhe desse emenda dos males que tinha recebido dos portugueses, e dissimulava este clamor por desejar ter paz e amizade com el-Rei de Portugal, que ele, Almirante, não devia mais repetir em cousas passadas e se devia contentar ir ter àquela sua cidade Calecute, onde acharia as especearias que houvesse mister. E quanto ao que dezia que lançasse do seu reino todolos mouros 74v do Cairo e de Meca, a isto não respondia, por ser cousa impossível haver de desterrar mais de quatro mil casas deles, que viviam naquela cidade não como estrangeiros mas naturais, de que o seu reino tinha recebido muito proveito. Que se ele, Almirante, sem estas capitulações tam impossíveis como apontava quisesse assentar paz e trato de comércio, que folgaria de o fazer. O Almirante, quando viu tam diferentes palavras do que té li tinha ouvido per recados da parte dele, Samori, porque as houve em lugar de afronta, não respondeu mais se não que ele seria a reposta. E não seriam com o Samori os mensageiros que trouxeram este recado, quando ele, Almirante, estava já surto ante a cidade Calecute, mandando logo tomar dous

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244 barcos pequenos com seis homens que vieram ter às naus, e isto com tenção de os mandar um e um com recados a el-Rei, temendo-se que, não os havendo per este modo, pera que uns ficassem em arreféns do que mandasse, per própria vontade nenhum lhe havia de aceitar levar recado a el-Rei. E parece que assi a tomadia destes, como dos outros que o Almirante veo tomando per o caminho, fez 234 obrigaram tanto, que logo aquela noite lhe veo recado do Samori, aqueixando-se que não sabia por que queria reter os seus naturais em modo de cativos. Que se o fazia por razão do ódio que tinha aos mouros, que os presos pouca culpa tinham na causa deste ódio; e se era como represária pera haver o que dezia terem perdido os portugueses no alevantamento passado, que já lhe tinha enviado dizer quanto mais dano e mais fazenda ele, Almirante, tinha havido que perdido em Calecute e que fosse ua perda por outra. O Almirante, como já dos recados que ao caminho ele, Samori, lhe mandara vinha indinado, este o indinou mais, e a reposta que levou foi que não viesse mais a ele com outro recado, senão trazendo consigo o preço das cousas que foram tomadas aos portugueses, e depois que fizesse esta entrega, então entenderia em o negócio da paz e trato da especearia. O brâmane que trouxe este recado, quado viu a indinação do Almirante, sem replicar cousa algua, se espediu com mais temor do que trouxera. E porque ele podesse contar ao Samori o que vira, mandou o Almirante em sua presença tomar ua nau que estava surta diante da cidade carregada de mantimentos e levar a bordo da sua; e assi mandou passar toda a artelharia das naus grossas, e as outras mais pequenas que podiam bem chegar a terra pera, com esta artelharia, varejar a povoação, dizendo que logo ao seguinte dia havia de começar esta obra. A qual cousa temendo o Samori pelo dano que Pedrálvares Cabral fizera quando lhe varejou toda a cidade, mandou per toda a frontaria da cidade, ao longo do mar, fazer ua estacada de grossas palmeiras entulhada per dentro, de maneira que lhe ficava em lugar de muro, não somente pera defender a saída em terra, se os nossos a quisessem cometer, mas ainda pera cegar toda a artelharia, com que a povoação não recebesse dano. Porém, como a tenção do Almirante não era sair em terra, mas esbombardear a cidade, quando veo ao outro dia, mandou chegar todalas velas pequenas a terra espaço conveniente, assi pera que a artelharia de ferro, que os mouros tinham assestada na principal frontaria da cidade, lhe não pudesse fazer nojo, como pera que a sua pudesse sobrelevar a estacada e fosse pescar a povoação. E ante que procedesse na obra deste aparato em que estava, o escreveu primeiro ao Samori per um dos gentios que se tomaram nos barcos, denunciando-lhe que, não vendo té o meio dia recado seu, com efeito do que lhe per tantas vezes 245 mandara dizer, ele abrasaria em fogo aquela sua cidade. Passado o qual termo, porque não houve reposta, mandou a todalas naus que estavam com recado pera isso, que cada ua enforcasse no lais da verga os mouros que lhe ele mandara; e sobre esta obra, que foi um espectáculo de muita dor a toda a cidade, começaram de ver e ouvir outro de maior sua confusão, tirando toda artelharia 235 naquele espaço do dia, que foi um contínuo torvão e ua chuva de pelouros de ferro e pedra, que fizeram ua mui grande destruição, em que também morreu muita gente. Quando veo sobre a tarde, por espedida e maior terror, mandou cortar aos enforcados, que eram trinta e dous, cabeça, mãos e péis, e foram metidos em um barco, com ua carta em que dezia, que, se aqueles, não sendo os próprios que foram na morte dos portugueses, somente por terem parentesco com os matadores, recebiam aquele castigo, esperassem os autores desta traição outro género de morte mais cruel. O qual barco mandou per um 75 André Dias, que depois foi almoxerife do almazém do reino. E os toros dos corpos destes membros mandou lançar ao mar a tempo que a maré vinha, pera irem ter à praia entre os olhos da gente e verem quanto custava ua traição feita a portugueses, e quam vingado havia de ser qualquer dano

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que lhe fizessem. A qual cousa assi assombrou toda a cidade, que, quando veo ao outro dia, que ele, Almirante, tornou a mandar fazer outra tal obra, não aparecia cousa viva per toda a praia, porque o gentio, como gente mais temerosa, desemparava os lugares da frontaria do mar, e os mouros a quem era cometido a guarda dele, não ousavam aparecer, enterrando-se na area dos valos e repairos que tinham feito. Tudo estava tam desemparado, que bem podera o Almirante saquear a cidade sem muita resistência; mas, como estas mortes de gente mais eram feitas pera terror de el-Rei desestir dos conselhos dos mouros, que por vingança do passado, não quis executar quanto dano podera fazer, por dar tempo a el-Rei que se arrependesse, e não causa que se indinasse com tam grande perda como fora, se lhe destruíra a cidade de todo. E porque não parecesse a el-Rei que aos portugueses mais os obrigava a cobiça que a honra, nestes dous dias que toda a armada se ocupou em varejar a cidade, nunca o Almirante quis mandar encetar a nau que mandara tirar do porto e trazer junto da sua, esperando que, se houvesse algum bom concerto com el-Rei, lha mandar restituir assi carregada como estava. Peró, depois que passaram os dous dias daquela fúria de fogo, por espedida mandou descarregar a nau de muitos mantimentos, que se repartiram per toda a armada e lhe foi mui bom refresco; e descarregada de quanto tinha e posto fogo, ardeu toda à vista da cidade, té onde lhe chegava a água, com a qual espedida se partiu o Almirante caminho de Cochi, onde chegou a sete de Novembro.

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236 75 246 Capítulo VI. Como el-Rei de Cananor, per meio de Paio Rodrigues, tornou a conceder as cousas que o Almirante lhe requeria; o qual recado lhe levou Vicente Sodré a Cochi, onde ele já estava, e das cousas que em sua chegada passou com el-Rei de Cochi. El-Rei de Cananor com o recado que lhe Paio Rodrigues levou do Almirante, vendo que era partido desavindo dele, teve não somente com o mesmo Paio Rodrigues grandes práticas, mas ainda com os gentios principais da terra, que não eram tam suspeitosos a nós como os mouros. E a primeira cousa que logo fez naquele dia da chegada de Paio Rodrigues, foi pedir-lhe, pela amizade que com ele tinha, se tornasse a Vicente Sodré e acabasse com ele que não partisse e se detevesse per espaço de dous ou três dias enquanto ele mandava ajuntar todolos mercadores da terra; no qual tempo esperava tomar tal assento, com que el-Rei de Portugal fosse servido e o Almirante contente. Porque, como este negócio das especearias dependia mais da vontade daqueles que andavam neste trato que da sua, e em cousa de proveito os homens eram maus de concordar - e o Almirante mui impaciente dos vagares dos mouros, e mais sendo imigos, queria que o servissem tam prestes, como se os tivesse ganhado de muito tempo por amigos - não o devia de culpar, se neste caso té então não tinha mais feito; e também as cousas de tanta importância geralmente mais se acabavam com amor que com indinação. Vicente Sodré, porque a míngua de ele não esperar aqueles dias, não se perdesse esta vontade que el-Rei mostrava (segundo lhe dezia Paio Rodrigues), esperou este tempo; em o qual teve conselho com os seus que zelavam a paz e bem do reino, e determinou-se de todo, mandando dizer ao Almirante per Vicente Sodré, que ele podia mandar carregar as naus que quisesse das sortes da especearia que lhe tinha prometido, assi e pola maneira que ele, Almirante, queria em seus apontamentos, e que a perda que nisso houvesse ele a refaria aos mercadores em os direitos que lhe haviam de pagar: porque mais estimava a amizade del-Rei de Portugal, que o acrescentamento das rendas de seu reino, posto que os oficiais de sua fazenda lho tinham contradito. E com este recado mandou a Paio Rodrigues e aos que estavam em sua companhia que se não fossem, porque ele esperava que o Almirante aceitasse sua oferta e ambos tornassem à primeira paz que tinham; e neste tempo 75v acabariam eles de desbaratar sua fazenda e fazer seu emprego, pera se poderem ir em as naus que fossem pera Portugal. 247 O Almirante, assi por razão deste recado del-Rei de Cananor, como por em algua maneira ter castigado o Samori, que eram as duas cousas que ele mais desejava, quando chegou a Cochi ia já mui confiado que não havia de achar el-Rei tam mudado como lhe tinha escrito 237 Gonçalo Gil Barbosa. E a causa por que ele, Gonçalo Gil, tinha este receo, era por estas cousas que ele contou ao Almirante, as quais ante de sua vinda estavam ordenadas. O Samori, per meio dalguns brâmanes, gente em que está a religião de todo o gentio daquelas partes, tinha convocados em sua amizade a el-Rei de Cananor e a el-Rei de Cochi, liando-se todos em nossa destruição, pera que ordenavam ua armada de mais de duzentas velas, entre naus e zambucos, com grande aparato de armas e número de gente. A qual, saindo dos portos onde cada um tinha armado a sua pera se ajuntarem todas em Calecute, Deus acudiu com um pouco temporal travessão, que deu com a maior parte destas velas à costa, com que ficaram tam quebrados que não ousaram de bolir mais com cousa algua. Porém entre eles estava ordenado, pois com as armas não podiam, que se ajudassem desta

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indústria: - ir cada um per si detendo e gastando o tempo desavindo-se em os preços da especearia, de maneira que, passada a monção da carga pera vir a este reino, forçadamente invernarem na Índia. E como as naus grandes não tinham portos pera isso, a maior parte delas haviam de vir à costa; e se metessem os navios pequenos em os rios, segundo costume da terra, tinham certo poderem logo ser queimados. Que lhe parecia que daqui procederam os modos que el-Rei de Cananor tevera com ele, em se desconcertar nos preços da especearia, e assi os recados do Samori, tudo a fim de lhe gastar o tempo. E pois era vindo a se concertar com el-Rei de Cochi, lhe pedia que fosse logo e não curasse de muitos escrúpulos com ele, e assi prouvesse na oferta del-Rei de Cananor, ante que o Samori tecesse com eles outra nova tea que o fizesse invernar na Índia, por estarem já em oito dias de Novembro. O Almirante, como já tinha experimentado parte destas cousas, bem viu que Gonçalo Gil falava como homem que tinha tenteado e sentido a tenção daqueles príncipes gentios; e porque sobre isso queria logo prover, ajuntou os capitães e principais pessoas da frota em conselho, onde Gonçalo Gil tornou a resumir o que dissera a ele, Almirante. Do qual conselho saiu espedir ele logo a Vicente Sodré com os navios da armada que haviam de ficar na Índia, mandou-lhe que andasse na paragem de Calecute té Anchediva, porque não entrasse ou saísse barco dalgum porto daquela costa, que não fosse visto per ele, e aos imigos desse o castigo que mereciam; e daqui mandasse recados a el-Rei de Cananor como ele, Almirante, ficava, tomando carga em Cochi, e que logo seria com ele. El-Rei de Cochi, neste tempo, não se tinha visto ainda com o Almirante, 248 e porque soube que andava pera entrar em seu porto ua nau de Calecute que vinha de Ceilão, a qual era de um mouro de Calecute chamado Nine Mercar, temendo que em Vicente Sodré saindo a tomasse, mandou pedir ao Almirante que não empedisse aquela nau que queria entrar naquele seu porto, posto que de Calecute fosse. Ao que o 238 Almirante respondeu que o porto e as naus eram suas, as quais estavam ao que mandasse, e que este era o principal mandado que trazia del-Rei, seu senhor; portanto que aquela e todalas mais de Calecute que ele quisesse, ainda que eram dos maiores imigos que os portugueses tinham naquela terra, elas seriam tratadas como as próprias suas. Do qual recado el-Rei ficou tam contente, que logo ordenou de se ver ao outro dia com ele, Almirante, sobre as quais vistas andava Gonçalo Gil. E porque quási foram ao modo das del-Rei de Cananor, leixaremos de particularmente tratar do aparato delas. Somente que, passadas as palavras gerais de sua vista, quando veo ao falar em o negócio do trato da especearia e preços dela, sobre que logo o Almirante quis entender, também achou el-Rei do bordo do de Cananor; donde entendeu ser certo o que lhe Gonçalo Gil tinha dito, com que se apartaram um do outro não mui contentes. Na qual espedida teve el-Rei um artifício com ele, Almirante, por lhe mostrar que não a força de palavras, mas que de sua própria vontade procedia o que nisso queria fazer; porque, indo ele, Almirante, pelo rio abaixo na caravela em que veo a estas vistas, deixando el-Rei todo o aparato com que viera a elas, somente com seis ou sete homnens principais meteu-se em um barco e veo a força de remo buscar o Almirante. E como homem confiado no que vinha fazer, meteu-se com ele na caravela e disse-lhe que ele o vira um pouco descontente 76 e que lhe parecia que isto procedia de ele, Almirante, ser mau de contentar mais que de ele ser duro em conceder; e porque ambos não ficassem infamados de malavindos, que ele se vinha meter em seu poder, e pois lhe entregava a pessoa, que entregava a vontade, que ali tinha tempo de se vingar da manencoria que trazia dele. Quando o Almirante viu a confiança com que el-Rei se meteu na sua caravela e a graça com que lhe dezia estas palavras, creo que tudo isto procedia da bondade de Deus, e que ele guiava o coração deste príncipe gentio per este modo não esperado; porque assi o descobrimento da Índia como o governo de paz e concórdia de tam bárbara gente, crêssemos vir de sua mão e não da nossa indústria. E depois que com muitas palavras agradeceu a el-Rei aquela confiança e modo de

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conceder nas cousas que lhe el-Rei, seu senhor, mandava per ele requerer, vieram assentar nos preços das especearias, de que logo fizeram solenes contratos de escritura, os quais duram até hoje. El-Rei de Cananor, tanto que soube parte destas cousas, ficou mui 249 temeroso que o Almirante não fosse mais ao seu porto, posto que per Vicente Sodré lhe mandasse recado que o havia de fazer; e isto lembrando-lhe as diferenças que teve com ele e quanta mais facilidade el-Rei de Cochi mostrou no modo de se com ele concertar, segundo lhe era dito per avisos que os mouros mercadores de Cochi mandaram aos de Cananor. E como homem desconfiado, sabendo que Vicente 239 Sodré andava sobre o porto de Calecute, ordenou de mandar dous embaixadores que fossem a ele com um português dos que estavam em companhia de Paio Rodrigues pera os encaminhar, pedindo-lhe per ua carta que desse ordem como aqueles seus embaixadores em um navio dos seus fossem a Cochi, porque os mandava ao Capitão-mor com negócio que importava muito ao serviço del-Rei de Portugal. A qual cousa Vicente Sodré fez com diligência, mandando ua caravela das suas que os levasse, e o Almirante os recebeu honradamente e tornou logo a espedir, mandando dizer per eles a el-Rei que tevesse sua ida por mui certa a Cananor, assentar as cousas que lhe mandava requerir, segundo forma do que ele tinha assentado com el-Rei de Cochi. Neste mesmo tempo, vieram a ele, Almirante, outros embaixadores, que diziam ser da gente cristã que habitava per as comarcas de Cranganor quatro léguas de Cochi, que em número seriam mais de trinta mil almas. A substância da qual embaixada era serem cristãos da linhagem daqueles que o Apóstolo São Tomé bautizara naquelas partes, os quais se governavam per certos bispos arménios que ali residiam e per meio deles davam sua obediência ao Patriarca de Arménia. E porquanto eles estavam entre gentios e mouros de que eram mal tratados, e tinham sabido ser ele capitão de um dos mais católicos e poderosos Reis da Cristandade da Europa, lhe pediam pelos méritos da paixão de Cristo, os quisesse emparar e defender daquela infiel gente que os perseguia, por se não perderem de todo aquelas relíquias de Cristandade que o Apóstolo São Tomé ali tinha, como memória dos trabalhos e martírios que ali passara. E que eles, com zelo de salvar suas almas e pessoas, se vinham entregar a ele per meio daqueles seus embaixadores, como se puderam entregar a el-Rei de Portugal, se presente fora, pois ele representava a sua; porquanto eles queriam ser governados e regidos per ele, e em sinal de obediência lhe entregavam a vara da justiça que entre si tinham. Com as quais palavras lhe apresentaram ua vara vermelha, tamanha como um cetro, guarnecida nas pontas de prata e na de cima tinham três campainhas de prata. O Almirante, depois que os ouviu, mostrando ter grande contentamento disso e assi do que lhe apresentaram, respondeu que a mais principal cousa que el-Rei, seu senhor, lhe encomendara, era que trabalhasse por ter comunicação com a Cristandade daquelas partes, por ter notícia que havia muita e mui avexada dos infiéis. Porém como ele, em chegando à Índia, com esta própria gente de infiéis tivera muito trabalho, como eles ouveriam 250 dizer, estas diferenças lhe gastaram todo o tempo, sem poder entender em outra cousa. E vendo ele que per si o não podia já fazer, por estar de caminho pera Portugal, leixava este cuidado a um capitão que havia de ficar naquelas partes com ua armada, o qual ao presente estava em Cananor com ela; e 240 a ele, quando tivessem necessidade, podiam requerer qualquer ajuda e favor, por que ele o faria com tanto amor como aos próprios portugueses que havia de leixar em Cochi e Cananor. E quanto ao que tocava a ele, Almirante, podiam ser certos que, depois que Deus o levasse a Portugal, ele representaria suas cousas a el-Rei, seu senhor, de maneira que, na primeira 76v armada, provesse como eles fossem consolados.

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Finalmente o Almirante per este modo os satisfez e lhe deu alguas cousas com que os espediu, depois que se informou do modo de sua religião e vida. E porque da Cristandade desta gente e do que se acerca deles tem de São Tomé, ao diante particularmente tratamos, e principalmente em a nossa Geografia, leixamos de o fazer aqui.

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240 76v 250 Capítulo VII. Como o Almirante per um artifício de engano que um brâmane teve com ele, foi ter ao porto de Calecute, onde passou grande risco de lhe queimarem a nau, e o que sobre isso fez; passado o qual trabalho partiu pera este reino, onde chegou a salvamento. Enquanto o Almirante passou estas cousas com estes embaixadores del-Rei de Cananor e da Cristandade de Cranganor, estava o feitor Diogo Fernandes Correa com os oficiais da feitoria que de cá iam ordenados e principalmente com Gonçalo Gil Barbosa, dando ordem à carga da especearia. O qual negócio se fazia em um recolhimento de madeira tam perto das naus, que ainda que a terra fosse suspeitosa, o sítio do lugar e favor delas os segurava de qualquer temor. E o que mais nesta parte descansava os nossos, era não haver ali aquele tráfego de mercadores de Meca como havia em Calecute, e mouros da terra eram poucos e não mui poderosos, e a povoação dos gentios cousa mui fraca, e as casas del-Rei metidas dentro polo rio; de maneira que, assi da parte da povoação dos mouros e gentios, como repairo de força que o Almirante nisso fez, tudo estava seguro pera qualquer caso que sobreviesse, segundo o estado da terra, do sítio da qual ao diante faremos maior relação. Andando o Almirante no maior fervor deste negócio de carregar as naus, veo a ele um brâmane, que entre os índios é a pessoa mais estimada por 251 sua religião, o qual trazia consigo três pessoas, dous dos quais dezia serem filho e sobrinho, e o outro seu servidor, pedindo-lhe que houvesse por bem dar-lhe licença pera vir em sua companhia ao reino de Portugal, ver o modo da Cristandade, pera mais facilmente ser doutrinado nas cousas da nossa religião. O Almirante, vendo nas suas palavras e pessoa ser homem pera estimar, e mais com tal propósito como ele dezia, o mandou agasalhar em sua nau, e certos bahares de pimenta, que dezia trazer pera sua provisão, e outra 241 fazenda de que a principal era algua pedraria de preço. Passados dous ou três dias, tendo o Almirante com ele prática, disse-lhe este brâmane que ele lhe queria descobrir a verdade da causa da sua vinda a Portugal; per ventura se o assi não fizesse a ele, Almirante, lhe pesaria de o não ter sabido em tempo. Dizendo que o Samori, seu senhor, o enviava a el-Rei de Portugal sobre concerto de pazes e preço das especearias, pera assentar com ele estas cousas de maneira que ficassem firmes e perpétuas; porquanto lhe parecia que, sendo feitas per os seus capitães, não podiam ser muito duráveis, porque cada ano vinha um, e, segundo sua condição, assi movia os partidos da paz. O Almirante lhe respondeu que, se por razão de as pazes ficarem firmes e tudo o mais que o Samori assentasse conforme ao serviço del-Rei, seu senhor, o enviava a Portugal, a ele, Almirante, parecia cousa escusada, porque os poderes que el-Rei dava a seus capitães eram tam solenes e de tanta autoridade naquelas cousas, que eles faziam segundo suas instruições, que tinham a própria força e vigor como se per ele mesmo fossem feitos. Finalmente, tanto praticaram ambos nesta matéria de paz, que veo o brâmane a dizer que, se ele, Almirante, quisesse algum tanto abrandar de seus queixumes, ele seria medeaneiro entre ele e o Samori, com que os negócios viessem a melhor estado do que estavam; e que devia querer que esta paz e concerto fosse feita ante per ele, que vir um novo capitão de Portugal e acabar isto com o Samori, e mais, pois lhe tanto amor e graça mostrara a primeira vez que com ele se viu, e tanto procurara de o livrar das mãos dos mouros seus imigos. E que em penhor desta oferta que prometia de si, não podia mais dar que sua pessoa e as de seu filho e sobrinho, que não sairiam da nau té acabar tudo, querendo tornar ao porto de Calecute. O Almirante, vendo a constância das palavras deste brâmane e a seguridade de sua pessoa,

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e confiado na entrega 77 que fazia de si e do filho e sobrinho, deu-lhe licença que fosse a Calecute dar conta ao Samori desta prática que ambos teveram; o qual não tardou muito com sua reposta, e pola mais autorizar trouxe consigo um homem que ele dezia ser naire dos principais da casa do Samori, dizendo da sua parte que era contente de pagar em especearia, por as cousas que foram tomadas no alevantamento contra Aires 252 Correa, até contia de vinte mil pardaus, moeda da terra, que da nossa são de trezentos e sessenta reais cada um. Vendo o Almirante tal recado, pareceu-lhe que este modo de vir aquele brâmane assi dissimulado, não era tanto pera vir a este reino, segundo ele dezia, como por artifício do Samori por estar já arrependido, sabendo que el-Rei de Cananor e el-Rei de Cochi estavam com ele concertados e ele ficava de fora. Finalmente o Almirante, por não perder este negócio, que lhe a ele parecia estar mui certo, encomendando a frota a Dom Luís Coutinho, capitão da nau Lionarda, 242 meteu-se em a nau Frol de la mar, capitão Estêvão da Gama, por ser mui poderosa, e, sem querer levar consigo mais que ua caravela, partiu-se pera Calecute, parecendo-lhe que podia lá achar as outras de Vicente Sodré, por haver poucos dias que per a caravela que levou os embaixadores de Cananor tinha recado dele, como ficava sobre Calecute. Peró não sabia o que lhe ali acontecera, porque se ele, Almirante, fora sabedor disso, não viera da maneira que veo sobre as palavras do brâmane. E o que Vicente Sodré tinha passado era que, havendo alguns dias que estava sobre Calecute, tolhendo que não entrasse ou saísse navio, estreitou isto em tanta maneira, que até os barcos dos pescadores que saíam a pescar perseguia com os batéis das naus. O gentio da cidade, como o principal mantimento de que se sustenta é pescado, vendo não ter modo de poder ir pescar, ordenaram ua cilada aos batéis de Vicente Sodré, lançando-lhe ao mar uns poucos de barcos dos pescadores como que iam a seu ofício. Os nossos batéis, tanto que os viram, a grã pressa foram-se a eles, os quais começaram de se recolher artificiosamente, té os meter na boca de um esteiro onde jazia a cilada. Do qual lugar subitamente saíram mais de quorenta zambucos e paraus, com tamanho ímpeto, todos remo em punho, que em breve cercaram os nossos e cobriram a todos de ua chuva de frechas, que logo naquela primeira chegada encravou muita gente. Com o qual sobressalto esteveram em muito perigo, por a multidão dos imigos e a frechada ser tanta que coalhava o ar, sem os nossos se poderem revolver com eles. Mas quis Deus que o tiro de ua caravela remediou tudo: porque foi dar o pelouro de ua bombarda no meio do cardume dos zambucos, com que arrombou o principal em que vinha o capitão de todos. Por socorrer ao qual desapressaram os nossos, com que teveram tempo de ir buscar abrigada das naus, onde eles não ousavam chegar, porque começou a artelharia delas meter alguns no fundo, que os fez recolher ao lugar donde saíram. E porque ficaram bem castigados daquele seu ardil, o 253 qual lhe não sucedeu como cuidaram, leixou Vicente Sodré o porto de Calecute e foi dar vista a Cananor, ao tempo que o Almirante chegou ali, e esta foi a causa por que o não achou. O qual, depois que espediu a caravela que dissemos em busca dele, confiado nas palavras do brâmane e em leixar tais reféns como eram o filho e o sobrinho e o naire, deu-lhe logo licença que fosse a terra com recado a el-Rei. A reposta do qual foram palavras brandas que dobraram a confiança ao Almirante, a conclusão das quais, era que ele tinha mandado chamar certos homens principais do seu reino, que haviam de ser presentes ao assentar daquelas pazes e contratos da especearia, por ficarem mais firmes; que lhe pedia houvesse por bem esperar que viessem, ca não podiam tardar dous dias. Nos quais o brâmane ia e vinha muitas 243

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vezes a terra, ora com causa, ora sem ela, fingindo necessidade disso; e quando veo ao terceiro dia, quisera per modo dissimulado levar o filho consigo, mas não o consentiu o Almirante, de que teve má suspeita. Finalmente aquela noite ele ficou em terra sem vir dormir à nau, como quem temia ser logo pago dos enganos em que andava, e apareceram ante menhã. Os quais enganos foram obra de cem paraus que no quarto de alva cercaram mui caladamente a nau do Almirante. E vinham os mouros e índios tam ousados, que começaram trepar per as cadeas das mesas da guarnição. Os nossos, que vigiavam seu quarto, quando deram rebate nos outros que dormiam, com o sono (peró que o temor muito esperta), era tamanha a confusão, que não sabiam onde haviam de acudir, porque toda a nau estava cercada, em torno, destes paraus. O qual sobressalto lhe deu muito trabalho, 77v porque não se aproveitavam da artelharia, ca lhe ficava tam alta que não podia pescar os zambucos e barcos que estavam pegados no costado da nau e somente lhe serviam bestas, espingardas e pedradas. A este tempo (como dissemos) tinha o Almirante espedido a caravela que viera em sua companhia, com um recado a Vicente Sodré, que, segundo soubera, andava sobre Cananor, o qual lhe leixara, per popa da sua nau, um parau grande que tomara, vindo ele, Almirante, de Cochi; os mouros do qual, dando-lhe esta caravela caça, se salvaram em terra. Os mouros que tinham cercado o Almirante, vendo este parau e quam animosamente os nossos defendiam a entrada da nau e quanto dano recebiam deles, quiseram-se aproveitar deste artefício que traziam, que eram dous barcos juntos com muita lenha e materiais pera quando lhe posessem o fogo se acender mais prestes, ainda que lhe acudissem com água. Os quais barcos foram amarrar ao parau que estava por popa da nau; e posto o fogo neles, começou logo lavrar tam furiosamente, que em breve se ateou a labareda pelos castelos da nau. O Almirante, quando viu tam grande perigo, não achou outro remédio mais pronto que mandar cortar as amarras, ua das quais o deteve muito; porque, temendo ele que de noite os mouros, segundo seu uso, a remo 254 surdo ou a nado, lhe viessem cortar as amarras pera lhe darem com a nau a costa, a da parte do mar todo o descoberto dela era ua grossa cadea que estava de maneira que a não pôde alargar, senão cortando a mesma cadea, que lhe deu muito trabalho. Peró como a nau se achou livre e obedeceu à vela, começou de abrir caminho per meio dos paraus dos imigos, leixando o que tinha per popa entre eles; os quais, por se livrar da labareda dele, desapressaram o costado da nau, que deu causa a que os nossos se pudessem aproveitar da artelharia. Finalmente tanto andaram aqueles infiéis perseguindo a nau às frechadas e bombardadas, té que amanheceu. No qual tempo, posto que da terra concorriam muito mais paraus, sobreveo Vicente Sodré, que com as caravelas que trazia fez tal destruição neles, que lhe conveo tornarem-se todos ao esteiro donde 244 saíram. Tanto que o Almirante se viu desapressado deste trabalho, por pagar ao brâmane a maldade que cometeu, mandou enforcar nas vergas das caravelas os três reféns que lhe leixou, andando com eles ao longo da cidade a vista de todos um pedaço, e per derradeiro os mandou meter em um parau com ua carta pera o Samori, as palavras da qual era conformes ao engano que usara per meio do brâmane. Acabado este auto de castigo, partiu-se o Almirante pera Cochi, onde chegou a tempo que estavam já as naus tam prestes que, espedido del-Rei, ordenou como o feitor Diogo Fernandes Correa ficasse seguro no recolhimento de madeira que lhe tinha feito. Ao qual leixou trinta homens e por escrivães de seu ofício Lourenço Moreno e Álvaro Vaz; e espedido deles, partiu-se pera Cananor, a dezoito de Janeiro, onde chegou. El-Rei, como já estava submetido a toda razão e aos apontamentos que lhe ele, Almirante,

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mandara sobre o contrato e preço das especearias, não houve mais detença que assinaram ambos estes contratos e receber gengivre e outras cousas que ele, Almirante, havia de tomar. E também lhe leixou ali feitoria em outra força como em Cochi, e por feitor Gonçalo Gil Barbosa e escrivães de seu cargo Bastião Álvares e Diogo Godinho, com até vinte homens. Acabadas estas cousas, partiu o Almirante de Cananor, em companhia do qual todo aquele dia veo Vicente Sodré com sua frota, té que se apartaram. Na qual viagem não fez o Almirante mais detença que quanto em Moçambique corregeu alguas naus. E peró que com tempos arribaram, todavia trouxe-o Deus a este reino a dez de Outubro, entrando pela barra de Lisboa com nove velas. Em a qual maré entraram com ele duas caravelas que vinham da fortaleza de São Jorge da Mina, e duas naus de Ourão com labéis pera o mesmo trato da Mina, e ua de Levante, chamada Nunciada, que foi das mais fermosas que se viu em toda a Europa; e assi entraram outras naus que vinham de Frandes, que fizeram esta vinda do Almirante melhor afortunada. E como 255 neste tempo el-Rei estava em Lisboa, quando foi a ele levou as páreas que houvera del-Rei de Quíloa, as quais com grande solenidade a cavalo levava em um grande bacio de prata um homem nobre em pelote com o barrete fora ante ele, Almirante, com trombetas e atabales, acompanhado de todolos senhores que havia na Corte. Das quais páreas el-Rei mandou fazer ua custódia de ouro, tam rica na obra como no peso, e como primícias daquelas vitórias do Oriente, ofereceu a Nossa Senhora de Belém, à obra da qual casa aplicou todalas presas que pertencessem a ele, e mais enquanto fosse sua mercê a vintena do rendimento dos fructos daquela conquista, com que se faziam as obras da casa.

LIVRO VII 245 78 257 Capítulo primeiro. Como o Samori, Rei de Calecute, por nossa causa fez guerra a el-Rei de Cochi, e o que sucedeu dela. Tanto que o Almirante Dom Vasco da Gama partiu da Índia pera este reino, como o Samori, Rei de Calecute, ficava mui indinado com os maus sucedimentos de seus negócios, e mais vendo crecer o estado del-Rei de Cochi e o seu deminuir depois que entrámos na Índia, determinou buscar novo modo de se vingar destas cousas, e principalmente del-Rei de Cochi. Porque não somente achava nele, em algυas cartas que sobre este feito lhe tinha escrito, υa maneira de o estimar em menos do que fazia ante da nossa entrada na Índia, mas ainda, mandando a ele alguns brâmanes pera o provocar per modo de sua religião a se conformarem ambos em destruição nossa, respondia como homem que tinha mais respeito a sua fazenda que à religião de brâmane, que ele era. O Samori, vendo que per nenhum modo de quantos cometeu o podia mover, assentou pubricamente de ir contra ele com mão armada, pera que já tinha mandado fazer alguns aparatos de guerra, simulando que eram contra nós, e isto ante da partida do Almirante, dos quais el-Rei de Cochi era avisado, e disso tinha dado conta ao mesmo Almirante. Ao qual ele esforçou muito com a armada de seu tio Vicente Sodré, que ficava pera o mais do tempo do verão andar naquela costa em favor seu e destruição do Samori, 258 a que 246 ele mandava que fosse feito tanto dano, que em se defender teria assaz trabalho. Com as quais esperanças e penhor tam principal como era o feitor e oficiais que ficavam em seu poder el-Rei se animou muito. Contudo, como esta guerra que o Samori lhe queria fazer era toda per terra, nunca os nossos lhe puderam empedir os aparatos dela; pera a qual ajuntou cinquenta mil homens em um lugar chamado Panane, dezasseis léguas de Cochi. E posto que a todolos seus capitães e a Nambeadari, seu sobrinho, tinha dito a causa daquele ajuntamento naquele lugar, por se justificar naquele movimento de guerra lhe fez υa fala, a resolução da qual estava em três pontos: na obrigação que tinha de fazer pelas cousas dos mouros, e no dano que eles e ele tinha recebido de nós, e na pouca obediência que lhe el-Rei de Cochi tinha, sendo ele Samori do Malabar, e tudo com favor de nossas armas. O qual arrazoamento foi mui louvado de todolos seus caimais, e aprovaram ser mui justa a guerra que queria fazer a el-Rei de Cochi; e quem mais acendia o fogo dela era o mouro Coje Cemeceri, que foi causa da morte de Aires Correa com outros de sua valia. E sobre eles com mais autoridade era Nambeadari, senhor da comarca Repelim, que está ao pé da serra, a qual comarca é um posto donde se colhe a melhor pimenta de toda aquela costa. O qual não contradizia tanto nossas cousas por ódio que nos tivesse, quanto polas compitências que tinha com el-Rei de Cochi, dizendo pertencer-lhe a ele o seu reino. E vendo o Príncipe Nambeadari, que era herdeiro de Calecute, que todos indinavam o Samori, mais por lhe comprazer que por bem aconselhar, favorecido dalguns que estavam na verdade, disse que ele era em contrairo parecer, porque, como aquelas indinações contra el-Rei de Cochi procediam da nossa entrada na Índia, o discurso das cousas 78v passadas mostravam quam injusto era aquele presente movimento. Porque ele vira entrar os portugueses na Índia com υa embaixada a ele, Samori, oferecendo paz e amizade de seu Rei, ouro, prata e mercadorias, de que aquela terra tinha necessidade, a troco de pimenta que sobejava nela, os

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quais, per induzimento dos mouros, logo foram dali maltratados. Depois, na segunda armada, vindo poderosos e ricos do que prometeram, não se teve com eles o pacto que lhe concederam per entrada, e por lhe ser mandado maliciosamente tomaram a nau dos elefantes e a outra que estava à carga, e não de seu próprio moto. No qual tempo, se fizeram dano na terra foi em defensão de suas vidas, fazendas e satisfação da injúria que lhe foi feita - cousa natural aos brutos, quanto mais aos homens. Foram a Cochi, acharam paz, verdade e gasalhado, 259 repousaram ali, porque onde os homens acham estas cousas fazem natureza, posto que estrangeiros sejam; e se os el-Rei de Cochi agasalhou, acerca do comum 247 parecer dos homens, nisso tinha ganhado o que o reino de Calecute perdeu e cada um sentia em sua casa. Quanto mais, se o ele não fizera, grande era a Índia; e se com cada um daqueles que os podera agasalhar, ele, Samori, houvera de tomar questão, isto era contender com todolos homens, porque todos recolhem em sua casa quem lha enche de tanta substância quanta os portugueses traziam em suas naus. E porque ele não via naquele negócio da guerra, que sua Real Senhoria começava, algum fim proveitoso pera o reino de Calecute e tudo parava em desejo de vingança, propunha o que tinha dito, não por se escusar de ser o dianteiro em castigar el-Rei de Cochi, mas porque temia que o seu castigo caísse sobre a cabeça dos filhos de quantos ali estavam, por ver que os seus vingadores haviam de ser os portugueses, que cada ano dobravam em naus, gente e armas. O Samori, peró que algum tanto ficou comovido com estas palavras do Príncipe, era já tamanho o ódio que tinha a el-Rei de Cochi, e havia tantos que o indinavam mais, que assentou de todo no que estava determinado. El-Rei de Cochi per alguns amigos que tinha em Calecute soube parte desta determinação do Samori, e logo com muita diligência começou de se aperceber, e não com pouco clamor do povo, porque no aparato da guerra que trazia o Samori bem viam ser a todos υa certa destruição. Do qual caso tinham grande indinação contra el-Rei de Cochi, vendo que aventurava perder seu estado e a vida de todolos seus por defensão dos portugueses que ali estavam, pois o Samori não queria mais satisfação dele, que fazer-lhe entrega deles, com que ficariam amigos. Das quais murmurações os nossos eram sabedores; e segundo o povo andava indinado, tanto temiam já a ele como aos aparatos do Samori, e muito mais depois que, estando ele em Repelim, que serão até quatro léguas de Cochi, mandou grandes amoestações a el-Rei de Cochi, chamado Trimumpará, e a todolos príncipes e brâmanes, requerendo-lhe que fizessem entrega dos portugueses, protestando per todas suas religiões, serem homicidos em todalas mortes e danos que sobre este caso viessem. Porque obravam tanto estas amoestações e escomunhões de sua religião com os primeiros infortúnios que el-Rei de Cochi teve em algυas vitórias que, o Samori houve dele, que a maior parte dos príncipes do seu reino o leixariam, passando-se ao Samori. Entre os quais foi Cam de Bagadari, senhor de Porcá, e o Mangate Caimal e seu irmão Nambeadari, o Caimal de Cambalu, o Caimal de Cheriavaipil 260 e os cinco Caimais da terra a que eles chamam Anche Caimal, que deram entrada por sua terra, pera que o Samori passasse à de Cochi, por esta ser a ela mui vezinha. Na qual passagem Trimumpará pelejou animosamente enquanto os seus o não leixaram, e por defender esta passagem, que era per um vau, lhe mataram três sobrinhos a que eles chamam príncipes por sucederem no reino; um dos 248 quais, chamado Narmuhi, que era o herdeiro, fez grande míngua na terra, por ser mui excelente cavaleiro, e tanto que foi morto, morreu a esperança do povo. O qual povo andava tam descontente dos nossos pela constância que el-Rei tinha de os não querer entregar, que temendo ele que poderiam receber algum dano dos seus, ou que ele ficaria desemparado de todos, trazia-os sempre em sua companhia. Finalmente o Samori, com o grande poder da gente que tinha, tornou segunda vez entrar a

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Ilha de Cochi, com que conveo a el-Rei passar-se a outra Ilha de Vaipi, por ser mais defensável, e principalmente por acerca deles ter υa religião como acerca de nós tem os lugares sagrados, que quem se a eles acolhe está seguro de receber algum dano de seu imigo. No qual recolhimento não levava já pessoa notável 79 que o quisesse seguir, senão o Caimal do próprio Vaipi, que sempre o serviu nestes trabalhos com muita lealdade; e dos nossos que andavam com ele se leixaram ficar com o Samori dous cristãos naturais da Esclavónia. Os quais, indo deste reino na armada do Almirante em lugar de marinheiros, leixaram-se ficar com os nossos em a feitoria, simulando que eram lapidairos, sendo seu próprio ofício bombardeiros e fundidores de artelharia, que foram depois causa de grande trabalho aos nossos, e muito maior ao Samori polos defender. E se é verdade (o que se não deve crer de υa tam ilustre Senhoria como é a de Veneza), eles a quiseram infamar, dizendo depois que per seu meio foram ter àquelas partes pera usar aquele ofício de fundir a artelharia em nosso dano.

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248 79 261 Capítulo II. Como el-Rei Dom Manuel o ano de quinhentos e três mandou à Índia nove naus repartidas em três capitanias, de que eram Capitães-mores Afonso de Albuquerque, Francisco de Albuquerque e António de Saldanha; e como Vicente Sodré se perdeu e dalgυas cousas que os Albuquerques fizeram por restituir a el-Rei de Cochi no que tinha perdido na guerra que lhe fez o Samori. Estando el-Rei Trimumpará de Cochi com os nossos neste estado de tanto trabalho, e postos nas grandes necessidades que os cercados tem, e principalmente de mantimentos, que era guerra de todo o dia, chegou Francisco de Albuquerque, filho de João de Albuquerque, com seis velas, três com que partira deste reino por capitão e as outras da armada de Vicente Sodré. E porque no mesmo ano de três em que ele partiu, partiram outras seis velas, daremos razão de todas e do modo como se repartiram, pois todas foram a tempo que restituíram a el-Rei de Cochi e seguraram a vida dos nossos que com ele estavam. El-Rei Dom Manuel, porque o negócio desta conquista e comércio da Índia cada ano com as armadas que de lá eram vindas, 249 descobria o que convinha pera melhor proceder nele, ordenou de mandar este ano de quinhentos e três nove naus repartidas em três capitanias, as seis pera virem com carga de especearia, e as três pera andarem na boca do estreito do Mar Roxo, esperando as naus dos mouros de Meca, com que tínhamos guerra. Das primeiras três naus era Capitão-mor Afonso de Albuquerque, filho de Gonçalo de Albuquerque, senhor de Vila Verde, e os dous capitães da sua bandeira eram Fernão Martins de Almada, filho de Vasco de Almada, alcaide-mor que foi desta vila, e Duarte Pacheco Pireira, filho de João Pacheco; e os dous capitães da conserva de Francisco de Albuquerque eram Pero Vaz da Veiga, de Montemor-o-Novo, e Nicolau Coelho, que foi no descobrimento com Dom Vasco da Gama. Estas seis velas eram as que haviam de trazer carga de especearia. E posto que Afonso de Albuquerque partiu primeiro a seis de Abril e Francisco de Albuquerque a catorze, ele foi o derradeiro que chegou à Índia. O outro capitão pera andar de armada na boca do estreito era António de Saldanha, filho de Diogo de Saldanha, e com ele um cavaleiro da casa del-Rei, per nome Rui Lourenço Ravasco, e Diogo Fernandes Parreira, de Setúval, que, por ser homem mui usado no mar, ia também por mestre da nau. 262 Da viagem do qual António de Saldanha em seu lugar faremos relação, por continuarmos com Francisco de Albuquerque, dando primeiro razão dos navios de Vicente Sodré, que ele topou na costa da Índia bem perdidos, e assi o navio de António do Campo, que, como atrás vimos, se perdeu à ida da conserva do Almirante. Vicente Sodré, segundo atrás fica, partido o Almirante da Índia, junto de Cananor se apartou dele, ficando com regimento que andasse enquanto o tempo lhe desse lugar na costa do Malabar em favor de Cananor e Cochi, fazendo a guerra ao Samori, na entrada e saída das naus de Calecute. E quando o tempo lhe não servisse pera andar naquela costa, que é no inverno, fosse andar na boca do estreito do Mar Roixo, fazendo guerra às naus de Meca, o qual regimento ele cumpriu té se perder. A primeira cousa que fez: foi aos ilhéus de Santa Maria, tomando quatro naus de Calecute, as quais trouxe a Cananor, onde 79v foram descarregadas do arroz e mantimentos que levavam, fazendo entrega de tudo ao feitor

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Gonçalo Gil Barbosa, e os mouros que nelas vinham deu a el-Rei de Cananor, a seu requerimento, por haver ali muitos que eram parentes dalguns que viviam em Cananor, a qual cousa el-Rei estimou em grande honra. E neste tempo, quási em satisfação desta obra, el-Rei o avisou do que o Samori movia contra el-Rei de Cochi, com o qual recado ele se partiu logo pera Cochi, e de caminho tomou três zambucos que vinham das Ilhas de Maldiva, a que pôs fogo por saber serem de Calecute. Chegado a Cochi, entregou a presa deles ao feitor e viu-se com el-Rei, dizendo-lhe que 250 era ali vindo ao que mandasse dele, pola nova que tinha dos grandes apercebimentos que o Samori fazia pera vir contra o seu reino. El-Rei com palavras de muito agradecimento estimou aquela sua vinda, dizendo ser verdade o que se dezia, mas como era no princípio do inverno, em que o Samori não havia de mover senão passado ele, era escusada sua presença, que bem poderia dar υa vista à costa da Arábia, pera onde dezia que estava de caminho, e quando em boa hora tornasse, seria ao próprio tempo que o Samori movesse, se adiante houvesse de proceder no que tinha começado. Espedido Vicente Sodré del-Rei, foi ter à Ilha Socotorá, onde fez sua aguada, e dela se passou ao Cabo de Guardafu, que é a mais oriental terra que tem a parte de África, e deste cabo atravessou a costa de Arábia por ser mais seguida das naus que da Índia iam ou vinham do estreito do Mar Roixo, em a qual paragem tomou algυas de Cambaia com roupas, e outras de Calecute com especearia, que todas iam pera o Estreito. E porque ele andou ali obra de dous meses e os ponentes, que eram Abril e Maio, começaram ventar, conveo-lhe buscar algum abrigo, o qual foi υa enseada vezinha às ilhas a 263 que chamam Curiá Muriá, e isto per conselho de dous mouros pilotos, com fundamento que, como viesse Agosto, de se fazer na volta da Índia por já ser passado o inverno. Com o qual fundamento, entrado nesta enseada, acudiram logo à ribeira do mar uns poucos de mouros a que eles chamam baduís, cuja vida é pastorar gado e andar no campo ao modo que dizemos que andam os alarves. E posto que no princípio teveram algum receo dos nossas, depois que gostaram do bem que lhe faziam, dando-lhe panos, arroz e outras cousas que entre eles não havia, fizeram-se tam familiares a eles, dando-lhe carneiros a troco de suas necessidades, que se chegaram com mulheres e filhos à praia do mar a fazer algυa pescaria com que se mantém boa parte do ano. E havendo perto de um mês e meio que ali estavam, como estes baduís tinham conhecimento de um certo temporal que às vezes ali sobrevém, deram aviso aos nossos, aos quais, parecendo ser isto modo de os lançar dali, por se dizer que haviam de passar per aquela costa certas naus de Ormuz, leixaram-se estar, té que a custa de seu dano verem que os mouros lhe diziam verdade. Porque foi tal o tempo, que se perdeu Vicente Sodré com a maior parte da gente, e assi se perdeu o navio de Brás Sodré, seu irmão, e os outros milagrosamente escaparam. Cessando o qual tempo, se fizeram à vela caminho da Índia, onde vieram ter, quando Francisco de Albuquerque os topou; e com eles também se ajuntou António do Campo, capitão dum navio que se perdeu da armada do Almirante, e foi invernar na costa de Melinde, em υas ilhas, sem saber onde estava, meio perdido. Francisco de Albuquerque, como ia mui inteiro com mantimentos e cousas 251 do reino, recolhidos estes navios, proveu-os do necessário, principalmente os da armada de Vicente Sodré, que era muita gente morta a fome e sede, com os quais foi ter a Cochi, onde achou el-Rei quási tam perdido na Ilha de Vaipi. E o primeiro conforto que lhe deu foi apresentar-lhe o que lhe el-Rei Dom Manuel mandava, que era muitas peças ricas pera o serviço de sua casa, ao modo dos príncipes de Espanha, e com elas lhe disse as palavras que havia mister um príncipe que tinha passado tantos trabalhos, nos quais mostrou a lealdade e amor que connosco tinha. E pera restituição de seu estado, lhe ofereceu as naus e gente que ali vinha, e as outras que já eram ante dele partidas do reino, prometendo-lhe não se partirem té o não leixar em posse de suas terras com vitória de seus imigos, porque el-Rei Dom Manuel, seu

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264 senhor, nenhυa outra cousa lhe mais encomendava que trabalharem nas cousas de seu estado, como em o seu próprio. Que não ser ajudado de Vicente Sodré, segundo tinha sabido, sua Real Senhoria era a causa, pois o espedira ao tempo que se viera oferecer a ele; e como o mar pode mais que a vontade dos homens, 80 o empediu de maneira que se perdeu, como saberia. El-Rei, depois de lhe gratificar estas cousas, como tinha mui viva a dor, logo começou a praticar no modo de sua restituição, dizendo que assi a honra dele, capitão, pois tinha tam nobre gente consigo, como a bem da carga das naus, convinha que a Ilha de Cochi fosse logo despejada. O que Francisco de Albuquerque compriu pela ordenança del-Rei, polo mais comprazer, saindo logo em seus batéis em terra, com que a custa da vida de muitos do Samori, que estavam em guarda, como dos revéis a el-Rei, não somente despejou todo Cochi, mas ainda a Ilha Cheravaipil, em que o capitão Nicolau Coelho per sua própria mão matou o Caimal dela, e toda a terra tornou a obediência del-Rei. Depois fez Francisco de Albuquerque algυas entradas com os capitães das naus, indo já mais dentro per os rios os e esteiros com que toda a terra é retalhada a modo de leziras, destruindo e queimando muitos lugares do senhor de Repelim, em que houve honrados feitos, a custa do sangue dos nossos e com morte de quatro. Francisco de Albuquerque, como viu el-Rei alegre e satisfeito destas cousas que se faziam em sua restituição, por levar recado del-Rei Dom Manuel pera isso, falou-lhe em se ordenar υa fortaleza, dizendo que υa das principais causas de ele e os portugueses terem recebido tanto trabalho na defensão de suas pessoas, fora não terem algum recolhimento forte, que se pudessem defender ao ímpeto do Samori. E pois o passado aconselhava ao presente, era necessário que sua Real Senhoria desse um lugar e mandasse cortar madeira pera fazerem υa fortaleza, em que os portugueses que ali haviam de estar tevessem onde recolher suas pessoas, e as mercadorias pera compra da pimenta; porque, da maneira que a terra 252 então estava, de dia se não podiam vigiar as cousas, quanto mais de noite. El-Rei, como viu ser o requerimento justo e necessário pera o negócio e maneo do trato, mandou logo dar aviamento a tudo, começando a qual obra chegou Afonso de Albuquerque sem fazer causa que o detivesse no caminho, somente tempos contrairos. Com a vinda do qual se repartiu logo o trabalho, porque a Francisco de Albuquerque ficou o aviamento de dar carga às naus, e ele tomou sobre si o fazer da fortaleza; e por a singular devação que tinha no Apóstolo Santiago, por ele ser cavaleiro de sua Ordem e a nau em que ia se chamar do nome deste Apóstolo, houve a fortaleza nome Santiago, a qual se fundou onde ora está a casa do Armazém da ribeira, e assi fundou υa igreja do orago de São Bartolomeu no próprio lugar onde ainda está. Parece que aprouve a Deus que ele fosse autor destas duas obras: υa 265 espiritual, que foi a fundação da igreja, e outra temporal - da fortaleza, nesta tomando posse por parte do reino e na outra por parte da Igreja Romana. As quais, porque foram de madeira, podemos dizer serem cimbres das outras de pedra e cal que ele fundou em Goa, Malaca e Ormuz, principais cabeças dos reinos e estados da Índia de que temos posse, como veremos em seu lugar. E porque a nova que achou das entradas que Francisco de Albuquerque fez o encitaram com υa virtuosa enveja, desejando de se ver em outros tais feitos, praticando com ele e com os outros capitães, ajuntaram obra de quinhentos homens nos batéis das naus e paraus que tinham tomado aos imigos, determinando irem dar em Repelim, do senhor da qual el-Rei de Cochi tinha recebido muito dano. Peró esta ida não foi assi tam leve como parecia no princípio àqueles que foram espias da terra; porque o senhor da Repelim tinha consigo passante de dous mil homens, todos naires e gente

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destra em pelejar, e também muitos paraus e artelharia del-Rei de Calecute, como quem temia que o fossem vesitar. Contudo aprouve a Deus que os nossos entraram e queimaram o lugar, com a qual vitória el-Rei de Cochi ficou mui contente, porque deste senhor de Repelim desejava tomar crua vingança. Depois fizeram outra grande entrada per os rios acima, seis léguas contra Repelim, em que Afonso de Albuquerque se houvera de perder: porque, como andava desejoso de fazer por si algυa cousa, e eles partiram de noite pera que, em rompendo a lυa, dessem no lugar, adiantou-se tanto de Francisco de Albuquerque, que teve tempo pera dar em um lugar. O qual estava tam apercebido, que logo à saída, ante-menhã, lhe mataram dous homens e feriram vinte, e depois que esclareceu, que a terra foi apelidada, acudiu tanto gentio, que pareciam gralhas que deciam das árvores, por trazerem entre si υa maneira de se chamar a que eles chamam cuquiada, que não determinavam os nossos a que parte havia mais. Os 253 quais assi 80v eram leves e ousados em cometer com suas espadas e adargas, que primeiro os achavam entre as pernas por as decepar, do que os nossos os podiam ferir. Outros com frechas cobriam o ar, apertando tanto com Afonso de Albuquerque, que começou a sua gente de se ir retraindo pera os batéis, sem a ele poder entreter. O qual retraimento lhe deu a vida, porque chegado junto deles em um escampado, onde os índios começaram de se derramar por lhe tomarem a embarcação, varejou à artelharia que vinha neles de maneira que, não somente os fez afastar, mas ainda chamou a Francisco de Albuquerque, que não era passado. Per os quais tiros conhecendo que pelejava, chegou a tempo que o tirou daquela afronta em que se houvera de perder; porque além desta em que os da terra o tinham posto, eram chegados trinta e três paraus de Calecute e andavam todos tam azedos e favorecidos 266 uns dos outros, que não se podia ele valer per mar nem per terra. Peró, chegado Francisco de Albuquerque com os capitães Duarte Pacheco, Pero de Taíde e António do Campo, não somente foi ele livre do perigo em que estava, mas ainda poseram os imigos em fugida, no qual alcanço pereceram muitos deles. E da volta que fizeram foram à Ilha Cambalão, que era de um vassalo del-Rei dos rebelados, e, leixando Duarte Pacheco à entrada de υa ponta de terra soberba sobre o rio, donde à vinda os imigos lhe podiam fazer muito dano, repartiram-se eles pela ilha, e não tam apartados, que não se podesse ajudar uns aos outros, com o qual modo atalharam toda a ilha, em que mataram mais de setecentos índios. Duarte Pacheco, por ver que o lugar onde o leixaram estava já seguro pera os nossos batéis poderem tornar sem perigo, deu em υa povoação, que destruiu, onde matou muita gente, e di foi-se ajuntar com os outros capitães. Os quais vindo já todos caminho pera Cochi mui contentes com a vitória daquele dia, de um estreito que de través dava naquele principal rio, lhe saíram obra de cinquenta paraus de Calecute, que os meteu em grande trabalho; porque, como chegavam folgados e eles vinham sem suspeita do caso, e mui cansados e alguns feridos, teveram assaz que fazer em se desempeçar da primeira fúria. Porém depois que passou aquele ímpeto que os imigos traziam, e começaram sentir a indinação dos nossos, voltaram as costas; e valeu-lhe não ficarem ali todos meter-se per um esteiro tam baixo, que não poderam nadar os nossos batéis; à qual vitória ajuntaram as outras que traziam, que dar nove grande prazer a el-Rei de Cochi, quando chegaram a ele. E porque, pera leixarem estas cousas do estado da guerra postas em termo que podesse haver carga da especearia, era necessário fazer algυa demora, ordenaram de carregar a António do Campo, pera vir diante dar nova a el-Rei da perdição de Vicente Sodré e das 254 vitórias que tinham havido do Samori de Calecute, o qual António do Campo a salvamento chegou a este reino, a dezasseis de Julho de mil e quinhentos e quatro.

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254 80v 267 Capítulo III. Como a Rainha de Coulão mandou pedir aos capitães que fossem duas naus tomar carga ao seu porto. E da paz que o Samori fez com eles, a qual logo quebrou e tornou à guerra; por a qual causa Duarte Pacheco ficou com a sua nau e duas caravelas em guarda de Cochi; e do que os outros capitães passaram, vindo pera este reino. Com estas cousas da guerra, posto que el-Rei de Cochi trabalhava por se dar carga às naus, fazia-se mui trabalhosamente, porque, se iam quatro tonéis per esses rios e esteiros em busca dela, era necessário irem outros tantos batéis em sua guarda, de maneira que não havia quintal de pimenta que não custasse sangue. Mas sobreveo caso que nisso ajudou muito aos nossos, e foi mandar a Rainha de Coulão e seus governadores oferecimentos aos capitães, que lhe dariam carga a duas naus, com o qual assentaram os capitães que fosse lá Afonso de Albuquerque carregar as suas. E ainda por comprazer a el-Rei de Cochi, quiseram eles que fosse isto por sua vontade, e que a Rainha lhe mandasse pedir esta licença. Chegado Afonso de Albuquerque 81 a Coulão buscar esta carga, foi mui recebido e festejado dos governadores da terra e assentou trato com eles ao modo de Cochi, e que ficasse ali um feitor, pera que ordinariamente cada ano virem tomar carga duas ou três naus, segundo a novidade fosse. Por razão do qual concerto leixou por feitor António de Sá, de Santarém, Rui de Araújo e Lopo Rabelo por escrivães, com obra de vinte homens pera guarda da feitoria, que foi υa casa que lhe os governadores da terra ordenaram; e com isto acabado e sua carga feita, se tornou a Cochi. O Samori, enquanto Afonso de Albuquerque esteve tomando esta carga, foi avisado disso, e vendo que lhe aproveitavam pouco seus paraus armados, pera que a pimenta não viesse a Cochi, pois fora dele em tam poucos dias achávamos carga, e que a canela, cravo, massas e outras drogas da parte donde vinham ao seu reino podiam vir às nossas mãos, e gengivre bastava Cananor, com que tínhamos amizade, tenteando estas cousas e as passadas que lhe tinham custado tanto, converteu a indinação a regras de prudência - querer ante segura paz que guerra tam danosa como era a que tinha connosco. Sobre o qual propósito mandou certos embaixadores a Francisco de Albuquerque, movendo-lhe contrato de pazes, que lhe foram concedidas com estas condições: que havia de dar mil e quinhentos bahares 255 de pimenta pola fazenda que fora tomada na morte de Aires Correa, e mais que mandasse logo despejar seus portos dos navios, naus e paraus de suas armadas, pera as nossas 268 naus poderem ir tomar carga, e que os dous bombardeiros que se lançaram com ele que os entregasse. Feito este concerto, a primeira cousa que se nisso fez, foi ir Duarte Pacheco a Cranganor a receber os mil e quinhentos bahares de pimenta, parte da qual trouxe e veo baldear em a nau de Francisco de Albuquerque. E tornando lá outra vez com Nicolau Coelho, por lhe ser prometido que lhe dariam carga pera ambas as naus, não acharam o recado segundo a esperança que levavam, porque el-Rei estava já arrependido por razão dos bombardeiros, pola entrega dos quais Francisco de Albuquerque apertava. Finalmente, como ele desejava ter algυa pequena causa de quebrar o contrato das pazes, sucedeu cousa que veo descobrir esta sua tenção, e foi esta: Indo um batel destas duas naus per um esteiro acima, onde lhe tinham dito que fosse a receber pimenta, encontraram um parau que vinha carregado dela, o qual parece que foi lançado

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àquele propósito; porque, querendo os nossos receber a pimenta, sobre a entrega dela vieram uns e outros às armas, na qual revolta os nossos mataram seis homens do parau e feriram outros, e eles também vieram sangrados dela. A qual cousa tanto que o Samori soube, como quem esperava por isso, mandou logo cerrar todolos portos; e sem pedir restituição nem se aqueixar daquele dano, tornou à guerra. Peró como os nossos já a este tempo estavam quási carregados, toda esta fúria fundiu pouco pera empedir a carga da pimenta, que era o principal intento seu; e quebrou em aparatos e novos apercebimentos pera fazer guerra a el-Rei de Cochi. O qual, vendo que com a vinda daqueles dous capitães pera este reino ele tornava a ficar no próprio perigo e trabalho de que saíra, e que o coração dos revéis que tornavam a sua obediência com a chegada deles, capitães, não estava ainda muito fiel, posto que ficasse casa da feitoria na fortaleza que fizeram, os que nela ficassem mor cuidado lhe havia de dar defendê-los da indinação do seu povo, do que lhe podiam dar de ajuda. Revolvendo estas e outras cousas em seu ânimo, bem afligido com temor delas, deu disso conta a Afonso de Albuquerque e a Francisco de Albuquerque, pedindo-lhe que, por serviço del-Rei de Portugal, seu irmão, pois ele tam lealmente defendia suas cousas té oferecer a vida por elas e perder todo seu estado, consultassem entre si como ali ficasse algum deles com mais gente da que ficava ordenada feitoria; porque, como viam, ele esperava de se ver em maior necessidade, segundo tinha sabido per pessoas que trazia em casa do Samori. Sobre o qual negócio, depois que os capitães consultaram, se assentou com ele que em sua ajuda ficaria o capitão Duarte Pacheco, com a sua nau, e Pero Rafael e Diogo Pires, capitães das duas caravelas, debaixo de sua 256 bandeira com cem homens; e além dos ordenados, ficariam na fortaleza outros cinquenta, tudo tam artelhado e provido, que poderiam resistir ao poder do Samori, e ainda esperavam em Deus que lhe haviam de ir fazer muito dano dentro no seu porto de Calecute. 269 El-Rei, vendo que eles depois de sua chegada té aquele tempo sempre trabalharam por o restituir em seu estado com tanto perigo e sangue derramado ante seus olhos, e que em ficar aquela nau 81v e dous navios, era o mais que lhe podiam fazer, ficou satisfeito. Finalmente, assentado este negócio, Afonso de Albuquerque se partiu de Cochi; e, passando per Cananor a tomar gengivre, di se partiu via deste reino, onde chegou a salvamento. A qual boa fortuna não aconteceu a Francisco de Albuquerque, porque, não se podendo fazer tam prestes como ele, partiu o derradeiro dia de Janeiro de quinhentos e quatro; e ou que por partir tarde, ou porque assi estava ordenado de cima, ele e as outras naus de sua companhia se perderam sem se saber como nem onde, porque não escapou quem o contasse. Somente parece que se perderam em os baixos de São Lázaro, onde se também perdeu Pero de Taíde que vinha em sua companhia, segundo ele disse, o qual se salvou com a gente, e foi ter a Melinde, e ali achou Lopo Soares, como veremos adiante, algυa gente sua, e ele faleceu de doença.

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256 81v 269 Capítulo IV. Do que António de Saldanha e dous capitães obrigados a sua bandeira passaram depois que partiram deste reino o ano passado de quinhentos e três; depois da partida dos Albuquerques té chegarem a Índia. Pois temos dito o que fizeram estes dous Capitães-mores - Afonso de Albuquerque e Francisco de Albuquerque - os quais partiram deste reino o ano de mil quinhentos e três, ante que saiamos do ano, convém fazermos relação do que passou António de Saldanha, que era o terceiro Capitão-mor. O qual partindo do reino depois deles, por ir ordenado pera andar de armada fora das portas do Estreito de Meca, entre as duas costas a do Cabo Guardafu e da Arábia; e foi sua ventura que levava um piloto que deu com ele na Ilha de São Tomé, não indo já em sua companhia a nau de Diogo Fernandes Pereira, e daqui o levou aquém do Cabo de Boa Esperança, afirmando-se que o tinha dobrado. Ao qual lugar, por razão da aguada que ali fez, se chama hoje Aguada de Saldanha, mui celebrada em nome acerca de nós, não tanto por esta e outras que alguns capitães aqui fizeram, quanto por 270 causa de muita fidalguia que a mãos da gente desta terra aqui pereceu (como se verá em seu lugar). A qual gente logo nesta chegada de António de Saldanha mostrou ser atreiçoada 257 e pera não confiar dela; porque, trazendo a António de Saldanha υa vaca e dous carneiros, no modo de dar e tomar com os nossos; na segunda vez que António de Saldanha saiu em terra, sobre υa vaca lhe tinham armado υa cilada de obra de duzentos homens, com que o próprio António de Saldanha correu risco de sua pessoa, por acudir a um homem, e não escapou dos negros, senão ferido em um braço. E ante que houvesse esta rotura com os negros, porque a terra lhe pareceu despovoada e não sabiam em que paragem eram, e a nau de Rui Lourenço já não era com ele, por se apartar com um temporal ante que chegasse a esta aguada, subiu-se António de Saldanha em um monte, per cima mui chão e plano, ao qual ora chamam a Mesa do Cabo de Boa Esperança, donde viu o rosto do cabo e o mar que ficava além dele da banda de Leste, onde se fazia υa baía mui penetrante, no fim da qual, per entre duas serranias de altos rochedos, a que ora chamam os Picos Fragosos, vertia um grande rio que parecia trazer o seu curso de mui longe, segundo era poderoso em águas; por os quais sinais vieram em notícia ser aquele o mesmo Cabo de Boa Esperança, e com o primeiro tempo que lhe serviu o passaram, fazendo sua viagem já mais confiados. Rui Lourenço, com o temporal que teveram, apartado dele, foi ter a Moçambique, e como o não achou nem em Quíloa, onde o esperou vinte dous dias, partiu-se dali, e à saída do porto tomou dous zambucos com alguns mouros que entregou a el-Rei, por serem de Mombaça. E di se foi à Ilha de Zenzibar, que é aquém de Mombaça vinte léguas, e tam pegado à terra firme que as naus que passarem per entre elas hão-de ser vistas. Onde, por este ser um canal da navegação daquela costa, se leixou estar obra de dous meses, em que tomou mais de vinte zambucos carregados de mantimentos da terra; no fim do qual tempo, rodeando a ilha per fora, foi ter ao porto da cidade Zenzibar, donde a ilha tomou o nome, em que estavam algυas naus surtas e muitos zambucos. Na qual chegada, por ser quási sol posto, não teveram mais tempo pera saber da terra, que verem recolher-se os navios pequenos, pondo as proas nela, 82 e tudo com mostras que não haviam de ser bem hospedados, principalmente com as gritas que davam de noite. Té que, em amanhecendo, veo um recado do senhor da terra ao capitão, no qual lhe

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mandava perguntar se era aquele que andava roubando os navios que vinham com mantimento pera aquela cidade sua; e sendo, ele lhe perdoaria o dano que tinha feito, contanto que lhe desse a artelharia e cousas tomadas. Ao que Rui Lourenço respondeu que ele era vassalo del-Rei de Portugal, enviado em companhia de outras naus de que se apartara com um temporal; e porque em todolos portos da comarca daquela ilha nunca achou o que geralmente se dá a todolos homens mantimento e o necessário por seu dinheiro - ante achara muita bombardada 271 e frechada, ele, em defensão 258 de sua pessoa e por emenda do que lhe era feito, faria o que fazem os ofendidos. Porém leixadas as ofensas alheas, lhe pedia que folgasse de o agasalhar, e per ele aceitasse a amizade del-Rei de Portugal, seu senhor, como o tinham feito alguns reis e senhores seus vezinhos e outros da Índia, com a qual seus estados eram postos em paz e em mais riqueza e poder do que ante tinham. El-Rei (que assi se intitulava o senhor desta cidade Zenzibar) como homem não experimentado em nossas cousas, não somente fez pouca conta deste recado de Rui Lourenço, mas ainda mandou poer em ordem os paraus que ali estavam pera vir tomar a nau. Os nossos, havido conselho sobre este caso, ordenaram que, primeiro que os paraus viessem, que fosse a eles o batel dela com obra de trinta e cinco homens, em que iam dous criados del-Rei: a um chamavam Gomes Carrasco, que era escrivão da nau, e o outro Lourenço Feo, homens desejosos de ganhar honra, os quais cometeram os paraus e um e um, com morte dalguns mouros, trouxeram quatro a bordo da nau. El-Rei, como a este tempo tinha já apelidada a terra, quis na praia dar υa mostra de até quatro mil homens, dos quais era capitão um filho seu. Rui Lourenço, vendo a multidão deles, porque esperava de se ajudar bem com artelharia, armou dous dos seus zambucos e o batel com a meúda que podiam levar e gente destra, e pôs rostro na terra, a que logo acudiram os mouros, apinhoando-se todos onde lhe pareceu que os nossos queriam sair. O qual ajuntamento foi pera maior sua destruição, porque, chegados os zambucos bem a terra, com mostra que a queriam tomar, ficou o cardume da gente pera a artelharia ser melhor empregada, de maneira que logo da primeira cevadura ficaram na praia trinta e cinco deles, em que entrou o filho do senhor da terra, que os mandava. A qual destruição foi para eles tamanho espanto, que com aquele temor desempararam a praia, leixando porém muita gente da nossa encravada com o almazém de seus tiros, de que logo ali morreu um marinheiro. O capitão Rui Lourenço, vendo toda a ribeira despejada e querendo-se por em consulta do que faria, viram vir um mouro correndo com υa bandeira das quinas reais deste reino, arvorada em υa haste, bradando per aravia: - Paz! Paz! Paz! - Quando ele conheceu a bandeira, como quem via υa cousa sagrada, dina de veneração, tirou o capacete da cabeça e pôs-se em giolhos, fazendo-lhe reverência, como se vira seu Rei, ao qual imitou toda a outra gente que estava com ele, do qual modo os mouros que estavam em um teso em olho dos nossos se espantaram muito, e o mouro que trazia a bandeira teve ousadia de se chegar tanto a eles, que levemente o podiam ouvir. Pedindo polo sinal que trazia na mão, licença pera seguramente ir 272 falar ao capitão, ao que lhe foi respondido que se algυa cousa queria, que fosse à nau, que lá lhe falaria. E isto fez o capitão 259 de indústria, por lhe mostrar toda a artelharia e munições de guerra, e o poder receber com mais aparato do que tinha no batel onde estavam todos em pé. Tornado o capitão Rui Lourenço à nau, veo o mouro logo trás ele acompanhado doutros quatro, que eram dos principais da terra, aos quais Rui Lourenço recebeu com gasalhado e os fez assentar em υa alcatifa, segundo seu uso. A substância da qual vinda era pedirem paz, e que el-Rei se queria fazer tributário del-Rei de Portugal; que pera o passado, bastasse por satisfação dalgυa

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culpa, se a tinham em defender sua terra, a morte de seu filho e de muitos que o acompanharam nela. Finalmente o capitão lhe concedeu a paz com tributo em cada um ano de cem miticais de ouro e trinta carneiros pera o capitão que os viesse receber. O qual tributo lhe pôs, não somente por razão de vassalo del-Rei Dom Manuel, mas porque em sua chegada não mostrou a bandeira das quinas reais do reino; a qual (segundo eles disseram) dera João da Nova a um sobrinho del-Rei de 82v Melinde pera navegar seguramente, cujas eram υa das quatro naus que ali estavam surtas, tomando este sobrinho del-Rei por desculpa de não apresentar a bandeira, estar em porto alheo e ser entretido que o não fizesse. Pago logo o tributo daquele ano, deu o capitão livremente as duas naus ao sobrinho del-Rei de Melinde, e à cidade deu outra por ser sua; somente a quarta, que era de um lugar da costa chamado Pate, se resgatou por cento e sessenta miticais, mais em sinal de obediência que em estima de sua valia. Com o qual concerto todos ficaram em paz, e Rui Lourenço se partiu via de Melinde, em busca de António Saldanha, onde ainda não era vindo. Mas acharam o Rei nosso amigo em tanta necessidade, que a sua chegada o salvou de muito perigo; porque el-Rei de Mombaça lhe fazia mui crua guerra, por razão da amizade que ele tinha connosco. O qual, como homem que esperava retorno daquela obra, em ódio nosso tinha mui bem fortalecida a cidade, e à entrada da barra feito um baluarte com toda a artelharia que houve da nau de Sancho de Toar, que se perdeu naquela paragem vindo com Pedrálvares Cabral, a qual se tirou a mergulho. Rui Lourenço, como foi informado del-Rei destes seus trabalhos e da causa deles, ordenou logo com ele que com a sua nau queria ir dar υa vista ao porto de Mombaça: per ventura quando el-Rei o visse sobre a barra dela, leixaria de vir per terra com gente, pois se fazia prestes pera vir a lhe dar batalha. Posto Rui Lourenço em caminho a dar esta vista a Mombaça, sucedeu-lhe tam bem o negócio, que tomou per vezes duas naus e três zambucos, nos quais vinham doze mouros, homens mui principais da cidade Brava, que está abaixo de Melinde cem léguas. E porque esta cidade era regida per comunidade de que estes doze mouros eram as principais cabeceiras do governo dela, 273 não somente resgataram suas pessoas e υa destas naus tomadas, dizendo ser daquela sua cidade, mas 260 ainda em nome dela a fizeram tributária a el-Rei de Portugal com quinhentos miticais de ouro de tributo cadano, pedindo logo pera segurança de poderem navegar como vassalos del-Rei υa bandeira, o que lhe Rui Lourenço concedeu. E a principal causa de se logo estes mouros fazerem tributários, foi porque detrás deles vinha υa nau mui rica da própria cidade de Brava, em que cada um trazia boa parte de fazenda, a qual prudência Rui Lourenço conheceu, tanto que a nau chegou, e lha entregou inteira e livre, sendo certificado que era sua, do que eles ficaram mui espantados, vendo que a riqueza da nau não fazia cobiça aos nossos polo seguro que lhe tinham dado, entendendo a cautela de que eles usaram por a salvar. El-Rei de Mombaça, com estas presas que os nossos andaram fazendo, apressou mais sua vinda sobre Melinde, porque lhe despejariam o porto pera entrarem as naus que vinham a ele, em que tinha recebido muita perda. Da qual vinda el-Rei de Melinde foi logo avisado, e o foi receber a um certo lugar onde houveram batalha. E sem a vitória ficar com algum, posto que el-Rei de Mombaça vinha mais poderoso em gente, tornou-se a sua cidade, temendo que os nossos lhe fizessem algum dano nela. Peró Rui Lourenço contentava-se com lhe fazer a guerra de fora, tomando quantas naus vinham pera entrar no porto. No qual tempo em um batel mandou um Gomes Carrasco com trinta homens que entrasse pela barra dentro, a lhe ver o sítio da cidade, e, por razão de um baluarte que tinham feito nesta entrada, não subiu acima.

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Finalmente, havendo já dias que Rui Lourenço andava neste ofício de presas das naus que tomava, as quais resgatava a preço de miticais de ouro, por não avolumar a nau com outra fazenda, chegou António de Saldanha, que também de Quíloa té ali tinha tomado três, que foi a todos grande prazer, e mais com tam boas venturas como lhe tinham acontecido, posto que foram com perigo e muito trabalho de suas pessoas. El-Rei de Mombaça, temendo que, com a vinda de António de Saldanha, o de Melinde lhe podia fazer mais dano, lá teve modo que se meteram os seus cacizes entre eles, com que se concertaram, que causou partir-se logo António de Saldanha e Rui Lourenço com ele. Os quais, dobrado o Cabo de Guardafu, foram ter à vila de Mete, onde per prazer do Xeque saíram em terra a fazer sua aguada em um poço, e, tendo já tomadas três pipas, levantaram os mouros υa revolta com desejo de empecer aos nossos; mas eles foram os empecidos, ficando logo três mortos no terreiro afora os feridos, posto que também custou sangue, principalmente a Gomes Carrasco em υa perna, em que foi muito ferido. E porque todo o povo da vila se pôs em armas, não quis António de Saldanha que os seus por beber água lhe custasse mais sangue, e tomou por emenda deles varejar a vila com artelharia. 274 Da qual costa, por ser já na entrada do mês de Abril, que começam ventar os ponentes, 83 atravessou a outra parte 261 da costa de Arábia, acima de Adem, e foi correndo toda, com propósito de ir invernar a υas ilhas a que os da terra chamam Canacani. Ante de chegar às quais, tomou υa nau carregada de encenso que vinha de Xael, que meteu no fundo, por se não embaraçar com a carga dela, de que a gente se salvou por dar consigo à costa; e adiante tomou outra carregada de mouros, que iam em romaria a Meca, onde houve de presa algum dinheiro do que eles levavam pera suas esmolas, e assi alguns mancebos, porque os mais deles se salvaram a nado em terra, dando também com a nau à costa. Chegado às ilhas de Canacani e estando na terra firme fazendo aguada, vieram sobre ele muita gente de pé, e até cinquenta de cavalo, arábios, homens que ousadamente se chegavam, e contudo ficaram mortos cinco deles, e dos nossos, ao recolher dos batéis, foram sete feridos, sem tomarem mais água por os mouros logo em chegando atupirem o poço. Depois, por a grande necessidade que traziam de água, querendo di a dous dias tornar a ver se a podiam tomar, acudiram mais de duzentos de cavalo e três mil de pé, que não deram lugar a poderem sair em terra. Vendo António de Saldanha que já toda aquela costa era apelidada e que não podiam tomar água senão a custa de sangue, enquanto não teve tempo, leixou-se estar naquelas ilhas, onde comiam por refresco tartarugas e algum pescado; e tanto que lhe serviu, partiu-se com propósito de tomar as ilhas de Curiá Muriá; mas não as pôde tomar, e di se partiu na volta da Índia, dia de Santiago. Da chegada de qual se verá adiante, porque primeiro convém sabermos o que passou el-Rei de Cochi e os nossos que com ele ficaram, depois que os Albuquerques se partiram pera o reino.

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261 83 275 Capítulo V. Como o Samori veo com grande poder de gente e aparato de guerra per terra e per mar sobre el-Rei de Cochi, e das vitórias que os nossos dele houveram. Partido Francisco de Albuquerque (segundo dissemos), soube logo o Samori como ficava em guarda de Cochi υa nau e duas caravelas com gente pera as marear e pera defensão da fortaleza que os nossos tinham feito. E confiado no aparato da guerra e multidão da gente que podia levar, assi per mar como per terra, dezia que aquela despesa que fazia não era pera somente destruir o senhor de Cochi, mas ainda pera tomar a nossa fortaleza, e que, esta tomada, não teriam as naus que viessem do reino a colheita onde podesse fazer carga. El-Rei de Cochi per suas espias era sabedor destes grandes apercebimentos do Samori, e andava um pouco desconfiado de poder resistir a tamanho exército, por se dizer que trazia per mar e per terra repartidos cinquenta mil homens: uns 262 que haviam de vir combater a nossa fortaleza com muita artelharia que houveram dos mouros de Meca, e os outros haviam de vir per terra cometer o vau; e mais que tinha convocado todolos principais do Malabar contra ele. Com as quais novas, que sempre na boca do povo se multiplicam em mais do que são, muitos dos naturais de Cochi se passavam do reino a outras partes, fugindo de noite em barcos. El-Rei, posto que ouvisse e visse estas cousas, como prudente dissimulava o que tinha em seu peito, que eram estes receos, e o melhor que podia andava provendo em o necessário pera a defensão do reino, principalmente em υa estacada no passo do vau do rio, per onde na guerra passada o Samori entrou. Duarte Pacheco, sentindo esta desconfiança e temor que el-Rei trazia, o esforçou, prometendo-lhe que, por salvação de sua pessoa e estado, ele com quantos eram em sua companhia tinham oferecido as vidas, e que com este propósito aceitara ficar em sua ajuda, como ele sabia, e tam longe de sua pátria, que não tinha outro amparo senão as armas, com as quais esperava de o quietar em seu estado com a vitória de seus imigos; que se esta vontade que ele tinha sua Real Senhoria achasse em seus próprios vassalos, tevesse por certa a segurança de suas cousas; mas que ele receava, segundo o que já via em alguns, principalmente em os mouros que viviam em seu reino, não achar tanta lealdade neles, quanta fé, amizade e serviço lhe haviam de guardar e fazer os portugueses. 276 El-Rei, com estas e outras palavras de Duarte Pacheco, ficou algum 83v tanto consolado e muito mais quando viu com quanta diligência ele dava ordem às cousas necessárias. E porque alguns dos seus naturais já descobertamente de dia se passavam do reino de Cochi pera outras partes com temor da vinda do Samori, o que fazia grande espanto na gente meúda, per conselho de Duarte Pacheco mandou el-Rei lançar pregões que ninguém se saísse do reino, e qualquer que fosse tomado nesta passagem morresse porisso. Duarte Pacheco, por animar el-Rei e os seus que andavam mui cortados de temor, tanto que soube que o Samori era no Repelim, ante que decesse a baixo a Cochi o foi esperar em um passo, somente com uma caravela e batéis e alguns barcos da terra, em que levaria até trezentos homens, de que os oitenta eram portugueses e os outros malabares, que pera isso deu el-Rei. Os Caimais e principais de Cochi, vendo esta diligência de Duarte Pacheco, e quam ousadamente ia cometer o Samori, peró que estevessem abalados pera se rebelar a el-Rei, deteveram-se té ver em que parava esta sua ida; e aprouve a Deus que foi em tal hora, que deu em

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υas aldeas onde já estava assentada a gente do Samori, em que fez grande estrago, por estar descuidada. E posto que sempre, no cometimento e saída em terra que os nossos fizeram, houve sinais de vitória, iam os naturais de Cochi tam temerosos com a fama do Samori, como que vinha trás eles 263 a fúria de todalas armas do Samori; e quem mais remava com o seu catur mais valente era, porque acerca deles não é vileza virar as costas, mas não ousavam de parecer ante el-Rei, por não terem causa de fugir. A qual fugida el-Rei sentiu muito pola fraqueza dos seus e o Samori mais polo ânimo dos nossos; e converteu a indinação deste caso sobre os seus astrólogos e adevinhos, que lhe prometiam grandes vitórias de nós. Porém como eles sempre buscam escápulas a seus enganos, tomaram por desculpa que o dia que cometera aquela jornada pera a sua gente tomar aquele alojamento em que receberam tal dano, fora em hora infelice e não eleita per eles, senão per sua própria vontade, sem com eles consultar os dias que pera bem de sua vitória lhe convinha obrar as cousas essenciais daquela guerra. Que se quisesse conseguir vitória de seus imigos, usasse das horas de sua eleição, porque estas lhe convinham e não as tomadas per própria vontade, ao que el-Rei deu crédito, polo muito que confiava neles. Passado este acidente, entre alguns dias que estes mestres da eleição do tempo escolheram pera o Samori pelejar com os nossos, foi um Domingo de Ramos, deste ano de quinhentos e quatro, o qual, por ser tam solene com os mistérios que Cristo nele obrou por nossa Redenção, andavam os nossos tam alegres de em tal dia se verem com os imigos, que se espantavam os malabares e diziam que os nossos andavam tomados da fúria da vingança, como os amoucos de Malaca e da Jaua, os quais são homens que com indinação dalgυa vingança matam quantos acham ante si, não temendo a morte, contanto que fiquem vingados. E certo que, segundo o Samori trazia a gente e navios 277 de que os nossos cada hora eram assombrados, se não entreviera a consolação e esforço espiritual da memória daqueles dias da coresma em que esperavam, por serviço de Deus e de seu Rei, derramar seu sangue, segundo eram poucos e a carne é sujeita a temores da morte, sem dúvida era cousa pera se todos embarcarem pera este reino, porque rostro, disposição e vontade viam em os naturais da terra pera desesperar de sua ajuda, e esperar fazerem deles entrega ao Samori, como ele requeria. Assi que, entre fé e temor, se determinaram de ir esperar o Samori ao vau da estacada, em que ele por passar, e os nossos polo defender, houve uma miraculosa batalha: porque, tendo o rostro a tanto peso de gente, somente três dos nossos foram feridos e dos imigos um grande número, porque onde morreram cento e oitenta não podia deixar de ser boa soma. Passado este dia em que o Samori recebeu tanta perda, à Sexta-feira de Andoenças, per eleição dos feiticeiros, mandou outra vez cometer o passo do vau, e dia de Páscoa outra, não somente a pé, mas ainda com grande número de paraus que quási faziam uma ponte; no qual cometimento a nossa artelharia lhe meteu no 264 fundo onze deles e matou trezentos e sessenta homens, e o maior dano que da nossa parte se recebeu, foi a gente da terra, que andava mal armada. Porque, como a maior parte de sua guerra é frechadas, espada, adarga, e ainda entre eles não havia tanto número de artelharia como ora tem, mais sujeitos andavam os naturais da terra ao perigo, por mal armados, que os nossos, que traziam as armas de que cá usam. E a maior indústria que o Samori 84 punha neste negócio, era saber quantos portugueses morriam; ca fazia conta que, por serem poucos, ele os iria gastando, té el-Rei de Cochi ficar desemparado deles. E com lhe dizerem que nos três dias que cometeu o vau eram mortos vinte portugueses, isto lhe fazia crer seus adevinhos, por lhe terem dito que na morte dos portugueses estava a sua vitória. Com os quais enganos, quando veo a terça-feira de Páscoa, per seu conselho tornou repetir a entrada per mar e per terra; e foi tam castigado da nossa artelharia que, afastando-se do lugar do

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vau, se recolheu a um palmar com perda de cento e trinta homens mortos e grande número feridos; e os nossos, segundo andavam cobertos de nuves de setas e entre artelharia, miraculosamente Deus os guardava. As quais cousas quebraram tanto o coração de todo aquele gentio do Samori, que lhe fugiu da gente fraca e mesquinha mais de quinze mil homens e sessenta paraus de remo, o que causou tamanho temor nele, que logo se quisera partir, se o não entretivera o senhor de Repelim e conselho dalguns mouros, dizendo que leixasse aquele vau de tanto infortúnio e cometesse a entrada per outra parte, que não fosse per tam estreito lugar, pera que 278 a gente toda podesse pelejar; o que não podia ser naquele lugar estreito, porque, tirando os dianteiros, os outros mais danavam aos seus próprios do que ofendiam aos imigos. O qual conselho o Samori aceitou, e partiu-se daquele lugar.

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264 84 278 Capítulo VI. Dalgυas vitórias que os nossos houveram do Samori, e das indústrias e ardis de guerra que os brâmanes e mouros do seu arraial lhe inventaram pera o consolar das perdas que houve e perigos per que passou. Partido o Samori daquele passo, sem os nossos saberem o fundamento de sua partida, chegou naquela mudança um brâmane a Duarte Pacheco e deu-lhe uma carta, a qual lhe mandava um Rodrigo Reinel, que fora cativo em Calecute no tempo de Pedrálvares Cabral, quando mataram Aires Correa. O qual lhe fazia saber como quantos ardis e conselhos el-Rei de Cochi tinha, logo o Samori era avisado deles per os mouros em que el-Rei mais confiava, e que todos estavam de acordo, per indústria do Samori, pera matar todolos portugueses per qualquer modo 265 que podessem. Duarte Pacheco, por não mostrar a el-Rei que temia os mouros que andavam naquelas cousas, não lhe deu conta do que ordenavam contra os nossos, somente lhe fez queixume deles, da pouca lealdade que lhe mantinham, dando aviso de seus segredos a seu imigo, pedindo-lhe que provesse nisso, mandando dar tal castigo a um par deles, que temessem os outros encorrer na sua culpa. O que el-Rei dissimulou e não pôs em obra, temendo escandalizar em tal tempo os mouros em quem ele tinha posto boa parte de sua esperança, por serem mercadores que tinham muita substância de fazenda; e com este receo que eles sentiam em el-Rei, tomaram licença que descobertamente andavam amedrontando os naturais a leixar a terra, e principalmente àqueles que eram adjutório da guerra, que com seus paraus e barcos iam buscar mantimentos, de que começava haver a necessidade. A qual cousa escandalizou tanto a Duarte Pacheco, que tornou outra vez sobre isso a el-Rei e lhe afeou tanto o caso, que lhe deu ele licença que podesse castigar aqueles que contra seus mandados leixavam a terra. Havida esta licença, não passaram seis dias que não fossem tomados nesta culpa cinco mouros, os quais Duarte Pacheco mandou levar à nau, com fama que os mandava enforcar; sobre que logo vieram muitos recados del-Rei - que tal não fizesse, por serem homens aparentados e dos principais da terra. Ao que ele respondeu que lhe pesava de vir o seu recado tam tarde, porque 279 os ministros de sua morte foram nisso mui diligentes por suas culpas o merecerem; de que el-Rei e os mouros ficaram mui tristes e temerosos de tam pubricamente fazerem o que ante faziam. Peró Duarte Pacheco os tinha mandado mui bem guardar e ter em segredo, té o fim da guerra, porque esperava ao diante comprazer com a ressurreição deles a el-Rei e aos mouros da terra, por serem proveitosos pera o negócio da pimenta; porém ao presente ficaram tam escandalizados, que não 84v andavam buscando senão como podessem a seu salvo empecer os nossos. Com o qual ódio, andando Duarte Pacheco fazendo algυas entradas na Ilha Cambalão, enquanto o Samori fez aquela mudança do lugar do vau a outra parte, estes mouros de Cochi, lá onde os nossos andavam pelejando, lançaram υa fama solta per todos os da terra, que os mouros de Cochi tinham tomado a fortaleza e υa das caravelas e a nau, com morte de quantos portugueses estavam em sua guarda, exortando os que lá andavam em sua ajuda que fizessem outro tanto e assi ficariam livres dos trabalhos da guerra, que padeciam por sua causa. Duarte Pacheco, primeiro que esta falsa nova se pubricasse, foi sabedor dela por aviso de Cochi; e temendo que podia fazer algυa impressão no ânimo dos naturais, que não era mui fiel,

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simulando necessidade, se veo pera Cochi, sem do caso dar conta a el-Rei; somente de novo começou fortalecer e prover nas partes de 266 suspeita e ter maior vegia acerca dos mouros de Cochi. E entre algυas cousas que ordenou, foi que naquela parte per onde o Samori queria passar, em que via outro vau de maré vazia, mandou de noite secretamente meter υas estacas mui agudas de paus tostados, em lugar de abrolhos, pera se encravar a gente, o que aproveitou muito. Porque o dia da passagem deste vau, como todos vinham com ímpeto de passar, lançou-se um grã golpe de gente a ele, dando-lhe água pelos peitos; e, tanto que se começaram a encravar, acurvavam, e os outros que sobrevinham detrás empeçavam neles, de maneira que caíam uns sobre outros, represando água sem ser já vau, mas lugar de sua perdição, uns afogados e outros encravados, com que os traseiros não ousavam cometer aquela passagem. Contudo era tam grande o número da gente, que ainda passaram muitos da banda da ilha onde estavam os nossos, que naquela defensão teveram o maior trabalho do que té então tinham passado. E a causa foi esta: O Samori, quando quis cometer esta passagem, fez mostra que havia de ser per um só lugar; e, tanto que a gente começou entrar, o senhor de Repelim, com grande número de paraus em que haveria mais de três mil homens, cometeu entrar per outro passo mais abaixo, o qual caso fez Duarte Pacheco repartir a gente que tinha em duas partes, mandando a esta per que entrava o senhor de Repelim as duas caravelas, capitães Diogo Pires e Pero Rafael, com alguns paraus, e ele ficou em terra no lugar per onde cometia o vau o Príncipe Nambeadari com o maior corpo da gente. Estando em um mesmo tempo, assi nesta parte do vau como nas caravelas 280 defendendo a passagem, obra de trezentos homens da terra per indústria dos mouros desempararam Duarte Pacheco. O qual, vendo-se mui perseguido da multidão dos imigos, mandou chamar o Príncipe de Cochi, que estava em outro passo de menos defensão, e não lhe acudiu como quem temia ir-se meter em tam manifesto perigo, como sabia ser o em que ele estava. Duarte Pacheco, porque sobre este desemparo se viu ainda em outra maior necessidade, que foi falecer pólvora a uns batéis que tinha no seu passo, os quais lhe ajudavam muito, entretendo o peso da gente, a grã pressa mandou às caravelas de baixo que lhe socorressem, e com um batel que lhe mandaram, que se ajuntou aos outros que lá tinha, ficou com algum repouso da multidão dos imigos, que coalhavam o rio naquela passagem. Porque teve outra ajuda depois da vinda deste batel, que foi vir também a maré a eles, com que totalmente aquele lugar ficou seguro da passagem, e ele teve tempo de vir nos batéis que ali tinha socorrer as caravelas. E aprouve a Deus que com sua chegada também ficaram livres do dano que recebiam da multidão dos paraus. Finalmente, se os imigos sangraram bem os nossos, eles receberam o maior dano; porque 267 em ambolos passos, somente os mortos foram seiscentos e cinquenta. E o que mais assombrou o Samori neste dia foi que, recolhido ele em um palmar vezinho, à borda do rio, lá o foi pescar uma bombarda das caravelas, matando-lhe nove homens aos seus péis, do sangue dos quais ele ficou borrifado; e um deles diziam ser brâmane que lhe estava dando bétel. Por razão do qual caso se indinou tanto contra os seus feiticeiros, que os quisera mandar matar, porque naquele dia lhe tinham eles prometida muito vitória, ele recebeu maior dano que todolos passados. Porém entrevieram nisso muitos Caimais e pessoas notáveis e deram por desculpa, por parte deles, dizendo que os deuses estavam indinados contra ele, Samori, porque no princípio daquela guerra prometera de lhe fazer um templo, o qual té aquele dia não tinha começado; e pera confirmação disto que lhe queriam persuadir sobreveo 85 ao seu arraial υa enfermidade, a maneira de peste, por espaço de um mês, que não durava um homem mais que dous ou três dias, em que perdeu mais de seis mil homens. Com temor da qual muitos lhe fugiram e os outros andavam tam assombrados, que meteu o Samori em grande confusão, não se sabendo determinar.

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Os brâmanes feiticeiros, por se tornarem a reconciliar com ele, vieram com um ardil de enganos, por não acabarem de perder o crédito de suas promessas, dizendo que queriam ordenar uns certos pós, os quais haviam de ser lançados na vista dos nossos, quando viessem a se ajuntar com a sua gente; e eram tam poderosos, que os haviam de cegar de todo, pera não poderem dar mais um passo. 281 Os mouros a quem estas cousas mais tocavam, posto que não confiassem nestas mentiras dos brâmanes, folgavam com elas por animar o povo, e mais a el-Rei, que o viam mui quebrado; e trouxeram também outra invenção em que mais confiavam por ser indústria de guerra, dizendo ao Samori que ali estava um mouro per nome Coje Alé, o qual tinha inventado υa maneira de castelos de madeira armados sobre paraus, em cada um dos quais bem poderiam caber dez homens, e seriam tam sobranceiros sobre as caravelas, com que ficassem senhores do alto; e como a força dos nossos estava nestas caravelas por razão da artelharia, tomadas elas ficavam perdidos de todo. E que, além deste ardil, tinham outro muito melhor por ser sem nenhum trabalho: dar aviso aos mouros de Cochi que lançassem peçonha nas águas de que os nossos bebiam, com que os iriam gastando. As quais cousas assi quedaram no juízo do Samori, que lhe parecia não ter mais dilação, pera haver vitória dos nossos, que enquanto estas se ordenavam; e por isso com muita diligência mandou logo por mão nelas.

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268 85 281 Capítulo VII. Dalgυas cousas que o Samori, Rei de Calecute, ordenou e cometeu contra os nossos e el-Rei de Cochi, na guerra que tinha com ele; e do que Duarte Pacheco nisso fez. Duarte Pacheco, depois que lhe Deus deu aquela vitória, veo-se com as caravelas ajuntar à nau e favorecer a fortaleza, mui descontente do Príncipe de Cochi e del-Rei, por lhe fugir tanta gente da sua, principalmente por o Príncipe não acudir com socorro ao tempo que o mandou chamar, em que os imigos houveram de passar o vau, e, se passaram, fora o negócio de todo acabado. E o que mais daqui sentia era parecer-lhe que vinha isto per indústria dos mouros de Cochi; e, sendo assi, ele não podia ter tanto resguardo, que υa hora ou outra não lhe podesse acontecer algum grande desastre, por ser trabalhosa cousa guardar dos imigos de casa. El-Rei, como soube que ele estava descontente, veo-se com o Príncipe a visitá-lo da vitória do dia passado, e o Príncipe a desculpar-se, dizendo que a gente que fugira ele tinha mandado fazer exame disso e achava ser quási dos Caimais e capitães que se rebelaram ao serviço del-Rei seu tio, que ali estava. El-Rei, tomada a mão ao sobrinho com palavras brandas e mostras de 282 muito amor, começou de tirar de suspeita a Duarte Pacheco, mostrando que de cousa algυa daquelas ele não fora sabedor; somente, vindo visitá-lo e dar-lhe as graças do trabalho que aquele dia passado levara por defensão do seu reino, topara seu sobrinho, que lhe contou o descontentamento que ele tinha e a causa dele. E quanto a desconfiança dos mouros, ele tinha razão, peró o tempo não dava lugar a mais que a dissimular com eles, por serem muitos e poderosos; que, cometendo algυas cousas leves, convinha passar per eles, e quando fossem púbricas e de perigo, então teria outro modo com eles. Que lhe pedia não houvesse paixão, pois não tinha por trabalho os perigos que passava em defender aquele seu reino, que era del-Rei de Portugal, seu irmão; portanto, leixado todo o passado, entendesse em remedear o presente, porque, segundo o Samori fora escarmentado, não podia leixar de tornar com poder de mais gente, pois as injúrias parem indinação e esta, fúria de vingança. Ao terceiro dia, tornou el-Rei mui agastado, dando conta a Duarte Pacheco que per suas enculcas, que trazia ao arraial do Samori, tinha sabido o conselho que houve sobre sua tornada e os ardis dos pós, castelos e peçonha nas águas, e que também lhe fora dito que o Samori mandara buscar todolos elefantes adestrados que havia na terra, pera passarem o vau, pera serem amparo da gente que havia de vir escudada detrás deles. Duarte Pacheco a estas novas e ao 85v temor que lhe el-Rei mostrava respondeu-lhe com palavras de esforço, dizendo que não se agastassem, porque todos estes aparatos e invenções dos mouros de 269 Calecute mais eram a fim de temorizar a gente de Cochi, que por lhe parecer terem força contra o poder dos portugueses, que per muitas vezes tinham experimentado. Que, quanto aos castelos e elefantes, ele tomava sobre si o remédio; que o lançar de peçonha nas águas, isto lhe pedia que mandasse prover per homens de confiança, porque a maldade dos mouros podia corromper a muitos, se não fossem muito fiéis neste caso, que importava a vida de tantos. E depois que mui meudamente esteveram praticando no modo de esperar estes aparatos do Samori, e em que parte fariam mais força - no mar ou na terra, pois per ambas estas partes esperava cometer -, acordaram que, por razão dos castelos que se armavam nos batéis, a maior parte de gente português estevesse nas caravelas e em guarda da fortaleza, e outra estevesse com o Príncipe de Cochi e Caimais no

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lugar do vau. Tornado el-Rei pera sua casa, a prover em as cousas desta prática, ficou Duarte Pacheco em outra com os capitães e principais pessoas que com ele andavam naqueles trabalhos; porque, como os conselhos del-Rei eram logo postos nos ouvidos do Samori, quis prover no que haviam de fazer sem 283 o comunicar com el-Rei, temendo o dano que lhe podia sobrevir, tomando o Samori na sua indústria ardil de os ofender. E as cousas em que logo proveram foi cortar a ponta de um cotovelo que fazia a terra, onde fez υa maneira de baluarte que ajudasse a defender as caravelas que ficavam metidas naquele anco da terra, por lhe ficar um só combate; e, no lugar do vau, outro de madeira grossa, entulhado, onde havia de estar artelharia por causa dos elefantes que haviam de entrar per aquela parte, e υa grossa estacada ao longo da terra, que ficasse soberba sobre o vau em lugar do muro, pera poderem pelejar de cima. Mandou também encravar nos grandes madeiros com as puas de ferro pera cima, os quais haviam secretamente, a noite ante do dia da entrada, ser metidos no lugar do vau, presos com estacas por os não levantar água, pera os elefantes se encravarem neles. E posto que encomendou a el-Rei a vigia das águas, por razão da peçonha, por mais segurança deu cuidado a alguns portugueses, homens de recado, que andassem sobre os gentios, a que el-Rei encomendasse a guarda delas. O Samori, enquanto os nossos ordenavam estas cousas, também entendia em seus apercebimentos, principalmente na invenção de castelos de Coje Alé, que eram oito, cada um em dous paraus de altura de vinte palmos, de cima do qual poderiam pelejar dez homens. E enquanto trabalhavam neles, não leixava de mandar cometer os nossos per quantas partes e modos podia, ora com armas, ora per traições, que sempre caíram sobre sua cabeça, com perda dos seus. Porque ele mandou sobre a nau de Duarte Pacheco, por estar apartada das caravelas, e desta feita perdeu quatro paraus com muita gente morta e ferida; e mais tomaram-lhe um carregado de mantimentos, e a 270 gente que era natural da terra se salvou. Depois per duas ou três vezes fizeram entradas com ardis e ciladas, uma das quais foi per indústria dum mouro mercador, chamado Gormale, a quem Duarte Pacheco, por comprazer a el-Rei de Cochi, deu υa bandeira, dizendo que a queria para trazer pimenta per os rios dentro, porque per ela fosse conhecido dos nossos, por não receber dano. Mas todo o seu ardil ele o pagou, e nestes cometimentos sempre perdiam mais do que ganhavam, porque de υa só vez lhe tomaram os nossos oito paraus e treze bombardas. E por lhe não ficar cousa por tentar, também foram lançados seis naires da parte do Samori pera matarem Duarte Pacheco, dos quais, sendo ele avisado, acolheu um e outro de Cochi, que já andava em sua companhia, e presos os mandou a el-Rei de Cochi, que fizesse justiça deles, porque ele não queria ser o juiz daquele caso, pois era o ofendido. E o mais que Duarte Pacheco estranhou a el-Rei, foi serem eles também lançados pera queimar as caravelas; e de todas estas e outras cousas que cada dia moviam permetia Deus serem logo descobertas aos nossos ante de se cometerem, com que se proviam pera não encorrer no perigo. 284 Não somente com estes que estavam em Cochi o Samori usava destes ardis, mas ainda mandou lançar fama em Cananor e em Coulão, onde estavam as duas feitorias, que todolos portugueses de Cochi eram mortos, com recado a alguns mouros de sua valia, per que lhe recomendava que fizesse lá outro tanto aos que lá estavam, que foi causa de eles terem trabalho, enquanto não souberam a verdade. E porém neste recolher-se à casa forte que António de Sá tinha feita em Coulão, lhe mataram um homem e feriram alguns. Assi que per todalas partes e modos o Samori cometeu se podia tomar vingança dos nossos, sem lhe aproveitar 86 algυa de quantas cousas lhe os mouros inventaram pera isso. Acabados os seus castelos, enquanto davam estes rebates, ficou o Samori tam namorado

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deles, que, leixadas as outras indústrias dos pós e elefantes, toda sua esperança e força pôs no cometimento do combate per mar com eles. E certo que tinha razão, porque na vista eram tam temerosos, quam fracos se depois mostraram quem os povoou; a vinda dos quais em fama tanto assombrou a el-Rei de Cochi e os seus, que, polos animar, quis também Duarte Pacheco usar doutro artefício, dizendo que era contra os castelos, e todavia em seu tempo serviu. O qual foi ajuntar ambas as caravelas com as popas em terra com rajeiras per baixo para se alargar quando quisesse, e ao pé de cada masto mandou também armar outra maneira de castelos, pera que, querendo os outros abalroar, que ficasse igual deles. E nas proas, além dos goroupeses, que eram mais compridos do necessário pera a navegação, mandou atravessar dous mastos pera entreterem a chegada dos castelos às caravelas, e lhe ficar espaço pera se aproveitar da artelharia. Providas estas cousas, repartiu a gente que tinha dos nossos, que 271 per todos podiam ser até cento e sessenta homens, a qual repartição era nestas quatro partes no vau, na fortaleza e pelas caravelas e nau, porque em todos estava a defensão deles e daquele reino de Cochi. E posto que esta repartição ficou assi feita, depois que o negócio chegou a pelejar, tudo se baralhou, trocando uns por outros, segundo a necessidade o requeria; e em cada um destes lugares também havia muita gente que el-Rei mandava mais por fazer corpo de gente, que por acrescentarem ânimo aos nossos; ca, segundo seu uso, ante que experimentassem o ferro, muitos deles se punham em salvo. A este tempo, já em Cochi havia mui pouca gente da natural da terra, por ser toda fugida da fralda do mar pera dentro do sertão, com temor dos aparatos do Samori, posto que viam quantas vitórias os nossos haviam de seus 285 imigos; e não somente fugia a gente cível, mas ainda lhe rebelaram muitos Caimais, que entre eles são pessoas notáveis, como acerca de nós senhores de terras de título. Ca el-Rei de Cochi começou esta guerra, sendo em sua ajuda estes, que eram seus vassalos; o Príncipe, seu sobrinho, herdeiro do reino; o Caimal de Paliporte, o Caimal de Balurte, o Chão de Begadari, senhor de Porcá e o Mangate, Caimal, seu irmão, e o Caimal de Cambalão, e o Caimal de Cheri a Vaipi e outros senhores de terras; e juntamente eram em ajuda del-Rei com até vinte mil homens, que com os seus fazia número de trinta mil. Peró, procedendo a guerra, poucos e poucos o leixaram e ficou somente com o sobrinho e com o Caimal de Vaipi, que sempre lhe guardou muita lealdade. Finalmente de trinta mil homens com que no princípio desta guerra se achou, neste tempo de tanta afronta, que foi a maior, não tinha oito mil; e ainda estes mais sujeitos ao temor que à constância de acompanhar os nossos no tempo do trabalho. E a gente com que o Samori começou seria até setenta mil homens, de que a este tempo (segundo dissemos) pelos casos e perdas que teve, também já tinha menos um terço; porém era fama entre os nossos que trazia per mar e per terra quorenta mil homens seus e destes senhores que o ajudavam, deles como vassalos e outros por serem amigos e vezinhos naquela terra Malabar, que ele convocou contra nós; Beturacol, Rei de Tanor; Cacatunão Bari, Rei de Bespur e de Cucurão, junto da serra chamada Gate; Cota Agatacol, Rei de Cotugão, entre Cananor e Calecute, junto de Gate; Curiur Coil, Rei de Curim, entre Panane e Cranganor ; Nambeadari, Príncipe de Calecute; Nambea, seu irmão; Lancol Nambeadari, senhor de Repelim; Paraicherá Eracol, senhor de Cranganor; Parapucol, senhor de Chalião, entre Calecute e Tanor; Parinha Mutacol, senhor quási Rei entre Cranganor e Repelim; Benará Nambeadari, senhor quási Rei acima de Panane pera a serra; Nambeari, senhor de Banalá Chari; Parapucol, senhor de Parapurão; Parapucol, senhor 272 quási Rei de Bepur, entre Chani e Calecute. E outros muitos, cujos nomes não vieram a nossa notícia, que entre eles eram principais mui poderosos. Alguns dos quais, quando o Samori tornou cometer passar a Cochi com a invenção dos castelos, eram já idos pera suas terras. Do artefício dos quais castelos ele estava tam contente, que lhe parecia ter a vitória mui certa sem ajuda destes que o

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deixaram; mas o negócio não sucedeu segundo ele esperava, como se verá neste seguinte capítulo.

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272 86v 286 Capítulo VIII. Como o Samori de Calecute, com υas máquinas de castelos em barcos e ele per terra, veo cometer os nossos; e desta e doutras vezes que cometeu querer passar o rio ficou tam desbaratado, que se recolheu pera seu reino. Postas as cousas de cada υa destas partes na ordem em que esperavam de se aproveitar delas, partiu o Samori tam soberbo e confiado na invenção da máquina dos castelos, que por aquela vez leixou de cometer o vau, assi por lhe parecer que esta força, posta sobre as nossas caravelas, onde estava toda a del-Rei de Cochi, bastava pera as tomar, e com a posse delas lhe seria leve a entrada de Cochi, como por ter sabido que a passagem do vau estava muito mais defensável; e o principal de tudo era por os seus sacerdotes e feiticeiros lhe terem prometido grande vitória, se posesse o ímpeto de suas forças nestas caravelas. Assi que, com este conselho, dia da Conceição de Nossa Senhora, chegou o Samori per terra com a maior parte do seu exército às nossas caravelas. A qual frota era de duzentos paraus, atulhados de frecheiros, que haviam de servir no seu modo de pelejar como genetes pera chegar e correr a υa e outra parte, e, quando fosse tempo, lançarem em terra aquele golpe de gente, e tornarem por outra onde o Samori estava da outra parte do rio, té ser tanta que podesse senhorear a terra, enquanto o Samori passasse. Entre os quais paraus que chegaram ao mesmo tempo que ele apareceu sobre o rio, vinham oito daquelas máquinas, armadas cada υa em dous grandes paraus, tam soberbas e temerosas que os nossos estimaram mais a vista delas que a fama. Mas como eles esperavam este dia - e mais por ser de Nossa Senhora, na qual punham sua confiança - sem se mover do lugar onde estavam, com as caravelas e batéis em um corpo, a maneira de baluarte com suas arrombadas, em as máquinas dos castelos chegando a tiro, começou a nossa artelharia representar o dia do juízo, afuzilando fogo, vaporando fumo e atroando os ares de maneira que, com estas cousas e com os enxames de frechas, grita da gente, tudo era υa confusão escura na vista e nos ouvidos, sem uns aos outros se poderem ouvir, nem menos saber se eram 273 ofendidos dos amigos se dos contrairos. As máquinas, ainda que vinham soberbas, ante que fossem metidas naquela escuridão e fumaça de morte, não poderam dar tanta quanta elas prometiam com sua vista, ante neste seu cometimento receberam maior dano do que o fizeram; ca, por serem armados sobre dous paraus grandes, ao governar deles houve muito embaraço, não podendo cada um dos dous lemes acudir a um tempo quando os do castelo queriam, porque também a maré que subia os ia atravessando, apesar dos remadores. Com os quais empedimentos de oito máquinas que elas eram, duas 287 com assaz trabalho poderam chegar às caravelas; e ainda estas foram entretidas com as vergas que os nossos tinham posto em modo de goroupeses. As quais, tanto que chegaram àquele lugar com artelharia, foram feitas em rachas, que serviram de armas contra aqueles que vinham dentro; ca os mais deles foram mortos e feridos per elas. E não somente parou a artelharia aqui, mas ainda dava per os paraus que eram tam bastos, que nunca se perdeu tiro; com o qual dano, muitos foram arrombados de maneira que andava já água chea de nadadores, trabalhando por salvar as vidas na terra onde estava o Samori, porque, na de Cochi, os del-Rei, que estavam em guarda dela, os matavam. Finalmente, o dia não foi tam próspero como os feiticeiros do Samori lhe tinham pronosticado; e porque ainda lhe ficou esperança que, tornando outra vez, alcançaria vitória que refizesse todalas perdas passadas, veo di a certos dias em hora de melhor eleição, como eles diziam.

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Mas Nosso Senhor acabou de vingar os nossos deste soberbo e contumaz gentio, com o grande dano e perda que recebeu neste último cometimento que fez, assi per esta parte com seus castelos de vento como per o vau que também cometeu, ficando tam quebrado, e por seus sacerdotes tam convertido a fazer penitência, - dizendo todos ter ofendido aos seus pagodes em não lhe fazer os sacrefícios e ofertas que lhe tinha prometido no princípio desta guerra - que, simulando ele que se tornava a refazer pera tornar a ela, se recolheu de todo, com perda de dezoito mil homens: treze na enfermidade que 87 per duas vezes sobreveo ao seu arraial e os cinco na guerra que continuou. A qual guerra durou seis meses; e, neste tempo, entre o Samori e el-Rei de Cochi houve cartas, recados e outras meudezas, segundo o que escreveu Frei Gastão, um religioso que estava na feitoria com os nossos em um tratado que fez da guerra entre estes dous Reis, de que somente tomamos o necessário com outra mais informação, porque em todo o discurso desta nossa Ásia mais trabalhamos no substancial da história que no ampliar as meudezas que enfadam e não deleitam. Assi que, tornando ao fim desta guerra, que se rematou com as amoestações dos brâmanes, teveram eles ainda tanto artefício de se salvar das mentiras que disseram ao Samori no sucedimento dela, e 274 de consolar a ele, que lhe fizeram crer que os seus deuses lhe tinham feito mercê em pagar culpas próprias, não com dano de sua pessoa, mas dos seus, a qual cousa causou recolher-se com alguns deles a fazer penitência, dando também por causa de seu recolhimento querer por alguns dias dar repouso ao povo dos trabalhos da guerra, e mais naquele tempo, por ser no fim do inverno em que esperava a vinda das nossas naus, contra o poder das quais também lhe convinha prover seus portos. 288 Os seus Caimais e príncipes que o ajudaram, principalmente aqueles que podiam receber dano ou proveito de nós, ante que as nossas naus chegassem, por segurar seus estados e lugares e haver algυa fazenda da que elas de cá levavam, mandaram cometer pazes a Duarte Pacheco, vendo que o Samori se recolhia, não tanto por religião quanto por siso de paz, por sentirem nele que a desejava. E quem logo veo com este requerimento de paz, foi o senhor de Repelim, principal movedor desta guerra, por ser mui vezinho a Cochi, e não tinha a pimenta de sua terra outra saída se não per nossas naus; e pola mesma rezão da pimenta e a sua terra ser a frol dela, e a nós convir tanto como a ele esta paz, Duarte Pacheco, per vontade del-Rei de Cochi, lha concedeu. No qual tempo António de Sá, feitor de Coulão, por algυas paixões que lá tinha com os mouros, lhe mandou pedir que com sua vista o quisesse ir favorecer, o que Duarte Pacheco fez, indo lá em sua nau, leixando os capitães das caravelas em guarda de Cochi. O qual, chegando ao porto de Coulão, achou cinco naus de mouros que estavam a carga da pimenta, das quais vieram a ele cinco mouros, os principais delas com grandes presentes, pedindo-lhe paz e seguro pera navegarem suas naus com a carga que tinham feita; o que lhe Duarte Pacheco não concedeu, ante, por ter sabido de António de Sá que as naus estavam já de todo carregadas contra sua vontade, e que esta fora a principal causa por que o mandara chamar - por ter havido algυas paixões com os mouros mercadores estantes na terra que lhe negavam esta pimenta por a dar a eles - Duarte Pacheco lha fez descarregar toda e a entregou a António de Sá, pagando-lhe o que custava, e somente lhe deu algυa pera sua despesa. E enquanto estas descarregavam, vieram ali ter outras duas, cada υa em seu dia, as quais traziam algυa pimenta e vinham acabar de tomar carga naquele porto; e porque soube certo que nenhυa destas naus era de Calecute, com quem tínhamos guerra, a todos não fez mais dano que não lhe consentir que tomassem algυa pimenta, por termos ali feitor a fim de recolher toda a que havia na terra. Assi que, espedidos estes, vazios e pagos da pimenta que tinham, foram buscar outro lugar que não tivesse esta defensão, e Duarte Pacheco tornou-se pera Cochi, onde di a poucos dias chegou Lopo Soares, que partiu deste reino por Capitão-mor de υa grande armada, da viagem do qual

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faremos relação neste seguinte capítulo.

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275 87 289 Capítulo IX. Como el-Rei, por as naus que teve da Índia per o Almirante Dom Vasco da Gama, o ano seguinte de quinhentos e quatro mandou υa grande armada de que foi por Capitão-mor Lopo Soares; e do que passou da partida de Lisboa té chegar a Cochi. Com a vinda da Índia do Almirante Dom Vasco da Gama, soube el-Rei que as cousas dela se iam ordenando de maneira que convinha mandar maior frota da que lá era ao tempo de sua chegada, que, como escrevemos, foram nove velas repartidas em três capitanias, do sucesso das quais ainda el-Rei não tinha nova. Somente soube per ele, Almirante, quam ofendidos os mouros 87v daquelas partes ficavam assi polo ódio que geralmente eles tem ao povo cristão, como pelo dano que tinha recebido de nós, e principalmente dele, Almirante. Assi que por esta razão, como pera ir tomando maior posse daquele grande estado que lhe Deus tinha descoberto, ordenou de mandar este ano de quinhentos e quatro υa grossa armada, a capitania-mor da qual deu a Lopo Soares, filho de Rui Gomes de Alvarenga, Chanceler-mor que fora destes reinos em tempo del-Rei Dom Afonso o quinto, em o qual Lopo Soares havia muita prudência e outras calidades de sua pessoa, que mereciam υa tam honrada ida como esta era. Com o qual foram estes capitães: Lionel Coutinho, filho de Vasco Fernandes Coutinho; Pero de Mendoça, filho de João de Brito; Lopo Mendes de Vasconcelos, filho de Luís Mendes de Vasconcelos; Manuel Teles Barreto, filho de Afonso Teles; Pedro Afonso de Aguiar, filho de Diogo Afonso de Aguiar; Afonso Lopes da Costa, filho de Pero da Costa, de Tomar; Filipe de Castro, filho de Álvaro de Castro; Tristão da Silva, filho de Afonso Teles de Meneses; Vasco da Silveira, filho de Mosém Vasco; Vasco de Carvalho, filho de Álvaro Carvalho; Lopo de Abreu e Pero Dinis, de Setúbal. Em as quais naus levava mil e duzentos homens, muita parte deles fidalgos e criados del-Rei, toda gente mui limpa e tal que com razão se pode dizer que esta foi a primeira armada que saiu deste reino de tanta e tam luzida gente e de tam grandes naus; posto que foram menos em número que as duas passadas. E por esta causa não se poderam fazer tam prestes como as outras, porque partiu da cidade de Lisboa a vinte dous de Abril deste ano de mil quinhentos e quatro, e a dous de Maio foram na paragem do Cabo Verde. E di em diante, posto que teveram alguns temporais que se acham em tam comprida viagem, quando veo a vinte cinco de Julho, surgiu em Moçambique, onde se deteve até o primeiro dia de Agosto, fazendo aguada e repairando algυas naus, principalmente a de Pedro Afonso de Aguiar e a de Afonso Lopes da 276 Costa, que com um temporal que teveram de noite deu υa per outra. 290 Partido de Moçambique, chegou a Melinde, onde achou seis portugueses dos que se perderam com Pero de Taíde, os quais lhe contaram também como se perdera Vicente Sodré e as cousas que Afonso de Albuquerque e Francisco de Albuquerque tinham feito na Índia. Espedido del-Rei de Melinde, que o recebeu e tratou com muito gasalhado o tempo que ali esteve, a primeira terra que tomou da Índia foi Anchediva, onde achou António de Saldanha com Rui Lourenço, os quais se faziam prestes pera tornar a costa de Cambaia, pera andar ali esperando as naus de Meca, mas Lopo Soares os levou consigo por levar recado del-Rei Dom Manuel pera isso. Ali veo também ter com ele Lopo Mendes de Vasconcelos, que se apartou da frota com um temporal que lhe deu, o qual tinham por perdido; e, juntas estas velas, chegou a Cananor, onde foi muito festejado, assi do feitor, Gonçalo Gil Barbosa, como del-Rei, que se veo com ele ao modo das

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vistas que houve entre ele e o Almirante. Porque estes príncipes gentios nestas vistas põem muita parte de sua honra, em ser com grande aparato e cerimónias a seu uso; mas Lopo Soares não lhe deu tanto vagar, porque três dias somente se deteve nestas vistas e em prover algυas cousas ao feitor Gonçalo Gil, pera fazer prestes a carga do gengivre e outras cousas que havia de tomar, quando tornasse de Cochi. Peró, ante que partisse pera Cochi, veo a ele com cartas um moço cristão, mandado pelos cativos que lá estavam em Calecute, pedindo que se lembrasse deles, à vinda do qual moço deu azo Coje Biqui, que era nosso amigo do tempo de Pedrálvares Cabral, e também foi indústria dos principais de Calecute, temendo aquele grande poder de armada; e parecia-lhe que os cativos que lá tinham podiam fazer algum bom negócio pera tratar na paz, por saberem que a desejava o Samori. Lopo Soares, depois que se enformou do moço dalgυas cousas que per ele lhe mandavam dizer os cativos, o tornou logo a espedir com palavras de esperança de sua liberdade; e quando veo ao seguinte dia, que eram sete de Setembro, chegou ante a cidade de Calecute, onde, em lançando âncora, foi vesitado com alguns refrescos por parte de Coje Biqui e em sua companhia este moço. O qual presente Lopo Soares não aceitou, dizendo que ele estava naquele porto suspeitoso, onde se costumava negocear com cautelas de enganos; e porque não sabia se vinha da mão de Coje Biqui, que ele havia por homem amigo do serviço del-Rei de 88 Portugal, seu senhor, se doutro algum que fosse imigo dos portugueses, não podia aceitar cousa algυa, ainda que viesse em seu nome. Que enquanto ele não praticasse com a própria pessoa de Coje Biqui, peró que recados lhe fossem dados de sua parte, testemunhados per aquele moço que ali estava, não os havia por seus; portanto ele se poderia ir 277 embora; e, se era de Coje Biqui, podia-lhe dizer que com nenhum outro refresco folgaria mais que com ver a ele e aos portugueses que lá estavam reteúdos. Espedido este mouro, veo Coje Biqui ao seguinte dia, e não mui contente 291 da reposta que os mouros mandaram a Lopo Soares, posto que trouxe consigo os mais dos cativos que lá estavam. A qual reposta era que el-Rei estava ao pé da serra, mas que por terem sabido quanto desejava a paz, lhe mandavam aqueles homens, e que enquanto não vinha seu recado, por terem mandado a ele, folgariam saber dele a vontade que tinha e o que queria mais, pera o fazerem saber ao Samori. Lopo Soares, depois que agradeceu a Coje Biqui a vontade que sempre mostrava aos portugueses, respondeu-lhe ao negócio da paz, que a primeira cousa que haviam de fazer, pera ele ouvir as condições dela, era entregarem-lhe os dous gregos de Esclavónia que lá andavam, que na prática da outra paz el-Rei prometeu entregar e não compriu. Coje Biqui, porque viu que Lopo Soares se cerrou nisto e não quis ouvir mais reprica, espediu dele, dizendo-lhe que ele desejava mais esta paz que pessoa algυa; mas como el-Rei e os principais do seu conselho o haviam já por suspeito nas cousas do serviço del-Rei de Portugal, ele não tinha nesta parte mais autoridade que representar bem este negócio, o qual prazerá a Deus que viria a efeito. Lopo Soares, porque neste e em outros recados que foram e vieram tudo era cautelas e dilações, sem algυa conclusão, mandou chegar seis naus das mais pequenas a terra, que varejassem com artelharia toda a cidade em que se deteve dous dias, nos quais se fez tanta destruição, que caiu grande parte do cerame del-Rei. Acabada a qual obra, Lopo Soares se partiu pera Cochi, onde chegou a catorze de Setembro, a tempo que também Duarte Pacheco chegava de Coulão, do negócio pera que o mandou chamar António de Sá (como atrás dissemos). E ao seguinte dia, depois de sua chegada, el-Rei de Cochi o veo ver, mostrando grande contentamento de sua vinda, e da boa entrada que deu no varejar de Calecute, do qual estrago logo per patamares, que são grandes caminheiros de terra, tinha já sabido serem mortas mais de trezentas pessoas e derribada muita casaria, até os palmares eram

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destruídos, que o gentio muito sentia, por ser propriedade de que se mantém. Na qual prática Lopo Soares, por parte del-Rei Dom Manuel, com as cartas que trouxe a el-Rei de Cochi, lhe deu agradecimentos dos trabalhos que tinha passados, oferecendo-lhe aquela armada, e que nenhυa cousa lhe el-Rei, seu senhor, mais encomendava que a restituição de qualquer perda que ele tevesse recebida por causa da amizade que com ele tinha, e outras muitas palavras a que el-Rei respondeu, dizendo que ele perdia mui pouco em perder seu estado por amor del-Rei de Portugal, seu irmão, pera o que ele desejava aventurar por seu serviço, quanto 278 mais que os danos da guerra passada mais foram de seu imigo que dele, e os trabalhos de defender aquele seu reino de Cochi não eram seus nem dos seus súbditos e vassalos, senão dos portugueses que ali estavam, principalmente do capitão Duarte Pacheco. E que algum trabalho que o seu reino podia receber, el-Rei, seu irmão, lho pagava 292 cada ano nas cousas que por amor dele fazia; de maneira que, recompensada υa cousa por outra, ele era o que ficava devendo. Que em sinal destas mercês e favores que cada dia recebia (pois em al o não podia servir), ele queria logo mandar ordenar a carga da especearia e que ele, Lopo Soares, podia descansar nesta parte. As quais palavras Lopo Soares respondeu com outras, assi da parte del-Rei como da sua, conformes ao que elas mereciam; com que se espediram um do outro mui contentes. E porque a este tempo el-Rei, por causas das guerras passadas, estava na Ilha de Vaipi, e ele desejava de se passar à Ilha de Cochi, onde era sua própria vivenda, segundo deu conta a Lopo Soares, mandou ele, António de Saldanha, que com alguns batéis de que eram capitães Tristão da Silva, Pero Rafael, Pero Juzarte e Rui Lourenço, que o levassem. Os quais foram com muita festa de trombetas, bandeiras e gente luzida, fazendo toda honra e acatamento à pessoa del-Rei, como se foram seus vassalos, porque o queriam contentar e comprazer, por razão dos grandes trabalhos que tinha padecido por conservar a amizade del-Rei Dom Manuel.

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278 88v 292 Capítulo X. Como Lopo Soares, a requerimento del-Rei de Cochi, deu em Cranganor e destruiu; e da ajuda que mandou a el-Rei de Tanor e as causas porquê. Havendo um mês que Lopo Soares era chegado, el-Rei de Cochi lhe deu conta como de um lugar chamado Cranganor, que seria dali quatro léguas, per um rio dentro contra Calecute, recebia muito dano, por ser lugar de frontaria que o Samori tinha fortalecido; que lhe pedia muito que, enquanto as naus estavam à carga, houvesse por bem de mandar sobre ele pera o destruir de todo. Lopo Soares, como já tinha informação deste lugar per Duarte Pacheco e quam prejudicial era a sua vezinhança, determinou de ir logo sobre ele, e assi o disse a el-Rei com palavras de que ele ainda levou maior contentamento. Juntos pera este negócio vinte batéis, em que entravam os esquifes das naus, determinou Lopo Soares em pessoa de ir a este lugar, e tam secretamente que não se soubesse em Cochi, por não darem aviso aos imigos, que, segundo tinha sabido, estava no lugar um capitão do Samori, chamado Maimame, e o Príncipe Nambeadari, com gente de guarnição, por causa da qual guarnição el-Rei de Cochi mandou per terra o Príncipe, seu sobrinho, com alguns naires e frecheiros. 279 Partido Lopo Soares υa ante menhã, foram dormir a um lugar, 293 por esperarem ali o Príncipe de Cochi, que com sua gente vinha per terra per outra parte; o qual se deteve tanto que, quando ao outro dia chegaram, posto que foi em amanhecendo, já a terra era apelidada e posta em armas. E o primeiro encontro que os nossos acharam foram duas naus do próprio capitão Maimame, atulhadas de gente, e dous filhos seus que, em os nossos as cometendo, com ânimo de valentes homens as defenderam. Mas não durou muito este seu fervor, porque a custa de feridos e mortos elas foram entradas e entregues ao fogo. O qual feito se fez per os primeiros capitães a quem Lopo Soares tinha dado a dianteira, que eram António de Saldanha, Pedro Afonso de Aguiar, Tristão da Silva, Vasco Carvalho e Afonso Lopes da Costa. Acabado este feito, que se fez no rio, pôs Lopo Soares com o corpo de toda a gente o peito em terra, que foi tomada com assaz trabalho e sangue de todos, porque os mouros e índios cobriam a praia com o grande número deles, e ante que os nossos chegassem a bote de lança, foi entre uns e os outros υa nuvem de setas tam basta, que não davam lugar a que os nossos entrassem em caminho, e não entendiam em mais que amparar-se e escudar daqueles exames de setas que lhe ferviam ante os olhos. Té que as nossas espingardas e bestas fizeram lugar com que começaram de tomar mais posse da terra e os vieram careando a bote das lanças pera a povoação, que foi logo entrada e posta em poder de fogo, porque ela estava já tam despejada, que não houve esbulho em que a gente de armas se detivesse, e a maior presa que ali houve foram trinta e cinco zambucos e paraus, que se trouxeram pera el-Rei de Cochi, como sinal da vitória que houveram de seu imigo. E posto que o fogo tomou muita licença no que queimou, maior a tomara se não sobreviera algυa gente da terra, que eram dos cristãos que ali viviam, e vieram a Vasco da Gama como atrás fica, por causa dos quais Lopo Soares mandou que se não fizesse mais dano, pois tinham ali sua vivenda em companhia dos mouros e gentios da terra. O Príncipe de Cochi, porque os nossos deram maior pressa a este negócio do que ele trazia e não pôde ser presente a ele, quando chegou, por honra de sua pessoa e entre eles se haver por vitória contra os imigos, saltou na terra, decepando algυas palmeiras como senhor do campo, e mandou trazer uma em um parau por triunfo daquele feito. O qual, não somente quebrou a soberba do Samori, mas ainda deu ânimo a alguns seus imigos; porque, chegado Lopo Soares a Cochi com a

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vitória dele, di a dous dias el-Rei de Tanor, seu vassalo, se mandou queixar a ele per seus embaixadores, pedindo-lhe paz e ajuda contra ele, do qual era desavindo por cousas que tocavam ao serviço del-Rei de Portugal. E vindo ele, Samori, sobre isso com gente pera o destruir, ele lhe saíra ao encontro em um passo do qual 280 houvera vitória, ao tempo que Lopo Soares destruíra Cranganor, em favor e defensão do qual ele, Samori, ia, parecendo-lhe que, se passasse, podia castigar a ele e ir avante, do qual trabalho ele o tirou com a vitória que lhe Deus deu. 89 Que o 294 favor e ajuda que dele queria, era mandar ao seu porto de Tanor algυa nau com gente e artelharia, porque tinha per nova que o Samori com maior indinação, como homem injuriado, vinha outra vez sobre ele. Lopo Soares, depois que ouviu os embaixadores, os mandou muito bem agasalhar e quis-se informar del-Rei de Cochi e de Duarte Pacheco desta novidade del-Rei de Tanor, sendo um tam principal imigo como eles diziam, e que naquela guerra passada sempre servira a el-Rei de Calecute, que não sabia como podia mover υa tal cousa; que, quanto ao que ele sentia deste negócio, verdadeiramente tinha pera si que era algυa simulação, afim de lhe não darem sobre este lugar com o temor da nova da destruição de Cranganor. A qual suspeita el-Rei de Cochi lhe desfez, e assi Duarte Pacheco, polo que tinha sabido per alguns principais da terra; e a causa de mandar pedir esta ajuda era esta: Este reino de Tanor antiguamente fora livre e não súbdito e continha em seu estado muitas terras; mas, como o vezinho poderoso sempre vai comendo do fraco, os Reis de Calecute o poseram em tal estado, que não ficou mais aos Príncipes dele que aquela povoação do porto de Panane - e isto em vida deste Rei que reinava, de maneira que de Rei livre ficou tributário ao Samori. O qual Rei, parecendo-lhe que per serviços de sua pessoa podia cobrar dele, Samori, o que não podera defender em todolas guerras passadas que ele, Samori, teve, foi um dos principais e mais continos que o serviram, sem haver galardão de seus trabalhos. Mas parece que nenhυa cousa destas satisfez ao Samori, e per qualquer causa que foi, temendo-se dele que podia com nosso favor tirar o laço do pescoço de sua servidão, determinou de lhe tomar este porto de Tanor e o mais que tinha. Finalmente, posto o Samori em caminho com dez mil homens pera vir a Cranganor, em ajuda do Príncipe de Calecute, e Marmame, seu Capitão-mor, temendo o que sucedeu, assentou que à tornada, quando se recolhesse a Calecute, daria em Tanor. Peró, primeiro que ele chegasse a este efeito, lhe sucedeu outro não esperado dele, e foi que el-Rei de Tanor subitamente, em um passo, lhe saiu e o desbaratou. Com a qual obra fez el-Rei de Tanor duas cousas: vingou-se primeiro que o Samori desse nele, e mais foi empedimento pera se não ir ajuntar em Cranganor com os seus; que, per ventura, se o fizera, não houvera Lopo Soares tam levemente vitória deles. Teve ainda el-Rei de Tanor outra boa fortuna: que, indo o Príncipe de Calecute e Marmame desbaratados dos nossos, saiu-lhe ele também ao caminho e acabou de os destruir. De maneira que, chegado Pero Rafael com υa caravela armada e quorenta homens que lhe Lopo Soares 281 mandava polo requerimento dos seus embaixadores, tinha já el-Rei de Tanor havido estas vitórias, estando ele, quando os mandou a pedir este socorro, esperando cada dia pelo Samori que o vinha destruir. E como homem mimoso da boa fortuna daquelas vitórias, já recebeu com cerimónias de majestade de sua pessoa a 295 Pero Rafael, dando-lhe agradecimentos de sua boa chegada, e que ao presente não tinha necessidade dele, por seu imigo ser já posto em salvo, mais temido que soberbo. Que ele esperava de cobrar todo seu estado com favor e ajuda das armadas del-Rei de Portugal, cujo servidor ele seria todo o

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tempo de sua vida; e que pera isso oferecia sua pessoa, fazenda e estado, quando por seus capitães fosse requerido. E com esta e outras ofertas de palavra que mandou a Lopo Soares, espediu a Pero Rafael, que se tornou a Cochi.

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281 89 295 Capítulo XI. Como Lopo Soares, depois de feita sua carga de especearia e espedido del-Rei de Cochi, de caminho deu em um lugar del-Rei de Calecute, chamado Panane, onde pelejou com alguns seus capitães que estavam em guarda de dezassete naus, as quais queimou; e acabado este feito partiu pera este reino, onde chegou a salvamento. Enquanto estas cousas passaram, posto que também se entendesse em a carga das naus, porque elas eram muitas e com a guerra o negócio da pimenta não andava tam corrente que assi em breve se pudesse haver, e mais por a maior parte dele ser feito per mãos de mouros mui vagarosos, ordenou Lopo Soares de mandar a Coulão cinco naus - capitães Pero de Mendoça, Lopo de Abreu, António de Saldanha, Rui Lourenço e Felipe de Castro - pera lá haverem carga. Porque, além 89v de ter recado de António de Sá, que estava por feitor daquela feitoria, que tinha recolhido boa soma de pimenta, também per conselho dele e de Duarte Pacheco, que dela era vindo, quis mandar aquelas cinco velas per favor da nossa feitoria, ca andavam os mouros tam alevantados contra António de Sá, que com trabalho lhe queriam dar pimenta e não vinha nau de mouros ao porto de Coulão, que logo não fosse despachada, apesar dele. Assi que por estas causas as enviou, e em breve foram e vieram com sua carga, a tempo que as outras estavam prestes. E porque el-Rei Dom Manuel mandava a Lopo Soares que, em guarda da fortaleza de Cochi e assi daquela costa, ficasse Manuel Teles Barreto, filho de Afonso Teles Barreto, por Capitão-mor de quatro velas, à espedida que teve com el-Rei de Cochi lho entregou com palavras, de que el-Rei ficou satisfeito, acerca da segurança de seu estado, posto que ele quisera, pola experiência que tinha dele, que ficara Duarte Pacheco. Com o qual Manuel Teles, por serem homens conhecidos del-Rei e andarem sempre naquela guerra e o comprazer nisso, ficaram Pero Rafael e Diogo 282 Dias e Cristóvão Juzarte. E nesta espedida que Lopo Soares teve com el-Rei, não lhe quis dar 296 conta do que determinava fazer de caminho, que era dar em um lugar do Samori, chamado Panane, temendo que, comunicando este negócio com ele, fossem logo os mouros avisados, por não se guardar muito segredo entre eles, principalmente como tocava em cousas nossas. A qual ida Lopo Soares assentou com os capitães, e principalmente com Duarte Pacheco, por ter sabido, quando logo ele chegou, que naquele lugar de Panane estavam dezassete naus de mercadores do estreito de Meca pera tomar carga de especearia; por a qual razão υa das cousas que Lopo Soares proveo, em chegando, foi mandar a Pero de Mendoça por Capitão-mor de três velas, que andasse em guarda dos portos de Calecute, por não sair ou entrar nau sem ser per ele vista. Finalmente, assentadas todalas cousas que convinham à fortaleza, e espedido del-Rei, ele, Lopo Soares, se partiu a vinte seis de Dezembro, levando em sua companhia Manuel Teles com os outros capitães de sua bandeira, pera serem com ele naquele feito. E seguindo seu caminho, levando diante as caravelas chegadas à costa e ele com as naus de largo por irem carregadas, sendo tanto avante como Panane, saíram a elas vinte paraus bem artelhados; e, como genetes ligeiros, começaram despender sua pólvora e almazém. Os quais, segundo logo pareceu, de indústria vinham travar com elas; e, como a frota das naus da carga se mostrou, fengiram temor e começaram de se recolher pera dentro do rio, onde as naus dos mouros estavam, porque lhe pareceu que, por os nossos irem já de caminho com carga feita, não se haviam de querer meter dentro em ventura, por o rio não lhe dar lugar, principalmente com um baluarte que defendia a entrada, posto que as

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caravelas o quisessem cometer. E verdadeiramente posto o negócio em conselho, os mouros estavam na verdade, que não era cousa pera cometer entrar naquele rio segundo ele estava defensável; e mais impossível lhe parecera, se souberam o modo que os nossos depois teveram em cometer este feito. Porque quem podia crer que obra de trezentos e sessenta homens, em quinze batéis e duas caravelas, haviam de cometer dezassete naus grossas com muita artelharia, encadeadas υas em outras, tam juntas, com as popas em terra, a maneira de alcantilada, que parecia um eirado soberbo sobre o mar, em guarda das quais estavam quatro mil homens? Porém como as cousas da honra, acerca daqueles que a tem por vida, precedem todolos perigos da morte, e mais este caso, que tratava do estado da Índia, não se quis vir Lopo Soares sem o leixar concluído; o qual per ventura fizera mais dano que as guerras passadas, por ficar o Samori mui escandalizado do feito de Cranganor e del-Rei de Tanor. Assi que, havida outra consideração e conselho, ainda que confuso, por ainda não terem visto como as naus estavam, assentou Lopo Soares de 283 as ir 297 queimar, levando diante Pero Rafael e Diogo Dias, que tinham as caravelas mais pequenas, e ele em quinze batéis. O qual, partido das naus com grande estrondo de trombetas e grita da gente, nesta ordem das caravelas ante si, quási por amparo da artelharia dos mouros, que ao longe lhe podia fazer mais dano que ao perto, principalmente de um baluarte que, à entrada da barra, estava cheo dela, a primeira caravela, que foi a de Pero Rafael, assi a salvaram, que com as rachas que fez a artelharia em os altos dela lhe feriu muita gente; e sobre isso carregaram os paraus que a vieram demandar, lançando-lhe dentro um grande 90 número de frechas, que lhe encravou muitos homens. A qual entrada assi embaraçou a gente do mar na mareagem da caravela, que, por se lançarem a outra parte e fugir o perigo do baluarte, foram cair em outro pior: e era de baixo de υa nau grossa já dentro no porto, que por ser mui altarosa padeceram mui grande trabalho, e em se amparar das frechas e arremessos de zargunchos, quási a mão-tenente, teveram bem que fazer; do qual perigo ficaram muitos mui mal feridos. A outra caravela - capitão Diogo Dias -, indo na esteira deste baluarte, lhe mataram um marinheiro que ia ao leme; e, porque os outros se chegavam de má vontade àquele lugar, como a caravela não sentiu governo, deu consigo em um baixo, de maneira que ambas ficaram em estado que mais haviam mister ajuda do que a podiam dar a ninguém. Lopo Soares, que vinha detrás delas, peró que viu o perigo per que passaram, não houve mais ordem de esperar outro conselho, senão dar as trombetas com Santiago na boca a quem remaria e seria primeiro com as naus, como quem corria um pário naval, cujo termo da vitória era chegar a elas. E parece que Nosso Senhor lhe quis poer este empedimento nas caravelas de os não poderem naquela chegada ajudar, pera que a vitória fosse mais milagrosa. Porque, aferrando cada um sua nau, assi levava o espírito posto em confiança de vitória, que lhe não lembrava que ia cometer υa nau atulhada de gente e tam alta de subir, que em paz quieta um homem pederia υa escada de corda de que lançasse mão. E porém logo na chegada, estando Lopo Soares pera aferrar, υa bombarda lhe matou um homem, e feriram quatro. E Tristão da Silva, que foi dos primeiros, subindo per outra, o deitaram abaixo; e outro tanto fizeram a Pero de Mendoça; e a António de Saldanha com outra bombarda lhe arrombaram o seu batel, e levou a barriga da perna a um criado seu, de que ficou aleixado. E porque era já maior o perigo de se afogarem, por o batel se ir ao fundo, que cometer as naus, tomou posse de υa com os que levava. Manuel Teles, Duarte Pacheco aferraram υa que diziam ser a capitânia das outras, onde acharam bem o trabalho, 298 porque havia nela muitos turcos, homens mui valentes e despachados, que não chegavam a eles sem fazerem sangue.

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Finalmente, cada um em 284 a nau que lhe coube em sorte, com morte do capitão dos turcos e alguns mouros e muitos do gentio da terra, deu tal conta dela, que poucos e poucos, subindo ao alto, se fizeram senhores de todas, lançando-se os mouros ao mar, onde poucos escapavam, porque os marinheiros dos batéis às lançadas os mataram. E sem se saber quem nem por cujo mandado, foi posto fogo às naus, e assi tomou ele posse delas, que as não leixou até o lume de água, onde ardeu muita fazenda, porque estavam pera partir quási de todo carregadas. E foi a cousa que mais espantou aos da terra, vendo que sem ter cobiça de tanta riqueza como nelas estavam, tam levemente foram queimadas. E diziam que isto se fizera em vingança do que fora feito a Aires Correa. Porém a vitória não foi sem custo, porque dos nossos morreram vinte e três pessoas e cento e setenta feridos, porque durou a peleja de pela menhã té horas de meio-dia; e, segundo se depois soube em Cananor, morreram dos imigos setecentos e feridos um grande número deles. Acabado este feito, tornou-se Lopo Soares recolher às naus e naquele dia não se estendeu em mais que na cura dos feridos; e ao seguinte, que era dia de Janeiro do ano de quinhentos e cinco, se fez à vela, caminho de Cananor, onde foram recebidos com muita festa e prazer dos nossos que ali estavam. Os quais, segundo cada dia eram assoberbados dos mouros, moradores da terra, se Lopo Soares ficara com algυa quebra daquele feito, ou as naus ficaram inteiras, não ousaram estar ali mais, por verem que el-Rei era mui sujeito a estes mouros e levemente lhe perdoava qualquer erro, polo rendimento que tinha deles em seus tratos. Porém sabendo ele que Lopo Soares era chegado, do lugar onde estava, que era contra a serra, o veo logo ver, mostrando grande contentamento da vitória que houve. Na qual vista, porque era também espedida, Lopo Soares, lhe encomendou o feitor e oficiais e gente que ali ficava debaixo do amparo de sua verdade, passando ambos sobre isto muitas palavras, em que el-Rei deu grande penhor de maneira que haviam de ser tratados e favorecidos. E com isto se espediam ambos. Acabada de tomar a carga que ali estava prestes, fez-se Lopo Soares à vela, via deste reino, espedindo de si a Manuel Teles com os outros capitães que ficavam com ele; e com bom tempo que lhe fez, ao primeiro de Fevereiro chegou a Melinde, 90v onde foi provido de muitos refrescos que lhe el-Rei mandou às naus. Partido daqui com tenção de queimar um lugar del-Rei de Mombaça, a rogo del-Rei de Melinde, aconteceu que passou per ele com as águas que corriam e não pôde tomar terra, e foi ter a Quíloa, por recolher as páreas que el-Rei devia de dous anos, de que se ele escusou, por pobreza. Ao qual Lopo Soares não quis muito apertar, vendo que submetia sua pessoa à obediência do que ele mandasse, mostrando que por seus rogos aquele ano lhe 285 não 299 queria paga, somente que a tevesse prestes ao seguinte, pera o capitão que ali viesse. Espedido dele, partiu-se a dez de Fevereiro, e em Moçambique se deteve dez ou onze dias, tomando água e lenha e esperando por corregimento da nau de António de Saldanha, que fazia muita água; donde mandou diante a Pero de Mendoça e a Lopo de Abreu, que trouxessem a nova de sua vinda a este reino. Os quais sendo catorze léguas de aguada de São Brás, de noite encalhou Pero de Mendoça em terra e pela menhã Lopo de Abreu o viu estar com o traquete desferido, e por causa do tempo não lhe pôde valer, com que Pero de Mendoça ficou sem se mais saber dele; e parece que ele pagou por toda a frota, porque Lopo de Abreu veo a salvamento a Lisboa, nove dias ante Lopo Soares. O qual, partido de Moçambique, posto que no cabo teve um temporal com que algυas naus se apartaram dele, assi como António de Saldanha, que com o masto quebrado foi ter à Ilha de Santa Helena, e outros correram outras fortunas, per derradeiro se ajuntaram com ele nas Ilhas Terceiras, donde partiu pera este reino, e entrou no porto de Lisboa a vinte dous de Julho, com treze

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velas juntas; e di a poucos dias entrou a nau de Setúbal, de que era capitão Diogo Fernandes Pereira, que vinha com boas presas que fez na costa de Melinde diante de António de Saldanha, e foi invernar à Ilha Socotorá, que novamente descobriu. E por chegar a Cochi, depois que Lopo Soares estava a carga, conveo-lhe tomar a sua per derradeiro de todos, que causou não vir em sua companhia. Demos esta relação dele, porque, depois que se apartou de António de Saldanha, não o tínhamos feito, e podia-nos alguém pedir conta dele. Assi que, com a armada de Lopo Soares vieram três capitães do ano passado, e foi esta sua viagem υa das mais bem afortunadas que se fez de tam grossa armada, porque foi e veo junta em espaço de catorze meses e trouxe mui rica carga, com fazer dous feitos mui honrados, um dos quais foi dos melhores (em ser bem cometido, pelejado e perigoso) que se naquelas partes viu.

LIVRO VIII 287 91 301 Capítulo primeiro. Do modo que se navegavam as especearias té virem a estas partes da Europa, ante que descobríssemos e conquistássemos a Índia per este nosso mar Oceano; e das embaixadas que os mouros e príncipes daquelas partes mandaram ao Soldão do Cairo, pedindo-lhe ajuda contra nós. Como toda esta nossa Ásia vai fundada sobre navegações, por causa das armadas que ordinariamente em cada um ano se fazem pera a conquista e comércio dela, e as cousas que pertencem a sua milícia imos relatando, segundo a ordem dos tempos, convém, pera melhor intendimento da história, darmos ua geral relação do modo que se naquelas partes de Ásia navegava a especiaria com todalas outras orientais riquezas, té virem a esta nossa Europa, ante que abríssemos o caminho que lhe demos pera este nosso Mar Oceano, peró que em o tratado do Comércio copiosamente o escrevemos. E também é necessário que, quando falarmos nesta navegação e comércio da Índia, não se há de entender que estas duas cousas estão limitadas em aquelas duas regiões, a que os antíguos chamaram Índia dentro do Gange, e Índia além do Gange. Porque as nossas navegações e conquista daquela parte, a que propriamente chamamos Ásia, não se contém somente na terra firme, que começa em o Mar Roxo, onde se ela aparta da África, e acaba na oriental plaga, a que ora chamamos a Costa da China, mas ainda compreendem aquelas tantas mil ilhas, a esta terra de Ásia adjacentes, tam grandes em 302 terra e tantas 288 em número, que, sendo juntas em um corpo, podiam constituir outra parte do Mundo, maior do que é esta nossa Europa. Por cuja causa em a nossa Geografia, destas e doutras ilhas descobertas fazemos ua quarta parte em que se o orbe da terra pode dividir, porque muitas estão tam distantes da costa, que lhe não pertencem por adjacência ou vezinhança. Per todas as quais partes, ao tempo que descobrimos a Índia, assi os gentios como os mouros andavam comutando e trocando uas mercadorias por outras (segundo a natureza dispôs suas sementes e fructos, e deu indústria aos homens, em a mecânica de suas obras). As que jaziam além da cidade de Malaca, situada na Áurea Quersoneso (nome que os geógrafos deram àquela terra), assi como cravo das Ilhas de Maluco, noz e massa de Banda, sândalo de Timor, cânfora de Bornéu, ouro e prata do Líquio ; com todalas riquezas e espécies aromáticas, cheiros e polícias da China, Jaua e Sião e doutras partes e ilhas a esta terra adjacentes, todas, no tempo de suas monções, concorriam àquela riquíssima Malaca, como a um empório e feira universal do Oriente. Onde os moradores destoutras partes, a ela ocidentais, que se contém até o estreito do Mar Roxo, as iam buscar a troco das que levavam, fazendo comutação de uas por outras, sem entre eles haver uso de moeda. Porque, ainda que ali houvesse muita cópia de ouro de Samatra e do Líquio, em que na Índia se ganhava mais que a quarta parte, era tanto maior o ganho das outras, que ficava 91v o ouro em tam vil estimação, que ninguém o queria levar. E como Malaca era um centro onde concorriam todos os navegantes que andavam nesta permutação, assi os da cidade de Calecute, situada na Costa de Malabar, e os da cidade de Cambaia, situada na enseada que tomou o nome dela, e os da cidade Ormuz, posta na Ilha Geru, dentro na garganta do Mar Pérsico, como os da cidade Adem, edificada de fora das portas do Mar Roxo, todos com a riqueza deste comércio tinham feito a estas cidades mui ilustres e celebradas feiras. Porque não somente traziam a elas o que navegavam de Malaca, mas ainda os rubis e lacre de Pegu, a roupa de Bengala, aljôfar de Calecaré, diamantes de Narsinga, canela e rubis de Ceilão, pimenta e

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gengivre e outros mil géneros de espécias aromáticas, assi da Costa Malabar, como doutras partes onde a natureza depositou seus tesouros. E as que desta parte da Índia se ajuntavam em Ormuz, leixando ali, a troco doutras, as que serviram pera as partes da Turquia e da nossa Europa, eram navegadas per este Mar Pérsico té a povoação de Batsorá, que está nas correntes do Rio Eufrates, a qual ora é ua cidade célebre com o favor que lhe deram os nossos capitães de Ormuz. No qual lugar eram repartidas 303 em cáfilas, uas pera Arménia e Trapesonda e Tartária, que jaz sobre o Mar Maior, outras pera as 289 cidades Alepo e Damasco, té chegarem ao porto de Barute, que é no Mar Mediterrâneo, onde as vendiam a venezeanos, genoeses e catelães, que naquele tempo eram senhores deste trato. A outra especearia que entrava per o Mar Roxo, fazendo suas escalas per os portos dele, chegava ao Toro ou a Suez, situados no último seo deste mar, e daqui, em cáfilas, per caminho de três dias, era levada à cidade do Cairo, e di, per o Nilo abaixo, a Alexandria, onde as nações que acima dissemos a carregavam pera estas partes da Cristandade, como ainda agora em algua maneira fazem. E per qualquer destes dous estreitos que esta especearia entrava nas terras de Arábia, quando vinha à saída, era per os portos do Estado do Soldão do Cairo. Cuja potência, ante de ser metida na Coroa da Casa Otomana dos Turcos, começava no fim do reino de Tunes, em aquele cabo a que ora os mareantes de Levante chamam Ras-Ausem e Ptolomeu - Bóreo Promontório -, e acabava em ua enseada chamada per eles o Golfão de Laraza, por razão de ua povoação deste nome que ali está; a qual, segundo a situação dela, parece ser a vila a que Ptolomeu chama Serrepolis, na qual distância de costa pode haver trezentas e sessenta léguas, que contém em si muitos e mui célebres portos. E per dentro do sertão se estendia per o Nilo acima, à região Tebaida, a que os naturais ora chamam Caida, té chegar à antiquíssima cidade Ptolomaida, cujo nome ora é Hicina, que acerca daqueles bárbaros quere dizer esquecimento; e dali vinha beber ao Mar Roxo. Passando o qual, entrava na terra de Arábia, vindo a vezinhar com o Xarife Baracate, senhor da Casa de Meca, atravessando os bárbaros daquele deserto, té dar consigo em a cidade chamada Bir, que jaz nas correntes de Eufrates, e tornando fazer outro curso contra o Ocidente, acabava em o Golfão de Laraza, que dissemos. No qual circuito de terra se compreendia grã parte da Arábia Deserta, toda a Petrea, Judea e muita da Síria, com todo Egipto a que chamam Metser de Mitsraim , nome per que os hebreus e arábios nomeam a região de Egipto, por esta cidade Cairo ser a cabeça dele, dando o nome do todo à parte. E ao tempo da nossa entrada na Índia, era senhor deste grande estado Canaçau, a que alguns dos nossos chamam Cansor, o qual se intitulava com este apelido Algauri, de que se ele muito gloriava, por lhe ser posto por causa de ua grã vitória que houve de um rei da Pérsia, junto de ua alagoa chamada Algaor, que faz o Rio Eufrates, entre Enz e Bagadade, donde lhe deram por apelido Algauri. Neste mesmo tempo, reinava em Turquia, Celim, décimo da geração 304 otomana, e era senhor de Meca o Xarife Baracate, entre os mouros mui celebrado em nome, não tanto por seus feitos, quanto por o grande discurso de tempo que viveu neste estado. E era senhor de Adem Xeque 290 Hamede, o qual vezinhava com este outro Xarife por parte da terra chamada Jazem, que é dentro das portas do Estreito, defronte da Ilha Camarão. E era Rei de Ormuz Ceifadim, deste nome o segundo, e do reino de Guzarate, Machamude, o primeiro deste nome. Assi estes 92 Reis e Príncipes, como os mercadores per cujas mãos corria o comércio da especearia e orientais

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riquezas, vendo que com nossa entrada na Índia, per espaço tam breve como eram cinco anos, tínhamos tomado posse da navegação daqueles mares, e eles perdido o comércio de que eram senhores havia tantos tempos, e sobretudo éramos ua bofetada na sua Casa de Meca, pois já começávamos chegar às portas do Mar Roxo, tolhendo os seus romeiros, eram todas estas cousas a eles tam grã dor e tristeza, que não somente àqueles a que tínhamos ofendido, mas a todos em geral era o nosso nome tam avorrecido, que cada um em seu modo procurava de o destruir. E como a gente a que isso mais tocava eram os mouros que viviam no reino de Calecute, ordenaram de enviar ua embaixada ao grã Soldão do Cairo, como a pessoa que podia resistir a este comum dano, fazendo com o Samori, Rei da terra, que lhe enviasse um presente com outra tal embaixada, notificando-lhe os grandes males e danos que de nós tinha recebido, por defender os mercadores do Cairo residentes na sua cidade Calecute. Tomando por conclusão de seu requerimento, que lhe mandasse ua grossa armada com gente e armas pera nos lançar da Índia, que ele a proveria de dinheiro e mantimentos, como lá fosse. Com a qual embaixada foi um mouro principal, chamado Maimamé, homem mais dado à religião de sua seita que às armas, e foi em ua galé de feição das nossas, sem apelação, a qual depois acabou em Chaúl, como veremos em seu lugar. Acrescentou mais a este clamor dos mouros e requerimento do Samori, outro tal embaixador do Xeque de Adem, o qual embaixador era Xarife daqueles que dizem vir da linhagem de Mafamede, porque per via de religioso podia provocar mais ao Soldão pera acudir a estes danos como defensor da Casa de Meca, segundo se ele intitulava, pedindo que com diligência posesse neste caso o braço de sua potência, porque ele, por sua parte, mandaria também ainda àqueles míseros que habitavam no reino de Calecute, onde nossas armas tinham derramado muito sangue arábico, em que entraram alguns da linhagem do seu profeta, que per via de martírio eram havidos por santos acerca dos arábios.

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291 92 305 Capítulo II. Como o Soldão do Cairo escreveu ao Papa per um religioso da Casa de Santa Caterina de Monte Sinai, queixando-se das nossas armadas da Índia; e como o Papa mandou o próprio religioso a este reino e do que lhe el-Rei respondeu. O Soldão, movido com estas embaixadas e outros clamores dos mouros do Cairo que tratavam na Índia, e principalmente com a grande perda do rendimento da entrada e saída das especearias per seus portos, o qual dano já começava sentir e lhe chegava mais que as ofensas alheas, começou de se inflamar contra nós, como homem mimoso da prosperidade de seu estado, e que não tinha visto a fortuna dele, que di a pouco tempo passou. E posto que, nesta indinação de palavras, desse aos embaixadores grande esperança do que sobre este caso per armas havia de fazer, contudo quis primeiro usar de ua cautela que delas, parecendo-lhe que per este modo desistiria el-Rei da impresa da Índia, por ouvir dizer que os reis de Portugal eram muito zelosos da fé que tinham e religiosos na observação dela. A qual cautela de que usou foi lançar fama que a sua tenção era destruir o templo de Jerusalém, e a Casa de Santa Catarina de Monte Sinai, com todas as relíquias que houvesse na Terra Santa, e mais não consentir que em seu estado andasse algum cristão destas partes de Europa; e os que residiam no Cairo, Alexandria, Alepo, Damasco e Barute por razão do comércio, que forçosamente os havia de mandar fazer mouros, não se saindo em tantos meses de todo seu estado, isto em recompensa de dous tam grandes males como eram feitos aos mouros, cujo defensor e protector ele era, por ser Emperador e Califa da Casa de Meca. Um dos quais males fazia el-Rei Dom Fernando de Castela, fazendo cristãos per força a todolos mouros do reino de Grada e o outro, que era muito maior mal, fazia el-Rei Dom Manuel de Portugal, seu genro. O qual, não contente 92v de mandar suas armadas à Índia a conquistar a terra dos gentios, mas ainda tolhia a navegação dos mares e comércio dela, que os mouros tinham adquerido per tantos anos, sendo o comércio um uso comum das gentes, que conciliava amor entre todos, sem ser defendido, o qual comércio ele, Soldão, permitia em todo seu estado, conforme 306 aos costumes da terra a todo género de pessoa, sem ter respeito a lei ou seita que tivesse. E mostrando o Soldão querer poer em efeito estas suas ameaças, teve maneira com que fosse rogado per um Frei Mauro, maioral da casa de Santa Catarina de Monte Sinai, espanhol de nação; e da prática que teve com o Soldão, resultou ele, Frei Mauro, querer vir ao Papa dar-lhe conta deste caso. Porque, como era cabeça da Cristandade, removeria 292 estes dous príncipes deste dano que os mouros deles recebiam, por se não perder a memória das santas relíquias que estavam naquelas partes, e tam grã número de cristãos como nelas andavam. Pera o qual caso vir com mais autoridade, o mesmo Soldão deu ua carta de crença a este Frei Mauro, leixando as palavras da qual, cuja resolução era vir a ele, Frei Mauro, com alguas cousas que faziam a bem da religião cristã, diremos somente estas palavras com que se ele intitulou e assi ao Papa (segundo vimos em o trelado dela que o próprio Frei Mauro trouxe a este reino): - O grande Rei, senhor dos que senhoream, nobre, grande, sabedor, justo e vitorioso; Rei dos Reis, cutelo do Mundo, Príncipe da fé de Mahomet e dos que nele crem; vivificador da justiça em todo o Mundo, herdeiro de reinos, Rei da Arábia, de Gemia, da Pérsia e Turquia; sombra de Deus nas terras, que obra todolas boas cousas, ora sejam per ele mandadas, ora não, o qual neste Mundo é outro Alexandre, de quem muitos bens procedem; Rei dos que se assentam em tribunal e trazem coroa; dador de regiões, terras e cidades; perseguidor dos que se rebelam e dos herejes

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infiéis; conservador dos dous lugares de peregrinos; Sumo Sacerdote dos templos sagrados que estão debaixo de seu poder e contém a fé de Mahomet, que esparge justiça e bondade, resplandor da fé; pai da vitória, Canaçau Algauri, cujo império Deus faça perpétuo e exalce sua cadeira sobre o planeta Géminis - a ti, Papa Romão excelentíssimo e espiritual, que teme a Deus e bem obra, grande na fé antígua dos cristãos fiéis de Jesu, Rei dos Reis Nazarenos, conservador e senhor dos mares e termos marítimos, pai dos Patriarcas e Bispos, Ledor dos Evangelhos e sabedor na sua fé e nas cousas que são e não são lícitas; benigno aos Reis e Príncipes; possuidor do reino romão, cuja glória Deus acrescente. Chegado Frei Mauro com esta carta a Roma, como vinha assombrado das ameaças deste bárbaro e era homem zeloso do bem universal da Igreja, e simples em as malícias dos Príncipes tiranos, fez este negócio tam grave ante o Papa Alexandre, que se determinou em consistório que ele mesmo, Frei Mauro, viesse a Espanha com cartas suas, e com trelado da que escreveu o Soldão, pera representar estas cousas a el-Rei Dom Fernando e a el-Rei Dom Manuel, como a autores da indinação deste tirano. Da vinda do qual religioso a Roma el-Rei Dom Manuel foi logo avisado per pessoas que lá faziam seus negócios, de que teve muito prazer, sabendo que o Soldão começava 307 já sentir as armadas que ele enviava à Índia, as quais, sem terem feito assento nela, somente de passagem, lhe faziam tanto dano que se queixava dele. E porque este recado lhe veo quási na fim de Outubro do ano de quatro e no seguinte tinha ordenado de mandar ua grossa armada à Índia, com capitão geral que lá residisse, tanto o demoveram 293 estes queixumes do Soldão, que dobrou a armada que fazia, e com mais diligência mandou dar despacho às naus, pera que, quando o Padre Frei Mauro viesse a este reino, visse os grandes aparatos da frota e tivesse também que contar do que cá ia, como ele ante o Papa relatava o poder do Soldão, donde o Papa tomou causa pera desejar que el-Rei desistisse da empresa da Índia, ao menos no modo que se tinha com os mouros que lá tratavam, pera que o Soldão não executasse seu furor em aquelas relíquias da Terra Santa. Peró, chegado a este reino o Padre Frei Mauro em Junho, depois da partida da armada, el-Rei com vivas e claras razões o tirou dos temores que trazia, declarando-lhe que este ímpeto de tanta fúria que o Soldão mostrava, mais procedia da perda de suas rendas, por causa da entrada e saída das especearias per os portos de seu estado, que por zelar o bem comum dos mouros. Porque, se isto fora por causa dos danos que 93 eram feito aos de Grada, como ele dezia, já este seu rogo vinha sorôdio, pois havia de vinte anos que o negócio de Grada era passado; quanto mais que todolos mouros foram postos em sua liberdade pera se ir ou ficar no reino, e já sobre este negócio, entre ele e el-Rei Dom Fernando, houvera recados per Pedro Mártir. E que a mesma rezão do interesse, que era a principal que o Soldão neste caso tinha, essa segurava a ele, Frei Mauro, e a todalas cousas que ele temia, porque o Soldão tinha tanto rendimento da Cristandade, por rezão das santas relíquias que havia no seu estado, que mais lhe compria tê-las em veneração, que destruí-las totalmente, e mais lhe importavam que quantas especearias por seus portos podiam vir da Índia. Finalmente, com estas e outras palavras, e grandes esmolas que el-Rei fez ao Padre Frei Mauro pera a Casa de Santa Catarina, ele ficou contente e esquecido dos temores que trazia; e per ele respondeu el-Rei ao Papa. A substância da qual carta era que, leixados os santos e justos propósitos que el-Rei Dom Fernando de Castela teve na conversão dos mouros de Grada, com que ele ganhou glória acerca de Deus e dos homens, quanto ao que tocava a ele, por razão das cousas da Índia, sobre que Sua Santidade lhe escrevera per o Padre Frei Mauro, Deus era testemunha quanto sentimento ele tinha por não ter metido o Soldão em tanta necessidade com suas armadas, que com mais justa causa se podesse queixar delas. Porém ele esperava em Nosso Senhor, em cujo poder estava o direito dos

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bárbaros reinos, pera os dar 308 a quem lhe aprouvesse, que, assi como lhe aprouvera conceder a este reino de Portugal, mediante o trabalho de seus antecesores e seu, ua cousa tam nova e tam pouco esperada das gentes como foi o descobrimento da Índia, assi lhe concederia entrarem suas armadas dentro no Mar Roxo, té irem destruir a casa da abominação de Mafamede, injúria e opróbio da religião cristã. Com a qual obra daria 294 causa a que Sua Santidade incitasse os Reis e Príncipes cristãos, ocupados em guerra de seus próprios membros, a se ajuntarem com ele sua cabeça, per amor e concórdia, pois nele estavam unidos per fé, pera que todos movessem as azes de sua potência contra este bárbaro, que com suas infiéis forças tinha tiranizado o Santuário de nossa Redenção. Porque de crer era, e mui fácil estimação daqueles que bem sentiam, poder-se isto esperar e fazer, pois Sua Santidade via quam cheo de temor já estava este tirano, com saber que suas armadas andavam na Índia, bem remota do Cairo; e isto por não ser costumado haver em seus portos armas dalgum príncipe católico, movidas contra ele. E se isto ele já temia, que se podia esperar dele, quando visse desembarcar em seus portos os exércitos da potência de tantos Príncipes como havia na Europa, e a gente português, mui costumada a guerra destes infiéis, poer as escadas nos muros de Judá, porta per onde ele esperava em Deus que estes seus vassalos entrassem na casa da abominação, e nela levantassem altar pera oferecer oblação aceita a Deus? Na execução da qual obra, ele, como obediente filho da Igreja e zelador de sua glória, prometia a Sua Santidade trabalhar quanto nele fosse, pera que com mais justa causa este infiel se pudesse queixar de suas armadas. Porque, pois prouvera a Nosso Senhor que este reino de Portugal, toda a sua herança se havia de conquistar das mãos dos infiéis e na conquista de África, por haver bênção de seus avós, sempre contra eles trazia seus exércitos, ele esperava per os mares patentes da gentilidade da Índia e depois per as portas do estreito do Mar Roxo, donde saiu esta peste de gentes, enviar tantas armadas, té que, a força de ferro, desse novo património à Igreja Romana naquelas partes orientais. E a bandeira real da milícia de Cristo, herdeira destes tais triunfos, de que ele era governador e perpétuo administrador, fosse dos gentios e mouros temida e adorada, pera glória e louvor da santa Igreja. Pelos méritos da qual, ele esperava nesta vida não ser tido por servo sem proveito, e que esconde o talento de sua possibilidade, pera na outra lhe ser dado o jornal diurno do Senhor.

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294 93 309 Capítulo III. Como neste ano de quinhentos e cinco mandou el-Rei ua grossa armada à Índia, de que foi por Capitão-mor Dom Francisco de Almeida, que depois foi intitulado por Viso-Rei dela. 93v Ante que el-Rei soubesse da vinda deste Frei Mauro, por cuja causa escreveu ao Papa na forma atrás, teve alguns conselhos, cujo fundamento era ver que, per o descurso das quatro armadas passadas que foram à Índia, não convinha irem e virem sem lá ficar quem assistisse a duas 295 cousas que o descobrimento dela tinha dado: a uma era guerra com os mouros, e a outra o comércio com os gentios. E porque as naus que iam e tornavam logo com carga não podiam juntamente fazer estas duas cousas por o tempo ser mui breve, e sobre isso ficava com a vinda delas a costa do Malabar desemparada, com que os mouros tornavam a ser senhores dela e, favorecidos das armadas do Samori, fariam dano aos Reis de Cochi, Cananor e a todolos outros nossos amigos e aliados; pera resistir a este tam certo perigo e prover a outras cousas tam importantes que a experiência do negócio tinha mostrado, pera que era necessário fazerem-se fortalezas onde as naus dessem e tomassem carga, ordenou el-Rei de mandar naus que fossem pera tornarem com a carga da especearia no ano seguinte, e outras velas de menos toneladas, com alguns navios pequenos, pera lá ficarem de armada, e por capitão-mor desta governança a Tristão da Cunha, filho de Nuno da Cunha. O qual, estando de todo prestes, teve um acidente de vágado, com que perdeu a vista, de maneira que esteve muito tempo sem a cobrar, e foi no seguinte ano de quinhentos e seis, como veremos. Ficando a frota por este súbito caso sem capitão, sendo tam acerca da partida, mandou el-Rei chamar a Dom Francisco de Almeida, filho do Conde de Abrantes, Dom Lopo de Almeida, o qual a este tempo estava em Coimbra com o Bispo dela, Dom Jorge, seu irmão; e com palavras da confiança que dele tinha lhe entregou a frota. A qual, estando prestes de todo, um domingo, ante de sua partida, foi el-Rei ouvir missa à Sé, por a este tempo estar em Lisboa, onde com grande solenidade e palavras conformes ao auto lhe entregou a bandeira real. E espedido dali com os capitães e fidalgos da armada, foi levado per todolos senhores e nobreza da Corte com grande pompa, até se embarcarem no Cais da Ribeira; a qual embarcação foi a mais solene que té então neste reino se fez, não sendo de pessoa real. Porque, assi pela nobreza de Dom Francisco de Almeida e fidalguia que com ele embarcara, como pelo cargo e dignidade de Viso-Rei (no modo que adiante veremos) que foi o primeiro título desta calidade que nestes reinos se deu, concorreram, assi da parte dele, como dos 310 que o acompanhavam, todalas cousas em acrescentamento e louvor de honra sua naquela partida, que foi a vinte cinco de Março do ano de quinhentos e cinco, dia solene por cair nele a festa de Nossa Senhora da Encarnação. Em a qual frota, além da gente ordenada pera a navegação das naus, iriam até mil e quinhentos homens de armas, todos gente limpa, em que entravam muitos fidalgos e moradores da casa del-Rei, os quais iam ordenados pera ficar na Índia; e per regimento que el-Rei então fez, eram obrigados servir lá três anos contínuos. Esta limitação de tempo tinham todalas capitanias e quaisquer outros cargos e ofícios, o qual 296

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termo de tempo ainda hoje se guarda. E o soldo que então geralmente se assentou aos homens de armas, eram oitocentos réis por mês, e, depois que chegassem à Índia, tinham mais quatrocentos de mantimento o tempo que estavam em terra; porque quando andavam nas armadas comiam a custa del-Rei. E além deste soldo tinham mais dous quintais e meio de pimenta ao partido do meio em cada um ano, a qual podiam carregar em as naus que viessem pera este reino, que lhe podia importar cinco mil reais; e a gente do mar - capitães, alcaides-mores, feitores, escrivães e todo outro oficial, - a este respeito tinham suas quintaladas, segundo a calidade de seu ofício. E porque este foi o primeiro assento que el-Rei tomou no soldo que os homens haviam de vencer naquelas partes, como cousa nova, de passada, fizemos esta declaração, posto que ao presente é tudo mudado, porque o tempo acrescentou e deminuiu, segundo a desposição dele. As quais velas desta frota eram per todas vinte e duas, das quais doze iam pera logo no ano seguinte tornar com carga de especearia, por serem de muito porte, de que estes eram os capitães: Dom Francisco de Almeida, Capitão-mor; Rui Freire, filho de Nuno Fernandes Freire; Fernão Soares, filho de Gil de Carvalho; Vasco Gomes de Abreu, filho de Antão Gomes de Abreu; Bastião de Sousa, filho de Rui de Abreu, de Elvas; Pero Ferreira Fogaça, filho de Fernão Fogaça; 94 João da Nova; Antão Gonçalves, alcaide de Sesimbra; Diogo Correa, filho de Frei Paio Correa; Lopo de Deus, capitão e piloto, João Serrão. E os capitães que lá haviam de ficar de armada eram: Dom Fernando de Eça, de Campo Maior, filho de Dom Fernando de Eça; Bermum Dias, um fidalgo castelhano; Lopo Sanches, Gonçalo de Paiva, Lucas da Fonseca, Lopo Chanoca, João Homem, Gonçalo Vaz de Góis, Antão Vaz. E além das velas em que iam estes capitães, estavam também outras seis prestes; e polo que adiante diremos, ficaram té dezoito de Maio, que partiram em companhia de Pero de Anhaia, que foi pera fazer a fortaleza de Sofala, onde havia de ser capitão. Partida esta frota de ante Nossa Senhora de Belém, com bom tempo que lhe fez, a seis de Abril chegou a Cabo Verde, onde chamam o Porto Dale, em o qual estava fazendo resgate de escravos uma caravela deste reino, per meio da qual, enquanto a frota fazia aguada, foi avisado o Rei da terra, que 311 com desejo de ver tam grande cousa veo com suas mulheres e filhos a se pôr em uma aldea à vista da nossa frota. Dom Francisco, sabendo a causa da sua vinda, o mandou visitar per João da Nova, cuja em companhia foram alguas pessoas nobres, com licença por verem o estado daquele bárbaro príncipe; aos quais ele a seu modo fez muita honra, mandando-lhe matar alguas vacas que trouxeram pera seu refresco, e outras que enviou ao Capitão-mor, em retorno do que lhe levou João da Nova. E porque algua das 297 naus foram ancorar em ua angra pequena, chamada Bezeguiche, que ficava mais acima contra o cabo, e o tempo não lhe servia pera virem ao lugar donde estava Dom Francisco, esteveram uas em ua parte e outra fazendo suas aguadas, té que o tempo ajuntou toda a frota. Dom Francisco, porque alguas naus dela não eram companheiras na vela, e faziam perder caminho às outras, per conselho dos capitães e pilotos repartiu a frota em duas partes: ua das naus veleiras tomou pera si e outra deu a Bastião de Sousa, capitão da nau Conceição, dando-lhe regimento do caminho que havia de fazer. Partido com esta ordenança daquele porto, a vinte cinco dias de Abril, ante que chegasse à Linha, obra de quorenta léguas, a quatro de Maio, abriu a nau Bela, capitão Pero Ferreira, ua água tam grossa, que, não a podendo tomar nem vencer, se foi ao fundo, em tempo que o Capitão-mor lhe mandou acudir com todolos batéis, de maneira que, além da gente, se salvou grã parte da fazenda que ia sobre coberta, o que tudo se repartiu pelas outras naus. Tornando a seu caminho, posto que não foi com grandes temporais, os pilotos, por segurar

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dobrarem o Cabo, meteram-se em tanta altura contra o Sul, que em os navios pequenos não podiam os homens trabalhar com frio; e dali vieram descaindo, metendo-se no quente, té que, a dezoito de Julho, chegaram a terra que jaz entre as Ilhas primeiras de Moçambique. E porque em Quíloa e Mombaça tinha que fazer, espedido dali Gonçalo de Paiva e Bermum Dias, que fossem a Moçambique saber se ficaram ali alguas cartas da frota de Lopo Soares, e também se eram chegadas naus da capitania de Bastião de Sousa e duas que lhe faleciam, de sua conserva; e, sabido isto, se fossem caminho de Quíloa, onde os esperava. Espedidos estes dous navios a vinte e dous de Julho, dia da Madalena, surgiu em Quíloa com oito velas que o seguiram; onde logo foi visitado da parte del-Rei per um mouro honrado per nome Cide Mahamede, assi de palavra como com fructa da terra. Dom Francisco, depois que o mandou contentar com ua marlota de cores, e lhe deu os gardecimentos da visitação, mandou dizer a el-Rei que se espantava muito dele, na chegada daquela frota del-Rei, seu senhor, que por honra dele e da sua cidade tirava tanta artelharia, não responder ele com algum sinal de cortesia, ao menos mandando arvorar ua bandeira de suas armas, que lhe foi dada pelo Almirante, em sinal de paz. 312 Cide Mahamede, confuso com o recado, não ousou responder, somente que logo traria a reposta; a qual foi que dizia el-Rei que muito mais descontente estava ele de um capitão del-Rei de Portugal que lhe tomou ua nau que vinha de Sofala, onde ele mandara aquela bandeira, do que ele podia estar pola não ter arvorada, e que esta fora a causa de o não ter feito. Dom Francisco, parecendo-lhe ser 298 isto assi, ficou mui descontente, e mandou a ele João da Nova, assi pera concertar que se vissem ambos, como pera saber particularmente deste capitão de que se el-Rei queixava; com o qual foi por língua um venezeano chamado Misser Bonadiuto de 94v Alban, o qual trouxe a este reino Afonso de Albuquerque, polo achar em Cananor. E segundo ele dizia, havia vinte dous anos que se passara do Cairo àquelas partes em companhia de um embaixador que ali estava, sendo consul da Senhoria de Veneza em Alexandria Misser Francisco Marcelo; e quando veo com Afonso de Albuquerque trouxe por mulher ua jaua de que tinha filhos, ao qual el-Rei, por ele ser homem esperto e que sabia as línguas e mais os negócios daquelas partes, o mandou com Dom Francisco com bom ordenado, e servia de língua. E a substância do recado que João da Nova levou de que ele era intérprete foi ser grave cousa pera ele, Dom Francisco, crer que capitão del-Rei, seu senhor, havia de ter tam pouco acatamento a ua bandeira sua; porque os portugueses eram tam obedientes àquele sinal que, em o vendo, o adoravam, quanto mais fazer o que ele dizia. E porque ao presente se não podia fazer mais, lhe pedia que ordenasse como se vissem, porque tinha alguas cousas que praticar com ele, que compriam a seu bem e a serviço del-Rei, seu senhor; e quanto o que tocava ao castigo daquele capitão que dizia, tivesse por certo que, sabida a verdade, el-Rei, seu senhor, o mandaria muito bem castigar, e a sua nau lhe seria restetuída com tudo o que levava. Partido João da Nova, tornou com reposta que el-Rei era contente de se verem ao seguinte dia, e o modo seria vir ele, Capitão-mor, em seu batel defronte dos paços com alguns capitães e gente que ele escolhesse em auto pacífico, por não causar temor nos da terra; e que ele também em hábito de paz viria com alguns escolhidos de sua casa a se meter em um zambuco, diante das casas onde se ambos veriam. Concertadas todas estas vistas, mandou o Capitão-mor que todolos capitães e alguns fidalgos em seus batéis viessem pola menhã a borda de sua nau, e o trajo fosse de paz, com cautela que ao longo das tostes dos batéis viessem alguas lanças e tiros pera tirarem em modo de festa, e secretamente suas saias de malha, porque as cautelas que este mouro tinha dava a entender não estar mui fiel.

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Ao dia seguinte, entrando Dom Francisco em um batel debaixo de 313 um toldo de escarlata e seda, com muitas bandeiras de sua devisa, partiu rodeado de batéis de toda aquela fidalguia, com grande estrondo de trombetas e de artelharia, que ao tempo de sua partida começou a fuzilar per toda a frota. E, em partindo da nau, espediu a João da Nova que levasse recado a el-Rei como ele ia, o qual não chegou lá, porque na praia achou um recado del-Rei, que tornasse dizer ao Capitão-mor que se detevesse um pouco, porque os seus não eram ainda juntos. Tornando João 299 da Nova apressar el-Rei com outro recado, por haver pedaço que Dom Francisco se detinha já junto das casas, foi-lhe respondido que dissesse ao Capitão-mor, da parte del- Rei, que lhe perdoasse, dando alguas falsas desculpas, ua das quais era que, em se alevantando pera vir a ele, atravessara um gato negro, notável agouro entre eles, pera naquele dia ambos não poderem fazer cousa que durável fosse. E por que ele desejava que as suas fossem perpétuas, lhe pedia que lhe perdoasse por então e que ficasse aquela vista pera o seguinte dia. Quando Dom Francisco viu que todo seu aparato acabava naquele agouro del-Rei, sorrindo-se, converteu o ódio desta malícia del-Rei nestas palavras, dizendo aos capitães: - Senhores e amigos, a mi me parece que mais agourado há-de achar quem tais recados manda o dia da menhã que o de hoje. Tornemo-nos embora e venhamos a visitá-lo com as naturais louçainhas e que melhor estão aos portugueses que estas cores que trazemos; porque, como sabeis, mouros não ao nosso ouro mas ao nosso ferro sempre fizeram maior honra. Ao que João da Nova respondeu: - Parece-me, Senhor, que esse há-de ser o fim de nossos concertos com este mouro, porque Mahamede Enconi, nosso grande amigo, se veo a mi por me falar como homem meu conhecido, e não ousou de se apartar comigo, por trazerem os mouros olho nele, somente em se espedindo meio furtado, disse: - Dizei ao senhor Capitão-mor que não se engane com el-Rei, porque não se há-de ver com ele, e que se lembre de mi. Dom Francisco, entendendo a tenção del-Rei polo aperceber pera o seguinte dia, mandou a João da Nova que tornasse à praia e dissesse aos mouros que lhe deram o recado del-Rei, que lhe fossem dizer da sua parte que ele se tornava pera as naus, e ao outro dia pela menhã se havia de ver com ele; e quando não fosse naquele lugar que tinha ordenado, ele o iria buscar dentro às suas casas, se houvesse por trabalho de o vir esperar ao mar. Dado este recado, tornou-se João da Nova sem 95 esperar reposta por lho mandar Dom Francisco, o qual, assi como ia com todolos capitães, se foi a sua nau, onde teve com eles conselho sobre aquele feito, resumindo não somente o que passara perante eles, mas ainda quanto aquele bárbaro tinha feito a Pedrálvares e a João da Nova, que era presente - tudo como homem cauteloso e que no seu peito estava maior malícia do que era a fé de suas palavras. E mais que, depois que o Almirante Dom Vasco da Gama per 314 ali passou, nunca mais quisera pagar as páreas que devia, posto que ele dissesse serem mais em modo de resgate de sua pessoa, por o Almirante o reter no batel, onde se viu com ele, que páreas de própria vontade; e que ser ele cioso de sua pessoa, cousa que era natural dos homens, mas isto havia de ser per modo mais honesto e não tam púbrico desprezo da majestade daquela armada del-Rei, seu senhor. Do qual trazia mandado 300 que se determinasse em os negócios que tevesse com os príncipes daquelas partes, em paz ou em guerra descoberta, trabalhando mais na primeira que na segunda, e esta lhe encomendava por preceito, e a guerra por necessidade; e que em nenhua maneira se partisse dali sem tomar algua conclusão com ele, pera fazer ua fortaleza, por importar muito à navegação da Índia e segurança

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daquela costa. Acabando Dom Francisco de prepor estas e outras razões, todos concorreram neste voto: que ao seguinte dia saíssem em terra com mão armada, porque esta era a que havia de pôr as leis àquele mouro, e não a cortesia que com ele queria usar. Assentada esta saída em terra, ordenou logo Dom Francisco que a gente se faria em dous corpos: ele iria cometer a força da cidade em um, e seu filho Dom Lourenço com outro as casas del-Rei que estavam no cabo dela; repartindo logo quais capitães haviam de ser com cada um deles, e o tempo da saída das naus seria ante menhã, quando ele mandasse tanger ua trombeta. E porque Nosso Senhor lhe deu vitória com que conveo fazer aqui ua fortaleza que el-Rei mandava, e nosso costume em toda esta história será descrever sempre o sítio da terra onde fundarmos algua, e darmos as causas disso, pois esta é a primeira de pedra e cal que nestas partes fundámos, primeiro que entremos ao combate da cidade, convém darmos ua universal descripção desta parte de África, pois té ora o não temos feito, principalmente desta costa e sítio da cidade.

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300 95 315 Capítulo IV. Em que se descreve a parte da costa de África em que está situada a cidade Quíloa; à qual terra os arábios propriamente chamam Zanguebar e Ptolomeu Etiópia-sobre-Egipto. Em a parte da terra de África sobre a Etiópia a que Ptolomeu chama interior, onde está a região Agisimba, que é a mais austral terra de que ele teve notícia, e onde faz a sua meridional computacão, jaz outra terra que em seu tempo não era nota, e ao presente mui sabido o marítimo dela, depois que descobrimos a Índia per este nosso Mar Oceano. O princípio da qual, começando na Oriental parte dela, é o Prasso Promontório, que ele, Ptolomeu, situou em quinze graus contra o Sul e em tantos está per nós verificado; ao qual os naturais da terra chamam Moçambique, onde ora temos ua fortaleza que serve de escala das nossas naus nesta navegação da Índia. E o fim ocidental desta terra, a Ptolomeu incógnita, acaba em altura de cinco graus da parte do Sul que se comunica com os etiópias a que ele chama hespérios, per nome comum, que são os povos pangelungos, súbditos ao nosso Rei de Congo; entre os quais dous termos oriental e ocidental, fica o grande e ilustre 301 Cabo de Boa Esperança, tantos mil anos não conhecido no Mundo. E como esta de que tratamos é grande e os bárbaros que nela habitam são muitos e diferentes em língua, não há entre eles nome próprio dela. Somente os arábios e párseos, como gente que tem polícia de letras e são vezinhos dela, em suas escrituras lhe chamam Zanguebar, e aos moradores dela zangui; e per outro nome comum também chamam cafres, que quere dizer gente sem lei, nome que eles dão a todo gentio idólatra, o qual nome de cafres é já acerca de nós mui recebido polos muitos escravos 95v que temos desta gente. E porque em a nossa Geografia particularmente fazemos relação desta terra Zanguebar, aqui como de espassada daremos algua notícia dela, por as causas que no precedente capítulo apontámos. E começando no Promontório Arômata a que ora chamamos Cabo de Guardafu, que é a mais oriental parte de toda África, situada per Ptolomeu em cinco graus e per nós em doze, até Moçambique, que serão per costa obra de quinhentas e cinquenta léguas, faz esta terra ua maneira de enseada, não tam curva e penetrante como Ptolomeu a figura em sua Távoa, mas quási a feição de ua costa de osso de animal quadrupe. E o segundo curso marítimo que ele não soube, o qual começa no Cabo de Moçambique e acaba em o das Correntes, que será per costa até cento e setenta léguas, fica ela um pouco mais encurvada com um anco que faz o Cabo das Correntes logo na volta dele, quando vão de cá do Ponente. 316 Do qual cabo, vindo pera o de Boa Esperança, em que haverá per costa trezentas e quarenta léguas, vai a terra fazendo um lombo, de maneira que fica o Cabo das Correntes em vinte quatro graus, da banda do Sul, e o de Boa Esperança em trinta e quatro e meio; e deste ilustre cabo, té a terra dos pangelungos, do reino de Congo, vai-se a costa encolhendo e bojando, peró que a grandeza dela faz parecer que se estende direita ao Norte. A figura da ponta deste grande cabo de Boa Esperança se aparta do corpo da outra terra como que a escacharam do Cabo das Agulhas, que dista dele contra o Oriente per espaço de vinte e cinco léguas, da maneira que podemos apartar o dedo polegar da mão esquerda dos outros dedos dela, virando a palma pera baixo. E per este modo fica ele apartado contra o Ponente do grande corpo da outra terra e rombo em sua ponta à semelhança do dedo; e quási na junta, que é no meio

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dele, está ua terra soberba sobre a outra que no cima faz ua planura de terra rasa, graciosa em vista e fresca, com mentrastos e outras ervas de Espanha, à qual os nossos chamam a Mesa do Cabo. E olhando dela contra o Ponente, fica ua angra per eles chamada da Conceição, e no espaço que se mete entre ele e a outra terra, que jaz pera Oriente, que vai fazer o Cabo das Agulhas, está ua angra mui estreita, a que mais propriamente podemos chamar furna, 302 assi penetrante pela terra, cortando dereita ao longo do cabo, que do rosto dele té o fim dela haverá dez léguas. No seo da qual furna onde elas acabam se levanta ua serrania de viva pedra, com grandes e ásperos picos, que pedem as nuvens com sua altura; e por causa deles os nossos chamam àquele lugar os Picos Fragosos, pelo pé dos quais rompe com muita fúria um rio de grandíssima água que nasce no interior daquele sertão, de que ao presente não temos notícia. E tornando à particular descripção da terra Zanguebar, que faz a nosso propósito, por razão dos feitos que na sua costa os nossos fizeram, esta começa em um dos mais notáveis rios que da terra de África vertem no grande Oceano contra o Meio-Dia; ao qual Ptolomeu chama Rapto, posto que a sua graduação é mui diferente do que ora sabemos. Ca ele o põe em seis graus de largura da parte do Sul e nós em nove da parte do Norte, o qual nasce em a terra do Rei dos Abexis, a que chamamos Preste João, em as serras a que eles chamam Graro e ao rio Obi, e, onde sai ao mar, Quilmance, pelos mouros que o vezinham, por causa de ua povoação assi chamada, que está em ua das principais bocas dele, junto do reino de Melinde. Deste rio indo contra o Cabo de Guardafu, e di voltando até as portas do Estreito e delas lançando ua linha às fontes dele, fica ua terra a que os arábios propriamente chamam Ajan, a qual quási toda é povoada deles, posto que em muita parte, contra o Meio-Dia, no interior da terra, habitem negros idólatras. E das correntes deste Quilmance contra o Ponente, té o Cabo das Correntes, que os mouros daquela costa navegam, toda aquela terra e a mais ocidental contra o Cabo de Boa Esperança (como acima dissemos), os arábios e párseos que a vezinham lhe chamam Zanguebar, e aos moradores zangui. 317 Toda esta costa, começando do rio Quilmance té o Cabo das Correntes, geralmente é baixa, alagadiça e mui coberta de um arvoredo parrado, a maneira de balsas que dão pouca serventia por baixo. E assi com a espessura dele, como com os rios e esteiros que a retalham em ilhas e restingas, que ocupam o marítimo dela, faz ser mui doentia; de maneira que podemos dizer ser outro Guiné e mares corrutos e todalas outras cousas que dá e gera. Porque a gente é negra, de cabelo retorcido, idólatra e tam crente em agouros e feitiços, que no maior fervor de qualquer 96 negócio desistem dele, se lhe algua cousa entolha. Os animais, aves, fructas e sementes, tudo responde à barbaria da gente em serem feras e agrestes, posto que de Magadaxó contra o Cabo Guardafu, ainda que seja de mais criação de gado, por ser de poucos mantimentos e prove dele, desta se mantém. Geralmente os mouros que habitam o marítimo, e assi os das ilhas adjacentes a ela, todo o mantimento que comem, o agricultado fazem à enxada, e o mais é fructa agreste e carne 303 montés, imundícias, leite dalgua criação que tem, principalmente os mouros a que eles chamam baduís que andam no interior da terra e tem algua comunicação com os cafres, que acerca dos que habitam as cidades e povoações políticas são havidos por bárbaros. E parece que a natureza, próvida em todalas cousas, não quere desemparar algua parte da terra em tanta maneira, que nela não haja algum fructo estimado na opinião dos homens; porque naquela áspera e estéril terra pera habitação de gente política, produziu o mais precioso de todolos metais, e logo lhe deu povo paciente daquela aspereza e dado a busca dele, e a nós cobiça pera per tantos perigos de mar e da terra os irmos convidar com nossas obras mecánicas, pera suprirem suas

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necessidades, a troco deste ouro tam conquistado. Ao cheiro do qual por a terra de Arábia ser a eles mui vezinha, os primeiros povos estrangeiros que a esta terra Zanguebar vieram habitar, foram de ua gente dos arábios, desterrada, depois que receberam a seita de Mahamede. A qual (segundo soubemos per ua crónica dos Reis de Quíloa, de que adiante fazemos menção) eles lhe chamam emozaidi; e a causa deste desterro foi por seguirem a doutrina de um mouro chamado Zaide, que foi neto de Hocém, filho de Alé, o sobrinho de Mahamede, casado com sua filha Axa. O qual Zaide teve alguas openiões contra o seu Alcorão, e a todolos que seguiram a sua doutrina os mouros lhe chamaram emozaidi, que 318 quere dizer súbditos de Zaide, e os tem por heréticos; e peró que estes foram os primeiros que de fora vieram habitar aquela terra, não fundaram notáveis povoações, somente se recolheram em partes onde podesse viver seguros dos cafres. E desta sua entrada, como ua peste lenta, foram lavrando ao longo da costa, tomando novas povoações, té que ali vieram ter três naus com grã número de arábios, em companhia de sete irmãos, os quais eram da ua cabilda vizinha à cidade Laça que está obra de quorenta léguas da Ilha Baharém, que está dentro no Mar Pérsico, mui pegada à terra de Arábia, no interior dele. A causa da vinda deles foi serem mui perseguidos do Rei de Laça, e a primeira povoação que fizeram nesta terra de Ajan foi a cidade Magadaxó, e depois Brava, que ainda hoje se rege por doze cabeceiras, a maneira de repúbrica, as quais procedem destes irmãos. E veo prevalecer esta cidade Magadaxó em tanto poder e estado, que depois se fez senhora e cabeça de todolos mouros desta costa; porém como os primeiros que vieram a ela, chamados emozaidi, tinham diferentes opiniões dos arábios, acerca de sua seita, não se quiseram submeter a eles e recolheram dentro pelo sertão, ajuntando-se com os cafres per casamentos e costumes, de maneira que ficaram místicos em todalas cousas. Estes são aqueles a que os mouros que vivem ao longo do mar chamam baduís, 304 nome comum como cá entre nós chamamos alarves a gente campestre. A primeira nação de gente estrangeira que per via de navegação teve o comércio da Mina de Sofala, foi desta cidade Magadaxó. Não que eles fossem descobrir esta costa, mas per acerto de ua nau daquela cidade que com temporal e força das correntes ali veo ter. E posto que ao diante tiveram mais notícia de toda a terra vezinha daquele resgate, nunca ousaram passar ao Cabo das Correntes; porque, como a Ilha de São Lourenço, que jaz ao Sul desta costa Zanguebar, corre com seu comprimento quási ao longo dela per espaço de duzentas léguas, e no meio da parte de dentro lança de si um cotovelo que responde ao outro que faz o Cabo de Moçambique, os quais parece que querem fechar aquela passagem, que será de largura obra de sessenta léguas, ocupadas com ilhas, restingas e baixos, fica este trânsito em respeito do outro mar, que jaz entre estas duas terras, tam apertado e estreito com seus canais, que em seu modo lhe podemos chamar outro Cila e Caríbdis. Ca são aqui as correntes tam grandes, que em breve apanham ua nau, e sem vento e sem vela a levam a parte em que corre os perigos de que os nossos navegantes são boa testemunha. Da qual causa chamaram Cabo das Correntes 319 àquela ponta 96v que faz a terra firme oposta ao fim ocidental da Ilha São Lourenço, porque neste termo se espedem as águas mui furiosas e correm mui livres per largo campo de mar, como quem sai do cárcere de antre estas duas terras. De maneira que, não somente acham os mareantes nesta passagem diferença no curso das águas, mas ainda novos tempos de monção pera Levante e Ponente, ca todolos ventos se apanham no estreito de antre estas duas terras. E como os mouros desta costa Zanguebar navegam em naus e zambucos coseitos com cairo, sem serem pregadiças ao modo das nossas, pera poderem sofrer o ímpeto dos mares frios da

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terra do Cabo de Boa Esperança, e isto ainda com moções e temporais feitos, e mais tem já experiência em alguas naus perdidas que esgarraram contra esta parte do Grande Oceano ocidental, não ousaram cometer este descobrimento da terra que jaz ao Ponente do Cabo das Correntes, posto que muito o desejassem, como eles confessam, principalmente os da cidade Quíloa, que foi a maior descobridor de todalas cidades daquela costa. Porque dela se povoou grande parte da terra firme e das ilhas adjacentes, e alguns portos da Ilha São Lourenço, por ela estar situada quási no meio desta costa, ante a cidade Magadaxó e o Cabo das Correntes. De maneira que abaixo e acima não lhe ficou cousa por correr, té se fazer senhora de Mombaça, Melinde e das Ilhas de Pemba, Zanzibar, Monfia, Cemora, e doutras muitas povoações que saíram dela pela potência e riqueza que teve depois que se fez senhora da Mina de Sofala, tendo quási tudo 305 perdido ao tempo que nós descobrimos a Índia, com divisões que houve per morte dalguns reis dela, de que adiante faremos menção. O sítio desta cidade Quíloa é em ua terra a qual, ainda que seja da costa da terra firme - Zanguebar,- o mar a foi torneando com um estreito, que a fez ficar em ilha. Ela em si é mui fértil de palmeiras, com todalas árvores de espinho e hortaliças que temos em Espanha, e algua criação de gado grande e meúdo, com muitas galinhas, pombas, rolas e outro género de aves estranhas a nós. O geral mantimento é milho, arroz e outras sementes de raiz agricultadas, com muitas fructas agrestes, de que a gente pobre se mantém. As águas dela são de poços e não mui sadias por a terra ser alagadiça e a cidade estar situada ao longo da ribeira que faz o esteiro, na frontaria da qual ele se espraiou em maneira de baía. A maior parte das casas são de pedra e cal com seus eirados per cima, e nas costas quintais plantados de árvores de espinho e palmeiras, assi pera fresquidão e deleitação da vista, como pera uso do fructo que dão. E de quam largos estes quintais são, tam estreitas as ruas, por assi acostumarem os mouros por se melhor defender, ca tem alguas tam estreitas por cima, que dos eirados podem saltar de um em outro. A ua parte da qual cidade tinha el-Rei suas casas feitas a maneira de 320 fortaleza, com torres, cubelos e todo outro modo de defensão, com porta pera serventia do mar, que vinha dar em um cais, e outra grande à ilharga da fortaleza que fazia rosto contra a cidade, pera serventia dela; diante da qual se fazia um grã terreiro onde estava a varação de naus, e no rosto dela era o pouso que as nossas tinham tomado. Das quais, assi por a polícia das casas, eirados e alcorões, como com as palmeiras e arvoredos dos quintais, parecia a cidade mui fermosa, dando aos nossos grande desejo de sair nela por quebrar a soberba daquele bárbaro, que toda aquela noite gastou em meter dentro na ilha frecheiros da terra firme.

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305 96v 320 Capítulo V. Como Dom Francisco de Almeida saiu em terra e tomou a cidade Quíloa, fugindo el-Rei pera a terra firme. Dom Francisco, como tinha assentado que havia de sair em terra ao seguinte dia, que era béspora de Santiago, ante-menhã, feito o sinal da trombeta que todos esperavam, cada um em seu batel, com a gente que pode levar se veo a bordo da nau capitaina, onde, sendo juntos, o vigairo dos clérigos lhe fez ua confissão geral e absolvição plenária pela bula concedida aos que perecessem naquele auto de Fé. A qual acabada e entregue a bandeira da cruz de Cristo a um cavaleiro chamado Pero Cão, que servia de alferes, encaminhou esta frota de batéis com 306 grande estrondo, assi da artelharia das naus como das trombetas que levavam. O primeiro 97 dos quais que tomou terra no rosto da cidade em que estava ordenado que haviam de sair, foi o de Dom Francisco, onde todolos capitães acudiram e se fez em corpo em um teso, enquanto os batéis tornavam por outro golpe de gente, sem neste tempo sair da cidade cousa que os fizesse alvoroçar, que lhe dava suspeita, não quererem sair os mouros ao largo por os acolher nas ruas, que por serem estreitas se poderiam melhor ajudar. Posta toda esta gente em terra, que estava ordenada pera cometer a cidade, deu Dom Francisco a seu filho duzentos homens, e ele ficou com o corpo da mais gente, que seriam trezentos. Ao qual mandou que se fosse ao longa da praia às casas del-Rei que estavam no cabo da cidade; e como lá fosse, que lhe fizesse um sinal com uma espingarda, a que ele responderia, pera que juntamente cometessem. Chegado Dom Lourenço onde fez este sinal, moveu seu pai de rosto contra o meio da cidade, dando Santiago e às trombetas com tanto alvoroço 321 de todos, que lhe era trabalho entreter a gente, sendo já o sol sobre a terra sem os mouros té então aparecerem. Peró, depois que Dom Francisco começou entrar pelas ruas, como eram estreitas e as casas altas, assi diante do rosto como per cima pela cabeça, dos eirados choviam tantas pedras e setas que desatinavam os nossos e recebiam grã dano, por irem mui apinhoados, por causa da estreiteza do lugar, sem se poderem aproveitar dos imigos. E dado que aos debaixo começaram levar diante si a bote de lança, e os espingardeiros e besteiros despejavam as janelas dos outros de que recebiam dano, todavia, era tanto o que lhe faziam dos eirados, que conveo aos nossos entrarem pelas casas e subirem acima onde os mouros estavam. E como os eirados eram contínuos uns aos outros e tam estreitas as ruas que quási se podia saltar de ua a outra parte ficava per cima deles lugar mais despejado pera os nossos andarem, que deu causa a que subissem muitos a despejar os mouros que com pedras e cantos empediam a passagem per baixo. Finalmente, com morte dalguns deles, o caminho que Dom Francisco levava foi despejado, e ele pôde com menos perigo chegar onde Dom Lourenço estava, que era à porta das casas del-Rei em um escampado; o qual lugar ele tomou com assaz trabalho ante que seu pai chegasse a ele. Porque, como o lugar era largo e el-Rei tinha consigo a frol da gente, saíram a ele obra de trezentos homens, que o serviam de muita frechada e pedrada; e ainda que esta chuiva lhe fazia perder a vista por ser mui basta e não poderem mais fazer que escudar-se, todavia apertaram tanto com os mouros, que os fizeram recolher pelas portas da fortaleza. E como o cardume deles era grosso e não podia caber per um postigo que entravam, e os nossos apertavam muito aquele lugar, começaram de se

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meter per becos e travessas; os quais, 307 fugindo este perigo, foram dar nas mãos da outra gente que vinha com Dom Francisco. A este tempo, Dom Álvaro de Noronha, que ia em companhia de Dom Lourenço, com a gente que levava pera a fortaleza de Cochi, de que havia de ser capitão, apartou-se pera onde estava ua porta per que entravam à fortaleza; e estando em pressa de a querer arrombar, apareceu em cima de ua torre um mouro bradando que estivessem quedos, apresentando a bandeira que el-Rei dezia ser-lhe tomada pelo nosso capitão com a nau que vinha de Sofala. Quando os nossos viram aquele sinal a que sempre obedeceram, leixando o combate todos em alta voz, como se viram seu Rei, começaram dizer: - Portugal! Portugal! Portugal! Chegado Dom Francisco a esta voz comum de tantas vozes, vendo a bandeira sobre a torre, em sinal de obediência e acatamento, tirou o capacete, estando quedo, e mandou que cessasse a obra té saber o que queria. As palavras 322 do qual mouro foram, que dezia el-Rei que ele se vinha meter em mãos dele, Capitão-mor, obediente e pacífico como vassalo del-Rei de Portugal; que lhe pedia muito mandasse cessar o combate, porque ele se vinha logo abaixo. Dom Francisco, parecendo-lhe que o temor trazia este mouro a obediência, mandou sobre-estar a obra, em o qual tempo o mouro que estava na torre não fazia senão bradar e bracejar pera dentro do muro, como que chamava alguém, e isto com uma eficácia que enganou a todos; porque sobre este bracejar pôs a bandeira encostada a ua amea, mostrando que ia chamar el-Rei, mas ele não tornou mais. A causa da vinda deste mouro foi querer entreter per este artefício os nossos, enquanto se el-Rei recolheu per outra porta que ia contra uns palmares, onde ele tinha posto suas mulheres e fazenda, pera dali se passar a terra firme em uns barcos que lá tinha prestes; porque, quebrada a porta da fortaleza, foram os nossos dar na outra per onde el-Rei saiu, que leixou assaz de rastro dalguas cousas que caíram com pressa dos que fugiam em 97v sua companhia. O qual rastro Dom Francisco não quis que a gente seguisse, porque ia dar em um palmar mui basto, onde podiam receber algum dano, sem o poderem fazer aos imigos; o que a gente mal sofreu, ca iam com aquele fervor e desejo de tomar ua cevadura na companhia que el-Rei levava. Porém, porque não ficasse somente com o trabalho e honra da entrada daquela cidade, mandou Dom Francisco aos capitães que cada um com sua gente a fosse esbulhar, encomendando a todos a pessoa, casas e fazenda de Mahamede Anconi, e mandou a João da Nova que se fosse a sua casa a o defender, não se desmandasse alguém com ele. Partidos alguns capitães a esta obra, mandou nas costas deles seu filho, Dom Lourenço, com um corpo de gente nobre, temendo algum desastre, polos desmanchos que se fazem no tempo de saquear, o qual, quando chegou à cidade, andava já a gente comum tam engodada na prea, que teve assaz trabalho em a fazer recolher. Finalmente, acabado aquele, primeiro ímpeto da entrada 308 destes capitães e tornados onde Dom Francisco estava, mandou ele a João da Nova que lhe trouxesse Mahamede Anconi. Do qual, depois que veo ante ele e soube como el-Rei era passado à terra firme, e assi outras cousas de que Dom Francisco quis tomar informação dele, o espediu, mandando a João da Nova que o tornasse a sua casa; e ele começou dar ordem pera se recolher toda a gente ao pé de ua torre, ante ua cruz que os sacerdotes ali tinham arvorado, em sinal de triunfo da Fé. No qual lugar armou muitos cavaleiros porque, ainda que Nosso Senhor deu aquela cidade sem morte dalgum dos nossos, muitas das pedras e frechas ficaram com sinal do trabalho que

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tiveram, a custa de muitos mouros que foram mortos. 323 Acabando este auto de honra que é o primeiro galardão da guerra, pola gente andar já mui cansada sem terem comido, não entendeu Dom Francisco em mais que recolher-se à porta da fortaleza onde fez sua estância com as costas no muro, e as outras estâncias encomendou a seu filho e aos capitães, segundo a necessidade que havia.

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308 97v 323 Capítulo VI. Como a cidade Quíloa se fundou e os Reis que teve, té ser tomada per nós; e como Dom Francisco de Almeida novamente fez Rei dela a Mahamede Anconi. Dom Francisco de Almeida, por ser comendador da Ordem de Santiago, ao dia seguinte, que era deste Apóstolo, não entendeu em mais que solenizar sua festa; porque, além de ele, por razão de ser cavaleiro da sua milícia, particularmente lho dever, toda Espanha lhe é nesta obrigação, por ser patrão dela e com seu apelido entrar em todalas batalhas contra mouros. E própria e principalmente a gente português se pode gloriar da causa de suas conquistas, pois são contra infiéis, no adjutório das quais tem tal Capitão-geral que os ajuda com legiões celestes, no exalçamento da Fé, como muitas vezes no meio das azes pera terror dos imigos per eles mesmos foi visto. E o que dava maior contentamento e devação aos nossos, enquanto estiveram à missa e pregação, era verem ser-lhe esta vitória concedida em ua cidade remota e sáfara da jurdição católica da Igreja, e súbdita às idolatrias dos cafres e blasfémias dos mouros. E porque não somente pera prosseguimento desta história, mas ainda pera criação do Rei que Dom Francisco de Almeida nela novamente criou, convém sabermos a fundação desta cidade e os reis que nela foram, té este que era tirano chamado Mir Abrahemo, que a desemparou, trataremos um pouco desta matéria. Segundo apreendemos per uma crónica dos Reis desta cidade, havendo pouco mais de setenta anos que as cidades Magadaxó e Brava eram edificadas, que como atrás vimos, foram as primeiras nesta costa, quási nos anos quatrocentos da era de Mahamede, reinava em a cidade de Xiraz, que é na Pérsia, um rei mouro chamado Sultão Hocém. 309 Per morte do qual lhe ficaram sete filhos, um dos quais chamado Alé, era mui pouco estimado entre os 324 irmãos, por seu pai o haver em ua sua escrava da casta dos abexis, e eles terem mãe nobre da linhagem dos Príncipes da Pérsia. O qual, como era homem que quanto lhe falecia no favor da linhagem, tanto supria com pessoa e prudência, por fugir os desprezos e mau tratamento dos irmãos, empreendeu ir buscar nova povoação, quási chamado pera melhor fortuna da que tinha entre os seus. E por ser já casado, recolhendo sua mulher, filhos, família e algua gente que o seguiu nesta empresa, embarcou em duas naus na Ilha de Ormuz, 98 e com a fama do ouro que havia nesta costa Zanguebar veo ter a ela. Chegado às povoações de Magadaxó e Brava, assi por ele ser da linhagem dos pérsios que acerca da seita de Mahamede diferem dos arábios (segundo adiante veremos), como porque sua tenção era fundar própria povoação onde fosse senhor e não súbdito dalguém, correu a costa mais adiante, té que veo ter àquele porto de Quíloa. E vendo a desposição e sítio da terra ser torneada de água em que podia viver seguro dos insultos dos cafres e que era povoada deles, a troco de panos lha comprou, passando-se todos à terra firme. Na qual, depois que foi despejada deles, começou de se fortalecer, não somente contra eles, se reinassem algua malícia, mas ainda contra alguas povoações dos mouros que tinha por vezinhos, assi como uns que habitavam as ilhas a que chamam Songo e Xanga, os quais senhoreavam té Mompana, que era de Quíloa obra de vinte léguas. Porém como ele era homem prudente e de grande espírito, em breve tempo se fortaleceu, de maneira que ficou ua nobre povoação, a que pôs o

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nome que ora tem. E des i começou de senhorear os vezinhos, até mandar um seu filho bem moço senhorear as Ilhas de Monfia e outras daquela comarca, da geração do qual os que o sucederam se intitularam por reis, como ele também fez. Per morte do qual lhe sucedeu seu filho Alé Bumale, que reinou quorenta anos; e por não ter filhos herdou Quíloa Alé Bufoloquete, seu sobrinho, filho do irmão que tinha em Monfia, que não durou no estado mais que quatro anos e meio. Ao qual sucedeu Daúte, seu filho, que foi lançado de Quíloa aos quatro anos de seu reinado, per Matata Mandelima, que era Rei de Xanga, seu imigo; e Daúte se foi pera Monfia, onde morreu. E este Matata leixou em Quíloa um seu sobrinho, per nome Alé Bonebaquer, que aos dous anos os párseos de Quíloa o lançaram fora e levantaram por Rei a Hocém Soleimão, sobrinho de Daúte, já defunto, que reinou dezasseis anos. Ao qual sucedeu Alé Ben Daúte, seu sobrinho, que reinou sessenta anos, e sucedeu-lhe um seu neto chamado do seu nome; contra quem 325 se levantou o povo por ser mau homem, e o meteram vivo em um poço, havendo seis anos que reinava, levantado por Rei a seu irmão Hacen Ben Daúte, que reinou vinte quatro anos, e após ele reinou dous anos Soleimão que era da linhagem 310 dos reis, ao qual o povo cortou a cabeça por ser mau Rei. E em seu lugar levantaram a Daúte seu filho que mandaram vir de Sofala donde veo mui rico, que reinou quorenta anos, leixando seu filho Soleimão Hacen, que conquistou muita parte daquela costa; e por haver a bênção de seu pai, se fez senhor do resgate de Sofala e das ilhas de Pemba, Monfia, Zenzibar e de muita parte da costa da terra firme. O qual, além de ser conquistador, nobreceu muito a cidade de Quíloa, fazendo nela fortaleza de pedra e cal, com muros, torres e casas nobres; porque té o seu tempo quási toda a povoação da cidade era de madeira. E todas estas cousas fez em espaço de dezoito anos que reinou. A quem sucedeu seu filho Daúte, que durou dous anos, e trás ele veo Talute, seu irmão, que viveu um; e por sua morte reinou Hacen, outro irmão, vinte e cinco anos. E por não ter filhos, sucedeu-lhe outro seu irmão, que viveu dez anos; e este derradeiro irmão, que se chamava Alé Boni, foi o mais bem afortunado de sua linhagem, porque tudo o que cometeu acabou, e sucedeu-lhe Bone Soleimão, seu sobrinho, que reinou quorenta anos. E após ele reinou catorze Alé Daúte, ao qual sucedeu Hacen, seu neto, que reinou dezoito anos, que foi mui excelente cavaleiro; e per sua morte ficou no reino seu filho Soleimão, que foi morto em saindo da mesquita, per traição, havendo catorze anos que reinava. Per morte do qual reinou dous anos seu filho Daúte, e após este reinou vinte quatro Hacen, seu irmão; e por não ter filhos tornou a reinar Daúte, rei passado, porque os dous anos que reinou era em ausência de Hacen, por ser ido a Meca; e em vindo, este Daúte lhe alargou o reino por lhe pertencer. Desta segunda vez reinou este Daúte vinte quatro anos, ao qual sucedeu seu filho Soleimão, que reinou vinte dias somente, por lhe tomar Hacen, seu tio, o reino, o qual reinou seis anos e meio; e por não ter filhos sucedeu-lhe Talufe, seu sobrinho, irmão de Soleimão, passado o qual reinou um ano; e outro seu irmão chamado também Soleimão reinou dous anos e quatro meses, no qual tempo foi tirado do reino per outro Soleimão, seu tio, que reinou vinte quatro anos e quatro meses e vinte dias. E a este sucedeu seu filho Hacen, que reinou vinte quatro, e trás ele veo seu irmão Mahamede Ladil, que reinou nove, e Soleimão, seu filho, que o herdou vinte dous. E por este não ter filhos, reinou Ismael Ben Hacen, seu tio, catorze anos, 98v per morte do qual se levantou por Rei o governador do reino, que não esteve no estado mais que um ano, porque o povo levantou por Rei o governador do reino; o qual não esteve no estado mais que um 326 ano, por tornarem alevantar por Rei a Mamude, homem pobre por ser da linhagem dos Reis, que não durou naquele estado mais que um ano, por sua pobreza. E foi levantado por Rei Hacen, filho del-Rei Ismael, já passado, que reinou dez anos, e seu filho Saide outros dez; e per sua morte se quis 311 levantar com o reino o governador dele, e durou neste poder um ano. No qual tempo fez governador

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a um seu irmão per nome Mamude, que tinha três filhos; dos quais sobrinhos temendo-se este tirano, por serem homens pera muito, mandou os de Quíloa que fossem governar as terras súbditas a ela, e aconteceu a sorte de Sofala a um chamado Iuçufe, do qual depois faremos larga menção, porque este era senhor daquela terra ao tempo que Pero de Anhaia ali foi fazer ua fortaleza, como logo veremos. E em lugar deste tirano, levantou o povo por Rei Abdala, irmão del-Rei Saide, já passado, que durou no reino um ano e meio, e seu irmão Alé outro tanto. E per sua morte o governador do reino forçosamente alevantou por Rei a um Hacen, filho do governador passado, que se alevantara com o reino, a fim de ele mesmo, governador, ser mais obsulto com este ser posto de sua mão. Porém o povo o não consentiu, porque logo levantou por Rei a um da linhagem real, chamado Xumbo, que viveu naquele estado um ano somente; e tornaram alevantar o passado, que aos cinco anos foi desposto, em cujo lugar alevantaram Abrahemo, filho de Sultão Mamude, já defunto, que aos dous anos também foi desposto; e levantaram a um seu sobrinho, per nome Alfudaile, que durou mui pouco. E o seu governador, chamado Mir Abrahemo, não quis fazer rei e teve o reino em seu poder com tenção de ficar naquele estado por ser filho del-Rei Soleimão, já defunto, e primo com-irmão deste Alfudaile, o qual não leixou mais que um filho de uma escrava, de que ao diante faremos menção, porque depois veo a ser Rei desta cidade, sendo já nossa. E posto que este Abrahemo fosse absoluto senhor de Quíloa, o povo lhe não chamava Rei, senão Mir Abrahemo, e se algua cousa o sustentou naquela tirania, foi o que passou com Pedrálvares Cabral, João da Nova e o Almirante Dom Vasco da Gama, por os modos que teve com eles; e por então isto o fez ser aceito ao povo. Dom Francisco de Almeida, posto que não tevesse sabido tam particularmente a sucessão destes reis como ora contamos, todavia per Mahamede Anconi soube como o povo não estava muito satisfeito deste Abrahemo, e quanto todos desejavam alevantar Rei que fosse mais chegado a linhagem verdadeira deles, e a causa por que o sofriam. E assi soube das pessoas notáveis que havia na terra e outras cousas de que se ele quis informar pera saber o modo que teria acerca da segurança e governo da cidade; porque, pera satisfazer ao que lhe el-Rei mandava, principalmente a quem leixaria por governador 327 daqueles mouros, dava-lhe esta eleição grande cuidado; porque sobre este fundamento se haviam de ordenar as outras cousas do governo da terra, e pera isso teve consulta com os capitães. Finalmente, juntos eles pera esta eleição de Rei, e preposto per Dom Francisco o que el-Rei lhe mandava em seu regimento e o que era passado com o tirano, per comum conselho se assentou que a Mahamede Anconi se entregasse o senhorio daquela cidade, polo que tinha merecido e passado por nossa amizade; porque além disso tinha pessoa, idade 312 de até sessenta anos e prudência de governo, posto que não fosse da linhagem dos Reis, pois pera reformação da terra nenhua outra cousa convinha. Pera entrega da qual, ante que se dali levantassem, Dom Francisco mandou a João da Nova que fosse trazer a Mahamede; o qual, como inocente da honra pera que era chamado, chegando àquele lugar onde todos estavam, lançou-se aos pés do Capitão-mor, pedindo que houvesse piedade dele, miserando-se com autos de homem que temia vir a estado de cativeiro por culpas alheas. Dom Francisco, com muito gasalhado levando-o nos braços, começou de o consolar, dizendo que não temesse, porque homens leais como ele era, não tinham que temer, mas esperar mercê e honra, e que esta do título de rei de Quíloa, que lhe ele queria dar em nome del-Rei, seu senhor, seria a primeira, e depois pelo tempo em diante ele faria tais serviços, que merecesse outras maiores, com que ficasse o mais poderoso Rei de toda aquela costa. Mahamede, quando ouviu tam novas palavras e não esperadas de seus méritos, tornou-se a debruçar aos pés de Dom Francisco, sem o poderem levantar deles. Finalmente, ante que dali partisse, ele foi vestido em ua marlota de escarlata forrada de cetim com alamares de ouro, e um capelhar do mesmo pano, que lhe Dom Francisco mandou dar, e levado a um cadafalso que se logo armou sobre

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99 pipas vazias, encostado à torre da fortaleza, alcatifado e embandeirado, ao qual lugar vieram todolos mouros principais da cidade, chamados per pregão que Dom Francisco mandou dar. E sendo juntos, começou um oficial de armas em alta voz em língua português e depois em arábigo per segunda língua, propoer as causas de seu ajuntamento e as da traição de Habraemo, governador que fora daquela cidade, tomando armas contra el-Rei, seu senhor; por rezão da qual traição perdera o governo dela, e ele, Capitão-mor, com aqueles capitães del-Rei, seu senhor, a tomara per justo título de armas e como propriedade sua, em nome de Sua Alteza, a entregava com título de rei e obrigação do tributo que dantes pagava ao honrado e leal Mahamede Anconi, em retribuição dos serviços que tinha feito a el-Rei, seu senhor. E em testemunho e confirmação deste título, ele o coroava com aquela coroa de ouro. E em dizendo isto, Dom Francisco lhe pôs na cabeça ua que levava pera el-Rei de Cochi, como adiante veremos. Acabado este auto, foi o novo Rei posto em um cavalo, acompanhado 328 de alguns capitães e mouros que eram presentes, e levado per os lugares púbricos da cidade, com pregões que o denunciavam por Rei dela, indo diante arvorada ua bandeira real das armas do reino, com todalas trombetas que celebravam aquela festa, té o tornarem onde estava Dom Francisco. E ante que se dele espedisse, pera se recolher a seu aposentamento, teve tanta prudência por ganhar a vontade aos mouros, de quem sabia que havia de ser envejado, que lhe pediu quantos foram cativos, 313 na entrada da cidade, dizendo que mal pareceria receber ele honra, leixando os seus naturais em estado de cativeiro, com os quais ele esperava de servir el-Rei, seu senhor. O que lhe Dom Francisco concedeu tudo, a fim que a cidade tornasse a seu estado, como logo tornou, com os pregões que o novo Rei mandou lançar. De maneira que, di a dous dias, todos os que andavam pelos palmares da ilha fugidos se tornaram à cidade povoar suas casas, tanto segurou o ânimo dos mouros esta honra e galardão que se deu a Mahamede, havendo todos que éramos gente grata dos benefícios que recebiamos, pois por tam pequenos méritos como era os de Mahamede - de escrivão da fazenda do reino de Quíloa era feito Rei dela. Parece que não somente a lealdade que este mouro teve connosco o trouxe àquele estado, mas ainda algua particular fortuna; pois o auto de sua coroação foi depois ornamento de casas dalguns príncipes, como vimos em uns panos de tapeçaria que se armavam na câmara del-Rei Dom Manuel, em dias solenes que ele mandou fazer por memória do descobrimento da Índia e deste feito de Quíloa.

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313 99 328 Capítulo VII. Como, acabada a fortaleza de Quíloa e provido o capitão e os oficiais dela, Dom Francisco se partiu pera a cidade Mombaça, a qual determinou de tomar, polo que nela passou. Passados os primeiros três dias que se gastaram na tomada da cidade e honras do novo rei Mahamede Anconi, quando veo ao seguinte dia, começou o Capitão-mor entender na fortaleza; e pera melhor aviamento da obra, ordenou suas estâncias ao pé da torre do castelo. E a primeira cousa que fez foi derribar sete ou oito moradas de casas pegadas ao muro da parte da cidade, por ficarem as torres mais desabafadas, pera maior defensão da fortaleza; e da parte do mar fez ua larga serventia com um cubelo junto da água, pera que os nossos seguramente tivessem o mar e a terra. E ordenou como, com a obra nova que fez, que a maior torre do 329 castelo ficasse em lugar das que chamam da menagem, tudo muito bem acabado segundo a desposição do lugar e brevidade do tempo, que foi espaço de vinte dias; à qual fortaleza pôs nome Santiago, por lhe Nosso Senhor dar vitória daquela cidade, béspora daquele Apóstolo. Da qual obra os principais oficiais eram os capitães das naus per quem Dom Francisco repartiu a giros o serviço dela; e, quando vinha ao seu, ele tomava a padiola per ua parte e Lourenço de Brito per outra ou Manuel Paçanha, porque cada um destes o ajudava de companheiro neste trabalho, sendo per todos feita com muito prazer, graças, motes e cantigas. E andando nesta obra havia três ou quatro dias, chegaram Bermudes e Gonçalo de Paiva, que o Capitão-mor mandara a Moçambique saber novas de Lopo Soares e das outras naus da companhia de Bastião de 314 Sousa, como atrás dissemos, os quais trouxeram cartas que Lopo Soares leixou já da tornada da Índia, 99v em que dava novas do que lá passara e da carga que levava, com que todos houveram muito prazer. Finalmente, acabada toda a obra da fortaleza, leixou Dom Francisco nela estas pessoas pera sua governança e defensão: Pero Ferreira Fogaça, filho de Fernão Fogaça, por capitão; alcaide-mor, Francisco Coutinho, morador em Alcobaça; por feitor, Fernão Cotrim; e assi todolos oficiais necessários, que com a gente de armas faziam número de cento e cinquenta pessoas. E leixou pera serviço da fortaleza e guarda da costa Gonçalo Vaz de Góis na sua caravela, e um bargantim que depois se havia de armar com regimento que havia de responder à fortaleza de Sofala, a qual el-Rei mandava fazer per Pero de Anhaia, que houvera de ir em sua conserva, e ficou até Maio, que partiu deste reino com frota de certas velas, como a diante veremos. Leixadas todalas cousas desta fortaleza em ordem, a oito de Agosto se partiu pera Mombaça, onde chegou aos treze, com onze naus e três navios; o qual dia de sua chegada, por ser já tarde, se houve mister per ancorar as naus de fora da barra, e ao seguinte mandou Gonçalo de Paiva e Felipe Rodrigues que entrassem pelo rio e o sondassem, pera saber que naus podiam entrar. Porque, ainda que os pilotos que trazia de Quíloa lhe certificassem haver fundo pera as naus grandes entrarem pelo canal ua ante outra, quis ele segurar-se na experiência destes dous capitães, e sobre seu conselho fazer esta entrada. Da situação da qual cidade, posto que, na passagem que o Almirante Dom Vasco da Gama per ela fez, déssemos algua notícia, todavia, pela entrada que Dom Francisco de Almeida nela fez, convém darmos maior relação.

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Esta ilha jaz metida dentro na terra firme, torneada de outro esteiro de água ao modo de Quíloa, a qual será em redondo obra de quatro léguas, e na entrada dela, mui perto da barra, está assentada a cidade em ua chapa de terra, de maneira que se amostra a maior parte de todo o corpo dela; e assi como o sítio a faz fermosa pera ver de fora, com as grandes casarias, 330 eirados e torres que aparecem, assi fica temerosa a quem a houver de cometer. Neste sítio, defronte dela, faz o mar ua maneira de concha, com que fica ua baía mui espaçosa pera ancoragem de grandes naus; e lá per dentro, em partes, vai o rio tam largo, que folgadamente podem andar navios à vela em voltas; somente no meio deste torno da ilha da banda da terra firme, começa um recife de pedra que atravessa o rio, com que de maré vazia podem passar a pe de ua parte a outra; e além deste braço de água que abraça aquela cantidade de terra com que fica ilha, per dentro da terra firme, entram outros esteiros que também se podem navegar. Este canal da serventia da cidade, a lugares, é tam estreito, que ua besta o passara; e ante que cheguem à concha que se faz no pouso das naus, da 315 banda da mesma ilha, contra o Levante, estava um baluarte que se fez depois que por ali passou o Almirante Dom Vasco. O qual tinha sete ou oito bombardas que houveram da nau de Sancho de Toar, que se perdeu naquela paragem, vindo da Índia com Pedrálvares Cabral, que o Rei desta cidade mandou tirar, de mergulho. Com as quais, chegando aqui Gonçalo de Paiva e Felipe Rodrigues, que iam sondando a barra, começaram os mouros de lhe tirar; um dos quais tiros tomou o navio de Gonçalo de Paiva pela câmara de popa e foi vasar aos castelos de proa, mas quis Deus que não fez outro dano. Em retorno do qual, como o baluarte não era maciço e as paredes fracas, um tiro furioso do navio penetrou de maneira que foi dar na pólvora, com que fez maravilhas, despejando toda a gente; e outro tanto fizeram a dous cubelos cercados de pedra ensossa que a diante estavam com artelharia. A qual obra despejou o caminho, de maneira que naquele dia e no seguinte, sondado o rio, foram metidos no porto todalas naus. Dom Francisco, porque a cidade fazia duas mostras, ua fronteira da barra e outra pera trás de um cotovelo, mandou repartir a frota nestas duas partes: na do rosto da cidade ficou Dom Lourenço, seu filho, e a detrás da ponta tomou pera si, mandando logo dous batéis que fossem rodear a ilha, parecendo-lhe que per detrás se podia acolher a gente à terra firme, como fez el-Rei de Quíloa. E assi mandou os capitães que sondaram o rio, que lhe fossem meter duas naus em um lugar, per onde mostrava que podiam passar da ilha à terra. Tornados este batéis, trouxeram um mouro que lá tomaram, per o qual Dom Francisco soube toda a desposição da cidade, e como el-Rei estava posto em a defender e tinha metido nela mais de mil e quinhentos frecheiros dos cafres da terra firme, e lançado pregão, se alguém da cidade se passasse a ela, que morresse. Sabidas estas cousas e vista a desposição da entrada, porque, enquanto isto passou da terra, não veo a ela algum recado, mandou Dom Francisco a 100 João da Nova, com um dos pilotos que trouxe de Quíloa, que fosse com um recado a el-Rei. Mas ele não foi ouvido, ante, em modo de desprezo, chegando à ribeira, disseram-lhe que os mouros de Mombaça não eram os de Quíloa, 331 que se entregavam aos trons das bombardas. E de antre estes que falavam em arábigo falou um português arrenegado, que fugiu a António do Campo, quando per ali passou, as palavras do qual eram conformes ao estado em que ele estava; e sobre isto deram ua grã grita, fazendo suas algazarras de brandir os braços, segundo eles costumam. Tornado João da Nova com esta reposta, mandou logo Dom Francisco que as naus respondessem às apupadas deles com um varejo de artelharia per o corpo da cidade, pois deziam não serem homens que se entregavam com os trons dela; e assi mandou a Antão Gonçalves e a João

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Serrão que com sua gente nos batéis fossem pôr o fogo a uas naus 316 de Cambaia que estavam metidas em um onco, detrás da ilha. E foi tanta a frechada ao cometer deste feito, e era assi a terra soberba e alta neste lugar, que ficavam eles debaixo; de maneira que vieram escalavrados sem fazer algua cousa, e João Serrão foi frechado em ua coxa, e assi Francisco Rodrigues, criado do Prior do Crato, Dom Diogo de Almeida, e um bombardeiro; e eles dous faleceram di a doze dias, por serem as frechas ervadas, cousa que os homens muito receavam; e João Serrão esteve à morte. Dom Francisco, vendo que já recebia dano dos mouros e havia dous dias que era chegado, depois de ter conselho em que houve diferentes votos, determinou-se que ao seguinte dia, que era de Nossa Senhora de Agosto, saíssem em terra. E tomando consigo alguns capitães em um batel e seu filho Dom Lourenço em outro, vieram ver um lugar detrás da ponta que dissemos, per onde parecia que era a melhor entrada, posto que a terra era mui soberba. E, vista a desposição, mandou vir alguns navios pequenos pera aquele lugar, os quais se haviam de iguar tanto com a terra sobranceira, que deles a ela se pudessem lançar pranchas pera saírem ao tempo da maré; e o modo de cometer a cidade seria irem sem se desviar dereitamente às casas del-Rei, ele per aquela parte, em cavalgando a costa per fora da cidade, té chegarem a elas, por estarem no cabo dela, na parte mais alta, e seu filho tomaria a rua do meio da cidade, a se ajuntar com ele; o qual desembarcaria quando ele mandasse tirar dous tiros, porque juntamente a um tempo cometessem a terra. E neste mesmo tempo iriam dous capitães com a gente do mar queimar as naus donde João Serrão veo ferido, ca per este modo repartir-se-iam os mouros, acudindo às trombetas que ouvissem per tantas partes, com que algua das entradas lhe ficasse sem a peso da gente, do grande número que havia dentro, segundo dezia o mouro. Do qual modo de entrada os mouros estavam sem suspeita, e todo seu intento era na frontaria da cidade, per onde havia de cometer Dom Lourenço, por verem que ali faziam os nossos maior rosto com o corpo da frota. 332 E por esta razão todalas ruas que vinham dar com suas gargantas na ribeira, estavam com tranqueiras mui fortes e cuidavam que este só lugar tinham que defender; porque as frontarias das casas, por serem sobradadas e com terrados per cima, ficavam em lugar de muro, e era a eles cousa fácil esta defensão, por as ruas serem mui estreitas e tam íngremes de subir, que, soltando no cima da rua ua pedra grande, podia vir tombando per ela abaixo, com tanta fúria, que ficava em lugar de trabuco. E da outra parte que Dom Francisco tomou, estavam eles seguros por a terra ser ua barroca, em lugar de muro. E o que os fez mais segurar desta entrada, foi mostrar Dom Francisco que havia de cometer per o rosto da cidade, onde Dom Lourenço estava, com mandar por ali as naus mais grossas; 317 e onde ele esperava sair, somente os navios pequenos. E ainda de indústria aquela tarde do dia seguinte, que ele esperava sair, mandou a Dom Lourenço com alguns capitães que com ele haviam de ser, que cometessem a ribeira da cidade e trabalhassem de pôr fogo a alguas casas e tranqueiras; e que, acudindo gente, mostrassem no modo de se recolher que temiam sair em terra a fazer esta obra, o que ele fez, queimando algua pouca cousa que os mouros apagaram.

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317 100 332 Capítulo VIII. Como Dom Francisco de Almeida tomou a cidade Mombaça e a queimou. 100v No seguinte dia, que era de Nossa Senhora de Agosto, em rompendo a alva, como já todos estavam prestes e absoltos per ua absolvição geral dos sacerdotes, segundo seu costume, feito um sinal que Dom Francisco tinha ordenado, cada um na ordem que lhe foi dada, seguiram seu capitão. Os que seguiram a Dom Francisco eram Dom Fernando de Eça, Rui Freire, Bermum Dias, Antão Gonçalves, cada um com a gente de suas naus. E os da companhia de Dom Lourenço eram Fernão Soares, Diogo Correa, João da Nova, pela mesma ordem com sua gente. E os outros capitães acudiram ao lugar das naus de Cambaia, que lhe era encomendado. E destas três partes as primeiras trombetas que se ouviram que tomavam terra, foram as de Dom Francisco, o qual, depois que teve sua gente toda em um corpo, assi como estava inteiro, sem achar quem lhe empedisse o caminho, começou subir pela costa acima pera encavalgar o alto da cidade, onde estavam as casas del-Rei. A qual subida lhe foi leve, enquanto foi per fora da cidade, por não achar quem lha empedisse, e mais ser o caminho espaçoso; porém tanto que entrou na povoação por o lugar ser estreito, conveo-lhe ir a fio com a gente toda posta em ordem, sem se desmandar pelas travessas e ruas per onde lhe saíam alguns mouros, té que se pôs junto das casas del-Rei, 333 onde já acudiu peso de gente que às frechadas e pedradas, asi de cima das casas, como per baixo nas ruas, serviam bem os nossos. E como Dom Francisco, pela experiência da entrada de Quíloa, sabia a manha destes mouros, que mais se serviam das janelas e eirados que das ruas, levava entre a gente de armas, besteiros e espingardeiros repartidos, que lhe despejavam os lugares altos donde os ofendiam, com que mais levemente do que ele cuidava, tanto que chegou a bote de lança, foi levando os mouros, té dar com eles em um grande terreiro diante das casas del-Rei, onde vinham dar muitas ruas, per que se eles espalharam. Per as quais, posto que saíssem muitos mouros a ofender os nossos, maior dano recebiam do que davam, porque era o lugar 318 largo pera todos se ajudarem das lanças, o que não podiam fazer nas ruas que eram estreitas; e se algum dano receberam os nossos naquele lugar, era de cima dos eirados das casas del-Rei, que estavam cheos de tanta pedra solta, que cobria o chão. Dom Francisco, como deu vista a este lugar, que era a principal parte da cidade, e de fora não havia corpo de gente que defender as casas del-Rei, mandou quebrar as portas, parecendo-lhe que, por ser fortaleza, estaria acolhida dentro algua gente nobre; e os primeiros que arrombaram estas portas foram Rui Freire, Rodrigo Rabelo, Bermum Dias. Os quais, com a outra gente que os seguiu, meteram-se tam rijo com os mouros que estavam dentro, que em pouco espaço despejaram o baixo e o alto donde os nossos, que estavam no terreiro, recebiam o dano das pedradas. Dom Francisco, como estava no cabo deste terreiro, onde vinham dar as principais ruas da cidade, entretendo a gente que se não derramasse per elas, tanto que soube que as casas del-Rei eram despejadas dos mouros, deu lá ua chegada; e, entregando a guarda delas aos capitães que as entraram, porque, com desejo de as roubar, a gente comum não desemparasse a ele e aos outros capitães, tomou caminho entre a cidade e um palmar per onde corria o fio dos mouros em fugida trás el-Rei, que era já acolhido per ua porta falsa na maior espessura deste palmar. Dom Lourenço, a este tempo, andava tam ocupado no baixo da cidade, que não pôde ser em cima, como estava assentado entre seu pai e ele; porque, como a rua do meio per que ele ia era mui íngreme e toda se subia em degraus, tanto que os mouros a viram bem coberta dos nossos, assi per

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cima dos eirados, como per baixo pelas ruas, chovia e corriam pedras, e estas que corriam eram as mais perigosas por serem grandes e redondas, ordenadas pera aquele mister; as quais, como tomavam galga, vinham tam furiosas pela rua abaixo, que pareciam vir espedidas dalgum trabuco. E, segundo na entrada desta rua, per que Dom Lourenço entrou, os mouros se houveram um pouco remidos em defender a tranqueira que a fechava, pareceu que o fizeram de 334 indústria, pera que, como os nossos a enchessem, soltarem estas pedras; e se assi não foi, parece que Deus lhe quebrou o coração; porque, verdadeiramente, se eles o teveram tam defensável como era o sítio da cidade e a subida desta entrada, ao menos per ela nunca a cidade viera a nosso poder. Mas como todos andavam assombrados do que ouviram 101 dizer de Quíloa, tanto que ouviram as trombetas detrás de si no terreiro dos paços del-Rei, e souberam ser ele acolhido pera o palmar, parecendo-lhe estarem cercados e que os haviam de entalar naquelas ruas per baixo e per cima, começaram buscar salvação, furando pelas casas. Dom Lourenço, como seu intento era subir ao alto da cidade, onde estava ordenado que se havia de ajuntar com seu pai, despejada a rua 319 deste primeiro ímpeto das pedras, subiu até chegar ao terreiro del-Rei; e ante que saísse da garganta das ruas que vinham dar nele, leixou alguns capitães por lhe não virem dar os mouros nas costas, levando um golpe deles ante si, como quem tange gado. Os quais mouros iam de boa vontade, porque os encaminhavam pera as casas del-Rei, parecendo-lhe acharem ainda lá algua guarida. Vendo Dom Lourenço que as casas estavam em poder de Rui Freire e dos clérigos e frades de São Francisco, que no alto delas tinham arvorado ua cruz, animando a todolos que ali chegavam no exalçamento daquele sinal, pareceu-lhe que aquela parte estava já segura, pois dela tinham tomado posse dous gládios - espiritual e temporal, - e começou encaminhar per onde seu pai fora, o qual achou já desafrontado dos mouros, por serem acolheitos ao palmar. E vendo ambos que por aquela parte estava o negócio de todo acabado, tornaram-se ao terreiro das casas del-Rei, onde também os outros capitães estavam sem ter a quem ofender, e ali lhe veo recado dos outros, que mandara queimar as naus, como eram queimadas, com que houve por acabada toda a obra daquele dia. Finalmente, porque a calma era grande e o trabalho fora muito e todos estavam por comer, repartiu Dom Francisco as estâncias da cidade per os capitães, e mandou os feridos às naus, os quais seriam mais de setenta, e mortos somente quatro, com Dom Fernando de Eça. O qual parece que tinha o martírio de sua vida e morte nas mãos dos mouros; porque, quando partiu deste reino, havia pouco que saíra de cativo, polo cativarem com Diogo Lopes Sequeira, sendo capitão de Arzila, como contamos em a nossa parte de África. A morte das quais pessoas foi vingada com morte de mil e quinhentos e treze mouros, segundo eles mesmos disseram, e duzentos cativos, dos mil e tantos que se depois tomaram, ao saquear da cidade. Posto Dom Francisco e a gente em repouso de comer uns bocados, da estância que era vezinha ao palmar onde estava Rui Freire, veo recado ao 335 Capitão-mor que estava ali um mouro capeando com ua bandeira branca, ao qual ele mandou Gaspar da Índia, que soubesse dele o que queria; e trouxe recado que dezia el-Rei que, ante daquela cidade receber mais dano, ele se queria fazer tributário del-Rei de Portugal e que pera isso se queria ver com ele, Capitão-mor. Mas parece que ou este recado não era del-Rei ou, desconfiado dos méritos de sua pessoa, não quis vir, mandando-lhe Dom Francisco por seguro ua manopla sua, e depois um capacete. O qual recado, por ser trato de paz, meteu logo a gente em alvoroço de duas cousas: a ua que saqueassem a cidade primeiro, e a outra que cometessem o palmar onde estava el-Rei, pois não aceitava esta paz que mandara pedir e lhe concediam. E sobre este cometer do palmar, alguas pessoas nobres, mais desejosos de glória que do despojo da cidade,

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320 apertavam com o Capitão-mor que o entrassem, mas ele os desviou disso, dizendo que se contentassem dar-lhe Nosso Senhor aquela cidade tanto a seu salvo, sendo a mais temida de toda aquela costa. Porque entrar o palmar era cousa mui perigosa, por ser mui basto e per baixo ter tanto feno e erva, que se não poderiam os homens desempeçar, e detrás dos pés das palmeiras os frechariam a todos; dando ainda outras razões, com que converteu o alvoroço desta entrada a saquearem a cidade que repartiu por capitanias, por se não fazer algua desordem. O móvel da qual, por não ser algua cousa despejada, foi tanto, que se encheu o terreiro e as casas del-Rei da primeira cevadura daquele dia; e ao seguinte foi ainda tanto que, por não pejar as naus, não consentiu Dom Francisco que se embarcassem, nem menos mil almas que ali foram tomadas, somente duzentas, que repartiu por esses fidalgos, e as mais, por serem mulheres e outra gente fraca, mandou soltar. Passados dous dias na escala da cidade, quando veo ao terceiro, em se querendo recolher, mandou-lhe Dom Francisco pôr fogo per muitas partes, e tanto se ateou em pouco espaço, polas casas serem mui apinhoadas, que, quando se embarcou, já o fumo e as chamas do fogo traziam todo o ar tam corruto, que o não podiam sofrer. O qual fogo abrasou a maior parte daquela cidade de abominação, ficando nela ua faísca de 101v escândalo que di a vinte três anos a tornou outra vez a pôr naquele estado, como veremos em seu tempo. A este que Dom Francisco quis partir pera Melinde era o vento tanto de avante pela garganta do rio, que a força de toas tirou as naus fora, e enquanto andou neste trabalho, mandou Bermum Dias e a Gonçalo de Paiva que lhe fossem fazer alguas cousas prestes. E assi espediu Gonçalo Vaz de 336 Góis, que ele trouxe de Quíloa e havia de ficar nela, o qual levou muita roupa pera o resgate de Sofala, a que ele havia de ir entregá-la, depois que chegasse Pero de Anhaia. E à espedida destes navios chegou Vasco Gomes de Abreu com o mastro quebrado de um temporal que o fez apartar de Bastião de Sousa e com muita gente doente, por razão dos quais doentes Dom Francisco o mandou em companhia destes navios, e ele deteve-se ainda quatro dias, porque no trabalho que teve na saída perdeu o leme a nau Lionarda, capitão Diogo Correa, no qual tempo se fez outro, e também proveo de capitão do navio, em que daqui foi Dom Fernando de Eça, a Rodrigo Rabelo. Posto Dom Francisco em caminho, por muito que encomendou aos pilotos que tevessem tento, não escorressem Melinde, que seria dali vinte léguas, todavia as águas o levaram abaixo oito a ua angra a que ora chamam de Santa Helena, onde achou João Homem, capitão da caravela São Jorge. O qual disse que com o temporal que Vasco Gomes de Abreu se apartou de Bastião de Sousa, se apartara ele e Lopo Sanches, correndo ambos a vista um do 321 outro, té que outro tempo os apartou, no qual caminho tinha passado bem de trabalhos e descobriu novas ilhas. El-Rei de Melinde, como pelo recado que lhe Dom Francisco enviou estava apercebido com todalas cousas pera o receber, vendo que o tempo o levara àquela angra, ali o mandou vesitar com tudo, dando-lhe a prol-faça da tomada de Mombaça, que foi o maior prazer que lhe podera vir. Porque além das paixões antigas, que por nossa causa tinha com o Rei dela, se desta feita não ficara destruído totalmente, ele, Rei de Melinde, padecera muito mal, e a causa era esta: Tanto que el-Rei de Mombaça viu a destruição de Quíloa, mandou apertadamente requerer a el-Rei de Melinde que se fizesse em um corpo contra nós, movendo-lhe casamentos de filhos com filhas, não tanto por desejar sua liança, quanto a fim de o pôr em ódio connosco, parecendo-lhe que per este modo seria destruído. Mas como el-Rei de Melinde lhe negou seu requerimento, houve-se por mui injuriado em desprezar sua liança, e jurou que, passado Dom Francisco à Índia, havia de ir

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sobre ele com todo seu poder. As quais cousas sabendo Dom Francisco, mandou muitas do despojo de Mombaça a el-Rei de Melinde, e outras que lhe el-Rei Dom Manuel mandava como a fiel amigo, com palavras conformes aos méritos da lealdade que tinha connosco, e aos propósitos del-Rei de Mombaça. Passados estes recados e visitações que houve de parte a parte, partiu Dom Francisco daquela angra, béspora de Santo Augustinho, com catorze velas; e em dezasseis dias chegou à Índia, ao porto de Anchediva, com menos 337 duas, de que eram capitães Bermum Dias e Vasco Gomes de Abreu, que chegaram depois, e assi Bastião de Sousa com estas menos: Lucas da Fonseca que invernou em Moçambique, e Lopo Sanches que se perdeu, como se adiante verá. O qual Bastião de Sousa trouxe cartas do novo Rei de Quíloa, Mahamede Anconi, e del-Rei de Melinde, em que davam conta da paz e o estado da terra. E entre alguas cousas que Bastião de Sousa contou ao Capitão-mor, do que acontecera depois de sua vinda, segundo soube de Pero Ferreira, capitão de Quíloa, foi que Abrahemo, desterrado, que se intitulava rei dela, procurando a morte a Mahamede Anconi, mandou um mouro que o viesse matar dentro nas suas casas. O qual vindo ao negócio, posto que o cometeu como valente homem, não fez mais que dar-lhe com ua agonia pelo bucho de um braço, de que houve saúde; em pagamento da qual ousadia foi esquartejado, que fez grande terror entre os mouros, e foi causa que os outros di em diante teveram mais veneração ao novo Rei, Mahamede Anconi, vendo como vingávamos as ofensas que lhe eram feitas.

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322 102 337 Capítulo IX. Dalguas cousas que Dom Francisco de Almeida fez em quanto se trabalhava na obra da fortaleza de Anchediva; e os recados que ali teve de Onor per seus embaixadores, e assi dalguns mouros vezinhos à fortaleza, procurando sua amizade. Dom Francisco de Almeida, chegado à Ilha de Anchediva, a primeira cousa que fez foi espedir João Homem com cartas aos feitores de Cananor, Cochi e Coulão, escrevendo-lhe de sua chegada e o que ficava fazendo, que entretanto fizessem prestes aos mercadores que trouxessem a especearia pera a carga das naus, porque ele seria logo lá. E assi espediu Rodrigo Rabelo e a Gonçalo de Paiva, que andassem daquele lugar de Anchediva té o Monte de Eli e fizessem arribar a ele todalas naus de mouros; as que o não quisessem fazer as metessem no fundo, principalmente as de Meca e Calecute. Porque a estes dous lugares - Anchediva e Monte de Eli - vinham demandar todalas naus de Meca, Ormuz, Cambaia, pelas causas que em outra parte dissemos. E a principal que moveu a el-Rei Dom Manuel mandar a Dom Francisco que fizesse nesta Ilha Anchediva ua fortaleza, foi por ser pegada na terra, devoluta aos mareantes pera suas aguadas e mui abrigada de todolos ventos pera nela poder invernar, e estar no meio de toda a costa da Índia. Na qual ilha parece que algum príncipe magnífico ou zeloso do bem comum, 338 afim do proveito dos navegantes, no alto dela mandou fazer um grande tanque de cantaria em lugar de água nadível, do qual per um córrego abaixo corre ua quantidade de água que vem dar na praia, pera que as naus que ali forem ter façam sua aguada. Defronte do qual córrego, que é na face da ilha contra a terra firme, fica o abrigo pera as naus, e da banda de fora, em torno dela, estão quatro ilhéus que também ajudam abrigar aquele porto, porque quebra a fúria do mar neles; e neste lugar de ancoragem, estava Dom Vasco da Gama espalmando seus navios, quando com ele veo ter Gaspar da Índia, que era ali com Dom Francisco ao fazer da fortaleza, a qual ele fez de pedra e barro por não achar modo pera haver cal. E neste tempo também se armava ua galé de madeira, que foi lavrada deste reino, e outra tanta se perdeu em o navio de Lopo Sanches (como veremos) pera duas que houveram de ser. O trabalho das quais obras repartiu em duas capitanias: o da fortaleza deu a Manuel Paçanha que ia de cá provido da capitania dela por el-Rei, e o da galé a João Serrão, que também a levava de cá. E com esta galé também se fezeram dous bargantins pera andarem em companhia dela: de um era capitão Simão Martins e doutro Jácome Dias. Prosseguindo a obra nesta ordem, toda a gente daquela costa ficou em confusão, principalmente 323 os mouros, porque não somente os assombrou o número das velas, gente de armas e nova do que Dom Francisco leixava feito per onde vinha, mas ainda ver fundar ua fortaleza doze léguas de Goa, ua cidade do Sabaio, que pretendia querer senhorear toda aquela comarca, tomando as terras aos gentios, como fez às do estado de Goa. E assi estes per suas inteligências, como os vezinhos de Anchediva, que eram os de Cintacorá e Ancolá, que estavam defronte, procuravam per seus meios que o gentio da terra, acerca dos quais éramos aceitos, se não fiassem de nós nem dessem ajuda algua, ante trabalhassem como aquela fortaleza se não fizesse, por lhe ser um grave jugo a nossa vezinhança. E quem primeiro mostrou esta amoestação dos mouros foi el-Rei de Onor, que era dali oito léguas, per esta maneira: Como João Homem, que Dom Francisco dali espediu, passou per Cananor e deu o recado que levava a Gonçalo Gil Barbosa, que lá estava por feitor, ele, Gonçalo Gil, em um barco da terra

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per um homem da feitoria lhe escreveu, dando-lhe razão de si e do estado da terra e doutras cousas, que convinha ser Dom Francisco informado delas. Per o qual homem, quando Dom Francisco respondeu a Gonçalo Gil, mandou um recado a el-Rei de Onor que estava em caminho; porque, além de ser o mais chegado vezinho daquela fortaleza que ele começava, sabia ser aquele porto acolheita do cossairo Timoja, capitão del-Rei, o qual Timoja era aquele que veo ali cometer Dom Vasco da Gama. 339 A substância do qual recado que lhe Dom Francisco mandou, era: fazer-lhe 102v saber ser ali vindo, e o contentamento que tinha de o ter por vezinho daquela fortaleza, pera se prestarem como amigos, por el-Rei seu senhor, lho encomendar muito; e que trazia alguas cousas pera praticar com ele da sua parte, que lhe pedia ordenasse como se podesse ver. Ao qual recado ele não respondeu esta vez nem outras que Dom Francisco lá mandou, de propósito e não de passada, como o primeiro; somente em seu nome respondia um capitão que estava em Onor, e tudo eram desculpas, dizendo que el-Rei, seu senhor, estava metido dentro no sertão em um negócio de guerra, que por isso não vinha a reposta dos recados, e com estas escusas mandava palavras gerais de ofertas por dilatar tempo e se prover pera rompimento, se o i houvesse. Dom Francisco recebia estas cousas com brandura, dessimulando a verdade que delas sentia, e mostrava aos seus mensajeiros gasalhado dando-lhe dádivas e boas palavras, porque o tempo não era pera mais. Mas parece que assi estava ordenado per el-Rei de Onor, porque ao segundo dia chegaram per mar dous seus embaixadores, como homens que eram inocentes de tudo o que era passado, entre ele, Dom Francisco, e o capitão, dizendo que, como a nova daquela frota e obra que se ali fazia fora ter a el-Rei de Onor, posto que andasse ocupado em uns movimentos 324 de guerra mui afastado da costa do mar, polo desejo que tinha da amizade del-Rei de Portugal e de se prestar com ele, capitão, pois vinha ser ali vezinho, logo os enviara a o visitar e oferecer tudo o que houvesse mister, de mantimentos e qualquer outra cousa que fosse necessária, pera provimento daquela obra. Dom Francisco, depois que lhe respondeu a estas ofertas gerais, quis dar algua culpa ao capitão de Onor em não lhe responder a propósito, ao que eles responderam que à sua partida el-Rei, seu senhor, não era sabedor do primeiro recado, quanto mais das outras cousas que ele dizia. Que isto lhe podiam afirmar: el-Rei haver muito de sentir quando o soubesse, peró que aos capitães dos príncipes toda cautela era lícita por segurança do estado deles, enquanto não sabiam a sua vontade, que eles dariam conta destas cousas a el-Rei e em breve tornariam com reposta. Dom Francisco, por este ser o primeiro recado del-Rei, dissimulou com estes seus embaixadores, dizendo que na reposta que trouxessem haveria o passado por verdadeiro ou falso, e espediu-os mui contentes das palavras e cousas que levavam, por retorno das que trouxeram. Partidos estes, di a dous dias vieram certos mouros que estavam no porto de Onor com este requerimento: Que, por quanto eles eram vassalos del-Rei de Ormuz, do qual sabiam o grande desejo que tinha da amizade del-Rei de Portugal, e cujas era uas cinco naus que estavam surtas no porto de Onor, pediam a Sua Senhoria houvesse por bem de lhe dar um seguro pera poderem navegar. Que, quanto ao negócio que entre ele e o capitão de Onor era passado per recados, eles o 340 souberam, e por verem que o capitão del-Rei se remetia a vontade dele, cujo recado tardava muito, eles determinaram de se sair daquele porto de Onor e que o não quiseram fazer sem disso vir dar conta a ele, senhor Capitão-mor. Que, se lhe aprouvesse, eles se meteram entre ele e el-Rei de Onor pera o trazerem ao serviço del-Rei de Portugal; que o fariam de mui boa vontade, porque nisto lhe parecia que serviriam a el-Rei de Ormuz, seu senhor, pola boa vontade que sabiam ter às cousas del-Rei de Portugal. E que ainda se atreviam fazer com ele, Rei de Ormuz, que desse em sinal de Amizade cadano ua rica jóia; e que em retorno desta amizade lhe leixasse ele, Capitão-mor, navegar

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dez ou doze naus naquela costa da Índia, que ordinariamente mandava cadano, pera provimento de cousas pera sua casa, e que a reposta del-Rei podiam eles trazer per todo Dezembro. Dom Francisco, peró que entendeu que a vinda destes mouros foi na segurança das palavras que ele havia três dias que passara com os embaixadores del-Rei de Onor, e que tudo era por segurar suas naus, todavia os despachou com graça e gasalhado, mostrando ter contentamento da vinda de tais pessoas, e concedeu-lhe o seguro de suas naus, por serem párseos do reino de 325 Ormuz. Que quanto ao que prometiam del-Rei de Onor, ele espedira havia três dias seus embaixadores, per os quais esperava haver seu recado; que nisto receberia prazer deles, saber el-Rei de Ormuz, seu senhor, como ele tratava suas cousas, e do mais que prometiam comprissem com sua palavra e que na obra el-Rei o acharia mui certo. E porque esta prática foi em terra onde se fazia a obra da fortaleza e entendeu neles que desejavam ir com ele à nau, quando se recolheu à tarde, os levou consigo, e como eles não 103 eram costumados ver aquela grandeza de nau São Jerónimo, e tanta artelharia, armas, munições e ferver dos nossos, assi na obra da terra como do mar, ficaram pasmados, e muito mais quando lhe contaram dous mouros guzarates, cativos, que foram tomados em Mombaça, o que viram fazer aos nossos naquela cidade, e ouviram do que leixavam feito em Quíloa. Partidos estes mouros, assombrados do que viram e ouviram, ao seguinte dia vieram outros de ua fortaleza chamada Cintacorá, que seria dali meia légua, e por entrada trouxeram um galego remeiro do bargantim, capitão Jácome Dias, que per mandado do Capitão-mor havia dous dias que fora àquele rio trás dous zambucos. O qual galego, saindo com outros em terra, quando veo ao recolher, se leixou ficar, como homem que queria saber o que lá ia, mas logo foi tomado e trazido ante o capitão da fortaleza, que ordenou de o enviar com um presente de refresco a Dom Francisco, com título de visitação, desculpando-se de o não ter feito e que a causa fora ser ele ausente, e que, em chegando, a primeira cousa que soube foi daquela boa vezinhança que tinha com Sua Senhoria, do que houve muito prazer; e em sinal dele e de bom vezinho lhe enviava aquele refresco. Dom Francisco, espedidos os mensageiros que lhe trouxeram este recado, 341 com outro tal retorno de cousas que lhe mandou dar, posto que quisera castigar este galego por se leixar ficar em terra, entre gentios e mouros, não o quis fazer, por ele ser causa de o espertar em algua cousa de que estava descuidado, havendo esta ficada ser mais permissão divina que malícia sua. Porque per ele soube que, dentro do rio onde se acolheram os caravelões trás que Jácome Dias foi, estava ua fortaleza mui defensável, assi per natureza como artificialmente, em que haveria mais de oitocentos homens e grande parte deles mouros brancos, a qual cousa logo deu suspeita a Dom Francisco, como que o seu espírito lhe pronosticava o trabalho que lhe esta fortaleza havia de dar, e muito mais a temeu depois que soube ser ela do Sabaio, senhor da cidade Goa, que seria dali doze léguas. A qual como era estremo do reino de Onor, que se apartava do senhorio de Goa per um rio chamado Aligá, ao longo do qual estava situada, por esta razão de ser frontaria, sempre estava bem provida de gente de guarnição pola guerra que muito tempo havia que tinham com el-Rei de Onor, de 326 que ao diante diremos a causa. Porém depois que entrámos na Índia e as nossas naus foram demandar aquela Ilha Anchediva por causa de fazerem ali suas aguadas, teve o Sabaio mais tento nela e a mandou forteficar, e muito mais como soube a que fazia Dom Francisco, pola vezinhança que tinha com ela. E esta foi a causa de estar nela tanta gente de guarnição, principalmente alguns mouros brancos, que ele não empregava senão em parte de que se muito temia. Dom Francisco, posto que não soube estas cousas do galego somente polo que ele disse do que vira, mandou seu filho Dom Lourenço e com ele Bastião de Sousa, João da Nova e Antão Vaz, todos em batéis com a gente que poderam levar, e providos do necessário pera qualquer cousa que sobreviesse. O qual Dom Lourenço não se havia de mostrar que ia ali por não dar algua presunção

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aos mouros, quando vissem pessoa tam notável; somente iam todos em modo de visitação da parte do Capitão-mor ao capitão da fortaleza. E assi se fez. Porque não houve mais que notarem eles o que lhe era mandado e o capitão dela vir estar à fala com eles e assentarem paz como bons vezinhos e trazerem de lá algum refresco; e di a poucos dias, pera maior confirmação desta paz, o capitão da fortaleza mandou seus mensajeiros a Dom Francisco com dous zambucos carregados de mantimentos. Peró todas estas cousas eram feitas mais por temor que a outro fim, como di a pouco tempo se viu, segundo adiante veremos. A este tempo, chegou um sobrinho do feitor Gonçalo Gil com cartas suas ao Capitão-mor, e entre muitas cousas que lhe mandava dizer, era do aviamento que tinha pera a carga das naus e o grande temor que a fama daquela 342 armada tinha posto em toda a terra, principalmente quando ouviram o feito de Quíloa e Mombaça, que tinham grande nome na Índia, por razão do trato do ouro. Com as quais novas, estando el-Rei de Calecute perto da cidade em uns paços seus, se recolheu pera o pé da serra e que lá adoecera de grave doença; e muitos dos principais também o seguiram, levando consigo mulheres e fazenda, simulando que era por causa da doença del-Rei, e que na cidade Calecute havia grande pressa pera se acabar ua forte estacada de grossa madeira ao longo do mar com entulho de terra, cousa mui 103v defensável. E também tinham por nova haver poucos dias que viera ua nau de Meca, que trouxera alguns fundidores de artelharia e muitas armas, os quais trabalhavam de acabar duas peças grossas pera assestar na frontaria da cidade com outras que já estavam postas. E mais souberam per um frade que de Narsinga viera ter ali a Cananor, como el-Rei de Narsinga, que era quási um emperador do gentio da Índia em estado e riqueza, ordenava embaixadores pera lhe enviar, e que lhe parecia ser esta embaixada a fim de segurar alguns portos que tinha naquela costa, de que os principais deles eram Baticalá e Onor. 327 Sobre estas e outras novas que Dom Francisco cada dia tinha do estado da terra e movimentos dos príncipes dela, sobreveo que, com um tempo que havia dous dias que andava no mar, um zambuco grande, cuidando que ainda aquele abrigo da ilha estava despejado, vinha-o demandar; e quando se achou entre tam grande frota, com temor, vendo que os nossos se despunham pera ir a ele, foi correndo ao longo da costa contra Onor, e vendo que não podia escapar aos nossos, que o seguiam, deu consigo em terra. Dom Lourenço e Lourenço de Brito, e outros capitães que iam trás ele em seus batéis, quando lhe chegaram, foi a tempo que não acharam nele mais que doze cavalos, os quais vinham de Ormuz, segundo depois souberam. E porque o tempo era tal que com trabalho tornariam à fortaleza, quanto mais trazer consigo o zambuco, disse Dom Lourenço aos mouros da terra (que logo acudiram à praia como a vezinhos da fortaleza) que lhe entregavam aqueles cavalos pera darem conta deles quando lhos pedissem, o que os mouros aceitaram e compriram mui mal, donde procedeu o que se verá neste seguinte capítulo.

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327 103v 343 Capítulo X. Como, partido Dom Francisco de Anchediva, deu em Onor, onde queimou as naus do porto; e do que passou com Timoja. Dom Francisco de Almeida, como teve a galé e bargantim lançados ao mar, e viu que a fortaleza ficava já em estado pera se poder defender, tomou a menagem dela a Manuel Paçanha, que vinha provido por el-Rei da capitania, e Duarte Pereira de alcaide-mor, e assi o feitor e escrivães com todolos outros oficiais pera serviço dela, que os homens de armas seriam até oitenta pessoas, afora a gente do mar que ficavam nos bargantins, de que eram capitães Simão Martins e Jácome Dias. E entre alguas pessoas nobres que ficaram naquela fortaleza, foram estes filhos de Manuel Paçanha: João Paçanha, Jorge Paçanha, Francisco Paçanha, Ambrósio Paçanha e Álvaro Paçanha, que era bastardo, o qual em feitos e calidades de sua pessoa não havia enveja a seus irmãos, ainda que tevesse este labéu, e no descurso desta história se verá como todos mereceram serem juntamente aqui nomeados. Ficando esta fortaleza provida de todo o necessário, partiu Dom Francisco com sua frota a dezasseis dias de Outubro pera o porto de Onor, onde achou Gonçalo de Paiva que ele enviar adiante. O qual tinha tomado cinco zambucos, e porque dous deles traziam seguro de Dom Francisco, por serem daqueles que levavam a vender mantimento à fortaleza de Anchediva, foram soltos, e dos outros houveram trinta mouros e ua soma de arroz pera mantimento da gente. Surta toda a frota na barra do rio, dentro do qual pouco mais de ua 328 légua estava a cidade Onor, mandou Dom Francisco a Fernão Soares com alguns batéis saber se estava el-Rei nela ou os seus embaixadores, por quanto ele vinha comprir o que ficara com eles que quando passasse pera baixo viria àquele porto, pois el-Rei lhe mandara dizer que ele seria ali pera se verem ambos e assentarem paz e amizade. E quando ele per si o não podesse fazer, por estar em outra parte, que mandaria o capitão da cidade e os mesmos embaixadores que em seu nome o fizessem; e que se não tinham recado algum del-Rei sobre este negócio, que fossem alguas pessoas principais a ele, Capitão-mor, pera praticar com eles cousas que faziam a bem da cidade, e os que lá fossem levassem os doze cavalos que seus capitães deram em guarda aos moradores da terra. Tomado Fernão Soares com este recado que levou, trouxe por reposta que el-Rei estava dali 104 longe, como ele sabia, e eles não tinham recado algum seu nem os embaixadores não eram vindos e o capitão da cidade era chamado per el-Rei, o qual não poderia muito tardar; que com mantimentos e refresco da terra, que de mui boa vontade o serviriam, por saberem quanto prazer el-Rei, seu senhor, teria de o eles assi fazerem; e acerca dos cavalos, eles não 344 podiam dar razão deles, pois lhe não foram entregues; e que, segundo parecia, a entrega se fizera a gente vadia, que acudiu à costa onde o zambuco se perdeu, que eles mandariam fazer deligência sobre isso. Dom Francisco, como já estava enfadado del-Rei e de seus artefícios, e, segundo tinha por informação, ele houvera os cavalos, assentou com os capitães que com as caravelas e batéis subissem acima, dar ua vista à cidade, e quando não respondessem mais a propósito do que té li tinham feito, sair nela e lhe dar castigo de ferro. Posta esta ida em efeito, em rompendo a lua pôs-se Dom Francisco em caminho, indo diante em companhia de Dom Lourenço, Fernão Soares, João da Nova e Gonçalo de Paiva, por já saberem o rio.

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Os mouros, como tinham vigia sobre eles, tanto que os sentiram embarcar, despejaram a povoação e subiram-se a um monte que estava sobre ela, onde seguramente se podiam defender. E pera terem mais espaço de o fazer à sua vontade, mandaram um mouro dos honrados do lugar, obra de um tiro de bombarda dele, que entretivesse o Capitão-mor, pedindo-lhe que os não quisesse destruir, porque eles se queriam fazer vassalos del-Rei de Portugal com o tributo que a terra podesse sofrer, e que a eles lhe parecia que o seu Rei seria disso contente, cujo recado esperavam ao outro dia, por lhe já terem escrito sobre isso; e quanto aos cavalos, posto que não eram sabedores de quem os houvera, eles os queriam pagar. Dom Francisco, posto que entendeu que o vinham entreter, como a sua tenção não era mais que atraer aquela gente à obediência de el-Rei, respondeu que, pera segurança do que prometiam, lhe trouxessem logo 329 arrefens que entretivessem a indinação daquela sua gente de armas, senão que a soltaria logo pera irem tomar emenda dos enganos em que andavam. O mouro, lançando-se a seus pés, disse que ele tornava logo com reposta, a qual foi que el-Rei, seu senhor, estava di a quatro léguas, e Timoja, capitão dos armados, e o capitão do lugar eram idos a recebê-lo; que pediam a Sua Senhoria, pois entre eles não havia pessoa que podesse assentar cousa firme, se entretivesse té vinda de cada um daqueles capitães ou del-Rei, que não podiam tardar; e entretanto tivesse os raios de sua potência e os não quisesse estender sobre a vida de tantos inocentes, como o sol que então nascia os estendia sobre os montes da terra. Dom Francisco lhe respondeu que era contente de entreter a fúria daqueles cavaleiros que ali havia armados, os quais sempre foram piadosos a quem se humilhava às armas de seu Rei; porém que não dava mais espaço que enquanto o sol que ele dezia desse com os seus raios na altura do monte que estava sobre o lugar, amostrando-lhe aquele onde se eles acolhiam, isto mais por acerto que por saber o que eles faziam. A qual palavra deu suspeita ao mouro que eram entretidos e que mostrar-lhe o monte com o dedo era remoque disso; e como homem que recebia naquela resposta ua grã mercê, debruçou-se aos pés de Dom Francisco, e, 345 espedido dele, tornou-se ao lugar a grã pressa, mostrando o contentamento que levava do que lhe dissera. Mas como todas estas dilações de ir e vir eram a fim de se acolherem ao monte, e ele estava já bem coberto do sol, que era o termo de sua tornada, começaram os mouros de se mostrar armados ao longo da praia, como quem a queria defender. Vendo Dom Francisco este desengano deles, repartiu aquela frota de batéis em duas capitanias, mandando a Dom Lourenço com sete deles, em que iriam cento e cinquenta homens, que fossem acima do lugar onde apareciam naus e zambucos e lhe posesse o fogo sem sair em terra, senão vindo-lhe a resistir o feito; e ele, Dom Francisco, tomou os mais que ficavam e foi em resguardo de Dom Lourenço, porque sua tenção era queimar aquelas naus e não o lugar, por saber que era da obediência de el-Rei de Narsinga, cujos embaixadores vinham a ele, segundo lhe tinha dito o sobrinho de Gonçalo Gil. Chegado Dom Lourenço ao lugar das naus, era já tanta a gente de redor delas, per toda a praia, com apupadas e alvoroço de pelejar, que mais mostravam ousadia de ofender os nossos, que temor de serem ofendidos. E com este alvoroço e alaridos, que traz a fúria da guerra, de quando em quando lançavam ua nuvem de frechas perdidas em cima dos batéis, que fazia assaz de dano aos nossos; e 104v veo a tanto que foi o Capitão-mor frechado em um pé, a qual frechada lhe deu mais indinação que dor. Porque com ela seguiu avante, dando - Santiago! - onde viu maior soma da gente, que era junto das três naus que 330 eles queriam defender, a que Dom Lourenço per ua parte e Lourenço de Brito per outra punham

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fogo; e quando chegaram a duas que estavam mais avante, ao pé do monte onde os mouros recolheram suas mulheres e filhos, foi a setada e pedrada tanta, que daquela primeira chegada que os nossos fizeram grã parte deles ficaram feridos e caiu morto um remeiro. Mas com todo este dano que os nossos recebiam as naus começaram arder e parte da povoação, o qual fogo neste tempo foi emparo aos mouros e aos nossos, causa de receberem muito dano; porque o fumo e labareda que estava entre uns e outros, por causa do terrenho que ventava, vinha da parte donde os mouros frechavam a sua vontade, e principalmente pedradas que desatinavam os nossos, os quais começaram de se retraer pera a praia. Dom Lourenço, como se tirou da frontaria desta fumaça, tomando caminho ao longo do rio, foi encavalgar a terra mais acima, por lhe ficar o vento nas costas; e como rodeou o fogo que o campo lhe ficou descoberto, tornou sobre os mouros, os quais tinham já um corpo de gente consigo de mais de mil e quinhentos homens, e como se oferecia à morte, por salvar mulheres, filhos e fazenda, que a olho viam estar em gritos no monte, esperavam animosamente a Dom Lourenço e capitães que vinham com ele. 346 No qual encontro se travou entre todos ua mui crua peleja, os nossos por lhe entrar na cidade e eles por a defender; e assi carregou o grande número deles, que vieram alguns dos nossos buscar abrigo dos batéis, por razão da artelharia que varejava e fazia melhor terreiro. Ao qual tempo chegou Dom Francisco, que com sua gente tanto favoreceu estoutra, que tornaram a investir com os mouros; de maneira que começaram de se acolher ao monte, não podendo sofrer a fúria dos nossos, já assanhados do dano que recebiam e derribavam neles. Dom Francisco, porque sua tenção (como dissemos) era não destruir aquele lugar de Onor, por ser de um vassalo de el-Rei de Narsinga, somente queimar as naus da carga e os navios de remos que ali tinha Timoja, capitão dos cossairos, vendo que o fogo lhe tinha já dado vingança destas duas cousas, e que a gente se começava de meter em furor com o vencimento pera ir mais avante, mandou dar às trombetas, que se recolhessem. E porque ao recolher dos batéis soube que pelo rio acima, obra de meia légua, estavam ainda três naus de carga, começou de encaminhar a elas; e, indo já fora da povoação, se apresentou diante dele um mouro, que em sua presença parecia homem honrado. O qual a grandes brados, com aquele espírito de paixão com que vinha ao longo do rio, meteu-se na água até cinta, pedindo ao Capitão-mor que houvesse misericórdia dele, por quanto era natural de Cananor e estava ali com aquelas naus, que eram suas e doutros homens principais, vassalos de Cananor. Dom Francisco, quando o viu assi afadigado, adiantou-se com o 331 seu batel e o mandou recolher dentro, dizendo que não temesse que, se assi era como dezia, suas naus seriam seguras, por ser vassalo del-Rei de Cananor, a quem ele desejava de comprazer polo amor com que tratava as cousas do serviço del-Rei de Portugal, seu senhor; e que outro tanto fizera a el-Rei de Onor, se quisera aceitar sua amizade e não usar de tanta cautela e engano. E finalmente, sabendo certo que o mouro era de Cananor, depois que se recolheu às naus, o espediu em paz. Acabado este feito, já contra a tarde daquele dia, jazendo Dom Francisco sobre ua camilha por causa da frechada que houve no pé, chegou um mensajeiro do capitão Timoja, que lhe mandava pedir licença pera seguramente vir ante ele, e foi-lhe concedida. O qual Timoja, como era homem nobre de bom saber, nesta primeira vista entendeu o Capitão-mor que lhe podia dar mais crédito que aos mouros; porque assi na segurança de vir ante ele como nas palavras de sua chegada e presença de sua pessoa, parecia homem digno de honra, e que convinha ao serviço del-Rei ser recolhido em sua amizade, e por isso o recebeu com gasalhado. E entrando na prática, começou Timoja de pedir perdão de sua vinda ser tam tarde, e que a causa fora ocupações em que o trazia el-Rei de Onor; mas que ele tinha pago esta negligência em perder a maior parte de seus navios, os quais arderam em companhia das naus a que Sua Senhoria mandou 347

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poer fogo. Porém, de qualquer maneira que fosse, ele se vinha apresentar por vassalo del-Rei de Portugal, e 105 que este desejo não era nele novo, mas do primeiro dia que vira portugueses naquela terra; que lhe pedia por mercê houvesse por bem de o aceitar nesta conta, porque ele a que fazia de sua vida era empregá-la em seu serviço. Que quanto às cousas del-Rei de Onor, ele lhe mandava dizer que seu desejo era ser vassalo del-Rei de Portugal, por ter amparo em um tam grande príncipe como ele era; e o reconhecimento desta obediência seria com cousa que a terra podesse sofrer, e que melhor era aceitar ele, Capitão-mor, vassalos leais ao serviço del-Rei de Portugal, com pouco encargo, que revéis tributários; e também lhe pedia houvesse por escusado ele, Rei, per si vir a ele, Capitão-mor, por lho empedir ua certa enfermidade que lhe tolhia caminhar. Que acerca dos cavalos que lhe disseram que requeria aos moradores de Onor, ele tinha sabido nenhum dos que ali viviam ter parte na entrega deles; e contudo ele mandaria fazer exame disso, e per qualquer maneira que fosse os mandaria pagar; e ele, Timoja, oferecia ali sua pessoa em penhor de se comprir esta palavra. E também lhe pedia que tomasse por satisfação de algua culpa que os moradores de Onor podiam ter em tomar armas contra sua bandeira, o dano que por isso receberam; e que não era cousa neles muito estranha, mas grande lealdade, quererem defender a propriedade de seu Rei, sendo ele ausente e 332 não sabendo sua determinação. Dom Francisco a estas palavras respondeu graciosamente, atribuindo muita parte aos méritos da pessoa dele, Timoja; que quanto ao negócio da paz e párias del-Rei de Onor, ele se não podia deter ao presente por lhe convir ir a Cochi despachar as naus da carga, mas que seu filho Dom Lourenço havia de tornar logo de armada per aquela costa, ao qual ele daria comissão pera todas estas cousas. Timoja, posto que das palavras de Dom Francisco ficou contente, não se quis espedir dele, sem primeiro levar provisão sua, em que havia por bem que, assentando seu filho paz com el-Rei de Onor, ele e os mouros de Onor podesse navegar seguramente pelos mares da Índia; e com esta provisão se espediu de Dom Francisco. Do qual Timoja, posto que ao diante havemos de fazer maior relação, polo serviço que fez a este reino, na tomada de Goa, aqui, por lhe tirarmos a infâmia de cossairo daquela costa, diremos somente a causa de suas armadas. Este porto e o de Baticalá, que está adiante sete léguas, com outros desta costa, eram del-Rei de Bisnagá, e este Rei de Onor seu tributário. Os quais portos havia menos de quorenta anos que foram os mais célebres de toda aquela costa, não somente por a terra em si ser fértil e abastada de mantimentos, onde havia grande carregação pera todalas partes, mas ainda era entrada e saída de todalas mercadorias pera o reino de Bisnagá, de que el-Rei tinha grande rendimento. Principalmente dos cavalos da Arábia e Pérsia, que aqui concorriam, como a portos de mais proveito, pola grande 348 valia que tinham em Bisnagá, por estes cavalos serem a principal força com que se ele defendia dos mouros do reino Decão, com que continuadamente tinha guerra, e o cercavam pela parte do Norte e lhe tinham tomado muitas terras. E por causa desta fertilidade da terra e do trato destes portos havia aqui grande número de mouros dos naturais da terra, a que eles chamam naiteás, os quais costumavam comprar este cavalos e vendiam-nos aos mouros decanis, de que el-Rei de Bisnagá recebia grande dano, por lhe fazerem com eles a guerra, e mais da mão dos compradores os que ele havia mister, eram por dobrado preço. Finalmente, como a gente prejudicial a seu estado, mandou ao Rei de Onor, seu vassalo, que matasse nestes mouros os mais que pudesse, porque os outros com temor lhe despejassem a terra. E no ano de Mahamede de novecentos e dezassete, que é da era de Cristo nosso Redentor mil quatrocentos e setenta e nove, houve ua matança destes mouros per todas as terras de Onor e Baticalá, quási em modo de conjuração, em que morreram mais de dez mil; e os outros que ficaram

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feitos em um corpo, dando-lhe os da terra azo pera sua ida, foram povoar a Ilha Tiçuari, que é onde está fundada a cidade Goa, como adiante veremos. Do qual insulto que se fez contra estes mouros, começaram eles, em ódio do gentio de 333 Onor, povoar Goa e avocar ali as mercadorias, principalmente os cavalos, pera os passar ao reino Daquem, a qual obra fizeram em breve por estas cousas andarem navegadas per mãos de mouros, que queriam favorecer suas partes contra o gentio, com que os portos de Onor e Baticalá começaram sentir este dano. E pera obrigarem a que as naus dos cavalos e assi das outras mercadorias, que sempre iam demandar estes dous portos, 105v fossem a eles e não ao de Goa, ordenou el-Rei de Onor quatro capitães gentios, que com ua armada de navios de remo fizessem arribar todalas naus ao seu porto, e àqueles que se defendiam, roubavam e faziam todo o dano que podiam. Da qual armada este Timoja, de que falamos, era Capitão-mor, havido por homem de sua pessoa e que fazia todo o mal que podia aos mouros per aquela costa, e esta foi a causa da armada que ele trazia. E ante que ele viesse a este ofício, já o Rei de Onor tevera outros capitães, pola qual razão sempre entre el-Rei de Onor e os senhores de Goa houve guerra, e daqui vinha estar a fortaleza de Cintacorá provida como frontaria de imigos. Os quais mouros tanto prevaleceram sobre el-Rei de Onor, principalmente depois que o Sabaio foi senhor de Goa, que, tendo el-Rei de Onor a povoação da cidade na boca da barra, a mudou pera dentro do rio, haveria trinta anos; a qual com o fogo que os nossos lhe poseram na entrada de Dom Francisco, haviam de ter trabalho em reformar o queimado; porém maior o teveram, se não entráramos na Índia, porque, com tomarmos Goa, ficou el-Rei de Onor seguro em seu estado. 349 Espedido este Timoja mui satisfeito da honra que lhe Dom Francisco fez; posto que dele naquele tempo não tevesse sabido estas cousas, ao seguinte dia, que era vinte quatro de Outubro, partiu-se ele com toda sua frota via de Cananor, onde chegou. E porque com a sua entrada nesta cidade ele tomou o título de Viso-Rei, de que el-Rei Dom Manuel mandava que se intitulasse, segundo forma da provisão que levava, e enquanto esteve na Índia descobriu e conquistou muitos lugares da costa dela, entraremos no seguinte livro, que é o nono desta primeira Década, fazendo ua universal descripção das terras e portos marítimos, à maneira de roteiro de navegar de todo aquele Oriente. Pera que quando escrevermos os lugares que conquistaram e o caminho que as nossas naus fizeram e os portos que tomaram, seja melhor entendida a relação das tais cousas, posto que em cada ua delas particularmente o faremos, quando for necessário.

LIVRO IX 385 121 387 Capítulo Primeiro. Como o jau Pate Quetir, que vivia na povoação Upi, depois que Afonso de Albuquerque partiu da cidade Malaca, continuando a guerra, mandou tomar certa artelharia, onde mataram Afonso Pessoa, que estava em guarda da tranqueira, donde se causou ir Fernão Peres de Andrade sobre ele, e lhe queimou a povoação. Segundo atrás escrevemos, ao tempo que Afonso de Albuquerque se partiu da cidade Malaca, Pate Quetir, casado com ua filha de Utimuti-rajá, ficara alevantado contra a nossa fortaleza, cometendo alguas vezes, depois que passou o primeiro insulto de queimar a cidade da parte da habitação dela, de a querer outra vez meter a fogo e sangue, com que obrigou a Afonso de Albuquerque, enquanto lá estava, mandar fazer ua tranqueira no cabo da cidade, té entestar em um esteiro, que a vinha cercando pela parte do sertão. Em guarda da qual tranqueira leixou Afonso Pessoa com até setenta homens, e onde se fazia um cunhal que tinha duas faces, ua ao longo do mar, em que começava a povoação da cidade, e outra que fazia a mesma tranqueira; neste canto, por ser lugar de suspeita e vezinho a Afonso Pessoa, mandou pôr ua barcaça com um camelo e outras seis peças pequenas de metal, que tiravam ao longo destas duas faces, da qual era capitão Afonso Chainho. Pate Quetir, porque quando a sua gente vinha cometer a tranqueira recebia mais dano do camelo e peças desta barcaça, por varejarem ao longo 388 dela, que dos espingardeiros de Afonso Pessoa, ua ante manhã, ao tempo que a gente estava mais quebrantada da vigia de toda a noite, per mar de que nossos se não temiam por té então não terem 386 cometido per ali, mandou dous calaluzes, a gente dos quais assi veo calada e súbita, que mataram Afonso Chainho e os que com ele estavam, somente um bombardeiro que tirava com o camelo, que levaram pera se servir dele neste mister. O qual caso aconteceu a tempo que Fernão Peres de Andrade, capitão do mar, era ido ao rio de Muar, cinco léguas além de Malaca, em busca de Laquesamana, Capitão-mor da armada do Rei que fora de Malaca, o qual se metia ali pera com rebates daquela parte ajudar a Pate Quetir; peró daquela ida Fernão Peres não pelejou com ele, por lhe escapar, como capitão astucioso que era. Chegado Fernão Peres a Malaca esta menhã que Afonso Chainho foi morto, achou a cidade posta em grande tristeza por este desastre, e muito mais quando souberam como Laquesamana queria guerrear a cidade e não pelejar com ele, Fernão Peres. Finalmente, logo aquela menhã, posto ele em conselho com os capitães que trazia e com Rui de Brito, capitão da fortaleza, assentaram que ele, Fernão Peres, com sua armada, em que levaria até duzentos e cinquenta homens, e Afonso Pessoa per terra, com os seus setenta espingardeiros, dessem juntamente na povoação de Upi, onde Pate Quetir estava recolhido em ua fortaleza de madeira. Partido Fernão Peres per mar, foi Afonso Pessoa ao longo da praia igual dele com os seus setenta espingardeiros, e em sua companhia mais de quinhentos homens da terra dos de Nina Chetu, e das outras pessoas principais, a que Afonso de Albuquerque tinha dado os mais honrados cargos da cidade. E porque ante de chegar ao lugar Upi se fazia um esteiro, que de maré vazia se passava a pé, era tam má esta passagem por causa da vasa, que se deteve Afonso Pessoa tanto, que, primeiro que ele chegasse, tomou Fernão Peres terra, e porém com assaz perigo. Porque Pate Quetir tinha feito ua cerca de madeira mui forte, com entulho de terra per 121v dentro e cava per fora, e ficava esta parte de dentro tam soberba sobre a cava com o entulho que subia até o meio da madeira, que lhe servia em lugar de um forte muro, com muita artelharia

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assestada onde convinha. E além desta cerca, que era grande, tinha dentro outra pequena, feita a maneira de fortaleza, onde se ele recolhia, a qual era tam apertada do mar e metida na terra, quanto se estendia o circuito da grande, e per derredor era a terra retalhada em esteiros feitos à mão. De maneira que esta fortaleza per sítio era brigosa de cometer, e per repairos muito forte pera entrar; ca a madeira da primeira cerca era de ferro, porque os nossos pau-ferro chamam àquele género de madeira, por razão da sua fortaleza, e ser tam durável, que sol nem água lhe faz dano, a qual comumente chamam barbusano. Somente 389 a segunda cerca, onde estava o apousento de Pate Quetir, era de sândalo branco e vermelho, e paus tam grossos, como se eles nasceram pera aquele mister, e não pera se moer em um almofariz 387 de boticairo pera as mezinhas em que usamos dele. Tam grosso era o cabedal daquele jau Utimuti-rajá, sogro deste Pate Quetir, que as cousas de mercadoria assi as tinha em quantidade, que podia fazer ua cerca de sândalos, como de madeira do mato, que ele tinha por vezinho. E com esta confiança das forças que tinha feito, estava Pate Quetir tam seguro, que lhe parecia cousa impossível poderem os nossos entrar dentro; e porisso, quando lhe disseram que Fernão Peres tomara a terra, polo muito que havia de fazer na entrada da primeira cerca, e depois de enxotar o grande número de gente que consigo tinha, que poderia ser até seis mil almas, não fez muita conta dele, e leixou-se estar, mandando seus capitães que acudissem à praia; os quais, com a grande multidão da gente que traziam, em chegando ao lugar onde Fernão Peres cometeu querer entrar, deram-lhe tanto que fazer, que per um grande espaço o deteveram de fora da primeira cerca, no qual tempo cada um dos nossos capitães trabalhava por fazer algua entrada torneando a cerca, por os mouros acudirem todos ao lugar onde Fernão Peres cometia querê-los entrar. Jorge Botelho, a quem ele tinha assinado um lugar per onde mandou que fosse diante, correndo ao longo da cerca da parte do estreito que Afonso Pessoa passava, foi dar junto da outra segunda cerca; e como era lugar fora da frontaria da ribeira, acertou de achar ali os paus não mui firmes, e tanto esteve aloindo neles, que fez entrada. O qual, cuidando que ia bem aviado, foi-se meter em lugar com que se houvera de perder, e vinte e tantos homens que levava; ca a este tempo Fernão Peres tinha entrada a primeira cerca, e às lançadas ia encurrelando pera a segunda um grande número de mouros, ao encontro dos quais, polos entreter, Pate Quetir saía donde estava. Peró quando ele sentiu nas costas a revolta de outros, com que Jorge Botelho pelejava dentro, por se melhor segurar, não curou de ir de rostro onde ele andava, e foi-se escoando pera aquela parte, onde tinha ua pequena porta pegada no mato, que vinha dar na tranqueira per que se ele esperava acolher, quando se visse naquela necessidade. No qual tempo, veo dar com Jorge Botelho, que andava esgarrado dos outros capitães, um golpe de gente de refresco per ua ilharga em que vinham dous elefantes grandes armados à sua guisa, e ua elefanta pequena, que ao modo de genete vinha diante mui ligeira no cometer. Com a qual chegada Jorge Botelho e os seus se houveram por perdidos, porque tinham mouros de rostro com que pelejavam, e estes tomavam-lhe ua ilharga; de maneira que tomaram por remédio encostar-se a ua parte da cerca, por segurar as costas, e lhe ficarem todolos imigos diante. 390 E quis na sua boa fortuna que, no revolver que fizeram, ficou a elefanta dianteira a jeito que um Francisco Machado, cristão-novo, alfaiate, natural de Torres Novas, encarou 388 nela com ua espingarda e deu-lhe em parte, que deu a elefanta dous urros e duas voltas em redondo, ficando morta em terra, e os outros postos em fugida, e parte da gente que os seguia. E posto que entre eles houve esta revolta, nem por isso ficou Jorge Botelho tam desabafado, que não houvesse mister socorro, por andarem todolos de sua companhia bem sangrados, principalmente Francisco Cardoso, que depois foi almoxarife dos mantimentos do almazém de Lisboa, Bartolomeu Soares, do

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Algarve, mestre do seu navio, e o condestabre dele, e Pedrálvares, do Cartaxo, que fora moço de esporas del-Rei D. Manuel, um dos valentes homens que andaram naquelas partes. Os quais ficaram ali mortos com os mais que andavam naquele trabalho, se lhe não acudira Fernão Peres, que vinha já com a vitória da 122 primeira cerca; e, como entrou na segunda, não somente livrou a eles, mas acabou de enxotar toda a gente que havia nas cercas, que a fio se recolhia no mato, onde Pate Quetir se salvou. Fernão Peres, como se viu senhor da fortaleza, não quis mais seguir os imigos, porque se recolheram eles em parte na espessura do mato, onde lhe podiam frechar toda a gente, sem lhe ele poder fazer dano. Somente àquela parte per que eles podiam tornar à fortaleza, mandou pôr nela fogo pera ficar por defensão entre ele e os imigos, enquanto os nossos a esbulhavam, temendo que, andando neste fervor de esbulhar, tornassem sobre eles;, mas como todos levavam mais cuidado em salvar as vidas que na fazenda que lhe ficava, teveram os nossos largo tempo de prear à sua vontade. E quando foram dar com o camelo que eles tomaram aquela menhã, o qual tinham posto no lugar per onde Fernão Peres entrou, acharam o cepo dele todo cheo de sangue, e segundo se soube, era por cortarem ali a cabeça ao nosso bombardeiro. E a causa foi porque, aparecendo Fernão Peres a tiro dele, mandaram-lhe os mouros que tirasse; e porque o não quis fazer, posto que o ameaçavam com o que lhe fizeram, quis ante salvar a alma que a vida. Além da artelharia e munições, foi tanta a outra fazenda que havia, assi de móvel do serviço de Pate Quetir, como de toda sorte de mercadoria, que não somente se carregou a nossa gente e os mouros e gentios que foram em companhia de Afonso Pessoa, mas ainda outros da cidade que concorreram àquele esbulho. Foram os capitães que se acharam com Fernão Peres neste feito Pero de Faria, Lopo de Azevedo, Vasco Fernandes Coutinho, João Lopes de Alvim, Jorge Botelho, de Pombal, e Afonso Pessoa, que já nomeámos, e tanto o número dos mouros mortos, que se não contaram; e se dos nossos não houve algum, de feridos foram assaz, porque o feito foi mui bem cometido e pelejado, e um dos honrados que em Malaca se fez, com que Pate Quetir ficou mui quebrado.

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389 122 391 Capítulo II. Como Fernão Peres de Andrade, Capitão-mor do Mar, foi cometer a fortaleza de Pate Quetir, e, depois de ter vitória dele, ao embarcar, lhe mataram gente nobre; e do que passou com Laquesamana, Capitão-mor do Mar del-Rei Mahamude. Pate Quetir, como era homem muito industrioso e sabia que os nossos mui poucas cousas cometiam à borda da água, que não levassem na mão, polo que lhe vira fazer na tomada de Malaca, tinha dentro daqueles matos, nos lugares a que eles chamam duções, a maneira de nossas quintãs, recolhido suas mulheres e o mais principal de sua fazenda, e assi as pessoas nobres que estavam com ele. Porque a estes duções estava ele mui confiado que os nossos não podiam ir; ca não tinham mais largo caminho do que é ua vereda, indo um homem ante outro, por tudo o mais ser mui espesso de áspero arvoredo. E tanto que houve esta quebra, por se tirar da vezinhança de Malaca, por a sua povoação (como escrevemos) ser arrabalde dela, onde os nossos podiam ir per terra pelejar com ele, e mais os juncos que esperava da Jaua com mantimentos haviam logo de ser tomados da nossa armada - e sobretudo geralmente os mouros tem por grande agouro tornar a povoar o sítio onde ua vez foram desbaratados - foi-se mais abaixo obra de ua légua, contra o Cabo Rachado, fazer de novo outra fortaleza de madeira dentro em ua enseada onde havia melhor disposição, assi pera se defender, como pera recolhimento dos juncos que lhe viessem com provimento. E como isto determinou, escreveu a el-Rei Mahamude, que fora de Malaca, dando-lhe conta da fortuna que tevera naquela entrada que os nossos fizeram na sua povoação, e a causa donde procedera irem a ele, e a mudança que fazia de sua vivenda, e as razões porquê, pedindo-lhe, pois estes trabalhos que padecia eram polo servir e sustentar sua opinião, mandasse a Laquesamana, seu Capitão-mor do Mar, que não saísse dos dous estreitos - o de Sabão e o de Cingapura - e às vezes desse ua vista no rio de Muar. Porque, com andar per estes lugares, fazia duas cousas: a ua não vir junco per cada um daqueles dous estreitos que não fosse tomado per ele, pois que traziam 122v a Malaca mantimentos e mercadoria a seus imigos, e mais os juncos, que ele, Pate Quetir, esperava da Jaua, viriam mais seguros de nossas armadas; e a outra, daria causa a que elas acudissem àquela parte, e entretanto teria ele tempo pera fazer sua fortaleza 392 sem estar sempre com a lança na mão, e também podia dar um salto em Malaca, como se fez na tomada da barcaça com a artelharia, sendo a nossa armada no rio de Muar. Rui de Brito Patalim, capitão da fortaleza de Malaca, porque ua das cousas em que mais trabalhava 390 era em trazer entre estes imigos pessoas que soubessem parte de qualquer movimento deles, e nestas inteligências e avisos gastava muito, veo saber parte desta carta de Pate Quetir; e porém foi a tempo que tinha ele já feito a sua fortaleza de madeira no lugar que elegeu, que foi acabada em poucos dias com a muita gente que tinha. E também alguns dos juncos de mantimento que esperava da Jaua eram já vindos; os quais, tanto que chegaram e foram despejados, enquanto lhe não fazia tempo pera se tornar, ordenaram-se logo pera se defender, temendo nossa armada. E porque o lugar per onde os nossos podiam cometer entrar na fortaleza era de vasa, e a testa do seco da terra soberba a modo de alcantilada, posesse os juncos com as popas em seco, um junto do outro, de maneira que ficavam um baluarte com muita artelharia que tinham. Sabendo Rui de Brito e Fernão Peres como Pate Quetir já estava fortalecido e provido de

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mantimento, e que isto respondia ao que tinham sabido da carta que deziam ele ter mandado a el-Rei Mahamude, houveram que todo o mais dela era verdade, e que se urdia ua tea trabalhosa pera desfazer ou cortar, se fosse mais avante. Finalmente, havido conselho com todolos capitães, assentaram que Fernão Peres fosse cometer aquela força e trabalhasse por a desfazer; e prazeria a Deus que lhe seria mais leve de tomar, do que foi a outra que lhe queimou, com que acabariam de destruir este jau, que os inquietava. Partido Fernão Peres com todolos capitães a este feito, quando viu o sítio e modo como os juncos estavam, e que cometê-los de rostro era cousa mui perigosa, afastou-se um pedaço da frontaria deles e saiu mais abaixo com toda sua gente em um corpo. Ao encontro do qual, depois que foi em terra (porque de indústria, ao desembarcar, não o quiseram empedir), saíram uns poucos de jaus ao modo de cilada de dentro de um palmar, os quais, tanto que os nossos começaram ferir, foram-se recolhendo pera o palmar, mostrando temor. E como os teveram bem afastados da ribeira e engodados na vitória, saiu do palmar um corpo de gente grossa, e assi apertou com os nossos, que os fizeram vir recolhendo, té que, passado aquele primeiro súbito, tornaram a eles já em modo de vingança, com que os fizeram logo recolher, deles ao palmar e outros à fortaleza. A qual, per o circuito de fora, além de ser terra alagadiça e retalhada em esteiros à mão, per dentro também era feita um laberinto com levadas, cavas e paliçadas de madeira, per onde os mouros andavam tam leves, como 393 per um campo mui despejado, e os nossos, carregados de armas, se queriam dar um salto, caíam no meio da vasa. Fernão Peres, depois que à ponta do ferro despejou um terreiro da primeira cerca, quando entrou na segunda, onde havia estes impedimentos, não quis meter a gente naquele laberinto, e mandou pôr fogo a um lanço da 391 fortaleza, e que se recolhesse, por não vir o fogo e lhe fazer algum dano. E andando já o fogo ateado nela, e assi em uas lancharas metidas em um esteiro, acertou de se embarcar com Rui de Araújo em um parau tanta gente, que não pôde nadar, e como a maré vasava, ficou envasado na vasa. Os mouros, como vinham ladrando trás os nossos (por este lugar ser alcantilado), vendo de cima como os do parau estavam presos, começaram de frechar e alancear neles, sem perder lança nem frecha. Fernão Peres, que estava mais embaixo, já embarcado pera vir do mar pôr fogo aos juncos, quando viu o que padeciam estes do parau, mandou remar contra eles, bradando aos outros paraus, que estavam pouco carregados, que acudissem àquele; chegando os quais, foi tamanha a revolta dos que estavam no parau pera se passar a eles, que se metiam bem pela água. Rui de Araújo, cujo era o parau, querendo-se também passar aos outros, travou-lhe da saia de malha que trazia um tolete do remo, com que foi retido pera sempre; ca, neste desempeçar, veo ua lança de arremesso, que o matou, e foi causa de morrerem outros, porque cobraram os mouros tanto ânimo neste embaraçar dos nossos, que desceram abaixo, metendo-se na água às lançadas com eles. Na qual revolta morreram estes capitães: Cristóvão Mascarenhas, António de Azevedo, Jorge Garcês, filho do secretário Lourenço Garcês, e assi mataram Cristóvão Pacheco, e outros té número 123 de doze pessoas. O qual desastre favoreceu tanto a Pate Quetir, que di em diante começou de querer per terra cometer a tranqueira da cidade, onde estava Afonso Pessoa, ao qual Rui de Brito, per morte de Rui de Araújo, proveo de feitor, por os trabalhos que neste lugar tinha levado. El-Rei Mahamude, como soube de Pate Quetir esta vitória que houvera, começou de por em obra o que lhe ele per sua carta mandara pedir, acerca de o favorecer com a armada de Laquesamana per os lugares que lhe apontara, o que té então não fizera, parecendo-lhe que ficara daquela feita que Fernão Peres lhe queimou a povoação Upi tam quebrado, que não levantaria mais cabeça. E não passaram muitos dias depois da morte destes nossos, que Laquesamana não veo ao rio de Muar, onde Fernão Peres determinou de o ir buscar; ca, pelo que tinha sabido dos avisos que mandavam a Rui de Brito, sabia ser ele vindo ali pera favorecer a Pate Quetir.

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Porém Laquesamana, como era sabedor na guerra e não queria haver rompimento com Fernão Peres de batalha de pessoa a pessoa, somente andar ladrando derredor daquela cidade e pô-la em cerco de lhe não virem mantimentos, tanto que teve aviso que ele partia de Malaca, saiu-se do rio de Muar pera se meter per o Estreito de Cingapura; ca, por não ser sabido inda dos 394 nossos, isto lhe faria não ousarem de entrar per ele. Mas não se pôde tam prestes acolher, que Fernão Peres o não alcançasse junto de um esteiro largo e que entrava muito pola terra, onde se ele, Laquesamana, recolheu, pera ter favor de algua gente que havia em terra. E tanto que foi 392 dentro no lugar melhor desposto pera defender, varou quási em seco todas suas lancharas e calaluzes, que seriam mais de cinquenta peças, todos navios sutis, que demandam pouco fundo, a maneira de fustas e bargantins, parte dos quais estavam com as proas em terra e o mais na água, assi juntos em bastida, que pareciam um folhado de madeira, que se podia andar por cima, todos com sua artelharia posta em ordem. E arredados destes, mandou por alguas lancharas das maiores, atrevessadas, que emparassem as outras, e dar-lhe furos, com que se encheram de água, pera que, quando os nossos o viessem demandar, não podessem chegar com esta defensão. Fernão Peres, quando o achou posto nesta ordem, vendo que lhe não podia chegar com as lancharas alagadas, as quais ficaram a maneira de recife de pedras com canais retorcidos, pera os nossos batéis se atravessarem, pôs-se com um navio e ua galé, de que eram capitães Jorge Botelho e Pero de Faria, um pouco de largo, temendo que lhe ficassem em seco, por começar a maré a descer, e com a mais armada, que tudo eram batéis e outros navios de remo dos da terra, chegou-se às lancharas, que estavam alagadas. E posto que logo em chegando não as pôde passar, tanto que a maré as começou descobrir, e os nossos viram per onde podiam andar de uas em outras, foram dar com as que estavam por fortaleza; na chegada dos quais houve tanto tiro de ua e da outra parte, que andava o ar e o mar coalhado de setas e frechas. Porque, além de Laquesamana trazer consigo muita gente, a maior parte dela jaus, homens mui atrevidos em cometer e animosos em esperar, da terra concorreu ali muita gente; e posto que se não metesse nas lancharas de Laquesamana, por não poderem caber nelas, era tam perto deles aos nossos, que com as frechas iam frechar a gente dos navios que estavam afastados. A artelharia dos quais não tirava de fora, temendo que poderiam fazer dano aos nossos dos batéis, que andavam envoltos com os imigos, e tam travados, que não havia entre eles mais espaço, que o comprimento de arma com que se feriam. Peró, como a maré era já tanta parte dela vasia, que estes nossos que pelejavam, temeram que podiam ficar em seco entre as lancharas alagadas e as da terra com que contendiam, alargaram-se delas pera o mar, trazendo alguns calaluzes dos imigos, que poderam tomar, aos quais posesse fogo entre as lancharas alagadas, por se atear nelas; mas os mouros o apagaram logo, e com este despejo a nossa artelharia começou a jogar. A qual lhe fez tanto dano, que, se não sobreviera a noite, muito mais houvera de lavrar neles do que lavrou o ferro dos nossos em espaço de três horas, que mão por mão pelejaram com eles; posto que a peleja foi tam crua, que houve dos nossos muitos feridos. 395 Laquesamana, posto que também teve feridos e mortos, todo seu cuidado daquela 393 noite foi ordenar-se como poderia escapar de não pelejar outra vez; porque, nas três horas da peleja daquele dia passado, experimentou que vinda a menhã, tornando Fernão Peres a cometê-lo, não lhe ficaria homem vivo, vendo que tanto dano lhe fazia o ânimo dos nossos em 123v cometer, como dos seus jaus em esperar, oferecendo-se à morte como selvagens por se vingar. Finalmente, com a muita gente que tinha, aquela noite, assi os navios alagados, como por alagar, ele os varou todos em terra; e diante deles com madeira e terra fez um repairo tam forte, como o podera fazer muito de vagar em três ou quatro dias. Fernão Peres per sua parte também, curados os feridos, à maneira de pescador que atravessa

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o rio com sua rêde, por não perder o peixe que corre, com todolos navios que tinha de terra a terra atravessou todo o rio, temendo que Laquesamana aquela noite não se lhe fosse pera fora. Porém quando amanheceu, que ele viu a maneira da força que ele, Laquesamana, tinha feita, ficou espantado, e teve-o por homem de grande espírito e indústria: ca, não somente fez cousa que havia mister muita gente e munições pera a cometer, mas ainda foi tam caladamente, que de o não sentirem cuidava ele, Fernão Peres, que fugira pelo rio acima com parte da frota. E o que ainda lhe deu presunção desta ida foi porque, ante menhã, acabada a obra, como quem repicava em salvo, mandou Laquesamana tanger todolos seus sinos, que são de metal ao modo de bacias grandes, e delas tais, que o seu tom, quando são muitas em ua frota, se ouvem no mar ua légua. A qual alvorada Fernão Peres cuidou que dava a gente da terra àquele tempo per indústria dele mesmo, Laquesamana, porque cuidassem os nossos estar ele ali, e que de seguros disso não o iriam cometer senão menhã clara, e ele com isto teria mais tempo pera remar pelo rio acima. Vendo Fernão Peres o modo que este capitão teve no recolher-se naquele rio, furtando a volta a Jorge Botelho, que cuidava que, quando entrou primeiro nele, lhe tomava adiante pera se não poder acolher per ele acima, e assi a indústria tam incontinente que teve no alargar das suas lancharas por lhe não chegarem, e o que fez aquela noite, teve conselho com os capitães, e assentaram não ser a força que ele tinha feito cousa pera cometer, por não terem gente nem munições pera isso, e que aventuravam perderem-se todos, e mais quantos ficavam em Malaca, pois a vida dos que lá estavam pendia da defensão deles, fazendo conta de o tornar a buscar apercebidos de outra maneira, pera o cometerem em qualquer parte que se recolhesse. Com a qual determinação, por espedida, mandou Fernão Peres esbombardear-lhe os navios per todo aquele dia, e, de noite, partiu-se pera Malaca, onde chegou.

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394 123v 396 Capítulo III. De alguas cousas que Fernão Peres fez e passou; e da grande fome que ouve em toda a terra; e como, com o socorro que Afonso de Albuquerque mandou da Índia, Fernão Peres destruiu Pate Quetir, o qual fugiu para a Jaua. Pera os nossos não ficarem magoados e meio injuriados de leixarem aquele imigo sem maior castigo, e mais glorioso polo não cometerem naquela força que fez, permitiu Deus que achassem em Malaca três navios que eram vindos da Índia com toda a munição e provimento necessário àquela fortaleza, e com cento e cinquenta homens, dos quais navios eram capitães Francisco de Melo, Jorge de Brito e Martim Guedes. O qual socorro, que Afonso de Albuquerque mandava, animou tanto a todos, que, se podera ser logo aquele dia, os que vinham com Fernão Peres quiseram tornar, pera comprir o que assentaram com ele de tornarem mais providos do que iam pera castigar aquele mouro que ficava soberbo. Porém como Pate Quetir naquele tempo o andava mais polos nossos capitães que morreram na sua povoação, e tanto que Fernão Peres partiu em busca de Laquesamana, não somente mandou per terra dar rebate de noite na tranqueira de Afonso Pessoa, mas ainda com balões, que são barcos sutis, mandava entrar os esteiros que cercam a povoação da cidade daquela parte, a pôr fogo e prear qualquer pessoa que podiam haver à mão, quis Rui de Brito Patalim, primeiro que Fernão Peres tornasse em busca de Laquesamana, ter geral conselho que cousa convinha mais fazer-se por então, conformando-se também com as cartas que Afonso de Albuquerque escrevia da Índia. A substância das quais era que em nenhua outra cousa entendessem, senão em segurar a fortaleza daquela cidade; e que, enquanto podia correr perigo de per algua maneira poder ser tomada, ou a povoação da cidade de a queimarem, ou destruírem de maneira que os moradores a despovoassem e se fossem 124 viver a outra parte, per nenhua necessidade o Capitão-mor do Mar, Fernão Peres, se apartasse dela. E que, para ir aos estreitos de Sabão e Cingapura em favor das naus, que costumavam vir à cidade com mercadorias, e assi contra Laquesamana, Capitão-mor del-Rei Mahamude, ou a outra qualquer necessidade, ele mandava aqueles três capitães, e gente, e mais oficiais pera corregerem quaisquer navios e fazerem seis galés, a qual armada se podia repartir em duas partes - ua pera ficar em guarda da cidade e a outra parte pera acudir ao de fora. Assi que, havendo respeito a estas cousas, por alguns dias não se entendeu em outra senão em repairar os navios que tinham necessidade de corregimento, e consertarem-se alguns navios da terra que supriram enquanto não havia galés. No meio do qual tempo, 395 assi por causa da gente que veo da 397 Índia, como por não virem os juncos da Jaua, que só iam trazer mantimentos à cidade, os quais Laquesamana tomava no caminho, começou ela de se ver em tamanha necessidade deles, que vieram os nossos a não comer mais que ua vez no dia, e isto muito pouca quantidade de arroz cozido em água, sem mais outra cousa. E entre os mouros e gente da terra era tamanha, que a gente pobre se achava morta pelas ruas, e os mais deles, se não morriam à fome, eram mortos per as tigres do mato, onde esta pobre gente ia buscar algua fructa agreste e talos de ervas pera comer, a qual necessidade também Pate Quetir padecia em sua povoação. Finalmente, em todos era tam grande fome, que ela veo fazer trégua antre ele e os nossos, de maneira que cada um andava mais ocupado em buscar de comer, que pelejar; e o que causou também esta necessidade foi por não serem os meses de monção e tempo pera os irem buscar à Jaua, porque toda a terra vezinha de Malaca e ela

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de lá se mantém. Vindo este tempo que podiam sair, assentou Rui de Brito com Fernão Peres que repartisse a armada que tinha em duas partes - a dos maiores navios ficasse em guarda da cidade, segundo Afonso de Albuquerque escrevia, e a outra, de navios de remo, levasse ele, e fosse fora do Estreito de Cingapura em busca de alguns juncos de mantimentos, por ser o tempo que se eles navegam da Jaua. Assentada esta ida, partiu Fernão Peres com dez ou doze navios dos redondos, capitães Jorge Botelho e Martim Guedes, e Pero de Faria na sua galé, e os outros eram navios de remo da terra, levando consigo o tamungo da cidade, que era um mouro principal, homem fiel, e que por tal, lhe dera Afonso de Albuquerque aquele ofício de tamungo, que é quási como patrão da ribeira. Porque, como era homem que sabia bem a navegação daquela parte, e Fernão Peres havia de entrar pelo Estreito de Cingapura, que não era mui navegado, convinha-lhe quem o levasse per lugar sem perigo, ca este estreito o é tanto, que em parte as entenas da nau vão dando pelas ramas do arvoredo que está ao longo da água. E em verdade este lugar a que eles chamam estreito é mais esteiro que corta ua ponta de terra daquela parte de Malaca que algum estreito notável; e o outro de Sabão, que vai ao longo da Ilha Samatra, é muito maior, e por isso mais navegado. E ante que Fernão Peres chegasse a outro, indo per um canal que vai dar no de Sabão, como Pero de Faria ia diante na sua galé, foi dar com um junco grande que estava surto, o qual entreteve às bombardadas, té chegar toda a frota, com que se ele rendeu. Entrado este junco, soube Fernão Peres do capitão dele que ia pera Pate Quetir carregado de mantimento, armas e munições; e porém não soube então como vinha ali um filho de Pate Quetir, e que ele fizera que se rendesse. E a causa foi porque esperava de se salvar per manha, vendo que o não podia fazer per armas. Fernão Peres, como 396 tinha a presa que desejava, que eram mantimentos, e mais tomados a seu imigo, quis logo segurá-los; porque, como sabia que os jaus tem por costume, quando se vem tomados, alagam parte da nau, por 398 não cair neste perigo, veo a cair em outro maior, com que houvera de perder a vida: e foi que, baldeados os mantimentos em o navio de Martim Guedes, em que ele estava, e no de Jorge Botelho, recolheu consigo o capitão e principais pessoas que andavam no junco, a que mandou tomar armas, e permitiu que andassem soltos pelo navio. Os jaus, como é gente desesperada e que não temem que os matem depois que cometem o crime que eles desejam cometer, com crises pequenos, arma a maneira de nossas adagas, que lhe ficaram secretas, determinaram de matar quantos podessem em o navio, e primeiro que todos o capitão. Um dos quais, a que era cometido este feito em começar nele, não esperou mais que vê-lo apartado da gente; e estando Fernão Peres encostado ao propau do navio, per detrás deu-lhe com o cris pelas costas; peró 124v quando veo a segunda, que Fernão Peres teve tempo de se resguardar dele, acudiu gente não somente sobre este, mas sobre os outros que começavam per o navio de fazer sua obra. Finalmente, sem fazerem mais dano, foram presos deles, e os outros se lançaram a nado, e salvaram-se em terra, por ser perto dela. Acabado este alvoroço, e Fernão Peres curado, mandou meter a tormento o capitão do junco, que ficou tomado com os outros, que se não poderam salvar a nado, e fez-lhe perguntas com que fundamento cometiam aquele feito, e se eram da Jaua partidos mais juncos em favor de Pate Quetir, e outras cousas que convinham pera sua informação. O qual respondeu que seu fundamento era a natureza dos jaus matar quem os cativa ou a pessoa de que recebem mal; e quanto a se eram partidos juncos da Jaua, em sua companhia vieram três, os quais ficavam no Estreito de Cingapura, donde não haviam de partir té verem recado seu, porque ele vinha diante em maneira de descobridor, temendo podê-lo topar; e que entre aqueles tomados estava um filho de Pate Quetir. Fernão Peres, tanto que teve esta informação, mandou arrecadar estes cativos e partiu-se

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com aquela presa pera Malaca, e di mandou Jorge Botelho e Lopo de Azevedo em seus navios buscar os juncos onde lhe dissera o capitão jau, os quais eles tomaram levemente e trouxeram à cidade. E neste mesmo tempo chegou de Pegu outro junco de mantimentos, no qual vinha Gomes da Cunha, que Afonso de Albuquerque lá enviou assentar paz com o Rei da terra, notificando-lhe a tomada de Malaca, e que seguramente podia mandar seus juncos e vassalos a ela pera o negócio do comércio, como sempre fizeram. E porque com a tomada destes juncos, que vinham pera Pate Quetir, ele ficou mui quebrado e com muita dor por 397 causa do filho que lhe cativaram (posto que di a poucos dias o mancebo fugiu da prisão e se foi para ele), e os nossos ficaram com as forças restituídas da fome passada, assentou-se em conselho entre todolos capitães, que, ante de Pate Quetir se prover, dessem sobre ele, porque, com ele destruído, perderia el-Rei Mahamude a esperança que tinha de cobrar Malaca com sua ajuda, e Laquesamana não viria dar os rebates que dava. 399 Partido Fernão Peres com toda a sua frota e a mais gente que pôde levar, e outra per terra, pela maneira que Afonso Pessoa foi duas vezes, deu-lhe Deus tal vitória, que mataram muita gente a Pate Quetir e queimaram-lhe aquela força, e ele acolheu-se ao mato com mui poucos, e desta feita ficou tam destruído e quebrado no ânimo, que, não ousando esperar ali mais, em dous juncos que ali estavam da Jaua se partiu pera lá com determinação de não tornar mais a Malaca; e no modo de sua partida teve tanto segredo e astúcia, que havia três dias que era partido, sem se saber em Malaca. E parecendo-lhe a Fernão Peres que o podia alcançar, foi trás ele té vasar fora do Estreito de Sabão, per onde ele havia de fazer seu caminho, e em lugar dele topou com Laquesamana, que andava ali esperando os juncos que vinham per Malaca; peró não houve entre eles peleja, posto que Fernão Peres o seguiu ua tarde toda, peró que, com a vinda da noite, Laquesamana escapuliu per entre aquelas ilhas, sem mais dele haverem vista. Vendo Fernão Peres que andar lá mais dias era tempo perdido, e mais governando pela pilotagem dos mouros da terra, porque ainda os nossos pilotos não tinham navegado daqueles estreitos por diante, tornou-se pera Malaca, onde achou quem lhe contou daquela navegação, que foi António de Abreu, que Afonso de Albuquerque tinha mandado às Ilhas de Maluco (como escrevemos). A viagem do qual, e do que ele e Francisco Serrão, que ia em sua companhia, passaram, adiante faremos relação, quando começarmos a tratar em o descobrimento das Ilhas de Maluco, onde eles eram enviados. E segundo o tempo em que ele, António de Abreu, veo, que foi andando Laquesamana atravessando os mares per fora das bocas daqueles dous estreitos Cingapura e Sabão - e assi ser partido Pate Quetir pera a Jaua, pelo qual caminho ele, António de Abreu, vinha, foi grã dita não o toparem, e muito maior partir-se naquele mesmo tempo Pate Quetir; porque, se dilatara sua partida vinte dias, se Deus milagrosamente não defendera Malaca, houvera-se de perder, polo que sucedeu com ua grossa armada que veo da Jaua, como se verá no seguinte capítulo.

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398 125 400 Capítulo IV. Em que se descreve a Ilha Jaua; e como um Príncipe dela, chamado Pate Unuz, fez ua grossa armada pera vir sobre Malaca; e o que os nossos sobre isso fizeram. A terra Jaua é ua ilha que está ao Oriente de Samatra, tam vezinha a ela que entre ambas fica um estreito, que será de largura até quinze léguas. O lançamento desta Ilha Jaua é quási pelo rumo de Levante e Ponente; tem a primeira ponta ocidental em altura de seis graus do polo do Sul e em sete e meio a outra oriental, e aqui faz outro boqueirão, porque se vão continuando a esta primeira ua corda delas grandes, e per grande espaço contra o Oriente. Terá de comprimento esta Ilha Jaua cento e noventa léguas, e da largura não temos certa notícia, por aquela face do Sul não ser ainda per nós navegada; e segundo fama dos naturais, toda a costa daquela parte, por razão do grande golfão do mar do Sul, é de poucos portos, e estes que habitam a parte do Norte não se comunicam com o gentio daquela costa; ca, per meio da ilha, ao comprimento dela, corre ua corda de serrania que os empide, e todavia dizem que a largura desta ilha será o terço de sea comprimento. Geralmente é povoada de povo idólatra, a que chamam jaus, do nome da terra, gente da mais polícia daquelas partes, a qual, segundo eles dizem, veo ali povoar da China; e parece dizerem verdade, porque no parecer e no modo de sua polícia imitam muito aos chis, e assi tem cidades cercadas, e andam a cavalo, e tratam o governo da terra como eles. Porém, depois que mouros de Malaca navegaram a ela, de mercadores pouco e pouco se fizeram conquistadores, tomando posse das cidades portos de mar, com o que o gentio ficou sem navegação; e por causa da guerra que lhe os mouros faziam, começaram de se recolher pera dentro da terra, ao pé da serra que dissemos. E entre alguns mouros da mesma linhagem dos jaus (porque, per doutrina dos malaios, se converteram muitos jaus), ao tempo que nós tomámos Malaca, era o principal senhor da cidade Japara um per nome Pate Unuz, o qual depois se fez Rei da Sunda, como veremos adiante. Este, como era homem poderoso e aparentado, e que per modo de cossairo se tinha feito senhor da terra, tomou pensamento de vir sobre a cidade Malaca, vendo que a maior parte dos moradores dela eram jaus, em os quais ele havia de ter muito favor. Finalmente, com este pensamento começou de mandar fazer um junco, que seria em carga do tamanho de ua das nossas naus de quinhentos tonés, ao qual mandou lançar outro costado, e sobre este outros até número de sete, com um certo betume de cal e azeite entre costado e costado, a que eles chamam lapes, com que 399 o junco ficou de 401 três palmos de grossura, de maneira que, em qualquer parte que o posessem, podia servir de um forte baluarte. Fazendo ele, Pate Unuz, fundamento que quando na primeira chegada, com a muita gente que esperava levar, não podesse tomar a cidade, com este junco em modo de fortaleza se leixaria estar sobre ela, defendendo não entrar nem sair cousa algua, com que a tomaria à fome; e além deste junco fez outros navios, na qual obra se deteve sete anos. E quando soube que Afonso de Albuquerque com menos armada e gente do que ele esperava ]evar, tomara a cidade, cobrou maior ânimo, concebendo esperança de nos lançar fora, porque os mesmos malaios em ódio nosso seriam em sua ajuda. E porque já com esta cor de nos lançar de Malaca podia encobrir seu principal intento, começou de ter alguas inteligências com os principais jaus que viviam em Malaca, principalmente com Utimuti-rajá em quanto viveu, e depois com Pate Quetir e Suaria Deva, que eram os mais poderosos, os quais liberalmente lhe fizeram oferta de suas pessoas, e o feito mui leve de acabar, apressando-o muito que viesse a ele. Finalmente, ele se fez prestes com noventa velas, de

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que a maior parte eram navios pequenos de remo de toda sorte, e os mais juncos, em que entravam, além deste notável que dissemos, outros mui grandes, assi como um em que vinha um jau mui poderoso senhor da cidade Polimbão, que era a segunda pessoa desta armada, ao qual chamavam Timungão. E em outro junco vinha um seu sobrinho, que, por ser homem 125v de sua pessoa, era temido naquelas partes, e assi outros jaus principais, trazendo todos voz que nos vinham lançar da terra, sem algum deles saber a tenção de Pate Unuz, sendo eles convocados per ele com a voz que todos traziam, na qual armada (segundo fama), viriam doze mil homens, com muita artelharia feita na Jaua, por serem grandes homens de fundição e de todo lavramento de ferro, e outra que houveram da Índia. A nova da vinda deste Pate Unuz, posto que se encobriu muito tempo aos nossos, foi sabida em Malaca na entrada de Janeiro do ano de quinhentos e treze, a tempo que Fernão Peres estava de todo prestes pera se partir pera a Índia com as três naus carregadas da armada de Diogo Mendes de Vasconcelos, que, por serem de armadores, per ordenança de Afonso de Albuquerque (como atrás fica), haviam de vir a este reino com carga de especearia. Sobre o qual caso, sem ter mais notícia do número e poder das naus, somente por lhe certificarem alguns mercadores que tinham nova da vinda deste jau em ajuda de Pate Quetir, Rui de Brito e Fernão Peres, com todolos capitães em conselho, assentaram ser serviço del-Rei ir Fernão Peres com toda a armada esperá-lo ao Estreito de Sabão, onde se podia melhor ajudar dele. Partido Fernão Peres a este caso, não achou em todo o estreito nova nem notícia de tal armada; e porque os nossos sempre andavam 400 suspeitosos com as novas que davam os mouros, por as mais vezes serem falsas, tornou-se 402 Fernão Peres a Malaca acabar de se aperceber pera a Índia. E havendo cinco ou seis dias que ele era vindo daquele estreito, tendo já fora toda a artelharia que levava da fortaleza e estando quási de todo carregado, e de verga de alto pera fazer sua viagem, eis aqui aparece contra o Cabo Rachado, que é de Malaca obra de três léguas contra a Índia, todo o mar coalhado de velas da armada de Pate Unuz. O qual de indústria, por dar de súbito sobre a cidade, tanto que passou o Estreito de Sabão, foi-se cosendo com a terra de Samatra, que está defronte de Malaca, metendo-se per entre as ilhas por se encobrir, té que veo sair por o rio chamado Ciaca, e dali atravessou a terra de Malaca, e descaindo com as águas, vinha demandar a cidade per aquela parte, por segurar os nossos; ca, se fosse visto, cuidariam que eram velas da Índia, que fica daquela parte do Ponente, onde ele aparecia, e não da Jaua, que jaz ao Levante de Malaca. Vista tam grande frota, entenderam os nossos ser Pate Unuz, e logo em continente teveram os capitães conselho, no qual, entre Rui de Brito, capitão da fortaleza, e Fernão Peres, houve alguas palavras, dizendo Fernão Peres a Rui de Brito, que se queria meter na nossa armada como pessoa principal, que ele se fosse a sua fortaleza, de que tinha dado menage, e leixasse a ele usar de seu ofício de Capitão-mor do Mar. Todavia, naquele primeiro conselho, como quem acode a um fogo geral, porque o tempo não dava lugar a mais, todos se armaram e meteram em os navios - Rui de Brito em a galé de Pero de Faria, e Fernão Peres na sua nau, leixando em guarda da fortaleza Aires Pereira, alcaide-mor dela, Pero Pessoa, feitor, e António de Abreu, por doente, que havia poucos dias que viera de descobrir Maluco, e com eles até vinte homens. Seriam as velas que se aperceberam contra Pate Unuz dezassete, de que eram capitães Fernão Peres, João Lopes Alvim, Lopo de Azevedo, Francisco de Melo, Jorge de Brito, Joanes Impola, senhorio da nau em que ia, Jorge Botelho, Martim Guedes, Vasco Fernandes Coutinho, Cristóvão Mascarenhas e Pero de Faria, com quem se meteu Rui de Brito e Tuão Mahamede, tamungo de Malaca, homem fiel e cavaleiro, em um junco da China seu, na qual frota iriam até trezentos e cinquenta portugueses e alguns naturais da terra, homens havidos por fiéis. Partida esta frota contra onde vinha Pate Unuz, meteu-se um pouco ao mar por lhe darem a ele a parte da terra, por verem que se cosia com ela, como quem não queria perder aquela posse,

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levando ante si abrigados da nossa frota todolos navios meúdos. Porém como viu o navio de Jorge Botelho, que, por ser pequeno e veleiro, se adiantou das outras velas, espediu de si obra de vinte navios de remo, que lho viessem tomar; mas eles acharam tal salva nele, que se 401 tornaram a recolher, com o qual temor Jorge Botelho cobrou mais ânimo de se chegar a eles, té vir a tiro dos juncos mais principais. Na esteira do qual, por se remar bem, foi a galé de Pero de Faria, e assi serviram ambos com artelharia ao junco de Pate Unuz, que começou ele de se abrigar com os juncos que levava junto de si, té que chegou o corpo da 403 nossa 126 armada, que fez maravilhas neles, não somente com os pelouros, mas ainda com as rachas da madeira que faziam nos juncos, que matou muita gente; sem em todo este tempo Pate Unuz tirar, somente levar sua armada com um esquadrão cerrado ao longo da terra, té que, em se cerrando a noite, tomou o pouso defronte da povoação Upi, e parte ao longo da cidade, como quem queria ter comunicação com ela, e os nossos foram tomar o seu defronte da fortaleza.

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401 126 403 Capítulo V. Como Pate Unuz, não ousando cometer a nossa armada, nem menos sair em terra, por conselho que teve se partiu, e Fernão Peres foi trás ele e o desbaratou. Ainda que a noite, aos que per armas contendem de dia, é um grande remédio pera tomar fôlego do trabalho passado, cada ua destas frotas teve aquela noite tanto que fazer em se aconselhar e prover, que não houve algum homem de armas que a dormisse, quanto mais os capitães e pessoas notáveis, de quem dependia a conclusão do que se havia de fazer. E entre os nossos ainda maior trabalho que acerca dos imigos; ca estes tratavam como se haveriam naquele caso, e eles tinham contenda de paixões de jurdição, donde foram as palavras de Fernão Peres com Rui de Brito Patalim, o qual aquela noite, com todolos capitães, em a galé de Pero de Faria teve conselho, sem Fernão Peres querer ir a ele. No qual conselho, posto que houve muitos e diferentes pareceres, todavia se resumiram neste: que Fernão Peres devia mandar pera a Índia as naus de armadores, que estavam carregadas de especearia a pedir socorro, e que neste tempo podiam suster-se em cerco; porque, ainda que aquele jau não fizesse mais que tê-los cercados, mais risco corriam por causa dos mantimentos haver na fortaleza muita gente, que pouca. E que com navios pequenos que ficassem, Fernão Peres se devia pôr na boca do rio, pegado na ponte, por as lancharas dos imigos não fossem pelo rio acima a poiar gente em terra pera vir cercar a fortaleza e a combaterem, e que ele, com o abrigo da ponte, onde se faria ua tranqueira, ficava seguro, se o viessem cometer; e quando não podesse sustentar a força dos imigos, ficava-lhe lugar pera se acolher à fortaleza. 404 Da qual determinação se fez um auto, assinado per todos em modo de requerimento, que Rui de Brito 402 per um escrivão mandou a Fernão Peres. A tanto chegam as paixões de competência em casos de honra entre portugueses, que, quando os outros se estão armando, estão eles em requerimentos e protestos de papel e tinta. Fernão Peres, a este de Rui de Brito, respondeu que ele tinha dito o dia de ante sobre aquele caso o que esperava fazer com aquela armada, de que era Capitão-mor, que era pelejar com aquele jau; e ele, Rui de Brito, devia estar em a fortaleza, de que dera menage, e defender-se com a gente que pera ela lhe fora ordenada, se os jaus a quisessem combater. E que deste seu voto ser o principal, que convinha a estado del-Rei e honra de quantos ali estavam em seu serviço, ele tomara já experiência a tarde passada, no modo da vinda da armada dos imigos, em que entendeu que Pate Unuz mais conta fazia de tomar a terra e de se ajudar do favor dos da cidade, que de pelejar no mar, porisso ele esperava em Deus de o lançar dali, e sua determinação era dar nele, em rompendo a lua. Rui de Brito, quando viu esta reposta de Fernão Peres, em que também se assinaram alguns capitães da sua armada, que com ele estavam, confirmando o que ele dezia, ordenou em terra aquela noite quanto se pode fazer. Ua das quais cousas foi mandar derribar da ponte do rio, per que se passava da povoação dos mouros à fortaleza, a maior parte dos paus que poderam, e alguns ficaram dependurados, pera as lancharas dos imigos, ainda que quisessem ir pelo rio acima, o não podessem fazer; e assi fez ua tranqueira no fim da ponte, da parte da fortaleza, porque os mouros não podessem vir a ela, temendo que, se Pate Unuz tomasse a cidade, todos se haviam de ajuntar com ele. Fernão Peres também não pera se defender, mas cometer os imigos, toda a noite gastou em ordenar artefícios de fogo e dar ordem aos capitães como se haviam de haver no cometimento daquele feito, tomando por conclusão que, tanto que rompesse alva, dar sobre os navios pequenos,

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126v que lhe ficavam mais vezinhos, e lançaram-lhe dentro ua chuiva de panelas de pólvora, bombas e rocas de fogo pera os queimar; porque, como estavam apinhoados, primeiro que se apartassem uns dos outros, haviam de arder muitos. E leixando estes em poder do fogo, e em favor dele os seus navios pequenos, que com a artelharia desatinassem os jaus, pera o não poderem apagar, com as outras velas grandes iria ele demandar os principais juncos, onde despenderiam quanta pólvora tevessem, e per derradeiro os iriam abalroar. E o mais, o tempo daria conselho e Deus teria cuidado deles, pois confessavam o seu nome. E porque temeu que os imigos de noite os viessem 405 cometer, além da vigia que ele, Fernão Peres, encomendou aos capitães, mandou-lhes que estevessem todos com as âncoras a pique, a volta de cabrestante, porque não os tomassem presos nelas. Pate Unuz também onde estava teve seu conselho, não somente com os capitães que trazia, mas com alguns 403 jaus da cidade, de que logo foi visitado, que eram aqueles com que tinha prática sobre sua vinda, o principal dos quais era Suria Deva. E posto que estes o animaram muito pera aquele feito a que vinha, quando soube deles como Pate Quetir era partido pera a Jaua, e o modo como foi desbaratado, ficou mui triste e confuso, porque no conselho dele tinha posto grande parte de sua esperança, e, como homem novo na terra, achou-se manco de todo. E tinha ele nisto razão, porque Pate Quetir era cavaleiro e homem astucioso, costumado a sofrer nossas armas; e sem dúvida, se ele não fora ido, ou Pate Unuz o topara no caminho, tornando com ele, muito mal nos houvera de fazer. Mas permitiu Deus sua ida e que se não encontrasse com ele, por livrar os nossos de tanto perigo, e mais ser causa dele Pate Unuz fazer o que fez, com que Fernão Peres houve dele vitória per modo não cuidado. E o que também causou a Pate Unuz temor foi o grande dano que recebeu no seu junco, que ele cuidava ser ua rocha, e que não havia artelharia contra ele, porque alguns tiros de esperas o tomaram per parte que lhe entrou dentro o pelouro, que lhe matou muita gente. E além deste dano que recebeu, viu a fortaleza das nossas naus, e o ânimo daqueles que iam nelas, que tam ousadamente, sendo tam poucos, cometeram a grandeza da sua frota; de maneira que, com a experiência, teve maior opinião de nós, e menos esperança do que trazia, e não tanta facelidade, como Suria Deva e os outros jaus lhe prometiam per cartas. Finalmente, havido conselho sobre o modo que teriam em cometer a nossa armada, e mais a fortaleza, passadas muitas dúvidas e debates, o mesmo Suria Deva, vendo algum receo nos principais jaus que vinham com Pate Unuz, lhe representou a resolução do que devia fazer, por alguns inconvenientes que eles apontaram, e principalmente por ele segurar sua fazenda, temendo a natureza dos jaus, que, saindo em terra, o poderiam saquear por espedida, ora lhe sucedesse bem ou mal no caso. A qual resolução foi que a ele, Pate Unuz, lhe não convinha sair em terra a tomar a fortaleza; porque, ainda que tevesse certo poder-se fazer, corria a sua armada risco de os nossos a queimarem, e sendo assi, ele ficava o cercado e desbaratado, e nós os vencedores; porque, como a vida daquela cidade era os mantimentos que lhe vinham pelo mar, tanto que lhe posessem a mão na garganta da entrada deles, não tinha mais fôlego. Também pelejar com as nossas naus a ele não parecia bem, por sermos a mais ousada gente que ele 406 tinha visto, sem ter conta com muitas ou poucas velas, nem se eram grandes ou pequenas, porque qualquer das nossas naus cometeria abalroar com o seu junco. E pois qualquer destes modos que ele cometesse, por causa do grande aparato que trazia, desesperava os nossos, com que lhe dava dobrado animo do que tinham, devia ele, Pate Unuz, cometer este negócio, 404 não tanto à força de braço, mas com parte de prudência e de vagar, e não tam apressado como vinha. E pera não cair nestas cousas que apontava, lhe parecia que ele, Pate Unuz, se devia tornar ao

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rio de Muar com toda sua frota, e na entrada dele leixar todolos juncos grandes, por ser lugar estreito, onde os nossos não se haviam de meter, e esta armada estava ali segura, e os nossos, com temor de a terem nas costas, não haviam desemparar a sua, por acudir à fortaleza. E com as outras velas mais pequenas podia vir de noite, e sair em terra na parte de Ilher, onde tínhamos a fortaleza, e ele, Suria Deva, com todolos que ali estavam, e outros muitos de sua valia, que havia na cidade, pelo rio acima, onde não fossem vistos em jangadas, se passariam a ela pera juntamente cometerem a fortaleza. E quando a fortuna lhe fosse tam contraira, 127 que per combate ou per fome a não podesse tomar, e vendo-se ele em algua grande necessidade per terra, lugar que os nossos não haviam de cometer, se recolheria na sua principal frota, que leixava em o rio Muar; e os navios pequenos, por serem leves, com se acharem despejados, a força de remo em ua apertada dos nossos navios levemente se podiam recolher a ele. Praticado este conselho de Suria Deva, achou Pate Unuz que era o melhor que podia ter, segundo via a desposição das cousas, e nisso assentaram todolos seus capitães. E porque os nossos não sentissem sua partida, toda aquela noite houve na frota deles tanto tanger dos seus sinos e instrumentos de guerra, e grande vozaria de cantares, que estrugiam as orelhas dos nossos; e quando veo ante menhã, que lhe a maré começou a servir, que ele leixava o pouso por ser menos sentidos, foi tamanha a grita deles, que cuidou Fernão Peres que parte da armada tinha tomado terra, e a grita era sinal que a outra o viesse cometer. E de Fernão Peres e toda a sua armada estarem com o tento em terra por causa destas gritas, e em si mesmo pera o que sobreviesse, teve Pate Unuz tempo pera se alargar ao mar, enfiando-se no caminho que havia de levar. Porém como isto era ante menhã e a luz de alva mostrou a sua armada, que ainda ia à vista dos nossos, entendeu Fernão Peres que os tangeres de toda a noite e grita de ante menhã fora artefício, por não serem sentidos que se queriam partir; e por sinal que levavam temor, viu muitas âncoras ficar no pouso, que não poderam levar. E porque quem dá costas dá ânimo a seu imigo, foi tanto alvoroço em os nossos, que juntamente assi na fortaleza, como na armada, começaram bradar: - Vitória! Vitória! Fogem! - e desferindo Fernão Peres a sua vela, dizendo: - Santiago! A eles! - foi cousa maravilhosa o que nisso cada um fez; e seria a nós mui dificultosa escrever a ousadia, ânimo, diligência e astúcia, que cada um teve naquele feito. Baste saber, em suma, que assi se haviam 407 os nossos poucos navios entre aquele grande número de velas, como se hão os lobos em 405 um pegulhar de ovelhas; porque os nossos não faziam mais que chegar aos navios pequenos, e lançar-lhes dentro fogo com os artefícios que tinham feito, e passar avante, e os imigos sem modo de defensão, sem fazerem caminho do rio de Muar com olho no junco de Pate Unuz, que pôs a proa pera o Estreito de Sabão, caminho de Jaua, todos o seguiram. E ainda por segurar sua pessoa, quando viu que da sua frota parte ardia em fogo e outra era metida no fundo, mandou aos principais juncos que levava que se achegassem a ele, temendo ser abalroado, ou ao menos metido no fundo com a artelharia, por mais lapes que o costado do seu junco tinha. Fernão Peres, quando viu o modo que Pate Unuz tinha em se fechar entre os juncos, e que, segundo a grandeza do seu, não lhe podia fazer dano senão com a artelharia, pôs a proa no segundo junco da frota, que era do Timungão, senhor da cidade Polimbão, e em chegando a ele, o envestiu per um costado; e como à ilharga dele ia seu sobrinho, que dissemos por sua cavalaria ter grande nome entre os jaus, tanto que viu Fernão Peres aferrado com o tio, aferrou-o ele pelo outro costado, de maneira que ficou Fernão Peres com a sua naveta entalado entre ambos. Peró ele não sentiu a entrada que este jau fez nela, por andar já na popa do junco do tio às lançadas, no qual tempo, pela proa do mesmo junco, entrou Francisco de Melo. O jau mancebo, como era cavaleiro, vendo que estes dous capitães cada um per sua parte entraram o tio e andavam pelejando com ele, sem fazer conta da nau de Fernão Peres, senão como que lhe servia de ponte, com alguns que o seguiram per ela, passou-se ao junco do tio, onde entre todos andava a peleja tam travada, que não se sabia determinar quem era senhor dos juncos, nem os

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senhores das navetas dos nossos, por todos andaram já misturados. No qual tempo Jorge Botelho acertou de vir em a sua caravela; e, vendo a nau de Fernão Peres entalada entre os juncos, entrou per bordo do sobrinho do Timungão, e veo-se encontrar com Fernão Peres, que acudia à sua nau, que lhe entravam muitos jaus nela. Finalmente, todas estas cinco velas, bordo com bordo, e os capitães mão por mão andaram uns dentro e outros foram tam travados entre si, per um grande espaço, té que, não podendo os jaus sofrer mais o ferro dos nossos, começaram de se baldear em lancharas e pangajoas que traziam derredor de si; e os que não poderam haver à mão vasilha, lançaram-se ao mar, com que os juncos ficaram vazios deles e cheos de muitos mantimentos, que os nossos levaram pera Malaca, depois que os juncos foram queimados naquele lugar. Fernão 127v Peres, tanto que houve a vitória destes dous juncos, que eram os principais, seguiu a Pate Unuz, com fundamento de às bombardadas o meterem no fundo, ou ao menos destruir-lhe a mareagem, com que ficaria decepado pera o tomarem às 406 mãos. Peró não houve efeito sua tenção, porque veo sobre a tarde ua trovoada tam furiosa, que ante eles quiseram contender uns com os outros como andavam, que com ela; porque, como veo súbita e 408 tomou a todos descuidados, e mais metidos em pelejar que no temor dela, se os nossos teveram algum salvamento, foi por não trazerem as mãos cortadas do temor e do ferro, como as traziam os jaus, e por isso foram mais lestes em marear suas velas. Finalmente, Fernão Peres com ela correu pera Malaca com a maior parte de sua frota, e outros per essas abrigadas de rios; somente Jorge Botelho e Tuão Mahamude, tamungo de Malaca, que se acharam ambos contra aquela parte pera onde correu Pate Unuz, ao qual não poderam fazer mais dano que queimar-lhes cinco ou seis pangajoas que o seguiam, porque tinham já despesa toda a pólvora, com que o podiam ofender. Jorge Botelho, vendo quam desbaratado este jau ficava, e que, tornando sobre ele com pólvora, o podia meter no fundo, veo-se logo a Malaca dar conta disso a Rui de Brito, por Fernão Peres não ser ainda lá; e, posto que Rui de Brito o não queria prover de pólvora e cousas que ele pedia, havendo que sua tornada aproveitaria já pouco, porque o jau nesta sua demora de ir e vir seria posto em salvo, todavia lhe mandou dar o necessário, e isto a requerimento do gentio Nina Chetu, que disse que daria polo junco de Pate Unuz dez mil cruzados. Peró com quanta diligência Jorge Botelho nisso fez, correndo mais de quorenta léguas, já não achou Pate Unuz, o qual se pôs em salvo na Jaua em a cidade Japara, e ali mandou varar o junco por memória de sua pessoa, dizendo que bastava pera a ter por muitos tempos verem como aquele junco ficara da peleja que teve com os portugueses. Os quais, ainda que teveram esta tam ilustre vitória dele, não foi sem custa de muito sangue, que todos naquele alcanço derramaram; ca não houve capitão que não abalroasse junco e fizesse assaz de sua pessoa, onde morreram alguns dos nossos, principalmente com João Lopes de Alvim e Martim Guedes, que se viram em grã perigo com os juncos que abalroaram. E muito maior Fernão Peres, que foi derribado e ferido, estando um bom pedaço meio atordoado de um arremesso, que lhe fizeram de cima dos castelos do junco; e polo ajudar, morreu Simão Afonso, que foi a pessoa mais principal que naquele feito pereceu. Finalmente, ele foi tam notável, que assombrou todo aquele Oriente, e nele acabou a guerra que tínhamos com os jaus, dos quais Malaca ficou desassombrada, porque, como é gente mui vizinha a ela, e são senhores de todolos mantimentos de que se ela mantém, e mais são homens cavaleiros e poderosos, todolos outros rebates que teveram del-Rei Mahamude pelo tempo em diante, teveram em pouco, em respeito do perigo que passaram por causa destes dous jaus - Pate Quetir e Pate Unuz. Fernão Peres, como estava meio carregado 407 pera se partir pera a Índia (segundo dissemos), em poucos dias se tornou a perceber de todo, e

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entregue a capitania-mor do mar a João Lopes de Alvim, a quem Afonso de Albuquerque proveo dela, partiu de Malaca com três velas carregadas de especearia, 409 ele em ua, e nas duas Lopo de Azevedo e António de Abreu, que vinha de descobrir Maluco. E pera dar maior contentamento a Afonso de Albuquerque com sua chegada, além de ir carregado das vitórias que houve naquelas partes e de especearia, sendo tanto avante como os baixos de Capaciá, topou António de Miranda de Azevedo, que vinha do reino de Sião, com que levou também outra carga de todalas novas que ele, Afonso de Albuquerque, esperava daquelas partes, onde mandara seus mensageiros e descobridores, ante que se partisse de Malaca: assi como António de Abreu com Francisco Serrão descobrir Maluco, e Gomes da Cunha a el-Rei de Pegu, que era já vindo em o navio que trouxe mantimentos a Malaca (como fica atrás), o qual ia com ele, Fernão Peres, e António de Miranda com Duarte Coelho a Sião; o qual António de Miranda, posto que não viesse em companhia dele, Fernão Peres, e fizesse seu caminho pera Malaca, mandou-lhe cartas per ele, o qual chegou a salvamento à Índia. E porque em outro lugar (segundo já apontámos) se há-de fazer relação do caminho e cousas que António de Abreu fez naquele descobrimento de Maluco, leixamos de a fazer aqui, e também o que fizeram estoutros em 128 Pegu e Sião, porque a desposição das cousas da história tem lugar próprio, por guardar a qual ordem leixamos o que ora ocorreu na chegada de António de Miranda, e procederemos ainda um pouco nas cousas de Malaca, té quási todo o tempo que Afonso de Albuquerque governou.

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407 128 409 Capítulo VI. Como a fortaleza de Malaca, per astúcia de um criado del-Rei Mahamude, esteve em termo de ser tomada; e do que se mais passou, té chegada de Jorge de Albuquerque, que foi servir de capitão dela. El-Rei Mahamude, que foi de Malaca, sabida a vitória que os nossos houveram de Pate Unuz, posto que em algua maneira o desesperou de se tornar restituir em seu estado, vendo Pate Quetir destruído, em que ele tinha tanta confiança, e assi ser destruída tamanha potência como este Pate Unuz trazia, era a ele argumento que todo o poder daquele Oriente não poderia lançar-nos de Malaca. Per outra parte, teve grande contentamento da destruição de Pate Unuz, porque entendeu que a sua vinda tam poderosamente a Malaca, não era pera ele, Pate Unuz, lha entregar, senão 410 pera se fazer senhor dela, porque entre eles, ante deste feito, não precederam recados nem obras pera dele esperar tamanha amizade, que por 408 causa dele, Mahamude, fizesse tam grande despesa. Confessando publicamente querer ante que estevesse Malaca em nosso poder, que dos jaus; ca, por serem tam vezinhos, tinham as forças mui perto pera sustentar aquela cidade; e nós, ainda que tivéssemos mais poder nas armas, o adjutório das outras cousas pera continuar guerra per muitos anos ia deste reino de Portugal, que é no fim da terra tantas mil léguas de Malaca, a qual cousa lhe dava esperança que um tempo ou em outro se havia de restituir. Com o qual fundamento, sempre andou derredor da cidade, avexando-a, ora com rebates de suas armadas, ora com lhe tolher os mantimentos, e mudando o assento de sua pessoa, té que per derradeiro se foi assentar de vivenda em ua ilha defronte de Cingapura, chamada Bitão, nome que os malaios chamam à Lua, por a mesma ilha ter a feição da Lua quando é meia. E porque à força de armas tinha per muitas vezes tentado connosco sua ventura, quis experimentar que tal a teria per modo de ardil, em que o meteu um Tuão Maxeliz, mouro bengala de nação e homem mui sagaz e astucioso, muito aceito a ele, como um dos mais principais que lhe governava sua casa. O qual ardil foi que ele, Tuão Maxeliz, havia de fugir dele, Rei Mahamude, com título de agravos, e se havia de ir a Malaca, mostrando que queria ali viver entre nós, em companhia dos quais ele se podia vingar dos agravos que tinha recebidos; e depois que fosse aceito na terra e tivesse entrada com o Capitão-mor, trabalhasse per qualquer modo que podesse de se meter na fortaleza; e pera o ajudar naquele caso, da sua parte desse conta a Tuão Colascar, que era o principal jau, senhor da povoação Ilher, na parte da fortaleza. Assentado este ardil entre ambos, sem pessoa algua o saber, porque não houvesse suspeita da partida dele, Maxeliz, começou el-Rei pubricamente de lhe fazer alguns agravos per espaço de dous meses, mostrando ter sabido que o roubava e andava em tratos connosco. Finalmente, como os agravos foram tam púbricos que se haviam por mui certos em Malaca, veo ele ter a ela em ua lanchara, simulando que vinha fugindo da ira del-Rei por más informações que dele tinha, e foi-se apousentar, per licença de Rui de Brito, na povoação de Ilher, mostrando ter antiga amizade com Tuão Colascar. E por não perder tempo, como vinha provido de jóias e brincos, que dão entrada em toda parte, ora com eles, ora com dar ardis a Rui de Brito contra el-Rei Mahamude, começou logo lavrar sua peçonha, de maneira que entrava e saía na fortaleza mui familiarmente com Rui de Brito. E tomou logo por cautela de não ser sentido ir a sua casa pela sesta, quando a mais da gente se recolhe 411

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a repouso, e mais andar sempre mui acompanhado, mostrando que se temia de el-Rei Mahamude dentro em Malaca o mandar matar, por ele ser homem que sabia parte de seus segredos. 409 Tanto que este Maxeliz teve segura esta entrada com Rui de Brito, 128v deu logo disso conta per suas cartas a el-Rei, o qual lhe respondeu, que a tantos dias da Lua cometesse o caso, porque pera este tempo lhe mandaria socorro com sua armada, e que entretanto bastava o favor de Tuão Colascar. Vindo este dia, como Maxeliz tinha aquela fácil entrada na fortaleza, pela sesta foi-se a ela, levando seus homens, que costumava trazer em guarda de sua pessoa, e chegando à porta, que lha o porteiro abriu como a pessoa familiar, entreteve-se um pouco, mostrando que espedia os seus, e queria meter três ou quatro, um dos quais era mancebo de bom parecer e vinha vestido como mulher, dizendo que leixasse entrar aqueles que levavam aquela moça pera o capitão. No qual entreter de porta aberta remeteram os criados de Maxeliz, e entraram dentro, metendo-se às crisadas com o porteiro e três ou quatro homens que estavam no pátio da fortaleza, e ele subiu com alguns deles pela escada acima, caminho da torre da menagem, onde pousava o capitão; e por acharem a porta fechada, por Rui de Brito a fechar sobre si, quando sentiu a revolta debaixo, discorrendo eles pelas casas dos oficiais, foram dar na do alcaide-mor Aires Pereira, que não teve outra salvação, senão lançar-se per ua janela por ir socorrer a Rui de Brito; e nesta casa mataram a mestre Jorge, físico, e dous homens de serviço que estavam com ele. E os que ficaram em baixo no pátio, mataram quatro homens e Pero Pessoa, que foi o primeiro que acudiu à porta, o qual estava com o ferrolho na mão pera a fechar aos jaus, que Maxeliz trazia nas costas em sua ajuda. Rui de Brito, a este tempo, ainda que em pé, andava bem doente, e logo naquele primeiro reboliço, cuidou ser mais; peró, quando viu que somente dez ou doze homens o faziam, assi como pôde acudiu com alguns que acordaram e jaziam per essas casas, dormindo por ser pela sesta, os quais fizeram fugir Maxeliz e os seus, vendo que não poderam tomar a torre da menagem, que era seu principal intento. Tuão Colascar, que estava esperando, com sua gente junta, esta hora, tanto que ouviu repicar o sino da fortaleza, acudiu logo, parecendo-lhe que Maxeliz estava em poder da torre; peró, quando chegou à porta da fortaleza e soube ele ser acolhido, dissimulou a vinda, dizendo de fora a Rui de Brito que cousa era aquela, que vinha ali por ouvir repicar? que mandava sua mercê que fizesse com aquela gente que trazia? Rui de Brito, peró que entendeu ser ele sabedor do caso, agradeceu-lhe sua tam breve diligência, e assossegou todo o alvoroço da cidade; porém depois quisera ele per justiça, ao modo de Utimuti-rajá, matar este Tuão Colascar, e ante dele Suria Deva, polo que fez com Pate Unuz; mas os capitães e fidalgos com quem ele sobre este caso teve conselho, não lho consentiram, dizendo que, por serem as principais cabeceiras da cidade, com sua morte se 412 despovoaria; que naquele tempo se havia de 410 dissimular com eles, té as cousas da cidade tomarem mais assento do que tinham. Eram neste tempo idos a Bintão com duas caravelas e três lancharas, com até cinquenta homens de peleja, Jorge Botelho e Vasco da Silveira, pera ver se podiam fazer algum dano às armadas que el-Rei trazia naquela paragem, impedindo não virem velas a Malaca, e fazê-las arribar a Bintão, onde ele esperava fazer todo o trato que fazia nela; o qual, quando viu estas nossas velas sobre seu porto, por ser no tempo em que ele estava esperando recado do seu Tuão Maxeliz, creo verdadeiramente que o caso era descoberto ao capitão Rui de Brito e que por esse respeito mandava aqueles navios sobre seu porto, pera ofenderem a armada que ele havia de mandar em favor do caso, a qual ele tinha de todo prestes; e não ousou de a mandar sair de dentro, temendo que a nossa armada era toda ida àquele feito, e que lhe lançavam aquelas cinco velas diante pera ele lançar a sua fora.

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Jorge Botelho e Vasco da Silveira, vendo o sítio onde el-Rei tinha feito ua fortaleza, e que a sua armada estava dentro de ua estacada, que de maré vazia os navios ficavam metidos na vasa, e as estacas de maneira que parecia um labirinto o canal que ficava entre elas, per onde entravam e saíam os navios, não lhe pareceu cousa que podessem cometer, por a pouca posse que levavam, e tornaram-se a Malaca. Rui de Brito, quando per eles soube a força que el-Rei tinha feita, e quam brigosa e defensável era, assi polo sítio, como pela indústria e trabalho dos homens, e que, segundo lhe alguns mouros diziam, estava aquela Ilha Bintão em paragem que se podia fazer outra Malaca, com el-Rei trazer ali armada que fizesse arribar as naus a ela, dobrou a armada que João Lopes de Alvim trazia pera às vezes a repartir em partes, porque não houvesse algum daqueles dous canais - Cingapura e Sabão - onde se não achassem nossos navios contra a armada del-Rei de Bintão, pera lhe defender aquele arribar 129 de velas que fazia. Com o qual modo atormentou tanto a el-Rei que, como homem desesperado pola muita fome que padecia com lhe tolhermos prover-se de mantimentos, mandou pedir a Rui de Brito concerto de paz. E como ele atribuía a causa de sua destruição a seu filho e genros, em não consentirem que ele assentasse paz com Afonso de Albuquerque, quando chegou a Malaca, houve entre eles tanta diferença sempre, que, neste tempo da paz que mandou pedir, dizem que afogou o filho com ua touca. El-Rei de Campar, posto que fosse seu sobrinho e genro, polos modos que lhe via ter, e principalmente acerca do ódio que tinha a seu próprio filho, o Príncipe Alodim, não quis seguir suas cousas, ante, por segurar as próprias e não viver assombrado de nós, como genro seu (segundo escrevemos), estando Afonso de Albuquerque em Malaca, com um presente que lhe enviou, 413 se ofereceu querer viver em Malaca como vassalo del-Rei de Portugal; a vinda do 411 qual por então não houve efeito. Peró, sabendo ele o que se dizia como afogara seu filho, determinou de se vir logo pera Malaca, temendo a maldade do sogro; e pera isso não fez mais que, como homem seguro, sem cautela algua, meter-se com Pero de Faria, que com ua armada andava no Estreito de Sabão. O qual chegou a Malaca na entrada de Julho do ano de quinhentos e catorze, a tempo que era vindo da Índia Jorge de Albuquerque, filho de João de Albuquerque, pera capitão da cidade, e estava já em posse dela, e Rui de Brito, esperando tempo pera se vir pera a Índia. E porque Jorge de Albuquerque levava recado de Afonso de Albuquerque do modo que havia de ter com este Rei de Campar, se lhe mandasse cometer que se queria vir viver a Malaca, polo que já tinha passado com ele, quando se mandou oferecer pera isso, em sua chegada fez-lhe muita honra; peró não ficou el-Rei de Campar daquela vez em Malaca, ante se tornou logo como praticou alguas cousas com Jorge de Albuquerque do modo que se havia de ter com ele, vindo assentar sua casa em Malaca. Enquanto este recado foi à Índia, e tornou reposta de Afonso de Albuquerque, ele esteve em Campar; a qual reposta foi mandar ele a Jorge de Albuquerque que desse a este Rei o ofício que Nina Chetu, gentio, tinha. E a causa por que lho mandava tirar, tendo tanto benefício feito a Rui de Araújo, por cujo respeito o ele houve, foi porque a gente nobre de Malaca sofria mal serem governados per ele, que era homem de pouca sorte; e se em alguas cousas lhe queriam ir à mão, às tais pessoas mandava-lhes dar um certo género de peçonha, com que engafecia, e em mui pouco tempo morria, o que se soube ter feito a três ou quatro mercadores principais; e polo muito serviço que tinha feito na salvação de Rui de Araújo e dos outros cativos, e assi na tomada da cidade, dissimulavam com ele, té vir este recado de Afonso de Albuquerque. Nina Chetu, como por suas culpas andava vigiado de o tirarem do cargo, tinha suas inteligências, tanto que chegava algum navio da Índia, pera saber se mandava Afonso de Albuquerque bolir com ele; e como foi certificado do recado que vinha, teve maneira que, por espaço de oito dias se não denunciasse que o mandavam tirar do ofício. No qual tempo em um

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terreiro grande mandou fazer um cadafalso de madeira, coberto e toldado de muitos panos de seda e ouro, e dele té sua casa foi a rua toldada da mesma sorte, e a ua parte do cadafalso no chão mandou pôr ua mui grande cantidade de sândalos brancos, vermelhos e lenho aloes, pera arder tudo, quanto fosse tempo de lhe porem fogo. 414 Acabado todo este aparato pera o derradeiro dia que se lhe acabava o termo que pedia, convidou todolos seus amigos, e ajuntou sua família, que era grande, toda vestida de festa, e ele dos mais ricos panos de ouro que pôde haver, e partiu de sua casa, indo 412 por aquela rua toldada, a qual àquela hora estava coberto o chão de todalas flores e cheiros do campo. Chegado com esta pompa ao cadafalso, onde era quási toda a cidade ver aquele auto, de que ainda não entendiam o fim, subiu-se a ele, e começou em mui alta voz dizer as cousas que per nós fizera, e os perigos que por isso ele passara, por méritos das quais cousas Afonso de Albuquerque lhe dera o ofício que tinha de bendara, que ele té aquela hora servira, o qual (segundo lhe era dito), ele mandava que ele nunca o servisse mais e fosse dado o ofício a outra pessoa. E porque ele não queria ver aquela injúria executada em a sua, era ali vindo pera mostrar que o fogo que todos viam acendido naquele sândalo, era mais poderoso que todolos príncipes do Mundo, 129v porque eles podiam tirar ofícios e vida, e o fogo, se queimava o corpo, recebia em si a alma; e como era espírito e criatura de Deus, ele a ia apresentar a seu Criador, onde tinha perpétua glória; e quanto mais afligida nesta vida, maior a tinha lá, e esta lhe não podia tirar o grã Capitão Afonso de Albuquerque, por mais poderoso que fosse na Índia. E com isto se leixou cair no fogo, onde se fez cinza.

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412 129v 414 Capítulo VII. Como Jorge de Albuquerque, capitão de Malaca, mandou per Abedelá, Rei de Campar, pera servir ofício de bendara; e quanto el-Rei de Bintão trabalhou polo ele não ser, té que foi causa de sua morte. Acabado este acto da gentilidade, que fez grande admiração a todos ver a constância com que aquele gentio morreu por honra, foi logo sabido per toda a terra como el-Rei de Campar havia de ser bendara de Malaca, que entre os malaios se tinha por tanta dinidade no tempo que prosperava Mahamude, Rei dela, que haviam ser maior cousa que Rei de Campar, cujo estado não era mais que ser senhor de ua povoação, a que eles chamam cidade, a qual era metida per um rio grande, que entra por a terra da Ilha Samatra, e distará de Malaca contra o Oriente pouco mais de trinta léguas, na entrada do Estreito Sabão. 415 El-Rei de Bintão, seu sogro, tanto que soube que ele era eleito pera bendara, e que este era o fim pera que ele se dera à nossa amizade, e a causa do presente que mandara a Afonso de Albuquerque, e depois ir em pessoa a Malaca ver-se com o capitão dela, ordenou logo de lhe empedir que não fosse, e pera isso convocou outro seu genro e vassalo, que era Rei de Linga, ua ilha vezinha à de Bintão, onde ele, Mahamude, assentara sua vivenda (como dissemos). Os quais sogro e genro fizeram ua armada de té setenta velas de remo; em que iriam dous mil e quinhentos homens, 413 na qual armada o próprio Rei de Linga foi; e entrado pelo rio de Campar, acharam Abedelá, Rei da Cidade, já provido de tranqueiras e forças, com que resistiu como homem animoso a seu imigo, posto que el-Rei de Linga naquelas partes era havido por muito cavaleiro. O qual, vendo que per alguas vezes que deu combate a Abedelá não o podia entrar, ordenou-se em modo de o ter cercado e tomar à fome; no meio do qual tempo ele foi socorrido de nós sem o ele esperar, per esta maneira: Pelo recado que Afonso de Albuquerque mandou e morte de Nina Chetu, ordenou Jorge de Albuquerque de mandar por este Rei de Campar pera vir servir o ofício de bendara, de que ele já era sabedor, e pera isso se fazia prestes, quando el-Rei de Linga deu sobre ele; e polo mais honrar, mandou Jorge Botelho que o trouxesse em o seu navio, e com ele três navios de remo, capitães Jordão de Figueiredo, Álvaro Vaz e Diogo Dias. O qual Jorge Botelho, entrando no Estreito de Sabão, achou ali nova em um mouro seu amigo, chamado Meana, que el-Rei de Linga estava dentro no rio de Campar, e tinha cercado a el-Rei Abedelá com ua armada de setenta velas com muita gente e munições de guerra; por isso olhasse onde se ia meter. Jorge Botelho, por este mouro ser homem certo e seu amigo, espediu logo dali um dos capitães, que viesse a Malaca dar esta nova a Jorge de Albuquerque, o qual a grã pressa espediu estes capitães em socorro de Abedelá: Tristão de Miranda, António de Miranda de Azevedo, Aires Pereira de Berredo e Francisco de Melo, todos em navios redondos, e mais alguas lancharas de remo, capitães moradores da cidade. E porque nenhum levava a capitania-mor de toda a frota, quando se ajuntaram com Jorge Botelho, que se haviam de ordenar pera cometer a armada dos imigos, começou entre eles haver diferença, a qual apagaram com elegerem por capitão a António de Miranda de Azevedo, per ordenança do qual entraram pelo rio acima, té onde se fazia um esteiro, dentro do qual, obra de meia légua, estava a cidade Campar. O qual esteiro, como era estreito, profundo, e com ribas tam altas que ficava em partes a terra sobre água perto de duas lanças, tornaram-se os nossos abaixo ao rio largo; porque, como

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130 não sabiam a terra, temeram que viessem os imigos, e de cima, às terroadas, quando não tivessem outra cousa, os meteriam no fundo, fazendo fundamento de os ter ali encerrados, e em tam estreito cerco como eles tinham el-Rei Abedelá. 416 Postos neste lugar largo, como entre alguns capitães havia ua frieza do caso, por cada um não ser o eleito em capitão-mor, e também ali não faziam mais que ser fechada aquela entrada, por onde os imigos se serviam, estavam um pouco descuidados, como quem não tinha que temer, gastando o dia em lançar a barra e lança, e outros passatempos em terra. El-Rei de Linga por escuitas 414 que trazia ao longo do rio, foi avisado deste descuido; e como homem cavaleiro que era, determinou dar neles, e caladamente veo-se com toda sua frota pelo rio abaixo, e ele diante todos, por ter ua forte e fermosa lanchara do comprimento de ua galé, mui armada e guerreira com até duzentos e tantos homens, com tenção de abalroar com o Capitão-mor da nossa frota. E sendo onde a terra fazia um cotovelo, ao longo do qual, com a maré que descia, a água corria mais tesa, deu de súbito com Jorge Botelho, que estava ali emparado do tesão da água, em ua lanchara das de sua companhia, com té vinte homens; o qual, apartando-se do corpo da armada onde tinha o seu navio, determinou naquele de remo, por ser leve saber o que ia dentro. E quando viu a ponta da lanchara del-Rei que começava aparecer detrás do cotovelo, de improviso, sem saber o que vinha detrás, deu ua grita com os seus, e mandou desparar a artelharia que trazia, a qual, ainda que era meúda, ela e as espingardas dos seus derribaram logo alguns dos remeiros da lanchara del-Rei. Na qual, por o caso ser súbito, e mais cuidando que ali estava toda nossa frota, por ainda não descobrirem o anco que fazia a terra, houve entre todos tanto temor, que do remoinhar dos remadores, não sabendo o que haviam de fazer, ficou a lanchara del-Rei sem governo, e com o tesão da água ficou a galé atravessada no esteiro, que como era estreito, e ela comprida, não pôde ir diante nem atrás, e todolos que vinham após ela encalhavam, de maneira que ficou o rio coberto e travancado, sem dar passagem. Os nossos que estavam em baixo da maneira que dissemos, quando ouviram os tiros que Jorge Botelho tirou, remeteram todos aos batéis e lancharas que tinham, e remo em punho a quem chegaria primeiro, em mui breve espaço foram com ele, principalmente Tristão de Miranda, João Pereira e Francisco de Melo, por estarem mais dentro, pelo rio acima, que os outros, e foram a tempo que acharam já Jorge Botelho dentro da lanchara del-Rei, donde tinha despejado boa parte da gente; mas com a chegada deles toda se lançou ao mar, e per derradeiro o seu Rei, aos brados do qual eles não obedeciam. Finalmente, chegados todolos outros capitães, posesse os imigos em desbarato, muitos dos quais se salvaram, metendo-se per esses esteiros, com que a terra é retalhada; porque enquanto os nossos não poderam passar com a lanchara del-Rei atravessada, teveram eles tempo de o fazer. Com a qual vitória chegaram onde el-Rei de Campar estava, sem esperança daquele remédio; e recolhido ele com sua família, leixando a terra entregue a seus governadores, foi trazido com aquela honra a Malaca, e entregue do ofício de bendara, pera que era vindo. 417 Da chegada do qual a seis dias, Jorge de Albuquerque mandou aquela armada assi como viera, contra el-Rei de Bintão, parecendo-lhe que 415 o podiam destruir, como fizera a seu genro el-Rei de Linga, e mais naquela conjunção em que ele perdera lancharas e gente com munições de guerra; a capitania-mor da qual armada, em que iriam duzentos homens portugueses, levou João Lopes de Alvim, que servia de Capitão-mor do mar; mas não fizeram cousa algua, por el-Rei estar de maneira fortalecido, que havia mister maior poder de gente. Havendo quatro meses que estas cousas eram passadas, e el-Rei de Campar servia seu ofício, não com nome de bendara, mas de macobume, que acerca deles é como entre nós Viso-Rei,

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e isto por honra da dinidade real que tinha, a olho começou Malaca de se nobrecer, tornando-se muitos homens nobres viver a ela, que, por causa de não quererem ser governados per Nina Chetu, eram idos a viver à Jaua e a outras partes; com a vinda dos quais começaram de vir mercadores, e a terra se reformar. El-Rei de Bintão, quando viu que em tam breve tempo com a ida de seu genro Malaca se tornava povoar, e que muitos malaios, homens de estima que com ele estavam em Bintão, o leixaram e se vinham pera ela, ordenou, como homem sagaz que era, ua astúcia pera isto não ir mais avante, e seu 130v genro perder a vida, ou ao menos o crédito e ofício que tinha, vendo que, se nele muito estava, quantos homens o seguiam, todos o haviam de leixar, de maneira que, sem os capitães de Malaca lhe fazerem guerra, esta bastava pera o destruir. A qual astúcia foi mandar a todolos seus capitães, que trazia per estes portos da terra de Malaca, que qualquer barco que tomassem dos moradores malaios de Malaca, que lhe levassem todolos cativos, aos quais, como eram ante ele, fazia gasalhado e mercê, bradando com os capitães, porque lhe levavam cativos os seus naturais vassalos, que outra hora não fizessem tal cousa, senão que os castigaria; ante lhes mandava que, como achassem malaio morador em Malaca, que o tratassem como aos de Bintão, pois todos eram vassalos e filhos, e os de Malaca mais, pois era sua própria natureza; e que bem abastava aos coitados as perrarias que sofriam daquela cruel e perversa gente português. Porém ele esperava em Deus, ante de pouco tempo, de os remir daquele triste cativeiro per meio de seu filho Abedelá, Rei de Campar, o qual ele tinha posto em Malaca dissimuladamente, pera que, como visse tempo, lhe dar a cidade; e que, pera ajuda de o poder melhor fazer, lhe mandava alguas pessoas principais de Bintão, com título que se tornavam a viver a Malaca; por isso lhe rogava que, quando seu filho, el-Rei de Campar, se levantasse com a fortaleza, que fossem todos em sua ajuda, e assi o pedissem 418 a seus parentes e amigos da sua parte, e todos tevessem este negócio em segredo. Com estas e outras palavras enchia as orelhas daquela gente inocente, a qual, como era em Malaca, de orelha em segredo foi ter à praça, andando este rumor 416 entre os mouros, té que, per meio dos filhos de Nina Chetu, foi ter a Bertolameu Perestrelo, o qual havia pouco que chegara a Malaca, e servia de feitor, que, comunicando este negócio com seu irmão Rafael Perestrelo, deram conta a Jorge de Albuquerque. E posto que houve contradições no caso, principalmente de Jorge Botelho, representando a Jorge de Albuquerque as astúcias del-Rei Mahamude e bondade de Abedelá, Rei de Campar, por a muita comunicação que tinha com ele, todavia bastou pera se dar sentença que morresse, serem trazidos alguns homens daqueles que ouviram a el-Rei de Bintão o que atrás dissemos. Finalmente, ele morreu degolado na praça com solenidade de pubricação de sentença, a inocência do qual, ainda que Jorge Botelho a clamou, depois o tempo a descobriu. E se o povo tem licença de julgar - porque Bertolomeu Perestrelo foi grande acusador desta condenação à instância dos filhos de Nina Chetu, e ele não viveu mais depois que el-Rei de Campar foi degolado que dezassete dias - dezia o povo de Malaca que a alma do morto chamara a do vivo. E ainda parece que este clamor da justiça dos autos humanos chegou a mais; porque fez a morte deste Rei tanto escândalo no ânimo de todos, que poucos e poucos começaram os principais homens da cidade fugir dela, e iam viver a outra parte com temor de algua sentença; e como eles eram os ministros de virem à cidade todalas mercadorias e mantimentos, foi posta em tanta necessidade de fome, qual té então não tinha passado, em que claramente se viu de quanto mal fora causa a morte de Abedelá. E certo que na de Nina Chetu, e em a sua se pode ver ua pintura dos autos humanos quam diferentes fructos dão de ua própria raiz, pois um ofício matou dous homens: um gentio, homem de pouca sorte, que, usando mal de seu ofício, despovoou a cidade, e sem ser julgado, ele se condena à morte; e outro mouro, com título de rei, e que restitui as ruínas do outro, sem culpa vem a morrer

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per condenação de outrem.

LIVRO X 373 118 391 Capítulo primeiro. Em que se descreve a região do reino de Sofala e das minas de ouro e cousas que nela há; e assi os costumes da gente e do seu príncipe Benomotapa. Toda a terra que contamos por reino de Sofala, é ua grande região que senhorea um príncipe gentio, chamado Benomotapa, a qual abraçam em modo de ilha dous braços de um rio que procede do mais notável lago que todo a terra de África tem, mui desejado de saber dos antigos, escritores, por ser a cabeça escondida do ilustre Nilo, donde também procede o nosso Zaire, que corre per o reino de Congo. Per a qual parte podemos dizer ser este grã lago mais vezinho ao nosso Mar Oceano ocidental que ao oriental, segundo a situação de Ptolomeu, ca do mesmo reino de Congo se metem nele este seis rios: Bancare, Vamba, Cuilu, Bibi, Maria Maria, Zanculo, que são mui poderosos em água afora outros sem nome, que o fazem quási um mar navegável de muitas velas, em que há ilha que lança de si mais trinta mil homens que vem pelejar com os da terra firme. E destes três notáveis rios, que ao presente sabemos procederem deste lago, os quais vem sair ao mar tam remotos um do outro, o que corre per mais terra, é o Nilo, a que os abexis da terra do Preste João chamam Tacuí, no qual se metem outros dous notáveis a que Ptolomeu chama Astabora e Astapus, e os naturais Tacazi e Abanhi. E posto 392 que este Abanhi (que acerca deles quere dizer Pai das águas, polas muitas que leva) proceda de outro grande lago, chamado Barcená, e per Ptolomeu Coloa, e também tenha ilhas dentro, em que há alguns mosteiros de religiosos (como se verá em a nossa Geografia), não vem a conto deste nosso grande lago, ca, segundo a informação que temos per via de Congo e de Sofala, será de 374 comprido mais de cem léguas. O rio que vem contra Sofala, depois que sai deste lago e corre per muita distância, se reparte em dous braços: um vai sair aquém do Cabo das Correntes, e é aquele a que os nossos antiguamente chamam Rio da Lagoa, e ora do Espírito Santo, novamente posto per Lourenço Marques, que o foi descobrir o ano de quorenta e cinco; e o outro braço sai abaixo de Sofala vinte cinco léguas, chamado Cuama, posto que dentro pelo sertão outros povos lhe chamam Zembere. O qual braço é muito mais poderoso em águas que o outro do Espírito Santo, por ser navegável mais de duzentas e cinquenta léguas, e nele se meterem estes seis notáveis rios: Panhames, Luanguoa, Arruia, Manjovo, Inadire, Ruenia, que todos regam a terra de Benomotapa, e a maior parte deles levam muito ouro que nasce nela. Assi que, com estes dous braços e o mar per outra parte, fica este grã reino de Sofala em ua ilha, que terá de circuito mais de setecentas e cinquenta léguas. Toda ela, no sítio, mantimentos, animais e moradores, é quási como a terra chamada Zanguebar, de que atrás escrevemos, por ser ua parte dela; porém como se vai afastando da linha equinocial, tirando o marítimo dela, deste rio Cuama té o Cabo das Correntes, per dentro do sertão é terra excelente, temperada, sadia, fresca, fértil de todalas cousas que se nela produzem. Somente aquela parte do Cabo das Correntes, té a boca do rio Espírito Santo, apartando-se um pouco da fralda do mar, tudo são campinas de grandes criações de todo género de gado; e tam pobre de arvoredo, que com a bosta deste se aquenta a gente e se veste das peles, por ser mui fria com os ventos que cursam daquele mar gelado do Sul. A outra terra que vai ao longo do Rio de Cuama e do interior daquela ilha, pela maior parte é montuosa, 118v coberta de arvoredo, regada de rios, graciosa em sua situação e por isso mais povoada, e o mais do tempo está nela Benomotapa; e por razão de ser tam povoada, fogem dela os elefantes e vão andar

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na outra campina, que dissemos, quási em manadas, como fatos de vacas. E não pode ser menos, porque geralmente se diz entre aqueles cafres que cada ano morrem quatro, cinco mil cabeças; e isto autoriza a grande cantidade de marfim que se dali leva pera a Índia. As minas desta terra onde se tira o ouro, as mais chegadas a Sofala, são aquelas a que eles chamam Manica, as quais estão em campo cercadas 393 de montanhas, que terão em circuito trinta léguas; e geralmente conhecem o lugar onde se cria o ouro por verem a terra seca e pobre de erva. E chama-se toda esta comarca Matuca, e os povos que as cavam botongas. Os quais, ainda que estão entre a linha e o trópico de capricórnio, é tanta a neve naquelas serras, que, no tempo do inverno, se alguns ficam no alto, morrem regelados; no cume das quais em tempo do verão é o ar tam puro e sereno, que 375 alguns dos nossos que neste tempo se acharam ali, viram a Lua Nova, no de dia que se espedia da conjunção. Nestas minas de Manica, que serão de Sofala contra o Ponente até cinquenta léguas, por ser terra seca, tem os cafres algum trabalho, ca todo o ouro que se ali acha é em pó e convém que levem a terra que cavam a lugar onde achem água, pera o que fazem alguns cavoucos em que no inverno se recolhe água; e geralmente nenhum cava mais de seis, sete palmos de alto, e se chegam a vinte acham por lastro de toda aquela terra lájea. As outras minas que são mais longe de Sofala distarão de cento até duzentas léguas, e são nestas comarcas Boro, Quiticui, e nelas e nos rios que acima nomeámos que regam esta terra se acha ouro mais grosso, e dele em as veas de pedra e outro já depurado dos enxurros do inverno; e porisso em alguns remansos dos rios, como é no verão, costumam mergulhar, e na lama que trazem acham muito ouro. Em outras partes onde há alguas alagoas, ajuntam-se duzentos homens e põem-se a esgotar a metade delas, e na lama que apanham também acham ouro; e segundo a terra é rica dele, se a gente fosse cobiçosa, haver-se-ia grande quantidade, mas é a gente pr