Décadas da Ásia [J]

Compilado para PDF a partir do CD-ROM da colecção OPHIR - Biblioteca Virtual dos Descobrimentos Portugueses. Contém as Q

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Portuguese Pages [2202] Year 1998

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Polecaj historie

Décadas da Ásia [J]

Table of contents :
Introdução
Década 1
Livro I
D1-L1-C1
D1-L1-C2
D1-L1-C3
D1-L1-C4
D1-L1-C5
D1-L1-C6
D1-L1-C7
D1-L1-C8
D1-L1-C9
D1-L1-C10
D1-L1-C11
D1-L1-C12
D1-L1-C13
D1-L1-C14
D1-L1-C15
D1-L1-C16
Livro II
D1-L2-C1
D1-L2-C2
Livro III
D1-L3-C1
D1-L3-C2
D1-L3-C3
D1-L3-C4
D1-L3-C5
D1-L3-C6
D1-L3-C7
D1-L3-C8
D1-L3-C9
D1-L3-C10
D1-L3-C11
D1-L3-C12
Livro IV
D1-L4-C1
D1-L4-C2
D1-L4-C3
D1-L4-C4
D1-L4-C5
D1-L4-C6
D1-L4-C7
D1-L4-C8
D1-L4-C9
D1-L4-C10
D1-L4-C11
D1-L4-C12
Livro V
D1-L5-C1
D1-L5-C2
D1-L5-C3
D1-L5-C4
D1-L5-C5
D1-L5-C6
D1-L5-C7
D1-L5-C8
D1-L5-C9
D1-L5-C10
Livro VI
D1-L6-C1
D1-L6-C2
D1-L6-C3
D1-L6-C4
D1-L6-C5
D1-L6-C6
D1-L6-C7
Livro VII
D1-L7-C1
D1-L7-C2
D1-L7-C3
D1-L7-C4
D1-L7-C5
D1-L7-C6
D1-L7-C7
D1-L7-C8
D1-L7-C9
D1-L7-C10
D1-L7-C11
Livro VIII
D1-L8-C1
D1-L8-C2
D1-L8-C3
D1-L8-C4
D1-L8-C5
D1-L8-C6
D1-L8-C7
D1-L8-C8
D1-L8-C9
D1-L8-C10
Livro IX.pdf
D2-L9-C1
D2-L9-C2
D2-L9-C3
D2-L9-C4
D2-L9-C5
D2-L9-C6
D2-L9-C7
Livro X
D1-L10-C1
D1-L10-C2
D1-L10-C3
D1-L10-C4
D1-L10-C5
D1-L10-C6
Década 2
Livro I
D2-L1-C1
D2-L1-C2
D2-L1-C3
D2-L1-C4
D2-L1-C5
D2-L1-C6
Livro II
D2-L2-C1
D2-L2-C2
D2-L2-C3
D2-L2-C4
D2-L2-C5
D2-L2-C6
D2-L2-C7
D2-L2-C8
D2-L2-C9
Livro III
D2-L3-C1
D2-L3-C2
D2-L3-C3
D2-L3-C4
D2-L3-C5
D2-L3-C6
D2-L3-C7
D2-L3-C8
D2-L3-C9
Livro IV
D2-L4-C1
D2-L4-C2
D2-L4-C3
D2-L4-C4
D2-L4-C5
Livro V
D2-L5-C1
D2-L5-C2
D2-L5-C3
D2-L5-C4
D2-L5-C5
D2-L5-C6
D2-L5-C7
D2-L5-C8
D2-L5-C9
D2-L5-C10
D2-L5-C11
Livro VI
D2-L6-C1
D2-L6-C2
D2-L6-C3
D2-L6-C4
D2-L6-C5
D2-L6-C6
D2-L6-C7
D2-L6-C8
D2-L6-C9
D2-L6-C10
Livro VII
D2-L7-C1
D2-L7-C2
D2-L7-C3
D2-L7-C4
D2-L7-C5
D2-L7-C6
D2-L7-C7
D2-L7-C8
D2-L7-C9
D2-L7-C10
Livro VIII
D2-L8-C1
D2-L8-C2
D2-L8-C3
D2-L8-C4
D2-L8-C5
D2-L8-C6
Livro IX
D2-L9-C1
D2-L9-C2
D2-L9-C3
D2-L9-C4
D2-L9-C5
D2-L9-C6
D2-L9-C7
Livro X
D2-L10-C1
D2-L10-C2
D2-L10-C3
D2-L10-C4
D2-L10-C5
D2-L10-C6
D2-L10-C7
D2-L10-C8
Década 3
Livro I
D3-L1-C1
D3-L1-C2
D3-L1-C3
D3-L1-C4
D3-L1-C5
D3-L1-C6
D3-L1-C7
D3-L1-C8
D3-L1-C9
D3-L1-C10
Livro II
D3-L2-C1
D3-L2-C2
D3-L2-C3
D3-L2-C4
D3-L2-C5
D3-L2-C6
D3-L2-C7
D3-L2-C8
D3-L2-C9
Livro III
D3-L3-C1
D3-L3-C2
D3-L3-C3
D3-L3-C4
D3-L3-C5
D3-L3-C6
D3-L3-C7
D3-L3-C8
D3-L3-C9
D3-L3-C10
Livro IV
D3-L4-C1
D3-L4-C2
D3-L4-C3
D3-L4-C4
D3-L4-C5
D3-L4-C6
D3-L4-C7
D3-L4-C8
D3-L4-C9
D3-L4-C10
Livro V
D3-L5-C1
D3-L5-C2
D3-L5-C3
D3-L5-C4
D3-L5-C5
D3-L5-C6
D3-L5-C7
D3-L5-C8
D3-L5-C9
D3-L5-C10
Livro VI
D3-L6-C1
D3-L6-C2
D3-L6-C3
D3-L6-C4
D3-L6-C5
D3-L6-C6
D3-L6-C7
D3-L6-C8
D3-L6-C9
D3-L6-C10
Livro VII
D3-L7-C1
D3-L7-C2
D3-L7-C3
D3-L7-C4
D3-L7-C5
D3-L7-C6
D3-L7-C7
D3-L7-C8
D3-L7-C9
D3-L7-C10
D3-L7-C11
Livro VIII
D3-L8-C1
D3-L8-C2
D3-L8-C3
D3-L8-C4
D3-L8-C5
D3-L8-C6
D3-L8-C7
D3-L8-C8
D3-L8-C9
D3-L8-C10
Livro IX
D3-L9-C1
D3-L9-C2
D3-L9-C3
D3-L9-C4
D3-L9-C5
D3-L9-C6
D3-L9-C7
D3-L9-C8
D3-L9-C9
D3-L9-C10
Livro X
D3-L10-C1
D3-L10-C2
D3-L10-C3
D3-L10-C4
D3-L10-C5
D3-L10-C6
D3-L10-C7
D3-L10-C8
D3-L10-C9
D3-L10-C10
Década 4
Introdução
Prólogo
Livro I
D4-L1-C1
D4-L1-C2
D4-L1-C3
D4-L1-C4
D4-L1-C5
D4-L1-C6
D4-L1-C7
D4-L1-C8
D4-L1-C9
D4-L1-C10
D4-L1-C11
D4-L1-C12
D4-L1-C13
D4-L1-C14
D4-L1-C15
D4-L1-C16
D4-L1-C17
D4-L1-C18
Livro II
D4-L2-C1
D4-L2-C2
D4-L2-C3
D4-L2-C4
D4-L2-C5
D4-L2-C6
D4-L2-C7
D4-L2-C8
D4-L2-C9
D4-L2-C10
D4-L2-C11
D4-L2-C12
D4-L2-C13
D4-L2-C14
D4-L2-C15
D4-L2-C16
D4-L2-C17
D4-L2-C18
D4-L2-C19
D4-L2-C20
Livro III
D4-L3-C1
D4-L3-C2
D4-L3-C3
D4-L3-C4
D4-L3-C5
D4-L3-C6
D4-L3-C7
D4-L3-C8
D4-L3-C9
D4-L3-C10
D4-L3-C11
D4-L3-C12
D4-L3-C13
D4-L3-C14
D4-L3-C15
D4-L3-C16
D4-L3-C17
D4-L3-C18
D4-L3-C19
Livro IV
D4-L4-C1
D4-L4-C2
D4-L4-C3
D4-L4-C4
D4-L4-C5
D4-L4-C6
D4-L4-C7
D4-L4-C8
D4-L4-C9
D4-L4-C10
D4-L4-C11
D4-L4-C12
D4-L4-C13
D4-L4-C14
D4-L4-C15
D4-L4-C16
D4-L4-C17
D4-L4-C18
D4-L4-C19
D4-L4-C20
D4-L4-C21
D4-L4-C22
D4-L4-C23
D4-L4-C24
D4-L4-C25
D4-L4-C26
D4-L4-C27
Livro V
D4-L5-C1
D4-L5-C2
D4-L5-C3
D4-L5-C4
D4-L5-C5
D4-L5-C6
D4-L5-C7
D4-L5-C8
D4-L5-C9
D4-L5-C10
D4-L5-C11
D4-L5-C12
D4-L5-C13
D4-L5-C14
D4-L5-C15
D4-L5-C16
Livro VI
D4-L6-C1
D4-L6-C2
D4-L6-C3
D4-L6-C4
D4-L6-C5
D4-L6-C6
D4-L6-C7
D4-L6-C8
D4-L6-C9
D4-L6-C10
D4-L6-C11
D4-L6-C12
D4-L6-C13
D4-L6-C14
D4-L6-C15
D4-L6-C16
D4-L6-C17
D4-L6-C18
D4-L6-C19
D4-L6-C20
D4-L6-C21
D4-L6-C22
D4-L6-C23
D4-L6-C24
D4-L6-C25
D4-L6-C26
Livro VII
D4-L7-C1
D4-L7-C2
D4-L7-C3
D4-L7-C4
D4-L7-C5
D4-L7-C6
D4-L7-C7
D4-L7-C8
D4-L7-C9
D4-L7-C10
D4-L7-C11
D4-L7-C12
D4-L7-C13
D4-L7-C14
D4-L7-C15
D4-L7-C16
D4-L7-C17
D4-L7-C18
D4-L7-C19
D4-L7-C20
D4-L7-C21
D4-L7-C22
Livro VIII
D4-L8-C1
D4-L8-C2
D4-L8-C3
D4-L8-C4
D4-L8-C5
D4-L8-C6
D4-L8-C7
D4-L8-C8
D4-L8-C9
D4-L8-C10
D4-L8-C11
D4-L8-C12
D4-L8-C13
D4-L8-C14
D4-L8-C15
D4-L8-C16
Livro IX
D4-L9-C1
D4-L9-C2
D4-L9-C3
D4-L9-C4
D4-L9-C5
D4-L9-C6
D4-L9-C7
D4-L9-C8
D4-L9-C9
D4-L9-C10
D4-L9-C11
D4-L9-C12
D4-L9-C13
D4-L9-C14
D4-L9-C15
D4-L9-C16
D4-L9-C17
D4-L9-C18
D4-L9-C19
D4-L9-C20
D4-L9-C21
D4-L9-C22
Livro X
D4-L10-C1
D4-L10-C2
D4-L10-C3
D4-L10-C4
D4-L10-C5
D4-L10-C6
D4-L10-C7
D4-L10-C8
D4-L10-C9
D4-L10-C10
D4-L10-C11
D4-L10-C12
D4-L10-C13
D4-L10-C14
D4-L10-C15
D4-L10-C16
D4-L10-C17
D4-L10-C18
D4-L10-C19
D4-L10-C20
D4-L10-C21
D4-L10-C22
Índice

Citation preview

INTRODUÇÃO Com esta edição electrónica pretendemos dar a todos os que se interessam pela grande aventura que foram os Descobrimentos Portugueses uma versão acessível das Décadas da Ásia, obra prima do historiador humanista João de Barros. O meio electrónico permite que o texto de Barros, de extensão imponente e de estrutura complexa, possa ser consultado, sem fatigante esforço muscular, de três maneiras distintas: a leitura contínua tradicional; a leitura descontínua de uma série de trechos seleccionados, à escolha do utilizador, a partir do índice geral; e finalmente a pesquisa de elementos isolados através dos comandos de procura. Para obter um maior rendimento da procura de nomes pessoais e geográficos, incorporámos um índice minucioso (compilado em grande parte por Lisa Barber), que permite distinguir os vários membros da mesma família, quer seja portuguesa quer seja oriental, e identificar os inúmeros topónimos mencionados ao longo das Décadas. Sendo os nossos fins puramente de divulgação, não pretendemos oferecer ao leitor uma edição crítica da obra de Barros, tarefa que consideramos necessária e que o nosso trabalho facilitará, mas que por ora não faz parte dos nossos propósitos. Em vez disso, a nossa edição foi concebida como meio de abordagem à edição, ainda incompleta, da Imprensa Nacional–Casa da Moeda, que até agora só chegou à terceira Década (as Décadas 1 e 2 são uma reprodução em fac-símile da edição diplomática de António Baião e Luís F. Lindley Cintra, de 1932-74; a Década 3 é uma reprodução em fac-símile da 1a edição de 1563). Com o fim de ajudar o leitor, optamos por uma versão modernizada, tendo seguido, por isso, a única edição completa deste tipo, a de Hernâni Cidade (Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1945). Desta edição rectificámos os múltiplos erros de transcrição, apoiando-nos em concordâncias tiradas do texto electrónico. Corrigimos também muitos outros passos duvidosos, confrontando-os com as leituras da edição IN–CM ou, no caso da Década 4a, com as da primeira edição de 1615.

Como se sabe, João de Barros não chegou a completar a Década 4a,, cuja primeira edição se deve ao esforço de João Baptista Lavanha, cronista-mor de Felipe III de Espanha. Lavanha reformou o texto do seu predecessor, como ele próprio nos informa, acrescentando muito material novo. Na nossa edição a parte do texto que é da autoria de Lavanha é distinguida assim: Autor_L. As notas de rodapé que se encontram ao fim dos vários capítulos da Década 4a são também da responsibilidade de Lavanha. O leitor dispõe de uma outra maneira de consulta através dos números de notas de rodapé incluídos no texto. Para ter acesso ao maior número de referências possíveis, o utilizador encontrará três sequências de paginação encaixadas no texto, em conformidade com a tábua que se segue: Década 1 2 3 4

Pagina_Indice paginação da ed. IN-CM paginação da ed. IN-CM foliação corrigida da 1ª ed paginação da 1ª ed.

Fol_INC foliação da 1ª ed.

Pagina_ED paginação da ed. Cidade

foliação da 1ª ed.

paginação da ed. Cidade

foliação da 1ª ed

paginação da ed. Cidade

(paginação da 1ª ed.)

paginação da ed. Cidade

Convenções do Índice 1. Fixação da forma de entradas principais. As variações da nomenclatura oriental podem por vezes causar problemas ao leitor. Escolhemos sempre, portanto, como entrada principal, a forma modernizada de um determinado nome próprio, tal como aparece no texto electrónico. Logo a seguir vêm as outras formas da mesma palavra que se encontram na edição IN-CM ou na Década 4a. Sempre que possível tentamos identificar indivíduos não-europeus, utilizando, nestes casos, a transcrição moderna apropriada à língua em questão. 2. Função dos parênteses. A matéria incluída entre parênteses rectos [ ] é da responsabilidade dos editores. Glosas ou identificações derivadas da própria obra de Barros vêm entre parênteses redondas ( ). 3. Função do ponto de interrogação (?): • se vem depois de uma tentativa de identificação, entre parênteses rectas, indica incerteza relativa ao indivíduo em questão; • se vem depois de uma referência a uma página, indica incerteza relativa à identidade da pessoa referida no texto; • se vem depois da forma alternativa de um nome próprio, indica incerteza acerca da validade desta forma. 4. Tratamento a dar à preposição de: Na edição IN-CM e na Década 4a, é frequente grafar a preposição de junto com a palavra seguinte, se esta começa com uma vogal (p.e., Darzira por de Arzira). Tentamos dividir as palavras segundo o uso moderno, mas continua a haver incertezas relativas a certos indivíduos e topónimos cuja existência é documentada unicamente na obra de Barros.

*** OPHIR - Biblioteca Virtual dos Descobrimentos Portugueses Center for the Studies of the Portuguese Discoveries - Oxford & Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Coordenação Executiva: Anabela Mourato, Nuno Camarinhas, Rita Garnel. Coordenação do CD-ROM: Thomas Earle, Stephen Parkinson. Consultor Técnico: Rui Pereira. Equipa de Digitalização, conferência e edição: António Coelho, Joana Subtil e Vânia Calinas. Sistema implantado por Paper-bits Design: Patrícia Proença Impressão Duplicação: Duplisoft, Lda. 1998 *** Compilado para PDF - 2014 - RLJ

PRIMEIRA DÉCADA

LIVRO I 5 3 7 Capítulo primeiro. Como os mouros vieram tomar Espanha e, depois que Portugal foi intitulado em reino, os reis dele os lançaram além-mar, onde os foram conquistar, ali nas partes de África como nas de Ásia, e a causa do título desta escritura. Alevantado em terra de Arábia aquele grande antecristo Mafamede, quási nos anos de quinhentos noventa e três de nossa Redenção, assi lavrou a fúria de seu ferro e fogo de sua infernal seita, per meio de seus capitães e califas, que em espaço de cem anos, conquistaram em Ásia toda Arábia e parte da Síria e Pérsia, e em África todo Egipto aquém e além do Nilo. E segundo escrevem os arábios no seu Zarigh, que é um sumário dos feitos que fizeram os seus califas na conquista daquelas partes do Oriente, neste mesmo tempo, de lá se levantaram e vieram grandes exames deles povoar estas do Ponente a que eles chamam Algarb e nós corruptamente Algarve de Além-Mar. Os quais a força de armas devastando e assolando as terras, se fizeram senhores da maior parte da Mauritânia Tingitânia, em que se compreendem os reinos de Fez e Marrocos, sem até este tempo a nossa Europa sentir a perseguição desta praga. Peró vindo o tempo té o qual Deus quis dissimular os pecados de Espanha, esperando sua penitência acerca das heresias de Arrio, Elvídio e Pelágio de que ela andou mui iscada (posto que já per santos concílios nela celebrados fossem desterradas), em lugar de penitência acrescentou outros mui graves e púbricos pecados, e que mais acabaram de encher a medida de sua condenação, que a força feita à Cava, 8 filha do Conde Julião (ainda que esta foi a causa última e acidental, segundo querem alguns escritores). Com as quais cousas provocada a justiça de Deus, usou de seu divino e antigo juízo, que sempre foi castigar púbricos e gerais pecados, com púbricos e notáveis pecadores, e permitir que um herege seja açoute de outro, vingando-se per esta maneira de seus imigos per outros maiores imigos. E como naquele tempo estes arábios eram os mais notáveis que ele tinha, infestando o império romano e perseguindo sua católica 6 Igreja, primeiro que per eles castigasse Espanha os quis castigar na sua heresia, acendendo antre eles um fogo de compitência, sobre quem se assentaria na cadeira do pontificado de sua abominação com este título de califa, que naquele tempo era a maior dinidade da sua seita. E depois de Arábia, Síria e parte da Pérsia arderem com guerras de confusão a quem prevaleceria neste estado, em que morreu grande número deles, tendo cada parentela enlegido califa antre si, vieram alguns naquela parte interior de Arábia onde está situada a cidade Cufá per concórdia de sua cisma babilónica, enleger por califa a um arábio chamado Safá dizendo que a ele pertencia aquele ponteficado por ser o mais chegado parente de Mafamede, ca ele vinha per linha direita de Abás, seu tio, à linhagem do qual Abás eles chamam Abázcion. E porque, quando o alevantaram por seu califa, foi com lhe darem juramento que havia de ir destruir o califa que então residia na cidade Damasco, que era da linhagem a que eles chamam Maraunion, em a qual havia muitos anos que andava o califado per modo de tirania mais que per eleição, e por isso era esta geração mui avorrecida antre 3v a maior parte dos arábios, ordenou logo este novo califa um seu parente per nome Abedalá ben Alé, que com grande número de gente de cavalo fosse sobre o califa de Damasco. O qual Abedalá, sendo com este exército junto do rio Eufrates, topou o mesmo califa que ia buscar, que vinha de dar υa batalha a outro Califa novamente alevantado nas partes da Mesopotâmia; e rompendo ambos seus exércitos, houve antre eles υa mui crua batalha, em que o

LIVRO I

Califa de Damasco foi vencido. E temendo ele a fúria deste seu imigo Abedalá, quis-se recolher na cidade Damasco, de que tantos tempos fora senhor, mas os moradores dela 9 lhe fecharam as portas sem o quererem receber; com que lhe conveo fugir pera a cidade do Cairo, onde achou pior gasalhado, dizendo todolos cidadãos que Deus os tinha livrado de um tam mau homem como ele sempre fora. Vendo-se ele em todalas partes tam mal recebido, já desemparado dos seus, como homem desesperado do adjutório deles, quis-se passar aos gregos; e indo com um escravo seu, foi ter a υa ilha onde, sendo conhecido, o mataram, no qual acabaram todolos califas de Damasco. Abedalá, seu imigo, tanto que o venceu e soube quam mal recebido era dos próprios seus, sem o querer mais perseguir, foi-se dereitamente a Damasco; e, tomada posse da cidade, a primeira cousa que fez foi mandar desenterrar o Califa Yázit, que era dos primeiros que ali foram daquela linhagem Maraunion, havendo já muitos anos que era falecido, os ossos do qual com um auto púbrico mandou queimar. Porque sendo Hocém neto de Mafamede, seu legislador, filho de sua filha Aira e de Ali, seu sobrinho, dereitamente enlegido por califa como fora seu pai, Yázit, não somente 7 lhe não quisera obedecer, mas ainda teve modo como Hocém fosse morto, tudo por ele, Yázit, se levantar com o califado, o qual pessuiu tiranicamente, e assi todolos de sua linhagem, per muitos tempos. E não contente este Abedalá com tomar tal vingança deste Yázit, geralmente a toda sua parentela mandava matar com mil géneros de tormentos e lançar seus corpos no campo às feras e aves dele, dizendo serem todos escomungados e dinos de não ter sepultura, pois eram do sangue daquele péssimo homem que mandou derramar o do justo Hocém, ungido naquela dinidade de califa per o testamento de seu avô Mafamede. Da fúria e fogo das quais cruezas que este Abedalá fazia, saltou υa faísca que veo abrasar toda Espanha, e o caso procedeu per esta maneira: Antre alguns desta linhagem Maraunion que este capitão Abedalá perseguia, havia um homem poderoso, chamado Abedirramon, filho de Mauhiá e neto de Hóron, e bisneto de Abbedelmalec, o qual avô e bisavô em tempo passado foram também califas daquela cidade Damasco. E vendo ele a perseguição de sua linhagem e as cruezas que Abedalá nela fazia, temendo receber outros tais em sua pessoa, recolheu pera si os mais parentes que pôde, com outra gente solta, cuja vida era andar em guerras e roubos, e feito um grande exército de gente por autorizar sua pessoa, meio fugindo, veo ter a estas partes do Ponente. Onde, assi por ser da linhagem dos califas de Damasco, como por ser homem valeroso e cavaleiro de sua pessoa, foi mui bem recebido, e concorreu a ele tanta gente 10 arábia, da que já cá andava nestas partes dos Algarves de Além-mar, que, vendo-se tam poderoso em gente e opinião de seita, tomou ousadia a se intitular com novo nome, chamando-se príncipe dos crentes, nesta palavra arábia Miralmuminim, a que nós corruptamente chamamos Miramulim, e isto quási em opróbrio e reprovação dos califas da linhagem de Abás, que novamente foram levantados na Arábia, por cuja causa ele se desterrou daquelas partes de Damasco. E não se contentando ainda com este novo e soberbo nome, fundou a cidade Marrocos pera cadeira de seu estado e motrópoli daquela região (posto que algυas crónicas dos arábicos querem que a edificou Josep, filho de Jesfim, e outros que outro príncipe, como veremos em a nossa Geografia. A causa da fundação da qual cidade, dizem alguns deles que não foi tanto por glória que este Abedirramon teve da memória do seu nome, quanto em reprovação doutra que ouviu dizer que fundava o Califa Bujafar, irmão e sucessor do Califa Safá, que foi causa de se ele vir a estas partes. A qual cidade que este Bujafar fundou também era pera cadeira onde havia sempre de

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residir o seu ponteficado de califa, e é aquela a que ora os mouros chamam Bagodad, situada na província de Babilónia, nas 4 correntes do rio Eufrates. E segundo escrevem os párseos e arábios 8 no seu Zarigh, que alegamos, o qual temos em nosso poder em língua pársea, foi esta cidade Bagodad, fundada per conselho de um astrólogo gentio per nome Nobach, e tem por acendente o signo Sagitário, e acabou-se em quatro anos, e custou dezoito contos de ouro, da qual em a nossa Geografia faremos maior relação. Pois estando este novo Miralmuminim com potência em estado e número de gente, feito outro Nabucdenosor, pera castigo do povo de Espanha, totalmente seu filho Ulide que o sucedeu em nome e poder se fez senhor dela, per Muça e per outros seus capitães, em tempo del-Rei Dom Rodrigo, o derradeiro dos godos. Mas aprouve à divina misericórdia que este açoute de sua justiça tornasse logo atrás daquele ímpeto de vitórias, que per espaço de trinta meses teve, dando ânimo e favor àquele bem-aventurado príncipe Dom Pelaio, com que logo começou ganhar as terras que já estavam súbditas ao ferro e cruezas destes alarves. E procedendo estas vitórias em recobrar 11 Espanha per discurso de trezentos quorenta e tantos anos, vieram ter a el-Rei Dom Afonso, o sexto deste nome, de alcunha o Bravo, que tomou Toledo aos mouros. O qual, querendo satisfazer aos serviços e ajudas que lhe o Conde Dom Hanrique nesta guerra dos mouros tinha feito e dado, não achou cousa mais dina de sua pessoa, nem de maior galardão, que aceitá-lo por filho, dando-lhe por mulher a sua filha Dona Tareija e, em dote, todalas terras que naquele tempo eram tomadas aos mouros nesta parte da Lusitânia que ora é reino de Portugal, com todalas mais que ele podesse conquistar deles, em que entravam algυas de Andaluzia, porque em todas estas ele e seu filho el-Rei Dom Afonso Hanriques verteram seu sangue por as ganhar das mãos e poder dos mouros (como se verá em a outra parte da nossa escritura, chamada Europa). O qual dote e herança parece que foi dado com tal bênção per este católico rei Dom Afonso, que todolos seus descendentes que a herdassem, sempre tevessem contínua guerra com esta pérfida gente dos arábios. Porque, começando deste tempo té o presente, que é discurso de quatro-centos e tantos anos de idade deste reino de Portugal, depois que apartado da Coroa de Espanha teve este nome, assi permaneceu em continua guerra destes infiéis, que com verdade se pode dizer por ele, ter vestido mais armas que pelotes. Donde podemos afirmar que esta casa da Coroa de Portugal está fundada sobre sangue de mártires, e que mártires a dilatam e estendem por todo o Universo, se este nome podem merecer aqueles que, militando pola fé, oferecem suas vidas a Deus em sacrefício, e dotam suas fazendas a sumptuosos templos que fundaram; como vemos que fez el-Rei Dom Afonso Hanriques, primeiro fundador desta Casa Real, e o Conde Dom Hanrique, seu padre, e toda a nobreza e fidalguia que os seguia nesta confissão e defensão da fé, da qual verdade são testemunho mui dotados e 9 magníficos templos deste reino. E passados os primeiros anos da infância dele, que foi todo o tempo que esteve no berço em que nasceu, limitado na costa do Mar Oceano (porque o mais do sertão da terra, ficou na Coroa de Castela e a ele lhe não coube mais em sorte nesta nossa Europa), todo o trabalho daqueles príncipes que então o governavam, foi alimpar a casa desta infiel gente dos arábios que lha tinham ocupada do tempo da perdição de Espanha, té totalmente, a poder de ferro, os lançarem além-mar, com que se intitularam reis de Portugal e do Algarve. E assi estava limpa deles no tempo del-Rei Dom João o primeiro, que desejando ele derramar seu sangue na guerra dos infiéis, por haver a 12

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bênção de seus avós, esteve determinado de fazer guerra aos mouros do reino de Grada e por alguns inconvenientes de Castela, e assi por maior glória sua, passou além-mar em as partes de África, onde tomou aquela Metrópoli Ceita, cidade tam cruel competidora de Espanha, como Cartago foi de Itália. Da qual cidade se logo intitulou por senhor, como quem tomava posse daquela parte de África e deixava porta aberta a seus filhos e netos pera irem mais avante. O que eles mui bem compriram, porque não somente tomaram cidades, vilas e lugares, nos principais portos e forças dos reinos de Fez e Marrocos, restituindo à Igreja Romana a jurdição que naquelas partes tinha perdida depois da perdição de Espanha, como obedientes filhos e primeiros capitães pola fé nestas partes de África, mas ainda foram despregar aquela divina e real bandeira da milícia 4v de Cristo (que eles fundaram pera esta guerra dos infiéis) nas partes orientais da Ásia, em meio das infernais mesquitas da Arábia e Pérsia, e de todolos pagodes da gentilidade da Índia de aquém e de além do Gange, parte onde (segundo escritores gregos e latinos) excepto a ilustre Semirames, Baco e o grande Alexandre, ninguém ousou cometer. Com as quais vitórias que os reis deste reino houveram nestas três partes da terra - Europa, África e Ásia - ganhando reinos e estados, acrescentaram sua Coroa com novos e ilustres títulos que lhe deram com mais justiça do que alguns príncipes desta nossa Europa tem nos estados de que se intitulam, dos quais está em posse esta bárbara gente de mouros, sem os poderem vindicar per lei de armas. E os reis deste reino, sendo senhores do reino de Ormuz, cujo estado tem boa parte e a milhor da terra marítima da Arábia e da Pérsia, e senhores do reino de Cambaia com lhe ter tomado o marítimo dele, e senhores do reino de Goa, com as terras e ilhas a ela adjacentes, e senhores da riquíssima Malaca, situada na Áurea Quersoneso, tam celebrada dos geógrafos, e senhores das ilhas orientais de Maluco, Banda, etc., somente se intitulam por Reis de Portugal e dos Algarves, de Aquém e de Além-mar, senhores de Guiné e da conquista, 10 navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, como se estoutros reinos e senhorios nomeados não se governassem per suas leis e ordenaç“es e lhe não pagassem tributos e rendas, e eles lhe não tivessem o pescoço debaixo do escabelo de seus péis. 13 Mas como de cada υa destas partes em seu lugar mais copiosamente fazemos relação, ao presente (leixadas elas), pera se milhor entender o fundamento desta nossa Ásia, convém que saibamos como no título da real Coroa destes reinos, se compreendem três cousas distintas υa da outra, posto que antre si sejam tam correlativas, que υa não pode ser sem adjutório da outra, comunicando-se pera sua conservação: A primeira é conquista, a qual trata de milícia; a segunda navegação, a que responde a geografia, e a terceira comércio, que convém à mercadaria. Das quais partes querendo nós escrever sucessivamente como elas se foram adquerindo e ajuntando à Coroa deste reino, em lugar e tempo, por não confundir os méritos de cada υa das matérias, com adjutório divino que pera isso imploramos, per este modo trataremos delas. Quanto à parte da conquista, que é própria da milícia, esta, porque foi em todalas partes da terra, fazemos dela quatro partes de escritura (posto que em seis em a nossa Geografia dividamos todo o Universo): A primeira parte desta milícia chamamos Europa, começando do tempo que os romanos conquistaram Espanha, na qual guerra os portugueses per feitos ilustres teveram grã nome acerca deles, e del-Rei Dom Afonso Hanriques e seus sucessores. ‘ segunda parte chamamos África, cujo princípio é a tomada de Ceita. A terceira, que é esta que temos antre as mãos, o seu nome é Ásia, por tratar do descobrimento e conquista das terras e mares do Oriente, começando do tempo do Infante Dom Hanrique, que foi o primeiro inventor desta milícia austral e oriental. E a quarta (porque assi chamamos em a nossa Geografia à terra do Brasil) haverá nome Santa Cruz, nome próprio posto per Pedro Álvares Cabral, quando o ano de mil e quinhentos, indo pera a Índia, a descobriu, e aqui terá seu princípio. E de todas estas quatro partes da milícia, esta Oriental fenece ao presente no ano de mil e quinhentos e trinta e nove, onde acabamos de cerrar o número de quorenta

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livros, que compoem quatro Décadas, que quisemos tirar a luz, por mostra do nosso trabalho, té que venha outro curso de anos, que seguirá a estes na mesma ordem de Décadas, dando-nos Deus vida e lugar pera o poder fazer. Quanto ao título da navegação, a este respodemos com υa universal Geografia de todo o descoberto, assi em graduação de távoas como de comentário sobre elas, aplicando o moderno ao antigo, a qual não sofre compostura em linguagem, e por isso irá em latim. A parte do comércio, porque ele geralmente andava per 11 todalas gentes sem lei nem regras de prudência, somente se governava e regia pelo ímpeto da cobiça que cada um tinha, nós o reduzimos e posemos em arte com regras universais e particulares, como tem todalas ciências e artes activas pera boa polícia. Onde particularmente se verão todalas cousas de que os homens tem uso, ora sejam naturais, ora arteficiais, 5 com a natureza e calidade de cada υa delas (segundo o que podemos alcançar), com as mais partes de pesos, medidas, etc., que a esta matéria convém. E Deus é testemunha que em cada υa destas três partes, Conquista, 14 Navegação e Comércio, fizemos a diligência possível a nós e mais do que a ocupação do ofício e profissão de vida nos tem dado lugar. E quando em algυa delas desfalecermos na diligência e eloquência que convinha à verdade e majestade da mesma cousa, esse Deus onde estão todalas verdades, ordene que venha alguém menos ocupado e mais douto do que eu sou, pera que emende meus defeitos, os quais bem se podem recompensar com o zelo e amor que tenho à Pátria, por tirar a infâmia dalgυas fábulas e ignorâncias que andam na boca do vulgo, e per papéis escritos dinos de seus autores. Leixados meus defeitos, e assi esta geral preparação de toda a obra quási em modo de argumento e divisão dela, venhamos às causas que o Infante Dom Hanrique teve pera tomar tam ilustre impresa, como foi o descobrimento e conquista que deu fundamento a esta nossa Ásia, dos feitos que os portugueses fizeram no descobrimento e conquista das terras e mares do Oriente, como o diz o título desta nossa escritura.

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11 5 14 Capítulo II. Das causas que o Infante Dom Hanrique teve pera descobrir a costa ocidental da terra de África, e como João Gonçalves e Tristão Vaz descobriram a ilha do Porto Santo, por razão de um temporal que os ali levou. Depois que el-Rei Dom João, de gloriosa memória, o primeiro deste nome em Portugal, per força de armas tomou a cidade Ceita aos mouros, na passagem que fez em África, ficou o Infante Dom Hanrique, seu filho, terceiro génito, muito mais desejoso de fazer guerra aos infiéis. Porque se acrescentou à natural inclinação, que sempre teve, de exercitar este ofício de milícia por exalçamento da fé católica, não somente a gloriosa vitória que seu padre com tanto louvor de Deus e glória da Coroa deste reino alcançou na tomada desta cidade Ceita, de que ele, Infante, foi parte mui principal (segundo escrevemos em a outra nossa parte intitulada África, de que neste precedente capítulo fizemos menção), mas ainda foi acerca dele outra causa muito mais eficaz, que era a obrigação do cargo e administração 12 que tinha de governador da Ordem da Cavalaria de Nosso Senhor Iesu Cristo, que el-Rei Dom Dinis, seu tresavô, pera esta guerra dos infiéis ordenou e novamente constituiu. E se ante da tomada de Ceita, não pôs em obra este seu natural desejo foi porque já em seu tempo neste reino não havia mouros que conquistar, porque os reis seus avós (segundo dissemos) a poder de ferro os tinham lançado além-mar em as partes de África. E pera os ele lá ir buscar a comprir 15 o que lhe ficara por avoengo, e convinha per ofício, era necessário passar tam poderosamente como fez seu padre, na tomada de Ceita, pera que lhe conveo poer grande parte de seu estado, e ainda com tanto segredo, indústria e cautelas como nisso teve. Quanto mais que a mesma passagem que seu padre per muito tempo trazia guardada no peito, lhe foi maior empedimento, ca nunca quis que os mouros fossem encetados com entradas e saltos que os espertassem, e ele perdesse υa tam grande imprensa, como foi o cometimento e tomada daquela cidade Ceita. E posto que, com a posse dela, parecia este negócio de conquistar os mouros muito leve, por a entrada e porta que per aqui estava aberta, o Infante Dom Hanrique pera seu propósito achava tudo ao contrairo. Porque, vendo ele como os mouros do reino de Fez e Marrocos 5v ficavam per conquista metidos na Coroa destes reinos, por o novo título que seu pai tomou de senhor de Ceita, e que per esta posse real a impresa daquela guerra era própria dos reis deste reino, e ele não podia entrevir nisso como conquistador mas como capitão enviado, em o processo da qual guerra ele havia de seguir a vontade del-Rei e a desposição do reino e não a sua, assentou em mudar esta conquista pera outras partes mais remotas de Espanha, do que eram os reinos de Fez e Marrocos, com que a despesa deste caso fosse própria dele e não taxada per outrem, e os méritos de seu trabalho ficassem metidos na Ordem da Cavalaria de Cristo, que ele governava, de cujo tesouro podia despender, e também porque acerca dos homens lhe ficasse nome de primeiro conquistador e descobridor da gente idólatra, impresa que té o seu tempo nenhum príncipe tentou. Com o qual fundamento, pera que este seu propósito houvesse efeito, era mui deligente e curioso na inquisição das terras e seus moradores e de todalas cousas que pertenciam à geografia, dando-se muito a ela. Donde assi na tomada de Ceita, como as outras vezes que lá passou, sempre inqueria dos mouros as cousas de dentro do sertão da terra, principalmente das partes remotas aos reinos de Fez e Marrocos. A qual deligência lhe respondeu com o prémio que ele desejava, porque veo saber per eles, não somente das terras dos Algarves que são vezinhos aos desertos de África, a que eles chamam Sahará, mas ainda das que habitam os povos azenegues, que confinam com os negros de Jalof, onde se começa a região 13

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de Guiné, a que os mesmos mouros chamam Guinauha, dos quais recebemos este nome. Pois tendo o Infante esta informação aprovada per muitos que concorriam em υa mesma cousa, começou a poer em execuçao esta obra que 16 tanto desejava, mandando cada ano dous e três navios que lhe fossem descobrindo a costa além do Cabo de Não, que é adiante do Cabo da Guilo obra de doze léguas. O qual Cabo de Não era o termo da terra descoberta que os navegantes de Espanha tinham posto à navegação daquelas partes. E dado que, por causa das diligências e modos que nisto teve, ante que armasse os primeiros navios, ele estava bem informado das cousas de toda a costa da terra que os mouros habitavam, per meio deles, alguns quiseram afirmar, que, como era príncipe católico e de vida mui pura e religiosa, esta impresa mais lhe fora revelada que per ele movida. Porque, estando em υa vila que novamente fundara no reino do Algarve, na angra de Sagres, a que pôs nome Terçanabal, e ora se chama a Vila do Infante, um dia, em se levantando, sem preceredem mais cousas que as diligências que fazia pera ter informação das terras, mandou com tanta diligência armar dous navios, que foram os primeiros, como se naquela noite lhe fora dito que sem mais dilação nem inquirição do que perguntava mandasse descobrir. E não somente per conjectura desta pressa, mas ainda per outras que os seus notaram, dizem ser ele exortado per oráculo divino que logo o fizesse. Mas os navios que daquela vez e doutras foram e vieram nam descobriram mais que até o Cabo Bojador, que será de avante de Cabo de Não obra de sessenta léguas, e ali paravam todos, sem alguns ousar de cometer a passagem dele. Porque como este cabo começa de incurvar a terra de mui longe e, ao respeito da costa que atrás tinham descoberto, lança e boja pera Aloeste perto de quorenta léguas (donde deste muito bojar lhe chamaram Bojador), era para eles cousa mui nova apartar-se do rumo que levavam e seguir outro pera Aloeste de tantas léguas. Principalmente porque no rosto do cabo achavam υa restinga que lançava pera o mesmo rumo de Aloeste obra de seis léguas, onde, por razão das águas que ali correm naquele espaço, o baixo as move de maneira que parecem saltar e ferver, a vista das quais era a todos tam temerosa que não ousavam de as cometer, e mais quando viam o baixo. O qual temor cegava a todos, pera não entenderem que, afastando-se do cabo o espaço das seis léguas que ocupava o baixo, podiam passar além; porque, como eram costumados às navegações que então faziam de Levante a Ponente, levando sempre a costa na mão por rumo de agulha, não sabiam cortar tam largo que salvassem o espaço da restinga, somente com a vista do ferver destas águas e baixo que achavam, concebiam que o mar dali por diante era todo aparcelado, e que não se podia navegar, e que esta fora acausa por que os povoadores 14 desta parte da Europa não se estenderam a navegar contra aquelas regiões. Alguns que entendiam acerca das cousas naturais queriam dar causa 17 por que o mar daquelas terras quentes não era tam profundo como o das terras frias, dizendo que o sol queimava tanto as terras que jaziam debaixo do seu curso, que com justa causa estava assentado per todolos filósofos serem terras onde se não podia habitar por razão do ardor dele, e que este ardor era o que consumia as águas doces, que geralmente se produzem do coração da terra, e as salgadas eram das que o mar frio espraiava naquelas praias quentes, de maneira 6 que a navegação das tais regiões eram mais praias cobertas de baixos que mar navegável. Os capitães que o Infante enviava a este descobrimento, quando se tornavam pera este reino, parecendo-lhe que o compraziam por saberem que sua natureza e inclinação era fazer guerra aos mouros, vinham-se pela costa da Berberia té o Estreito, onde faziam algυas entradas e saltos nas povoações deles, com que se apresentavam ante ele alegres de suas vitórias. Mas o desejo do Infante com estas tais presas não ficava satisfeito, porque todo estava posto na esperança que lhe o espírito prometia se prosseguisse naquela impresa, da qual algυas vezes desistia, porque os negócios do reino e as passagens que fez aos lugares de África o empediam a não levar o fio deste

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descobrimento tam continuado como ele desejava. E vindo do grande cerco de Ceita (como se na parte de África contém), depois que estes negócios algum tanto lhe deram lugar, falaram-lhe dous cavaleiros de sua casa que naquelas idas de Além o tinham mui bem servido, pedindo-lhe muito que, pois sua mercê armava navios pera descobrir a costa de Berberia e Guiné, lhe aprouvesse irem eles em algum navio a este descobrimento, ca sentiam em si que nele o poderiam bem servir O Infante, vendo suas boas vontades e conhecendo deles serem homens pera qualquer honrado feito pela experiência que tinha de seus serviços, mandou-lhe armar um navio, a que chamavam barca naquele tempo, e deu-lhes regimento que corressem a costa de Berberia té passarem aquele temeroso Cabo Bojador, e ali fossem descobrindo o que mais achassem; a qual terra, segundo mostravam as Távoas de Ptolomeu, e assi pela informação que tinha dos alarves, sabia ser contínua υa a υa, té se meter debaixo da Linha Equinocial, peró que nam tevesse notícia da navegação da sua costa. Nosso Senhor, como por sua misericórdia queria abrir as portas de tanta infidelidade e idolatria pera salvação de tantas mil almas, que o demónio no centro daquelas regiões e províncias bárbaras tinha cativas, sem notícia dos méritos da nossa Redenção, partidos estes dous cavaleiros em sua barca, começou nesta viagem obrar seus mistérios, demonstrado-nos e descobrindo a grandeza dos mundos e terras que pera nós tinha criado 15 com tantos tesouros e riquezas como em si continham. As quais terras havia tantos mil anos que por nossos pecados, ou pelas 18 enormes e torpes idolatrias de seus moradores, ou per outro qualquer juízo oculto, estavam cerradas e de nós bem esquecidas, sem haver príncipe ou rei de quantos foram em Espanha que este descobrimento cometesse, como lemos que tomaram outras impresas que nam trouxeram tanto louvor à Igreja de Deus, nem a suas Coroas tanta glória e acrecentamento como lhe esta podia dar. Parece que assi como em o Velho Testamento lemos que Deus não consentiu que Davide, sendo a ele tam aceito, lhe edificasse templo por ser barão que trazia as mãos tintas de sangue humano das guerras que teve, e quis que este templo material lhe edificasse Salamão, seu filho, por ser rei pacífico e limpo deste sangue, assi permetiu estar parte do Mundo tantas centenas de anos encoberta e escondida. Porque tam grande cousa como era a edificação da sua Igreja nestas partes da idolatria, convinha que fosse per um barão tam puro, tam limpo, e de coração tam virginal como foi este Infante Dom Hanrique que abriu os aliceces dela, e per outro tam cristianíssimo e zelador da Fé e honra de Deus, como foi el-Rei Dom Manuel, seu sobrinho e neto adoutivo, que depois, como adiante veremos, muito trabalhou na edificação desta Igreja oriental, metendo grande parte do povo idólatra em o curral do Senhor, e como um novo apóstolo levou o seu nome per todalas gentes. E assi permitiu que este descobrimento, pela majestade dele, passasse pela lei que tem as grandes cousas, as quais, quando se querem mostrar a nós, tem uns princípios trabalhosos e casos não pensados e de tanto perigo, como passaram estes dous cavaleiros que o Infante mandou descobrir. Porque, ante que chegassem à costa de África, saltou com eles tamanho temporal com força de ventos contrairos à sua viagem, que perderam a esperança das vidas, por o navio ser tam pequeno e o mar tam grosso que os comia, correndo a árvore seca, à vontade dele. E como os marinheiros naquele tempo não eram costumados a se engolfar tanto no pego do mar, e toda sua navegação era per singraduras sempre à vista de terra, e segundo lhes parecia eram mui afastados da costa deste reino, andavam todos tam torvados e fora do seu juízo pelo 6v temor lhe ter tomado a maior parte dele, que não sabiam julgar em que paragem eram. Mas aprouve à piadade de Deus, que o tempo cessou, e, posto que os ventos lhe fizeram perder a viagem que levavam segundo o regimento do Infante, não os desviou de sua boa fortuna, descobrindo a ilha a que agora chamamos Porto Santo, o qual nome lhe eles então poseram, porque os segurou do perigo que nos dias da fortuna passaram. E bem lhe pareceu que terra em parte não

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esperada, não somente lha deparava Deus pera sua salvação, mas ainda pera bem e proveito 16 destes reinos, vendo a desposição e sítio dela, e 19 mais não ser povoada de tam fera gente como naquele tempo eram as Ilhas Canárias, de que já tinham notícia. Com a qual nova, sem ir mais avante, se tornaram ao reino, de que o Infante recebeu o maior prazer que té aquele tempo desta sua impresa tinha visto, parecendo-lhe que era Deus servido dela, pois já começava ver o fructo de seus trabalhos. E acrecentava mais a este seu prazer, dizerem aqueles dous cavaleiros, a um dos quais chamavam João Gonçalves Zarco, de alcunha, e ao outro Tristão Vaz, que vinham tam contentes dos ares, sítio e fresquidão da terra, que se queriam lá tornar a povoá-la, por verem que era mui grossa e azada pera fructificar todalas sementes e plantas de proveito. E não somente eles e os outros de sua companhia que a viram, mas ainda muitos polo que dela ouviam, e também por comprazer ao Infante, se ofereceram a ele com este propósito de a povoar; antre os quais foi υa pessoa notável, chamado Bertolameu Perestrelo, que era fidalgo da casa do Infante Dom João, seu irmão. Vendo ele, Infante Dom Hanrique, o alvoroço com que se já os homens despunham a este negócio, convertia-se a Deus, dando-lhe muitas graças, pois lhe aprouvera ser ele o primeiro que descobrisse a este reino, princípio de outros em que o coração da gente português se estendesse pera seu serviço. Pera a qual ida logo com muita deligência mandou armar três navios, um dos quais deu a Bertolameu Perestrelo, e os outros dous a João Gonçalves e a Tristão Vaz, primeiros descobridores, indo mui apercebidos de todalas sementes e plantas e outras cousas, como quem esperava de povoar e assentar na terra. Antre as quais era υa coelha, que Bertolameu Perestrelo levava prenhe, metida em υa gaiola, que pelo mar acertou de partir, de que todos houveram muito prazer e teveram por bom pronóstico, pois já pelo caminho começavam dar fructo as sementes que levavam, e aquela coelha lhe dava esperança da grande multiplicação que haviam de ter na terra. E certo que esta esperança da multiplicação da coelha os não enganou, mas foi com mais pesar que prazer de todos; porque, chegados à Ilha e solta a coelha com seu fructo, em breve tempo multiplicou em tanta maneira, que não semeavam ou plantavam cousa que logo não fosse roída. O que foi em tanto crecimento per espaço de dous anos que ali esteveram, que quási importunados daquela praga, começou de avorrecer a todos o trabalho e modo de vida que ali tinham, donde Bertolameu Perestrelo determinou de se vir pera o reino, ou per qualquer outra necessidade que pera isto teve.

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17 6v 20 Capítulo III. Como João Gonçalves e Tristão Vaz, partindo Bertolameu Perestrelo, descobriram a ilha a que agora chamam da Madeira, a qual o Infante Dom Hanrique repartiu em duas capitanias, υa chamada do Funchal, que deu a João Gonçalves, e a outra Machico, que houve Tristão Vaz. João Gonçalves e Tristão Vaz, como eram chamados pera milhor fortuna e mais prosperidade, não se quiseram vir pera o reino nem menos fazer assento naquela ilha, mas, partido Bertolameu Perestrelo, determinaram de ir ver se era terra υa grande sombra que lhe fazia a Ilha a que ora chamamos da Madeira. Na qual havia muitos dias que se não determinavam, porque, por razão da grande humidade que em si continha com a espessura do arvoredo, sempre a viam afumada daqueles vapores, e parecia-lhe serem nuvens grossas e outras vezes afirmavam que era terra, porque, demarcando aquele lugar com a vista, não o viam 7 desassombrado como as outras partes. Assi que, movidos deste desejo, em dous barcos que fizeram da madeira da ilha em que estavam, vendo o mar pera isso desposto, passaram-se a ela, a que chamaram da Madeira, por causa do grande e mui espesso arvoredo de que era coberta. Nome já mui celebrado e sabido per toda a nossa Europa, e assi em muitas partes de África e Ásia, por os fructos da terra de que todas participam, e ela tam nobre, fértil e generosa em seus moradores, que, tirando Ingraterra, mui antiquíssima em povoação e ilustre com majestade dos seus reis, em todo o Mar Oceano, ocidental a esta nossa Europa, ela se pode chamar princesa de todas. O que a fama tem da ida destes dous capitães e sua saída em terra, é que João Gonçalves com o seu barco saiu onde ora chamam Câmara de Lobos, junto do Funchal, e Tristão Vaz saiu na Ponta de Tristão, a que ele então deu nome, e que da saída que cada um fez nestes lugares lhe coube a sorte da terra que lhe foi dada pelo Infante em capitania. Os herdeiros de João Gonçalves tem escritura mui particular deste descobrimento, e querem que toda a honra e trabalho dele lhe seja dada, dizendo que Tristão Vaz não era homem de tanta idade nem calidade como João Gonçalves, somente que era chegado a ele per amizade e companhia, e que, como homem mancebo e desta conta, sempre era nomeado por Tristão. Os quais, chegando ambos em um barco do mesmo João Gonçalves, saíram naquele lugar chamado ora a Ponta de Tristão, e ali o leixou João Gonçalves, dizendo que em quanto ele ia no batel dar υa volta à ilha buscar outro porto, que entrasse ele ver a terra per dentro. E que ficando ali Tristão, ele viera em seu barco ter a parte a que ora 18 chamam o Funchal, do qual sítio 21 e desposição de terra, quanto de fora se podia julgar, ele ficou contente. E tornado onde leixara Tristão, lhe deu toda aquela terra que lhe depois foi dada em capitania, isto em nome do Infante, por trazer regimento e comissão sua pera o poder fazer. Gomes Eanes de Zurara, que foi cronista destes reinos, de cuja escritura nós tomamos quási todo o processo do descobrimento de Guiné (como se adiante verá) em soma diz que ambos estes cavaleiros descobriram esta ilha, peró sempre nomea a Tristão Vaz por Tristão, como pessoa menos principal. Nós, leixado o particular desta precedência, basta pera nossa história saber como ao tempo que João Gonçalves saiu em terra, era ela tam coberta de espesso e forte arvoredo, que não havia outro lugar mais descoberto que υa grande lapa, ao modo de câmara abobadada que se fazia

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debaixo de υa terra soberba sobre o mar, o chão da qual lapa estava mui sovado dos pés dos lobos marinhos que ali vinham retouçar; ao qual lugar ele chamou Câmara de Lobos, e tomou este apelido em memória que naquele lugar foi a primeira entrada de sua povoação. O qual apelido ficou a todolos seus herdeiros, e alguns se chamam da Câmara somente, e peró todos trazem por armas - se são as que deram a João Gonçalves - um escudo verde e υa torre de menagem de prata coberta, e dous lobos de sua cor pegados nela, e na ponta do coruchéu da torre υa cruz de ouro. O Infante, depois que estes capitães vieram ao reino com a nova desta ilha, per consentimento del-Rei Dom João, seu padre, a repartiu em duas capitanias: a João Gonçalves, deu a que chamamos do Funchal, onde está a cidade nomeada deste lugar com as demarcações que a ela pertencem, de que ora seus herdeiros são capitães de juro e herdade, segundo se contém em suas doações; e a Tristão Vaz deu a outra onde está a povoação de Machico, cujos sucessores a teveram té o ano de quinhentos e quorenta , onde se quebrou seu legítimo herdeiro, segundo tinham per sua doação, da qual el-Rei Dom João o terceiro, nosso senhor, neste mesmo tempo fez doação dela de juro e herdade a António da Silveira de Meneses, filho de Nuno Martins da Silveira, senhor de Góis, em satisfação dos serviços que fez na Índia em o cerco da cidade Dio do reino Guzarate, onde estava por capitão quando foi cercado per Soleimão Bassá, Capitão-mor da armada do Turco, (como se verá em seu lugar). E afora o mérito que estes capitães teveram naquele descobrimento pera lhes ser feita mercê daquelas capitanias, havia outros de suas pessoas e serviço per que cabia neles toda a honra: porque, em as idas de além, principalmente em o cerco de Ceita, quando foi o desbarato dos mouros no dia da chegada onde se eles acharam, e assi no cerco de Tânger, ambos o fizeram honradamente e o Infante os armou cavaleiros. E que nesta parte os méritos de ambos fossem comuns, 19 em João 7v Gonçalves particularmente havia os da nobreza do seu sangue, o que parece 22 responder a lhe ser dada maior parte na repartição da ilha; sempre depois precedeu em honra aos capitães de Machico. Porém quanto aos trabalhos que cada um teve em povoar o que lhe coube em sorte, ambos são dinos de muito louvor; e começaram esta obra da povoação no ano do nacimento de Nosso Senhor Iesu Cristo de mil quatro centos e vinte. No princípio da qual povoação, poendo João Gonçalves fogo naquela parte onde se ora chama o Funchal, em υa roça que fez pera descobrir a terra do arvoredo e rama que tinha per baixo e nela lançar algυas sementes, assi tomou o fogo posse da roça e do mais arvoredo, que sete anos andou vivo no bravio daquelas grandes matas que a natureza tinha criado havia tantas centenas de anos. A qual destruição de madeira, posto que foi proveitosa pera os primeiros povoadores - logo em breve começarem lograr as novidades da terra - os presentes sentem bem este dano, por a falta que tem de madeira e lenha; porque mais queimou aquele primeiro fogo do que de então té ora podera decepar força de braço e machado. Cousa que o Infante muito sentiu e parece que como profecia viu esta necessidade presente que a ilha tem de lenha, porque dizem que mandava que todos plantassem matas, polo negócio dos açúcares, de que a ilha logo deu mostra, gastar tanta que era certo vir a esta necessidade. E a primeira igreja que o Infante mandou fundar foi Nossa Senhora do Calhau; e depois que a ilha começou a multiplicar em povoações, se fundou Nossa Senhora da Assunção que ora é Sé Catedral, Arcebispado Primaz das Índias. Depois, no ano de mil quatrocentos trinta e três, em a vila de Sintra, a vinte seis de Setembro, el-Rei Dom Duarte, irmão deste Infante, lhe fez doação dela em dias de sua vida, e, no ano seguinte, em a mesma vila, a vinte seis de Outubro, deu todo o espiritual dela à Ordem de Cristo; as quais doações depois lhe foram confirmadas per el-Rei Dom Afonso, seu sobrinho, o ano de mil quatro centos e trinta e nove. E por as cousas desta ilha serem a nós já mui manifestas e sabidas, deixamos de escrever da

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fertilidade dela; somente se pode notar ser cousa tam grossa, que alguns anos rendeu o quinto dos açúcares ao Mestrado de Cristo passante de sessenta mil arrobas, e esta novidade se havia em terra que ocupava pouco mais de três léguas. A Ilha do Porto Santo deu o Infante a Bertolameu Perestrelo que a povoasse, o que lhe foi mui trabalhosa cousa, por causa dos coelhos que os moradores não podiam vencer; dos quais ainda hoje em um ilhéu que está pegado a ela, é tanta a multidão que parecem bichos, e passou já de três mil υa matança que se neles fez. Também houve outra causa de se esta ilha não povoar como a da Madeira, e foi por não haver nela ribeiras de regadio pera as fazendas dos moradores, com que Bertolameu 20 Perestrelo ficou com menos sorte que os outros capitães, cuidando o Infante naquele tempo que lhe ficava a milhor.

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20 7v 23 Capítulo IV. Das murmurações que o povo do reino fazia contra este descobrimento. E como, havendo doze anos que nele se prosseguia, um Gil Eanes passou o Cabo Bojador tão temeroso na opinião das gentes. Com o descobrimento destas duas ilhas, começou o Infante a se esforçar mais em o seu principal intento, que era descobrir a terra de Guiné, por haver já doze anos que trabalhava nisso contra parecer de muitos, sem achar algum final pera satisfação daqueles que haviam este negócio por cousa sem fructo e mui perigosa a todolos que andavam nesta carreira, por este comum provérbio que traziam os mareantes: Quem passar o Cabo de Não, ou tornará ou não. E era tam assentado o temor desta passagem no coração de todos, por herdarem esta opinião de seus avós, que com muito trabalho achava o Infante quem nisso o quisesse servir, peró que já o descobrimento da ilha da Madeira desse algum ânimo aos navegantes. Porque diziam muitos, que como se havia de passar um cabo que os mareantes de Espanha poseram por termo e fim da navegação daquelas partes, como homens que sabiam não se poder navegar 8 o mar que estava além dele, assi por as grandes correntes, como por ser mui aparcelado, e com tanto fervor das aguagens que sorvia os navios? E mais que a terra que o Infante mandava buscar não era terra, mas uns areais como os desertos de Líbia de que falavam os escritores, por ela ser υa parte a mais ocidental dela, de que já tinha experiência em as sessenta léguas de costa que estavam ante do cabo Bojador. E não somente os mareantes, mas ainda outras pessoas de mais calidade diziam: Certamente nós não sabemos que opinião foi esta do Infante, nem que fructo ele espera deste seu descobrimento, senão perdição de quanta gente vai em os navios, pera ficarem muitos órfãos e viúvas no reino, além da despesa de suas fazendas, pois o perigo e o gasto ambos estão manifestos e o proveito tam incerto como todos sabemos. Porque sempre aí houve reis e príncipes em Espanha desejosos de grandes impresas, e tam cobiçosos de buscar e descobrir novos estados como o Infante, e não vemos nem lemos em suas crónicas que mandassem descobrir esta terra, tendo-a por tam vezinha. Mas como cousa de que não esperavam honra ou proveito algum leixaram de a descobrir, contentando-se com a terra que ora temos, a qual Deus deu por termo e habitação dos homens; e se algυa houver onde o Infante diz, devemos crer que ele a deixou pera pasto dos brutos. Ca, 21 segundo os antigos escreveram das partes do Mundo, todos afirmam que esta per que o sol anda a que eles chamam tórrida zona, não é habitada. Ora onde o Infante manda descobrir, é já tanto dentro no fervor do sol, que de brancos que os homens 24 são, se lá for algum de nós, ficará (se escapar) tam negro como são os guinéus, vezinhos a esta quentura. Se ao Infante parece que, como ora achou estas duas ilhas que o tem mais elevado neste descobrimento, pode achar outras terras ermas, grossas e fértiles, como dizem que elas são, terras e maninhos há no reino pera romper e aproveitar sem perigo de mar, nem despesas desordenadas. E mais temos exemplos contrairos a esta sua opinião, porque os reis passados deste reino sempre dos reinos alheos pera o seu trouxeram gente a este a fazer novas povoações, e ele quere levar os naturais portugueses a povoar terras ermas per tantos perigos de mar, de fome e sede, como vemos que passam os que lá vão. Certo que outro exemplo lhe deu seu padre poucos dias há, dando os maninhos de Lavra junto de Coruche a Lambert de Orches, alemão, que os rompesse e povoasse com obrigação de

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trazer a ele moradores estrangeiros de Alemanha; e não mandou seus vassalos passar além-mar, romper terras que Deus deu por pasto dos brutos. E bem se viu quanto mais naturais são pera eles que pera nós, pois em tam poucos dias υa coelha multiplicou tanto que os lançou fora da primeira ilha, quási como amoestação de Deus que há por bem ser aquela terra pastada de alimárias e não habitada per nós. E quando quere que nestas terras de Guiné se achasse tanta gente como o Infante diz, não sabemos que gente é, nem o modo de sua peleja; e quando fosse tam bárbara como sabemos que é a das Canárias, a qual anda de penedo em penedo como cabras às pedradas contra quem os quere ofender, nós que proveito podemos ter de terra tam estérele e áspera e cativar gente tam mesquinha? Certo nós não sabemos outro, senão virem eles encarentar o mantimento da terra e comerem nossos trabalhos, e por cobrarmos um comedor destes, perdermos os amigos e parentes! Estas e outras cousas dizia a gente naquele tempo, vendo com quanto fervor e desejo o Infante procedia neste descobrimento de Guiné. A qual conquista durou per espaço de doze anos, sem neste tempo algum de quantos navios mandou ousar passar o Cabo Bojador. Porém quando os capitães tornavam, faziam algυas antradas na costa de Berberia (como atrás dissemos) com que eles refaziam parte da despesa, o que o Infante passava com sofrimento, sem por isso mostrar aos homens descontentamento de seu serviço, dado que não comprissem o principal a que eram enviados. Porque, como era príncipe católico e todalas suas cousas punha em as mãos de Deus, parecia-lhe que não era merecedor que per ele fosse descoberto o que tanto tempo havia que estava escondido aos príncipes passados de Espanha. Contudo, 22 porque sentia em si um estímulo de virtuosa perfia que o não deixava descansar em outra cousa, parecia-lhe que era ingratidão Deus dar-lhe estes movimentos que não desistisse da obra, e ele ser a isso negligente. 25 As quais inspirações assi o incitavam, que mandou armar υa barca, a capitania da qual deu a um Gil Eanes, 8v seu criado, natural da vila de Lagos, que já o ano passado fora a este descobrimento. E por lhe os tempos não terçarem bem, se foi às Canárias, e em alguns saltos que fez, tomou certos cativos, com que se tornou pera o reino. E porque o Infante se mostrou mal servido dele por este feito, ficou tam descontente de si, que nesta segunda viagem determinou de oferecer a vida a todolos perigos, e não vir ante o Infante sem mais certo recado do que trouxera o ano passado. E a este seu propósito se ajuntou a boa fortuna, ou, por melhor dizer, a hora em que Deus tinha limitado o curso de tanto receo como todos tinham de passar aquele Cabo Bojador, o qual nome lhe ele então pôs pelas razões que atrás dissemos, não tendo té àquele tempo algum acerca de nós, e segundo a sua situação, podemos dizer ser aquele o cabo a que Ptolomeu chama Ganaria Promontório. E posto que a obra desta passagem não foi grande em si (quanto agora), então lhe foi contada por um grande feito, e houveram que era igual a um dos trabalhos de Hércules. Porque com esta passagem desfez a vã opinião que toda Espanha tinha, e deu ânimo àqueles que não ousavam seguir este descobrimento. Tornado Gil Eanes ao reino com esta nova, foi recebido do Infante com aquele prazer que se tem das cousas tam desejadas e per tanto tempo e trabalho requeridas como eram aquelas, e agalardoou sua pessoa, e assi os da sua companhia, com honra e mercê. E o que mais animou o Infante a esta impresa, foi contar-lhe Gil Eanes como saíra em a terra sem achar gente ou povoação algυa, e que lhe parecera mui fresca e graciosa, e que em sinal de não ser tam estérele como as gentes diziam, trazia ali a Sua Mercê, em um barril cheo de terra, υas ervas que se pareciam com outras que cá no reino tem υas flores a que chamam rosas de Santa Maria. As quais, sendo trazidas ante o Infante, ele as cheirava e tanto se gloriava de as ver, como se fora algum fructo e mostra da Terra de Promissão, dando muitos louvores a Deus; e pedia a Nossa Senhora, cujo nome aquelas ervas tinham, que encaminhasse as cousas daquele descobrimento pera louvor e glória de Deus e

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acrescentamento de sua santa Fé. E não somente o Infante cuja era esta impresa, mas ainda el-Rei Dom Duarte, seu irmão, que então reinava, ficou mui contente deste feito, tanto pela honra do Infante, por saber as murmurações que andavam no reino desta sua impresa, como por o proveito que ele e os seus naturais nisso podiam ter. O qual logo pubricamente quis mostrar este contentamento, porque estando em a vila de Sintra onde lhe foi dada 23 pelo Infante esta nova, ele fez doação de todo o espiritual das Ilhas da Madeira, Porto Santo e Deserta ao Mestrado de Cristo, de que ele, Infante, era governador, e disso lhe passou 26 carta a vinte seis de Outubro da era de mil quatrocentos trinta e três anos, pedindo nela ao papa que o confirmasse. E no mesmo tempo lhe fez mercê a ele, Infante, das ditas ilhas em dias de sua vida, com toda jurdição de cível e crime, segundo em a doação se contém.

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23 8v 26 Capítulo V. Como o Infante mandou Afonso Gonçalves Baldaia, seu copeiro, por capitão de um barinel, e Gil Eanes, o que passou o Cabo Bojador, em sua barca, e como tornaram segunda vez no ano seguinte, e da peleja que houveram com uns alarves dous moços que saíram em terra. O ano seguinte de trinta e quatro, como o Infante estava informado per Gil Eanes da maneira da terra e da navegação ser menos perigosa do que se dizia, mandou armar um barinel, que foi o maior navio que té então timha enviado, por já estar fora da suspeita que se tinha dos baixos e parcel que diziam haver além do cabo, a capitania do qual deu a Afonso Gonçalves Baldaia, seu copeiro; e em sua companhia foi Gil Eanes em sua barca, os quais com tempo, além do cabo já descoberto, correram obra de trinta léguas. E, saídos em terra, acharam rasto de homens e camelos, como que passavam em cáfila de υa parte a outra, e, sem mais outra cousa, depois de notarem a maneira e desposição da terra, ou porque assi lhe fora mandado, 9 ou per qualquer outra necessidade que a isso os obrigou, se tornaram pera o reino, e ficou nome àquele lugar onde chegaram - Angra dos Ruivos, pola grande pescaria que ali fizeram deles. O Infante, sabendo per eles o que acharam, no seguinte ano os tornou enviar, encomendando-lhe que trabalhassem por passar mais avante, té chegar a terra povoada onde podesse ver língua pera se informar dela. Nesta segunda viagem, como já navegavam com menos temor, em breve tempo passaram além do que tinham descoberto doze léguas, e onde lhe a terra pareceu chã e descoberta, lançaram fora dous cavalos que o Infante mandara levar pera aquele mister, em os quais Afonso Gonçalves mandou cavalgar dous moços. E por os não cansarem pera qualquer corrida, se lhe necessário fosse, não consentiu que levassem armas defensivas, e também, por lhe não dar nelas confiança pera poderem pelejar, somente levaram lanças e espadas, e 27 recado que não fizessem mais que descobrir a terra, e isto sem se apartar um do outro, nem menos se apeassem; e porém vendo algυa pessoa que eles sem seu perigo podesse prender, que o fizessem. Seria cada um destes mancebos de quinze 24 até dezassete anos, e bem mostraram no acometimento deste feito quem depois haviam de ser. Porque com tanto ânimo partiram ao que lhe Afonso Gonçalves mandava, como se toram passear a um campo mui sabido e seguro. E quis Deus que a este seu esforço não desfaleceu bom acontecimento; porque, sendo já passada a maior parte do dia da menhã que partiram, acharam juntos dezanove homens, cada um com seu dardo na mão à maneira de azagaias. E como deram de súbito sobre eles, sem ter lugar pera não serem vistos e se tornar ao navio dar esta nova, peró que lhe era defeso cometerem tal cousa, houveram que caíam mais em culpa de suas honras, se lhe fugissem, que em desobediência de seu capitão, se os cometessem. Com o qual propósito remeteram a eles, cuidando que os podesse alcançar, mas os mouros teveram milhor cuidado de si; porque, tanto que os viram, espantados de tamanha novidade, primeiro que se eles determinassem, se acolheram a υa furna que estava debaixo de uns penedos. Os mancebos, vendo que se não podiam ajudar deles à sua vontade, depois que pelejaram um bom pedaço, - feriram alguns, e um deles também ficou ferido em um pé de υa azagaia de arremesso, deixaram-nos de todo, e vieram em busca do navio que, por serem mui apartados já dele, não

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poderam tomar senão ao outro dia pela menhã. Onde foram recebidos com grande festa e honra, de que eles eram merecedores, ca não foi este seu caso tam pequeno que não possa ser estimado por um honrado feito. Porque quem consirar a idade deles e a estranheza de terra. e quanta fábula a gente de Espanha dela dizia, e os temores que tinham concebido do que nela havia, haverá que foi obra de generoso e esforçado ânimo, entrar per ela tam longe, quanto mais cometer dezanove homens de figura tam disforme, que somente esperar a vista deles era assaz ousado. Mas isto é próprio da virtude e nobreza do sangue: em qualquer idade logo se mostra, ainda que seja nos maiores perigos da vida. E por não ficarem sem o mérito que se deve àqueles que à custa do seu suor e sangue servem a Deus e a seu Rei; e mais, pois estes foram os primeiros que por estas duas causas o derramaram naquelas partes, é bem que se saiba que a um chamavam Heitor Homem, e a outro Diogo Lopes de Almeida, ambos homens fidalgos e especiais cavaleiros, criados na escola da nobreza e virtude daquele tempo, que foi a casa deste excelente príncipe Infante Dom Hanrique. Afonso Gonçalves, informado per eles do lugar onde ficavam os 28 mouros, determinou com gente de os ir buscar, peró todo seu trabalho se converteu em trazer o despojo que aquela gente bárbara com temor deixou na furna da contenda, o qual despojo de pobreza foi mais por sinal da vitória daqueles novéis cavaleiros que por sua valia. Com o qual feito, além do nome que eles ganharam pera si, também o deram com a sua saída àquele lugar que 25 ora chama a Angra dos Cavalos, que com mais razão se podia chamar dos primeiros cavaleiros naquela parte da Líbia Deserta. Partido dali Afonso Gonçalves, obra de doze léguas, foi dar em um rio, à entrada do qual, em υa coroa que se fazia no meio, viram jazer tanta multidão de lobos marinhos, que foram assomados em número de cinco mil, dos quais mataram boa soma, de que trouxeram as peles, por naquele tempo ser cousa mui estimada. Mas como nenhυa destas cousas contentava a Afonso Gonçalves, pois não levava ao Infante um daqueles mouros, com desejo de achar outros passou mais adiante, té υa ponta a que ora chamam a Pedra de Galé, nome que lhe ele 9v então pôs, por a semelhança que mostra a quem a vê de longe; no qual lugar achou υas redes de pescar que parescia ser feito o fiado delas do entrecasco dalgum pau, como ora vemos o fiado da palma que se faz em Guiné. E porque aqueles eram sinais da terra povoada, fez pera aquela costa algυas saídas, sem achar povoação nem poder haver o que desejava levar ao Infante; e sem mais outro feito, por ter os mantimentos gastados, se tornou pera o reino.

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25 9v 28 Capítulo VI. Como Antão Gonçalves foi fazer matança de lobos marinhos, e das saídas que fez em terra por si e com Nuno Tristão que depois se ajuntou com ele, em que tomaram doze almas; e do mais que passou Nuno Tristão. Até o ano de trinta e nove não achamos cousa notável que se fizesse neste descobrimento, porque em este meio tempo faleceu el-Rei Dom Duarte, irmão do Infante Dom Hanrique, e leixou o Príncipe Dom Afonso, seu filho, que reinou em idade de seis anos; e por causa das suas tutorias houve tantas dissensões e diferenças no reino, que cessaram todalas cousas deste descobrimento, té o ano de quorenta, em que o 29 Infante mandou duas caravelas, as quais, per tempos contrairos e acontecimentos não muito prósperos, se tornaram ao reino sem cousa dina deste lugar. E no seguinte ano, por as cousas do reino andarem já mais em algum assossego e o Infante livre pera poder entender nesta sua impresa, mandou armar um navio pequeno em que foi por capitão Antão Gonçalves, seu guarda-roupa, que ainda era homem mancebo, afim que, quando não podesse haver algυa língua da terra, carregasse o navio de coirama das peles dos lobos marinhos, no lugar que dissemos que Afonso Gonçalves fez a matança deles. Peró Antão Gonçalves, como era homem a quem a honra mais obrigava que a cobiça da coirama e azeite de lobos, dado que em breve tempo, tanto que chegou, fez sua matança com que se podera tornar bem carregado, chamou a um Afonso Goteres, moço da câmara do Infante, que ia por escrivão do navio, e assi toda a mais companha dele, que 26 seriam per todos vinte υa pessoa, e disse-lhes: - Amigos, nós temos feito parte daquilo a que somos enviados, que era carregar este navio. E dado que os servos muito mereçam em acabar os mandados de quem os envia, maior louvor será se fizermos o que o Infante mais deseja, que é levar-lhe algυa língua desta terra. Porque a sua tenção neste descobrimento não é afim da mercadoria que levamos, mas buscar gente desta terra, tam remota da Igreja, e a trazer ao baptismo, e, depois, ter com eles comunicação e comércio pera honra e proveito do reino. - E pois isto a todos é mui notório, justa cousa me parece trabalharmos por levar algum dos moradores desta terra; porque, a meu ver, se Afonso Gonçalves per esta comarca, per onde este rio vem, achou gente, buscando nós bem, per força devemos achar algυa povoação. - Acerca do qual caso me parece, que seria bem sairmos esta noite dez ou doze homens em terra, daqueles que mais dispostos se achassem pera isso. E espero em Nosso Senhor que com vossa ajuda nos iremos desta terra mais honrados que quantos té ora vieram a ela. Afonso Goteres e toda a companha do navio louvou esta determinação de Antão Gonçalves, mas não aprovaram sair ele em terra, por ser capitão a quem convinha ficar em o navio pera o que sucedesse; e depois que nisto altercaram e debateram um bom pedaço, por as muitas razões que Antão Gonçalves pera isso deu, foi um dos nove que aquela noite entraram pela terra. E sendo já bem três léguas alongados do navio, viram atravessar um homem nu com dous dardos na mão, tangendo um camelo que levava ante si. o qual, tanto que ouviu o estrupido dos nossos e os viu correr contra si, assi ficou cortado de medo sem se bulir, que ante de tomar outro ânimo, era já com ele Afonso Goteres, por ser homem mancebo, ligeiro e bem despachado nestes negócios. Feita esta presa, que foi pera todos de grande prazer, começaram caminhar contra o navio,

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porque entre eles não havia quem o entendesse pera 30 tomarem informação da terra e irem mais avante. E tendo andado um bom pedaço, acharam a gente cujo rasto eles traziam, que seriam até quorenta pessoas, da companhia dos quais era este cativo, e assi υa moura que também tomaram à vista deles. Os quais, tanto que viram os nossos, saíram-se do caminho 10 pera um teso, e ali se apinhoaram todos, a olhar tamanha novidade. Os mais dos nossos, desejosos de se revolver com eles, foram em conselho que os cometessem no outeiro onde estavam, mas Antão Gonçalves, peró que homem mancebo fosse, cobiçoso de ganhar honra - e a isso era ali vindo - obedeceu mais ao ofício de capitão que aos desejos de sua idade. E disse que não lhe parecia bem cometê-los por ser já o sol posto e mui grã pedaço do navio, e tam cansados e sequiosos de grande calma, que somente o caminho que tinham por andar bastava por trabalho; que assaz os cometiam, pois na face deles lhe tomaram aquela mulher que podia ser dalgum; que seu voto 27 era fazer seu caminho pera o navio; e que, quando os mouros os viessem cometer, então aí lhe ficava fazer cada um seu ofício de cavaleiro; e o mais lhe parecia leviandade e não cousa de homens prudentes e obrigados a dar conta a quem os enviava, cujo regimento tinham em contrário do que lhes parecia. Nesta detença que Antão Gonçalves fez de palavras, os mouros, peró que bárbaros eram per natureza, o temor os fez prudentes pera entenderem que o apinhoar dos nossos e detença que fizeram sem se mover, fora consulta acerca de os cometerem ou não; e como gente que tinha mais conta com a vida que com a honra, viraram-lhe as costas, escoando-se contra a outra parte do teso, pera se encobrirem do nossos. Aos quais Antão Gonçalves não quis seguir, porque houve que servia mais o Infante na presa dos cativos que levava, que aventurar a vida dalguns da companhia, por levar mais um cativo. Tornado ao navio e estando já pera se partir ao seguinte dia, chegou outro navio do reino, em que vinha por capitão um cavaleiro da casa do Infante, chamado Nuno Tristão, que ele criara na sua câmara, de moço pequeno. E era assi ardido e tanto de sua pessoa, que o mandava o Infante que lhe passasse a ponta da Pedra da Galé e trabalhasse por lhe haver algυa língua da terra. O qual, sabendo o feito de Antão Gonçalves e movido de υa virtuosa enveja, trabalhou tanto com ele - que essa noite fossem ambos em busca dos mouros que acharam - que concedeu Antão Gonçalves em seu requerimento, partindo logo, tanto que anoiteceu; em cuja companhia iam Diogo de Valadares, que depois foi alcaide-mor da Vila Franca, e Gonçalo de Sintra, cujo esforço se verá nesta conquista. E foi tal sua boa ventura, que foram dar com os mouros onde jaziam 31 recolhidos - ora fossem os que Antão Gonçalves achou ou quaisquer outros -; chegando aos quais, começaram com grande grita dizer: - Portugal! Portugal! Santiago! Quando aquela bárbara gente ouviu vozes não costumadas, como cousa tam nova e espantosa a eles, bem poderam tomar estas vozes por sonho, se juntamente com elas, naquela escuridade da noite, não sentiram que os nossos lhe punham as mãos asperamente pera os prender. E porém algum deles, dado que o medo lhe quebrasse a ousadia, a dor do mal que recebiam lhe fazia acudir, defendendo-se com sua coragem, a qual lhe ministrava as armas de pau, pedra, dentes e unhas, porque tudo ali servia. E como o negócio era feito àquelas horas, nisto eram conhecidos uns dos outros - andarem eles nus e os nossos vestidos. E que a batalha não fosse crua, todavia foi perigosa por ser em tal tempo; e se os nossos não falaram e bradaram, em sinal de quem eram, sempre uns dos outros receberam dano.

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E prouve a Deus que todo perigo caiu sobre os mouros, porque ficaram logo ali estirados três e cativaram dez. E dos mortos um deles matou Nuno Tristão com grande perigo de sua pessoa, vindo a braços; porque, como o mouro era 28 nervudo e forçoso, e tinha vantage na luta por andar nu, se não foram as armas, sempre Nuno Tristão padecera mal. E outro que também se houve esforçadamente neste negócio, foi um Gomes Vinagre, moço da câmara do Infante, em que mostrou quem depois havia de ser. Com a qual vitória se tornaram pera os navios já algum tanto de dia. E ante que entrassem em os navios, pediram todos a Antão Gonçalves que, em memória daquele feito, que se fizera com tanta honra sua, lhe aprouvesse dar nome àquele lugar com se armar ali cavaleiro. Antão Gonçalves, peró que não quisera aceitar a tal honra de cavalaria, negando ser merecedor dela, por comprazer a todos, foi armado cavaleiro per mão de Nuno Tristão, com que o lugar, segundo lhe todos diziam, ficou com o nome que hoje tem, que é Porto do Cavaleiro. Recolhidos os capitães a seus navios, acertou que entre os cativos vinha um da casta dos alarves, que se entendeu com o mouro língua que Nuno Tristão levava, e pela prática que com ele teveram, pareceu bem aos capitães lançarem a moura em terra e com ela o mouro língua, para por meio deles virem alguns mouros resgatar daqueles cativos. Como de feito aconteceu, porque 10v di a dous dias que lançaram estes fora, acudiram ao porto obra de cento e cinquenta homens, antre de cavalo e camelos, os quais na primeira vista quiseram usar de υa sagacidade - mandando 32 três ou quatro diante que provocassem os nossos a sair em terra, e os mais ficavam detrás de uns médãos, em cilada. Peró, vendo que os nossos não saíram do batel tam prestes como eles cuidavam, parecendo-lhe serem entendidos, começaram a se descobrir, trazendo consigo preso o mouro língua; o qual avisou os capitães que em nenhυa maneira saíssem fora, porque aquela gente vinha mui indinada contra eles, como logo começaram mostrar, tirando às pedradas aos batéis, depois que foram desenganados que os nossos não queriam sair em terra. Os capitães, dissimulando com a fúria deles, por comprir com o regimento do Infante, tornaram-se aos navios sem lhe fazer dano; e havido conselho do que fariam, assentaram que Antão Gonçalves se tornasse pera o reino com os cativos que lhe coubessem à sua parte, e Nuno Tristão, porque o Infante lhe mandava ir mais avante, deu querena à caravela, e, depois de espalmada, começou fazer seu caminho, seguindo a costa, té chegar a um cabo que, per a semelhança dele, lhe pôs nome Branco. E posto que ali achou rasto de homens com redes de pescar, e per muitas vezes fizesse entradas na terra, sem poder haver à mão algυa língua dela, porque a costa começava ali tomar outro rumo à maneira de enseada pera onde as águas corriam, temendo que, na volta do cabo, por razão desta corrente, gastasse todo o mantimento por já estar desfalecido dele, sem ir mais avante nem fazer cousa algυa dina deste lugar, se tornou pera o reino. Onde já achou Antão Gonçalves, a quem o Infante, assi per outros serviços, como polos deste descobrimento, deu a 29 alcaidaria-mor de Tomar e υa comenda, e o fez escrivão de sua puridade.

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29 10v 32 Capítulo VII. Da suplicação que o Infante fez ao Papa e lhe concedeu, e a doação dos quintos que lhe o Infante Dom Pedro, seu irmão, regente deste reino, deu em nome de El-Rei, e do que Antão Gonçalves e Nuno Tristão passaram em a viagem que cada um fez. O Infante, como seu principal intento em descobrir estas terras era atraer as bárbaras nações ao jugo de Cristo, e des i a glória e louvor destes reinos, com acrescentamento do património real, sabendo per os cativos que Antão Gonçalves e Nuno Tristão trouxeram as cousas dos moradores daquelas partes, quis mandar esta nova ao Papa Martinho Quinto, que então presedia na Igreja, como primícias que a ele eram dividas, por serem obras feitas em louvor de Deus e acrescentamento da fé de Cristo, pedindo-lhe que, por quanto havia tantos anos que ele continuava este descobrimento, em que tinha feito grandes despesas de sua fazenda, e assi os naturais 33 deste reino que nele andavam, lhe aprouvesse conceder perpétua doação à Coroa destes reinos de toda a terra que se descobrisse per este nosso Mar Oceano, do Cabo Bojador té as Índias, inclusive; e pera aqueles que na tal conquista perecessem indulgência plenária pera suas almas, pois Deus o posera na cadeira de São Pedro, pera assi dos bens temporais que estavam em poder de injustos possuidores, como dos espirituais do tesouro da Igreja, podesse repartir per seus fiéis. Porque a gente português, assi nos feitos desta parte da Europa, como depois que entraram na de África em a tomada de Ceita, e des i no descobrimento e conquista da Etiópia, tinham merecido o jornal diurno, que se dá àqueles obreiros que bem trabalham nesta vinha militante do Senhor. Com o qual negócio, por ser de tanta importância, mandou um cavaleiro da Ordem de Cristo per nome Fernão Lopes de Azevedo, do conselho del-Rei e homem de grande prudência e autoridade, que depois foi Comendador-mor da dita Ordem. E nesta ida que fez, não somente foi concedida ao Infante esta sua petição, mas ainda bula pera Santa Maria de África, que ele fundara em Ceita, e assi outras muitas graças e privilégios que a Ordem tem, tanto estimou o Papa e o Colégio dos Cardiaes a nova deste descobrimento. Depois o Papa Eugénio Quarto e o Papa Nicolau Quinto, té o Papa Sixto, a suplicação del-Rei Dom Afonso e del-Rei Dom João seu filho, concederam a eles e a 11 seus sucessores, per suas bulas, doação perpétua de tudo o que descobrissem per este Mar Oceano, demarcando do Cabo Bojador té a oriental plaga da Índia, inclusive, com todolos reinos, senhorios, terras, 30 conquistas, portos, ilhas, tratos, resgates, pescarias, sob inumeráveis e graves excomunhões defesas e interditos que outros alguns reis, príncipes, senhorios, comunidades, não entrem nem possam entrar em as tais partes e mares adjacentes, segundo se mais largamente contém em suas bulas. E onde este Papa Sixto IV mais corroborou a doação geral deste descobrimento, foi na fim das pazes que houve entre el-Rei Dom Fernando de Castela e el-Rei Dom Afonso de Portugal, em que foram apontadas por parte deste reino o descobrimento que ora temos, começando do Cabo de Não té a Índia, inclusive etc., como se contém na Crónica do mesmo rei Dom Afonso, e mais copiosamente na própria confirmação, rectificação e corroboração de pazes se pode ver, per a bula do dito Papa Sixto, dada ad perpetuam rei memoriam. Também em satisfação dos trabalhos e despesas que o Infante Dom Hanrique tinha feito neste descobrimento, o Infante Dom Pedro, seu irmão, que então era regente destes reinos por el-Rei Dom Afonso, seu sobrinho, em seu nome lhe fez doação do quinto que pertencia a el-Rei desta conquista, e mais lhe passou carta que nenhυa pessoa pudesse lá ir sem sua especial licença.

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Com as quais graças e doações que seguraram ao Infante no prémio de seus trabalhos, e também vendo que já na opinião da gente do reino estava 34 julgada esta sua imprensa por cousa proveitosa e de maior louvor do que se dava a ele, Infante, no princípio dela, começou dobrar os navios e despesas. E porque Antão Gonçalves lhe disse que o mouro principal que tomara em companhia dos outros, dizia que, se o tornassem a sua terra, daria por si seis ou sete escravos de Guiné, e também que na companhia daqueles cativos estavam dous moços filhos de dous homens principais daquela terra, que dariam pola mesma maneira outro tal resgate, ordenou o Infante de o despachar logo em um navio, fazendo fundamento que, quando Antão Gonçalves não podesse haver tantos negros a troco destes três mouros, já de quantos quer que fossem ganhava almas, porque se converteriam à Fé, o que ele não podia acabar com os mouros, e também por serem do sertão daquelas terras, dos ardores das quais a gente tanto fabulava, podia per eles ter verdadeira informação. E aconteceu que, ao tempo que se fazia prestes este navio em que havia de ir Antão Gonçalves, estava em casa do Infante um gentil homem da casa do Emperador Frederico III, a que chamavam Baltasar; o qual, com desejo de ganhar honra, viera dirigido pelo mesmo Emperador ao Infante, pera o mandar a Ceita fazer cavaleiro, como de feito se fez pelos méritos de sua pessoa. E porque este Baltasar era homem curioso e que desejava ver novas terras, e neste tempo per toda a Europa se falava neste descobrimento de Guiné como na mais nova cousa que se podia dizer, e os homens que o seguiam eram estimados em preço de cavaleiros e de grande ânimo, pediu ao Infante que houvesse por bem ir ele em companhia de Antão Gonçalves, 31 porque desejava de se ver em υa grande tormenta de mar, pera depois poder contar em sua terra; ca, segundo lhe diziam os mareantes desta carreira, as tormentas e mares daquelas partes eram mui diferentes destes nossos. O qual desejo, ele, Baltasar, compriu, porque, partido Antão Gonçalves, teve no caminho um temporal tam grande, que dizia Baltasar que já vira o que desejava, mas não sabia se o poderia contar, tão incerta tinha a esperança de sua vida, de maneira que arribou Antão Gonçalves a este reino. E depois que se refez dos mantimentos e cousas que alijou, feito bom tempo, tornou a sua viagem, e Baltasar com ele, dizendo que, pois já tinha visto as tormentas do mar, também queria levar nova da terra. Chegado Antão Gonçalves onde os mouros haviam de vir fazer o resgate, porque assi lhe era mandado pelo Infante, lançou em terra o próprio mouro que o ali fez vir, cuidando que, pelo bom tratamento que lhe o Infante mandara fazer, seria fiel em suas promessas; mas ele, como se viu livre, lembrou-se mal da fé que leixava empenhada. Somente parece que deu nova nas povoações da chegada do navio, e como trazia os moços pera resgatar; porque, sendo já passados oito dias, vieram mais de cem pessoas ao resgate deles, por serem filhos dos mais nobres daqueles alarves. A troco dos quais deram 35 dez negros de terras diferentes, e υa boa quantidade de ouro em pó, que foi o primeiro que se nestas partes resgatou, donde ficou a este lugar por nome Rio do Ouro, sendo somente um esteiro de água salgada que entra pela terra obra de seis léguas. Houve-se mais em este resgate υa adarga 11v de coiro de anta cru, e muitos ovos de ema, os quais, tornando Antão Gonçalves a este reino sem fazer mais outra cousa, foram apresentados à mesa do Infante tam frescos, que os estimou ele por a milhor iguaria do mundo. E pelas novas que lhe Antão Gonçalves deu das cousas da terra, segundo o tinha sabido dos alarves, e principalmente, pela quantidade de ouro que houve, que era sinal de muito que ao diante se podia descobrir, despachou logo a Nuno Tristão que, como atrás fica, foi o que chegou ao Cabo Branco.

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O qual Nuno Tristão desta viagem passou avante té υa ilha, cujo nome per os da terra se chama Adeget, que é υa das a que nós ora chamamos de Arguim. Sendo à vista da qual, viu que da terra firme para ela, por lhe ser mui vezinha, atravessavam obra de vinte cinco almadias, e sobre cada υa delas iam três e quatro homens nus escanchados, de maneira que as pernas lhe ficavam em lugar de remos, que pera os nossos foi cousa de admiração. E ante que houvessem conhecimento do que era, pareceu-lhe serem aves marinhas; peró, depois que viram o que era, como levavam batel fora, saltaram nele sete homens, e despacharam-se tam bem, que houveram a mão catorze, com que encheram o batel; e os outros, posto que escaparam no mar, foram tomados no ilhéu, porque o batel, leixando estes no navio, foi buscar os outro que se acolheram a ele. Feita esta presa, com que 32 o ilhéu ficou despejado, passaram-se a outra ilha junto desta, a que poseram nome das Garças, por as muitas que ali acharam, e assi outras aves que se parecem com elas, as quais se ajuntavam ali por ser tempo da sua criação, e, como não eram traquejadas de gente, às mãos tomaram tanta quantidade delas, que ficou por refresco ao navio. E nos dias que Nuno Tristão ali esteve, fez algυas entradas na terra firme, mas não pôde haver mais presa que aquela primeira do mar. E por a terra já andar mui alvoraçada, se tornou pera o reino o ano de quatro centos e quorenta e três.

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32 11v 36 Capítulo VIII. Dos louvores que o povo do reino dava ao Infante por este descobrimento, e como por sua licença os moradores de Lagos armaram seis caravelas, e do que passaram nesta ida. Chegado Nuno Tristão com tam honrada presa, sem fazer a demora que os outros navios faziam, e passar vinte e tantas léguas além donde os outros chegaram e achar ilhas e todalas cousas mui diferentes da opinião que a gente tinha, quando o Infante começou este descobrimento, trocaram as murmurações e juízos que lançaram sobre este negócio. E já não diziam por ele que mandara descobrir terras ermas e desertas com perdição dos naturais do reino, mas louvavam seus feitos, dizendo que ele fora o primeiro que abrira novos caminhos aos portugueses de ganhar muita honra e tesouros que nunca foram descobertos depois da criação do Mundo, e que por isto merecia terem-lhe as gentes mais amor que a nenhum dos príncipes passados, pois com tanta de sua despesa, sem opressão dos naturais, lhe buscara novo modo de vida. Porque das guerras passadas entre este reino e o de Castela, e assi idas de Ceita, Tânger e outras despesas e lançamentos de fintas, estava a gente tam necessitada, que com grande trabalho se podia manter. Acrescentava também neste louvor verem que aqueles que seguiam esta carreira se engrossavam em substância com os retornos e escravos que traziam daquelas partes, de maneira que o geral do reino estava movido com nova cobiça pera seguir este caminho de Guiné. O Infante a este tempo estava no Algarve em a vila de Terçanabal, que novamente fundara, como já dissemos, e esta vivenda assentou ali depois da vinda de Tânger, o qual caso foi azo de alguns dias se apartar da Corte e negócios dela. E porque todolos navios que vinham de Guiné por esta causa descarregavam em Lagos, os primeiros que moveram partido ao Infante pera ir lá a sua própria custa foram os moradores desta vila, com partido de pagarem um tanto do que trouxessem a ele, Infante, segundo o tinha per doação del-Rei. O principal dos quais que moveu esta ida, foi um escudeiro que se chamava Lançarote, que fora moço da câmara do mesmo Infante, ao qual ele dera o almoxerifado de Lagos, 33 e ali estava casado; e os outros eram Gil Eanes, 12 que foi o primeiro que passou o Cabo Bojador, e um Estêvão Afonso, que depois morreu em as Canárias na conquista delas, e Rodrigo Álvares e João Dias, todos homens honrados, com que fizeram número de seis caravelas, de que ele, Lançarote, per ordenança do Infante foi por Capitão-mor. 37 A frota partida de Lagos o ano de quatrocentos e quorenta e quatro, chegou à Ilha das Garças, béspora de Corpo de Deus, onde os capitães fizeram grã matança, por ser no tempo da criação delas, e assi teveram conselho sobre o modo de darem primeiro em a Ilha Nar, porque era mui perto dali, ca, segundo os mouros que Nuno Tristão levou informaram o Infante, haveria nela mais de duzentas almas. E foi assentado per o capitão Lançarote, que por quanto podiam ser vistos destes mouros, indo todolos navios à vista da ilha, Martim Vicente e Gil Vasques que ali estavam, por serem homens que já foram junto delas, deviam ir em os batéis somente com gente que os remasse, a espiar os mouros, e, depois que lá fossem, enviassem um deles com recado, e os outros se metessem entre a ilha e a terra firme, porque, querendo os mouros passar a ela, achassem o caminho tomado té eles chegarem com os navios e darem juntamente neles. Aprovado este conselho, partiram Martim Vicente e Gil Vasques, aos quais sucedeu o

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negócio mui diferente do que cuidaram, porque não poderam chegar à ilha senão a tempo que o sol rompia. E parecendo-lhe que podiam ser vistos de υa povoação que estava junto da praia e que o tempo e disposição do lugar dava azo a fazerem um honrado feito, o qual podiam perder tornando com recado aos navios, deram de súbito sobre a povoação, onde tomaram cento e cinquenta e cinco almas, e outras pereceram em se defender. E como eles eram somente trinta homens, de que os mais vinham pera remar, e os cativos eram tantos que os não podiam todos recolher nos batéis, ficaram deles em terra com alguns, e os outros levaram aos navios, onde foram recebidos com muita festa, posto que antre todos havia υa tristeza por se não acharem em aquele feito. O capitão Lançarote, com desejo de empregar sua pessoa em as tais impresas, mandou logo a grã pressa concertar os batéis, porque soube daqueles cativos que na outra ilha que estava perto, a que chamavam Tider, podia fazer outra tal presa; mas nesta ida não fez cousa algυa, por achar a ilha despejada. E porque um daqueles mouros, segundo seu parecer, o fez lá ir maliciosamente, o meteu a tormento, té que lhe prometeu de o levar a outra ilha onde emendasse o erro que fizera; mas quando lá chegaram houve tanta detença por dúvidas se era engano ou verdade, não se fiando do mouro, que teveram os da ilha tempo de se passarem a terra firme, e contudo ainda prearam alguns. E em dous dias que per ali andaram de ilha em ilha, e 34 assi em alguns saltos que fizeram na terra firme, tomaram quorenta e cinco almas, com que se tornaram aos navios, que ficavam atrás cinco léguas. Parece que a ventura de Lançarote e dos outros esteve por aquela vez no mar, porque, em muitas entradas que depois fizeram na terra firme, andavam 38 já os mouros tam traquejados, que somente houveram em υa aldea υa moça que ficou dormindo, e no Cabo Branco, fazendo sua volta pera o reino, tomaram quinze pescadores. E porque os mantimentos com os muitos cativos lhe começaram desfalecer, tornaram-se pera o reino, onde o capitão Lançarote foi recebido com tanta honra do Infante, que per sua pessoa o armou cavaleiro com acrescentamento de mais nobreza, e assi gratificou os outros que o bem serviam naquela jornada. Porque υa das cousas que o Infante naquele tempo trazia ante os olhos e em que o mais podiam complazer e servir, era em aquele descobrimento, por ser cousa que ele plantara e criara com tanta indústria e despesa.

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34 12 38 Capítulo IX. Como Gonçalo de Sintra com outros foi morto na angra que se ora chama do seu nome. E da ida que Antão Gonçalves fez ao Rio do Ouro, e depois Nuno Tristão, onde tomou υa aldea de mouros.E como Dinis Fernandes passou a terra dos negros e descobriu o Cabo a que agora chamamos Verde. 12v Este ano de quatrocentos quorenta e cinco, mandou o Infante armar um navio, a capitania do qual deu a um Gonçalo de Sintra, escudeiro de sua casa, que, segundo diziam, já o servira de moço de esporas, mas, por ser homem pera muito e cavaleiro de sua pessoa, sempre o trouxe em cargos honrados. Este Gonçalo de Sintra, com desejo de se aventajar dos outros que lá eram idos, partido do reino, per conselho de um mouro azenegue que levava consigo pera lhe servir de língua, se foi à ilha de Arguim, que está avante do Cabo Branco obra de doze léguas, prometendo-lhe o mouro grandes presas em terra. Mas isto sucedeu bem ao contrairo do que ele esperava, porque, ante que chegassem ao Cabo Branco, em υa angra a que ele deu nome (como veremos), fugiu-lhe esta língua, e assi lhe fugiu um mouro velho, que se veo lançar com ele, dizendo que pelos navios passados foram ali cativos certos mouros seus parentes, e por o amor que lhe tinha ante com eles queria morrer em cativeiro, que sem eles na liberdade de sua própria terra. O que era grande falsidade, ca sua tenção era somente vir ver as cousas do navio a que era enviado. E com estas palavras segurou tanto Gonçalo de Sintra, que se tornou pera terra. E vendo ele que estes descuidos o culpavam, desejoso de os emendar com algum honrado feito, meteu-se aquela noite em um batel com doze homens pera passar a terra 35 firme e dar em algυa aldea. Mas quis sua má 39 fortuna que se foi meter em um esteiro que, quando a maré vazou, ficou em seco, e vinda a menhã, em que o batel foi visto pelos mouros, acudiram obra de duzentos, onde Gonçalo de Sintra, por se defender, naquela vasa pereceu com estes sete homens: Lopo Caldeira, Lopo de Alvelos, ambos moços da câmara do Infante, Jorge, moço de esporas, e Álvaro Gonçalves, piloto, com três marinheiros; e os mais que iam no batel, por saberem nadar, se salvaram. E como na caravela não havia pessoa que governasse a outra gente, e todos eram homens do mar, tornaram-se pera o reino com duas mouras que tinham tomado naquela costa, que custaram a vida destes homens, os primeiros que naquela terra morreram a ferro, e deram nome ao lugar de sua sepultura, ca se chama ora a Angra de Gonçalo de Sintra, que será além do Rio do Ouro catorze léguas. O Infante, posto que isto muito sentiu, por ser a primeira perda de homens que naquelas partes houve, não deixou logo no seguinte ano de mandar três caravelas, cujos capitães eram Antão Gonçalves, de que já falamos, e Diogo Afonso e Gomes Pires, patrão del-Rei. O qual mandava o Infante Dom Pedro, que então era regente destes reinos, levando todos por regimento que entrassem no Rio do Ouro e trabalhassem por converter à Fé de Cristo aquela bárbara gente, e, quando não recebessem o baptismo, assentassem com eles paz e trato, das quais cousas não aceitaram algυa. Vendo os capitães que seu trabalho neste negócio era perdido, ou porque lhe assi foi mandado, ou por qualquer outra causa, se tornaram ao reino, somente com um negro que ali houveram per resgate e um mouro velho que por sua própria vontade quis vir ver o Infante, o qual depois o mandou tornar a sua terra. E assi como este mouro desejou vir ao reino por ver as cousas dele, o mesmo desejo teve um escudeiro a que chamavam João Fernandes, pera particularmente ver

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as cousas daquele sertão que habitavam os azenegues e delas dar razão ao Infante, confiado na língua deles que sabia, o qual depois tornou ao reino, como veremos. E neste mesmo tempo fez Nuno Tristão outra viagem, e em υa aldea que entrou, além deste Rio do Ouro, tomou vinte almas, com que em breve tempo se tornou ao reino. Também neste ano Dinis Fernandes, morador em Lisboa, escudeiro del-Rei Dom João, movido per os favores e mercês que lhe o Infante fez, por ser homem abastado e de honrados feitos, armou um navio pera ir a este descobrimento, propondo de passar o termo aonde os outros capitães tinham chegado, como de feito fez. Porque, passado o rio que ora chamam Sanagá, o qual divide a terra dos mouros azenegues dos primeiros negros da Guiné, chamados jalofos, houve vista de υas almadias em que andavam a pescar uns negros, das quais, com o batel que levava per popa, 40 alcançou υa com quatro deles, que foram os primeiros que a este reino 36 vieram. E posto que Dinis Fernandes achasse ali muitos sinais de povoação, como seu propósito mais era descobrir terra por servir o Infante que trazer cativos pera seu próprio proveito, não se quis ali deter em saltos e tomadia de escravos, mas passou avante, té chegar a um notável cabo que a 13 terra lança contra o Ponente, ao qual ele chamou Cabo Verde, por causa da mostra e parecer com que então se mostrou. O qual cabo e nome é ao presente dos mais notáveis e celebrados que temos neste grande Oceano Ocidental, e de que em a nossa Geografia copiosamente tratamos. E como este grande cabo já fazia outros temporais na volta dele, os quais empediram a Dinis Fernandes não proseguir mais adiante, como ele desejava, contentou-se, por então, de sair em υa ilheta que está pegada nele, onde fizeram grã matança em muitas cabras que ali acharam, que lhe foi muito bom refresco. E sem mais outra cousa se tornou ao reino onde foi recebido pelo Infante com muita honra e mercê que lhe fez. Porque a novidade da terra que descobriu e a gente que trouxe, não resgatada das mãos dos mouros, como eram os outros negros vindos ao reino, mas tomados em suas próprias terras, assi contentaram ao Infante, que sempre lhe parecia pouco o que fazia àqueles que lhe vinham com estas mostras e sinais de outra maior esperança que ele tinha.

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36 13 40 Capítulo X. Como Antão Gonçalves, por mandado do Infante, tornou a buscar João Fernandes, que ficou por sua vontade entre os mouros; e do que passou nesta viagem, e assi os navios que com ele foram. A este tempo eram já passados sete meses que Antão Gonçalves viera do Rio do Ouro, onde leixara João Fernandes, que (como dissemos) per sua própria vontade quis ficar entre os mouros, pera saber as cousas do sertão. E, parecendo ao Infante que já teria sabido muitas, porque o espírito o não deixava assossegar nestas que desejava saber daquelas partes, tornou a mandar o mesmo Antão Gonçalves em busca dele, e em sua companhia foram Garcia Mendes e Diogo Afonso, cada um em sua caravela. Dos quais, com um temporal que teveram, o primeiro que chegou ao Cabo Branco, que foi Diogo Afonso, por dar sinal aos companheiros, mandou 41 arvorar υa grande cruz de pau, que depois durou naquele lugar muitos anos, e passou a diante aos ilhéus de Arguim; porque naquele tempo pera fazer algum proveito todos os iam demandar, e tinha por certo que haviam eles de ir dar com ele, por ser aquela costa e os ilhéus a mais povoada parte de quantas té então tinham descoberto. E a causa de ser mais povoada, era por razão da pescaria de que aquela mísera gente de mouros azenegues se mantinha, porque em toda aquela 37 costa não havia lugar mais abrigado do ímpeto dos grandes mares que quebram nas suas praias, senão na paragem daquelas ilhas de Arguim, onde o pescado tinha algυa acolheita e lambugem da povoação dos mouros, posto que as ilhas em si não são mais que uns ilhéus escaldados dos ventos e rocio da água das ondas do mar. Os quais ilhéus, seis ou sete que eles são, cada um per si tinha o nome próprio per que nesta escritura os nomeamos, posto que ao presente todos se chamam per nome comum os ilhéus de Arguim, por causa de υa fortaleza que el-Rei Dom Afonso (como adiante veremos) mandou fundar em um deles, chamado Arguim. Diogo Afonso, enquanto os companheiros não vinham, posto que fez algυas entradas na terra firme, logo como dobrou o Cabo Branco, não preou cousa algυa, somente com a vinda deles na ilha de Arguim por os mouros terem já sentido os navios, houveram um moço e um velho; e per indústria dele, vendo que a aldea era dali levantada, em batéis se passaram à terra firme pera darem em outra aldea. E porque suspeitaram que o mouro se leixara ali ficar com tenção de os levar a esta aldea, onde os meteria em algυa cilada, deteveram-se tanto em determinar se iriam ou não, que quando já chegaram à aldea era alto dia e os mouros postos em salvo. Contudo houveram à mão uns vinte cinco quási tomados a cosso dos que se esconderam nas fraldas da aldea, porque andavam eles já tam escozidos das armas dos nossos, que a sua guerra (se o podiam fazer) era porem-se em fugida sem esperar dar e tomar; o qual modo de vitória foi aos nossos mui trabalhoso por irem já mui cansados do caminho. E quem se milhor houve nesta corrida e caso, foi um Lourenço Dias, morador em 13v Setúval, porque ele só tomou sete mouros por ser mui ligeiro. No fim do qual trabalho, por a vitória ser de maior prazer e festa, quando tornaram, acharam João Fernandes, que eles vinham buscar, o qual havia dias que acudia à praia per aquela costa que tinha dito, esperando se via algum navio que o tomasse e trouxesse daquele desterro voluntário em que se ele pôs.

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Em o qual desterro ele se houve tão sesudamente com aqueles bárbaros que tratou, que, quando se deles partiu, mostraram ter sentimento de sua partida, e vieram alguns com ele por o segurar dos pescadores, e também a 42 resgatar com os navios. Dos quais Antão Gonçalves houve nove negros e assi um pouco de ouro em pó; e por causa deste resgate que se então ali fez, tem aquele lugar por nome o Cabo do Resgate. E como a principal cousa que os ali trouxe era virem buscar João Fernandes, que já tinham achado, com o mais que dissemos, de que não estavam pouco contentes, por celebrar mais esta festa foi ali armado cavaleiro um Fernão Tavares, homem nobre e de idade. O qual se tinha visto em honrados feitos de armas, e em nenhυa parte quis aceitar esta honra senão 38 nesta terra novamente descoberta (tam gloriosa cousa era poer os pés nela), o qual acabou depois em religião, catolicamente. Antão Gonçalves, tornando-se pera este reino, veo pelo Cabo Branco, onde, em υa entrada que fez em υa aldea, tomou cinquenta e cinco almas, afora outras que pereceram em seu defendimento, com a qual presa rota batida se fez via do reino, onde chegou a salvamento. O Infante, posto que estas noventa almas e ouro que Antão Gonçalves trazia, era cousa de preço e muito pera estimar, tudo havia que era pouco em comparação de ver ante si João Fernandes são e salvo, e cheo de tanta novidade e estranheza da terra como ele contava. Dalgυas das quais cousas faremos relação por memória dos trabalhos de João Fernandes, porque em a nossa Geografia, por ser mais próprio lugar, tratamos desta terra e dos seus moradores mais copiosamente do que então alcançou João Fernandes. Segundo ele disse, os mouros em cuja companhia ficou eram pastores e parentes do mouro que veo pera o reino com Antão Gonçalves. Estes, depois que o levaram pela terra dentro, a primeira honra e gasalhado que lhe fizeram, foi esbulharem-no de quanto levava, assi de vestido e roupa como de um pouco de biscoito, trigo e legumes de seu comer, e em satisfação disto lhe deram um alquicé roto pera cobrir suas carnes, que foi diferente entrada da que o Infante fez ao seu parente, quando chegou ao reino; e tal que ainda se não quis vir com Antão Gonçalves, quando tornou buscar João Fernandes, porque em casa do Infante se achava livre e na sua pátria cativo destas misérias que ora diremos. Mas como João Fernandes ia oferecido a todolos trabalhos, enquanto lhe não tocavam na vida, peró que per força lhe apanharam tudo, não resestiu muito em o defender nem menos que ficava por isso escandalizado, e di em diante ficou naquela triste vida que todos tem. Porque o seu comer era υa pouca de semente que o campo per si dá, que se parece com painço de Espanha, e assi raízes e gomos dalgυas poucas de ervas, e não ainda em abastança, e toda maneira de imundícia de lagartixas e gafanhotos torrados àquela fervura do sol que sempre reina naquele solstício do Trópico de Cancro, que passa per cima daquela região. E os mais meses do ano seu certo comer (porque estoutro às vezes lhe falece com os temporais) é leite do gado que pastoram, que também lhe serve de beber, por a terra ser tam estérele que não tem mais águas que em certos lugares alguns poços meios solobros, 43 dos quais, quando se apartam por levar o gado a outro pasto, o leite lhe fica em lugar de água, das quais cousas ainda não são muito abastados. Carne, se algυa comem, é de gazelas e muitas veações e aves que matam; e no gado não tocam, senão por festa, no macho, e nunca no outro, por lhe dar leite que é toda sua vida. E estes são os de dentro do sertão, porque os da costa do mar 39 pescado é o seu geral comer, seco, sem sal, e o fresco muitas vezes por ser mais húmido e lhe fazer menos sede. Ainda que agora, com a nossa fortaleza de Arguim, são já mais mimosos, por viverem dela e do trigo que lhe mandamos; e em tudo todos, quando per caso lhe vai ter à mão um pouco, assi o comem à mão como nós comemos os confeitos.

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A terra em si é meio areal, a mais viçosa é como a mais pobre e rasa charneca que cá temos, onde há algυas palmeiras e árvores que querem parecer as figueiras que cá chamamos do inferno; e destas ainda tam poucas, segundo o grande espaço de terra, porque estão derramadas, 14 que parecem postas à mão pera dar sombra, o que elas não fazem por a pouca rama que tem (tam pobremente cria as árvores). O sítio desta terra todo é chão e tam mau de conhecer por não ser notável per montes, arvoredos e outras diferenças que a boa terra tem, que poucos em caminho de muito espaço de terra, podem atinar o lugar onde vão. Somente per estas cousas se guiam no caminhar, pelos ventos, per estrela e pelas aves que andam no ar, principalmente corvos, abutres e outras que seguem as imundícias do povoado, porque estas demonstram as povoações (ou, por milhor dizer, o lugar onde andam aquelas cabildas), por ser a terra tal que como pastam um dia υa folha, ao outro se mudam a outra, e assaz de boa é a terra que os detem oito dias em a pastar. Suas casas são tendilhões, e o trajo comum coiros do gado que guardam, e os mais honrados, alquicés; e os principais de todos, panos de milhor sorte, e assi nos cavalos como concertos deles tem a mesma vantage. O geral ofício de todos é pastorar o seu gado, porque nele está toda sua fazenda e substância da vida. A sua língua e escritura não é comum com os alarves da Berberia, e peró em tudo quási tem υa conveniência como nós temos com os castelhanos. Antre eles não há rei ou príncipe, tudo são cabildas de parentelas, e assi andam apartados; e o de maior poder é o maioral que os governa; e muitas vezes entre si estas cabildas υas com as outras tem guerra e contenda sobre o pastar desta triste terra e beber dos poços. E quando esta não é a causa, a natureza humana dá outras pera sempre contender com os vezinhos; e quando os não tem, toma assi mesma por contenda. Esta vida e polícia viu João Fernandes um pouco de tempo entre aqueles 44 pastores, e depois, andando em um aduar de um principal mouro daqueles azenegues, a que chamavam Huade Meimõ, homem que se tratava de sua pessoa mui bem, e que tratou a João Fernandes com tanta verdade, que o deixou vir buscar os nossos navios mandando com ele alguns homens. O qual, quando chegou a eles, (como já dissemos), peró que vinha azenegue no trajo e no carão dos coiros, parece que a natureza se contentou com comer e beber leite, por que ele veo bem pensado e gordo.

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40 14 44 Capítulo XI. Da viagem que fez Dinis Eanes com as caravelas que de Lisboa foram em sua companhia; e do que fez o capitão Lançarote, com as XIV caravelas de Lagos de sua capitania; em a qual viagem mataram e cativaram muitos mouros à custa da vida de alguns nossos. E como Soeiro da Costa, tendo-se visto nos mais ilustres feitos de Espanha, nesta ida se fez cavaleiro. Havia em Lisboa, ao tempo que estas cousas procediam em bem, um homem honrado que fora criado do Infante Dom Hanrique, já apousentado com ofício de tesoureiro-mor da casa de Ceita, a que chamavam Gonçalo Pacheco, o qual, como era homem de grossa fazenda, e que armava navios pera algυas partes, houve licença do Infante pera mandar um navio a este descobrimento. A capitania do qual deu a um, Dinis Eanes da Grã, escudeiro do Infante Dom Pedro e sobrinho no primeiro grau da mulher dele, Gonçalo Pacheco, em companhia do qual foram Álvaro Gil, ensaiador da moeda de Lisboa, e Mafaldo, morador em Setúval, cada um em sua caravela. E porque naquele tempo todos iam demandar o Cabo Branco, chegados a ele, acharam um escrito de Antão Gonçalves, posto em um sinal notável, em que amoestava a todos que não tomassem trabalho por sair em terra em busca da aldea que ali estava, porquanto ele a tinha destruído pela maneira que atrás fica. Com o qual aviso, per conselho de um João Gonçalves, galego piloto, se foram à ilha de Arguim, onde tomaram sete almas e per ardil de um daqueles mouros cativos, deu o capitão Mafaldo em υa aldea na terra firme, de cujo conselho pendeu todo aquele feito, em que tomaram quorenta e sete almas. Depois saíram algυas vezes sem poder haver mais que um mouro velho, o qual trouxeram mais por ele receber salvação mediante o baptismo, que esperarem de suas forças algum serviço. 45 E porque os 14v mouros per suas atalaias andavam já com o olho neles, foram-se pela costa adiante obra de oitenta léguas, e na ida e vinda, té tornar à Ilha das Garças, fazer carnagem, per vezes que saíram na terra firme tomariam cinquenta almas, que custaram υa batelada de sete homens dos nossos, que, per desastre de ficarem em seco, morreram às mãos dos mouros. E nesta Ilha das Garças acharam Lourenço Dias com um navio, o qual vinha em companhia de outros que ainda não eram chegados; a causa da vinda dos quais era esta: Os moradores da vila de Lagos, porque o Infante fazia ali todas suas armações, e nisto e em outras cousas recebia deles serviço, houveram licença sua que armassem pera estas partes de Guiné, pera o qual negócio se fizeram prestes com catorze caravelas em um corpo. A capitania-mór das quais deu o Infante a 41 Lançarote, de que atrás falamos, por ser homem mui experimentado nesta viagem e bem afortunado nela, peró que em sua companhia iam homens fidalgos por capitães dos navios, e alguns deles mui aprovados em feitos de armas: assi como Soeiro da Costa, sogro do mesmo Lançarote, o qual em sua mocidade fora moço da câmara del-Rei Dom Duarte, e depois, indo fora deste reino, se achou na batalha de Monuedro com el-Rei Dom Fernando de Aragão contra os de Valença, e no cerco de Balanguer , onde se fizeram honrados feitos, e andou com el-Rei Luís de Proença em toda a sua guerra, e assi se achou na batalha de Ajancurt que foi entre os reis de França e Ingraterra, e foi na batalha de Valamont, e na de Mont Seguro, e na tomada de Sansões, e no cerco de Ras ,e além no de Ceita, em as quais cousas sempre se mostrou valente homem de armas. E assi ia em outro navio Álvaro de Freitas, comendador de Aljazur, homem bem fidalgo, e que nos mouros de Grada e Belamarim tinha feito grandes presas. Os outros capitães eram Rodrigo Eanes Travaços, criado do

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Infante Dom Pedro, e Palaçano, que na guerra dos mouros tinha empregado o mais de sua vida, e Gomes Pires, patrão del-Rei, e assi outras pessoas honradas de Lagos. E além destes catorze navios foram da Ilha da Madeira Tristão Vaz, capitão de Machico, e Álvaro Dornelas, cada um em sua caravela; mas estes, 46 ante de chegar ao Cabo Branco, se tornaram com tempo. O que não fez Álvaro Fernandes com outra caravela de seu tio João Gonçalves, capitão do Funchal na mesma Ilha da Madeira, ante nesta viagem, como veremos, foi avante de todos. E os outros capitães eram Dinis Fernandes, o primeiro que passou a terra dos negros em υa caravela de Dom Álvaro de Castro, camareiro-mor del-Rei Dom Afonso, que depois foi Conde de Monsanto, e João de Castilha em outra caravela de Álvaro Gonçalves de Taíde, aio del-Rei, que também foi Conde de Atouguia, e outras caravelas que per todas fizeram número de vinte seis, afora a fusta em que ia Palaçano; e cada υa partiu do porto onde se armou. As catorze que eram de Lagos partiram juntas a dez de Agosto de quatrocentos quorenta e cinco anos, mas, em saindo da costa do Algarve, um temporal que deu nelas as apartou. O capitão Lançarote, como tinha provido que, acontecendo tal caso, todos fizessem sua via à Ilha das Garças, onde se haviam de ajuntar, o primeiro que tomou esta ilha foi um Lourenço Dias, de que atrás fizemos menção, o qual ali estava fazendo aguada, quando Dinis Eanes da Grã chegou com as três caravelas. O qual Dinis Eanes, sabendo per ele da grã frota que vinha atrás com tenção de destruir aquelas Ilhas de Arguim, onde lhe a ele mataram os sete homens, determinou esperar a vinda das caravelas, pera vingar a morte dos que perdera. E quis sua dita que dai a dous dias chegou o capitão Lançarote, 42 e em sua companhia Soeiro da Costa, Álvaro de Freitas, Rodrigo Eanes, Gomes Pires, o Picanço, e outros com que fizeram número de nove caravelas. Assentado o que haviam de fazer logo, ante que a terra houvesse vista de tanto navio, segundo a informação que Dinis Eanes deu do estado da terra, per muita cautela que nisso teveram, os mouros se passaram todos a terra firme e eles acharam na Ilha de Arguim doze almas somente, quatro que tomaram e oito que morreram por se não quererem render, do qual feito um dos nossos ficou tam mal ferido, que a poucos dias morreu. E posto que o feito não foi igual aos em que Soeiro da Costa se tinha achado, como ora dissemos, achou ele em sua consciência que não merecia honra de cavalaria em guerra contra cristãos, e que no cerco de Ceita não fizera cousa per que lha dessem e que nesta parte, assi por ser com mouros como polo que aqui fez, e principalmente em terra tam estranha, 15 era merecedor que Álvaro de Freitas, comendador de Aljezur, o armasse cavaleiro como armou, com grande prazer e solenidade de todos, vendo que enjeitara aquela honra entre tam poderosos Príncipes e aqui se havia por mais honrado dela. Em companhia do qual foi também armado cavaleiro Dinis Eanes de Grã, com que ficou algum tanto satisfeito do desastre que lhe ali acontecera. E porque depois que este caso foi feito, chegaram as outras caravelas da companhia de Lançarote, e ele, Dinis Eanes, tinha já despeso quási todolos mantimentos, tornou-se pera o reino com as suas três caravelas com que partira. Lançarote, com os outros capitães que ficaram em sua companhia, pôs 47 logo em conselho tornar a entrar a Ilha Tider, e ordenou que três caravelas se metessem entre ela e a terra firme, em um passo per que se os mouros baldeavam de υa parte a outra. Mas eles andavam tam escozidos das armas dos nossos, que de noite se passaram todos a terra firme, sem o eles sentirem, de maneira que, quando veo pela menhã, vendo eles que se tornaram os nossos como quem não achara a prea que iam buscar à ilha, começaram na praia a vista deles dar υa grande grita em modo de zombaria. Havia neste passo, antre a ilha e terra firme, obra de um tiro de pedra que se não podia passar a vau e outro tanto espaço que de baixa-mar dava água per o giolho, onde estavam

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as três caravelas que Lançarote ali mandou pera tolher a passagem. Em υa das quais estava um moço da câmara do Infante a que chamavam Diogo Gonçalves, que com υa ardideza de espírito que lhe moveu a ira contra os mouros, pelas algazarras e desprezos que lhes faziam, disse a um Pedro Alemão, natural de Lagos, que se queria saltar com ele em terra, vingar aquelas injúrias que lhe os mouros estavam fazendo, ao que Pedro Alemão respondeu que de mui boa vontade; e sem o mais praticar com algυa pessoa, tomando as armas que lhe eram necessárias para ofender, lançaram-se a 43 nado. Os mouros, quando os viram vir, vieram-se a eles com υa grita que fez espertar aos outros da caravela que sabiam nadar, porque, movidos de υa virtuosa enveja, começaram de os seguir: os primeiros dos quais foram Gil Gonçalves, escudeiro do Infante, e Lionel Gil, filho do alferes da bandeira da cruzada. Os quais, juntos em um corpo com os primeiros, eles por tomarem a terra e os mouros por lha defender (como quem tinha consigo mulheres e filhos), foi antre todos υa tam travada peleja, que, no meio daquela vasa, ficaram doze mouros enterrados, e depois em terra outros, e cativos foram cinquenta e sete. E com todo este trabalho do dia, ainda alguns destes, com outros que estavam folgados, aquela noite foram dar em υa aldea que estava dali sete léguas ao longo da costa, parecendo-lhe que se acolheriam a ela os que escaparam das mãos dos nadadores, segundo alguns dos cativos afirmavam. Peró eles iam de maneira que não somente se afastaram da costa do mar, mas ainda foram dar aviso aos outros que viviam na aldea, com que os nossos trabalharam debalde naquela ida, posto que, quando tornaram ao outro dia, acharam uns cinco mouros que do dia passado, quando iam fugindo, se embrenharam. E como o negócio a que eram idos àquela ilha era já acabado, ao seguinte dia ajuntou o capitão Lançarote todolos capitães e pessoas principais da armada, e propôs-lhe estas palavras: Bem sabeis, senhores e amigos, que a principal tenção por que aprouve ao senhor Infante virmos todos em 48 um corpo, e eu por capitão desta frota, foi pera que levemente podéssemos destruir esta Ilha de Arguim, de que os nossos, quando aqui vinham, recebiam dano. Ora - Deus seja louvado! - vós o tendes feito tam honradamente e tanto a seu serviço e prazer do Infante, que vos é ele por isso em obrigação de honra e mercê, o que todos deveis esperar, cada um em seu grau; porque esta lei tem os serviços acabados a vontade de quem os manda, principalmente quando o senhor é grato e liberal. Estas cousas, por parte de vossos méritos, estão ganhadas, e por parte da real condição do Infante, concedidas; o que nos agora fica por fazer, é comprir o que mais manda em seu regimento: que, feito este negócio que temos acabado, cada um se pode partir a fazer seu resgate e proveito, onde lhe Deus ministrar. Eu de hoje avante fico sem aquela superioridade que o senhor Infante me tinha dada acerca da governação deste negócio, a que principalmente viemos. E de mi lhe sei dizer, não por parte da honra, porque, a Deus mercês, com vossa ajuda eu a tenho ganhada nesta terra pera poder ir contente pera o reino, mas por parte da pouca presa que levamos, segundo as caravelas são muitas e os cativos poucos, minha tenção é não ir de cá tam 15v boiante; se alguém quiser ir fazer seu proveito mais avante pela costa, eu lhe manterei companhia. Soeiro da Costa, sogro dele, Lançarote, Vicente 44 Dias, Rodrigo Eanes, Martim Vicente e o Picanço, por terem as caravelas mais pequenas de toda a frota, responderam que eles não podiam esperar o inverno que já lá começava, e que, quanto o desejo os obrigava ir em sua companhia, tanto a necessidade os constrangia a se tornar ao reino. Gomes Pires, capitão da caravela del-Rei, e Álvaro de Freitas, Rodrigo Eanes Travaços, Lourenço Dias, mercador, foram todos em um propósito de seguir o capitão Lançarote, com desejo de passar a terra Sahará, dos azenegues, e ver a de Guiné, dos negros, por lhe dizerem ser mais

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fresca e grossa em todalas cousas. Partidos per esta maneira uns pera o reino e outros pera Guiné, de que eram estas duas cabeças - Soeiro da Costa e Lançarote - tomou cada um sua derrota. Soeiro da Costa, como era alcaide-mor de Lagos, a quem todos obedeciam na terra, por os mais deles serem daquela vila, assi no mar lhe quiseram obedecer, ca os obrigou a que passassem pelo Cabo Branco. Em o qual entrando per um esteiro em batéis, obra de quatro léguas, deram em υa aldea de que somente houveram nove mouros, porque os mais se poseram em salvo, por lhe ser dado aviso primeiro que chegassem à aldea. E porque esta presa o não satisfaz (peró que fosse aconselhado que o não fizesse) disse aos outros capitães que a ele lhe convinha muito tornar à Ilha 49 Tider, porque entre aqueles cativos que levava, era υa moura e um moço filho de um homem principal, os quais prometiam por si grande resgate. Soeiro da Costa, espedido dos outros capitães com este propósito, chegou à ilha, onde logo acudiram alguns mouros a este negócio do resgate; e por segurança de ambas as partes os mouros entregaram por reféns um homem dos principais deles, e Soeiro da Costa entregou o mestre do seu navio e um judeu que do reino fora em sua companhia. E sendo já o moço do resgate posto entre os seus, vendo a moura azo pera isso, confiada mais em nadar, que ela mui bem sabia, que na possibilidade dos seus, de quem esperava o grande resgate que prometia por si, lançou-se ao mar e pôs-se em salvo. Os mouros, como lá teveram a esta moura e o moço, não quiseram dar o mestre e o judeu que já tinham em poder a troco do mouro honrado, se não com mais outros três. Soeiro da Costa, posto que lhe foi grave cousa, todavia o fez por salvar o mestre; e sem mais ganhar cousa que lhe fizesse perder o nojo deste aquecimento , se tornou a este reino. E vindo com propósito de caminho fazerem um salto nas Canárias, toparam com a caravela de Álvaro Gonçalves de Taíde, de que era capitão João de Castilha. E quando souberam dele a via que levava, disseram que lhe parecia sua ida debalde, por quanto o feito de Arguim era acabado, e o inverno começava naquelas partes, com que corria risco de se perder; que eles levavam propósito de passar pelas Ilhas Canárias, e fazer um salto na Ilha da Palma, onde esperavam fazer algυa presa de proveito; 45 que ele devia tomar sua companhia, pois vinha tam tarde pera ir às partes de Guiné. João de Castilha, forçado das razões destes capitães das caravelas, seguiu seu conselho, e o primeiro porto que tomaram foi a Ilha Gomeira, onde logo os vieram receber dous capitães que governavam a terra, fazendo ofertas aos nossos do que houvessem mister, dizendo serem devedores ao Infante Dom Hanrique de tudo o que por seu serviço fizessem, porque eles esteveram em casa del-Rei de Castela e del-Rei de Portugal, e de nenhum deles receberam tanto favor e mercê como dele, Infante. Os capitães das caravelas, vendo que nestas ofertas tinham ajuda, por saber serem os desta ilha grandes imigos dos da Ilha de Palma, que eles iam buscar, descobriram-lhe seu propósito, pedindo-lhe que houvessem por bem de irem com algυa gente sobre aqueles seus imigos, de quem o Infante estava mui escandalizado, por ser má e revel, e que eles iriam em sua companhia. Estes dous capitães canários, cujos nomes eram Piste e Brucho, por mostrar o desejo que tinham de servir ao Infante, sem mais demora meteram-se em os navios com bom golpe de gente, e, feita vela, surgiram em rompendo o dia no porto da Palma. E, per conselho deles, os nossos, ante de serem vistos, 50 saíram em terra e o primeiro encontro que acharam foram uns poucos de pastores, que traziam grande fato de ovelhas. Os quais, tanto que houveram vista dos nossos, assi tinham costumado este gado, que a um certo sinal de apupos que deram começou todo correr pera um vale que estava antre duas serras de ásperos rochedos, 16 como se lhe disseram: - Aqui são os imigos! - Os nossos, quando viram que os canários começavam

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trepar com seus capitães per aquelas rochas trás os pastores que fugiam, seguiram o seu modo; mas como não eram costumados àqueles saltos, caíram alguns per lugares de perigo, entre os quais foi um mancebo que, quando chegou a baixo da altura donde caiu, veo feito em pedaços. E per este modo também pereceram alguns canários, porque, como eram confiados no uso daqueles lugares, corriam mais sem tento. E dos nossos, o que milhor se havia neste modo de prear a cosso, foi Diogo Gonçalves, moço da câmara do Infante, aquele que se lançou ao mar em Arguim contra os mouros que estavam fazendo algazarras na praia. Os canários, cujas eram as criações, tanto que sentiram a entrada de seus imigos, acudiram com muita gente; peró, como sentiram as armas dos nossos, não ousavam de os esperar de perto, e embarravam-se em as penedias de onde faziam seus arremessos, e se lhe os nossos tiravam assi eram leves em furtar o corpo, que de maravilha os podiam ofender. Contudo, entre os tomados a cosso e outros que houveram depois que se ajuntou a gente, foram dezassete almas, entre as quais vinha υa mulher de espantosa grandeza, a qual quisera dizer ser rainha de υa parte daquela ilha. Tornados os nossos à Ilha Gomeira, leixaram os capitães canários em o lugar onde os tomaram, 46 e o que chamavam Piste faleceu depois neste reino, andando em negócios da ilha; ao qual o Infante sempre fez gasalhado e mercê. João de Castilha, porque não vinha contente da pequena presa que lhe coube em repartição, e também por se refazer da perda que houve em não se achar no feito de Arguim, donde estoutros vinham, fez com eles que na mesma Gomeira onde estavam fizessem algυa presa. E posto que a todos pareceu maldade cativar aqueles de quem receberam amizade, pôde mais neles a cobiça que esta lembrança; e como que per esta maneira ficavam menos culpados, passaram-se deste porto a outro da mesma ilha, onde prearam vinte e υa almas, com que se fizeram à vela, caminho deste reino. O qual engano, sabido pelo Infante, ficou mui indinado contra os capitães, e vestidos à sua custa mandou depois, como se adiante verá, tornar todolos cativos onde os tomaram; porque, como o Infante por esta gente das Canárias tinha feito grandes cousas, segundo veremos neste seguinte capítulo, sentia muito qualquer ofensa que lhe faziam.

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46 16 51 Capítulo XII. Como as ilhas a que ora chamam Canárias foram descobertas por um fidalgo francês chamado mossior João de Betancor; e depois o Infante Dom Hanrique teve o senhorio delas e converteu à Fé a maior parte dos seus povoadores; e de alguns costumes deles. Em tempo del-Rei Dom Hanrique, o terceiro de Castela, filho del-Rei Dom João, o primeiro, veo de França a estas partes de Espanha um francês por nome mossior João de Betancor , homem nobre, com tenção de conquistar as Ilhas das Canárias, por ter sabido serem povoadas de gente pagã. E, segundo fama, a notícia delas soube per υa nau ingresa ou francesa que lá esgarrou com tempo, vindo daquelas partes a estas de Espanha. E posto que ele trouxe navios, gente e munições pera esta conquista, em Castela, onde primeiro veo ter, se reformou de mais gente com que subjugou estas três ilhas - Lançarote, Forte Ventura e a Ferro - e isto com tanto trabalho e custo, que de cansado e ter despeso todo o cabedal que trouxe, tornou a França, a se reformar, leixando ali um seu sobrinho, chamado Maciot Betancor, mas ele não tornou mais. Diziam alguns que por graves doenças que teve, e outros que el-Rei de França o empediu por causa da guerra que então tinha com Ingraterra. Mossior Maciot Betancor, vendo que passavam tempos sem acudir seu tio a tam grande impresa como lhe leixara, a qual não podia sustentar, posto que , em ausência sua, com ajuda de alguns castelhanos, conquistara a Gomeira, concertou-se com o Infante Dom Hanrique sobre o que nelas tinha, e ele passou-se à Ilha da Madeira, onde 47 assentou sua vivenda, porque começavam naquele tempo florecer as cousas dela, e os homens que se lá passavam a viver, engrossavam muito em fazenda, como também aconteceu a este Maciot. O qual com o que houve do Infante, que foram as saboarias e outras rendas na ilha, e depois 16v com sua indústria, ganhou tanto, que casou υa só filha que teve, chamada Dona Maria Betancor, com Rui Gonçalves da Câmara, capitão da Ilha São Miguel, filho de João Gonçalves, primeiro capitão da Ilha da Madeira, da parte do Funchal. E porque não houve filhos dela, herdaram Hanrique de Betancor e Gaspar de Betancor, sobrinhos deste Maciot de Betancor, a sua herença dele, da qual hoje possuem seus herdeiros boa parte, os quais são fidalgos mui honrados e tem o seu apelido de Betancor. 52 E porque, de doze ilhas que elas são, ainda ficavam por conquistar estas - Grã Canária, Palma, Graciosa, Inferno, Alegrança, Santa Clara, Roque e a dos Lobos - determinou o Infante Dom Hanrique, por louvor de Deus, de as mandar conquistar e trazer ao baptismo os seus moradores. Pera a qual obra se fez υa armada o ano de quatrocentos e vinte quatro, em que foram dous mil e quinhentos homens de pé, cento e vinte de cavalo, e por capitão-mor Dom Fernando de Castro, governador de sua casa, padre de Dom Álvaro de Castro, Conde de Monsanto, e camareiro-mor del-Rei Dom Afonso, o quinto deste nome. E porque a gente era muita e a terra desfalecida de mantimentos, deteve-se Dom Fernando mui pouco tempo nesta conquista, porque também era custosa ao reino, e somente a passagem da gente que foi a ela, segundo vimos nos livros das contas do reino, custou trinta e nove mil dobras. E nesse pouco tempo que esteve, grande número daquele povo pagão recebeu o baptismo. Depois, pera favorecer estes cristãos contra aqueles que não queriam vir à Fé mandou o Infante algυa gente, e por capitão dela Antão Gonçalves, seu guarda-roupa. E passados alguns anos que estas ilhas, per causa do descobrimento da Ilha da Madeira e

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assi de Guiné, começaram ter nome e sabor na opinião da gente de Espanha, desistiu o Infante delas, porque se entremeteu nisso el-Rei de Castela, dizendo que lhe pertenciam. Por quanto Mossior João Betancor, que primeiro conquistara as três, no reino de Castela se armara, e ali recebera todalas ajudas de gente, mantimentos e munições pera as conquistar; e, depois de sua partida, Maciot, seu sobrinho, sempre recebera as mesmas ajudas de Castela, e a Gomeira que ele tinha conquistado com a gente de Castela fora, e aos reis dela dava obediência e reconhecia por senhores; e que se ele, Maciot, vendera a fazenda e terras que tinha aproveitado, não podia vender o senhorio e jurdição, que era da Coroa de Castela. O Infante, como sua tenção em conquistar estas ilhas mais era por salvar as almas dos seus moradores pagãos, que por algum proveito que delas tevesse, ante lhe tinham feito muita despesa em as 48 conquistar e suster, não prosseguiu mais em o que tinha começado. Depois, em tempo del-Rei Dom Hanrique, o quarto deste nome, em Castela, quando casou com a Rainha Dona Joana, filha del-Rei Dom Duarte de Portugal, Dom Martinho de Taíde, Conde de Atouguia, que a levou a Castela, houve del-Rei Dom Hanrique estas ilhas das Canárias per doação que lhe delas fez, e ele as vendeu depois ao Marquês Dom Pedro de Meneses, o primeiro deste nome, e o Marquês as vendeu ao Infante Dom Fernando, irmão del-Rei Dom Afonso. O qual Infante folgou de as comprar, porque, como era filho adoptivo do Infante Dom Hanrique, seu tio, que já tevera o senhorio destas ilhas, parecia-lhe que as não comprava, mas que as herdava dele. E, tanto que as houve, mandou tomar posse delas e a conquistar alguns revéis; ao qual negócio enviou Diogo da Silva, que depois foi Conde de Portalegre. Em meio do qual tempo, veo a estes reinos um cavaleiro castelhano, 53 per nome Fernão Peraça, pedindo a el-Rei Dom Afonso e ao Infante que. houvessem por bem de o restituir em posse das ditas ilhas, por quanto ele as tinha comprado a um Guilhen de las Casas, o qual as comprara a Dom Hanrique, Conde de Nebla, em quem Maciot Betancor as trespassara per via de doação com procuração que tinha de seu tio João de Betancor, de que apresentava escrituras e provisões dos Reis de Castela, em confirmação das tais compras. E porque per elas e per outras razões, el-Rei e o Infante viram a justiça dele, Fernão Peraça, desestiram delas. Per morte do qual Fernão Peraça, herdou esta herança υa sua filha, per nome Dona Inês de Peraça, com quem casou um fidalgo castelhano, chamado Diogo Gracia de Herrera. E entre os filhos que houve dela, foi Dona Maria de Ayala, com quem casou Diogo da Silva, estando ainda lá por parte do Infante na conquista e governança delas. E porque as Ilhas da Gomeira e Ferro eram feitas em morgado, de que hoje é 17 intitulado Conde Dom Guilhen de Peraça, seu filho, ficaram partíveis as Ilhas de Lançarote e Forte Ventura, em que Dom João da Silva, segundo Conde de Portalegre por parte de sua madre a Condessa, tem herança que ao presente lhe renderá até trezentos mil reais. Parece que permitiu Deus que ficasse esta memória em Portugal por os trabalhos que o Infante Dom Hanrique levou na conversão e conquista dos povos destas ilhas, posto que o senhorio e jurdição delas fosse trespassado em Castela, na maneira que dissemos. E por razão desta acção que este reino tinha nestas Ilhas Canárias, pola despesa que era feita na conquista e conversão de seus povos, quando se fizeram as pazes entre Portugal e Castela por causa das guerras que houve entre el-Rei Dom Afonso, o quinto deste reino, e el-Rei Dom Fernando de Castela, nomeadamente em os capítulos das pazes, ficou com Castela a conquista e senhorio destas ilhas e a conquista do reino de Grada, como com Portugal a do reino de Fez 49 e de Guiné, etc., segundo se contém na Crónica deste Rei Dom Afonso. Este foi o fundamento da conquista e conversão destas ilhas, posto que em a Crónica del-Rei Dom João o segundo, de Castela, o cronista, por dar posse à sua Coroa, leve outro caminho

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na relação do descobrimento delas. E também pode ser que não teria notícia de todas estas cousas. E por louvor deste Infante Dom Hanrique, trataremos dos ritos e costumes que o povo pagão destas ilhas naquele tempo tinha, quando per indústria sua foram trazidos ao baptismo. Haveria naquele tempo em todas estas ilhas treze ou catorze mil homens de peleja, e posto que todos fossem pagãos, não convinham em uns ritos e costumes, somente em conhecimento de um Criador de todalas cousas, o qual dava galardão aos bons e pena aos maus. Os moradores da Grã Canária tinham dous homens principais que os governavam: a um chamavam o rei e a outro duque, e porém o regimento da justiça e governo da terra era feito per número de cento e noventa homens, 54 sem poderem ser mais ou menos. E, como algum morria, logo era enlegido outro da linhagem daqueles que governavam, e estes tinham a ciência e os preceitos daquilo que cada um devia crer, e eles os davam ao povo, de maneira que não sabiam mais dizer do que criam e adoravam, somente que naquilo que criam os seus cavaleiros, que eram estes cento e noventa homens. As mulheres não podiam casar sem primeiro as corromper um destes cavaleiros, e quando lhas apresentavam, haviam de vir bem gordas de leite, que era a ceva com que as cevavam pera isso; e se eram magras diziam que ainda não estavam em disposição pera casar, por quanto tinham o ventre pequeno e estreito pera criar nele grandes filhos, de maneira que não haviam por autas pera casamento senão as de grande barriga. A peleja deles era às pedradas e com paus curtos, à maneira de rejeitos de remesso; e ao tempo do pelejar era bem ardida e esforçada. Seu vestido era os coiros da carne somente; e em os lugares desonestos traziam υa maneira de bragas de folhas de palma tintas de cores. Entre eles não havia ferro, e à míngua dele rapavam as barbas com pedras agudas: se haviam algum à mão, era mui estimado e faziam anzolos dele. Ouro, prata, nem outro metal não o queriam, ante haviam que era sandice desejar alguém o que lhe não servia de instrumento mecânico pera suas necessidades. Trigo e cevada tinham em grande cópia, e desfalecia-lhe engenho pera o amassar em pão, somente comiam a farinha cozida com carne e manteiga. Haviam por cousa mui torpe esfolar alguém gado, e neste mister de magarefes lhe serviam os cativos que tomavam; e quando lhe estes faleciam, buscavam homens dos mais baixos do povo pera este ofício, os quais viviam apartados da outra gente, e não os comunicavam em aquele mister. As madres não criavam de boa vontade seus filhos ao peito, e quási todos eram criados 50 às tetas das cabras. Os moradores da Gomeira em alguns ritos e costumes se conformavam com estes, peró seu comer geralmente era leite, ervas e raizes de juncos e toda a imundícia, assi como cobras, lagartos, ratos e outras cousas desta calidade. As mulheres eram quási comυas, e quando se visitavam uns a outros davam as mulheres por gasalhado e boa hospedagem, de onde se causava que não herdavam os filhos, senão os sobrinhos da irmã. O mais do tempo despendiam em cantar, bailar e uso de mulheres, que entre eles era estimado por o maior bem da vida. Os da Ilha Tanarife eram mais abastados de mantimentos, ca entre eles havia trigo, cevada, legumes de toda 17v sorte e grandes fatos de gado meúdo, de cujas peles se vestiam. E todos eram repartidos em oito ou nove bandos de gerações, cada um dos quais tinha próprio rei, e sempre havia de trazer consigo dous, um morto e outro vivo, e morto este enlegiam outro. E o primeiro 55 defunto ao tempo que o queriam enterrar, havia de ser per o mais honrado homem; o qual o levava às costas, e quando o punham na sepultura todos a υa voz diziam: - Vai-te à salvação! - Tinham mulheres próprias, todo seu exercício eram bandos, e isto os fazia ser gente mais guerreira que os das outras ilhas, e também viviam com mais razão em todas suas cousas. Os da Ilha da Palma seriam até quinhentos homens, os quais acerca do juízo e uso das

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cousas eram mais bestiais que os das outras ilhas, tendo também muita parte dos seus costumes. Seu mantimento era ervas, leite e mel. E porque ao presente toda esta gentilidade bárbara se perdeu, e em seu lugar é recebida a fé e polícia espanhol , e as outras cousas dos fructos e disposição da terra são já mui notórias a nós, basta o que dissemos por glória de Deus e louvor do Infante Dom Hanrique, que plantou este fructo na sua Igreja.

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50 17v Capítulo XIII. Como o capitão Lançarote, depois que leixou estas caravelas de sua conserva que se vieram pera o reino, com as outras que o seguiram descobriu o grande rio a que ora chamamos Sanagá, e di foi ter a υa ilheta pegada com o Cabo Verde. O capitão Lançarote, depois que Soeiro da Costa, seu sogro, se espediu dele, começou de seguir sua viagem, sempre ao longo da costa, té passar a terra a que os mouros chamam Sahará e os nossos corruptamente Zará, que é parte dos desertos de Líbia; e veo ter às duas palmeiras que Dinis Fernandes, quando ali foi, demarcou como cousa notável, onde os da terra dizem que se apartam os azenegues mouros dos negros idólatras , peró que nestes nossos tempos aqui já sejam todos da seita de Mafamede. E seguindo mais avante obra de vinte léguas, acharam um rio mui notável, a que nós ao 51 presente chamamos Sanagá, por razão que o principal resgate que pelo tempo em diante se ali começou fazer, foi com um negro dos principais da terra, chamado per este nome Sanagá. Porque o verdadeiro nome do rio, logo ali na entrada é Ovedech (segundo a língua dos negros que habitam naquela sua foz), e quanto mais se penetra o sertão per onde ele vem, tantos nomes lhe dão os povos que bebem as suas águas, dos quais nomes, curso e nascimento dele se verá adiante. E não somente pelo que os nossos então souberam dele, mas pela informação que os mouros azenegues 56 deram ao Infante de como vinha das partes orientais correndo per grandes reinos e provincias, houveram que era um braço do rio Nilo. O capitão Lançarote, depois que entrou à barra deste rio, lançando um batel fora, meteu-se nele Estêvão Afonso pera sair em terra e descobrir o que alcançasse com a vista; e na primeira que tomou onde se fazia um médão de area, viu estar υa cabana que lhe pareceu ser dalgum pescador, na qual foram tomados um moço e υa moça, ambos irmãos, mais pera sua salvação que pera receber cativeiro. Porque, vindos a este reino, o moço mandou-o o Infante criar e doutrinar em letras pera poder receber ordem sacerdotal, e tornar a esta parte a pregar o baptismo e fé de Cristo, e ante de chegar a madura idade, faleceu; e a irmã, já polos méritos de seu irmão, teve criação e vida mais de livre que cativa. E posto que ali não houvesse língua que entendesse estes dous irmãos, pera deles tomar algυa informação, na idade deles entenderam que o pai ou mãe não deviam ser mui longe; e começando descobrir derredor da casa contra onde se fazia um arvoredo, ouviram pancadas, como que cortavam algυa cousa. E porque, indo juntos, podiam fazer rebuliço, disse Estêvão Afonso que o deixassem ir só, pera mansamente espreitar quem era o que dava aquelas pancadas. E indo assi ao tom delas, foi dar com um negro, o qual estava tam atento no cortar de um pau, que o não sentiu senão quando lançou mão dele. O qual atrevimento lhe houvera de custar a vida; porque, como o negro era grande e forçoso e andava nu, e Estêvão Afonso, homem pequeno e roupado do vestido, no primeiro bracejar, peró que o negro ficou cortado com aquele novo 18 temor, levou Estêvão Afonso debaixo de si; e ainda que a peleja era a punho e a dentes, ele passara mal, senão sobrevieram seus companheiros, com a vista dos quais o negro escapuliu e fugiu pera dentro do arvoredo. Estêvão Afonso, quando se viu desapressado com o favor dos companheiros que corriam trás ele contra a mata, começou de o seguir, dizendo que rodeassem o arvoredo, té que viessem alguns cães do navio que o lançassem fora. Mas o negro, como levava o cuidado nos filhos, ainda

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não entrou per υa parte quando saiu pela outra, e não os achando na cabana, começou de seguir o rastro que os nossos levavam com eles contra a praia, onde Vicente Dias, mercador 52 senhorio do navio cujo era aquele batel, andava passeando tam seguro como se estevera em Tavila , donde ele vivia, tendo somente por arma um bicheiro que tomou no batel por ajuda de bordão. O negro, tanto que o viu, sem temor algum, com a fúria do amor que trazia dos filhos, lançou-se a ele, depois que lhe rompeu υa queixada com υa azagaia de remesso, e porém, primeiro que viessem a braços, também levou υa boa ferida com o bicheiro per cima da cabeça. 57 E andando Vicente Dias com este perigo, peró que trouxesse seu imigo debaixo, sobreveo outro negro, filho deste, já homem valente, e assi se ajudaram ambos, que o traziam mui mal tratado, se a vinda de Estêvão Afonso e de seus companheiros o não salvara, porque os negros, tanto que os viram correr contra si, como eram legeiros, desapressaram a ele e poseram-se em salvo. Chegados onde estava Vicente Dias, como já na companhia havia dous injuriados do negro, antre riso e pesar de lhe assi escapulir das mãos se tornaram à caravela, onde Vicente Dias foi curado; e assi ele, como Estêvão Afonso, eram visitados da gente das outras caravelas, gracejando todos como o negro era milhor lutador que quantos havia no batel. Passado aquele dia, tendo o capitão Lançarote assentado com os outros capitães pera irem per o rio acima descobrir, por ser a cousa que o Infante mais desejava, levantou-se um tempo de maneira que os fez a todos sair de onde estavam, com o qual tempo se apartaram da companhia de Lançarote, Rodrigues Eanes Travaços e Dinis Dias, que se vieram na volta do reino, onde chegaram a salvamento. Lançarote, com cinco caravelas, correndo contra o Cabo Verde, foi surgir em υa ilheta pegada com a terra firme, em que acharam muitas cabras, que lhe foi mui bom refresco, e assi acharam peles frescas de outras, como que havia poucos dias que se fizera ali algυa matança delas. E o que lhe certificou ser aquela obra dos nossos, foi acharem escrito em a casca de υas grandes árvores este moto da divisa do Infante: Talent de bien faire, o qual sinal leixou Álvaro Fernandes, sobrinho de João Gonçalves, capitão da parte do Funchal na ilha da Madeira, que veo ali ter e pelejou com seis almadias de negros que o vieram cometer, de que somente tomou υa com dous deles, porque os mais se salvaram a nado. E desta viagem passou ainda té onde ora chamam o Cabo dos Mastos, nome que lhe ele então pôs por razão de υas palmeiras secas que à vista representavam mastros arvorados, e daqui se tornou pera o reino. O capitão Lançarote, em dous dias que esteve com as cinco caravelas nesta ilha onde Álvaro Fernandes pôs o moto, fez sua aguada e matança de cabras, e des i passou-se à terra firme, com a vista do qual acudiram à praia muitos negros. Gomes Pires, a quem o capitão Lançarote mandou em um batel que fosse a eles, parecendo-lhe 53 que os provocava mais a paz que lhe o Infante muito encomendava em seu regimento, lançou-lhe em terra um bolo, um espelho e υa folha de papel em que ia debuxada υa cruz. Mas eles estavam tam safaros da cobiça daquelas cousas e tam escandalizados do que lhe Álvaro Fernandes fez, que não somente as não quiseram, mas ainda as quebraram 58 e romperam tudo, como se nelas fora algυa peçonha ou peste que lhes podia empecer; e sobre isso começaram de tirar às frechadas ao batel. Vendo Gomes Pires que com eles não havia algum modo de paz, mandou a uns besteiros que consigo tinha que lhe respondessem com o seu almazém, dando-lhe esta espedida. Os capitães, com esta mostra que os negros deram de si, atentaram de ao outro dia darem neles da maneira que costumavam dar nas aldeas dos mouros, mas sobreveo tam subitamente um temporal, que os fez correr como cada um pôde marear seu navio.

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Lourenço Dias, escudeiro do Infante, foi ter ao lugar onde o negro luitou com Vicente Dias, e vendo-se mal apercebido de mantimento, 18v armas e outras cousas que lhe convinham pera descobrimento do rio, não ousou de o cometer e veo-se na volta do reino. Gomes Pires, patrão, que era outro desta conserva de Lançarote, veo-se per o Rio do Ouro, e ali tratou com os mouros, dos quais houve per resgate um negro, prometendo-lhe que ao seguinte ano, se ali tornasse, os acharia apercebidos de ouro e escravos com que podesse carregar o navio. Porque começavam já de gostar do proveito que lhe os nossos davam com as cousas que haviam deles, de maneira que, os dias que Gomes Pires ali esteve, vinham ao navio seguramente; e, mais por amizade que per resgate, eles lhe deram υa boa soma de peles de lobos marinhos, com que se veo pera o reino. Lançarote, Álvaro de Freitas e Vicente Dias, assi como todos três naquela tormenta que lhe deu no Cabo Verde, mantiveram conserva. Assi foram todos em conselho que de caminho dessem na Ilha Tider, onde tomaram cinquenta e nove almas, com que se vieram ao reino com mais proveito que os outros. Dinis Fernandes, capitão da caravela de Dom Álvaro de Castro, e Palaçano, capitão da fusta, como ambos mantiveram companhia na ida das catorze caravelas que este ano partiram deste reino, quando chegaram a Arguim e acharam nova em as outras caravelas que foram no feito da Ilha Tider, como as ilhas eram já despejadas, determinaram de passar adiante, té o rio Sanagá, e entrar dentro da fusta, por Dinis Fernandes saber já aquela costa, quando ali veo ter. E tendo passado a ponta chamada de Santana, que é aquém do Rio Sanagá obra de cinquenta léguas, por levarem calmarias quiseram lançar um homem fora, que descobrisse se havia algυa povoação junto da praia. Mas como o mar com a calmaria andava banzeiro, eram tam grandes as vagas que não ousava 54 algum dos mareantes de se lançar a nado. Contudo, movidos dalgυas palavras com que Palaçano quis envergonhar doze homens mancebos que sabiam nadar, levando somente armas ofensivas, puseram o peito à água. Tomada a praia per caminho, começaram de a seguir té irem dar com doze mouros que caminhavam per ela, dos quais tomaram nove, com que se tornaram recolher ao navio. E parece que o tempo os estava esperando que se recolhessem, porque sobre aquele grande prazer da presa que trouxeram, 59 sobreveo tanto tempo subitamente, que abriu a fusta de Palaçano, e a grande dita se salvou toda a gente em o navio de Dinis Fernandes. O qual com a fúria do temporal correu ao Cabo Verde, onde não fez mais que haver vista dos negros que defendiam a praia com frechas de erva; e, com outra mudança que fez o tempo, tornou ao lugar onde perdeu a fusta, de que ainda acharam o casco, que os mouros não quiseram desfazer, com propósito que seria anagaça aos nossos, quando ali tornassem. Como houvera de ser, se não saíram com boa vegia, porque detrás de uns médãos estavam lançados obra de setenta mouros em cilada, os quais não fizeram mais que receberem dano, perecendo a maior parte deles, e os outros que se salvaram haviam de ter que curar. Acabado este feito com que Dinis Fernandes e Palaçano, na honra dele, recobraram a perda da fusta que lhe ali ficou, e da pouca fazenda que tinham havido per toda aquela costa, fizeram-se à vela, passando pela Ponta de Tira, onde somente tomaram dous mouros a cosso, por andarem já tam temerosos do ferro dos nossos, que tomavam os pés por armas de sua salvação. E daqui se fizeram na volta deste reino, onde chegaram a salvamento; e neles se acabaram de recolher todalas caravelas que aquele ano partiram deste reino, de que somente se perdeu a fusta de Palaçano, como dissemos.

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54 18v 59 Capítulo XIV. Como Nuno Tristão e dezoito homens foram mortos com erva das frechadas que houveram em υa peleja com os negros em um rio de Guiné em que entraram. E como passou Álvaro Fernandes além do Cabo Verde cem léguas. E do que também aconteceu a cinco caravelas que foram a este descobrimento. 19 O ano de quatrocentos e quorenta e seis, tornou Nuno Tristão em υa caravela per mandado do Infante a descobrir mais costa além do que Álvaro Fernandes leixava descoberto, que foi té o Cabo dos Mastos. E como era diligente nestas cousas, passou além do Cabo Verde obra de sessenta e tantas léguas, té chegar onde ora chamam o Rio Grande; e 55 surto o navio na boca dele, meteu-se no batel com vinte e dous homens, com tenção de entrar pelo rio acima, descobrir algυa povoação, por ter υa grande entrada. A qual entrada fez a tempo que a maré subia tam tesa pera dentro, que em breve espaço os afastou da barra um 60 bom pedaço, té irem dar em meio de treze almadias, em que haveria até oitenta negros, homens valentes e que se escolheram pera aquele feito, como quem tinha primeiro visto o pouso do nosso navio e depois a entrada do batel pelo rio. Nuno Tristão, quando viu as almadias juntas e com sua chegada se apartaram υas pera υa parte e outras pera outra, pareceu-lhe que, de gente bárbara e não costumada a ver aquela maneira de homens, fugiam pera terra, porque os negros mostravam que se queriam acolher a ela. Peró, como viram o nosso batel em meio deles, de maneira que uns ficavam abaixo e outros acima, remeteram a força de remo todos com υa grande grita, e lançaram sobre ele υa chuva de frechas; assi repartidos e adestrados pera este modo de peleja, que, quando o nosso batel remava contra uns, acudiam da outra parte outros, andando às voltas com ele da maneira que se hão os genetes com a gente de armas. E como as frechas eram ervadas e a fúria da peleja lhe acendia mais o sangue, começaram alguns dos nossos embarbascar e cair, que causou tornar-se Nuno Tristão ao navio, a tempo que decia a maré. Mas pouco lhe aproveitou esta ajuda dela; porque assi tinha lavrado a erva, que, primeiro que chegassem ao navio, iam a maior parte deles mortos, o que Nuno Tristão sentiu tanto, que, entre dor e peçonha , também os acompanhou na morte. Os quais mortos foram João Correa, Duarte de Holanda, Estêvão de Almeida, Diogo Machado, todos homens de sangue e que de moços se criaram na câmara do Infante, e assi outros escudeiros e homens de pé de sua criação, que com os mareantes podiam ser dezanove pessoas. E ainda pera maior desaventura, de sete que ficavam, dous entrando em o navio, per cajão υa âncora os feriu, de maneira que acompanharam na morte aos outros. Alguns dizem que este caso aconteceu em o rio a que ora chamamos de Nuno, que é além do Rio Grande vinte léguas, e que desta morte de Nuno Tristão lhe ficou o nome que ora tem - de Nuno. E o que neste caso se pode haver por mais maravilhoso, é que, cortadas as amarras por não haver quem as levasse, não ficando em o navio mais que um moço da câmara do Infante, chamado Aires Tinoco, natural de Olivença, que viera por escrivão, com quatro moços, per espaço de dous meses assi os ajudou Deus em governar o navio, que o trouxeram a Lagos, não tendo nenhum deles saber pera isso. O Infante, porque a este tempo estava naquela vila, quando soube parte de tam desaventurado caso, ficou mui triste, porque a maior parte dos mortos criara de pequenos, e era

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príncipe mui 56 mavioso pera os criados. Mas como em outra cousa lhe não podia aproveitar, mostrou o amor que lhe tinha em o amparo dos filhos e mulheres daqueles que as tinham. E de quam desestrado aquecimento foi este de Nuno Tristão, tam próspero 61 aconteceu a Álvaro Fernandes, sobrinho de João Gonçalves, capitão da Ilha da Madeira. O qual neste mesmo ano tornou outra vez a Guiné, passando desta viagem mais de cem léguas além de Cabo Verde. E a primeira cousa que fez, foi dar em υa aldea, o senhor da qual matou per suas próprias mãos, por ele, como homem animoso, vir ante os seus cometer os nossos, cuja morte assi os espantou, que tomaram por salvação os pés. Os quais, como eram ligeiros e despejados de roupa, não houve algum dos nossos que se atrevesse aos alcançar, nem menos se quiseram meter no mato, onde se embrenharam; e tornando-se ao navio, tomaram duas negras que andavam mariscando. Álvaro Fernandes, como se queria vantajar dos outros descobridores, passou mais avante, té chegar à boca de um rio a que ora chamam Tabite, que 19v será além do Rio do Nuno trinta e duas léguas, onde o logo cinco almadias vieram receber. E porque o caso de Nuno Tristão os fazia temer estas entradas dos rios, não se quis meter em lugar estreito, e contudo não se pôde livrar de perigo, porque υa das almadias, confiada em sua ligeireza, tanto se chegou ao batel, té que fizeram seu emprego de setas em a própria pessoa de Álvaro Fernandes. O qual, como já de cá ia provido pera esta erva de que os negros ali usavam, a poder de triaga e de outras mezinhas escapou da morte, e assi maltratado, como era homem de ânimo, passou mais avante, té υa ponta de area onde quisera sair, vendo a terra escampada e descoberta pera isso, mas obra de cento vinte negros que lhe saíram ao encontro lha defenderam com muita frechada, toda com erva. E porque o Infante encomendava muito aos capitães que não rompessem guerra com os moradores da terra que descobrissem, senão mui forçados, e isto depois de lhe fazer suas amoestações e requerimentos da fé, paz e amizade, vendo Álvaro Fernandes que a sua saída, segundo se os negros dispunham e davam pouco pelos sinais de paz, não podia ser sem custar a vida de algum dos nossos, não os quis aventurar à peçonha de que ele já tinha experiência, e contentou-se com ter descoberto mais terra que quantos capitães té então tinham ido àquelas partes. Com a qual determinação partiu pera este reino, onde foi recebido do Infante Dom Hanrique com muita honra, e assi do Infante Dom Pedro, seu irmão, que então era regente, cada um dos quais lhe fez mercê de cem cruzados. Estas mercês e honras animavam mais aos homens a seguir este descobrimento do que os metia em temor o caso de Nuno Tristão, de maneira que neste mesmo ano se armaram dez caravelas, de que estes eram os capitães: Gil Eanes, 57 cavaleiro morador em Lagos, Fernão Valarinho, homem mui experimentado nas cousas da guerra, principalmente em Ceita, onde ele fez honrados feitos, Estêvão Afonso, Lourenço Dias e João Bernaldes, piloto, todos homens mui honrados, e os mais deles criados do Infante, com os quais 62 ia também υa caravela do Bispo do Algarve e outras três dos moradores de Lagos. Os quais, juntos em υa conserva per mandado do Infante, passaram pela Ilha da Madeira pera tomar algum mantimento, e também porque com eles se haviam de ajuntar duas caravelas mais: υa de Tristão Vaz, capitão de Machico, e outra de Garcia Homem, genro de João Gonçalves, capitão do Funchal. E de aqui da ilha foram todos a Gomeira, a levar os canários que atrás dissemos que João de Castilha e os outros capitães saltearam, os quais iam em os navios de Lagos per mandado do Infante, mui contentes e satisfeitos das mercês e dádivas que lhe deu.

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Com ajuda dos quais quiseram os nossos fazer υa entrada na Ilha da Palma, e por serem sentidos não lhe sucedeu a saída como cuidaram, que foi causa de os capitães das caravelas da Ilha da Madeira se tornarem dali, porque parece serem somente vindos a este feito da Ilha da Palma; e os outros fizeram sua derrota, caminho do Cabo Verde. Na qual parte, por razão da terra ser mui apaulada e chea de arvoredo, no modo de peleja ajudavam-se dos negros tam mal, que sempre recebiam mais dano deles do que lhe faziam, como lhe aconteceu esta vez, perdendo cinco homens que morreram às frechadas por causa da erva de que usavam, e assi perderam em um banco de area a caravela do Bispo do Algarve. E porque sempre dos mouros levavam mais vitória que destes negros, tornaram-se a Arguim, e no cabo do resgate em υa aldea tomaram quorenta e oito almas; e, como de caminho, (vindo-se os outros pera o reino), passou Estêvão Afonso pela Ilha da Palma, onde tomou duas mulheres que houveram de custar a vida de quantos saíram em terra, se não fora pelo esforço de Diogo Gonçalves. O qual, vendo que um homem de pé se embaraçava com υa besta que tinha, tomou-lha das mãos, e assi se ajudou dela que derribou sete canários, entre os quais foi um rei que por insígnias de seu estado real trazia um ramo de palma na mão. E aprouve a Deus que desta feita, ficando ele morto com sua palma, os nossos levaram a vitória, porque, com a morte dele, todolos seus se poseram em fugida, e os nossos em salvo em Portugal.

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58 20 63 Capítulo XV. Como o Infante mandou Gomes Pires ao Rio do Ouro, onde cativou oitenta almas. E assi mandou a Diogo Gil assentar trato em Meça, e Antão Gonçalves ao mesmo Rio do Ouro. E como veo a este reino um gentil homem da casa del-Rei de Dinamarca, com desejo de ver as cousas de Guiné, e o Infante o mandou em um navio, e lá pereceu. Como vimos atrás, os mouros que no Rio do Ouro deram as peles dos lobos marinhos a Gomes Pires, prometeram-lhe de fazer com ele resgate de ouro e escravos, se lá tornasse. O Infante, porque o tempo desta promessa era chegado, mandou-lhe armar dous navios, com os quais chegando ao Rio, achou que a verdade dos mouros era conforme a sua seita, porque, em lugar de paz e resgate que lhe tinham prometido, armavam muitas traições, que causou tomar Gomes Pires emenda deles, per oitenta almas que cativou, com se que veo pera o reino no mesmo ano de quatrosentos e quorenta e sete em que dele partiu. E no seguinte, mandou o Infante a um Diogo Gil, homem de mui bom saber, que fosse assentar trato com os mouros de Meça, que é doze léguas além do Cabo de Gué, e seis aquém do Cabo de Não, tam pouco tempo havia tam temeroso, na opinião dos mareantes. E isto porque os mouros do Rio do Ouro eram alevantados, e tinham por informação que estes de Meça desejavam nossa paz e comércio. E pera se isto milhor fazer, dos mouros que eram vindos daquelas partes, houve alguns da comarca de Meça que prometiam por si υa boa soma de negros. Em companhia do qual foi João Fernandes, o que ficou entre os mouros na terra de Arguim; per meio do qual, tendo já Diogo Gil resgatados cinquenta negros per dezoito mouros que levou, de súbito sobreveo tamanho vento travessão na costa, que se fez à vela, ficando João Fernandes em terra, e trouxeram um lião ao Infante, o qual ele mandou a um fidalgo ingrês, grande seu servidor, que vivia em Galveu . Como a fama destes navios, que descobriram novas regiões e povos, corria per toda a Cristandade, foi ter à Corte del-Rei de Dinamarca, em casa do qual andava um homem fidalgo per nome Balarte, mui curioso de cousas novas. E desejando de se experimentar em as deste descobrimento, havendo licença del-Rei de Dinamarca, veo ter a este reino, encomendado ao Infante Dom Hanrique. A requerimento do qual Balarte, o Infante lhe mandou armar um 64 navio, e polo mais honrar, mandou com ele um cavaleiro da Ordem de Cristo, a que chamavam Fernando Afonso, o qual ia em modo de embaixador ao Rei de Cabo Verde, levando dous negros por língua, per meio dos quais o Infante lhe mandava que se trabalhasse por converter aquela gente pagã. Balarte, como era desejoso de ver a costa que os nossos tinham 59 descoberta por ser povoada de mouros e negros, pediu a Fernando Afonso que fizessem sua viagem ao longo dela; e assi a esta causa como polos tempos lhe serem contrairos, do dia que partiram té chegar ao Cabo Verde poseram seis meses. Os negros da terra, por já serem costumados ver os nossos navios, tinham olho no mar, como quem se vigiava, e havendo vista deste, vieram a ele em suas almadias com mão armada e tenção de fazer algum dano, se podesse. Mas quando acharam as línguas que lhe falaram, per as quais souberam o fundamento a que o Infante mandava o navio, e que vinha nele embaixador e algυas cousas, pera o seu Rei, ficaram com ânimo menos indinado, respondendo a propósito, de maneira que foram levar recado ao regedor da terra, por o Rei ser dentro oito jornadas, em υa guerra que tinha. Sabido este recado per o governador da terra a que eles chamam Farim, veo à praia mui

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acompanhado, onde Fernando Afonso e Balarte assentaram paz e se deram reféns, enquanto ele enviava recado a el-Rei da chegada dos nossos. Da sua parte se deu um dos honrados da terra e da nossa um dos línguas, com que entre todos começou haver comércio; e entre as cousas que se houveram dos negros foram uns dentes de elefante, que alvoraçaram tanto a Balarte, que tratou com os negros se poderia ver um elefante vivo, e quando não, que lhe trouxessem a pele ou ossada de algum, prometendo por isso grande prémio. Os negros, como lhe prometeram preço, disseram que logo lhe trariam um elefante a lugar onde 20v o visse, e, tornados di a três dias, vieram chamar Balarte, dizendo trazerem o que lhe tinham prometido. Balarte, entrado no batel do navio somente com os marinheiros que o remavam, chegou a terra; e, sobre tomar υa cabaça de vinho de palma que um negro dava a um marinheiro, debruçou-se tanto no bordo do batel, que caiu o marinheiro ao mar. E na pressa de recolher o maririnheiro, descuidaram-se do batel, de maneira que deram as ondas com ele em terra, por o mar andar um pouco empolado. Os negros, vendo que os nossos não podiam ser socorridos do navio, deram sobre eles, dos quais não escapou mais que um que sabia nadar, o qual deu razão deste caso, e que, vindo nadando, olhara pera trás e vira estar Balarte em a popa do batel, pelejando como homem esforçado. Per esta maneira acabou este gentil homem, com desejo de ganhar honra fora de sua pátria. Tam remontado anda o desejo dos homens, que sendo este Balarte nascido em Dinamarca, veo buscar per própria vontade sua sepultura em Guiné, terra a ela tam contrária em todalas cousas! Com a morte do qual (que todos muito sentiram, assi por sua pessoa, que o merecia, como por ir acompanhada de tantos), Fernando Afonso se 65 tornou pera o reino, ficando os negros no próprio estado em que dante estavam, sem os nossos com eles poderem ter algυa prática, porque pela maldade que tinham feito 60 nunca mais vieram almadias ao navio, nem os nossos poderam ir a terra, por causa do batel que tinham perdido. E porque neste ano el-Rei Dom Afonso, sobrinho deste Infante, saiu da tutoria do Infante Dom Pedro, seu tio, e houve inteiramente posse do governo de seus reinos em idade de dezassete anos, posto que o Infante viveu até o ano de quatrocentos sessenta e três, sempre prosseguindo neste descobrimento, entraremos com o novo Rei em os feitos que em seu tempo passaram, pois já em seu nome o mesmo negócio procedia. Peró, ante que saiamos destes fundamentos da nossa Ásia, aos quais podemos chamar trabalhos e indústrias deste Infante, e posto que em as Crónicas do reino se pode ver parte dos seus feitos, aqui, como em lugar mais próprio, trataremos particularmente dele.

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60 20v 65 Capítulo XVI. Das feições da pessoa do Infante Dom Hanrique, e dos costumes que teve em todo o discurso de sua vida. Este excelente príncipe foi filho terceiro del-Rei Dom João, o primeiro, de gloriosa memória, e da Rainha Dona Felipa, sua mulher, filha do Duque João de Lencastro e irmã del-Rei Dom Hanrique, o quarto, de Inglaterra. E como da excelência do sangue pola maior parte procedem todalas inclinações da pessoa, podemos crer que, sobre este fundamento, Deus edificou nele as outras de alma que enquanto viveu mostrou em suas obras. Dizem que a estatura de seu corpo era de compassada medida e de largos e fortes membros, acompanhados de carne, a cor do qual era branca e corada, em que bem mostrava a boa compleição dos humores. Tinha os cabelos algum tanto alevantados, e o acatamento, à primeira vista (por a gravidade de sua pessoa) um pouco temeroso a quem dele não tinha conhecimento. E quando era provocado à ira mostrava υa vista esquiva, e isto poucas vezes, porque na maior força de qualquer desprazer que lhe fizessem, estas eram as mais escandalosas palavras que dizia: - Dou-vos a Deus! Sejais de boa ventura! A continência do seu vulto era assossegada, a palavra mansa e constante no que dizia, e sempre eram castas e honestas. E esta religião de honestidade guardou não somente em as obras, mas ainda nos vestidos, trajos de sua pessoa e serviço de casa. Todas estas cousas procediam da limpeza de sua alma, porque se crê 66 que foi virgem . Em seus trabalhos e paixões, era mui sofrido e senhor de si, e em ambas as fortunas humildoso, e tam benigno em perdoar erros que lhe foi tachado . Teve grande memória e conselho acerca dos negócios, e muita autoridade pera os graves e de muito peso. Foi magnífico em despender e edificar, e folgava de provar novas experiências em proveito comum, ainda que fosse com própria despesa de sua fazenda. Foi mui amador da criação dos fidalgos por os 61 doutrinar em bons costumes; e tanto zelou esta criação, que se pode dizer sua casa ser υa escola 21 de virtuosa nobreza, onde a maior parte da fidalguia deste reino se criou, aos quais ele liberalmente mantinha e satisfazia de seus serviços. E era assi confiado da criação e pessoa de cada um deles, que em seu testamento, encomendando ele a el-Rei Dom Afonso e ao Infante Dom Fernando, que ele adoptou per filho, que lhes aprouvesse que seus criados houvessem as tenças e cousas que tinham dele, disse que lhes pedia que recebessem seu serviço como de criados, porque, a Deus louvores, tais eram eles, que haveriam por bem empregada toda a mercê que lhes fizessem. E dado que em a honestidade de seu trajo, palavras, jejuns, rezar de ofício divino e institutos de sua capela, toda a sua vida pareceu υa perfeita religião, não lhe faleceram pensamentos de altas impresas e obras de generoso ânimo, quais convem aos de real sangue. Parte das quais se viram quando se achou em África, principalmente na tomada de Ceita, de que já tratámos na parte de África, e assi nesta impresa tam nova de descobrir o que té o seu tempo estava encoberto. Em que não somente encomendou as cousas ao bom sucedimento delas, mas ainda teve nele muita indústria e prudência pera conseguirem próspero fim. Porque, pera este descobrimento, mandou vir da Ilha de Malhorca um Mestre Jácome, homem mui douto na arte de navegar, que fazia cartas e instrumentos, o qual lhe custou muito polo trazer a este reino, pera ensinar sua ciência aos oficiais portugueses daquele mister. E também pera a Ilha da Madeira mandou vir de Sicília canas de açúcar que se nela

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plantassem, e mestres deste labor, mostrando em estas e outras cousas que cometeu de bem comum, ter no coração plantada a vontade de bem fazer, como ele trazia per moto de sua divisa nestas palavras francesas: Talent de bien faire. Pois acerca das letras, não tratando das sagradas, que ele per devoção e veneração muito amava, acerca das humanas era mui estudioso, principalmente na ciência da Cosmografia, de cujo fructo tem ora este reino o senhorio de Guiné, com todolos mais títulos que depois se acrescentaram à sua Coroa. E não somente aqui leixou este testemunho do amor e inclinação que 67 tinha às letras, mas ainda na liberalidade de que usou com os estudos de Lisboa, dando suas próprias casas pera eles, com outras cousas, cuja memória sempre neles é celebrada em o princípio de cada um ano, passadas as vacações dele. Deixou em sua vida descoberto, do Cabo Bojador, que está em trinta e sete graus de altura da parte do Norte, té a Serra Lioa, que está em sete e dous terços, que fazem de costa trezentas e setenta léguas, da qual terra o derradeiro descobridor foi um Pedro de Sintra, cavaleiro de sua casa. E posto que nos princípios deste descobrimento houve grandes dificuldades, 62 e foi mui murmurado (como atrás dissemos), teve tanta constância e fé na esperança que lhe o seu espírito, favorecido de Deus, prometia, que nunca desistiu deste descobrimento (enquanto pôde) per espaço de quorenta anos, começando em o de quatrocentos e vinte (não contando os atrás que foram sem fructo) em que a Ilha da Madeira foi descoberta, té treze de Novembro de quatrocentos sessenta e três, que em Sagres faleceu, sendo de sessenta e sete de sua idade. E foi sepultado em a vila de Lagos, e di passado ao mosteiro de Santa Maria da Vitória, a que chamam a Batalha, na capela del-Rei, seu padre. O qual Infante e príncipe de grandes impresas, segundo suas obras e vida, devemos crer que está em o Paraíso, entre os eleitos de Deus.

LIVRO II 63 21v 69 Capítulo primeiro. Como El-Rei Dom Afonso, o quinto deste nome, houve posse da governança deste reino, por sair da tutoria em que estava. E peró que o Infante Dom Hanrique enquanto viveu prosseguiu neste descobrimento, continuamos a história com El-Rei e não com ele. E das causas que houve por que não escrevemos mais feitos do tempo deste Rei. Como el-Rei Dom Afonso saiu da tutoria em que estava por sua tenra idade, e começou governar sendo de dezassete anos, logo mandou alguns navios a este descobrimento, posto que o Infante por sua parte também nele prosseguisse, e el-Rei em Santarém, a dous de Setembro de quatrocentos quorenta e oito, lhe passasse carta que nenhυa pessoa podesse descobrir do Cabo Bojador em diante, e assi houvesse, enquanto fosse sua mercê, o quinto e dízimo de tudo o que as partes de lá trouxessem, da qual doação o Infante usou enquanto viveu. Mas como logo no princípio que el-Rei começou governar, antre ele e o Infante Dom Pedro, seu tio, que fora regente destes reinos, houve a diferença, que na parte de Europa relatamos, e assi idas de África e Castela que quási ocuparam a vida del-Rei, causou não levar o fio deste descobrimento tam continuado como no tempo do Infante Dom Hanrique foi. De escrever os quais feitos teve cuidado Gomes Eanes de Zurara, cronista destes reinos, homem neste mister da história assaz diligente, e que bem mereceu o nome do ofício que teve. Porque, se algυa cousa há bem escrita das Crónicas deste reino, é da sua mão, e assi dos tempos em que ele concorreu como dalguns atrás, de cousas de que não havia 70 escritura. E estas que ele escreveu deste descobrimento do tempo do Infante Dom Hanrique (segundo ele diz), já as recebeu de um 64 Afonso Cerveira, que foi o primeiro que as pôs em ordem. Do qual Afonso Cerveira nós achamos algυas cartas escritas em Beni, estando ele ali feitorizando por parte del-Rei Dom Afonso. E posto que tudo ou a maior parte do que té qui escrevemos seja tirado da escritura de Gomes Eanes, e assi deste Afonso Cerveira, não foi pequeno o trabalho que tivemos em ajuntar cousas derramadas, e por papéis rotos e fora da ordem que ele, Gomes Eanes, levou no processo deste descobrimento. As cousas do tempo del-Rei Dom Afonso, como ele prometeu, não as achámos: parece que teria a vontade e não o tempo; ou se as escreveu eram perdidas, como outras escrituras que o tempo consumiu. Portanto o que escrevemos do tempo del-Rei Dom Afonso não são mais que algυas lembranças que achamos no Tombo e nos livros da sua fazenda, sem aquela ordem de anos que seguimos atrás, somente uns fragmentos deste descobrimento. Nas quais lembranças, achamos que no ano de quatrocentos quorenta e nove, deu el-Rei licença ao Infante Dom Hanrique que podesse mandar povoar as sete ilhas dos Açores, as quais já naquele tempo eram descobertas e nelas lançado algum gado, per mandado do mesmo Infante, per um Gonçalo Velho, comendador de Almourol, junto da vila de Tancos. E no ano de quatrocentos cinquenta e sete, fez el-Rei mercê ao Infante Dom Fernando, seu irmão, de todalas ilhas que até então eram descobertas, com jurdição de cível e crime e com certas limitações. E no de quatrocentos e sessenta, fez o Infante Dom Hanrique doação ao Infante Dom Fernando, seu sobrinho e filho adoptivo, destas duas ilhas: Jesu e Graciosa, reservando somente pera si a espiritualidade que era da Ordem de Cristo que ele governava, a qual doação confirmou el-Rei em 22 Lisboa, a dous de Setembro do mesmo ano. E em o seguinte de quatrocentos sessenta e um, porque às ilhas de Arguim concorria resgate de ouro e negros de Guiné, mandou el-Rei fazer o castelo de Arguim, que hoje está em pé, por Soeiro Mendes, fidalgo de sua casa, morador em Évora, ao qual deu a alcaidaria-mor, pera si e pera seus filhos. Neste mesmo tempo achamos também que se descobriram as ilhas a que ora chamamos do

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Cabo Verde, per um António de Nole, genoês de nação e homem nobre, que per alguns desgostos da pátria veo a este reino com duas naus e um barinel, em companhia do qual vinha um Bartolomeu de Nole, seu irmão, e Rafael de Nole, seu sobrinho. Aos quais o Infante deu licença que fossem descobrir, e do dia que partiram da cidade de Lisboa a dezasseis dias, foram ter à Ilha de Maio, à qual poseram este nome, porque a viram em tal dia. E no seguinte, que era de Santiago e São Filipe, descobriram duas, que tem ora o nome destes santos. 71 No qual tempo eram também idos ao descobrimento delas uns criados do Infante Dom Fernando, os quais 65 descobriram as outras, que per todas são dez, chamadas per comum nome Ilhas do Cabo Verde, por estarem ao Ponente dele per distância de cem léguas, e por os antigos geógrafos as Fortunadas, de que em a nossa Geografia falamos largamente. Das quais el-Rei fez doação ao Infante Dom Fernando, seu irmão, em dezanove de Setembro, do ano de mil e quatrocentos sessenta e dous. E a primeira que se povoou, foi a chamada Santiago per o mesmo Infante Dom Fernando, a quem el-Rei deu as liberdades que ora tem per carta feita a doze de junho de quatrocentos sessenta e seis. Mas depois, porque os moradores usavam destas primeiras liberdades acerca de tratar em Guiné, com mais licença do que a vontade del-Rei queria, per outra carta lhe deu a limitação delas, conforme a tenção que teve quando lhe fez a primeira mercê.

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65 22 71 Capítulo II. Como El-Rei arrendou o resgate de Guiné a Fernão Gomes por tempo de cinco anos, com obrigação que neste tempo havia de descobrir quinhentas léguas de costa. E porque descobriu o resgate do ouro da Mina, foi dado a Fernão Gomes apelido «da Mina», com armas desta nobreza. Neste tempo o negócio de Guiné andava já mui corrente entre os nossos e os moradores daquelas partes, e uns com os outros se comunicavam em as cousas do comércio com paz e amor, sem aquelas entradas e saltos de roubos de guerra que no princípio houve. O que não pode ser doutra maneira, principalmente acerca de gente tam agreste e bárbara, assi em lei e costumes, como no uso das cousas desta nossa Europa. A qual gente, em quanto não gostou delas, sempre se mostrou mui esquiva; peró, depois que tiveram algυa notícia da verdade pelos benefícios que recebiam, assi na alma como no intendimento, e cousas pera seus usos, ficaram tam domésticos, que não havia mais que partirem os navios deste reino, e, chegados a seus portos, concorriam muitos povos do sertão ao comércio de nossas mercadorias, que lhe davam a troco de almas, as quais mais vinham receber salvação que cativeiro. E andando assi estas cousas, tam correntes e ordinárias em as partes de costa já descoberta, como el-Rei pelos negócios do reino andava ocupado, e não havia por seu serviço per si mandar grangear esta propriedade do comércio, nem menos deixá-lo correr no modo que andava acerca do que as partes pagavam, por lhe ser cometido em Novembro do ano de mil e quatrocentos 72 e sessenta nove, o arrendou por tempo de cinco anos a Fernão Gomes, um cidadão honrado de Lisboa, por duzentos mil réis cada ano, com condição, que, em cada um destes cinco anos, fosse 66 obrigado descobrir pela costa em diante cem léguas, de maneira que no cabo do seu arrendamento, desse quinhentas léguas descobertas. O qual descobrimento havia de começar na serra Lioa, onde acabaram Pero de Sintra e Soeiro da Costa, que foram ante deste arrendamento os derradeiros descobridores; porque depois este Soeiro da Costa descobriu o rio a que ora chamamos o de Soeiro, que está entre o Cabo das Palmas e as Três Pontas, 22v vezinho a casa de Axém, onde se faz a feitoria do resgate do ouro. E entre outras condições que se continham neste contrato, era que todo o marfim havia de ser del-Rei, a preço de mil e quinhentos reais por quintal, e el-Rei o dava a outro maior preço a um Martim Anes Boviage, por lhe ser obrigado per outro contrato feito ante deste, a todo o marfim que se resgatasse em Guiné. E por cousa mui estimada naquele tempo, tinha Fernão Gomes licença pera poder resgatar em cada um dos ditos cinco anos, um gato de algália. O qual contrato foi feito no ano de quatrocentos sessenta e nove, com limitação que não resgatasse em a terra firme defronte das Ilhas do Cabo Verde, por ficar pera os moradores delas, por serem do Infante Dom Fernando. Nem menos lhe foi concedido o resgate do castelo de Arguim por El-Rei o ter dado ao príncipe Dom João, seu filho, em parte do assentamento que dele tinha. Peró depois houve o mesmo Fernão Gomes do Príncipe este resgate de Arguim por certos anos, por preço de cem mil reais em cada um deles. E foi Fernão Gomes tão diligente e ditoso em este descobrimento e resgate dele, que logo no Janeiro de quatrocentos setenta e um, descobriu o resgate do ouro onde ora chamamos a Mina, per João de Santarém e Pero Escovar, ambos cavaleiros da casa del-Rei; e eram pilotos Martim Fernandes, morador em Lisboa, e Álvaro Esteves, morador em Lagos, o qual Álvaro Esteves naquele tempo foi o mais estremado homem que havia em Espanha de

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seu ofício. O primeiro resgate do ouro que se fez nesta terra, foi em υa aldea chamada Samá, que naquele tempo seria de quinhentos vezinhos, e depois se fez mais abaixo contra onde ora está a fortaleza que el-Rei Dom João mandou fazer (como veremos em seu lugar), o qual lugar se chamava pelos nossos Aldea das Duas Partes. E não somente descobriu Fernão Gomes este resgate do ouro, mas chegaram os seus descobridores pela obrigação do seu contrato té o Cabo de Santa Caterina, que é além do Cabo de Lopo Gonçalves trinta e sete léguas, e em dous graus e meio de altura da parte do Sul. No qual tempo ganhou Fernão Gomes mui grossa fazenda, com que depois serviu el-Rei, assi em Ceita como na tomada de Alcácer, Arzila e Tânger, onde el-Rei o fez cavaleiro. E no ano de quatrocentos setenta e 73 quatro, que foi o derradeiro de seu arrendamento, lhe deu nobreza de 67 novas armas, um escudo timbrado com o campo de prata e três cabeças de negros, cada um com três arriéis de ouro nas orelhas e narizes, e um colar de ouro ao colo, e por apelido da Mina, em memória do descobrimento dela, e disso lhe passou carta a vinte nove de Agosto do dito ano. Depois, passados quatro anos, o fez do seu conselho, porque já neste tempo era o comércio de Guiné e resgate da Mina de tanto proveito, e ajudava tanto em substância ao estado do reino, pela boa indústria de Fernão Gomes, que assi por este serviço como por outros particulares de sua pessoa, merecia toda a honra e mercê que lhe fosse feita. Neste tempo se descobriu também a Ilha Fermosa per um Fernão do Pó, a qual tem ora o nome de seu descobridor, e perdeu o que lhe ele então pôs. E o derradeiro descobridor em vida deste Rei Dom Afonso, foi um de Sequeira, cavaleiro de sua casa, o qual descobriu o cabo a que chamamos de Caterina, nome que lhe ele então pôs pelo descobrir em o dia desta santa. E não somente neste tempo, por mandado del-Rei, depois que começou governar, mas ainda per o mesmo Infante Dom Hanrique, que, como atrás vimos, viveu té o ano de quatrocentos sessenta e três, sempre houve conquistas e descobrimentos, assi como da costa donde veo a primeira malagueta, que se fez per o Infante Dom Hanrique. Da qual algυa que em Itália se havia, ante deste descobrimento, era per mãos dos mouros destas partes de Guiné, que atravessavam a grande região de Mandinga e os desertos da Líbia, a que eles chamam Sahará, té aportarem em o mar Mediterrâneo em um porto per eles chamado Mundi Barca, e corruptamente Monte da Barca. E de lhe os italianos não saberem o lugar de seu nascimento, por ser especearia tam preciosa, lhe chamaram, Grana Paradisi, que é nome que tem antre eles. Também se descobriu a Ilha de São Tomé, Ano Bom e a do Príncipe per mandado del-Rei Dom Afonso, e outros resgates e ilhas, das quais não tratamos em particular por não termos quando e per que capitães foram descobertas. Porém sabemos na voz comum serem mais cousas passadas e descobertas no tempo deste Rei do que temos escrito, assi como υa ilha que ainda hoje per nós não 23 é sabida e foi achada no ano de quatrocentos trinta e oito anos. E por não parecer estranho o que digo, trarei um testemunho, em que entram muitas testemunhas desta verdade: Atravessando o ano de quinhentos e vinte cinco υa armada de Castela, da costa de Guiné pera a costa do Brasil, a qual ia pera as nossas Ilhas de Maluco, de que era Capitão-mor Frei Garcia de Loais, comendador da Ordem de São João, da qual viagem nós houvemos um roteiro, conta o autor dele υas razões que nesta paragem houveram um Dom Rodrigo da Cunha, fidalgo andaluz, capitão da nau Santiago daquela armada, e Santiago Guevara, biscainho, capitão de υa pataxa chamada 68 também Santiago - isto

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74 sobre competência de quem levaria ante o Capitão-mor um navio português a que ambos arribaram, o qual vinha da Ilha de São Tomé carregado de negros e açúcares, - e de palavras vieram estes capitães às bombardas, e tudo a caravela foi levada ante o Capitão-mor. O qual teve prática com o piloto pera o levar consigo, mas leixou de o fazer por estar o navio em paragem que carregaria sobre ele a morte de tantas almas como nela vinham, por lhe não ficar pessoa que as soubesse navegar pera este reino; na qual determinação o trouxe um dia consigo em perguntas das cousas do mar, té que o espediu, sem lhe fazer dano algum. Do qual piloto (segundo conta o autor do Roteiro) souberam como os portugueses estavam em Maluco, onde tinham feito υa fortaleza, e que, seguindo eles sua viagem, sendo dous graus da parte do Sul, acharam υa ilha despovoada de gente, chamada São Mateus, em que havia duas aguadas, υa muito boa e outra não tal. E em duas árvores estava escrito que havia oitenta e sete anos que nela estiveram portugueses; e tinha maneira de ser já aproveitada, por haver nela muita fructa, especialmente laranjas doces, palmeiras e galinhas, como as destas partes de Espanha, de que mataram muitas à besta, que andavam per cima do arvoredo. Conta mais outras 23v cousas que acharam nela, de que somente tomei estas por testemunho do que acima dissemos: terem os nossos mais terras descobertas naquele tempo do que achamos na escritura de Gomes Eanes de Zurara. E não é novidade achar-se esta memória de escritura em as árvores, porque os nossos naquele tempo o costumavam muito; e alguns por louvor do Infante Dom Hanrique, escreviam o moto de sua divisa, que como vimos atrás, era: Talent de bien faire. Porque somente esta memória escrita na casca dos dragoeiros haviam que bastava por posse do que descobriam, e algυas cruzes de pau. Depois (como adiante veremos), el-Rei Dom João, o segundo, em seu tempo mandou poer padrões de pedra com letreiro em que diz o tempo e per quem aquela terra foi descoberta, e isto bastava por posse real; e ao presente ainda as fortalezas feitas na própria terra não bastam, porque veo a cobiça dos homens a inventar leis conformes a ela. E como todolos príncipes a maior parte da vida gastam nas obras de sua inclinação, veo el-Rei Dom Afonso a se descuidar das cousas deste descobrimento e celebrar muito as da guerra de África, com a tomada das vilas de Alcácer e Arzila e cidade de Tânger (segundo contamos em a nossa África) as vezes que lá passou em pessoa. Na qual guerra de África teve tanto contentamento, por as boas venturas que nele houve, que emprendeu (se lhe os negócios do governo do reino deram lugar) ir tomar per sua pessoa a cidade de Fez e todo seu reino, pera 75 que tinha ordenado υa ordem chamada da Espada. E assi mandou 69 a Gomes Eanes de Zurara, seu cronista-mor, à vila de Alcácer-Seguer, em África, pera que com fé de vista podesse escrever os feitos daquela guerra. Ao qual escreveu υa carta de sua própria mão, em louvor do trabalho que lá tinha, por razão da obra que fazia, e isto não com palavras taxadas e avaras, segundo o uso dos príncipes, mas em modo eloquente e de pródigo orador, como quem se prezava disso. O qual Gomes Eanes, vendo a deleitação que el-Rei tinha nas cousas desta milícia, escreveu a Crónica da Tomada de Ceita, e outra Crónica dos feitos do Conde Dom Pedro de Meneses e do Conde Dom Duarte, seu filho, relatando os feitos daquela guerra mui particularmente, e per estilo claro e tal que bem mereceu o nome do ofício que teve. E porque cada um não perca seu trabalho, também escreveu a Crónica deste rei Dom Afonso té a morte do Infante Dom Pedro, e a Crónica del-Rei Dom Duarte, seu padre, as quais Rui de Pina que o sucedeu no ofício fez suas, pelo que emendou e acrescentou nelas, principalmente na

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del-Rei Dom Afonso, acerca das cousas que passaram depois da morte do Infante Dom Pedro. Fez ainda Gomes Eanes outra obra no Tombo deste reino, que alumiou muito as cousas dele, que foram os livros dos registros, recopilando em certos volumes as forças de muita escritura que andava solta, começando em el-Rei Dom Pedro té el-Rei Dom João, de gloriosa memória. Isto por razão de ser guarda-mor do mesmo Tombo, ofício mui próprio dos cronistas, por ser υa custódia de toda a escritura do reino. A qual convém ser passada pelos olhos do cronista dele, pera com mais verdade e cópia de cousas poder escrever todo o discurso dos feitos do Rei de que é oficial. Porque aqui se acham ordenações, cortes, casamentos, contratos, armadas, festas, obras, doações, mercês, assi per registro da chancelaria e fazenda como per contas de todo o reino, se ele quiser e souber usar da cópia de tanta escritura. E verdadeiramente (tornando a Gomes Eanes em quem concorreu cronista e guarda-mor da Torre do Tombo) eu não sei quanto ele viveu, nem o tempo que teve estes ofícios, mas sei, segundo o que deixou feito per sua mão, que não foi servo sem proveito, mas dino dos cargos que teve, assi pelo estilo como diligência das cousas que tratou.

LIVRO III 71 24 77 Capítulo primeiro. Como El-Rei Dom João, sucedendo no reino por falecimento del-Rei Dom Afonso, seu pai, mandou logo υa grande armada às partes de Guiné, a fazer o castelo que agora chamamos de São Jorge da Mina, da qual armada foi Capitão-mor Diogo de Azambuja; e como se viu com Caramansa, senhor daquele lugar. El-Rei Dom João, como já em vida del-Rei Dom Afonso, seu pai, tinha o negócio de Guiné em parte do assentamento da sua casa, e per experiência dele sabia responder com ouro, marfim, escravos e outras cousas que enriqueciam o seu reino, e cada ano se descobriam novas terras e povos com que a esperança do descobrimento da Índia per estes seus mares se acendia mais nele, com fundamentos de cristianíssimo príncipe e barão de grande prudência, ordenou de mandar fazer υa fortaleza como primeira pedra da Igreja oriental, que ele em louvor e glória de Deus desejava edificar, per meio desta posse real que tomava de todo o descoberto e por descobrir, segundo tinha per doações dos Sumos Pontífices (como atrás dissemos). E sabendo que na terra onde acudia o resgate do ouro folgavam os negros com panos de seda, de lã, linho e outras cousas do serviço e polícia de casa e que em seu trato tinham mais claro intendimento que os outros daquela costa, e que no modo de seu negociar e comunicar com os nossos davam de si sinais pera facilmente receberem o baptismo, ordenou que esta fortaleza se fizesse em aquela parte onde os nossos ordinariamente faziam o resgate do ouro. Porque com esta isca de bens temporais que sempre ali haviam de achar, recebessem os da Fé, mediante a doutrina dos nossos, o qual efeito era o seu principal intento. 78 E dado que pera esta obra da fortaleza houvesse em seu conselho contrairas opiniões, representando 72 a distância do caminho, e os ares da terra serem pestíferos à saúde dos homens que lá estivessem, e assi os mantimentos da terra e o trabalho de navegar, houve el-Rei por maior bem υa só alma, que por causa da fortaleza podia vir à Fé per baptismo, que todolos outros inconvenientes, dizendo que Deus proveria neles, pois aquela obra se fazia em seu louvor, e afim pera que seus vassalos podesse fazer algum proveito, e também o património deste reino fosse acrescentado. Assentando que se fizesse esta fortaleza, mandou aperceber υa armada de dez caravelas e duas urcas, em que fosse pedra lavrada, telha, madeira, e assi todalas outras munições e mantimentos pera seiscentos homens de que os cento eram oficiais pera esta obra e os quinhentos de peleja. Dos quais navios era Capitão-mor Diogo de Azambuja, pessoa mui experimentada nas cousas da guerra, e os outros capitães eram Gonçalo da Fonseca , Rui de Oliveira, João Rodrigues Gante, João Afonso, que depois mataram em Arguim, sendo capitão daquela fortaleza, João de Moura, Diogo Rodrigues Ingrês, Bartolomeu Dias, Pero de Évora e Gomes Aires, escudeiro del-Rei Dom Pedro de Aragão, o qual entrou em lugar de Pero de Azambuja, irmão dele, Diogo de Azambuja, por morrer de peste primeiro que partissem de Lisboa, que a este tempo andava nela, todos homens nobres e criados del-Rei. E os capitães das urcas eram Pero de Sintra e Fernando Afonso. Por levarem toda a munição desta fortaleza, partiram diante alguns dias, e em sua companhia Pero de Évora em um navio pequeno, pera que, se as urcas não podesse chegar a fazer a pescaria no porto de Bezeguiche, onde haviam de esperar, que este navio a fizesse. O 24v qual negócio Pero de Évora fez com muita diligência, e outro mais principal, que foi fazer paz com Bezeguiche, senhor daquela costa, donde ficou o nome que hoje tem aquele porto. Diogo de Azambuja, acabando de confirmar esta paz depois que ali chegou, que foi béspora de Natal do ano de quatrocentos oitenta e um, havendo doze dias que partira de Lisboa, tornou a sua

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derrota, e deu-lhe Deus tam boa viagem, posto que teve algum trabalho com υa urca que fazia muita água, que a dezanove de janeiro daquele ano seguinte, chegou ao lugar onde se havia de fazer o castelo, que naquele tempo se chamava Aldea das Duas Partes. No qual lugar achou João Bernaldes com um navio del-Rei, fazendo resgate de ouro com Caramansa, senhor daquela aldea, e per ele lhe mandou dizer que era ali vindo com aquela grande frota, que el-Rei de Portugal, seu senhor, mandava, em a qual vinha muita gente nobre pera bem e honra de sua pessoa, como depois per ele mesmo saberia; que lhe rogava houvesse por bem de se verem ambos ao outro dia, em que ele esperava de sair em terra. 79 Vinda a reposta de Caramansa, mostrando contentamento de sua chegada, saiu Diogo de Azambuja em terra com toda 73 sua gente vestida de louçainha e suas armas secretas, se o tempo as pedisse. E da primeira cousa que tomou posse foi de υa grande árvore que estava em um teso afastada algum tanto da aldea, lugar mui disposto pera se fazer a fortaleza. Em a qual árvore mandou arvorar υa bandeira das quinas reais e ao pé dela armar um altar, onde se celebrou a primeira missa dita naquelas partes da Etiópia. A qual foi ouvida dos nossos com muitas lágrimas de devação, dando muitos louvores a Deus em os fazer dinos que na força de tanta idolatria o podesse louvar e glorificar em sacrifício de louvor, pedindo-lhe, pois lhe aprouvera serem eles os primeiros que levantassem altar de tam alto sacrifício, que lhe desse saber e graça pera atrair aquele povo idólatra a sua fé, com que a Igreja que ali fundassem fosse durável té fim do Mundo. Acabada esta missa, que foi em dia de São Sebastião, (em memória do qual ficou este nome a um vale per que corre um esteiro onde primeiro saíram), porque Diogo de Azambuja esperava por Caramansa, o qual abalava já de sua aldea, pôs em ordem a toda sua gente: ele, assentado em υa cadeira alta, vestido em um pelote de brocado, e com um colar de ouro e pedraria, e os outros capitães todos vestidos de festa; e assi ordenada a outra gente, que faziam υa comprida e larga rua, pera que, quando Caramansa viesse, que o visse naquele aparato. Caramansa, como também era homem que queria mostrar seu estado, veo com muita gente posta em ordenança de guerra, com grande matinada de atabaques, bozinas, chocalhos e outras cousas que mais estrugiam que deleitavam os ouvidos. Os trajos de suas pessoas eram os naturais de sua própria carne, untados e mui luzidos, que davam mais pretidão aos coiros, coisa que eles costumavam por louçainha. Somente as partes vergonhosas eram cobertas, deles com peles de bugios, outros com panos de palma, e os mais principais com alguns pintados que per resgate houveram dos nossos navios que ali iam resgatar ouro. Porém geralmente em seu modo todos vinham armados, uns com azagaias e escudos, outros com arcos e coldres de frechas, e muitos, em lugar de arma da cabeça, υa pele de bugio, o casco da qual todo era encravado de dentes de alimárias, todos tam disformes com suas invenções por mostrar ferocidade de homens de guerra, que mais moviam a riso que a temor. Os que entre eles eram estimados por nobres, como insígnias de sua nobreza, traziam dous pages trás si: um lhe trazia um assento redondo de pau pera se assentar a tomar repouso onde quisesse, e outro o escudo da peleja; e estes nobres pela cabeça e barba traziam alguns arriéis e jóias de ouro. O seu Rei, Caramansa, em meio de todos, vinha coberto, pernas e 80 braços, de braceletes e argolas de ouro, e ao pescoço um colar, do qual dependiam υas campainhas meúdas, e pela barba retorcidas υas vergas de ouro, 74 que assi lhe chumbavam os cabelos dela, que de retorcidos os faziam corredios. A continência de sua pessoa, era vir com uns passos mui vagarosos, pé ante pé, sem mover o rostro a parte algυa. Diogo de Azambuja, enquanto ele vinha com esta gravidade, esteve quedo em seu estrado, té que, sendo já metido entre a nossa gente, abalou a ele, e ajuntando-se ambos, tomou Caramansa a

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mão a Diogo de Azambuja, e tornando-a a recolher, deu um trinco com os dedos, dizendo esta palavra: - Bere! Bere! - que quere dizer: - Paz! Paz! - o qual trinco entre eles é o sinal da maior cortesia 25 que se pode fazer. Afastado el-Rei a υa parte, deu lugar que chegassem os seus fazer outro tanto a Diogo de Azambuja, mas, no modo de tocar os dedos, fizeram esta diferência del-Rei, molhando o dedo na boca, e des i limpo, no peito o tocaram - cousa que se faz do menor ao maior, em final de salva, que se cá toma aos príncipes, porque dizem eles que pode levar peçonha neste dedo, se ante o não alimparem per este modo. Acabadas estas cerimónias de cortesia, que duraram um bom pedaço, por ser muita a gente que Caramansa trazia, e feito silêncio, começou Diogo de Azambuja per meio de υa língua a lhe propoer a causa de sua ida: a qual era ter el-Rei, seu senhor, sabido a vontade e desejo dele, Caramansa, acerca das cousas de seu serviço, e quanto trabalhava de o mostrar no bom e breve aviamento que dava aos seus navios que àquele porto chegavam. e que por estas cousas procederem de amor, el-Rei lhas queria pagar com amor que tinha mais vantaje que o seu, que era amor da salvação de sua alma, cousa mais preciosa que os homens tinham, por ela ser a que lhe dava vida, intendimento pera conhecer e entender todalas cousas, e per a qual o homem era diferente dos brutos. E aquele que a quisesse conhecer, era necessário ter primeiro conhecimento do Senhor que a fizera, o qual era Deus, que fizera o céu, sol, lυa e terra, com todalas cousas que nela há; aquele que fazia o dia e noite, chuivas, trovões, relâmpados, e criava todalas novidades de que se os homens mantinham. Ao qual Deus, el-Rei de Portugal, seu senhor, todos os outros príncipes da Cristandade (que era υa grande parte da terra do Mundo) reconheciam por criador e senhor, e a ele adoravam e nele criam, como aquele de quem tinham recebido todalas cousas, e a quem a sua alma havia de ir dar conta, depois da morte, do bem e mal que nesta vida fizera, por ser um senhor tam justo, que aos bons levava ao Céu, onde ele estava, e aos maus lançava no abismo da terra, lugar chamado Inferno, habitação dos diabos, atormentadores destas almas. 81 As quais cousas pera ele, Caramansa, poder entender, era necessário ser lavado em υa água santa, a que os cristãos chamam baptismo da Fé. Porque, bem como as águas do rio lavam os olhos pera milhor verem quando estão pegados de algum pó ou cousa que os 75 cega, assi esta água baptismal lavava os olhos de alma pera poderem ver e entender as cousas que tratam da mesma alma, e este Deus era o que el-Rei Dom João, seu senhor, lhe mandava pedir que reconhecesse por seu criador pera o adorar, protestando de viver e morrer em sua Fé e aceitando o baptismo em testemunho dela. O qual baptismo, se ele, Caramansa, aceitasse e recebesse, ele, Diogo de Azambuja, em nome del-Rei, seu senhor, lhe prometia dali em diante de o haver por amigo e irmão nesta Fé de Cristo que professava, e de o ajudar em todalas cousas que dele tevesse necessidade. E que, em sinal deste prometimento, ele era ali vindo com toda aquela gente pera o que comprisse a sua honra e bem de seu estado, e não somente per aquela vez acharia aquela ajuda, mas em todo o tempo que ele permanecesse naquela Fé de Cristo, Deus e senhor nosso, que lhe ele amoestava. E porque ao presente ele vinha bem provido de mercadorias e cousas mui ricas que ainda ali não foram vistas, pera guarda das quais lhe era necessário fazer υa casa forte em que estevessem recolhidas, e assi alguns aposentos onde se podesse agasalhar aquela gente honrada que com ele vinha, lhe pedia que houvesse por bem que ele fizesse este recolhimento. O qual ele esperava em Deus que seria penhor pera el-Rei ordinariamente mandar fazer ali resgate, com que ele, Caramansa, seria poderoso em terras e senhor dos comarcãos, sem alguém o poder anojar, porque a mesma casa e o poder del-Rei, que nela estaria, o defenderiam. E dado que Baio, Rei de Sama, e outros príncipes seus vezinhos, houvessem por grande honra ser esta fortaleza feita em suas terras, e

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ainda por isso faziam um grande serviço a el-Rei, ele houve por bem ser esta obra feita ante em sua terra, que polo amor e amizade que ele, Caramansa, tratava as cousas de seu serviço.

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75 25 82 Capítulo II. Do que respondeu o príncipe Caramansa às palavras de Diogo de Azambuja. E do consentimento que deu a se fazer a fortaleza, com a qual ficou o trato do Comércio assentado em paz té hoje. 25v Caramansa, peró que fosse homem bárbaro, assi per sua natureza como pela comunicação que tinha com a gente dos navios que vinham ao resgate, era de bom intendimento e tinha o juízo claro pera receber qualquer cousa que estevesse em boa razão. E como quem desejava entender as cousas que lhe eram propostas, não somente esteve pronto a ouvir quando lhas a língua resumia, mas ainda esguardava todalas continências que Diogo de Azambuja fazia, e em todo o tempo que isto passou, assi ele como os seus, esteveram em um perpétuo silêncio, sem haver quem somente escarrasse, tam obedientes e ensinados os trazia. 76 E como homem que queria recorrer pela memória o que ouvira e consirar o que havia de responder, acabada a fala, pregou os olhos no chão per um pequeno espaço, e des i disse: Que ele tinha em mercê a el-Rei, seu senhor, a vontade que lhe mostrava, assi na salvação de sua alma como em as outras cousas de sua honra, e que certo ele lho merecia em o bom despacho dos seus navios que àquele porto vinham resgatar, sendo mui bem tratados com toda fé e verdade em seus comércios e resgates. Em o qual tempo nunca em a gente deles vira cousa de que se podesse tanto espantar como daquela sua vinda, porque em os navios passados via homens rotos e mal roupados, os quais se contentavam com qualquer cousa que lhe davam a troco de suas mercadorias - e este era o fim de sua vinda àquelas partes, e todo seu requerimento era que os despachassem logo, como quem fazia mais fundamento da sua pátria que da habitação das terras alheas. Mas nele, capitão, via outra cousa, que era muita gente, e muito mais ouro e jóias do que havia naquelas partes onde ele nascia, e com isto novo requerimento de querer fazer casa de vivenda em terra; donde conjecturava duas cousas: a primeira, que ele não podia ser senão mui chegado parente del-Rei de Portugal; e a segunda, que um homem tam principal como ele era, não podia vir senão a grandes cousas, e tais como eram as que ele dizia do Deus que fazia o dia e noite, e de quem tantas cousas dissera, cujo servidor era o seu Rei. Porém, querendo esguardar a natureza de um homem tam principal como ele, capitão, era, e assi daquela luzida gente que o acompanhava, via que homens de tal calidade sempre haviam de querer cousas conformes a eles. E porque o ânimo de tam generosa gente como era a sua, mal se poderia conformar com a pobreza e simplicidade daquela bárbara terra de Guiné, donde às vezes podiam recrecer contendas e paixões entre todos, lhe pedia houvesse por bem que os navios fossem e viessem como soíam, ca per esta 83 maneira sempre estariam em paz e concórdia, porque os amigos que se viam de tarde em tarde com mais amor se tratavam, que quando se vezinham. E isto causava o coração do homem, por ser como as ondas do mar que batiam naquele recife de pedras que ali estava; o qual mar, pela vezinhança que tinha com ele, e lhe empedir estender-se pela terra à sua vontade, quebrava tam fortemente no vezinho, que de bravo e soberbo levantava suas ondas té o céu, e com esta fúria fazia dous danos: um a si mesmo, assanhando-se, e outro ao vezinho, em o ferir. Que isto não dezia por se escusar de obedecer aos mandados del-Rei de Portugal, mas por aconselhar ao bem da paz, e à muita prestança que ele desejava ter com todolos naturais do seu reino que àquele porto viessem, e também porque, havendo esta paz entre ambos, todo aquele seu povo com mais

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77 amor folgaria de ouvir as cousas do seu Deus, que lhe ele vinha dar a conhecer. Porisso, enquanto o tempo mostrava a experiência destes inconvenientes, lhe pedia que os evitassem, leixando correr o resgate no modo em que estava. A estas palavras e dúvidas, que pareciam empedir fazer-se a fortaleza, respondeu Diogo de Azambuja: Que a causa del-Rei, seu senhor, o enviar com tam grande aparato àquela terra, fora desejar paz e mais estreita amizade com ele do que té então teveram. E como penhor deste desejo, queria ali fazer casa em que se pusesse sua fazenda, em a qual obra Sua Alteza mostrava a muita confiança que tinha nele, Caramansa, e em seus vassalos, porque ninguém punha sua fazenda em lugar suspeitoso de enganos. Que quando aí houvesse algυa cousa que temer, a ele, Diogo de Azambuja, e a toda aquela gente que o acompanhava convinha este temor, pois confiavam suas vidas e fazendas da terra estranha e mais tam alongada do adjutório da sua. 26 E posto que o coração do homem, como ele dizia, era per sua natureza livre, estes eram aqueles que não tinham Rei tam amigo da justiça como era el-Rei, seu senhor, donde os seus vassalos assi eram obedientes a seus mandados, que mais temiam desobedecer-lhe que a mesma morte. Que ele não era filho nem irmão del-Rei, como ele cuidava, mas um dos mais pequenos vassalos de seu reino, e tam obrigado a comprir o que lhe mandava acerca da paz e concórdia em a obra daquela casa, que ante perderia a vida que traspassar seu mandado. Da qual palavra os negros, vendo que el-Rei se espantava de tanta obediência, e que, segundo seu costume, dava com υa mão na outra, eles, por sinal de obedientes, deram também outras palmadas com que romperam a palavra de Diogo de Azambuja. E ante que mais procedesse, acabado o rumor, Caramansa lhe atalhou, tomando por conclusão que era contente fazer-se a casa que pedia, amoestando-lhe a paz e verdade, porque fazendo os seus o contrairo, mais enganavam e danavam a si que a ele, porque a terra era grande e, onde quer que chegassem ele e os seus, não lhe faleceriam uns poucos de paus e rama com que fizessem outra morada. 84 Acabando el-Rei sua conclusão sobre o fazer da casa, sem responder ao mais do bautismo que lhe foi amoestado, espediu-se do capitão, tornando na ordem em que veo, e ele ficou com os mestres da obra entendendo no eleger donde se fundaria a fortaleza. Ao seguinte dia, começando os pedreiros quebrar uns penedos que estavam sobre o mar, junto onde tinham elegido os aliceces da fortaleza, não podendo os negros sofrer tamanha injúria como se fazia àquela santidade, que eles adoravam por Deus, acendidos em fúria que lhe o Demónio atiçava pera todos ali perecerem ante do bautismo que depois alguns deles receberam, tomaram suas armas e, com aquele primeiro ímpeto, 78 deram rijo em os oficiais que andavam nesta obra. Diogo de Azambuja, como a este tempo estava com os capitães fazendo tirar as munições dos navios, tanto que viu correr a gente contra a praia, acudiu rijo. E, porque soube da língua dos negros que a causa principal do alvoroço deles fora por ainda não terem recebido o presente que esperavam, e que maior mágoa tinham por a tardança que por a injúria dos seus deuses, entreteve a gente o melhor que pôde, de maneira que não houvesse sangue, e mandou a grã pressa ao feitor que trouxesse dobrados lambéis, manilhas, bacias e outras cousas que tinha mandado que levasse a el-Rei e a seus cavaleiros, por assi estar em costume. E ainda por mais comprazer aos negros, pubricamente entre eles bradou com ele. Com o qual presente, depois que o receberam, assi ficaram contentes e brandos da fúria, que entregaram os filhos, quanto mais os penedos; tanto poder tem o dar que, como dizem, quebrantou Diogo de Azambuja as pedras que eram os corações daqueles negros em sua indinação, e mais quebrou os penedos que eles defendiam. Porém enquanto a obra durou, sempre se teve grande vigia e tento neles, não se lhe antolhasse outra vaidade algυa. Em fazer a qual obra se deu tal despacho, que em vinte dias poseram a cerca do castelo em boa altura, e a torre da menagem em o primeiro sobrado. E por a singular devação que el-Rei tinha

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neste santo, foi chamada esta fortaleza São Jorge, a qual depois, em o ano de quatrocentos oitenta e seis, a quinze de Março, em Santarém, el-Rei a fez cidade, dando-lhe per sua carta patente todalas liberdades, privilégios e preminências de cidade. Posto que por parte dos nossos, enquanto durou esta obra, se trabalhava não haver com os negros rompimento, fizeram eles tantos furtos e maldades, que conveo a Diogo de Azambuja queimar-lhe a aldea, com que, entre este castigo e benefícios que mais parte tinham neles, ficaram em segura paz. Acabada a obra e a terra corrente em resgate, espediu Diogo de Azambuja os navios e a gente sobressalente que se veo pera o reino com boa cópia de ouro que resgataram, e ele ficou com sessenta homens ordenados à fortaleza, segundo ia per regimento del-Rei, e outros ficaram enterrados ao pé da árvore onde se disse a primeira missa, que ficou em adro da igreja de vocação de São Jorge, em que hoje Deus é louvado e glorificado, não somente 85 dos nossos que vão àquela cidade, mas ainda dos etiopas da sua comarca, que per bautismo são contados em o número dos fiéis. Na qual igreja, em memória dos trabalhos do Infante Dom Hanrique, por ser autor deste descobrimento, se diz υa missa quotidiana por sua alma, 26v com próprio capelão a ela ordenado. E em dous anos e sete meses que Diogo de Azambuja ali esteve, aprouve a Deus que na terra não houve tanta enfermidade como se receava, e assentou com tanta prudência os preços 79 e modo do resgate das cousas, que ainda hoje dura a maior parte deste seu bom regimento, por onde, quando veo, el-Rei o galardoou com acrescentamento de honra.

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79 26v 85 Capítulo III. Como foi descoberto o reino de Congo per Diogo Cão, cavaleiro da casa de el-Rei; e além dele descobriu duzentas e tantas léguas, em o qual descobrimento assentou três padrões que foram os primeiros de pedra, das quais terras trouxe algυas pessoas que foram baptizados per el-Rei. E também foi descoberto o reino de Beni. Ao tempo que el-Rei mandou fazer esta fortaleza de São Jorge da Mina, já foi com propósito que per ela tomava posse de toda aquela terra que habitavam os negros, com a qual posse esperava de acrescentar à sua Coroa novo título de estado, por haver a bênção de seus avós, cujos títulos eles sempre conquistaram da mão dos infiéis. E também por haverem efeito às doações que os Sumos Pontífices tinham concedidas ao Infante Dom Hanrique, seu tio, e a el-Rei Dom Afonso, seu padre, e a ele, de todo o que descobrissem do Cabo Bojador, té as Índias, inclusive (como atrás fica). Peró não quis notificar este título de senhor de Guiné em suas cartas e doações, senão di a três anos que este castelo de São Jorge era fundado, que foi depois que Diogo de Azambuja veo a este reino. Nem di por diante consentiu que os capitães que mandava a descobrir esta costa posessem cruzes de pau per os lugares notáveis dele, como se fazia em tempo de Fernão Gomes, quando descobria as quinhentas léguas de costa, per condição do contrato que fez com el-Rei Dom Afonso. Mas ordenou que levassem 86 um padrão de pedra de altura de dous estados de homem com o escudo das armas reais deste reino, e nas costas dele um letreiro em latim e outro em português, os quais diziam que Rei mandara descobrir aquela terra, e em que tempo, e per que capitão fora aquele padrão ali posto, e encima, no topo, υa cruz de pedra embutida com chumbo. E o primeiro descobridor que levou este padrão, foi Diogo Cão, cavaleiro de sua casa, o ano de quatrocentos e oitenta e quatro, indo já pela Mina como lugar onde se podia prover dalgυa necessidade, e di foi demandar o Cabo de Lopo Gonçalves, que está um grau da banda do Sul. Passado o qual cabo, e assi o de Caterina, que foi a derradeira terra que se descobriu em tempo del-Rei Dom Afonso, chegou a um notável rio, na boca do qual, da parte do Sul, meteu este padrão, como quem tomava posse por parte del-Rei de toda a costa que leixava atrás. Por causa do qual padrão, peró que ele se chamava São 80 Jorge, por a singular devação que el-Rei tinha neste santo, muito tempo foi nomeado este rio do Padrão, e ora lhe chamam de Congo, por correr per um reino assi chamado, que Diogo Cão esta viagem descobriu, posto que o seu próprio nome do rio entre os naturais é Zaire, mais notável e ilustre per águas que per nome. Porque o tempo que naquelas partes é o inverno, entra tam soberbo pelo mar, que a vinte léguas da costa se acham as suas águas doces. Diogo Cão, depois que assentou o padrão, por ver a grandeza que o rio mostrava em boca e em cópia de águas, bem lhe pareceu que tam grande rio havia de ser mui habitado de povos; e entrando per ele acima um pequeno espaço, viu que pela margem dele aparecia muita gente da que era costumado ver pela costa atrás, toda mui negra com seu cabelo revolto. E posto que levava algυas línguas da gente que tinham descoberto, em nenhυa cousa se poderam entender com esta, de maneira que se converteu aos acenos, per os quais entendeu terem Rei mui poderoso, o qual estava dentro pela terra tantos dias de andadura. Vendo ele o modo da gente e a segurança com que o esperavam, ordenou de enviar com alguns deles certos dos nossos com um presente ao Rei da terra, dando por isso algυa cousa, 27

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como aqueles que os haviam de encaminhar, com promessa que di a tantos dias seria sua tornada. Mas o termo do tempo que eles tomaram passou dobrado, sem Diogo Cão ver recado algum, e em todo ele os que ali ficavam, e outros muitos que concorreram aos panos e cousas que lhe ele mandava dar, assi entravam e saíam em o navio tam seguramente, como se houvera muito tempo que se conheciam. Diogo Cão, vendo quanto os outros tardavam, determinou de acolher alguns daqueles negros que entravam em o navio, e vir-se com eles pera este reino, com fundamento que entretanto os nossos lá onde eram podiam aprender 87 a língua e ver as cousas da terra, e os negros que ele trouxesse também aprenderiam a nossa, com que el-Rei poderia ser informado do que havia entre eles. E porque, partindo-se ele sem leixar algum recado, poderia danar aos nossos que ficavam, tanto que recolheu em o navio quatro homens deles, disse aos outros per seus acenos que ele se partia pera levar a mostrar ao seu Rei aqueles homens, porque os desejava ver, e que di a quinze lυas ele os tornaria, e que pera mais segurança ele leixava entre eles os homens que tinha enviado ao seu Rei. Chegado Diogo Cão a este reino, folgou el-Rei Dom João muito em ver gente de tam bom intendimento; porque, como eram homens nobres, assi aprenderam o que lhe Diogo Cão ensinou pelo caminho, que quando chegaram a este reino davam já razão das cousas que lhe preguntavam. El-Rei, por causa do tempo em que Diogo Cão limitou sua tornada, por os nossos não padecerem algum mal, mandou que tornasse logo, levando muitas cousas a 81 el-Rei de Congo, e com elas lhe encomendava que se quisesse converter à Fé de Cristo. Chegado Diogo Cão à barra do Rio do Padrão, foi recebido pelos da terra com muito prazer, vendo os seus naturais que ele trouxera vivos e tam bem tratados como iam. E pelo regimento que ele levava del-Rei Dom João, mandou um dos quatro negros, com alguns da terra que ele conhecia, com recado a el-Rei de Congo, fazendo-lhe saber como era chegado e trazia os seus vassalos que dali levara, segundo lhe aquele deria, pedindo que, por quanto lhe el-Rei, seu senhor, mandava que passasse mais avante per aquela costa, a fazer algυas cousas de seu serviço, lhe enviasse os portugueses que tinha per algum seu capitão, ao qual ele entregaria os outros três vassalos que trazia, e que da tornada que em boa ora viesse, ele lhe iria falar algυas cousas que el-Rei, seu senhor, mandava que com ele praticasse, e assi apresentar outras que lhe enviava. Vindo os nossos em poder de um capitão que el-Rei de Congo enviou, ao qual Diogo Cão entregou os seus com algυas dádivas pera el-Rei, espediu-se deles, entrando em seu descobrimento pela costa adiante. Na qual viagem, passou ele, Diogo Cão, além deste reino de Congo obra de duzentas léguas, onde pôs dous padrões: um chamado Santo Agostinho, que deu o nome do padrão ao mesmo lugar, o qual está em treze graus de altura da parte do Sul, e outro junto da manga das areas, por razão do qual se chama o lugar o Cabo do Padrão, em altura de vinte e dous graus. E neste caminho fez alguns saltos na terra, nos quais tomou algυas almas pera línguas do que descobrisse, como levava per regimento, e depois de ensinados os tornarem ali, como veremos. Tornado Diogo Cão deste descobrimento ao Rio do Padrão, do reino de Congo, foi-se ver com el-Rei, o qual, pola informação que já tinha dos 88 seus que se conformavam com os nossos do que lhe tinham dito das cousas deste reino, quando viu Diogo Cão, assi pelo que lhe disse e deu da parte del-Rei Dom João, não sabia que honra lhe fizesse, e era tam ceoso dele que o não fiava de ninguém. E no tempo que Diogo Cão esteve com ele, como já o Espírito Santo começava obrar seus mistérios na alma daquele Rei pagão, assi andava namorado do que lhe Diogo Cão dizia das cousas de nossa fé, que nunca o leixava, perguntando-lhe algυas de espírito já alumiado. O que logo começou mostrar, mandando com Diogo Cão a este reino um dos fidalgos que já cá viera chamado Caçuta, e assi alguns moços em modo de embaixada, pedindo a el-Rei que lhe

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aprouvesse de lhe enviar sacerdotes pera o baptizar e a todo seu reino, e lhe darem doutrina de sua salvação. Que aqueles moços, por serem filhos dos principais do seu reino, lhe pedia que os mandasse baptizar e doutrinar em as cousas da fé, pera per eles poder ser multiplicada entre os seus naturais, quando em boora tornassem e com este requerimento 82 mandou a el-Rei um presente de marfim e panos de palma, por em sua terra 27v não haver outras polícias. El-Rei Dom João, vindo Diogo Cão com este requerimento de conversão de um príncipe, senhor de tam grande povo como este era, o mais principal intento que tinha nestes descobrimentos, por mostrar o contentamento desta obra e louvar a Deus nela, estando em Beja, levou o embaixador Caçuta à pia a o fazer cristão, e assi aos moços que com ele vieram, e a Rainha foi a madrinha, vestindo-se ela e el-Rei de festa por mais solenizar este auto. O qual Caçuta houve nome Dom João, por amor del-Rei, com apelido da Silva, do outro padrinho que foi Aires da Silva, camareiro-mor del-Rei; e os moços tomaram os nomes e apelidos dos padrinhos que os apresentaram. E quanto fructificou em louvor de Deus a Cristandade destes homens de Congo pela conversão do seu Rei (como adiante veremos), tam pouco aproveitou o que el-Rei fez em o requerimento del-Rei de Beni, cujo reino jaz entre o reino de Congo e o castelo de São Jorge da Mina. Porque neste tempo em que Diogo Cão veo da primeira vez de Congo, que foi no ano de quatrocentos e oitenta e seis, também este Rei de Beni mandou pedir a el-Rei que lhe mandasse lá sacerdotes pera o doutrinarem em fé, sendo já vindo o ano passado um Fernão do Pó, que também com esta costa descobriu a ilha que se ora chama do seu nome, que está vezinha à terra firme, à qual por sua grandeza ele chamou a Ilha Fermosa, e ela perdeu este e ficou com o nome do seu descobridor. Este embaixador del-Rei de Beni trouxe-o João Afonso de Aveiro, que era ido a descobrir esta costa per mandado del-Rei, e assi trouxe a primeira pimenta que veo daquelas partes de Guiné a este reino, a que nós ora chamamos de rabo, pola diferença que tem da outra da Índia, por nela vir pegado o pé em que nace, a qual el-Rei mandou a Frandes, mas não foi tida em 89 tanta estima como a da Índia. E porque este reino de Beni era perto do Castelo de São Jorge da Mina, e os negros que traziam ouro ao resgate dela folgavam de comprar escravos pera levar suas mercadorias, mandou el-Rei assentar feitoria em um porto de Beni, a que chamam Gató, onde se resgatavam grande número deles, de que na Mina se fazia muito proveito, porque os mercadores de ouro os compravam por dobrado preço do que valiam cá no reino. Mas como el-Rei de Beni era mui sujeito a suas idolatrias, e mais pedia os sacerdotes por se fazer poderoso contra seus vezinhos com favor nosso que com desejo de bautismo, aproveitaram mui pouco os ministros dele, que lhe el-Rei lá mandou. Donde se causou mandá-los vir, e assi aos oficiais da feitoria, por o lugar ser mui doentio; e entre as pessoas de nome que nela faleceram, foi o mesmo João Afonso de Aveiro, que a primeiro assentou. Porém depois per muito tempo, assi em vida 83 del-Rei Dom João como del-Rei Dom Manuel, correu este resgate de escravos de Beni pera a Mina, ca ordinariamente os navios que partiram deste reino os iam lá resgatar e di os levavam à Mina, té que este negócio se mudou por grandes inconvenientes que nisso havia. Ordenando-se andar um caravelão da Ilha de São Tomé, onde concorriam assi os escravos da costa de Beni, como os do reino de Congo, por aqui virem ter todalas armações que se faziam pera estas partes, e desta ilha os levava este caravelão à Mina . E vendo el-Rei Dom João, o terceiro, nosso senhor, que ora reina, como esta gente pagã, que já estava em nosso poder, tornava outra vez às mãos dos infiéis, com que perdiam o mérito do bautismo, e suas almas ficavam eternamente perdidas, peró que lhe foi dito que nisto perdia muito, como príncipe cristianíssimo, mais lembrado da salvação destas almas, que do proveito de sua fazenda, mandou que cessasse este trato deles. E per este modo ficaram metidos em o conto dos

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fiéis da Igreja mais de mil almas, que cada um ano ante deste santo preceito eram postas em perpétua servidão do Demónio, ficando gentios como eram, ou se faziam mouros, quando per via do resgate que os mouros fazem com os negros da província de Mandiga os haviam a seu poder. A qual obra, por ser em seu louvor, Deus deu logo o galardão a el-Rei porque, como ele antepôs a salvação das almas destes pagãos ao muito ouro que lhe diziam perder no resgate destes escravos, abriu-lhe outra mina abaixo da cidade São Jorge, de onde começou a correr té hoje grande cópia de ouro, a soma do qual importa mais do que se havia por venda dos escravos.

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83 27v 90 Capítulo IV. Como el-Rei pelo que soube de João Afonso de Aveiro e assi dos embaixadores que ele trouxe do reino de Beni, mandou Bartolomeu Dias e João Infante a descobrir; na qual viagem descobriram o grande Cabo de Boa Esperança. 28 Entre muitas cousas que el-Rei Dom João soube do embaixador del-Rei de Beni, e assi de João Afonso de Aveiro, das que lhe contaram os moradores daquelas partes, foi que, ao Oriente del-Rei de Beni, per vinte lυas de andadura que, segundo a conta deles e do pouco caminho que andam, podiam ser até duzentas e cinquenta léguas das nossas, havia um Rei, o mais poderoso daquelas partes, a que eles chamavam Ogané, que entre os príncipes pagãos das comarcas de Beni era havido em tanta veneração, como acerca de nós os Sumos Pontífices. Ao qual per costume antiquíssimo os Reis de Beni, quando novamente reinavam, enviavam seus embaixadores com grã presente, notificando-lhe 84 como, per falecimento de Fuão, sucederam naquele reino de Beni, no qual lhe pediam que os houvesse por confirmados. Em sinal da qual confirmação, este príncipe Ogané lhes mandava um bordão e υa cobertura da cabeça, da feição dos capacetes de Espanha, tudo de latão luzente, em lugar de cetro e coroa, e assi lhe enviava υa cruz do mesmo latão pera trazer ao pescoço, como cousa religiosa e santa, da feição das que trazem os comendadores da Ordem de São João, sem as quais peças o povo havia que não reinavam justamente nem se podiam chamar verdadeiros reis. E em todo o tempo que este embaixador andava na corte deste Ogané, como cousa religiosa nunca era visto dele, somente via υas cortinas de seda em que ele andava metido; e ao tempo que despachavam o embaixador, de dentro das cortinas lhe mostravam um pé, em sinal que estava ali dentro e concedia nas peças que levava, ao qual pé faziam reverência como a cousa santa. E também, em modo de prémio do trabalho de tanto caminho, era dada ao embaixador υa cruz pequena, da feição da que levava pera el-Rei que lhe lançavam ao colo, com a qual ele ficava livre e isento de toda servidão, e previlegiado na terra donde era natural, ao modo que entre nós são os comendadores. Sabendo eu isto, pera com mais verdade o poder escrever (peró que el-Rei Dom João em seu tempo o tinha bem inquirido), o ano de quinhentos e quorenta , vindo a este reino certos embaixadores del-Rei de Beni, trazia um deles, que seria homem de setenta anos, υa cruz destas; e perguntando-lhe eu por a causa dela, respondeu conforme ao acima escrito. E porque neste tempo del-Rei Dom João, quando falavam na Índia, sempre era nomeado um rei mui poderoso a que chamavam Preste João das Índias, o qual diziam ser cristão, parecia a el-Rei que, per via deste, podia ter algυa entrada 91 na Índia. Porque per os abexis religiosos que vem a estas partes de Espanha, e assi per alguns frades que de cá foram a Jerusalém, a que ele encomendou que se informassem deste príncipe, tinha sabido que seu estado era a terra que estava sobre Egipto, a qual se estendia té o mar do Sul. Donde tomando el-Rei com os cosmógrafos deste reino a tábua geral de Ptolomeu da descripção de toda África, e os padrões da costa dela, segundo per os seus descobridores estavam arrumados, e assi a distância de duzentas e cinquenta léguas pera Leste, onde estes de Beni diziam ser o estado do príncipe Ogané, achavam que ele devia ser o Preste João, por ambos andarem metidos em cortinas de seda, e trazerem o sinal da cruz em grande veneração. E também lhe parecia que, prosseguindo os seus navios a costa que iam descobrindo, não podiam leixar de dar na terra onde estava o Praso

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Promontório, fim daquela terra. Assi que, conferindo todas estas cousas que o mais acendiam em 85 desejo do descobrimento da Índia, determinou de enviar, logo neste ano de quatrocentos e oitenta e seis, dobrados navios per mar e homens per terra, pera ver o fim destas cousas, que lhe tanta esperança davam. Armados dous navios de até cinquenta tonéis cada um, e υa naveta pera levar mantimentos sobressalentes, por causa de muitas vezes desfalecerem aos navios deste descobrimento, com que se tornavam 28v pera o reino, partiram na fim de Agosto do dito ano. A capitania da qual viagem deu a Bartolomeu Dias, cavaleiro de sua casa, que era um dos descobridores desta costa, o qual ia em um navio de que era piloto Pero de Alanquer e mestre o Leitão; e João Infante, outro cavaleiro, era capitão do segundo navio, piloto Álvaro Martins e mestre João Grego. E em a nau que levava os mantimentos, ia por capitão Pero Dias, irmão de Bartolomeu Dias, de que era piloto João de Santiago e mestre João Álvares, todos, cada um em seu mister, mui espertos. E posto que Diogo Cão tinha descoberto per duas vezes trezentas e setenta e cinco léguas de costa, começando do Cabo de Caterina té o cabo chamado do Padrão, todavia, passado o Rio de Congo, começou Bartolomeu Dias seguir a costa té chegar onde ora se chama a Angra do Salto, por razão de dous negros que Diogo Cão ali salteou. Os quais el-Rei, per ele, Bartolomeu Dias, já ensinados do que haviam de fazer, mandava tornar àquele lugar, e assi levava quatro negras destoutra costa de Guiné. A primeira das quais leixou na Angra dos Ilhéus, onde assentou o primeiro padrão, e a segunda na Angra das Voltas, e a terceira morreu, e a quarta ficou na Angra dos Ilhéus de Santa Cruz, com duas que ali tomaram, que andavam mariscando, e não as quiseram trazer, porque mandava el-Rei que não fizessem força nem escândalo aos moradores das terras que descobrissem. A causa de el-Rei mandar lançar esta gente per toda aquela costa, vestidos e bem tratados com mostra da prata, ouro e espeçarias, era porque, indo ter a povoado, podesse notificar de uns em outros a grandeza do seu reino e as cousas que nele havia, e como per toda aquela costa andavam os seus navios, e que mandava descobrir a Índia, e principalmente um príncipe 92 que se chamava Preste João, o qual lhe diziam que habitava naquela terra. Tudo a fim que podesse ir ter esta fama ao Preste, e fosse azo pera ele mandar de lá de dentro donde habitasse a esta costa do mar; porque pera todas estas cousas os negros e negras iam ensinados, e principalmente as negras, que, como não eram naturais da terra, ficavam com esperança de tornarem os navios per ali e as trazerem a este reino. Que entre tanto elas entrassem pelo sertão, e aos moradores notificassem estas cousas, e aprendessem muito bem as que podesse saber das que lhe eram encomendadas, e que podiam ficar seguras, porque, como eram mulheres com 86 quem os homens não tem guerra, não lhes haviam de fazer mal algum. Além de assentarem os padrões que levavam nas distâncias do comprimento da costa que lhe bem parecia, eram postos em lugares notáveis, assi como o primeiro padrão, chamado Santiago, no lugar a que poseram o nome Serra Parda, que está em altura de vinte e quatro graus, cento e vinte léguas além do derradeiro que pôs Diogo Cão. Punham também os nomes aos cabos, angras e mostras da terra que descobriam, ou por razão do dia que ali chegavam, ou por qualquer outra causa: como angra a que ora chamamos das Voltas, que por as muitas em que então ali andaram lhe deram este nome - Angra das Voltas, onde se Bartolomeu Dias teve cinco dias com tempos que lhe não leixavam fazer caminho, a qual angra está em vinte nove graus da parte do Sul. Partidos daqui na volta do mar, o mesmo tempo os fez correr treze dias com as velas a meio masto; e como os navios eram pequenos e os mares já mais frios e não tais como os da terra de Guiné, posto que os da costa de Espanha em tempo de tormenta eram mui feios, estes houveram por

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mortais; mas, cessando o tempo que fazia naquela fúria do mar, vieram demandar a terra pelo rumo de Leste, cuidando que corria ainda a costa Norte-Sul em geral, como té ali a trouxeram. Porém, vendo que por alguns dias cortavam sem dar com ela, carregaram sobre o rumo do Norte, com que vieram ter a υa angra a que chamaram dos Vaqueiros, por as muitas vacas que viram andar na terra guardadas per seus pastores. E como não levavam língua que os entendesse, não poderam haver fala deles, ante como gente espantada de tal novidade carearam seu gado pera dentro da terra, com que os nossos não poderam saber mais deles, que verem ser negros de cabelo revolto como os de Guiné. Correndo mais avante a costa já per novo rumo, de que os capitães iam mui contentes, chegaram a um ilhéu que está em trinta e três graus e três quartos da parte do Sul, onde poseram o padrão chamado da Cruz que deu nome ao ilhéu, que está da terra firme pouco mais de meia légua, e porque nele estavam duas 29 fontes, muitos lhe chamam o Penedo das Fontes. Aqui, como a gente vinha cansada e mui temerosa dos grandes mares que passaram, toda a υa voz começou de se queixar e requerer que não fossem mais avante, dizendo como os mantimentos se gastavam pera tornar 93 a buscar a nau que leixaram atrás com os sobressalentes, a qual ficava já tam longe, que, quando a ela chegassem, seriam todos mortos à fome, quanto mais passar avante. Que assaz era de υa viagem descobrirem tanta costa, e que já levavam a maior novidade que se daquele descobrimento levou: acharem que a terra se corria quási em geral pera Leste, donde parecia que atrás ficava algum grande cabo, o qual seria milhor conselho tornarem, de caminho, a descobrir. 87 Bartolomeu Dias, por satisfazer aos queixumes de tanta gente, saiu em terra com os capitães e oficiais e alguns marinheiros principais, e dando-lhes juramento, mandou-lhes que dissessem a verdade do que lhes parecia que deviam fazer por serviço del-Rei, e todos assentaram que se tornassem pera o reino, dando as razões de cima e outras de tanta necessidade, do qual parecer mandou fazer um auto em que todos assinaram. Peró, como seu desejo era ir avante, e somente quis fazer este comprimento com a obrigação de seu ofício e regimento del-Rei, per que lhe mandava que as cousas de importância fossem consultadas com as principais pessoas que levava, pediu a todos, quando veo ao assinar da determinação em que assentaram, que houvessem por bem correrem mais dous ou três dias a costa, e quando não achassem cousa que os obrigasse prosseguir mais avante, que então fariam a volta, o que lhe foi concedido. Mas no fim destes dias que pediu, não fizeram mais que chegar a um rio, que está vinte cinco léguas avante do Ilhéu da Cruz, em altura de trinta e dous graus e dous terços. E porque João Infante, capitão do navio São Pantalião, foi o primeiro que saiu em terra, houve o rio o nome que ora tem do Infante, donde se tornaram, por a gente tornar repetir seus queixumes. Chegados ao Ilhéu da Cruz, quando Bartolomeu Dias se apartou do padrão que ali assentou, foi com tanta dor e sentimento, como se leixara um filho desterrado pera sempre, lembrando-lhe com quanto perigo de sua pessoa e de toda aquela gente, de tam longe vieram somente àquele efeito, pois lhe Deus não concedera o principal. Partidos dali, houveram vista daquele grande e notável cabo, encoberto per tantas centenas de anos, como aquele que, quando se mostrasse, não descobria somente a si, mas a outro novo mundo de terras. Ao qual Bartolomeu Dias e os de sua companhia, per causa dos perigos e tormentas que em o dobrar dele passaram, lhe poseram nome Tormentoso, mas el-Rei Dom João, vindo eles ao reino, lhe deu outro nome mais ilustre, chamando-lhe Cabo de Boa Esperança, pola que ele prometia deste descobrimento da Índia, tam esperada e per tantos anos requerida. O qual nome como foi dado per Rei, e tal que Espanha se gloria dele, permanecerá com louvor de quem o mandou descobrir, enquanto esta nossa lembrança durar; a descripção e figura do qual descrevemos em a nossa Geografia, por ser lugar mais próprio, peró que aqui se espere.

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Bartolomeu Dias, depois que notou dele o que convinha à navegação 94 e assentou um padrão chamado São Felipe, porque o tempo lhe não deu lugar a sair em terra, tornou a seguir sua costa em busca da nau dos mantimentos, à qual chegaram, havendo nove meses justos que dela eram partidos. E de nove homens que ali ficaram eram vivos três somente, um dos quais, a que chamavam Fernão Colaço, natural do 88 Lumiar, termo de Lisboa, que era escrivão, assi pasmou de prazer em ver os companheiros, que morreu logo, andando bem fraco de enfermidade. E a razão que deram dos mortos, foi fiarem-se dos negros da terra com quem vieram ter comunicação, os quais sobre cobiça dalgυas cousas que resgatavam os mataram. Tomados muitos mantimentos que acharam e posto fogo à naveta, que já estava bem comesta do busano, por não haver quem a podesse marear, vieram ter à Ilha do Príncipe, onde acharam Duarte Pacheco, cavaleiro da casa del-Rei, mui doente. O qual, por não estar em disposição pera per si ir descobrir os rios da costa a que o el-Rei mandava, enviou o navio a fazer algum resgate; onde se perdeu, salvando-se parte da gente, que com ele se veo em estes navios de Bartolomeu Dias. E porque já a este tempo era sabido um rio que se chama do Resgate, polo que se ali fazia de negros, por não virem com as mãos vazias, passaram per ele, e assi pelo castelo de São Jorge da Mina, estando nele João Fogaça por capitão, 29v o qual lhe entregou o ouro que tinha resgatado, com que se vieram pera este reino, onde chegaram em Dezembro do ano de quatrocentos e oitenta e sete, havendo dezasseis meses e dezassete dias que eram partidos dele, leixando Bartolomeu Dias descoberto nesta viagem trezentas e cinquenta léguas per costa, que é outro tanto como Diogo Cão descobriu per duas vezes. Em o qual espaço de setecentas e cinquenta léguas, que estes dous principais capitães descobriram, estão seis padrões: o primeiro chamado São Jorge, em o rio Zaire, que é do reino de Congo; o segundo, Santo Agostinho, está em um cabo do nome do mesmo padrão; o terceiro, que é o derradeiro de Diogo Cão, na Manga das Areas; o quarto em ordem e primeiro de Bartolomeu Dias, na Serra Parda; o quinto, São Felipe, no grande e notável Cabo de Boa Esperança, e o sexto, Santa Cruz, no ilhéu deste nome, onde se acabaram os padrões que pôs Bartolomeu Dias e acabou o derradeiro descobrimento que se fez em tempo del-Rei Dom João.

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88 29v 95 Capítulo V. Como el-Rei mandou per terra dous criados seus, um a descobrir os portos de navegação da Índia, e outro com cartas ao Preste João; e como de Roma foi enviado a el-Rei um abexi religioso daquelas partes, por meio do qual ele também enviou algυas cartas ao Preste. Por causa das cousas que atrás escrevemos e da informação que el-Rei Dom João tinha da província em que o Preste João habitava, ante que Bartolomeu Dias viesse deste descobrimento, determinou de o mandar descobrir per terra, tendo já a isso enviado duas pessoas 89 per via de Jerusalém, por saber que vinham àquela Santa Casa em romaria muitos religiosos do seu reino, mas não houve efeito esta ida como el-Rei desejava. Porque um Frei António de Lisboa e um Pero de Montarroio, que ele mandou a isso, por não saberem o arávigo, não se atreveram irem em companhia destes religiosos que acharam em Jerusalém. E vendo el-Rei quão necessária cousa pera fazer este caminho era a língua arábia, mandou a este negócio um Pero de Covilhã, cavaleiro de sua casa, que era homem que a sabia mui bem, e em sua companhia outro, per nome Afonso de Paiva, os quais foram despachados em Santarém, a sete de Maio, do ano de quatrocentos oitenta e sete, sendo presente ao seu despacho o Duque de Beja, Dom Manuel. E despedidos ambos del-Rei, foram ter à cidade de Nápole, onde embarcaram pera a Ilha de Rodes, e, chegando a ela, pousaram em casa de Frei Gonçalo e Frei Fernando, dous cavaleiros da religião que eram portugueses, os quais lhe deram todo aviamento com que se passaram a Alexandria, onde se deteveram algum tempo, por adoecerem de febres à morte. Tanto que esteveram pera poder caminhar, passaram-se ao Cairo, e di foram ter ao Toro, em companhia de mouros de Tremecém e de Fez que passavam a Adem ; e por ser tempo da navegação daquelas partes, apartaram-se um do outro, Afonso de Paiva pera a terra de Etiópia, e Pero de Covilhã pera a Índia, concertando ambos que a um certo tempo se ajuntassem na cidade do Cairo. Embarcado Pero de Covilhã em υa nau que partia de Adem, foi ter a Cananor e di a Calecute e a Goa, cidades principais da costa da Índia, e aqui embarcou pera a Mina de Sofala, que é na Etiópia, sobre Egipto. Tornado outra vez à cidade Adem, que está situada na boca do estreito do Mar Roxo, 96 na parte de Arábia Félix, embarcou-se pera o Cairo, onde achou nova que seu companheiro Afonso de Paiva na própria cidade havia pouco que era falecido de doença. E estando pera se vir a este reino com recado destas cousas que tinha sabido, soube que andavam ali dous judeus de Espanha em sua busca, com os quais se viu mui secretamente. A um chamavam Rabi Abrão, natural de Beja, e a outro Josepe, sapateiro de Lamego. O qual Josepe havia pouco tempo que viera daquelas partes, e como soube cá no reino o grande desejo que el-Rei tinha da informação das cousas da Índia, foi-lhe dar conta como estevera em a cidade de Babilónia, a que ora chamam Bagodad, situada no rio 30 Eufrates, e que ali ouvira falar do trato da ilha chamada Ormuz , que estava na boca do mar da Pérsia. Em a qual havia υa cidade, a mais célebre de todas aquelas partes, por a ela concorrerem todalas espeçarias e riquezas da Índia, as quais per cáfilas de camelos vinham ter às cidades de Alepo e Damasco. El-Rei, porque ao tempo que soube destas e outras cousas deste judeu, era já Pero de 90

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Covilhã partido, ordenou de o mandar em busca dele, e assi o outro chamado Rabi Abrão: o Josepe, pera lhe trazer recado das cartas que per eles mandava a Pero de Covilhã, e Abrão, pera ir com ele ver a Ilha de Ormuz e aí se informar das cousas da Índia. Em as quais cartas el-Rei encomendava muito a Pero de Covilhã que, se ainda não tinha achado o Preste João, que não receasse o trabalho, té se ver com ele e lhe dar sua carta e recado; e que enquanto a isto fosse, per aquele judeu Josepe lhe escrevesse tudo o que tinha visto e sabido, porque a este efeito somente o enviava a ele. Pero de Covilhã, ainda que andava cansado de tanta navegação e caminhos, como tinha visto e sabido, além de escrever a el-Rei, informou meudamente a Josepe. Espedindo-se do qual, foi com o outro judeu Abrão à cidade Adem, onde ambos embarcaram pera Ormuz; e notadas todalas cousas dela, leixou ali o judeu Abrão pera vir per via das califas de Alepo, e ele, Pero de Covilhã, tornou-se ao Mar Roxo, e di foi ter à Corte do Preste, per nome Alexandre, a que eles chamam Escander. O qual o recebeu com honra e gasalhado, estimando em muito príncipe da Cristandade das partes da Europa mandar a ele embaixador, o que deu esperança a Pero de Covilhã poder ser bem despachado. Porém, como este Alexandre, depois de sua chegada a poucos dias, faleceu e em seu lugar reinou Naut, seu irmão, que fez mui pouca conta dele e sobre isso ainda lhe não quis dar licença que saísse do seu reino, por terem costume, que se lá acolhem um homem destas partes, não o leixam mais tornar, perdeu Pero de Covilhã toda a esperança de mais tornar a este reino. Depois, passados muitos anos, em o de quinhentos e quinze, reinando David, 97 filho deste Naut, requerendo-lhe por este Pero de Covilhã Dom Rodrigo de Lima, que lá estava por embaixador del-Rei Dom Manuel, ainda lhe negou a vinda, dizendo que seus antecessores lhe deram terras e heranças, que as comesse e lograsse com sua mulher e filhos que tinha. E per via desta embaixada que levou Dom Rodrigo (da qual em seu lugar faremos relação) viemos a saber todo o discurso desta viagem de Pero de Covilhã. Porque entre os portugueses que foram com ele, era um Francisco Álvares, clérigo de missa, a quem ele, Pero de Covilhã, deu conta de sua vida e se confessou a ele, do qual Francisco Álvares e assi de um tratado que ele fez da viagem desta embaixada que levou Dom Rodrigo, soubemos estas e outras cousas daquelas partes. E logo no ano seguinte, havendo pouco mais de nove meses que Pero de Covilhã era partido, por el-Rei ter em todalas partes de Levante inteligências pera este negócio, enviaram-lhe de Roma um sacerdote da terra do Preste, o qual havia nome Lucas Marcos, homem de que el-Rei ficou mui satisfeito na prática que teve com ele, por dar boa razão das cousas. E ordenou logo que da sua parte fosse ao 91 Preste com cartas, ca, por ele ser natural da terra e conversado naquelas partes com os bárbaros, podia fazer este caminho mais certo do que o faria um seu mensajeiro que o ano passado enviara a ele. Ordenou mais el-Rei com o mesmo Marcos que trasladasse υa carta per três ou quatro vias, a qual mostrava ser dele, Marcos, enviada ao Preste, dando-lhe conta como era vindo a este reino a instância del-Rei, e o desejo que tinha de sua amizade e modo de sua navegação per toda a costa de África e Etiópia, e os reis e povos que tinha descoberto, e os sinais das cousas que naquelas partes havia, e costumes que as gentes entre si tinham, e muitos vocábulos que usavam nas cousas gerais em sua linguagem, assi como - Deus, céu, sol, lυa, fogo, ar, água, terra. Porque, per notícia dos tais vocábulos, veria em conhecimento se estava perto da gente que os usava; a qual toda habitava na fralda da terra que cerca o Mar Oceano, per o qual navegavam os navios del-Rei. Na qual carta também particularizava todalas informações que el-Rei tinha da grandeza das terras de seu império. E pera que o Preste lhe desse crédito, se ante ele fosse a carta, nomeava-se Marcos por seu nome, e cujo filho era, e de que comarca e povoação e freguesia. Feitas estas cartas, mandou el-Rei a Levante que as entregassem aos religiosos da sua nação abexi, as 30v

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quais, peró que não fossem per pessoas mui certas, algυa podia ir ter a mão do Preste, com que acreditasse a Pero de Covilhã, se lá fosse ter, quando doutra cousa não servissem. E per ele, Lucas Marcos, também escreveu el-Rei ao Preste, per o estilo das cousas que iam nas cartas de Marcos, dando-lhe conta como mandara a Roma buscar este 98 seu natural, a fim de lhe poder escrever per ele, Lucas, ao qual podia dar fé como a vassalo, pedindo-lhe que houvesse por bem enviar-lhe um mensajeiro pera em sua companhia lhe poder enviar outro; porque alguns que lá eram, e assi cartas derramadas per mãos de homens seus naturais, não sabia se poderiam passar per as terras dos infiéis, que se metiam entre eles e a Cristandade da Europa. E como ele, por causa da vizinhança que tinha com o Soldão do Cairo, seguramente lhe mandava seus embaixadores, e di vinham a Jerusalém e a Roma, segundo este seu vassalo Lucas contava, podia ser este um caminho pera per cartas e embaixadas se conhecerem, e depois Nosso Senhor mostraria outro com que, sem empedimento dos mouros imigos do nome cristão, se podiam prestar com obras de irmãos, pois que o eram em fé.

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92 30v 98 Capítulo VI. Como um Príncipe das partes de Guiné chamado Bemoí veo a este reino, por causa de υa guerra que teve, em que perdeu seu estado; e como el-Rei, por o grande conhecimento que tinha dele, o recebeu, fazendo-lhe muita honra. Sobre a vinda deste Lucas Marcos, sendo já a este tempo despachado del-Rei e mui satisfeito das mercês que lhe fez, sucedeu outra de outro etiópia de não menos contentamento del-Rei. Porque, estando em Setúval, lhe veo nova como a Lisboa era chegado um navio do castelo de Arguim, em o qual vinha um príncipe da terra de Jalofe, chamado Bemoí, acompanhado de parentes e homens nobres daquela província. El-Rei, como, per as razões que abaixo diremos, tinha muito conhecimento dele, mandou a Lisboa que o agasalhassem bem e di o passassem honradamente ao castelo da vila de Palmela. Em o qual esteve alguns dias enquanto ele e os seus fossem vestidos e encavalgados, pera poderem ir ante ele, sendo sempre servido em todalas cousas, não como príncipe bárbaro e fora da lei, mas como podia ser um dos senhores da Europa, costumado às polícias e serviços dela. E outro tanto lhe foi feito em o dia da sua entrada na Corte, vindo por ele Dom Francisco Coutinho, Conde de Marialva, acompanhado de muita 99 fidalguia. Pera o qual dia el-Rei e a Rainha se aperceberam com aparato de casas armadas cada um em a sua: el-Rei na sala em estrado alto, com um dossel de brocado rico, acompanhado do Duque de Beja, Dom Manuel, irmão da Rainha, e assi de condes, bispos e outras pessoas notáveis; e com a Rainha estava o Príncipe Dom Afonso, seu filho, e muitos dos nobres da Corte, com todalas damas vestidas de festa. E porque na fala que Bemoí fez nesta primeira chegada e vista del-Rei, segundo anda escrita per Rui de Pina, cronista-mor que foi deste reino, assi na Crónica que deste Rei compôs, a relação da fortuna deste Príncipe Bemoí está tam curta quanto é copiosa em os louvores del-Rei e admirações que ele Bemoí, fazia de ver seu estado, leixaremos a eloquência dela nesta parte e tomaremos o nosso intento, que é contar os fundamentos do seu desterro e o que sucedeu desta sua vinda, por isso ser próprio da história. No princípio, quando o comércio de Guiné começou correr entre os nossos e os povos da região de Jalofe, a qual jaz entre estes dous notáveis rios Sanagá e Gâmbia, havia um Rei mui poderoso naquelas partes, chamado Bor Birão, o qual, posto que fosse do sangue gentio dos príncipes de Guiné, era já feito mouro pela comunicação que tinham com os mouros chamados azenegues. E entre os filhos que leixou per sua morte de mulheres diferentes (segundo seu uso), foram Cibitah e 93 Camba, que eram de υa mulher, e Birão, de outra, que já fora casada com outro marido, do qual marido ela tinha havido este Bemoí de que falámos. E porque naquela terra, as mais vezes, morto el-Rei, o povo toma um dos filhos que o governe, qual lhe mais apraz, elegeram por seu rei a Birão. O qual, metido em 31 posse de governo da terra, fez mui pouca conta destes dous irmãos Cibitah e Camba, por serem seus competidores no reino por parte do pai, e muita estima de Bemoí, seu irmão da parte da mãe, com quem não tinha competência desta herança. Ao qual em ódio dos outros, não somente deu o regimento de todo seu estado per ofício, segundo seu costume, mas ainda se descuidou tanto do governo e ocupou em cousas de seu prazer, que o povo não conhecia nem obedecia já senão à pessoa de Bemoí. E como ele era homem prudente, vendo que com os nossos navios que andavam

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no resgate daquela costa, a terra engrossava com cavalos e outras mercadorias de que ela carecia, as quais cousas, se lhe viessem à mão, o podiam fazer mais poderoso, leixou as terras do sertão e veo buscar os portos do mar, onde nossos navios iam fazer resgate. Na maneira de contratar com os quais usava desta prudência: mandar pagar qualquer cavalo que morria em o navio, e bastava por testemunho mostrarem-lhe o cabo dele, porque dizia que, quando o tal cavalo se embarcara, já fora em seu nome, e que não era razão que os homens perdessem o seu, pois iam tam longe a lhe levar o que ele havia mister. E não somente 100 tinha este modo de contentar as partes, mas ainda em as cousas do serviço del-Rei Dom João, em cujo tempo ele concorreu, como homem que esperava de se aproveitar de sua amizade, tanto que os seus navios vinham ao porto, logo eram com diligência despachados; e sobre isso mandava-lhe alguns presentes das cousas da terra. Com que el-Rei, além do desejo geral que tinha de trazer à Fé todos aqueles príncipes de Guiné, a este mais particularmente tinha afeição, por lhe também dizerem ter pessoa, engenho e um claro juízo pera receber a doutrina evangélica. E a esta causa sempre encomendava aos capitães que iam no resgate daqueles seus portos, que tevessem prática com ele sobre as cousas da Fé, e per algυas vezes lhe mandou mensajeiros com este requerimento, levando-lhe dádivas e presentes, e muitas ofertas de acrescentamento de seu estado por o mais animar. Mas ele, ou porque no tal tempo não merecia a Deus tamanha mercê, ou porque lhe estava prometida per outros meios de mais sua honra, com que a sua memória andasse em as Crónicas dos Reis deste reino, por então não aceitou o bautismo, dando sempre de si muita esperança no contentamento que tinha em folgar de ouvir a quem lhe falava nestas cousas da Fé. E esta prosperidade sua, causou a morte a seu irmão, que lhe deu o governo do reino, e a ele 94 ser desterrado, porque os dous irmãos Cibitah e Camba à traição mataram a el-Rei Bor Birão, intitulando-se por Rei Cibitah, que era mais velho, o qual cruamente começou fazer guerra a Bemoí. E como a guerra necessita os homens, principalmente se é comprida, por o trabalho que Bemoí nesta teve, perdendo algυas batalhas, começou descair do poder que tinha; mas, confiado nos serviços que fazia a el-Rei Dom João, em um navio do resgate mandou a ele um seu sobrinho, pedindo-lhe ajuda de cavalos, armas e gente. Ao qual requerimento el-Rei respondeu que, se ele algum adjutório dele queria, recebesse o bautismo, e então que o ajudaria como irmão per lei e fé, e como amigo por as obras que dele tinha recebido. Porém polo consolar em sua necessidade e animar a se converter, mandou-lhe cinco cavalos ajaezados pera sua pessoa, e o Duque de Beja, Dom Manuel, lhe mandou um, e arreos pera outros. As quais cousas levou Gonçalo Coelho, que depois foi escrivão da fazenda dos contos da cidade de Lisboa (de quem nós soubemos a maior parte destas cousas), e em sua companhia foi o mensajeiro que veo de Bemoí, e assi alguns clérigos pera praticarem com ele em as cousas da Fé. Com a qual ida de Gonçalo Coelho, algυa gente da que ia em os navios do resgate tomou ousadia de entrar pela terra firme em sua companhia, pera poderem milhor vender suas mercadorias, porque já por razão da guerra não corria resgate costumado aos portos de mar. E foi este negócio 101 de os nossos irem e virem ao arraial de Bemoí em tanto crescimento, e ele por causa da guerra pera a qual os havia mister, tomava tantos cavalos sem os poder pagar, que andava lá muita gente, uns por arrecadar o que lhe deviam, e outros por desbaratar o que não podiam vender em os portos de mar. Bemoí, como era homem sagaz, vendo que em a detença do despacho, assi Gonçalo Coelho como as partes que ali andavam, o favoreciam em os seus negócios da guerra, trouxe-o lá em esperança de sua conversão perto de um ano. Gonçalo Coelho, sentindo esta sua tenção, e mais vendo 31v como se os homens perdiam em as mercadorias que davam fiadas a Bemoí, escreveu a el-Rei o pouco fructo que fazia e o dano que causava a sua estada lá. El-Rei, vista a carta de Gonçalo

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Coelho, mandou que logo se viesse, espedindo-se de Bemoí, sem escândalo, e que notificasse às partes que lá andavam que se viessem em sua companhia, sob graves penas não o querendo fazer. Bemoí, quando lhe Gonçalo Coelho disse de sua vinda, ficou mui triste, porque via chegar-se sua perdição, por o grande favor que com ele recebia pera as cousas da guerra, e também porque lhe convinha, por não perder o crédito, pagar o que devia às partes. Porém vendo ele que não podia deter Gonçalo Coelho, com ajuda dos seus pagou o que devia, e mandou o mesmo sobrinho, que do reino viera com Gonçalo 95 Coelho, que tornasse em sua companhia, enviando per ele a el-Rei cem peças de escravos bem dispostos, dos que havia na guerra, e assi υa grossa manilha de ouro como carta de crença, segundo seu costume. E entre algυas causas per que se mandou desculpar a el-Rei de não aceitar o bautismo, foi que o povo que o seguia andava alevantado com a guerra, e que mudar ele lei e modo de vida, era necessário obrigar a todos que fizessem outro tanto. E como é cousa dura em breve tempo a gente bárbara leixar os ritos e usos em que se criaram, seria causa que per este modo primeiro leixariam a ele que a eles , donde se perderia azo de em outro tempo per ele todos poderem receber bautismo, o qual tempo ele esperava em Deus que o daria com assossego daqueles trabalhos em que andava com seus imigos. Finalmente parece que assi o queria Deus, que per esta fortuna e trabalho viesse este Príncipe Bemoí ao bautismo porque assi ficou desbaratado e desemparado dos seus em υa batalha que lhe deram, que tomou por emparo de sua vida vir ao longo do mar per espaço de mais de setenta léguas buscar a nossa fortaleza de Arguim, onde embarcou com aqueles poucos que o seguiram, posto na esperança da grandeza e liberalidade del-Rei, de quem tanta oferta em palavras e tanta honra e mercê em obras tinha recebido. A qual confiança o não enganou: porque, lembrando a el-Rei quanta 102 verdade sempre achou em Bemoí em tempo de sua prosperidade, e também com desejo de o trazer per tais benefícios ao bautismo, causou recebê-lo com tanta honra e aparato; porque também grande consolação é aos tristes a facilidade com que os recebem na primeira entrada de seu requerimento. E sendo ele já dentro na sala onde el-Rei o estava esperando (como dissemos) saiu dous ou três passos do estrado com o barrete um pouco fora, Bemoí, segundo seu costume, tanto que se viu ante el-Rei, com todolos seus se debruçou aos seus pés, mostrando que tomava a terra debaixo deles e a lançava sobre sua cabeça, em sinal de humildade e obediência; o qual el-Rei fez alevantar, e tornando-se ao estrado, encostou-se em pé a υa cadeira, mandando ao intérprete que lhe dissesse que falasse. Bemoí, como era homem grande de corpo, bem disposto e de bom aspecto, e estava em idade de quorenta anos, com υa barba crescida e bem posta, representava não homem de suas cores, mas um príncipe a quem se devia todo acatamento, com a qual majestade de pessoa começou e acabou sua oração, com tantos afectos de provocar a se condoerem do caso miserável de seu desterro, que somente vendo estas notícias naturais, elas per si mostravam o que o intérprete depois dizia. E acabando de relatar seu caso, como podia fazer um natural orador, pondo todo o remédio dele na grandeza del-Rei, em que se deteve um bom pedaço, respondeu-lhe em poucas palavras tanto a seu 96 contentamento, que logo este prazer deu a ele, Bemoí, outro rostro, outro ânimo, outro ar e graça. E, espedindo-se del-Rei, foi bejar a mão à Rainha e ao Príncipe, a quem disse poucas palavras, no fim das quais pediu que fossem seus intercessores ante el-Rei; e di foi levado a seu apousentamento, per toda aquela fidalguia que o acompanhava.

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96 31v 102 Capítulo VII. Como o Príncipe Bemoí recebeu água de baptismo e houve nome Dom João Bemoí, e das festas que el-Rei por sua causa mandou fazer; e assi foram feitos cristãos todolos outros que vieram em sua companhia. 32 Passado este dia da chegada de Bemoí, depois per muitas vezes esteve el-Rei com ele em prática particular, da qual ficou tam contente como da pessoa: porque assi no que dezia e perguntava como no que respondia ao que era perguntado, mostrava ser dotado de mui claro intendimento. Entre as quais cousas, as de que el-Rei muito lançou mão, foram as que contava dalguns reis e príncipes daquelas partes, principalmente de um que ele chamava Rei dos povos moses, cujo estado começava 103 além de Tungubutu e estendia contra o Oriente, o qual não era mouro nem gentio, e que em muitas cousas se conformava em costumes com o povo cristão, donde el-Rei vinha a conjecturar que o dezia por o Preste João, que ele tanto desejava descobrir, as quais cousas muito aproveitaram pera o bom despecho de Bemoí, polos fundamentos que sobre elas fazia. E a primeira em que el-Rei entendeu de seus negócios, foi entregá-lo a teólogos que lhe praticassem as cousas da Fé, pera estar mais disposto pera receber o baptismo; o qual sacramento recebeu a três de Novembro deste ano de quatrocentos oitenta e nove, υa noite em casa da Rainha, sendo el-Rei e ela, o Príncipe, o Duque de Beja, um comissairo do Papa, o Bispo de Tânger e o de Ceita, que fez o ofício, padrinhos dele e doutros dous fidalgos dos principais de sua companhia, e houve nome Dom João, por amor del-Rei. Ao outro dia, sobre esta honra de alma que é eterna, houve outra temporal, fazendo-o el-Rei cavaleiro e dando-lhe armas de nobreza: υa cruz de ouro em campo vermelho, e as quinas de Portugal por orla; e ele, em retorno desta honra, fez menage a el-Rei de todo o estado que ganhasse e tevesse, e per o comissairo do Papa lhe mandou sua obediência em forma, como qualquer príncipe cristão. Depois dele receberam baptismo vinte quatro homens fidalgos dos seus, pera o qual auto se armou de tapeçaria a Casa dos Contos da dita vila; e enquanto duraram estas honras do baptismo de Dom João Bemoí e dos seus, sempre houve festas de canas, touros, momos e grandes serões, polo contentamento 97 que el-Rei tinha de sua conversão. Ele, Dom João Bemoí, também a seu modo quis fazer as suas: porque como trazia alguns homens grandes cavalgadores, diante del-Rei corriam a carreira em pé, virando-se e assentando-se, e tornando-se levantar, tudo em υa corrida; e com a mão no arção da sela saltavam no chão, correndo a toda força do cavalo, e tornavam-se à sela tam soltos como o podiam fazer a pé quedo. E da mesma sela a grã correr apanhavam quantas pedras lhe punham ao longo da carreira; e outras muitas desenvolturas mui aprazíveis de ver, em que mostravam serem mais soltos a cavalo e a pé do que eram os alarves de África, que se prezam muito destas solturas. Passados estes dias de festa, começou el-Rei entender em o despacho pera o tornar a restituir em seu estado, sobre que houve alguns conselhos, em que se assentou mandar el-Rei com ele vinte caravelas armadas de gente e munições, assi pera sua restituição como pera υa fortaleza que se havia de fazer à borda do rio Sanagá. E porque a causa del-Rei mandar fazer esta fortaleza não foi por ser tam necessária a restituição deste príncipe, quanto por outro fundamento que fez depois que dele soube o estado da terra e o curso do rio que té aquele tempo foi havido por um braço do Nilo,

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104 primeiro que mais procedamos na armada, convém tratarmos dele e assi desta província de Jalofe, porque se saiba com quanto fundamento de prudência el-Rei fez tam grande aparato e despesa.

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97 32 104 Capítulo VIII. Em que se descreve a terra que jaz entre os dous rios Sanagá e Gâmbia, e do curso deles. E como Pero Vaz Bisagudo, que levou o Príncipe Dom João Bemoí, o matou, mal-dizendo que armava traição, a qual morte el-Rei muito sentiu. Esta terra que per comum vocábulo dos naturais é chamada Jalofe, jaz entre estes dous notáveis rios - Sanagá e Gâmbia - os quais, pelo comprido curso que trazem, recebem diversos nomes, segundo os povos que os vezinham. Porque onde o chamado Sanagá per nós se mete no Mar Oceano ocidental, os povos jalofos lhe chamam Dengueh, e os tucurões mais acima Maio, e os seragolés, Cole; e quando corre per υa comarca chamada 32v Bagano, que é mais oriental, chamam-lhe Zimbalá, donde às vezes por causa dele à comarca dão este mesmo nome; e no reino de Tungubutu lhe chamam Iça. E posto que corre per muita distância de terras, vindo das fontes orientais dos lagos a que Ptolomeu chama Chelonides, Nuba e Rio Gir, quási per direito curso, té se meter no Oceano, em altura de quinze graus e meio, não lhe sabemos o nome que lhe os outros povos dão. Acerca de nós geralmente é chamado Sanagá, do 98 nome de um senhor da terra com quem os nossos, no princípio do descobrimento dele, tiveram comércio, ca lhe não sabiam chamar senão o Rio de Sanagá. E sendo rio que vem de tam longe, não traz tanto peso de água, nem a maré sobe tanto per ele como o rio Gâmbia, de Cantor. Faz algυas ilhas, as mais delas povoadas de animais e imundícias por sua aspereza, e em certos lugares se não leixa navegar, com penedia que o atravessa, principalmente obra de cento e cinquenta léguas da barra, onde se ele chama Cole, porque ali faz quási outras cataratas como as do Nilo. Ao qual lugar os moradores chamam Huaba, e per elas corre tam teso e assi está cortada a pique a penedia sobre a terra onde ele cai com aquela fúria, que podem passar per baixo a pé enxuto ao longo desta agrura da penedia. Isto, porém (segundo dizem os da terra), se pode fazer quando venta de cima, e debaixo não, porque então o vento rebate as águas contra a penedia, de maneira que empedem esta passagem; e a este lugar chamam os negros Burto, que quere dizer arco, polo que faz o jorro de água no ar, enquanto não cai no chão. 105 Metem-se neste rio outros mui cabedais em água, que por virem per despovoado de gente e multidão de animais, entre os povos com que temos comércio, não tem nome, nem menos acerca dos nossos, peró que em as távoas da nossa Geografia situemos seu curso em graduação. Entre alguns rios que nele entram, é um que vem da parte do Sul das terras a que os negros propriamente chamam Guiné, ou Geni (como abaixo veremos), o qual por vir per lugares barrentos traz suas águas um pouco vermelhas, e ele, Sanagá, tem as suas dali pera acima brancas; e ao lugar onde se ambos ajuntam chamam-lhe os povos saragolés gufitembó, que quere dizer branco e vermelho. Dizem eles que são ambos competidores e contrairos, porque bebendo das águas de um, e logo do outro, fazem arravessar, o que cada um per si só não faz, nem menos depois que se ajuntam e correm. O outro rio Gâmbia, do resgate de Cantor, não tem tanta variação em nome, porque quási todo ele, té o Resgate do Ouro onde vão os nossos navios, que será da barra, por razão das suas voltas, cento e oitenta léguas, e per linha dereita oitenta, chamam-lhe os negros da terra Gambu e nós Gâmbia. A maior parte do qual corre tortuoso, em voltas meúdas, principalmente do Resgate pera baixo, té se meter no mar, em altura de treze graus e meio, ao Sueste do cabo a que chamamos Verde. Traz maior peso de água que o Sanagá e muito mais profunda, porque se metem nele alguns rios bárbaros mui cabedais, que tem seu nascimento no sertão da terra chamada Mandinga, e as

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principais fontes suas são as do rio a que Ptolomeu chama Nieger e a lagoa Líbia. Em vir tortuoso, quebram as águas de maneira que não vem com ímpeto contra os nossos navios, quando 99 sobem per ele, e quási a meio caminho, ante que cheguem ao resgate, faz υa ilheta a que os nossos, pelos muitos elefantes que ali havia, lhe chamam dos Elefantes. Acima do Resgate do Ouro, tem υa pedra, que, por totalmente impedir a passagem, este Rei Dom João, de que falamos, mandou lá oficiais pera a quebrarem, o que se não fez por ser cousa mui custosa e de grande trabalho. Ambos estes rios Gâmbia e Sanagá, geralmente criam grã variedade de pescado e animais aquáticos, assi como cavalos a que chamamos marinhos, e mui grandes lagartos que em figura e natureza são os crocodilos do Nilo, celebrados per tantos escritores, e também serpentes que tem, mas pequenas e não tam monstruosas como pintam e fabulam as gentes. Animais terrestres que bebem as suas águas, é cousa sem número a multidão e variedade deles, porque assi andam os elefantes em manadas, como cá vemos os gados. Gazelas, porcos, onças e todo género de veação, sem nome entre nós, aqui se mostrou a natureza fecunda e pródiga em a multidão e variação dela. A terra que jaz entre estes dous rios faz um notável cabo, a que os nossos chamam Verde e Ptolomeu Arsinário Promontório; e posto que ele o 106 situe em largura de dez graus e dous terços, 33 e per nós seja verificado em catorze e um terço, segundo a figura dele, e as ilhas que ao Ocidente lhe estão opósitas (a que nós por razão dele per nome geral chamamos do Cabo Verde, e ele Hespéridas) não pode ser outro; e também por ficar entre dous notáveis rios, a que ele chama Darago , que é Sanagá, e Stachiris, Gâmbia, os quais na entrada do mar quási imitam a verdade que nós ora temos, peró no curso de cada um desfaleceu, pois lhe dá o nascimento mui curto e eles vem das fontes que acima dissemos, aos quais Ptolomeu não dá saída, como mostra a sua Távoa. Geralmente a terra que jaz entre eles estendendo-se contra Oriente, até cento e setenta léguas, se chama Jalofe, e os povos jalofos, posto que em si compreendem muito mais gerações das que Ptolomeu terminou dentro nas correntes de Darado e Stachio. A terra em si é grossa e mui fértil na criação de todalas cousas, e assi forte, principalmente a que leixam regada estes dous rios no tempo de suas cheas, que quando vem no verão com a força do sol faz greta que podem nela enterrar um cavalo. E pera dar os milhos de maçaroca a que chamamos zaburro, que é o comum mantimento daqueles povos, porque lhe possa nacer, depois de limpo o cisco que leixou o enxurro, lançam a semente sem mais lavrar, e com υa tona de area per cima o cobrem. Porque, ficando enterrado com a terra, faz υ[a] côdea per cima tam dura, que a quentura do sol aperta, com a muita humidade debaixo, que não leixa sair a semente acima, o qual impedimento lhe não faz a area; e basta, pera a corrupção e criação da semente, o lastro da terra que tem 100 debaixo mui húmido das águas passadas e os grandes orvalhos da noite que traspassam a area. Trigo e outras sementes que temos nestas partes não usam delas, nem parece que o clima as consentiria que viessem a madurecer, por serem terras mui húmidas, principalmente as vezinhas a Gâmbia. Somente em as terras que habitam os povos saragolés, em algυas várzeas já vezinhas aos desertos, colhem algum trigo mais hortado à enxada que lavrado com arado, muito mais grosso e fermoso que o de Espanha (segundo eles dizem). Este rio Sanagá, per a divisão nossa, é o que aparta a terra dos mouros dos negros, posto que ao longo de suas águas todos são mestiços, em cor, vida e costumes, por razão da cópula, que, segundo costume dos mouros, toda mulher aceitam. Peró, quanto à calidade da terra, parece que a natureza lançou aquele rio entre ambas como marco e divisão, porque, a que jaz da parte do Norte, que propriamente os mouros habitam, começando no Mar Oceano ocidental, 107

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em largura de cem léguas, e às vezes mais e menos, à maneira de υa faixa de que o rio Sanagá é a ourela, se vai estendendo contra Oriente, té ir beber nas águas do Nilo, e tomando ali algυa humidade da corrente delas, torna com aquela secura e esterilidade que leva té dar consigo em as águas salgadas do Mar Roxo. O qual deserto não é assi tam estéril per todo, que algυa parte não seja povoado em empolas, que são os abases, de que escreve Estrabo, e o mais é pastado de muitos alarves que per ele andam em cabildas, e por razão das calidades que tem, lhe dão diferentes nomes. Porque a terra que é toda area meúda, sem cousa verde, a esta chamam eles Sahel, à que é coberta dalgυa erva ou mata como de charneca pobre, que é a parte que eles chamam Azagar, e à que é de pedregulho meúdo, em modo de grossa area, Saará. E a esta causa, os mais dos moradores desta triste terra se achegam a este rio Sanagá, e outros andam buscando as empolas que dissemos, que lhe ficam em lugar de pomares. Por razão do qual rio, a terra mais povoada é a que jaz ao longo dele onde há algυas cidades, a principal das quais é Tungubutu, que está três léguas afastada dele da banda do Norte, onde, por causa do ouro que vem ter a ela da grande província de Mandinga, concorrem muitos mercadores do Cairo, de Tunes, de Ourão, Tremecém, Fez, Marrocos e doutros reinos e senhorios de mouros. E assi concorriam a outra cidade que está nas correntes deste rio, chamada Gená, a qual em outro tempo era mais célebre que Tungubutu; e ou que ela desse nome ao reino, ou que o reino desse a ela, daqui se chama acerca de nós toda aquela região de Sanagá por diante Guiné, posto que entre os negros uns lhe chamam Gená, outros Jani, e outros Geni. E como está mais 33v ocidental que Tungubutu, geralmente concorriam a ela 101 os povos que lhe são mais vezinhos, assi como os saragoléis, fulos, jalofos, azanegues, brabaxis, tiguraris, ludaias, da mão dos quais, per via do Castelo de Arguim e de toda aquela costa, vinha o ouro a nossas mãos, e outros povos do interior de Mandinga acudiam ao Resgate de Cantor, a que vão os nossos navios, per o Rio Gâmbia. E não trazendo as areas destes dous notáveis rios Sanagá e Gâmbia tanto ouro como as do nosso Tejo e Mondego, está bem trocada a opinião dos homens, que menos estimam o que tem acerca de si, que o que esperam per tantos perigos e trabalhos como passam em o ir buscar a estes dous rios bárbaros. E porque destas e doutras cousas de que copiosamente tratamos em a nossa Geografia, el-Rei Dom João, de que falamos, era já informado ante da vinda de Bemoí, e ele o confirmou mais nelas, pareceu-lhe cousa mui proveitosa a seu estado e a bem de seus naturais, fazer fortaleza neste Rio Sanagá, como porta per que, com ajuda destes povos jalofos, que ele esperava em 108 Deus, per meio deste Príncipe Dom João Bemoí, se converteriam à fé (como se converteu o reino do Congo), podia entrar ao interior daquela grã terra, té chegar ao Preste, de quem ele tanto fundamento fazia pera as cousas da Índia. Também como per o Castelo de Arguim, Resgate de Cantor, Serra Lioa e Fortaleza da Mina, grande parte da terra de Guiné era sangrada do ouro que em si continha, com esta fortaleza do rio Sanagá ficava sangrada do outro ouro que corria às duas feiras que dissemos, por ambas estarem situadas ao longo das águas dele, com que não iria ter às mãos dos mouros, os quais o vinham buscar per tantos desertos em cáfila de camelos, que muitas vezes ficavam enterrados em as areas da Líbia, per que caminhavam. Assi que, com estes fundamentos e outros de muita prudência, mandou el-Rei fazer a armada de vinte caravelas que dissemos, a capitania da qual deu a Pero Vaz da Cunha, de alcunha Bisagudo, em que foi muita e luzida gente, assi de armas como oficiais, pera obra de fortaleza; e pera a conservação dos bárbaros, alguns religiosos, o maioral dos quais era mestre Álvaro, frade da Ordem de São Domingos e seu confessor, pessoa mui notável em vida e letras. Mas parece que ainda aqueles povos não tinham merecido a Deus o mérito do bautismo, porque, entrando Pero Vaz em o rio Sanagá com aquele grã poder que espantou a todolos bárbaros da terra, estando já na obra da fortaleza (a qual, segundo dizem, foi elegida em mau lugar, por razão

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das cheas do rio), dentro em o seu navio matou Bemoí às punhaladas, dizendo que lhe ordenava traição. Alguns afirmam que Pero Vaz neste caso foi enganado, e que mais condenou à morte Dom João Bemoí começar algυa gente adoecer por ser lugar doentio, que ele, Pero Vaz, mais temeu que a traição, como quem havia de ficar na fortaleza, depois que fosse feita. 102 Com a morte do qual príncipe, Pero Vaz se tornou a este reino, do qual caso el-Rei ficou mui descontente, e per aquela vez cessaram os seus fundamentos da fortaleza que mandava fazer naquele rio Sanagá, de que hoje (segundo alguns dos nossos dizem) ainda se mostram parte das suas paredes.

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102 33v 109 Capítulo IX. Como el-Rei mandou o embaixador e moços que vieram de Congo em três navios, de que era capitão Gonçalo de Sousa, fidalgo de sua casa, em companhia do qual iam religiosos e sacerdotes pera a conversão da gente daquela parte; da obra que fizeram, té a tornada dos navios. A este tempo passava de dous anos, que era feito cristão o embaixador del-Rei de Congo e os moços que com ele vieram. E porque já entendiam bem a língua de que eles principalmente haviam de servir na conversão del-Rei e de todo o reino de Congo, e também em as cousas da Fé estavam doutrinados, segundo a capacidade de seu intendimento, mandou el-Rei que pera esta passagem deles e dos religiosos que haviam de ministrar as cousas desta 34 conversão, se fizessem prestes três navios já na fim do ano de quatrocentos e noventa. A capitania-mor da qual viagem deu a Gonçalo de Sousa, fidalgo da sua casa, e dos outros dous navios eram capitães Fernão do Avelar e Afonso de Moura, também cavaleiros da sua casa. Os quais, porque, ao tempo que partiram de Lisboa, faleciam nela de peste que havia anos que andava, não se poderam tanto resguardar que não fossem iscados dela, de maneira que, no Cabo Verde, faleceu Gonçalo de Sousa e Dom João de Sousa, embaixador, e o escrivão da armada e outras pessoas, que fez grande confusão em todos, temendo que poucos e poucos fossem morrendo todos per esse mar e também pola diferença que entre eles houve - qual dos capitães sucederia naquele cargo. E como os pilotos eram Pero de Alenquer e Pero Escobar, pessoas mui estimadas por razão de seu cargo, e cada um favorecia seu capitão, e com eles se ia toda a gente do mar, veo o caso a se poer em juízo diante de Fernão de Góis, capitão da Ilha Santiago, polo Duque Dom Diogo. Finalmente, per favor dele, e por tirar escândalo entre os outros, vieram a fazer capitão-mor a Rui de Sousa, sobrinho de Gonçalo de Sousa, defunto, posto que fosse naquela armada sem cargo algum, somente em companhia de seu tio. Com a qual eleição todalas diferenças se acabaram; e tornando a sua derrota caminho de Congo, a primeira terra que tomaram dele, foi dum senhorio a que chamavam Sono, de que era senhor um tio del-Rei. O qual, como soube da chegada 103 dos nossos e do que traziam, movido do espírito de Deus, acompanhado com grande número de vassalos, estrondo de buzinas, tabaques e outros tangeres a seu modo por festa, veo receber Rui de Sousa, mostrando o contentamento de sua vinda, e do que trazia a el-Rei, seu sobrinho. E per meio de um dos moços doutrinados, pedia logo que lhe 110 mandasse dar o bautismo, porque, como era homem velho, e que na tardança de irem a el-Rei e tornarem a ele podia correr risco de morte, não queria perder aquela mercê de Deus que tinha em casa. Rui de Sousa, vendo a instância do seu requerimento, deu logo ordem com que os religiosos em meio de um campo mandaram fazer υa grande casa de rama, que os mesmos criados de Mani Sono cortaram, onde se armaram três altares com ricos ornamentos que levavam pera este santo auto, sendo a ele presentes todolos filhos que Mani Sono tinha, e os principais da terra. Aos quais, ante que o bautizassem, ele, Mani Sono, fez um arrazoamento, não de homem bárbaro, mas daquele a quem o espírito de Deus movia os beiços, representando o error em que té li esteveram, e a mercê e piadade que Deus com ele obrava em lhe mandar a sua casa doutrina de salvação; e que se ele tomava a salva dela a el-Rei, seu sobrinho, era por ser tam velho, com que ficava desculpado ante ele, e que também em sua companhia havia de receber bautismo aquele filho que tinha pela mão,

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por ter tam pouca idade, que per si o não podia pedir. Ouvindo isto seu filho maior, que também na vontade estava disposto pera receber o bautismo, começou de se queixar com seu pai, dizendo que não lhe negasse aquela mercê de o acompanhar naquela honra que recebia de Deus, pois da herança que tinha na terra o leixava por seu herdeiro, e não quisesse antepoer a ele aquele menino em outros maiores bens. Finalmente, passadas muitas razões entre o filho e o pai, ele o satisfez, dizendo que, assi convinha por então, pola obediência que deviam a el-Rei, seu sobrinho, a cuja instância e requerimento el-Rei de Portugal mandava aquelas cousas que viam. Acabando suas razões, que em seu modo eram de homem alumiado, se entregou em mãos dos sacerdotes que o bautizaram, e houve nome Manuel, por lhe dizerem que assi se chamava o maior senhor do reino, que era irmão da Rainha e primo com-irmão del-Rei, e o filho houve nome António. Os quais depois, pola nobreza do seu sangue, tiveram o dom, que responde em significado a este vocábulo que anda entre eles - mani, que quere dizer senhor, e, junto a Sono, nome daquela comarca de terra, quando dizem Mani Sono, se entende o Senhor de Sono, porque todalas nações tem seus termos de nobreza e honra, causa dos maiores trabalhos da vida. O qual bautismo foi o primeiro que naquelas partes da idolatria se fez, dia de Páscoa, a três do mês de Abril 104 do ano de quatrocentos 34v noventa e um, sendo a ele presentes passante de vinte cinco mil homens vassalos deste Príncipe de Sono, Dom Manuel, que com ele estavam oferecidos a receber o bautismo, se o ele não empedira por as cousas que deu a seu filho. E como a nova deste bautismo chegou a el-Rei de Congo, que estava dali cinquenta léguas, foi tam grande o contentamento que teve desta obra, que, pera exemplo de todos, logo, com as graças que mandou a seu tio, também, segundo seu uso, lhe mandou υa doação de mais trinta léguas de costa, e dez pelo sertão, em acrescentamento de seu estado. Com o qual sinal de contentamento, que 111 el-Rei mostrou polo que ele fez, se atreveu ao que lhe aconselhavam os religiosos, que era queimar quantos ídolos havia em sua terra, com auto solene. E os dias que os nossos ali esteveram, enquanto não vinha recado del-Rei pera partirem, ouvia Dom Manuel missa e ofícios que os sacerdotes diziam naquela igreja de rama, mostrando ele, em o modo de sua adoração, sinais da obra que nele tinha feito o sacramento do bautismo. Porque, como homem que desejava sua salvação, sempre perguntava das cousas de Deus, e como lhe poderia ser aceito naqueles derradeiros dias de sua vida em que estava, pois o principal da sua idade gastara em serviço do Demónio. E trazia tanto o tento na doutrina que lhe davam e na veneração das cousas de Deus, que acertando uns seus criados fazer à porta da igreja um arroído, os mandava matar, por o pouco acatamento que lhe teveram, se os religiosos o não empediram, por não dar causa a que a gente se escandalizasse, por estes culpados serem dos principais da terra. Vindo o recado del-Rei pera irem a ele, leixou Rui de Sousa a gente necessária pera guarda dos navios, e com a outra se partiu pera a cidade onde ele estava, indo em sua companhia um capitão do Príncipe Dom Manuel com duzentos homens de sua guarda, e outros que serviam de levar à cabeça toda a fardagem dos nossos, entre os quais havia compitência a quem levaria as cousas que serviam no altar, a que eles chamavam santas. Sendo Rui de Sousa em meio caminho da cidade de Ambasse Congo, onde estava el-Rei, veo ter com ele um capitão seu, acompanhado de muita gente, e mais adiante outro; e no dia de sua entrada, duas léguas da cidade, vieram outros três já em mais ordenança. Ca estes vinham em três batalhas, armados a seu modo, com grande estrondo de atabaques, vozinas e outros bárbaros instrumentos, assi ordenados em fieiras e em modo de cantar, que pareciam virem na ordem das procissões da invocação e prezes dos santos, cantando três ou quatro um verso, e o corpo de toda a outra gente lhe respondia, assi entoadamente, que se deleitavam os nossos em os ouvir, e de quando

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em quando, davam υa grita que parecia romperem os ares; as palavras do 105 qual canto eram louvores del-Rei de Portugal por as cousas que mandava ao seu Rei. Tornando estes capitães na ordem que vinham, e em meio de si aos nossos, foram levados ante el-Rei, que os estava esperando em um grande terreiro dos seus paços, tam coberto de povo que com grande trabalho a gente dos capitães podia fazer lugar pera que os nossos chegassem a el-Rei. O qual, em um cadafalso de madeira, tam alto que podia ser visto de todalas partes, estava assentado em υa cadeira de marfim com algυas peças de pau, lavrada ao seu modo mui bem; os vestidos do qual, da cinta pera acima, eram os coiros da sua carne mui pretos e luzidios, e per baixo se cobria 112 com um pano de damasco, que lhe dera Diogo Cão, e no braço esquerdo um bracelete de latão, e neste ombro um rabo de cavalo guarnecido, cousa tida entre eles por insígnia real, e na cabeça um barrete alto como mitra, feita de pano de palma muito fino e delgado, com lavores altos e baixos, a maneira que acerca de nós é a tecedura de cetim avelutado. Rui de Sousa chegado a ele, fez-se a cortesia ao modo deste nosso reino, e el-Rei também a sua, segundo o seu - pondo a mão direita no chão, como que tomava pó dele, e correu esta mão pelos peitos de Rui de Sousa, e depois pelos seus, que era a maior cortesia que entre eles se podia fazer. Acabado este auto da chegada de Rui de Sousa, com algυas palavras que disse a el-Rei, como ele estava desejoso de ver as cousas santas que lhe traziam pera o auto do seu bautismo, quis logo que diante daquele povo lhe fossem mostradas, pera 35 que todos tomassem sabor e gosto na vista delas, e o seguissem em seu propósito. A qual demostração se fez per mãos dos religiosos, tirando peça a peça com grande reverência e acatamento. E porque, quando vieram amostrar υa cruz, todolos nossos fizeram aquela adoração de latria que se lhe deve, por seu sinificado, que é Cristo Jesu, estava el-Rei com tam bom tento em quantas continências via fazer aos nossos, e os seus no que ele fazia, que quási juntamente cristãos e pagãos, ao alevantar dela, se poseram em giolhos. Finalmente, acabando de apresentar todas estas peças, sobre as quais ele fez muitas perguntas, e assi sobre as que lhe el-Rei mandava pera sua pessoa, recolheu-se da vista daquela multidão de povo pera os seus paços, que eram de madeira lavrada no cabo daquele grã terreiro, onde outra vez com sua mulher, filhos e alguns fidalgos mais aceitos, quis muito de vagar ver estas peças. E já quando lhas mostraram esta segunda vez, assi lhe ficou na memória o que os religiosos diziam de cada υa, que ele mesmo declarou à Rainha muitas cousas da significação delas, e ambos receberam as que vinham pera suas pessoas. Na entrega das quais e declaração das outras da Igreja, por que ele perguntava mui particularmente, se passou todo o dia e bom pedaço da 106 noite, em que espediu os nossos, os quais foram levados per um seu capitão ao lugar onde os tinham apousentados. Rui de Sousa com os sacerdotes e religiosos de que o maioral deles era Frei João, da Ordem de São Domingos, passados os primeiros dias de sua chegada, ordenaram que se fizesse υa igreja de pedra e cal, segundo lhe per el-Rei Dom João era mandado, pera a qual obra traziam seus oficiais. E ainda que no sítio da cidade não havia pedra, deu el-Rei cuidado a um seu capitão, que com toda sua gente donde quer que achasse trouxesse a necessária; e a outro deu da madeira, repartindo o trabalho per todos, pera se fazer com mais brevidade. De maneira que, chegando os nossos à cidade Ambasse Congo, 113 a vinte nove dias de Abril, a três de Maio foi posta a primeira pedra e acabou-se o primeiro de Junho, cujo orago é de Santa Cruz, em memória da festa da Invenção da Cruz, que a Igreja soleniza neste dia em que esta se começou a fundar; a qual depois foi Sé Catedral, com bispo da mesma

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gente. E porque, quási em chegando os nossos, veo nova a el-Rei que os povos mundequetes, que habitam certas ilhas que estão em um grande lago donde sai o Rio Zaire, que corre per este reino de Congo, eram rebelados e faziam muito dano em as terras a eles comarcãs, a que compria acudir el-Rei em pessoa, foi causa que se bautizasse el-Rei, não com aquela solenidade que ele tinha ordenado depois que a igreja fosse feita. O qual sacramento pera sua salvação recebeu no próprio dia que se pôs a primeira pedra dela. E por el-Rei Dom João ser autor desta obra, quis ele que lhe fosse posto o seu nome - Joane -, sendo com ele bautizados seis principais fidalgos, dos que haviam de ir àquela guerra, e juntas mais de cem mil almas, que eram vindos, assi por causa dela, como da chegada dos nossos. Pera a qual guerra levou υa bandeira com υa cruz que lhe Rui de Sousa entregou, em virtude do qual sinal lhe prometeu que havia de vencer seus imigos; a qual bandeira lhe mandava el-Rei, que era de Santa Cruzada, que lhe concedera o Papa Inocêncio VIII pera a guerra dos infiéis. A Rainha, vendo que el-Rei se partia e que Frei João, o principal dos religiosos, era falecido, e outros estavam doentes por logo os apalpar a terra, começou de se queixar a el-Rei, pedindo-lhe que houvesse por bem, ante de sua partida, ela ser bautizada, porque esperar que viesse o Príncipe, que estava na frontaria dos imigos, como ele leixava ordenado, dizendo que a este tempo seria já a igreja acabada, era este termo mui comprido e temia falecerem os ministros deste sacramento, segundo já começavam. El-Rei, vendo quanta razão ela tinha deste requerimento, houve por bem que fosse bautizada, e poseram-lhe nome Lionor, como a Rainha de Portugal, mulher del-Rei Dom João, com que ambos, marido e mulher, ficando cristãos, ficaram 107 com o mesmo nome que tinham estes dous cristianíssimos príncipes conjuntos per matromónio e sangue, como netos que eram del-Rei Dom Duarte e autores desta Cristandade. Partido el-Rei pera aquela guerra que o apressava, em a qual, segundo diziam alguns dos nossos que lá foram, seriam juntos passante de oitenta mil homens, mais levemente houve vitória com a fé e sinal que levava, do que foi o apercebimento de sua ida. 35v E tornando à cidade, espediu-se Rui de Sousa pera este reino, leixando-lhe pera a conversão dos povos Frei António, que era a segunda pessoa depois de Frei João, e outros quatro frades, e assi alguns homens leigos pera os acompanharem, e outros pera entrarem o sertão da terra com alguns naturais, como el-Rei Dom João mandava, pera descobrir o interior daquele grã reino e passarem além do grande lago que dissemos.

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107 35v 114 Capítulo X. Como entre el-Rei Dom João de Congo e seu filho, o Príncipe Dom Afonso, houve algυas diferenças que se acabaram per falecimento do dito Rei. E ficou por herdeiro pacífico do reino este Príncipe Dom Afonso, o qual té fim de seus dias fez obras de cristianíssimo príncipe. Partido Rui de Sousa pera este reino, e o Príncipe, filho del-Rei Dom João de Congo, vindo da frontaria dos imigos onde estava, sendo já a igreja acabada, foi ele bautizado com muitos fidalgos, assi dos que andavam com ele como outros que a este auto eram vindos, e por amor do Príncipe Dom Afonso, filho del-Rei Dom João de Portugal, houve ele o mesmo nome. Mas como o Demónio, com estas obras de se baptizar cada dia muita gente, ele perdia grande jurdição, trabalhou por lhe ficar em penhor algυa pessoa real, per a qual podesse cobrar o perdido; e foi um filho del-Rei, chamado Panso Aquitimo, o qual não queria receber água de bautismo, afastando-se da conversão de seu pai e recolhendo pera si alguns daqueles que eram conformes a seu propósito. Acrescentou mais o Demónio a esta dureza do filho um novo estímulo a el-Rei, polo quererem obrigar os religiosos que se apartasse das muitas mulheres que tinha e ficasse com υa só, como mandava a Igreja. As quais, porque com este preceito dos religiosos perdiam o estado de mulheres de rei, tinham seus meios com outras mulheres dos privados del-Rei, que também polo que lhes tocava trabalhavam com seus maridos que aconselhassem a el-Rei que tal não consentisse. El-Rei, como era homem velho, entregue a conselho dos seus, e muito mais inclinado à vida passada, começou de se esfriar daquele primeiro fervor que mostrou, tornando a seus ritos e costumes. O Príncipe Dom Afonso, em quem as cousas da Fé estavam 108 mais firmes, como não era contente desta mudança e a todo seu poder defendia o que confessava, começaram aqueles a quem ele reprendia de indinar el-Rei contra ele, té que o lançaram de sua graça e meteram nela o filho pagão Panso Aquitimo, com fundamento que, ficando este por Rei, viviriam em seus costumes passados. E como toda a gente desta Etiópia é mui dada a feitiços, e neles está toda a sua crença e fé, disseram a el-Rei os ministros do Demónio que teciam estas obras, que soubesse certo que seu filho Dom Afonso, do cabo do reino onde estava, que eram oitenta léguas, todalas noites, per 115 artes que lhe os cristãos ensinaram, vinha avoando e entrava com suas mulheres, aquelas que lhe a ele tolhiam, com as quais tinha ajuntamento, e logo à mesma noite se tornava. E que, além desta injúria que lhe fazia, sabia tanto que secava os rios e tolhia as novidades não serem boas, tudo a fim dele não haver tanto tributo do reino como soía, pera não ter que dar àqueles que o serviam fielmente, e ele se levantar com o reino. El-Rei, com estas e outras fábulas indinado contra o filho, tirou-lhe as rendas que lhe dava pera se manter, e como disso fosse repreendido per alguns fidalgos amigos do Príncipe, dizendo serem aquelas cousas engano, por quanto seu filho de dia e de noite era visto nas terras onde estava, por se mais certificar na verdade acerca do filho, ordenou el-Rei um feitiço que se usava antre eles. Atado o qual feitiço em um pano, o mandou per um moço a υa das suas mulheres, em que ele tinha suspeita, chamada Cufua Coanfulo, dizendo da parte do Príncipe Dom Afonso, que ele lhe mandava aquele feitiço, pera se livrar da morte que lhe el-Rei ordenava, e assi a todalas outras suas mulheres. Mas ela, como estava inocente da 36

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causa por que lhe era aquele presente mandado, disse ao moço que posesse o pano no chão, e foi-se a el-Rei, notificando-lhe a oferta de seu filho e outras palavras, com que el-Rei viu sua inocência e assentou que quanto lhe diziam do filho era maldade. E di a poucos dias, não dando conta do caso a alguém, mandou vir o Príncipe e o restituiu em suas rendas com mais acrescentamento de terras; e sobre isso lhe fez υa fala púbrica, sendo presentes os movedores desta suspeita que ele tevera pera maior sua confusão, os quais logo mandou matar. Peró não tardou muito que o Demónio buscou outro novo caminho. Porque, tornando-se o Príncipe a suas terras, como ia alumiado per Deus e favorecido do pai, mandou lançar pregão que qualquer pessoa a que fosse achado ídolo em casa, que morresse por isso . O qual feito logo foi notificado a el-Rei per os contrairos do Príncipe, agravando tanto este caso, que lhe fizeram crer que andava o povo tam alvoraçado, que, se a isso não acudisse levantar-se-ia contra sua real pessoa. Chamado o Príncipe sobre este negócio à Corte, assentou ele ante perder a vida, que nesta 109 parte obedecer a seu pai, e não leixou de prosseguir na obra que era em louvor de Deus. E porque em sua companhia andava um Dom Gonçalo, dos que foram bautizados com ele, homem prudente e cristão per fé e zelo de honra de Deus, trabalhava el-Rei por o haver à mão. Mas ele com a sua prudência e o Príncipe com suas palavras, e Deus que os governava, assi ordenaram e dilataram sua ida, fingindo ora υa cousa ora outra, tudo aplicando ao serviço del-Rei e ocupações do governo da terra e arrecadação 116 de suas rendas que lhe mandavam, té que Deus quis tirar esta perseguição ao Príncipe, dando tal infirmidade a seu pai, de que faleceu . A qual morte também descansou os nossos, muitos dos quais, pola vida que el-Rei tinha e pouco fructo que com ele faziam, andavam lançados com o Príncipe, e per meio dos religiosos tinha o Príncipe convertido e bautizado grande parte do seu senhorio, a que chamam Isúndi, que era a causa de maior indinação a el-Rei e àqueles que eram tornados a seu primeiro viver. Da qual indinação o Príncipe era sabedor; e por isso, enquanto o pai foi doente, posto que fosse chamado per alguns fidalgos, que lhe davam conta como estava em termo de morte, e que seu irmão Panso se vinha chegando pera a cidade com propósito de se apoderar dela com a gente que trazia, nunca confiou nestes recados, parecendo-lhe ser esta doença fingida pera o acolherem. Porém, como foi certificado da morte del-Rei, em três dias chegou à cidade, porque já se vinha cercando a ela, depois que começaram enviar nova desta sua doença. E ante que entrasse nela, foi avisado pela Rainha sua mãe, que esta entrada fosse de noite, secretamente, sem estrondo de gente, e que quanta viesse em sua companhia, fosse pouca a pouca, com cestos na cabeça em que trouxessem suas armas, dizendo que era mantimento que vinha para ela. Feita a entrada dele per este modo, ao outro dia saiu o Príncipe ao grande terreiro dos paços, onde mandou ajuntar os principais da terra que eram na cidade e lhe fez um arrazoamento. No fim do qual, eles, segundo seu costume, primeiro que se dali mudassem, o levantaram por rei com grande festa de tangeres e gritas, de maneira que este rumor foi ouvido nos alojamentos fora da cidade onde estava seu irmão, esperando mais gente pera per força de armas se fazer rei. E quando foi certificado da causa daquele estrondo, e a pouca gente que seu irmão consigo tinha, sem mais aguardar pela gente que esperava, cometeu a entrada da cidade. Eram a este tempo com el-Rei Dom Afonso trinta e sete cristãos somente, e como homem industrioso naquele mister da guerra, e mais governado per Deus, mandou aos seus que não bulissem consigo, mas que esperassem a entrada do irmão naquele grande curral, porque ele esperava em a piadade de Deus, em que ele cria, que lhe daria vitória de seus imigos. A qual esperança lhe 110 não faleceu, porque, vinda a batalha do irmão, que foi a primeira que entrou no curral, da qual choviam frechas, foi cousa milagrosa, que com aqueles poucos que acompanhavam el-Rei, chamando todos polo Apóstolo Santiago, e ele o nome de Jesu por ajuda, nunca leixou de o invocar,

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té que esta batalha do irmão lhe virou as costas, a qual foi dar na segunda, e υa desbaratou a outra. E por Deus dar inteira vitória a este católico Rei, nesta fugida que o 117 irmão levava por um mato, foi cair em um cepo que estava armado pera algυa fera, onde tomado per aqueles que o 36v seguiam, e com ele um seu principal capitão. O qual capitão, desconfiado de sua vida, ante de chegar a el-Rei, lhe mandou pedir que polo Deus em que ele cria lhe aprouvesse que fosse bautizado ante de sua morte, ca não queria perder a alma, pois já tinha perdido o corpo; porque ele cria ser aquele o verdadeiro Deus que os homens devem adorar, porquanto, ao tempo de sua peleja, ele vira muita gente a cavalo armada que seguia um sinal tal como aquele que adoravam os cristãos, causa de todo seu estrago, por esta ser a gente que pelejava. El-Rei, sabendo a penitência deste e como pedia o bautismo, não somente lho mandou dar, mais ainda lhe perdoou, e por memória deste feito, ele e todolos de sua linhagem ficaram obrigados de varrer e alimpar a igreja e trazer água pera se bautizarem todolos pagãos. O qual penitenciado foi entregue àquele honrado e católico barão Dom Gonçalo, que muito ajudou a este Rei nas cousas da fé, e porque ao tempo que se bautizou este capitão tomou o nome dele, Dom Gonçalo, ele o fez capitão de algυa parte das suas terras em o recolhimento de suas rendas. Panso Aquitimo, irmão del-Rei, assi das feridas do cepo em que caiu, como de nojo do seu caso, faleceu em sua indinação. El-Rei, assentadas suas cousas, ficou pacífico em seu reino, posto que teve muito trabalho com alguns principais dele, que per muitas partes se rebelavam por razão da idolatria; mas Deus lhe deu sempre vitória deles. Ao qual Nosso Senhor deu tanta vida naquele estado real, que reinou cinquenta e tantos anos e faleceu em idade de oitenta e cinco, e em todo o tempo, depois que recebeu a Fé té o último dia de sua vida, mostrou não somente virtudes de cristianíssimo príncipe, mas ainda exercitou ofício de apóstolo, pregando e convertendo per si grande parte do seu povo, zelando tanto a honra de Deus, que neste exercício empregou o mais de sua vida. E pera melhor exercitar este ofício de pregador, aprendeu a ler a nossa linguagem e estudava per a vida de Cristo e seus Evangelhos, vidas dos Santos e outras doutrinas católicas que ele com algυa insinança dos nossos sacerdotes podia aprender, declarando tudo àquele seu bárbaro povo. Mandou também a este reino de Portugal filhos, netos, sobrinhos e alguns moços nobres 111 aprender letras, não somente as nossas, mas as latinas e sagradas, de maneira que de sua linhagem houve já naquele seu reino dous bispos, que, exercitando seu ofício, serviram a Deus e deram contentamento aos Reis deste reino de Portugal, a cujas despesas todas estas obras eram feitas. E por memória desta miraculosa vitória que Nosso Senhor concedeu a este Rei Dom Afonso, em a qual os seus imigos viram o sinal da cruz e a cavalaria celeste dos anjos, em companhia do Apóstolo Santiago; e assi porque em dia da Invenção da Cruz seu padre recebeu água de bautismo, e também porque, mediante este sinal que lhe el-Rei Dom João mandou (como atrás fica), ele houve grandes vitórias dos povos mundequetes, tomou por armas 118 υa cruz branca de prata florida em campo vermelho, e o chefe do escudo azul, e em cada canto do chefe duas vieiras de ouro, por memória do Apóstolo Santiago, e o pé de prata, com mais um escudo dos cinco de Portugal, que é azul, com cinco visantes de prata em aspa, etc.

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111 36v 118 Capítulo XI. Como a este reino veo ter um Cristóvão Colom, o qual vinha de descobrir as Ilhas Ocidentais, a que agora chamamos Antilhas, por ser lá ido per mandado del-Rei Dom Fernando de Castela; e do que el-Rei Dom João sobre isso fez, e depois per o tempo em diante sucedeu sobre este caso. Procedendo per esta maneira as cousas deste descobrimento, estando el-Rei o ano de quatrocentos noventa e três, a seis de Março, em Vale-do-Paraíso, junto do Mosteiro de Nossa Senhora das Virtudes, termo de Santarém, por razão da peste que andava per aquela comarca, foi-lhe dito que ao porto de Lisboa era chegado um Cristóvão Colom , o qual diziam que vinha da Ilha Cipango e trazia muito ouro e riquezas da terra. El-Rei, porque conhecia este Colom, e sabia que per el-Rei Dom Fernando de Castela fora enviado a este descobrimento, mandou-lhe rogar que quisesse 37 vir a ele pera saber o que achara naquela viagem, o que ele fez de boa vontade, não tanto por aprazer a el-Rei, quanto por o magoar com sua vista. Porque, primeiro que fosse a Castela, andou com ele mesmo, Rei Dom João, que o armasse pera este negócio, o que ele não quis fazer por as razões que abaixo diremos. Chegado Colom ante el-Rei, peró que o recebeu com gasalhado, ficou mui triste quando viu a gente da terra que com ele vinha não ser negra de cabelo revolto e do vulto como a de Guiné, mas conforme em aspecto, cor e cabelo como lhe diziam ser a da Índia, sobre que ele tanto trabalhava. E porque Colom falava maiores grandezas e cousas da terra do que nela havia, e isto com 112 υa soltura de palavras, acusando e repreendendo a el-Rei em não aceitar sua oferta, indinou tanto esta maneira de falar a alguns fidalgos, que, ajuntando este avorrecimento de sua soltura, com a mágoa que viam ter a el-Rei de perder aquela impresa, ofereceram-se deles que o queriam matar, e com isto se evitaria ir 119 este homem a Castela. Ca verdadeiramente lhe parecia que a vinda dele havia de prejudicar a este reino e causar algum desassossego a Sua Alteza, por razão da conquista que lhe era concedida pelos Sumos Pontífices, da qual conquista parecia que este Colom trazia aquela gente. As quais ofertas el-Rei não aceitou, ante as repreendeu como príncipe católico, posto que deste feito de si mesmo tevesse escândalo, e em lugar disso fez mercê a Colom e mandou dar de vestir de grã aos homens que trazia daquele novo descobrimento. E com isto o espediu. E porque a vinda e descobrimento deste Cristóvão Colom (como então alguns pronosticaram) causou logo entre estes dous Reis, e depois a seus sucessores algυas paixões e contendas, com que de um reino a outro houve embaixadas, assentos e pactos, tudo sobre o negócio da Índia, que é a matéria desta nossa escritura, não parecerá estranho dela tratar do princípio deste descobrimento e do que dele ao diante sucedeu. Segundo todos afirmam, Cristóvão Colom era genoês de nação, homem esperto, eloquente e bom latino, e mui glorioso em seus negócios. E como naquele tempo υa das potências de Itália que mais navegava, por razão de suas mercadorias e comércios, era a nação genoês, este, seguindo o uso de sua pátria e mais sua própria inclinação, andou navegando per o mar de Levante tanto tempo, té que veo a estas partes de Espanha, e deu-se à navegação do Mar Oceano, seguindo a ordem de vida que ante tinha. E vendo ele que el-Rei Dom João ordinariamente mandava descobrir a costa de África com intenção de per ela ir ter à Índia, como era homem latino e curioso em as cousas da geografia e lia per Marco Paulo, que falava modernamente das cousas orientais do reino Cataio, e

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assi da grande Ilha Cipango, veo a fantesiar que per este Mar Oceano ocidental se podia navegar tanto, té que fossem dar nesta Ilha Cipango, e em outras terras incógnitas. Porque, como em o tempo do Infante Dom Hanrique se descobriram as Ilhas Terceiras e tanta parte de terra de África nunca sabida nem cuidada dos espanhóis, assi poderia mais ao Ponente haver outras ilhas e terras, porque a natureza não havia de ser tam desordenada na composição do Orbe Universal, que quisesse dar-lhe mais parte do elemento da água que da terra descoberta, pera vida e criação dos animais. Com as quais imaginações que lhe deu a continuação de navegar e prática dos homens desta profissão que havia neste reino mui espertos com os descobrimentos passados, veo requerer a el-Rei Dom João 113 que lhe desse alguns navios pera ir descobrir a Ilha Cipango per este Mar Ocidental, não confiado tanto em o que tinha sabido (ou, por melhor dizer, sonhado) dalgυas ilhas ocidentais, como querem dizer alguns escritores de Castela, 120 quanto na experiência que tinha em estes negócios - serem mui acreditados os estrangeiros, assi como António de Nole, seu natural, o qual tinha descoberto a Ilha de Santiago, de que seus sucessores tinham parte da capitania, e um João Baptista, francês de nação, tinha a Ilha de Maio, e Jos Dutra, framengo, outra do Faial. E per esta maneira, ainda que mais não achasse que algυa ilha erma, segundo logo eram mandadas povoar, ela bastava pera satisfazer a despesa que com ele fizessem. Esta é a mais certa causa de sua impresa que algυas ficções que, como dissemos, dizem escritores de Castela, e assi Jerónimo Cardano, médico milanês, barão certo, douto e ingenioso, mas em este negócio mal informado. Porque escreve em o livro que compôs De Sapientia que a causa de Colom tomar 37v esta impresa, foi daquele dito de Aristóteles: - que no Mar Oceano, além de África, havia terra pera a qual navegavam os cartaginenses, e por decreto púbrico foi defeso que ninguém navegasse pera ela, porque com abastança e molícias dela se não apartassem das cousas do exercício de guerra. El-Rei, porque via ser este Cristóvão Colom homem falador e glorioso em mostrar suas habilidades, e mais fantástico e de imaginações com sua Ilha Cipango, que certo no que dizia, dava-lhe pouco crédito. Contudo, a força de suas importunações, mandou que estivesse com Dom Diogo Ortiz, Bispo de Ceita, e com Mestre Rodrigo e Mestre Josepe, a quem ele cometia estas cousas da cosmografia e seus descobrimentos, e todos houveram por vaidade as palavras de Cristóvão Colom, por tudo ser fundado em imaginações e cousas da Ilha Cipango, de Marco Paulo, e não em o que Jerónimo Cardano diz. E com este desengano espedido ele del-Rei, se foi pera Castela, onde também andou ladrando este requerimento em a corte del-Rei Dom Fernando, sem o querer ouvir, té que per meio do Arcebispo de Toledo, Dom Pero Gonçalves de Mendoça, el-Rei o ouviu. Finalmente recebida sua oferta, el-Rei lhe mandou armar três caravelas em Palos de Moguer, donde partiu a três dias de Agosto do ano de mil quatrocentos noventa e dous, e deste dia a dous meses e meio, que foram a onze de Outubro, viram a ilha a que os da terra chamam Guanahani, que é υa daquelas a que ora os castelhanos chamam as Ilhas Brancas dos Lucaios, e ele lhe pôs nome As Princesas, por serem as primeiras que se viram; e a esta Guanahani chamou São Salvador. E dali se passou à Ilha Cuba, e dela à que os da terra chamam Haite, e os castelhanos Espanhola. E porque ele perguntava aos moradores por Cipango, que era a ilha do seu propósito, e eles entendiam por 114 Cibau, que é um lugar das minas da Ilha Haite, o levaram a ela, onde foi mui bem recebido do Rei da terra, a que eles chamam 121

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Cacique. E porque acharam nele e na gente muita facilidade, leixou ali trinta e oito homens em um acolhimento de madeira em modo de fortaleza; e trazendo consigo dez ou doze naturais daquela terra, fez-se na volta de Espanha, e chegou a Lisboa a seis de Março do ano seguinte, como dissemos. El-Rei Dom João, com a nova do sítio e lugar que lhe Colom disse da terra deste seu descobrimento, ficou mui confuso, e creu verdadeiramente que esta terra descoberta lhe pertencia, e assi lho davam a entender as pessoas de seu conselho, principalmente aqueles que eram oficiais deste mister da geografia, por a pouca distância que havia das Ilhas Terceiras a estas que descobrira Colom. Sobre o qual negócio teve muitos conselhos, em que assentou de mandar logo a Dom Francisco de Almeida, filho do Conde de Abrantes, Dom Lopo, com υa armada a esta parte. Da qual armada, sendo el-Rei Dom Fernando certificado, per seus mensajeiros e cartas se mandou queixar a el-Rei, requerendo-lhe que a não enviasse, té se determinar se era da sua conquista, e que pera prática do caso podia mandar seus embaixadores. El-Rei, como sua tenção nesta armada que fazia era por lhe parecer que no descoberto tinha justiça, por comprazer a el-Rei Dom Fernando, mandou cessar dela, té primeiro se determinar. E pera isso mandou a Castela, logo no Junho seguinte deste mesmo ano, ao Doutor Pero Dias e Rui de Pina, cavaleiro de sua casa, estando el-Rei Dom Fernando em Barcelona, ao tempo que per el-Rei Carlos de França se fez a segunda concórdia e entrega de Perpinhão e condado de Russilhão, com que el-Rei Dom Fernando ficou tam próspero em seus negócios, que estas pessoas que el-Rei tinha mandado a ele se vieram sem conclusão, somente que ele lha enviaria per seus embaixadores. Os quais, estando el-Rei em Lisboa, vieram: a um chamavam Pero de Ayala e a outro Dom Garcia de Carvajal, irmão do Cardeal Santa Cruz. E como a tenção del-Rei Dom Fernando era dilatar este caso, té lhe virem outros navios que tinha enviado a estas ilhas que descobrira Colom, pera que, segundo a calidade da cousa, assi fazer a estima dela, começaram os embaixadores tratar em outras matérias, com tanta variadade por se deter, que, entendendo el-Rei Dom João o caso, disse que aquela embaixada del-Rei seu primo não tinha pés nem cabeça, aludindo isto a Pero de Ayala, que era manco de um pé, e a Dom Garcia, por ser homem um pouco enlevado e vão. E sem outra conclusão se tornaram pera Castela. Pera o qual caso se acabar de concluir, enviou el-Rei a Castela Rui de Sousa e seu filho Dom João de Sousa, e Aires de Almada, corregedor 38 da sua Corte, e a Estêvão Vaz, que depois foi feitor da Casa da Índia, por secretário 122 da embaixada; e vistas 115 as razões e justiça de ambos os Reis, foi assentado e determinado este descobrimento não pertencer a este reino, mas ser próprio de Castela. E por evitar escândalos e debates, que ao diante podiam recrecer, do que cada um descobrisse ou seus sucessores, demarcaram e partiram todo o Universo em duas partes iguais, per dous meridianos, um opósito ao outro, dentro dos quais ficasse a demarcação de cada um: o primeiro meridiano se lançou vinte um graus ao Ponente das Ilhas do Cabo Verde, em que se embebessem trezentas sessenta e tantas léguas pera Loeste; e deste meridiano té o outro a ele opósito pera a parte do Ponente ao respeito daqueles que vivemos em Espanha, ficasse a terra, ilhas e mares que se entre ambos tém da Coroa de Castela; e a outra parte que está no Oriente dela, também ao respeito da nossa habitação, em que se inclue toda a Índia com o grande número das ilhas orientais, ficasse à Coroa de Portugal, com todalas cláusulas e condições que se nos contratos tém. Os quais foram jurados pelos ditos Reis, e os houveram por firmes e válidos per si e per seus sucessores, e prometeram serem pera sempre guardados, sem algum outro novo intendimento. Com o qual concerto este negócio ficou na vontade destes dous príncipes por acabado, sem de um reino ao outro esta matéria ser mais praticada, té o ano de mil quinhentos vinte e cinco, que entre el-Rei Dom João, o terceiro, nosso senhor, e o Emperador Carlos Quinto, Rei de Castela, houve

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algυas diferências, por razão de υa armada que per via de Castela levou às Ilhas de Maluco, que eram deste reino, um Fernão de Magalhães, natural português, em ódio del-Rei Dom Manuel, por se ir agravado dele a Castela, como veremos em seu lugar.

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115 38 122 Capítulo XII. Do que sucedeu por causa da grande armada que el-Rei mandou em ajuda do Príncipe Dom João Bemoí, assi nas lianças e amizades que El-Rei teve com alguns senhores do sertão daquele Guiné, como no descobrimento que teve dele per alguns homens que lá mandou, té o Nosso Senhor levar desta vida. Ainda que a morte do Príncipe Dom João Bemoí (como atrás contámos) mudou todolos fundamentos que el-Rei fazia com sua ida e fortaleza que mandava fazer, não leixou de mandar que se continuassem os resgates do Rio Sanagá e Gâmbia, como ordinariamente ante deste caso em cada um ano se fazia. E per os navios que de lá vieram, soube que a armada que enviou a Sanagá não foi tam sem fructo como ele cuidava, ca, se não serviu à restituição de Bemoí, aproveitou a bem 123 dos resgates e a se melhor descobrir o sertão daquela terra do que ante 116 se podia fazer. Porque os príncipes daquelas partes, como eram costumados ver somente um ou dous navios em seus portos, em que ia gente do mar prove e mal roupada, tinham pequena opinião do estado del-Rei, posto que os línguas lhe dissessem o que havia cá no reino. Porém quando eles viram tantos navios, tanta e tam luzida gente e tamanho aparato de guerra como foi naquela armada, assi os espantou, que duns em outros per todo aquele Guiné correu aquela fama, com que alevantaram mais a estima acerca da amizade del-Rei. E como os mais deles andavam em grandes contendas e guerras entre si, vendo que el-Rei somente pera restituição de Bemoí mandava tam grossa armada, sem da parte dele, Bemoí, haver mais méritos ante ele que o bom despacho dos seus navios, quando vinham ao resgate, movidos de seu interesse, com fundamento de poderem achar em el-Rei outra tal ajuda, se lhe necessária fosse, ou com temor de o anojarem, começaram todos, cada um em seu modo, a quem o faria melhor no despacho dos navios, e enviar presentes e recados a el-Rei de grandes ofertas. Donde procedeu haver tanta entrada naquela terra, que começou el-Rei já mais seguramente per seus mensajeiros mandar recados aos maiores príncipes dela, e entrevir em os negócios e guerras que uns com os outros traziam, como amigo conhecido e estimado deles. 38v Porque neste tempo mandou Pero de Évora e Gonçalo Eanes a el-Rei de Tucurol, e assi a el-Rei de Tungubutu, e per outras vezes mandou a Mandi Mansa per via do Rio Cantor, o qual príncipe era dos mais poderosos daquelas partes da província Mandinga. Ao qual negócio foi um Rodrigo Rabelo, sendeiro de sua casa, e Pero Reinel, moço de esporas, e João Colaço, besteiro da câmara, com outros homens de serviço, que faziam número de oito pessoas. E levaram-lhe de presente cavalos, azêmalas e mulas com seus arreos, e algυas sortes de cousas estimadas entre eles, por já lá ter mandado outra vez. E de todos estes escapou Pero Reinel, por ser homem costumado andar naquelas partes, e os mais faleceram de doença, vindo este Rei fazer guerra a outro Rei dos Fulos, chamado Temalá. E assi ficou desta e doutras idas que el-Rei lá mandou tanta amizade entre os nossos e este Rei Mandi Mansa, que enviando eu, por razão do meu cargo de feitor destas casas de Guiné e Índias, o ano de mil quinhentos trinta e quatro, a um Pero Fernandes a este reino de Mandi Mansa, em nome del-Rei Dom João, o terceiro, nosso senhor, que ora reina, por razão do resgate de Cantor, estimou o Rei muito este recado que lhe foi dado da parte del-Rei, dizendo que havia em boa ventura ser-lhe enviado este mensajeiro, porque a seu avô, que tinha o seu próprio nome, fora enviado outro 124 mensajeiro doutro Rei Dom João de Portugal - tanta memória, sem terem letras, havia entre estes bárbaros das cousas

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117 del-Rei Dom João. E não somente per estes e per Pero de Évora, mas ainda per um Mem Rodrigues, escudeiro de sua casa, e per Pero de Astúniga, seu moço de esporas, que ele levava por companheiro, mandou el-Rei algυas vezes recados a el-Rei de Tungubutu, e ao mesmo Temalá, que se chamava Rei dos Fulos. O qual Temalá nestes tempos foi naquelas partes um incêndio de guerra, levantando-se da parte do Sul, em υa comarca chamada Futa, com tanto número de gentes, que secavam um rio quando a ele chegavam; e assi era esquivo e bárbaro este açoute daquela gente pagã, que assolava quanto se lhe punha diante. E como com esta ferocidade tinha feito grande dano em os amigos e servidores del-Rei, principalmente a el-Rei de Tungubutu, Mandi Mansa e Uli Mansa, mandou-lhe per algυas vezes seus recados de amizade e outros de rogo sobre os negócios da guerra que tinha com estes. Também neste mesmo tempo escreveu per um abexi chamado Lucas, que foi, per via de Jerusalém, a el-Rei dos moses, nome mui celebrado entre os negros destas partes de Guiné de que falámos, o qual príncipe naquele tempo fazia guerra a el-Rei Mandi Mansa. E segundo a notícia que el-Rei Dom João tinha deste Rei dos moses e de seus usos e costumes, havia presunção ser algum vassalo ou vezinho do Preste João ou agente dos nóbis, por ele e os seus terem modo de cristandade, ca os mais deles se nomeavam per os nomes dos apóstolos de Cristo, o qual eles confessavam, também per via da fortaleza da Mina mandou a Mahamede ben Manzugal e neto de Muça, Rei de Songo, que é υa cidade das mais populosas daquela grã província, a que nós comumente chamamos Mandinga, a qual cidade jaz no paralelo do Cabo das Palmas, metida dentro no sertão, per distância de cento quorenta léguas (segundo a situação das távoas da nossa Geografia). O qual rei mouro, respondendo a este recado del-Rei, quási como espantado de tal novidade (segundo vimos em as cartas destas mensajes que temos em nosso poder), dezia que nenhum dos quatro mil quatro centos e quatro reis de que ele descendia, ouviu recado nem viu mensajeiro del-Rei cristão, nem ele tinha notícia de mais reis poderosos que destes quatro: del-Rei de Alimaem, del-Rei de Baldac, del-Rei do Cairo e del-Rei de Tucurol. Neste mesmo tempo que el-Rei Dom João se visitava e carteava com estes príncipes bárbaros, mandou também, per via do Castelo de Arguim à cidade Uadém, que está ao Oriente dele obra de setenta léguas, assentar υa feitoria com os mouros, por ali concorrer algum resgate de ouro, ao qual negócio foram Rodrigo Reinel, por feitor, Diogo Borges, escrivão, e Gonçalo Dantes, por homem da feitoria. Onde esteveram pouco tempo, por a terra ser mui deserta e somente virem a ela os mesmos alarves que às vezes vinham ao Castelo de Arguim, que são 118 azenegues, ludaias e brabaxis, dos quais não se podia haver informação do interior da terra de que ele 125 desejava ter notícia, porque sua tenção, nestas feitorias que mandava fazer no sertão, tanto era por saber as cousas dele e poder penetrar as terras do Preste 39 João e Oriente, como por o resgate do ouro que a elas concorria. As pessoas de que se el-Rei servia neste mister de recados e descobrimento per dentro do sertão, eram os que nomeámos, e assi Rodrigo Rabelo, João Lourenço, seus criados, e Vicente Anes e João Bispo, línguas, aos quais ele agalardoava de seus trabalhos, posto que não conseguissem o fim principal a que os mandava. E não somente per estes seus naturais, mas ainda per estrangeiros, assi como abexis e alguns alarves que vinham ao Castelo de Arguim, cometia este descobrimento do sertão, por lhe não ficar cousa algυa por tentar. Tam ocupado e solícito o trazia este negócio, principalmente depois que viu e gostou de muitas cousas de que os antigos escritores não teveram notícia, falando desta parte de África, que não lhe repousava o espírito. E bem como um lião faminto a quem a caça se esconde com temor

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dele, em meio dalgυa grande e espinhosa balsa, a qual ele rodea e comete per muitas partes, e, ferido e espinhado das entradas e saídas, já cansado, se lança com o sentido e tento posto na prea escondida, assi el-Rei, cometendo per muitas partes e vezes esta grã balsa de Guiné, que té hoje se não leixou penetrar, cansado desta continuação e despesa de sua fazenda, e assi dos grandes cuidados que lhe deram os negócios do reino, principalmente no tempo das traições, se leixou algum tanto repousar deste fervor que trazia - não porém que leixassem os navios ordinários de fazer suas viagens - té que aprouve a Deus de o levar pera si, e lhe sucedeu no reino o Duque de Beja, Dom Manuel, seu primo, que (como veremos) no segundo ano de seu reinado conseguiu, na primeira viagem, a esperança de setenta e cinco anos, em que seus antecessores tinham trabalhado. Parece que assi o ordena aquela divina Providência - que uns plantem e outros colham o fructo da planta. E que isto vejamos algυas vezes, não temos licença pera julgar estes juízos de Deus, somente podemos crer que ninguém perde o mérito de suas boas obras, aqui per fama e na outra vida per glória. Portanto, pois lhe a ele aprouve que, não per ofício, mas per inclinação, não por prémio, mas de graça, e mais oferecido que convidado, eu tomasse cuidado de escrever as cousas que passaram neste descobrimento e conquista do Oriente, não permitirá que eu perca algum prémio, se deste trabalho o posso ter, trocando ou negando os méritos de cada um. A qual fé e verdade guardando nós ao que el-Rei Dom João fez em todo o discurso de sua vida acerca deste descobrimento, posto que particularmente atrás fica escrito, aqui em soma queremos notar três cousas que lhe este reino deve: υa trata de 119 louvor de Deus, outra da glória e honra da Coroa Real e outra do acrescentamento do seu património. Quanto ao louvor de Deus, que maior pode haver na sua Igreja, que per indústria deste príncipe, no mais remoto lugar da terra e na gente mais 126 safara do nome de Cristo, onde podemos crer que não chegou a pregação dos Apóstolos, hoje em Sé Catedral estarem altares cheos de oblações e sacrifícios, oferecidos a este mesmo Deus, em nome de Cristo Jesu, nossa redenção e seu filho? O qual Cristo Jesu crê, adora e confessa um Rei bárbaro per sangue e católico per fé, com tam grande povo como tem o reino de Congo, que havendo sessenta anos que está metido na Igreja de Deus per fé e bautismo, em todo este tempo sempre foi em acrescentamento que professa, com termos dele bispos, sacerdotes, teólogos e ministros da pubricação evangélica. A segunda cousa que leixou a este reino, que trata da honra e glória da sua Coroa, são duas fortalezas: υa em Arguim, acabada per sua indústria, peró que fosse começada em vida del-Rei Dom Afonso, seu padre, e a outra a de São Jorge da Mina, no meio da grande região da Etiópia. Por razão das quais fortalezas, fundadas como posse real e autual do que tinha descoberto e esperava descobrir per este caminho, acrescentou à Coroa deste reino o senhorio de Guiné que ora tem. Na qual posse, como prudente barão e animoso príncipe, por não leixar dúvidas a seus sucessores com os príncipes da Cristandade, logo se determinou com el-Rei Dom Fernando de Castela, assinando termos e demarcações do que cada um podia conquistar (como atrás fica), e mais copiosamente se contém nos assentos e pactos que se fizeram entre eles. Quanto ao acrescentamento do património real, eu não sei em este reino julgada, portage, dízima, sisa ou algum outro direito real mais certo, nem que regularmente cadano assi responda, sem rendeiros alegarem esterilidade ou perda, do que é o rendimento do Comércio de Guiné, e tal que, se o soubermos agricultar e grangear, 39v com pouca semente nos responderá com maior novidade que os reguengos do reino e liziras do campo de Santarém. E mais é propriadade tam pacífica, mansa e obediente, que sem termos υa mão em o murrão aceso sobre a escorva da bombarda e a lança na outra, nos dá ouro, marfim, cera, coirama, açúcar, pimenta, malagueta, e daria mais cousas, se tanto quiséssemos dela descobrir, como descobrimos além dos povos japões, que passam acerca de nós por antípodes e antictones.

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Finalmente dá muito e bom povo, fiel católico, serviçal, e que nos ajuda em nossas necessidades e tam animoso pera com ele conquistar as outras regiões que conquistamos, e que isto não dão, que se fosse criado na doutrina militar, de melhor vontade iria fazer gente à terra de Guiné que à terra dos suíços. E ainda mal, porque os mouros de África, e principalmente o Xerife de Marrocos, 120 neste nosso tempo em este uso de guerra se servem mais deles que nós. E não falando em as polícias ou molícias de Ásia, cuja gente é mui viciosa neste uso delas, de que Salústio já clamou, por serem causa da corrupção da modéstia e temperança do povo romano, culpa em que a maior parte da nação portuguesa ao presente jaz, mas tratando dos fructos da natureza sem humano artifício que esta terra da Etiópia dá, bem lhe podemos chamar paraíso de naturais delícias. Porque não somente dá os necessários e proveitosos à vida humana, mas ainda dá almas criadas na inocência de seus primeiros padres, que com mansidão e obediência metem o pescoço per fé e baptismo debaixo do jugo evangélico. Mas parece que por nossos pecados ou per algum juízo de Deus, oculto a nós, nas entradas desta grande Etiópia que nós navegamos, pôs um anjo percuciente com υa espada de fogo de mortais febres, que nos empede não poder penetrar ao interior das fontes deste horto, de que procedem estes rios de ouro, que per tantas partes da nossa conquista saem ao mar. Quanto à majestade da conquista da Índia e à fama que temos alcançado de tam ilustres vitórias como dela houvemos, e os títulos que a Coroa deste reino por isso conseguiu, depois do falecimento deste rei Dom João, nos livros seguintes o escrevemos.

LIVRO IV 129 Capítulo primeiro. Como el-Rei Dom Manuel, no segundo ano do seu reinado, mandou Vasco da Gama com quatro velas ao descobrimento da Índia. Falecido el-Rei Dom João sem legítimo filho que o sucedesse no reino, foi alevantado por rei (segundo ele leixava em seu testamento) o Duque de Beja, Dom Manuel, seu primo com-irmão, filho do Infante Dom Fernando, irmão del-Rei Dom Afonso, a quem per legítima sucessão era devida esta real herança, da qual recebeu posse pelo cetro dela, que lhe foi entregue em Alcácer do Sal, a vinte sete dias de Outubro do ano de nossa Redenção de mil quatrocentos noventa e cinco, sendo em idade de vinte e seis anos, quatro meses e vinte cinco dias (como mais particularmente escrevemos em a outra nossa parte intitulada Europa, e assi em sua própria crónica). E porque com estes reinos e senhorios também herdava o prosseguimento de tam alta impresa como seus antecessores tinham tomado, que era o descobrimento do Oriente per este nosso Mar Oceano, que tanta indústria, tanto trabalho e despesa, per discurso de setenta e cinco anos, tinha custado, quis logo no primeiro ano de seu reinado mostrar quanto desejo tinha de acrescentar à Coroa deste reino novos títulos sobre o senhorio de Guiné, que por razão deste descobrimento el-Rei Dom João, seu primo, tomou, como posse da esperança de outros maiores estados que per esta via estavam por descobrir. E não falando em as polícias ou molícias de Ásia, cuja gente é mui viciosa neste uso delas, de que Salústio já clamou, por serem causa da corrução da modéstia e temperança do povo romano, culpa em que a maior parte da nação portuguesa ao presente jaz, mas tratando dos fructos da natureza sem humano artifício que esta terra da Etiópia dá, bem lhe podemos chamar paraíso de naturais delícias. Porque não somente ela dá os necessários e proveitosos à vida humana, mas ainda dá almas criadas na inocência de seus primeiros padres, que com mansidão e obediência metem o pescoço per fé e bautismo debaixo do jugo evangélico. Mas parece que por nossos pecados ou per algum juízo de Deus, oculto a nós, nas entradas desta grande Etiópia que nós navegamos, pôs um anjo percuciente com ua espada de fogo de mortais febres, que nos empede não poder penetrar ao interior das fontes deste horto, de que procedem estes rios de ouro, que per tantas partes da nossa conquista saem ao mar. Quanto à majestade da conquista da Índia e à fama que temos alcançado de tam ilustres vitórias como dela houvemos, e os títulos que a Coroa deste reino por isso conseguiu, depois do falecimento deste rei Dom João, nos livros seguintes o escrevemos. 130 Sobre o qual caso, no ano seguinte de noventa e seis, estando em Montemor-o-Novo, teve alguns gerais conselhos, em que houve muitos e diferentes votos, e os mais foram que a Índia não se devia descobrir. Porque, além de trazer consigo muitas obrigações por ser estado mui remoto pera poder conquistar e conservar, debilitaria tanto as forças do reino, que ficaria sem as necessárias pera sua conservação. Quanto mais que, sendo descoberta, podia cobrar este reino novos competidores, do qual caso já tinham experiência no que se moveu entre el-Rei Dom João e el-Rei Dom Fernando de Castela, sobre o descobrimento das Antilhas, chegando a tanto, que vieram repartir o Mundo em duas partes iguais, pera o poder descobrir e conquistar. E pois desejo de estados não sabidos movia já esta repartição, não tendo mais ante os olhos que esperança deles e alguas mostras do que se tirava do bárbaro Guiné, que seria, vindo a este reino quanto se dizia daquelas partes orientais? Porém a estas razões houve outras em contrairo, que, por serem conformes ao desejo del-Rei, lhe foram mais aceitas. E as principais que o moveram foram herdar esta obrigação com a herança do reino, e o Infante Dom Fernando, seu pai, ter trabalhado neste descobrimento, quando per seu mandado se descobriram as Ilhas do Cabo Verde, e mais por a singular afeição que tinha à memória das cousas do Infante Dom Hanrique, seu tio, que fora o autor do novo título do senhorio

LIVRO IV

de Guiné, que este reino houve, sendo propriedade mui proveitosa sem custo de armas e outras despesas que tem muito menores estados do que ele era. Dando por razão final, àqueles que punham os inconvenientes a se a Índia descobrir, que Deus, em cujas mãos ele punha este caso, daria os meios que convinham a bem do estado do reino. Finalmente el-Rei assentou de prosseguir neste descobrimento, e depois, estando em Estremoz, declarou a Vasco da Gama, fidalgo de sua casa, por Capitão-mor das velas que havia de mandar a ele, assi pola confiança que tinha de sua pessoa, como por ter aução nesta ida, ca, segundo se dizia, Estêvão da Gama, seu pai, já defunto, estava ordenado pera fazer esta viagem em vida del-Rei Dom João. O qual, depois que Bartolomeu Dias veo do descobrimento do Cabo de Boa Esperança, tinha mandado cortar a madeira pera os navios desta viagem, por a qual razão el-Rei Dom Manuel mandou ao mesmo Bartolomeu Dias que tevesse cuidado de os mandar acabar segundo ele sabia que convinham, pera sofrer a fúria dos mares daquele grã Cabo de Boa Esperança, que na opinião dos mareantes começava criar outra fábula de perigos, como antiguamente fora a do Cabo Bojador, de que no princípio falámos. E assi polo 131 trabalho que Bartolomeu Dias levou no apercebimento destes navios, como pera ir acompanhando Vasco da Gama té o pôr na paragem que lhe era necessária a sua derrota, el-Rei lhe deu a capitania de um dos navios que ordinariamente iam à cidade de São Jorge da Mina. E sendo já no ano de quatrocentos noventa e sete, em que a frota pera esta viagem estava de todo prestes, mandou el-Rei, estando em Montemor-o-Novo, chamar Vasco da Gama e aos outros capitães que haviam de ir em sua companhia, os quais eram Paulo da Gama, seu irmão, e Nicolau Coelho, ambos pessoas de quem el-Rei confiava este cargo. E posto que per alguas vezes lhe tivesse dito sua tenção acerca desta viagem, e disso lhe tinha mandado fazer sua instrução, pola novidade da impresa que levava, quis usar com ele da solenidade que convém a tais casos, fazendo esta fala púbrica, a ele e aos outros capitães, perante alguas pessoas notáveis que eram presentes, e pera isso chamadas: - Depois que aprouve a Nosso Senhor que eu recebesse o cetro desta real herança de Portugal, mediante a sua graça, assi por haver a bênção de meus avós, de quem a eu herdei, os quais com gloriosos feitos e vitórias que houveram de seus imigos a tem acrescentado per ajuda de tam leais vassalos e cavaleiros como foram aqueles donde vós vindes, como por causa de agalardoar a natural lealdade e amor com que todos me servis, a mais principal cousa que trago na memória depois do cuidado de vos reger e governar em paz e justiça é como poderei acrescentar o património deste meu reino, pera que mais liberalmente possa distribuir per cada um o galardão de seus serviços. E consirando eu per muitas vezes qual seria a mais proveitosa e honrada impresa e dina de maior glória que podia tomar pera conseguir esta minha tenção, - pois, louvado Deus, destas partes da Europa em as de África, a poder de ferro, temos lançado os mouros e lá tomando os principais lugares dos portos do reino de Fez que é da nossa conquista - achei que nenhua outra é mais conveniente a este meu reino (como alguas vezes convosco tenho consultado) que o descobrimento da Índia e daquelas terras orientais. Em as quais partes, peró que sejam mui remotas da Igreja Romana, espero na piedade de Deus que não somente a Fé de Nosso Senhor Jesu Cristo, seu filho, seja per nossa administração pubricada e recebida, com que ganharemos galardão ante ele, fama e louvor acerca dos homens, mas ainda reinos e novos estados com muitas riquezas vendicadas per armas das mãos dos bárbaros, dos quais meus avós com ajuda e serviço dos vossos e vosso, tem conquistado este meu reino de Portugal e acrescentado a Coroa dele. Porque, se da costa da Etiópia, que quási de caminho é descoberta, este meu reino tem adquirido novos títulos, novos proveitos e renda, que se pode esperar, indo mais adiante com este descobrimento, senão podermos conseguir aquelas orientais riquezas tam celebradas dos antigos escritores, parte das quais per comércio tem feito tamanhas potências, como são Veneza, Génoa, Florença e outras mui grandes comunidades de Itália? 132 Assi que, consideradas todas estas cousas de que temos experiência, e também como era

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ingratidão a Deus enjeitar o que nos tam favoravelmente oferece e injúria àqueles príncipes de louvada memória, de quem eu herdei este descobrimento, e ofensa a vós outros, que nisso fostes, descuidar-me eu dele per muito tempo, mandei armar quatro velas que (como sabeis) em Lisboa estão de todo prestes pera seguir esta viagem de boa esperança. E tendo eu na memória como Vasco da Gama, que está presente, em todalas cousas que lhe de meu serviço foram entregues e encomendadas, deu boa conta de si, eu o tenho escolhido pera esta ida, como leal vassalo e esforçado cavaleiro, merecedor de tam honrada impresa. A qual espero que lhe Nosso Senhor leixará acabar, e nela a ele e a mim faça tais serviços com que o seu galardão fique por memória nele e naqueles que o ajudarem nos trabalhos desta viagem, porque com esta confiança, pela experiência que tenho de todos, eu os escolhi por seus ajudadores pera em todo o que tocar a meu serviço lhe obedecerem. E eu, Vasco da Gama, vo-los encomendo e a eles a vós, e juntamente a todos a paz e concórdia, a qual é tam poderosa que vence e passa todolos perigos e trabalhos, e os maiores da vida faz leves de sofrer, quanto mais os deste caminho, que espero em Deus serem menores que os passados, e que per vós este meu reino consiga o fructo deles. Acabando el-Rei de propor estas palavras, Vasco da Gama e todalas notáveis pessoas lhe beijaram a mão, assi pola mercê que fazia a ele como ao reino, em mandar a este descobrimento, continuado per tantos anos que já era feito herança dele. Tornada a casa ao silêncio que tinha ante deste auto de gratificação, assentou-se Vasco da Gama em giolhos ante el-Rei, e foi trazida ua bandeira de seda com ua cruz no meio das da Ordem da Cavalaria de Cristo, de que el-Rei era governador e perpétuo administrador, a qual estendendo o escrivão da puridade entre os braços, em modo de menagem, disse Vasco da Gama em alta voz estas palavras: - Eu, Vasco da Gama, que ora per mandado de vós, mui alto e muito poderoso Rei, meu senhor, vou descobrir os mares e terras do Oriente da Índia, juro em o sinal desta cruz em que ponho as mãos, que por serviço de Deus e vosso, eu a ponha hasteada e não dobrada ante a vista de mouros, gentios e de todo género de povo onde eu for, e que per todolos perigos de água, fogo e ferro, sempre a guarde e defenda até morte. E assi juro que na execução e obra deste descobrimento que vós, meu Rei e Senhor, me mandais fazer, com toda fé, lealdade, vigia e diligência eu vos sirva, guardando e comprindo vossos regimentos que pera isso me forem dados, até tornar onde ora estou, ante a presença de Vossa Real Alteza, mediante a graça de Deus, em cujo serviço me enviais. 133 Feita esta menagem, foi-lhe entregue a mesma bandeira e um regimento em que se continha o que havia de fazer na viagem, e alguas cartas pera os Príncipes e Reis a que propriamente era enviado, assi como ao Preste João das Índias, tam nomeado neste reino, e a el-Rei de Calecute com as mais informações e avisos que el-Rei Dom João tinha havido daquelas partes, segundo já dissemos, recebidas as quais cousas el-Rei o espediu e ele se veo a Lisboa com os outros capitães.

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125 41 133 Capítulo II. Como Vasco da Gama partiu de Lisboa, e do que passou té chegar ao padrão que Bartolomeu Dias pôs além do Cabo de Boa Esperança. Chegado Vasco da Gama com os outros capitães a Lisboa, na entrada de Julho do ano de mil quatrocentos noventa e sete, tanto que os navios foram prestes, recolheu sua gente pera se partir, sem guardar a eleição dos meses de que ora usamos pera ir tomar os ventos gerais que cursam naquelas partes; porque naquele tempo tam escura era a notícia da terra que ia buscar, como os ventos que serviam pera boa navegação. Mas parece que, como a manifestação deste novo mundo, tantas centenas de anos encoberto, Deus a pôs neste termo, quando el-Rei Dom Manuel houvesse a herança deste reino, assi permitiu que sem a ordem dos meses naturais desta navegação fosse a partida de Vasco da Gama. Porque entendamos que as cousas que procedem do seu querer, ele, que as ordena pera algum fim que nós não alcançamos, dá os meios pera se virem efeituar no tempo pera que as ele guarda. E como Vasco da Gama, pera poder partir, não esperava mais que navios prestes e um pouco de norte, que naqueles meses do verão é geral nesta costa de Espanha, postos os navios em Rastelo, lugar de ancoragem antígua, um dia ante da sua partida, foi ter vigília com os outros capitães a casa de Nossa Senhora da vocação de Belém, situada neste lugar de Rastelo. A qual naquele tempo era ua ermida que o Infante Dom Hanrique mandou fundar, onde estavam alguns freires do convento de Tomar pera administrarem os sacramentos aos mareantes. Ao seguinte dia, que era sábado, oito de Julho, por ser dedicado a Nossa Senhora e a casa de muita romagem, assi por esta devação, como por 134 se irem espedir dos que iam na armada, concorreu grande número de gente a ela. E quando foi ao embarcar de Vasco da Gama, os freires da casa com alguns sacerdotes que da cidade lá eram idos dizer missa, ordenaram ua devota procissão com que o levaram ante 41v si nesta ordem: ele e os seus com círios nas mãos, e toda a gente da cidade ficava detrás, respondendo a ua ledainha que os sacerdotes diante iam cantando, té os porem junto dos batéis em que se haviam de recolher. Onde, feito silêncio, e todos postos em giolhos, o vigairo da casa fez em voz alta ua confissão geral, e no fim dela os absolveu na forma das bulas que o Infante Dom Hanrique tinha havido pera aqueles que neste descobrimento e conquista falecessem (como atrás dissemos). No qual auto foi tanta a lágrima de todos, que neste dia tomou aquela praia posse das muitas que nela se derramam na partida das armadas que cada ano vão a estas partes que Vasco da Gama ia descobrir; donde com razão lhe podemos 126 chamar praia de lágrimas pera os que vão, e terra de prazer aos que vem. E quando veo ao desfraldar das velas, que os mareantes, segundo seu uso, deram aquele alegre princípio de caminho, dizendo: - Boa viagem! - todolos que estavam prontos na vista deles, com ua piadosa humanidade dobraram estas lágrimas e começaram de os encomendar a Deus e lançar juízos, segundo o que cada um sentia daquela partida. Os navegantes, dado que com o fervor da obra e alvoroço daquela impresa embarcaram contentes, também passado o termo do desferir das velas, vendo ficar em terra seus parentes e amigos e lembrando-lhe que sua viagem estava posta em esperança, e não em tempo certo nem lugar sabido, assi os acompanhavam em lágrimas como em o pensamento das cousas que em tam novos casos se representam na memória dos homens. Assi que uns olhando pera a terra e outros

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pera o mar, e juntamente todos ocupados em lágrimas e pensamento daquela incerta viagem, tanto esteveram prontos nisso, té que os navios se alongaram do porto. Seria a companha desta bem fortunada viagem, entre mareantes e homens de armas, até cento e setenta pessoas, e os três navios pouco mais ou menos de cento até cento vinte tonéis cada um. Do primeiro chamado São Gabriel, em que ia Vasco da Gama, era piloto Pero de Alanquer, que fora no descobrimento do Cabo de Boa Esperança, e escrivão Diogo Dias, irmão de Bartolomeu Dias. Do segundo, per nome São Rafael, capitão Paulo da Gama, era piloto João de Coimbra e escrivão João de Sá. Do terceiro, a que chamavam Bérrio, capitão Nicolau Coelho, era piloto Pero Escolar, e escrivão Álvaro de Braga. E da nau era capitão um Gonçalo Nunes, criado dele, Vasco da Gama, a qual ia somente amarinhada, pera, depois que os mantimentos dos navios se fossem gastando, tomarem os que ela levava sobressalentes e a gente se passar a eles. Partidas estas quatro velas, e Bartolomeu Dias em sua companhia em 135 o navio pera a Mina, como estava assentado, com bom tempo que teveram em treze dias foram ter à Ilha de Santiago, que é a principal das do Cabo Verde, onde tomaram algum refresco. Depois da partida da qual ilha, Bartolomeu Dias os acompanhou té se pôr no caminho da derrota pera a Mina, Vasco da Gama na sua. E a primeira terra que tomou ante de chegar ao Cabo de Boa Esperança, foi a baía a que ora chamam de Santa Helena, havendo cinco meses que era partido de Lisboa; onde saiu em terra por fazer aguada e assi tomar a altura do sol. Porque, como do uso do astrolábio pera aquele mister da navegação, havia pouco tempo que os mareantes deste reino se aproveitavam, e os navios eram pequenos, não confiava muito de a tomar dentro neles por causa do seu arfar. Principalmente com um astrolábio de pau de três palmos de diâmetro, o qual armavam em três paus à maneira de cábrea, por melhor segurar a linha solar, e mais verificada 127 e distintamente poderem saber a verdadeira altura daquele lugar, posto que levassem outros de latão mais pequenos, tam rusticamente começou esta arte que tanto fructo tem dado, ao navegar. E porque em este reino de Portugal se achou o primeiro uso dele em a navegação (peró que em a nossa Geografia largamente tratamos desta matéria em os primeiros livros dela), não será estranho deste lugar dizermos quando e per quem foi achado, pois não é de menos louvor este seu trabalho que o doutros novos inventores que acharam cousas proveitosas pera uso dos homens. No tempo que o Infante Dom Hanrique começou o descobrimento de Guiné, toda a navegação dos mareantes era ao longo da costa, levando-a sempre por rumo; da qual tinham suas notícias per sinais de que faziam roteiros, como ainda ao presente usam em algua maneira, e pera aquele modo de descobrir isto bastava. Peró, depois que eles quiseram navegar a descoberto, perdendo a vista da costa e engolfando-se no pego do mar, conheceram quantos enganos recebiam na 42 estimativa e juízo das singraduras que, segundo seu modo, em vinte quatro horas davam de caminho ao navio, assi por razão das correntes como doutros segredos que o mar tem, da qual verdade de caminho a altura é mui certa mostrador . Peró, como a necessidade é mestra de todalas artes, em tempo del-Rei Dom João, o segundo, foi per ele encomendado este negócio a mestre Rodrigo e a mestre Josepe Judeu, ambos seus médicos, e a um Martim de Boémia, natural daquelas partes , o qual se gloriava ser discípulo de Joane de Monte Régio, afamado astrónomo entre os professores desta ciência. Os 136 quais acharam esta maneira de navegar per altura do sol, de que fizeram suas tavoadas pera declinação dele, como se ora usa entre os navegantes, já mais apuradamente do que começou, em que serviam estes grandes astrolábios de pau. Pois, estando Vasco da Gama com os pilotos pronto no tomar altura do sol per este modo, deram-lhe aviso que detrás de um teso viram andar dous negros baixos à maneira de quem apanhava

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alguas ervas. E como isto era o principal que ele desejava - achar quem lhe desse algua rezão da terra - com muito prazer mansamente mandou rodear os negros per ua encoberta pera serem tomados. Os quais, como andavam curvos e prontos em apanhar mel aos pés das moutas com um tição de fogo na mão, nunca sentiram a gente que os rodeava, senão quando remeteram a eles, dos quais tomaram um. Vasco da Gama, porque não tinha língua que o entendesse, e ele de assombrado daquela novidade, não acudia aos acenos que a natureza fez comuns a todolos homens, mandou vir dous grumetes, um dos quais era negro, que se assentaram junto dele a comer e beber, apartando-se deles por o desassombrar. O qual modo aproveitou muito, porque os grumetes o provocaram a comer, com que, quando Vasco da Gama tornou a ele já estava desassombrado, e per 128 acenos mostrou uas serras, que seriam dali duas léguas, dando a entender que ao pé delas estava a povoação da sua gente. Vasco da Gama, porque não podia enviar melhor descobridor pera apelidar os outros, com alguns brincos de cascavéis e contas de cristalino e um barrete, mandou que o soltassem, acenando-lhe que fosse e tornasse com seus companheiros, pera lhe darem outro tanto. O que ele fez logo, trazendo aquela tarde dez ou doze que vinham buscar o que ele levou, que também lhe foi dado, e de quantas mostras de ouro, prata, especearia lhe apresentaram, de nenhua deram notícia. Quando veo a outro dia, já com estes vieram mais de quorenta , tam familiares, que pediu um homem de armas, chamado Fernão Veloso, a Vasco da Gama que o leixasse ir com eles, ver a povoação que tinham pera trazer algua mais notícia da terra do que eles davam, o que lhe Vasco da Gama concedeu, quási a rogo de Paulo da Gama, seu irmão.

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128 42 137 Capítulo III. Como Vasco da Gama foi ferido em ua revolta que os negros da Baía de Santa Helena fizeram, e seguindo sua viagem descobriu alguns rios notáveis, té chegar a Moçambique. Partido Fernão Veloso com os negros e Vasco da Gama recolhido ao seu navio, ficou Nicolau Coelho em terra a dar guarda à gente enquanto apanhava lenha, e outros mariscavam lagostas, por haver ali muitas. Paulo da Gama, por não estar ocioso, vendo que entre os navios andavam muitos baleatos trás o cardume do pexe meúdo, ajuntou dous batéis pera andar com fisga e arpões a eles, o qual passatempo lhe houvera de custar a vida. Porque foram os marinheiros do batel em que ele andava amarrar duas arpoeiras das fisgas com que tiravam, nas tostes do batel que estavam atochadas, e, acertando de ferir um baleato, assi barafustou com a fúria da dor, que houvera de trebucar o batel, se a arpoeira não fora comprida e o mar de pouco fundo, que causou dar o baleato em seco sem mais poder nadar, o qual lhe serviu de refresco. E sendo já sobre a tarde, querendo-se todos recolher aos navios, viram vir Fernão Veloso per um teso abaixo mui apressado. Vasco da Gama, como tinha os olhos em sua tornada, quando o viu com aquela pressa, mandou bradar ao batel de Nicolau Coelho que vinha da terra, que tornassem a ele a o recolher. Os marinheiros do batel, porque Fernão Veloso nunca leixava de falar em valentias, quando o viram sobre a praia decer com passos a meio chouto, acinte deteveram-se em o recolher. A qual detenção 42v deu suspeita aos negros que estavam em cilada, esperando a saída deles em terra, que o mesmo Fernão Veloso fizera algum sinal que não saíssem. E em querendo entrar ao batel, meteram dous negros a ele polo entreter, da qual ousadia saíram com os focinhos lavados em sangue, a que acudiram 129 os outros; e foi tanta a pedrada e frechada sobre o batel, que quando Vasco da Gama chegou polos apaziguar, foi frechado per ua perna, e Gonçalo Álvares, mestre do navio São Gabriel, e dous marinheiros levaram cada um sua. Vendo Vasco da Gama que com eles não havia meio de paz, mandou remar pera os navios, e porém à espedida alguns besteiros dos nossos empregaram neles seu almazém, por não ficarem sem castigo; e di a dous dias, com tempo feito, mandou Vasco da Gama dar à vela sem levar algua informação da terra, como desejava. Porque Fernão Veloso não viu cousa que 138 contar, senão o perigo que ele dezia passar entre aqueles negros, os quais, tanto que se apartaram da praia, o fizeram tornar, quási como que o queriam ter nela por anagaça, pera quando o fossem recolher cometerem algua maldade, da maneira que mostraram. Seguindo Vasco da Gama seu caminho na volta do mar, por se desabrigar da terra, quando veo ao terceiro dia, que eram vinte de Novembro, passou aquele grã Cabo de Boa Esperança, com menos tormenta e perigo do que os marinheiros esperavam, pela opinião que entre eles andava, donde lhe chamavam o Cabo das Tormentas, e dia de Santa Caterina chegaram onde se ora chama Aguada de São Brás, que é além dele sessenta léguas. E posto que ali acharam negros de cabelo revolto como os passados, estes sem receo chegaram aos batéis a receber qualquer cousa que lhe lançavam na praia, e per acenos começaram logo de se entender com os nossos, de maneira que houve entre eles comutação de darem carneiros a troco de cousas que lhe os nossos davam. Porém de quanto gado vacum traziam, nunca poderam haver deles ua só cabeça. Parece que o estimavam,

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porque alguns bois mochos que os nossos viram andavam gordos e limpos, e vinham as mulheres sobre eles com uas albardas da tabua. E em três dias que Vasco da Gama se deteve aqui, teveram os nossos muito prazer com eles por ser gente prazenteira, dada a tanger e bailar; entre os quais havia alguns que tangiam com ua maneira de frautas pastoris, que em seu modo pareciam bem. Do qual lugar Vasco da Gama se mudou pera outro porto perto daquele, porque entre os negros e os nossos começou haver algua perfia sobre resgate de gado, indo eles sempre a vista dos navios ao longo da praia, té ancorarem. E porque quando chegaram ia já grande número deles, mais em modo de guerra que de paz, mandou-lhe tirar com alguns berços somente por os assombrar, sem lhe fazer dano, e foi tomar outro pouso di duas léguas, onde recolheu todolos mantimentos que levava em a nau, e ela ficou queimada. Partido deste lugar dia de Nossa Senhora da Conceição, quando veo ao quarto, que era béspora de Santa Luzia, saltou com ele tam grande temporal, que per outros tantos dias o fez correr árvore seca. E como esta era a primeira tormenta em que os mareantes se tinham visto, em mares e climas não sabidos, andavam tam fora de si, que não havia mais acordo entre eles que clamar por Deus, curando 130 mais na penitência de seus pecados que na mareagem das velas, porque tudo era sombra da morte. Mas aprouve à piedade de Deus que nestes casos consola com bonança, que os tirou de tanta tribulação e os levou onde ora chamam os Ilhéus Chãos, cinco léguas avante do da Cruz, onde Bartolomeu Dias pôs o seu derradeiro padrão, passando per ele polo tempo lhe não dar lugar, té irem tomar os outros ilhéus. Na qual paragem, por causa das grandes correntes, andaram ora ganhando, ora perdendo caminho, até que dia de Natal passaram pela costa do Natal, a que eles deram este nome; e dia dos Reis entraram no rio deles, e alguns lhe chamam do Cobre, por o resgate dele em manilhas, e assi marfim 139 e mantimentos que os negros da terra com ele resgataram, tendo com os nossos tanta comunicação, por Vasco da Gama os satisfazer com dádivas, que foi um Martim Afonso, marinheiro, à aldea deles per licença do capitão. O qual veo mais contente do gasalhado que lhe fizeram, do que Fernão Veloso veo dos outros; porque não somente o senhor da aldea o recebeu com grande festa, mas ainda, quando tornou ao navio, polo honrar, mandou com ele mais de duzentos homens. Depois este mesmo senhor com outros mui acompanhados vieram ver os navios, e em seu tratamento mostravam habitar em terra fria, por virem alguns vestidos de peles, e que tinham comunicação com gente de boa razão. E por causa da muita familiaridade que os nossos teveram com eles, em cinco dias que Vasco da Gama se deteve neste lugar, lhe pôs nome Aguada da Boa Paz. E daqui por diante, 43 começou de se afastar algum tanto da terra com que de noite passou o cabo a que ora chamamos das Correntes, porque começa a costa encurvar-se tanto pera dentro, passado ele, que, sentindo Vasco da Gama que as águas o apanhavam pera dentro, temeu ser algua enseada penetrante, donde não pudesse sair. O qual temor lhe fez dar tanto resguardo por fugir a terra, que passou sem haver vista da povoação de Sofala, tam celebrada naquelas partes por causa do muito ouro que os mouros ali hão dos negros da terra, per via do comércio (segundo ele adiante soube), e foi entrar em um rio mui grande abaixo dela cinquenta léguas, vendo entrar per ele uns barcos com velas de palma. A entrada do qual rio, depois que viram o gentio que habitava à borda dele, deu grande ânimo a toda a gente, pera quam quebrado o levava, tendo tanto navegado sem achar mais que negros bárbaros como os de Guiné vezinhos de Portugal. E a gente deste rio, peró que também fosse da cor e cabelo como eles eram, havia entre eles homens fulos que pareciam mestiços de negros e mouros, e alguns entendiam palavras do arávigo que lhe falava um marinheiro per nome Fernão Martins, mas a outra língua própria nenhum dos nossos a entendia, donde Vasco da Gama suspeitava que estes negros, assi na cor como nas palavras do arábio, podiam ter comunicação com

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os mouros, da maneira que os negros de Jalofe tem com os azenegues. E 131 os mais deles traziam derredor de si uns panos de algodão tintos de azul, e os outros toucas e panos de seda, até carapuças de chamalote de cores. Com os quais sinais e outros que eles deram, dizendo que contra o nacimento do sol havia gente branca que navegava em naus como aquelas suas, as quais eles viam passar pera baixo e pera cima daquela costa, pôs Vasco da Gama nome a este rio dos Bons Sinais. Finalmente, com estas novas e segurança da gente na comunicação que tinham com os nossos per modo de comércio de mantimentos da terra, quis 140 ele dar pendor aos navios, por virem já mui sujos; no qual tempo, com ajuda dos da terra, pôs um padrão per nome São Rafael, dos que levava lavrados pera este descobrimento, da maneira dos outros que ficaram postos do tempo del-Rei Dom João. E peró que neste Rio dos Bons Sinais foi o maior sinal que té ali tinham visto, e que lhe deu grande esperança do que iam descobrir, por este prazer não ir puro sem algum desconto de trabalho, per espaço de um mês que ali esteveram no corregimento dos navios, adoeceu muita gente, de que morreu algua. A maior parte foi de herisípolas e de lhe crescer tanto a carne das gengivas, que quási não cabia na boca aos homens, e assi como crecia apodrecia e cortavam nela como em carne morta, cousa mui piadosa de ver; a qual doença vieram depois conhecer que procedia das carnes, pescado salgado e biscoito corrompido de tanto tempo. Teveram mais sobre este trabalho, até saírem deste Rio dos Bons Sinais, dous grandes perigos: Um foi, que, estando Vasco da Gama a bordo do navio de seu irmão Paulo da Gama em ua bateira pequena, somente com dous marinheiros que a remavam, e tendo as mãos pegadas nas cadeas da enxárcea enquanto falava com ele, decia água tam tesa, que lhe furtou a bateira per baixo, e ele e os marinheiros não teveram mais salvação que ficarem dependurados nas cadeas, té que lhe acudiram. O outro perigo aconteceu a este mesmo navio o dia de sua partida, que foi a vinte quatro de Fevereiro: saindo pela barra do rio, foi dar em seco em um banco de area onde esteve em termo de ficar pera sempre; mas, vindo a maré, saiu do perigo, com que fez seu caminho sempre a vista da costa, té que di a cinco dias chegou a ua povoação chamada Moçambique, e foi pousar em uns ilhéus apartados dela pouco mais de légua ao mar. Surto nestes ilhéus, os quais ora se chamam de São Jorge, por causa de um padrão deste nome que Vasco da Gama neles pôs, viram vir três ou quatro barcos a que os da terra chamam zambucos, com suas velas de palma e a remo. A gente dos quais vinha tangendo e cantando, a mais dela bem tratada, e entre eles homens brancos com toucas na cabeça e vestido de algodão a modo dos mouros de África, que foi pera os nossos muito grande prazer. Chegados estes barcos ao navio de Vasco da Gama, levantou-se um daqueles homens bem vestidos e começou per arávigo perguntar que 132 gente era e o que buscavam. Ao que Vasco da Gama mandou responder per Fernão Martins, língua, que eram portugueses, vassalos del-Rei de Portugal; e quanto ao que buscavam, depois que soubessem cuja aquela povoação era, então responderiam a isso. O mouro que falava (segundo se depois soube), era natural do reino de Fez; e, vendo que o trajo dos nossos não era de turcos, como eles cuidavam, creu que diziam verdade, e como 43v homem sagaz, simulando contentamento de sua vinda, respondeu que aquela povoação se chamava Moçambique, da qual era Xeque um senhor chamado Sacoeja, cujo costume era: - tanto que ali chegavam navios estrangeiros, mandar saber deles o que queriam; e se 141 fossem mercadores, tratariam na terra, e sendo navegantes que passavam pera outra parte, provê-los do que houvesse nela. Vasco da Gama a estas palavras respondeu, que sua vinda àquele porto era passagem pera a

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Índia, fazer alguns negócios a que el-Rei, seu senhor, o enviava, principalmente com el-Rei de Calecute; e porquanto ele não tinha feito aquele caminho, lhe pedia que dissesse ao Xeque que lhe mandasse dar algum piloto daquelas partes, que ele o pagaria mui bem. E quanto ao negócio do tratar, ele não trazia mercadorias pera isso, somente alguas pera a troco delas haver o que houvesse mister, e tudo o mais eram cousas pera dar aos reis e senhores de que recebesse bom gasalhado. E porque ele esperava de o achar ali, segundo trazia por notícia, apresentasse ao Xeque algua fructa que lhe queria mandar, pera saber o que havia na terra donde ele vinha. O mouro, como homem esperto, respondeu atentadamente, dizendo que todas aquelas cousas ele as diria a seu senhor, e que se algua queria mandar, ele lha presentaria da sua parte; e quanto ao piloto, que descansasse, porque ali havia muitos que sabiam a navegação da Índia. Vasco da Gama, com esta facilidade que o mouro mostrou e nova que deu, mandou logo tirar alguas conservas da Ilha da Madeira pera o Xeque, e a ele deu um capelhar de grã, e outras cousas desta sorte, com que se partiu contente.

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132 43v 141 Capítulo IV. Como depois que Vasco da Gama assentou paz, com o Xeque de Moçambique, e ele lhe prometer piloto pera o levar à Índia se rompeu a paz, e do que sobre isso sucedeu. Partido o mouro mui alegre das peças que levava, mais que por ver os nossos naquelas partes, começaram eles festejar a nova que deu, dando louvores a Deus, pois já tinham visto gente que lhe falava na Índia, e sobre isso prometia piloto pera os levar a ela. Vasco da Gama, peró que sem comparação algua dava estes louvores a Deus e mostrava maior prazer, assi polo haver nele como por animar a companha dos trabalhos que tinham passado, todavia como quem esguardava as cousas com mais atenção, não ficou mui 133 satisfeito dos modos e cautelas que sintiu no mouro, falando com ele, porque entendeu não ficar tam contente como mostrou, 142 quando soube que eram portugueses. E sem saber que era do reino de Fez, escola militar deles, do ferro dos quais podia ele ou cousa sua andar assinado, atribuiu que a tristeza que lhe viu seria por saber que eram cristãos; e por não desconsolar a gente em tanto prazer como tinha, não quis comunicar isso que entendeu nele com pessoa algua. O mouro também, porque na diligência de sua tornada mostrasse que lhe tinha boa vontade, veo logo, dizendo quam contente o Xeque estava com as novas que lhe deu de quem eram e quanto estimara seu presente, trazendo em retorno algum refresco da terra. E assi lhe disse da parte do Xeque tais palavras sobre a estância que tinha mui longe da povoação pera se comunicarem de mais perto, que moveu Vasco da Gama a entrar dentro no porto. E posto que nisso houve resguardo dos pilotos do lugar, quando foi a entrada, levando diante o navio de Nicolau Coelho, por ser mais pequeno, e ele a sonda na mão, deu em parte que lhe lançou o leme fora; e contudo, salvo o barco, surgiram diante da povoação, um pouco afastados dela. A qual estava assentada em um pedaço de terra torneado de água salgada, com que fica em ilha, tudo terra baixa e alagadiça, donde se causa ser ela mui doentia; cujas casas eram palhaças, somente ua mesquita, e as do Xeque, que eram de taipa com eirados per cima. Os povoadores da qual eram mouros vindos de fora, os quais fizeram aquela povoação como escala da cidade Quíloa que estava diante, e da Mina Sofala, que ficava atrás; porque a terra em si era de pouco trato, e os naturais, que eram negros de cabelo revolto, como de Guiné, habitavam na terra firme. A qual povoação Moçambique daquele dia tomou tanta posse de nós, que em nome, é hoje a mais nomeada escala de todo o Mundo, e per frequentação a maior que tem os portugueses, e tanto, que poucas cidades há no reino que, de cinquenta anos a esta parte, enterrasse em si tanto defunto como ela tem dos nossos. Ca, depois que nesta viagem à Índia foi descoberta té ora, poucos anos passaram que à ida ou à vinda não invernassem 44 ali as nossas naus; e alguns invernou quási toda ua armada, onde ficou sepultada a maior parte da gente, por causa da terra ser mui doentia. Porque como o sítio dela é um cotovelo à maneira de cabo, que está em altura de catorze graus e meio, do qual convém que as naus que pera aquelas partes navegam hajam vista pera irem bem navegadas, quando os ventos lhe não servem pera passar adiante, à ida ou vinda, tomam aquele remédio de invernar ali; e desta necessidade e doutras (como adiante veremos na descripção de toda esta costa), procedeu eleger-se, pera escala de nossas naus, um lugar tam doentio e bárbaro, leixando na mesma costa outros mais célebres e nobres. Vasco da Gama, depois que tomou o pouso diante desta povoação

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143 Moçambique, ao seguinte dia, em companhia do mouro do recado que o veo visitar, mandou o escrivão 134 do seu navio com alguas cousas ao Xeque. O qual presente obrou tanto, depois que o ele recebeu, que começaram logo de vir barcos aos navios a trazer mantimento da terra, como gente que começava ter sabor no retorno que haviam destas cousas. E per espaço de dez dias em que se deteveram esperando tempo, assentou Vasco da Gama paz com o Xeque, e em sinal dela meteu na ilha São Jorge o padrão deste nome que dissemos, e ao pé dele se pôs um altar onde se disse missa, e tomaram todos o sacramento. Porque aqui fizeram o primeiro termo e de maior esperança do seu descobrimento, pera que convinha desporem-se com as consciências em estado, que suas preces fossem aceitas a Deus, e mais por ser tempo de quaresma, em que a Igreja obriga a isso. Neste tempo, entre alguns mouros que vinham vender aos navios mantimentos, vieram três abexis da terra do Preste João. Os quais, posto que seguissem o error dos mouros, como foram criados naquela maneira de religião e fé de Cristo que seus padres tinham, ainda que não conforme a Igreja Romana, em vendo a imagem do Anjo Gabriel pintada em o navio do seu nome, que era o de Vasco da Gama, como cousa nota a eles por em sua pátria haver muitas igrejas que tem estas images dos anjos, e alguas do próprio nome, assentaram-se em giolhos e fizeram sua adoração. Quando o capitão soube de eles serem de nação abexi, cujo rei nestas partes era celebrado por Preste João das Índias, cousa a ele tam encomendada, começou de os enquerir per Fernão Martins, língua; os quais, posto que intendiam o arábigo, a muitas palavras não respondiam ao propósito, como que diferiam na língua, e doutras não davam razão, dizendo saírem de sua terra de tam pequena idade, que não eram já lembrados. Os mouros, como intenderam que o capitão folgava de falar com eles, polo sinal que lhe via da Cristandade, fizeram-se mui apressados pera se tornar a terra, e quási por força levaram os abexis, e assi os esconderam, que, por muito que Vasco da Gama trabalhou por tornar a falar com eles, nunca mais os pôde haver. Assi que per estes sinais e outras cautelas que usavam com ele, quis saber se tinha certo os pilotos que lhe prometeram, e mandou-os pedir ao Xeque. O qual, como tinha assentado o que esperava fazer, levemente lhe mandou dous mouros que acerca da navegação a seu modo praticaram bem, dos quais o capitão ficou contente e assentou com eles que, por prémio de seu trabalho, havia de dar a cada um valia de trinta meticais de ouro, peso da terra, que poderam ser até catorze mil reais dos nossos, e mais ua marlota de grã. As quais cousas eles quiseram logo levar na mão, dizendo que não podiam doutra maneira partir, por quanto as haviam de leixar a suas mulheres, pera sua mantença. 144 Vasco da Gama, peró que se não fiava deles polos sinais que já tinha visto, levemente o fez, assentando que, quando um fosse em terra, ficasse outro em o navio, polo haver mister pera a prática 135 da navegação. Passados dous dias que Vasco da Gama tinha feito este concerto com eles, acertou mandar a menhã seguinte dous batéis buscar lenha e água, que os negros da terra soíam a pôr na praia com prémio que lhe davam; no recolher da qual, de súbito saíram a eles sete zambucos cheos de gente armada a seu modo, e com ua grande grita começaram de os frechar, de que houveram seu retorno com bestas e espingardas que os nossos levavam por resguardo. Com o qual rompimento de paz ficaram em tal estado, que nunca mais apareceu barco, e tudo se recolheu diante da vista dos nossos pera detrás da ilha. Vasco da Gama, temendo que per algum modo lhe empedissem seu caminho, havido conselho com os capitães e pilotos, um domingo, onze de Março, saiu de ante a povoação e foi tomar o pouso na Ilha de São Jorge; e depois que ouviu ua missa, se fez à vela caminho da Índia, levando consigo um dos pilotos, porque ao tempo do rompimento estava o outro em terra. E parece 44v

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que os trabalhos que ali haviam de passar ainda não se acabavam com sua partida, porque, como ela foi mais por evitar outro maior desastre, que polo tempo ser bom pera navegação, aos quatro dias da sua partida acharam-se quatro ou cinco léguas aquém do Cabo de Moçambique, polas águas correrem tam tesas a ele, que lhe abateram todo aquele caminho. E vendo Vasco da Gama que lhe convinha esperar vento de mais força pera romper esta das correntes, a qual mudança seria com a lua nova (segundo o mouro piloto lhe dezia), foi surgir à Ilha de São Jorge, donde partira, sem querer ter comunicação com os de Moçambique. Porém, porque a água se lhe ia gastando e havia já seis ou sete dias que era chegado, per conselho do mouro piloto, que prometeu levar de noite a gente a lugar onde fizesse aguada, mandou com ele dous batéis armados a isso. E ou que o mouro queria dar muitas voltas pela terra per onde os levou, porque nelas tevesse algum modo de escapulir da mão de quem o levava, ou que verdadeiramente se embaraçou, por ser de noite, entre um grande arvoredo de mangues, nunca pôde dar com os poços que ele dizia, com que obrigou a Vasco da Gama mandar de dia a isso dous batéis mui bem armados, que, apesar dos negros que a vinham defender, tomaram água. E porque nesta ida fugiu a nado o mouro piloto e um negro grumete, ao seguinte dia com mão armada foi demandar a povoação, onde os mouros em um grande escampado que estava ante ela e a praia, lhe deram mostra de até dous mil homens, recolhendo-se logo detrás dum repairo de madeira entulhado de terra, que fizeram naqueles dias. Vasco da Gama, vendo seu mau propósito, mandou fazer sinal de paz como que queria estar à fala por saber o que tinha neles, e acudindo a isso o mouro dos recados, começou ele de se queixar do que lhe era feito e da pouca verdade que lhe trataram, tomando por conclusão, que não queria proceder 136 145 no mais que mereciam as tais obras, que lhe mandasse entregar um negro que lhe fugira e mais os pilotos que tinha pagos pera aquela navegação e com isto ficaria satisfeito. O mouro, sem outra palavra, disse que ele tornaria logo com resposta, a qual foi que o Xeque estava muito mais escandalizado da sua gente, porque, querendo os seus folgar com ela em modo de festa, segundo uso da terra, ao tempo que iam buscar água, saltaram com eles, matando e ferindo alguns, e mais meteram um zambuco no fundo com muita fazenda, das quais cousas lhe havia de fazer emenda. E, quanto aos pilotos, ele não sabia parte deles, por serem homens estrangeiros; que se lhe algua cousa deviam, bem podia mandar a terra homens que os fossem buscar, que a ele bastava-lhe tê-los já enviado e isto em tempo que lhe parecia ser ele capitão e os seus gente segura e que falava verdade, mas ao presente o que tinha entendido, era serem homens vadios, que andavam roubando os portos do mar. No fim das quais palavras, sem mais esperar reposta, se recolheu pera o Xeque, donde saiu ua grita, e trás ela começaram de chover setas, chegando-se aos batéis por fazerem melhor emprego, como quem ainda não tinha experimentado a fúria da nossa artelharia. A qual, dos primeiros tiros que lhe Vasco da Gama mandou tirar, assi os castigou, que por detrás da ilha onde tinham os zambucos, se passaram à terra firme. Na qual passagem, rodeando um dos nossos batéis a ilha pera lhe defender o passo, tomou um zambuco carregado de fato; e de quanta gente ia nele, somente houveram a mão um mouro velho e dous negros da terra, porque toda a mais se salvou a nado. Desemperado o lugar per esta maneira, posto que Vasco da Gama lho podera queimar, como sua tenção era assombrá-los, pera haver os pilotos e grumete que fugiu, não quis por aquela vez fazer mais dano, que ficarem ante os pés do Xeque quatro ou cinco homens mortos de artelharia, que foi a causa de todos se porem em salvo. Tornado aos navios, fez logo per tormento perguntas ao mouro, do qual soube a causa daquela fugida, e o trato da terra ouro de Sofala, especeria da Índia, e que dali a Calecute, segundo ouvira dizer, seria caminho de um mês; e quanto aos poços pera fazerem aguada, aqueles dous negros, que eram naturais da terra, podiam mui bem encaminhar a gente que lá houvesse de ir. Sabidas estas cousas, que foram pera Vasco da Gama grande contentamento, por serem as

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mais certas que té então tinha sabido, ante que o Xeque mandasse pôr guarda nos poços, mandou logo aquela noite os batéis apercebidos de todo o necessário, levando consigo este mouro pera falar aos negros e eles pera encaminhar a gente ao lugar dos poços, onde chegaram com assaz trabalho, por ser de noite e per muitos alagadiços, de maneira que quando tornaram era já alto dia.

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137 45 146 Capítulo V. Como o Xeque veo em concerto com Vasco da Gama e lhe deu um piloto que o levou té a cidade Mombaça, donde fugiu a tempo que os mouros da mesma cidade lhe tinham ordenado, ua traição de que escapou, e di foi ter a Melinde. O Xeque, temendo que, se negasse o que lhe pediam, indinaria os nossos a virem queimar a povoação e navios, com que, além da perda, ficava ele entre os negros da terra firme que o podiam vir roubar; aconselhado deste temor, logo ao seguinte dia, com alguas desculpas, mandou pedir a Vasco da Gama paz e concórdia. E quanto aos pilotos que este fogo acenderam, um deles era ausentado e metido pelo sertão, temendo o castigo que por isso lhe poderiam dar, e o outro estava já castigado pera sempre, por ser morto com artelharia. Que as marlotas e o mais, que houveram tudo fora tomado a suas mulheres, e ali o mandava; e em lugar deles outro piloto, homem que o havia de servir melhor, por ser mais exercitado naquele caminho da Índia, e assi o negro fugido. Vasco da Gama, vendo que o tempo não era pera muitas réplicas, e mais lhe convinha o piloto que outra algua emenda deles, com palavras conformes ao caso, aceitou o piloto, e as marlotas, com o mais, mandou que se tornassem ao Xeque pera as dar a quem quisesse, e soltou o mouro e negros da terra, vestidos a seu prazer. Acabando estas cousas, ao seguinte dia recolheu-se à Ilha de São Jorge, onde ainda esteve três dias, esperando tempo, té o primeiro de Abril, que partiu, levando consigo mais verdadeiramente um mortal imigo que piloto. Porque aquele que lhe foi dado, ou pelo ódio que nos tinha ou porque assi lho mandava o Xeque, deu com os navios entre uas ilhas, afirmando-se que era ua ponta de terra firme. Por causa da qual mentira foi mui bem açoutado, donde ficou às ilhas nome do Açoutado, que hoje tem entre os nossos, que serão adiante de Moçambique sessenta léguas. O mouro, como sobre um ódio natural se lhe acrescentou este outro do castigo, determinou meter os navios no porto da cidade Quíloa, por ser povo grosso, que poderia per força de armas desbaratar os nossos navios. Pera fazer a qual maldade mais a seu salvo, disse a Vasco da Gama em modo de o querer comprazer, que adiante estava ua cidade per nome Quíloa, a qual era mea povoada de cristãos abexis e doutros da Índia; que, se mandasse, ele o levaria a ela. Mas aprouve a Deus que, posto que Vasco da Gama lhe disse que o levasse a esta cidade, não sucedeu o negócio como o mouro desejava, porque, com as grandes correntes, ua noite escorreu o porto ; e contudo ainda 147 os meteu em outro perigo, que foi dar, com o navio São Rafael em seco, em uns baixos de que saiu com a maré, 138 donde aquele lugar se chama os Baixos de São Rafael, não tanto por esta vez, quanto porque à vinda se veo ali perder. Tornando a sua viagem aos sete dias de Abril, béspora do Domingo de Ramos, chegaram ao porto de ua cidade chamada Mombaça, em a qual o mouro disse que havia cristãos abexis e da Índia, por causa de ser mui abastada de todalas mercadorias. A situação da qual cidade estava metida per um esteiro que torneava a terra, fazendo duas bocas, com que ficava em modo de ilha tam encoberta aos nossos, que não houveram vista dela, senão quando ampararam com a garganta do porto. Descoberta a cidade, como os seus edifícios eram de pedra e cal com janelas e eirados à maneira de Espanha, e ela ficava em ua chapa que dava grã vista ao mar, estava tam fermosa que houveram os nossos que entravam em algum porto deste reino. E posto que a vista dela namorasse a

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todos, não consentiu Vasco da Gama ao piloto que metesse os navios dentro como ele quisera, por vir já suspeitoso contra ele, e surgiu de fora. Os da cidade, tanto que houveram vista dos navios, mandaram logo a eles em um barco quatro homens que pareciam dos principais, segundo vinham bem tratados. Chegando a bordo, perguntaram que gente era e o que buscavam. Ao que Vasco da Gama mandou responder, dizendo quem eram e o caminho que faziam e a necessidade que tinham dalguns mantimentos. Os mouros, depois que mostraram em palavras o prazer que tinham e teria el-Rei de Mombaça de sua chegada, e fazerem ofertas de todo o necessário pera sua viagem, espediram-se dele. Os quais não tardaram muito com a resposta, dizendo que eles foram notificar a el-Rei quem era, de que recebeu muito prazer com sua 45v vinda; e que, quanto às cousas que haviam mister, de boa vontade lhas mandaria dar, e assi carga de espeçaria, pola muita que tinha. Porém convinha, pera estas cousas lhe serem dadas, entrarem dentro no porto, como era costume das naus que ali chegavam, por ordenança da cidade, quando algua cousa queriam dela; e os que o não faziam, eram havidos por gente suspeitosa e de mau trato, como alguns que havia per aquela costa, aos quais muitas vezes os seus com mão armada vinham lançar dali, o que podiam também fazer a eles, não entrando pera dentro. Que lhe mandava este aviso como a gente estrangeira, que escolhessem ou entrar no porto pera lhe ser dado o que pediam, ou passassem avante. Vasco da Gama, por segurar a suspeita que se dele podia ter, aceitou a entrada pera dentro ao seguinte dia; e pediu àqueles que traziam este recado que, quando fosse tempo, lhe mandassem algum piloto pera o meterem dentro. E posto que se teve muito resguardo que o piloto de Moçambique não 148 falasse à parte com eles senão perante Fernão Martins, língua, per qualquer modo que foi, ele lhe disse o que tinha passado com os nossos; a qual nova os mouros dissimularam, e como 139 gente contente do gasalhado que lhe Vasco da Gama mandou fazer, e dádivas que receberam, se espediram dele. Ao seguinte dia, tornando um batel a bordo com alguns mouros honrados, em modo de o visitar, mandou com eles dous homens que levassem um presente a el-Rei, desculpando-se de não poder entrar aqueles dous dias, porque acerca dos cristãos eram solenes, em que não faziam obra algua por serem da sua Páscoa; mas a tenção sua era mandar per estes homens espiar o estado da cidade e povo dela e que navios havia dentro. Os mouros, ou que entenderam o artefício ou porque sempre usam de cautelas, posto que levaram os homens, mostrando contentamento de o fazer, sempre foram trazidos per mão, e de passada notaram somente o que se lhe ofereceu à vista: que tudo foi a multidão do povo que concorreu polas ver, e a nobreza dos paços del-Rei, e a maneira de como os recebeu. Vasco da Gama, passados dous dias, por não dar má suspeita de si, quando veo ao terceiro em que assentou sua entrada , vieram da cidade muitos barcos com gente vestida de festa e tangeres, mostrando que pelo honrar vinham naquele auto de prazer, repartindo-se pelos navios. E porque entre Vasco da Gama e os outros capitães estava assentado, que não consentissem entrar em os navios mais que dez ou doze pessoas, cometendo eles esta entrada, foram a mão aos muitos, dizendo que pejavam a mareagem, que depois na cidade tempo lhe ficava pera os verem. No qual tempo, feito um sinal, mandou Vasco da Gama desferir a vela, com grande prazer de todos: dos mouros, parecendo-lhe levar a presa que desejavam, e dos nossos, cuidando que, em achar tam luzida gente e as novas que lhe davam da Índia, tinham acabado o fim de seus trabalhos, estando eles àquela hora em perigo de perderem as vidas, segundo a tenção com que eram levados. Mas Deus, em cujo poder estava a guarda deles neste caminho tanto de seu serviço, não permitiu que a vontade dos mouros fosse posta em obra; porque quási milagrosamente os livrou, descobrindo suas tenções per este modo: não querendo o navio de Vasco da Gama fazer cabeça pera a vela tomar

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vento, começou de ir descaindo sobre um baixo; e vendo ele o perigo, a grandes brados mandou soltar ua âncora. E com isto, segundo costume dos mareantes nos tais tempos, não se pode fazer sem per todo o navio correr de ua parte a outra aos aparelhos, tanto que os mouros que estavam per os outros navios viram esta revolta, parecendo-lhe que a traição que eles levavam no peito era descoberta, todos uns per cima dos outros lançaram-se aos barcos. Os que estavam em o navio de Vasco da Gama, vendo o que estes 149 faziam, fizeram outro tanto; até o piloto de Moçambique, que se lançou dos castelos de popa ao mar, tamanho foi o temor em todos. Quando Vasco da Gama e os outros capitães viram tam súbita novidade, abriu-lhe Deus o juízo pera 140 entenderem a causa dela; e sem mais demora assentaram logo de se partir ao longo daquela costa, por terem já sabido ser mui povoada, e que podiam achar per ela navios de mouros de que houvessem algum piloto. Os mouros, porque entenderam o que eles haviam de fazer, logo aquela noite vieram a remo surdo pera cortar as amarras dos navios; mas não houve efeito sua maldade, por serem sentidos. Partido Vasco da Gama daquele lugar de perigo, ao seguinte dia achou dous zambucos que vinham pera aquela cidade, de que tomaram um com treze mouros, porque os mais se lançaram ao mar, e deles soube 46 como adiante estava ua vila chamada Melinde, cujo rei era homem humano, per meio do qual podia haver piloto pera a Índia. Vendo ele que perguntado cada um destes à parte, todos concorriam na bondade del-Rei de Melinde, e que no seu porto ficavam três ou quatro navios de mercadores da Índia, per a pilotagem destes seguiu a costa, com tenção de chegar a Melinde pera haver um piloto, pois em todos aqueles treze mouros não havia algum que se atrevesse de o levar à Índia. Porque se o achara, sem mais experimentar os mouros daquela costa, rota batida houvera de atravessar a outra da Índia, que, segundo lhe eles diziam, podia ser dali até setencentas léguas per sua conta.

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140 46 149 Capítulo VI. Como Vasco da Gama chegou à vila de Melinde, onde assentou paz com o rei dela e pôs um padrão; e havido piloto se partiu pera a Índia, onde chegou. Seguindo Vasco da Gama seu caminho com esta presa de mouros, ao outro dia, que era de Páscoa da Ressurreição, indo com todolos navios embandeirados e a companha deles com grandes folias por solenidade da festa, chegou a Melinde. Aonde logo per um degredado em companhia de um dos mouros mandou dizer a el-Rei quem era e o caminho que fazia e a necessidade que tinha de piloto, e que esta fora a causa de tomar aqueles homens, pedindo que lhe mandasse dar um. El-Rei, havido este recado, posto que ao nome cristão tivesse aquele natural ódio que lhe tem todolos mouros, como era homem bem inclinado e sesudo, sabendo per este mouro o modo de como os nossos se houveram com eles, e que lhe pareciam homens de grande ânimo no feito da guerra e na conversação brandos e caridosos, segundo o bom tratamento que lhe fizeram, depois de os tomarem, não querendo 150 perder amizade de tal gente com más obras, como perderam os outros príncipes per cujos portos passaram, assentou de levar outro modo com eles enquanto não visse sinal contrairo do que lhe este mouro contava. E logo per ele e pelo degredado mandou dous homens ao capitão, mostrando em palavras o contentamento que tinha de sua vinda: que descansasse, porque 141 pilotos e amizade tudo acharia naquele seu porto, e que, em sinal de seguridade, lhe mandava aquele anel de ouro e lhe pedia houvesse por bem de sair em terra, pera se ver com ele. Ao que Vasco da Gama respondeu conforme à vontade del-Rei, peró quanto ao sair em terra a se ver com ele, ao presente não o podia fazer, por el-Rei, seu senhor, lho defender, té levar seu recado a el-Rei de Calecute e a outros príncipes da Índia. Que pera eles ambos assentarem paz e amizade, por ser a cousa que lhe el-Rei, seu senhor, mais encomendava, nenhum outro modo lhe parecia melhor, por não sair do seu regimento, que ir ele em seus batéis té junto da praia e sua real senhoria meterse naqueles zambucos, com que ambos se poderiam ver no mar; porque pera ele ganhar por amigo tam poderoso príncipe como era el-Rei de Portugal, cujo capitão ele era, maiores cousas devia fazer. Espedidos estes dous mouros, contentes do que lhe Vasco da Gama disse e deu, com alguas peças que também levaram pera el-Rei, assi aproveitou ante ele o recado e presente, que concedeu nas vistas da maneira que Vasco da Gama pedia. A qual facilidade os nossos atribuíram mais a obra de Deus que a outra cousa, porque, segundo achavam os mouros daquelas partes ciosos de suas terras, não podiam dar outra causa; pois um rei sem ter deles mais notícia que a que lhe dera o mouro, e sem algua necessidade, se vinha meter no mar tam confiadamente. E praticando todos sobre este caso e do modo que teriam nestas vistas, assentou Vasco da Gama que seu irmão e Nicolau Coelho ficassem em os navios a bom recado, e tanto a pique, que podesse acudir a qualquer necessidade; e ele, com todolos batéis e a mais limpa gente da frota, vestidos de festa per fora e armas secretas, com grande aparato, de bandeiras e toldo no batel, foi-se ao lugar das vistas. A qual ordem se teve quando veo ao dia delas, partindo Vasco da Gama dos navios com grande estrondo de trombetas, o que tudo respondia com as vozes de gente, animando-se uns aos outros em prazer daquela festa; porque, como era na terceira oitava da Páscoa, tempo em que eles cá no reino eram costumados a festas e prazer, parecia-lhes que estavam entre os seus. 46v Vasco da Gama, indo assi neste auto, a meio caminho mandou suspender o remo, por el-Rei não ser ainda recolhido ao seu zambuco; o qual vinha ao longo da praia metido em um esparavel de seda com as cortinas da parte do mar alevantadas, e ele lançado em um andor sobre os ombros de

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quatro homens, cercado de muita gente nobre, e a do povo diante e detrás bem afastada pera darem vista aos nossos, todos com grande aparato de festa e tangeres a seu modo. Entrando el-Rei no zambuco com alguas pessoas principais e menestréis 151 que tangiam, toda a mais gente que pôde se embarcou per outros barcos, cercando el-Rei per todalas partes; somente leixaram ua aberta que tinha a vista pera os nossos, em modo de cortesia. E o primeiro sinal de 142 paz que lhe Vasco da Gama mandou fazer, calando-se os estromentos de festa, foi mandar tirar os da guerra, que eram alguns berços espingardas, e no fim deles ua grande grita, ao que responderam os nossos navios com outra tal obra, até tirarem as câmaras da artelharia. A qual trovoada, como era cousa nova nas orelhas daquela gente, foi para eles tam grande espanto que houve entre todos rumor de se colher a terra. Peró, sentindo Vasco da Gama a torvoação deles, mandou fazer sinal com que cessou aquele tom que os assombrava, e de si chegou-se ao zambuco del-Rei, o qual o recebeu como homem em cujo peito não havia má tenção; e em toda a prática que ambos teveram, que durou um bom pedaço, tudo foi com tanta segurança de ambalas partes, como se entre eles houvera conhecimento de mais dias. E desta prática e modo que Vasco da Gama teve com el-Rei, ficou ele tam seguro e contente de sua amizade, que logo quis ir ver os nossos navios, rodeando a todos; e por honra de sua ida lhe mandou Vasco da Gama entregar todolos mouros que tomou no zambuco, os quais guardou pera lhe dar naquele dia das vistas. O que el-Rei muito estimou, e muito mais dizer-lhe Vasco da Gama como el-Rei, seu senhor, tinha tanta artelharia e tantas maiores naus que aquelas, que poderiam cobrir os mares da Índia, com as quais o poderia ajudar contra seus imigos; porque fazia el-Rei conta que a pouco custo per aquela via tinha ganhado um Rei poderoso pera suas necessidades. Espedido Vasco da Gama dele, depois que o leixou desembarcado, tornou-se aos navios, e os dias que ali esteve sempre foi visitado dele com muitos refrescos, que deu causa a ser também visitado de uns mouros que ali estavam, do reino de Cambaia, em as naus que lhe tinham dito os mouros que tomou no zambuco. Entre os quais vieram certos homens a que chamam baneanes, do mesmo gentio do reino de Cambaia, gente tam religiosa na seita de Pitágoras , que até a imundícia que criam em si não matam nem comem cousa viva, dos quais copiosamente tratamos em a nossa Geografia. Estes, entrando em o navio de Vasco da Gama e vendo na sua câmara ua imagem de nossa Senhora em um retávolo de pincel, e que os nossos lhe faziam reverência, fizeram eles adoração com muito maior acatamento; e como gente que se deleitava na vista daquela imagem, logo ao outro dia tornaram a ela, oferecendo-lhe cravo, pimenta e outras mostras de especeria das que vieram ali vender. E se foram contentes dos nossos pelo gasalhado que receberam e maneira de sua adoração, também eles ficaram satisfeitos do seu modo, parecendo-lhe ser aquela gente mostra dalgua cristandade que haveria na Índia do tempo de São Tomé. Entre os quais vinha um mouro, guzarate de nação, chamado Malemo Caná, o qual, assi pelo contentamento que teve da conversação dos nossos, como por comprazer a el-Rei que buscava 143 piloto pera lhe dar, aceitou querer 152 ir com eles. Do saber do qual Vasco da Gama, depois que praticou com ele, ficou muito contente: principalmente quando lhe mostrou ua carta de toda a costa da Índia, arrumada ao modo dos mouros, que era em meridianos e paralelos mui meúdos, sem outro rumo dos ventos. Porque, como o quadrado daqueles meridianos e paralelos era mui pequeno, ficava a costa per aqueles dous rumos de Norte-Sul e Leste-Oeste mui certa, sem ter aquela multiplicação de ventos, de agulha comum da nossa carta, que serve de raiz das outras. E amostrando-lhe Vasco da Gama o grande astrolábio de pau que levava, e outros de metal com que tomava a altura do sol, não se espantou o mouro disso, dizendo que alguns pilotos do Mar Roxo usavam de instrumentos de latão de figura triangular e quadrantes, com que tomavam a altura do sol, e principalmente da estrela de que se mais serviam

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em a navegação. Mas que ele e os mareantes de Cambaia e de toda a 47 Índia, peró que a sua navegação era per certas estrelas, assi do Norte como do Sul, e outras notáveis que cursavam per meio do céu de Oriente a Ponente, não tomavam a sua distância per instrumentos semelháveis àqueles, mas per outro de que se ele servia, o qual instrumento lhe trouxe logo a mostrar, que era de três távoas. E porque da figura e uso delas tratámos em a nossa Geografia, em o capítulo dos instrumentos da navegação, baste aqui saber que servem a eles, naquela operação, que ora acerca de nós serve o instrumento que os mareantes chamam balhestilha, de que também no capítulo que dissemos se dará razão dele e dos seus inventores. Vasco da Gama, com esta e outras práticas que per vezes teve com este piloto, parecia-lhe ter nele um gram tesouro; e por o não perder, o mais em breve que pôde, depois que meteu por consentimento del-Rei um padrão per nome Santo Espírito na povoação, dizendo, ser em testemunho da paz e amizade que com ele assentara, se fez à vela caminho da Índia, a vinte quatro dias de Abril. E atravessando aquele grande golfão de setecentas léguas que há de ua à outra costa, per espaço de vinte dous dias, sem achar cousa que o empedisse, a primeira terra que tomou foi abaixo da cidade Calecute, obra de duas léguas, e daqui, per pescadores da terra que logo acudiram aos navios, foi levado a ela. A qual como era o termo de sua navegação, e na instrução que levava nenhua outra cousa lhe era mais encomendada, e pera o rei dela nomeadamente levava cartas e embaixada, como ao mais poderoso príncipe daquelas partes e senhor de todalas especearias, segundo a notícia que naquele tempo neste reino de Portugal tínhamos dele, pareceu aos nossos, vendo-se diante dela, que tinham acabado o fim de seus trabalhos. E posto que adiante particularmente descrevemos o sítio desta cidade Calecute e da região Malabar em que ela está, a qual região é ua parte da província da Índia, 144 aqui, por 153 ser a primeira entrada em que os nossos tomaram posse deste descobrimento, per tantos anos continuado e requerido, faremos ua universal relação da província da Índia, pera melhor intendimento desta chegada de Vasco da Gama.

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144 47 153 Capítulo VII. Em que se descreve o sítio da terra a que propriamente chamamos Índia dentro do Gange, na qual se contém a província chamada Malabar, um dos reinos da qual é o em que está a cidade Calecute, onde Vasco da Gama aportou. A região a que os geógrafos propriamente chamam Índia, é a terra que jaz entre os dous ilustres e celebrados rios, Indo e Gange, do qual Indo ela tomou o nome, e os povos do antiquíssimo reino de Eli, cabeça per sítio e poder de toda esta região, e assi a gente pársea a ela vezinha, ao presente per nome próprio lhe chamam Indostão. E segundo a diliniação da távoa que Ptolomeu faz dela, e mais verdadeiramente pela notícia que ora com o nosso descobrimento temos, per excelência bem lhe podemos chamar a Grã Mesopotâmia. Porque, se os gregos deram este nome, que quere dizer entre os rios, àquela pequena parte da região babilónica que abraçam os dous rios Eufrates e Tigres, assi pela situação desta entre as correntes dos notáveis Indo e Gange, que descarregam e vasam suas águas em o grande Oceano Oriental, por fazermos diferença dela mais notável do que se faz em dizer Índia dentro do Gange, e Índia além do Gange, bem lhe podemos chamar a Grã Mesopotâmia ou Indostão, que é o próprio nome que lhe dão os povos que a habitam e vezinham, por nos conformarmos com eles. A qual região as correntes destes dous rios, per ua parte, e o grande Oceano Índico per outra, a cercam de maneira, que quási fica ua Quersoneso entre terras de figura de lijonja, a que os geómetras chamam rombos, que é de iguais lados e não de ângulos rectos. Cujos ângulos opósitos em maior distância, jazem Norte-Sul: o ângulo desta parte do Sul faz o cabo Comori, e o da parte do Norte, as fontes dos mesmos rios. As quais, peró que sobre a terra arrebentem distintas em os montes a que Ptolomeu chama Imao, e os habitadores deles Dalanguer e Nangracot, são estes tam conjuntos uns aos outros, que quási querem esconder as fontes destes dous rios. E segundo 154 fama do gentio comarcão, parece que ambos nacem 47v de ua vea comum, donde naceu a fábula dos dous irmãos que anda entre eles, a qual recitamos em a nossa Geografia. A distância destas fontes ao cabo Comori, a elas opósito, será pouco mais ou menos, per linha directa, quatrocentas léguas; e os outros dous ângulos, que per contraira linha jazem de Levante a Ponente, per distância de 145 trezentas léguas, fazem as bocas dos mesmos rios Indo e Gange, ambos mui soberbos com as águas do grande número dos outros, que se neles metem. E quási tanta é a parte da terra que eles abraçam, quanta a que per os outros dous lados cerca o Mar Oceano, que ambos se ajuntam no Cabo Comori, a fazer aquele agudo canto que ele tem, com que fica a figura da lijonja que dissemos. E posto que toda esta província Indostão seja povoada de dous géneros de povo em crença, um idólatra e outro mahometa, é mui vária em ritos e costumes, e todos entre si a tem repartida em muitos reinos e estados, assi como em os reinos de Moltão , Deli, Cospetir, Bengala em parte, Orixá, Mando , Chitor, Guzarate, a que comumente chamamos Cambaia. E no reino Dacão, dividido em muitos senhorios que tem estado de reis com o de Pale que jaz entre um e o outro, e no grande reino de Bisnagá que tem debaixo de si alguns régulos com toda a província do Malabar, repartida entre muitos reis e príncipes de mui pequenos estados, em comparação dos outros maiores que calamos, parte dos quais são isentos e outros súbditos destes nomeados. E segundo estes povos entre si são belicosos e de pouca fé, já toda esta grande região fora súbdita ao mais poderoso, se a natureza não atalhara à cobiça dos homens com grandes e notáveis rios, montes, lagos, matas e desertos, habitação de muitas e diversas alimárias, que empedem passar

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de um reino a outro. Principalmente alguns notáveis rios, parte dos quais, não entrando na madre do Indo e Gange, mas regando as terras que estes dous abraçam com muitas voltas, vem sair ao grande Oceano, e assi muitos esteiros de água salgada tão penetrantes a terra, que retalham a marítima de maneira que se navega per dentro. E a mais notável divisão que a natureza pôs nesta terra, é ua corda de montes a que os naturais per nome comum, por o não terem próprio, chamam Gate, que quere dizer serra; os quais montes, tendo seu nacimento na parte do Norte, vem correndo contra o Sul, assi como a costa do mar vai a vista dele, leixando entre as suas praias e o sertão da terra ua faixa dela, chã e alagadiça, retalhada de água, em modo de 155 leziras em alguas partes, té irem fenecer no cabo Comori, o qual curso de montes se estende perto de duzentas léguas. Peró começando no rio chamado Carnate, vezinho ao cabo e monte de Li, mui notável aos navegantes daquela costa e altura de doze graus e meio da parte do Norte, entra ua faixa de terra, que jaz entre este Gate e o mar, de largura de dez té seis léguas, segundo as enseadas e cotovelos se encolhem ou bojam, a qual faixa de terra se chama Malabar, que terá de comprimento obra de oitenta léguas, onde está situada a cidade Calecute. Neste tempo que Vasco da Gama chegou a ela, posto que geralmente toda esta terra Malabar fosse habitada de gentios, nos portos do mar viviam alguns mouros, mais por 146 razão da mercadoria e trato que por ter algum estado na terra, porque todolos reis e príncipes dela eram do género gentio e da linhagem dos brâmanes, gente a mais douta e religiosa em seu mode de crença de todas aquelas partes. E o mais poderoso príncipe daquele Malabar era el-Rei de Calecute, o qual por excelência se chamava Samori, que acerca deles é como entre nós o título de emperador. Cuja metrópoli de seu estado, da qual o reino tomou o nome, é a cidade Calecute, situada em ua costa brava, não com grandes e altos edifícios, somente tinha alguas casas nobres de mercadores mouros da terra e doutros do Cairo e Meca ali residentes, por causa do trato da especearia, onde recolhiam sua fazenda com temor do fogo. Toda a mais povoação era de madeira coberta de um género de folha de palma, a que eles chamam ola. E como nesta cidade havia grande concurso de várias nações, e o gentio dela mui supersticioso em se tocar com gente fora de seu sangue, principalmente os que se chamavam brâmanes e naires, destes dous géneros de gente, sendo a mais nobre da terra, viviam nela mui poucos, toda a outra povoação era de mouros e gentio mecânico. Pola qual causa também el-Rei estava fora da cidade, em uns paços que seriam dela quási meia légua entre palmares; e a gente nobre apousentada per derredor, ao modo que cá temos as quintãs. E porque (segundo dissemos) adiante particularmente escrevemos as cousas deste reino Calecute, não procedemos aqui mais na relação delas.

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146 48 156 Capítulo VIII. Como Vasco da Gama mandou recado a el-Rei de Calecute, que era chegado ao porto de sua cidade, e depois per sua licença se viu com ele duas vezes. Ao tempo que Vasco da Gama chegou a esta cidade Calecute, que era a vinte de Maio, princípio do inverno naquela costa, não havia no porto o grã tráfego e número de naus que nele estão à carga nos meses do verão, porque as estrangeiras que ali costumavam vir eram tornadas a suas terras, e as do mesmo reino de Calecute per os rios e esteiros estavam metidas em fossas cobertas com folha de palma, segundo costumam per toda aquela costa; e por esta chegada ser fora do tempo da sua navegação, tanto espanto fez aos da terra como a feição e mareagem dos navios, e logo lhe pareceu gente nova e não costumada navegar aqueles mares. Vasco da Gama, tanto que ancorou um pouco largo do porto por causa de um recife em que o mar quebrava, mandou em terra o mouro piloto e um degredado, notificando per eles a el-Rei sua chegada e o recado que lhe trazia, pedindo que lhe mandasse dizer quando havia por bem que fosse a ele, porque sem sua licença não sairia dos navios. O mouro Malemo Caná, como quem sabia a terra, foi-se 147 logo aos paços del-Rei, e, porque achou nova que era um lugar que seria dali cinco léguas, sem tornar aos navios com recado se foi a ele. Vasco da Gama, por lhe este Caná ter dito quão pequena distância havia da cidade aos paços del-Rei, vendo que não vinha aquele dia e que era passado a maior parte do outro, começou tomar má suspeita dele, e principalmente porque, de quantos barcos saíam a pescar, todos se afastavam dos navios, como gente temerosa, ou per qualquer outra causa que fosse. Porém quando veo ao outro dia à tarde tirou toda esta suspeita, com a vinda deles e de um piloto do Samori, per o qual ele lhe fazia saber o contentamento que tinha de sua vinda, e que, postos os navios em um porto seguro, onde lhe ele mandava que os levassem por causa do inverno, depois lhe mandaria dizer quando havia por bem que fosse a ele. Com o qual recado Vasco da Gama ficou mui satisfeito, principalmente na mudança dos navios daquela costa a lugar mais seguro, porque nisto mostrava el-Rei per obra o que lhe mandava dizer per palavra, acerca do contentamento que tinha de sua vinda, e que de tal acolhimento do primeiro recado que lhe mandava podia esperar ser bem despachado. E por mostrar maior confiança a este piloto que lhe el-Rei mandou, disse que ele podia mandar naqueles navios o que quisesse, porque todos lhe obedeceriam, e assi se fez: ca, pela ordenança do piloto, se passaram a um porto chamado Capocate, 157 perto dali, onde Vasco da Gama esteve esperando dous dias recado del-Rei, sem da terra virem aos navios nem deles irem a ela. Ante que ele viesse com os navios a este porto, o dia que o piloto del-Rei lhe trouxesse seu recado pera se mudar aqui, entre alguns oficiais da arrecadação dos direitos del-Rei, que vieram com ele, foi um mouro per nome Monsaide, cujo ofício era corrector de mercadorias; o qual, por ser conhecente do piloto Malemo Caná, ele o agasalhou em sua casa, e assi o degredado, a noite que dormiram em terra. Este Monçaide (segundo ele depois contou) era natural do reino de Tunes e tevera já comunicação com os portugueses em a cidade Ourão, quando ali iam as naus deste reino per mandado del-Rei Dom João, o segundo, buscar lambéis pera o resgate do ouro da Mina; e ou que a lembrança destas partes do Ocidente, onde nacera, ou qualquer outra boa disposição, assi o demoveram, vendo e praticando com os nossos per língua castelhana, que ele sabia, que da hora que entrou em os navios assi se fez familiar a Vasco da Gama, que se veo com ele pera este reino, onde morreu cristão. O qual, como esperava acabar neste estado, era tam fiel a nossas cousas, que per

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meio dele foi Vasco da Gama avisado de muitas; e parece que Deus o trouxe àquelas partes pera proveito nosso, segundo o que passou, como veremos. E logo em dous dias que Vasco da Gama esteve esperando por recado do Samori, este Monçaide o avisou dalguas cousas, por razão das quais ele teve conselho com os capitães do modo que teria em ir ao 148 Samori, quando o mandasse chamar; e assentou que seu irmão e Nicolau Coelho ficassem em os navios, dando-lhe regimento do que haviam de fazer. Vindo o recado do Samori que fosse, saiu Vasco da Gama com doze pessoas em terra, onde o recebeu um homem nobre a que eles chamam Catual, acompanhado de duzentos homens a pé, deles pera levarem o fato dos nossos e deles que serviam de espada e adargas 48v como guarda de sua pessoa, e outros de o trazer aos ombros em um andor, porque em toda aquela terra Malabar não se serve de bestas, um dos quais andores foi também apresentado a Vasco da Gama pera ir nele. Posto o Catual e ele em caminho pera Calecute, que seria dali cinco léguas, começaram os doze que levava ficar de dous em dous, porque, além de o caminho ser de area e eles desacostumados de caminhar, era tam grande o curso dos que levavam o andor, que em todo o caminho foi Vasco da Gama sem eles, té a noite se ajuntarem em um lugar onde o Catual dormiu. Quando veo ao outro dia, que tornaram caminhar, chegaram a um grande templo de gentio da terra, mui bem lavrado de cantaria com um coruchéu coberto de tijolo, à porta do qual estava um padrão grande de latão e encima, por remate, um galo. E dentro, no corpo do templo, 158 estava um portal, cujas portas eram de metal, per que entravam a ua escada que subia ao coruchéu, ao pé do qual, onde ficava o redondo dele em modo de charola, estavam alguas imagens da sua adoração. Os nossos, como iam crentes ser aquela gente dos convertidos pelo apóstolo São Tomé, segundo a fama que cá nestas partes havia, e eles achavam per dito dos mouros, alguns se assentaram em giolhos a fazer oração àquelas imagens, cuidando serem dignas de adoração. Do qual auto o gentio da terra houve muito prazer, parecendo-lhe sermos dados ao culto de adorar imagens, o que eles não viam fazer aos mouros. Partidos deste templo, chegaram a outro junto de ua povoação onde estava apousentado outro Catual, pessoa mais notável que vinha per mandado do Samori receber Vasco da Gama. O qual, quando saiu a ele, era com muita gente de guerra, todos adargados a seu modo, tam postos em ordem com seus instrumentos de tanger pera os animar, que folgaram os nossos em os ver naquela ordenança, e mais, sendo feita por honra de sua vinda. Chegado o Catual a Vasco da Gama, depois que, segundo seu uso, o recebeu com muita cortesia, mandou-lhe dar outro andor que trazia adestro, melhor concertado que aquele em que vinha, e sem fazer mais detença, seguiram seu caminho aos paços del-Rei. Onde Vasco da Gama esperou polos seus, que não podiam aturar o curso daqueles que levavam o andor, e o maior dano que recebiam era do grande povo, que quási os levava afogados polos ver. E ainda sobre isso, à entrada de um grande terreiro cercado, era tanta pressa por entrarem na volta deles, que veo o negócio às punhadas e di ao ferro, 149 em que houve feridos e um morto, primeiro que os oficiais del-Rei apagassem o arruído; e porém sempre teveram tanto resguardo em as pessoas dos nossos, que em toda a revolta não lhe foi feito algum desacatamento. Passado aquele terreiro, entraram em um pátio de alpendres, onde acharam Vasco da Gama e o Catual com algua gente mais limpa esperando por eles; e sem tomar algum repouso daquela afronta em que vinham, entraram todos em ua grã casa térrea, em que estava aquele grande Samori da província Malabar, per eles tam desejado de ver. De junto do qual se alevantou um homem de

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grande idade, que era o seu brâmane maior, vestindo uas vestiduras brancas, representando nelas e em sua idade e continência ser homem religioso. E chegando ao meio da casa, tomou Vasco da Gama pela mão e o foi apresentar ao Samori. O qual estava no cabo da casa, lançado em ua camilha coberta de panos de seda, posto em um leito a que eles chamam cátel, e ele, vestido com um pano de algodão burnido com alguas rosas de ouro batido, semeadas per ele, e na cabeça ua carapuça de brocado, alta, a maneira de mitra cerrada, chea de perlas e pedraria, e per os braços e pernas, que estavam descobertos, tinha braceletes de ouro e pedraria. E a ua ilarga deste leito, em que jazia com a cabeça posta sobre ua almofada de seda rasa, com lavores de ouro a maneira de broslado, estava um homem que parecia em trajo e ofício dos mais principais da terra, o 159 qual tinha na mão um prato de ouro com folhas de bétel e que eles usam remoer por lhe confortar o estômago. O Samori, posto que no ar do rosto recebeu Vasco da Gama com graça, tinha tamanha majestade, e assi estava grave naquele seu cátel, que não fez mais movimento para ele quando lhe falou, que levantar a cabeça da almofada, e des i acenou ao brâmane que o fizesse assentar em uns degraus do estrado em que tinha o cátel, e aos de sua companhia em outra parte um pedaço afastados, por ver que havia mister tomar algum repouso, segundo vinham afrontados do caminho. E depois que per um espaço grande esteve notando as pessoas, trajos e autos deles, e praticando em palavras gerais com Vasco da Gama, recebidas dele duas cartas que lhe mandava el-Rei Dom Manuel, ua escrita em arábigo 49 e outra em língua português, que era da mesma substância, disse-lhe que ele as veria, e depois mais de vagar ouveria a ele; que por então se fosse a repousar. Que, quanto ao seu gasalhado, visse com quem queria que fosse, se com mouros ou com os naturais da terra, pois ali não havia gente da sua nação, segundo tinha sabido. Ao que Vasco da Gama respondeu, que entre os mouros e cristãos havia diferença acerca da lei que tinham, e outras paixões particulares, e que com os seus vassalos, por ele e os de sua companhia não saberem seus costumes e temiam de os poder enojar, pedia a sua real senhoria que os mandasse apousentar sem companhia algua. O que aprouve ao 150 Samori, mandando ao Catual que o contentasse; e louvou Vasco da Gama de homem prudente e cauteloso nas cousas da paz, segundo o mouro Monçaide lhe veo contando pelo caminho, até chegarem à cidade Calecute, já bem noite. E entre alguas cousas que o Catual fez, de que Vasco da Gama teve dele boa esperança pera seus negócios, foi mandar a este Monçaide que se não apartasse dele, pera poder requerer o que houvesse mister, vendo que lhe era aceito por se entender em algua maneira com ele, o que Monçaide aceitou de boa vontade, e quási ele se ofereceu a isso. Parece que o chamava Deus por algua boa disposição que nele havia pera se salvar, segundo logo mostrou na verdade que tratava e fiéis conselhos que deu, um dos quais foi este: Querendo Vasco da Gama, ao seguinte dia, ir ao Samori, a lhe dar a embaixada que levava, o Catual o entreteve, dizendo que os embaixadores que vinham ao Samori e a todolos príncipes daquelas partes da Índia, tinham per costume não irem ante o príncipe, senão quando ele os mandava chamar; e mais, que primeiro repousavam alguns dias. No qual caso, aconselhou Monçaide, pera esta ida ser mais prestes, dizendo que o mais certo costume dos príncipes daquelas partes era não ouvirem alguém sem lhe primeiro levar algua cousa, e quanto o embaixador era mais estranho, tanto maior presente esperavam, e que dele não ter isto feito el-Rei o não ouviu logo; portanto, 160 se queria ser bem aviado, começasse de usar do costume da terra, porque ante o Rei não pode ir alguém com as mãos vazias. E também os seus oficiais, per cuja mão os negócios corriam, convinha per este modo serem contentes, ca doutra maneira seria tarde ouvido e sobre isso mal despachado.

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Vasco da Gama, posto que não lhe esquecia ser esta a entrada e saída com que se acabam os negócios em toda parte, não lhe pareceu que tardava em um dia; mas, sabendo per Monçaide quanto lhe importava, mandou logo a el-Rei alguas cousas, as quais foram com este recado de desculpa: Que quando partira de Portugal, por não ter certo que podia passar à Índia e ver sua real pessoa, não fora apercebido como devia; que aquelas cousas eram das que trazia pera seu uso, que lhas enviava, não tanto por sua valia, quanto por mostra das que havia em Portugal, e ainda aquelas escaparam da humidade do mar, por haver muito tempo que andava nele. Tanto que o Samori teve este presente, e os seus oficiais foram satisfeitos, segundo o conselho de Monçaide, foi Vasco da Gama levado ante ele, ao qual recebeu já com mais honra em outra casa; e mandando-o assentar, lhe disse: Que ele tinha visto ua das cartas que lhe dera escrita em arábigo e nela se continha a boa vontade e amor que el-Rei de Portugal, seu senhor, lhe mostrava ter, e assi enviá-lo a ele pera alguas cousas que faziam a bem de paz e comércio de entre ambos que lhe ele diria; portanto podia falar nisso. Vasco da Gama, havida esta licença, como já 151 estava amoestado per Monçaide do uso daqueles príncipes - que é serem mui taxados em ouvir e responder e terem as orelhas mais prontas no seu proveito que na eloquência da embaixada, e mais quando é relatada per terceiro, os quais intérpretes geralmente dizem a substância da cousa e não as vivas razões dela - por se conformar com o modo da terra, nestas palavras resumiu o que lhe era mandado: Que a causa principal que movera a el-Rei, seu senhor, enviá-lo àquelas partes orientais, tam remotas do seu estado, fora ser ante ele mui celebrada a fama da real pessoa dele, Samori, e da grandeza do seu senhoria, e estarem em seu poder a maior parte das especearias que per mãos dos mouros se navegavam pera as partes da Cristandade. E porque ele tinha descoberto per seus capitães novo caminho pera entre eles haver amor, prestança e comunicação de comércio, com que o reino dele, Samori, fosse mais rico por causa do muito ouro, prata, sedas e outra muita sorte de preciosas mercadorias, de que o seu reino de Portugal era tão abastado quanto o de Calecute de pimenta, ele, senhor Rei, o enviava 49v com aqueles três navios a lhe notificar esta sua tenção; e sendo-lhe aceita, armaria mui grossas naus carregadas desta fazenda, e a ordem e modo do comércio e preço das cousas seria aquele que fosse em proveito de ambos. O Samori a estas palavras respondeu com outras muito mais breves, em que mostrou ter contentamento da causa da vinda dele, Vasco da Gama; e acabou dizendo que ele o despacharia mui cedo, e com isto o espediu.

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151 49v 161 Capítulo IX. Da consulta que os principais mouros de Calecute teveram sobre a ida de Vasco da Gama àquelas partes, e como o Samori por causa deles o espediu. Os mouros, assi naturais da terra como alguns estrangeiros que estavam naquela cidade Calecute, por razão do trato da especearia, do qual negócio eles eram senhores, navegando-a per o Mar Roixo, quando viram que a embaixada de Vasco da Gama era a fim do comércio destas especearias, ficaram mui tristes, principalmente sabendo o contentamento que o Samori tinha de um Rei de tam longe terra, como era o Ponente, lhe enviar embaixada, e que louvava os nossos, dizendo que lhe parecia gente de boa razão e que seria proveitosa, vindo àquele seu reino, pois eram senhores de tantas mercadorias, como diziam. Sobre o qual caso os principais a que isto mais tocava teveram consulta, e entre muitas razões que foram trazidas do grande dano que todos receberiam, se entrássemos na Índia, foi o que contou um deles, dizendo que o ano passado, sobre duas naus de Meca, que tardavam, em que lhe vinha fazendo, fizera pergunta a alguas 152 pessoas que usam do ofício de astrologia e doutras artes que daqui dependem ua das quais pessoas, que ele daria por testemunha como autor da obra, em um vaso de água lhe mostrara as naus perdidas, e mais outras a vela, que dezia partirem de mui longe pera vir à Índia, que a gente delas seria total destruição dos mouros daquelas partes. E porque em verdade elas eram perdidas, como todos sabiam, pois a todos tocara esta perda, podia-se tomar suspeita do mais na vinda daqueles navios ali chegados, pois a gente deles era cristã, capital imiga de mouros. Finalmente com esta história, ora fosse fingida pera induzir os outros (posto que sem ela eles estavam bem movidos contra os nossos) ora que o demónio lhe quis representar aquele seu futuro mal, a conclusão da consulta acabou que buscassem todolos modos possíveis pera sumir os nossos navios no fundo do mar, e que as pessoas, como ficassem em terra, um e um os iriam gastando, com que não houvesse memória deles nem do que tinham descoberto. Porém, temendo que o Samori se podia escandalizar, se pubricamente nisso fizessem algua cousa, pareceu-lhe mais seguro modo ser este caso cometido pelo executor de todalas más sentenças, que é o dinheiro, subornando com ele ao Catual, que tinha cargo dos nossos, pera que indinasse a el-Rei contra eles com alguas razões aparentes que lhe deram pera o caso, afirmando serem verdadeiras e que convinham ao bem e paz da terra. 162 O Catual, como lhe encheram as mãos e as orelhas, começou logo fazer seu ofício, e a primeira obra foi não consentir que os nossos saíssem da casa em que estavam, por não verem a cidade nem o trato dela, dando entender a Vasco da Gama que, enquanto não fosse despachado, não tinham licença pera andar soltamente pela cidade, e mais convinha a ele ser isto assi, por evitar algum escândalo que podiam receber dos mouros, pois entre todos havia paixões por razão do que cada um cria acerca das cousas de Deus. Com as quais palavras, per que ele mostrava ordenar tudo a bem de paz, em obras negava-lhe o necessário que haviam mister, em que Vasco da Gama intendia parte da sua tenção; e começou logo requerer seu despacho sem outra carga de especearia. Porque, tornando ele a este reino com nova do que tinha descoberto, tempo ficava pera el-Rei mandar frota com que haveria quanta quisesse, sem temer as naus de Meca, com a vinda das quais o asombrava o mouro Monsaide, dizendo serem grandes e poderosas, de que poderia receber dano; portanto trabalhasse por se espedir daquela terra, ante que eles viessem. Vasco da Gama, como per estes e outros avisos que lhe tinha dado, intendeu ser homem fiel, per ele escreveu a seu irmão Paulo da Gama, fazendo-lhe saber o que passava e sentia dos

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mouros, encomendando-lhe resguardo na comunicação 50 da gente da terra que fossem a bordo dos navios, porque os mouros tudo haviam de tentar pera os meter em ódio com o gentio da terra. O Catual, tanto que viu tempo pera isso, disse ao Samori que geralmente todolos 153 homens do Ponente, que estavam naquela cidade, diziam que aqueles que ali eram vindos na sua própria terra viviam mais deste ofício de cossairos que de trato e mercadoria; e como homens perseguidos na terra de seus naturais se desterravam pera parte onde não fossem conhecidos. Que as cartas que lhe deram em nome de embaixadores que traziam, tudo era artefício pera encobrir a infâmia de vagabundos, ca não estava em razão, um Rei de tam longe como era o Ocidente da terra da Franquia, mandar-lhe embaixada que não trazia mais fundamento que desejo de sua amizade, e que a mesma cousa per si mostrava não poder ser, porque ua das razões da amizade era a comunicação das pessoas e prestança nas obras, e que estas entre eles eram mui contrairas, assi por razão da crença diferente que cada um tinha, como por a grande distância de seus estados. E mais que um Rei tam poderoso e rico como eles diziam ser o seu, mal mostrava este poder no presente que lhe mandara, pois eram peças que qualquer mercador que vinha do Estreito as dava melhores. Quanto a dizerem ser enviados por razão de especearia, eles não traziam mercadoria que dessem sinal disso; e ainda que tudo fosse como eles diziam, não devia querer perder proveito tam certo, como tinha nos mouros, pelo que prometiam homens que habitavam nos fins da terra, os quais haviam mister dous anos de navegação. Quanto mais que, vendo os 163 mouros como sua real senhoria favorecia homens novos e de que se tanto mal dizia, e sobre tudo seus imigos, era causa de grande escândalo para eles, e não seria muito perdê-los - cousa que ele devia muito temer, pois perdendo a eles, perdia vassalos, e não virem mais a seu porto naus de Meca, Judá, Adem, Ormuz e doutras muitas partes, no comércio das quais estava todo seu estado. Que ele em dizer isto compria com a obrigação que lhe devia, que era representar-lhe as cousas de seu serviço; que, além do seu, devia tomar parecer doutras pessoas, apontando-lhe logo em alguns seus oficiais que ele, Catual, sabia já estarem da parte dos mouros, ca pelo testemunho destes ficavam suas palavras com maior fé. El-Rei, ainda que era homem prudente e tinha tenteado quanto proveito podia receber neste novo caminho que os nossos abriram pera dar maior saída às suas especearias, tanto poder teveram nele estas palavras do Catual, que, sem mais examinar a verdade, com os outros testemunhos que lhe o mesmo Catual nomeou, depois que lhe pediu seu parecer, ficou assi transtornado, que teve os nossos na conta que lhe eles pintaram; de maneira que faleceu pouco de lhe ordenarem cousa com que nunca cá vieram. Mas como as que Deus ordena não se podem contrairar pelos homens, ainda que em algua maneira pareça que as empedem, o modo que estes mouros buscaram de os destruir, essa foi a causa de serem mais 154 cedo despachados, ante que viessem as naus de Meca. Porque tanto que o Samori concebeu o que lhe deziam, mandou chamar Vasco da Gama, e disse que lhe descobrisse ua verdade, que ele lhe prometia de lha perdoar, por ser cousa natural aos homens buscarem cautelas e modos de sua abonação pera fazerem seu proveito; e que se andavam desterrados por algum caso, ele os ajudaria em tudo; ca, segundo tinha sabido dalguns homens das partes da Franquia, donde diziam ser, eles não tinham rei, ou, se o havia na sua pátria, o seu ofício mais era andar pelo mar de armada a maneira de cossairos, que por razão do comércio. Vasco da Gama, quando ouviu tais palavras, sem leixar ir el-Rei mais avante com elas, disse: Que verdadeiramente ele não punha culpa cuidarem deles muitas cousas, porque grã novidade devia ser a todolos seus vassalos verem naquelas partes nova gente em religião e costumes, e mais vindos per caminho nunca navegado, com embaixada de um poderoso Rei, que

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não pretendia mais interesse que sua amizade e comunicação de comércio, pera dar nova saída às especearias daquele seu reino Calecute. Porque homens, armas, cavalos, ouro, prata, seda e outras cousas à humana vida necessárias no seu reino as havia, tam abastadamente que não tinha necessidade de as ir buscar aos alheos, e mais tam remotos como eram os da Índia. Porém sabendo ele, Samori, o que el-Rei, seu senhor, quis de mil e seiscentas léguas de costa que 164 ele e seus antecessores mandaram descobrir, haveria não ser nova cousa enviar mais avante per esta 50v mesma costa, té chegar a sua real senhoria, cuja fama era mui celebrada nas partes da Cristandade. E nestas mil e seiscentas léguas que mandou descobrir, achando-se muitos reis e príncipes do género gentio, nenhua cousa quis deles, somente doutriná-los em a fé de Cristo Jesu, Redentor do Mundo, senhor do Céu e da Terra, que ele confessava e adorava por seu Deus, por louvor e serviço do qual ele tomava esta impresa de novos descobrimentos da terra. E com este benefício da salvação das almas, que el-Rei Dom Manuel procurava àqueles reis e povos que novamente descobria, também lhe enviava navios carregados de cousas de que eles careciam, assi como cavalos, prata, seda, panos e outras mercadorias. Em retorno das quais, os seus capitães traziam outras que havia na terra, que era marfim, ouro, malagueta, pimenta - dous géneros de especearia de tanto proveito e tam estimada nas partes da Cristandade, como a pimenta daquele seu reino de Calecute. Com as quais comutações, os reinos que sua amizade aceitavam, de bárbaros eram feitos políticos; de fracos, poderosos, e ricos de pobres, tudo à custa dos trabalhos e indústria dos portugeses. Nas quais obras el-Rei, seu senhor, não buscava mais que a glória de acabar grandes cousas por serviço de seu Deus e fama dos portugueses. Porém com os mouros, por 155 serem seus contrairos, contrairamente se havia, ca per força de armas, nas partes de África que eles habitam, lhe tinha tomado quatro principais forças e portos de mar do reino de Fez, por isso, onde quer que se achavam, não somente infamavam de boca o nome português, mas ainda maliciosamente lhe procuravam a morte, e não rostro a rostro, por terem experimentado o seu ferro. O testemunho da qual verdade se viu no que lhe fizeram em Moçambique e Mombaça, como sua real pessoa já teria sabido do piloto Caná, o qual engano e traição nunca achara, per quantas terras de gentios tinha descoberto. Porque estes naturalmente eram amigos do povo cristão, por todos virem de ua geração e serem mui conformes em alguns costumes e no modo dos seus templos, segundo tinha visto naquele seu reino de Calecute. Até os seus brâmanes, na religião que tinham da Trindade de três pessoas e um só Deus, que acerca dos cristãos era o fundamento de toda sua fé, se conformavam com eles, (peró que per outro modo mui diferente), a qual cousa os mouros contradizem. E de eles saberem esta conformidade de antre o povo gentio e cristão, trabalhavam que os portugueses ante ele, Samori, fossem infamados e avorrecidos, sendo-lhe já tam obrigado aos defender, pois não precedendo mais causas pera el-Rei, seu senhor, desejar sua amizade que ua fama da grandeza dele, Samori, folgara de o enviar a ele polas causas que lhe tinha dito. E isto não cometera somente aquele ano, mas era já tam continuado per tantos e el-Rei tam desejoso de ter descoberto este caminho de Portugal 165 pera a Índia, que ainda que ele, Vasco da Gama, per qualquer desastre não tornasse a Portugal, soubesse certo que el-Rei havia de continuar tanto este descobrimento, té lhe levarem recado dele, Samori. Portanto lhe pedia, como a emperador de toda aquela região Malabar, pois Deus a ele, Vasco da Gama, e aos seus companheiros tinha feito tanta mercê que fossem os primeiros que vieram ante ele, quisesse meter a mão de seu poder neste ódio que lhe os mouros tinham, e não consentisse serem eles causa dalgum grande incêndio de guerra naquelas partes, porque a gente português não dissimulava injúrias, e principalmente a mouros, dos quais tinha havido grandes vitórias.

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Mui atento esteve o Samori a todas estas palavras de Vasco da Gama, olhando muito a continência com que as dezia, como homem que do fervor e constância que lhe visse, queria conjecturar a verdade delas. E que de seu natural fosse homem prudente, e nos sinais que esguardou julgasse a verdade do caso, quis comprazer em parte à tenção dos mouros, que foi espedir Vasco da Gama, mandando-lhe que se tornasse aos navios e que ali lhe mandaria o despacho de sua embaixada, dizendo que por então isto lhe parecia convir a ele, Vasco da Gama, pois confessava que entre eles e os mouros havia aqueles 156 ódios, porque, ficando mais tempo na cidade, per ventura uns com os outros travariam em palavras, que fosse causa dele receber contra sua vontade algum dano, de que ele, Samori, teria desprazer. E com isto o espediu.

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156 51 165 Capítulo X. Como per indústria dos mouros Vasco da Gama e os que com ele estavam foram reteúdos. E, depois de recolhido aos navios e, postos em terras, Diogo Dias e Álvaro de Braga também foram presos, té que o Samori mandou prover nisso e os espediu de todo. Os mouros, quando souberam o que el-Rei mandava a Vasco da Gama, não ficaram mui satisfeitos, porque todo seu trabalho era ordenar que os seus navios fossem metidos no fundo, com fundamento que, ficando a gente em terra, poucos e poucos os iriam gastando; e, pera executar este propósito, fizeram com o Catual que os retevesse e obrigasse a tirar os navios em terra, pera de noite lhe porem fogo. O Catual, como em tudo queria comprazer aos mouros, levou Vasco da Gama fora de Calecute, mostrando que o acompanhava té o meio caminho de sua embarcação, e secretamente tinha mandado aos oficiais del-Rei 166 que estavam em Capocate, onde se espediu dele, que o retivessem, como homens que faziam aquilo por razão de seus ofícios . Quando ele viu que o retinham, bem lhe pareceu ser mais indústria dos mouros que mandado pelo Samori; e, porque pudesse ir ter a sua notícia, começou de se queixar gravemente com os ministros do caso, os quais responderam que ele se queixava mais sem causa do que a eles tinham em o reter como oficiais que eram del-Rei, obrigados a olhar o bem e segurança da terra. Porque a ele não o retinham com tenção de o querer anojar, mas com receo de ele fazer algum nojo à gente da terra, depois que se visse em os navios, segundo se dezia que eles fizeram nos portos per onde vinham. Que se ele e os seus eram gente pacífica, deviam usar o costume daquelas partes, principalmente naquele tempo do inverno, varando seus navios em terra e não estar sempre com a verga de alto, como gente que tinha ânimo de cometer algum mal. Ao que Vasco da Gama respondeu que os seus navios eram de quilha e não de feição dos da terra, e porisso era cousa impossível poderem ser varados, por não haver ali os aparelhos que no reino de Portugal havia pera aquela necessidade. Finalmente, tanto aperfiaram sobre o varar dos navios, ou que leixasse em terra alguns homens com mercadoria - e isto em modo de reféns, enquanto o Samori o não despachava, dizendo que a gente do mar lho queria, pera poderem ir pescar seguramente deles -, que conveo a Vasco da Gama leixar em terra, com algua pouquidade disso que levavam pera compra de mantimentos, a Diogo Dias por feitor, Álvaro de Braga por escrivão, Fernão 157 Martins, língua, e quatro homens do seu serviço, até ver em que parava o despacho do Samori. Os ministros desta obra, tanto que por ela ficaram seguros, consentiram que Vasco da Gama se embarcasse; mas, quanto a dar modo pera que Diogo Dias comprasse algua cousa, tudo eram artifícios pera o não poderem fazer; de maneira que, per espaço de seis ou sete dias, eles se haviam por presos e não por feitores. Té que, a força de queixumes de Vasco da Gama, acudiu o Catual, que era o autor destas cousas, e mandou-se desculpar ante ele, fingindo não ser disso sabedor, e porém que os oficiais tinham razão, por quanto o Samori o não tinha de todo despachado. E que por haver pouco que comprar ou vender naquele lugar, ele mandava levar os seus feitores a Calecute, onde havia cópia de tudo; portanto lhe parecia bom conselho que ele com os seus navios se fosse ao porto da cidade, por ser mais perto donde estava o Samori, pera seus negócios serem mais em breve despachados. Vasco da Gama, posto que sentisse que todos estes artifícios eram dilações pera o deter, té a vinda das naus de Meca, segundo lhe tinha dito

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167 o mouro Monçaide (o qual já neste tempo escondidamente vinha comunicar com ele), todavia, porque, estando mais perto del-Rei, per meio do mesmo Monçaide lhe poderia mandar algum recado, e mais saber o que se fazia com Diogo Dias e Álvaro de Braga, foi-se com os navios poer ante a cidade de Calecute, onde soube per Monçaide que, se os mouros não temeram poder com isso indinar o Samori, já os teveram mortos. Vasco da Gama, vendo este negócio tam danado e que o Samori era mudado dos paços donde lhe falara pera mais longe, sem haver comemoração de seu despacho, e que eles não tinham outro meio pera o requerer senão Monçaide, que já não ousava comunicar com eles, senão dando a entender aos mouros que era sua espia, ajuntou-se com Paulo 51v da Gama, Nicolau Coelho e os principais da companha dos navios, e teve conselho sobre o que deviam fazer. E determinaram-se que não devia esperar mais resposta del-Rei que os desenganos que lhe tinha dado em palavras e no modo de os espedir, leixando-os em poder de seus imigos tanto tempo sem lhe mandar resposta. Assentado este conselho, escreveu Vasco da Gama per Monçaide a Diogo Dias que, o mais secreto que pudessem, pera tal dia ante menhã se viessem à praia, porque ali achariam batéis pera os recolher; peró, como os mouros tinham vigia sobre eles, tanto que os sentiram, saltaram com eles e os prenderam, tomando-lhe quanta fazenda levavam. Vasco da Gama, vendo que a maldade dos mouros não se podia remedear com a paciência e sofrimento que com eles teve, nem tinha esperança dalgum despacho del-Rei, houve a mão obra de vinte tantos pescadores que vinham pescar ao mar, e com eles se fez à vela, que foi pera os mouros grande prazer, vendo alvoroçado todo o gentio com a grita e brados das mulheres destes 158 pescadores. A nova do qual caso, tanto que foi ao Samori, posto que os mouros per seus meios o queriam indinar contra os nossos, dizendo que per ali veria quem eles eram, todavia, por ter sentido o ódio que lhe tinham, ante de se determinar em outra cousa, mandou dous homens principais dos gentios sem suspeita, que lhe viessem saber como aquele negócio passava. Per os quais sendo informado como aquilo parecia ser mais represália por os seus homens que lhe os mouros prenderam que por outra causa, e mais que ele, capitão, andava a vela ua volta ao mar e outra a terra, como quem queria fazer razão de si, se a fizessem com ele, tornou logo a enviar estes mesmos homens, que levassem ante ele Diogo Dias e os outros que com ele estavam, com os quais teve prática sobre o modo de seu despacho. E mandou-lhe que escrevessem a Vasco da Gama que tratasse bem os homens que tomara, porque ele e seus companheiros estavam mui bem tratados em poder dele, Samori, e per eles lhe queria mandar o despacho. 168 Vasco da Gama com esta carta ficou mui contente, peró, temendo algua malícia dos mouros, duas ou três vezes se fez na volta do mar e outras tantas surgiu diante da cidade, porque as partes a que tocava a liberdade da gente que tinha tomado, clamassem ao Samori sua liberdade a troco dos nossos. Finalmente, pela informação que teve da verdade, despachou Diogo Dias, mandando per ele a Vasco da Gama ua carta que escreveu a el-Rei Dom Manuel, em que lhe dezia como recebera outra sua e ouvira seu embaixador e lhe respondera, e que a causa de sua partida per aquele modo foram diferenças antiguas de antre cristãos e mouros. Que ele teria muito contentamento de sua amizade e do comércio das cousas do seu reino, podendo ser sem aqueles escândalos, porque os mouros ele os havia por naturais do seu reino, por ser gente mui antígua naquele auto do comércio. Com a qual carta e alguas cousas que deu a Diogo Dias, o espediu, mandando àqueles dous senhores gentios que o entregassem a Vasco da Gama com a fazenda que lhe era tomada e houvessem dele os pescadores que tinha em represália. O que eles fizeram com alguas cautelas no modo da entrega, querendo ainda os mouros usar de suas maldades; mas contudo, recolhidos

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todolos nossos, por causa dalgua fazenda que lhe não quiseram entregar, Vasco da Gama reteve certos índios que trouxe consigo, e assi o fiel Monçaide, partindo logo aquele dia, que eram vinte nove de Agosto, havendo setenta e quatro dias que chegara àquela cidade Calecute.

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159 51v 168 Capítulo XI. Como Vasco da Gama se partiu do porto de Calecute, e foi ter à Ilha Anchediva, onde veo um judeu, o qual Vasco da Gama prendeu, e ele se fez cristão. E do mais que passou na sua viagem, té chegar a este reino. Partido Vasco da Gama não mui contente da espedida que houve em seu despacho, quando veo ao seguinte dia, andando em calma pouco mais de légua e meia de Calecute, vieram a ele obra de sessenta tonés, que são barcos pequenos, atulhados de gente, parecendo-lhe que por ser muita tinham pouco que fazer com a nossa; peró, como sentiram seu dano com a artelharia que ao longe os foi receber e principalmente com ua trovoada que os 52 derramou, eles tomaram por acolhita a terra e os nossos o mar, seguindo seu caminho a vista da costa. E desejando Vasco da Gama meter nela um dos padrões que levava, porque outro que mandou ao Samori per Diogo Dias pera se poer na cidade, segundo ficava na vontade dos mouros, era certo que não havia de estar muitas horas em pé, tanto se chegou 169 à terra pera escolher lugar notável onde o pusesse, que veo dar com ele um toné de pescadores. Per o qual escreveu ao Samori per mão de Monçaide, em que se queixou dos enganos que com ele usaram na entrega da gente e fazenda que tinha em terra, onde lhe ficava boa parte. E que não houvesse por mal levar ele consigo alguns dos seus naturais, porque não era afim de represária da fazenda, mas pera el-Rei, seu senhor, per eles se poder informar de seu estado e das cousas do seu reino, e ele, Samori, per o mesmo modo saber as de Portugal, quando ele, Vasco da Gama, ou outro capitão tornasse àquela sua cidade, que seria o ano seguinte, como ele esperava em Deus, pera confusão dos mouros. Espedido este barco, tornou seguir seu caminho com desejo de meter o padrão que dissemos; e por não achar lugar mais à sua vontade, em uns ilhéus pegados com terra, meteu um per nome Santa Maria, donde os ilhéus se chamam ora de Santa Maria, os quais estão entre Bacanor e Baticalá, dous lugares notáveis daquela costa; e no arvorar dele se achou algum gentio da terra que o fizeram com muito prazer, por o bom tratamento que lhe Vasco da Gama fazia e cousas que dava. Assi que, com este padrão, que foi o derradeiro em tempo, leixou Vasco da Gama nesta viagem postos cinco padrões: São Rafael, no Rio dos Bons Sinais; São Jorge, em Moçambique; Santo Espírito, em Melinde; Santa Maria, nestes ilhéus; e o último per sítio em Calecute, chamado São Gabriel. Os quais, peró que não sejam postos per nação tão gloriosa de escrever, como foi a gente grega, nem o nosso estilo possa alevantar a glória deste feito no grau que ele merece, ao menos será recompensado 160 com a pureza da verdade que em si contém, não contando os fabulosos trabalhos de Hércules em poer suas colunas; nem pintando algua argonáutica de capitães gregos, em tam curta e segura navegação como é de Grécia ao Rio Faso, sempre a vista da terra, jantando em um porto e ceando em outro; nem escrevendo os errores de Ulisses, sem sair de um clima, nem os vários casos de Eneas em tam breve caminho; nem outras fábulas da gentilidade grega e romana, que com grande engenho na sua escritura assi decantaram e celebraram a impresa que cada um tomou, que não se contentaram com dar nome de ilustres capitães na terra aos autores destas obras, mas ainda com nome de deuses os quiseram colocar no céu. E a gente português, católica per fé e verdadeira adoração do culto que se deve a Deus, arvorando aquela divina bandeira de Cristo, sinal de nossa Redenção, de que a Igreja canta Vexilla regis prodeunt, não somente a vista dos mouros de África, Pérsia e Índia, pérfidos a ela, mas diante de todo o pagaismo destas partes que dela nunca teveram

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notícia - e isto navegando per tantas mil léguas que vem a ser antípodas de sua 170 própria pátria, cousa tam nova e maravilhosa na opinião das gentes, que até doutos e mui graves barões em suas escrituras puseram em dúvida de os haver; nas quais partes eles houveram vitórias de todas estas nações, contendendo com os perigos do mar, trabalhos de fome e sede, dores de novas enfermidades, e finalmente com as malícias, traições e enganos dos homens, que é mais duro de sofrer - assi são próprias todas estas cousas em a nação português, e as tem por tam natural mantimento depois que nacem, que os faz fastientos no trabalho de as querer contar e escrever, como se tevesse a seus próprios feitos ódio pera os ouvir, depois que os faz, como são apetitosos pera os cometer, e apressados no auto de os fazer, e constantes em os segurar. Certo, grave e piadosa cousa de ouvir, ver ua nação a que Deus deu tanto ânimo, que se tevera criado outros mundos já lá tevera metido outros padrões de vitórias, assi é descuidada na posteridade do seu nome, como se não fosse tam grande louvor dilatá-lo per pena, como ganhá-lo pela lança . E tornando a Vasco da Gama, autor de tão ilustre feito - que na distância da terra em que pôs estes cinco padrões per linha direita de Ponente a Levante, descobriu mil e duzentas léguas, começando no Rio do Infante, onde acabou Bartolomeu Dias, té o porto da cidade Calecute - tanto que leixou posto este padrão Santa Maria, foi ter per enculca do gentio da terra, desejando de espalmar os navios, em outros ilhéus pegados com terra firme, aos quais 52v nós agora chamamos Angedivida e os canaris Anchediva (anche quere dizer cinco, diva ilhas, por eles serem cinco) posto que o notável é um de que ao diante faremos maior relação, por causa de ua fortaleza que el-Rei Dom Manuel nele mandou fazer. 161 Na qual parte, estando Vasco da Gama em trabalho de espalmar seus navios e fazendo aguada, por ser a melhor de toda aquela costa, onde geralmente todalas naus que per ali navegam a vem fazer, e o gentio dali mui satisfeito pelas cousas que lhe mandava dar, veo a ele um cossairo, per nome Timoja, que depois, como adiante se verá, foi grande nosso amigo. Este, 171 tanto que teve notícia dos nossos navios e que a gente deles era estrangeira, saiu de um lugar onde ele vivia, chamado Onor, perto dali, e, como homem sagaz, quis cometer os nossos per este artifício, ajuntando oito navios de remo pegados uns em outros, todos cobertos de rama que pareciam ua grande balsa dela. Vasco da Gama, quando viu que de terra esta balsa vinha contra ele, preguntou aos índios que ali andavam familiares que visão era aquela, ao que eles responderam que não se espantasse dela, que eram invenções de um fraco cossairo que costumava cometer alguns navios que per ali passavam. Todavia Vasco da Gama, ante que Timoja se chegasse mais a ele, mandou a seu irmão Paulo da Gama e a Nicolau Coelho que o fossem salvar com artelharia, como eles fizeram, e foi a salva de maneira que os barcos enramados se derramaram logo acolhendo-se a terra. Na qual fugida Nicolau Coelho tomou um deles, em que acharam arroz e outro mantimento da terra com algua pobreza de suas provisões. Passado o dia deste cossairo Timoja, que per aquele modo quisera cometer os nossos navios, como a terra era já chea da estância que eles ali faziam, sobreveo outro caso que, se fora avante, lhe houvera de dar muito trabalho, e foi este: Um senhor mouro chamado Sabaio, cuja era ua cidade per nome Goa, que ora é a metrópoli que este reino tem naquelas partes, daquela ilha de Anchediva até doze léguas, como era homem que tinha consigo arábios, párseos, turcos e alguns levantiscos arrenegados, com ajuda e indústria dos quais tinha naquelas partes adquerido grande estado, tanto que soube como os nossos navios eram de gente destas partes da Cristandade, desejando haver informação dela, chamou um judeu natural de Polónia, que lhe servia de Xabandar, e perguntou-lhe se tinha sabido de que nação era a gente que vinha naqueles navios. Ao que este judeu respondeu ter sabido que se chamavam

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portugueses, que habitavam nos fins da terra da Cristandade, a qual gente sempre ouvira nomear por guerreira, sofredor de trabalho e mui leal ao senhor que serviam; que se ela era a que lhe diziam, devia trabalhar pola haver a seu serviço, porque com os tais homens se podiam fazer grandes conquistas. O Sabaio, ouvindo este louvor dos nossos, como procurava haver em seu serviço gente de guerra, mandou a este judeu que fosse a eles e os cometesse da sua parte com algum partido favorável, e quando o não aceitassem, ele mandaria três ou quatro navios armados que estevessem em seu resguardo, pera que, dando-lhe aviso, os viessem cometer; que se partisse ele, porque os navios iriam logo nas 162 suas costas. Partido o judeu com este fundamento, veo ter em um pequeno barco 172 junto de ua ponta da terra firme que estava sobre os nossos navios; e, posto sobre aquele teso, começou em altas vozes bradar que queria falar ao capitão, e que o assegurassem per aquele sinal, mostrando ua cruz de pau. Vasco da Gama, quando viu a cruz, fez-lhe em seu coração reverência, dizendo que, debaixo daquele sinal de sua Redenção, ele não esperava engano ou mal que lhe fosse feito; e convertendo-se aos gentios que ali andavam, familiares com ele, perguntou-lhe se conheciam aquele homem que bradava. Os quais, como andavam contentes do bem que lhe ele mandava fazer, disseram: - Senhor, não te fies deste, porque é soldado do senhor de ua cidade chamada Goa, que está perto daqui, e como é mouro - gente com que vós outros estais em ódio - per ventura virá com algum engano. Vasco da Gama, como teve esta notícia dele, mandou-lhe responder que, se queria algua cousa e ele era homem seguro, que o segurava. Ao que o judeu respondeu que ele vinha com muita verdade, e que na confiança dela se entregava em seu poder. Com as quais palavras deceu do lugar onde estava e se veo a ele, mostrando ua seguridade como quem não trazia no peito outra cousa; mas Vasco da Gama de boa entrada lho descobriu, logo querendo-o meter a tormento. Quando o judeu se viu naquele estado, começou de pedir que por amor de Deus o não mandasse atormentar, que ele diria toda a verdade a que era vindo, e que, primeiro de vir a este caso, lhe queria contar o princípio de seu nacimento e vida, per 53 a qual e pelo que ao presente sentia dela e da vinda deles naquelas partes, lhe parecia que não era somente por salvação dele, mas ainda pola de tantas mil almas como havia no gentio daquelas partes. Porque não estava em razão homens tam ocidentais como era a gente português, os quais viviam nos fins da terra, virem às partes do Oriente per tanta distância de mares e caminhos não sabidos, senão pera algum grande mistério que Deus queria obrar per eles. Então começou a contar o princípio de sua vida, dizendo que, no ano de Cristo de mil quatrocentos e cinquenta, el-Rei de Polónia mandara lançar um pregão per todo seu reino, que quantos judeus nele houvesse, dentro de trinta dias se fizessem cristãos, ou se saíssem do seu reino; e passado este termo de tempo, os que achassem fossem queimados. Donde se causou que a maior parte dos judeus se saíram fora do reino pera diversas partes, e nesta saída fora seu pai e sua mãe, que eram moradores em ua cidade chamada Bosna. Os quais vieram ter a Jerusalém, e di se passaram à cidade Alexandria, onde ele naceu; e depois que chegou a perfeita idade, descorrendo per 173 muitas partes, fora ter àquelas da Índia, ao serviço do Sabaio, senhor de Goa, per cujo mandado era ali vindo, provocar a ele e aos seus que o quisessem ir servir a soldo, da maneira que com ele lá andavam alguns levantiscos. E 163

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que este desejo tomara ao Sabaio de os querer em sua ajuda, por lhe ele gabar a gente português, e que verdadeiramente esta era a causa de sua vinda; que lhe pedia não recebesse mal dele e houvesse por bem de o receber como a gente cristã costuma àqueles que se chegam ao bautismo, por quanto ele o queria aceitar e morrer na fé de Cristo. Vasco da Gama, como viu nesta prática e em outras que com ele teve, ser homem esperto e que mui particularmente dava razão das cousas daquelas partes, começou de o consolar, e que quanto ao filho e fazenda que dezia ficar-lhe em Goa, que se não agastasse. Porque el-Rei, seu senhor, tanto que ele chegasse, com ajuda de Deus, ao reino de Portugal, logo havia de mandar ua grossa armada àquelas partes, em que ele tornaria, na qual viagem poderia cobrar seu filho e muito mais fazenda, nas mercês que lhe el-Rei faria, que quanta leixava em Goa. Finalmente ele foi bautizado e houve nome Gaspar, tomando por apelido Gama, por causa de Vasco da Gama, que o trouxe àquele estado; e, per aviso dele, logo ao seguinte dia, ante que viessem os navios que o Sabaio havia de mandar, Vasco da Gama, por estar já prestes, se fez à vela, via deste reino, atravessando aquele grande golfão que há da costa da Índia a estoutra de Melinde, na terra de África, em que lhe adoeceu e morreu muita gente das enfermidades passadas, por razão de grandes calmarias que teve. E a primeira terra que tomou foi abaixo da cidade Magadaxó, situada na costa brava, per a qual passou sem fazer mais detença que salvá-la com artelharia, por ver no aparato de seus edifícios ser tam grande cousa, que não quis fazer mais experiência da verdade dos mouros daquela costa. Peró não se pôde espedir sem algum encontro deles, ca, sendo tanto avante como outra chamada Pate, lhe saíram ao caminho sete ou oito zambucos da terra, mui bem armados, com fundamento de o cometer; aos quais ele salvou de maneira com artelharia, que não o quiseram mais seguir. Chegado a Melinde, onde ele levava posta a proa, foi recebido pelo Rei nosso amigo com muito prazer, e a gente enferma que trazia recebeu refeição com os refrescos da terra, posto que alguns ficaram ali enterrados, em cinco dias que se deteve, em tal estado vinham. E tornado a seu caminho, no lugar dos baixos onde o navio São Rafael tocou (como atrás dissemos), deu outro toque, com que ficou ali pera sempre, que não deu muita paixão a Vasco da Gama, por vir já tam falecido de gente pera marear três navios, que pera dous ainda toda a deste era pouca. A qual, repartida per eles, chegaram aos Ilhéus de São Jorge, defronte de Moçambique, onde, ao pé do padrão chamado São Jorge, que deu nome ao ilhéu, dia da Purificação de Nossa Senhora, em seu louvor ouviram ua missa, e outra na aguada de São Brás, e a vinte de Março dobraram o grã Cabo da 174 Boa Esperança, na qual paragem a gente começou a convalecer, 164 pera poderem todos servir em a navegação. Chegados com assaz trabalho junto das Ilhas de Cabo Verde, com um temporal forte que ali teveram, Nicolau Coelho se apartou de Vasco da Gama; e, cuidando ele que o trazia ante si, veo ter à barra de Lisboa, a dez de Julho daquele ano de quatrocentos noventa e nove, havendo dous anos que saíra per ela, e quando soube que Vasco da Gama não era ainda chegado, quisera fazer volta ao mar em sua busca; peró, sabendo el-Rei, 53v que então estava na cidade, da sua chegada, e como queria tornar em busca de seu capitão, mandou que entrasse pera dentro. Vasco da Gama com aquele temporal foi ter à Ilha de Santiago, e por trazer seu irmão Paulo da Gama mui doente, leixou por capitão em o seu navio a João de Sá, que se viesse a Lisboa, e ele, por remedear a saúde de seu irmão, em ua caravela que fretou, passou-se à Ilha Terceira, onde o veo enterrar no mosteiro de São Francisco, por vir já mui debilitado. A morte do qual deu muita dor a Vasco da Gama, porque, além de perder irmão, tinha Paulo da Gama calidades pera sentir sua morte quem dele tivesse conhecimento, e mais por falecer às portas do galardão de seus trabalhos. Partido Vasco da Gama daquela Ilha Terceira, a vinte nove de Agosto, chegou ao porto de

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Lisboa, e sem entrar na cidade, teve uas novenas em a casa de Nossa Senhora de Belém, donde ele partiu a este descobrimento. E aqui foi visitado de todolos senhores da Corte té o dia de sua entrada, que se fez com grande solenidade; e por se mais celebrar sua vinda, houve touros, canas, momos e outras festas em que el-Rei quis mostrar o grande contentamento que tinha de tão ilustre serviço, como lhe Vasco da Gama fez, que foi um dos maiores que se viu feito per vassalo, em tam breve tempo e com tam pouco custo. Por causa do qual, como adiante se dirá, el-Rei acrescentou a sua Coroa os títulos que ora tem, de Senhor da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia. E na satisfação deste grande serviço, mostrou el-Rei quanto o estimava, fazendo logo e depois mercê a Vasco da Gama destas cousas: que ele e seus irmãos se chamassem de Dom, e que, no escudo das armas de sua linhagem, acrescentasse ua peça das armas reais deste reino, e o ofício de Almirante dos Mares da Índia, e mais trezentos mil reais de renda; e que em cada um ano pudesse empregar na Índia duzentos cruzados em mercadorias, os quais regularmente, na especearia que lhe vem do emprego deles, respondem cá no reino dous contos e oito centos mil reais, e tudo isto de juro, e assi Conde da Vidigueira, correndo depois o tempo, em que as cousas da Índia mostraram ter a grandeza delas maior do que parecia nos primeiros anos. E se Vasco da Gama fora de nação tam gloriosa 175 como eram os romanos, per ventura acrescentara ao apelido da sua linhagem posto que fosse tam nobre como é esta alcunha - da Índia, pois sabemos ser mais gloriosa 165 cousa pera insígnias de honra o adquirido que o herdado, e que Scipião mais se gloriava do feito que lhe deu por alcunha, Africano, que do apelido de Cornélio, que era da sua linhagem.

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165 53v 175 Capítulo XII. Como el-Rei Dom Manuel, em louvor de Nossa Senhora,fundou na sua ermida de Belém, que estava em Rastelo, sumptuoso templo que depois tomou por jazigo de sua sepultura. O Infante Dom Hanrique (como atrás escrevemos), por razão desta impresa que tomou de mandar descobrir novas terras, em as partes de onde as suas armadas partiam a estes descobrimento, por louvor de Nossa Senhora, mandara-lhe fazer ua casa, ua das quais foi a de Restelo, em Lisboa, da vocação de Belém. Na qual tinha certos freires da Ordem da Milícia de Cristo, de que ele era governador e administrador, à qual Ordem ele tinha dado esta casa com todalas terras, pomares e águas que para ela comprar. Isto com encargo que o capelão obrigado a ela, cada sábado, dissesse por ele, Infante, ua missa a Nossa Senhora, e quando fosse ao lavar das mãos se volvesse ao povo, e em alta voz lhe pedisse quisesse dizer um Pater noster e ua Ave Maria pola alma dele, Infante, por mandar fazer aquela igreja, e assi polos cavaleiros da Ordem de Cristo e por aqueles a que ele era obrigado. O fundamento das quais casas, e principalmente desta de Belém, era pera que os sacerdotes que ali residessem, ministrassem os sacramentos da confissão e comunhão aos mareantes que partiam pera fora, e, enquanto esperavam tempo (por ser quási ua légua da cidade), tevessem onde ouvir missa. El-Rei Dom Manuel, como imitador deste santo e católico avoengo, vendo que sucedera a este Infante em ser governador e perpétuo administrador da Ordem da Milícia de Cristo, e assi em prosseguir este descobrimento, tanto que veo Vasco da Gama, em que se terminou a esperança de tantos anos que era o descobrimento 54 da Índia, quis, como premícias desta mercê que recebia de Deus em louvor de sua Madre, (a quem o Infante tinha tomado por sua protector pera esta obra), fundar um sumptuoso templo na 176 sua ermida da vocação de Belém. E aceitou ante este que outro lugar, por ser o primeiro posto donde haviam de partir todalas armadas a este descobrimento e conquista, e também porque, como a causa que ele teve de fazer tamanha despesa, como se neste templo tem feito, procedeu da mais notável e maravilhosa obra que os homens viram, pois per ela o Mundo foi estimado em mais do que se dele cuidava ante que descobríssemos esta sua tam grande parte, convinha que ua tal memória de gratificação fosse feita em lugar onde as nações de tam várias gentes como o mesmo Mundo 166 tem, quando entrassem neste reino, a primeira cousa que vissem fosse aquele sumptuoso edifício, fundado das vitórias de toda a redondeza dele. E como o lugar de Rastelo é o mais célebre e ilustre que este reino de Portugal tem, por ser nos arrabaldes de Lisboa, monarca desta oriental conquista e porta per onde haviam de entrar neste reino os triunfos dela, nesta entrada convinha ser feito, não um pórtico de pompa humana, nenhum templo a Júpiter Protector, como os romanos tinham em Roma no tempo de seu império, a que ofereciam as insígnias de suas vitórias, mas um templo dedicado àquele vivo e divino templo que é a Madre de Deus da vocação de Belém. Porque, como neste auto de ser madre e virgem triunfou do Príncipe das Trevas, dando espiritual vitória a todo género humano, assi era cousa mui justa que os triunfos das temporais vitórias que per suas intercessões os portugueses haviam de haver dos príncipes e reis das trevas da infidelidade de todo o pagaismo e mouros daquelas partes do Oriente, quando entrassem pela barra de Rastelo, com as naus carregadas deles, achassem casa sua tam grande pera os recolher, como ela fora liberal em

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conceder as petições deles, nos autos de suas necessidades. A qual casa el-Rei deu aos religiosos da Ordem de São Jerónimo pola singular devação que tinha neste santo, e por a mesma causa a elegeu por jazigo de sua sepultura. E porque a ermida com todalas propriedades da casa (como dissemos) era da Ordem de Cristo, por a ter dotada o Infante ao convento dele, que está em a vila de Tomar, per autoridade apostólica deu el-Rei por ela ao mesmo convento a igreja de Nossa Senhora da Conceição, de Lisboa, a qual ele fez de esnoga que era dos judeus, onde ora residem freires da mesma Ordem de Cristo, e lhe aplicou renda, não somente pera os freires, mas ainda pera ua comenda que fez daquela casa. E foi ainda el-Rei Dom Manuel tam magnânimo na glória da edificação deste templo de Belém, que tomou pera o lugar de sua imagem e da Rainha Dona Maria, sua mulher, a porta mais pequena fronteira ao altar-mor, e mandou pôr a imagem daquele excelente príncipe, Infante Dom Hanrique, na porta travessa por ser mais principal em vista, armado como hoje aparece sobre a coluna do meio. E mais por se não perder a memória do que ele, Infante, mandava que à sua missa o sacerdote pedisse ao povo que o encomendassem a Deus, per este mesmo modo são obrigados os religiosos a outra missa que el-Rei ordenou que se dissesse por ele, que o sacerdote peça 177 também ao povo que roguem a Deus pola alma do Infante Dom Hanrique, primeiro fundador daquela casa, e assi por el-Rei e por seus sucessores. Com a qual obra fica o Infante Dom Hanrique louvado no que fez por louvor de Nossa Senhora, 167 e el-Rei Dom Manuel com muito maior, porque então se consegue ele dobrado ante Deus per glória, e acerca dos homens per fama, quando das nossas obras, por razão dalgua pequena parte que nelas outrem pôs, lhe queremos dar o todo; e o contrairo, quando queremos esconder o todo, pola parte que nela posemos.

LIVRO V 169 54v 179 Capítulo primeiro. Como el-Rei, por razão da nova que Dom Vasco da Gama trouxe da Índia, mandou fazer ua armada de treze velas, da qual foi por Capitão-mor Pedrálvares Cabral. El-Rei Dom Manuel, como era príncipe católico e que todas suas cousas oferecia a Deus, por esta mercê que dele tinha recebido, dava-lhe muitos louvores, pois lhe aprouvera ser ele o instrumento per quem quisera conceder um bem tam universal como era abrir as portas doutro novo mundo de infiéis, onde o seu nome podia ser conhecido e louvado e as chagas de seu precioso filho, Cristo Jesu, recebidas per fé e bautismo, pera redenção de tantas mil almas como o Demónio naquelas partes da Infidelidade imperava. Pera gratificação da qual mercê, que tinha recebida de Deus, e porque o seu povo se gloriasse nela, escreveu a todalas cidades e vilas notáveis do reino, notificando-lhe a chegada de Dom Vasco da Gama e os grandes trabalhos que tinha passado e o que aprouve a Nosso Senhor que no fim deles descobrisse, encomendando-lhe que solenizassem tamanha mercê como este reino tinha recebido de Deus, com muitas procissões e festas espirituais em seu louvor. E como nos tais ajuntamentos sempre concorrem diversos pareceres em tam novos casos, leixando aqueles que perderam pai, irmão, filho ou parente nesta viagem, cuja dor não leixava julgar a verdade do caso, toda a outra gente a ua voz era no louvor deste descobrimento, quando viam neste reino pimenta, cravo, canela, aljofre e pedraria, que os nossos trouxeram, 180 como mostra das riquezas daquela oriental parte que descobriram, lembrando-lhe quam espantados os fazia algua destas cousas, que as galés de Veneza traziam 170 a este reino. As quais práticas todas se convertiam em louvores del-Rei, dizendo que ele era o mais bem afortunado rei da Cristandade, pois nos primeiros dous anos de seu reinado descobrira maior estado à Coroa deste reino, do que era o património que com ele herdara - cousa que Deus não concedera a nenhum príncipe de Espanha, nem a seus antecessores que nisso bem trabalharam per discurso de tantos anos. Nem se achava escritura de gregos, romanos, ou dalgua outra nação, que contasse tamanho feito, como era três navios com obra de cento e sessenta homens, quási todos doentes de novas doenças de que muitos faleceram, com a mudança de tam vários climas per que passaram, diferença dos mantimentos que comiam, mares perigosos que navegavam e com fome, sede, frio e temor, que mais atormenta que todalas outras necessidades, obrar neles tanto a virtude da constância e preceito de seu Rei que, propostas todas estas cousas, navegaram três mil e tantas léguas, e contenderam com três ou quatro reis tam diferentes em lei, costumes e linguagem, sempre com vitória de todalas indústrias e enganos da guerra que lhe fizeram. Por razão das quais cousas, posto que muito se devesse ao esforço de tal capitão e vassalos como el-Rei mandara, mais se havia de atribuir à boa fortuna deste seu Rei; porque não era em poder ou saber de homens tam grande e tam nova cousa como eles acabaram. El-Rei de todas estas práticas e louvores do caso era sabedor, porque naqueles dias não se falava em outra cousa, que era para ele dobrado contentamento, saber quam pronta estava a vontade de seu povo pera prosseguir esta conquista. E porque pela informação que tinha da navegação daquelas partes, o principal tempo era partir daqui em Março, e por ser já muito curto 55 pera no seguinte do ano de mil quinhentos se fazer prestes a armada, teve logo conselhos no modo que se teria nesta conquista; ca, segundo o negócio ficava suspeitoso polas cousas que Dom Vasco da Gama passara, parecia que mais havia de obrar neles temor de armas, que amor de boas obras.

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Finalmente, assentou el-Rei que, enquanto o negócio de si não dava outro conselho, o mais seguro e melhor era ir logo poder de naus e gente, porque nesta primeira vista que sua armada desse àquelas partes, que já ao tempo de sua chegada toda a terra havia de estar posta em armas contra ela, convinha mostrar-se mui poderosa em armas, e em gente luzida. Das quais duas cousas os moradores daquelas partes podiam conjecturar, que o reino de Portugal era mui poderoso pera prosseguir esta impresa; e a outra, vendo gente luzida, a riqueza dele, e quam proveitoso lhe seria terem sua amizade. E não somente se assentou no conselho o número das naus e gente de armas que havia de ir nesta armada, mas ainda o capitão-mor dela, que 181 por as calidades de sua pessoa, foi escolhido 171 Pedrálvares Cabral, filho de Fernão Cabral. Chegado o tempo que as naus estavam prestes pera poderem partir, foi el-Rei, que então estava em Lisboa, um domingo, oito dias de Março, do ano de mil e quinhentos, com toda a Corte ouvir missa a Nossa Senhora de Belém, que é em Rastelo, onde já as naus estavam com seu alardo da gente de armas feito. Na qual missa houve sermão, que fez Dom Diogo Ortiz, Bispo de Ceuta, que depois foi de Viseu, todo fundado sobre o argumento desta impresa, estando no altar, enquanto se disse a missa, arvorada ua bandeira da cruz da Ordem da Cavalaria de Cristo, que no fim da missa o mesmo Bispo benzeu, e desi el-Rei a entregou a Pedrálvares Cabral com aquela solenidade de palavras que os tais autos requerem, ao qual, enquanto se disse a missa, el-Rei, por honra do cargo que levava, teve consigo dentro na cortina. Acabado este auto, assi como estava arvorada, com ua solene procissão de relíquias e cruzes, foi levada aquela bandeira, sinal de nossas espirituais e temporais vitórias, a qual el-Rei acompanhou té Pedrálvares com seus capitães na praia lhe beijarem a mão e espedirem dele. A qual espedida geralmente a todos foi de grande contemplação, porque a maior parte do povo de Lisboa, por ser dia de festa e mais tam celebrada per el-Rei, cobria aquelas praias e campos de Belém, e muitos, em batéis que rodeavam as naus, levando uns, trazendo outros, assi serviam todos com suas librés e bandeiras de cores diversas, que não parecia mar, mas um campo de flores, com a frol daquela mancebia juvenil que embarcava. E o que mais levantava o espírito destas cousas, eram as trombetas, atabaques, cestros, tambores, frautas, pandeiros e até gaitas cuja ventura foi andar em os campos no apascentar dos gados, naquele dia tomaram posse de ir sobre as águas salgadas do mar, nesta e outras armadas que depois a seguiram, porque pera viagem de tanto tempo tudo os homens buscavam pera tirar a tristeza do mar. Com as quais diferenças que a vista e ouvidos sentiam, o coração de todos estava entre prazer e lágrimas, por esta ser a mais fermosa e poderosa armada que té aquele tempo pera tam longe deste reino partira. A qual armada era de treze velas, entre naus, navios e caravelas, cujos capitães eram estes: Pedrálvares Cabral, capitão-mor; Sancho de Toar, filho de Martim Fernandes de Toar; Simão de Miranda, filho de Diogo de Azevedo; Aires Gomes da Silva, filho de Pero da Silva; Vasco de Taíde e Pero de Taíde, de alcunha Inferno; Nicolau Coelho, que fora com Vasco da Gama; Bartolomeu Dias, o que descobriu o Cabo de Boa Esperança, e seu irmão Pero Dias; Nuno Leitão, Gaspar de Lemos, Luís Pires e Simão de Pina. Seria o número da gente que ia nesta frota, entre mareantes e homens de armas, até mil e duzentas pessoas, toda gente escolhida, limpa, bem armada e provida pera tam comprida viage. E além 172 das armas materiais que cada um levava pera seu uso, mandava el-Rei outras espirituais, que eram oito frades da Ordem de São Francisco, de que era guardião Frei Hanrique, 182 que depois foi Bispo de Ceuta e confessor del-Rei, barão de vida mui religiosa e de grã prudência, com mais oito capelães e um vigairo pera administrar em terra os sacramentos na fortaleza que el-Rei mandava fazer, todos barões escolhidos pera aquela obra evangélica. E a principal cousa do regimento que Pedrálvares levava, era: primeiro que cometesse os mouros e gente idólatra daquelas

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partes com o gládio material e secular, leixasse a estes sacerdotes e religiosos usar do seu espiritual, que era denunciar-lhes 55v o Evangelho, com amoestações e requerimentos da parte da Igreja Romana, pedindo-lhe que leixassem suas idolatrias, diabólicos ritos e costumes, e se convertessem à Fé de Cristo, pera todos sermos unidos e ajuntados em caridade de lei e amor, pois todos éramos obra de um Criador e remidos per um Redentor, que era este Cristo Jesu, prometido per profetas e esperado per patriarcas tantos mil anos ante que viesse. Pera o qual caso lhe trouxessem todalas razões naturais e legais, usando daquelas cerimónias que o direito canónico dispõe. E quando fossem tam contumaces que não aceitassem esta lei de fé e negassem a lei de paz que se deve ter entre os homens pera conservação da espécie humana, e defendessem o comércio e comutação, que é o meio per que se concilia e trata a paz e amor entre todolos homens, por este comércio ser o fundamento de toda a humana polícia, peró que os contratantes diferam em lei e crença de verdade que cada um é obrigado ter e crer de Deus, em tal caso lhe pusessem ferro e fogo e lhe fizessem crua guerra. E de todas estas cousas levava mui copiosos regimentos.

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172 55v 182 Capítulo II. Como, partido Pedrálvares, teve um temporal na paragem do Cabo Verde, e seguindo sua derrota, descobriu a grande terra a que comumente chamamos Brasil, à qual ele pôs nome Santa Cruz. E como ante de chegar a Moçambique passou um temporal, em que perdeu quatro velas. Ao seguinte dia, que eram nove do mês de Março, desferindo suas velas, que estavam a pique, saiu Pedrálvares com toda a frota, fazendo sua viagem às Ilhas do Cabo Verde, pera i fazer aguada, onde chegou em treze dias. Peró, ante de tomar este cabo, sendo entre estas ilhas, lhe deu um tempo que lhe fez perder de sua companha o navio de que era capitão Luís Pires, o qual se tornou a Lisboa. Junta a frota depois que passou o temporal, por fugir da terra de Guiné, onde as calmarias 183 lhe podiam 173 empedir seu caminho, empegou-se muito no mar, por lhe ficar seguro poder dobrar o Cabo de Boa Esperança. E havendo já um mês que ia naquela grã volta, quando veo à segunda oitava da Páscoa, que eram vinte quatro de Abril, foi dar em outra costa de terra firme, a qual, segundo a estimação dos pilotos, lhe pareceu que podia distar pera Loeste da costa de Guiné quatrocentos cinquenta léguas, e em altura do Polo Antártico, da parte do Sul, dez graus. A qual terra estavam os homens tam crentes em não haver algua firme ocidental a toda a costa de África, que os mais dos pilotos se afirmavam ser algua grande ilha, assi como as Terceiras, e as que se acharam per Cristóvão Colom, que eram de Castela, a que os castelhanos comumente chamam Antilhas. E por se afirmar no certo se era ilha ou terra firme, foi cortando ao longo dela todo um dia, e onde lhe pareceu mais azada pera poder ancorar, mandou lançar um batel fora. O qual, tanto que foi com terra, viram ao longo da praia muita gente nua, não preta e de cabelo torcido, como a de Guiné, mas toda de cor baça e de cabelo comprido e corredio, e a figura do rostro cousa mui nova. Porque era tam amassado e sem a comum semelhança da outra gente que tinham visto, que se tornaram logo os do batel a dar razão do que viram, e que o porto lhe parecia bom surgidouro. Pedrálvares, por haver notícia da terra, encaminhou ao porto com toda a frota, mandando ao batel que se chegasse bem a terra e trabalhasse por haver à mão algua pessoa das que viram, sem os amedrontar com algum tiro que os fizesse acolher. Mas eles não esperaram por isso, porque, como viram que a frota se vinha contra eles e que o batel tornava outra vez à praia, fugiram dela e poseram-se em um teso soberbo, todos apinhoados a ver o que os nossos faziam. Os do batel, enquanto Pedrálvares surgia um pouco largo do porto, por não amedrontar aquela nova gente mais do que o mostrava em se acolher ao teso, poseram-se debaixo no mesmo batel e começou um negro grumete falar a língua de Guiné, e outros que sabiam alguas palavras do arávigo, mas eles nem à língua nem aos acenos em que a natureza foi comum a todalas gentes nunca acudiram. Vendo os do batel que nem 56 aos acenos nem às cousas que lhe lançaram na praia acudiam, cansados de esperar algum sinal de intendimento deles, tornaram-se a Pedrálvares, contando o que viram. Tendo ele determinado ao outro dia de mandar lançar mais batéis e gente fora, saltou aquela noite tanto tempo com eles, que lhe conveo levar as âncoras, e correram contra o Sul, sempre ao longo da costa, por lhe ser per

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aquele rumo o vento largo, té que chegaram a um porto de mui bom surgidoiro, que os segurou do tempo que levavam, ao qual por esta razão Pedrálvares pos o nome que ora tem, que é Porto Seguro. Ao outro dia, como a gente da terra houve vista da frota, posto que toda aquela fosse ua, parece que permetiu Deus não ser 174 esta tam esquiva 184 como a primeira, segundo logo veremos. E porque em a quarta parte da escritura da nossa conquista, a qual, como no princípio dissemos, se chama Santa Cruz, e o princípio dela começa neste descobrimento, lá fazemos mais particular menção desta chegada de Pedrálvares e assi do sítio e cousas da terra, ao presente basta saber que, ao segundo dia da chegada, que era Domingo de Páscoa, ele, Pedrálvares, saiu em terra com a maior parte da gente e ao pé de ua grande árvore se armou um altar, em o qual disse missa cantada Frei Hanrique, guardião dos religiosos, e houve pregação. E naquela bárbara terra, nunca trilhada de povo cristão, aprouve a Nosso Senhor, per os méritos daquele santo sacrifício, memória de nossa Redenção, ser louvado e glorificado, não somente daquele povo fiel da armada, mas ainda do pagão da terra, o qual podemos crer estar ainda na lei da natureza. Com o qual logo Deus obrou suas misericórdias, dando-lhe notícia de si naquele santíssimo sacramento, porque todos se punham em giolhos, usando dos autos que viam fazer aos nossos, como se teveram notícia da Divindade a que se humildavam. E ao sermão esteveram mui prontos, mostrando terem contentamento na paciência e quietação que tinham, por seguir o que viam fazer aos nossos, que foi causa de maior contemplação e devação, vendo quam oferecido estava aquele povo pagão a receber doutrina de sua salvação, se ali houvera pessoa que os podera entender. Pedrálvares, vendo que, por razão de sua viagem, outra cousa não podia fazer, dali espediu um navio - capitão Gaspar de Lemos - com nova pera el-Rei Dom Manuel do que tinha descoberto, o qual navio com sua chegada deu muito prazer a el-Rei e a todo o reino, assi por saber da boa viagem que a frota levava, como pola terra que descobrira. Passados alguns dias, enquanto o tempo não servia e fizeram sua aguada, quando veo a três de Maio que Pedrálvares se quis partir, por dar nome àquela terra per ele novamente achada, mandou arvorar ua cruz mui grande no mais alto lugar de ua árvore, e ao pé dela se disse missa. A qual foi posta com solenidade de bênções dos sacerdotes, dando este nome à terra - Santa Cruz. Quási como que por reverência do sacrifício que se celebrou ao pé daquela árvore e sinal que se nela arvorou com tantas bênções e orações, ficava toda aquela terra dedicada a Deus, onde ele por sua misericórdia haveria por bem ser adorado per culto de católico povo, posto que ao presente tam sáfaro dele estevesse aquele gentio. E como primícias desta esperança, dalguns degredados que iam na armada, leixou Pedrálvares ali dous, um dos quais veo depois a este reino e servia de língua naquelas partes, como veremos em seu lugar. Per o qual nome Santa Cruz foi aquela terra nomeada os primeiros anos; e a cruz arvorada alguns durou naquele lugar. 175 Porém como o Demónio per o sinal da cruz perdeu o domínio que tinha sobre nós, mediante a paixão 185 de Cristo Jesu consumada nela, tanto que daquela terra começou de vir o pau vermelho chamado brasil, trabalhou que este nome ficasse na boca do povo e que se perdesse o de Santa Cruz. Como que importava mais o nome de um pau que tinge panos, que daquele pau que deu tintura a todolos sacramentos per que somos salvos, per o sangue de Cristo Jesu que nele foi derramado. E pois em outra cousa nesta parte me não posso vingar do Demónio, amoesto da parte da cruz de Cristo Jesu e todolos que este lugar lerem, que dem a esta terra o nome que com tanta solenidade lhe foi posto, sob pena de a mesma Cruz que nos há-de ser mostrada no dia final, os acusar de mais devotos do

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pau brasil que dela. E por honra de tam grande terra chamemos-lhe província e digamos a Província de Santa Cruz, que soa melhor entre prudentes que Brasil, posto per vulgo sem consideração e não habilitado pera dar nome às propriedades da Real Coroa. Tornando a Pedrálvares 56v que se partiu do Porto Seguro, daquela Província Santa Cruz, sendo ele na grande travessa que há entre aquela terra de Santa Cruz ao Cabo de Boa Esperança, aos doze dias do mês de Maio apareceu no ar ua grande cometa com um raio que demorava contra o Cabo de Boa Esperança, a qual foi vista per todolos da armada per espaço de oito dias, sem se mover daquele lugar; parece que pronosticava o triste caso que logo viram. Porque como desapareceu, ao seguinte dia, que foram vinte três de Maio, depois do meio-dia, indo a frota já do dia passado com um mar grosso empolado como que vinha feito de longe, armou-se contra o Norte um negrume no ar a que os marinheiros de Guiné chamam bulcão, com o qual acalmou o vento, como que aquele negrume o sorvera todo em si, pera depois lançar o fôlego mais furioso. A qual cousa logo se viu rompendo em um instante tam furiosamente, que sem dar tempo a que se mareassem as velas, sessobrou quatro, de que estes eram os capitães: Aires Gomes da Silva, Simão de Pina, Vasco de Taíde e Bartolomeu Dias. O qual, tendo passado tantos perigos de mar nos descobrimentos que fez, e principalmente no Cabo de Boa Esperança (como atrás contamos), esta fúria de vento deu fim a ele e aos outros, metendo-os no abismo da grandeza daquele Mar Oceano, que naquele dia encetou em nós, dando ceva de corpos humanos aos pexes daqueles mares, os quais corpos podemos crer serem os primeiros, pois o foram em aquela incógnita navegação. Posto que o auto deste ímpeto do vento foi a todos a cousa mais espantosa que quantas tinham visto, por se verem uns aos outros junta e tam miseravelmente perder; muito mais temeroso lhe pareceu verem sobre si ua escuríssima noite que a negridão do tempo derramou sobre aquela região do ar, de maneira 176 que uns aos outros não se podiam ver, e com o assoprar do vento muito menos ouvir. Somente sentiam que o ímpeto dos mares às vezes punha as naus tanto no cume das ondas, que parecia que as lançava fora de si na região do ar, e logo subitamente as queria sorver e ir enterrar no abismo da terra. Finalmente, assi cortou o temor destas cousas o ânimo de todos, que no geral da gente não havia mais que o nome de 186 Jesu, o de sua Madre, pedindo perdão de seus pecados, que é a última palavra daqueles que tem a morte presente. E como as naus com a fúria do mar e fraqueza dos mareantes andavam à vontade das ondas, sem acudir a leme, as quais com aqueles ímpetos muitas vezes parecia cortarem pelo ar e não pela água, ajuntou-se a nau de Simão de Miranda com a de Pedrálvares, e quis a piadade de Deus que a mesma fúria dos mares que as ajuntava, quando veo ao segundo movimento, furtou-se cada ua pera sua parte, com que ficaram livres daquele grande perigo. Peró nem por isso elas e as outras escaparam de muita fortuna em que cada dia se lhe representava a morte, per espaço de vinte dias que correram a árvore seca, sem neste tempo darem mais vela que cinco vezes cometerem meter algum bolso pequeno, mas o vento não consentia ante si cousa que o impedisse. E porque cada um per si passou tanto trabalho, que daria muitos anos em o escrever, e muito maior a quem o houvesse de ouvir, se particularizássemos os passos dele, basta saber que, de toda esta frota, Pedrálvares se achou, a dezasseis dias de Julho, no parcel de Sofala, com seis velas, tam desaparelhadas de mastos, vergas, velas e enxárcea, que mais estavam pera se tornar a este reino, se fora perto dele, que ir avante a conquistar os alheos. E ainda que a gente português naturalmente é sofredor e mui paciente em trabalhos, e nos casos de tanto perigo e necessidade se sabe bem animar, como, nesta primeira mostra de boa ventura que à Índia iam buscar, à vista de seus olhos perderam parentes e amigos, era tamanha confusão em toda a gente, não costumada a navegar, que per toda a nau de Pedrálvares se apartavam os homens uns com outros, principalmente a gente comum, tratando de dúvidas e inconvenientes de prosseguir aquele caminho. A qual cousa sentindo Pedrálvares, com palavra e favor no que podia, animava e confortava a todos, té que o

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tempo cessou e lhe trouxe cousa ante os olhos que os alvoroçou, perdendo da memória o temor passado. Porque, sendo tanto avante como as ilhas a que ora chamam as Primeiras, houveram vista de duas naus que lhe ficavam entre elas e a terra, as quais vendo tamanha frota, começaram de se coser com terra pera tomar algum porto. Pedrálvares, quando entendeu que o temor lhe fazia tomar aquele caminho, mandou a elas e não poderam os nossos navios fazer isto tam prestes, 57 que quando chegaram já 177 ua tinha dado consigo em terra e a gente estava posta em salvo, e a outra foi tomada. Na qual acharam um mouro que deu razão a Pedrálvares que o temor dele os fizera varar em seco, e que daquelas duas naus vinha por capitão um mouro principal, chamado Xeque Foteima, que era tio del-Rei de Melinde, qual viera a Sofala 187 fazer resgate com fazenda que trouxera naquelas duas naus, e que se tornava pera Melinde. Sabendo Pedrálvares vir ali pessoa tam principal, o mandou segurar, e veo a ele Xeque Foteima, homem de idade e que em sua presença representava quem ele disse ser, ao qual Pedrálvares fez honra e gasalhado por ser tio del-Rei de Melinde, de quem Dom Vasco da Gama, quando per ali passou, tinha recebido o gasalhado, que atrás vimos. E peró que ele confessasse vir da mina de Sofala, como todos eram ciosos dela, não descobriu o que se depois soube per outros, nem menos Pedrálvares lhe quis sobre isso fazer muitas perguntas, por lhe não dar mais suspeita, antes, dando-lhe alguas cousas, o espediu de si com palavras de que foi contente, e muito mais espantado, vendo quam bom tratamento lhe fizeram os nossos, tendo per aquela costa entre os mouros fama de mui cruéis, e que não perdoavam à fazenda nem às pessoas. Tornado Xeque Foteima a sua nau a se ajuntar com a outra, seguiu Pedrálvares seu caminho, té chegar a Moçambique, a vinte dias de Julho, onde foi mui bem recebido da gente da terra, por quanto dano que tinham feito a Dom Vasco da Gama, e assi do que dele receberam estavam tam temorizados de lhe sobrevir outro maior, que mostraram grande prazer com sua chegada. E em seis dias que Pedrálvares ali esteve se repairou do dano que lhe a tormenta fez nas cousas da mareagem e houve piloto mais facilmente do que se deu a Dom Vasco da Gama, quando per ali passou.

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177 57 187 Capítulo III. Como Pedrálvares Cabral se viu com el-Rei de Quíloa e do pouco que acabou com ele; e depois foi ter a Melinde, onde el-Rei o recebeu com muito prazer, e di se partiu pera a Índia. Partido Pedrálvares de Moçambique com as seis velas que lhe ficaram, veo sempre ao longo da costa com resguardo de não escorrer a cidade Quíloa, onde chegou a vinte seis de Julho. Na qual reinava um mouro per nome Habrahemo, que per aquela costa era homem mui estimado, e a cidade ua das mais antiguas que se ali fundaram (da qual ao diante faremos maior relação); o qual, polo trato de Sofala estar muito tempo debaixo de sua mão, se tinha feito rico e poderoso, e com ele mandava el-Rei a Pedrálvares que se visse e assentasse paz, e sobre isso lhe trazia cartas. Surto ele diante da cidade, mandou em 178 um batel Afonso Furtado, que ia por escrivão da feitoria que se havia de fazer em Sofala, com recado a 188 el-Rei, fazendo-lhe saber como el-Rei de Portugal, seu senhor, lhe mandava que chegasse àquele seu porto e lhe desse certos recados, que lhe pedia houvesse por bem que se vissem ambos. Ao que el-Rei respondeu com palavras de contentamento de sua chegada; e, quanto a se verem ambos, ele era contente, e pera isso podia sair em terra quando mandasse; e com este recado lhe enviou refresco de carneiros e outros mantimentos da terra, pedindo-lhe perdão por o tomar em tempo que ela estava um pouco seca e mal provida pera tal pessoa. Pedrálvares, com os agradecimentos do presente e retorno dalguas cousas do reino, lhe mandou dizer que, quanto a ele sair em terra pera se verem, o regimento del-Rei, seu senhor, lho defendia, e somente lhe era concedido sair em terra pera dar ua batalha a quem não aceitasse sua amizade. Porém por honra de um tal príncipe como ele era, o mais que faria naquele caso de se verem ambos, seria ele, Pedrálvares, sair da sua nau em algum navio ou batel, e que ele se podia meter em um zambuco, e que defronte da cidade, no mar, se veriam. El-Rei, vendo este recado, per espaço de dous dias andou pairando com cautelas e modos pera escusar esta vista; mas, porque os recados e réplicas de Pedrálvares o apretaram muito, concedeu nisso, mais 57v com temor, que com boa vontade. E o dia que havia de ser quis ele mostrar o aparato de seu estado, vindo em dous zambucos junto um ao outro com a princial gente; e o outro povo comum nos outros zambucos o acompanhavam, mas não que ele se afastasse da terra. Pedrálvares também em seus batéis embandeirados, e gente vestida de louçainha e, ao longo das tostes dos batéis, resguardo de armas, chegou a el-Rei, onde cessou o estrondo das trombetas e atabales e começaram entrar na prática, depois que se trataram as cortesias e cerimónias da primeira vista. E porque Pedrálvares gastou muitas razões acerca de contentamento que el-Rei, seu senhor, teria em ele aceitar as cousas da nossa fé, leixou el-Rei de responder a em que lhe apontou acerca do trato de Sofala, e tomou argumento pera se espedir delas, dizendo que estas cousas, por serem novas e fora do costume e crença em que ele e todolos seus naturais se criaram, compria, pera poder responder a elas, ter mais tempo do que ambos ali tinham, e mais, sendo de qualidade pera se haverem de comunicar com os principais de seu conselho, a maior parte dos quais não era presente, que lhe pedia que por aquele dia houvesse por bem ser gastado em se ambos verem, e ele poder dizer, per si, o contentamento que tinha de el-Rei de Portugal folgar de o ter por servidor. E com estas palavras concertando que di a dous dias daria reposta do mais, se espediram ambos.

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El-Rei, quando veo ao outro dia, por mostrar 179 que estava contente da prática, mandou muito mais refresco da terra, e soltou que alguns mouros 189 viessem vender às naus mantimentos, e isto mais em modo de espiar o número da nossa gente e poder que traziam, que a outro algum fim. Pedrálvares, como entendeu neles ao que vinham, mandou a todolos capitães que tevessem suas naus como homens que estavam a ponto de sair em terra cada hora que lho mandassem; e que aqueles mouros tudo vissem armas, porém que fossem bem tratados, e no modo de comprar e vender se houvessem liberalmente com eles, porque esta maneira tinha com aqueles que vinham a sua nau. E ainda pera os mais segurar, se entre os que vinham vender mantimentos acertava de virem alguns que pareciam homens honrados, dava-lhe alguas peças com que iam contentes, mas não convertidos de seu mau propósito; porque mais podia o ódio que nos tinham, que os dões que lhe davam. Finalmente, em três dias que Pedrálvares ali esteve depois das vistas, nunca pôde haver del-Rei conclusão algua, e tudo eram escusas - que os principais homens de seu conselho eram idos a ua guerra que tinha com os cafres; que, como viessem, tomaria determinação nas cousas em que praticaram; que lhe pedia e rogava muito que se não agastasse, porque não podiam tardar, por os ter já mandados vir. Porém nestes dias todo seu cuidado era meter muita gente dos cafres dentro consigo e repairar a cidade, como quem esperava de a defender, e que este havia de ser o fim de sua reposta, das quais cousas Pedrálvares era avisado. Porque acertou de estar ali com ua nau fazendo mercadorias um mouro chamado Xeque Homar, irmão del-Rei de Melinde, o qual era presente às amizades que Dom Vasco da Gama assentou com seu irmão, quando passou por Melinde, e daqui ficou tanto nosso amigo, e mais vendo o poder da nossa armada, que foi Pedrálvares avisado per ele do que passava dentro. E mais houve-lhe secretamente algua água, a qual el-Rei tinha prometido; e depois, indo os nossos por ela, acharam os calões, que são uns vasos de barro em que os da terra a traziam, todos quebrados e água vertida à borda da praia, dizendo ser isto feito per um mouro chamado Habraemo, meio sandeu. Pedrálvares, quando per derradeiro viu que este negócio não se podia determinar senão com sair em terra, posto o caso em conselho, assentou-se nele ser grande inconveniente, por castigar a maldade daquele mouro, aventurar gente em tam baixo emprego, e que era mais serviço del-Rei seguirem sua viagem e leixar este castigo pera outro tempo. Posto que a Pedrálvares fosse grande tormento leixar aquele mouro sem castigo, teve mais conta com seguir o principal intento a que era mandado àquelas partes, que a sua paixão. e sem lhe mais mandar algum recado, ao terceiro dia das vistas, partiu-se pera Melinde, onde chegou a dous dias de Agosto e foi mui bem 180 recebido 190 e festejado del-Rei. Porque, além da amizade que connosco tinha, dobrou esta boa vontade a nova que lhe deu Xeque Foteima da honra que lhe Pedrálvares fizera, e a razão porquê. E mais com a nossa armada ficou 58 mui favorecido, porque, polo gasalhado que fizera a Dom Vasco da Gama, el-Rei de Mombaça estava com ele em guerra de fogo e sangue, em que ele tinha perdido muita gente e fazenda, por el-Rei de Mombaça ser mais poderoso do que ele era. E ainda por não pubricar tanto a amizade que tinha connosco, escondeu o padrão de mámore que Dom Vasco da Gama ali leixara metido (como atrás fica), porque, indo João de Sá com um recado a ele de Pedrálvares, no primeiro dia da chegada, como homem que fora ali com Dom Vasco da Gama, a primeira cousa por que lhe preguntou foi polo padrão, dizendo que o não via onde ele o ajudara meter. Ao que el-Rei respondeu que ele o tinha mui bem guardado em ua casa; e tomando João de Sá pela mão o levou a casa onde o tinha, almagradas as armas de fresco, como que havia algum dia que fora feito, pera

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quando lhe fosse pedido conta dele o mostrar assi, como cousa tida em veneração, dando-lhe por desculpa que, enquanto o tevera no lugar púbrico onde se ele meteu, foi tam perseguido del-Rei de Mombaça, fazendo-lhe crua guerra, que lhe conveo mandá-lo esconder naquela casa por conselho de seus vassalos, com esperança de vir aquela armada del-Rei de Portugal e lhe fazer queixume daquele mau vezinho, que tanto dano lhe tinha feito, tudo por ser leal amigo aos portugueses. Tornado João de Sá com recado a Pedrálvares, e sobre ele enviados per el-Rei dous homens principais com presente de refresco, ao seguinte dia mandou Pedrálvares ao feitor Aires Correa bem acompanhado com as cousas que levava pera este Rei, levando diante do presente muitas trombetas. O qual presente el-Rei mandou receber com grã solenidade, porque ao batel donde Aires Correa desembarcou vieram dos mais principais homens que el-Rei tinha, e com muita honra e festa o foram acompanhando, té o presentarem ante el-Rei. E em todalas ruas per onde ia estavam às portas perfumes cheirosos, mostrando todo o povo em seu modo tanto contentamento, como se aquela festa fosse feita ao próprio senhor da terra, tanto estimou el-Rei aquela lembrança e conta que se com ele tevera. E foi tamanho o seu contentamento, depois que leu a carta que lhe el-Rei escrevia (a qual era em arábio), que não consentiu que Aires Correa se tornasse à nau, e mandou dizer a Pedrálvares que lhe pedia houvesse por bem que Aires Correa ficasse lá aquela noite e ao dia seguinte, pera praticar nas cousas del-Rei de Portugal. Que pera segurança da pessoa de Aires Correa lá ficar, ele mandava a Sua Mercê o anel do seu sinete, onde estava toda a verdade real, posto que bem tinha mostrado sua fé nos trabalhos de guerra que 181 el-Rei de Mombaça lhe fazia, por ser leal amigo e servidor 191 del-Rei de Portugal. O qual rogo lhe Pedrálvares concedeu polo comprazer, e também porque na prática que Aires Correa com ele tevesse, pois havia de ser comprida, o confirmasse mais no amor e lealdade que mostrava ter ao serviço del-Rei, seu senhor. E assi foi, porque logo assentou como se ambos vissem no mar ao modo que se vira com el-Rei de Quíloa, o que ele fez sem as cautelas que o outro teve. Na qual vista houve grandes confirmações de paz e ofertas del-Rei, dizendo ele que todo seu estado e pessoa daquele dia pera sempre ele o submetia à vontade del-Rei de Portugal, como do mais poderoso príncipe da terra. E per espaço de dous dias que depois desta visitação Pedrálvares ali esteve, sempre de ua e outra parte houve recados e obras de grande amizade. Neste lugar leixou Pedrálvares dous degredados dos que levava, e a causa de os aqui lançar, era porque lhe mandava el-Rei Dom Manuel que, como fosse nesta costa, leixasse nela alguns dos degredados que levava pera irem per terra descobrir o Preste João, por ter já sabido que per esta costa podiam ir ao interior da terra daquele sertão onde ele tinha seu estado. Isto com grandes promessas de mercê, se descobrissem este príncipe tam desejado. Um havia nome João Machado e o outro Luís de Moura; mas eles tomaram outro caminho, como veremos em seu lugar. E o que João Machado fez foi de mais serviço del-Rei naquele tempo, que este do Preste que lhe mandavam fazer. Pedrálvares, leixando a estes dous homens a provisão pera sua despesa e cartas del-Rei Dom Manuel pera o Preste, espediu-se del-Rei de Melinde, o qual lhe deu dous pilotos guzarates pera o levarem à Índia, pera onde partiu a sete de Agosto.

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181 58v 191 Capítulo IV. Como Pedrálvares chegou à Ilha de Anchediva onde esteve alguns dias reparando-se do necessário, e di chegou a Calecute, onde por recados que teve com el-Rei, concertaram ambos que se vissem. Atravessando Pedrálvares Cabral aquele grande golfão de mar de setecentas léguas que pode haver de Melinde, que é na costa da terra de África, à costa da Índia, chegou a vinte três dias de Agosto, béspora de São Bartolomeu, à Ilha Anchediva, de que atrás fizemos menção, onde esteve quinze dias repairando as naus e provendo-se de água e lenha, principalmente também por esperar a passagem dalguas naus de Meca, que com a mesma necessidade e por melhor navegação sempre iam 192 demandar aquela ilha; das quais naus muitas eram já passadas e alguas estavam em Calecute, onde Pedrálvares as achou, e outras per esses portos de Malabar, 182 fazendo seus proveitos. E os dias que esteve nesta ilha, os gentios da terra lhe traziam mantimento e fructa da terra, folgando ter a comunicação dos nossos, porque, como era gente pobre e por qualquer cousa que traziam lhe davam muito, acudiam tantos, que os haviam já por importunos. Muitos dos quais, quando os nossos ouviam missa e receberam o sacramento da comunhão, estavam a estes ofícios com atenção; mas como os religiosos e sacerdotes da armada, a quem pertencia a conversão deles, não sabiam a língua da terra, que era o principal instrumento pera vir a efeito a boa disposição que neles estava, não se pôde por então mais fazer que prepará-los com boas obras, pera quando a oportunidade do tempo desse a isso lugar. Pedrálvares, partido dali, via de Calecute, chegou ao seu porto a treze de Setembro, onde logo, ante de surgir, foram de redor dele muitos barcos da terra, todos como gente que mostrava contentamento de sua chegada, e sobre eles veo um zambuco em que vinha um mercador guzarate, homem em seu trajo e presença de autoridade, que da parte del-Rei visitou Pedrálvares. O qual ele recebeu e espediu com gasalhado, mandando a el-Rei as graças de sua visitação, e ao mouro satisfez com alguas peças, por ser costume da terra partirem os mensageiros contentes da pessoa a que levam os tais recados. E como esta visitação foi ante de ele, Pedrálvares, mandar salvar a cidade, além de as naus chegarem muito embandeiradas, e per seu costume na chegada de tal porto tiravam algua artelharia, aqui mandou dobrar a fúria dela, mostrando-se tudo por festa da visitação del-Rei. A trovoada da qual, não somente avorreceu ao mouro que foi com a visitação, por a levar toda nas costas, astrogindo-lhe as orelhas, mas ainda na cidade fez tamanho espanto, que, estando a praia coberta do povo na vista das naus, desempararam tudo, recolhendo-se muito dele a suas casas. Passado aquele dia, que todo se despendeu em amarrar as naus e aperceber pera a segurança delas, quando veo ao outro dia, mandou Pedrálvares recado a el-Rei per João de Sá, que sabia a terra, por ser um daqueles que foram com Dom Vasco da Gama, e com ele ua língua do arávigo, pedindo-lhe dia pera lhe mandar certos recados que trazia del-Rei de Portugal, seu senhor, e isto té se ambos verem. Ao que el-Rei respondeu com boas palavras; e quanto ao dia pera ouvir novas del-Rei de Portugal, não podia mandar este recado tam cedo, que não fosse tarde para ele, segundo o desejo que tinha de ouvir novas de sua disposição. Pedrálvares, sem cautela algua de reféns por não mostrar desconfiança del-Rei, ao outro dia enviou a ele Aires Correa, e Afonso Furtado e João de Sá que o acompanhavam, e por língua Gaspar da Índia. Per o qual Aires Correa lhe enviou dizer,que a principal cousa que o trazia àquele seu porto mais que a outro dalgum rei ou príncipe da

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Índia, era o que já per 183 outro capitão del-Rei, seu senhor, tinha sabido: - ser 193 o seu nome tam celebrado nas partes ocidentais da Cristandade, que, desejando el-Rei de Portugal, seu senhor, ter com ele amizade e comunicação per trato de comércio, mandara a ele um capitão seu, chamado Vasco da Gama. Ao qual ele agalardoou com honra e mercê, somente por lhe levar tam boa nova, como era ter achado caminho pera se comunicar com ele, Samori. Da qual nova procedera mandar logo fazer ua armada de treze naus com que ele, Pedrálvares, partira 59 de Portugal, das quais no caminho tinha perdido cinco com um grande temporal que lhe dera. E pois ele, louvado Deus, com aquelas poucas era chegado ante aquela sua real cidade, que era o lugar onde el-Rei, seu senhor, o enviava, sobre esta amizade e comércio que dezia - e isto eram cousas de calidade que requeriam verem-se ambos - pedia a sua Real Senhoria ordenasse como e quando podia ser. As quais vistas fossem de maneira que pudesse ele comprir o que lhe el-Rei, seu senhor, mandava, que era em nenhum modo sair em terra; e, quando se não podesse al fazer, fosse em parte tam pegada no mar e com tantos reféns, que não dezia a pessoa dele próprio, capitão, mas o mais pequeno homem que viesse naquela armada estevesse mui seguro, e isto em Calecute, onde sabia haver mouros que procuravam traições aos seus. Porém, pera castigar aos mesmos mouros quando comprisse, não dezia ele por os péis em terra , mas que per todalas partes os perseguisse a força de ferro. El-Rei a este recado que lhe levou Aires Correa, toda a conclusão dele foi responder com palavras do contentamento da chegada dele, capitão; e que, como ele estevesse em disposição pera se verem, tudo se faria no melhor modo que podesse ser. Peró Pedrálvares, como já sabia que a maneira de negociar del-Rei, naquelas cousas que ele não fazia de boa vontade, tudo eram dilações, começou logo com outros recados apertar que se vissem. O qual, posto que não podia sofrer dar os reféns que lhe Pedrálvares pedia, e toda sua escusa era serem homens velhos e da geração dos brâmanes, os quais, por razão de sua religião, não podiam comer nem dormir senão em sua própria casa, e, quando se tocavam com gente fora de sua geração, tinham suas purificações e cerimónias de que não podiam usar, estando no mar, todavia houve de conceder em os dar, e assi no modo das vistas como Pedrálvares quis, porque o temor da gente, naus e artelharia que via ante si, lhe fizeram comprir o que negava per vontade. E este modo e lugar foi em um cerame que estava sobre o mar, que como um eirado coberto, armado sobre madeira muito bem lavrada, onde os Reis por seu passatempo e recreação às vezes vinham dar ua vista 194 ao mar. O qual cerame el-Rei mandou aparamentar de panos de seda, segundo o uso que eles tem nestes autos de vistas com pessoas de estado, e tudo mandou fazer 184 de maneira que parecesse vir ele àquele lugar, mais por seu prazer e por folgar de ouvir aquela embaixada, que por outro algum temor. Pedrálvares também, por mais segurar el-Rei e não serem aquelas vistas com tanta desconfiança, que pera conciliar e adquerir amizade era cousa prejudicial, não quis que tudo fossem cautelas, e mais porque nelas mostrava temor. E como nesta segurança de que ele quis usar o maior risco era sua fazenda, e não em cousas de que podesse dar conta que tevera pouco resguardo em se confiar, no tempo que andaram estes recados de suas vistas, depois que assentou com el-Rei onde haviam de ser, mandou-lhe pedir ua casa junto daquele seu cerame, onde mandasse levar algum fato seu pera estar aí esses dias que a prática dentre eles durasse, por não ir e vir tantas vezes ao mar. A qual casa lhe foi dada; e a primeira cousa que Pedrálvares mandou levar a ela, foi a sua prata e cousas do serviço de sua pessoa, quási a vista de todos, porque soubesse el-Rei que, como homem confiado, mandava aquelas cousas, e também que eram sinal que fazia tanto fundamento da terra

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como do mar, posto que no modo de se verem e reféns que pediu mostrava algua desconfiança. Vindo o dia destas vistas, escolheu Pedrálvares pera levar consigo os capitães e pessoas notáveis, leixando porém alguns com cuidado do que havia de fazer, quando algum caso não esperado sobreviesse. E estava assi ordenado que, em Pedrálvares abalando das naus pera terra, de lá haviam de vir os arreféns, de maneira que, quando eles entrassem em as naus, ele chegasse ao cerame. Os quais em número eram seis, todos apontados per Aires Correa per rol que de cá do reino levava, per indústria de Monçaide, por estes serem dos principais da terra, segundo também confirmaram os gentios que Dom Vasco da Gama consigo trouxe, os quais Pedrálvares levou pera lá darem nova da grandeza de Lisboa e tráfego das mercadorias e naus que a ela concorriam. E um destes arreféns era o Catual que tanto trabalho deu a Dom Vasco da Gama (como dissemos atrás); e os dous mais principais, ambos oficiais da fazenda del-Rei, haviam nome Peringora Raxemenoca, todos homens já de dias e mui religiosos na sua gentilidade.

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184 59v 195 Capítulo V. Como passaram as vistas entre el-Rei e Pedrálvares Cabral e a represária que per fim delas houve de ua parte a outra, por razão de uns arreféns; e per derradeiro concertados saiu Aires Correa em terra a fazer negócio. Como estas vistas que Pedrálvares tinha assentado com o Samori, eram ua mostra per que se podia julgar a polícia e riqueza deste reino, mandou aos que estavam apontados pera sair em terra com ele, que 185 se vestissem e atabiassem do seu e do emprestado o melhor que pudessem. O que todos fizeram à compitência de quem levaria mais seda e mais jóias, e nos batéis cada capitão mais bandeiras, com todolos instrumentos de tanger, sem tiro algum de artelharia, por não assombrar aquela gente no auto de tanta festa. E ele, Pedrálvares, ia vestido com ua opa de brocado e o mais que dezia com ela, trajo que naquele tempo era mui usado neste reino. Chegado com esta pompa à praia, porque não podia sair a pé enxuto, foi levado em colos de homens em um andor dos da terra, té o meterem entre os principais do gentio que o Samori mandou que o viessem receber à praia: o qual Samori estava já no cerame em vista dele, esperando que viesse. E posto que ele, Samori, não tinha tanto pano, seda, ouro e opa de brocado como os nossos levavam, e um pano de algodão bornido com uas rosas de ouro de pão semeadas por ele, a que chamam puravá (trajo de brâmanes), cobria seus coiros, entre baços e pretos, a pedraria das orelheiras, barrete da cabeça, pateca cengida e braceletes dos braços e pernas, eram estas cousas de tam grande estima que não haviam enveja às jóias dos nossos. Finalmente naquele estado em que ele estava, assi em coiros e descalço, e fora daquelas oparlandas de muito pano que cá usamos em seu modo cercado daqueles seus vassalos, ele representava bem a dinidade real que tinha. Ao qual chegando Pedrálvares, ele se levantou em pé de ua cadeira em que estava, chapada de ouro com algua pedraria, e o veo receber, fazendo-lhe muito acatamento té o lugar onde se assentaram. E passadas as cerimónias da primeira vista, deu-lhe Pedrálvares a carta que levava del-Rei Dom Manuel. O Samori, depois que lha interpretaram do arávigo em que ia escrita, disse a Pedrálvares que per aquela carta del-Rei de Portugal tinha entendido sua boa vontade, e como ele, capitão, era enviado àquele seu porto pera tratar cousas de paz e amizade com ele e assi do comércio das especearias; e que acerca destas e outras cousas que ele, capitão, trazia em sua memória, lhe podia dar 196 fé, e por todas serem da vontade dele mesmo, Rei, seu senhor, ele podia praticar em alguas ou ficassem pera outro dia, se lhe a ele bem parecesse. Pedrálvares, por estar avisado que todo este gentio é sujeito a muitos agoiros, e, se atravessa ua gralha ou qualquer cousa que se lhe antolha, leixa tudo, dizendo que não é boa hora pera negócio, principalmente quando lhe a eles não contenta, e sobre isso são mui taxados na prática, receando que lhe podia isto acontecer, em breves palavras disse que a causa de sua vinda, e com quantas naus partira deste reino e as que perdera, e a mercê que el-Rei fizera a Dom Vasco da Gama por descobrir aquele caminho. Finalmente que aquelas naus vinham ali a dous fins: o primeiro pera que se ele, Samori, 186 tevesse algua necessidade de gente ou armas pera defensão de seu reino, que el-Rei, seu senhor, mandava que lhas oferecesse; o segundo fim era pera as carregar de especearia, pera compra da qual trazia ouro, prata e muitas mercadorias de toda a sorte que naquelas partes serviam. E porque ele, Pedrálvares, tinha sabido que Sua Real Senhoria estava em paz com seus vezinhos, cessava a

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primeira causa da vinda das naus, e ele, Samori, ficava na obrigação da segunda, pois já lhe era manifesto per duas armadas que el-Rei Dom Manuel tinha mandado àquele seu porto, quanto nisso podia despender, tudo afim de querer ter amizade e comércio com ele. Portanto lhe pedia por mercê que ordenasse como lhe fossem dadas as casas que lhe já dissera Aires Correa, pera ele, feitor, se vir a elas com os oficiais da fazenda del-Rei e trazerem as mercadorias que vinham em as naus pera aquele mister; do qual negócio 60 Aires Correa, depois que estevessem em terra, daria razão aos seus oficiais, pera eles sobre isso fazerem conta das especearias que haveriam mister pera a carga. Que, quanto ao preço, ele não queria novidade, somente dar e receber segundo costume da terra, conformando-se com os mercadores de Meca que ali eram mais continos. El-Rei a estas palavras respondeu com outras mais ao propósito do que ele desejava que a conclusão do que Pedrálvares lhe requeria, resumindo-se nisto: que a casa que pedia ele a tinha mandado despejar, e por já ser tarde e os homens que lhe mandara à nau em reféns eram velhos e debilitados e não podiam comer segundo sua lei e costume, té serem limpos do tocamento que teveram com gente fora de sua geração, por esta ser ua das principais partes de sua religião, lhe rogava que os mandasse logo vir. Acerca dos quais reféns por que Pedrálvares dilatava sua vinda, ensistiu el-Rei tanto que viessem, que lhe não valeu dizer que em nenhua maneira podiam vir, senão indo ele mesmo, Pedrálvares, a isso, porque os capitães tinham consagrado em sua lei, ainda que fossem recados seus, não os darem, senão depois que vissem a sua pessoa dentro em as naus. Da qual perfia conveo a Pedrálvares 197 por ver el-Rei meo arrufado e se espedir sem algua conclusão, recolher-se em os batéis em que veo, dizendo que ele os mandava logo, parecendo-lhe que todo este apertar del-Rei era mais por razão das cerimónias gentílicas de que eles são mui religiosos, que por outra algua maldade. Mas segundo se logo viu, eles pretendiam mais engano que religião, e parece que assi o tinham os reféns ordenado com el-Rei, que quási per fim da prática, tempo em que os das naus algum tanto se podiam descuidar deles, se lançassem ao mar e se salvassem em os barcos da terra, os quais pera isso andariam derredor das naus. E desta feita, ainda que lhe não ficasse em terra mais presa que a fazenda do capitão que lá estava e os homens da guarda dela, bastava 187 pera fazerem suas cousas mais a sua vontade. E tudo isto eram indústrias dos mouros. O qual negócio como o tinham assentado assi foi, porque quási no tempo que el-Rei se espedia de Pedrálvares, os reféns se lançaram todos ao mar, de que três se salvaram e outros três foram tomados; o que Pedrálvares muito sentiu quando chegou à nau e o soube, porque já aquele modo de paz eram começos de guerra. E temendo que fizessem os três que ficavam outro tanto, por os ter mais seguros e menos mimosos, foram metidos no baixo da bomba, com homens que estevessem com eles, té el-Rei fazer razão de si dos homens e fazenda que ele, Pedrálvares, mandara a terra. E como ele a este tempo andava quartanário, com estes desconcertos del-Rei vinham-lhe dobradas as sezões, lembrando-lhe os trabalhos que passara no mar e quanto maiores tinha por diante na terra. Sobre o qual negócio, por ficar daquela maneira desatado com el-Rei, teve conselho com os capitães da armada, no qual conselho assentaram que per espaço de dous dias não se movessem nem mandassem recado algum a el-Rei, porque nisto lhe davam mais em que cuidar, e entretanto se ordenassem como se ao outro dia houvessem de sair em terra a destruir a cidade, porque as cousas que o ódio nega o temor as concede. Parece que ou este modo de conselho aproveitou, ou que el-Rei se arrependeu do que fez, e também podia ter outro conselho com os gentios que desejavam tanto nossa amizade, quanto a estrovavam os mouros: porque, quando veo ao segundo dia, mandou dizer a Pedrálvares que ele estava um pouco descontente do dia em que se viram passarem alguas cousas de que lhe parecia ele, capitão, poder ter algum desprazer, portanto lhe pedia que ambos se tornassem a ver naquele lugar,

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e que não houvesse cautelas de reféns, por não haver azo de paixões, que procediam de homens fracos e temerosos de se ver sujeitos, sendo livres. Assentada esta vista, foi naquele lugar do cerame entre o Samori e Pedrálvares jurada a paz, e disso se passaram seus pactos e fizeram contratos da especearia; com a qual paz e concerto Pedrálvares mandou logo a Aires 198 Correa que se fosse aposentar nas casas que el-Rei mandou dar junto da praia, levando consigo, não somente os oficiais da feitoria e sessenta homens que lhe Pedrálvares ordenou pera lá estarem com ele, mas ainda Frei Hanrique com os seus religiosos pera entenderem na prática e conversão da gente, atentando este negócio com grande prudência, por não mover algum escândalo entre gente tam sáfara do 60v nome de Cristo e tam costumada a seus ritos e diabólicos usos, e sobre tudo induzidos contra nós per todolos mouros. E como todos esteveram em terra, que uns e outros vinham à casa da feitoria, Aires Correa tinha cuidado do que pertencia a seu ofício e Frei Hanrique, como carecia do principal instrumento, que era língua malabar, não podia usar do 188 seu tam liberalmente como quisera, posto que à casa concorria muita gente. Porém todo este concurso de ir e vir à feitoria, mais era a ver que a comprar, nem receber doutrina, de maneira que se Frei Hanrique tinha pouco que fazer, Aires Correa menos. Nem os nossos que tinham licença pera andarem pela cidade tam cautelosamente se haviam com eles, que não achavam quem lhe quisesse vender mais pimenta pubricamente que pera comer um pouco de pescado, e se algua cousa haviam, era do gentio, que o não vissem os mouros. Os quais mouros (principalmente os estrangeiros de Meca), assi tinham tecido as cousas contra nós, que, começando Aires Correa a praticar com os oficiais que lhe o Samori ordenou pera darem a especearia com que se haviam de carregar as naus, começaram eles mais descobertamente mostrar quanto engano neles havia, buscando escusas por dilatar a carga e gastar o tempo da partida dos nossos. Pedrálvares, como cada hora lhe vinham recados de Aires Correa, destes modos e escusas que tinham com ele, as quais sabia procederem mais dos oficiais del-Rei, por serem peitados dos mouros, que da vontade dele, Samori, (como aconteceu a Dom Vasco da Gama), determinou de lho mandar dizer per o mesmo Aires Correa, pera melhor relatar o que faziam com ele. Entre os quais queixumes era que seus oficiais, por comprazer aos mouros, lhe não davam carga, e secretamente de noite a davam às naus de Meca que ali estavam, a qual cousa ele não podia crer ser mandado por ele, Samori, porque as palavras de um tal príncipe nam podiam desfalecer, e mais quando estavam obrigadas a juramento como ele tinha obrigado as suas a dar carga às suas naus e não às de Meca. El-Rei, como já tinha facilidade com Aires Correa por as vezes que foi a ele, por meio de Gaspar da Índia, que era o intérprete, se começou desculpar, dizendo que os mercadores da pimenta não a tinham ainda recolhida da mão dos lavradores por ser um pouco cedo, ca eram costumados andar neste recolhimento com a monção das naus de Meca e não com as nossas, e algua pouca com que ele, Aires Correa, tinha já quási carregado duas naus (segundo lhe os seus oficiais disseram), esta era pimenta velha que ficara do ano passado, e não se podia mais fazer, segundo lhe deziam os oficiais seus, a que tinha encomendado este seu despacho. 199 Aires Correa, como todalas palavras del-Rei eram desculpas e a soma e conclusão delas acabava dizendo que se não podia mais fazer, desta e doutras vezes que lá foi sobre o mesmo caso não vinha contente dele; e quem lhe fazia ter maior escândalo del-Rei e o mais indinava sobre este caso eram paixões e compitências que entre si traziam dous mouros que se mostravam grandes amigos dele, Aires Correa, e o caso era este:

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189 60v 199 Capítulo VI. Das paixões e compitências que havia entre dous mouros principais de Calecute, donde se causou os nossos irem tomar ua nau carregada de elefantes, que vinham de Cochi; e do que nisso passou. Havia nesta cidade de Calecute dous mouros, homens mui principais: a um chamavam Coje Bequi, e a outro Coge Cemeceri; este tinha o governo das cousas do mar e o outro das da terra. E como entre os governadores de ua mesma cidade, pela maior parte, se acham envejas e paixões de jurdição, entre estes dous, peró que se falassem e tratassem por razão dos ofícios, havia no peito de cada um ódio mortal, e com a vinda dos nossos se acrescentou mais. Porque Aires Correa, depois que esteve em terra, por achar em Coge Bequi, em cujas casas ele pousava, mais verdade que no outro, folgava de o favorecer, o que Coje Cemeceri sofria mui mal, porque sentia que com esta amizade seu imigo recebia mais honra e algum proveito que o mais magoava. A qual dor o fazia trabalhar que não se desse carga às nossas naus, e ainda sobreveo cousa com que lhe pareceu que o seu desejo haveria melhor efeito. E o caso foi este: Soube 61 ele que de Cochi, ua cidade obra de vinte léguas dali, era saída ua nau, a qual vinha da Ilha Ceilão e trazia sete elefantes que levava por mercadoria ao reino de Cambaia, e era de dous mercadores do mesmo Cochi, a que chamavam Mamale Mercar e Cherina Mercar. Esta nau como havia de passar à vista das nossas, pareceu-lhe que com ela podia executar seu ódio à nossa custa. Porque, per qualquer via que travassem com ela, por ser nau mui poderosa de até seiscentos tonéis, receberiam os nossos muito dano, e quando o ela recebesse, ficavam em ódio com os mercadores de Cochi e de toda aquela costa, com que não achassem acolheita em porto algum. Com a qual tenção foi-se a Aires Correa e, simulando que lhe fazia nisto serviço, disse-lhe como ele tinha recado que do porto de Coulão partira ua nau, a qual vinha carregada de toda sorte de especearia, que bem poderia carregar duas das nossas, e ia pera Meca, e de caminho havia de tomar algum gengivre em Cananor. E por quanto a maior parte desta fazenda era 200 de mercadores de Meca, de quem ele tinha recebido certas ofensas e o Samori desserviços, lhe confessava que teria contentamento de a tomarem, e o Samori folgaria muito com isso, principalmente por nela ir um elefante que o mesmo Samori muito desejava, o qual lhe não quiseram vender e o levavam pera baldear em Cambaia. E como isto eram apetites de príncipes e também haviam por afronta das terras de sua jurdição levarem pera outras algua cousa em seu desprazer, e mais desejando-a ele verdadeiramente, podia ele, Aires 190 Correa, crer, se ordenasse como o Samori houvesse aquele elefante, daria por ele carga de pimenta a duas naus. E que deste aviso que lhe dava ua só mercê queria dele - que lhe mantivesse segredo, porque naquela cidade de Calecute havia alguns mercadores que tinham trato com estes de Meca, e, sabendo como sua mercê era sabedor desta nau, lhe mandariam aviso com que se salvasse. E também não os queria ter por imigos, sabendo ser ele o autor disso; e que desta verdade que lhe descobria não dava mais penhor de ser assi, senão a mesma nau que seria ali ante de dous dias, como veria se a mandasse vigiar; e ainda teve tal modo que fez com o Samori que mandasse um recado a ele, Aires Correa, sobre este elefante, dizendo quanto contentamento teria de o haver. Aires Correa, porque este mouro desejava de se meter com ele e sentia que as paixões dantre ele e Coge Bequi era grande parte favorecer mais ao outro que a ele, creu verdadeiramente

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que descobrir-lhe a vinda desta nau tirava a duas cousas: a se vingar dos mercadores de Meca, com que tinha paixões, e a se congraçar com ele, pera fazer seus negócios, e com o Samori, por causa do elefante. Do qual caso foi logo dar conta a Pedrálvares, dando-lhe aviso que o guardasse em segredo, té o dia que o mouro dezia que a nau seria ali. Pedrálvares, por as razões que lhe Aires Correa deu, bem lhe pareceu que o mouro tirava àqueles dous fins: a se vingar de seus imigos e a lhe darem por este aviso algua cousa, e mais haver mercê do Samori, tomando-se o elefante, cousa que ele tanto desejava; do qual Samori sobre o mesmo elefante teve outro recado, que fez acreditar mais as palavras de Coge Cemeceri. Vindo este dia em que se a nau esperava, mandou Pedrálvares ter vigia no mar, parecendo-lhe que se ela soubesse estarem ali, per ventura passaria tanto a la mar da nossa armada que não fosse vista. Mas como ela era inocente desta trama que tinha urdido Coge Cemeceri, e também confiada em sua grandeza e na gente que trazia, ou per qualquer causa outra que fosse, não quis perder seu caminho e começou aparecer vindo ao longo da costa, de maneira que, amparando com a nossa frota, ficasse entre ela e a terra. Pedrálvares, porque tinha já dado o cuidado de a ir demandar a Pero de Taíde, capitão do navio São Pedro, tanto que foi vista, meteram-se com 201 ele Vasco da Silveira, Duarte Pacheco Pereira, João de Sá, que fora com Dom Vasco da Gama, e outras pessoas de calidade que Pedrálvares escolheu, e foram a ela. A nau, como entendeu que a iam demandar, porque vinha já emparando quási com as nossas, começou de se meter mais na terra, na volta de Cananor, porque tinha aviso de Coge Cemeceri, que tecia este negócio, que indo alguns nossos navios demandá-la, se metesse em Cananor, ca ele por amor de Mamale Mercar e Cherina Mercar, que eram seus amigos, mandaria 191 recado a Cananor que se metesse algua gente dentro pera a defenderem. E como tinha enviado este aviso à nau, assi mandou recado a certos mouros estantes em 61v Cananor, que lhe pedia em toda maneira, chegando a nau àquele porto, de noite, secretamente lhe metessem a mais gente que podesse, que ele pagaria a despesa que se nisso fizesse, porque mais devia a Mamale Mercar e a Cherina Mercar, cuja ela era. A nau, vendo que somente um navio a ia demandar, fez tam pouca conta dele, que mais se alvoroçou pera o meter no fundo, que temeu poder receber dano dele; e toda ia em cantares e tangeres, sem dar por Pero de Taíde que lhe mandava que amainasse, quási como quem o não tinha em conta. Porém depois que o navio a salvou com ua bombarda grossa ao lume de água, e per cima a varejou com a artelharia meúda, não somente os pelouros lhe fizeram muito dano, mas ainda as rachas que levaram em sua passagem feriram muitos homens, com que ela começou de se acolher ao abrigo da terra, leixando ela também em o nosso navio, perpassando per ele, ua grossa chuva de setas e alguns pelouros de uas bombardas de ferro, que feriram e encravaram dos nossos. Pero de Taíde, quando viu que tam cedo lhe não convinha achegar-se muito a ela, di té Cananor, onde se foi meter quási sobre a noite, sempre a foi servindo já com mais fúria polo dano que recebeu dela. A qual, metida dentro em a concha de Cananor, entre quatro naus que i estavam, não a quis Pero de Taíde mais afrontar, té saber de Pedrálvares se havia por bem que a tomasse dentro naquele porto, por ser del-Rei de Cananor, do qual tinham sabido desejar nossa amizade e per ventura haveria por injúria ser tomada no seu porto. Pedrálvares, como de noite houve este recado per um toné da terra que Pero de Taíde a grã pressa mandou, respondeu-lhe que não leixassem de a tomar, porque, depois de a terem em poder, aí lhe ficava lugar pera fazerem qualquer comprimento com el-Rei de Cananor. Pero de Taíde, como teve este recado de noite, ordenou-se pera o outro dia pelejar com ela, mas teve nisso pouco que fazer; porque, como do dia de ante muita gente da que ela trazia foi ferida e morta, de noite todolos feridos e parte dos sãos se acolheram a terra. E os que Coge Cemeceri mandava meter nela, vendo como estes saíam bem feridos, não quiseram ir tomar experiência

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doutro tal dano; e per este modo os nossos foram senhores da nau sem afronta, porque ainda alguns poucos que ficavam se renderam sem ela. 202 Tirada esta nau do porto de Cananor, foi levada a Pedrálvares, que a recebeu com muito prazer, por não ser tam custosa de sangue como esperava. E o que deu maior prazer à gente comum, foi um novo mantimento que ali comeram, que foi carne de elefante, porque com artelharia um dos sete que a nau levava foi morto, e como a gente 192 estava desejosa de carne fresca, esta se repartia per todalas naus. Pedrálvares, vendo como era falso a nau levar especearia e tudo se converteu naqueles sete elefantes, ficou muito descontente, e mais quando soube não ser fazenda dos mouros de Meca, senão de dous mercadores de Cochi, como atrás dissemos. E porque não respondia a carga da nau com as informações que Aires Correa tinha per Coge Cemeceri, e em seus modos o tinham por homem falso, sentiu que tudo isto eram indústrias suas, a fim que toda a terra estevesse mal connosco, posto que não soubesse os artefícios que pera isto teve, e avisou a Aires Correa que não confiasse mais de suas palavras. E se a tomada desta nau não servia à malícia de Coge Cemeceri, servia pera temorizar aos mouros de Calecute e ao Samori, o qual com esses mais principais, quando viram a grandeza da nau e souberam a gente que trazia, comparando isto ao navio São Pedro, que seria de até cem tonéis, ficaram mui assombrados e sem esperança de nos poderem ofender per guerra. E serviu também pera se ganhar amizade com el-Rei de Cochi, ordenando ele, Coge Cemeceri, de meter em ódio os nossos per toda aquela costa. Porque, sabendo Pedrálvares ser a nau daqueles mercadores de Cochi, mandou chamar o capitão dela, pedindo-lhe perdão do dano que era feito, porque sua tenção, quando mandara ir sobre ela, foi por lhe dizerem alguas pessoas de Calecute que era nau dos mouros de Meca, com os quais os portugueses tinham guerra. Que, em ser feito aquele dano, ele, capitão, tinha a culpa, porque, se dissera donde e cuja era a nau, quando lhe foi perguntado, não recebera algum mal. Mas pois o caso era feito, aí não havia mais que tornar-lhe a entregar sua nau, pera fazer embora sua viagem; porque as cousas del-Rei de Cochi, onde quer que as achasse, sempre dele receberiam boas obras, por a fama que tinha ser mais verdadeiro príncipe daquela terra. E que, se lhe comprisse 62 algua cousa pera sua viagem, ele folgaria de o favorecer. Com as quais palavras o capitão se lançou a seus péis, e confessou ele ser o culpado; e com mercê que lhe Pedrálvares fez dalguas cousas, se espediu, contente dele.

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193 62 203 Capítulo VII. Como por causa de ua nau dos mouros que os nossos tomaram, a qual estava no porto de Calecute, cuidando estar carregada de pimenta, saltou todo o gentio da cidade com o favor dos mouros e mataram Aires Correa, na casa da feitoria, com a maior parte dos que estavam com ele; e do que Pedrálvares sobre isso fez. Pedrálvares, porque eram já passados três meses de sua chegada àquele porto, e não tinha havido carga mais que pera duas naus e cada quintal de especearia lhe custava ua quartãa dobrada, por os vagares e artifício com que se havia das mãos daqueles oficiais, a que o Samori tinha mandado que o despachassem, e sentia claramente que tudo isto faziam os mouros, principalmente Coge Cemeceri, mandou-se gravemente aqueixar a el-Rei per Aires Correa. E porque desta vez que Aires Correa lá foi, repetiu muitas vezes que os mouros davam carga de noite às naus de Meca que estavam naquele porto, viu-se o Samori tam apertado dele, que lhe disse que, se ele tinha por certo que os mouros davam de noite carga às naus de Meca, que a mandasse o Capitão-mor tomar, porque ele dava pera isso licença, e que per aqui compria com o Capitão-mor, nos queixumes que lhe mandava fazer de seus oficiais. Porque, se assi era que eles davam azo a que os mouros carregassem de noite, os mouros perderiam a pimenta que tinham carregada e seus oficiais haveriam bom castigo; e com isto espediu Aires Correa. O qual, como andava cheo desta presunção - que as naus de Meca que estavam no porto tinham carga de pimenta - não cuidou que na licença que levava del-Rei tinha pouco despacho. Do qual caso foi logo dar conta a Pedrálvares, e assentou com ele que ao seguinte dia, que eram dezasseis de Novembro, dessem, em rompendo alva, os batéis em ua nau que havia suspeita estar carregada, e achando-lhe pimenta, a tirassem do porto e levassem a bordo das naus pera a baldear nelas, com fundamento de a pagarem a cuja fosse, sem embargo de lhe el-Rei dizer que a tomassem, por pena de ele ter mandado que, ante das nossas naus haverem carga, nenhua nau a tomasse. O qual negócio sucedeu mui mal, porque a nau estava carregada de mantimentos, e tudo foi indústria dos mouros, por indinarem a gente da terra contra nós, como fizeram. Ca não houve mais detença; que, entrados os nossos em a nau, como iam com aquele alvoroço de gente de guerra, e mais com ódio que tinham aos mouros, peró que não achassem pimenta, começaram de revolver a nau; da qual fugindo, os mouros que nela estavam deram rebate em terra, fazendo tamanho alvoroço na cidade, que começaram matar alguns dos que estavam com Aires Correa, os quais andavam seguros per ela. Aires 194 Correa, quando sentiu a revolta e viu vir um tropel de gente sobre alguns que se vinham amparando, acudiu a os recolher, já mui feridos 204 da multidão dos mouros e gentio que os perseguiam. Mas pouco aproveitou a eles e a ele, ante foi causa de o matarem mais cedo e a muitos dos que estavam com ele dentro das casas, porque entraram todos de envolta, sem lhe darem tempo de se poder entreter com as portas fechadas, té que das naus lhe acudissem, posto que no alto da casa foi per um dos nossos arvorada ua bandeira, que era sinal de haverem mister socorro. Pedrálvares a este tempo estava com a sezão das quartãas, e quando lhe disseram que nas casas da feitoria era arvorada bandeira e que havia gente derredor delas, pareceu-lhe que seria algum arroído dos nossos; e como a cousa particular mandou dous batéis com gente que acudissem. Peró, depois que lhe disseram que as casas estavam todas cercadas e que isto parecia furor do povo,

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a grã pressa mandou os capitães com todolos batéis e a mais gente que podesse levar. Mas foi a tempo que já nas casas não havia vivo nenhum dos nossos, e alguns que se quiseram acolher ao mar, vinham os mouros e gentios às 62v frechadas e lançadas pola praia, sem lhe darem tempo pera embarcar. E ainda pera se melhor vingarem deles, os mouros que ordenaram esta maldade a noite passada teveram esta indústria: mandaram fazer a praia em montes de area e covas donde tiraram os montes; porque, querendo-se os nossos acolher aos batéis, quando viessem trás eles, isto lhe fosse empedimento pera se não recolher tam prestes, e entretanto os matariam às frechadas. Neste recolhimento de tanto trabalho escapou Frei Hanrique com alguas feridas pelas costas, o qual, como puríssimo religioso que era, as recebeu em lugar de martírio, e assi escaparam quatro frades dos seus. Nuno Leitão, capitão do navio Nunciada, vendo vir António Correa, filho de Aires Correa, moço de até doze anos, do qual por sua pouca idade os mouros não faziam conta, meteu-se em meio deles, e polo salvar às costas foi primeiro mui bem ferido. E posto que este cavaleiro Nuno Leitão (que depois alguns tempos serviu de almoxerife do almazém das armas) per si não vingasse este dano que aqui recebeu, António Correa o fez em mui honrados feitos nestas partes, em que também vingou a morte de seu pai. E certo que se o ímpeto com que os mouros e toda gente da cidade cometeu a casa, eles seguiram alguns dos nossos que teveram lugar pera vir buscar a praia, não escaparam obra de vinte pessoas de sessenta que eram em terra. Mas como toda a fúria parou em furtar a fazenda que Aires Correa lá tinha, teveram espaço pera escapulir da casa os que vieram demandar a praia, dos quais ainda alguns ficaram ali mortos e os outros mui mal feridos, e quatro ou cinco se esconderam em casa de Coge Bequi, nosso amigo. Quando 195 Pedrálvares viu ante si aquela gente tam mal ferida e soube 205 que tudo procedera da tomada da nau per conselho de Coge Cemeceri, e que ele acendera aquele fogo, havendo-se por agravado de Aires Correa, por alguas palavras que lhe disse sobre o engano da nau dos elefantes, disse àqueles capitães que eram presentes: - Louvado seja Deus, pois é mais poderoso pera vos destruir um amigo simulado, que um imigo descoberto! Aires Correa tinha por amigo aquele mouro Cemeceri e confiava em suas palavras, e eu descansava nas suas; e assi ele morreu desenganado já dele e eu moiro, porque enganei a muitos, parecendo-me que acertava em seguir seu parecer. Verdadeiramente, ainda que ele morreu como cavaleiro e os outros que com ele vão, e todos por servir el-Rei, nosso Senhor, acabaram em bom lugar, e eu lhe tenha mais enveja à sua morte do que se pode ter a estas minhas quartãas, todavia dera por ua hora de vida de Aires Correa dez anos da minha, somente pera o poder arguir em alguas cousas destas que eu adevinhei e me ele não cria. Porém, pois aprouve a Nosso Senhor que viéssemos a estar com este Samori em pior estado do que estávamos ao tempo de nossa chegada, tomemos este desastre à conta dos mortos, pois acabaram nele, e à nossa, por princípio de bom despacho, pois nos dá causa a não dissimular quantos enganos há três meses que sofremos. Finalmente, praticando Pedrálvares com os capitães o modo que haviam de ter pera tomarem conclusão com o Samori, depois que se trouxeram muitos inconvenientes de ua e doutra parte, assentaram que nenhum outro conselho era mais proveitoso que as armas; ca dissimular enganos, ainda que fizeram mal, não era tam manifesta injúria como morte de tanta gente. E vendo el-Rei e os da terra que não acudiam a isso com grande ímpeto de vingança, ante que arrefecesse o sangue daqueles que ali pereceram, haveriam serem eles homens que por injúrias faziam pouco e por cobiça muito. Porém aquele dia não podia ser e era mais proveitoso ser ao outro, por duas causas: a primeira por lhe darem azo a que se metesse algua gente em guarda das naus, e quanta mais fosse mais culpados haveriam castigo; e a segunda por lhe ficar o dia todo inteiro pera, depois de

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queimadas as naus, esbombardearam a cidade. Posto este conselho em obra, foram queimadas mais de quinze velas que estavam juntas no porto, em que entravam oito naus grossas, a maior parte das quais estavam carregadas de mantimentos daquela costa Malabar, em cuja entrada morreu muita gente que estava em guarda delas. Acabado este incêndio das naus, começou outro da nossa artelharia, que foi varejar a cidade, não fazendo aquele dia e o seguinte outra cousa, com que muita parte dela ficou danificada, e, segundo se depois soube em Cochi, assi desta artelharia como em as naus morreram mais de quinhentas pessoas.

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196 63 206 Capítulo VIII. Como Pedrálvares Cabral foi ter a Cochi, onde o Rei da terra lhe deu carga de especearia; e, estando já no fim dela, veo sobre ele ua grossa armada do Samori de Calecute, e o que nisso fez. Feito este estrago naqueles dous dias, quando veo o terceiro, mandou Pedrálvares que se não fizesse mais dano, dando aquele dia por trégua, parecendo-lhe que enviasse el-Rei algum recado; mas quando viu que estava mais indinado que arrependido do feito da morte de Aires Correa e dos que com ele morreram, fez-se à vela caminho de Cochi. O qual lugar é cabeça de um reino assi chamado, que está abaixo de Calecute contra o Sul pela mesma costa trinta léguas, e nele, segundo Gaspar da Índia afirmava a Pedrálvares, havia mais pimenta que em Calecute, posto que o Rei fosse menos poderoso e não tam rico como ele. E a causa era por em Cochi naquele tempo haver pouco trato e poucos mouros, que eram os que Pedrálvares mais receava, por danarem todas nossas cousas, do qual reino e assi dos outros desta costa Malabar, onde pelo tempo em diante fizemos fortalezas e tivemos comércio, em outra parte mais própria desta relação escrevemos particularmente. Posto Pedrálvares em caminho, via de Cochi, por esta informação que lhe Gaspar da Índia deu, topou duas naus que, segundo parecia e se depois soube, vinham do mesmo Cochi; e, dando-lhe caça, pera saber se eram de Calecute, foram-se meter no rio de Panane, doze léguas de Calecute, entre outras naus que aí estavam surtas, as quais ele leixou, temendo ser já aquele lugar del-Rei de Cochi, e, fazendo-lhe algum dano, podia fazer outro segundo escândalo, como fez na tomada da nau dos elefantes que Coge Cemeceri maliciosamente fez tomar. Com a qual cousa ele ia temeroso, parecendo-lhe ter nisso ofendido a el-Rei de Cochi, e, tomando estoutras, achá-lo-ia mais em termos de guerra que de paz. E se leixou estas, mais adiante na paragem de Cranganor tomou duas que vinham com mantimentos pera Calecute e, por saber per os mouros que as navegavam serem doutros da mesma cidade, com a qual ficava em ódio, as queimou. Chegado ao porto de Cochi, que seria dali cinco léguas, porque soube que el-Rei estava em ua povoação metida pelo rio acima, mandou a ele um brâmane dos daquela costa Malabar. O qual era de uns que tomam por religião andarem em penitência per todo o Mundo, nus, com uas cadeas de redor de si, cheos de bosta de vacas por mais desprezo de suas pessoas, e geralmente os que tomam esta vida, se são do género gentio, chamando-lhe 207 jogues, e se são mouros, calandares; do qual modo de religião escreveremos adiante, e principalmente em os livros da nossa 197 Geografia. Este, ou que o costume da vida de peregrinar per terras estranhas, ou que verdadeiramente o seu zelo era desejar salvação, estando Pedrálvares em Calecute no tempo que Frei Hanrique procurava a conversão dalguns gentios, veo-se a ele, dizendo que queria ser cristão e vir com ele pera este reino, ao qual deram bautismo e houve nome Miguel. El-Rei de Cochi, posto que já tivesse sabido muita parte das cousas que os nossos passaram em Calecute, e também estivesse informado per os dous irmãos cuja era a nau dos elefantes, do que Pedrálvares fez e disse ao seu capitão, além desta informação, obrou tanto o que Miguel disse, que houve el-Rei de Cochi que os mouros de Calecute, e o Samori em lho consentir, tinham feito grande traição contra os nossos e muito dano a si, por ser gente que ganhava mais em os ter por amigos que anojados. Finalmente, por esta razão e outras de paixões e diferenças que entre ele e o Samori havia,

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e principalmente por causas de seu proveito, que ele tenteou, houve que nenhua cousa fazia mais a seu propósito que dar carga de especearia às nossas naus, e estimou em muito irem ter a seu porto. Porque com isto fazia duas cousas: ganhar nossa amizade, pera nos ter contra o Samori, quando lhe comprisse, e a segunda que haveria das nossas mãos muitas e boas mercadorias e dinheiro em ouro (segundo lhe contava Miguel), que é o nervo que sustém os estados no tempo de sua necessidade. Consultado o qual negócio entre os seus, não somente este foi o parecer dos gentios, mas ainda dalguns mouros, principalmente dos 63v dous irmãos que tinham recebido aquela nau de Pedrálvares, que foi ua obra que muito ajudou a nosso despacho. Porque el-Rei grande parte dela pôs à sua conta, sabendo que Pedrálvares por sua causa a soltara, sendo tomada de boa guerra; e mais entre os mouros irmãos havia já presunção dos artefícios que sobre esta nau tivera Coge Cemeceri, quando souberam como em Cananor a sua própria custa mandara meter dentro nela gente pera a defender, não estando eles muito correntes na amizade. E conforme a esta determinação, trouxe Miguel reposta del-Rei a Pedrálvares, dizendo que sua vinda fosse mui boa e que lhe pesava muito dos danos e trabalhos que tinha recebido em Calecute; que verdadeiramente, se ele não fora enformado per pessoas dinas de fé que a culpa destas cousas procedera do Samori, ele posera muita dúvida em lhe dar acolheita naquele seu porto, quanto mais carga de especearia. Por esta ser a lei de boa vezinhança - acudir às injúrias dos vezinhos - e mais sendo feito per pessoas tam estranhas em religião, costumes e pátria, como eram os portugueses, à gente malabar. Mas como ele, Rei, ficava desobrigado deste adjutório ao Samori, por ser em causas contra a lei e verdade que se deve aos estrangeiros que trazem bem e proveito ao próprio reino, ele, Pedrálvares, 198 podia seguramente esperar dele tudo em que o podesse ajudar. Pedrálvares, porque esta entrada de boas palavras sempre a ouviu naqueles 208 reis com que tiveram prática, ensinado do fim que com eles teve usou com este dalguns resguardos sobre o negócio da carga da especearia. Porém não quis tratar com ele que se vissem, porque o tempo era mui breve pera se partir via deste reino, e eles nestas vistas serem mui supersticiosos acerca da eleição dos dias em que devem contratar. Assi que, por evitar estes inconvenientes com que podia perder muito tempo, veo logo com ele a conclusão de dar carga da especiaria que prometia. Finalmente, sem haver entre eles mais cautelas, mandou el-Rei quatro pessoas honradas da linhagem dos brâmanes por arreféns de nove pessoas que Pedrálvares mandou a terra pera feitorizar a carga: Gonçalo Gil Barbosa, pera feitor; Lourenço Moreno e Bastião Álvares, por seus escrivães, e Gonçalo Madeira, de Tânger, por língua; e os outros eram degredados e homens da feitoria. Porque era aquela gente malabar tam suspeitosa, que houve Pedrálvares por mais seguro mandar menos gente que mais. E aprouve a Deus que assi se contentaram eles dos nossos, que geralmente todos, assi os oficiais del-Rei, que eram gentios, como os mercadores mouros, andavam a quem daria melhor aviamento à carga. A qual cousa dava muito contentamento a Pedrálvares, posto que em algua maneira os arreféns lha entretinham por causa da sua religião, que não haviam de comer em a nau onde Pedrálvares os tinha, té virem a terra a se lavar do tocamento que tiveram com os nossos. E enquanto iam comer uns, vinham outros em seu lugar, cousa que atormentava muito a Pedrálvares, ver os vagares com que isto faziam. Contudo, em espaço de vinte dias aqui, em Cochi e no rio Cranganor, que será dali cinco léguas mais acima contra o Norte, carregaram todalas naus muita pimenta e alguas drogas, somente gengivre, que depois foram tomar a Cananor. E neste porto de Cranganor acharam os nossos que ali foram carregar muitos cristãos de São Tomé, por ele leixar naquele lugar alguas igrejas feitas no tempo que ali pregou o Evangelho, da qual denunciação e gente que converteu ali e em Coromandel, onde foi a principal habitação sua, adiante faremos relação, e principalmente em a nossa Geografia.

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Dos quais cristãos de Cranganor dous chamados Matias e Josepe, irmãos, segundo eles diziam, doutrinados per bispos arménios que ali residiam, quiseram vir com Pedrálvares a este reino pera passarem a Roma e di a Jerusalém e Arménia, a ver o seu Patriarca. Porém o Matias, depois de ser neste reino, faleceu, e Josepe foi ter a Roma e a Veneza, e do que lá disse da sua cristandade e costumes os italianos, que nisto são mais curiosos que nós, fizeram um sumário que está incorporado em um volume em língua latina, 209 intitulado 199 Novus Orbis, onde andam alguas das nossas navegações escritas não como elas merecem e o caso passou. Tornando à carga da especearia que os nossos faziam per modo tam pacífico, neste tempo correu por toda aquela costa Malabar nova da nossa armada e das cousas que passara em Calecute, a qual nova parece que não foi tanto em louvor do Samori como nosso, havendo todos que usara de traição 64 em mandar matar homens que debaixo da fé dele estavam em terra tratando em cousas do comércio e não de guerra, dizendo todos que mandara fazer tal insulto mais por lhe roubar a fazenda que tinham que por outra algua culpa. E porque (segundo dissemos) este Samori era como Emperador naquela região Malabar (de que ao diante mais particularmente diremos a causa) e os outros Reis vezinhos sofriam mui mal esta sua potência, principalmente el-Rei de Cochi, que demarcava com ele pela parte de baixo contra o Sul, e el-Rei de Cananor, pela de cima do Norte, desejavam todos sua destruição e haver aí causa pera isso. A potência do qual Samori como procedia do comércio das especearias que se faziam no seu porto de Calecute, e ele tinha modos de avocar a si todalas naus dos mouros que vinham àquele trato, do qual comércio estes outros Reis gostavam pouco, por isso, vendo as nossas naus na Índia, com a informação que tinham do proveito que delas podiam receber, e ódio em que os nossos estavam com o Samori, cada um desejava de os recolher pera si. Donde se causou que el-Rei de Cananor e os governadores de Coulão, reino que confina com Cochi, pela parte de baixo contra o Sul, mandaram seus mensageiros a Pedrálvares Cabral pedindo-lhe que quisesse ir a seus portos, porque eles lhe dariam toda a carga de especearia que houvesse mister. Aos quais ele respondeu, dando-lhe agardecimento daquela oferta e boa vontade que mostravam ter às cousas del-Rei de Portugal, seu senhor; e podiam ser certos que, vindo ele a Portugal, como esperava, o dito senhor lhe gratificaria aquele seu desejo, como eles veriam na primeira armada que ali tornasse. Que ao presente ele não podia tomar carga, pola ter já recebido del-Rei de Cochi, no qual achara muito gasalhado, muita verdade e poucas cautelas, o que não achara em Calecute, vindo ele primeiro àquele porto que a outro algum da Índia. Pola qual razão, e assi polo proveito que ele trazia, o Samori não devera tratar tanta traição como com ele usou, aconselhado da sua cobiça e da maldade dos mouros, as quais cousas, por serem mui pubricamente feitas, seriam notórias per toda a Índia, e por isso lhe não fazia relação do caso como passara. Somente ele, Capitão-mor, tomava por testemunha da sua inocência, acerca do que passaram em Calecute, o agasalhado que achara em el-Rei de Cochi e as ofertas que eles, príncipes, lhe mandavam fazer; porque nestes 200 claros e verdadeiros sinais se mostrava que as armadas del-Rei Dom Manuel, seu senhor, entraram naquela região da Índia com título de paz e comércio e não de guerra acerca dos príncipes e povo gentio 210 daquelas partes orientais. Porque, vendo-se ao diante outras armadas del-Rei, seu senhor, naquelas partes a tomar emenda da maldade que el-Rei de Calecute cometeu, que se soubesse ser ele a causa disso.

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Pedrálvares, posto que geralmente espediu estes mensageiros que a ele vieram, escusando-se de ir tomar a especearia que lhe vinham oferecer, todavia em particular mandou dizer a el-Rei de Cananor que de caminho ele passaria pelo seu porto e tomaria algum gengivre, que entre tanto lho mandasse ter prestes. Partidos estes mensageiros e Pedrálvares também em bésporas da sua partida, mandou-lhe el-Rei de Cochi dizer que ele tinha nova certa como de Calecute era partida ua grossa armada; que lho fazia saber polo não tomar descuidado, e também pera que tivesse tempo de recolher algua gente da que ele lhe oferecia; porque os seus naturais estavam tam satisfeitos e contentes do tratamento e modo dos portugueses, que com amor levemente se ofereciam a morte polos defender de seus imigos. O que Pedrálvares lhe mandou muito agradecer, dizendo mais que os portugueses eram tam costumados a pelejar com mouros e haver vitórias deles e dos enfiéis acerca de Deus e dos homens, que os não tinham em conta, ante se deleitavam na milícia deles. Portanto ele não tinha necessidade dos seus vassalos, e pola oferta deles beijava as mãos a sua Real Senhoria, como a um príncipe tam conjunto a el-Rei, seu senhor, per razão de paz e amor, como são aqueles que nas partes da Europa ele aceita por seus irmãos em armas, que é ser amigo dos amigos e imigo dos contrairos. E quanto aos seus naturais estarem prontos nesta ajuda que queriam dar aos portugueses, polo contentamento que tinham de suas pessoas, ele se não espantava disso, porque a lei de Deus era permetir que o coração leal e verdadeiro fosse pago com outro tal coração, quanto mais que toda esta boa vontade dos seus procedia da que eles viam ter a sua Real Senhoria às cousas del-Rei, 64v seu senhor. Que estas tais obras, ele, Pedrálvares, ao presente não era poderoso pera as poder pagar, somente em as levar na memória em mais estima que todas as riquezas da Índia, pera as representar a el-Rei, seu senhor. De quem ele podia esperar, tanto que em Portugal fosse, vir logo ua armada em seu favor contra o Samori e todolos seus imigos, por el-Rei, seu senhor, ser um príncipe mui agradecido de benefícios e muito temeroso quando era ofendido. Enviada esta resposta, quando veo ao seguinte dia a nove de Janeiro do ano de quinhentos e um, em se o sol pondo, ex-aqui começa de aparecer esta armada que el-Rei de Cochi dizia mais medonha em número 201 de velas que poderosa no ânimo de quem nela vinha, porque seriam até sessenta velas, de que vinte cinco eram naus grossas. A qual armada não vinha a fim de pelejar, somente mostrar-se, parecendo-lhe que, por ser grande número de velas, tanto 211 que fosse vista dos nossos, faria despejarem eles o porto, e vir-se caminho do reino sem carga de especearia, que era todo o intento dos mouros. Porque, além de tomarem o pouso tanto a-la-mar das nossas naus, que seria ua légua, quando veo de noite que Pedrálvares se fazia prestes pera ante menhã, com o terrenho, ir sobre eles, per vigia que eles tinham, teveram tal modo, que ficaram pegados com terra, onde Pedrálvares não podia ir, por lhe servir o vento mais ao mar que pera a terra. E ou que o terrenho o fez, ou estarem já com carga que haviam mister, ainda que Pedrálvares quisera ir aos imigos, ele o não podera fazer, porque a nau de Sancho de Toar ia muito na volta do mar; e como era das mais poderosas, e as outras também a seguiam, fez a Pedrálvares por a proa nelas, apanhando ua e ua, té se fazer em um corpo na volta de Cananor, ficando os imigos muito satisfeitos com os verem partir, em que mostraram não irem a outro efeito. Na qual partida quis Pedrálvares usar ante da prudência e cautelas de capitão, que do ofício de cavaleiro que ele era, temendo que, se cometera os imigos, podera suceder cousa que lhe fizera perder sua vinda, que importava mais ao serviço del-Rei e a bem de todo o reino, que destruir aquela armada, posto que com aquelas naus tam carregadas fora possível poder-se fazer.

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201 64v 211 Capítulo IX. Como Pedrálvares foi ter a Cananor, onde el-Rei lhe mandou dar a mais especearia que havia mister. E partido dali, fez sua viagem pera Portugal; e do que passou no caminho té chegar a ele. Partido Pedrálvares Cabral per este modo do porto de Cochi, via de Cananor, passou a vista de Calecute, e a principal causa que o moveu a fazer este caminho foi ter mandado dizer a el-Rei de Cananor que havia de passar pela sua cidade a tomar gengivre; e se o não fizera, ficava infamado ante ele de duas cousas: que não compria sua palavra, e mais que de assombrado da armada de el-Rei de Calecute, não ousara de vir àquele seu porto; a qual presunção tirava, não somente indo a comprir o que lhe mandara dizer, mas com a mostra que deu de si a Calecute. 212 Também teve Pedrálvares respeito a outra cousa que lhe ficava por fazer, que muito importava a estima e openião em que éramos tidos ante el-Rei de Cochi; e se com ele não fizera algum comprimento, pelo modo de como se ele, Pedrálvares, partiu, sem se dele espedir, ficávamos ante ele mui infamados; e porque de Cananor esperava de o fazer por razão de todas 202 estas cousas, conveo ir tomar aquele porto, como tomou. Onde a primeira cousa que fez foi, per homens da terra que lhe o governador da cidade deu, per duas ou três vias escrever a Gonçalo Gil Barbosa e aos oficiais que com ele ficavam, dizendo que, como eles sabiam, leixá-los em Cochi não fora per acidente e acaso, mas por ordenança del-Rei, seu senhor. O qual, pelo regimento que lhe dera de fazer feitoria em Calecute ou em qualquer outra parte, onde o senhor da terra aceitasse sua amizade, mandava que ficassem eles por oficiais, pera terem cargo de comprar as especearias de seu vagar e as terem prestes, quando as naus do reino lá chegassem, segundo se continha no regimento que lhe ele leixara. Somente ia ele, Pedrálvares, descontente polo modo apressado de sua partida, o qual tolheu não lhe dar os derradeiros abraços que se costumam entre os amigos nas tais 65 espedidas - cousa mui racional e que a mesma natureza obrigou aos homens pera mostrarem um sinal de paz e amor que entre eles havia. O qual sinal a ele, Pedrálvares, convinha mais que a outra pessoa algua, porque como ele, por razão do seu cargo, era obrigado dar conta da vida, saúde e estado de cada um daqueles que levava debaixo da bandeira que lhe el-Rei, seu senhor, entregara em Lisboa, na casa de Nossa Senhora de Belém, muito mais lhe convinha dar esta conta de suas pessoas, assi por razão dos cargos em que ficavam, que muito importava ao serviço del-Rei, como por ele particularmente lhe ter muito amor. Porém como o serviço del-Rei, seu senhor, precedia a todolos efeitos humanos, e por causa dele seus vassalos eram obrigados despir a natureza e a vida, se comprisse, como eles sempre fizeram, conveo que ele se partisse per aquele modo, quanto mais que a eles não foi cousa nova nem escondida, pois com todos tinha consultado que assi se devia fazer, por evitar os inconvenientes e impedimentos que lhe a armada do Samori podia dar em sua partida. Que quanto pera com eles, ele, Pedrálvares, não levava nenhum escrúpulo, somente ante el-Rei de Cochi lhe parecia mui necessário fazer todo comprimento; e por isso lhe escrevia aquela carta que com a sua lhe enviava, e por ser de crença em que se ele reportava a eles, da sua parte lhe podiam dizer tudo o que convinha pera desculpa de sua partida e a bem da honra dos portugueses. Tornando ao que el-Rei de Cananor fez, quando Pedrálvares apareceu à vela, como homem temeroso que ele passasse de largo obra de duas léguas, ante de chegar ao porto, mandou a ele dous zambucos. Em um dos 213

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quais ia um homem principal per que lhe mandou pedir que não passasse sem tomar aquele seu porto; porque ele desejava tanto amizade del-Rei de Portugal, que estimaria muito, primeiro que se fosse daquela terra, querer levar algua cousa sua. E também, pois ele, Capitão-mor, o tomava por testemunha da paz com que os portugueses entraram na Índia, e assi do que lhe nela era feito, segundo lhe mandou dizer de Cochi; ele, Rei 203 de Cananor, pelo mesmo modo o queria tomar por testemunha com obras mui diferentes das que lhe foram feito em Calecute. Porque não queria que se dissesse nas partes da Cristandade, que os reis e príncipes da Índia não eram dinos da amizade e comércio dos reis e príncipes dela. Portanto também protestava ter ele, Capitão-mor, naquela sua cidade Cananor toda a especearia que houvesse mister, onde acharia gasalhado, amor e verdade, como achou em el-Rei de Cochi. Ao qual Pedrálvares respondeu, que os portugueses de nenhua cousa eram mais lembrados que dos benefícios que recebiam e de comprir sua palavra; portanto Sua Real Senhoria esperasse dele que ambas estas cousas iria comprir, porque ele não passava, mas vinha como lhe mandara dizer. Chegado Pedrálvares logo nas costas deste mensajeiro, assi tinha el-Rei provido pera lhe dar carga de especearia, que ainda ele não surgia fora do porto, quando derredor das naus eram muitos paraus e barcos carregados de gengivre e canela, parecendo-lhe que, se logo o não aviassem, que faria seu caminho. E porque Pedrálvares ia já tam carregado que não pôde tomar tanta especearia quanta os oficiais del-Rei quiseram e somente tomou ua soma de gengivre e ua pouca de canela, mandou-lhe dizer el-Rei que ele tinha sabido como em Calecute lhe roubaram muita fazenda; que, se por ventura a míngua de não ter cabedal, leixava de tomar mais especearia, não leixasse de a tomar; porque ele confiava tanto na verdade dos portugueses, que esta bastava pera ele ser pago de quanto lhe ali desse na outra vez que tornassem. Pedrálvares, por não leixar a el-Rei com esta presunção que, a míngua de cabedal, não tomava mais carga, mandou mostrar aos seus oficiais que andavam neste negócio dous ou três cofres cheos de dinheiro em ouro, dizendo que ele tinha ainda tanto dinheiro que bem podera carregar cinco ou seis naus que lhe o mar comera, porque pera todas levava cabedal; mas como aquelas que ali trazia iam já abarrotadas com a carga que lhe dera el-Rei de Cochi, não podia levar mais, nem sua vinda àquele porto fora por razão de carga, somente por servir el-Rei. Que quanto à confiança que el-Rei tinha na verdade dos portugueses, Sua Real Senhoria no ano seguinte veria quanto el-Rei de Portugal, seu senhor, estimava esta confiança, porque em retribuição dela mandaria ua grossa armada com muito ouro, prata e mercadorias de grã preço, e corações mui esforçados e leais pera ajudarem a el-Rei de Cananor contra seus imigos, se lhe necessário fosse, e bem assi pera tratarem e comutarem suas mercadorias, com que fizessem aquela cidade Cananor muito mais 214 rica, nobre e poderosa do que era Calecute. Finalmente, com este e outros recados que, per espaço de um dia que Pedrálvares se ali teve, passaram entre ele e el-Rei, assi ficou este gentio confiado em nós, que, sabendo 65v como Pedrálvares levava dous embaixadores del-Rei de Cochi, mandou também outro com ele, com alguns presentes pera el-Rei Dom Manuel. A 204 substância da qual embaixada eram oferecimentos de sua pessoa e do seu reino e quanto desejava sua amizade e comércio das cousas que em Portugal havia, per comutação das que tinha o seu reino. Pedrálvares, leixando estes dous Reis de Cochi e Cananor em tanta paz e concórdia, fez-se à vela caminho deste reino, a dezasseis dias de Janeiro, dando louvores a Deus, pois partira da Índia mais contente do que chegara a ela, atribuindo a perda das naus a seus pecados, e as desavenças dantre ele e el-Rei de Calecute a bem e prosperidade das cousas del-Rei Dom Manuel. Porque, segundo aquele gentio Samori estava danado com a comunicação dos mouros que tinha em seu reino, parece que não merecia a Deus estar em nossa amizade, e permitira a morte de Aires Correa e

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dos outros que com ele pereceram, pera ele, Pedrálvares, ir buscar el-Rei de Cochi e depois el-Rei de Cananor. Os quais com estes embaixadores que enviaram a este reino, e depois per muito contentamento que tiveram das obras del-Rei Dom Manuel, assi ficaram estes dous príncipes os maiores do Malabar (depois do Samori) tam fiéis e leais amigos a seu serviço, quanto no discurso desta história se verá. Seguindo Pedrálvares sua derrota, via deste reino, não mui longe da costa de Melinde, topou ua nau mui grossa carregada de muita fazenda, a qual vinha do mesmo lugar de Melinde e ia pera Cambaia, e por ser de um mouro, segundo ela dezia, dos principais daquele reino, que se chamava Milicupi, senhor de Baroche, ele a leixou ir em paz, dizendo-lhe que, se fora de Calecute ou dos mouros de Meca, houvera de tomar nela emenda dos danos que deles tinha recebido; porém, como não era deles, todalas outras nações da Índia sempre achariam nos portugueses paz e amizade; e com isto a espediu, somente lhe tomou um piloto guzarate de nação, por dele ter necessidade pera aquela costa de Sofala. Tornando a seu caminho e sendo já mui perto da costa de Melinde, saltou com ele um tempo travessão que deu com a nau de Sancho de Toar em um baixo onde se perdeu, salvando-se, porém, toda a gente; e porque ficava um pouco descoberta de água, mandou-lhe Pedrálvares por fogo, porque os mouros daquela costa não viessem a ela e se aproveitassem dalgua cousa. Mas com todas estas cautelas de Pedrálvares, el-Rei de Mombaça mandou depois a lhe tirar toda a artelharia de mergulho e com ela nos fez guerra, como adiante veremos. E correndo com este tempo à povoação de Melinde, fez Pedrálvares seu caminho a Moçambique, onde repairou as naus dalgum dano que levavam. E porque, quando deste reino partiu, el-Rei 215 Dom Manuel ordenou que Bartolomeu Dias e Diogo Dias, seu irmão, fossem à Mina de Sofala descobrir e assentar aquele resgate, o qual negócio não houve efeito, por se perder Bartolomeu Dias no dia que se perderam outras três velas, e Diogo Dias era desaparecido, mandou Pedrálvares a este negócio 205 Sancho de Toar em um dos navios pequenos, dando-lhe o regimento do que devia fazer. Espedido Sancho de Toar, partiu-se Pedrálvares pera este reino, e a primeira terra que tomou foi a Ilha do Cabo Verde, onde achou Pero Dias, que era desaparecido, como acima dissemos. O qual, entre muitas cousas que contou a Pedrálvares dos trabalhos que teve em sua navegação, foi ir ter ao porto da cidade Magadaxó, contra o Cabo de Guardafu, onde achou duas naus carregadas de especearia, que ali eram vindas de Cambaia. Os mouros das quais e assi os da cidade, temendo que podiam receber algum dano dele pola artelharia que lhe ouviram quando os salvou, foi de todos mui bem recebido, dando-lhe muitos mantimentos e refresco da terra. Porém, despois que teveram as naus descarregadas da fazenda que tinham, ordenaram de o tomar; e pera o poderem fazer mais a seu salvo, dilataram isto pera um certo dia em que ele, Pero Dias, quis fazer aguada, dizendo os mouros da cidade que a água vinha de longe pela terra dentro, que pera isto se fazer mais em breve, mandasse tal dia o batel com as mais vasilhas que podesse, e assi gente pera as encher; e chegando ao qual lugar, com a confiança do bom gasalhado que lhe tinham feito nos dias passados, não tiveram resguardo em si, com que o batel e eles ficaram em poder dos mouros. Os quais mouros, logo em continente mui armados em alguns zambucos da terra, vieram sobre ele; na qual chegada, ele, Pero Dias, se viu em tanta pressa por não ter consigo mais de sete pessoas, que lhe conveo cortar as amarras e fazer-se à vela via deste reino, a Deus misericórdia, sem piloto nem pessoa que soubesse per onde vinham, té Deus o trazer àquele lugar onde o achara. Pedrálvares, porque havia este navio por tam 66 perdido como os que sessobraram no dia da grã tormenta que teve, houve que Deus lhe ressuscitava todos aqueles homens. E pera maior seu contentamento, depois de ser chegado a Portugal, que foi béspora de São João Baptista, chegaram outros dous navios que ainda lá leixava: um era de Pero de Taíde que se dele apartou ante de chegar ao Cabo das Correntes com um temporal que ali teve, e o

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outro foi Sancho de Toar, com nova do descobrimento de Sofala.

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205 66 216 Capítulo X. Como ante que Pedrálvares chegasse a Portugal, o Março daquele ano tinha el-Rei enviado ua armada de quatro naus; e o que passaram nesta viagem e na Índia, onde carregaram de especearia. El-Rei Dom Manuel, ante da vinda de Pedrálvares, posto que não tevesse recado do que lhe sucedeu na viagem (porque sua tenção era em cada um ano fazer ua armada pera este descobrimento e comércio da Índia no mês de Março, pera ir tomar os temporais com que se naquelas 206 partes navega), neste ano de quinhentos e um mandou armar quatro velas. A capitania-mor das quais deu a João da Nova, alcaide pequeno da cidade de Lisboa, galego de nação e de nobre linhagem, por ser homem que entendia bem os negócios do mar e ter gastado muito tempo em armadas que se neste reino fizeram pera os lugares de Além, onde sempre andou em honrados cargos. Por razão dos quais serviços, quási em satisfação, lhe foi dada a alcaidaria de Lisboa, que naquele tempo era um dos principais cargos dela, e andarem em homens fidalgos por ser ua só vara de toda a cidade. Os capitães dos outros navios eram Diogo Barbosa, criado de Dom Álvaro, irmão do Duque de Bragança, polo navio ser seu, e Francisco de Novais, criado del-Rei, e o outro era Fernão Vinet, florentim de nação, polo navio em que ele ia ser de Bartolomeu Marchioni, também florentim, o qual era morador em Lisboa e o mais principal em substância de fazenda que ela naquele tempo tinha feito. Ca ordenou el-Rei, pera que os homens deste reino cujo negócio era comércio, tevessem em que poder tratar, dar-lhe licença que armassem naus pera estas partes, delas a certos partidos e outras a frete, o qual modo de trazer a especearia a frete ainda hoje se usa. E porque as pessoas a que el-Rei concedia esta mercê tinham per condição de seus contratos, que eles haviam de apresentar os capitães das naus ou navios que armassem, os quais el-Rei confirmava, muitas vezes apresentavam pessoas mais suficientes pera o negócio da viagem e carga que haviam de fazer do que eram nobres per sangue. Fizemos aqui esta declaração, porque se saiba, quando se acharem capitães em todo o discurso desta nossa história, que não sejam homens fidalgos, serão daqueles que os armadores das naus apresentavam ou homens 217 que per sua própria pessoa, ainda que não tinham muita nobreza de sangue, havia neles calidades pera isso; e também por darmos notícia do modo que levamos em nomear os homens, que é este: Quando nomeamos algum capitão, se é homem fidalgo e tão conhecido per sua nobreza e criação na casa del-Rei logo em falando nele a primeira vez dizemos cujo filho é, sem mais tornar a repetir seu pai; e se é homem fidalgo de muitos que há no reino, destes tais não podemos dar tanta notícia, porque não vieram ao lugar onde se os homens habilitam em honra e nome, que é na casa del-Rei, por isso podem-nos perdoar; e também, a dizer verdade, os escritores dos indivíduos não podem dar conta, e quem muito procura por eles quebra o nervo da história, parte onde está toda a força dela. Todavia nesta digressão duas cousas pretendemos: notificar a todos que nossa tenção é dar a cada um, não somente o nome de suas obras, mas ainda o de seu avoengo, se ambas estas duas vierem a nossa notícia; e a segunda que, quando fizermos algum grande catálogo de capitães (porque estes sempre hão-de ser nomeados), ora sejam de naus ou navios, sempre devem entender que as pessoas mais 207 principais, per sangue e per feitos, andavam nas melhores peças da armada.

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E tornando a João da Nova e aos capitães de sua conserva, por causa da calidade dos quais, pera maior declaração desta nossa história, fizemos esta: tanto que foram prestes, se fizeram à vela do porto de Belém a cinco dias de Março do ano de quinhentos e um. Na qual viagem, passados oito graus além da Linha Equinocial contra o Sul, acharam ua ilha a que poseram nome da 66v Conceição, e a sete de Julho foram surgir na Aguada de São Brás, que é além do Cabo de Boa Esperança, onde Pero de Taíde foi ter, quando com o temporal que naquela paragem deu a Pedrálvares Cabral se apartou dele. O qual Pero de Taíde, metida em um sapato, no lugar da Aguada, leixou ua carta escrita, em a qual dezia como ele passara per ali, e a causa por quê, e também avisava a todolos capitães que fossem pera a Índia do que Pedrálvares lá passara, e que em Mombaça achariam cartas suas em mão de um António Fernandes, degredado, que ali estava, e que a feitoria de Sofala não se assentara, e a causa por quê. João da Nova e os outros capitães, com as cousas que acharam nesta carta, foi para eles um novo espírito, sabendo que na Índia tinham já dous portos tam pacíficos e tam seguros, onde podiam tomar carga, como eram o de Cochi e de Cananor, e mais tendo lá feitoria com oficiais pera isso ordenados. Porque, como da Índia não tinham mais nova que a que trouxera Dom Vasco da Gama, e a navegação daquelas partes não era sabida, ante de toparem esta carta iam às escuras e mui confusos em sua viagem. Feita sua aguada e resgate de gado, com alguns negros que ali vieram ter, fizeram-se à vela caminho de Moçambique, onde chegaram na entrada de Agosto, e di foram ter à cidade Quíloa. Aos quais o Rei da terra, com palavras mais que com obras recebeu, e ali acharam António Fernandes, 218 carpinteiro de naus, degredado, que Pedrálvares leixou, e ua carta sua que lhe enviou de Moçambique per um zambuco de mouros, quando per ali passou, vindo pera este reino; e assi outra carta pera qualquer capitão que per ali passasse, do teor da de Pero de Taíde. E entre alguas cousas de que lhe António Fernandes deu conta do que passava entre aquela bárbora e infiel gente, foi que ali estava um mouro chamado Mafamede Anconi, que lhe tinha feito muita honra, e tanta que se por ele não fora, alguns mouros o mataram. Porém como ele era escrivão da fazenda de el-Rei de Quíloa, homem poderoso na terra, por amor dele e também receando el-Rei que por isso os poderia castigar, a gente cevil não ousava de o cometer, por esta ser a que o mais perseguia. E que além deste benefício que recebia de Mafamede Anconi, sentia dele ser homem fiel a nossas cousas, por muitas de que lhe dava conta que faziam bem e favor delas, e que isto sentira dele Pedrálvares Cabral, os dias que ali estevera. João da Nova, por tomar experiência do que lhe António Fernandes dezia deste Mafamede, 208 começou de lançar mão dele, o qual achou tam fiel que, segundo as traições que lhe el-Rei armava polo acolher, se per ele não fora avisado, sempre lhe houvera de acontecer algum desastre. E por não mostrar que desconfiava dele, com maior cautela que João da Nova pôde, espedido dele, foi ter a Melinde, e di à Índia, e a primeira terra que viu dela foram os Ilhéus de Santa Maria. Donde começou ir correndo a costa, té que, tanto avante como o Monte de Eli, topou duas naus, ua das quais, por ser melhor da vela e já sobre a noite, se pôs em salvo e a outra tomou ele, na entrada da qual lhe matou sessenta homens e, depois de esbulhada, lhe poseram fogo. Acabada a presa desta nau, na entrada da qual alguns dos nossos ficaram frechados e feridos, foi-se pera Cananor, onde o Rei o recebeu com muito gasalhado; e como homem que temia o que João da Nova logo havia de fazer - que era ir tomar primeiro carga a Cochi por razão dos nossos que lá ficaram pera este efeito de a feitorizar - quisera-o deter ali em lhe dar primeiro as suas especearias. Porém João da Nova com boas palavras se escusou, dizendo que trazia por regimento del-Rei, seu senhor, que primeiro tomasse carga de especearias no lugar onde estevessem seus feitores, que em outra parte algua, por muitas causas no regimento apontadas. E que Pedrálvares Cabral (à capitania do qual ele vinha submetido pelo regimento, se o ainda achasse na Índia) per

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cartas e recados seus, que achou em Moçambique, Quíloa e Melinde, lhe mandava da parte del-Rei que se fosse a Cochi, onde acharia o feitor Gonçalo Gil Barbosa, a quem ficara fazenda e cuidado pera ter feito parte da carga às naus que sobreviessem do reino, e depois, quando tornasse, viesse àquele porto de Cananor, onde sua Real Senhoria lhe mandaria dar gengivre e outras sortes de especearia, que havia naquele seu reino. Por tanto houvesse por bem que comprisse o regimento del-Rei, seu senhor; e, enquanto ia a Cochi, lhe mandasse ter prestes gengivre, canela e alguas 219 outras drogas, até ua tanta contia, porque estas veria ali receber polo servir, as quais tomaria menos em Cochi, posto que as lá houvesse. El-Rei, ainda que estas razões de João da Nova lhe pareceram de capitão obediente aos regimentos de seu Rei, todavia aperfiou com ele, como quem queria que fizesse mais 67 o que ele desejava (que era tomar ali primeiro as especearias que em Cochi) que se conformasse ele, João da Nova, com o regimento que levava. E ainda quando per esta via viu que o não podia obrigar, em três ou quatro dias que se ele, João da Nova, ali deteve, mandou-lhe dizer que lhe requeria, polo amor que tinha às cousas del-Rei de Portugal, que ele se não partisse pera Cochi. Porquanto tinha por nova mui certa que em Calecute se fazia ua grande armada de mais de quorenta naus grossas, pera o aguardarem no caminho, que seu voto era ele se leixar estar naquele porto, onde se podia defender com gente que lhe mandaria dar pera sua ajuda. 209 A qual armada, segundo lhe era dito, os mouros davam grã pressa, por razão de ua nau que lhe levou nova que ia fugindo dele e que outra sua companheira lhe ficava nas mãos. João da Nova, sendo certificado ser verdade o que el-Rei dezia, depois que com os capitães que levava teve conselho, resumiu-se nesta determinação: que por honra do nome português não convinha mostrar aos mouros de Cananor que temiam a armada do Samori, porque eles e os de Calecute não queriam outra cousa pera se gloriar per toda a Índia, e que desta glória tomariam ousadia pera os vir cometer dentro naquele porto. Quanto mais que, tomando o conselho del-Rei de Cananor, se a armada de Calecute tivesse ânimo sobre âncora, e mais em lugar tam estreito como era aquela concha de Cananor, a juízo de homens mais tomados estavam que em outra parte. Mas este poder lhe não daria Deus, pois lho não concedeu em tam grande frota como levaram contra Pedrálvares, ante, segundo mostravam, todo seu poder estava mais em grande número de velas que em ânimo de gente nem em fúria de artelharia. As quais cousas, louvado Deus, neles era por contrairo; porque, se não tinham muitas velas, tinham muita e mui boa artelharia, e mais todos eram costumados a pelejar com mouros e a não temer seus alardos. E porque, quanto se mais detivessem, mais tempo davam aos imigos pera se melhor aperceber, logo deviam partir pera Cochi; porque, se quando fossem, achassem armada dos mouros e os viessem cometer, indo boiantes, iam mais lestes pera se revolver com eles que à tornada, vindo carregadas. Finalmente, assentando João da Nova nesta partida pera Cochi, mandou dizer a el-Rei de Cananor que lhe tinha em mercê a vontade e amor que mostrava às cousas del-Rei de Portugal, seu senhor, com todolos oferecimentos de sua ajuda, e que ele os estimava tanto como se os recebesse; porém, como os portugueses eram costumados àqueles grandes aparatos e mostras com que os mouros faziam a guerra, mais que com forças de ânimo, já neles não faziam impressão de temor algum, e por isso ele não leixaria seu caminho de Cochi, pera ir fazer o que lhe el-Rei, seu senhor, mandava. Ante esperava em Deus, 220 que quando em boora tornasse, tam carregadas havia de trazer as naus da vitória daquela armada de Calecute, como da pimenta de Cochi; que entretanto pedia a sua Real Pessoa que lhe mandasse fazer prestes a carga que havia de tomar quando em boora tornasse de Cochi, pera penhor da qual vinda queria ali leixar quatro ou cinco homens com algua fazenda, pera que, enquanto ele fosse, poderem comprar alguas cousas. Com o qual recado el-Rei ficou mui satisfeito e muito mais contente depois que viu que João da Nova lhe leixava cinco homens com nome de feitores, ao modo de como estavam em

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Cochi; que ele houve por grande honra, porque assi lho deu a entender João da Nova. Os quais, ainda que não eram oficiais del-Rei, feitores eram de 210 partes: um deles leixava Diogo Barbosa, capitão de um navio de Dom Álvaro, irmão do Duque de Bragança, ao qual chamavam Paio Rodrigues, com fazenda que havia de feitorizar do mesmo Dom Álvaro; e outro era um feitor de Bartolomeu Florentim, que o capitão Fernão Vinet do seu navio pelo mesmo modo leixava ali feitorizando; e os três, dous eram homens de serviço e um degredado, ficando todos debaixo da governança de Paio Rodrigues, a quem ele, João da Nova, deu poderes e regimento em nome del-Rei pera aquele caso. Feita a entrega destes homens a el-Rei de Cananor, que ele com muitas palavras recebeu em sua guarda e emparo, fez-se João da Nova à vela via de Cochi um pouco afastado da costa; porque vindo a armada del-Rei de Calecute a eles, melhor se ajudassem dela, andando às voltas, porque quatro velas com obra de trezentos e cinquenta homens que eles eram, não lhe convinha envestir nenhua nau dos imigos, nem menos chegar-se muito à terra, pois não tinham mais abrigo nem defensão que artelharia, com a qual havia de ser toda a sua peleja. O qual conselho aproveitou muito, porque, indo a-la-mar, um pouco largos da costa, sendo na paragem de Calecute, como a armada que se fazia 67v prestes houve vista deles, assi os serviram os nossos com pilouros de sua furiosa artelharia, aquele dia até noite e parte do seguinte, sem nunca perderem tiro, que meteram no fundo cinco naus grossas e nove paraus, em que morreu muita gente. As outras, vendo esta destruição e o dano que tinha recebido de muita gente que lhe era morta e ferida, seguiram os nossos até Cranganor, onde se leixaram ficar, e di se foram pera Calecute. João da Nova e os outros capitães, vendo a mercê que lhe Nosso Senhor fez em os salvar de tanta nuvem de frechas e espingardas, e assi dalgua artelharia fraca, davam-lhe muitos louvores em ficarem livres de tanto 221 perigo, posto que per alguns dias muitos teveram que curar nas frechadas que ali houveram. Chegados a Cochi, foram recebidos de Gonçalo Gil e dos outros que com ele estavam com muito prazer, tanto polos verem como pola vitória que houveram, da qual el-Rei de Cochi também teve grã contentamento, por razão do ódio que lhe já o Samori tinha, e das nossas vitórias dependia a segurança de seu estado. E porque a dilação da carga que se devia de dar às naus, daria causa a que o Samori apercebesse maior frota, mandou el-Rei de Cochi, com muita diligência, dar despacho a João da Nova. O qual, tanto que se fez prestes, leixando com Gonçalo Gil mais seis ou sete homens, tornou-se a Cananor, no qual caminho tomou ua nau que, depois de esbulhada, queimou, por ser de Calecute. El-Rei de Cananor, quando viu João da Nova em tam poucos dias tornar com as naus, como ele dezia, tam carregadas de vitória como de especearia, também o quis festejar com bom despacho, acabando de lhe dar toda a carga que havia mister, e ainda pera o mais contentar, mandou-lhe dizer que não cuidasse que tinha feito 211 pouco dano ao Samori, ca, segundo tinha nova, naquela peleja lhe matara per conta quatrocentas e dezassete pessoas, por causa das quais todo Calecute era posto em pranto. A qual nova certificou um Gonçalo Pexoto, que era dos que se acolheram a casa de Coje Biqui, quando mataram Aires Correa, per o qual o Samori mandou dizer a João da Nova quam descontente estava daquele cometimento que os mouros fizeram, porque o seu ânimo sempre estevera puro pera os portugueses e mui desejoso da amizade del-Rei de Portugal, mas que o Demónio, imigo de toda paz, ordenara que entre os portugueses e os mouros houvesse ódios antigos, donde procederam as cousas passadas. E porque ele, Samori, tinha castigado os principais que foram causa dalguas cousas acidentais em que os portugueses teveram culpa em lhe tomarem

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suas naus, lhe rogava que, esquecidas todas estas cousas, quisesse levar consigo dous embaixadores, que queria enviar a el-Rei de Portugal, pera assentar paz com ele. Porque esperava que esta paz, que nunca podera assentar com seus capitães, estes embaixadores que mandasse assentariam com el-Rei; e que se per ventura tevesse algum escrúpulo, por razão dalguas cousas que foram tomadas na casa em que estava o feitor Aires Correa, ele as queria pagar, e pera isso podia ir ao porto de Calecute, onde lhe entregaria tanta especearia, quanta elas, valessem. João da Nova, informado per Gonçalo Pexoto do que lhe mandava dizer Coge Biqui, que não confiasse nestas palavras do Samori, porque tudo eram indústrias e artifícios dos mouros, não lhe quis responder, porque também Gonçalo Pexoto, vendo-se livre, disse que não queria tornar ao cativeiro onde estava. Finalmente, leixando João da Nova mais alguns homens a Paio Rodrigues, 222 a requerimento del-Rei, partiu-se de Cananor, com a mais carga que ali recebeu; e de caminho, tanto avante com o Monte de Eli, tomou ua nau de mouros que era de Calecute. Espedido João da Nova da costa da Índia com tantas vitórias e boas venturas que lhe Deus deu, fez sua viagem caminho deste reino; e ainda neste caminho, passado o Cabo de Boa Esperança, teve outra boa fortuna, que lhe deparou Deus ua ilha mui pequena, a que ele pôs nome Santa Helena, em que fez sua aguada, posto que da Índia té li tinha feito duas: ua em Melinde, outra em Moçambique. A qual ilha parece que a criou Deus naquele lugar pera dar vida a quantos homens vem da Índia, porque, depois que foi achada até hoje, todos trabalham de a tomar, por terem melhor aguada de toda esta carreira, ao menos a mais necessária que se toma quando vem da Índia. E tanto, que as naus que ali vem ter se hão por salvas e navegadas, pola necessidade que elas trazem polo muito refresco que nela acham, como adiante veremos, dando razão de quem foi causa disso. Partido da qual, João da Nova chegou a este reino, a onze de Setembro de quinhentos e dous, onde o el-Rei recebeu com grande honra pola muita que ele ganhou como cavaleiro e como prudente em os negócios que fez e acabou.

LIVRO VI 213 68 223 Capítulo primeiro. Como el-rei Dom Manuel, depois que Pedrálvares Cabral veo da Índia por razão deste descobrimento e conquista dela, tomou o título que ora tem a Coroa deste reino de Portugal, e a razão e causas dele. Ante que João da Nova viesse desta viagem que fez à Índia (segundo neste precedente livro fica), per quem el-Rei Dom Manuel soube como fora recebido nela, e nossas cousas eram aceitas acerca do gentio e mouros daquelas partes, já deste reino, no Março passado de quinhentos e dous, era partido Dom Vasco da Gama com ua frota de vinte velas a esta conquista. Ante da partida do qual, teve el-Rei muitos conselhos, porque, como a sua ida assi poderosamente se causou por razão dos trabalhos do mar e perigos da terra que Pedrálvares Cabral passou, e por outras cousas que viu e experimentou na comunicação que teve com os príncipes daquelas partes, fizeram todas estas cousas muita dúvida no parecer de pessoas notáveis deste reino, se seria proveitoso a ele ua conquista tam remota e de tantos perigos (peró que alguas destas pessoas, quando el-Rei teve conselho na primeira ida de Dom Vasco da Gama, aprovaram este descobrimento que ele ia fazer, e depois a ida de Pedrálvares); porque nestas primeiras viagens não mostrou o negócio tanto de si como com a vinda deles, posto que a sua informação ainda foi mui confusa, pera o que nas seguintes armadas se soube da grandeza daquela conquista. Porém somente com as cousas que Pedrálvares passou faziam esta diferença, dizendo que ua cousa era tratar se seria bem descobrir terra não sabida, parecendo-lhe ser habitada 224 de gentio tam pacífico e obediente como era o de Guiné e de toda Etiópia com que tínhamos comunicação, que sem armas ou outro algum apercebimento de guerra, per comutação de cousas de pouco valor, havíamos muito ouro, especearia e outras de tanto preço, e outra cousa era consultar se seria conveniente e 214 proveitoso a este reino, por razão do comércio das cousas da Índia, emprender querê-las haver per força de armas. Porque, segundo a experiência mostrava e os mouros defendiam que as não houvéssemos da mão do gentio da terra, mais havia de valer acerca deles grande número de naus e muita gente de armas, que outra mercadoria algua. E ainda a muitos, vendo somente na carta de marear ua tam grande costa de terra pintada, e tantas voltas de rumos que parecia rodearem as nossas naus duas vezes o mundo sabido, por entrar no caminho doutro novo que queríamos descobrir, fazia neles esta pintura ua tam espantosa imaginação, que lhe assombrava o juízo. E se esta pintura fazia nojo à vista, ao modo que faz ver sobre os ombros de Hércules o Mundo que lhe os poetas poseram, que quási a nossa natureza se move com afectos a se condoer dos ombros daquela imagem pintada, como se não condoeria um prudente homem em sua consideração, ver este reino (de que ele era membro) tomar sobre os ombros de sua obrigação um Mundo, não pintado, mas verdadeiro, que às vezes o podia fazer acurvar com o grã peso da terra, do mar, do vento e ardor do sol que em si continha; e o que era muito mais grave e pesado que estes elementos - a variedade de tantas gentes como nele habitavam?... Porque, ainda que a experiência tinha mostrado quam grandes trabalhos eram os daquele caminho, pois de treze naus da armada de Pedrálvares, as quatro levaram carga de homens pera mantimento dos pexes daqueles mares incógnitos que navegaram, as quais em um instante foram metidas no profundo do mar, isto fúria foi dos elementos que tem seus ímpetos a tempo, e como são efeitos da natureza, que é regulada, levemente se evitam os tais perigos, 68v quando os homens tem prudência pera saber eleger o curso dos temporais. Peró comunicar,

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conversar e contratar com gente da Índia, cujas idolatrias, abusos, vícios, opiniões e seitas, um Apóstolo de Cristo Jesu, per ele enviado como foi São Tomé, temeu e receou ir a ela somente a lhe dar doutrina de paz e salvação pera suas almas como se podia esperar que a nossa doutrina, ainda que católica fosse, por ser com mão armada e não per boca de Apóstolos, mas de homens sujeitos mais a seus particulares proveitos que à salvação daquele povo gentio, podia fazer neles impressão, principalmente acerca dos mouros que, por razão desta doutrina evangélica, eram nossos capitais imigos? Os quais eram já tantos entre aquele gentio, assi dos naturais da terra, a que eles chamam naiteás , como estrangeiros, que, não contando os de 225 toda a costa da Índia, somente começando da cidade Goa, que estará quási no meio dela, té Cochi, que serão pouco mais ou menos cento e vinte léguas per costa (segundo se dezia, e depois se soube em verdade), havia mais mouros que em toda a costa de África que temos defronte, entre a nossa cidade Ceita e Alexandria. A maior parte dos quais, principalmente os estrangeiros, como tinham usurpado do 215 gentio daquelas partes todo o navegar das especearias e comiam este fructo delas, eram feitos tam absolutos senhores de toda a riqueza dos portos de mar, que alguns deles em substância de fazenda eram tam poderosos, que mais levemente podiam fazer ua guerra e comportar as despesas dela per muito tempo, do que o podem fazer os reis de Belez, Tremecém, Ourão, Argel, Bugia e Tunes, que é a frol de todolos príncipes que tem a costa de África que vezinhamos. E como com a nossa entrada na Índia, estes mouros tam poderosos perdiam o trato das especearias e comércio que lhe dava este grã poder, todos conjuraram em nossa destruição, e pera isso convocavam as ajudas do gentio da terra, como fizeram per mão do grande Samori, de Calecute. Outros homens do mesmo conselho del-Rei Dom Manuel e pessoas mui notáveis do reino também faziam estas considerações e tenteavam estas cousas que apontamos, porém contra elas punham outros bens que prevaleciam sobre estes temores. Os quais eram a denunciação do Evangelho, ainda que não fosse per boca dos Apóstolos, nem per o modo com que eles o denunciavam, porque então assi conveo pera glória de Cristo no princípio da congregação da sua Igreja, mas, ao presente, per qualquer modo e pessoa católica que fosse, muito havia de acrescentar no estado da Igreja Romana a nossa entrada na Índia. E, quanto às contradições que tínhamos nos mouros e Samori, por parte deles, também tínhamos dous reis pola nossa mui amigos e leais, como eram el-Rei de Cochi e Cananor, e assi o reino de Coulão. Os quais desejavam tanto nossa amizade, que começavam entre si contender a quem nos daria carga de especearia e nos teria por amigos, por verem logo naquela primeira ida de Pedrálvares Cabral quam proveitoso lhes era o nosso comércio, assi no que recebiam como no que davam. E mais, como a substância da guerra é o dinheiro - e este ajunta naus, artelharia, homens e toda outra munição dela - era tamanho o proveito que se havia da mão daqueles dous reis nossos amigos, por eles serem senhores da frol dela, que deste grande proveito se podiam suprir as necessidades da guerra (quando os mouros a quisessem connosco), e mais faria este reino de Portugal mui rico. Porque foi tamanho o ganho das mercadorias que foram naquela armada de Pedrálvares, que em muitas cousas, com um se fez de proveito, no retorno, cinco, dez, vinte e trinta, até cinquenta; per experiência das quais cousas ficavam todalas outras razões súbditas a este bem de proveito, que sempre prevaleceu em todo conselho. 226 Porém, as primeiras nem as segundas razões que acima apontámos, que procediam do parecer e juízo dos homens principais do reino, não tinham no coração del-Rei Dom Manuel tanta parte pera o mover a este descobrimento e conquista, quanta teveram as inspirações de Deus, que o 216

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demoviam pera efeito dela. E ainda parece que o mesmo Deus permitia as razões e dúvidas movidas, pera com mais cuidado e providência se proverem as cousas pera este descobrimento e conquista. Finalmente el-Rei se determinou que, pois Nosso Senhor lhe abrira este caminho nunca descoberto, no qual seus antecessores tanto trabalharam, per continuação de setenta e tantos anos, ele o havia de prosseguir - e mais vendo ser já maior o fructo dele naquela primeira ida de Pedrálvares, do que eram os trabalhos 69 passados e temores do que estava por vir. Quanto mais que as grandes cousas (e principalmente esta, de que toda a Europa se espantou), não se podiam conseguir senão per muitos e mui vários casos e perigos, dos quais exemplos o mundo estava cheo, por ser cousa mui racional que os grandes edifícios, pera serem perpétuos e firmes, sobre profundos aliceces de trabalho se fundam . A qual determinação, que foi logo como Pedrálvares veo, obrigou também a el-Rei fazer outra obra de muita prudência e de tal ânimo, como convém aos príncipes que se prezam de leixar nome de feitos gloriosos. Nenhum dos quais se pode comparar àqueles em que a coroa do seu reino é aumentada, não per acrescentamento de rendas dele, nem per sumptuosidade de grandes e magníficos edifícios, ou qualquer outra útil e proveitosa obra, mas per acrescentamento dalgum novo título a seu estado. Porque, como acerca dos homens a que Deus não concedeu esta dignidade real, posto que adquiram muita substância de fazenda e com ela se façam poderosos em edificar, plantar e obras mecânicas que procedem mais da cópia do dinheiro que da grandeza do ânimo e forças do engenho, e em sua vida e depois da morte, nenhua obra, por grande que seja, lhe dá mais louvor, que mudar o nome com que nasceram com algua denotação de honra, segundo o reino onde vivem, assi acerca dos reis, por muitas cousas que façam de qualquer género que sejam, nenhua lhe dá maior nome que aquela pela qual acrescentaram à sua coroa algum justo e ilustre título. E é este desejo de crescer em nome tam natural aos homens de claro intendimento, que até adquerir e ajuntar dinheiro, o fim dele é pera este crescer em nome, posto que os meios às vezes o fazem deminuir e de todo perder, porque poucas se ajunta o muito sem infâmia. Porém, como de cousa suspeitosa, fazem os homens esta diferença do dinheiro: na vida é mui aceito, porque sabem que a ele obedecem todalas cousas, e que não há monte, por alto que seja, a que um asno carregado de ouro não suba, como dezia Felipo, pai de Alexandre; 227 mas quando vem a hora da morte onde este dinheiro já não o serve, não querem os homens que na crónica de sua vida, que é a campã de sua sepultura, se faça menção dele (posto que a capela em que ela está com ele se fizesse, e o morgado aplicado a ela dele se constituisse). Somente 217 querem que, naquele sumário de todalas honras, se ponha e se escreva algum bom nome de honra, se o tiveram na vida, por saberem, per sentença daquele sapientíssimo Salamão, que mais vale o bom nome que todalas riquezas da terra. E que isto assi seja acerca do geral dos homens, entre eles e os reis há esta diferença: os homens, como são súbditos, pera terem nome, basta qualquer obra com que aprazem a seu rei, porque esta complacência lhe pode dar o que eles estimam pera sua sepultura; peró os reis, como não tem superior de quem possam receber algum novo e ilustre nome pera a campã de sua sepultura, que é a crónica do discurso de sua vida, lançam mão não de obras comuas e possíveis a todo homem poderoso em dinheiro, mas de feitos excelentes que lhe podem dar títulos, não em nome, mas em acrescentamento dalgum justo e novo estado que per si ganharam. Assi que, falando propriamente, os homens, como são súbditos e não soberanos, toda a honra que adquirem é neles nome, e nos reis, quanto conquistarem é neles título. Pois, vendo el-Rei Dom Manuel esta universal regra do Mundo, e que seus antecessores sempre trabalharam per conquista dos infiéis, mais que per outro injusto título acrescentar ao de sua coroa, e el-Rei Dom João, seu primo, como de caminho por razão da impresa que este reino tomou

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em descobrir a Índia, tinha tomado por título senhor de Guiné, continuando com ele, acrescentou estes três: senhor da navegação, conquista e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia. O qual título não tomou sem causa ou acaso, mas com muita aução, justiça e prudência, porque, com a vinda de Dom Vasco da Gama e principalmente de Pedrálvares Cabral, em efeito per eles tomou posse de tudo o que tinham descoberto, e pelos Sumos Pontífices lhe era concedido e dado. A qual doação se fundou nas muitas e grandes despesas que neste reino eram feitas, e no sangue e vidas de tanta gente português como neste descobrimento per ferro, per água, doenças e outros mil géneros de trabalhos e perigos pereceram. E porque pode ser que alguas pessoas não entenderam este título que el-Rei tomou, ante que se mais proceda, faremos ua declaração, dizendo que cousa é título e que direito compreende em si 69v este del-Rei. Este nome título acerca dos juristas tem diversos significados, por ser um nome comum que lhe serve de género, debaixo do qual estão muitas espécias de cousas: porque às vezes sinifica preminência de honra, a que chamam dinidade, como é a do duque, marquês, conde, etc., e outras vezes sinifica senhorio de propriedade, donde às mesmas escrituras que cada um tem de sua fazenda se chamam títulos. Porém, falando propriamente e a nosso propósito, títulos não é outra cousa senão um sinal e denotação do direito 228 e justiça que cada um tem no que possue, ora seja por razão de dinidade, 218 ora por causa de propriedade. O uso dos quais títulos acerca dos reis é um, e toda outra pessoa que vive súbdita a eles tem nisso outro modo, ca o título dos reis não requere mais escritura do ditado com que se eles intitulam que suas próprias cartas, quando no princípio delas se nomeam; e os homens, pera se lhe guardar o título de sua dinidade (se a tem), hão de ter escritura dos reis, de cuja mão receberam a tal honra; e se forem propriedades, apresentarão escritura donde as houveram. Assi que, falando propriamente, ao título da honra podemos-lhe chamar dinidade, e ao título da propriedade senhorio, per este seguinte exemplo: Este nome rei tem dous respeitos: quando se refere à dinidade real, denota jurdição sobre todolos que vivem no seu reino; e referido ao reino e não aos vassalos, denota senhorio, como cada um o tem sobre as propriedades de sua fazenda, as quais pode dar, vender, etc., o que ele não pode fazer dos vassalos, falando conforme a dereito. Assi que, quanto a este nome rei, se havemos de guardar a etimologia do verbo donde ele procede, que é de reger, propriamente diremos rei dos portugueses, rei dos castelhanos, e senhor de Portugal, senhor de Castela; e porque per este nome rei eles se intitulam do melhor sujeito, que é da jurdição dos homens, chamam-se reis e não senhores; ou diremos que o fazem, porque, nomeando-se por reis da terra, entende-se que o são dos homens que vivem nela. Isto seja dito quanto à declaração deste título de rei e senhor. Conforme ao qual direito e propriedade de nome, el-rei Dom João o segundo (como atrás fica) se intitulou por senhor e não rei de Guiné, porque sobre os povos da terra não tinha jurdição, e porém teve senhorio dela. Ca ninguém lha defendeu, nem entre os negros havia demarcações de estados; e podera-se esta terra conceder ao primeiro acupante, quanto mais a ele, que tinha a doação dos Sumos Pontífices, que são senhores universais pera destribuir pelos fiéis da Católica Igreja as terras que estão em poder daqueles que não são súbditos ao jugo dela. Per o qual modo e aução el-Rei Dom Manuel também se chamou senhor da conquista, navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, porque (como já repetimos per vezes) os Sumos Pontífices tinham concedido a este reino tudo o que descobrissem do Cabo Bojador até a oriental plaga, em que se compreendia toda a Índia, ilhas, mares, portos, pescarias, etc., segundo mais compridamente se contém nas próprias doações. E como ele neste descobrimento que mandou fazer per Dom Vasco da Gama e Pedrálvares Cabral, descobriu três cousas, as quais nunca nenhum rei nem príncipe de toda a Europa cuidou nem tentou descobrir, destas três que eram as essenciais de todo Oriente quis tomar

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título. Descobriu navegação de mares incógnitos per os quais se navega destas partes de 219 Portugal per aquelas orientais da Índia; tomou posse deste caminho da navegação per o título dela. Descobriu terras habitadas de gentio idólatra e mouros heréticos, pera se poderem conquistar e tomar das mãos deles como de injustos possuidores, 229 pois negam a glória que devem a seu Criador e Remidor; intitulou-se por senhor delas. Descobriu o comércio das especearias, as quais eram tratadas e navegadas per aqueles povos infiéis; per o mesmo modo, pois era senhor do caminho e da conquista da terra, também lhe convinha o senhorio do comércio dela. Pera os quais títulos não houve mister mais escritura que a primeira doação apostólica, e trazê-los ele em seu ditado, quanto mais que ao presente já são confirmados per o direito de usucapionis (como dizem os juristas) de mais de cinquenta e tantos anos de posse, segundo se verá no processo desta nossa história per este modo. Quanto à Navegação, foi sempre tam grande a potência de nossas armadas naquelas partes orientais, que por sermos com elas senhores dos seus mares, quem quere navegar, ora seja gentio, ora mouro, pera segura e pacificamente 70 o poder fazer, pede um salvo-conduto aos nossos capitães que lá andam, ao qual eles comumente chamam cartaz; e se este infiel é achado, não sendo dos lugares onde temos fortalezas, ou que estão em nossa amizade, com justo título o podemos tomar de boa guerra. Porque, ainda que per direito comum os mares são comuns e patentes aos navegantes, e também per o mesmo direito somos obrigados dar servidão às propriedades que cada um tem confrontadas connosco, ou pera que lhe convenha ir por não ter outra via púbrica, esta lei há lugar somente em toda a Europa acerca do povo cristão, que, como por fé e bautismo está metido no grémio da Igreja Romana, assi no governo de sua polícia se rege pelo Direito Romano. Não que os reis e príncipes cristãos sejam súbditos a este direito imperial, principalmente este nosso reino de Portugal, e outros que são imediatos ao Papa per obediência, e não por serem feudatários, mas aceitam estas leis enquanto são justas e conformes à razão, que é madre do direito. Peró acerca dos mouros e gentios que estão fora da lei de Cristo Jesu, que é a verdadeira que todo homem é obrigado ter e guardar, sob pena de ser condenado a fogo eterno, quem no principal, que é alma, está condenado, a parte que ela anima não pode ser privilegiada nos benefícios das nossas leis, pois não são membros da congregação evangélica, posto que sejam próximos por racionais, e estão enquanto vivem em potência e caminho pera poderem entrar nela. E ainda conformando-nos com o mesmo direito comum, não falando nestes mouros e gentios que tem perdida esta aução por não receberem nossa fé, mas qualquer membro dela não pode pera aquelas partes orientais pedir servidão, porque, ante da nossa entrada na 220 Índia, com a qual tomamos posse dela, não havia algum que lá tivesse propriedade herdada ou conquistada, e onde não há aução precedente, não há servidão presente ou futura. Porque como todo auto, pera se continuar per muito tempo, requere princípio natural, 230 assi as auções, pera serem justas, dependem de um princípio de precedente justiça, que no direito comum é um centro universal, a que hão-de concorrer todolos autos dos homens que vivem segundo a lei de Deus. Quanto ao título da Conquista, hoje per ela são metidos na Coroa deste reino estes reinos Sofala, Quíloa, Mombaça, Ormuz, Goa, Malaca, Maluco, com todalas ilhas do seu estado; e os senhorios da cidade Diu e Baçaim, com todas suas terras que são do reino de Cambaia, e adiante Chaúl, Baticalá, em todalas quais partes temos nossas fortalezas com oficiais e ministros do governo da terra. Peró ao presente temos leixado Quíloa e Mombaça, por serem partes mui doentias, custosas e sem fructo, como leixámos a Ilha Socotorá e Anchediva, por não serem necessárias. E assi temos também outras muitas terras, posto que não sejam intituladas em reinos, cujos portos

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estão à nossa obediência e recebem nossas naus com reverência, como suas superioras. Do título do Comércio, como ele requere duas vontades contraentes em ua cousa, o qual acto pressupõe paz, amizade e obediência, o testemunho que temos da posse dele são quantas naus cadano vem carregados daquelas partes a este reino, com muita especearia e todo género de cousas que se nelas produzem e fazem. Isto é falando em geral, que em particular deste comércio temos uso per três modos: O primeiro é quando se faz nas terras e senhorios acima nomeados que houvemos per conquista, contratamos com os povos da terra como vassalo com vassalo de um senhor, cujos direitos das entradas e saídas são da Coroa deste reino. O segundo modo, é termos contratos prepétuos com os reis e senhores da terra, de a certo preço nos darem suas mercadorias e receberem as nossas, assi como está assentado com os Reis de Cananor, de Chale, de Cochi, de Coulão e Ceilão, os quais são senhores da frol de toda a especearia que há na Índia. E porém este modo de contratar é somente acerca das especearias que eles dão aos oficiais del-Rei que ali residem em suas feitorias pera carga das naus que vem a este reino; e todalas outras cousas que não são especearia, estas tais são livres e comuas pera todo português e natural da terra poder tratar, o preço das quais cousas está na vontade dos contraentes, sem ser atado nem taxado a ua justa valia. O terceiro modo é navegarem nossas naus e navios per todas aquelas partes e conformando-nos com o uso da terra, contraemos com os naturais dela, per comutação de ua cousa per outra ao seu preço e ao nosso. E posto que estes três títulos - Conquista, 221 70v Navegação e Comércio - sejam actos, em tempo, não terminados e finitos, e, em lugar, tam grandes que compreendem tudo o que jaz do Cabo Bojador té o fim da terra oriental, etc., e neste ano de quinhentos e um, que el-Rei Dom Manuel se intitulou deles, não podia tomar outros mais próprios à justiça e aução que tinha na quela oriental propriedade, ao presente, salvos eles, bem se pode a Coroa deste reino intitular destes reinos que tem conquistado: Na Etiópia, de Sofala, Quíloa e Mombaça. E na Arábia e Pérsia, do grande reino Ormuz, cujo estado com muitas vilas e lugares está nestas duas partes de terra. E na Índia, dos reinos 231 de Goa, Malaca e Maluco, com todolos mais senhorios que nestas quatro províncias tem navegado e conquistado. E assi na província de Santa Cruz, ocidental a estas, a qual, ao presente, el-Rei Dom João o terceiro, nosso senhor, repartiu em doze capitanias, dadas de juro e herdade às pessoas que as tem, como particularmente escrevemos em a nossa parte intitulada Santa Cruz. Os feitos da qual, por eu ter ua destas capitanias, me tem custado muita substância de fazenda, por razão de ua armada que, em praçaria de Aires da Cunha e Fernão de Álvares de Andrade, tesoureiro-mor deste reino, todos fizemos pera aquelas partes o ano de quinhentos trinta e cinco. A qual armada foi de novecentos homens, em que entravam cento e treze de cavalo, cousa que pera tam longe nunca saiu deste reino; da qual era capitão-mor o mesmo Aires da Cunha; e por isso o princípio da milícia desta terra, ainda que seja o último de nossos trabalhos, na memória eu o tenho mui vivo, por quam morto me leixou o grande custo desta armada sem fructo algum.

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221 70v 231 Capítulo II. Como o Almirante Dom Vasco da Gama partiu deste reino o ano de quinhentos e dous, com ua grande frota; e o que passou neste caminho, té chegar a Moçambique. Por as causas que atrás apontamos, com que se el-Rei Dom Manuel determinou prosseguir o descobrimento e conquista da Índia e tomar os títulos dela, quis neste ano de quinhentos e dous mandar vinte velas. Cinco delas haviam de ficar de armada na Índia, em favor de duas feitorias, ua em Cananor, outra em Cochi, que haviam de estar em terra com oficiais a elas ordenados, por causa da amizade e comércio que estes dous reis desejavam ter com ele, como lhe enviaram dizer per seus embaixadores, que Pedrálvares Cabral trouxe. E, além destas cinco velas ficarem pera favor destas duas feitorias, também no verão alguns meses haviam de ir guardar a boca do estreito do Mar Roxo, pera defender que não entrassem e saíssem per ele as naus dos mouros de Meca, que eram 222 aqueles que maior ódio nos tinham e que mais empediam nossa entrada na Índia, por causa de trazerem entre as mãos o maneo das especearias que vinham a estas partes da Europa per via do Cairo e Alexandria. A capitania-mor das quais velas deu el-Rei a Vicente Sodré, tio de Dom Vasco da Gama, irmão de sua mãe; e os outros capitães que haviam de andar com ele eram Brás Sodré, seu irmão, e Álvaro de Taíde, natural do 232 Algarve, e Fernão Rodrigues, Badarças de alcunha, filho de Rui Fernandes de Almada, e António Fernandes, o qual, posto que logo daqui não fosse em navio, em Moçambique lhe havia de ser dada ua caravela que se ali havia de armar, da qual a madeira ia daqui lavrada, como se fez. E por razão que esta armada havia de ficar na Índia pera este fundamento que el-Rei fazia, quis que partisse diante das outras quinze velas que aquele ano também iam. Pedrálvares Cabral, a quem el-Rei tinha dada a capitania-mor de toda esta armada, quando viu este apartamento de velas e ainda o regimento que el-Rei dava a Vicente Sodré, em modo que quási o fazia isento dele, não ficou contente. E como ele era homem de muitos primores acerca de pontos de honra, teve sobre este negócio alguns requirimentos, a que el-Rei lhe não satisfez. Finalmente ele não foi, e a armada toda deu el-Rei a Dom Vasco da Gama, com o qual juntamente partiu Vicente Sodré, que levava a sucessão dele. E porque ao tempo da sua partida outras cinco velas não eram de todo prestes, ficaram e partiram o primeiro dia de Abril; a capitania-mor das quais levou Estêvão da Gama, filho de Aires da Gama, 71 e primo com-irmão dele, Dom Vasco da Gama. E os capitães que iam debaixo de sua bandeira eram Lopo Mendes de Vasconcelos, filho de Luís Mendes Vasconcelos, Tomás de Carmona, Lopo Dias, criado de Dom Álvaro, irmão do Duque de Bragança, João de Bonagracia, italiano. E os capitães que partiram a dez de Fevereiro, juntamente com Dom Vasco da Gama, eram Dom Luís Coutinho, filho de Dom Gonçalo Coutinho, de alcunha Ramiro, o segundo Conde de Marialva, Francisco da Cunha, das Ilhas Terceiras, João Lopes Perestrelo, Pedro Afonso de Aguiar, filho de Diogo Afonso de Aguiar, Gil Matoso, Rui de Castanheda, Gil Fernandes, Diogo Fernandes Correa, que ia por feitor pera ficar em Cochi, e António do Campo. E somente este, de todas estas vinte velas aquele ano não foi à Índia, do qual ao diante faremos relação. E ante de partir esta frota, estando el-Rei em Lisboa, a trinta de Janeiro, foi ouvir missa à Sé, e, depois de acabada, com solene fala, relatando os méritos de Dom Vasco da Gama, o fez Almirante dos mares de Arábia, Pérsia, Índia, e de todo Oriente. No fim do qual auto el-Rei lhe entregou a bandeira do cargo que levava, e di foi levado per todolos principais senhores e fidalgos

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que eram presentes, 223 com grande pompa, até os Cais da Ribeira, onde embarcou. Partido de Restelo, fazendo sua derrota via do Cabo Verde, o derradeiro dia de Fevereiro surgiu no rosto dele, onde os nossos chamam Porto Dale. No qual esteve seis dias, fazendo sua aguada e algua pescaria, e ali veo ter com ele ua caravela que vinha da Mina, de que era capitão Fernando de Montarroio, o qual trazia duzentos e cinquenta marcos de ouro todo em manilhas e jóias que os negros costumam trazer. O Almirante, porque levava consigo Gaspar da Índia, que ele tomou em Anchediva, e assi os embaixadores del-Rei de Cananor e del-Rei de Cochi, 233 quis-lhe dar mostra dele, não tanto pola quantidade, quanto porque o vissem assi como vinha por lavrar, e soubessem ser el-Rei Dom Manuel senhor da mina dele, e que ordinariamente em cada um ano lhe vinham doze e quinze navios que traziam outra tanta quantidade. A vista do qual ouro houveram estes índios por tam grande cousa, que vieram descobrir a Dom Vasco da Gama ua prática que em Lisboa teveram com eles uns venezeanos, em que lhe fizeram crer que as cousas deste reino de Portugal eram bem diferentes do que eles viam naquela soma de ouro, e o caso foi per esta maneira: Ao tempo que esta armada da Índia se fazia em Lisboa prestes, estava nela um embaixador dos venezeanos, homem nobre e prudente, a vinda do qual a este reino era pedirem eles a el-Rei Dom Manuel ajuda contra o Turco que lhe tinha tomado Modon , e procedia na guerra contra eles, de que se esperava poder sobrevir grã dano à Cristandade, o qual socorro lhe ele mandou, segundo escrevemos em a nossa África. E como este negócio do comércio das especearias era ua grã parte de que o estado de Veneza se sustentava, vendo estes embaixadores da Índia em Lisboa, ou per mandado do embaixador venezeano, ou per qualquer outro modo que fosse, alguns familiares seus, mostrando curiosidade de querer saber as cousas da Índia, foram falar com eles. Tendo secretamente prática sobre o trato da especearia, assi os induziram, que lhes fizeram crer que o embaixador de Veneza era vindo a este reino, a dar adjutório de dinheiro e mercadorias pera se fazer aquela armada em que eles haviam de tornar pera a Índia. Porque este reino de Portugal era mui pequeno e pobre, e não se atrevia a tamanho negócio como era o trato da especearia, e a senhoria de Veneza era a maior potência de toda a Cristandade, a qual senhoria, des que houve trato no Mundo, sempre negoceara com os mouros do Cairo que traziam esta especearia pelo Mar Roxo, do reino de Calecute e de toda a costa Malabar, donde eles eram naturais. Que o sinal desta verdade eles o podiam lá ver e saber, porque quanta moeda de ouro os mouros levavam pera a compra dela, tudo eram ducados venezeanos, e as sedas escarlatas como todalas outras polícias que estes mouros levavam, da 224 mão dos venezeanos se havia em os portos de Alexandria e Barute onde eles mandavam suas naus a fazer com os mouros comutação destas cousas com a especearia que ali traziam. Que se espantavam muito como os reis e príncipes daquelas partes leixavam de contratar com os mouros como té li fizeram, pois per eles podiam haver todalas cousas que a Senhoria de Veneza tinha per modo tam pacífico, como sempre usaram. O qual modo eles eram testemunha não terem os portugueses, porque, 71v como eram homens da guerra e não usados na mercadoria, todo o seu negócio, per este novo e comprido caminho que tinham descoberto, havia 234 de ser a força de armas, e trabalharem por destruir os mouros daquelas partes por serem seus capitais imigos nestas ocidentais de África, por andarem em contínua guerra com eles. Finalmente per este modo assi encheram os venezeanos as orelhas dos embaixadores, que levavam eles maior opinião do estado de Veneza que deste reino, e que o mais daquela armada era

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ajudas desta grande Senhoria. Peró quando eles viram o ouro que lhe o Almirante Dom Vasco amostrou, ainda que não era muito em peso, como vinha em manilhas e jóias parte dele, e outro assi como nace, fazia tam grande volume, que houveram eles que Portugal, em ter aquela mina, era mais poderoso e rico que todolos reis da Índia, porque nela, principalmente em todo o Malabar, não há ouro, e todo lhe vai de fora. O Almirante, porque el-Rei Dom Manuel soubesse gratificar ao embaixador de Veneza, que ficava em Lisboa, esta informação que os seus deram a estes índios, per o mesmo capitão Fernão de Montarroio lho escreveu. E acabada de fazer sua aguada, um domingo, seis de Março, com a maior parte da gente saiu em ua ilheta, a que chamam Palma, pegada no porto de Bezeguiche, onde ouviu missa e pregação, e ao seguinte dia se fez à vela, fazendo sua viage. Na qual, té o parcel de Sofala teve alguns temporais, que lhe desaparelhou alguas naus, e, chegado àquele parcel, na paragem dela, mandou a Vicente Sodré, seu tio, que se fosse a Moçambique com todalas naus grossas, enquanto ele ia dar ua vista a Sofala, com quatro navios pequenos, por lho el-Rei mandar em seu regimento. Na qual ida, ele, Almirante, não fez mais que algum resgate de ouro com os mouros que estavam na povoação, porisso a relação das cousas desta terra leixamos pera outro lugar, e continuamos com Vicente Sodré, que chegou a Moçambique, onde armou ua caravela de que a madeira ia de cá lavrada, a qual, quando o Almirante chegou a Moçambique, que foi a quatro de Junho, achou já quási de todo acabada, havendo quinze dias que Vicente Sodré era chegado.

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225 71v 235 Capítulo III. Como, partido o Almirante de Moçambique, foi ter à cidade Quíloa, onde se viu com o Rei dela e o fez tributário; e di se partiu pera a Índia, onde, ante de chegar a Cananor, tomou a nau Meri, do Soldão do Cairo. O Almirante Dom Vasco da Gama, depois que chegou a Moçambique, deu pressa a se lançar ao mar a caravela que estava armada e fez capitão dela a João Serrão, um cavaleiro da casa del-Rei. E em quatro dias que se ali deteve, por alguas naus fazerem água pelo costado, lhe mandou dar pendor. E também assentou paz com um Xeque da povoação, que já era outro e não aquele com quem tinha passado o que atrás fica, quando descobriu aquele caminho. Na mão do qual achou ua carta de João da Nova, em que dava conta a qualquer capitão que per ali passasse do que lhe acontecera per toda aquela costa e na Índia, dando-lhe aviso dalguas cousas. Por razão da qual carta, o Almirante leixou na mão do Xeque ua pera Estêvão da Gama, que partira deste reino com cinco naus e ainda não era chegado, e outra pera Luís Fernandes e António do Campo, dous capitães que, ante de chegar ao Cabo das Correntes, com um temporal que ali teve, se apartaram dele, Almirante, nas quais cartas dava regimento a todos do que haviam de fazer, que era diferente do que lhe dera ante que partisse deste reino, e isto por causa dos que achou na carta de João da Nova. Feitas estas cousas, partiu-se pera Quíloa, onde chegou a doze de Julho, a qual cidade ficou assombrada, vendo o terror com que o Almirante entrou, por ser tudo fogo e um contínuo torvão de artelharia; porque, como o Rei desta cidade estava mui isento e com Pedrálvares Cabral e João da Nova tinha usado de cautelas de muita maldade que nele havia, quis o Almirante entrar com este furor polo assombrar. E posto que também com ele quisera andar em dilações, enquanto metia dentro na ilha gente pera se defender, o Almirante lhe não deu tempo pera usar destes seus modos, ca teve com ele outros de mais conclusão, com que o 72 fez vir à praia, e se meteu em um batel com cinco homens principais a lhe falar aos batéis em que o Almirante já vinha pera sair em terra e meter a cidade a fogo e sangue. Ao qual Rei, per nome Habraemo, o Almirante fez mais gasalhado e honra do que ele merecia, polo que tinha feito aos capitães passados, e por quam revel fora em querer vir ali. Finalmente o Almirante lhe deu ua carta del-Rei Dom Manuel, sobre ela tratou com ele que se fizesse seu vassalo, pera ficar em sua amizade e debaixo de sua proteição, com tributo de quinhentos miticais de ouro, peso que, amoedado, podiam ser, da nossa moeda, quinhentos oitenta e quatro 226 cruzados; isto mais em sinal de obediência que por a quantidade dele. Em 236 retorno do qual, o Almirante lhe mandou ua patente em nome del-Rei Dom Manuel, em que relatava aceitá-lo por vassalo com aquele tributo, prometendo de o defender e amparar, etc., e mais lhe mandou ua bandeira das quinas reais deste reino, como sinal da honra da vassalagem que recebia, e alguas peças pera sua pessoa. A qual bandeira foi arvorada em ua haste e levada em um batel, acompanhado doutros com muita gente vestida de festa, e trombetas; e el-Rei a veo receber à praia, fazendo-lhe reverência como quem reconhecia aquele sinal de sua proteição. E tomada per suas próprias mãos a levou um bom pedaço, e des i a entregou a um mouro dos principais, o qual andou per toda a cidade, e o povo trás ele, bradando: - Portugal! Portugal! - e per derradeiro foi posta a vista das nossas naus em ua torre das casas del-Rei. Acabada esta solenidade, espediu-se o Almirante dele, e assi de Mahamede Enconi, que foi

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parte mui principal pera el-Rei vir àquela obediência; e o Almirante folgou muito de o ver por quam fiel amigo sempre se mostrou aos capitães que ali foram. E posto que ele, Almirante, depois que partiu desta cidade Quíloa, levasse determinado de passar per Melinde, pera ver el-Rei e lhe gratificar o gasalhado que dele recebeu, quando per ali passou, eram tam grandes as correntes, que o escorreu e foi tomar ua enseada abaixo, que seria de Melinde oito léguas. El-Rei, quando soube que ele estava ali, escreveu-lhe ua carta per mão de Luís de Moura, que era um dos degredados que Pedrálvares ali leixou; e ele lhe respondeu, dizendo a causa de ir ter àquela parte, não trazendo cousa que mais desejasse ver que sua pessoa; mais pois o tempo lhe não deu lugar, quando embora tornasse da Índia, esperava em Deus de o ter melhor pera se ver com ele. Partido o Almirante daquela enseada, atravessou o grã golfão caminho da Índia, no qual foi dar com ele Estêvão da Gama com três naus; e depois que chegaram à Ilha de Anchediva, vieram as mais de toda aquela armada, somente António do Campo, que não passou aquele ano à Índia. E nesta ilha convaleceu toda a gente que levava enferma, e di se foi lançar ao Monte de Eli, por ser um cabo mui notável que está no princípio da costa da Malabar. Na qual parte ordenou suas naus, ua em vista doutra, começando no rosto do cabo até quinze léguas ao mar, porque não passasse vela algua sem ser vista; e per outros navios pequenos mandou correr toda a costa daquela paragem. E como achavam até um barco, era logo levado ante ele, Almirante, a dar rezão de si; a maior parte dos quais, que ali foram tomados, por serem de Cananor, mandou soltar, e aos de Calecute reter por causa de ser nosso imigo. 237 El-Rei de Cananor, tanto que soube parte destas obras que ele andava fazendo, tam vezinhas ao 227 seu porto, o mandou visitar, e assi lhe escreveram os nossos que lá estavam com ele, dando-lhe novas do estado da terra; aos quais ele respondeu e a el-Rei de Cananor, dando-lhe agradecimento polo bom tratamento deles. Também nestes dias que ali andou respondeu a certos mercadores de Calecute que lhe escreveram per mão de um português, chamado Fernão Gomes, que era dos cativos que lá ficaram do tempo de Pedrálvares, e a reposta foi mui diferente do que eles esperavam. Porque a substância da carta que eles escreveram era espantarem-se como ele tratava mal as cousas de Calecute, o qual estava com grande desejo de o receber pera assentar paz, amizade e comércio da maneira que ele quisesse, por terem sentido que o Samori nenhua cousa mais desejava; e ele, Almirante, respondeu-lhe que ainda não fizera cousa contra Calecute igual à maldade que cometera na morte e roubo dos portugueses; e que té não haver emenda disto, ele não compria o que el-Rei Dom Manuel, seu senhor, lhe mandava fazer sobre isto. Que estas novas podiam dar ao seu Samori, enquanto lhe não mandava outras acerca dalguas naus de Meca que ele ali andava esperando; e a primeira seria a chamada Meri, tam esperada de todos. 72v Passados alguns dias, nos quais sempre o Almirante teve que fazer em dar audiência a mouros que lhe levavam estes navios que andavam ao longo da terra, veo lhe cair na mão ua nau que ele esperava, de que tinha nova per alguas perguntas que fazia a estes mouros, que, segundo lhe tinham dito, era do Soldão do Cairo, capitão e feitor um mouro per nome Joar Faquim; a qual, partida de Calecute carregada de especearia e por ser mui grande e segura, foram nela muitos mouros honrados em romaria à sua abominação de Meca, e tornava com estes romeiros e também carregada de muita riqueza. O Almirante, como viu que o navio capitão Gil Matoso a tinha rendido, por vir dar primeiro com ele, quási a vista de todos, meteu-se em o batel grande da sua nau com o feitor Diogo Fernandes Correa, Diogo Godinho e Diogo Lopes, escrivães, e foi-se ao navio de Gil Matoso, porque o tempo acalmou e não podia vir a ele. E tanto que foi em o navio, per o batel mandou vir ante si o capitão da nau e os principais mercadores dela, a que fez alguas perguntas: entre as quais

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foi saber que cabedal traziam pera empregar em especearia. E levemente, sem os forçar muito, disse que se tornassem à nau e que as cousas de pouco volume que traziam pera este emprego que lhas trouxessem. 238 Os mouros, parecendo-lhes que isto era ua honesta maneira que o capitão tinha de lhe pedir algua cousa, assentaram terem feito um grande siso em se render ao navio, porque, com algum presente que levassem ao Capitão-mor, acabariam tudo; ca, se eles presumiram o que depois passou, caro houvera de custar sua entrega. Finalmente, tornados ante o Almirante com ua soma de dinheiro amoedado em ouro e algua 228 prata lavrada, brocados, sedas, que todo poderia valer até doze mil cruzados, mandou ele entregar tudo ao feitor, e eles que se tornassem a sua nau, que ao outro dia os despacharia, por ser já mui tarde. Quando veo a menhã, que as naus da frota estavam já i juntas derredor desta que todos andavam esperando, entrou o Almirante com alguas pessoas nela e mandou-lhe tirar sobre coberta mais fazenda e entregá-la a Diogo Fernandes; e depois que per este modo não pôde haver mais dos mouros, tornou-se a sua nau São Hierónimo. E vindo pera se por ao longo do costado da nau dos mouros e mandar baldear dela na sua toda fazenda que trazia, per desastre ficou um criado dele, Almirante, entalado entre os costados das naus, de que morreu; com que ele houve tanto pesar, que se fastou da nau, e mandou a Estêvão da Gama e ao feitor Diogo Fernandes Correa que a levassem mais ao pego, por não fazer nojo às nossas velas, e depois que lhe fizessem baldear quanta fazenda trazia, lhe posessem o fogo. Haveria nesta nau duzentos e sessenta homens de peleja e mulheres e meninos mais de cinquenta; os quais mouros, enquanto lhe tomaram a fazenda e armas, vendo tanta nau derredor de si, sofreram o que té li lhe foi feito. Peró quando eles viram que os batéis das nossas naus estavam em torno da sua, poendo-lhe fogo, que era perigo da vida e não dano da fazenda, determinados de morrer como cavaleiros, com alguas armas que esconderam e às pedradas, fizeram apartar os batéis. A este tempo um dos nossos navios, que andava em vigia doutras naus vinha à vela demandar a nau capitânia; e quando viu os batéis andar derredor desta nau, veo envestir com ela. Mas como o navio era pequeno e a nau mui grande, e os mouros não faziam já conta das vidas e queriam morrer vingados, em o navio chegando, saltaram no castelo da vante, metendo-se tam rijo com os nossos, que os fizeram recolher aos castelos da popa grã parte deles, de que feriram muitos e mataram três ou quatro. Na qual entrada, havendo eles alguas armas dos nossos, peró que andavam mui feridos, a fúria os trazia tam vivos, que lhe houvera de ficar o navio em poder. Porém sobreveo a nau Julioa, capitão Lopo Mendes de Vasconcelos, com que os mouros se recolheram a sua própria nau; e em esta de Lopo Mendes, prepassando per ela, cuidando que a aferrava, lançaram-lhe dentro ua chuva de pedras que lhe escalavrou muita gente. O Almirante, que estava de largo, vendo como esta nau espedia de si os que chegavam a ela, passou-se ao navio São Gabriel, de Gil Matoso, e, chegando a ela, achou que a tinha aferrado Dom Luís Coutinho com a sua 239 nau Lionarda, ao qual se ele passou, donde pelejaram tanto com ela, matando-lhe muita gente, té que a noite apartou a peleja. Quando veo ao outro dia, ainda com muito trabalho e perigo dos nossos a poder de fogo acabaram com ela; e somente deste incêndio, por lhe 229 quererem dar vida, mandou o Almirante recolher vinte e tantos mininos, e um mouro corcovado que era 73

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piloto, os quais meninos ele mandou fazer cristãos. E porque no feito desta nau, António de Sá, moço da câmara del-Rei Dom Manuel, foi o primeiro que entrou nela, e o fez como homem de sua pessoa que ele era, o armou cavaleiro.

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229 73 239 Capítulo IV. Como o Almirante se recolheu pera Cananor, e das vistas que houve entre ele e el-Rei; e depois, sobre o assentar do preço das especearias, se partiu pera Cochi, desavindo dele, e o que sobre isso sucedeu. Acabando o Almirante de se desapressar desta nau, que era a principal cousa que o fazia andar naquela paragem, pola fama que tinha dela, assi de sua riqueza (da qual ele houve mui pouca em comparação do que trazia), como dos mouros de Calecute, que vinham nela, recolheu-se dentro no porto de Cananor. Onde, depois que foi visitado del-Rei per recados assentou com ele que se vissem em ua ponte tam metida dentro no mar, que podesse ele, Almirante, estar em ua caravela, e ele na ponte, praticando ambos. Feita esta ponte e assentado o dia destas vistas, saiu o Almirante das naus na sua caravela toldada de veludo verde e roxo, com muitas bandeiras de seda e per derredor todolos batéis também embandeirados, e neles e na caravela a mais limpa gente da armada; e em guarda de sua pessoa vinha outra caravela, que tudo era artelharia e gente armada, porque quem oulhasse pera a galantaria das cores dos vestidos, também visse reluzir armas, e se ouvisse trombetas, ouveria bombardas. El-Rei, como soube que o Almirante partia das naus com este aparato, também, por lhe mostrar o seu, saiu de suas casas que estavam a um cabo da povoação, tomando ao longo da praia pera lhe verem sua pompa. Diante do qual vinha muita gente solta, cujo ofício nas tais cousas é poer-se onde melhor possa ver; e detrás deste povo vinham dous elefantes adestrados 240 per dous índios, que de cima deles, em modo de porteiros, faziam afastar a gente, leixando um grande terreiro ante a pessoa del-Rei. E de quando em quando remetiam os elefantes ao cardume dos homens, como que os queriam fazer apartar, e em modo de prazer tomavam um com a tromba e andavam volteando com ele no ar, e per derradeiro o lançavam encima da outra gente. El-Rei vinha em um andor dos que eles usam, às costas de certos homens vestidos a seu modo com panos de seda, e per cima o cobriam três ou quatro sombreiros de pé de copa de um grande esparavel, que faziam sombra não somente à pessoa del-Rei, mas ainda àqueles que o traziam aos ombros. Outros traziam uns 230 abanos altos com que abanavam, como quem lhe queria refrescar o ar per onde passava; e junto dele vinha um homem que lhe trazia um vaso de prata dourado, a modo de copa, pera lançar a seiba que fazem do bétel que o mais do tempo andam remoendo, cousa entre eles mui costumada, do qual em os livros do nosso Comércio, no capítulo deste bétel, mui particularmente tratamos dele e deste uso geral daquelas partes. Toda a outra gente que acompanhava el-Rei vinha posta em ordenança, parte detrás e parte diante, os quais seriam quatro mil homens de espada e adarga; e deles alguns, por festa, em mui boa ordem se saíam do fio do seu lugar e jogavam de esgrima mui leve e soltamente, quási ao som dos estromentos que traziam pera animar o furor da guerra, como vemos usar na ordenança dos suíços nesta nossa Europa. Posto cada um em seu lugar, el-Rei no cadafalso da ponte e o Almirante na popa da caravela, tam chegados um a outro que parecia estar em um mesmo assento, falaram um pedaço per meio de seus intérpretes. Na qual prática não houve mais que oferecimentos de parte a parte, e apresentar um ao outro o que traziam pera se darem, segundo o uso da terra. El-Rei, como era homem que parecia de sessenta anos, debilitado em suas carnes e mui

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escrupuloso em sua religião, por ter ua certa dinidade acerca dos brâmanes, a quem sob grave escomunhão é defeso tocar-se com outra gente por haverem que é profana, e sobretudo mui temeroso das nossas armas e medos que lhe os mouros faziam ter de nós, espediu-se do Almirante, dizendo que, 73v como homem velho, já não podia sofrer a grande calma, que lhe perdoasse; que se queria recolher. Que quanto ao negócio do trato da especearia, ele mandaria logo ao outro dia os seus oficiais e assi os principais mercadores da terra pera estarem com ele nisso, e que tudo se faria pera que el-Rei de Portugal, seu irmão, fosse servido. E sem mais prática el-Rei se recolheu a seus paços na ordem em que veo, e o Almirante pera as naus, dando também sua mostra. Tanto que passaram estas vistas, quis o Almirante escrever ao Samori por lhe confundir seus propósitos e artifícios, dando modo como os mercadores de Calecute lhe escrevessem a carta que ante da tomada da nau Meri eles lhe escreveram, mostrando ser feita sem o Samori o saber. A substância da qual era denunciar-lhe ele, Almirante, como ficava naquele porto del-Rei 241 de Cananor; e porquanto ele tinha mandado dizer a alguns seus naturais que lhe escreveram, andando naquela paragem de Cananor, que, como acabasse ua obra que ali tinha por fazer, logo lhe havia de mandar recado dela, a obra era ter queimado a nau Meri do Soldão, e que aquele mouro, portador da carta, que fora piloto dela, lhe daria razão do caso. E porque per ventura ele não contaria todalas novas, lhe fazia saber que, de duzentos e sessenta homens que vinham nela, somente àquele mandou dar vida e a vinte e tantos 231 meninos: os homens foram mortos a conta dos quorenta e tantos portugueses que mataram em Calecute e os meninos foram bautizados a conta de um moço que os mouros levaram a Meca a fazer mouro. Que isto era ua mostra do modo que os portugueses tinham em tomar emenda do dano que recebiam, que o mais seria na própria cidade Calecute, onde ele esperava ser mui cedo. Dada esta carta ao mouro que o Almirante mandou vestir de cores, foi levado per Pedrafonso de Aguiar, capitão da nau São Pantalião que o pôs em Pandârani, que era perto de Calecute; o qual, quando chegou ante o Samori, ele era sabedor da tomada da nau Meri per cartas de mouros de Cananor. Ao dia seguinte, que el-Rei de Cananor disse ao Almirante que lhe havia de mandar homens que assentassem com ele o negócio do trato, vieram quatro dos principais da terra, dous mouros e dous gentios, aos quais o Almirante recebeu com honra e gasalhado. E começando de praticar com eles em os preços da especearia, achou-os em suas palavras mui diferentes do que lhe el-Rei tinha dito, dizendo eles que el-Rei não tinha das especearias, assi das que se davam na terra como das que vinham de fora, somente os direitos delas: tudo o mais era dos mercadores que nisso tratavam. Que ele não podia poer preço a fazenda alhea; e mais per este preço que lhe eles diziam levara o capitão João da Nova as que ali carregou; e em Calecute, ante que fosse o alevantamento, as que Aires Correa houve a este preço foram. O Almirante, posto que replicou, repetindo sempre que per os preços por que as davam aos mouros de Meca a esse lhe haviam de ser dadas, espediram-se estes mouros dele, dizendo que iriam dar disso conta a el-Rei. O que ele, Almirante, não houve por estranho, parecendo-lhe serem modos de contratar a seu prazer, segundo o tinha avisado Gonçalo Gil, que estava em Cochi, e assi Paio Rodrigues, que ficara ali em Cananor, da armada de João da Nova. Porém depois que ele viu que não tomavam conclusão e que tudo era querer dilatar o negócio pera se chegar o tempo de sua partida, e que el-Rei estava dali duas léguas com título que se afastava do mar, por lhe fazer nojo à sua má disposição, mandou a ele António de Sá, acompanhado de três ou quatro homens com uns apontamentos, pedindo-lhe que se 242 determinasse, segundo forma deles. Em reposta dos quais, António de Sá trouxe que pois ele, Almirante, não era contente dos preços e modo per que se lhe dava a especearia, podia ir em boa

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hora a Cochi, e, segundo o partido que lá fizesse, assi o fariam os mercadores de Cananor. Da qual reposta o Almirante ficou tam indinado, que mandou logo chamar a Paio Rodrigues e os que ficam com ele, dizendo que se recolhessem, porquanto ele se mandava per ua carta espedir del-Rei, com tais palavras que não convinha ficar ali algum português. Paio 232 Rodrigues, vendo a determinação do Almirante, pediu-lhe que houvesse por bem ser ele a pessoa que havia de enviar a el-Rei, contanto que a carta fosse um pouco moderada; porque, sendo assi, esperava tomar com ele algua boa conclusão, por saber já o modo de negociar com aquela gente. 74 O Almirante, porque lhe pareceu que não se perdia muito tempo em tentar el-Rei outra vez per Paio Rodrigues, o mandou a ele, aqueixando-se da mudança que achava em suas palavras, tomando por conclusão que, pois os mouros de Cananor tinham tanto poder em sua vontade que lha faziam mudar, ele também pela menhã se mudava dali pera Cochi, onde estava um Rei de muita verdade e que tinha mais conta com os portugueses que com os mouros. Que leixava ali ua caravela pera recolher aquele mensajeiro e os outros de sua companhia, e lhe fazia saber que, onde quer que achasse mouros de Cananor, havia de tratar como aos de Calecute, e lhe havia por alevantados os seguros que lhe tinha dado, pera poderem navegar. Porque gente perturbador de paz e concórdia, não merecia que alguém a tivesse com eles. E com este recado espediu Paio Rodrigues, e ele, Almirante, partiu-se ante menhã, leixando naquele porto de Cananor a Vicente Sodré em sua nau e ua caravela pera recolher Paio Rodrigues.

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232 74 242 Capítulo V. Como o Almirante se partiu via de Calecute e o que fez, chegando a ele; e di se partiu caminho de Cochi, ficando em maior quebra com o Samori do que estava dantes. Partido o Almirante desavindo del-Rei de Cananor e fazendo seu caminho ao longo da costa, veo ter com ele um zambuco em que vinham quatro homens gentios, do mais nobre sangue da terra, os quais lhe deram ua carta del-Rei de Calecute. A substância da qual era: se ele, Capitão-mor, leixara de ir a seu porto por razão do dano que fora feito ao feitor Aires Correa, ele lhe entregaria os autores daquela união; e que, além disto, por amor da amizade que desejava conservar com el-Rei de Portugal, naquela cidade Calecute lhe seria dado carga de especearia pera todalas naus que levava. Que pera isso mandava aqueles quatro homens, dos 243 mais nobres de sua casa, dos quais ficaria um com ele, enquanto os três lhe tornavam com reposta. O Almirante, como vinha quebrado com el-Rei de Cananor, recebeu estes naires com honra e gasalhado, mostrando ter muito contentamento del-Rei, por lhe mandar este seu recado per tais pessoas, dizendo que lhe parecia que esta vinda deles havia de suceder em bem, por não entrar neste negócio homem da casta dos mouros. Per o qual modo respondeu a el-Rei; e quanto à sua ida a Calecute, ele estava em caminho, que assi o faria como lhe mandava pedir. Espedidos os três 233 naires e ficando um per sua própria vontade com o Almirante, veo dar entre as caravelas que iam ao longo da terra, um zambuco com obra de trinta almas, naturais de Cananor, aos quais leixou ir em paz por ter já da noite passada vindo a ele um criado de Paio Rodrigues com ua carta em que lhe dava razão do que passara com el-Rei, e como estava submetido a toda razão e a conceder os capítulos que lhe mandara, e que Vicente Sodré levaria resolução de tudo per carta assinada del-Rei. Seguindo o Almirante seu caminho sempre pegado com terra, per três vezes o foi detendo o Samori com recados: um no porto de Chomba, outro em Pandârani e outro duas léguas ante de chegar a Calecute. E a este derradeiro porto, em reposta do que o Almirante lhe requeria, lhe mandou dizer, que, quanto ao pagamento da fazenda que os portugueses perderam no alvoroço que o povo de Calecute cometeu, por as afrontas que lhe os mesmos portugueses faziam, que ele, Capitão-mor, se devia contentar com a tomada da nau de Meca, que importou mais em substância de fazenda e em morte de gente, que dez vezes o que Pedrálvares tinha perdido. Que se de ua parte e da outra se houvessem de assomar perdas, danos e mortes, que ele, Samori, era o mais ofendido; e pois não requeria destas cousas restituição, sendo requerido com muitos clamores do seu povo que lhe desse emenda dos males que tinha recebido dos portugueses, e dissimulava este clamor por desejar ter paz e amizade com el-Rei de Portugal, que ele, Almirante, não devia mais repetir em cousas passadas e se devia contentar ir ter àquela sua cidade Calecute, onde acharia as especearias que houvesse mister. E quanto ao que dezia que lançasse do seu reino todolos mouros 74v do Cairo e de Meca, a isto não respondia, por ser cousa impossível haver de desterrar mais de quatro mil casas deles, que viviam naquela cidade não como estrangeiros mas naturais, de que o seu reino tinha recebido muito proveito. Que se ele, Almirante, sem estas capitulações tam impossíveis como apontava quisesse assentar paz e trato de comércio, que folgaria de o fazer. O Almirante, quando viu tam diferentes palavras do que té li tinha ouvido per recados da parte dele, Samori, porque as houve em lugar de afronta, não respondeu mais se não que ele seria a reposta. E não seriam com o Samori os mensageiros que trouxeram este recado, quando ele, Almirante, estava já surto ante a cidade Calecute, mandando logo tomar dous

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244 barcos pequenos com seis homens que vieram ter às naus, e isto com tenção de os mandar um e um com recados a el-Rei, temendo-se que, não os havendo per este modo, pera que uns ficassem em arreféns do que mandasse, per própria vontade nenhum lhe havia de aceitar levar recado a el-Rei. E parece que assi a tomadia destes, como dos outros que o Almirante veo tomando per o caminho, fez 234 obrigaram tanto, que logo aquela noite lhe veo recado do Samori, aqueixando-se que não sabia por que queria reter os seus naturais em modo de cativos. Que se o fazia por razão do ódio que tinha aos mouros, que os presos pouca culpa tinham na causa deste ódio; e se era como represária pera haver o que dezia terem perdido os portugueses no alevantamento passado, que já lhe tinha enviado dizer quanto mais dano e mais fazenda ele, Almirante, tinha havido que perdido em Calecute e que fosse ua perda por outra. O Almirante, como já dos recados que ao caminho ele, Samori, lhe mandara vinha indinado, este o indinou mais, e a reposta que levou foi que não viesse mais a ele com outro recado, senão trazendo consigo o preço das cousas que foram tomadas aos portugueses, e depois que fizesse esta entrega, então entenderia em o negócio da paz e trato da especearia. O brâmane que trouxe este recado, quado viu a indinação do Almirante, sem replicar cousa algua, se espediu com mais temor do que trouxera. E porque ele podesse contar ao Samori o que vira, mandou o Almirante em sua presença tomar ua nau que estava surta diante da cidade carregada de mantimentos e levar a bordo da sua; e assi mandou passar toda a artelharia das naus grossas, e as outras mais pequenas que podiam bem chegar a terra pera, com esta artelharia, varejar a povoação, dizendo que logo ao seguinte dia havia de começar esta obra. A qual cousa temendo o Samori pelo dano que Pedrálvares Cabral fizera quando lhe varejou toda a cidade, mandou per toda a frontaria da cidade, ao longo do mar, fazer ua estacada de grossas palmeiras entulhada per dentro, de maneira que lhe ficava em lugar de muro, não somente pera defender a saída em terra, se os nossos a quisessem cometer, mas ainda pera cegar toda a artelharia, com que a povoação não recebesse dano. Porém, como a tenção do Almirante não era sair em terra, mas esbombardear a cidade, quando veo ao outro dia, mandou chegar todalas velas pequenas a terra espaço conveniente, assi pera que a artelharia de ferro, que os mouros tinham assestada na principal frontaria da cidade, lhe não pudesse fazer nojo, como pera que a sua pudesse sobrelevar a estacada e fosse pescar a povoação. E ante que procedesse na obra deste aparato em que estava, o escreveu primeiro ao Samori per um dos gentios que se tomaram nos barcos, denunciando-lhe que, não vendo té o meio dia recado seu, com efeito do que lhe per tantas vezes 245 mandara dizer, ele abrasaria em fogo aquela sua cidade. Passado o qual termo, porque não houve reposta, mandou a todalas naus que estavam com recado pera isso, que cada ua enforcasse no lais da verga os mouros que lhe ele mandara; e sobre esta obra, que foi um espectáculo de muita dor a toda a cidade, começaram de ver e ouvir outro de maior sua confusão, tirando toda artelharia 235 naquele espaço do dia, que foi um contínuo torvão e ua chuva de pelouros de ferro e pedra, que fizeram ua mui grande destruição, em que também morreu muita gente. Quando veo sobre a tarde, por espedida e maior terror, mandou cortar aos enforcados, que eram trinta e dous, cabeça, mãos e péis, e foram metidos em um barco, com ua carta em que dezia, que, se aqueles, não sendo os próprios que foram na morte dos portugueses, somente por terem parentesco com os matadores, recebiam aquele castigo, esperassem os autores desta traição outro género de morte mais cruel. O qual barco mandou per um 75 André Dias, que depois foi almoxerife do almazém do reino. E os toros dos corpos destes membros mandou lançar ao mar a tempo que a maré vinha, pera irem ter à praia entre os olhos da gente e verem quanto custava ua traição feita a portugueses, e quam vingado havia de ser qualquer dano

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que lhe fizessem. A qual cousa assi assombrou toda a cidade, que, quando veo ao outro dia, que ele, Almirante, tornou a mandar fazer outra tal obra, não aparecia cousa viva per toda a praia, porque o gentio, como gente mais temerosa, desemparava os lugares da frontaria do mar, e os mouros a quem era cometido a guarda dele, não ousavam aparecer, enterrando-se na area dos valos e repairos que tinham feito. Tudo estava tam desemparado, que bem podera o Almirante saquear a cidade sem muita resistência; mas, como estas mortes de gente mais eram feitas pera terror de el-Rei desestir dos conselhos dos mouros, que por vingança do passado, não quis executar quanto dano podera fazer, por dar tempo a el-Rei que se arrependesse, e não causa que se indinasse com tam grande perda como fora, se lhe destruíra a cidade de todo. E porque não parecesse a el-Rei que aos portugueses mais os obrigava a cobiça que a honra, nestes dous dias que toda a armada se ocupou em varejar a cidade, nunca o Almirante quis mandar encetar a nau que mandara tirar do porto e trazer junto da sua, esperando que, se houvesse algum bom concerto com el-Rei, lha mandar restituir assi carregada como estava. Peró, depois que passaram os dous dias daquela fúria de fogo, por espedida mandou descarregar a nau de muitos mantimentos, que se repartiram per toda a armada e lhe foi mui bom refresco; e descarregada de quanto tinha e posto fogo, ardeu toda à vista da cidade, té onde lhe chegava a água, com a qual espedida se partiu o Almirante caminho de Cochi, onde chegou a sete de Novembro.

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236 75 246 Capítulo VI. Como el-Rei de Cananor, per meio de Paio Rodrigues, tornou a conceder as cousas que o Almirante lhe requeria; o qual recado lhe levou Vicente Sodré a Cochi, onde ele já estava, e das cousas que em sua chegada passou com el-Rei de Cochi. El-Rei de Cananor com o recado que lhe Paio Rodrigues levou do Almirante, vendo que era partido desavindo dele, teve não somente com o mesmo Paio Rodrigues grandes práticas, mas ainda com os gentios principais da terra, que não eram tam suspeitosos a nós como os mouros. E a primeira cousa que logo fez naquele dia da chegada de Paio Rodrigues, foi pedir-lhe, pela amizade que com ele tinha, se tornasse a Vicente Sodré e acabasse com ele que não partisse e se detevesse per espaço de dous ou três dias enquanto ele mandava ajuntar todolos mercadores da terra; no qual tempo esperava tomar tal assento, com que el-Rei de Portugal fosse servido e o Almirante contente. Porque, como este negócio das especearias dependia mais da vontade daqueles que andavam neste trato que da sua, e em cousa de proveito os homens eram maus de concordar - e o Almirante mui impaciente dos vagares dos mouros, e mais sendo imigos, queria que o servissem tam prestes, como se os tivesse ganhado de muito tempo por amigos - não o devia de culpar, se neste caso té então não tinha mais feito; e também as cousas de tanta importância geralmente mais se acabavam com amor que com indinação. Vicente Sodré, porque a míngua de ele não esperar aqueles dias, não se perdesse esta vontade que el-Rei mostrava (segundo lhe dezia Paio Rodrigues), esperou este tempo; em o qual teve conselho com os seus que zelavam a paz e bem do reino, e determinou-se de todo, mandando dizer ao Almirante per Vicente Sodré, que ele podia mandar carregar as naus que quisesse das sortes da especearia que lhe tinha prometido, assi e pola maneira que ele, Almirante, queria em seus apontamentos, e que a perda que nisso houvesse ele a refaria aos mercadores em os direitos que lhe haviam de pagar: porque mais estimava a amizade del-Rei de Portugal, que o acrescentamento das rendas de seu reino, posto que os oficiais de sua fazenda lho tinham contradito. E com este recado mandou a Paio Rodrigues e aos que estavam em sua companhia que se não fossem, porque ele esperava que o Almirante aceitasse sua oferta e ambos tornassem à primeira paz que tinham; e neste tempo 75v acabariam eles de desbaratar sua fazenda e fazer seu emprego, pera se poderem ir em as naus que fossem pera Portugal. 247 O Almirante, assi por razão deste recado del-Rei de Cananor, como por em algua maneira ter castigado o Samori, que eram as duas cousas que ele mais desejava, quando chegou a Cochi ia já mui confiado que não havia de achar el-Rei tam mudado como lhe tinha escrito 237 Gonçalo Gil Barbosa. E a causa por que ele, Gonçalo Gil, tinha este receo, era por estas cousas que ele contou ao Almirante, as quais ante de sua vinda estavam ordenadas. O Samori, per meio dalguns brâmanes, gente em que está a religião de todo o gentio daquelas partes, tinha convocados em sua amizade a el-Rei de Cananor e a el-Rei de Cochi, liando-se todos em nossa destruição, pera que ordenavam ua armada de mais de duzentas velas, entre naus e zambucos, com grande aparato de armas e número de gente. A qual, saindo dos portos onde cada um tinha armado a sua pera se ajuntarem todas em Calecute, Deus acudiu com um pouco temporal travessão, que deu com a maior parte destas velas à costa, com que ficaram tam quebrados que não ousaram de bolir mais com cousa algua. Porém entre eles estava ordenado, pois com as armas não podiam, que se ajudassem desta

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indústria: - ir cada um per si detendo e gastando o tempo desavindo-se em os preços da especearia, de maneira que, passada a monção da carga pera vir a este reino, forçadamente invernarem na Índia. E como as naus grandes não tinham portos pera isso, a maior parte delas haviam de vir à costa; e se metessem os navios pequenos em os rios, segundo costume da terra, tinham certo poderem logo ser queimados. Que lhe parecia que daqui procederam os modos que el-Rei de Cananor tevera com ele, em se desconcertar nos preços da especearia, e assi os recados do Samori, tudo a fim de lhe gastar o tempo. E pois era vindo a se concertar com el-Rei de Cochi, lhe pedia que fosse logo e não curasse de muitos escrúpulos com ele, e assi prouvesse na oferta del-Rei de Cananor, ante que o Samori tecesse com eles outra nova tea que o fizesse invernar na Índia, por estarem já em oito dias de Novembro. O Almirante, como já tinha experimentado parte destas cousas, bem viu que Gonçalo Gil falava como homem que tinha tenteado e sentido a tenção daqueles príncipes gentios; e porque sobre isso queria logo prover, ajuntou os capitães e principais pessoas da frota em conselho, onde Gonçalo Gil tornou a resumir o que dissera a ele, Almirante. Do qual conselho saiu espedir ele logo a Vicente Sodré com os navios da armada que haviam de ficar na Índia, mandou-lhe que andasse na paragem de Calecute té Anchediva, porque não entrasse ou saísse barco dalgum porto daquela costa, que não fosse visto per ele, e aos imigos desse o castigo que mereciam; e daqui mandasse recados a el-Rei de Cananor como ele, Almirante, ficava, tomando carga em Cochi, e que logo seria com ele. El-Rei de Cochi, neste tempo, não se tinha visto ainda com o Almirante, 248 e porque soube que andava pera entrar em seu porto ua nau de Calecute que vinha de Ceilão, a qual era de um mouro de Calecute chamado Nine Mercar, temendo que em Vicente Sodré saindo a tomasse, mandou pedir ao Almirante que não empedisse aquela nau que queria entrar naquele seu porto, posto que de Calecute fosse. Ao que o 238 Almirante respondeu que o porto e as naus eram suas, as quais estavam ao que mandasse, e que este era o principal mandado que trazia del-Rei, seu senhor; portanto que aquela e todalas mais de Calecute que ele quisesse, ainda que eram dos maiores imigos que os portugueses tinham naquela terra, elas seriam tratadas como as próprias suas. Do qual recado el-Rei ficou tam contente, que logo ordenou de se ver ao outro dia com ele, Almirante, sobre as quais vistas andava Gonçalo Gil. E porque quási foram ao modo das del-Rei de Cananor, leixaremos de particularmente tratar do aparato delas. Somente que, passadas as palavras gerais de sua vista, quando veo ao falar em o negócio do trato da especearia e preços dela, sobre que logo o Almirante quis entender, também achou el-Rei do bordo do de Cananor; donde entendeu ser certo o que lhe Gonçalo Gil tinha dito, com que se apartaram um do outro não mui contentes. Na qual espedida teve el-Rei um artifício com ele, Almirante, por lhe mostrar que não a força de palavras, mas que de sua própria vontade procedia o que nisso queria fazer; porque, indo ele, Almirante, pelo rio abaixo na caravela em que veo a estas vistas, deixando el-Rei todo o aparato com que viera a elas, somente com seis ou sete homnens principais meteu-se em um barco e veo a força de remo buscar o Almirante. E como homem confiado no que vinha fazer, meteu-se com ele na caravela e disse-lhe que ele o vira um pouco descontente 76 e que lhe parecia que isto procedia de ele, Almirante, ser mau de contentar mais que de ele ser duro em conceder; e porque ambos não ficassem infamados de malavindos, que ele se vinha meter em seu poder, e pois lhe entregava a pessoa, que entregava a vontade, que ali tinha tempo de se vingar da manencoria que trazia dele. Quando o Almirante viu a confiança com que el-Rei se meteu na sua caravela e a graça com que lhe dezia estas palavras, creo que tudo isto procedia da bondade de Deus, e que ele guiava o coração deste príncipe gentio per este modo não esperado; porque assi o descobrimento da Índia como o governo de paz e concórdia de tam bárbara gente, crêssemos vir de sua mão e não da nossa indústria. E depois que com muitas palavras agradeceu a el-Rei aquela confiança e modo de

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conceder nas cousas que lhe el-Rei, seu senhor, mandava per ele requerer, vieram assentar nos preços das especearias, de que logo fizeram solenes contratos de escritura, os quais duram até hoje. El-Rei de Cananor, tanto que soube parte destas cousas, ficou mui 249 temeroso que o Almirante não fosse mais ao seu porto, posto que per Vicente Sodré lhe mandasse recado que o havia de fazer; e isto lembrando-lhe as diferenças que teve com ele e quanta mais facilidade el-Rei de Cochi mostrou no modo de se com ele concertar, segundo lhe era dito per avisos que os mouros mercadores de Cochi mandaram aos de Cananor. E como homem desconfiado, sabendo que Vicente 239 Sodré andava sobre o porto de Calecute, ordenou de mandar dous embaixadores que fossem a ele com um português dos que estavam em companhia de Paio Rodrigues pera os encaminhar, pedindo-lhe per ua carta que desse ordem como aqueles seus embaixadores em um navio dos seus fossem a Cochi, porque os mandava ao Capitão-mor com negócio que importava muito ao serviço del-Rei de Portugal. A qual cousa Vicente Sodré fez com diligência, mandando ua caravela das suas que os levasse, e o Almirante os recebeu honradamente e tornou logo a espedir, mandando dizer per eles a el-Rei que tevesse sua ida por mui certa a Cananor, assentar as cousas que lhe mandava requerir, segundo forma do que ele tinha assentado com el-Rei de Cochi. Neste mesmo tempo, vieram a ele, Almirante, outros embaixadores, que diziam ser da gente cristã que habitava per as comarcas de Cranganor quatro léguas de Cochi, que em número seriam mais de trinta mil almas. A substância da qual embaixada era serem cristãos da linhagem daqueles que o Apóstolo São Tomé bautizara naquelas partes, os quais se governavam per certos bispos arménios que ali residiam e per meio deles davam sua obediência ao Patriarca de Arménia. E porquanto eles estavam entre gentios e mouros de que eram mal tratados, e tinham sabido ser ele capitão de um dos mais católicos e poderosos Reis da Cristandade da Europa, lhe pediam pelos méritos da paixão de Cristo, os quisesse emparar e defender daquela infiel gente que os perseguia, por se não perderem de todo aquelas relíquias de Cristandade que o Apóstolo São Tomé ali tinha, como memória dos trabalhos e martírios que ali passara. E que eles, com zelo de salvar suas almas e pessoas, se vinham entregar a ele per meio daqueles seus embaixadores, como se puderam entregar a el-Rei de Portugal, se presente fora, pois ele representava a sua; porquanto eles queriam ser governados e regidos per ele, e em sinal de obediência lhe entregavam a vara da justiça que entre si tinham. Com as quais palavras lhe apresentaram ua vara vermelha, tamanha como um cetro, guarnecida nas pontas de prata e na de cima tinham três campainhas de prata. O Almirante, depois que os ouviu, mostrando ter grande contentamento disso e assi do que lhe apresentaram, respondeu que a mais principal cousa que el-Rei, seu senhor, lhe encomendara, era que trabalhasse por ter comunicação com a Cristandade daquelas partes, por ter notícia que havia muita e mui avexada dos infiéis. Porém como ele, em chegando à Índia, com esta própria gente de infiéis tivera muito trabalho, como eles ouveriam 250 dizer, estas diferenças lhe gastaram todo o tempo, sem poder entender em outra cousa. E vendo ele que per si o não podia já fazer, por estar de caminho pera Portugal, leixava este cuidado a um capitão que havia de ficar naquelas partes com ua armada, o qual ao presente estava em Cananor com ela; e 240 a ele, quando tivessem necessidade, podiam requerer qualquer ajuda e favor, por que ele o faria com tanto amor como aos próprios portugueses que havia de leixar em Cochi e Cananor. E quanto ao que tocava a ele, Almirante, podiam ser certos que, depois que Deus o levasse a Portugal, ele representaria suas cousas a el-Rei, seu senhor, de maneira que, na primeira 76v armada, provesse como eles fossem consolados.

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Finalmente o Almirante per este modo os satisfez e lhe deu alguas cousas com que os espediu, depois que se informou do modo de sua religião e vida. E porque da Cristandade desta gente e do que se acerca deles tem de São Tomé, ao diante particularmente tratamos, e principalmente em a nossa Geografia, leixamos de o fazer aqui.

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240 76v 250 Capítulo VII. Como o Almirante per um artifício de engano que um brâmane teve com ele, foi ter ao porto de Calecute, onde passou grande risco de lhe queimarem a nau, e o que sobre isso fez; passado o qual trabalho partiu pera este reino, onde chegou a salvamento. Enquanto o Almirante passou estas cousas com estes embaixadores del-Rei de Cananor e da Cristandade de Cranganor, estava o feitor Diogo Fernandes Correa com os oficiais da feitoria que de cá iam ordenados e principalmente com Gonçalo Gil Barbosa, dando ordem à carga da especearia. O qual negócio se fazia em um recolhimento de madeira tam perto das naus, que ainda que a terra fosse suspeitosa, o sítio do lugar e favor delas os segurava de qualquer temor. E o que mais nesta parte descansava os nossos, era não haver ali aquele tráfego de mercadores de Meca como havia em Calecute, e mouros da terra eram poucos e não mui poderosos, e a povoação dos gentios cousa mui fraca, e as casas del-Rei metidas dentro polo rio; de maneira que, assi da parte da povoação dos mouros e gentios, como repairo de força que o Almirante nisso fez, tudo estava seguro pera qualquer caso que sobreviesse, segundo o estado da terra, do sítio da qual ao diante faremos maior relação. Andando o Almirante no maior fervor deste negócio de carregar as naus, veo a ele um brâmane, que entre os índios é a pessoa mais estimada por 251 sua religião, o qual trazia consigo três pessoas, dous dos quais dezia serem filho e sobrinho, e o outro seu servidor, pedindo-lhe que houvesse por bem dar-lhe licença pera vir em sua companhia ao reino de Portugal, ver o modo da Cristandade, pera mais facilmente ser doutrinado nas cousas da nossa religião. O Almirante, vendo nas suas palavras e pessoa ser homem pera estimar, e mais com tal propósito como ele dezia, o mandou agasalhar em sua nau, e certos bahares de pimenta, que dezia trazer pera sua provisão, e outra 241 fazenda de que a principal era algua pedraria de preço. Passados dous ou três dias, tendo o Almirante com ele prática, disse-lhe este brâmane que ele lhe queria descobrir a verdade da causa da sua vinda a Portugal; per ventura se o assi não fizesse a ele, Almirante, lhe pesaria de o não ter sabido em tempo. Dizendo que o Samori, seu senhor, o enviava a el-Rei de Portugal sobre concerto de pazes e preço das especearias, pera assentar com ele estas cousas de maneira que ficassem firmes e perpétuas; porquanto lhe parecia que, sendo feitas per os seus capitães, não podiam ser muito duráveis, porque cada ano vinha um, e, segundo sua condição, assi movia os partidos da paz. O Almirante lhe respondeu que, se por razão de as pazes ficarem firmes e tudo o mais que o Samori assentasse conforme ao serviço del-Rei, seu senhor, o enviava a Portugal, a ele, Almirante, parecia cousa escusada, porque os poderes que el-Rei dava a seus capitães eram tam solenes e de tanta autoridade naquelas cousas, que eles faziam segundo suas instruições, que tinham a própria força e vigor como se per ele mesmo fossem feitos. Finalmente, tanto praticaram ambos nesta matéria de paz, que veo o brâmane a dizer que, se ele, Almirante, quisesse algum tanto abrandar de seus queixumes, ele seria medeaneiro entre ele e o Samori, com que os negócios viessem a melhor estado do que estavam; e que devia querer que esta paz e concerto fosse feita ante per ele, que vir um novo capitão de Portugal e acabar isto com o Samori, e mais, pois lhe tanto amor e graça mostrara a primeira vez que com ele se viu, e tanto procurara de o livrar das mãos dos mouros seus imigos. E que em penhor desta oferta que prometia de si, não podia mais dar que sua pessoa e as de seu filho e sobrinho, que não sairiam da nau té acabar tudo, querendo tornar ao porto de Calecute. O Almirante, vendo a constância das palavras deste brâmane e a seguridade de sua pessoa,

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e confiado na entrega 77 que fazia de si e do filho e sobrinho, deu-lhe licença que fosse a Calecute dar conta ao Samori desta prática que ambos teveram; o qual não tardou muito com sua reposta, e pola mais autorizar trouxe consigo um homem que ele dezia ser naire dos principais da casa do Samori, dizendo da sua parte que era contente de pagar em especearia, por as cousas que foram tomadas no alevantamento contra Aires 252 Correa, até contia de vinte mil pardaus, moeda da terra, que da nossa são de trezentos e sessenta reais cada um. Vendo o Almirante tal recado, pareceu-lhe que este modo de vir aquele brâmane assi dissimulado, não era tanto pera vir a este reino, segundo ele dezia, como por artifício do Samori por estar já arrependido, sabendo que el-Rei de Cananor e el-Rei de Cochi estavam com ele concertados e ele ficava de fora. Finalmente o Almirante, por não perder este negócio, que lhe a ele parecia estar mui certo, encomendando a frota a Dom Luís Coutinho, capitão da nau Lionarda, 242 meteu-se em a nau Frol de la mar, capitão Estêvão da Gama, por ser mui poderosa, e, sem querer levar consigo mais que ua caravela, partiu-se pera Calecute, parecendo-lhe que podia lá achar as outras de Vicente Sodré, por haver poucos dias que per a caravela que levou os embaixadores de Cananor tinha recado dele, como ficava sobre Calecute. Peró não sabia o que lhe ali acontecera, porque se ele, Almirante, fora sabedor disso, não viera da maneira que veo sobre as palavras do brâmane. E o que Vicente Sodré tinha passado era que, havendo alguns dias que estava sobre Calecute, tolhendo que não entrasse ou saísse navio, estreitou isto em tanta maneira, que até os barcos dos pescadores que saíam a pescar perseguia com os batéis das naus. O gentio da cidade, como o principal mantimento de que se sustenta é pescado, vendo não ter modo de poder ir pescar, ordenaram ua cilada aos batéis de Vicente Sodré, lançando-lhe ao mar uns poucos de barcos dos pescadores como que iam a seu ofício. Os nossos batéis, tanto que os viram, a grã pressa foram-se a eles, os quais começaram de se recolher artificiosamente, té os meter na boca de um esteiro onde jazia a cilada. Do qual lugar subitamente saíram mais de quorenta zambucos e paraus, com tamanho ímpeto, todos remo em punho, que em breve cercaram os nossos e cobriram a todos de ua chuva de frechas, que logo naquela primeira chegada encravou muita gente. Com o qual sobressalto esteveram em muito perigo, por a multidão dos imigos e a frechada ser tanta que coalhava o ar, sem os nossos se poderem revolver com eles. Mas quis Deus que o tiro de ua caravela remediou tudo: porque foi dar o pelouro de ua bombarda no meio do cardume dos zambucos, com que arrombou o principal em que vinha o capitão de todos. Por socorrer ao qual desapressaram os nossos, com que teveram tempo de ir buscar abrigada das naus, onde eles não ousavam chegar, porque começou a artelharia delas meter alguns no fundo, que os fez recolher ao lugar donde saíram. E porque ficaram bem castigados daquele seu ardil, o 253 qual lhe não sucedeu como cuidaram, leixou Vicente Sodré o porto de Calecute e foi dar vista a Cananor, ao tempo que o Almirante chegou ali, e esta foi a causa por que o não achou. O qual, depois que espediu a caravela que dissemos em busca dele, confiado nas palavras do brâmane e em leixar tais reféns como eram o filho e o sobrinho e o naire, deu-lhe logo licença que fosse a terra com recado a el-Rei. A reposta do qual foram palavras brandas que dobraram a confiança ao Almirante, a conclusão das quais, era que ele tinha mandado chamar certos homens principais do seu reino, que haviam de ser presentes ao assentar daquelas pazes e contratos da especearia, por ficarem mais firmes; que lhe pedia houvesse por bem esperar que viessem, ca não podiam tardar dous dias. Nos quais o brâmane ia e vinha muitas 243

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vezes a terra, ora com causa, ora sem ela, fingindo necessidade disso; e quando veo ao terceiro dia, quisera per modo dissimulado levar o filho consigo, mas não o consentiu o Almirante, de que teve má suspeita. Finalmente aquela noite ele ficou em terra sem vir dormir à nau, como quem temia ser logo pago dos enganos em que andava, e apareceram ante menhã. Os quais enganos foram obra de cem paraus que no quarto de alva cercaram mui caladamente a nau do Almirante. E vinham os mouros e índios tam ousados, que começaram trepar per as cadeas das mesas da guarnição. Os nossos, que vigiavam seu quarto, quando deram rebate nos outros que dormiam, com o sono (peró que o temor muito esperta), era tamanha a confusão, que não sabiam onde haviam de acudir, porque toda a nau estava cercada, em torno, destes paraus. O qual sobressalto lhe deu muito trabalho, 77v porque não se aproveitavam da artelharia, ca lhe ficava tam alta que não podia pescar os zambucos e barcos que estavam pegados no costado da nau e somente lhe serviam bestas, espingardas e pedradas. A este tempo (como dissemos) tinha o Almirante espedido a caravela que viera em sua companhia, com um recado a Vicente Sodré, que, segundo soubera, andava sobre Cananor, o qual lhe leixara, per popa da sua nau, um parau grande que tomara, vindo ele, Almirante, de Cochi; os mouros do qual, dando-lhe esta caravela caça, se salvaram em terra. Os mouros que tinham cercado o Almirante, vendo este parau e quam animosamente os nossos defendiam a entrada da nau e quanto dano recebiam deles, quiseram-se aproveitar deste artefício que traziam, que eram dous barcos juntos com muita lenha e materiais pera quando lhe posessem o fogo se acender mais prestes, ainda que lhe acudissem com água. Os quais barcos foram amarrar ao parau que estava por popa da nau; e posto o fogo neles, começou logo lavrar tam furiosamente, que em breve se ateou a labareda pelos castelos da nau. O Almirante, quando viu tam grande perigo, não achou outro remédio mais pronto que mandar cortar as amarras, ua das quais o deteve muito; porque, temendo ele que de noite os mouros, segundo seu uso, a remo 254 surdo ou a nado, lhe viessem cortar as amarras pera lhe darem com a nau a costa, a da parte do mar todo o descoberto dela era ua grossa cadea que estava de maneira que a não pôde alargar, senão cortando a mesma cadea, que lhe deu muito trabalho. Peró como a nau se achou livre e obedeceu à vela, começou de abrir caminho per meio dos paraus dos imigos, leixando o que tinha per popa entre eles; os quais, por se livrar da labareda dele, desapressaram o costado da nau, que deu causa a que os nossos se pudessem aproveitar da artelharia. Finalmente tanto andaram aqueles infiéis perseguindo a nau às frechadas e bombardadas, té que amanheceu. No qual tempo, posto que da terra concorriam muito mais paraus, sobreveo Vicente Sodré, que com as caravelas que trazia fez tal destruição neles, que lhe conveo tornarem-se todos ao esteiro donde 244 saíram. Tanto que o Almirante se viu desapressado deste trabalho, por pagar ao brâmane a maldade que cometeu, mandou enforcar nas vergas das caravelas os três reféns que lhe leixou, andando com eles ao longo da cidade a vista de todos um pedaço, e per derradeiro os mandou meter em um parau com ua carta pera o Samori, as palavras da qual era conformes ao engano que usara per meio do brâmane. Acabado este auto de castigo, partiu-se o Almirante pera Cochi, onde chegou a tempo que estavam já as naus tam prestes que, espedido del-Rei, ordenou como o feitor Diogo Fernandes Correa ficasse seguro no recolhimento de madeira que lhe tinha feito. Ao qual leixou trinta homens e por escrivães de seu ofício Lourenço Moreno e Álvaro Vaz; e espedido deles, partiu-se pera Cananor, a dezoito de Janeiro, onde chegou. El-Rei, como já estava submetido a toda razão e aos apontamentos que lhe ele, Almirante,

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mandara sobre o contrato e preço das especearias, não houve mais detença que assinaram ambos estes contratos e receber gengivre e outras cousas que ele, Almirante, havia de tomar. E também lhe leixou ali feitoria em outra força como em Cochi, e por feitor Gonçalo Gil Barbosa e escrivães de seu cargo Bastião Álvares e Diogo Godinho, com até vinte homens. Acabadas estas cousas, partiu o Almirante de Cananor, em companhia do qual todo aquele dia veo Vicente Sodré com sua frota, té que se apartaram. Na qual viagem não fez o Almirante mais detença que quanto em Moçambique corregeu alguas naus. E peró que com tempos arribaram, todavia trouxe-o Deus a este reino a dez de Outubro, entrando pela barra de Lisboa com nove velas. Em a qual maré entraram com ele duas caravelas que vinham da fortaleza de São Jorge da Mina, e duas naus de Ourão com labéis pera o mesmo trato da Mina, e ua de Levante, chamada Nunciada, que foi das mais fermosas que se viu em toda a Europa; e assi entraram outras naus que vinham de Frandes, que fizeram esta vinda do Almirante melhor afortunada. E como 255 neste tempo el-Rei estava em Lisboa, quando foi a ele levou as páreas que houvera del-Rei de Quíloa, as quais com grande solenidade a cavalo levava em um grande bacio de prata um homem nobre em pelote com o barrete fora ante ele, Almirante, com trombetas e atabales, acompanhado de todolos senhores que havia na Corte. Das quais páreas el-Rei mandou fazer ua custódia de ouro, tam rica na obra como no peso, e como primícias daquelas vitórias do Oriente, ofereceu a Nossa Senhora de Belém, à obra da qual casa aplicou todalas presas que pertencessem a ele, e mais enquanto fosse sua mercê a vintena do rendimento dos fructos daquela conquista, com que se faziam as obras da casa.

LIVRO VII 245 78 257 Capítulo primeiro. Como o Samori, Rei de Calecute, por nossa causa fez guerra a el-Rei de Cochi, e o que sucedeu dela. Tanto que o Almirante Dom Vasco da Gama partiu da Índia pera este reino, como o Samori, Rei de Calecute, ficava mui indinado com os maus sucedimentos de seus negócios, e mais vendo crecer o estado del-Rei de Cochi e o seu deminuir depois que entrámos na Índia, determinou buscar novo modo de se vingar destas cousas, e principalmente del-Rei de Cochi. Porque não somente achava nele, em algυas cartas que sobre este feito lhe tinha escrito, υa maneira de o estimar em menos do que fazia ante da nossa entrada na Índia, mas ainda, mandando a ele alguns brâmanes pera o provocar per modo de sua religião a se conformarem ambos em destruição nossa, respondia como homem que tinha mais respeito a sua fazenda que à religião de brâmane, que ele era. O Samori, vendo que per nenhum modo de quantos cometeu o podia mover, assentou pubricamente de ir contra ele com mão armada, pera que já tinha mandado fazer alguns aparatos de guerra, simulando que eram contra nós, e isto ante da partida do Almirante, dos quais el-Rei de Cochi era avisado, e disso tinha dado conta ao mesmo Almirante. Ao qual ele esforçou muito com a armada de seu tio Vicente Sodré, que ficava pera o mais do tempo do verão andar naquela costa em favor seu e destruição do Samori, 258 a que 246 ele mandava que fosse feito tanto dano, que em se defender teria assaz trabalho. Com as quais esperanças e penhor tam principal como era o feitor e oficiais que ficavam em seu poder el-Rei se animou muito. Contudo, como esta guerra que o Samori lhe queria fazer era toda per terra, nunca os nossos lhe puderam empedir os aparatos dela; pera a qual ajuntou cinquenta mil homens em um lugar chamado Panane, dezasseis léguas de Cochi. E posto que a todolos seus capitães e a Nambeadari, seu sobrinho, tinha dito a causa daquele ajuntamento naquele lugar, por se justificar naquele movimento de guerra lhe fez υa fala, a resolução da qual estava em três pontos: na obrigação que tinha de fazer pelas cousas dos mouros, e no dano que eles e ele tinha recebido de nós, e na pouca obediência que lhe el-Rei de Cochi tinha, sendo ele Samori do Malabar, e tudo com favor de nossas armas. O qual arrazoamento foi mui louvado de todolos seus caimais, e aprovaram ser mui justa a guerra que queria fazer a el-Rei de Cochi; e quem mais acendia o fogo dela era o mouro Coje Cemeceri, que foi causa da morte de Aires Correa com outros de sua valia. E sobre eles com mais autoridade era Nambeadari, senhor da comarca Repelim, que está ao pé da serra, a qual comarca é um posto donde se colhe a melhor pimenta de toda aquela costa. O qual não contradizia tanto nossas cousas por ódio que nos tivesse, quanto polas compitências que tinha com el-Rei de Cochi, dizendo pertencer-lhe a ele o seu reino. E vendo o Príncipe Nambeadari, que era herdeiro de Calecute, que todos indinavam o Samori, mais por lhe comprazer que por bem aconselhar, favorecido dalguns que estavam na verdade, disse que ele era em contrairo parecer, porque, como aquelas indinações contra el-Rei de Cochi procediam da nossa entrada na Índia, o discurso das cousas 78v passadas mostravam quam injusto era aquele presente movimento. Porque ele vira entrar os portugueses na Índia com υa embaixada a ele, Samori, oferecendo paz e amizade de seu Rei, ouro, prata e mercadorias, de que aquela terra tinha necessidade, a troco de pimenta que sobejava nela, os

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quais, per induzimento dos mouros, logo foram dali maltratados. Depois, na segunda armada, vindo poderosos e ricos do que prometeram, não se teve com eles o pacto que lhe concederam per entrada, e por lhe ser mandado maliciosamente tomaram a nau dos elefantes e a outra que estava à carga, e não de seu próprio moto. No qual tempo, se fizeram dano na terra foi em defensão de suas vidas, fazendas e satisfação da injúria que lhe foi feita - cousa natural aos brutos, quanto mais aos homens. Foram a Cochi, acharam paz, verdade e gasalhado, 259 repousaram ali, porque onde os homens acham estas cousas fazem natureza, posto que estrangeiros sejam; e se os el-Rei de Cochi agasalhou, acerca do comum 247 parecer dos homens, nisso tinha ganhado o que o reino de Calecute perdeu e cada um sentia em sua casa. Quanto mais, se o ele não fizera, grande era a Índia; e se com cada um daqueles que os podera agasalhar, ele, Samori, houvera de tomar questão, isto era contender com todolos homens, porque todos recolhem em sua casa quem lha enche de tanta substância quanta os portugueses traziam em suas naus. E porque ele não via naquele negócio da guerra, que sua Real Senhoria começava, algum fim proveitoso pera o reino de Calecute e tudo parava em desejo de vingança, propunha o que tinha dito, não por se escusar de ser o dianteiro em castigar el-Rei de Cochi, mas porque temia que o seu castigo caísse sobre a cabeça dos filhos de quantos ali estavam, por ver que os seus vingadores haviam de ser os portugueses, que cada ano dobravam em naus, gente e armas. O Samori, peró que algum tanto ficou comovido com estas palavras do Príncipe, era já tamanho o ódio que tinha a el-Rei de Cochi, e havia tantos que o indinavam mais, que assentou de todo no que estava determinado. El-Rei de Cochi per alguns amigos que tinha em Calecute soube parte desta determinação do Samori, e logo com muita diligência começou de se aperceber, e não com pouco clamor do povo, porque no aparato da guerra que trazia o Samori bem viam ser a todos υa certa destruição. Do qual caso tinham grande indinação contra el-Rei de Cochi, vendo que aventurava perder seu estado e a vida de todolos seus por defensão dos portugueses que ali estavam, pois o Samori não queria mais satisfação dele, que fazer-lhe entrega deles, com que ficariam amigos. Das quais murmurações os nossos eram sabedores; e segundo o povo andava indinado, tanto temiam já a ele como aos aparatos do Samori, e muito mais depois que, estando ele em Repelim, que serão até quatro léguas de Cochi, mandou grandes amoestações a el-Rei de Cochi, chamado Trimumpará, e a todolos príncipes e brâmanes, requerendo-lhe que fizessem entrega dos portugueses, protestando per todas suas religiões, serem homicidos em todalas mortes e danos que sobre este caso viessem. Porque obravam tanto estas amoestações e escomunhões de sua religião com os primeiros infortúnios que el-Rei de Cochi teve em algυas vitórias que, o Samori houve dele, que a maior parte dos príncipes do seu reino o leixariam, passando-se ao Samori. Entre os quais foi Cam de Bagadari, senhor de Porcá, e o Mangate Caimal e seu irmão Nambeadari, o Caimal de Cambalu, o Caimal de Cheriavaipil 260 e os cinco Caimais da terra a que eles chamam Anche Caimal, que deram entrada por sua terra, pera que o Samori passasse à de Cochi, por esta ser a ela mui vezinha. Na qual passagem Trimumpará pelejou animosamente enquanto os seus o não leixaram, e por defender esta passagem, que era per um vau, lhe mataram três sobrinhos a que eles chamam príncipes por sucederem no reino; um dos 248 quais, chamado Narmuhi, que era o herdeiro, fez grande míngua na terra, por ser mui excelente cavaleiro, e tanto que foi morto, morreu a esperança do povo. O qual povo andava tam descontente dos nossos pela constância que el-Rei tinha de os não querer entregar, que temendo ele que poderiam receber algum dano dos seus, ou que ele ficaria desemparado de todos, trazia-os sempre em sua companhia. Finalmente o Samori, com o grande poder da gente que tinha, tornou segunda vez entrar a

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Ilha de Cochi, com que conveo a el-Rei passar-se a outra Ilha de Vaipi, por ser mais defensável, e principalmente por acerca deles ter υa religião como acerca de nós tem os lugares sagrados, que quem se a eles acolhe está seguro de receber algum dano de seu imigo. No qual recolhimento não levava já pessoa notável 79 que o quisesse seguir, senão o Caimal do próprio Vaipi, que sempre o serviu nestes trabalhos com muita lealdade; e dos nossos que andavam com ele se leixaram ficar com o Samori dous cristãos naturais da Esclavónia. Os quais, indo deste reino na armada do Almirante em lugar de marinheiros, leixaram-se ficar com os nossos em a feitoria, simulando que eram lapidairos, sendo seu próprio ofício bombardeiros e fundidores de artelharia, que foram depois causa de grande trabalho aos nossos, e muito maior ao Samori polos defender. E se é verdade (o que se não deve crer de υa tam ilustre Senhoria como é a de Veneza), eles a quiseram infamar, dizendo depois que per seu meio foram ter àquelas partes pera usar aquele ofício de fundir a artelharia em nosso dano.

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248 79 261 Capítulo II. Como el-Rei Dom Manuel o ano de quinhentos e três mandou à Índia nove naus repartidas em três capitanias, de que eram Capitães-mores Afonso de Albuquerque, Francisco de Albuquerque e António de Saldanha; e como Vicente Sodré se perdeu e dalgυas cousas que os Albuquerques fizeram por restituir a el-Rei de Cochi no que tinha perdido na guerra que lhe fez o Samori. Estando el-Rei Trimumpará de Cochi com os nossos neste estado de tanto trabalho, e postos nas grandes necessidades que os cercados tem, e principalmente de mantimentos, que era guerra de todo o dia, chegou Francisco de Albuquerque, filho de João de Albuquerque, com seis velas, três com que partira deste reino por capitão e as outras da armada de Vicente Sodré. E porque no mesmo ano de três em que ele partiu, partiram outras seis velas, daremos razão de todas e do modo como se repartiram, pois todas foram a tempo que restituíram a el-Rei de Cochi e seguraram a vida dos nossos que com ele estavam. El-Rei Dom Manuel, porque o negócio desta conquista e comércio da Índia cada ano com as armadas que de lá eram vindas, 249 descobria o que convinha pera melhor proceder nele, ordenou de mandar este ano de quinhentos e três nove naus repartidas em três capitanias, as seis pera virem com carga de especearia, e as três pera andarem na boca do estreito do Mar Roxo, esperando as naus dos mouros de Meca, com que tínhamos guerra. Das primeiras três naus era Capitão-mor Afonso de Albuquerque, filho de Gonçalo de Albuquerque, senhor de Vila Verde, e os dous capitães da sua bandeira eram Fernão Martins de Almada, filho de Vasco de Almada, alcaide-mor que foi desta vila, e Duarte Pacheco Pireira, filho de João Pacheco; e os dous capitães da conserva de Francisco de Albuquerque eram Pero Vaz da Veiga, de Montemor-o-Novo, e Nicolau Coelho, que foi no descobrimento com Dom Vasco da Gama. Estas seis velas eram as que haviam de trazer carga de especearia. E posto que Afonso de Albuquerque partiu primeiro a seis de Abril e Francisco de Albuquerque a catorze, ele foi o derradeiro que chegou à Índia. O outro capitão pera andar de armada na boca do estreito era António de Saldanha, filho de Diogo de Saldanha, e com ele um cavaleiro da casa del-Rei, per nome Rui Lourenço Ravasco, e Diogo Fernandes Parreira, de Setúval, que, por ser homem mui usado no mar, ia também por mestre da nau. 262 Da viagem do qual António de Saldanha em seu lugar faremos relação, por continuarmos com Francisco de Albuquerque, dando primeiro razão dos navios de Vicente Sodré, que ele topou na costa da Índia bem perdidos, e assi o navio de António do Campo, que, como atrás vimos, se perdeu à ida da conserva do Almirante. Vicente Sodré, segundo atrás fica, partido o Almirante da Índia, junto de Cananor se apartou dele, ficando com regimento que andasse enquanto o tempo lhe desse lugar na costa do Malabar em favor de Cananor e Cochi, fazendo a guerra ao Samori, na entrada e saída das naus de Calecute. E quando o tempo lhe não servisse pera andar naquela costa, que é no inverno, fosse andar na boca do estreito do Mar Roixo, fazendo guerra às naus de Meca, o qual regimento ele cumpriu té se perder. A primeira cousa que fez: foi aos ilhéus de Santa Maria, tomando quatro naus de Calecute, as quais trouxe a Cananor, onde 79v foram descarregadas do arroz e mantimentos que levavam, fazendo entrega de tudo ao feitor

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Gonçalo Gil Barbosa, e os mouros que nelas vinham deu a el-Rei de Cananor, a seu requerimento, por haver ali muitos que eram parentes dalguns que viviam em Cananor, a qual cousa el-Rei estimou em grande honra. E neste tempo, quási em satisfação desta obra, el-Rei o avisou do que o Samori movia contra el-Rei de Cochi, com o qual recado ele se partiu logo pera Cochi, e de caminho tomou três zambucos que vinham das Ilhas de Maldiva, a que pôs fogo por saber serem de Calecute. Chegado a Cochi, entregou a presa deles ao feitor e viu-se com el-Rei, dizendo-lhe que 250 era ali vindo ao que mandasse dele, pola nova que tinha dos grandes apercebimentos que o Samori fazia pera vir contra o seu reino. El-Rei com palavras de muito agradecimento estimou aquela sua vinda, dizendo ser verdade o que se dezia, mas como era no princípio do inverno, em que o Samori não havia de mover senão passado ele, era escusada sua presença, que bem poderia dar υa vista à costa da Arábia, pera onde dezia que estava de caminho, e quando em boa hora tornasse, seria ao próprio tempo que o Samori movesse, se adiante houvesse de proceder no que tinha começado. Espedido Vicente Sodré del-Rei, foi ter à Ilha Socotorá, onde fez sua aguada, e dela se passou ao Cabo de Guardafu, que é a mais oriental terra que tem a parte de África, e deste cabo atravessou a costa de Arábia por ser mais seguida das naus que da Índia iam ou vinham do estreito do Mar Roixo, em a qual paragem tomou algυas de Cambaia com roupas, e outras de Calecute com especearia, que todas iam pera o Estreito. E porque ele andou ali obra de dous meses e os ponentes, que eram Abril e Maio, começaram ventar, conveo-lhe buscar algum abrigo, o qual foi υa enseada vezinha às ilhas a 263 que chamam Curiá Muriá, e isto per conselho de dous mouros pilotos, com fundamento que, como viesse Agosto, de se fazer na volta da Índia por já ser passado o inverno. Com o qual fundamento, entrado nesta enseada, acudiram logo à ribeira do mar uns poucos de mouros a que eles chamam baduís, cuja vida é pastorar gado e andar no campo ao modo que dizemos que andam os alarves. E posto que no princípio teveram algum receo dos nossas, depois que gostaram do bem que lhe faziam, dando-lhe panos, arroz e outras cousas que entre eles não havia, fizeram-se tam familiares a eles, dando-lhe carneiros a troco de suas necessidades, que se chegaram com mulheres e filhos à praia do mar a fazer algυa pescaria com que se mantém boa parte do ano. E havendo perto de um mês e meio que ali estavam, como estes baduís tinham conhecimento de um certo temporal que às vezes ali sobrevém, deram aviso aos nossos, aos quais, parecendo ser isto modo de os lançar dali, por se dizer que haviam de passar per aquela costa certas naus de Ormuz, leixaram-se estar, té que a custa de seu dano verem que os mouros lhe diziam verdade. Porque foi tal o tempo, que se perdeu Vicente Sodré com a maior parte da gente, e assi se perdeu o navio de Brás Sodré, seu irmão, e os outros milagrosamente escaparam. Cessando o qual tempo, se fizeram à vela caminho da Índia, onde vieram ter, quando Francisco de Albuquerque os topou; e com eles também se ajuntou António do Campo, capitão dum navio que se perdeu da armada do Almirante, e foi invernar na costa de Melinde, em υas ilhas, sem saber onde estava, meio perdido. Francisco de Albuquerque, como ia mui inteiro com mantimentos e cousas 251 do reino, recolhidos estes navios, proveu-os do necessário, principalmente os da armada de Vicente Sodré, que era muita gente morta a fome e sede, com os quais foi ter a Cochi, onde achou el-Rei quási tam perdido na Ilha de Vaipi. E o primeiro conforto que lhe deu foi apresentar-lhe o que lhe el-Rei Dom Manuel mandava, que era muitas peças ricas pera o serviço de sua casa, ao modo dos príncipes de Espanha, e com elas lhe disse as palavras que havia mister um príncipe que tinha passado tantos trabalhos, nos quais mostrou a lealdade e amor que connosco tinha. E pera restituição de seu estado, lhe ofereceu as naus e gente que ali vinha, e as outras que já eram ante dele partidas do reino, prometendo-lhe não se partirem té o não leixar em posse de suas terras com vitória de seus imigos, porque el-Rei Dom Manuel, seu

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264 senhor, nenhυa outra cousa lhe mais encomendava que trabalharem nas cousas de seu estado, como em o seu próprio. Que não ser ajudado de Vicente Sodré, segundo tinha sabido, sua Real Senhoria era a causa, pois o espedira ao tempo que se viera oferecer a ele; e como o mar pode mais que a vontade dos homens, 80 o empediu de maneira que se perdeu, como saberia. El-Rei, depois de lhe gratificar estas cousas, como tinha mui viva a dor, logo começou a praticar no modo de sua restituição, dizendo que assi a honra dele, capitão, pois tinha tam nobre gente consigo, como a bem da carga das naus, convinha que a Ilha de Cochi fosse logo despejada. O que Francisco de Albuquerque compriu pela ordenança del-Rei, polo mais comprazer, saindo logo em seus batéis em terra, com que a custa da vida de muitos do Samori, que estavam em guarda, como dos revéis a el-Rei, não somente despejou todo Cochi, mas ainda a Ilha Cheravaipil, em que o capitão Nicolau Coelho per sua própria mão matou o Caimal dela, e toda a terra tornou a obediência del-Rei. Depois fez Francisco de Albuquerque algυas entradas com os capitães das naus, indo já mais dentro per os rios os e esteiros com que toda a terra é retalhada a modo de leziras, destruindo e queimando muitos lugares do senhor de Repelim, em que houve honrados feitos, a custa do sangue dos nossos e com morte de quatro. Francisco de Albuquerque, como viu el-Rei alegre e satisfeito destas cousas que se faziam em sua restituição, por levar recado del-Rei Dom Manuel pera isso, falou-lhe em se ordenar υa fortaleza, dizendo que υa das principais causas de ele e os portugueses terem recebido tanto trabalho na defensão de suas pessoas, fora não terem algum recolhimento forte, que se pudessem defender ao ímpeto do Samori. E pois o passado aconselhava ao presente, era necessário que sua Real Senhoria desse um lugar e mandasse cortar madeira pera fazerem υa fortaleza, em que os portugueses que ali haviam de estar tevessem onde recolher suas pessoas, e as mercadorias pera compra da pimenta; porque, da maneira que a terra 252 então estava, de dia se não podiam vigiar as cousas, quanto mais de noite. El-Rei, como viu ser o requerimento justo e necessário pera o negócio e maneo do trato, mandou logo dar aviamento a tudo, começando a qual obra chegou Afonso de Albuquerque sem fazer causa que o detivesse no caminho, somente tempos contrairos. Com a vinda do qual se repartiu logo o trabalho, porque a Francisco de Albuquerque ficou o aviamento de dar carga às naus, e ele tomou sobre si o fazer da fortaleza; e por a singular devação que tinha no Apóstolo Santiago, por ele ser cavaleiro de sua Ordem e a nau em que ia se chamar do nome deste Apóstolo, houve a fortaleza nome Santiago, a qual se fundou onde ora está a casa do Armazém da ribeira, e assi fundou υa igreja do orago de São Bartolomeu no próprio lugar onde ainda está. Parece que aprouve a Deus que ele fosse autor destas duas obras: υa 265 espiritual, que foi a fundação da igreja, e outra temporal - da fortaleza, nesta tomando posse por parte do reino e na outra por parte da Igreja Romana. As quais, porque foram de madeira, podemos dizer serem cimbres das outras de pedra e cal que ele fundou em Goa, Malaca e Ormuz, principais cabeças dos reinos e estados da Índia de que temos posse, como veremos em seu lugar. E porque a nova que achou das entradas que Francisco de Albuquerque fez o encitaram com υa virtuosa enveja, desejando de se ver em outros tais feitos, praticando com ele e com os outros capitães, ajuntaram obra de quinhentos homens nos batéis das naus e paraus que tinham tomado aos imigos, determinando irem dar em Repelim, do senhor da qual el-Rei de Cochi tinha recebido muito dano. Peró esta ida não foi assi tam leve como parecia no princípio àqueles que foram espias da terra; porque o senhor da Repelim tinha consigo passante de dous mil homens, todos naires e gente

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destra em pelejar, e também muitos paraus e artelharia del-Rei de Calecute, como quem temia que o fossem vesitar. Contudo aprouve a Deus que os nossos entraram e queimaram o lugar, com a qual vitória el-Rei de Cochi ficou mui contente, porque deste senhor de Repelim desejava tomar crua vingança. Depois fizeram outra grande entrada per os rios acima, seis léguas contra Repelim, em que Afonso de Albuquerque se houvera de perder: porque, como andava desejoso de fazer por si algυa cousa, e eles partiram de noite pera que, em rompendo a lυa, dessem no lugar, adiantou-se tanto de Francisco de Albuquerque, que teve tempo pera dar em um lugar. O qual estava tam apercebido, que logo à saída, ante-menhã, lhe mataram dous homens e feriram vinte, e depois que esclareceu, que a terra foi apelidada, acudiu tanto gentio, que pareciam gralhas que deciam das árvores, por trazerem entre si υa maneira de se chamar a que eles chamam cuquiada, que não determinavam os nossos a que parte havia mais. Os 253 quais assi 80v eram leves e ousados em cometer com suas espadas e adargas, que primeiro os achavam entre as pernas por as decepar, do que os nossos os podiam ferir. Outros com frechas cobriam o ar, apertando tanto com Afonso de Albuquerque, que começou a sua gente de se ir retraindo pera os batéis, sem a ele poder entreter. O qual retraimento lhe deu a vida, porque chegado junto deles em um escampado, onde os índios começaram de se derramar por lhe tomarem a embarcação, varejou à artelharia que vinha neles de maneira que, não somente os fez afastar, mas ainda chamou a Francisco de Albuquerque, que não era passado. Per os quais tiros conhecendo que pelejava, chegou a tempo que o tirou daquela afronta em que se houvera de perder; porque além desta em que os da terra o tinham posto, eram chegados trinta e três paraus de Calecute e andavam todos tam azedos e favorecidos 266 uns dos outros, que não se podia ele valer per mar nem per terra. Peró, chegado Francisco de Albuquerque com os capitães Duarte Pacheco, Pero de Taíde e António do Campo, não somente foi ele livre do perigo em que estava, mas ainda poseram os imigos em fugida, no qual alcanço pereceram muitos deles. E da volta que fizeram foram à Ilha Cambalão, que era de um vassalo del-Rei dos rebelados, e, leixando Duarte Pacheco à entrada de υa ponta de terra soberba sobre o rio, donde à vinda os imigos lhe podiam fazer muito dano, repartiram-se eles pela ilha, e não tam apartados, que não se podesse ajudar uns aos outros, com o qual modo atalharam toda a ilha, em que mataram mais de setecentos índios. Duarte Pacheco, por ver que o lugar onde o leixaram estava já seguro pera os nossos batéis poderem tornar sem perigo, deu em υa povoação, que destruiu, onde matou muita gente, e di foi-se ajuntar com os outros capitães. Os quais vindo já todos caminho pera Cochi mui contentes com a vitória daquele dia, de um estreito que de través dava naquele principal rio, lhe saíram obra de cinquenta paraus de Calecute, que os meteu em grande trabalho; porque, como chegavam folgados e eles vinham sem suspeita do caso, e mui cansados e alguns feridos, teveram assaz que fazer em se desempeçar da primeira fúria. Porém depois que passou aquele ímpeto que os imigos traziam, e começaram sentir a indinação dos nossos, voltaram as costas; e valeu-lhe não ficarem ali todos meter-se per um esteiro tam baixo, que não poderam nadar os nossos batéis; à qual vitória ajuntaram as outras que traziam, que dar nove grande prazer a el-Rei de Cochi, quando chegaram a ele. E porque, pera leixarem estas cousas do estado da guerra postas em termo que podesse haver carga da especearia, era necessário fazer algυa demora, ordenaram de carregar a António do Campo, pera vir diante dar nova a el-Rei da perdição de Vicente Sodré e das 254 vitórias que tinham havido do Samori de Calecute, o qual António do Campo a salvamento chegou a este reino, a dezasseis de Julho de mil e quinhentos e quatro.

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254 80v 267 Capítulo III. Como a Rainha de Coulão mandou pedir aos capitães que fossem duas naus tomar carga ao seu porto. E da paz que o Samori fez com eles, a qual logo quebrou e tornou à guerra; por a qual causa Duarte Pacheco ficou com a sua nau e duas caravelas em guarda de Cochi; e do que os outros capitães passaram, vindo pera este reino. Com estas cousas da guerra, posto que el-Rei de Cochi trabalhava por se dar carga às naus, fazia-se mui trabalhosamente, porque, se iam quatro tonéis per esses rios e esteiros em busca dela, era necessário irem outros tantos batéis em sua guarda, de maneira que não havia quintal de pimenta que não custasse sangue. Mas sobreveo caso que nisso ajudou muito aos nossos, e foi mandar a Rainha de Coulão e seus governadores oferecimentos aos capitães, que lhe dariam carga a duas naus, com o qual assentaram os capitães que fosse lá Afonso de Albuquerque carregar as suas. E ainda por comprazer a el-Rei de Cochi, quiseram eles que fosse isto por sua vontade, e que a Rainha lhe mandasse pedir esta licença. Chegado Afonso de Albuquerque 81 a Coulão buscar esta carga, foi mui recebido e festejado dos governadores da terra e assentou trato com eles ao modo de Cochi, e que ficasse ali um feitor, pera que ordinariamente cada ano virem tomar carga duas ou três naus, segundo a novidade fosse. Por razão do qual concerto leixou por feitor António de Sá, de Santarém, Rui de Araújo e Lopo Rabelo por escrivães, com obra de vinte homens pera guarda da feitoria, que foi υa casa que lhe os governadores da terra ordenaram; e com isto acabado e sua carga feita, se tornou a Cochi. O Samori, enquanto Afonso de Albuquerque esteve tomando esta carga, foi avisado disso, e vendo que lhe aproveitavam pouco seus paraus armados, pera que a pimenta não viesse a Cochi, pois fora dele em tam poucos dias achávamos carga, e que a canela, cravo, massas e outras drogas da parte donde vinham ao seu reino podiam vir às nossas mãos, e gengivre bastava Cananor, com que tínhamos amizade, tenteando estas cousas e as passadas que lhe tinham custado tanto, converteu a indinação a regras de prudência - querer ante segura paz que guerra tam danosa como era a que tinha connosco. Sobre o qual propósito mandou certos embaixadores a Francisco de Albuquerque, movendo-lhe contrato de pazes, que lhe foram concedidas com estas condições: que havia de dar mil e quinhentos bahares 255 de pimenta pola fazenda que fora tomada na morte de Aires Correa, e mais que mandasse logo despejar seus portos dos navios, naus e paraus de suas armadas, pera as nossas 268 naus poderem ir tomar carga, e que os dous bombardeiros que se lançaram com ele que os entregasse. Feito este concerto, a primeira cousa que se nisso fez, foi ir Duarte Pacheco a Cranganor a receber os mil e quinhentos bahares de pimenta, parte da qual trouxe e veo baldear em a nau de Francisco de Albuquerque. E tornando lá outra vez com Nicolau Coelho, por lhe ser prometido que lhe dariam carga pera ambas as naus, não acharam o recado segundo a esperança que levavam, porque el-Rei estava já arrependido por razão dos bombardeiros, pola entrega dos quais Francisco de Albuquerque apertava. Finalmente, como ele desejava ter algυa pequena causa de quebrar o contrato das pazes, sucedeu cousa que veo descobrir esta sua tenção, e foi esta: Indo um batel destas duas naus per um esteiro acima, onde lhe tinham dito que fosse a receber pimenta, encontraram um parau que vinha carregado dela, o qual parece que foi lançado

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àquele propósito; porque, querendo os nossos receber a pimenta, sobre a entrega dela vieram uns e outros às armas, na qual revolta os nossos mataram seis homens do parau e feriram outros, e eles também vieram sangrados dela. A qual cousa tanto que o Samori soube, como quem esperava por isso, mandou logo cerrar todolos portos; e sem pedir restituição nem se aqueixar daquele dano, tornou à guerra. Peró como os nossos já a este tempo estavam quási carregados, toda esta fúria fundiu pouco pera empedir a carga da pimenta, que era o principal intento seu; e quebrou em aparatos e novos apercebimentos pera fazer guerra a el-Rei de Cochi. O qual, vendo que com a vinda daqueles dous capitães pera este reino ele tornava a ficar no próprio perigo e trabalho de que saíra, e que o coração dos revéis que tornavam a sua obediência com a chegada deles, capitães, não estava ainda muito fiel, posto que ficasse casa da feitoria na fortaleza que fizeram, os que nela ficassem mor cuidado lhe havia de dar defendê-los da indinação do seu povo, do que lhe podiam dar de ajuda. Revolvendo estas e outras cousas em seu ânimo, bem afligido com temor delas, deu disso conta a Afonso de Albuquerque e a Francisco de Albuquerque, pedindo-lhe que, por serviço del-Rei de Portugal, seu irmão, pois ele tam lealmente defendia suas cousas té oferecer a vida por elas e perder todo seu estado, consultassem entre si como ali ficasse algum deles com mais gente da que ficava ordenada feitoria; porque, como viam, ele esperava de se ver em maior necessidade, segundo tinha sabido per pessoas que trazia em casa do Samori. Sobre o qual negócio, depois que os capitães consultaram, se assentou com ele que em sua ajuda ficaria o capitão Duarte Pacheco, com a sua nau, e Pero Rafael e Diogo Pires, capitães das duas caravelas, debaixo de sua 256 bandeira com cem homens; e além dos ordenados, ficariam na fortaleza outros cinquenta, tudo tam artelhado e provido, que poderiam resistir ao poder do Samori, e ainda esperavam em Deus que lhe haviam de ir fazer muito dano dentro no seu porto de Calecute. 269 El-Rei, vendo que eles depois de sua chegada té aquele tempo sempre trabalharam por o restituir em seu estado com tanto perigo e sangue derramado ante seus olhos, e que em ficar aquela nau 81v e dous navios, era o mais que lhe podiam fazer, ficou satisfeito. Finalmente, assentado este negócio, Afonso de Albuquerque se partiu de Cochi; e, passando per Cananor a tomar gengivre, di se partiu via deste reino, onde chegou a salvamento. A qual boa fortuna não aconteceu a Francisco de Albuquerque, porque, não se podendo fazer tam prestes como ele, partiu o derradeiro dia de Janeiro de quinhentos e quatro; e ou que por partir tarde, ou porque assi estava ordenado de cima, ele e as outras naus de sua companhia se perderam sem se saber como nem onde, porque não escapou quem o contasse. Somente parece que se perderam em os baixos de São Lázaro, onde se também perdeu Pero de Taíde que vinha em sua companhia, segundo ele disse, o qual se salvou com a gente, e foi ter a Melinde, e ali achou Lopo Soares, como veremos adiante, algυa gente sua, e ele faleceu de doença.

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256 81v 269 Capítulo IV. Do que António de Saldanha e dous capitães obrigados a sua bandeira passaram depois que partiram deste reino o ano passado de quinhentos e três; depois da partida dos Albuquerques té chegarem a Índia. Pois temos dito o que fizeram estes dous Capitães-mores - Afonso de Albuquerque e Francisco de Albuquerque - os quais partiram deste reino o ano de mil quinhentos e três, ante que saiamos do ano, convém fazermos relação do que passou António de Saldanha, que era o terceiro Capitão-mor. O qual partindo do reino depois deles, por ir ordenado pera andar de armada fora das portas do Estreito de Meca, entre as duas costas a do Cabo Guardafu e da Arábia; e foi sua ventura que levava um piloto que deu com ele na Ilha de São Tomé, não indo já em sua companhia a nau de Diogo Fernandes Pereira, e daqui o levou aquém do Cabo de Boa Esperança, afirmando-se que o tinha dobrado. Ao qual lugar, por razão da aguada que ali fez, se chama hoje Aguada de Saldanha, mui celebrada em nome acerca de nós, não tanto por esta e outras que alguns capitães aqui fizeram, quanto por 270 causa de muita fidalguia que a mãos da gente desta terra aqui pereceu (como se verá em seu lugar). A qual gente logo nesta chegada de António de Saldanha mostrou ser atreiçoada 257 e pera não confiar dela; porque, trazendo a António de Saldanha υa vaca e dous carneiros, no modo de dar e tomar com os nossos; na segunda vez que António de Saldanha saiu em terra, sobre υa vaca lhe tinham armado υa cilada de obra de duzentos homens, com que o próprio António de Saldanha correu risco de sua pessoa, por acudir a um homem, e não escapou dos negros, senão ferido em um braço. E ante que houvesse esta rotura com os negros, porque a terra lhe pareceu despovoada e não sabiam em que paragem eram, e a nau de Rui Lourenço já não era com ele, por se apartar com um temporal ante que chegasse a esta aguada, subiu-se António de Saldanha em um monte, per cima mui chão e plano, ao qual ora chamam a Mesa do Cabo de Boa Esperança, donde viu o rosto do cabo e o mar que ficava além dele da banda de Leste, onde se fazia υa baía mui penetrante, no fim da qual, per entre duas serranias de altos rochedos, a que ora chamam os Picos Fragosos, vertia um grande rio que parecia trazer o seu curso de mui longe, segundo era poderoso em águas; por os quais sinais vieram em notícia ser aquele o mesmo Cabo de Boa Esperança, e com o primeiro tempo que lhe serviu o passaram, fazendo sua viagem já mais confiados. Rui Lourenço, com o temporal que teveram, apartado dele, foi ter a Moçambique, e como o não achou nem em Quíloa, onde o esperou vinte dous dias, partiu-se dali, e à saída do porto tomou dous zambucos com alguns mouros que entregou a el-Rei, por serem de Mombaça. E di se foi à Ilha de Zenzibar, que é aquém de Mombaça vinte léguas, e tam pegado à terra firme que as naus que passarem per entre elas hão-de ser vistas. Onde, por este ser um canal da navegação daquela costa, se leixou estar obra de dous meses, em que tomou mais de vinte zambucos carregados de mantimentos da terra; no fim do qual tempo, rodeando a ilha per fora, foi ter ao porto da cidade Zenzibar, donde a ilha tomou o nome, em que estavam algυas naus surtas e muitos zambucos. Na qual chegada, por ser quási sol posto, não teveram mais tempo pera saber da terra, que verem recolher-se os navios pequenos, pondo as proas nela, 82 e tudo com mostras que não haviam de ser bem hospedados, principalmente com as gritas que davam de noite. Té que, em amanhecendo, veo um recado do senhor da terra ao capitão, no qual lhe

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mandava perguntar se era aquele que andava roubando os navios que vinham com mantimento pera aquela cidade sua; e sendo, ele lhe perdoaria o dano que tinha feito, contanto que lhe desse a artelharia e cousas tomadas. Ao que Rui Lourenço respondeu que ele era vassalo del-Rei de Portugal, enviado em companhia de outras naus de que se apartara com um temporal; e porque em todolos portos da comarca daquela ilha nunca achou o que geralmente se dá a todolos homens mantimento e o necessário por seu dinheiro - ante achara muita bombardada 271 e frechada, ele, em defensão 258 de sua pessoa e por emenda do que lhe era feito, faria o que fazem os ofendidos. Porém leixadas as ofensas alheas, lhe pedia que folgasse de o agasalhar, e per ele aceitasse a amizade del-Rei de Portugal, seu senhor, como o tinham feito alguns reis e senhores seus vezinhos e outros da Índia, com a qual seus estados eram postos em paz e em mais riqueza e poder do que ante tinham. El-Rei (que assi se intitulava o senhor desta cidade Zenzibar) como homem não experimentado em nossas cousas, não somente fez pouca conta deste recado de Rui Lourenço, mas ainda mandou poer em ordem os paraus que ali estavam pera vir tomar a nau. Os nossos, havido conselho sobre este caso, ordenaram que, primeiro que os paraus viessem, que fosse a eles o batel dela com obra de trinta e cinco homens, em que iam dous criados del-Rei: a um chamavam Gomes Carrasco, que era escrivão da nau, e o outro Lourenço Feo, homens desejosos de ganhar honra, os quais cometeram os paraus e um e um, com morte dalguns mouros, trouxeram quatro a bordo da nau. El-Rei, como a este tempo tinha já apelidada a terra, quis na praia dar υa mostra de até quatro mil homens, dos quais era capitão um filho seu. Rui Lourenço, vendo a multidão deles, porque esperava de se ajudar bem com artelharia, armou dous dos seus zambucos e o batel com a meúda que podiam levar e gente destra, e pôs rostro na terra, a que logo acudiram os mouros, apinhoando-se todos onde lhe pareceu que os nossos queriam sair. O qual ajuntamento foi pera maior sua destruição, porque, chegados os zambucos bem a terra, com mostra que a queriam tomar, ficou o cardume da gente pera a artelharia ser melhor empregada, de maneira que logo da primeira cevadura ficaram na praia trinta e cinco deles, em que entrou o filho do senhor da terra, que os mandava. A qual destruição foi para eles tamanho espanto, que com aquele temor desempararam a praia, leixando porém muita gente da nossa encravada com o almazém de seus tiros, de que logo ali morreu um marinheiro. O capitão Rui Lourenço, vendo toda a ribeira despejada e querendo-se por em consulta do que faria, viram vir um mouro correndo com υa bandeira das quinas reais deste reino, arvorada em υa haste, bradando per aravia: - Paz! Paz! Paz! - Quando ele conheceu a bandeira, como quem via υa cousa sagrada, dina de veneração, tirou o capacete da cabeça e pôs-se em giolhos, fazendo-lhe reverência, como se vira seu Rei, ao qual imitou toda a outra gente que estava com ele, do qual modo os mouros que estavam em um teso em olho dos nossos se espantaram muito, e o mouro que trazia a bandeira teve ousadia de se chegar tanto a eles, que levemente o podiam ouvir. Pedindo polo sinal que trazia na mão, licença pera seguramente ir 272 falar ao capitão, ao que lhe foi respondido que se algυa cousa queria, que fosse à nau, que lá lhe falaria. E isto fez o capitão 259 de indústria, por lhe mostrar toda a artelharia e munições de guerra, e o poder receber com mais aparato do que tinha no batel onde estavam todos em pé. Tornado o capitão Rui Lourenço à nau, veo o mouro logo trás ele acompanhado doutros quatro, que eram dos principais da terra, aos quais Rui Lourenço recebeu com gasalhado e os fez assentar em υa alcatifa, segundo seu uso. A substância da qual vinda era pedirem paz, e que el-Rei se queria fazer tributário del-Rei de Portugal; que pera o passado, bastasse por satisfação dalgυa

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culpa, se a tinham em defender sua terra, a morte de seu filho e de muitos que o acompanharam nela. Finalmente o capitão lhe concedeu a paz com tributo em cada um ano de cem miticais de ouro e trinta carneiros pera o capitão que os viesse receber. O qual tributo lhe pôs, não somente por razão de vassalo del-Rei Dom Manuel, mas porque em sua chegada não mostrou a bandeira das quinas reais do reino; a qual (segundo eles disseram) dera João da Nova a um sobrinho del-Rei de 82v Melinde pera navegar seguramente, cujas eram υa das quatro naus que ali estavam surtas, tomando este sobrinho del-Rei por desculpa de não apresentar a bandeira, estar em porto alheo e ser entretido que o não fizesse. Pago logo o tributo daquele ano, deu o capitão livremente as duas naus ao sobrinho del-Rei de Melinde, e à cidade deu outra por ser sua; somente a quarta, que era de um lugar da costa chamado Pate, se resgatou por cento e sessenta miticais, mais em sinal de obediência que em estima de sua valia. Com o qual concerto todos ficaram em paz, e Rui Lourenço se partiu via de Melinde, em busca de António Saldanha, onde ainda não era vindo. Mas acharam o Rei nosso amigo em tanta necessidade, que a sua chegada o salvou de muito perigo; porque el-Rei de Mombaça lhe fazia mui crua guerra, por razão da amizade que ele tinha connosco. O qual, como homem que esperava retorno daquela obra, em ódio nosso tinha mui bem fortalecida a cidade, e à entrada da barra feito um baluarte com toda a artelharia que houve da nau de Sancho de Toar, que se perdeu naquela paragem vindo com Pedrálvares Cabral, a qual se tirou a mergulho. Rui Lourenço, como foi informado del-Rei destes seus trabalhos e da causa deles, ordenou logo com ele que com a sua nau queria ir dar υa vista ao porto de Mombaça: per ventura quando el-Rei o visse sobre a barra dela, leixaria de vir per terra com gente, pois se fazia prestes pera vir a lhe dar batalha. Posto Rui Lourenço em caminho a dar esta vista a Mombaça, sucedeu-lhe tam bem o negócio, que tomou per vezes duas naus e três zambucos, nos quais vinham doze mouros, homens mui principais da cidade Brava, que está abaixo de Melinde cem léguas. E porque esta cidade era regida per comunidade de que estes doze mouros eram as principais cabeceiras do governo dela, 273 não somente resgataram suas pessoas e υa destas naus tomadas, dizendo ser daquela sua cidade, mas 260 ainda em nome dela a fizeram tributária a el-Rei de Portugal com quinhentos miticais de ouro de tributo cadano, pedindo logo pera segurança de poderem navegar como vassalos del-Rei υa bandeira, o que lhe Rui Lourenço concedeu. E a principal causa de se logo estes mouros fazerem tributários, foi porque detrás deles vinha υa nau mui rica da própria cidade de Brava, em que cada um trazia boa parte de fazenda, a qual prudência Rui Lourenço conheceu, tanto que a nau chegou, e lha entregou inteira e livre, sendo certificado que era sua, do que eles ficaram mui espantados, vendo que a riqueza da nau não fazia cobiça aos nossos polo seguro que lhe tinham dado, entendendo a cautela de que eles usaram por a salvar. El-Rei de Mombaça, com estas presas que os nossos andaram fazendo, apressou mais sua vinda sobre Melinde, porque lhe despejariam o porto pera entrarem as naus que vinham a ele, em que tinha recebido muita perda. Da qual vinda el-Rei de Melinde foi logo avisado, e o foi receber a um certo lugar onde houveram batalha. E sem a vitória ficar com algum, posto que el-Rei de Mombaça vinha mais poderoso em gente, tornou-se a sua cidade, temendo que os nossos lhe fizessem algum dano nela. Peró Rui Lourenço contentava-se com lhe fazer a guerra de fora, tomando quantas naus vinham pera entrar no porto. No qual tempo em um batel mandou um Gomes Carrasco com trinta homens que entrasse pela barra dentro, a lhe ver o sítio da cidade, e, por razão de um baluarte que tinham feito nesta entrada, não subiu acima.

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Finalmente, havendo já dias que Rui Lourenço andava neste ofício de presas das naus que tomava, as quais resgatava a preço de miticais de ouro, por não avolumar a nau com outra fazenda, chegou António de Saldanha, que também de Quíloa té ali tinha tomado três, que foi a todos grande prazer, e mais com tam boas venturas como lhe tinham acontecido, posto que foram com perigo e muito trabalho de suas pessoas. El-Rei de Mombaça, temendo que, com a vinda de António de Saldanha, o de Melinde lhe podia fazer mais dano, lá teve modo que se meteram os seus cacizes entre eles, com que se concertaram, que causou partir-se logo António de Saldanha e Rui Lourenço com ele. Os quais, dobrado o Cabo de Guardafu, foram ter à vila de Mete, onde per prazer do Xeque saíram em terra a fazer sua aguada em um poço, e, tendo já tomadas três pipas, levantaram os mouros υa revolta com desejo de empecer aos nossos; mas eles foram os empecidos, ficando logo três mortos no terreiro afora os feridos, posto que também custou sangue, principalmente a Gomes Carrasco em υa perna, em que foi muito ferido. E porque todo o povo da vila se pôs em armas, não quis António de Saldanha que os seus por beber água lhe custasse mais sangue, e tomou por emenda deles varejar a vila com artelharia. 274 Da qual costa, por ser já na entrada do mês de Abril, que começam ventar os ponentes, 83 atravessou a outra parte 261 da costa de Arábia, acima de Adem, e foi correndo toda, com propósito de ir invernar a υas ilhas a que os da terra chamam Canacani. Ante de chegar às quais, tomou υa nau carregada de encenso que vinha de Xael, que meteu no fundo, por se não embaraçar com a carga dela, de que a gente se salvou por dar consigo à costa; e adiante tomou outra carregada de mouros, que iam em romaria a Meca, onde houve de presa algum dinheiro do que eles levavam pera suas esmolas, e assi alguns mancebos, porque os mais deles se salvaram a nado em terra, dando também com a nau à costa. Chegado às ilhas de Canacani e estando na terra firme fazendo aguada, vieram sobre ele muita gente de pé, e até cinquenta de cavalo, arábios, homens que ousadamente se chegavam, e contudo ficaram mortos cinco deles, e dos nossos, ao recolher dos batéis, foram sete feridos, sem tomarem mais água por os mouros logo em chegando atupirem o poço. Depois, por a grande necessidade que traziam de água, querendo di a dous dias tornar a ver se a podiam tomar, acudiram mais de duzentos de cavalo e três mil de pé, que não deram lugar a poderem sair em terra. Vendo António de Saldanha que já toda aquela costa era apelidada e que não podiam tomar água senão a custa de sangue, enquanto não teve tempo, leixou-se estar naquelas ilhas, onde comiam por refresco tartarugas e algum pescado; e tanto que lhe serviu, partiu-se com propósito de tomar as ilhas de Curiá Muriá; mas não as pôde tomar, e di se partiu na volta da Índia, dia de Santiago. Da chegada de qual se verá adiante, porque primeiro convém sabermos o que passou el-Rei de Cochi e os nossos que com ele ficaram, depois que os Albuquerques se partiram pera o reino.

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261 83 275 Capítulo V. Como o Samori veo com grande poder de gente e aparato de guerra per terra e per mar sobre el-Rei de Cochi, e das vitórias que os nossos dele houveram. Partido Francisco de Albuquerque (segundo dissemos), soube logo o Samori como ficava em guarda de Cochi υa nau e duas caravelas com gente pera as marear e pera defensão da fortaleza que os nossos tinham feito. E confiado no aparato da guerra e multidão da gente que podia levar, assi per mar como per terra, dezia que aquela despesa que fazia não era pera somente destruir o senhor de Cochi, mas ainda pera tomar a nossa fortaleza, e que, esta tomada, não teriam as naus que viessem do reino a colheita onde podesse fazer carga. El-Rei de Cochi per suas espias era sabedor destes grandes apercebimentos do Samori, e andava um pouco desconfiado de poder resistir a tamanho exército, por se dizer que trazia per mar e per terra repartidos cinquenta mil homens: uns 262 que haviam de vir combater a nossa fortaleza com muita artelharia que houveram dos mouros de Meca, e os outros haviam de vir per terra cometer o vau; e mais que tinha convocado todolos principais do Malabar contra ele. Com as quais novas, que sempre na boca do povo se multiplicam em mais do que são, muitos dos naturais de Cochi se passavam do reino a outras partes, fugindo de noite em barcos. El-Rei, posto que ouvisse e visse estas cousas, como prudente dissimulava o que tinha em seu peito, que eram estes receos, e o melhor que podia andava provendo em o necessário pera a defensão do reino, principalmente em υa estacada no passo do vau do rio, per onde na guerra passada o Samori entrou. Duarte Pacheco, sentindo esta desconfiança e temor que el-Rei trazia, o esforçou, prometendo-lhe que, por salvação de sua pessoa e estado, ele com quantos eram em sua companhia tinham oferecido as vidas, e que com este propósito aceitara ficar em sua ajuda, como ele sabia, e tam longe de sua pátria, que não tinha outro amparo senão as armas, com as quais esperava de o quietar em seu estado com a vitória de seus imigos; que se esta vontade que ele tinha sua Real Senhoria achasse em seus próprios vassalos, tevesse por certa a segurança de suas cousas; mas que ele receava, segundo o que já via em alguns, principalmente em os mouros que viviam em seu reino, não achar tanta lealdade neles, quanta fé, amizade e serviço lhe haviam de guardar e fazer os portugueses. 276 El-Rei, com estas e outras palavras de Duarte Pacheco, ficou algum 83v tanto consolado e muito mais quando viu com quanta diligência ele dava ordem às cousas necessárias. E porque alguns dos seus naturais já descobertamente de dia se passavam do reino de Cochi pera outras partes com temor da vinda do Samori, o que fazia grande espanto na gente meúda, per conselho de Duarte Pacheco mandou el-Rei lançar pregões que ninguém se saísse do reino, e qualquer que fosse tomado nesta passagem morresse porisso. Duarte Pacheco, por animar el-Rei e os seus que andavam mui cortados de temor, tanto que soube que o Samori era no Repelim, ante que decesse a baixo a Cochi o foi esperar em um passo, somente com uma caravela e batéis e alguns barcos da terra, em que levaria até trezentos homens, de que os oitenta eram portugueses e os outros malabares, que pera isso deu el-Rei. Os Caimais e principais de Cochi, vendo esta diligência de Duarte Pacheco, e quam ousadamente ia cometer o Samori, peró que estevessem abalados pera se rebelar a el-Rei, deteveram-se té ver em que parava esta sua ida; e aprouve a Deus que foi em tal hora, que deu em

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υas aldeas onde já estava assentada a gente do Samori, em que fez grande estrago, por estar descuidada. E posto que sempre, no cometimento e saída em terra que os nossos fizeram, houve sinais de vitória, iam os naturais de Cochi tam temerosos com a fama do Samori, como que vinha trás eles 263 a fúria de todalas armas do Samori; e quem mais remava com o seu catur mais valente era, porque acerca deles não é vileza virar as costas, mas não ousavam de parecer ante el-Rei, por não terem causa de fugir. A qual fugida el-Rei sentiu muito pola fraqueza dos seus e o Samori mais polo ânimo dos nossos; e converteu a indinação deste caso sobre os seus astrólogos e adevinhos, que lhe prometiam grandes vitórias de nós. Porém como eles sempre buscam escápulas a seus enganos, tomaram por desculpa que o dia que cometera aquela jornada pera a sua gente tomar aquele alojamento em que receberam tal dano, fora em hora infelice e não eleita per eles, senão per sua própria vontade, sem com eles consultar os dias que pera bem de sua vitória lhe convinha obrar as cousas essenciais daquela guerra. Que se quisesse conseguir vitória de seus imigos, usasse das horas de sua eleição, porque estas lhe convinham e não as tomadas per própria vontade, ao que el-Rei deu crédito, polo muito que confiava neles. Passado este acidente, entre alguns dias que estes mestres da eleição do tempo escolheram pera o Samori pelejar com os nossos, foi um Domingo de Ramos, deste ano de quinhentos e quatro, o qual, por ser tam solene com os mistérios que Cristo nele obrou por nossa Redenção, andavam os nossos tam alegres de em tal dia se verem com os imigos, que se espantavam os malabares e diziam que os nossos andavam tomados da fúria da vingança, como os amoucos de Malaca e da Jaua, os quais são homens que com indinação dalgυa vingança matam quantos acham ante si, não temendo a morte, contanto que fiquem vingados. E certo que, segundo o Samori trazia a gente e navios 277 de que os nossos cada hora eram assombrados, se não entreviera a consolação e esforço espiritual da memória daqueles dias da coresma em que esperavam, por serviço de Deus e de seu Rei, derramar seu sangue, segundo eram poucos e a carne é sujeita a temores da morte, sem dúvida era cousa pera se todos embarcarem pera este reino, porque rostro, disposição e vontade viam em os naturais da terra pera desesperar de sua ajuda, e esperar fazerem deles entrega ao Samori, como ele requeria. Assi que, entre fé e temor, se determinaram de ir esperar o Samori ao vau da estacada, em que ele por passar, e os nossos polo defender, houve uma miraculosa batalha: porque, tendo o rostro a tanto peso de gente, somente três dos nossos foram feridos e dos imigos um grande número, porque onde morreram cento e oitenta não podia deixar de ser boa soma. Passado este dia em que o Samori recebeu tanta perda, à Sexta-feira de Andoenças, per eleição dos feiticeiros, mandou outra vez cometer o passo do vau, e dia de Páscoa outra, não somente a pé, mas ainda com grande número de paraus que quási faziam uma ponte; no qual cometimento a nossa artelharia lhe meteu no 264 fundo onze deles e matou trezentos e sessenta homens, e o maior dano que da nossa parte se recebeu, foi a gente da terra, que andava mal armada. Porque, como a maior parte de sua guerra é frechadas, espada, adarga, e ainda entre eles não havia tanto número de artelharia como ora tem, mais sujeitos andavam os naturais da terra ao perigo, por mal armados, que os nossos, que traziam as armas de que cá usam. E a maior indústria que o Samori 84 punha neste negócio, era saber quantos portugueses morriam; ca fazia conta que, por serem poucos, ele os iria gastando, té el-Rei de Cochi ficar desemparado deles. E com lhe dizerem que nos três dias que cometeu o vau eram mortos vinte portugueses, isto lhe fazia crer seus adevinhos, por lhe terem dito que na morte dos portugueses estava a sua vitória. Com os quais enganos, quando veo a terça-feira de Páscoa, per seu conselho tornou repetir a entrada per mar e per terra; e foi tam castigado da nossa artelharia que, afastando-se do lugar do

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vau, se recolheu a um palmar com perda de cento e trinta homens mortos e grande número feridos; e os nossos, segundo andavam cobertos de nuves de setas e entre artelharia, miraculosamente Deus os guardava. As quais cousas quebraram tanto o coração de todo aquele gentio do Samori, que lhe fugiu da gente fraca e mesquinha mais de quinze mil homens e sessenta paraus de remo, o que causou tamanho temor nele, que logo se quisera partir, se o não entretivera o senhor de Repelim e conselho dalguns mouros, dizendo que leixasse aquele vau de tanto infortúnio e cometesse a entrada per outra parte, que não fosse per tam estreito lugar, pera que 278 a gente toda podesse pelejar; o que não podia ser naquele lugar estreito, porque, tirando os dianteiros, os outros mais danavam aos seus próprios do que ofendiam aos imigos. O qual conselho o Samori aceitou, e partiu-se daquele lugar.

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264 84 278 Capítulo VI. Dalgυas vitórias que os nossos houveram do Samori, e das indústrias e ardis de guerra que os brâmanes e mouros do seu arraial lhe inventaram pera o consolar das perdas que houve e perigos per que passou. Partido o Samori daquele passo, sem os nossos saberem o fundamento de sua partida, chegou naquela mudança um brâmane a Duarte Pacheco e deu-lhe uma carta, a qual lhe mandava um Rodrigo Reinel, que fora cativo em Calecute no tempo de Pedrálvares Cabral, quando mataram Aires Correa. O qual lhe fazia saber como quantos ardis e conselhos el-Rei de Cochi tinha, logo o Samori era avisado deles per os mouros em que el-Rei mais confiava, e que todos estavam de acordo, per indústria do Samori, pera matar todolos portugueses per qualquer modo 265 que podessem. Duarte Pacheco, por não mostrar a el-Rei que temia os mouros que andavam naquelas cousas, não lhe deu conta do que ordenavam contra os nossos, somente lhe fez queixume deles, da pouca lealdade que lhe mantinham, dando aviso de seus segredos a seu imigo, pedindo-lhe que provesse nisso, mandando dar tal castigo a um par deles, que temessem os outros encorrer na sua culpa. O que el-Rei dissimulou e não pôs em obra, temendo escandalizar em tal tempo os mouros em quem ele tinha posto boa parte de sua esperança, por serem mercadores que tinham muita substância de fazenda; e com este receo que eles sentiam em el-Rei, tomaram licença que descobertamente andavam amedrontando os naturais a leixar a terra, e principalmente àqueles que eram adjutório da guerra, que com seus paraus e barcos iam buscar mantimentos, de que começava haver a necessidade. A qual cousa escandalizou tanto a Duarte Pacheco, que tornou outra vez sobre isso a el-Rei e lhe afeou tanto o caso, que lhe deu ele licença que podesse castigar aqueles que contra seus mandados leixavam a terra. Havida esta licença, não passaram seis dias que não fossem tomados nesta culpa cinco mouros, os quais Duarte Pacheco mandou levar à nau, com fama que os mandava enforcar; sobre que logo vieram muitos recados del-Rei - que tal não fizesse, por serem homens aparentados e dos principais da terra. Ao que ele respondeu que lhe pesava de vir o seu recado tam tarde, porque 279 os ministros de sua morte foram nisso mui diligentes por suas culpas o merecerem; de que el-Rei e os mouros ficaram mui tristes e temerosos de tam pubricamente fazerem o que ante faziam. Peró Duarte Pacheco os tinha mandado mui bem guardar e ter em segredo, té o fim da guerra, porque esperava ao diante comprazer com a ressurreição deles a el-Rei e aos mouros da terra, por serem proveitosos pera o negócio da pimenta; porém ao presente ficaram tam escandalizados, que não 84v andavam buscando senão como podessem a seu salvo empecer os nossos. Com o qual ódio, andando Duarte Pacheco fazendo algυas entradas na Ilha Cambalão, enquanto o Samori fez aquela mudança do lugar do vau a outra parte, estes mouros de Cochi, lá onde os nossos andavam pelejando, lançaram υa fama solta per todos os da terra, que os mouros de Cochi tinham tomado a fortaleza e υa das caravelas e a nau, com morte de quantos portugueses estavam em sua guarda, exortando os que lá andavam em sua ajuda que fizessem outro tanto e assi ficariam livres dos trabalhos da guerra, que padeciam por sua causa. Duarte Pacheco, primeiro que esta falsa nova se pubricasse, foi sabedor dela por aviso de Cochi; e temendo que podia fazer algυa impressão no ânimo dos naturais, que não era mui fiel,

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simulando necessidade, se veo pera Cochi, sem do caso dar conta a el-Rei; somente de novo começou fortalecer e prover nas partes de 266 suspeita e ter maior vegia acerca dos mouros de Cochi. E entre algυas cousas que ordenou, foi que naquela parte per onde o Samori queria passar, em que via outro vau de maré vazia, mandou de noite secretamente meter υas estacas mui agudas de paus tostados, em lugar de abrolhos, pera se encravar a gente, o que aproveitou muito. Porque o dia da passagem deste vau, como todos vinham com ímpeto de passar, lançou-se um grã golpe de gente a ele, dando-lhe água pelos peitos; e, tanto que se começaram a encravar, acurvavam, e os outros que sobrevinham detrás empeçavam neles, de maneira que caíam uns sobre outros, represando água sem ser já vau, mas lugar de sua perdição, uns afogados e outros encravados, com que os traseiros não ousavam cometer aquela passagem. Contudo era tam grande o número da gente, que ainda passaram muitos da banda da ilha onde estavam os nossos, que naquela defensão teveram o maior trabalho do que té então tinham passado. E a causa foi esta: O Samori, quando quis cometer esta passagem, fez mostra que havia de ser per um só lugar; e, tanto que a gente começou entrar, o senhor de Repelim, com grande número de paraus em que haveria mais de três mil homens, cometeu entrar per outro passo mais abaixo, o qual caso fez Duarte Pacheco repartir a gente que tinha em duas partes, mandando a esta per que entrava o senhor de Repelim as duas caravelas, capitães Diogo Pires e Pero Rafael, com alguns paraus, e ele ficou em terra no lugar per onde cometia o vau o Príncipe Nambeadari com o maior corpo da gente. Estando em um mesmo tempo, assi nesta parte do vau como nas caravelas 280 defendendo a passagem, obra de trezentos homens da terra per indústria dos mouros desempararam Duarte Pacheco. O qual, vendo-se mui perseguido da multidão dos imigos, mandou chamar o Príncipe de Cochi, que estava em outro passo de menos defensão, e não lhe acudiu como quem temia ir-se meter em tam manifesto perigo, como sabia ser o em que ele estava. Duarte Pacheco, porque sobre este desemparo se viu ainda em outra maior necessidade, que foi falecer pólvora a uns batéis que tinha no seu passo, os quais lhe ajudavam muito, entretendo o peso da gente, a grã pressa mandou às caravelas de baixo que lhe socorressem, e com um batel que lhe mandaram, que se ajuntou aos outros que lá tinha, ficou com algum repouso da multidão dos imigos, que coalhavam o rio naquela passagem. Porque teve outra ajuda depois da vinda deste batel, que foi vir também a maré a eles, com que totalmente aquele lugar ficou seguro da passagem, e ele teve tempo de vir nos batéis que ali tinha socorrer as caravelas. E aprouve a Deus que com sua chegada também ficaram livres do dano que recebiam da multidão dos paraus. Finalmente, se os imigos sangraram bem os nossos, eles receberam o maior dano; porque 267 em ambolos passos, somente os mortos foram seiscentos e cinquenta. E o que mais assombrou o Samori neste dia foi que, recolhido ele em um palmar vezinho, à borda do rio, lá o foi pescar uma bombarda das caravelas, matando-lhe nove homens aos seus péis, do sangue dos quais ele ficou borrifado; e um deles diziam ser brâmane que lhe estava dando bétel. Por razão do qual caso se indinou tanto contra os seus feiticeiros, que os quisera mandar matar, porque naquele dia lhe tinham eles prometida muito vitória, ele recebeu maior dano que todolos passados. Porém entrevieram nisso muitos Caimais e pessoas notáveis e deram por desculpa, por parte deles, dizendo que os deuses estavam indinados contra ele, Samori, porque no princípio daquela guerra prometera de lhe fazer um templo, o qual té aquele dia não tinha começado; e pera confirmação disto que lhe queriam persuadir sobreveo 85 ao seu arraial υa enfermidade, a maneira de peste, por espaço de um mês, que não durava um homem mais que dous ou três dias, em que perdeu mais de seis mil homens. Com temor da qual muitos lhe fugiram e os outros andavam tam assombrados, que meteu o Samori em grande confusão, não se sabendo determinar.

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Os brâmanes feiticeiros, por se tornarem a reconciliar com ele, vieram com um ardil de enganos, por não acabarem de perder o crédito de suas promessas, dizendo que queriam ordenar uns certos pós, os quais haviam de ser lançados na vista dos nossos, quando viessem a se ajuntar com a sua gente; e eram tam poderosos, que os haviam de cegar de todo, pera não poderem dar mais um passo. 281 Os mouros a quem estas cousas mais tocavam, posto que não confiassem nestas mentiras dos brâmanes, folgavam com elas por animar o povo, e mais a el-Rei, que o viam mui quebrado; e trouxeram também outra invenção em que mais confiavam por ser indústria de guerra, dizendo ao Samori que ali estava um mouro per nome Coje Alé, o qual tinha inventado υa maneira de castelos de madeira armados sobre paraus, em cada um dos quais bem poderiam caber dez homens, e seriam tam sobranceiros sobre as caravelas, com que ficassem senhores do alto; e como a força dos nossos estava nestas caravelas por razão da artelharia, tomadas elas ficavam perdidos de todo. E que, além deste ardil, tinham outro muito melhor por ser sem nenhum trabalho: dar aviso aos mouros de Cochi que lançassem peçonha nas águas de que os nossos bebiam, com que os iriam gastando. As quais cousas assi quedaram no juízo do Samori, que lhe parecia não ter mais dilação, pera haver vitória dos nossos, que enquanto estas se ordenavam; e por isso com muita diligência mandou logo por mão nelas.

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268 85 281 Capítulo VII. Dalgυas cousas que o Samori, Rei de Calecute, ordenou e cometeu contra os nossos e el-Rei de Cochi, na guerra que tinha com ele; e do que Duarte Pacheco nisso fez. Duarte Pacheco, depois que lhe Deus deu aquela vitória, veo-se com as caravelas ajuntar à nau e favorecer a fortaleza, mui descontente do Príncipe de Cochi e del-Rei, por lhe fugir tanta gente da sua, principalmente por o Príncipe não acudir com socorro ao tempo que o mandou chamar, em que os imigos houveram de passar o vau, e, se passaram, fora o negócio de todo acabado. E o que mais daqui sentia era parecer-lhe que vinha isto per indústria dos mouros de Cochi; e, sendo assi, ele não podia ter tanto resguardo, que υa hora ou outra não lhe podesse acontecer algum grande desastre, por ser trabalhosa cousa guardar dos imigos de casa. El-Rei, como soube que ele estava descontente, veo-se com o Príncipe a visitá-lo da vitória do dia passado, e o Príncipe a desculpar-se, dizendo que a gente que fugira ele tinha mandado fazer exame disso e achava ser quási dos Caimais e capitães que se rebelaram ao serviço del-Rei seu tio, que ali estava. El-Rei, tomada a mão ao sobrinho com palavras brandas e mostras de 282 muito amor, começou de tirar de suspeita a Duarte Pacheco, mostrando que de cousa algυa daquelas ele não fora sabedor; somente, vindo visitá-lo e dar-lhe as graças do trabalho que aquele dia passado levara por defensão do seu reino, topara seu sobrinho, que lhe contou o descontentamento que ele tinha e a causa dele. E quanto a desconfiança dos mouros, ele tinha razão, peró o tempo não dava lugar a mais que a dissimular com eles, por serem muitos e poderosos; que, cometendo algυas cousas leves, convinha passar per eles, e quando fossem púbricas e de perigo, então teria outro modo com eles. Que lhe pedia não houvesse paixão, pois não tinha por trabalho os perigos que passava em defender aquele seu reino, que era del-Rei de Portugal, seu irmão; portanto, leixado todo o passado, entendesse em remedear o presente, porque, segundo o Samori fora escarmentado, não podia leixar de tornar com poder de mais gente, pois as injúrias parem indinação e esta, fúria de vingança. Ao terceiro dia, tornou el-Rei mui agastado, dando conta a Duarte Pacheco que per suas enculcas, que trazia ao arraial do Samori, tinha sabido o conselho que houve sobre sua tornada e os ardis dos pós, castelos e peçonha nas águas, e que também lhe fora dito que o Samori mandara buscar todolos elefantes adestrados que havia na terra, pera passarem o vau, pera serem amparo da gente que havia de vir escudada detrás deles. Duarte Pacheco a estas novas e ao 85v temor que lhe el-Rei mostrava respondeu-lhe com palavras de esforço, dizendo que não se agastassem, porque todos estes aparatos e invenções dos mouros de 269 Calecute mais eram a fim de temorizar a gente de Cochi, que por lhe parecer terem força contra o poder dos portugueses, que per muitas vezes tinham experimentado. Que, quanto aos castelos e elefantes, ele tomava sobre si o remédio; que o lançar de peçonha nas águas, isto lhe pedia que mandasse prover per homens de confiança, porque a maldade dos mouros podia corromper a muitos, se não fossem muito fiéis neste caso, que importava a vida de tantos. E depois que mui meudamente esteveram praticando no modo de esperar estes aparatos do Samori, e em que parte fariam mais força - no mar ou na terra, pois per ambas estas partes esperava cometer -, acordaram que, por razão dos castelos que se armavam nos batéis, a maior parte de gente português estevesse nas caravelas e em guarda da fortaleza, e outra estevesse com o Príncipe de Cochi e Caimais no

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lugar do vau. Tornado el-Rei pera sua casa, a prover em as cousas desta prática, ficou Duarte Pacheco em outra com os capitães e principais pessoas que com ele andavam naqueles trabalhos; porque, como os conselhos del-Rei eram logo postos nos ouvidos do Samori, quis prover no que haviam de fazer sem 283 o comunicar com el-Rei, temendo o dano que lhe podia sobrevir, tomando o Samori na sua indústria ardil de os ofender. E as cousas em que logo proveram foi cortar a ponta de um cotovelo que fazia a terra, onde fez υa maneira de baluarte que ajudasse a defender as caravelas que ficavam metidas naquele anco da terra, por lhe ficar um só combate; e, no lugar do vau, outro de madeira grossa, entulhado, onde havia de estar artelharia por causa dos elefantes que haviam de entrar per aquela parte, e υa grossa estacada ao longo da terra, que ficasse soberba sobre o vau em lugar do muro, pera poderem pelejar de cima. Mandou também encravar nos grandes madeiros com as puas de ferro pera cima, os quais haviam secretamente, a noite ante do dia da entrada, ser metidos no lugar do vau, presos com estacas por os não levantar água, pera os elefantes se encravarem neles. E posto que encomendou a el-Rei a vigia das águas, por razão da peçonha, por mais segurança deu cuidado a alguns portugueses, homens de recado, que andassem sobre os gentios, a que el-Rei encomendasse a guarda delas. O Samori, enquanto os nossos ordenavam estas cousas, também entendia em seus apercebimentos, principalmente na invenção de castelos de Coje Alé, que eram oito, cada um em dous paraus de altura de vinte palmos, de cima do qual poderiam pelejar dez homens. E enquanto trabalhavam neles, não leixava de mandar cometer os nossos per quantas partes e modos podia, ora com armas, ora per traições, que sempre caíram sobre sua cabeça, com perda dos seus. Porque ele mandou sobre a nau de Duarte Pacheco, por estar apartada das caravelas, e desta feita perdeu quatro paraus com muita gente morta e ferida; e mais tomaram-lhe um carregado de mantimentos, e a 270 gente que era natural da terra se salvou. Depois per duas ou três vezes fizeram entradas com ardis e ciladas, uma das quais foi per indústria dum mouro mercador, chamado Gormale, a quem Duarte Pacheco, por comprazer a el-Rei de Cochi, deu υa bandeira, dizendo que a queria para trazer pimenta per os rios dentro, porque per ela fosse conhecido dos nossos, por não receber dano. Mas todo o seu ardil ele o pagou, e nestes cometimentos sempre perdiam mais do que ganhavam, porque de υa só vez lhe tomaram os nossos oito paraus e treze bombardas. E por lhe não ficar cousa por tentar, também foram lançados seis naires da parte do Samori pera matarem Duarte Pacheco, dos quais, sendo ele avisado, acolheu um e outro de Cochi, que já andava em sua companhia, e presos os mandou a el-Rei de Cochi, que fizesse justiça deles, porque ele não queria ser o juiz daquele caso, pois era o ofendido. E o mais que Duarte Pacheco estranhou a el-Rei, foi serem eles também lançados pera queimar as caravelas; e de todas estas e outras cousas que cada dia moviam permetia Deus serem logo descobertas aos nossos ante de se cometerem, com que se proviam pera não encorrer no perigo. 284 Não somente com estes que estavam em Cochi o Samori usava destes ardis, mas ainda mandou lançar fama em Cananor e em Coulão, onde estavam as duas feitorias, que todolos portugueses de Cochi eram mortos, com recado a alguns mouros de sua valia, per que lhe recomendava que fizesse lá outro tanto aos que lá estavam, que foi causa de eles terem trabalho, enquanto não souberam a verdade. E porém neste recolher-se à casa forte que António de Sá tinha feita em Coulão, lhe mataram um homem e feriram alguns. Assi que per todalas partes e modos o Samori cometeu se podia tomar vingança dos nossos, sem lhe aproveitar 86 algυa de quantas cousas lhe os mouros inventaram pera isso. Acabados os seus castelos, enquanto davam estes rebates, ficou o Samori tam namorado

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deles, que, leixadas as outras indústrias dos pós e elefantes, toda sua esperança e força pôs no cometimento do combate per mar com eles. E certo que tinha razão, porque na vista eram tam temerosos, quam fracos se depois mostraram quem os povoou; a vinda dos quais em fama tanto assombrou a el-Rei de Cochi e os seus, que, polos animar, quis também Duarte Pacheco usar doutro artefício, dizendo que era contra os castelos, e todavia em seu tempo serviu. O qual foi ajuntar ambas as caravelas com as popas em terra com rajeiras per baixo para se alargar quando quisesse, e ao pé de cada masto mandou também armar outra maneira de castelos, pera que, querendo os outros abalroar, que ficasse igual deles. E nas proas, além dos goroupeses, que eram mais compridos do necessário pera a navegação, mandou atravessar dous mastos pera entreterem a chegada dos castelos às caravelas, e lhe ficar espaço pera se aproveitar da artelharia. Providas estas cousas, repartiu a gente que tinha dos nossos, que 271 per todos podiam ser até cento e sessenta homens, a qual repartição era nestas quatro partes no vau, na fortaleza e pelas caravelas e nau, porque em todos estava a defensão deles e daquele reino de Cochi. E posto que esta repartição ficou assi feita, depois que o negócio chegou a pelejar, tudo se baralhou, trocando uns por outros, segundo a necessidade o requeria; e em cada um destes lugares também havia muita gente que el-Rei mandava mais por fazer corpo de gente, que por acrescentarem ânimo aos nossos; ca, segundo seu uso, ante que experimentassem o ferro, muitos deles se punham em salvo. A este tempo, já em Cochi havia mui pouca gente da natural da terra, por ser toda fugida da fralda do mar pera dentro do sertão, com temor dos aparatos do Samori, posto que viam quantas vitórias os nossos haviam de seus 285 imigos; e não somente fugia a gente cível, mas ainda lhe rebelaram muitos Caimais, que entre eles são pessoas notáveis, como acerca de nós senhores de terras de título. Ca el-Rei de Cochi começou esta guerra, sendo em sua ajuda estes, que eram seus vassalos; o Príncipe, seu sobrinho, herdeiro do reino; o Caimal de Paliporte, o Caimal de Balurte, o Chão de Begadari, senhor de Porcá e o Mangate, Caimal, seu irmão, e o Caimal de Cambalão, e o Caimal de Cheri a Vaipi e outros senhores de terras; e juntamente eram em ajuda del-Rei com até vinte mil homens, que com os seus fazia número de trinta mil. Peró, procedendo a guerra, poucos e poucos o leixaram e ficou somente com o sobrinho e com o Caimal de Vaipi, que sempre lhe guardou muita lealdade. Finalmente de trinta mil homens com que no princípio desta guerra se achou, neste tempo de tanta afronta, que foi a maior, não tinha oito mil; e ainda estes mais sujeitos ao temor que à constância de acompanhar os nossos no tempo do trabalho. E a gente com que o Samori começou seria até setenta mil homens, de que a este tempo (segundo dissemos) pelos casos e perdas que teve, também já tinha menos um terço; porém era fama entre os nossos que trazia per mar e per terra quorenta mil homens seus e destes senhores que o ajudavam, deles como vassalos e outros por serem amigos e vezinhos naquela terra Malabar, que ele convocou contra nós; Beturacol, Rei de Tanor; Cacatunão Bari, Rei de Bespur e de Cucurão, junto da serra chamada Gate; Cota Agatacol, Rei de Cotugão, entre Cananor e Calecute, junto de Gate; Curiur Coil, Rei de Curim, entre Panane e Cranganor ; Nambeadari, Príncipe de Calecute; Nambea, seu irmão; Lancol Nambeadari, senhor de Repelim; Paraicherá Eracol, senhor de Cranganor; Parapucol, senhor de Chalião, entre Calecute e Tanor; Parinha Mutacol, senhor quási Rei entre Cranganor e Repelim; Benará Nambeadari, senhor quási Rei acima de Panane pera a serra; Nambeari, senhor de Banalá Chari; Parapucol, senhor de Parapurão; Parapucol, senhor 272 quási Rei de Bepur, entre Chani e Calecute. E outros muitos, cujos nomes não vieram a nossa notícia, que entre eles eram principais mui poderosos. Alguns dos quais, quando o Samori tornou cometer passar a Cochi com a invenção dos castelos, eram já idos pera suas terras. Do artefício dos quais castelos ele estava tam contente, que lhe parecia ter a vitória mui certa sem ajuda destes que o

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deixaram; mas o negócio não sucedeu segundo ele esperava, como se verá neste seguinte capítulo.

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272 86v 286 Capítulo VIII. Como o Samori de Calecute, com υas máquinas de castelos em barcos e ele per terra, veo cometer os nossos; e desta e doutras vezes que cometeu querer passar o rio ficou tam desbaratado, que se recolheu pera seu reino. Postas as cousas de cada υa destas partes na ordem em que esperavam de se aproveitar delas, partiu o Samori tam soberbo e confiado na invenção da máquina dos castelos, que por aquela vez leixou de cometer o vau, assi por lhe parecer que esta força, posta sobre as nossas caravelas, onde estava toda a del-Rei de Cochi, bastava pera as tomar, e com a posse delas lhe seria leve a entrada de Cochi, como por ter sabido que a passagem do vau estava muito mais defensável; e o principal de tudo era por os seus sacerdotes e feiticeiros lhe terem prometido grande vitória, se posesse o ímpeto de suas forças nestas caravelas. Assi que, com este conselho, dia da Conceição de Nossa Senhora, chegou o Samori per terra com a maior parte do seu exército às nossas caravelas. A qual frota era de duzentos paraus, atulhados de frecheiros, que haviam de servir no seu modo de pelejar como genetes pera chegar e correr a υa e outra parte, e, quando fosse tempo, lançarem em terra aquele golpe de gente, e tornarem por outra onde o Samori estava da outra parte do rio, té ser tanta que podesse senhorear a terra, enquanto o Samori passasse. Entre os quais paraus que chegaram ao mesmo tempo que ele apareceu sobre o rio, vinham oito daquelas máquinas, armadas cada υa em dous grandes paraus, tam soberbas e temerosas que os nossos estimaram mais a vista delas que a fama. Mas como eles esperavam este dia - e mais por ser de Nossa Senhora, na qual punham sua confiança - sem se mover do lugar onde estavam, com as caravelas e batéis em um corpo, a maneira de baluarte com suas arrombadas, em as máquinas dos castelos chegando a tiro, começou a nossa artelharia representar o dia do juízo, afuzilando fogo, vaporando fumo e atroando os ares de maneira que, com estas cousas e com os enxames de frechas, grita da gente, tudo era υa confusão escura na vista e nos ouvidos, sem uns aos outros se poderem ouvir, nem menos saber se eram 273 ofendidos dos amigos se dos contrairos. As máquinas, ainda que vinham soberbas, ante que fossem metidas naquela escuridão e fumaça de morte, não poderam dar tanta quanta elas prometiam com sua vista, ante neste seu cometimento receberam maior dano do que o fizeram; ca, por serem armados sobre dous paraus grandes, ao governar deles houve muito embaraço, não podendo cada um dos dous lemes acudir a um tempo quando os do castelo queriam, porque também a maré que subia os ia atravessando, apesar dos remadores. Com os quais empedimentos de oito máquinas que elas eram, duas 287 com assaz trabalho poderam chegar às caravelas; e ainda estas foram entretidas com as vergas que os nossos tinham posto em modo de goroupeses. As quais, tanto que chegaram àquele lugar com artelharia, foram feitas em rachas, que serviram de armas contra aqueles que vinham dentro; ca os mais deles foram mortos e feridos per elas. E não somente parou a artelharia aqui, mas ainda dava per os paraus que eram tam bastos, que nunca se perdeu tiro; com o qual dano, muitos foram arrombados de maneira que andava já água chea de nadadores, trabalhando por salvar as vidas na terra onde estava o Samori, porque, na de Cochi, os del-Rei, que estavam em guarda dela, os matavam. Finalmente, o dia não foi tam próspero como os feiticeiros do Samori lhe tinham pronosticado; e porque ainda lhe ficou esperança que, tornando outra vez, alcançaria vitória que refizesse todalas perdas passadas, veo di a certos dias em hora de melhor eleição, como eles diziam.

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Mas Nosso Senhor acabou de vingar os nossos deste soberbo e contumaz gentio, com o grande dano e perda que recebeu neste último cometimento que fez, assi per esta parte com seus castelos de vento como per o vau que também cometeu, ficando tam quebrado, e por seus sacerdotes tam convertido a fazer penitência, - dizendo todos ter ofendido aos seus pagodes em não lhe fazer os sacrefícios e ofertas que lhe tinha prometido no princípio desta guerra - que, simulando ele que se tornava a refazer pera tornar a ela, se recolheu de todo, com perda de dezoito mil homens: treze na enfermidade que 87 per duas vezes sobreveo ao seu arraial e os cinco na guerra que continuou. A qual guerra durou seis meses; e, neste tempo, entre o Samori e el-Rei de Cochi houve cartas, recados e outras meudezas, segundo o que escreveu Frei Gastão, um religioso que estava na feitoria com os nossos em um tratado que fez da guerra entre estes dous Reis, de que somente tomamos o necessário com outra mais informação, porque em todo o discurso desta nossa Ásia mais trabalhamos no substancial da história que no ampliar as meudezas que enfadam e não deleitam. Assi que, tornando ao fim desta guerra, que se rematou com as amoestações dos brâmanes, teveram eles ainda tanto artefício de se salvar das mentiras que disseram ao Samori no sucedimento dela, e 274 de consolar a ele, que lhe fizeram crer que os seus deuses lhe tinham feito mercê em pagar culpas próprias, não com dano de sua pessoa, mas dos seus, a qual cousa causou recolher-se com alguns deles a fazer penitência, dando também por causa de seu recolhimento querer por alguns dias dar repouso ao povo dos trabalhos da guerra, e mais naquele tempo, por ser no fim do inverno em que esperava a vinda das nossas naus, contra o poder das quais também lhe convinha prover seus portos. 288 Os seus Caimais e príncipes que o ajudaram, principalmente aqueles que podiam receber dano ou proveito de nós, ante que as nossas naus chegassem, por segurar seus estados e lugares e haver algυa fazenda da que elas de cá levavam, mandaram cometer pazes a Duarte Pacheco, vendo que o Samori se recolhia, não tanto por religião quanto por siso de paz, por sentirem nele que a desejava. E quem logo veo com este requerimento de paz, foi o senhor de Repelim, principal movedor desta guerra, por ser mui vezinho a Cochi, e não tinha a pimenta de sua terra outra saída se não per nossas naus; e pola mesma rezão da pimenta e a sua terra ser a frol dela, e a nós convir tanto como a ele esta paz, Duarte Pacheco, per vontade del-Rei de Cochi, lha concedeu. No qual tempo António de Sá, feitor de Coulão, por algυas paixões que lá tinha com os mouros, lhe mandou pedir que com sua vista o quisesse ir favorecer, o que Duarte Pacheco fez, indo lá em sua nau, leixando os capitães das caravelas em guarda de Cochi. O qual, chegando ao porto de Coulão, achou cinco naus de mouros que estavam a carga da pimenta, das quais vieram a ele cinco mouros, os principais delas com grandes presentes, pedindo-lhe paz e seguro pera navegarem suas naus com a carga que tinham feita; o que lhe Duarte Pacheco não concedeu, ante, por ter sabido de António de Sá que as naus estavam já de todo carregadas contra sua vontade, e que esta fora a principal causa por que o mandara chamar - por ter havido algυas paixões com os mouros mercadores estantes na terra que lhe negavam esta pimenta por a dar a eles - Duarte Pacheco lha fez descarregar toda e a entregou a António de Sá, pagando-lhe o que custava, e somente lhe deu algυa pera sua despesa. E enquanto estas descarregavam, vieram ali ter outras duas, cada υa em seu dia, as quais traziam algυa pimenta e vinham acabar de tomar carga naquele porto; e porque soube certo que nenhυa destas naus era de Calecute, com quem tínhamos guerra, a todos não fez mais dano que não lhe consentir que tomassem algυa pimenta, por termos ali feitor a fim de recolher toda a que havia na terra. Assi que, espedidos estes, vazios e pagos da pimenta que tinham, foram buscar outro lugar que não tivesse esta defensão, e Duarte Pacheco tornou-se pera Cochi, onde di a poucos dias chegou Lopo Soares, que partiu deste reino por Capitão-mor de υa grande armada, da viagem do qual

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faremos relação neste seguinte capítulo.

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275 87 289 Capítulo IX. Como el-Rei, por as naus que teve da Índia per o Almirante Dom Vasco da Gama, o ano seguinte de quinhentos e quatro mandou υa grande armada de que foi por Capitão-mor Lopo Soares; e do que passou da partida de Lisboa té chegar a Cochi. Com a vinda da Índia do Almirante Dom Vasco da Gama, soube el-Rei que as cousas dela se iam ordenando de maneira que convinha mandar maior frota da que lá era ao tempo de sua chegada, que, como escrevemos, foram nove velas repartidas em três capitanias, do sucesso das quais ainda el-Rei não tinha nova. Somente soube per ele, Almirante, quam ofendidos os mouros 87v daquelas partes ficavam assi polo ódio que geralmente eles tem ao povo cristão, como pelo dano que tinha recebido de nós, e principalmente dele, Almirante. Assi que por esta razão, como pera ir tomando maior posse daquele grande estado que lhe Deus tinha descoberto, ordenou de mandar este ano de quinhentos e quatro υa grossa armada, a capitania-mor da qual deu a Lopo Soares, filho de Rui Gomes de Alvarenga, Chanceler-mor que fora destes reinos em tempo del-Rei Dom Afonso o quinto, em o qual Lopo Soares havia muita prudência e outras calidades de sua pessoa, que mereciam υa tam honrada ida como esta era. Com o qual foram estes capitães: Lionel Coutinho, filho de Vasco Fernandes Coutinho; Pero de Mendoça, filho de João de Brito; Lopo Mendes de Vasconcelos, filho de Luís Mendes de Vasconcelos; Manuel Teles Barreto, filho de Afonso Teles; Pedro Afonso de Aguiar, filho de Diogo Afonso de Aguiar; Afonso Lopes da Costa, filho de Pero da Costa, de Tomar; Filipe de Castro, filho de Álvaro de Castro; Tristão da Silva, filho de Afonso Teles de Meneses; Vasco da Silveira, filho de Mosém Vasco; Vasco de Carvalho, filho de Álvaro Carvalho; Lopo de Abreu e Pero Dinis, de Setúbal. Em as quais naus levava mil e duzentos homens, muita parte deles fidalgos e criados del-Rei, toda gente mui limpa e tal que com razão se pode dizer que esta foi a primeira armada que saiu deste reino de tanta e tam luzida gente e de tam grandes naus; posto que foram menos em número que as duas passadas. E por esta causa não se poderam fazer tam prestes como as outras, porque partiu da cidade de Lisboa a vinte dous de Abril deste ano de mil quinhentos e quatro, e a dous de Maio foram na paragem do Cabo Verde. E di em diante, posto que teveram alguns temporais que se acham em tam comprida viagem, quando veo a vinte cinco de Julho, surgiu em Moçambique, onde se deteve até o primeiro dia de Agosto, fazendo aguada e repairando algυas naus, principalmente a de Pedro Afonso de Aguiar e a de Afonso Lopes da 276 Costa, que com um temporal que teveram de noite deu υa per outra. 290 Partido de Moçambique, chegou a Melinde, onde achou seis portugueses dos que se perderam com Pero de Taíde, os quais lhe contaram também como se perdera Vicente Sodré e as cousas que Afonso de Albuquerque e Francisco de Albuquerque tinham feito na Índia. Espedido del-Rei de Melinde, que o recebeu e tratou com muito gasalhado o tempo que ali esteve, a primeira terra que tomou da Índia foi Anchediva, onde achou António de Saldanha com Rui Lourenço, os quais se faziam prestes pera tornar a costa de Cambaia, pera andar ali esperando as naus de Meca, mas Lopo Soares os levou consigo por levar recado del-Rei Dom Manuel pera isso. Ali veo também ter com ele Lopo Mendes de Vasconcelos, que se apartou da frota com um temporal que lhe deu, o qual tinham por perdido; e, juntas estas velas, chegou a Cananor, onde foi muito festejado, assi do feitor, Gonçalo Gil Barbosa, como del-Rei, que se veo com ele ao modo das

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vistas que houve entre ele e o Almirante. Porque estes príncipes gentios nestas vistas põem muita parte de sua honra, em ser com grande aparato e cerimónias a seu uso; mas Lopo Soares não lhe deu tanto vagar, porque três dias somente se deteve nestas vistas e em prover algυas cousas ao feitor Gonçalo Gil, pera fazer prestes a carga do gengivre e outras cousas que havia de tomar, quando tornasse de Cochi. Peró, ante que partisse pera Cochi, veo a ele com cartas um moço cristão, mandado pelos cativos que lá estavam em Calecute, pedindo que se lembrasse deles, à vinda do qual moço deu azo Coje Biqui, que era nosso amigo do tempo de Pedrálvares Cabral, e também foi indústria dos principais de Calecute, temendo aquele grande poder de armada; e parecia-lhe que os cativos que lá tinham podiam fazer algum bom negócio pera tratar na paz, por saberem que a desejava o Samori. Lopo Soares, depois que se enformou do moço dalgυas cousas que per ele lhe mandavam dizer os cativos, o tornou logo a espedir com palavras de esperança de sua liberdade; e quando veo ao seguinte dia, que eram sete de Setembro, chegou ante a cidade de Calecute, onde, em lançando âncora, foi vesitado com alguns refrescos por parte de Coje Biqui e em sua companhia este moço. O qual presente Lopo Soares não aceitou, dizendo que ele estava naquele porto suspeitoso, onde se costumava negocear com cautelas de enganos; e porque não sabia se vinha da mão de Coje Biqui, que ele havia por homem amigo do serviço del-Rei de 88 Portugal, seu senhor, se doutro algum que fosse imigo dos portugueses, não podia aceitar cousa algυa, ainda que viesse em seu nome. Que enquanto ele não praticasse com a própria pessoa de Coje Biqui, peró que recados lhe fossem dados de sua parte, testemunhados per aquele moço que ali estava, não os havia por seus; portanto ele se poderia ir 277 embora; e, se era de Coje Biqui, podia-lhe dizer que com nenhum outro refresco folgaria mais que com ver a ele e aos portugueses que lá estavam reteúdos. Espedido este mouro, veo Coje Biqui ao seguinte dia, e não mui contente 291 da reposta que os mouros mandaram a Lopo Soares, posto que trouxe consigo os mais dos cativos que lá estavam. A qual reposta era que el-Rei estava ao pé da serra, mas que por terem sabido quanto desejava a paz, lhe mandavam aqueles homens, e que enquanto não vinha seu recado, por terem mandado a ele, folgariam saber dele a vontade que tinha e o que queria mais, pera o fazerem saber ao Samori. Lopo Soares, depois que agradeceu a Coje Biqui a vontade que sempre mostrava aos portugueses, respondeu-lhe ao negócio da paz, que a primeira cousa que haviam de fazer, pera ele ouvir as condições dela, era entregarem-lhe os dous gregos de Esclavónia que lá andavam, que na prática da outra paz el-Rei prometeu entregar e não compriu. Coje Biqui, porque viu que Lopo Soares se cerrou nisto e não quis ouvir mais reprica, espediu dele, dizendo-lhe que ele desejava mais esta paz que pessoa algυa; mas como el-Rei e os principais do seu conselho o haviam já por suspeito nas cousas do serviço del-Rei de Portugal, ele não tinha nesta parte mais autoridade que representar bem este negócio, o qual prazerá a Deus que viria a efeito. Lopo Soares, porque neste e em outros recados que foram e vieram tudo era cautelas e dilações, sem algυa conclusão, mandou chegar seis naus das mais pequenas a terra, que varejassem com artelharia toda a cidade em que se deteve dous dias, nos quais se fez tanta destruição, que caiu grande parte do cerame del-Rei. Acabada a qual obra, Lopo Soares se partiu pera Cochi, onde chegou a catorze de Setembro, a tempo que também Duarte Pacheco chegava de Coulão, do negócio pera que o mandou chamar António de Sá (como atrás dissemos). E ao seguinte dia, depois de sua chegada, el-Rei de Cochi o veo ver, mostrando grande contentamento de sua vinda, e da boa entrada que deu no varejar de Calecute, do qual estrago logo per patamares, que são grandes caminheiros de terra, tinha já sabido serem mortas mais de trezentas pessoas e derribada muita casaria, até os palmares eram

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destruídos, que o gentio muito sentia, por ser propriedade de que se mantém. Na qual prática Lopo Soares, por parte del-Rei Dom Manuel, com as cartas que trouxe a el-Rei de Cochi, lhe deu agradecimentos dos trabalhos que tinha passados, oferecendo-lhe aquela armada, e que nenhυa cousa lhe el-Rei, seu senhor, mais encomendava que a restituição de qualquer perda que ele tevesse recebida por causa da amizade que com ele tinha, e outras muitas palavras a que el-Rei respondeu, dizendo que ele perdia mui pouco em perder seu estado por amor del-Rei de Portugal, seu irmão, pera o que ele desejava aventurar por seu serviço, quanto 278 mais que os danos da guerra passada mais foram de seu imigo que dele, e os trabalhos de defender aquele seu reino de Cochi não eram seus nem dos seus súbditos e vassalos, senão dos portugueses que ali estavam, principalmente do capitão Duarte Pacheco. E que algum trabalho que o seu reino podia receber, el-Rei, seu irmão, lho pagava 292 cada ano nas cousas que por amor dele fazia; de maneira que, recompensada υa cousa por outra, ele era o que ficava devendo. Que em sinal destas mercês e favores que cada dia recebia (pois em al o não podia servir), ele queria logo mandar ordenar a carga da especearia e que ele, Lopo Soares, podia descansar nesta parte. As quais palavras Lopo Soares respondeu com outras, assi da parte del-Rei como da sua, conformes ao que elas mereciam; com que se espediram um do outro mui contentes. E porque a este tempo el-Rei, por causas das guerras passadas, estava na Ilha de Vaipi, e ele desejava de se passar à Ilha de Cochi, onde era sua própria vivenda, segundo deu conta a Lopo Soares, mandou ele, António de Saldanha, que com alguns batéis de que eram capitães Tristão da Silva, Pero Rafael, Pero Juzarte e Rui Lourenço, que o levassem. Os quais foram com muita festa de trombetas, bandeiras e gente luzida, fazendo toda honra e acatamento à pessoa del-Rei, como se foram seus vassalos, porque o queriam contentar e comprazer, por razão dos grandes trabalhos que tinha padecido por conservar a amizade del-Rei Dom Manuel.

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278 88v 292 Capítulo X. Como Lopo Soares, a requerimento del-Rei de Cochi, deu em Cranganor e destruiu; e da ajuda que mandou a el-Rei de Tanor e as causas porquê. Havendo um mês que Lopo Soares era chegado, el-Rei de Cochi lhe deu conta como de um lugar chamado Cranganor, que seria dali quatro léguas, per um rio dentro contra Calecute, recebia muito dano, por ser lugar de frontaria que o Samori tinha fortalecido; que lhe pedia muito que, enquanto as naus estavam à carga, houvesse por bem de mandar sobre ele pera o destruir de todo. Lopo Soares, como já tinha informação deste lugar per Duarte Pacheco e quam prejudicial era a sua vezinhança, determinou de ir logo sobre ele, e assi o disse a el-Rei com palavras de que ele ainda levou maior contentamento. Juntos pera este negócio vinte batéis, em que entravam os esquifes das naus, determinou Lopo Soares em pessoa de ir a este lugar, e tam secretamente que não se soubesse em Cochi, por não darem aviso aos imigos, que, segundo tinha sabido, estava no lugar um capitão do Samori, chamado Maimame, e o Príncipe Nambeadari, com gente de guarnição, por causa da qual guarnição el-Rei de Cochi mandou per terra o Príncipe, seu sobrinho, com alguns naires e frecheiros. 279 Partido Lopo Soares υa ante menhã, foram dormir a um lugar, 293 por esperarem ali o Príncipe de Cochi, que com sua gente vinha per terra per outra parte; o qual se deteve tanto que, quando ao outro dia chegaram, posto que foi em amanhecendo, já a terra era apelidada e posta em armas. E o primeiro encontro que os nossos acharam foram duas naus do próprio capitão Maimame, atulhadas de gente, e dous filhos seus que, em os nossos as cometendo, com ânimo de valentes homens as defenderam. Mas não durou muito este seu fervor, porque a custa de feridos e mortos elas foram entradas e entregues ao fogo. O qual feito se fez per os primeiros capitães a quem Lopo Soares tinha dado a dianteira, que eram António de Saldanha, Pedro Afonso de Aguiar, Tristão da Silva, Vasco Carvalho e Afonso Lopes da Costa. Acabado este feito, que se fez no rio, pôs Lopo Soares com o corpo de toda a gente o peito em terra, que foi tomada com assaz trabalho e sangue de todos, porque os mouros e índios cobriam a praia com o grande número deles, e ante que os nossos chegassem a bote de lança, foi entre uns e os outros υa nuvem de setas tam basta, que não davam lugar a que os nossos entrassem em caminho, e não entendiam em mais que amparar-se e escudar daqueles exames de setas que lhe ferviam ante os olhos. Té que as nossas espingardas e bestas fizeram lugar com que começaram de tomar mais posse da terra e os vieram careando a bote das lanças pera a povoação, que foi logo entrada e posta em poder de fogo, porque ela estava já tam despejada, que não houve esbulho em que a gente de armas se detivesse, e a maior presa que ali houve foram trinta e cinco zambucos e paraus, que se trouxeram pera el-Rei de Cochi, como sinal da vitória que houveram de seu imigo. E posto que o fogo tomou muita licença no que queimou, maior a tomara se não sobreviera algυa gente da terra, que eram dos cristãos que ali viviam, e vieram a Vasco da Gama como atrás fica, por causa dos quais Lopo Soares mandou que se não fizesse mais dano, pois tinham ali sua vivenda em companhia dos mouros e gentios da terra. O Príncipe de Cochi, porque os nossos deram maior pressa a este negócio do que ele trazia e não pôde ser presente a ele, quando chegou, por honra de sua pessoa e entre eles se haver por vitória contra os imigos, saltou na terra, decepando algυas palmeiras como senhor do campo, e mandou trazer uma em um parau por triunfo daquele feito. O qual, não somente quebrou a soberba do Samori, mas ainda deu ânimo a alguns seus imigos; porque, chegado Lopo Soares a Cochi com a

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vitória dele, di a dous dias el-Rei de Tanor, seu vassalo, se mandou queixar a ele per seus embaixadores, pedindo-lhe paz e ajuda contra ele, do qual era desavindo por cousas que tocavam ao serviço del-Rei de Portugal. E vindo ele, Samori, sobre isso com gente pera o destruir, ele lhe saíra ao encontro em um passo do qual 280 houvera vitória, ao tempo que Lopo Soares destruíra Cranganor, em favor e defensão do qual ele, Samori, ia, parecendo-lhe que, se passasse, podia castigar a ele e ir avante, do qual trabalho ele o tirou com a vitória que lhe Deus deu. 89 Que o 294 favor e ajuda que dele queria, era mandar ao seu porto de Tanor algυa nau com gente e artelharia, porque tinha per nova que o Samori com maior indinação, como homem injuriado, vinha outra vez sobre ele. Lopo Soares, depois que ouviu os embaixadores, os mandou muito bem agasalhar e quis-se informar del-Rei de Cochi e de Duarte Pacheco desta novidade del-Rei de Tanor, sendo um tam principal imigo como eles diziam, e que naquela guerra passada sempre servira a el-Rei de Calecute, que não sabia como podia mover υa tal cousa; que, quanto ao que ele sentia deste negócio, verdadeiramente tinha pera si que era algυa simulação, afim de lhe não darem sobre este lugar com o temor da nova da destruição de Cranganor. A qual suspeita el-Rei de Cochi lhe desfez, e assi Duarte Pacheco, polo que tinha sabido per alguns principais da terra; e a causa de mandar pedir esta ajuda era esta: Este reino de Tanor antiguamente fora livre e não súbdito e continha em seu estado muitas terras; mas, como o vezinho poderoso sempre vai comendo do fraco, os Reis de Calecute o poseram em tal estado, que não ficou mais aos Príncipes dele que aquela povoação do porto de Panane - e isto em vida deste Rei que reinava, de maneira que de Rei livre ficou tributário ao Samori. O qual Rei, parecendo-lhe que per serviços de sua pessoa podia cobrar dele, Samori, o que não podera defender em todolas guerras passadas que ele, Samori, teve, foi um dos principais e mais continos que o serviram, sem haver galardão de seus trabalhos. Mas parece que nenhυa cousa destas satisfez ao Samori, e per qualquer causa que foi, temendo-se dele que podia com nosso favor tirar o laço do pescoço de sua servidão, determinou de lhe tomar este porto de Tanor e o mais que tinha. Finalmente, posto o Samori em caminho com dez mil homens pera vir a Cranganor, em ajuda do Príncipe de Calecute, e Marmame, seu Capitão-mor, temendo o que sucedeu, assentou que à tornada, quando se recolhesse a Calecute, daria em Tanor. Peró, primeiro que ele chegasse a este efeito, lhe sucedeu outro não esperado dele, e foi que el-Rei de Tanor subitamente, em um passo, lhe saiu e o desbaratou. Com a qual obra fez el-Rei de Tanor duas cousas: vingou-se primeiro que o Samori desse nele, e mais foi empedimento pera se não ir ajuntar em Cranganor com os seus; que, per ventura, se o fizera, não houvera Lopo Soares tam levemente vitória deles. Teve ainda el-Rei de Tanor outra boa fortuna: que, indo o Príncipe de Calecute e Marmame desbaratados dos nossos, saiu-lhe ele também ao caminho e acabou de os destruir. De maneira que, chegado Pero Rafael com υa caravela armada e quorenta homens que lhe Lopo Soares 281 mandava polo requerimento dos seus embaixadores, tinha já el-Rei de Tanor havido estas vitórias, estando ele, quando os mandou a pedir este socorro, esperando cada dia pelo Samori que o vinha destruir. E como homem mimoso da boa fortuna daquelas vitórias, já recebeu com cerimónias de majestade de sua pessoa a 295 Pero Rafael, dando-lhe agradecimentos de sua boa chegada, e que ao presente não tinha necessidade dele, por seu imigo ser já posto em salvo, mais temido que soberbo. Que ele esperava de cobrar todo seu estado com favor e ajuda das armadas del-Rei de Portugal, cujo servidor ele seria todo o

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tempo de sua vida; e que pera isso oferecia sua pessoa, fazenda e estado, quando por seus capitães fosse requerido. E com esta e outras ofertas de palavra que mandou a Lopo Soares, espediu a Pero Rafael, que se tornou a Cochi.

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281 89 295 Capítulo XI. Como Lopo Soares, depois de feita sua carga de especearia e espedido del-Rei de Cochi, de caminho deu em um lugar del-Rei de Calecute, chamado Panane, onde pelejou com alguns seus capitães que estavam em guarda de dezassete naus, as quais queimou; e acabado este feito partiu pera este reino, onde chegou a salvamento. Enquanto estas cousas passaram, posto que também se entendesse em a carga das naus, porque elas eram muitas e com a guerra o negócio da pimenta não andava tam corrente que assi em breve se pudesse haver, e mais por a maior parte dele ser feito per mãos de mouros mui vagarosos, ordenou Lopo Soares de mandar a Coulão cinco naus - capitães Pero de Mendoça, Lopo de Abreu, António de Saldanha, Rui Lourenço e Felipe de Castro - pera lá haverem carga. Porque, além 89v de ter recado de António de Sá, que estava por feitor daquela feitoria, que tinha recolhido boa soma de pimenta, também per conselho dele e de Duarte Pacheco, que dela era vindo, quis mandar aquelas cinco velas per favor da nossa feitoria, ca andavam os mouros tam alevantados contra António de Sá, que com trabalho lhe queriam dar pimenta e não vinha nau de mouros ao porto de Coulão, que logo não fosse despachada, apesar dele. Assi que por estas causas as enviou, e em breve foram e vieram com sua carga, a tempo que as outras estavam prestes. E porque el-Rei Dom Manuel mandava a Lopo Soares que, em guarda da fortaleza de Cochi e assi daquela costa, ficasse Manuel Teles Barreto, filho de Afonso Teles Barreto, por Capitão-mor de quatro velas, à espedida que teve com el-Rei de Cochi lho entregou com palavras, de que el-Rei ficou satisfeito, acerca da segurança de seu estado, posto que ele quisera, pola experiência que tinha dele, que ficara Duarte Pacheco. Com o qual Manuel Teles, por serem homens conhecidos del-Rei e andarem sempre naquela guerra e o comprazer nisso, ficaram Pero Rafael e Diogo 282 Dias e Cristóvão Juzarte. E nesta espedida que Lopo Soares teve com el-Rei, não lhe quis dar 296 conta do que determinava fazer de caminho, que era dar em um lugar do Samori, chamado Panane, temendo que, comunicando este negócio com ele, fossem logo os mouros avisados, por não se guardar muito segredo entre eles, principalmente como tocava em cousas nossas. A qual ida Lopo Soares assentou com os capitães, e principalmente com Duarte Pacheco, por ter sabido, quando logo ele chegou, que naquele lugar de Panane estavam dezassete naus de mercadores do estreito de Meca pera tomar carga de especearia; por a qual razão υa das cousas que Lopo Soares proveo, em chegando, foi mandar a Pero de Mendoça por Capitão-mor de três velas, que andasse em guarda dos portos de Calecute, por não sair ou entrar nau sem ser per ele vista. Finalmente, assentadas todalas cousas que convinham à fortaleza, e espedido del-Rei, ele, Lopo Soares, se partiu a vinte seis de Dezembro, levando em sua companhia Manuel Teles com os outros capitães de sua bandeira, pera serem com ele naquele feito. E seguindo seu caminho, levando diante as caravelas chegadas à costa e ele com as naus de largo por irem carregadas, sendo tanto avante como Panane, saíram a elas vinte paraus bem artelhados; e, como genetes ligeiros, começaram despender sua pólvora e almazém. Os quais, segundo logo pareceu, de indústria vinham travar com elas; e, como a frota das naus da carga se mostrou, fengiram temor e começaram de se recolher pera dentro do rio, onde as naus dos mouros estavam, porque lhe pareceu que, por os nossos irem já de caminho com carga feita, não se haviam de querer meter dentro em ventura, por o rio não lhe dar lugar, principalmente com um baluarte que defendia a entrada, posto que as

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caravelas o quisessem cometer. E verdadeiramente posto o negócio em conselho, os mouros estavam na verdade, que não era cousa pera cometer entrar naquele rio segundo ele estava defensável; e mais impossível lhe parecera, se souberam o modo que os nossos depois teveram em cometer este feito. Porque quem podia crer que obra de trezentos e sessenta homens, em quinze batéis e duas caravelas, haviam de cometer dezassete naus grossas com muita artelharia, encadeadas υas em outras, tam juntas, com as popas em terra, a maneira de alcantilada, que parecia um eirado soberbo sobre o mar, em guarda das quais estavam quatro mil homens? Porém como as cousas da honra, acerca daqueles que a tem por vida, precedem todolos perigos da morte, e mais este caso, que tratava do estado da Índia, não se quis vir Lopo Soares sem o leixar concluído; o qual per ventura fizera mais dano que as guerras passadas, por ficar o Samori mui escandalizado do feito de Cranganor e del-Rei de Tanor. Assi que, havida outra consideração e conselho, ainda que confuso, por ainda não terem visto como as naus estavam, assentou Lopo Soares de 283 as ir 297 queimar, levando diante Pero Rafael e Diogo Dias, que tinham as caravelas mais pequenas, e ele em quinze batéis. O qual, partido das naus com grande estrondo de trombetas e grita da gente, nesta ordem das caravelas ante si, quási por amparo da artelharia dos mouros, que ao longe lhe podia fazer mais dano que ao perto, principalmente de um baluarte que, à entrada da barra, estava cheo dela, a primeira caravela, que foi a de Pero Rafael, assi a salvaram, que com as rachas que fez a artelharia em os altos dela lhe feriu muita gente; e sobre isso carregaram os paraus que a vieram demandar, lançando-lhe dentro um grande 90 número de frechas, que lhe encravou muitos homens. A qual entrada assi embaraçou a gente do mar na mareagem da caravela, que, por se lançarem a outra parte e fugir o perigo do baluarte, foram cair em outro pior: e era de baixo de υa nau grossa já dentro no porto, que por ser mui altarosa padeceram mui grande trabalho, e em se amparar das frechas e arremessos de zargunchos, quási a mão-tenente, teveram bem que fazer; do qual perigo ficaram muitos mui mal feridos. A outra caravela - capitão Diogo Dias -, indo na esteira deste baluarte, lhe mataram um marinheiro que ia ao leme; e, porque os outros se chegavam de má vontade àquele lugar, como a caravela não sentiu governo, deu consigo em um baixo, de maneira que ambas ficaram em estado que mais haviam mister ajuda do que a podiam dar a ninguém. Lopo Soares, que vinha detrás delas, peró que viu o perigo per que passaram, não houve mais ordem de esperar outro conselho, senão dar as trombetas com Santiago na boca a quem remaria e seria primeiro com as naus, como quem corria um pário naval, cujo termo da vitória era chegar a elas. E parece que Nosso Senhor lhe quis poer este empedimento nas caravelas de os não poderem naquela chegada ajudar, pera que a vitória fosse mais milagrosa. Porque, aferrando cada um sua nau, assi levava o espírito posto em confiança de vitória, que lhe não lembrava que ia cometer υa nau atulhada de gente e tam alta de subir, que em paz quieta um homem pederia υa escada de corda de que lançasse mão. E porém logo na chegada, estando Lopo Soares pera aferrar, υa bombarda lhe matou um homem, e feriram quatro. E Tristão da Silva, que foi dos primeiros, subindo per outra, o deitaram abaixo; e outro tanto fizeram a Pero de Mendoça; e a António de Saldanha com outra bombarda lhe arrombaram o seu batel, e levou a barriga da perna a um criado seu, de que ficou aleixado. E porque era já maior o perigo de se afogarem, por o batel se ir ao fundo, que cometer as naus, tomou posse de υa com os que levava. Manuel Teles, Duarte Pacheco aferraram υa que diziam ser a capitânia das outras, onde acharam bem o trabalho, 298 porque havia nela muitos turcos, homens mui valentes e despachados, que não chegavam a eles sem fazerem sangue.

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Finalmente, cada um em 284 a nau que lhe coube em sorte, com morte do capitão dos turcos e alguns mouros e muitos do gentio da terra, deu tal conta dela, que poucos e poucos, subindo ao alto, se fizeram senhores de todas, lançando-se os mouros ao mar, onde poucos escapavam, porque os marinheiros dos batéis às lançadas os mataram. E sem se saber quem nem por cujo mandado, foi posto fogo às naus, e assi tomou ele posse delas, que as não leixou até o lume de água, onde ardeu muita fazenda, porque estavam pera partir quási de todo carregadas. E foi a cousa que mais espantou aos da terra, vendo que sem ter cobiça de tanta riqueza como nelas estavam, tam levemente foram queimadas. E diziam que isto se fizera em vingança do que fora feito a Aires Correa. Porém a vitória não foi sem custo, porque dos nossos morreram vinte e três pessoas e cento e setenta feridos, porque durou a peleja de pela menhã té horas de meio-dia; e, segundo se depois soube em Cananor, morreram dos imigos setecentos e feridos um grande número deles. Acabado este feito, tornou-se Lopo Soares recolher às naus e naquele dia não se estendeu em mais que na cura dos feridos; e ao seguinte, que era dia de Janeiro do ano de quinhentos e cinco, se fez à vela, caminho de Cananor, onde foram recebidos com muita festa e prazer dos nossos que ali estavam. Os quais, segundo cada dia eram assoberbados dos mouros, moradores da terra, se Lopo Soares ficara com algυa quebra daquele feito, ou as naus ficaram inteiras, não ousaram estar ali mais, por verem que el-Rei era mui sujeito a estes mouros e levemente lhe perdoava qualquer erro, polo rendimento que tinha deles em seus tratos. Porém sabendo ele que Lopo Soares era chegado, do lugar onde estava, que era contra a serra, o veo logo ver, mostrando grande contentamento da vitória que houve. Na qual vista, porque era também espedida, Lopo Soares, lhe encomendou o feitor e oficiais e gente que ali ficava debaixo do amparo de sua verdade, passando ambos sobre isto muitas palavras, em que el-Rei deu grande penhor de maneira que haviam de ser tratados e favorecidos. E com isto se espediam ambos. Acabada de tomar a carga que ali estava prestes, fez-se Lopo Soares à vela, via deste reino, espedindo de si a Manuel Teles com os outros capitães que ficavam com ele; e com bom tempo que lhe fez, ao primeiro de Fevereiro chegou a Melinde, 90v onde foi provido de muitos refrescos que lhe el-Rei mandou às naus. Partido daqui com tenção de queimar um lugar del-Rei de Mombaça, a rogo del-Rei de Melinde, aconteceu que passou per ele com as águas que corriam e não pôde tomar terra, e foi ter a Quíloa, por recolher as páreas que el-Rei devia de dous anos, de que se ele escusou, por pobreza. Ao qual Lopo Soares não quis muito apertar, vendo que submetia sua pessoa à obediência do que ele mandasse, mostrando que por seus rogos aquele ano lhe 285 não 299 queria paga, somente que a tevesse prestes ao seguinte, pera o capitão que ali viesse. Espedido dele, partiu-se a dez de Fevereiro, e em Moçambique se deteve dez ou onze dias, tomando água e lenha e esperando por corregimento da nau de António de Saldanha, que fazia muita água; donde mandou diante a Pero de Mendoça e a Lopo de Abreu, que trouxessem a nova de sua vinda a este reino. Os quais sendo catorze léguas de aguada de São Brás, de noite encalhou Pero de Mendoça em terra e pela menhã Lopo de Abreu o viu estar com o traquete desferido, e por causa do tempo não lhe pôde valer, com que Pero de Mendoça ficou sem se mais saber dele; e parece que ele pagou por toda a frota, porque Lopo de Abreu veo a salvamento a Lisboa, nove dias ante Lopo Soares. O qual, partido de Moçambique, posto que no cabo teve um temporal com que algυas naus se apartaram dele, assi como António de Saldanha, que com o masto quebrado foi ter à Ilha de Santa Helena, e outros correram outras fortunas, per derradeiro se ajuntaram com ele nas Ilhas Terceiras, donde partiu pera este reino, e entrou no porto de Lisboa a vinte dous de Julho, com treze

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velas juntas; e di a poucos dias entrou a nau de Setúbal, de que era capitão Diogo Fernandes Pereira, que vinha com boas presas que fez na costa de Melinde diante de António de Saldanha, e foi invernar à Ilha Socotorá, que novamente descobriu. E por chegar a Cochi, depois que Lopo Soares estava a carga, conveo-lhe tomar a sua per derradeiro de todos, que causou não vir em sua companhia. Demos esta relação dele, porque, depois que se apartou de António de Saldanha, não o tínhamos feito, e podia-nos alguém pedir conta dele. Assi que, com a armada de Lopo Soares vieram três capitães do ano passado, e foi esta sua viagem υa das mais bem afortunadas que se fez de tam grossa armada, porque foi e veo junta em espaço de catorze meses e trouxe mui rica carga, com fazer dous feitos mui honrados, um dos quais foi dos melhores (em ser bem cometido, pelejado e perigoso) que se naquelas partes viu.

LIVRO VIII 287 91 301 Capítulo primeiro. Do modo que se navegavam as especearias té virem a estas partes da Europa, ante que descobríssemos e conquistássemos a Índia per este nosso mar Oceano; e das embaixadas que os mouros e príncipes daquelas partes mandaram ao Soldão do Cairo, pedindo-lhe ajuda contra nós. Como toda esta nossa Ásia vai fundada sobre navegações, por causa das armadas que ordinariamente em cada um ano se fazem pera a conquista e comércio dela, e as cousas que pertencem a sua milícia imos relatando, segundo a ordem dos tempos, convém, pera melhor intendimento da história, darmos ua geral relação do modo que se naquelas partes de Ásia navegava a especiaria com todalas outras orientais riquezas, té virem a esta nossa Europa, ante que abríssemos o caminho que lhe demos pera este nosso Mar Oceano, peró que em o tratado do Comércio copiosamente o escrevemos. E também é necessário que, quando falarmos nesta navegação e comércio da Índia, não se há de entender que estas duas cousas estão limitadas em aquelas duas regiões, a que os antíguos chamaram Índia dentro do Gange, e Índia além do Gange. Porque as nossas navegações e conquista daquela parte, a que propriamente chamamos Ásia, não se contém somente na terra firme, que começa em o Mar Roxo, onde se ela aparta da África, e acaba na oriental plaga, a que ora chamamos a Costa da China, mas ainda compreendem aquelas tantas mil ilhas, a esta terra de Ásia adjacentes, tam grandes em 302 terra e tantas 288 em número, que, sendo juntas em um corpo, podiam constituir outra parte do Mundo, maior do que é esta nossa Europa. Por cuja causa em a nossa Geografia, destas e doutras ilhas descobertas fazemos ua quarta parte em que se o orbe da terra pode dividir, porque muitas estão tam distantes da costa, que lhe não pertencem por adjacência ou vezinhança. Per todas as quais partes, ao tempo que descobrimos a Índia, assi os gentios como os mouros andavam comutando e trocando uas mercadorias por outras (segundo a natureza dispôs suas sementes e fructos, e deu indústria aos homens, em a mecânica de suas obras). As que jaziam além da cidade de Malaca, situada na Áurea Quersoneso (nome que os geógrafos deram àquela terra), assi como cravo das Ilhas de Maluco, noz e massa de Banda, sândalo de Timor, cânfora de Bornéu, ouro e prata do Líquio ; com todalas riquezas e espécies aromáticas, cheiros e polícias da China, Jaua e Sião e doutras partes e ilhas a esta terra adjacentes, todas, no tempo de suas monções, concorriam àquela riquíssima Malaca, como a um empório e feira universal do Oriente. Onde os moradores destoutras partes, a ela ocidentais, que se contém até o estreito do Mar Roxo, as iam buscar a troco das que levavam, fazendo comutação de uas por outras, sem entre eles haver uso de moeda. Porque, ainda que ali houvesse muita cópia de ouro de Samatra e do Líquio, em que na Índia se ganhava mais que a quarta parte, era tanto maior o ganho das outras, que ficava 91v o ouro em tam vil estimação, que ninguém o queria levar. E como Malaca era um centro onde concorriam todos os navegantes que andavam nesta permutação, assi os da cidade de Calecute, situada na Costa de Malabar, e os da cidade de Cambaia, situada na enseada que tomou o nome dela, e os da cidade Ormuz, posta na Ilha Geru, dentro na garganta do Mar Pérsico, como os da cidade Adem, edificada de fora das portas do Mar Roxo, todos com a riqueza deste comércio tinham feito a estas cidades mui ilustres e celebradas feiras. Porque não somente traziam a elas o que navegavam de Malaca, mas ainda os rubis e lacre de Pegu, a roupa de Bengala, aljôfar de Calecaré, diamantes de Narsinga, canela e rubis de Ceilão, pimenta e

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gengivre e outros mil géneros de espécias aromáticas, assi da Costa Malabar, como doutras partes onde a natureza depositou seus tesouros. E as que desta parte da Índia se ajuntavam em Ormuz, leixando ali, a troco doutras, as que serviram pera as partes da Turquia e da nossa Europa, eram navegadas per este Mar Pérsico té a povoação de Batsorá, que está nas correntes do Rio Eufrates, a qual ora é ua cidade célebre com o favor que lhe deram os nossos capitães de Ormuz. No qual lugar eram repartidas 303 em cáfilas, uas pera Arménia e Trapesonda e Tartária, que jaz sobre o Mar Maior, outras pera as 289 cidades Alepo e Damasco, té chegarem ao porto de Barute, que é no Mar Mediterrâneo, onde as vendiam a venezeanos, genoeses e catelães, que naquele tempo eram senhores deste trato. A outra especearia que entrava per o Mar Roxo, fazendo suas escalas per os portos dele, chegava ao Toro ou a Suez, situados no último seo deste mar, e daqui, em cáfilas, per caminho de três dias, era levada à cidade do Cairo, e di, per o Nilo abaixo, a Alexandria, onde as nações que acima dissemos a carregavam pera estas partes da Cristandade, como ainda agora em algua maneira fazem. E per qualquer destes dous estreitos que esta especearia entrava nas terras de Arábia, quando vinha à saída, era per os portos do Estado do Soldão do Cairo. Cuja potência, ante de ser metida na Coroa da Casa Otomana dos Turcos, começava no fim do reino de Tunes, em aquele cabo a que ora os mareantes de Levante chamam Ras-Ausem e Ptolomeu - Bóreo Promontório -, e acabava em ua enseada chamada per eles o Golfão de Laraza, por razão de ua povoação deste nome que ali está; a qual, segundo a situação dela, parece ser a vila a que Ptolomeu chama Serrepolis, na qual distância de costa pode haver trezentas e sessenta léguas, que contém em si muitos e mui célebres portos. E per dentro do sertão se estendia per o Nilo acima, à região Tebaida, a que os naturais ora chamam Caida, té chegar à antiquíssima cidade Ptolomaida, cujo nome ora é Hicina, que acerca daqueles bárbaros quere dizer esquecimento; e dali vinha beber ao Mar Roxo. Passando o qual, entrava na terra de Arábia, vindo a vezinhar com o Xarife Baracate, senhor da Casa de Meca, atravessando os bárbaros daquele deserto, té dar consigo em a cidade chamada Bir, que jaz nas correntes de Eufrates, e tornando fazer outro curso contra o Ocidente, acabava em o Golfão de Laraza, que dissemos. No qual circuito de terra se compreendia grã parte da Arábia Deserta, toda a Petrea, Judea e muita da Síria, com todo Egipto a que chamam Metser de Mitsraim , nome per que os hebreus e arábios nomeam a região de Egipto, por esta cidade Cairo ser a cabeça dele, dando o nome do todo à parte. E ao tempo da nossa entrada na Índia, era senhor deste grande estado Canaçau, a que alguns dos nossos chamam Cansor, o qual se intitulava com este apelido Algauri, de que se ele muito gloriava, por lhe ser posto por causa de ua grã vitória que houve de um rei da Pérsia, junto de ua alagoa chamada Algaor, que faz o Rio Eufrates, entre Enz e Bagadade, donde lhe deram por apelido Algauri. Neste mesmo tempo, reinava em Turquia, Celim, décimo da geração 304 otomana, e era senhor de Meca o Xarife Baracate, entre os mouros mui celebrado em nome, não tanto por seus feitos, quanto por o grande discurso de tempo que viveu neste estado. E era senhor de Adem Xeque 290 Hamede, o qual vezinhava com este outro Xarife por parte da terra chamada Jazem, que é dentro das portas do Estreito, defronte da Ilha Camarão. E era Rei de Ormuz Ceifadim, deste nome o segundo, e do reino de Guzarate, Machamude, o primeiro deste nome. Assi estes 92 Reis e Príncipes, como os mercadores per cujas mãos corria o comércio da especearia e orientais

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riquezas, vendo que com nossa entrada na Índia, per espaço tam breve como eram cinco anos, tínhamos tomado posse da navegação daqueles mares, e eles perdido o comércio de que eram senhores havia tantos tempos, e sobretudo éramos ua bofetada na sua Casa de Meca, pois já começávamos chegar às portas do Mar Roxo, tolhendo os seus romeiros, eram todas estas cousas a eles tam grã dor e tristeza, que não somente àqueles a que tínhamos ofendido, mas a todos em geral era o nosso nome tam avorrecido, que cada um em seu modo procurava de o destruir. E como a gente a que isso mais tocava eram os mouros que viviam no reino de Calecute, ordenaram de enviar ua embaixada ao grã Soldão do Cairo, como a pessoa que podia resistir a este comum dano, fazendo com o Samori, Rei da terra, que lhe enviasse um presente com outra tal embaixada, notificando-lhe os grandes males e danos que de nós tinha recebido, por defender os mercadores do Cairo residentes na sua cidade Calecute. Tomando por conclusão de seu requerimento, que lhe mandasse ua grossa armada com gente e armas pera nos lançar da Índia, que ele a proveria de dinheiro e mantimentos, como lá fosse. Com a qual embaixada foi um mouro principal, chamado Maimamé, homem mais dado à religião de sua seita que às armas, e foi em ua galé de feição das nossas, sem apelação, a qual depois acabou em Chaúl, como veremos em seu lugar. Acrescentou mais a este clamor dos mouros e requerimento do Samori, outro tal embaixador do Xeque de Adem, o qual embaixador era Xarife daqueles que dizem vir da linhagem de Mafamede, porque per via de religioso podia provocar mais ao Soldão pera acudir a estes danos como defensor da Casa de Meca, segundo se ele intitulava, pedindo que com diligência posesse neste caso o braço de sua potência, porque ele, por sua parte, mandaria também ainda àqueles míseros que habitavam no reino de Calecute, onde nossas armas tinham derramado muito sangue arábico, em que entraram alguns da linhagem do seu profeta, que per via de martírio eram havidos por santos acerca dos arábios.

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291 92 305 Capítulo II. Como o Soldão do Cairo escreveu ao Papa per um religioso da Casa de Santa Caterina de Monte Sinai, queixando-se das nossas armadas da Índia; e como o Papa mandou o próprio religioso a este reino e do que lhe el-Rei respondeu. O Soldão, movido com estas embaixadas e outros clamores dos mouros do Cairo que tratavam na Índia, e principalmente com a grande perda do rendimento da entrada e saída das especearias per seus portos, o qual dano já começava sentir e lhe chegava mais que as ofensas alheas, começou de se inflamar contra nós, como homem mimoso da prosperidade de seu estado, e que não tinha visto a fortuna dele, que di a pouco tempo passou. E posto que, nesta indinação de palavras, desse aos embaixadores grande esperança do que sobre este caso per armas havia de fazer, contudo quis primeiro usar de ua cautela que delas, parecendo-lhe que per este modo desistiria el-Rei da impresa da Índia, por ouvir dizer que os reis de Portugal eram muito zelosos da fé que tinham e religiosos na observação dela. A qual cautela de que usou foi lançar fama que a sua tenção era destruir o templo de Jerusalém, e a Casa de Santa Catarina de Monte Sinai, com todas as relíquias que houvesse na Terra Santa, e mais não consentir que em seu estado andasse algum cristão destas partes de Europa; e os que residiam no Cairo, Alexandria, Alepo, Damasco e Barute por razão do comércio, que forçosamente os havia de mandar fazer mouros, não se saindo em tantos meses de todo seu estado, isto em recompensa de dous tam grandes males como eram feitos aos mouros, cujo defensor e protector ele era, por ser Emperador e Califa da Casa de Meca. Um dos quais males fazia el-Rei Dom Fernando de Castela, fazendo cristãos per força a todolos mouros do reino de Grada e o outro, que era muito maior mal, fazia el-Rei Dom Manuel de Portugal, seu genro. O qual, não contente 92v de mandar suas armadas à Índia a conquistar a terra dos gentios, mas ainda tolhia a navegação dos mares e comércio dela, que os mouros tinham adquerido per tantos anos, sendo o comércio um uso comum das gentes, que conciliava amor entre todos, sem ser defendido, o qual comércio ele, Soldão, permitia em todo seu estado, conforme 306 aos costumes da terra a todo género de pessoa, sem ter respeito a lei ou seita que tivesse. E mostrando o Soldão querer poer em efeito estas suas ameaças, teve maneira com que fosse rogado per um Frei Mauro, maioral da casa de Santa Catarina de Monte Sinai, espanhol de nação; e da prática que teve com o Soldão, resultou ele, Frei Mauro, querer vir ao Papa dar-lhe conta deste caso. Porque, como era cabeça da Cristandade, removeria 292 estes dous príncipes deste dano que os mouros deles recebiam, por se não perder a memória das santas relíquias que estavam naquelas partes, e tam grã número de cristãos como nelas andavam. Pera o qual caso vir com mais autoridade, o mesmo Soldão deu ua carta de crença a este Frei Mauro, leixando as palavras da qual, cuja resolução era vir a ele, Frei Mauro, com alguas cousas que faziam a bem da religião cristã, diremos somente estas palavras com que se ele intitulou e assi ao Papa (segundo vimos em o trelado dela que o próprio Frei Mauro trouxe a este reino): - O grande Rei, senhor dos que senhoream, nobre, grande, sabedor, justo e vitorioso; Rei dos Reis, cutelo do Mundo, Príncipe da fé de Mahomet e dos que nele crem; vivificador da justiça em todo o Mundo, herdeiro de reinos, Rei da Arábia, de Gemia, da Pérsia e Turquia; sombra de Deus nas terras, que obra todolas boas cousas, ora sejam per ele mandadas, ora não, o qual neste Mundo é outro Alexandre, de quem muitos bens procedem; Rei dos que se assentam em tribunal e trazem coroa; dador de regiões, terras e cidades; perseguidor dos que se rebelam e dos herejes

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infiéis; conservador dos dous lugares de peregrinos; Sumo Sacerdote dos templos sagrados que estão debaixo de seu poder e contém a fé de Mahomet, que esparge justiça e bondade, resplandor da fé; pai da vitória, Canaçau Algauri, cujo império Deus faça perpétuo e exalce sua cadeira sobre o planeta Géminis - a ti, Papa Romão excelentíssimo e espiritual, que teme a Deus e bem obra, grande na fé antígua dos cristãos fiéis de Jesu, Rei dos Reis Nazarenos, conservador e senhor dos mares e termos marítimos, pai dos Patriarcas e Bispos, Ledor dos Evangelhos e sabedor na sua fé e nas cousas que são e não são lícitas; benigno aos Reis e Príncipes; possuidor do reino romão, cuja glória Deus acrescente. Chegado Frei Mauro com esta carta a Roma, como vinha assombrado das ameaças deste bárbaro e era homem zeloso do bem universal da Igreja, e simples em as malícias dos Príncipes tiranos, fez este negócio tam grave ante o Papa Alexandre, que se determinou em consistório que ele mesmo, Frei Mauro, viesse a Espanha com cartas suas, e com trelado da que escreveu o Soldão, pera representar estas cousas a el-Rei Dom Fernando e a el-Rei Dom Manuel, como a autores da indinação deste tirano. Da vinda do qual religioso a Roma el-Rei Dom Manuel foi logo avisado per pessoas que lá faziam seus negócios, de que teve muito prazer, sabendo que o Soldão começava 307 já sentir as armadas que ele enviava à Índia, as quais, sem terem feito assento nela, somente de passagem, lhe faziam tanto dano que se queixava dele. E porque este recado lhe veo quási na fim de Outubro do ano de quatro e no seguinte tinha ordenado de mandar ua grossa armada à Índia, com capitão geral que lá residisse, tanto o demoveram 293 estes queixumes do Soldão, que dobrou a armada que fazia, e com mais diligência mandou dar despacho às naus, pera que, quando o Padre Frei Mauro viesse a este reino, visse os grandes aparatos da frota e tivesse também que contar do que cá ia, como ele ante o Papa relatava o poder do Soldão, donde o Papa tomou causa pera desejar que el-Rei desistisse da empresa da Índia, ao menos no modo que se tinha com os mouros que lá tratavam, pera que o Soldão não executasse seu furor em aquelas relíquias da Terra Santa. Peró, chegado a este reino o Padre Frei Mauro em Junho, depois da partida da armada, el-Rei com vivas e claras razões o tirou dos temores que trazia, declarando-lhe que este ímpeto de tanta fúria que o Soldão mostrava, mais procedia da perda de suas rendas, por causa da entrada e saída das especearias per os portos de seu estado, que por zelar o bem comum dos mouros. Porque, se isto fora por causa dos danos que 93 eram feito aos de Grada, como ele dezia, já este seu rogo vinha sorôdio, pois havia de vinte anos que o negócio de Grada era passado; quanto mais que todolos mouros foram postos em sua liberdade pera se ir ou ficar no reino, e já sobre este negócio, entre ele e el-Rei Dom Fernando, houvera recados per Pedro Mártir. E que a mesma rezão do interesse, que era a principal que o Soldão neste caso tinha, essa segurava a ele, Frei Mauro, e a todalas cousas que ele temia, porque o Soldão tinha tanto rendimento da Cristandade, por rezão das santas relíquias que havia no seu estado, que mais lhe compria tê-las em veneração, que destruí-las totalmente, e mais lhe importavam que quantas especearias por seus portos podiam vir da Índia. Finalmente, com estas e outras palavras, e grandes esmolas que el-Rei fez ao Padre Frei Mauro pera a Casa de Santa Catarina, ele ficou contente e esquecido dos temores que trazia; e per ele respondeu el-Rei ao Papa. A substância da qual carta era que, leixados os santos e justos propósitos que el-Rei Dom Fernando de Castela teve na conversão dos mouros de Grada, com que ele ganhou glória acerca de Deus e dos homens, quanto ao que tocava a ele, por razão das cousas da Índia, sobre que Sua Santidade lhe escrevera per o Padre Frei Mauro, Deus era testemunha quanto sentimento ele tinha por não ter metido o Soldão em tanta necessidade com suas armadas, que com mais justa causa se podesse queixar delas. Porém ele esperava em Nosso Senhor, em cujo poder estava o direito dos

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bárbaros reinos, pera os dar 308 a quem lhe aprouvesse, que, assi como lhe aprouvera conceder a este reino de Portugal, mediante o trabalho de seus antecesores e seu, ua cousa tam nova e tam pouco esperada das gentes como foi o descobrimento da Índia, assi lhe concederia entrarem suas armadas dentro no Mar Roxo, té irem destruir a casa da abominação de Mafamede, injúria e opróbio da religião cristã. Com a qual obra daria 294 causa a que Sua Santidade incitasse os Reis e Príncipes cristãos, ocupados em guerra de seus próprios membros, a se ajuntarem com ele sua cabeça, per amor e concórdia, pois nele estavam unidos per fé, pera que todos movessem as azes de sua potência contra este bárbaro, que com suas infiéis forças tinha tiranizado o Santuário de nossa Redenção. Porque de crer era, e mui fácil estimação daqueles que bem sentiam, poder-se isto esperar e fazer, pois Sua Santidade via quam cheo de temor já estava este tirano, com saber que suas armadas andavam na Índia, bem remota do Cairo; e isto por não ser costumado haver em seus portos armas dalgum príncipe católico, movidas contra ele. E se isto ele já temia, que se podia esperar dele, quando visse desembarcar em seus portos os exércitos da potência de tantos Príncipes como havia na Europa, e a gente português, mui costumada a guerra destes infiéis, poer as escadas nos muros de Judá, porta per onde ele esperava em Deus que estes seus vassalos entrassem na casa da abominação, e nela levantassem altar pera oferecer oblação aceita a Deus? Na execução da qual obra, ele, como obediente filho da Igreja e zelador de sua glória, prometia a Sua Santidade trabalhar quanto nele fosse, pera que com mais justa causa este infiel se pudesse queixar de suas armadas. Porque, pois prouvera a Nosso Senhor que este reino de Portugal, toda a sua herança se havia de conquistar das mãos dos infiéis e na conquista de África, por haver bênção de seus avós, sempre contra eles trazia seus exércitos, ele esperava per os mares patentes da gentilidade da Índia e depois per as portas do estreito do Mar Roxo, donde saiu esta peste de gentes, enviar tantas armadas, té que, a força de ferro, desse novo património à Igreja Romana naquelas partes orientais. E a bandeira real da milícia de Cristo, herdeira destes tais triunfos, de que ele era governador e perpétuo administrador, fosse dos gentios e mouros temida e adorada, pera glória e louvor da santa Igreja. Pelos méritos da qual, ele esperava nesta vida não ser tido por servo sem proveito, e que esconde o talento de sua possibilidade, pera na outra lhe ser dado o jornal diurno do Senhor.

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294 93 309 Capítulo III. Como neste ano de quinhentos e cinco mandou el-Rei ua grossa armada à Índia, de que foi por Capitão-mor Dom Francisco de Almeida, que depois foi intitulado por Viso-Rei dela. 93v Ante que el-Rei soubesse da vinda deste Frei Mauro, por cuja causa escreveu ao Papa na forma atrás, teve alguns conselhos, cujo fundamento era ver que, per o descurso das quatro armadas passadas que foram à Índia, não convinha irem e virem sem lá ficar quem assistisse a duas 295 cousas que o descobrimento dela tinha dado: a uma era guerra com os mouros, e a outra o comércio com os gentios. E porque as naus que iam e tornavam logo com carga não podiam juntamente fazer estas duas cousas por o tempo ser mui breve, e sobre isso ficava com a vinda delas a costa do Malabar desemparada, com que os mouros tornavam a ser senhores dela e, favorecidos das armadas do Samori, fariam dano aos Reis de Cochi, Cananor e a todolos outros nossos amigos e aliados; pera resistir a este tam certo perigo e prover a outras cousas tam importantes que a experiência do negócio tinha mostrado, pera que era necessário fazerem-se fortalezas onde as naus dessem e tomassem carga, ordenou el-Rei de mandar naus que fossem pera tornarem com a carga da especearia no ano seguinte, e outras velas de menos toneladas, com alguns navios pequenos, pera lá ficarem de armada, e por capitão-mor desta governança a Tristão da Cunha, filho de Nuno da Cunha. O qual, estando de todo prestes, teve um acidente de vágado, com que perdeu a vista, de maneira que esteve muito tempo sem a cobrar, e foi no seguinte ano de quinhentos e seis, como veremos. Ficando a frota por este súbito caso sem capitão, sendo tam acerca da partida, mandou el-Rei chamar a Dom Francisco de Almeida, filho do Conde de Abrantes, Dom Lopo de Almeida, o qual a este tempo estava em Coimbra com o Bispo dela, Dom Jorge, seu irmão; e com palavras da confiança que dele tinha lhe entregou a frota. A qual, estando prestes de todo, um domingo, ante de sua partida, foi el-Rei ouvir missa à Sé, por a este tempo estar em Lisboa, onde com grande solenidade e palavras conformes ao auto lhe entregou a bandeira real. E espedido dali com os capitães e fidalgos da armada, foi levado per todolos senhores e nobreza da Corte com grande pompa, até se embarcarem no Cais da Ribeira; a qual embarcação foi a mais solene que té então neste reino se fez, não sendo de pessoa real. Porque, assi pela nobreza de Dom Francisco de Almeida e fidalguia que com ele embarcara, como pelo cargo e dignidade de Viso-Rei (no modo que adiante veremos) que foi o primeiro título desta calidade que nestes reinos se deu, concorreram, assi da parte dele, como dos 310 que o acompanhavam, todalas cousas em acrescentamento e louvor de honra sua naquela partida, que foi a vinte cinco de Março do ano de quinhentos e cinco, dia solene por cair nele a festa de Nossa Senhora da Encarnação. Em a qual frota, além da gente ordenada pera a navegação das naus, iriam até mil e quinhentos homens de armas, todos gente limpa, em que entravam muitos fidalgos e moradores da casa del-Rei, os quais iam ordenados pera ficar na Índia; e per regimento que el-Rei então fez, eram obrigados servir lá três anos contínuos. Esta limitação de tempo tinham todalas capitanias e quaisquer outros cargos e ofícios, o qual 296

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termo de tempo ainda hoje se guarda. E o soldo que então geralmente se assentou aos homens de armas, eram oitocentos réis por mês, e, depois que chegassem à Índia, tinham mais quatrocentos de mantimento o tempo que estavam em terra; porque quando andavam nas armadas comiam a custa del-Rei. E além deste soldo tinham mais dous quintais e meio de pimenta ao partido do meio em cada um ano, a qual podiam carregar em as naus que viessem pera este reino, que lhe podia importar cinco mil reais; e a gente do mar - capitães, alcaides-mores, feitores, escrivães e todo outro oficial, - a este respeito tinham suas quintaladas, segundo a calidade de seu ofício. E porque este foi o primeiro assento que el-Rei tomou no soldo que os homens haviam de vencer naquelas partes, como cousa nova, de passada, fizemos esta declaração, posto que ao presente é tudo mudado, porque o tempo acrescentou e deminuiu, segundo a desposição dele. As quais velas desta frota eram per todas vinte e duas, das quais doze iam pera logo no ano seguinte tornar com carga de especearia, por serem de muito porte, de que estes eram os capitães: Dom Francisco de Almeida, Capitão-mor; Rui Freire, filho de Nuno Fernandes Freire; Fernão Soares, filho de Gil de Carvalho; Vasco Gomes de Abreu, filho de Antão Gomes de Abreu; Bastião de Sousa, filho de Rui de Abreu, de Elvas; Pero Ferreira Fogaça, filho de Fernão Fogaça; 94 João da Nova; Antão Gonçalves, alcaide de Sesimbra; Diogo Correa, filho de Frei Paio Correa; Lopo de Deus, capitão e piloto, João Serrão. E os capitães que lá haviam de ficar de armada eram: Dom Fernando de Eça, de Campo Maior, filho de Dom Fernando de Eça; Bermum Dias, um fidalgo castelhano; Lopo Sanches, Gonçalo de Paiva, Lucas da Fonseca, Lopo Chanoca, João Homem, Gonçalo Vaz de Góis, Antão Vaz. E além das velas em que iam estes capitães, estavam também outras seis prestes; e polo que adiante diremos, ficaram té dezoito de Maio, que partiram em companhia de Pero de Anhaia, que foi pera fazer a fortaleza de Sofala, onde havia de ser capitão. Partida esta frota de ante Nossa Senhora de Belém, com bom tempo que lhe fez, a seis de Abril chegou a Cabo Verde, onde chamam o Porto Dale, em o qual estava fazendo resgate de escravos uma caravela deste reino, per meio da qual, enquanto a frota fazia aguada, foi avisado o Rei da terra, que 311 com desejo de ver tam grande cousa veo com suas mulheres e filhos a se pôr em uma aldea à vista da nossa frota. Dom Francisco, sabendo a causa da sua vinda, o mandou visitar per João da Nova, cuja em companhia foram alguas pessoas nobres, com licença por verem o estado daquele bárbaro príncipe; aos quais ele a seu modo fez muita honra, mandando-lhe matar alguas vacas que trouxeram pera seu refresco, e outras que enviou ao Capitão-mor, em retorno do que lhe levou João da Nova. E porque algua das 297 naus foram ancorar em ua angra pequena, chamada Bezeguiche, que ficava mais acima contra o cabo, e o tempo não lhe servia pera virem ao lugar donde estava Dom Francisco, esteveram uas em ua parte e outra fazendo suas aguadas, té que o tempo ajuntou toda a frota. Dom Francisco, porque alguas naus dela não eram companheiras na vela, e faziam perder caminho às outras, per conselho dos capitães e pilotos repartiu a frota em duas partes: ua das naus veleiras tomou pera si e outra deu a Bastião de Sousa, capitão da nau Conceição, dando-lhe regimento do caminho que havia de fazer. Partido com esta ordenança daquele porto, a vinte cinco dias de Abril, ante que chegasse à Linha, obra de quorenta léguas, a quatro de Maio, abriu a nau Bela, capitão Pero Ferreira, ua água tam grossa, que, não a podendo tomar nem vencer, se foi ao fundo, em tempo que o Capitão-mor lhe mandou acudir com todolos batéis, de maneira que, além da gente, se salvou grã parte da fazenda que ia sobre coberta, o que tudo se repartiu pelas outras naus. Tornando a seu caminho, posto que não foi com grandes temporais, os pilotos, por segurar

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dobrarem o Cabo, meteram-se em tanta altura contra o Sul, que em os navios pequenos não podiam os homens trabalhar com frio; e dali vieram descaindo, metendo-se no quente, té que, a dezoito de Julho, chegaram a terra que jaz entre as Ilhas primeiras de Moçambique. E porque em Quíloa e Mombaça tinha que fazer, espedido dali Gonçalo de Paiva e Bermum Dias, que fossem a Moçambique saber se ficaram ali alguas cartas da frota de Lopo Soares, e também se eram chegadas naus da capitania de Bastião de Sousa e duas que lhe faleciam, de sua conserva; e, sabido isto, se fossem caminho de Quíloa, onde os esperava. Espedidos estes dous navios a vinte e dous de Julho, dia da Madalena, surgiu em Quíloa com oito velas que o seguiram; onde logo foi visitado da parte del-Rei per um mouro honrado per nome Cide Mahamede, assi de palavra como com fructa da terra. Dom Francisco, depois que o mandou contentar com ua marlota de cores, e lhe deu os gardecimentos da visitação, mandou dizer a el-Rei que se espantava muito dele, na chegada daquela frota del-Rei, seu senhor, que por honra dele e da sua cidade tirava tanta artelharia, não responder ele com algum sinal de cortesia, ao menos mandando arvorar ua bandeira de suas armas, que lhe foi dada pelo Almirante, em sinal de paz. 312 Cide Mahamede, confuso com o recado, não ousou responder, somente que logo traria a reposta; a qual foi que dizia el-Rei que muito mais descontente estava ele de um capitão del-Rei de Portugal que lhe tomou ua nau que vinha de Sofala, onde ele mandara aquela bandeira, do que ele podia estar pola não ter arvorada, e que esta fora a causa de o não ter feito. Dom Francisco, parecendo-lhe ser 298 isto assi, ficou mui descontente, e mandou a ele João da Nova, assi pera concertar que se vissem ambos, como pera saber particularmente deste capitão de que se el-Rei queixava; com o qual foi por língua um venezeano chamado Misser Bonadiuto de 94v Alban, o qual trouxe a este reino Afonso de Albuquerque, polo achar em Cananor. E segundo ele dizia, havia vinte dous anos que se passara do Cairo àquelas partes em companhia de um embaixador que ali estava, sendo consul da Senhoria de Veneza em Alexandria Misser Francisco Marcelo; e quando veo com Afonso de Albuquerque trouxe por mulher ua jaua de que tinha filhos, ao qual el-Rei, por ele ser homem esperto e que sabia as línguas e mais os negócios daquelas partes, o mandou com Dom Francisco com bom ordenado, e servia de língua. E a substância do recado que João da Nova levou de que ele era intérprete foi ser grave cousa pera ele, Dom Francisco, crer que capitão del-Rei, seu senhor, havia de ter tam pouco acatamento a ua bandeira sua; porque os portugueses eram tam obedientes àquele sinal que, em o vendo, o adoravam, quanto mais fazer o que ele dizia. E porque ao presente se não podia fazer mais, lhe pedia que ordenasse como se vissem, porque tinha alguas cousas que praticar com ele, que compriam a seu bem e a serviço del-Rei, seu senhor; e quanto o que tocava ao castigo daquele capitão que dizia, tivesse por certo que, sabida a verdade, el-Rei, seu senhor, o mandaria muito bem castigar, e a sua nau lhe seria restetuída com tudo o que levava. Partido João da Nova, tornou com reposta que el-Rei era contente de se verem ao seguinte dia, e o modo seria vir ele, Capitão-mor, em seu batel defronte dos paços com alguns capitães e gente que ele escolhesse em auto pacífico, por não causar temor nos da terra; e que ele também em hábito de paz viria com alguns escolhidos de sua casa a se meter em um zambuco, diante das casas onde se ambos veriam. Concertadas todas estas vistas, mandou o Capitão-mor que todolos capitães e alguns fidalgos em seus batéis viessem pola menhã a borda de sua nau, e o trajo fosse de paz, com cautela que ao longo das tostes dos batéis viessem alguas lanças e tiros pera tirarem em modo de festa, e secretamente suas saias de malha, porque as cautelas que este mouro tinha dava a entender não estar mui fiel.

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Ao dia seguinte, entrando Dom Francisco em um batel debaixo de 313 um toldo de escarlata e seda, com muitas bandeiras de sua devisa, partiu rodeado de batéis de toda aquela fidalguia, com grande estrondo de trombetas e de artelharia, que ao tempo de sua partida começou a fuzilar per toda a frota. E, em partindo da nau, espediu a João da Nova que levasse recado a el-Rei como ele ia, o qual não chegou lá, porque na praia achou um recado del-Rei, que tornasse dizer ao Capitão-mor que se detevesse um pouco, porque os seus não eram ainda juntos. Tornando João 299 da Nova apressar el-Rei com outro recado, por haver pedaço que Dom Francisco se detinha já junto das casas, foi-lhe respondido que dissesse ao Capitão-mor, da parte del- Rei, que lhe perdoasse, dando alguas falsas desculpas, ua das quais era que, em se alevantando pera vir a ele, atravessara um gato negro, notável agouro entre eles, pera naquele dia ambos não poderem fazer cousa que durável fosse. E por que ele desejava que as suas fossem perpétuas, lhe pedia que lhe perdoasse por então e que ficasse aquela vista pera o seguinte dia. Quando Dom Francisco viu que todo seu aparato acabava naquele agouro del-Rei, sorrindo-se, converteu o ódio desta malícia del-Rei nestas palavras, dizendo aos capitães: - Senhores e amigos, a mi me parece que mais agourado há-de achar quem tais recados manda o dia da menhã que o de hoje. Tornemo-nos embora e venhamos a visitá-lo com as naturais louçainhas e que melhor estão aos portugueses que estas cores que trazemos; porque, como sabeis, mouros não ao nosso ouro mas ao nosso ferro sempre fizeram maior honra. Ao que João da Nova respondeu: - Parece-me, Senhor, que esse há-de ser o fim de nossos concertos com este mouro, porque Mahamede Enconi, nosso grande amigo, se veo a mi por me falar como homem meu conhecido, e não ousou de se apartar comigo, por trazerem os mouros olho nele, somente em se espedindo meio furtado, disse: - Dizei ao senhor Capitão-mor que não se engane com el-Rei, porque não se há-de ver com ele, e que se lembre de mi. Dom Francisco, entendendo a tenção del-Rei polo aperceber pera o seguinte dia, mandou a João da Nova que tornasse à praia e dissesse aos mouros que lhe deram o recado del-Rei, que lhe fossem dizer da sua parte que ele se tornava pera as naus, e ao outro dia pela menhã se havia de ver com ele; e quando não fosse naquele lugar que tinha ordenado, ele o iria buscar dentro às suas casas, se houvesse por trabalho de o vir esperar ao mar. Dado este recado, tornou-se João da Nova sem 95 esperar reposta por lho mandar Dom Francisco, o qual, assi como ia com todolos capitães, se foi a sua nau, onde teve com eles conselho sobre aquele feito, resumindo não somente o que passara perante eles, mas ainda quanto aquele bárbaro tinha feito a Pedrálvares e a João da Nova, que era presente - tudo como homem cauteloso e que no seu peito estava maior malícia do que era a fé de suas palavras. E mais que, depois que o Almirante Dom Vasco da Gama per 314 ali passou, nunca mais quisera pagar as páreas que devia, posto que ele dissesse serem mais em modo de resgate de sua pessoa, por o Almirante o reter no batel, onde se viu com ele, que páreas de própria vontade; e que ser ele cioso de sua pessoa, cousa que era natural dos homens, mas isto havia de ser per modo mais honesto e não tam púbrico desprezo da majestade daquela armada del-Rei, seu senhor. Do qual trazia mandado 300 que se determinasse em os negócios que tevesse com os príncipes daquelas partes, em paz ou em guerra descoberta, trabalhando mais na primeira que na segunda, e esta lhe encomendava por preceito, e a guerra por necessidade; e que em nenhua maneira se partisse dali sem tomar algua conclusão com ele, pera fazer ua fortaleza, por importar muito à navegação da Índia e segurança

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daquela costa. Acabando Dom Francisco de prepor estas e outras razões, todos concorreram neste voto: que ao seguinte dia saíssem em terra com mão armada, porque esta era a que havia de pôr as leis àquele mouro, e não a cortesia que com ele queria usar. Assentada esta saída em terra, ordenou logo Dom Francisco que a gente se faria em dous corpos: ele iria cometer a força da cidade em um, e seu filho Dom Lourenço com outro as casas del-Rei que estavam no cabo dela; repartindo logo quais capitães haviam de ser com cada um deles, e o tempo da saída das naus seria ante menhã, quando ele mandasse tanger ua trombeta. E porque Nosso Senhor lhe deu vitória com que conveo fazer aqui ua fortaleza que el-Rei mandava, e nosso costume em toda esta história será descrever sempre o sítio da terra onde fundarmos algua, e darmos as causas disso, pois esta é a primeira de pedra e cal que nestas partes fundámos, primeiro que entremos ao combate da cidade, convém darmos ua universal descripção desta parte de África, pois té ora o não temos feito, principalmente desta costa e sítio da cidade.

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300 95 315 Capítulo IV. Em que se descreve a parte da costa de África em que está situada a cidade Quíloa; à qual terra os arábios propriamente chamam Zanguebar e Ptolomeu Etiópia-sobre-Egipto. Em a parte da terra de África sobre a Etiópia a que Ptolomeu chama interior, onde está a região Agisimba, que é a mais austral terra de que ele teve notícia, e onde faz a sua meridional computacão, jaz outra terra que em seu tempo não era nota, e ao presente mui sabido o marítimo dela, depois que descobrimos a Índia per este nosso Mar Oceano. O princípio da qual, começando na Oriental parte dela, é o Prasso Promontório, que ele, Ptolomeu, situou em quinze graus contra o Sul e em tantos está per nós verificado; ao qual os naturais da terra chamam Moçambique, onde ora temos ua fortaleza que serve de escala das nossas naus nesta navegação da Índia. E o fim ocidental desta terra, a Ptolomeu incógnita, acaba em altura de cinco graus da parte do Sul que se comunica com os etiópias a que ele chama hespérios, per nome comum, que são os povos pangelungos, súbditos ao nosso Rei de Congo; entre os quais dous termos oriental e ocidental, fica o grande e ilustre 301 Cabo de Boa Esperança, tantos mil anos não conhecido no Mundo. E como esta de que tratamos é grande e os bárbaros que nela habitam são muitos e diferentes em língua, não há entre eles nome próprio dela. Somente os arábios e párseos, como gente que tem polícia de letras e são vezinhos dela, em suas escrituras lhe chamam Zanguebar, e aos moradores dela zangui; e per outro nome comum também chamam cafres, que quere dizer gente sem lei, nome que eles dão a todo gentio idólatra, o qual nome de cafres é já acerca de nós mui recebido polos muitos escravos 95v que temos desta gente. E porque em a nossa Geografia particularmente fazemos relação desta terra Zanguebar, aqui como de espassada daremos algua notícia dela, por as causas que no precedente capítulo apontámos. E começando no Promontório Arômata a que ora chamamos Cabo de Guardafu, que é a mais oriental parte de toda África, situada per Ptolomeu em cinco graus e per nós em doze, até Moçambique, que serão per costa obra de quinhentas e cinquenta léguas, faz esta terra ua maneira de enseada, não tam curva e penetrante como Ptolomeu a figura em sua Távoa, mas quási a feição de ua costa de osso de animal quadrupe. E o segundo curso marítimo que ele não soube, o qual começa no Cabo de Moçambique e acaba em o das Correntes, que será per costa até cento e setenta léguas, fica ela um pouco mais encurvada com um anco que faz o Cabo das Correntes logo na volta dele, quando vão de cá do Ponente. 316 Do qual cabo, vindo pera o de Boa Esperança, em que haverá per costa trezentas e quarenta léguas, vai a terra fazendo um lombo, de maneira que fica o Cabo das Correntes em vinte quatro graus, da banda do Sul, e o de Boa Esperança em trinta e quatro e meio; e deste ilustre cabo, té a terra dos pangelungos, do reino de Congo, vai-se a costa encolhendo e bojando, peró que a grandeza dela faz parecer que se estende direita ao Norte. A figura da ponta deste grande cabo de Boa Esperança se aparta do corpo da outra terra como que a escacharam do Cabo das Agulhas, que dista dele contra o Oriente per espaço de vinte e cinco léguas, da maneira que podemos apartar o dedo polegar da mão esquerda dos outros dedos dela, virando a palma pera baixo. E per este modo fica ele apartado contra o Ponente do grande corpo da outra terra e rombo em sua ponta à semelhança do dedo; e quási na junta, que é no meio

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dele, está ua terra soberba sobre a outra que no cima faz ua planura de terra rasa, graciosa em vista e fresca, com mentrastos e outras ervas de Espanha, à qual os nossos chamam a Mesa do Cabo. E olhando dela contra o Ponente, fica ua angra per eles chamada da Conceição, e no espaço que se mete entre ele e a outra terra, que jaz pera Oriente, que vai fazer o Cabo das Agulhas, está ua angra mui estreita, a que mais propriamente podemos chamar furna, 302 assi penetrante pela terra, cortando dereita ao longo do cabo, que do rosto dele té o fim dela haverá dez léguas. No seo da qual furna onde elas acabam se levanta ua serrania de viva pedra, com grandes e ásperos picos, que pedem as nuvens com sua altura; e por causa deles os nossos chamam àquele lugar os Picos Fragosos, pelo pé dos quais rompe com muita fúria um rio de grandíssima água que nasce no interior daquele sertão, de que ao presente não temos notícia. E tornando à particular descripção da terra Zanguebar, que faz a nosso propósito, por razão dos feitos que na sua costa os nossos fizeram, esta começa em um dos mais notáveis rios que da terra de África vertem no grande Oceano contra o Meio-Dia; ao qual Ptolomeu chama Rapto, posto que a sua graduação é mui diferente do que ora sabemos. Ca ele o põe em seis graus de largura da parte do Sul e nós em nove da parte do Norte, o qual nasce em a terra do Rei dos Abexis, a que chamamos Preste João, em as serras a que eles chamam Graro e ao rio Obi, e, onde sai ao mar, Quilmance, pelos mouros que o vezinham, por causa de ua povoação assi chamada, que está em ua das principais bocas dele, junto do reino de Melinde. Deste rio indo contra o Cabo de Guardafu, e di voltando até as portas do Estreito e delas lançando ua linha às fontes dele, fica ua terra a que os arábios propriamente chamam Ajan, a qual quási toda é povoada deles, posto que em muita parte, contra o Meio-Dia, no interior da terra, habitem negros idólatras. E das correntes deste Quilmance contra o Ponente, té o Cabo das Correntes, que os mouros daquela costa navegam, toda aquela terra e a mais ocidental contra o Cabo de Boa Esperança (como acima dissemos), os arábios e párseos que a vezinham lhe chamam Zanguebar, e aos moradores zangui. 317 Toda esta costa, começando do rio Quilmance té o Cabo das Correntes, geralmente é baixa, alagadiça e mui coberta de um arvoredo parrado, a maneira de balsas que dão pouca serventia por baixo. E assi com a espessura dele, como com os rios e esteiros que a retalham em ilhas e restingas, que ocupam o marítimo dela, faz ser mui doentia; de maneira que podemos dizer ser outro Guiné e mares corrutos e todalas outras cousas que dá e gera. Porque a gente é negra, de cabelo retorcido, idólatra e tam crente em agouros e feitiços, que no maior fervor de qualquer 96 negócio desistem dele, se lhe algua cousa entolha. Os animais, aves, fructas e sementes, tudo responde à barbaria da gente em serem feras e agrestes, posto que de Magadaxó contra o Cabo Guardafu, ainda que seja de mais criação de gado, por ser de poucos mantimentos e prove dele, desta se mantém. Geralmente os mouros que habitam o marítimo, e assi os das ilhas adjacentes a ela, todo o mantimento que comem, o agricultado fazem à enxada, e o mais é fructa agreste e carne 303 montés, imundícias, leite dalgua criação que tem, principalmente os mouros a que eles chamam baduís que andam no interior da terra e tem algua comunicação com os cafres, que acerca dos que habitam as cidades e povoações políticas são havidos por bárbaros. E parece que a natureza, próvida em todalas cousas, não quere desemparar algua parte da terra em tanta maneira, que nela não haja algum fructo estimado na opinião dos homens; porque naquela áspera e estéril terra pera habitação de gente política, produziu o mais precioso de todolos metais, e logo lhe deu povo paciente daquela aspereza e dado a busca dele, e a nós cobiça pera per tantos perigos de mar e da terra os irmos convidar com nossas obras mecánicas, pera suprirem suas

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necessidades, a troco deste ouro tam conquistado. Ao cheiro do qual por a terra de Arábia ser a eles mui vezinha, os primeiros povos estrangeiros que a esta terra Zanguebar vieram habitar, foram de ua gente dos arábios, desterrada, depois que receberam a seita de Mahamede. A qual (segundo soubemos per ua crónica dos Reis de Quíloa, de que adiante fazemos menção) eles lhe chamam emozaidi; e a causa deste desterro foi por seguirem a doutrina de um mouro chamado Zaide, que foi neto de Hocém, filho de Alé, o sobrinho de Mahamede, casado com sua filha Axa. O qual Zaide teve alguas openiões contra o seu Alcorão, e a todolos que seguiram a sua doutrina os mouros lhe chamaram emozaidi, que 318 quere dizer súbditos de Zaide, e os tem por heréticos; e peró que estes foram os primeiros que de fora vieram habitar aquela terra, não fundaram notáveis povoações, somente se recolheram em partes onde podesse viver seguros dos cafres. E desta sua entrada, como ua peste lenta, foram lavrando ao longo da costa, tomando novas povoações, té que ali vieram ter três naus com grã número de arábios, em companhia de sete irmãos, os quais eram da ua cabilda vizinha à cidade Laça que está obra de quorenta léguas da Ilha Baharém, que está dentro no Mar Pérsico, mui pegada à terra de Arábia, no interior dele. A causa da vinda deles foi serem mui perseguidos do Rei de Laça, e a primeira povoação que fizeram nesta terra de Ajan foi a cidade Magadaxó, e depois Brava, que ainda hoje se rege por doze cabeceiras, a maneira de repúbrica, as quais procedem destes irmãos. E veo prevalecer esta cidade Magadaxó em tanto poder e estado, que depois se fez senhora e cabeça de todolos mouros desta costa; porém como os primeiros que vieram a ela, chamados emozaidi, tinham diferentes opiniões dos arábios, acerca de sua seita, não se quiseram submeter a eles e recolheram dentro pelo sertão, ajuntando-se com os cafres per casamentos e costumes, de maneira que ficaram místicos em todalas cousas. Estes são aqueles a que os mouros que vivem ao longo do mar chamam baduís, 304 nome comum como cá entre nós chamamos alarves a gente campestre. A primeira nação de gente estrangeira que per via de navegação teve o comércio da Mina de Sofala, foi desta cidade Magadaxó. Não que eles fossem descobrir esta costa, mas per acerto de ua nau daquela cidade que com temporal e força das correntes ali veo ter. E posto que ao diante tiveram mais notícia de toda a terra vezinha daquele resgate, nunca ousaram passar ao Cabo das Correntes; porque, como a Ilha de São Lourenço, que jaz ao Sul desta costa Zanguebar, corre com seu comprimento quási ao longo dela per espaço de duzentas léguas, e no meio da parte de dentro lança de si um cotovelo que responde ao outro que faz o Cabo de Moçambique, os quais parece que querem fechar aquela passagem, que será de largura obra de sessenta léguas, ocupadas com ilhas, restingas e baixos, fica este trânsito em respeito do outro mar, que jaz entre estas duas terras, tam apertado e estreito com seus canais, que em seu modo lhe podemos chamar outro Cila e Caríbdis. Ca são aqui as correntes tam grandes, que em breve apanham ua nau, e sem vento e sem vela a levam a parte em que corre os perigos de que os nossos navegantes são boa testemunha. Da qual causa chamaram Cabo das Correntes 319 àquela ponta 96v que faz a terra firme oposta ao fim ocidental da Ilha São Lourenço, porque neste termo se espedem as águas mui furiosas e correm mui livres per largo campo de mar, como quem sai do cárcere de antre estas duas terras. De maneira que, não somente acham os mareantes nesta passagem diferença no curso das águas, mas ainda novos tempos de monção pera Levante e Ponente, ca todolos ventos se apanham no estreito de antre estas duas terras. E como os mouros desta costa Zanguebar navegam em naus e zambucos coseitos com cairo, sem serem pregadiças ao modo das nossas, pera poderem sofrer o ímpeto dos mares frios da

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terra do Cabo de Boa Esperança, e isto ainda com moções e temporais feitos, e mais tem já experiência em alguas naus perdidas que esgarraram contra esta parte do Grande Oceano ocidental, não ousaram cometer este descobrimento da terra que jaz ao Ponente do Cabo das Correntes, posto que muito o desejassem, como eles confessam, principalmente os da cidade Quíloa, que foi a maior descobridor de todalas cidades daquela costa. Porque dela se povoou grande parte da terra firme e das ilhas adjacentes, e alguns portos da Ilha São Lourenço, por ela estar situada quási no meio desta costa, ante a cidade Magadaxó e o Cabo das Correntes. De maneira que abaixo e acima não lhe ficou cousa por correr, té se fazer senhora de Mombaça, Melinde e das Ilhas de Pemba, Zanzibar, Monfia, Cemora, e doutras muitas povoações que saíram dela pela potência e riqueza que teve depois que se fez senhora da Mina de Sofala, tendo quási tudo 305 perdido ao tempo que nós descobrimos a Índia, com divisões que houve per morte dalguns reis dela, de que adiante faremos menção. O sítio desta cidade Quíloa é em ua terra a qual, ainda que seja da costa da terra firme - Zanguebar,- o mar a foi torneando com um estreito, que a fez ficar em ilha. Ela em si é mui fértil de palmeiras, com todalas árvores de espinho e hortaliças que temos em Espanha, e algua criação de gado grande e meúdo, com muitas galinhas, pombas, rolas e outro género de aves estranhas a nós. O geral mantimento é milho, arroz e outras sementes de raiz agricultadas, com muitas fructas agrestes, de que a gente pobre se mantém. As águas dela são de poços e não mui sadias por a terra ser alagadiça e a cidade estar situada ao longo da ribeira que faz o esteiro, na frontaria da qual ele se espraiou em maneira de baía. A maior parte das casas são de pedra e cal com seus eirados per cima, e nas costas quintais plantados de árvores de espinho e palmeiras, assi pera fresquidão e deleitação da vista, como pera uso do fructo que dão. E de quam largos estes quintais são, tam estreitas as ruas, por assi acostumarem os mouros por se melhor defender, ca tem alguas tam estreitas por cima, que dos eirados podem saltar de um em outro. A ua parte da qual cidade tinha el-Rei suas casas feitas a maneira de 320 fortaleza, com torres, cubelos e todo outro modo de defensão, com porta pera serventia do mar, que vinha dar em um cais, e outra grande à ilharga da fortaleza que fazia rosto contra a cidade, pera serventia dela; diante da qual se fazia um grã terreiro onde estava a varação de naus, e no rosto dela era o pouso que as nossas tinham tomado. Das quais, assi por a polícia das casas, eirados e alcorões, como com as palmeiras e arvoredos dos quintais, parecia a cidade mui fermosa, dando aos nossos grande desejo de sair nela por quebrar a soberba daquele bárbaro, que toda aquela noite gastou em meter dentro na ilha frecheiros da terra firme.

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305 96v 320 Capítulo V. Como Dom Francisco de Almeida saiu em terra e tomou a cidade Quíloa, fugindo el-Rei pera a terra firme. Dom Francisco, como tinha assentado que havia de sair em terra ao seguinte dia, que era béspora de Santiago, ante-menhã, feito o sinal da trombeta que todos esperavam, cada um em seu batel, com a gente que pode levar se veo a bordo da nau capitaina, onde, sendo juntos, o vigairo dos clérigos lhe fez ua confissão geral e absolvição plenária pela bula concedida aos que perecessem naquele auto de Fé. A qual acabada e entregue a bandeira da cruz de Cristo a um cavaleiro chamado Pero Cão, que servia de alferes, encaminhou esta frota de batéis com 306 grande estrondo, assi da artelharia das naus como das trombetas que levavam. O primeiro 97 dos quais que tomou terra no rosto da cidade em que estava ordenado que haviam de sair, foi o de Dom Francisco, onde todolos capitães acudiram e se fez em corpo em um teso, enquanto os batéis tornavam por outro golpe de gente, sem neste tempo sair da cidade cousa que os fizesse alvoroçar, que lhe dava suspeita, não quererem sair os mouros ao largo por os acolher nas ruas, que por serem estreitas se poderiam melhor ajudar. Posta toda esta gente em terra, que estava ordenada pera cometer a cidade, deu Dom Francisco a seu filho duzentos homens, e ele ficou com o corpo da mais gente, que seriam trezentos. Ao qual mandou que se fosse ao longa da praia às casas del-Rei que estavam no cabo da cidade; e como lá fosse, que lhe fizesse um sinal com uma espingarda, a que ele responderia, pera que juntamente cometessem. Chegado Dom Lourenço onde fez este sinal, moveu seu pai de rosto contra o meio da cidade, dando Santiago e às trombetas com tanto alvoroço 321 de todos, que lhe era trabalho entreter a gente, sendo já o sol sobre a terra sem os mouros té então aparecerem. Peró, depois que Dom Francisco começou entrar pelas ruas, como eram estreitas e as casas altas, assi diante do rosto como per cima pela cabeça, dos eirados choviam tantas pedras e setas que desatinavam os nossos e recebiam grã dano, por irem mui apinhoados, por causa da estreiteza do lugar, sem se poderem aproveitar dos imigos. E dado que aos debaixo começaram levar diante si a bote de lança, e os espingardeiros e besteiros despejavam as janelas dos outros de que recebiam dano, todavia, era tanto o que lhe faziam dos eirados, que conveo aos nossos entrarem pelas casas e subirem acima onde os mouros estavam. E como os eirados eram contínuos uns aos outros e tam estreitas as ruas que quási se podia saltar de ua a outra parte ficava per cima deles lugar mais despejado pera os nossos andarem, que deu causa a que subissem muitos a despejar os mouros que com pedras e cantos empediam a passagem per baixo. Finalmente, com morte dalguns deles, o caminho que Dom Francisco levava foi despejado, e ele pôde com menos perigo chegar onde Dom Lourenço estava, que era à porta das casas del-Rei em um escampado; o qual lugar ele tomou com assaz trabalho ante que seu pai chegasse a ele. Porque, como o lugar era largo e el-Rei tinha consigo a frol da gente, saíram a ele obra de trezentos homens, que o serviam de muita frechada e pedrada; e ainda que esta chuiva lhe fazia perder a vista por ser mui basta e não poderem mais fazer que escudar-se, todavia apertaram tanto com os mouros, que os fizeram recolher pelas portas da fortaleza. E como o cardume deles era grosso e não podia caber per um postigo que entravam, e os nossos apertavam muito aquele lugar, começaram de se

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meter per becos e travessas; os quais, 307 fugindo este perigo, foram dar nas mãos da outra gente que vinha com Dom Francisco. A este tempo, Dom Álvaro de Noronha, que ia em companhia de Dom Lourenço, com a gente que levava pera a fortaleza de Cochi, de que havia de ser capitão, apartou-se pera onde estava ua porta per que entravam à fortaleza; e estando em pressa de a querer arrombar, apareceu em cima de ua torre um mouro bradando que estivessem quedos, apresentando a bandeira que el-Rei dezia ser-lhe tomada pelo nosso capitão com a nau que vinha de Sofala. Quando os nossos viram aquele sinal a que sempre obedeceram, leixando o combate todos em alta voz, como se viram seu Rei, começaram dizer: - Portugal! Portugal! Portugal! Chegado Dom Francisco a esta voz comum de tantas vozes, vendo a bandeira sobre a torre, em sinal de obediência e acatamento, tirou o capacete, estando quedo, e mandou que cessasse a obra té saber o que queria. As palavras 322 do qual mouro foram, que dezia el-Rei que ele se vinha meter em mãos dele, Capitão-mor, obediente e pacífico como vassalo del-Rei de Portugal; que lhe pedia muito mandasse cessar o combate, porque ele se vinha logo abaixo. Dom Francisco, parecendo-lhe que o temor trazia este mouro a obediência, mandou sobre-estar a obra, em o qual tempo o mouro que estava na torre não fazia senão bradar e bracejar pera dentro do muro, como que chamava alguém, e isto com uma eficácia que enganou a todos; porque sobre este bracejar pôs a bandeira encostada a ua amea, mostrando que ia chamar el-Rei, mas ele não tornou mais. A causa da vinda deste mouro foi querer entreter per este artefício os nossos, enquanto se el-Rei recolheu per outra porta que ia contra uns palmares, onde ele tinha posto suas mulheres e fazenda, pera dali se passar a terra firme em uns barcos que lá tinha prestes; porque, quebrada a porta da fortaleza, foram os nossos dar na outra per onde el-Rei saiu, que leixou assaz de rastro dalguas cousas que caíram com pressa dos que fugiam em 97v sua companhia. O qual rastro Dom Francisco não quis que a gente seguisse, porque ia dar em um palmar mui basto, onde podiam receber algum dano, sem o poderem fazer aos imigos; o que a gente mal sofreu, ca iam com aquele fervor e desejo de tomar ua cevadura na companhia que el-Rei levava. Porém, porque não ficasse somente com o trabalho e honra da entrada daquela cidade, mandou Dom Francisco aos capitães que cada um com sua gente a fosse esbulhar, encomendando a todos a pessoa, casas e fazenda de Mahamede Anconi, e mandou a João da Nova que se fosse a sua casa a o defender, não se desmandasse alguém com ele. Partidos alguns capitães a esta obra, mandou nas costas deles seu filho, Dom Lourenço, com um corpo de gente nobre, temendo algum desastre, polos desmanchos que se fazem no tempo de saquear, o qual, quando chegou à cidade, andava já a gente comum tam engodada na prea, que teve assaz trabalho em a fazer recolher. Finalmente, acabado aquele, primeiro ímpeto da entrada 308 destes capitães e tornados onde Dom Francisco estava, mandou ele a João da Nova que lhe trouxesse Mahamede Anconi. Do qual, depois que veo ante ele e soube como el-Rei era passado à terra firme, e assi outras cousas de que Dom Francisco quis tomar informação dele, o espediu, mandando a João da Nova que o tornasse a sua casa; e ele começou dar ordem pera se recolher toda a gente ao pé de ua torre, ante ua cruz que os sacerdotes ali tinham arvorado, em sinal de triunfo da Fé. No qual lugar armou muitos cavaleiros porque, ainda que Nosso Senhor deu aquela cidade sem morte dalgum dos nossos, muitas das pedras e frechas ficaram com sinal do trabalho que

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tiveram, a custa de muitos mouros que foram mortos. 323 Acabando este auto de honra que é o primeiro galardão da guerra, pola gente andar já mui cansada sem terem comido, não entendeu Dom Francisco em mais que recolher-se à porta da fortaleza onde fez sua estância com as costas no muro, e as outras estâncias encomendou a seu filho e aos capitães, segundo a necessidade que havia.

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308 97v 323 Capítulo VI. Como a cidade Quíloa se fundou e os Reis que teve, té ser tomada per nós; e como Dom Francisco de Almeida novamente fez Rei dela a Mahamede Anconi. Dom Francisco de Almeida, por ser comendador da Ordem de Santiago, ao dia seguinte, que era deste Apóstolo, não entendeu em mais que solenizar sua festa; porque, além de ele, por razão de ser cavaleiro da sua milícia, particularmente lho dever, toda Espanha lhe é nesta obrigação, por ser patrão dela e com seu apelido entrar em todalas batalhas contra mouros. E própria e principalmente a gente português se pode gloriar da causa de suas conquistas, pois são contra infiéis, no adjutório das quais tem tal Capitão-geral que os ajuda com legiões celestes, no exalçamento da Fé, como muitas vezes no meio das azes pera terror dos imigos per eles mesmos foi visto. E o que dava maior contentamento e devação aos nossos, enquanto estiveram à missa e pregação, era verem ser-lhe esta vitória concedida em ua cidade remota e sáfara da jurdição católica da Igreja, e súbdita às idolatrias dos cafres e blasfémias dos mouros. E porque não somente pera prosseguimento desta história, mas ainda pera criação do Rei que Dom Francisco de Almeida nela novamente criou, convém sabermos a fundação desta cidade e os reis que nela foram, té este que era tirano chamado Mir Abrahemo, que a desemparou, trataremos um pouco desta matéria. Segundo apreendemos per uma crónica dos Reis desta cidade, havendo pouco mais de setenta anos que as cidades Magadaxó e Brava eram edificadas, que como atrás vimos, foram as primeiras nesta costa, quási nos anos quatrocentos da era de Mahamede, reinava em a cidade de Xiraz, que é na Pérsia, um rei mouro chamado Sultão Hocém. 309 Per morte do qual lhe ficaram sete filhos, um dos quais chamado Alé, era mui pouco estimado entre os 324 irmãos, por seu pai o haver em ua sua escrava da casta dos abexis, e eles terem mãe nobre da linhagem dos Príncipes da Pérsia. O qual, como era homem que quanto lhe falecia no favor da linhagem, tanto supria com pessoa e prudência, por fugir os desprezos e mau tratamento dos irmãos, empreendeu ir buscar nova povoação, quási chamado pera melhor fortuna da que tinha entre os seus. E por ser já casado, recolhendo sua mulher, filhos, família e algua gente que o seguiu nesta empresa, embarcou em duas naus na Ilha de Ormuz, 98 e com a fama do ouro que havia nesta costa Zanguebar veo ter a ela. Chegado às povoações de Magadaxó e Brava, assi por ele ser da linhagem dos pérsios que acerca da seita de Mahamede diferem dos arábios (segundo adiante veremos), como porque sua tenção era fundar própria povoação onde fosse senhor e não súbdito dalguém, correu a costa mais adiante, té que veo ter àquele porto de Quíloa. E vendo a desposição e sítio da terra ser torneada de água em que podia viver seguro dos insultos dos cafres e que era povoada deles, a troco de panos lha comprou, passando-se todos à terra firme. Na qual, depois que foi despejada deles, começou de se fortalecer, não somente contra eles, se reinassem algua malícia, mas ainda contra alguas povoações dos mouros que tinha por vezinhos, assi como uns que habitavam as ilhas a que chamam Songo e Xanga, os quais senhoreavam té Mompana, que era de Quíloa obra de vinte léguas. Porém como ele era homem prudente e de grande espírito, em breve tempo se fortaleceu, de maneira que ficou ua nobre povoação, a que pôs o

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nome que ora tem. E des i começou de senhorear os vezinhos, até mandar um seu filho bem moço senhorear as Ilhas de Monfia e outras daquela comarca, da geração do qual os que o sucederam se intitularam por reis, como ele também fez. Per morte do qual lhe sucedeu seu filho Alé Bumale, que reinou quorenta anos; e por não ter filhos herdou Quíloa Alé Bufoloquete, seu sobrinho, filho do irmão que tinha em Monfia, que não durou no estado mais que quatro anos e meio. Ao qual sucedeu Daúte, seu filho, que foi lançado de Quíloa aos quatro anos de seu reinado, per Matata Mandelima, que era Rei de Xanga, seu imigo; e Daúte se foi pera Monfia, onde morreu. E este Matata leixou em Quíloa um seu sobrinho, per nome Alé Bonebaquer, que aos dous anos os párseos de Quíloa o lançaram fora e levantaram por Rei a Hocém Soleimão, sobrinho de Daúte, já defunto, que reinou dezasseis anos. Ao qual sucedeu Alé Ben Daúte, seu sobrinho, que reinou sessenta anos, e sucedeu-lhe um seu neto chamado do seu nome; contra quem 325 se levantou o povo por ser mau homem, e o meteram vivo em um poço, havendo seis anos que reinava, levantado por Rei a seu irmão Hacen Ben Daúte, que reinou vinte quatro anos, e após ele reinou dous anos Soleimão que era da linhagem 310 dos reis, ao qual o povo cortou a cabeça por ser mau Rei. E em seu lugar levantaram a Daúte seu filho que mandaram vir de Sofala donde veo mui rico, que reinou quorenta anos, leixando seu filho Soleimão Hacen, que conquistou muita parte daquela costa; e por haver a bênção de seu pai, se fez senhor do resgate de Sofala e das ilhas de Pemba, Monfia, Zenzibar e de muita parte da costa da terra firme. O qual, além de ser conquistador, nobreceu muito a cidade de Quíloa, fazendo nela fortaleza de pedra e cal, com muros, torres e casas nobres; porque té o seu tempo quási toda a povoação da cidade era de madeira. E todas estas cousas fez em espaço de dezoito anos que reinou. A quem sucedeu seu filho Daúte, que durou dous anos, e trás ele veo Talute, seu irmão, que viveu um; e por sua morte reinou Hacen, outro irmão, vinte e cinco anos. E por não ter filhos, sucedeu-lhe outro seu irmão, que viveu dez anos; e este derradeiro irmão, que se chamava Alé Boni, foi o mais bem afortunado de sua linhagem, porque tudo o que cometeu acabou, e sucedeu-lhe Bone Soleimão, seu sobrinho, que reinou quorenta anos. E após ele reinou catorze Alé Daúte, ao qual sucedeu Hacen, seu neto, que reinou dezoito anos, que foi mui excelente cavaleiro; e per sua morte ficou no reino seu filho Soleimão, que foi morto em saindo da mesquita, per traição, havendo catorze anos que reinava. Per morte do qual reinou dous anos seu filho Daúte, e após este reinou vinte quatro Hacen, seu irmão; e por não ter filhos tornou a reinar Daúte, rei passado, porque os dous anos que reinou era em ausência de Hacen, por ser ido a Meca; e em vindo, este Daúte lhe alargou o reino por lhe pertencer. Desta segunda vez reinou este Daúte vinte quatro anos, ao qual sucedeu seu filho Soleimão, que reinou vinte dias somente, por lhe tomar Hacen, seu tio, o reino, o qual reinou seis anos e meio; e por não ter filhos sucedeu-lhe Talufe, seu sobrinho, irmão de Soleimão, passado o qual reinou um ano; e outro seu irmão chamado também Soleimão reinou dous anos e quatro meses, no qual tempo foi tirado do reino per outro Soleimão, seu tio, que reinou vinte quatro anos e quatro meses e vinte dias. E a este sucedeu seu filho Hacen, que reinou vinte quatro, e trás ele veo seu irmão Mahamede Ladil, que reinou nove, e Soleimão, seu filho, que o herdou vinte dous. E por este não ter filhos, reinou Ismael Ben Hacen, seu tio, catorze anos, 98v per morte do qual se levantou por Rei o governador do reino, que não esteve no estado mais que um ano, porque o povo levantou por Rei o governador do reino; o qual não esteve no estado mais que um 326 ano, por tornarem alevantar por Rei a Mamude, homem pobre por ser da linhagem dos Reis, que não durou naquele estado mais que um ano, por sua pobreza. E foi levantado por Rei Hacen, filho del-Rei Ismael, já passado, que reinou dez anos, e seu filho Saide outros dez; e per sua morte se quis 311 levantar com o reino o governador dele, e durou neste poder um ano. No qual tempo fez governador

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a um seu irmão per nome Mamude, que tinha três filhos; dos quais sobrinhos temendo-se este tirano, por serem homens pera muito, mandou os de Quíloa que fossem governar as terras súbditas a ela, e aconteceu a sorte de Sofala a um chamado Iuçufe, do qual depois faremos larga menção, porque este era senhor daquela terra ao tempo que Pero de Anhaia ali foi fazer ua fortaleza, como logo veremos. E em lugar deste tirano, levantou o povo por Rei Abdala, irmão del-Rei Saide, já passado, que durou no reino um ano e meio, e seu irmão Alé outro tanto. E per sua morte o governador do reino forçosamente alevantou por Rei a um Hacen, filho do governador passado, que se alevantara com o reino, a fim de ele mesmo, governador, ser mais obsulto com este ser posto de sua mão. Porém o povo o não consentiu, porque logo levantou por Rei a um da linhagem real, chamado Xumbo, que viveu naquele estado um ano somente; e tornaram alevantar o passado, que aos cinco anos foi desposto, em cujo lugar alevantaram Abrahemo, filho de Sultão Mamude, já defunto, que aos dous anos também foi desposto; e levantaram a um seu sobrinho, per nome Alfudaile, que durou mui pouco. E o seu governador, chamado Mir Abrahemo, não quis fazer rei e teve o reino em seu poder com tenção de ficar naquele estado por ser filho del-Rei Soleimão, já defunto, e primo com-irmão deste Alfudaile, o qual não leixou mais que um filho de uma escrava, de que ao diante faremos menção, porque depois veo a ser Rei desta cidade, sendo já nossa. E posto que este Abrahemo fosse absoluto senhor de Quíloa, o povo lhe não chamava Rei, senão Mir Abrahemo, e se algua cousa o sustentou naquela tirania, foi o que passou com Pedrálvares Cabral, João da Nova e o Almirante Dom Vasco da Gama, por os modos que teve com eles; e por então isto o fez ser aceito ao povo. Dom Francisco de Almeida, posto que não tevesse sabido tam particularmente a sucessão destes reis como ora contamos, todavia per Mahamede Anconi soube como o povo não estava muito satisfeito deste Abrahemo, e quanto todos desejavam alevantar Rei que fosse mais chegado a linhagem verdadeira deles, e a causa por que o sofriam. E assi soube das pessoas notáveis que havia na terra e outras cousas de que se ele quis informar pera saber o modo que teria acerca da segurança e governo da cidade; porque, pera satisfazer ao que lhe el-Rei mandava, principalmente a quem leixaria por governador 327 daqueles mouros, dava-lhe esta eleição grande cuidado; porque sobre este fundamento se haviam de ordenar as outras cousas do governo da terra, e pera isso teve consulta com os capitães. Finalmente, juntos eles pera esta eleição de Rei, e preposto per Dom Francisco o que el-Rei lhe mandava em seu regimento e o que era passado com o tirano, per comum conselho se assentou que a Mahamede Anconi se entregasse o senhorio daquela cidade, polo que tinha merecido e passado por nossa amizade; porque além disso tinha pessoa, idade 312 de até sessenta anos e prudência de governo, posto que não fosse da linhagem dos Reis, pois pera reformação da terra nenhua outra cousa convinha. Pera entrega da qual, ante que se dali levantassem, Dom Francisco mandou a João da Nova que fosse trazer a Mahamede; o qual, como inocente da honra pera que era chamado, chegando àquele lugar onde todos estavam, lançou-se aos pés do Capitão-mor, pedindo que houvesse piedade dele, miserando-se com autos de homem que temia vir a estado de cativeiro por culpas alheas. Dom Francisco, com muito gasalhado levando-o nos braços, começou de o consolar, dizendo que não temesse, porque homens leais como ele era, não tinham que temer, mas esperar mercê e honra, e que esta do título de rei de Quíloa, que lhe ele queria dar em nome del-Rei, seu senhor, seria a primeira, e depois pelo tempo em diante ele faria tais serviços, que merecesse outras maiores, com que ficasse o mais poderoso Rei de toda aquela costa. Mahamede, quando ouviu tam novas palavras e não esperadas de seus méritos, tornou-se a debruçar aos pés de Dom Francisco, sem o poderem levantar deles. Finalmente, ante que dali partisse, ele foi vestido em ua marlota de escarlata forrada de cetim com alamares de ouro, e um capelhar do mesmo pano, que lhe Dom Francisco mandou dar, e levado a um cadafalso que se logo armou sobre

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99 pipas vazias, encostado à torre da fortaleza, alcatifado e embandeirado, ao qual lugar vieram todolos mouros principais da cidade, chamados per pregão que Dom Francisco mandou dar. E sendo juntos, começou um oficial de armas em alta voz em língua português e depois em arábigo per segunda língua, propoer as causas de seu ajuntamento e as da traição de Habraemo, governador que fora daquela cidade, tomando armas contra el-Rei, seu senhor; por rezão da qual traição perdera o governo dela, e ele, Capitão-mor, com aqueles capitães del-Rei, seu senhor, a tomara per justo título de armas e como propriedade sua, em nome de Sua Alteza, a entregava com título de rei e obrigação do tributo que dantes pagava ao honrado e leal Mahamede Anconi, em retribuição dos serviços que tinha feito a el-Rei, seu senhor. E em testemunho e confirmação deste título, ele o coroava com aquela coroa de ouro. E em dizendo isto, Dom Francisco lhe pôs na cabeça ua que levava pera el-Rei de Cochi, como adiante veremos. Acabado este auto, foi o novo Rei posto em um cavalo, acompanhado 328 de alguns capitães e mouros que eram presentes, e levado per os lugares púbricos da cidade, com pregões que o denunciavam por Rei dela, indo diante arvorada ua bandeira real das armas do reino, com todalas trombetas que celebravam aquela festa, té o tornarem onde estava Dom Francisco. E ante que se dele espedisse, pera se recolher a seu aposentamento, teve tanta prudência por ganhar a vontade aos mouros, de quem sabia que havia de ser envejado, que lhe pediu quantos foram cativos, 313 na entrada da cidade, dizendo que mal pareceria receber ele honra, leixando os seus naturais em estado de cativeiro, com os quais ele esperava de servir el-Rei, seu senhor. O que lhe Dom Francisco concedeu tudo, a fim que a cidade tornasse a seu estado, como logo tornou, com os pregões que o novo Rei mandou lançar. De maneira que, di a dous dias, todos os que andavam pelos palmares da ilha fugidos se tornaram à cidade povoar suas casas, tanto segurou o ânimo dos mouros esta honra e galardão que se deu a Mahamede, havendo todos que éramos gente grata dos benefícios que recebiamos, pois por tam pequenos méritos como era os de Mahamede - de escrivão da fazenda do reino de Quíloa era feito Rei dela. Parece que não somente a lealdade que este mouro teve connosco o trouxe àquele estado, mas ainda algua particular fortuna; pois o auto de sua coroação foi depois ornamento de casas dalguns príncipes, como vimos em uns panos de tapeçaria que se armavam na câmara del-Rei Dom Manuel, em dias solenes que ele mandou fazer por memória do descobrimento da Índia e deste feito de Quíloa.

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313 99 328 Capítulo VII. Como, acabada a fortaleza de Quíloa e provido o capitão e os oficiais dela, Dom Francisco se partiu pera a cidade Mombaça, a qual determinou de tomar, polo que nela passou. Passados os primeiros três dias que se gastaram na tomada da cidade e honras do novo rei Mahamede Anconi, quando veo ao seguinte dia, começou o Capitão-mor entender na fortaleza; e pera melhor aviamento da obra, ordenou suas estâncias ao pé da torre do castelo. E a primeira cousa que fez foi derribar sete ou oito moradas de casas pegadas ao muro da parte da cidade, por ficarem as torres mais desabafadas, pera maior defensão da fortaleza; e da parte do mar fez ua larga serventia com um cubelo junto da água, pera que os nossos seguramente tivessem o mar e a terra. E ordenou como, com a obra nova que fez, que a maior torre do 329 castelo ficasse em lugar das que chamam da menagem, tudo muito bem acabado segundo a desposição do lugar e brevidade do tempo, que foi espaço de vinte dias; à qual fortaleza pôs nome Santiago, por lhe Nosso Senhor dar vitória daquela cidade, béspora daquele Apóstolo. Da qual obra os principais oficiais eram os capitães das naus per quem Dom Francisco repartiu a giros o serviço dela; e, quando vinha ao seu, ele tomava a padiola per ua parte e Lourenço de Brito per outra ou Manuel Paçanha, porque cada um destes o ajudava de companheiro neste trabalho, sendo per todos feita com muito prazer, graças, motes e cantigas. E andando nesta obra havia três ou quatro dias, chegaram Bermudes e Gonçalo de Paiva, que o Capitão-mor mandara a Moçambique saber novas de Lopo Soares e das outras naus da companhia de Bastião de 314 Sousa, como atrás dissemos, os quais trouxeram cartas que Lopo Soares leixou já da tornada da Índia, 99v em que dava novas do que lá passara e da carga que levava, com que todos houveram muito prazer. Finalmente, acabada toda a obra da fortaleza, leixou Dom Francisco nela estas pessoas pera sua governança e defensão: Pero Ferreira Fogaça, filho de Fernão Fogaça, por capitão; alcaide-mor, Francisco Coutinho, morador em Alcobaça; por feitor, Fernão Cotrim; e assi todolos oficiais necessários, que com a gente de armas faziam número de cento e cinquenta pessoas. E leixou pera serviço da fortaleza e guarda da costa Gonçalo Vaz de Góis na sua caravela, e um bargantim que depois se havia de armar com regimento que havia de responder à fortaleza de Sofala, a qual el-Rei mandava fazer per Pero de Anhaia, que houvera de ir em sua conserva, e ficou até Maio, que partiu deste reino com frota de certas velas, como a diante veremos. Leixadas todalas cousas desta fortaleza em ordem, a oito de Agosto se partiu pera Mombaça, onde chegou aos treze, com onze naus e três navios; o qual dia de sua chegada, por ser já tarde, se houve mister per ancorar as naus de fora da barra, e ao seguinte mandou Gonçalo de Paiva e Felipe Rodrigues que entrassem pelo rio e o sondassem, pera saber que naus podiam entrar. Porque, ainda que os pilotos que trazia de Quíloa lhe certificassem haver fundo pera as naus grandes entrarem pelo canal ua ante outra, quis ele segurar-se na experiência destes dous capitães, e sobre seu conselho fazer esta entrada. Da situação da qual cidade, posto que, na passagem que o Almirante Dom Vasco da Gama per ela fez, déssemos algua notícia, todavia, pela entrada que Dom Francisco de Almeida nela fez, convém darmos maior relação.

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Esta ilha jaz metida dentro na terra firme, torneada de outro esteiro de água ao modo de Quíloa, a qual será em redondo obra de quatro léguas, e na entrada dela, mui perto da barra, está assentada a cidade em ua chapa de terra, de maneira que se amostra a maior parte de todo o corpo dela; e assi como o sítio a faz fermosa pera ver de fora, com as grandes casarias, 330 eirados e torres que aparecem, assi fica temerosa a quem a houver de cometer. Neste sítio, defronte dela, faz o mar ua maneira de concha, com que fica ua baía mui espaçosa pera ancoragem de grandes naus; e lá per dentro, em partes, vai o rio tam largo, que folgadamente podem andar navios à vela em voltas; somente no meio deste torno da ilha da banda da terra firme, começa um recife de pedra que atravessa o rio, com que de maré vazia podem passar a pe de ua parte a outra; e além deste braço de água que abraça aquela cantidade de terra com que fica ilha, per dentro da terra firme, entram outros esteiros que também se podem navegar. Este canal da serventia da cidade, a lugares, é tam estreito, que ua besta o passara; e ante que cheguem à concha que se faz no pouso das naus, da 315 banda da mesma ilha, contra o Levante, estava um baluarte que se fez depois que por ali passou o Almirante Dom Vasco. O qual tinha sete ou oito bombardas que houveram da nau de Sancho de Toar, que se perdeu naquela paragem, vindo da Índia com Pedrálvares Cabral, que o Rei desta cidade mandou tirar, de mergulho. Com as quais, chegando aqui Gonçalo de Paiva e Felipe Rodrigues, que iam sondando a barra, começaram os mouros de lhe tirar; um dos quais tiros tomou o navio de Gonçalo de Paiva pela câmara de popa e foi vasar aos castelos de proa, mas quis Deus que não fez outro dano. Em retorno do qual, como o baluarte não era maciço e as paredes fracas, um tiro furioso do navio penetrou de maneira que foi dar na pólvora, com que fez maravilhas, despejando toda a gente; e outro tanto fizeram a dous cubelos cercados de pedra ensossa que a diante estavam com artelharia. A qual obra despejou o caminho, de maneira que naquele dia e no seguinte, sondado o rio, foram metidos no porto todalas naus. Dom Francisco, porque a cidade fazia duas mostras, ua fronteira da barra e outra pera trás de um cotovelo, mandou repartir a frota nestas duas partes: na do rosto da cidade ficou Dom Lourenço, seu filho, e a detrás da ponta tomou pera si, mandando logo dous batéis que fossem rodear a ilha, parecendo-lhe que per detrás se podia acolher a gente à terra firme, como fez el-Rei de Quíloa. E assi mandou os capitães que sondaram o rio, que lhe fossem meter duas naus em um lugar, per onde mostrava que podiam passar da ilha à terra. Tornados este batéis, trouxeram um mouro que lá tomaram, per o qual Dom Francisco soube toda a desposição da cidade, e como el-Rei estava posto em a defender e tinha metido nela mais de mil e quinhentos frecheiros dos cafres da terra firme, e lançado pregão, se alguém da cidade se passasse a ela, que morresse. Sabidas estas cousas e vista a desposição da entrada, porque, enquanto isto passou da terra, não veo a ela algum recado, mandou Dom Francisco a 100 João da Nova, com um dos pilotos que trouxe de Quíloa, que fosse com um recado a el-Rei. Mas ele não foi ouvido, ante, em modo de desprezo, chegando à ribeira, disseram-lhe que os mouros de Mombaça não eram os de Quíloa, 331 que se entregavam aos trons das bombardas. E de antre estes que falavam em arábigo falou um português arrenegado, que fugiu a António do Campo, quando per ali passou, as palavras do qual eram conformes ao estado em que ele estava; e sobre isto deram ua grã grita, fazendo suas algazarras de brandir os braços, segundo eles costumam. Tornado João da Nova com esta reposta, mandou logo Dom Francisco que as naus respondessem às apupadas deles com um varejo de artelharia per o corpo da cidade, pois deziam não serem homens que se entregavam com os trons dela; e assi mandou a Antão Gonçalves e a João

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Serrão que com sua gente nos batéis fossem pôr o fogo a uas naus 316 de Cambaia que estavam metidas em um onco, detrás da ilha. E foi tanta a frechada ao cometer deste feito, e era assi a terra soberba e alta neste lugar, que ficavam eles debaixo; de maneira que vieram escalavrados sem fazer algua cousa, e João Serrão foi frechado em ua coxa, e assi Francisco Rodrigues, criado do Prior do Crato, Dom Diogo de Almeida, e um bombardeiro; e eles dous faleceram di a doze dias, por serem as frechas ervadas, cousa que os homens muito receavam; e João Serrão esteve à morte. Dom Francisco, vendo que já recebia dano dos mouros e havia dous dias que era chegado, depois de ter conselho em que houve diferentes votos, determinou-se que ao seguinte dia, que era de Nossa Senhora de Agosto, saíssem em terra. E tomando consigo alguns capitães em um batel e seu filho Dom Lourenço em outro, vieram ver um lugar detrás da ponta que dissemos, per onde parecia que era a melhor entrada, posto que a terra era mui soberba. E, vista a desposição, mandou vir alguns navios pequenos pera aquele lugar, os quais se haviam de iguar tanto com a terra sobranceira, que deles a ela se pudessem lançar pranchas pera saírem ao tempo da maré; e o modo de cometer a cidade seria irem sem se desviar dereitamente às casas del-Rei, ele per aquela parte, em cavalgando a costa per fora da cidade, té chegarem a elas, por estarem no cabo dela, na parte mais alta, e seu filho tomaria a rua do meio da cidade, a se ajuntar com ele; o qual desembarcaria quando ele mandasse tirar dous tiros, porque juntamente a um tempo cometessem a terra. E neste mesmo tempo iriam dous capitães com a gente do mar queimar as naus donde João Serrão veo ferido, ca per este modo repartir-se-iam os mouros, acudindo às trombetas que ouvissem per tantas partes, com que algua das entradas lhe ficasse sem a peso da gente, do grande número que havia dentro, segundo dezia o mouro. Do qual modo de entrada os mouros estavam sem suspeita, e todo seu intento era na frontaria da cidade, per onde havia de cometer Dom Lourenço, por verem que ali faziam os nossos maior rosto com o corpo da frota. 332 E por esta razão todalas ruas que vinham dar com suas gargantas na ribeira, estavam com tranqueiras mui fortes e cuidavam que este só lugar tinham que defender; porque as frontarias das casas, por serem sobradadas e com terrados per cima, ficavam em lugar de muro, e era a eles cousa fácil esta defensão, por as ruas serem mui estreitas e tam íngremes de subir, que, soltando no cima da rua ua pedra grande, podia vir tombando per ela abaixo, com tanta fúria, que ficava em lugar de trabuco. E da outra parte que Dom Francisco tomou, estavam eles seguros por a terra ser ua barroca, em lugar de muro. E o que os fez mais segurar desta entrada, foi mostrar Dom Francisco que havia de cometer per o rosto da cidade, onde Dom Lourenço estava, com mandar por ali as naus mais grossas; 317 e onde ele esperava sair, somente os navios pequenos. E ainda de indústria aquela tarde do dia seguinte, que ele esperava sair, mandou a Dom Lourenço com alguns capitães que com ele haviam de ser, que cometessem a ribeira da cidade e trabalhassem de pôr fogo a alguas casas e tranqueiras; e que, acudindo gente, mostrassem no modo de se recolher que temiam sair em terra a fazer esta obra, o que ele fez, queimando algua pouca cousa que os mouros apagaram.

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317 100 332 Capítulo VIII. Como Dom Francisco de Almeida tomou a cidade Mombaça e a queimou. 100v No seguinte dia, que era de Nossa Senhora de Agosto, em rompendo a alva, como já todos estavam prestes e absoltos per ua absolvição geral dos sacerdotes, segundo seu costume, feito um sinal que Dom Francisco tinha ordenado, cada um na ordem que lhe foi dada, seguiram seu capitão. Os que seguiram a Dom Francisco eram Dom Fernando de Eça, Rui Freire, Bermum Dias, Antão Gonçalves, cada um com a gente de suas naus. E os da companhia de Dom Lourenço eram Fernão Soares, Diogo Correa, João da Nova, pela mesma ordem com sua gente. E os outros capitães acudiram ao lugar das naus de Cambaia, que lhe era encomendado. E destas três partes as primeiras trombetas que se ouviram que tomavam terra, foram as de Dom Francisco, o qual, depois que teve sua gente toda em um corpo, assi como estava inteiro, sem achar quem lhe empedisse o caminho, começou subir pela costa acima pera encavalgar o alto da cidade, onde estavam as casas del-Rei. A qual subida lhe foi leve, enquanto foi per fora da cidade, por não achar quem lha empedisse, e mais ser o caminho espaçoso; porém tanto que entrou na povoação por o lugar ser estreito, conveo-lhe ir a fio com a gente toda posta em ordem, sem se desmandar pelas travessas e ruas per onde lhe saíam alguns mouros, té que se pôs junto das casas del-Rei, 333 onde já acudiu peso de gente que às frechadas e pedradas, asi de cima das casas, como per baixo nas ruas, serviam bem os nossos. E como Dom Francisco, pela experiência da entrada de Quíloa, sabia a manha destes mouros, que mais se serviam das janelas e eirados que das ruas, levava entre a gente de armas, besteiros e espingardeiros repartidos, que lhe despejavam os lugares altos donde os ofendiam, com que mais levemente do que ele cuidava, tanto que chegou a bote de lança, foi levando os mouros, té dar com eles em um grande terreiro diante das casas del-Rei, onde vinham dar muitas ruas, per que se eles espalharam. Per as quais, posto que saíssem muitos mouros a ofender os nossos, maior dano recebiam do que davam, porque era o lugar 318 largo pera todos se ajudarem das lanças, o que não podiam fazer nas ruas que eram estreitas; e se algum dano receberam os nossos naquele lugar, era de cima dos eirados das casas del-Rei, que estavam cheos de tanta pedra solta, que cobria o chão. Dom Francisco, como deu vista a este lugar, que era a principal parte da cidade, e de fora não havia corpo de gente que defender as casas del-Rei, mandou quebrar as portas, parecendo-lhe que, por ser fortaleza, estaria acolhida dentro algua gente nobre; e os primeiros que arrombaram estas portas foram Rui Freire, Rodrigo Rabelo, Bermum Dias. Os quais, com a outra gente que os seguiu, meteram-se tam rijo com os mouros que estavam dentro, que em pouco espaço despejaram o baixo e o alto donde os nossos, que estavam no terreiro, recebiam o dano das pedradas. Dom Francisco, como estava no cabo deste terreiro, onde vinham dar as principais ruas da cidade, entretendo a gente que se não derramasse per elas, tanto que soube que as casas del-Rei eram despejadas dos mouros, deu lá ua chegada; e, entregando a guarda delas aos capitães que as entraram, porque, com desejo de as roubar, a gente comum não desemparasse a ele e aos outros capitães, tomou caminho entre a cidade e um palmar per onde corria o fio dos mouros em fugida trás el-Rei, que era já acolhido per ua porta falsa na maior espessura deste palmar. Dom Lourenço, a este tempo, andava tam ocupado no baixo da cidade, que não pôde ser em cima, como estava assentado entre seu pai e ele; porque, como a rua do meio per que ele ia era mui íngreme e toda se subia em degraus, tanto que os mouros a viram bem coberta dos nossos, assi per

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cima dos eirados, como per baixo pelas ruas, chovia e corriam pedras, e estas que corriam eram as mais perigosas por serem grandes e redondas, ordenadas pera aquele mister; as quais, como tomavam galga, vinham tam furiosas pela rua abaixo, que pareciam vir espedidas dalgum trabuco. E, segundo na entrada desta rua, per que Dom Lourenço entrou, os mouros se houveram um pouco remidos em defender a tranqueira que a fechava, pareceu que o fizeram de 334 indústria, pera que, como os nossos a enchessem, soltarem estas pedras; e se assi não foi, parece que Deus lhe quebrou o coração; porque, verdadeiramente, se eles o teveram tam defensável como era o sítio da cidade e a subida desta entrada, ao menos per ela nunca a cidade viera a nosso poder. Mas como todos andavam assombrados do que ouviram 101 dizer de Quíloa, tanto que ouviram as trombetas detrás de si no terreiro dos paços del-Rei, e souberam ser ele acolhido pera o palmar, parecendo-lhe estarem cercados e que os haviam de entalar naquelas ruas per baixo e per cima, começaram buscar salvação, furando pelas casas. Dom Lourenço, como seu intento era subir ao alto da cidade, onde estava ordenado que se havia de ajuntar com seu pai, despejada a rua 319 deste primeiro ímpeto das pedras, subiu até chegar ao terreiro del-Rei; e ante que saísse da garganta das ruas que vinham dar nele, leixou alguns capitães por lhe não virem dar os mouros nas costas, levando um golpe deles ante si, como quem tange gado. Os quais mouros iam de boa vontade, porque os encaminhavam pera as casas del-Rei, parecendo-lhe acharem ainda lá algua guarida. Vendo Dom Lourenço que as casas estavam em poder de Rui Freire e dos clérigos e frades de São Francisco, que no alto delas tinham arvorado ua cruz, animando a todolos que ali chegavam no exalçamento daquele sinal, pareceu-lhe que aquela parte estava já segura, pois dela tinham tomado posse dous gládios - espiritual e temporal, - e começou encaminhar per onde seu pai fora, o qual achou já desafrontado dos mouros, por serem acolheitos ao palmar. E vendo ambos que por aquela parte estava o negócio de todo acabado, tornaram-se ao terreiro das casas del-Rei, onde também os outros capitães estavam sem ter a quem ofender, e ali lhe veo recado dos outros, que mandara queimar as naus, como eram queimadas, com que houve por acabada toda a obra daquele dia. Finalmente, porque a calma era grande e o trabalho fora muito e todos estavam por comer, repartiu Dom Francisco as estâncias da cidade per os capitães, e mandou os feridos às naus, os quais seriam mais de setenta, e mortos somente quatro, com Dom Fernando de Eça. O qual parece que tinha o martírio de sua vida e morte nas mãos dos mouros; porque, quando partiu deste reino, havia pouco que saíra de cativo, polo cativarem com Diogo Lopes Sequeira, sendo capitão de Arzila, como contamos em a nossa parte de África. A morte das quais pessoas foi vingada com morte de mil e quinhentos e treze mouros, segundo eles mesmos disseram, e duzentos cativos, dos mil e tantos que se depois tomaram, ao saquear da cidade. Posto Dom Francisco e a gente em repouso de comer uns bocados, da estância que era vezinha ao palmar onde estava Rui Freire, veo recado ao 335 Capitão-mor que estava ali um mouro capeando com ua bandeira branca, ao qual ele mandou Gaspar da Índia, que soubesse dele o que queria; e trouxe recado que dezia el-Rei que, ante daquela cidade receber mais dano, ele se queria fazer tributário del-Rei de Portugal e que pera isso se queria ver com ele, Capitão-mor. Mas parece que ou este recado não era del-Rei ou, desconfiado dos méritos de sua pessoa, não quis vir, mandando-lhe Dom Francisco por seguro ua manopla sua, e depois um capacete. O qual recado, por ser trato de paz, meteu logo a gente em alvoroço de duas cousas: a ua que saqueassem a cidade primeiro, e a outra que cometessem o palmar onde estava el-Rei, pois não aceitava esta paz que mandara pedir e lhe concediam. E sobre este cometer do palmar, alguas pessoas nobres, mais desejosos de glória que do despojo da cidade,

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320 apertavam com o Capitão-mor que o entrassem, mas ele os desviou disso, dizendo que se contentassem dar-lhe Nosso Senhor aquela cidade tanto a seu salvo, sendo a mais temida de toda aquela costa. Porque entrar o palmar era cousa mui perigosa, por ser mui basto e per baixo ter tanto feno e erva, que se não poderiam os homens desempeçar, e detrás dos pés das palmeiras os frechariam a todos; dando ainda outras razões, com que converteu o alvoroço desta entrada a saquearem a cidade que repartiu por capitanias, por se não fazer algua desordem. O móvel da qual, por não ser algua cousa despejada, foi tanto, que se encheu o terreiro e as casas del-Rei da primeira cevadura daquele dia; e ao seguinte foi ainda tanto que, por não pejar as naus, não consentiu Dom Francisco que se embarcassem, nem menos mil almas que ali foram tomadas, somente duzentas, que repartiu por esses fidalgos, e as mais, por serem mulheres e outra gente fraca, mandou soltar. Passados dous dias na escala da cidade, quando veo ao terceiro, em se querendo recolher, mandou-lhe Dom Francisco pôr fogo per muitas partes, e tanto se ateou em pouco espaço, polas casas serem mui apinhoadas, que, quando se embarcou, já o fumo e as chamas do fogo traziam todo o ar tam corruto, que o não podiam sofrer. O qual fogo abrasou a maior parte daquela cidade de abominação, ficando nela ua faísca de 101v escândalo que di a vinte três anos a tornou outra vez a pôr naquele estado, como veremos em seu tempo. A este que Dom Francisco quis partir pera Melinde era o vento tanto de avante pela garganta do rio, que a força de toas tirou as naus fora, e enquanto andou neste trabalho, mandou Bermum Dias e a Gonçalo de Paiva que lhe fossem fazer alguas cousas prestes. E assi espediu Gonçalo Vaz de 336 Góis, que ele trouxe de Quíloa e havia de ficar nela, o qual levou muita roupa pera o resgate de Sofala, a que ele havia de ir entregá-la, depois que chegasse Pero de Anhaia. E à espedida destes navios chegou Vasco Gomes de Abreu com o mastro quebrado de um temporal que o fez apartar de Bastião de Sousa e com muita gente doente, por razão dos quais doentes Dom Francisco o mandou em companhia destes navios, e ele deteve-se ainda quatro dias, porque no trabalho que teve na saída perdeu o leme a nau Lionarda, capitão Diogo Correa, no qual tempo se fez outro, e também proveo de capitão do navio, em que daqui foi Dom Fernando de Eça, a Rodrigo Rabelo. Posto Dom Francisco em caminho, por muito que encomendou aos pilotos que tevessem tento, não escorressem Melinde, que seria dali vinte léguas, todavia as águas o levaram abaixo oito a ua angra a que ora chamam de Santa Helena, onde achou João Homem, capitão da caravela São Jorge. O qual disse que com o temporal que Vasco Gomes de Abreu se apartou de Bastião de Sousa, se apartara ele e Lopo Sanches, correndo ambos a vista um do 321 outro, té que outro tempo os apartou, no qual caminho tinha passado bem de trabalhos e descobriu novas ilhas. El-Rei de Melinde, como pelo recado que lhe Dom Francisco enviou estava apercebido com todalas cousas pera o receber, vendo que o tempo o levara àquela angra, ali o mandou vesitar com tudo, dando-lhe a prol-faça da tomada de Mombaça, que foi o maior prazer que lhe podera vir. Porque além das paixões antigas, que por nossa causa tinha com o Rei dela, se desta feita não ficara destruído totalmente, ele, Rei de Melinde, padecera muito mal, e a causa era esta: Tanto que el-Rei de Mombaça viu a destruição de Quíloa, mandou apertadamente requerer a el-Rei de Melinde que se fizesse em um corpo contra nós, movendo-lhe casamentos de filhos com filhas, não tanto por desejar sua liança, quanto a fim de o pôr em ódio connosco, parecendo-lhe que per este modo seria destruído. Mas como el-Rei de Melinde lhe negou seu requerimento, houve-se por mui injuriado em desprezar sua liança, e jurou que, passado Dom Francisco à Índia, havia de ir

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sobre ele com todo seu poder. As quais cousas sabendo Dom Francisco, mandou muitas do despojo de Mombaça a el-Rei de Melinde, e outras que lhe el-Rei Dom Manuel mandava como a fiel amigo, com palavras conformes aos méritos da lealdade que tinha connosco, e aos propósitos del-Rei de Mombaça. Passados estes recados e visitações que houve de parte a parte, partiu Dom Francisco daquela angra, béspora de Santo Augustinho, com catorze velas; e em dezasseis dias chegou à Índia, ao porto de Anchediva, com menos 337 duas, de que eram capitães Bermum Dias e Vasco Gomes de Abreu, que chegaram depois, e assi Bastião de Sousa com estas menos: Lucas da Fonseca que invernou em Moçambique, e Lopo Sanches que se perdeu, como se adiante verá. O qual Bastião de Sousa trouxe cartas do novo Rei de Quíloa, Mahamede Anconi, e del-Rei de Melinde, em que davam conta da paz e o estado da terra. E entre alguas cousas que Bastião de Sousa contou ao Capitão-mor, do que acontecera depois de sua vinda, segundo soube de Pero Ferreira, capitão de Quíloa, foi que Abrahemo, desterrado, que se intitulava rei dela, procurando a morte a Mahamede Anconi, mandou um mouro que o viesse matar dentro nas suas casas. O qual vindo ao negócio, posto que o cometeu como valente homem, não fez mais que dar-lhe com ua agonia pelo bucho de um braço, de que houve saúde; em pagamento da qual ousadia foi esquartejado, que fez grande terror entre os mouros, e foi causa que os outros di em diante teveram mais veneração ao novo Rei, Mahamede Anconi, vendo como vingávamos as ofensas que lhe eram feitas.

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322 102 337 Capítulo IX. Dalguas cousas que Dom Francisco de Almeida fez em quanto se trabalhava na obra da fortaleza de Anchediva; e os recados que ali teve de Onor per seus embaixadores, e assi dalguns mouros vezinhos à fortaleza, procurando sua amizade. Dom Francisco de Almeida, chegado à Ilha de Anchediva, a primeira cousa que fez foi espedir João Homem com cartas aos feitores de Cananor, Cochi e Coulão, escrevendo-lhe de sua chegada e o que ficava fazendo, que entretanto fizessem prestes aos mercadores que trouxessem a especearia pera a carga das naus, porque ele seria logo lá. E assi espediu Rodrigo Rabelo e a Gonçalo de Paiva, que andassem daquele lugar de Anchediva té o Monte de Eli e fizessem arribar a ele todalas naus de mouros; as que o não quisessem fazer as metessem no fundo, principalmente as de Meca e Calecute. Porque a estes dous lugares - Anchediva e Monte de Eli - vinham demandar todalas naus de Meca, Ormuz, Cambaia, pelas causas que em outra parte dissemos. E a principal que moveu a el-Rei Dom Manuel mandar a Dom Francisco que fizesse nesta Ilha Anchediva ua fortaleza, foi por ser pegada na terra, devoluta aos mareantes pera suas aguadas e mui abrigada de todolos ventos pera nela poder invernar, e estar no meio de toda a costa da Índia. Na qual ilha parece que algum príncipe magnífico ou zeloso do bem comum, 338 afim do proveito dos navegantes, no alto dela mandou fazer um grande tanque de cantaria em lugar de água nadível, do qual per um córrego abaixo corre ua quantidade de água que vem dar na praia, pera que as naus que ali forem ter façam sua aguada. Defronte do qual córrego, que é na face da ilha contra a terra firme, fica o abrigo pera as naus, e da banda de fora, em torno dela, estão quatro ilhéus que também ajudam abrigar aquele porto, porque quebra a fúria do mar neles; e neste lugar de ancoragem, estava Dom Vasco da Gama espalmando seus navios, quando com ele veo ter Gaspar da Índia, que era ali com Dom Francisco ao fazer da fortaleza, a qual ele fez de pedra e barro por não achar modo pera haver cal. E neste tempo também se armava ua galé de madeira, que foi lavrada deste reino, e outra tanta se perdeu em o navio de Lopo Sanches (como veremos) pera duas que houveram de ser. O trabalho das quais obras repartiu em duas capitanias: o da fortaleza deu a Manuel Paçanha que ia de cá provido da capitania dela por el-Rei, e o da galé a João Serrão, que também a levava de cá. E com esta galé também se fezeram dous bargantins pera andarem em companhia dela: de um era capitão Simão Martins e doutro Jácome Dias. Prosseguindo a obra nesta ordem, toda a gente daquela costa ficou em confusão, principalmente 323 os mouros, porque não somente os assombrou o número das velas, gente de armas e nova do que Dom Francisco leixava feito per onde vinha, mas ainda ver fundar ua fortaleza doze léguas de Goa, ua cidade do Sabaio, que pretendia querer senhorear toda aquela comarca, tomando as terras aos gentios, como fez às do estado de Goa. E assi estes per suas inteligências, como os vezinhos de Anchediva, que eram os de Cintacorá e Ancolá, que estavam defronte, procuravam per seus meios que o gentio da terra, acerca dos quais éramos aceitos, se não fiassem de nós nem dessem ajuda algua, ante trabalhassem como aquela fortaleza se não fizesse, por lhe ser um grave jugo a nossa vezinhança. E quem primeiro mostrou esta amoestação dos mouros foi el-Rei de Onor, que era dali oito léguas, per esta maneira: Como João Homem, que Dom Francisco dali espediu, passou per Cananor e deu o recado que levava a Gonçalo Gil Barbosa, que lá estava por feitor, ele, Gonçalo Gil, em um barco da terra

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per um homem da feitoria lhe escreveu, dando-lhe razão de si e do estado da terra e doutras cousas, que convinha ser Dom Francisco informado delas. Per o qual homem, quando Dom Francisco respondeu a Gonçalo Gil, mandou um recado a el-Rei de Onor que estava em caminho; porque, além de ser o mais chegado vezinho daquela fortaleza que ele começava, sabia ser aquele porto acolheita do cossairo Timoja, capitão del-Rei, o qual Timoja era aquele que veo ali cometer Dom Vasco da Gama. 339 A substância do qual recado que lhe Dom Francisco mandou, era: fazer-lhe 102v saber ser ali vindo, e o contentamento que tinha de o ter por vezinho daquela fortaleza, pera se prestarem como amigos, por el-Rei seu senhor, lho encomendar muito; e que trazia alguas cousas pera praticar com ele da sua parte, que lhe pedia ordenasse como se podesse ver. Ao qual recado ele não respondeu esta vez nem outras que Dom Francisco lá mandou, de propósito e não de passada, como o primeiro; somente em seu nome respondia um capitão que estava em Onor, e tudo eram desculpas, dizendo que el-Rei, seu senhor, estava metido dentro no sertão em um negócio de guerra, que por isso não vinha a reposta dos recados, e com estas escusas mandava palavras gerais de ofertas por dilatar tempo e se prover pera rompimento, se o i houvesse. Dom Francisco recebia estas cousas com brandura, dessimulando a verdade que delas sentia, e mostrava aos seus mensajeiros gasalhado dando-lhe dádivas e boas palavras, porque o tempo não era pera mais. Mas parece que assi estava ordenado per el-Rei de Onor, porque ao segundo dia chegaram per mar dous seus embaixadores, como homens que eram inocentes de tudo o que era passado, entre ele, Dom Francisco, e o capitão, dizendo que, como a nova daquela frota e obra que se ali fazia fora ter a el-Rei de Onor, posto que andasse ocupado em uns movimentos 324 de guerra mui afastado da costa do mar, polo desejo que tinha da amizade del-Rei de Portugal e de se prestar com ele, capitão, pois vinha ser ali vezinho, logo os enviara a o visitar e oferecer tudo o que houvesse mister, de mantimentos e qualquer outra cousa que fosse necessária, pera provimento daquela obra. Dom Francisco, depois que lhe respondeu a estas ofertas gerais, quis dar algua culpa ao capitão de Onor em não lhe responder a propósito, ao que eles responderam que à sua partida el-Rei, seu senhor, não era sabedor do primeiro recado, quanto mais das outras cousas que ele dizia. Que isto lhe podiam afirmar: el-Rei haver muito de sentir quando o soubesse, peró que aos capitães dos príncipes toda cautela era lícita por segurança do estado deles, enquanto não sabiam a sua vontade, que eles dariam conta destas cousas a el-Rei e em breve tornariam com reposta. Dom Francisco, por este ser o primeiro recado del-Rei, dissimulou com estes seus embaixadores, dizendo que na reposta que trouxessem haveria o passado por verdadeiro ou falso, e espediu-os mui contentes das palavras e cousas que levavam, por retorno das que trouxeram. Partidos estes, di a dous dias vieram certos mouros que estavam no porto de Onor com este requerimento: Que, por quanto eles eram vassalos del-Rei de Ormuz, do qual sabiam o grande desejo que tinha da amizade del-Rei de Portugal, e cujas era uas cinco naus que estavam surtas no porto de Onor, pediam a Sua Senhoria houvesse por bem de lhe dar um seguro pera poderem navegar. Que, quanto ao negócio que entre ele e o capitão de Onor era passado per recados, eles o 340 souberam, e por verem que o capitão del-Rei se remetia a vontade dele, cujo recado tardava muito, eles determinaram de se sair daquele porto de Onor e que o não quiseram fazer sem disso vir dar conta a ele, senhor Capitão-mor. Que, se lhe aprouvesse, eles se meteram entre ele e el-Rei de Onor pera o trazerem ao serviço del-Rei de Portugal; que o fariam de mui boa vontade, porque nisto lhe parecia que serviriam a el-Rei de Ormuz, seu senhor, pola boa vontade que sabiam ter às cousas del-Rei de Portugal. E que ainda se atreviam fazer com ele, Rei de Ormuz, que desse em sinal de Amizade cadano ua rica jóia; e que em retorno desta amizade lhe leixasse ele, Capitão-mor, navegar

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dez ou doze naus naquela costa da Índia, que ordinariamente mandava cadano, pera provimento de cousas pera sua casa, e que a reposta del-Rei podiam eles trazer per todo Dezembro. Dom Francisco, peró que entendeu que a vinda destes mouros foi na segurança das palavras que ele havia três dias que passara com os embaixadores del-Rei de Onor, e que tudo era por segurar suas naus, todavia os despachou com graça e gasalhado, mostrando ter contentamento da vinda de tais pessoas, e concedeu-lhe o seguro de suas naus, por serem párseos do reino de 325 Ormuz. Que quanto ao que prometiam del-Rei de Onor, ele espedira havia três dias seus embaixadores, per os quais esperava haver seu recado; que nisto receberia prazer deles, saber el-Rei de Ormuz, seu senhor, como ele tratava suas cousas, e do mais que prometiam comprissem com sua palavra e que na obra el-Rei o acharia mui certo. E porque esta prática foi em terra onde se fazia a obra da fortaleza e entendeu neles que desejavam ir com ele à nau, quando se recolheu à tarde, os levou consigo, e como eles não 103 eram costumados ver aquela grandeza de nau São Jerónimo, e tanta artelharia, armas, munições e ferver dos nossos, assi na obra da terra como do mar, ficaram pasmados, e muito mais quando lhe contaram dous mouros guzarates, cativos, que foram tomados em Mombaça, o que viram fazer aos nossos naquela cidade, e ouviram do que leixavam feito em Quíloa. Partidos estes mouros, assombrados do que viram e ouviram, ao seguinte dia vieram outros de ua fortaleza chamada Cintacorá, que seria dali meia légua, e por entrada trouxeram um galego remeiro do bargantim, capitão Jácome Dias, que per mandado do Capitão-mor havia dous dias que fora àquele rio trás dous zambucos. O qual galego, saindo com outros em terra, quando veo ao recolher, se leixou ficar, como homem que queria saber o que lá ia, mas logo foi tomado e trazido ante o capitão da fortaleza, que ordenou de o enviar com um presente de refresco a Dom Francisco, com título de visitação, desculpando-se de o não ter feito e que a causa fora ser ele ausente, e que, em chegando, a primeira cousa que soube foi daquela boa vezinhança que tinha com Sua Senhoria, do que houve muito prazer; e em sinal dele e de bom vezinho lhe enviava aquele refresco. Dom Francisco, espedidos os mensageiros que lhe trouxeram este recado, 341 com outro tal retorno de cousas que lhe mandou dar, posto que quisera castigar este galego por se leixar ficar em terra, entre gentios e mouros, não o quis fazer, por ele ser causa de o espertar em algua cousa de que estava descuidado, havendo esta ficada ser mais permissão divina que malícia sua. Porque per ele soube que, dentro do rio onde se acolheram os caravelões trás que Jácome Dias foi, estava ua fortaleza mui defensável, assi per natureza como artificialmente, em que haveria mais de oitocentos homens e grande parte deles mouros brancos, a qual cousa logo deu suspeita a Dom Francisco, como que o seu espírito lhe pronosticava o trabalho que lhe esta fortaleza havia de dar, e muito mais a temeu depois que soube ser ela do Sabaio, senhor da cidade Goa, que seria dali doze léguas. A qual como era estremo do reino de Onor, que se apartava do senhorio de Goa per um rio chamado Aligá, ao longo do qual estava situada, por esta razão de ser frontaria, sempre estava bem provida de gente de guarnição pola guerra que muito tempo havia que tinham com el-Rei de Onor, de 326 que ao diante diremos a causa. Porém depois que entrámos na Índia e as nossas naus foram demandar aquela Ilha Anchediva por causa de fazerem ali suas aguadas, teve o Sabaio mais tento nela e a mandou forteficar, e muito mais como soube a que fazia Dom Francisco, pola vezinhança que tinha com ela. E esta foi a causa de estar nela tanta gente de guarnição, principalmente alguns mouros brancos, que ele não empregava senão em parte de que se muito temia. Dom Francisco, posto que não soube estas cousas do galego somente polo que ele disse do que vira, mandou seu filho Dom Lourenço e com ele Bastião de Sousa, João da Nova e Antão Vaz, todos em batéis com a gente que poderam levar, e providos do necessário pera qualquer cousa que sobreviesse. O qual Dom Lourenço não se havia de mostrar que ia ali por não dar algua presunção

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aos mouros, quando vissem pessoa tam notável; somente iam todos em modo de visitação da parte do Capitão-mor ao capitão da fortaleza. E assi se fez. Porque não houve mais que notarem eles o que lhe era mandado e o capitão dela vir estar à fala com eles e assentarem paz como bons vezinhos e trazerem de lá algum refresco; e di a poucos dias, pera maior confirmação desta paz, o capitão da fortaleza mandou seus mensajeiros a Dom Francisco com dous zambucos carregados de mantimentos. Peró todas estas cousas eram feitas mais por temor que a outro fim, como di a pouco tempo se viu, segundo adiante veremos. A este tempo, chegou um sobrinho do feitor Gonçalo Gil com cartas suas ao Capitão-mor, e entre muitas cousas que lhe mandava dizer, era do aviamento que tinha pera a carga das naus e o grande temor que a fama daquela 342 armada tinha posto em toda a terra, principalmente quando ouviram o feito de Quíloa e Mombaça, que tinham grande nome na Índia, por razão do trato do ouro. Com as quais novas, estando el-Rei de Calecute perto da cidade em uns paços seus, se recolheu pera o pé da serra e que lá adoecera de grave doença; e muitos dos principais também o seguiram, levando consigo mulheres e fazenda, simulando que era por causa da doença del-Rei, e que na cidade Calecute havia grande pressa pera se acabar ua forte estacada de grossa madeira ao longo do mar com entulho de terra, cousa mui 103v defensável. E também tinham por nova haver poucos dias que viera ua nau de Meca, que trouxera alguns fundidores de artelharia e muitas armas, os quais trabalhavam de acabar duas peças grossas pera assestar na frontaria da cidade com outras que já estavam postas. E mais souberam per um frade que de Narsinga viera ter ali a Cananor, como el-Rei de Narsinga, que era quási um emperador do gentio da Índia em estado e riqueza, ordenava embaixadores pera lhe enviar, e que lhe parecia ser esta embaixada a fim de segurar alguns portos que tinha naquela costa, de que os principais deles eram Baticalá e Onor. 327 Sobre estas e outras novas que Dom Francisco cada dia tinha do estado da terra e movimentos dos príncipes dela, sobreveo que, com um tempo que havia dous dias que andava no mar, um zambuco grande, cuidando que ainda aquele abrigo da ilha estava despejado, vinha-o demandar; e quando se achou entre tam grande frota, com temor, vendo que os nossos se despunham pera ir a ele, foi correndo ao longo da costa contra Onor, e vendo que não podia escapar aos nossos, que o seguiam, deu consigo em terra. Dom Lourenço e Lourenço de Brito, e outros capitães que iam trás ele em seus batéis, quando lhe chegaram, foi a tempo que não acharam nele mais que doze cavalos, os quais vinham de Ormuz, segundo depois souberam. E porque o tempo era tal que com trabalho tornariam à fortaleza, quanto mais trazer consigo o zambuco, disse Dom Lourenço aos mouros da terra (que logo acudiram à praia como a vezinhos da fortaleza) que lhe entregavam aqueles cavalos pera darem conta deles quando lhos pedissem, o que os mouros aceitaram e compriram mui mal, donde procedeu o que se verá neste seguinte capítulo.

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327 103v 343 Capítulo X. Como, partido Dom Francisco de Anchediva, deu em Onor, onde queimou as naus do porto; e do que passou com Timoja. Dom Francisco de Almeida, como teve a galé e bargantim lançados ao mar, e viu que a fortaleza ficava já em estado pera se poder defender, tomou a menagem dela a Manuel Paçanha, que vinha provido por el-Rei da capitania, e Duarte Pereira de alcaide-mor, e assi o feitor e escrivães com todolos outros oficiais pera serviço dela, que os homens de armas seriam até oitenta pessoas, afora a gente do mar que ficavam nos bargantins, de que eram capitães Simão Martins e Jácome Dias. E entre alguas pessoas nobres que ficaram naquela fortaleza, foram estes filhos de Manuel Paçanha: João Paçanha, Jorge Paçanha, Francisco Paçanha, Ambrósio Paçanha e Álvaro Paçanha, que era bastardo, o qual em feitos e calidades de sua pessoa não havia enveja a seus irmãos, ainda que tevesse este labéu, e no descurso desta história se verá como todos mereceram serem juntamente aqui nomeados. Ficando esta fortaleza provida de todo o necessário, partiu Dom Francisco com sua frota a dezasseis dias de Outubro pera o porto de Onor, onde achou Gonçalo de Paiva que ele enviar adiante. O qual tinha tomado cinco zambucos, e porque dous deles traziam seguro de Dom Francisco, por serem daqueles que levavam a vender mantimento à fortaleza de Anchediva, foram soltos, e dos outros houveram trinta mouros e ua soma de arroz pera mantimento da gente. Surta toda a frota na barra do rio, dentro do qual pouco mais de ua 328 légua estava a cidade Onor, mandou Dom Francisco a Fernão Soares com alguns batéis saber se estava el-Rei nela ou os seus embaixadores, por quanto ele vinha comprir o que ficara com eles que quando passasse pera baixo viria àquele porto, pois el-Rei lhe mandara dizer que ele seria ali pera se verem ambos e assentarem paz e amizade. E quando ele per si o não podesse fazer, por estar em outra parte, que mandaria o capitão da cidade e os mesmos embaixadores que em seu nome o fizessem; e que se não tinham recado algum del-Rei sobre este negócio, que fossem alguas pessoas principais a ele, Capitão-mor, pera praticar com eles cousas que faziam a bem da cidade, e os que lá fossem levassem os doze cavalos que seus capitães deram em guarda aos moradores da terra. Tomado Fernão Soares com este recado que levou, trouxe por reposta que el-Rei estava dali 104 longe, como ele sabia, e eles não tinham recado algum seu nem os embaixadores não eram vindos e o capitão da cidade era chamado per el-Rei, o qual não poderia muito tardar; que com mantimentos e refresco da terra, que de mui boa vontade o serviriam, por saberem quanto prazer el-Rei, seu senhor, teria de o eles assi fazerem; e acerca dos cavalos, eles não 344 podiam dar razão deles, pois lhe não foram entregues; e que, segundo parecia, a entrega se fizera a gente vadia, que acudiu à costa onde o zambuco se perdeu, que eles mandariam fazer deligência sobre isso. Dom Francisco, como já estava enfadado del-Rei e de seus artefícios, e, segundo tinha por informação, ele houvera os cavalos, assentou com os capitães que com as caravelas e batéis subissem acima, dar ua vista à cidade, e quando não respondessem mais a propósito do que té li tinham feito, sair nela e lhe dar castigo de ferro. Posta esta ida em efeito, em rompendo a lua pôs-se Dom Francisco em caminho, indo diante em companhia de Dom Lourenço, Fernão Soares, João da Nova e Gonçalo de Paiva, por já saberem o rio.

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Os mouros, como tinham vigia sobre eles, tanto que os sentiram embarcar, despejaram a povoação e subiram-se a um monte que estava sobre ela, onde seguramente se podiam defender. E pera terem mais espaço de o fazer à sua vontade, mandaram um mouro dos honrados do lugar, obra de um tiro de bombarda dele, que entretivesse o Capitão-mor, pedindo-lhe que os não quisesse destruir, porque eles se queriam fazer vassalos del-Rei de Portugal com o tributo que a terra podesse sofrer, e que a eles lhe parecia que o seu Rei seria disso contente, cujo recado esperavam ao outro dia, por lhe já terem escrito sobre isso; e quanto aos cavalos, posto que não eram sabedores de quem os houvera, eles os queriam pagar. Dom Francisco, posto que entendeu que o vinham entreter, como a sua tenção não era mais que atraer aquela gente à obediência de el-Rei, respondeu que, pera segurança do que prometiam, lhe trouxessem logo 329 arrefens que entretivessem a indinação daquela sua gente de armas, senão que a soltaria logo pera irem tomar emenda dos enganos em que andavam. O mouro, lançando-se a seus pés, disse que ele tornava logo com reposta, a qual foi que el-Rei, seu senhor, estava di a quatro léguas, e Timoja, capitão dos armados, e o capitão do lugar eram idos a recebê-lo; que pediam a Sua Senhoria, pois entre eles não havia pessoa que podesse assentar cousa firme, se entretivesse té vinda de cada um daqueles capitães ou del-Rei, que não podiam tardar; e entretanto tivesse os raios de sua potência e os não quisesse estender sobre a vida de tantos inocentes, como o sol que então nascia os estendia sobre os montes da terra. Dom Francisco lhe respondeu que era contente de entreter a fúria daqueles cavaleiros que ali havia armados, os quais sempre foram piadosos a quem se humilhava às armas de seu Rei; porém que não dava mais espaço que enquanto o sol que ele dezia desse com os seus raios na altura do monte que estava sobre o lugar, amostrando-lhe aquele onde se eles acolhiam, isto mais por acerto que por saber o que eles faziam. A qual palavra deu suspeita ao mouro que eram entretidos e que mostrar-lhe o monte com o dedo era remoque disso; e como homem que recebia naquela resposta ua grã mercê, debruçou-se aos pés de Dom Francisco, e, 345 espedido dele, tornou-se ao lugar a grã pressa, mostrando o contentamento que levava do que lhe dissera. Mas como todas estas dilações de ir e vir eram a fim de se acolherem ao monte, e ele estava já bem coberto do sol, que era o termo de sua tornada, começaram os mouros de se mostrar armados ao longo da praia, como quem a queria defender. Vendo Dom Francisco este desengano deles, repartiu aquela frota de batéis em duas capitanias, mandando a Dom Lourenço com sete deles, em que iriam cento e cinquenta homens, que fossem acima do lugar onde apareciam naus e zambucos e lhe posesse o fogo sem sair em terra, senão vindo-lhe a resistir o feito; e ele, Dom Francisco, tomou os mais que ficavam e foi em resguardo de Dom Lourenço, porque sua tenção era queimar aquelas naus e não o lugar, por saber que era da obediência de el-Rei de Narsinga, cujos embaixadores vinham a ele, segundo lhe tinha dito o sobrinho de Gonçalo Gil. Chegado Dom Lourenço ao lugar das naus, era já tanta a gente de redor delas, per toda a praia, com apupadas e alvoroço de pelejar, que mais mostravam ousadia de ofender os nossos, que temor de serem ofendidos. E com este alvoroço e alaridos, que traz a fúria da guerra, de quando em quando lançavam ua nuvem de frechas perdidas em cima dos batéis, que fazia assaz de dano aos nossos; e 104v veo a tanto que foi o Capitão-mor frechado em um pé, a qual frechada lhe deu mais indinação que dor. Porque com ela seguiu avante, dando - Santiago! - onde viu maior soma da gente, que era junto das três naus que 330 eles queriam defender, a que Dom Lourenço per ua parte e Lourenço de Brito per outra punham

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fogo; e quando chegaram a duas que estavam mais avante, ao pé do monte onde os mouros recolheram suas mulheres e filhos, foi a setada e pedrada tanta, que daquela primeira chegada que os nossos fizeram grã parte deles ficaram feridos e caiu morto um remeiro. Mas com todo este dano que os nossos recebiam as naus começaram arder e parte da povoação, o qual fogo neste tempo foi emparo aos mouros e aos nossos, causa de receberem muito dano; porque o fumo e labareda que estava entre uns e outros, por causa do terrenho que ventava, vinha da parte donde os mouros frechavam a sua vontade, e principalmente pedradas que desatinavam os nossos, os quais começaram de se retraer pera a praia. Dom Lourenço, como se tirou da frontaria desta fumaça, tomando caminho ao longo do rio, foi encavalgar a terra mais acima, por lhe ficar o vento nas costas; e como rodeou o fogo que o campo lhe ficou descoberto, tornou sobre os mouros, os quais tinham já um corpo de gente consigo de mais de mil e quinhentos homens, e como se oferecia à morte, por salvar mulheres, filhos e fazenda, que a olho viam estar em gritos no monte, esperavam animosamente a Dom Lourenço e capitães que vinham com ele. 346 No qual encontro se travou entre todos ua mui crua peleja, os nossos por lhe entrar na cidade e eles por a defender; e assi carregou o grande número deles, que vieram alguns dos nossos buscar abrigo dos batéis, por razão da artelharia que varejava e fazia melhor terreiro. Ao qual tempo chegou Dom Francisco, que com sua gente tanto favoreceu estoutra, que tornaram a investir com os mouros; de maneira que começaram de se acolher ao monte, não podendo sofrer a fúria dos nossos, já assanhados do dano que recebiam e derribavam neles. Dom Francisco, porque sua tenção (como dissemos) era não destruir aquele lugar de Onor, por ser de um vassalo de el-Rei de Narsinga, somente queimar as naus da carga e os navios de remos que ali tinha Timoja, capitão dos cossairos, vendo que o fogo lhe tinha já dado vingança destas duas cousas, e que a gente se começava de meter em furor com o vencimento pera ir mais avante, mandou dar às trombetas, que se recolhessem. E porque ao recolher dos batéis soube que pelo rio acima, obra de meia légua, estavam ainda três naus de carga, começou de encaminhar a elas; e, indo já fora da povoação, se apresentou diante dele um mouro, que em sua presença parecia homem honrado. O qual a grandes brados, com aquele espírito de paixão com que vinha ao longo do rio, meteu-se na água até cinta, pedindo ao Capitão-mor que houvesse misericórdia dele, por quanto era natural de Cananor e estava ali com aquelas naus, que eram suas e doutros homens principais, vassalos de Cananor. Dom Francisco, quando o viu assi afadigado, adiantou-se com o 331 seu batel e o mandou recolher dentro, dizendo que não temesse que, se assi era como dezia, suas naus seriam seguras, por ser vassalo del-Rei de Cananor, a quem ele desejava de comprazer polo amor com que tratava as cousas do serviço del-Rei de Portugal, seu senhor; e que outro tanto fizera a el-Rei de Onor, se quisera aceitar sua amizade e não usar de tanta cautela e engano. E finalmente, sabendo certo que o mouro era de Cananor, depois que se recolheu às naus, o espediu em paz. Acabado este feito, já contra a tarde daquele dia, jazendo Dom Francisco sobre ua camilha por causa da frechada que houve no pé, chegou um mensajeiro do capitão Timoja, que lhe mandava pedir licença pera seguramente vir ante ele, e foi-lhe concedida. O qual Timoja, como era homem nobre de bom saber, nesta primeira vista entendeu o Capitão-mor que lhe podia dar mais crédito que aos mouros; porque assi na segurança de vir ante ele como nas palavras de sua chegada e presença de sua pessoa, parecia homem digno de honra, e que convinha ao serviço del-Rei ser recolhido em sua amizade, e por isso o recebeu com gasalhado. E entrando na prática, começou Timoja de pedir perdão de sua vinda ser tam tarde, e que a causa fora ocupações em que o trazia el-Rei de Onor; mas que ele tinha pago esta negligência em perder a maior parte de seus navios, os quais arderam em companhia das naus a que Sua Senhoria mandou 347

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poer fogo. Porém, de qualquer maneira que fosse, ele se vinha apresentar por vassalo del-Rei de Portugal, e 105 que este desejo não era nele novo, mas do primeiro dia que vira portugueses naquela terra; que lhe pedia por mercê houvesse por bem de o aceitar nesta conta, porque ele a que fazia de sua vida era empregá-la em seu serviço. Que quanto às cousas del-Rei de Onor, ele lhe mandava dizer que seu desejo era ser vassalo del-Rei de Portugal, por ter amparo em um tam grande príncipe como ele era; e o reconhecimento desta obediência seria com cousa que a terra podesse sofrer, e que melhor era aceitar ele, Capitão-mor, vassalos leais ao serviço del-Rei de Portugal, com pouco encargo, que revéis tributários; e também lhe pedia houvesse por escusado ele, Rei, per si vir a ele, Capitão-mor, por lho empedir ua certa enfermidade que lhe tolhia caminhar. Que acerca dos cavalos que lhe disseram que requeria aos moradores de Onor, ele tinha sabido nenhum dos que ali viviam ter parte na entrega deles; e contudo ele mandaria fazer exame disso, e per qualquer maneira que fosse os mandaria pagar; e ele, Timoja, oferecia ali sua pessoa em penhor de se comprir esta palavra. E também lhe pedia que tomasse por satisfação de algua culpa que os moradores de Onor podiam ter em tomar armas contra sua bandeira, o dano que por isso receberam; e que não era cousa neles muito estranha, mas grande lealdade, quererem defender a propriedade de seu Rei, sendo ele ausente e 332 não sabendo sua determinação. Dom Francisco a estas palavras respondeu graciosamente, atribuindo muita parte aos méritos da pessoa dele, Timoja; que quanto ao negócio da paz e párias del-Rei de Onor, ele se não podia deter ao presente por lhe convir ir a Cochi despachar as naus da carga, mas que seu filho Dom Lourenço havia de tornar logo de armada per aquela costa, ao qual ele daria comissão pera todas estas cousas. Timoja, posto que das palavras de Dom Francisco ficou contente, não se quis espedir dele, sem primeiro levar provisão sua, em que havia por bem que, assentando seu filho paz com el-Rei de Onor, ele e os mouros de Onor podesse navegar seguramente pelos mares da Índia; e com esta provisão se espediu de Dom Francisco. Do qual Timoja, posto que ao diante havemos de fazer maior relação, polo serviço que fez a este reino, na tomada de Goa, aqui, por lhe tirarmos a infâmia de cossairo daquela costa, diremos somente a causa de suas armadas. Este porto e o de Baticalá, que está adiante sete léguas, com outros desta costa, eram del-Rei de Bisnagá, e este Rei de Onor seu tributário. Os quais portos havia menos de quorenta anos que foram os mais célebres de toda aquela costa, não somente por a terra em si ser fértil e abastada de mantimentos, onde havia grande carregação pera todalas partes, mas ainda era entrada e saída de todalas mercadorias pera o reino de Bisnagá, de que el-Rei tinha grande rendimento. Principalmente dos cavalos da Arábia e Pérsia, que aqui concorriam, como a portos de mais proveito, pola grande 348 valia que tinham em Bisnagá, por estes cavalos serem a principal força com que se ele defendia dos mouros do reino Decão, com que continuadamente tinha guerra, e o cercavam pela parte do Norte e lhe tinham tomado muitas terras. E por causa desta fertilidade da terra e do trato destes portos havia aqui grande número de mouros dos naturais da terra, a que eles chamam naiteás, os quais costumavam comprar este cavalos e vendiam-nos aos mouros decanis, de que el-Rei de Bisnagá recebia grande dano, por lhe fazerem com eles a guerra, e mais da mão dos compradores os que ele havia mister, eram por dobrado preço. Finalmente, como a gente prejudicial a seu estado, mandou ao Rei de Onor, seu vassalo, que matasse nestes mouros os mais que pudesse, porque os outros com temor lhe despejassem a terra. E no ano de Mahamede de novecentos e dezassete, que é da era de Cristo nosso Redentor mil quatrocentos e setenta e nove, houve ua matança destes mouros per todas as terras de Onor e Baticalá, quási em modo de conjuração, em que morreram mais de dez mil; e os outros que ficaram

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feitos em um corpo, dando-lhe os da terra azo pera sua ida, foram povoar a Ilha Tiçuari, que é onde está fundada a cidade Goa, como adiante veremos. Do qual insulto que se fez contra estes mouros, começaram eles, em ódio do gentio de 333 Onor, povoar Goa e avocar ali as mercadorias, principalmente os cavalos, pera os passar ao reino Daquem, a qual obra fizeram em breve por estas cousas andarem navegadas per mãos de mouros, que queriam favorecer suas partes contra o gentio, com que os portos de Onor e Baticalá começaram sentir este dano. E pera obrigarem a que as naus dos cavalos e assi das outras mercadorias, que sempre iam demandar estes dous portos, 105v fossem a eles e não ao de Goa, ordenou el-Rei de Onor quatro capitães gentios, que com ua armada de navios de remo fizessem arribar todalas naus ao seu porto, e àqueles que se defendiam, roubavam e faziam todo o dano que podiam. Da qual armada este Timoja, de que falamos, era Capitão-mor, havido por homem de sua pessoa e que fazia todo o mal que podia aos mouros per aquela costa, e esta foi a causa da armada que ele trazia. E ante que ele viesse a este ofício, já o Rei de Onor tevera outros capitães, pola qual razão sempre entre el-Rei de Onor e os senhores de Goa houve guerra, e daqui vinha estar a fortaleza de Cintacorá provida como frontaria de imigos. Os quais mouros tanto prevaleceram sobre el-Rei de Onor, principalmente depois que o Sabaio foi senhor de Goa, que, tendo el-Rei de Onor a povoação da cidade na boca da barra, a mudou pera dentro do rio, haveria trinta anos; a qual com o fogo que os nossos lhe poseram na entrada de Dom Francisco, haviam de ter trabalho em reformar o queimado; porém maior o teveram, se não entráramos na Índia, porque, com tomarmos Goa, ficou el-Rei de Onor seguro em seu estado. 349 Espedido este Timoja mui satisfeito da honra que lhe Dom Francisco fez; posto que dele naquele tempo não tevesse sabido estas cousas, ao seguinte dia, que era vinte quatro de Outubro, partiu-se ele com toda sua frota via de Cananor, onde chegou. E porque com a sua entrada nesta cidade ele tomou o título de Viso-Rei, de que el-Rei Dom Manuel mandava que se intitulasse, segundo forma da provisão que levava, e enquanto esteve na Índia descobriu e conquistou muitos lugares da costa dela, entraremos no seguinte livro, que é o nono desta primeira Década, fazendo ua universal descripção das terras e portos marítimos, à maneira de roteiro de navegar de todo aquele Oriente. Pera que quando escrevermos os lugares que conquistaram e o caminho que as nossas naus fizeram e os portos que tomaram, seja melhor entendida a relação das tais cousas, posto que em cada ua delas particularmente o faremos, quando for necessário.

LIVRO IX 385 121 387 Capítulo Primeiro. Como o jau Pate Quetir, que vivia na povoação Upi, depois que Afonso de Albuquerque partiu da cidade Malaca, continuando a guerra, mandou tomar certa artelharia, onde mataram Afonso Pessoa, que estava em guarda da tranqueira, donde se causou ir Fernão Peres de Andrade sobre ele, e lhe queimou a povoação. Segundo atrás escrevemos, ao tempo que Afonso de Albuquerque se partiu da cidade Malaca, Pate Quetir, casado com ua filha de Utimuti-rajá, ficara alevantado contra a nossa fortaleza, cometendo alguas vezes, depois que passou o primeiro insulto de queimar a cidade da parte da habitação dela, de a querer outra vez meter a fogo e sangue, com que obrigou a Afonso de Albuquerque, enquanto lá estava, mandar fazer ua tranqueira no cabo da cidade, té entestar em um esteiro, que a vinha cercando pela parte do sertão. Em guarda da qual tranqueira leixou Afonso Pessoa com até setenta homens, e onde se fazia um cunhal que tinha duas faces, ua ao longo do mar, em que começava a povoação da cidade, e outra que fazia a mesma tranqueira; neste canto, por ser lugar de suspeita e vezinho a Afonso Pessoa, mandou pôr ua barcaça com um camelo e outras seis peças pequenas de metal, que tiravam ao longo destas duas faces, da qual era capitão Afonso Chainho. Pate Quetir, porque quando a sua gente vinha cometer a tranqueira recebia mais dano do camelo e peças desta barcaça, por varejarem ao longo 388 dela, que dos espingardeiros de Afonso Pessoa, ua ante manhã, ao tempo que a gente estava mais quebrantada da vigia de toda a noite, per mar de que nossos se não temiam por té então não terem 386 cometido per ali, mandou dous calaluzes, a gente dos quais assi veo calada e súbita, que mataram Afonso Chainho e os que com ele estavam, somente um bombardeiro que tirava com o camelo, que levaram pera se servir dele neste mister. O qual caso aconteceu a tempo que Fernão Peres de Andrade, capitão do mar, era ido ao rio de Muar, cinco léguas além de Malaca, em busca de Laquesamana, Capitão-mor da armada do Rei que fora de Malaca, o qual se metia ali pera com rebates daquela parte ajudar a Pate Quetir; peró daquela ida Fernão Peres não pelejou com ele, por lhe escapar, como capitão astucioso que era. Chegado Fernão Peres a Malaca esta menhã que Afonso Chainho foi morto, achou a cidade posta em grande tristeza por este desastre, e muito mais quando souberam como Laquesamana queria guerrear a cidade e não pelejar com ele, Fernão Peres. Finalmente, logo aquela menhã, posto ele em conselho com os capitães que trazia e com Rui de Brito, capitão da fortaleza, assentaram que ele, Fernão Peres, com sua armada, em que levaria até duzentos e cinquenta homens, e Afonso Pessoa per terra, com os seus setenta espingardeiros, dessem juntamente na povoação de Upi, onde Pate Quetir estava recolhido em ua fortaleza de madeira. Partido Fernão Peres per mar, foi Afonso Pessoa ao longo da praia igual dele com os seus setenta espingardeiros, e em sua companhia mais de quinhentos homens da terra dos de Nina Chetu, e das outras pessoas principais, a que Afonso de Albuquerque tinha dado os mais honrados cargos da cidade. E porque ante de chegar ao lugar Upi se fazia um esteiro, que de maré vazia se passava a pé, era tam má esta passagem por causa da vasa, que se deteve Afonso Pessoa tanto, que, primeiro que ele chegasse, tomou Fernão Peres terra, e porém com assaz perigo. Porque Pate Quetir tinha feito ua cerca de madeira mui forte, com entulho de terra per 121v dentro e cava per fora, e ficava esta parte de dentro tam soberba sobre a cava com o entulho que subia até o meio da madeira, que lhe servia em lugar de um forte muro, com muita artelharia

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assestada onde convinha. E além desta cerca, que era grande, tinha dentro outra pequena, feita a maneira de fortaleza, onde se ele recolhia, a qual era tam apertada do mar e metida na terra, quanto se estendia o circuito da grande, e per derredor era a terra retalhada em esteiros feitos à mão. De maneira que esta fortaleza per sítio era brigosa de cometer, e per repairos muito forte pera entrar; ca a madeira da primeira cerca era de ferro, porque os nossos pau-ferro chamam àquele género de madeira, por razão da sua fortaleza, e ser tam durável, que sol nem água lhe faz dano, a qual comumente chamam barbusano. Somente 389 a segunda cerca, onde estava o apousento de Pate Quetir, era de sândalo branco e vermelho, e paus tam grossos, como se eles nasceram pera aquele mister, e não pera se moer em um almofariz 387 de boticairo pera as mezinhas em que usamos dele. Tam grosso era o cabedal daquele jau Utimuti-rajá, sogro deste Pate Quetir, que as cousas de mercadoria assi as tinha em quantidade, que podia fazer ua cerca de sândalos, como de madeira do mato, que ele tinha por vezinho. E com esta confiança das forças que tinha feito, estava Pate Quetir tam seguro, que lhe parecia cousa impossível poderem os nossos entrar dentro; e porisso, quando lhe disseram que Fernão Peres tomara a terra, polo muito que havia de fazer na entrada da primeira cerca, e depois de enxotar o grande número de gente que consigo tinha, que poderia ser até seis mil almas, não fez muita conta dele, e leixou-se estar, mandando seus capitães que acudissem à praia; os quais, com a grande multidão da gente que traziam, em chegando ao lugar onde Fernão Peres cometeu querer entrar, deram-lhe tanto que fazer, que per um grande espaço o deteveram de fora da primeira cerca, no qual tempo cada um dos nossos capitães trabalhava por fazer algua entrada torneando a cerca, por os mouros acudirem todos ao lugar onde Fernão Peres cometia querê-los entrar. Jorge Botelho, a quem ele tinha assinado um lugar per onde mandou que fosse diante, correndo ao longo da cerca da parte do estreito que Afonso Pessoa passava, foi dar junto da outra segunda cerca; e como era lugar fora da frontaria da ribeira, acertou de achar ali os paus não mui firmes, e tanto esteve aloindo neles, que fez entrada. O qual, cuidando que ia bem aviado, foi-se meter em lugar com que se houvera de perder, e vinte e tantos homens que levava; ca a este tempo Fernão Peres tinha entrada a primeira cerca, e às lançadas ia encurrelando pera a segunda um grande número de mouros, ao encontro dos quais, polos entreter, Pate Quetir saía donde estava. Peró quando ele sentiu nas costas a revolta de outros, com que Jorge Botelho pelejava dentro, por se melhor segurar, não curou de ir de rostro onde ele andava, e foi-se escoando pera aquela parte, onde tinha ua pequena porta pegada no mato, que vinha dar na tranqueira per que se ele esperava acolher, quando se visse naquela necessidade. No qual tempo, veo dar com Jorge Botelho, que andava esgarrado dos outros capitães, um golpe de gente de refresco per ua ilharga em que vinham dous elefantes grandes armados à sua guisa, e ua elefanta pequena, que ao modo de genete vinha diante mui ligeira no cometer. Com a qual chegada Jorge Botelho e os seus se houveram por perdidos, porque tinham mouros de rostro com que pelejavam, e estes tomavam-lhe ua ilharga; de maneira que tomaram por remédio encostar-se a ua parte da cerca, por segurar as costas, e lhe ficarem todolos imigos diante. 390 E quis na sua boa fortuna que, no revolver que fizeram, ficou a elefanta dianteira a jeito que um Francisco Machado, cristão-novo, alfaiate, natural de Torres Novas, encarou 388 nela com ua espingarda e deu-lhe em parte, que deu a elefanta dous urros e duas voltas em redondo, ficando morta em terra, e os outros postos em fugida, e parte da gente que os seguia. E posto que entre eles houve esta revolta, nem por isso ficou Jorge Botelho tam desabafado, que não houvesse mister socorro, por andarem todolos de sua companhia bem sangrados, principalmente Francisco Cardoso, que depois foi almoxarife dos mantimentos do almazém de Lisboa, Bartolomeu Soares, do

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Algarve, mestre do seu navio, e o condestabre dele, e Pedrálvares, do Cartaxo, que fora moço de esporas del-Rei D. Manuel, um dos valentes homens que andaram naquelas partes. Os quais ficaram ali mortos com os mais que andavam naquele trabalho, se lhe não acudira Fernão Peres, que vinha já com a vitória da 122 primeira cerca; e, como entrou na segunda, não somente livrou a eles, mas acabou de enxotar toda a gente que havia nas cercas, que a fio se recolhia no mato, onde Pate Quetir se salvou. Fernão Peres, como se viu senhor da fortaleza, não quis mais seguir os imigos, porque se recolheram eles em parte na espessura do mato, onde lhe podiam frechar toda a gente, sem lhe ele poder fazer dano. Somente àquela parte per que eles podiam tornar à fortaleza, mandou pôr nela fogo pera ficar por defensão entre ele e os imigos, enquanto os nossos a esbulhavam, temendo que, andando neste fervor de esbulhar, tornassem sobre eles;, mas como todos levavam mais cuidado em salvar as vidas que na fazenda que lhe ficava, teveram os nossos largo tempo de prear à sua vontade. E quando foram dar com o camelo que eles tomaram aquela menhã, o qual tinham posto no lugar per onde Fernão Peres entrou, acharam o cepo dele todo cheo de sangue, e segundo se soube, era por cortarem ali a cabeça ao nosso bombardeiro. E a causa foi porque, aparecendo Fernão Peres a tiro dele, mandaram-lhe os mouros que tirasse; e porque o não quis fazer, posto que o ameaçavam com o que lhe fizeram, quis ante salvar a alma que a vida. Além da artelharia e munições, foi tanta a outra fazenda que havia, assi de móvel do serviço de Pate Quetir, como de toda sorte de mercadoria, que não somente se carregou a nossa gente e os mouros e gentios que foram em companhia de Afonso Pessoa, mas ainda outros da cidade que concorreram àquele esbulho. Foram os capitães que se acharam com Fernão Peres neste feito Pero de Faria, Lopo de Azevedo, Vasco Fernandes Coutinho, João Lopes de Alvim, Jorge Botelho, de Pombal, e Afonso Pessoa, que já nomeámos, e tanto o número dos mouros mortos, que se não contaram; e se dos nossos não houve algum, de feridos foram assaz, porque o feito foi mui bem cometido e pelejado, e um dos honrados que em Malaca se fez, com que Pate Quetir ficou mui quebrado.

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389 122 391 Capítulo II. Como Fernão Peres de Andrade, Capitão-mor do Mar, foi cometer a fortaleza de Pate Quetir, e, depois de ter vitória dele, ao embarcar, lhe mataram gente nobre; e do que passou com Laquesamana, Capitão-mor do Mar del-Rei Mahamude. Pate Quetir, como era homem muito industrioso e sabia que os nossos mui poucas cousas cometiam à borda da água, que não levassem na mão, polo que lhe vira fazer na tomada de Malaca, tinha dentro daqueles matos, nos lugares a que eles chamam duções, a maneira de nossas quintãs, recolhido suas mulheres e o mais principal de sua fazenda, e assi as pessoas nobres que estavam com ele. Porque a estes duções estava ele mui confiado que os nossos não podiam ir; ca não tinham mais largo caminho do que é ua vereda, indo um homem ante outro, por tudo o mais ser mui espesso de áspero arvoredo. E tanto que houve esta quebra, por se tirar da vezinhança de Malaca, por a sua povoação (como escrevemos) ser arrabalde dela, onde os nossos podiam ir per terra pelejar com ele, e mais os juncos que esperava da Jaua com mantimentos haviam logo de ser tomados da nossa armada - e sobretudo geralmente os mouros tem por grande agouro tornar a povoar o sítio onde ua vez foram desbaratados - foi-se mais abaixo obra de ua légua, contra o Cabo Rachado, fazer de novo outra fortaleza de madeira dentro em ua enseada onde havia melhor disposição, assi pera se defender, como pera recolhimento dos juncos que lhe viessem com provimento. E como isto determinou, escreveu a el-Rei Mahamude, que fora de Malaca, dando-lhe conta da fortuna que tevera naquela entrada que os nossos fizeram na sua povoação, e a causa donde procedera irem a ele, e a mudança que fazia de sua vivenda, e as razões porquê, pedindo-lhe, pois estes trabalhos que padecia eram polo servir e sustentar sua opinião, mandasse a Laquesamana, seu Capitão-mor do Mar, que não saísse dos dous estreitos - o de Sabão e o de Cingapura - e às vezes desse ua vista no rio de Muar. Porque, com andar per estes lugares, fazia duas cousas: a ua não vir junco per cada um daqueles dous estreitos que não fosse tomado per ele, pois que traziam 122v a Malaca mantimentos e mercadoria a seus imigos, e mais os juncos, que ele, Pate Quetir, esperava da Jaua, viriam mais seguros de nossas armadas; e a outra, daria causa a que elas acudissem àquela parte, e entretanto teria ele tempo pera fazer sua fortaleza 392 sem estar sempre com a lança na mão, e também podia dar um salto em Malaca, como se fez na tomada da barcaça com a artelharia, sendo a nossa armada no rio de Muar. Rui de Brito Patalim, capitão da fortaleza de Malaca, porque ua das cousas em que mais trabalhava 390 era em trazer entre estes imigos pessoas que soubessem parte de qualquer movimento deles, e nestas inteligências e avisos gastava muito, veo saber parte desta carta de Pate Quetir; e porém foi a tempo que tinha ele já feito a sua fortaleza de madeira no lugar que elegeu, que foi acabada em poucos dias com a muita gente que tinha. E também alguns dos juncos de mantimento que esperava da Jaua eram já vindos; os quais, tanto que chegaram e foram despejados, enquanto lhe não fazia tempo pera se tornar, ordenaram-se logo pera se defender, temendo nossa armada. E porque o lugar per onde os nossos podiam cometer entrar na fortaleza era de vasa, e a testa do seco da terra soberba a modo de alcantilada, posesse os juncos com as popas em seco, um junto do outro, de maneira que ficavam um baluarte com muita artelharia que tinham. Sabendo Rui de Brito e Fernão Peres como Pate Quetir já estava fortalecido e provido de

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mantimento, e que isto respondia ao que tinham sabido da carta que deziam ele ter mandado a el-Rei Mahamude, houveram que todo o mais dela era verdade, e que se urdia ua tea trabalhosa pera desfazer ou cortar, se fosse mais avante. Finalmente, havido conselho com todolos capitães, assentaram que Fernão Peres fosse cometer aquela força e trabalhasse por a desfazer; e prazeria a Deus que lhe seria mais leve de tomar, do que foi a outra que lhe queimou, com que acabariam de destruir este jau, que os inquietava. Partido Fernão Peres com todolos capitães a este feito, quando viu o sítio e modo como os juncos estavam, e que cometê-los de rostro era cousa mui perigosa, afastou-se um pedaço da frontaria deles e saiu mais abaixo com toda sua gente em um corpo. Ao encontro do qual, depois que foi em terra (porque de indústria, ao desembarcar, não o quiseram empedir), saíram uns poucos de jaus ao modo de cilada de dentro de um palmar, os quais, tanto que os nossos começaram ferir, foram-se recolhendo pera o palmar, mostrando temor. E como os teveram bem afastados da ribeira e engodados na vitória, saiu do palmar um corpo de gente grossa, e assi apertou com os nossos, que os fizeram vir recolhendo, té que, passado aquele primeiro súbito, tornaram a eles já em modo de vingança, com que os fizeram logo recolher, deles ao palmar e outros à fortaleza. A qual, per o circuito de fora, além de ser terra alagadiça e retalhada em esteiros à mão, per dentro também era feita um laberinto com levadas, cavas e paliçadas de madeira, per onde os mouros andavam tam leves, como 393 per um campo mui despejado, e os nossos, carregados de armas, se queriam dar um salto, caíam no meio da vasa. Fernão Peres, depois que à ponta do ferro despejou um terreiro da primeira cerca, quando entrou na segunda, onde havia estes impedimentos, não quis meter a gente naquele laberinto, e mandou pôr fogo a um lanço da 391 fortaleza, e que se recolhesse, por não vir o fogo e lhe fazer algum dano. E andando já o fogo ateado nela, e assi em uas lancharas metidas em um esteiro, acertou de se embarcar com Rui de Araújo em um parau tanta gente, que não pôde nadar, e como a maré vasava, ficou envasado na vasa. Os mouros, como vinham ladrando trás os nossos (por este lugar ser alcantilado), vendo de cima como os do parau estavam presos, começaram de frechar e alancear neles, sem perder lança nem frecha. Fernão Peres, que estava mais embaixo, já embarcado pera vir do mar pôr fogo aos juncos, quando viu o que padeciam estes do parau, mandou remar contra eles, bradando aos outros paraus, que estavam pouco carregados, que acudissem àquele; chegando os quais, foi tamanha a revolta dos que estavam no parau pera se passar a eles, que se metiam bem pela água. Rui de Araújo, cujo era o parau, querendo-se também passar aos outros, travou-lhe da saia de malha que trazia um tolete do remo, com que foi retido pera sempre; ca, neste desempeçar, veo ua lança de arremesso, que o matou, e foi causa de morrerem outros, porque cobraram os mouros tanto ânimo neste embaraçar dos nossos, que desceram abaixo, metendo-se na água às lançadas com eles. Na qual revolta morreram estes capitães: Cristóvão Mascarenhas, António de Azevedo, Jorge Garcês, filho do secretário Lourenço Garcês, e assi mataram Cristóvão Pacheco, e outros té número 123 de doze pessoas. O qual desastre favoreceu tanto a Pate Quetir, que di em diante começou de querer per terra cometer a tranqueira da cidade, onde estava Afonso Pessoa, ao qual Rui de Brito, per morte de Rui de Araújo, proveo de feitor, por os trabalhos que neste lugar tinha levado. El-Rei Mahamude, como soube de Pate Quetir esta vitória que houvera, começou de por em obra o que lhe ele per sua carta mandara pedir, acerca de o favorecer com a armada de Laquesamana per os lugares que lhe apontara, o que té então não fizera, parecendo-lhe que ficara daquela feita que Fernão Peres lhe queimou a povoação Upi tam quebrado, que não levantaria mais cabeça. E não passaram muitos dias depois da morte destes nossos, que Laquesamana não veo ao rio de Muar, onde Fernão Peres determinou de o ir buscar; ca, pelo que tinha sabido dos avisos que mandavam a Rui de Brito, sabia ser ele vindo ali pera favorecer a Pate Quetir.

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Porém Laquesamana, como era sabedor na guerra e não queria haver rompimento com Fernão Peres de batalha de pessoa a pessoa, somente andar ladrando derredor daquela cidade e pô-la em cerco de lhe não virem mantimentos, tanto que teve aviso que ele partia de Malaca, saiu-se do rio de Muar pera se meter per o Estreito de Cingapura; ca, por não ser sabido inda dos 394 nossos, isto lhe faria não ousarem de entrar per ele. Mas não se pôde tam prestes acolher, que Fernão Peres o não alcançasse junto de um esteiro largo e que entrava muito pola terra, onde se ele, Laquesamana, recolheu, pera ter favor de algua gente que havia em terra. E tanto que foi 392 dentro no lugar melhor desposto pera defender, varou quási em seco todas suas lancharas e calaluzes, que seriam mais de cinquenta peças, todos navios sutis, que demandam pouco fundo, a maneira de fustas e bargantins, parte dos quais estavam com as proas em terra e o mais na água, assi juntos em bastida, que pareciam um folhado de madeira, que se podia andar por cima, todos com sua artelharia posta em ordem. E arredados destes, mandou por alguas lancharas das maiores, atrevessadas, que emparassem as outras, e dar-lhe furos, com que se encheram de água, pera que, quando os nossos o viessem demandar, não podessem chegar com esta defensão. Fernão Peres, quando o achou posto nesta ordem, vendo que lhe não podia chegar com as lancharas alagadas, as quais ficaram a maneira de recife de pedras com canais retorcidos, pera os nossos batéis se atravessarem, pôs-se com um navio e ua galé, de que eram capitães Jorge Botelho e Pero de Faria, um pouco de largo, temendo que lhe ficassem em seco, por começar a maré a descer, e com a mais armada, que tudo eram batéis e outros navios de remo dos da terra, chegou-se às lancharas, que estavam alagadas. E posto que logo em chegando não as pôde passar, tanto que a maré as começou descobrir, e os nossos viram per onde podiam andar de uas em outras, foram dar com as que estavam por fortaleza; na chegada dos quais houve tanto tiro de ua e da outra parte, que andava o ar e o mar coalhado de setas e frechas. Porque, além de Laquesamana trazer consigo muita gente, a maior parte dela jaus, homens mui atrevidos em cometer e animosos em esperar, da terra concorreu ali muita gente; e posto que se não metesse nas lancharas de Laquesamana, por não poderem caber nelas, era tam perto deles aos nossos, que com as frechas iam frechar a gente dos navios que estavam afastados. A artelharia dos quais não tirava de fora, temendo que poderiam fazer dano aos nossos dos batéis, que andavam envoltos com os imigos, e tam travados, que não havia entre eles mais espaço, que o comprimento de arma com que se feriam. Peró, como a maré era já tanta parte dela vasia, que estes nossos que pelejavam, temeram que podiam ficar em seco entre as lancharas alagadas e as da terra com que contendiam, alargaram-se delas pera o mar, trazendo alguns calaluzes dos imigos, que poderam tomar, aos quais posesse fogo entre as lancharas alagadas, por se atear nelas; mas os mouros o apagaram logo, e com este despejo a nossa artelharia começou a jogar. A qual lhe fez tanto dano, que, se não sobreviera a noite, muito mais houvera de lavrar neles do que lavrou o ferro dos nossos em espaço de três horas, que mão por mão pelejaram com eles; posto que a peleja foi tam crua, que houve dos nossos muitos feridos. 395 Laquesamana, posto que também teve feridos e mortos, todo seu cuidado daquela 393 noite foi ordenar-se como poderia escapar de não pelejar outra vez; porque, nas três horas da peleja daquele dia passado, experimentou que vinda a menhã, tornando Fernão Peres a cometê-lo, não lhe ficaria homem vivo, vendo que tanto dano lhe fazia o ânimo dos nossos em 123v cometer, como dos seus jaus em esperar, oferecendo-se à morte como selvagens por se vingar. Finalmente, com a muita gente que tinha, aquela noite, assi os navios alagados, como por alagar, ele os varou todos em terra; e diante deles com madeira e terra fez um repairo tam forte, como o podera fazer muito de vagar em três ou quatro dias. Fernão Peres per sua parte também, curados os feridos, à maneira de pescador que atravessa

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o rio com sua rêde, por não perder o peixe que corre, com todolos navios que tinha de terra a terra atravessou todo o rio, temendo que Laquesamana aquela noite não se lhe fosse pera fora. Porém quando amanheceu, que ele viu a maneira da força que ele, Laquesamana, tinha feita, ficou espantado, e teve-o por homem de grande espírito e indústria: ca, não somente fez cousa que havia mister muita gente e munições pera a cometer, mas ainda foi tam caladamente, que de o não sentirem cuidava ele, Fernão Peres, que fugira pelo rio acima com parte da frota. E o que ainda lhe deu presunção desta ida foi porque, ante menhã, acabada a obra, como quem repicava em salvo, mandou Laquesamana tanger todolos seus sinos, que são de metal ao modo de bacias grandes, e delas tais, que o seu tom, quando são muitas em ua frota, se ouvem no mar ua légua. A qual alvorada Fernão Peres cuidou que dava a gente da terra àquele tempo per indústria dele mesmo, Laquesamana, porque cuidassem os nossos estar ele ali, e que de seguros disso não o iriam cometer senão menhã clara, e ele com isto teria mais tempo pera remar pelo rio acima. Vendo Fernão Peres o modo que este capitão teve no recolher-se naquele rio, furtando a volta a Jorge Botelho, que cuidava que, quando entrou primeiro nele, lhe tomava adiante pera se não poder acolher per ele acima, e assi a indústria tam incontinente que teve no alargar das suas lancharas por lhe não chegarem, e o que fez aquela noite, teve conselho com os capitães, e assentaram não ser a força que ele tinha feito cousa pera cometer, por não terem gente nem munições pera isso, e que aventuravam perderem-se todos, e mais quantos ficavam em Malaca, pois a vida dos que lá estavam pendia da defensão deles, fazendo conta de o tornar a buscar apercebidos de outra maneira, pera o cometerem em qualquer parte que se recolhesse. Com a qual determinação, por espedida, mandou Fernão Peres esbombardear-lhe os navios per todo aquele dia, e, de noite, partiu-se pera Malaca, onde chegou.

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394 123v 396 Capítulo III. De alguas cousas que Fernão Peres fez e passou; e da grande fome que ouve em toda a terra; e como, com o socorro que Afonso de Albuquerque mandou da Índia, Fernão Peres destruiu Pate Quetir, o qual fugiu para a Jaua. Pera os nossos não ficarem magoados e meio injuriados de leixarem aquele imigo sem maior castigo, e mais glorioso polo não cometerem naquela força que fez, permitiu Deus que achassem em Malaca três navios que eram vindos da Índia com toda a munição e provimento necessário àquela fortaleza, e com cento e cinquenta homens, dos quais navios eram capitães Francisco de Melo, Jorge de Brito e Martim Guedes. O qual socorro, que Afonso de Albuquerque mandava, animou tanto a todos, que, se podera ser logo aquele dia, os que vinham com Fernão Peres quiseram tornar, pera comprir o que assentaram com ele de tornarem mais providos do que iam pera castigar aquele mouro que ficava soberbo. Porém como Pate Quetir naquele tempo o andava mais polos nossos capitães que morreram na sua povoação, e tanto que Fernão Peres partiu em busca de Laquesamana, não somente mandou per terra dar rebate de noite na tranqueira de Afonso Pessoa, mas ainda com balões, que são barcos sutis, mandava entrar os esteiros que cercam a povoação da cidade daquela parte, a pôr fogo e prear qualquer pessoa que podiam haver à mão, quis Rui de Brito Patalim, primeiro que Fernão Peres tornasse em busca de Laquesamana, ter geral conselho que cousa convinha mais fazer-se por então, conformando-se também com as cartas que Afonso de Albuquerque escrevia da Índia. A substância das quais era que em nenhua outra cousa entendessem, senão em segurar a fortaleza daquela cidade; e que, enquanto podia correr perigo de per algua maneira poder ser tomada, ou a povoação da cidade de a queimarem, ou destruírem de maneira que os moradores a despovoassem e se fossem 124 viver a outra parte, per nenhua necessidade o Capitão-mor do Mar, Fernão Peres, se apartasse dela. E que, para ir aos estreitos de Sabão e Cingapura em favor das naus, que costumavam vir à cidade com mercadorias, e assi contra Laquesamana, Capitão-mor del-Rei Mahamude, ou a outra qualquer necessidade, ele mandava aqueles três capitães, e gente, e mais oficiais pera corregerem quaisquer navios e fazerem seis galés, a qual armada se podia repartir em duas partes - ua pera ficar em guarda da cidade e a outra parte pera acudir ao de fora. Assi que, havendo respeito a estas cousas, por alguns dias não se entendeu em outra senão em repairar os navios que tinham necessidade de corregimento, e consertarem-se alguns navios da terra que supriram enquanto não havia galés. No meio do qual tempo, 395 assi por causa da gente que veo da 397 Índia, como por não virem os juncos da Jaua, que só iam trazer mantimentos à cidade, os quais Laquesamana tomava no caminho, começou ela de se ver em tamanha necessidade deles, que vieram os nossos a não comer mais que ua vez no dia, e isto muito pouca quantidade de arroz cozido em água, sem mais outra cousa. E entre os mouros e gente da terra era tamanha, que a gente pobre se achava morta pelas ruas, e os mais deles, se não morriam à fome, eram mortos per as tigres do mato, onde esta pobre gente ia buscar algua fructa agreste e talos de ervas pera comer, a qual necessidade também Pate Quetir padecia em sua povoação. Finalmente, em todos era tam grande fome, que ela veo fazer trégua antre ele e os nossos, de maneira que cada um andava mais ocupado em buscar de comer, que pelejar; e o que causou também esta necessidade foi por não serem os meses de monção e tempo pera os irem buscar à Jaua, porque toda a terra vezinha de Malaca e ela

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de lá se mantém. Vindo este tempo que podiam sair, assentou Rui de Brito com Fernão Peres que repartisse a armada que tinha em duas partes - a dos maiores navios ficasse em guarda da cidade, segundo Afonso de Albuquerque escrevia, e a outra, de navios de remo, levasse ele, e fosse fora do Estreito de Cingapura em busca de alguns juncos de mantimentos, por ser o tempo que se eles navegam da Jaua. Assentada esta ida, partiu Fernão Peres com dez ou doze navios dos redondos, capitães Jorge Botelho e Martim Guedes, e Pero de Faria na sua galé, e os outros eram navios de remo da terra, levando consigo o tamungo da cidade, que era um mouro principal, homem fiel, e que por tal, lhe dera Afonso de Albuquerque aquele ofício de tamungo, que é quási como patrão da ribeira. Porque, como era homem que sabia bem a navegação daquela parte, e Fernão Peres havia de entrar pelo Estreito de Cingapura, que não era mui navegado, convinha-lhe quem o levasse per lugar sem perigo, ca este estreito o é tanto, que em parte as entenas da nau vão dando pelas ramas do arvoredo que está ao longo da água. E em verdade este lugar a que eles chamam estreito é mais esteiro que corta ua ponta de terra daquela parte de Malaca que algum estreito notável; e o outro de Sabão, que vai ao longo da Ilha Samatra, é muito maior, e por isso mais navegado. E ante que Fernão Peres chegasse a outro, indo per um canal que vai dar no de Sabão, como Pero de Faria ia diante na sua galé, foi dar com um junco grande que estava surto, o qual entreteve às bombardadas, té chegar toda a frota, com que se ele rendeu. Entrado este junco, soube Fernão Peres do capitão dele que ia pera Pate Quetir carregado de mantimento, armas e munições; e porém não soube então como vinha ali um filho de Pate Quetir, e que ele fizera que se rendesse. E a causa foi porque esperava de se salvar per manha, vendo que o não podia fazer per armas. Fernão Peres, como 396 tinha a presa que desejava, que eram mantimentos, e mais tomados a seu imigo, quis logo segurá-los; porque, como sabia que os jaus tem por costume, quando se vem tomados, alagam parte da nau, por 398 não cair neste perigo, veo a cair em outro maior, com que houvera de perder a vida: e foi que, baldeados os mantimentos em o navio de Martim Guedes, em que ele estava, e no de Jorge Botelho, recolheu consigo o capitão e principais pessoas que andavam no junco, a que mandou tomar armas, e permitiu que andassem soltos pelo navio. Os jaus, como é gente desesperada e que não temem que os matem depois que cometem o crime que eles desejam cometer, com crises pequenos, arma a maneira de nossas adagas, que lhe ficaram secretas, determinaram de matar quantos podessem em o navio, e primeiro que todos o capitão. Um dos quais, a que era cometido este feito em começar nele, não esperou mais que vê-lo apartado da gente; e estando Fernão Peres encostado ao propau do navio, per detrás deu-lhe com o cris pelas costas; peró 124v quando veo a segunda, que Fernão Peres teve tempo de se resguardar dele, acudiu gente não somente sobre este, mas sobre os outros que começavam per o navio de fazer sua obra. Finalmente, sem fazerem mais dano, foram presos deles, e os outros se lançaram a nado, e salvaram-se em terra, por ser perto dela. Acabado este alvoroço, e Fernão Peres curado, mandou meter a tormento o capitão do junco, que ficou tomado com os outros, que se não poderam salvar a nado, e fez-lhe perguntas com que fundamento cometiam aquele feito, e se eram da Jaua partidos mais juncos em favor de Pate Quetir, e outras cousas que convinham pera sua informação. O qual respondeu que seu fundamento era a natureza dos jaus matar quem os cativa ou a pessoa de que recebem mal; e quanto a se eram partidos juncos da Jaua, em sua companhia vieram três, os quais ficavam no Estreito de Cingapura, donde não haviam de partir té verem recado seu, porque ele vinha diante em maneira de descobridor, temendo podê-lo topar; e que entre aqueles tomados estava um filho de Pate Quetir. Fernão Peres, tanto que teve esta informação, mandou arrecadar estes cativos e partiu-se

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com aquela presa pera Malaca, e di mandou Jorge Botelho e Lopo de Azevedo em seus navios buscar os juncos onde lhe dissera o capitão jau, os quais eles tomaram levemente e trouxeram à cidade. E neste mesmo tempo chegou de Pegu outro junco de mantimentos, no qual vinha Gomes da Cunha, que Afonso de Albuquerque lá enviou assentar paz com o Rei da terra, notificando-lhe a tomada de Malaca, e que seguramente podia mandar seus juncos e vassalos a ela pera o negócio do comércio, como sempre fizeram. E porque com a tomada destes juncos, que vinham pera Pate Quetir, ele ficou mui quebrado e com muita dor por 397 causa do filho que lhe cativaram (posto que di a poucos dias o mancebo fugiu da prisão e se foi para ele), e os nossos ficaram com as forças restituídas da fome passada, assentou-se em conselho entre todolos capitães, que, ante de Pate Quetir se prover, dessem sobre ele, porque, com ele destruído, perderia el-Rei Mahamude a esperança que tinha de cobrar Malaca com sua ajuda, e Laquesamana não viria dar os rebates que dava. 399 Partido Fernão Peres com toda a sua frota e a mais gente que pôde levar, e outra per terra, pela maneira que Afonso Pessoa foi duas vezes, deu-lhe Deus tal vitória, que mataram muita gente a Pate Quetir e queimaram-lhe aquela força, e ele acolheu-se ao mato com mui poucos, e desta feita ficou tam destruído e quebrado no ânimo, que, não ousando esperar ali mais, em dous juncos que ali estavam da Jaua se partiu pera lá com determinação de não tornar mais a Malaca; e no modo de sua partida teve tanto segredo e astúcia, que havia três dias que era partido, sem se saber em Malaca. E parecendo-lhe a Fernão Peres que o podia alcançar, foi trás ele té vasar fora do Estreito de Sabão, per onde ele havia de fazer seu caminho, e em lugar dele topou com Laquesamana, que andava ali esperando os juncos que vinham per Malaca; peró não houve entre eles peleja, posto que Fernão Peres o seguiu ua tarde toda, peró que, com a vinda da noite, Laquesamana escapuliu per entre aquelas ilhas, sem mais dele haverem vista. Vendo Fernão Peres que andar lá mais dias era tempo perdido, e mais governando pela pilotagem dos mouros da terra, porque ainda os nossos pilotos não tinham navegado daqueles estreitos por diante, tornou-se pera Malaca, onde achou quem lhe contou daquela navegação, que foi António de Abreu, que Afonso de Albuquerque tinha mandado às Ilhas de Maluco (como escrevemos). A viagem do qual, e do que ele e Francisco Serrão, que ia em sua companhia, passaram, adiante faremos relação, quando começarmos a tratar em o descobrimento das Ilhas de Maluco, onde eles eram enviados. E segundo o tempo em que ele, António de Abreu, veo, que foi andando Laquesamana atravessando os mares per fora das bocas daqueles dous estreitos Cingapura e Sabão - e assi ser partido Pate Quetir pera a Jaua, pelo qual caminho ele, António de Abreu, vinha, foi grã dita não o toparem, e muito maior partir-se naquele mesmo tempo Pate Quetir; porque, se dilatara sua partida vinte dias, se Deus milagrosamente não defendera Malaca, houvera-se de perder, polo que sucedeu com ua grossa armada que veo da Jaua, como se verá no seguinte capítulo.

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398 125 400 Capítulo IV. Em que se descreve a Ilha Jaua; e como um Príncipe dela, chamado Pate Unuz, fez ua grossa armada pera vir sobre Malaca; e o que os nossos sobre isso fizeram. A terra Jaua é ua ilha que está ao Oriente de Samatra, tam vezinha a ela que entre ambas fica um estreito, que será de largura até quinze léguas. O lançamento desta Ilha Jaua é quási pelo rumo de Levante e Ponente; tem a primeira ponta ocidental em altura de seis graus do polo do Sul e em sete e meio a outra oriental, e aqui faz outro boqueirão, porque se vão continuando a esta primeira ua corda delas grandes, e per grande espaço contra o Oriente. Terá de comprimento esta Ilha Jaua cento e noventa léguas, e da largura não temos certa notícia, por aquela face do Sul não ser ainda per nós navegada; e segundo fama dos naturais, toda a costa daquela parte, por razão do grande golfão do mar do Sul, é de poucos portos, e estes que habitam a parte do Norte não se comunicam com o gentio daquela costa; ca, per meio da ilha, ao comprimento dela, corre ua corda de serrania que os empide, e todavia dizem que a largura desta ilha será o terço de sea comprimento. Geralmente é povoada de povo idólatra, a que chamam jaus, do nome da terra, gente da mais polícia daquelas partes, a qual, segundo eles dizem, veo ali povoar da China; e parece dizerem verdade, porque no parecer e no modo de sua polícia imitam muito aos chis, e assi tem cidades cercadas, e andam a cavalo, e tratam o governo da terra como eles. Porém, depois que mouros de Malaca navegaram a ela, de mercadores pouco e pouco se fizeram conquistadores, tomando posse das cidades portos de mar, com o que o gentio ficou sem navegação; e por causa da guerra que lhe os mouros faziam, começaram de se recolher pera dentro da terra, ao pé da serra que dissemos. E entre alguns mouros da mesma linhagem dos jaus (porque, per doutrina dos malaios, se converteram muitos jaus), ao tempo que nós tomámos Malaca, era o principal senhor da cidade Japara um per nome Pate Unuz, o qual depois se fez Rei da Sunda, como veremos adiante. Este, como era homem poderoso e aparentado, e que per modo de cossairo se tinha feito senhor da terra, tomou pensamento de vir sobre a cidade Malaca, vendo que a maior parte dos moradores dela eram jaus, em os quais ele havia de ter muito favor. Finalmente, com este pensamento começou de mandar fazer um junco, que seria em carga do tamanho de ua das nossas naus de quinhentos tonés, ao qual mandou lançar outro costado, e sobre este outros até número de sete, com um certo betume de cal e azeite entre costado e costado, a que eles chamam lapes, com que 399 o junco ficou de 401 três palmos de grossura, de maneira que, em qualquer parte que o posessem, podia servir de um forte baluarte. Fazendo ele, Pate Unuz, fundamento que quando na primeira chegada, com a muita gente que esperava levar, não podesse tomar a cidade, com este junco em modo de fortaleza se leixaria estar sobre ela, defendendo não entrar nem sair cousa algua, com que a tomaria à fome; e além deste junco fez outros navios, na qual obra se deteve sete anos. E quando soube que Afonso de Albuquerque com menos armada e gente do que ele esperava ]evar, tomara a cidade, cobrou maior ânimo, concebendo esperança de nos lançar fora, porque os mesmos malaios em ódio nosso seriam em sua ajuda. E porque já com esta cor de nos lançar de Malaca podia encobrir seu principal intento, começou de ter alguas inteligências com os principais jaus que viviam em Malaca, principalmente com Utimuti-rajá em quanto viveu, e depois com Pate Quetir e Suaria Deva, que eram os mais poderosos, os quais liberalmente lhe fizeram oferta de suas pessoas, e o feito mui leve de acabar, apressando-o muito que viesse a ele. Finalmente, ele se fez prestes com noventa velas, de

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que a maior parte eram navios pequenos de remo de toda sorte, e os mais juncos, em que entravam, além deste notável que dissemos, outros mui grandes, assi como um em que vinha um jau mui poderoso senhor da cidade Polimbão, que era a segunda pessoa desta armada, ao qual chamavam Timungão. E em outro junco vinha um seu sobrinho, que, por ser homem 125v de sua pessoa, era temido naquelas partes, e assi outros jaus principais, trazendo todos voz que nos vinham lançar da terra, sem algum deles saber a tenção de Pate Unuz, sendo eles convocados per ele com a voz que todos traziam, na qual armada (segundo fama), viriam doze mil homens, com muita artelharia feita na Jaua, por serem grandes homens de fundição e de todo lavramento de ferro, e outra que houveram da Índia. A nova da vinda deste Pate Unuz, posto que se encobriu muito tempo aos nossos, foi sabida em Malaca na entrada de Janeiro do ano de quinhentos e treze, a tempo que Fernão Peres estava de todo prestes pera se partir pera a Índia com as três naus carregadas da armada de Diogo Mendes de Vasconcelos, que, por serem de armadores, per ordenança de Afonso de Albuquerque (como atrás fica), haviam de vir a este reino com carga de especearia. Sobre o qual caso, sem ter mais notícia do número e poder das naus, somente por lhe certificarem alguns mercadores que tinham nova da vinda deste jau em ajuda de Pate Quetir, Rui de Brito e Fernão Peres, com todolos capitães em conselho, assentaram ser serviço del-Rei ir Fernão Peres com toda a armada esperá-lo ao Estreito de Sabão, onde se podia melhor ajudar dele. Partido Fernão Peres a este caso, não achou em todo o estreito nova nem notícia de tal armada; e porque os nossos sempre andavam 400 suspeitosos com as novas que davam os mouros, por as mais vezes serem falsas, tornou-se 402 Fernão Peres a Malaca acabar de se aperceber pera a Índia. E havendo cinco ou seis dias que ele era vindo daquele estreito, tendo já fora toda a artelharia que levava da fortaleza e estando quási de todo carregado, e de verga de alto pera fazer sua viagem, eis aqui aparece contra o Cabo Rachado, que é de Malaca obra de três léguas contra a Índia, todo o mar coalhado de velas da armada de Pate Unuz. O qual de indústria, por dar de súbito sobre a cidade, tanto que passou o Estreito de Sabão, foi-se cosendo com a terra de Samatra, que está defronte de Malaca, metendo-se per entre as ilhas por se encobrir, té que veo sair por o rio chamado Ciaca, e dali atravessou a terra de Malaca, e descaindo com as águas, vinha demandar a cidade per aquela parte, por segurar os nossos; ca, se fosse visto, cuidariam que eram velas da Índia, que fica daquela parte do Ponente, onde ele aparecia, e não da Jaua, que jaz ao Levante de Malaca. Vista tam grande frota, entenderam os nossos ser Pate Unuz, e logo em continente teveram os capitães conselho, no qual, entre Rui de Brito, capitão da fortaleza, e Fernão Peres, houve alguas palavras, dizendo Fernão Peres a Rui de Brito, que se queria meter na nossa armada como pessoa principal, que ele se fosse a sua fortaleza, de que tinha dado menage, e leixasse a ele usar de seu ofício de Capitão-mor do Mar. Todavia, naquele primeiro conselho, como quem acode a um fogo geral, porque o tempo não dava lugar a mais, todos se armaram e meteram em os navios - Rui de Brito em a galé de Pero de Faria, e Fernão Peres na sua nau, leixando em guarda da fortaleza Aires Pereira, alcaide-mor dela, Pero Pessoa, feitor, e António de Abreu, por doente, que havia poucos dias que viera de descobrir Maluco, e com eles até vinte homens. Seriam as velas que se aperceberam contra Pate Unuz dezassete, de que eram capitães Fernão Peres, João Lopes Alvim, Lopo de Azevedo, Francisco de Melo, Jorge de Brito, Joanes Impola, senhorio da nau em que ia, Jorge Botelho, Martim Guedes, Vasco Fernandes Coutinho, Cristóvão Mascarenhas e Pero de Faria, com quem se meteu Rui de Brito e Tuão Mahamede, tamungo de Malaca, homem fiel e cavaleiro, em um junco da China seu, na qual frota iriam até trezentos e cinquenta portugueses e alguns naturais da terra, homens havidos por fiéis. Partida esta frota contra onde vinha Pate Unuz, meteu-se um pouco ao mar por lhe darem a ele a parte da terra, por verem que se cosia com ela, como quem não queria perder aquela posse,

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levando ante si abrigados da nossa frota todolos navios meúdos. Porém como viu o navio de Jorge Botelho, que, por ser pequeno e veleiro, se adiantou das outras velas, espediu de si obra de vinte navios de remo, que lho viessem tomar; mas eles acharam tal salva nele, que se 401 tornaram a recolher, com o qual temor Jorge Botelho cobrou mais ânimo de se chegar a eles, té vir a tiro dos juncos mais principais. Na esteira do qual, por se remar bem, foi a galé de Pero de Faria, e assi serviram ambos com artelharia ao junco de Pate Unuz, que começou ele de se abrigar com os juncos que levava junto de si, té que chegou o corpo da 403 nossa 126 armada, que fez maravilhas neles, não somente com os pelouros, mas ainda com as rachas da madeira que faziam nos juncos, que matou muita gente; sem em todo este tempo Pate Unuz tirar, somente levar sua armada com um esquadrão cerrado ao longo da terra, té que, em se cerrando a noite, tomou o pouso defronte da povoação Upi, e parte ao longo da cidade, como quem queria ter comunicação com ela, e os nossos foram tomar o seu defronte da fortaleza.

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401 126 403 Capítulo V. Como Pate Unuz, não ousando cometer a nossa armada, nem menos sair em terra, por conselho que teve se partiu, e Fernão Peres foi trás ele e o desbaratou. Ainda que a noite, aos que per armas contendem de dia, é um grande remédio pera tomar fôlego do trabalho passado, cada ua destas frotas teve aquela noite tanto que fazer em se aconselhar e prover, que não houve algum homem de armas que a dormisse, quanto mais os capitães e pessoas notáveis, de quem dependia a conclusão do que se havia de fazer. E entre os nossos ainda maior trabalho que acerca dos imigos; ca estes tratavam como se haveriam naquele caso, e eles tinham contenda de paixões de jurdição, donde foram as palavras de Fernão Peres com Rui de Brito Patalim, o qual aquela noite, com todolos capitães, em a galé de Pero de Faria teve conselho, sem Fernão Peres querer ir a ele. No qual conselho, posto que houve muitos e diferentes pareceres, todavia se resumiram neste: que Fernão Peres devia mandar pera a Índia as naus de armadores, que estavam carregadas de especearia a pedir socorro, e que neste tempo podiam suster-se em cerco; porque, ainda que aquele jau não fizesse mais que tê-los cercados, mais risco corriam por causa dos mantimentos haver na fortaleza muita gente, que pouca. E que com navios pequenos que ficassem, Fernão Peres se devia pôr na boca do rio, pegado na ponte, por as lancharas dos imigos não fossem pelo rio acima a poiar gente em terra pera vir cercar a fortaleza e a combaterem, e que ele, com o abrigo da ponte, onde se faria ua tranqueira, ficava seguro, se o viessem cometer; e quando não podesse sustentar a força dos imigos, ficava-lhe lugar pera se acolher à fortaleza. 404 Da qual determinação se fez um auto, assinado per todos em modo de requerimento, que Rui de Brito 402 per um escrivão mandou a Fernão Peres. A tanto chegam as paixões de competência em casos de honra entre portugueses, que, quando os outros se estão armando, estão eles em requerimentos e protestos de papel e tinta. Fernão Peres, a este de Rui de Brito, respondeu que ele tinha dito o dia de ante sobre aquele caso o que esperava fazer com aquela armada, de que era Capitão-mor, que era pelejar com aquele jau; e ele, Rui de Brito, devia estar em a fortaleza, de que dera menage, e defender-se com a gente que pera ela lhe fora ordenada, se os jaus a quisessem combater. E que deste seu voto ser o principal, que convinha a estado del-Rei e honra de quantos ali estavam em seu serviço, ele tomara já experiência a tarde passada, no modo da vinda da armada dos imigos, em que entendeu que Pate Unuz mais conta fazia de tomar a terra e de se ajudar do favor dos da cidade, que de pelejar no mar, porisso ele esperava em Deus de o lançar dali, e sua determinação era dar nele, em rompendo a lua. Rui de Brito, quando viu esta reposta de Fernão Peres, em que também se assinaram alguns capitães da sua armada, que com ele estavam, confirmando o que ele dezia, ordenou em terra aquela noite quanto se pode fazer. Ua das quais cousas foi mandar derribar da ponte do rio, per que se passava da povoação dos mouros à fortaleza, a maior parte dos paus que poderam, e alguns ficaram dependurados, pera as lancharas dos imigos, ainda que quisessem ir pelo rio acima, o não podessem fazer; e assi fez ua tranqueira no fim da ponte, da parte da fortaleza, porque os mouros não podessem vir a ela, temendo que, se Pate Unuz tomasse a cidade, todos se haviam de ajuntar com ele. Fernão Peres também não pera se defender, mas cometer os imigos, toda a noite gastou em ordenar artefícios de fogo e dar ordem aos capitães como se haviam de haver no cometimento daquele feito, tomando por conclusão que, tanto que rompesse alva, dar sobre os navios pequenos,

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126v que lhe ficavam mais vezinhos, e lançaram-lhe dentro ua chuiva de panelas de pólvora, bombas e rocas de fogo pera os queimar; porque, como estavam apinhoados, primeiro que se apartassem uns dos outros, haviam de arder muitos. E leixando estes em poder do fogo, e em favor dele os seus navios pequenos, que com a artelharia desatinassem os jaus, pera o não poderem apagar, com as outras velas grandes iria ele demandar os principais juncos, onde despenderiam quanta pólvora tevessem, e per derradeiro os iriam abalroar. E o mais, o tempo daria conselho e Deus teria cuidado deles, pois confessavam o seu nome. E porque temeu que os imigos de noite os viessem 405 cometer, além da vigia que ele, Fernão Peres, encomendou aos capitães, mandou-lhes que estevessem todos com as âncoras a pique, a volta de cabrestante, porque não os tomassem presos nelas. Pate Unuz também onde estava teve seu conselho, não somente com os capitães que trazia, mas com alguns 403 jaus da cidade, de que logo foi visitado, que eram aqueles com que tinha prática sobre sua vinda, o principal dos quais era Suria Deva. E posto que estes o animaram muito pera aquele feito a que vinha, quando soube deles como Pate Quetir era partido pera a Jaua, e o modo como foi desbaratado, ficou mui triste e confuso, porque no conselho dele tinha posto grande parte de sua esperança, e, como homem novo na terra, achou-se manco de todo. E tinha ele nisto razão, porque Pate Quetir era cavaleiro e homem astucioso, costumado a sofrer nossas armas; e sem dúvida, se ele não fora ido, ou Pate Unuz o topara no caminho, tornando com ele, muito mal nos houvera de fazer. Mas permitiu Deus sua ida e que se não encontrasse com ele, por livrar os nossos de tanto perigo, e mais ser causa dele Pate Unuz fazer o que fez, com que Fernão Peres houve dele vitória per modo não cuidado. E o que também causou a Pate Unuz temor foi o grande dano que recebeu no seu junco, que ele cuidava ser ua rocha, e que não havia artelharia contra ele, porque alguns tiros de esperas o tomaram per parte que lhe entrou dentro o pelouro, que lhe matou muita gente. E além deste dano que recebeu, viu a fortaleza das nossas naus, e o ânimo daqueles que iam nelas, que tam ousadamente, sendo tam poucos, cometeram a grandeza da sua frota; de maneira que, com a experiência, teve maior opinião de nós, e menos esperança do que trazia, e não tanta facelidade, como Suria Deva e os outros jaus lhe prometiam per cartas. Finalmente, havido conselho sobre o modo que teriam em cometer a nossa armada, e mais a fortaleza, passadas muitas dúvidas e debates, o mesmo Suria Deva, vendo algum receo nos principais jaus que vinham com Pate Unuz, lhe representou a resolução do que devia fazer, por alguns inconvenientes que eles apontaram, e principalmente por ele segurar sua fazenda, temendo a natureza dos jaus, que, saindo em terra, o poderiam saquear por espedida, ora lhe sucedesse bem ou mal no caso. A qual resolução foi que a ele, Pate Unuz, lhe não convinha sair em terra a tomar a fortaleza; porque, ainda que tevesse certo poder-se fazer, corria a sua armada risco de os nossos a queimarem, e sendo assi, ele ficava o cercado e desbaratado, e nós os vencedores; porque, como a vida daquela cidade era os mantimentos que lhe vinham pelo mar, tanto que lhe posessem a mão na garganta da entrada deles, não tinha mais fôlego. Também pelejar com as nossas naus a ele não parecia bem, por sermos a mais ousada gente que ele 406 tinha visto, sem ter conta com muitas ou poucas velas, nem se eram grandes ou pequenas, porque qualquer das nossas naus cometeria abalroar com o seu junco. E pois qualquer destes modos que ele cometesse, por causa do grande aparato que trazia, desesperava os nossos, com que lhe dava dobrado animo do que tinham, devia ele, Pate Unuz, cometer este negócio, 404 não tanto à força de braço, mas com parte de prudência e de vagar, e não tam apressado como vinha. E pera não cair nestas cousas que apontava, lhe parecia que ele, Pate Unuz, se devia tornar ao

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rio de Muar com toda sua frota, e na entrada dele leixar todolos juncos grandes, por ser lugar estreito, onde os nossos não se haviam de meter, e esta armada estava ali segura, e os nossos, com temor de a terem nas costas, não haviam desemparar a sua, por acudir à fortaleza. E com as outras velas mais pequenas podia vir de noite, e sair em terra na parte de Ilher, onde tínhamos a fortaleza, e ele, Suria Deva, com todolos que ali estavam, e outros muitos de sua valia, que havia na cidade, pelo rio acima, onde não fossem vistos em jangadas, se passariam a ela pera juntamente cometerem a fortaleza. E quando a fortuna lhe fosse tam contraira, 127 que per combate ou per fome a não podesse tomar, e vendo-se ele em algua grande necessidade per terra, lugar que os nossos não haviam de cometer, se recolheria na sua principal frota, que leixava em o rio Muar; e os navios pequenos, por serem leves, com se acharem despejados, a força de remo em ua apertada dos nossos navios levemente se podiam recolher a ele. Praticado este conselho de Suria Deva, achou Pate Unuz que era o melhor que podia ter, segundo via a desposição das cousas, e nisso assentaram todolos seus capitães. E porque os nossos não sentissem sua partida, toda aquela noite houve na frota deles tanto tanger dos seus sinos e instrumentos de guerra, e grande vozaria de cantares, que estrugiam as orelhas dos nossos; e quando veo ante menhã, que lhe a maré começou a servir, que ele leixava o pouso por ser menos sentidos, foi tamanha a grita deles, que cuidou Fernão Peres que parte da armada tinha tomado terra, e a grita era sinal que a outra o viesse cometer. E de Fernão Peres e toda a sua armada estarem com o tento em terra por causa destas gritas, e em si mesmo pera o que sobreviesse, teve Pate Unuz tempo pera se alargar ao mar, enfiando-se no caminho que havia de levar. Porém como isto era ante menhã e a luz de alva mostrou a sua armada, que ainda ia à vista dos nossos, entendeu Fernão Peres que os tangeres de toda a noite e grita de ante menhã fora artefício, por não serem sentidos que se queriam partir; e por sinal que levavam temor, viu muitas âncoras ficar no pouso, que não poderam levar. E porque quem dá costas dá ânimo a seu imigo, foi tanto alvoroço em os nossos, que juntamente assi na fortaleza, como na armada, começaram bradar: - Vitória! Vitória! Fogem! - e desferindo Fernão Peres a sua vela, dizendo: - Santiago! A eles! - foi cousa maravilhosa o que nisso cada um fez; e seria a nós mui dificultosa escrever a ousadia, ânimo, diligência e astúcia, que cada um teve naquele feito. Baste saber, em suma, que assi se haviam 407 os nossos poucos navios entre aquele grande número de velas, como se hão os lobos em 405 um pegulhar de ovelhas; porque os nossos não faziam mais que chegar aos navios pequenos, e lançar-lhes dentro fogo com os artefícios que tinham feito, e passar avante, e os imigos sem modo de defensão, sem fazerem caminho do rio de Muar com olho no junco de Pate Unuz, que pôs a proa pera o Estreito de Sabão, caminho de Jaua, todos o seguiram. E ainda por segurar sua pessoa, quando viu que da sua frota parte ardia em fogo e outra era metida no fundo, mandou aos principais juncos que levava que se achegassem a ele, temendo ser abalroado, ou ao menos metido no fundo com a artelharia, por mais lapes que o costado do seu junco tinha. Fernão Peres, quando viu o modo que Pate Unuz tinha em se fechar entre os juncos, e que, segundo a grandeza do seu, não lhe podia fazer dano senão com a artelharia, pôs a proa no segundo junco da frota, que era do Timungão, senhor da cidade Polimbão, e em chegando a ele, o envestiu per um costado; e como à ilharga dele ia seu sobrinho, que dissemos por sua cavalaria ter grande nome entre os jaus, tanto que viu Fernão Peres aferrado com o tio, aferrou-o ele pelo outro costado, de maneira que ficou Fernão Peres com a sua naveta entalado entre ambos. Peró ele não sentiu a entrada que este jau fez nela, por andar já na popa do junco do tio às lançadas, no qual tempo, pela proa do mesmo junco, entrou Francisco de Melo. O jau mancebo, como era cavaleiro, vendo que estes dous capitães cada um per sua parte entraram o tio e andavam pelejando com ele, sem fazer conta da nau de Fernão Peres, senão como que lhe servia de ponte, com alguns que o seguiram per ela, passou-se ao junco do tio, onde entre todos andava a peleja tam travada, que não se sabia determinar quem era senhor dos juncos, nem os

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senhores das navetas dos nossos, por todos andaram já misturados. No qual tempo Jorge Botelho acertou de vir em a sua caravela; e, vendo a nau de Fernão Peres entalada entre os juncos, entrou per bordo do sobrinho do Timungão, e veo-se encontrar com Fernão Peres, que acudia à sua nau, que lhe entravam muitos jaus nela. Finalmente, todas estas cinco velas, bordo com bordo, e os capitães mão por mão andaram uns dentro e outros foram tam travados entre si, per um grande espaço, té que, não podendo os jaus sofrer mais o ferro dos nossos, começaram de se baldear em lancharas e pangajoas que traziam derredor de si; e os que não poderam haver à mão vasilha, lançaram-se ao mar, com que os juncos ficaram vazios deles e cheos de muitos mantimentos, que os nossos levaram pera Malaca, depois que os juncos foram queimados naquele lugar. Fernão 127v Peres, tanto que houve a vitória destes dous juncos, que eram os principais, seguiu a Pate Unuz, com fundamento de às bombardadas o meterem no fundo, ou ao menos destruir-lhe a mareagem, com que ficaria decepado pera o tomarem às 406 mãos. Peró não houve efeito sua tenção, porque veo sobre a tarde ua trovoada tam furiosa, que ante eles quiseram contender uns com os outros como andavam, que com ela; porque, como veo súbita e 408 tomou a todos descuidados, e mais metidos em pelejar que no temor dela, se os nossos teveram algum salvamento, foi por não trazerem as mãos cortadas do temor e do ferro, como as traziam os jaus, e por isso foram mais lestes em marear suas velas. Finalmente, Fernão Peres com ela correu pera Malaca com a maior parte de sua frota, e outros per essas abrigadas de rios; somente Jorge Botelho e Tuão Mahamude, tamungo de Malaca, que se acharam ambos contra aquela parte pera onde correu Pate Unuz, ao qual não poderam fazer mais dano que queimar-lhes cinco ou seis pangajoas que o seguiam, porque tinham já despesa toda a pólvora, com que o podiam ofender. Jorge Botelho, vendo quam desbaratado este jau ficava, e que, tornando sobre ele com pólvora, o podia meter no fundo, veo-se logo a Malaca dar conta disso a Rui de Brito, por Fernão Peres não ser ainda lá; e, posto que Rui de Brito o não queria prover de pólvora e cousas que ele pedia, havendo que sua tornada aproveitaria já pouco, porque o jau nesta sua demora de ir e vir seria posto em salvo, todavia lhe mandou dar o necessário, e isto a requerimento do gentio Nina Chetu, que disse que daria polo junco de Pate Unuz dez mil cruzados. Peró com quanta diligência Jorge Botelho nisso fez, correndo mais de quorenta léguas, já não achou Pate Unuz, o qual se pôs em salvo na Jaua em a cidade Japara, e ali mandou varar o junco por memória de sua pessoa, dizendo que bastava pera a ter por muitos tempos verem como aquele junco ficara da peleja que teve com os portugueses. Os quais, ainda que teveram esta tam ilustre vitória dele, não foi sem custa de muito sangue, que todos naquele alcanço derramaram; ca não houve capitão que não abalroasse junco e fizesse assaz de sua pessoa, onde morreram alguns dos nossos, principalmente com João Lopes de Alvim e Martim Guedes, que se viram em grã perigo com os juncos que abalroaram. E muito maior Fernão Peres, que foi derribado e ferido, estando um bom pedaço meio atordoado de um arremesso, que lhe fizeram de cima dos castelos do junco; e polo ajudar, morreu Simão Afonso, que foi a pessoa mais principal que naquele feito pereceu. Finalmente, ele foi tam notável, que assombrou todo aquele Oriente, e nele acabou a guerra que tínhamos com os jaus, dos quais Malaca ficou desassombrada, porque, como é gente mui vizinha a ela, e são senhores de todolos mantimentos de que se ela mantém, e mais são homens cavaleiros e poderosos, todolos outros rebates que teveram del-Rei Mahamude pelo tempo em diante, teveram em pouco, em respeito do perigo que passaram por causa destes dous jaus - Pate Quetir e Pate Unuz. Fernão Peres, como estava meio carregado 407 pera se partir pera a Índia (segundo dissemos), em poucos dias se tornou a perceber de todo, e

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entregue a capitania-mor do mar a João Lopes de Alvim, a quem Afonso de Albuquerque proveo dela, partiu de Malaca com três velas carregadas de especearia, 409 ele em ua, e nas duas Lopo de Azevedo e António de Abreu, que vinha de descobrir Maluco. E pera dar maior contentamento a Afonso de Albuquerque com sua chegada, além de ir carregado das vitórias que houve naquelas partes e de especearia, sendo tanto avante como os baixos de Capaciá, topou António de Miranda de Azevedo, que vinha do reino de Sião, com que levou também outra carga de todalas novas que ele, Afonso de Albuquerque, esperava daquelas partes, onde mandara seus mensageiros e descobridores, ante que se partisse de Malaca: assi como António de Abreu com Francisco Serrão descobrir Maluco, e Gomes da Cunha a el-Rei de Pegu, que era já vindo em o navio que trouxe mantimentos a Malaca (como fica atrás), o qual ia com ele, Fernão Peres, e António de Miranda com Duarte Coelho a Sião; o qual António de Miranda, posto que não viesse em companhia dele, Fernão Peres, e fizesse seu caminho pera Malaca, mandou-lhe cartas per ele, o qual chegou a salvamento à Índia. E porque em outro lugar (segundo já apontámos) se há-de fazer relação do caminho e cousas que António de Abreu fez naquele descobrimento de Maluco, leixamos de a fazer aqui, e também o que fizeram estoutros em 128 Pegu e Sião, porque a desposição das cousas da história tem lugar próprio, por guardar a qual ordem leixamos o que ora ocorreu na chegada de António de Miranda, e procederemos ainda um pouco nas cousas de Malaca, té quási todo o tempo que Afonso de Albuquerque governou.

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407 128 409 Capítulo VI. Como a fortaleza de Malaca, per astúcia de um criado del-Rei Mahamude, esteve em termo de ser tomada; e do que se mais passou, té chegada de Jorge de Albuquerque, que foi servir de capitão dela. El-Rei Mahamude, que foi de Malaca, sabida a vitória que os nossos houveram de Pate Unuz, posto que em algua maneira o desesperou de se tornar restituir em seu estado, vendo Pate Quetir destruído, em que ele tinha tanta confiança, e assi ser destruída tamanha potência como este Pate Unuz trazia, era a ele argumento que todo o poder daquele Oriente não poderia lançar-nos de Malaca. Per outra parte, teve grande contentamento da destruição de Pate Unuz, porque entendeu que a sua vinda tam poderosamente a Malaca, não era pera ele, Pate Unuz, lha entregar, senão 410 pera se fazer senhor dela, porque entre eles, ante deste feito, não precederam recados nem obras pera dele esperar tamanha amizade, que por 408 causa dele, Mahamude, fizesse tam grande despesa. Confessando publicamente querer ante que estevesse Malaca em nosso poder, que dos jaus; ca, por serem tam vezinhos, tinham as forças mui perto pera sustentar aquela cidade; e nós, ainda que tivéssemos mais poder nas armas, o adjutório das outras cousas pera continuar guerra per muitos anos ia deste reino de Portugal, que é no fim da terra tantas mil léguas de Malaca, a qual cousa lhe dava esperança que um tempo ou em outro se havia de restituir. Com o qual fundamento, sempre andou derredor da cidade, avexando-a, ora com rebates de suas armadas, ora com lhe tolher os mantimentos, e mudando o assento de sua pessoa, té que per derradeiro se foi assentar de vivenda em ua ilha defronte de Cingapura, chamada Bitão, nome que os malaios chamam à Lua, por a mesma ilha ter a feição da Lua quando é meia. E porque à força de armas tinha per muitas vezes tentado connosco sua ventura, quis experimentar que tal a teria per modo de ardil, em que o meteu um Tuão Maxeliz, mouro bengala de nação e homem mui sagaz e astucioso, muito aceito a ele, como um dos mais principais que lhe governava sua casa. O qual ardil foi que ele, Tuão Maxeliz, havia de fugir dele, Rei Mahamude, com título de agravos, e se havia de ir a Malaca, mostrando que queria ali viver entre nós, em companhia dos quais ele se podia vingar dos agravos que tinha recebidos; e depois que fosse aceito na terra e tivesse entrada com o Capitão-mor, trabalhasse per qualquer modo que podesse de se meter na fortaleza; e pera o ajudar naquele caso, da sua parte desse conta a Tuão Colascar, que era o principal jau, senhor da povoação Ilher, na parte da fortaleza. Assentado este ardil entre ambos, sem pessoa algua o saber, porque não houvesse suspeita da partida dele, Maxeliz, começou el-Rei pubricamente de lhe fazer alguns agravos per espaço de dous meses, mostrando ter sabido que o roubava e andava em tratos connosco. Finalmente, como os agravos foram tam púbricos que se haviam por mui certos em Malaca, veo ele ter a ela em ua lanchara, simulando que vinha fugindo da ira del-Rei por más informações que dele tinha, e foi-se apousentar, per licença de Rui de Brito, na povoação de Ilher, mostrando ter antiga amizade com Tuão Colascar. E por não perder tempo, como vinha provido de jóias e brincos, que dão entrada em toda parte, ora com eles, ora com dar ardis a Rui de Brito contra el-Rei Mahamude, começou logo lavrar sua peçonha, de maneira que entrava e saía na fortaleza mui familiarmente com Rui de Brito. E tomou logo por cautela de não ser sentido ir a sua casa pela sesta, quando a mais da gente se recolhe 411

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a repouso, e mais andar sempre mui acompanhado, mostrando que se temia de el-Rei Mahamude dentro em Malaca o mandar matar, por ele ser homem que sabia parte de seus segredos. 409 Tanto que este Maxeliz teve segura esta entrada com Rui de Brito, 128v deu logo disso conta per suas cartas a el-Rei, o qual lhe respondeu, que a tantos dias da Lua cometesse o caso, porque pera este tempo lhe mandaria socorro com sua armada, e que entretanto bastava o favor de Tuão Colascar. Vindo este dia, como Maxeliz tinha aquela fácil entrada na fortaleza, pela sesta foi-se a ela, levando seus homens, que costumava trazer em guarda de sua pessoa, e chegando à porta, que lha o porteiro abriu como a pessoa familiar, entreteve-se um pouco, mostrando que espedia os seus, e queria meter três ou quatro, um dos quais era mancebo de bom parecer e vinha vestido como mulher, dizendo que leixasse entrar aqueles que levavam aquela moça pera o capitão. No qual entreter de porta aberta remeteram os criados de Maxeliz, e entraram dentro, metendo-se às crisadas com o porteiro e três ou quatro homens que estavam no pátio da fortaleza, e ele subiu com alguns deles pela escada acima, caminho da torre da menagem, onde pousava o capitão; e por acharem a porta fechada, por Rui de Brito a fechar sobre si, quando sentiu a revolta debaixo, discorrendo eles pelas casas dos oficiais, foram dar na do alcaide-mor Aires Pereira, que não teve outra salvação, senão lançar-se per ua janela por ir socorrer a Rui de Brito; e nesta casa mataram a mestre Jorge, físico, e dous homens de serviço que estavam com ele. E os que ficaram em baixo no pátio, mataram quatro homens e Pero Pessoa, que foi o primeiro que acudiu à porta, o qual estava com o ferrolho na mão pera a fechar aos jaus, que Maxeliz trazia nas costas em sua ajuda. Rui de Brito, a este tempo, ainda que em pé, andava bem doente, e logo naquele primeiro reboliço, cuidou ser mais; peró, quando viu que somente dez ou doze homens o faziam, assi como pôde acudiu com alguns que acordaram e jaziam per essas casas, dormindo por ser pela sesta, os quais fizeram fugir Maxeliz e os seus, vendo que não poderam tomar a torre da menagem, que era seu principal intento. Tuão Colascar, que estava esperando, com sua gente junta, esta hora, tanto que ouviu repicar o sino da fortaleza, acudiu logo, parecendo-lhe que Maxeliz estava em poder da torre; peró, quando chegou à porta da fortaleza e soube ele ser acolhido, dissimulou a vinda, dizendo de fora a Rui de Brito que cousa era aquela, que vinha ali por ouvir repicar? que mandava sua mercê que fizesse com aquela gente que trazia? Rui de Brito, peró que entendeu ser ele sabedor do caso, agradeceu-lhe sua tam breve diligência, e assossegou todo o alvoroço da cidade; porém depois quisera ele per justiça, ao modo de Utimuti-rajá, matar este Tuão Colascar, e ante dele Suria Deva, polo que fez com Pate Unuz; mas os capitães e fidalgos com quem ele sobre este caso teve conselho, não lho consentiram, dizendo que, por serem as principais cabeceiras da cidade, com sua morte se 412 despovoaria; que naquele tempo se havia de 410 dissimular com eles, té as cousas da cidade tomarem mais assento do que tinham. Eram neste tempo idos a Bintão com duas caravelas e três lancharas, com até cinquenta homens de peleja, Jorge Botelho e Vasco da Silveira, pera ver se podiam fazer algum dano às armadas que el-Rei trazia naquela paragem, impedindo não virem velas a Malaca, e fazê-las arribar a Bintão, onde ele esperava fazer todo o trato que fazia nela; o qual, quando viu estas nossas velas sobre seu porto, por ser no tempo em que ele estava esperando recado do seu Tuão Maxeliz, creo verdadeiramente que o caso era descoberto ao capitão Rui de Brito e que por esse respeito mandava aqueles navios sobre seu porto, pera ofenderem a armada que ele havia de mandar em favor do caso, a qual ele tinha de todo prestes; e não ousou de a mandar sair de dentro, temendo que a nossa armada era toda ida àquele feito, e que lhe lançavam aquelas cinco velas diante pera ele lançar a sua fora.

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Jorge Botelho e Vasco da Silveira, vendo o sítio onde el-Rei tinha feito ua fortaleza, e que a sua armada estava dentro de ua estacada, que de maré vazia os navios ficavam metidos na vasa, e as estacas de maneira que parecia um labirinto o canal que ficava entre elas, per onde entravam e saíam os navios, não lhe pareceu cousa que podessem cometer, por a pouca posse que levavam, e tornaram-se a Malaca. Rui de Brito, quando per eles soube a força que el-Rei tinha feita, e quam brigosa e defensável era, assi polo sítio, como pela indústria e trabalho dos homens, e que, segundo lhe alguns mouros diziam, estava aquela Ilha Bintão em paragem que se podia fazer outra Malaca, com el-Rei trazer ali armada que fizesse arribar as naus a ela, dobrou a armada que João Lopes de Alvim trazia pera às vezes a repartir em partes, porque não houvesse algum daqueles dous canais - Cingapura e Sabão - onde se não achassem nossos navios contra a armada del-Rei de Bintão, pera lhe defender aquele arribar 129 de velas que fazia. Com o qual modo atormentou tanto a el-Rei que, como homem desesperado pola muita fome que padecia com lhe tolhermos prover-se de mantimentos, mandou pedir a Rui de Brito concerto de paz. E como ele atribuía a causa de sua destruição a seu filho e genros, em não consentirem que ele assentasse paz com Afonso de Albuquerque, quando chegou a Malaca, houve entre eles tanta diferença sempre, que, neste tempo da paz que mandou pedir, dizem que afogou o filho com ua touca. El-Rei de Campar, posto que fosse seu sobrinho e genro, polos modos que lhe via ter, e principalmente acerca do ódio que tinha a seu próprio filho, o Príncipe Alodim, não quis seguir suas cousas, ante, por segurar as próprias e não viver assombrado de nós, como genro seu (segundo escrevemos), estando Afonso de Albuquerque em Malaca, com um presente que lhe enviou, 413 se ofereceu querer viver em Malaca como vassalo del-Rei de Portugal; a vinda do 411 qual por então não houve efeito. Peró, sabendo ele o que se dizia como afogara seu filho, determinou de se vir logo pera Malaca, temendo a maldade do sogro; e pera isso não fez mais que, como homem seguro, sem cautela algua, meter-se com Pero de Faria, que com ua armada andava no Estreito de Sabão. O qual chegou a Malaca na entrada de Julho do ano de quinhentos e catorze, a tempo que era vindo da Índia Jorge de Albuquerque, filho de João de Albuquerque, pera capitão da cidade, e estava já em posse dela, e Rui de Brito, esperando tempo pera se vir pera a Índia. E porque Jorge de Albuquerque levava recado de Afonso de Albuquerque do modo que havia de ter com este Rei de Campar, se lhe mandasse cometer que se queria vir viver a Malaca, polo que já tinha passado com ele, quando se mandou oferecer pera isso, em sua chegada fez-lhe muita honra; peró não ficou el-Rei de Campar daquela vez em Malaca, ante se tornou logo como praticou alguas cousas com Jorge de Albuquerque do modo que se havia de ter com ele, vindo assentar sua casa em Malaca. Enquanto este recado foi à Índia, e tornou reposta de Afonso de Albuquerque, ele esteve em Campar; a qual reposta foi mandar ele a Jorge de Albuquerque que desse a este Rei o ofício que Nina Chetu, gentio, tinha. E a causa por que lho mandava tirar, tendo tanto benefício feito a Rui de Araújo, por cujo respeito o ele houve, foi porque a gente nobre de Malaca sofria mal serem governados per ele, que era homem de pouca sorte; e se em alguas cousas lhe queriam ir à mão, às tais pessoas mandava-lhes dar um certo género de peçonha, com que engafecia, e em mui pouco tempo morria, o que se soube ter feito a três ou quatro mercadores principais; e polo muito serviço que tinha feito na salvação de Rui de Araújo e dos outros cativos, e assi na tomada da cidade, dissimulavam com ele, té vir este recado de Afonso de Albuquerque. Nina Chetu, como por suas culpas andava vigiado de o tirarem do cargo, tinha suas inteligências, tanto que chegava algum navio da Índia, pera saber se mandava Afonso de Albuquerque bolir com ele; e como foi certificado do recado que vinha, teve maneira que, por espaço de oito dias se não denunciasse que o mandavam tirar do ofício. No qual tempo em um

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terreiro grande mandou fazer um cadafalso de madeira, coberto e toldado de muitos panos de seda e ouro, e dele té sua casa foi a rua toldada da mesma sorte, e a ua parte do cadafalso no chão mandou pôr ua mui grande cantidade de sândalos brancos, vermelhos e lenho aloes, pera arder tudo, quanto fosse tempo de lhe porem fogo. 414 Acabado todo este aparato pera o derradeiro dia que se lhe acabava o termo que pedia, convidou todolos seus amigos, e ajuntou sua família, que era grande, toda vestida de festa, e ele dos mais ricos panos de ouro que pôde haver, e partiu de sua casa, indo 412 por aquela rua toldada, a qual àquela hora estava coberto o chão de todalas flores e cheiros do campo. Chegado com esta pompa ao cadafalso, onde era quási toda a cidade ver aquele auto, de que ainda não entendiam o fim, subiu-se a ele, e começou em mui alta voz dizer as cousas que per nós fizera, e os perigos que por isso ele passara, por méritos das quais cousas Afonso de Albuquerque lhe dera o ofício que tinha de bendara, que ele té aquela hora servira, o qual (segundo lhe era dito), ele mandava que ele nunca o servisse mais e fosse dado o ofício a outra pessoa. E porque ele não queria ver aquela injúria executada em a sua, era ali vindo pera mostrar que o fogo que todos viam acendido naquele sândalo, era mais poderoso que todolos príncipes do Mundo, 129v porque eles podiam tirar ofícios e vida, e o fogo, se queimava o corpo, recebia em si a alma; e como era espírito e criatura de Deus, ele a ia apresentar a seu Criador, onde tinha perpétua glória; e quanto mais afligida nesta vida, maior a tinha lá, e esta lhe não podia tirar o grã Capitão Afonso de Albuquerque, por mais poderoso que fosse na Índia. E com isto se leixou cair no fogo, onde se fez cinza.

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412 129v 414 Capítulo VII. Como Jorge de Albuquerque, capitão de Malaca, mandou per Abedelá, Rei de Campar, pera servir ofício de bendara; e quanto el-Rei de Bintão trabalhou polo ele não ser, té que foi causa de sua morte. Acabado este acto da gentilidade, que fez grande admiração a todos ver a constância com que aquele gentio morreu por honra, foi logo sabido per toda a terra como el-Rei de Campar havia de ser bendara de Malaca, que entre os malaios se tinha por tanta dinidade no tempo que prosperava Mahamude, Rei dela, que haviam ser maior cousa que Rei de Campar, cujo estado não era mais que ser senhor de ua povoação, a que eles chamam cidade, a qual era metida per um rio grande, que entra por a terra da Ilha Samatra, e distará de Malaca contra o Oriente pouco mais de trinta léguas, na entrada do Estreito Sabão. 415 El-Rei de Bintão, seu sogro, tanto que soube que ele era eleito pera bendara, e que este era o fim pera que ele se dera à nossa amizade, e a causa do presente que mandara a Afonso de Albuquerque, e depois ir em pessoa a Malaca ver-se com o capitão dela, ordenou logo de lhe empedir que não fosse, e pera isso convocou outro seu genro e vassalo, que era Rei de Linga, ua ilha vezinha à de Bintão, onde ele, Mahamude, assentara sua vivenda (como dissemos). Os quais sogro e genro fizeram ua armada de té setenta velas de remo; em que iriam dous mil e quinhentos homens, 413 na qual armada o próprio Rei de Linga foi; e entrado pelo rio de Campar, acharam Abedelá, Rei da Cidade, já provido de tranqueiras e forças, com que resistiu como homem animoso a seu imigo, posto que el-Rei de Linga naquelas partes era havido por muito cavaleiro. O qual, vendo que per alguas vezes que deu combate a Abedelá não o podia entrar, ordenou-se em modo de o ter cercado e tomar à fome; no meio do qual tempo ele foi socorrido de nós sem o ele esperar, per esta maneira: Pelo recado que Afonso de Albuquerque mandou e morte de Nina Chetu, ordenou Jorge de Albuquerque de mandar por este Rei de Campar pera vir servir o ofício de bendara, de que ele já era sabedor, e pera isso se fazia prestes, quando el-Rei de Linga deu sobre ele; e polo mais honrar, mandou Jorge Botelho que o trouxesse em o seu navio, e com ele três navios de remo, capitães Jordão de Figueiredo, Álvaro Vaz e Diogo Dias. O qual Jorge Botelho, entrando no Estreito de Sabão, achou ali nova em um mouro seu amigo, chamado Meana, que el-Rei de Linga estava dentro no rio de Campar, e tinha cercado a el-Rei Abedelá com ua armada de setenta velas com muita gente e munições de guerra; por isso olhasse onde se ia meter. Jorge Botelho, por este mouro ser homem certo e seu amigo, espediu logo dali um dos capitães, que viesse a Malaca dar esta nova a Jorge de Albuquerque, o qual a grã pressa espediu estes capitães em socorro de Abedelá: Tristão de Miranda, António de Miranda de Azevedo, Aires Pereira de Berredo e Francisco de Melo, todos em navios redondos, e mais alguas lancharas de remo, capitães moradores da cidade. E porque nenhum levava a capitania-mor de toda a frota, quando se ajuntaram com Jorge Botelho, que se haviam de ordenar pera cometer a armada dos imigos, começou entre eles haver diferença, a qual apagaram com elegerem por capitão a António de Miranda de Azevedo, per ordenança do qual entraram pelo rio acima, té onde se fazia um esteiro, dentro do qual, obra de meia légua, estava a cidade Campar. O qual esteiro, como era estreito, profundo, e com ribas tam altas que ficava em partes a terra sobre água perto de duas lanças, tornaram-se os nossos abaixo ao rio largo; porque, como

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130 não sabiam a terra, temeram que viessem os imigos, e de cima, às terroadas, quando não tivessem outra cousa, os meteriam no fundo, fazendo fundamento de os ter ali encerrados, e em tam estreito cerco como eles tinham el-Rei Abedelá. 416 Postos neste lugar largo, como entre alguns capitães havia ua frieza do caso, por cada um não ser o eleito em capitão-mor, e também ali não faziam mais que ser fechada aquela entrada, por onde os imigos se serviam, estavam um pouco descuidados, como quem não tinha que temer, gastando o dia em lançar a barra e lança, e outros passatempos em terra. El-Rei de Linga por escuitas 414 que trazia ao longo do rio, foi avisado deste descuido; e como homem cavaleiro que era, determinou dar neles, e caladamente veo-se com toda sua frota pelo rio abaixo, e ele diante todos, por ter ua forte e fermosa lanchara do comprimento de ua galé, mui armada e guerreira com até duzentos e tantos homens, com tenção de abalroar com o Capitão-mor da nossa frota. E sendo onde a terra fazia um cotovelo, ao longo do qual, com a maré que descia, a água corria mais tesa, deu de súbito com Jorge Botelho, que estava ali emparado do tesão da água, em ua lanchara das de sua companhia, com té vinte homens; o qual, apartando-se do corpo da armada onde tinha o seu navio, determinou naquele de remo, por ser leve saber o que ia dentro. E quando viu a ponta da lanchara del-Rei que começava aparecer detrás do cotovelo, de improviso, sem saber o que vinha detrás, deu ua grita com os seus, e mandou desparar a artelharia que trazia, a qual, ainda que era meúda, ela e as espingardas dos seus derribaram logo alguns dos remeiros da lanchara del-Rei. Na qual, por o caso ser súbito, e mais cuidando que ali estava toda nossa frota, por ainda não descobrirem o anco que fazia a terra, houve entre todos tanto temor, que do remoinhar dos remadores, não sabendo o que haviam de fazer, ficou a lanchara del-Rei sem governo, e com o tesão da água ficou a galé atravessada no esteiro, que como era estreito, e ela comprida, não pôde ir diante nem atrás, e todolos que vinham após ela encalhavam, de maneira que ficou o rio coberto e travancado, sem dar passagem. Os nossos que estavam em baixo da maneira que dissemos, quando ouviram os tiros que Jorge Botelho tirou, remeteram todos aos batéis e lancharas que tinham, e remo em punho a quem chegaria primeiro, em mui breve espaço foram com ele, principalmente Tristão de Miranda, João Pereira e Francisco de Melo, por estarem mais dentro, pelo rio acima, que os outros, e foram a tempo que acharam já Jorge Botelho dentro da lanchara del-Rei, donde tinha despejado boa parte da gente; mas com a chegada deles toda se lançou ao mar, e per derradeiro o seu Rei, aos brados do qual eles não obedeciam. Finalmente, chegados todolos outros capitães, posesse os imigos em desbarato, muitos dos quais se salvaram, metendo-se per esses esteiros, com que a terra é retalhada; porque enquanto os nossos não poderam passar com a lanchara del-Rei atravessada, teveram eles tempo de o fazer. Com a qual vitória chegaram onde el-Rei de Campar estava, sem esperança daquele remédio; e recolhido ele com sua família, leixando a terra entregue a seus governadores, foi trazido com aquela honra a Malaca, e entregue do ofício de bendara, pera que era vindo. 417 Da chegada do qual a seis dias, Jorge de Albuquerque mandou aquela armada assi como viera, contra el-Rei de Bintão, parecendo-lhe que 415 o podiam destruir, como fizera a seu genro el-Rei de Linga, e mais naquela conjunção em que ele perdera lancharas e gente com munições de guerra; a capitania-mor da qual armada, em que iriam duzentos homens portugueses, levou João Lopes de Alvim, que servia de Capitão-mor do mar; mas não fizeram cousa algua, por el-Rei estar de maneira fortalecido, que havia mister maior poder de gente. Havendo quatro meses que estas cousas eram passadas, e el-Rei de Campar servia seu ofício, não com nome de bendara, mas de macobume, que acerca deles é como entre nós Viso-Rei,

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e isto por honra da dinidade real que tinha, a olho começou Malaca de se nobrecer, tornando-se muitos homens nobres viver a ela, que, por causa de não quererem ser governados per Nina Chetu, eram idos a viver à Jaua e a outras partes; com a vinda dos quais começaram de vir mercadores, e a terra se reformar. El-Rei de Bintão, quando viu que em tam breve tempo com a ida de seu genro Malaca se tornava povoar, e que muitos malaios, homens de estima que com ele estavam em Bintão, o leixaram e se vinham pera ela, ordenou, como homem sagaz que era, ua astúcia pera isto não ir mais avante, e seu 130v genro perder a vida, ou ao menos o crédito e ofício que tinha, vendo que, se nele muito estava, quantos homens o seguiam, todos o haviam de leixar, de maneira que, sem os capitães de Malaca lhe fazerem guerra, esta bastava pera o destruir. A qual astúcia foi mandar a todolos seus capitães, que trazia per estes portos da terra de Malaca, que qualquer barco que tomassem dos moradores malaios de Malaca, que lhe levassem todolos cativos, aos quais, como eram ante ele, fazia gasalhado e mercê, bradando com os capitães, porque lhe levavam cativos os seus naturais vassalos, que outra hora não fizessem tal cousa, senão que os castigaria; ante lhes mandava que, como achassem malaio morador em Malaca, que o tratassem como aos de Bintão, pois todos eram vassalos e filhos, e os de Malaca mais, pois era sua própria natureza; e que bem abastava aos coitados as perrarias que sofriam daquela cruel e perversa gente português. Porém ele esperava em Deus, ante de pouco tempo, de os remir daquele triste cativeiro per meio de seu filho Abedelá, Rei de Campar, o qual ele tinha posto em Malaca dissimuladamente, pera que, como visse tempo, lhe dar a cidade; e que, pera ajuda de o poder melhor fazer, lhe mandava alguas pessoas principais de Bintão, com título que se tornavam a viver a Malaca; por isso lhe rogava que, quando seu filho, el-Rei de Campar, se levantasse com a fortaleza, que fossem todos em sua ajuda, e assi o pedissem 418 a seus parentes e amigos da sua parte, e todos tevessem este negócio em segredo. Com estas e outras palavras enchia as orelhas daquela gente inocente, a qual, como era em Malaca, de orelha em segredo foi ter à praça, andando este rumor 416 entre os mouros, té que, per meio dos filhos de Nina Chetu, foi ter a Bertolameu Perestrelo, o qual havia pouco que chegara a Malaca, e servia de feitor, que, comunicando este negócio com seu irmão Rafael Perestrelo, deram conta a Jorge de Albuquerque. E posto que houve contradições no caso, principalmente de Jorge Botelho, representando a Jorge de Albuquerque as astúcias del-Rei Mahamude e bondade de Abedelá, Rei de Campar, por a muita comunicação que tinha com ele, todavia bastou pera se dar sentença que morresse, serem trazidos alguns homens daqueles que ouviram a el-Rei de Bintão o que atrás dissemos. Finalmente, ele morreu degolado na praça com solenidade de pubricação de sentença, a inocência do qual, ainda que Jorge Botelho a clamou, depois o tempo a descobriu. E se o povo tem licença de julgar - porque Bertolomeu Perestrelo foi grande acusador desta condenação à instância dos filhos de Nina Chetu, e ele não viveu mais depois que el-Rei de Campar foi degolado que dezassete dias - dezia o povo de Malaca que a alma do morto chamara a do vivo. E ainda parece que este clamor da justiça dos autos humanos chegou a mais; porque fez a morte deste Rei tanto escândalo no ânimo de todos, que poucos e poucos começaram os principais homens da cidade fugir dela, e iam viver a outra parte com temor de algua sentença; e como eles eram os ministros de virem à cidade todalas mercadorias e mantimentos, foi posta em tanta necessidade de fome, qual té então não tinha passado, em que claramente se viu de quanto mal fora causa a morte de Abedelá. E certo que na de Nina Chetu, e em a sua se pode ver ua pintura dos autos humanos quam diferentes fructos dão de ua própria raiz, pois um ofício matou dous homens: um gentio, homem de pouca sorte, que, usando mal de seu ofício, despovoou a cidade, e sem ser julgado, ele se condena à morte; e outro mouro, com título de rei, e que restitui as ruínas do outro, sem culpa vem a morrer

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per condenação de outrem.

LIVRO X 373 118 391 Capítulo primeiro. Em que se descreve a região do reino de Sofala e das minas de ouro e cousas que nela há; e assi os costumes da gente e do seu príncipe Benomotapa. Toda a terra que contamos por reino de Sofala, é ua grande região que senhorea um príncipe gentio, chamado Benomotapa, a qual abraçam em modo de ilha dous braços de um rio que procede do mais notável lago que todo a terra de África tem, mui desejado de saber dos antigos, escritores, por ser a cabeça escondida do ilustre Nilo, donde também procede o nosso Zaire, que corre per o reino de Congo. Per a qual parte podemos dizer ser este grã lago mais vezinho ao nosso Mar Oceano ocidental que ao oriental, segundo a situação de Ptolomeu, ca do mesmo reino de Congo se metem nele este seis rios: Bancare, Vamba, Cuilu, Bibi, Maria Maria, Zanculo, que são mui poderosos em água afora outros sem nome, que o fazem quási um mar navegável de muitas velas, em que há ilha que lança de si mais trinta mil homens que vem pelejar com os da terra firme. E destes três notáveis rios, que ao presente sabemos procederem deste lago, os quais vem sair ao mar tam remotos um do outro, o que corre per mais terra, é o Nilo, a que os abexis da terra do Preste João chamam Tacuí, no qual se metem outros dous notáveis a que Ptolomeu chama Astabora e Astapus, e os naturais Tacazi e Abanhi. E posto 392 que este Abanhi (que acerca deles quere dizer Pai das águas, polas muitas que leva) proceda de outro grande lago, chamado Barcená, e per Ptolomeu Coloa, e também tenha ilhas dentro, em que há alguns mosteiros de religiosos (como se verá em a nossa Geografia), não vem a conto deste nosso grande lago, ca, segundo a informação que temos per via de Congo e de Sofala, será de 374 comprido mais de cem léguas. O rio que vem contra Sofala, depois que sai deste lago e corre per muita distância, se reparte em dous braços: um vai sair aquém do Cabo das Correntes, e é aquele a que os nossos antiguamente chamam Rio da Lagoa, e ora do Espírito Santo, novamente posto per Lourenço Marques, que o foi descobrir o ano de quorenta e cinco; e o outro braço sai abaixo de Sofala vinte cinco léguas, chamado Cuama, posto que dentro pelo sertão outros povos lhe chamam Zembere. O qual braço é muito mais poderoso em águas que o outro do Espírito Santo, por ser navegável mais de duzentas e cinquenta léguas, e nele se meterem estes seis notáveis rios: Panhames, Luanguoa, Arruia, Manjovo, Inadire, Ruenia, que todos regam a terra de Benomotapa, e a maior parte deles levam muito ouro que nasce nela. Assi que, com estes dous braços e o mar per outra parte, fica este grã reino de Sofala em ua ilha, que terá de circuito mais de setecentas e cinquenta léguas. Toda ela, no sítio, mantimentos, animais e moradores, é quási como a terra chamada Zanguebar, de que atrás escrevemos, por ser ua parte dela; porém como se vai afastando da linha equinocial, tirando o marítimo dela, deste rio Cuama té o Cabo das Correntes, per dentro do sertão é terra excelente, temperada, sadia, fresca, fértil de todalas cousas que se nela produzem. Somente aquela parte do Cabo das Correntes, té a boca do rio Espírito Santo, apartando-se um pouco da fralda do mar, tudo são campinas de grandes criações de todo género de gado; e tam pobre de arvoredo, que com a bosta deste se aquenta a gente e se veste das peles, por ser mui fria com os ventos que cursam daquele mar gelado do Sul. A outra terra que vai ao longo do Rio de Cuama e do interior daquela ilha, pela maior parte é montuosa, 118v coberta de arvoredo, regada de rios, graciosa em sua situação e por isso mais povoada, e o mais do tempo está nela Benomotapa; e por razão de ser tam povoada, fogem dela os elefantes e vão andar

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na outra campina, que dissemos, quási em manadas, como fatos de vacas. E não pode ser menos, porque geralmente se diz entre aqueles cafres que cada ano morrem quatro, cinco mil cabeças; e isto autoriza a grande cantidade de marfim que se dali leva pera a Índia. As minas desta terra onde se tira o ouro, as mais chegadas a Sofala, são aquelas a que eles chamam Manica, as quais estão em campo cercadas 393 de montanhas, que terão em circuito trinta léguas; e geralmente conhecem o lugar onde se cria o ouro por verem a terra seca e pobre de erva. E chama-se toda esta comarca Matuca, e os povos que as cavam botongas. Os quais, ainda que estão entre a linha e o trópico de capricórnio, é tanta a neve naquelas serras, que, no tempo do inverno, se alguns ficam no alto, morrem regelados; no cume das quais em tempo do verão é o ar tam puro e sereno, que 375 alguns dos nossos que neste tempo se acharam ali, viram a Lua Nova, no de dia que se espedia da conjunção. Nestas minas de Manica, que serão de Sofala contra o Ponente até cinquenta léguas, por ser terra seca, tem os cafres algum trabalho, ca todo o ouro que se ali acha é em pó e convém que levem a terra que cavam a lugar onde achem água, pera o que fazem alguns cavoucos em que no inverno se recolhe água; e geralmente nenhum cava mais de seis, sete palmos de alto, e se chegam a vinte acham por lastro de toda aquela terra lájea. As outras minas que são mais longe de Sofala distarão de cento até duzentas léguas, e são nestas comarcas Boro, Quiticui, e nelas e nos rios que acima nomeámos que regam esta terra se acha ouro mais grosso, e dele em as veas de pedra e outro já depurado dos enxurros do inverno; e porisso em alguns remansos dos rios, como é no verão, costumam mergulhar, e na lama que trazem acham muito ouro. Em outras partes onde há alguas alagoas, ajuntam-se duzentos homens e põem-se a esgotar a metade delas, e na lama que apanham também acham ouro; e segundo a terra é rica dele, se a gente fosse cobiçosa, haver-se-ia grande quantidade, mas é a gente preguiçosa nesta parte de o buscar ou, por milhor dizer, tam pouco cobiçosa, que muita fome há-de ter um daqueles negros quando o for cavar. Pera o haver dos quais, os mouros que andam entre eles neste trato ainda tem artefício de os fazer cobiçosos, porque cobrem a eles e a suas mulheres de panos, contas e brincos com que eles folgam, e, depois que os tem contentes, fiam-lhe tudo, dizendo que vão cavar o ouro e, quando vier pera tal tempo, que lhe pagarão aquelas peças. De maneira que per este modo de lhe dar fiado os obrigam cavar, e são tam verdadeiros que cumprem com sua palavra. Tem outras minas em ua comarca chamada Toroa, que per outro nome se chama o reino de Butua, de que é senhor um príncipe per nome Burró, vassalo de Benomotapa, a qual terra é vezinha a outra que dissemos ser de grandes capitanias; e estas minas são as mais antiguas que se sabem naquela terra, todas em campo. No meio do qual está ua fortaleza quadrada, toda de cantaria de dentro e de fora, mui bem lavrada, de pedras de maravilhosa grandeza, sem aparecer cal nas juntas dela, cuja parede é de 394 mais de vinte cinco palmos de largo, e a altura não é tam grande em respeito da largura. E sobre a porta do qual edefício está um letreiro que alguns mouros mercadores que ali foram ter, homens doutos, não souberam ler nem dizer que letra era; e quási em torno deste edifício, em alguns outeiros, estão outros à maneira dele no lavramento de pedraria e sem cal, em que há ua torre de mais de doze braças. A todos estes edifícios os da terra lhe chamam Simbaoé, que acerca deles quere dizer corte, porque a todo lugar onde está Benomotapa chamam assi; e, segundo eles dizem, deste por ser cousa real teveram todalas outras 376 moradas del-Rei tal nome. Tem um homem nobre que está em guarda dele, ao modo de alcaide-mor, e a este tal ofício chamam Simbacaio como se dissessemos guarde de simbaoé; e sempre nele estão alguas das mulheres de Benomotapa, que este Simbacaio tem cuidado. Quando ou per quem estes edifícios foram feitos, como a gente da terra não tem letras, não

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há entre eles memória disso, somente dizerem que é obra do Diabo, porque, comparada ao poder e saber deles, não lhe parece que a podiam fazer homens, e alguns mouros que a viram, mostrando-lhe Vicente Pegado, capitão que foi de Sofala, a obra daquela nossa fortaleza, assi o lavramento das janelas e arcos, pera comparação da cantaria lavrada daquela obra, diziam não 119 ser cousa pera comparar, segundo era limpa e perfeita. A qual distará de Sofala, pera o Ponente, per linha dereita, pouco mais ou menos cento e setenta léguas, em altura entre vinte e um graus da parte do Sul, sem per aquelas partes haver edifício antiguo nem moderno; por que a gente é mui bárbara e todas suas casas são de madeira, e per juízo dos mouros que a viram, parece ser cousa mui antigua e que foi ali feita pera ter posse daquelas minas, que são mui antiguas, em as quais se não tira ouro há anos, por causa de guerras. E olhando a situação e a maneira do edifício, metido tanto no coração da terra, e que os mouros confessam não ser obra deles, por sua antiguidade, e mais por não conhecerem os caracteres do letreiro que está na porta, bem podemos conjecturar ser aquela a região que Ptolomeu chama Agisimba, onde faz sua computação meredional, porque o nome dela, e assi do capitão que a guarda, em algua maneira se conformam e algum deles se corrompeu do outro. E pondo nisso nosso juízo, parece que esta obra mandou fazer algum príncipe que naquele tempo foi senhor destas minas, como posse delas, a qual perdeu com o tempo, e também por serem mui remotas de seu estado; ca, por a semelhança dos edifícios, parecem muitos a outros que estão na terra do Preste João, em um lugar chamado Acaxumo, que foi ua cidade câmara da Rainha Sabá, a que Ptolomeu chama Axumá, e que o príncipe, senhor deste estado, o foi destas minas, e por razão delas mandou fazer estes edifícios, ao modo que nós ora temos a fortaleza da Mina e esta mesma de Sofala. E como naquele tempo de Ptolomeu, per via dos moradores desta terra Abássia, do Preste, a qual ele chama Etiópia-Egipto, esta terra de que 395 falamos em algua maneira era nota por razão deste ouro e o lugar teria nome, fez ele, Ptolomeu, aqui termo, e sua conta da distância austral. Toda a gente desta região, em geral é negra, de cabelo retorcido, e porém de mais entendimento que a outra, que corre contra Moçambique, Quíloa, Melinde; entre a qual há muita que come carne humana e que sangra o gado vacum, por lhe beber o sangue com que se 377 mantém. Esta do estado de Benomotapa é mui disposta pera converter a nossa fé, porque crem em um só Deus, a que eles chamam Mozino, e não tem ídolo nem cousa que adorem; e sendo geralmente todolos negros das outras partes mui dados a idolatria e a feitiços, nenhua cousa é mais punida entre estes que um feiticeiro, não por causa de religião, mas polo haverem por mui prejudicial pera a vida e bem dos homens, e nenhum escapa de morte. Tem outros dous crimes iguais a este - adultério e furto - e basta pera um homem ser julgado por adúltero, se o viram estar assentado na esteira em que se assenta a mulher dalguém, e ambos padecem por justiça. E cada um pode ter as mulheres que se atrever a manter, porém a primeira é a principal e a ela servem todalas outras e os filhos dela são os herdeiros, à maneira de morgados. Não pode algum casar com mulher, senão depois que a ela vem seu mês; porque então está auta pera poder conceber, e neste dia costumam fazer grandes festas. Em duas cousas tem modo de religião: em guardar dias, e acerca de seus defuntos. Porque dos dias guardam o primeiro da lua, o sexto, o sétimo, onzemo, décimo-sexto, décimo-sétimo, vigésimo-primo, vigésimo-sexto, vigésimo-sétimo, e o vigésimo-oitavo, porque neste nasceu o seu Rei, e daqui tornam fazer outra conta; e a religião está no primeiro, sexto e sétimo, e todolos outros é repetição deles sobre as dezenas. Quanto aos defuntos, depois que algum corpo é comido, tomam a sua ossada do ascendente ou descendente, ou da mulher de que houveram muitos filhos e guarda estes ossos com sinais pera conhecerem de que pessoa é; e de sete em sete dias, no lugar onde os tem, a maneira de quintal, estendem panos em que põem mesas com pão e carne cozida, como que oferecem aquele comer aos seus defuntos, aos quais fazer preces. E a principal cousa que lhe

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pedem, é favor pera as cousas do seu Rei; e passadas estas orações, que são feitas estando todos com vesteduras brancas, o senhor da casa com sua família se põe a comer aquela oferta. O geral vestido de todos são panos de algodão que fazem na terra e outros que lhe vem da Índia, em que há muitos de seda com vivos de ouro, que valem até vinte cruzados cada um; e porém os tais veste a gente nobre e as mulheres. E Benomotapa, Rei da terra, posto que seja senhor de tudo e suas mulheres andem vestidas deles, em sua pessoa não há de pôr pano estrangeiro, 396 senão feito na terra: temendo-se, por vir da mão de estrangeiros, que pode ser inficionado dalgua má cousa que lhe faça dano. Este príncipe a que chamamos Benomotapa 119v ou Monomotapa, é como entre nós emperador, porque isto significa o seu nome acerca deles; o estado do qual não consiste em muitos aparatos, paramentos ou móvel do serviço de a sua pessoa, ca o maior ornamento que tem na casa são uns panos de algodão que se fazem na terra, de muitos lavores, cada um dos quais será do tamanho de 378 um dos nossos reposteiros e valerão de vinte até cinquenta cruzados. Serve-se em giolhos e com salva, tomada não ante do que lhe dão, senão do resto que lhe fica. E ao tempo que bebe e tosse, todolos que estão diante hão-de dar um brado com palavra de bem e louvor del-Rei, e onde quer que é ouvida corre de uns em outros, de maneira que todo o lugar sabe quando el-Rei bebe e tosse. E por acatamento seu, diante dele ninguém escarra, e todos hão-de estar assentados, e, se algua pessoa lhe fala em pé, são portugueses e os mouros e alguns seus a que ele dá isto por honra, e é a primeira; a segunda, que em sua casa se possa assentar a tal pessoa sobre um pano; e a terceira que tenha portas nos portais de sua casa que é já dinidade de grandes senhores. Porque toda a outra gente não tem portas; e diz ele que as portas não se fizeram senão por temor dos malfeitores, e, pois ele é justiça, que os pequenos não tem que temer, e se as dá aos grandes, é por reverência de suas pessoas. As casas, geralmente, são de madeira, da feição de coruchéus, muitos paus arrimados a um esteo, como pião de tenda, e per cima cobertos de sebe, barro e colmo ou cousa que espeça água per cima; e há i casa destas, feita de paus tam grossos e compridos como um grande masto; e quanto maiores, maior honra. Tem este Benomotapa por estado música a seu modo, onde quer que está, até no campo, debaixo de ua árvore; e chocarreiros mais de quinhentos, com capitão deles, e estes a quartos vegiam por fora a casa onde ele dorme, falando e cantando graças, e no tempo da guerra também pelejam e fazem qualquer outro serviço. As insígnias de seu estado real é ua enxada mui pequena com um cabo de marfim que traz sempre na cinta; per a qual denota paz e que todos cavem e aproveitem a terra, e outra insígnia é ua ou duas azagaias, per que denota justiça e defensão de seu povo. Debaixo de seu senhorio tem grandes príncipes, alguns dos quais que comarcam com reinos alheos, às vezes se levantam contra ele; e por isso costuma ele trazer consigo os herdeiros dos tais. A terra é livre, sem lhe pagar mais tributo que levar-lhe presentes quando lhe vão falar; porque ninguém há-de ir diante doutro maior, que não leve algua cousa na mão pera lhe oferecer, por sinal de obediência a cortesia. Tem ua maneira de serviço em lugar de tributo, que todolos continos 397 de sua corte e os capitães da gente da guerra, cada um com todolos seus, em trinta dias lhe há-de dar sete de serviço em suas sementeiras ou em qualquer outra cousa; e os senhores a que dá algua terra que comam com vassalos, tem deles o mesmo serviço. Alguas vezes, quando quere algum serviço, manda às minas onde se cava o ouro repartir ua ou duas vacas, segundo o número da gente, em sinal de amor, e por retribuição daquela visitação

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cada um deles dá um pequeno de ouro até quinhentos reais. Também nas feiras, das mercadorias 379 os mercadores lhe ordenam um tanto de serviço, mas não que contra algum se execute pena senão paga; somente não poder ir diante dele, Benomotapa, que entre eles é grande mal. Todolos casos da justiça, posto que haja oficiais dela, ele per sua própria pessoa há-de confirmar a sentença ou absolver a parte, se lhe parece o contrairo; e não tem cadea, porque os casos logo são determinados naquele dia pelo alegar das partes e com testemunhas que cada um apresenta. Quando não há testemunhas, se o réu quere que fique em seu juramento, é per este modo: pisam a casa de um certo pau, a qual moída lançam o pó dela na água que bebe; e se não arevessa, é salvo o réu, e arevessando, é condenado. E se o autor, quando o réu não arevessa, quere tomar a mesma beberagem e também não arevessa, ficam custas por custas e não se procede mais na demanda. Se algua pessoa lhe pede mercê, despacha per terceira pessoa, e este tal oficial serve como de apreçador do que há-de dar por a tal cousa; e às vezes se pede tanto por ela que não lhe aceitam a mercê, e não basta o que dá ao príncipe, mas ainda o terceiro leva sua parte. Entre eles não há cavalos e por isso a guerra que Benomotapa faz é a pé, com estas armas: arcos de frechas, azagaias de arremesso, adagas, machadinhas de ferro que cortam mui bem. E a gente que traz mais junto de si são mais de duzentos cães, ca diz ele que estes são mui leais servidores, assi na caça como na guerra. Todo o esbulho que se toma nela 120 se reparte pela gente, pelos capitães e per el-Rei; e cada um leva de sua casa o que há-de comer, ainda que o príncipe sempre lhe manda dar o gado que traz no seu arraial. Quando caminha, onde houver de pousar lhe hão-de fazer de madeira ua casa nova, e nela há-de haver fogo sem ser apagado, ca dizem que na cinza lhe podem fazer alguns feitiços em dano de sua pessoa. E enquanto anda na guerra, não lavam mãos nem rostro por maneira de dó, té não haverem vitória de seus imigos. Nem menos levam lá as mulheres, sendo elas tam queridas e veneradas deles, que qualquer mulher que for per um caminho, 398 se com ela topar o filho do Rei, há-lhe de dar lugar por onde passe e ele estar quedo. Benomotapa das portas a dentro tem mais de mil mulheres, filhas de senhores, porém a primeira é senhora de todas, posto que seja a mais baixa em linhagem, e o filho primeiro desta é herdeiro do reino. E quando vem no tempo das sementeiras e recolher as novidades, a Rainha vai ao campo com elas, aproveitar sua fazenda, e tem isto por grande honra. Muitos outros costumes estranhos a nós tem esta gente, os quais em algua maneira parecem que seguem razão de boa polícia, segundo a barbaria deles; os quais leixamos, porque já nestes estendemos a pena fora dos limites da história. Portanto entraremos na relação do modo que os mouros teveram de vir povoar naquela parte, e o mais que Pero de Anhaia fez e passou.

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380 120 398 Capítulo II. Como os mouros de Quíloa foram povoar em Sofala e o que Pero de Anhaia passou no fazer da fortaleza, té espedir os capitães que haviam de passar a Índia; e do que aconteceu a eles e a seu filho Francisco de Anhaia. Esta povoação que os mouros tinham feita naquele lugar chamado Sofala, não foi por força de armas nem contra a vontade dos naturais da terra, mas per vontade deles e do príncipe que naquele tempo reinava; porque com esta comunicação todos receberam benefício havendo panos e cousas que não tinham, e dando o ouro e marfim que lhe não servia, pois té então per aquela parte da costa de Sofala não lhe davam saída. E posto que esta bárbara gente não saiba sair da aldea donde nasceu, e não seja dada a navegar nem a correr a terra per via de comércio, tem o ouro tal calidade que, como é posto sobre a terra, ele se vai denunciando de uns em outros, té que o vem buscar ao lugar de seu nascimento. E per qualquer maneira que fosse, segundo apreendemos em ua crónica dos Reis de Quíloa, de que atrás fizemos menção, os primeiros daquela costa que vieram ter a esta terra de Sofala a cheiro deste ouro, foram os moradores da cidade Magadaxó; e como veo a poder dos Reis de Quíloa foi per este caso: Estando em ua almadia pescando um homem, fora da barra de Quíloa, junto de ua ilha chamada Miza, aferrou um pexe no anzolo da linha que tinha lançada ao mar; e sentindo ele no barafustar do pexe ser grande, polo não perder, desamarrou-se donde estava e foi-se à vontade do pexe. O qual, ora que ele levasse o batel, ora as correntes que ali são grandes, quando o pescador quis tornar ao porto, era já tam apartado dele que não 399 soube atinar. Finalmente, com fome e sede ele foi ter, mais morto que vivo, ao porto de Sofala, onde achou ua nau de Magadaxó que ali vinha resgatar, na qual, tornado pera Quíloa, contou o que passara e vira do resgate do ouro. E porque no contrato do comércio que havia entre estes gentios e os mouros de Magadaxó, era que lhe haviam de trazer cada ano certos mouros mancebos pera haverem casta deles, tanto que el-Rei de Quíloa pelo pescador soube parte deste trato e das condições dele, mandou logo lá ua nau. A qual assentou com os cafres comércio e, quanto aos mancebos mouros que pediam, que por cada cabeça lhe queriam dar tantos panos; e que, se o fazia por causa de haver geração deles, que ali viriam alguns moradores de Quíloa assentar vivenda com feitoria de mercadorias, os quais folgariam de tomar suas filhas por mulheres, com que se multiplicaria a sua gente; com a qual entrada os mouros de Quíloa tomaram posse daquele resgate. Depois, correndo o tempo per via de comércio que os mouros tinham com 381 aqueles cafres, os Reis de Quíloa se fizeram absolutos 120v senhores daquele trato do ouro, principalmente aquele que chamaram Daúte, de que atrás fizemos menção, que per algum tempo ali residiu e depois foi reinar em Quíloa, e dali por diante sempre estes Reis de Quíloa mandavam governadores a Sofala, porque tudo se fizesse per mão de seus feitores. Um dos quais governadores foi Iuçufe, filho de Mahamede; e era este cego que Pero de Anhaia ali achou que se tinha intitulado por Rei de Sofala, sem querer obedecer aos Reis de Quíloa polas revoltas e diferenças que havia naquele reino, segundo atrás escrevemos. O qual Iuçufe, vendo que o Viso-Rei Dom Francisco tomara a cidade Quíloa, temia que, por Sofala ser sujeito a ela, desta aução quisesse bolir com ele, e este temor foi a parte principal de ele receber-com gasalhado a Pero de Anhaia, querendo-se per esta via segurar de nós. E também

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querer-se aproveitar do nosso favor contra seu genro Mengo Musaf, que era homem poderoso e de openião, e sentia nele que por sua morte havia de querer tomar aquela herança a seus filhos. Pero de Anhaia, sem saber o que entre eles passava, como teve enlegido o lugar pera a fortaleza, andou buscando algua pedra; mas como aquele sítio era chão apaulado, sem haver algua, ordenou de a fazer de madeira por entretanto; e depois, pelo tempo, sabida a terra, se faria como levava ordenado per el-Rei Dom Manuel. E porque a madeira principal que ali havia pera este mister eram mangues, que se criam ao longo daqueles alagadiços, paus mui fortes e rijos e pesados, os quais lhe custavam muito a tirar do lugar onde os cortavam, por poupar a gente e lhe não adoecer naquele trabalho, a qual ele havia mister bem desposta pera as armas, se as houvessem 400 de vestir, provocou a gente da terra a este serviço, pagando-lhe seu jornal nas cousas que levava deste reino. Os mouros, principalmente o genro del-Rei, a quem esta obra não era mui aprazível, vendo que os cafres com cobiça do prémio acudiam bem ao trabalho que alumiava na obra, per artefícios e modos que teveram com eles os ausentaram todos do serviço dela, com que notoriamente entendeu Pero de Anhaia donde isto procedia. Pera remediar o qual desaviamento, meteu-se em dous batéis com algua gente armada e foi-se à povoação ver com el-Rei; o qual, posto que ficou assombrado quando lhe disseram que o capitão vinha a lhe falar naquele modo com gente armada, não se moveu de sua casa, antes como homem seguro o esperou. E sabendo que a causa de sua ida era o mau aviamento que achava na gente da terra, mandou logo nisso prover com deligência per homens sem suspeita, com que Pero de Anhaia fez a fortaleza de madeira quam forte podia ser. Em torno da qual tinha ua cava, e com a terra que tiraram dela entulhou os paus de madeira entre um e o outro, a maneira de taipais, em altura que fosse amparo 382 aos que andassem per dentro; e per cima tinha suas guaritas, tudo mui bem acabado pera se defender de gente mais industriosa do que eram os cafres daquela terra, o grã número dos quais os nossos temiam mais que os mouros. Posta esta obra em termo que se podia escusar a gente das três naus que haviam de ir pera Índia, pera a carga da pimenta, espediu-se Pero de Anhaia. Na sua ficou por capitão o piloto dela, que era Gonçalo Álvares, e da segunda João Vaz de Almada, e da terceira era Pero Barreto, que ficou por capitão de todas, o batel da qual, ao embarcar, com a maresia, se perdeu com o cofre do dinheiro em que ia o cabedal pera a carga da pimenta e a maior parte da gente, em que entrou o contra-mestre da nau e Francisco da Gama, moço da Câmara de el-Rei, escrivão dela. Partido Pero Barreto com estas três naus, di a poucos dias, vendo Pero de Anhaia que ficava já pacífico e seguro na terra, leixando um bargantim que se ali armou pera serviço da fortaleza, mandou seu filho Francisco de Anhaia com dous navios pera andar de armada ao longo daquela costa;, até o Cabo de Guardafu, como levava por regimento. E também pera favorecer todos aqueles lugares que estavam por nossos, que eram Moçambique, Quíloa e Melinde, onde o Viso-Rei leixou ordenadas feitorias pera as roupas e fazenda que se ali haviam de haver, pera o trato do ouro de Sofala, no maneo da qual fazenda estes navios que levava Francisco de Anhaia haviam de servir. O qual foi tam ditoso nesta viagem que, partindo de Sofala em Fevereiro, quando veo a vinte cinco de Março, entrou em Quíloa em um 401 zambuco em que se salvou, tendo perdido os dous navios: um em Moçambique, querendo-o tirar a monte por lhe alquebrar, a míngua de não ter aparelhos pera isso, e o outro em as Ilhas de São Lázaro. Na qual viagem ele tinha tomado dous zambucos: este 121 em que foi e outro que tinha esbulhado, polos achar com fazenda da que se resgatava em Sofala. Ao qual Francisco de Anhaia, de boa hospedage, Pero Ferreira prendeu, dando-lhe a culpa da perdição dos navios; e mais por a presa dos outros, e lhe achar algum ouro do que se resgatava em Sofala, que por bem do regimento del-Rei perdia.

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Pero Barreto, partindo de Sofala diante dele, quando chegou a Quíloa um Domingo de Ramos com as suas três naus, que o achou neste estado de prisão, parece que, ou por temer que um homem que tam prestes perdia dous navios, cada um por seu modo, tinha ventura pera se perder em todolos que se metesse, ou per outro qualquer respeito, quando veo em Maio que ele, Pero Barreto, partiu com suas naus pera a Índia, não quis levar Francisco de Anhaia, entregando-lho Pero Ferreira com suas culpas, pera o Viso-Rei o julgar, nem menos quis recolher os homens que com ele se perderam. E Deus, em cujo poder estão os juízos destas cousas, no tempo em que 383 isto negou, também ele, Pero Barreto, se perdeu na barra e ficou com o batel da sua nau, em que se salvou com sua gente. E porque as outras duas de sua conserva iam já diante, caminho de Melinde, tornou ele a grã pressa a Quíloa a o consertar, e ao outro dia seguiu as naus neste batel, que alevantou com algua gente da principal que levava. E per esta maneira ficou em jogo com Francisco de Anhaia. Porque ele, Pero Barreto, à saída de Sofala, perdeu o batel e o cofre do cabedal com algua gente, e à saída de Quíloa a nau, e partiu dali no batel armado como caravelão, seguindo as naus até Melinde, onde esperava de as tomar como tomou; e Francisco de Anhaia entrou em Quíloa em um zambuco com perda de dous navios, com que ambos ficaram iguais na ventura, mas não em modo de caridade. E por derradeiro todos foram ter à Índia, cada um com sua parte de culpas. Porisso ninguém condene as primeiras de seu vezinho enquanto tiver vida, porque ainda tem tempo pera ver as segundas em sua casa.

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383 121 402 Capítulo III. Como Pero de Anhaia foi cercado per os cafres da terra, donde se causou ir ele matar el-Rei, e do que mais passou té ser alevantado um seu filho, que pôs a terra em paz. Pero de Anhaia, acabando de assentar as cousas da fortaleza sem ter sabido esta perdição de seu filho, começou de entender em as do resgate do ouro, o qual corria mui pouco com as mercadorias que se levaram deste reino, que eram conformes às que resgatavam no Castelo de São Jorge da Mina e não as que queriam os negros de Sofala, que todas haviam de ser das que os mouros haviam da Índia, principalmente de Cambaia. E não somente as mercadorias, mas até as defesas dalguas cousas, tudo era ordenado ao modo da fortaleza da Mina, que deu logo no princípio muito trabalho a Pero de Anhaia, e as defesas, como adiante veremos, foram causa de muito mal. Porém, com a vinda das mercadorias que lhe levou Gonçalo Vaz de Góis, as quais o Viso-Rei Dom Francisco ordenou que lhe fossem das que tomou em Quíloa e Mombaça, como atrás fica, por serem as próprias que os cafres queriam, começaram eles a correr a fio com ouro. Porque recebiam mais proveito da fortaleza que da mão dos mouros, e assi bom tratamento de suas pessoas, que foi causa de os mouros descobrirem o ódio que tinham guardado, té verem este termo do resgate em que eles esperavam de se determinar. A qual paixão, não somente moveu os principais, per cuja mão, ante da nossa vinda, corria este trato, mas ainda ao genro del-Rei, que era o maior contrairo que ali tínhamos, aqueixando-se a el-Rei mui gravemente de 384 dar azo a que as cousas viessem àquele termo. El-Rei, vendo-se afadigado dele, peró que lhe tornou repetir as causas que o moveram a dar licença a que se fizesse aquela fortaleza, disse-lhe que, pois os portugueses já estavam tomados da doença da terra, segundo lhe diziam, ele tinha cuidado um modo pera todos serem mortos sem perigo de seus naturais; o qual modo lhe denunciou; com que ele, 121v Musaf, e os outros de sua opinião ficaram satisfeitos, e foi este que logo pôs em execução: Havia dentro, pola terra um Príncipe cafre, per nome Moconde, homem mui poderoso, que senhoreava ua comarca daquela terra de Sofala, da mão de Monomotapa; ao qual Moconde el-Rei de Sofala noteficou como ali eram vindo homens estrangeiros, de mau trato e viver, que como vadios andavam pelo mar, roubando sem perdoar alguém, dos quais roubos tinham ali um grã tesouro de muitos panos de seda e ouro e outras cousas da Índia, as quais pertenciam mais a Monomotapa, por ser senhor da terra, que a eles. E por 403 ele os ter apartado com os mantimentos que não consentia que lhe dessem, estavam postos em tanta fome, que entre ela e febres, não tinham força pera se defender, e pera os tomar não haveria mais detença que chegar e levar-lhe as vidas e fazenda na mão; o que ele per si não queria fazer, sem primeiro saber dele, se queria ser neste caso, porque determinava de a um certo dia mandar entrar com eles. Moconde, como viu estas ofertas, por ser homem bárbaro, cobiçoso e sem cautela algua, passou o rio, e porém com fundamento que, quando lhe não sucedesse bem o caso pera que era chamado, dar na povoação dos mouros, de que levaria algua presa com que sua vinda não fosse debalde. O qual modo (ainda que se pôs em efeito) alguns mouros que conheciam a natureza dos cafres temeram, porque lhe parecia que Meconde havia de cometer algua cousa em dano del-Rei ou ao menos que não viesse a efeito; porque os cafres tem tam pouco segredo, que por um pano descobririam tudo a alguns mouros que lá andavam por serem homeziados, os quais, por fazerem

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seus partidos, veriam dar aviso a Pero de Anhaia, como em efeito assi aconteceu. O qual aviso ele teve por alguns mouros que já veviam derredor da fortaleza, polo benefício que dela recebiam, pedindo-lhe todos que, porquanto temiam a fúria dos cafres, houvesse por bem, ao tempo de sua vinda, de os recolher dentro consigo com mulheres e filhos. Entre os quais requerentes era um mouro principal, chamado Yacote, de natureza abexi, da terra do Preste João, o qual, sendo cativo de idade dez anos, o fizeram mouro, o que lhe ele concedeu. Vindo o dia em que se esperava pela vinda dos cafres, chegaram com tanto alvoroço do roubo que vinham fazer, que sem temor ou ordem algua cinco ou seis mil deles cercaram aquela força que os nossos tinham feita; e não faziam 385 mais, naquela primeira chegada, que quanto lhe os mouros que os traziam ensinavam, que era encher a cava com mato, o que fizeram em breve tempo, pola multidão deles. A qual tanto que foi chea, chegaram-se aos paus das tranqueiras, deles querendo-os arrincar, outros subir per eles acima, e de quando em quando lançavam ua nuvem de setas perdidas que faziam sombra na terra, e encravaram alguns dos nossos, principalmente dos mouros que recolheram consigo, que, por não andarem armados, padeciam mais dano. Peró este seu atrevimento não durou muito; porque, como sentiram a obra da nossa artelharia, que juncava a terra com os corpos deles, sem verem quem os derribava, 404 ao modo de gado espantado começaram a fugir uns per cima dos outros. Mas isto não foi assi tam leve aos nossos que lhe não custasse muito trabalho; porque em toda a fortaleza não havia mais que trinta e cinco homens que pudessem tomar armas, e os outros em tal estado que se ajuntavam cinco e seis pera armar ua besta, e os melhores homens de armas que Pero de Anhaia naquele tempo tinha e que vigiavam de noite e de dia a fortaleza, eram dous librés que os cafres mais temiam que a fúria da lança ou espada dos nossos, porque os braços, ainda que davam com vontade, não tinham força pera fazer dano. E parece que ainda Deus quis nestes dous animais mostrar parte do favor que nos deu contra aqueles bárbaros: porque aos de fora tinham este ódio e aos mouros que Pero de Anhaia recolheu dentro eram mansos como a cada um dos portugueses. Pero de Anhaia, vendo-se neste primeiro ímpeto mui afadigado dos cafres, por lhe não ficar cousa por fazer de capitão e cavaleiro que ele era, com obra de vinte mouros dos da companhia de Yacote, e quinze portugueses dos melhores despostos, saiu fora aos cafres; e deu-lhe Deus tanto favor, que a força de ferro das lanças derribou muitos dos que trepavam pela traqueira acima, e finalmente os fez afastar, recolhendo-se todos a um palmar que estava defronte 122 da fortaleza. E em três dias que ali estiveram sobre ela, no cometimento que per vezes fizeram, morreram tantos que houveram eles que os mouros buscaram aquele modo de os matar, pois os traziam a pelejar contra Deus, segundo eles diziam; ca debaixo das árvores onde estavam as cascas delas, polo mal que fizeram em cometer aquela sua gente branca, os matava. Isto era porque o pelouro da artelharia às vezes ia escodeando os pés das árvores onde eles estavam aposentados, com as quais côdeas e rachas foram muitos deles mortos e feridos; de maneira que não sabiam onde podesse segurar sua vida. E como gente indinada deste engano que lhe os mouros tinham feito em os trazer àquele lugar em que receberam tanto dano, leixando a nossa fortaleza, de passada roubaram a povoação dos mouros, e el-Rei 386 houvera de padecer algum mal, se não prouvera suas casas com gente que o defendeu. Pero de Anhaia, como os viu partidos, porque el-Rei não reinasse outra maldade, sabendo per escuitas que pera isso lançou, como nas suas casas não havia boa vegia e se temiam pouco da fortaleza, por todos estarem doentes, com alguns que pera isso achou bem dispostos, de noite meteu-se no bargantim e, levando suas espias diante, deu nas casas del-Rei. O qual, sentindo o que

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era, pôs-se detrás da porta, e em Pero de Anhaia vindo com ua tocha diante, que ao entrar da casa se lhe apagou, sentindo pessoa junto de si, descarregou com um terçado e alcançou a Pero de Anhaia sobre o pescoço; que, não se desviando, um pouco mais per acerto que por fugir do golpe, per o caso ser às escuras, segundo ele vinha da mão de cego, ali houvera de ficar meio degolado. Mas quis Deus que a ferida foi pequena e, com a tocha acesa, 405 el-Rei recebeu maior, que foi acabar seus tristes dias e cegueira, assi da alma como do corpo, o qual morreu às mãos de Manuel Fernandes, que era feitor, e com ele se achou João Rodrigues Mealheiro. Na qual revolta também morreram alguns mouros que acudiram. Pero de Anhaia, como viu morto el-Rei, que era a causa de sua ida, ante que o lugar se mais apelidasse, temendo que poderia receber algum dano, se tornou recolher ao bargantim e veo-se embora à fortaleza. Os filhos del-Rei, quando souberam da sua morte e que os nossos eram postos em salvo na fortaleza, logo pela menhã, com aquela primeira dor, ajuntaram a mais gente que poderam e foram sobre ela. Mas este seu ímpeto, ainda que deu trabalho aos nossos, não obrou quanto eles desejavam; porque acharam resistência que os fez leixar o lugar que naquela primeira fúria tomaram, chegando-se tanto à tranqueira, que tentaram subir per cima. E como a necessidade dá ânimo e forças, teve esta tanto poder sobre as febres dos nossos, que muitos as perderam com o fervor de se defender, de maneira que a guerra foi a melhor mezinha que teveram por uns dias, porque fez alevantar a maior parte deles. No qual tempo o mouro Yacote e os outros que com ele se recolheram, não somente como leais, mas como valentes homens, ajudaram os nossos. Os filhos e genro del-Rei, como não teveram força pera nos primeiros dous ou três dias levarem a fortaleza na mão, converteram todo seu intento ao negócio da herança, e sobre quem havia de ficar Rei houve logo bandos; com que, esquecidos da morte do pai, começaram buscar suas ajudas. Um dos quais, chamado Soleimão, por ser mais amigo da fortaleza, per meio de Yacote procurou favor de Pero de Anhaia, pera o alevantarem por Rei, o que ele fez com muita diligência. E ainda pera este negócio haver mais cedo efeito, mandou dar da feitoria algua fazenda a mouros principais que eram contra bando, com que este Soleimão ficou Rei pacífico 387 e mui amigo da fortaleza, por o favor que dela recebeu e ele ser homem mancebo, sujeito e obediente ao capitão Pero de Anhaia. Aos quais leixaremos um pouco té seu tempo, por dar conta das cousas que o Viso-Rei Dom Francisco fez, depois que leixámos de falar nele.

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387 122 406 Capítulo IV. Como o Samori, Rei de Calecute, fez ua grossa armada; a qual Dom Lourenço, filho do Vice-Rei, desbaratou. 122v Atrás fica relatado como o Samori, Rei de Calecute, a instância e requerimento dos mouros moradores e tratantes no seu reino, enviou um embaixador ao Soldão do Cairo. E posto que, ao tempo que o Viso-Rei Dom Francisco chegou à Índia, ele, Samori, tinha já recado de quam bem este seu embaixador fora recebido, e a grande armada que o Soldão prometia ao seu requerimento, com todas estas promessas em que ele já tinha boa parte de sua esperança pera nos lançar da Índia, enquanto as não via, quis segurar-se nas próprias, mandando fazer grã número de navios pera defensão dos portos e costa do seu reino, parecendo-lhe que a nossa guerra seria ao modo das armadas passadas, de ir e vir com a carga da especearia nos tempos de nossa monção, e de caminho fazer algum dano, se achássemos desposição pera isso. Porém quando ele soube a entrada do Viso-Rei na Índia e o que fezera em Quíloa e Mombaça, e as fortalezas que leixa feitas, houve que tanto fundamento fazíamos de conquistar a terra, quanto do comércio da especearia. E como quem tinha experiência de nossas cousas, todo o seu conselho e indústria converteu em fortalecer os seus portos, e acrescentar número de mais navios dos que tinha feito, adquerindo per ua e outra parte força de gente e artelharia; não somente com tenção de se defender, mas ainda de nos lançar da Índia, ante que arreigássemos as raízes que já começávamos lançar. El-Rei de Cochi, polo que lhe importava, trazia sempre em casa do Samori pessoas que lhe davam aviso de todas estas cousas, e tanto que o Viso-Rei chegou a Cochi, depois que se com ele viu a primeira vez, lhe deu conta destes grandes aparatos do Samori, e também como alguas naus das que andavam per aquela costa do Cabo Comori té Chaúl e Cambaia, em o maneo dos mantimentos e cousas necessárias aos povos da costa Malabar, com achaque de serem amigos dos portugueses eram roubadas da armada que o Samori trazia per aquela costa. De maneira que estava já mui corrente as naus de Coulão, de Cochi e Cananor, por nossa causa, não poderem navegar per aquela costa, senão com grande risco de serem tomadas, e eram havidos os povos destes três reinos por imigos mortais do Samori, porque ele assi os tratava. O Viso-Rei, peró 388 que, per ordenança de seu regimento, levava que, como o verão entrasse naquela costa té a fim dele, trouxesse sempre grossa armada nela, por causa das naus de Meca e mouros que tiraram a especearia 407 do Malabar, e principalmente por causa destes danos que nossos amigos recebiam das armadas do Samori, e assi do aparato que ele tinha feito pera se defender, ordenou, tanto que despachou as naus da carga que vieram pera este reino, de mandar seu filho Dom Lourenço com ua armada, assi pera guarda e favor das naus de Coulão, Cochi e Cananor, enquanto iam fazer suas comutações e comércio de mercadorias uas por outras, segundo o uso da terra, per aqueles portos té Chaúl, que era o lugar a que se elas mais estendiam, como também pera defender que as naus do estreito de Meca não entrassem nem saíssem nos portos de Calecute, ca esta era a mais crua guerra que lhe podia fazer. Porque os reinos cujo principal estado consiste em navegação e que tem entradas e saídas de que vivem, são como o corpo animado, que, se lhe tiram a entrada e saída das cousas que o sustentam, não tem mais vida.

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Apercebida esta armada, partiu Dom Lourenço com estas velas: ele em a nau em que andava por capitão Rodrigo Rabelo, Bermum Dias em um navio e Felipe Rodrigues em outro; Nuno Vaz Pereira, Gonçalo de Paiva, Antão Vaz, Lopo Chanoca, Francisco Pereira Coutinho, cada um em sua caravela e João Serrão em ua galé, porque, naquele tempo, estes navios pequenos se haviam por melhores pera pelejar. E a tenção de Dom Lourenço era ir acompanhando as naus dos nossos amigos que dissemos, té chegar a Chaúl, se necessário fosse; e enquanto eles fizessem suas mercadorias, nos portos onde iam ordenados, daria ele ua vista a toda a costa e depois os tornaria recolher. Seguindo seu caminho nesta ordem, como foi na paragem de Calecute, porque não achou nova ser saída a armada que se dezia del-Rei de Calecute, leixou naquela 123 paragem, em guarda da costa, Bermum Dias e Francisco Pereira, com os quais se havia ajuntar ua galé de que era capitão Diogo Pires, aio dele, Dom Lourenço, que, ao tempo de sua partida de Cochi, não estava de todo prestes e por isso ficou té se aperceber. Os quais ficavam com regimento que, enquanto não saísse armada de Calecute, se leixassem andar tolhendo a entrada e saída das naus dos mercadores; e saindo armada, que se fossem juntar com ele. Espedido Dom Lourenço deles, foi dar ua vista a Cananor, leixando as naus dos mercadores que fossem fazer seus proveitos, por quanto já iam seguros da armada do Samori; e nestes dias que se ali deteve, veo ter com ele um italiano, per nome Ludovico Romano, dizendo que escondidamente saíra de Calecute lhe dar nova da grande armada que estava prestes pera sair, e o muito resguardo que se tinha aos rios onde se fazia 389 prestes, que não se soubesse per os portugueses ; e assi disse como lá andavam dous levantiscos artelheiros, oferecendo-se a os tirar daquela parte, os quais eram aqueles de que já atrás fizemos menção, sobre que o Samori tantas vezes se desaveo 408 nos contratos da paz. Contou mais este Ludovico outras cousas a Dom Lourenço, que lhe conveo mandá-lo a seu pai, em a galé de João Serrão; e ouvindo o Viso-Rei o que dezia, o tornou logo espedir pera trabalhar de trazer consigo os dous fundidores. O qual negócio não houve efeito; porque, sendo eles sentidos que se queriam vir a nós, foram mortos; e todavia ele, Ludovico, veo ter a este reino na armada de Tristão da Cunha, e daqui se foi pera Itália e lá escreveu em língua vulgar toda sua peregrinação, e estas cousas que passou com Dom Lourenço com muitas daquelas partes, o qual tratado depois se tresladou em latim e anda encorporado em um volume intitulado Novus Orbis. Da escritura do qual, acerca do que ele diz da sua ida e vinda a Dom Lourenço e a seu pai, tomamos somente o que sabemos pelos nossos, o mais leixamos na fé do autor. Finalmente, do que ele contou ao Viso-Rei do grande aparato da armada do Samori, depois de o ter já espedido e mandado na galé de João Serrão em que foi, a grande pressa mandou aperceber a outra galé de Diogo Pires, que ainda não era de todo provida, e per ela mandou recado a Dom Lourenço do que via fazer, e do mais que tinha sabido per via del-Rei de Cochi acerca dos aparatos do Samori pelas espias que lá trazia. O qual Diogo Pires, sendo na paragem de Cananor, deu em meio de ua grande frota de até duzentas e cinquenta velas, a maior parte das quais eram paraus, todas a ponto de guerra, que saíram dos portos de Calecute onde se fizeram prestes. E posto que ele, Diogo Pires, correu assaz de risco, todavia a vela e remo o salvou dos paraus que o seguiram um bom pedaço. Saindo desta afronta, foi dar com Bermum Dias e Francisco Pereira, que, por lhe falecer água, eram idos a Cananor; e tomada, espedindo-se de Lourenço de Brito, com o qual houveram conselho, a grã pressa foram ter com Dom Lourenço. O qual vinha de Anchediva e trazia consigo a Simão Martins em o seu bargantim, que estava em serviço da fortaleza, com o qual eram já número de onze velas. Dom Lourenço, com o recado que lhe Diogo Pires deu de seu pai e nova da vista daquela grande armada, teve logo conselho do modo que teriam no cometimento dela, e posto que o caso, ao

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parecer dos mais, era cousa mui duvidosa - esperar tamanha frota, quanto mais i-la buscar - todavia, pelo recado do Viso-Rei que sobre isso escrevia a seu filho e aos capitães, assentou-se que a fossem buscar e o modo de pelejar com ela fosse varejá-la bem de artelharia, sem abalroar nenhua nau. Porque, segundo a estimação de Diogo Pires, havia entre aquele grã número de 390 velas até sessenta naus, mui sobranceiras às nossas, das quais se não poderiam bem ajudar; e que 409 bastava o dano que lhe podia fazer a nossa artelharia; e porém, quando o caso desse outro conselho, então ele mesmo ensinaria o modo. Recolhidos os capitães a seus navios, da nau de Dom Lourenço onde se isto assentou, começaram de se aperceber pera aquela festa de fogo e sangue em que esperavam de entrar; e feitos à vela, foram na volta da terra. Dom Lourenço, tanto que houve vista deles, trabalhou por se poer a barlavento, o que fizeram todos, ca somente isto tinham por regimento - ter olho na capitânia e segui-la, porque dali dependia o conselho do feito. Do qual lugar tanto que foram senhores, começou a artelharia varejar per o grande cardume deles, desaparelhando uns e metendo outros no fundo, porque, 123v como eram bastos, nenhum tiro perdia carregando sobre eles, de maneira que, por fugirem a nossa artelharia, que os tratava mal, iam cosendo com a terra quanto podiam. E como, por razão da vantagem que lhe Dom Lourenço tinha no lugar de balravento, eles se não podiam aproveitar das frechas que levavam e artifícios de fogo pera o tempo de abalroar, e todo o dano que faziam aos nossos era com sua artelharia, a maior parte da qual, por ser de ferro, era de pouca fúria em comparação da nossa, começaram com o grande dano que recebiam de se poer mais em modo de salvação que de peleja. Finalmente, Dom Lourenço, vendo como Nosso Senhor lhe amostrava vitória, toda aquela tarde os foi seguindo no modo que levava com eles, sem querer abalroar; no qual alcanço, além dos zambucos e paraus que foram metidos no fundo, fez encalhar ao longo da costa, ua antre outra, doze naus; porque, temendo elas artelharia, cosiam-se tanto com terra, que davam em seco, e outras de se não poderem soster sobre água, de arombadas. As que teveram melhor vela, vendo que naquele tempo recebiam mais dano do que o faziam, foram-se todas meter em ua enseada por afracar a viração, e ali se encadearam todas uas nas outras, com esperança que, como viesse o terrenho, de se fazer à vela sobre as nossas, porque ficavam então iguais no lugar do vento. Dom Lourenço, pelo modo, que viu - de todas seguirem e ampararem ua das naus principais - entendeu que aquela devia ser a capitânia, na qual estava o governo e principal força da frota; e, posto que o dia de antes tinha assentado que não abalroassem, por o grande número de velas, e muitas serem sobranceiras às suas, visto o modo da peleja dos imigos, que era lançar nuves de setas, e a sua artelharia ser mui fraca, determinou com os capitães que, ao seguinte dia, ele e Felipe Rodrigues abalroassem esta capitânia, cada um per seu bordo, e Bermum Dias e Gonçalo de Paiva abalroassem outra nau grande que estava junto dela, e os outros navios e galés por serem pequenos e rasos, andassem de fora, defendendo a outra 391 frota que não socorresse a estas duas naus, onde parecia estar toda a força da armada, segundo elas mostravam 410 nos pelouros de artelharia que espediam de si, e na multidão de gente luzida que aparecia. Concertado este modo de cometer as duas naus, tanto que o terrenho de noite começou ventar, os mouros, sem fazer rumor, se fizeram à vela e mandaram aos paraus que se cosessem com terra, por ficarem a balravento das nossas velas. Peró, como os nossos capitães a todalas suas indústrias estavam cautelados, quando foi ao levantar do pouso, tanto se melhoraram em lhe tomar o lugar de balravento, que por esta vantage que lhe houveram, e assi porque da ponta de Cananor,

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ao passar dela, onde os da nossa fortaleza poseram ua serpe com que os faziam arredar da terra, todos se foram meter na companhia dos outros navios grandes, que ao mar andavam em calma, na parage de Tramapatão, que será duas léguas de Cananor, por lhe falecer o terrenho, e a viração vir mais tarde. Com a qual, tanto que veo, se fizeram na volta da terra, como quem a buscava por abrigo com o temor que já levavam dos nossos; e o primeiro sinal que Dom Lourenço teve de lhe Deus dar vitória, foi acudir um pouco de vento noroeste tão vivo na vela, que conveo aos imigos surgirem com as naus principais defronte da baía de Cananor. Dom Lourenço, como os viu surgir, mandou tomar a vela grande e poer em ordem de aferrar como já tinha assentado com os capitães, mais isto não lhe foi tam fácil como ele cuidou; porque os mouros, tanto que viram o arpéu dentro, posto que a sua nau capitânia fosse muito sobranceira à de Dom Lourenço, e em munições, artifícios de fogo e número de gente tevesse muita vantage, trabalharam logo de o lançar fora. Contudo desta chegada ficaram dentro nela cinco homens dos nossos, pessoas que neste mister trabalhavam por ser dos primeiros. Os quais eram Rodrigo Rabelo, capitão desta nau São Miguel, Diogo Aires e António Mendes, e dos outros seus nomes não vieram a nossa notícia. Dom Lourenço, quando se viu desaferrado e um bom pedaço per popa da nau, e que Bermum Dias e Gonçalo de Paiva, que também haviam de abalroar, a força do vento os empachou no tomar das velas, com que ficaram em vão, e Felipe Rodrigues, que houvera de ser com ele, também se embarçou no aferrar, começou a bradar contra Nuno Vaz Pereira, que vinha na sua esteira, que se chegasse a ele, por ter navio pequeno que o 124 podia atoar. Nuno Vaz, como era cavaleiro e homem mui diligente nestes tempos, vendo que dentro da nau dos mouros ficaram os cinco homens de Dom Lourenço, mandou a Vicente Landeiro, mestre do seu navio, que em toda maneira aferrasse a nau. O qual mestre, por ser homem de espírito e astucioso nas cousas do mar, ainda que não foi pela parte que ele quisera, todavia a nau foi aferrada e per 411 modo e lugar 392 tam perigoso, que havendo ser isto desastre, foi em dita. Porque o navio ficou atravessado debaixo da gorja da nau, encaminhado per Deus, que deu vida aos cinco nossos que estavam acolhidos aos castelos da proa, onde com muito trabalho e perigo se defendiam dos mouros, que eram todos sobre eles. E certo que era cousa mui temerosa de olhar, quanto mais pera cometer, o que Nuno Vaz fez; porque a comparação que há da grandeza e ferocidade de um bravo touro a um ardido libré, havia da nau dos mouros, que seria de quinhentos tonéis, atulhada deles e de artefícios de fogo, à caravela São Jorge, de Nuno Vaz, que era pouco mais de cinquenta tonéis. E ainda a este seu ânimo não faleceu boa indústria dele, Nuno Vaz, e diligência do seu mestre, que cortou com um machado a amarra da nau com que ela descaiu sobre a de Dom Lourenço. O qual, tanto que a envestiu, assi por ajudar aos cinco nossos, que estavam bem necessitados, como por não lhe tornarem outra vez lançar o arpéu fora, saltou logo dentro com um golpe dos seus, que o seguiam, entre os quais eram Fernão Peres de Andrade, Rui Pereira, Vicente Pereira, João Homem, e assi se meteram com os imigos, que seriam mais de quatrocentos, homens de peleja, que desapressaram os cinco, e a Nuno Vaz, que com os seus era já na proa da nau onde eles estavam. Felipe Rodrigues, posto que perdeu aquela primeira chegada pera aferrar com Dom Lourenço, não perdeu a sorte doutra nau vezinha desta capitânia, em que também teve assaz de trabalho; porque duas vezes lhe lançaram o arpéu fora, té que, na terceira, fez melhor presa. Bermum Dias, por ter navio grande com Gonçalo de Paiva, pela ordenança que levavam, ambos compriram o preceito de seu capitão e obrigação de cavaleiros que eles eram. As galés e bargantim,

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por serem navios rasos, padecerem assaz de trabalho e perigo, porque com artefícios de fogo e nuves de setas os cobriam, e houveram-se Simão Martins e João Serrão de maneira que não se contentavam de escapar de um perigo senão meter-se em outro maior, por entreter os navios pequenos dos imigos, que não fossem empedir a obra que fazia Dom Lourenço e os capitães que aferraram. Finalmente, assi estes navios de remo como as caravelas, cada um em seu modo, fez tanto per si, que dificultosamente se poderia julgar qual dos capitães nesta batalha e conflito teve menos que fazer. Baste saber que, pelo trabalho que cada um pôs na parte que lhe coube por sorte, assi deu conta de si, que os imigos que poderam escupular-se, punham em salvo quanto podiam. Dom Lourenço, porque leixava já a nau enxorada dos mouros, parte estirados no lugar onde os tomou a morte e parte que se acolheram a nado 412 pera terra, ante que as outras velas se alongassem mais, começou de as seguir com os navios de sua armada. E em chegando aos imigos, não fazia mais que meter uns no fundo, com outros dava à costa, 393 e assi os foi decepando poucos e poucos, té que, já no fim do dia, não os quis ele mais seguir, e mandou a Nuno Vaz e a Felipe Rodrigues e aos capitães das galéis que lhe fossem no alcanço. Os quais, ao outro dia, tornaram bem cansados de seguir o fim daquela vitória, que foi a dezoito dias de Março do ano de quinhentos e seis, e ua das maiores que se naquelas partes houve, consirando a desigualdade do número das velas dos imigos e gente que nela vinha aos nossos. E se neles houvera tanto ânimo como vinham apercebidos de munições e artifícios de guerra, mais sangue de morte houvera entre os nossos. Mas Deus, por mostrar que aquela obra fora das suas mãos, ainda que foi a custa do sangue de muitos, principalmente em os da nau de Dom Lourenço, em todo furor daquele feito houve somente cinco ou seis mortos. E pera curar os feridos e dar repouso a todos, ele se recolheu em Cananor, onde foi recebido com grande solenidade dos nossos e do Rei da terra, que o veo visitar. Por memória do qual feito, Dom Lourenço, primeiro que se dali fosse, mandou fundar ua ermida da vocação de Nossa Senhora da Vitória, na ponta aguda da terra onde a nossa fortaleza estava feita, no próprio lugar em que Lourenço de Brito mandara pôr ua peça de artelharia contra os imigos, polos afastar da terra, como dissemos. 124v A este tempo que Dom Lourenço descansava do trabalho deste feito, estava Manuel Paçanha em a fortaleza de Anchediva em grã perigo, cercado de mouros e gentios que o senhor de Goa mandou em ua frota de até setenta navios de remo, parte dos quais estavam em o Rio de Cintacorá, cuja vezinhança o Viso-Rei sempre temeu, e parte vieram de Goa a se ajuntar com estes. O qual ajuntamento o Sabaio mandou fazer, depois que soube que Dom Lourenço chegara dar vista àquela fortaleza de Anchediva e se tornara pera baixo contra o Malabar, ca lhe pareceu ser este o melhor tempo de a cometer, per conselho de um arrenegado que vinha por capitão da frota, ao qual, segundo se depois soube, ele tinha prometido a fortaleza de Cintacorá, se desse modo com que a nossa de Anchediva fosse tomada. E este arrenegado era aquele degredado per nome António Fernandes, carpinteiro da Ribeira, que da armada de Pedrálvares Cabral ficou em Quíloa, como atrás fica, o qual se passou daqui pera a Índia em naus de mouros, e foi asentar vivenda com o Sabaio, que lhe fez honra, assi por ser homem de sua pessoa, como por se fazer mouro, cujo nome era Abedelá, e depois lhe foi muito mais aceito pola indústria que deu de tomar esta fortaleza de Anchediva, pola qual razão lhe entregou a capitania-mor daquela frota. 413 A vinda do qual, por ser ante menhã, não houveram os nossos vista dela, senão depois que deram na povoação da gente da terra que estava junta da nossa fortaleza; a qual não tinha mais defensão que ua cerca baixa e ua torre, tudo de

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394 pedra e barro. E como os nossos, em tam fraca cousa, não tinham as vidas mui seguras, poseram toda a esperança da sua salvação na ponta da espada, a qual logo os mouros começaram sentir; porque, achando a desembarcação franca, pareceu-lhe que outro tanto havia de ser à chegada da fortaleza, peró a artelharia e o ferro dos nossos os fizeram afastar. Com o qual dano, que foi mui grande naquele primeiro ímpeto de sua chegada, se recolheram a um teso de grande arvoredo que estava soberbo sobre a fortaleza, como gente que dali queria fazer a guerra, e assi a fizeram com tanto dano dos nossos, que não podiam andar per dentro da fortaleza, sem serem feridos de espingardas e frechas, por ser mui perto dela. Manuel Paçanha, vendo que não tinha amparo, ordenou de pôr certas peças de artelharia meúda sobre a torre, e dali varejava o lugar da estância deles; e em outra parte pôs outras peças grosas, com que lhe meteu alguas fustas e vasilhas em que vieram, no fundo do mar. Todavia três ou quatro dias apertaram tanto com a fortaleza, que meteram os nossos em muito trabalho, porque em todo aquele tempo não tinham espaço de comer nem dormir senão em pé. E o que lhe dava maior paixão era ouvir de noite as cousas que contra eles dezia aquele arrenegado, conformes a estado em que ele estava. Finalmente, vendo os mouros que naqueles primeiros dias não poderam levar a fortaleza na mão e que mais dano tinham recebido que feito, e que ao tempo da sua chegada viram partir dous barcos dos nossos que andavam no serviço da fortaleza, temeram que fossem dar aviso a Dom Lourenço, que sabiam andar naquela costa de armada, e, vindo ele, ficavam em maior perigo do que os cercados estavam. Com o qual temor e atalaias que sobre isso traziam no mar, tanto que per elas souberam que os nossos eram socorridos com a vinda dos navios que Dom Lourenço mandou, com o rebate que lhe os barcos deram, começaram a grã pressa levantar o cerco e poseram-se em salvo. Chegados os capitães que Dom Lourenço mandava e provida a fortaleza dalguas munições, mantimentos e gente, tornaram-se a Cananor; e sabendo ele o estado dela e que aquele cometimento dos mouros procedera da vezinhança de Cintacorá, onde se eles todos acolheram, determinou de se partir pera Cochi, dar razão a seu pai do perigo em que aquela fortaleza Anchediva ficava, vindo o inverno, por quam vezinha estava de Goa e longe do secorro que lhe havia de ir de Cochi - e por estas razões e outras importantes ao serviço del-Rei foi di a pouco tempo desfeita. E porque de toda a vitória que Dom Lourenço houve da armada do Samori não se achou cousa de presa de maior preço que quatro naus que estavam com carga de especearia, esta somente levou consigo, que apresentou a seu pai em Cochi, como insígnias de sua vitória.

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395 124v 414 Capítulo V. Como o Viso-Rei mandou seu filho Dom Lourenço descobrir as Ilhas de Maldiva e Ilha Ceilão, e o que fez nesta viagem, té tornar a Cochi. 125 Vendo os mouros que andavam no comércio das especearias e riquezas da Índia que com a nossa entrada nela não podiam navegar, por causa destas armadas que trazíamos na costa Malabar, onde todos vinham deferir, buscaram outro novo caminho pera navegarem as especearias que haviam das partes de Malaca, assi como cravo, noz, massa, sândalo, pimenta que haviam da Ilha Samatra, em os portos de Pedir e Pacém, e outras muitas cousas daquelas partes. O qual caminho faziam, vindo per fora da Ilha Ceilão e per entre as Ilhas de Maldiva, atravessando aquele grã golfão, té abocar os dous estreitos que dissemos, por fugir desta costa da Índia que lhe defendíamos. O Viso-Rei, como soube parte deste novo caminho que eles faziam, e assi da Ilha Ceilão, onde eles carregavam de canela, por se nela haver toda a daquelas partes, com fundamento do muito que importava ao serviço del-Rei tolher este caminho e ter descoberto aquela ilha, e asi as de Maldiva, por razão do cairo que se delas havia, que era o essencial de toda a navegação da Índia, pois dele se faz toda a xácea, determinou mandar seu filho Dom Lourenço a este negócio, por ser no tempo de monção daquela passagem. O qual levou nove velas das que trazia em sua armada, e pela pouca notícia que os nossos pilotos tinham daquela navegação, peró que levasse alguns da terra, foram dar com as correntes na Ilha Ceilão, a que os antigos chamam Tapobrana, da qual faremos copiosa relação, quando escrevermos o que Lopo Soares fez nela, ao tempo que fundou ua fortaleza em um dos seus portos, chamado Columbo, que é catorze léguas acima do de Gale, onde Dom Lourenço foi ter, que está na ponta da ilha. Em o qual achou muitas naus de mouros que estavam à carga de canela e elefantes pera Cambaia; os quais, quando se viram cercados da nossa armada, por segurarem suas pessoas e fazenda, fingiram querer connosco pazes, e que el-Rei de Ceilão lhe tinha encomendado que, quando passassem pela costa da Índia, notificassem ao Viso-Rei que mandasse a ele algua pessoa pera assentar paz e amizade com el-Rei de Portugal, pola vezinhança que tinha com os seus capitães e fortalezas que fizeram na Índia, e também por causa da canela que havia naquela sua ilha, e outras mercadorias que lhe podia dar pera a carga de suas naus, per via de comutação. Dom Lourenço, como ia a descobrir e a tomar as naus dos mouros de Meca, que andavam navegando do Estreito pera Malaca per aquele novo caminho, e na carga dos elefantes 396 que aqueles tinham, com a mais informação 415 que teve dos pilotos da terra que levava, soube serem naus de Cambaia com que não tínhamos guerra, não lhe quis fazer dano algum; e também por não entrar com mão armada naquela parte onde os mouros tinham lançado fama que os portugueses eram cossairos do mar, mas ante aceitou o que ofereciam da parte del-Rei. E per meio deles fez vir algua gente da terra, per cujo aprazimento meteu um padrão de pedra em um penedo, e nele mandou esculpir uas letras, como ele chegara ali e descobrira aquela ilha. E Gonçalo Gonçalves, que era o pedreiro da obra, peró que não fosse Hércules pera se gloriar dos padrões de seu descobrimento, eram estes em parte de tanto louvor, que pôs o seu nome ao pé dele, e assi fica Gonçalo Gonçalves mais verdadeiramente por pedreiro daquela coluna do que Hércules é autor de muitas que lhe os gregos dão em suas escrituras. Os mouros, como viram que Dom Lourenço segurou nas palavras que lhe eles disseram da parte del-Rei, fingiram irem e virem com recados a ele, e, per derradeiro, trouxeram quatrocentos

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bahares de canela da que eles tinham recolhida em terra pera carregarem, dizendo que el-Rei, em sinal de paz e amizade que desejava ter com el-Rei de Portugal, enquanto a não assentava per seus embaixadores, lhe oferecia toda aquela canela pera carregar os seus navios, se quisesse. E porque Dom Lourenço disse que queria mandar recado a el-Rei, eles se ofereceram de levar e trazer as pessoas que ele ordenasse pera isso. As quais foram Paio de Sousa, que ia em lugar de embaixador, e por seu escrivão Gaspar Dias, filho de Martim Alho, morador em Lisboa, e Diogo Velho, criado de Dom Martinho de Castelbranco, veador da fazenda del-Rei, que depois foi Conde de Vilanova, e um Fernão Cotrim e outras pessoas de seu serviço. Os quais, entregues aos mouros que negociavam esta ida, foram levados per tam basto arvoredo que quási não viam o sol, dando tantas voltas que lhe parecia mais laberinto 125v que caminho direito pera algua parte; e andando um dia todo, os meteram em um lugar escampado, onde estava muita gente, e no cabo dele havia uas casas de madeira que parecia cousa nobre, onde lhe disseram que viera folgar, por aquele lugar ser ua maneira de quintã. No cabo do qual escampado, boa distância das casas, os fizeram deter, dizendo que não lhe convinha passar dali sem licença del-Rei; e começaram de ir e vir com recados e perguntas a Paio de Sousa, como que vinham del-Rei, mostrando ter contentamento de sua ida. Finalmente, Paio de Sousa, somente com dous dos seus, foi levado àquele lugar onde, segundo deziam os mouros, estava a pessoa del-Rei. E tanto que chegaram a ele, logo os espediu, mostrando ter contentamento de ver cousas del-Rei de Portugal, dando graças a ele, Paio de Sousa, por sua ida e ao Capitão-mor 397 que os mandara a ele, e que sobre a paz e amizade que desejava 416 ter com el-Rei de Portugal, ele mandaria a Cochi seus embaixadores, e que em sinal dela enviara a canela e lhe mandaria dar o que houvesse mister pera provisão da armada, e com isto o espediu. O qual modo de Paio de Sousa em ir e vir per mão daqueles mouros e chegada a este lugar e prática que teve com esta pessoa que lhe diziam ser del-Rei de Ceilão, tudo foi artefício deles e quási ua representação de cousas que não eram, parte das quais Paio de Sousa entendeu e depois se souberam em verdade. Ca este homem com quem ele falou, ainda que em o tratamento de sua pessoa e gente que o reverenciava parecia ser quem lhe diziam, ele não era el-Rei de Ceilão, mas o senhor do porto de Gale; e outros quiseram dizer que nem ele era, mas qualquer outra pessoa nobre, que por seu mandado e artefício dos mouros se mostrou aos nossos naquele modo e lugar, isto a fim que eles, por aquela vez, segurassem suas naus, e em quanto andavam nisto recolherem a fazenda que tinham nelas a terra, como fizeram. Dom Lourenço, quando soube de Paio de Sousa o que passava e sentia daquele caso, dissimulou com os mouros, porque, como aquela ilha era de Rei gentio (posto que naquele tempo não se sabia verdadeiramente de suas cousas), pareceu-lhe que, ora ele fosse aquele com que Paio de Sousa falou ou não, podia ser tudo ordenado per ele, por todolos reis gentios serem mui supersticiosos no modo de se comunicar connosco, e que per ventura os mouros o teriam assombrado que o não fizesse. E sem querer mais examinar este caso, porque o tempo lhe não consentia estar naquele porto, em que corria risco, fez-se na volta de Cochi. E porque Nuno Vaz Pereira, com o tempo rijo que os fez alevantar, quebrou a verga grande do seu navio, foi necessário tornar outra vez ao porto, onde achou que o nosso padrão estava já chamuscado de fogo, como que lho poseram ao pé; e pedindo razão disso aos mouros que ali estavam, deram a culpa aos gentios da terra, dizendo que, por ser gente idólatra, se lhe entolharia algua cousa por onde o fizessem. Nuno Vaz, amoestando o caso em modo de ameaças, se naquilo mais procedessem, dissimulou o passado; e consertada a verga do seu navio, tornou-se a Dom Lourenço, o qual achou na costa da Índia, em um lugar chamado Berinjão, que é do senhorio de Coulão. E porque alguns mouros que ali veviam foram na morte de António de Sá, saiu Dom Lourenço em terra e queimou o lugar, em que também houve sangue dos naturais e dos nossos, na resistência que fizeram ao sair

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em terra, e queimar de certas naus que ali estavam esperando carga. E tomado este emenda do dano que aqueles mouros tinham feito, partiu-se Dom Lourenço pera Cochi, onde chegou com sua frota.

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398 125v 417 Capítulo VI. Da viagem que fez Cide Barbudo com Pero Coresma, e como por causa das naus que ele levou ao Viso-Rei - que Pero de Anhaia era falecido em Sofala e divisões que havia em Quíloa por ser morto el-Rei Mahamede - ele, Viso-Rei, mandou a Nuno Vaz Pereira a prover nestas cousas e a servir de capitão em Sofala. E das mais cousas que sucederam em Quíloa, té que de todo o deixámos. 126 Cide Barbudo e Pero Coresma (como atrás fica) partidos deste reino, cuidando que tinham dobrado o Cabo de Boa Esperança, acharam-se na Angra das Areas, que é aquém dele obra de cento e cinquenta léguas; e com voltas ao mar e à terra, trabalhosamente chegaram à Aguada de Saldanha, onde fizeram algum resgate de mantimentos com os cafres, e aqui se passou Cide Barbudo ao navio de Pero Coresma, por ele levar o cargo deste descobrimento, e Pero Coresma à sua nau. Dobrado o cabo, porque os tempos o não leixavam descobrir à sua vontade, principalmente no lugar da suspeita, que era na Aguada de São Brás, sendo a este tempo já apartado de Pero Coresma, tanto andaram com os tempos um sobre outro, té que se ajuntaram no lugar onde o piloto se afirmava ver estar Pero de Mendoça encalhado, vindo ele por piloto da nau de Lopo de Abreu. E por este lugar ser o da suspeita, onde parecia que a nau podia vir à costa, lançou Cide Barbudo dous degredados em terra, os quais iam oferecidos a este trabalho de correrem ao longo da costa e saberem dos cafres se havia algua gente branca no sertão; os quais di a sete dias tornaram àquele lugar de suspeita, onde os navios não podiam chegar com os tempos, e deram por nova acharem parte da liação da nau queimada, como que viera ter à costa, sem os cafres lhe saberem dar rezão da gente. Pelos quais sinais houveram que a nau era perdida, e tiveram pera si que o fogo fora posto pelos cafres, por tirarem a pregadura da nau, por entre eles o ferro ser estimado; e o maior dano que fizeram a estes dous degredados foi despojá-los do vestido que levavam. Tornando Cide Barbudo a sua nau e Pero Coresma ao navio, fizeram-se via de Sofala, onde acharam Pero de Anhaia morto e muita parte da gente, e a outra tam debilitada da doença, que a fortaleza estava na cortesia dos mouros, posto que Manuel Fernandes, que então servia de capitão, trabalhasse muito na vegia dela. Cide Barbudo, leixando-lhe algua gente e provisão do que levava e a Pero Coresma em o seu navio, pera melhor guarda 418 da fortaleza, partiu-se dali em Junho do ano de quinhentos e seis, e, passando per Quíloa, achou que em seu modo estava em tanta necessidade como Sofala. Porque o novo Rei Mahamede Anconi era morto 399 e sobre a sucessão do reino estava a terra posta em bandos, assi entre os mouros como acerca do capitão Pero Ferreira e oficiais; e posto que Cide Barbudo em aquele negócio fez pouco, por não poder mais, fez muito com sua chegada à Índia. Ca, sabendo o Viso-Rei parte do estado em que ficavam estas duas fortalezas, espediu logo a Nuno Vaz Pereira, em o navio em que andava Gonçalo Vaz de Góis, pera vir estar por capitão em Sofala e prover em as diferenças de Quíloa. E mandou com ele um navio de que era capitão Duarte de Melo, de Serpa, seu sobrinho, e assi vinha Francisco de Anhaia pera arrecadar a fazenda de seu pai defunto, e o ouro que lhe Pero Ferreira tomou em Quíloa, ao tempo que ali veo ter perdido; e assi vinha com ele, pera servir de alcaide-mor da fortaleza de Sofala, Rui de Brito Patalim, que era provido por el-Rei navegante de Rui de Sousa, por a este tempo ele ser já falecido, e António Raposo e Sancho Sanches por escrivães da feitoria. Trazia mais Nuno Vaz a Luís Mendes de Vasconcelos, da Ilha da Madeira, e António de Sousa, que fora de Sofala com Cide Barbudo, e Fernão de Magalhães, que depois se lançou em Castela com a

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empresa de Maluco, e assi outras pessoas nobres, por Nuno Vaz ser homem bem-quisto, e por razão de sua amizade folgaram de vir com ele, posto que era sem cargos. E o primeiro porto que tomou, na fim de Novembro de quinhento e seis, foi Melinde, onde o Rei da terra os recebeu com muito prazer, e à espedida lhe concedeu Nuno Vaz que podesse mandar duas faraçolas , que serão trinta e seis arráteis dos nossos de contas de Cambaia pera se lá resgatarem a troco de ouro; e assi lhe deu um mouro velho que trazia por escravo, o qual fora tomado em Quíloa por cativo, porque, ao tempo que coroavam Mahamede Anconi por Rei, este mouro, em desprezo de sua pessoa, lhe fez um desacatamento, as quais cousas Nuno Vaz lhe concedeu por honra de sua pessoa. Porém pediu-lhe que lhe desse licença que levasse o mouro a Sofala, por ser homem que sabia os negócios dela e que de lá lho mandaria polo feitor, per quem ele enviava as contas de Cambaia. E depois que Nuno Vaz pôs este mouro em sua liberdade, ficou no estado que dantes tinha, que era dos principais da terra. 126v Fazemos dele esta menção, porque ao diante serve saber este fundamento de suas cousas. E porque Nuno Vaz soube aqui mais particularmente a causa das diferenças de Pero Ferreira com os oficiais da fortaleza, que era a morte del-Rei Mahamede, donde procedeu despovoar-se Quíloa, o qual negócio ele trazia mui encomendado do Viso-Rei, será necessário sabermos o fundamento dela. Como atrás escrevemos, por razão do regimento que el-Rei Dom Manuel 419 mandou a Quíloa sobre a guarda da costa de Sofala, que ninguém tratasse com roupa e fazenda per que se havia ouro das mãos dos cafres da terra, andavam de armada um navio e 400 um bargantim que Pero Ferreira, capitão de Quíloa, ordenou pera esta guarda; e entre alguas presas que fizeram, foi tomar ua nau que vinha das Ilhas de Angoxa, em a qual se achou um filho del-Rei de Tirendincunde. O qual, posto que mui vezinho era de Quíloa, como estava de guerra connosco, por ser parente de Abrahemo, Rei que foi dela, Pero Ferreira o houve por cativo, e a toda sua família. El-Rei Mahamede Anconi, como era homem novo e sem parentes na terra, desejando ganhar os vezinhos com benefícios pera os ter no tempo de suas necessidades, resgatou este filho del-Rei com toda sua família por três mil meticais de ouro, e bem tratado e vestido, como filho de quem era, o mandou a seu pai. O qual, quando o viu livre em tam breve tempo, primeiro que ele nisso cometesse algua cousa, mandou logo a el-Rei Mahamede grandes agradecimentos daquela tam grande obra de amizade, pedindo-lhe que, por quanto ele estava em ódio com a nossa fortaleza e não podia ir a ela, viesse ver-se com ele, pera praticarem em cousas que muito importavam ao bem de ambos, dando-lhe a entender casamentos de antre filhos, e que quando fosse lhe entregaria os meticais que dera polo filho. El-Rei Mahamede, polo grande desejo que tinha de comprazer a este, posto que o capitão Pero Ferreira o avisou que não se fiasse dele, ca pois estava mal connosco, tambem o estaria com ele, por ser parente de Abrahemo, todavia, em uns zambucos com alguns seus, mais em auto de festa e vistas de amizade que suspeita de traição, se foi ver com o outro, que o matou em pagamento do benefício que lhe tinha feito, jazendo el-Rei Mahamede dormindo em o zambuco em que foi, tomando por desculpa desta maldade dizer: que mais obrigado era ao sangue e parentesco que tinha com el-Rei Habrahemo (por vingança do qual ele fazia esta obra), que ao benefício de Mahamede Anconi. Sobre a sucessão do qual se armou toda a divisão que dissemos, e estava a cidade repartida nestas duas partes: os oficiais da feitoria com alguns mouros, por parte de Agi Hocém, filho deste Mahamede defunto, apresentavam a carta do Viso-Rei Dom Francisco, em que relatava os seus méritos acerca das cousas do serviço del-Rei Dom Manuel e as traições e maldades de Soltão Abrahemo, polas quais causas ele, em nome del-Rei Dom Manuel, o fazia Rei daquela cidade de Quíloa, com todalas terras e senhorios que tinha, e lhe dava o dito reino de juro e herdade, com as condições na doação conteúdas. Doutra parte o capitão Pero Ferreira e alguns mouros principais da

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terra e os cafres da Ilha Songo, ua légua de Quíloa, diziam que não era serviço del-Rei de Portugal reinar homem tam baixo como o filho de Mahamede Anconi. Com as quais devisões, polos bandos e ódios que delas recreceram, muitos moradores da cidade se foram viver a Melinde e a Mombaça e 401 per toda aquela costa. 420 Ajuntou-se também a estas diferenças as tomadias que os nossos faziam por causa da defesa do regimento, que defendia que os mouros não tratassem em as cousas que tinham valia em Sofala. E porque eles muitas vezes eram compreendidos nesta defesa, e os nossos, que andavam em os navios em guarda da costa, com título de serviço del-Rei, às vezes excediam o modo, despovoava-se a terra com estes rigores. Nuno Vaz, sabendo parte destas cousas, como quem desejava que Quíloa tornasse a seu estado, perguntando polo remédio delas, per conselho de um António da Fonseca, que já estivera em Sofala com Francisco de Anhaia, e assi parecer dele mesmo que ali vinha e doutras pessoas que entendiam bem o trato da terra, mandou notificar em Melinde, Mombaça, Quíloa e per toda aquela costa, que todo mercador natural de Quíloa seguramente podesse vir a ela, a tratar em mercadorias que tratava, assi e pola maneira que se fazia em tempo del-Rei Abrahemo, sem encorrerem nas penas que encorriam pela defesa. Com a qual cousa, tanto que foi sabida per toda a terra, começaram os mouros 127 embarcar com suas mulheres e filhos, de maneira que, quando Nuno Vaz chegou a Quíloa, iam já em sua companhia mais de vinte zambucos carregados de povoadores, que levavam muitas mercadorias pera Quíloa, onde chegou meado Dezembro, e ali achou Lionel Coutinho, capitão da nau Leitoa, que com um temporal se perdeu da armada de Tristão da Cunha, como adiante veremos. E porque todas as divisões da terra procediam da eleição do Rei novo, tanto que Nuno Vaz repousou de sua chegada, quis logo entender nisso, pera que foram chamados todolos principais mouros da terra, e os que com ele vinham de Melinde, e assi as partes que contendiam neste negócio, que era um mouro chamado Micante, primo de Abrahemo, Rei passado, e Hocém, filho de Mahamede Anconi. Os quais em juízo mandou Nuno Vaz que cada um per si alegasse de seu direito e mostrasse a aução que tinha em seu requerimento. E dada primeiro a voz a Micante, como homem favorecido do capitão e de Lionel Coutinho, e de outros de sua valia, como boa parte dos principais da terra, disse que a rezão que tinha na sucessão daquele reino era ser pedido por Rei por todos os principais da terra, por ele proceder do real sangue dos Reis que fundaram e povoaram aquela cidade, e ser conjunto em parentesco com el-Rei Abrahemo, o qual, não sendo desterrado mas em posse do reino, estando em artigo de morte, o denunciara por seu herdeiro, polas quais razões todos o receberam sem contradição por Rei, somente alguas pessoas que ali eram presentes. E que assi no estado em que aquele reino estava, que era em poder del-Rei de Portugal, a ele, por serviço do dito senhor, se lhe devia dar pola terra estar em paz e concórdia, e não 402 se despovoar polo descontentamento 421 que tinham em estar debaixo da obediência e governo de homem que não era da linhagem dos Reis de Quíloa. Hocém, filho del-Rei Mahamede, quando lhe Nuno Vaz mandou que dissesse de seu direito, respondeu que ele não tinha mais que dizer que quanto estava escrito naquela patente que apresentava do Viso-Rei, em que se resumiam os serviços de seu pai e os delitos del-Rei Abrahemo; que quanto ao que Micante dezia que com ele seria a terra mais pacífica, a cidade não se governava per seu pai nem menos se havia de governar por Micante, senão pelos capitães del-Rei de Portugal, seu senhor, que ali residissem, por aquela cidade ser sua e a ter ganhada por justiça de armas, da qual ele podia despor como de cousa sua própria. Que se os capitães da fortaleza favorecessem a qualquer pessoa em nome del-Rei, seu senhor, isto bastava pera toda a cidade estar em paz, quanto

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mais sendo pessoa a quem el-Rei de Portugal, seu senhor, tinha concedido a real dinidade; a qual, quando per ele fosse concedida a algua pessoa, ainda que defeitos tivesse, o seu querer habilitava a parte, e aqueles que o contradissessem deviam ser suspeitosos a seu serviço. Ouvindo Nuno Vaz estas e outras razões que sobre este caso per ambas as partes foram alegadas, julgou que se comprisse a doação que Hocém tinha e que per ela ele o havia por Rei de Quíloa, e logo ali o denunciou com solenidade que lhe foi feita. E porque a causa principal que fazia despovoar a cidade procedia do modo com que os oficiais queriam executar as penas da defesa do regimento, e sobre isso era tomada algua fazenda a três ou quatro mouros principais, tanto que Nuno Vaz lha mandou tornar, com a mais liberdade que concedeu pera que tratassem (segundo a notificação que mandara), ficaram todos tam contentes, que não se tratou mais na sucessão do novo Rei, e a cidade ficou posta em quietação, com que muitas casas que estavam fechadas foram abertas e povoadas. Assentadas estas e outras cousas que havia pera fazer em Quíloa, em que Nuno Vaz mostrou ter tanta parte de prudência como tinha de cavaleiro, leixando ali por oficial a Luís Mendes de Vasconcelos, que viera em sua companhia, partiu-se pera Sofala. E passando por Moçambique, achou ali três naus e um navio, de que eram capitães as pessoas que adiante veremos; as quais velas foram deste reino aquele ano de quinhentos e seis, com Tristão da Cunha, a viagem do qual diremos neste seguinte livro, leixando Nuno Vaz, que foi tomar posse da capitania de Sofala, onde chegou a salvamento a tempo que ela tinha bem necessidade de sua chegada. Porém ante que entremos nesta relação, porque di a poucos dias, que Nuno Vaz assentou as cousas de Quíloa, ela se tornou a revolver somente por a sucessão do reino, que causou desfazer-se a fortaleza que ali tínhamos, por não tornarmos mais a ela, procederemos no que sucedeu 403 depois. 127v 422 Agi Hocém, novo Rei, como nos primeiros dias se viu com o favor de Nuno Vaz, que estava em Sofala, posto naquele estado, ordenou logo fazer guerra ao matador de seu pai, pera efeito da qual secretamente mandou a um príncipe gentio dos negros, chamado Munha Monge, homem poderoso em gente, que viesse per terra com todo seu poder sobre Tirendincunde e ele iria per mar a um certo dia, pera darem nele, desapercebido, com que o destruíssem a fogo e a sangue. Concertada esta ida, a poder de grandes dádivas que Hocém deu a este Munha Monge, que entre eles quere dizer senhor do Mundo, deram ambos em Tirendincunde e destruíram toda a terra, levando os cafres a maior parte da gente cativa, e o seu Rei escapou. Com a qual vitória ele ficou tam glorioso, que causou todo o trabalho que depois teve; porque, di em diante, começou de se querer com a nossa conversação pôr em maior estado do que era a renda, gastando quási quanto lhe ficou de seu pai; e neste tempo escrevia aos Reis de Melinde, Zenzibar e de toda aquela costa, como homem que se tinha em mais conta que eles. E como os mouros tem nisto grande vaidade, assi ficaram escandalizados dele, que os ganhou por imigos, e também porque muitos vassalos deles eram mortos na ida que ele, Hocém, fez, em que houve esta vitória; os quais neste tempo que ele partiu estavam em Quíloa, fazendo mercadorias, e entre rogo e força os levou consigo, por razão dos quais mortos havia muitas lágrimas e pragas entre todolos mouros, e o que eles mais abominavam era ser ele causa de os cafres levarem tantos mouros cativos. Finalmente, entre enveja, ódio e paixões de seu governo, assi os que eram contra ele que não reinasse, como estes Reis nossos amigos que nomeámos, que ele ganhou por imigos com a majestade de seu escrever, todos foram em um ânimo de o despor, o fim do qual negócio acabou em cada um destes per si escrever ao Viso-Rei à Índia, que, se queria ter aquela terra em paz e que se não despovoasse Quíloa, mandasse tirar do governo a Hocém e por nele Abrahemo, Rei que fora dela, e quando ele não quisesse, fosse seu primo Micante, que já estevera eleito pera isso. O Viso-Rei, vendo tanto requerimento contra Hocém, escreveu sobre isso a Pero Ferreira, e por Abrahemo não se fiar de nós, não aceitou o governo da terra, e foi alevantado por rei Micante, e

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desposto Hocém, o qual, vendo-se com toda a fazenda que herdara de seu pai gastada na vingança de sua morte, e que estando em Quíloa, corria risco de o matarem seus imigos, pediu a Pero Ferreira que o mandasse pôr em Mombaça, como fez, onde di a pouco tempo acabou seus dias, mais miseramente que um homem do povo. Micante, que o sucedeu, posto que nos primeiros dous anos mostrou bom governo, danou-se depois em tanta maneira, que deu maior trabalho à 404 terra do que tinha em tempo de Hocém; porque não somente era avorrecido dos nossos, por se tomar muito do vinho, com que fazia grandes males, mas ainda dos próprios mouros que solicitaram vir ele àquele estado, porque a uns tomava as mulheres, a outros matava, fingindo que o queriam matar, de 423 maneira que andava entre eles como um açoute por parte de Hocém, desposto daquele estado. E o que danou mais as cousas deste mouro, foi acabar Pero Ferreira de servir de capitão, e sucedeu-lhe Francisco Pereira Pestana, filho de João Pestana; que, como era homem de condição forte e achou disposição em Micante, acendeu-se o fogo na matéria que um se não fiava do outro. No qual tempo este Micante, sabendo que seu primo Abrahemo, desterrado, sentia muito estar ele no governo daquela cidade, temendo-se dele, ordenou de lhe fazer guerra. A qual rompida, houve entradas de ua e outra parte, em que os nossos verteram seu sangue e os meteu em grande afronta. Porque sucedeu esta guerra em tempo que na fortaleza não havia mais que quorenta homens que tomassem armas, todolos outros eram enfermos. Em ua das quais entradas que os mouros da terra firme fizeram na ilha com grande número de cafres, de que era capitão Mungo Caide, irmão de Abrahemo (porque ele nunca ousou de vir em pessoa), Francisco Pereira lhe cativou um sobrinho, per nome Munha Came, e matou muita gente ao passar do rio, ao qual Francisco Pereira teve muito tempo preso. E porque com estes trabalhos da guerra e cuidado de se defender, Micante algum tanto andava emendado de seus vícios e pelejava como cavaleiro, e pelo ódio que tinha ao primo guardava lealdade à fortaleza, Francisco Pereira lhe sofria seus desmanchos. Com as quais revoltas se danou tanto o fundamento 128 pera que el-Rei Dom Manuel mandou tomar aquela cidade Quíloa, que, sendo avisado disso, principalmente depois que Afonso de Albuquerque foi Capitão-mor da Índia, que não favorecia muito as cousas em que o Viso-Rei pôs algum trabalho, polas diferenças que ambos teveram (como se adiante verá), que lhe mandou desfazer a fortaleza de Quíloa e que Francisco Pereira se passasse pera a de Socotorá, que ele, Afonso de Albuquerque, ajudou a tomar, em companhia de Tristão da Cunha, como logo veremos na entrada do Primeiro Livro da Segunda Década. Assi que, vindo este mandado del-Rei Dom Manuel, desejando Francisco Pereira, ante que se fosse de Quíloa, despor a Micante e meter em posse da cidade a Abrahemo, mandou-lhe sobre isso alguns recados. Mas ele não confiava que verdadeiramente Francisco Pereira o queria fazer, ante lhe parecia que os ódios de entre ele e Micante eram artefício pera o haverem às mãos, por ver que no tempo da guerra que contra ele se fazia, eram mui conformes; e mais mandava-lhe por reposta que ele tinha preso seu sobrinho Munha 405 Came; como podia esperar dele o que lhe mandava oferecer? Finalmente, estando Francisco Pereira já embarcado pera se partir, soltou a Munha Came, e Abrahemo se veo ver com ele no mar, e ficou metido 424 de posse da cidade, fugindo dela Micante; o qual, depois, perseguido deste seu primo, acabou seus dias tam miseramente como Agi Hocém. E jaz enterrado em a Ilha Querimba, onde se ele acolheu. Partido Francisco Pereira pera a Índia, ficou Abrahemo Rei pacífico, reformando a terra em melhor estado do que a tinha ante que per nós lhe fosse tomada; porque os trabalhos que passou o ensinaram a governar, encomendando sempre a seus filhos que fossem leais ao serviço del-Rei Dom

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Manuel. Assi que o discurso da vida deste Abrahemo (posto que fosse Rei) acabou em ua notável comédia das voltas do Mundo, e a morte de Mahamede Anconi e de seu filho e Micante em tragédias, que em seu modo muito servem pera contemplação das cousas dele.

*** Compilado por RLJ a partir das Décadas da Ásia de João de Barros, CD-ROM da série OPHIR -

Biblioteca Virtual dos Descobrimentos Portugueses, da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998.

SEGUNDA DÉCADA

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3 1v 5 Capítulo primeiro. Como Tristão da Cunha partiu deste reino com ua grossa armada pera a Índia, e em sua companhia Afonso de Albuquerque, que ia por Capitão-mor de outra, que havia de andar na costa da Arábia; e o que fizeram no descobrimento da Ilha S. Lourenço. O ano passado de quinhentos e cinco (como escrevemos), estando Tristão da Cunha despachado pera a Índia, por causa de um acidente que lhe sobreveo com que cegou, foi o Viso-Rei D. Francisco de Almeida em a frota que estava pera ele. Depois, posto em cura daquele acidente e cobrada vista, ficou com aquela aução da mercê, que lhe el-Rei tinha feita, a qual lhe ele tornava a confirmar pera ir na vagante do Viso-Rei. Porém dizem que por conselho de Lopo Soares, que de lá viera o ano de cinco, ele pediu a el-Rei que aquela mercê de resedir na Índia tantos anos, lhe convertesse em ir ida por vinda por Capitão-mor das naus da carga com algum bom partido, o que lhe el-Rei concedeu. E tendo ele assentado de o mandar por Capitão-mor das naus de carreira em Março de quinhentos e seis, e Afonso de Albuquerque com ua armada pera andar na costa da Arábia, veo Diogo Fernandes Pereira, o qual (como vimos atrás), descobriu a Ilha Socotorá, que está na entrada do mar que faz o Estreito de Adem. El-Rei, sabendo per ele e per António de Saldanha, que andou às presas naquela paragem, das cousas desta ilha e dos cristãos que nela havia, e como eram sujeitos a uns mouros da terra firme de Fartaque, por causa de ua fortaleza que ali vieram fazer; assentou que estas duas armadas de Tristão da Cunha e de Afonso de Albuquerque fossem ambas em um corpo té esta Ilha Socotorá e que tomassem esta fortaleza aos mouros; e quando não fosse tal que nela se podesse defender a gente que ali leixasse, fundasse outra de novo, fazendo fundamento que Afonso de Albuquerque 6 e os outros capitães, que pelo tempo em diante andassem naquela parte, teriam um certo abrigo e seguro pera invernar, por a ilha ter lugar pera isso, e com esta fortaleza ficava mais senhor da navegação daquele estreito, que era seu principal intento. Da qual fortaleza havia de ficar por capitão D. Afonso de Noronha, filho de D. Fernando de Noronha, com oficiais e gente ordenada ao modo das outras, que eram feitas naquelas partes. Porém como El-Rei não estava certo que tal seria a fortaleza dos mouros, ou per ventura, de caminho, naquela costa podiam tomar terra, pera que lhe servisse este repairo, mandou que levasse 4 ua fortaleza de madeira, que estava feita no almazém do tempo que ele houvera de passar em África. E porque, pera efeito destas cousas, convinha muitas naus e gente de armas, fizeram-se prestes nove velas pera a carga e cinco que haviam de ficar com Afonso de Albuquerque, que foram mui trabalhosas de aperceber. Ca neste tempo era em Lisboa tam grande a peste, que houveram muitos dias de cento e vinte pessoas, e andavam os homens de armada tam iscados dela, que na própria nau de Tristão da Cunha primeiro que partissem morreram seis ou sete, e por esta causa achava-se tam pouca gente pera o número que ele havia de levar, que conveo a el-Rei mandar soltar alguns presos, que estavam julgados pera ir comprir degredos a outras partes, porque a gente do reino não se queria vir meter neste perigo. Finalmente, o melhor que em tempo de tanto trabalho se pôde fazer, Tristão da Cunha partiu do porto de Lisboa um Domingo de Ramos, seis dias de Março do ano de quinhentos e seis, com catorze velas, de que estes eram os capitães: Francisco de Távora, filho de Pero Lourenço de

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Távora, senhor do Mogadoiro; Manuel Teles Barreto, filho de Afonso Teles Barreto; Afonso Lopes da Costa, filho de Pero da Costa, de Tomar; António do Campo, um cavaleiro, e Afonso de Albuquerque, filho de Gonçalo de Albuquerque, que era capitão-mor das velas que estes levavam e com que haviam de andar de armada na costa de Arábia. E os capitães das outras naus da carreira, eram: Lionel Coutinho, filho de Vasco Fernandes Coutinho; Álvaro Teles Barreto, filho de João Teles; Rui Pereira, filho de Afonso Pereira, alcaide-mor de Santarém; Rui Dias Pereira, filho de Reimão Pereira, alcaide-mor de Portel; João Gomes de Abreu, filho de Antão Gomes de Abreu; Job Queimado, filho de Vasco Queimado, de Setúval; Álvaro Fernandes, um cavaleiro de Alvito; João da Veiga, colaço de Tristão da Cunha; Tristão Rodrigues, moço da câmara del-Rei; e Tristão Álvares. Em a qual armada iriam mil e trezentos homens de armas; e foi toda tam iscada da peste, que ainda no Cabo Verde, estando fazendo aguada em ua ilha chamada da Palma, que está no rostro 2 do cabo, por causa de muitos que ali morreram, mandou fazer ua ermida de pedra e barro, coberta de palha, em louvor de N. Senhora, da vocação da Esperança, onde se disse missa e foram enterrados os defuntos, e nau houve em que se achou homem morto dentro em ua câmara, comidos os pés dos ratos, sem se saber ser falecido, tanto trabalho havia em todos. 7 Com o qual, partindo ainda Tristão da Cunha do Cabo Verde, aprouve a Deus que, chegando à Linha Equinocial, onde estes ares cessam, ficou toda a gente livre de todo, e desta volta houve vista do Cabo Santo Agostinho, na Província de Santa Cruz. E quando veo ao atravessar aquele grande golfão, que jaz entre esta terra e do Cabo de Boa Esperança, meteu-se em tanta altura da parte do Sul, por lhe ficar dobrado, que começaram alguns homens pobres de roupa de lhe morrer, e a gente 5 do mar andava tam regelada, que não podiam marear as velas; na qual travessa descobriu uas ilhas, que ora se chamam do nome de Tristão da Cunha. E como nelas sempre se acham temporais, deu-lhe um que apartou as naus, correndo cada ua seu trabalho, té que em Moçambique se tornaram ajuntar; somente Álvaro Teles, que sem saber per onde ia, vasou per fora da ilha de S. Lourenço e foi dar na de Samatra, cuidando ser o Cabo Guardafu, e di se tornou a ele, onde andou às presas esperando por Tristão da Cunha. No qual tempo tomou seis naus, e era tanta a fazenda delas, que de não poderem com o batel trazer das naus, que tomavam quanto queriam, lançaram tantos fardos ao mar delas, que lhe ficou em lugar de ponte de bom comprimento pera per cima deles alguns marinheiros irem e virem com fato às costas. Lionel Coutinho com o mesmo tempo foi invernar em Quíloa e Rui Pereira foi dar na ponta da Ilha de S. Lourenço, em um porto a que chamam Matatana, que foi depois causa de sua morte, e de João Gomes de Abreu, como veremos. Porque, chegando a este porto, onde vem sair um rio, veo ter a ele, assi a vela como ia, ua almadia com até dezoito homens da terra, os quais entraram em a nau seguramente; e por alguns deles trazerem manilhas de prata, posto que não havia quem os entendesse, per acenos disseram haver daquele metal que traziam nos braços muito, e cravo e gengivre, por lhe fazerem mostra destas e de outras cousas, que Rui Pereira quis saber se havia na terra. E por estas serem mui principais, ainda que não foi muito per sua vontade, trouxe Rui Pereira dous mancebos deles pera darem testemunho a Tristão da Cunha do que havia naquele porto; e chegado Rui Pereira a Moçambique, onde o achou, per meio de um mouro per nome Bogimá, que ali vivia, por saber a língua deles, soube Tristão da Cunha muitas cousas da grossura da terra. E ainda o mesmo Bogimá, por já estar naquele porto, se afirmava que, quanto ao gengivre, poderiam carregar naus dele. Tristão da Cunha, como viu o tempo gastado pera aquele ano passar a Índia, e, segundo lhe deziam da grandeza da ilha e destas cousas, eram dinas de ir em pessoa descobri-las, determinou de o fazer, pois havia de estar surto esperando tempo, parecendo-lhe também que, como havia cravo e gengivre, haveria outras especearias, as quais descobertas, era descobrir outra Índia de menos custo, por a terra ser povoada de gentio pacífico, pera que não havia

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8 mister tanta gente de armas; e quando mais não descobrisse que as mostras de Rui Pereira, destas mandaria pera o Reino um par de naus carregadas. As quais cousas postas em conselho dos outros capitães e fidalgos que com ele eram, foi assentado ser muito serviço del-Rei ir descobrir aquela ilha, de que tantas cousas se deziam e tais mostras dava. E por a nau Santiago, em que Tristão da Cunha ia, ser 6 mui grande, e segundo lhe deziam, a ilha não era mui limpa, e pera descobrir-se requeria vasilhas de menos porte, leixou esta nau a António de Saldanha, que ficasse ali em Moçambique, tomando pera embarcação de sua pessoa o navio Santo António, capitão João da Veiga, seu colaço, mandando primeiro que partisse Afonso Lopes da Costa, que na taforea, de que era capitão, levasse mantimentos e munições a Sofala, que estava mui desbaratada de tudo com a morte de Pero de Anhaia, segundo ele mesmo, Afonso Lopes, dezia, por vir per i, e ainda lá não ser Nuno Vaz Pereira, de que atrás falámos. Partido Tristão da Cunha a este descobrimento, o primeiro porto da ilha que tomou, foi ua angra, a que Nuno da Cunha, seu filho maior, que com ele ia, pôs nome de D. Maria da Cunha, por amor de D. Maria da Cunha, filha de Martim da Silveira, alcaide-mor de Terena, que então andava em casa da Rainha D. Maria, com 2v a qual ele, Nuno da Cunha, andava de amores, e depois casou. Outros chamam a esta Angra da Conceição, por chegarem a ela a oito dias de Dezembro, em que a Igreja celebra esta festa de Nossa Senhora. A qual angra é da parte do norte da ilha fronteira à terra de Moçambique; e por lhe o tempo não servir a irem ao porto Matutana, Tristão da Cunha a tomou, e, surto nesta angra, mandou a Job Queimado e a António do Campo, que nos seus batéis levassem a terra o mouro Bogimá, a ua povoação que ali estava, em que ele já fora, e seria dali três léguas pola angra ser mui penetrante, cuja vista, tanto que chegaram, fez vir logo a eles muita gente da terra, mouros na crença, e negros de cabelo revolto em parecer, e alguns deles baços, por serem mestiços, os quais, vendo o mouro Bogimá, começaram falar com ele como com homem mui conhecido. Bogimá, depois que passaram as palavras do modo de suas saudações, enformado pelos capitães, começou de lhe dizer, que a causa da vinda do Capitão-mor àquele porto, era desejar ter notícia da terra e descobrir o que havia nela, e outras palavras conformes a estas; ao que responderam, que eles não eram pessoas pera responder àquelas cousas que dezia, que ele bem sabia a terra, e se mais razão das que nela havia quisesse saber, que eles o levariam ao Xeque, que estava na povoação, a quem podia dar conta do que dezia a eles. Bogimá, confiado no conhecimento que tinha daquela gente e gasalhado que lhe mostravam, pediu licença aos capitães pera ir falar ao Xeque, a qual lhe concederam, parecendo-lhe que havia de tornar tam contente, como prometiam as palavras daqueles que o levaram; peró tanto que os mouros 9 o teveram em terra a vista dos nossos, como quem lhe queria mostrar o gasalhado que fariam a quem saísse em terra, deram-lhe tanta pancada que o houveram de matar, se lhe os nossos não socorreram, tirando com alguas espingardas aos mouros, que os fizeram apartar da praia. Recolhido Bogimá, a razão que deu 7 daquele gasalhado que lhe fizeram, foi por ser autor de levar cristãos àquela parte. Tristão da Cunha, vendo este dano que Bogimá recebeu, e sabendo dele que toda a povoação era de mouros, assentou com os capitães de sair ao outro dia ante manhã e dar neles; mas seu trabalho foi perdido, porque todos se recolheram ao mato, e acharam somente ua velha, que não teve forças pera fugir. Mas ao seguinte dia, levando as naus mais adiante obra de três léguas, deram em outra boa povoação, que estava per um rio dentro, onde, entre muita gente que não quis cativar,

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tomou o Xeque, que era senhor da terra, e este o levou a noite seguinte a ua ilha povoada, metida em ua baía mui cerrada, per que corria um rio cabedal, a que os da terra chamam Lulangane. A qual povoação era de mouros, que viviam já mais politicamente que nos outros lugares daquela costa, porque a sua mesquita e parte das casas eram de pedra e cal, com terrados à maneira das de Quíloa e Mombaça; e porque o dia de antes houveram vista das nossas naus e que se metiam dentro na baía e não corriam de longo da costa, começaram aquela noite de se recolher a terra firme. Peró, como a gente da povoação era muita e os barcos em que passavam poucos, não o poderam fazer tam prestes, que aquela ilha ante menhã não fosse primeiro torneada dos nossos batéis repartidos em duas capitanias - Tristão da Cunha em ua e seu filho, Nuno da Cunha, em outra -, com o qual cerco entrado o lugar foram tomadas mais de quinhentas almas, a maior parte delas mulheres e meninos, e obra de vinte homens e o Xeque deles, homem que em idade e parecer mostrava ser senhor de todos, porque os mais eram passados a terra firme. Na qual passagem morreram mais de duzentas pessoas, porque com temor metiam-se tantos nos barcos, que sessobravam com eles; e além destes, a ferro também pereceram outros, que quiseram resistir aos nossos, quando entraram o lugar, que foi a pouco custo deles. Agasalhado Tristão da Cunha e capitães nas principais casas que ali havia, foi toda aquela noite tam festejada dos nossos, como chorada dos cativos; peró quando veo ao outro dia, viram vir um grande número de batéis, em que haveria perto de seiscentos homens, como gente oferecida a morrer por salvar as mulheres e filhos que ali ficaram. Tristão da Cunha, como entendeu seu propósito, e neles não havia culpa de castigo, mandou-lhe dizer pelo Xeque que tinha consigo, que seguramente podiam alguns sair em terra, se vinham buscar suas mulheres e filhos, ca ele lhos mandaria resgatar, e assi o lugar, em o qual ele não entrara com tenção 3 de lhe fazer dano, somente por haver mantimentos e informações de alguas cousas; e que, se alguns pereceram, foram aqueles que se poseram em armas. 10 Chegado o Xeque aos seus, do que lhe ele disse, tornou em sua companhia 8 um mouro, homem bem desposto, com ua pá dos remos, que eles usam na mão, sem outra cousa algua, e chegando a Tristão da Cunha, lançou-se a seus pés, pedindo-lhe que houvesse piedade daqueles inocentes que estavam em seu poder e fora da liberdade em que nasceram, e que não houvesse por mal todos temerem gente que nunca viram, por ser cousa mui natural a toda criatura temor e procurar salvar sua vida e a de seus filhos; que, se eles souberam que lhe vinha hóspede tam piedoso, nunca leixaram suas casas, ante o receberam com muito prazer, oferecendo-lhe todo serviço, se entre gente tam pobre e bárbara havia que desejar. Tristão da Cunha, ouvindo estas palavras e a continência e eficácia com que as este mouro dezia, a qual sinificava mais a sua dor e tristeza do que o sabia representar o intérprete, houve piedade dele, e disse que se consolasse, porque suas mulheres e filhos lhe seriam entregues; e que em pago deste benefício que dele recebiam, não queria mais que algum gado e qualquer outro refresco que tevessem pera aquela gente que trazia, e assi informação de alguas cousas que desejava saber daquela terra. O mouro, com esta resposta de Tristão da Cunha, tornou-se lançar aos seus pés, beijando a terra onde os tinha, e pedida licença, levou esta nova aos seus, que estavam esperando por ele, os quais, tornados a terra firme, trouxeram obra de cinquenta vacas pequenas e vinte cabras, milho, arroz e alguas fructas da terra. Per as quais mostras e per o mais que lhe Tristão da Cunha perguntou, soube que toda a gente da Ilha de S. Lourenço, quanto ao que eles tinham sabido per a comarca daquela sua habitação, eram cafres negros de cabelo torcido como os de Moçambique, somente ao longo da costa havia alguas povoações de mouros, e não de tam boas casas como as daquele seu lugar. Que quanto ao gengivre, algum havia na terra, mas não quantidade pera carregação de nau; cravo e prata eles a não sabiam, somente ouviram dizer que na outra parte da ilha, contra o Meio-Dia, os moradores dali traziam manilhas de prata.

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Tristão da Cunha tornado às naus, porque não ficou satisfeito destes mouros, parecia-lhe que, como são ciosos de nós, encobriam a verdade. Quando veo ao outro dia, mandou dar à vela com tenção de ir ter a ua povoação que estava adiante desta, per nome Sada, à qual, quando chegou, posto que partiu ante menhã pera dar nela, era já tam alto dia, que indinada a gente do trabalho que pôs no caminho sem algum fructo, lhe pôs o fogo, o qual se ateou de maneira, por serem casas palhaças, que, quando os nossos chegaram a praia, parecia arder todo o monte.

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9 3 11 Capítulo II. Como Tristão da Cunha espediu de si Afonso de Albuquerque pera Moçambique; e depois com um temporal que lhe deu se tornou ajuntar com ele, e ambos tomaram o lugar Oja e as cidades Lamo e Brava. Partido Tristão da Cunha daquele lugar Lulangane, foi correndo a costa, navegando de dia e às vezes surgindo de noite, ao modo de quem descobre, com tenção de dobrar a ilha pela ponta a que ora chamam o Cabo do Natal, nome que lhe ele então pôs por chegar a ela neste tempo. O que ele não pôde fazer, porque eram já os ventos tam ponteiros, que, chegando junto de uas ilhas chamadas Caria, que estão quási no rostro, com os capitães assentou que Afonso de Albuquerque se fosse com quatro velas a Moçambique a dar ordem às cousas necessárias que havia pera fazer, porque sua tenção era dar em algum lugar de mouros daquela costa Melinde; e ele com as outras velas, que eram as de Francisco de Távora, Rui Pereira, João Gomes de Abreu, tornar atrás, pois os ventos lhe serviam a popa pera dar ua volta a ilha pela parte de Aloeste, onde estava o lugar Matataná, em que lhe deziam haver cravo, gengivre e prata. Espedido Afonso de Albuquerque, e ele, Tristão da Cunha, posto em caminho, ua noite com vento teso Rui 3v Pereira, que ia diante dele, deu em ua ilha pegada com terra, onde se perdeu, e somente escapou o mestre e o piloto com treze homens, que milagrosamente em o batel foram depois dar com Tristão da Cunha, sendo já da tornada desta viagem na costa de Moçambique, donde ele os tornou a enviar em o seu navio, capitão João da Veiga, por saber deles que a nau ficava de maneira que se podia salvar o cofre do dinheiro, que se levava pera comprar das especearias e outras cousas, como fizeram, e tornaram tomar a Tristão da Cunha em Melinde. Ele, ao tempo que se esta nau perdeu, como era de noite e corriam com fúria do tempo, não soube mais do caso, que ao tempo que se perdeu ouvirem bradar, dizendo que arribassem, porque, como ia com a barba sobre eles, se não fora avisado, também se perdera. Finalmente, quando ao outro dia se achou sem Rui Pereira, pelo que ouviram de noite, houveram que era perdido; e assi por o descontentamento que teve disso, como porque João Gomes de Abreu não aparecia, que também foi ter a outro desastre de sua morte (como adiante veremos), não quis ir mais avante, vendo que a navegação da costa daquela grande ilha era mui perigosa, e fez-se na volta de Moçambique. Porém os tempos o lançaram na paragem das Ilhas de Angoxa, e de noite foi dar com o farol da nau Santiago, que ele entregara em Moçambique a António de Saldanha, o qual, per mandado de Afonso de Albuquerque, que vinha com a mais frota, lhe ia fazendo caminho; e quando veo pela menhã, que 12 se 10 conheceram, tornaram em um corpo arribar a Moçambique, porque lhe não consentia o tempo ir avante a Melinde, onde Afonso de Albuquerque levava toda a frota, pelo que leixava assentado com Tristão da Cunha. E neste dia que entraram em Moçambique, entrou também João da Nova com a nau Frol de la Mar que invernou nas ilhas de Angoxa, vindo da Índia com a carga da pimenta, como atrás fica; e por vir mui desbaratada dos pairos que teve, e não pera navegar com a carga que trazia, mandou-a Tristão da Cunha baldear em a nau Santa Maria, capitão Álvaro Fernandes, que era falecido, e deu a capitania a António de Saldanha pera a trazer a este reino, e com ele mandou os mouros, que Rui Pereira trouxe do porto Matataná, escrevendo a el-Rei o que sobre este caso tinha

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feito, e as mais informações que achara. Partido António de Saldanha pera este reino, onde chegou a salvamento (como adiante veremos), ficou Tristão da Cunha provendo algum corregimento, que a nau Frol de la Mar havia mister pera poder navegar boiante, porque a mais da água que fazia era per partes que com a carga fora lha tomara, e ficou nela por capitão o mesmo João da Nova, ordenado pera andar de armada com Afonso de Albuquerque. Também pelo recado que Afonso Lopes da Costa trouxe do estado de Sofala, como per passar per ali Nuno Vaz Pereira, que ia servir de capitão da fortaleza, o qual leixou um criado seu comprando mantimentos pera provisão dela, pera se navegarem em navios da terra, mandou Tristão da Cunha estes mantimentos comprados, e outros que houve na ilha de S. Lourenço, per o Comendador Rui Soares em o navio de Pero Coresma, que ali estava, o qual el-Rei D. Manuel lhe mandava dar, porque havia de ficar de armada em companhia de Afonso de Albuquerque, levando Rui Soares por regimento que, tanto que chegasse a Sofala, se ainda lá fosse Tristão Rodrigues com o seu navio, o qual Afonso de Albuquerque mandou ir com mais mantimentos em companhia de Nuno Vaz, que o trouxesse consigo e se fosse a Melinde. Providas estas cousas, tanto que o tempo lhe serviu, se fez à vela; e sendo tanto avante como o Cabo Delgado, espediu Afonso de Albuquerque, que se fosse com a mais frota esperá-lo a Melinde, e ele em o seu navio entrou em Quíloa pera visitar a fortaleza e levar consigo a Lionel Coutinho, que ali invernou com a sua nau, e assi António do Campo, que Afonso de Albuquerque tinha já de antes mandado aperceber esta nau pera o tempo da passagem a levar em sua companhia. Recolhidas estas naus, veo ter a Melinde, onde foi recebido de el-Rei com muita festa; e depois que ambos se viram, peró que ele, Tristão da Cunha, levasse em vontade de dar em algum daqueles lugares de mouros, que estão abaixo de Melinde, por lho el-Rei muito rogar, dando-lhe alguas causas disso, que eram os danos que tinha recebido dos 11 moradores da cidade Oja, assentou com ele de o fazer. E posto que el-Rei de Melinde, por obrigar a Tristão da Cunha dar em Oja, lhe dezia que a causa 4 principal de ser avexado daquele vezinho, e assi del-Rei de Mombaça, era a amizade 13 que connosco tinha, ante que nós fôssemos àquelas partes, já entre eles havia antigas contendas. E porque té ora não temos dado muita notícia das cousas deste Rei de Melinde nosso tam fiel amigo, por memória da anteguidade do seu reino, e também por darmos alguas das cousas de seus vezinhos, faremos ua pequena digressão. Os arábios, ante que aceitassem a seita de Mahamede, posto que navegavam das portas de seu Estreito pera o Mar Oceano, sempre naquelas partes estranhas que navegavam, era per modo o tratamento de seu comércio, como gente estrangeira encolheita, e que não fazia mais conta que de comprar e vender, e tornar-se a sua natureza . Peró depois que beberam aquela infernal doutrina defendida per armas, deste uso delas em que os pôs Mahamede e os seus califas que o sucederam, assi ficaram animosos, que se estenderam per muitas partes. E naquelas onde não eram tantos que podessem per armas fazer-se senhores da terra, per via de comércio e de outras indústrias, principalmente naquela costa marítima de África, chamada Zanguebar, de que atrás escrevemos, e assi per todo o marítimo da Índia, como era de gente idólatra e mui bárbara, mansa e pacificamente se meteram com ela, povoando em ilhas e lugares, de que ficassem senhores do mar. Finalmente, como criavam posse, logo se intitulavam xeques ou reis de tal povoação e cidade, posto que muitas delas em casas e nobreza de povo serão ua pobre aldea das nossas, porque tais reis, tais cidades. Peró onde a terra lhe deu desposição em todo o marítimo daquelas partes, se algua cidade ou povoação há que tenha algua polícia, é obra das suas mãos: quanto ao moderno, porque o muito antigo, quaisquer povos que eles foram, são os seus edefícios tam grandes e maravilhosos, que alguns precedem as obras da arquetectura dos gregos e romanos. E ainda ousaríamos dizer que, se eles algum princípio teveram na grandeza e modo de edeficar, que destas partes orientais o houveram, da qual matéria copiosamente tratamos em os livros da nossa Esfera da Enstrutura das

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Cousas, na parte mecânica, que é toda de arquetectura. Assi que estes arábios encheram esta costa de que falamos; e como um não é súbdito a outro, logo se chama xeque ou rei, donde vem haver per toda ela um grande número. Porém entre eles todolos outros são havidos por xeques, ainda que se chamem reis, somente o de Quíloa e da ilha Zanzibar, que está defronte de Mombaça, e o daqui, posto que ao presente seja mais rico e poderoso, tem eles ser tudo tiranicamente por se levantar o primeiro que tomou este título contra el-Rei de Zenzibar, que era seu senhor, e o ter posto por governador em Mombaça. O nosso amigo de Melinde também quere contender com os mais antigos da 12 terra, e diz que vem dos reis que antigamente foram 14 em a cidade Quitau, que será de Melinde dezoito léguas, a qual foi senhora de toda aquela terra, posto que ao presente seja ua pobre povoação; mas em alguas torres que ainda estão em pé, e nas ruínas que aparecem, se mostra que foi já grande cousa. Outros querem que Lusiva, que é mui perto desta, foi a senhora de todas, e que Paremunda, Lamo, Jaca, Oja e outras cidades, que estão nesta comarca, todas lhe obedeceram. Seja como for, pois não há aldea no Mundo de que os seus moradores não contem grandes fundamentos de sua primeira habitação, o que faz ao nosso caso é saber que todos contendem sobre o senhorio da terra a ele comarcã - e daqui vem dizer el-Rei de Melinde que Chiona e Quilife, que estão entre ele e Mombaça, que são suas, e sobre isto é a antiga contenda que tem com os reis dela. Pela parte de cima também contende com Oja sobre a mesma razão de outros lugares; finalmente, todos entre si tem diferenças, e nenhum deles dentro pelo sertão tem um palmo de terra, porque lho não consentem os cafres, ante se temem deles, e por esta causa suas cidades são cercadas de muros, uns de taipa e outros de pedra e cal. E se é verdade que o nosso Rei de Melinde proceda dos que foram senhores de Quitau ou Lusiva, parece que tem justiça na aução de sua anteguidade, porque em sua situação se mostra que algua delas é a cidade Rapta, que Ptolomeu situa naquela costa nas correntes do rio chamado Rapto, por razão dela; do nascimento e curso do qual já atrás fizemos menção, e mais particularmente será em a nossa Geografia. E segundo contam os mouros de Melinde, gloriando-se de já serem senhores daquela costa comarcã às cidades acima nomeadas, ante da nossa entrada na Índia pouco mais de cinquenta anos, el-Rei de Melinde mandou com cem cafres da terra alguns mouros descobrir o rio, que sai em Culimanja, que está obra de ua légua de Melinde, que, segundo nosso parecer, é o Rapto que acima dissemos, posto que não está per Ptolomeu em sua verdadeira altura. Os quais descobridores caminharam 4v pola borda dele trinta dias; e vendo que o rio era mui largo, quanto mais subiam per ele, cheo de muitos cavalos marinhos, e que não levaram modo de se passar da outra banda, onde viam a terra escampada e jazer roupa estendida dos moradores de que era habitada, e que neste tempo tinham gastado os mantimentos que levavam, sem acharem povoado de que os podessem haver, pola terra ser áspera e coberta de espesso arvoredo, notadas estas cousas, e as mais que viram, tornaram-se pera Melinde. Di a pouco tempo, ou que a ida destes espertou os de dentro do sertão, ou como quer que foi, veo ua grande cáfela de gente a pé toda preta e de cabelo retorcido, com muito ouro e marfim, a buscar roupas pera seu uso. Assentado seu arraial fora de povoação de Culimanja, onde el-Rei de Melinde então estava, vieram-se a desconcertar com ele por os grandes 15 direitos que lhe pedia; e vendo ele que se queriam ir, como que iam buscar outro porto, 13 mandou dar de noite neles, e foram roubados, que causou tamanho escândalo, que nunca mais ali tornaram. Agora em nossos tempos a fama da grandeza deste rio é que vinha da terra do Preste João per ua terra a que eles chamam das Amazonas, por serem barões nos feitos e os maridos afeminados, e que dentro neste interior havia muito ouro; um português chamado Jorge da Fonseca,

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capitão de ua fusta, que andava com outros per aquela costa buscando sua ventura, entrou neste rio e foi per ele acima cinco dias. E porque ele não ousava de sair em terra, e a gente dela, espantada de tal novidade, não queria sua comunicação, tornou-se a sair, temendo falecer-lhe o mantimento, dando nova da grandeza do rio e dos muitos cavalos marinhos que nele havia e da disposição da terra. Ao presente, leixando o curso dele pera seu tempo e tornando a Tristão da Cunha, que não sabia as paixões antigas que el-Rei de Melinde tinha com seus vezinhos, crendo o que ele dezia que por causa da nossa amizade era avexado deles - polo comprazer, espedido dele, partiu-se pera Oja, levando lá sete velas menos das com que partira deste reino: as duas que trouxe António de Saldanha, e de Rui Pereira perdida, e a de João Gomes de Abreu, que ficou em a Ilha S. Lourenço, e as duas que mandou a Sofala, e a de Álvaro Teles Barreto, que o estava esperando no Cabo Guardafu. Chegado à cidade Oja, que será de Melinde dezassete léguas, a qual em edefícios era a maneira de Mombaça, peró que a situação dela fosse mui diferente, por esta ser per um rio dentro e Oja na costa brava, com um muro da banda da terra com temor dos cafres, e do mar recife e má saída, que a fazia mais forte, tanto que surgiu, mandou um batel a terra notificar ao Xeque dela quem era, e que folgaria de praticar com ele alguas cousas que compriam a serviço del-Rei de Portugal, seu senhor. Ao que respondeu o Xeque que ele era vassalo do Soldão do Cairo, e que sem sua vontade, por ele ser o soberano Califa da Casa do Profeta Mahamede, ele não podia ter comunicação com gente que tanto perseguia aqueles que o seguiam, e mais os tratantes do Cairo, que navegavam os mares da Índia, e que, além deste mal tam comum, que os mouros tinham recebido, particularmente ele o tinha experimentado em duas naus que lhe os portugueses tomaram. A causa por que este mouro mandou tal resposta a Tristão da Cunha, não foi tanto polo que ele dezia, como por estar já de dias mui apercebido pera se defender, com muitos cafres da terra firme seus amigos, temendo esta visitação por parte del-Rei de Melinde, polas diferenças que entre eles havia, e também por ver que as naus, segundo o tempo, não podiam ali estar 16 na costa dous dias, que ele podia dilatar com palavras, quando aquelas não fossem bem recebidas. Tristão da Cunha, porque também tinha entendido o perigo do porto, segundo o que deziam os pilotos mouros que com ele iam, 14 deu-se a tal pressa, havido conselho com os capitães, que ao outro dia em os batéis foi demandar a terra, repartido em duas capitanias, ele em ua e Afonso de Albuquerque na outra. E posto que o mar andava em favor dos mouros, com a má jazeda que deu ao sair, de que eles se souberam bem ajudar, vindo defender a praia enxutos, e os nossos saírem molhados, todavia, a seu pesar, tam banhados de sangue como eles saíram da água, despejando a praia, começaram de se meter pela cidade, buscando amparo em suas casas. Mas os nossos os apressavam de maneira que não fizeram os mouros mais detença na cidade, que enquanto a atravessaram toda, indo-se amparando dos botes da lança dos nossos. No qual tempo, ouvindo dizer Nuno da Cunha e D. Afonso de Noronha que o Xeque com um tropel de gente se ia recolhendo pera fora da cidade a um palmar, como eram mancebos 5 e andavam em competência a quem o faria melhor, cada um per sua parte foram dar com ele já fora dos muros. E com a gente que levavam, rompendo pelo cardume dos mouros, que queria defender seu senhor, houve naquele feito ua perfia de lançadas e frechas, na qual o Xeque foi morto, e dizem que D. Afonso lhe pôs o primeiro ferro, e com ele era Fernão Jácome, seu cunhado, e um seu page chamado Cepião Caiado e Nuno Vaz de Castelo Branco. E foram com Nuno da Cunha, naquela morte del-Rei e dos que com ele pereceram, Jorge da Silveira, filho bastardo de Diogo da Silveira, e um João Azeitado, seu colaço, mui valente cavaleiro, e António de Sá, moço da câmara del-Rei, e Fernão Feijó. Ante do qual feito, tinha acontecido outro a Jorge da Silveira, dino de tam bom cavaleiro

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como ele era. Indo-se os mouros recolhendo-se ao palmar, foi Jorge da Silveira com o seu colaço dar com um mouro, homem nobre em seu trajo, que levava ua mulher moça de bom parecer ante si, que parecia sua esposa; e quando viu que Jorge da Silveira encarava nela, deu de mão à esposa, mandando-lhe que se salvasse, e voltou sobre ele, polo entreter. A esposa, vendo que, por causa sua, se ia oferecer à morte, tornou com ele, mostrando onde ele por ela morresse, aí queria sua morte. Jorge da Silveira, quando os viu travados um no outro, nesta competência da morte, entendeu o caso, deu-lhe de mão, dizendo que se salvassem, que não queria apartar tal amor. Tristão da Cunha e Afonso de Albuquerque teveram tanto que fazer na parte que a cada um coube, que não saíram contra o palmar, mas juntos já com a vitória da cidade despejada, deu Tristão da Cunha licença que a metessem a saco; e por se não deterem muito nela, quási como quem queria que a gente se recolhesse, mandou-lhe pôr o fogo per partes, mais temporão 17 do que devera, ca foi causa de morrerem alguns dos nossos. De maneira que mais poder teve o fogo contra eles que os mouros; porque, como muitos andavam per dentro das casas no esbulho, foi o fogo per alguas partes cercando a 15 saída, com que alguns ficaram feitos em cinza ou mortos às mãos dos mouros. E deste trabalho escapou um fidalgo de Portalegre chamado Duarte de Sousa, ficando aleijado dos pés dos nervos que lhe o fogo encolheu, e per ventura parte desta aleijão fora melhor na língua, polas paixões que ela ordenou entre o Viso-Rei e Afonso de Albuquerque, como se verá. Recolhido Tristão da Cunha às naus, foi dali ter à cidade chamada Lamo, que é mais adiante quinze léguas, a qual já estava assombrada, esperando sua destruição, porque Tristão da Cunha lhe tinha mandado diante um mensageiro, que foi um dos navios que levava, mandando ao capitão dele que se lançasse sobre uns ilhéus, que tem na sua paragem, e que não leixasse entrar nem sair alguém. O qual temor deu tanta prudência ao Xeque, a que eles chamavam Rei, que em Tristão da Cunha surgindo, se veo meter nas suas mãos, dizendo que queria ser vassalo del-Rei de Portugal, com a qual obediência conseguiu dar-lhe em nome del-Rei ua patente e ua bandeira das armas do reino, como a seu tributário, em contia de seiscentos miticais de ouro em cada um ano, que logo pagou, e mais muito refresco da terra. Espedido Tristão da Cunha dele, foi ter a outra cidade mais adiante desta, chamada Brava, assentada na costa, em povo, edefícios e trato muito mais nobre e já tributária a nós polo que passou com as suas cabeceiras Rui Lourenço, capitão da taforea, que foi em companhia de António de Saldanha o ano de quinhentos e três. O qual tributo custou mui caro às cabeceiras que o concederam; porque, tornados à cidade do lugar onde os Rui Lourenço tomou (segundo atrás fica), foram maltratados dos outros principais que com ele governavam a cidade, e despostos de sua governança, por tam levemente concederem o tributo, sem valer a estes condenados dezerem que o fizeram por cautela de lhe não roubarem a nau que levavam carregada de tanta fazenda, como todos sabiam. E como gente obrigada a esta dívida, que não tinha paga, estavam mui fortalecidos e confiados em os muros, torres e sítio defensável de sua cidade, e a saída mui perigosa com os recifes do porto. Tristão da Cunha, tanto que surgiu diante dela, mandou a terra um recado per Diogo Fernandes Pereira, que ia por mestre da nau Cirne, de Afonso de Albuquerque, e fora já li em companhia de António de Saldanha, por capitão e mestre da nau de Setúval; e a reposta que trouxe, foram palavras de gente soberba e que não tinham experimentado o nosso ferro. 18 E nas costas de Diogo Fernandes mandaram dar ua mostra da gente que tinham pera se defender, saindo por ua 5v porta e entrando per outra, que estavam ao longo da praia obra de seis mil homens, todos armados a seu modo, e em tam boa ordenança, que eram melhores pera ver que cometer.

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Vendo Tristão da Cunha a determinação deles, tanto que amanheceu, ele per 16 ua parte e Afonso de Albuquerque per outra, juntamente foram demandar a terra, que lhe foi mui bem defendida com frechas, zargunchos, pedradas e outras armas de arremesso, tam bastas que não podiam tomar porto, té que à custa do seu sangue e dos mouros eles foram entrados per três partes do muro, por ser tam baixo e fraco per aquele lugar, que não se houveram mister escadas. E como per onde foi esta entrada era o mais alto da cidade, e a maior parte da povoação lhe ficava em ladeira abaixo, e os mouros andavam já com sangue e ânimo menos do que tinham quando ela foi cometida, começaram todos de a despejar. Mas este despejo se não viu nos principais mouros que a governavam; porque a maior parte deles, vendo a desordem da gente comum, como cavaleiros, ficaram cada um no lugar onde a morte o tomou, comprindo o sacramento que tinham feito ao povo de morrer por defensão e liberdade de todos. Finalmente, esta entrada foi de maneira cometida e tam pelejada de todos, e cada um tam ocupado em sua sorte, que poucos souberam dar conta da fúria do feito, somente que ela amansou a soberba daquela cidade, e per esta vez perdeu o nome de A Brava e ficou tam mansa, como um corpo sem alma de resistência. E foram tantos os imigos que ali pereceram, que se não poderam contar, e dos nossos até quorenta e duas pessoas, e feridos sessenta e tantos; e nestes mortos entraram um batel que até dezoito deles, que sessobrou vindo pera a nau de Tristão da Cunha carregado de fato do esbulho da cidade; e entre os afogados foi um João Borges, homem honrado, cidadão de Lisboa, e o capelão da nau, e alguns que se salvaram foi em um esquife, em que ia Fernão Trigo, mestre da nau de Francisco de Távora. O qual batel se com sua perdição não avisara os outros, segundo a gente andava cobiçosa de apanhar e trazer à ribeira o esbulho da cidade, por ela estar chea de fazenda, muitos se houveram de perder; mas Tristão da Cunha mandou logo ter tento neles, por não virem a outro tal desastre. Do qual, segundo se depois dezia, parece que a causa foi ua crueza que usaram alguns homens baixos que iam nele, e foi: não podendo tirar as manilhas de prata que as mouras traziam nos braços, lhos cortavam; mas como a Deus não aprazem cousas que a humanidade não sofre, eles e as manilhas ficaram no rolo do mar. Tristão da Cunha, porque a entrada desta cidade foi um dos ilustres feitos que té aquele tempo se fez naquelas partes, por memória dele, peró que se tinha visto em outros mui honrados, quis receber aqui a honra da cavalaria da mão de Afonso de Albuquerque, por ele ser cavaleiro da Ordem de Santiago; e assi a recebeu Nuno da Cunha, seu filho, que não foi pequeno 19 contentamento a Afonso de Albuquerque dar per sua mão honra àquele capitão, debaixo da bandeira do qual ele vinha, e grande glória a Tristão da Cunha, 17 sendo homem de idade, confessar que pera sua honra, e a poder dar aos outros, ainda lhe falecia esta de mão alhea. O qual depois que a teve, a deu a Rui Dias Pereira, um fidalgo que seria de cinquenta anos, e assi a outros muitos, encomendando a Afonso de Albuquerque, que juntamente com ele o fizesse àqueles que o quisessem ser; porque o feito foi tam honrado, e cada um fez tanto, que todos foram merecedores dela. No qual, além dos capitães nomeados, se acharam alguns fidalgos, que, por serem mancebos, não levavam cargos, senão o de seu sangue, que quando é nobre, como era o seu, em toda idade se mostra, e por sua memória poremos os que vieram à nossa notícia: D. João de Lima e D. Jerónimo de Lima, seu irmão; Manuel de Lacerda e Fernão Pereira, seu irmão; João Rodrigues Pereira e Duarte Pereira, seu irmão; Gil Barreto e Diogo de Magalhães, seu irmão; D. Manuel Pereira, Pero de Albuquerque, Simão de Andrade, António de Miranda de Azevedo, Pero de Sousa de Azevedo, Bastião de Abreu, Hanrique Moniz, D. João Hanriques, Francisco de Bovodilha, Aires de Sousa Chichorro, Fernão Gomes de Lemos, António da Silva, de Soure, e Álvaro de Moura, cada um dos quais, além das calidades do seu sangue, per seus feitos mereceu este lugar de lembrança.

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17 6 19 Capítulo III. Como Tristão da Cunha partiu pera a Ilha Socotorá, e a descripção dela; e como tomou aos mouros ua fortaleza que nela tinham. Havida esta vitória, deteve-se Tristão da Cunha três dias na cidade, assi por recolher muitos mantimentos que nela achou, como por satisfazer à gente com o seu esbulho, e per derradeiro lhe mandou poer fogo, último castigo de sua soberba. E posto que, quando se fez à vela daqui, levava em propósito dar outra tal vista à cidade Magadaxó que será desta quorenta e cinco léguas contra a Cabo Guardafu, porque o tempo lhe não deu lugar, passou avante té no rosto dele, onde achou Álvaro Teles, que (como atrás dissemos), veo ter aqui do temporal que houveram; e se os outros foram nestes feitos que contámos, traziam honra e fazenda, ele não tinha a sua nau menos boiante da que ali ganhara com seis naus que tinha tomado. E era tanta a fazenda delas, que de a não poderem trazer no batel pera a nau lançavam entre ela e a nau dos mouros tantos fardos de cousas no mar, que lhe ficava em lugar de ponte bem comprida, per cima dos quais traziam às costas outros de mais rica sorte. 20 Dada ua vista a este Cabo Guardafu, mandou Tristão da Cunha governar a Ilha Socotorá, do sítio e cousas da qual trataremos um pouco primeiro que venhamos ao que ele fez nela. Esta ilha alguns querem dizer, por ser mui grande 18 e a maior daquela garganta dos mares, que vão abocar o Estreito do Mar Roxo, que é aquela a que Ptolomeu chama Dioscoridis, de ua cidade dela deste nome; mas como em a nossa Geografia tratamos a verdade desta ilha, pera lá leixamos a relação dela. O que ora faz a nosso propósito é saber que esta Ilha Socotorá é de comprido pouco mais ou menos vinte léguas e de largura nove. O lançamento desta sua compridão é quási Leste-Oeste, e tomada quarta de Noroeste (por falarmos segundo a rumação dos marinheiros), cuja altura da parte do Norte é doze graus e dous terços. Em todo o seu circuito não há porto nem estância, em que muitas naus possam seguramente invernar; per o meio dela, ao modo de espinhaço, corre ua corda de serranias de uns picos altos e fragosos, que demandam as nuves, per cima das quais, por altos que são, quando cursam as ventanias do Norte, lá lhe vão lançar as areas da praia. E por estar mui patente a estes ventos, é mui escaldada, posto que per entre aquelas serras tem alguns vales abrigados, onde os moradores fazem suas sementeiras de algum milho e pastam seu gado. Toda a praia dela é limpa pera a navegação, somente na face contra o Norte tem duas ilhetas juntas, a que por sua semelhança chamam as Duas Irmãs, será da terra firme da Arábia, que lhe fica ao Norte, até cinquenta léguas, e do Cabo de Guardafu, que está ao Ocidente dela no último fim da terra de África, trinta. Os portos que os nossos tomam por colheita, um chamam Soco, onde os mouros tinham sua habitação, ou Calancea, que é mais ocidental, e outro Beni, que está contra o Oriente. A terra em si não é tam estérele, como os moradores são rudos e de pouca indústria; porque nos lugares onde os ventos não reinam, criará toda maneira de plantas; porém as naturais e que a terra per si dá, são maceiras de anáfega, palmeiras, dragoeiros, de que colhem muito sangue de dragão, e dá o melhor oloé que se sabe, donde geralmente todo por razão do nome da ilha se chama socotorino. O mantimento dos naturais é milho, tâmaras de toda sorte, e geralmente leite, que lhe serve de comer e beber. Todos são cristãos jacobitas, da casta dos abexis, peró que muitas cousas não guardam de seus costumes; os mais dos homens tem os nomes dos Apóstolos e as mulheres, de Maria. Sua adoração é a Cruz, e são tam devotos dela, que per hábito todos trazem uas ao pescoço; e em alguas

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casas que tem de oração, este é o seu Orago. Geralmente todos vão rezar a elas três vezes: ua muito cedo e a maneira de matinas, outra a horas de béspora e outra as completas, e a sua oração é em caldeu, e o modo de rezar 21 é dizer um só, um só verso, e os outros juntamente, como coro, respondem com outro; e entenderam-lhe os nossos, que os já ouviram, rezar esta palavra Aleluia. Tem circuncisão e jejum a maneira de Avento, e ua só mulher. Da novidade que hão, pagam dísemo à Igreja. 19 São homens geralmente bem dispostos, baços na cor, e 6v as mulheres mais alvas, e mui baroís, assi na estatura e composição dos membros, como no seu exercício, porque também pelejam em qualquer afronta, como os mesmos maridos, donde há opinião que já em outro tempo viveram sem ter companhia dos homens, ao modo de amazonas. Somente pera haver geração, das naus que vinham ter àquela ilha haviam alguns; e quando tardavam, per feiteceria as faziam vir, pera haverem homens pera este efeito, ao que se pode dar crédito, assi por serem baroís, como por hoje serem ainda tam grandes feiticeiras, que fazem cousas maravilhosas. O trajo geral deles é de panos que fazem, e outros se vestem de peles do gado que tem. E gente mui bestial; vivem em lapas no alto, afastados do mar; sua peleja é às pedradas com fundas, e alguns tem espadas de ferro morto. Neste ano que Tristão da Cunha aqui chegou, segundo se depois soube per eles, havia vinte seis anos que eram súbditos a el-Rei de Caxém, que é na terra da Arábia, a que chamam Fartaque, fronteira a esta ilha. O qual, desejando o senhorio dela, no ano de quatrocentos e oitenta mandou ua armada de dez velas com mil homens dos seus fartaquis, e por capitão um seu sobrinho, que a viesse conquistar. E porque a ilha em si é mui fragosa e no interior tem alguas serras, que em nenhum modo se podem entrar, e os socotorinos se acolheram logo a elas, sem os mouros lhe poderem fazer dano, fundou este sobrinho del-Rei de Caxém ua fortaleza em ua baía chamada Beni no lugar do Soco, que era onde vinham muitas naus a tratar com estes socotorinos, com fundamento que esta fortaleza lhe empederia o comércio pera não darem saída a suas novidades e haverem o que lhe vinha de fora. O qual jugo os submeteu a pagarem tributo a el-Rei de Caxém, que ordenadamente tinha ali cem homens, e intitulava-se por Rei de Socotorá. E a este porto chegou Tristão da Cunha na entrada do mês Abril; e posto que ele, ao tempo desta sua chegada, não tevesse tanta notícia da ilha como ora temos, já per informação dos mouros que traziam de Melinde, e alguns cativos de Brava, soube da fortaleza que os mouros tinham, e que gente seria a com que podia pelejar, e o modo do sítio da terra; e por isso, em chegando ao porto, com a vista e enformação que trazia, entendeu ser escusado tirar a vila da madeira , que dissemos levar de cá. Porque a fortaleza, peró que a cento e trinta mouros que nela estavam com o seu Xeque, dessem ânimo de trezentos, por ter bom muro e torres com suas guaritas, em sítio de boa defensão, 22 como já vinham afeitos ao combate das cidades que leixavam destruídas, não fizeram muita conta dela. Passado este primeiro dia da chegada, que se gastou em amarrar as naus e recados que Tristão da Cunha mandou ao Xeque, a que ele não respondeu em modo pera viver 20 em paz, no seguinte meteu-se em um batel com Afonso de Albuquerque e alguns capitães, e um piloto dos mouros de Brava, que lhe foi mostrar lugar per onde podiam sair. O qual, ainda que era escampado e defronte da fortaleza ua carreira de cavalo, quebrava o mar ali tanto, que, por dar boa saída à gente, ainda que lhe desse mais comprido caminho, elegeu por melhor desembarcação a frontaria de um palmar, onde se fazia modo de angra, com fundamento que, quando os mouros acudissem a este que ele tomava, Afonso de Albuquerque, que havia de ir com a gente da sua capitania, podesse ficar mais despejado no outro, dando o mar jazeda pera isso.

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Os mouros, vendo que Tristão da Cunha andou ao longo da ribeira a ua e outra parte, e que nesta do palmar se deteve, como quem o notava pera sua saída, toda aquela noite seguinte trabalharam, decepando alguas palmeiras, e com elas e as outras em pé fizeram uas tranqueiras a maneira de estância, em que assestaram uas bombardas que tinham, que ao outro dia, que era sexta-feira de Lázaro, em que Tristão da Cunha saiu, lhe fizeram muito dano e deteveram tanto, que nesta detença teve Afonso de Albuquerque espaço e o lugar livre pera sair com sua gente polo escampado fronteiro à fortaleza. D. Afonso de Noronha, seu sobrinho, como quem desejava ver a noiva com quem o haviam de desposar pola provisão que levava del-Rei de capitão da fortaleza que se ali fizesse, com uns poucos de besteiros e espingardeiros que levou em o seu batel e alguns homens que pera isso escolheu, tomou primeiro a terra, e começou de encaminhar pera a fortaleza. Em companhia do qual iam James Teixeira, Nuno Vaz de Castelo Branco, Pedrálvares, do Cartuxo e outro Pedrálvares, moço da câmara del-Rei, que fora page do Conde de Abrantes; ao encontro dos quais veo o Xeque, 7 que os recebeu com obra de quorenta mouros com grande ânimo, indo-se defendendo e ofendendo, como valentes homens. O Xeque como, além de fazer o ofício de cavaleiro, não perdia o cuidado de capitão, trazia olho em Tristão da Cunha, receando que se metesse entre ele e a fortaleza, que era sua colheita; e tanto que o viu que se chegava a ela, foi dando mais campo a D. Afonso com tento, vindo aos botes das suas lanças, que lhe fazia pouco dano, porque traziam eles uas adargas de vaca crua, que cuspia o ferro de si, e eles tam destros em saber tomar nelas os botes e tiros, que parecia que esgrimiam e não pelejavam. Tristão da Cunha, per este mesmo modo, depois que passou o trabalho de artelharia e pedradas debaixo das palmeiras, vinha com até sessenta deles assi a bote de lança; e sendo já mui cerca das portas da fortaleza, o Xeque apartou trinta homens, com que fez ua maneira de volta comprida com tanto ímpeto, que se retiraram os nossos atrás. 23 D. Afonso, quando viu o embaraçar dos besteiros e 21 espingardeiros, e que não se achava com mais que com seis ou sete homens, quási como quem recebia afronta de o ver seu tio e os outros capitães, que lhe vinham já nas costas, ante que chegassem a ele, com esses poucos que o acompanhavam, que eram os principais, fechou com o Xeque, pondo nele a lança tam tesa que o derribou mas não o feriu por trazer um laudel de lâminas e o bote não ser em cheo, mas per ua ilharga. Os mouros, vendo o Xeque derribado, acudiram todos sobre ele, onde carregaram tantos dos nossos, que o Xeque ficou ali morto às lançadas, e com ele oito seus, sem se saber quem foi o primeiro que o sangrou; na qual pressa os outros com o rumor deste caso e chegada de Afonso de Albuquerque, teveram tempo de se salvar no castelo. Tristão da Cunha, por entrar de envolta com os que trazia diante, por muito que se apressou, como eram mais destros no fugir que os nossos descansados pera correr, quando chegou à porta do castelo, achou Afonso de Albuquerque, e muita pedrada que lhe tiraram de cima, de que ele houve ua com um canto que o fez acurvar. Com o qual dano, por ser muito, os nossos se afastaram, té que vieram uns troços de escada, que vinham no batel de D. Afonso, per os quais o muro foi subido; e o primeiro que nele arvorou bandeira, foi Gaspar Dias, alferes de Afonso de Albuquerque, e trás ele Job Queimado com seu aguião, e outros que o seguiram. A qual subida causou despejarem os muros a guarita que estava sobre a porta, que a defendiam não ser quebrada, como logo foi feita em rachas a poder de machados, que deu entrada a todos em um pátio da fortaleza. E os primeiros que chegaram a ua porta per que se subia a ua torre, que era da menagem, foram Nuno da Cunha e D. António de Noronha, irmão de D. Afonso; e estando ambos em pressa de arrombar a porta, tirando-lhe de cima muita pedrada, chegou Tristão da Cunha; e quando viu o filho com D.António, que andavam em modo de competência a quem se meteria mais no quente, entreteve a gente e disse contra Afonso de Albuquerque, por ser tio de D. António:

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- Leixemos cevar estes dous cachorros. E então, como quem os açulava, dezia ao filho: - Ah Nuno! ah Nuno! Porém, porque das janelas recebiam dano, mandou aos besteiros e espingardeiros que tirassem a elas, com que as despejaram. A outra gente, vendo tomado posse desta porta, começou de se espalhar pelo pátio, buscando subida, té que um golpe deles, em que entravam D.Jerónimo de Lima, D. João, seu irmão, Manuel Teles, Manuel de Lacerda, subiram per ua escada de pedra que ia dar ao muro, buscando modo cada um per onde podia entrar com os mouros. No qual tempo foi a porta 24 da sala em que os mouros estavam quebrada, e recolheram-se a ua torre, que por ser forte, parecia-lhe poderem escapar ali; mas eles foram logo seguidos, no cometer dos quais, 22 as graças de Tristão da Cunha com seu filho e Dom António os houveram de matar. Porque, sendo a porta arrombada com um buraco, per que podia caber um homem, querendo cada um deles entrar com a adarga diante, outra adarga de Afonso de Albuquerque, que ele lançou sobre a cabeça de D. António, defendeu de lha não cortarem, e a Nuno da Cunha salvou seu aio João Fernandes, e outro tal risco correu Jorge Barreto. Porque estavam os mouros tanto sobre o buraco, que como algua adarga aparecia, logo era fatiada, e ainda teveram ua defensão ,pondo eles uns fardos de roupa da terra chamados cambulis, os quais embaçavam quanto dano lhe queriam fazer. Com a qual ajuda, sendo obra de vinte e cinco homens, assi se defendiam, que nunca poderam ser entrados 7v posto que Afonso de Albuquerque mandou vir do seu batel dous padeses de campo -, senão depois que alguns dos nossos subiram ao eirado desta casa e começaram de a descobrir e lançar-lhe em baixo tijolos e pedras, que os desatinou muito. E a um dos primeiros que quis ir fazer esta obra, que era João Freire, page de Tristão da Cunha, ao saltar de um eirado em outro, foi morto per eles; na qual subida se achou trás ele Nuno Vaz de Castelo Branco e António de Liz, de Setúval, e Dinis Fernandes de Melo, filho bastardo de Gonçalo Vaz de Melo, o qual, posto que naquele tempo era pouco conhecido e estimado, por ser homem pardo nas cores, desta ida de Tristão da Cunha ficou havido por quam cavaleiro se ele sempre mostrou, como se verá adiante. Finalmente, estes, e outros per cima, e Tristão da Cunha e Afonso de Albuquerque per baixo com os outros capitães (posto que lhe quiseram dar a vida por quam valentes homens eram), nunca poderam acabar com eles, té que um e um acabou vingando sua morte. Acabado este feito, que durou espaço de três horas e custou a vida do page de Tristão da Cunha e de seis ou sete que faleceram depois dos cinquenta e tantos feridos que ali houve, acharam que dos mouros morreram passante de oitenta, e cativos um somente, chamado Homar, que era mui bom piloto da costa da Arábia, e depois aproveitou muito a Afonso de Albuquerque, enquanto ali andou, e assi um cego que acharam metido em um poço seco, homem de muita idade, o qual, levado ante Tristão da Cunha e perguntado que como tinha vista pera se meter naquele lugar pera que os homens hão mister quatro olhos, respondeu que nenhua cousa os cegos viam melhor, que o caminho per que podiam ter liberdade e vida. Com a qual graça lhe deram liberdade. Este foi o maior esbulho que se ali houve, e alguas armas e mantimentos 25 da terra que Tristão da Cunha mandou recolher pera aqueles que haviam de ficar naquela fortaleza. A gente da terra, que estava em olho deste feito, como não tinham muita notícia de nós, não ousaram descer a baixo, e tinha consigo recolhidas as mulheres e filhos dos mouros, que eram 23 netos destes naturais da terra; porque, ao tempo que Tristão da Cunha saiu, despejaram eles ua povoação que estava fora da fortaleza, onde tinham toda sua família. Porém, depois que lhe Tristão

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da Cunha mandou recado e souberam ser toda aquela gente cristã vieram-se a ele e lançaram-se a seus pés, dando-lhe graças da mercê que receberam na vitória daqueles infiéis, debaixo do poder dos quais eram avexados, tomando-lhes mulheres, filhas e fazendo outras injúrias às suas pessoas, pedindo-lhe polo nome de Cristo Jesu, que eles confessavam, houvesse por bem de os amparar e defender. Tristão da Cunha, em reposta destas palavras ditas com lágrimas, os consolou, dando-lhe conta como el-Rei de Portugal seu senhor, sabendo serem eles cristãos e os trabalhos que padeciam, lhe mandara que passasse per aquela sua ilha, e lançando os mouros fora, fizesse ua fortaleza, em que leixasse gente pera defensão deles; que esta nova podia dar a todos, e que não queriam mais deles, somente dos mantimentos da terra, de que podiam ter necessidade; e também per mão dos oficiais del-Rei, que ali haviam de ficar, podiam dar saída às novidades que lhe a terra dava, e per comutação delas haver outras de que tevessem necessidade; e o principal de tudo era a liberdade de suas pessoas e poderem ser doutrinados em as cousas da Fé de Cristo. Do que eles ficaram mui contentes, e a terra assentada em paz e comunicação com os nossos, começando logo descer de cima àquela povoação que os mouros ali tinham feita e em modo de feira traziam gado e todo outro mantimento. Muitos dos quais, per meio de Frei António, da Ordem de S. Francisco, que ia ordenado pera esta obra, receberam baptismo em a mesma mesquita dos mouros, que foi feita templo de Deus, da vocação de Nossa Senhora da Vitória, o qual Frei António, como era religioso de vida de grande exemplo, assi neste princípio como depois, por ser mui aceito à gente da terra, per dentro da ilha andou pregando e fazendo obras de barão apostólico. Tristão da Cunha, enquanto Frei António fazia este ofício, fez ele o seu de capitão, dando ordem de repartir a fortaleza pera segurança dos que ali haviam de estar, à qual pôs nome S. Miguel, e tomou a menage dela a D. Afonso de Noronha, que a levava per el-Rei. Assi proveu a gente ordenada, que eram té cem pessoas, das quais Fernão Jácome, de Tomar, cunhado de D. Afonso, ficou por alcaide-mor, e por feitor Pero Vaz de Horta, e Gaspar Machado e Francisco Saraiva escrivães, e assi outros oficiais, que começaram servir seus ofícios a seis de Maio de quinhentos e sete. Tristão da Cunha, assentadas 8 estas cousas, porque o tempo era ainda mui verde pera passar a Índia, que era na força do inverno na costa dela, mandou todalas naus ao porto de Beni, onde podiam estar o tempo que ali 26 se houvessem de deter, por ser o mais seguro dos que a ilha tinha; no qual tempo teve alguns rebates dos socotorinos 24 quási meios alevantados contra a nossa fortaleza, per induzimento dos mouros que escaparam, fazendo-lhe crer que lhes íamos tomar a terra, e que outro tanto tínhamos feito na Índia. A qual cousa, ainda que pera os rebates os nossos vestissem poucas vezes as armas, deu-lhe muito trabalho, porque se levantaram sem querer trazer mantimentos, té que tornaram outra vez a nossa amizade; porém, sempre os nossos a tinham por suspeitosa com estes mouros, que andavam lançados entre eles, e eram-lhe aceitos por razão das mulheres socotorinas, com quem estavam casados e de que tinham filhos. E enquanto não fez tempo pera Tristão da Cunha se partir, se armou ua fusta, que de cá do reino se levou a madeira lavrada; e porque faleciam muitas peças, cortaram-se ua soma de maceiras da anáfega pera liames, por ali haver muita cópia delas. Vindo o tempo da monção, com que Tristão da Cunha podia navegar, que era a dez de Agosto, e partiu-se Afonso de Albuquerque pera a costa de Arábia di outros dez dias, os quais leixaremos té seu tempo, por dizer o que o Viso-Rei D. Francisco fez na Índia, enquanto eles fizeram o que té ora relatámos.

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24 8 26 Capítulo IV. Do que fizeram as armadas que o Viso-Rei mandou correr a costa da Índia no verão do ano passado de seis; e como suspendeu certos capitães por aconselharem seu filho D. Lourenço que não pelejasse com a armada de Calecute, que estava em Dabul. Como da armada de Tristão da Cunha não passou à Índia vela algua, houve nela entre os nossos grande confusão, peró que todos presumissem a verdade, que era invernarem naquela costa de Moçambique ou Melinde. Mas como o ânimo dos homens, acerca das cousas que espera, sempre imagina o contrairo do que deseja, concorreram dous sinais da Natureza em Cochi, que por serem muitas vezes sinificativos de grandes casos, lançavam eles, sobre este não passar, muitos juízos . E o primeiro sinal foi um eclipse do Sol, ua quarta-feira, treze de Janeiro do ano de quinhentos e seis, ua hora depois de meio-dia, que durou até as 27 duas horas e meia; e escureceu tanta parte do Sol, que se viram muitas estrelas. E o outro sinal foi tremer a terra a quinze de Julho do ano seguinte per espaço de ua hora com alguns intervalos, e tão rijamente, que se houvera naquele tempo os edefícios de pedra e cal que agora há, sempre caíram muita parte deles. E sobre estas cousas não verem naus, não podiam dissimular a tristeza que por isso tinham, o que era pelo contrairo nos mouros; porque estes, como o seu ânimo contra nós estava nas muitas ou poucas naus que de cá vão, andavam todos mui contentes, principalmente el-Rei de Calecute, a quem não faleciam esperanças de feiticeiros, que lhe prometeram 25 grande vitória contra nos, se naquele tempo nos cometesse. Com as quais promessas e ajudas dos mouros, que também pronosticavam a seu propósito, ainda que do verão passado ficou mui quebrado com a vitória que Dom Lourenço houve da sua armada, tornou reformar outra contra as naus de Coulão, Cochi, Cananor e outros portos que estavam em nossa amizade. Porque, como ordinariamente, em cada um ano, todos no verão navegavam suas mercadorias destes lugares pera os portos de cima, até Cambaia, e os de lá té Ceilão, e di, perto da enseada de Bengala, té Malaca, segundo a necessidade que cada um tinha das cousas, parecia-lhe que, pois não eram vindas naus e gente do reino, que não ousaria o Viso-Rei de apartar de si a armada, que lá tinha em favor das naus daqueles lugares que costumava mandar, e por esta causa lhe ficava a ele, Samori, a costa despejada pera seu intento. O Viso-Rei, a quem parte destas cousas, per inteligências del-Rei de Cochi, eram descobertas, por quebrar o ânimo ao Samori, mostrou neste verão ter mais forças do que ele esperava, fazendo maior armada na guarda das naus da costa Malabar, e novamente outra em guarda de alguas naus que de Cochi foram a Coromandel buscar mantimentos, por ter sabido que naus de Calecute as iam lá esperar, e também a comprar drogarias, 8v que a um porto de Coromandel eram chegadas em um junco de Malaca, já com ordenança de cada ano vir ali, por não ousar subir mais acima, temendo nossas armadas. Na qual armada foram duas galés, dous navios e um parau, de que foi por Capitão-mor Manuel Paçanha, que era vindo da fortaleza de Anchediva, que o Viso-Rei mandou desfazer; e peró que achou o junco de Malaca, tinha já vendido suas drogas a mouros de Calecute, e eles postos em salvo; e por levar regimento que não fizesse dano ao junco, tornou-se a Cochi. E em guarda da costa Malabar, fez outra armada de dez velas, Capitão-mor D.Lourenço, e os outros Rodrigo Rabelo, Felipe Rodrigues, Bermum Dias, Lucas da Fonseca, Antão Vaz, Gonçalo de Paiva, Gonçalo Vaz de Góis, João Serrão, Diogo Pires e Simão Martins.

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Partido D. Lourenço, e em sua companhia as naus de Cochi, passando per Cananor, ficou ali Gonçalo Vaz tomando água e outras cousas de provisão; e depois que as recebeu, indo pela costa em diante em busca de D. Lourenço na paragem de Monte de Eli achou ua nau de Cananor, a qual lhe apresentou 28 o seguro que trazia do capitão Lourenço de Brito pera poder navegar, o qual seguro comumente, acerca dos mouros e nossos, ao presente se chama cartaz. E porque Gonçalo Vaz achou nela indícios ser de Calecute, e que o seguro fora havido surrepticiamente, não lho quis guardar, e meteu a nau no fundo com os mouros que a navegavam, todos coseitos em ua vela, por não haver memória deles. O qual feito depois custou muita guerra, que se fez à fortaleza de Cananor, 26 como se adiante verá; e por isso tirou o Viso-Rei o navio a Gonçalo Vaz, posto que dava por desculpa parecer-lhe o seguro sorratício. D. Lourenço, correndo a costa, chegou tanto avante como o porto de Chaúl; e estando surto de fora, apareceram ao mar uas sete naus, as quais sem terem conta com ele, como traziam vento e maré, entraram pera dentro do rio, a surgir diante da cidade. Quando D. Lourenço viu a soberba delas, e que somente não acudiram a certos tiros de pelouro, que lhe mandou tirar em modo de salva, porque dentro do rio estavam Diogo Pires com a galé e Simão Martins com o bargantim que ele mandara entrar em favor das naus de Cochi que lá eram, ajuntou todolos batéis mui bem armados, e foi-se pelo rio acima, pera haver fala deles, e o mais que ele podesse, posto que, segundo lhe disseram alguns mouros pilotos, as naus não eram do Estreito de Meca, mas de Ormuz, que podiam trazer cavalos. Chegado D. Lourenço onde as naus diante da cidade já estavam surtas, ajuntou-se a ele a galé e bargantim que também as tinham salvado; e vendo os mouros sua determinação, e a terra tam vezinha, foi o temor tamanho neles, que começaram de se acolher a ela; mas D. Lourenço lhes deu tamanha pressa, que primeiro que se acolhessem a terra, a maior parte deles a ferro e na água pereceram. Escorchadas as naus de mui rica fazenda que traziam, parte da qual recolheram os navios pequenos que ficavam em baixo, começaram alguns mouros mercadores de Chaúl mover compra dos cavalos que as naus traziam, que era a maior parte da sua carga. E porque andaram nisso com manhas e cautelas, anojado D. Lourenço dos seus modos, mandou poer fogo às naus, onde todos se queimaram, que foi cousa de que se eles mais espantaram ver que ante quiseram os nossos poer fogo a tudo, que o dinheiro que por elas davam; o qual não era tam pouco que não podera fazer cobiça a um homem sem ela. Tornado D. Lourenço à sua armada, andou de fora té que as naus de Cochi tomaram sua carga, as quais ele foi acompanhando; e ante que chegasse a Dabul, veo ter com ele Francisco Pereira, capitão do navio Vitória, que ficara em Cochi, acabando de se fazer prestes pera vir em sua companhia. O qual lhe deu conta que, sendo tanto avante como os Ilhéus de Santa Maria, houvera vista da armada de Calecute, a qual trazia diante si, e que se espantava como não topara com ela; que lhe parecia, pois ele, D.Lourenço, não houvera vista de tamanha frota, seria por ela se meter em algum rio. D. Lourenço, per estar certo ela não passar pera cima e que o tempo 29 servia mais a ele que a ela, suspeitou que se meteria em Dabul, e com esta presunção mandou meter mais vela, té que surgiu na boca do rio de Dabul, onde vieram a ele uns mouros, dizendo que eram de Cochi, e vieram ali ter com duas naus fazer sua mercadoria, parecendo-lhe estar toda a costa limpa de armadas com a sua 27 em que eles confiavam; mas depois de ele ser passado pera cima, entrara dentro um capitão do Samori com ua armada, que lhe tinha tomado suas naus; e por eles serem vassalos del-Rei

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9 de Cochi, pediam a sua mercê que lhe tornasse restituir o seu. D. Lourenço, espedindo os mouros, por ser já um pouco tarde, com esperança que ao outro dia se determinaria nisso, té saber o estado dos imigos ou ver se com a chegada dele faziam algua mudança, tanto que se foram, pôs logo em conselho o modo que teriam pera o seguinte dia entrarem a pelejar com esta armada. Porém foi-lhe mui contrariado este seu propósito, principalmente daqueles de cujo parecer seu pai lhe mandava que tomasse a determinação de qualquer feito que houvesse de cometer, poendo-lhe diante o grande número de velas e a estreiteza do rio e o favor dos mouros da cidade; e mais não saberem se era algum ardil dos mesmos mouros pera o acolherem dentro daquele rio, de que ainda não tinha muita notícia. E também que aquelas naus, que os mouros deziam serem de Cochi, se o foram, vieram em sua companhia como as outras, e que ele não era obrigado dar ajuda e favor em caso tam perigoso, como a entrada daquele rio era, senão àqueles que ele trazia em sua guarda, e não a qualquer mouro que lhe viesse dizer: - Sou vassalo del-Rei de Cochi. Finalmente, os que eram que ele não entrasse, debateram tanto nisso, que chegaram a modo de requerimento por parte do serviço del-Rei, a que os homens em casos são mais obrigados que a sua honra, com que D. Lourenço se partiu dali bem agastado. E sendo tanto avante como o rio chamado Zingaçar, que será de Dabul quatro léguas contra Cochi, fora já de um temporal que lhe deu, e não da paixão que levava, o bargantim e um parau que iam diante coseitos com a terra por descobridores, vendo que ua nau, que estava surta na boca do rio, picou a amarra e se meteu pera dentro com temor deles, começaram seguir a nau pelo rio acima obra de ua légua, té ela ancorar ante ua povoação grande, posta sobre o rio em um teso, ao longo da qual estava ua casa grande, que parecia servir de recolhimento de mercadorias pera pagarem seus direitos, com um cais grande lavrado de cantaria que nobrecia a praça, derredor do qual, e per todo o rio, havia muitas naus e navios pequenos. Dom Lourenço, quando viu entrar o bargantim e parau trás a nau, espediu de si Diogo Pires com a galé; o qual, chegando ao cais, favorecido com os outros e disposição do lugar, temendo que, se tornasse com recado, perdia a conjunção do tempo, e que bastava por recado as bombardas que lá podiam ouvir, começaram todos três com essas que tinham despejar a praça do cais de muitos mouros e gentios que acudiram, e tanto se chegaram ao cais, té se 30 fazerem senhores de alguas naus, que estavam com a proa em terra, primeiro que D. Lourenço chegasse a força de remo chamado pela artelharia. Com a chegada do qual saíram todos em terra e tomaram algua fazenda que acharam 28 na casa e depois a entregaram ao fogo, e assi a todalas naus e navios do porto, somente duas mui grossas e ricas de Ormuz, as quais assi inteiras ele levou consigo; e com elas e com as naus que levou em sua guarda, entrou em Cochi, cuidando ser bem recebido de seu pai por as vitórias que houvera. Peró, como ele já tinha sabido o que passou em Dabul per um navio que foi diante, estava tão indinado do filho, que nele quisera executar um grande castigo, senão fora certeficado quanto ele, D.Lourenço, trabalhou por pelejar, e que, por obedecer ao conselho daqueles que lhe dera por principais conselheiros, leixara de o fazer. O qual caso ele houve por ua tam grande injúria, que suspendeu os culpados de suas capitanias e os mandou a este reino; e disse que mal fosse a morte que levava a Pero de Anhaia, pois fora causa de apartar da companhia de seu filho a Nuno Vaz Pereira; porque, se ele fora presente, não fora então mau conselho. E porque alguns fidalgos, falando por estes capitães, lhe deziam que ele os devia castigar e não mandar a este reino com tal infâmia diante del-Rei, respondeu, que ele tomava este caso, não por parte da honra de seu filho, mas da bandeira das armas del-Rei, seu senhor; e que per ventura Sua Alteza, como tinha mais perfeito juízo, o tomaria per outra maneira; que ele não queria castigar os seus capitães, senão com as penas que lhe ele desse, porque em suas Ordenações não achava posto este caso, pera conforme a

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ele o castigar. Do qual feito, em que ele houve que seu filho ficava com algum detrimento de sua honra, veo a lhe poer por preceito que, no conselho de pelejar, sempre tomasse os votos de certos capitães, por ele os ter por tam cavaleiros, que, pera cometer um honrado feito, ainda que perigoso, não haviam de apresentar muitos inconvenientes por segurança da vida. Do qual preceito, e assi do descontentamento que D. Lourenço trazia de si por este caso, mais estranhado na boca de seu pai que na opinião de muitos, veo ele depois perder a vida, como adiante se verá.

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28 9v 31 Capítulo V. Como Lourenço de Brito, capitão da fortaleza de Cananor, foi cercado, no qual tempo passou muito trabalho, té que foi socorrido per Tristão da Cunha, com a chegada do qual el-Rei de Cananor assentou com eles paz. Posto que os mouros que viviam em Cananor tevessem um grande jugo sobre seu pescoço na fortaleza que ali tínhamos, e esta dor jazia com grandes raízes dentro na sua alma, o temor lhe abatia a execução deste ódio enquanto viveu o Rei gentio da terra, com quem o Almirante D. Vasco da Gama, e depois o Viso-Rei, assentaram a paz e concórdia que sempre com ele tevemos. Peró por ele falecer neste tempo, 29 segundo se disse per azo dos mouros, e suceder outro, que favorecia suas cousas contra nós, ficaram eles tam soberbos, que logo os nossos sentiram este seu favor; e por não parecer que moviam guerra sem causa, tomaram esta por fundamento: Em a nau que Gonçalo Vaz de Góis meteu no fundo (como ora vimos), ia um mouro, sobrinho de Mamale, um dos mais ricos e honrados que havia naquele Malabar, o qual era morador em Cananor; e parece que, rota a vela em que Gonçalo Vaz mandou meter os mouros que tomou, foram ter à costa de Cananor os seus corpos, entre os quais foi conhecido pelos vestidos e sinais este sobrinho de Mamale, e assi alguns dos outros. A qual cousa deu suspeita da verdade, por haver tam pouco que a nau saíra de Cananor, e Gonçalo Vaz quási na esteira dela, que foi causa de tanto pranto e alvoroço entre os mouros, que com aquele ímpeto de dor se foram a Lourenço de Brito, aqueixando-se dele que os enganara com seu seguro, pois lho não guardavam, sem dele quererem receber desculpa. E como Mamale, além de perder o sobrinho, perdia muita fazenda, e ele era o principal que recebia o dano, ajuntou todas as partes ofendidas e foi-se a el-Rei de Cananor, e assi clamaram justiça do caso, que lhe concedeu tomarem satisfação dele como podessem. Mamale, tanto que teve esta licença, carteou-se logo com os mouros de Calecute, os quais fizeram com o Samori que escrevesse a el-Rei de Cananor, que movesse guerra contra a nossa fortaleza, porque ele o ajudaria a libertar de tamanha sujeição, ao que ele obedeceu; ca, segundo se dizia, na sucessão do reino, pera ele, Rei de Cananor, vir àquele estado, teve ajudas do Samori; e por razão de lhe ser nesta dívida, levemente obedeceu a seu requerimento. Finalmente, o negócio se travou de maneira que, quando D. Lourenço per ali passou recolhendo-se a invernar a Cochi, sabendo de Lourenço de Brito como 32 a terra por aquele caso ficava meia alevantada, lhe leixou sessenta homens dos que levava da armada e alguns mantimentos e munições, temendo que, com a vinda do inverno, os mouros a viessem cometer, como de feito aconteceu, porque té li foram uas encobertas, em que el-Rei de Cananor se não descobria de todo. Porém, vendo Lourenço de Brito que o negócio chegava já a virem alguns capitães del-Rei descobertamente com gente a lhe correr té as portas per patamares, que são homens que andam muito per terra por razão do inverno, escreveu ao Viso-Rei o estado em que estava; e que, além disso, esperava que o Samori havia de mandar todo seu poder em ajuda del-Rei de Cananor, segundo tinha sabido per alguns gentios seus amigos, com quem tinha amizade, principalmente per um sobrinho del-Rei, que era o Príncipe que por sua morte havia de suceder no reino. Chegada esta carta a Cochi, ua quinta-feira de Endoenças, estando aos 30 Ofícios do dia, não deu o Viso-Rei mais tempo que té se acabarem, mandando logo com muita diligência embarcar seu filho D. Lourenço com a mais limpa gente que ali estava; e ele, Viso-Rei,

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per si de casa em casa andou tomando às pessoas parte do mantimento que tinham, pera provisão da gente que mandava. E foi tamanha a pressa por acudir a esta fortaleza de Cananor, que os centúrios, que andavam armados guardando o sepulcro (segundo costume da nossa religião cristã), ficaram em ca1ças e gibão, porque cada um foi buscar as armas que tinham emprestado; e posto que o tempo era mui forte 10 pera se meterem no mar, todavia pôde mais o ânimo dos nossos, que a fúria que ele mostrava. Chegado D. Lourenço com esta gente a Cananor, porque levava per regimento que ficasse debaixo do mandado de Lourenço de Brito, por honra de sua pessoa e nome de capitão da fortaleza, dado por el-Rei, nunca Lourenço de Brito o quis consentir, dizendo que não havia ele de mandar o filho do Viso-Rei da Índia, e mais sendo ele per sua pessoa tal capitão, que merecia mandar a todos, e ninguém a ele. Finalmente, entre eles se passaram tantas cousas sobre um querer dar honra a outro, que assentou D.Lourenço de leixar toda a gente que levava pera ficar com Lourenço de Brito aquele inverno, e ele tornou-se pera Cochi só, pois isto não tratava mais que de sua pessoa. Com a vinda da qual gente Lourenço de Brito mandou fazer ua tranqueira mui forte com ua cava a maneira de barbacã, além do muro da fortaleza, não tanto por segurança dela, quanto por razão de um poço de água de que bebiam, que estava daí um tiro de pedra, defronte do qual el-Rei de Cananor tinha mandado fazer ua cava, que cortava de mar a mar, leixando somente ua passagem mui estreita pera os nossos terem serventia do poço, tudo afim de o defender. Assi que cada um per sua parte trabalhava de se aperceber, como em cousa que havia de durar todo o inverno, como durou; e o primeiro sangue que os nossos começaram verter naquele cerco que lhe el-Rei pôs, que seria de vinte mil homens, foi por tomar água do poço, porque 33 logo os mouros eram sobre eles por lha defender. E posto que nestas saídas não havia gota de água que não custasse duas de sangue, era tamanha a sede entre os nossos, que ante queriam à custa dele satisfazer a ela, que padecer tanta necessidade; à qual Deus lhe proveo com ua indústria de Tomás Fernandes, mestre das obras da fortaleza, ordenando ua mina per baixo da terra, que ia dar obra de ua braça abaixo da garganta do poço, e solhado per cima, de modo que a terra não caiesse na água. Ao outro dia, à vista dos mouros, mandou Lourenço de Brito sair muita gente de enxadas; e mostrando que queriam tomar água, rebateram toda a tera de cima do poço sobre o solhado, como que arrunhavam 31 o poço e não queriam ter uso de cousa que tanto sangue lhe custava. Os mouros, vendo este desfazer do poço, creram que os nossos tinham novamente aberto outro dentro na fortaleza, e confirmaram esta presunção por passarem muitos dias sem saírem fora; e por este poço ser causa da tranqueira e cava que tinham feito junto dele, a qual obra já não lhe servia pera aquele efeito, ante recebiam muito dano da nossa artelharia, que Lourenço de Brito tinha posto na tranqueira, que mandou fazer contra a sua, levantaram dali seu arraial pera debaixo de um palmar, e pouco e pouco o desfizeram de todo, passando muitos dias sem virem travar com a fortaleza. Lourenço de Brito, por lhe parecer mais mistério que temor sem mais causa levantarem o arraial, desejando haver algua língua do que passava entre os mouros, mandou ua menhã a sair certos homens; e tanto que viessem sobre eles, se recolhessem um pouco apressados per um lugar, onde um carpinteiro da fortaleza tinha armado um cepo, per o qual modo Lourenço de Brito houve um índio que caiu nele. E posto que particularmente não soube tudo o que desejava, disse-lhe que a causa principal de levantarem o cerco, era estarem ordenando certos engenhos pera trazerem uas balas grandes de algodão e cairo, como amparo da gente, pera um grande combate que lhe haviam de dar; e que o ofício desta primeira gente que viesse detrás das balas, havia de ser trazer rama pera entulhar a sua cava, e depois que fosse rasa, poer fogo à tranqueira, e nas costas destes a gente de armas com escadas escalarem a fortaleza per toda parte. A qual nova confirmou um recado secreto, que de noite veo a Lourenço de Brito da parte do Príncipe de Cananor, sobrinho del-Rei, que

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procurava ganhar com benefícios nossa amizade, pera ter favor nosso em tempo de suas necessidades. E entre alguns avisos que lhe mandou, foi que, enquanto o cerco não vinha, no tempo que ele, Lourenço de Brito, visse que melhor se podia fazer, saísse com gente e decepasse quantas palmeiras podesse, por fazer maior campo defronte da fortaleza, pera que o arraial da gente, que havia de ser muita, lhe ficasse mais longe, com os quais avisos também lhe mandou duas almadias de mantimento. 34 Lourenço de Brito, quando viu estes dous socorros do Príncipe, mais lhe pareceu virem da mão de Deus, que de um homem tam conjunto per parentesco com el-Rei; e assi como per 10v mão deste gentio, naquele tempo o socorreu, assi pelas suas, favorecidas dele, foram livres daquela vinda dos mouros; porque, cortado o palmar que o Príncipe mandou dizer, quando veo o dia do combate das balas, posto que lhe deu muito trabalho, tudo foi em dano dos imigos. E a causa foi esta: Vendo os mouros, ministros desta invenção, que no primeiro cometimento a nossa artelharia embaçava nas balas, com que eles não recebiam dano, tomaram tamanha ousadia, que, de alvoraçados, começaram de se desordenar, 32 querendo quási às mãos vir tirar os paus da nossa tranqueira; no meio da qual desordem, com duas peças grossas que Lourenço de Brito mandou mudar, assi lhe acertaram a costura das balas, que juntamente os corpos dos imigos e o algodão delas ia pelo ar. E sobre esta obra da nossa artelharia saiu Lourenço de Brito, que acabou de consumar a vitória, matando e ferindo neles, té que os fez virar as costas, trabalhando cada um por salvar a vida e ficando a cava entulhada mais dos corpos deles que dos feixes da lenha que traziam pera isso. Havida esta vitória, e os mouros postos debaixo do palmar em modo de cerco, assombrava-se ainda Lourenço de Brito tanto com eles, que determinou de os lançar dali, e ordenou de dar no arraial ua noite de escuro e chuiva, por saber que os mouros e gentios neste tempo são mui covardos; a capitania da qual saída deu ao Alcaide-mor Guadalajara, por ser o inventor desta ida, com o qual foram até oitenta homens, em que entraram os principais que ali estavam; no qual cometimento se fez um mui honrado feito. Porque, como neste tempo a gente estava descuidada, e por razão da chuiva toda enroscada e encolheita em frio e sono, tanto que os nossos com ua grita deram no arraial, começaram as câmaras da artelharia fazer ua trovoada e a fuzilar, de maneira que tudo juntamente não parecia cousa de homens, senão que o céu chovia fogo, água, ferro, sangue e finalmente morte de mais de trezentos dos imigos que ali pereceram. Tornados os nossos a se recolher, trouxeram por despojo certas peças de artelharia de ferro e algum mantimento, que eles trabalhavam por haver pola grande necessidade que tinham dele, o qual lhe Nosso Senhor trouxe às mãos, como remédio do perigo em que depois se viram por causa de perder boa parte do que tinham na fortaleza. Porque, per descuido de um homem do feitor Lopo Cabreira, que leixou ua candea na Feitoria de fora da fortaleza, onde os moradores tinham suas casas palhaças, arderam todas de noite, em que se perderam quantos mantimentos estavam nelas, que sentiram mais que toda a outra fazenda. A qual cousa, posto que Lourenço de Brito trabalhou por encobrir, dando a entender que todolos mantimentos estavam dentro na fortaleza em as casas do almazém deles, todavia, no apertar da ração que se dava a cada um, se começou logo a sentir, principalmente acerca dos escravos 35 das partes, alguns dos quais com fome fugiram pera os mouros, dando nova no estado em que a fortaleza ficava. Os quais mouros, parecendo-lhe que per este modo podiam travar com os nossos, lançaram-lhe alguas vacas diante no palmar, e sobre eles cilada, parecendo-lhe o que foi - saírem os nossos a elas; peró não sucedeu como os mouros esperavam, porque a fome, posto que deminuísse

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em os membros, dobrava as forças do ânimo, com que, apesar deles, as vacas foram recolhidas aquela e outra vez; e de lhe suceder mal, não usaram os 33 mouros mais deste ardil, por não darem de comer aos nossos, que lhe a eles bem pesou. Com que vieram a tanta estreiteza de fome, que não ficou na fortaleza cão, gato e ratos, que tudo não fosse mantimento, de maneira que a gente comum assi com fome, como trabalho dos combates que teveram e vegias da noite, quási toda jazia doente. Mas Nossa Senhora, a quem os nossos se iam encomendar na ermida sua da vocação da Vitória, que D.Lourenço fez na ponta da terra, a quinze de Agosto, em que a Igreja celebra a festa da sua Assunção, obrou com eles suas misericórdias com este efeito mais milagroso, que natural: alevantou-se o mar em fúria, e cada vez que o rolo dele descarregava na terra da ponta, onde estava esta sua ermida, lançava dentro grande número de lagostas, que os nossos houveram por maná enviado do Céu; porque não somente aos sãos, mas aos doentes deram vida; e foi tanta a cópia, que teveram nelas uns dias que comer. E verdadeiramente, segundo o trabalho logo sucedeu, se Nosso Senhor lhe não acudia com este adjutório, e assi o Príncipe de Cananor, do que seu tio ordenava pera os cometer, sem dúvida a fortaleza fora entrada. Porque, como já no mês de Agosto, que naquela costa é princípio de verão, o mar de algum 11 modo se poder navegar, vendo el-Rei de Cananor que per os combates da terra já tinha experiência do dano que recebia e que as nossas naus podiam ser mui cedo na Índia, ante que chegassem, ordenou cometer a fortaleza pela ponta que dissemos estar torneada do mar, não somente com barcos e catures, que podiam tomar terra pera os homens saltarem na água, mas ainda com outra invenção de castelos, como os que o Samori levou à guerra de Cochi, quando Duarte Pacheco pelejou com ele, a qual foi ordenada pelos mouros de Calecute. E porque, no dia deste combate, que havia de ser per terra e per mar, se havia mester muita gente, dobrou o Samori a que tinha enviado a el-Rei de Cananor, de maneira que se ajuntaram passante de cinquenta mil homens. Lourenço de Brito, como era deste caso avisado pelo Príncipe, e que os mouros toda sua confiança punham na parte do mar, por estar a fortaleza per ela com menos defensão, pola segurança que té aquele tempo teveram com a fúria do mar não dar jazeda a serem per ali cometidos, nesta parte pôs a maior defensão, assi de artelharia, como de gente, e porém não se antecipou tanto nestes repairos que fez, pera que os mouros vissem que estava ele previsto do caso. Finalmente, vindo o dia, teveram os mouros ainda um modo 36 de ardil no dar este combate e foi ante menhã cometerem a fortaleza pela parte da terra, pera que acudissem todolos nossos a ela, e entretanto veo o corpo da frota demandar o seu lugar, parecendo-lhe que o havia de achar desemparado, a qual seria de mais de duzentos barcos de remo de toda sorte, muita parte deles ordenados em jangadas pera trazerem mais corpo de gente, 34 e entre eles traziam duas daquelas máquinas, em que viriam cento e cinquenta homens. Peró como Lourenço de Brito a tudo estava provido, posto que o dia foi de grande trabalho e o combate durou até a tarde, aprouve a Deus que todo aquele grande aparato e estrondo que os mouros traziam se tornou em seu dano; porque, pela parte da terra, ainda que vieram pelejar com os nossos a mão-tenente, querendo subir per as tranqueiras, foi tanta a mão decepada deles que ali ficou, e tantos corpos espedaçados da artelharia, que fez arredar os traseiros. E se estes receberam dano, muito maior foi o que levaram os do mar; ca nesta parte estava assestada a nossa artelharia mais grossa, e não havia tiro sem arrombar paraus, sem espedaçar corpos, de maneira que teveram os pexes por uns dias ua boa ceva neles, e os nossos bem de lenha que queimar dos paraus e máquinas que o mar depois com a maré lançou à costa. Com o qual estrago, os primeiros que se arredaram do combate foram estes do mar, que deu causa a que Lourenço de Brito passasse a maior parte da gente, que aqui tinham, ao outro combate da terra, onde acabou de consumar a vitória.

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A qual, ainda que foi com sangue dos nossos, aprouve a Deus que, por ser mais gloriosa, não houve algum que morresse nela. E por memória de suas pessoas, diremos os nomes de alguns principais, que vieram a nossa notícia: Francisco Pantoja; Jorge Paçanha e Álvaro Paçanha, irmãos; Fernão Peres de Andrade e Simão de Andrade, irmãos; Rui Pereira, Rui de Sampaio, Álvaro de Brito, Jorge Fogaça, Francisco de Miranda, Diogo Pereira, Pero Fernandes Tinoco, Francisco Serrão, Gonçalo Vaz de Góis, João Gomes Cheiradinheiro, António Raposo. Os quais não somente neste dia, mas em todo o cerco, que durou mais de quatro meses, padeceram muita fome, sede, vigias e muitos combates e outros trabalhos, que os cercos tam apertados e sem socorro tem, mas ainda verteram muito sangue; e aprouve a Deus que este dia foi o último deste trabalho, porque di a poucos, que foram a vinte e sete de Agosto, chegou Tristão da Cunha. Com a vinda do qual el-Rei de Cananor assentou paz mui favorável a nós, que lhe Lourenço de Brito e ele aceitaram, a condição de a confirmar o Viso-Rei, a qual confirmou tanto que Tristão da Cunha chegou a Cochi, onde foi recebido com grande honra sua e prazer de todos.

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35 11 37 Capítulo VI. Como o Viso-Rei e Tristão da Cunha destruíram um lugar del-Rei de Calecute chamado Panane e partido ele, Tristão da Cunha, pera este reino, achou em Moçambique parte da armada, que de cá partiu o ano de sete; e de alguas cousas que aconteceram aos capitães dela, em que se perdeu Vasco Gomes de Abreu. 11v O Viso-Rei D. Francisco de Almeida, como estava provido das cousas necessárias pera a carga daquelas naus, que esperou o ano passado e não passaram a Índia (por as causas que escrevemos), e sobre este apercebimento tinha feito outro pera as naus deste ano de sete, que também não passaram, como veremos, ficaram-lhe as cousas da carga tam sobrepostas, que em breve tempo a deu a Tristão da Cunha. E a maior detença que houve foi em dar pendor a alguas naus, no qual tempo ele assentou com Tristão da Cunha que de passada quando se viesse, veria em sua companhia, e dariam em Panane, um lugar del-Rei de Calecute, por ter nova que naquele porto carregavam alguas naus de mouros, em guarda das quais estavam quatro capitães do Samori, de que o principal era um mouro, homem de sua pessoa, per nome Cutiale. O qual Samori tinha fortalecido o lugar com muita artelharia, gente e grandes munições de guerra, por ser ua câmara onde ele mandava que se fizesse a carga das naus dos mouros que tratavam no seu reino, ca este porto era um rio, onde podiam receber algum amparo das nossas armadas de Cochi. Apercebidos Tristão da Cunha com as naus da carga e o Viso-Rei com as velas da armada da costa, chegaram a este lugar de Panane ua tarde vinte e três de Outubro, o qual lugar será abaixo de Calecute contra Cochi catorze léguas. Os mouros, como estavam esperando esta vinda e a esse fim tinham feito na entrada da barra do rio de cada parte ua força a maneira de baluartes com artelharia e em cima, no lugar, toda a frontaria dele com outra tal defensão, vendo tamanho poder de naus e navios surtos na barra, como gente que esperava defender o seu, além dos repairos que tinham feito, toda aquela noite ante da menhã em que esperavam serem cometidos, gastaram em dobrar outros repairos; e per derradeiro, por se animarem todos, foram-se os principais a ua mesquita a fazer solene voto de morrerem todos em defensão do lugar. O Viso-Rei e Tristão da Cunha, surtos na entrada da barra, e visto o modo e defensão de seus baluartes, ordenaram que três caravelas fossem diante com toda a gente que podessem, abatida por causa da artelharia dos baluartes ao tempo que a maré subisse, e entre elas por amparo 38 os batéis de todalas naus, cada capitão em o seu, e seus filhos na saída em terra com estes batéis levassem a honra da dianteira; os capitães que andavam na Índia, acompanhassem a 36 D.Lourenço, e os que vinham pera este reino, a Nuno da Cunha; e eles, Viso-Rei e Tristão da Cunha, na trasera, em a galé de Diogo Pires. Quando veo ao outro dia pela menhã, começaram abocar o rio, onde estavam as estâncias que todos receavam; foi maior a grita que deram ao passar dos baluartes que o dano da sua artelharia; porque aprouve a Deus que o lugar deles era soberbo sobre a barra, e ela assestada mais pera naus de alto bordo, que batéis e caravelas rasas, com que os nossos passaram per baixo dos pelouros, que iam assoviando per cima. Os dous capitães, que levavam a dianteira quási em modo de competência a quem primeiro tomaria a tranqueira do lugar, cada um por sua parte assi trabalhou que ambos pareciam levarem desordem no remar; peró quando veo ao cometer, assi o fizeram com tento, que ambos a seu tempo, com ânimo e ordem, deram nos mouros. A maior parte dos quais, como gente oferecida a morrer, não se contentaram esperar os nossos detrás das tranqueiras que

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tinham feito, mas, vindo à praia, metiam-se na água e dentro nos batéis queriam pelejar com eles de maneira que naquela primeira chegada este foi o maior pejo que os nossos teveram; porque, como vinham apinhoados em os batéis, e não podiam ajudar-se das armas a sua vontade e os mouros andavam leves naquela água, deteveram-se um bom pedaço sem tomar terra, té que fizeram outro tanto como os mouros - saltarem na água - onde logo dos nossos foram mortos três, de que o principal era um cavaleiro per nome Gil Casado. Na qual detença, quando D. Lourenço chegou à tranqueira, já achou muitos homens ante si às lançadas com os mouros, onde houve ua mui crua contenda, uns por subir e outros por defender a subida; e entre o sangue e fúria de que todos andavam cobertos, era tamanha a fumaça da artelharia, que se não viam uns aos outros; no qual tempo andavam já todos de envolta, assi os que vinham com o Viso-Rei e Tristão da Cunha, como os que foram diante com seus filhos. E os primeiros que se viram em cima daquela tranqueira tão defendida, foram: Pero Barreto, Paio de Sousa, Rodrigo Rabelo, Gonçalo de Paiva e Pero Cão, que fez subir em cima o guião de D.Lourenço. O Viso-Rei, quando viu este aguião de seu filho em cima e ele em baixo um pouco embaraçado no 12 subir, porque o pejavam as armas, da galé donde estava com Tristão da Cunha, começou a bradar, dizendo: - Ah D. Lourenço, que preguiça é essa? Ao que ele confiadamente respondeu: - Dou lugar a quem me ganhou a honra da dianteira. Tristão da Cunha, porque também viu o filho na pressa em que D.Lourenço estava, disse-lhe: - Ah Senhor D. Lourenço, peço-vos muito por mercê que me vades crismar esse cachopo Nuno àquela mesquita, onde se recolhem aquele pegulhal 39 de mouros, que hoje espero em Deus que seja santificada com esta bandeira de Cristo, que iremos arvorar no seu altar. Nuno da Cunha, quando ouviu a encomendação de seu pai, como quem obedecia, ajuntou-se à 37 ilharga de D. Lourenço, e obraram estas palavras de seus pais tanto neles, que logo no seu rosto foram ambos sangrados cada um com sua ferida; e a que houve D. Lourenço, foi em um feito de sua pessoa mui honrado, que lhe aconteceu com um mouro, que era dos quatro capitães ordenados pera a defensão daquele lugar. O qual, quási como homem oferecido a morrer, pôs os olhos em D.Lourenço, e entendendo ser principal pessoa, coberto com sua adarga, meo curvo, remeteu às pernas polo decepar. D. Lourenço como era um dos maiores homens que então havia neste reino, achando o mouro metido debaixo de si, fez dous passos atrás e desceu com ua faxa de âmbalas mãos, de que ele usava, de tal vontade, que fendeu o mouro té os peitos, que foi um dos maiores golpes que se viu, sendo o mouro homem de boa estatura e envolto em carnes; e ou que ele com a força, quando desceu com a faca, ou que o mouro o tomou per aquele lugar, ele recebeu no colo do braço ua ferida de assaz perigo; ca por ser lugar de nervos e muitas veas, vasava muito sangue. A nossa gente começando a sentir a vitória com o retraer dos mouros, não lhe davam espaço a se amparar; eles, por comprir seu voto e juramento, vendo que o gentio da terra e assi algua gente cível os desemparava, como gente constante, sem mudar pé, juntos em ua praça, ante que chegassem à mesquita de baixo do ferro dos nossos, ficaram ali todos mortos, e alguns deles em sua companhia. Neste tempo, porque assi no mar como na terra a gente fosse igual no trabalho, mandou o Viso-Rei a alguns capitães das caravelas que fossem cometer as naus dos mouros e outros navios que estavam em estaleiro e lhe posessem fogo, no qual feito eles teveram tanto perigo como os da terra, porque as naus também estavam cheas de gente, que as defendia, enquanto viram que os seus

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em terra não eram entrados de todo. Porém como a vitória começou de acompanhar os nossos, assi os imigos do mar como da terra se puseram em fugida; e alguns, cuidando que se podiam salvar na mesquita, acabaram nela, e assi era razão que no lugar onde tinham perdido as almas, dessem sepultura aos corpos. O número dos quais, entre estes e os que morreram na praia, passaram de quinhentos, e dos nossos dezoito, mas não foi pessoa notável; e feridos mais de sessenta, de que os principais eram: Pero Barreto, Paio de Sousa, Fernão Peres de Andrade, Jorge Fogaça. E o dano que o Samori mais sentiu (peró qua aqui morressem todolos capitães e muitas pessoas notáveis), foi a perda do lugar e naus que ali estavam carregadas de muita fazenda, que 40 alcançou a muitos, porque o fogo tudo consumiu. E o de que os mouros mais se maravilharam foi, havendo ali tanta fazenda, não fazer cobiça àqueles capitães, e mandarem queimar tudo, sem tomarem mais despojo que a artelharia. Acabado este feito, que foi um dos honrados que se cometeu 38 naquelas partes, e se fizeram alguns cavaleiros pelos méritos que nele teveram, tornou-se o Viso-Rei com Tristão da Cunha a Cananor a lhe dar a carga de gengivre, que ainda não tinha tomado, e em dez de Dezembro se fez Tristão da Cunha à vela pera este reino, passando per Quíloa, onde leixou a Pero Ferreira certos despachos que lhe houve do Viso-Rei, em favor dos negócios que eram passados entre ele e Nuno Vaz Pereira. Chegado a Moçambique a nove de Janeiro do ano de quinhentos e oito, achou parte da armada, que o ano passado de sete partiu deste reino; e tomando aqui água e lenha, partiu-se com três velas somente, que com ele vinham; e as outras, que eram o seu navio, capitão João da Veiga, e Job Queimado, partiram depois, por chegarem sendo ele já partido. E porque a nau Leitoa, a velha, capitão Lionel Coutinho, que vinha na conserva destas duas velas, abriu alguas águas, com que não podia passar, baldeou-se a sua carga em a nau Santo António, capitão Hanrique Nunes de Lião, que ali estava invernando com os outros capitães, que de cá partiram o ano de sete, 12v como logo veremos; e Lionel Coutinho veo por passageiro com Hanrique Nunes: E posto que todos vieram a este reino a salvamento, foi com assaz trabalho dos que vinham com Tristão da Cunha, porque se meteu na costa de Guiné, onde lhe morreu muita gente de doença; e Job Queimado, por arribar a Moçambique, quando tornou aquele ano, como vinha só, foi roubado dos franceses. Quanto às naus que acharam em Moçambique, eram parte de onze velas que o ano de sete partiram deste reino, sete pera a carga da especearia, repartidas em três capitanias-mores, de que estes eram os capitães: Jorge de Melo Pereira, filho de Vasco Martins de Melo, alcaide-mor da Cabeça da Vide, e com ele Hanrique Nunes de Lião, que tornou com carga da Leitoa; e Fernão Soares, filho de Gil de Carvalho, era o outro, e debaixo de sua bandeira Rui da Cunha e Gonçalo Carneiro; e o outro capitão-mor era Felipe de Castro, filho de Álvaro de Castro, e com ele seu irmão Jorge de Castro. Partidos estes capitães, depois deles, a vinte de Abril, partiu Vasco Gomes de Abreu, filho de Antão Gomes de Abreu, o qual el-Rei mandava por capitão de Sofala com cinco velas pera guarda de toda aquela costa, até Melinde; e os capitães que haviam de andar naqueles navios da armada, eram: Lopo Cabreira, Pero Lourenço, Rui Gonçalves e João Chanoca. E levou mais em sua companhia dous navios, capitão Martim Coelho, filho de Gonçalo 41 Coelho, e Diogo de Melo, filho de João de Melo os quais iam ordenados pera andarem de armada com Afonso de Albuquerque na costa da Arábia. E proveo el-Rei a Vasco Gomes desta capitania por falecimento de Pero de Anhaia, por ele lhe dizer como era falecido, sem saber que o Viso-Rei D. Francisco tinha provido dela a Nuno Vaz Pereira; ca, segundo a calidade da pessoa de Nuno Vaz e serviços que 39

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tinha feito, e quanto trabalhou em assentarem as cousas de Quíloa e Sofala, que andavam em revolta acerca do suceder na fortaleza de Sofala e título del-Rei de Quíloa, per ventura nem ele, Vasco Gomes, nem Nuno Vaz morreram cada um per seu modo, como adiante se verá. Partido ele, Vasco Gomes, sendo tanto avante como o rio Sanagá, por má navegação perdeu-se de noite o navio de João Chanoca, levando ele o forol; e quis Deus que a cerração era tamanha, que não havia atinar a forol, porque também os outros se perderam com ele. E a gente desta caravela foi ter, roubada dos negros, ao Cabo Verde, na Angra Bezeguiche, onde Vasco Gomes estava; e partido dali, chegou a Sofala a oito de Setembro; e entregue da fortaleza, Nuno Vaz Pereira, que estava por capitão, meteu-se em o navio de Martim Coelho té Moçambique, e neste caminho toparam com Jorge de Melo, que andava entre aquelas ilhas bem trabalhado com mau tempo, e todos ali andaram (como dizem) às redes, té que, a vinte de Setembro, entraram todos em Moçambique: Martim Coelho, e Diogo de Melo com Jorge de Melo, sem ainda lá serem Fernão Soares e Felipe de Castro. E depois que todos se ajuntaram, visto como não podiam passar ainda, - porque, em a nau de Jorge de Melo ia Duarte de Melo, filho de Pero de Melo Forca, o qual el-Rei mandava por capitão e feitor, com Rui Varela, seu moço da câmara, por escrivão, e outros oficiais pera estarem ali em Moçambique, e que fizessem ua fortaleza com casas pera recolhimento da gente - ordenaram os capitães de todas aquelas naus gastar o tempo que ali haviam de invernar em fazer esta obra. Com a qual fizeram também ua igreja da vocação de S. Gavriel, com ua casa grande em modo de esprital pera agasalhar os doentes, que ordinariamente havia no tempo que as naus ali invernavam. E porque na Índia faria grande confusão não passar nenhua nau aquele ano, consultaram de mandar com recado ao Viso-Rei a Rui Soares, Comendador de Rodes, que ali ficara da armada de Tristão da Cunha, esperando pelo navio de Pero Coresma pera se ir nele, andar com Afonso de Albuquerque, como el-Rei mandava. A qual viagem ele aceitou, peró que fosse de muito risco, porque, além de ser serviço del-Rei, era ele da crianção do Prior do Crato, D. Diogo de Almeida, irmão do Viso-Rei D. Francisco, e folgou de se ir para ele. O qual, sendo pouco mais de vinte léguas de Moçambique, topou a nau Santa Maria das Virtudes, capitão João Gomes de Abreu, que, como vimos, se apartou de Tristão da Cunha na costa da Ilha S. Lourenço; e o que então Rui Soares soube dos que iam em a nau, foi irem ter ao porto de Matataná, 42 e como João Gomes, por causa de se ir ver com el-Rei, 13 de que teve recado, entrara dentro per um rio em o batel da nau. No qual tempo sobreveo tam grande temporal, que o rio se sarrou; e vendo que aos 40 quatro dias não tinha nova de João Gomes, e o tempo os não deixava esperar, se partiram a Deus misericórdia, sem piloto, por ele ser ido com João Gomes. Porém depois se soube que João Gomes morreu entre nojo e enfermidade, em casa do Senhor de Matataná; porque o piloto e outros que foram com ele, vendo-o morto, consertaram o batel, e com assaz perigo e trabalho vieram ter a Moçambique. Rui Soares, como ia rota abatida com o recado que levava, fez seu caminho, entregando a capitania da nau a Jorge Botelho, de Pombal, que levava no seu navio ,e assi lhe deu piloto; mas ainda a fortuna dela não acabou aqui, mas em ua angra onde se meteu, junto de Pate, sendo já em companhia dela outra caravela, capitão Manuel Álveres, moço da câmara del-Rei, que estava em Melinde, em que a gente da nau se salvou. Partido Rui Soares, que chegou à Índia, como veremos, tanto que o tempo deu lugar à frota que invernava em Moçambique, partiu e deu-lhe Deus melhor viagem té chegarem à Índia, do que teve Vasco Gomes de Abreu em ua que quis fazer, depois que assentou as cousas de Sofala. A qual viagem, segundo ele denunciou em saindo de Sofala, era querer dar ua vista às obras de Moçambique e correr aquela costa, como lhe el-Rei mandava; mas alguns quiseram dizer que seu

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propósito com aqueles navios era ir descobrir o cravo e gengivre da Ilha de S. Lourenço, que lá levou a Tristão da Cunha, por andar esta fama na boca dos mouros e openião dos nossos, com desejo de cada um ser o primeiro; peró ante de chegar a Moçambique se perdeu com todos quatro navios, sem se saber o como, somente haver presunção que sessobraram com um tempo que às vezes cursa nesta paragem, assi na terra, como no mar, o qual passa com tamanha fúria (segundo os mouros dizem), que leva ua corda sem lhe ficar árvore nem cousa em pé, e tudo vai sessobrar no mar; e como se houve que era perdido, ficou por capitão de Sofala Rui de Brito Patalim, que servia de Alcaide-mor, e ele leixara em seu lugar. E se os clamores da justiça que cada um pede do mal que recebe ante Deus são ouvidos, assi dos infiéis como dos católicos, peró que os seus juízos a nós são ocultos, parece que se ouviram os de Soleimão, que Pero de Anhaia como atrás fica, per morte de seu pai tinha feito governador da terra por os serviços que fez à fortaleza. O qual, sendo também favorecido dos outros capitães, dizem que sem deméritos seus Vasco Gomes o tirou daquele governo e proveo a um seu irmão, e não somente perdeu esta honra que tinha, mas ainda foi desterrado com alguns mouros principais da terra de sua valia, com fama que eram prejudiciais à fortaleza, parte dos quais foram viver a Melinde e outros per toda essa costa, e todos acabaram no estado em que vivem os desterrados.

LIVRO II 41 13v 43 Capítulo primeiro. Como Afonso de Albuquerque com a armada que lhe ficou, partido de Socotorá, tomou na costa da Arábia cinco vilas do reino Ormuz. Como este reino de Portugal, per um particular dom de Deus, lhe é concedida esta prerogativa - ganhar os títulos de sua Coroa per conquista de infiéis - e este é o seu verdadeiro património, principalmente dos arábios que como no princípio dissemos, descorrendo partes orientais da sua pátria arábia, vieram ter a estas ocidentais; parece que, como Deus permitiu que eles fossem flagelo e castigo dos pecados de Espanha, destruindo e assolando a terra aos naturais dela ,assi ordenou que, passados tantos séculos, a gente português, a mais ocidental de Espanha, e do próprio solar dela, não somente dentro na sua estérele Arábia per o mesmo modo, a poder de ferro, fossem executar esta natural prerogativa, destruindo-lhe suas cidades, queimando suas casas, cativando-lhe mulheres e filhos, e fazendo-se senhores de suas fazendas e pátria, mas ainda a gente pársea, mui célebre em nome, nobre per antiguidade de reino, armas e polícia, pagasse esta ofensa feita a Espanha, por se converterem à seita destes bárbaros arábios, té os submetermos debaixo do jugo e potência de nossas armas com as vitórias que deles houvemos em a conquista do reino Ormuz, cujo estado se contém nestas duas partes - Arábia, Pérsia. 44 A relação das quais vitórias começaremos neste segundo livro, ante que saíamos do ano de quinhentos e oito, por não confundir o tempo em que se as cousas fizeram, o qual, quanto em nós for, trabalharemos por guardar no processo delas. E também porque os feitos de Afonso de Albuquerque, a quem se deve tam grande estado como é 42 o de Ormuz, tenham novo princípio, pois ele foi o primeiro que trilhou esta terra de Arábia, a qual ele tinha por conquista no Regimento del-Rei, e principalmente andar com aquela armada, que levou entre estes dous estreitos do Mar Roixo e Pársico, que era a entrada e saída dos mouros naquelas partes da Índia. O qual Afonso de Albuquerque, depois que se fez o feito de Socotorá, e Tristão da Cunha se partiu pera a Índia, di a dez dias, que eram vinte de Agosto, partiu ele também pera este lugar de sua conquista com as sete velas que levava: seis naus, capitães Francisco de Távora, Manuel Teles, Afonso Lopes da Costa, António do Campo, João da Nova, e ele Capitão-mor, e mais ua fusta que se fez em Socotorá, capitão Nuno Vaz de Castelo Branco, em que iam até quatrocentos e sessenta homens de peleja. E porque os tempos o não leixaram andar naquela garganta do Estreito do mar Roixo, passando-se à costa de Arábia, começou de a correr té dobrar o Cabo Rossalgate, que é no princípio da costa, onde começa o estado do reino Ormuz; ao qual cabo Ptolomeu chama Siagro Promontório, e põe em catorze graus da parte do Norte, e per nós está verificado em vinte dous graus e meio. O primeiro lugar do reino de Ormuz, a que Afonso de Albuquerque chegou, foi um chamado Calaiate, que será de dentro do cabo vinte léguas, o qual em suas ruínas e edifícios mostrava já em outro tempo ser algua populosa cidade; e segundo fama dos naturais, um tremor de terra a pôs no estado em que Afonso de Albuquerque a achou, que era povoação nobre com muros, torres, casas, eirados, janelas ao modo de Espanha. O sítio da qual, por ser à borda da praia com um pouso, em que as nossas naus se abrigaram do tempo que traziam, a fazia ainda mais fermosa à vista dos nossos. Afonso de Albuquerque, 14 depois que as teve ancoradas, mandou um recado a terra ao regedor da vila, notificando-lhe quem era com alguas palavras, per que lhe denunciava paz e amizade, ao que ele respondeu que aquela

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vila era del-Rei de Ormuz, e por ter sabido dele quanto desejava amizade del-Rei de Portugal, a vila e ele estava o que ele mandasse pera suprimento de qualquer necessidade de mantimentos que a sua armada tivesse; e pera se poderem comunicar ambos, enquanto não assentaram esta paz, que lhe mandasse dous arreféns, e ele mandaria outros dous ao batel onde houvesse de ser esta prática; e com este recado mandou um barco carregado de refresco da terra. Afonso de Albuquerque, porque naquele dia era já tarde, ao seguinte mandou Manuel Teles, Afonso Lopes da Costa e a João da Nova em seus batéis com os arreféns, que eram Gaspar Machado, seu page, e João Nestão, escrivão da sua nau; e dados estes e recebidos os outros pelos apontamentos que lhe Afonso de Albuquerque deu, assentaram a paz e amizade 45 chãmente,e por espedida, em sinal de obediência, ua boa cópia de mantimentos, 43 té ele se ver com el-Rei de Ormuz. E porque no porto estava ua nau de Adem, temendo o guazil que os nossos quisessem lançar mão dela, meteu nas pazes que não recebesse dano. O capitão da qual, de cortesia, mandou a Afonso de Albuquerque um presente de mantimentos e alguas peças de seda; e sem mais passar cousa algua, se partiu daquele porto. Ao seguinte dia foi surgir ao de outra vila chamada Curiate, que seria dali dez léguas, na qual foram mui mal recebidos, confiados os mouros em um repairo que fizeram ao longo do mar, enquanto se os nossos deteveram em Calaiate. Afonso de Albuquerque, quando viu que, em reposta de um recado que lhe mandou a terra per Gaspar Rodrigues ,língua, lhe tiraram muita frechada, mandou logo aos capitães das naus que com artelharia varejassem a vila, parecendo-lhe que com esta trovoada viessem a mais cortesia da que fizeram ao seu recado. E porque aos mouros não os assombrou o estrondo e dano da artelharia pera descerem de seu propósito, assentou Afonso de Albuquerque aquela noite em conselho o modo de combater a vila; e quando veo ante menhã eram todolos capitães em seus batéis, derrador da nau capitânia, onde, recebida ua absolvição geral do capelão da nau, todos em um corpo com grande estrondo de trombetas e grita poseram o peito em terra. Porém não lhe foi assi leve de tomar, porque, ante de chegarem à estância em que tinham assestada sua artelharia, acharam um mamilo de terra, que se torneava de água com preamar à maneira de ilhéu, e de maré vazia iam do lugar a ele a pé enxuto; em o qual, por ser soberbo sobre a praia, fizeram um modo de baluarte, onde estavam obra de cinquenta homens, gente escolhida, em guarda de certas peças de artelharia. Afonso de Albuquerque, porque o dia de ante tinha visto este ilhéu, e temendo que dele lhe podia vir algum dano, mandara a ele Afonso Lopes da Costa e António do Campo. Tanto que o viu feito ua pinha de gente, e como a artelheria dele varejava a ribeira, tornou-os a mandar que o cometessem; e ele com os outros capitães tornou ao longo da praia, pera, no cabo dela, vir encavalgando a terra e dar na estância da artelharia que estava sobre o porto, porque cometê-la de rostro era cousa de grande perigo. Afonso Lopes da Costa e António do Campo, por dar boa conta do que lhe era encomendado, assi apertaram com os mouros que estavam no ilhéu, que à custa da vida de um dos nossos e de alguns feridos, eles despejaram o lugar, recolhendo-se às estâncias da vila, ficando ali quatro ou cinco mortos. Afonso de Albuquerque a este tempo, pela parte que escolheu pera encavalgar a estância da artelharia, andava travado com ua batalha de mouros, que o veo receber ao caminho por lhe defenderem a entrada, onde havia tanta frechada, lançada e fúria de peleja, que não podiam romper os mouros. Porém como ele trazia o olho no ilhéu que lhe ficara atrás e viu que era já despejado, apertou muito mais com os 44 mouros, temendo que estes dous capitães lhe ficavam um pouco longe e não se podiam ajudar uns aos outros. 46 No qual tempo João da Nova com certos besteiros e alguns homens de armas de sua capitania, a

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força de braços, arrincaram uns paus da tranqueira, e fez tal entrada, que, com ajuda de Jorge Barreto e Manuel Teles, ela foi arrombada per aquela parte, onde logo acudiu um grande peso de gente. A vinda da qual, ainda que deu muito trabalho àqueles capitães, como parte dela era da que empedia a Afonso de Albuquerque, ficou ele tam desabafado, que parece que a um certo termo lhe quis Deus mostrar a vitória; porque ele per esta parte e os outros pela que lhe coube em sorte, começaram de meter os imigos em fugida, 14v desemparando eles as tranqueiras e metendo-se pelas ruas da vila, té que a bote de lança os lançaram dela, vasando per duas portas que tinham da banda do sertão contra outra povoação que estava além de um palmar, que escolheram por amparo, onde já tinham posto mulheres, filhos e o melhor de sua fazenda. Aos quais Afonso de Albuquerque não quis mais perseguir, e se contentou com os lançar de suas casas e dar saco a suas fazendas, e per derradeiro mandar poer fogo a todo o lugar e a dez zambucos e três ou quatro naus que estavam no porto, no qual feito foram mortos três dos nossos e feridos vinte e tantos, e dos mouros se contaram pelas ruas setenta e tantos. Castigado este lugar, como Afonso de Albuquerque não tinha nele mais que fazer, partiu-se pera outro chamado Mascate, que seria dali oito léguas, o qual era muito mais forte que os passados, de cerca, torres e baluartes, tudo repairado de novo, assi de munições de sua defensão, como gente de socorro que era vinda da terra firme. Porque, como esta vila era mais perto de Ormuz, e el-Rei com fama de nossas armadas e experiência de alguas naus que lhe tinham tomado na Índia, estava assombrado, tinha provido todolos lugares daquela costa, e principalmente este por ser mais vezinho, o qual per toda a frontaria do mar estava repairado de novo. Afonso de Albuquerque chegado a ele e vendo-o tam crespo, bem lhe pareceu que o recebimento havia de ser frechadas, e logo mandou seu recado ao governador dele per António do Campo em o seu batel, e com ele Pero Vaz, feitor da armada, por saber o arávigo; e a reposta que trouxe foi vir um mouro, que o governador com ele mandava pera falar a Afonso de Albuquerque. A substância do qual recado era querer com ele paz e amizade, e que pera despesa de sua armada daria tantos fardos de arroz e tâmaras, e assi alguns carneiros, porque ele tinha recado del-Rei de Ormuz, seu senhor, per que lhe mandava que, vindo àquele porto algua nau ou naus del-Rei de Portugal, lhe fizesse todo gasalhado e provesse de mantimentos. Afonso de Albuquerque, quando achou melhor acolhimento do que ele esperava, posto que entendesse que o governador o 45 fazia com algua cautela de malícia ou prudência, mandou a terra receber os mantimentos e fazer aguada em uns poços que estavam à borda da água. E estando os nossos nesta obra de tomar água, viram vir um homem grosso, bem tratado, sem a touca que eles costumam, como afrontado dalgua cousa; e tanto que chegou espaço que o podiam ouvir, começou de bradar, dizendo que se acolhessem; no qual 47 tempo eram tantos mouros sobre a praia, que quando o feitor Pero Vaz, que recebia os mantimentos, e os outros da aguada se recolheram aos batéis, foi já com assaz de pressa; e primeiro que eles chegassem às naus, chegou a elas a nova deste alevantamento com artelharia que os mouros descarregaram nelas. Porque eles, como viram que não poderam fazer dano a estes, que se recolheram aos batéis, foram-se ao muro, onde tinham algua artelharia cevada, e começaram de varejar com ela e dar gritas, que pareciam romper o céu, sem Afonso de Albuquerque poder saber a causa daquela mudança, nem menos os que estavam em terra lha saberem contar; somente que o homem que os viera avisar, lhe parecia ser o governador da terra pola prática que no concerto da paz com ele teveram; e que o mais que lhe entenderam era que os mouros que novamente vieram aquela noite a socorro, não queriam estar pela paz que ele assentara, e que sobre isso o injuriaram; que pedia a ele, Capitão-mor, que se lembrasse dele. O qual negócio era assi como Afonso de Albuquerque depois soube, porque aquela noite entraram certos capitães del-Rei de Ormuz com obra de dous mil homens arábios em socorro da

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vila, e, quando acharam as pazes feitas e que o governador, por lhas Afonso de Albuquerque dar, em modo de tributo lhe concedera duzentos carneiros, quatrocentos fardos de arroz e duzentos de tâmaras, parte das quais cousas eram já recolhidas às naus, começaram de injuriar o governador, chamando-lhe capado, homem fraco, por tam levemente se entregar, tendo ua vila tam forte e apercebida pera se poder defender, ao menos té el-Rei, seu senhor, lhe acudir com aquele socorro que eles traziam, e outras muitas palavras injuriosas, sem valer ao guazil suas razões, dizendo que mais o fizera por servir a el-Rei, que por outro respeito; porque não podia ser cousa mais barata, que com um pouco de mantimento que dera, comprar a liberdade e vida de quantas almas estavam naquela vila, tendo ante os olhos o que fizéramos em as outras. E quando viu que nenhua razão lhe valia, e as palavras com que o tratavam, em modo de tristeza e protestação 15 do dano que a vila podia receber, lançou a touca em terra, e, saindo-se pela porta fora, mostrando ao povo que o injuriavam polo que tinha feito, veo ter com os nossos, dando-lhe aquele aviso. Afonso de Albuquerque, posto que destas cousas, quando Pero Vaz se recolheu, não era tam particularmente informado, bastou o pouco que disso soube e o muito que os mouros 46 fizeram, mostrando em quam pouca conta tinham a nossa armada, pera se determinar no que havia de fazer, que era ao outro dia sair em terra, por aquele ser já a maior parte gastado. E entretanto, porque recebia grande dano de ua bombarda grossa que os mouros tinham posto em um lugar soberbo sobre as naus, mandou Afonso Lopes da Costa que, com a gente de sua nau, visse se podia dar ua chegada onde estava aquela bombarda, e lha encravasse, a qual saída custou matarem um homem e ferirem sete ou oito a Afonso Lopes; e sem acabar o que ia fazer, se tornou ás naus. Os mouros, como nesta saída de Afonso Lopes entenderam o dano 48 que a nossa armada recebia daquela bombarda, trouxeram logo ali outra, e em guarda delas muita gente, as quais faziam tanto mal, que, se o dia fora maior, fora necessário às naus mudarem o pouso, mas com a vinda da noite cessaram ambas. Porém quando veo ao outro dia, teveram eles tanto que fazer por acudirem à praia, onde Afonso de Albuquerque saiu com todolos capitães, que não ficaram as bombardas aquela menhã tam acompanhadas como esteveram à tarde. Porque, como os nossos iam já indinados do engano e mal que tinham recebido, meteram-se com os mouros com tanto ímpeto, que, por muitos que eram, em breve espaço lhe fizeram despejar uas tranqueiras que aquela noite fizeram, entrando com eles de rondão pela vila, té os enxotarem da outra parte dela contra um campo que estava entre os mouros e ua encoberta, onde os nossos não quiseram chegar. Ca, além de irem já mui cansados, temeu Afonso de Albuquerque algua cilada de gente fresca, e mandou entreter a gente, contentando-se com lhe Nosso Senhor dar aquela vitória em tam breve espaço, peró que foi com morte de oito pessoas dos nossos e vinte e tantos feridos, e dos imigos jaziam per essas ruas setenta e tantos; e entre eles foi achado o próprio governador, que Afonso de Albuquerque muito sentiu, por não ter culpa nesta mudança que os mouros fizeram, segundo soube per alguns cativos que ali foram tomados. O qual guazil foi achado no meio do campo, que dissemos estar entre os muros da cidade e a encoberta, e derredor dele sete ou oito mouros atassalhados dos nossos; e por o lugar onde foi achado se soube que o contra-mestre da nau de Afonso de Albuquerque, a que chamavam Jorge Fernandes, lhe deu a primeira ferida e D. António de Noronha lhe acabou de tirar a vida, porque neste lugar se acharam todos, e ainda em boa pressa, sem saberem ser este o governador. E porque, quando ele veo dar aviso a Pero Vaz, mandou pedir a Afonso de Albuquerque que se lembrasse dele, peró que soube ser morto por honra de sua pessoa, sabida qual era sua casa per meio de um caciz, homem de tanta idade que se não pôde acolher, mandou a Nuno Vaz de Castelo Branco que estivesse em guarda dela, e não fosse saqueada com as outras; porque ainda que o governador, por ser escravo capado del-Rei, 47

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não tivesse herdeiros, por memória da gratificação que dávamos àqueles de que recebíamos algum benefício, houve por bem que sua casa ficasse inteira, e dentro o caciz velho pera depois dar razão da tenção dele a Afonso de Albuquerque. Leixada esta vila, passou-se a outra chamada Soar, da qual se despejou ante de sua chegada a maior parte da gente; o que não quis fazer o alcaide da fortaleza, e alguns mouros principais, por lhe não destruírem o lugar, vendo que se não podiam defender, ante se concertaram com Afonso de Albuquerque, fazendo-se vassalos del-Rei D. Manuel com solenidade, mandando ele a Jorge Barreto de Castro com gente a poer ua bandeira sobre ua torre da fortaleza, a qual lhe foi entregue pelo alcaide, e depois tornou levar a bandeira em cima de um cavalo, e gente derredor dele, com pregões 49 que denunciavam aquela fortaleza ficar del-Rei D. Manuel de Portugal, e o alcaide a recebia da mão de Afonso de Albuquerque, seu Capitão-mor daquela armada, com obrigação de a vila haver de pagar de tributo em cada um ano outra tanta contia quanta pagava a el-Rei de Ormuz pera mantimento do alcaide e gente que estevesse em guarda dela; e deste auto mandou Afonso de Albuquerque tirar estrumentos. Passados dous dias, em que Afonso de Albuquerque se deteve nesta vila, partiu-se pera outra chamada Orfacão, que está adiante quinze léguas, na qual teve pouco que fazer, ca, chegando 15v a ela, se despejava. Porém, porque ao tempo que os nossos batéis poiavam a gente em terra, acharam rasto dos mouros que se recolhiam contra ua serra, mandou Afonso de Albuquerque a seu sobrinho D. António com até cem homens no alcanço deles, onde os nossos passaram assaz de trabalho. Porque os mouros, por defender suas mulheres e filhos, que levavam ante si, sofriam mui bem o ferro que lhe punham, e com o seu também escalavam a carne dos nossos, de maneira que, uns por defender e os outros ofender, todos trabalharam tanto, té que os mouros se poseram em salvo, e parte ficaram mortos e vinte duas almas foram cativas, de que as mais delas eram mulheres e meninos, com que D. António se recolheu, trazendo a gente mui cansada daquele alcanço, e alguns deles bem feridos. E porque este lugar era já mui vezinho de Ormuz, por reverência de ser tanto na face del-Rei, não lhe quis mandar poer fogo, somente foi saqueado por espaço de três dias que se ali deteve, repairando-se de alguas cousas, como quem esperava ver-se ante o porto daquela ilustre cidade Ormuz, tam nomeada per todo o Mundo como o mais célebre empório e escala dele, ao qual chegou di a três dias, já no fim de Setembro do ano de quinhentos e sete. Do fundamento e cousas da qual escrevemos neste seguinte capítulo.

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48 15v 50 Capítulo II. Do sítio da cidade Ormuz, situada na Ilha Gerum, e da sua fundação e reis que teve depois de ser fundada, té o ano de quinhentos e sete, que Afonso de Albuquerque chegou a ela. A cidade Ormuz está situada em ua pequena ilha chamada Gerum, que jaz quási na garganta de dentro do Estreito do Mar Pérsio, tam perto da costa da terra de Pérsia, que haverá de ua a outra três léguas, e dez da outra - Arábia, e terá em roda pouco mais de três léguas, toda mui estérele, e a maior parte ua mineira de sal e enxofre, sem naturalmente ter um ramo ou erva verde. A cidade em si é mui magnífica em edifícios, grossa em trato, por ser ua escala onde concorrem todalas mercadorias orientais e ocidentais a ela, e as que vem da Pérsia, Arménia e Tartária, que lhe jazem ao Norte; de maneira que, não tendo a ilha em si cousa própria, per carreto tem todalas estimadas do Mundo. Porque até água, cousa tam comum, tirando algua de três poços e cisternas, toda lhe vem da terra firme da Pérsia, dela em vasilhas e outra solta em barcas com toda a hortoliça, verdura, fructa verde e sorôdia que despende, que é em abastança, assi da comarca a que eles chamam Mogostão, como destas ilhas que tem por vezinhas - Quêixome, Lareque e outras - com que a cidade é tam viçosa e abastada, que dizem os moradores dela, que o Mundo é um anel, e Ormuz ua pedra preciosa engastada nele. O estado do reino Ormuz, de que esta cidade é sua cabeça e por razão da qual ele tomou o nome, está em estas duas costas: Arábia, ao longo do mar, em que entram as vilas per que Afonso de Albuquerque passou, e na Pérsia; do número e rendimento dos quais adiante faremos particular relação. O princípio deste reino Ormuz (segundo contam as Crónicas dos Reis dele, que nos foram interpretadas de párseo), foi per esta maneira: Nos anos de seiscentos e oitenta de Mahamede pela conta dos arábios, e do nascimento de Jesu Cristo, nossa Redenção, de mil duzentos setenta e três, reinando na Pérsia Abacahom , o que deu aquela celebrada batalha ao grã Tártaro Barahom, que foi o primeiro príncipe daquelas partes que se fez mouro, era senhor de todo aquele Estreito do Mar Párseo um príncipe, a que eles chamam per nome comum Rei de Cais , per estas palavras - Máleque Cais - o qual tinha seu assento em ua ilha deste nome Cais que está dentro deste Estreito cinco léguas de terra da Pérsia junto do Cabo Nabão. O qual Rei senhoreava da Ilha Gerum até a de Baharém, tendo por vezinho um 51 Rei per nome Gordum-xá, cujo estado era na terra da Pérsia defronte desta Ilha Gerum, em ua comarca per nome Mogostão, que quere dizer Palmar em língua pársea rústica, e em párseo antigo Ormuz, onde tinha 49 ua cidade deste nome, que nos tempos passados foi tam célebre, que Ptolomeu em a sua Geografia a situou na sexta Távoa de Ásia, chamando-lhe Armuza, a qual ao presente é destruída, em cujas ruínas está ua fortaleza chamada Cuxtaque, e outros dizem não ser esta senão a de 16 Minau, situada sobre um rio cabedal que rega o Mogostão. Vendo este Gordum-xá que a Ilha Gerum estava na face das suas terras, e ante Máleque Cais não era estimada, e segundo o que dela entendia, peró que estérele per natureza fosse, per artifício ele esperava de a fazer mais fructuosa que todo o seu Mogostão, levemente, como cousa de pouca valia, mandou cometer a el-Rei de Cais que lha vendesse, dizendo, que ele tinha aquela Ilha Gerum tam longe de Cais, como ele sabia, e tam vezinha das suas terras do Mogostão, que forçadamente os seus naturais, que andavam a pescar, como vinha o tempo, não tinham onde se

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acolher senão a ela. E porque muitas vezes tinham alguas diferenças com os pescadores seus vassalos que habitavam nela, por tirar estas paixões, entre esta gente pobre, lhe pedia que lha vendesse, pois dela não tinha nenhum rendimento. El-Rei de Cais, por ter em pouca conta esta ilha, levemente, por comprazer a Gordum-xá, concedeu na venda dela; porém sabida esta deliberação del-Rei, per alguns seus, e principalmente pola Rainha, lhe foi empedida, representando que a Ilha Gerum era ua chave que abria e fechava aquele estreito, de que ele era senhor; e que bem como ua chave de ferro per si era mui pouca cousa, enquanto fecha e abre algum grande tesouro não se deve dar por preço, assi aquela ilha não per si, mas pelo ofício que tinha, em nenhua maneira a devia dar por todo o Mogostão. Vendo Gordum-xá que Máleque Cais se tornava a arrepender da palavra que lhe tinha dada, começou de se queixar gravemente dele, e com os queixumes per ua parte e peitas per outra aos que contrariavam a el-Rei, veo o negócio a se poer em parecer de um caciz, chamado Xeque Doniar, homem que por autoridade de seu ofício Máleque Cais se governava per ele, o qual, com ajuda dos peitados no presente, e ele com esperança do futuro requerimento que esperava ter com Gordum-xá,vieram a pôr o caso a el-Rei em termos de honra e verdade pola palavra que tinha dada, e mais que podia fechar nem abrir Gordum-xá, pois era um homem que se não fartava de tâmaras do Mogostão ? A Rainha, ou que o espírito lhe revelava o que havia de ser, ou porque tratava este negócio sem interesse, contrariava tanto o caso, que veo dizer a el-Rei, que ele em nenhua maneira consentisse a sua porta ninho de águia, que 52 lhe comesse a sua criação; ao que el-Rei, já movido pelos outros, meio indinado por a Rainha fazer tanta conta de Gordum-xá, que o queria fazer pessoa ante ele, respondeu que Gordum-xá não era águia, mas ele, e que somente com o bater de suas asas de temor o faria meter no ventre de sua madre; 50 que este negócio tratava já de sua honra, e que não havia de monstrar ao Mundo que lhe lembrava um tal homem. Finalmente Gordum-xá per meio de Xeque Doniar e dos outros peitados houve a ilha; e em prémio do que nisso trabalhou, disse-lhe Xeque Doniar que não queria mais dele, que ua esmola de juro per ua casa de oração, que fazia em louvor de seu Profeta Mahamede, e isto depois que ele se visse morador em ua cidade feita naquela Ilha Gerum. Gordum-xá, porque este Xeque neste seu peditório lhe pronosticava o que ele mesmo esperava fazer, com juramento solene lhe fez disso escritura, a qual esmola os reis de Ormuz, que sucederam a este Gordum-xá, hoje em dia pagam a ua mesquita, que fez este caciz em ua comarca chamada Hongez, de Xeque Doniar, junto da cidade de Lara, que será de Ormuz obra de quorenta léguas. Gordum-xá, havida esta ilha, assi como o cuidou, assi o pôs em obra, mandando di a pouco tempo fazer navios de remo e ua força na Ilha Gerum, onde obrigava todalas velas que navegavam aquele mar, que lhe pagassem um tanto; sobre o qual caso, travada guerra entre ele e Máleque Cais, durou per tantos anos, que veo o destruir a própria Ilha de Cais, onde Máleque vivia. E não sabendo ele que lugar elegesse pera sua habitação, e se tornar a restituir, disse-lhe a Rainha, sua mulher, que não lhe sabia lugar mais seguro que o ventre de sua madre, porque este dava ele por acolheita a Gordum-xá, quando ela lhe representava as cousas em que se ele ao presente via. Finalmente Gordum-xá se fez senhor do estado de Máleque; e porque el-Rei da Pérsia, a quem ele pagava certo tributo, acudiu a isso, mandando gente sobre o Mogostão contra Gordum-xá, e ele se não atreveu esperar ali a potência de tamanho príncipe, passou-se com toda sua casa e fazenda a Ilha Gerum, deixando a sua cidade Ormuz deserta de todolos povoadores; e em memória dela e do seu nome fundou outra em Gerum, que é a de que ora este reino de Portugal é senhor, e daqui se contratou com el-Rei da Pérsia de lhe pagar cada ano um tanto, e de cinco em cinco mandar seu embaixador a lhe dar obediência 16v

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de vassalo em seu nome. Com o qual concerto Gordum-xá ficou rei pacífico, não somente do Mogostão que tinha, mas de todo o estado que ganhou de Máleque Cais, e di em diante se fez senhor da entrada e saída de toda a navegação daquele estreito de Pérsia. O qual naquele novo estado reinou trinta anos, e per sua morte deixou estes filhos. Torum-xá, Mahamede-xá, que depois reinaram, o primeiro trinta e quatro anos, e por não leixar filhos, reinou o irmão vinte nove, do qual sucedeu Lobadim, seu filho, que reinou trinta anos, e per falecimento dele ficaram dous filhos - Ceifadim, que reinou vinte anos, e Torum-xá, seu irmão, trinta, per falecimento seu. 53 O qual Torum-xá deixou estes filhos: Magdçude, Xabadim, Sargol e Xavez, e todos reinaram uns em defeito de filhos dos outros, o primeiro dez anos, o 51 segundo onze, o terceiro ano e meio. E porque destes irmãos ficou Ceifadim moço de até doze anos, o qual reinava a este tempo que Afonso de Albuquerque chegou a esta cidade Ormuz, convém, pera melhor entendimento da história, determo-nos aqui um pouco. Em vida de Xabadim, que era segundo filho de Torum-xá, estava por governador de Calaiate seu irmão Sargol, o qual começara servir este cargo do tempo del-Rei Magdçude, seu primeiro irmão; e como os mouros, por sua infidelidade, sempre irmãos são suspeitosos a irmãos, e pais a filhos (principalmente estes de Ormuz, onde havia exemplos de uns matarem aos outros, e a lhe ser piadosos os cegaram per artifício de fogo, dos quais cegos desta linhagem real Afonso de Albuquerque, como veremos em seu tempo, achou mais de vinte e tantas pessoas), começou o Sargol temer-se do seu segundo irmão, chamado Xabadim, depois que reinou. Finalmente, chegou o negócio a tanto, que Sargol fugiu pera dentro do sertão da terra da Arábia, onde ele esteve por governador e foi buscar amparo em el-Rei Soleimão Benabom, que reinava naquela parte, que os mouros propriamente chamam Amão; porque em vida del-Rei Torum-xá, pai dele, Sargol, houvera já prática pera ele casar com ua filha deste Soleimão. E aconteceu que, estando ele acolhido nesta parte, uns escravos abexis da câmara del-Rei Xabadim, seu irmão, o mataram na Ilha de Quêixome, onde ele, Rei, tinha ua casa de prazer, per falecimento do qual os governadores do reino levantaram por rei a Xavez, menor irmão dele, Sargol, pertencendo per direito a ele. Uns dizem que isto procedeu de um capado per nome Coge Atar, homem sagaz, de que adiante falaremos, e outros, que foi porque os párseos tem ódio aos arábios. Porque, como este Sargol quási toda sua criação fora na Arábia, e tinha seus costumes, não o haviam já per natural, e quiseram antes eleger seu menor irmão Xavez; mas pelo que adiante sucedeu, como veremos, parece proceder tudo de Coge Atar. Sargol, sabendo que seu irmão era levantado por rei, e que, pera cobrar o reino el-Rei Soleimão, em cuja casa ele estava, lhe não dava ajuda, ante sentiu que o podia empedir por algum recado do novo Rei, dissimulou com ele, té que secretamente fugiu, e se foi a el-Rei de Laça, que é ua cidade trinta léguas metida no sertão de Arábia, defronte da Ilha Baharém, que está dentro no estreito do Mar Pérsio, o qual Rei, per nome Atjoate, era daquela antigua linhagem do Bengebras, ua das notáveis cabildas dos mouros arábios; em a qual cidade Laça, Sargol esteve algum tempo, não tanto como homem que ia pedir ajuda, como mostrando que buscava emparo de sua pessoa. 54 No qual tempo secretamente teve alguas inteligências em Ormuz; e depois que achou ofertas de pessoas, e assi em Raix Nordim e Raix Camal, seu cunhado, homens poderosos párseos e parentes dele, Sargol, que viviam na vila Xilau, fronteira a Ilha Baharém e seis 52 léguas do Cabo Verdestão, deu conta a el-Rei Atjoate deste favor que tinha pera cobrar o reino de Ormuz, que era seu. O qual, peró que mostrou que liberalmente o queria também ajudar, quando veo a conclusão do caso, não quis meter seu poder senão per contrato, que Sargol fez com ele, prometendo que, se per via de sua ajuda ele fosse rei de Ormuz, de lhe dar livremente a Ilha Baharém, e a vila Catifa a ela fronteira, situada na costa da Arábia, que eram de estado do reino de

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Ormuz, por serem peças mui vezinhas a Laça, e de grande rendimento, principalmente Baharém, por razão da pescaria do aljofre que tem, que é o mais oriental daquelas partes. Estando as cousas neste estado, veo el-Rei Xavez de Ormuz saber parte destas ajudas, que seu irmão tinha pera vir cobrar o reino, e isto per via de um mouro principal de Ormuz, chamado Raix Nordim, com quem se carteava o outro Raix Nordim de Xilau sobre este negócio, pedindo-lhe o 17 seu favor, e dos outros amigos, por parte de Sargol, por estes Nordins serem parentes. El-Rei Xavez, tanto que teve estas cartas, fez com Raix Nordim que trabalhasse com o outro, e assi com Raix Camal, por o haver em seu serviço com grandes promessas: ca estes temia ele mais que el-Rei de Laça, por terem muita embarcação e gente frecheira da Pérsia, o que ele não tinha por viver no sertão e a sua gente ser costumada mais ao campo que à guerra do mar. Finalmente este Nordim de Ormuz secretamente fez que o outro e Raix Camal viessem a Ormuz a se ver com el-Rei, assentando com eles que, quando viessem com seu irmão ao tempo de romper a batalha, que esperavam de ser naval, eles se passariam de Sargol para ele. Mas eles leixavam ordenado o contrairo com Raix Nordim: e era que eles e os de sua valia, todos seriam em ajuda de Sargol por ele, Xavez, ser malquisto, principalmente por causa de Coge Atar, seu governador. Concertada esta ida, ordenou Sargol que os dous cunhados, Raix Nordim e Raix Camal, fossem por mar, e ele com el-Rei de Laça iriam per terra, e viriam todos a se ajuntar em Julfar, ua vila na costa da Arábia, que é do reino Ormuz, das mais perto povoações dele de dentro do Estreito. Vindo todos a este lugar, cada um per sua via, assi Sargol com suas ajudas, como el-Rei Xavez com sua armada mui grossa, esperar aqui o irmão, quando veo ao cometer da peleja, viu-se ele tão desemparado, que não achou quem o seguisse, senão Coge Atar, seu governador, e contudo foi preso. E posto que Sargol logo quisera entregar-se de sua pessoa, el-Rei de Laça lho não quis dar senão com juramento, que ele, Sargol, o não matasse, o que ele concedeu; mas depois que Sargol se viu em Ormuz Rei pacífico, o cegou e pôs na casa onde estavam os outros cegos. E permitiu Deus que no cabo do reinado dele, 55 Sargol, que durou nele trinta anos, por não leixar filho, levantaram per rei a Ceifadim, filho deste seu 53 irmão Xavez, o qual era moço de doze anos ao tempo que Afonso de Albuquerque ali chegou, e governado per Coge Atar polos serviços que tinha feito a seu pai, e ser homem mui astuto, peró que, capado e escravo, fora del-Rei Turum-xá, seu avô. Porque nestas partes é mui geral cousa os reis servirem-se destes capados e assi de outros escravos seus de várias nações; e quando os acham homens fiéis e de boas habilidades, sempre lhe entregam as principais cousas do governo de seu estado. E a causa por que o fazem é de tiranos: ca per ua parte se temem, e não querem fazer governadores a homens poderosos naturais da terra, porque não tenham favor do povo com que possam reinar algum modo de traição; e per outra querem tiranizar o povo per mãos destes seus escravos, aos quais eles muito a meúde dão ua cresta de lhe tomar quanto tem, e logo o tornam a pôr no ofício pera lhe fazer outro tanto, e aos capados ainda estimam mais por não terem filhos pera quem hajam de roubar. Assi que por esta causa são os escravos acerca dos mouros mui estimados, dos quais os reis gentios não usam, posto que da comunicação deles em algum modo já tenham estes governadores, mas não que os escravos tenham ante eles tanta dinidade. Os quais escravos, como per o discurso desta História se verá, e em a nossa Geografia, muitas vezes mataram os senhores e se apoderaram do estado do senhor, porque o ânimo humano sofre mal sujeição; e por causa desta liberdade não há parte no Mundo, onde se não ache mão armada pola defender. Tornando a Coge Atar, que era um destes já feito tirano daquele reino Ormuz, por o rei ser moço e quási ua estátua, sem ter eleição de querer, tanto que soube das cousas que Afonso de

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Albuquerque vinha fazendo pela costa da Arábia, não somente proveo nas que pôde, mas ainda teve modo no despacho das naus estrangeiras, que eram vindas àquele porto de Ormuz com mercadorias, de as deter, esperando cada dia a chegada das nossas. E como, além de ser homem sagaz, tinha acerca do povo cobrado crédito de cavaleiro nas guerras e dissensões passadas que houve em Ormuz, toda a defensão da cidade dependia dele; o modo de prover a qual, assi no repairo e provisões dela, como gente frecheira que mandou vir de ambas as terras firmes da Pérsia e Arábia, e regimento que deu às naus da ordenança que entre si haviam de ter, tudo isto lhe deu ainda mais crédito. E ainda por artefício de se mais acreditar, assombrava a el-Rei e a todos connosco, ante que Afonso de Albuquerque chegasse, por mais absolutamente mandar, donde alguns principais começaram tomar suspeita dele: ca este encher a cidade de tanto arábio e pérsio frecheiro com os outros apercebimentos de defensão, podia dar azo a que ele, Coge Atar, se levantasse com o reino de todo. 17v Finalmente, a cidade, ao tempo que Afonso de Albuquerque chegou a ela, com estes apercebimentos de Coge Atar, estava mui provida de todalas cousas, e teria dentro 54 em si trinta mil homens; em que haveria mais de quatro mil frecheiros párseos, 56 gente mui destra neste uso; e haveria mais de quatrocentas velas, em que entravam sessenta naus, e entre estas havia ua del-Rei de Cambaia, que seria de oitocentos tonéis, e outra do Príncipe quási do mesmo porte. Nas quais estariam mil homens de peleja e mil e quinhentos em todalas outras, assi por parte dos senhorios, como deste Coge Atar as mandar prover pera defensão do porto; e as outras velas eram navios pequenos, que navegavam aquele Estreito, e as mais delas eram uns, a que eles chamam terradas, cujo serviço era da terra firme trazer à cidade o necessário, e estariam em estaleiro até oitenta peças.

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54 17v 56 Capítulo III. Como Afonso de Albuquerque chegou à cidade Ormuz, e da peleja que houve com as naus que estavam no porto. Afonso de Albuquerque, ao tempo que chegou ante o porto desta cidade Ormuz, que foi no fim de Setembro, entrou com todalas naus cheas de bandeiras e estendartes; e por mostrar nesta primeira vista que era costumado a ver mais populosas cidades e maior número de naus, e que todalas daquele porto estimava em pouco, foi surgir em meio de cinco, que eram as mais poderosas, principalmente a del-Rei de Cambaia, chamada Meri, e tão vezinho dela, que ficaram as bóias de ambas entrecambadas. E tanto que foi surto, em lugar de salvar a eles e a cidade, assombrou a todos, enchendo aquele porto de fumaça e trovões da artelharia, que durou per espaço de meia hora, porque até as câmaras da meúda serviram naquele modo de terror, o qual foi tamanho em todos, que começaram logo os barcos e batéis tecer de naus em naus, e do mar pera terra, e dela a ele, com tão apressado curso de recados uns aos outros, como fervia o espírito de cada um com temor do que lhe podia aquecer na entrada daquele temeroso hóspede, de cujas obras já tinham notícia pola experiência que tomaram alguns, que escaparam na entrada das vilas daquela costa, parte dos quais eram já li em Ormuz assinalados do nosso ferro. E todo este ferver de batéis, segundo o que Afonso de Albuquerque entendeu, eram recados do modo como se haviam de haver no pelejar, parecendo-lhe, que ele havia logo de querer cometer sair em terra. Porém por lhe mostrar que a cidade não estava tam desapercebida, que levemente o podia fazer, saíram à praia obra de oito mil homens, entre gente armada e outra solta, por darem entender que não saíam a se mostrar, mas a ver aquela novidade da feição das naus e gente 57 estrangeira que nelas vinha; e não somente na terra deram esta mostra, mas ainda no mar aparecendo muita gente per todalas naus, a frol da qual era nas 55 de Cambaia. Afonso de Albuquerque, passada mais de ua hora depois de sua chegada, sem alguém vir a ele, enfadado de esperar, mandou o seu esquife com um recado à nau grande de Cambaia, porque em seu aparato mostrava ser a capitânia de todalas outras. O qual recado obrou tanto, por as palavras dele serem de conclusão, que veo logo em sua companhia outro esquife da nau dos mouros com o capitão dela, acompanhado de seis pessoas, todos mui bem tratados. Afonso de Albuquerque, como celebrava estas cousas com muita solenidade, esperou o mouro assentado no meio da tolda da nau em ua cadeira de espaldas guarnecida de seda, posta sobre ricas alcatifas, e ele armado de uas coiraças de brocado com bocetes e fralda, e um capacete na cabeça guarnecido de ouro, e à parte esquerda um page com um estoque rico, e à direita outro que lhe tinha a adarga, e todolos fidalgos e principais pessoas armados em ordem que faziam rua a quem lhe quisesse vir falar. E per o convés da nau toda a outra gente solta também armada com lanças, bestas, espingardas, alabardas, segundo cada um esperava de se ajudar com outras armas defensivas. O mouro, além de ser homem apessoado e vistoso, também vinha como 18 quem se queria mostrar gentil homem, posta na cabeça ua sota de seda e ouro, e vestida ua cabaia de cetim cremesim apedrado de ouro, com lavores de outra cor, pano em vista rico e gracioso, e na cinta um terçado lavrado de ouro e pedraria, e ua adaga da mesma sorte, e na mão um arco com quatro frechas, e um page que lhe trazia o escudo. O qual, em entrando em a nau, posto que foi per cima das carretas e repairos da artelharia (por assi o ordenar Afonso de Albuquerque), e em toda ela

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havia bem que ver, como homem prudente e animoso, não fez conta de cousa algua das per que passava; e chegando ante Afonso de Albuquerque, fez-lhe sua cortesia, inclinando a cabeça té meio corpo, segundo seu uso, com todolos outros que o acompanhavam, que também vinham em seu modo louçãos. Afonso de Albuquerque, levantando-se, com gasalhado o recebeu, e fez assentar a sua ilharga em uas almofadas de seda, ao qual, depois que repousou, per meio da língua que lhe levou o recado, disse, que sua vinda fosse muito boa, e que ele tomara el-Rei de Ormuz, seu senhor, tam de súbito, que não tivera tempo pera se aperceber pera tam honrado hóspede; somente à hora de sua chegada ele tevera um recado de Coge Atar, governador del-Rei, em que lhe mandava que soubesse que naus eram aquelas que ancoravam, porque, segundo a informação que tinha, podia ser um capitão del-Rei de Portugal, que per os lugares da costa da Arábia vinha fazendo algum dano. Que sendo este, e vindo como amigo, recebê-lo-iam com toda a honra e gasalhado, como mereciam os capitães de tamanho príncipe; e se vinha com o propósito que ele mostrou per os lugares del-Rei de Ormuz, 56 seu senhor, que 58 lhe fariam o recebimento conforme a sua chegada; e que estando pera vir a Sua Senhoria com este recado foi necessário esperar que acabasse aquele temporal da sua artelharia, em meio do qual lhe deram um seu recado tam apressado, que por não incorrer em culpa de vagaroso, ante ele vinha saber o que mandava, e também dizer este recado de Coge Atar. Afonso de Albuquerque, dando-lhe as graças da sua vinda, peró que entendeu o artefício de suas palavras por parte de Coge Atar, respondeu-lhe à tenção, e não a elas, dizendo que ele era capitão del-Rei D. Manuel de Portugal, enviado per ele pera andar de armada naquela costa da Arábia e dar paz àqueles que a quisessem aceitar com se fazerem seus tributários; e aos que esta condição não aprouvesse, os destruir totalmente; e que ele, Capitão-mor, desta lei, que lhe el-Rei seu Senhor dera, usara per todalas partes per onde viera, assi em companhia do seu Capitão-mor, com que ele viera do reino de Portugal, o qual com ua grossa armada era passado à Índia a se ajuntar com o Viso-Rei dela, como depois que ele per si só começou entrar na costa de Arábia, onde achou gente mui soberba chea de enganos, e mais desejosa de guerra que da paz que lhe ele oferecia; e como a gente português a guerra com mouros, por se criarem nela, os deleitava mais que o repouso, não negaram a luita a quem os provocou. Finalmente ele se resumia nisto: que podia dizer a el-Rei e ao seu Governador Coge Atar que o enviara, que ele era vindo per mandado del-Rei, seu senhor, a notificar a el-Rei de Ormuz que, se queria pacificamente navegar os mares da Índia, que lhe havia de pagar um certo tributo em sinal de vassalagem, por quanto ele tinha guerra com os mouros em as partes ocidentais de seu estado; que esta herança herdara de seus avós, e que, por haver sua bênção, não somente lhe fazia guerra nas partes de África, mas ainda na Índia, que tinha mandado descobrir. Porque, como os arábios, per ímpeto de cobiça, leixando suas terras, se foram estendendo per armas té chegar a Espanha, lançando os naturais de suas próprias casas, assi os reis de Portugal, que são senhores de boa parte dela, per lei de restituição os lançaram dela e das partes de África que tinham por frontaria; e ao presente el-Rei D. Manuel que reinava, mandava a ele, seu capitão, que lhe fizesse crua guerra em esta própria Arábia. Porém, porque esta lei podia ter algua excepção acerca del-Rei de Ormuz, por seu estado não ser todo na Arábia, ele seguramente podia navegar os mares da Índia, e em el-Rei, seu senhor, acharia amizade pera suas necessidades, pagando-lhe algum tributo, e que esta era a condição da paz, e a da guerra não lhe limitava. Espedido o mouro de Afonso de Albuquerque com esta tam comprida reposta, de que ele não foi mui contente, já quando saiu, assi por ela, como pelo que notou em toda a nau, que ardia em armas, ia tam torvado 57 e cheo de temor, que sobrelevou a prudência e segurança que mostrou na sua entrada; 18v

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e como homem que queria comprazer pera o que diante sucedesse, não tardou muito com ua carta de crença del-Rei, asselada do seu selo, e com ele outro mouro, que depois ficou corrente nestes recados, chamado Coge 59 Beirame, arménio, que pelo serviço que aqui e depois fez, veo a este reino e recebeu mercê del-Rei. A substância da vinda dos quais foi darem ua honesta desculpa por parte de Coge Atar não vir logo a se ver com ele, Capitão-mor, pera praticarem naquela paz que apontava, porém, que ao dia seguinte ele o faria. Mas esta promessa era segundo a verdade que ele usava em todalas outras cousas de seu governo, mandando ao outro dia o mouro Coge Beirame desculpar-se a Afonso de Albuquerque por não vir aquele dia; e tantos recados se passaram de um ao outro, té que se passou todo o dia, o qual artefício entendendo ele, Afonso de Albuquerque, disse ao mouro que não viesse mais a ele, senão com aceitação de ua das duas cousas que lhe tinha dito: a paz com as condições dela ou guerra aberta, sem limitação de algua condição. O mouro, porque estes seus caminhos eram dilatar tempo pera entretanto meterem gente que esperavam da terra firme, parte da qual meteram aquela noite, quando veo ao seguinte dia, a reposta que trouxe foi dizer el-Rei e Coge Atar, seu Governador, que aquela cidade não costumava pagar tributos, senão receber rendimentos per entrada e saída de mercadorias; que por honra del-Rei de Portugal, se ele, Capitão, queria contratar em alguas, lhe seria feito honra e aceitariam sua amizade. E peró que a reposta de Afonso de Albuquerque foi pera temer, pola conclusão que logo tomou de cometer a cidade, estimou Coge Atar tam pouco suas palavras, que, quando veo à noite, assi na cidade, como em as naus, tudo eram gritas, tambores e outros instrumentos de guerra a seu uso, e com isto alguas palavras de pouca estima em que tinham os nossos. E ainda pera maior confirmação desta obra de noite, quando amanheceu, apareceram todalas naus e navios atulhados de gente com suas arrombadas feitas de algodão, e ao longo do mar, onde lhe pareceu que podiam cometer a terra, tinham assestada algua artelharia, e pola praia tanta gente armada que a cobria, e na cidade não havia eirado, janela ou cousa de vista contra as nossas naus, que não estevesse chea, como quem esperava dali ver alguas festas de prazer. Em que, segundo a opinião deles, os nossos haviam de ser tomados às mãos, porque assi o mandava Coge Atar, dizendo que os queria vivos pera os trazer repartidos pelas suas naus, por a fama que tinham de serem grandes homens do mar. Afonso de Albuquerque, porque já no dia passado tinha entendido que este caso se havia de acabar per juízo de armas, logo então houve conselho com os capitães; e assentado o tempo e modo, repartiu o trabalho per eles, dando preceito que ninguém aferrasse senão ao 58 tempo que o ele fizesse; ca esta obra havia de ser depois que a artelharia fizesse a sua; e havida vitória das naus (como ele esperava em Deus), dela tomariam o favor pera cometer a cidade. Quando veo a menhã, dado o sinal da peleja, começou a artelharia desparar indo-se as nossas naus atoando por se mais chegar às dos imigos; e respondendo 60 eles também com a sua (peró que não fosse tam furiosa como a nossa), ficou o rompimento destas duas frotas com a fumaça e afuzilar de fogo e terror dos trons e mestura da grita, ua semelhança de inferno, sem uns e outros se poderem ver nem ouvir, por tudo ser ua confusão. No meio da qual usaram os imigos de ua indústria que tinham ordenada, e era com mais de cento e vinte tantas terradas, que são barcos de remo ligeiros (os quais estavam encobertos com as naus), quando veo ao termo que tinham assentado, que era na escuridão da fumaça, saiu um cardume deles com o remo teso e grita que sobrelevava a artelharia, e vieram demandar as nossas naus per ua parte, lançando-lhe dentro ua chuiva de frechas perdidas, muitas das quais encravaram os nossos. Feito o qual emprego, remetiam outros, trocando-se de ua nau em outra, de maneira que o seu recolher era ir encravar outra nau, ao modo de ua ordenada escaramuça, na qual se esquentaram tanto por os nossos estarem presos em as naus, sem os poderem seguir, que se vieram

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eles atrever quererem subir às naus. Mas deste atrevimento levaram logo a paga, afastando-se mais depressa do que chegaram; e ainda neste afastar apontaram os nossos a artelharia meúda tam rasteira, que meteram muitos barcos no fundo, com que leixaram aquele modo de peleja e foram buscar abrigada das naus grossas contra a parte da terra. Coge Atar com outros capitães a este tempo andava em um batel mui esquipado ao longo da terra, animando os seus, com recados que dali mandava, que cometessem entrar em as 19 nossas naus com os navios pequenos. Peró como viu o recolher das terradas pelo dano que recebiam, não ousou sair à praça, e todo seu negócio era de lugar seguro, entre a terra e as naus grossas, com as quais se ele amparava da nossa artelharia, trabalhar que da terra viesse mais gente e se metesse nelas; e ainda que os mouros andavam já escarmentados da fúria da nossa artelharia, tanto fez com as terradas, que tornaram outra vez às nossas naus a lhe lançar dentro aquela chuiva de setas, no qual cometimento, como os nossos tinham já mais tento nelas, meteram no fundo quinze ou vinte. Vendo os nossos como a gente destas terradas andavam nadando por se acolher a terra, e outros das naus dos mouros faziam outro tanto, temendo mais o dano que nelas recebiam da nossa artelharia, que o perigo do mar, com o favor da vitória, meteram-se nos batéis que tinham a bordo das naus, e vieram demandar o cardume destes nadadores, e às lançadas, chuçadas e estocadas, os fisgavam de maneira que o sangue que deles bufava tengia o mar. Afonso de Albuquerque, a este tempo, 59 como estava mais vezinho das naus dos imigos, tinha metido no fundo duas - a do Príncipe de Cambaia, e outra; e quando foi pera entrar em a nau Meri, depois que descaiu de todo sobre ela, houve tanta resistência, que durou primeiro que entrasse um grande pedaço; e o primeiro que a ela subiu do batel, em que se meteram pera isso, foi Pero Gonçalves, piloto-mor da armada, e em sua companhia um marinheiro per nome Pero Fernandes, e trás eles Gaspar Dias, alferes de Afonso de Albuquerque, 61 ao qual custou aquela entrada cortarem-lhe a mão direita, e por ela lhe deu Afonso de Albuquerque dez mil reais de tença em quanto viveu. E trás estes entraram Jorge da Silveira, James Teixeira, Lourenço da Silva, um fidalgo castelhano, João Teixeira, Joane Mendes Botelho, Nuno Vaz de Castelo Branco, Gonçalo Queimado, Joane Mendes da Ilha, Pero Cão, moço da câmara del-Rei, e outros muitos, que o favor da vitória levou trás si, com que a nau foi enxorada dos mouros que a defendiam, lançando-se todos ao mar, temendo menos o perigo da água, que o ferro dos nossos. Os capitães das outras nossas naus, cada um na sorte que lhe coube, não houveram enveja em seus feitos aos de Afonso de Albuquerque, peró que ele cometesse a mais perigosa nau do porto, porque todos remataram o fim de seu trabalho com se fazerem senhores das naus que cometeram; e a gente das outras, que ficaram vendo o exemplo de seus vezinhos, leixaram os cascos vazios, e salvaram-se em terra. Os nossos, alargando estas que não tinham quem as defender, seguindo a vitória com os batéis e terradas que tomaram, foram-se ao longo da ribeira, onde poseram fogo a mais de trinta velas, cortando-lhe as amarras, depois que o fogo tomou posse delas, as quais foram dar consigo na terra firme da costa da Pérsia, porque o vento, que ventava per cima da ilha, as encaminhou pera lá. Feita esta quema nas do mar, mandou Afonso de Albuquerque poer fogo a um grande número delas, que estavam em estaleiro no cabo do arrabalde, sem haver quem da cidade ousasse de as defender: tamanho foi o temor que levavam da fúria do fogo e ferro dos nossos, e todo seu cuidado era salvarem suas pessoas dentro na cidade, temendo ainda que a vitória lhe desse ousadia pera logo quererem entrar nela, peró que fosse já sobre a tarde. E andando o fogo em duas ou três naus delas, veo Coge Beirame com outro mouro em ua terrada, a força de remo, capeando com ua bandeira branca, como quem queria dar algum recado, ao qual Afonso de Albuquerque mandou Nuno Vaz de Castelo Branco em a fusta em que andava com Gaspar Pires, que servia de língua,

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saber o que queria. Mas o outro mouro que vinha com Coge Beirame, como era natural do reino de Grada e sabia bem o espanhol e vinha pera ser intérprete, chegando a Nuno Vaz, falou logo tam soltamente, que não serviu o nosso. Os quais, trazidos ante Afonso de Albuquerque, entre muitas cousas que este lhe disse em modo de o querer comprazer e lisonjar pela vitória, a resolução do recado a que vinha 60 era que el-Rei e Coge Atar lhe pediam que cessasse a fúria de seu poder e não mandasse queimar o arrabalde e naus que estavam no estaleiro; que tomasse por satisfação da culpa que tinha em não aceitar sua amizade, a morte de tanta gente e perda de tantas naus e fazenda, como tinha perdida, porque todo o mais dano que mandasse fazer, soubesse certo que era feito nas cousas del-Rei de Portugal, 62 por ele e todo seu reino estar a seu serviço; e daquele dia em diante submetia seu estado a todalas condições que ele, Afonso de Albuquerque, pedia por parte de tamanho príncipe. E que, pera confirmação desta sua vontade, ao dia seguinte mandaria pessoas que assentassem estas cousas da paz com mais repouso do que naquela hora podiam ter os corações de ambos: o dele, Capitão-mor, com prazer da vitória, e o seu com tristeza de não ter aceitado o que lhe ele de ante 19v oferecia por parte del-Rei de Portugal, príncipe a quem ele desejava conhecer e servir. Porque naquele dia o prazer e tristeza não se conciliavam bem, e todos estavam tam cegos, que nem os vencedores saberiam pedir, nem os vencidos conceder. Afonso de Albuquerque, porque sua tenção não era destruir totalmente aquela cidade (ainda que o podesse fazer), mas trazê-la ao jugo de servidão, como tinha mandado dizer a el-Rei, respondeu a este seu requerimento, que era contente entreter a fúria dos seus cavaleiros; porém que soubesse certo que ao seguinte dia, faltando do que lhe mandava pedir e promoter, que a cidade seria metida a fogo e a ferro, porque a gente português não perdoava culpa terceira; e que nenhua cousa castigava com mais indinação que palavras simuladas. Que por acatamento de sua real pessoa, por lhe dizerem ser de pouca idade e sem culpa do que era passado, ele se recolhia às suas naus sem aquele dia se fazer mais dano; e porquanto o fogo tinha já tomado posse de três ou quatro naus das que estavam em estaleiro, como ele via, que as mandasse Coge Atar apagar, e que olhasse não o acendesse maior no ânimo dos portugueses, faltando ao seguinte dia do recado que mandava. Espedidos estes mouros, recolheu-se Afonso de Albuquerque com todolos capitães às naus, bem cansados do trabalho daquele dia; ca durou das nove horas té quási sol-posto, em que morreram dez pessoas dos nossos, e cinquenta e tantos feridos; e dos mouros, segundo se depois soube, morreram mil e seiscentos e tantos, dos quais obra de oitocentos di a três dias aparecerão os corpos sobre a água, que pera os nossos mareantes foi ua proveitosa pescaria, porque nos batéis andavam a lhe tirar terçados, agomias guarnecidos de ouro e prata, anéis e jóias, de que se eles arreiam. E a mais maravilhosa cousa que nesta batalha sucedeu e houveram por milagre, foi acharem muitos destes corpos dos mouros atravessados com suas próprias frechas, sem entre os nossos haver alguém que tirasse com arco, de que eles usam.

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61 19v 63 Capítulo IV. Como el-Rei Ceifadim de Ormuz assentou pazes com Afonso de Albuquerque, fazendo-se vassalo del-Rei D. Manuel, com tributo de quinze mil xarafis, as quais foram logo quebradas, e a causa porquê. El-Rei de Ormuz como, segundo dissemos, era de pouco mais de doze anos, assi por sua tenra idade, como por viver sujeito à tirania de Coge Atar, não tinha liberdade nem ousadia pera consultar estas cousas com alguém, nem menos algua pessoa ousara de o fazer, porque era Coge Atar tam cioso, que assi o Rei como os vassalos andavam assombrados dele; principalmente depois que da sua mão, com nome de defender a cidade, meteu dentro nela muitos amigos párseos e arábios, e todos ficaram daquele dia da batalha vivos e sãos; e os naturais da cidade, como quem defendia mulheres e filhos, e toda a substância de sua vida, estes foram aqueles que a perderam. Com o qual falecimento de gente, toda a cidade foi posta em um contino choro, porque, além de ser mal comum, particularmente todos tinham que chorar; ca não se achava casa onde não houvesse pai, filho, marido, irmão ou parente morto. Coge Atar, posto que pera seus propósitos trazia o ânimo encruado e soberbo, vendo tanta lágrima e contino clamor, temeu que, se Afonso de Albuquerque, no seguinte dia, posesse o peito em terra, poucos haviam de ser em defendimento da cidade; e tomada ela, ele como cabeça deste feito ficava com a sua mais obrigada a castigo que nenhum da cidade, e mais sendo de todos tam malquisto. E ainda que ele quisera meter este negócio em outra ventura, por não vir ao que lhe tinha mandado dizer Afonso de Albuquerque, temendo também que a dor de todos lhe podia naquele tempo ir a mão, leixado seu particular interesse pola conjunção do tempo, tomou outro caminho, fazendo ajuntar nas casas del-Rei todolos principais da cidade pera consultarem o que deviam fazer, dando ele conta do recado que el-Rei tinha mandado ao capitão por remédio de o entreter naquele ímpeto do vencimento, e assi da reposta que ele mandara; e per final determinação, depois que se deram muitas razões, assentaram que aceitasse el-Rei o que lhe Afonso de Albuquerque mandara dizer; porque, ainda que sujeição era igual à morte, todavia, enquanto os homens tinham vida, tinham remédio, e melhor era esperar a cortesia daqueles homens, que a sua fúria. Quanto mais que, pela experiência que tinha visto das próprias terras de Ormuz per que passaram, todalas que se lhe deram não receberam dano; e, segundo se dezia, era gente que mais pelejava por glória 20 da vitória, que por haver posse de terras, e contentavam-se com o despojo de qualquer prea que tomavam, e com ela se acolhiam pera sua 64 terra. Porque gente que andava espancando o mar, cujo intento era este, e o de seu Rei segurar que as especearias não entrassem no Mar Roixo, a qual segurança estava na costa do Malabar, onde tinha o seu Viso-Rei 62 com fortalezas ordenadas a este fim, sem conquistarem as terras do sertão, bem se podia esperar que o seu pedir tributo de vassalagem havia de durar pouco, e mais podia ser que ua cópia de dinheiro, que lhe dessem, remeria tudo. Assentado este conselho entre eles, por causa da pressa que Afonso de Albuquerque deu ao mouro, logo em amanhecendo, mandou Coge Atar pôr ua bandeira branca nas casas del-Rei, e com os dous mouros de recado veo outro homem principal chamado Raix Nordim, seu guazil, pera se verem com Afonso de Albuquerque e começarem de entender em o negócio da paz; porque Coge Atar, como era cauteloso, primeiro per eles quis tentar a vontade de Afonso de Albuquerque, que se ver com ele.

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Os quais, depois que vieram e tornaram com recados e apontamentos de ua a outra parte, assentou el-Rei no que lhe Afonso de Albuquerque pediu, de que logo naquele dia se formou um contrato de paz, que se assinou pera ambas as partes, na forma que abaixo veremos. Pera maior solenidade do qual assentaram que fosse este contrato jurado por el-Rei e seus governadores, e por Afonso de Albuquerque, em ua ponte de madeira tam metida dentro no mar, que podesse el-Rei estar nela com todo aparato de seu estado, e Afonso de Albuquerque em os seus batéis. Apercebidas todalas cousas pera esta solenidade de vistas e confirmação de paz, veo el-Rei a esta ponte acompanhado de Coge Atar, Raix Nordim, e de seus oficiais, emires de sua casa, que são os nobres dela, vestidos de testa com todolos instrumentos de prazer, que eles usam nos tais tempos, estando a ponte toda coberta de ricas alcatifas e toldada de panos de ouro e seda daquelas partes onde el-Rei se assentou em seu assento, esperando que Afonso de Albuquerque viesse. O qual, ao tempo que partiu das naus com seu aparato de batéis, assi foi temeroso de ouvir a espedida delas, como alegre pera folgar de ver a sua chegada à ponte, porque à partida tudo era fogo, trovoada e fumo de artelharia, e, chegando à ponte, ouviram trompetas, tambores, viram bandeiras, seda, escarlatas, colares, cadeas e outros arreos de ouro e prata. Assi que, se nos párseos havia que ver, levavam os portugueses muito que desejar, e sobretudo a vitória, que lhe deu poder pera irem naquele hábito a um auto tam ilustre, como era submeter debaixo do jugo del-Rei D. Manuel, seu senhor, outro Rei, não dos alarves da bárbara Berberia, nem dos etiopas de Guiné, nem do gentio do Malabar, ou de outras províncias sáfaras da polícia da nossa Europa, cujas carnes se cobrem mal cobertas com um pobre pano de lã ou algodão, e cujas alfaias e aparato de casa e serviço de suas pessoas é ua bárbara pobreza, peró que em grandeza de terra e número de povos sejam mui poderosos; mas um rei da antigua e real prosápia dos persas, gente tam política em ciência, armas, governo, costumes e trajo, que não achou Xenofom reis mais ilustres nem povo mais nobre, com que per seu 65 exemplo podesse 63 doutrinar aos seus gregos em a sua Cyropaedia, que escreveu. E posto que ao presente em algua maneira estê barbarizada esta gente pérsia com a seita de Mahamede e entrada dos arábios naquelas regiões, ainda são tam grandes e magníficos nestas cousas, que todo seu serviço é ouro, prata, perlas, pedraria e sedas; e tanto disto, que se podem haver por pródegos e mimosos no modo de se tratar, porque as alcatifadas de ouro e seda de seu estrado podem servir de riquíssimos dosséis da cabeça de alguns reis e príncipes desta nossa Europa. Finalmente, é gente, que quando gregos e romanos se querem gloriar em suas histórias, celebram com mais facúndia algua vitória, se a deles teveram, do que nós celebramos esta primeira que houvemos deste Rei. Sem termos da nossa parte aquelas suas legiões de tanto número de soldados, somente quatrocentos e sessenta portugueses, fracos e débiles em forças corporais, corrompidas per tam diversos climas e vários mantimentos, obrou neles tanto a virtude de seu ânimo e obediência e lealdade com que servem a seu Rei, que, tomando per força de armadas tantas vilas e lugares deste reino Ormuz, assi se fizeram temidos com suas vitórias, que dentro na sua metrópoli Ormuz entram vestidos de festa a triunfar de um Rei, que tinha em defensão dela tam grande número de naus no mar, tanta gente de armas em terra, e tudo tam temeroso de cometer, que com razão em os nossos surgindo com sete velas, podiam esperar o que cuidavam deles - serem tomados ás mãos e postos debaixo de 20v lei de servidão. Mas Deus, em cujo poder estão todolos reinos e estados da terra, e que tem olho naqueles que vertem seu sangue por confissão da sua Fé, neste dia trouxe a potência deste Rei infiel a se submeter debaixo do escabelo dos pés del-Rei D.Manuel, na entrega que fez de sua pessoa àquele ilustre Capitão Afonso de Albuquerque, que ali estava em seu nome, o qual, em chegando a el-Rei, o abraçou, mostrando-lhe mais amor de pai, que severidade de vitorioso capitão. E passados os autos daquela primeira vista, assentado cada um em sua cadeira no cabo da ponte e feito silêncio, em párseo ua vez e em nossa língua outra, em alta voz se leu todo o contrato

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que era feito entre eles. A substância do qual era como el-Rei Ceifadim, segundo Rei deste nome em Ormuz, que ali estava presente, se fazia vassalo del-Rei D. Manuel, o primeiro deste nome, em portugal, com tributo de quinze mil xerafis de ouro em cada um ano, pagos nas rendas daquele reino a ele, Afonso de Albuquerque, Capitão da conquista daquela costa da Arábia, ou aos Governadores e Capitães gerais da Índia, ou a quem o dito senhor Rei D.Manuel mandasse; e o mais rendimento ficava a ele, dito Rei Ceifadim, pera defensão e governo dele, e despesa de sua pessoa e casa. E que ele, Ceifadim, daria um lugar na parte que ele, Afonso de Albuquerque, quisesse, onde fariam ua fortaleza pera nela 66 estar um capitão e certos homens pera guarda da fazenda que ali 64 estivesse do dito senhor Rei D. Manuel, com outras mais condições e declarações, segundo se no contrato contém. O qual logo foi jurado per el-Rei em o Moçafo de sua seita, e per Afonso de Albuquerque em um livro dos Evangelhos, e depois foi jurado per Coge Atar, Governador del-Rei, e per Raix Nordim, e assi juraram ambos que recebiam em governo o reino de Ormuz e a pessoa del-Rei em guarda pera o servir com toda fé, lealdade, por razão de sua pouca idade, etc. Finalmente, como as escrituras do dia de ante estavam feitas e assinadas, Afonso de Albuquerque entregou a sua a el-Rei, a qual era em português e ao nosso uso, e el-Rei entregou a sua ao seu em duas línguas, pársia e arábia, escritas em duas folhas de ouro batido, ambas de um teor, cada ua com três selos: um del-Rei, de ouro, e os dous de Coge Atar e Raix Nordim, que eram de prata, metidas em duas caixas de prata, segundo costume dos reis orientais. Feita esta solenidade de contrato de vassalagem e espedido Afonso de Albuquerque del-Rei, tornou-se com aquele triunfo de sua vitória às naus, onde foi recebido com a música da artelharia, com que elas celebram todalas festas; e el-Rei também em seu modo, em se recolhendo, foi recebido de todo o povo, mostrando terem todos contentamento daquele assento de paz. E não somente naquele dia, mas nos dous seguintes, assi na cidade, como em as naus, por celebrar aquela solenidade de paz, todos se passaram em festas; no fim dos quais começou Afonso de Albuquerque entender na obra da fortaleza com título de casa de recolhimento dos que ali haviam de ficar. Pera a qual obra el-Rei mandou logo pagar cinco mil xarafis à conta dos quinze de tributo, e assi deu ajuda de todalas achegas, e alguns oficiais e servidores, aos quais foi dado cuidado de trazer e amassarem o gesso com outra mistura de esterco, composto a maneira de bitume, de que usam naquela terra, principalmente nas obras que se fundam na água, como se esta fundou, pegada nas casas del-Rei com duas serventias - ua pera a cidade, e outra pera o mar - de maneira que sem perigo podesse entrar e sair dela sem lhe ser empedida a embarcação , ou vinda do mar a ela. E os nossos tinham cuidado, repartidos em capitanias, de trazer a pedra em batéis de uns edefícios e pedreira de ua ponta da Ilha, onde se chama Turumbaca. No lavrar da qual obra tinha Afonso de Albuquerque este modo: em rompendo alva, vir-se das naus com todolos batéis e esquifes ao lugar; e tanto que se punha o sol, recolhia-se às naus, e na maneira de ir e vir a gente sempre andava com artefícios por encobrir aos mouros quam pouca tinha, temendo que, se eles o soubessem, podiam reinar algua malícia; porque entre eles era fama que em as naus havia dous mil homens; e por não perder esta 67 opinião, lá os trocava, como representador de ua comédia, vindo uns em diversas figuras, ora com uas armas, ora com outras, repartidos 65 per giros das naus. Havendo já dias que se lavrava nesta obra com a mais pressa que se podia dar, mandou dizer Coge Atar a Afonso de Albuquerque, que na banda de além na terra firme, em um porto que se chama Bander Angom, lugar onde vem ter as cáfilas da Pérsia, eram chegados dous embaixadores del-Rei de Xiraz, os quais vinham pedir certo

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21 tributo que os reis de Ormuz já de muito tempo pagavam aos reis da Pérsia. E por este Rei de Xiraz ser vassalo do Xeque Ismael, que era Rei de toda a Pérsia, e mui vezinho a Ormuz, tinha cuidado desta arrecadação polo tempo do pagamento ser chegado; que mandava isto dizer a Sua Senhoria, porque, como aquele reino de Ormuz estava debaixo da proteição del-Rei de Portugal e a ele pagava tributo, a ele, Capitão como autor desta obra pertencia a reposta que el-Rei de Ormuz, seu senhor, havia de dar; que visse Sua Senhoria nisso o que podia responder. Afonso de Albuquerque, posto que em algua maneira soubesse como os reis de Ormuz pagavam aos da Pérsia um tanto, ainda que não era tão particularmente como fica atrás e lhe depois foi dito, porque este Coge Atar era homem sagaz e manhoso, parecendo-lhe que estes embaixadores eram per ele trazidos ali industriosamente pera algum propósito seu, mandou-lhe dizer que de mui boa vontade ele queria dar reposta aos embaixadores; que lhe mandasse lá pessoas de autoridade pera lha enviar per eles. Vindo dous homens honrados ante ele, Afonso de Albuquerque, mandou-lhe dar juramento em o seu Moçafo, entregando-lhe uns poucos de pelouros de ferro coado de artelharia e uns ferros de lanças e molhos de setas, e disse que, pelo juramento que tinham recebido, apresentassem aquelas cousas aos embaixadores e lhe dissessem da parte dele, Capitão-mor, que os reis e príncipes tributários a el-Rei de Portugal, seu senhor, quando de outros eram requeridos por algum tributo, naquela moeda lho pagavam, porque dela tinha os seus almazéns cheos pera os imigos, e pera os amigos abria seus tesouros, se deles tinham necessidade. E se el-Rei de Xiraz algua cousa queria a el-Rei Ceifadim de Ormuz, que ele, Afonso de Albuquerque, ficava ali fazendo ua fortaleza, a qual se havia de encher daquela moeda e de mui esforçados e valentes cavaleiros; que a ela podia mandar requerer os tais pagamentos, porque eles haviam de responder por el-Rei Ceifadim. Da qual reposta Coge Atar não ficou muito contente, por ele ser o representador destes falsos embaixadores, como Afonso de Albuquerque soube depois; porque, como na obra da fortaleza, que crescia, se acrescentava nele ua incomportável dor - vendo nela um duro jugo sobre seu pescoço, que lhe abatia quantos pensamentos lhe representava a sua tirania; e a gente da cidade per ua parte tomava contra ele favor nela, e per outra não ousava levantar os olhos contra um português - servia o seu espírito em buscar modos 68 como ela não fosse mais avante; e quando viu que esta invenção dos embaixadores 66 lhe não serviu, buscou outra entrada, e foi per esta maneira: Afonso de Albuquerque, como andava encobrindo que os mouros não entendessem a pouca gente que tinha, e também por evitar desmanchos de homens de armas, ordenou que em cada nau houvesse um feitor das partes, que com um escrivão e meia dúzia de homens em seu dia a giros iam à cidade comprar mantimento e o necessário que cada um queria. O qual modo de comprar el-Rei D. Manuel deu por regimento aos capitães, logo nos primeiros anos de nosso descobrimento, por não haver causa de se romper a paz com o gentio da terra, e também por os homens não perverterem e abaterem uns aos outros nas compras e vendas de sua própria fazenda, zelando o bem e proveito de todos. E porque os homens eram maus de contentar das compras que se faziam per mão deste feitor e escrivão, e clamavam ao Capitão-mor que não haviam de comprar a jóia, nem o brinco pera suas mulheres e filhas per olho alheo, por serem cousas de apetite, de que Ormuz é ua feira destas cobiças, acrescentou que poucos e poucos, com estes dous oficiais, fossem à cidade pera trazer a gente contente no trabalho da fortaleza. Coge Atar, como soube que os nossos andavam de dous em dous pela cidade comprando estas cousas, mandou cinco ou seis homens com algua línguas com xarafis de ouro, que é ua moeda que vale trezentos reais dos nossos, a os convidar como de si, se queriam ali ficar, que lhe dariam a dez xerafis por mês, e que vivessem em sua lei, ca deles não queriam mais que ensinarem pelejar ao modo português aos da cidade, porque lhe parecia bem pera se ajudar disso, quando tevessem

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guerra com os reis da terra firme da Pérsia, com que alguas vezes contendiam. As quais ofertas moveram a cinco homens de pouca sorte e de menos consciência, três dos quais eram levantiscos e um biscainho que se chamava mestre Martim, artelheiro, e um Pedreanes, português, natural da Ilha da Madeira, filho de ua mourisca. Acrescentou mais a este rompimento de paz, que se causou destes lançados com os mouros, ter dado Afonso de Albuquerque por apontador da gente 21v da cidade, que servia na obra pera lhe pagarem seu trabalho, um João de Ortega, castelhano, o qual por esta conversação de apontar os mouros e por ser homem azado pera cometer este feito, descobriu a Coge Atar quam pouca gente era a nossa, e outras cousas de alguas diferenças, que havia entre o Capitão-mor e os outros capitães sobre o fazer daquela fortaleza, da qual eles não eram contentes; com que ele, Coge Atar, teve ânimo pera poer em efeito o que desejava, e começou per aqui: Enquanto os nossos de noite estavam em as naus, que a obra da fortaleza ficava sem vegia, mandou picar a parede de ua casa del-Rei, que vinha dar na obra que os nossos faziam, com fundamento de a um certo tempo, quando os nossos estivessem mais descuidados, com um golpe de gente entrar per ali com 67 eles, e outros a um certo sinal darem nos que andavam à pedra com os batéis. 69 Mas este seu fundamento não houve efeito; porque, ante de ir mais avante, sabendo Afonso de Albuquerque como eram desaparecidos os cinco homens que dissemos, mandou dizer a ele, Coge Atar, que lhos enviasse, não sabendo ainda como eram induzidos per ele; ao que ele respondeu que, pela deligência, que logo mandou fazer na cidade, não se achavam tais homens e havia suspeita serem passados à terra firme, e como ela era larga, seriam já postos em salvo. Afonso de Albuquerque replicou a este seu recado com indinação, dizendo, que os homens lhe fossem logo trazidos e não curasse de mais recados sobre sua fugida; senão, soubesse certo que sobre isso meteria a cidade a fogo e a sangue; porque aquela era a maior injúria que lhe podia fazer, negar-lhe os homens de armas del-Rei, seu senhor, de que havia de dar conta, como se cada um fosse seu filho. El-Rei, à indinação destas palavras, acudiu, respondendo per si, que a guerra e a paz tudo estava na sua mão; mas que lhe pedia que olhasse que qualquer dano que sobre isso se fizesse, não se fazia a imigos, mas a um vassalo del-Rei de Portugal, entregue a ele, Capitão-mor, per um solene contrato jurado poucos dias havia; que protestava ser inocente dos homens que pedia, e não ser causa de nenhum movimento de guerra, a qual, quando era injusta, sempre ficava sobre a cabeça de seu autor.

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67 21v 69 Capítulo V. Da guerra que Afonso de Albuquerque fez à cidade Ormuz, té que o leixaram três capitães dos que com ele andavam, e se foram à Índia; e do que ele mais fez, té invernar à Ilha Socotorá. Afonso de Albuquerque a este recado del-Rei respondeu, e houve de ambas as partes, e assi de Coge Atar, tanta repetição de palavras, abonando cada um sua causa, que se foram acendendo de maneira no peito deles, té que romperam de todo. E o primeiro dano que Afonso de Albuquerque mandou fazer, foi enviar Afonso Lopes da Costa, António do Campo e João da Nova, que com sua gente fossem em os batéis a um arrabalde da cidade, e que trabalhassem por haver alguns mouros a mão, e isto afim de atormentar os da cidade, por a este tempo ter já sabido per um mouro chamado Coge Abrahém, grã imigo de Coge Atar, quanto a cidade desejava a paz, e que ele, Coge Atar, só era o que queria mover guerra, e pera isso tinha picada a parede das casas del-Rei. Peró como todolos capitães eram contra o parecer de Afonso de Albuquerque neste rompimento, estes que 70 mandou foram de tam má vontade em seu peito, que naquele cometimento mais enxotaram os mouros, que lhe fazer outro dano; somente, por comprimento, trouxeram dous mouros velhos, que mais foram trazidos às costas 68 por sua muita velhice, do que eles vieram por seu pé. Coge Atar, como viu ateado o fogo que ele desejava, por ter já sabido a pouca gente que havia em as naus, aquela noite mandou poer o fogo a um bargantim que Afonso de Albuquerque tinha mandado fazer, o qual estava em termo que di a três dias se podera lançar ao mar. E começando arder, ouviram brados do muro per língua português, que diziam: - Afonso de Albuquerque, acude ao teu bargantim com os teus quatrocentos homens, que aí acharás setecentos frecheiros que te esperam! E com estas palavras dezia outras conformes ao estado de um dos nossos fugidos, que ele era. Afonso de Albuquerque, quando viu arder o bargantim, e lhe disseram as palavras deste mau cristão, quem quer que ele fosse, ardia o seu espírito, vendo 22 de quanto mal foram causa aqueles cinco maus homens, que se lançaram com os mouros. Sobre o qual caso, tanto que amanheceu, mandou a Francisco de Távora que com a gente da sua nau lhe fosse queimar uas naus que estavam em estaleiro, daquelas a que já mandara poer o fogo no dia da batalha, as quais foram socorridas de maneira que o fogo lavrou mui pouco; e quando passou per diante das casas del-Rei, desparou um tiro, com que lhe mataram o piloto da nau, que levava consigo no batel; e se mais se detevera naquele lugar, não fora aquele o derradeiro, porque vieram outros tiros sobre ele. O que Afonso de Albuquerque muito sentiu, e já indinado do pouco acatamento que lhe tinham, mandou outra vez aos capitães que fossem a uas casas grandes, que estavam afastadas da cidade, parecendo-lhe que estaria nelas algua pessoa notável, a qual, sendo tomada, poderia per ela haver aqueles cinco homens. Em o qual negócio se houveram de perder estes capitães que a ele foram; ca saíram a eles até trezentos homens, em que entravam muitos de cavalo, que os fizeram recolher de melhor vontade do que a eles levavam pera lhe fazer dano; e ante quiseram trazer nome de covardos que de vingativos, porque viam Afonso de Albuquerque que procedia naquela guerra mais per modo de paixão, que de cousa mui notável; e que ainda que a tivesse, a devera dissimular, té poer a fortaleza no estado que dela poderam fazer a guerra.

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E o que mais obrigou a todos, foi verem que também os mouros lhe teveram acatamento; ca, podendo-lhe fazer dano ao recolher dos batéis, dissimularam com ele, como gente que também lhe pesava daquela guerra ser movida. 71 Finalmente, assi os da cidade, como os nossos, eram contra ela, somente Coge Atar, com sua malícia, por seu particular interesse, e Afonso de Albuquerque, com desejo de vingança, e mais por haver à mão os lançados, ambos desejavam de levar a sua vontade avante. E porque os capitães sobre esta paixão, que Afonso de Albuquerque queria seguir, o culpavam, ele, por desculpa, dezia que insistir ele tanto naquele caso, não era por razão dos homens que fugiram, porque abastava 69 serem eles vis e de pouca conta pera os pouco estimar; mas por não dar azo aos mouros cometerem outra maior cousa, como tinha sabido que ja cometiam no cortar da parede das casas, e por isso convinha não lhe dissimular aquela púbrica pera os enfrear nas secretas, vendo com quanto rigor se punha ao castigo dela. Com as quais razões e outras que ele, Afonso de Albuquerque, representava do serviço del-Rei, obrigou a todos fazerem aquela guerra à cidade; e porque ela se mantinha da terra firme e não tinha mais vida que água, hortaliça e fructa, que todolos dias lhe vinha de lá, mandou a Manuel Teles, Afonso Lopes da Costa e António do Campo estar quási em torno da ilha em certos lugares pera empedirem não lhe vir cousa algua, com que a cidade se viu em grande aperto. Porque, além da necessidade que tinham destas cousas, alguas terradas (que são barcos pequenos), que foram tomadas per eles, cortaram os narizes, orelhas e mãos aos mouros deles, e, postos em terra, entraram meios mortos pela cidade, que fazia um grande terror e espanto. E como a gente que nela estava era muita, e com estas cousas ninguém de dia nem de noite ousava passar a terra firme, principalmente buscar água, de que tinham maior necessidade, alguas pessoas de noite iam buscar água a uns três poços, que estavam em ua ponta da ilha, onde chamam Turumbaca, que será da cidade pouco mais de ua légua, quási junto da praia; sobre os quais poços Coge Atar tinha posto um capitão com duzentos frecheiros e vinte cinco de cavalo, assi por defender esta água dos nossos que ali fossem ter, como por a repartir entre o povo, e não haver algum desmancho sobre ela. Da qual cousa sendo Afonso de Albuquerque sabedor, mandou a Jorge Barreto de Castro com o batel da capitânia, e Afonso Lopes da Costa e João da Nova com os seus, e a gente necessária, em que entravam alguas pessoas nobres, que fossem atupir aqueles poços, o que eles fizeram bem a seu salvo; e porque como sua chegada foi ante menhã, e quási súbita por no caminho terem tomado língua, que lhes deu aviso como a gente estava descuidada, entre este descuido e sono, pereceu a mais dela, não somente da gente de armas, que estava em guarda, em que entrava algua de cavalo, mas ainda 72 do povo, que ia buscar esta água de morte; de maneira que os poços foram atupidos de mortos e vivos, até dos cavalos que se ali tomaram. E indo-se o capitão da guarda destes poços recolhendo-se com alguns que escaparam deste desbarato, foi dar com outro de sua morte; ca neste tempo vinha D. António de Noronha em um batel com gente em resguardo destoutros capitães, 22v e era o lugar onde D. António o topou, por ser estreito entre o mar e um morro de terra tam azado pera o cometer, que convidou a D. António sair em terra a cometê-lo, onde o matou com dez ou doze frecheiros que o acompanharam na morte, porque outros que também vinham com ele, por segurar a vida, o leixaram. 70 Afonso de Albuquerque, tanto que soube do bom sucesso destes capitães, acudiu logo, e temendo que os mouros viessem alimpar os poços com força de gente, ainda que foi contra parecer dos capitães, que andavam bem avorrecidos desta guerra, todavia mandou ficar naquele lugar

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Afonso Lopes em o seu batel, em favor de um tiro posto em um passo per onde a gente descia a tomar água, que era no cume de um teso, que estava sobre estes poços. Com o qual tiro, que era um berço, ficaram vinte homens, de que era capitão Lourenço da Silva, um fidalgo castelhano, homem de sua pessoa. A gente comum da cidade, quando soube do caso destes poços, em que tinham esperança de sua vida, andavam clamando que ante queriam cativeiro que morrer à sede; e era a cousa tam piadosa, que foi necessário ir el-Rei em pessoa e Coge Atar com muita gente de cavalo e de pé, frecheira, pera ir desatupir e tomar estes poços, em que estava a vida de todos; ao que Afonso de Albuquerque acudiu. Na qual ida, assi de ua, como da outra parte, houve mais sangue do que havia água dentro nos poços, em que um page de Afonso de Albuquerque foi morto; por salvar o qual D. António de Noronha, Jorge da Silveira e outras pessoas nobres foram bem frechados, ainda que as armas defenderam em algua maneira a carne, e Gonçalo Queimado, alferes de Afonso de Albuquerque, houvera de perder um olho com ua frecha, que lhe fendeu ua sobrancelha. Finalmente, ainda que a peleja não foi com a pessoa del-Rei nem Coge Atar, senão com um Raix Dilamixa, seu porteiro-mor, que vinha diante em modo de descobridor, foi ela de tanto perigo, que esteve Afonso de Albuquerque em condição de se perder com toda a gente que levava, por se arredar tanto da praia, que quando se quis recolher, posto que tinha mandado a Afonso Lopes da Costa e António do Campo que lhe tevessem a embarcação segura, achou quási tomado o lugar per onde havia de vir a ela. Ca, pera descer à praia onde os batéis estavam, havia um teso; e como a nossa gente vinha afrontada das frechadas, desejosa de tomar fôlego dentro nos batéis, 73 não curando de rodear pera vir a eles, porque per este teso era mais curto caminho, lançaram-se per ele, e vieram todos cair uns sobre os outros em baixo na praia; e foi grande dita não se espetarem uns nas lanças dos outros. E não seriam em baixo, quando começaram frechar neles muitos mouros, parte que estavam aqui em cilada encobertos dos batéis, como dos que eram em cima do teso, onde se entreteveram por ser lugar tam íngreme, que não quiseram descer per ele; porém dali frechavam os nossos que estavam tam apinhoados, que todalas frechas se empregavam neles, até racharem as hastes das suas lanças que tinham arvoradas, sem com elas lhe poderem fazer dano nem manear, por o lugar ser estreito. E estando todos neste perigo, onde já era Afonso de Albuquerque, que veo arrodeando por outra parte, quis Deus que, tirando 71 com um berço dos batéis em que se queriam embarcar, deu em o capitão daqueles frecheiros que acossavam os nossos, o qual andava a cavalo sobre aquele teso, homem bem lustroso em seu trajo e armas, e capitão em saber mandar aquela gente; e foi o tiro tão vitorioso, que o tomou per ua coxa, com que o cavalo o levou arrastando por também ir ferido, e trás ele foram os frecheiros, vendo seu capitão espedaçado, que deu lugar aos nossos se embarcarem devagar. A morte do qual el-Rei muito sentiu, por ser o seu porteiro-mor, que dissemos. Acabado este feito por aquele dia, se recolheu Afonso de Albuquerque às naus; e peró que foi em algua maneira arguido de culpa pelos capitães em querer aventurar sua pessoa com a frol daquela armada, não importando tanto ao serviço del-Rei, todavia ele tornou mandar a estes três capitães - Manuel Teles, Afonso Lopes da Costa e António do Campo - que se fossem lançar naquela parte da ilha, que lhe ele ordenara, pera empedirem não vir mantimento, nem ajuda algua à cidade. E havendo alguns dias que andavam nesta guarda, soube Afonso de Albuquerque per mouros, que tomaram em ua terrada, como a ua pequena ilha chamada Lara, que está a vista de Ormuz, havia de vir certa gente com algum mantimento pera dali, per terradas, de noite se recolher na cidade, ao qual negócio mandou estes três capitães. Chegados a ela, não acharam cousa algua, somente ua montearia de veação e caça de

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perdizes que fizeram, da muita que os reis de 23 Ormuz ali tinham mandado lançar como em parque, pera se irem desenfadar. Acabada a qual caça, entraram em consulta de leixarem Afonso de Albuquerque e se irem pera a Índia, com fundamento que, como se visse sem eles, leixaria aquela perfia e faria outro tanto; e quando todos se vissem ante o Viso-Rei, D. Francisco, cada um apresentaria sua razão, tomando por causa de sua ida, no arrazoamento que sobre ela fizeram aos mestres e pilotos e pessoas de conto que com eles andavam, estas razões: 74 Que o princípio daquela guerra e processo dela mais procedia da indinação de Afonso de Albuquerque, que de algua notável causa; e que todo o dano que faziam a cidade em tolher virem-lhe mantimentos, a mesma frota o padecia por estar já tam necessitada como os próprios cercados; e pera haver ua pipa de água, lhe custava muito sangue, como todos sabiam, por Coge Atar ter posto gente em guarda nas aguadas da terra firme, onde a costumavam fazer; acrescentando mais a estas cousas outras que tinham passado com Afonso de Albuquerque. E era que, logo no primeiro movimento da guerra, tendo-lhe eles dito quam injusta lhe parecia e quam necessário era dissimular o desaparecer daqueles cinco homens, té se acabar a fortaleza em que trabalhavam, pera mais a seu salvo dela obrigarem a Coge Atar a os entregar e atalharem as suas malícias, chegaram a tanto, que lhe apresentaram um papel em modo de requerimento, 72 assinado per todolos capitães e principais fidalgos da frota, a tempo que ele, Afonso de Albuquerque, estava na mesma obra da fortaleza. No qual requerimento lhe representavam estas cousas acima ditas, concluindo que eles não eram obrigados a lhe obedecer em mais que naquelas cousas que trazia per Regimento del-Rei, que era andar de armada naquela costa da Arábia e boca do Mar Roixo contra as naus de Meca, que entravam e saíam per ela buscar especearia. E ele em lugar disso leixava-se estar ali fazendo ua fortaleza, tendo aquela ilha de ua parte mouros da costa da Pérsia e da outra os da Arábia, gente a mais cavaleira de todo o Oriente, que em dous dias, partido ele, Afonso de Albuquerque, dali, podia levar a fortaleza na mão; quanto mais que a mesma cidade em si era tam populosa, que sem estas ajudas o poderia fazer, por aquela fortaleza ficar mui remota do estado da Índia, e passagem das naus deste reino de Portugal, de que podia receber algum favor. O qual requerimento assi desaprouve a Afonso de Albuquerque, que, tomando-lho da mão, disse que responderia a ele; e em eles virando as costas, deu o papel a um pedreiro, que estava fechando um portal da fortaleza, e disse-lhe que o posesse por fecho e o carregasse bem de pedra e cal, que já levava a sua reposta; e queria ver quem era tam ousado que desfazia os portais da fortaleza del-Rei, seu senhor, por ver o que ele respondia aos tais requerimentos. A qual cousa escandalizou muito a todalas pessoas que iam assinadas nele. Tinha também procedido outro caso de que os capitães e principais fidalgos andavam mui desgostosos, e era que cada um esperava que, feita a fortaleza, tinha méritos pera ficar nela por capitão, a qual ele dava a Jorge Barreto de Castro, por levar um alvará del-Rei, que o provesse de algua fortaleza; e era esta dada com condição, que estevesse nela té a vinda de seu sobrinho D. Afonso de Noronha, que estava em Socotorá. E porque Jorge Barreto a não quis aceitar com esta condição, e ele, Afonso de Albuquerque, a deu a D. António de Noronha, que a quis per aquele modo ter, té vinda de seu irmão, e ele se passar pera a de Socotorá, pareceu a todos que isto era 75 artefício pera seus sobrinhos ficarem naquelas duas fortalezas, ca, por serem irmãos, não se haviam de desavir. Assi que, com a relação de todas estas cousas, que estes três capitães representaram aos principias das suas naus, os provocaram a que aquela seguinte noite se fizessem a vela caminho da Índia. E em saindo da boca do Estreito, foram tam ditosos que tomaram duas naus, ua de Cambaia e outra de Chaúl, ambas carregadas de muita fazenda com a qual presa chegaram ante o Viso-Rei D.

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Francisco. Afonso de Albuquerque, vendo que tardavam per espaço de dous dias, mandou à ilha, onde os tinha enviado, a Diogo Fernandes Pereira, mestre da sua nau em um batel, e achou somente um homem que, per descuido, quando se eles recolheram às naus, ficou em terra, do qual Afonso de Albuquerque soube a sua 73 partida, e as causas porquê, segundo contámos. Sobre o qual caso ele não fez mais que mandar tirar estromento do estado em que tinha posto a cidade ao tempo que se foram, pera o enviar a este reino a el-Rei; e o mais que pôde dissimulou a tristeza deste, que ele muito sentiu; e como quem fazia pouca conta da ajuda deles, não leixou de proceder no modo do cerco que tinha sobre a guarda, que não viesse socorro 23v algum à cidade. Passados poucos dias que estes capitães eram idos, sucederam cousas com os dous capitães que ficavam, com que per alguns dias os veo a suspender das capitanias; porque, como andava escandalizado da desobediência dos outros, não quis sofrer a estes cousa algua desta calidade. E a primeira cousa foi com João da Nova, ao qual, tendo ele, Afonso de Albuquerque, mandado que com Francisco de Távora fosse de noite a terra firme, da banda da Pérsia, fazer aguada a um lugar chamado Nabande, quando veo às horas da partida, não quis ir; e foram e vieram tantos recados de um ao outro, té que Afonso de Albuquerque foi à nau de João da Nova, onde achou a gente do mar amotinada posta no castelo da vante, com voz que eles não vinham obrigados pera andar de armada por serem de nau de carreira da carga da especearia, a qual andava mais pera se ir ao fundo, que espancar o mar; e se os capitães quiseram salvar a pimenta que nela ia pera Portugal, baldeando-a em a nau que António de Saldanha trouxe, também eles queriam salvar suas vidas; e mais que não tinham braços pera andar todo dia remando nos batéis e dar a bomba de contino por se a nau não ir ao fundo, e sobre isso as armas às costas, e mais padecer fome e sede. Afonso de Albuquerque, com estas e outras palavras (em muitas das quais eles tinham razão), ficou tam confuso, que converteu a reposta a João da Nova, dando-lhe a culpa daquela união; e finalmente, de palavra em palavra, pôs nele as mãos com menos acatamento do que merecia um capitão del-Rei, posto que João da Nova não tivesse mais fidalguia em sangue, que as calidades que atrás apontámos, que nele havia. Levado dali preso à mesma nau de Afonso de Albuquerque, não tardou muito que também suspendeu a Francisco de Távora com presunção que teve de se querer ir pera a Índia; porém, passado aquele furor, foram estes dous 76 capitães tornados a suas naus, e com eles foi fazer um honrado feito à Ilha Quêixome, pegado com terra firme, que será de Ormuz até três léguas; e o caso procedeu daqui: Soube Afonso de Albuquerque pelos mouros que cada dia se tomavam nas terradas que passavam da terra firme pera Ormuz, como da Ilha Baharém vinha pera aquela de Quêixome ua armada com socorro de gente e mantimentos, que se haviam de recolher em uas casas del-Rei, que tinha naquela Ilha Quêixome, pera dali se passarem de noite a Ormuz. Por empedir o qual socorro, foi ter a esta ilha; e posto que houveram vista da frota dos mouros, 74 como todalas velas eram terradas ligeiras, que correm muito à vela e remo, poseram-se em salvo. Afonso de Albuquerque, parecendo-lhe que nas casas del-Rei podiam achar algua cousa pera provisão da cidade, e dar algua cevadura à gente de armas, que ficou com mágoa de se as terradas acolherem, saiu em terra no lugar destas casas; em guarda das quais achou mais de trezentos homens, em que entravam sessenta de cavalo, que as defendiam mui valentemente como cavaleiros. Onde João da Nova houvera de ficar, porque, subindo per ua escada acima, lhe mataram diante dele um homem e feriram outros, e ele foi derribado e bem ferido; mas acudiu-lhe Gomes Teixeira, João Teixeira, Nuno Vaz de Castelo Branco e outros, que o livraram. E aqui foi morto o capitão das

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casas, com que os mouros as despejaram, e os nossos se fizeram senhores delas, ficando perto de oitenta mortos per elas nos lugares onde os nossos lhe tiraram a vida, a custa de seu próprio sangue. Depois com outra tal nova de virem ali mantimentos, tornou Afonso de Albuquerque a esta Ilha Quêixome, a um lugar chamado Meloal, onde também achou resistência de mais de quinhentos frecheiros, levando ele oitenta homens somente, a qual gente ali mandara el-Rei de Lara pera se passar a Ormuz em socorro com algum mantimento, de que eram capitães uns seus sobrinhos, ambos irmãos, os quais o fizeram tam valentemente, na defensão do lugar, que ambos ali morreram com a maior parte da gente que tinham. E por serem pessoas notáveis, Afonso de Albuquerque mandou meter seus corpos em ua terrada, e com eles um caciz, homem de grande idade, que achou em ua mesquita do lugar, per o qual mandou a Coge Atar um recado: que ali lhe enviava os defensores que o vinham socorrer, e que ele, caciz, lhe contaria como morreram, e assi quem os acompanhava. Queimado o lugar, o maior despojo que se dele houve foi ua alcatifa que servia em a mesquita, a qual tomava quási a metade da casa, e não a podiam mover quatro homens; e estando em presa de a partir pera a poderem trazer, chegou Afonso de Albuquerque e comprou-lha, e depois a mandou a Santiago de Galiza, pera 24 serviço de sua casa, por ele ser cavaleiro da sua Ordem, em memória da vitória que ali houve. Vendo ele, Afonso de Albuquerque, a gente mui cansada dos trabalhos que levavam de dia e de noite nestes e em outros saltos, e assi no roldar toda a Ilha, e que a nau Frol de la Mar, de João da Nova, não se podia suster sobre água 77 por a muita que fazia, determinou de ir invernar a Socotorá, por ser já tempo; e deu licença a João da Nova que se podesse ir à Índia, a correger a sua nau, pera carregar e se vir a este reino, e assi a Jorge Barreto de Castro e a Gaspar Dias, que fora seu alferes, pela aleijão que tinha da mão que lhe cortaram na entrada da nau Meri. Partido de Ormuz, na entrada de Março, e sendo tanto avante como Mascate, 75 posto que a licença que João da Nova tinha pera se partir, havia de ser quando ele, Afonso de Albuquerque, o espedisse, vendo que o levava mais longe do que convinha a sua navegação pera a Índia, ele não esperou por mais espedida, e de noite se fez na volta dela, onde chegou a Deus misericórdia, e Afonso de Albuquerque a Socotorá. E porque no tempo que ele passou estas cousas e invernou nesta ilha, passaram outras, assi no Cairo e na Índia, como em duas armadas, que o ano de sete e oito partiram deste reino pera lá, faremos de todas relação no seguinte capítulo, por este ser o seu lugar.

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75 24 77 Capítulo VI. Como o Soldão do Cairo fez ua armada pera a Índia, depois que o padre Frei Mauros tornou ao Cairo; e do que Mir Hocém, Capitão-mor dela, passou, té chegar a Dio. Como atrás escrevemos, a este reino veo um religioso per nome Fr. Mauros, maioral da Casa de Santa Caterina de Monte Sinai, com cartas do Papa a el-Rei D. Manuel sobre o desistir das cousas da Índia, por razão das ameaças do Soldão do Cairo. Este religioso, tornado ao Papa com a reposta del-Rei, ele o espediu, escrevendo ao Soldão o que fizera naquele caso sobre que Fr. Mauros viera a ele, do qual particularmente se podia informar com outras palavras, que respondiam ao que lhe tinha escrito o Soldão. E posto que este Fr. Mauros não levava a reposta conforme ao seu desejo, nem por isso tornou com os temores que ele trouxe de ante ele, por ir mui satisfeito com as razões do caso, e assi das esmolas que el-Rei D.Manuel lhe deu pera a Casa de Santa Caterina. Nem menos o Soldão executou o que disse que havia de fazer, somente converteu o ímpeto de sua fúria em mandar fazer ua armada pera comprir com os príncipes, que lhe sobre isso tinham escrito da Índia, como dissemos. E porque o Egipto; por razão de não chover nele, carece da criação de muitas cousas, foi necessário ao Soldão prover-se de fora destas que são as principais pera as tais expedições: madeira, ferro, breu, velame e oficiais pera o lavramento das naus e galés que havia de fazer, a maior parte das quais cousas houve do mar de 78 Levante, principalmente madeira, que foi cortada nas montanhas de Escandalor. As quais, por serem nas terras do Turco e entre ambos naquele tempo haver quebra, dizem que houve ele esta madeira a instância de venezeanos; e indo carregada em vinte cinco naus, e em sua guarda oitocentos mamalucos, parece que permetiu Deus que, como esta armada se fazia contra portugueses, que português encetasse logo a madeira dela como pronóstico que depois havia de fenecer a mãos de portugueses. Porque, andando Fr. André do Amaral, Bailio deste reino, nosso natural e Conservador e Chanceler da Ordem de S. João, naquele tempo assistente em Rodes, com ua armada da 76 Religião de seis naus e quatro galés, em que trazia obra de seiscentos homens de peleja, deu nesta armada do Soldão, metendo-lhe cinco naus no fundo, e tomou seis. Na qual peleja lhe matou trezentos homens, e das outras naus ainda alguas se perderam com um temporal que depois teveram, de maneira que dez somente foram ter ao porto de Alexandria. Levada a madeira pelo Nilo acima até o Cairo, depois que aí foi lavrada, a levaram em camelos per três jornadas té Suez, um porto do Mar Roixo, que está no último seo dele; e porque com a perda da outra madeira falecia muita da necessária pera seis naus e seis galés, que se haviam de fazer aquele ano, té se prover demais pera outra armada, em a terra do Abexi ao longo do mar do porto Alcocer pera baixo, contra Suez, em alguas serras, que caem sobre ele, foi cortada algua liação pera galés e outra madeira 24v delgada bem fraca e charneca, em que se mostra a esterelidade da terra. Acabadas estas doze peças e fornecidas de gente do mar, a maior parte da qual era levantisca de toda nação, dela que ia per sua vontade e outra que foi tomada das naus, que estavam em o porto de Alexandria, partiu Mir Hocém, Capitão-mor dela, caminho da Índia. O qual, peró que não fosse mameluco, dos que andavam eleitos pera os tais cargos, foi escolhido pelo Soldão por ser cavaleiro de sua pessoa e mui usado nas cousas do mar, cuja natureza era ua comarca a que os párseos chamam Cordistão, que é entre Babilónia e Arménia, e por razão da natureza, tinha por

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apelido Cor, donde entre eles era chamado Mir Hocém Cor. Mir, acerca dos párseos, serve de pronome e denotação de honra, a qual se dá a homens que são feitos capitães de gente, ou tem já nobreza do sangue destes; e Hocém é nome próprio, e Cor ou Cordi, apelido da pátria. Em esta armada que levou iam até mil e quinhentos homens de armas, e segundo o caminho e obras que fez o Soldão, mandou a mais que pôde à Índia, em adjutório dos mouros; porque, chegado ao porto de Imbó, que é ua povoação principal da costa da Arábia, que distará da sua metrópoli Medina 79 Elnebi, que quere dizer Cidade do profeta, obra de dezasseis léguas, entrou nele per força de armas e matou o Xeque dali, o qual acudiu de dentro do sertão com muitos alarves a lhe defender a saída em terra. A causa do qual dano que Mir Hocém ali fez, foi porque este Xeque era senhor de toda aquela comarca per onde todolos mouros destas partes do Ocidente vão em romaria a sua casa de Meca; e como este era senhor do campo, obrigava a todalas cáfilas destes romeiros a lhe pagarem um tanto por cabeça. E porque neste modo de arrecadar direitos fazia esbulhos de quanto achava, acudiu o Soldão do Cairo aos clamores destes peregrinos, e concertou-se com este Xeque: que lhe queria dar cada ano doze mil soltanis, moeda de ouro do seu cunho, que serão da nossa doze mil cruzados, e não tevesse conta com as cáfilas e as leixasse 77 passar francamente, dando a entender que fazia esta obra em modo de esmola e caridade àquela pobre gente. Mas a verdade era trato de mercadoria, porque todo peregrino que partia do Cairo ou das terras dele, Soldão, na cáfila em que ia, ficava registrado pelos seus oficiais e pagava dous soltanis - um que dantes pagava de portagem, e outro que ele dezia pagar ao Xeque, na qual passagem tinha ua grande renda. E como lhe era cousa dura dar ao Xeque os doze mil soltanis, havia quatro anos que lhos não queria mandar pagar, que causou ao Xeque tornar ao roubo que dantes fazia. O Soldão, mostrando que zelava o bem comum, e que a ele como Califa da seita de Mahamede pertencia a emenda do dano, que era feito aos romeiros de sua Casa, mandou a Mir Hocém que trabalhasse por tirar este mau costume ao Xeque, e quando não, que lhe tomasse este porto de Imbó, que era a melhor cousa que ele tinha, e de mais renda, pola entrada e saída que as cáfilas dos peregrinos ali faziam, e alguas mercadorias que daquele mar concorriam a ele. Mir Hocém, tomada esta vila de Imbó, pôs logo nela gente de guarnição e espediu ua nau das que levava com algum despojo do que ali houve, mandando com ele nova ao Soldão da vitória que daquele bárbaro houve, e pedindo-lhe mais gente pola que ali leixava. Espedida a nau, partiu-se ele também via de Judá, cidade marítima da Arábia, onde chegou, a qual era tributária ao Soldão na terça parte dos direitos que pagavam todalas mercadorias, o qual tributo havia anos depois da nossa entrada na Índia, que lhe não pagava um Xeque, senhor da cidade, chamado Daravi, dizendo que nossas armadas empediam o rendimento que tinha, e essa pouquidade que havia lhe era necessária pera defensão da cidade, se ali fôssemos ter. E porque Mir Hocém lhe não conheceu desta razão, veo o negócio a juízo de ferro, entrando ele a cidade a força de armas; e peró que os alarves eram mal armados, em comparação da gente que Mir Hocém tinha, e somente com paus tostados 80 de arremesso ofendiam seu imigo, por serem muitos, recebeu Mir Hocém tanta perda de gente, que lhe conveo esperar ali té o Soldão mandar mais, a qual lhe mandou pedir per ua nau, que daqui espediu com parte do despojo. Tirando a qual parte, toda a maior da outra que lhe ficou, ele, Mir Hocém, recolheu pera si, sem querer partir com a gente de armas, dizendo que todos iam a soldo; e ainda este, depois da primeira paga que houveram em o porto de Suez, não lhe tinha feito outra, havendo já quatro meses que eram partidos dele. Donde se causou alevantarem-se alguns turcos com um galeão, de que era capitão um mouro natural de Tunes, torto de um olho, chamado Raix Mostafá, o qual foi 25 ter com este galeão a Dabul, onde o varou, e depois fez o que veremos adiante.

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Mir Hocém, depois de ter escrito ao Soldão como este capitão se lhe levantara e que toda a mutinação da gente era por lhe não pagarem soldo que tinha vencido, e o 78 Soldão o prover com dinheiro e gente em as naus que lhe tinha enviado com parte do despojo, partiu-se caminho da Índia e passou por a cidade Adem, onde se deteve quatro dias somente, e di foi costeando a terra té Calaiate, onde o não quiseram receber, dizendo que estava por el-Rei de Portugal; que, se era verdade que ele ia buscar os portugueses, em Ormuz estava um seu capitão, que o fosse ver, então da tornada lhe fariam o gasalhado que merecesse. Isto deziam eles por Afonso de Albuquerque, que (como escrevemos), havia pouco que passara per ali e estava em Ormuz. Mir Hocém, porque muito parte da sua impresa de nos lançar da Índia estava no favor del-Rei de Cambaia e de Melique-Iaz, capitão de Dio, de quem o Soldão tinha recebido cartas de grandes ofertas, e levava por regimento, que, primeiro que passasse a costa do Malabar, se visse com Melique-Iaz e se conformasse com o seu conselho e vontade del-Rei de Cambaia acerca de nos cometer, não se quis deter em Calaiate nem tomar o conselho, que lhe os moradores davam, que fosse a Ormuz buscar Afonso de Albuquerque. Ante, ouvindo dizer que per ali andava armada nossa, se partiu mais prestes, temendo que o podia encontrar, porque estava mui novo no modo que havia de ter connosco, e queria primeiro ter informação de Melique-Iaz. Assi que com este fundamento fez sua derrota a Dio, onde foi recebido com muito gasalhado, por estar cada dia esperando por ele; ca tinha cartas ser já posto em caminho, com a vinda do qual sucedeu o que veremos neste seguinte capítulo.

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78 25 81 Capítulo VII. Como D. Lourenço foi dar guarda às naus de Cochi e Cananor, que iam carregar a Chaúl; e estando surto dentro no rio, Mir Hocém, Capitão do Soldão, veo a pelejar com ele. O Viso-Rei D. Francisco de Almeida, depois que se espediu de Tristão da Cunha, passado o feito de Panane, ficou naquela costa do Malabar com alguns navios, e mandou ua armada de oito velas com D. Lourenço, seu filho, que fosse dar guarda às naus de Cananor e Cochi, e corresse a costa té Chaúl, como ordinariamente fazia naqueles meses do verão. Os capitães das quais eram Pero Barreto de Magalhães, Duarte de Melo, Gonçalo Pereira, Francisco de Anhaia, António Lobo Teixeira e Paio de Sousa e Diogo Pires, aio de D. Lourenço, cada um em sua galé; e os outros levavam navios redondos e latinos. E porque alguas das naus, em cuja guarda ele ia, iam ordenadas pera a cidade Chaúl, e ele té li levava determinado correr a costa, porque o mais pera cima era já do reino de Cambaia, entrou no rio de Chaúl com elas; e na viagem que fez té li, quási de caminho, sem fazer demora por razão destas naus que levava 79 em guarda, tomou alguas velas de mouros, que saíam dos portos de toda aquela costa. Esta cidade Chaúl, onde D. Lourenço chegou, está situada dentro per um rio de bom porto, pouco mais de duas léguas da barra, em povoação e grossura de trato ua das principais daquela costa, de que era senhor o Nizamaluco, um dos doze capitães do reino Decão, a que nós corruptamente chamamos Dáquem, de que ao diante faremos particular relação. O Nizamaluco, por ser homem de grande estado, posto que tevesse esta cidade marítima e outros portos de mui grossa renda, o mais do tempo, por estar mais vezinho ao reino Decão, residia dentro no sertão em outras cidades de seu estado; mandando aos governadores, que tinha posto nestas marítimas, que a nossas armadas fizessem muito serviço e contentassem os capitães delas, não somente polo temor que tinha deles, mas ainda por o grande rendimento que havia das naus do Malabar, em cuja guarda D.Lourenço vinha. Assi que por esta causa, ainda que todos eram mouros, que naturalmente nos tem ódio, quando ele chegou a Chaúl, foi mui bem recebido do governador; e havendo mais de vinte dias que ele estava esperando que as naus acabassem de tomar sua carga pera se tornar a sair com elas, e ir recolhendo per todolos portos as que leixava, 25v per eles fazendo sua fazenda, começou haver entre os mouros ua nova confusa, dizendo que ua armada do Soldão era chegada à Índia; e vindo mais a particularizar, deziam que esta armada passara pelos lugares da costa da Arábia, que Afonso de Albuquerque tomara; e que sabendo o capitão dela como ele estava em Ormuz e era homem velho respondera que não buscava capitães velhos, senão mancebos, e 82 que deziam que, espedido daqui, se fizera na volta de Dio, onde estava D. Lourenço. Porque ele e os mais dos capitães da sua frota eram homens mancebos e os mouros lançavam muitas vezes novas falsas a seus prepósitos, parecendo-lhe que esta nova e palavra de capitães moços era por motejar deles, e também pera os fazer ir dali pera algum fim. Passados dous ou três dias que andava esta nova na boca dos mouros, sem certo autor, veo-se um brâmane a D. Lourenço e deu-lhe uns figos da terra, segundo seu costume, quando querem pedir algua cousa, e em modo de segredo lhe disse que vinha de Cambaia, onde soubera que dentro no porto de Dio estava ua armada do Soldão do Cairo; que lho fazia saber, pera que

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estevesse sobreaviso, porque lhe parecia não ser sabedor disso. Dom Lourenço, ainda que tomou suspeita do caso por alguas particularidades que lhe davam conjectura de ser verdade, dando conta desta nova do brâmane aos capitães, assentaram ser artefício dos mouros, e que, como pessoas suspeitosas, que nele não havia de fazer impressão aquela nova per boca deles, por nos serem odiosos; da sua mão lançaram aquele brâmane gentio como parte sem suspeita, 80 e também ele folgaria de aceitar aquela vinda a ele com esperança que por ser aviso e assi pola fructa, seria tam bem pago como foi, por os gentios serem mui sujeitos a cometer qualquer cousa por mui pequeno preço. Estando D. Lourenço nesta dúvida de haver por verdadeira esta nova, chegou Pero Cão, capitão de ua caravela latina com ua carta de seu pai, pela qual lhe fazia saber que entre os mouros se dezia que a Dio era chegada ua armada do Soldão e que depois Lourenço de Brito lhe escrevera por o ter sabido de ua nau que ali viera ter. Sobre a qual carta ele se tornara a Cananor, onde ficava com quatro velas, e tevera conselho se se veria ajuntar com ele; e por a nova não ser de autor de vista e ao porto de Dio ordinariamente cada ano vinham naus de mercadoria do Estreito de Meca, e em guarda delas poderiam vir alguas mais velas armadas, pera as defender das nossas pelo dano que recebiam os anos passados, e que a isto chamariam os mouros armada do Soldão, pareceu a todos a sua vinda excusada. Que lhe mandava Pero Cão, pera com seu conselho e o de Pero Barreto, Duarte de Melo e Diogo Pires, seu aio, se determinar em qualquer cousa que houvesse de fazer, por serem de mais madura idade pera poder aconselhar que os outros capitães, posto que todos fossem mui cavaleiros pera cometer um honrado feito. D. Lourenço, como teve este recado de seu pai, peró que era tam incerta nova, como a ele tinha, todavia mandou recado às naus de Cochi, que se aviassem o mais cedo que podessem pera estarem prestes, se algua cousa sobreviesse. As quais, estando já quási carregadas pera poderem partir, ua sexta-feira à tarde, andando D. Lourenço em terra com os outros capitães 83 lançando barra e lança, e tendo as galés a proiz em terra, todos ocupados em folgar e prazer, como quem estava em Cochi, vieram-lhe dizer que fora da barra do rio a la mar apareciam naus grandes, e vinham mareadas, como que passavam avante a outro porto. E porque té aquele tempo na Índia os nossos não tinham visto naus daquela feição, pareceu a todos que seria Afonso de Albuquerque que veria de Ormuz, porque esperavam cada dia por ele. Porém, depois que as naus começaram de abocar o rio, e antre elas viram galés e navios de remo, acabaram de crer ser verdadeira a nova que os mouros deram; e a grã pressa mandou D. Lourenço que cada capitão se recolhesse a sua nau e se apercebesse pera aqueles hóspedes. E a ordem em que ele, D. Lourenço, os quis esperar, foi que as galés estevessem como estavam com proiz em terra, e logo junto delas os navios pequenos, e mais ao mar a sua nau, e a meio rio a de Pero Barreto, tam largo dele, que per entre ambos podesse passar a frota que vinha, se quisesse tomar o pouso ante a cidade. Posto D. Lourenço nesta ordem o melhor que pôde, enquanto aquele breve tempo lhe deu lugar, era já Mir Hocém, capitão daquela frota, dentro no rio, 81 todo embandeirado com bandeiras e estendartes de seda de cores, e os estais forrados dela, com louçainhas per todalas gáveas, como gente 26 de festa, e que vinha a alguas vodas de prazer e não de morte, como elas foram. O número das suas velas, com que entrou com esta pompa, era quatro naus, um galeão, seis galés e outra mais pequena sem apelação, em que vinha o mouro Maimame Marcar, que fora nela com embaixada ao Soldão sobre esta armada, como atrás fica. E porque a nau de Mir Hocém era de até quatrocentos tonés e ele vinha com propósito de aferrar a nossa capitaina, pôs-se na dianteira e as outras enfiadas ua na outra, todas em bom compasso pera cada ua aferrar as nossas; porque, segundo a nova que tinha

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pera as atalaias de Melique-Iaz, que mandou espiar a nossa armada, sabia que estavam descuidados, e por mais homens de guerra que fossem, o descuido era grã parte pera os levar na mão em chegando. E entre nau e nau, vinha ua galé e, per popa da sua, a de Maimame já com as velas tomadas, somente traquete e mezena com vento fresco de viração, todos a ponto de guerra, como homens que sabiam bem daquele mister. E com esta presunção, metendo-se entre a nau de Pero Barreto, que estava quási a meio rio, foi demandar a capitânia, a qual não achou tam mal apercebida como ele cuidava; porque, se lançou dentro nela pelouros de bombarda, setas, bombas de fogo e outros artifícios de guerra naval, a tudo lhe responderam de maneira que não quis abalroar, peró que a sua nau fosse muito sobranceira sobre a de D. Lourenço, e passou adiante tomar o pouso defronte da cidade; e per este modo passaram todalas outras velas, quando viram que seu capitão não abalroava. Somente a derradeira nau, como trazia o batel per popa um pouco comprido o cabo dele, na detença que fez com as outras que tinha por de avante, foi-lhe a maré, que era tesa, encavalgar o batel sobre a amarra de Pero Barreto; e ficou tão embaraçada, que vendo ele e D. Lourenço como estava, quiseram-se alar pelas 84 âncoras pera a entalarem entre si; mas sentindo ela o perigo, deu um pique ao cabo, e passou por de avante, perdendo o batel. Porém foi a custa da nau de D. Lourenço, leixando-a chea de setas, dardos e bombas de fogo, que lhe queimou e encravou muita gente, e algua em a nau de Pero Barreto. Porque, como as naus de Mir Hocém eram mui sobranceiras sobre as nossas e vinham à levantisca, com pontes e redes, que os nossos ainda não usavam, receberam muito dano. Passadas aquelas primeiras nuvens do fumo da artelharia e chuiva de setas, de que as nossas naus ficaram cheas e o rio coalhado, como era já sol posto, cada um dos capitães entendeu em curar os seus e prover pera, em amanhecendo, tornarem acender este fogo de mortes. Mir Hocém, porque levava mouros pilotos, que sabiam bem o rio, e principalmente Maimame, 82 por seu conselho usou desta indústria: Como as suas naus demandavam menos fundo que as nossas, por não serem de quilha, posto que maiores fossem, ordenou-se ao modo de D. Lourenço: as galés com os esporões em terra per popa das suas da banda de cima da cidade, e elas com as proas enfiadas com a corrente do rio contra as nossas, que lhe ficavam tam juntas uas às outras, e per cima dos bordos pranchas, postas de maneira que se podiam servir uas com outras, com a qual ordem estava a sua nau capitaina vezinha à de D. Lourenço, como homem que queria amparar os seus a ser o primeiro que os nossos achassem pera receber qualquer afronta. D. Lourenço também aquela noite assentou com os seus capitães que, como a maré da menhã viesse, ir logo sobre ele, por da terra ser avisado que Mir Hocém estava como homem que se fazia prestes mais pera se defender que cometer; porque cuidou que em gente descuidada não achasse tanta defensão. E seu fundamento era (peró que D. Lourenço não fosse sabedor disso), esperar que viesse Melique-Iaz com a frota de sua fustalha, que eram quorenta velas, como com ele leixara assentado. E a ordem que D. Lourenço deu pera cometerem estes imigos, foi que ele havia de aferrar a nau de Mir Hocém, e Pero Barreto a outra junto dela, e Gonçalo Pereira, António Lobo, capitães dos navios redondos, as seguintes; e Pero Cão, Francisco de Anhaia e Duarte de Melo, capitães das caravelas latinas, andassem de fora acudindo a maior pressa e onde mais necessário fosse; e Diogo Pires com a galé grande, e Paio de Sousa com a pequena fossem demandar as dos imigos, coseitas em terra, que estavam acima deles, e trabalhassem por as tomar per ua ilharga, pera que, entrando ua, ambos fossem enxorando as outras.

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82 26v 85 Capítulo VIII. Como D. Lourenço pelejou com Mir Hocém; e por causa da vinda das fustas de Melique-Iaz, senhor de Dio, que veo em ajuda dele, Mir Hocém, saindo-se D. Lourenço com a armada pera fora do rio, per desastre, a sua nau deu em ua estacada, onde ele morreu com a mais da gente, pelejando. Tendo D. Lourenço dado esta ordem aos capitães, e cada um aquela noite vegiando no apercebimento do dia seguinte, tanto que a maré os ajudou pera ir sobre seus imigos, abalou D. Lourenço com todos. E como as nossas galés eram mais lestes, por causa do remo, tomando as outras per ua ilharga, como D. Lourenço lhe mandou (foi cousa maravilhosa e dura de crer!), assi levaram a churma delas com todolos outros que as defendiam ante si, como quem careava gado não revel de meter a caminho, mas mui desejoso de o tomar em saltos e pulos, 83 como estes faziam, lançando-se deles em terra, e outros ao mar, e alguns que não podiam tomar o passo seguro, davam consigo entre água e terra no meio da vasa, de maneira que ficavam logo mortos naquele visco que os detinha, porque sobrevinham os nossos e às lançadas lhe faziam ali o enterramento. D. Lourenço e Pero Barreto, indo demandar as naus, ambos se acharam em vão; porque Mir Hocém, além de ter os cabos mui compridos pera se poder alargar dos nossos, usou desta indústria: tinha dado rageiras às suas naus, e quando viu que iam sobre ele, meteu-se tanto na vasa, que não poderam abalroar com ele, por as nossas velas demandarem mais fundo. D. Lourenço, vendo que todo o feito havia de ser com murrões de fogo, mandou desparar artelharia, a qual, como se acendeu de âmbalas partes, começou fazer ua obra que dava semelhança de inferno; ca de quando em quando entre aquele grosso fumo apareciam uns relâmpados envoltos com a trovoada que procedia deles, tam temerosa aos ouvidos e espantosa à vista, que assombrava a gente, e muito mais quando viam o companheiro com que estavam falando arrebatado de ante seus olhos, ficando-lhe parte do corpo aos pés. Assi que, tendo ânimo pera cometer os imigos, não tinham modo pera exercitar suas forças. As quais quando se ocupam na fúria de pelejar mão por mão, não consentem que entre o temor no seu ânimo, como faz naquele que acha ocioso; de maneira que os das naus, por não aferrarem, tinham atadas as forças e o espírito vago em cuidar quando seria a sua hora. Somente Francisco de Anhaia e Pero Cão, vendo que muitos mouros se lançavam das galés ao mar, meteram-se em batéis e começaram de os alancear, o qual dano fez que os mouros tornaram de mandar as próprias galés, vendo que no mar eram alanceados e nelas havia já pouca gente dos nossos. 86 E o primeiro homem de nome que mataram nesta fúria de fogo, foi António Barreto de Magalhães, irmão de Pero Barreto, que estava em a nau de D. Lourenço; e da parte dos mouros, Maimame Marcar, em paga do trabalho que levou na embaixada que fez por trazer esta gente à Índia, e foi esta sua morte estando per popa da nau de Mir Hocém, em a galé em que foi fazendo sua oração, a que eles chamam salá. Sendo já boa parte do dia passado, e a maior da viração e não do trabalho em que estavam, ouviram os nossos grande grita de prazer em toda a armada de Mir Hocém, pela qual entenderam que lhe vinha algua ajuda, té que D. Lourenço, pelo gajeiro da sua gávea, soube como pelo rio entrava ua grande frota de fustas, a qual era de Melique-Iaz, senhor de Dio, que Mir Hocém esperava polo que leixava assentado com ele. D. Lourenço, em cousa de tam grande sobressalto a primeira cousa que fez, foi mandar aos navios e galés que, ante de chegarem a eles, por se não irem

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ajuntar com Mir Hocém, os fossem entreter 84 com artelharia. Os quais, como vinham com alvoroço de gente folgada e que não tinha experiência da fúria da nossa artelharia, fazendo pouca conta dela naquela primeira chegada, cometeram com grandes alaridos a passagem, despendendo do almazém que traziam, que coalhavam o ar com enxames de muita frecha e seta, e afuzilar da artelharia meúda, parecendo-lhe que estes aguilhões 27 de morte fariam caminho. Mas como eram fustas sem amparo e vinham bastas, ficaram logo muitas tam desaparelhadas, que não ousaram, nem poderam ir mais avante dos nossos navios. Melique-Iaz, quando se viu naquela primeira chegada assi recebido e que Mir Hocém não o viera receber e estava mais como homem cercado que pera poder ajudar, tomou um pouso que ficava abaixo donde os nossos partiram, quando foram demandar Mir Hocém, com fundamento que de noite se iria pera ele, como fez pela outra banda da terra, temendo os nossos navios. Porém entretanto, desejando saber em que estado ele estava, mandou a duas fustas que se cosessem com a terra da banda da povoação, e em toda maneira chegassem a lhe levar seu recado; as quais, posto que cometeram o caminho, primeiro que lá chegassem, iam tais da artelharia das caravelas, que tomaram terra com cedo a se repairar e abrigar com o favor dos mouros que dela lhe acudiram, e ficaram ali sem os nossos lá poderem chegar. E porque ao tempo que acabaram de tomar pouso era já mui tarde, e peró que eles viessem mui folgados, os outros, que estavam na fúria da peleja, não se podiam ter em pé do trabalho de todo o dia, naquele não se fez mais que entender cada um na cura dos feridos e lançar os mortos ao mar depois que foi noite, por não mostrarem uns aos outros o dano que tinham recebido. 87 D. Lourenço neste dia com os outros foi ferido de duas frechadas, ua das quais, por ser no rostro, lhe fez vir ua febre mui grande, pera remédio da qual se sangrou, com que ficou tam leve, que teve logo novo conselho com os capitães no modo que teriam de pelejar com os imigos com a vinda de Melique-Iaz. E passados muitos debates no votar de cada um, assentaram que, visto o estado da gente que tinham ferida e munições que lhe faleciam, e o grande número das velas dos imigos, não era cousa de prudência pelejar com eles em tam estreito lugar; portanto ele, D. Lourenço, devia logo mandar um recado às naus de Cochi, que estavam pelo rio acima, que se saíssem com a maré da noite, pera que, quando viesse a da menhã, que os tomasse fora do rio, porque ele havia de fazer outro tanto e as acompanharia té as salvar; e então, se os imigos o quisessem seguir, tinham o mar largo, e à vela podiam ajudar-se melhor deles, que estando decepados naquele rio. D. Lourenço, posto que como capitão em seu peito aprovou o conselho, por razão do que tinha passado no rio de Dabul em outro conselho, em que desaprouve a seu pai, neste 85 tomou a parte de cavaleiro desconfiado, e disse que em nenhua maneira ele sairia de noite, porque na sua terra chamam aquele modo fugir. E que mais danava a honra dos homens qualquer cousa destas, como era feita de noite, ainda que usassem disso como de indústria contra seus imigos, que de dia, porque a olhos vistos querer-se melhorar em lugar contra eles, quando à rédea solta os não leixavam, este retraer prudência e cavalaria era. Portanto ele nesta parte da noite não segueria seu parecer, somente em mandar ás naus de Cochi que se posessem da barra fora; e quanto a eles, depois delas fora, então podiam eleger outro melhor lugar. Aprovado este parecer, em que também era Pero Barreto e Diogo Cão, mandou logo dali a Paio de Sousa e a Diogo Pires com aquele recado às naus, o que eles fizeram com diligência; e ainda nesta ida acharam em cima duas galés das seis de Mir Hocém, as quais tomaram levemente por acharem a gente dormindo, e as trouxeram à toa, que deu muito prazer a D. Lourenço. As naus de Cochi, como lhe era mandado, com o terrenho, ua hora ante menhã abocavam já a barra, e poseram-se na volta de Cochi, parecendo-lhe que levavam D. Lourenço nas costas, como lhe mandara dizer; peró ele foi empedido de maneira que ficou ali por mais tempo do que eles

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cuidavam, per esta maneira: Tanto que ele soube serem em baixo, e o sol descobriu todo o rio, pera que uns podessem ver a obra dos outros, mandou aos navios pequenos que dessem vela e começassem de sair trás elas, e a nau de Pero Barreto na sua esteira, e ele na trazeira com menos vela. As fustas de Melique-Iaz, tanto que viram abalar Dom Lourenço, com novo ânimo, parecendo-lhe que fugia, saíram remos em punho com um alarido 88 que atroou todo o rio; porque, como o sol ainda não tinha gastado os vapores dele, andava esta grita, e assi a trovoada da artelharia tam embaçada na grossura do ar, que não podia sair dali, e era tudo um trovão de vozes confusas, que fazia tanto dano no ânimo de todos, que até aos próprios autores assombrava. E a primeira obra que esta fustalha fez naquela remetida como gentes, foi chegarem à nau de D. Lourenço, 27v que ficava detrás de todas, e descarregarem nela quanta artelharia levavam cevada e ua chuiva de frechas; e isto tam ameúde e bastas, que coalhavam mais o ar do que estava com a fumaça da artelharia; ao que D. Lourenço e Pero Barreto respondiam, com que alguas das fustas ficavam desaparelhadas de galeotes meas espedaçadas com a nossa artelharia; mas andavam elas tam azedas neste seu modo de peleja, que lhe não fazia temor verem ir o companheiro em pedaços pelo ar. Havia neste rio, feitas pelos moradores da cidade, três estacadas, que atravessavam boa parte dele, as quais eram pera os pescadores da terra ao modo de como cá usamos dos caneiros de pescaria, porém estas tinham outra diferença; ca eram de uns 86 paus a que chamam areca, tam direitos, compridos e delgados, como pinheiros. Os quais em terra, à força de maço, metiam em uns olhos de pedras de mós, e então eram aprumados onde os queriam meter, todos em ordem, com que ficavam mui seguros, porque as mós assentavam na vasa. E por razão do comprimento que tinham, quando vinha a maré, estavam tremendo como varas com a força dela; e se algum navio queria passar, eram tam brandas, que davam o lugar necessário pera sua passagem, e tornavam-se a endereitar, a maneira de uas vergônteas. Vindo D. Lourenço acossado das fustas, chegando-se e afastando-se dele a maneira de genetes, revezando-se em quadrilhas, com que encravavam muita gente da nossa, assi da nau como da galé de Paio de Sousa, que a rebocava por acalmar o vento, deu consigo entre esta estacada; e como vinha encodada por razão de ua bombarda que lhe a fusta de Melique-Iaz deu per junto do leme, em a nau caindo entre as estacas, que elas foram correndo ao longo, das cintas do costado, meias embuizadas, quando ua veo ter ao lugar da bombarda, barafustou pelo baraço, com que a nau ficou retida, e o peso da água que nela entrava, assi a foi atravessando entre as outras estacas, que ficou amarrada, não a ua, mas a muitas. D. Lourenço, vendo que a nau de Pero Barreto com as outras se iam saindo, e o rebocar da galé não surdia avante, mandou a Pedreanes, o Ganchino, piloto da nau, que fosse ver o que os detinha, porque per fora não viam cousa algua. Tornado o piloto acima, de baixo da nau onde foi, disse: - Senhor, a nau se vai ao fundo per água que faz, a qual anda no paiol do pão; e é tanto o fervor dela, que não há modo de a tomar, nem quem ouse de entrar dentro. 89 Dada esta nova, viram todos claramente sua perdição, porque a olhos vistos a nau se ia ao fundo, e a galé por lhe arrebentar o cabo, com a força que punha no remo, era já espedida dela, mais por culpa dos remeiros, a maior parte dos quais estavam feridos, que por defeito de Paio de Sousa; porque, como o cabo arrebentou, quisera tornar a tomar a nau, mas todo seu trabalho foi debalde; ca a maré descia mui tesa, e não havia braço são que podesse romper o tesão da água, nem os ânimos de todos eram desejos de ir buscar a morte, vendo o mar coalhado das setas e tiros das fustas de Melique-Iaz.

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No qual tempo deram a Dom Lourenço ua bombardada, que lhe levou meia coixa, com que acurvou; ao que logo acudiram os principais da nau, querendo-o passar em um parau que pera isso mandaram aperceber ao contra-mestre, e levá-lo a curar à nau de Pero Barreto, não tanto por lhe salvar a vida, porque a ferida não era pera esperar que a podia ele ter, quanto por salvar seu corpo, que não viesse a mãos dos mouros, por honra deste reino, e não se gloriarem dele - tam pouca esperança havia em todos de se poder salvar. Chegando a D. Lourenço os que ministravam esta obra de salvar com palavras piadosas 87 do estado em que o viam, respondeu que o leixassem, porque mais lhe ofendia a alma esta piadade que com ele queriam usar, do que lhe lastimava o corpo aquela ferida; que lhe pedia que cada um tornasse a seu ofício de cavaleiros como eram, porque para ele qualquer pessoa bastava pera lhe atar aquela ferida com ua touca. E mandou que o encostassem ao propau junto do masto, meio assentado em ua cadeira, quási em giolhos. E vendo-se naquele estado, levantou as mãos a Deus, dizendo: - Senhor, pois te aprouve de me tirar o poder pera ajudar a estes cavaleiros, que derramam seu sangue por confissão da tua Fé, peço-te que aqui atado nesta coluna, que eu tomo por glória com a lembrança da tua, hajas por bem que os ajude com a fala, pois não posso com a pessoa, porque ela seja testemunha que te confesso com alma, pois o corpo desfaleceu. Acabando estas palavras, e convertendo-se à gente que pelejava, querendo-os ajudar com outras, não da fraqueza da morte que lhe vasava o sangue, mas que lhe ditava o ânimo de cavaleiro e espírito 28 de católico barão, não perdendo o ofício de capitão nem o conhecimento pera dar glória a seu Deus, veo outra bombarda que lhe levou todalas costas da parte direita, descobrindo-se os bofes. Morto este capitão deu a morte licença que, sem nenhum acatamento, por não verem ali jazer o seu corpo, que per alguns homens de armas fosse lançado em baixo no convés, como um saco de terra junto do fogão: e como era um dos maiores homens deste reino, assi atroou a nau a pancada que o seu corpo deu em baixo, que muito maior terror fez no ânimo de todos o tom desta caída, que a voz da sua morte. Ao qual corpo seguiu um seu pagem, per nome Lourenço Freire Gato, que o arrestou per ua perna pera dentro do fogão pera melhor poder prantear aquele que o criara, e per um olho lançava 90 as lágrimas e per outro vertia sangue de ua seta que lho quebrara, té que na entrada da nau foram os mouros dar com ele, onde acabou sobre o corpo de seu senhor como leal criado e especial cavaleiro, porque, primeiro que o matassem, fez um monte de corpos mortos, debaixo dos quais ficou enterrado o de seu senhor e ele sobre eles. Como a nau foi chea da morte de D. Lourenço, e ela aos olhos vistos se ia ao fundo, foi tamanho o alvoroço destes dous capitães, Mir Hocém e Melique-Iaz, que leixaram de seguir as outras velas, pondo ambos todo seu poder por tomar às mãos os que ficavam vivos nesta capitaina, não sabendo ser o capitão morto, vendo que na tomada desta nau estava toda a glória de seu vencimento. Somente um dos seus galeões, que iam na esteira de Pero Barreto, não leixou de o seguir um bom pedaço; mas quando viu que Pero Barreto o esperava, lançou âncora, não ousando de o cometer, porque também viu ele que os seus se punham derredor da capitaina, e era com tanta pressa de chegar a ela, como que não tinham mais que fazer que entrar dentro. Peró 88 eles foram tam bem recebidos, que três vezes os lançaram fora da nau, ca ela espedia de si a gente de Mir Hocém e a fustalha de Melique-Iaz ao modo que faz um bravo touro a lebréis que o acossam, estripando uns, embaçando outros e outros atemorizando de maneira que, assi decepada como estava, e meia no fundo, não ousavam de a entrar, e primeiro tomou água posse dela, que os mouros. Porque, quando a já entraram, nem os nossos tinham pólvora, nem sangue, sem neste tempo poderem ser socorridos, trabalhando nisso os capitães quanto poderam, principalmente Pero

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Barreto, Duarte de Melo e outros, metendo-se em as galés de Paio de Sousa e de Diogo Pires, que como aio de Dom Lourenço, desejava salvar sua pessoa por saber que ficava ele com meia perna fora. A qual nova levou o contra-mestre no parau que para ele aparelhou; e isto causou fazerem ainda os capitães muito maior diligência por chegar a ele, ao menos por salvar sua pessoa, que da nau não faziam conta; mas nem vento, nem maré, nem braço havia que ajudasse ao desejo que todos tinham; e sobre tudo eram empedidos da fustalha de Melique-Iaz, que acabou de encravar esses poucos de galeotes que a isto partiram. Finalmente eles se recolheram, e os da nau de D. Lourenço já defunto quási todos o seguiram; ca, de cento e tantos que eram somente foram cativos dezenove; e entre os mortos, foram João Rodrigues Paçanha, que ali era capitão do convés, e seu irmão Jorge Paçanha, filhos de Manuel Paçanha, e Rui Pereira, do Algarve, Soutomaior, Francisco de Novais, capitão da proa e feitor da nau, Rui de Sampaio, filho de Álvaro Ferreira, António de Sousa, Rui de Sousa, Antão de Gá, Estêvão de Vilhena, de Setúval, cavaleiro da guarda del-Rei, que era capitão da popa, Diogo Velho, e outras pessoas nobres. E segundo se afirmou, nesta nau de D. Lourenço e nas outras velas, dos nossos morreram cento e quorenta pessoas, e feridas foram cento vinte quatro; e as principais pessoas dos cativos foram: Tristão de Gá, Bastião Rodrigues, que ora é juiz da balança da Moeda de Lisboa, Lourenço Felipe, veador de D. Lourenço, Álvaro 91 Lopes Barriga, mestre da nau, Gonçalo Tarouca, criado do Viso-Rei; e os outros eram homens do mar, alguns deles com feridas mais de morte que com esperança da vida. Dos quais cativos o que mais honra ganhou naquele feito, foi um grumete que servia de gajeiro, natural do Porto, per nome André Fernandes, ou Gonçalves, o qual, sendo ferido per ua espada de um espingardão e aleijado da mão esquerda, com a direita dous dias e meio se defendeu da gávea, sem o poderem entrar, té que Melique-Iaz, vendo quam valente homem era, mandou que lhe não tirassem, e com grandes promessas e juramento da segurança de sua vida se entregou; o qual depois foi bem agalardoado do Viso-Rei, e acabou em Malaca comitre de ua galé, servindo primeiro 28v muito tempo de mestre da nau, em que Afonso de Albuquerque andava. A qual 89 vitória, posto que foi havida per este desastre e não com aquela liberdade de pelejar mão por mão, como os nossos quiseram, todavia custou a Mir Hocém e a Melique-Iaz mais de seiscentos homens mortos e grande número de feridos; e a perda e dano desta gente foi causa de ambos se deterem ali alguns dias, enterrando uns e curando outros, e dar honrada sepultura ao embaixador Maimame; ao qual mandaram fazer ua mesquita, onde foi sepultado com letreiro da causa da sua morte, e alâmpadas de prata pera arderem ante ele, havendo ser homem santo, porque, além de ser religioso da sua seita, dizem os mouros que morreu fazendo o salá, que é auto de sua certa salvação. E sobre o corpo de D. Lourenço mandaram estes dous capitães fazer grande diligência pera também lhe dar honrada sepultura, em lembrança da vitória que dele houveram; mas Deus não lhe quis entregar o corpo por dar maior glória a sua alma, a qual deve estar entre os eleitos de Deus, no lugar daqueles que são márteres, pugnando pola Fé e Lei de Deus.

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89 28v 92 Capítulo IX. Como os capitães que andavam com D. Lourenço levaram nova de sua morte ao Viso-Rei, seu pai; e como Melique-Iaz lhe escreveu ua carta de consolação sobre ela; e as causas porquê e o fundamento da sua medrança e da cidade Dio, de que ele era senhor. Os nossos capitães, como viram o feito acabado, saídos da barra do rio, fizeram sua via caminho de Cochi, um pouco desordenados, como quem não levava Capitão-mor; e porém não tam espalhados, que uns não fossem em vista doutros, pera se poder ajudar quando comprisse. E sendo tanto avante como os Ilhéus Queimados, que são junto de Goa, vieram dar com eles Manuel Teles, Afonso Lopes da Costa e António do Campo, que iam de Ormuz; e cuidando que eram rumes, por muitos sinais que lhe faziam, não queriam esperar, té que vieram em conhecimento serem eles; os quais, sabendo aquele desastre, esteveram todos em conselho pera tornar e não ir ante o Viso-Rei sem lhe levar nova se era seu filho morto, se vivo; e, quando fosse morto, apresentarem-se ante ele vingadores e não mensajeiros de sua morte. Porém vista a disposição da gente, e quam desfalecidos estavam do necessário, e que tam grande cousa (pois se não achavam naquele acidente) não se devia de tornar a ela senão per ordenança do Viso-Rei, foram-se a ele a Cochi, o qual tomou a nova da morte de seu filho com aquela paciência que tem tam católicos e prudentes barões como ele era, dizendo àqueles, que por isso o queriam consolar, que ele não podia desejar a seu filho género de mais honrada e melhor morte que aquela, pois era por seu Deus e por seu Rei, e em ofício de capitão e cavaleiro. Passados aqueles 90 primeiros dias, que todos o Viso-Rei despendeu em mandar curar os feridos e consolar aos que temiam poder ele ter algum escândalo deles em não acudirem a seu filho, porque não havia algum que o visse morrer, peró que ele soubesse que não era seu filho homem que se havia de entregar em cativeiro, a primeira diligência que fez, pera saber se era vivo, foi mandar um jogue a Chaúl a isso; o qual jogue era de ua certa seita de homens ao modo de filósofos que leixam o Mundo e em hábito vil e baixo andam per todalas terras em romarias, e às vezes se apartam em lugares solitários a fazer penitência, e por isso entre os gentios são tidos em grande veneração, e podem andar per toda parte sem lhe ser feito algum dano, dos quais em outra parte faremos maior relação. Este, como era homem que em Cochi tinha alguns parentes, per meio del-Rei, a instância do Viso-Rei, fez seu caminho a Cambaia, e foi ter com os cativos que cativaram em a nau de D. Lourenço, indo eles presos em carretas de um lugar de Cambaia chamado Goga, porto de mar, per Champanel, ua cidade das principais do reino; e o modo que teve de lhe falar, foi chegar-se a ua das carretas, onde 93 iam Tristão de Gá e Bastião Rodrigues; e fazendo que lhe pedia esmola, como que fossem gentios, deu-lhe um pelouro de cera e disse-lhe: - Respondei ao que achardes dentro, e eu tornarei a vós daqui a dous dias. Na qual cera vinha um escrito do Viso-Rei, a substância das breves palavras que trazia, dizia se seu filho era morto e que homens eram cativos pera logo prover na soltura deles. Ao que responderam nas 29 costas da carta, que tornaram dar na própria cera ao brâmane per aquele modo que a ele deu, e per ela soube o Viso-Rei da morte de seu filho e quantos eram os cativos. Tendo ele já ao tempo que este brâmane veo sabido todo o caso per cartas, que mouros de Chaúl lhe escreveram, e assi per ua carta de consolação que lhe Melique-Iaz escreveu sobre esta morte de seu filho com grandes gabos

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de sua cavaleria, e o que fizera té seu falecimento. Que, quanto aos portugueses, que cativaram na entrada da nau, que el-Rei de Cambaia mandara que lhos levassem à cidade de Champanel, onde ele estava, desejando de ver homens que tais cousas faziam; que ele trabalharia muito polos haver, e seriam dele tratados como Sua Senhoria saberia per eles; ca os homens que tinham nome de cavaleiros, no lugar da peleja haviam de romper a carne de seu imigo, e depois de vencido, o deviam tratar como irmão. E porque não tardou muito tempo que o Viso-Rei foi tomar conta a Melique-Iaz dentro no seu porto de Dio do cativeiro destes homens, onde lhos ele trouxe; e daqui em diante toda esta nossa história vai tratando dos negócios e guerra que tevemos com este mouro, sendo vassalo del-Rei de Cambaia, do qual sempre fazemos maior menção enquanto ele viveu, que do próprio senhor, convém que digamos que homem era, e os méritos per que veo ter àquele estado. Segundo 91 o que podemos alcançar dos que particular comunicação teveram com este Melique-Iaz, ele era roixo de nação, dos cristãos heréticos da Róxia , trazido a Constantinopla entre outros cativos, que os turcos de lá costumam trazer. O qual, sendo comprado per um mercador, que tratava naquelas partes de Constantinopla pera Damasco e Alepo, e di pera Baçorá, que é no fim do Mar Párseo, aconteceu que, indo este mercador em ua cáfila de Alepo pera este Baçorá, saltaram com a cáfila uns alarves que a quiseram roubar, em defensão da qual se poseram todolos mercadores. Na qual peleja este Melique-Iaz (que naquele tempo havia nome Iaz), como era mancebo e, segundo o uso da pátria, grande frecheiro, fez cousas por salvar o senhor, que naquele feito mereceu nome de valente homem. Salva a cáfila do concurso dos alarves, chegou a Baçorá, e o senhor Iaz com suas mercadorias passou-se a Ormuz, e di ao reino de Cambaia, reinando el-Rei Mahamude, 94 com o qual tendo negócio este mercador, fez-lhe um presente das cousas que levava, e entre elas lhe deu este Iaz seu escravo, como ua jóia de muito preço, por ser muito bom frecheiro e mancebo de grande ânimo no que tinha visto dele. Ficando este Iaz com el-Rei, como naquelas partes esta de cavaleiro habelita tanto os homens, que de escravos os faz livres e sobem a estado de senhores, aconteceu que sobre o nome de valente homem, que ele cobrou nas guerras do reino de Cambaia, sucedeu este caso, per que ficou livre, de escravo que era: Estando el-Rei em um campo, onde tinha assentado seu arraial de um exército de gente por causa de ua guerra que fazia a el-Rei do Mando, passando per cima um milhano, deu ua talhadura, que veo cair sobre a cabeça del-Rei, que acertou de estar no campo fora da sua tenda; e como os mouros são mui agoureiros acerca destas cousas que os suja, principalmente em auto de guerra, e mais vindo do ar, houve el-Rei tanta paixão, que, convertendo-se pera os que estavam derredor dele, disse: - Não sei cousa que agora não desse por matar aquela ave. Iaz, que estava presente, ouvindo as palavras del-Rei, embebeu ua frecha no arco, e assi o favoreceu a fortuna pera vir a estado que veo, que veo o milhano abaixo atravessado na frecha. E apresentado ante el-Rei aquele seu desejo posto em efeito, ficou tam contente da destreza de Iaz, que logo ali o fez livre e mandou dar soldo de homem livre. Finalmente, porque além da sua valentia era homem prudente e sagaz em os negócios, pouco e pouco subiu ante el-Rei a grau de um dos principais capitães que tinha, dando-lhe por dinidade este pronome Melique, que é denotação de honra acerca deles; e mais em galardão de seus serviços, a requerimento dele, lhe deu a povoação de Dio, que está situada em ua ponta que a terra faz; e porque o mar a cercou com um esteiro, que a tornea de todo em figura de triângulo, ficou com nome de ilha. A qual povoação (segundo contam as Crónicas dos 92 Reis do Guzarate), Dariar Hão, pai deste Mahamude, edificou, sendo somente um pequeno acolhimento de pescadores, peró que antiguamente já ali fosse ua cidade, de que havia poucas

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ruínas, somente alguns letreiros em língua guzarate, antiquíssimos. E a causa deste Rei Dariar Hão, mouro, edificar aquela cidade (segundo se conta na Crónica deste Rei), foi de ua vitória, que ele houve de uns juncos de chis, que ali vieram ter em tempo que eles tinham feitoria em Cochi, e em alguas partes da Índia. 29v Em a qual peleja morreram dous irmãos del-Rei e cinco tios com muita gente nobre do Reino, e ele ficou mui mal ferido; porém no fim dela tomou os juncos, que são naus de boa carga, em que houve grande despojo; e por memória de tão ilustre feito, enquanto se ali deteve no enterrar os mortos, a que logo fez ua mesquita, mandou fundar ua povoação, a que pôs nome Dio. A qual, posto que ao tempo que el-Rei Mahamude a deu a Melique-Iaz, era cousa nova, e pouco frequentada de gente; como ele, Melique-Iaz, 95 era homem esperto e prudente, com sua indústria a fez tam célebre per trato de mercadoria, que além do que cada um ano pagava a el-Rei de tributo, se fez um riquíssimo homem, com que fortaleceu e nobreceu a cidade de muros, torres e baluartes, principalmente depois que nós entrámos na Índia. No qual tempo concorriam a ela tantas naus do Mar Roixo, Párseo e de toda a costa da Arábia e da Índia, que os lugares de dentro da enseada de Cambaia, que per razão do trato eram ricos e nobres, ela os desfez. Ca por ela estar fora dos macaréus da enseada de Cambaia, com os quais se perdem muitas naus por serem tam grandes que as sessobram, tanto que esta cidade Dio foi povoada, o que as outras tinham de proveito, por ser de mais segura navegação, chamou pera si, da qual cousa começou Melique-Iaz ser mui envejado, e tinha ante el-Rei grandes competidores, principalmente um Melique-Gupi, senhor da cidade Baroche, que é dentro na enseada de Cambaia, por ter perdido todo o seu trato por razão de Dio. Morto el-Rei Mahamude, que fez honrado este Melique-Iaz, e reinando el-Rei Modafar, seu filho, e depois el-Rei Badur, que lhe sucedeu (como adiante veremos), era já este tam poderoso e usava de tantos artefícios, que se fazia temeroso aos mesmos príncipes, temendo eles a amizade que ele mostrava ter connosco. E de se eles não fiarem dele, peró que os servisse, e pola necessidade que tinham de seu serviço, eles lhe faziam mercê, dando-lhe terras e acrescentamento. Era ele tam poderoso e estava sempre tão apercebido, como se per eles houvesse de ser cercado per terra ou per nós pelo mar; de maneira que, tendo el-Rei Badur ua guerra com os resbutos, povos que confinam com as mesmas terras de Dio, levou ele, Melique-Iaz, em sua ajuda este exército: de cavalo, dez mil; de pé, quinze mil, em que entravam quinhentos archeiros de sua guarda; espingardeiros, 93 trezentos; bombardeiros, cinquenta; homens de enxada, fouce e machado pera fazer caminhos, quinhentos; carretas com artelharia e munições, quinhentas; de bois de carga, que serviam de açacais de acarretar água, quinhentos; e outros tantos que levavam mantimentos, de camelos com tendas e massame delas, quinhentos; e de artelharia de toda sorte, setenta peças; e de frechas sobressalentes, duzentas mil, com outras muitas armas e munições que respondiam a tamanho aparato, tudo a sua custa, somente algua de gente de cavalo, que lhe el-Rei mandou fazer a sua. Na qual ida que fez com este aparato, sendo aquela terra de Cambaia mui fértel e barata, e o soldo pera comer mui pequeno, ainda gastava por dia quorenta mil fedeas, moeda que são da nossa mil e duzentos cruzados, a rezão de doze reais a fedea, tendo neste mesmo tempo noventa velas de remo, a maior parte das quais mantinha à custa del-Rei, fazendo-lhe crer serem necessárias pera defendimento da costa, por causa das nossas armadas. E valia então o rendimento assi da cidade de Dio, como de outros lugares que lhe os Reis 96 deram, que, pagando ele um tanto a el-Rei, que era a maior parte, ficava-lhe pera sua despesa cento e sessenta mil cruzados por ano; e, a fora este rendimento, tinha tratos e indústrias que importavam um grosso dinheiro, a maior parte do qual gastava não somente nestas cousas, mas ainda em grossas peitas aos aceitos a el-Rei, por se segurar naquele senhorio. E era tão sagaz e artefícioso em seu

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viver, que a sua própria custa per terra se segurava del-Rei, e pelo mar, mostrando temor de nós à custa dele, tendo sempre pera isso prestes muitos navios de remo; no provimento dos quais embebia toda a parte que el-Rei havia de haver do rendimento de Dio. E porque com nossas armadas as naus que vinham a este porto de Dio não ousavam de navegar por serem de mouros nossos imigos, em que Melique-Iaz começou logo sentir a perda no rendimento da entrada e saída das mercadorias, quando Mir Hocém chegou a Dio, foi mui bem recebido dele, porque também per sua intercessão el-Rei de Cambaia tinha escrito ao Soldão, oferecendo-lhe seus portos e ajudas, mandando armada contra nós. Porém como Melique-Iaz era cauteloso e homem que 30 olhava ao longe o sucesso das cousas, posto que fosse com aquela frota de navios de remo em ajuda de Mir Hocém, que causaram a morte de D. Lourenço, teve modo como ele fosse diante a receber o primero encontro de qualquer dano; porque seu propósito foi que, se Mir Hocém levasse a pior, não lhe dar tanto a mão que lhe ficasse lá o braço. Mas como a fortuna favoreceu a sua indústria, a primeira cousa que quis da vitória foram todolos cativos, os quais mandou curar e tratar com todolos mimos que pôde, e depois de curados os mandou a el-Rei de Cambaia à cidade de Champanel; porque, além de el-Rei os 94 querer ver, fazia ele muito em seu crédito ir ante ele testemunho que os seus navios foram a causa principal da vitória, a qual abonação Mir Hocém também ante o Soldão quisera ter com aquele presente. Melique-Iaz, além de lançar mão destes cativos pera efeito de seu crédito ante el-Rei, e de se poder aproveitar deles ao diante com o Viso-Rei, por lhe aprazer, como dissemos, mandou fazer grandes diligências sobre o corpo de D. Lourenço pera lhe dar solene sepultura, porque entendeu que a sua morte não havia de passar sem punição; e por isso per ua parte escrevia ao Viso-Rei cartas de conforto, e per outra fortalecia a cidade, como quem esperava o retorno da ajuda que deu a Mir Hocém, a qual não tardou muito tempo, como se verá neste seguinte Livro.

LIVRO III 95 30v 97 Capítulo Primeiro. Como o Viso-Rei D. Francisco se fez prestes pera ir destruir a armada de Mir Hocém; e ante que partisse, deu despacho a duas armadas que deste reino foram; υa do ano de sete, que invernou em Moçambique, e outra de oito, Capitão-mor Jorge de Aguiar; e o que passou com Afonso de Albuquerque em Cananor, indo de Ormuz. O Viso-Rei D. Francisco, como tinha posto a consolação da morte de seu filho na vingança dela, tanto por satisfazer ao paternal amor, que leva trás si a maior parte do desejo dos homens, como por saber quam alvoraçados andavam os mouros, tomando υa nova ousadia nesta armada do Soldão, a primeira cousa em que entendeu foi em dar ordem a que todalas naus e navios que haviam mister corregimento, se trabalhasse neles, principalmente em a nau Frol de la mar, em que João da Nova andou com Afonso de Albuquerque em Ormuz, que, como dissemos, quando se dele apartou, não se podia ter sobre água. Ca por ser de quatrocentos tonés e a maior que então havia na Índia, esperava o Viso-Rei de ir nela buscar Mir Hocém, que naquele tempo andava na boca dos mouros como um remidor, que os ia a salvar do nosso poder. E o que mais acrescentou o ânimo a estes mouros naquela conjunção, foi não verem aquele ano de sete algυa nau deste reino, porque todalas que partiram invernaram em Moçambique, sem os nossos disso serem sabedores; somente na fim de Maio do ano seguinte foi ter o Comendador Rui Soares detrás do Cabo Comori, meio perdido. 98 Da chegada do qual o Viso-Rei per patamares foi avisado, não per ele, mas per um senhor gentio sem saberem que nau era, somente teve presunção que podia ser Afonso de Albuquerque, e que esgarrara com algum temporal. E porque 96 era no inverno daquelas partes e a nau não poderia vir a Cochi, mandou lá Garcia de Sousa em υa caravela com âncoras, cabres e outros provimentos pera se repairar, té que o tempo desse lugar a se vir, e cartas ao senhor da terra pera todo o favor que houvesse mister; a qual viagem Garcia de Sousa fez com assaz perigo, e por não poder tornar a Cochi per terra, mandou Rui Soares ao Viso-Rei as cartas que levava deste reino. E assi lhe dava conta como naquela sua viagem, sendo tanto avante como o rostro do Cabo Guardafu, topara com υa nau de mouros, com a qual estevera aferrado quatro horas, e que não fizera tam pouco em se salvar dela por ser mui grande e atulhada de gente, em que houve de âmbalas partes tanto dano, que cada um se contentou de não tornar àquela requesta, e principalmente ele, por ter já caído em pena, indo com aquele recado, que importava mais que tomar a própria nau, poer-se a perigo de não ir avante. As quais cartas chegadas a Cochi consolaram a todos, sabendo a frota que estava em Moçambique, e muito mais o Viso-Rei, porque com sua chegada poderia ajuntar velas e gente pera conseguir seu desejo. E porque com a vinda daquelas naus havia de ter trabalho no aviamento da carga delas, porque se haviam de ajuntar duas armadas, esta de sete, que não passou, e a outra do ano de oito, que havia de partir deste reino, as quais o podiam empedir algum tanto mais do que queria o negócio que havia de ir cometer, mandou prover nas feitorias tudo, pera que não lhe ocupassem muito tempo. E certo que, segundo foi grande a frota que o ano de oito deste reino partiu, se ela chegara inteira na ordenança que el-Rei a mandava, muito maior trabalho lhe houvera ainda de dar do que ele imaginava, porque nela o mandava el-Rei vir, que fora pera ele termo de morte não leixar acabado o que ele fez, que além de ser um dos mais ilustres feitos que se na Índia fizeram, 31 ficara em risco de se perder. Porque isto temos visto no discurso desta conquista de Ásia: que cada um dos que a governam quere acabar o que começa, e poucos dão fim a obra começada per outrem, causa de

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serem perdidos negócios de muita importância, e em seu lugar sucederam grandes inconvenientes; e que quando alguns se soldaram foi à custa de vidas de homens, e da fazenda del-Rei, como se não fosse mais glorioso dar bom fim a um honrado negócio, que principiá-lo, pois sabemos que o fim e não o princípio é o que aprova ou reprova todalas cousas. Mas prouve a Deus que as cousas da armada, que partiu o ano de oito deste reino, em que ele, Viso-Rei, se havia de vir, se ordenaram de maneira, ainda que com trabalho e perda dos navegantes, que deu ele fim a seu intento; 99 e as causas que el-Rei teve de mandar tamanha frota, como veremos, foram estas: Vendo ele como a conquista da Índia era tam derramada e tam grande cousa, que um capitão não podia ser presente em tantas 97 partes, como eram as per que se vasava a especearia per mãos dos mouros, que era o essencial da conservação do estado dela, porque armas sem o comércio e fructo que ela em si continha não se podiam soster, e com υa cousa se podia conservar a outra, ordenou de repetir esta conquista em duas capitanias-mores: υa, que começasse em a fortaleza de Sofala e acabasse na Ponta de Dio, que é no reino Guzarate; e a outra desta Ponta té o Cabo Comori. Porque os mouros, depois que viram que com nossas armadas não podiam navegar as especearias, as quais armadas regularmente andavam de Cochi té Chaúl, buscaram outro modo de navegação, principalmente os do Estreito de Meca, ca estes sabiam-se já guardar da costa, navegando tanto ao pego, que não podessem ser vistos; e sendo tanto avante como o porto que iam demandar, cometiam a terra de rostro; e quando saíram do porto per o mesmo modo em υa noite se faziam ao mar, de maneira que, salvos daquela costa, navegavam pera o Estreito, cuja entrada como achavam limpa de nossas armadas, navegavam seguramente pera a Índia, pera Malaca, Cambaia, Ormuz e pera todalas outras partes, o que não podiam fazer, andando duas armadas repartidas, υa em a costa da Índia e outra na costa da Arábia. Também quiseram alguns dizer que per este modo, além de el-Rei segurar melhor a guarda daquelas costas, não fazia tamanho estado a um só homem; e que este não fora pequeno respeito pera esta repartição de conquista, a qual, segundo o tempo depois mostrou, podera-se chamar divisão, pera parecerem muitas cousas de seu serviço mais que boa governança. Pera fundamento do qual propósito era ordenada a fortaleza de Sacotorá, onde o Capitão-mor da costa de Arábia, podia invernar por estar no meio daquela primeira conquista; e o segundo Governador havia de resedir em Cochi ao tempo da carga das naus. E porque el-Rei mandava vir este ano de oito o Viso-Rei, ordenou que Afonso de Albuquerque, que andava na costa da Arábia, se passasse à Índia, cada um com seu regimento, sem um se meter nem entender na governança do outro, com novo título per si: ca o primeiro se intitulava Capitão-mor do mar da Etiópia, Arábia e Pérsia, de Sofala té Cambaia, e o outro da Índia; e ainda, segundo se afirmou, a tenção del-Rei era que, se Diogo Lopes de Sequeira, que este mesmo ano de oito mandou com quatro velas a descobrir a cidade de Malaca, descobrindo-a, ficar naquela parte em outra capitania-mor, pola grande distância que havia de υa a outra. 100 Assi que, com este fundamento, mandou el-Rei o ano de quinhentos e oito dezassete velas, que partiram em duas capitanias. A primeira era de treze - oito que iam pera a carga da especearia por serem naus grandes, de que eram capitães Tristão da Silva, filho de Afonso Teles de Meneses; João Rodrigues Pereira, filho de Reimão Pereira; Vasco Carvalho, filho de Álvaro de Carvalho; Álvaro Barreto, filho 98 de Aires Barreto; Francisco Pereira Pestana, o qual ia pera capitão de Quíloa, em lugar de Pero Ferreira; Gonçalo Mendes de Brito, irmão de Rui Mendes, da Porta da Cruz, em Lisboa; João Colaço, um cavaleiro da guarda del-Rei; e na maior nau das ordenadas pera a carga da especearia, que se chamava S. João, que era a maior da frota, ia Jorge de Aguiar. Ao qual el-Rei encomendou a capitania-mor de todalas naus, assi destas da carreira, como das ordenadas à capitania-mor da costa

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da Etiópia e Arábia, onde ele havia de ficar, e as naus da carga passar à Índia, e com elas esta S. João, de que se ele havia de mudar a outra das de sua armada, porque nesta mandava el-Rei que se viesse o Viso-Rei D. Francisco de Almeida. Os capitães das cinco velas, que com ele, Jorge de Aguiar, 31v haviam de ficar de armada, eram Duarte de Lemos, da Trofa, filho de João Gomes de Lemos, o qual ia por sota-capitão pera suceder a ele, Jorge de Aguiar, por ser seu sobrinho; e Vasco da Silveira, filho de Mosém Vasco; Pero Correa, filho de D. Fr. Paio Correa, Bailio da Ordem de S. João, e Diogo Correa, seu irmão. E além destas cinco velas, que com ele haviam de ficar, Afonso de Albuquerque que lhe havia de mandar outras, em que entravam navios de remo, pela ordem que el-Rei mandava em seu regimento. As quatro velas que Diogo Lopes de Sequeira levava pera o seu descobrimento, de que ele era Capitão-mor, também eram quási do porte das de Jorge de Aguiar, navetas de cento e cinquenta té oitenta tonéis, os capitães das quais eram Jerónimo Teixeira, filho de João Teixeira de Macedo; Gonçalo de Sousa um cavaleiro que depois foi meirinho do Paço del-Rei D. Manuel; João Nunes, outro cavaleiro de sua casa. Apercebidas as quais velas, partiu Diogo Lopes de Sequeira com as suas a cinco do mês de Abril deste ano de quinhentos e oito, e Jorge de Aguiar aos nove, partindo com toda a sua armada junta; mas depois de sua partida foi a mais derramada que quantas té então nem depois per muito tempo foram deste reino, porque mui poucas mantiveram companhia às outras das da capitania de Jorge de Aguiar, e assi derramadas foram ter a Moçambique, somente ele, que se perdeu com muita gente nobre que levava. E segundo disse Álvaro Barreto, capitão da nau Santa Marta, que ia em sua companhia a ré dele, perdeu-se de noite nas Ilhas de Tristão da Cunha. 101 Leixando estas duas armadas, a de Jorge de Aguiar e a de Diogo Lopes, de que adiante faremos relação, e seguindo a escritura com a viagem das naus ordenadas pera a carga da pimenta, elas chegaram à Índia, e também as que invernaram do ano passado de sete, somente a nau Lionarda, capitão Francisco Pereira Pestana, que invernou em Quíloa pera onde ele ia por capitão. Com a chegada das quais naus, toda a gente da Índia cobrou grande ânimo, e principalmente o Viso-Rei, ca lhe deu causa de se aperceber com maior diligência pera efeito de 99 ir buscar Mir Hocém, vendo gente fresca e algυas munições de que estava necessitado; porque, como ele esperava de se vir aquele ano pera este reino, por lho el-Rei mandar, primeiro queria leixar este feito dos rumes acabado, ou acabar nele. Posto que a seu parecer ele não fazia fundamento de se poder vir aquele ano, ca não via na Índia duas pessoas que ele pera isso esperava, Afonso de Albuquerque, que o havia de suceder, e a nau S. João, capitão Jorge de Aguiar, em que el-Rei mandava que viesse; na qual nau ia um das principais vias das cartas del-Rei, às quais se ele remetia em υa carta que o Viso-Rei houve. Finalmente, dando ordem assi às cousas desta armada pera os rumes e carga da especearia das naus que haviam de vir aquele ano pera este reino, por lhe falecer canela para elas, mandou a Nuno Vaz Pereira em a nau Santo Espírito à Ilha Ceilão pera a trazer, o qual era vindo de Sofala em as naus da armada de Jorge de Melo, leixando a fortaleza entregue a Vasco Gomes de Abreu, como atrás fica. Da qual ida não trouxe cousa algυa, somente veo com ele Garcia de Sousa, que lá estava da ida que fez quando foi prover a nau de Rui Soares; e a causa de não trazer canela, foi estar o Rei da terra mui doente, e os mouros terem danado o gentio em ódio nosso. E posto que Nuno Vaz lhe podera fazer dano, levava regimento do Viso-Rei, que não movesse guerra por razão da paz que seu filho D. Lourenço tinha assentado, de que estava por testemunha o padrão que leixou posto em o lugar de Columbo, que Nuno Vaz viu. Neste mesmo tempo mandou também o Viso-Rei a Pero Barreto com onze velas pera , enquanto ele despachava as naus da carga, que haviam de vir pera este reino, andasse correndo a costa do Malabar té Baticalá, empedindo não entrarem ou saírem naus de mouros, senão aquelas que tinham sua licença pera poder navegar; e assi a armada que o Samori fazia pera enviar a Dio a Mir Hocém, como lhe tinha prometido (segundo adiante veremos),

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e que ele, Pero Barreto, o esperasse naquela paragem, té se ir ajuntar com ele, e di partirem ao feito dos rumes. E os capitães que iam com ele eram: Afonso Lopes da Costa, Manuel Teles, António do Campo, Álvaro Paçanha, Pero Cão, Filipe Rodrigues, Luís Preto, Paio de Sousa, Diogo Pires e Simão Martins. 102 Partida esta armada, começou o Viso-Rei despachar as naus da carreira; e como duas eram carregadas, fazia-as partir na ordenança que vinham, somente Jorge de Melo Pereira a rogo dele, Viso-Rei, ficou com a sua nau Belém, por lhe a ele também parecer que naquele feito 32 dos rumes servia mais el-Rei, que vir aquele ano com carga, partindo de lá tantas naus. E parece que o espírito disse ao Viso-Rei quanta necessidade tinha dele, polo que depois passou na Aguada de Saldanha, como veremos em seu lugar. E porque algυas naus da carga haviam de tomar gengivre em Cananor, ca do mais que havia em Cochi estavam de 100 todo prestes, partiu-se com elas pera Cananor a vinte de Novembro, onde chegou; e tendo ainda por despachar a nau de Fernão Soares e a de Rui da Cunha, veo ter com ele Afonso de Albuquerque, que vinha de Ormuz pera suceder na capitania-mor da Índia por as Provisões que lhe el-Rei mandou. Apresentando as quais, o Viso-Rei lhe respondeu que ele vinha já tam tarde, por estarem em seis de Dezembro, sendo as mais das naus da carga partidas pera este reino, e ele, Viso-Rei, posto em caminho pera ir lançar os rumes donde estavam, soberbos da vitória que tinham da morte de seu filho, que ele não sabia dar melhor remédio àquele seu requerimento, que ficar ali em Cananor, ou ir-se pera Cochi repousar seu corpo dos trabalhos donde vinha, e ele, Viso-Rei, iria repousar o seu ânimo na destruição daqueles rumes, que foram causa da morte de seu filho; e que sendo Nosso Senhor servido que ele não ficasse vivo daquela impresa, então lhe ficava a Índia entregue sem mais requerimentos; e tornando dela, ele lha entregaria conforme as Provisões del-Rei, seu senhor. Ao que Afonso de Albuquerque repricou, dizendo, que, quanto às naus, que ainda ali tinha duas - a de Fernão Soares e a de Rui da Cunha, em que se poderia vir - e que pera lançar os rumes, ele o iria fazer. Ao que o Viso-Rei respondeu, que ele tinha a espada na mão, e que nunca costumara de a dar a outrem pera lhe vingar suas próprias injúrias. Afonso de Albuquerque, posto que sobre isto repetiu muito mais palavras, vendo que lhe não fundiram pera seu requerimento e protestos que sobre isso fez, tirados seus estromentos, foi-se pera Cochi em a sua nau Cirne, que a não podiam estancar da muita água que fazia. E porque ele, depois que invernou em Socotorá, tornou outra vez a Ormuz, ante que passemos adiante, faremos relação do que passou té chegar a se ver com o Viso-Rei.

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100 32 103 Capítulo II. Do que Afonso de Albuquerque fez, depois que chegou a Socotorá pera invernar; e do que mais passou da tornada que fez a Ormuz. Afonso de Albuquerque, ante que chegasse à Ilha Socotorá, quando partiu de Ormuz pera invernar nela, parecia-lhe que naqueles meses do inverno podia tomar ali algum repouso de quantos trabalhos tinha passado no cerco de Ormuz; peró, depois que chegou a fortaleza e viu o estado em que estava a gente, houve que os seus se podiam sofrer, em respeito dos que ela tinha passado. Porque os mais dos homens estavam pera expirar, assi de fome como das enfermidades, que por razão dela lhe sobrevieram com os maus mantimentos que comiam; ca chegaram a tanta fome, que tinham cortado meio palmar de um que estava ante a fortaleza por lhe comerem o 101 talo, e o mais foram tâmaras, maçãs da náfega e algυas cabras havidas per via de saltos que às vezes faziam, mortas a espingarda, por entre eles e a gente da terra haver já rompimento, por andar danada com induzimento de trinta mouros que se lançaram com eles, quando lhe tomaram a fortaleza. Afonso de Albuquerque, porque os mantimentos que trazia eram mui poucos, espediu logo a Francisco de Távora, que fosse em a sua nau a Melinde, e per toda a sua costa buscasse alguns; e depois de sua partida, ele mesmo, Afonso de Albuquerque, se veo pôr no rosto do cabo Guardafu, esperar algυa nau de presa pera se prover, e dali mandou a Jorge da Silveira em um esquife, e a Nuno Vaz de Castelo Branco em o seu batel com até setenta homens, que se fossem lançar ao Cabo de Fum, que é além do de Guardafu doze léguas contra Melinde, esperar algυa nau de presa. Com os quais veo ter υa que vinha das Ilhas de Maldiva, que tomaram levemente; porque, com as grandes calmarias que a tomaram no golfão, a míngua de água trazia a mais da gente morta, e nela tanto mantimento, que foi grande suprimento pera os nossos. E dos principais mouros que ali foram tomados, enviou depois Afonso de Albuquerque a este reino a el-Rei dous, um deles turco de nação, que era capitão da nau, que 32v se fez cristão, e houve nome Miguel Nunes, e serviu de reposteiro a el-Rei; e outro era arábio, homem que trazia no trato da mercadoria bom cabedal, e dava mui boa razão das cousas de dentro do Mar Roxo. Recolhido todo o mantimento e fazenda desta nau, e ela queimada por lhe não servir, chegou Francisco de Távora, que vinha de Melinde, e em sua companhia Martim Coelho e Diogo de Melo em seus navios, que, como atrás vimos, foram na armada de Vasco Gomes de Abreu pera andarem com Afonso de Albuquerque, os quais também iam providos de mantimentos de υa nau 104 que tomaram à vista de Magadaxó, com que Afonso de Albuquerque ficou mui contente, por lhe Nosso Senhor acudir com aquela provisão tam necessária assi de mantimentos como de gente, e navios pera poder tornar a Ormuz. E em companhia de Francisco de Távora iam três homens que achou em Melinde e ficaram ali da armada de Tristão da Cunha, com fundamento de irem per terra descobrir o Preste João: a um chamavam João James, o Sardo, que era degredado; e a outro João Sanches Mourisco, que fora criado de Tristão da Cunha; e o outro era mouro natural de Tunes, chamado Cide Alé, e todos três iam com grandes promessas de lhe el-Rei fazer mercê, se fizessem aquele caminho. E porque naquela paragem de Melinde os negros cafres do sertão é gente mui bestial e fera, houveram conselho que seria melhor entrarem pela terra mais vezinha ao Estreito, que é já habitada de mouros, com que cada um, indo por seu caminho, se podia entender, por todos saberem o arábigo.

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Afonso de Albuquerque, porque também tinha cartas del-Rei que, achando 102 algum modo naquela costa per onde andasse de armada, pera poder mandar alguns homens a este descobrimento do Preste, que o fizesse, proveo a estes de dinheiro; e dando-lhe as cartas que tinha pera o Preste, os mandou poer no seu esquife junto de υa povoação de mouros, dizendo que fugiram naquele esquife de noite pera com esta simulação não receberem dano e os leixarem ir sua viagem. Espedidos estes homens, deteve-se ainda Afonso de Albuquerque naquela paragem até dous de Maio; e quando viu que não vinham mais naus pera se prover de mais mantimentos, com esses que tinha se partiu pera Socotorá e di pera Ormuz, por lhe parecer mais serviço del-Rei não desistir daquela impresa, que andar na boca do Estreito do Mar Roxo, à entrada e saída das naus. E posto que com aqueles dous navios mais que lhe vieram, e υa fusta que novamente fez em Socotorá, que deu a Nuno Vaz, a ele lhe parecia não ser poder pera entrar a cidade, ca levava somente até trezentos homens, e os mouros estavam já desenganados da pouca gente que trazia. Ao menos per via de cerco, como tinha feito, esperava de os poder obrigar pagarem as páreas e virem ao que com eles tinha assentado. Seguindo com este propósito sua viagem, ante que chegasse ao Cabo Rossalgate, teve conselho com os capitães e assentou de dar em a vila de Calaiate, assi pelas injúrias e vitupérios que fizeram a João Machado, seu paje, e a João Nestão, escrivão da sua nau, e Gaspar Rodrigues, língua, quando os deu em reféns ao tempo que lhe deram os mantimentos (do qual mau tratamento ele depois em Ormuz soube per eles), como também porque todolos lugares daquela costa tinha tomado per armas, e este ficara sem as experimentar, mais por cautela de não receberem dano, que desejo de nossa paz, a qual já não mereciam por causa da guerra que tinha em aberto com el-Rei de Ormuz, cujo este lugar era. O qual lugar, segundo atrás dissemos, parecia que em outro tempo 105 fora a mais ilustre povoação daquela costa e aquele a que Ptolomeu chama Metacum, situada além do Cabo Siagro, que é o de Rossalgate, contra o Estreito Párseo peró que ele a ponha em maior distância do que ela está do Cabo, que será de até oito léguas. Per detrás da qual ao longo da costa vai correndo υa corda de serrania, que quási parece que quere empedir que os moradores ao longo do mar se não comuniquem com os do sertão, somente per υas abertas que em algυas partes esta serrania faz, per onde se servem ao modo dos nossos Alpes. Υa das quais abertas ou passos está na frontaria desta vila Calaiate, per onde se serve do mar a maior parte da região, a que os arábios chamam Amane, que, segundo eles dizem, houve este nome de um neto de Loth, assi chamado, primeiro povoador dela, que descende deste nome name, que quere dizer entre eles abastança e fartura. A qual abastança a mesma terra tem em si, principalmente 103 em υa comarca, que será em torno de quorenta léguas, por razão da 33 qual fertelidade é a mais povoada terra de Arábia, porque nela há estas cidades: Maná, Nazuá, Bailá, todas cercadas de muro de taipa mui forte, e os termos delas tam povoadas, que em υas se ouvem as outras; e há lugar destes tam grande, que contém dez mil vezinhos, assi como Zaqui e outros. Estas três cidades notáveis (segundo dizem os mouros), cada υa teve já rei per si, e por causa das tiranias deles os povos se levantaram, e ora se governam per os mais velhos em modo de repúbrica; porém entre elas há sempre divisão sobre quem será a metrópoli de toda a comarca, principalmente Bailá com as outras que as quere senhorear, por nela estar um dos principais religiosos da sua seita, a que eles chamam Imamo , a cujo juízo e jurdição concorrem todalas demandas e contendas que há em toda aquela região Amane, ao qual eles pagam o dízimo de quanto lhes Deus dá, até das jóias que o marido cada ano dá a sua mulher, e as púbricas do que ganham per seus corpos. E parece que aqui ajuntou Mahamede toda a sua escola pola grande cópia que há de

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letrados no seu Alcorão. E o que faz a estas cidades às vezes conformarem-se em paz, é serem cometidos per υas cabildas de alarves da linhagem a que eles chamam Bengebra, que é das mais poderosas de toda a terra de Arábia, porque conquista perto de trezentas léguas em redondo. Os quais alarves, no tempo da novidade das tâmaras e dos outros mantimentos da terra, os vem inquietar; e por não receberem tal opressão, este seu Imamo dos dízimos que há, per concerto, paga a este Bengebra um tanto por ano. E por razão da vezinhança que Calaiate tem com esta comarca, que distará dela obra de sessenta léguas dentro pelo sertão, ante da nossa entrada na Índia, era um dos mais nobres e ricos lugares per comércio de toda 106 aquela costa, e o mais principal do reino de Ormuz, como ainda agora é. Porque aqui concorriam todolos cavalos, não somente da fralda da serra que dissemos, mas ainda da cidade Laça, que vai vezinhar com Catife, porto do Mar Párseo, defronte da Ilha Baharém, que são os melhores de toda Arábia. Os quais concorriam a esta comarca Amane por ser a ela vezinha, e onde se ajuntavam como em feira todalas mercadorias, assi as da saída, como da entrada em Arábia; e a maior parte delas vinham ter a este Calaiate, onde era a carregação pera a Índia. E posto que Afonso de Albuquerque naquele tempo não soube tam particularmente da grossura do trato deste lugar Calaiate, como ora sabemos, por estar debaixo da nossa obediência, todavia per mouros tinha sabido ser lugar bem povoado de muita gente nobre, e que havia de ser cousa trabalhosa cometê-lo por a pouca gente que levava, o que também pôs dúvida aos capitães. Contudo, por não 104 mostrar fraqueza aos mouros, assentou com os capitães de cometer o lugar por as rezões que dissemos, e isto per modo de ardil, e depois o negócio mostraria caminho pera o mais; e o ardil foi este: Em as naus descobrindo o Cabo Rossalgate, mandou que fossem um pouco manquejando com υa vela tomada, como que esperavam υas pelas outras, e que detrás vinha ainda mais frota, com que se queriam ajuntar; e D. António de Noronha, seu sobrinho, que ia diante na fusta de Nuno Vaz, como quem queria tomar fala, tanto que fosse junto da vila, demandasse o porto, vindo as naus um pouco afastadas dele. E assi se fez. Os mouros, tanto que viram que a fusta encaminhava ao porto, como que queria dar algum recado, por não ter azo de vir a ribeira, mandaram um mouro honrado em um barco a ela, o qual, chegando a D. António, perguntou que frota era aquela; e foi-lhe respondido ser del-Rei de Portugal, que vinha em busca de outra armada sua, que andava per aquela costa, de que era capitão Afonso de Albuquerque, do qual acharam nova em Socotorá que estava fazendo υa fortaleza em Ormuz. E porquanto o capitão daquela frota não levava piloto que soubesse da navegação daquele Estreito, o mandava em terra a saber do senhor ou governador dela se lhe dariam ali algum piloto por seus dinheiros, que os quisesse meter em Ormuz, onde estava o capitão que buscavam. O mouro, posto que, quando chegou à fusta, vinha com presunção que aquele era Afonso de Albuquerque, porque o dia de antes fora visto do Cabo Rossalgate, com que a vila começou a se despejar de 33v algυa gente meúda, com estas perguntas ficou embaraçado, ainda que contente, e pelo recado que trazia dos da vila, disse que o levassem à nau ao Capitão-mor, e que lá daria razão do que lhe perguntavam, porque também levava ali um presente, que lhe o governador da cidade mandava, por suspeitar na feição das naus, que devia ser capitão del-Rei de Portugal. Este presente tam prestes que o mouro ofereceu, tudo era artefício pera com ele entrar em a nau e ver a soma da gente, e como vinham providos, porque per dito dos mouros de 107 Ormuz tinham sabido que Afonso de Albuquerque em as naus com que chegou ao seu porto, levava pouco mais de quinhentos homens; quanto menos seriam em duas naus e dous navios que então

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levava, se aquele fosse. Levado este mouro à nau, entrando dentro, viu toda a gente posta em armas e um homem assentado em υa cadeira de espaldas, posta sobre υa alcatifa com grande aparato, e rodeado de gente luzida, como que aquele era o Capitão-mor da frota, de que ficou mui espantado, quando viu este capitão que era homem mancebo, e ele levava os olhos cheos da presença de Afonso de Albuquerque, que vira quando per ali passou; que além da sua idade lhe dar gravidade com a alvura de suas cans, costumava ele trazê-la mui comprida, e parecia-lhe ao mouro que 105 todolos capitães haviam de ser daquela presença. Francisco de Távora, que era o assentado naquela cadeira, representador daquele artefício de Afonso de Albuquerque, tanto que o mouro foi trazido ante ele, começou de lhe perguntar como se chamava aquela vila, e cuja era, e se tinha nova de um capitão del-Rei de Portugal, que andava per aquela costa, e outras cousas, em que o foi entretendo, té que Afonso de Albuquerque saiu de dentro da câmara da nau, vestido um peloto curto de seda de cor, e υas calças de escarlata com sapatos redondos baixos, metidos os pés em uns pantufos de veludo, e sobre si υa capa lombarda de cetim alaranjado, forrada de outro pardo, e na cabeça υa coifa de ouro, e em cima υa gorra de veludo preto com υa estampa, e um estoque guarnecido de ouro cingido. O mouro, quando sentiu o afastar da gente e viu que era a pessoa de Afonso de Albuquerque, e conheceu ser aquele o verdadeiro capitão e que o outro era estátua que lhe mostraram, remeteu a ele, lançando-se aos seus pés. Afonso de Albuquerque, peró que negava ser aquele, tornou beninamente com palavras a lhe perguntar pola vila e estado dela; e apartando-se com ele, meudamente soube o que queria pera se ordenar na saída, e sobre isso consolou o mouro, dizendo que ele e sua casa não haviam de receber dano, e que pera isso posesse υa bandeira branca à sua porta, e porém que ele havia de ir na segunda batelada da gente. E assi se fez. E como o ardil todo estava em a primeira vista que dessem ser com a espada na mão, sem mais prática, por já ter sabido pelo mouro quam apercebida a vila estava, ainda as naus não eram de todo ancoradas, quando a gente de armas era metida nos batéis, e foi a cousa tam despachadamente feita, que, poendo os pés em terra, foram senhores da vila. Porque com aquele sobressalto ficaram os mouros tam turvados, que o primeiro conselho que teveram, ante que sentissem o ferro em suas carnes, foi despejá-la; e alguns que lá per dentro das ruas quiseram fazer rostro aos nossos, à custa de seu dano levaram o caminho dos outros; e parte deles ficaram estirados no lugar que quiseram defender. Finalmente, sem muito trabalho, os nossos ficaram senhores da vila, 108 onde acharam muitos mantimentos, que pera a fome que todos levavam foi o melhor despojo que podiam haver e mais desejado deles; ca o outro de alfaias e mercadoria de preço, os mouros em os dous dias que houveram vista das naus as tinham posto em salvo. Afonso de Albuquerque, por dar espaço a se recolherem os mantimentos, leixou-se estar na vila três dias; e como vinha a noite, porque os mouros da banda da terra firme per onde o muro era quebrado vinham dar rebate em os nossos, tinha repartido a vegia daquela parte em ordem que a sua vinda fazia pouco dano, e contudo υa ante-menhã meteram os nossos em mui grande trabalho, porque obra de 106 mil deles, de noite, se meteram dentro na cidade per aquelas quebradas do muro, e vieram-se lançar em cilada dentro em υas casas. E ante-menhã, que viram a nossa gente descuidada da vigia da noite, deram sobre ela na parte da capitania de Martim Coelho e de Diogo de Melo, e assi os meteram em revolta, que começaram a receber muito dano; porque Afonso de Albuquerque, 34 como se agasalhava de noite em υa mesquita, e vindo a luz da menhã, acudia logo abaixo à ribeira, e este rebate era no cabo da cidade mui longe dele, traziam os mouros mui apressados a estes dous

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capitães; porque, como a gente estava quebrantada da vigia, enquanto a fúria os não acendeu, andavam frios na defensão, té que, com a vinda de Dom António de Noronha, D. Jerónimo de Lima, Manuel de Lacerda, Jorge da Silveira e de outros fidalgos e cavaleiros, que se acharam mais perto destas duas estâncias, os mouros receberam tanto dano, que começaram de se ir retraendo pelos lugares per onde vieram; no fim do qual feito acudiu Afonso de Albuquerque, que acabou de rematar a vitória. A qual foi tam honrada com morte de muitos mouros, que ela pode ficar em lugar da fúria, que houvera de haver na entrada da vila, se eles pelejaram tam valentemente pola defender, como fizeram no cometer este ardil. E porque muitos dos nossos fizeram ali honradamente de sua pessoa, deteve-se Afonso de Albuquerque em os armar cavaleiros aquela menhã; e quando veo a outro dia, estava já a vila tam escorchada dos mantimentos, que não houve mais que fazer nela que poer-lhe o fogo, principalmente à mesquita, onde Afonso de Albuquerque se agasalhou o tempo que ali esteve. Andando o fogo na qual per υa parte, e certos bombardeiros decepando uns esteos de madeira per outra, parece que o fogo lavrou mais prestes na sua parte que o machado dos bombardeiros, com que o edefício carregou todo sobre o que eles tinham decepado, e se veo abaixo, ficando três deles metidos em parte que não receberam nenhum dano. Acabado este feito, que foi a vinte e cinco de Agosto, partiu-se Afonso de Albuquerque com prepósito de ir fazer aguada a um lugar pequeno dali perto, chamado Teuí por ter melhores águas que Calaiate: peró, quando 109 chegou a ele pera tomar esta água, eram já li vindos tantos mouros de Calaiate a lha defender, que custou sangue de alguns dos nossos, e contudo com maior dano de mouros a aguada foi feita. Partido daqui Afonso de Albuquerque, sem fazer demora em outra parte, chegou a Ormuz a treze de Setembro, mandando logo recado a el-Rei e a Coge Atar, que ele era tornado àquela cidade a duas cousas: a primeira saber se estavam pelo contrato que tinham feito; e a segunda a fazer a casa da fortaleza, que leixara começada. Ao que el-Rei respondeu que, quanto aos quinze mil xerafis que ele ficara de pagar a el-Rei de Portugal, como tributário que era, que de mui boa vontade os 107 pagaria, e que sem ele, Capitão-mor, vir a isso, per qualquer pequeno navio que mandasse ele os mandaria; porém fazer fortaleza nem casa, isto não havia de consentir. Porque, se com as primeiras pedras que nela poseram houve logo entre eles descórdia, que custou vida de tanta gente por causa de três ou quatro homens vis que fugiram deles que seria estando ali casa com portugueses? que com o primeiro nojo que houvessem do capitão ou travessura que fizessem a seu companheiro, haviam de querer fugir pera os mouros, donde podia suceder outro tal trabalho. Afonso de Albuquerque, peró que respondeu a este recado del-Rei como convinha, ensistiram ambos tanto neste ponto da fortaleza, que tornaram a se desavir, e ficar no estado da guerra em que antes estavam, com que Afonso de Albuquerque mandou logo a Martim Coelho, que com o seu navio se posesse na ponta da ilha chamada Turumbaca, onde estavam os poços, e a Diogo de Melo na outra ponta, que está contra a Ilha Quêixome, e ele com Francisco de Távora ficou diante da cidade um pouco largo dela. Porque, como Coge Atar esperava esta tornada de Afonso de Albuquerque, enquanto ele invernou em Socotorá, mandou acabar a torre que tinha começada e pô-la em dous sobrados, e todalas ruas que vinham abocar na ribeira tapar, de maneira que per esta parte ficou a cidade quási cercada de muro; e além desta fortaleza fez também per toda aquela frontaria υa tranqueira de madeira entulhada per dentro, e nos lugares de suspeita muitas peças de artelharia, algυas das quais fundiram os arrenegados sobre que foi o rompimento. Afonso de Albuquerque, vista a fortaleza da cidade, bem lhe pareceu que não podia fazer mais dano que tolher não lhe virem mantimentos, e (como dissemos) ordenou os capitães dos navios a este fim, e assi outros quatro em batéis, que eram: D. Jerónimo de Lima, Manuel de Lacerda, Jorge da Silveira e António de Sá, no qual modo de guerra eles tinham mais trabalho do que o davam à cidade, por ela estar mui provida de todalas cousas, como quem sabia 34v

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que este era o maior dano que lhe podiam fazer. E além deste provimento, per todalas ilhas e lugares de ambas aquelas costas de seu estado, tinha Coge Atar ordenado uns barcos pequenos, chamados terradas repartidas em tal ordem, que de cada lugar seu dia trouxessem 110 água e mantimentos pera a cidade. Os quais eram barcos sutis que com vela e remo se ajudavam quando era necessário. E posto que os capitães às vezes os viam tomar a ilha, ora per υa parte, ora per outra, não lhe podiam fazer dano, ca lhe furtavam tantas voltas, que andavam os marinheiros cansados de marear as velas e remar os batéis. No qual tempo o mais dano que lhe fizeram foi tomar Jorge da Silveira υa terrada carregada com fructa, e esteve ali à fala com um dos arrenegados, que foram causa de toda a 108 desavença, e todas suas palavras eram conformes a consciência que ele então tinha. E Nuno Vaz de Castelo Branco, estando em guarda dos poços, tomou também outras duas terradas com mantimento de tâmaras e algυa gente que se não pôde acolher, entre a qual tomou um mancebo dos nobres da terra, homem mui aceito a el-Rei. Havendo já um mês que per este modo de cerco andavam os nossos volta ao mar e à terra da ilha, determinou Afonso de Albuquerque ir a terra firme de Mogostão, a um lugar chamado Nabande, onde as terradas de Ormuz iam fazer sua aguada, o qual ele tinha mandado espiar per seu sobrinho D. António, por lhe dizerem que estava ali um capitão del-Rei de Ormuz com gente de guarnição. Partido a este negócio de noite, ele no bargantim, D. António de Noronha no batel da capitaina e os capitães em os seus, em que levou cento quorenta homens, chegou lá ante menhã; e como os mouros vigiavam sua ida, vieram recebê-los junto de υa mesquita, onde tinham feito uns valos tam retorcidos e cruzados uns per outros, que parecia um laberinto de embaraçar os nossos, e fazerem seus arremessos de cima dos valos, como fizeram. Porque, entrando Afonso de Albuquerque per este caminho um pouco temporão, sem esperar pelos outros capitães, saíram a ele os mouros detrás dos valos, como quem jazia em cilada, e começaram de cima a frechar e pregar zargunchos em os nossos que iam em fio, com que logo na entrada ficaram dez ou doze encravados, que os deteve um pouco. E este dano que receberam, logo na entrada lhe foi proveitoso, porque causou esperar pelos outros capitães; e se fora mais adiante per aquele laberinto, perderam-se todos. Porém postos em um corpo com a luz da menhã, que começava a dar claridade, viram que tal era o caminho com que chegaram a υas casas pegadas na mesquita, levando já os mouros diante, apesar de seu dano, té um peitoril que se fazia a maneira de terreiro soberbo sobre a praia, onde acudiram tantos deles, cruzados per entre aquelas casas e mesquita, que embaraçou os nossos com muita frechada, pedrada e zargunchos, de que se não podiam valer. Onde foi a peleja tam travada, que se chegou um mouro a Afonso de Albuquerque, e deu-lhe per cima do capacete 111 um golpe tam pesado, que ficou agiolhado em terra meio atordoado, e a Nuno Vaz, que andava junto dele, quebraram dous dentes; e segundo a gente dos mouros era muita e eles sabiam os passos da terra, e a luz do dia não era mui clara pera que os nossos o vissem e descobrissem de todo, esta ida houvera de custar a vida de muitos. Porque Afonso de Albuquerque veo àquele lugar com ter aviso per seu sobrinho D. António do número da gente que ali estava, e não sabia que aquela tarde do dia passado era chegado um capitão del-Rei de Lara com trezentos frecheiros, que causou serem os 109 nossos metidos em tanto perigo. Mas como os da morte ensinam a defender a vida, Afonso de Albuquerque no em que estava quando agiolhou, foi socorrido com ajuda de outra gente nossa, que ainda não era vinda dos batéis, e assi animosamente se meteram com os mouros, que os fizeram trás montar, acolhendo-se per entre as casas do lugar e per os valos que tinham feito no lugar dos poços. Finalmente, uns em υa parte e outros per outra, pereceram debaixo do nosso ferro, e nesta peleja um Lopo Álvares matou um dos capitães da gente del-Rei de Lara, que ali era vindo, e outro

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morreu na mesquita onde alguns se acolheram, a qual per fim da vitória com o lugar foi metida no poder do fogo. Porém, primeiro que o lugar ardesse, foi recolhido todo o mantimento de υa cáfila, que o dia de antes chegara ali pera provisão de Ormuz, e deste lugar trouxe Afonso de Albuquerque um marido e mulher, pessoas de muita idade, que quási se ofereceram 35 a ele vindo já de caminho, pelos quais soube parte da gente del-Rei de Lara e da cáfila, e per eles, chegando a Ormuz, mandou nova a el-Rei do que leixava feito em Nabande. E de quanto prazer ele, Afonso de Albuquerque, houve com esta vitória, tanto sentimento teve com a morte de Diogo de Melo, capitão do navio S. João, que os mouros mataram com oito homens di a poucos dias em a Ilha de Lara, indo a ela com um batel pera fazer um salto; e a suspeita de sua morte foi que seria per alguns mouros de quorenta terradas, que per ali andavam às voltas, em favor de outras que traziam mantimentos a Ormuz, porque acharam os corpos dos oito homens mortos na praia de Lara, e não o de Diogo de Melo. E havendo oito dias que isto passara, porque Afonso de Albuquerque soube que em Quêixome era chegada υa frota de navio e terradas, foi em busca delas, e como eram navios de vela e remos, e em tudo precediam os nossos, não lhe podiam fazer dano, andando uns em caça de outros, té que um tempo sobreveo que apartou a todos, com que Afonso de Albuquerque arribou ao Cabo Moçandão, e Francisco de Távora ficou abrigado à Ilha de Ormuz. Abonançando o tempo e parecendo-lhe que Afonso de Albuquerque saíra pela boca do Estreito, foi em busca dele ao longo da costa da Arábia; porém tanto que achou nova não ser passado, andou-se ali detendo, té que lhe veo cair na mão υa nau grossa de Meca, que tomou de presa polo trabalho que ali levou, e com ela se foi caminho da Índia. Afonso de Albuquerque, 112 como se viu só, fez outro tanto, assi em se partir, como em outra presa, a qual ainda que em casco era pequena, em preço foi maior; porque, abocando o Estreito pera fora, ao longo da terra da Pérsia, tomou um navio pequeno, que vinha da Ilha Baharém, que não trazia outra mercadoria, senão perlas e aljofre. E porque fez menos detença em andar pela costa, como Francisco de Távora andou, foi primeiro 110 à Índia, estando o Viso-Rei D. Francisco em Cananor, onde lhe fez os requerimentos da entrega da governança da Índia, que neste capítulo precedente dissemos, e Francisco de Távora foi depois dar com o Viso-Rei à saída de Cananor, indo já via de Dio, como se verá neste seguinte capítulo.

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110 35 112 Capítulo III. Como o Viso-Rei D. Francisco de Almeida partiu de Cananor com toda sua armada caminho de Dio contra os rumes, e o que fez té chegar a Dabul. O Viso-Rei D. Francisco de Almeida, depois que espediu Afonso de Albuquerque pera Cochi, e Fernão Soares e Rui da Cunha com a carga da especearia pera este reino, onde eles não chegaram por se perderem na viagem, despachou também a Pero Fernandes Tinoco pera el-Rei de Narsinga, gentio, em cuja companhia ia um religioso per nome Fr. Luís, que já lá andara, e era aquele que viera ter a Cananor, quando os embaixadores deste príncipe vieram a ele, Viso-Rei. Ao qual Pero Fernandes ele mandava sobre alguns requerimentos de confederação de irmandade em armas, que este Rei de Narsinga desejava ter com el-Rei D. Manuel pera destruição dos mouros, com quem ambos tinham guerra, e assi sobre lhe oferecer a cidade Baticalá e outros portos de mar vezinhos a ela que eram seus. E porque nesta ida Pero Fernandes não fez cousa de mais sustância que assentar chãmente pazes e amizade com este Rei e adiante havemos de tratar mais dele, pera esse lugar leixamos a relação da grandeza de seu reino, potência e riqueza de seu estado. Acabadas estas cousas, e assi o provimento da guarda da costa e fortaleza de Cananor, partiu o Viso-Rei caminho de Dio em busca de Mir Hocém, a doze de Dezembro do ano de quinhentos e oito. E posto que à saída dele não foi com tantas velas, depois que com ele se ajuntou Pero Barreto de Magalhães, com armada que trazia na costa Malabar, e Francisco de Távora, que o tomou no caminho, vindo de Ormuz, fez ele, Viso-Rei, um corpo de dezanove velas, de que seis eram naus grossas, e seis navios redondos e cinco caravelas latinas, e duas galés e um bargantim. Da qual frota 113 eram capitães assi na ordem das velas, Jorge 35v de Melo Pereira, Pero Barreto de Magalhães, Francisco de Távora, Garcia de Sousa, João da Nova, em cuja nau ia o Viso-Rei, Manuel Teles Barreto, Afonso Lopes da Costa, António do Campo, D. António de Noronha, Martim Coelho, Pero Cão, Filipe Rodrigues, Rui Soares, o Comendador de Rodes, Álvaro Paçanha, Luís Preto, Paio de Sousa, Diogo Pires e Simão Martins. Em a qual frota levava até mil e duzentos homens, entre gente de armas e do mar, e obra de quatrocentos malabares e escravos desta 111 gente, que no tempo de aferrar ministravam a seus senhores com ajuda de algυa cousa, como se costuma naquelas partes. O Samori de Calecute, em todo o tempo que o Viso-Rei proveo no aparato desta frota, sempre em Cochi e Cananor trouxe homens que o avisavam disso; e, segundo o que sabia, assi enviava per navios ligeiros de remo recados a Mir Hocém, como a homem que era vindo a instância sua àquelas partes pera nos lançar da Índia, e que tinha dado muita esperança de si no feito de Chaúl. Em ajuda do qual tinha mandado aperceber navios de remo com gente frecheira e algυa artelharia meúda, os quais estavam metidos per esses rios do seu reino, esperando que passasse o Viso-Rei com sua frota pera os enviar nas costas dele, porque ante de sua passagem, posto que o quisera fazer, Pero Barreto, que andava de armada naquela costa, lho empedia. Porque também o Viso-Rei era avisado desta armada do Samori, e afim de lha empedir que não saísse, com as mais causas que atrás apontámos, tinha mandado a Pero Barreto que andasse naquela paragem; e ainda tanto que o Viso-Rei passou via de Dio por causa deste empedimento, leixou ali três ou quatro navios, capitães Gonçalo de Castro, Diogo Lobo e outros, sem embargo dos quais a armada do Samori não leixou de ir dar sua ajuda, como veremos.

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Finalmente, cada um em seu modo tinha inteligência e vigia sobre seu imigo, das quais cousas procedeu serem Mir Hocém e Melique-Iaz avisados do número das naus e gente que o Viso-Rei levava, e eram entre o Samori e estes dous capitães os recados tam a meúdo per catures e bargantins, que não dava ele, Viso-Rei, passo que eles não soubessem, principalmente depois que partiu de Cananor. E ainda era Melique-Iaz tam cauteloso e sagaz, que, não se contentando destes recados per novas de ouvida de terceiras pessoas, com simulação de mandar visitar o Viso-Rei e de lhe enviar cartas dos cativos que lá estavam, enviou a ele um mouro honrado e prudente, que soubesse notar as cousas do aparato que levava, o qual chegou a Anchediva em um zambuco, a tempo que o Viso-Rei estava ali fazendo sua aguada. A sustância do qual recado e cartas era visitação e ofertas pera a liberdade dos cativos; e que por saber deles que desejavam escrever a Sua 114 Senhoria, mandara aquele zambuco, em que lhe podia vir a reposta que eles esperavam. E na carta dos cativos se continha quam bom tratamento recebiam dele, Melique-Iaz, que lhe pediam assentasse o modo de sua soltura; ca ele mostrava em palavra e obras que levemente e a pouco custo o faria, e que em favor deles acharam lá um mouro torto de um olho, per nome Cide Alé, natural de Baça, no reino de Grada, donde tinha por apelido Baci, o qual dezia conhecer Sua Senhoria do tempo que el-Rei D. Fernando de Castela fazia guerra àquele reino de Grada. O qual Cide Alé, entre as práticas 112 que tinha com os mouros de Cambaia, louvava muito os portugueses; porque no tempo em que ele vira Sua Senhoria naquela guerra, andavam lá alguns, que eram mui estimados por sua pessoa; e que com a gente português mais se devia trabalhar de os ter contentes que ofendidos; e assi contava a guerra que tinham com os mouros de África e os lugares que lhe tinham tomados. As quais cartas parece serem ordenadas per Deus virem naquele tempo, porque animaram tanto a gente, que desejavam todos de se ver já com os mouros, pera fazerem naquele feito verdadeiro Cide Alé, o qual depois foi grande familiar nosso, sempre com cautelas de malecioso que ele era. E a reposta que este messageiro, ou mais verdadeiramente espia de Melique-Iaz, houve, foi escrever-lhe o Viso-Rei agradecimentos de sua vesitação e de bom tratamento que lhe os portugueses escreviam receberem dele; e porque ele estava em caminho pera de mais perto lhe dar as graças de tudo, podia dar nova aos seus hóspedes os rumes desta sua ida, pera se aperceberem entretanto pera estas vistas que todos haviam de ter, e então na envolta dos mortos podia entrar o concerto dos cativos, porque 36 seria mais breve e de mais certa conclusão, do que podiam ter per recados de longe. O Viso-Rei, espedido o mouro de Melique-Iaz com este recado e mercê que lhe fez, vendo o contentamento que toda a gente tinha pela nova que os cativos escreviam da opinião em que os portugueses eram tidos acerca dos mouros, e também por entender que todas aquelas ofertas de Melique-Iaz eram sinais de temor da hora em que lhe havia de ser pedido conta daquela hospedaria de Mir Hocém, apercebeu todolos capitães e gente nobre da frota, e foi-se com eles ao tanque que tinha a Ilha de Anchediva, por ser lugar gracioso e espaçoso pera geralmente dar conta a todos da causa daquela ida sua, e propor-lhe algυas cousas que convinham a seu propósito. Chegados ao qual lugar, e postos em ordem que o podiam bem ouvir, começou de lhe fazer este arrazoamento: - Depois que aprouve a Nosso Senhor levar desta vida a D. Lourenço, meu filho, duas cousas me perseguem, que por parte da humanidade são comυas aos homens, que querem fazer razão e justiça de si: υa requere a lei natural do amor paterno que devo a meu filho, que é desejar de me ver com ele lá onde está; e a outra pede o espírito da honra, que per modo de justiça deseja de se restituir na posse em que estava. Ver meu filho, em caminho 115 estou; que se aprouver a Nosso Senhor que o eu siga no género de sua morte, grande glória será pera mim morrermos ambos por nossa lei, por nosso Rei e por nossa grei, que são as mais justas e

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gloriosas causas de morrer que alguém pode desejar. Porque a lei dá glória de martírio; o Rei prémio de honra e galardão em fazenda àqueles que nos sucedem na herança; e a grei, que é a congregação dos nossos parentes, amigos e 113 compatriotas, a que chamamos república, celebra nosso nome de geração em geração té fim do Mundo, onde a memória de todalas cousas acaba. - Restituir-me eu em honra, desta por minha própria e particular parte não tenho algυa perdida; mas da muita que vós-outros, senhores, parentes e amigos, nestas partes tendes ganhado com a espada, com a lança e com o ânimo, que é mais poderoso que todolos ferros, a mim por andar em vossa companhia me cabe tanta, que a não mereço eu ante Deus, posto que per amor, parentesco e obrigação do cargo que tenho a mereça a cada um de vós. Porém, quanto à parte de tam devida e alta honra, como se deve às insígnias que todos seguimos e debaixo do favor das quais pelejamos, que são as bandeiras da melícia de Cristo Nosso Redentor e reais armas da Coroa de Portugal, esta me persegue, esta me atormenta e me acusa dentro no meu peito com estímulos de justa vingança, vendo com quanta negligência minha se passa o tempo sem acudir a esta nova e soberba gente dos rumes, confiados na potência do seu Soldão e nas ofertas de quem os chama. Os quais em nossa face ousaram despregar e estender suas lυas, e nome escrito do seu ante-cristo Mahamede em suas bandeiras, em desprezo da nossa Religião Cristã e do nome português tam celebrado per todo o Mundo, a quem Deus deu este particular dom sobre todalas outras nações, defensores da Fé e leais ao serviço de seu Rei, as quais partes nós professamos nas duas insígnias que seguimos. - Por retribuição da qual obra em todalas idades, em todolos tempos e em todalas partes da Europa, África e agora nestas de Ásia, que descobrimos e conquistámos, nos tem dado mui ilustres vitórias desta bárbara e pérfida gente. E posto que ao presente eles estém gloriosos na morte de meu filho, esta não se deve a seu esforço, mas ao desastre que todos sabeis, ou (por melhor dizer) a meus pecados, e não ao desfalecimento do ânimo daqueles que o acompanharam naquele perigo. E se a culpa do meu pecado o matou e a sua morte foi causa de nos todos ajuntarmos pera ir apagar esta faísca infernal, que se quere acender nesta terra per nós ganhada, bem-aventurada seja a minha culpa, que mereceu tal ajuntamento, tal vontade, tal amor e tal fervor de vingança, como vejo em todos, pera ir pugnar pela honra de seu Deus, de seu Rei e de seu nome, e finalmente pera ir derramar o sangue daqueles que derramaram o vosso e dos vossos per parentesco, per natureza e per congregação de Fé. - E é verdade - e Deus é testemunha dela - que, se no instante em que soube ser esta gente entrada, logo não acudi com a espada na mão do zelo que se deve à honra de Deus, eu leixei de o fazer, temendo que se dissesse 116 que obrava mais em mim a dor de minha própria chaga, que as abertas e por curar daqueles que naquele conflito e trabalho por sua cavalaria e defensão 114 de sua 36v causa as receberam; e que, sem ter consideração dos apercebimentos e tempo que se requere pera estas cousas (a qual convém aos homens que tem este meu cargo), somente com o ímpeto da primeira dor da nova que houve da morte de meu filho, vos queria ir oferecer no lugar do seu sacrifício. - Assi que, fugindo infâmia de piedoso pai acerca dos homens, ante Deus tenho encorrido em culpa de negligente, pois nas cousas de sua honra quis tomar cautela de esperar saúde de gente, cópia de armas, de naus e munições, sendo o seu favor todalas cousas àqueles que por ele melitam. - Peró como nós-outros, os homens, que somos fracos, acerca da honra tememos mais a língua do Mundo, que a mão de Deus, que é piedosa nos tais castigos, dissimulei té ora esta obra que imos fazer, em que, louvado ele, além de o termos, temos já naus, temos armas, grande cópia de munições, e, sobretudo, temos por companheiros esta fidalguia e nobreza de gente, que ora vem

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fresca do reino; e o que eu mais estimo é que cada um tem a si mesmo com vivo desejo pera totalmente apagar este nome de rumes da boca dos mouros e gentio da Índia, com que nos querem afrontar. - Assi que, neste caso, por parte de favor de Deus e da glória que a cada um de nós compete no cometimento deste feito, eu não tenho mais que dizer; somente que minha tenção é, de caminho (se a todos bem parecer), dar um almorço a esta gente manceba que ora vem fresca do reino, pera levarem suas espadas cevadas do sangue destes mouros de Ásia, pois em os de África, que tem por vezinha, que é a escola de sua esgrima e leite de sua criação, sempre andam cevadas. - E este almorço queria que fosse em a cidade Dabul, que é do Sabaio, senhor de Goa, por ele mandar sobre a fortaleza que tevemos nesta Ilha Anchediva, que por seu caso se desfez, e também por ele ser um daqueles que chamaram os rumes, e lhe dão acolheita em seus portos. E é verdade que eu nesta sua cidade de Goa, que aqui temos por vezinha, quisera sair; mas duas causas me moveram a ser ante em Dabul que aqui: a primeira, porque, pela informação que tenho, a cidade está metida muito dentro pelo rio, e ele não tem fundo pera que nossas naus possam subir tanto acima; e a segunda, porque Dabul não tem este sítio tam trabalhoso de entrar, e mais é já tam vezinha donde estão os rumes, e de Melique-Iaz, seu hóspede, e Goa tam longe deles, que a vitória que nos Deus desse na tomada dela, não lhe quebraria tanto os corações, como será a de Dabul, por ser na face deles. Depois que embora tornarmos com vitória destes estrangeiros, que ora imos buscar, então com ajuda de Nosso Senhor tempo nos fica pera haver outras destes naturais que temos mais vezinhos. Acabando o Viso-Rei de propor estas cousas, assi como todos estavam em um quieto silêncio com a tenção de o ouvir, assi foi celebrado o seu arrazoamento em louvor daquele 115 feito, acrescentando ainda muito mais cousas, 117 assi no cometer os rumes dentro em Dio, como em dar primeiro na cidade Dabul; e no alvoroço que o Viso-Rei viu que todos geralmente mostravam, deu o feito por acabado. Alguns quiseram dizer depois que o Viso-Rei fez este arrazoamento àqueles capitães e notáveis pessoas da frota, que, quanto ao negócio de Goa, em que ele apuntou, sua tenção foi cometê-la per conselho de Timoja, com o qual ele se vira em Baticalá, passando per i pera recolher mantimentos, e também a requerimento do mesmo Timoja pera o favorecer com o senhor da terra por algυas paixões em que andavam; e que, pera satisfação sua, mandou dali de Anchediva a Diogo Pires na sua galé a sondar a barra de Goa; e, posto que achou poder entrar nela com toda a frota, encobriu a verdade, temendo que este feito lhe empedisse o dos rumes, que era seu principal intento; e polos assombrar, por o negócio ser feito quási na face deles, quis dar de passada em Dabul. Assi que, com este propósito, tanto que fez sua aguada ali em Anchediva, partiu fazendo seu caminho sempre ao longo da costa, té chegar à barra de Dabul, onde fez o que neste seguinte capítulo veremos.

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115 36v 117 Capítulo IV. Em que se descreve o sítio da cidade Dabul, e como o Viso-Rei deu nela, e totalmente a destruiu; e do que mais passou por não ter mantimentos pera sua jornada. 37 A cidade Dabul, ao tempo que o Viso-Rei D. Francisco de Almeida chegou a ela, era υa das mais populosas e magníficas povoações marítimas daquelas partes, assi por razão da grossura do trato das mercadorias que a ela concorriam, como pola sua comarca e sítio; porque estava situada per um rio acima, mui largo e de boa navegação, obra de duas léguas da barra, toda de casas nobres e edifícios os melhores da terra, na qual habitavam gentios e mouros de todas nações, e a comarca era mui vezinha ao reino Decão, e υa das principais escalas das mercadorias que tinham saída e entrada pera ele. A qual cidade naquele tempo era do Sabaio, o principal senhor deste reino, onde tinha posto um capitão com guarnição de gente, porque, como andava temorizado de lhe sobrevir esta necessidade, além da grossura do povo, tinha com a nova da nossa armada recolhido seis mil homens de peleja, e ao longo da povoação feito um repairo de mui grossa madeira, entulhado per dentro da terra que tirou de υa cava que ia da banda de fora, todo o 118 comprimento dele, cousa mais defensável contra a nossa artelharia que muro de pedra e cal. E da outra parte do rio, que era contra o Sul (porque a cidade ficava da banda do Norte), estava um baluarte em um cotovelo que 116 a terra fazia, do qual per força os navios que entrassem haviam de ser salvados com a artelharia que neles estava. E porque as naus que estavam no porto, defronte da cidade, não podessem receber dano das nossas, mandou o capitão despejar aquela frontaria pera a artelharia que estava na tranqueira varejar bem a ribeira, e elas que ficassem da banda de cima; e ainda quando soube que o Viso-Rei queria entrar no porto, mandou-as poer em ordem tam pegadas com a barba em terra, polo lugar ser ali alcantilado, que de υas se podia ir às outras a maneira de baluarte, fazendo fundamento que, quando as nossas passassem a fúria de sua artelharia, que estava em frontaria da ribeira, teriam ainda nelas outra força de não menos defensão. Com as quais forças e boa ordem, em que tinha posto a defensão da cidade, estava o capitão dela tam confiado, que, sabendo como alguns mercadores queriam poer sua fazenda em salvo, temendo a nova que tinha da nossa armada, mandou lançar grandes pregões, que, sob pena de perdimento dela, ninguém se movesse nem bolisse com os seus bagançais, que são como lógeas, ao longo da ribeira onde tinham recolhido suas mercadorias. E ainda pera maior segurança da gente, tendo sua mulher em υa quintã, a mandou vir pera a cidade, e fez com alguns homens principais que fizessem outro tanto, dizendo que as mandavam vir pera verem a armada dos frangues (que assi nos chamam eles), a qual havia de passar per ali, de maneira que, como quem vinha a υa festa, eram vindas à cidade muitas mulheres nobres, que estavam em suas quintãs. O Viso-Rei D. Francisco, que destes apercebimentos não era sabedor, chegando à barra do rio υa sexta-feira, vinte nove dias de Dezembro, por ser já tarde não entrou aquele dia; e quando veo ao outro com a viração e maré, mandou a Pero Barreto que, com os navios que trouxera de armada na costa, fosse diante e tomasse o pouso pegado com as naus que estavam no porto. Na esteira do qual ele foi, tendo assentado com os capitães que, posta toda a frota ante a cidade, a obra de segurar as naus ficasse aos marinheiros com o mais que lhe era encomendado, e eles com sua gente de armas naquele instante posessem o peito em terra; e porém que todos tivessem olho na bandeira real

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do seu batel, pera nenhum não tomar terra senão depois que a ele tomasse; ca, pela informação que tinha do sítio da cidade, o lugar da ribeira onde ele havia de sair era tam alcantilado, que sem muito trabalho, chegados os batéis a terra, a podiam tomar. Ao conselho do qual Deus quis tanto favorecer, que, passado o baluarte da entrada do rio com menos perigo do que se esperava, ainda as naus não eram bem surtas ante a cidade, quando os batéis eram cheos de gente apinhoada de alvoroço. E sem guardar muito a ordem que lhe o Viso-Rei deu, movidos com aquele fervor de quem levaria a honra de primeiro 117 tomar 119 terra, saltaram nela uns abaixo e outros acima, segundo a sorte que lhe coube; e do batel do Viso-Rei os primeiros dous que a tomaram, foram Fernão Peres de Andrade e João Gomes, de alcunha Cheira-dinheiro. Tomada esta terra, que estava entre a tranqueira e o mar, sem das nossas naus haver estrondo de artelharia, porque havia de varejar per cima das cabeças dos nossos, chegaram às tranqueiras sem 37v receber dano da artelharia, que tinham assentado nelas; porque, como ficou um pouco soberba sobre o entulho de terra, ia assoviando per cima das cabeças dos nossos e caía entre as naus. Os mouros, como viram que todolos nossos se enfiavam pera três serventias, que eles leixaram pera a ribeira, repartiram-se em três esquadrões, e vieram-nos receber àquelas três portas da tranqueira, onde se começou υa perfia mortal, uns defendendo e outros cometendo tam cruamente, que os corpos dos mortos faziam já mais pejo pera entrar, que a madeira que tinha por defensão. E porque o lugar onde os nossos estavam, por razão da cava, era mui estreito, e todos queriam ser primeiros, que causava uns empedirem aos outros, apartou o Viso-Rei um esquadrão daquela gente que pelejava, e mandou a Nuno Vaz Pereira que cometesse a entrada per outra parte, com que ela ficou mais desabafada da parte de fora, mas não de dentro, porque cada vez recrescia mais peso de gente. Pero Barreto, pela parte que lhe coube em repartição de seu trabalho, também trazia sua gente mui sangrada, porque, como andava no cabo da povoação, onde as naus dos mouros estavam surtas, ficou um pouco desemparado da força da nossa gente e metido em υa mui grande, que os mouros tinham posta em guarda delas. Finalmente, neste primeiro cometimento dos nossos, té chegarem à rotura dos mouros, assi foi o negócio tam cruamente ferido, té que o muito dano dos mouros os meteu em fugida, caminho de υa grande mesquita que estava em meio da cidade, cuidando salvar as vidas, onde tinham oferecido suas almas per oração ao Demónio, sem darem por palavras do seu capitão, que como cavaleiro os animava e às vezes adoestava, vendo o grande número deles que, tombando uns per cima dos outros, fugiam a dez homens dos nossos. E ainda muitos destes que se recolhiam à mesquita, assi como entravam per υa porta, vasavam logo per outra, não se havendo por muito seguros naquele lugar; e assi estes, como os outros, que os nossos achavam per as ruas da cidade, as quais já andavam cruzadas como em cousa vencida, todo seu intento deles era recolher-se a um monte, que estava sobre a cidade. Contudo o maior estrago que houve deles, foi na mesquita, e à própria porta de cada um, defendendo filhos e mulher, de cujos corpos as ruas ficaram juncadas, em que houve mais de mil e quinhentos, segundo se depois contaram, os mais deles moradores da cidade; 120 porque dos soldados vindos pera defensão 118 dela, houve mui poucos, e estes foram os primeros que se acolheram ao monte; e dos nossos morreram dezasseis, e feridos duzentos e vinte. Havida a vitória desta peleja, que durou das dez horas té as três depois do meio-dia, em que a cidade ficou em nosso poder, recolheu-se o Viso-Rei à grande mesquita, a qual fez casa de oração

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aceita a Deus no acto das graças que lhe todos deram daquela vitória, e assi casa de honra, com as que receberam aqueles que a quiseram tomar da mão do Viso-Rei em os armar cavaleiros, por este ser um dos honrados feitos, bem cometido e pelejado, que té ali se fez na Índia; ca tudo foi rosto a rosto, lança por lança, espada por espada, sem uns nem outros se servirem muito da artelharia que tinham. E porque era já tarde e ficaram tam cansados que o resto do dia lhe era necessário pera tomar repouso, assentou o Viso-Rei que o comer e dormir aquela noite fosse naquele lugar da vitória, sem se recolher às naus, por a mais solenizar, e mostrar aos imigos, que estavam recolhidos no monte, em quam pouca conta os tinha, e ao outro dia soltar a cidade à gente de armas pera tomarem υa cevadura no despojo, pois já tinha a da espada, como lhe ele dissera na fala que fez em Anchediva. E por causa dos rebates que aquela noite podiam ter dos mouros recolhidos ao monte, repartiu a guarda dela per os capitães, os quais tomaram as entradas das ruas, que trancaram com madeira, mandando ali trazer alguns berços da artelharia. Jorge de Melo Pereira, capitão da nau Belém, como levava da mais escolhida gente da frota, mandou-lhe o Viso-Rei que tomasse a estância que ficava ao sob-pé do monte onde se os mouros recolheram, que lhe foi mui trabalhosa de guardar; porque, como muitos deles, poucos e poucos, cometiam aquela entrada, uns a buscar mulheres e filhos, que lhe ficavam escondidos pelas casas, outros a salvar o que não poderam levar consigo, e outros a roubar o alheo, toda a noite a mais da sua gente esteve em pé com a espada na mão, té que a menhã os tirou deste trabalho e o Viso-Rei os meteu em outro, de que eles teveram mais sabor, dando-lhe licença pera esbulhar a cidade. Na qual obra andando todos ocupados, se pôs fogo em 38 υas casas no cabo da cidade, da banda de Leste; e foi cousa maravilhosa, porque assi lavrou em breve, que, quando o Viso-Rei se tirou da mesquita e se veo pôr ao longo da ribeira, onde o lugar era mais desabafado, já não podiam sofrer a fumaça e ardor do fogo; porque, como as mais das casas eram cobertas de ola, qualquer faísca que saltava da fúria do estralar da madeira, logo a casa vezinha era posta em labareda. Finalmente, quando veo ao meio-dia, o sítio da cidade não era povoação, mas um pouco de borralho e cinza, onde dizem que morreu grande número de gente; ca naquele pouco que os nossos andaram no roubo, achavam muita escondida pelas casas. E foi tamanho o 119 dano, que per muito tempo os mouros lamentaram 121 aquela destruição. Porque, como o capitão da cidade tinha posto grandes penas ao despejo dela, quando foi entrada, cada um teve mais cuidado na salvação da pessoa, que da fazenda. E sobretudo o Viso-Rei mandou de noite ter tal vegia, que aqueles que de noite tornavam a suas casas, por salvar algυa cousa, encorriam em perigo de morte; de maneira que eles perderam tudo e os nossos aproveitaram mui pouco; somente dos bagançais que estavam ao longo da água e das naus que tinham algυa fazenda, foi o mais que houveram daquele despojo, que dizem ser estimado em cento e cinquenta mil cruzados. Alguns quiseram dizer que o autor deste fogo foi o mesmo Viso-Rei, mandando ao Comendador Rui Soares que o posesse, temendo que, com a detença e desordem que os homens tem nestes autos de saquear, sobreviessem os mouros do monte, que removessem a vitória, que tinham havida com algum desmancho. E pelo mesmo modo se pôs fogo às naus, as quais, como estavam encadeadas, em breve tomou posse delas, e com a jusante as nossas se viram em perigo, e tanto que maior foi o delas que da gente em cometer a cidade; e depois passaram outro maior, que os pôs em condição de não passarem a Dio - e foi necessidade de mantimentos. Porque, como o mais que despende o Malabar, quási todos vinham e se levavam daquelas partes de Chaúl e Dabul, e o Viso-Rei, quando partiu de Cochi, foi com pouco, e fazia fundamento de o haver per aquela costa; com o alvoroço da vitória da tomada da cidade e cuidado de a roubar, esqueceu aos capitães e despenseiros de recolher o

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mantimento que nela estava; e quando o Viso-Rei quis saber se tinham algum recolhido, era tudo queimado. Pera suprir a qual necessidade, parecendo-lhe que per as povoações que estavam pelo rio acima, se achariam alguns, mandou as galés, bargantim e alguns batéis das naus com gente que o fossem buscar, e quando o não podessem haver per dinheiro, que fosse à ponta da espada. E enquanto estes iam, mandou outros capitães que dessem υa vista ao monte, onde os povoadores da cidade se acolheram, também afim de haver algum mantimento, se o tinham; mas eles com a mesma necessidade dele eram já partidos dali, porque naquela revolta de sua fugida não lhe lembrou salvar mais que as vidas. Os capitães que foram pelo rio acima, em todalas povoações onde chegaram, com a nova da destruição de Dabul, tudo acharam despejado sem algum mantimento; e a causa foi por aquele ano haver em todas aquelas partes esterelidade, de υa praga de gafanhotos que sobreveo aos agros, o qual caso, por ali acontecer poucas vezes, deziam os mouros que fora pronóstico de outra praga, que éramos nós, causa de sua total destruição. Dos quais 122 gafanhotos acharam os nossos per aquelas povoações muitas jarras em que os tinham 120 postos em conserva, por acerca dos mouros ser vianda estimada, e correm por mercadoria do Estreito de Meca pera fora, por naquela parte de Arábia haver grande arribação deles. E não somente na tomada desta cidade Dabul acharam os nossos esta mercadoria, mas ainda em algυas naus de mouros, que pelo tempo em diante tomaram, souberam quam estimada era acerca deles, por acharem nelas muitas jarras desta conserva. Do qual mantimento usam muito os arábios que habitam os desertos da Arábia, e assi os que habitam os de África, aos quais eles chamam Sahará, que é υa faixa de terra ou clima, que começa do Oceano Ocidental daquelas comarcas do Cabo Bojador té a nossa fortaleza de Arguim, e vai em largura de setenta e cem léguas, e mais, em partes, té dar consigo nas correntes do Nilo (como já atrás dissemos), a qual terra (como veremos em nossa Geografia), é pastura de grande número de alarves. E como com as trovoadas de Guiné se criam tam grande cantidade desta praga, que cobre a terra, e per onde passam como nuves de fogo, leixam escaldado 38v e queimado toda planta e erva, ao tempo desta sua passagem, a qual conhecem os habitadores em verem primeiro o Sol dous e três dias amarelo, porque as nuvens desta praga que vem se entrepõem entre o Sol e eles; apercebem-se todos que, em pousando na terra, matam neles, e secos ao Sol em grandes médãos, os guardam pera mantimento, porque naqueles desertos não chove outro maná àquela triste e maldiçoada gente. A qual praga é tam geral no interior de toda África, por razão da quentura da terra, que andando D. Rodrigo de Lima, nosso embaixador em a Corte do Rei dos abexis, a que comumente chamamos Preste João, um Francisco Álvares, sacerdote, em um descurso que escreveu das cousas que viu nesta viagem, em que ele foi com D. Rodrigo, conta que era tamanho o temor acerca dos abexis da vinda destes gafanhotos, a que eles chamam ambatas, que, estando em um lugar chamado Baruá, viram este sinal - o sol amarelo e a terra toda assombrada desta luz - com que a gente começou a esmorecer de temor, como que esperavam algum mal; e quando veo ao outro dia, começaram aparecer υas nuves desta praga, que tomariam quási oito léguas e cobriram todo este espaço da terra. No qual tempo a gente do lugar se foi a ele, como a sacerdote, pedindo-lhe por amor de Deus que lhe desse algum remédio àquele mal; ao que ele respondeu, que não sabia mais certo remédio, que pedirem devotamente a Deus que lhe lançasse aquela praga fora da terra. Contudo, fazendo ajuntar todolos portugueses que ali eram, ordenaram υa procissão ao modo de quando cá per as Ladainhas vão sobre os agros, e com eles se ajuntaram 123

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todolos sacerdotes e povo da terra; e, levando υa pedra de ara ao seu modo, como relíquia, e sua cruz diante, faziam suas precações a Deus, e os naturais respondiam: 121 - Zio marena Christus - que em nossa língua quere dizer: - Senhor Cristo, amercea-te de nós. Com a qual precação e clamor, indo per υa campina de agros de trigo obra de quarto de légua, foram ter a um cabeço, que descobria a multidão daquela praga; e, tomados uns poucos, lhe fez υa amoestação da parte de Deus, e de si os excomungou, que dentro de três horas, eles, presentes, e todolos ausentes se fossem ao mar, ou a terra de mouros infiéis, e leixassem a terra dos cristãos. Soltos estes sobre que se fazia este exorcismo (foi cousa milagrosa), porque, voltando a gente pera o lugar em sua procissão contra o mar, que era o caminho que lhe amoestaram que eles tomassem, vinham tam tesos, que parecia à gente que os apedrejavam; tam grandes eram as pancadas que com seus vôos davam nas costas. E quando chegou a procissão ao lugar, estava toda a gente pelos cabeços e lugares altos, vendo como os gafanhotos em nuves iam fugindo contra o mar. No qual tempo se armou υa trovoada contra aquela parte do mar pera que eles fugiam, que durou três horas, e assi fez estrago naquela praga, que, quando acabaram de vasar as ribeiras e regatos do enxurro da água, que correu com aquela súbita trovoada, ficaram cheos, entre mortos e vivos, em altura de dous côvados; e quando veo ao outro dia pela menhã, não havia vivo um só, parecendo pela margem dos ribeiros a multidão deles υa folhada de enxurro. Com a qual cousa a gente da terra ficou tam espantada, que deziam que os nossos eram homens santos, pois em virtude daquela obra que fizeram, Deus obrara tal milagre; e como esta nova correu, vinham de todalas partes buscar os nossos, pedindo-lhe por Deus que lhe fossem lançar os ambatas fora dos agros, que lhos destruíam. Fizemos esta digressão destes gafanhotos, e do uso que a gente arábia e os mouros de África tem deles em comum mantimento, por causa da exposição de alguns teólogos sobre as locustas que S. João comia no deserto, porque saibam não serem ervas, nem aves como eu ouvi em alguns púlpitos, por não saberem quam usado mantimento acerca dos mouros são estes gafanhotos; e ainda os que põem em conserva, como aqueles que acharam em jarras os capitães que o Viso-Rei mandou, acerca deles são estimados, como cousa de sua gulodice. E alguns dos nossos, que já comeram deles, dizem que tem mui bom sabor e que a carne deles é tam alva, como o peixe dos camarões, marisco do mar, que em parecer são gafanhotos da água, como os outros camarões da terra.

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122 38v 124 Capítulo V. Do que passou o Viso-Rei té chegar a Dio e como ordenou sua armada pera pelejar com Mir Hocém, capitão do Soldão, que ali estava recolhido. 39 O Viso-Rei, depois que, com as deligências que mandou fazer sobre os mantimentos, viu que ali não se podia prover deles por razão da praga que dissemos, saiu-se de Dabul com toda a frota, levando em propósito dar em um lugar chamado Baçaim, onde ora temos υa fortaleza, por saber que era terra abastada deles, e isto quando por dinheiro lhos não quisessem vender. Porque, como este lugar estava já na enseada de Cambaia, e era del-Rei deste reino, a quem ele não queria fazer guerra, primeiro que per ela cometesse haver mantimento, havia de experimentar todolos meios da paz. E seguindo sua viagem sempre ao longo da costa, como Paio de Sousa, capitão da galé pequena, ia coseito com terra, descobrindo, acertou de entrar na boca de um rio, ao longo do qual viu andar pastando algum gado; e pela necessidade que todos levavam de mantimento, saiu com alguns a tomar dele. Sobre os quais deram os da terra; e foi o negócio tam súbito, em modo da cilada, que se tornaram a recolher, vindo já muitos feridos, entre os quais era Jorge Paçanha e Ambrósio Paçanha, filhos de Manuel Paçanha. E querendo Paio de Sousa acudir a Jorge Guedes, que o matavam, ficaram ambos ali pera sempre. E este foi o preço que custou o desejo de querer comer carne fresca. Do qual caso, quando o Viso-Rei soube parte, ficou muito descontente por ser desastre, e em tempo que ele tinha necessidade dos tais homens; e mais sendo sem sua licença, porque nestes negócios sempre dava resguardo a não poderem os homens cometer cousas per modo de desmando. Peró logo adiante sucedeu outro caso, que desfez a má fortuna deste na mesma galé de Paio de Sousa: ca, levando diante por descobridor das pontas que a terra fazia a Diogo Mendes, a quem ele deu esta galé, υa ante menhã veo dar quási de súbito com ele, Diogo Mendes, que já ia um bom pedaço da frota, υa fusta que atravessava de Dio pera Dabul, bem equipada de remeiros e acompanhada de outra gente, na qual ia um turco, homem nobre; e segundo se depois soube, era parente do Sabaio, e ia-se para ele, ouvindo as boas fortunas de seu estado. O qual turco fora ter a Dio em υa nau de Meca bem acompanhado de até vinte cinco turcos, todos homens de sua pessoa, que iam com ele na fusta que lhe Melique-Iaz mandou dar, té o poer em Dabul, ou onde ele quisesse; e como era homem de guerra, quando descobria υa ponta, e de súbito deu com Diogo Mendes, vendo que não podia leixar de pelejar com ele, mandou 123 abater todolos seus, porque os nossos não vissem mais que os remeiros. 125 Diogo Mendes, fazendo dela pouca conta, veo-a demandar té poer o esporão da sua sobre ela, sem saber o ardil deles; os quais, tanto que o sentiram sobre si, saíram com υa grita, e às frechadas e cutiladas meteram-se tam rijo com os nossos, que lhe entraram a galé, e os levaram té o masto, e quási houveram de ficar de posse dela. Porque, como os nossos iam descuidados, naquele primeiro ímpeto dos turcos, assi ficaram embaraçados, de mal apercebidos, que não tornaram sobre si, senão depois que o ferro dos imigos os começou a sangrar, que lhe deu fúria com que despejaram a sua galé e entraram na dos turcos, onde se vingaram tanto deles, que a nenhum deram vida. E pera que a vitória fosse mais celebrada, peró que os mais dos nossos ficaram bem assinados do ferro dos turcos, não faleceu algum deles, e ali quebraram com υa frecha um olho a Silvestre Corço, que era comitre da galé, homem que naquele tempo foi mui estimado neste reino, depois que veo da Índia, por oficial de seu ofício, principalmente em fazer navios de remo e galeões

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por ser levantisco natural de Córsica. Na qual galé, a maior e mais preciosa presa que se tomou, foi υa moça, húngara de nação, mui gentil mulher; a qual, sendo apresentada ao Viso-Rei, ele a não quis aceitar pera si e a deu a Gaspar da Índia, e depois a houve Diogo Pereira, o de Cochi, que, por razão de haver filhos dela, e de sua prudência e virtude, a recebeu por mulher. Da qual seus filhos se devem prezar por ela ser per natureza de sangue católico e nobre, e não é labéu nela cativeiro, ca este é caso de fortuna e não defeito natural, a qual fortuna nesta parte tem poder sobre todolos estados, como se verá no livro de nosso Comércio, no título dos Servos, onde se prova que os nobres per entendimento e sangue, ainda que sejam cativos, nem porisso propriamente se podem chamar escravos. Tornando ao caminho que o Viso-Rei fazia, porque os ventos lhe não serviam bem, foi ter sobre um rio chamado Bombaim, por 39v razão de um lugar deste nome, que está situado ao longo dele, pouco mais de doze léguas ante de Baçaim, onde era seu intento prover-se de mantimentos; na boca do qual Bombaim os nossos tomaram um barco com vinte quatros mouros guzarates, per indústria dos quais o Viso-Rei mandou ao regedor do lugar, pedindo-lhe que o quisesse prover de mantimentos por seu dinheiro. E porque temeu que o rogo havia de obrar nele mui pouco, mandou logo nas costas do recado três capitães em seus batéis, que dessem em algum lugar, sem lhe fazer dano, por serem terras del-Rei de Cambaia. Mas como toda aquela costa estava vegiada da sua vinda, acharam o lugar despejado, sem nele haver cousa de que lançar mão; somente, à tornada pera as naus, viram andar pastando um pouco de gado, do qual trouxeram vinte 124 quatro cabeças; e não seriam dentro em as naus, quando chegou um recado do regedor da terra, que estava em outro lugar a que se recolheu. E mostrando que lá soubera como aquela armada del-Rei de Portugal viera ali ter com necessidade de mantimento, mandou 126 ao Viso-Rei doze fardos de arroz e outros tantos carneiros, dando por desculpa quam necessitada a terra estava de mantimentos, por causa da grande praga dos gafanhotos, e que aquela pouquidade lhe mandava do que tinha pera sua provisão. O Viso-Rei, recebida sua desculpa e o presente, lho agradeceu com fazer mercê ao messageiro; partido o qual e ele recolhido a sua câmara, ficaram esses capitães e fidalgos, que ali eram juntos, praticando sobre aquelas saídas de gente em terra. E porque sobre saírem em Baçaim, que o Viso-Rei assentara com eles, alguns tinham votado por lhe comprazer, vendo-o mui movido e indinado a isso nas razões que deu contra Nuno Vaz Pereira, que contradezia a tal saída, começaram alguns dizer que o Viso-Rei, neste negócio de votarem os homens, era muito mais sujeito ao seu parecer que ao de muitos, e que os homens por esta razão não eram livres em aconselhar, temendo de o anojar. O Viso-Rei, porque a prática era um pouco alta, ou que ele a ouvisse, ou que alguém lho foi dizer, saiu de dentro e, assentando-se entre eles, começou a praticar docemente em cousas, com que veo enfiar o que se tratava na matéria em que eles estavam, por não parecer que vinha àquele efeito, entre as quais palavras disse que um dos maiores pecados que os homens podiam cometer ante Deus e ante seu Rei, era, em casos de conselho, votarem o contrairo do que entendiam pera bem do caso a que eram chamados; porque, acerca de Deus, negavam o intendimento que neles pôs, que era pecado contra o Espírito Santo, e contra seu Rei cometiam υa espécia de traição. E que, como o entendimento humano mais vezes pecava per malícia que per inorância, geralmente todolos conselhos que iam puros, segundo os Deus inspirava, eram mais firmes e certos nas obras, que os movidos per algυa destas quatro paixões - ódio, amor, temor ou esperança - por serem partes mui prejudiciais em qualquer juízo. Donde vinha que, por este ofício de aconselhar ser tam excelente, os príncipes que bem queriam reger e governar, para ele de muitos homens escolhiam poucos, e pera pelejar não enjeitavam algum; e aqueles a que Deus fizera tanto bem que podiam servir em conselho e com armas, não menos galardão mereciam em υa cousa que com outra. E porque os

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mais que ali eram presentes ambas estas cousas exercitavam, e todos estavam em tempo pera ainda votarem de novo nas cousas sobre que praticaram, se depois tinham visto algum inconveniente ao que levavam ordenado fazer naquela viagem, lhe requeria, de parte de Deus e del-Rei, que livremente cada um dissesse o que entendia que se devia fazer. Que 125 não tomassem por achaque cuidarem que ele poderia receber escândalo de ir em contra o que lhe a eles parecia; porque contrariar ele razões alheas, não era por lhe parecerem mal as boas, se eram melhores que as suas, somente porque desejava ouvir da parte as causas e razões que o moviam a se determinar no parecer; e que não dezia ele de pessoas de tantas qualidades como eles eram, mas do mais pequeno da frota: quando o conselho bom fosse, 127 confessaria que dele o recebera. Porque, como o puro conselho mais procedia da alma que do sangue, não os que muito valem e podem, mas aqueles onde o espírito de Deus espira, estes eram os que sabiam enleger a melhor parte que os negócios tinham pera virem a bom efeito; donde procedia haver muitos bem afortunados, e poucos acabarem em estado de bom conselho. Finalmente, per estes termos o Viso-Rei procedeu na prática, té que, per derradeiro, com esses fidalgos, que eram presentes, removeu a conselho de 40 saírem em Baçaim e assentou que fosse em Maim, por ser mais perto da barra e ter menos inconvenientes. Mas todo seu trabalho foi debalde; porque, como toda aquela costa andava alevantada com temor da nossa frota, despejavam os lugares vezinhos do mar, recolhendo-se pera dentro, e assi acharam a fortaleza de Maim, a qual era de tijolo, sem pessoa viva, somente um pouco de arroz na casca, e por alimpar, o qual os mouros tinham escondido em covas, e este repartiu pelas naus. Com a qual necessidade de buscar mantimentos, e assi por lhe o tempo não servir, e também por os nossos pilotos ainda não terem navegado per aquela costa, deteve-se o Viso-Rei treze dias de Dabul té chegar a Dio, que foi a dous de Fevereiro, dia de Nossa Senhora, onde surgiu υa menhã de névoa, por causa da qual não se chegou muito ao porto. Mas como ela com a vinda do sol foi desfeita, que a cidade ficou descoberta, a qual estava assentada em um lugar soberbo sobre o mar, que os nossos viram os muros, torres e a polícia de seus edefícios, ao modo de Espanha -cousa que eles não tinham visto na terra do Malabar - entre a saudade da pátria, que pela semelhança dos edefícios da cidade lhe lembrou, a uns sobreveo o temor, vendo que detrás daqueles muros a morte os podia sobressaltar; e a outros, cujo ânimo em os grandes perigos estava posto na esperança da glória que as armas tem, mais os animava a vista desta primeira mostra da cidade, desejando de se ver dentro, do que a temiam de fora. A este tempo que o Viso-Rei surgiu ante a cidade de Dio, Melique-Iaz, senhor dela, não era presente, por andar ocupado em υa guerra que tinha com os resbutos, seus vezinhos, obra de vinte léguas. Porém lá onde estava, depois que o Viso-Rei partiu de Dabul, sempre andaram meia dúzia de atalaias, que são barcos de remo, em atalaia dele, contando-lhe os passos e voltas que dava, de maneira 126 que estas per mar e paradas per terra, todolos dias haviam de levar nova a Melique-Iaz da nossa armada; do qual aviso procedeu que, naquele dia que o Viso-Rei chegou, entrou ele na cidade com leixar mortos dous dos cavalos dos que tinha postos em parada. Querem alguns dizer que a ocupação da guerra dos resbutos, que ele tinha, não lhe importava tanto pera naquele tempo se ausentar da cidade, mas que o fez de indústria; porque, como era homem sagaz e de grandes cautelas, naquele tempo se fez chamado pera acudir àquela guerra dos resbutos na frontaria que tinha posta contra eles; porque com sua ausência, se 128 Mir Hocém quisesse fazer algυa cousa de si, temendo a nossa armada, o podesse fazer. E donde Melique-Iaz tomou suspeita que ele, Mir Hocém, podia fugir à nossa armada, foi

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de υa prática que ambos teveram acerca da ordenança de como haviam de pelejar connosco, dizendo ele, Mir Hocém, que não havia de esperar a nossa frota dentro no porto, mas no mar largo, onde esperava de se poder melhor ajudar de nós; ca lhe serviam todalas velas, assi a fustalha dele, Melique-Iaz, como os paraus del-Rei de Calecute, que esperava. Os quais, por serem navios de remo e sutis, que nós não tínhamos, de υa chegada sua às nossas naus escravavam muita gente com o exame de frechas que lançavam dentro, porque isto experimentou ele na vitória que houve em Chaúl. A qual saída do porto, peró que Melique-Iaz lha contrariou com algυas razões aparentes, não ensestiu muito nisso, porque desejava que tomasse ele esta licença de se ir. Com a qual suspeita, tinha mandado secretamente que, se ele se saísse do pouso donde estava, que nenhum seu navio o seguisse; porque, como já tinha encorrido em culpa contra o Viso-Rei em ir a Chaúl em favor dele, Mir Hocém, não queria cair na segunda, temendo que lhe ficasse em casa. Outros dizem que verdadeiramente Melique-Iaz lhe contrariou a saída do porto também por cautela de seu próprio e particular proveito, temendo que, fugido Mir Hocém, o Viso-Rei descarregasse a fúria e ímpeto que levava em destruição da cidade; e ora fosse per υa causa ora per outra, como Melique-Iaz tinha malícia pera tudo, tudo acabava em segurar suas cousas. Porém, com todas estas suas cautelas, quando chegou a Dio acudir à vinda do Viso-Rei, achou Mir Hocém ocupado em lançar υa nau mui grossa, que seria de setecentos tonés, fora de um banco que a entrada do porto tem, a qual era dele, Melique-Iaz, e com ela outras naus da terra, pera que os seus galeões e galês, com toda a fustalha e paraus del-Rei de Calecute, que eram vindos em sua ajuda, ficassem amparados com estas naus de Melique-Iaz, que, por serem grandes, ocupavam a entrada do porto e poderiam ficar em lugar 40v de baluarte. Porque, além desta nau ser mui poderosa, Melique-Iaz a tinha mui artelhada e chea de muitos frecheiros em ordenança de 127 capitanias per popa e proa, e, entre dous frecheiros, um fardo de frechas pera sua despesa, e ela com sua arrombadas com ponte e redes, e per muitas partes coberta de coiros de vaca crus, molhados, pera defensão do fogo, se lho lançasse com alguns artefícios. Per o qual modo todalas outras naus e galeões de Mir Hocém, e assi as da terra, estavam tam apercebidos que parecia cousa impossível poderem receber dano, porque Mir Hocém era homem de sua pessoa e mui industrioso nestas cousas da guerra, e Melique-Iaz muito abastado delas, de maneira 129 que quanto se podia desejar pera a defensão que a frota e cidade haviam mister, se achava em ambos estes capitães. Melique-Iaz, quando achou Mir Hocém em trabalho de ordenar a frota per este modo, foi lhe a mão, dizendo que não havia necessidade de poer a sua nau e as outras da terra na entrada do banco, porque as nossas naus eram grandes, e de quilha, e mais não tínhamos piloto do porto, pola qual razão não poderiam entrar nele, e que este aviso tinha dos cativos portugueses que ele tomara. Mas tudo isto era mais cautela de Melique-Iaz que verdade, porque ele não queria que a sua nau fosse a primeira que os nossos achassem por defensão à entrada do rio; e fez crer a Mir Hocém que mais lhe convinha terem o posto da terra pera se favorecerem com artelharia grossa, que tinha posta sobre aquele abrigo das naus, que em outra parte algυa. E mostrando ser este melhor conselho, mudou as naus ao lugar que dezia, e à ilharga de cada υa pôs um navio e υa galé, e da sua fustalha fez υa capitania, e dos paraus del-Rei de Calecute outra, os quais a modo de genetes haviam de andar rodeando toda a nossa frota quando entrasse do banco pera dentro, que é υa lágea; porque, como nestes navios de remo havia mais de três mil frecheiros, cada vez que embebiam as frechas em seus arcos, coalhavam o ar com xame de aguilhões de morte. O Viso-Rei, posto que per informação de mouros trazia na fantesia figurado o sítio da

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cidade e entrada do rio, e sobre esta sua imaginação tinha assentado o modo de cometer os imigos, depois que, per sua própria vista, viu tudo, emendou muitas cousas, assi por razão do sítio da cidade, como pela entrada do rio. A qual, posto que naquele tempo não tevesse as forças de baluartes e muros que lhe Melique-Iaz e os que lhe sucederam fizeram, como veremos, somente o natural sítio com os presentes artefícios e ordenança, que se poseram em defensão, bastava pera não esperar daquele cometimento vitória algυa. Porque o rio, que torneava aquele pedaço de terra, em que a cidade estava assentada, tinha na entrada υa lágea a maneira de banco, com que fazia dous canais. O que era da parte do Norte e corria ao longo da povoação, per onde comumente as naus de grande porte entravam por ter fundo pera isso, este era mais perigoso, ca ficava a cidade mui soberba 128 sobre ele, por estar situada sobre um morro alto, de pedra viva, ao longo do mar. Da outra parte do Sul, per entre a lágea e a terra, quási tudo era parcel de area, de maneira que não tinha serventia pera mais que barcos de remo; e nesta parte, porque Melique-Iaz se não fiava muito dos rumes, os mandou agasalhar não consentindo que pousassem dentro na cidade; da estância dos quais ficou ali υa povoação, a que agora os nossos chamam a Vila dos Rumes. O Viso-Rei, depois que notou a entrada do rio, sítio da cidade e o modo de que estes dous capitães o esperavam com sua armada, que seriam mais de duzentas velas entre naus, galeões, navios, galés, fustas e paraus, em que entravam cento que el-Rei de Calecute tinha enviado, posto que já tivesse repartido as capitanias e o modo da entrada, aquela tarde chamou a conselho, 130 onde se praticaram muitas cousas, entre as quais foi tirarem ao Viso-Rei de υa em que estava posto, que era ser ele o primeiro que entrasse com a sua nau Frol de la Mar, como quem queria tomar a salva do primeiro cometimento. Finalmente, tirado ele deste prepósito, a ordem com que assentou que ao outro dia haviam de cometer os imigos, foi esta: Deu a dianteira a Nuno Vaz Pereira, capitão da nau Santo Espírito, que era de trezentos tonés, o qual levava cento e vinte homens de peleja, toda gente fidalga e nobre, e destra para o tal mister, de que os principais eram: D. Jerónimo de Lima, João Rodrigues Pereira, Álvaro Paçanha, Ambrósio Paçanha, seu irmão, Tristão de Miranda, António de Sousa, de Santarém, Rui Pereira, João Gonçalves, de Castelo Branco, Pero Teixeira, Rui 41 Nabais, Simão Velho, de Soure, Francisco Lamprea, João Gomes Cheira-dinheiro, Francisco de Madureira; e Diogo Pires, capitão da galé, com quorenta homens o havia de atoar té o passar além do banco. Trás ele, Nuno Vaz havia de seguir Jorge de Melo em a sua nau Belém com cento e vinte homens, de que os principais eram: D. João de Lima, Jorge da Silveira, Fernão Peres de Andrade, António Raposo e outros, cujos nomes não vieram a nossa notícia; e na esteira de Jorge de Melo havia de ir Pero Barreto de Magalhães na taforea grande, e depois Francisco de Távora em a nau Rei Grande, e trás ele Garcia de Sousa na taforea pequena, e todolos outros capitães, de que atrás fizemos menção à partida de Cananor. E tirando estas principais e primeiras naus que nomeámos, todalas outras velas levavam a oitenta, sessenta, quorenta, trinta e a vinte cinco homens de peleja, segundo o porte de cada vasilha. Cada um dos quais capitães ordenou a sua gente na ordem que assentaram, de que somente diremos a que Nuno Vaz levava, por ser o primeiro neste cometimento, por honra do seu nome, pois acabou nesta impresa como capitão e cavaleiro: A sua nau, de um castelo ao outro, levava sobre a ponte tecida υa rede de cairo mui meúda, e do castelo de proa fez capitão 129 Pero Teixeira, e do chapitéu de popa a Tristão de Miranda, e na tolda João Rodrigues Pereira, seu sobrinho, e no convés António de Sousa, todos acompanhados de gente de armas, espingardeiros e besteiros, segundo o lugar que tinham, e ele ficou com outra gente sobressalente pera acudir ao lugar mais necessário. E como a principal parte desta entrada do rio estava em bom piloto, entregou

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o Viso-Rei a ele, Nuno Vaz, um mouro guzarate, que a sabia mui bem, com grandes promessas de mercê e liberdade de sua pessoa, se metesse aquela nau dentro no banco, na esteira da qual as outras haviam de ir enfiadas. E porque naquele primeiro dia, que era de Nossa Senhora da Purificação, em que o Viso-Rei quisera cometer aquele feito, ao alevantar das naus pera tomar outro pouso, elas se embaraçaram um pouco de maneira que não iam na ordem que tinha dado, surgiu já pegado com a entrada do rio, por lhe ficar dali e posto mais curto e melhor, onde foi recebido de algυa artelharia dos imigos, que houveram reposta da nossa. Mas como veo a noite, 131 peró que ela cessou, poucos houve que a dormissem com repouso, e quási foi toda vigiada, uns consertando suas armas e outros a consciência; porque o ofício do dia seguinte requeria que ambas estas cousas estevessem tais, que os imigos do corpo e da alma não tevessem jurdição sobre suas pessoas.

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129 41 131 Capítulo VI.Como o Viso-Rei cometeu a armada de Mir Hocém e a venceu e totalmente destruiu. Quando veo ao dia seguinte, que era de S. Brás, entre as nove e as dez horas, que a maré trouxe a viração com que haviam de entrar, assi estavam as naus a pique, que, feito sinal em a capitaina a um ponto todas desferiram traquete e mezena, e os homens toda a voz que tinham em grita, de envolta com as trombetas, tambores e outros instrumentos que espertam a guerra, que parecia abrir-se o Céu e o ânimo de todos em espírito de fúria contra aquela pérfida gente imigo do nome português. Ao qual termo também a fustalha de Melique-Iaz com os cem paraus de Calecute, remo em punho, responderam aos nossos com grande alarido e grita, partindo do posto como genetes a receber Nuno Vaz, que ia na dianteira com determinação de a entreter e embaraçar na entrada do banco. E a primeira salva que lhe deram, foi de muita artelharia meúda, que afuzilava per υa parte, e as frechas ferviam per outra, com que logo encravaram muita gente e mataram a Diogo Pires na galé dez homens, e outros ficaram tais, que não pôde mais rebocar a nau. Mas Nuno Vaz, por muito que lhe ladrava e mordia esta cachorrada de navios pequenos, não fazia conta deles, porque levava o rosto posto em a nau grossa de Mir Hocém, que 130 eles tinham em lugar de baluarte com a outra de Melique-Iaz. E tanto que começou entrar per meio das naus grossas, de passada salvou υa com um tiro de espera, e aprouve a Nosso Senhor 41v que, em sinal de vitória, ficou logo esta metida no fundo, porque os imigos com alvoroço e fúria da sua artelharia não sentiram o nosso tiro ao lume da água, senão depois que dentro em a nau já andavam nadando nela. Jorge de Melo, que ia na esteira de Nuno Vaz, por culpa de seu mestre que lhe mareou mal a vela, ficou detrás de Pero Barreto, o qual, por ter esta vantage, chegou primeiro a Nuno Vaz a tempo que o achou já entre a capitaina e outras duas naus dos rumes, que a quiseram acolher em meio; porque, além dos arpéus, tinham os rumes dadas rajeiras per baixo, pera se alarem 132 υas às outras e fecharem entre si, as quais assi tinham aferrado Nuno Vaz, e ele a elas, que querendo Pero Barreto empolgar υa destas três, per descuido ou desacordo do seu mestre, ficou per popa da nau de Nuno Vaz um pedaço, porque os rumes, quando se ele com eles igou, tanto que sentiram o seu arpéu, lançaram-no de si, com que ele se achou em vão. Jorge de Melo como se desembaraçou, foi aferrar υa das principais naus, que estavam per popa de Nuno Vaz; e como levava córola do que lhe fizera o seu mestre, meteu tanta vela, que, da pancada que deu em a nau dos rumes, a lançou sobre Nuno Vaz, com que foi cruzar o seu goroupés com o mastro de contramezena dele. Bastião de Miranda, que tinha a capitania daquela parte, como lhe caiu debaixo da lança, mandou mui bem arreatar a nau de maneira que ele com os de sua capitania per este goroupés entraram nela, entre os quais eram: D. Jerónimo de Lima, Rui Pereira, Álvaro Paçanha e Ambrósio Paçanha, seu irmão, com as feridas ainda frescas do que passou em a fusta de Paio de Sousa. Quando Jorge de Melo viu que não tinha mais feito que entregar aquela nau debaixo de outra lança e não da sua, com melhor presa aferrou outra nau, e os outros capitães que o seguiam na ordem que levavam, infiados um no outro, cada um tomou a sorte que lhe coube dos imigos. O Viso-Rei, posto que não foi aferrar nau algυa, como quem queria fazer o campo seguro

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aos seus, que estavam aferrados, meteu-se entre os imigos e a fustalha de Melique-Iaz, que já a este tempo estava abrigada à terra, porque da entrada das nossas naus algυas foram metidas no fundo. A qual fustalha daquele abrigo com artelharia meúda e frechas, cobriam a nau do Viso-Rei, que estava quási como barreira delas pera escudar os seus, e defendendo que estes navios pequenos não fossem empedir a presa que os nossos tinham; e assi os entreteve com a artelharia, que de quando em quando metia alguns debaixo da água, com que os outros não ousavam de sair ao campo. Porém isto que o Viso-Rei fez, foi à custa da gente de sua nau, porque lhe derribavam muita, 131 entre os quais foi Fernão Soares, filho de Álvaro de Carvalho. Os paraus de Calecute, como viram que o feito dos rumes ia pera mal, não querendo esperar o remate dele, meteram-se pelo rio dentro e, torneando a ilha, vieram sair à outra boca, que dissemos estar da parte de cima, não ousando passar pela face das nossas naus, que eram corisco de fogo mortal, de que eles já tinham experiência; e saindo ao mar largo, fizeram-se à vela caminho de Calecute, dando nova per toda a costa, que a nossa armada era metida no fundo pelos rumes e que eles foram na vitória. 133 Mir Hocém, vendo-se entrado per tantas partes, e que Melique-Iaz estava de fora, olhando o jogo sem meter a pessoa, posto que tinha metido cabedal de fustas, as quais estavam como retraídas, que quási o desemparavam, e ele estava ferido e com muita gente morta e ferida, secretamente calou-se pela almeida da nau abaixo, em um bargantim que ali tinha posto de resguardo pera este tempo, e como υa seta, desconhecido se passou da banda da povoação onde estava apousentado, e ali tomou um cavalo, em que foi té chegar a el-Rei de Cambaia, temendo tanto a Melique-Iaz, por se não fiar dele, como aos nossos, de que ia bem sangrado. E posto que per este modo leixou a sua nau, ele se defendia de maneira que se não leixava entrar, té que veo Francisco de Távora em a sua Rei Grande, e Garcia de Sousa na taforea pequena, que a entraram; e como a entrada dele foi com golpe de gente e fúria, foi-se a rede da ponte com eles abaixo, onde correram muito risco, porque foram dar com um golpe de rumes que estavam debaixo, os quais eram tam valentes homens, que a pé quedo morreram todos sem se quererem entregar. Martim Coelho por duas vezes quis aferrar a nau de Melique-Iaz; mas como era υa torre em respeito do seu navio, saiu debaixo dela tam escalavrado, como os outros que a cometeram, porque tinha em si tanta gente, tanta frecha e tanto 42 artefício de fogo, que fazia arredar a todos. E vendo que se não podia abalroar por sua grandeza, converteram-se estes queimados dela em a meter no fundo com artelharia, e ninguém continuou mais este ofício, que Garcia de Sousa. Porque tanto que os paraus de Calecute desapressaram a nau Frol de la Mar, em que estava o Viso-Rei, ele se foi a ela, e gastou no seu costado quanta pólvora tinha, de maneira que da ferrugem da artelharia que lhe saltava nos olhos, ficou cego, e por não ficar sem fructo daquele trabalho, com um camelo acertou de tomar a nau per parte que pouco e pouco se foi assentando no fundo. António do Campo, com um galeão que lhe coube em sorte, foi tam ditoso, que o entrou sem receber mais dano, que ferirem-lhe cinco homens. Rui Soares, porque era dos derradeiros na ordem da entrada, depois que passou o banco, quis ser o mais dianteiro, passando per todalas naus, té chegar defronte da cidade 132 tam confiadamente que, louvando o Viso-Rei este modo, disse: - Quem é aquele, que faz tanta vantage? Quem me dera ser ele, porque de duas guinadas que deu sobre duas galés das que fugiam pera dentro do rio, ambas se despejaram, leixando os cascos vazios, as quais ele tomou! Finalmente, todolos capitães, cada um per seu modo, teveram tanto que fazer, quanto se mostrou no feito que acabaram e no preço que custou a vitória dele.

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O Viso-Rei, como viu com quanto favor ela já era da sua parte, porque no mar havia pouco que fazer e da terra recebia muito dano naquele lugar 134 onde estava, com artelharia que lhe tinha morto alguns homens e ferido a maior parte deles, sem a sua estada ser já necessária naquele pouso, veo-se pera onde estavam as suas naus. Derredor das quais andavam as galés e os outros navios de remo com os batéis matando às lançadas e estocadas os mouros, que se lançaram ao mar por se salvar em terra; e eram tantos os que andavam sangrados, que do bufar do sangue ficou o rio tam tinto, que viam os nossos manifestamente quanto dano tinham feito neles. Porém esta vitória que lhe Nosso Senhor deu, também lhe custou assaz do seu sangue, ainda que se não derramasse per aquelas águas, ca de mortos houve mais de trinta e tantos, de que os principais foi Nuno Vaz Pereira, peró que logo ali não falecesse e durasse quatro dias com muitas feridas, de que somente υa frechada, que lhe atravessava a garganta, lhe tirou a vida. Mas não lhe pode tirar a honra que neste feito ganhou; porque o modo de cometer respondeu à indústria e governo de capitão e de pelejar de cavaleiro, como ele sempre mostrou naquelas partes, donde o Viso-Rei sempre o trouxe posto nos olhos per amor e nestes lugares de honra por confiança; por galardão dos quais feitos neste lugar acerca dos homens terá nome e ante Deus a glória que dá àqueles que vertem seu sangue e vida pola Fé. E assi morreu Pero Cão, capitão de υa das caravelas, o qual, trabalhando por entrar em υa nau que abalroou, foi de cima dela tomado com uns ganchos de ferro, e quási no ar foi morto; e Francisco de Nabais, um cavaleiro de Montemor-o-Velho, υa bombardada, ficando o corpo em pé, lhe levou a cabeça; e o primeiro que mataram na entrada da nau de Mir Hocém foi Hanrique Machado, um cavaleiro de África; e assi mataram os dous filhos de Manuel Paçanha e outras pessoas nobres, a maior parte dos quais eram da nau de Nuno Vaz. Na qual aconteceu um caso dino de ser havido por milagre: porque, sendo ela muito velha e que não passava υa hora sem darem a duas bombas pola muita água que fazia, enquanto durou a peleja, que começou das onze horas até duas da noite, que se saíram pera fora do rio, nunca fez água, e di por diante a fez dobrada, porque, além da velhice que tinha, houve duas bombardadas, per que lhe entrava 133 muita. E entre trezentos e tantos homens que ali foram feridos, estes eram os principais: Jorge de Melo Pereira, capitão da nau Belém, per um braço direito que lhe atravessaram com υa frecha, e andavam os capitães naquele tempo tam mal providos das polícias e cousas que agora de cá levam pera regalo das pessoas, que não se achou em toda a sua nau um pano de linho pera o curarem, por todos vestirem algodão, de maneira que o Viso-Rei lhe mandou υa camisa velha pera os panos da cura. 135 E os outros feridos foram: Garcia de Sousa, de duas frechadas; D. António de Noronha, de um zarguncho per um ombro; Fernão Peres de Andrade, Simão de Andrade, seu irmão, D. Jerónimo de Lima, Garcia de Sousa, João Gomes, de alcunha Cheira-dinheiro, com vinte duas feridas, e outros que não vieram a notícia nossa. 42v No qual feito o que se mais deve notar, é que quási todolos mortos e feridos da nossa parte não o foram com armas a mão-tenente, porque não ousavam os imigos de esgrimir com eles, senão de tiros de arremesso, assi como zargunchos, frechas, espingardas e outras armas messivas, e principalmente com artelharia; porque as rachas que ela fazia na madeira das naus, bastava pera matar e ferir muita gente, quanto mais a fúria dos pelouros. Assi que, segundo os perigos per que os nossos passaram e o caso foi pelejado, houve deles poucos mortos e feridos, em comparação dos mouros; ca, segundo se depois soube, passaram de mil e quinhentos, em que entraram quatrocentos e quorenta mamelucos da armada de Mir Hocém e de outros que vinham ter a Dio, e os mais foram naturais da terra, posto que alguns fazem muito maior número deles.

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E porque tudo não fosse vitória de sangue, e os nossos, além da honra, levassem algum sabor da fazenda, deu o Viso-Rei azo à gente a escorcharem essas naus que estavam no porto, onde se achou muita fazenda, assi da que os rumes traziam pera seu uso, como de mercadoria de naus de mercadores; e de todas essas naus mandou o Viso-Rei recolher quatro; e as duas galés que tomou Rui Soares e as outras foram queimadas. Entre o qual esbulho foram achados alguns livros de latim e em italiano, uns de rezar e outros de história, até livro de orações em língua português; tanta era a variedade de gente que andava naquele arraial do Demónio. E o que o Viso-Rei mais estimou deste despojo, foram as bandeiras do Soldão, e as que Mir Hocém trazia de sua devisa, as quais vieram a este reino e foram postas no Convento da vila de Tomar, da Ordem da Cavalaria de Nosso Senhor Jesu Cristo; porque, como debaixo da sua bandeira se houve esta vitória, de que aquela casa é a cabeça de tam santa e necessária Ordem, a ela se deviam oferecer os triunfos das infiéis vitórias, as quais acerca das gentes a decoram mais em louvor e glória de Deus, e são testemunho que dilatam a nossa Fé mais que o ouro que se nela pode assentar por ornamento das 134 materiais paredes. O Viso-Rei, além de em geral e particularmente, em palavras de louvor, a todos mostrar o contentamento que tinha desta vitória que lhe Deus deu, de quem confessava receber esta mercê pera paz e quietação de sua alma, pela morte de seu filho e seguridade da Índia, como ele dezia, quando referia estas cousas a Deus, foi fazer a barba e vestir-se de festa com todalas outras mostras de prazer, que deu causa a que todos, assi feridos como sãos, fizessem outro tanto. E aquele se havia por mais loução, que mais voltas de touca trazia na cabeça por guarda das feridas dela, ou o braço no peito, ou a espada 136 às vessas, e assi outro qualquer sinal, que mostrava não ficar mui inteiro daquele feito; posto que todos, ainda que per estes sinais de ferro alheo não andassem notados, o seu foi empregado em lugares que não tinham enveja a outro braço, porque as obras do seu o testemunhava.

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134 42v 136 Capítulo VII. Como Melique-Iaz mandou visitar o Viso-Rei da vitória que houve de Mir Hocém, e depois lhe enviou os cativos que tinha, que foram tomados com D. Lourenço; e espedido o Viso-Rei dele, partiu-se pera Cochi. Melique-Iaz, como viu a destruição dos seus hóspedes, temendo que o Viso-Rei com o favor da vitória quisesse entender na cidade, por ele ser a principal causa da morte de seu filho, desejando descobrir sua tenção, tanto que amanheceu, mandou a ele Cide Alé, o mouro granadil (de que atrás fizemos menção), dando-lhe a prolfaça da vitória e oferecendo-se a todo serviço que houvesse mister daquela cidade. Era fama entre os nossos, que muita gente da que estava dentro, vendo a vitória que houvéramos, e saíra aquela noite por muito resguardo e vegia que Melique-Iaz nisso teve, a qual cousa o fez mais desconfiado da defensão da cidade; e tinha-se por causa mui leve no parecer de muitos, que, se o Viso-Rei quisesse pôr o peito em terra, que não havia de achar muita resistência, ou ao menos que Melique-Iaz se submeteria à sua obediência com qualquer lei de jugo que lhe pusesse. A qual prática logo foi ter ao Viso-Rei, quási em modo que alguns capitães e fidalgos não recebiam bem dilatar-se 43 este cometimento. E porque ele não estava em tempo pera que alguém tevesse algum descontentamento de suas obras, ante que isto mais procedesse, ajuntou os capitães e pessoas notáveis, não em modo de se desculpar, mas de aconselhar sobre o mais que deviam fazer; porque bem entendia que este parecer de alguns mais procedia por haverem escala franca na cidade, que por fazerem outro discurso do que convinha ao estado da Índia, e outras cousas que ele propôs a todos, entre as quais foram estas: 135 Que em nenhum modo convinha naquele tempo cometer a cidade, porque eles não contendiam nisso com Melique-Iaz, que era um estalajadeiro, que dava gasalhado a quem lhe pagava bem, mas com el-Rei de Cambaia, cuja ela era, o qual, como senhor, logo havia de acudir sobre quem a quisesse suster; e que de mil e duzentos homens que vieram naquela armada, de mais 137 de quatrocentos se não podia fazer conta e que seiscentos não era força pera cometer gente metida detrás de muros mui fortes e altos, que somente às pedradas defenderiam a subida, quanto mais com tam boa artelharia, como a que eles haviam de leixar em as naus, sem dela se poderem servir naquele mister. E ainda que podessem de um ímpeto levar a cidade na mão, quem havia de ficar nela? e se ficasse que serviço recebia el-Rei ter υa fortaleza tam longe de Cochi, tendo um tam mau vezinho à porta, como era el-Rei de Calecute, a cuja instância Mir Hocém viera àquelas partes? O qual, ainda que gentio fosse, era mais de temer pera a segurança do estado da Índia, que todolos mouros dela, por razão desta vezinhança de Cochi, e ser senhor de toda a pimenta; os quais inconvenientes (ainda que mouro fosse), não havia em el-Rei de Cambaia, do qual té aquele tempo não tinham recebido dano, ante mostrava desejar nossa amizade, a qual se devia procurar haver dele per boas obras, e não tomar-lhe υa cidade sua. Que Melique-Iaz, se particularmente tinha urdido ruins teas, tempo tinha pera o tomar nelas; porque, como era homem que seus negócios eram tratar e trazer naus pelo mar, nisto se podia dele tomar toda emenda com nossas armadas, e todo o mais era ofender a el-Rei de Cambaia, com o qual se não devia bulir, por ser um príncipe mui poderoso, e não um moço de doze anos metido em υa gaiola, como era a Ilha de Ormuz , que com a primeira necessidade lhe conveo submeter-se à

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obediência nossa, e como pôde tirar o laço do pescoço, fez mui pouca conta de Afonso de Albuquerque, como eles sabiam; e se este cada vez que lhe tirassem a espada da garganta, se havia de rebelar, que faria aquela cidade Dio, tendo costas na potência de seu Rei? Assi que, consiradas estas e outras cousas, seu voto era dessimular com as cousas de Melique-Iaz; porque com as tais pessoas a ele lhe parecia ser maior injúria sofrer υa mentira, que dessimular um dano. Finalmente, estas e outras tais razões a todos foram aceitas, e houveram serem mais proveitosas ao serviço del-Rei e segurança do estado da Índia, que outras que per alguns foram apontadas nesta prática; e ficou assentado que os recados de Melique-Iaz fossem recebidos com gasalhado, como se fez, fazendo muita honra a Cide Alé quando ele chegou ao Viso-Rei, dizendo lhe que folgava muito de o conhecer, por ser homem daquele bom tempo da guerra de Grada, e outras palavras de boa graça e gasalhado, que o Viso-Rei 136 mui bem sabia fazer. E respondeu-lhe, quanto ao recado de Melique-Iaz, que lhe agradecia muito sua visitação, e que somente duas cousas o trouxeram àquele porto, das quais tinha já υa, que era a vitória dos rumes; e a outra, que eram os cativos que foram tomados com morte de seu filho, porque estes lhe ficavam em lugar dele, esta tinha ainda pera fazer; 138 e pois, segundo ele, Melique-Iaz, lhe tinha escrito, estavam em seu poder e bem tratados, como os mesmos cativos lhe escreveram, lhe pedia muito que lhos mandasse logo dar; e também lhe mandasse entregar toda a munição e artelharia dos rumes, dos navios que encalharam em terra, e os cascos fossem logo queimados, por ali não ficar memória de cousa sua. Que não lhe pedia as pessoas, porque entre os homens nobres sempre se costumou emparar aqueles que os buscavam por salvação de sua vida; somente lhe pedia que não fossem recolhidos em outro tempo naquele seu porto, vindo com mão armada; porque os portugueses acerca dos vencidos eram piadosos, e contra os soberbos mui indinados, principalmente quando encorriam em segunda culpa; e que ele o amoestava como amigo, que a não quisesse tomar sobre si, por não ficar obrigado às custas dela. 43v E quanto às ofertas, que lhe mandava com esta satisfação, as havia por recebidas, pera ficarem em paz e amizade, assi por sua particular pessoa, como por ser vassalo del-Rei de Cambaia, com quem el-Rei de Portugal, seu senhor, mandava que ele fizesse todo cumprimento de amizade, por a vezinhança que ambos per muitos anos haviam de ter; e também lhe agradeceria muito provê-los de mantimento por seus dinheiros, por quanto os feitores das naus lhe vieram dizer que havia necessidade deles pera se tornarem a Cochi. Melique-Iaz, quando Cide Alé lhe levou tam diferente reposta do que ele esperava, ficou desassombrado, e por se ver de todo com a partida do Viso-Rei, a grã pressa per ele, Cide Alé, lhe mandou muitas barcas de mantimento e refresco pera todalas naus; e assi lhe mandou todolos cativos mui bem tratados e vestidos; porque, como sempre temeu que lhe havia de ser pedido conta do feito de Chaúl, tinha-os mui mimosos pera pagar com eles as custas daquele dano. Ao qual Cide Alé o Viso-Rei mandou dar quatrocentos cruzados e algυas peças, assi por trazer os cativos, como por eles dizerem que ele fora a principal causa de Melique-Iaz fazer tam bom tratamento. E ainda por comprazer ao Viso-Rei, mandou Melique-Iaz lançar grandes pregões, que dentro de dous dias, se fosse qualquer homem de armas estrangeiro que estevesse naquela cidade, sob pena de morte, sendo achado depois, comprindo todo o mais que lhe o Viso-Rei mandou, com que lhe concedeu paz pera as suas naus poderem navegar, recebendo-o em sua amizade. Finalmente, Melique-Iaz ficou tam assombrado daquele feito e submeteu-se tanto à obediência 137 do Viso-Rei, que obrigou a leixar ali Tristão de Gá, um dos que foram cativos, pera carregar um par de naus de algυas cousas necessárias às feitorias de Cochi e Cananor. E também com o mantimento que Melique-Iaz deu, e algυa roupa da que se houve na tomada das naus, que estavam naquele porto, despachou D. António de Noronha com o seu navio pera ir acudir a seu irmão D. Afonso, e gente que com ele estava na fortaleza S. Miguel, da Ilha Socotorá.

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Acabadas as quais cousas, partiu-se o Viso-Rei a dez de Fevereiro caminho de Cochi, e o primeiro lugar que tomou foi Chaúl, onde o receberam 139 com festa, posto que não foi de tanto prazer no coração dos mouros, como foi a nova que os paraus de Calecute, que per ali passaram, deram, dizendo ser toda a nossa armada destruída, tudo afim de alvoraçar contra nós toda aquela costa, onde tínhamos alguns amigos, correndo com esta nova a Cananor e a Cochi, pera que os naturais cometessem algum alevantamento contra os que estavam em as nossas fortalezas, que ali tínhamos. E posto que o Nizamaluco, senhor daquela cidade Chaúl, té então recebia nossas naus como amigo e mostrava querer-se submeter à obediência del-Rei D. Manuel, como era cauteloso, não o pôde o Viso-Rei chegar a pagar algυas páreas em sinal desta obediência, senão depois que chegou com esta vitória, que assombrou a ele e a todolos mouros daquela costa da Índia, ca tinham posto grande esperança em aquela armada do Soldão. Partido o Viso-Rei desta cidade Chaúl, e sendo tanto avante como Onor, saiu a ele Timoja, o qual vinha fugindo del-Rei de Narsinga, que estava dali υa jornada em um pagode, onde era vindo a romaria a se pesar a ouro e prata por razão de υa enfermidade que tevera. A causa da qual fugida dele, Timoja, era por ser avisado per seus amigos que el-Rei o mandava prender, por queixumes que tinha dele andar feito cossairo per aquela costa; e por este Timoja acerca de nós ser recebido por amigo, mandou o Viso-Rei pedir a el-Rei de Narsinga que lhe perdoasse, o que ele fez de boa vontade polo desejo que tinha de nossa amizade, sobre a qual, como atrás escrevemos, era lá ido Pero Fernandes Tinoco. Seguindo o Viso-Rei seu caminho, chegou a Cananor, onde foi recebido com grande triunfo, e em três dias que se ali deteve, tudo foi prazer e festa, e υa delas foi a dos escravos dos nossos e moços da terra, a que o Viso-Rei mandou entregar doze mamelucos dos que foram tomados da armada de Mir Hocém, os quais assi ficaram, das pedradas e travessura deste povo, que, quando foram postos na forca por espectáculo pera os mouros da terra, iam já feitos em pedaços. Passados aqueles dias de festa, leixou ali Pero Barreto com os navios pequenos pera guarda da costa, e ele, Viso-Rei, partiu-se pera Cochi, onde foi recebido com grã solenidade de procissão de toda a clerizia e cruzes da Igreja. Tornando 138 dela de dar graças pela mercê que tinha recebida de Deus 44 naquela jornada, com aquela pompa de toda a gente que o acompanhava, posta em ordem, cada um com as insínias da vitória que trazia, geralmente vestidos de festas, e ele, Viso-Rei, com υa opa de brocado, e diante suas maças e trombetas, atabales, que denunciavam o triunfo de sua vitória, quando chegou à porta da fortaleza, que Jorge Barreto, capitão dela, lhe quis entregar as chaves, segundo seu uso, começou Afonso de Albuquerque, que o acompanhou té li, de requerer a ele, Viso-Rei, que lhe entregasse a governança da Índia, como lhe el-Rei mandava, quási em modo que se não fosse apousentar na fortaleza, pois era sua per as patentes del-Rei, que levava na mão. Ao que o Viso-Rei respondeu, que lhe leixasse tirar dos ombros aquela 140 capa tam pesada que trazia e lhe dera o caminho donde vinha, e que depois tudo se faria como fosse serviço del-Rei, seu senhor. E porque Afonso de Albuquerque chamou per Janestão, escrivão da sua nau Cirne, que levava pera este efeito, dizendo que lhe desse um estromento daquele requerimento que fazia, o Viso-Rei lhe não respondeu cousa algυa, e deu a andar, recolhendo-se pera dentro da fortaleza em modo que o não queria ouvir; com que ele, Afonso de Albuquerque, ficou mui confuso, e tornou-se pera onde pousava, acompanhado de alguns poucos que já o seguiam, como sucessor da governança da Índia. Entre os quais era Rui de Araújo, tesoureiro, e Gaspar Pereira, secretário do Viso-Rei, que não foi com ele por doente. E outros quiseram dizer não ser assi, mas que buscou este modo pera tecer contra o Viso-Rei o que entre ele e Afonso de Albuquerque se passou, porque também havia

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de ficar servindo com ele de secretário, e mais ele era homem pera revolver υa paz de ânimos entre as tais pessoas; e peró que ao presente Afonso de Albuquerque recebia seus conselhos por favorecerem o seu negócio, depois que governou a Índia, ele o conheceu bem, e se queixava dos artefícios de sua vida e da sua língua e pena. O Viso-Rei, recolhido na fortaleza, naquele dia e nos dous seguintes, não entendeu em outra cousa senão em festas e prazer, sendo visitado del-Rei de Cochi, que lhe veo dar a prolfaça daquela vitória.

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138 44 141 Capítulo VIII. De algυas diferenças que passaram entre Afonso de Albuquerque e o Viso-Rei sobre a entrega da governança da Índia, donde procedeu ser Afonso de Albuquerque levado de Cochi a Cananor, e foi entregue a Lourenço de Brito, que o teve té a chegada do Marichal. Passados os primeiros dias da chegada do Viso-Rei, começaram os capitães, que se vieram de Afonso de Albuquerque e outros fidalgos e pessoas que nisso lhe parecia comprazerem ao Viso-Rei, de lhe aconselhar 139 que em nenhum modo entregasse a Índia a Afonso de Albuquerque, assentando que era homem de pouco sofrimento pera mandar gente, e de tam mau governo, que lançaria a Índia a perder; e posto que lhe el-Rei mandasse provisões pera o suceder nela, seria por não ter sabido as cousas que fez em Ormuz, causa de se perder. O Viso-Rei posto que desse orelhas a isso, sua reposta era que, quando fosse tempo, ele lhe havia de entregar a Índia, pois el-Rei, seu senhor, o mandava; e quando a lançasse a perder, a culpa não seria sua. Finalmente, o negócio chegou a tanto por estas cousas que o Viso-Rei dezia, que se ajuntaram alguns fidalgos, e per escrito assinado per todos em modo de requerimento, mandaram este papel ao Viso-Rei per Manuel Paçanha, apresentando algυas cousas per que convinha a serviço del-Rei não ser Afonso de Albuquerque metido de posse da governança da Índia, té sua Alteza ser sabedor delas. E porque nossa tenção é em todo o discurso desta nossa Ásia escrever somente a guerra que os portugueses fizeram aos infiéis, e não a que teveram entre si, não espere alguém que destas diferenças do Viso-Rei e Afonso de Albuquerque, e assi de outras que ao diante passaram, se haja de escrever mais que o necessário pera entendimento da história, por não macular υa escritura de tam ilustres feitos com ódios, envejas, cobiças e outras cousas de tam mau nome, de que assi os vencedores como os vencidos podiam perder muita parte de seus méritos. Porque acerca dos barões de prudência, quando hão-de julgar méritos de vida alhea, mais 44v olho tem ao discurso de como se houve em os negócios entre os amigos, que ao pelejar com os imigos, porque nesta parte se vê a fortuna de cada um, e na primeira a virtude. Pola qual razão, leixadas muitas particularidades, que per meio de maus homens se teceram de υa e de outra parte. veo o negócio a tal estado, que o Viso-Rei caiu em culpa por muito confiar de si, e Afonso de Albuquerque por desconfiado. Da qual divisão que entre eles houve, os principais revolvedores foram: Gaspar Pereira e Rui de Araújo, por parte de Afonso de Albuquerque; e pola do Viso-Rei, António de Sintra, que servia com ele de secretário, e André 142 Dias, que era feitor, o qual depois foi alcaide de Lisboa. Per meio dos quais não somente se buscou favor entre os capitães pera cada υa destas duas partes, mas ainda acerca del-Rei de Cochi, porque lhe dezia André Dias e António de Sintra que no Viso-Rei estava entregar a Índia a Afonso de Albuquerque, quando ele quisesse, porquanto el-Rei lhe mandava que esta entrega fosse ao tempo que se houvesse de embarcar pera este reino. Gaspar Pereira e Rui de Araújo, por parte de Afonso de Albuquerque, desfaziam isto com outras razões, de maneira que suspenderam a el-Rei pera entreter a pimenta, que o Viso-Rei mandava recolher pera o tempo da chegada das naus, que aquele ano 140

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partiram deste reino, acharem a carga prestes. O Viso-Rei, sentindo donde procedia não acudir a pimenta, mandou sobre isso alguns recados a el-Rei, o qual, por satisfazer a eles, enviou Candagora, um veador da sua fazenda, e Farengora, seu escrivão, υa sexta-feira, sete de Setembro, per os quais lhe mandou mostrar υa carta, per que el-Rei D. Manuel lhe fazia saber como o mandava vir pera o reino, e que Afonso de Albuquerque ficasse por Capitão Geral e Governador da Índia. E porquanto ele per aquela carta estava certo da vontade del-Rei, como seu irmão e servidor que era, em nenhum modo havia de mandar acudir com a pimenta, senão à pessoa que ele mandava que governasse a Índia; que a entregasse ele como lhe el-Rei mandava, segundo tinha visto per aquela carta e per as patentes que Afonso de Albuquerque lhe mandara mostrar, então ele mandaria que a pimenta corresse ao peso. O Viso-Rei, vendo que este negócio podia chegar a mais dano pelos recados que sobre isto foram e vieram del-Rei, sem se querer mudar deste propósito, mandou chamar todolos capitães, fidalgos e oficiais da feitoria, aos quais prepôs os termos em que estava com el-Rei de Cochi sobre a carga da pimenta, em o qual ajuntamento houve dous votos: um foi que em nenhυa maneira, Afonso de Albuquerque fosse entregue da Índia, ante merecia preso e enviado ao reino com os autos de suas culpas; e o outro, que a governança se lhe devia entregar à chegada das naus, e que se algυas culpas tinha, que procedesse ele, Viso-Rei, judicialmente nelas, e o sentenciasse. Finalmente, debatido este caso, per derradeiro se assentou que, enquanto não iam as naus que se deste reino esperavam aquele ano, em as quais ele, Viso-Rei, assentava que se havia de vir, Afonso de Albuquerque não devia estar em Cochi e que convinha muito ao serviço del-Rei ser levado a Cananor, e se entregasse a Lourenço de Brito, que em modo de custódia o tivesse té a vinda das naus, pera que el-Rei de Cochi mandasse dar a carga da pimenta; e Gaspar Pereira e Rui de Araújo, como autores de toda esta discórdia e serviço del-Rei, fossem presos e enviados ao reino, e assi outros que com eles urdiam estas diferenças. 143 Assentada esta determinação, mandou logo o Viso-Rei dali a António de Sintra, como secretário, e a André Dias, feitor, e a Diogo Pereira e Pedro Homem, escrivães da Feitoria, que se fossem a casa de Afonso de Albuquerque, e, noteficando-lhe aquele acordo, o levassem ante si da parte dele, Viso-Rei, e o metessem em a nau Santo Espírito, capitão Martim Coelho, que por estar naquela consulta, sabia já o que havia de fazer dele. Chegados estes quatro oficiais a casa de Afonso de Albuquerque, sendo-lhe noteficado o mandado que levavam, pediu estromentos daquela sua prisão, dizendo que declarassem no auto dela como o prendiam, tendo na mão as patentes per que el-Rei lhe mandava entregar a 141 governança da Índia. Levado per eles a Martim Coelho, que o foi entregar a Lourenço de Brito, ainda aqui em Cananor alguns homens, mostrando que lhe faziam nisso amizade, lhe causavam desassessego com cartas e juízos da sua prisão; e chegaram a tanto, que lhe mandaram υa carta a grã pressa per patamares per terra, poucos dias ante que as naus deste reino lá chegassem, dizendo que se posesse em salvo, porquanto o Viso-Rei mandava Fernão 45 Peres de Andrade em υa caravela pera o levar dali a algυa outra parte de mais áspera prisão. As quais cartas assi o temorizaram, que um ou dous dias ante que Fernão Peres chegasse a Cananor com recado que lhe o Viso-Rei mandava, ele, Afonso de Albuquerque, pediu licença a Lourenço de Brito que o leixasse ir a Nossa Senhora da Vitória, υa ermida que está na Ponta de Cananor, que (como atrás dissemos), mandou fazer Dom Lourenço. E tornado da ermida, estando à porta da fortaleza por comprir sua palavra de se tornar ali, começou bradar pelos seus que o livrassem da prisão; os quais, como estavam já prestes pera aquele efeito, o tomaram e tornaram à igreja, sem Lourenço de Brito querer acudir a isso, dessimulando o caso, porque, quando Fernão Peres chegasse, não o podessem levar pera o lugar onde estava. Porém ele o tirou dali per modo mais diferente do que Afonso de Albuquerque cuidava, por razão das cartas que lhe de Cochi tinham escrito, por outras que levava do Viso-Rei a Lourenço de

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Brito, tudo sobre ele, Afonso de Albuquerque, em que lhe pedia muito que o tirasse de algυa paixão, se a tinha, e fosse tratado como quem havia de governar a Índia, a qual ele esperava em Deus de lhe entregar tanto que as naus do reino em boa-ora chegassem. E assi deu outra carta a Afonso de Albuquerque, escrita per este modo, de maneira que ficou assossegado dos sobressaltos que cada dia tinha. E dessimulando o passado e a causa de ambas estas mudanças, se tornou à fortaleza, sem Lourenço de Brito lhe poer taixa no andar per dentro ou per fora, ante o tratou segundo os merecimentos de sua pessoa, té que o Marichal chegou ali, o qual partiu deste reino, como se verá neste seguinte capítulo.

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142 45 144 Capítulo IX. Da armada que el-Rei D. Manuel mandou à Índia o ano de quinhentos e nove, de que foi por Capitão-mor o Marichal D. Fernando Coutinho, o qual, chegado a Cananor, levou consigo a Afonso de Albuquerque a Cochi, onde foi metido de posse da governança da Índia; e partido o Viso-Rei pera este reino per um triste caso veo morrer na Aguada de Saldanha, com a flor da gente que trazia. El-Rei D.Manuel, como tinha sabido da grande armada que o Soldão do Cairo fazia em Suez per Fr. Diogo do Amaral, que lhe destruiu muita parte das naus da madeira, segundo dissemos, tanto que soube ser esta armada partida daquele porto de Suez e do aparato e gente que levava, posto que neste ano de quinhentos e nove ainda não era vindo nova do feito que ela na Índia fez, na morte de D. Lourenço, nem da necessidade em que estava posta, somente com as cartas que lhe o Viso-Rei escreveu, quanto o Samori de Calecute trabalhava com ajuda de todolos mouros da Índia de nos lançar dela, ordenou de mandar este ano de nove υa grossa armada, assi em número de gente, como de naus e munições, a capitania-mor da qual deu ao Marichal D. Fernando Coutinho, filho de D. Álvaro Coutinho. Ao qual el-Rei nesta ida deu grandes poderes, e o fez isento do Capitão-mor da Índia; e, segundo as provisões púbricas e secretas que levava, parece que el-Rei foi avisado que entre Afonso de Albuquerque e o Viso-Rei se esperava algυa divisão sobre a entrega da governança da Índia, do qual aviso alguns quiseram dizer que o autor fora Gaspar Pereira, secretário do Viso-Rei, que, como acima dissemos, era homem que tudo sabia ser - autor, juiz e réu. E não somente ia o Marichal provido pera este caso, mas ainda levava na frota três mil homens pera dar na cidade Calecute, que naquele tempo era a maior competidor que tínhamos. A qual armada era de quinze velas, cujos capitães eram: ele, Marichal Dom Fernando; Francisco de Sá, veador da fazenda do Porto, filho de João Rodrigues de Sá; Bastião de Sousa, de Elvas; Lionel Coutinho, filho de Vasco Fernandes Coutinho; Rui Freire, filho de Nuno Fernandes Freire; Jorge da Cunha; Francisco de Sousa, de alcunha Mancias; Rodrigo Rabelo, de Castelo Branco; Brás Teixeira, Francisco Marecos, Álvaro Fernandes, cavaleiros da casa del-Rei; e Jorge 45v Lopes, de alcunha Bixorda, e Francisco Corvinel, que eram armadores das naus em que iam. E em o número de todos homens desta 145 frota, entravam muitos fidalgos, cavaleiros e moradores da casa del-Rei, e outra gente limpa, porque se começavam as cousas da Índia mostrar serem maiores do que té li tínhamos sabido, e pera que convinha maior força e número de gente da que 143 costumava ir; pola qual causa foi esta υa das principais armadas que deste reino partiram pera aquela parte, e foi a doze de Março de quinhentos e nove. A qual com tempos contrairos que teve, peró que chegou inteira a Moçambique, foi já em vinte seis de Agosto, e somente dela não passou Francisco Marecos; e de duas naus que ali invernaram vindo da Índia, de que eram capitães Álvaro Barreto e Tristão da Silva, soube o Marichal o apercebimento que o Viso-Rei fazia pera ir sobre os rumes, e o estado em que a Índia ficava. E por ser já tarde, não se deteve em Moçambique mais que dous dias, onde leixou António de Saldanha com a gente que com ele havia de ficar em Sofala, de que ia provido por capitão; e espedido de Moçambique, foi fazer sua aguada em as Ilhas de Pemba, onde lhe houveram de enxovalhar υa pouca de gente; porque, descuidando-se dos negros da terra, por ali andar Gonçalo Vaz de Góis e invernar João da Nova, sem acharem a gente esquiva, haviam ser toda pacífica e

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tratável. Peró eles, per qualquer causa que fosse, em os nossos saindo a fazer sua aguada, saíram a eles de υa cilada onde os esperavam, de maneira que com este ímpeto os fizeram recolher um pouco, apressadamente, vindo já alguns feridos de frechadas. O Marichal, por a terra ser mui fragosa e não mui descoberta de arvoredo, não quis tomar emenda deles, porque também queria aproveitar o tempo, por ser tarde; partiu-se dali atravessando aquele golfão, em meio do qual lhe deu um tempo que fez apartar-se dele Gomes Freire, o qual, cuidando que levava o Marichal diante, meteu bem a vela, com que foi o primeiro que chegou à costa da Índia, já em Outubro. Do qual houveram vista Simão de Andrade e Jorge Fogaça, que andavam em dous navios na paragem de Baticalá, em olho da vinda das naus, com desejo que o Viso-Rei tinha da sua chegada. E tanto que Simão de Andrade per Gomes Freire soube quam poderosamente o Marichal ia, a grã pressa foi dar esta nova ao Viso-Rei, e o mesmo Gomes Freire a levou a Cananor a Afonso de Albuquerque, onde quis esperar o Marichal e assi um como o outro ficaram confusos dos poderes e potência que o Marichal levava. Finalmente, chegado ele a Cananor, ficaram suas cousas púbricas, porque logo dali, com acatamento de Governador da Índia, levou Afonso de Albuquerque a Cochi, onde chegaram a dezoito de Outubro. Peró ante que ele, Marichal, partisse de Cananor, o Viso-Rei lhe mandou quatro navios e υa galé, mui bem armados, com a mais nobre gente que tinha consigo; e além do refresco, em υa carta que lhe escreveu com as palavras que se requerem a tal chegada, lhe dezia que, por ter sabido (segundo a nova que deu a nau de Gomes Freire), que Sua Mercê havia de dar em Calecute, e não sabia se havia de ser ante de se verem ambos, lhe mandava aqueles navios pequenos, 146 que serviam 144 pera o tal lugar, e que a gente que neles ia podia Sua Mercê crer que o haviam de servir muito bem naquele feito, por ser costumada àqueles trabalhos; e que, se a sua pessoa aproveitasse pera o ir ajudar, que ele o faria de muito boa vontade. Ao que o Marichal respondeu com lhe beijar as mãos por aquela honra, e que, se ele algυa cousa houvesse de fazer, em que esperasse de a ganhar, não havia de ser senão com sua ajuda e conselho. Peró estas palavras não responderam ao modo que se depois teve com a embarcação do Viso-Rei, de que ele não foi mui contente, e a primeira cousa que lhe fizeram, foi que, tendo ele concertada a nau Frol de la Mar pera vir nela, tomaram-lha e deram-lhe a nau Garça, em que de cá foi Rui Freire. E depois de embarcado per mau aviamento que lhe davam, esteve obra de vinte dias, em que recebeu muitos desgostos; e chegou este ódio a tanto, que, indo a terra um paje seu chamado Rui Temudo, per homens desconhecidos foi tratado de maneira que esteve alguns dias em cama; e com estas e outras honras em galardão dos trabalhos que passou na Índia, ela o espediu e ele a leixou, partindo de Cochi a dezanove de Novembro. Em companhia do qual veo Jorge de Melo em sua nau Belém, que de cá foi, e a nau Santa Cruz, senhorio Jorge Lopes Bixorda, e nela por capitão Lourenço de Brito, em as quais vinham muitos fidalgos e cavaleiros da câmara 46 do tempo dele, Viso-Rei. O qual, chegado a Moçambique, deteve-se ali vinte quatro dias, enquanto se tomou υa água, que pela roda fazia a nau Belém; e tornado a seu caminho, passou com bom tempo o Cabo de Boa Esperança, e como quem se havia por navegado, disse: - Já agora, louvado Deus, as feiticeiras de Cochi ficaram mentirosas. E isto era porque na Índia andava na boca de alguns que ele não o havia de passar, o qual pronóstico diziam proceder das feiticeiras da terra. E como vinha necessitado de água, e detrás do Cabo estava a aguada, a que chamam de Saldanha (de que já escrevemos), mandou aos pilotos que a fossem tomar, onde, por se os homens recrearem da tristeza do mar, deu licença que, quando os batéis fossem em terra fazer aguada, saíssem alguns homens a fazer resgate com os negros, que logo

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acudiram à praia, como viram as naus surtas. Com a qual licença, por os negros andarem com os nossos mui fameliares, de darem gado a troco de pedaços de ferro e panos, que eles muito estimam, tomaram alguns outra licença de ir com eles às suas aldeas, que era dali perto de υa légua, nas quais idas alguns perderam os punhais que levavam por lhos eles tomarem, e qualquer cousa que lhe bem parecia. Por se vingar da qual força, um Gonçalo Homem, criado do Viso-Rei, trouxe dous deles enganosamente carregados de certas cousas que lhe comprara; e como os 147 negros de má vontade queriam chegar à praia, suspeitosos da malícia dele, e ele um pouco forçosamente 145 os quisesse obrigar, leixaram o que traziam, assi o trataram, que se veo ele apresentar ante o Viso-Rei com os focinhos feitos em sangue e alguns dentes quebrados. O qual caso foi a tempo que estavam com o Viso-Rei algυas pessoas, cujos criados tinham recebido dos negros outra tal companhia, principalmente um Fernão Carrasco, criado de Jorge de Melo; e tanto se indinaram todos dos negros, que moveram ao Viso-Rei a ir à aldea dar-lhe um castigo, mais por comprazer àqueles fidalgos que o encitavam, que a sua própria indinação, posto que alguns deles foram contra isso, assi como Lourenço de Brito, Jorge de Melo e Martim Coelho. E porque as aldeas estavam um pouco acima do pouso das naus, por andarem menos caminho a pé, ao outro dia, com obra de cento e cinquenta homens, que era a frol de toda a gente, em os batéis foi-se ao longo da praia um bom pedaço, té as aldeas lhe ficarem mais perto. E saindo aqui em terra, mandou a Diogo de Unhos, mestre da sua nau, que em os batéis ficava, que se não movesse dali; parece que o seu espírito lhe dezia quanta necessidade havia de ter deles; e no pejo que levava naquela ida lhe pronosticava sua derradeira hora; porque, depois que concedeu esta ida àqueles fidalgos que o forçaram a isso, sempre disse e fez cousas como quem denunciava sua morte. Entre as quais, ao sair da nau, entrando no batel, como quem queria que soubessem que fazia aquele caminho forçado, disse: - Onde levam sessenta anos? Depois, indo já pela praia, acertou de se lhe meter υa pouca de area nos sapatos, e mandando a um João Gonçalves, que lhe servia de camareiro, que lhos descalçasse, começou este, João Gonçalves, bater um no outro por sacudir a area. Ao que ele disse: - Quão fora estava D. João de Meneses, se aqui fora e ouvira esse teu bater de sapatos, dar mais um passo adiante, ainda que fora pera dar υa batalha de muito sua honra! mas como eu creo em Deus mais que em abusões, não leixarei de seguir meu caminho. E o caso que o Viso-Rei alegava de D. João de Meneses, era por ser cousa mui sabida no reino, que tinha ele agouro em duas cousas: neste bater dos sapatos, e em terça-feira; a causa disso era porque, sendo ele guarda-mor do Príncipe D. Afonso, ao tempo que em Santarém caiu do cavalo de que morreu, ia correndo mão por mão com ele ao longo do Tejo em Alfange, na qual hora um moço, que saía de nadar do Tejo, começou de bater os sapatos da area que ao calçar achou dentro. E porque neste instante de bater caiu o Príncipe, e mais foi em terça-feira, teve D. João por aquele desestrado caso agouro naquelas duas cousas; e eram elas tam notórias no reino, que enquanto esteve em Arzila por capitão, e depois em Azamor, já os moradores tinham por certo que não havia de cometer algum feito em terça-feira ou o dia que ouvisse bater com um sapato no outro. E de terem 146 isto por muito certo, querendo 148 D. João, estando em Arzila, fazer υa entrada em υas aldeas, que foi um dos honrados feitos que ele fez (como se verá em a nossa África), porque era no inverno e dia mui áspero de chuiva, por razão do qual tempo os fronteiros e moradores 46v

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iam de má vontade àquela entrada, ordenaram três ou quatro por agoirar a D. João e lhe empedir a ida, mandar-lhe bater um sapato per um moço à porta da vila, em ele passando. Peró, como D. João entendeu o artefício, e conheceu que o moço era de um homem, que às vezes nas afrontas se aproveitava dos pés, disse ao moço: - Dirás a teu senhor, que em penitência do que merece por isso que tu fazes, não lhe quero dar maior pena que a que ele leva por ir nesta jornada, onde eu sei que se há ele de aproveitar mais dos seus pés que dos teus sapatos. Ditas as quais palavras, com muito alvoroço lançou o cavalo, tomando aquela travessura por pronóstico da vitória, que houve. O que no Viso-Rei foi ao contrairo, que ele zombou do bater, que aconteceu acaso, e cometia aquele caminho triste e pesadamente; e D. João zombou do artefício, e por isso seguiu seu caminho alegre, e com esperança da vitória, que lhe Deus deu. E desta tal tristeza ou alegria com que os homens vão às cousas, vieram alguns dizer que o ânimo humano era profeta de todolos seus acontecimentos, o qual caso não tardou mea hora que o Viso-Rei notou no primeiro toque da sua chegada à aldea dos negros. Porque, entrada ela dos nossos, mataram Fernão Pereira, filho de Reimão Pereira; e alguns querem dizer que foi desastre, que, andando ele per dentro das casas palhaças, que de fora um dos nossos correu a lança, quando dentro sentiu arramalhar, cuidando ser negro, com que o passou da outra parte. Chegando a qual nova ao Viso-Rei, disse: - Pois eu sou encetado em Fernão Pereira, em mais hei-de acabar - E a grande pressa mandou recolher a gente. E vindo já bom pedaço de aldea, trazendo o rolo da gente, algυas vacas e crianças que acharam pelas casas, começaram descer do lugar donde os negros se acolheram com o primeiro temor, até oitenta deles, como gente que se vinha oferecer à morte por salvar os filhos. Lourenço de Brito, quando viu o ímpeto com que vinham, entendendo a causa dele, disse contra aqueles que traziam as crianças: - Leixai vós outros esses bezerros, que aquelas vacas não vem mugindo, mas bramando trás eles. Mas os negros, ainda que alguns dos nossos começaram alijar as crianças e algυa miséria do que traziam da aldea, vinham já tam furiosos, que, passando per tudo, deram no corpo da nossa gente, tomando por indústria carear o seu gado. O qual, como tem acostumado pera aquele mister da peleja, começaram de lhe assoviar e fazer outras notícias per que o mandavam de maneira que, metidos entre ele como em esquadrão de seu amparo, dali era tanto o pau 147 tostado sobre os nossos, que começaram logo de cair alguns 149 feridos e trilhados do gado. E como os mais deles não traziam armas defensivas, e as ofensivas era υa lança e υa espada, naquele modo de pelejar não podiam fazer muito dano aos negros, e eles de dentro do gado faziam remessos que derribavam logo um homem. No qual modo de peleja, vindo os nossos bem cansados, e pera tomar um fôlego, onde o Viso-Rei mandou a Diogo de Unhos que esperasse com os batéis, não os acharam, por fazer ali grande marejada com tempo que sobreveo, que causou levar dali os batéis pera junto das naus, de maneira que, onde eles esperavam achar algum refúgio, acharam a morte. Porque, começando de entrar na area da praia, ficaram de todo decepados, sem poderem dar passo, e os negros andavam sobre eles tam leves e soltos, que pareciam aves, ou (por melhor dizer) algozes do demónio, que vinha derribando na gente nobre, que por amor do Viso-Rei se vinha entretendo, que a outra comum com a primeira prea que houveram se poseram na dianteira. E o mais piadoso deste caso era que alguns homens já mui feridos, que de não poderem pela area solta dar um passo, metiam-se pela água por achar o chão mais teso, tengindo o mar com o sangue que vasava deles. No qual trabalho, onde uns não eram por outros, veo Jorge de Melo dar com o Viso-Rei; e vendo que vinha um pouco desemparado da gente, por cada um ter bem que fazer em si, como ele,

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Jorge de Melo, sobre as cousas de antre Afonso de Albuquerque e ele, Viso-Rei, vinha um pouco descontente dele, disse-lhe: - Aqui quisera eu; senhor, ver derredor de vós aqueles a que vós fizestes honra, porque este é o tempo, em que se pagam as boas obras. Ao que respondeu o Viso-Rei: - Senhor Jorge de Melo, os que me deviam algυa cousa já ficam detrás de mim. Não é tempo pera essas lembranças, senão pera vos lembrar vossa fidalguia; e peço-vos por mercê que acompanheis e salveis aquela bandeira del-Rei Nosso Senhor, que vai maltratada, que eu idade e pecados tenho 47 pera acabar aqui, pois a Nosso Senhor apraz. No qual tempo eram já derribados Pero Barreto de Magalhães, Lourenço de Brito, Manuel Teles, Martim Coelho, António do Campo, Francisco Coutinho, Pero Teixeira, Gaspar de Almeida, e outros. Jorge de Melo, enquanto pôde, assi a bandeira, como a pessoa do Viso-Rei sempre acompanhou, té que a morte o derribou de todo com υa lança de arremesso, que lhe atravessou a garganta, vindo já bem ferido de pedradas e paus tostados. E ouvindo Diogo Pires, aio de D. Lourenço, dizer que o Viso-Rei ficava derribado, voltou atrás, dizendo: - Nunca Deus queira que eu fique vivo, leixando cá o filho e o pai - e tornou sobre ele, onde também ficou pera sempre. 150 Finalmente, este foi o mais desastrado caso que neste reino aconteceu; porque os negros seriam até cento setenta, e os nossos cento e cinquenta, da mais limpa gente que 148 vinha em as naus. Dos quais passante de cinquenta, em que entravam doze capitães, vieram acabar naquela praia a poder de paus e pedras, saídas não da mão de gigantes ou de alguns homens armados, mas de negros bestiais dos mais brutos de toda aquela costa, sem aproveitar a estes mortos e feridos a grandeza do seu ânimo, nem a indústria de sua prudência, executada per tantos tempos em tam ilustres feitos, como tinham acabado na Índia e em outras muitas partes, melitando por seu Deus e por seu Rei. Somente um pequeno caminho, e υa pouca de area assi os decepou em fraqueza, que com verdade se pode dizer estas duas cousas serem a principal causa de sua morte; porque muitos homens assi traziam a força dos nervos tam relaxada, que se leixavam cair, e à mão-tenente, sem resistência, os negros lhe machucavam as cabeças com grandes seixos da praia. Certo, quem consirar no discurso dos feitos do Viso-Rei e dos capitães e fidalgos que com ele pereceram, e vir onde, como e per que causa ali vieram acabar, posto que não entenda os juízos de Deus, entenderá tudo ser feito pera exemplo nosso; e que ninguém, enquanto vive, se pode chamar bem-afortunado, senão quando os casos da fortuna nele não tem poder, que é depois da morte. E os que ficaram livres de ter a sepultura naquela praia, quási todos foram feridos daquelas armas rústicas; e entre muitas feridas a mais notável foi de Jorge Lopes Bixorda, armador da nau Santa Cruz, o qual, de υa pedrada, ficou com o casco metido per dentro, de maneira que, na comissura, poderiam meter um ovo; e tirado aquele casco quebrado, estavam-lhe palpitando os miolos de baixo, e não havendo com que o curar em a nau, acertou de pôr υa galinha sua um ovo e υa negra pariu, com o leite da qual e ovos que a galinha pôs, enquanto houve necessidade, foi curado. Jorge de Melo, a quem ficou o cuidado das relíquias que ficaram da mão dos negros, depois que se eles recolheram à sua aldea, recolheu às naus os feridos e tornou buscar os mortos à praia pera lhe dar sepultura nela; e quando chegou onde o corpo do Viso-Rei jazia despojado de quanto levava vestido, e que sem lençol ainda o Mundo queria que se partisse dele, foi tamanha a dor de o verem jazer em tam vil estado, que quantos se ali acharam ante mortos o quiseram acompanhar, que terem vida pera verem aquele miserável espectáculo de tam reveranda e ilustre pessoa.

LIVRO III

Finalmente, dado sepultura a ele e aos outros naquele bárbaro lugar, tornou-se Jorge de Melo às naus, e feito à vela, fez sua viagem pera este reino, onde chegou, o qual foi todo posto em vaso e dó por tam desestrado caso. E tirando o particular sentimento que cada um tinha pela parte que lhe tocava de algum parente ou amigo, a morte do Viso-Rei D. Francisco geralmente foi muito sentida, por no fim de tantos trabalhos e de tam gloriosas vitórias, como lhe Nosso 149 Senhor tinha dado, por cujos méritos se 151 esperava que el-Rei e o reino lhe desse igual galardão, veo acabar per tam grande desastre, com que todolos seus serviços ficaram sepultados com o seu corpo. Foi D. Francisco de Almeida filho sétimo de D. Lopo de Almeida, primeiro Conde de Abrantes, e de D. Beatriz da Silva, sua mulher, filha de Pero Gonçalves Malafaia, veador da fazenda del-Rei D. Afonso, o Quinto. Foi casado com D. Joana Pereira, filha de Vasco Martins Moniz, Comendador de Panoias e Garvão, da qual houve D. Lourenço, que mataram os rumes, como escrevemos, sendo solteiro, e a D. Leanor, que foi casada com Francisco de Mendonça, filho herdeiro de Pero de Mendonça, alcaide-mor de Mourão; e depois de viúva dele, casou com D. Rodrigo de Melo, Conde de Tentúgal, que depois foi Marquês de Ferreira. Era D. Francisco 47v homem de honrada presença, cavaleiro, de Conselho e de Corte, e por esta e outras calidades de sua pessoa mui estimado; e tanto, que, sem ser senhor de terras nem ter ofício, somente com sua moradia e a Igreja do Sardoal em comenda, com o hábito de Santiago, era tam estimado, que, estando el-Rei D. João, o segundo, em Benavente, aos montes, pondo-se um dia à mesa a jantar um pouco cedo pera se logo poer a cavalo e ir ao monte, sendo D. Francisco presente à mesa com outros muitos fidalgos, perguntou-lhe el-Rei, se havia de ir com ele a monte; e respondendo que si, disse el-Rei: - Vós não tereis ainda jantado; assentai-vos aqui, comereis comigo. - E assi o fez, servindo a D. Francisco os próprios oficiais del-Rei. Enquanto andou na Índia, onde há matéria de muitos vícios, foi castíssimo, e nunca lhe ninguém sentiu cobiça senão de honra; e de lá a Igreja do Sardoal, que, como dissemos, tinha em comenda, mandou renunciar em o priol dela, dizendo que a comia não com boa consciência, e esta mostrou em todalas suas obras. Era tam escoimado em autos de cobiça, que, quando vinha a tomar υa peça, que lhe el-Rei dava de até quinhentos cruzados na tomada de qualquer presa, tomava υa seta, um arco ou qualquer outra cousa de tam pouco valor. Foi homem que, quanto satisfez com estas boas partes que tinha, tanto veo a perder acerca de alguns por ser mui confiado nelas; porque geralmente os homens, a quem Deus dá tantas calidades, se tem esta confiança, são mui mal aceitos acerca de muitos, principalmente entre a nação português, que concede mui poucas cousas a ninguém. E porque, nas que tratavam acerca do galardão das partes, enquanto andou na Índia, assi como acrescentamento de ordenados, dada de ofícios e mercês, que deu em nome del-Rei, despendeu e administrou estas cousas segundo a confiança de sua pessoa, nisto se mostrou mais magnífico capitão, que limitado despenseiro. Teve el-Rei alguns descontentamentos deste seu modo, e muitos que andavam debaixo da sua bandeira muito maior, 150 porém aos portugueses mais lhe dói e se indinam polo que dão a seu vezinho, que pelo que eles não 152 recebem. E sabendo ele na Índia que cá no reino se não compriram alguns ordenados e acrescentamentos que deu aos que melitavam naquelas partes, dizia publicamente: - Eu irei ao reino e apresentarei a el-Rei, meu senhor, o regimento que me deu; e se trespassei seus mandados, dando sua fazenda, aí está a minha; e se não abastar pera pagar tanto dano, dir-lhe-ei que outra hora não meta a espada na mão do sandeu.

LIVRO III

E de ser mau de contentar das calidades dos homens, dizia na Índia algυas vezes, que neste reino nunca falara de siso, senão com D. Rodrigo de Castro, de alcunha de Monsanto, Alcaide-mor de Covilhã, filho bastardo de D. Álvaro de Castro, Conde de Monsanto, e com D. Diogo de Almeida, Prior do Crato, seu irmão; e destes ditos não ganhou acerca de muitos boa vontade. Também dizem que o primeiro queixume ante ele tinha mais força pera se endinar, que a desculpa do terceiro pera conseguir perdão, principalmente acerca dos vícios que ele avorrecia. Depois que houve esta triste sepultura onde acabou, vindo o ano de doze, Cristóvão de Brito com necessidade de água, veo ter ali; e porque Diogo de Unhos vinha por mestre da sua nau, o qual, como dissemos, fora ali com o Viso-Rei e o ajudara a enterrar, e a Lourenço de Brito, quis Cristóvão de Brito ver a sepultura destes corpos por reverência de cujos eram; e porque os achou sem sinal de quem ali jazia, mandou a cada um em lugar de campã cobrir de muita pedra, e em cima υa grande cruz de pau. E peró que os seus corpos tem por sepultura aquele tam bárbaro sítio, sem as insígnias da nobreza de cada um e fora dos lugares sagrados que a Religião Cristã concede aos que professam sua Fé, devemos crer que suas almas terão na Glória lugar de eternidade entre os eleitos de Deus, e que neste Mundo, enquanto durar esta nossa escritura, será pera eles maior louvor, que υa magnífica campã assentada em mais célebre jazigo. O qual lugar, se algum nome tem de nobreza, e o que lhe tem dado aqueles corpos que ali jazem. E mais aproveita pera memória de seus trabalhos este nosso cuidado, que quanto teveram seus herdeiros de mandar buscar seus ossos e os tirar daquele tam triste desterro. Mas parece que assi o premite Deus pera exemplo dos que vivem, porque saibam que mais devem fazer conta de adquerir bom nome que fazenda, porque o nome é propriedade eterna; e ainda que seja própria de quem o ganhou, todos tem parte nela pera o louvar, e vai-se multiplicando com este uso; e a fazenda é tam particular, que somente seus herdeiros levam, a qual em breve vão deminuindo com o abuso que tem dela, dos quais exemplos o Mundo está cheo, e este nosso reino não tem poucos nos herdeiros daqueles que a ganharam naquelas partes do Oriente.

LIVRO IV 151 48 Capítulo primeiro. Como Afonso de Albuquerque e o Marichal D. Fernando Coutinho foram sobre a cidade Calecute, no qual feito, depois de tomada, o Marichal foi morto com alguns fidalgos e pessoas nobres. Partido D. Francisco de Almeida, como o tempo era breve pera quantas naus ainda ficavam pera tomar carga, a qual, por causa das diferenças passadas, não estava mui prestes, e também por razão do feito de Calecute, em que o Marichal havia de ser, deu Afonso de Albuquerque grã pressa a todas estas cousas. E posto que, no tráfego de dar carga às naus, ele quisera encobrir e embeber o apercebimento das cousas pera dar em Calecute, porque o Samori não fosse sabedor delas, não se poderam fazer tam secretamente, que logo não fosse avisado per mercadores mouros que veviam em Cochi. Com a qual nova, e pelos avisos que cada dia lhe davam, mandou ele aperceber todolos seus portos, principalmente o de Calecute, onde lhe pareceu que os nossos podiam sair. O Marichal também, vendo que se gastava muito tempo na carga das naus, ordenou com Afonso de Albuquerque, porquanto as de Francisco de Sá, Bastião de Sousa e Gomes Freire ainda não tinham tomado cousa algua, que ficassem recebendo sua carga, enquanto eles iam ao feito de Calecute, e com as outras, que já estavam prestes, assi das que haviam de vir pera o reino, como da armada da Índia, que per todalas velas seriam até trinta, em que iriam até mil e oitocentos homens, partiram pera Calecute. Os 154 capitães das quais velas eram todolos que foram com o Marichal, de que atrás fizemos menção, e de Afonso de Albuquerque, os mais deles eram novamente feitos, por razão de se virem com o Viso-Rei parte dos que andavam com ele. E passando per Cananor, levou Afonso de Albuquerque consigo a Rodrigo Rabelo, que servia já naquela 152 fortaleza de Capitão, o qual per seu mandado tinha feito grandes apercebimentos pera aquela ida; e também levou o Arel de Porcá, que se ofereceu com alguns paraus e gente malabar pera aquele feito, posto que estes malabares, ainda que sejam mui destros na guerra que tem entre si, em nossa companhia é gente que melhor se aproveita, e mais tento tem no roubo que na peleja, quando vem tempo. Porque, como acerca deles não é vergonha fugir, e hão ser indústria da guerra, eles são os primeiros; e muitas vezes, quando em terra os nossos andam pelejando, então carregam eles de fato pera os seus paraus; e por mor vitória tem o esbulho dos imigos que levam pera casa, que de os leixar no campo mortos; e afora estes de Porcá, iam também outros malabares de Cochi com o desejo que tinham do roubo e ódio aos de Calecute polas guerras passadas. Chegada esta nossa frota ante o porto de Calecute, ua tarde, dous de Janeiro do ano de quinhentos e dez, como a cidade está situada em costa brava e tem diante um pequeno recife, onde quebra o mar e faz uas calhetas pera poderem desembarcar, andava naquela tarde tam empolado o mar, e de levadia, que foi necessário surgirem um pouco longe da terra, com determinação de saírem ao seguinte dia ante menhã, por ser o tempo em que ele dava melhor jazeda. A qual cousa meteu em grande confusão aos mais daqueles que foram na armada do Marichal, por não serem costumados à fúria daqueles mares, e não viam mais que a calheta coberta da escuma do quebrar do mar no recife. E sobre ele em um lugar teso estava ua casa de madeira 48v em modo de eirado, onde el-Rei de Calecute, no tempo que estava na cidade, às vezes vinha esparecer e tomar as virações do mar. A qual casa (a que eles chamam cerame) neste tempo estava feita com outras forças de madeira, entulho e artelharia um baluarte mui temeroso; e abaixo e acima desta saída tudo era costa, em que o mar quebrava de longe mui acapelado, e a um cabo estava ua povoação de pescadores.

LIVRO IV

A vivenda del-Rei neste tempo era em uns paços fora da cidade, pouco mais de meia légua, entre uns palmares, onde o Almirante D. Vasco da Gama lhe foi falar, quando descobriu a Índia, como atrás escrevemos; e segundo a nova que Afonso de Albuquerque tinha, ele estava então recolhido neles, sem fazer fundamento de em sua pessoa acudir à cidade, senão per seus capitães, e principalmente pelos mouros, que tomaram a seu cargo defendê-la. 155 O caminho pera os quais paços era ua estrada mui larga com valos mui altos, que se fizeram da terra que se tirou dela, ao longo dos quais tudo eram palmares; e assi esta entrada grande, como outros caminhos estreitos, que vinham dar nela, todos eram tam profundos, que as propriedades que se per eles serviam, ficavam sobre as cabeças dos caminhantes, como que estes caminhos fossem cavas pera 153 defensão delas. E posto que a serventia da cidade pera estes paços aqui mais serve pera se entender o que depois passou neles, que pera a determinação que Afonso de Albuquerque e o Marichal teveram pera tomarem terra, bastou o sítio do porto pera assentarem o modo como seria. O qual foi que, por evitar o perigo que era entrar per aquelas calhetas não sabidas dos nossos, que ante menhã, tempo em que o mar daria melhor jazeda com o terrenho, cometessem tomar a terra per duas partes: ele, Afonso de Albuquerque, mais chegado às calhetas, e o Marichal com toda sua gente em outro corpo mais acima do cerame, à mão esquerda contra a povoação dos pescadores, chamada macuaria. E feito um sinal que ambos tinham já tomado terra, fosse cada um com sua batalha cerrada ao longo da praia demandar o cerame; e depois que tomassem posse dele, cometessem a cidade per duas partes; e que as galés e batéis que servissem em poiar a gente em terra, se alargassem um pouco dela. Dos da capitania de Afonso de Albuquerque havia de ficar por capitão D. António de Noronha seu sobrinho; e dos do Marichal, Rodrigo Rabelo, o qual havia de ter cuidado de ir queimar uas poucas de naus e navios que, abaixo donde haviam de poiar em terra, estavam metidos em um esteiro; e feito isto, se tornasse onde D. António estevesse, ambos com aviso que não leixassem o lugar, posto que algua armada de naus e paraus viesse sobre as nossas, porquanto elas ficavam providas com gente e em capitanias, quando tal sobreviesse. E porque se temeram que alguns fidalgos e pessoas amigas de honra quisessem naquela saída fazer vantage uns aos outros, de que se podia seguir algum desmando, mandaram os Capitães-mores poer escritos ao pé do masto de todalas naus, que ninguém saltasse em terra, senão depois que seu capitão a tomasse, e que não se apartassem da bandeira té serem no cerame. Assentado este modo de tomar a terra, como a gente era muita e todos queriam ser os primeiros no tomar dela, tanto que foi noite, começaram de se armar e tomar lugar nos batéis; a qual diligência e cobiça de honra deu mui grã pena a todos, porque estavam uns sobre os outros, ou, por dizer melhor, quási todos em pé armados toda a noite. De maneira que, quando veo a hora de irem cometer a terra, estavam tam quebrantados de estar em pé e não dormir, e responderem com grita e apupadas aos alaridos dos mouros, que toda a noite andaram ao longo da praia, que não havia algum que de melhor vontade não tomasse um sono, que cometer a saída, por o trabalho lhe ter quebrado aquele primeiro fervor de vestir as armas. Contudo, como as cousas da honra dão ânimo, dado o sinal da partida que 156 esperavam, em que as trombetas e artelharia ao arrincar dos batéis cantaram o seu -Armas! armas! com este alvoroço tornou cada um renovar parte das forças e 154 ânimo que tinha perdido. Seria o corpo da gente que o Marichal levava até oitocentos homens, em que entravam estes capitães e principais pessoas: Pedrafonso de Aguiar, Rui Freire, Lionel Coutinho, Gomes Freire, Bastião de Sousa, Francisco de Sá, Francisco Marecos, Francisco Corvinel, Luís Coutinho, Brás Teixeira. Per os quais capitães o Marichal repartiu ua soma de paveses ferrados pera fazer embastida, e detrás deles tirarem alguns berços que iam em companhia dos

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49 besteiros e espingardeiros, vindo algum peso de gente, pera que fosse necessário retraer-se em corpo a este amparo. Afonso de Albuquerque também levava outro corpo de gente de oitocentos homens, além dos malabares do Arel de Porcá e de Cochi, que seriam seiscentos; e os capitães da sua bandeira eram Francisco de Távora, Antão Nogueira, Diogo Correa, Fernão Peres de Andrade, Simão de Andrade, seu irmão, Jorge da Cunha, Francisco de Sousa Mancias, Bastião de Miranda, Vasco da Silveira, António Pacheco, Manuel de Sousa, Manuel de Lacerda, Filipe Rodrigues, Tristão de Miranda, Duarte de Melo, D. António de Noronha, Garcia de Sousa, Álvaro Paçanha. Pondo estes dous Capitães-mores o peito em terra aquela menhã de quinta-feira, que eram três dias de Janeiro do ano de quinhentos e dez, cada um per sua parte trabalhou por ser o dianteiro; e ora que ele fosse o que primeiro pôs os pés na praia, ora algum outro, que não veo à nossa notícia, por em tam grande revolta se não poder notar os passos de cada um - posto que alguns querem dizer que foi António Pacheco, capitão da caravela Frol de la Rosa, que era ido nela adiante dos batéis e surgiu quási no rolo do mar - sabemos que Jorge da Cunha, capitão da nau Madanela, porque havia de ficar na Índia, parecendo-lhe que comprazia nisso Afonso de Albuquerque, foi o primeiro que, sem guardar o que estava mandado nos escritos que se puseram ao pé do masto, junta sua gente com seu aguião, começou de encaminhar pera o cerame, e trás ele Francisco de Sousa Mancias. Afonso de Albuquerque, vendo o desmando destes dous capitães, deu a andar rijo polos entreter; e neste seu abalar de pressa, os que ficavam atrás, cuidando que era por chegar ao cerame, começaram todos a quem se poria diante, sem Afonso de Albuquerque os poder entreter, por já ir tudo arrombado. Estes que tomaram a dianteira, como iam metidos já em corrida, vendo abalar os detrás, não pararam menos do cerame, onde acharam até seiscentos mouros e naires, que os receberam como valentes homens, té que Afonso de Albuquerque chegou com o peso da gente, que a ponta do ferro os fez largar de todo; no qual tempo mandou dizer per Simão Rangel ao Marichal que a sua gente se desordenara naquele cometimento, e que quási ia meio desbaratado, se gente grossa acudisse; que pedia a Sua Mercê que 155 viesse em um corpo com sua gente, porque ele era sua salvação. O Marichal a este tempo vinha ainda de vagar, porque foi tomar 157 terra um bom pedaço donde estava Afonso de Albuquerque. E a causa de ir tanto acima pegar na macuaria dos pescadores, foi por haver ali uns recifes em que o mar quebrava, e pera sair em terra, dava melhor jazeda aos batéis; e com isto e a detença de tirar os berços encarretados, fez algua demora. Mas dando-lhe o recado, leixada a gente meúda, que levava aquela munição com a outra principal, tomou um passo mais comprido; e vendo que a gente de Afonso de Albuquerque estava já senhora do cerame com pendões arvorados, e a sua bandeira posta no mais alto lugar, pareceu-lhe que este desmando era artefício, por levar aquela honra; e em chegando a ele, disse: - Que cousa é esta, Senhor Afonso de Albuquerque? Quisestes que dissessem as regateiras de Lisboa, que vós tomastes primeiro terra neste vosso Calecute, de que fazeis a el-Rei Nosso Senhor tantos espantos ? Ora eu irei a Portugal e direi a Sua Alteza, que com esta cana de Bengala na mão e com este barrete vermelho que trago na cabeça, entrei em Calecute; e pois não acho com quem pelejar, não me hei-de contentar senão de ir às casas del-Rei, e jantar hoje nelas. E dizendo isto, sem querer ouvir a desculpa que lhe Afonso de Albuquerque dava, bradou por Gaspar da Índia, que servia de língua e sabia bem a terra, do tempo que andou naquelas partes, e mandou-lhe que o encaminhasse às casas del-Rei; e sem se querer deter na cidade nem achar quem o empedisse, pôs-se na estrada que dissemos ir da cidade pera as casas del-Rei. A qual, posto que era mui larga e chã, por ser de area e abafada dos palmares e valos, e todos irem carregados de armas, e pelas travessas que vinham ter a ela havia rebates dos índios que os vinham cometer, quando chegaram a um grande terreiro, que estava ante os paços del-Rei, que ele, Marichal, sempre levou na boca por se não deter nestoutros recontros, foi vida a todos, porque naquele escampado tomaram um pequeno de ar.

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Havia por fortaleza, no meio deste escampado, um grande cercuito de parede a maneira das que cercam os nossos quintais, 49v dentro da qual eram os paços del-Rei, tudo casas térreas; e ante que entrassem a elas, havia ua porta grande desta cerca, per a qual o Samori às vezes saía pera os palmares, sem se comunicar à gente que tinha no terreiro, que era a serventia principal das casas, em guarda das quais estavam três capitães del-Rei com muita gente de armas, assi mouros da terra como dos naires. Alguns quiseram dizer que el-Rei temendo este caso se fora dali pera outros paços que tinha ao pé da serra; outros dizem que nunca teve suspeita que os nossos podessem ir tanto avante que chegassem às suas casas; porque, se assi fora, não as acharam os nossos tam cheas de móvel de seu serviço e de muita fazenda outra. O Marichal, 156 depois que com sua gente tomou um pouco de fôlego naquele grande escampado, cometeu a porta da cerca, onde achou os caimais, capitães que estavam em guarda, que lha defenderam um bom pedaço, como gente que não temia morrer; no qual tempo, assi pela porta como per ua 158 quebrada da parede, foram entrados; e contudo, no terreiro que estava ante as casas, davam e recebiam, retraendo-se atentadamente para elas, té que de todo foram recolhidos, e já tam sangrados, que com o temor da morte começaram vasar pela outra porta, que dissemos ir dar no palmar. O qual modo de se per ali recolher parece que foi mais ardil que fraqueza deles, polo que sucedeu; porque, como viram que os nossos se espalhavam pelas casas, tornaram a entrar pela porta da cerca, fazendo neles grande dano, por saberem as entradas e saídas, e os nossos às vezes se irem embetesgar em lugares sem saída, onde os jarretavam, por estes naires nesta arte, como dissemos, serem mui destros. Vasco da Silveira, como caiu naquela parte, vendo o dano que faziam estes que entravam de novo, remeteu com a gente do seu navio, que trazia toda em um corpo, e apesar dos imigos fechou a porta; e leixando ali alguns em guarda dela, foi-se em busca do Marichal, o qual achou assentado com alguns fidalgos em ua casa grande, tomando fôlego de grande calma que fazia e trabalho que tinha passado em romper per meio das espadas e frechadas dos imigos, que ele havia já per enxorados das casas, e dava a cousa por acabada, de maneira que muitos dos nossos, vendo que nas casas havia mais que cobiçar que ofender, cada um, segundo se atrevia, assi tomava às costas o fardo de seda, de beirames, de patolas, até irem dar com a prata e cruz que tomaram a Pedrálvares, quando mataram Aires Correa. E parecendo-lhe que não havia mais que carregar e encaminhar pera as naus, muitos deles levavam a morte às costas; porque, como não sabiam bem os caminhos, se acertavam de não tomar a estrada, vinham dar entre os imigos que os andavam esperando, e de baixo do fardo os matavam, e outros dentro nas próprias casas del-Rei, de retretes e buracos donde lhe saíam. Além destes, que era gente comum, alguas pessoas principais dos nossos, porque não haviam por vitória senão levando algua alfaia da casa, também faziam presa; e porque as armas lhe pesavam mais que a prea, leixavam-nas, com que mais cedo se entregavam na mão dos imigos. E tal houve i, que, não lhe lembrando a nobreza do seu sangue, foi morto com um fardo de patolas às costas e outro com ua cadeira do Samori guarnecida de prata e ouro com algua pedraria falsa, como se isto fosse peça que podia assentar no escudo de suas armas, e não podia ser havido por labéu de cobiça. Os três caimais capitães do Samori, que estavam em guarda destas casas, ora fosse pela obrigação de seu 157 ofício e religião de sua ordem morrer por defensão do que lhe era encomendado, ora por ser já o tempo de seu ardil, vendo como os nossos andavam derramados e sem ordem com a ocupação do

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roubo, causa de todos desastres, deram ua cuquiada, que entre eles é apelidar a terra per ua denotação de voz. O qual modo é cousa maravilhosa; porque, no instante que se dá ua, acodem de voz em voz em cercuito de ua e duas léguas, segundo a desposição da terra, quanta gente nela habita; de maneira, que em breve espaço se ajuntam mais de trinta mil homens, porque 159 de cada pé de palmeira saem três e quatro, tam vivos e prontos pera pelejar, que não temem cousa algua, tanto lhe alvoroça o ânimo esta sua convocação. Com a qual gente, que estes capitães caimais ajuntaram per este modo, e a mais que tinham consigo, cometeram a porta que Vasco da Silveira mandara fechar; peró que ele, Tristão da Veiga, António de Sousa, e outros acudiram 50 logo, sabendo o concurso da muita gente que a cometia, per muito que a defenderam, eram tantos os imigos, e o repetir de sua cuquiada, que pareciam gralhas avoando mais que saltando per cima das paredes de grã cerca per ua quebrada que nela havia -- tanta era a fúria da sua determinação e desejo de morrer por defensão da fazenda do seu Rei, por não ficarem perpetuamente maculados na honra; principalmente os capitães e naires, obrigados a esta lealdade por o soldo que dele tinham. No qual cometimento, vindo-se meter nas lanças e espadas dos nossos, ficaram logo ali dous caimais e muitos naires e outros, apesar de todos, entraram as casas, e, correndo per elas, achavam os nossos ocupados na prea que dissemos. Afonso de Albuquerque, enquanto estas cousas passavam nas casas del-Rei, também tinha assaz de ocupação na cidade, onde se leixou ficar, quando viu que o Marichal tomava este caminho, descontente dele. E posto que os mouros e gentios trabalharam um bom pedaço por defender suas casas, não podendo sofrer o ferro dos nossos, que lhe cortava a vida, despejaram a cidade, metendo-se per esses palmares. A qual cidade foi logo per mandado de Afonso de Albuquerque posta em poder do fogo, que em breve, por a maior parte dela ser de madeira e coberta de ola, tomou tanta posse, que per muitas partes querendo passar os nossos, não podiam, senão poendo adarga no rosto de corrida, como quem salta fogueira de S. João (segundo nosso costume de Espanha). Afonso de Albuquerque, vendo que a cidade ficava naqueles termos, porque não sabia os em que estava o Marichal, começou seguir a estrada, achando per ela alguns dos nossos que vinham das casas del-Rei com os fardos às costas; e sabendo per eles como já estava dentro, alvoraçou-se a gente que levava, e seguiram a estrada um pouco mais depressa, té chegarem ao escampado que dissemos estar ante a cerca. No qual lugar achou que começavam concorrer os gentios chamados da cuquiada, querendo vir empedir 158 a saída dos nossos que estavam dentro no curral; donde já saíam alguns dos nossos, mais carregados de temor que de fardos, pela revolta que ia dentro nas casas del-Rei. E porque Afonso de Albuquerque, pelo que via na gente de fora, e os nossos que vinham de dentro, temeu que, entrando ele, ficariam todos encurrelados, mandou duas ou três vezes dizer ao Marichal per Pedrafonso de Aguiar que se recolhesse, que ele o estava aguardando à porta, e defendendo que não entrasse per ela muita gente dos imigos, que apareciam naquele escampado. Ao que o Marichal respondeu, já na terceira vez, que começasse ele entretanto de se poer em caminho, que 160 ele logo vinha, como recolhesse alguns homens que andavam per dentro das casas; e quando Pedrafonso tornou com este recado, peró que em todos foi e veo acompanhado da gente da sua nau, já esta foi com assaz de trabalho. Com o qual recado Afonso de Albuquerque começou de caminhar pela estrada, recebendo nas costas o ímpeto da gente que dissemos concorrer de todalas estradas ao escampado, sem se poderem aproveitar de um berço encarretado que Pedrafonso levava; porque nos recados que foi e veo, pediu ele a Afonso de Albuquerque que o mandasse entregar a outrem, por ser a revolta já tamanha, que não havia poder-se carregar o berço nem fazer obra com ele. Começando entrar pela

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estrada, como a gente vinha desejosa de se abrigar das frechadas, ficou tam apertada entre os valos, e foi logo tanto naire sobre eles com zargunchos e frechas, que começaram muitos dos nossos acurvar, sem poderem fazer dano aos imigos, por os valos serem tam altos, que mui pequena parte de lança ficava na mão a um homem, se lá queria chegar. Finalmente vinham os nossos tam apinhoados, e era tamanho o pó do torpel deles, que, por se não poderem revolver uns com os outros, traziam arvoradas todalas lanças, sem lhe servirem pera ofender com elas a quem os matava, principalmente de cima dos valos, que eram cobertos daquela praga. E pela estrada vinham ladrando uns poucos de naires, que mostravam bem sua soltura na esgrima, por os nossos virem tam cansados, que quando queriam dar ua, tinham já recebido duas; e se cuidavam que o levavam na ponta da lança, em cócoras metido debaixo das pernas o achavam trabalhando por lhas jarretar. E como os homens as traziam de maneira que as não podiam arrojar, de quebrantadas do caminho e afrontamento da grande calma, sobre o trabalho da noite que vigiaram nos batéis, tinham estes naires lugar de os ferir mortalmente. Indo assi todos neste trabalho, veo ua voz dos traseiros, que era um Baltesar Casco, feitor da nau Boaventura, dizendo: - Que pressa é esta, 50v senhores? Volta, volta, que matam o Marichal! Quando esta voz foi ter a Afonso de Albuquerque, que ia no meio do cardume da gente, voltou; mas nunca pôde romper pelos traseiros, por virem tam atochados e sobretudo per 159 seguidos dos imigos, que se não podiam revolver. Finalmente, como poderam em três ou quatro voltas que deram, foi derribado ante os péis de Afonso de Albuquerque, Gonçalo Queimado, que lhe trazia o seu guião, e um seu paje, chamado António Borges, e ele houve ua zargunchada pela garganta, e sobre isso deram-lhe de cima dos valos com um canto per cima da cabeça, que o derribaram logo no chão, o qual meio morto foi posto em um pavés, e acompanhado de Diogo Fernandes, de Beja; e sem ser mais visto com o torpel da gente, o poseram na praia. No qual tempo se acabou de confirmar a vitória dos imigos e fim de alguas vidas dos nossos, assi do Marichal, que perpetuamente com muitos que o acompanhavam ficou dentro da cerca das casas del-Rei, como dos que 161 vinham entre aqueles valos. E certo que era cousa dina de admiração se muito condoer de tam triste caso; porque, contemplando obra de seiscentos homens, que seriam os nossos, entalados entre aqueles valos, tanto sobrelevava o fervor do sol e a poeira dos pés e trabalho que a noite passada té aquelas horas tinham sofrido, sobre toda a força do seu ânimo, que não se podiam defender de até oitenta naires, que pela estrada os perseguiam, derribando poucos e poucos; e o que era mais miserável, se de cima dos valos lançavam naquele cardume dos nossos um zarguncho, ua seta, ua pedrada, nunca dava no chão; e qualquer que acurvava, os pés de todos, trilhando, o acabavam de matar. Finalmente, aqui dous, ali quatro, seis, oito, sempre foram caindo, té que saíram daquela estreiteza do valo ao largo da cidade, a qual, ainda que ardia em fogo, menos sentiram o que nela andava, que aquele forno de morte donde vinham afogados, e cegos de sede e pó. E vendo neste largo quam poucos eram os imigos que os perseguiam, fizeram rosto a eles, com que converteram parte da soltura que traziam, em fugir, e não em cometer como de ante faziam. Ao qual tempo chegou Diogo Mendes de Vasconcelos, Simão de Andrade e outros fidalgos, a quem Afonso de Albuquerque, quando foi em busca do Marichal, encomendou que ficassem na cidade com até duzentos homens, e a acabassem de queimar, e assi uns paraus que estavam na macuaria dos pescadores. E ainda estes capitães acudiram a tempo que deram outro fôlego aos nossos que vinham naquele trabalho; porque, como eles tinham feito fugir naquele escampado da cidade aqueles poucos naires que os perseguiam, vindo pela estrada, foram dar estes fugidos na multidão dos que ficavam nos valos, os quais eram já descidos à estrada, e vieram uns e outros tam tesos sobre os nossos, que, se não acharam estes capitães, ainda teveram outro novo trabalho. Mas

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como os naires sentiram o ferro, começaram a floxar, com que os nossos se vieram recolhendo de mais espaço ao lugar da embarcação, onde também houveram de passar mal; 160 porque, como vinham derramados, segundo cada um podia escapulir do trabalho que havia na cidade, achavam os mouros que se vieram poer na praia a lhe empedir a embarcação. Peró, como D. António ficava por guarda dela, e com ele Rodrigo Rabelo, que a este tempo era já vindo de queimar as naus que estavam no esteiro, que lhe foi encomendado, fizeram a praia franca de maneira que, quando trouxeram Afonso de Albuquerque atravessado no escudo, seu sobrinho D. António o recolheu em a caravela de António Pacheco, que, como dissemos, estava pegada com terra, e nela esteve Afonso de Albuquerque um dia ou dous, por estar tam mal, que da primeira cura não ousaram de o mudar dali pera a sua nau. 162 Quando veo per derradeiro a se todos recolherem nos batéis, houve ainda maior trabalho sobre primores de cavalaria entre Rodrigo Rabelo e Jorge da Cunha, começando haver perfia a quem ficaria per derradeiro, e isto ainda com palavras de paixão, aos quais Jorge Botelho, de Pombal, em modo de zombaria, disse: - Enquanto vós, senhores, aperfiais, quero eu recolher, pois estou ocioso, estas armas que estão por esta praia; per ventura lá lhe acharei dono, por não ficarem em poder de mouros. D. António, vendo também os pontos destes dous capitães, disse-lhes: - Senhores, isso já não é honra, mas contumácia. Eu me embarco, cada um se embarque, quando quiser --. E com isto se embarcaram todos juntamente. Na qual embarcação foi cousa maravilhosa; porque estando o dia passado mar tam medonho 51 naquela costa, que não ousavam os nossos de poer os olhos nele, lembrando-lhe que este dia haviam de poiar em terra, àquela hora parecia um rio muito manso; e se assi não fora, ainda este trabalho houvera de verter mais sangue e vidas do que nesta ida das casas del-Rei pereceram. O qual caso em algua maneira, gente por gente e lugar por lugar, parece que imitou ao do Viso Rei D. Francisco, e que Nosso Senhor permetiu estes dous tam desastrados casos, e tais, que depois deles té hoje não os temos visto no discurso desta conquista. E peró que seja cousa mui atrevida e temerária querer dar causa aos feitos que Deus permite, praza a ele que as mortes de pessoas tam notáveis não procedessem das paixões que se causaram das diferenças dentre o Viso-Rei e Afonso de Albuquerque, porque, com a morte de todos, tudo ficou apagado, por não ficar autor contra réu. Foi o número dos feridos deste triste dia passante de trezentos, e mortos oitenta, em que entraram estas pessoas notáveis: o Marichal D. Fernando Coutinho, que era filho de D. Álvaro Coutinho, que mataram na tomada de Baltanás, em Castela, na guerra del-Rei D. Afonso, o Quinto, e D. Beatriz de Melo, filha do Chanceler-mor Rui Gomes de Alvarenga. E com ele, dentro nas casas del-Rei, foi morto Rui Freire, filho de Nuno Fernandes Freire e de D. Helena de Brito, sua mulher, filha de Artur de Brito; e assi mataram dentro Vasco 161 da Silveira de Almeida, filho de Mosém Vasco de Almeida, alcaide-mor de Linhares, e à porta do terreiro mataram Manuel Paçanha, filho de João Rodrigues Paçanha, e alguns cavaleiros criados del-Rei. E nas voltas que Afonso de Albuquerque fez, mataram Lionel Coutinho, filho de Vasco Fernandes Coutinho, e de Dona Maria de Lima, sua mulher, filha de Dom Lionel de Lima, primeiro Bisconde de Vila Nova da Cerveira. E a Felipe Rodrigues, um cavaleiro da casa del-Rei, capitão da caravela Espera, e a Francisco de Miranda, capitão doutra caravela, e a Fernão Valarinho, um cavaleiro do Algarve. Recolhidos os nossos deste trabalho, como Pedrafonso de Aguiar vinha por sota-capitão do Marichal, três naus - a capitaina, a sua e a de Brás 163 Teixeira - estavam de todo carregadas logo daquele porto de Calecute Afonso de Albuquerque o

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espediu com elas, e mandou a Rodrigo Rabelo, capitão de Cananor, em sua companhia pera lhe ir dar a carga do gengivre, que ainda lhe falecia; e partidas dali, chegaram a este reino a salvamento. E de Cochi espediu a Gomes Freire, Francisco de Sá e Bastião de Sousa, e destas a de Gomes Freire invernou em Moçambique; e as outras duas, assi como ambas partiram um dia depois dele, assi juntamente se foram perder ua noite em os Baixos de Pádua, encalhando em area. As quais, por ficarem dereitas, consertaram os capitães logo os batéis com uas postiças, em que se meteram com a gente que coube, nos quais atravessaram a Cananor em espaço de oito dias, onde chegaram a tempo que Afonso de Albuquerque passava per ali com toda a frota, quando ia fazer o feito de Goa, como veremos. E daqui espediu a António Pacheco com ua caravela, que com muita deligência fosse recolher a mais gente que ficava em as naus, o que ele fez, e tornou com ela a Goa, onde já achou Afonso de Albuquerque, no qual negócio quanta honra António Pacheco ganhou no modo que teve de recolher esta gente por as diferenças em que se viu, por os homens quererem meter consigo algua fazenda, tanta ganhou Fernão de Magalhães no governo em que a teve, esperando té os virem buscar. E se ele com seu Rei e sua pátria tevera tanta lealdade, quanta guardou a um seu amigo, por cuja causa não quis ir em companhia de Bastião de Sousa, pois não recolhiam o outro com ele por não ser homem de muita conta, per ventura não se fora perder com nome de infâmia, como adiante se verá. E neste mesmo tempo espediu Afonso de Albuquerque a nau Santa Cruz, em que foi por capitão Diogo Correa, e com ele Antão Nogueira com alguns mantimentos pera a fortaleza de Socotorá, onde estava seu sobrinho D. Afonso de Noronha, que ele mandava ir pera capitão de Cananor, e em seu lugar havia de ficar Pero Ferreira, que esteve em Quíloa por capitão. E não mandou em companhia desta nau os navios que lhe Duarte de Lemos mandava pedir per Vasco da Silveira, como logo veremos, 162 porque com este desastre, em que ele morreu, ficou a Índia um pouco desfalecida de gente; e esta desculpa mandava-a ele, Afonso de Albuquerque, dar de si a Duarte de Lemos, que andava de armada na boca do Estreito do Mar 51v Roixo, como deste reino foi ordenado, falecendo Jorge de Aguiar, seu tio. E porque, depois que se perdeu na armada do ano de oito, não temos dado razão do que ele, Duarte de Lemos, fez, ante que procedamos em outra cousa, o querermos fazer neste seguinte capítulo.

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162 51v 164 Capítulo II. Das cousas que Duarte de Lemos fez enquanto andou de armada na costa da Arábia, té se ir pera a Índia; e como D. Afonso de Noronha se perdeu, indo de Socotorá pera servir de capitão de Cananor. Atrás escrevemos como por alguas cousas que moveram a el-Rei D. Manuel, o ano de quinhentos e oito mandou à Índia três armadas: ua pera trazer a carga da pimenta; outra de quatro velas, Capitão-mor Diogo Lopes de Sequeira, descobrir a Ilha de S. Lourenço e a cidade Malaca; e a outra de cinco velas, pera andar de armada na costa da Arábia, Capitão-mor Jorge de Aguiar, o qual se perdeu com um temporal que teve junto das ilhas a que chamam de Tristão da Cunha. E como este temporal fez correr todalas outras velas da sua armada a diferentes partes, Duarte de Lemos, que havia de suceder a capitania-mor dela, foi ter aos Médões do Ouro, que é aquém do Cabo das Correntes, onde Diogo Lopes de Sequeira veo ter com ele com o mesmo temporal, e ambos esteveram ali cinco dias, provendo-se do necessário; no fim dos quais, com outro novo tempo que os fez alevantar, foram ter à Ilha de S. Lourenço, a ua enseada a que os nossos chamam de S. Sebastião, ficando nela Diogo Lopes, e Duarte de Lemos seguiu sua derrota té Moçambique, onde depois foram ter com ele os navios de sua armada. Passados alguns dias que se ali deteveram, vendo que Jorge de Aguiar não vinha, com a nova que deu Álvaro Barreto, capitão da nau Santa Marta, que era à ré dele, quando desapareceu, teveram que podia ser perdido; e o que lhe deu mais presunção disso foi contar-lhe Francisco Pereira Pestana, capitão da nau Lionarda, que depois passou pelas Ilhas de Tristão da Cunha, como viram no mar um pedaço de nau e alguas lanças, e outros sinais que pareciam de nau perdida naquela paragem. Com a qual suspeita abertas as sucessões que ele, Duarte de Lemos, levava per segunda via, acharam como el-Rei D. Manuel o provia daquela capitania-mor, de que logo ali começou usar. E porque tinha duas velas sem capitães, deu a capitania delas a António Ferreira, sobrinho de Pero Ferreira, capitão de Quíloa, e a Francisco Pereira de Berredo; e tanto que lhe o tempo serviu, 163 tomando pera si a nau que Francisco Pereira Pestana levava por ser grande, mandou a António Ferreira, que em o navio que lhe deu o levasse a Quíloa, onde havia de servir de capitão, e seu tio Pero Ferreira se fosse com ele a Melinde, onde os esperava, porque ali havia de invernar, como fez. E porque naquele tempo todalas ilhas que estavam na costa de Quíloa té Melinde, assi como Monfia, 165 Zenzibar, Pemba e outras, depois que o Viso-Rei D. Francisco pera ali passou, quando tomou a cidade Quíloa, nenhua tinha pago o tributo que eram obrigadas a ela, como senhora que sempre fora de todas, pelo regimento que Duarte de Lemos levava, quis de passada dar vista a alguas, com fundamento de levar delas algua cousa pera provisão da fortaleza Socotorá, por saber estar bem necessitada. Monfia, que foi a primeira, sem referta pagou o que era obrigada em breu, por ser a novidade da terra e que naquelas partes tem boa valia; mas Zenzibar fez o contrairo, não querendo pagar cousa algua por induzimento do Xeque, que era da linhagem dos Reis de Mombaça, nossos imigos, com que obrigou a Duarte de Lemos sair em terra. Mas isto lhe não foi tam leve como cuidava, porque nela havia muitos mouros, a maior parte dos quais estavam assinados do nosso ferro, assi na tomada de Mombaça, como de Quíloa; e como gente ofendida, em Duarte de Lemos chegando com os batéis a terra, ousadamente lha defenderam enquanto poderam. Mas depois de

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bem esfarrapados na carne com a ponta da lança e espada dos nossos, recolheram-se pera dentro da ilha, e o Xeque, causa deste dano, como homem desconfiado da vida se o tomassem, não ousando parar na ilha, se passou à terra firme de Mombaça em um barco que pera aquele mister tinha posto em outro porto, onde embarcou. Despejada a ribeira, recolhendo-se 52 os mouros à brenha do mato, foram os nossos ter pacificamente à sua povoação, onde acharam algua fazenda conforme a pobreza da ilha; e tornando-se a recolher, foram ter à Ilha de Pemba, onde também o Xeque o quis entreter com desculpas de não haver mantimentos na terra, alegando esterelidade; e porém vendo a determinação de Duarte de Lemos, temeu o castigo de Zenzibar, e pagou-lhe com despejar a ilha, passando-se de noite com quanta gente pôde à cidade Mombaça. Quando os nossos chegaram à sua povoação, acharam tudo tam despejado, que té um pouco de fogo pera queimar aquelas casas palhaças se não achou, somente andando pela ilha em busca de gado por acharem rasto dele, foram dar com uas casas fortes, a maneira de fortaleza em um lugar descuidado, onde o Xeque tinha recolhido sua fazenda já como homem que por nossa causa temia a vezinhança do mar; e parece que com a pressa não pôde levar consigo quanto aqui tinha, porque ainda a gente de armas e marinheiros acharam cousas, que lhe pagou o trabalho do caminho. Recolhido Duarte de Lemos, sem 164 fazer em outra parte demora, tomou o porto de Melinde, onde assentou feitoria pera o trato de Sofala, por ali concorrerem alguas naus de Cambaia que traziam roupas, per as quais resgatava ouro com os cafres. E porque Sancho de Pedrosa, que ia por feitor 166 ordenado pera ali, se perdeu com Jorge de Aguiar, proveo Duarte de Lemos deste cargo a Duarte Teixeira, com escrivães e homens ordenados a feitoria. Assentadas as quais cousas, tanto que o tempo lhe deu lugar, passado o inverno, partiu dali de Melinde no fim de Agosto do ano de quinhentos e nove, levando sete velas com a sua, de que eram capitães Vasco da Silveira, Diogo Correa, Pero Correa, irmãos, que com ele partiram deste reino, e os dous que dissemos que novamente fez capitães, e assi Gregório da Quadra, em um bargantim. O qual, estando ele, Duarte de Lemos, sobre a cidade Magadaxó, por acerto lhe quebrou de noite o cabo; e como naquele tempo as águas correm muito pera o Cabo Guardafu, e di pera a boca do Estreito, como gente perdida foi ter à cidade Zeila, que está fora das portas do Estreito, onde o capitão e os que com ele eram foram cativos, dos quais adiante daremos maior razão. Partido Duarte de Lemos da cidade Magadaxó, onde não fez cousa algua por ser mui duvidoso cometê-la, visto seu sítio e desposição e alguns outros inconvenientes, que foram apontados no conselho que sobre isso teve, partiu-se via de Socotorá pera meter por capitão a Pero Ferreira, como el-Rei mandava, e D. Afonso ia servir de capitão da fortaleza de Cananor. Mas quando atravessou do rosto do Cabo Guardafu, por razão das águas e um tempo que lhe deu, não pôde tomar a ilha, e com assaz trabalho foi dar na costa da Arábia entre as Ilhas de Curiá Muriá, onde surgiu a três de Setembro; e por lhe logo servir o tempo, passado o Cabo de Rossalgate, determinou de ir dar ua vista a Ormuz, e ver se podia haver as páreas que Afonso de Albuquerque com ele assentara, peró que soubesse quam quebrado ficara com el-Rei. Por razão da qual quebra, e todolos lugares daquela costa estarem castigados da mão dele, Afonso de Albuquerque, conformando-se com o pouco poder que levava, enquanto lhe não vinham os navios e gente, que lhe havia de enviar da Índia, como el-Rei lhe mandava, ordenou de usar de ua cautela por lhe os mouros não perderem o acatamento, se quisesse poer o negócio a juízo das armas, sabendo quam apercebida já toda aquela costa estava. E logo em Calaiate, que era o primeiro lugar del-Rei de Ormuz mais vezinho ao Cabo Rossalgate, per a necessidade que levava de mantimento, começou usar desta cautela: e foi que, chegado ao lugar, e vendo que os mouros o despejavam, trabalhou brandamente por haver fala deles, reprendendo-os de fugirem de suas casas, porquanto ele era um capitão del-Rei de Portugal, amigo del-Rei de Ormuz, e que

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165 nenhua cousa lhe mais encomendava, que o bom tratamento de suas cousas; que sua chegada àquele porto mais era com necessidade de mantimentos, 167 que com tenção de lhe fazer dano; que lhe pedia por seus dinheiros lhos quisessem dar. Ao que os mouros responderam que a causa do seu temor fora polo mal que tinham recebido de outro capitão del-Rei de Portugal, o qual andara per toda aquela costa com a mão furiosa, destruindo quantos lugares achava. Duarte de Lemos, porque este era o artefício de que ele queria usar, respondeu que a principal causa por que vinha per aquela costa, era pera saber a verdade das cousas que este capitão tinha per 52v ela feito, pera o escrever a el-Rei, seu senhor, por ser ua das cousas que lhe mais encomendava; e sendo elas tais que merecessem castigo, podiam crer que ele o haveria. Porquanto el-Rei não lhe mandava fazer guerra aos lugares del-Rei de Ormuz, ante era um príncipe com quem desejava ter amizade e comunicação de trato. Que as suas armadas não eram senão contra os mouros do Estreito de Meca e mamelucos do Cairo que tratavam na Índia, polas diferenças que logo no princípio, quando mandava a ela, teveram com os portugueses; e que esta era a causa porque mandava fazer fortaleza em Socotorá pera ali residir ua armada, que defendesse a entrada e saída do Estreito do Mar Roixo a esta gente. Os mouros, ouvindo estas razões de Duarte de Lemos, parecendo-lhe aparentes de verdade, depois que meudamente lhe contaram alguas das cousas que Afonso de Albuquerque per ali fez, e outras que ele acrescentaram em modo de queixume, vieram conceder a Duarte de Lemos os mantimentos que pedia. Os quais, pacificamente recebidos, e ficando com eles em toda paz, foi seguindo a costa, usando este modo em todolos lugares em que surgia, té chegar a Ormuz já no fim de Setembro, simulando ir saber parte destes males de Afonso de Albuquerque, dos quais el-Rei era sabedor per cartas que lhe o Viso-Rei da Índia tinha escrito; e que, segundo achava nova em Moçambique e Melinde, per que passara, o Viso-Rei favorecera muito os capitães que o leixaram, aprovando a causa de sua ida. E serviu tanto este modo de prudência, de que Duarte de Lemos usou, culpando nestas e em outras palavras o rompimento que teve em Ormuz, que assentou paz com el-Rei e Coge Atar, peró não quis mudar as condições dela em tirar o tributo dos quinze mil xerafis, que eles requeriam. Dizendo ele, Duarte de Lemos, que não vinha a desfazer contratos de paz, senão a remover causas de guerra, porque a paz de Ormuz lhe mandava el-Rei, seu senhor, que assentasse; e que verdadeiramente, se Afonso de Albuquerque todalas outras cousas, que naquelas partes fez, foram tais como as que se continham no assento da paz que ali assentara, ele fora dino de lhe el-Rei, seu senhor, fazer muita mercê. E haverem eles por cousa dura dar quinze mil 166 xerafis, esta era a mais leve condição dela; porque, tanto que os mouros 168 de Meca soubessem a paz que ele, Rei de Ormuz, tinha feita com el-Rei de Portugal, logo ficava por imigo deles, e haviam de trabalhar por roubar e destruir quantas naus fossem e viessem daquela cidade sua. Da qual verdade tinha ele, Duarte de Lemos, experiência em el-Rei de Calecute e nos mouros que viviam no seu reino, os quais tratavam as naus de Coulão, Cochi e Cananor com se fossem seus mortais imigos, somente por causa da paz que tinham com os portugueses. Donde foi necessário, pera a estes lugares navegarem suas mercadorias, mandar o Viso-Rei armadas em resguardo das suas naus na monção que partiam pera fora, e que por razão de dar guarda a estas naus lhe mataram seu filho em Chaúl, como eles teriam sabido. E pois isto estava certo naquelas partes, este mesmo modo haviam de usar os mouros do Estreito do Mar Roixo, donde convinha andar naquela costa de contino ua armada nossa; e que, a lhe confessar verdade, ele era ali vindo a este negócio, e a fortaleza de Socotorá com este fundamento a mandou el-Rei, seu senhor, fazer

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pera a armada, que per ali andasse, ir invernar a ela; e ainda pera ele andar com maior força, el-Rei mandava ao Capitão-mor da Índia que lhe enviasse mais velas e gente, e que pera as fazer vir logo dali, havia de espedir um navio. E se a principal causa desta armada, que era ua grande despesa, se fazia por segurança das naus que iam àquele porto de Ormuz, de que na entrada e saída as rendas dele, Rei, eram tam grandes que razão haveria pera ele não contribuir na despesa dela, não com quinze mil xerafis, mas com o dobro? Com as quais razões, e outras práticas que Duarte de Lemos teve com Raix Nordim, que era o principal medianeiro que andava nisso, convenceu a el-Rei e a Coge Atar darem os quinze mil xerafis, com que entre eles ficou a paz assentada nesta parte, segundo as capitulações de Afonso de Albuquerque. E os dias que ali esteve, que foram todo Outubro, houve tanta segurança de paz, que por ser necessário, mandou Duarte de Lemos poer a monte de marés o navio Ajuda; e por mostrar ser verdade o que dezia, que dali havia de mandar um navio à Índia a trazer as outras velas que haviam de andar com ele, espediu pera isso a Vasco da Silveira (parece que o chamava a morte no caso do Marichal, como escrevemos), em companhia do qual foram Diogo Correa 53 e Antão Nogueira, pera virem por capitães dos navios que mandava pedir, por assi ser ordenado per el-Rei. Partido Vasco da Silveira, veo Duarte de Lemos ter a Socotorá, a qual fortaleza entregou a Pero Ferreira, que andava com ele; e leixando a D. Afonso de Noronha um navio dos que trazia consigo pera se ir a Índia, veo ele, Duarte de Lemos, dar ua vista à costa de Melinde pera invernar aí. D. Afonso, partido ele, querendo poer a monte o navio 167 por andar desbaratado, alquebrou e abriu de maneira que ficou sem embarcação, té que 169 veo a nau Santa Cruz, em que Vasco da Silveira tornou à Índia, em que vinham Diogo Correa e Antão Nogueira com os mantimentos que Afonso de Albuquerque mandou, como no precedente capítulo escrevemos. A qual nau Pero Ferreira deu a D. Afonso pera se passar à Índia, e com ele se tornaram Diogo Correa e Antão Nogueira, por não terem navios em que servir de capitães, como el-Rei mandava. E sendo D. Afonso no golfão daquela travessa de Socotorá pera a Índia, tomou ua nau de mouros mui fermosa e rica, e indo com esta presa tanto avante como os Baixos de Pádua, deu-lhe um temporal, que os fez correr té irem dar de focinhos em terra entre Dabul e Goa, onde foram tomados os que D. Afonso nela tinha metido, e logo levados ao Hidalcão. E porque com este temporal ele não pôde com a sua seguir esta dos mouros, que tinha tomado, foi dar na enseada de Cambaia junto da cidade Surate ua béspora do Espírito Santo do ano de quinhentos e dez; e querendo alguns salvar-se no batel com D. Afonso, afogaram-se todos, em que entrou Antão Nogueira, e assi se perderam todos aqueles que da nau se lançaram ao mar, confiados em saberem nadar. Somente escaparam aqueles que se leixaram ficar nela, esperando a misericórdia de Deus, os quais, tanto que a maré vasou, que a nau ficou de todo em seco, foram cativos pelos mouros e levados a el-Rei de Cambaia, que estava em ua cidade chamada Champanel. Entre os quais foi Fernão Jácome, cunhado de D. Afonso, Diogo Correa, Paio Correa, Francisco Pereira e Fr. António, frade de S. Francisco, o que andou entre os socotorinos na conversão deles, e outros que per todos seriam até trinta pessoas, que depois saíram de cativeiro, como se verá em seu tempo. Tornando a Duarte de Lemos, depois que se partiu de Socotorá, andou no rosto do Cabo de Guardafu sem fazer cousa algua, té que o tempo o fez recolher a invernar a Melinde, junto do qual tomou ua nau mui rica, e o primeiro que a rendeu foi Jorge de Lemos, seu irmão, capitão do navio Graça. Passado o inverno, no qual tempo ele, Duarte de Lemos, proveo alguas cousas das feitorias daquela costa até Sofala, que era de sua jurdição, tornou-se a Socotorá, e de caminho esbombardeou a cidade Magadaxó; porque, como é costa brava e (segundo dissemos) da outra vez que passou per ela leixou de a cometer, também nesta passagem não pôde fazer mais que varejar a sua ribeira com artelharia.

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Chegado a Socotorá, já no fim de Maio, achou que era vindo da Índia Francisco Pantoja com ua nau de mantimentos que Afonso de Albuquerque mandava pera provisão da fortaleza; e foi tam ditoso, que na travessa daquele golfão tomou ua nau del-Rei de Cambaia chamada Meri, que foi das ricas presas que naquelas partes 168 fizeram, e tal que importou mais que quantas Duarte de Lemos em todo seu tempo fez. A qual ele mandou repartir per todolos de sua armada per iguais partes, como se foram na tomada dela, dizendo que lhe pertencia, por ser tomada nos mares do limite de sua capitania. E porque assi pelo recado, que ele, Francisco Pantoja, trouxe de Afonso de Albuquerque, como por o que já trouxera Antão Nogueira e Diogo Correa 170 acerca dos navios e gente que lhe não mandava, dando muitas desculpas e causas de o não poder fazer, e ele, Duarte de Lemos, andava mui pobre de gente, por lhe ser morta de doença, e singelo de navios, pera o que requeria as obrigações de sua capitania, e esses que trazia tais que se não podiam ter sobre o mar - determinou de se ir pera a Índia. E ante de sua partida, por ser falecido Pero Ferreira, capitão da fortaleza, proveo dela a Pero Correa, capitão do navio Rosairo, que andava com ele, e o navio deu a Gaspar Cão; e com os outros que trazia, e a nau Meri, que tomou Francisco Pantoja, se pôs na Índia com assaz trabalho. Afonso de Albuquerque, em sua chegada, o que lhe não tinha feito em mandar os navios, pagou-lhe em cortesias e aparato de seu recebimento, dizendo que daquela maneira se haviam de receber os capitães que vinham dos lugares de tanto 53v serviço, como ele tinha feito a el-Rei, seu senhor, e não como o Viso-Rei D. Francisco recebera a ele. E porque deste ano de oito, em que Duarte de Lemos partiu deste reino, nos fica ainda Diogo Lopes de Sequeira, que se achou com ele nos Médãos do Ouro, neste seguinte capítulo queremos dar razão do que passou na viagem do descobrimento que ia fazer.

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168 53v 170 Capítulo III. Da viagem, que Diogo Lopes de Sequeira fez, depois que o ano de quinhentos e oito se partiu deste reino. Como atrás temos escrito, a causa que moveu a Tristão da Cunha ir à Ilha de S. Lourenço foi a mostra da prata e homens que Rui Pereira, capitão da nau S. Vicente, trouxe de Matataná, porto da mesma ilha, os quais deziam haver nela cravo e gengivre. E posto que Tristão da Cunha desta viagem que pera lá fez, não trouxe mais que o trabalho daquela viagem, todavia quando em Moçambique despachou a António de Saldanha pera este reino com carga da nau Frol de la Mar, escreveu per ele a el-Rei D. Manuel, dando-lhe conta desta sua viagem, e que per mostra mandava a Sua Alteza a prata que naquela ilha havia, e dos homens, por serem naturais da terra, podia ser informado do mais que lhe a ele disseram. Com a qual nova António de Saldanha chegou a este reino em Agosto do ano de sete, estando el-Rei em a vila de Abrantes, que o recebeu com muito prazer por a novidade do descobrimento 169 que trazia. E praticando logo em o negócio, António de Saldanha lhe pediu, que, havendo Sua Alteza de 171 mandar a este descobrimento, se lembrasse dele, pois trouxera a nova, ao qual el-Rei logo contentou de palavra; mas quando veo ao despacho, deu esta ida a Diogo Lopes de Sequeira, e a ele, António de Saldanha, a capitania de Sofala na vagante de Vasco Gomes de Abreu, que ainda cá no reino se não sabia ser perdido. A causa por que ele, Diogo Lopes de Sequeira, houve o descobrimento desta Ilha S. Lourenço, foi por el-Rei, ante da vinda de António de Saldanha, o ter ordenado pera ir descobrir Malaca; e por não fazer despesa em duas armadas, assentou que Diogo Lopes podia fazer estes dous descobrimentos; e não havendo na Ilha de S. Lourenço o que se dizia pera poder carregar as naus que levava, então passasse a Malaca. Assi que, com este fundamento, Diogo Lopes partiu no seguinte ano a oito de Abril; e a primeira terra que tomou, depois que desferiu do porto de Lisboa, foi o Cabo Talhado, que é além do de Boa Esperança, donde, tomada água e lenha, se partiu. E sendo tanto avante como os Médãos do Ouro, veo ter com ele Duarte de Lemos, e ambos se partiram daqui com um temporal que os fez correr a Ilha de S. Lourenço, onde a quatro de Agosto tomaram porto em ua enseada a que os nossos chamam de S. Sebastião, com o qual temporal Jerónimo Teixeira se apartou deles. No qual porto acharam dous grumetes, que se perderam com João Gomes de Abreu, capitão da nau Santa Maria da Luz: a um chamavam André, que era português, e o outro Bertolameu, genoês de nação. Partido daqui Duarte de Lemos pera Moçambique, como escrevemos neste precedente capítulo, começou Diogo Lopes correr a costa da ilha té chegar a um reino, a que os da terra chamam Turubaia, do nome de um capitão de ua nau de guzarates, que se ali perdeu. Da gente da qual nau (segundo estava na memória daqueles homens que Diogo Lopes ali achou), eles vinham todos; e aqui estava outro moço per nome António, da mesma nau de João Gomes, per meio do qual, por já saber a língua da terra, o Rei, que se chamava Diamom, se viu em os batéis com Diogo Lopes, e nele não se achou notícia algua do que lhe perguntaram do cravo, gengivre ou prata. Recebido dele muito mantimento do que havia na terra, partiu-se Diogo Lopes daquele porto, e com ele Jerónimo Teixeira, que veo ali ter; e em doze de Agosto, dia de Santa Clara, chegou a ua ilha pegada na costa, a que pôs o nome desta Santa, na qual, por ser bem povoada,

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achou muitos mantimentos, de que se proveo. Seguindo adiante seu descobrimento com resguardo, por a costa ser chea de ilhetas e restingas, chegou ao reino de Matataná, onde esperava achar o cravo e gengivre pela informação 54 que levava; porém ele não achou mais que o bom gasalhado com que os da terra o receberam. 170 Somente soube que o cravo que se ali vira, fora de um junco da Jaua, que com grande temporal esgarrou, e quási perdido veo ter 172 àquela ilha em outro porto dali perto; e do cravo que este junco trazia se espalhou pela terra, e este era o que enganou a Tristão da Cunha. Verdade é que depois per tempo, vendo a gente da terra que aquele fructo era estimado entre os mouros que tem comunicação com eles, vieram a entender em uas certas árvores, que dão um fructo como baga de louro, que tem o mesmo sabor de cravo, e começaram de o trazer aos portos de mar a ver se lhe davam por isso algua cousa. E no ano de vinte sete, em um porto daquela ilha, onde se perderam Manuel de Lacerda e Aleixo de Abreu, capitães de duas naus que iam pera a Índia, como veremos adiante, acharam este fructo já como cousa estimada, a mostra do qual veo ter a este reino. Quanto ao gengivre, este era verdade que a terra o dava, mas não quantidade pera carregação, porque a gente não se dava a o dispor, somente hortavam algum por verem que os mouros folgavam com ele. A prata também os cafres de dentro do sertão da ilha traziam alguas manilhas dela, e era de mui baixa lei, sem os daquele porto de Matataná saberem donde a eles haviam. Diogo Lopes, vendo que todolos fundamentos de sua ida àquela ilha acabavam em tam pouco fructo, como lhe o tempo serviu, pôs o rosto na Índia, correndo porém ao longo da costa da ilha por tomar algum porto, onde se informasse das cousas que havia na terra; e porque, ao tempo que foi demandar a costa da Índia, não era o inverno dela espedido de todo, por ser a vinte de Abril do ano de quinhentos e nove, quando chegou a Cochi, vindo do Cabo Comori, que ele tomou com assaz de trabalho, foi recebido honradamente pelo Viso-Rei D. Francisco. E posto que logo no mês de Maio ele, Diogo Lopes, podera fazer viagem pera Malaca, por ser na monção a que eles chamam pequena, em que os ventos não são tam gerais e tendentes, como no mês de Setembro, deteve-se té vinte oito de Agosto pera correger os navios que levava mal repairados. O Viso-Rei, além dos que ele, Diogo Lopes, levava de cá do reino, lhe deu mais um, de que foi por capitão Garcia de Sousa com sessenta homens de armas, entre os quais ia Francisco Serrão e Fernão de Magalhães; da ida dos quais esta vez e outra, que fizeram com Afonso de Albuquerque, quando tomou Malaca, sucedeu muito dano a este reino, como adiante veremos. E assi lhe deu o Viso-Rei que levasse, como degredados da Índia, a Rui de Araújo, que em Cochi servia de tesoureiro das mercadorias, e a Nuno Vaz de Castelo Branco, que andara em Ormuz com Afonso de Albuquerque; e isto por causa das diferenças que havia entre ele e o Viso-Rei. E alguns quiseram dizer que a razão por que ele, Viso-Rei, deu este navio mais a Diogo Lopes e o favoreceu tanto no bom aviamento 171 que lhe mandou dar pera aquela viagem, foi per ele, Diogo Lopes, ser ua das principais partes que favoreceu as cousas dele, Viso-Rei, por se achar ali; entanto que, quando tornou de Malaca, porque temeu que por esta razão Afonso de Albuquerque lhe pusesse algum impedimento à sua vinda, por a este 173 tempo já servir de governador do Cabo Comori, onde veo ter bem desbaratado, espediu os navios que trazia consigo, que se viessem pera Cochi, e ele rota batida, sem tomar a costa da Índia, se veo a este reino, como logo veremos no seguinte capítulo. Partido Diogo Lopes de Cochi a oito de Setembro, foi tomar o porto da cidade Pedir, que é

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cabeça do reino deste nome, um dos muitos que a Ilha Samatra tem, de que adiante faremos relação. No qual porto achou cinco juncos, que são naus de grande porte, aos quais, por serem de Bengala e Pegu, deu duas bandeiras das Quinas Reais deste reino, em sinal de paz pera seguramente navegarem, sem de nossas armadas receberem dano. El-Rei de Pedir, sabendo de sua chegada com refresco o mandou vesitar, desculpando-se de o não vir ver por estar mal desposto, com palavras em que mostrava ter muito contentamente de virem a seu porto cousas del-Rei de Portugal, com quem ele desejava ter paz e amizade. Ao que Diogo Lopes respondeu de maneira que, per aprazimento dele, meteu ali um padrão de pedra dos acostumados em os tais descobrimentos; e per o mesmo modo foi recebido em o reino de Pacém, que é adiante pela costa da ilha vinte léguas, onde meteu outro, ficando estes dous reis em nossa amizade. E posto que o de Pedir lhe dava carga de 54v pimenta, de muita que se ali colhe e carrega pera muitas partes, ele a não quis aceitar por ir avante, temendo que, nesta detença de tomar algua, viessem mais juncos dos que ali achou, que o empedissem ou fossem dar nova a Malaca de sua ida, por estes dous portos de Pedir e Pacém serem frequentados de muitas naus, que ali vem carregar por causa das mercadorias que neles há, e assi nos outros reinos desta Ilha Samatra. Diogo Lopes, posto que se deu a grã pressa por ele ser o primeiro per quem Malaca soubesse de sua ida, já quando chegou a ela, esperavam por ele. Da fundação e sítio da qual, e grandeza da Ilha Samatra a ela fronteira com os reinos que se nela contém, adiante mui particularmente faremos menção; aqui baste saber que esta cidade está situada no canal que corre entre a terra firme do Norte, que é da Ásia, e a Ilha Samatra, da banda do Sul, a qual Malaca fica quási no meio dele, situada em altura de dous graus da parte do Norte, e o lançamento dela jaz ao longo do mar per distância de ua légua; e com um rio que vem do sertão, fica cortada em duas partes, e ambas se comunicam per ua ponte. E posto que todalas casas eram de madeira, tirando a mesquita e alguas do aposento del-Rei, tinha a cidade 172 ua mostra de tanta majestade, assi pola grandeza da povoação e número de naus que estavam em seu porto, e tráfego do concurso da gente do mar e na terra, que houveram os nossos ser maior cousa do que se dezia, e que nela tinham descoberto mais riqueza do que era a da Índia. Os moradores dela também, vendo as nossas naus e o aparato das suas bandeiras, trombetas e artelharia, que assombrou aquelas praias, ficaram muito mais espantados por verem mais em nós pera temer, do que os nossos viam neles. 174 Os moradores da qual, chamados malaios, posto que eram mouros, que geralmente avorrecem o nome cristão, estes como ainda não estavam assinados do nosso ferro, não nos tinham tamanho ódio como a nação dos arábios, párseos e guzarates que ali haviam estantes e navegavam na Índia, por causa de algum dano que tinham recebido de nossas armadas. Os quais, com infâmias que punham em nossos costumes e comunicação, tinham indinado muito o povo gentio que ali havia, assi como bengalas, pegus, siames, jaus, chins, luções, léquios e outras muitas gerações, que por razão do comércio concorriam àquela cidade. E como gente assombrada do nosso nome, tanto que viram surgir Diogo Lopes, todos em geral começaram acudir a ribeira; e muitos batéis de serviço do grande número de velas que ali estavam surtas, ferviam de uas em outras, e do mar pera a terra, como gente mais temerosa de nós que espantada da novidade das naus e feição de trajo que os nossos levavam. Somente três naus, que ali estavam dos povos chins, gente que habita a mais ocidental terra que sabemos, que é a região do Sinas, de que falaram os geógrafos, e deles tam metidos de baixo do Norte, que usam vestir pano e outras cousas a nosso modo, quando viram o trajo dos nossos, peró que tinham notícia deles pelos mouros, como pessoas suspeitas, logo conceberam o contrairo do que lhe disseram. E a mostra que deram disso foi em seus batéis rodearem confiada e seguramente as nossas naus; e, se leixaram de chegar muito a elas, foi pola ordenança da terra, que até os oficiais da

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cidade as não irem despachar, ninguém pôde ir a elas. Havendo já bom pedaço que Diogo Lopes era surto, quási em modo deste costume chegou um barco a sua nau e perguntou que gente era e donde vinha e que mercadoria traziam, e isto da parte do bendara, governador da cidade. Ao que Diogo Lopes mandou responder que era capitão del-Rei de Portugal, enviado per ele ao Rei daquela cidade com certas cousas que compriam a bem dela. O qual batel sem mais interrogações voltou logo, e di a pouco vieram dous batéis com gente mais limpa: um era da parte del-Rei e outro do bendara, seu governador, em modo de visitação, com palavras brandas e mais simuladas que verdadeiras, ao que Diogo Lopes respondeu com o retorno que elas requeriam. 173 Passado aquele dia e o seguinte de sua chegada, que tudo foram visitações, ao terceiro, per ordenança del-Rei, posto ele em modo de receber a embaixada, que Diogo Lopes dezia que lhe levava, mandou em seu lugar Jerónimo Teixeira com nome de seu irmão, tomando por desculpa de não ir em pessoa por vir maltratado, e também por aquele seu irmão vir ordenado pera aquele negócio, como ele pera capitão da frota. 175 Chegando a terra em dous ou três batéis embandeirados 55 com grande festa de trombetas, cheos da mais limpa gente da armada, que acompanhava Jerónimo Teixeira, foi recebido de muitos mandaris del-Rei, que é a mais nobre gente da cidade, e por lhe fazer mais honra, levado em um alifante muito arraiado, e todolos que o acompanhavam a pé, té chegarem as casas del-Rei. O qual, no modo de seu tratamento, mostrou estimar muito sua ida, o que lhe disse da parte del-Rei D. Manuel, de quem levava ua carta de crença escrita em arávigo, concluindo ele em sua reposta, que este seu recado seria um nó de paz e amizade, que nenhum tempo teria poder de o desatar; e que em sinal disso ele mandaria logo ao bendara que aquelas suas naus fossem em breve e mui bem despachadas. Com as quais palavras Jerónimo Teixeira e os que o acompanhavam, vieram mui contentes, por serem acompanhadas de muita honra que lhe fizeram, e de alguas peças que lhe el-Rei deu, em retorno das que levavam.

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173 55 175 Capítulo IV. Como per induzimento do Bendará, Governador de Malaca, el-Rei ordenou de matar todolos nosso, e cometeram Diogo Lopes, estando em a sua nau jogando o enxedrez; e da invenção dele naquelas partes, e como Diogo Lopes se salvou. Havia naquela cidade três homens sobre quem estava todo o conselho del-Rei: o principal, que era o Bendará, por ser seu parente, tinha a administração da justiça e quási de todo governo do reino, homem absoluto em seu ofício e tirano per condição, e acerca de nós mui odioso por razão desta cobiça, como logo veremos. O outro havia nome Lacsamava, que era Capitão Geral do mar, ao modo que acerca de nós é o almirante, ofício trazido a nós do uso dos arábios, se havemos de dar crédito à etimologia do vocábulo. E o terceiro se chamava Tamungo, a quem pertencia o negócio da fazenda. E como acerca dos que andam chegados aos reis é enfermidade mui geral paixão de compitência, por os seus ceúmes darem menos repouso que os outros, eram estes três homens mui infermos desta infermidade, causa de todolos males que sobrevêm aos reinos onde ela reina mais que os próprios reis, como aconteceu a este. Porém estava o ódio assi regulado entre eles, que do grande que Lacsamava 174 e o Tamungo tinham ao Bendará por ser mais soberano, vieram fazer concórdia entre ambos pera sempre o contrariarem. E porque com nossa chegada el-Rei teve logo alguns conselhos sobre o despacho de Diogo Lopes, 176 e o Bendará, além do ódio de mouro, teve outra cousa mais principal pera contrariar nossas cousas que foi ser mui bem peitado de todolos mercadores mouros ali residentes, em cujas mãos andava o comércio desta cidade pera a Índia - como era homem que tinha ante el-Rei muita autoridade, se os outros o não contrariaram, logo em Jerónimo Teixeira poendo os pés em terra, nele e nos de sua companhia quisera el-Rei executar o seu conselho, que era dar ordem como todos fossem cativos e mortos, e as naus metidas no fundo. Mas quando viu que estes dous contrairos seus empediam com suas razões o que ele amoestava, e que nisto lhe ia muito interesse, teve modo como el-Rei ouviu secretamente alguns mercadores destes, per quem ele era rogado. Finalmente, uns e outros induziam a el-Rei que a este reino não viesse algua daquelas cinco velas; pera a qual obra se fazer a seu salvo, ordenou el-Rei de convidar a Diogo Lopes, e porque temeu que ele não quisesse aceitar este banquete nas suas casas, por o mais segurar, simulou que, por honra de capitão de tal Rei, que de tam longe lhe enviava embaixada, queria celebrar esta festa em ua praça vezinha ao mar, em um grande cadafalso de madeira coberto de muitos panos de seda. O qual banquete aceitado per Diogo Lopes, a força de se não poder escusar sem manifestamente mostrar desconfiança, foi logo avisado per meio de ua jaua de casa de um jau chamado Utimuti-rajá, o mais rico e poderoso de toda a cidade, como se verá adiante, quando Afonso de Albuquerque neste próprio cadafalso lhe mandou cortar a cabeça, como a um dos mais principais autores destes tratos e doutros 55v piores de que ele usou. Diogo Lopes, tanto que soube que as honras daquele cadafalso que se começava armar eram pera matarem a ele e a quantos levasse consigo, ante que viesse o dia limitado e a obra do cadafalso fosse mais avante, fengindo nova doença de um desastre que o mancou de um pé, mandou-se desculpar a el-Rei. E ora que ele sentiu o receo que Diogo Lopes tinha, ora per qualquer outra causa, per indústria do Bendará converteu esta obra a outro modo - convidá-lo a que mandasse receber à cidade ua soma de cravo e de outras drogas e mercadorias, porque destas lhe sentia mais

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fome por os requerimentos que cada dia tinha sobre isso, dizendo que, por lhe dar bom aviamento, as tomava a alguns mercadores que as tinham pera carregar pera a Índia e Bengala. Que mandasse quem havia de receber, e fossem homens ordenados pera quatro partes, por estar em quatro mãos, mostrando ser necessário per este modo o seu despacho por se receber tudo em um dia, porque, sendo 175 per muitos, escandelizaria a alguns mercadores estantes ali, vendo que se negara a eles carregar primeiro, sendo dos primeiros que eram ali aportados, segundo a ordenança da cidade, que quem primeiro chega, primeiro se parte. 177 Pera o qual dia ordenou ua armada de muitas lancharas e calaluzes de remo, que estevessem detrás de um cabo, a que os nossos ora chamam Rachado, que será obra de três léguas da cidade contra a Índia, e a um certo sinal viessem sobre as nossas velas; em o qual tempo havia de estar em a nau de Diogo Lopes um filho de Utimuti-rajá com gente pera o matar às crisadas, ao sinal ordenado. Tomando todolos malaios per costume os dias ante deste, em que esperavam pôr em efeito esta traição, irem e virem aos nossos navios a comprar e vender cousas leves por não haverem por estranho quando fossem ao caso. Dizendo todos aos nossos que, por ser fora da monção, estava a cidade pobre das mercadorias que eles queriam, e também alguns dos nossos, a quem Diogo Lopes dava licença, faziam outro tanto na cidade; e porém mais a fim de ver e notar as cousas dela, que por razão de compra. E sendo já passados quorenta dias em que assi da nossa parte como da sua havia esta comunicação e comércio, tendo o Bendará um intento e Diogo Lopes outro, no dia ordenado desta traição, mandou Diogo Lopes até trinta pessoas, pelo modo que o Bendará ordenou, a receber o cravo com alguas mercadorias que haviam de dar a troco dele. Idos estes homens à cidade, veo a nau de Diogo Lopes com algua gente bem tratada em modo de folgar um mancebo filho de Utimuti-rajá, a chegada do qual foi a tempo que Diogo Lopes estava jogando o enxedrez; e tanto que entrou em a nau, deu Diogo Lopes de mão ao enxedrez por o agasalhar. O mouro, como levava no peito sua maldade, por segurar mais a Diogo Lopes e se deter té que visse o sinal que esperava, pediu-lhe que tornasse ao jogo, que o queria ver; e depois que o viu armado e o mudar das peças, entendeu o que era e disse que também entre eles havia aquele jogo, mas que não tinha tantas peças, e começou devagar ir perguntando pelo nome delas e o modo de seu andar, por dilatar o tempo té o sinal que esperava da terra, que havia de ser depois que dessem nos que lá eram. E posto que seja cortar o fio deste caso em que estávamos, porque acerca de nós é recebido que este jogo de enxedrez se inventou entre os arábios, por darmos mais um autor ao livro de Apolidoro Virgílio, que tratou dos inventores das cousas, faremos ua pequena digressão, recitando o que temos sabido da invenção dele per doutrina de um livro escrito em párseo, chamado Tarigh, que treladámos desta língua, o qual é um sumário, de todolos reis que foram na Pérsia, té um certo tempo que os arábios com sua seita de Mafamede a sojugaram. A qual escritura diz que na Pérsia 176 reinou um príncipe gentio, chamado Nixirauhon, de alcunha per párseo antigo Quissera, e per arávigo 178 Hadel, que quere dizer justo, por ser homem nesta parte de justiça tam inteiro, que quando acerca dos párseos querem louvar um homem desta virtude, dizem: É um Nixirauhon. E entre muitas cousas que se dele escrevem, é que, querendo fundar uns paços em ua aldea, por ser lugar gracioso de muitas águas e boa comarca, foi necessário comprar muitas propriedades dos vezinhos do lugar, entre as quais havia a casa de ua velha, que per nenhum preço a quis vender, e dava por reposta a quantos partidos lhe el-Rei mandava cometer, que ele, Rei e Senhor era da terra, e que bem lhe podia tomar sua casa, mas que per sua vontade nunca a leixaria; porque, como ela era o berço em

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que se criara, ela havia de 56 ser o ataúde de sua sepultura, porquanto nela mandava que a enterrassem. Vendo-se el-Rei tão contrariado neste seu apetite daquele edefício, porque, segundo a desposição do sítio e da traça, a casa desta velha lhe ficava por embigo das suas, e convinha danar muitas por salvar a esta, todavia mandou fazer os paços e que a casa da velha ficasse salva com sua serventia pera fora, de maneira que lhe não fizessem nojo. Os quais paços, depois que foram acabados, como eram ua das magníficas e sumptuosas obras daquele tempo, tinham tanta fama, que qualquer pessoa que vinha à Corte del-Rei os havia de ir ver, por estarem perto da cidade onde ele mais resedia. E acertando dous embaixadores, que eram vindos a ele de outro rei seu vezinho, de irem ver esta obra, quando tornaram a el-Rei Nixirauhon, louvaram-lhe muito a majestade e instrutura da obra; e um deles, que era filósofo, per fim de todolos louvores, disse que lhe parecia aquela obra ua pedra preciosa, em que a natureza quis mostrar quam perfeita era; e que o caso, envejoso e imigo de toda perfeição, por macular tam perfeitíssima cousa, buscara a mais vil que achou e a pôs no meio dela, e esta fora a casa daquela velha; que se espantava muito dele, por satisfazer a contumácia dela, poder sofrer aquele grande defeito em tam perfeita cousa. Ao que el-Rei respondeu, que mais se espantava dele, sendo homem filósofo, não entender que a casa daquela velha era a melhor peça que os paços tinham, e que lhe davam mais lustro e decoro que quanto ouro nele estava, porque, naquela pobre casa, se via ser ele justo às partes, e na sumptuosidade da obra, ficava infamado de vão e pródego em cousas materiais, como era a instrutura deles. Porém por lhe não parecer que consentia na vontade da velha por glória de ser havido por justo, lhe queria dizer a causa que o movera a não a escandalizar, em que veria proceder mais de vício que de vertude, por ter seu fundamento em temor de pena. Então começou a contar que, sendo ele mancebo, indo per ua rua, vira ir diante si um mancebo travesso, que 177 travava pelo caminho com todos; o qual, 179 vendo estar um cão a ua porta sem lhe ladrar nem fazer cousa algua, tirou-lhe com ua pedra e fez-lhe um arremesso que foi assi certo e de força, que lhe quebrou ua perna, e passou adiante saltando e gloriando-se de o cão ficar esganiçando-se com a dor. E indo ele assi neste prazer, foi dar com um homem que ia a cavalo; e parece que o cavalo era malicioso, porque, sentindo o outro detrás, que vinha naqueles saltos de prazer, tirou um couce, com que lhe quebrou ua perna, e ele ficou doendo-se da sua dor, da maneira que fez o cão. O senhor do cavalo, fazendo pouca conta do mancebo ficar assi, foi seu caminho, e acertou de estar no meio da rua um buraco de ua cova arrunhada, da qual não se esguardando, meteu o cavalo o pé, com que dera o couce, e o senhor, por se tirar do perigo, deu-lhe rijo das esporas, com que o cavalo, por sair, caiu pera ua ilharga, ficando-lhe a perna quebrada pela cana. As quais cousas nele, Rei, fizeram grande espanto, donde tirou que os juízos de Deus eram mais profundos do que os homens queriam entender; e que pois eram tam particulares, que desciam aos brutos animais que fariam acerca dos homens, que tem plantada no ânimo esta lei comum - que não devem fazer o que não queriam que lhe fosse feito? Donde, quando a velha lhe negou aquela sua casa, peró que ele lha podera tomar, temeu muito o juízo de Deus, que alguém podia tomar a sua a ele ou a seus filhos, do qual feito ele, filósofo, podia crer que aquela justiça que ele, Rei, obrara com a velha, fora mais temor de pena que amor de vertude. E como com esta e outras obras de tanta justiça que este Rei fazia em seu tempo, tinha grande fama per toda a Ásia, e sobre a virtude natural tinha outra parte adquerida, que era doutrina de letras, por razão das quais amava os doutos nelas, concorriam a ele muitos filósofos. Entre os quais veo um chamado Acuz Farlu, que lhe trouxe o jogo do enxedrez, não com tantas peças como nós usamos, somente com aquelas que convinham ao número dos magistrados com que naquelas

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partes se regem as repúbricas, querendo ele representar nestas peças o governo de um reino em modo político, donde o jogo ficou em uso, e o tempo foi depois acrescentando e diminuindo peças, esquecendo a teórica que este filósofo queria plantar no ânimo daqueles que governam. Em alguas peças de marfim, que nós houvemos da Índia, o rei está sobre um elefante e o roque a cavalo, e cada ua das peças com a distinção do ofício que tem; e dos pérseos passou este jogo aos arábios, 56v os quais são tam dados a isso e tam destros nele, que, andando caminho, de cor, sem haver peças, o vão jogando, como se tivessem o tavoleiro diante. E o grão Tamor Langue, a que muitos corruptamente chamam Tamor Lam, cuja vida 180 nós temos em párseo, e de que ao tempo que compúnhamos esta história, 178 tínhamos tirado em nossa linguagem boa parte dela, sendo parto de nação e senhor de toda a Pérsia, acaso pôs nome a um filho de ua das peças do enxedrez. E a causa foi esta: Estando com um seu capitão jogando este jogo, ao tempo que ele com um roque dava xaque-mate, lhe deram nova que sua mulher, Catalu Agon, parira um filho; e porque no jogo ia grande preço, tomou por bom pronóstico do filho ser-lhe dada a nova a tempo que o ganhou, dizendo ser sinal que havia de ser vitorioso, e do caso lhe pôs o nome, chamando-lhe Xaroque. Sobre o qual nascimento se tiraram grandes juízos; e segundo conta esta crónica, ele nasceu na era de Mahamede de setecentos e nove, e teve por ascendente Pisces, e estava Júpiter e Vénus em conjunção na casa de Libra e o Sol na décima; e per este modo vai o historiador dizendo toda a situação dos planetas, como homem que se quis mostrar astrólogo. E desta palavra Xaroque podemos entender que acerca de nós anda corruto este modo de dizer xaque do roque, porque esta palavra Xaroque, pársea, é composta de duas partes, xá e roque. Xá, denotação da real dinidade que somente compete à pessoa do rei; donde, ao que ora reina na Pérsia, sendo seu próprio nome Tamaz, antepõe esta parte Xá, dizendo Xatamaz, como se dissessem o senhor Tamaz ou como dizem a el-Rei de França, Xira. Ao modo do qual filósofo Acuz Farlu, não por imitar a ele, porque ainda eu não tinha visto esta história, mas porque em modo de arte memorativa a memória podesse reter esta doutrina moral, como usou o filósofo Cebetes na pintura de sua távoa, que quis introduzir a virtude e reprovar os vícios: assi per artefício de jogo de távoas reduzi toda a Ética de Aristóteles, em que entravam todalas virtudes e vícios per excesso e per defeito. O qual tratado derigi à Infanta D. Maria, que depois foi Princesa de Castela, filha del-Rei D. João, o terceiro, nosso senhor, com o qual ela jogava. E tendo eu propósito de poer a Económica também em jogo de cartas, e a Política nesta de enxedrez, por estes três serem os mais comuns jogos, ao menos por neles aprenderem os homens o nome da vertude e como se devem haver no uso dela, já que não há i modo pera leixarem de jogar, vi eu tam poucos devotos do primeiro, que não quis trabalhar nos outros. Tornando à nossa história, em menos tempo do que gastámos em fazer esta digressão, eram vindos da cidade de Malaca às nossas naus mais de vinte barcos, e de dous em dous se punham a bordo, como que vinham fazer feira com os nossos de alguas cousas que traziam pera os terem ocupados nisso; e o filho de Utimuti-rajá estava sobre Diogo Lopes com o espírito mais pronto, 181 quando lhe seria feito o sinal pera a obra a que vinha, que nas peças do enxedrez. O coração do qual, como estava determinado, não o leixava assossegar; e de quando em quando alevantava-se e punha-se em pé sobre Diogo Lopes, que estava baixo, pronto no tavoleiro, 179 e acudia com a mão a um cris, arma ao modo das nossas adagas. A qual cousa de cima da gávea via um grumete, que servia de gajeiro, por estar com o sentido nos mouros que rodeavam Diogo Lopes, não com suspeita que deles tivesse, mas como anjo que Deus ali pôs pera vigiar as vidas daquela sua gente. Porque certo quem cuidar neste perigo e em

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outros muitos que ante e depois os nossos passaram, verá quanto Nosso Senhor quis mostrar que o descobrimento destas partes procedeu milagrosamente; porque onde desfalecia nossa prudência, ali acudia ele com sua misericórdia, como se mostrou neste grumete. O qual neste instante, tirando os olhos dos mouros e olhando pera a cidade. como já os mouros andavam matando os nossos, que eram receber o cravo, viu vir alguns correndo contra a praia, onde estavam certos marinheiros esperando em os batéis por eles. E neste mesmo tempo em ua das outras naus, mui perto de Diogo Lopes, onde estavam outros mouros em os barcos, a quem era encomendado a entrada dela, sobre o vender das cousas que eles traziam pera dessimulação deste feito, de alvoroçados, sem guardar o sinal que estava assentado entre todos pera darem a um tempo, começaram de vir às crisadas com os nossos, de maneira que juntamente assi nesta nau e em terra, como em ua ilheta, onde outros marinheiros estavam cozendo um pouco de breu pera brearem o seu batel, viu este grumete 57 o rumor dos mouros contra os nossos. E movido mais per Deus que sabendo o que dezia, começou a grandes vozes dizendo a Diogo Lopes: - Senhor! Senhor! Traição ! Traição! Matam os nossos! Às quais palavras Diogo Lopes subitamente se levantou rijo, dando com o tabuleiro em terra, com o qual súbito movimento o filho de Utimuti-rajá e os que estavam com ele assi ficaram cortados, parecendo-lhe serem sentidos e presos por isso, que uns per um bordo e outros per outro se lançaram todos aos batéis em que vieram. Quando Diogo Lopes viu esta revolta nos mouros e as outras da terra e no mar, por cuja causa o grumete bradava, a grã pressa mandou batéis a terra acudir a Francisco Serrão, que com três ou quatro grumetes, que fugindo da cidade escaparam em um batel, vinham muito apertados de alguns barcos dos imigos, que os tratavam mal, té que lhe valeu um batel em que ia Nuno Vaz de Castelo Branco, Fernão de Magalhães, Martim Guedes, que trouxeram este batel entre as nossas velas pera os defender com a artelharia. Neste mesmo tempo também a armada que estava detrás do Cabo Rachado, começou a se descobrir, a qual cousa assi meteu a Diogo Lopes em 182 confusão, vendo o grande número das velas, e quam mal apercebido estava pera as esperar, que o mais prestes conselho que teve foi dar à vela e, ante de sua chegada, picar as amarras, por não haver mais tempo; e foi esperar os imigos, que vinham mui soberbos com o grande número de gente e velas que traziam. Porém, depois que experimentaram a nossa artelharia, e ela 180 começou meter alguns no fundo, os mais que ficavam foram buscar abrigada da cidade, onde estava assentado, ao longo da ribeira, um comprido lanço de artelharia, que a este fim de emparar estas velas se pusera dous dias havia. E posto que Diogo Lopes logo lhe pudera fazer mais dano, recolheu-se ao pouso onde estava, té saber parte da gente que tinha em terra, e achou que com ela lhe faleciam sessenta homens, em que entravam alguns que mataram, vindo-se recolhendo aos batéis, quando Francisco Serrão escapou, de que um deles era o piloto-mor da armada, e assi dez que estavam na ilheta, cozendo breu. Diogo Lopes, passado aquele súbito acidente, e sabendo per Francisco Serrão que Rui de Araújo, com alguns que estavam com ele em ua casa, onde feitorizavam as cousas a que eram idos, se pôs em defensão quando o cometeram, parecendo-lhe que, pois ficava vivo quando Francisco Serrão o leixou, que era necessário esperar té saber se era morto ele e os outros, e sobre isso se determinaria no que fariam. Porém em dous dias que se ali deteve por causa de os haver, nos quais foram e vieram recados seus e do Bendará, toda a conclusão foi mandarem-lhe três grumetes per vezes, e dous eram os moços que ele, Diogo Lopes, achou na Ilha de S. Lourenço, e outro um negro, e com eles dezoito bahares de cravo, e isto com artefício, esperando de o ter com um recado del-Rei, que foi o derradeiro, dando grandes desculpas do caso, dizendo que ao tempo que se fizera, ele era fora em ua quintã, e que, segundo tinha sabido o caso procedera de mouros que tratavam na Índia, a quem os nossos tinham tomado certas naus, que em modo de represária o cometeram.

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Diogo Lopes, vendo que dele não podia haver mais dos que lá ficavam, os quais, segundo deziam os moços, podiam ser até trinta e tantos, teve conselhos com os capitães, e assentaram ser mais serviço del-Rei partir-se e trazer-lhe nova deste descobrimento, que tomar emenda desta traição. No qual feito podiam receber maior dano, que dos cativos que ficavam, porque estes mui breve remédio podiam ter per resgate ou per qualquer outro modo que bem parecesse ao Capitão-mor da Índia; e mais como a navegação daquela parte de Malaca se navegava com vento geral, a que eles chamam monção, se perdessem oito dias por estar no fim dela, era forçado esperarem ao menos três meses pera tornar aquele tempo pera sua navegação. Finalmente, vistos todolos inconvenientes, foi assentado que se partissem, 183 e por espedida mandou Diogo Lopes tomar um homem e ua mulher, que tomaram nos barcos, que estavam vendendo a bordo das naus o dia do alevantamento, e metendo a cada um ua seta pelo casco da cabeça, em um barco dos seus foram postos em terra, com recado a el-Rei, que per aqueles dous vassalos seus lhe mandava noteficar que a traição cometida custaria àquela sua cidade, ante de muito tempo, ser per os portugueses metida a fogo e sangue, se lhe não valessem os que lá ficavam; por isso que os tevessem em boa guarda. Feito à vela do porto de Malaca, ante que tomasse a ilha, a que os 181 nossos chamam Polvoreira, que será dela quorenta léguas, onde esperava fazer aguada, tomou dous juncos que iam pera Malaca. O primeiro deles assi foi trabalhoso, que custou o despojo dele sete ou oito homens dos nossos, e o outro per um desastre houvera de custar a vida de Jerónimo Teixeira e de trinta homens que Diogo Lopes mandou 57v meter nele, depois de o ter rendido de noite Garcia de Sousa com o seu navio taforea. O qual Jerónimo Teixeira não ia a mais, que pera com os outros o terem assi rendido per popa da nau capitaina, té que viesse a menhã e o despejarem; mas como os jaus são homens que usam muito deste ardil, fazem logo os navios todos repartidos em câmaras, a que eles chamam peitacas, pera este uso, que podem alagar a nau de água sem lhe entrar na mercadoria, per o qual artefício, tanto que viram os nossos dentro, como era de noite, deram roubos nele e meteram tanta água, que dava já pela perna aos nossos. Os quais, vendo-se naquele perigo, recolheram-se aos castelos da vante, e bradando pelo Capitão-mor, em lugar de lhes valer, mandou dar um pique ao cabo per onde o tinha atoado, temendo que, indo-se a nau ao fundo, fizesse sessobrar a ele, com que o junco ficou à vontade do mar, que o levou da companhia das outras velas, indo Jerónimo Teixeira e outros a Deus misericórdia, mas aprouve a Deus que se teve tento pera que parte corria, ainda que era de noite, que foi ter com eles Garcia de Sousa, que os salvou. Passado este trabalho, leixando o junco como perdido, veo surgir à Ilha Polvoreira, onde esteve vinte dous dias refazendo-se de algum corregimento que os navios haviam mister, e ali queimou o navio, capitão Gonçalo de Sousa, por não ter gente do mar pera marear; e em se fazendo daqui à vela, se perdeu a nau Santa Clara, capitão Jerónimo Teixeira, em um baixo, ao qual deu o navio de João Nunes, por ele, Jerónimo Teixeira, ir por Sota-Capitão-mor. E di veo ter ao porto de Pedir, e, ante de entrar nele, meteu no fundo um junco de Malaca, que saía de dentro, do qual porto, rota batida, veo demandar a costa da Índia. E o primeiro porto que tomou dela foi Travancor, que está junto do Cabo Comori, onde tomou três juncos de mouros, que vinham de Choromandel carregados de arroz, de que proveo a sua nau 184 pera se vir só a este reino, e o mais deu às outras duas naus de sua companhia, capitães Jerónimo Teixeira e Garcia de Sousa, mandando-lhe que se fossem a Cochi pera tomarem carga, por não virem boiantes a este reino. As quais chegaram a Cochi, onde Afonso de Albuquerque estava bem necessitado de mantimentos, por chegar então bem desbaratado do feito de Calecute, em companhia dos quais

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capitães Diogo Lopes não quis ir, temendo que Afonso de Albuquerque, fengindo algua cousa, o quisesse empedir a vir aquele ano, por razão do favor que ele, Diogo Lopes, deu à parte do Viso-Rei, quando ali esteve no tempo das suas 182 diferenças. E daqui de Travancor, em Janeiro de quinhentos e dez, se fez à vela pera este reino a vinte sete de Abril, e milagrosamente chegou à Ilha Terceira mui desbaratado por se não querer ir repairar a Cochi com receo de Afonso de Albuquerque. Tanto temem os homens aqueles que ofendem, quando os vem poderosos, que se despõem a maiores perigos, do que são os danos que imaginam poderem receber deles. E daqui das ilhas, depois que se proveo, veo ter a este reino, onde foi mui bem recebido, peró que não veo tam carregado da fazenda, quando era a esperança no tempo que de cá partiu.

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182 57v 184 Capítulo V. Como Afonso de Albuquerque, depois que despachou as naus que aquele ano vieram, pera este reino, partiu de Cochi com ua armada pera ir a Ormuz, e no caminho lhe sobreveo caso, com que converteu esta ida em dar na cidade Goa. Afonso de Albuquerque, depois que espediu as naus da armada do Marichal com carga de especearia pera este reino, e assi os navios que mandou à Ilha Socotorá pera provisão da fortaleza (como atrás fica), começou logo de entender no repairar das naus e navios que lhe ficaram, por todos estarem tam desbaratados, que haviam mister grande corregimento, e mais pera tanta obra como lhe el-Rei mandava fazer, principalmente ir-se ajuntar com Duarte de Lemos, e fazer ua fortaleza dentro no Mar Roxo, e tomar assento em as cousas de Ormuz e outras que estavam em aberto, pera que convinha andar ele sempre no mar. E como Afonso de Albuquerque naturalmente era homem fragueiro e árdego em os negócios, e sucedera ao Viso-Rei D. Francisco com ódio de suas deferenças, e sobre isso entrou na governança da Índia com aquela quebra do feito do Marichal, peró que nele 58 não teve culpa, quando à geral openião de todos, por mostrar a el-Rei que não era ele homem que havia de lançar a perder a Índia, como lhe tinham escrito seus amigos, mas que havia de acrescentar o estado dela, era tão fervente 185 no aviamento destas cousas e cansava tanto os oficiais, que o não podiam aturar, porque nunca dormia, nem assossegava de dia e de noite, e queria que todos tomassem a sua apressada andadura. No qual tempo, enquanto durou o apercebimento destas cousas, os reis e príncipes vezinhos o mandaram vesitar, como eles costumam na entrada de qualquer novo capitão, entre os quais foi Melique-Iaz, senhor de Dio, e Melique-Gupi, seu competidor, senhor de Baroche, ua cidade mui principal na enseada de Cambaia, a cujo poder foi ter Fernão Jácome e outros que se perderam com D. Afonso de Noronha. O qual Melique-Gupi lhe escrevia os que eram vivos, e que eram tratados não como cativos mas naturais, por sua causa, e assi lhe 183 escrevia como tinha cartas do Cairo, que o Soldão, com o desbarato que soube que houvera a sua armada em Dio, fazia outra de mais velas; e que fosse certo que ele por sua parte trabalharia com el-Rei de Cambaia, seu senhor, que mandasse em todolos seus portos que não fossem recolhidos, pedindo-lhe ele, Melique-Gupi, que em sinal de boa amizade houvesse por bem de lhe dar ua provisão pera suas naus, onde quer que fossem achadas, não receberam dano de suas armadas. Melique-Iaz também teve o mesmo requerimento e confirmação da paz que tinha assentada com o Viso-Rei Dom Francisco, ao que Afonso de Albuquerque concedeu, por serem duas pessoas notáveis naquele reino, de que esperava ajudar-se em seu tempo. Apercebida sua armada, determinou ir a Ormuz, porque, como por causa dos capitães que lhe fugiram, não acabou o que tinha começado, e polas novas que havia que o Xeque Ismael, Rei de toda a Pérsia, queria entender nele, temia que tam poderoso príncipe, depois que metesse um pé naquela ilha, por ser ua ponte per que entravam e saíam todalas mercadorias da Pérsia, seria trabalhoso lançá-lo fora. Ante da qual determinação pôs este caso em conselho dos capitães, onde foi apontado que, com a ida do Viso-Rei e gente, que morreu com o Marichal, ficava a Índia com tam pouca gente, que pera sua segurança não convinha alongar-se longe dela; e também per outra parte el-Rei mandava que fosse fazer ua fortaleza na boca do Mar Roixo, por empedir a saída das armadas do Soldão do Cairo, de que tinha novas per recados de Melique-Gupi. Apontadas as quais

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razões, houveram por cousa mais importante acudir a Ormuz, ante que o Xeque Ismael o tomasse, visto como este príncipe naquele tempo e naquelas partes era terror das gentes, por haver mui poucos dias que em duas batalhas campais vencera os mais poderosos reis que se sabiam entre mouros - o grande Tártaro e o grão Turco. Assentada esta partida, leixando Afonso de Albuquerque provida a costa do Malabar com armada pera guarda dela, partiu de Cochi em fim de Janeiro do ano de dez com vinte ua vela entre naus, navios latinos e de remo, de que estes eram os capitães: ele, D. Jerónimo de Lima, Dom António de Noronha, Bernaldim Freire, Jorge da Cunha, Manuel de Lacerda, Luís Coutinho, Diogo Fernandes, de Beja, Garcia de Sousa, Aires da Silva, Fernão Peres de Andrade, Simão de Andrade, seu irmão, Duarte de Melo, 186 António Pacheco, Jorge da Silveira, Francisco de Sousa Mancias, Jorge Fogaça, Simão Martins, Francisco Pantoja, Francisco Pereira Coutinho e Francisco Corvinel, em que iriam até mil e seiscentos homens. Chegado com esta frota a Cananor, achou Francisco de Sá e Bastião de Sousa, que escaparam das naus que se perderam em os Baixos de Pádua, como escrevemos, os quais levou consigo com parte da gente que com eles se salvou. E sendo tanto avante como o rio de 184 Onor, mandou Garcia de Sousa, capitão da nau Santa Clara, que em seu batel entrasse dentro no rio de Onor, e fosse à povoação a lhe chamar Timoja, o gentio cossairo, de que atrás fizemos menção. O qual Timoja, como era homem abastado e deligente, e que desejava meter-se em nossa graça, veo logo com muitos batéis carregados de mantimentos e refresco da terra; e depois que Afonso de Albuquerque o recebeu com gasalhado, como homem de que fazia muita conta pera os ardis da guerra daquelas partes, disse-lhe o caminho que fazia. Ao que Timoja respondeu que se espantava de ele leixar uns imigos à porta da casa e ir tam longe fazer morada nova na de outros, que não tinha mui certa; que dezia isto, porque tinha dentro em Goa muitos turcos, rumes e outras gentes de várias nações. Porque 58v o Sabaio, senhor de Goa, que era o maior príncipe entre os mouros do reino Decão, havendo por grande injúria ter ele tanto nome na Índia e tantos portos de mar, cujas rendas lhe importavam muito, não ter resestido com sua potência aos portugueses, as quais cousas os gentios do reino de Narsinga, com que ele tinha guerra contínua, lhe lançavam em rosto. Por a qual causa ajuntara toda esta gente que dezia, pera ante de pouco tempo saírem com ua grossa armada em destruição do nome português, de que em estaleiro estavam muitas naus e galeões acabados, e outros em que se trabalhava. Porém como Deus favorecia as cousas del-Rei de Portugal e os seus capitães, tinha desfeito em algua maneira todo este aparato, e que lhe parecia que tudo se ordenava na boa fortuna dele, Afonso de Albuquerque, pera desfazer e destruir a fogo e a ferro aquela praga que ali era junta, porque o Sabaio era morto e seu filho, o Hidalcão, andava ocupado nas terras firmes, assossegando o reino e defendendo de seus vezinhos o que lhe queriam tomar em alguas frontarias dele, pera que mandara ir parte da gente que ali era junta, e que a obra das naus ia mais devagar; que a ele lhe parecia o poder daquela armada ser melhor empregado neste feito de Goa, pois tinha tam boa conjunção, que ir a Ormuz. E por não parecer a Sua Senhoria que lhe falava como homem que estava fora do jogo, e que não havia de meter cabedal naquele perigo, ele não podia dar melhor testemunho de quam lealmente nisso falava, senão com meter sua pessoa no feito, a qual ele oferecia com quanta gente e navios tinha. 187 Afonso de Albuquerque, quando ouviu estas cousas a Timoja, às quais ele esteve mui atento, não lhe pareceu que vinham da boca de um gentio, mas de um núncio do Espírito Santo, polo que trazia guardado em seu peito, posto que ele se fez mui novo neste negócio. E depois que louvou muito a Timoja de prudente e cavaleiro, quis que todas estas cousas que lhe dissera as tornasse a resumir ante os capitães e fidalgos principais daquela armada, na qual prática ele, Afonso

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de Albuquerque, mostrou bem 185 quanto lhe aprouve o que Timoja disse, porque deu outras muitas razões em favor deste seu voto, por ser cousa sobre que ele trazia aviso dias havia. Por razão do qual per Pedro Afonso de Aguiar escreveu a el-Rei D. Manuel quanto lhe importava ser senhor de Goa, porque com ela podia segurar o estado da Índia; por não dar suspeita aos capitães que este caso pendia somente de seu parecer, teve aquela cautela de mandar chamar Timoja. Finalmente foi assentado, vistas todalas razões que por parte deste caso de Goa se deram, ser a mais importante ao estado da Índia que todo o de Ormuz; e pera este feito Timoja se espediu logo a fazer gente pera ir em companhia de Afonso de Albuquerque, como se ele ofereceu; porque, além de ser homem de sua pessoa, e trazer gente adestrada no pelejar daquela costa, era mui necessário pera a entrada do rio, que ele sabia mui bem. E porque este caso de ele ir fazer gente daria aviso a Goa, lançou fama que Afonso de Albuquerque o queria levar consigo a Ormuz, por ser homem que sabia os negócios do mar; e como ele era querido da gente, em breve fez quanta havia mister; no qual tempo Afonso de Albuquerque o foi esperar à Ilha de Anchediva, tomando água e lenha e fengindo corregimento de alguns navios que levava mal aparelhados. Alguns quiseram dizer que a deligência que Timoja teve em ajuntar gente e aperceber doze navios de remo, não foi tanto por nossa parte, quanto porque havia já anos que ele tinha grande contenda com estes mouros de Goa, e fora ordenado por Capitão-mor da armada, que el-Rei de Onor trazia sobre eles do tempo que foram lançados de Onor e vieram povoar esta cidade Goa (como atrás escrevemos, quando se ele foi oferecer ao Viso-Rei Dom Francisco). E também que ele, Timoja, desejava ter méritos per serviços ante el-Rei D. Manuel e seus capitães, pera lhe fazer algua honra da mercê nas terras súbditas de Goa, por já em outro tempo ter nelas ua boa herança, de que estava esbulhado per um seu irmão, homem poderoso, chamado Cidabhara Timoja, o qual, além deste dano, lhe tinha feito outro maior mal, que era tomar-lhe a mulher e morto um filho. Partido Afonso de Albuquerque daquela Ilha Anchediva, depois que este Timoja veo com sua ajuda, como tinha prometido, chegou à barra de Goa a vinte cinco de Fevereiro, ua quinta-feira ao meio-dia; e primeiro que escrevamos a entrada dela per armas, a majestade da própria cidade pede que descrevamos o seu sítio e anteguidade de sua fundação, com o mais que convém pera melhor intendimento da história.

LIVRO V 187 59 189 Capítulo Primeiro. Do sítio da cidade Goa e da opinião que se tem de sua fundação e povoação da terra, e tributo que pagam os seus moradores. A cidade Goa, que ora é património deste reino de Portugal, metrópoli episcopal das que temos na Índia, está situada em a terra, a que os naturais chamam Canará, em ua ilha per nome Tiçuari que quere dizer trinta aldeas, porque tantas havia nela quando os mouros a conquistaram, e tantas lhe pagavam dereitos da novidade que colhiam. A qual ilha não tem outra cousa que lhe dê este nome de ilha, senão ser torneada de dous esteiros de água salgada per duas entradas que o mar faz na terra, ua da parte do Norte, onde está situada a cidade, e outra da banda do Sul, onde ela antiguamente foi fundada, a que ora os nossos chamam a barra de Goa-a-Velha, que é de menos água, e que não faz tantas ilhetas dentro, como o outro, à maneira da terra a que cá per vocábulo arábico chamamos leziras. E lá dentro estes dous esteiros se comunicam ambos e fazem pernadas pela terra, alguas das quais recebem rios de água doce, que vem de cima da serra, a que eles chamam Gate. O comprimento desta Ilha Tiçuari, começando do Oriente no passo chamado Benestari, onde ela passa à terra firme té o mar entre as duas barras que estão contra o Ponente, será três léguas, e de largura ua. E ou que a Natureza ali os produziu, ou que fossem trazidos (segundo alguns querem dizer), todo o cercuito dos esteiros desta ilha é coalhada de lagartos de água, cousa tam grande, que engolem um bezerro já de bons cornos, porque alguns lhe viram na boca não acabados de engolir, porque a armação dos novilhos lhe escachava muito as queixadas. Os quais lagartos a razão porque 190 dizem serem ali trazidos, donde veo a multiplicação de tantos, foi por guardarem a cidade que se não passe per gente de pé em alguns passos que de baixa-mar dão vau, 188 principalmente o de Gondali, a que os nossos ora por essa causa chamam o Passo Seco, porque não chega cousa viva à água, que logo per eles não seja engolida, de maneira que os escravos não ousam de passar a nado à terra firme. A ilha em si é terra graciosa e de boas águas, e não alagadiça, mas empolada com alguns cabeços, que fazem a maneira de vales, fértil de todalas cousas que se nela plantam e semeam. Em que tempo e per quem esta cidade foi fundada? O novo dela haveria obra de quorenta anos, ante que entrássemos na Índia, que era feito per um mouro senhor dela, chamado Melique-Hocém, quando os mouros que fugiram do reino de Onor a vieram povoar, como atrás escrevemos, falando nas cousas de Timoja, em tempo do Viso-Rei. Mas o antigo dela acerca dos moradores, assi gentios como mouros, não se acha memória ou escritura que à nossa notícia viesse, somente tem todos ser cousa antequíssima. E segundo alguns sinais que se acharam nela, depois que a ganhámos, parece que em algum tempo foi povoada de cristãos, um dos quais foi achar-se um crucifixo de metal, andando um homem desfazendo os aliceces de uas casas que Afonso de Albuquerque dali mandou levar com solenidade de procissão à Igreja, e depois o enviou a el-Rei D. Manuel, como sinal que já em algum tempo aquela imagem recebeu ali adoração. A qual cousa devemos crer que foi assi; porque, como o bem-aventurado S. Tomé converteu muita parte daquela região da Índia, de que hoje sabemos muitas casas feitas per ele na terra Malabar, e principalmente a que ele fundou per suas próprias mãos em Coromandel, assi desta semente do Evangelho, que ele per aquela província semeou, podia haver algua cristandade em Goa. Também depois, ao tempo que compúnhamos esta Crónica, nos foi trazido da cidade Goa o traslado de ua doação, que um gentio Rei dela, chamado Mantrasar, filho de 59v

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Chamandobata e vassalo del-Rei de Bisnagá, deu a um pagode, de certas terras pera mantença dos sacerdotes, em que as fazia isentas e livres de pagarem dereitos alguns, segundo o uso da terra. A qual doação estava escrita em ua pasta de metal em letra canari e havia cento e quorenta e um ano que era feita, e foi apresentada em juízo no ano de mil e quinhentos trinta e dous, a instância de um gentio chamado Luco Rendeiro, por razão de se ver que as terras daquele pagode não eram obrigadas pagar tributo algum, como as propriedades profanas. O princípio da qual doação começava nestas palavras: - Em nome de Deus, que é Criador de todos os três Mundos, Céu, Terra, Lua e Estrelas, a quem adoram e nele fazem sua boa sombra, e ele é o que as sustenta, a ele dou muitas graças, e creo nele, o qual por amor do seu povo lhe aprouve vir tomar carne a este Mundo Etc. Per as quais palavras parece que naquele povo havia notícia da Encarnação 191 do Filho de Deus; e em outras mais abaixo, 189 que é no sinal do rei, confessa a Trindade em unidade. E porque ao presente não temos outra memória da fundação desta cidade Goa senão desta bárbara e mal tresladada doação e invenção do sinal de Cristo crucificado que ali se achou, fundemos os seus aliceces sobre ele, pois todo outro fundamento, ora seja espiritual ora temporal, pera ser firme e seguro há-de ser sobre esta pedra Cristo, redenção nossa. E demos-lhe graças eternas, pois lhe aprouve que este seu povo cristão, do nome e sangue português, enviado per um tam cristianíssimo príncipe como foi el-Rei D. Manuel, mereceu ir tirar aquela imagem enterrada nos aliceces da gente pagã dos gentios e pérfidos mouros e com glória e louvor dele mesmo, Cristo, livre daquele bárbaro cativeiro, foi posto em altar de católica adoração. Com que aquela cidade, lugar de idolatria e blasfémia, é hoje não somente magnífica per edefícios, ilustre per armas e grossa per comércio, mas ainda santa per sacrifícios de sacerdotes na Sé Catedral, primaz daquelas partes, e per oração e doutrina de muitos religiosos de S. Francisco e S. Domingos, que residem em seus conventos. Assi que, leixados os antigos fundamentos de pedra e cal, de que não há notícia de seu fundador, que com nossa entrada todos foram arrasados, tomemos por fundamento o novo lume de Fé que nela acendemos, e as pedras da arquetectura e polícia de Espanha que nela alevantámos, convertendo nossa pena na relação de como antiguamente aquelas terras marítimas foram cultivadas e como os mouros entraram nelas, e des i à vitória que nos Deus deu na tomada desta ilustre cidade. Segundo comum opinião do gentio daquelas partes (porque de tam anteqúissimos tempos não tem escritura), as terras marítimas lançadas ao longo de ua corda de serrania, a que eles chamam Gate per nome comum, a qual corre per distância de duzentas léguas, té ir fenecer no Cabo Comori (como já escrevemos), a maior parte destas terras são alagadiças, e quási ua horta regada de muitos rios, que descem deste Gate, e retalhada de esteiros que à entrada do mar faz. De maneira que, como ora exemplificamos o sítio de Goa ser em as ilhas que a torneam ao modo das leziras que fazem as invernadas e crescentes dos rios, assi dizem eles que esta terra é ua terra sobreposta e quási nateiro do interior do sertão, que trazem a força das águas e areas rebatidas do mar, mais que terra própria e nativa daquele lugar. A razão disto ser assi está manifesta, porque, como sobem à serra Gate, não tornam descer, como geralmente vemos em todalas serranias, mas ficam em ua planura de terra mui chã, de maneira que parece este Gate um muro, a terra do cume do qual é um eirado sobre o alagadiço que tem ao pé, e que a natureza no princípio da criação pôs aquele muro altíssimo pera amparo do ímpeto que traz o grande Oceano no tempo de sua fúria. Os sinais do qual 190 se vem ao pé do Gate em alguas partes descobertas, onde se acha muito cascalho e ostraria coalhada com ele e rebatida das ondas do mar, o qual rebater, por lhe ser já empedido com cinco, três e duas léguas de terra desta 192

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alagadiça, ou sobreposta dele e dos rios, converte em lhe cerrar suas barras no tempo do inverno com muitas areas que lhe torna a enjeitar das que eles descarregam nele. E ainda foi causa de se mais prestes coalharem estas ilhas, alguns baixos e ilhetas que jaziam ao pé daquele Gate, o que parece poder ser, e que em algua maneira não tem openião impossível. Porque, se vemos que todo o Egipto, não falando de tempos antequíssimos, em que alguns historiógrafos e filósofos querem que tudo foi mar, mas depois que foi cultivado de semente e habitado de tantas e tão sumptuosas cidades e miraculosos 60 pirames, que foram havidos por milagres do Mundo com sua altura, tudo o tempo enterrou, não per terremotos, mas com terra sobreposta que o Nilo trouxe das poeiras da Etiópia; e mais compridas e profundas cavas pera o centro da terra, do que em altura sobre a face dela é o monte Tauro, de que são testemunho muitos dos nossos que andaram naquelas partes; com que nem vemos cidades, nem pirames, nem as sete fozes do Nilo -- tudo o enxurro atupiu e somente lhe leixou a de Damiate, e outra de Raxete e Buruluz, per onde descarrega a soberba de suas águas no mar. E por não trazer estes e outros exemplos fora de casa, convertamos os olhos ao nosso Tejo, e - mais notável - ao Mondego, que, sendo um rio cujo curso será pouco mais de vinte léguas, que haverá de Coimbra à Serra da Estrela, onde ele nasce, não se metendo nele senão ua plebe de riachos de pouca água, com que juntos a sua, no verão, e tam pouca, que se passa a vau dela, em muitas partes pode tanto com suas pequenas enxurradas, que a vista de nossos olhos, per espaço de cinquenta anos, tem coberto muito edefícios, e ua ponte debaixo de outra, e enterrado grandes e magníficos templos quási té o meio. Que fará a potência de outras águas, e centenas de tantos séculos? Assi que, ora a openião dos povos de que tratamos seja verdadeira ou falsa, todos se afirmam que estas terras que estão ao pé do Gate, os primeiros habitadores que tiveram foi gente prove, que desceu de cima da terra Canará, que é a plana que dissemos estar além dele; e como em maninhos sem senhor vieram aproveitar o que podiam destes sapais, valando-os e cultivando-os a maneira dos adiques de Frandes, té que o tempo e a continuação do trabalho os fez fértiles e viçosos. Finalmente, multiplicada a gente e o benefício da cultura, vieram os príncipes e senhores daquele interior do reino Canará a conquistar esta pobre gente; e tanta foi a cobiça, que lhe venderam a herança que eles e seus padres tinham adquirido per suor de seu rosto. E foi per esta maneira: Houve entre eles e o príncipe que os trouxe a este estado um contrato perpétuo, em que cada parentela tomou ua certa comarca de terra, 191 da qual se obrigou pagar àquele príncipe e seus sucessores um tanto cada ano, sem mais crescer ou demenuir, quer as terras rendessem ou não, ao qual direito eles chamam cocivarado. E o modo que tem entre si de se partir este foro, 193 é que os neiquibares, cabeceiras de aldea, que vem da linhagem dos mais principais daquela povoação, fazem cada ano lançamento per todolos moradores, segundo a possibilidade de cada um; e quando não chega este lançamento à contia que são obrigados pagar, os mesmos neiquibares a põem de sua casa, as quais aldeas, repartidas por comarcas, respondem a ua cabeça a que chamam tanadaria, ao modo que vemos neste reino, cujas rendas se encabeçam em almoxarifados, vocábulo mourisco mais que natural português. Correndo os tempos nesta ordem de vida, que tinha o gentio do Gate pera baixo, principalmente nas comarcas de Goa, pagando este cocivarado a el-Rei de Bisnagá, ou aos senhores a quem ele o dava por comedia, entraram os mouros na Índia conquistando o reino de Decão, té se fazerem senhores de Goa, com que o gentio da terra ficou súbdito nesta lei de lhe pagar o que dantes pagavam ao seu príncipe. E ao tempo que nós entrámos na Índia, era senhor desta cidade Goa um mouro per nome Soai, capitão del-Rei do Decão, a que comumente chamamos Sabaio, o qual tinha muito nobrecido esta cidade com edefícios e trato. E porque com ele, e depois com seus

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filhos e netos, e assi com outros capitães deste reino Decão pela maior parte do tempo contendemos per guerra, faremos no seguinte capítulo relação como os mouros vieram conquistar o reino Decão, donde procederam os capitães, per os quais ele ao presente está repartido.

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191 60 193 Capítulo II. Como os mouros se fizeram senhores per conquista do reino Decão, e o Estado de Goa. A entrada dos mouros per armas na Índia, entre os gentios e eles há grande variedade, principalmente na concordância dos tempos; porque os mouros do reino Guzarate a escrevem per um modo, os do reino Decão por outro, e as crónicas dos reis gentios de Bisnagá levam outro caminho; porém todos convém nisto: que o conquistador foi rei do reino de Eli. E nesta relação que aqui fizemos, porque todas estas crónicas houvemos e nos foram interpretadas, 60v seguiremos o que ora tem os mouros, que senhoream o reino Decão, de que falamos, porque se conformam muito no tempo com a crónica geral dos persas, que é o Tarigh, de que no princípio fizemos menção, que com outros volumes da história e cosmografia pérsia houvemos daquelas partes. E seguindo o que dizem estes decanis, nos anos de Mafamede de setecentos e sete, que são mil e trezentos de nossa Redenção, houve em o reino Deli um príncipe mouro chamado Xá Nosaradim, tam 192 194 poderoso em gente e estado de terra, que da grande potência que tinha sucedeu por glória de seu nome querer conquistar a Índia. Com a qual cobiça descendeu daquelas partes do Norte, vezinhas às fontes dos rios Gange e Nilo, com grande número de gente de cavalo e de pé, té que veo conquistando os vezinhos, que eram gentios; e chegou ao reino Canará, que começa do rio chamado Gate, que é ao Norte de Chaúl, té o Cabo Comori, quanto ao que jaz do Gate pera dentro contra o Oriente, porque dele pera o mar tem estas terras outra repartição em reinos e nome, como já escrevemos; e pela parte do Oriente vai entestar com o Orixá. E estes reis gentios desta grã província Canará eram aqueles donde procedem os que ora são de Bisnagá. Feito este Xá Nosaradim senhor daquele grande estado, leixou nele por fronteiro, ao tempo que se tornou pera Deli, um seu capitão chamado Habede-Xá, o qual, como era homem prudente e cavaleiro, peró que ficou com pouca gente em comparação do que havia mister pera resestir a potência de tanto gentio, como havia em torno daquelas terras conquistadas, onde ele estava, pouco e pouco se fez tam poderoso com alguas vitórias, que tomou aos gentios a maior parte daquele reino Canará. Finalmente, assi per armas, como per conversão dos gentios à seita de Mahamede, e per convocação de muita gente de todo género a que dava soldo, fez um arraial de Babilónia, onde se achava todo género de gente, de mouros, de cristãos, porque acerca da crença não fazia muita eleição: fossem bons homens de armas, que este era o mister pera que os queria, que o mais, dizia ele pertencer a Deus, e que não lhe havia de tomar sua jurdição querer entender na alma de cada um. Com os quais modos per espaço de vinte anos adquiriu tanta gente, que podia per armas contender com seu próprio rei. Estando na qual prosperidade de fortuna faleceu, leixando um filho per nome Mamude-Xá, ao qual el-Rei de Deli confirmou naquele estado que tinha seu pai, com lhe poer encargo de pagar cada um ano mais um tanto do que o pai pagava. Passados alguns anos, em que compriu com estes pagamentos, vendo-se tam poderoso, começou de alevantar a obediência que devia a seu Rei: não somente começando negar os pagamentos, mas ainda, sendo chamado per ele pera o ir ajudar, a ua guerra que se lhe moveu na Pérsia, não quis obedecer. E como quem temia que, desocupado el-Rei daquelas guerras em que andava, lhe havia de vir pedir estreita conta de sua desobediência, começou de se liar com el-Rei do Guzarate, que já naquele tempo era senhoreado de mouros, e assi com outros vezinhos, pera se ajudar com eles. Mas a fortuna o favoreceu mais do que ele desejava:

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ca Xá Nosaradim faleceu na guerra em que andava, e seu filho, que o sucedeu, por razão dela, ficou tam desbaratado e sem forças pera contender 193 com Mamude-Xá, e ele tam poderoso, que ousadamente se intitulou por Rei do Canará, chamando-lhe Decão. O qual nome dizem que lhe foi posto do ajuntamento das diversas nações 195 que trazia, porque decani, quere na língua deles dizer mestiços, donde ficou aqueles povos, que ora habitam aquela terra, serem chamados decanis. E sendo este Mamude-Xá já homem de muita idade, cansado da continuação da guerra, também temendo que seu estado se perdesse com a grandeza dele por mau governo de seus sucessores, em sua vida ordenou dezoito capitães, per os quais repartiu todalas frontarias do seu reino. A um dos quais fez capitão geral sobre os outros, dando a cada um a comarca que lhe coube em sorte, que rendesse para ele, com obrigação de ter continuadamente feita pera a defensão do reino tanta gente de cavalo e tanta de pé; e como cada um ia conquistando mais terras do gentio, assi lhe acrescentava a renda nelas e a obrigação de ter mais gente a soldo. Por ter os quais capitães mais sujeitos, e se não levantarem com a nobreza do sangue e liança de parentesco, não os fez de homens livres, senão de escravos próprios, de que tinha experiência per discurso das guerras serem homens pera mandar gente, e que lhe seriam leais. E ainda pera os ter 61 mais súbditos, na cidade Bider, que ele enlegeu por cadeira e metrópoli de seu reino, mandou que cada um fizesse casas de seu apousentamento, e que cada ano tantas vezes fosse obrigado vir a ele a residir na Corte certos meses; e nas casas ordinariamente havia de estar filho ou parente mais chegado, que com despesa e aparato representasse a pessoa dele, capitão. Dizendo que, pois desfazia sua corte de pessoas tam principais, como eles, capitães, eram, convinha pera honra e bem de seu estado, residir ali cousa sua, que enchesse aquela obrigação da paz, enquanto eles andavam na guerra, pois lhe dava largos rendimentos de terras pera ambas despesas. As quais pessoas, que resediam na Corte em lugar deles, capitães, no tempo que eles mesmos eram ausentes, em seu nome, por sinal de obediência e modo de menage, todolos dias haviam de ir ao paço dar ua vista a el-Rei, fazendo-lhe ua reverência, a que os mouros chamam salema, e alguns sumbaia, principalmente no malaio. A qual cortesia é um abaixar de cabeça ante o senhor té a poer quási nos giolhos, e a mão direita no chão, e os muito nobres não poem a mão no chão, mas em sua própria perna, isto três ou quatro vezes, ante que cheguem à pessoa do senhor; e chegando a ele, metem-lhe a cabeça entre as mãos, dando a entender que ali lha oferece como escravo seu, pera mandar dispor de sua vida o que lhe a ele aprouver. Então o senhor, se está satisfeito de seus serviços, tem já feito pera aquelas pessoas ua vistidura, a que eles chamam cabaia, que comumente os mouros usam naquelas partes, comprida de mangas, cengida e aberta por 194 diante com ua aba sobre outra ao modo do trajo dos venezeanos. A qual cabaia de brocado, seda ou pano, segundo a calidade da pessoa, o senhor lhe lança sobre os ombros, que para eles é cousa de honra e sinal público que o príncipe 196 está dele contente. Acabando de receber esta cabaia, torna recuando pera trás, acurvando-se com o corpo e cabeça outras tantas vezes, como fez à ida, sempre com o rosto no senhor, té que se afasta bem dele; e se há de ficar na casa, espera que o mande assentar em cócaras no chão, segundo seu uso; e se é pessoa mui nobre, sobre alcatifas. Porém este dar da cabaia e meter a cabeça entre as mãos, não é todolos dias, senão quando um capitão destes ou qualquer outra pessoa nobre novamente vem à Corte, ao modo que nós temos na chegada ou espedida pera fora - beijarmos a mão a el-Rei, em sinal de obediência. Ca o ordinário de cada dia, quando estes vão diante do príncipe, não fazem mais que abaixar a cabeça ua só vez, como nós abaixamos o corpo, ainda que direito, quando fazemos nossa mesura, que quere dizer medida, segundo a etimologia do vocábulo e auto da cousa. Porque, abaixando-nos per aquela maneira diante doutra pessoa, damos a entender

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que a nossa é menos que a sua, donde per translação, quando alguém em requerimento ou em vendendo pede mais do necessário, dizemos: - Mesurai-vos - neste entendimento: - Abaixai-vos mais, não tam alto. E porque todas estas cerimónias se inventaram nas Cortes dos príncipes, por nelas haver tanta precedência de dignidades, e estas súbditas a um príncipe, chamamos a todas estas reverências cortesia, derivado de corte, onde teveram seu nascimento; o qual vocábulo corte parece que veo de cohors, que é latino, que quere dizer a nosso propósito ajuntamento de gente em auto de guerra debaixo do governo de ua pessoa. E como o Mundo todo está repartido nestas Cortes, em que residem as cabeças dele, que são os príncipes, cada um ordenou modo de ser reverenciado e obedecido. Donde vemos tanta variedade de cortesias, e entre os bárbaros tam estranhas do nosso uso, que as havemos por riso, e eles as nossas, posto que todas vão a este fim de obediência; e geralmente todolos mouros da Índia usam este modo que dissemos terem estes capitães do reino Decão. E ainda que estes residentes na Corte ordinariamente haviam de ir todolos dias a esta salema, os próprios capitães, não tendo causa muito manifesta de ocupação da guerra ou grave enfermidade, sob pena de encorrerem em caso de revéis, certas festas do ano haviam-se de apresentar ante el-Rei, pera pessoalmente ir fazer esta salema - tudo isto a fim de os trazer sujeitos e se não rebelarem. Mas como os estados nunca permanecem em um ser, e quanto maiores e mais cautelas de sujeição, tanto maior causa pera se perderem, polo cuidado perpétuo que os sujeitos trazem de se libertar, sucedendo o 195 tempo e outros reis e capitães depois destes, que não foram muitos, peró que havia estas salemas, e chamaram-se estes capitães escravos del-Rei, e ele, Rei, em nome, pouco e pouco veo 61v a não ter mais poder e ser, do que tem ua estátua - ser adorada de muitos, sem ter auto ou potência pera cousa 197 algua. Somente tinha de seu aquela cidade Bider com suas comarcas, em todo mais era um paralítico, ou (por melhor dizer) era cativo e eles os livres; e por se suster e conservar, sustinham a ele. E ao tempo que nos entramos na Índia, de dezoito capitães que Mamude ordenou, já uns se tinham feito senhores do estado dos outros, de maneira que não havia mais que estes: o Sabaio, Nizamaluco, Madremaluco, Melique Verido, Coge Mocadão, o abexi capado, Cotamaluco, os quais eram mui grandes senhores em estado de terra e riqueza de dinheiro. E o mais poderoso de todos era o Sabaio, senhor de Goa, que (como ora dissemos), segundo a nova que Timoja deu a Afonso de Albuquerque, era falecido. E pela parte que temos de seu estado, que é esta cidade Goa, cabeça dele naquele tempo, diremos como subiu a tanta potência: Segundo a geral openião daqueles que sabiam os princípios da fortuna deste Sabaio, ele era natural da Pérsia, de ua cidade per nome Sabá ou Savá, por que per um modo e per outro a nomeam os párseos, os quais, quando formam os nomes patronímicos, dizem de Sabá sabaí, de Fars, pola Pérsia, farsi, e de Armen, por Arménia, armeni, e por este modo formam todolos outros. E segundo esta verdadeira formação, havemos de chamar a este homem Sabai e não Soai ou Sabaio, como nós formamos. Este, sendo moço pequeno, seu pai, que era homem de pouca sorte e ganhava sua vida à porta de sua casa a vender fructa, o deu a um mercador grosso da terra, o qual, polo achar deligente e fiel em seus tratos, depois que foi homem, o mandou com vinte cavalos à Índia, dos párseos que se carregam em Ormuz, e chegou a ela em conjunção que os vendeu de maneira que de um fez cinco. Tornando a seu senhor com o emprego deles, em que também ganhou muito, tornou-lhe fazer outra armação de cinquenta, dos quais primeiro que chegassem à Índia, por má navegação lhe morreram os dous terços; e os que lhe ficaram, vendeu por seis mil pardaus. E ou que não se atreveu tornar ao senhor com tamanha perda ou que a Fortuna o chamava (porque ela poucas vezes leva

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alguém a sumo estado, senão per meio de algum crime cometido), leixou-se ficar naquele reino Decão com o dinheiro, e foi viver com o Rei da terra. Outros dizem que o mesmo senhor, por ter vendido estes cavalos a el-Rei e não poder haver pagamento deles, em modo de presente lhe deu este Sabaio, sendo moço bem disposto, como quem lhe dava um escravo; e desta entrada, qualquer que ela foi, tanto que tomou armas, começou fazer tais serviços, que pouco e pouco veo a 196 tanto, que lhe deu el-Rei a cidade Calbergá, que a comesse. E daqui começou a conquistar as terras dos gentios do reino de Bisnagá, que tinha por vezinho, té que, com um grande poder de gente, veo tomar a cidade Goa, que havia poucos anos que era povoada dos mouros que fugiram de Onor, como dissemos. 198 Da qual cidade, ao tempo que a ele tomou, era senhor um mouro per nome Melique-Hocém, homem que naquele tempo que lha o Sabaio tomou, matando a ele, tinha nela doze mil homens. Finalmente, feito senhor da cidade, tomou as terras a ela sujeitas, que eram de grande rendimento, por serem estas tanadarias Pondá, Supá, Salsete, Antruz, Cintacorá, Bardês, Trenar, com estoutras que eram nos portos de mar, assi como Bandá, Colator, Cural. E afora estas tanadarias, tinham no sertão e nos portos de mar muitas cidades e vilas, delas que lhe deu el-Rei, e outras que ganhou a poder de ferro, de que estas eram as principais: Bisapor, metrópoli sua, Rachur, Perzabar, Bichocondá, Vai, Calbergá, Alapor, Cuimalá, Crará, Ruibaga, Belgão, Queri, Merije, Pandarapor, Seguer, Calichur, Neril, Panela, Cintacorá, Bandá e outras, que se verão em as Tábuas da nossa Geografia. A causa que dizem por que este capitão veo a ser mais poderoso que os outros, foi porque lhe coube em sorte estas terras dos portos de mar, per que havia toda a entrada e saída das mercadorias da maior parte do reino Decão, e assi do reino Bisnagá. O qual Sabaio dos outros capitães era mui malquisto; porque, morrendo o seu Rei, que eles tinham como estátua, leixou um filho herdeiro moço de doze anos; e como este Sabaio se achou em Bider, no tempo que el-Rei faleceu, houve seu selo à mão e, abrindo seu testamento, porque o não achou à sua vontade, fez outro, em que se fez testamenteiro e governador do reino e tutor do moço. Tornado a cerrar e a selar o testamento com a chapa e selo del-Rei, pubricamente com autos 62 solenes o mandou abrir, e logo em continente noteficou aos capitães a morte del-Rei, escrevendo-lhe que nenhum bolisse consigo, ante estevessem em suas terras, porquanto compria assi ao serviço del-Rei e paz de todo o reino, pois sabiam quantos insultos fazia gente solta, que se alevantaram nos tais tempos. Finalmente, di a poucos dias casou o novo Rei com ua filha sua por ficar mais absoluto senhor. E posto que eram estas cousas mui notórias, o grande poder que tinha fez encolher os outros; porque, além de ser grã senhor em terras e poderoso de gente de guerra e aparato dela, era mui rico de dinheiro. Ca, segundo fama, somente o estado de Goa lhe rendia quinhentos mil pardaus, por esta maneira: a cidade cem mil, entrando nisto a renda dos cavalos que traziam de Ormuz ou da costa Arábia, cada um dos quais paga de entrada quorenta pardaus, e dous de corretagem em modo de portagem, pera os poderem meter per aquele porto em o reino Decão e 197 Bisnagá, ou pera a própria terra. Outro rendimento era das trinta aldeas, que a ilha, como dissemos, tomou o nome, de que os gentios lavradores pagavam seis mil e quinhentos pardaus; e as ilhas ou leziras de Divar, Chorão, Jua três mil e novecentos e os passos, per que entram e saem da Ilha de Goa à terra firme, que são Pangi, Daugi, Gondali, 199 Benestari, Agaci, rendiam as suas entradas e saídas dous mil e duzentos pardaus. Além destas rendas, que eram direitos e empostos nas entradas e saídas per terra, na própria cidade havia estoutros, assi do que vinha de fora per mar, como do que se fazia nela - o que se chama omandovi, catuália (a praça), panos, bétele, especearia, cãibo, boticas, hortaliças, apas, fogueos, tudo isto

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rendia trinta e três mil e tantos pardaus, pouco mais ou menos. E posto que no tempo do Sabaio e seu filho o Hidalcão não andavam estas rendas tam altas como agora em nossos tempos andam, que somente os cavalos importam oitenta mil pardaus, havia em tempo deles muitas terras, que traziam os mouros, as quais el-Rei D. Manuel, depois que esta cidade foi nossa, as mandou per Afonso de Albuquerque repartir entre os primeiros casados e povoadores da cidade. De maneira que, se as outras cousas cresceram com a nobreza e trato da cidade, o que per aqui cresceu ao tempo dos mouros se refaz por as terras que eles traziam, cujo rendimento aqui não contamos por não vir à nossa notícia, nem menos outros tributos e rendimentos que havia na cidade, conformes à torpeza de sua seita, assi como casa pública, onde todos podiam ir jogar, de que tinha um tanto o senhor da terra, e se jogava o povo em outra parte, era mui punido por isso; e outras cousas desta calidade, que com nossa entrada naquela cidade foram desterradas dela, como púbricos pecados. Somente sabemos que, por estes mouros que viviam em Goa estarem sempre com a espada na mão, e posta na garganta dos gentios da terra, além do ordinário (segundo eles dizem), os avexavam com mil modos de tirania, com que o rendimento da ilha a eles era maior do que o nós arrecadamos. Porém, quanto ao rendimento das terras firmes das tanadarias que nomeámos, e outras que jazem ao pé do Gate, estas comia o Sabaio com a lança na mão, tendo sempre nelas gente de guarnição. Porque, como elas eram dos gentios, encabeçadas naquelas terras da geração dos primeiros povoadores, a que eles chamam neiquibares, quando os mouros as conquistaram destes, não tiveram tanta força que lhas podessem defender; e recolhidos à serra do Gate e lugares ásperos, onde se bem podiam defender, alguas vezes desciam às terras chãs destas tanadarias, quando viam a sua, e roubavam o rendimento; e quando o não podiam haver, faziam qualquer insulto e tornavam-se recolher à montanha. Neste foro e estado achou Afonso de Albuquerque a cidade Goa com todalas terras a ela súbditas, 198 as quais, per morte do Sabaio (segundo o capitão Timoja lhe disse), estavam meias alevantadas, e seu filho o Hidalcão ocupado na paz e assossego da sua herança, porque pelo ódio que dissemos que os outros capitães tinham a seu pai, como o viram morto, cada um começou de morder per onde podia, e esta era a conjunção que Timoja dizia a Afonso de Albuquerque que não devia perder. E o que lhe sucedeu com sua chegada à barra de Goa, se verá neste seguinte capítulo.

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198 62 200 Capítulo III. Como Afonso de Albuquerque tomou a cidade Goa, por razão de ua vitória que D. António de Noronha houve em o castelo Pangi, que estava na entrada do rio. 62v Surto Afonso de Albuquerque sobre a barra desta cidade Goa (como dissemos), posto que Timoja lhe tinha dito que com toda a frota podia ir pelo rio acima té a cidade e que ele o meteria dentro; por se mais segurar na verdade, mandou D. António de Noronha, seu sobrinho, capitão da nau Cirne, que com o mestre dela e alguns pilotos da armada, fosse em o seu batel sondar o rio, e com ele Timoja e alguns dos seus navios de remo pera o encaminhar. Vendo alguns capitães das outras naus que D. António ia fazer esta obra, seguiram a sua esteira nos batéis das naus de sua capitania, como quem desejava dar fé do que lá ia dentro. E indo todos ao longo da ilha afastados da terra firme fronteira, Jorge Fogaça, capitão de ua caravela, como levava um parau da terra leve, tomou a dianteira; e em querendo descobrir ua ponta que fazia a terra, deu de súbito com um bargantim de mouros, que vinham ver o que fazia a nossa armada. Tanto que Jorge Fogaça viu o bargantim, a grã pressa remou rijo com desejo de lhe chegar; mas ele vinha tam bem remado, que se acolheu a ua força chamada Pangi com um baluarte que os mouros tinham feito, em que estava assestada muita artelharia pera defensão da entrada do rio. D. António, quando viu que Jorge Fogaça arrincava rijo, posto que com a ponta não visse o bargantim, fez outro tanto com os mais batéis que o seguiam, té irem dar de rostro com o baluarte. Com vista do qual, posto que ficaram suspensos, por não mostrar fraqueza aos que estavam dentro, movido do espírito da vitória que os chamava, sem saber o perigo que tinha dentro na fortaleza, que eram quatrocentos mouros, entre os quais havia alguns de cavalo, pôs o peito em terra, e foi assi tam de súbito e despachadamente feito, que não houve acordo entre os mouros de poer fogo à artelharia; mas, como gente que acode a arroído da maneira que se acha, desordenados vieram receber os nossos, onde houve ua crua perfia de ferro per um grande espaço; té que, não podendo os mouros 199 sofrer o jogo das lançadas e cutiladas dos nossos, parte dos quais já eram dentro na fortaleza por entrarem por as bombardeiras, em lugar de se eles recolherem nela, fugiam pera o campo, sem darem por as palavras de seu capitão, que era um turco de nação chamado Iaçufe Gurgi, homem valente de sua pessoa, segundo ali mostrou, té os nossos lhe aleijarem ua mão, que o fez recolher-se em um cavalo acobertado em que andava, e assi se foi apresentar a Goa, onde lá achou outros tam assinalados, que lhe levaram a dianteira, da ida dos quais a fortaleza ficou despejada. 201 Afonso de Albuquerque, quando em baixo ouviu os trons de alguas peças de artelharia, a que os mouros poseram fogo, entendeu que pelejava D. António, e a grã pressa mandou todolos batéis e navios de remo que acudissem; e posto que sua chegada foi já tarde, segundo a cousa foi brevemente feita, todavia ainda ajudaram a despejar o castelo dos mouros que estavam dentro. Timoja, quando viu que D. António tomava per sorte aquela fortaleza, e as ajudas que tinha, sem a sua lhe ser necessária, passou-se da outra banda da terra firme, onde estava ua maneira de baluarte com artelharia e obra de trinta homens que a guardavam; e como era cavaleiro de sua pessoa, assi como pôs os olhos nela,, assi lhe pôs as mãos, de maneira que imitou a D. António na vitória que houve; e recolhendo cada um per sua parte artelharia e miséria que acharam, foram fazer a outra obra de sondar o rio, té ua estacada que os mouros tinham feita, que o atravessava um pedaço acima destes baluartes.

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Além da qual estavam uas grandes barcas a seu uso, com muita artelharia pera dali varejarem qualquer nau ou navio que chegasse à estacada, tudo tam defensável, que parecia cousa de grande perigo a subida acima. E notadas estas cousas, tornou-se D. António às naus, onde foi recebido com muito prazer da vitória daquele acidental caso, o qual deu tanto ânimo e alvoroço na gente, que começou Afonso de Albuquerque com muita deligência dar ordem ao necessário pera desfazer aquela estacada e ir tomar o pouso defronte da cidade. Mas Nosso Senhor, em cujo poder estão todalas vitórias, quis que não fosse este trabalho adiante, porque na vitória que se houve do capitão Iaçufe Gurgi houvéssemos sem mais sangue posse daquela cidade Goa. Porque, escapando ele da entrada do baluarte com a mão direita aleijada, foi-se assi apresentar aos principais governadores dela, representando a ousadia e fúria dos nossos, e testemunhando com sua aleijão, que em nenhum modo se podia defender deles, tomando 63 por razão principal, além de outras, o que em tam breve tempo e tam poucos homens fizeram sem temor nem conselho: somente movidos com ua braveza e fúria de feras irracionais se metiam na boca das bombardas sem darem por fogo nem ferro - que fariam, indo apercebidos e juntando-se tanto número 200 de gente, como poderia vir naquela frota? Que seu voto era eles com algum bom partido deviam entregar a cidade - e isto ia denunciar ao Hidalcão. Espedido este Iaçufe daqueles principais da cidade, com quem teve esta prática, levando consigo parte da gente de guarnição que tinha e outra que fugiu, foi-se a um lugar, nove léguas de Goa, chamado Chandragão, onde se pôs em cura, mandando recado ao Hidalcão em que perigo ficava a cidade, e o estado em que ficava pola defender, e o que lhe parecia que se nisto devia fazer, pois os trabalhos em que ele andava lhe não davam mais 202 lugar pera lançar aquela gente da cidade, que naquele primeiro ímpeto ele havia de haver por sua, té o tempo lhe dar modo pera a cobrar. Os principais dela, de que se ele espediu per final conselho, depois de muitos debates e pareceres, assentaram que, visto como o Hidalcão andava tam ocupado em cousas que ao presente importavam mais que aquela cidade, à qual não podia mandar tam prestes socorro, por quam apartado andava daquela costa do mar, que mais prestes não se fezessem os nossos senhores dela, segundo eram apressados no cometer, deviam fazer entrega dela ao Capitão-mor com algum bom partido; e que depois, quando o Hidalcão tevesse menos opressões, tempo lhe ficava pera a recobrar. Alguns querem dizer que muita parte deste temor geral acerca dos moradores daquela cidade procedeu de um gentio, bengala de nação, o qual andava em hábito de jogue, que é a mais estreita religião deles, e per as praças de Goa havia pouco tempo que por muitos dias andou dizendo que aquela cidade cedo teria novo senhor e seria habitada de gente estrangeira contra vontade dos naturais, e outras cousas que respondiam aos primeiros sinais que viram da nossa armada. E como o povo tem estes jogues por homens santos, e crem que todas suas palavras são profecias - e pera este efeito Deus abriu a sua boca - acrescentando os principais da cidade o que este tão pubricamente tinha dito ao mais que testemunhou o capitão Iaçufe Guri, mandaram ao outro dia certos homens honrados, um dos quais se chamava Mirale, pedindo paz a Afonso de Albuquerque. Dizendo que eles se queriam entregar a ele como a Capitão-mor del-Rei de Portugal, por saberem o desejo que o Hidalcão, seu senhor, tinha da amizade de tam grande e poderoso Rei; e que, quando ele, Hidalcão, disso tevesse desprazer (o que eles não criam), já pelos méritos desta obediência mereciam todo bom tratamento de suas pessoas e guarda de suas fazendas; que lhe pediam que com esta condição os quisesse receber debaixo de sua bandeira, pera poderem ficar em suas casas e fazendas, tam pacíficos e seguros, como de ante estavam; ca de outra maneira menos perigo seria esperar a ventura das armas, que leixar a pátria ou liberdade. O qual requerimento Afonso de Albuquerque concedeu de mui boa vontade, posto

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201 que a gente de armas quisera cevar o seu desejo na entrada daquela cidade per armas; e já quando ele surgiu diante dela, que foi a dezassete de Fevereiro pola confirmação dos apontamentos que Mirale levou, foi a frota recebida com festa dos naturais da terra, saindo todos receber Afonso de Albuquerque à praia, entregando-lhe as chaves da cidade com palavras da confiança que nele tinham da segurança de suas pessoas e fazendas, como se fossem antigos vassalos del-Rei Dom Manuel de Portugal. Acabado o qual auto, apresentaram-lhe um cavalo acobertado a sua usança, em que ele, Afonso de Albuquerque, entrou na cidade, cercado de 203 todos os capitães e gente de armas, e de envolta os principais da terra que o levaram com aquela pompa de triunfo de paz a uns paços do Sabaio, casas magníficas e grandes, onde se aposentou. E porque nos apontamentos que Afonso de Albuquerque assentou com Mirale sobre esta entrega da cidade foi que os turcos e rumes, por serem estrangeiros e gente conduta a soldo pera guerra, se haviam logo de sair da cidade, em os nossos entrando per ua porta, saíram eles per outra, passando-se a terra firme, sem levarem mais fazenda que suas pessoas, porque toda a mais, e assi a que o Sabaio ali tinha, havia mister pera guarda e provimento da cidade. Tomada a entrega desta tam ilustre cidade, o primeiro sinal que Afonso de Albuquerque quis dar de si, da paz e justiça em que havia de manter a todolos moradores 63v dela, foi: assi em português, como em língua canari da terra, mandou lançar pregão que nenhum mercador estrangeiro ou natural fizesse algua mudança de sua fazenda ou pessoa, mas que abrissem suas tendas e vendessem suas mercadorias na paz e segurança que lhe tinha dado; e que nenhum português fosse ousado tomar algua cousa contra vontade de seus donos, nem aos da terra fizessem algum desprazer, ora fossem mouros ora gentios, sob graves penas, os quais pregões quietaram toda a cidade, que ainda não estava segura de nós. Entre outra muita munição que Afonso de Albuquerque achou que o Sabaio tinha naquelas casas do seu aposento, e assi na cidade, foram muitas armas, artelharia, velame e enxárcea de oito velas, entre naus e galeões e outros navios de remo que ali estavam, uns deles no mar e outros em estaleiro, de que alguns não eram ainda acabados; e assi achou ua estrebaria do Sabaio com muitos cavalos, os quais serviam à gente que ali tinha de guarnição; e além destes comprou Afonso de Albuquerque vinte a um mouro párseo que ali estava, per nome Mir Bubaca, de oitenta que trouxera pera vender. O qual disse que a sua principal vinda era a certas cousas que o Xeque Ismael, Rei da Pérsia, seu senhor, o mandava como embaixador negociar com o Sabaio; e por fazer algum proveito naquela viagem do dinheiro que trazia pera sua despesa, trouxera de Ormuz aqueles cavalos, por saber que tinham ali boa valia. 202 Afonso de Albuquerque, sabendo quem ele era, o tratou honradamente, e mandou-lhe pagar os cavalos por o estado da terra, que foi a razão de duzentos cruzados cada um, com o qual embaixador, quando se partiu, ele mandou Rui Gomes de Carvalhosa e um Fr. João, frade da Ordem de S. Domingos, com ua carta a el-Rei de Ormuz, e outra a Coge Atar, seu governador, pedindo-lhe que a estas duas pessoas que ele mandava ao Xeque Ismael, dessem cavalos e todo bom aviamento pera irem em companhia daquele embaixador. O que não houve efeito, porque Coge Atar não quis que passassem a terra firme, e deu ordem como um morreu de peçonha, em Ormuz, e o outro se tornou pera a Índia. 204 Nem menos houve efeito ua encomenda, que mandou dar da fazenda del-Rei a outro mouro, por nome Coge Amir, também natural da Pérsia, o qual era mercador abastado e mui conhecido naquela cidade, por costumar trazer ali cavalos, e este levou em ua nau sua o embaixador

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do Xeque Ismael e pessoas que Afonso de Albuquerque com ele mandou. E por este Coge Amir ser homem tam conhecido, lhe mandou dar algua fazenda del-Rei e ua nau da terra das que se ali tomaram, obrigando-se trazer nela o retorno da fazenda em cavalos de Ormuz pera ajuda da defensão da cidade; e a causa de não comprir foi porque, ao tempo que ele tornava com eles, veo ter a Dabul e entregou os cavalos ao Hidalcão, por Afonso de Albuquerque ter perdido per guerra esta cidade. Peró, depois que a tornou cobrar, sendo já passado muito tempo, tornou este Coge Amir com ua armação de cavalos a Goa; e não se pôde tanto encobrir, que não fosse preso, e pagou o que devia por vinte cinco cavalos que deu. Além destas pessoas que Afonso de Albuquerque despachou pera fora, depois que tomou a cidade, mandou também um cavaleiro per nome Gaspar Chanoca a el-Rei de Narsinga, fazendo-lhe saber como tomara aquela cidade, com ofertas que, fazendo ele guerra aos mouros do reino Decão, ele por os seus portos do mar os apertaria de maneira pera totalmente os lançarem da Índia; e com estoutros requerimentos: que desse ele lugar a se fazer ua fortaleza em Baticalá, por ser terra sua, requerimento que já dependia do tempo do Viso-Rei D. Francisco de Almeida. A qual ida não fundiu mais que palavras gerais que el-Rei de Narsinga deu de si, posto que recebeu esta embaixada com solenidade. E a causa disso foi porque o Hidalcão naquele tempo fez paz com ele, por acudir a Goa (como se neste seguinte capítulo verá), e el-Rei queria primeiro ver quem ficava melhor, pera se determinar, e outro tanto fez el-Rei de Bengapor, vassalo deste, a quem Afonso de Albuquerque, por ser em caminho, mandava também Gaspar Chanoca.

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203 63v 204 Capítulo IV. De alguas cousas que Afonso de Albuquerque fez em Goa, enquanto o Hidalcão a não veo cercar; e depois que entrou na Ilha, Afonso de Albuquerque leixou a fortaleza e se recolheu às naus. 64 Afonso de Albuquerque, como teve posse da cidade e viu o sítio dela, logo fez fundamento que ali havia de ser cabeça de todo o Estado da Índia; porque, além de ser cousa mui defensável, por razão de estar naquela Ilha Tiçuari, a comarca era mui proveitosa assi per armada, que havia de correr toda a costa do Cabo Comori té a enseada de Cambaia, por estar quási no meio dela, como por ser a principal entrada de todo o comércio do reino Decão e Narsinga, de maneira que ficava um jugo 205 pera mouros e gentios, e mais tirava ser ua acolheita de rumes, onde eles já começavam criar raízes. Por tirar o qual inconveniente, e por ver a esperança que ele, Afonso de Albuquerque, teve dela, ordenou logo de a fortalecer mais do que estava, temendo também que o Hidalcão não havia de querer perder tamanho estado, como era esta cidade, com as terras e tanadarias a ela sujeitas. E posto que logo não teve modo pera haver cal pera a fortalecer como desejava, com pedra e barro a repairou o melhor que pôde, mandando atalhar a fortaleza, do qual atalho tomou a parte da serventia do mar, e aproveitou-lhe pera esta obra muita pedraria lavrada de uns edefícios antigos que estavam perto da cidade, repartindo este trabalho per os capitães das naus, servindo cada um seu giro com sua gente; e D. António de Noronha, seu sobrinho, era o principal no trabalho, por lhe ele ter dado a capitania desta fortaleza. À qual obra também acudiu muita gente dos canaris da terra, que folgavam ganhar jornal por lhe ser mui bem pago, o que causou em pouco tempo ser acabada e os gancares se virem a Afonso de Albuquerque, dizendo que, pois ele era senhor de Goa, e as tanadarias das terras firmes eram obrigadas, como a cabeça, acudir a ela com o rendimento que deviam em cada um ano, pelo qual tributo ele as havia de ter em paz e defender, lhe pediam que mandasse tanadares às tanadarias, assi pera arrecadarem esta renda, como a os defender do mal e dano que recebiam dos mouros que saíram dali, os quais andavam em magotes per essas aldeas, roubando e avexando o povo gentio. Afonso de Albuquerque, por estes gancares serem as cabeceiras das aldeas, que, como dissemos, fazem o lançamento do tributo que pagam, os agasalhou bem, agradecendo-lhe aquela obediência, e que logo proveria em seu regimento. Pera guarda dos quais ordenou algua gente da mesma ilha do gentio canari com seus naiques, que são os capitães deles a pé e a cavalo, a capitania dos quais deu a um Diogo Fernandes, 204 que por os serviços que ali fez foi depois adail de Goa; e vindo a este reino, sempre foi chamado per este nome, que ali ganhou com honrados feitos. Além da qual gente, que ele, adail, trazia por razão de seu ofício, ordenou mais pera a guarda dos passos, assi no mar, como na terra, capitães que vigiassem e rodeassem toda a ilha. E porque toda esta guarda não se podia fazer com a nossa gente, e entre os mouros havia alguas pessoas honradas, a que Afonso de Albuquerque queria comprazer, por se melhor governar a terra, deu a capitania de quatrocentos piães mouros a um chamado Mir Cacém, por ser homem pera isso e com que a gente folgava de andar. O qual também havia de andar vigiando os passos da ilha, que não viessem alguns mouros da terra firme roubar as aldeas, e a Timoja deu a capitania de todo o gentio da terra, por saber seus costumes, com ofício de tanadar-mor de toda a ilha. Andando a vegia e guarda dela

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206 per este modo, fazendo Afonso de Albuquerque fundamento de invernar ali, té acabar de assentar as cousas daquela cidade, por se não gastarem com as chuivas as exárceas das naus, mandou desaparelhar alguas, e espediu a Francisco Pereira Coutinho, que com a sua caravela fosse a Cochi pôr alguns aparelhos pera poer alguns navios em estaleiro, onde estavam as naus dos mouros;, e assi espediu a Francisco Pantoja em o navio Santo Espírito, carregado de mantimentos pera a fortaleza da Ilha Socotorá, e trazer seu sobrinho D. Afonso, da qual ida atrás contámos sua viagem. Depois, por ter nova que alguas naus de Ormuz e da costa da Arábia estavam em Baticalá carregando pimenta e outras especearias, com voz que era arroz e mantimentos, mandou Jorge da Silveira, e com ele estes capitães Fernão Peres de Andrade, Simão de Andrade, seu irmão, e Francisco Pereira, por ser já vindo de Cochi, que fossem dar ua cata a estas naus, e achando-lhe algua especearia, as tomassem; e também que carregassem os navios de arroz e todo outro mantimento pera aquele inverno. E porque Jorge da Silveira 64v achou nestas naus muita especearia, fez o que lhe Afonso de Albuquerque mandou, levando-as a Cochi; e Fernão Peres, Simão de Andrade e Francisco Pereira tornaram a Goa carregados de mantimento, que foi a vida de todos, segundo as cousas sucederam. Feitos estes provimentos, havendo já quatro meses que as cousas estavam em estado de muita paz, pagando as tanadarias o que eram obrigadas pagar, começaram as mais chegadas ao pé da serra não pagar seu quartel, porque os mouros davam nelas e roubavam tudo; e outros com nova que o Hidalcão se fazia prestes pera vir sobre a cidade, rebelavam-se; ao que Afonso de Albuquerque mandou alguas vezes o adail Diogo Fernandes com gente de pé e cavalo; mas aproveitou pouco, porque andava já com as novas da vinda do Hidalcão toda a gente alevantada. E porque alguns mouros 205 dos principais lhe deziam que trabalhasse por haver a seu serviço o capitão Iaçufe Gurgi, que dali fora com a mão aleijada, porque ele paceficaria muito o alvoroço da gente, por ser homem que acerca de todos tinha muito crédito e era costumado à guerra daquelas partes - e mais estava em tempo pera facilmente o haver, por ele estar ainda em o lugar Chandragão, temeroso de ir ante o Hidalcão - mandou Afonso de Albuquerque a ele o adail Diogo Fernandes e em sua companhia Mir Alé, o mouro honrado que da parte da cidade veo a Afonso de Albuquerque tratar da entrega dela, por este ser o que movia este negócio, e a principal inculca dele. E como ao tempo que Afonso de Albuquerque mandou este recado era já na fim de Maio, em que naquelas partes se começava o inverno, e o Hidalcão tinha abalado com seu exército pera vir cercar a cidade, do poder e aparato do qual eram as estradas cheas com a nova, à qual, por ser per boca de mouros, Afonso de Albuquerque dava pouco crédito; quando mandou Diogo Fernandes, foi com dous fundamentos: a trazer o capitão Iaçufe, querendo aceitar o partido que lhe mandava cometer; e quando o não podesse induzir a isso, com esta coberta de ir a este negócio saberia lá mais certas novas do aparato e vinda do Hidalcão, e que pera este 207 caso aproveitava muito Mir Alé. Mas ele não tinha perdido a natureza do sangue arábio, que é não ter fé nem verdade per condição, mais per acidente; porque, em lugar de tratar este negócio, como ele tinha dito a Afonso de Albuquerque, ordenou de entregar aos mouros o adail com quantos levava. Porque, sabendo ele que mui perto donde estava Iaçufe era vindo Camalcão, um dos principais capitães do Hidalcão, com até mil e quinhentos de cavalo e oito mil piães, pareceu-lhe que com este feito se reconcelearia com o Hidalcão por os negócios em que andou na entrega da cidade. Peró, sabendo o adail esta traição per alguns gentios que o sentiram no modo dos caminhos que mudava pelo meter no arraial de Camalcão, tornou fazer volta - não que desse a entender a Mir Alé que sentia seu propósito - e guiado per um capitão gentio dos canaris de dentro de Goa, chamado Verdelim, foi o adail posto em salvo, e ainda o levou per caminho, que topou com algua fardagem do arraial de Camalcão, que vinha per aquela parte, a qual derrabou no que pôde, e trouxe

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línguas, per as quais Afonso de Albuquerque soube como o Hidalcão não vinha ali, somente um seu capitão principal, e ele vinha detrás mais de vagar, com grande número de gente e aparato de guerra. A qual nova, posto que ele, Afonso de Albuquerque, a quisera encobrir, eram já as estradas tam cheas, que manifestamente se via no rosto dos mouros; porque andavam tam alvoroçados, que logo entre eles, como quem lhe dava pouco que se soubesse, começou de se romper os tratos e inteligência que tinham com ele, e as cartas e avisos que 206 havia de parte a parte; porque, como havia muitos que tinham ódio a outros, por condenar o imigo, iam denunciar dele a Afonso de Albuquerque suas culpas, per os quais ele veo saber como tinham ordenado dar entrada na ilha ao Hidalcão, e que o principal deste negócio era Mir Cacém, a quem ele tinha dado a capitania de quatrocentos homens dos mouros naiteás, naturais da terra, pera guarda do campo com o ofício de tanadar deles. E posto que Timoja, ante de se este negócio denunciar tam geralmente, per aviso dos gentios principais de sua capitania, tinha em segredo dito a Afonso de Albuquerque, que se não fiasse deste mouro Mir Cacém, por andar em tratos com o Hidalcão; nunca Afonso de Albuquerque o creu dele, por ser deligente servidor, e parecia-lhe que eram compitências e paixões de Timoja, por razão de seus ofícios de tanadares e capitães, um dos gentios, e outro dos mouros, o 65 qual cargo Timoja todo em sólido esperou de Afonso de Albuquerque, e não repartido em duas partes. Na qual esperança ele se não enganava, porque Afonso de Albuquerque assi o quisera fazer; mas sabendo os mouros que haviam de ser mandados per homem gentio, clamaram, com que ele deu este ofício a Mir Cacém. Assi que, destas cousas que precederam, cuidava Afonso de Albuquerque serem os avisos que lhe Timoja dava contra 208 ele, té que, além de se já comumente dizer, Timoja houve cartas a mão destes tratos que Mir Cacém mandava a Camalcão, as quais Afonso de Albuquerque guardou pera seu tempo, e dissimulava assi com Timoja, como com todolos outros que lhe vinham denunciar algua cousa destas, dando-lhe por isso agradecimentos, té que viesse a hora em que aquele negócio havia mister remédio. E a primeira cousa em que entendeu, apercebendo-se pera aquele hóspede que esperava, foi mandar recolher todolos tanadares; e não tam prestes que, eles recolhidos, Camalcão era já nas tanadarias. O qual, não somente por melhor conseguir seu intento de cometer passar à ilha per muitas partes, como era aconselhado per Mir Cacém e outros da sua quadrilha, que lhe davam todolos avisos, mas ainda a necessidade de não ter lugares tam espaçosos pera alojamento de tanta gente, como trazia, assentou-se defronte de Benestari, e dali mandou um ramo de gente meúda ao passo de Agaci. Afonso de Albuquerque, assentando Camalcão seu arraial, peró que dantes tinha provido como a ilha era vigiada, de novo repartiu a guarda dela per esta maneira: No passo de Agaci pôs Lopo de Azevedo com certos homens de cavalo e de pé; e pera o favorecer, pôs no mar Fernão Peres de Andrade, e a Luís Coutinho em seus navios e batéis; e entre este passo e o de Benestari, por ali concorrerem muitas bocas de rios e esteiros, pôs a Diogo Fernandes, de Beja, Simão Martins com ua galé e galeota, e a Bernaldim Freire e a Pero da Fonseca, cada um em seu batel. E no passo 207 Benestari, mais acima, pôs Garcia de Sousa em ua estância com muita gente nossa e pionagem da terra, que era o lugar de mais suspeita; e no mar, em favor dele, Aires da Silva com o seu navio. E a baixo contra o passo seco ou Gandali, como lhe os da terra chamam, no mar pôs Simão de Andrade em sua galé, e na terra Francisco de Sousa Mancias e Francisco Pereira Coutinho. No passo Daugi, Jorge da Cunha; e de Pangi té Mamoli, que está em Goa-a-Velha, havia de correr Jorge da Cunha com sessenta de cavalo, e Timoja com a maior parte do gentio da terra. E além destes ordenados em lugares certos, andavam outros per toda a ilha a ua e a outra parte, espertando-se todos pera que qualquer cousa que se bulisse na terra firme, fosse logo sentida na ilha pelos nossos; sendo sobre

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todos no mar D. António de Noronha, o qual andava na galé de Diogo Fernandes, correndo todalas estâncias.

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207 65 209 Capítulo V. Como o Hidalcão com grã poder de gente veo cercar a cidade Goa; e do que Afonso de Albuquerque nisso fez, té leixar a cidade, recolhendo-se às suas naus, e nelas passou o inverno no rio de Goa. Afonso de Albuquerque, porque o maior receo que tinha neste grande cerco era dos mouros que estavam na cidade, principalmente de Mir Cacém, por os tratos em que andava com Camalcão, por dissimular com eles, trouxe-os todos pera si, sem lhe querer dar lugar certo, dizendo que naquele tempo queria que andassem em sua companhia e não debaixo da capitania de outrem, e com eles cavalgava, trazendo-os a ua e outra parte, visitando as estâncias e praticando com eles o modo que teriam na defensão daqueles passos. E vindo do campo com eles e com outros capitães, ajuntou a todos, dizendo que queria ter conselho; e como foram dentro na fortaleza, prendeu-os sem fora se saber que estavam presos, por acolher outros, os quais poucos e poucos fez vir, té que ajuntou perto de cem pessoas dos mais principais, e uns por culpados e outros por se temer deles, todos foram presos. Somente Mir Cacém e um seu primo logo dali os mandou Afonso de Albuquerque entregar aos seus alabardeiros, que os mataram por suas culpas serem mui notórias; e outros de menos calidade, que eram com eles na traição, foram enforcados nos lugares púbricos, denunciando com pregões a causa de sua morte; e que dos outros que ficavam presos, ao presente não fazia justiça, por ainda não ter achado neles 65v mais que indícios; e sabida a verdade, faria o que requeressem seus méritos, e que per entanto estariam assi em custódia. O qual negócio assombrou muito os moradores da terra, assi mouros como gentios, vendo que todolos movimentos da traição que entre eles havia, eram descobertos, e o galardão que por isso haviam. Camalcão destas cousas soube logo parte; e 208 como a vinda do Hidalcão àquele cerco em tal tempo era cousa muito perigosa por as diferenças em que andava com os capitães do reino Decão, e assi com el-Rei de Bisnagá, e por acudir a esta cidade, fez com eles um concerto de tréguas não muito de sua honra, espediu logo um mensageiro para ele, denunciando-lhe em que termos a cidade estava, e como ele se punha a passar à ilha, onde esperava em Deus que o acharia quando embora chegasse. E como ele pera cometer esta passagem, que mandou dizer, não tinha embarcações, mandou que toda a gente de serviço não entendesse em outra cousa senão em fazer jangadas de madeira e cestos grandes de verga cobertos de coiros pera os cavalos e gente, o qual modo de cestos usam per todas aquelas partes na passagem de rios cabedais, usando de um artefício pera embaraçar os nossos e não atinarem per onde 210 haviam de passar, o qual artefício era em torno de toda ilha darem mostras de si, ora em ua parte, ora em outra. Afonso de Albuquerque, posto que soubesse que esta obra se fazia per esteiros e partes onde os nossos batéis podiam ir, não pôde fazer mais que prover a guarda do mar e da terra da maneira que dissemos. Finalmente, ua sexta-feira, ao quarto de alva, tempo bem escuro e áspero de tormenta, cometeu Camalcão a passagem do rio nas jangadas e cestos que tinha feito, mandando diante a um capitão per nome Sufo Lari, por ser homem muito de sua pessoa, e ele nas suas costas saindo do rio Antrux, onde está ua ilheta, a que ora os nossos chamam dos Bogios, que em algua maneira fazia emparo entre terra e terra.

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D. António de Noronha, com os capitães que vegiavam aquela parte, como sentiu a vinda das jangadas e cestos, acudiu logo a grã pressa; e como envestiram uns nos outros, foi a peleja tam brava e crua, quási a luz do fogo que se punha à artelharia por ser ainda de noite, que morreu um grande número dos mouros, que foi bom cevo os que caíram ao mar aos lagartos que ali andavam, como dissemos. E posto que nele houve grande estrago e os nossos lhe tomaram doze jangadas, eram elas tantas, e assi empediram o remar dos nossos, que uas pera ua parte e outras per outra, escapuliam muitas e deram consigo na Ilha de Goa, na qual passagem foi Sufo Lari com até dous mil homens, muitos deles a cavalo, sem na terra haver quem lha empedisse. Porque naquela parte onde ele a tomou, estava toda feita em talhos como de marinhas, por ser lugar onde semeavam arroz, de maneira que os nossos que estavam no passo de Agaci e Benestari, que eram mais vezinhos, nem menos Jorge da Cunha, que havia de acudir a ambas estas partes com a gente de cavalo e pionagem de Timoja, nunca poderam empedir que Sufo Lari não passasse a cavalo com toda sua gente. O qual, tanto que fez sinal per que Camalcão viu no arraial ter ele já passado à ilha, e os mouros naiteás, moradores dela, houveram também vista 209 dele, não somente começaram desemparar as nossas estâncias dos passos, onde eles estavam com os nossos em defensão deles, mas ainda se foram ajuntar com ele e com Camalcão, que passou depois mais de vagar. E verdadeiramente, se estes mouros, naturais da ilha, não foram contra nós, quantos mouros tomaram terra na ilha, por muitos que foram, todos se perderam, assi estavam os passos providos e a terra era azada. Mas como estes mouros se ajuntaram com Camalcão e se fizeram em um corpo de quatro mil homens, e eles sabiam que, cometendo as estâncias dos nossos que estavam nos passos, não havia outra salvação senão recolher-se aos batéis que ali tinham em seu resguardo, começaram de as correr de maneira que, estes per terra e outros per mar, eram já tantos, que tudo era arrombado deles, com que os nossos começaram de se recolher a suas embarcações, 211 e alguns mais apressadamente do necessário, leixando a artelharia que tinham nas estâncias. E de quanta honra perderam alguns de nobre sangue neste recolhimento, tanta ganharam dous pedreiros, que assi como eram companheiros no ofício e na amizade, assi neste feito foram de um mesmo ânimo, sem se querer mudar da estância, defendendo o ímpeto dos mouros enquanto per outros mandaram recolher a artelharia, onde finalmente, mais cansados que vencidos, acabaram, não mecânicos, mas como animosos cavaleiros, tendo derredor de si um terreiro alastrado de corpos mortos. 66 Garcia de Sousa também no passo onde ele estava, por ser o mais principal, tinha feito ua grossa tranqueira, de que defendia aquele lugar; e posto que corressem ali muitos mouros, tanto os cansou, que tomaram por remédio pôr fogo à tranqueira. A qual, como começou arder, e não o podendo a gente sofrer, recolheu-se já com seu irmão Pero de Sousa morto e muita gente ferida. E estando quási recolhido em salvo, porque lhe disseram que ficava um homem de armas, mulato, o qual deziam ser seu irmão bastardo, tornou a ele, e com muito trabalho, por estar ferido, o salvou às costas. Parece que lhe dezia o espírito que este, que ali salvava com tanto perigo, em outro em que ele, Garcia de Sousa, gostou a morte, havia de ser testemunha da honra que ganhou naquele auto dela, como veremos no feito do escalamento da cidade Adem. Jorge da Cunha, a quem foi dado por lemite correr com a gente que tinha do passo de Agaci té Goa-a-Velha, e de Agaci té Carambuli, por acudir a ua parte, desabafou a outra, que foi a de Carambuli, per onde entrou Camalcão, com que não teve outro remédio, depois que viu ser a ilha entrada per todas partes, senão poer-se em caminho pera a cidade com a gente de cavalo, e consigo Lopo de Azevedo, que estava no passo de Agaci. Os quais, per benefício de um gentio da terra, que se chamava Menaique, que era capitão dos que andavam com Timoja, foram levados à cidade per caminho que não teveram encontro dos mouros, que eram entrados, sendo já tantos per 210 toda a ilha, que andavam como senhores do campo, e os da terra tam sem medo dos nossos, que, se

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Afonso de Albuquerque mandava um homem fora da cidade com algum recado aos passos, era logo morto per os mesmos mouros da cidade. De maneira que, mandando ele Francisco de Sá, com até trinta de cavalo e algua gente de pé com espingardas ver se poderia ir a Benestari saber em que estado estavam os nossos naquela passo, e assi recolher alguns que tinha mandado com recado aos outros passos, não o pôde fazer, ante se viu em assaz perigo, primeiro que lhe fosse dado um recado de Afonso de Albuquerque que se tornasse, por andar já travado com os imigos, que vieram ladrando trás ele té o meterem na cidade, posto que fez a alguns volta em 212 que derribou deles; porque, como os do arraial do Camalcão viram ter ele já tomado a terra, passaram todos o rio. Assi que, estes no campo e outros da cidade, fora e dentro dos muros, como algum dos nossos vinha dar com eles, logo era ferido e morto, com que foram perdendo tanto o medo e vergonha, que já se não contentavam fazer esta obra onde não fossem vistos, mas como gente que queria meter a cidade em revolta, pubricamente feriam neles. Afonso de Albuquerque, que a este tempo estava às portas da cidade, vendo a ousadia destes mouros, repartiu a gente que consigo tinha em dous corpos por acudir a duas entradas da cidade, onde se fazia este dano, e começou de lhe poer o ferro rijamente, e em ua parte onde se acharam Nuno Vaz de Castelo Branco, Dinis Fernandes de Melo, Diogo Goterres, Bastião Rodrigues, James Teixeira e outros, posto que derribaram em ua rua alguns de mouros, eles ficaram todos bem sangrados; e outro tanto aconteceu a Gaspar de Paiva em outra rua, onde se achou com os de sua capitania. Com a qual obra os mouros deram tanto lugar, que já entravam sem perigo os nossos, que se vinham acolhendo à cidade pela porta onde eles estavam; mas isto não durou muito, porque alvoraçou-se tanto a cidade, que conveo a Afonso de Albuquerque mandar que se recolhessem todos ao castelo, e alguns deles, por acharem as ruas tomadas dos mouros, rodeavam per fora a vir buscar a ribeira, de que os nossos eram mais senhores. D. António de Noronha, como soube que a ilha era entrada per todalas partes, temendo que Afonso de Albuquerque podia ter necessidade dele, havido conselho com os capitães que andavam em sua companhia, veo-se recolher ao castelo, trazendo consigo toda a artelharia. que pôde haver, assi das estâncias, como do navio Espera, que estava em guarda de Benestari, o qual se meteu no fundo por se não poder trazer. Recolhida a nossa gente àquele abrigo do castelo, foi a cidade entrada pela gente de Camalcão, e ele contentou-se aquele dia não fazer mais que tomar posse da entrada na ilha sem cometer a cidade; porque, como naquela primeira passagem não pôde passar a artelharia, 211 que trazia pera combater a fortaleza e assentar suas estâncias com essa pouca gente que meteu béspora de Santo Espírito, começou de combater o castelo. O qual combate, posto que per sua parte não foi mais que ua maneira de tentar 66v a nossa gente pera tomar experiência como se haviam de haver com ela ao diante, por parte dos mouros da cidade tiveram os nossos muito trabalho; porque, como queriam comprazer ao Hidalcão por lhe pagar a indinação que tinha contra eles em tam levemente entregarem a cidade sem peleja, pelejavam como uas feras, sem temor. Afonso de Albuquerque, logo naquela primeira entrada, não fez mais que repartir a defensão da cidade per estes capitães: D. António de Noronha, seu sobrinho, Aires da Silva, D. Jerónimo de Lima, D. João, seu irmão, Simão de Andrade, Fernão Peres, seu irmão, Diogo Fernandes, de Beja, Jorge Fogaça, e per outros, a qual defensão não foi tam prestes feita, quanto o arraial 213 de Camalcão estava já assentado junto da cidade obra de meia légua, onde chamam as Duas árvores. E porque nos primeiros cometimentos que os mouros fizeram, querendo entrar a cidade a escala vista, per um quebrado do muro eles foram mui mal recebidos, mandou Camalcão fazer mui

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chegada ao muro ua estância, em que pôs um camelo e algua artelharia de metal, que tomou nas estâncias onde os nossos estavam nos passos da ilha, quando entrou nela, donde fazia muito mal aos nossos; e daqui andava a ua e a outra parte mudando-a, onde nos faria maior dano sem lha poderem os nossos tomar, posto que per vezes o cometeram. Finalmente, este cerco teve dous termos de muita opressão: um ante que o Hidalcão chegasse com todo seu poder, no qual tempo Camalcão fez tudo o que pôde como cavaleiro e industrioso capitão, té mandar cometer partido a Afonso de Albuquerque, que lhe despejasse a cidade com alguas condições desonestas, e que o leixaria embarcar, tudo a fim de levar esta glória ante que o Hidalcão viesse, que esperava cada dia. Ao qual negócio mandou um João Machado, português, que era um dos degredados dos que Pedrálvares Cabral leixou em Melinde. E posto que nesta vinda falou a Afonso de Albuquerque como homem que o queria aconselhar, dando-lhe aviso do que ia no arraial de Camalcão, e o grande poder que trazia o Hidalcão, que seria ali di a poucos dias, por o lugar em que ele andava, pareceu a Afonso de Albuquerque que tudo era artefício de Camalcão; té que, com a vinda do Hidalcão, ele viu serem verdade muitas cousas; que lhe João Machado dissera. O outro termo que este cerco teve, foi depois que o Hidalcão entrou, o qual, segundo fama e aviso de João Machado, trazia sessenta mil homens, em que entravam cinco mil de cavalo; e por este exército ser tam grande, não o passou todo à Ilha de Goa, mas ficou a maior parte na terra sobre a borda do rio em duas 212 capitanias: ua, que estava sobre o passo, deu a um seu capitão principal; e a outra tinha sua mãe dele, Hidalcão, com suas mulheres, onde havia das púbricas pera o uso da gente mais de quatro mil, que à custa de seus corpos pagavam toda aquela gente que a madre do Hidalcão trazia. O qual também, depois que veo, quis mover alguns partidos a Afonso de Albuquerque, e isto não tanto por desconfiar de a cidade ser sua polo grande poder que trazia, quanto por maneira de indústria; porque, visto como os nossos, tomando ele a cidade, tinham por colheita as naus, ordenou de mandar atupir o canal do rio com alguas suas, e sobre isso lançar muitas balsas de fogo, que na descente da maré viessem queimar a nossa frota; e enquanto ordenava isto, queria entreter Afonso de Albuquerque, simulando partidos e concertos, té lhe fechar a saída. Das quais cousas, posto que Afonso de Albuquerque fosse avisado per João Machado, sempre lhe pareciam artefício 214 dos mouros, té que ua menhã viu ua nau deles metida no fundo, da qual não aparecia mais que um terço do masto, e no seguinte dia outra. Afonso de Albuquerque, vendo que todalas cousas de que fora avisado per João Machado davam sinal serem ditas como homem que no peito tinha o nome de cristão, posto que na boca entre os mouros era um deles, assentou consigo mesmo leixar a cidade, porque concorriam muitas cousas, que não podia al fazer; a principal das quais era ser assi aconselhado per muitos capitães, e quási em modo de requerimento, de que ainda teve algua paixão com eles. Porém, temendo que, no modo de a leixar, acontecesse algum desmancho polo desejo que toda a gente tinha de se recolherem às naus, secretamente o comunicou com D. António de Noronha e com alguns capitães do seu voto; e depois, a noite ante de se recolher teve geral conselho com todos, onde lhe propôs o que eles tinham visto e passado, e mais quanto passara com João Machado, e quam verdadeiro o achara em tudo. Pera amoestar a qual saída não houve mister muitas palavras, 67 por o perigo do estado de toda a Índia, que eram eles, estar claro, com que a ua voz todos foram que logo aquela noite fosse, ante que lhe atupissem com mais naus a saída. Com o qual conselho Afonso de Albuquerque, ante de se recolher às naus, ordenou de mandar matar todolos mouros que tinha preso por causa da traição, e assi todolos cavalos que ali achou; a carne dos quais foi recolhida às naus, que foi depois boa provisão. E posto que ua ante menhã ele se recolhesse o mais quietamente que pôde, traziam os

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mouros tanto a orelha neste movimento, que quando ele saía pelas portas da ribeira, foram logo todos pegados com ele, de maneira que, por se recolher sem muito perigo (segundo o negócio se azava), leixaram de recolher muita fazenda del-Rei que estava em terra, e assi queimar as naus que estavam em estaleiro. Porém, vendo Afonso de Albuquerque que era 213 sentido, mandou o adail poer fogo a alguas, onde se ele houvera de perder com outros, por serem já os mouros tam quentes com eles que lhe mataram o cavalo; e com trabalho se salvou, e o fogo que tinha posto em as naus, foi logo apagado pelos mouros, com que elas receberam pouco dano. Nas costas do qual adail foi D. António de Noronha, D. Jerónimo de Lima, Manuel de Lacerda, Garcia de Sousa, Duarte de Melo, Diogo Fernandes, de Beja, que receberam assaz dano e trabalho em se embarcar.

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213 67 215 Capítulo VI. Das cousas que Afonso de Albuquerque passou o inverno que teve no rio de Goa. Recolhido Afonso de Albuquerque o derradeiro dia de Maio, havendo vinte que os mouros o tinham cercado, quando veo ao levar das âncoras, estava tudo tam embaraçado, que lhe conveo esperar todo aquele dia defronte da cidade, onde receberam assaz de afronta; e muitos deles foram mais feridos da artelharia e frechas que ali tiraram, que na peleja que teveram em todo o cerco. Acabado o qual trabalho, caíram em outro maior, e foi do lugar onde os mouros alagaram as duas naus, porque aqui se viu Afonso de Albuquerque quási sem remédio, andando com a sonda na mão de baixa-mar e prea-mar té que aprouve a Deus que, enfiadas ua na outra, passou todalas velas, e veo fazer sua estância entre a ponta que chamam de Rebandar, e o castelo de Pangi, que Dom António tomou, como dissemos, por ser o mar ali mais espaçoso entre a terra de Bardes e da ilha. A qual ponta, como era um pouco soberba e lugar pera esta estância das naus, porque, com ua maneira de enseada que fazia da parte da ilha, ficavam elas fora do tesão da corrente das águas, entenderam os mouros que ali haviam os nossos de eleger pera pouso das naus, e tinham fortalecido a fortaleza mui bem, e assi a torre que Timoja tomou na terra de Bardes, porque de ambas estas fortalezas poderiam com artelharia fazer dano aos nossos. Na qual saída da cidade com Timoja se recolheu muito do gentio e canari da ilha, de que era capitão, temendo receberem dano dos mouros por pelejarem contra eles, pera aposentamento dos quais Afonso de Albuquerque lhe mandou dar ua nau das que acharam no porto, quando entrou a cidade, de que era capitão Nuno Vaz de Castelo Branco. E como quem se apercebia pera os trabalhos que havia de passar aquele inverno, repartiu Afonso de Albuquerque o cuidado da vegia da armada, quanto ao de fora, per capitanias; porque, como aquele rio tinha grande número de esteiros, além das ilhas contra a terra firme, nos quais ele sabia que se haviam de ordenar jangadas de 214 madeira pera com a jusante da maré e cheas dos rios as encaminharem, que lhe viessem queimar as naus, quis-se logo aperceber pera este trabalho. Isto assi na vegia da frota, como que certos capitães, cada um em navios de remo e batéis, que fossem vigiar estas cousas e outras, de que se temia que lhe podiam sobrevir, principalmente fazer aguada na terra firme e haver alguns mantimentos nas ilhas do gentio da terra, que por razão do 216 parentesco que tinha com aqueles que estava com Timoja, folgariam de o dar, como fizeram nos primeiros dias, enquanto os mouros não entenderam nisso. Porém, depois 67v que viram termos ali algua provisão, defendiam tudo per armas, onde os nossos verteram seu sangue, como aconteceu a D. João de Lima, indo fazer aguada à terra de Bardes, a qual defendia Iaçufe Gurgi, o capitão que perdeu o castelo de Pangi. E nas Ilhas de Divar e Chorão, D. António, Gaspar de Paiva, Manuel de Lacerda, Jorge Nunes de Lião e outros capitães com Timoja e Menaique, passaram outro tal trabalho per alguas vezes, por haver gado e arroz. Mas de todos estes nenhum chegava ao que tinham no lugar onde estavam surtos; porque, como era no rosto da fortaleza Pangi, todolos dias eram varejados com artelharia; e de noite, tanto que aparecia candea, logo apontavam nela; de maneira que, por fugir este dano, que lhe feria muita gente, e alguns homens eram mortos, andavam mudando o pouso das naus, e em toda parte eram pescados com artelharia.

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Afonso de Albuquerque, vendo que depois da fome nenhua cousa trazia a gente mais assombrada e cansada, praticou com os capitães que queria dar um salto na fortaleza, e ver se podiam tomar aquela artelharia que os matava, e que pera isso bastavam trezentos homens. O qual caso, posto em consultar deles, muitos foram em contrairo parecer, por quam perigosa cousa era ir cometer ua fortaleza atulhada de gente com artelharia mais basta que as ameias; mas como a salvação de todos estava em se tomar esta artelharia, e o perigo do caso era menos do que cada dia passavam, todavia assentou Afonso de Albuquerque em cometer a fortaleza. Dizendo que, pois Deus ensinava o remédio, e quanto ao juízo de todos aí não havia outro, esperassem nele, pois sempre sua misericórdia era maior que a confiança dos homens. Assentado este cometimento, repartiu Afonso de Albuquerque a gente em dous trabalhos: aos do mar deu cuidado de recolher artelharia aos batéis, e, quando a não podessem salvar, que dessem com ela no rio, e o governo disso deu a Dinis Fernandes de Melo. O outro cuidado que havia de ficar com a gente de armas, que era cometer a fortaleza e pelejar com os mouros, repartiu em três partes: Diogo Fernandes, de Beja, na sua galé, e Afonso Pessoa, na fusta, haviam de sair abaixo do castelo, e di virem per terra pera tomarem as costas dos mouros, quando acudissem à ribeira. E os que haviam 215 de cometer por ali de rostro à fortaleza, eram Manuel de Lacerda, Bastião de Miranda, Nuno Vaz de Castelo Branco, e logo acima deles D. João de Lima, seu irmão D. Jerónimo, Fernão Peres, Aires da Silva. E ao modo de Diogo Fernandes, pela banda de cima, contra a cidade haviam de cometer estes capitães: Simão de Andrade, Simão Martins, Jorge Fogaça, Bernaldim Freire; e D. António com todolos outros capitães havia de acudir onde fosse mais necessário per terra, e Afonso de Albuquerque entreter a parte da ribeira. 217 E parece que ordenou Deus que este caso fosse mais leve do que era na opinião dos nossos com um socorro que o Hidalcão mandava aquela noite de muito mais gente, cuidando ele que assi estava a fortaleza mais segura que os dias passados. A qual segurança foi causa de os nossos conseguirem seu propósito; porque, em os negócios da guerra, então se corre mais risco, quando os homens descansam em algua força; e o caso foi este: Estando o Hidalcão com seus capitães em Goa na prática do dano que esta artelharia de Pangi fazia aos nossos, gloriando-se muito disso, era presente um português per nome João Machado, o qual havia anos que andava com ele, e por ser homem de sua pessoa, o tinha feito capitão de gente. O qual João Machado, quando ouviu gloriar o Hidalcão deste dano que os nossos recebiam da artelharia, disse: - Se os portugueses recebem dano dela, eles trabalharão por a tomar, porque eu os conheço, que não sofrem muito a espinha que lhes pica. Sobre as quais palavras houve alguas perfias entre alguns capitães rumes, desfazendo no que João Machado dezia. Finalmente, o negócio chegou a tanto, que um daqueles capitães rumes disse ao Hidalcão, que lhe mandasse dar até quinhentos homens, e que ele com sua pessoa queria ir esperar a ousadia dos portugueses; o que lhe o Hidalcão concedeu, e acertou de vir a este negócio a própria noite que Afonso de Albuquerque tinha ordenado cometer o caso de tomar esta artelharia. Vinda a qual gente, por ser muita e não poder caber com a outra que estava na fortaleza, assentaram tendas fora, em modo de arraial, e hóspedes com hóspedes banquetearam-se aquela noite de maneira que, quando veo 68 na alvorada da menhã, que Afonso de Albuquerque tomou a terra na ordem que dissemos ter ele repartido este escalamento, assi estavam os mouros bêbados da cea e do sono, e descuidados da vegia com a multidão da gente que viera, que, vendo os nossos derredor da fortaleza, os de dentro cuidavam que eram os amigos de fora, e os de fora os de dentro, sem sentirem o engano senão quando sentiram o ferro que lhes escalava as carnes. Finalmente, eles foram tam mortalmente feridos, que lhe aproveitou pouco o esforço do capitão turco, e assi os de fora como de dentro

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trabalharam mais de amparar as vidas que defender a artelharia, que os nossos mais desejavam 216 deles que outro algum despojo, a qual salvaram tanto a seu salvo, que, sendo este um dos honrados feitos, assi no cometimento dele, como de bem pelejado, um homem somente dos nossos morreu, não a ferro, mas per desastre - caindo no rio armado, em querendo saltar de um batel no outro. E feridos houve bom quinhão; e porém não tantos, que não fossem mais mortos da parte dos mouros, porque passaram de trezentos e quorenta. O qual dia parece que aprouve a Nosso Senhor que fosse todo por nós; porque, mandando Afonso de Albuquerque a Garcia de Sousa e a Jorge da Cunha naquela própria noite à outra parte da terra firme, onde chamam 218 Bardes, deram no baluarte que os mouros lá tinham, o qual tomaram, e toda a artelharia que nele havia. O Hidalcão com estes dous feitos ficou tam assombrado, que lhe parecia que de noite haviam os nossos de ir dar um salto dentro na cidade; e não ousando de dormir nela, passou-se a um lugar, a que ora chamam o Tanque de Timoja, e teve a João Machado em mais estima, vendo que lhe falava verdade acerca do que sentia de nós. Do qual João Machado adiante faremos particular relação por os merecimentos que depois teve, assi de cavaleiro, como de católico cristão. E se havemos de dar crédito ao que geralmente se disse, esta mudança do Hidalcão tam súbita também procedeu por ter sabido per feiticeiros que havia de morrer junto da água do tiro de ua bombarda. Por dessimular o qual temor, e saber se era verdade o que lhe deziam os nossos, que lá eram lançados com fome, da necessidade de mantimento em que a nossa gente estava, usou deste ardil: mandou certos paraus e refresco a Afonso de Albuquerque com ua rabolaria de palavras, dizendo, que os cavaleiros haviam de fazer guerra a seus imigos, matando-os a ferro e não a fome; e porque ele tinha sabido em quanta necessidade de mantimento ele, Afonso de Albuquerque, estava, lhe enviava aquele refresco. Afonso de Albuquerque, primeiro que este recado do Hidalcão chegasse a ele, estando os batéis de largo das naus com ua bandeira branca em sinal que queriam falar, mandou a eles; e quando lhe trouxeram recado ao que vinham, tornou logo a lhe mandar dizer que viessem embora; e enquanto ia a seu recado, a grã pressa mandou serrar ua pipa em duas partes, ambas cheas de vinho, ua posta na tolda e a outra no convés com ua soma de biscouto per derredor, como que estava aquele mantimento ordenado pera os mareantes, que andavam trabalhando em a nau. O qual artefício foi tam levemente feito, e assi estava a gente da nau tam descuidada, que quando o messageiro do Hidalcão foi dar o recado a Afonso de Albuquerque, não houve alvoroço na gente, nem fizeram conta de quem entrava nem saía. Tomado o recado que este messageiro trazia, respondeu-lhe Afonso de Albuquerque com grandes agradecimentos do presente que lhe mandava, 217 louvando-lhe muito o recado, e que bem parecia ser dito de tal príncipe e cavaleiro como ele era; e que, se não aceitava o presente, era porque os portugueses, enquanto lhe não falecia o comer que tinham naquela tolda e convés, como ele podia ver, não haviam mister outros mimos, por ser gente costumada aos trabalhos da guerra; e se lhe falecia o comer, tinham a condição das aves, folgarem mais de o ir buscar no campo, que de o receber como encarcerados em gaiola. Que como seu amigo, em pago daquele presente, lhe mandava dizer que, acabado o mantimento, não lhe suprindo todo o tempo do inverno, esperasse por os portugueses; porque, ainda que ele não quisesse, os havia de ter por hóspedes à sua mesa. Com a qual reposta se tornou a sair o mensageiro com mercê de alguas peças que lhe Afonso de Albuquerque mandou dar, e levou todo o refresco 219 que trazia, posto que lá foram os olhos de todos, dessimulando a necessidade o mais que podiam. O Hidalcão, quando ouviu este recado, e soube do seu messageiro o estado em que vira a nau e o pouco alvoroço e cobiça que a gente mostrou dos mantimentos que levava, assentou de

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levar outro caminho com os nossos, de os não meter em tanto aperto de rebates, como 68v té li lhe dava, receando que do muito apertar com eles, os poeria em termo que de noite, como gente desesperada, o fossem buscar lá onde estava. E daqui desta oferta dos mantimentos tornou causa pera mandar recados a Afonso de Albuquerque e entender com ele no resgate de certos mouros, que o feitor Francisco Corvinel trouxe consigo, dos que ele, Afonso de Albuquerque, mandou prender, segundo contámos; porque, como prudente, ao tempo que mataram os outros, salvou estes, esperando que com eles, por serem homens principais, se podia, fazia algum bom negócio. Do qual resgate Afonso de Albuquerque se lançou, dizendo que os mouros eram do feitor Francisco Corvinel, e que ele lhe mandaria que os resgatasse por comprazer a ele, Hidalcão; e com este artefício, por encobrir sua necessidade, resgatavam os mouros a troco de mantimentos, que era a cousa de que mais necessidade tinham.

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217 68v 219 Capítulo VII. Como D. António de Noronha foi morto pelos mouros, por acudir a Diogo Fernandes, de Beja, que Afonso de Albuquerque tinha mandado queimar certos navios de remo; e do mais que se passou no rio de Goa, té se saírem dele. Passadas estas cousas, que fizeram recolher o Hidalcão da soberba que tinha, vendo estarem já os nossos livres do maior trabalho que recebiam, que era fome e dano que lhe fazia a artelharia de Pangi, sobrevieram dous casos que o tornaram alevantar, os quais atribularam muito a Afonso de Albuquerque, como veremos na relação deles. Sabendo ele, 218 per aviso de gentios que Timoja lá trazia, como polo rio acima, junto da cidade, estavam muitos paraus ordenados pera aquela noite seguinte, em companhia de muitas balsas de lenha cevadas de azeite e resina pera lhe poerem o fogo, ao tempo da maré, virem sobre a nossa armada, mandou a Diogo Fernandes, de Beja, capitão de ua galé, que os fosse queimar, e com ele foram Afonso Pessoa em outra, e Simão Martins em ua galeota, e o mestre da nau Frol da Rosa, chamado Casa Verde de alcunha, por ser homem despachado pera estas cousas, com um parau pera ir descobrindo diante as pontas da terra. 220 Diogo Fernandes, partindo de dia a fazer esta obra, foi já tanto no cabo da maré, que de não poder, a força do remo, romper o tesão da água que vinha a eles, lançou âncora; e por se melhor informar do modo que havia de ter no cometimento daquele feito, quis per si, enquanto esperavam a maré, ir em um parau ver o sítio do lugar onde lhe deziam estar aquela frota, com o qual ia Diogo Fernandes, o adail, somente, e os marinheiros que remavam, e diante levava o mestre Casa Verde com o seu parau. Os mouros que estavam no lugar dos paraus, como tinham vegia no rio e viram o que Diogo Fernandes fez, poseram-se parte deles detrás dos paraus que tinham em seco, que seriam até vinte e tantas peças, e outros meteram-se dentro em ua galeota que fora nossa, e com a pressa da saída da cidade, por estar em seco, esqueceu, a qual estava meia em nado. O mestre Casa Verde, que ia diante de Diogo Fernandes, quando descobriu detrás de ua ponta como os mouros punham os ombros pera lançar estes seus paraus em nado, tornou atrás rijo, dizendo a Diogo Fernandes: - Tende-vos, Senhor, que temos muitos mouros por de avante. Diogo Fernandes, como per si quis haver vista deles, quando tornou a voltar, posto que bem remasse, houveram-se os mouros tam despachadamente em lançar os paraus na água, que primeiro que ele chegasse onde ficavam as galés, era tanta a frechada sobre ele, que, se o caminho fora mais comprido, não se podera salvar; mas como as galés começaram varejar com artelharia, entreteveram-se, não passando mais avante. Afonso de Albuquerque, como em baixo ouviu os tiros, parecendo-lhe que pelejava Diogo Fernandes, mandou D. António de Noronha a grã pressa com sete ou oito batéis de gente que lhe acudisse; o qual com a maré, que já tornava a subir, em breve chegou onde estava Diogo Fernandes, a tempo que ainda houve vista dos mouros. Em alcanço dos quais foi tanto, té dar com eles em seco, defronte da cidade, lugar onde os nossos lhe não podiam fazer dano, somente cometerem querer cobrar a galeota que os mouros com pressa não poderam de todo varar, e ficou mea em nado. 69 Por causa de haver e defender a qual houve entre os nossos e os mouro ua perfia de

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lançadas e frechadas, que durou um bom pedaço té que veo ua frecha, 219 que atravessou ua perna a D. António de Noronha, de que di a poucos dias morreu. E neste feito que foi causa de sua morte, também correram risco dela Simão de Andrade, Fernão Peres, seu irmão, Simão Rangel e outros, que estavam já dentro na fusta dos mouros, quando o batel de D. António, com que eles iam, se alargou dela; mas foram socorridos per Diogo Fernandes,de Beja, que com sua galé, peró que os não podesse tornar, mandou per um batel que os recolheu, e a fusta todavia ficou em poder dos mouros; os quais, por ficarem bem sangrados dos nossos, por aquela vez desestiram do que tinham ordenado. Afonso de Albuquerque pela morte de D. António ficou mui anojado; porque, além de ser seu sobrinho, filho de D. Constança, sua irmã, mulher de 221 D. Fernando de Noronha, era ele per si tal cavaleiro e tinha com isto outras qualidades, que se criava nele ua grande esperança pera ante de poucos anos lhe poderem entregar a governança da Índia; e os dias que viveu, era grande descanso a ele, Afonso de Albuquerque. Ca não somente o ajudava nos trabalhos da guerra, mas ainda curava alguas paixões entre ele e os capitães; porque, como Afonso de Albuquerque era árdego e fragueiro em os negócios de seu ofício, e alguas vezes mau de contentar, sempre se aproveitava de um bom terceiro, per quem ele queria soldar aquelas quebras de palavras do primeiro ímpeto da sua manencoria. O que logo se mostrou com a morte de D. António neste caso que lhe aconteceu, mandando ele, Afonso de Albuquerque, enforcar um Rui Dias, natural da vila Alanquer, homem de boa linhagem, o qual foi achado em a câmara da sua nau, e, segundo se provou, era pera ua escrava sua de muitas cativas que trazia, a que ele chamava filhas e casava. A execução do qual caso, posto que fosse ordinariamente per justiça, segundo forma do Dereito, estando o delinquente com o baraço na garganta pera suspender no goroupés de ua nau, quatro ou cinco capitães o tiraram aos ministros da justiça, dizendo que não haviam de consentir que um homem padecesse por tal caso, e mais sendo de sangue; que quando houvesse de morrer, havia de ser per outro género de morte. E não somente empediram esta execução, mas em modo de indinação nos batéis se foram à nau dele, Afonso de Albuquerque, e mais confiada e soltamente do que se devia à reverência do seu Capitão-mor, chegados a bordo da nau, onde Afonso de Albuquerque os veo receber, sabendo que iam com aquele ímpeto, começaram dizer: Que poderes tinha ele pera mandar enforcar aquele homem por tal caso? e mais sendo homem de sangue, que, havendo de morrer per algum delito, não havia de ser per tão vil morte. Afonso de Albuquerque, como tinha já sabido o que eles leixavam feito e as palavras que deziam eram conformes à força, dissimuladamente lhe respondeu que, se eles queriam ver os poderes que 220 tinha pera fazer aquela justiça, que de boa vontade ele lhos mostraria, que subissem pera cima. Os capitães, parecendo-lhe que a mostra dos poderes havia de ser a alçada que lhe el-Rei dava per suas patentes enquanto governasse a Índia, subiram; mas como foram na tolda, um e um os mandou meter na bomba, estando na boca da escotilha com a espada na mão nua, dizendo que aqueles eram os poderes que lhe havia de mostrar, e tais lhe dava o seu ofício de capitão contra os desobedientes, e que empediam a justiça del-Rei, seu senhor. Feita esta prisão, com que os capitães ficaram suspensos de suas capitanias, que ele, Afonso de Albuquerque, deu a outros fidalgos, mandou tirar o culpado donde o tinham, e foi levado em um batel per bordo de todalas naus com pregões, que denunciavam o seu crime, té que per derradeiro o enforcaram. E segundo alguns familiares de Afonso de Albuquerque depois disseram, 222 posto que o culpado merecesse morte pelo que teve em cometer o crime, mais o chegou à morte a

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pouca reverência dos capitães, que a indinação do caso; e mais se quis mostrar na execução dela obedecido, que piadoso. Mas contudo a mais de gente da frota ficou escandalizada deste feito, por ele, Afonso de Albuquerque, ser a parte ofendida e o julgador, e mais em casos daquela qualidade, e em lugar e tempo que tudo eram trabalhos, não somente de estarem todos com arma na mão, mas ainda era a fome tamanha, que vieram a quatro onças de biscoito por dia, e em alguas naus se comiam ratos. Outros coziam os coiros das arcas por se não poderem manter; e sobre a fome, a água que bebiam era 69v mea solobra, e tão barrenta dos enxurros das crescentes que traziam os rios naquela invernada, que não assentava o pé em dous dias, e isto porque não havia aguada que os mouros não tivessem tomada; e se às vezes os nossos a força de armas a queriam ir fazer, ua gota de água custava três de sangue. Assi que, per ua parte fome e sede, e per outra guerra e relâmpados, coriscos e trovoadas do inverno, trazia a gente comum tam assombrada, que começou entrar desesperação em alguns, que se lançaram com os mouros, que foi a cousa que Afonso de Albuquerque mais sentiu. Finalmente, passados três meses deste tam grande trabalho, que foi quási purgatório em vida, na entrada de Agosto, em que a barra começou de se abrir das areas que a cercam no tempo do inverno, mandou Afonso de Albuquerque sair Nuno Vaz de Castelo Branco com a sua nau, e Timoja com ele, que levasse passante de trezentos doentes, que havia naquela frota. Os quais doentes ele havia de ter em a Ilha Anchediva, por ser lugar fresco pera poderem convalescer, té ele, Afonso de Albuquerque, ir dar com eles, tanto que o rio desse lugar a poder sair com toda a frota; e Timoja dos lugares de Onor e Mergeu havia de prover a estes enfermos, e assi enviar carregado deles um navio, capitão António de Matos, 221 que foi em companhia de Nuno Vaz, porquanto ele havia de ficar em guarda e cura destes doentes, o que se fez mui bem; posto que à saída da barra de Goa ambos correram risco de se perder, como se perdeu Fernão Peres de Andrade, que a este mesmo caso Afonso de Albuquerque mandava um mês ante, que era mais na força do inverno, e porém salvou-se a gente.

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221 69v 223 Capítulo VIII. Das armadas, que el-Rei D. Manuel o ano de quinhentos e dez mandou à Índia: e despachada ua, Capitão-mor Gonçalo de Sequeira, e outra de Duarte de Lemos com carga de pimenta pera este reino, Afonso de Albuquerque se partiu pera Goa com ua grossa frota; e de alguas cousas que passou e fez neste meio tempo e caminho. Afonso de Albuquerque, como desejava tirar a gente daquele trabalho que passavam no rio de Goa, tanto que o tempo lhe deu lugar, pôs-se logo fora dele; na qual saída, por ser ainda mui verde, correu outro tal risco, em que houvera de perder duas naus, como ora contamos, das que mandou sair pera levarem Timoja. Sobre o qual trabalho parece que a fortuna daquele tempo ou comarca do lugar os não leixava; porque, sendo tanto avante como o cabo a que os nossos chamam Cabo da Rama, que é três léguas do rio donde saíram, viram quatro velas, que os meteu em tam grande sobressalto, cuidando serem rumes, que se poseram todos em armas. E posto que donde eles vinham, sempre as teveram tanto às costas que as traziam mais safadas que os pelotes, todavia, como a gente comum, por causa da fome e mau tratamento que ali passou, vinha mui desbaratada e fraca, quando as quiseram armar, não havia nela outra força senão a que dá o temor nos tais tempos e casos. O qual temor também houve nas próprias naus que eles viram, tendo a mesma suspeita serem rumes, té que uns e outros se vieram conhecer nas insínias que todos traziam serem de um senhor; as quais quatro velas eram parte da armada que el-Rei D. Manuel mandou o ano de dez àquelas partes. E verdadeiramente, segundo a gente que Afonso de Albuquerque tinha, andava cortada do trabalho, se este ano el-Rei o não provera com gente fresca e posta nas forças de sua natureza, trabalhosamente podera Afonso de Albuquerque acudir a quantas cousas tinha em aberto pera fazer, e depois sucederam. Mas Deus inspirou na vontade del-Rei em mandar aquele ano duas armadas, que com sua chegada à Índia animaram muito o espírito de Afonso de Albuquerque pera se tornar a restituir na posse daquela cidade Goa, que era a cousa que ele mais desejava. A primeira foi de sete naus, Capitão-mor Gonçalo de Sequeira, tesoureiro-mor da Casa de Ceita e filho de Rui de Sequeira, todas naus de carga pera tornarem o ano seguinte com 222 especearia, de que eram capitães Manuel da Cunha, filho de Tristão da Cunha; Diogo Lobo de Alvalade, Jorge Nunes de 70 Lião, filho de Nuno Gonçalves de Lião, chanceler da Casa do Cível; Lourenço Lopes, sobrinho de Tomé Lopes, feitor da 224 Casa da Índia; Lourenço Moreno, que ia pera ser feitor de Cochi, e João de Aveiro, que também servia de piloto, por ser neste mister do mar homem mui suficiente. A qual armada partiu do porto de Lisboa a dezasseis de Março. A outra armada, que era de quatro velas, Capitão-mor Diogo Mendes de Vasconcelos, filho de Martim Mendes de Vasconcelos, morador na Vila de Pinhel, partiu ante desta de Gonçalo de Sequeira quatro dias, e os capitães das três eram: Baltasar da Silva, filho do Comendador Gomes Teixeira; Pero Coresma, que depois foi provedor dos fornos del-Rei; Dinis Cerniche, armador da própria nau em que ia. Ao qual Diogo Mendes el-Rei mandava a Malaca assentar trato nela, que ficara alevantada polo caso que aconteceu a Diogo Lopes de Sequeira (como atrás escrevemos), posto que el-Rei ainda disso não era sabedor. Partidas as quais duas armadas, também no mês de Agosto partiu João Serrão, um cavaleiro da casa del-Rei, com três velas, que ele mandava descobrir a Ilha de S. Lourenço, e assentar trato

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com os naturais, de gengivre, no porto Matataná; e os capitães das outras velas eram Paio de Sousa e outro cavaleiro da Casa del-Rei, da viagem do qual João Serrão diante daremos razão. Ao presente, continuando com Diogo Mendes, por ser o primeiro que chegou à Índia, quanto a sua chegada, segundo dissemos, foi temerosa, tanto foi alegre depois que Afonso de Albuquerque se viu com ele, sabendo da outra frota que levava Gonçalo de Sequeira. O qual chegou a Cananor depois de ele, Afonso de Albuquerque, ser já chegado com os doentes que mandou a Anchediva, convalecidos de sua enfermidade, vindo já ele, Gonçalo de Sequeira, de Cochi; e da armada que levava deste reino, perdeu a nau, de que era capitão Manuel da Cunha, junto de Moçambique, mas salvou-se a gente. Afonso de Albuquerque, quando viu dez naus mui providas do necessário e com gente fresca, que ele muito desejava pera se tornar restituir na posse de Goa, posto que estes capitães iam ordenados um pera Malaca e outro pera tornar com a carga da especearia a este reino, logo ali em Cananor teve prática com eles, dando-lhe conta deste seu propósito, pedindo quisessem ser nisso, polo muito que importava a serviço del-Rei. Porque, segundo lhe ele mandava nas cartas que deram suas - que fosse ao Estreito do Mar Roixo fazer ua fortaleza e segurar as cousas de Ormuz - nenhua destas podia fazer, enquanto se não acabasse de determinar em as de Goa; e quando com o ímpeto de ua chegada a não podesse levar na mão com tam boa e limpa gente como eles traziam, ao menos queimaria as naus que leixara no estaleiro. As 223 quais ele desejava tanto queimar, como tomar a mesma cidade, porque não estava em razão leixar aquela ladroeira com os mouros mui escandalizados, e ir ao Mar Roixo e a Ormuz, pera, partido ele, saírem eles dali e fazerem-se senhores de toda aquela costa; e não queria el-Rei de Calecute e todolos mouros dela senão achar quem os favorecesse com algua armada no mar pera o coalharem com velas. Finalmente, depois que representou estas e outras 225 razões a Gonçalo de Sequeira e a Diogo Mendes, persuadindo-os quisessem ser com ele neste feito, Diogo Mendes prometeu que seria nisso polas razões que lhe Afonso de Albuquerque deu acerca do tempo em que havia de partir pera Malaca, não lhe servir senão depois que este feito de Goa fosse acabado per qualquer modo que aprouvesse a Deus. Gonçalo de Sequeira, como o seu tempo era mais curto pera fazer carga de especearia e se vir pera este reino com ela, não se determinou de todo nisso, dando por causa principal serem as mais das naus de armadores, e que per bem de seus contratos não podiam ser empedidas contra vontade dos feitores delas, que iam em nome dos senhorios. E mais que, segundo tinha visto em Cochi, donde vinha, a ele lhe parecia ter ele, Afonso de Albuquerque, outra cousa mais importante ao serviço del-Rei, e a que primeiro havia de acudir que a tomar Goa: e era a guerra que el-Rei de Cochi tinha com um primo seu, que, com favor do Samori de Calecute, o queria lançar do reino, dizendo que, por ser morto o Rei velho, seu tio, a ele pertencia a herança. As quais diferenças tinham dado tanta torvação na terra, que não se podia haver pimenta, senão com a lança na mão, como ele, Afonso de Albuquerque, teria sabido por Nuno Vaz de Castelo Branco e per Bastião de Miranda, que ele lá mandara em favor do mesmo; posto que, em alguas vezes que se tinham achado com a gente deste seu 70v imigo, houveram dele vitória. Afonso de Albuquerque, por então, não curou de apertar mais com Gonçalo de Sequeira sobre aquele negócio de Goa, porque via ter ele razão, principalmente por causa do trabalho em que el-Rei de Cochi andava com aquele seu primo e competidor, que era aquele que em ódio nosso nas guerras passadas se lançou com o Samori e fazia guerra a seu próprio tio, como atrás fica. E porque não somente por causa da prática de Gonçalo de Sequeira, mas ainda pelos recados que cada dia tinha de Cochi, viu quanto importava sua presença, determinou Afonso de Albuquerque de ir lá, e leixou em Cananor toda a armada. Somente levou ua galé, duas caravelas e sete paraus da terra, nas quais vasilhas foi a mais da gente de Jorge da Silveira e Francisco Serrão, que vieram ali a Cananor

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ter com ele de Cochi, onde invernaram com as naus da especearia que tomaram em Baticalá, como atrás fica, por a gente destes dous capitães estar folgada do repouso daquele inverno. Na qual ida de Cochi quis ainda 224 Afonso de Albuquerque ter um resguardo; porque, sendo sabida, podia danar o feito, e de ante mandou dizer a el-Rei que secretamente, sem reboliço, o viesse esperar junto da fortaleza de Cochi, como que vinha buscar o amparo dela, no qual lugar queria secretamente falar com ele primeiro, que na terra se soubesse ser ele, Afonso de Albuquerque, chegado. 226 Da vista e prática que ambos teveram neste lugar, logo ante menhã, primeiro que houvesse notícia de sua chegada, Afonso de Albuquerque se foi lançar em modo de cilada junto da Ilha Vaipi, per onde tinha aviso que o contrairo del-Rei havia de vir; e, na sua chegada, assi o salvou com artelharia, setas e lançadas, que perdeu o gentio muita parte de sua gente, e desbaratado, foi buscar socorro em el-Rei de Calecute, nosso imigo, que naquele tempo, com a morte do Marichal, que ainda não tinha pago, estava mui soberbo. Afonso de Albuquerque, havida esta vitória, tornou-se a Cochi, apacificando a terra, com que logo começou vir pimenta pera carga das naus, de maneira que em breve despachou Gonçalo de Sequeira, posto que ele não partiu senão depois do feito de Goa, pera que Afonso de Albuquerque o convidou. E não foi nisso pola obrigação que tinha à carga da pimenta e razões que deu de o não poder fazer. E porque Manuel da Cunha, filho de Tristão da Cunha, não tinha embarcação pera tornar pera o reino tam honradamente como de cá partira por capitão de ua nau, que tinha perdido, segundo dissemos, quis ficar com Afonso de Albuquerque, o qual o recebeu por razão de sua pessoa e filho de seu pai, no lugar de seu sobrinho D. António de Noronha, dando-lhe a capitania da nau Rumesa, em que andava Jorge da Silveira, por se ele vir com Gonçalo de Sequeira. No qual ano também veo Duarte de Lemos, que ante da partida dele, Gonçalo de Sequeira, chegou de Socotorá, donde partiu, como escrevemos; ao qual, quando veo pera este reino, Afonso de Albuquerque deu a capitania-mor de quatro naus, havendo respeito ao foro e honra com que andara na costa da Arábia, e todalas naus de sua capitania, e assi as de Gonçalo de Sequeira, passaram, e vieram a este reino o ano de onze, somente o mesmo Gonçalo de Sequeira, que invernou em Moçambique e veo o ano de doze. Afonso de Albuquerque, porque a dor da saída de Goa o apressava muito que se tornasse a restituir na posse que tivera dela, enquanto o não pôde fazer per si, tinha mandado Gaspar de Paiva, fidalgo da Casa del-Rei e filho de Gileanes, cidadão nobre de Lisboa, que com três navios andasse na barra de Goa, e não leixasse entrar ou sair navio que não fosse metido no fundo. E na costa do Malabar, em ua parte, mandou que andasse Garcia de Sousa e Simão Martins, e em outra Diogo Mendes de Vasconcelos, com as naus de sua capitania, por ter já concedido a Afonso de Albuquerque que queria ser no feito de Goa. O qual requerimento Diogo 225 Mendes lhe concedeu pesadamente, por lhe parecer que Afonso de Albuquerque que o queria embaraçar e entreter naquele negócio, de que podia ficar tam desbaratado da gente que levava, que não poderia seguir seu caminho. 227 Praticando o qual caso com os capitães da sua frota, assentaram que, sem embargo da palavra que ele, Diogo Mendes, tinha dado a Afonso de Albuquerque, tanto que o tempo fosse pera poderem seguir sua viagem, se partissem, se ele, Afonso de Albuquerque, o quisesse mais deter, porquanto eles iam isentos da sua jurdição, e a maior parte da despesa daquelas naus era de armadores; por a qual razão ele os não podia entreter pera necessidade algua tam importante ao serviço del-Rei, que não 71 fosse maior o feito a que iam.

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Afonso de Albuquerque, tanto que lhe foi revelada esta determinação, sem dizer o que tinha sabido, tomou a menage a Diogo Mendes e aos outros capitães, e mandou aos mestres e pilotos que, sob pena do caso maior, não se partissem sem sua licença. A qual cousa sentiu muito Diogo Mendes, vendo o modo que Afonso de Albuquerque queria ter com ele naquela ida sua; peró sofreu tudo com esperança que, vindo o tempo da monção, que o não empediria. Passado este caso, que faz muito pera o que ao diante sucedeu, como Afonso de Albuquerque tinha tudo prestes pera ir sobre Goa, partiu de Cananor com vinte três velas, em que entrava Diogo Mendes com os três capitães de sua capitania, e os outros eram Manuel da Cunha, Manuel de Lacerda, D. Jerónimo de Lima, D. João de Lima, seu irmão, Fernão Peres de Andrade, Simão de Andrade, Garcia de Sousa, Jorge Nunes de Lima, António da Costa, Gaspar Cão, Fernão Feijó, Nuno Vaz de Castelo Branco, Simão Martins, Afonso Pessoa, Bastião de Miranda, Duarte de Melo, António Raposo e Diogo Fernandes, de Beja, com três naus, que já tinha mandado diante a esperar ao Monte de Eli, as que vinham de Adem a carregar a Calecute. O qual tinha tomado alguas e em hua vinham dous judeus castelhanos, que se fizeram cristão: a um chamaram Tristão de Ataíde e a outro Francisco de Albuquerque, e depois serviram de línguas a Afonso de Albuquerque. Tornando a ele, que seguia a sua viagem com esta frota, chegou a Onor, onde logo veo Timoja falar com ele, dando-lhe nova do modo que os mouros tinham fortalecido a cidade Goa, com todo o mais que convinha saber do estado da terra, por ele, Timoja, trazer lá homens lançados, per os quais tinha aviso. E porque o tempo empediu a que Afonso de Albuquerque se detivesse ali, sem poder passar mais avante, e Timoja andava ocupado em celebrar uas vodas, que, segundo seu uso, ele fazia com hua filha da Rainha de Garzopão, pediu a Afonso de Albuquerque, pois Deus o trouxera ali a tempo que ele celebrava aquelas festas de sua honra, quisesse sair em terra com todolos seus capitães, a tomar dele um jantar. Afonso de Albuquerque, 226 por comprazer a este Timoja, como a homem de que tinha recebido serviço e havia muito mister pera aquele feito de Goa, 228 concedeu a seu rogo, saindo em terra em batéis e ele em a galé, capitão Bastião de Miranda, com os mais da frota, em que ia muita gente nobre, com fundamento que, recebido o jantar, se tornaria às naus. Peró o caso sucedeu ao contrairo, saltando tam súbito temporal na costa, que esteve ele três dias em terra sem poder vir às naus, e elas em condição de se perderem; porque, além de não estarem tam amarradas como convinha pera a força do vento, falecia em as naus os capitães e algua gente nobre que era com Afonso de Albuquerque em terra, os quais nestes tempos dão ânimo e indústria à gente do mar. Acabada a força do temporal, que deu maior trabalho e paixão aos da terra que aos do mar, tanto que ele deu jazeda, mandou Afonso de Albuquerque, como cada um dos capitães podesse, se saísse do rio e recolhesse às naus. Na qual saída se perdeu um batel, em que morreram trinta homens, um dos quais foi António da Costa, filho de Pero da Costa, de Tomar, capitão da taforea e assi António de Liz, que servia de secretário a Afonso de Albuquerque, que ele muito sentiu. E além destes mortos, outro batel se alagou, mas salvou-se a gente, indo ter meia afogada à costa. Recolhido Afonso de Albuquerque às naus, levou consigo em três navios de remo de Timoja a um capitão gentio, chamado Médio Rau, homem mui nobre, que andava em companhia dele, Timoja, por ele não poder ir logo e ficar concertado que per terra havia de levar seis mil homens a soldo, pera a um certo tempo dar ele per terra e Afonso de Albuquerque per mar, e queimarem as naus dos rumes, que estavam em estaleiro na ribeira de Goa. Com o qual concerto Afonso de Albuquerque se espediu de Timoja, e foi esperar seu recado à Ilha de Anchediva, simulando que queria ali fazer aguada, por lhe dar tempo a ele poder ajuntar a gente e a se poer em caminho, com que ambos se ajuntassem no lugar ordenado. Peró, por este recado de Timoja tardar mais do que Afonso de Albuquerque queria, deteve-se pouco em Anchediva, e foi surgir no rio de Goa, a vinte dias de Novembro do ano de quinhentos e dez.

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226 71 229 Capítulo IX. Como Afonso de Albuquerque saiu em Goa segunda vez, e a tomou per força de armas. 71v Afonso de Albuquerque, como a principal cousa que havia mister pera cometer aquela cidade Goa era levar os homens contentes e alegres, polos ver em algua maneira descontentes do que se passara nela quando a leixaram aos mouros, posto que já sobre este caso em alguns conselhos entre os capitães se tinha justificado, todavia lhe pareceu necessário 227 dar pública razão de si, pola experiência que tinha quanto adoçavam o ânimo dos homens que obedecem as justificações do superior, e mais nos tempos que eles vão oferecer suas vidas debaixo de seu mandado. Assi que, movido destas causas (posto que em todos visse prontidão pera aquele feito), quis propor-lhe este arrazoamento: - Repetir-vos, senhores e amigos, o que temos passado sobre esta cidade Goa, seria trazer-vos à memória os méritos da honra que nela tendes ganhado, sem fazer algum desconto dela, porque a leixámos, como alguns de pouca consideração querem fazer, atribuindo este feito de a leixar, não a obra de portugueses, e mais a si mesmos que a mim, seu capitão. Como se eu não tevesse visto em todos que, se este feito se houvera de governar pelo que queria o ânimo de cada um, primeiro leixara a vida, que ua ameia do que tinha ganhado, por esta ser a natureza do leal e verdadeiro português. Mas como todos militamos debaixo dos preceitos e regimento del-Rei, nosso senhor, e ele sempre faz mais conta da vida de cada um de nós, que do senhorio das cidades da Índia; e a principal cousa que encomenda a nós-outros, que temos este cargo que eu sirvo, é a segurança das vossas vidas, não podeis vós tanto desejar de as oferecer à morte debaixo de sua bandeira, por lhe conquistar estados e senhorios, quanto ele é cauteloso no resguardo que nos manda ter, por não encorrerdes em perigo dela. E posto que eu sentisse em vós o pejo com que leixáveis esta cidade, por parte de vossa honra, polo que convinha à minha obrigação foi necessário ser assi; ca o ânimo vosso sem os instrumentos com que se ele sustenta, e ajuda que eram os mantimentos e munições que nos faleciam, fogo era sem matéria em que se ele conserva. Mas parece que meus pecados, saindo eu da cidade a buscar esta conservação de vossa vida e saúde, nos trouxeram a padecer no mar o que eu temia na terra; pois (como vistes) a fome lavrou em nós mais que o ferro destes infiéis. - Ora (louvado Deus) nós vimos providos pera a necessidade que me obrigou leixar esta cidade, e os vossos ânimos estão tam vivos pera os tornar apousentar nela, como os lugares que tevestes por apousentamento ainda quentes e frescos de vossas pessoas, pera vos receber em si como próprio e natural assento vosso, o que é pelo contrairo nos mouros que nela estão. Porque, pela nova que tenho todos são forasteiros e gente alugada, que no tempo da 230 afronta, como não defendem casas próprias, mulher, filhos, fé ou honra, no primeiro ímpeto nosso logo viram as costas e despejam o lugar que defendem, de que já temos experiência as vezes que posemos o peito em terra, no cometimento da fortaleza Pangi. Tudo, segundo tenho sabido, nos convida, tudo nos amoesta que nos tornemos a esta propriedade que nos Deus deu sem sangue e sem o modo que trazíamos de a cometer, quando nela entrámos, da 228 qual se hoje estamos fora, verdadeiramente creio ser por lhe não darmos graças por quam barata a houvemos de sua mão. Porque a nação português, onde não põe trabalho, não lhe parece que tem honra; e desta sua honrada openião vem às vezes não estimar as cousas, e de as não estimar nasce o

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esquecimento de dar louvor e glória a Deus per qualquer modo que lhe a ele apraz conceder-nos vitória. - Contudo, como esta milícia, peró que nós sejamos ministros e instrumentos dela, a causa é própria dele mesmo, Senhor, pois é contra mouros e infiéis imigos de sua Santa Fé, ao presente nesta obra que por seu louvor e glória de nosso Rei, fama de nossos trabalhos imos cometer, eu confio em sua misericórdia, que mais fácil nos há-de ser o feito, que a mim esta relação que vos faço do estado em que de certo sei estarem as cousas desta vossa cidade, de que temos perdido a posse e não a acção de a cobrar. - Portanto, senhores e amigos, pois vos Deus deu ânimo, forças, prudência, e seguimos lei santa e servimos a príncipe a quem ele mesmo, Deus, concedeu o que não deu a nenhum de seus antepassados - descobrir e conquistar terras tam remotas do seu reino -, devemos crer que nós-outros, seus criados e vassalos, trazemos em favor nosso aquele espírito de Deus que moveu a ele pera continuar 72 esta tam alta empresa, pola qual os portugueses em todalas partes do Mundo são mui conhecidos e estimados, posto que pelos feitos que em África tem feito, já tevessem grã nome. - E pois a nosso Deus, a nosso Rei e a nossas honras devemos não perder o ganhado, mais ir adiante com a memória destas três obrigações, ponhamos o peito em terra, que ela se despejará de nossos imigos, como costumam, tanto que nos vem o rosto; ca, segundo vejo no de cada um de vós, já lhe parece pouco o que imos fazer pera o que fará tanto que me ouvir invocar o Apóstolo Santiago, capitão de nossas vitórias. No fim das quais palavras, por algum sinal que ele, Afonso de Albuquerque, tinha dado, como que fazia fim de seu arrazoamento, começaram as trombetas de tanger: - Armas, armas! - com que a gente se alvoroçou tanto, que naquele instante nenhua cousa duvidara cometer. Afonso de Albuquerque (assossegado aquele rumor e geral alvoroço), tornou a praticar com os capitães no modo como haviam de cometer a cidade; posto que de Anchediva vinha já provido como havia de ser, fazendo fundamento da ajuda de Timoja per terra. Mas parece que permitiu Deus tardar ele com ela pera se mudar este cometimento, que sem dúvida toda a nossa gente correra muito risco; ca Afonso de Albuquerque ordenava que Manuel 231 de Lacerda, por ter ua nau alterosa dos castelos e ele mui especial cavaleiro pera aquele caso, fosse pôr a barba sobre um baluarte metido na água, em lugar tam alcantilado, que a nau podia bem chegar, pera dos castelos dela lançarem ua ponte a ele, porque a 229 gente passasse sem dano da artelharia, que jogava per baixo no costado da nau. E sem dúvida, segundo o que depois sucedeu e ele mais ordenava na repartição da gente, afim de entrar per este baluarte, como na cidade havia mais de nove mil homens de peleja e os nossos eram mil e quinhentos portugueses e trezentos malabares, ele se vira em mui grande perigo. Mas conformando-se com o intento principal, que era pôr fogo às naus que os mouros tinham no estaleiro (quando mais não podesse fazer), quis-se ordenar de outra maneira, depois que teve aviso como a cidade estava fortalecida da banda do mar. A qual informação lhe trouxe D. João de Lima e seu irmão D. Jerónimo, que ele mandou em batéis dar ua vista à cidade, pera notarem a força que os mouros tinham feita, o que eles fizeram com muito perigo de suas pessoas, por descarregar neles toda artelharia que estava apontada naquela frontaria onde eles chegaram; e o modo em que a cidade estava fortalecida e ordem que assentou pela informação deles de a cometer, foi esta: A cidade, pera quam pouca gente era a nossa, tinha somente um combate, que era pela parte da ribeira, onde as naus estavam varadas; ao longo da qual ribeira ficava um pano de muro que tinha ua porta pera o serviço dela, a que agora chamam de Santa Caterina, em memória que no dia que a Igreja soleniza a festa desta Santa per ela entraram os nossos a cidade. A qual ribeira ficava fechada com ua estacada de madeira mui grossa, entulhada per dentro e rebatida a maneira de valo,

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que começava junto das naus que eles tinham em estaleiro e ia correndo ao longo da praia; e tanto que enfiava a porta que estava no muro per que a cidade servia da ribeira, fazia ali um cunhal a maneira de baluarte bem entulhado de terra, e tornava correr outro longor mui comprido de estacada, que ia fechar em cima no muro, ficando a porta da serventia, que dissemos, metida dentro desta estacada. De maneira que, como as casas da cidade ficavam dentro dos muros de pedra e cal que ela tinha, assi as naus dentro deste cercuito do muro e estacadas, sem haver mais serventia pera o mar que per entre as proas das naus, que pera quem per ali quisesse entrar ficavam em lugar de torres. E porque os mouros tomassem presunção que queríamos cometer a cidade pela parte de cima, passada a estacada e frontaria da cidade, onde eles tinham posto toda sua força, por aquele lugar ser menos suspeitoso, ordenou que todolos navios pequenos e de remo que demandavam pouca água, a noite ante do dia de Santa Caterina, que ele esperava tomar terra, fossem tomar aquele pouso, que era junto de outra porta da cidade, que é onde desembarcam todalas cousas que pagam dereitos per entrada em ua casa grande que ali está, a que eles chamam Mandovi; ao modo das nossas alfândegas, e por esta causa se chama esta 230 Porta do Mandovi; em os quais navios iam Duarte 232 de Melo, Francisco Pantoja, Afonso Pessoa, António de Abreu, Fernão Feijó e outros. Porque, sentindo os mouros de noite que os nossos navios tomavam este lugar, acuderiam ali 72v com algua força pera desabafarem os lugares debaixo, onde Afonso de Albuquerque queria desembarcar, repartido per esta maneira em duas partes: Ele havia de sair ante de chegar à tranqueira e ir per fora dele, té encavalgar o alto junto do muro, por ser ladeira acima, e trabalhar por tomar a porta que tinha o serviço da ribeira, a que ora chamam de Santa Caterina, pera entreter os mouros de dentro da cidade não saírem ajudar os de fora da ribeira, e estes não se podessem acolher pera dentro, com que os capitães que ele mandava que tomassem a terra da ribeira, ficassem senhores dela por causa das naus que ele queria queimar. E a gente que levava consigo, seria até oitocentos homens, em que entravam estes capitães: Jorge da Silveira, Jorge Nunes de Lião, Francisco Pereira Coutinho, Bastião de Miranda, Pero da Fonseca, Rui Galvão, António de Sá, Jorge Botelho, António de Matos e Simão Martins. O outro corpo de gente, que ordenou cometer à entrada da ribeira, repartiu em três partes: ua, que seria de trezentos homens, sairia em baixo a respeito do sítio da cidade e pouso das nossas naus, na qual iriam estes capitães: D. João de Lima, D. Jerónimo, seu irmão, Diogo Fernandes, de Beja, António Raposo, Gaspar Cão, Nuno Vaz de Castelo Branco. Na parte de cima, que era do Mandovi, havia de sair outro esquadrão de outra tanta gente, de que eram capitães: Manuel de Lacerda, Aires da Silva, Manuel da Cunha, Fernão Peres de Andrade, Simão de Andrade, seu irmão, e Gaspar de Paiva. E no meio destes dous corpos de gente, que era mais na frontaria da cidade, sairia Diogo Mendes de Vasconcelos com até cento e cinquenta homens, que eram de armada pera Malaca, de que ele era Capitão-mor, com os outros capitães dela. Ordenou mais Afonso de Albuquerque que os mestres de alguas naus, de que o principal a quem competia o governo deles era Antão Vaz, e certos bombardeiros com seu condestabre fossem nas costas desta gente de armas, e com muitas rocas de fogo e artefícios dele queimassem as naus que estavam em estaleiro, com tal tento que não cometessem esta obra senão quando vissem que os nossos se tornavam recolher aos batéis; porque, enquanto lhe Deus desse vitória, não queria que o fizessem, por causa de lhe ficarem as naus salvas, que ele muito estimaria. Dada esta ordem do lugar, onde cada um havia de sair, a primeira cousa que meteu os mouros em revolta, foram os navios de remo, que de noite com a maré tomaram o pouso defronte do Mandovi, que (como dissemos) era já no fim da cidade, passada a frontaria dela, onde estava toda a força de sua artelharia e defensão; ca, sentindo o rumor dos

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231 navios e da gente do mar, que de indústria o faziam maior do necessário, acudiu quási a mais da gente 233 da cidade, parecendo-lhe que per ali queriam os nossos tomar terra. Peró, depois que eles, na alvorada da menhã, ouviram trombetas em três ou quatro partes, na ribeira e pela costa acima, que eram as de Afonso de Albuquerque, não sabiam onde acudir, té que a claridade da menhã lhe mostrou que a ribeira era entrada dos nossos, ou, por melhor dizer, o ferro que sentiram em suas carnes. Porque ainda que a luz do Sol descobria toda aquela região, naquele sítio era ua noite de nuvens de fumo sem mais claridade que os fuzis de fogo ao modo de relâmpados, quando se punha na escorva da artelharia, de maneira que ali não havia conhecimento de imigo em vista, somente em voz. Mas esta entrada das tranqueiras que os nossos fizeram, não foi sem muito do seu sangue perdido, e muito mais depois que os capitães se baralharam uns com outros, principalmente entre as naus, onde todos concorreram, assi mouros como cristãos; porque, como este era o intento de todos - tomar ou defender a posse dela - houve ali tanta perfia de lançadas, cutiladas, frechadas e doutros agulhões de morte, que sem mudar pé ficou aquele lugar juncado de corpos de mouros sem algum dos nossos; ante, com a vitória que sentiram, começaram seguir alguns que se foram recolhendo caminho da porta da cidade, onde acharam a cavalo um capitão dela, que era um capado, homem valente de sua pessoa, que a ponta do ferro os fazia tornar à ribeira. Porém, depois que ele viu o peso da gente que carregava sobre ele por se recolher, vindo aguilhoada de alguns capitães nossos que a perseguia, não a pôde mais entreter, e, por segurar sua pessoa dentro dos mouros, dando a ribeira por arrombada de todo, recolheu-se pola porta da cidade, já com ua lançada no rosto. Os mouros, como perderam a vista de seu capitão, por serem muitos, e o lugar deste recolhimento estreito, começaram de se espalhar, 73 correndo ao longo do muro, como quem havia por mais prestes os seus pés pera ir buscar entrada per outra parte, que esperar vez, quando poderia entrar pela porta, porque os nossos per detrás lhe escalavam as carnes de morte. Finalmente, no recolher per esta porta houve tanta pressa e desacordo, e os nossos eram já tam entremetidos com eles, que, começando de abocar o portal pera entrarem todos de mistura, deram-lhe com as portas no rosto; e peró que trabalhassem por as fechar de todo, não poderam, com ua chuça que meteu entre elas Dinis Fernandes de Melo. Eram neste tempo à entrada desta porta Diogo Fernandes, de Beja. D. Jerónimo de Lima, Gaspar Cão, António de Sousa, João Lopes de Alvim, Simão Velho, António Vogado, Vasco da Fonseca, Francisco Coelho, de Viseu, e Fradique Fernandes, o qual, ainda que nesta relação seja o derradeiro, ele foi o primeiro que entrou pela porta vivo; em 232 prémio da qual entrada Afonso de Albuquerque lhe deu a capitania de um bargantim, e el-Rei D. Manuel o tomou por seu criado. Feita esta primeira entrada, sobrevieram estoutros capitães e principais pessoas que fizeram a segunda: D. João de Lima, Manuel de Lacerda, Fernão 234 Peres de Andrade, Aires da Silva, Manuel da Cunha, Gaspar de Paiva, António Garcez, Mendafonso, de Tânger. Os quais, com o ímpeto da vitória que levavam, de dous em dous e três em três, com outra gente que os seguia, começaram de se meter pela cidade, onde se houveram de perder. Porque, como nesta primeira entrada os mais deles eram estes capitães e gente nobre que nomeámos, a qual nos lugares de honra sempre é a dianteira (porque a força da gente ainda ficava na ribeira), tanto que os mouros viram quam poucos os perseguiam, tornaram sobre si e apertaram tam rijamente com eles que daquela vez mataram D. Jerónimo de Lima e a um cavaleiro per nome Cosmo Coelho, que morreu em sua companhia. E dando nova a D. João de Lima que seu irmão era morto, acudiu a ele, e chegando onde o achou armado ao muro, vasando o sangue com a vida,

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disse-lhe D. Jerónimo: - Adiante, senhor irmão, não é tempo de deter, que eu em meu lugar fico! Na qual afronta que os nossos padeciam, chegou Pero da Fonseca com alguns homens que consigo levava, que foi causa deles tomarem fôlego, té que com a vinda de Vasco da Fonseca, Mendafonso, Gaspar Cão e outros, que se ajuntaram em um corpo, a força de ferro levaram os mouros ante si, té chegarem a um terreiro defronte das casas do Sabaio, que fora senhor da cidade. E porque, como a lugar mais nobre dela, aqui concorriam todolos mouros, foi nele a maior força de peleja, por os nossos serem mui poucos em comparação do grande número deles, e mais alguns a cavalo, que os afadiga muito. Porém, como a salvação de suas vidas estava mais na espada que nos pés, foi aqui morto Vasco da Fonseca, Álvaro Gomes, António Garcez, António Vogado; e Manuel de Lacerda foi frechado abaixo de um olho, e António de Sá na maçã do rostro, e outros per partes, que não se podiam aproveitar das mãos e dos pés, que nos tais tempos todos são menistros da guerra. Finalmente, em todolos que a este tempo estavam dos muros a dentro, havia tanto sangue vertido e estava em tanto perigo das vidas, por a grande multidão dos imigos, que, se lhe tardara socorro, nenhum ficava vivo; mas sobreveo Diogo Mendes de Vasconcelos com a sua gente, o qual não somente deu fôlego aos nossos, mas ainda novo ânimo com um - Santiago! - que deu, em chegando. E foi tanto o ímpeto que poseram em cometer os mouros, que lhe fizeram virar as costas, uns acolhendo-se às casas do Sabaio e os de cavalo per essas ruas, como gente já mais confiada nos pés, que na defensão das mãos. Afonso de Albuquerque, neste tempo, não estava ocioso, porque não somente teve muito trabalho em subir costa acima um 233 bom pedaço, por encalçar o alto, mas ainda, quando chegou à tranqueira, achou quem lha defendeu um pedaço. A qual desfeita à força de machado por causa da fortaleza dela, quando quis encaminhar pera ir tomar a porta do muro, por o caminho ser entre uns valos, ali houve a maior defensão, de maneira que se deteve tanto, té que veo ter com ele um grumete em cima de um cavalo que houve dentro na cidade, de um turco que mataram, pedindo-lhe alvícera, que a cidade era 235 entrada. E como Afonso de Albuquerque o conhecia por ser deligente em seu mister, e às vezes gracejava com ele, respondeu-lhe: - Bem te entendo. A cavalo vens. Que queres ser? Cavaleiro da terra ou do mar? Eu me vou trás tua palavra, e tu toma esta de mim pera te acrescentar, ou a cavaleiro ou a marinheiro, qual tu quiseres. A chegada do qual grumete tanto alvoroçou a gente, 73v que a não podia entreter, e quási uns empuxando os outros, chegou ao terreiro onde Manuel de Lacerda, encima de outro cavalo acobertado, de um mouro que matou, o veo receber com palavras dinas daquele lugar e auto. E como ele vinha lavado todo em sangue da frechada do rostro, trazendo ainda o ferro com parte da haste nele, e per outras partes outras, vinha tam gentil homem nos olhos daqueles que trazem os seus postos nos autos da honra, que começou Afonso de Albuquerque de o louvar, e assi àqueles que o vieram receber, tintos o corpo em seu próprio sangue, e as armas no dos imigos. Finalmente, com sua chegada não ficou mouro que mais esperasse na cidade, buscando cada um sua salvação, e os mais deles se acolheram pela porta que dissemos ser chamada do Mandovi, per onde viram que o seu capitão da gente de armas se acolhia, o qual té li foi a cavalo, e com alguns principais que o seguiam se passou à terra firme. O outro capitão capado, que dissemos que foi ferido no rostro à entrada da porta, posto que seu próprio ofício era o governo da fazenda do Hidalcão e não o da gente de armas, era ele tam valente cavaleiro, que não se contentou com ser ferido, mas ainda morreu esforçadamente à porta das casas de seu senhor, defendendo o seu.

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Todo o outro povo da cidade, por não terem a embarcação que estes principais tinham no Mandovi, fugiram pela porta, a que ora chamam de Nossa Senhora da Serra, e foram passar o rio per onde se chama o Passo Seco, no qual, por não estar a maré vazia, se perdeu muita gente. E segundo a comum openião, assi nesta fugida no rio, como debaixo do ferro dos nossos, dos mouros morreram mais de seis mil pessoas de toda idade; porque, não somente neste dia houve esta destruição deles, mas ainda nos três seguintes, mandando Afonso de Albuquerque algua gente de cavalo de ua fermosa estrebaria deles, que se ali achou do Hidalcão, pera defensão da terra, correr toda a ilha, não perdoando a nenhum mouro. Na qual matança o principal menistro foi Medeo Rau, o capitão gentio da companhia de Timoja, que (como dissemos) veo com Afonso de Albuquerque, e ele, Timoja, veo depois com três mil 234 homens, desculpando-se de não poder vir ante do feito. Ganhada esta cidade em dia de Santa Caterina (como dissemos), à custa das vidas de quorenta e tantos dos nossos, em que entraram as pessoas notáveis já nomeadas, começou Afonso de Albuquerque entender na cura dos feridos, dos quais não fazemos relação, por serem tantos, que fariam um grande catálogo. Basta saber que não houve nobre sem ficar por assinalar de 236 quanto perigo passaram, somente a maior parte dos que acompanharam Afonso de Albuquerque não receberam tanto dano, por não se acharem no conflito da primeira entrada. O despojo dela, como toda a mais da gente que então ali estava era de guarnição, e temerosa de nós, não tinha outro móvel senão armas, e por isso houve pouco: tudo foi ua estrebaria de muitos e bons cavalos que o Hidalcão costumava ter pera acudirem os homens de armas às tanadarias da terra firme, que (como dissemos) às vezes os gentios na serra as vinham roubar. E assi acharam muitos mantimentos e grande munição de artelharia, pólvora e enxárcea pera as naus que estavam no estaleiro, as quais, se Afonso de Albuquerque não provera, foram queimadas pelos mestres e bombardeiros que mandou a isso; mas pelo recado seu (segundo dissemos), tanto que viram que a vitória era por nós, teveram mão. E verdadeiramente se eles o fizeram, não somente as naus foram queimadas, que Afonso de Albuquerque muito sentira, mas ainda fizeram tanto dano aos nossos como aos mouros; porque, como o lugar entre elas era de muitas voltas e acolheitas, ali foi a maior fúria, e por isso, se o fogo lavrara em as naus, também lavrara nas pessoas. Assi que em todo este feito, por ser mais gloriosa a vitória dele, Deus inspirou no ânimo de Afonso de Albuquerque pera mandar aos mestres que tevessem tento no queimar das naus, por não perder um tam grande despojo, como elas foram, que ele muito estimou, pola necessidade que havia delas pera os caminhos que havia de fazer, e mais havendo pessoas dinas de capitanias, a que deixava de prover por não ter vasilhas.

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234 73v 236 Capítulo X. Das cousas que Afonso de Albuquerque ordenou na cidade Goa e de alguas vitórias que houve de Melique-Agri, capitão do Hidalcão; e como prendeu Diogo Mendes de Vasconcelos e outros capitães que iam pera Malaca, e o castigo que por isso deu aos mestres e pilotos das suas naus. 74 Depois que Afonso de Albuquerque, com esta vitória que lhe Deus deu, se viu restituído na posse, que já tevera, da cidade, a primeira cousa em que entendeu foi em dar sepultura aos mortos da nossa gente, e assi mandou dar aos mouros outra sepultura dina de seus méritos, que foi aquele rio de Goa por ceva aos lagartos. Parte dos quais corpos a maré foi lançar per esses esteiros da terra firme ante a vista dos seus, pera serem melhor chorados; porque, se logo não fizera isto, 237 como eram 235 muitos corpos e a terra quente, corrompera o ar em peste, cousa que mui poucas vezes se vê naquelas partes. Feita esta obra com os mortos, mandou fazer outra aos mouros vivos, que foi não perdoar a quantos foram achados, assi na própria Ilha de Goa, como nas outras que estão derredor dela, per capitães que pera isso ordenou, alimpando a terra daquela má casta, assi dos estrangeiros, como dos naiteás, naturais da terra. Quanto ao povo gentio, lavradores dela e outros que viviam na cidade, mandou segurar com pregões, que pera isso lançaram, notificando-lhe que podiam vir lavrar suas próprias herdades e povoar suas casas, pagando seu foro, segundo o uso da terra, por quanto ele não tinha guerra com o gentio natural, senão com os mouros. E pera que as cousas tomassem assento e a cidade se tornasse a povoar, ordenou que Timoja, que depois veo, fosse capitão do gentio da terra, e que seus debates e diferenças ele as determinasse segundo o uso deles, com limitação de jurdição, porque morte, perdimento de fazenda e outras tais cousas não cabiam em sua alçada. Mas ele, Timoja, durou pouco neste ofício, por o gentio sofrer mui mal ser governado per ele, por ser homem de baixo sangue, e que de cossairo se levantara àquele estado de capitão; e o principal respeito por que Afonso de Albuquerque o tirou daquele ofício e ainda quisera castigar rigorosamente, foi porque com dous navios de remo que tinha no rio de Goa, mandou a Chaúl tomar duas naus de mercadores, pedindo licença a Afonso de Albuquerque, que os mandava a Onor. Sobre o qual caso o mandou prender té fazer a entrega do roubo, por se mandar queixar disso o governador de Chaúl, como amigo que era nosso; mas teve um padrinho que lhe valeu, tomando-o sobre si de pagar, e este foi outro gentio chamado Melrau, a quem Afonso de Albuquerque deu o seu ofício, que a gente da terra desejava por governador, por ser homem de real sangue, sobrinho del-Rei de Onor, o qual era herdeiro deste mesmo reino Onor; ca, segundo o costume daquele gentio da Índia, os sobrinhos filhos das irmãs são os herdeiros, e não os próprios filhos; peró quando veo a hora da morte, o tio em seu testamento o deserdou por alguns descontentamentos que teve dele, e herdou a outro irmão mais moço do mesmo Melrau. E vendo-se ele assi deserdado, e sobre isso em diferenças com o irmão, recolheu-se com algua gente que seguia seu partido pera as terras de Baticalá, por o governador dali ser seu parente, donde fazia a guerra a seu irmão; e por ter nisso favor, per alguas vezes se mandou oferecer a Afonso de Albuquerque, principalmente quando da primeira vez tomou Goa; mas não houve efeito, por razão do pouco tempo que os nossos a tiveram. Peró, nesta segunda vez, sabendo Afonso de Albuquerque particularmente as cousas deste Melrau, e quam necessário lhe era pera o bom governo da terra, tanto que ordenou de tirar

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238 Timoja do ofício, mandou 236 a Baticalá navios e galés pera trazerem a este Melrau com toda sua gente. O qual, ao tempo de sua chegada a Goa, foi recebido honradamente, e em sua companhia vinha Aiçurau, um capitão principal del-Rei de Narsinga, que andava fora de sua graça, a quem Afonso de Albuquerque também agasalhou, dando a cada um cavalos e jóias, segundo suas calidades. E logo entregou a Melrau o governo da terra, vindo ante ele todolos neiquibares, que são as cabeceiras dela, os quais com solenidade de palavras e autos, segundo seu uso, o receberam por seu capitão; porque, além de ele ser do mais nobre sangue daquele gentio, per sua pessoa era mui aceito a todos, por ser homem liberal, cavaleiro e ter outras calidades, que geralmente aprazem a todos. A qual entrega que lhe Afonso de Albuquerque fez destas terras e tanadarias de Goa, foi per modo de arrendamento: que ele, Melrau, pera sua pessoa e pagamento da gente de guerra, que havia de trazer pera defensão delas, haveria um tanto, e todo o mais havia de entregar aos oficiais del-Rei, por 74v estar em costume naquelas partes que os capitães e governadores das terras pelos príncipes, cujas elas são, por rezão de as conservar em paz, fazem-nos também rendeiros dos dereitos reais, porque a paz dá rendimento e a guerra o tira, e ua cousa se conserva com a moderação da outra. O qual negócio também Afonso de Albuquerque tinha cometido a Timoja; mas ele, posto que diligente servidor era, como tinha a natureza de cossairo, além das travessuras que fazia, todo o rendimento da terra consumia, sem lhe poderem haver da mão algum pagamento. El-Rei de Onor, sabendo estas honras que Afonso de Albuquerque fazia a seu irmão, e temendo que este favor lhe podia a ele danar, mandou a ele embaixadores, aos quais Afonso de Albuquerque respondeu que el-Rei de Onor não devia tomar por agravo as honras e gasalhado que fazia a seu irmão, ante nisso tinha a ele feito muito boa obra, porque o tirava das terras de Baticalá, donde lhe ele fazia guerra, e que este azo de não contenderem ambos per armas poderia ser caminho pera as vontades se virem a concertar per algum bom modo, de que ele, Afonso de Albuquerque, folgaria ser medianeiro. Peró com estas palavras lhe meteu outras pera o assombrar: porque, como este Rei era senhor de Mergeu, que é lugar do reino de Onor perto de Goa, e o Rei passado, seu tio, pagava certo tributo que lhe o Viso-Rei D. Francisco de Almeida pôs, e ele, depois que herdara, o não tinha pago, e sobre isso favorecia os mouros de Goa, além dos méritos de Melrau, grande parte foi pera Afonso de Albuquerque o favorecer estes deméritos de seu irmão, pera o poder trazer ao jugo da obediência nossa. 239 Fizemos esta relação deste príncipe Melrau, porque ao diante, segundo veremos, assi ele como Timoja, per serviços que fizeram a el-Rei D. Manuel, merecem serem aqui lembrados 237 e mais por serem um fuzil, que encadeam os feitos da nossa história, como se adiante mostra. Além destes embaixadores del-Rei de Onor, que era o mais vezinho às terras de Goa, como a nova correu que era tomada per nós, logo outros mandaram visitar Afonso de Albuquerque por embaixadores seus, assi como el-Rei de Narsinga e de Baticalá e Bengapor, a ele sujeitos; e Melique-Iaz, senhor de Dio; e el-Rei de Cambaia, seu senhor, e outros muitos príncipes da terra Malabar, todos em requerimento e ofertas, por segurarem suas navegações e negócios particulares. Tanto abalo fez em toda a Índia esta tomada de Goa, principalmente quando ouviram dizer as vitórias que, depois da tomada da cidade, os nossos houveram de alguns capitães do Hidalcão, que vieram com força de gente ver se podiam passar da terra firme à cidade, ou ao menos queimar alguas das nossas naus que estavam no rio, empedindo também que os neiquibares das terras firmes não acudissem com o rendimento delas nem provessem a cidade de mantimento e das outras cousas

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de que se ela serve, rodeando a ilha logo nos primeiros dias per ua maneira de cerco, aparecendo hoje em ua parte e logo em outra; com o qual modo andava a nossa gente derramada per todolos passos da ilha, e mui cansada, e sobretudo temerosa de outra passagem como a primeira. O capitão-mor do qual exército era um Melique-Agri, pessoa que o Hidalcão escolheu por homem cavaleiro, e que havia de dar conta de si, o qual a primeira cousa que fez foi vir sobre as terras de Coudal e Banda a visitar aquela entrada. Afonso de Albuquerque, como soube o que ele vinha cometer, mandou com certas galés e navios de remo a Diogo Fernandes, de Beja, que lhe não consentisse passar per o rio de Bandá às terras de Antruz e Salsete, na qual ida Diogo Fernandes com os outros capitães, que com ele foram, ganharam muita honra, desbaratando duas vezes a gente deste capitão. E porque ele, Melique-Agri, cuidou que com a gente de cavalo podia resistir mais aos nossos, deu sobre Diogo Fernandes em o rio de Bandá, o qual saiu em terra a eles, e assi se houve bem com os turcos que vinham a cavalo, que, metidos em fugida, se lançaram per ua barroca abaixo, onde morreram muitos. No qual feito eram com Diogo Fernandes, Aires Pereira, António de Abreu, Gaspar Cão, António de Matos e outros fidalgos e cavaleiros, que de sua pessoa o fizeram mui honradamente. Tornado Diogo Fernandes com esta vitória a Goa, di a poucos dias, reformado Melique-Agri deste dano, passou-se da outra parte do rio de Banda contra a Ilha Divar, onde estava Gaspar de Paiva com gente em guarda da ilha, por os gentios que pagavam a Goa, 75 não serem roubados dos mouros. Gaspar de Paiva, chegado Melique com gente de cavalo e de pé em duas batalhas sarradas, deu neles assi ousadamente, lança tesa em punho, que 240 logo no primeiro rompimento que neles fez lhe 238 mataram muitos cavalos, e sobre eles os senhores; outros andavam pelo campo a ua e outra parte com os turcos mortos na sela; porque, como seu costume é andarem bem arreatados nela com muitas voltas de touca, por não cair, andavam sem governo de rédea. Era neste feito Vasco Fernandes Coutinho, filho de Jorge de Melo, que mataram os mouros em Mazagão, o qual, sendo bem moço, esperou um turco a cavalo que vinha sobre ele, e, desviando o corpo, levou o cavalo pela rédea e per baixo das cobertas meteu a espada nele, com que o senhor e ele vieram a terra, e ambos ali ficaram mortos. Eram também neste feito com Gaspar de Paiva, Martim Guedes, Afonso Pessoa, que naquele dia, entre outros muitos que ganharam honra, eles se estremaram nela; no qual cometimento os mouros receberam muito dano, e os nossos com esta vitória se tornaram recolher à Ilha Divari, onde tinham sua estância. Melique-Agri, vendo quam mal lhe sucediam seus cometimentos, passou-se daquele lugar a outro chamado Diocholi, defronte de Goa, onde se fez forte com ua cerca de madeira; a qual mudança e força sabendo Afonso de Albuquerque, pareceu-lhe que com dous mil homens portugueses e do gentio da terra o podia levar na mão. E indo pera o cometer per modo de cilada, como Melique era homem sabedor na guerra, sentindo o ardil, posto que lhe lançaram diante ua batalha do gentio da terra, não somente lhe não quis sair, mas ainda desemparou o lugar, arredando-se da borda da água. Afonso de Albuquerque, desesperado de o poder acolher, naquele próprio dia se passou à Ilha Divari, leixando naquele passo a Manuel de Lacerda e a Rodrigo Rabelo, e ele tornou-se a Goa a prover nas obras da fortaleza que mandava fazer. Andando assi nestes trabalhos, sobreveo outro, que ele muito sentiu, por ser com Diogo Mendes de Vasconcelos, que naquela entrada da cidade tinha ganhado muita honra e feito assaz de serviço a el-Rei com sua pessoa e gente da sua capitania. Porque, tendo-lhe ele tomada a menagem, que não partisse pera Malaca sem sua licença (como atrás fica), ele e os capitães de sua bandeira assentaram de se partir, obrigando aos mestres e pilotos que o fizessem, posto que lhe não fosse dado licença, porque eles tinham comprido em vir à tomada

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daquela cidade, onde serviram el-Rei, e detê-los mais Afonso de Albuquerque era empedir não irem onde el-Rei os mandava, e mais sendo aquelas naus de armadores, que iam buscar carga, e não eram obrigados andar gastando o tempo naquela guerra de Goa. Finalmente, postos em ordem de partida o mais secretamente que poderam, ua noite saíram pela barra de Goa fora, do que logo Afonso de Albuquerque foi avisado, e alguns querem dizer que per Pero Coresma, que era um dos capitães da companhia, que não saiu com os outros, que eram 241 Diogo Mendes, Dinis Cerniche, e o navio de Baltasar da 239 Silva por ele estar doente em Cananor. Na esteira dos quais Afonso de Albuquerque logo mandou um batel, e nele Bastião Rodrigues, que ora serve de juiz da Balança da Moeda, com ua carta a Diogo Mendes, e assi recado a duas galés, capitães Duarte da Silva e James Teixeira, as quais andavam na barra, que lhe requeressem que se tornassem, sob pena do caso maior. Chegado Bastião Rodrigues a Diogo Mendes, fez-lhe crer que Afonso de Albuquerque estava em ua das galés. O qual artefício, peró que ua delas que lhe seguiu o alcanço (pola comissão que levava de Afonso de Albuquerque), fez alguns tiros, com que matou dous homens a Diogo Mendes e lhe desaparelhou a verga, parecendo-lhe a ele ser verdade que Afonso de Albuquerque estava na galé, e era grande crime defender-se ante sua pessoa, entregou-se a Manuel de Lacerda, Rodrigo Rabelo e a Simão de Andrade, que também per terra a cavalo foram té a barra, por o tempo da maré ser contrairo a irem per mar, e lá tomaram batéis pera isso. Finalmente Diogo Mendes, Dinis Cerniche e Pero Coresma foram presos e condenados com os autos de suas culpas pera virem dar razão de si a este reino a el-Rei, e enforcados um mestre e um piloto nas vergas das naus, por serem os mais culpados; e a outros dous, que eram menos, deu a vida por intercessão de uns embaixadores del-Rei de Narsinga, que eram presentes, a que Afonso de Albuquerque quis comprazer. Alguns quiseram condenar este feito, que Afonso de Albuquerque fez, depois que ele cometeu 75v sua ida pera Malaca, dizendo que a tenção de ele reter Diogo Mendes, depois da tomada de Goa, mais era por ele mesmo, Afonso de Albuquerque, querer ir em pessoa a este negócio de Malaca, que por ter muita necessidade da gente e navios, que Diogo Mendes levava consigo. Mas parece que este negócio, ainda que a tenção de Afonso de Albuquerque fosse esta, procedeu de permissão divina; porque, se na ida que ele fez a Malaca, levando tantas naus e gente (como adiante veremos), teve assaz de trabalho em conquistar aquela cidade, que podera fazer Diogo Mendes, senão o que fez Diogo Lopes? Querendo poer o feito em armas, como era cavaleiro de sua pessoa, perdera-se de todo. Portanto, ainda que as tenções dos homens que governam acerca dos governados sejam condenadas, e às vezes com razão, não se deve reprovar a obra; porque, como são ministros do bem comum, Deus endereça o efeito dela ao que lhe apraz, posto que eles a ordenem a seus propósitos.

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240 75v 242 Capítulo XI. Das obras e provimentos de Afonso de Albuquerque fez e ordenou em Goa; e do caminho que cometeu pera ir ao Mar Roixo e depois pera Malaca. Entre outras cousas que Afonso de Albuquerque ordenou pera defensão daquela cidade Goa, a principal foi ua fortaleza, à qual pôs nome Manuel, per memória del-Rei D. Manuel, em cujo tempo fora tomada. E porque o nome dele, Afonso de Albuquerque, e de todolos capitães e alguns fidalgos principais não ficassem esquecidos em tam ilustre feito, mandava poer ua pedra em um lugar notável de ua torre, em que dezia quando e per quem aquela cidade fora tomada aos mouros. Sobre o qual negócio Afonso de Albuquerque se viu tam atormentado dos mesmos homens, uns porque não eram dos primeiros daquela nomeação, outros por não serem nomeados, que mandou fazer outro letreiro na mesma pedra em outra face, no qual dezia aquelas palavras da Escritura: Lapidem quem reprobaverunt aedificantes, factus est in caput anguli. E a outra face da competência ficou metida na parede, e assi ficaram todos contentes, porque ao português mais lhe dói o louvor do vezinho, que o esquecimento do seu. E daqui vem que os seus feitos, sendo dinos de muito louvor acerca das gentes, por esta razão de competência ficam sepultados no esquecimento, da qual verdade temos experiência no trabalho que nos deu tirar do peito deles as cousas do discurso desta história - e Deus é testemunha ser este o maior que nela levámos. Além desta memória dina de quem a mandava fazer, fez Afonso de Albuquerque naquela cidade outras de não menos louvor, que foi mandar lavrar moeda de ouro, prata e cobre; à primeira chamou manuéis, à segunda esferas e meias esferas, à terceira, de cobre, leais; pera lavramento da qual ordenou casa, e logo gentios da terra oficiais deste mister a tomaram por arrendamento de dous mil pardaus por ano, que valem ao respeito da nossa moeda seiscentos mil reais. Fez mais outra obra em louvor de Deus e de grande prudência, vendo que o gentio da terra tomava de boa vontade o nosso modo de a governar e o tratamento que lhes fazíamos, e que as mulheres canaris da terra aceitavam a nossa gente de boa vontade, sem aqueles escrúpulos de religião que tinham as do Malabar do género das naires, que é a mais nobre entre aquele gentio, as quais não podem casar senão com os naturais brâmanes; e sendo elas comuas a eles, não admitem outro homem fora deste género, sob pena de ficar infame, como atrás escrevemos. Consideradas as quais cousas, e também vendo o sítio daquela cidade, e que a comarca das terras que tinha derredor prometia de si grandes esperanças 241 pera segurar o estado da Índia, se fosse povoada, e podia ficar por metrópoli das mais que ao diante conquistássemos, e esta povoação não podia 243 ser sem consórcio de mulheres, pôs em ordem de casar algua gente português com estas mulheres da terra, fazendo cristãs as que eram livres; e outras catiavas, que os homens tomaram naquela entrada e tinham pera seu serviço, se algum homem se contentava dela pera casar, comprava-a a seu senhor, e per casamento a entregava a este como a seu marido, dando-lhe à custa del-Rei dezoito mil reais pera ajuda de tomar sua casa, e com isso palmares e herdades 76 daquelas que na ilha ficaram devolutas com a fugida dos mouros. O gentio da terra, logo no princípio, quando Afonso de Albuquerque lhe tomava suas filhas, se algum homem se contentava dela pera a ter por mulher, recebiam nisto escândalo e haviam que lhe era feito força; porém depois que viram as filhas honradas com fazenda na terra, o que ante não tinham, e que eles por razão delas eram bem tratados e pervaleciam sobre o outro gentio, houveram

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que quem tinha mais filhas de que se alguém contentasse, tinha a vida mais segura. Finalmente, com os mimos e favores que Afonso de Albuquerque fazia a estes desposados, foi em tanto crescimento acerca da gente baixa este alvoroço de casar, que, acertando Afonso de Albuquerque ua noite de casar uns poucos em sua casa, quando se espediram daquele auto do desposório, levando cada um sua esposa, parece que com a multidão da gente, por não haver muitas tochas que os acompanhassem, perderam as mulheres; e no buscar delas, como a luz não era muito clara, trocaram as esposas. Peró, quando veo ao seguinte dia, caindo no engano da troca, desfizeram este enleo, tomando cada um a que recebeu por mulher, ficando o negócio da honra tal por tal. E como neste princípio a gente baixa não fazia muitos escrúpulos no modo do casar - ora fosse escrava de algum fidalgo, de que ele tevera já uso, ora novamente tomada da manada do gentio e feita cristã, a recebia por mulher e contentava-se com o dote que lhe Afonso de Albuquerque dava e mimos que lhe fazia, chamando a estes tais esposos genros e às mulheres filhas - eram todas estas cousas matéria de zombaria entre alguns fidalgos. Principalmente quando ouviam dizer a Afonso de Albuquerque, que ele esperava em Deus de arrincar as cepas da má casta que havia naquela cidade, que eram os mouros, e plantar cepas católicas, que fructificassem em louvor de Deus, dando povo que por seu nome com pregação e armas conquistassem todo aquele Oriente. Ao que deziam estes mofadores entre si que aquele seu bacelo era de vidonho labrusco em ser mistiço, principalmente por ser da mais baixa planta do reino, que seria para ele parreiras de ante a porta, que o primeiro asno de trabalho que viesse àquela cidade lhas havia de roer; porque de gente tam vil como era aquela, que aceitava casar per aquele 242 modo, não se podia esperar fructo que tivesse honra, nem as calidades pera aquelas grandes esperanças de Afonso de Albuquerque. Contra as quais razões destes homens de pouca consideração, a regra do Mundo estava em contrairo; pois vemos que todo foi povoado de mais 244 baixos princípios, e de gente a que podemos chamar enxurro de homens. Ca se eles olharam aos princípios de Roma, nossa cabeça, monarca do Império Romano, o mais nobre de toda a terra, acharam que foi um consórcio de gente pastoril, ou (por melhor dizer) ua acolheita de malfeitores; e que as moças sabinas, que eles teveram pera ter por mulheres, se eram mais alvas por razão do clima, não seriam de mais nobre sangue, que as canaris, nem tinham mais conhecimento de Deus, nem seus maridos lhe haviam de ensinar algua católica doutrina, nem em os seus esposórios concorreram duas tenções em um vínculo de consentimento, como quere o auto matrimonial: somente um ímpeto de força, cujo fim foi um comum estrupo ao tempo que o bailador movia os pés ao som da frauta pastoril, segundo moteja o seu poeta Juvenal. E por não andar per todo o Mundo buscando todalas grandes povoações dele principiadas de mui baixos fundadores, venhamos aos exemplos de casa, e perguntemos a Ilha da Madeira, Terceiras, Cabo Verde, S. Tomé, quem foram seus primeiros povoadores; e responder-vos-ão que o não querem dizer, por honra de seus netos, que hoje vivem e podem já per nobreza contender com um gentil-homem romano. Finalmente, como Afonso de Albuquerque nestas cousas tinha discurso de muita prudência, peró que soubesse quantos danadores havia desta sua obra, não deixava de ir com ela avante; e por mais confundir estes contrairos dela, entre estes casados escolheu os de melhor calidade e mais aptos, per os quais repartiu os ofícios do governo da cidade, assi como vereadores, almotacés, juízes, alcaides, etc. Mas o demónio urdia tantas cousas por enveja desta santa obra, que teve Afonso de Albuquerque grande trabalho em a sustentar contra parecer e vontade de muitos. Porque, como a gente nobre fazia mais conta de se tornar a este reino de Portugal que dos casamentos dele, e todos sabiam como ele escrevia a el-Rei D. Manuel grandezas das cousas de Goa, e quanto fundamento devia de fazer dela pera segurar o Estado da Índia, dando pera isso 76v

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muitas razões, eram todas desfeitas ante ele per alguas cartas que capitães e oficiais, que não tinham boa vontade a Afonso de Albuquerque, lhe escreviam, representando cada um as suas, e quam impossível era sustentar-se aquela cidade, por terem por adversairo o maior príncipe mouro que havia naquelas partes. O qual a pouco custo, somente vindo a comer o rendimento das terras firmes de Goa, a teria continuamente cercada, de maneira que compria estar sempre atulhada de gente, e não terem suas armadas outro ofício, senão estar em defensão que o Hidalcão 243 ou seus capitães não passassem à ilha. Finalmente, chegou o Demónio a tanto, vendo a diligência que Afonso de Albuquerque fazia por sustentar a posse desta cidade e povoá-la de gente casada, e que fizessem conta de viver nela e não de se vir pera este reino, que 245 por o tirar dali, se pôs fogo industriosamente às naus que estavam em estaleiro, por elas serem causa de Afonso de Albuquerque entender naquela cidade, temendo que, elas acabadas, indo ele a Ormuz ou ao Estreito do Mar Roxo, saísse dali ua armada de rumes, como estava ordenado, e tomassem posse das fortalezas de Cochi e Cananor neste tempo. Peró, ora que este fogo fosse posto per indústria de algum dos nossos, segundo a mais certa suspeita, ora per algum mouro ou gentio da terra, ele foi apagado, como outro, que já de ante também fora posto nas casas do arrabalde, que eram cobertas de ola, matéria em que ele tomou boa posse; mas assi este, como o das naus, espertou mais a Afonso de Albuquerque a mandar ter grande vegia. E segundo o trabalho que levou na povoação e conservação desta cidade, logo nestes primeiros princípios, com verdade, se pode dizer que muito mais embates teve por isso, do que foram os combates pola conquistar da mão dos mouros; e mais se lhe deve pela primeira obra que por esta segunda, porque povoá-la e defendê-la das contradições dos nossos, foi obra própria sua; e conquistá-la, foi de todos. E tendo com assaz de seu trabalho assentado as cousas que convinham pera o governo e defensão dela, determinou de ir fazer outra obra, que lhe el-Rei escrevia mui estreitamente que fizesse; que era trabalhar por haver à sua mão a cidade Adem, que está fora das portas do Estreito do Mar Roxo, e nela fizesse ua fortaleza pera defender a passagem das naus dos mouros que saíam e entravam per elas; e quando isto não podesse ser per algum bom concerto do Xeque, senhor dela, fosse à força de armas. Porém, entrando ele o Estreito e parecendo-lhe melhor assento pera segurança da fortaleza e defensão desta entrada e saída das naus dos mouros, a ilha que estava na boca do mesmo Estreito, ou a Ilha Camarão, que era já metida nele, em tal caso ele leixava a eleição do lugar a ele, pois havia de ver per si e não per informação de outrem. A qual obra desta fortaleza, posto que ao diante servia pera empedir a geral navegação dos mouros daquele Estreito, particularmente convinha então ser feita pera resistir a ua grande armada, que o Soldão do Cairo novamente mandava fazer no porto de Suez, que é no último seo do Estreito do Mar Roxo, segundo a nova que el-Rei D. Manuel tinha per via de Levante. Assi que, por a grã necessidade que havia de acudir a este negócio tam importante, o mais em breve que pôde ordenou as cousas de Goa, pera se poder partir, leixando nela quatrocentos homens de armas, em que entravam oitenta de cavalo, os quais eram del-Rei, dos que ali se tomaram, 244 e repartidos per alguas pessoas costumadas a pelejar a cavalo. E ao gentio Melrau leixou cinco mil peães da terra pera andar pelas tanadarias da terra firme, arrecadando o rendimento delas, as quais (como atrás dissemos) ele as tinha tomadas por 246 arrendamento, assi as da própria Ilha, como das terras firmes, em cinquenta e dous mil pardaus em cada um ano, repartidas per esta maneira: doze que pagava a própria Ilha de Goa, e os quorenta as outras ilhas e as terras firmes que eram vindas à nossa obediência. E na cidade leixou por capitão a Rodrigo Rabelo de Castelo Branco, o qual ele tirou de capitão de Cananor, onde estava, por esta cidade ser cousa de mais importância, e ele homem pera o tal cargo per sua pessoa e cavalaria, posto que i houvesse outras de mais nobreza de sangue; e por alcaide-mor Francisco Pantoja, filho

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de Pero Pantoja; e feitor, Francisco Corvinel, por ser homem que entendia em os negócios do comércio; e escrivães do seu cargo, João Teixeira, filho de João Paçanha, de Alanquer, e Vicente da Costa, filho do mestre Afonso, físico-mor. Leixou mais por capitão do mar da cidade a Duarte de Melo, de Serpa, com alguns navios de remo, que andasse em torno da Ilha, o qual havia de obedecer a Manuel 77 de Lacerda, que era em Cochi, e ficava por Capitão-mor do mar de toda a costa da Índia com certas velas. E também lhe havia de obedecer Diogo Fernandes, de Beja, quando viesse, que ele, Afonso de Albuquerque, tinha enviado a desfazer a fortaleza de Socotorá, como el-Rei mandava, vendo servir pouco pera o fim que se ordenou, de que era capitão Pero Ferreira, que a este tempo era já falecido, sem o ele saber. E levava Diogo Fernandes mais em regimento que, com outros dous navios de sua capitania, de que eram capitães António de Matos e Gaspar Cão, desfeita a fortaleza e recolhida a gente dela nestes navios e na sua nau, andasse naquela costa da Arábia fronteira a Sacotorá, esperando por ele, Afonso de Albuquerque, por quanto fazia fundamento de ir ao Estreito fazer o que acima dissemos. E quando não fosse ter com ele per todo Maio, que era o tempo que podia esperar naquela costa, em tal caso se fosse a Mascate e, não o achando ali, que fosse invernar a Ormuz e pedisse as páreas a el-Rei, e di se viesse à Índia per todo Agosto. Dada ordem a todas estas cousas, fez Afonso de Albuquerque prestes sua armada, mostrando que queria fazer estes caminhos, a que mandava diante Diogo Fernandes; peró depois, pelo que sucedeu, se viu que sua tenção era fazer outro, e não este. Porque, indo com toda sua armada via do Estreito de Meca, como era já no fim da monção, tempo em que se não podia navegar pera aquela parte, tornou arribar a Goa, ante que passasse os Baixos de Pádua. Surto na barra de Goa, em conselho propôs aos capitães como sua tenção era fazer aquele caminho ao Estreito, segundo lhe já tinha dito; e 245 que (como eles sabiam) a causa de partir tam tarde fora por leixar as cousas de Goa postas em ordem, pera ficar segura dos sobressaltos dos capitães do Hidalcão. E visto o grande aparato que tinha feito pera aquela viagem do Estreito, que os tempos lhe não leixavam fazer, e a monção deles ser a popa pera Malaca, a ele lhe parecia muito mais serviço del-Rei seguir este caminho, que poer-se no rio de Goa a comer os mantimentos que tinham, e onde per ventura podiam padecer outra tal necessidade de fome, como já nele passaram, por os mantimentos serem poucos e a gente muita, sem terem modo de 247 os naqueles meses do inverno poderem ir buscar. O qual caminho de Malaca não era tanto de sua vontade, quanto de el-Rei o mandar, como cousa que ele muito desejava e de que eles tinham experiência na ida de Diogo Lopes de Sequeira, e naquelas naus em que Diogo Mendes de Vasconcelos fora. Prepostas estas e outras palavras per Afonso de Albuquerque, todas ordenadas a fim de fazer esta viagem, posto que entre ele e os capitães houve diversos pareceres, todavia vieram a concluir no que lhe a ele parecia, vendo desejar ele esta empresa de Malaca; e muitos assentaram que esta fora a causa de entreter a Diogo Mendes. Aprovada a qual ida, partiu-se logo via de Cananor, onde estava por capitão Diogo Correa, filho de Fr. Paio Correa, em lugar de Manuel da Cunha, filho de Tristão da Cunha, o qual ele tirou dali por alguas cousas, e ficava em Goa doente, onde depois acabou, como veremos. O qual Diogo Correa fora cativo com os outros que iam em companhia de Dom Afonso de Noronha, como atrás vimos, e era ali vindo, e com ele Francisco Pereira de Berredo, ambos por parte deles, per licença del-Rei de Cambaia, a requerer a Afonso de Albuquerque que os mandasse tirar, do que adiante faremos maior relação. Provida a fortaleza de Cananor, partiu-se via de Cochi, no qual caminho vieram ter com ele Jorge Botelho, de Pombal, e Simão Afonso, que andavam por capitães de duas caravelas na paragem de Calecute, em guarda daquela costa, os quais tinham pouco havia desbaratado ua nau grossa e rica, que vinha de Meca; peró não lhe poderam mais fazer, que dar com ela à costa, onde os

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mouros se acolheram por salvar as pessoas, na qual peleja deles morreram muitos, e dos nossos sete: quatro na caravela de Jorge Botelho e três na de Simão Afonso. Chegado Afonso de Albuquerque com toda sua frota e estas caravelas, que também levou a Cochi, já no fim de Abril, veo el-Rei logo a o ver; o qual, sabendo dele o caminho que levava, com muitas razões o contrariou, representando-lhe grandes inconvenientes mui importantes ao Estado da Índia e fortalezas que nela leixava feito. Os quais argumentos Afonso de Albuquerque lhe desfez, sentindo nas razões que lhe dava serem forjadas per os mouros mercadores de Cochi, que tratavam 246 em Malaca, temendo que, se tomasse aquela cidade ou assentasse nela trato, per qualquer via que fosse, perdiam 77v muito. Finalmente, em dous ou três dias que se Afonso de Albuquerque ali deteve, provendo alguas cousas da fortaleza e outras pera sua viagem, e leixando Manuel de Lacerda com quatro velas pera guarda da costa, como dissemos, ele em ua nau, e Pero da Fonseca, António de Sá e Simão Afonso, cada um em sua caravela, partiu-se via de Malaca, a dous de Maio, com dezanove velas, das quais eram capitães D. João de Lima, António de Abreu, Bastião de Miranda, Aires Pereira, Fernão Peres de Andrade, Simão de Andrade, seu irmão, Jorge Nunes de Lião, Gaspar de Paiva, Gomes Teixeira, Nuno Vaz de Castelo Branco, Duarte da Silva, Pero de Alpoém, secretário, Jorge Botelho, Dinis Fernandes de Melo, Simão Martins Caldeira, Afonso 248 Pessoa e Francisco Serrão. Na qual frota levava até mil e quatrocentos homens de armas, oitocentos portugueses e os outros malabares de espada e adarga, segundo seu uso de pelejar. E porque nesta viagem que Afonso de Albuquerque fez, saiu da costa da Índia e navegou mares novos, tomando portos de remos e terras té quele tempo per nós não sabidas, somente daquela breve ida que Diogo Lopes de Sequeira fez contra aquelas partes orientais, e finalmente tomou posse daquela riquíssima Malaca, situada na Áurea Quersoneso, terra tam celebrada dos antigos geógrafos, entraremos nesta conquista dela com princípio do Sexto Livro, novo em ordem, e o segundo depois que Afonso de Albuquerque começou servir o ofício de Capitão Geral daquelas partes.

LIVRO VI 247 78 249 Capítulo Primeiro. Em que se descreve o sítio do Reino de Malaca; e o fundamento da primeira povoação da cidade e do trato e cousas dela. Em a descripção geral que fizemos de toda a costa da Índia e suas comarcas, relatando todolos portos e principais povoações do marítimo dela, se viu como esta cidade Malaca, que Afonso de Albuquerque ia conquistar, estava situada naquela parte da terra, a que os geógrafos chamam Áurea Quersoneso. E porque em as Tábuas da nossa Geografia a olho se pode ver a situação desta cidade Malaca, aqui somente pera entendimento da história trataremos da fundação, comércio e cousas dela, té o estado em que Afonso de Albuquerque chegou a seu porto, o mais breve que em nós for. Porém primeiro que entremos na relação destas cousas, porque como esta história vai em linguagem, e alguns que a lerem per ventura não entenderão este termo Quersoneso, usado entre os geógrafos, devem saber que é palavra grega, e propriamente se toma per υa pequena partícula de terra pegada per tam delgada cousa, como é o pé da folha da figueira pegada no ramo dela; a qual figura tem a terra Peloponeso, a que ora chamamos Morea, que antiguamente era a flor da Grécia, posto que Plínio a quere comparar à folha do plátano por a muita semelhança que tem com ela. Este nome Quersoneso, peró que seja nome comum de todalas terras que tem esta figura, pera própria denotação da terra, de que os geógrafos querem falar, sempre lhe dão um epíteto, assi como a esta de que falamos 250 Áurea, e a que faz o rio Tanais, que divide a Europa da Ásia, a que eles chamam Táurica Quersoneso. Esta nossa de Malaca parece que houve este epíteto de Áurea por razão do muito ouro que se traz de Monancabo e Barros, que 248 são duas comarcas onde se ele tira na Ilha Samatra, que é a própria a que os antigos chamam Quersoneso, cuidando ser contínuo a outra terra firme, em que ora está situada Malaca. O tempo certo em que se fundou esta cidade, acerca dos seus moradores não há escritura que viesse à nossa notícia; somente é fama comum entre eles que, ao tempo que nós entramos na Índia, haveria pouco mais de duzentos e cinquenta anos que era povoada, e que a causa de sua fundação foi esta: Antiguamente a mais célebre povoação que havia naquela terra de Malaca era υa chamada Cingapura, que em sua língua quere dizer falsa demora, a qual estava situada em υa ponta daquela terra, que é a mais austral da Ásia, situada em altura de meio grau da parte do Norte, segundo nossa graduação. E se nesta parte havemos de dar crédito à Tábua de Ptolomeu, deve ser aquela terra a que ele chama o Grande Promontório, onde situa a cidade Zaba, em que faz tanta computação de duas distâncias, como cousa mui célebre; porque ante da fundação da cidade Malaca nesta Cingapura (que pelo sítio seria aquela Zaba de Ptolomeu), concorriam todolos navegantes dos mares Ocidentais da Índia e dos Orientais a ela, que são as regiões de Sião, China, Choampá, Camboja, e de tantas mil ilhas, como jazem naquele Oriente. Às quais duas partes os naturais da terra chamam Dibananguim e Atazanguim, que quere dizer abaixo dos ventos e acima dos ventos, abaixo Ponente, e acima Levante. Porque, como os principais com que se navegam aquelas partes, procedem de dous grandes golfãos - o de Bengala e o outro que se vai estendendo contra as terras de China, furtando-se em grande altura do Norte - tem razão de chamar a esta parte acima e a estoutra abaixo. E também porque, quando o Sol lhe nasce, se alevanta; e quando se põe, desce, que parece imitarem o nosso modo, donde dizemos Levante e Ponente; e quanto ao sítio desta grande cidade Cingapura, onde 78v

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todos vinham deferir como a um geral empório e feira, a uns ficava um mar Levante e a outros Ponente. E segundo os povos malaios dizem (de quem nós recebemos esta relação), no tempo que a cidade Cingapura florecia, era senhor dela um Rei per nome Sangefinga, e neste mesmo tempo faleceu outro Rei na Ilha Jaua, seu vezinho, chamado Pararifá, o qual leixou em tutoria dous filhos de mui pequena idade, encomendados a um seu irmão. Este tio dos moços, depois que começou governar a Jaua, com cobiça do reino matou o maior deles, que foi causa de se levantarem contra ele os senhores da terra; e 251 como a Fortuna sempre favorece nos primeiros princípios a maldade, houve ele tantas vitória deles, que muitos com temor começaram de se desterrar e buscar novas povoações, entre os quais foi um per nome Paramifora. O qual, vindo fugido deste tirano, que o queria matar por ele defender a justiça 249 do seu príncipe, e sendo recebido com amor e gasalhado del-Rei Sangefinga, de Cingapura, que ele foi buscar por amparo e refúgio de seu desterro, cometeu contra ele outra maior maldade que aquele de quem ele vinha fugindo, porque não tardou muito tempo que lhe não pagasse a honra e gasalhado que lhe fez, tendo modo como o matou, e se fez senhor da cidade com o poder da gente jaua que consigo trouxe. Sabida esta maldade per el-Rei de Sião, senhor e sogro deste morto, mandou logo um seu capitão sobre Paramifora; mas assi este, como outros que depois vieram, todos foram com a cabeça quebrada, té que o mesmo Rei de Sião per si com grande exército de elefantes e poder de gente, per terra e frota per mar veo sobre ele. Paramifora, não ousando esperar a potência del-Rei, despejada a cidade Cingapura, com dous mil homens veo ter ao rio de Muar, que seria de Cingapura obra de quorenta e cinco léguas, e cinco donde ora está situada a cidade Malaca, no qual rio, em um lugar per ele acima, a que chamam Pago, fez υa força de madeira onde se recolheu, temendo ainda o poder del-Rei de Sião. Porque, dado que se ele tornasse, leixou naquela cidade Cingapura um capitão seu por governador, ao qual podia mandar que o viesse ali buscar, pois ainda estava em terras de seu estado e senhorio, como era toda aquela costa. E porque, ao tempo que Paramifora fugiu, este furor del-Rei de Sião trouxe consigo υa gente a que eles chamam celates - homens que vivem no mar, cujo ofício é roubar e pescar - com o favor e ajuda dos quais ele se fez senhor de Cingapura e susteve, por espaço de cinco anos, quando veo a se recolher no rio Muar, como já estava com menos poder, temendo-se deles, não os quis receber em sua povoação de Pago; e dando a isso algυas razões simuladas, mandou que mais abaixo fizessem sua povoação. Os celates, posto que sua vivenda é mais no mar que na terra, e ali lhe nascem os filhos, ali os criam sem fazerem algum assento na terra, todavia, porque ficaram em ódio com os de Cingapura e com todalas ilhas de seu senhorio, não ousam de tornar àquelas partes, e por então vieram fazer sua vivenda à borda de um rio, onde ora está situada Malaca, que será cinco léguas do rio de Muar, onde Paramifora fez seu assento. E a primeira povoação que fizeram foi em um monte, que está sobre a fortaleza que ali temos, no qual acharam algυa gente da própria terra quási meios salvages no modo de seu viver, cuja língua era a própria malaia, de que toda aquela gente usava, e com quem estes, celates se entendiam. Entre os quais, peró que logo no princípio uns se esquivaram dos outros pola diferença do viver, todavia, per meio das mulheres, de que os celates andavam desfalecidos, se vieram todos ajuntar em υa povoação, 252 conservando-se entre si com o exercício a que eram costumados: os celates trazendo do mar 250 e os malaios dos fructos da terra. E como o lugar em que estavam, por serem já muitos, era estreito, mudaram-se dali obra de υa légua per o rio acima, a um monte de comprimento de meia légua,a que eles chamaram Beitão, na fralda, do qual estava um campo, a que também deram este nome, com o

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qual sítio, por ser grande e espaçoso, e saberem que Paramifora vivia em lugar estreito, o foram convidar, levando-lhe por mostra da fertelidade da terra algυas fructas. Entre as quais foi υa, a que ora chamam duriões, cousa mui estimada, e tam gulosa, que contam os mercadores de Malaca vir já àquele porto mercador com υa nau carregada de muita fazenda, e comeu toda nestes duriões, e gastou em amores das moças malaias. Finalmente, visto este lugar per Paramifora, leixou vivenda do Pago e veo povoar naquele campo 79 Beitão, onde viveu muitos anos, sempre assombrado dos governadores, que por el-Rei de Sião estavam em Cingapura. Peró, depois que este caso com o tempo foi esquecido, e um filho de Paramifora, chamado Xaquem Dar-xá, governava aquele povo, por seu pai ser mui velho, por se aproveitarem do mar, que era o principal fundamento de que ele esperava vir ter a grande estado, veo fazer povoação de Malaca, a que ele deu este nome, em memória do desterro de seu pai, porque em sua própria língua quere dizer homem desterrado, donde os povos se chamam malaios. E o campo Beitão leixaram feito em pomares, com algυas casas ao modo das nossas quintãs, as quais eles chamam duções, onde em certos tempos do ano costumavam levar suas mulheres a folgar. E posto que os povos celates era gente baixa e vil, e os naturais da terra meios salvages, Paramifora e seu filho Xaquem Dar-xá, por os acharem fiéis amigos em seus trabalhos, ou (por melhor dizer) nos males que com seu favor cometeram, e principalmente por se aproveitar muito deles na povoação e nobrecimento de Malaca, lhe deram nobreza, casando com os mais nobres dos jaus que ele trouxe da Jaua; e destes celates e malaios naturais vem todolos mandaris, que ora são os fidalgos de Malaca, em modo de privilégio dos reis que ao diante foram, como a primeiros povoadores daquela cidade, o qual título de rei começou neste Xaquem Dar-xá. Porque, falecido o Rei de Sião, que seu pai temia, com armadas de navios de remo a que os celates eram mui costumados, começou de obrigar as naus que navegavam per aquele estreito dantre Malaca e a Ilha Samatra, que não fossem adiante a Cingapura, e as de Levante que viessem ali fazer com estas de Ponente suas comutações de mercadorias, segundo seu antigo uso; com a qual força Cingapura começou de se despovoar de mercadores, vindo habitar Malaca. El-Rei de Sião, sabendo parte do caso, em que ele perdia grande rendimento, por aquela sua cidade ser escala geral de Levante e Ponente, começou 251 de mover guerra a este Xaquem Dar-xá. Finalmente, vendo ele que, pera viver seguro, lhe convinha fazer-se vassalo del-Rei de Sião e governar a terra em seu nome, mandou-lhe sobre isso seus embaixadores, pedindo-lhe que, 253 porquanto toda aquela costa era erma e sem povoações, e seu pai e ele tinham povoada aquela cidade, a qual (segundo a comum opinião) estava situada em melhor lugar pera navegação de Levante a Ponente que a cidade Cingapura, lhe aprouvesse de o confirmar naquele estado, limitando-lhe demarcação de terra, a qual ele queria governar em seu nome, e como vassalo pagar-lhe outro tanto tributo como ele havia dos rendimentos de Cingapura. Aceitada esta obediência per el-Rei de Sião, limitou-lhe por comarca daquele estado em que o constituiu por Rei, começando do Oriente em Cingapura, entrando nisso as Ilhas de Sabão e Bintão, té υa ilha chamada Pulocambilão, que é ao Ponente de Malaca obra de quorenta léguas, com a qual demarcação ele ficou senhor por costa do mar té noventa léguas, que serão de Cingapura té Pulocambilão. E posto que este novo estado de Malaca desfez o outro tam antigo de Cingapura, a principal causa foram o curso dos temporais, com que totalmente a cidade se despovoou, porque, do mês de Setembro em diante, té entrada de Dezembro, cursam os ventos Ponente e Noroeste, que entram per este canal que faz a Ilha Samatra e a costa da terra firme de Malaca. Peró não passam do mar do Ponente, a que Ptolomeu chama a Enseada Sabárica, à outra Perimúlica do Levante, mas morrem os de cá obra de quorenta léguas de Malaca, junto de υa ilha a que os nossos chamam a Polvoreira e os

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da terra Barala, que quere dizer Casa de Deus, por razão de um antigo templo que ali esteve. E com estes tais tempos navegam pera lá de toda a Índia e do Queli, e isto da fim de Agosto até a fim de Outubro, porque, como vem Novembro, correm Nortes e Nordestes té a entrada de Abril, com os quais vão de Bengala, Pegu, Tanaçari e de toda aquela costa, e servem também àqueles que vem de Malaca pera a Índia. Com estes mesmos tempos que cursam Dezembro e Janeiro na outra costa da terra de Malaca, da banda do Levante, vem dos Reinos da China, Choampá, Camboja, Sião e das Ilhas de Bornéu, com os quais chegam ao Canal de Malaca per todo Março e Abril, mas não passam de Cingapura por acalmarem ali, e com eles saem de Malaca em modo de embate pera toda a Jaua, Timor, Maluco. E de Maio té a fim de Agosto, pela maior parte cursam os ventos Sul-Sueste, que servem pera vir de Sunda, 79v e de tanto número de ilhas como estão naquelas partes, com os quais chegam té o canal de Polimbão, que é o derradeiro porto de Samatra, quanto a nós os de Ponente, e primeiro aos de Levante; posto que algυas vezes são tam tesos que chegam quási té Malaca, mas geralmente morrem 252 neste canal, antes de chegar a ela. Porém sempre de Samatra, Ilhas de Bintão e Sabão, vezinhas a ela, per entre as quais vem o canal da navegação da parte Oriental, serve vento e maré que leva os navios té Malaca. De maneira que ambas estas navegações, assi da parte abaixo do vento a que eles chamam Ponente, como acima do vento, que é a de Levante, ainda que as monções gerais acalmem quorenta e cinquenta léguas ante de chegar à cidade de Malaca, que está situada no meio daquele 254 estreito, basta pera tomarem o seu porto marés e ventos terrenhos de ambas as terras. E como estes temporais do ano não serviam tanto a proveito dos navegantes quando Cingapura prosperava, de duas faziam υa, e esta era a mais comum: todolos que navegavam da parte do Ponente iam per fora da Ilha Samatra, entrando per o canal que se faz entre ela e a Jaua, ou entravam per entre ela e a terra de Malaca. E por lhe os tempos não servirem todo aquele estreito, té vasarem da outra parte em Cingapura, forçadamente invernavam no meio dele; e per qualquer maneira que fosse, era esta viagem, assi per fora como per dentro da Ilha Samatra, tam vagarosa, que não tornavam a suas terras em menos tempo que dous anos. O qual espaço de tempo também haviam mister os que navegavam o mar de Levante, porque haviam de esperar em Cingapura que fossem os de Ponente com suas mercadorias pera fazerem suas mutuações. E porque geralmente todolos que navegavam per fora da Ilha, por ser viagem mais segura ainda que comprida, estavam seguros de invernar como indo por dentro, ao modo que ora vemos os nossos navegantes daqui pera a Índia, que quando partem tarde, vão per fora da Ilha de S. Lourenço por terem os tempos mais largos deste costume, com algυas fábulas que a Antiguidade sempre tem, assi como os perigos de Cila e Caribdes no trânsito de Sicília, bancos de Frandes entre a terra firme e a Ilha Ingraterra, ou os Baixos de Ceilão entre esta ilha e a terra do Cabo Comori, haveria openião na Índia não ter aquele mar trânsito de Ponente a Levante, donde os gregos e Ptolomeu chamariam àquela terra Quersoneso. Peró povoada a cidade Malaca em meio daquele estreito, que pelas razões acima deu fácil navegação pera se nela fazerem brevemente as comutações e comércio dos de Ponente e Levante, ficou manifesto este caminho, e havida a terra de Samatra por ilha, e não quersoneso. Com a facelidade das quais navegações em breve tempo assi engrossou a cidade Malaca em trato e cresceu em povoação, por ser escala de Levante e Ponente daquele grande mundo, que per comércio naquelas partes era a mais requíssima. O sítio da qual, se não fora tam apaulado e doentio aos estrangeiros, e mais tam vezinha da Linha Equinocial, que está dela pouco mais de dous graus contra o Norte, fora υa das mais populosas e de maior 253 polícia em edefícios de todo o Mundo. A grandeza da qual deu ânimo aos reis que sucederam a este

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Xaquem Dar-xá, que pouco e pouco começaram de levantar a obediência aos Reis de Sião, principalmente depois que estes de Malaca induzidos por os mouros párseos e guzarates (que ali vieram residir por causa do comércio), de gentios os converteram à seita de Mahamede. Da qual conversão, por ali concorreram várias nações, começou lavrar esta enfernal peste pela vezinhança de Malaca, assi como em Samatra, Jaua, e outras ilhas em torno destas. Finalmente, com a potência de tanta riqueza 255 e favor dos mouros, que estes reis de Malaca tinham, totalmente desobedeceram a el-Rei de Sião; e ao tempo que Diogo Lopes de Sequeira (como atrás escrevemos) veo ter a esta cidade, haveria nove anos que el-Rei de Sião tinha mandado υa grossa armada sobre ela, reinando Mahamede, o qual foi o derradeiro dos reis daquela cidade, que de todo lhe levantou a obediência. El-Rei de Sião, vista a desobediência deste Mahamede, posto que havia já anos que a dissimulava por andar ocupado em guerra dos povos cucos, que per cima do Norte vem cercando todo o seu reino, como se viu desocupado desta guerra, mandou fazer υa armada de até duzentas velas, quási todas lanchares e calaluzes, que são navios de remo, em que deziam vir perto de seis mil homens, da qual armada era Capitão-mor o Poioá da cidade Lugor, que é como Viso-Rei no modo do ofício 80 e governo. Ao qual Poioá este Rei de Malaca e os governadores de Patane, Calantão, Pão e outros de toda aquela costa eram obrigados acudir com os tributos que cada ano davam a el-Rei de Sião, e a ele se pedia conta deles; e por esta razão, como cousa de sua governança, vinha por governador desta armada. Mas como da cidade Lugor a Malaca é caminho de duzentas léguas, sempre ao longo da costa, a qual é mui sujeita a trovoadas e temporais, ante de chegar a Malaca lhe deu um tempo, com que esta frota se derramou, vindo ter alguns navios dela a υa ilha chamada Puloçapata, três léguas de Malaca. El-Rei Mahamede, como soube que estes navios eram ali chegados, mandou-lhe muito refresco, mostrando estar à obediência del-Rei como escravo que era seu; com as quais simulações de palavras estes capitães dos navios, sem esperar seu Capitão-mor, se foram a Malaca em companhia dos que lhe trouxeram o refresco, espedindo primeiro dous calaluzes com recado ao Poioá, per que lhe faziam saber como Mahamede somente da vista deles estava submetido a tudo o que ele mandasse; portanto que viesse de vagar a seu prazer, que eles o iam esperar a Malaca. Peró El-Rei Mahamede os mandou hospedar mui diferente do que eles cuidavam, porque, recebidos o dia de sua chegada com a face alegre, foram repartidos per todolos moradores de Malaca, com recado que cada um hospedasse os que lhe coubessem em sorte - a 254 qual sorte foi não ficar aquela noite nenhum com vida. E como a cousa estava cuidada pera aquele fim, logo de noite, ante que em os seus navios houvesse remor deste feito pera irem avisar o Poioá, se meteu muita gente vestida ao modo dos siames, indo ao encontro deles; o qual, como ainda não vinha com toda sua armada junta, e a simulação destes lhe fez parecer serem os seus, em mui breve foi desbaratada sua frota, e ele escapou à força de remo. Quando el-Rei de Sião soube parte desta maldade de Mahamede, com grande indinação e pressa mandou fazer prestes outra armada, e per terra grande exército, em que entravam quatrocentos elefantes; e assi per mar como na terra haveria trinta mil homens. E porque na cidade de Pão estava por governador um primo deste Rei Mahamede, que com seu favor também se 256 tinha rebelado a el-Rei de Sião, mandou ele a este Poioá, que de caminho com a armada em que ele havia de vir, e per terra o outro capitão, tomassem este revel e lho levassem preso, e em seu lugar pusesse o capitão que melhor o fizesse naquele feito. O qual negócio o Poioá cometeu mui bem com obra de três mil homens com que se achou, apertando tanto o governador de Pão, que o tinha cercado em υa fortaleza, donde ele movia alguns

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partidos pera se entregar, os quais o Poioá ia entretendo, té chegar o exército per terra ou a outra parte de sua frota; mas parece que ainda não era chegada a hora contra a del-Rei Mahamede, ou (por melhor dizer) tinha ordenado que o castigo de suas culpas fosse dado per nós, e não pelos siames. Porque, vindo o exército per terra um pouco derramado, como por sua própria terra, acertou de vir ter υa parte dele à cidade Calantão, que está entre Patane e Pão; e como a gente da guerra é desmandada e solta, e principalmente em ausência de seu Capitão-mor, começou de fazer algυas forças em roubar e forçar mulheres, entre as quais foram duas mui nobres, casadas com dous filhos do governador da cidade. Os quais, como naquele instante da força feita a suas mulheres não poderam acudir, dessimulada a injúria, secretamente convocando mais de quinhentos homens, a maior parte dos quais também eram injuriados, deram de noite nos siames, em que mataram grande número deles. Feito este estrago nos que acharam pela cidade, seguindo o caminho de Pão em busca do outro ramo de gente que ia já diante desta, foram matando neles té chegar à cidade Pão, onde o governador estava cercado do Poioá de Lugor, que (como dissemos) estava esperando por estes seus que ficavan mortos. Finalmente, entrados estes de noite com o governador, cercado, a quem deram conta do que leixavam feito, sem mais detença todos em um corpo, ante que o Poioá fosse avisado, deram nele, com que o fizeram recolher aos navios, ficando-lhe em terra a maior parte da gente morta, e parte dos navios 255 tomados. O qual, com esta tam grande perda, e mais com a nova da outra per terra, leixou a via de Malaca, tornando atrás per onde viera a recolher e ordenar a gente que vinha per terra, por se não perder de todo. El-Rei de Sião, depois que per ele soube as causas de tanto dano, e que a principal causa era Mahamede, mandou mais de vagar fazer dous 80v exércitos, um que havia de vir per este caminho de Calantão, e per mar armada grossa, e outro per estoutra costa de Tenaçari e Tavai, que é ao Ponente deste porto, por toda aquela terra ser sua, e per mar também outra armada, pera totalmente destruir a este Rei Mahamede. Parte dos quais aparatos viram em a cidade Odiá, metrópoli deste reino de Sião, António de Miranda de Azevedo e Duarte Coelho, quando Afonso de Albuquerque, depois da tomada de Malaca sobre este negócio, os mandou com υa embaixada a este Rei de Sião, que estava nesta sua metrópoli (como adiante se verá), per onde cessaram estes aparatos de vingança. 257 El-Rei Mahamede de Malaca, como tinha per esta via indinado el-Rei de Sião e a nós pelo modo que teve com Diogo Lopes de Sequeira, e ante disto por reinar mortos a um seu irmão e um primo, e também a sua própria mulher; com estes e outros males tinha a vida que os tiranos tem andarem com assombramentos e suspeitas: tudo temia, tudo receava e finalmente tudo eram cautelas e resguardos, temendo o dia que sobre ele havia de vir o juízo de Deus. Com o qual temor manhosamente trazia enganados por se ajudar deles em sua necessidades a el-Rei de Pão, seu parente, e a el-Rei de Linga, e a outros príncipes seus vezinhos com recados e promessas que lhe queria dar υa filha por mulher, sabendo que cada um a desejava por razão do dote, e mais ser sua filha; de maneira que, quando Afonso de Albuquerque chegou a Malaca, estava nela el-Rei de Pão vindo a este negócio do casamento. Pera o qual auto tinha feita υa grande casa de madeira sobre trinta rodas, a qual, toldada e paramentada de panos de seda, havia de ser levada per elefantes pela cidade com os noivos e as principais pessoas dentro por mais solenizar esta festa; e porém ele ia dilatando estas vodas quanto podia, afim de ter consigo muita gente, como homem a que o temor dava suspeita, que mui cedo havia mister todas estas ajudas. Além destes aparatos das vodas, tinha dentro na cidade oito mil peças de artelharia; porque, como ela estava toda ao longo do mar, estendida à maneira de υa touca per comprimento de légua, e era toda de madeira sem muro nem cava, somente a defensão dos homens, como geralmente se vê

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nas grandes povoações, provia-se deste grã número de peças de artelharia pera a pôr toda ao longo da ribeira, se algυa armada ali fosse ter, principalmente a nossa, que ele mais temia que outra algυa, por as maravilhas que vira fazer a artelharia que Diogo Lopes de Sequeira levava. Porém 256 a mais desta sua artelharia tinha em seus almazéns com grande cópia de munições, e a outra ordinariamente estava em certos lugares, onde a povoação da cidade era mais basta, que os cabos dela ficavam em modo de arrabalde. A um, da parte de Levante, chamavam Ilher, e a outro, do Ponente, Upi, nos quais viviam dous jaus, homens mui grossos em fazenda, trato e grande família, e tanta que, por razão de não poderem caber no corpo da cidade, aceitaram viver em baixo per si. Per meio da qual (como já escrevemos), entrava um rio à maneira de esteiro de água salgada, que lá bem dentro recebia algυa água doce que vinha dos alagadiços e brejos do sertão, e quási onde este rio se metia no mar estava υa ponte mui grande de grossa madeira, per a qual se servia a cidade do bairro onde el-Rei vivia, que era contra Ilher, e ali estava também sua mesquita de pedra e cal, e per derrodor algυas casas da gente mais nobre. A causa de a povoação desta cidade jazer toda ao longo do mar, era porque, além de todos se servirem dele em seus tratos e comércio pera carregar e descarregar a menos custo sua fazenda, a mesma terra em si era per dentro tam alagadiça e coberta de arvoredo, que quási com esta espessura queria vir fechar com a ribeira do mar. E não somente o sítio da cidade em si 258 era alagadiço, mas ainda todalas terras daquela região, por serem vezinhas à Linha Equinocial, clima que naturalmente é quente e húmida, e tam fértil na criação das cousas, que causava ser mui doentia, e mal povoada per dentro. Isto em tanta maneira que, começando da ponta de Cingapura té Pulocambilão, que é o comprimento deste reino de Malaca (que, como dissemos, podem ser noventa léguas), não há outra povoação que tenha nome senão esta cidade Malaca, somente alguns portos habitação de pescadores, e per dentro mui poucas aldeas. E ainda a mais desta mísera gente dorme em cima das mais altas árvores que acham, porque de altura de vinte palmos os pream de pulo os tigres; e se algυa cousa salva a esta pobre gente deles, é fogueiras de fogo de noite, que eles muito temem. Dos quais há tam grande número, que 81 muitos entram de noite a prear na cidade; e já aconteceu, depois que os nossos a tomaram, saltar um tigre em um quintal cercado de madeira bem alta, e levou um tronco de madeira com três escravos que estavam presos nele, com os quais saltou de claro em claro per cima da cerca. Assi que estes grandes arvoredos, na espessura dos quais se cria muita diversidade de alimárias nocivas, faz que a terra seja mal povoada e agricultada; somente pegado com Malaca, naquele campo Beitão, tem os mandaris e gente nobre as quintas de seu prazer, a que eles chamam duções (como dissemos). Porque esta gente malaia, como toda vive de trato e não de outro uso, em o negócio de recrear a vida é a gente mais mimosa daquelas partes, e a mais 257 altiva em openião: tudo é fidalguia, e tam vã nesta parte, que se não acha um homem natural malaio, por pobre que seja, que queira levar às costas cousa própria ou alhea, por muito que lhe dem por isso; todo o serviço deles é per escravos. O exercício em que gastam a vida e fazenda são doçuras, música, amores, vestidos e tratamento de sua pessoa, e sobretudo grande openião de cavaleiros, a qual os faz tam atrevidos em cometer, que não temem a morte por ficar deles memória daquele feito; porém entre eles se traz em provérbio: Malaios namorados, jaus cavaleiros - e assi é, na verdade. As armas que usam são uns crises de dous palmos e meio até três de comprido, direitos, de dous gumes, e com eles arcos de frechas, azagaias de arremesso, a que chamam zargunchos, zervatanas que lançam υa frecha mui pequena iscada com erva tam fina, que como venta sangue, logo derriba; porém se primeiro passa per o vestido, parece que alimpa ali parte da peçonha, porque vai já mais branda; e estas zervatanas tomaram dos jaus. Tem dous modos de escudos com que se cobrem - um que parece pavês e outro mais pequeno, e somente com estas armas é gente mui

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determinada em cometer e muito ligeira no auto da peleja, e todos pelejam em magotes de capitanias, 259 cada capitão per si com sua bandeira, tudo de openião por se estremar - e que o vejam. Fora deste auto de pelejar, tudo são rabolarias e openião de si, mui pouco fiéis uns aos outros acerca das mulheres, porque também elas dão azo pera isso, por os mimos e doçuras com que se tratam entre si. Acerca da mercadoria é gente mui esperta e arteficiosa pera seu proveito, ca ordinariamente tratam com estas nações - jaus, siames, régus, bengalas, quelis, malabares, guzarates, párseos, arábios e outras muitas nações - que os tem feito mui sagazes, por assi resedirem e a cidade ser populosa com as naus que concorrem a ela, em que também soem vir os povos chis, léquios, luções e outros daquele Oriente, trazendo todos tanta riqueza oriental e ocidental, que parecia um centro a que concorria todo o natural que a terra criava e arteficial da mecânica dos homens; de maneira que, sendo a terra em si estérele, per a comutação que se ali fazia, era mais abastada de todas, que as próprias regiões donde elas vinham. E posto que ali havia grande cópia de todolos metais, assi como ouro de Samatra, sua vezinha, estanho da mesma terra, prata de Sião, cobre da China e ferro de muitas partes derredor dela, por tudo se ali ajuntar em modo de mercadoria; e muitos em levar qualquer cousa destas, por a não haver em sua terra, ganhavam regularmente a trinta e quorenta por cento, ante faziam seu emprego em especearia, drogaria aromática, cheiros, seda e mil géneros de polícias, por ganharem dobrado. A qual grossura do trato durou mui corrente té a nossa entrada na Índia, que os mouros arábios, párseos e guzarates, temendo nossas armadas, 258 não ousavam tam geralmente cometer este caminho; e se algυa nau sua lá ia ter, era furtada da nossa vista, o que el-Rei Mahamede de Malaca logo começou sentir na perda dos direitos que levava deste comércio que se ali fazia. O qual, como era costumado com o grande número das naus ter cada ano grande rendimento, vendo quanto perdia por razão das poucas que já lá iam com este temor, parece que nestas poucas queria recompensar a perda, fazendo tantos roubos e tiranias aos mercadores residentes na cidade, que começaram de a despejar. Porque também, sabendo eles o que era feito a Diogo Lopes de Sequeira, e que nós éramos senhores do mar e não sofríamos ofensa, receavam que algυa armada nossa lhe fosse pedir conta deste feito. A qual Afonso de Albuquerque lhe foi tomar com a frota em que partiu de Cochi, como veremos neste seguinte capítulo.

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258 81v 260 Capítulo II. Do que Afonso de Albuquerque passou no caminho que fez de Cochi té a Ilha Samatra, onde foi visitado dos Reis de Pedir e Pacém; e do que mais fez té chegar a Malaca. Afonso de Albuquerque, partido de Cochi com sua frota toda em um corpo, tanto que foi no golfão que jaz entre a Ilha Ceilão e as a que chamam de Gamispola, deu-lhe um temporal, com que o mar lhe comeu a galé capitão Simão Martins; mas aprouve a Deus que se salvou toda a gente, por lhe logo acudir Fernão Peres. Em refeição da qual nesta travessa tomou cinco naus de mouros guzarates, que faziam sua viagem a Malaca e a Samatra, na qual ilha foi o primeiro porto que tomou em υa cidade per nome Pedir, cabeça do reino assi chamado, dos muitos que há nesta grande Ilha Samatra, dos quais e dela faremos relação em outra parte. Chegado Afonso de Albuquerque a este porto, por a cidade ser per um rio acima, em que não podiam entrar naus grossas, veo a ele υa lanchara remada, em que vinham seis mouros honrados da terra e um português, per o qual o Rei dela o mandava visitar com ofertas do que houvesse mister para provisão da frota, como quem entendia o fim daquela sua viagem a Malaca. Do qual português, que se chamava João Viegas, Afonso de Albuquerque soube ser ele um dos vinte e quatro homens que ficaram cativos em Malaca do tempo de Diogo Lopes de Sequeira; e que ele e outros oito homens houveram à mão υa lanchara e se passaram àquela ilha com esperança de se salvar; a qual soltura e fugida sua fora per indústria de υa filha do senhor em cujo poder eles estavam, que trouxera consigo. E vindo nesta lanchara defronte de Pacém, que é υa cidade cabeça do reino assi chamado, que estava adiante, saíram a eles certas 259 manchuas, em que vinham mouros da terra, com que houveram peleja, na qual foi morto um João Dias, criado de Diogo Lopes de Sequeira, e ele com os outros mal feridos vieram ter àquele porto de Pedir, onde foram mui bem recebidos del-Rei, e os mandou curar. O qual gasalhado a ele parecia ser-lhe feito, por eles dizerem que, tanto que o Capitão-mor da Índia soubesse o que se fizera em Malaca a Diogo Lopes, sem dúvida não tardaria muito a vir tomar vingança daquela traição. Afonso de Albuquerque, depois que se enformou mui particularmente de algυas cousas deste João Viegas, per ele respondeu a el-Rei, dando-lhe agradecimentos de seus oferecimentos, e também do gasalhado que fez a ele, João Viegas, e aos outros portugueses; e em dous dias que ali esteve, foi visitado del-Rei com algυas cousas que lhe mandou de refresco, e ele lhe concedeu a paz que Diogo Lopes tinha com ele assentada. E porque Afonso de Albuquerque soube per João Viegas que estava ali um mouro honrado de 261 Malaca, per nome Nehodá Beguea, que fora um dos principais que ordenaram a traição a Diogo Lopes, pediu ele a el-Rei de Pedir que lho mandasse entregar, o que el-Rei concedeu de palavra; mas per outra parte deu-lhe de mão em um navio de remo, e que fosse levar recado a el-Rei de Malaca da ida dele, Afonso de Albuquerque. O qual recado deu a este Nehodá Beguea mais por lhe fazer bem pola amizade que com ele tinha, que por amor del-Rei, mandando-lhe pedir per sua carta que lhe perdoasse o escândalo que dele tinha, porque não estava em tempo pera trazer seus vassalos fora da sua graça, e mais este sendo pessoa tam principal. A causa do qual escândalo que el-Rei tinha dele, era porque havia pouco tempo que mandara matar o seu governador Bendara, por se dizer que andava copilando υa traição pera o matar e se levantar com o reino, e que este Nehodá era na traição; e à força de remo veo fugindo da fúria del-Rei, e se acolheu a este de Pedir, por ser grande seu amigo. Vendo Afonso de Albuquerque que el-Rei lhe não entregava este mouro, posto que não

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soube logo destes seus artefícios, como era costumado mouro, posto que não soube logo destes seus artefícios, como era costumado a dissimular palavras de mouros, não quis esperar mais recados, nem menos os partidos que lhe movia, prometendo de lhe dar vinte cinco mil cruzados polas cinco naus que tomara dos guzarates. Partido deste porto de Pedir, chegou ao de Pacém, onde também foi visitado del-Rei, mandando-se desculpar da culpa que lhe ele punha na morte do português e ferimento dos outros da companhia de João Viegas; o que ele recebeu brandamente, porque não se queria ir detendo na satisfação destas cousas, esperando que, à tornada de Malaca per aqueles portos, faria υa correição de suas culpas. Espedido 82 del-Rei de Pacém, peró que ele muito desejou de o ter ali um par de dias com festas e refrescos por causa do que logo veremos, como já começava entrar na paragem dos baixos, segundo lhe deziam os mouros pilotos que levava, mandou ir diante todolos navios 260 pequenos, uns ao longo da costa da ilha, e outros mais ao mar por resguardo das outras naus de maior porte. Indo assi nesta ordenança, foi Aires Pereira de Berredo, capitão de υa taforea pequena, dar com υa pangajoa, que se ia furtando ao longo da terra com temor das naus, na qual ia Nehodá Beguea, o qual não somente defendeu a entrada da sua pangajoa, mas ainda, como homem de pessoa, entrou à força da espada no batel de Aires Pereira, e assi apertou com ele, que não ficou algum do batel que não fosse bem sangrado dele, e ele não de algum; té que, mais cansado que vencido, meio atassalhado caiu, onde foi tomado às mãos, sem haver remédio de morrer nem de verter sangue per quantas feridas tinha. Alguns dos marinheiros, como ele vinha bem tratado no vestido, começando de o esbulhar, acertaram de lhe achar υa manilha de osso encastoada em ouro da face de cima, e osso da banda da carne do braço donde a ele trazia, tirada a qual, se vasou todo em sangue, e espirou. Espantados os nossos 262 de tam nova cousa, souberam dos mouros que ali tomaram, que aquele osso era de υa alimária que havia na Jaua, a que eles chamavam cabal, cousa mui estimada entre os príncipes daquelas partes, o qual tinha virtude de reter o sangue da maneira que eles viam. Aires Pereira, mais contente com a manilha que com a vitória, a levou a Afonso de Albuquerque, que ele estimou em muito, e depois a perdeu com outras muitas jóias à tornada de Malaca em a nau Frol de la Mar, como se adiante verá. Passada esta afronta de Aires Pereira, que Afonso de Albuquerque tomou per sinal de vitória que esperava ter de Malaca, pois já de caminho per tal acerto tomava vingança daquele mouro autor do dano que os nossos nela receberam, foi com sua frota naquela ordem que dante levava; té que, sendo tanto avante como a ilha a que os nossos chamam a Polvoreira, e os da terra Barelá, que será de Malaca quorenta léguas, béspora de S. João Bautista, houveram vista de um junco, nau que seria de seiscentos tonéis, ao qual logo foram demandar os batéis das naus de D. João de Lima, Dinis Fernandes, Nuno Vaz de Castelo Branco, e Afonso Pessoa na sua fusta. O junco não somente fez pouca conta dos requerimentos que lhe eles faziam que amainasse, mas ainda de se eles entremeterem a querer subir acima, espedindo-os de si com muito arremesso que fizeram de cima, de que Afonso Pessoa levou υa coixa atravessada com um zarguncho. Pero de Alpoém, que ia na esteira do junco, quando o viu espedir de si os batéis, quis abalroar; mas em prepassando per ele, teveram os mouros tanta indústria no marear das velas, que ficou Pero de Alpoém contra-vento sem poder tornar a ele. Afonso de Albuquerque, como isto era sobre a noite, tanto que amanheceu, por a sua nau Frol de la Mar ser grande, quis abalroar o junco; na qual chegada com a artelharia lhe fez tanto dano, que 261 lhe matou quorenta homens de trezentos que trazia; os quais, como eram industriosos na peleja do

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mar, posesse fogo ao junco, com que fizeram afastar Afonso de Albuquerque, desaferrando-se dele a tempo que já a labareda do fogo lambia pelos castelos da sua nau. Do qual perigo Afonso de Albuquerque escapou, porque, como sabia que os mouros naquelas partes usavam deste artefício, levava o seu batel esquipado pera isso, e a força de remo se afastou. Os mouros, tanto que o viram afastado, a grã pressa começaram apagar o fogo que ardia em um certo óleo de terra, de que em Pedir há grande quantidade, em υa fonte que mana, ao qual óleo os mouros chamam napta, cousa acerca dos médicos mui notável, por ser excelente pera algυas enfermidades, de que nós houvemos algum, e temos experiência ser mui apropriado pera cousas de frialdade e compressão de nervos. Finalmente, por não gastarmos tanto tempo, quanto o junco se defendeu, 263 ele deu que fazer dous dias aos nossos, donde depois entre eles se chamava o Junco Bravo; e per derradeiro mandou dizer per Fernão Peres ao capitão que lhe perdoasse, que não sabia ser ele a pessoa contra quem se defendia, e que lhe aprouvesse de o receber não como imigo, mas como vassalo del-Rei de Portugal, na esperança da proteição e emparo do qual ele se entregava. Na qual esperança ele se não enganou; ca, sabendo Afonso de Albuquerque sua fortuna, ele o consolou, oferecendo-se a o restituir em seu estado;, e segundo este príncipe, 82v per nome Geinal, lhe contou, ele era o verdadeiro Rei de Pacém, e não aquele que estava em posse do reino, mas seu parente, e fora governador del-Rei seu pai dele, Geinal. No qual tempo, por seu pai ser homem de muita idade, este governador, no modo do governo, se fez tirano, e ele, Geinal, enquanto foi moço, o sofreu; peró, como teve idade e quis entender em suas cousas, estava já o tirano tam senhor da terra, que em duas batalhas ficou ele, Geinal, desbaratado; e, vendo-se sem favor dos naturais e sem forças para resestir a este tirano, com alguns que o quiseram seguir ia à Jaua a alguns príncipes da sua linhagem, que o quisessem ajudar na restituição de seu estado. Afonso de Albuquerque, tornando a seu caminho, não tardou muito que não tomaram dous juncos: o primeiro tomou D. João de Lima, Simão de Miranda e Simão Afonso, por lhe caírem na esteira em que ele ia pera Malaca, onde se houve mui grossa presa; e outro mais adiante tomou Nuno Vaz, a gente do qual, que vinha de Malaca, se salvou em terra em um batel por ser já de noite; e como o mais que trazia era ouro, salvaram quási todo; somente algum, que se achou com outro esbulho de fazenda que traziam pera Pacém. E de alguns mouros que se tomaram neste, soube Afonso de Albuquerque como Rui de Araújo e parte dos cativos que ficaram com ele eram vivos; e assi o estado da terra e o 262 grande temor que lá havia daquela sua armada, posto que à partida deles ainda não havia notícia dela. Afonso de Albuquerque, assi pelo que soube destes mouros, como por começar já entrar nos termos de Malaca, e não sabia se el-Rei, por andar temorizado, sabendo da sua ida, mandaria ao caminho entre aqueles baixos a o receber com algυas lancharas por lhe derrabar alguns navios mancos da vela que levava, começou recolher e ajuntar toda sua frota, enfiando as velas υas nas esteiras das outras por razão do canal, sem lhe acontecer algum daqueles grandes perigos, que os mouros fabulavam haver naqueles baixos de Capaciá, como nos bancos do canal de Frandes ou perigos de Cila e Caribdes, entre Sicília e Nápoles. Com a qual frota toda em um corpo ancorou no porto de Malaca o primeiro dia de Julho do ano de quinhentos e onze, junto de υa ilheta que 264 era pouso das naus dos chis, onde achou três juncos deles. A cidade, posto que em as naus que Diogo Lopes de Sequeira levou tinham visto a feição dos nossos e a mareagem delas, todavia, quando viram o grande número de velas, as bandeiras, estandartes, trombetas e pompa da frota, e sobretudo a trovoada da artelharia, que durou per espaço de meia hora, assi como lhe foi triste cousa a vista das velas, assi a sua música, e muito mais triste a imaginação em que havia de parar aquele

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tam temeroso espectáculo a eles. Os nossos também, ainda que não viam grande majestade de edefícios de pedra e cal, muros, torres, ou algυa outra defensão e fermosura das cidades de Espanha, viam υa povoação de comprimento de υa boa légua, coalhada a sua ribeira de muitas naus de carga, e outras velas de carreto e serviço dela. E se a povoação era quási toda da madeira, e as casas cobertas de ola (como geralmente se usa naquelas partes), também viam outras torres, muros e arquetecturas de melhor parecer e defensão, que era grosso povo, que enchia todolos lugares altos e baixos, que estavam em vista da ribeira. Assi que, se eles em nós viam que temer, os nossos em ver a grandeza da cidade e o grande número de povo, a multidão das naus e navios, também tinham que cuidar, posto que, pela grã fama da sua riqueza, tudo se convertia em desejo de a conquistar. Afonso de Albuquerque, depois que repousou da sua primeira chegada, notando o sítio e postura da cidade, viu que entre aquele grande número de naus e navios, algυas que eram de carga, a que eles chamam juncos, se ordenavam como quem se queria partir e leixar o porto, temendo poder receber algum dano dele. Pera segurar a qual suspeita e mostrar ser senhor do mar, sem temer o grande número deles, mandou correr per todos em alta voz um mandado seu, que nenhυa nau de mercador estrangeiro se movesse nem partisse sem sua licença; ca ele era Capitão-mor del-Rei de Portugal em todas aquelas 263 partes da Índia, e vinha àquela cidade buscar certos portugueses, que ali ficaram de υas naus doutro seu capitão, portanto eles podiam estar seguros, té se ele ver com el-Rei daquela cidade. Os chis, cujos eram os juncos que estavam junto da ilha, onde ele, Afonso de Albuquerque, foi surgir, quando ouviram esta noteficação, posto que 83 não fossem dos que fizeram este movimento pera se partir, como estavam escandalizados del-Rei Mahamede em alguns maus pagamentos de fazenda que lhe tomou, vieram os principais ver Afonso de Albuquerque, por entenderem que aquela sua vinda era a fim do escândalo que o mesmo Mahamede tinha feito a Diogo Lopes, por ser já cousa mui notória entre todolos mercadores que depois ali vieram. Aos quais Afonso de Albuquerque fez gasalhado, e folgou muito de praticar com eles pola fama que tinha da potência 265 do seu Rei, grandeza da terra, polícia e riquezas dela, e no tratamento das pessoas deles viu parte do que se dizia. E por sinal do contentamento que tinha de os ver, mandou-lhe dar algυas peças, com que se espediram dele mui alegres, principalmente polas ofertas que lhe Afonso de Albuquerque fez pera restituição do que lhe el-Rei não pagava, segundo lhe eles contaram. Veo também a ele por causa desta notificação um mouro guzarate de nação, que ali estava com υa grande e rica nau, que disse ser de Melique-Gupi, senhor de Baroche, aquele grande competidor de Melique-Iaz; ao qual mouro, capitão e feitor da nau, por amizade que Melique-Gupi, seu senhor, mostrava ter a nossas cousas, e seguro que Afonso de Albuquerque tinha dado pera suas naus navegarem (como atrás escrevemos), ele lhe fez honra, oferecendo-se a tudo o que houvesse mister dele.

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263 83 265 Capítulo III. Como Afonso de Albuquerque foi visitado del-Rei de Malaca; e das diferenças que per recados entre eles houve sobre a entrega de Rui de Araújo e dos outros cativos, té que vieram em rompimento de guerra. Ao seguinte dia, sendo já boa parte dele passado, vieram ter à nau de Afonso de Albuquerque duas manchuas remadas, em que vinha algυa gente luzida em companhia de um mouro dos principais da terra, chamado Tuão Bandão, que vinha ver Afonso de Albuquerque per um modo simulado. Ao qual mouro ele mandou receber a bordo da nau per alguns cavaleiros, leixando-se estar assentado em υa cadeira de espaldas guarnecida de seda e ouro, e todolos capitães da frota assentados em bancos cobertos de alcatifas postos per ordem, todos vestidos de paz e de guerra, e outra gente de armas em pé em boa ordenança, com veneração à pessoa dele, Capitão-mor. O qual, como havia muito tempo que não fazia a barba, polo dito que ele trazia,- que havia de ser em Ormuz sobre o corpo morto de Coge Atar 264 e por razão de sua idade, era muito alva, e ele nestes autos, por temorizar os mouros, mostrava-se mui pomposo no trajo, no assento e nos autos de sua pessoa, leixou-se estar com aquela majestade, té que o mouro fez sua cortesia, a que eles chamam sumbaia, zumbando todo o corpo té poerem o rosto nos giolhos e se tornam a endereitar. Afonso de Albuquerque, erguido em pé, o recebeu com gasalhado, e tornando-se assentar, lhe mandou pôr υas almofadas de seda, em que se assentasse; e dadas as saudações que lhe el-Rei de Malaca per ele mandava, 266 começou Tuão Bandão praticar com ele na desposição de sua pessoa, e se trouxera boa viagem, sem tocar na causa dela, nem perguntar a que era sua vinda. Vendo Afonso de Albuquerque palavras tam derramadas e fora do seu intento, e a maneira das cautelas do mouro com υa frieza da sua vinda, falando nisso como cousa menos principal e dando ainda a entender que el-Rei o não mandava muito de propósito que o viesse ver, somente que ele, como oficial seu, vinha saber dele se queria algυa mercadoria, a qual el-Rei lhe mandaria logo dar, por ele ser Capitão-mor del-Rei de Portugal, com quem desejava ter amizade, respondendo-lhe Afonso de Albuquerque a estas derradeiras palavras, dizendo: Que quanto ao que lhe perguntava, se queria algυa mercadoria, ao presente não queria outra, senão certos portugueses, que ali ficaram de um capitão del-Rei, seu senhor, que veo ter àquele porto; e havida esta, que era a de maior preço e que ele mais estimava, então lhe diria o mais que queria del-Rei e daquela sua cidade. Espedido Tuão Bandão, sem tirar outra palavra de Afonso de Albuquerque, não tardou muito com resposta, na qual el-Rei se desculpava do feito que se fez a Diogo Lopes, dando toda a culpa ao seu governador Bendara, e que essa fora a principal causa por que ele o mandou matar. Afonso de Albuquerque, posto que soubesse que a morte 83v do Bendara fora per outro caso, não respondeu a isso, somente ao que ele não falava, que era na entrada de Rui de Araújo e dos outros cativos, sarrando-se de todo na prática do mouro, sem querer falar em outra cousa. Em o qual negócio por aquele dia, nem per outros dous, em que houve muitos recados de âmbalas partes, não se tomou mais conclusão, que ao terceiro mandar el-Rei sair fora do rio muitas lancharas e pangajaus, que são navios de remo (armada com que se ele servia per toda aquela costa), e deram υa mostra de si em modo de escaramuça de prazer, e per derradeiro

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tornaram-se recolher ao lugar donde saíram. Com isto, ao longo do mar, em partes que eles temiam poder desembarcar gente, tudo era fazer paliçadas e repairos, assestando neles artelharia, como quem mostrava querer-se defender vindo o caso pera isso, e também a fim de temorizar os nossos nestes apercebimentos. Afonso de Albuquerque, vendo estas mostras e rebolarias, e que não lhe vinha recado dos cativos, que ele com tanta instância pedia, 265 mandou estes quatro capitães - Bastião de Miranda, Fernão Peres de Andrade, Aires Pereira e Jorge Nunes de Lião - que em batéis armados fossem dar υa vista ao longo da cidade, como que queriam notar algυa parte per onde podessem sair em terra. Aos quais batéis saiu a armada del-Rei de dentro do rio, e sobre ela Afonso de Albuquerque dobrou outros batéis, mas não houve entre eles mais que mostrarem-se uns aos outros; e contudo obrou a vista dos batéis tanto, que ao dia seguinte veo Tuão Bandão novamente perguntar que era o que queria; que, quanto aos portugueses, se leixaram de vir, era por lhe estarem 267 fazendo de vestir. O qual recado Afonso de Albuquerque não quis ouvir, nem menos ver Tuão Bandão, somente lhe mandou dizer a bordo da nau, que os portugueses não tinham mais que um rostro, υa palavra, um Rei e um Deus; e desta vez per artefício trouxe este Tuão Bandão um moço chamado Bastião, que estava com Rui de Araújo, e era aquele que Diogo Lopes achou na Ilha de S. Lourenço, como atrás fica. O qual moço este mouro leixou em a nau de Afonso de Albuquerque, quási como que o moço se viera com ele, tudo a fim de contar os grandes aparatos de guerra e número de gente que havia dentro na cidade, porque o temor destas cousas lhe faria tomar outro conselho naquela vinda com algum bom concerto. Havia a este tempo dentro na cidade, além dos mouros naturais malaios, como dissemos, outros de mui várias nações, e entre os guzarates, que eram os mais destes estrangeiros, um que servia entre eles de xabandar, ofício como entre nós os cônsules da nação. Este, como homem principal, era presente aos conselhos que el-Rei tinha sobre a chegada daquela nossa frota, e na prática que se teve sobre este derradeiro recado que levou Tuão Bandão, ensistiu muito que não houvesse connosco concerto, e entre outras ofertas que fez por sua parte e de todolos mercadores guzarates que ali estavam, assi de suas fazendas como pessoas, pera defendimento da cidade, disse que logo mandava tirar toda a artelharia das naus, e com ela seiscentos homens. Contra o voto do qual houve outros, que eram remirem este negócio por algυa boa soma de dinheiro, dizendo que, entregues os cativos com mais este dinheiro, em recompensa do dano que era feito ao primeiro capitão que ali veo, seríamos satisfeitos. Finalmente, uns per υa parte, outros per outra, era repartido o parecer em um género de confusão, sem saber tomar υa boa conclusão, com que a cidade ardia, não se sabendo determinar. Afonso de Albuquerque também per sua parte estava confuso; porque, vindo em rompimento de guerra, podia perder aqueles homens cativos, e principalmente Rui de Araújo, que particularmente desejava muito tirar daquele cativeiro, que recebeu por amor dele; porque, como atrás vimos, o Viso-Rei D. Francisco, nas diferenças 266 que teve com ele, Afonso de Albuquerque, entregou a este Rui de Araújo preso a Diogo Lopes de Sequeira, em modo de degredado. Per outra parte, havia já seis ou sete dias que não podia tomar conclusão algυa com el-Rei; e dissimular tanto artefício, como com ele queria ter, pera sua condição era um grave tormento, porém tudo sofria por ver se podia ter algum modo de salvar Rui de Araújo. Ele também, segundo lhe Afonso de Albuquerque escrevia, vendo que a dilação deste caso era por amor dele e de seus companheiros, respondeu-lhe, beijando-lhe as mãos pelo desejo que tinha de os salvar; mas porque, segundo o que via e sentia nos apercebimentos e fortificação 84

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da cidade, tudo havia de parar em rompimento de guerra, e que quanto mais tardasse, tanto lugar dava a se a cidade mais fortalecer - e aquela sua frota começava já perder crédito entre os mouros nos motes que sobre isso lhes davam - todos 268 lhe pediam que por eles não leixasse de fazer o que compria ao serviço del-Rei e à conservação do nome português, porquanto eles estavam oferecidos a Deus pera receber martírio de morte, se comprisse. Havido este recado e posto em prática com todolos capitães, assentou Afonso de Albuquerque com eles que, primeiro que saíssem em terra, irem ao seguinte dia, quando a água estevesse estofa, dez batéis a queimar alguns bailéus, que são como varandas sobre o mar, de algυas casas nobres que estavam sobre ele, e assi as três naus dos guzarates, que deram a sua artelharia a el-Rei pera defensa da cidade; e acudindo algυa gente, fizessem quanto dano podessem. O qual cometimento aproveitou muito, porque, com este dano que fizeram às naus dos guzarates, e assi a algυas casas, andando ainda os nossos neste auto de pôr o fogo, mandou el-Rei em υa lanchara a Rui de Araújo e aos outros com ele. Por honra da vinda dos quais, estes capitães que andavam nesta obra, não foram mais avante com ela, e vieram-se com eles a Afonso de Albuquerque, que os recebeu com grande prazer; e por festa da sua vinda, mandou tirar toda a artelharia das naus, e que naquele dia não se fizesse mais dano na cidade, porque todo se havia mister pera ouvir a Rui de Araújo e seus companheiros. Os quais, entre muitos trabalhos que contavam de seu cativeiro, o maior era as tentações que tiveram, υas por bem e outras por mal, que se fizessem mouros, e que em nenhυa outra cousa acharam consolação e amparo, senão em um mercador gentio, que ali estava de assento, natural do Quelim, a que chamavam Nina Chetu, porque este metigava com peitas os autores do mal que eles recebiam, e assi lhe matava a fome e socorria em quanto podia. A qual cousa lhe os mouros sofriam, por saberem que os gentios, por preceitos de caridade, são gerais em se condoer de qualquer mísero, em tanto que vem usar esta sua maneira de piedade até com os animais; e ora que esta sua obra fosse por esta causa, 267 ora por algυa esperança de galardão, que por isso podia haver de nós, ele o fez sempre, com que os cativos diziam dele muito bem. E verdadeiramente que na esperança, se a ele teve de galardão, não se enganou connosco, porque, tomada a cidade, Afonso de Albuquerque lhe pagou esta sua obra com honra e mercê que lhe fez, a qual foi causa de sua morte voluntária (como adiante veremos em seu lugar). Estando Afonso de Albuquerque nesta prática com Rui de Araújo, ex aqui Tuão Bandão a bordo da nau, dizendo que queria falar ao Capitão-mor, Afonso de Albuquerque, posto que da outra vez o não quis ouvir, desta o mandou entrar, fazendo-lhe mais gasalhado que os dias passados as vezes que ante ele foi. E per fim das desculpas que deu e cousas que disse da parte del-Rei, a conclusão da reposta de Afonso de Albuquerque foi que el-Rei, pera entre eles haver paz, lhe havia de dar naquela cidade lugar pera fazer 269 υa casa forte ao modo das que el-Rei, seu senhor, tinha na Índia, pera nela leixar gente com feitor e oficiais pera negociarem a fazenda do dito senhor, que os capitães-mores da Índia ali mandassem em suas naus. A qual casa logo havia de ser feita ante que ele, Afonso de Albuquerque, se partisse, e mais lhe havia de entregar toda a fazenda, que fora tomada aos portugueses das naus de Diogo Lopes, ou sua justa valia pelos preços da terra, a liquidação da qual se faria ao tempo da entrega; e bem assi lhe havia de pagar toda a despesa que era feita assi na armada de Diogo Lopes como naquela sua, que passava de trezentos mil cruzados. Porque a primeira se fez por causa de o virem buscar e tratar amizade com ele, e aquela não vinha a mais que pedir os cativos que forçosamente, e com mau tratamento, havia tanto tempo que retinha, e assi as outras cousas que naquele insulto dos seus os portugueses perderam. E quanto ao mau tratamento e cousas outras que se fizeram a Diogo Lopes, ora fossem feitas per o seu Bendara morto (segundo ele dizia), ora per qualquer outra

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pessoa, a ele pertencia a satisfação, pois era Rei e senhor da terra; e não querendo conceder estas cousas, ele o havia por imigo de fogo e sangue. Isto podia ele, Tuão Bandão, dizer a seu Rei. E a reposta fosse logo, e qual destas duas mais quisesse aceitar: a paz com satisfação do que dezia, ou a guerra como a fortuna de cada um ordenasse, porque os portugueses nunca foram buscar alguém que se lhe partissem deante a porta senão com algυa peça na mão por sua honra e por seu trabalho, 84v e mais tam longe da sua pátria; com as quais palavras, sem ouvir réplica a Tuão Bandão, o espediu. O mouro, assombrado com esta reposta, foi-se a el-Rei e, segundo se depois soube no Conselho del-Rei, houve grande confusão, porque os homens cuja vida era negócio e trato, seu voto era o que sempre disseram - que se remisse tudo per qualquer soma de dinheiro. O Príncipe herdeiro do reino, chamado Alodim, e el-Rei de Pão, 268 que (como dissemos), era vindo pera casar com sua irmã, e outros da sua valia, reprovavam este voto dos mercadores da terra, confiando no grande aparato que tinham pera se poder defender, que eram trinta mil homens, muita artelharia, elefantes e que um homem em sua casa valia por dez. Quanto mais que, segundo o número das velas dos imigos, o mais que nelas poderia haver, seriam até mil homens, os quais ante de dous meses não tinham vida, porque haviam de comer e beber, e finalmente a doência da terra, segundo ela tratava os estrangeiros, ante de poucos dias, ou os lançaria de si, ou os consumeria de todo. Que entregar-se a palavras de homem soberbo, como parecia aquele capitão, sem verem que temer, era mais conselho e temor de mulheres, que prudência de homens; e mais: que conta daria de si a gente malaia, tam temida e estimada por cavaleirosa per todas aquelas partes, e que per tantas vezes resestiu à potência de tamanho Rei como o de Sião, com quem havia tanto tempo que contendiam? El-Rei Mahamede, por não mostrar espírito de homem fraco, peró que o seu ânimo estava atribulado, pronosticando-lhe no temor do caso sua total 270 destruição, e também por comprazer a el-Rei de Pão, que era vindo às festas das vodas (como dissemos), o qual estava na openião do filho, determinou-se em defender a cidade, e quando o sucesso fosse contra o que ele esperava, concederia algυa parte dos apontamentos de Afonso de Albuquerque. Todavia, em modo de amoestação, disse àqueles dous filhos que ele lhe entregava a cidade, que a defendessem como deziam, porque ele não tinha já mais forças que as do conselho, e que este naturalmente nos homens de tanta idade, como ele era, sempre se inclinava ao repouso da paz; e pois a eles parecia melhor o estado da guerra, que também podiam fazer conta que forças e conselho tudo ficava neles, e que Deus os ajudasse. Porém, por lhe não parecer que ele totalmente se queria lançar de tudo, a ele lhe parecia que a defensão da cidade se havia de ordenar per tal e tal maneira. Então começou de a repartir em quartos e estâncias per os principais. E pera melhor entendimento do modo desta defensão da cidade, é necessário saber-se que havia nela dous mercadores, jaus de nação, que vieram ali assentar vivenda havia muitos anos, os quais per trato se tinham feito tam grossos em fazenda, família e naus que de não haver já na cidade onde se podessem agasalhar, deu-lhe el-Rei a cada um seu bairro nos arrabaldes dela. A um, per nome Utimuti-rajá, deu um lugar da cidade, chamado Upi, o qual agasalhava naquela sua povoação todolos jaus que ali concorriam destas cidades Tubão, Japara, Lunda, Polimbão e de todas suas comarcas, por serem encomendados a ele em modo de consulado da nação; e neste tempo era já homem de oitenta anos, e depois del-Rei ele era a primeira pessoa em substância de fazenda, 269 família de escravos de seu serviço; ca entre ele e seus genros e filhos, assi dos que traziam pelo mar em a navegação de suas naus, como ali em Malaca teriam mais de dez mil, e a sua povoação Upi em força e tráfego era υa vila muito nobre. Este, porque no seu peito não tinha boa vontade a el-Rei, como homem sagaz, tanto que viu a nossa armada no porto e sentiu que a sua vinda podia ser causa da destruição del-Rei, enquanto Afonso de Albuquerque não rompeu de todo com ele, secretamente mandou-lhe pedir seguro pera

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sua pessoa, filhos e genros com sua família, o que lhe Afonso de Albuquerque concedeu, sabendo ser ele jau e não malaio, e também por ter menos imigos, e mais este que era tam poderoso. Peró quando veo a esta repartição, que el-Rei fez da guarda e defensão da cidade, coube-lhe parte dela contra onde ele vivia, que era a mais povoada. Na outra parte contra o Oriente, que era da banda onde el-Rei vivia, no fim dela havia outro lugar chamado Ilher, que per este mesmo modo de Utimuti-rajá, deu el-Rei a outro jau per nome Tuão Colascar, ao qual concorriam os jaus da cidade Agaci e suas comarcas, que era a sua pátria, e a ele entregou el-Rei a guarda e defensão daquela parte, pelo modo de Utimuti-rajá; e assi como este senhor de Upi era mais poderoso que o outro, assi tinham diferença em o nome. Porque, onde entra esta palavra rajá, que é derivado do 85 nome real, fica na pessoa a quem o Rei dá, como acerca 271 de nós o título de conde, e esta denotação tuão como cá dizemos dom, e este se põe ante do nome próprio da pessoa, e o outro no fim dele, segundo vemos nestes dous jaus - Utimuti-rajá e Tuão Colascar. Estes, cada um em sua povoação, tinha jurdição absoluta sobre aqueles que viviam nela, posto que não fossem seus escravos, sem el-Rei nisso poder entender. A ponte do rio, que divide a cidade em duas partes, por ser lugar mais suspeitoso, onde os nossos podiam desembarcar, fez el-Rei nela υa força de madeira com muita artelharia em lugar de fortaleza, a capitania da qual deu a Tuão Bandão, que era o mouro que andava nos recados entre ele e Afonso de Albuquerque, por ser pessoa principal. E ao longo do mar, nos lugares de suspeita, pôs outros capitães com artelharia necessária, e o Príncipe, seu filho e o genro, cada um com seu corpo de gente, haviam de acudir onde vissem maior pressa, e ele ficava pera quando o mal fosse muito acudir com outro corpo de gente, que havia de estar com ele em guarda de sua pessoa, com os elefantes de seu estado. E porque com esta determinação de pelejar, os mercadores viram suas fazendas postas em ventura de as perder, posto que el-Rei mandou lançar pregões, que ninguém tirasse cousa algυa da cidade, de noite, secretamente, vasavam seu gudões, que são υas lógias quási metidas debaixo do chão por guarda do fogo ao longo da ribeira, onde tinham recolhido suas fazendas, e per 270 o rio acima e esteiros recolhiam tudo no sertão nas quintas, a que eles chamam duções.

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270 85 271 Capítulo IV. Como Afonso de Albuquerque saiu em terra, e à força de armas tomou a ponte com vitória que houve del-Rei de Malaca; e depois tornou recolher às naus, e as causas porquê. Enquanto estas cousas se faziam em terra, no mar Afonso de Albuquerque começou poer em ordem as suas, repartindo o combate da cidade per esta maneira: Depois que, em conselho com os capitães, se determinou sair em terra, ele com um corpo de gente havia de ir cometer a ponte com estes capitães: Duarte da Silva, Jorge Nunes de Lião, Simão de Andrade, Aires Pereira, João de Sousa, António de Abreu, Pero de Alpoém, Dinis Fernandes de Melo, Nuno Vaz de Castelo Branco, Simão Martins e Simão Afonso. Em outro corpo de gente, que havia de tomar a parte da cidade, onde estava υa mesquita grande, e era junto das casas del-Rei, iriam D. João de Lima, Fernão Peres de Andrade, Bastião de Miranda, Gaspar de Paiva, James Teixeira, 272 com aviso que, tomada terra, logo viessem buscar a ponte per υa rua direita que vinha dar nela, pera se ali fazerem fortes; porquanto os batéis que haviam de ficar debaixo da ponte, ficavam por sargentes do que houvessem mister de υa e de outra parte, querendo entrar na cidade a de dentro da ponte. E também porque vinham abocar as principais ruas naquela ponte, onde de força havia de concorrer o peso da gente, dando-lhe Nosso Senhor posse desta ponte, ali fariam sua força pera o mais que o tempo mostrasse de si. Os chis, que Afonso de Albuquerque tinha por vizinhos, como todolos dias o vinham visitar, vendo sua determinação em querer entrar na cidade, como homens escandalizados del-Rei, ofereceram-se a ele pera sair em terra em sua companhia, o que lhe ele agradeceu e não aceitou; dizendo que os portugueses nunca contra mouros costumavam tomar ajudas, porque Deus lhas mandava pelo seu Apóstolo, cujo nome eles invocavam ao tempo de dar a batalha, e cujo dia era di a dous, em que por reverência dele havia de cometer a cidade. Somente lhe pedia que, porquanto ele não tinha tantos batéis pera poiar a gente em terra, que lhe emprestassem os seus; e também folgaria que eles quisessem ir com ele no seu batel pera dali verem como pelejavam os portugueses, e o dizerem ao seu Rei, pera folgar de os ter por amigos, do que aprouve aos chis e assi se fez. Quando veo a outro dia, que era béspora de Santiago, ante-menhã, ao tocar de υa trombeta, todos em seus batéis foram demandar a nau do capitão-mor; e recebida absolvição geral do Vigairo posesse o peito em 271 terra - Afonso de Albuquerque abocando o rio por tomar a ponte, e os outros capitães a parte que lhe era limitada. Dada per Afonso de Albuquerque 85v Santiago! - que as trombetas deram sinal de peleja, levantou-se υa grita entre os nossos, respondendo-lhe algυa artelharia que ia nos batéis, que varejou per cima da ponte, onde os malaios estavam; a qual cousa assi rompia os ares em confusão de vozes, que nem se ouviam trombetas, nem grita, nem artelharia, e tudo era ouvido sem distinção do que era, sendo nos ouvidos e vista de todos um dia do juízo de terror e espanto. E começando a obra de vir rostro a rostro, em ambas as partes, assi na ponte, como na outra encomendada a D. João de Lima, acudiu a estes dous lugares grande peso de gente; e não vinha tam surda, que os seus alaridos, atabaques e outros instrumentos de guerra a seu modo não estrugissem as orelhas dos nossos, peró que já tevessem em costume aquele uso dos mouros.

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Finalmente, passadas aquelas duas primeiras salvas e estrondo de vozes, que o negócio ficou na mão e no ferro, Afonso de Albuquerque, apesar dos mouros, tomou posse da ponte, onde estava Tuão Bandão, e a lança tesa os levou pera a rua larga, que ia contra a povoação Upi, onde era a maior povoação da cidade. E posto que eles faziam largo campo a que Afonso de Albuquerque os seguisse per aquela largura da rua, ele os não quis seguir, porque não via ainda os outros capitães, que foram com D. João, acudirem à ponte, como lhe tinha mandado; e temendo que este alargar dos mouros 273 era querer metê-lo na cidade, pera que lhe tomassem as costas da ponte, espediu de si Aires Pereira e António de Abreu com um garfo de gente, que fossem fazer rostro aos mouros que, começavam abocar a outra parte da ponte, e ele ficou entretendo aqueles que levava diante si. Os mouros que vinham pera tomar a ponte, a cujo encontro estes dous capitães acudiram, como vinham folgados, no primeiro ímpeto de sua entrada os levaram diante de si, tomando-lhe mais de dous terços da ponte; com a qual fúria eram tantos uns sobre outros, que atocharam a ponte sem pelejarem mais que os dianteiros. Aires Pereira e António de Abreu, tornando sobre si, começaram de escalar neles de maneira que, não lhe dando lugar os seus, que os apertavam detrás pera poderem arrecuar, viram-se tam desesperados, que começaram de se lançar na água da ponte abaixo, com esperança de se salvar a nado; mas eles, fugindo um perigo, foram cair nas mãos da gente do mar que estavam debaixo nos batéis, que os alancearam bem, levando a montante da água seus corpos per o rio acima. Ao qual tempo acudiu Afonso de Albuquerque, por não perder posse da ponte, onde se fez forte por defender a qual morreram três capitães del-Rei e Tuão Bandão, a quem ela era encomendada, bengala de nação e homem mais sagaz e manhoso em malícias que cavaleiro. 272 D. João de Lima e os outros capitães também andavam em outro trabalho, e maior do que teveram os que tomaram a ponte; e esta foi a causa de logo não acudirem a ela, como lhe Afonso de Albuquerque tinha mandado. Porque, ao sair em terra, acudiu um grande peso de gente, em que entrava o Príncipe Alodim e seu cunhado; os quais, vendo que o rostro dos nossos era ir demandar a ponte, como força que queriam tomar, meteram-se entre eles e ela, onde houve υa peleja bem travada; e encaminhando os nossos com eles per υa rua, saiu-lhe el-Rei per outra, como que lhe queria tomar as costas. O qual vinha com um esquadrão de gente de até setecentos homens, em cima de um elefante mui armado e arraiado, e outros dous, que em modo de sua guarda vinham diante, a cujo amparo alguns mouros que fugiam dos nossos se acolhiam. Sobre os quais dous elefantes, além de andarem homens em seus castelos, de que pelejavam com frechas, trazia cada um seu governador, que o adestrava a υa e outra parte, segundo a necessidade que tinham. Os nossos, vendo tam grande peso da gente e temendo mais tomarem-lhe as costas que aquelas feras de peleja, repartiram-se, uns ficando com a gente do Príncipe que levavam de vencida, e outros acudiram a entreter a fúria destas feras; e os principais que puseram as lanças foram D. João de Lima, Bastião de Miranda, Fernão Peres de Andrade, Gaspar de Paiva, James Teixeira. O ferro dos quais assi foi sentido dos elefantes, que dando dous urros, fizeram volta em redondo, e, sem darem polos governadores que traziam em cima, foram esmagando quantos dos seus achavam; com tamanho curso de corrida, que pareciam ginetes, sendo tam pesados à vista, de maneira que não os poderam os nossos seguir. 274 El-Rei com o seu elefante, ao tempo que os outros voltaram em fugida, por se guardar do ímpeto deles, tomou a boca doutra rua, afastando-se 86 um pouco do concurso dos nossos; e tomando sobre eles, quási como que lhe queria tomar as costas, veo dar de rostro com Fernão Gomes de Lemos, Vasco Fernandes Coutinho, Martim Guedes, e outros que os conseguiam. Os quais, vendo a fúria do elefante, furtando o corpo, deram-lhe lugar; e em perpassando, puseram-se tam teso às lanças, que elas mesmas e a gente que se afastava por não ser trilhada do elefante, deu com eles arrimados a υa paliçada de madeira, que

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com ela cair por carregarem muito sobre ela, passou o elefante sem dele receberem dano. O qual pela maneira dos outros, como se sentiu ferido, também fez volta per um teso de υa rua acima, que os nossos não quiseram seguir, porque tinham o sentido na ponte que lhe Afonso de Albuquerque mandou que tomassem. Finalmente, tanto que estes capitães se viram desapressados dos mouros, vieram-se recolhendo per onde Afonso de Albuquerque estava, o qual, como os teve consigo, começou de se fechar de âmbalas partes 273 da ponte com paliçadas de madeira da que os mouros ali tinham. E como veo a viração do mar, mandou a Gaspar de Paiva com cem homens per υa parte e a Simão Martins com outro cento per outra, que fossem queimar as casas que estavam mais vezinhas da ponte, por ficar mais desabafada. Porque, além de lhe fazerem praça, dos eirados recebiam muito dano com as frechas e zervatanas ervadas, que lhe os mouros tiravam, onde se não perdia tiro, por eles estarem todos em pé sobre a ponte. O qual dano tanto que estes capitães chegaram a elas, logo cessou; porque, como eram de madeira e cobertas daquela sua ola, assi assoprou a viração no fogo, que em mui breve lavrou nelas, em que entraram alguns gudões, onde estava muita mercadoria e parte da mesquita e aquela nova casa armada sobre rodas, de que atrás fizemos menção, que estava pera celebrar as vodas da filha del-Rei. Acabado este feito às duas horas depois de meio-dia, acudindo sempre os nossos aos rebates de mouros, que cometiam per âmbalas partes da ponte, com que andavam bem cansados, sem lhe darem vagar a que acabassem de se fechar nas tranqueiras que faziam, susteve-se Afonso de Albuquerque um pouco em prática com os capitães assi em pé como estavam, dando-lhe graças do que tinham feito, e também representando-lhe algυas cousas que por então contrariavam suster a posse daquela ponte. Porque, visto como a gente, depois que se esfriou da fúria do pelejar, não se chegava bem à obra daquelas tranqueiras que queria fazer, assi por razão do trabalho ser mui grande, como o ardor do Sol, com que os que andavam em pé eram já no espírito tam decepados e mortos como aqueles que o foram naquela peleja, e sobre tudo nenhum tinha comido aquele dia; e vistos também outros enconvenientes pera temer que era poderem os mouros por o rio abaixo de noite na jusante da maré lançar algυas balsas de fogo com que os queimasse, e que neste tempo 275 poderia vir υa armada grossa, que el-Rei tinha mandado fora, segundo dezia Rui de Araújo, de que era Capitão-mor um valente homem de sua pessoa, chamado Laquesamana, o qual poderia queimar a nossa frota; postas todas estas cousas em prática, assentou com eles de ir dormir às naus, por ser mais seguro estado pera tanta gente ferida, e cansada como tinha, e assi se fez. Porém, primeiro que se partisse, porque a gente se embarcava mal contente por irem com as mãos vazias, e mais tendo diante dos olhos dous gudões del-Rei, os quais se dezia estarem cheos de fazenda, e ele os não podia entreter neste ímpeto, deu-lhe trela té os gudões, com que se tornaram carregados do esbulho, que foi para eles leve; posto que, ao embarcar, a alguns foi carga pesada, por acudirem os mouros, que lhe deram assaz trabalho, sendo já sol posto. E assi neste recolher, como na peleja do dia, dos nossos foram feridos setenta, os mais deles com 274 erva de que os mouros usam muito naquela parte; e por lhe ainda não saberem a cura, depois em as naus faleceram dez ou doze; e outros que houveram saúde dela, sempre ficaram com aquela parte da ferida enferma, e quási um temor naquele membro da maldade da peçonha. A qual tinha propriedade, que a um certo tempo acudia à pessoa ferida dela υa raiva, mordendo a si mesmo, como se fosse mordido de cão danado: o que se viu em um cavaleiro da vila Estremoz, chamado Lopo de Vila Lobos, e em outros que ali foram feridos. A cura da qual erva quiseram alguns fazer com teriaga, e não lhe aproveitou; e outros mais à míngua de azeite que não tinham, que por saber que era antídoto daquela peçonha, queimavam as frechadas com toucinho velho, que lhe deu saúde. Peró depois

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86v pelo tempo em diante, os mesmos malaios amostraram aos nossos υa erva que havia na terra contra esta peçonha, com a qual, como o homem era ferido, bastava pera ser seguro de morrer mastigar υa folha dela: tam maravilhosa é a Natureza na antipatia das cousas, que não leixou algυa sem remédio, nem o pôs mui longe do seu contrairo, se o nós soubéssemos conhecer. Dizem os malaios que a invenção desta peçonha é dos moradores da Ilha Samatra, a qual se compõe com a espinha do peixe, a que neste reino chamamos bagre; e os malaios oficiais desta composição foram os povos celates, que vivem no mar, de que atrás falámos. O número dos feridos entre os mouros, por ser grande, não se pode saber, nem menos dos mortos: baste que não houve casa na cidade sem lágrimas de morte de pai, filho, irmão, etc. El-Rei de Pão, que era vindo às suas vodas, quando as viu celebradas com sangue de muita gente que lhe feriram e mataram, e sobretudo ser queimada a casa pera aquele solene dia delas, que ele tomou por mui mau pronóstico, recolheu-se per terra em seus elefantes, dizendo que ia buscar gente e ajudas pera vir com maior poder à defensão daquela cidade, a qual tornada ele não fez.

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274 86v Capítulo V. Como Afonso de Albuquerque por alguns empedimentos que teve, enquanto a gente sarava do dano que recebeu na batalha, esteve recolheito em as naus, té que segunda vez tornou cometer a cidade, e totalmente a tomou. Recolhido Afonso de Albuquerque às naus, mandou logo el-Rei Mahamede com grã diligência reformar suas estâncias e dobrá-las em artelharia e resistência. E porque viu que no dia da entrada dos nossos começaram seguir a rua larga, além de novamente fazer na boca dela υa tranqueira, mandou minar toda a rua e enterrar nela υas canas grossas cheas de pólvora e semeá-la de abrolhos de ferro com peçonha, 275 e assi os lugares per onde podiam os nossos fazer entrada, pera os encravar e queimar. Fez também além desta υa cousa mui nova, que em sua vida em quantas guerras teve nunca fez - pagar soldo aos jaus, porque soube que naquela entrada que os nossos fizeram na cidade não pelejaram tam bem como eles costumam e poderam fazer. Mas a causa de não pelejarem como deviam não foi por rezão de soldo, mas por causa de lhe ter mandado Utimuti-rajá que não aventurassem a vida por defensão do alheo, o qual preceito que deu aos seus, foi pelos concertos em que andava com Afonso de Albuquerque; e contudo ele se mandou queixar a ele Utimuti-rajá, desta ajuda que deu a el-Rei, sabendo que a sua gente fora no dia da entrada. Ao que ele, Utimuti-rajá, respondeu que era verdade da ajuda que dezia, a qual foi mais aparecer a sua gente no feito que pelejar; e este pouco que fazia não era por sua vontade, mas por ser homem estrangeiro e viver na terra alhea, que se assi o não fizesse, não passaria bem, e por isso não lhe devia estranhar o que tinha feito, que fora tam pouco, que obrigara a el-Rei mandar dar soldo a todolos jaus, vendo que não se chegavam bem a pelejar com a sua gente. A qual desculpa lhe Afonso de Albuquerque recebeu, por ser tempo pera dessimular todos estes artefícios que com ele este mouro usava, té que viesse seu tempo, e mais por saber ser verdade que a sua gente não se chegava bem, não sabendo se era preceito seu ou não. Nestes dias mandou também Afonso de Albuquerque recado a todolos mercadores estrangeiros, por lhe ganhar a vontade, que por sua causa não queimou a cidade nem consentiu fazer-se-lhe mais dano; que quem se quisesse ir em boa hora pera sua terra, que livremente o podia fazer; e querendo ficar, ele os segurava, não tomando armas contra portugueses, porquanto ele não contendia senão com el-Rei de Malaca, e seus naturais té lhe darem satisfação do mal que lhe tinham feito. A qual noteficação aproveitou muito em nosso favor; ca estes mercadores se ajuntaram e foram a el-Rei, requerendo-lhe que 277 aceitasse qualquer condição de paz; e que se era por dinheiro, já lhe tinham dito que todos contribuiriam grossamente nisso, que melhor era que o pagasse a fazenda, que perecer tanta gente. Mas como o negócio estava já cevado com fúria de 87 vingança, tudo se quis leixar no juízo das armas e não em concerto de paz, com que todolos mercadores ficaram indinados contra el-Rei, e deziam entre si que tinham os nossos causa de fazer todo o mal. Vendo Afonso de Albuquerque que de dia e de noite tudo era repairar os lugares suspeitosos e que a ponte estava feita υa fortaleza em artelharia, e defensão de dobrada madeira, ordenou um junco o mais forte que tinha dos que tomou, mui bem armado de artelharia, e com suas arrombadas, que se fosse pôr o mais que podesse junto da ponte, pera dali varejar aos mouros, que 276

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andavam fazendo a obra de a fortalecer. Porque sua tenção era, não tanto ir empedir a obra que os mouros faziam na ponte, quanto per ele mesmo sondar o lugar se poderia com outro maior subir tanto acima, que posesse a barba sobre a ponte; porque, quando houvesse de cometer outra vez a cidade, per ele esperava entrar na ponte e lhe ficaria em lugar de fortaleza, por ser de bom gasalhado, e a gente ficava emparada da artelharia e frechas. Mandado este junco, por razão de υa coroa que fazia o rio ante de chegar à ponte, não pôde passar, nem outro navio mais pequeno que a este fim mandava na sua esteira, e isto por as águas serem mui quebradas, de maneira que foi necessário esperar que viessem as vivas com a lυa nova. No qual tempo os chis que tinha junto de si lhe pediram licença pera se ir; e porque, por razão da guerra estavam mal providos de mantimento, Afonso de Albuquerque lhe mandou dar muitos fardos de arroz e algυas peças destas partes da Europa, que eles muito estimaram. E por fazerem sua viagem per o reino de Sião, segundo eles deziam, Afonso de Albuquerque lhe pediu houvessem por bem de lhe levar em sua companhia um homem, que queria mandar com cartas a el-Rei de Sião, o que eles aceitaram de boa vontade. Per o qual homem, que era um Duarte Fernandes, alfaiate, que fora cativo com Rui de Araújo e sabia já a língua malaia, ele, Afonso de Albuquerque, fez saber a el-Rei de Sião o estado em que Malaca ficava, e que não se havia de partir dali com aquela armada del-Rei de Portugal, seu senhor, sem totalmente destruir aquele tirano e quantos mouros o ajudavam; que ele lho fazia saber tanto que Nosso Senhor lhe acabasse de dar vitória dele. Portanto ele, Rei, poderia mandar povoar a cidade de seus vassalos da nação dos siames, por ser gente com quem os portugueses haviam muito de folgar, ca sua tenção era não leixar ali mouro algum. E a causa por que Afonso de Albuquerque fazia esta deligência e cumprimento com el-Rei de Sião, era por ter sabido o modo de como este Rei Mahamede lhe levantou a obediência, e com este recado seu entreteria os aparatos da armada, que lhe tinham dito que 278 este Rei de Sião fazia contra ele, porque per ventura contentar-se-ia com totalmente o ver destruído per qualquer mão que fosse. Partidos estes chis, entreteve-se Afonso de Albuquerque esperando pelas águas pera mandar levar o junco à ponte; e também dava aquele tempo pera el-Rei tomar melhor conselho e vir com algum partido que ele podesse aceitar, por levar com ele o modo que tevera com el-Rei de Ormuz. Ca, segundo lhe dezia Rui de Araújo, na terra não havia υa só pedra pera fazer fortaleza, por ter tudo a maneira de sapal; e pera se fazer de madeira, dando-lhe Deus a cidade, havia-se toda de cortar no mato às lançadas e frechadas. Também em as naus não havia tantas munições, e somente com υa forja, 277 que todo dia estava ocupada em repairar as armas dos homens, não se podia fazer tanta obra como havia mister υa fortaleza de madeira, e mais a terra era tam pestífera, que não poderiam os homens aturar um trabalho tam apressado como convinha no fazer daquela fortaleza, e adoecendo-lhe no meio da obra, ficava sem gente e sem fortaleza. Doutra parte, contendia quanto importava ao serviço del-Rei tomar aquela cidade, e quamanho descrédito era do nome que os portugueses tinham naquelas partes leixar aquele tirano sem castigo dos danos que dele tinham recebido. Também tomar a cidade, e torná-la a leixar, era mui pequeno fructo pera tamanha despesa, como se fizera naquela armada; e mais, segundo a cidade se tornava a fortalecer, parecia que não se poderia tomar sem custo de muita gente, que não se devia de aventurar pera tam leve fim. Finalmente, em algυas consultas que Afonso de Albuquerque teve com os capitães, assi por parte deles, como sua, ocorriam tantas cousas υas em contrairo de outras, té que per derradeiro vieram a concluir que acabassem de ver o fim desta impresa, que foram buscar per tam comprido caminho. Porque Deus não movera o ânimo dele, Afonso de Albuquerque, pera 87v acabar no que tinham feito e nos inconvenientes que punham, mas pera fim e glória de sua Santa Fé,

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porque dali se fosse estendendo e dilatando por aquelas grandes regiões orientais, tam sáfaras dos méritos de sua Redenção, e apagar aquele fogo de Mahamede, que se começava acender per todas aquelas partes, da comunicação que o gentio delas tinha com os mouros daquela cidade, a qual era já feita υa casa de abominação de infernal doutrina. Vindo as águas com a lυa nova, que Afonso de Albuquerque desejava per efeito de tomar a ponte com o junco que pera isso ordenava, mandou nele António de Abreu, filho de Garcia de Abreu, um fidalgo morador em Avis, com todolos mantimentos e munições necessárias pera os dias do combate e gente pera sua guarda, e com ele mandou Duarte da Silva em υa galé e Simão Afonso em υa caravela. O qual junco, tanto que passou o banco de area, e foi surto um pedaço da ponte, começou a artelharia dos mouros descarregar nele; algυa da qual lançava pelouro de chumbo do tamanho de um tiro de espera, que passava ambos os costados do junco, fazendo muito dano na gente;, na qual fúria de fogo com um espingardão foi António de Abreu ferido pelas 279 queixadas, levando-lhe a maior parte dos dentes, e o queixo, depois que houve saúde, lhe ficou não muito em seu lugar. Ao qual logo Afonso de Albuquerque acudiu, mandando Dinis Fernandes de Melo, que como especial cavaleiro que era, sofreu este trabalho nove dias contínuos com suas noites; não que António de Abreu consentisse ser levado dali às naus pera o curarem, dizendo que, se tinha as forças perdidas para pelejar e a língua empedida pera 278 mandar, ainda lhe ficava vida pera não perder o lugar em que era posto, e com isto ficou Dinis Fernandes enquanto ele havia saúde. E o que mais atormentava a gente o tempo que esteve neste lugar, era o fogo que lançavam pelo rio abaixo pera queimar este junco, porque com a sua artelharia os mouros não o podiam meter no fundo, por estar afastada um pouco alta, e todo o dano dela era pelas obras mortas. O qual fogo, ordinariamente ao descer da maré, cada noite havia de vir em três barcos mui compridos, carregados de madeira iscada com breu e azeite; e passada per baixo da ponte sem fogo, por a não queimar, ao sair dela lhe era posto de maneira que, quando emparavam com o nosso junco, vinha υa balsa de fogo que alumiava toda aquela ribeira. Sobre o qual trabalho de apagar este fogo, tinham outro maior perigo: ca, com a claridade grande que ele fazia, eram vistos nos batéis em que andavam com goroupezes compridos e arpéus encadeados pera governar o fogo pela vea que não tocasse com o junco; assi que, se a luz do fogo lhe fazia proveito pera verem o que faziam, também dava vista a que os mouros varejassem com sua artelharia neles. Afonso de Albuquerque, vendo quanto dano a gente com isto recebia e quam desvelada e cansada andava de tam contínuo trabalho, posto que muitos dos que ficaram feridos da entrada da cidade não eram ainda sãos, temendo que se esta obra daquele fogo durasse por resguardo daquele junco, toda a gente lhe ficasse ferida; com esses poucos que tinha, υa sexta-feira, oito de Agosto, havendo dezasseis que cometera a cidade, em amanhecendo, apesar dos mouros, tomou a ponte, onde o junco naquela preamar estava já posto. O qual junco, em chegando, não fez pequena obra; porque, ainda que levava os castelos daneficados da artelharia, como eram soberbos sobre a ponte, deles e da gávea somente às pedradas despejaram a entrada da ilharga da ponte da parte da mesquita per onde Afonso de Albuquerque queria tomar terra, todo em um corpo, e não em dous, como da primeira vez, que lhe sucedeu mui bem este conselho. Porque, como a cidade estava repartida em duas partes com o rio pelo meio, cujo serviço de υa a outra era a ponte, e mouros a tinham fortalecido, cuidando que Afonso de Albuquerque se havia de querer fazer senhor dela, como fez da primeira vez, com a chegada do junco ficou ele senhor daquela passagem, de maneira que a gente da maior povoação da cidade, que era da parte de Upi, não podia passar a outra onde el-Rei vivia, que Afonso de Albuquerque tomou. E posto que isto estava assi pejado per nós, muito mais pejado achou Afonso de Albuquerque o caminho que cometeu com muitas bombardas, espingardões, 280

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frechas, zervatanas e zargunchos de arremesso, com os quais foi recebido, e na primeira chegada lhe feriram mais de oitenta homens, pelejando os mouros como 279 gente que queria defender mulher, filhos, fazenda, por ser mais sujeita a estas cousas, que quantas havia naquelas 88 partes, e sobre isso grande openião de cavaleiros, e em companhia, onde eram vistos por se mostrar mui ousados em cometer e constantes em esperar. Mas como os nossos eram costumados àquele ofício de sofrer fogo e ferro, ainda que à custa do seu sangue, quebraram-lhe aquela fúria, ferindo neles tam mortalmente, que lhe fizeram alargar as estâncias. As quais estâncias tanto que lhe foram tomadas, repartiu Afonso de Albuquerque o corpo da gente em duas partes: ele tomou υa, com que foi tomar posse da ponte e segurar que da outra parte da cidade não passassem per ela à outra por acudir à que ele tomou, que era onde el-Rei vivia ca esta tinha encomendada a estes quatro capitães: Jorge Nunes de Lião, Dinis Fernandes, James Teixeira e a Nuno Vaz de Castelo Branco, e mandou-lhe que não passassem da mesquita, e que nela se fizessem fortes té ele tornar a eles. Espedidos estes capitães, foram ferindo e recebendo feridas per o caminho que iam a tomar a mesquita, a qual lhe os mouros despejaram como gente que os queria meter em cilada, e nela houvera Dinis Fernandes de cair com toda a gente de sua capitania que o acompanhava, e somente υa cousa lhe deu a suspeita dela: E foi que, abocando ele υa rua larga, que era das principais serventias, atravessou-se el-Rei diante dele com até mil e quinhentos homens, e leixou-se estar quedo como que queria que Dinis Fernandes fosse a ele per aquela rua, na qual espera que el-Rei fazia, e ver ele, Dinis Fernandes, υa tam principal rua despejada, entendeu o que era, de que logo viram sinal estar semeada de abrolhos e esterpes de peçonha, a fora outro maior dano que ele não viu - que era minada de pólvora, como que não ficara homem vivo. Passado desta rua a outra, per que via correr o fio da gente, veo Afonso de Albuquerque ter a este mesmo lugar; mas parece que inspirou Deus em um homem que ia diante, que tornou a ele, dizendo: - Tende-vos, Senhor. Não passeis per aqui, porque nesta rua está algum perigo; ca sendo tam principal, não a vejo trilhada de gente. Afonso de Albuquerque, quando caiu no caso, porque podia algum dos capitães vir cair naquele perigo, leixou ali um com gente pera dar aviso, e passou adiante té se ajuntar com os quatro que tinham já tomado posse da mesquita; e o mais que se deteve com eles, foi mandar-lhe que entretevessem os mouros pera que não chegassem à ponte, enquanto ele dava ordem de se fortalecer nela, por não lhe empedirem a obra. Tornado à ponte, achou já muita parte da munição, que tinha no junco 281 posta em terra, que era enxadas, cestos, machados, madeira e pipas vazias, com as quais cheas de terra, e madeira das paliçadas que os mouros tinham feitas na parte da mesquita, mandou fazer um repairo que encerrava no 280 seu cercuito toda a boca da entrada da ponte, e υa serventia que vinha beber na água, pera lhe ficar o serviço do mar seguro. E ao longo deste repairo da parte de dentro, mandou também fazer de altura de um homem um lanço de parede ensoça de tijolo de υa soma dele que ali estava, per ventura guardado pera outra obra de mais contentamento de seu dono que aquela em que ali serviu; a guarda da qual estância deu a Jorge Nunes de Lião, Aires Pereira, Bastião de Miranda, Nuno Vaz de Castelo Branco e James Teixeira, com a gente de suas capitanias. Per o qual modo na outra parte da ponte, ainda que não foi com tijolo, fez outro tal repairo, e a guarda dela deu a D. João de Lima, Duarte da Silva, Fernão Peres de Andrade, Simão de Andrade, seu irmão. Na frontaria das quais duas estâncias mandou estar certos batéis grandes com artelharia, que varejavam pela banda de fora todo o pano das paliçadas, por os mouros não virem per entre a madeira de noite ferir os que as

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guardavam. E por causa do ardor do Sol, que assava os homens, frechas e zervatanas ervadas, que os mouros tiravam de alguns eirados das casas mais vezinhas à ponte, mandou-a Afonso de Albuquerque toldar com velas das naus, que deu vida a todos. Porque não somente a vela empedia o sol, mas ainda, como a viração quando corria vinha enfiada pelo rio, fazia duas obras: refrescar a gente com o movimento e abanar da vela, e mais rebatia as frechas, que não viessem ferir a gente.

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280 88 281 Capítulo VI. Como depois que Afonso de Albuquerque despejou a cidade Malaca, sabendo que o Príncipe Alodim se fazia forte no lugar da cidade Beitão, mandou sobre ele, e o fez ir dali; e do mais que fez pera segurança e governo da cidade. 88v Acabado este feito da tomada de Malaca, que se fez com oitocentos homens de armas portugueses e duzentos malabares de espada e adarga, por aquele dia não fez Afonso de Albuquerque mais que fortalecer-se nesta ponte; e ao segundo, porque de duas casas grandes, vezinhas a ela, toda a noite lhe tiraram com mil modos de tiros, que faziam muito dano, mandou a elas estes capitães: Jorge Botelho, Afonso Pessoa 282 e Simão Martins. Os quais, tanto que as tomaram, posesse em os eirados algυa artelharia meúda, com que fizeram a praça franca ante aquela parte da ponte donde recebiam o maior dano; e trás eles mandou aos capitães das estâncias que fossem dar υa visitação à cidade na parte que tinham por frontaria, com limitação té onde haviam de chegar. O que eles fizeram, dando um varejo de lançadas a esses que achavam na cidade, em que se fizeram honrados feitos; e isto por continuação de nove dias, que esteveram recolhidos naquela força da ponte. E posto que este jogo de lançadas não 281 era muito aprazível aos nossos, por ser a custa do seu sangue, por menos perigo haviam estes dos dias que o das noites, com o cometimento dos mouros, que eles não podiam afastar da ponte; té que, no fim destes dias, era já tanto o dano que os mouros tinham recebido, que dos mortos, feridos e fugidos ficou a cidade meia despejada, recolhendo-se pelos matos e nos seus duções aqueles que os tinham. Porém era entre eles tamanha a fome, que antes queriam aventurar o corpo ao ferro dos nossos, por vir furtar um pouco de arroz à cidade pelas casas onde sabiam que ficava, que perder a vida por não comer. A gente forasteira com a mesma necessidade (posto que tinham tomado armas contra nós, mais por temer receberem por isso mau tratamento del-Rei, que por lhe defender a sua cidade), confiados no que Afonso de Albuquerque mandou noteficar - que aquela guerra não fazia a mercadores senão aos naturais - mandaram-lhe pedir seguro pera se tornarem à cidade e estarem nela té se embarcar pera suas terras. E a primeira nação que isto mandou requerer, foi a dos pegus, aos quais em geral ele Afonso de Albuquerque, mandou segurar, e per eles mandou noteficar lá per onde andavam outros, que não dezia aos estrangeiros, mas ainda aos próprios malaios, como fossem mercadores, ele os segurava, querendo-se someter à bandeira del-Rei de Portugal, como a senhor daquela cidade, que já era ganhada per força das armas daqueles seus capitães e criados que nela estavam. Os quais malaios podiam tornar pera suas casas e seguramente vender suas mercadorias, ca lhe seria guardada tanta justiça como a um português vassalo del-Rei, seu senhor; porquanto eles os receberia naquele amparo, e defensão, e que dava espaço de quinze dias pera o poderem fazer; e passado este tempo, todos seriam perseguidos como mortais imigos. A qual noteficação, pera maior solenidade, além de o dizer a estes pegus e estrangeiros, que logo começaram de se recolher à cidade, a mandou fazer com trombetas e pregões na linguagem da terra, pera ser notório a todos; com a qual noteficação e gasalhado, com que Afonso de Albuquerque recebia a todos, não ficou estrangeiro no mato, e dos malaios muitos que se não tornassem à cidade. E o principal foi o grande Utimuti-rajá, senhor da povoação Upi, que (como dissemos), tinha já com Afonso de Albuquerque, ante da cidade tomada, inteligências da paz, posto que estes seus tratos sempre foram de homem malicioso, o que lhe ele perdoou, simulando que não

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era sabedor 283 disso; porque nas duas entradas, principalmente na derradeira, ele o pagou bem com muita gente sua, que ali foi morta e ferida, e um seu filho bem acutilado, que era aquele que esteve com o cris na mão pera matar Diogo Lopes de Sequeira, segundo escrevemos em seu lugar. Porém ante que esta gente se tornasse à cidade, tinha Afonso de Albuquerque dado três dias de 282 cevadura à gente de armas no despojo dela; e Rui de Araújo foi estar em guarda das casas de Nina Chetu, o gentio, de quem tanto benefício tinha recebido. E segundo a cidade era rica, foi o despojo de roupa e alfaias de casa pouco mais de cinquenta mil cruzados, porque o mais os mouros o tinham salvo per esses matos nos dias que teveram tempo, que foram muitos pera despejar quanto tinham. E da artelharia não se acharam mais de três mil peças das oito que Rui de Araújo dizia haver na cidade, parte da qual el-Rei mandou levar consigo; e entre estas peças se acharam algυas mui grossas, e υa mui fermosa, que havia pouco tempo que lhe mandara el-Rei de Calecute. 89 Acabado este despojo e tornada muita parte da gente à cidade, por dar ordem ao governo dela, fez Afonso de Albuquerque duas principais cabeceiras, a quem entregou a justiça e governança, segundo seus costumes: a Utimuti-rajá o governo dos mouros, e a Nina Chetu o dos gentios, que foi causa de o povo se recolher de melhor vontade dos matos per onde andava comendo fructas bravas. E porque Afonso de Albuquerque soube que o dia da batalha, quando se el-Rei recolheu, fora pera o lugar chamado Beitão, onde tinham seus duções, e que dali se passara mais longe, leixando naquele lugar o Príncipe, o qual se fazia forte com grandes estacadas e cerca de madeira em modo de fortaleza com sua artelharia posta ao longo do rio, que vinha ter a Malaca, mandou fazer prestes em batéis até quatrocentos homens, e estes capitães: Fernão Peres de Andrade, Simão de Andrade, Jorge Nunes de Lião, Gaspar de Paiva, Aires Pereira, Francisco Serrão e Rui de Araújo, que estevera cativo, pera darem todos sobre aquela obra que fazia o Príncipe e o lançarem dali, em cuja companhia Utimuti-rajá mandou também até setecentos homens de sua família, e os mercadores pegus trezentos. Os quais capitães, chegados ao lugar de estância do Príncipe Alodim, alevantou o arraial e foi buscar seu pai, no qual lugar os nossos não teveram mais que fazer, que mandar queimar aquela madeira que ali acharam e tornar-se à cidade, e por despojo trouxeram sete elefantes do serviço do Príncipe, todos selados, e as guarnições dos assentos eram de marfim lavrados de ouro e cores, em que suas mulheres caminhavam, que parece não poderam tomar com a pressa da fugida, e no lavramento e riqueza da guarnição delas mais mostravam o estado da paz que da guerra. Com a qual ida dos nossos se alargou el-Rei mais outra jornada, não 284 se havendo ainda por seguro estar tam perto de Malaca, e nesta mudança começou algυa gente de o leixar, vendo que Afonso de Albuquerque não se contentava de tomar a cidade, mas ainda mandava perseguir el-Rei pelos matos per onde andava; e principalmente como entre o pai e o filho houve desavenças, dando el-Rei a culpa ao Príncipe daquele estado em que andava, por ele e seu cunhado e outros de sua valia serem 283 causa de mover a guerra. As quais diferenças entre o pai e filho fizeram que se apartassem um do outro, cada um buscar lugar onde se podesse sustentar da fome, que já começava entre eles; e assi lhe fugiram pera Malaca quatro ou cinco mercadores ricos, que el-Rei quisera reter consigo pera se aproveitar de suas fazendas na restituição de seu estado. Aos quais Afonso de Albuquerque, ao tempo de sua chegada, recebeu com honra e gasalhado, e per eles soube do estado del-Rei, e como ia tam desbaratado, que o não seguiam mais que até cinquenta homens e cem mulheres, e fazia seu caminho em elefantes na volta de Pão, em busca do genro que houvera de ser. E que esta

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determinação tomara depois que viu que ele, capitão-mor, começava fazer fortaleza na cidade; ca enquanto lhe pareceu que sua tenção era tomar a cidade e roubá-la, e a todo mais dano poer-lhe o fogo à partida, sempre andou per ali derredor pairando e sofrendo grandes trabalhos naqueles matos. Finalmente, com esta nova da partida del-Rei e desavenças de antre ele e seu filho, começou a cidade tomar algυa maneira de repouso dos grandes trabalhos que os dias passados teve; no qual tempo Afonso de Albuquerque também começou a entender na fortaleza que queria fazer. E posto que Rui de Araújo o tinha desesperado de poder achar na terra pedra pera isso, como homem cativo que não vê nem sabe mais da terra que os trabalhos da casa do senhor que o tem, veo Afonso de Albuquerque achar na mesma terra pedra pera cal e muita cantaria lavrada em υas sepulturas antigas de gentios, e dos primeiros que ali foram, que estavam no monte que dissemos, onde os celates primeiros vieram povoar aquela povoação de Malaca. Ao pé do qual monte em mui breve tempo fez υa mui nobre fortaleza, que, depois de acabada, por este monte lhe não ficar por padrasto, ficou a torre de menagem dela em altura de cinco sobrados, com um curuchéu coberto de chumbo com todalas outras oficinas, que respondia à majestade dela, à qual pôs nome a Famosa, porque o merecia ela por a vista e lugar tão remoto onde era fundada. E assi fundou υa igreja da vocação de Nossa Senhora da Anunciada, a capela, da qual mandou cobrir com um curuchéu da sepultura de um rei que mandou trazer com elefantes, obra de pau muito bem lavrada. No trabalho das quais obras se aproveitou 89v Afonso de Albuquerque de υa gente do povo de Malaca chamada ambarages, que quere dizer escravos del-Rei, como em verdade o eram del-Rei, e ele lhe mandava dar ração de mantimento; e quando não, eles o ganhavam, mantendo a si e a suas mulheres e filhos, dos quais escravos el-Rei teria passante de três mil. E porque Afonso de Albuquerque, em começando as obras, soube parte destes escravos, e deles 285 andavam ainda pelos matos, outros ficaram nos duções, e outros estavam na cidade sem ele saber quais 284 eram, mandou lançar pregões, que todo escravo que fora del-Rei Mahamede, se viesse a ele pera lhe mandar dar seu mantimento, e ficaria no foro da vida e liberdade que de ante tinha; e qualquer pessoa que lhe trouxesse um escravo destes por andar fugido, ou se ele apresentasse pera ser assentado por escravo del-Rei, que ele lhe mandaria dar um tanto. O qual pregão foi causa que muita gente livre ficou cativa; porque, como os homens tinham prémio, dos duções e matos traziam do povo prove um livre; e tanto que o apresentava por escravo del-Rei, era assentado na matrícula deles, ficando com nome de escravo ele, sua mulher e filhos. E o peor era, que como um homem queria mal a outro, denunciando ser escravo com duas testemunhas, não havia mais mister, o qual negócio destes ambarages foi ao diante causa de muito mal, como se verá. Feitas estas, e outras obras pera segurança da cidade, fez Afonso de Albuquerque outra pera o nobrecimento e comércio dela, quási a requerimento do povo. A qual obra foi mandar lavrar moeda, posto que na terra o ouro e prata geralmente corresse por mercadoria, e em vida del-Rei Mahamede não houvesse outra moeda lavrada senão de estanho, a qual servia pera as cousas da praça; porque as outras de maior sustância e valia corria o comércio delas per via de comutação de υa cousa per outra; e quando nisto entrava prata ou ouro, tinham o próprio modo, tomando estes dous metais ao preço que então corria pela terra; e a moeda não, por a não haver na terra, nem os mouros a costumavam, somente de estanho pelo haver muito e fino, que se achava na própria terra; e deste pera pagamento de jornais e cousas da praça, lavrou duas sortes: a υa chamou dinheiro, e a outra, que continha dez dinheiros, chamou soldo, e a outra de dez soldos, bastardo. De prata de lei de onze dinheiros fez somente υa moeda per nome malaqueses, a qual prata vinha ali de Pegu e de Sião, muito fina de lei de doze dinheiros, havida de uns povos chamados laus, que jazem ao Norte

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destes dous reinos. E de ouro fez υa só moeda chamada católico, de valia de mil reais, mui fermosa, de vinte quatro quilates de lei, de muito ouro que ali vem da Ilha Samatra, e assi do que traziam os povos léquios, das Ilhas chamadas Léquio, que jazem fronteiras à costa da China. Feita esta moeda, em o dia da noteficação per que mandou que corresse, foi arraiado um elefante de panos de ouro e seda com seu castelo, e em cima dele levava a bandeira real das armas deste reino António de Sousa, filho de João de Sousa, de Santarém; e adiante dele no mesmo castelo ia um filho de Nina Chetu, o governador dos gentios, com grande soma de toda esta moeda; e diante do elefante iam outros dous não tam arraiados, e neles trombetas deste reino, e tangeres e mulheres cantadeiras da terra que vivem por este ofício, todos acompanhados do povo da terra, e assi dos portugueses com boa ordenança per esses lugares púbricos com grande festa. E de quando em quando faziam υa 285 pausa, em que um malaio dos principais da terra, pregoava 286 na própria língua aquela moeda, e um português na sua; e dados os pregões, o filho de Nina Chetu derramava um golpe delas per o povo. Acabado este auto, houve logo na cidade quem tomou o feitio e cambo dela e começou correr sem referta algυa, por ser mais favorável a todos, que a dos mouros. Com ela mandava Afonso de Albuquerque pagar os jornais àqueles que vinham ao serviço da obra, principalmente aos pegus, que folgavam de andar ao ganho dos jornais. E eram tam contentes do modo deste ganho, que, partidos alguns juncos deles pera sua terra, se leixou ali ficar um filho de um piloto, em modo de capitão de até cem deles, a ganhar sua vida naquelas obras, por ser mancebo que com a comunicação dos nossos tomou a língua e folgava com a conversação deles. Com o qual ganho que todos achavam em nós, e bom tratamento que geralmente recebiam, guardando-lhe verdade e justiça, a qual eles não achavam em el-Rei, ante era já havido per tirano, assi correu a nova de nós per toda a terra, que ante que Afonso de Albuquerque se partisse de Malaca, entraram nele mais de quorenta juncos carregados de mantimentos, e outras mercadorias da terra; e assi partiram outros dos mercadores naturais a ir fazer suas fazendas aos portos costumados, com que a cidade começou enobrecer.

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285 90 286 Capítulo VII. Como Utimuti-rajá, por algυas cousas que cometeu, foi julgado à morte com seus filhos; e dos movimentos de guerra que os seus por isso fizeram, té Afonso de Albuquerque se partir pera a Índia; e de algυas embaixadas que lhe vieram, e mandou a diversas partes ante que se partisse, e assi υa armada a descobrir Maluco e Banda. Estando as cousas de Malaca neste estado, veo nova como, depois que el-Rei Mahamede e o Príncipe Alodim, seu filho se desavieram por as cousas que atrás dissemos, cada um fazia cabeça per si, buscando parentes e amigos pera com sua ajuda ver se poderia per algum modo tornar-se a restituir na posse daquela cidade, que perderam. E entre algυas pessoas com que este Príncipe se carteava pera este fim, era o jau Utimuti-rajá senhor da povoação Upi, o qual, polo ódio em que estava com el-Rei Mahamede, folgou de aceitar esta amizade com o filho; porque, como ainda estava inteiro na sua povoação Upi, desejava meter o negócio em revolta, pera ver se poderia ficar por senhor da cidade, que ele mui bem poderia sustentar com grande família e sustância de fazenda que tinha. Do qual trato que ele trazia, veo ter a mão de Afonso de Albuquerque υa carta per meio de alguns imigos 287 do próprio Utimuti-rajá, por ser mui malquisto; e a causa era por ele, com o favor do ofício, fazer algυas tiranias aos 286 mouros e mercadores da sua jurdição, a uns tomando-lhe as mercadorias pelos preços que queria, e a outros, naturais de Malaca, os duções e propriedades. E sobretudo, todolos escravos que podia haver à mão, como entravam na sua povoação, nunca dali saíam, os quais logo mandava meter no serviço da obra que fazia, que era fortalecer-se. Além disto, por mais descobrir a maldade do seu peito, mandou atravessar quanto arroz havia na terra, com que o povo clamava por não se achar a vender, senão o seu a peso de ouro; e com isto mandava na sua povoação que não corresse a nossa moeda novamente feita, mas a do Rei Mahamede, sendo ele tam grande seu imigo, somente a fim que com esta necessidade de não haver esta moeda na terra, venderia melhor o seu; e ao tempo que Afonso de Albuquerque mandou pregoar aquela nova moeda, ele, nem cousa sua foram presentes. Finalmente, chegou a ousadia deste jau a tanto, que, indo um naire já feito cristão dos da terra Malabar à sua povoação, ele o mandou prender; e porque o meirinho da cidade foi a ele, que lhe mandasse entregar aquele homem, não lho quis dar, e sobre isso ainda más palavras ao meirinho, chamado Francisco de Figueiredo. E assi injuriou um mercador gentio, o mais honrado dos quelis, per nome Midele Al-rajá, indo à sua povoação Upi a lhe requerer pagamento de certa fazenda, que lhe tomara; e quási escapou de o não matarem os seus escravos, que o apedrejaram com pães de estanho, que estavam em υa casa que era seu almazém, por não haver pedras na terra, o qual mercador se veo logo queixar a Afonso de Albuquerque. Sobre as quais cousas praticando ele com Rui de Araújo, que servia de feitor, e outros oficiais que ali haviam de ficar na fortaleza, assentaram, visto como este jau diante dos seus olhos todolos dias fazia mil forças , e os sinais de suas obras eram que, como viesse tempo, os havia de meter em revolta, seu voto era que, ante de proceder mais em outras maldades que não tevessem remédio, devia de morrer por o melhor modo que aí houvesse pera isso e de menos escândalo. Neste mesmo tempo, soube mais Afonso de Albuquerque que este jau todolos dias mandava contar quantas covas havia dos nossos que faleciam; porque, além daqueles que morreram a ferro, começou a terra de os apalpar, e morriam alguns dos muitos que adoeciam; e pera mais confirmação de sua soberba, per vezes que Afonso de Albuquerque o mandou chamar, ele, nem o filho nunca

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quiseram vir, simulando doença e outras cousas. Andando Afonso de Albuquerque mui cheo das suas, aconteceu que um Coge Abrahém, mouro, párseo de nação, grande amigo deste Utimuti-rajá, veo pedir a ele, Afonso de Albuquerque, o ofício de quetual da cidade; ao 288 qual respondeu que os tais ofícios não os havia de dar sem conselho dos homens principais da cidade; que os ajuntasse ele a um certo dia, e que per antes eles lho daria. Coge Abrahém, 287 como teve esta palavra, houve 90v logo que tinha o ofício, pois não estava em mais que ajuntar os mouros principais ante ele, Afonso de Albuquerque; e teve logo maneira, pola amizade que tinha com Utimuti-rajá, como ajuntou a ele, e a Patiaco, e Patiprá, seu filho e genro, e a Tuão Colascar, governador dos jaus da povoação de Ilher, Nina Chetu, governador dos gentios, Pate Quetir, jau, e a outros dos mais principais da terra. Afonso de Albuquerque, tanto que soube a vinda deles, ajuntou-se com os oficiais, e capitães em modo que os queria ouvir, e eles ouviram outra prática mui diferente; porque, ante que falassem, mandou a Rui de Araújo que lesse os capítulos das cousas que Utimuti-rajá tinha cometido, e a carta que tinha escrito ao Príncipe Alodim; muitas das quais cousas ele confessou, dando algυas más razões de sua desculpa. Finalmente, daquela feita, ele, o filho e genro, e um neto já homem, ficaram presos, e Pate Quetir, que era presente, entregue do ofício dele, Utimuti-rajá, sobre o qual caso Afonso de Albuquerque mandou proceder judicialmente, tirando-se testemunhos de mouros e gentios. E a primeira execução que fez sobre suas culpas, foi mandar-lhe restituir o roubado, em que entraram mais de quinhentos escravos de partes, e dos del-Rei chamados ambarages, que dissemos; e sobre isso mandaram-lhe desfazer as tranqueiras que novamente tinha feito, e encher de terra as cavas; a execução das quais cousas fazia Pate Quetir, como oficial que já era daquela parte de Upi, e per derradeiro deu-se sentença que morresse ele, o filho, e genro e neto. A mulher, sabendo parte desta sentença, mandou pedir a Afonso de Albuquerque houvesse, por satisfação deste caso, eles com toda sua família se irem viver a Jaua, pois Malaca os havia por odiosos; e que daria por suas vidas tantos mil pesos de ouro, que da nossa moeda passariam de cem mil cruzados. Ao que Afonso de Albuquerque respondeu, que ele era Ministro da Justiça del-Rei D. Manuel de Portugal, seu senhor, o qual não costumava vender justiça por dinheiro, por ser a mais preciosa cousa do Mundo; e por isso que se consolasse, porque ele padecia conforme a vida que teve e ensinou a seus filhos, té os trazer àquele estado. E parece que permitiu ainda Deus que a maior parte do cadafalso, que per seu conselho, e do Bendara, que assi acabou, se fez na praça em que eles esperavam banquetear com crua morte a Diogo Lopes de Sequeira (como escrevemos), este serviu pera esta sentença que se deu contra ele; porque foi degolado nele, e seu filho Patiaco, que também ao tempo que Diogo Lopes jogava o enxadrez esteve com o cris pera o matar, e assi os outros que eram 289 os mais chegados a eles por sangue, com pregões que denunciavam suas culpas. A qual justiça foi a primeira que per nossas leis e ordenações e processada, segundo forma de Direito, se fez naquela cidade, a vinte e sete dias de Dezembro de 288 quinhentos e onze, havendo dezasseis dias que era preso. Com o qual feito o povo de Malaca ficou mui desassombrado daquele tirano, e houveram sermos gente de muita justiça, e que a não vendíamos por tam pouco preço, como se naquelas partes entre eles usa, pois dando a mulher de Utimuti-rajá tanta soma de ouro, ante Afonso de Albuquerque lhe quis mandar entregar os corpos pera lhe dar sepultura, que as pessoas, sem nele se executar o que deviam por suas culpas. Esta mulher, movida com a dor destes filhos e marido, determinou, pois Afonso de Albuquerque lhos não quis dar polo ouro que mandava prometer, de gastar todo este ouro na vingança de sua morte, e pera isso não achou melhor meio, que dar a Pate Quetir seis ou sete mil

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pesos de ouro, que fizesse quanto mal nos podesse fazer, porque ela lhe entregaria pera isso toda sua família; e mais dando-lhe esta vingança, que o casaria com υa filha sua. Pate Quetir, como era homem poderoso na terra, ainda que em vida de Utimuti-rajá não estava bem com ele, com cobiça do prémio de que logo via boa entrada, e também com esperança que podia Malaca com esta revolta vir a termos que seria ele senhor dela, por a grande família de Utimuti-rajá e riqueza que ficara dele, e que nisto não aventurava cousa algυa, pois era a custa alhea, υa ante menhã veo queimar toda aquela parte da cidade contra a povoação Upi, por ali viverem os chatis do Quelim, dos quais se ela queixava, dizendo serem autores da morte de seu marido e filhos, por os queixumes que deles foram fazer a Afonso de Albuquerque. O qual insulto, tanto que o ele soube, andando já os jaus com as mãos tintas do sangue dos mortos, mandou alguns capitães que acudissem a isso, os quais fizeram recolher a Pate Quetir na 91 povoação Upi. Mas ele, não contente com esta vez, mandava daquela gente que tinha per esses duções de quelis, com que fazia grã dano, e assi naquela parte da cidade, dando de súbito alguns rebates, de que os malaios andavam assombrados, por temerem muito a estes jaus, como a gente desesperada que não temem morrer com tanto que satisfaçam sua vingança. A qual fúria durou per dez dias, té que o mesmo Pate Quetir veo assentar paz com Afonso de Albuquerque, mostrando que, por ganhar sua amizade e desejar o serviço del-Rei de Portugal, amansara os corações daquela gente, à qual, se lhe não fora concedido aquele modo de vingança, quási como choro nos casos tam tristes, como foi o de seu senhor, segundo a gente dos jaus é furiosa naqueles autos, sempre fizeram maior dano; mas com aquela cevadura, que foi artefício de os amansar, ele os tinha já pacíficos e obedientes a seu mandado. Afonso de Albuquerque, porque soube que este jau desejava muito casar com a filha de Utimuti-rajá, que lhe sua mãe prometia, pareceu-lhe que, 290 por comprazer à mulher dele, pera efeito daquele casamento, fizera 289 aqueles cometimentos, que causou dissimular o melhor que pôde com ele, levando-lhe em conta suas desculpas. E porque via também que começava ele ter crédito entre os jaus, gente a mais principal e poderosa da terra, e dando-lhe de todo o ofício que fora de Utimuti-rajá, ficava mais honrado pera a mulher dele lhe dar sua filha em casamento, com que ficaria de todo assossegado, deu-lhe o ofício, com que per este modo ficou em paz submetido à nossa obediência. Mas isto durou mui poucos dias; ca a mesma honra que lhe Afonso de Albuquerque fez na dada do ofício, causou tornar-se a rebelar; porque, vendo-se casado com a filha de Utimuti-rajá, com que ficou senhor daquela sua grã família e fazenda, ficou logo vingador de sua morte, porque com esta condição lhe deu a sogra a filha. Porém logo no princípio não se mostrou mais que revel aos mandados de Afonso de Albuquerque, sem fazer guerra, esperando que se fosse ele pera a Índia, que seria tanto que a monção viesse. Estando as cousas neste estado, el-Rei de Campar, cujo reino é na Ilha Samatra, obra de vinte seis léguas ao Levante de Malaca, porque fora casado com υa filha del-Rei de Malaca, de que era viúvo, donde entre eles houve desavença, determinou de se meter em nossa graça pera este fim. Sabendo ele como Afonso de Albuquerque, a míngua de homens nobres per morte de Utimuti-rajá provera do ofício que ele tinha a Pate Quetir, o qual se rebelava, determinou de lhe mandar pedir que o leixasse vir a Malaca a servir a el-Rei de Portugal, cujo vassalo queria ser, parecendo-lhe que os malaios, por razão da nobreza de sua pessoa, como o vissem em Malaca, pelas inteligências que já sobre isso tinham, pederiam a Afonso de Albuquerque que lhe desse o ofício que tinha Pate Quetir. Com a qual entrada, de duas o tempo lhe podia dar υa: ficar senhor de Malaca ou provocar todolos moradores dela a se passarem a viver ao seu rio de Campar. Pera efeito do qual propósito se veo a υa ilha, a que os naturais da terra chamam Sapata, e os nossos da Aguada, pola que ali fazem quando navegam, ou dos Limões, polos muitos que tem; da qual ilha mandou um presente a Afonso

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de Albuquerque de certos fardos de lenho loe; e de υa massa de espécia de lacre, que entre eles serve de verniz, dizendo que aquela era a fructa da sua terra; e posto que nela fosse livre, que seu desejo era fazer-se vassalo del-Rei de Portugal, e vir viver a Malaca a o servir, se aprouvesse a ele, Capitão-mor. A qual vinda por então não houve efeito, por Afonso de Albuquerque lhe não conceder algυas cousas de suas capitulações; porém, depois, em tempo de Jorge de Albuquerque, sendo capitão daquela cidade Malaca, se veo ele a esta com Pero de Faria, que andava naquele estreito de Sabão de armada (como se verá em seu tempo). Também vieram neste tempo embaixadores de um Rei gentio da 291 Ilha Jaua com um presente e oferecimentos 290 de grande amizade a Afonso de Albuquerque, ao qual ele respondeu, e mandou um dos elefantes que ali foram tomados, por serem lá de muita estima; e assi lhe veo um embaixador del-Rei de Sião em companhia de Duarte Fernandes, que ele lá tinha enviado com os chis. E a causa de sua vinda era querer el-Rei per sua pessoa saber se era verdade do estado em que estava Malaca, e que gente era aquela, que lhe dava tal vingança daquele tirano, porque não o podia crer, e disso mandava agradecimentos a Afonso de Albuquerque, oferecendo-se por grande amigo del-Rei de Portugal, pera o qual mandava cartas e presente, e 91v assi a ele, Afonso de Albuquerque. Com o qual à tornada ele mandou, por mais segurar o estado de Malaca, sua embaixada per António de Miranda de Azevedo e Duarte Coelho, bem acompanhados com algυas cousas destas partes. A sustância da qual embaixada era liança de amizade, e que, pois ele tinha destruído aquele tirano, que tanto tempo lhe fora revel e nunca podera castigar, que dali em diante podia mandar os seus povos de Sião viver àquela cidade, porque seriam tratados nela como os próprios portugueses. E neste mesmo tempo mandou outra embaixada a el-Rei de Pegu per Rui da Cunha; e assi ele, como António de Miranda, foram em navios que ali vieram de Pegu, e porém António de Miranda ficou em Tanaçari, que era del-Rei de Sião, por o seu senhorio ser de mar, e per ali entrou per terra té Sião. Rui de Araújo e Nina Chetu, porque souberam de Afonso de Albuquerque como desejava também de mandar descobrir as Ilhas de Maluco e Banda, donde nascia o cravo, noz e massa, enquanto os navios se faziam prestes, ordenaram um junco seu com algυa mercadoria, de que era capitão um mouro per nome Nehodá Ismael, que fosse diante, ao qual Afonso de Albuquerque deu regimento que fosse per todolos principais portos da Jaua, denunciando o feito de Malaca, e que podiam ir a ela fazer seus proveitos mais seguramente, que em tempo del-Rei Mahamede, porque achariam todalas mercadorias destas partes ocidentais, de que ele levava mostra. E di fosse às Ilhas de Maluco e Banda carregar, e fizesse outra tal denunciação, afim que a navegação de Malaca, que naquelas partes era tam geral, não se perdesse, ouvindo que estava em nosso poder; e também que os nossos navios que ele esperava mandar logo, quando chegassem a algum porto destes, fossem bem recebidos. O qual Nehodá não levou de vantage a três navios, que Afonso de Albuquerque mandou a este descobrimento, mais que dous ou três dias, dos quais foi por Capitão-mor António de Abreu, o que foi ferido com o espingardão no junco; e dos outros dous eram capitães Francisco Serrão e Simão Afonso, cavaleiros da casa del-Rei, e feitor das mercadorias João Freire, criado da Rainha D. Lianor, e escrivão Diogo Borges, e pilotos 291 Luís Botim, Gonçalo de Oliveira e Francisco Rodrigues; com regimento que em nenhυa maneira fizessem presa nem tomadia, ante procurassem paz, dando de seu per onde quer que fossem, e assentassem padrões e as terras nas cartas, e 292 outros muitos avisos e resguardos, que convinham pera tam novo descobrimento. Espedidos estes embaixadores e navios que Afonso de Albuquerque mandou, começou

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entender em sua partida pera a Índia, leixando primeiro assentado todalas cousas da cidade o melhor que se podesse fazer em tam breve tempo, e em negócio tam revolto como se tratou depois que chegou a ela té sua partida. Por capitão da qual fortaleza (que ficava já em altura que se podia bem defender), leixou a Rui de Brito Patalim, um fidalgo da Vila de Santarém, pessoa de quem ele confiou o governo e defensão daquela cidade com até trezentos e tantos homens de armas; e a Rui de Araújo por alcaide-mor e feitor, em pagamento de seu cativeiro; e por escrivães de seu cargo, Francisco de Azevedo, Pero Salgado e João Jorge; almoxarife dos mantimentos Jácome Fernandes, e seu escrivão Francisco Cardoso; e almoxarife do almazém Brás Afonso; e Provedor dos defuntos e hespital Diogo Camacho com seus escrivães e outros oficiais, cujos nomes não vieram a nossa notícia, todos criados del-Rei, e pessoas de merecimento, segundo seu cargo; e por xebandar e governador dos gentios Nina Chetu, e dos mouros malaios um seu caciz, e dos jaus da parte de Upi, por Pate Quetir estar alevantado, um mouro honrado per nome Aregemute-rajá, e dos da parte Ilher, Tuão Colascar; e Rui de Araújo, por já saber a língua da terra e seus costumes, interviesse com eles, xebandares, em os negócios da governança de seus ofícios, pera dar disso razão ao capitão Rui de Brito, porque o povo não recebesse algum agravo dos xebandares. No mar leixou υa armada de dez velas, em que ficariam trezentos homens de armas e mareantes, da qual armada era Capitão-mor Fernão Peres de Andrade e sota-capitão Lopo de Azevedo; e os outros capitães eram João Lopes Alvim, Vasco Fernandes Coutinho, Cristóvão Garcez, Jorge Botelho, Aires Pereira de Berredo, Pero de Faria, Cristóvão Mascarenhas e António de Azevedo, todos homens fidalgos e bons cavaleiros. E aos que novamente fez capitães, deu 92 parte dos navios que levou da Índia, com fundamento que, tanto que a ela chegasse, prover de melhores vasilhas àqueles a que tomara as em que andavam, por as dar aos que ficavam nesta armada. E Fernão Peres, Capitão-mor dela, havia de esperar a monção do tempo em que vem os juncos de Maluco, Banda, Timor, e daquelas partes orientais a Malaca, pera carregar de drogas e de outra fazenda as naus dos armadores, que Diogo Mendes de Vasconcelos levava, e di se vir pera o reino;, e em lugar dele, Fernão Peres, como dissemos, havia de ficar Lopo de Azevedo. Providas estas cousas, e as 292 mais que convinham à governança e defensão 293 de Malaca, e assi as necessárias à partida de Afonso de Albuquerque, vieram-se a ele os moradores que ali ficavam de assento, assi gentios do Queli, Pegu, Jaua, como os mouros destas e de outras partes, fazendo-lhe υa fala pública em modo de requerimento. Trazendo-lhe à memória como as cousas daquela cidade estavam ainda mui frescas e os ânimos de muitos pouco quietos e seguros no serviço del-Rei de Portugal, e outros publicamente, assi como malaios e jaus, andavam levantados. E posto que ele, Capitão-mor, leixava pera defensão daquela cidade mui bons capitães e cavaleiros, ela era tamanha cousa, que requeria sempre presente a pessoa dele, Capitão-mor, principalmente naquele tempo. Portanto eles como bons e fiéis vassalos del-Rei de Portugal, os quais ele, Capitão-mor, tinha ganhado per armas e depois per amor de boas obras e mercê que dele receberam, lhe requeriam que por então não se partisse pera a Índia, ao menos té a outra monção; e que, se per ventura, na feitoria del-Rei, havia algυa necessidade pera pagamento da gente de armas, eles a supririam com suas fazendas. Afonso de Albuquerque, posto que estes moradores o apertavam muito, quási imputando a ele o mal que ao diante sucedesse com sua breve partida, todavia este zelo que viu naquelas pessoas tam principais, de quem dependia a governança e assossego da terra, o segurou mais em sua ida; e dando-lhe por isso muitas graças e as razões que obrigavam acudir ao Estado da Índia, os espediu, e di a três ou quatro dias se partiu com quatro velas. Ele em υa, e nas três vinham Jorge Nunes de Lião, Pero de Alpoém, que era nas em que foram da Índia, e Simão Martins em um junco, que tomou naquele caminho, todo amarinhado de jaus, em que entravam muitos carpinteiros, calafates e

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oficiais mecânicos, que Afonso de Albuquerque levava em grande estima, por estes jaus serem grandes homens deste mister do mar, os quais seriam quási sessenta pessoas, afora mulheres e filhos, que eles costumam trazer consigo. E ao tempo que Afonso de Albuquerque se embarcou, o Príncipe Geinal, que ele tomou em o junco Bravo, desapareceu: parece que desconfiou de poder ser restituído em seu reino, como lhe Afonso de Albuquerque tinha prometido, vendo que levava ele consigo poucas velas e gente. E posto que Afonso de Albuquerque mandou fazer deligência em sua busca, nunca o poderam achar; e depois se soube ser ido pera el-Rei Mahamede, que fora de Malaca, por tratos que andaram entre eles, onde esteve alguns anos, té que per seu favor veo cobrar o reino de Pacém, em que durou pouco, como veremos em seu tempo. E neste de seu desterro, o tirano que o lançou do reino, temendo que Afonso de Albuquerque lhe pedisse conta daquela obra, e mais do que era feito a João Viegas no seu porto de Pacém, trabalhou sempre de o contentar e ganhar a vontade com boas obras; porque alguns homens que 293 foram ter ao 294 seu porto da nau Frol de la Mar, que naquela viagem que Afonso de Albuquerque fez pera a Índia, se perdeu (como veremos), ele os agasalhou e mandou com dávidas em as naus de Coromandel, que iam carregar ao seu porto, pera di se irem a Cochi. E leixando Afonso de Albuquerque a viagem, do qual escrevemos adiante, convém, primeiro que entremos em o ano de doze, darmos conta do que passou na Índia, e principalmente em Goa, enquanto ele andou fora.

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293 92 294 Capítulo VIII. Como os Mouros das terras firmes de Goa, partido Afonso de Albuquerque pera Malaca, lhe vieram fazer guerra, té um capitão do Hidalcão entrar na Ilha, em que o capitão Rodrigo Rabelo e Manuel da Cunha foram mortos. 92v Como muitas terras firmes de Goa não estavam de todo assentadas, nem o ânimo de seus moradores mui fiéis na obediência nossa, tanto que viram partido Afonso de Albuquerque pera Malaca, lugar tam remoto da Índia e terra pera que os nossos não tinham navegado, e mais mui duvidosa pelo que nela aconteceu a Diogo Lopes de Sequeira, como gente que não temia sua tornada, começou de se rebelar, não querendo acudir com o rendimento das tanadarias ao capitão Melrau, a quem Afonso de Albuquerque as tinha dado pela maneira que dissemos. E posto que com a gente da guerra que ele trazia ordenada pera defensão daquelas tanadarias, às vezes fazia a arrecadação delas com trabalho, muito maior o teve tanto que com força de gente veo sobre ele um capitão do Hidalcão, chamado Pulate-Cane, té que, per derradeiro, vindo este Pulate-Cane a lhe dar υa batalha, Melrau lhe saiu, e o desbaratou com quatro mil piães e quorenta de cavalo que tinha tendo Pulate-Cane muito maior número de gente. Seguindo o alcanço do qual um seu capitão dele, Melrau, per nome Içarau, quis tanto perseguir os imigos, que, quási desesperados de salvação, em um lugar estreito tornaram sobre si, onde Içarau foi morto e a maior parte da gente que levava; com o ímpeto da qual vitória vieram dar com Melrau, que estava repousado daquele feito, e foi ali desbaratado. E porque lhe tomaram o caminho de Goa, e ele ser homem de honra e saber que acerca de nós é injúria perder o campo, não ousou vir ante o capitão Rodrigo Rabelo 295 naquele estado de vencido, e foi-se pera el-Rei de Narsinga, levando consigo Timoja, que (como vimos) ele tinha tomado sobre si por causa do roubo das naus, os quais danos, se os não pagou com a fazenda, foram pagos com sua morte lá em Narsinga, de sua chegada a poucos dias. Com a qual nova sua mulher e filhos fugiram de Onor, onde estavam, e se vieram a Goa buscar nosso amparo, aos quais Afonso de Albuquerque, depois de sua 294 vinda de Malaca (posto que ele, Timoja, era travesso), por memória dos serviços que fez na tomada de Goa e exemplo ao gentio daquela terra - que às mulheres e filhos daqueles que militavam e morriam por nós eram amparados - lhe mandou ordenar certa cousa de que se mantivessem. Melrau, depois que foi em Narsinga, não tardou muito que não foi chamado por o povo do reino de Onor, por ser morto o irmão, com que tinha guerra sobre a sucessão do reino. E como era homem grato, tanto que soube que Afonso de Albuquerque era vindo de Malaca, lhe mandou algυas peças de serviço, em que entrou um assento forrado de ouro ao modo de tripeça, que lhe el-Rei de Narsinga deu, quando se dele espediu por vir herdar, e sempre foi grande amigo de portugueses, enquanto viveu. Ficando as terras de Goa desemparadas com esta batalha, em que Melrau foi desbaratado, sem Rodrigo Rabelo lhe poder socorrer, por a pouca gente que tinha, levantou-se nesta conjunção um mouro coixo, e com pregações per modo de religião começou de induzir e convocar muito povo dos mouros dos que lançáramos da Ilha de Goa e de outros a ela vezinhos que viessem sobre ela, prometendo com seus sermões de Satanaz restituição dela, de maneira que, com a gente que este mouro ajuntou e outra que Pulate-Cane tinha, se fez um corpo de mais de oito mil homens, com que ele, Pulate-Cane, algυas vezes vinha dar mostra derredor da Ilha, e do sucesso tomar conselho do modo que teria em cometer a entrada dela.

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A qual ele não cometera, se Rodrigo Rabelo fizera a torre e baluarte que lhe Afonso de Albuquerque leixou ordenado que fizesse no passo Benestari, na parte da Ilha onde estava um muro velho, largo e soberbo sobre o rio, com υa porta como que já em outro tempo se fizera ali aquela defensão por guarda da entrada da ilha. Porque, como toda era cercada de rio largo, segurado este passo, por ser o mais corrente da terra firme, ficava o mais da ilha guardado com pouca vegia; e quando per qualquer outra parte fosse entrada, pera sair dela depressa, não podia ser senão per aqui; o qual lugar tomado, ficava a gente desta entrada perdida, e isto era o que Afonso de Albuquerque lamentava depois da sua vinda. A qual obra Rodrigo Rabelo por então houve por escusada, por ter outras da cidade a que acudir, e mais vendo que Melrau andava com gente de guerra nas terras firmes, e que não havia nelas mouros de que temer a 296 entrada da ilha, depois que Melique-Agri perdeu estas terras firmes e o Hidalcão com suas ocupações da guerra, que tinha no sertão, não acudia a elas. Peró, depois que ele, Rodrigo Rabelo, viu 93 Melrau desbaratado com a vinda de Pulate-Cane, e que com ele se ajuntaram os mouros do outro pregador, com que lhe vinha dar mostras derredor da ilha, e podia em jangadas, como da outra vez, cometer a entrada dela, ordenou navios de guarda, porque té então a vigia dos passos era encomendada ao tanadar Coge-Qui, homem 295 de guerra, e mui fiel servidor. O qual com certos naiques, que são capitães da gente de pé, segundo uso da terra, de noite e de dia roldavam os passos de suspeita; porque, como eles eram do gentio canari da ilha, que tinham nela mulher e filhos, tanto importava a eles a guarda da ilha, por lhe não destruírem sua pobre aldea onde viviam, como aos nossos a cidade onde estavam mais seguros; e sobretudo sempre o adail Diogo Fernandes, ordinariamente com a gente de cavalo e pé a ele ordenada, a giros visitava todolos passos. E porque os de Benestari e Agaci eram de maior suspeita, tanto que Pulate-Cane deu mostra de si, mandou Rodrigo Rabelo a um Pero Preto, morador da cidade, que estevesse com um batel grande com alguns homens e duas peças de artelharia em o passo de Benestari e no de Agaci outros dous batéis, em um deles Aires Dias e no outro Aires da Silva por capitão de todos três, dando vista a υa e outra parte. E ele, Rodrigo Rabelo, per muitas vezes cavalgava com até quorenta de cavalo e gente de pé da terra, e andava favorecendo as aldeas, e dava também algυa mostra a Pulate-Cane, que aparecia da outra banda do rio. Havendo já dias que a guarda da ilha procedia per esta maneira, como Pulate-Cane era homem de guerra e de indústria, ordenou υas jangadas per uns esteiros dentro do rio de Antrux, que vinham dar no passo de Agaci, mostrando que per aquela parte havia de fazer a entrada, e pera isto tinha suas inteligências com alguns gentios moradores na ilha, que, como fosse dentro, que leixassem os nossos e se ajuntassem com ele. Do qual cometimento que fez ao gentio da terra Crisna um capitão deles o descobriu a Rodrigo Rabelo; e passando alguns dias que ele, Pulate-Cane, andou com eles neste trato, tudo industriosamente pera que Rodrigo Rabelo o soubesse, mandou dizer a estes principais que tinha convocado pera o negócio, que pera υa tal noite o viessem esperar ao passo de Agaci. Rodrigo Rabelo, como foi avisado desta noite de sua entrada per aquela parte, mandou a Pero Preto, que estava em Benestari, que se viesse ajuntar com Aires da Silva. Pulate-Cane, como não esperava outra cousa, tinha no passo Benestari gente prestes, e a nado passaram a ilha 297 sobre as adargas e cestos obra de trezentos homens, que vieram logo ao longo da ribeira té o passo de Agaci tomar a gente da terra, que estava ali em guarda do passo Agaci. A qual, como tinha os olhos no mar e o descuido na terra, quando sentiram o ferro em si, houveram que a ilha era entrada per muitas partes e não de gente que os convocava em sua ajuda, mas que lhe queria tirar a vida, e

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por isso começou cada um acudir a sua aldea, a poer em cobro mulher e filhos. Aires da Silva, que estava defronte, na terra firme, vigiando a saída das jangadas, quando ouviu os alaridos dos mouros e arder a aldea dos gentios que estavam em guarda do 296 passo, parecendo-lhe que algυas jangadas das que ele esperava eram passadas da banda de além, foi demandar a ilha pera ver se as via; e não as achando, nem menos o naique que estava sobre o passo, tornou-se ao lugar que ante tinha, que era aquele per onde esperava que haviam de sair as jangadas, segundo o aviso de Rodrigo Rabelo, parecendo-lhe que a grita e arder da aldea era algυa maldade dos gentios da terra, feita per a indústria de Pulate-Cane, pera que, enquanto acudisse ali com os batéis, sair ele com suas jangadas. A qual suspeita era assi, porque não seria Aires da Silva tornado a este lugar, quando sentiu o rumor da gente que vinha nas jangadas; e porque o escuro da noite e chuiva lhe não dava vista pera as cometer, converteu-se a mandar tirar com artelharia a esmo, onde sentiram o rumor, que causou não se mudarem os mouros donde estavam, o que aproveitou muito pera se salvarem. Porque, quando veo pela menhã com a maré vasia, e o mar espraiar muito, por serem águas vivas, estavam todos em seco, uns sobre coroas de area, outros em vasa, de maneira que os nossos batéis não podiam ir a eles e estavam um pouco afastados pera com artelharia lhe fazer algum dano. Aires da Silva, enquanto os tinha ali presos té vir a maré, deu υa volta aos passos da ilha, e achou que verdadeiramente os alaridos e fogo, que ouviu e viu de noite eram dos mouros, e que entraram per 93v Benestari, onde já da banda da terra firme viu muita gente que queria passar per υa jangada pequena que estavam fazendo, a qual obra empediu que não fosse mais avante. Peró isto aproveitava já bem pouco, porque ante de sua vinda eram passados alguns mouros de cavalo com um golpe de gente de pé, que se ajuntaram com os piães que passaram de noite, os quais, como não acharam defensão na terra, meteram-se per essas aldeas ferindo e matando os lavradores, muitos dos quais, que podiam escapar daquele primeiro ímpeto, em fio, a grã corrida, vinham buscar o amparo da cidade. Quando o capitão Rodrigo Rabelo os viu entrar, deles banhados em sangue das feridas que já traziam, e as mulheres e crianças de peito postas em um vivo choro, mandou a grã pressa ao adail Diogo Fernandes, que lhe fosse saber se era muita gente entrada. O qual, tanto que saiu um pedaço da cidade, topou muitos destes lavradores que vinham fugindo, e disseram-lhe que seriam até quinhentos mouros, e sobre estes veo o tanadar Coge-Qui, que 298 ele mandou ir ao capitão pera lhe dar razão do que sabia, enquanto ele, adail, dava υa volta pera haver mais vista da terra. Chegado este Coge-Qui a Rodrigo Rabelo, contou-lhe o modo do desbarato do naique, que estava em guarda do passo, e que lhe parecia (segundo o que de noite se podia estimar) os mouros poderiam ser até duzentos; e porém, pela nova que lhe davam os lavradores das aldeas, per toda a ilha andava muita 297 gente espalhada como quem vinha a roubar o campo, e não cometer a cidade. Rodrigo Rabelo com esta informação cavalgou com até trinta e seis de cavalo, e sessenta piães que se ali acharam com o tanadar; mas, em saindo da cidade, foi recolhendo os que vinham fugindo té o adail vir dar com ele, que lhe deu a mesma nova de Coge-Qui. Ao qual adail o capitão logo espediu com quatro de cavalo que lhe fosse atalhando, e descobrindo a terra pera saber a que parte andavam os mouros. Partido o adail, vieram ter com o capitão dous lavradores, e disseram-lhe que (segundo tinham sabido) aquela noite, pelo passo de Agaci, entraram até duzentos mouros, que se meteram per essas aldeas a roubar e matar, e que os gançares da terra se ajuntaram e os tinham cercado em um covão em Goa-a-Velha, os quais aguardavam por sua mercê pera os tomar ali às mãos. O capitão por lhe parecer que esta era a verdade de todo aquele alvoroço da terra, e não perder aquela prea, tomou um meio galope, e, chegando a um teso onde o adail veo ter com ele, que vinha

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atalhando a terra, viram os mouros que lhe ficavam debaixo no vale em um corpo de gente de até mil e quinhentos homens, como que houveram vista dos nossos, e iam tomando um teso. Quando ele viu que o número da gente era mais, e não estava no estado que lhe os lavradores disseram, disse contra os que o acompanhavam: - Parece-me que mal soube contar quem nos cá fez vir. Que vos parece, senhores, que devemos fazer? Ao que respondeu Pero Coresma: - Nós temos a cidade longe, e aqui não há mais que bebê-la, e não vertê-la. Com a qual palavra i não houve mais conselho (por não darem em a detença dele ânimo aos mouros) que dizer o capitão, em nome de Deus, - Santiago! Eram com Rodrigo Rabelo neste feito estes fidalgos e cavaleiros: Manuel da Cunha, filho de Tristão da Cunha, Duarte de Melo, que ficaram doentes quando Afonso de Albuquerque partiu pera Malaca; Pero Coresma, que depois foi provedor dos fornos del-Rei; Fernão Correa e Baltasar da Silva, ambos irmãos; Mem de Afonso, um especial cavaleiro de Tanger; Brás Bocarro, almoxerife da cidade; o adail Diogo Fernandes; Bastião Rodrigues que depois foi juiz da Balança da Moeda de Lisboa; Fernão Chanoca, Lopo de Abreu, almoxerife dos mantimentos, e Francisco de Madureira, filho de Antão Diz, do Chafariz de Arroios; Gonçalo Rabelo, Fernão Caldeira, António 299 Correa, Mestre Afonso, sorlegião e outros cujos nomes não vieram a nossa notícia, que per todos fariam número de até quorenta de cavalo, e piães da terra até cento trinta, que se ajuntaram com o tanadar. Os mouros todos vinham a pé, e o capitão deles era um turco, valente de sua pessoa, que por honra de capitão era trazido em um andor ao ombro de quatro homens, de cima dos quais mandava a gente como se andasse a cavalo. O qual, naquela pequena demora que fizeram 298 os nossos em se determinar, vendo que seria consulta, e por poucos não ousariam de os cometer, cobrou coração de maneira que, quando o capitão deu - Santiago! - já ele com os seus receberam com alaridos os nossos, despendendo o seu almazém de frechas. E foi a cousa 94 assi rompida e favorecida de Deus, que no primeiro ímpeto dos nossos os mouros se posesse em fugida em busca do mar, parecendo-lhe que podiam achar algum favor dos seus; e foi tanta a matança neles nesta fugida, que alguns que escaparam foi por serem tantos e os nossos tam poucos, que enquanto se detinham com uns, se posesse os outros em salvo. E os que mais seguiram este alcanço, foram o capitão Manuel da Cunha, Fernão Correa, Pero Coresma, e Brás Bocarro, e assi lhe ficou o braço mais cansado. Tornando o capitão desta vitória, chegou a ele um homem da terra e disse que per υa tal parte entravam mouros, com o qual ele mandou o adail a ver vista da gente; e sobre este homem chegou outro, e disse que em outra parte mais perto vira alguns homens que se recolhiam a um teso junto da água, como gente que não ousava de sair dali, a qual toda em seu trajo eram dos principais, que lhe parecia poderem logo ser tomados. O capitão, favorecido da vitória, ou porque o chamava o seu derradeiro dia, sem mais consideração com esses que tinham os cavalos menos cansados, pôs-se logo na dianteira; e como era homem de sua pessoa, e desejoso de honra, entrando primeiro que todos pela entrada per que serva a recolhimento, onde se os mouros quiseram pôr em defensão, que era um lugar íngreme e torneado de paredes de edefícios, que já li esteveram, foi-lhe logo derribado o cavalo com um zarguncho de arremesso, e ele morto primeiro que se podesse desembaraçar, e per o mesmo modo Manuel da Cunha, que vinha enfiado nas ancas dele. Porque dentro estavam mais de setenta mouros, todos gente limpa, a pé com o seu capitão Pulate-Cane, o qual buscou modo de passar da terra firme, e estava ali recolhido, porque soube do desbarato da sua gente; e a fortuna foi-lhe tam favorável, que, estando perdido e quási tomado às mãos, veo a ser vencedor de quem não havia meia hora que vencera mil e quinhentos homens. E este perigo de morte houveram de passar os outros que vinham trás estas duas tam

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notáveis pessoas; mas quando os acharam atravessados naquela entrada e viram o que ia dentro, tornaram a voltar por não ser lugar em que podessem vingar sua morte, e trazerem os cavalos tais, que somente pera aquele feito, em andar sobre eles, andavam mortos; e se Pulate-Cane não 300 estevera tam temorizado, parecendo-lhe que no campo andava gente grossa, de que aqueles seriam alguns desmandados, primeiro que eles chegaram à cidade, um, e um os mataram. Chegada esta triste nova à cidade - da morte de tais pessoas - houve nela grande confusão; porque 299 ainda que tinham sabido da vitória que de ante houveram, com sua morte tudo esqueceu; e mais vendo que o gentio da terra, atassalhado grande número dele, entrava clamando que a ilha era entrada de muitos mouros. E posto que, per regimento del-Rei, os alcaides-mores sucedem aos capitães, por o negócio da defensão da cidade estar em grande risco, e pera o governo dela havia mister um homem de madura idade e de muita experiência nas cousas da guerra, a maior parte da gente foi que a capitania dele se desse a Diogo Mendes de Vasconcelos, em que concorriam as calidades que convinham pera isso, visto também, como Francisco Pantoja, alcaide-mor, quási desistiu do dereito da sucessão. E por ele, Diogo Mendes, ficar preso no castelo pelo caso que atrás fica, Francisco Corvinel, feitor, e os oficiais da Câmara da Cidade e outras pessoas principais lhe foram com auto solene levantar a menage de preso e lhe entregaram o governo da cidade com nome de capitão dela. Aires da Silva, que foi dar no passo Benestari sem ser sabedor destas cousas, andou a υa e a outra parte ver se era algυa gente entrada na ilha; e tornado ao passo de Agaci, onde leixava os mouros em seco, achou que com a vinda da maré muita parte deles eram recolhidos, e outros estavam em tal lugar, que lhe não podia fazer dano. Andando na qual deligência, veo saber per gente da terra que desciam à ribeira buscar amparo do mal que se fazia nas aldeas, que a terra era chea de mouros de Pulate-Cane, que entrara de noite e ante menhã per o passo Benestari. Com a qual nova, de que foi logo mais certeficado com o grande número de mouros que acudiam ao porto de Agaci ver se poderiam passar em jangadas, determinou-se que sua estância ali era escusada, pois os mouros tinham tantas partes per onde entrar, e mais que da cidade não lhe vinha recado, como ocupada em algυa grande necessidade. E com este fundamento se foi a ela, onde achou os trabalhos que dissemos, e a partida dele fez que a gente de Pulate-Cane passasse mais prestes e à sua vontade, por lhe não 94v ser defendida a passagem. O qual Pulate-Cane, como homem que fazia fundamento de pôr em cerco a cidade, quis segurar a entrada e saída na ilha, fazendo no passo Benestari cavas e valos pera de vagar fazer υa fortaleza, tomando parte de um outeiro, por lhe não ficar aquele padrasto sobre a cabeça, donde poderia receber dano, e com pouca artelharia lhe podiam defender a serventia da terra firme, donde esperava todo seu provimento.

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300 94v 301 Capítulo IX. Como o Hidalcão mandou outro Capitão sobre Goa, e o modo que teve pera com nossa ajuda lançar Pulate-Cane da fortaleza que começou fazer; e o mais que aconteceu no tempo que a cidade esteve cercada, té se nela lançar João Machado, um português que andava entre os mouros. O Hidalcão, como foi certificado desta entrada da ilha sem ser per carta de Pulate-Cane, e da fortaleza que fazia no passo e outras cousas, como homem isento, começou de tomar presunção que não estava muito fiel nas cousas de seu serviço, porque já dantes não lhe respondia com o rendimento das terras firmes, dizendo despender tudo com a gente que trazia a soldo pera as defender de nós. Com a qual suspeita, ante que ele, Pulate-Cane, se fizesse mais poderoso, ordenou de mandar outro capitão, e foi um seu cunhado per nome Restomo-Cane, a que os nossos chamam Russalcão, porque por ser pessoa tam principal, e mais por levar até sete mil homens, em que entravam muitos mouros brancos de toda nação, Pulate-Cane lhe obedeceria. A qual cousa sucedeu pelo contrairo; ca Pulate-Cane se mostrou mui agravado, dizendo que o Hidalcão lhe tomava sua honra em mandar a ele Rostomo-Cane, pois com tanto sangue vertido tomara aquela ilha de que o mandava tirar, não tendo dele, Hidalcão, recebido mais ajudas pera este feito, que uns poucos de homens que per seu mandado trouxera logo no princípio daquela guerra, e que tudo o mais té aquele estado era indústria e trabalhos dele, Pulate-Cane. Rostomo-Cane, quando o viu tam endinado e solto em palavras, confirmou o que se dele suspeitava - estar meio alevantado - e, como homem prudente e manhoso fez a este negócio dous rostos, que lhe muito aproveitaram pera tudo lhe ficar na mão. O primeiro foi a Pulate-Cane, dizendo-lhe que não se podia negar ele, Pulate-Cane, ter cometido aquele feito como cavaleiro que era, por o qual merecia mercê ao Hidalcão, e que ele lhe escreveria como as cousas estavam em melhor estado do que lhe fora dito; que a culpa de ele ali vir fora dele mesmo, Pulate-Cane, não escrever ao Hidalcão o que tinha feito e havia mester pera acabar de levar de todo aquela impresa na mão. Que, entretanto, como companheiros, fizessem o que convinha ao serviço de seu senhor, fortalecendo bem aquela fortaleza que tinha começado, té vir recado do Hidalcão, e que ele confiava ser tal qual convinha a sua honra. O outro rosto que este Rostomo-Cane fez por achar este mouro tam 302 alevantado, foi dessimular suas cousas por não virem à notícia de todos, e mandou secretamente a Diogo Mendes de Vasconcelos, capitão da cidade um português per nome Duarte Tavares, que do outro cerco passado fora ali cativo e andava lá com outros que foram tomados com Fernão 301 Jácome. Per o qual lhe mandou dizer que o Hidalcão estava em propósito mais de ter paz e amizade com el-Rei de Portugal, que andar com seus capitães em contínua guerra, e que com esta tenção ele não mandara mais gente sobre aquela cidade, posto que era υa das cousas mais principais do seu estado; porque mais estimava a amizade del-Rei de Portugal, que a própria cidade em si, contanto que a renda das terras firmes ficasse com ele, Hidalcão, da maneira que entre ele e Afonso de Albuquerque estava assentado. E porque ao presente ele era em Malaca, o Hidalcão, seu senhor, o mandava a duas cousas: a primeira, lançar dali Pulate-Cane como perturbador desta paz, mui encarniçado nos roubos da terra, per onde sem licença do Hidalcão cometera entrar naquela ilha; e a segunda, assentar esta paz com ele, capitão. A qual, segundo tinha entendido, Pulate-Cane contrariava, e todo o seu negócio era ir avante com aquela guerra, como homem que se via rico e honrado, depois que a começou. E que a lhe descobrir 95

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o que passava em verdade, ele o achava rebel aos regimentos e mandados do Hidalcão, a qual cousa ele dissimulava, té saber dele, Diogo Mendes, o que determinava sobre o negócio desta paz que lhe o Hidalcão mandava dizer. Porque, querendo ele assentar nela, convinha primeiro dar-lhe υa certa ajuda, que havia mister pera lançar Pulate-Cane daquela fortaleza e todolos seus sequazes, que eram contrairos a esta paz, a qual ajuda era de alguns batéis e artelharia neles, que fossem ao passo Benestari em favor dele, Rostomo-Cane. Diogo Mendes, quando viu este recado, havido conselho com os principais da cidade e com o mesmo Duarte Tavares, o qual, enganado de Rostomo-Cane não somente prometia liberdade dos outros cativos mas ainda dava grandes esperanças de outros negócios acerca do Hidalcão soltar de todo as terras firmes, como todolos da cidade estavam necessitados de seu provimento e do que convinha à defensão dele, pareceu-lhe vir aquele requerimento de Rostomo-Cane ordenado per Deus; e juntamente todos foram que logo se lhe devia dar a ajuda que pedia, ante que ambos se concertassem, e assentar a paz com ele, Rostomo-Cane, té a vinda de Afonso de Albuquerque, que a confirmaria, e mais pois era conforme ao que ele já movera. Finalmente, sem mais cautela Diogo Mendes o favoreceu per mar, como ele pedia, com que lançou Pulate-Cane fora da fortaleza; o qual, indo-se agravar ao Hidalcão daquela injúria, tendo-lhe tanto serviço feito, lá lhe deram secretamente peçonha, com que acabou. Rostomo-Cane, como ficou desassombrado dele, em lugar de desfazer a fortaleza, começou novamente a se fortalecer mais com dezasseis mil homens que tinha consigo, dos que ele trouxe e de outros que ficaram de Pulate-Cane, que lhe logo obedeceram por ser pessoa tam notável, e pera isso amostrou os 303 grandes poderes que trazia do Hidalcão, seu cunhado. 302 Posto em paz seu arraial, a primeira cousa em que mostrou a Diogo Mendes que tratara com ele cautelosamente, como homem de guerra, foi mandar-lhe dizer que ele tinha já despejado a fortaleza daquele tredor Pulate-Cane, que di por diante não lhe ficava mais por fazer que despejar a ele daquela cidade, cabeça e principal assento de seu senhor o Hidalcão; que como amigo lhe pedia e aconselhava que assi o fizesse, e logo, senão que o iria ele fazer. Haveria neste tempo dentro na cidade Goa até mil duzentos e cinquenta homens de peleja: os quatrocentos e cinquenta portugueses, em que entravam trinta que logo, com o novo cerco de Pulate-Cane, Diogo Correa, capitão de Cananor, mandou em socorro, de que vinha por capitão Francisco Pereira de Berredo, e todolos mais eram canaris da terra. Os quais, na entrada que os mouros fizeram na ilha, se recolheram à cidade com suas mulheres e filhos, e pelo tempo em diante foram mui proveitosos; porque, como o cerco da cidade durou muito e os combates era a meúde, eles e as mulheres ajudavam bem, não lhe saindo da cabeça de dia e de noite os cestos da terra e os cochos de barro, acudindo a tapar e repairar com um fervor, como se foram os próprios portugueses; temendo os nossos, logo quando se acolheram à cidade, que com a entrada desta gente, além de não ser mui fiel, haviam de padecer a fome, por os poucos mantimentos que havia nela, e eles foram causa de virem de fora nos meses do inverno, que fora o de maior trabalho. Porque, como os moradores das Ilhas Divar e Chorão eram seus parentes, e muitos deles já liados com os portugueses per via das filhas, que eram casadas com eles, acudiam com grande perigo de suas pessoas furtadamente por amor dos mouros com quanto podiam haver pera provisão da cidade, não somente como vassalos fiéis, mas como parentes, que foi υa das maiores ajudas que os nossos tiveram. Diogo Mendes, vendo-se enganado de Rostomo-Cane, algum tanto se consolou em ser per comum conselho de todos; e peró que neste primeiro ardil dele não teve muita cautela, di em diante teve grande cuidado e dobrada deligência, por recompensar υa cousa por outra, repartindo a vegia da cidade em estâncias per essas pessoas mais principais. E posto que os mouros logo nos primeiros dias vieram dar vista à cidade, sempre daquele cometimento levaram a pior, por ser per entre os valos que foram dos arrabaldes que Afonso de Albuquerque mandou desfazer por desabafar a

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cidade. Peró, depois que Rostomo-Cane entrou em o nosso modo de pelejar, não curou mais daquela ordem de travar escaramuça por os tirar a campo, como era sua tenção; mas de propósito veo com grande corpo de gente à escala vista combater os muros da cidade, dando-lhe combates 95v mui apressados e continos, por ter tanta gente consigo, que a repartia em quadrilhas pera de dia e noite; 303 e querendo entrar 304 per cima do muro novo, que Afonso de Albuquerque fizera, tomaram algυas lanças que os nossos tinham postas ao longo dele, e começaram cometer a porta da entrada com vai-e-vem; e entre todos quem se naquele dia mais mostrou em fazer cousas fora do que se pode esperar do alento de um homem, foi um Francisco de Madureira, que era casado na cidade. Nos quais três combates, não somente vieram com os nossos a mão tenente, mas ainda com bombas de fogo houveram de fazer grande dano, senão fora no inverno, que tolhia as casas palhaças dos moradores não tomarem fogo; e se pegava, dava lugar a que o apagassem, com que a gente da terra tinha assaz de trabalho, porque, como este era o seu apousento, não havia outro amparo senão aquela pouca de ola de que as casas eram cobertas e defendia a eles do sol e chuiva, porque ambas estas cousas escaldava aquela pobre gente da terra. Além destes dous fogos que lhe escaldavam as carnes, havia outros dous artefícios que os matava, e trazia mui assombrados, que eram as bombas de fogo e um tiro grosso de metal dos nossos, que no cerco passado nos tomaram, o qual Rostomo-Cane mandou pôr sobre um teso que descobria a cidade, e tam vezinho aos muros, que não podiam andar per aquela parte sem perigo de morte, e dentro nas casas os ia matar. Sobre este trabalho e outros que por serem muitos os passamos per soma, teveram o maior e que os mais atormentou, que foi falecerem-lhe os mantimentos; porque chegou a tanto, que um fardo de arroz, que teria obra de dous alqueiros dos nossos, valia vinte pardaus de ouro, que são da nossa moeda sete mil e duzentos reais. De maneira que todalas necessidades ficavam sobre a vida desta gente pobre da terra, e assi de alguns dos nossos que não tinham aquela possebilidade pera dar tanto por um fardo de arroz, que era o comum mantimento de que todos naquele tempo se mantinham, porque ao presente já a maior parte dos nossos usam de pão amassado, como neste reino, de trigo que lhe vai de fora. Finalmente, houve tanto aperto de fome, que muita gente da terra se achava morta pelas ruas, e alguns homens baixos dos nossos, entre fome e desesperação, parecendo-lhe que a cidade havia de ser entrada dos mouros, lançaram-se com eles; porque, além de fugirem estes trabalhos do cerco, fome e temor, que os mais atormentava, eram provocados per outros que andavam com Rostomo-Cane e sabiam serem estimados dos mouros, dando-lhe bom soldo, sem fazer eleição da lei ou seita que professava, somente que fosse cavaleiro de sua pessoa. Por causa do qual costume daquelas partes se acham nos seus arraiais todo género de homens; ora sejam cristãos ora gentios, judeus ou mouros; como pelejam bem, não querem mais deles; e se acertam de serem mouros, recebem grau de honra em lhe dar cargo da gente. 305 E o que mais animava a esta nossa gente desesperada, 304 além de saberem o uso dos mouros pera os fazer fugir pera eles, era saberem que andava lá, havia muito tempo, um português per nome João Machado, que Rostomo-Cane trouxe consigo por ser homem estimado entre eles, e a quem o Hidalcão, pelos feitos de sua pessoa, dera a capitania de certa gente, e cargo de todolos lançados nossos; e com esta fama foi a causa em tanto crescimento, que sendo já lá dezoito homens de gente vil, começou entrar no coração de algυas pessoas de mais calidade. Finalmente, havendo já entre estes da cidade e os outros que eram idos, enteligências do modo que haviam de ter pera se passar uns poucos deles, porque o capitão Diogo Mendes trazia

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grande vegia nisso, enlegeram os da cidade um deles, que se chamava Pero Bacias, homem valente de sua pessoa e fraco na fé, sendo já casado em Goa, que naquele cerco o tinha feito mui bem. O qual, posto a cavalo, υa quinta-feira de Endoenças saiu da cidade a espora fita, pubricamente a se lançar com os mouros, com este ardil, consultado pelos outros que ficavam: que logo à sexta-feira seguinte, a tempo que a repartição da guarda e serviço da cidade cabia a estes da consulta daquela infernal obra, Rostomo-Cane mandasse gente pera os recolher ao tempo da sua saída, porque a gente de cavalo da cidade havia logo de sair trás eles. Partido Pero Bacias per aquela maneira, como levava bom cavalo, posto que houve repique à sua saída, e o Demónio dá melhores pés neste caminho pera salvar o corpo, contanto que se condene a alma, foi logo alongado dos nossos, e metido entre os mouros. João Machado, que lá andava, como homem que trazia o pensamento no que adiante fez, e via que os nossos se lançavam, assi por razão 96 de lhe ser dada a capitania deles, como por os avisar de não dizerem o trabalho que ia na cidade, foi logo receber Pero Bacias; e apartando-se com ele pelo campo, disse-lhe: - Que cousa é esta? Tanto mal há lá, que já começa entrar pela gente de cavalo?! - Senhor - respondeu Pero Bacias - fome e trabalhos com desesperação de remédio faz cometer estas cousas, e o principal é na confiança da vossa estada cá. Então começou de propor o caso a que era ido, o que lhe João Machado foi reprendendo como católico e cavaleiro; e dizendo tais palavras, representando-lhe a verdade que tinham da Fé e o dia que era, com que Pero Bacias começou chorar como homem arrependido daquele cometimento seu. E porque no feito que João Machado no dia seguinte fez, que foi sexta-feira da Redenção nossa, salvou a cidade Goa de ser tomada pelo que estava ordenado per alguns maus cristãos, e dele fizemos já menção, por memória de 306 tam católico barão e esforçado cavaleiro, como ele mostrou ser neste dia, peró que per fortuna de degredo foi àquelas partes, diremos a causa deste trabalho, que o pôs em estado de andar tanto tempo entre os mouros. Este João Machado era natural da cidade 305 Braga, homem de boa linhagem, e, sendo mancebo, estava em casa de um abade seu tio, onde se veo namorar de υa sobrinha deste abade de outra parte, sem ele ser parente dela, e porque o caso chegou a ela emprenhar, temendo João Machado a indinação do tio, fugiu com ela υa noite, alongando-se da abadia quanto poderam, té que a moça, por não ser costumada andar a pé, não podia dar um passo. Chegando ambos com este trabalho a um casal, era o lavrador tam caridoso, que nem os quis agasalhar, nem alugar υa besta. João Machado, andando em um alpendere, que o lavrador tinha ante a porta, apalpando onde se agasalharia com a moça, por ser de noite, foi dar com υa albarda e todo seu aviamento, per os quais sinais sentindo que andaria a besta fora a pacer, caladamente a foi buscar; e tanto que a achou, veo pela albarda, e partiram ambos. O lavrador, quando veo a menhã, sendo já alto dia, que não achou a besta, andou de υa a outra parte, té que pola albarda que não viu, entendeu o caso e meteu-se em caminho, jornada por jornada, té que veo dar com João Machado à entrada da cidade de Coimbra; o qual, pagando-lhe mui bem o aluguer de sua besta e dias que pôs no caminho, e mais a entrega dela, pedindo-lhe perdão, porque a necessidade obrigara a fazer o que fez, per outra parte foi-se à justiça e fez prender a João Machado, que estava com sua amiga em υa estalagem. Finalmente, ele foi acasado de ladrão por razão da besta e de forçador por causa da moça; e a lhe valerem ordens, foi degradado pera S. Tomé pera sempre. No qual tempo el-Rei D. Manuel, mandando Pedrálvares Cabral pera a Índia, lhe deu este e outros degredados pera os lançar nas terras, perque fossem pera descobridores; e aconteceu a sorte a

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João Machado ficar em Melinde, como escrevemos; e porque não achou entrada pera ir pelo sertão ao reino do Preste João, andou per toda aquela costa, té que se foi em υa nau a Cambaia, sendo já a este tempo morto outro seu companheiro, que houvera de entrar com ele às terras do Preste João, Rei da Abexia. No qual reino de Cambaia esteve um tempo, depois passou-se ao reino Decão por ouvir dizer que pera lá poderia mais facilmente chegar a nossas armadas que andavam naquela costa; e que enquanto isto não podesse fazer, andaria ganhando soldo com aqueles senhores do reino Decão, onde andava muita gente das partes da Cristandade. No qual tempo que ele andou nas guerras, que o Sabaio, senhor de 307 Goa, tinha com seus vezinhos, ganhou tanto crédito que o fez capitão dalgυa gente; e com este crédito o Hidalcão, morto sei pai, o tratou; e por isso, como homem que lhe podia muito servir ao que vinha Rostomo-Cane, o enviou com ele. E posto que a tenção de João Machado sempre foi vir-se pera nós, parece que permetiu Deus que não fosse senão neste tempo, pera mostrar duas cousas: que ele mesmo, Deus, o mandava 306 em tal estado como a cidade estava, por Anjo de salvação e custódia; e a outra, que nisso se mostraria a fé e virtude dele, João Machado, que se vinha pera nós, não em tempo de nossa prosperidade, mas quando muitos desesperados por razão das cousas que lhe iriam contar, se saíam delas, as quais seriam muito piores da sua boca do que passava em verdade, afim de abonarem a maldade que cometeram. Finalmente, ele veo ao outro dia, que era Sexta-Feira de Endoenças, com alguns portugueses que pôde provocar, salvando-se a unha de cavalo por os mouros virem trás ele; com a vinda do qual foram presos 96v alguns daqueles, que eram na consulta de Pero Bacias, lançando o capitão fama ser por outra cousa, por não alvoroçar a cidade com número de tantas e tais pessoas, como entravam nesta maldade.

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306 96v 307 Capítulo X. Como depois da vinda de João Machado à Cidade Goa, e principalmente com a chegada de Manuel de Lacerda, Diogo Fernandes, João Serrão que lá andavam, e depois com a chegada de Cristóvão de Brito, que deste Reino partiu com D. Aires da Gama, que eram da armada de D.Garcia de Noronha, ela ficou livre dos grandes trabalhos que teve. Com a vinda de João Machado e dos que vieram com ele, que foram nove pessoas, em que entravam parte dos cativos que tomaram com Fernão Jácome, houve na cidade muito prazer; porque, sentindo em si as necessidades que padeciam, e verem um homem que havia tantos anos que andava entre os mouros tam favorecido e estimado deles, lançar-se na cidade em tempo que muitos fugiam dela, animou não somente o coração daqueles que estavam em mau propósito de se passar aos mouros, mas ainda toda a outra gente. Porque, como era homem prudente e sabia bem representar as cousas, assi falava nos mouros e mau modo que os nossos 308 tinham de pelejar com eles, segundo seu costume, que pareceu a todos que este homem, assi polo modo de sua vinda, como polas razões que dava, era vindo per Deus pera salvação daquele seu povo. A qual cousa logo começaram ver; porque, como os mouros correram à cidade na saída que os nossos fizeram, logo levaram a melhor pela doutrina de João Machado, de maneira, que di por diante,já se não chegavam aos mouros como faziam; porque, como eles usavam de frechas e espingardas a cavalo, e os nossos queriam-lhe resestir a bote de lança, primeiro que chegassem a eles, era o mouro posto em salvo, e eles ficavam com as frechadas e pelouros metidos no corpo, o que tudo se mudou com a vinda de João Machado. Porém, em dia de S. João Bautista houveram 307 os nossos de se perder, porque, como já andavam favorecidos em algυas vezes que se revolveram em peleja com os mouros, neste dia, por reverência do Santo, e mais por serem costumados segundo o uso de Espanha de cavalgar e escaramuçar nele, vindo Rostomo-Cane correr com até duzentos de cavalo, saíram a ele, que se pôs em um teso, detrás do qual estavam em cilada obra de setecentos piães, que, em os nossos se iguando no alto com os de cavalo, tomaram-lhes as costas por lhe não ficar acolheita pera a cidade. O qual feito assi aos mouros como aos nossos custou muito sangue, e da nossa parte morreram dezassete, e deles ficaram no campo muitos mortos, assi às lançadas, como da artelharia que lhe tirou do muro ao recolher dos nossos. E este foi o derradeiro trabalho dos muitos de peleja, que per espaço de três meses teveram, que foram na força do inverno; somente lhe ficou o trabalho da fome, pera que foi necessário, ainda que era nos meses de Junho e Julho, em que o inverno cursava, cada um per sua vez irem Francisco Pereira de Berredo em υa fusta a Baticalá buscar mantimentos, a qual com muitos paraus trouxe carregados deles, e depois em outra fusta foi Bastião Rodrigues. E porque, quando ele tornou com eles, entrou com a fusta toldada e embandeirada, mostrando muito prazer, houveram os mouros que aquela festa não era por mantementos ,mas que levava nova que naus do reino eram chegadas a algum porto daquela costa, que os desconsolou muito, vendo ser passado todo o inverno sem ter levado nas mãos a cidade, como cuidaram no princípio da entrada da ilha. Peró, ainda que não vieram naus do reino, veo di a poucos dias a armada de Manuel de Lacerda, que ficou por capitão do mar, e invernara em Cochi, que restituiu a vida a todos em sua chegada, porque não somente lhe trouxe mantimentos, que era o principal que então haviam mister, mas ainda ele e outros capitães, com a gente que traziam folgada do repouso do inverno, tomaram logo sobre si a defensão da cidade. No qual tempo também veo Diogo Fernandes, de Beja, que como dissemos,

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97 309 Afonso de Albuquerque tinha mandado desfazer a fortaleza de Socotorá, e di ir a Ormuz buscar as páreas, o qual negócio ele acabou mui bem. E ao tempo que chegou a Ormuz, era el-Rei ido com υa grossa armada sobre a Ilha Baharém (da qual ida adiante diremos a causa), e com ele o seu Governador Coge Atar, com que a cidade estava tam só de gente, que bem a podera Diogo Fernandes tomar; peró ele não quis mais dela que as páreas que lhe entregou Raix Nordim, guazil del-Rei, que ficou em seu lugar. E nestes caminhos que Diogo Fernandes fez té chegar a Goa, tomou algυas naus de presa de mouros, com que ele e os de sua companhia vieram bem pagos do trabalho do caminho e trouxeram provimento de muitas cousas, de que a cidade estava desfalecida. Assi que, com a vinda destes dous 308 capitães, começaram os nossos tomar algum ânimo, com que fizeram saídas contra os mouros, em υa das quais receberam muito dano, porque mataram D. António de Lima, filho de D. Rodrigo de Lima, e António de Sá, capitão do navio Rosairo, natural de Alhandra, e outros dous, e feriram Manuel de Sousa Tavares, Diogo Fernandes, de Beja, e outros. Donde di per diante, por conselho que Diogo Mendes teve, assentou com os outros capitães não saírem mais às corridas dos mouros, pois nelas recebiam dano por causa de não terem cavalos, e mais não tinham poder de gente pera lançar Rostomo-Cane da fortaleza que tinha, somente procurassem de defender a cidade e provê-la de mantimentos, que naquele tempo era a cousa de que mais careciam. E de todolos portos a que os mandavam buscar - de Mergeu, Onor e Baticalá - foram sempre bem providos, por a qual causa té ora os moradores destes lugares tem previlégio que não paguem direitos alguns em Goa dos mantimentos que lá levarem a vender. Não havendo muitos dias que estes capitães eram chegados a Goa, quando chegou João Serrão e Paio de Sá, que o ano de dez (como escrevemos) partiram deste reino, a oito de Agosto, com fundamento de ir descobrir a Ilha de S. Lourenço, em um porto chamado Antepara, no reino de Turubaia, que está na ponta do Ponente desta ilha, da banda de fora dela, que é a do Sul, além do cabo a que os nossos chamam de Santa Justa. Os quais (por darmos razão do que fizeram), seguindo sua viagem com tempos contrairos, foram ter à Ilha de S. Tomé, onde se repairaram de alguns mastos que lhe quebraram com um temporal, e partidos dali, chegaram ao porto de Antepara, onde foram bem recebidos com refresco que lhe os da terra trouxeram, e assi algum pouco de gengivre, porque, como não tinham saída dele, não se davam os cafres muito a o semear. Daqui, correndo a costa, foram ter fora da ilha aos ilhéus, a que ora chamamos de Santa Clara, que são além deste porto Antepara obra de doze léguas, onde esteveram muitos dias com levantes, té que, partidos dali, por a nova que levavam de haver gengivre naquele rio, chegaram a um chamado Maneibo, que seria da ilha donde partiram trinta léguas. Surtos em o qual, tendo enviado o batel a terra, deu um tempo neles por de avante, que os fez tornar aos ilhéus de Santa Clara, e o batel foi acapelado com a grande maresia, e quatro homens 310 que escaparam dele foram ter a terra a poder dos negros. A qual nova o capitão depois soube per outro batel seu, que, tornando eles a seu caminho, lançaram fora em um rio per nome Manatapa, junto do outro Monaibo, que também com outro tempo lhe ficou ali, com que ficaram sem batéis. Tornados outra vez com levantes aos ilhéus de Santa Clara, onde esteveram vinte dias, veo ter com eles em υa almadia um André Velho, marinheiro que era da companhia daqueles que se perderam em o batel da nau de João Gomes de Abreu, que foi na armada de Tristão da Cunha o ano de quinhentos 309 e seis. Finalmente, João Serrão não fez mais per aqueles portos que ora tomar um, ora outro, em que gastou o inverno daquelas partes, sem achar gengivre que ia buscar, e com este desengano se

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fez à vela caminho da Índia, e com um temporal que lhe deu, Paio de Sá tomou a costa de Moçambique, e di foi ter à Índia, em companhia da armada que partiu deste reino aquele ano, e João Serrão tomou Goa (como ora dissemos). O qual não se deteve muitos dias na cidade, porque foi assentado per Diogo Mendes e pelos outros capitães que fosse a Cochi, à feitoria, tomar carga de especearia, e di a Dio com cartas a Melique-Iaz, que de lá fazia muitas ofertas per via de Cide Alé, o torto, e de Fr. António do Loureiro, que foi cativo com os que escaparam do navio de D. Afonso de Noronha, que se perdeu (como escrevemos), da vinda do qual Fr. António adiante daremos razão. João Serrão, como a principal cousa a que ia a Dio era buscar mantimentos a troco da especearia que levava, em breve tempo tornou com eles, e no caminho à vinda topou Cristóvão de Brito, 97v filho de João de Brito, que partira deste reino o ano de onze em companhia de D. Aires da Gama, irmão do Almirante D. Vasco da Gama. Os quais partiram aquele ano a vinte de Abril, oito dias depois de ser partido D. Garcia de Noronha, filho de D. Fernando de Noronha, debaixo da bandeira do qual eles iam, e fizeram ambos tam boa navegação, que eles somente passaram aquele ano à Índia, e D. Garcia, por má pilotage, invernou em Moçambique com mais quatro naus que levou, da viagem do qual adiante escreveremos. A de Cristóvão de Brito, ainda que té o Cabo de Santo Agostinho, que é na Província de Santa Cruz, foi em companhia de D. Aires, ali se apartou dele com um temporal, e, chegado a Moçambique, achou Gonçalo de Sequeira, Capitão-mor da armada do ano de dez, que invernara já da vinda da Índia (segundo escrevemos). O qual, recebendo alguns mantimentos e cousas que havia mister de Cristóvão de Brito, cada um se partiu seguindo sua viagem, Gonçalo de Sequeira pera este reino, onde chegou a salvamento, e Cristóvão de Brito pera a Índia, e a primeira terra dela que tomou foi Cananor, dia 311 de Nossa Senhora, de Setembro, onde soube de Diogo Correa, capitão da fortaleza o trabalho em que Goa estava posta. Cristóvão de Brito como levava em a nau Belém (que foi υa das mais fermosas que o mar viu), até quatrocentos homens, toda gente limpa e fresca daquela breve viage, e bem provido de mantimentos, recolheu mais consigo alguns fidalgos que ali estavam, assi como Bernaldim Freire, filho de Nuno Fernandes Freire, e Rui Galvão, filho de Duarte Galvão, e outras pessoas nobres com mais quatro navios da terra carregados de mantimentos, e trinta e cinco cavalos, que eram de mercadores vindos pera se venderem em Goa, e por estar de guerra, se foram a Cananor. Com o qual socorro chegado a Goa, foi mui festejado; e por 310 quebrar o ânimo aos mouros, e também por honra de sua pessoa, posto que tinham assentado não saírem a eles té a vinda de Afonso de Albuquerque, deram υa mostra obra de mil piães e sessenta de cavalo, que lhe vieram correr, saindo Diogo Mendes a eles, dando a dianteira a Cristóvão de Brito; na qual saída, querendo-se os mouros revolver com os nossos, foram tam escarmentados, ficando alguns mortos no campo, que se passaram muitos dias sem virem correr a cidade na face dos nossos, como dantes faziam. Cristóvão de Brito, leixando ali a gente de armas que levava ordenada pera andar na Índia, com a necessária à sua navegação se partiu pera Cochi a tomar carga de especearia já em Novembro, e na paragem de Baticalá achou D. Aires da Gama, que com a nova que teve do estado de Goa, também ia ao socorro dela. Porém, sabendo per Cristóvão de Brito como já ficava provida, tornaram a tomar sua carga de especearia, e com ela se vieram via deste reino, onde chegaram a salvamento, a vinte seis de Junho do ano de quinhentos e doze. E de caminho, passando pela Aguada de Saldanha, onde estavam os ossos daquele ilustre capitão D. Francisco de Almeida e dos outros que com ele pereceram, esquecidos de seus herdeiros e tam mal galardoados do Mundo, por reverência deles quis Cristóvão de Brito ver o lugar onde jaziam, por ali ir com ele, por mestre da

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sua nau, Diogo de Unhos, que o fora também da nau do Viso-Rei, e sabia onde o seu corpo e o de Lourenço de Brito foram enterrados. Chegado Cristóvão de Brito a este lugar, por não achar nele majestade de campã ou sinal de quem ali jazia, lamentando o desamparo daqueles corpos, e maldizendo o lugar a que a fortuna trouxe tanta pessoa, tanta virtude e tanta cavalaria como D. Francisco teve, pois já em mais lhe não podia aproveitar, disse por sua alma e de Lourenço de Brito um responso, e cobriu seus ossos com uns poucos de seixos da praia, e em cima υa cruz de pau. E posto que tais sinais, segundo o uso comum deles, mais servem pera encaminhar os caminhantes, que de memória de algυa notável pessoa, aqui bem nos podem também servir deste morouço de seixos e cruz pera encaminharmos nossas obras ao fim pera que fomos criados, pois assi os que andam nesta carreira da Índia, como os que seguimos outros caminhos de vida, todos param em υa triste sepultura. E praza a Deus que quanto for melhor lavrada, ante ele per glória 312 e acerca dos homens per fama, seja tam lembrada, como é a destes desterrados corpos entre aqueles bárbaros, segundo já per nós atrás fica dito em outra tal lamentação. Mas parece que, pera maior glória destas tam notáveis pessoas, permetiu Deus tanto esquecimento em seus herdeiros, porque o descuido seu fosse causa desta nossa repetição.

LIVRO VII 311 98 313 Capítulo Primeiro. Como Afonso de Albuquerque, partido da cidade Malaca, se veo perder em os baixos de Aru, na costa de Samatra; e salva sua pessoa e gente, tornou a seu caminho no qual tomou duas naus, té chegar a Cochi. Entre muitas cousas de grande admiração que esta nossa conquista oriental tem, e muito pera ponderar com discurso de prudência, é que, além de contendermos acidentalmente per armas com homens de tam várias nações e seitas, como nela há, temos perpétua contenda com os elementos sendo cousa mais bruta, fera e impetuosa que Deus criou, o que té nosso tempo não temos visto em algua gente. Porque, se lemos guerras de persas, gregos, romanos ou de outras nações desta nossa Europa, nas quais houve grandes perigos no rompimento de exército com exército, trabalhos de fome e sede e vigília, na continuação de algum comprido cerco, frio e ardor do Sol na variação dos tempos e climas, grandes infermidades per corrupção dos ares ou mantimentos e outros mil géneros de acidentes que chegam a estado da morte, todos estes perigos e trabalhos passa a nossa gente português em suas navegações e conquistas. E sobretudo peleja com a fúria do vento, ímpeto do mar, dureza da terra, temendo seus baixos e encontros; e finalmente, tem posta a vida e morte em tam breve termo, como são três dedos de távoa às vezes comesta do busano, e no descuido de cair ua pevide de candea em lugar onde se possa atear, e em outros mui particulares e meúdos casos; de que resulta tam grande cousa como vemos em tanto número de naus que são perdidas. Em cada ua das quais podemos afirmar que se perde ua mui nobre vila deste reino em substância de fazenda e em nobreza de gente. 314 E o que mais devemos lamentar por parte dele, é que vem os homens daquelas orientais regiões salvos do fogo e ferro de tanto mouro e 312 gentio, como nelas habitam, trazendo as naus carregadas dos seus despojos; e um tam pequeno perigo como estes que apontamos, confunde tudo no abismo do grande Oceano, principal sepultura dos portugueses, depois que começaram seus descobrimentos. Da qual verdade ora veremos um notável exemplo em Afonso de Albuquerque, o qual, partido de Malaca com as naus carregadas dos triunfos que houve dela, sendo tanto avante como o reino de Aru, onde chamam a Ponta de Timia, que é na Ilha Samatra, veo a sua nau ua noite tomar assento sobre ua lágea lavada de água, onde se logo fez em duas partes, a popa a ua e a proa a outra, por a nau ser mui velha e os mares grossos. Estando no qual perigo, sem os de ua parte se comunicarem em ajuda dos outros, nem terem socorro das outras naus por ser de noite e mais cada ua tinha bem que fazer em si, ordenou Dinis Fernandes de Melo ua jangada, em que se recolheram té o outro dia, que com muito trabalho Pero de Alpoém, que ia na esteira do Capitão-mor, em um batel o salvou, e aos que com ele se recolheram, com muito trabalho e perigo. No qual tempo Afonso de Albuquerque, posto que tevesse enfeitos outros Comentários que guardar, como César fez no seu naufrágio, somente salvou ua minina filha de ua escrava sua, que lhe veo ter à mão, dizendo que, pois aquela inocente se viera pegar a ele por se salvar, que ele tomava a inocência dela por salvação; e, estando sempre em pé, ele a teve nos braços sem salvar outra cousa de quanto despojo das riquezas de Malaca vinham naquela nau. E o que ele mais lamentava de todalas perdas daquela nau, eram dous liões de ferro vasados, obra mui prima e natural, que el-Rei da China enviara de presente a el-Rei de Malaca, os quais por honra el-Rei Mahamede tinha à porta dos seus paços, e Afonso de Albuquerque os trazia por a mais principal peça de seu triunfo da tomada daquela cidade; e dizia por eles, que, em os perder, perdera toda sua honra, porque não quisera em sua sepultura outro letreiro nem outra memória de seus trabalhos.

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98v Por haver os quais, nos primeiros navios que da Índia, depois de ele lá ser, partiram pera Malaca, particularmente escreveu a Jorge Botelho, capitão de ua caravela, encomendando-lhe muito que viesse àquele lugar e visse se per algum modo 315 de mergulho, com gente da terra costumada pescar aljofre, lhe podiam tirar aqueles liões, e que despendesse nisso quanto quisesse, que ele lho mandaria pagar; porque já que perdia a fazenda, não queria perder a honra. Mas parece que permitiu Deus que estes liões, de que ele fazia tanta conta pera memória de seus feitos por serem mudos, e os anéis de diamantes e rubis que ele mandava a Rui de Pina, cronista-mor deste reino (como nós vimos em cartas que lhe ele escrevia), porque podiam ser suspeitos, não lhe servissem pera a memória que ele desejava de si; mas que ficassem sumidos os liões nos baixos de Aru e os anéis no esquecimento dele, Rui de Pina. E que eu, murmurado de 313 muitos, por não ser professo em nome deste ofício de escrever e ocupado no de minha profissão, aqui e na Crónica del-Rei D. Manuel, a mi impropriamente cometida, passados trinta anos de seu falecimento, viesse dar conta dos liões e dos anéis, como se os eu tevera em receita, ou algum prémio que me obrigara sofrer os trabalhos desta escritura; que, segundo me carrega a engratidão deles, não sei se fora mais justo leixar os liões e os anéis em poder de quem os consumiu. Porém, porque os mortos não tem culpa e aos que estão por vir pode ser que lhe seja mais aceito este meu trabalho que a muitos presentes, não quero que Afonso de Albuquerque perca os liões, e a Rui de Pina faça-lhe boa prol os seus anéis. Nos quais liões e anéis, e assi em todo o mais que ante desta minha escritura estava sepultado no descuido de meus naturais, eu espero ter aquela parte, que tem aqueles que acham cousa perdida e a dão a seu dono. Teve Afonso de Albuquerque, além da perda desta nau, outra que ele também muito sentiu, que foi o junco que vinha em companhia de Jorge Nunes de Lião; onde, segundo dissemos, vinham treze portugueses e trinta malabares dos soldados de Cochi, com o qual se alevantaram os jaus que o mareavam, vendo a nau Frol de la Mar perdida, e as outra em trabalho do tempo. E como eles não queriam mais que salvar suas pessoas de cativeiro, não curaram da mareagem do junco, e deram com ele no porto de Aru, onde logo foi roubado per eles e pelos da terra, e os portugueses postos em poder dos mouros, no qual alevantamento morreu Simão Martins e outros. Por haver os quais, e assi alguns que do naufrágio de Frol de la Mar a nado em távoas foram a costa, el-Rei de Pacém trabalhou muito por ganhar a vontade a Afonso de Albuquerque, té que havidos, lhos mandou depois em ua nau, que partiu do seu porto pera Coromandel. Afonso de Albuquerque, recolhido em a nau Trindade, capitão Pero de Alpoém, fez sua viagem caminho da Índia; e na travessa daquele golfão té Ceilão, tomou duas naus de mouros, ua de Dabul e outra de Chaúl, que vinham bem carregadas de Samatra. E porque na de Chaúl teve algua dúvida, por estar naquele tempo connosco em amizade e nos pagar páreas, não se houve per tomada de presa, e mandou recolher consigo as principais pessoas da nau, e a Simão de Andrade com quinze portugueses que fossem em guarda dela, por de noite não se acolher. Mas com todo este resguardo o piloto e oficiais 316 da nau a meteram nas correntes das ilhas de Maldiva, e foram dar com ela em ua a que chamam Candaluz, e no porto, com favor de mouros de Calecute que ali estavam, trataram mal os nossos, tomando-lhe o que levavam, sem ousarem de lhe fazer mais dano, com temor do que poderiam receber em suas pessoas os mercadores que levava Afonso de Albuquerque consigo. O qual, 314 seguindo sua viagem, chegou a Cochi, onde foi recebido com solenidade e grão prazer de todos; porque, além de celebrarem com festas a vitória que houve na tomada de Malaca, parecia-lhe (segundo os mouros tinham dito per toda a terra que eram perdidos) que Nosso Senhor os

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ressuscitava naquela chegada sua; porque tinha o Demónio tanta comunicação com e o gentio daquelas partes, que geralmente todos diziam que Afonso de Albuquerque se perdera na sua nau, parece que, por não perder o crédito este mestre de enganos, sempre se quere salvar em parte de algum aquecimento, como foi a perda da nau. Afonso de Albuquerque a primeira cousa em que entendeu, como pôs os pés em Cochi, polo estado em que Goa estava (segundo 99 teve nova por patamares, que iam e vinham com assaz perigo por terra), porque o tempo não servia pera navios grandes, foi mandar gente em oito catures a remo, que em seis dias chegaram a Goa. A chegada dos quais deu tanto prazer aos nossos, como tristeza aos mouros; e muito maior receberam, depois que Afonso de Albuquerque em Cochi mandou soltar dez ou doze mouros dos cativos que tomou em Malaca; parte dos quais vieram ter ao arraial de Rostomo-Cane, que estava sobre Goa, e como testemunhas de vista, contaram o que passaram naquele feito e a fortaleza que lá tínhamos, que lhe quebrou muito os corações de quam soberbos estavam com as más novas que tinham sameado daquela ida. E per estes catures mandou Afonso de Albuquerque provisão, em que havia por serviço del-Rei que Manuel de Lacerda servisse de capitão da fortaleza e Manuel de Sousa de alcaide-mor e Diogo Fernandes, de Beja, ficasse por capitão da armada que Manuel de Lacerda servia. E porque ele escreveu a estes capitães e assi à cidade, que logo, como o tempo lhe servisse, seria com eles, responderam-lhe que em nenhua maneira o fizesse com tam pequena armada como tinha; porque, ainda que sua pessoa importava tanto como a mesma salvação àquela cidade, ao presente ela ficava com seiscentos homens e quinhentos piães canaris pera poder resistir a todo o poder do Hidalcão, ainda que viesse sobre ela. Porém pera ir lançar do castelo Benestari um tal imigo como nele estava, artilhado e defendido com baluarte, torres e grande número de gente, que, segundo tinham sabido, passavam de vinte mil homens, não se podia fazer com tam pouca gente como então estava na Índia; que prazera a Deus que traria a seu sobrinho D.Garcia de Noronha; porque, segundo a esperança que Cristóvão de Brito dera de sua viagem, devia invernar em Moçambique, e assi viria a outra armada daquele ano, que também se esperava do reino, com que lançariam aquele imigo soberbo daquele lugar que tomou por ele, Afonso de Albuquerque, ser ausente. E como 317 a conta destas duas armadas, em que estes capitães apontavam, era mui regular e verdadeira, neste 315 seguinte capítulo faremos relação delas, e quanto maior foi a segunda que a primeira, por a nova que el-Rei D. Manuel teve da navegação que D. Garcia fez até a Ilha de S. Tomé, donde lhe escreveu.

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315 99 317 Capítulo II. Da viagem que D. Garcia de Noronha fez com as naus com que partiu deste Reino o ano de quinhentos e onze; e do que também passaram Jorge de Melo Pereira e Garcia de Sousa o ano de doze com outra armada de doze naus, de que eles foram por capitães-mores; e o que todos fizeram em Moçambique, onde se ajuntaram. Dom Garcia de Noronha, filho de Dom Fernando de Noronha, partiu deste reino por capitão de seis naus o ano de quinhentos e onze, duas que partiram depois dele doze dias, capitães Cristóvão de Brito e D. Aires da Gama, que (como fica neste precedente Livro), passaram à Índia aquele ano e tornaram o seguinte com sua carga de especearia. E os capitães das outras quatro velas eram: Pero Mascarenhas, filho de João Mascarenhas, e Jorge de Brito, filho de João de Brito, e Manuel de Castro Alcoforado. O qual D. Garcia, seguindo sua viagem, não podendo dobrar o Cabo de Santo Agostinho, que é na terra de Santa Cruz, vulgarmente chamada Brasil, quis o seu piloto fazer-se na volta de Guiné, pera tomar outra mais larga sobre o mesmo Cabo. Na qual travessa se houvera de perder em um penedo que acharam no meio daquele golfão, no qual de noite foi dar a nau S. Pedro, capitão Jorge de Brito, que fez forol às outras que vinham na sua esteira, por razão do qual perigo o penedo houve nome S. Pedro, que hoje tem acerca dos nossos navegantes. Seguindo mais o caminho na volta da terra de Guiné, foram ter à Ilha de S. Tomé, onde Fernão de Melo, capitão dela, os proveo do que havia na terra, e daqui per dous navios 99v avisou D. Garcia a el-Rei D. Manuel da má navegação que fizera com tempos contrairos a qual nova causou o ano seguinte mandar el-Rei doze naus, como veremos. O piloto, por emendar este erro de não dobrar o Cabo de Santo Agostinho, veo a cair em outro maior, que foi pôr-se em altura de quorenta graus, como houvera de passar per fora da Ilha de S. Lourenço, que ainda se não costumava tal navegação, como ora fazem alguns pilotos, quando partem 318 tarde deste reino. Na qual paragem eram tamanhos os frios, que não podiam os navegantes marear as velas, e os dias tam pequenos, que o jantar lhe ficava em lugar de cea; té que, havendo três meses que eram partidos da Ilha de S. Tomé, vindo demandar a terra, e parecendo ao piloto que tinham dobrado o Cabo de Boa Esperança, veo a ré dele meter-se em ua angra, que milagrosamente tornaram a sair dela com baixos e restingas 316 e correntes, que os metia no saco da enseada. Donde, per espaço de um mês e meio, fazendo caminho ao longo da costa, dobraram o Cabo, no qual tempo lhe adoeceu a gente de maneira que por muitos dias se lançavam ao mar quatro e cinco homens. E ainda depois destes trabalhos, que o posesse em não ter quem lhe mareasse a nau, andou entre as Ilhas de Sofala e S. Lourenço meio perdido, e com a primeira terra que tomaram, que foi a ré, de Moçambique trinta léguas, por a dúvida que tinham em que paragem eram, foi Pero Mascarenhas com um batel a terra, e levou consigo um degredado pera o mandar tomar língua. Porém, como ele não sabia nadar e o mar andava bravo, com promessas de Pero Mascarenhas lançaram-se no rolo dele um marinheiro e um negro, e da prática que o marinheiro teve com mouros que achou da terra, soube onde estavam. Tornados pera dar esta nova a Pero Mascarenhas, andava o mar de maneira que não os pôde recolher, e escassamente ouvir o que lhe disseram, e mandou-lhe que fossem abaixo onde se mostrava ua ponta, em que parecia podê-los recolher, nunca mais apareceram, e suspeitaram que os cafres ou alguns animais da terra os matariam; mas depois houve mais certa suspeita que os

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mataram os mouros. D. Garcia, partido dali caminho de Moçambique com esta nova de quam perto estava dele, topou António de Saldanha, que vinha de lá com dous navios e ia pera Sofala, onde estava por capitão, o qual se tornou com ele polo agasalhar, onde o leixou, como quem ficava no paraíso terreal, tam desejosos vinham os homens de terra, e em tal desposição, como quem havia sete meses e onze dias que era partido da Ilha de S. Tomé, porque ele chegou a Moçambique a onze dias de Março do ano de quinhentos e doze, e partiu da ilha o primeiro de Agosto de onze. E ali em Moçambique achou um criado de D. Aires da Gama, que da torna viagem da Índia ficou doente, per o qual soube todalas novas da Índia, assi do estado do cerco de Goa, como da ida de Afonso de Albuquerque a Malaca, e a má suspeita que havia dele ser partido, as quais novas posesse a D. Garcia em muita confusão. Por a qual razão, posto que o tempo era mui perigoso pera navegar, e a gente vinha mui anojada do mar e outra enferma, provido o melhor que pôde, espediu a Pero Mascarenhas, que fosse tomar qualquer porto das nossas fortalezas da Índia 319 pera esforçar a gente, sabendo ser ele vivo; ca, pelas novas que D. Aires e Cristóvão de Brito lá deram, também o haviam por perdido. Partido Pero Mascarenhas, ficou D. Garcia com as outras três naus, e segundo ele achou a terra alevantada contra a nossa gente, se a que ele tinha estevera em outra desposição, ele houvera de castigar os mouros das Ilhas de Angoxa, que tinham feito este mal; e o princípio dele foi este: Estando Duarte de Melo por 317 capitão e alcaide-mor daquela fortaleza de Moçambique, com um navio que tinha ali pera o trato de Sofala, mandava alguas vezes buscar mantimento a estas Ilhas de Angoxa, e como os moradores são mouros, mataram e feriram alguns dos nossos que iam no batel do navio a terra. E porque Duarte de Melo não podia emendar este dano sem licença de Afonso de Albuquerque, escreveu-lhe havia dias, cuja reposta na armada de Gonçalo de Sequeira houve António de Saldanha, mandando-lhe que se viesse a Moçambique, e com a gente e navios que podesse haver fosse àquelas ilhas e as destruísse. Da qual ida António de Saldanha vinha, quando D. Garcia o topou, e o caso de sua ida não sucedeu tam bem como ele a houve por leve, porque 100 Duarte de Melo foi morto com outros e muitos feridos, e não se fez mais dano aos mouros, que queimaram-lhe o lugar e dous ou três zambucos que estavam no porto, e trouxe cativo um Xeque da terra, que, por acerca dos mouros ser homem religioso, foi causa de se levantarem todolos mouros daquelas comarcas contra nós. E daqui veo (segundo se depois soube) que os dous homens, que Pero Mascarenhas lançou em terra, foram mortos per mouros da terra, o qual Xeque foi logo resgatado a troco de Francisco Nogueira e de dous filhos seus, que se perderam em a nau Santo António, de que ele ia por capitão, em os baixos de Angoxa. Na qual perda morreu quási toda a gente, e ele, como não sabia nadar, leixou-se ficar em o que aparecia da nau com os filhos, e na baixamar, ficando a nau toda descoberta, espraiou tanto que a pé enxuto se recolheu a ua das Ilhas de Angoxa, onde os mouros o tomaram, e depois deram pelo seu Xeque. Este Francisco Nogueira partira aquele ano de doze em ua grossa armada de doze velas, que deste reino partiram, em que el-Rei mandou dous mil homens; e a causa de este ano ir tanta gente foi por a nova que el-Rei teve do estado da Índia, em que se presumia que Afonso de Albuquerque era perdido, e principalmente por as cartas que houve de D. Garcia de Noronha, feitas na Ilha de S. Tomé ao primeiro dia de Agosto, quando se ele dali partiu, que estava certo, a lhe Deus fazer muita mercê, invernar em Moçambique. A qual armada partiu el-Rei em duas capitanias: ua de oito naus deu a Jorge de Melo Pereira, filho de Vasco Martins de Melo, o qual ia pera ficar na Índia por capitão da fortaleza de Cananor, e das outras quatro ia por capitão Garcia de Sousa. E por não esperarem uas per outras pera irem em um corpo, ordenou el-Rei que, como se fossem apercebendo,

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de duas em duas partissem, 320 e em Moçambique esperassem té um certo tempo por seu capitão; e não indo se fossem na conserva do outro, e todas em um corpo. Porque, como as cousas da Índia estavam fracas por a nova que se tinha do estado em que ficava, e per via de Levante tinha el-Rei nova que o Soldão mandava 318 novamente fazer outra armada pera enviar lá, por razão da outra que lhe desbaratou o Viso-Rei D. Francisco, havia suspeita que podiam também haver rumes na Índia. E posto que el-Rei deu esta ordem à partida das naus daqui, elas se fizeram tam prestes, que a maior parte delas partiram deste porto de Lisboa dia de Nossa Senhora da Anunciação, que é a vinte cinco de Março. Os capitães da qual frota eram estes: Jorge de Albuquerque, filho de João de Albuquerque; Gonçalo Pereira, filho de Gonçalo Pereira; Jorge da Silveira, filho bastardo de Diogo da Silveira; Simão de Miranda, filho de Diogo de Azevedo, o qual havia de ficar por capitão em Sofala em lugar de António de Saldanha; D.João de Eça, filho de D. Pedro de Eça; Francisco Nogueira, o que se perdeu, filho de Francisco Nogueira; Lopo Vaz de Sampaio, filho de Diogo de Sampaio; Pero de Albuquerque, filho de Jorge de Albuquerque; António Raposo, de Beja; Gaspar Pereira, que ia pera servir de secretário de Afonso de Albuquerque, como serviu com D. Francisco de Almeida, segundo atrás escrevemos. E em treze de Julho deste ano de doze partiu um cavaleiro per nome João Chanoca em um navio, a buscar a carga da nau Galega, que, vindo da Índia, por a nau não ser pera navegar, descarregou em Moçambique. E de todas estas naus Francisco Nogueira perdeu a sua, e Jorge da Silveira passou à Índia per fora da Ilha de S. Lourenço, e foi ter sobre a barra de Goa a oito de Julho; e por o tempo ser mui verde, não ousando de entrar, passou adiante a Anchediva, onde esperou perto de dous meses, té se ir a Cochi, onde achou Afonso de Albuquerque. Toda a outra armada de Jorge de Melo e Garcia de Sousa, ainda que não juntamente, quando veo dia de S. João, estavam já em Moçambique, onde acharam D. Garcia, que ali invernara com três naus. E porque (como vimos) Simão de Miranda, capitão de ua nau, vinha pera capitão da fortaleza de Sofala, Jorge de Melo o espediu e mandou provisões a António de Saldanha, que naquela nau se viesse e passasse per a fortaleza de Quíloa, onde estava por capitão Francisco Pereira Pestana, e o recolhesse com toda a gente dela, por el-Rei D. Manuel não haver por bem ter ali aquela fortaleza, por as causas que no fim da primeira Década escrevemos, e assi os trabalhos em que Francisco Pereira estava, no tempo que António de Saldanha chegou, e o que fez té a partida dela.

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319 100v 321 Capítulo III. Como Jorge de Melo e Garcia de Sousa com D. Garcia partiram todos em conserva pera a Índia, onde chegaram, e o que fizeram té se ver com Afonso de Albuquerque; e de alguas cousas que ele proveo, antes de partir de Cochi pera Goa. Jorge de Melo e D. Garcia, tanto que o tempo lhe serviu, partiram caminho da Índia, e a primeira terra que tomaram foi a barra de Goa, dia da Assunção de Nossa Senhora, que é a quinze dias de Agosto; a vista da qual frota, como era de treze naus mui grossas, em que iam mais de mil e oitocentos homens, foi tam alegre aos nossos, quam triste aos mouros; ca bem viam nelas que se lhe aparelhava algum triste fim de sua estada ali, que causou a Rostomo-Cane repairar e fortalecer de novo a fortaleza. Jorge de Melo, posto que Afonso de Albuquerque não era vindo de Cochi, e D. Garcia, por razão de sua ausência, não quis sair da nau, mandou armar seus batéis, e assi por mar como per terra, quis com a gente da cidade (que por honra de sua chegada o acompanhou) dar ua vista à fortaleza de Benestari, e por fructa do reino meteram-lhe uns poucos de pelouros dentro com as bombardas que pera isso levavam, fazendo também recolher os mouros à fortaleza, não ousando andar no campo tam vagos, como faziam ante de sua vinda. Dada esta vista e leixando ali as munições que serviam à cidade, se foram estes dous Capitães-mores a Cochi, em companhia dos quais foram os cativos que estavam em Cambaia, e assi João Machado com os outros que com ele se vieram, por os mandar chamar Afonso de Albuquerque, que queria praticar com ele, João Machado, sobre as cousas daquele mouro Rostomo-Cane; peró, primeiro que mais procedamos, pois ora falamos neles, convém dizer per que modo saíram estes cativos que se perderam com D.Afonso de Noronha. Ante que Afonso de Albuquerque partisse pera Malaca, tendo já recados deles que estavam em poder del-Rei de Cambaia, vendo que não acudia a os mandar tirar, deu el-Rei de Cambaia licença que fosse a este negócio de seu requerimento um ou dous, porque, vendo-os Afonso de Albuquerque ante si, e mais em causa tam justa, tomaria logo conclusão no despacho dos outros; e os que vieram a este negócio, como já escrevemos, foram Diogo Correa e Francisco Pereira de Berredo, os quais chegaram a tempo que Afonso de Albuquerque estava de caminho pera Malaca, e deu a Diogo Correa a capitania de Cananor, em que ficou em lugar de Manuel da Cunha; e quanto ao despacho dos outros, espaçou té sua vinda, por não poder ser então. Os cativos, vendo que Diogo Correa não tornara, nem tinham per via 322 algua recado de sua liberdade, tornaram pedir a 320 Melique-Gupi que lhe alcançasse del-Rei que houvesse por bem consentir que outro deles fosse requerer ao Capitão-mor que os resgatasse. Ao qual requerimento respondeu el-Rei que um e um lhe parecia que aqueles portugueses per bom modo se queriam todos acolher; peró, como Melique-Gupi era homem mui aceito a el-Rei e desejava nossa amizade, por lhe importar à navegação de suas naus, tanto trabalhou nisso, que aprouve a el-Rei dar licença a Fr. António do Loureiro, por ser religioso. O qual, em fé de sua verdade, prometeu que, quando o Capitão-mor não o despachasse, ele se tornaria a se meter em seu poder; e em penhor desta palavra leixou o cordão do hábito que trazia, dizendo que naquela corda estava grã parte da religião do seu hábito, que por qualquer maneira que fosse, ele tornaria a o desempenhar. A qual constância de palavra aprouve muito a el-Rei, e muito mais o efeito dela; porque, vindo Fr. António e não achando Afonso de Albuquerque em Goa, por ser em Malaca, o mais que pôde acabar com Diogo Mendes de Vasconcelos, que servia de capitão, foi mandar com ele um

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Gonçalo Homem a el-Rei de Cambaia; dizendo que Afonso de Albuquerque era ido a Malaca, e ao tempo de sua partida chegara Diogo Correa, ao qual logo não despachou, com fundamento que, quando embora tornasse, ele o tornaria a mandar com recado de sua liberdade e dos outros; e que Diogo Correa, se leixou de tornar a comprir sua verdade, fora por ele, Afonso de Albuquerque, 101 lhe encomendar a fortaleza de Cananor, em que estava por capitão. E porquanto ele, Capitão-mor, não era ainda vindo, e esperavam por ele naquela primeira monção, lhe pedia por mercê que por então lhe tomasse por desculpa a ausência de seu Capitão-mor; e que o padre Fr. António tornava desempenhar seu cordão, e o tratamento de suas pessoas fosse como té então todos tinham recebido, pois era natural dos príncipes tam grandes, como ele era, condoer-se das misérias da gente a que a fortuna posera naquele estado. Com o qual recado mandou-lhe Diogo Mendes alguas cousas deste reino em presente, e assi a Melique-Gupi, as quais, posto que estimadas fossem deles, muito mais estimaram o comprimento que Fr. António fez, e assi as desculpas dos nossos em não ter comprido. A qual obra acreditou tanto nossas cousas, que não tardou muito vermos quanto aproveitou com eles, havendo sermos homens que tínhamos duas partes: ua pera muito temor e outra pera grandemente amar; por mal, sermos mui esquivos vingadores de ofensas; e por bem, em extremo fiéis na amizade e compridores de nossa palavra. Parte das quais cousas eles viam nas que tínhamos feito naquelas partes, e principalmente duas, que então muito notaram: esta de Fr. António, e a outra, a nova que veo de Malaca, do que lá fizera Afonso de Albuquerque, a qual deu a nau de Melique-Gupi, que (como dissemos) ele tratou como se fora 321 nossa, quando soube ser sua. E como esta nova favorecia muito nossas cousas na Índia, quando ela veo, que foi muito ante da chegada de Afonso de Albuquerque, calaram o que lá viram, e andava entre eles em grande segredo; 323 e esta boa obra obrigou muito a Melique-Gupi, e assi a Melique Iaz, temer ofender-nos e procurar nossa amizade, pois a maior parte de suas fazendas estava em navegação, de que éramos senhores per armas e potência. Finalmente, com estas cousas despacharam a todolos cativos liberalmente e bem vestidos e tratados os mandaram a Goa, ante que Afonso de Albuquerque viesse por achar esta obra feita em sua ausência, e ser mais agradecida ante ele. Este foi o modo da liberdade deles, porque ua de duas cousas, pera todas haverem efeito acerca dos homens, os enfrea: amor ou temor. A chegada dos quais cativos a Cochi com toda a frota de D. Garcia e Jorge de Melo, foi um dos maiores prazeres que Afonso de Albuquerque viu, e que mais contentamento lhe deu que quantas vitórias teve; ca esta grossa armada em seu ânimo acabou de as confirmar e tirar de muitas suspeitas que ele tinha, como adiante veremos. Porque, ver ele ante si D. Garcia de Noronha, seu sobrinho, a que ele muito queria por suas calidades, com aquela honra de Capitão-mor de seis naus, que naquele tempo e naquela idade que ele também tinha, parecia fazer-lhe el-Rei D. Manuel aquela vantage por razão dele, Afonso de Albuquerque, posto que em D. Garcia havia méritos de sua pessoa pera isso, além da morte de seus irmãos; e ver também tanta gente e tam nobre fidalguia como ele, D. Garcia, e Jorge de Melo levavam; e ver aqueles cativos e João Machado com seus companheiros, os quais ele tanto trazia no ânimo, desejando modo pera os haver, e Deus lhos trouxe assi a uns como a outros per caminho de mais seu contentamento; e ver que as cousas do Estado da Índia (peró que em Goa houve assaz trabalho) todas estavam melhor do que as ele lá onde andava temia; e sobretudo concorreram todas quási em ele chegando, de prazer não lhe parecia que as via, mas sonhava. Porque sobre estes capitães chegaram estoutros que ficaram detrás,; Gonçalo Pereira, com o qual vinha Francisco Nogueira, e a gente que com ele se salvou da nau perdida em Angoxa; e assi chegou António de Saldanha com toda a gente de Quíloa que estava com Francisco Pereira. Além deles, chegaram mais duas pessoas que ele muito estimou, ambos embaixadores do Xeque Ismael,

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Rei da Pérsia, um deles posto que não vinha ordenado a ele Afonso de Albuquerque, per modo de embaixador, somente aos príncipes mouros do reino Decão, que quisessem aceitar a carapuça e oração da sua seita de Alé, de que ao diante faremos larga menção, todavia Afonso de Albuquerque, por ser de tal príncipe, e ele, embaixador, o visitar de sua parte, lhe fez muita honra e gasalhado. E depois, quando este embaixador 322 se foi pera Ormuz, havendo embarcação em Goa, per ordenança de Afonso de Albuquerque, mandou com ele um Miguel Ferreira, homem honrado e de bom saber, natural de Beja, com recado 101v seu ao Xeque Ismael, Rei da Pérsia. O outro embaixador, que chegou depois deste, mandava el-Rei de Ormuz a el-Rei D. Manuel a este reino com requerimentos, o qual embaixador veo 324 aquele ano em as naus da carga; e entre alguas cousas que lhe trouxe de presente, foi ua onça de caça, com que naquelas partes da Pérsia costumam montear, trazendo-as o caçador presas nas ancas do cavalo. E por serem alimárias mui esquivas e que esfarrapam muito com as unhas e dentes a prea, e os cavalos as não recebem bem nas ancas, onde as trazem no monte, fazem-lhe pera aquele lugar ua maneira de coprão de cobertas de armas, por não escandalizar com as unhas o cavalo; e ainda porque ela aferra com elas na cousa que tem debaixo pera se suster, quando o cavalo anda, aquele coprão não é bornido, mas a maneira de cortiça áspera. Do qual embaixador, e assi do outro com que foi Miguel Ferreira, adiante faremos relação. Afonso de Albuquerque, assi pela carta que tinha do capitão e cidade de Goa, como pela informação que lhe deram Jorge de Melo e D. Garcia, e principalmente João Machado, do estado dela, ficou algum tanto descansado, e determinou não ir lá senão com a carga da especearia feita, a qual em mui breve tempo fez. Porque, ainda que as naus fossem muitas, como o ano passado não tomaram carga mais que as naus de D. Aires da Gama e Cristóvão de Brito, havia tanta pimenta da que sobejava daquele ano, que se fez levemente; no qual tempo, posto que Pero Mascarenhas estava por capitão de Cochi, de que fora provido de cá do reino por el-Rei, ele o levou consigo a Goa e lhe deu a capitania daquela cidade, por ser causa de mais importância que a capitania de Cochi; e as pessoas como Pero Mascarenhas queria ele empregar em parte onde fizessem mais fructo, que estar por olheiro de ua fortaleza. E como as naus foram de todo prestes, e ele das cousas que havia mister pera os combates do castelo de Benestari, partiu pera Goa, e de passagem leixou Jorge de Melo na fortaleza de Cananor, de que também ia provido per el-Rei, e levou consigo Diogo Correa. Parece que o chamava o seu derradeiro dia, porque acabou como cavaleiro ao pé dos muros do castelo Benestari, como veremos. E assi passou per Baticalá e Onor, onde proveo alguas cousas, e lhe veo falar Melrau, Rei da cidade, que o aconselhou que desse grã pressa a tomar a fortaleza de Benestari, por quanto tinha nova certa que o Hidalcão em própria pessoa lhe havia de vir socorrer, pera que se fazia prestes com grosso exército, que causou a que Afonso de Albuquerque se apressasse mais, chegando a Goa, onde eram seus desejos.

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323 101v 325 Capítulo IV. Como chegado Afonso de Albuquerque à cidade Goa, onde foi recebido com grande solenidade, os mouros do castelo de Benestari lhe correram, e ele os foi encerrar no mesmo; e por causa de querer cometer a entrada dela, morreram três capitães e outra gente da nossa. Chegado Afonso de Albuquerque à barra de Goa com toda sua frota, leixou em baixo as naus grandes da carga, e levou acima, ao porto de Goa, as de pequeno porte, que podiam levemente ir pelo rio. Na saída do qual em terra, a cidade lhe tinha feito um solene recebimento; e quando foi a entrada da porta da cidade, um Mestre Afonso, homem letrado, físico, que servia de juiz ordinário, lhe fez ua oração. A substância da qual era, como ele ganhara aquela cidade aos mouros, com que, acerca dos reis e príncipes da Índia, por ela ser ua das mais notáveis daquelas partes, a nação português não somente tinha ganhado grã nome, mas ainda em ser sua era um duro jugo, que cada um destes príncipes tinha sobre seu pescoço. Porque os capitães e príncipes do reino Decão perdiam aquela porta per que lhe entrava e saía todo o essencial que os sustentava e mantinha em seus estados; el-Rei de Narsinga, senhor de todo o Canará, pela mesma maneira não tinha vida, por razão dos cavalos que eram as principais armas com que se defendia dos mouros. Finalmente, assi estes, por razão de seus estados, como os outros mouros de toda a costa da Índia, por causa de seus comércios, estavam mui 102 assombrados em ver que a gente português, que até li não fizera conta de habitar na Índia, com ter tomada aquela cidade, começava de lançar raízes de sua vivenda. A qual cousa, depois que o Hidalcão caiu nela, assi o atormentou, além de perda de tamanho estado e de tanta injúria como nela recebeu per duas vezes, que, partido ele, Capitão-mor, pera Malaca, mandou cercar aquela cidade, cujos lares ainda estavam quentes da habitação que nela fizeram alguns dos que ali vinham. A dor e mágoa da qual perda vinha tam viva no ânimo de todos, que, desejando restituir-se nela, muitas vezes, com o grande número da gente que eram e esterelidade do inverno, per combates, per fome, sede e continuação de vigílias e trabalhos, todos aqueles fidalgos cavaleiros e gente de armas padeceram grandes afrontas. E pois Nosso Senhor a todos fizera tanto mercê, que naquele lugar ante seus olhos vissem a ele, seu Capitão-mor, do qual dependia todo o seu governo, forças, indústria e vitórias, com muito prazer e esperança de tirar aquele imigo que tinham ante de sua face lhe entregavam a posse daquela cidade, pera que a remisse de seus trabalhos, pois per duas vezes a tinha ganhada a mouros. E em dizendo estas palavras, o capitão da 324 cidade lhe entregou as 326 chaves dela, e ele depois lhas tornou a dar, e de si foi à Sé dar graças a Deus da mercê que lhe tinha feito em o trazer àquela cidade, onde estavam todos seus desejos, e di a seu aposento. Passados dous dias de sua chegada, começou ele entender as cousas de sua obrigação e ofício, pedindo razão a cada um do que tinha feito, começando primeiro naqueles a que ante da sua partida tinha mandado algua cousa, assi como a Diogo Fernandes, de Beja, que mandara desfazer a fortaleza de Socotorá. O qual lhe deu razão disso como ficava desfeita e trazia as páreas de Ormuz, onde também o enviara, com todo o mais que tinha sabido da ida del-Rei à Ilha Baharém, por estar alevantada contra ele, e assi o que tinha sabido daquele reino. E com a nova destas cousas lhe entregou três mil e tantos pardaus, e alguas peças do quinto das presas que ele, Diogo Fernandes,

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fez naquele caminho (como atrás apontámos), os quais Afonso de Albuquerque logo distribuiu per ele, Diogo Fernandes, e per outros capitães. Finalmente, depois que perguntou e deu audiência a outros de tanto tempo como havia que dali era partido, contentando a todos, deles com mercê em nome del-Rei, outros com palavras e a muitos com esperança de seus requerimentos, começou entender em o modo que havia de ter o cometimento daquela fortaleza Benestari, ca, segundo a enformação que teve, era cousa mui dura de cometer. Porque ela era ua fortaleza feita assi per sítio da terra, como per o trabalho da muita gente, que tinha quási té as ameas, per dentro o muro entulhado e maciço, e as torres e baluartes outro tanto; somente um lanço do muro, ao longo do qual corria um esteiro da parte do Passo Seco, onde eles tinham metidos alguns barcos de que se serviam pera terra firme, por razão deste esteiro empedir poder-se ali dar bataria, leixaram aquele pedaço por entulhar. E porque eles sabiam que per mar não havia cousa que se nos tevesse, temendo que os poderíamos cometer per aquela parte, por a fortaleza ter um lanço grande de muro pegado no mar, e, ainda que per ali não fossem cometidos, podiam-lhe com navios que se posessem entre a fortaleza e a terra firme tomar a serventia dela, que era toda sua vida, pois de lá lhe vinha todo o necessário, ordenaram de atravessar o rio com duas estacadas, ua da parte donde chamam o Passo Seco, e outra de Goa-a-Velha. Cada ua das quais estacadas seria de comprimento de um tiro de espingarda; e porém a da parte de Goa-a-Velha era muito mais forte e dobrada que a outra, entre as quais ficava a fortaleza metida um pouco afastada delas, com que tinham larga e segura serventia pera terra firme, sem alguém lha poder empedir. Tinham mais nesta banda da estacada contra Goa-a-Velha um baluarte, onde, além de outra muita artelharia meúda, estava um basalisco de ferro, assi ordenado que, com maré chea 325 e vazia, pescava um batel, por pequeno que fosse. Porque como desta parte de Goa-a-Velha té a sua fortaleza o rio 327 era largo, e de fundo que poderia ir acima ua nau, punham neste lugar toda sua defensão e artelharia; e assi na face da terra contra a cidade, e da outra parte contra o Passo Seco, não se temiam tanto por ser tam baixo, principalmente neste passo, que per ele na baixa-mar se podia passar a pé de ua a outra parte. Afonso de Albuquerque, posto que logo ao presente não soube parte do que ia dentro do castelo, nem de alguas cousas destas, somente 102v polo que lhe disse João Machado do que leixava feito ao tempo que de lá veo, ordenou suas cousas, como quem havia de ir poer cerco a esta fortaleza per terra e per mar, com fundamento que não se havia de levantar de sobre ela, té que a não houvesse às mãos. Porém, ante que neste negócio fosse avante, não passaram seis dias de sua chegada que ua sexta-feira, dia que os mouros solenizam como nós o domingo, vieram correr à cidade obra de duzentos de cavalo e quatro mil de pé, com tenção que, dando aquela mostra de si, poderia sair gente a eles, com que descobririam o que haveria na cidade, pois nela estava Afonso de Albuquerque; e ainda de indústria correram o campo derramados em modo que podessem mais convidar os nossos a sair a eles. Afonso de Albuquerque, posto já fora dos muros em um lugar onde se encorporou com toda a gente que saiu ao repique, assi de cavalo como de pé, vendo o modo em que os mouros andavam, afastou-se um pouco do corpo da gente chamando os capitães e a João Machado, ao qual perguntou que como andava aquela gente tam mal ordenada, se vinha ali Rostomo-Cane. Ao que João Machado respondeu, que, por aquele dia ser o que os mouros solenizavam, lhe parecia virem eles mais a folgar que a outra cousa; e quanto ali vir Rostomo-Cane, não via bandeira sua; porém, porque eles costumavam encorporar-se às Duas Árvores , tanto que os visse em um corpo, onde se haviam de ajuntar os de cavalo com os de pé, saberia dizer se vinha ali. Estando Afonso de Albuquerque nesta prática, foi tanta a fúria da nossa gente, havendo por injúria aquela soltura dos mouros em sua face, que com ímpeto de vingança começou a correr ua

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voz per todos: - A eles! a eles! - e foi este alvoroço tam solto na boca e pés de todos, que, quando Afonso de Albuquerque acudiu a os entreter, eram já tanto na vista dos mouros, que por lhe não dar suspeita que os temiam, largou a trela aos nossos, tomando por sinal de vitória o ímpeto que neles via. Os mouros, como viram a corrida que levavam, começaram os de cavalo rodear a sua pionagem e pô-la ante si, recolhendo-se em boa ordem; porém, Pero Mascarenhas, capitão da ordenança da gente de pé, da qual ordenança eram capitães João Fidalgo e Rui Gonçalves, começou de os apressar de maneira que muitos deles desempararam a pionagem e 326 começaram de se 328 recolher apressadamente. Porque, como com esta nossa gente iam muitos gentios do Malabar e dos canaris, homens mui leves em cometer, com o favor dos nossos que levavam nas costas, derribavam pelo caminho muitos, té que, chegados ao sob-pé de um teso já pegado nos muros da fortaleza, onde os mouros tinham muitas casas palhaças, a maneira de arrabalde, eles mesmos, por entreter os nossos, posesse fogo às casas. A qual detença deu algum fôlego aos mouros pera se poder recolher; porque era tanta a pressa, e o lugar per onde entravam na fortaleza tam estreito, e o rolo deles tamanho, que, de não terem os de cavalo lugar pera entrar, leixavam os cavalos de fora. E ainda chegou o temor a tanto que, temendo que os nossos juntamente com eles entrassem, como aconteceu na tomada de Goa, fecharam a porta um pouco cedo, com que muitos ficaram de fora. Parte dos quais, por fugir o ferro dos nossos que os sangrava, se lançaram a ua alagoa a nado; outros se metiam nos barcos que tinham no esteiro, que eram do serviço da fortaleza; e muitos, subidos em um cubelo baixo de cima do muro, que ficava sobre ele, por toucas que lhe lançavam se queriam salvar. Ao qual lugar (posto que a fortaleza toda foi logo torneada dos nossos, buscando entrada), como era o de maior pressa e um pouco estreito, acudiu muita gente nobre dos nossos; e vendo alguns o trabalho que os mouros tinham pera se alar pelas toucas ao muro, começaram subir ao baluarte, por ser baixo, com tenção de entreter os mouros e ver se teriam modo de poder subir em cima do muro; e o primeiro que subiu a este baluarte, foi Tristão de Taíde, um fidalgo de Loulé, dando a mão a outros que o quiseram seguir. E porque no chão deste baluarte, no muro da fortaleza, estava ua porta fechada de pedra e barro, cousa feita de poucos dias, como que se fechara por não haver tantas serventias, onde concorria muita gente, começaram os mouros, por o lugar ser azado pera os entrarem per ele, de cima lançar panelas de pólvora, fogo de alcatrão e quantas cousas achavam pera o defender, no qual, por ser estreito, os nossos receberam assaz dano. Ao qual trabalho acudiu Pero Mascarenhas, Duarte de Melo, Aires da Silva, Lopo Vaz de Sampaio, Manuel de Lacerda, Rui Galvão e outros fidalgos com João 103 Machado, que, como homem que estevera dentro, daria algum conselho per onde podiam entrar, que ao descer fosse a ele possível. Peró, como na companhia não havia escada, nem cousa mais azada que aquela porta e o baluarte pera entrar na fortaleza, carregaram os mouros tanto, que mataram Diogo Correa, que fora capitão de Cananor, e Jorge Nunes de Lião, e feriram Lopo Vaz de Sampaio, Manuel de Lacerda, Rui Galvão e outros. Na qual perfia de querer trepar e subir, Pero Mascarenhas se mostrou mais desejoso que outro algum, cometendo a subida per 327 os piques da gente de ordenança, o qual trabalho lhe não fundiu a seu propósito. Afonso de Albuquerque, vendo que na parte em que ele estava, e assi nesta em que morreu a mais gente, todo o dano era seu, pois estavam por barreira de quanta frechada e artelharia tiravam os mouros, mandou um 329 recado a Pero Mascarenhas que se recolhesse; o que ele fez com assaz perigo, porque, desabrigado do muro, nenhum tiro perderam os mouros. Finalmente, daquela saída ficaram aquelas pessoas

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principais; e toda a mais gente que chegou àquele lugar do muro, o maior dano que recebeu, foi do fogo e azeite fervente e alcatrão que lançavam de cima. Passado este perigo dos mouros, veo Afonso de Albuquerque cair em outro, que ele mais sentiu; porque, como a natureza do português é conceder a poucos a glória do seu braço, acertou Afonso de Albuquerque, por mostrar quam contente ficou do que Pero Mascarenhas fez na chegada daquele muro, de o ir beijar na face, chegando a ele com palavras de louvor daquele feito que Afonso de Albuquerque mui bem sabia dizer, como grande oficial que era disso. A qual cousa foi em tal hora, que saltou entre toda aquela fidalguia um rumor de palavras, como se todos naquele louvor de Pero Mascarenhas recebiam algua injúria. E porque o autor desta revolta fora Francisco Pereira Pestana, que nas cousas de cavalaria era de ua condição forte e língua áspera, pola confiança que tinha de si, viu-se Afonso de Albuquerque tam agastado, que usou dos seus artefícios com que ele sabia apagar este fogo de paixão entre partes. Arremetendo contra Francisco Pereira, não per modo iroso, e chegando a ele, começou rasgar a vestidura dos peitos, dizendo: - Que quereis, Francisco Pereira? Quereis ver o meu coração? Vede-lo aqui puro, limpo, todo cheo de amor; e aquele que menos parte tem nele, é quem isto não crê: An oculus tuus nequam est, quia ego bonus sum? Com o qual modo e palavras, e esta última tirada da Escritura, meteu toda a murmuração em prazer e festa da vitória, em que (segundo se logo soube) dos mouros morreram cento e tantos, e perderam alguns cavalos que com pressa não puderam recolher, que os nossos trouxeram, e assi muita boiada, que lhe foi bom refresco. E por espedida posesse fogo ao arrabalde que os mouros tinham feito junto da fortaleza: e enquanto ele ardia, Afonso de Albuquerque à vista dela se pôs a fazer alguns cavaleiros; acabado o qual auto, se recolheu pera a cidade.

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328 103 330 Capítulo V. Como Afonso de Albuquerque, providas alguas cousas a esta ida necessárias, assi pera mar, como pera terra, partiu de Goa e pôr cerco ao castelo que os mouros tinham feito no Passo de Benestari. Passado este dia, em que Afonso de Albuquerque tomou per si experiência da força daquela fortaleza de Benestari, e quam trabalhosa cousa havia de ser o cerco que lhe ele queria pôr, e a causa era as estacadas com que tinham atravessado o rio, que lhe empediam poder-se aproveitar do mar, aqui foi todo o seu estudo do modo que teria pera se servir, assi do mar, como da terra. Porque, como ele passasse além das estacadas alguns navios que podessem estar entre ambas, pera empedir com artelharia o serviço, que a fortaleza tinha da terra firme, donde lhe vinha todo o necessário, logo ficava sem forças pera não poder sofrer o cerco que lhe havia de pôr per terra. Porém achava a este seu fundamento dous grandes inconvenientes, e tais, que, quando com eles fosse avante, seria à custa de muita gente; e o somenos deles era que, mandando navios pela parte do Passo Seco, às vezes em águas vivas, ficava o vau de maneira que se passava 103v a pé, donde houve nome Passo Seco. Pela outra parte de Goa-a-Velha, posto que era de mais fundo, aqui estava o maior perigo; porque, segundo dissemos, como parte mais suspeitosa que os podiam cometer com entrada de naus e abalroar com a fortaleza, além de terem a estacada dobrada um pouco larga da fortaleza, tinham um basalisco com a mais da artelharia; e cometer pera aqui era cousa mui trabalhosa o arrincar das estacas, e grande perigo da gente. Finalmente, buscados todolos modos pera a não meter a tanto risco, depois que sobre isso houve muitos conselhos, não achou outro mais conveniente, pera poder tomar aquela fortaleza, que cometê-la per mar e per terra juntamente. Pera o qual negócio, enquanto se ordenavam as outras munições de enxadas, picões, cestos, padiolas, mantas, escadas e outras cousas pera ir assentar o arraial em cerco da fortaleza per terra, mandou aperceber, pera entrarem pelo Passo Seco, um navio e ua caravela. O navio seria de até cem tonéis, o qual fora daqueles que tomaram ali dos que tinham feito os rumes, mui azado por não ser de quilha como os nossos, que daquele porte demandam muita mais água do qual era capitão Duarte de Melo, e da caravela João Gomes, de alcunha Cheira-Dinheiro, que seria de até quorenta e cinco tonéis, ambos cobertos de tavoado per cima de longo a longo, armado sobre antenas a maneira de cumieira de casa baixa, pera que a gente podesse per baixo trabalhar sem receber dano, e além disso suas arrombadas; e o navio rume ia tam artelhado, que parecia levar em si mais ferro que madeira. Pera 329 entrarem pela parte de Goa-a-Velha ordenou quatro peças: a nau 331 S. Pedro, capitão Tristão de Miranda, e um navio, capitão Pero da Fonseca, filho de Gonçalo da Fonseca, e ua caravela, e ua fusta, de que eram capitães Mendafonso e Afonso Pessoa, todos quatro repairados pela maneira de estoutros com arrombadas, e artelhados e cobertos. Concertados estes seis navios com a gente ordenada pera o trabalho de arrincar as estacadas e laborar da artelharia, que tudo havia de ser gente do mar e bombardeiros, os dous foram pela parte de Daugi, e, tendo já passado o Passo Seco, a força de cabrestante, indo o navio per cima da vasa, foi cair em outro maior perigo; porque, por se afastar da terra firme, tanto se encostou à ilha, que foi dar em um penedo, o qual alevantou o ânimo per ua parte; e como ele ia carregado de artelharia, encostou-se pera a banda da água pera onde toda correu, de maneira que o peso dela fez que tomou água per bordo, com que se foi ao fundo, por o penedo ser a pique e o navio não assentar per todo nele; mas aprouve a Deus

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que toda a gente se salvou. Em lugar do qual navio mandou Afonso de Albuquerque um grande batel assi coberto com alguas peças de artelharia que ele podia sofrer; e com ajuda dele, João Gomes, apesar dos mouros, a força de cabrestante tirou tantas estacas, té que fez lugar per que meteu a sua caravela, onde esperou que viessem pela outra parte os outros navios. Aos quais o caminho foi mais empiedoso com o basalisco e artelharia grossa com que lhe tiravam, e deteveram-se em subir acima per tantos dias, atoando-se de vagar, pouco e pouco em espaço de ua légua, sem chegar à estacada, que, cansado Afonso de Albuquerque dos recados que lhe mandava e desculpas de não poderem mais, determinou per si ir ver este vagar. Pera a qual ida, posto que havia de sair à barra do rio e tornar a entrar pela outra de Goa-a-Velha, não quis escolher maior vasilha pera sua pessoa, que um catur da terra. Chegado aos navios, depois que viu o que podiam fazer e ouviu as desculpas dos capitães do que não tinham feito, quási tanto polos envergonhar, e assi a toda a gente, do receo que tinham em chegar à estacada, como por de mais perto notar o sítio da artelharia, e que entrada haveria per ali à fortaleza, mandou remar o catur, que chegasse à estacada o mais perto da fortaleza que ele pôde. Notado o lugar e estância da artelharia, em se tornando, parece que um bombardeiro galego arrenegado, que nos fazia todo aquele dano, enfiou o basalisco no catur e espedaçou o corpo de um canari que ia ao leme, de maneira que parte dos miolos envoltos em sangue vieram dar nas barbas de Afonso de Albuquerque. O qual todolos do catur houveram por morto, porque o vento do pelouro o sombrou, com que caiu, e assi assinalado daquela ousadia chegou aos navios, onde logo mandou lançar um pregão, que qualquer bombardeiro que lhe quebrasse 330 aquele basalisco lhe dava cem cruzados. E como o prémio, as cousas que ante dele se tem por impossives ele 332 as faz leves, e finalmente acaba tudo, assi ordenou um bombardeiro 104 o ponto de um tiro grosso, que meteu o pelouro pelo cano do basalisco, com que o quebrou, e o bombardeiro arrenegado foi morto. Com a qual obra ele levou os seus cem cruzados, e Afonso de Albuquerque ficou vingado do sangue com que o borrifaram; e mais tirou o pejo da nau S. Pedro, e aos outros navios pera chegarem à estacada. Com que logo, aquela noite, na baixa-mar, em as estacas, fizeram ao machado grandes presas, onde amarraram cabos de linho grosso; e vinda a maré, que alevantou a nau e navios, a força da água, fez arrincar as estacas sem mais cabrestante, e per este modo fizeram lugar com que entraram, e foram-se ajuntar com a caravela e batel de João Gomes. Feita a qual obra, em que Afonso de Albuquerque tinha tanta esperança do que desejava, quanto os mouros de receo, parece que estava assi provido per eles que, ao seguinte dia, da entrada dos nossos navios entre as estacadas acudiu logo um capitão, que estava ao pé da serra, chamado Sufo Lari, que depois em acrescentamento de honra houve nome Sada-Came, de que ao diante faremos maior relação, por causa das contendas que com ele tevessem, sendo senhor de Bilgão. O qual trouxe consigo até sete mil homens com muitas munições em socorro da fortaleza, assentando seu arraial um pouco emparado das nossas caravelas na parte da terra firme, por não receber dano da sua artelharia, no qual lugar esteve per alguns dias, parecendo-lhe que poderia fazer algum proveito à fortaleza. Porém, depois que viu que sua estada era ociosa, e que mais danava a si do que aproveitava aos outros, tornou-se recolher com perda de algua gente, que lhe a artelharia dos navios matou. Neste tempo, como Afonso de Albuquerque estava apercebido pera ir pôr cerco a esta fortaleza Benestari, havendo perto de vinte dias que passara esta vitória que houve dos mouros, partiu de Goa com até quatro mil homens, três mil deles portugueses, que foram os mais que té aquele tempo se viram na Índia, e os mil da terra, em que entravam estes capitães: Dom Garcia de Noronha, Pero Mascarenhas, Manuel de Lacerda, António de Saldanha, Jorge de Albuquerque, Pero

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de Albuquerque, Jorge da Silveira, Francisco Pereira Pestana, Garcia de Sousa, Gaspar Pereira, Diogo Mendes de Vasconcelos, Lopo Vaz de Sampaio, Jerónimo de Sousa, Rui Galvão, Gonçalo Pereira, Francisco Pereira de Berredo, António Ferreira, António de Sá, e João Fidalgo, Rui Gonçalves, ambos capitães de Ordenança, os quais neste uso andaram muito tempo em Itália, donde trouxeram honrado nome. Além destes capitães, iam muitos fidalgos cavaleiros e criados del-Rei, toda gente mui escolhida e limpa, a qual Afonso de Albuquerque 331 repartiu em dous corpos: um tomou pera si e outro deu a D. Garcia de Noronha, seu sobrinho; e a gente da terra canari e malabares, que de Cochi vieram a soldo, ficou com Pero Mascarenhas, Capitão-mor da Ordenança. Partido Afonso de Albuquerque com este exército ua tarde, foi dormir às Duas Árvores, meia légua da cidade, e ao outro dia chegou à fortaleza 333 Benestari, onde assentou seu arraial em ua parte encoberta a gente, por causa dos tiros que tinham no muro e baluartes. E porque de dia se não pôde assestar a artelharia nos lugares onde convinha pera dar bataria à fortaleza, tanto que foi a noite, ficando ele, Afonso de Albuquerque, com a gente que tomou pera si naquele lugar onde se pôs, que era em um outeiro, a maneira de padrasto sobre a fortaleza, mandou a D.Garcia e a Pero Mascarenhas que fossem mais abaixo assestar toda a artelharia detrás de um repairo de pipas cheas de terra, obra de trinta passos do muro, em que toda aquela noite trabalharam com assaz perigo. Porque, como os mouros sentiram o bater e cavar que eles faziam nesta obra, descarregavam ali toda sua artelharia e almazém; e contudo, quando veo ao outro dia, a fortaleza da parte da terra estava toda torneada destas nossas estâncias, das quais, e assi dos navios do mar, tanto que lhe foi dado sinal, começaram com aquela fúria de fogo picar o muro da fortaleza per todo. Porém este trabalho per alguns dias aproveitou pouco, e tudo foi gastar pelouros e pólvora, assi da nossa parte, como da fortaleza, a qual fúria parecia ua semelhança do Inferno, porque todo o sítio daquela fortaleza era fumo e fogo. Em tanto que até os lagartos da água, que no cercuito daquela ilha andavam (como atrás escrevemos), os quais eram vistos dos nossos navios, que tolhiam a passagem da terra firme, às vezes sobre a água e outras na margem da praia, tanto que começou a bataria, assi foi espantoso aquele auto a eles, que se recolheram 104v pelos esteiros, sem mais aparecer na frontaria da fortaleza. Porém neste auto do combater muito maior dano receberam os nossos que o muro; porque, como per dentro era maciço té quási as ameas, toda nossa artelharia embaçava nele e nos baluartes onde eles tinham assestado a sua, que varejava bem em as nossas estâncias e navios. Vendo Afonso de Albuquerque que gastava tempo, que era honra nossa em se deter tanto, sem fazer mais que despender e quebrar suas munições, mandou mudar ua das estâncias junto de um esteiro, que era já pegado no mar, e que apalpassem per aquele canto o muro. Na qual parte, posto que a nossa artelharia não era de bataria de campo, com os primeiros tiros furiosos os nossos viram a luz da outra parte, por naquela não ter entulho, somente a grossura da parede, a qual cousa deu logo muito alvoroço em todo o arraial, e pelo contrairo aos mouros. Rostomo-Cane, vendo esta obra e sentindo o prazer dos nossos pela 332 grita que deram com ela, determinou-se em mais que defender, porque logo aquela noite, ante que os nossos procedessem mais nela, teve conselho com os principais capitães que tinha, e assentou que, per ua porta que vinha dar na estância que lhe fazia este dano, saíssem até duzentos homens escolhidos e trabalhassem por fazer algum feito, ao menos que houvessem a artelharia e pólvora, de que ele muito carecia. No tempo da qual saída, que havia de ser ao quarto derradeiro da noite, quando as vegias estão menos prontas na guarda, ele estaria à porta da fortaleza pera lhe acudir, sendo necessário. 334 Assentado este cometimento, quanto por parte deles ainda foi melhor cometido, em tanto

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que muitos turcos vieram a braços com os nossos, servindo-se mais das adagas que punhais e de outras armas e pelo tempo em que foi, meteu os nossos em tanta revolta naquela estância, per onde cometeram esta entrada, a qual tinha Manuel de Sousa Tavares, que, acudindo-lhe D. Garcia, ainda se não podiam defender deste ímpeto deles, té que sobreveo Pero Mascarenhas com os seus capitães e gente de ordenança, que os fizeram recolher tam apressados como saíram. E sobre este trabalho, como cousa industriosa pera aquele feito, por recebermos maior dano, tanto que foram metidos pela porta do muro de cima dele, foi tanto o tiro sobre os nossos, que maior foi a obra em ferir e escalavrar do muro, que da mão dos mouros; de maneira que fez desfazer o corpo da nossa gente, que estava ali apinhoada por acudir àquele cometimento dos mouros, recolhendo-se cada capitão à sua estância. Afonso de Albuquerque, por lhe não virem dar outro tal rebate, quando veo a noite seguinte, mandou dobrar outras pipas cheas de area, que vieram de Goa per duzentos canaris, que deu a Bastião Rodrigues pera as trazerem às costas, por não haver bestas de serviço; e além das pipas, mandou fazer ua cava de maneira que ficaram as estâncias mais seguras. Neste tempo os mouros estavam já necessitados de muitas cousas, principalmente de mantimentos e assi de pólvora, e pelouros, porque todas estas os nossos navios, que davam a bataria por mar, lhe empediam a não virem da terra firme. Da qual necessidade os nossos teveram notícia por dous sinais: um, que tiravam poucas vezes e já fracamente; e alguns pelouros de pedra, que vinham cair entre os nossos, eram de pedra branca, os próprios que lhe a nossa artelharia tirava, como que lhe faleciam já os seus, que eram de pedra negra ferrenha, segundo tinham visto per todolos outros dias. Sobre esta sua necessidade sobrevieram dous casos, que acabaram de rematar o fim deste cerco: o primeiro foi que, estando Rostomo-Cane em ua torre, que vinha tomar parte do outeiro que ficava em lugar de padrasto da fortaleza, a qual torre era a maneira de cunhal de dous panos de muro que corriam em revés, acertou de tirarem com um camelo da estância de Afonso 333 de Albuquerque, e deu em um cunhal da torre, que a fez toda estremecer por não ser maciça, e trás este foram outros dous, de maneira que quando ele, Rostomo-Cane, se apartou da janela, onde estava em prática com alguns dos nossos arrenegados, já foi bem cheo de caliça do grande tremor da torre. O outro caso que sucedeu logo sobre este foi acender-se fogo em uns barris de pólvora em ua das nossas estâncias; e porque isto foi com um pelouro da artelharia dos mouros, que logo matou dous bombardeiros, vendo eles a re 335 volta que sobre isso houve entre os nossos, foi tam grande a grita deles, que acudiu Afonso de Albuquerque àquele lugar, parecendo-lhe ser outra cousa. No qual abafo se alvoroçou tanto a gente, que não ousando ante deste caso chegar ao muro, como se a vitória os chamara, todos se posesse 105 em fúria de o cometer à escala vista. Rostomo-Cane quando viu a revolta per todalas partes do arraial, perguntou aos arrenegados que cousa era aquela. Os quais, cortados da culpa de seus pecados, sem as palavras de esforço com que ante animavam a todos, disseram que lhe parecia que o Capitão-mor queria cometer entrar a fortaleza a escala vista; e se assi fosse, soubesse certo que onde os portugueses punham o rostro, depois que bebiam o vaso da fúria que os movia, tudo levavam nas unhas como liões; e porque aquela fortaleza estava já aportilhada na parte de baixo junto do mar, seu conselho era cometer-lhe trégua e algum bom partido. A este tempo também dentro na fortaleza entre os mouros havia já grande confusão, porque viam que os nossos navios empediam a lhe não vir mantimento algum, e tinham necessidade deles, e muito maior de pólvora e pelouros e munições ,em que estava toda sua defensão. Sobre isso viam o muro roto, e que não podiam andar dentro na fortaleza com dous trabucos nossos que lhe tinham morta algua gente; porisso, quando ouviram falar os arrenegados em partido, lançaram orelhas a isso, e muito mais Rostomo-Cane, que viu o negócio ordenado de maneira pera o tomarem às mãos. Finalmente posto este caso em prática de todos, assentaram que cometessem tréuas, e no tempo dela lhe moveria algum bom partido; e ante

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que dali saísem, com o temor do alvoroço dos nossos, mandou Rostomo-Cane arvorar ua bandeira branca naquela parte onde D. Garcia estava, que era a que eles mais receavam, e o arrenegado que a trazia começou de chamar por João Machado. D. Garcia, quando viu este sinal e ouviu o que deziam, por João Machado não ser presente, mandou saber per Bastião Rodrigues que sabia algua cousa da língua, do tempo que o cativaram na morte de D. Lourenço, o que queriam. O qual trouxe recado da parte de Rostomo-Cane, que ele queria estar em trégua com o Capitão-mor por alguns dias, e neste tempo teriam prática em algua cousa que fosse em proveito del-Rei de Portugal e do Hidalcão, seu senhor. 334 D. Garcia mandou logo este recado per o mesmo Bastião Rodrigues a Afonso de Albuquerque, o qual recado teve muitas contradições; porque entre os capitães houve diferentes votos, apresentando muitas razões, ua das quais era que Rostomo-Cane não pedia esta trégua a mais fim, que pera dobrar o muro, que lhe a nossa artelharia começava a romper. Todavia eram tanto mais os pareceres da trégua com logo mover partido, e execução dele por lhe não dar tempo a se poderem repairar que lhe foi concedida per João Machado, que foi com Bastião Rodrigues, levando estes apontamentos: Que lhe entregasse ele, Rostomo-Cane, a fortaleza assi como estava com toda artelharia nossa, que fora tomada em o navio naquele passo 336 Benestari, quando a ilha foi entrada per eles da primeira vez, com todolos navios e fustas nossas e suas, e mais os cavalos que tinham consigo; e sobretudo os arrenegados que de nós se passaram a eles, e que livremente leixaria ir suas pessoas com a fazenda que tevessem. Dados estes apontamentos, Rostomo-Cane se mostrou mui livre na concessão deles; todavia, pera estas cousas tomarem algum termo de concerto, ele deu dous turcos em reféns, e da nossa parte estavam com ele João Machado e Bastião Rodrigues, que ia e vinha a Afonso de Albuquerque com recado do que ele queria conceder. Finalmente, ele se resumiu nisto: que entregaria a fortaleza assi como estava com toda artelharia e munições de guerra; e quanto aos arrenegados (em que ele muito ensistiu), estes entregaria com condição de ele, Afonso de Albuquerque, lhe dar a vida, o que lhe foi concedido, por isto ser o principal. O qual negócio ordenou ele de modo que se acabou de noite pera fazer o que fez desaparecer de antre os seus, passando-se secretamente da banda da terra firme com suas mulheres e fazenda, sem o saberem os outros capitães; dando depois por desculpa por os leixar assi, que o fizera por não ser presente à entrega dos arrenegados; porque, como já os mais deles eram convertidos à sua lei, havia ser grande escrúpulo de sua consciência ser ele a pessoa que os entregasse. Na qual passagem levou consigo um destes, chamado Fernandinho entre os nossos, por ser mui aceito a ele. Os outros arrenegados, quando souberam o concerto da entrega, e que haviam de ir ter ante Afonso de Albuquerque, quiseram escapulir; mas como os capitães do Rostomo-Cane viram que a salvação de suas vidas estava na entrega deles, teveram mão, e entregaram-nos a Bastião Rodrigues, que os 105v segurou e consolou no que temiam de Afonso de Albuquerque. Todavia, por não ficarem sem castigo, posto que não perderam a vida, perderam as orelhas, narizes, mão direita e dedo polegar da esquerda, que lhe Afonso de Albuquerque mandou cortar, tanto que tornou pera Goa; e postos em lugar público dos moços e gente do povo, receberam vitupérios, e di os mandou vir pera este reino em as nau daquele ano. Um dos quais, 335 per nome Fernão Lopes, se leixou ficar na Ilha Santa Helena com um negro que lhe os capitães deram, o qual, pelo tempo em diante, foi mui proveitoso às naus que ali vão fazer sua aguada à vinda da Índia; porque, com a criação de porcos, cabras, galinhas e hortaliça que lhe as naus deram, e ele criou e semeou, quando chegam, acham este refresco, que dá vida aos homens de tam comprida viagem, entanto que a nau que não toma esta ilha traz muita gente morta por falta da água

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e deste refresco, de que Fernão Lopes foi o autor. Passados alguns anos nesta vida solitária, em que fazia penitência, veo a este reino, e daqui foi a Roma a pedir reconciliação e absolvição plenária de seus pecados; e vindo de lá, se tornou à mesma ilha, onde ainda estava em penitência no tempo que escrevíamos esta história. Afonso de Albuquerque, tanto que soube per Bastião Rodrigues que 337 levou estes homens, como Rostomo-Cane era ido, e que os mouros que ficavam na fortaleza eram na confiança de sua palavra, conforme aos apontamentos, por ser alta noite, leixou a entrada pera pela menhã, como fez, abrindo-lhe os mouros principais as portas, confiados na concessão dos apontamentos. A qual confiança não teve a mais da gente baixa; ca esta, tanto que viram entrar os nossos per as portas da fortaleza que ia pera o arraial, começaram com temor de fugir pelas outras, lançando-se a nado pera passar à terra firme, parte dos quais se afogaram. Afonso de Albuquerque, quando viu que o temor da sua entrada os fazia fugir, em que também entravam alguns mouros de cavalo, ao cabo dos quais, ao tempo do nadar, se apegavam outros de pé, mandou lançar pregões que ninguém fugisse sob pena de morte, por quanto ele queria dar embarcação a todos pera passarem sem perigo e poderem levar suas fazendas, segundo tinha concedido nos seus apontamentos; e que, enquanto não fossem passados à terra firme, qualquer português ou pessoa que fizesse algum dano a algum mouro, que morresse por isso; com os quais pregões os mouros ficaram sem aquele assombramento que os fazia fugir; e finalmente as embarcações que lhe Afonso de Albuquerque mandou dar, passaram suas pessoas e fazenda, leixando o casco da fortaleza com toda artelharia e cavalos que Rostomo-Cane tinha. As quais cousas Afonso de Albuquerque tomou pera el-Rei, por a fortaleza se entregar a partido, e algum móvel que os mouros leixaram ficou pera despojo da gente meúda, principalmente o mantimento, que naquele tempo era de muita estima.

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336 105v 337 Capítulo VI. De alguas cousas que Afonso de Albuquerque passou com Rostomo-Cane, e assi da paz que assentou com o Samori de Calecute, e da vinda do embaixador do Preste João e de outro del-Rei de Ormuz a este reino, na armada que aquele ano partiu da Índia. Tanto que Afonso de Albuquerque se meteu de posse desta fortaleza, a primeira cousa em que entendeu foi mandar visitar per Bastião Rodrigues a Rostomo-Cane, espantando-se de ele não o esperar na fortaleza pera se verem ambos, cousa que ele muito desejava; porque ua tal pessoa, como ele, Rostomo-Cane, era, se havia de ir muitas jornadas polo ver, quanto mais estando a sua porta, e per estes termos outras palavras. Entre as quais foram alguas ofertas que ele, Afonso de Albuquerque, lhe prometia pera segurança da pessoa dele, Rostomo-Cane, enquanto não tinha 338 recado do Hidalcão, seu cunhado; ca, segundo lhe deziam, ele lhe tinha escrito o estado em que estava naquele cerco, pedindo-lhe socorro pera se não perder aquela fortaleza ou modo que havia de ter. Ao qual recado ele, Hidalcão, não respondera; e que, como os príncepes às vezes se indinavam indinamente de seus capitães nos tais negócios, e isto quando não sabem a verdade e tem à sua ilharga pessoas que tem ódio às partes - e ele, Rostomo-Cane, 106 tinha alguns émulos por razão de seus honrados feitos - perventura com este, concedido por se mais não poder fazer, como são todolos casos da guerra, e não por sua vontade, encruaria a do Hidalcão, por o não tratar como ele merecia, por quam prudentemente, e como cavaleiro, se tinha havido no modo que teve com Pulate-Cane, e na defensão daquela fortaleza. Rostomo-Cane, posto que Afonso de Albuquerque lhe tocou nestas cousas, que em verdade ele temia, não lhe respondeu a elas, mas a outro propósito em modo de agravo, pedindo-lhe os cavalos que lhe ficaram na fortaleza; ca sua tenção, quando concedera leixar os cavalos, não fora os da Pérsia e Arábia, somente os da terra. Finalmente, desta vez e de outras, depois que Afonso de Albuquerque se foi pera Goa, andaram entre eles tantos recados, té que se viram ambos no mesmo lugar de Benestari, cada um pera a seu propósito; porque Afonso de Albuquerque queria-o fazer temer do Hidalcão, oferecendo-lhe da parte del-Rei D. Manuel mercê, querendo-se vir pera seu serviço; e que entretanto em seu nome ele lhe daria as terras firmes pelo modo que as dera a Melrau, dando por elas um tanto, e o mais ficaria a ele, Rostomo-Cane, pera sua pessoa e pagamento da gente que havia de trazer na defensão delas. E Rostomo-Cane, por saber a tenção de seu cunhado, da sua parte largava as ilhas derredor de Goa, como cousa que se não podia defender de nós; e quanto às terras firmes, que o Hidalcão mandaria que os mantimentos e cousas que 337 nelas havia se dessem como amigo e vezinho, per modo de comutação de outras que a terra haveria mister da cidade Goa, e nisto lhe fazia grande amizade, porquanto ela se não podia manter sem elas, como era notório, e ele, Afonso de Albuquerque, teria experimentado. Afonso de Albuquerque, posto que Rostomo-Cane movia nesta prática alguas cousas de que ele podera lançar mão, enquanto não via cousa movida pelo Hidalcão, a quanto este Rostomo-Cane dezia não lhe dava crédito, e por isso não se determinou com ele em algua. Somente pelo assombrar, enquanto ele andava derredor da ilha já um pouco desbaratado, porque a gente o leixava, fortaleceu a fortaleza Benestari, e pôs nela um capitão com gente em guarda daquele passo, e em cada um dos outros que já dissemos também fez torres e forças pera defensão daquela entrada e guarda da ilha com pessoas ordenadas a isso, a qual cousa desesperou os mouros de mais entrarem nela, como fizeram duas vezes.

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339 Enquanto Afonso de Albuquerque entendia nestas cousas, era tam necessária sua pessoa ser presente em Goa, que, importando muito a carga da especearia que aquele ano havia de vir pera este reino, não pôde ir a Cochi a isso, e mandou lá, acabado o feito de Benestari, seu sobrinho D.Garcia de Noronha, ao qual deu todolos seus poderes pera isso, vendo quanto fundamento el-Rei D. Manuel fazia dele. Ca o mesmo D. Garcia, na via das cartas que levou, levava ua, em que el-Rei dezia a ele, Afonso de Albuquerque, que, havendo respeito às calidades da pessoa de D. Garcia, e a o descansar em algua maneira dos trabalhos da governança da Índia por ser seu sobrinho, havia por bem que ficasse lá com o cargo de Capitão-mor do mar, por a qual razão D. Garcia ficou na Índia. E quando foi fazer esta carga das naus a Cochi, levou os mais dos navios pequenos que havia deles pera ficarem de armada sobre os portos de Calecute, pera não leixarem entrar nem sair naus de mouros, e outros pera serem corregidos do dano que receberam naquele rio de Goa, no tempo do cerco. E aproveitou tanto ficarem estes navios sobre Calecute, que, como D. Garcia foi em Cochi, logo teve recado do Príncipe de Calecute, chamado Naubeadari, sobre tratos de paz; porque, vendo el-Rei de Calecute a prosperidade de nossas cousas, e em quam breve tempo Afonso de Albuquerque se tinha feito senhor de duas cidades tam notáveis como eram Malaca e Goa, deu licença a este seu irmão que, como cousa movida per ele, por sempre se mostrar nosso amigo, folgaria de falar na paz entre ele e o capitão. Sobre o qual negócio se passaram muitos recados e descontentamentos del-Rei de Cananor e del-Rei de Cochi; ca eles pesava-lhe muito estarmos em paz com Calecute, por perder na entrada e saída das mercadorias grande renda, pola muita cópia de pimenta, gengivre e outras especearias que tinha em Calecute e havia de abater no proveito deles. Porém teve Afonso de Albuquerque tanta prudência em os saber contentar, soldando entre eles ódios das guerras passadas, que os satisfez; e finalmente 338 D. Garcia, vendo-se em Cranganor com o Príncipe Naubeadari, e com o senhor de Chale, chamado Cheneachene Coripa, e dous mouros per nome Nambear e Pocaracém, grandes nossos amigos, todos assentaram esta paz per capitulações. A principal das quais era que el-Rei de Calecute havia de dar lugar, onde Afonso de Albuquerque quisesse; pera fazer ua fortaleza, em que havia de estar um 106v capitão com gente de armas que a guardasse, e feitoria pera o negócio do comércio, e que pera eleição do lugar e mandar fazer esta obra, ele, Afonso de Albuquerque, poderia mandar a Calecute homens pera isso, como mandou (segundo adiante veremos). Neste tempo teve Afonso de Albuquerque nova per um português de alcunha Tavares, de Alcácer do Sal, que fora cativo em Cambaia, que em Dabul estava um homem, o qual lhe dissera, sabendo ser ele português, que vinha a ele, Capitão-mor, da parte do Rei dos abexis, pera enviar em as naus da especearia, porquanto levava ua embaixada a el-Rei de Portugal. O qual, posto que não tinha comunicado a causa de sua vinda com alguém, temendo 340 que receberia algum dano dos mouros, todavia o reteveram ali em Chaúl, dizendo ele por dissimular ser um mercador de dentro do Estreito do Mar Roxo, que vinha resgatar um filho que os portugueses cativaram em ua nau, o qual deziam estar em poder do seu Capitão-mor, Afonso de Albuquerque. E porque ele tinha ordenado a Garcia de Sousa com quatro navios pera andar naquela paragem de Dabul, por causa de empedir não entrarem per ali, por ser porto do Hidalcão, os cavalos que vinham da Pérsia e Arábia que ele queria que fossem a Goa, tanto que teve esta nova, espediu logo Garcia de Sousa, mandando-lhe que trabalhasse muito por saber parte deste embaixador, e lho enviasse em um dos navios, e ele ficasse com os outros, fazendo arribar as naus dos cavalos a Goa. O qual negócio ele fez com tanta deligência, que, depois de sua partida, a poucos dias entrou em Goa este embaixador, onde, por reverência do Lenho da Cruz, que trazia em presente a el-Rei Dom Manuel, foi recebido com solenidade de procissão, levando esta santa relíquia em ua custódia de prata e pálio de seda, e foi posto na Igreja; sobre o qual recadon deste príncipe cristão, Fr.

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Domingos de Sousa, da Ordem de S. Domingos, que servia de Vigairo geral naquelas partes, fez um devoto sermão. Afonso de Albuquerque, passado este primeiro dia de sua chegada, quis informar-se particularmente das cousas do Rei da Abexia, a que nós chamamos Preste João, e assi da causa da vinda deste seu embaixador, chamado Mateus, homem de reverenda presência, alvo e não das cores e cabelo dos abexis, por não ser natural da terra Abexia, mas do Cairo; e segundo se depois soube, era mercador da linhagem dos mouros, homem que a Rainha Helena, madre do Preste, chamado Davide, trazia em negócios de o mandar a diversas partes, por seu filho Davide neste tempo ser pouco mais de doze anos de idade, e ela governava o reino. E posto que ele, Mateus, não deu 339 conta destas cousas a Afonso de Albuquerque, bastou pera se acreditar com outras que lhe disse, assi da causa de sua vinda, como principalmente que na terra do Preste estavam alguns portugueses, um havia muitos anos mandado per um Rei de Portugal chamado Joane, e dous que havia pouco tempo serem lá lançados, e segundo eles diziam, foram postos em terra no Cabo de Guardafu, per mão de um capitão de outro Rei de Portugal chamado Manuel, que era aquele a que ele, Mateus, era enviado. Um dos quais portugueses se chamava João Gomes e ao outro João Sanches, e em sua companhia fora também um mouro per nome Cide Mahamede, e deles não trazia carta algua por testemunha de ser ele, Mateus, embaixador; ca sua vinda foi súbita, e não quis el-Rei que se soubesse. Porque, como sua terra é rodeada dos mouros, principalmente os portos de mar, onde ele, Mateus, havia de embarcar pera vir à Índia, e na Corte del-Rei continuadamente andam muitos mouros, se à notícia deles viera a vinda dele, Mateus, fora morto, pois a causa principal dela era destruição deles, polas instruções e cartas que levava pera el-Rei de Portugal (como per elas ele, Capitão-mor, podia ver), ua das quais era del-Rei Davide e outra da Rainha Helena, sua madre. E porque elas vinham em 341 língua caldea, podia-as mandar tresladar per pessoa fiel, ca perventura no reino de Portugal não haveria quem as soubesse interpretar, e per elas veria a tenção del-Rei, seu senhor, e a causa da vinda dele, Mateus. Afonso de Albuquerque, por os sinais que lhe deu dos homens que havia pouco tempo que andavam naquelas partes, os quais ele mesmo pôs em terra no Cabo Guardafu a este fim de se comunicar este príncipe, per nós chamado Preste João das Índias, com el-Rei D. Manuel, cousa que ele tanto desejava e tanto sempre encomendou a seus capitães (como atrás fica), houve que a vinda daquele homem, segundo os perigos per que passou naquele caminho, que Deus milagrosamente o trouxe ante ele, pera efeito de comunicarmos este príncipe cristão, metido no interior da terra do Egipto e cercado havia tantas centenas de anos de mouros e pagãos. E da sua comunicação se consegueria tamanho serviço de Deus, como era destruição da Casa de Meca e seita dos mouros, segundo ele, Davide, prometia 107 em suas cartas, as quais Afonso de Albuquerque mandou tresladar em português per um judeu chamado Samuel, natural do Cairo, do qual se servia nestes negócios de interpretar, por saber muitas línguas. E porque ao diante particularmente havemos de tratar do efeito que houve a vinda deste Mateus, e assi do estado e cousas deste Rei da Abexia que o enviou, baste ao presente saber que Afonso de Albuquerque mandou este embaixador aquele ano em as naus que vieram com especearia. O qual ano foi neste reino um dos mais prósperos e de maior prazer que ele viu por causa da Índia; ca não somente vieram muitas naus, e bem carregadas de especearia, mas ainda novas da tomada de Malaca e do feito de Benestari, esta embaixada do 340 Preste, outra del-Rei de Ormuz (como já dissemos), muitas cartas e presentes de outros príncipes de todo aquele Oriente, assi como del-Rei de Sião, del-Rei de Pegu, em reposta dos mensageiros que Afonso de Albuquerque lá enviou, cartas do grã Samori, como dava fortaleza em Calecute e de todolos outros príncipes do Malabar, com requerimentos como súbditos deste reino. E pelo mesmo

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modo vieram cartas del-Rei de Narsinga, do Hidalcão, del-Rei de Cambaia, e de Melique-Iaz, capitão de Dio, todos pedindo paz e amizade, e mandando mui ricos presentes em sinal dela, afim de seus interesses, como neste seguinte capítulo veremos. Tanto abalo fez no ânimo destes infiéis as vitórias que Afonso de Albuquerque houve naquelas partes, que parecia contenderem a quem primeiro consegueria esta amizade que desejavam.

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340 107 342 Capítulo VII. Do que Afonso de Albuquerque fez depois da tomada do Castelo Benestari; e como, assentadas as cousas de Goa partiu pera o Estreito do Mar Roxo com ua armada de vinte velas; e o que passou té chegar à cidade Adem e se determinar de a tomar per força de armas. Todolos reis e príncipes da Índia, principalmente os mouros, a quem a entrada que nela tínhamos feito mais tocou que ao gentio, se algua esperança tinham de perder esta dor, era com lhe parecer que nos contentávamos de andar espancando o mar e roubar todalas naus do estreito de Meca, por havermos especearia, sem querer fazer assento na terra pera nela habitarmos, o qual modo lhe parecia não mui certo e durável, por ser diferente do que eles teveram na entrada dela, com que se fizeram senhores do seu marítimo e depois de parte do sertão conquistado dos gentios, sem mais tornar à pátria donde cada um era. Porém quando eles viram a segunda tomada de Goa, e depois a de Malaca, cidade, por causa do comércio tam celebrada naquelas partes, e o assento que os nossos nela fizeram, segundo a ordenança em que Afonso de Albuquerque a leixou, e ao presente ter vencido tam grande poder de gente a força de fogo e ferro em o feito do Castelo de Benestari, e quanto Afonso de Albuquerque trabalhava por fortalecer aquela ilha com as fortalezas que mandou fazer nos passos dela, começaram perder a esperança que de ante tinham. Porque com isto se ajuntavam duas cousas, em que eles tinham posto olho, como sinais de nossa habitação: ver os modos que Afonso de Albuquerque tinha em casar os homens com a gente da terra, e o gentio dela conversar a nossa Fé, por razão das quais cousas recebiam de nós boas obras, com que os tínhamos ganhado por amigos; o que era pelo contrairo neles, polas tiranias e injustiças com que os tratavam. Sobre as quais cousas, o que lhe fez determinarem-se a seguir caminho mais seguro que o das armas, foi virem alguas naus de Ormuz à própria cidade Goa, com até quinhentos cavalos das partes da Arábia 341 e Pérsia, por Afonso de Albuquerque ter ordenado alguns navios armados, que andassem na costa de Chaúl pera baixo e fizessem arribar todalas naus de cavalos a Goa, e pera nenhua outra parte dava licença que os podessem navegar senão pera Goa. Tudo afim de a nobrecer e fazer senhora do principal poder e força, com que os senhores do sertão, que era el-Rei de Narsinga e os capitães do reino Decão, se faziam poderosos uns contra os outros, que eram estes cavalos que lhe iam de Pérsia e Arábia. E chegou este negócio dos cavalos a tanto que, não somente os mouros mas el-Rei de Narsinga, gentio, e el-Rei de Bisapor ser seu vassalo, enviaram logo seus embaixadores visitar Afonso de Albuquerque, requerendo-lhe paz e amizade com alguns apontamentos sobre 343 a entrada destes cavalos per seus portos. O primeiro dos quais foi o Hidalcão, temendo que el-Rei de Narsinga, gentio, com quem sempre andava em guerra, tevessem o mesmo 107v requerimento; e este negócio não cometeu logo de propósito como principal, mas como cousa que havia de pender de paz e amizade, que queria assentar com ele sobre a guerra passada e feito de Benestari. Afonso de Albuquerque, porque estava de caminho pera ir ao Estreito do Mar Roxo, como lhe el-Rei mandava, posto que não tinha comunicada esta ida com pessoa algua, somente com seu sobrinho D. Garcia, tirando os dous embaixadores que na armada daquele ano vieram a este reino, como dissemos, a todolos outros respondeu que ele per seus mensageiros mandaria determinação do

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que podia fazer nos requerimentos que traziam, e com este despacho os espediu. A qual reposta não careceu de artefício; porque, como ele mandava prover todalas naus e navios da frota, que esperava levar ao Estreito, e este apercebimento era público, fazia temor a todos aqueles príncipes, a que respondia que, per os mensageiros que esperava mandar a eles, lhe enviaria a reposta de seus requerimentos, porque cada um ficava com receo se esta armada iria sobre seus portos, e esta suspeita faria serem bem respondidos os mensageiros que mandasse a eles. Os quais logo mandou nas costas dos embaixadores: a Cambaia, Tristão de Gá; a Narsinga, Gaspar Chanoca; ao Sabaio, Diogo Fernandes, adail de Goa; e por lhe comprazer enquanto Diogo Fernandes fez a ele, mandou a Garcia de Sousa, que andava com os quatro navios de armada sobre Dabul, que lhe largasse a navegação dele, pera poderem entrar e sair naus e navios com suas mercadorias. E ao negócio da fortaleza que o Samori dava lugar que se fizesse em Calecute, mandou Francisco Nogueira, o qual havia de ficar por capitão dela, e com ele Gonçalo Mendes pera feitor, com aviso que, não a dando em Calecute no lugar do cerame, não lha aceitasse, porquanto o Samori havia de trabalhar muito que a fizessem em o porto de Chale, que é abaixo de Calecute três léguas; ca nos concertos sempre ensistiu nisso, como fez depois que estas duas pessoas lá foram; porém nunca Francisco 342 Nogueira e Gonçalo Mendes a quiseram aceitar, senão no lugar do cerame, onde se fez (como adiante veremos). Espedidas estas pessoas e postas as cousas do governo de Goa em estado seguro, e o mais que convinha pera guarda das outras fortalezas da costa da Índia, como Afonso de Albuquerque tinha já apercebido as vinte velas da frota, em que esperava ir ao Mar Roxo, foi-se embarcar na barra de Goa, onde, primeiro que se fizesse à vela, mandou chamar estes capitães delas: Dom Garcia de Noronha, Pero de Albuquerque, Lopo Vaz de Sampaio, Garcia de Sousa, D. João de Eça, Jorge da Silveira, D. João de Lima, Manuel de Lacerda, Diogo Fernandes, de Beja, Simão de Andrade, Aires da Silva, Duarte de Melo, Gonçalo Pereira, Fernão Gomes de Lemos, Pero da 344 Fonseca, Rui Galvão, Jerónimo de Sousa, Simão Velho e João Gomes. Aos quais capitães, e assi a alguns fidalgos principais que eram presentes, disse como el-Rei D. Manuel per muitas vezes lhe tinha escrito que trabalhasse por entrar no Mar Roxo, e que pelas cartas daquele ano lhe mandava estreitamente que o fizesse, se o já não tinha feito. E porquanto as cousas do estado da Índia (segundo eles viam) estavam seguras, lhe noteficava que todolos apercebimentos daquela frota, que viam verga de alto, eram afim deste caminho, o qual lhe parecia ser mui necessário fazer-se polo muito que importava ir fechar aquelas portas do Estreito com ua boa fortaleza, como lhe el-Rei mandava que fizesse; porque, lançado um tal ferrolho naquele lugar, não tinham os mouros saída nem entrada per ele, com que o estado da Índia ficava mais pacífico e sem os sobressaltos de ouvirem cada hora: - Vem Rumes! E contudo, porque os juízos dos homens eram mui diferentes, e entre tais pessoas como ali estavam, por razão de sua prudência, cavalaria e muita experiência que tinham das cousas da guerra, e convinha ao estado dela e bem do reino de Portugal, lhe pedia que, cada um em seu juízo, examinasse este caso, pera que, havendo razão mais principal contra ele, se fizesse; ca el-Rei, seu senhor, nas cousas que lhe mandava fazer, principalmente as da guerra, não era absoluto, mas submetido ao que mais importava à conservação do que naquelas partes tinha ganhado. Propostas estas palavras, quási todolos capitães mais foram no louvor deste caminho que em contradições de o impedir, com o qual conselho Afonso de Albuquerque, ao outro dia, que eram dezoito de Fevereiro do ano de quinhentos e treze, deu à vela. Na qual frota levava mil e setecentos portugueses e oitocentos canaris e malabares; pondo a proa em atravessar aquele golfão que jaz entre a terra da Índia e a outra de África, pera tomar o rostro do Cabo Guardafu, fugindo da costa da Arábia, por não ser visto e dar aviso à cidade Adem. Porém, como 108

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os tempos eram bonanças, deteve-se tanto nesta travessa, que lhe conveo, por falecimento de água, ir tomar o porto do Soco, na Ilha Socotorá, onde tevemos fortaleza, no qual lugar estavam obra de cinquenta mouros fartaquis, que começavam levantar 343 alguas casas e fazer hortas, como quem queria tornar a povoar o que leixámos. Os quais, havendo vista da frota, desempararam tudo, recolhendo-se à serra, que foi polo contrairo nos cristãos da terra; ca estes vieram-se lançar aos pés de Afonso de Albuquerque, pedindo-lhe emparo, e que tornasse a reformar a fortaleza pola vexação que já começavam receber dos mouros, antes que se tornassem fazer senhores da terra, como eram quando ele lhe tomou a fortaleza que ali tinham feita. Afonso de Albuquerque, por em algua maneira satisfazer a seu requerimento, mandou derribar e destruir quanto os mouros ali tinham feito, e mais mandou-lhe dar panos e arroz e outras cousas, de que aquela pobre gente tinha necessidade, com que em algua maneira ficaram consolados. E a primeira cousa que Afonso de Albuquerque fez em chegando àquele porto, 345 foi espedir João Gomes, que na sua caravela fosse ao porto de Calancea, que era em ua ponta da mesma ilha, e visse se achava algum navio ou barco de mouros, e lho trouxesse. João Gomes, chegado a Calancea, onde não achou cousa algua, por os ventos lhe não servirem pera tornar onde Afonso de Albuquerque estava, começou andar às voltas ao mar e à terra, nas quais foi dar com ua nau de Chaúl, que ia pera o Estreito, que tomou, e serviu muito naquela viagem a Afonso de Albuquerque. Porque, como não levava piloto que soubesse bem aquela navegação, somente um Martim Mendes que já fora em Canari, que será vinte léguas de Adem na mesma costa, foi-lhe o piloto mouro desta nau mui proveitoso. Per conselho do qual, posto que Afonso de Albuquerque levava em propósito de tomar terra do Cabo Guardafu e ir correndo ao longo daquela costa, té ser na paragem de Adem, e di atravessar a ela, logo daqui atravessou a terra de Arábia, por causa dos tempos. E a primeira terra que tomou, foi ua serra, a que os da terra chamam de Arcina, que vai fenecer em Adem, e seria dali pouco mais de quinze léguas, e ao seguinte dia com tempo fresco foi ter ao seu porto. E temendo não ser limpo pera surgir com tamanha frota, e também não darem uas naus per outras, mandou amainar todalas velas, com fundamento de pairar aquela noite. Mas porque Pero de Albuquerque, seu sobrinho, veo à sua nau em um batel, dizendo que achava fundo de trinta e cinco braças, de que o mesmo Afonso de Albuquerque logo viu experiência na sonda que mandou lançar, sarrando-se a noite, fez sinal às naus que se fizessem à vela com traquetes e sonda na mão, e foram cortando per aquele parcel, té chegarem a catorze braças, junto do porto de Adem, donde já eram vistos. Por a qual causa, desejando os mouros de se a armada perder ou escorrer o porto, mandaram-lhe fazer fogos em ua ponta bem abaixo contra as portas do Estreito; ca governariam a eles, parecendo-lhe ser ali a povoação da cidade. Porém Afonso de Albuquerque, não se fiando nos fogos, nem menos no fundo que 344 achava, mandou lançar âncora, e ao outro dia pela menhã foram tomar pouso diante da cidade, o qual dia todo houve mister pera segurar a ancoragem da armada, e nele foi vesitado do capitão da cidade, chamado Miramirzane, abexi de nação, já feito mouro, mandando-lhe perguntar se mandava algua cousa de provisão pera sua armada. Ao que Afonso de Albuquerque respondeu, que ele era Capitão-geral daquelas partes da Índia, per mandado del-Rei D. Manuel, seu senhor, que vinha ali em busca da armada dos rumes, por lhe dizerem ser partida de Suez por mandado 346 do Soldão do Cairo; e este caminho fizera por não dar trabalho a eles de o irem buscar à Índia; e ante ele, quando os não achasse, determinava entrar o Estreito pera se ver com eles, e esta era a principal causa de sua vinda. Partido o mouro que o veo vesitar com esta reposta, tornou logo com um presente de carneiros, galinhas, limões, laranjas e outras fructas da terra, o que Afonso de Albuquerque duvidou

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receber dele, dizendo que seu costume era não receber as tais cousas, senão das pessoas com que tinha assentado paz e amizade. Ao que o mouro respondeu que Miramirzane não somente lhe oferecia aquele refresco, mas toda a cidade, se comprisse a serviço del-Rei de Portugal, polo desejo que ele tinha de sua amizade. Afonso de Albuquerque lhe disse que olhasse o que dezia, porque sobre aquela sua palavra aceitava o refresco; e em reposta dele, disse que dissesse a Miramirzane que, se ele queria estar na graça e 108v amizade del-Rei de Portugal, seu senhor, abrisse as portas e recebesse sua bandeira, e se submetesse à sua obediência, como faziam os príncipes da Índia, que com ele queriam estar em paz. E sobre este recado, per um batel mandou dizer a todalas naus que estavam no porto, que todo senhorio ou capitão se recolhesse a elas; e aquele que o não fizesse, encorreria em perdimento da nau. Miramirzane com estes recados ficou mui confuso, por ser de mais conclusão do que ele quisera; e por dilatar com Afonso de Albuquerque aquele dia, mandou-lhe dizer que a terra e cidade era del-Rei, seu senhor, e seu ofício dele, capitão, era defender-lha, e não consentir mão poderosa entrar nela sem sua licença; que lho faria logo saber. Que quanto a pessoa dele, capitão, com ela teria menos conta, e se aprouvesse a ele, Capitão-mor, ele lhe viria falar à ribeira com vinte homens, não trazendo ele mais consigo. Ao que Afonso de Albuquerque respondeu que era escusado irem-se em outra parte senão dentro na cidade, com reposta do qual recado não tornou mais o mensageiro, somente dos mercadores das naus que ainda estavam na cidade, lhe enviaram dizer, em reposta da notificação que lhe ele, Afonso de Albuquerque, mandou fazer, que não ousavam de se vir a elas com temor da sua gente de armas, em cujo poder elas já estavam, e que ante queriam perder a fazenda, que pessoas e ela. Afonso de Albuquerque, 345 porque no modo da cidade lhe pareceu que com pouco custo a podia tomar, mandou trazer duas barcaças grandes, que estavam em seco (as quais serviam a cidade no descarregar a fazenda das naus que ali vinham), e assi alguns batéis que estavam ao longo da ribeira, pera neles poiar gente em terra, por ter poucas vasilhas; e na defensão que os mouros nisso posessem, veria que gente tinha a cidade, se era tam pouca como lhe parecia. Tomadas estas barcaças e batéis, sem alguém os defender, notaram os capitães que Afonso de Albuquerque a isso mandou, que alguas portas do muro da cidade, que vinham ter à ribeira, estavam cheas de esterqueira, com o que se não cerravam de noite, e que naquele dia se afastou o esterco delas 347 pera se fecharem; e assi notaram que, quando foi ao tomar das barcaças, tirou um mouro, de muitos que estavam em cima do muro, com ua frecha à gente do mar que andava neste trabalho, o qual, à vista dos nossos, foi pelos outros mui bem espancado, como gente que lhe pesava de os indinar, temendo cometerem entrar na cidade. E porque com todo este temor eles não vieram a conclusão pera Afonso de Albuquerque leixar de a cometer, primeiro que escrevamos o modo que nisso teve, convém descrevermos a situação e força dela.

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345 108v 347 Capítulo VIII. Em que se descreve o sítio e postura da cidade Adem e as cousas dela. Adem é ua cidade situada na costa de Arábia Félix, em altura do Polo Ártico de doze graus e um quarto, e segundo a situação da Távoa de Ptolomeu, parece ser aquela a que ele chama Modócan, e a serra que está sobre ela Cabubarra, a que ora os mouros chamam de Areira, a qual é toda de ua pedra viva sem árvore nem erva verde. Porque, além de não ter cousa em que ua erva lance raiz, faz-se dous e três anos que não chove per toda aquela comarca, e quando vem esta água, é de trovoada que passa logo; e ainda que houvesse algum arvoredo na parte contra o mar, é tam lavada dos ventos do Levante, que entram pelas portas do Estreito, que tudo seria escaldado como nascesse. A cidade está situada ao sob-pé desta serra, quando se mete no mar, onde se fazem dous portos: um tem o rostro na ribeira do mar, per onde se a cidade serve, a que eles chamam Socate, o qual fica abrigado de alguns ventos com ua ilheta que tem diante, chamada Lira,; o outro porto, chamado Ugufe, é a maneira de baía, do qual a cidade se serve pouco em navegação, por ser quási a maneira de esteiro alagadiço tam baixo, que não entram nele senão barcos pequenos, e isto ainda até um certo lugar, o qual tornea a serra em que a cidade jaz, tanto pelas costas dela, que parece querê-la 346 leixar em ilha e desapegar do espinhaço da serra grande, que corre do interior do sertão. Porque té este lugar vem a serra de Areira, ou Cabubarra, como lhe Ptolomeu chama, de mui longe, e aqui fez a natureza a serra tam asselada e escachada, 109 té o andar do mar, que se espraia este esteiro per aquela planície, que é a semelhança de manga, o fim da qual é quási como várzea. De maneira que contra o mar fica um muro alto, de viva pedra, toda em picos, ao sob-pé do qual a cidade está situada; e quando dela se querem servir pera a terra 348 firme, cujo caminho fazem quási pelo cume da serra grande, atrevessam aquele alagadiço per ua ponte de pedra de muitos arcos, onde está ua povoação de pescadores chamada Rubarca, e obra de quinze ou dezasseis poços. O qual porto Ugufe fica assi comunicável em vista com o outro da costa, que jaz ao longo dos muros da cidade, que per ua ilharga de um ao outro se vem as gáveas das naus que estão surtas na entrada de cada um, e assi se vê deste principal quem vem da terra firme pelo caminho da serra, por ser alto. A cidade, do sítio e parecer de fora, é cousa mui fermosa, porque, além da parte que jaz ao longo da ribeira, ter bons muros, torres, e muitos edifícios e casarias altas de sobrados e eirados, toda aquela chapa de serra que jaz na vista do mar, té o seu cume, é ua pintura, dela obra da Natureza e o mais da indústria dos homens. Porque, como esta serra é pedra viva, vai toda em picos tam crespos e dobrados, que tem semelhança de fortaleza e sobre eles edificaram muitos casteletes e torres, e de uns aos outros onde há quebrada, lançaram muro, como defensão dela. Em si não tem mais água que alguas cisternas, e a nadível de que bebe fica-lhe na outra face daquele muro, quando querem descer pera a ponte, que dissemos ser serventia da terra firme, a qual per carreto lhe é trabalhosa de trazer; ca sobem da povoação té o alto dos castelos da serra, e depois tornam a descer ao pé dela a um chafariz onde a recolhem. Esta cidade, posto que antiguamente foi mui rica e célebre, com nossa entrada na Índia se fez mais, ca os principais mercadores que viviam em Calecute, Cananor e per toda aquela costa da Índia, e assi de dentro do Estreito do Mar Roxo, na cidade Judá, se passaram ali. A causa foi

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porque, ante que navegássemos aqueles mares, eram navegados pelos mouros, sem temor de lhos alguém impedir, e partiam do porto de Judá com as mercadorias do Cairo e daquele Estreito, nos meses da navegação em que cursam os Ponentes, que lançavam pelas portas do Estreito fora, caminho da Índia, sem terem necessidade de tomar a cidade Adem, e quando tornavam da Índia per o mesmo modo, passavam por esta cidade e entravam as portas do Estreito com os ventos Lestes. Porém tanto que per nossas armadas lhe foi impedida esta liberal navegação, como quem navegava a temor, faziam este caminho a pedaços: 347 tomavam o porto de Adem, quando queriam entrar na Índia, e sabiam primeiro de nossas armadas; e segundo a nova assi faziam seu caminho, e muitas vezes não passavam, mas faziam comutação, e comércio com as cousas que ali achavam da Índia. As quais eram vindas em naus do Malabar, também furtadas das nossas armadas, muitas no cabo da monção dos ventos com que aquele golfão se navegava, por não ousarem sair dos portos onde carregavam, de maneira que, assi estas naus que vinham do Malabar e as de toda a costa 349 da Índia, Cambaia e Ormuz, como as destoutra costa de Melinde, com temor de nossas armadas vieram a fazer da cidade Adem ua escala de Ponente e Levante, ao modo da Ilha Calez em Espanha, dando ali carga e tomando outra. Com o tráfego da qual, per comutação e comércio se fez nobre e rica, e com nosso temor mui forte e defensável com um baluarte que defendia a entrada da ribeira, onde tinham assestado muita artelharia, e era assi alcantilado o lugar dele, que as naus tinham ali seu proiz. E ao tempo que Afonso de Albuquerque chegou a esta cidade, era senhor dela um xeque, a que alguns chamavam rei, cujo nome era Hamede, o qual o mais do tempo estava dentro no sertão, por ter guerra com um seu vezinho, que era Rei do reino Saná, cuja metrópoli é ua cidade assi chamada, de que ele se intitulou, mui antequíssima, a que Ptolomeu chama Sanaregea. Por razão da qual necessidade tinha ele nesta cidade Adem o capitão Miramirzane, que dissemos, o qual determinou de a defender, como fez, e não entregar a Afonso de Albuquerque, como veremos neste seguinte capítulo.

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347 109 349 Capítulo IX. Como Afonso de Albuquerque cometeu tomar a cidade Adem à escala vista: e o que nisso passou, per onde não houve efeito tomá-la de todo. 109v Afonso de Albuquerque, visto o sítio desta cidade Adem, posto que lhe pareceu mui diferente pera a determinação que trazia do modo de a cometer, pola informação que lhe tinham dado dela, todavia determinou-se no conselho que sobre isso teve com os capitães, de a combater, e sair em terra em amanhecendo, sábado, béspora de Páscoa, por não dar tempo aos mouros recolherem mais gente da terra firme da que recolheram naquele dia e noite, por ser logo apelidada. Somente no modo do combate neste conselho ordenou ser de outra maneira do que tinha assentado em Socotorá, porque nesta ilha repartia a gente em três ou quatro partes, com fundamento que per tantas havia de cometer a cidade, e mais havia de ser em chegando, sem se meter mais espaço que enquanto se embarcavam nos barcos. Porém, como ao tempo de sua chegada a este 348 porto de Adem, por o mar andar furioso, teve naquele dia bem que fazer em se amarrar e segurar toda a frota, e também o sítio da cidade requeria outro modo de repartição 350 da gente, não fez o que trazia ordenado e tomou o que lhe o caso deu: e foi ficar com toda a gente em um corpo, pera combaterem a cidade a escala vista, per um lanço de muro que corria ao longo do mar, onde se fazia ua praça comprida entre ambos. O qual corpo da gente, que era de mil e quatrocentos homens, mil portugueses e quatrocentos malabares, ia repartido em duas capitanias ua que ele levava, e outra D. Garcia, seu sobrinho. E na sua iam estes capitães: D. João de Lima, D. João de Eça, Jorge da Silveira, Duarte de Melo, Aires da Silva, Manuel de Lacerda, Garcia de Sousa, Diogo Fernandes, de Beja, António Raposo e João Gomes; e com D.Garcia iam Lopo Vaz de Sampaio, Fernão Gomes de Lemos, Simão de Andrade, Rui Galvão, Pero da Fonseca de Castro, Simão Velho. Ordenou mais Afonso de Albuquerque: João Fidalgo, capitão da Ordenança, com Hanrique Homem, que servia por Rui Gonçalves, também capitão da Ordenança, por estar doente, que ambos com sua gente, que seriam seiscentos homens, trabalhassem por tomar o alto da cidade ao longo do muro, té chegar a se fazerem senhores da serventia, que per aquela parte ela tinha da terra firme, porque com isto faziam duas cousas: tolher que não entrassem nela os bárbaros da terra, que eram já apelidados; e mais ficava-lhe a cidade ao sob-pé, pera darem nela à sua vontade, depois que segurassem a entrada da serra. Aos quais dous capitães entregou as duas barcaças da cidade que ali tomaram, pera nelas poiarem sua gente em terra, e os outros capitães ficaram com os batéis das suas naus, levando alguns deles, em modo de capitanias, certas escadas feitas tam largas, per que folgadamente podiam ir seis homens juntos, per as quais haviam de subir a o muro; de ua das quais, que era a dele, Afonso de Albuquerque, tinha cuidado Diogo Fernandes, de Beja. E assi levavam bancos pinchados, marões, picões, pólvora e outros artefícios; porque sua tenção era, não somente cometer o muro a escala vista, mas ainda ver per algua parte se o podiam picar, e com pólvora dar com um lanço dele em terra e entrar per aquela quebrada. Dada esta ordem como haviam de sair, quando veo pela menhã, todos estavam tam prestes, que em breve tomaram terra sem haver quem lha defendesse, porque a tenção dos mouros foi esperar o ímpeto dos nossos detrás dos muros e não fora deles, por duas causas: a primeira, porque lhe pareceu que, saindo eles à praça, todos haviam de ser ali mortos com a nossa artelharia, porque,

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como os vissem juntos e descobertos, descarregariam as naus neles; e a segunda, que não sabiam quanta gente era a nossa, e leixando-lhe a praça franca, onde se eles haviam 349 de ajuntar, podiam mui bem estimar quanta era, pera, segundo a quantidade dela, assi se repartiriam pelos lugares do combate. 351 Os capitães e principais fidalgos que nestes lugares de honra sempre querem ser os primeiros, vendo a praça da ribeira despejada, e que a gente comum que ia com eles, que havia de tirar as escadas, se embaraçara e detinha, não sofrendo o vagar deles, meteram-se pela água pera tirar as escadas dos batéis, e com grande alvoroço, dizendo: - Ao muro! Ao muro! - cada um arvorou a sua. Na subida do qual houve tanta pressa, que seria cousa dificultosa determinar qual foi o primeiro; ca os capitães que arvoraram seus aguiões sobre o muro, tanto que foram nele, assi como D. João de Lima e Jorge da Silveira, que subiram per ua escada que levavam a seu cargo, dizem serem eles os primeiros. As pessoas que 110 não são de qualidade pera arvorar aguiões, assi como João Pereira, reposteiro que fora da Infante D.Beatriz, e um clérigo per nome Diogo Mergulhão, dizem que, se não arvoraram aguiões, que arvoraram o crucifício que Diogo Mergulhão levava, bradando alta voz: - Vitória - o qual crucifício depois, como escudo da sua salvação, o salvou de não morrer onde outros ficaram, escapando ele com sete feridas. Diogo Fernandes, de Beja, que levava a escada que lhe Afonso de Albuquerque encomendou, também quere ser dos primeiros; e testemunha esta verdade com ser o primeiro que veo per ela abaixo, derribado com um pelouro de espingarda, que lhe tiraram do muro, de que esteve à morte, e depois o trouxe muito tempo no corpo. Finalmente, porque neste primor de subir primeiro também entraram marinheiros sem nome e, que levavam escadas às costas, e contende nesta parte tanto a honra de cada um, que ficamos sem poder julgar qual foi primeiro. Baste saber, em soma, que, per todalas partes onde se posesse escadas, os primeiros que foram no muro, que à nossa notícia vieram, são os nomeados acima, e estas pessoas principais: D. João de Eça, Aires da Silva, Vicente de Albuquerque, Rui Palha, Gaspar Cão, Manuel da Costa, feitor das presas, António Ferreira Fogaça, João Gonçalves de Castelo Branco, Garcia de Sousa, D. Álvaro de Castro, Manuel de Lacerda, João de Meira, Hanrique Figueira, João de Caminha, Baltasar Monteiro. Os quais, como em sua companhia levaram muita gente, e o alvoroço de todos era grande por subir e os degraus da escada largos, como dissemos, foi tamanho o peso da gente, que quebraram as escadas, ficando desta caída os debaixo mal tratados e os acima nomeados em cima do muro. Os mouros, como viram as escadas quebradas e quam poucos ficavam em cima, repartiram-se em partes, uns correndo ao longo do muro, que da banda de dentro era mui baixo, por ser entulhado, com que fizeram recolher a um cubelo alguns dos nossos; e outros ficaram sobre o lugar das escadas, por defenderem 350 esta subida. E posto que eles faziam em os nossos assaz de dano, por lhe tudo servir de armas pedras, paus, alcatrão, enxofre, ardendo, até cortiços de abelhas - muito maior lhe fizeram as mesmas escadas: ca, tornadas a consertar per mandado de Afonso de Albuquerque, que acudiu a isso, quando soube serem quebradas, tornaram outra vez a quebrar com o alvoroço 352 que a gente tinha de subir, por serem todos tam cobiçosos desta honra, que ficou em desordem com morte e ferimento de muitos. Porque, vendo Afonso de Albuquerque que, atando com cordas os troços quebrados da escada, não ficava muito segura, mandou aos alabardeiros de sua guarda que com suas alabardas a sustentassem; e quando com o peso e alvoroço de subir tornou a quebrar, e não somente dos alabardeiros, que estavam debaixo, ficaram esmagados e mal feridos, mas ainda muitos dos caídos se vieram espetar nas alabardas, que foi cousa piedosa de ver.

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Nesta segunda subida ficaram em cima do muro perto de quorenta homens, que fizeram saltar os mouros em baixo, e Garcia de Sousa foi tomar posse de um cubelo, por se ali fazer forte, té subir mais gente; e porque Afonso de Albuquerque os houve por perdidos com este desastre das escadas, mandou em continente duas cousas: ua repairar dous troços da escada pequena, e porque não chegavam às ameas per cordas que foram atadas nelas, mandou aos que estavam em cima que se descessem; e a outra, mandou destapar duas bombardeiras rasas do muro, e assi ua de um baluarte, tirando dela com muito perigo ua bombarda que os mouros ali tinham posta, per onde mandou entrar alguns besteiros e espingardeiros, e com eles João de Taíde, não consentindo entrarem primeiro alguns fidalgos que o quiseram fazer, por não terem mais armas que sua lança e espada, e com as bestas e espingardas se apartariam os mouros da boca das bombardeiras, onde logo acudiram. Porém, foram naquela primeira chegada tam escozidos das espingardas, derribando alguns, que fizeram bom terreiro, e muito maior quanto dos nossos, que estavam em cima do muro, desceram a eles. De que eram os principais Aires da Silva, Jorge da Silveira, Vicente de Albuquerque, D. João de Eça, João de Caminha, Rui Palha e João de Meira. Os mouros, como se viram apartados, leixando o terreiro quási como cilada; meteram-se pelas tranqueiras das ruas, por espalharem os nossos; ao qual tempo acudiu Miramirzane a cavalo, com outros que o seguiam também a cavalo, e por o lugar ser espaçoso naquele terreiro feriram alguns dos nossos. 110v Os quais, como eram poucos e não podiam resistir a tanto peso de gente, parte se tornaram recolher pela bombardeira e os outros foram demandar o pé do cabelo, onde Garcia de Sousa estava recolhido, ficando daquela feita Jorge da Silveira morto, assi das pernas que lhe jarretaram, como dos pés dos cavalos que lhe acabaram de 351 trilhar os ossos, e com ele ficaram também mortos cinco homens, que acabaram como cavaleiros; e foram daqui feridos Aires da Silva, João de Caminha, João de Meira e o mestre da nau Madalena, e a Miramirzane da mão deles. Garcia de Sousa, que estava no cubelo recolhido, quando viu vir estes 353 fidalgos que aqui escaparam e se acolhiam ao sob-pé do seu cubelo, houve que tevera bom conselho em não sair dali; porque, ao tempo que estoutros desceram do muro, pera dar nos mouros, eles o convidaram e os que estavam em sua companhia; mas não o quiseram fazer, por haver ser aquele cubelo peça da vitória, por ser lugar principal da força da cidade. O qual primor de honra que ele tinha de cavaleiro lhe custou a vida; ca, vendo os mouros quam poucos eram e que estavam embatesgados sem se poderem dali mover, e porém tam assanhados que não podiam entrar com eles, tomaram por armas, pera os matar, grandes feixes de palha, pondo-lhe o fogo, o grande fumo da qual foi que lhe deu a vida. Porque ficou o fumo entre eles e os mouros assi grosso e escuro, que teveram maior parte dos nossos modo de se escoar deles, vindo correndo ao longo do muro, té chegarem onde fora estava Afonso de Albuquerque, que com troços e cordas atadas lhe ordenou per que descessem, parte deles trazendo alguns feridos às costas, por não se poderem mover. A este tempo não ficaram por descer mais que Garcia de Sousa, que estava no cubelo com até dez pessoas, de que os principais eram: Gaspar Cão, Diogo Estaço, de Évora, e um irmão bastardo dele, Garcia de Sousa, que no feito da entrada de Goa, na estância de Aires da Silva, salvara às costas, como escrevemos atrás; aos quais Afonso de Albuquerque, que estava de fora ao pé do cubelo, mandou que se descessem per uas cordas que Dom Garcia de Noronha lhe lançou com hastes de lanças atadas. E falando Afonso de Albuquerque contra Garcia de Sousa, que se descesse per aquelas cordas, per que os outros desciam, disse.: - Senhor, não sou eu o homem pera descer senão como subi; e pois me não podeis valer senão com ua corda, valha-me Deus com seu favor, que em lugar estou pera isso. Parece que o espírito lhe revelava quanta conta el-Rei D. Manuel tinha com ele, Garcia de Sousa, pois com tanta constância quis sustentar este cubelo; porque nas primeiras naus que depois

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deste feito chegaram à Índia, sem el-Rei o saber, lhe mandava a capitania da fortaleza que Afonso de Albuquerque fizesse nesta cidade. E ainda parece ter ele algua palavra del-Rei desta mercê, porque a noite que se faziam prestes pera sair em terra, chamou ele o mestre da sua nau e, tirando ua cadea do pescoço de cinquenta cruzados de ouro, lançou-lha, e mais deu-lhe cinco portugueses, moeda de ouro, que naquele tempo havia de a dez cruzados cada um, dizendo-lhe: - Mestre, a minha honra está na vossa diligência. Peço-vos que assi seja tudo tam 352 prestes e ordenado em o batel em que havemos de poiar em terra, que seja eu o primeiro que a tome, e isto vos dou em sinal do que vos hei-de fazer, se me esta honra derdes. Assi que se pode por ele, Garcia de Sousa, dizer comprar a morte com ouro; e com outro ouro que deu ao irmão comprou a fama dos feitos que fez no auto de morrer; ca, vindo ele a este reino, foi testemunha, que, tanto que ele, Garcia de Sousa, respondeu a Afonso de Albuquerque, virou-se pera dentro, 354 e como quem se oferecia ao que Deus fizesse dele, tomou um relicairo que trazia ao pescoço, e disse a este irmão bastardo, que (como atrás escrevemos) era mulato: - Esta peça te dou por herança, se me Nosso Senhor levar; e levando-te Deus ao reino de Portugal, dize a el-Rei nosso senhor quanto trabalhei por sustentar este cubelo, que em seu nome tomei; e se algua mercê lhe por isso mereço, em ti será bem empregada. Ditas as quais palavras, sem mais convidar algum que o seguisse, remeteu aos mouros que os perseguiam com zargunchos e outros tiros de arremesso, na qual saída do cubelo em baixo no muro fez maravilhas de sua pessoa, té que o mataram com um dos zargunchos de arremesso, que lhe atravessou a garganta. A determinação e fúria do qual, ante de o matarem, deu vida aos outros de sua companhia, porque teveram tempo de sair do cubelo e ir correndo ao longo do muro, té chegarem à parte mais baixa per que se poderam lançar com ajuda dos de fora; e porém deles tam feridos, que, quando saltaram, 111 da força da queda arrebentaram as feridas em fluxo de sangue, de que morreram, um dos quais foi Gaspar Cão, com mais ua perna quebrada. Neste mesmo tempo, no muro abaixo do cubelo de Garcia de Sousa, estava D. João de Eça com alguns de sua companhia sem fazerem mais que defender-se dos tiros, que lhe os mouros tiravam do chão, por não poderem vir a eles, esperando que de fora lhe dessem modo pera se descer; ao qual D. João os nossos deziam que se lançasse também per outras cordas que lhe deram; e porque Manuel de Lacerda o apressava muito que o fizesse, respondeu-lhe D. João que não era ele filho nem neto de homens pera descer per tais degraus. Finalmente, D. João se deteve tanto nesta openião, que lhe ordenaram uns troços de escada, per que se desceu, quási no tempo que mataram Garcia de Sousa, sem ficar dos muros a dentro cá no baixo da cidade, per onde as escadas foram postas, vivo algum dos nossos. Somente no alto dela, o qual Afonso de Albuquerque mandara tomar pelos capitães da Ordenança, havia parte desta gente que descia desbaratada e lançava-se pelo muro, por ali ser muito baixo; e a causa foi porque, tanto que eles tomaram aquele alto dos picos da serra e torres per elas postas, era tanta a pedrada e galgas de pedra, que vinham saltando per cima das cabeças desta gente de Ordenança, que os desbaratou logo, sem darem por brados de seus capitães. 353 Vendo Afonso de Albuquerque que, assi nestes como na gente nobre, houve mais desordem que ordenança, e que havia quatro horas que continuavam este combate, em que os desastres teveram mais poder que a resistência dos mouros, no primeiro ímpeto com que cometeram subir aos muros, e que a maré que enchia vinha-os arrimando ao muro, de que podiam receber muito dano, e a calma era grande e os feridos muitos e a gente mui quebrada do alvoroço com o desastre que lhe aconteceu, e sobretudo duas bombardas que os mouros tinham postas nas bombardeiras do muro, por saírem rasteiras, lhe faziam muito dano; vistas todas estas cousas, determinou de se recolher às 355

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naus, o que fez ainda com trabalho. Porque, como a maré ali espraia um pouco, pera tomar os batéis, foram todos pela água, dando-lhe por meia perna. No qual recolher Manuel de Lacerda, quási como ofendido do que lhe D. João de Eça respondeu, quando lhe deziam que se lançasse pela corda abaixo, não quis ser dos primeiros que embarcaram, mas um dos derradeiros, recebendo bem de afronta por isso, por mostrar que não era ele o homem que se recolhia, senão quando era tentar a Deus.

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353 111 355 Capítulo X. Como, recolhido Afonso de Albuquerque às naus, por alguas razões que lhe importavam, leixou de segunda vez cometer a cidade, e dali se partiu pera as portas do Estreito, onde chegou. Recolhido Afonso de Albuquerque às naus, a primeira cousa que mandou fazer, foi cometer um baluarte com ua torre que os mouros tinham feito no cabo de um molde, onde se descarregavam as naus, de que as da sua frota, enquanto ele andou no combate da cidade, recebiam assaz dano com muita artelharia que tiravam. E como a nau de Manuel de Lacerda, por estar mais perto dele, era a pior tratada, o seu mestre, per nome Álvaro Marreiro, em vingança deste dano, sendo em companhia dos outros mareantes, a quem Afonso de Albuquerque cometeu este feito, foi o primeiro que entrou no baluarte, donde trouxeram trinta e sete bombardas de ferro, em que entravam peças que lançavam pelouros quási de palmo em diâmetro, ficando o baluarte em nosso poder sem muito trabalho, por não haver nele quem o defendesse, senão alguns mouros que tiravam com a artelharia, que foram mortos à espada. Afonso de Albuquerque, tirado este empedimento às naus, entrou em conselho sobre o mais que deviam fazer acerca do que tinham passado; e posto que muitos capitães e a maior parte da gente de armas era que tornassem cometer a cidade, levando algua artelharia grossa pera darem com um lanço de muro em terra, representando alguas razões, porque todas vinham a concluir 354 a serem senhores da cidade, onde se mostrava terem mais respeito ao esbulho dela que à tenção que el-Rei tinha, quando mandou a Afonso de Albuquerque que a tomasse, sendo-lhe cousa fácil, respondeu 111v ele a estes capitães com a tenção del-Rei. A qual era não querer sustentar tam grande cousa como era aquela cidade, pera que haveria mister mais de quatro mil homens, por estar mui remota da Índia, e mais na boca daquele Estreito, e com as costas na frol de 356 toda Arábia; somente queria a obediência dela ao modo de Ormuz com ter ali ua fortaleza favorecida de alguas velas, que podiam andar de armada, defendendo aos mouros a entrada daquele Estreito. E pois iam pera o entrar, nas portas dele ou na Ilha Samatra, ou em algum porto de Preste João se poderia fazer; ca el-Rei, acerca da fortaleza que desejava ter naquela parte, em todas estas lhe apontava, e a eleição do lugar leixava a ele, Afonso de Albuquerque, que havia de ver o sítio destes quatro. E porque, além do negócio da fortaleza, correu mais a prática se combateriam ainda a cidade com artelharia, como no primeiro conselho os mais deles apontaram, deu também Afonso de Albuquerque suas razões, como não era serviço del-Rei, por estar no cabo da monção dos levantes, com que haviam de entrar o Estreito, que importava mais que quanto esbulho a cidade tinha. Porque, perdendo a monção, convinha ir invernar a Ormuz, por dali té lá não haver outro lugar seguro. Com as quais razões e outras mui evidentes, todos foram que leixassem o castigo daquela cidade pera outro tempo. E porque em três dias que se Afonso de Albuquerque ali deteve no exame destas cousas, e também em mandar queimar as naus dos mouros que estavam naquele porto, depois de esbulhadas, sempre o vento lhe foi quási travessão, e temia durar muitos dias, às toas, per batéis, mandou tirar todalas naus do porto, as quais postas no largo, fez-se à vela caminho das portas do Estreito. O qual, como é perigoso de navegar, principalmente com naus grandes, e Afonso de

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Albuquerque não levava pilotos dele, e às suas portas está ua povoação toda de pilotos pera esta navegação, ao modo dos pilotos dos bancos de Frandes, cujo ofício é tirar e meter as naus daqueles perigos, mandou diante a nau de Chaúl, que tomou a João Gomes com vinte homens dos nossos, que lhe fosse descobrindo a costa; e tanto que abocasse às portas, lhe houvesse três ou quatro daqueles pilotos, a que eles chamam reboões, e os retevessem té sua chegada. Partida a nau com este recado, quando Afonso de Albuquerque chegou a ela, tinha já reteúdos dous pilotos, per a pilotagem dos quais toda a armada tomou pouso em um porto logo à entrada da porta do Estreito da parte de Arábia, porque este canal é o mais geral. Por festa da qual entrada, mandou Afonso de Albuquerque embandeirar a frota e tirar toda a artelharia. 355 A imitação do qual, pois ele, Afonso de Albuquerque, foi o primeiro que navegou aquele Estreito té aquele tempo tam encoberto aos mareantes da Cristandade, queremos entrar no Oitavo Livro desta nossa Segunda Década, também com outra pompa de escritura, relatando sua natureza, navegação e portos, como Afonso de Albuquerque entrou pomposo de naus, bandeiras e estandartes, por celebrar a festa de sua entrada.

LIVRO VIII 357 112 357 Capítulo Primeiro. Em que se descreve o Mar Roxo e todalas povoações e portos do marítimo dele. A figura do Estreito do Mar Roxo quere parecer ao corpo de um lagarto cujas portas são o lugar do colo, onde ele é mais delgado, e a cabeça podemos dizer que é o mar que jaz fora delas, entre o Cabo Guardafu e o de Fartaque. O lançamento desta figura das portas té o fim dela, que é a povoação de Suez, jaz quási per o rumo a que os mareantes chamam Nornoroeste, e haverá neste comprimento espaço de trezentas e cinquenta léguas. Os mouros que o navegam, repartem a largura dele em doze jomos, em que haverá pouco mais de trinta e seis léguas no mais largo dele, a qual medida jomo acerca deles quere dizer oitava parte de vinte quatro, dando por singradura, entre dia e noite, outras tantas partes de caminho, a razão de farçanga por hora, três das quais farçangas fazem um jomo, medida antiga dos párseos, a que os gregos corruptamente chamaram Parasanga. Repartem mais os mouros estes doze jomos em três partes de longo a longo, com que o mar fica dividido em três faixas: à faixa do meio, que é o lombo deste lagarto, chamam mar largo, por ser limpo e navegável de dia e de noite. começando das portas do Estreito té quási o fim dele, não descendo a sua altura de vinte cinco braças, nem subindo de cinquenta. O que não tem as outras duas faixas que vão pelas ilhargas, ua ao longo das praias de Arábia e outra da terra África, a que eles chamam Ajam, e por outro nome Abassia, porque ambas estas duas costas fazem o mar mui sujo de ilhetas, restingas e 358 baixos como canais retorcidos, per que se navega de oito até quinze braças, tam temerosos aos navegantes, que como é sol posto lançam âncora. Pera a qual navegação, 358 por ser mui perigosa, servem os pilotos chamados rebões, que dissemos viverem nas portas deste Estreito; e de levarem delas té o porto de Judá ua nau, levam vinte cinco té trinta cruzados, e navegam este mar com dous ventos gerais, que são levante e ponente; e quando não são mui tendentes, ventam alguns terrenhos, e porém poucas vezes. Em todo ele não entra rio de água doce que seja notável; porque a terra de Arábia, depois que entram as portas do Estreito, é mui seca e estérele, somente tem um rio, a que eles chamam Bardilo, que quere dizer branco e preto por se ajuntar de dous pequenos ribeiros, um dos quais tem a água branca e o outro preta. O qual rio se vem meter no mar quatro léguas acima de um lugar chamado Bahaor, e dez de Judá; e é a sua água tam pouca, que, primeiro que chegue às praias, já vem salgada da maré, que a vai receber um bom pedaço per dentro da terra. Os que nascem das serranias, que correm ao longo deste mar da parte ida Abassia, a Natureza próvida os mais notáveis e cabedais encaminhou que fossem entrar em o rio, a que os da terra chamam Tagazi, que se vai meter em outro maior chamado per eles Abauhi, que quere dizer pai das águas, e ambos já em um corpo entram em o Nilo pera regarem a terra do Egipto, pois não tem outra chuiva pera dar suas novidades. Alguns pequenos rios que vertem pera este Mar Roxo, por a terra das serranias donde eles nascem té as praias ser mui estérele e um pouco solta com pedregulho, primeiro que entrem no mar, se sumem per baixo no verão; donde os navegantes, quando vão ao longo desta costa, conhecem já as madres dos tais rios, que no inverno são poderosos, e cavando na area e pedregulho, acham a água do rio que corre furtada per baixo. Geralmente os mouros chamam a este mar Bahar Corzum, que quere dizer mar cerrado, peró que este nome dão eles mais propriamente ao Mar Cáspio, por não ter entrada algua; e outros lhe chamam Mar de Meca, por a casa que ali tem da abominação do seu Mahamede, e todos se espantam de

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112v lhe chamarmos Mar Roxo. A causa do qual nome Roxo, querendo Afonso de Albuquerque entender neste tempo que o navegou, diz em ua carta que sobre isso escreveu a el-Rei D. Manuel, que lhe convém muito este nome Roxo, por ser mui cheo de manchas vermelhas; porque, querendo ele abocar com a frota que levava às portas dele, viu sair per elas ua vea grossa de água vermelha, a qual se estendia contra Adem e pera dentro das portas quanto um homem podia devisar do chapitéu da nau, era desta cor vermelha; e depois que entrou ao largo deste mar, muitas vezes o via manchado da mesma cor. E perguntando aos mouros pilotos a causa dela, disseram-lhe ser revolução das águas de baixo ao tempo das marés, e aquelas manchas corriam com a jusante e montante daquele Estreito, por não terem as águas outra corrente 359 senão entrar e sair per as portas dele; e por ser aparcelado e mar de pouco fundo, que às vezes, quando o vento era teso, corriam estas águas à vontade dele, e que então 359 faziam aquela revolução debaixo em algua cousa daquela cor que o mar tinha por lastro. D. João de Castro, filho de D. Álvaro de Castro, Governador da Casa do Cível, que foi, em Lisboa, ante que fosse à Índia por Governador e Viso-Rei dela, andando lá no tempo que D. Estêvão da Gama, filho do Conde da Vidigueira D. Vasco da Gama, era Governador dela, e foi a este Estreito té chegar ao Porto de Suez, como se verá em seu tempo, trabalhou muito por saber as causas deste nome Roxo com muita prática que teve com mouros pilotos e alguns homens letrados, da qual viagem fez um Roteiro, em que notou portos, mares, alturas do polo com todalas outras cousas que pertencem à navegação, tudo mui particularmente, como quem nesta arte da navegação era douto e mui deligente. O qual diz neste Roteiro, que pera nenhua outra cousa daquela entrada do Estreito teve mais alvoroço, que pera notar as causas deste mar ser chamado Roxo,; e como homem estudioso traz o que escreve Plínio e outros cosmógrafos acerca da opinião daquele tempo (como largamente trataremos em a nossa Geografia), e per derradeiro dá seu parecer, fundado nas observações que sobre isso fez; e o modo que pera isto teve foi este: Indo aquela armada que D. Estêvão da Gama levava ao longo da costa da Abassia (porque na Arábia não tocou senão do Toro pera baixo), como era de navios de remos, que podiam correr per cima de muitos baixos e restingas, que aquele mar tem, tanto que ele, D. João, via água chea de manchas vermelhas per muita distância, e às vezes água tam baixa que tocava o catur em terra, surgia logo e mandava com baldes tomar daquela água, a qual, vinda acima, via ser muito mais clara e cristalina, que a do mar fora das portas do Estreito. Não contente com isto, mandava mergulhar alguns marinheiros, e traziam-lhe do lastro do chão ua matéria vermelha, a maneira de coral, ao modo de ramos, e outras eram cobertas de ua lanugem alaranjada; e em outra parte, onde o mar fazia manchas verdes, traziam-lhe outra espécia de pedras, assi em ramos, a que comumente lá chamam coral branco, com outra lanugem verde a maneira de limo, e onde a água era branca, traziam area mui alva. E não somente nestes lugares baixos a superfície da água em cima representava estas cores do lastro da terra, mas ainda em fundo de vinte braças, por a água ser mui pura e cristalina; e o mar onde achou mais cópia destas manchas, foi da cidade Suaquém té o porto Alcocer, que é caminho de cento e trinta e tantas léguas, por ser mui cheo de restingas. Do Toro pera baixo, que é já na costa da Arábia, onde ela vezinha com a de Egipto, ajuntam-se aqui ambas estas duas costas com 360 dous cabos que se opõem um defronte de outro, que não haverá entre eles mais distância que de três léguas; passados os quais cabos, torna-se logo a terra encurvar com enseadas e pontas, té chegar à povoação de Suez, último seo deste Mar Roxo. 360 Na qual distância diz D. João não ver algua das manchas do outro mar atrás, somente viu neste espaço ua diferença - ser aqui o mar empolado e de fervura, porque, como a costa é aqui mais

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descoberta de serrania e patente aos ventos do Norte, com pequena força deles logo o mar é posto nesta fúria, como que não cabe em tam pequeno lugar, como lhe a terra ali fez, donde se causa fazer ua maneira de aguages, que saem de baixo do mar anaçadas em grande alvura do movimento dele. Conta mais D. João, que, saído deste Estreito fora das portas tanto avante como o Cabo de Fartaque, viu o mar coalhado de malhas vermelhas, que parecia serem ali degolados alguns bois; e mandando 113 tomar água com um balde, quando lha trouxeram acima, viu-a mui clara, onde lhe pareceu que a vermelhidão ia per baixo, e não pela superfície da água, e que seria algum parto de baleas, por naquela paragem haver muitas. A opinião de alguns pilotos portugueses acerca do nome Mar Roxo, ante que fizessem esta entrada nele, era que as ventanias que se levantavam na terra Arábia traziam grandes poeiras vermelhas da cor da terra, as quais vinham lançar no mar, de que ele ficava tinto; e outros diziam que seria porque a ribeira dele toda era chea de barreiras vermelhas. A qual opinião reprovando ele, D. João, diz que em toda aquela viagem nunca viu poeiras nem barreiras vermelhas que fosse cousa notável; e contudo punha todalas opiniões pera cada um tomar a que mais racional lhe parecesse, conformando-se com as experiências que ele com tanta deligência fez. Nós, conformando-nos com o que Afonso de Albuquerque viu e razão que lhe deram os mouros, e com a diligência que ele, D. João, sobre isso fez, e discurso de todalas navegações que ante e depois per ele fizemos, toda outra opinião de gregos e romanos reprobamos, pois não andaram com o estrolábio e sonda na mão per este e per todolos outros mares per que navegámos, como os nossos mareantes tem feito, e aceitamos esta cor vermelha ser por causa do lastro da terra, como D. João diz; e por ser per tanta parte deste mar, os que antiguamente o navegaram lhe dariam nome de vermelho, e não del-Rei Eritreu que o senhoreou, cujo nome Eritreu acerca dos gregos quere dizer Roxo. Somente queremos tirar um escrúpulo que D.João leixa, do parto das baleas que conta, de que me muito espanto cair algua dúvida em tam grave barão, tendo dentro no Estreito feita tanta experiência pera observar esta verdade. Porque, quem notar o que Afonso de Albuquerque diz, quando abocou 361 às portas do Estreito - que viu sair per ele um fio grosso desta vermelhidão, 361 e de dentro das portas, quanto se podia devisar do chapitéu da nau em que ia, tudo era daquela cor vermelha, e assi o que lhe contaram os mouros - entenderá que isto eram balsas daquele lastro de coral arrincadas com a força do ímpeto do mar quando os nortes tesos lhe anaçam as águas de baixo acima. E como é cousa pesada, não as traz à face da água, e com a corrente dela, passada a fúria do tempo, as encaminha pera fora das portas deste Estreito com a jusante; e quando vem abocar esta estreiteza, o tesão da água corta a grandeza e largura destas balsas, fazendo aquele fio grosso que Afonso de Albuquerque viu sair; e depois que se acha em mar mais largo, torna derramar-se em balsas, fazendo aquelas manchas que pareceram a D. João parto ou móvito de baleas, por ser fora do lastro que ele dentro no Estreito notou. E quem viu quantos dias as nossas naus cortam per sargaço, vindo da Índia, quando vem demandar as Ilhas Terceiras, o qual corte é nestas balsas da parte da terra nova do Norte, donde os mareantes chamam a este caminho a Volta do Sargaço, não haverá por cousa estranha estoutras balsas de coral que correm no Estreito, por ser cousa mui comum todo mar baixo e sujo com restingas e ilhetas criar estas balsas, as quais muitas vezes, de Malaca por diante, onde o mar é sujo, e navegando per canais, dão trabalho aos nossos no levar das âncoras, ca travam na rama deste género de coral, de maneira que às vezes fica a âncora ou trazem nela um pedaço da balsa. Peró tem ua diferença - que estas balsas de coral, por serem de matéria pesada, não surdem acima pera se ver o corpo, e vão per meia água per que transluze a cor; e o sargaço, como é matéria leve de rama, andam os marinheiros com baldes, tomando aquelas ramas; e sem ser sargaço, por a semelhança que tem com ele, lhe deram o seu nome, sem se saber a causa de que procede,

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nem o lugar donde vem, somente cortam per ele, como no Mar Roxo pelo coral que lhe deu este nome. E posto que em algua parte dele se achem manchas verdes do lastro verde que D. João viu, por o vermelho ser muito maior quantidade, deram-lhe a denominação do mais e não do menos. Acham-se também neste Estreito, por causa dos baixos que tem, alguas pescarias de aljofre, principalmente em o circuito da Ilha Dalaca, que é na costa Abassia, e vão abrir esta ostraria ao sol, pera lhe tirar o aljofre em outra ilha a ela vezinha chamada Mua, e assi se acha em outra ilha chamada Arfax, na costa de Arábia. De pescado não é mui criado este 113v mar; parece que a Natureza próvida na criação dos animais não os dá senão onde se podem manter, segundo seu género; e porque as praias daquele mar são estéreles sem undação de rios que tragam cevo pera mantença do pescado, há li muito pouco. Às portas deste Estreito os mouros lhe chamam Bab-el-Mandé, e 362 segundo os nossos, 362 que per vezes lhe tomaram a altura do Norte, estão em doze graus e um quarto, posto que Ptolomeu as põe em dez. Haverá da ponta desta terra Arábia, a que ele chama promontório Possídio, à outra terra fronteira de África, em que ele situa a cidade Dire, obra de seis léguas, a qual distância é ocupada com sete ilhas, que parece quererem fechar aquela entrada, principalmente seis que jazem mais vezinhas à terra de África. Porque, quando os navegantes de longe as vem demandar, assi enganam a vista, ajuntando terra a terra, que mostram não ter trânsito pera dar passagem; e quando se vão chegando àquela abertura que fazem, é tam temerosa, que parece mais pera entalar navios que dar-lhe passagem; peró, entrando per elas, mostram mui fermoso e largo canal. A mais notável delas é a chegada à terra de Arábia, a qual, per excelência entre os mouros, dizendo a Ilha das Portas, se entende por esta, posto que os naturais per próprio nome lhe chamem Mehum. Terá em comprimento légua e meia, lançada ao longo das correntes das águas que saem e entram do Estreito, a terra da qual da parte de Arábia é mui alta e soberba, toda escalada dos ventos, que vertem per aquela garganta do Estreito; e a parte que jaz contra a terra do Abexi, tem ua angra abrigada dele, onde se pode agasalhar ua grande frota de naus, e dela à terra firme de Arábia haverá obra de ua légua, e este canal é o principal per que aquele Estreito se mais serve; e pegado com terra firme, faz à terra um mamilo alto, que de longe quere parecer fortaleza, que no tempo da maré chea fica torneado de água, no qual lugar vivem os pilotos daquele Estreito. De dentro e de fora destas portas tem as naus bom surgidoiro em angras que a terra faz, com que ficam abrigadas, de ua parte, do Levante, e da outro, do Ponente. Começando destas portas, a terra marítima que jaz ao longo das praias de Arábia quási té a Ilha Camarão, que podem ser quorenta e quatro léguas, é del-Rei de Adem, sem ter no marítimo desta tam grande terra algua cidade ou nobre lugar, por todos estarem dentro pela terra firme, somente os portos de Mocá e outros pouco nomeados. E desta Ilha Camarão, pegado à terra firme té Gezão, lugar nobre, de que é senhor um xerife intitulado dele, haverá sessenta léguas, na qual distância estão estes portos: Celiba, Cubite, Holhédia, Macobão, Suli, Halhor, Homara. De Gezão té a vila Imbo, que serão de costa cento e trinta léguas, é tudo do estado do Xerife Baraque, senhor de Meca; às quorenta e duas está Zidem, lugar mui notável, e nesta distância ficam os portos de Malabo, Gobaalcarne, Bocá, Gudufi, Magaxá. E de Zidem a trinta e seis léguas está Judá, cidade, peró que não 363 em edefícios, em trato e comércio, por aqui concorrerem quási todalas naus que vem da Índia, é mui célebre e a mais nobre povoação de toda esta costa de Arábia dentro do Estreito. Da qual 363 a Meca, que está metida no sertão, onde jaz o corpo de Mahamede, haverá pouco mais ou menos

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quinze léguas, na qual distância de trinta e seis léguas estão estes dous portos notáveis: Badea e Corom; e de Judá té Imbo, que dissemos, haverá per costa cinquenta e duas, entre os quais dous termos estão estes portos: Bahaor, Rabá, Hejar. Da vila Imbo té outra chamada Tor, e per nós Toro, em que haverá per costa sessenta e oito léguas, posto que toda a terra que atrás fica é estérele, esta muito mais, e por isso não tem senhor próprio: o sertão dela é de alarves, que andam em cabildas a roubar os mouros que vão em romaria a Meca (como já atrás escrevemos), e somente nesta distância há um só porto notável chamado Molui. Na vila Tor há mais algua polícia, assi nos edefícios como no modo do tratamento das pessoas, do que se acha em todalas povoações que nomeamos, por ser povoada a maior parte de cristãos gregos da Cintura, onde há alguns frades em um mosteiro que ali tem da vocação de Santa Caterina, por razão da vezinhança do outro mosteiro, que eles tem em Monte Sinai, onde está o corpo desta Santa Virgem, que poderá ser deste lugar obra de dezoito léguas. Entre os moradores deste lugar Tor é fama que per ali passou Mosés, o povo de Israel vindo fugindo de Faraó, porque aqui se vezinham as duas terras de Arábia e do Egipto per distância de três 114 léguas, e tanto foi (segundo eles dizem) o trânsito do mar. D. João de Castro, no Roteiro que fez da navegação deste Mar Roxo, diz que esta vila Tor lhe parece ser a vila Elana, de que todolos geógrafos fizeram menção, donde a enseada, que se faz adiante, se chama Elanítica; posto que Ptolomeu ponha esta vila em vinte nove graus e um quarto da altura do Norte, e ele, D. João, tomou a do Tor em vinte oito e um sexto. E entre outras razões que dá pera aprovar este seu parecer, é que, daqui té a povoação de Suez, que serão quorenta léguas, não há entre os mouros memória de situação de algum lugar que naquela distância, em que Ptolomeu a põe, houvesse, nem o marítimo da costa mostra poder ter povoação, por a maior parte dela ser de serranias quási té Suez, e mui estérele, sem água algua; e nesta vila Tor há muita desposição, assi por haver nela água, e ter um campo que começa onde estão doze palmeiras, obra de um tiro de bombarda da vila. O qual campo se vai estendendo um bom pedaço, té ir dar ao pé de ua serra que vem acabar ali de mui longe donde ele corre, atravessando toda aquela terra de Arábia, com que faz a divisão destas duas partes dela, a que chamam Félix e Pétrea,; e ante de chegar ao porto de Suez obra de três léguas, dizem os mouros estarem uns poços, que eles afirmam abrir Mosés depois que passou o Mar Roxo, por o clamor que lhe o povo fez da água que lhe falecia, os quais poços eles entre si tem por cousa mui santa. 364 Um venezeano 364 comitre de ua galé, que foi na armada de Soleimão Bassá, capitão do Turco, quando foi à Índia combater a nossa cidade Dio, no reino Guzarate (como veremos em seu lugar), fez desta viagem um Roteiro de todolos portos que Soleimão Bassá tomou nesta costa da Arábia; e diz que o lugar donde Mosés passou da parte do Egipto à outra de Arábia, é um chamado Corondolo, que será de Suez quinze léguas, e vinte cinco do Tor. E porque seria cousa mui estranha sairmos do curso da nossa história pera concordarmos estas opiniões do trânsito e passagem de Mosés, em o Comentário da nossa Geografia o faremos, por ser mais próprio lugar. Por isso passaremos avante com nosso intento, que é tornar caminho das portas deste Estreito pola outra costa do Egipto e Abassia. O qual caminho começaremos do último termo deste Estreito, que é a povoação de Suez, posta em altura do Norte vinte nove graus e três quartos, tomada per D. João de Castro e per muitos pilotos que foram naquela armada; e segundo as razões que ele, D. João, dá, parece que nesta povoação de Suez foi a situação da cidade dos Héroas, peró que Ptolomeu a ponha distante do mar. Esta povoação Suez ao presente não é habitada de mais gente que de oficiais de fazer navios pera as armadas que o Soldão fazia, e ora o Turco faz pera a Índia, e de gente que está em guarda destas velas. A terra em si é mui estérele, sem água, e toda a que se ali bebe se traz em camelos perto de

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duas léguas, e ainda tam solobra, que é mais pera os camelos que a trazem, que pera homens; e o que confirma o parecer de D. João ser ali a cidade dos Héroas, é que naquele sítio se mostram alguas ruínas dos edefícios dela meios cobertos de area, e grande número de cisternas mais cheas dela que de água. As quais, segundo parece, se enchiam da água do Nilo no tempo de seu crescimento, per ua aberta a maneira de larga levada, que vinha dele té esta cidade, a qual o tempo e os bárbaros atupiram, segundo a opinião da gente do Cairo, da qual ainda em alguas partes aparecem os sinais. Desta povoação de Suez à cidade Cairo, metrópoli de Egipto, há três dias de andadura de camelo contra Ponente, que podem ser vinte léguas; e começando dela a conta da distância que tem os portos e povoações da outra costa deste mar, haverá ao porto Corondolo, que dissemos, quinze léguas, e daqui a Alcocer quorenta e cinco. O qual Alcocer é um lugar notável naquela costa, não por a majestade de seus edefícios e polícia dos moradores, porque tudo é conforme a uns poucos de alarves que nele habitam, somente por ser ua aberta das serranias que té qui correm ao longo do mar; e per este porto aquela parte de Egipto, a que eles chamam Rifa, vasa todalas suas novidades;, e mais grande parte dos mouros deste Ponente, quando vão a sua romaria de Meca, por não descerem abaixo ao Cairo, vem demandar este porto. Junto da 365 qual povoação obra de duas léguas 365 estão uas ruínas de habitação, a que os mouros chamam Alcocer-o-Velho, e diz D. João de Castro no seu Roteiro que lhe parece serem estas ruínas da cidade Philoteras, e que se despovoou por ter ruim serventia, e povoou-se Alcocer; daqui ao 114v rio Nilo haverá dezasseis léguas, e este porto de mar é o mais perto dele. Está este lugar em altura do Norte vinte seis graus e um quarto; e nas serranias que caem sobre a ribeira do mar e estão entre este lugar Alcocer e Suez, há dous mosteiros de frades da ordem de Santo Antão, um chamado Santo António, quási na paragem de Corondolo, e outro per nome S. Paulo, na frontaria do Toro, e este é mais vezinho do mar que o outro; porém longe das praias e posto no alto das serras, ambos povoados de cristãos de várias nações, que ali fazem penitência, os quais se comunicam com outros da mesma ordem que há per aquela região do Egipto. Tornando a nosso caminho, deste lugar Alcocer a cento e trinta léguas está a cidade Suaquém, em altura de dezanove graus e um terço, na qual distância há estes portos: Tuna, Goalibo, Xoana, Xacara, Xamelquimane, Somol, Igidide, Faratério, Salacal, Fuxa, Dradate e outros, os quais não são povoações, somente portos dos mareantes, ou (por melhor dizer) aguadas que eles ali fazem. A cidade Suaquém é o melhor porto de todo este Estreito, porque o mar entra per um boqueirão, e passado um pequeno espaço nesta estreiteza, faz depois ua grande lagoa, no meio da qual está ua ilheta, que quási não tem mais terra que quanto ocupa a cidade, toda de pedra e cal com casas nobres ao modo de Espanha, e tem rei per si. E ao tempo que D. João de Castro notou esta cidade, que foi no ano de quorenta e um, D. Estêvão da Gama com a armada que levava a destruiu (como se verá em seu tempo), e dela em diante té Maçuá haverá setenta léguas, na qual distância está o porto de Xabaque, e outros sem nome que a nossa notícia viesse. Esta povoação Maçuá é ua cidade que tomou o nome da ilha, em que ela está situada, tam vezinha à terra firme, que será de espaço tiro de ua espingarda; e a vezinhança que tem nesta terra firme é um lugar chamado Arquico, que é do Preste João. Tem esta cidade Maçuá um xeque, que é senhor da terra, o qual senhorea a Ilha Dalaca, que acima dissemos, onde se pescava aljofre, e assi outras ilhas a estas vezinhas, e está em paz com os abexis, povo do Preste João, polo grande proveito que recebe deles em o negócio do comércio, porque per este porto de Arquico saem todolos mantimentos, onde há grande cópia, de que a maior parte deste Estreito, principalmente da costa da Arábia, se mantém. Desta cidade Maçuá às portas do Estreito, onde começamos esta descripção, haverá oitenta

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e cinco léguas; a qual ribeira, passada a Ilha Dalaca, 366 por ser mui pejada e suja com ilhetas e restingas, não tem tantas acolheitas e portos; e se os tem, não é cousa célebre 366 a que navegantes acudam, porque também o sertão da terra naquela paragem é monstruoso. A gente que habita ao longo desta ribeira do mar, tirando os lugares célebres, é mui agreste e bárbara, a que os mesmos mouros chamam baduís como cá dissemos, campestre e montanhês, a qual toda vive de saltos e rapina, e quando podem, cometer as povoações. Per detrás das serranias em que esta gente agreste vive, as quais correm ao longo da ribeira desta costa, ficam as terras do estado do Preste João, que contra o Cairo não descem mais que té a paragem da cidade Suaquém, e di pera o Meio-dia e Ponente se estendem per muita distância e de tanta terra somente tem um porto de mar, que é Arquico. E se D. Estêvão da Gama, quando per ali passou, lhe não leixara D. Paulo, seu irmão, com quatrocentos homens em seu favor contra os mouros, que havia treze anos que se tinham feito senhores da maior parte de seu reino, já não houvera relíquias daquela cristandade, que Nosso Senhor ali depositou tantas centenas de anos, tam desemparada dos Príncipes da Igreja. Com o qual desemparo se podem chamar homens de muita fé, pois metidos no coração daquela Etiópia sobre Egipto, cercados de tanta idolatria de gentio e blasfémia de mouros, tem viva aquela luz de Fé do nome de Cristo, nossa Redenção, peró que seja de muitos errores, em que se não conformam com a Igreja Romana, de que eles estão tam remotos, como ela esquecida deles, do estado dos quais ao diante faremos copiosa relação.

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366 114v 366 Capítulo II. Como Afonso de Albuquerque entrou dentro no Estreito, e o que passou té invernar na Ilha Camarão. 115 Ao seguinte dia, depois que Afonso de Albuquerque tomou o pouso dentro das portas do Estreito (como no fim do precedente Livro dissemos), ele se fez à vela com toda sua frota, levando por pilotos daquele Estreito os mouros que lhe tomaram, e ao outro dia houve vista de ua ilha chamada Gibel-Socor, onde eles o quiseram levar. E receando ele que nela não haveria pouso pera tam grande frota como levava, tomou ante a parte da costa Arábia, onde surgiu a vista da ilha; porque, como 367 não tinha piloto português, que soubesse aquela navegação, e os mouros, pelo modo com que os houve, lhe eram suspeitosos, em tudo o que lhe deziam dava resguardo, e queria ir devagar, sempre com o prumo na mão, e tomar o pouso com sol. Peró, com todos estes resguardo, depois de tomar duas naus que iam de Barborá e Zeila com mantimentos pera Judá, as quais mandou queimar, quando veo ao seguinte dia, fazendo seu caminho via da Ilha Camarão, pera ali fazer sua aguada, por a falta que levava de água, querendo os mouros meter a nau dele, Afonso de Albuquerque, em ua enseada, onde estava um 367 lugar chamado Luia, deu em ua restinga de area, que lhe fez dar com as velas de alto a baixo, e a nau foi dando alguas pancadas. Mas por este parcel ser ao modo de alfaques, saiu a nau do banco com ajuda de Lopo Vaz de Sampaio, D. João de Eça, Pero da Fonseca, Fernão Gomes e Simão Velho, que por irem na sua esteira todos lhe acudiram com deligência; e os outros capitães, que não poderam ser com ele, mandaram seus batéis, de maneira que a nau, atoada a outra, saiu do perigo, do qual caso ficaram aos baixos nome de Santa Maria da Serra, que era o da nau. E assi deu causa a que ele, Afonso de Albuquerque, depois que foi em Goa, por a salvação que lhe Nossa Senhora deu daquele perigo, a quem se ele encomendou nele, edificou em ua das portas da cidade ua casa em seu louvor, intitulada Nossa Senhora da Serra, do nome da mesma nau, a qual casa depois lhe serviu de sua sepultura, onde ora jaz (como adiante veremos). Fazendo-se à vela sua via de Camarão, mandou diante D. Garcia de Noronha com alguns capitães em os navios pequenos e batéis pera lhe rodearem a ilha, que os moradores se não passassem à terra; e contudo, quando chegaram, por terem per terra nova de sua ida, eram todos passados, e não houveram deles mais que as gelvas em que passaram, que são barcos de remo com uns poucos de mouros, de que alguns eram pilotos. E entreteveram té chegada de Afonso de Albuquerque duas naus, que queriam sair do porto caminho de Judá, ua das quais era do Soldão do Cairo, e ambas carregadas de mui rica fazenda; e afora estas, estavam no porto outras duas de mercadores mouros e judeus de Judá, que na chegada de Afonso de Albuquerque foram também tomadas. Esta Ilha Camarão está em altura de quinze graus da parte do Norte, e tam vezinha à terra firme de Arábia, que está à vista dela per espaço de ua légua; é terra muito baixa, e parte dela alagadiça, e nestes alagadiços cria alguas árvores, a que chamam mangues, de madeira rija e reversa de lavrar, a qual comumente se acha em Guiné naqueles alagadiços. Todo o mais da ilha é sem criação de algua árvore, somente dá ua erva curta tam substancial, que o gado meúdo que nela anda é bem criado, e assi os camelos de que os moradores se servem. Faz com a terra firme (porque a empara dos ventos que ali mais cursam), um dos melhores portos daquele Estreito, e mais

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frequentado dos navegantes, por causa da muita água que tem, onde todos, assi à entrada como saída do Estreito, concorrem fazer sua aguada. 368 Segundo se mostra nas ruínas de alguns edefícios, antiguamente houve nela povoação nobre, da destruição da qual os mouros não sabem a causa; e os que nela habitavam e fugiram, ao tempo que Afonso de Albuquerque chegou, viviam ao modo de alarves em choupanas, e parece estarem ali mais por causa de algum proveito que recebiam das naus que vinham fazer aguada, que por folgar de habitar a terra. O maior despojo que os nossos houveram deles, foi gado 368 meúdo que tomaram a cosso e mataram às espingardadas, e assi alguns camelos de que fizeram refresco, e assi acharam alguns mouros que não poderam passar à terra firme. Entre os quais foi um homem de idade e de nobre sangue, o qual (segundo dezia) fora já xeque e senhor das Ilhas Dalaca e Maçuá, de que falámos, que estão pegadas na outra costa da Abassia, o qual fora despossado deste senhorio per um seu sobrinho, a quem ele matara o pai, e isto com favor do Xeque de Adem, com pacto que havia de ficar seu trebutário. Porém ele durou pouco no estado, porque o mesmo Rei de Adem teve 115v modo como o mandou matar, e pôs por Governador da terra um seu escravo com gente de guarnição, e assi se fez senhor da terra, de que el-Rei de Adem tinha ua grande renda, principalmente da pescaria de aljofre que se ali faz. Ao qual mouro Afonso de Albuquerque fez honra e mercê, e leixou em sua liberdade; porque na prática que teve com ele mostrava ser quem dezia, e dele soube Afonso de Albuquerque muitas cousas daquele Estreito, e principalmente do Preste João, a que eles chamam Rei de Abassia, por a muita comunicação que teve com os seus naturais quando era Xeque na Ilha Maçuá tam vezinha à povoação Arquico, que (como escrevemos) é do Preste. Afonso de Albuquerque, porque, em chegando a esta Ilha Camarão, lhe acalmaram os levantes pera ir a Judá (como era seu intento), foi-lhe necessário deter-se ali sete dias, no fim dos quais os mouros pilotos lhe prometeram poder navegar, porque esperavam ver sair ua estrela entre eles mui conhecida por nome Taria, que era sinal mui certo de tornarem a ventar levantes. Porém vinda a estrela, eles ventaram tam poucos dias, que, saído do porto com toda a frota, não pôde ir mais avante que té uas ilhas que estão já no mar largo, onde os ponentes lhe deram de rostro e o detiveram ali vinte e dous dias, no qual tempo mandou João Gomes na sua caravela té a Ilha Ceibão, parecendo-lhe que, como esta ilha está mais no meio do mar quási enfiada com as portas do Estreito, podiam aqui ventar os levantes ou qualquer outro vento, com que podesse navegar. João Gomes, como o tempo também lhe era contrairo, com assaz trabalho às voltas chegou lá e achou que todo o tempo era geral, somente quando acalmava havia algua bafugem de outro rumo, mas era pera mover um batel, com a qual nova se tornou a Afonso de Albuquerque. Ele, porque 369 a água lhe começava a falecer, conveo-lhe arribar à Ilha Camarão, onde achou duas naus chegadas à terra firme despejadas de quanto tinham, e recolhido tanto dentro dela, que não podessem os nossos lá ir. Feita aguada, tornou Afonso de Albuquerque outra vez cometer o caminho donde vinha, té chegar às próprias ilhas; estando no qual lugar viram contra a parte onde se o Sol punha, que era da terra do Preste, um sinal de Cruz no Céu de cor vermelha, mui resplandecente, e de largura de ua braça, e o comprimento em proporção dela. 369 A vista da qual, que foi per um bom espaço, todos se assentaram em giolhos adorando-a, e Afonso de Albuquerque, levantando as mãos a ela, em alta voz começou dizer: - Ó sinal de nossa Redenção! ó sinal de nossas vitórias espirituais e temporais, ornada e

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decorada com o preciosíssimo Sangue de Cristo Jesu;, ó árvore divina, cujo fructo remiu o pecado do fructo que nos trouxe a morte, eu confesso seres o sinal em que está a esperança de nossas vitórias! Nós te confessamos, reconhecemos e adoramos, pedindo-te que per mar e per terra sejas nossa defensor! Com as quais palavras toda a gente foi posta em lágrimas de devoção e fervor de fé, levantando-se em todalas naus ua grita, dando glória a Deus, que parecia romperem os Céus, no fim da qual grita tangeram as trombetas, e tirou toda a artelharia, em meio do qual tempo ua nuvem branca foi cobrindo aquele sinal. Do qual caso Afonso de Albuquerque mandou tirar um estromento, que enviou a el-Rei D. Manuel; e tanto animou aquele sinal a todolos nossos, que lhe fez perder o nojo de quem enfadados andavam, espancando aquele mar sem fazer viagem, parecendo-lhe ser Nosso Senhor servido daqueles trabalhos que levavam, e que lhe dava tal mostra pera os consolar. E porque nesta paragem esteveram tantos dias, que se passou o mês de Maio, em que os pilotos se determinaram serem os levantes passados, tornou-se Afonso de Albuquerque a Camarão, com fundamento de invernar aí, e espediu a João Gomes, que fosse à outra banda da terra do Abassi, com regimento que trabalhasse por tomar os portos da Ilha Maçuá e Dalaca e lhas descobrisse com toda a enformação que delas podesse haver, e isto sem fazer dano; e quando tornasse, se podesse haver à mão algua gelva das que navegam per aquele mar, que a tomasse, pera dos mouros dela saber algua nova, e pera esta ida lhe deu um dos pilotos mouros que trazia consigo, o qual negócio João Gomes fez, trazendo as ilhas arrumadas como jaziam, sem mais outra cousa.

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369 115v 370 Capítulo III. Do que Afonso de Albuquerque passou enquanto invernou na Ilha Camarão; e depois que se partiu dela, té chegar à cidade Adem. 116 A este tempo que Afonso de Albuquerque esteve invernando nesta Ilha Camarão, de alguns mouros que acudiam à terra firme soube como o Xeque de Adem estava junto de ua vila chamada Zebite, que é do seu senhorio, ao qual quis mandar ua carta. E pera ser certo de mandarem e haver reposta, mandou-a per um mouro mercador, que já em outro tempo fora seu cativo, e a rogo de Melique-Iaz, senhor de Dio, lhe dera liberdade juntamente com outros que foram tomados em ua nau; e chegando àquela ilha, o tornou outra vez tomar, e a sua mulher e filhos; e pelo 370 conhecimento que dele tinha, e estes lhe ficaram em poder, o mandou, prometendo-lhe liberdade, se fosse e viesse com recado. Na qual carta ele, Afonso de Albuquerque, escrevia ao Xeque como tinha sabido que em seu poder estavam cativos certos portugueses, que vieram ter ao seu porto, que lhe pedia houvesse por bem de os resgatar, ou a troco de mouros de muitos que ele trazia cativos daquela ilha, e outros que houvera de alguas naus que tomou naquele mar, ou per qualquer outro modo de resgate. Estes cativos sobre que Afonso de Albuquerque escreveu esta carta, eram aqueles cinco portugueses do bargantim de Gregório da Quadra, que esgarrou da armada de Duarte de Lemos (como atrás fica), na liberdade dos quais o mouro que levou a carta não fez cousa algua, ante, quando tornou à terra firme, defronte da Ilha Camarão, mandou dizer a Afonso de Albuquerque que não podia vir a ele, porque o Xeque o mandava vir ali em poder de certos homens, que o traziam preso, não pera lhe trazer recado, somente pera ver se com ele podia resgatar sua mulher e filhos. Sobre o qual resgate de ua parte e de outra foram e vieram recados, sem o mouro tomar conclusão algua no que prometia, somente mandou de presente a Afonso de Albuquerque algum refresco de carnes e fructa da terra; e dos mouros que se ali tomaram, sabendo eles a causa por que Afonso de Albuquerque mandara este ao Xeque, veo ele saber novas destes homens. As quais foram que, havendo todos um barco à mão, se meteram no mar caminho da Índia, e ao segundo dia foram tomados e circuncidados com todalas cerimónias de mouros per mandado do Xeque; e este auto lhe fora feito, estando eles quási sem sentimento do que lhe faziam com ua certa semente, que moída em água lhe deram a beber. E assi soube mais deles, 371 depois que os veo a comunicar, que em Suez, enquanto Mir Hocém andou na Índia próspero com a morte de Dom Lourenço de Almeida, o Soldão, por favorecer aquela sua empresa, mandara começar quinze navios de remo, os quais estavam meios feitos, e eram guardados per até cinquenta mamelucos, por os não queimarem os alarves, e que cada dia lhe aguavam os costados por não esvaecerem, sem haver i mais outro sinal de armada pera a Índia senão aqueles cascos por acabar, sem haver oficial pera isso. A qual cousa se causara de duas: a ua fora por ser tomada ua soma de madeira, que lhe vinha pera fazer mais navios, que haviam de ir em companhia destes, e (segundo diziam) esta tomada fizera ua armada dos Cavaleiros de Rodes; e a outra fora ser Mir Hocém desbaratado, com que tudo se esfriou, e que ele, Mir Hocém, estava recolhido em Judá. E que nesta cidade houve tanto temor, como se soube da entrada dele, Afonso de Albuquerque, que os mercadores posesse toda sua fazenda fora, e Mir Hocém não entendia em mais que fortalecê-la; e também do dia que ele combateu

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371 a cidade Adem, a quinze dias per dromedários, se soube a nova no Cairo, per os quais o Xeque, senhor dela, escreveu ao Soldão, pedindo-lhe ajuda contra os portugueses; ao que ele respondeu que guardasse bem sua cidade, porque ele teria cuidado de mandar guardar seus portos. E que no Cairo havia grande revolta, e o Soldão estava mui receoso; porque, sobre este recado do Xeque, soubera como ele, Afonso de Albuquerque, entrara no Estreito, e tinha por nova que da Cristandade partia ua grande armada pera vir tomar Alexandria; e assi tinha nova que o Xeque Ismael, Rei da Pérsia, ia sobre Alepo. E por ele, Soldão, neste tempo ter morto três grandes capitães daqueles que per ordenança do reino o podiam suceder nele, e um que tinha por Governador da cidade Damasco, com temor de lhe fazer outro tanto, não quis ir a seu chamado, e estava levantado com favor do Xeque Ismael, eram pera ele todas estas cousas ua grande confusão, porque em nenhua confiava; e diziam que esta opressão das armadas da Cristandade procedera do movimento que ele, Soldão, teve com o recado que per Fr. Mauros mandou ao 116v Papa sobre a destruição do Templo de Jerusalém e relíquias santas da terra de seu estado, segundo atrás escrevemos. Afonso de Albuquerque, com estas e outras novas, já no fim do inverno espediu dali um homem que sabia bem o arávigo a el-Rei D. Manuel; e por simulação o mesmo homem em um batel com ua braga de ferro, como cativo, se passou à terra firme, o qual veo a este reino, e per ele soube el-Rei do que Afonso de Albuquerque tinha passado naquele Estreito té sua partida, e o que lhe parecia acerca de fazer fortaleza naquelas partes, e a partida pera este reino. Se todolos da armada souberam arávigo, menos temeram o trabalho 372 do caminho que os que ali passavam; porque o tempo que ali esteveram padeceram grandes necessidades, além dos trabalhos de repairar navios, e todos houveram ser aquele lugar um purgatório; ca, acerca da fome na ilha, não ficou cousa viva de gado, camelos, asnos, que se não comesse, até um palmar que Afonso de Albuquerque logo no princípio quis guardar, parecendo-lhe que podia fazer ali fortaleza, não ficou dele raiz algua. E assi deste mantimento como de ua sorte de peixe a maneira de cações, ostras, centolas e cangrejos mais azuis e verdes que da cor que há nestas partes, se causou em toda a frota um género de infermidade, que, estando um homem rindo e jogando às cartas ou enxedrez, caía da outra parte morto, que fez um grande espanto e terror em todos, por se haverem por defuntos per morte subitânia. No qual tempo aconteceu um caso que também assombrou a gente, e foi que, falecido desta morte um homem de armas, lançaram-no no mar, sepultura dos que nele morrem; e estando de noite os que vigiavam seus quartos em vigia de ua nau, ouviram grandes pancadas nela, e parecendo-lhe que fundiava em algua cabeça de area, acudiram per fora com um batel ver o lugar onde sentiram 372 as pancadas, e acharam o defunto pegado com as mãos na quilha junto do leme. Tirado daquele lugar, foi enterrado em terra; e quando veo ao dia seguinte, foi achado sobre a cova. Ao qual mistério acudindo Fr. Francisco, pregador, e parecendo-lhe estar aquele defunto em algua excomunhão, o absolveu; e tornado a enterrar, ficou pera sempre. Com estas e outras cousas, de que a gente andava quebrantada no espírito e no corpo, tinha Afonso de Albuquerque grandes requerimentos que se saísse daquele purgatório; porque, ainda que ao tempo que ali se detinham chamavam invernar, não era por razão de haver chuiva, ca muitas vezes naquelas partes passam três e quatro anos que não chove, e quando vem algua água, é ao modo de trovoada, que vem do mar, e passa logo; somente chamam invernar, quando não podem navegar pera fora do Estreito com os levantes, que cursam per algum tempo, e lhe dão por de avante. Peró vindo os ponentes, que começaram a quinze de Julho, saiu Afonso de Albuquerque com toda a frota, leixando aquela Ilha Camarão sem erva verde nem cousa viva, e assolado quanto nela havia sem ficar pedra sobre pedra; porque quantos edefícios dos antigos estavam em pé, todos

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per mandado de Afonso de Albuquerque foram arrasados per terra, por não dar causa a que os mouros de Judá ali fizessem algua força, pera que, tornando algua armada nossa, lhe fosse empedida a saída em terra. Afonso de Albuquerque, chegado às portas do Estreito, porque à entrada não tinha notado o sítio da terra, principalmente a Ilha Mehum, onde el-Rei D. Manuel era informado que se podia fazer ua fortaleza, foi-se a ela; e a primeira cousa que fez, foi mudar-lhe o nome bárbaro que tinha com 373 outro mais dino de memória, chamando-lhe Ilha da Vera Cruz, o qual nome procedeu desta obra: Mandou arvorar ua cruz feita em um masto, o qual sinal era tam notável por sua altura sobre o canal da parte da Arábia, que se via de ua légua. e ao tempo que se arvorou, tirou toda artelharia, e a gente trás ela foi posta em um clamor com os olhos no Céu, dando cada um louvor e glória a Deus, pois lhe aprouvera naquelas partes sáfaras per gentilidade e infiéis per crença daquele divino sinal, serem eles os primeiros que o levantaram em glória e exalçamento de sua Fé, e per ele tomavam posse de todo o que se continha dentro daquele Estreito. Notadas as cousas de que atrás já escrevemos, partiu-se Afonso de Albuquerque via de Adem, espedindo dali Rui Galvão em o seu navio, e com ele João Gomes na sua caravela a descobrir a cidade Zeila, que está na outra costa de África. E nesta ida, porque a gente dela não quis somente dar-lhe fala, e sobre isso saiu muita à praia a cavalo e a pé, toda armada, mostrando estarem prestes pera defender a 117 terra, se nela quisessem sair, conformando-se Rui Galvão com o regimento que lhe Afonso de Albuquerque 373 dera, depois que notou o sítio da cidade e o porto, queimou-lhe as naus que estavam nele, no qual tempo se lançou com ele um abexi, com que Afonso de Albuquerque, quando lho apresentaram, muito folgou, por dizer ser escravo de um feitor que ali estava do Soldão do Cairo; e das cousas que era perguntado, assi da terra da Abassia e do seu Rei Preste João, dava mui boa razão.

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373 117 373 Capítulo IV. Como chegado Afonso de Albuquerque à cidade Adem, esteve alguns dias sobre ela, fazendo-lhe o dano que pôde; e do mais que ali fez, té se partir. Afonso de Albuquerque, ao tempo que Rui Galvão chegou a ele, estava já sobre Adem, a qual achou muito mais forte que quando a combateu; porque os mouros, enquanto ele andou no Estreito, não trabalharam em outra cousa, e não somente no repairar o dano que lhe a nossa artelharia fez, mas ainda a que eles houveram pera se defender de nós, que era tam grossa, que com os pelouros de camelos com que Afonso de Albuquerque lhe mandava tirar, respondiam por retorno, como que tinham artelharia daquele cano. Com a qual, e assi com um trabuco, que 374 vinha lançar a pedra entre as nossas naus, fizeram dano em elas; peró o trabuco não durava muito, ca duas vezes lho quebrou um João Luís, bombardeiro e fundidor de artelharia. E porque o natural tempo da partida daquele porto pera a Índia (segundo a navegação dos mouros pera tomar os ventos gerais), é quatro dias depois da lua de Agosto, foi necessário deter-se ali Afonso de Albuquerque dez dias. No qual tempo ele quisera cometer a cidade, ou ao menos queimar certas naus que os mouros tinham em estaleiro pegadas ao muro, o qual caso, posto em conselho, reprovaram os mais dos capitães, vendo quanto menos força de gente e de munições tinham que quando a primeira vez a cometeram, e nela havia muito mais ao presente. E que, quanto a cometer queimar as naus, nisso se aventurava morrer algua gente, e um só homem que fosse, importava mais que todalas naus, a qual contradição não aprouve muito a Afonso de Albuquerque; e como quem queria mostrar aos capitães que não foram no seu parecer, quanto menos era queimar as naus do que eles cuidavam, ordenou cem homens do mar, o governo dos quais dependia de Fernando Afonso, mestre da sua nau, e Domingos Fernandes, piloto dela, e Bertolameu Gonçalves, também mestre de outra. Os quais em batéis partiram de noite, e ele, Afonso de Albuquerque, nas suas costas chegou té onde eles desembarcaram, por os favorecer no caso, o qual não houve efeito como ele desejava, por as naus estarem cheas de area e molhadas per todalas partes, de maneira 374 que nunca o fogo se pôde atear nelas. Ao qual rebate, assi a gente que as guardava, como outra que saiu per um postigo da porta da cidade, ousadamente se envolveram com os mareantes, em que houve de âmbalas partes bem de sangue, onde foi morto o Condestabre e um bombardeiro da nau de Afonso de Albuquerque, por serem os que levavam os artefícios pera pôr fogo. E porque ele, Afonso de Albuquerque, tinha defeso per todalas naus que nenhum homem de armas fosse em companhia dos mareantes, nem acudisse a este negócio. passaram eles muito mal, e todavia alguns homens de armas escondidamente, como aventureiros embuçados, que queriam ir ver o que faziam os mareantes, chegaram té eles desembarcarem, e leixaram-se estar, por ver em que parava o feito. Peró quando viram que haviam mister ajuda, ainda que lhe era defeso saírem em terra, desembainhando seu ferro contra os imigos, entre os quais foi um moço da Câmara del-Rei, natural de Beja, cujo nome não veo a nossa notícia, e meteu-se tam animosamente com os mouros, que em duas ou três voltas que fez, os fez despejar o lugar da embarcação, que queriam tomar aos mareantes com que se recolheram. Do qual feito ele ficou bem ferido, e pela cura que se nele fez, veo Afonso de Albuquerque saber quem era, o que ele muito sentiu, posto que 375 soube ser pera seu louvor, dizendo ele que mais se devia um homem gloriar de obedecer a seu capitão, que de qualquer honrado

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117v feito que fizesse contra sua defesa. E posto que esta saída custou a vida daqueles dous bombardeiros, e muito sangue de outros que o acompanharam, dos mouros ficou o terreiro acompanhado de mortos, no qual tempo, por ser de noite, cuidando na cidade que os nossos a escalavam, foi tamanha a revolta de todos se quererem salvar na serra, que em as nossas naus se sentia o rumor da gente. Afonso de Albuquerque, passado este caso, enquanto o tempo lhe não dava lugar pera se partir, por lhe não ficar cousa algua por fazer, pera mais afirmadamente poder escrever a el-Rei D. Manuel o lugar onde podia fazer a fortaleza que desejava naquelas partes, ordenou de mandar descobrir o porto Ugufe, que estava nas costas de Adem, por ter informação pelos cativos que ali tomou, ser melhor que aquele em que estava. Ao qual negócio mandou estes capitães: Manuel de Lacerda, Simão de Andrade, Pero da Fonseca de Castro e Simão Velho, todos em batéis com gente e apercebimento pera qualquer cousa que sobreviesse, os quais descobriram a terra e notaram o que nela havia, que eram as cousas que atrás na descripção desta cidade escrevemos; e acharam no porto cinco navios, a que eles chamam marruazes, com mantimentos que traziam das cidades Barborá e Zeila. Tomando deles os mantimentos que poderam recolher, posesse fogo aos cascos, e assi deram em ua aldea de pescadores, nas quais cousas, e assi em esbombardear os caminhos 375 per onde a gente da cidade se servia na passagem da ponte pera a terra firme, se andaram detendo três ou quatro dias, té que, per recado de Afonso de Albuquerque, que os mandou chamar, se partiram. Simão de Andrade, ou porque ouviu primeiro o recado que os outros capitães, ou porque o seu batel se remava melhor, partiu diante de todos. E quando saiu daquela enseada, onde andavam abrigados do mar da costa, andava ele tam empolado com o vento que era por de avante, que, sendo do porto de Ugufe aonde Afonso de Albuquerque estava, caminho de três léguas, com as torturas e ancos que fazia aquela enseada, o qual se pode com bom tempo andar em três horas, deteveram-se nele três dias sem comer nem beber, onde todos houveram de perecer. Porque chegou a sede a tanto, que com ela chegou de todo um Luís Machado, filho do Doutor Lopo de Arca, e a lhe Deus fazer muita mercê, vieram dar em ua furna onde se meteram, por se abrigar da maresia e buscar algum marisco, onde acharam cangrejos e lapas, que, por razão da humidade que ao comer lhe achavam, por matar a sede, meteram-se tanto neles, que houveram de morrer, como o estômago começou entrar na rescaldo do sal que levava aquela humidade. Finalmente, ele houveram 376 todos de espirar, senão sobrevieram os outros capitães, que lhe deram a vida com o mantimento que traziam, e ainda com assaz trabalho chegaram onde Afonso de Albuquerque estava. O qual, pela informação que teve deles sobre o sítio do porto Ugufe, acabou de se determinar, em conselho que sobre isso teve com os capitães, que em nenhua destas três partes - Adem, Ilha da Vera Cruz das portas do Estreito e Ilha Camarão - el-Rei podia ter fortaleza, por muitas causas que ali foram apontadas. Somente, segundo a informação que ele, Afonso de Albuquerque, tinha da Ilha Maçuá, tam pegada na terra do Preste João, nesta lhe ficava esperança de poder ser, por terem este príncipe cristão nas costas com ajuda de gente e mantimentos, como ele mandava prometer per o seu embaixador Mateus, que Afonso de Albuquerque tinha mandado a este reino; posto que el-Rei D. Manuel a eleição do lugar pera se fazer fortaleza naquela entrada do Estreito leixava a ele, Afonso de Albuquerque, ele a não quis tomar sobre si, té lhe fazer saber estas cousas, de que esperava haver reposta, ora fosse pola chegada de Mateus, Embaixador do Preste, a este reino, ora pelo homem que espediu de Camarão; ca, se lhe bem fosse, podia dar seu recado ante que as naus partissem pera a Índia. Quanto mais que, pera haver efeito o fazer da fortaleza, a ele dar ua vista à cidade Judá, como lhe el-Rei D. Manuel encomendava, era necessário partir ele da Índia muito mais cedo, por não chegar ao Estreito no cabo da monção dos ventos, com que o havia de navegar. E pera mais confirmação deste seu fundamento de fazer a fortaleza na Ilha

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376 Maçuá, vieram lançar na frota três abexis da terra do Preste, que os tinham os mouros cativos, os quais deram grande esperança a Afonso de Albuquerque, de quam proveitosa cousa seria, assi pera el-Rei D. Manuel, como pera o Preste, fazer fortaleza em Maçuá. Afonso de Albuquerque a derradeira cousa que quis fazer, ante que se partisse 118 daquele porto, foi queimar as naus de mercadores que estavam nele, esperando com elas fazer este negócio, que era dá-las polos cinco cativos que ele de Camarão mandou pedir ao Xeque; e quando viu que tam mal lhe responderam esta segunda vez, como a primeira, mandou fazer seu ofício de fogo às naus, com que foram queimadas.

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376 118 377 Capítulo V. Como Afonso de Albuquerque partiu de Adem e chegou ao porto da cidade Dio, onde se viu com Melique-Iaz, senhor dele; E di se partiu pera Chaúl, onde chegou e achou Tristão de Gá, que ele tinha mandado a el-Rei de Cambaia. Vindo o tempo da lua, que Afonso de Albuquerque esperava, segundo a pilotagem dos mouros daquelas partes, partiu-se a quatro de Agosto com toda sua frota via da Índia. E como os tempos eram ainda um pouco verdes, naquela passagem foi com tanta força deles, que abriu a nau de Pero da Fonseca, por ser velha e já de Camarão vir arrochada; e aprouve a Deus que se salvou toda a gente e parte da fazenda, por lhe logo acudirem D.João de Lima e Manuel de Lacerda. Seguindo sua viagem, quando veo aos dezasseis dias de Agosto houveram vista da costa, onde o Rio Indo entra no mar, e como mais adiante se faz ua enseada mui penetrante, chamada de Jaquete, por razão de um solene templo de gentios, que está na ponta de um cabo onde a enseada começa, a qual tem muita semelhança com a outra mais adiante de Cambaia, com a cerração do tempo, cuidando o piloto de Afonso de Albuquerque que dobrava o Cabo de Jaquete, achou-se à ré dele. E as outras velas da armada, por irem mais a-la-mar, passaram avante, e alguns deles foram surgir diante do porto da cidade Dio, que Afonso de Albuquerque muito sentiu, porque a foram espertar de sua vinda, e por isso suspendeu os capitães das capitanias por algum tempo. Melique-Iaz, senhor de Dio, quando viu Afonso de Albuquerque com tamanha frota ante seus olhos, cousa que ele muito temia, como era homem sagaz, com grande deligência mandou encher muitos barcos de refresco, de carnes, pão, arroz, fructa e verdura, e juntamente com estas cousas o mandou vesitar, dizendo que os homens que andavam no mar com nenhua cousa mais folgavam, que com verdura e refresco da terra, que lhe mandava aquela como seu servidor que era. Ao que Afonso de Albuquerque respondeu com doces palavras 377 do contentamento que tinha de chegar àquele porto, por se ver com ele, Melique-Iaz, e lhe dar muitos abraços, como ao maior amigo que tinha naquelas partes, sem o ter visto, somente per cartas. E posto que Afonso de Albuquerque vinha armado contra a prudência e sagacidade de Melique-Iaz, enquanto ali esteve nunca pôde acabar com ele que se vissem ambos, fazendo-lhe crer que cada hora estava pera o ir ver, e enchia estas simulações com mandar refresco em abastança, e muitas peças, não somente pera a pessoa de Afonso de Albuquerque, mas pera todolos capitães; e aos que lhe eram mais aceitos, dobrava no presente, tratando cada um segundo a calidade 378 de sua pessoa. E ainda pera os mais contentar em particular, houve licença que poucos e poucos fossem à cidade, o que Afonso de Albuquerque permitia, porque per olho deles, poderia ter melhor enformação dela; e ele, Melique-Iaz, de manhoso nenhua outra cousa lhe mostrava, senão os seus almazéns cheos de armas, munições e artelharia. Finalmente, por as grandes ofertas que Melique-Iaz fazia de sua pessoa e da cidade pera negócio de comércio, leixou Afonso de Albuquerque nela por feitor com algua fazenda a Fernão Martins Evangelho, e por seu escrivão Jorge Correa, e a nau Enxobregas pera a eles carregarem de biscoito e outros mantimentos e cousas que se haviam mister pera as feitorias del-Rei. Fazendo Afonso de Albuquerque fundamento que, per meio deste comércio, veria tomar um pé de entrada naquela cidade, e depois com o favor del-Rei de Cambaia, segundo as esperanças que Melique-Gupi lhe dava, podia ali fazer ua fortaleza com título de feitoria, sobre o qual negócio Melique-Iaz trabalhava em contrairo com el-Rei de Cambaia, como logo veremos, mandou dizer a Afonso de Albuquerque, e depois lho disse per si, que nenhua cousa mais desejava, que ter ali ua feitoria del-Rei de Portugal, e que de boa vontade

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daria lugar pera se fazer, mas que temia não a querer el-Rei de Cambaia conceder. Afonso 118v de Albuquerque, depois que viu que em três dias que se ali deteve, e Melique-Iaz não se confiava dele pera o ir ver, partiu-se ua menhã; peró o mouro era tam sagaz e grandioso em si, que guardou ver-se com ele pera aquela hora, e não quis que fosse estando ele surto no porto, porque não podera ele mostrar-se em mais que chegar com um par de fustas a bordo da nau, e por este modo mostrou a grandeza de seu estado. Saiu com ua frota de até cem navios de remo, todos tam apercebidos de louçainha, que parecia irem a vodas, e tam providos de artelharia e munições de armas, como se houvessem de pelejar. Afonso de Albuquerque, quando soube por ua fusta que ele mandou diante como o ia ver, voltou sobre ele com toda a frota a o receber, e os abraços que houve de ua e de outra parte, foram de quanta artelharia cada um trazia, porque os das próprias pessoas, assi de malicioso como de honrado, não quis Melique-Iaz que 378 fossem de mais perto, que estar Afonso de Albuquerque encostado no bordo de sua nau, e ele em baixo em ua fusta. E dali disse tanta discrição a Afonso de Albuquerque sobre o não vir ver enquanto esteve em o porto de Dio, que disse Afonso de Albuquerque depois por ele que nunca vira melhor homem de paço, nem mais pera enganar um homem descreto, e per derradeiro ficar contente dele. E quanto às outras cousas do negócio sobre que trataram per recados, assi o achou cauteloso, que disse por ele aquele dito português que se diz polos homens maleciosos: Eu te entendo que me entendes que te entendo que me enganas. Finalmente, eles se despediram os maiores amigos do mundo, no exterior, e, na vontade, cada um se vigiava do outro, e por espedida Afonso de Albuquerque lhe deu quatro mouros, homens nobres, além de lhe já leixar 379 em Dio duas naus que tomaram de presa naquela travessa com toda a gente e fazenda, por ser da terra, o que ele muito estimou. E muito mais estimara ele, Afonso de Albuquerque, saber, ante que se dele espedira, o que soube em Chaúl, onde chegou, porque foi a tempo que havia poucos dias que ali era vindo Tristão de Gá, que ali tinha mandado a el-Rei de Cambaia, em companhia do qual vinha um seu embaixador. E per ele, Tristão de Gá, soube que Melique-Iaz trazia grandes requerimentos com el-Rei, que em nenhua maneira concedesse aos apontamentos que ele levava dele, Afonso de Albuquerque, sobre a fortaleza que pedia em Dio, representando-lhe mil inconvenientes por parte de seu serviço, e pera efeito deste negócio peitava muito aos privados del-Rei; mas parece que, neste caso, prevaleceu mais a valia de Melique-Gupi, competidor dele, Melique-Iaz. Porque el-Rei de Cambaia escreveu a ele, Afonso de Albuquerque, que, por desejar a paz e amizade del-Rei de Portugal, e por amor dele, seu Capitão-mor, pessoa tam ilustre e vitoriosa, concedia as mais das cousas que lhe mandara pedir por aquele seu mensageiro; pera confirmação das quais, e assi de outras que ele esperava dele, mandava aquele seu embaixador, ao qual podia dar crédito ao que lhe de sua parte requeresse. E quanto ao que ele, Afonso de Albuquerque, mandava pedir, principalmente acerca da fortaleza, que el-Rei de Portugal desejava ter nas suas terras, pera assentar ali feitoria, e se tratarem entre eles as cousas do comércio, ele se reportava ao que Melique-Gupi lhe escrevia, a quem ele dera a resolução de seus requerimentos. E com esta reposta lhe mandou alguas peças ricas pera el-Rei, e pera ele, e um cavalo acobertado de lâminas de aço, que era de sua pessoa; e ao tempo que espediu Tristão de Gá, ficava em campo nos confins do reino Mando, com um grande exército de muita e limpa gente, pera fazer guerra a este reino, no qual exército Tristão de Gá notou grandezas e potência del-Rei, porque viu que com dificuldade um príncipe destas 379 partes da Europa poderia ajuntar tanta gente de cavalo. E como homem poderoso e confiado, que a

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fortaleza que Afonso de Albuquerque pedia lhe não podia danificar, escreveu Melique-Gupi a ele, Afonso de Albuquerque, que dezia e el-Rei que era contente de lhe dar lugar pera em Dio fazer fortaleza, pois não era contente da Ilha junto de Goga nem de Maim, polas razões que seu mensageiro apontara; e quanto a não serem rumes recolhidos em suas terras, ele proveria como o não fossem. Com esta reposta vinham os seus requerimentos, e eram que ele, Afonso de Albuquerque, lhe havia de mandar também dar lugar em Malaca, onde os mouros guzarates de seu reino tevessem ua casa forte pera guarda de suas mercadorias quando lá fossem, e assi que lhe mandasse dar a nau Meri, que lhe fora tomada. E posto que Afonso de Albuquerque, quanto ao que 119 tocava à tenção del-Rei, entendia ser assi isto que lhe el-Rei mandava dizer, o que entendia por parte de Melique-Gupi acerca de dar fortaleza em Dio e pedir casa em Malaca, tudo procedia de seu particular interesse. Porque, como ele era imigo capital de Melique-Iaz, desejava haver em Dio ua fortaleza nossa, 380 polo ver metido em algua revolta connosco; ca, segundo ele trabalhava com el-Rei que a não houvesse e modos que tinha connosco e havia de ter, como ali a fortaleza estevesse, estava certo que lhe haviam de custar suas cautelas algua cousa; e quanto à feitoria e casa de Malaca, como ele, Melique-Gupi, era o principal que lá tratava, tudo era afim de seu proveito, e não do bem comum dos guzarates de Cambaia. E posto que Afonso de Albuquerque sentiu estas cousas, levemente as concedeu, com o mais que o embaixador requereu, e logo dali o quisera espedir, mas ele não se quis ir, dizendo que el-Rei, seu senhor, lhe mandava que se não fosse sem levar a nau Meri; e que, havendo dele, Afonso de Albuquerque, ante da entrega dela, qualquer outro despacho, que lho mandasse per homens que consigo trazia pera isso. Afonso de Albuquerque, vendo sua determinação, consentiu nela, e logo dali por a pessoa que o embaixador mandou com o recado do que tinha feito, ele escreveu a el-Rei e a Melique-Gupi, ficando o mesmo embaixador pera lhe ser entregue a nau que pedia, que estava em Cochi, onde Afonso de Albuquerque a mandou meter no rio, esperando que com ela havia de fazer algua boa troca. E parece que o espírito lhe dizia que havia de ser cedo, porque, em partindo de Dio, espediu três capitães - Rui Galvão, Jerónimo de Sousa e António Raposo - um a Goa, outro a Cananor e o outro a Cochi como ele ia; ca, pola experiência que tinha de sua ida a Malaca, de quanta má nova davam, também nesta do Estreito haviam os mouros de ter semeado outras tais; e entre outras cousas que mandou encomendar ao capitão de Cochi, foi mandar-lhe que logo repairasse esta nau Meri, porque, além do que o espírito moveu pera ter esta lembrança, parte se causou da prática que teve com Melique-Iaz.

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380 119 381 Capítulo VI. Como Afonso de Albuquerque houve certas naus de mouros, que com um temporal carregadas de especearias arribaram à costa da Índia, indo pera o Estreito do Mar Roxo; e partindo de Chaúl, chegou a Goa, onde achou novas serem vindas naus deste reino, de que era Capitão-mor João de Sousa de Lima; e o mais que fez té o despachar com carga de especearia. Enquanto Afonso de Albuquerque esteve em Chaúl, entre muitas cousas que soube do estado da Índia, foi que aquele ano se perderam muitas naus carregadas de especearia, e outras, com o temporal que fez perder estas, eram arribadas per esses portos de toda a costa da Índia. E a causa deste dano foi que, sabendo os mouros que navegavam o Mar Roxo pera onde elas iam carregadas, como ele, Afonso de Albuquerque, era dentro, temendo de o encontrar, partiram dos portos da Índia onde tomaram carga quási na fim da monção do tempo, parecendo-lhe que a este seria ele saído do Estreito; e por fugirem do caminho que ele podia trazer, que havia de ser ao longo da costa da Arábia, navegaram pelo mar largo, lançando-se contra a Ilha Socotorá, onde lhe deu o temporal. E as que arribaram foram ter a estes portos, onde ainda estavam, per ser já passado o tempo de sua navegação - Danda, Dabul, Zanguiçar, Cintacorá, Baticalá, Mangalor e Calecute. Afonso de Albuquerque, como soube estes lugares onde estavam, determinou que de caminho, indo correndo a costa, as levaria consigo; e, partido de Chaúl, lhe foi entregue em Danda ua carregada de pimenta. Porém em Dabul duas que i achou, o capitão da cidade não quis fazer entrega delas, sem primeiro o fazer saber ao Hidalcão, cujo a terra era; e porque na ida e vinda havia de haver detença, e Afonso de Albuquerque andava em trato de pazes com ele, Hidalcão, partiu-se, leixando ali em guarda delas Lopo Vaz de Sampaio com mais três navios e recado que, se o Hidalcão lhas mandasse entregar, que se fosse com elas, e quando não, que se leixasse estar, té seu recado. Finalmente, assi estas naus de Dabul, como todalas outras que estavam nos portos de Hidalcão, posto que entre ele e Afonso de Albuquerque, depois que ele foi em Goa, houve recados sobre a entrega delas, todavia vieram a nosso poder, ao menos a maior 119v parte da fazenda que tinham, por em algua maneira Afonso de Albuquerque querer comprazer ao Hidalcão. E pelo mesmo modo houve as outras per estes capitães que a isso mandou - Fernão Gomes de Lemos e António Raposo; somente duas, que 382 deu a el-Rei de Calecute, por lhe mandar dizer serem suas, ao qual ele queria também comprazer, por causa da paz que com ele queria assentar, como logo veremos, e também por razão da carga da especearia que havia de dar às naus que eram idas 381 deste reino aquele ano de treze; das quais ao tempo que ele, Afonso de Albuquerque, estava em Dio, chegaram à Índia duas, e estavam em Cochi, partindo deste reino três somente. Das quais era Capitão-mor João de Sousa de Lima, filho de Fernão de Sousa, e com ele iam por capitães das outras Hanrique Nunes de Lião, filho de Nuno Gonçalves de Lião, e Francisco Correa, filho de Brás Afonso Correa, Corregedor de Lisboa, o qual se foi perder nas Ilhas de S. Lázaro em um baixo, onde se salvou com toda a gente, e daqui em jangadas foram ter a Melinde, onde acharam João de Sousa e Hanrique Nunes. E ainda aqui a fortuna não leixou a Francisco Correa; porque, indo de terra pera a nau em um esquife com Hanrique Nunes, andava o mar tão alevantado, que sessobrou o esquife, e todos se salvaram, senão ele. Afonso de Albuquerque, porque o tempo era breve, e ele havia de mandar aquele ano com

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carga cinco velas de especearia, estas naus de João de Sousa, e três, em que haviam de vir por capitães D. João de Lima e Manuel de Lacerda, que foram com ele ao Estreito, e mais Baltasar da Silva em um navio; logo como chegou a Goa (afora os recados que sobre isso mandou ao feitor, e mais ter boa parte da carga em as naus, que houve dos mouros), despachou seu sobrinho D. Garcia de Noronha pera Cochi dar aviamento a estas cousas. E além de ir a este despacho, também lhe mandou Afonso de Albuquerque que trabalhasse com el-Rei de Calecute sobre o fazer da fortaleza onde leixara ordenado quando se partiu pera o Estreito, pera a qual obra mandara Francisco Nogueira e Gonçalo Mendes, e por então não houve efeito. Porque, como o Samori viu ele, Afonso de Albuquerque, partido, por temor de quem a ele concedia, e também por outros induzimentos - deles da parte del-Rei de Cananor, deles per meios del-Rei de Cochi (ainda que não se descobrisse nisso) - aos quais pesava de esta fortaleza ser ali feita, polas razões que atrás apontámos, pôs o Samori tantos inconvenientes, que morreu ele sem nisso consentir. Ao qual, posto que sucedesse seu irmão Nambeadari, que andara nisso, mostrando não desejar outra cousa, e ele mesmo com D. Garcia assentara este negócio com ele em Cranganor (como atrás fica), quando D. Garcia chegou ao porto de Calecute, que lhe mandou dizer ao que vinha, sem o querer vir ver, se espediu dele pubricamente per recados, escusando-se de dar lugar a que a fortaleza se fizesse, somente que folgaria de estar em paz e amizade com el-Rei de Portugal, e que esta assentaria com 383 ele. Porém, per pessoa de que ele, Nambeadari se confiava, lhe mandou dizer que o seu ânimo com a dinidade que tinha de Samori não era mudado pera o que eles tinham assentado em vida de seu irmão; mas como ele andava ocupado em assossegar muitas cousas daquele reino, que se moveram com a morte de seu irmão, e mais achava o ânimo de muitas pessoas 382 principais contra dar ele ali fortaleza, e pera este negócio havia mister remover ele todos estes inconvenientes, lhe pedia não houvesse por estranho o que lhe mandara dizer em público, e no mais ele compriria todo o que ambos assentaram. A qual palavra ele, ante da partida das naus pera este reino, compriu; e nelas, pera retificação do que assentava com Afonso de Albuquerque, mandou seu embaixador a el-Rei D. Manuel com mui grandes presentes, pedindo confirmação delas. Porém primeiro que este negócio houvesse efeito, se teve nisso muito trabalho, não com o novo Rei de Calecute, senão com o de Cochi e Cananor, que trabalhavam por não se assentar esta paz com ele, nem haver fortaleza, mostrando-se por isso mui agravados a Afonso de Albuquerque, representando quantas perdas e danos nas guerras passadas e em todo tempo tinham recebido do Samori passado, tudo por a lealdade que sempre guardaram a el-Rei de Portugal. Mas Afonso de Albuquerque, donde estava, e D. Garcia, em Cochi, trabalharam tanto, principalmente com el-Rei de Cochi, que nisto mais ensestia, que o de Cananor, por as razões de seu proveito, que já apontamos, houveram por bem todos esta paz, a qual durou muitos anos; e na fortaleza que se fez, por o trabalho que nela levaram, 120 ficou Francisco Nogueira, por capitão, e Gonçalo Mendes, feitor, e seu escrivão João Serrão; e assi lhe ordenou Afonso de Albuquerque mais os oficiais e gente de armas, como a cada ua das outras fortalezas. E porque Nambear, guazil que fora do Samori passado, por causa nossa era lançado do reino, e depois em Cananor, onde também servia a el-Rei deste cargo, ele o espediu, tudo por nosso respeito, quando Afonso de Albuquerque assentou estas cousas da paz com o novo Samori, trabalhou com ele que tornasse a restituir em seu ofício a Nambear, o que ele fez. E não somente em as naus, que Afonso de Albuquerque despachou com carga pera este reino, veo o embaixador do Samori com grandes presentes pera el-Rei D. Manuel, mas ainda ele lhe mandou outros, que todolos príncipes daquelas partes lhe tinham enviado. E também lhe mandou alguns cativos e cativas que houvera de diversas partes, principalmente no Estreito, pera per eles ter informação daquelas terras; e com eles enviou os abexis que em Adem se lançaram na armada pera confirmação do que lhe tinha escrito das cousas do Preste João e abonação do seu embaixador

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Mateus, que ele cuidava estar já neste reino, e a nau de Bernaldim Freire em que ele vinha, 384 com outra de Francisco Pereira Pestana, estavam em Moçambique, por invernarem ali, e vieram em companhia das deste ano. Per as quais, além das cousas que lhe mandava, também lhe escreveu as cousas do estado da Índia e dos príncipes dela, como do Soldão do Cairo, entre as quais não somente lhe escreveu as que soube dele, no Estreito do Mar Roxo (segundo atrás 383 vai relatado), mas como tinha cartas de Fernão Martins Evangelho, que ele leixara por feitor em Dio, que per Cambaia eram passados embaixadores pera os reis e príncipes daquelas partes, principalmente pera o Rei de Cambaia e do Decão. Os quais embaixadores vinham em nome do Sadi do Cairo, que naquele tempo representava em dinidade do pontificado dos mouros o que eram os califas de Arábia, que já não havia; e segundo a opinião dos mouros, este vinha do real sangue dos antigos reis do Cairo. E peró que a sucessão do estado real andava per modo de eleição, segundo seu uso, aos desta linhagem ficou o sacerdócio da sua seita; e este era o que assentava o Rei eleito na cadeira real e o confirmava naquele estado per ua certa cerimónia de benção. E o negócio a que estes embaixadores eram vindos, procedera da entrada dele, Afonso de Albuquerque, no Estreito, e cometer ir a Judá; e a substância de sua embaixada era representar quanto dano todolos mouros daquelas partes tinham recebido de nossa entrada na Índia, e como os mares eram cheos de nossas armadas; e não nos contentando com navegar os da Índia, novamente entrara ua mui grossa no Estreito do Mar Roxo, e cometera querer ir ao porto de Judá. Mas fora empedida com ventos contrairos, o que Deus permitira por méritos do seu profeta Mahamede, por sua santa casa de Meca não receber algua ofensa; e que estas cousas da ousadia nossa tudo eram descuidos de tanto rei e príncipe, como havia naquelas partes. Porque não era cousa pera se crer, nem estava em razão, tam poucos homens, como lhe diziam andarem naquela armada, poderem escapar o poder de um só príncipe daquelas partes, quanto mais tantos e tam poderosos, cuja potência era per conquistar o Mundo; e que bem se viu, na chegada que fizeram em Adem, o pequeno poder que tinham, pois, não estando apercebida, mas mui descuidada, e o senhor dela fora, somente um seu capitão os lançara dali. Finalmente, per estes termos suas exortações eram lançar-nos fora da Índia, e pera isso traziam grandes indulgências a todos que nisso fossem; e a pessoas notáveis ua vestidura, a qual deziam vir benta per ele, Sadi, com palavras do Alcorão, prometendo-lhe que, vestindo-as contra nós, além de serem vencedores, salvariam suas almas. E neste mesmo tempo também chegou um judeu do Cairo, que dezia ser português de nação e viver em Jerusalém, e apresentou a Afonso de Albuquerque uas contas e ua campainha com ua carta da parte do guardião dos 385 frades de S. Francisco, debaixo da custódia dos quais está o templo de Jerusalém, o qual era vindo ao Cairo ao chamado do Soldão, pera lhe fazer saber outro tal assombramento - que queria destruir aquela casa, como fez ao padre Fr. Mauros, que veo a Roma, como escrevemos. As quais contas dezia serem tocadas em todalas relíquias daquela 384 cidade de Jerusalém, e a campainha fora de ua capela de Nossa Senhora, com 120v a qual se tangia ao alevantar a Deus à missa quotidiana, que se naquela capela dizia; e com seu tinido denunciara alguns milagres que aconteceram naquele auto do alevantar a Deus, e por ser mui antigua no serviço daquele santo auto e tida em grande veneração, lha enviava; as quais peças, com as mais novas que lhe mandava do estado daquelas partes e movimentos do Soldão, Afonso de Albuquerque enviou também a el-Rei D. Manuel. E o judeu que as apresentou a ele, Afonso de Albuquerque, sendo tão imigo da causa por que aquelas peças eram estimadas, as trouxe em guarda té as entregar, porque com elas esperava de fazer seus negócios ante ele, Afonso de Albuquerque, por cuja causa fora ter à Índia.

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Tanto é o amor que os homens tem aos bens desta vida, que, avorrecendo este judeu estas peças polo que representavam, as estimou em muito, porque podiam ser meio de aquerir bens temporais, que levam trás si a maior parte dos homens, estimando o que não crem por haver o que desejam, como fez este judeu.

LIVRO IX 385 121 387 Capítulo Primeiro. Como o jau Pate Quetir, que vivia na povoação Upi, depois que Afonso de Albuquerque partiu da cidade Malaca, continuando a guerra, mandou tomar certa artelharia, onde mataram Afonso Pessoa, que estava em guarda da tranqueira, donde se causou ir Fernão Peres de Andrade sobre ele, e lhe queimou a povoação. Segundo atrás escrevemos, ao tempo que Afonso de Albuquerque se partiu da cidade Malaca, Pate Quetir, casado com ua filha de Utimuti-rajá, ficara alevantado contra a nossa fortaleza, cometendo alguas vezes, depois que passou o primeiro insulto de queimar a cidade da parte da habitação dela, de a querer outra vez meter a fogo e sangue, com que obrigou a Afonso de Albuquerque, enquanto lá estava, mandar fazer ua tranqueira no cabo da cidade, té entestar em um esteiro, que a vinha cercando pela parte do sertão. Em guarda da qual tranqueira leixou Afonso Pessoa com até setenta homens, e onde se fazia um cunhal que tinha duas faces, ua ao longo do mar, em que começava a povoação da cidade, e outra que fazia a mesma tranqueira; neste canto, por ser lugar de suspeita e vezinho a Afonso Pessoa, mandou pôr ua barcaça com um camelo e outras seis peças pequenas de metal, que tiravam ao longo destas duas faces, da qual era capitão Afonso Chainho. Pate Quetir, porque quando a sua gente vinha cometer a tranqueira recebia mais dano do camelo e peças desta barcaça, por varejarem ao longo 388 dela, que dos espingardeiros de Afonso Pessoa, ua ante manhã, ao tempo que a gente estava mais quebrantada da vigia de toda a noite, per mar de que nossos se não temiam por té então não terem 386 cometido per ali, mandou dous calaluzes, a gente dos quais assi veo calada e súbita, que mataram Afonso Chainho e os que com ele estavam, somente um bombardeiro que tirava com o camelo, que levaram pera se servir dele neste mister. O qual caso aconteceu a tempo que Fernão Peres de Andrade, capitão do mar, era ido ao rio de Muar, cinco léguas além de Malaca, em busca de Laquesamana, Capitão-mor da armada do Rei que fora de Malaca, o qual se metia ali pera com rebates daquela parte ajudar a Pate Quetir; peró daquela ida Fernão Peres não pelejou com ele, por lhe escapar, como capitão astucioso que era. Chegado Fernão Peres a Malaca esta menhã que Afonso Chainho foi morto, achou a cidade posta em grande tristeza por este desastre, e muito mais quando souberam como Laquesamana queria guerrear a cidade e não pelejar com ele, Fernão Peres. Finalmente, logo aquela menhã, posto ele em conselho com os capitães que trazia e com Rui de Brito, capitão da fortaleza, assentaram que ele, Fernão Peres, com sua armada, em que levaria até duzentos e cinquenta homens, e Afonso Pessoa per terra, com os seus setenta espingardeiros, dessem juntamente na povoação de Upi, onde Pate Quetir estava recolhido em ua fortaleza de madeira. Partido Fernão Peres per mar, foi Afonso Pessoa ao longo da praia igual dele com os seus setenta espingardeiros, e em sua companhia mais de quinhentos homens da terra dos de Nina Chetu, e das outras pessoas principais, a que Afonso de Albuquerque tinha dado os mais honrados cargos da cidade. E porque ante de chegar ao lugar Upi se fazia um esteiro, que de maré vazia se passava a pé, era tam má esta passagem por causa da vasa, que se deteve Afonso Pessoa tanto, que, primeiro que ele chegasse, tomou Fernão Peres terra, e porém com assaz perigo. Porque Pate Quetir tinha feito ua cerca de madeira mui forte, com entulho de terra per 121v dentro e cava per fora, e ficava esta parte de dentro tam soberba sobre a cava com o entulho que subia até o meio da madeira, que lhe servia em lugar de um forte muro, com muita artelharia

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assestada onde convinha. E além desta cerca, que era grande, tinha dentro outra pequena, feita a maneira de fortaleza, onde se ele recolhia, a qual era tam apertada do mar e metida na terra, quanto se estendia o circuito da grande, e per derredor era a terra retalhada em esteiros feitos à mão. De maneira que esta fortaleza per sítio era brigosa de cometer, e per repairos muito forte pera entrar; ca a madeira da primeira cerca era de ferro, porque os nossos pau-ferro chamam àquele género de madeira, por razão da sua fortaleza, e ser tam durável, que sol nem água lhe faz dano, a qual comumente chamam barbusano. Somente 389 a segunda cerca, onde estava o apousento de Pate Quetir, era de sândalo branco e vermelho, e paus tam grossos, como se eles nasceram pera aquele mister, e não pera se moer em um almofariz 387 de boticairo pera as mezinhas em que usamos dele. Tam grosso era o cabedal daquele jau Utimuti-rajá, sogro deste Pate Quetir, que as cousas de mercadoria assi as tinha em quantidade, que podia fazer ua cerca de sândalos, como de madeira do mato, que ele tinha por vezinho. E com esta confiança das forças que tinha feito, estava Pate Quetir tam seguro, que lhe parecia cousa impossível poderem os nossos entrar dentro; e porisso, quando lhe disseram que Fernão Peres tomara a terra, polo muito que havia de fazer na entrada da primeira cerca, e depois de enxotar o grande número de gente que consigo tinha, que poderia ser até seis mil almas, não fez muita conta dele, e leixou-se estar, mandando seus capitães que acudissem à praia; os quais, com a grande multidão da gente que traziam, em chegando ao lugar onde Fernão Peres cometeu querer entrar, deram-lhe tanto que fazer, que per um grande espaço o deteveram de fora da primeira cerca, no qual tempo cada um dos nossos capitães trabalhava por fazer algua entrada torneando a cerca, por os mouros acudirem todos ao lugar onde Fernão Peres cometia querê-los entrar. Jorge Botelho, a quem ele tinha assinado um lugar per onde mandou que fosse diante, correndo ao longo da cerca da parte do estreito que Afonso Pessoa passava, foi dar junto da outra segunda cerca; e como era lugar fora da frontaria da ribeira, acertou de achar ali os paus não mui firmes, e tanto esteve aloindo neles, que fez entrada. O qual, cuidando que ia bem aviado, foi-se meter em lugar com que se houvera de perder, e vinte e tantos homens que levava; ca a este tempo Fernão Peres tinha entrada a primeira cerca, e às lançadas ia encurrelando pera a segunda um grande número de mouros, ao encontro dos quais, polos entreter, Pate Quetir saía donde estava. Peró quando ele sentiu nas costas a revolta de outros, com que Jorge Botelho pelejava dentro, por se melhor segurar, não curou de ir de rostro onde ele andava, e foi-se escoando pera aquela parte, onde tinha ua pequena porta pegada no mato, que vinha dar na tranqueira per que se ele esperava acolher, quando se visse naquela necessidade. No qual tempo, veo dar com Jorge Botelho, que andava esgarrado dos outros capitães, um golpe de gente de refresco per ua ilharga em que vinham dous elefantes grandes armados à sua guisa, e ua elefanta pequena, que ao modo de genete vinha diante mui ligeira no cometer. Com a qual chegada Jorge Botelho e os seus se houveram por perdidos, porque tinham mouros de rostro com que pelejavam, e estes tomavam-lhe ua ilharga; de maneira que tomaram por remédio encostar-se a ua parte da cerca, por segurar as costas, e lhe ficarem todolos imigos diante. 390 E quis na sua boa fortuna que, no revolver que fizeram, ficou a elefanta dianteira a jeito que um Francisco Machado, cristão-novo, alfaiate, natural de Torres Novas, encarou 388 nela com ua espingarda e deu-lhe em parte, que deu a elefanta dous urros e duas voltas em redondo, ficando morta em terra, e os outros postos em fugida, e parte da gente que os seguia. E posto que entre eles houve esta revolta, nem por isso ficou Jorge Botelho tam desabafado, que não houvesse mister socorro, por andarem todolos de sua companhia bem sangrados, principalmente Francisco Cardoso, que depois foi almoxarife dos mantimentos do almazém de Lisboa, Bartolomeu Soares, do

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Algarve, mestre do seu navio, e o condestabre dele, e Pedrálvares, do Cartaxo, que fora moço de esporas del-Rei D. Manuel, um dos valentes homens que andaram naquelas partes. Os quais ficaram ali mortos com os mais que andavam naquele trabalho, se lhe não acudira Fernão Peres, que vinha já com a vitória da 122 primeira cerca; e, como entrou na segunda, não somente livrou a eles, mas acabou de enxotar toda a gente que havia nas cercas, que a fio se recolhia no mato, onde Pate Quetir se salvou. Fernão Peres, como se viu senhor da fortaleza, não quis mais seguir os imigos, porque se recolheram eles em parte na espessura do mato, onde lhe podiam frechar toda a gente, sem lhe ele poder fazer dano. Somente àquela parte per que eles podiam tornar à fortaleza, mandou pôr nela fogo pera ficar por defensão entre ele e os imigos, enquanto os nossos a esbulhavam, temendo que, andando neste fervor de esbulhar, tornassem sobre eles;, mas como todos levavam mais cuidado em salvar as vidas que na fazenda que lhe ficava, teveram os nossos largo tempo de prear à sua vontade. E quando foram dar com o camelo que eles tomaram aquela menhã, o qual tinham posto no lugar per onde Fernão Peres entrou, acharam o cepo dele todo cheo de sangue, e segundo se soube, era por cortarem ali a cabeça ao nosso bombardeiro. E a causa foi porque, aparecendo Fernão Peres a tiro dele, mandaram-lhe os mouros que tirasse; e porque o não quis fazer, posto que o ameaçavam com o que lhe fizeram, quis ante salvar a alma que a vida. Além da artelharia e munições, foi tanta a outra fazenda que havia, assi de móvel do serviço de Pate Quetir, como de toda sorte de mercadoria, que não somente se carregou a nossa gente e os mouros e gentios que foram em companhia de Afonso Pessoa, mas ainda outros da cidade que concorreram àquele esbulho. Foram os capitães que se acharam com Fernão Peres neste feito Pero de Faria, Lopo de Azevedo, Vasco Fernandes Coutinho, João Lopes de Alvim, Jorge Botelho, de Pombal, e Afonso Pessoa, que já nomeámos, e tanto o número dos mouros mortos, que se não contaram; e se dos nossos não houve algum, de feridos foram assaz, porque o feito foi mui bem cometido e pelejado, e um dos honrados que em Malaca se fez, com que Pate Quetir ficou mui quebrado.

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389 122 391 Capítulo II. Como Fernão Peres de Andrade, Capitão-mor do Mar, foi cometer a fortaleza de Pate Quetir, e, depois de ter vitória dele, ao embarcar, lhe mataram gente nobre; e do que passou com Laquesamana, Capitão-mor do Mar del-Rei Mahamude. Pate Quetir, como era homem muito industrioso e sabia que os nossos mui poucas cousas cometiam à borda da água, que não levassem na mão, polo que lhe vira fazer na tomada de Malaca, tinha dentro daqueles matos, nos lugares a que eles chamam duções, a maneira de nossas quintãs, recolhido suas mulheres e o mais principal de sua fazenda, e assi as pessoas nobres que estavam com ele. Porque a estes duções estava ele mui confiado que os nossos não podiam ir; ca não tinham mais largo caminho do que é ua vereda, indo um homem ante outro, por tudo o mais ser mui espesso de áspero arvoredo. E tanto que houve esta quebra, por se tirar da vezinhança de Malaca, por a sua povoação (como escrevemos) ser arrabalde dela, onde os nossos podiam ir per terra pelejar com ele, e mais os juncos que esperava da Jaua com mantimentos haviam logo de ser tomados da nossa armada - e sobretudo geralmente os mouros tem por grande agouro tornar a povoar o sítio onde ua vez foram desbaratados - foi-se mais abaixo obra de ua légua, contra o Cabo Rachado, fazer de novo outra fortaleza de madeira dentro em ua enseada onde havia melhor disposição, assi pera se defender, como pera recolhimento dos juncos que lhe viessem com provimento. E como isto determinou, escreveu a el-Rei Mahamude, que fora de Malaca, dando-lhe conta da fortuna que tevera naquela entrada que os nossos fizeram na sua povoação, e a causa donde procedera irem a ele, e a mudança que fazia de sua vivenda, e as razões porquê, pedindo-lhe, pois estes trabalhos que padecia eram polo servir e sustentar sua opinião, mandasse a Laquesamana, seu Capitão-mor do Mar, que não saísse dos dous estreitos - o de Sabão e o de Cingapura - e às vezes desse ua vista no rio de Muar. Porque, com andar per estes lugares, fazia duas cousas: a ua não vir junco per cada um daqueles dous estreitos que não fosse tomado per ele, pois que traziam 122v a Malaca mantimentos e mercadoria a seus imigos, e mais os juncos, que ele, Pate Quetir, esperava da Jaua, viriam mais seguros de nossas armadas; e a outra, daria causa a que elas acudissem àquela parte, e entretanto teria ele tempo pera fazer sua fortaleza 392 sem estar sempre com a lança na mão, e também podia dar um salto em Malaca, como se fez na tomada da barcaça com a artelharia, sendo a nossa armada no rio de Muar. Rui de Brito Patalim, capitão da fortaleza de Malaca, porque ua das cousas em que mais trabalhava 390 era em trazer entre estes imigos pessoas que soubessem parte de qualquer movimento deles, e nestas inteligências e avisos gastava muito, veo saber parte desta carta de Pate Quetir; e porém foi a tempo que tinha ele já feito a sua fortaleza de madeira no lugar que elegeu, que foi acabada em poucos dias com a muita gente que tinha. E também alguns dos juncos de mantimento que esperava da Jaua eram já vindos; os quais, tanto que chegaram e foram despejados, enquanto lhe não fazia tempo pera se tornar, ordenaram-se logo pera se defender, temendo nossa armada. E porque o lugar per onde os nossos podiam cometer entrar na fortaleza era de vasa, e a testa do seco da terra soberba a modo de alcantilada, posesse os juncos com as popas em seco, um junto do outro, de maneira que ficavam um baluarte com muita artelharia que tinham. Sabendo Rui de Brito e Fernão Peres como Pate Quetir já estava fortalecido e provido de

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mantimento, e que isto respondia ao que tinham sabido da carta que deziam ele ter mandado a el-Rei Mahamude, houveram que todo o mais dela era verdade, e que se urdia ua tea trabalhosa pera desfazer ou cortar, se fosse mais avante. Finalmente, havido conselho com todolos capitães, assentaram que Fernão Peres fosse cometer aquela força e trabalhasse por a desfazer; e prazeria a Deus que lhe seria mais leve de tomar, do que foi a outra que lhe queimou, com que acabariam de destruir este jau, que os inquietava. Partido Fernão Peres com todolos capitães a este feito, quando viu o sítio e modo como os juncos estavam, e que cometê-los de rostro era cousa mui perigosa, afastou-se um pedaço da frontaria deles e saiu mais abaixo com toda sua gente em um corpo. Ao encontro do qual, depois que foi em terra (porque de indústria, ao desembarcar, não o quiseram empedir), saíram uns poucos de jaus ao modo de cilada de dentro de um palmar, os quais, tanto que os nossos começaram ferir, foram-se recolhendo pera o palmar, mostrando temor. E como os teveram bem afastados da ribeira e engodados na vitória, saiu do palmar um corpo de gente grossa, e assi apertou com os nossos, que os fizeram vir recolhendo, té que, passado aquele primeiro súbito, tornaram a eles já em modo de vingança, com que os fizeram logo recolher, deles ao palmar e outros à fortaleza. A qual, per o circuito de fora, além de ser terra alagadiça e retalhada em esteiros à mão, per dentro também era feita um laberinto com levadas, cavas e paliçadas de madeira, per onde os mouros andavam tam leves, como 393 per um campo mui despejado, e os nossos, carregados de armas, se queriam dar um salto, caíam no meio da vasa. Fernão Peres, depois que à ponta do ferro despejou um terreiro da primeira cerca, quando entrou na segunda, onde havia estes impedimentos, não quis meter a gente naquele laberinto, e mandou pôr fogo a um lanço da 391 fortaleza, e que se recolhesse, por não vir o fogo e lhe fazer algum dano. E andando já o fogo ateado nela, e assi em uas lancharas metidas em um esteiro, acertou de se embarcar com Rui de Araújo em um parau tanta gente, que não pôde nadar, e como a maré vasava, ficou envasado na vasa. Os mouros, como vinham ladrando trás os nossos (por este lugar ser alcantilado), vendo de cima como os do parau estavam presos, começaram de frechar e alancear neles, sem perder lança nem frecha. Fernão Peres, que estava mais embaixo, já embarcado pera vir do mar pôr fogo aos juncos, quando viu o que padeciam estes do parau, mandou remar contra eles, bradando aos outros paraus, que estavam pouco carregados, que acudissem àquele; chegando os quais, foi tamanha a revolta dos que estavam no parau pera se passar a eles, que se metiam bem pela água. Rui de Araújo, cujo era o parau, querendo-se também passar aos outros, travou-lhe da saia de malha que trazia um tolete do remo, com que foi retido pera sempre; ca, neste desempeçar, veo ua lança de arremesso, que o matou, e foi causa de morrerem outros, porque cobraram os mouros tanto ânimo neste embaraçar dos nossos, que desceram abaixo, metendo-se na água às lançadas com eles. Na qual revolta morreram estes capitães: Cristóvão Mascarenhas, António de Azevedo, Jorge Garcês, filho do secretário Lourenço Garcês, e assi mataram Cristóvão Pacheco, e outros té número 123 de doze pessoas. O qual desastre favoreceu tanto a Pate Quetir, que di em diante começou de querer per terra cometer a tranqueira da cidade, onde estava Afonso Pessoa, ao qual Rui de Brito, per morte de Rui de Araújo, proveo de feitor, por os trabalhos que neste lugar tinha levado. El-Rei Mahamude, como soube de Pate Quetir esta vitória que houvera, começou de por em obra o que lhe ele per sua carta mandara pedir, acerca de o favorecer com a armada de Laquesamana per os lugares que lhe apontara, o que té então não fizera, parecendo-lhe que ficara daquela feita que Fernão Peres lhe queimou a povoação Upi tam quebrado, que não levantaria mais cabeça. E não passaram muitos dias depois da morte destes nossos, que Laquesamana não veo ao rio de Muar, onde Fernão Peres determinou de o ir buscar; ca, pelo que tinha sabido dos avisos que mandavam a Rui de Brito, sabia ser ele vindo ali pera favorecer a Pate Quetir.

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Porém Laquesamana, como era sabedor na guerra e não queria haver rompimento com Fernão Peres de batalha de pessoa a pessoa, somente andar ladrando derredor daquela cidade e pô-la em cerco de lhe não virem mantimentos, tanto que teve aviso que ele partia de Malaca, saiu-se do rio de Muar pera se meter per o Estreito de Cingapura; ca, por não ser sabido inda dos 394 nossos, isto lhe faria não ousarem de entrar per ele. Mas não se pôde tam prestes acolher, que Fernão Peres o não alcançasse junto de um esteiro largo e que entrava muito pola terra, onde se ele, Laquesamana, recolheu, pera ter favor de algua gente que havia em terra. E tanto que foi 392 dentro no lugar melhor desposto pera defender, varou quási em seco todas suas lancharas e calaluzes, que seriam mais de cinquenta peças, todos navios sutis, que demandam pouco fundo, a maneira de fustas e bargantins, parte dos quais estavam com as proas em terra e o mais na água, assi juntos em bastida, que pareciam um folhado de madeira, que se podia andar por cima, todos com sua artelharia posta em ordem. E arredados destes, mandou por alguas lancharas das maiores, atrevessadas, que emparassem as outras, e dar-lhe furos, com que se encheram de água, pera que, quando os nossos o viessem demandar, não podessem chegar com esta defensão. Fernão Peres, quando o achou posto nesta ordem, vendo que lhe não podia chegar com as lancharas alagadas, as quais ficaram a maneira de recife de pedras com canais retorcidos, pera os nossos batéis se atravessarem, pôs-se com um navio e ua galé, de que eram capitães Jorge Botelho e Pero de Faria, um pouco de largo, temendo que lhe ficassem em seco, por começar a maré a descer, e com a mais armada, que tudo eram batéis e outros navios de remo dos da terra, chegou-se às lancharas, que estavam alagadas. E posto que logo em chegando não as pôde passar, tanto que a maré as começou descobrir, e os nossos viram per onde podiam andar de uas em outras, foram dar com as que estavam por fortaleza; na chegada dos quais houve tanto tiro de ua e da outra parte, que andava o ar e o mar coalhado de setas e frechas. Porque, além de Laquesamana trazer consigo muita gente, a maior parte dela jaus, homens mui atrevidos em cometer e animosos em esperar, da terra concorreu ali muita gente; e posto que se não metesse nas lancharas de Laquesamana, por não poderem caber nelas, era tam perto deles aos nossos, que com as frechas iam frechar a gente dos navios que estavam afastados. A artelharia dos quais não tirava de fora, temendo que poderiam fazer dano aos nossos dos batéis, que andavam envoltos com os imigos, e tam travados, que não havia entre eles mais espaço, que o comprimento de arma com que se feriam. Peró, como a maré era já tanta parte dela vasia, que estes nossos que pelejavam, temeram que podiam ficar em seco entre as lancharas alagadas e as da terra com que contendiam, alargaram-se delas pera o mar, trazendo alguns calaluzes dos imigos, que poderam tomar, aos quais posesse fogo entre as lancharas alagadas, por se atear nelas; mas os mouros o apagaram logo, e com este despejo a nossa artelharia começou a jogar. A qual lhe fez tanto dano, que, se não sobreviera a noite, muito mais houvera de lavrar neles do que lavrou o ferro dos nossos em espaço de três horas, que mão por mão pelejaram com eles; posto que a peleja foi tam crua, que houve dos nossos muitos feridos. 395 Laquesamana, posto que também teve feridos e mortos, todo seu cuidado daquela 393 noite foi ordenar-se como poderia escapar de não pelejar outra vez; porque, nas três horas da peleja daquele dia passado, experimentou que vinda a menhã, tornando Fernão Peres a cometê-lo, não lhe ficaria homem vivo, vendo que tanto dano lhe fazia o ânimo dos nossos em 123v cometer, como dos seus jaus em esperar, oferecendo-se à morte como selvagens por se vingar. Finalmente, com a muita gente que tinha, aquela noite, assi os navios alagados, como por alagar, ele os varou todos em terra; e diante deles com madeira e terra fez um repairo tam forte, como o podera fazer muito de vagar em três ou quatro dias. Fernão Peres per sua parte também, curados os feridos, à maneira de pescador que atravessa

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o rio com sua rêde, por não perder o peixe que corre, com todolos navios que tinha de terra a terra atravessou todo o rio, temendo que Laquesamana aquela noite não se lhe fosse pera fora. Porém quando amanheceu, que ele viu a maneira da força que ele, Laquesamana, tinha feita, ficou espantado, e teve-o por homem de grande espírito e indústria: ca, não somente fez cousa que havia mister muita gente e munições pera a cometer, mas ainda foi tam caladamente, que de o não sentirem cuidava ele, Fernão Peres, que fugira pelo rio acima com parte da frota. E o que ainda lhe deu presunção desta ida foi porque, ante menhã, acabada a obra, como quem repicava em salvo, mandou Laquesamana tanger todolos seus sinos, que são de metal ao modo de bacias grandes, e delas tais, que o seu tom, quando são muitas em ua frota, se ouvem no mar ua légua. A qual alvorada Fernão Peres cuidou que dava a gente da terra àquele tempo per indústria dele mesmo, Laquesamana, porque cuidassem os nossos estar ele ali, e que de seguros disso não o iriam cometer senão menhã clara, e ele com isto teria mais tempo pera remar pelo rio acima. Vendo Fernão Peres o modo que este capitão teve no recolher-se naquele rio, furtando a volta a Jorge Botelho, que cuidava que, quando entrou primeiro nele, lhe tomava adiante pera se não poder acolher per ele acima, e assi a indústria tam incontinente que teve no alargar das suas lancharas por lhe não chegarem, e o que fez aquela noite, teve conselho com os capitães, e assentaram não ser a força que ele tinha feito cousa pera cometer, por não terem gente nem munições pera isso, e que aventuravam perderem-se todos, e mais quantos ficavam em Malaca, pois a vida dos que lá estavam pendia da defensão deles, fazendo conta de o tornar a buscar apercebidos de outra maneira, pera o cometerem em qualquer parte que se recolhesse. Com a qual determinação, por espedida, mandou Fernão Peres esbombardear-lhe os navios per todo aquele dia, e, de noite, partiu-se pera Malaca, onde chegou.

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394 123v 396 Capítulo III. De alguas cousas que Fernão Peres fez e passou; e da grande fome que ouve em toda a terra; e como, com o socorro que Afonso de Albuquerque mandou da Índia, Fernão Peres destruiu Pate Quetir, o qual fugiu para a Jaua. Pera os nossos não ficarem magoados e meio injuriados de leixarem aquele imigo sem maior castigo, e mais glorioso polo não cometerem naquela força que fez, permitiu Deus que achassem em Malaca três navios que eram vindos da Índia com toda a munição e provimento necessário àquela fortaleza, e com cento e cinquenta homens, dos quais navios eram capitães Francisco de Melo, Jorge de Brito e Martim Guedes. O qual socorro, que Afonso de Albuquerque mandava, animou tanto a todos, que, se podera ser logo aquele dia, os que vinham com Fernão Peres quiseram tornar, pera comprir o que assentaram com ele de tornarem mais providos do que iam pera castigar aquele mouro que ficava soberbo. Porém como Pate Quetir naquele tempo o andava mais polos nossos capitães que morreram na sua povoação, e tanto que Fernão Peres partiu em busca de Laquesamana, não somente mandou per terra dar rebate de noite na tranqueira de Afonso Pessoa, mas ainda com balões, que são barcos sutis, mandava entrar os esteiros que cercam a povoação da cidade daquela parte, a pôr fogo e prear qualquer pessoa que podiam haver à mão, quis Rui de Brito Patalim, primeiro que Fernão Peres tornasse em busca de Laquesamana, ter geral conselho que cousa convinha mais fazer-se por então, conformando-se também com as cartas que Afonso de Albuquerque escrevia da Índia. A substância das quais era que em nenhua outra cousa entendessem, senão em segurar a fortaleza daquela cidade; e que, enquanto podia correr perigo de per algua maneira poder ser tomada, ou a povoação da cidade de a queimarem, ou destruírem de maneira que os moradores a despovoassem e se fossem 124 viver a outra parte, per nenhua necessidade o Capitão-mor do Mar, Fernão Peres, se apartasse dela. E que, para ir aos estreitos de Sabão e Cingapura em favor das naus, que costumavam vir à cidade com mercadorias, e assi contra Laquesamana, Capitão-mor del-Rei Mahamude, ou a outra qualquer necessidade, ele mandava aqueles três capitães, e gente, e mais oficiais pera corregerem quaisquer navios e fazerem seis galés, a qual armada se podia repartir em duas partes - ua pera ficar em guarda da cidade e a outra parte pera acudir ao de fora. Assi que, havendo respeito a estas cousas, por alguns dias não se entendeu em outra senão em repairar os navios que tinham necessidade de corregimento, e consertarem-se alguns navios da terra que supriram enquanto não havia galés. No meio do qual tempo, 395 assi por causa da gente que veo da 397 Índia, como por não virem os juncos da Jaua, que só iam trazer mantimentos à cidade, os quais Laquesamana tomava no caminho, começou ela de se ver em tamanha necessidade deles, que vieram os nossos a não comer mais que ua vez no dia, e isto muito pouca quantidade de arroz cozido em água, sem mais outra cousa. E entre os mouros e gente da terra era tamanha, que a gente pobre se achava morta pelas ruas, e os mais deles, se não morriam à fome, eram mortos per as tigres do mato, onde esta pobre gente ia buscar algua fructa agreste e talos de ervas pera comer, a qual necessidade também Pate Quetir padecia em sua povoação. Finalmente, em todos era tam grande fome, que ela veo fazer trégua antre ele e os nossos, de maneira que cada um andava mais ocupado em buscar de comer, que pelejar; e o que causou também esta necessidade foi por não serem os meses de monção e tempo pera os irem buscar à Jaua, porque toda a terra vezinha de Malaca e ela

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de lá se mantém. Vindo este tempo que podiam sair, assentou Rui de Brito com Fernão Peres que repartisse a armada que tinha em duas partes - a dos maiores navios ficasse em guarda da cidade, segundo Afonso de Albuquerque escrevia, e a outra, de navios de remo, levasse ele, e fosse fora do Estreito de Cingapura em busca de alguns juncos de mantimentos, por ser o tempo que se eles navegam da Jaua. Assentada esta ida, partiu Fernão Peres com dez ou doze navios dos redondos, capitães Jorge Botelho e Martim Guedes, e Pero de Faria na sua galé, e os outros eram navios de remo da terra, levando consigo o tamungo da cidade, que era um mouro principal, homem fiel, e que por tal, lhe dera Afonso de Albuquerque aquele ofício de tamungo, que é quási como patrão da ribeira. Porque, como era homem que sabia bem a navegação daquela parte, e Fernão Peres havia de entrar pelo Estreito de Cingapura, que não era mui navegado, convinha-lhe quem o levasse per lugar sem perigo, ca este estreito o é tanto, que em parte as entenas da nau vão dando pelas ramas do arvoredo que está ao longo da água. E em verdade este lugar a que eles chamam estreito é mais esteiro que corta ua ponta de terra daquela parte de Malaca que algum estreito notável; e o outro de Sabão, que vai ao longo da Ilha Samatra, é muito maior, e por isso mais navegado. E ante que Fernão Peres chegasse a outro, indo per um canal que vai dar no de Sabão, como Pero de Faria ia diante na sua galé, foi dar com um junco grande que estava surto, o qual entreteve às bombardadas, té chegar toda a frota, com que se ele rendeu. Entrado este junco, soube Fernão Peres do capitão dele que ia pera Pate Quetir carregado de mantimento, armas e munições; e porém não soube então como vinha ali um filho de Pate Quetir, e que ele fizera que se rendesse. E a causa foi porque esperava de se salvar per manha, vendo que o não podia fazer per armas. Fernão Peres, como 396 tinha a presa que desejava, que eram mantimentos, e mais tomados a seu imigo, quis logo segurá-los; porque, como sabia que os jaus tem por costume, quando se vem tomados, alagam parte da nau, por 398 não cair neste perigo, veo a cair em outro maior, com que houvera de perder a vida: e foi que, baldeados os mantimentos em o navio de Martim Guedes, em que ele estava, e no de Jorge Botelho, recolheu consigo o capitão e principais pessoas que andavam no junco, a que mandou tomar armas, e permitiu que andassem soltos pelo navio. Os jaus, como é gente desesperada e que não temem que os matem depois que cometem o crime que eles desejam cometer, com crises pequenos, arma a maneira de nossas adagas, que lhe ficaram secretas, determinaram de matar quantos podessem em o navio, e primeiro que todos o capitão. Um dos quais, a que era cometido este feito em começar nele, não esperou mais que vê-lo apartado da gente; e estando Fernão Peres encostado ao propau do navio, per detrás deu-lhe com o cris pelas costas; peró 124v quando veo a segunda, que Fernão Peres teve tempo de se resguardar dele, acudiu gente não somente sobre este, mas sobre os outros que começavam per o navio de fazer sua obra. Finalmente, sem fazerem mais dano, foram presos deles, e os outros se lançaram a nado, e salvaram-se em terra, por ser perto dela. Acabado este alvoroço, e Fernão Peres curado, mandou meter a tormento o capitão do junco, que ficou tomado com os outros, que se não poderam salvar a nado, e fez-lhe perguntas com que fundamento cometiam aquele feito, e se eram da Jaua partidos mais juncos em favor de Pate Quetir, e outras cousas que convinham pera sua informação. O qual respondeu que seu fundamento era a natureza dos jaus matar quem os cativa ou a pessoa de que recebem mal; e quanto a se eram partidos juncos da Jaua, em sua companhia vieram três, os quais ficavam no Estreito de Cingapura, donde não haviam de partir té verem recado seu, porque ele vinha diante em maneira de descobridor, temendo podê-lo topar; e que entre aqueles tomados estava um filho de Pate Quetir. Fernão Peres, tanto que teve esta informação, mandou arrecadar estes cativos e partiu-se

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com aquela presa pera Malaca, e di mandou Jorge Botelho e Lopo de Azevedo em seus navios buscar os juncos onde lhe dissera o capitão jau, os quais eles tomaram levemente e trouxeram à cidade. E neste mesmo tempo chegou de Pegu outro junco de mantimentos, no qual vinha Gomes da Cunha, que Afonso de Albuquerque lá enviou assentar paz com o Rei da terra, notificando-lhe a tomada de Malaca, e que seguramente podia mandar seus juncos e vassalos a ela pera o negócio do comércio, como sempre fizeram. E porque com a tomada destes juncos, que vinham pera Pate Quetir, ele ficou mui quebrado e com muita dor por 397 causa do filho que lhe cativaram (posto que di a poucos dias o mancebo fugiu da prisão e se foi para ele), e os nossos ficaram com as forças restituídas da fome passada, assentou-se em conselho entre todolos capitães, que, ante de Pate Quetir se prover, dessem sobre ele, porque, com ele destruído, perderia el-Rei Mahamude a esperança que tinha de cobrar Malaca com sua ajuda, e Laquesamana não viria dar os rebates que dava. 399 Partido Fernão Peres com toda a sua frota e a mais gente que pôde levar, e outra per terra, pela maneira que Afonso Pessoa foi duas vezes, deu-lhe Deus tal vitória, que mataram muita gente a Pate Quetir e queimaram-lhe aquela força, e ele acolheu-se ao mato com mui poucos, e desta feita ficou tam destruído e quebrado no ânimo, que, não ousando esperar ali mais, em dous juncos que ali estavam da Jaua se partiu pera lá com determinação de não tornar mais a Malaca; e no modo de sua partida teve tanto segredo e astúcia, que havia três dias que era partido, sem se saber em Malaca. E parecendo-lhe a Fernão Peres que o podia alcançar, foi trás ele té vasar fora do Estreito de Sabão, per onde ele havia de fazer seu caminho, e em lugar dele topou com Laquesamana, que andava ali esperando os juncos que vinham per Malaca; peró não houve entre eles peleja, posto que Fernão Peres o seguiu ua tarde toda, peró que, com a vinda da noite, Laquesamana escapuliu per entre aquelas ilhas, sem mais dele haverem vista. Vendo Fernão Peres que andar lá mais dias era tempo perdido, e mais governando pela pilotagem dos mouros da terra, porque ainda os nossos pilotos não tinham navegado daqueles estreitos por diante, tornou-se pera Malaca, onde achou quem lhe contou daquela navegação, que foi António de Abreu, que Afonso de Albuquerque tinha mandado às Ilhas de Maluco (como escrevemos). A viagem do qual, e do que ele e Francisco Serrão, que ia em sua companhia, passaram, adiante faremos relação, quando começarmos a tratar em o descobrimento das Ilhas de Maluco, onde eles eram enviados. E segundo o tempo em que ele, António de Abreu, veo, que foi andando Laquesamana atravessando os mares per fora das bocas daqueles dous estreitos Cingapura e Sabão - e assi ser partido Pate Quetir pera a Jaua, pelo qual caminho ele, António de Abreu, vinha, foi grã dita não o toparem, e muito maior partir-se naquele mesmo tempo Pate Quetir; porque, se dilatara sua partida vinte dias, se Deus milagrosamente não defendera Malaca, houvera-se de perder, polo que sucedeu com ua grossa armada que veo da Jaua, como se verá no seguinte capítulo.

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398 125 400 Capítulo IV. Em que se descreve a Ilha Jaua; e como um Príncipe dela, chamado Pate Unuz, fez ua grossa armada pera vir sobre Malaca; e o que os nossos sobre isso fizeram. A terra Jaua é ua ilha que está ao Oriente de Samatra, tam vezinha a ela que entre ambas fica um estreito, que será de largura até quinze léguas. O lançamento desta Ilha Jaua é quási pelo rumo de Levante e Ponente; tem a primeira ponta ocidental em altura de seis graus do polo do Sul e em sete e meio a outra oriental, e aqui faz outro boqueirão, porque se vão continuando a esta primeira ua corda delas grandes, e per grande espaço contra o Oriente. Terá de comprimento esta Ilha Jaua cento e noventa léguas, e da largura não temos certa notícia, por aquela face do Sul não ser ainda per nós navegada; e segundo fama dos naturais, toda a costa daquela parte, por razão do grande golfão do mar do Sul, é de poucos portos, e estes que habitam a parte do Norte não se comunicam com o gentio daquela costa; ca, per meio da ilha, ao comprimento dela, corre ua corda de serrania que os empide, e todavia dizem que a largura desta ilha será o terço de sea comprimento. Geralmente é povoada de povo idólatra, a que chamam jaus, do nome da terra, gente da mais polícia daquelas partes, a qual, segundo eles dizem, veo ali povoar da China; e parece dizerem verdade, porque no parecer e no modo de sua polícia imitam muito aos chis, e assi tem cidades cercadas, e andam a cavalo, e tratam o governo da terra como eles. Porém, depois que mouros de Malaca navegaram a ela, de mercadores pouco e pouco se fizeram conquistadores, tomando posse das cidades portos de mar, com o que o gentio ficou sem navegação; e por causa da guerra que lhe os mouros faziam, começaram de se recolher pera dentro da terra, ao pé da serra que dissemos. E entre alguns mouros da mesma linhagem dos jaus (porque, per doutrina dos malaios, se converteram muitos jaus), ao tempo que nós tomámos Malaca, era o principal senhor da cidade Japara um per nome Pate Unuz, o qual depois se fez Rei da Sunda, como veremos adiante. Este, como era homem poderoso e aparentado, e que per modo de cossairo se tinha feito senhor da terra, tomou pensamento de vir sobre a cidade Malaca, vendo que a maior parte dos moradores dela eram jaus, em os quais ele havia de ter muito favor. Finalmente, com este pensamento começou de mandar fazer um junco, que seria em carga do tamanho de ua das nossas naus de quinhentos tonés, ao qual mandou lançar outro costado, e sobre este outros até número de sete, com um certo betume de cal e azeite entre costado e costado, a que eles chamam lapes, com que 399 o junco ficou de 401 três palmos de grossura, de maneira que, em qualquer parte que o posessem, podia servir de um forte baluarte. Fazendo ele, Pate Unuz, fundamento que quando na primeira chegada, com a muita gente que esperava levar, não podesse tomar a cidade, com este junco em modo de fortaleza se leixaria estar sobre ela, defendendo não entrar nem sair cousa algua, com que a tomaria à fome; e além deste junco fez outros navios, na qual obra se deteve sete anos. E quando soube que Afonso de Albuquerque com menos armada e gente do que ele esperava ]evar, tomara a cidade, cobrou maior ânimo, concebendo esperança de nos lançar fora, porque os mesmos malaios em ódio nosso seriam em sua ajuda. E porque já com esta cor de nos lançar de Malaca podia encobrir seu principal intento, começou de ter alguas inteligências com os principais jaus que viviam em Malaca, principalmente com Utimuti-rajá em quanto viveu, e depois com Pate Quetir e Suaria Deva, que eram os mais poderosos, os quais liberalmente lhe fizeram oferta de suas pessoas, e o feito mui leve de acabar, apressando-o muito que viesse a ele. Finalmente, ele se fez prestes com noventa velas, de

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que a maior parte eram navios pequenos de remo de toda sorte, e os mais juncos, em que entravam, além deste notável que dissemos, outros mui grandes, assi como um em que vinha um jau mui poderoso senhor da cidade Polimbão, que era a segunda pessoa desta armada, ao qual chamavam Timungão. E em outro junco vinha um seu sobrinho, que, por ser homem 125v de sua pessoa, era temido naquelas partes, e assi outros jaus principais, trazendo todos voz que nos vinham lançar da terra, sem algum deles saber a tenção de Pate Unuz, sendo eles convocados per ele com a voz que todos traziam, na qual armada (segundo fama), viriam doze mil homens, com muita artelharia feita na Jaua, por serem grandes homens de fundição e de todo lavramento de ferro, e outra que houveram da Índia. A nova da vinda deste Pate Unuz, posto que se encobriu muito tempo aos nossos, foi sabida em Malaca na entrada de Janeiro do ano de quinhentos e treze, a tempo que Fernão Peres estava de todo prestes pera se partir pera a Índia com as três naus carregadas da armada de Diogo Mendes de Vasconcelos, que, por serem de armadores, per ordenança de Afonso de Albuquerque (como atrás fica), haviam de vir a este reino com carga de especearia. Sobre o qual caso, sem ter mais notícia do número e poder das naus, somente por lhe certificarem alguns mercadores que tinham nova da vinda deste jau em ajuda de Pate Quetir, Rui de Brito e Fernão Peres, com todolos capitães em conselho, assentaram ser serviço del-Rei ir Fernão Peres com toda a armada esperá-lo ao Estreito de Sabão, onde se podia melhor ajudar dele. Partido Fernão Peres a este caso, não achou em todo o estreito nova nem notícia de tal armada; e porque os nossos sempre andavam 400 suspeitosos com as novas que davam os mouros, por as mais vezes serem falsas, tornou-se 402 Fernão Peres a Malaca acabar de se aperceber pera a Índia. E havendo cinco ou seis dias que ele era vindo daquele estreito, tendo já fora toda a artelharia que levava da fortaleza e estando quási de todo carregado, e de verga de alto pera fazer sua viagem, eis aqui aparece contra o Cabo Rachado, que é de Malaca obra de três léguas contra a Índia, todo o mar coalhado de velas da armada de Pate Unuz. O qual de indústria, por dar de súbito sobre a cidade, tanto que passou o Estreito de Sabão, foi-se cosendo com a terra de Samatra, que está defronte de Malaca, metendo-se per entre as ilhas por se encobrir, té que veo sair por o rio chamado Ciaca, e dali atravessou a terra de Malaca, e descaindo com as águas, vinha demandar a cidade per aquela parte, por segurar os nossos; ca, se fosse visto, cuidariam que eram velas da Índia, que fica daquela parte do Ponente, onde ele aparecia, e não da Jaua, que jaz ao Levante de Malaca. Vista tam grande frota, entenderam os nossos ser Pate Unuz, e logo em continente teveram os capitães conselho, no qual, entre Rui de Brito, capitão da fortaleza, e Fernão Peres, houve alguas palavras, dizendo Fernão Peres a Rui de Brito, que se queria meter na nossa armada como pessoa principal, que ele se fosse a sua fortaleza, de que tinha dado menage, e leixasse a ele usar de seu ofício de Capitão-mor do Mar. Todavia, naquele primeiro conselho, como quem acode a um fogo geral, porque o tempo não dava lugar a mais, todos se armaram e meteram em os navios - Rui de Brito em a galé de Pero de Faria, e Fernão Peres na sua nau, leixando em guarda da fortaleza Aires Pereira, alcaide-mor dela, Pero Pessoa, feitor, e António de Abreu, por doente, que havia poucos dias que viera de descobrir Maluco, e com eles até vinte homens. Seriam as velas que se aperceberam contra Pate Unuz dezassete, de que eram capitães Fernão Peres, João Lopes Alvim, Lopo de Azevedo, Francisco de Melo, Jorge de Brito, Joanes Impola, senhorio da nau em que ia, Jorge Botelho, Martim Guedes, Vasco Fernandes Coutinho, Cristóvão Mascarenhas e Pero de Faria, com quem se meteu Rui de Brito e Tuão Mahamede, tamungo de Malaca, homem fiel e cavaleiro, em um junco da China seu, na qual frota iriam até trezentos e cinquenta portugueses e alguns naturais da terra, homens havidos por fiéis. Partida esta frota contra onde vinha Pate Unuz, meteu-se um pouco ao mar por lhe darem a ele a parte da terra, por verem que se cosia com ela, como quem não queria perder aquela posse,

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levando ante si abrigados da nossa frota todolos navios meúdos. Porém como viu o navio de Jorge Botelho, que, por ser pequeno e veleiro, se adiantou das outras velas, espediu de si obra de vinte navios de remo, que lho viessem tomar; mas eles acharam tal salva nele, que se 401 tornaram a recolher, com o qual temor Jorge Botelho cobrou mais ânimo de se chegar a eles, té vir a tiro dos juncos mais principais. Na esteira do qual, por se remar bem, foi a galé de Pero de Faria, e assi serviram ambos com artelharia ao junco de Pate Unuz, que começou ele de se abrigar com os juncos que levava junto de si, té que chegou o corpo da 403 nossa 126 armada, que fez maravilhas neles, não somente com os pelouros, mas ainda com as rachas da madeira que faziam nos juncos, que matou muita gente; sem em todo este tempo Pate Unuz tirar, somente levar sua armada com um esquadrão cerrado ao longo da terra, té que, em se cerrando a noite, tomou o pouso defronte da povoação Upi, e parte ao longo da cidade, como quem queria ter comunicação com ela, e os nossos foram tomar o seu defronte da fortaleza.

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401 126 403 Capítulo V. Como Pate Unuz, não ousando cometer a nossa armada, nem menos sair em terra, por conselho que teve se partiu, e Fernão Peres foi trás ele e o desbaratou. Ainda que a noite, aos que per armas contendem de dia, é um grande remédio pera tomar fôlego do trabalho passado, cada ua destas frotas teve aquela noite tanto que fazer em se aconselhar e prover, que não houve algum homem de armas que a dormisse, quanto mais os capitães e pessoas notáveis, de quem dependia a conclusão do que se havia de fazer. E entre os nossos ainda maior trabalho que acerca dos imigos; ca estes tratavam como se haveriam naquele caso, e eles tinham contenda de paixões de jurdição, donde foram as palavras de Fernão Peres com Rui de Brito Patalim, o qual aquela noite, com todolos capitães, em a galé de Pero de Faria teve conselho, sem Fernão Peres querer ir a ele. No qual conselho, posto que houve muitos e diferentes pareceres, todavia se resumiram neste: que Fernão Peres devia mandar pera a Índia as naus de armadores, que estavam carregadas de especearia a pedir socorro, e que neste tempo podiam suster-se em cerco; porque, ainda que aquele jau não fizesse mais que tê-los cercados, mais risco corriam por causa dos mantimentos haver na fortaleza muita gente, que pouca. E que com navios pequenos que ficassem, Fernão Peres se devia pôr na boca do rio, pegado na ponte, por as lancharas dos imigos não fossem pelo rio acima a poiar gente em terra pera vir cercar a fortaleza e a combaterem, e que ele, com o abrigo da ponte, onde se faria ua tranqueira, ficava seguro, se o viessem cometer; e quando não podesse sustentar a força dos imigos, ficava-lhe lugar pera se acolher à fortaleza. 404 Da qual determinação se fez um auto, assinado per todos em modo de requerimento, que Rui de Brito 402 per um escrivão mandou a Fernão Peres. A tanto chegam as paixões de competência em casos de honra entre portugueses, que, quando os outros se estão armando, estão eles em requerimentos e protestos de papel e tinta. Fernão Peres, a este de Rui de Brito, respondeu que ele tinha dito o dia de ante sobre aquele caso o que esperava fazer com aquela armada, de que era Capitão-mor, que era pelejar com aquele jau; e ele, Rui de Brito, devia estar em a fortaleza, de que dera menage, e defender-se com a gente que pera ela lhe fora ordenada, se os jaus a quisessem combater. E que deste seu voto ser o principal, que convinha a estado del-Rei e honra de quantos ali estavam em seu serviço, ele tomara já experiência a tarde passada, no modo da vinda da armada dos imigos, em que entendeu que Pate Unuz mais conta fazia de tomar a terra e de se ajudar do favor dos da cidade, que de pelejar no mar, porisso ele esperava em Deus de o lançar dali, e sua determinação era dar nele, em rompendo a lua. Rui de Brito, quando viu esta reposta de Fernão Peres, em que também se assinaram alguns capitães da sua armada, que com ele estavam, confirmando o que ele dezia, ordenou em terra aquela noite quanto se pode fazer. Ua das quais cousas foi mandar derribar da ponte do rio, per que se passava da povoação dos mouros à fortaleza, a maior parte dos paus que poderam, e alguns ficaram dependurados, pera as lancharas dos imigos, ainda que quisessem ir pelo rio acima, o não podessem fazer; e assi fez ua tranqueira no fim da ponte, da parte da fortaleza, porque os mouros não podessem vir a ela, temendo que, se Pate Unuz tomasse a cidade, todos se haviam de ajuntar com ele. Fernão Peres também não pera se defender, mas cometer os imigos, toda a noite gastou em ordenar artefícios de fogo e dar ordem aos capitães como se haviam de haver no cometimento daquele feito, tomando por conclusão que, tanto que rompesse alva, dar sobre os navios pequenos,

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126v que lhe ficavam mais vezinhos, e lançaram-lhe dentro ua chuiva de panelas de pólvora, bombas e rocas de fogo pera os queimar; porque, como estavam apinhoados, primeiro que se apartassem uns dos outros, haviam de arder muitos. E leixando estes em poder do fogo, e em favor dele os seus navios pequenos, que com a artelharia desatinassem os jaus, pera o não poderem apagar, com as outras velas grandes iria ele demandar os principais juncos, onde despenderiam quanta pólvora tevessem, e per derradeiro os iriam abalroar. E o mais, o tempo daria conselho e Deus teria cuidado deles, pois confessavam o seu nome. E porque temeu que os imigos de noite os viessem 405 cometer, além da vigia que ele, Fernão Peres, encomendou aos capitães, mandou-lhes que estevessem todos com as âncoras a pique, a volta de cabrestante, porque não os tomassem presos nelas. Pate Unuz também onde estava teve seu conselho, não somente com os capitães que trazia, mas com alguns 403 jaus da cidade, de que logo foi visitado, que eram aqueles com que tinha prática sobre sua vinda, o principal dos quais era Suria Deva. E posto que estes o animaram muito pera aquele feito a que vinha, quando soube deles como Pate Quetir era partido pera a Jaua, e o modo como foi desbaratado, ficou mui triste e confuso, porque no conselho dele tinha posto grande parte de sua esperança, e, como homem novo na terra, achou-se manco de todo. E tinha ele nisto razão, porque Pate Quetir era cavaleiro e homem astucioso, costumado a sofrer nossas armas; e sem dúvida, se ele não fora ido, ou Pate Unuz o topara no caminho, tornando com ele, muito mal nos houvera de fazer. Mas permitiu Deus sua ida e que se não encontrasse com ele, por livrar os nossos de tanto perigo, e mais ser causa dele Pate Unuz fazer o que fez, com que Fernão Peres houve dele vitória per modo não cuidado. E o que também causou a Pate Unuz temor foi o grande dano que recebeu no seu junco, que ele cuidava ser ua rocha, e que não havia artelharia contra ele, porque alguns tiros de esperas o tomaram per parte que lhe entrou dentro o pelouro, que lhe matou muita gente. E além deste dano que recebeu, viu a fortaleza das nossas naus, e o ânimo daqueles que iam nelas, que tam ousadamente, sendo tam poucos, cometeram a grandeza da sua frota; de maneira que, com a experiência, teve maior opinião de nós, e menos esperança do que trazia, e não tanta facelidade, como Suria Deva e os outros jaus lhe prometiam per cartas. Finalmente, havido conselho sobre o modo que teriam em cometer a nossa armada, e mais a fortaleza, passadas muitas dúvidas e debates, o mesmo Suria Deva, vendo algum receo nos principais jaus que vinham com Pate Unuz, lhe representou a resolução do que devia fazer, por alguns inconvenientes que eles apontaram, e principalmente por ele segurar sua fazenda, temendo a natureza dos jaus, que, saindo em terra, o poderiam saquear por espedida, ora lhe sucedesse bem ou mal no caso. A qual resolução foi que a ele, Pate Unuz, lhe não convinha sair em terra a tomar a fortaleza; porque, ainda que tevesse certo poder-se fazer, corria a sua armada risco de os nossos a queimarem, e sendo assi, ele ficava o cercado e desbaratado, e nós os vencedores; porque, como a vida daquela cidade era os mantimentos que lhe vinham pelo mar, tanto que lhe posessem a mão na garganta da entrada deles, não tinha mais fôlego. Também pelejar com as nossas naus a ele não parecia bem, por sermos a mais ousada gente que ele 406 tinha visto, sem ter conta com muitas ou poucas velas, nem se eram grandes ou pequenas, porque qualquer das nossas naus cometeria abalroar com o seu junco. E pois qualquer destes modos que ele cometesse, por causa do grande aparato que trazia, desesperava os nossos, com que lhe dava dobrado animo do que tinham, devia ele, Pate Unuz, cometer este negócio, 404 não tanto à força de braço, mas com parte de prudência e de vagar, e não tam apressado como vinha. E pera não cair nestas cousas que apontava, lhe parecia que ele, Pate Unuz, se devia tornar ao

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rio de Muar com toda sua frota, e na entrada dele leixar todolos juncos grandes, por ser lugar estreito, onde os nossos não se haviam de meter, e esta armada estava ali segura, e os nossos, com temor de a terem nas costas, não haviam desemparar a sua, por acudir à fortaleza. E com as outras velas mais pequenas podia vir de noite, e sair em terra na parte de Ilher, onde tínhamos a fortaleza, e ele, Suria Deva, com todolos que ali estavam, e outros muitos de sua valia, que havia na cidade, pelo rio acima, onde não fossem vistos em jangadas, se passariam a ela pera juntamente cometerem a fortaleza. E quando a fortuna lhe fosse tam contraira, 127 que per combate ou per fome a não podesse tomar, e vendo-se ele em algua grande necessidade per terra, lugar que os nossos não haviam de cometer, se recolheria na sua principal frota, que leixava em o rio Muar; e os navios pequenos, por serem leves, com se acharem despejados, a força de remo em ua apertada dos nossos navios levemente se podiam recolher a ele. Praticado este conselho de Suria Deva, achou Pate Unuz que era o melhor que podia ter, segundo via a desposição das cousas, e nisso assentaram todolos seus capitães. E porque os nossos não sentissem sua partida, toda aquela noite houve na frota deles tanto tanger dos seus sinos e instrumentos de guerra, e grande vozaria de cantares, que estrugiam as orelhas dos nossos; e quando veo ante menhã, que lhe a maré começou a servir, que ele leixava o pouso por ser menos sentidos, foi tamanha a grita deles, que cuidou Fernão Peres que parte da armada tinha tomado terra, e a grita era sinal que a outra o viesse cometer. E de Fernão Peres e toda a sua armada estarem com o tento em terra por causa destas gritas, e em si mesmo pera o que sobreviesse, teve Pate Unuz tempo pera se alargar ao mar, enfiando-se no caminho que havia de levar. Porém como isto era ante menhã e a luz de alva mostrou a sua armada, que ainda ia à vista dos nossos, entendeu Fernão Peres que os tangeres de toda a noite e grita de ante menhã fora artefício, por não serem sentidos que se queriam partir; e por sinal que levavam temor, viu muitas âncoras ficar no pouso, que não poderam levar. E porque quem dá costas dá ânimo a seu imigo, foi tanto alvoroço em os nossos, que juntamente assi na fortaleza, como na armada, começaram bradar: - Vitória! Vitória! Fogem! - e desferindo Fernão Peres a sua vela, dizendo: - Santiago! A eles! - foi cousa maravilhosa o que nisso cada um fez; e seria a nós mui dificultosa escrever a ousadia, ânimo, diligência e astúcia, que cada um teve naquele feito. Baste saber, em suma, que assi se haviam 407 os nossos poucos navios entre aquele grande número de velas, como se hão os lobos em 405 um pegulhar de ovelhas; porque os nossos não faziam mais que chegar aos navios pequenos, e lançar-lhes dentro fogo com os artefícios que tinham feito, e passar avante, e os imigos sem modo de defensão, sem fazerem caminho do rio de Muar com olho no junco de Pate Unuz, que pôs a proa pera o Estreito de Sabão, caminho de Jaua, todos o seguiram. E ainda por segurar sua pessoa, quando viu que da sua frota parte ardia em fogo e outra era metida no fundo, mandou aos principais juncos que levava que se achegassem a ele, temendo ser abalroado, ou ao menos metido no fundo com a artelharia, por mais lapes que o costado do seu junco tinha. Fernão Peres, quando viu o modo que Pate Unuz tinha em se fechar entre os juncos, e que, segundo a grandeza do seu, não lhe podia fazer dano senão com a artelharia, pôs a proa no segundo junco da frota, que era do Timungão, senhor da cidade Polimbão, e em chegando a ele, o envestiu per um costado; e como à ilharga dele ia seu sobrinho, que dissemos por sua cavalaria ter grande nome entre os jaus, tanto que viu Fernão Peres aferrado com o tio, aferrou-o ele pelo outro costado, de maneira que ficou Fernão Peres com a sua naveta entalado entre ambos. Peró ele não sentiu a entrada que este jau fez nela, por andar já na popa do junco do tio às lançadas, no qual tempo, pela proa do mesmo junco, entrou Francisco de Melo. O jau mancebo, como era cavaleiro, vendo que estes dous capitães cada um per sua parte entraram o tio e andavam pelejando com ele, sem fazer conta da nau de Fernão Peres, senão como que lhe servia de ponte, com alguns que o seguiram per ela, passou-se ao junco do tio, onde entre todos andava a peleja tam travada, que não se sabia determinar quem era senhor dos juncos, nem os

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senhores das navetas dos nossos, por todos andaram já misturados. No qual tempo Jorge Botelho acertou de vir em a sua caravela; e, vendo a nau de Fernão Peres entalada entre os juncos, entrou per bordo do sobrinho do Timungão, e veo-se encontrar com Fernão Peres, que acudia à sua nau, que lhe entravam muitos jaus nela. Finalmente, todas estas cinco velas, bordo com bordo, e os capitães mão por mão andaram uns dentro e outros foram tam travados entre si, per um grande espaço, té que, não podendo os jaus sofrer mais o ferro dos nossos, começaram de se baldear em lancharas e pangajoas que traziam derredor de si; e os que não poderam haver à mão vasilha, lançaram-se ao mar, com que os juncos ficaram vazios deles e cheos de muitos mantimentos, que os nossos levaram pera Malaca, depois que os juncos foram queimados naquele lugar. Fernão 127v Peres, tanto que houve a vitória destes dous juncos, que eram os principais, seguiu a Pate Unuz, com fundamento de às bombardadas o meterem no fundo, ou ao menos destruir-lhe a mareagem, com que ficaria decepado pera o tomarem às 406 mãos. Peró não houve efeito sua tenção, porque veo sobre a tarde ua trovoada tam furiosa, que ante eles quiseram contender uns com os outros como andavam, que com ela; porque, como veo súbita e 408 tomou a todos descuidados, e mais metidos em pelejar que no temor dela, se os nossos teveram algum salvamento, foi por não trazerem as mãos cortadas do temor e do ferro, como as traziam os jaus, e por isso foram mais lestes em marear suas velas. Finalmente, Fernão Peres com ela correu pera Malaca com a maior parte de sua frota, e outros per essas abrigadas de rios; somente Jorge Botelho e Tuão Mahamude, tamungo de Malaca, que se acharam ambos contra aquela parte pera onde correu Pate Unuz, ao qual não poderam fazer mais dano que queimar-lhes cinco ou seis pangajoas que o seguiam, porque tinham já despesa toda a pólvora, com que o podiam ofender. Jorge Botelho, vendo quam desbaratado este jau ficava, e que, tornando sobre ele com pólvora, o podia meter no fundo, veo-se logo a Malaca dar conta disso a Rui de Brito, por Fernão Peres não ser ainda lá; e, posto que Rui de Brito o não queria prover de pólvora e cousas que ele pedia, havendo que sua tornada aproveitaria já pouco, porque o jau nesta sua demora de ir e vir seria posto em salvo, todavia lhe mandou dar o necessário, e isto a requerimento do gentio Nina Chetu, que disse que daria polo junco de Pate Unuz dez mil cruzados. Peró com quanta diligência Jorge Botelho nisso fez, correndo mais de quorenta léguas, já não achou Pate Unuz, o qual se pôs em salvo na Jaua em a cidade Japara, e ali mandou varar o junco por memória de sua pessoa, dizendo que bastava pera a ter por muitos tempos verem como aquele junco ficara da peleja que teve com os portugueses. Os quais, ainda que teveram esta tam ilustre vitória dele, não foi sem custa de muito sangue, que todos naquele alcanço derramaram; ca não houve capitão que não abalroasse junco e fizesse assaz de sua pessoa, onde morreram alguns dos nossos, principalmente com João Lopes de Alvim e Martim Guedes, que se viram em grã perigo com os juncos que abalroaram. E muito maior Fernão Peres, que foi derribado e ferido, estando um bom pedaço meio atordoado de um arremesso, que lhe fizeram de cima dos castelos do junco; e polo ajudar, morreu Simão Afonso, que foi a pessoa mais principal que naquele feito pereceu. Finalmente, ele foi tam notável, que assombrou todo aquele Oriente, e nele acabou a guerra que tínhamos com os jaus, dos quais Malaca ficou desassombrada, porque, como é gente mui vizinha a ela, e são senhores de todolos mantimentos de que se ela mantém, e mais são homens cavaleiros e poderosos, todolos outros rebates que teveram del-Rei Mahamude pelo tempo em diante, teveram em pouco, em respeito do perigo que passaram por causa destes dous jaus - Pate Quetir e Pate Unuz. Fernão Peres, como estava meio carregado 407 pera se partir pera a Índia (segundo dissemos), em poucos dias se tornou a perceber de todo, e

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entregue a capitania-mor do mar a João Lopes de Alvim, a quem Afonso de Albuquerque proveo dela, partiu de Malaca com três velas carregadas de especearia, 409 ele em ua, e nas duas Lopo de Azevedo e António de Abreu, que vinha de descobrir Maluco. E pera dar maior contentamento a Afonso de Albuquerque com sua chegada, além de ir carregado das vitórias que houve naquelas partes e de especearia, sendo tanto avante como os baixos de Capaciá, topou António de Miranda de Azevedo, que vinha do reino de Sião, com que levou também outra carga de todalas novas que ele, Afonso de Albuquerque, esperava daquelas partes, onde mandara seus mensageiros e descobridores, ante que se partisse de Malaca: assi como António de Abreu com Francisco Serrão descobrir Maluco, e Gomes da Cunha a el-Rei de Pegu, que era já vindo em o navio que trouxe mantimentos a Malaca (como fica atrás), o qual ia com ele, Fernão Peres, e António de Miranda com Duarte Coelho a Sião; o qual António de Miranda, posto que não viesse em companhia dele, Fernão Peres, e fizesse seu caminho pera Malaca, mandou-lhe cartas per ele, o qual chegou a salvamento à Índia. E porque em outro lugar (segundo já apontámos) se há-de fazer relação do caminho e cousas que António de Abreu fez naquele descobrimento de Maluco, leixamos de a fazer aqui, e também o que fizeram estoutros em 128 Pegu e Sião, porque a desposição das cousas da história tem lugar próprio, por guardar a qual ordem leixamos o que ora ocorreu na chegada de António de Miranda, e procederemos ainda um pouco nas cousas de Malaca, té quási todo o tempo que Afonso de Albuquerque governou.

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407 128 409 Capítulo VI. Como a fortaleza de Malaca, per astúcia de um criado del-Rei Mahamude, esteve em termo de ser tomada; e do que se mais passou, té chegada de Jorge de Albuquerque, que foi servir de capitão dela. El-Rei Mahamude, que foi de Malaca, sabida a vitória que os nossos houveram de Pate Unuz, posto que em algua maneira o desesperou de se tornar restituir em seu estado, vendo Pate Quetir destruído, em que ele tinha tanta confiança, e assi ser destruída tamanha potência como este Pate Unuz trazia, era a ele argumento que todo o poder daquele Oriente não poderia lançar-nos de Malaca. Per outra parte, teve grande contentamento da destruição de Pate Unuz, porque entendeu que a sua vinda tam poderosamente a Malaca, não era pera ele, Pate Unuz, lha entregar, senão 410 pera se fazer senhor dela, porque entre eles, ante deste feito, não precederam recados nem obras pera dele esperar tamanha amizade, que por 408 causa dele, Mahamude, fizesse tam grande despesa. Confessando publicamente querer ante que estevesse Malaca em nosso poder, que dos jaus; ca, por serem tam vezinhos, tinham as forças mui perto pera sustentar aquela cidade; e nós, ainda que tivéssemos mais poder nas armas, o adjutório das outras cousas pera continuar guerra per muitos anos ia deste reino de Portugal, que é no fim da terra tantas mil léguas de Malaca, a qual cousa lhe dava esperança que um tempo ou em outro se havia de restituir. Com o qual fundamento, sempre andou derredor da cidade, avexando-a, ora com rebates de suas armadas, ora com lhe tolher os mantimentos, e mudando o assento de sua pessoa, té que per derradeiro se foi assentar de vivenda em ua ilha defronte de Cingapura, chamada Bitão, nome que os malaios chamam à Lua, por a mesma ilha ter a feição da Lua quando é meia. E porque à força de armas tinha per muitas vezes tentado connosco sua ventura, quis experimentar que tal a teria per modo de ardil, em que o meteu um Tuão Maxeliz, mouro bengala de nação e homem mui sagaz e astucioso, muito aceito a ele, como um dos mais principais que lhe governava sua casa. O qual ardil foi que ele, Tuão Maxeliz, havia de fugir dele, Rei Mahamude, com título de agravos, e se havia de ir a Malaca, mostrando que queria ali viver entre nós, em companhia dos quais ele se podia vingar dos agravos que tinha recebidos; e depois que fosse aceito na terra e tivesse entrada com o Capitão-mor, trabalhasse per qualquer modo que podesse de se meter na fortaleza; e pera o ajudar naquele caso, da sua parte desse conta a Tuão Colascar, que era o principal jau, senhor da povoação Ilher, na parte da fortaleza. Assentado este ardil entre ambos, sem pessoa algua o saber, porque não houvesse suspeita da partida dele, Maxeliz, começou el-Rei pubricamente de lhe fazer alguns agravos per espaço de dous meses, mostrando ter sabido que o roubava e andava em tratos connosco. Finalmente, como os agravos foram tam púbricos que se haviam por mui certos em Malaca, veo ele ter a ela em ua lanchara, simulando que vinha fugindo da ira del-Rei por más informações que dele tinha, e foi-se apousentar, per licença de Rui de Brito, na povoação de Ilher, mostrando ter antiga amizade com Tuão Colascar. E por não perder tempo, como vinha provido de jóias e brincos, que dão entrada em toda parte, ora com eles, ora com dar ardis a Rui de Brito contra el-Rei Mahamude, começou logo lavrar sua peçonha, de maneira que entrava e saía na fortaleza mui familiarmente com Rui de Brito. E tomou logo por cautela de não ser sentido ir a sua casa pela sesta, quando a mais da gente se recolhe 411

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a repouso, e mais andar sempre mui acompanhado, mostrando que se temia de el-Rei Mahamude dentro em Malaca o mandar matar, por ele ser homem que sabia parte de seus segredos. 409 Tanto que este Maxeliz teve segura esta entrada com Rui de Brito, 128v deu logo disso conta per suas cartas a el-Rei, o qual lhe respondeu, que a tantos dias da Lua cometesse o caso, porque pera este tempo lhe mandaria socorro com sua armada, e que entretanto bastava o favor de Tuão Colascar. Vindo este dia, como Maxeliz tinha aquela fácil entrada na fortaleza, pela sesta foi-se a ela, levando seus homens, que costumava trazer em guarda de sua pessoa, e chegando à porta, que lha o porteiro abriu como a pessoa familiar, entreteve-se um pouco, mostrando que espedia os seus, e queria meter três ou quatro, um dos quais era mancebo de bom parecer e vinha vestido como mulher, dizendo que leixasse entrar aqueles que levavam aquela moça pera o capitão. No qual entreter de porta aberta remeteram os criados de Maxeliz, e entraram dentro, metendo-se às crisadas com o porteiro e três ou quatro homens que estavam no pátio da fortaleza, e ele subiu com alguns deles pela escada acima, caminho da torre da menagem, onde pousava o capitão; e por acharem a porta fechada, por Rui de Brito a fechar sobre si, quando sentiu a revolta debaixo, discorrendo eles pelas casas dos oficiais, foram dar na do alcaide-mor Aires Pereira, que não teve outra salvação, senão lançar-se per ua janela por ir socorrer a Rui de Brito; e nesta casa mataram a mestre Jorge, físico, e dous homens de serviço que estavam com ele. E os que ficaram em baixo no pátio, mataram quatro homens e Pero Pessoa, que foi o primeiro que acudiu à porta, o qual estava com o ferrolho na mão pera a fechar aos jaus, que Maxeliz trazia nas costas em sua ajuda. Rui de Brito, a este tempo, ainda que em pé, andava bem doente, e logo naquele primeiro reboliço, cuidou ser mais; peró, quando viu que somente dez ou doze homens o faziam, assi como pôde acudiu com alguns que acordaram e jaziam per essas casas, dormindo por ser pela sesta, os quais fizeram fugir Maxeliz e os seus, vendo que não poderam tomar a torre da menagem, que era seu principal intento. Tuão Colascar, que estava esperando, com sua gente junta, esta hora, tanto que ouviu repicar o sino da fortaleza, acudiu logo, parecendo-lhe que Maxeliz estava em poder da torre; peró, quando chegou à porta da fortaleza e soube ele ser acolhido, dissimulou a vinda, dizendo de fora a Rui de Brito que cousa era aquela, que vinha ali por ouvir repicar? que mandava sua mercê que fizesse com aquela gente que trazia? Rui de Brito, peró que entendeu ser ele sabedor do caso, agradeceu-lhe sua tam breve diligência, e assossegou todo o alvoroço da cidade; porém depois quisera ele per justiça, ao modo de Utimuti-rajá, matar este Tuão Colascar, e ante dele Suria Deva, polo que fez com Pate Unuz; mas os capitães e fidalgos com quem ele sobre este caso teve conselho, não lho consentiram, dizendo que, por serem as principais cabeceiras da cidade, com sua morte se 412 despovoaria; que naquele tempo se havia de 410 dissimular com eles, té as cousas da cidade tomarem mais assento do que tinham. Eram neste tempo idos a Bintão com duas caravelas e três lancharas, com até cinquenta homens de peleja, Jorge Botelho e Vasco da Silveira, pera ver se podiam fazer algum dano às armadas que el-Rei trazia naquela paragem, impedindo não virem velas a Malaca, e fazê-las arribar a Bintão, onde ele esperava fazer todo o trato que fazia nela; o qual, quando viu estas nossas velas sobre seu porto, por ser no tempo em que ele estava esperando recado do seu Tuão Maxeliz, creo verdadeiramente que o caso era descoberto ao capitão Rui de Brito e que por esse respeito mandava aqueles navios sobre seu porto, pera ofenderem a armada que ele havia de mandar em favor do caso, a qual ele tinha de todo prestes; e não ousou de a mandar sair de dentro, temendo que a nossa armada era toda ida àquele feito, e que lhe lançavam aquelas cinco velas diante pera ele lançar a sua fora.

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Jorge Botelho e Vasco da Silveira, vendo o sítio onde el-Rei tinha feito ua fortaleza, e que a sua armada estava dentro de ua estacada, que de maré vazia os navios ficavam metidos na vasa, e as estacas de maneira que parecia um labirinto o canal que ficava entre elas, per onde entravam e saíam os navios, não lhe pareceu cousa que podessem cometer, por a pouca posse que levavam, e tornaram-se a Malaca. Rui de Brito, quando per eles soube a força que el-Rei tinha feita, e quam brigosa e defensável era, assi polo sítio, como pela indústria e trabalho dos homens, e que, segundo lhe alguns mouros diziam, estava aquela Ilha Bintão em paragem que se podia fazer outra Malaca, com el-Rei trazer ali armada que fizesse arribar as naus a ela, dobrou a armada que João Lopes de Alvim trazia pera às vezes a repartir em partes, porque não houvesse algum daqueles dous canais - Cingapura e Sabão - onde se não achassem nossos navios contra a armada del-Rei de Bintão, pera lhe defender aquele arribar 129 de velas que fazia. Com o qual modo atormentou tanto a el-Rei que, como homem desesperado pola muita fome que padecia com lhe tolhermos prover-se de mantimentos, mandou pedir a Rui de Brito concerto de paz. E como ele atribuía a causa de sua destruição a seu filho e genros, em não consentirem que ele assentasse paz com Afonso de Albuquerque, quando chegou a Malaca, houve entre eles tanta diferença sempre, que, neste tempo da paz que mandou pedir, dizem que afogou o filho com ua touca. El-Rei de Campar, posto que fosse seu sobrinho e genro, polos modos que lhe via ter, e principalmente acerca do ódio que tinha a seu próprio filho, o Príncipe Alodim, não quis seguir suas cousas, ante, por segurar as próprias e não viver assombrado de nós, como genro seu (segundo escrevemos), estando Afonso de Albuquerque em Malaca, com um presente que lhe enviou, 413 se ofereceu querer viver em Malaca como vassalo del-Rei de Portugal; a vinda do 411 qual por então não houve efeito. Peró, sabendo ele o que se dizia como afogara seu filho, determinou de se vir logo pera Malaca, temendo a maldade do sogro; e pera isso não fez mais que, como homem seguro, sem cautela algua, meter-se com Pero de Faria, que com ua armada andava no Estreito de Sabão. O qual chegou a Malaca na entrada de Julho do ano de quinhentos e catorze, a tempo que era vindo da Índia Jorge de Albuquerque, filho de João de Albuquerque, pera capitão da cidade, e estava já em posse dela, e Rui de Brito, esperando tempo pera se vir pera a Índia. E porque Jorge de Albuquerque levava recado de Afonso de Albuquerque do modo que havia de ter com este Rei de Campar, se lhe mandasse cometer que se queria vir viver a Malaca, polo que já tinha passado com ele, quando se mandou oferecer pera isso, em sua chegada fez-lhe muita honra; peró não ficou el-Rei de Campar daquela vez em Malaca, ante se tornou logo como praticou alguas cousas com Jorge de Albuquerque do modo que se havia de ter com ele, vindo assentar sua casa em Malaca. Enquanto este recado foi à Índia, e tornou reposta de Afonso de Albuquerque, ele esteve em Campar; a qual reposta foi mandar ele a Jorge de Albuquerque que desse a este Rei o ofício que Nina Chetu, gentio, tinha. E a causa por que lho mandava tirar, tendo tanto benefício feito a Rui de Araújo, por cujo respeito o ele houve, foi porque a gente nobre de Malaca sofria mal serem governados per ele, que era homem de pouca sorte; e se em alguas cousas lhe queriam ir à mão, às tais pessoas mandava-lhes dar um certo género de peçonha, com que engafecia, e em mui pouco tempo morria, o que se soube ter feito a três ou quatro mercadores principais; e polo muito serviço que tinha feito na salvação de Rui de Araújo e dos outros cativos, e assi na tomada da cidade, dissimulavam com ele, té vir este recado de Afonso de Albuquerque. Nina Chetu, como por suas culpas andava vigiado de o tirarem do cargo, tinha suas inteligências, tanto que chegava algum navio da Índia, pera saber se mandava Afonso de Albuquerque bolir com ele; e como foi certificado do recado que vinha, teve maneira que, por espaço de oito dias se não denunciasse que o mandavam tirar do ofício. No qual tempo em um

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terreiro grande mandou fazer um cadafalso de madeira, coberto e toldado de muitos panos de seda e ouro, e dele té sua casa foi a rua toldada da mesma sorte, e a ua parte do cadafalso no chão mandou pôr ua mui grande cantidade de sândalos brancos, vermelhos e lenho aloes, pera arder tudo, quanto fosse tempo de lhe porem fogo. 414 Acabado todo este aparato pera o derradeiro dia que se lhe acabava o termo que pedia, convidou todolos seus amigos, e ajuntou sua família, que era grande, toda vestida de festa, e ele dos mais ricos panos de ouro que pôde haver, e partiu de sua casa, indo 412 por aquela rua toldada, a qual àquela hora estava coberto o chão de todalas flores e cheiros do campo. Chegado com esta pompa ao cadafalso, onde era quási toda a cidade ver aquele auto, de que ainda não entendiam o fim, subiu-se a ele, e começou em mui alta voz dizer as cousas que per nós fizera, e os perigos que por isso ele passara, por méritos das quais cousas Afonso de Albuquerque lhe dera o ofício que tinha de bendara, que ele té aquela hora servira, o qual (segundo lhe era dito), ele mandava que ele nunca o servisse mais e fosse dado o ofício a outra pessoa. E porque ele não queria ver aquela injúria executada em a sua, era ali vindo pera mostrar que o fogo que todos viam acendido naquele sândalo, era mais poderoso que todolos príncipes do Mundo, 129v porque eles podiam tirar ofícios e vida, e o fogo, se queimava o corpo, recebia em si a alma; e como era espírito e criatura de Deus, ele a ia apresentar a seu Criador, onde tinha perpétua glória; e quanto mais afligida nesta vida, maior a tinha lá, e esta lhe não podia tirar o grã Capitão Afonso de Albuquerque, por mais poderoso que fosse na Índia. E com isto se leixou cair no fogo, onde se fez cinza.

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412 129v 414 Capítulo VII. Como Jorge de Albuquerque, capitão de Malaca, mandou per Abedelá, Rei de Campar, pera servir ofício de bendara; e quanto el-Rei de Bintão trabalhou polo ele não ser, té que foi causa de sua morte. Acabado este acto da gentilidade, que fez grande admiração a todos ver a constância com que aquele gentio morreu por honra, foi logo sabido per toda a terra como el-Rei de Campar havia de ser bendara de Malaca, que entre os malaios se tinha por tanta dinidade no tempo que prosperava Mahamude, Rei dela, que haviam ser maior cousa que Rei de Campar, cujo estado não era mais que ser senhor de ua povoação, a que eles chamam cidade, a qual era metida per um rio grande, que entra por a terra da Ilha Samatra, e distará de Malaca contra o Oriente pouco mais de trinta léguas, na entrada do Estreito Sabão. 415 El-Rei de Bintão, seu sogro, tanto que soube que ele era eleito pera bendara, e que este era o fim pera que ele se dera à nossa amizade, e a causa do presente que mandara a Afonso de Albuquerque, e depois ir em pessoa a Malaca ver-se com o capitão dela, ordenou logo de lhe empedir que não fosse, e pera isso convocou outro seu genro e vassalo, que era Rei de Linga, ua ilha vezinha à de Bintão, onde ele, Mahamude, assentara sua vivenda (como dissemos). Os quais sogro e genro fizeram ua armada de té setenta velas de remo; em que iriam dous mil e quinhentos homens, 413 na qual armada o próprio Rei de Linga foi; e entrado pelo rio de Campar, acharam Abedelá, Rei da Cidade, já provido de tranqueiras e forças, com que resistiu como homem animoso a seu imigo, posto que el-Rei de Linga naquelas partes era havido por muito cavaleiro. O qual, vendo que per alguas vezes que deu combate a Abedelá não o podia entrar, ordenou-se em modo de o ter cercado e tomar à fome; no meio do qual tempo ele foi socorrido de nós sem o ele esperar, per esta maneira: Pelo recado que Afonso de Albuquerque mandou e morte de Nina Chetu, ordenou Jorge de Albuquerque de mandar por este Rei de Campar pera vir servir o ofício de bendara, de que ele já era sabedor, e pera isso se fazia prestes, quando el-Rei de Linga deu sobre ele; e polo mais honrar, mandou Jorge Botelho que o trouxesse em o seu navio, e com ele três navios de remo, capitães Jordão de Figueiredo, Álvaro Vaz e Diogo Dias. O qual Jorge Botelho, entrando no Estreito de Sabão, achou ali nova em um mouro seu amigo, chamado Meana, que el-Rei de Linga estava dentro no rio de Campar, e tinha cercado a el-Rei Abedelá com ua armada de setenta velas com muita gente e munições de guerra; por isso olhasse onde se ia meter. Jorge Botelho, por este mouro ser homem certo e seu amigo, espediu logo dali um dos capitães, que viesse a Malaca dar esta nova a Jorge de Albuquerque, o qual a grã pressa espediu estes capitães em socorro de Abedelá: Tristão de Miranda, António de Miranda de Azevedo, Aires Pereira de Berredo e Francisco de Melo, todos em navios redondos, e mais alguas lancharas de remo, capitães moradores da cidade. E porque nenhum levava a capitania-mor de toda a frota, quando se ajuntaram com Jorge Botelho, que se haviam de ordenar pera cometer a armada dos imigos, começou entre eles haver diferença, a qual apagaram com elegerem por capitão a António de Miranda de Azevedo, per ordenança do qual entraram pelo rio acima, té onde se fazia um esteiro, dentro do qual, obra de meia légua, estava a cidade Campar. O qual esteiro, como era estreito, profundo, e com ribas tam altas que ficava em partes a terra sobre água perto de duas lanças, tornaram-se os nossos abaixo ao rio largo; porque, como

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130 não sabiam a terra, temeram que viessem os imigos, e de cima, às terroadas, quando não tivessem outra cousa, os meteriam no fundo, fazendo fundamento de os ter ali encerrados, e em tam estreito cerco como eles tinham el-Rei Abedelá. 416 Postos neste lugar largo, como entre alguns capitães havia ua frieza do caso, por cada um não ser o eleito em capitão-mor, e também ali não faziam mais que ser fechada aquela entrada, por onde os imigos se serviam, estavam um pouco descuidados, como quem não tinha que temer, gastando o dia em lançar a barra e lança, e outros passatempos em terra. El-Rei de Linga por escuitas 414 que trazia ao longo do rio, foi avisado deste descuido; e como homem cavaleiro que era, determinou dar neles, e caladamente veo-se com toda sua frota pelo rio abaixo, e ele diante todos, por ter ua forte e fermosa lanchara do comprimento de ua galé, mui armada e guerreira com até duzentos e tantos homens, com tenção de abalroar com o Capitão-mor da nossa frota. E sendo onde a terra fazia um cotovelo, ao longo do qual, com a maré que descia, a água corria mais tesa, deu de súbito com Jorge Botelho, que estava ali emparado do tesão da água, em ua lanchara das de sua companhia, com té vinte homens; o qual, apartando-se do corpo da armada onde tinha o seu navio, determinou naquele de remo, por ser leve saber o que ia dentro. E quando viu a ponta da lanchara del-Rei que começava aparecer detrás do cotovelo, de improviso, sem saber o que vinha detrás, deu ua grita com os seus, e mandou desparar a artelharia que trazia, a qual, ainda que era meúda, ela e as espingardas dos seus derribaram logo alguns dos remeiros da lanchara del-Rei. Na qual, por o caso ser súbito, e mais cuidando que ali estava toda nossa frota, por ainda não descobrirem o anco que fazia a terra, houve entre todos tanto temor, que do remoinhar dos remadores, não sabendo o que haviam de fazer, ficou a lanchara del-Rei sem governo, e com o tesão da água ficou a galé atravessada no esteiro, que como era estreito, e ela comprida, não pôde ir diante nem atrás, e todolos que vinham após ela encalhavam, de maneira que ficou o rio coberto e travancado, sem dar passagem. Os nossos que estavam em baixo da maneira que dissemos, quando ouviram os tiros que Jorge Botelho tirou, remeteram todos aos batéis e lancharas que tinham, e remo em punho a quem chegaria primeiro, em mui breve espaço foram com ele, principalmente Tristão de Miranda, João Pereira e Francisco de Melo, por estarem mais dentro, pelo rio acima, que os outros, e foram a tempo que acharam já Jorge Botelho dentro da lanchara del-Rei, donde tinha despejado boa parte da gente; mas com a chegada deles toda se lançou ao mar, e per derradeiro o seu Rei, aos brados do qual eles não obedeciam. Finalmente, chegados todolos outros capitães, posesse os imigos em desbarato, muitos dos quais se salvaram, metendo-se per esses esteiros, com que a terra é retalhada; porque enquanto os nossos não poderam passar com a lanchara del-Rei atravessada, teveram eles tempo de o fazer. Com a qual vitória chegaram onde el-Rei de Campar estava, sem esperança daquele remédio; e recolhido ele com sua família, leixando a terra entregue a seus governadores, foi trazido com aquela honra a Malaca, e entregue do ofício de bendara, pera que era vindo. 417 Da chegada do qual a seis dias, Jorge de Albuquerque mandou aquela armada assi como viera, contra el-Rei de Bintão, parecendo-lhe que 415 o podiam destruir, como fizera a seu genro el-Rei de Linga, e mais naquela conjunção em que ele perdera lancharas e gente com munições de guerra; a capitania-mor da qual armada, em que iriam duzentos homens portugueses, levou João Lopes de Alvim, que servia de Capitão-mor do mar; mas não fizeram cousa algua, por el-Rei estar de maneira fortalecido, que havia mister maior poder de gente. Havendo quatro meses que estas cousas eram passadas, e el-Rei de Campar servia seu ofício, não com nome de bendara, mas de macobume, que acerca deles é como entre nós Viso-Rei,

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e isto por honra da dinidade real que tinha, a olho começou Malaca de se nobrecer, tornando-se muitos homens nobres viver a ela, que, por causa de não quererem ser governados per Nina Chetu, eram idos a viver à Jaua e a outras partes; com a vinda dos quais começaram de vir mercadores, e a terra se reformar. El-Rei de Bintão, quando viu que em tam breve tempo com a ida de seu genro Malaca se tornava povoar, e que muitos malaios, homens de estima que com ele estavam em Bintão, o leixaram e se vinham pera ela, ordenou, como homem sagaz que era, ua astúcia pera isto não ir mais avante, e seu 130v genro perder a vida, ou ao menos o crédito e ofício que tinha, vendo que, se nele muito estava, quantos homens o seguiam, todos o haviam de leixar, de maneira que, sem os capitães de Malaca lhe fazerem guerra, esta bastava pera o destruir. A qual astúcia foi mandar a todolos seus capitães, que trazia per estes portos da terra de Malaca, que qualquer barco que tomassem dos moradores malaios de Malaca, que lhe levassem todolos cativos, aos quais, como eram ante ele, fazia gasalhado e mercê, bradando com os capitães, porque lhe levavam cativos os seus naturais vassalos, que outra hora não fizessem tal cousa, senão que os castigaria; ante lhes mandava que, como achassem malaio morador em Malaca, que o tratassem como aos de Bintão, pois todos eram vassalos e filhos, e os de Malaca mais, pois era sua própria natureza; e que bem abastava aos coitados as perrarias que sofriam daquela cruel e perversa gente português. Porém ele esperava em Deus, ante de pouco tempo, de os remir daquele triste cativeiro per meio de seu filho Abedelá, Rei de Campar, o qual ele tinha posto em Malaca dissimuladamente, pera que, como visse tempo, lhe dar a cidade; e que, pera ajuda de o poder melhor fazer, lhe mandava alguas pessoas principais de Bintão, com título que se tornavam a viver a Malaca; por isso lhe rogava que, quando seu filho, el-Rei de Campar, se levantasse com a fortaleza, que fossem todos em sua ajuda, e assi o pedissem 418 a seus parentes e amigos da sua parte, e todos tevessem este negócio em segredo. Com estas e outras palavras enchia as orelhas daquela gente inocente, a qual, como era em Malaca, de orelha em segredo foi ter à praça, andando este rumor 416 entre os mouros, té que, per meio dos filhos de Nina Chetu, foi ter a Bertolameu Perestrelo, o qual havia pouco que chegara a Malaca, e servia de feitor, que, comunicando este negócio com seu irmão Rafael Perestrelo, deram conta a Jorge de Albuquerque. E posto que houve contradições no caso, principalmente de Jorge Botelho, representando a Jorge de Albuquerque as astúcias del-Rei Mahamude e bondade de Abedelá, Rei de Campar, por a muita comunicação que tinha com ele, todavia bastou pera se dar sentença que morresse, serem trazidos alguns homens daqueles que ouviram a el-Rei de Bintão o que atrás dissemos. Finalmente, ele morreu degolado na praça com solenidade de pubricação de sentença, a inocência do qual, ainda que Jorge Botelho a clamou, depois o tempo a descobriu. E se o povo tem licença de julgar - porque Bertolomeu Perestrelo foi grande acusador desta condenação à instância dos filhos de Nina Chetu, e ele não viveu mais depois que el-Rei de Campar foi degolado que dezassete dias - dezia o povo de Malaca que a alma do morto chamara a do vivo. E ainda parece que este clamor da justiça dos autos humanos chegou a mais; porque fez a morte deste Rei tanto escândalo no ânimo de todos, que poucos e poucos começaram os principais homens da cidade fugir dela, e iam viver a outra parte com temor de algua sentença; e como eles eram os ministros de virem à cidade todalas mercadorias e mantimentos, foi posta em tanta necessidade de fome, qual té então não tinha passado, em que claramente se viu de quanto mal fora causa a morte de Abedelá. E certo que na de Nina Chetu, e em a sua se pode ver ua pintura dos autos humanos quam diferentes fructos dão de ua própria raiz, pois um ofício matou dous homens: um gentio, homem de pouca sorte, que, usando mal de seu ofício, despovoou a cidade, e sem ser julgado, ele se condena à morte; e outro mouro, com título de rei, e que restitui as ruínas do outro, sem culpa vem a morrer

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per condenação de outrem.

LIVRO X 417 131 419 Capítulo Primeiro. Como Afonso de Albuquerque por alguas cousas o ano de catorze esteve provendo as fortalezas, no qual tempo mandou Pero de Albuquerque de armada a Ormuz, e a Diogo Fernandes, de Beja, a el-Rei de Cambaia, e a João Gonçalves de Castelo Branco ao Hidalcão; e da armada que deste reino partiu, Capitão-mor Cristóvão de Brito, que chegou a Goa em Setembro. Enquanto em Malaca passaram as cousas, de que no Livro precedente fizemos relação, as quais vão continuadas do Janeiro do ano de doze, que Afonso de Albuquerque se partiu dela, té o fim do ano de catorze, fez ele alguas na Índia, depois que veo do Estreito do Mar Roxo, que convém enfiarmos na ordem de nossa história. As quais cousas, ainda que não sejam de conquista e milícia, foram do governo do Estado da Índia, que não são de menos mérito, muitas das quais deram maior cuidado e paixão a Afonso de Albuquerque que as da guerra; ca os trabalhos dela acabam na glória de vencer os imigos; e os do governo fenecem em ódio, se quereis fazer justiça nos erros dos súditos. E peró que isto seja regra universal acerca daqueles que querem usar bem de seu ofício, particularmente Afonso de Albuquerque o experimentou depois que veo do Estreito, querendo emendar alguns desmanchos que achou, assi entre os capitães das fortalezas, como solturas nos oficiais da fazenda del-Rei; porque, como tinha feito duas viagens mui compridas, que foram a do Mar Roxo, em que se 420 deteve muito tempo, assi per novas falsas que os mouros davam de sua morte, como por as licenças que os homens tomam em ausência de seu superior, partidas as naus da carga da especearia pera este reino, Capitão-mor João de Sousa de Lima, começou fazer correição per as fortalezas. E depois que acabou, em que se deteve em Goa, partiu-se pera Cananor, onde se deteve 418 na mesma obra alguns dias, e di passou per Calecute, a ver a obra que se fazia na fortaleza, a qual achou já posta em boa altura, pola muita ajuda que o Samori pera isso mandou dar. O qual, tanto que soube que Afonso de Albuquerque era ali, se veo ver com ele, e nesta vista ambos acabaram de confirmar a paz que tinham assentado; porque, depois que ele, Samori, deu licença pera se fazer a fortaleza, assinando todalas capitulações da paz, alguas pessoas notáveis do seu reino, e principalmente modos que el-Rei de Cochi nisso teve, o faziam tornar atrás do que estava assentado. Assi que, nesta vista e na que Afonso de Albuquerque teve com el-Rei de Cochi, depois que lá chegou, se acabaram todalas cousas de Calecute; e no que ele, Afonso de Albuquerque, levou mais trabalho foi em contentar el-Rei de Cochi, porque não havia remédio pera consentir assentar-se paz com Calecute, tudo por causa de seu interesse, dando-lhe entender os mouros que, com a fortaleza feita em Calecute, se havia de passar lá todo o negócio do nosso comércio, com que perderia grande rendimento. Mas ele não dava entender que contrariava a paz por este fim, somente por respeito dos costumes que o gentio tem entre si em modo de religião, que é não assentar a parte ofendida paz com seu contrairo, senão depois que é satisfeita de todos males, danos e perdas que recebeu, e que o reino de Cochi, além de perder os príncipes que lhe mataram e tanta gente nobre, tinha perdida muita fazenda. E repetiu ele tantas vezes nestes males e danos, que foi necessário a Afonso de Albuquerque trazer-lhe à memória a morte de Aires Correa e do Marichal, té vir a lhe mostrar o braço esquerdo, que não mandava bem, dizendo que quem havia de pagar a el-Rei seu senhor os males e danos daqueles mortos, e tanta fazenda quanta tinha gastada, e a ele a aleijão de seu braço, tudo por vingar as cousas que o Samori passado tinha feito ao reino de Cochi? Com as quais razões, ficou el-Rei contente da paz (segundo já dissemos), quanto ao que mostrava de fora, posto que no peito lhe ficava outra cousa, como adiante se verá.

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Acabando Afonso 131v de Albuquerque de satisfazer a el-Rei de Cochi per esta maneira, começou de entender em prover no mais a que viera dar vista àquela fortaleza, e principalmente a se prover pera tornar outra vez ao Mar Roxo, pera que lhe convinha repairar naus e fazer alguns navios de remo, por andar minguado deles. Porque, com ter mais duas fortalezas, que eram as de Malaca e Calecute, e mais as que ele esperava ter no Mar Roxo e Ormuz, crescia tanto a obrigação do provimento delas e de outras muitas cousas do governo daquele Estado da Índia, que assentou aquele ano, que era de catorze, 421 não entender em outra cousa, pera o de quinze (querendo Deus) estar prestes. Porém, porque a gente, além de andar cansada, também estava pobre, e vindo o inverno, não se poderia bem manter, se a tivesse toda 419 junta em ua fortaleza, ordenou de dar saída a ua pouca, e a outra repartir per essas fortalezas. Com o qual fundamento ordenou desta maneira: que D. Garcia de Noronha invernasse em Cochi com parte da gente, pera com ela dar favor à nova fortaleza de Calecute, por as cousas dela estarem ainda mui frescas, e convinha dar resguardo à pouca verdade que os mouros tratam, e principalmente acerca daquela fortaleza, feita apesar de tantos; e com outra parte de gente ele, Afonso de Albuquerque, iria invernar a Goa; e outra, a que queria dar saída, era em ua armada de quatro velas pera andar na boca do Mar Roxo, entre o Cabo Guardafu e o de Fartaque. A capitania-mor da qual deu a Pero de Albuquerque, seu sobrinho, filho de Jorge de Albuquerque, e os outros capitães eram Rui Galvão de Meneses, filho de Duarte Galvão, Jerónimo de Sousa, filho de Rui Mendes de Vasconcelos, e António Raposo, de Beja, ao qual Pero de Albuquerque deu regimento que, passados os meses que podia andar naquela parage, se fosse a Ormuz arrecadar as páreas, que el-Rei devia do ano passado, e tratar com ele sobre as cousas da fortaleza, que ele, Afonso de Albuquerque, tinha começado, e di fosse descobrir a Ilha Baharém, que está no seo do mar da Pérsia, pegada na costa de Arábia. E nesta viagem que Pero de Albuquerque fez, tomou dez naus de presa, na fazenda das quais em Ormuz, onde a vendeu, fez muito dinheiro; e di cometeu ir descobrir a Ilha Baharém, e por causa dos tempos não pôde ir avante, e naquele caminho houve certas terradas del-Rei de Ormuz, que lhe tinha tomado um capitão do Xeque Ismael, per nome Mir Bubaque, que trazia navios armados per aquele estreito, o qual estava em Rexete, ua vila porto de mar na costa da Pérsia. E levemente concedeu este requerimento de Pero de Albuquerque, por ser capitão del-Rei de Portugal, com o qual ele sabia que o Xeque Ismael, seu senhor, desejava ter amizade. E quando el-Rei de Ormuz houve as terradas, não esqueceu a Pero de Albuquerque dizer-lhe que per ali veria quanto tinha ganhado em se fazer vassalo del-Rei seu senhor, pois a seu rogo aquele capitão do Xeque Ismael dera o que lhe tinha tomado, e mais assentara com ele de não fazer dano em cousa sua. E isto dezia Pero de Albuquerque a el-Rei e ao seu Governador Raix Nordim, porque davam escusas a se ali tornar fazer fortaleza, e que bem bastava ser ele vassalo del-Rei e pagar-lhe cada ano tributo, e que a fortaleza era matéria de escândalo, dando a isto muitas razões. Finalmente, recebidas as páreas, Pero de Albuquerque, passado o inverno, se partiu pera a Índia, onde chegou a salvamento. Neste mesmo tempo que Afonso de Albuquerque espediu Pero de Albuquerque com esta armada, mandou Diogo Fernandes, de Beja, a el-Rei de Cambaia assentar as cousas da fortaleza, que lhe tinha concedido em Dio, o qual Diogo Fernandes ia bem acompanhado com até vinte encavalgaduras, que 422 havia de tomar na cidade de 420 Surrate, de que era senhor Melique-Gupi, nosso amigo. E a pessoa segunda desta ida era James Teixeira, que havia de suceder, vindo caso pera isso, e Francisco Pais era escrivão da embaixada, e um Duarte Vaz, língua, com outros homens, todos gente limpa e bem tratados, como quem ia ao

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mais poderoso príncipe mouro daquelas partes da Índia. O qual, posto que fez muita honra a Diogo Fernandes, não lhe concedeu a fortaleza em Dio, dizendo que, se Melique-Gupi escrevera a Afonso de Albuquerque que ele a dava, tal não era, casa de feitoria si; e a fortaleza em Surrate, que o mesmo Melique-Gupi tinha, ou em cada um destoutros dous lugares - Maim e Bombaim. E porque, ao tempo que Diogo Fernandes andava na Corte del-Rei de Cambaia, achou Melique-Gupi fora da sua graça, e Melique-Iaz, à força de peitas e com muitas razões, ante el-Rei empedia isto, segundo o mesmo Melique-Gupi disse a ele, Diogo Fernandes, quando com ele se lá viu, não pôde haver outro despacho, e com este veo pera a Índia. E em retorno de muitas peças ricas, que ele, Diogo Fernandes, 132 levou a el-Rei, além de outras que mandou a Afonso de Albuquerque, foi ua alimária, a maior que a Natureza criou depois do elefante, grande sua imiga, e fere-o com um corno que tem direito sobre o nariz, de comprimento de dous palmos, grosso na raiz e agudo na ponta, à qual os naturais da terra de Cambaia, donde aquela veo, chamam ganda, e os gregos e latinos rinoceronte; e Afonso de Albuquerque a mandou a el-Rei D. Manuel, e veo a este reino, e perdeu-se em ua nau caminho de Roma, mandando-a el-Rei de presente ao Papa. E quando Diogo Fernandes se embarcou em Surrate, foi Melique-Iaz tam astucioso, que mandou Cide-Alé com quatro atalaias, que são barcos de remo, e que fosse trás ele manquejando, como que o não podia alcançar até Goa, e entregasse a Afonso de Albuquerque um grande presente que lhe mandava, dizendo ele, Cide-Alé, que Melique-Iaz lhe mandara que fosse dar estas cousas a Diogo Fernandes pera lhas trazer; e, chegando a Surrate, achara ser já partido; e não ousando tornar a Melique-Iaz com tal recado, tomara licença de vir té onde achasse Diogo Fernandes, e que lhe não pesava deste desastre, por ser azo de ir ver Sua Senhoria. E este artefício de Melique-Iaz era a dous fins: a ver Cide-Alé per si que armada fazia Afonso de Albuquerque; e o outro - querer saber como ele tomava a nova, que lhe Diogo Fernandes levava, de lhe não ser concedida a fortaleza em Dio; ao qual ele logo espediu, porque entendeu vir por espia, e não a mais, dando-lhe retorno do presente. Também neste tempo mandou ao Hidalcão João Gonçalves de Castelo Branco com dez encavalgaduras e oitenta piães da terra; e a causa de sua ida era sobre as terras firmes de Goa, que lhe Afonso de Albuquerque pedia a troco de outro requerimento da entrada dos cavalos da Pérsia, que ele, Hidalcão, queria, temendo que el-Rei de Bisnagá, com que ele tinha guerra, houvesse 421 esta entrada per Baticalá, que era sem porto, sobre o qual negócio cometera já grandes partidos a ele, Afonso de Albuquerque, e ele 423 trazia-os ambos suspensos neste requerimento pera o conceder a quem lhe fizesse melhor partido. E havia poucos dias que a Goa viera um embaixador del-Rei de Bisnagá com grande aparato, ao qual Afonso de Albuquerque fez muita honra; e posto que mostrasse vir visitá-lo da sua vinda do Estreito, e que se fizessem ambos em um corpo pera lançarem os mouros do reino Decão, e que ambos partiram o ganhado, tudo per derradeiro vinha acabar nestes cavalos. Mas nenhum deles os houve da maneira que requeriam, porque nenhum concedeu o que Afonso de Albuquerque pedia; e isto causou andar João Gonçalves com o Hidalcão muito tempo, sem trazer algua conclusão que aprouvesse a ele, Afonso de Albuquerque.

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421 132 423 Capítulo II. Como o ano de catorze partiram deste reino cinco naus, Capitão-mor Cristóvão de Brito, das quais despachadas alguas, que Afonso de Albuquerque mandou dar carga, ele se partiu com ua grossa armada pera Ormuz, onde chegou. Passados nove meses do ano de quinhentos e catorze, que Afonso de Albuquerque despendeu no governo das cousas da Índia, e nas que fez e ordenou no precedente capítulo, quando veo em Setembro, chegou a Goa Cristóvão de Brito, filho de João de Brito, que deste reino partiu por Capitão-mor de cinco naus; e os capitães de sua bandeira eram: Manuel de Melo, filho de Jane Mendes de Oliveira, Francisco Pereira Coutinho, Luís de Antas e João Serrão. E porque Luís de Antas chegou primeiro, Afonso de Albuquerque o mandou na mesma nau a Cambaia, pera trazer alguas sortes de mercadoria pera a carga, e perdeu-se nesta ida, salvando-se a gente, a qual nau el-Rei mandava que se entregasse a Cristóvão de Brito, que havia de ficar na Índia, e ele desse a sua a Luís de Antas; peró, com ela perdida, ficou Cristóvão de Brito na em que foi. Assi que, das cinco naus ficaram lá duas, e as outras foi Dom Garcia de Noronha carregar a Cochi com mais ua das que andavam lá, em que veo por capitão Pero Mascarenhas; e neste ano veo também Fernão Peres de Andrade com as suas que trouxe de Malaca, como dissemos. Partidas estas naus, despojou-se Afonso de Albuquerque de todolos outros negócios, e entendeu em os de sua partida pera um destes lugares, aonde el-Rei D. Manuel lhe mandou que fosse: ao Estreito do Mar Roxo ou a Ormuz. E como com Cristóvão de Brito fora um embaixador del-Rei de Ormuz, o qual ele enviara a este reino com alguns requerimentos acerca do fazer a fortaleza e 132v pagamento dos quinze mil xerafis de tributo, que 424 lhe Afonso de Albuquerque pôs, e el-Rei nestes requerimentos o remetia a ele, Afonso de Albuquerque; e nas cartas que 422 escrevia particulares sobre isso mostrava ter mais desejo de se acabar este negócio de Ormuz, posto que, quando falava nos do Estreito, per derradeiro leixava tudo em seu peito, segundo visse a desposição do tempo, quis Afonso de Albuquerque, estando já embarcado na armada em a barra de Goa, a vinte de Fevereiro do ano de quinhentos e quinze, ter conselho sobre isso com todolos capitães, os quais eram estes: D. Garcia de Noronha, Aires da Silva, Vasco Fernandes Coutinho, Jorge de Brito, Lopo Vaz de Sampaio, Pero de Albuquerque, Vicente de Albuquerque, Simão de Andrade, Rui Galvão de Meneses, Pero Ferreira, António Ferreira, Francisco Pereira, Diogo Fernandes, de Beja, Fernão Gomes de Lemos, Duarte de Melo, Nuno Martins Raposo, António Raposo, João de Meira, João Gomes, Manuel da Costa, Jerónimo de Sousa, João Pereira, Fernão de Resende, Dinis Fernandes de Melo, Silvestre Corço, Pero Corço, seu irmão, e Rui Gonçalves e João Fidalgo, ambos capitães da Ordenança. E além destes capitães, que haviam de ir nesta frota, eram também neste conselho D. João de Eça, capitão da cidade Goa, e D.Sancho de Noronha, alcaide-mor. E porque o embaixador que el-Rei de Ormuz mandou a este reino era natural da ilha de Sicília, e, sendo moço, fora cativo de turcos, e levado àquelas partes de Ormuz, onde o fizeram mouro, e com tal nome entrou neste reino, e, vendo o error em que andava, tornou-se reconciliar com a Igreja, e foi de cá com nome de Nicolau Ferreira, quis Afonso de Albuquerque, per os méritos, que já tinha, de fiel cristão, que estevesse naquele conselho; e mais pola prática, que por muitos dias tevera com ele, sabia ser necessário estar ele presente.

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Assi que, juntas estas principais pessoas, e o secretário Pero de Alpoém, propôs-lhe Afonso de Albuquerque o que lhe el-Rei mandava acerca de ir fazer ua fortaleza no Mar Roxo, e também da posse da fortaleza de Ormuz; e que, quanto à ida do Mar Roxo, ali eram presentes muitos, que experimentaram os trabalhos que o ano passado acharam naquela viagem. O que tinha sabido daquelas partes, depois que de lá vieram, era o que geralmente andava todolos anos per boca de mouros: que vinham rumes, o que ele havia por fábula pelo que souberam, quando estavam no Estreito - não haver em Suez mais que uns poucos de cascos começados, que (segundo havia tempo que ali estavam), eram mais pera o fogo que navegar; e mais o Soldão não estava pera fazer a armada pera a Índia, tendo tanto que entender em defender sua pessoa e seu estado. Quanto às cousas de Ormuz, ali estava Nicolau Ferreira, o qual, depois que chegara, nunca outra cousa fizera senão perguntar polo estado delas; e o que tinha sabido per muitos mouros párseos que ali andavam, era que el-Rei de Ormuz tomara a oração e carapuça do Xeque Ismael, como homem 425 que se queria entregar a ele com título de súdito. O qual Xeque 423 Ismael, se ua vez metesse o pé em Ormuz, como vezinho de ante a porta, e mais tam poderoso que era um freo naquele tempo do Turco, havia de ser mui mau de lançar fora; e segundo o que Pero de Albuquerque, que estava presente, contou do seu capitão Mir Bubaque, que estava em Rexete, todo aquele andar tomando as terradas de Ormuz, era querê-lo assombrar, que se fizesse seu vassalo. Quanto o que tocava a ele, Afonso de Albuquerque - que era fazer armada prestes pera cada um destes lugares, que lhe el-Rei mandava que fosse - todos a viam, na qual estavam embarcados mil e quinhentos portugueses e seiscentos malabares e canaris; portanto pedia que cada um desse seu voto a qual destes dous lugares importava mais ao serviço del-Rei, seu senhor, acudir. Propostas estas cousas destes dous lugares, e examinando bem a necessidade que havia de acudir a cada um deles, per voto geral foi assentado que primeiro se devia de ir a Ormuz que ao Estreito. Finalmente, Afonso de Albuquerque ao seguinte dia, que era Quarta-feira de Cinza, se partiu, levando vinte sete velas, de que as catorze eram naus de alto bordo, sete caravelas, e as outras navios de remo; e deste a vinte e um houve vista da terra entre Maceira e o cabo Rossalgate, onde lhe deu ua grã trovoada, e di a quatro dias vieram sobre a vila Mascate. No qual lugar estava ua armada de navios de remo del-Rei de Ormuz, que guardava a costa por causa dos nautaques, que da outra se passavam àquela a prear; e como houveram vista da nossa armada, fizeram-se em outra volta com temor. Afonso de Albuquerque, 133 porque sabia que el-Rei de Ormuz trazia ali aquelas velas por guarda dos ladrões, não quis mandar trás elas, e correu de longo à vila Curiate, onde esteve dous dias tomando água. E aqui soube como Raix Hamete, um mouro párseo de nação, e sobrinho de Raix Nordim, filho de um seu irmão, o qual ele, por lhe fazer bem, trouxera ao serviço del-Rei de Ormuz, estava feito um tirano, por o tio ser já homem de idade, com o mais que adiante diremos. Partido Afonso de Albuquerque de Curiate mui cheo da tirania deste mouro, chegou ao porto de Ormuz a vinte seis de Março, já tarde, vindo logo a ele Hacém Alé da parte del-Rei a o visitar com presente de refresco, em companhia do qual vinha Miguel Ferreira, que ele tinha enviado ao Xeque Ismael. E a causa que moveu a ele, Afonso de Albuquerque, mandar este Miguel Ferreira, tendo já por experiência que podia correr risco de o matarem em Ormuz, ou de o não leixarem passar, como fizeram a Rui Gomes de Carvalhosa, e ao companheiro que ia com ele, quando os mandava com outro tal recado, foi porque, chegando ele do Mar Roxo em Goa, veo a ele um mouro párseo, o qual viera em companhia de um embaixador do Xeque Ismael a todolos capitães e príncipes do reino Decão, que quisessem tomar a oração e carapuça da sua seita de Alé. O

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qual embaixador, 424 achando toda 426 a Índia chea do nosso nome e potência de armas, e que ninguém podia seguramente navegar aqueles mares senão com um salvo conduto do Capitão-mor ou dos capitães das nossas fortalezas, e que ele havia de tornar per Chaúl, onde desembarcara, pera esta passagem quis aprazer a Afonso de Albuquerque, e mandou-o vesitar com um presente de cousas da Pérsia e oferecimentos da parte do Xeque Ismael, mostrando desejar ter amizade e prestança com el-Rei de Portugal e com ele, Capitão-mor, pois estava naquelas partes da Índia em seu lugar. Afonso de Albuquerque, recebido o seu recado com muito contentamento, não quis despachar este mouro em Goa, e levou-o consigo a Cananor, e di o mandou a Cochi, tudo a fim que visse nossas fortalezas e almazéns cheos de artelharia e munições de guerra; e quando despachou este mouro, mandou ao embaixador retorno do seu presente, com grandes agardecimentos de sua visitação, pedindo-lhe que, quando se quisesse tornar pera a Pérsia, houvesse por bem de levar em sua companhia um seu mensageiro, que queria enviar ao Xeque Ismael; fazendo ele, Afonso de Albuquerque conta que poderia ir mui seguro com este embaixador, e desta causa nasceu mandar ele este Miguel Ferreira. A substância da qual ida eram oferecimentos gerais; e que el-Rei de Portugal, seu senhor, era tam poderoso e tam liado com os reis e príncipes da Cristandade, vezinhos ao Turco, que, querendo ele, Xeque Ismael, fazer-lhe por sua parte guerra, ele lha faria pela sua, e assi outras cousas desta qualidade, acerca do que houvesse mister na Índia. E ao tempo que este embaixador partiu, a seu requerimento Afonso de Albuquerque lhe mandou dar embarcação em Chaúl, e quantos seguros e provisões ele houve mister; donde sucedeu, quando Miguel Ferreira foi ante o Xeque Ismael, fazer-lhe muito gasalhado, e muitas vezes esteve em prática com ele, perguntando-lhe mui meudamente por nossas cousas, assi do Estado da Índia como de Portugal, e de todolos príncipes cristãos. E quando o quis espedir, ordenou de vir com ele o próprio mouro que o seu embaixador mandou a Afonso de Albuquerque, o qual também era chegado com ele, Miguel Ferreira, a Ormuz, e trazia um grande presente a ele, Afonso de Albuquerque. E como todas estas cousas eram em acrescentamento do estado del-Rei D. Manuel um tam poderoso homem como era aquele Rei da Pérsia procurar sua amizade, e isto era ordenado per ele, Afonso de Albuquerque - quando viu Miguel Ferreira, teve tanto contentamento disso, como se vencera ua grande batalha; e muito maior depois que lhe contou as cousas que passara com o Xeque Ismael, em que vira nele quanto estimaria ter amizade e prestança com el-Rei D. Manuel, até dizer um dia ao seu físico mor, que lhe mandaria cortar a cabeça, se não desse são a ele, Miguel Ferreira, que acertara de adoecer.

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425 133 427 Capítulo III. De alguas cousas que entre el-Rei de Ormuz e Afonso de Albuquerque passaram, té ele ser entregue da fortaleza que tinha começado da primeira vez que ali veo. 133v Passado aquele dia em que Afonso de Albuquerque foi vesitado del-Rei per Hacém Alé, que lhe trouxe o refresco, ao seguinte mandou per Duarte Vaz, língua, dizer a el-Rei e a Raix Nordim como em sua companhia vinha o embaixador, que el-Rei Ceifadim, seu irmão, mandara a Portugal; e porquanto ele era tornado à Fé de Cristo, em que nascera, e achava o Rei que o mandara e seu Governador, Coge Atar, mortos, e não ousava de ir ante ele sem sua licença, lhe pedia que houvesse por bem de lhe mandar reféns, um filho ou sobrinho de Raix Nordim, enquanto lhe ia dar sua embaixada, porque assi lhe escrevia el-Rei, seu senhor, que o fizesse. E também lhe fazia saber que ele mandava vigiar toda a Ilha em torno pera não entrar na cidade mais gente de fora, somente alguns mercadores que trouxessem mantimentos e mercadorias; e pera a passagem da terra firme e serviço da água e outras cousas, que cada dia vinham do Mogostão à cidade, ele ordenaria certas pessoas com terradas pera isso; portanto que mandasse lançar pregão, que ninguém fosse nem viesse senão nestas terradas; e mais lhe pedia que na cidade houvesse todo assossego sem alvoroço algum, porquanto ele era vindo pera bem de todo seu reino. Partido Duarte Vaz, língua, com este recado, não tardou com ua carta del-Rei pera Afonso de Albuquerque, em que lhe escrevia palavras brandas e humildes, e que se faria quanto mandava; e entregue um filho de Raix Nordim, que veo por refém, mandou Afonso de Albuquerque o embaixador Nicolau Ferreira, acompanhado de Pero de Alpoém, secretário, e de alguns criados del-Rei, que o levaram honradamente. O qual levava del-Rei D.Manuel duas cartas, em que respondia aos requerimentos, que ele, embaixador, trouxera, a resolução dos quais ele remetia a Afonso de Albuquerque, a quem ele escrevia sobre isso, do qual podia saber sua reposta; e a outra carta era sobre um mouro que viera a Portugal em companhia dele, Nicolau Ferreira, que era caçador de ua onça que lhe ele enviara, o qual se tornara cristão, e com ela o enviara ao Papa, a Roma. Chegado este Nicolau Ferreira ante el-Rei, ele o recebeu com gasalhado, mostrando ter grande contentamento de o ver; e todas estas mostras de bom recebimento eram ordenadas per Raix Hamede, que estava 428 à ilharga del-Rei, per boca do qual ele dezia e fazia tudo, sem ousar de acrescentar nem deminuir algua cousa, tam assombrado o tinha aquele tirano. Nicolau Ferreira, como já não era da sua jurdição, dadas as cartas, tornou-se pera onde estava Afonso de Albuquerque, ao qual deu 426 conta do que passara com el-Rei, e o que sentia dele acerca da pouca liberdade que tinha, por estar assombrado de Raix Hamede, e que seu voto era: qualquer cousa que se houvesse de fazer, ser logo, porque aquele mouro não tevesse espaço de urdir algua maldade. Afonso de Albuquerque, chamados todolos capitães, fez diante deles que Nicolau Ferreira resumisse o que lhe dissera; e, praticado o modo que teriam em começar este negócio da entrega daquela cidade, assentaram nisto, que se logo fez: Per Diogo Fernandes, de Beja, e o secretário Pero de Alpoém, mandou Afonso de Albuquerque pedir a el-Rei, que lhe mandasse fazer entrega da fortaleza que ele fizera; e para isso se abrisse a porta que tinha pera o mar, e fosse fechada outra que estava pera a cidade; e mais lhe

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mandasse dar uas casas vezinhas à fortaleza, as quais havia mister pera apousento de alguns capitães, porque ele vinha de vagar alguns meses, e não podiam estar sempre no mar; e assi lhe mandasse os seus governadores com o contrato da entrega que ele fez daquele reino a el-Rei Ceifadim, por ser mui necessário na prática que havia de ter com eles. Foi a reposta deste recado, que el-Rei deu, que ele praticaria sobre isso aquela noite com todolos seus governadores, e pela menhã responderia a tudo; e como homem que temia escandalizar, se tardasse, em amanhecendo, mandou visitar o Capitão-mor per Hacém Alé com um presente de jarras de tâmaras e outro refresco, dizendo que podia mandar as pessoas que lá foram, pera lhe dar a resposta do que ele, Capitão-mor, mandara pedir, à qual ele mandou o mesmo secretário e Manuel da Costa. E porque, primeiro que viesse a concluir, houve entre eles muitos recados sobre a entrega da fortaleza, que el-Rei não queria dar naquele lugar, por ser mui vezinha às suas casas, nem menos os reféns, enquanto se ela acabasse, per fim de todolos recados veo Raix Nordim, seu Governador, a tomar conclusão em tudo. Ao qual, por ser homem velho e gotoso, concedeu Afonso de Albuquerque que ele não 134 subisse acima à nau, e desceu abaixo a ouvir o que queria a ua galé, onde Manuel da Costa fora, de que era capitão, em que vinham muitas pessoas, nobres, que Afonso de Albuquerque mandara pera o trazerem honradamente. Em companhia do qual vinha Raix Hamim, irmão de Raix Hamede, por olheiro e escuita por parte do irmão, temendo que dissesse ele, Raix Nordim, a Afonso de Albuquerque a força que lhe tinha feito e a sujeição em que 429 el-Rei estava, porque sabia que este Raix Nordim sempre se inclinara a nossas cousas. Afonso de Albuquerque, porque foi logo avisado disso por Duarte Vaz, língua, em Raix Nordim entrando na galé, o tomou pela mão, dizendo:. - Vós e eu somos velhos; vosso sobrinho e meu sobrinho D. Garcia são mancebos: vão falar ambos em cousas de sua idade, e nós falaremos em as da nossa. E per este modo ficou só com Raix Nordim. E na 427 prática que ambos teveram, veo ele a conceder em tudo o que Afonso de Albuquerque pedia, conformando-se com os contratos que ele assentara com el-Rei Ceifadim e Coge Atar, já defuntos; e no fim destes concertos, segundo o costume da terra, Afonso de Albuquerque mandou vestir a Raix Nordim ua cabaia de brocado, e lhe lançou um ramal de contas grossas, que teriam cem cruzados, e ao sobrinho outra cabaia de cetim cramesim, com botões de ouro per toda a dianteira, e ao mouro Hacém, dos recados, cinco côvados de escarlata e cinquenta cruzados. E pera el-Rei mandou-lhe entregar um colar de ouro esmaltado rico, e ua bandeira das armas de Portugal, pera a mandar arvorar em suas casas e ser notório a toda a cidade a paz que tinham assentado; e assi lhe deu ua provisão pera que todolos barcos e terradas podessem ir à terra firme trazer todalas mercadorias e mantimentos que quisessem, com tanto que não viesse gente de armas em nome de mercadores. Acabado este auto de paz, foi Raix Nordim tornado à cidade com grande triunfo de batéis e festa de trombetas, e à partida da nau tirou toda a artelharia da frota, a que respondeu a que el-Rei tinha na cidade; e depois que a bandeira foi arvorada nas casas del-Rei, se dobrou a festa da artelharia. Afonso de Albuquerque, como no rematar das cousas tinha um espírito apressado e inquieto, vendo que, ao outro dia, que era sábado, béspora de Ramos, a porta da fortaleza não era aberta, quando veo ao Domingo, mandou Tomás Fernandes, mestre das obras, com certos pedreiros e todo necessário a seu ofício, pera abrir este portal, e no caminho acharam Hacém Alé, que vinha com recado a Afonso de Albuquerque, que mandasse oficiais pera isso, porque os seus não se atreviam a o fazer à sua vontade, ao qual respondeu que já os mandava. Em guarda dos quais, com gente, mandou D.Álvaro de Castro e António de Azevedo; e quando veo à noite, que soube ser o portal aberto, foi-se lá com todolos capitães, e chegando à entrada dele, pôs-se em giolhos com as mãos levantadas, dizendo:

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- Assi como tu, Senhor, em tal dia como hoje entraste em Jerusalém e foste recebido de todo o povo por verdadeiro Rei e Messias, assi apraza a ti que nós, teus fiéis, sejamos hoje recebidos em nome del-Rei D. Manuel, cujas armas traz em memória das tuas cinco chagas, com toda paz e obediência, pera que o teu nome seja aqui conhecido e venerado em sacrefício de louvor, pois te aprouve dar-nos esta cidade sem sangue. Vista a fortaleza, que já estava despejada de todo, e tornado às naus, 430 ao outro dia, começou-se de pôr mãos à obra com tanta deligência, que quando veo Quarta-feira de Trevas, estava feita ua tranqueira, que os da cidade não podiam entrar por aquela porta, e os nossos ficavam com a serventia do mar, sem poderem ser empedidos, porque a tranqueira era forte e defensável com a artelharia que tinha. Acabada de segurar esta serventia, mandou Afonso de Albuquerque 428 a Manuel da Costa, que era feitor de toda a armada, que levasse todalas mercadorias que tinha e se metesse na fortaleza, porque vissem os mouros que também havia de servir de casa de comércio, como de fortaleza; e ele, Afonso de Albuquerque, apousentou-se em uas grandes casas que lhe despejaram, que serviam de hospital, a que eles chamam madraçal, as quais eram junto da fortaleza. E os capitães, com toda a gente de armas, se apousentaram em outras casas, e, dentro da tranqueira, nos lugares que lhe deram por estância, té se acabar a obra da fortaleza, em que se haviam de recolher.

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428 134v 430 Capítulo IV. Como Afonso de Albuquerque recebeu um embaixador do Xeque Ismael com um presente que lhe trazia, e o despacho que houve de sua embaixada. Afonso de Albuquerque como, enquanto durou segurar este lugar da fortaleza, foi mui ocupado, e mais não queria que este recebimento fosse no mar, per honra da pessoa, cuja era a embaixada, entreteve o embaixador do Xeque Ismael, que viera com Miguel Ferreira, e também, de indústria, porque vissem os mouros de Ormuz o presente que lhe mandava este príncipe, que naquele tempo era terror da Pérsia e a todalas províncias suas vezinhas, como homem que desejava de nos ter por amigos e contentes. E pera este dia de sua vinda a ele mandou à porta da fortaleza fazer um cadafalso com estrado alto, coberto de alcatifas e toldado de panos de seda, e a parede, a que se havia de encostar, armada de tapeçaria, e um docel de brocado com ua cadeira rica per sua pessoa, e outra pera o embaixador, ambas guarnecidas de veludo carmesim e ouro, e pelas ilhargas muitas almofadas de brocado, com todo o mais que compria pera aquele auto. Ordenadas todalas cousas pera esta hora da vinda do embaixador, assentou-se Afonso de Albuquerque em sua cadeira, vestido segundo o estado com que o recebia, e derredor dele os capitães e fidalgos principais vestidos de festa, e obra de seiscentos homens armados, posto em ordenança, os quais estavam ao longo da praia em rua, per onde o embaixador havia de passar, 431 e outra gente armada mais limpa em cerco do estrado; e, afora esta gente armada, havia pela praia muita gente solta do povo da cidade. El-Rei de Ormuz, a este tempo, com seus governadores e mires, que são os nobres do reino, pôs-se às janelas de suas casas, que caíam sobre a vista deste lugar per onde entrava o embaixador, o qual era acompanhado de D. Garcia de Noronha, como pessoa principal, e de muitos fidalgos e cavaleiros, trazendo o embaixador o presente ante si nesta ordem: Vinham dous homens a cavalo, e cada um deles trazia ua onça, os quais sabiam caçar montaria com elas, e logo a estes cavalos seguiam outros, acobertados 429 com saias de malha de armas à sua usança, e trás os cavalos vinha o presente, que eram jóias de ouro, peças de brocado e de seda, pedras turquesas por lavrar, assi como saem da mina, o que tudo podia valer até três mil cruzados; as quais peças traziam homens em bacios de prata de água às mãos, altos, todos um ante outro, e de trás vinha o embaixador com D. Garcia que o acompanhava. E peró que ele era festejado com as trombetas e atabales de Afonso de Albuquerque, que vinham diante dele, tanto que foi na praia, desparou toda nossa artelharia, que apagou todolos instrumentos e rumor da gente, que era quanta havia na cidade. Subido o embaixador ao cadafalso onde Afonso de Albuquerque estava em seu estrado, ele se alevantou da cadeira e se alargou dela um espaço; e, chegado ao embaixador, fazendo-se entre eles cortesia, cada um à sua usança, foram-se assentar nas cadeiras, e depois de o embaixador estar assentado, meteu na mão a Afonso de Albuquerque duas cartas, ua pera el-Rei D. Manuel e outra pera ele; a del-Rei guardou Afonso de Albuquerque, e a sua deu ao secretário, Pero de Alpoém, que tinha à ilharga. Dadas estas cartas, apresentou o embaixador o presente; e porque entre as peças vinha ua cinta de ouro e ua espada, por comprazer ao embaixador, que lho pediu, Afonso de Albuquerque cengiu tudo, por entre eles se haver em sinal de paz e amor. Passado este auto da entrega do presente, Afonso de Albuquerque começou de lhe perguntar pela desposição do Xeque Ismael e de sua mulher e filhos, e assi outras cousas gerais daquelas chegadas, e depois pola dele, embaixador, e do trabalho do caminho. Na qual prática

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esteveram pouco espaço, sem tratarem de outra cousa, remetendo Afonso de Albuquerque o mais pera se verem devagar, depois que descansasse de tam comprido caminho como fizera; e com isto o espediu, sendo levado per Dom Garcia à sua pousada, com a mesma pompa de companhia como o trouxe, ao qual Afonso de Albuquerque mandou fazer toda a despesa de sua pessoa e casa, enquanto ali esteve. E quando veo à segunda vista, que começou tratar nas cousas a que era enviado, porque a carta que ele, embaixador, trazia pera ele, Afonso de Albuquerque, era somente de crença, passadas ofertas gerais, que deu da 432 parte do Xeque Ismael, e quanto desejava ter amizade com el-Rei D. Manuel, e haver entre eles 135 comunicação de obras, entre alguas cousas que apontou, foram duas importantes às cousas de Ormuz: ua, que os dereitos das mercadorias, que da Pérsia entravam em Ormuz, fossem dele, Xeque Ismael; e a outra, que lhe desse lugar a certa gente sua pera passar, per Baharém e Catifa, à terra de Arábia. E porque, polo que se adiante dirá na morte de Raix Hamede, por sua causa o Xeque Ismael se tinha por senhor de Ormuz, e este embaixador e presente que mandava, era cuidando que ele, Afonso de Albuquerque, estaria na Índia, e não em posse dele, entendeu Afonso de Albuquerque que estas duas cousas que o embaixador 430 pedia, serem movidas e industriadas per Raix Hamede e per Abrahém Beque, um capitão do Xeque Ismael, que ali estava com título de vir comprar certos cavalos de Arábia, e que o embaixador as não trazia em sua instrução. E, além destas duas cousas, lhe pediu que lhe desse um porto na Índia, onde os seus naturais viessem seguramente fazer seus negócios; e assi ajuda per mar pera tomar um lugar, que está entre a terra de Jasque de Ormuz, e Diulcinde, ao qual chamam Guadel, donde os nautaques, que habitam aquela costa, saem com armadas saltear as naus que per ali passam, por quanto aquele porto de Guadel era do senhorio del-Rei de Macrão, seu vassalo, o qual às vezes se lhe rebelava com o favor que tinha do mar. A reposta das quais cousas, posto que não foram logo naquele dia, Afonso de Albuquerque lha deu per fim do seu despacho, dizendo que, quanto aos direitos das mercadorias da Pérsia que entrassem em Ormuz, os gastos das armadas, que continuadamente andavam contra os nautaques, eram tam grandes, e assi a despesa que se fazia com a gente que estava em guarda e defensão das vilas e lugares da costa da Arábia, que em nenhua maneira se podiam alargar os tais dereitos; porque a principal renda que Ormuz tinha, com que sustentava seu estado, eram os dereitos da entrada e saída das mercadorias. Quanto à passagem pera a terra de Arábia, e assi porto na Índia, e ajuda pera tomar o lugar de Guadel, era mui contente, com tanto que as mercadorias que viessem da Índia pera Ormuz não lhe dessem per o porto de Guadel nenhua saída, e leixassem vir as naus sua via. E com esta reposta lhe fez oferecimentos gerais, que não penhoram muito, principalmente ajuda contra o Soldão do Cairo e o grão Turco, seus imigos. Despachado este embaixador quanto a seus requerimentos, disse-lhe que ao tempo de sua partida ele, Afonso de Albuquerque, tinha assentado de mandar em sua companhia um embaixador em nome del-Rei de Portugal, seu senhor, ao Xeque Ismael. E porque, ante que este embaixador partisse, o do Xeque Ismael esteve dous meses em Ormuz, primeiro que digamos a partida deles, entraremos nas cousas que Afonso de Albuquerque fez neste tempo.

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430 135 433 Capítulo V. Em que se diz que homem era Raix Hamede, que tinha sujeito a el-Rei de Ormuz; e como Afonso de Albuquerque se viu com el-Rei, nas quais vistas foi morto Raix Hamede, tirano, e Ormuz despejado de todolos seus parentes e el-Rei posto em sua liberdade. Ao tempo que Afonso de Albuquerque tomou Ormuz, reinava nele el-Rei Ceifadim, e era seu governador Coge Atar, com quem ele assentou o contrato das páreas, que ele, Ceifadim, havia de pagar a el-Rei D. Manuel, segundo escrevemos. Morto Coge Atar, ficou Raix Nordim por governador 431 del-Rei Ceifadim, ao qual, per sua morte, sucedeu um seu irmão, homem mancebo, ficando por seu governador o mesmo Raix Nordim. O qual, como era homem já de idade, posto que tivesse filhos, por ser mais senhor do ofício e segurar sua pessoa, e mais por dizerem ser ele causa da morte do Rei passado, trouxe da Pérsia, das comarcas de Raxete e Xilau, donde ele era, alguns parentes, entre os quais foi um seu sobrinho, filho de um seu irmão, homem de trinta anos, alvo, de boa presença, cavaleiro sabedor nas cousas da guerra, e naturalmente soberbo, astucioso, ao qual chamavam Raix Hamede, e era capitão do Xeque Ismael. Este, depois que viu o modo do reino e el-Rei ser mancebo, entregue a Raix Nordim, começou logo de se ordenar pera 135v o que ao diante fez: meteu em Ormuz três irmãos e tantos primos e parentes, que seriam té vinte pessoas, e com elas veriam quinhentos frecheiros, metendo-os poucos e poucos. Os quais parentes, pola razão que tinham com Raix Nordim, eram estimados de toda a cidade, principalmente por causa de Raix Hamede, que já neste tempo tinha muita parte em casa del-Rei. Este Raix Hamede, como se viu favorecido com tantos irmãos e parentes, concebeu em si dar aquele reino de Ormuz ao Xeque Ismael, cujo capitão ele fora, parecendo-lhe que com qualquer pensão que desse ao mesmo Xeque Ismael, ficaria ele por Rei, com o qual fundamento começou ordenar suas cousas a este fim. E havendo um ano que entrara em Ormuz, pediu a el-Rei que lhe fizesse mercê da governança que Coge Atar tevera e assi das suas casas, e outros requerimentos, de que el-Rei não ficou contente e se escusou disso por então; e como era moço, vendo-se assombrado dele, pola posse que queria tomar de sua pessoa e casa, praticou este caso com Raix Nordim, e assentaram de o mandar por capitão de ua armada de terradas contra os nautaques, a qual ele mesmo fez à sua vontade, e pagou à gente de soldo. Mas tanto que partiu de Ormuz, como quem tinha mais olho em se fazer senhor do reino, que de ser capitão, tornou logo de noite às casas del-Rei, e polo favor que tinha de dous irmãos, que lá dormiam e ficaram 434 ordenados pera isso, foram-lhes as portas abertas, e entrou com aquele ímpeto de gente que levava até ele chegar onde el-Rei jazia com sua mulher, pondo-lhe ua espada nos peitos, que o queria matar. Ao qual el-Rei, com muita piedade, pediu que o não quisesse matar, e que tomasse de seus tesouros e do reino quanto quisesse; ao que ele respondeu que não queria mais dele, senão saber que lhe dava a vida. Finalmente, per este modo ele se apoderou da pessoa del-Rei, e prendeu o tio Raix Nordim e a seus filhos, e não quis matar el-Rei, porque não estava ainda tam poderoso, que podesse conseguir seu intento naquele tempo, e contentou-se com ficar absoluto senhor do reino, sem el-Rei ter 432 mais liberdade que um cativo, e de sua fazenda não lhe dava mais que cem xerafis de ouro cada ano pera seu folgar.

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Afonso de Albuquerque, chegando a Curiate (como dissemos), soube parte destas cousas, e depois que foi em Ormuz, mais particularmente outras; e ante de ter posse da fortaleza, não quis saber de Raix Nordim se era verdade o que lhe diziam deste tirano. Porém, no dia que recebeu o presente de Xeque Ismael, esteve com ele, do qual soube tudo, e ainda aqueixando-se do mau tratamento que lhe tinha feito, tendo-o sempre preso, té a sua chegada. Dizendo mais que a causa de alguas dúvidas que el-Rei tevera acerca do entregar a fortaleza, fora por parte dele, Raix Hamede, e que el-Rei desejava muito de se ver fora dele, e pedia a ele, Afonso de Albuquerque, como a pai, que lhe desse a isso algum remédio. Afonso de Albuquerque, assi por estes requerimentos del-Rei, como porque ele, Raix Hamede, té então não o tinha mandado vesitar, nem mandou recado algum, passando-se tantas cousas de que ele era autor, sem mostrar que entrevinha nelas, tornou suspeita do que ele, Raix Hamede, trazia no pensamento, que era dar Ormuz ao Xeque Ismael, porque viu ele, Afonso de Albuquerque, sinais pera isto suspeitar dele. Os quais eram que, por intercessão sua, tinha el-Rei tomado a carapuça dele, Xeque Ismael, e mandado que na mesma mesquita se dissesse a sua oração e se apagasse toda a outra cerimónia; e assi achou Afonso de Albuquerque, chegando a Ormuz, Abrahém Beque, capitão do Xeque Ismael, que tem suas terras mui vezinhas às de Ormuz, homem mui principal, e estava ali com sete ou oito servidores, e toda outra gente sua tinha na terra firme. E perguntando ele, Afonso de Albuquerque, que fazia ali Abrahém Beque, um homem tão notável, disseram-lhe, que era vindo a mandar quinze ou vinte cavalos a Cambaia, e a certas cousas do Xeque Ismael, o que lhe não pareceu cousa conveniente ua tal pessoa vir a tão pequeno negócio. Assi que, esguardando todas estas cousas, que eram mui claros indícios, dissimulou-os pera seu tempo, e por tomar conclusão com ele, Raix Hamede, lhe mandou alguns recados, dizendo também, entre outras palavras, 435 que folgaria que se vissem ambos; ao que ele respondeu que seria quando se ele, Afonso de Albuquerque, visse com el-Rei. O que Afonso de Albuquerque dissimulou, e começou de tratar nesta vista entre ele e el-Rei, e houve por reposta que el-Rei era contente, e isto seria à porta de fora das casas del-Rei, onde se armaria ua tenda, em que ambos estevessem. Ao que Afonso de Albuquerque respondeu que, sendo ele Capitão-mor de quatro naus, el-Rei 136 Ceifadim, seu irmão, lhe viera falar fora de sua casa em um cerame, e que ao presente era Governador da Índia, que com seus poderes representava a pessoa del-Rei de Portugal, seu senhor, cujo vassalo e tributário ele, Rei, era; por tanto lhe havia de vir falar a sua casa, 433 e não ele à sua. O qual negócio chegou a tanto por parte de Raix Hamede, que quási se pôs em rompimento de guerra, ante que conceder ir el-Rei a casa dele, Afonso de Albuquerque; peró Afonso de Albuquerque levou tudo per pontos brandos, té que se assentou que el-Rei iria a sua casa, e havia de ser com condição que nela não estevesse gente armada, somente os capitães sem armas, o que lhe Afonso de Albuquerque concedeu, contanto que a outra gente de fora das casas havia de estar armada, porquanto el-Rei era costumado por guarda de sua pessoa, quando saía fora, levar seus frecheiros e homens de armas. E também pelo mesmo modo os que entrassem com el-Rei, na casa onde ele, Afonso de Albuquerque, estevesse, não levassem armas. Ordenado o dia em que se haviam de ver per este modo, mandou Afonso de Albuquerque armar toda a gente de armas, a qual estevesse à porta que saía pera a praia, e toda a outra gente de ordenança estevesse armada em suas pousadas, e tam prestes que, em lhe fazendo um certo sinal de um eirado das casas dele, Afonso de Albuquerque, acudissem à rua. E assi mandou aos capitães que haviam de estar com ele, que tevessem punhais e as outras armas os pajes que os haviam de aguardar à porta. Ordenadas estas cousas, quando veo a hora da vinda del-Rei, porque tardava, mandou-lhe Afonso de Albuquerque dizer que o secretário Pero de Alpoém, e Alexandre de Taíde, língua, que

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estava esperando por ele e levaram consigo as trombetas pera virem com a pessoa del-Rei. Aos quais Raix Nordim, que os veo receber à porta, disse: pera que era tanta gente de armas como o Capitão-mor tinha consigo? Ao que Pero de Alpoém respondeu, que ele não tinha consigo senão gente desarmada, e que a outra de fora, posto que armada estevesse, ele o podia fazer, porque assi se assentou, e que outro tanto podia el-Rei fazer, somente os que entrassem com ele. Acabadas estas dúvidas e receos, saiu el-Rei de sua casa a cavalo com trombetas e atabales diante, e seus frecheiros em ordenança; e Raix Hamede, como não lhe segurava o ânimo aquela saída, tomou obra de trezentos deles e foi ter à porta de Afonso de Albuquerque, entrando como homem alvoroçado, e quis meter consigo, com um presente que levava, obra de cinquenta homens armados de armas secretas, que lhe D. Garcia de Noronha, que estava à porta, não consentiu, por estar ordenado que entrasse ele só. Ante, 436 como quem o vinha receber, e que despejavam a gente pera lhe dar entrada, chegou D. Garcia, e o levou nos braços, e porque ele vinha armado secretamente, segundo D. Garcia sentiu quando o abraçou, e de fora trazia um terçado, adaga, escudo e maça de ferro, perguntou-lhe per meio de Alexandre de Taíde, língua que como trazia armas, pois nenhum de quantos estavam dentro as tinha? O qual, como homem, de pouco assossego, respondeu: - Isto não é nada. E virando-se pera a porta, disse contra el-Rei, que queria entrar: - Tende-vos lá, que tem gente 434 armada. Tristão de Taíde, língua, quando lhe ouviu isto o tomou pela mão, dizendo: - Andai cá, eu vos mostrarei as casas, que todas estão sem isto que dizeis. E entrando com ele, topou com Afonso de Albuquerque, que o vinha receber, e em o querendo apartar pera ua parte da casa per um braço, tirou Raix Hamede per ele um pouco teso, e lançou mão de ua beca de veludo, que Afonso de Albuquerque trazia. E vendo ele que fizera isto com pouco acatamento, ante que mais fosse, disse contra os capitães que estavam arredados: - Matem-no! E dizendo estas palavras, foi tanto o punhal sobre ele, que alguns capitães se feriram nos dedos, por serem uns sobre outros, vendo que debaixo trazia armas. No qual feito foi Pero de Albuquerque, Lopo Vaz de Sampaio, Rui Galvão de Meneses, Jerónimo de Sousa, Diogo Fernandes, de Beja, Antão Nogueira, e outros fidalgos. Feita esta obra, foi-se Afonso de Albuquerque per onde entrava el-Rei, dizendo aos capitães e gente que estava com D. Garcia: - Já tudo é feito! - E mandou-lhe que rijamente entretevesse a gente de Raix Hamede, que vinha detrás el-Rei, a qual, vendo que lhe cerravam a porta, remeteram rijo a ela, entendendo o que ia dentro. A gente de armas que Afonso de Albuquerque mandou estar na praia, porque ouviram o rumor desta gente de Raix Hamede, entraram dentro rijo onde el-Rei estava com Afonso de Albuquerque, ao qual ele tomou nos braços, e se apartou a ua parte com ele fora do ímpeto da gente, da qual el-Rei teve temor, té que ele, Afonso de Albuquerque, assossegou aquela fúria com que a gente de armas entrou e a fez tornar a seu lugar, e des i mandou lançar o corpo de Raix Hamede na praia. 437 A sua gente, como viu que a porta per onde eles quiseram entrar, que era a da cidade, lhe fora fechada, remeteram com machadinhas pera a quebrarem, ao que Afonso de Albuquerque acudiu, mandando fazer o sinal no eirado, que todos esperavam. Ao qual acudiu tam prestes a gente de ordenança pela Rua Dereita, per onde os mandaram vir, que atocharam toda a rua, de maneira que a gente del-Rei e a de Raix Hamede, que estavam bradando à porta, cuidando ser feito algum mal à pessoa del-Rei, ficou toda fechada naquele lugar, sem terem per onde sair. E porque já dentro na casa onde el-Rei estava se sentia a revolta de toda esta gente de fora, disse el-Rei a Afonso de

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Albuquerque que mandasse à gente de armas que não travassem guerra com os seus, pois todos estavam a serviço del-Rei de Portugal, como vassalos seus que eram. O que ele logo fez, tendo já a este tempo a gente da ordenança tomado posse da porta; e pera ordenarem esta como ele queria que estevesse além dos capitães de ordenança que ele tinha, Afonso de Albuquerque mandou estas pessoas: D. Álvaro da Silveira, Rui Galvão de Meneses e Diogo Fernandes, de Beja; e leixando ele os outros capitães, que estavam com ele na casa térrea, 435 subiu-se acima ao eirado com el-Rei, e mandando lançar ua alcatifa e por sobre ela ua cadeira, fez assentar el-Rei, que se mostrasse aos seus. Os irmãos e parentes de Raix Hamede, quando viram el-Rei e não a ele, começaram bradar que lho dessem ou mostrassem, aos quais Afonso de Albuquerque mandou dizer que a cabeça lhe mandaria, se quisessem. Quando eles ouviram esta reposta, entendendo Raix Hamede ser morto, começaram de ameaçar el-Rei, dizendo que eles se iriam pera os seus paços e tomariam o tesouro, armas e os filhos del-Rei Ceifadim, como logo fizeram, pondo-se em determinação de se defender, e posesse artelharia em lugares pera isso. Afonso de Albuquerque, porque aquele dia lhe convinha tomar conclusão e remate deste negócio, mandou logo às naus trazer escadas e todo o necessário pera entrar as casas del-Rei per força. Vendo el-Rei e Raix Nordim sua determinação, pediram-lhe que sobrestevesse nisso, porque queriam levar este negócio per modo que não houvesse rompimento de guerra, o que lhe ele concedeu, os quais mandaram logo chamar todolos cacizes, e foram e vieram com recados de ua e outra parte, e de si, Raix Nordim, e per derradeiro Abrahém Beque com recado de Afonso de Albuquerque, que, se té sol-posto não despejassem os paços del-Rei pera ele ir dormir em sua cama seguro e assossegado, e eles se passassem a terra firme, prometia de não dar vida a algum. E como Abrahém Beque era secretamente cabeceira desta massa, acabou com eles que se saíssem e fossem, os quais seriam per todos vinte cinco casas que levaram consigo perto de setecentas pessoas. Peró não os leixou Afonso de Albuquerque sair, sem primeiro um filho de Raix Nordim se ir entregar de toda a fazenda del-Rei com um escrivão e tesoureiro, em cujo poder estava, a qual entrega se fez dentro em quatro horas, e eles todo aquele dia e parte da noite embarcaram com 438 suas mulheres, filhos, família e fazenda, sem lhe ser feita ofensa algua, porque assi o mandou Afonso de Albuquerque. Os quais, depois que foram na terra firme, mandaram pedir a Afonso de Albuquerque o corpo de Raix Hamede pera lhe darem sepultura em sua terra; e ele respondeu que os tredores e maus não haviam de ter sepultura, nem lugar conhecido onde jouvessem, por isso lho não dava; e sem mais repetir, se partiram. Acabado este feito, disse Afonso de Albuquerque a el-Rei, que ainda estava naquele eirado onde comeu pubricamente ao jantar, que se podia ir pera as suas casas, que já tinha despejadas daquela má gente; ao que ele respondeu que faria tudo o que ele mandasse, pois o tinha por pai e amparo de sua vida e estado. Afonso de Albuquerque, porque nestas cerimónias de honrar a pessoa o segurasse, e dar algum assossego à cidade, quando vissem como o tratava, mandou vir todolos cavalos acobertados que, el-Rei tinha, e cavalgou ele e alguns capitães, e D. Garcia com outros, e com 436 a gente que havia de ficar em terra saíram com el-Rei todos a pé, e el-Rei em um cavalo vestido com uas couraças de cetim branco com sua cravação dourada, e ua fralda de malha que ele quis vestir e pediu a Afonso de Albuquerque, dizendo que desejava de vestir aquelas armas, por lhe parecerem bem no corpo de um capitão que as trazia vestidas. E saindo pela rua, além da porta onde cavalgou, foi ter com Afonso de Albuquerque que o estava esperando; e porque o seu cavalo era um pouco desassossegado com as cobertas que levava, fazia tam grande terreiro entre a gente, que não pôde Afonso de Albuquerque ir junto del-Rei, e foi-se diante com os de cavalo que o

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acompanhavam. Seria o povo que se ajuntou e pôs per as janelas e eirados da rua per onde el-Rei ia passante de trinta mil almas; e quando o viram naquela pompa e com maior estado do que nunca cavalgou, todos a ua voz, em modo de louvor, davam graças a Afonso de Albuquerque por lhe tirar o seu Rei do cativeiro daquele tirano, e o pôr em estado de tanta honra. E certo que tinham eles nisto razão; porque, como todolos nossos pera aquele auto de acompanhar el-Rei assi a pé se armaram das melhores e mais frescas armas que tinham, ora cousa muito pera ver e louvar. Chegado el-Rei à porta das suas casas, saiu a o receber Abrahém Beque, o capitão do Xeque Ismael e o seu embaixador, e deram também muitas graças a Afonso de Albuquerque do modo que tevera de libertar aquele príncipe e da honra que lhe fazia; e muito mais o louvaram, vendo com que palavras à entrada da porta, ante que descesse, ele entregou a Raix Nordim, seu governador, e a todolos seus mires, a pessoa e estado del-Rei; e sem 439 querer entrar dentro, se tornou à fortaleza, ficando toda a cidade assossega, como se nela não houvera alvoroço algum. E quando veo ao seguinte dia, porque ele, Afonso de Albuquerque, soube que em ua fortaleza chamada Monejom, das mais principais que el-Rei tinha na terra firme da Pérsia, onde chamam o Mogostão, estava um irmão de Raix Hamede, o qual com a morte do irmão se levantara com ela, mandou dizer a el-Rei que queria mandar gente sobre ela. Ao que ele respondeu com palavras de agradecimento, polo cuidado que tinha da defensão de seu reino; porém que lhe parecia melhor cometer aquele homem per outro modo e não per armas; que o leixasse fazer. O qual modo foi pôr-se com o mouro que desse a fortaleza a partido de dinheiro, o que ele concedeu por vinte mil xerafis, mas el-Rei os não quis dar sem licença de Afonso de Albuquerque; e peró que ele insistia que se não dessem, todavia concedeu por el-Rei lhe mandar dizer que, se os desse, que ante de pouco tempo ele se havia de entregar em ua nau dele e de seus parentes, que se esperava da Índia; e assi foi. E porque em as armadas que el-Rei trazia contra os nautaques andavam ainda alguns parentes e familiares de Raix Hamede, 437 mandou el-Rei vir estas armadas, que eram de navios de remo, per ordenança de Afonso de Albuquerque, e foram despejadas desta gente, e metida outra fiel e obediente a el-Rei, e estoutra toda se passou à Pérsia; e aos guazis e capitães que estavam da mão de Raix Hamede em as vilas e fortalezas do reino de Ormuz, fez também Afonso de Albuquerque tirar delas, e entregar a homens sem suspeita da cidade, e ainda com fiança e escrituras, em modo de menagem. Per esta maneira todalas cousas que tocavam à segurança da pessoa del-Rei, assossego e proveito seu, trabalhava Afonso de Albuquerque que ante de sua partida ficassem assentadas e mui correntes; e assi o fez tam em breve, que, estando ele ali, polo que se ouvia na Pérsia, as cáfilas de mercadores ordenários concorriam a seus tratos mais confiadamente do que se fazia em tempo de Coge Atar e Raix Hamede, porque, como eram tiranos, não tratavam verdade aos mercadores, com que se partiam escandalizados. Afonso de Albuquerque, enquanto Abrahém Beque e o embaixador do Xeque Ismael esteveram na cidade, e ele ordenou estas e outras cousas, por segurança daquele reino de Ormuz, nunca os tomou por parte nisso, ante por medianeiros, como a homens nobres tam aceitos ao Xeque Ismael, e sempre em todos aqueles negócios, qualquer causa que lhe eles requeriam, folgava de fazer. Abrahém Beque, posto que a sua vinda ali foi a causa da suspeita que Afonso de Albuquerque dele teve, depois que o viu tam senhor daquele reino, voltou seu propósito, e começou de o querer comprazer; porque, como tinha terras vezinhas a Ormuz, e era senhor de ua cidade chamada Draguer, esperava que a sua amizade lhe podia ao diante muito aproveitar. E vendo 440 ele que o embaixador do Xeque Ismael se queria partir, veo-se espedir de Afonso de Albuquerque, dizendo que havia já dias que tinha acabados seus negócios, e que se detivera por ir em companhia de Bairim Bonari, (que assi havia nome o embaixador) e por amor de poder fazer algum serviço à

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pessoa que ele queria mandar a seu senhor, o Xeque Ismael, ca ele não se havia deter em suas terras, senão passar seu caminho té Corte de seu senhor. Afonso de Albuquerque lho agradeceu muito, mostrando ter certo a pessoa que ele mandasse ser bem despachada e em toda parte segura, pois ia em companhia de ua pessoa tão notável e aceita ao Xeque Ismael, como ele era. Finalmente, como ele, Afonso de Albuquerque, tinha já ordenado que a pessoa que havia de 137v mandar ao Xeque Ismael era Fernão Gomes de Lemos, filho de João Gomes de Lemos, senhor da Trofa, ele o despachou logo, e se partiu, e em sua companhia iriam até quinze pessoas, de que as notáveis eram João de Sousa, a segunda depois dele, e Gil Simões, moço da Câmara del-Rei, escrivão da embaixada, com um presente, que poderia valer até seis mil cruzados, de muitas e diversas peças, delas deste reino e outras da Índia. E a sustância de sua embaixada era reposta ao Xeque Ismael do que lhe o seu embaixador da sua parte requerera, e o lugar onde o 438 achara, que era tomando posse do reino de Ormuz, e que havia anos que ele tinha conquistado, e assi tirar el-Rei daquele tirano que o tinha quási preso. Porquanto, além de pôr em liberdade um vassalo del-Rei, seu senhor, como era el-Rei de Ormuz, ua das cousas que lhe mandava em seu regimento era que favorecesse todolos reis e príncipes daquelas partes, que sua amizade quisessem ter, e não consentisse que lhe fosse feita traição pelos seus naturais nem agravo dos vezinhos, e que pera isto, quando comprisse, se opusesse com toda sua gente em armas. E porque, chegando ele a Ormuz, el-Rei se queixou de um Raix Hamede, ele, Afonso de Albuquerque, o castigara da maneira que el-Rei quis; porque os tiranos que com sua soberba e maldade se querem senhorear das pessoas reais, tal castigo merecem. Assi que, ao tempo que ele estava nesta obra, chegou Bairim Bonari, seu embaixador, e folgou muito de o topar ali, por lhe não dar trabalho de passar o mar e ir buscá-lo à Índia, e assi folgava de estar tão vezinho da Pérsia, por cada dia ter novas de sua real pessoa e as mandar a el-Rei, seu senhor. Finalmente, per estes termos e com ofertas gerais acerca da guerra que tinha com o Turco e Soldão do Cairo, fez ua grande instrução a Fernão Gomes de Lemos, o qual partiu em companhia de Abrahém Beque e do embaixador, a onze de Maio de quinhentos e quinze. Da viagem do qual nós não faremos relação, por ser grande e meúda, e dia por dia, segundo a escreveu Gil Simões, escrivão desta embaixada, somente o que convém à nossa história, como Fernão Gomes de Lemos foi recebido 441 honradamente e despachado com favor, o qual tornou à Índia, sendo Afonso de Albuquerque já falecido, e governar Lopo Soares. Peró, porque este Xeque Ismael naquele tempo em poder e estado era maior senhor que o Turco, e havia pouco tempo que lhe dera ua batalha, e veo a grande potência per armas e religião de seita, e dele tem escrito alguns autores, não com verdadeira informação, aqui trataremos um pouco de sua origem, seita e fortuna, segundo o temos sabido per escritura dos mesmos párseos; e o mais de sua potência e estado leixamos à nossa Geografia. E ante que venhamos a ele, pera melhor entendimento, convém tratar do nascimento e seita de Mahamede, e esta relação será té sua morte, segundo alguns escritores latinos, e o mais segundo o Tarigh dos mouros, que é da vida dos Califas que o sucederam.

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438 137v 441 Capítulo VI. Em que se escreve o fundamento da seita de Mahamede, e a diferença que tem os mouros da Pérsia com o de Arábia acerca dela; e donde nasceu o princípio das cousas do Xeque Ismael. A perseguição de Mahamede (segundo o que se dele escreve), concorreu no fim do império de Heráclio, ano do nascimento de nosso Redentor Cristo Jesu seiscentos e sessenta e seis, peró que em sua lenda os mouros 439 começam a sua era no ano de Cristo de quinhentos e noventa e três, na primeira lua de Fevereiro. Nasceu em Itraripe, lugar pequeno de Arábia. Seu pai (segundo dizem os mouros) era de ua linhagem, a que eles chamam Corax, e vem de Ismael, e havia nome Abedalá, gentio, sua mãe Enima, a qual era hebrea, ambos pessoas do povo, da criação dos quais recebeu duas doutrinas gentílica e hebrea; e por morte deles ficou de mui pequena idade encomendado a Sabutalebe, seu tio, irmão do pai. Sendo já moço de boa idade, foi cativo pelos scenitas, gente que naquela parte de Arábia vive de latrocínio, dos quais o comprou Abdimoneples, um grosso mercador, que, vendo sua habilidade, o meteu em negócio do comércio, mandando-o de Palestina, onde ele vivia, a Egipto com mercadorias; do qual comércio, porque foi per muitos anos, ficou Mahamede acreditado naquelas partes entre gentios, hebreus e cristãos. No qual tempo aconteceu que, fugindo Sérgio, doutrinado em a heregia 442 arriana, foi ter àquelas partes da Síria, a casa de Abdimoneples, 138 amo de Mahamede, por ser homem notável e abastado com o trato do comércio; com a entrada do qual, além das doutrinas, que Mahamede tinha de sua criação, e depois com a variação das gentes que comunicava, por razão das partes a que ia com suas mercadorias, foi também instructo na doutrina de Arrio por este Sérgio. Finalmente, morto seu amo, ficando por cabeça do governo de toda sua fazenda, ele se casou com sua senhora, herdeira de toda. Esta, per nome Hadijia, posto que mui contente fosse deste novo marido, depois que per alguas vezes o viu tomado da dor de epilepsia, que lhe causava todos aqueles trespassamentos e autos que faz no paciente, era mui desconsolada e triste; à qual ele, pera a consolar, fez crer ser o Anjo Gabriel que o rebatava naquele trespassamento, enquanto lhe declarava da parte de Deus cousas que havia por bem que ele, Mahamede, denunciasse às gentes, no que deviam ter e crer acerca da Lei de Moisés e de Cristo; e como o Anjo era espírito e ele homem mortal, não podia sofrer o seu resplandor, e trespassava-se da maneira que ela via. A velha, como era namorada dele por razão da idade juvenil que tinha, com esta fábula já o não amava como a marido, mas reverenciava como a profeta, e começou entre as vezinhas e amigas em grã segredo denunciar esta santidade do marido; donde, quando ela morreu, não somente o leixou rico com toda sua fazenda, de que o fez herdeiro, mas ainda acreditado de santidade entre aquele povo rústico. Com o qual crédito de fazenda e santidade, Bubaque, homem principal daquela parte de Arábia, lhe deu por mulher sua filha Aixa, sendo Mahamede neste tempo homem de quorenta anos, com favor do qual sogro, e de Omar e Otomane, dous parentes de Bubaque, ele, Mahamede, cresceu em tanta autoridade e opinião, que ajuntou grande número de arábios, e com voz de religião conquistou muitas terras dos vezinhos; em ajuda do qual era Alé, seu primo, filho de Sabutalebe, 440

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irmão de seu pai. Ao qual, por ser muito bom cavaleiro e capitão, ele, Mahamede, casou com Fátima, sua filha da sua primeira mulher Hadijia. Morto Mahamede em idade de sessenta e três anos, mandou em seu testamento, que este Alé, seu primo, ficasse por sucessor no estado e superior de todolos que receberam e recebessem sua seita, e isto com este nome de Califa, e assi que este seu genro e sua filha amortalhassem seu corpo, porque nenhua outra pessoa era dina disso. Bubaque, sogro dele, Mahamede, porque ele lhe morreu em casa, levantou-se contra Alé acerca da sucessão do estado e religião, dizendo que Mahamede tudo o que ganhou e adquiriu foi com seu favor. Ao qual Alé não pôde resistir, 443 por não ter força pera isso, e ele, Bubaque, ser mui poderoso; e tinha por favorecedores neste caso Omar e Otomane, seus parentes, que, por serem com Mahamede na guerra e conquista que teve em sua vida, também esperavam suceder no califado, e ante queriam Bubaque por Califa, por ser parente, que Alé, que era de outra linhagem, e mais mancebo, e podia durar muito no Califado, e Bubaque, tam velho, que mui cedo vagaria nele, como vagou; e não sem suspeita que morreu ajudado dos sucessores, principalmente de Omar. O qual, mais per força que eleição, também viveu no califado dez anos e meio, e foi morto per um seu escravo, estando ele na mesquita fazendo oração; e houve suspeita de que fora per indústria de Alé, e que este escravo era cristão, e havia nome Abual Alualá. Morto Omar, também à força de poder ficou por califa Otomane, tomando ele por aução desta sucessão não somente o favor que dera às cousas de Mahamede, mas ainda ser seu genro duas vezes, por casar com Homeculsuma e Roquia, ambas suas filhas, de que não houve filhos, e morreram em vida do mesmo Mahamede. Este também durou mui pouco, e foi morto em um ajuntamento de mouros do Cairo e outros de Cufa. Per morte do qual foi alevantado por Califa Alé per comum consentimento de todos; somente Mauhia, capitão de Otomane, o qual estava nas partes de Jerusalém fazendo guerra aos gregos, não quis obedecer a Alé, dizendo que, primeiro que lhe obedecesse, lhe havia de dar as cabeças de todos aqueles que foram na morte de Otomane, seu Califa. E porque Alé se escusou disso, dizendo que não podia matar tanto número de gente como se acharam na morte de Otomane, Mauhia começou de lhe fazer guerra, com título que ele, Alé, mandara matar Otomane, sobre o qual ambos moveram um contra o outro, e onze meses teveram seus arraiais em vista, pelejando per muitas vezes, em que morreu muita gente, té que se meteram os seus Xeques e religiosos da seita, que os apartaram e posesse o caso em juízo dos velhos mais principais. O qual juízo se havia de fazer em Meca, e Alé se havia de ir pera a cidade Cufa, donde ele viera àquele caso, a qual é nas correntes do Eufrates, abaixo de Bagodad e Mauhia ficasse onde estava, por todos estarem apartados, assi os juízes como os contendores; peró Mauhia atalhou a tudo, mandando secretamente 441 matar Alé, 138v estando em ua mesquita fora de Cufa, e aqui neste Cufa foi trazido seu corpo, e por causa de jazer ali, os mouros chamam a este lugar Maxadalé, que quere dizer casa de Alé. Morto ele, os de Cufa levantaram por Califa Háçane, seu filho mais velho, filho de Fátima, sua mulher, de que houvera este e outro per nome Hocém, ambos gémeos; mas ele, Háçane, não durou no califado mais que seis meses, porque Mauhia foi sobre ele que o fez desistir da dinidade, e 444 depois o mandou matar com peçonha. E a causa disso foi porque este Mauhia ficou por universal Califa dos mouros (no qual estado esteve dezanove anos e três meses), e quis em sua vida que jurassem seu filho Jazide por Califa, e ele, Háçane, o não quis jurar. Foi este Mauhia (segundo se escreve dele), o primeiro que entre os mouros fez cadea e se serviu com escravos, e que todos estevessem em pé ante ele, e fez sinete com que acreditava seus mandados e cartas, e os mouros o não contam no catálogo dos califas, por ser mau homem e vir

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àquele estado per morte de Alé. E do filho Iazide, que o sucedeu, dizem que não era mouro, senão gentio, porque foi tão péssimo homem, que depois de sua morte, passados alguns anos, os seus ossos foram pubricamente queimados, como no princípio escrevemos; ca este matou muitos senhores de toda Arábia, andou de amores com sua irmã, e porque se presava de trovador, fazia muitas trovas por ela; não fazia acerca dos preceitos de Mahamede senão o que queria, matou por esta causa a seu neto Hocém, segundo filho de Alé. O qual Hocém, ao tempo de sua morte, ia com sua mulher, filhos e servidores, que seriam até setenta pessoas, chamados dos moradores de Cufa pera o elegerem por Califa, por a maldade deste; e sendo em um campo chamado Carbalá, ali o alcançou um capitão de Iazite, que o matou; e porque ficou ali enterrado, depois, por memória de sua sepultura, se fundou ua cidade chamada Carbalá, do nome do campo. Deste Hocém ficaram estes doze filhos: Zeinal Abadim, Zeinal Mahamede, Baguer Mahamede, Jáfar Cadeguegue, Jáfar, Muça Cázine, Muça Hali, Mucerraza Ali, Mahamede Tagui, Mahamede Hali Nagui, Alé Háçane Asqueri, Háçane Mahamede Mahdi, os quais estão enterrados em diversas partes, uns com Mahamede, seu bisavô, outros com seu avô Alé, e outros nas cidades Bagodad e Héri, no reino Horaçane. Somente Mahamede Mahdi dizem os párseos que ainda não é morto, e esperam por ele, dizendo que há-de vir mostrar-se às gentes pera acabar de declarar a verdade de todalas leis, seitas e opiniões, e converter a si todo Mundo em cima de um cavalo, e há-de começar esta conversão de Maxadalé, onde seu avô Alé jaz sepultado, e por esta causa ali está sempre um cavalo selado esperando por este seu Califa, o qual cavalo, ao tempo que se querem acender as candeas, é trazido à mesquita a oferecer. E em ua certa festa do ano trazem este cavalo com toda a solenidade que pode ser a ofertar na mesquita 442 onde jaz Alé, em modo de precação, que mande aquele seu neto que esperam; e em um dia destes de tal festa se achou ali um português, o qual nos contou ver o mor ajuntamento de gente que ele tinha visto a solenizar esta festa. Sucedeu, por causa das diferenças que contamos que Alé teve com Bubaque, Omar, Otomane e Mauhia, e mortes pelo modo que foram, que 445 entre os mouros sempre houve contendas, não somente per armas, mas per letras, qual destes quatro Califas primeiros foi mais legitimamente sucessor no califado. Os arábios favorecem a Bubaque, Omar e Otomane, os párseos a Alé, e tem que os outros o possuíram tiranicamente, e que foram contra o testamento de Mahamede, de maneira que em vida deles sempre houve cisma, e depois da morte, que as pessoas podiam falar ousadamente, muito maior, e per derradeiro ficou esta cisma entre os arábios e os párseos. Estes tomaram por apelido Xiá, que quere dizer união de um corpo, e os arábios chamam-lhe por vitupério rafadi, que quere dizer gente fora de caminho, e assi mesmo chamam Suni, que é o contrairo. Das quais cabeças, que são os principais entre os mouros, precederam outros membros, tomando cada um sua seita, assi como entre os párseos estas duas camarata e muhatazeli - os quais não seguem muito o dito dos Profetas, e tudo querem provado per razão natural, e estes são os párseos convertidos de gentios a mouros. Porque como a gente pársea era política, e que antiguamente contendia e competia per armas e letras com os gregos, ao modo dos filósofos, não recebem senão as cousas que se podem provar per filosofia, e não recebem ditos de Profetas, nem alguas cousas da lei de Moisés, que os arábios aceitam. E acerca destes, há aí ua seita chamada malahedá, a qual todalas cousas deste Mundo somente a caso e estrela, e não à providência de Deus, quási que querem imitar a Leucipo, filósofo, primeiro 139 inventor desta opinião; e outros, chamados emozaidi, não aceitam muitas cousas do Alcorão de Mahamede, os quais seguem esta doutrina de Zaidi, que foi neto de Hocém, segundo filho de Alé, e estes mouros são aqueles, que habitam toda a terra do Preste João e costa de Melinde. E peró que entre os mouros aí haja estas e outras opiniões e seitas, em que se contradizem (como dissemos), as principais cabeças são os párseos e arábios, e toda a disputa entre os seus letrados é sobre dezassete conclusões que tem os párseos, as quais não recebem os arábios, de que diremos alguas, pois por

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razão desta contenda escrevemos tudo atrás. Dizem os párseos que Deus é obrador de todo bem, e o mal vem do Diabo; respondem os arábios que per esta maneira haveria dous Deuses, um do bem e outro do mal. Dizem os párseos que Deus é eterno, e a Lei com a criação dos homens teve princípio; respondem os arábios que as palavras da Lei são louvores dos efeitos de Deus, e que todalas suas cousas são eternas, como ele é. Dizem os párseos que as almas dos bem-aventurados no outro Mundo não poderão ver 443 a essência de Deus, porque é espírito de Divindade, somente verão sua grandeza, misericórdia, piedade e todolos outros bens que obra acerca das criaturas; respondem os arábios, que com seus próprios olhos o hão de ver assi como é. Dizem os párseos que Mahamede, quando recebeu 446 a Lei de Deus pera a denunciar ao povo, que a sua alma foi levada ante Deus pelo Anjo Gabriel; respondem os arábios que não somente alma, mas o corpo. Dizem os párseos que os filhos de Alé e Fátima e seus doze netos tirando Mahamede, tem preminência sobre todolos Profetas; respondem os arábios que esta preminência é sobre todolos homens, mas não sobre os Profetas. Dizem os párseos que três vezes basta fazer oração a Deus, pela menhã em nascendo o Sol, chamada sob, e a segunda, dor, ao meio-dia, e a terceira, magareb, ao sol-posto, porque estas contem em si todalas partes do dia; respondem os arábios que, segundo os preceitos da Lei, hão de ser cinco vezes - estas três e mais duas: a primeira chamada hacer, que é ante do sol-posto, e outra ante de lançar na cama, a que chamam axá. Das quais conclusões e das outras que não recitamos, porque bastam estas pera exemplificar, sempre os mouros letrados da Pérsia entre si trouxeram estas máximas de sua seita, não ousando sair mui a campo com elas; porque, como o mais do tempo foram governados per califas arábios, que tem o contrairo, eram havidos por heréticos e castigados por isso. Finalmente, andando estas cousas assi embuçadas entre os párseos, que sempre por elas teveram ódio aos arábios, e principalmente porque foram vencidos per eles, quási nos anos de nossa Redenção de mil e trezentos e sessenta houve na Pérsia um mouro, per nome Sofi, homem nobre e senhor da cidade Ardevel, o qual se gloriava vir da linhagem de Alé pela linha de seu neto Muça Cázine, um filho dos doze de Hocém, que acima nomeámos. Este, porque já em seu tempo os mouros não tinham califas, por acabarem no ano de mil duzentos e cinquenta e oito anos em Mustacem Mumbilá, ao qual matou aquele grande tártaro Halácu a que Haitomo no tratado que fez dos tártaros, chama Haolono, com sua morte ficaram os mouros párseos da sequela de Alé algum tanto desabafados pera denunciar a opinião que tinham. E principalmente depois que viram que este Halácu perseguir a todolos da Arábia, Síria e do Cairo, tendo com eles contínua guerra, e assi seus sucessores (segundo conta o mesmo Haitomo). E pera denotação e sinal daquela sua seita e nova religião, em memória dos doze filhos de Hocém, que nomeámos, de que ele vinha, do meio da touca que os mouros em modo de trufa de muitas voltas costumam trazer na cabeça, lhe sai ua maneira de capelo agudo no cima, à maneira de pirame, repartido em doze verdugos de alto a baixo; ao qual sucedeu seu filho Juné. E cobrou este tanta autoridade de religioso daquela seita, e tinha tanto nome naquelas partes da Pérsia, que quando aquele 444 Tamor Langue, a que comumente chamam Tamor Lam, ia com a vitória que houve de Baiazite quarto Emperador dos turcos, ao qual ele levava 447 preso, e trinta mil cativos, quis ele, Tamor, ver a este Juné, como a um homem santo. O qual entre alguas cousas que tratou com Tamor, foi pedir-lhe houvesse por bem não levar aqueles homens cativos, ca defendia sua lei não ser cativo mouro de outro mouro, ainda que fosse senhor do Mundo e tam poderoso príncipe como ele era; que lhe pedia que lhos desse pera os converter ao verdadeiro caminho de sua salvação, que era a que ele confessava, e amoestava a muitos acerca das cousas de Alé, seu Profeta. 139v

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Finalmente, per este modo tanto amoestou Tamor, que lhe deu todolos cativos, os quais ficaram ali debaixo da sua doutrina, que eles logo receberam, e assentaram na terra vivenda, os quais depois foram mui proveitosos a seu filho Xeque Aidar. Porque, morto ele, Xeque Juné, começou Xeque Aidar, que o sucedeu em tudo, fazer alguas entradas nos povos gorgis cristãos que tinha por vezinhos, sendo neste tempo Rei na Pérsia um mouro per nome Mirzá Geum-xá, ao qual fazia guerra outro mouro, que se levantou nas partes da Súria naquela comarca, a que eles chamam Diar Beque. Ao qual mouro, per nome Háçane Beque, a fortuna favoreceu tanto, que matou em campo a Mirzá Geum-xá, e se fez senhor de todo seu estado. E como este Háçane Beque, era homem novo sem parentesco de nobreza, e estrangeiro na terra, por melhor segurar o que ganhara e se liar com os príncipes do reino, casou ua filha sua com Xeque Aidar, que, além de ser homem nobre em sangue, por vir da linhagem de Alé, e seita que novamente professava, com que tinha adquirido muita gente, houve Háçane Beque que a dava a ua das mais notáveis pessoas da Pérsia. Morto este Háçane Beque, herdou o seu estado Hiacob Beque, seu filho, o qual, vendo o crescimento de seu cunhado Aidar, ou que temesse, por a ele se ajuntar grande número de povo, assi por causa da religião nova, como por a rapina que faziam em alguas entradas nas terras dos povos gorgis cristãos, cujo vezinho ele, Aidar, era, ou per qualquer outra via que fosse, Hiacob Beque o mandou matar nesta guerra, dando secretamente ajuda pera isto aos mesmos povos gorgis. E, além disto, mandou tomar dous filhos que tinha - Ismael, de idade de dez anos, e Soleimão - e os entregou a um homem de confiança que os levasse a um seu capitão per nome Mansor Beque Deporná, que estava em a cidade Xiraz, que é dali perto de duzentas e sessenta léguas, com recado que aqueles dous moços metesse em o castelo Calga, por ser cousa forte, metido em ua serra, té lhe ele mandar outra cousa. Mansor Beque, quando lhe entregaram estes dous moços em ferros, como já sabia quem eram, e a morte de seu pai, disse que não quisesse Deus que ele fizesse tanta crueza no real sangue de Alé, seu santo Califa; e não somente os não quis mandar àquele desterro, mas 445 ainda os leixou andar em sua casa com seus filhos, e mandou ensinar como a cada um deles. Passado sete ou oito anos, veo este Mansor Beque adoecer, e, doendo-se que, se morresse, estes moços recebessem algum dano, ficando em poder 448 de Cácem Beque, seu filho, o qual, por ser mancebo, quereria na entrega deles comprazer a Rocém Beque, que já reinava, por seu pai, Hiacob Beque, ser falecido, mandou vir os moços ante si, e disse-lhes estas palavras: - Eu estou, filhos, no estado que vêdes; temo que, se morrer, vos seja feito algum mal; e porque,té ora vos criei com amor de filhos, com este amor vos quero salvar do perigo a que podeis vir, vindo ter à mão de Rocém Beque, vosso primo. Vêdes aqui duzentos xerafis; dar-vos-ão cavalos e companhia que vos leve a vossa madre, parentes e criados tendes; eles vos darão modo de vida, pois eu não sou poderoso pera mais; e ua só cousa vos peço, polo amor com que vos salvei e criei estes dias que em minha casa estevestes;, que vos lembreis de meus filhos, porque filhos, netos e bisnetos sois, e ambos pessoa e ânimo tendes pera adquirir estado. Os moços, porque o tinham em lugar de pai, vendo que os espedia de si, começaram chorar, não sabendo o que deles havia de ser. Finalmente, partidos dali com a companhia que lhe Mansor Beque deu, chegaram aonde sua mãe estava, com a vinda dos quais concorreu logo a família do pai; e como Ismael tinha grande espírito, e mais idade pera tomar armas, aconselhado do seu ânimo e movido da fortuna que o chamava, disse que queria ir vingar a morte de seu pai. E depois que fez alguas entradas nos povos gorgis, de que houve vitória, e começou ter nome de cavaleiro, não somente se ajuntou a ele muito povo daquela gente que seu avô, Xeque Juné, pediu a Tamor Langue (como dissemos), mas ainda se veo ajuntar com ele um capitão das comarcas chamadas Diar Beque com até quatrocentos de cavalos, o qual havia nome Abedi Beque. E no contrato deste adjutório que vinha fazer a Ismael foi que ele lhe daria ua irmã por mulher, se o ajudasse a vingar a morte de seu

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pai, que ainda não tinha vingada. Com estas e outras ajudas, que a fortuna andava trazendo a este seu mimoso, que queria fazer senhor de tantos reinos como lhe deu, ele se intitulou por Xeque Ismael, herdeiro, defensor e zelador das cousas de Alé, donde ele vinha; e pera maior denotação deste seu propósito, mandou fazer os verdugos do seu carapução muito mais altos. Finalmente, ele rompeu guerra com Rocém Beque, 140 seu primo, que então se intitulava por Rei da Pérsia, e por ele andar em diferenças com seus irmãos a quem reinaria, teve Xeque Ismael melhor maneira pera, de doze que eram, matar os mais deles, e per derradeiro lhe ficou a requesta com um chamado Mará Beque. O qual, vendo que não se podia defender deste seu imigo, foi-se pera Turquia a pedir ajuda ao grã Turco; e primeiro que a houvesse, houve o Xeque Ismael muitas vitórias de outros reis e príncipes da Pérsia, e 446 matou em campo um poderoso Rei de tártaros, que veo sobre ele, as quais vitórias 449 fizeram ao Turco temer dar ajuda a Mará Beque. E peró que seja um pouco transversal a relação da causa por que ele teve guerra com este grande tártaro, pode-se sofrer, porque se saiba o que a fortuna faz quando começa e como é pródiga com aqueles de que se namora. Ao tempo que Xeque Ismael começou esta empresa, havia em o reino Coraçane, ou Horaçane, (como lhe os párseos chamam), um Rei per nome Soltão Hocém / Hócan Mirzá, que enquanto pode favoreceu ao Xeque Ismael, de maneira que, pola amizade que lhe este Hocém tinha e obras que lhe fizera Xeque Ismael, lhe chamava pai. O qual viveu quatro anos, depois que ele, Xeque Ismael, houve vitória dos filhos de Hiacob Beque, leixando dez filhos, um dos quais per nome Bedeate Hizone Mirzá, ficou por herdeiro do reino, em que esteve pouco tempo, por ele e três irmãos morrerem em ua batalha, que lhe deu Xabá Hã, Rei dos tártaros, que residia em a grã cidade Camarcante. Havida esta vitória, com que o tártaro ficou senhor do reino Horaçane, e mui glorioso dela, sabendo como Xeque Ismael era novamente alevantado, e a opinião que tinha já de si, escreveu-lhe que leixasse o reino que possuía por pertencer a ele, ca sempre os príncipes de Camarcante foram senhores de toda a Pérsia. Dos quais recados procedeu, que o Xeque Ismael matou este tártara, em um campo junto da cidade Maró, e do casco de sua cabeça mandou fazer um vaso guarnecido de ouro per que bebia nas festas; e do campo desta vitória, querendo ele, Xeque Ismael, ir a Camarcante conquistar todo o estado do tártaro, um astrólogo, em quem ele tinha muito crédito, lhe disse que em nenhua maneira passasse o rio Jeum que devide a Tartária do reino Horaçane, porque, dado que lhe achava alcançar muitas vitórias, se o passasse, não achava tornada a sua pessoa. Por a qual amoestação, Xeque Ismael veo ter os meses de verão à cidade Hérique, ou Héri, metrópoli do reino Horaçane, a qual estava assentada em ua comarca mui graciosa e fértil, por ser regada per espaço de trinta léguas de um rio, ao qual, por não ter nome próprio que à nossa notícia viesse, per nome comum dizem o Rio de Hérique. E por a fertilidade dela os persas lhe chamam Xar Gulzar, que quere dizer cidade de rosas; porque na verdade, por as muitas que nela há quando é no tempo, costumam andar pelas ruas cargas delas, e alugam quantas querem pera os mimosos e viçosos as lançarem na cama, e depois as tornam a seu dono; o que também costumam em Xiraz, ua cidade junto de Ormuz, onde há muitas. Estando Xeque Ismael nesta cidade viçosa mais tempo do que convinha, 450 foi chamado per Cã Mahamede, cunhado seu, casado com outra sua irmã que ele leixara em Tabriz por Governador, fazendo-lhe saber que alguns capitães do Turco com gente de guerra, com título de o virem servir, eram entrados em Tabriz, 447 que se temia não ser isto algua indústria do Turco pera depois lhe vir fazer guerra, e ter nela algua

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ajuda; e que, segundo nova, ele não poderia tardar, porque Mará Beque, seu imigo que lá andava, o apressava muito com a nova que tinha de ele querer passar a Tartária. Com as quais amoestações tornado o Xeque Ismael a Tabriz, espediu seu cunhado Cã Mahamede, que se fosse pera suas terras, que eram na comarca Diar Beque, que confina com as do Turco. E como levava muita gente costumada a roubos da guerra, começaram fazer alguas entradas nas terras do turco Selim, causa de ele vir com grande exército contra Xeque Ismael, o qual foi receber com sessenta mil de cavalo, em companhia do qual eram Cã Mahamede, seu cunhado, e Dormis Beque, seu sobrinho, filho do outro seu primeiro cunhado Abedi Beque. E como entre estes dous havia competência de privança de quem teria o primeiro lugar acerca do Xeque Ismael, que é a mais perigosa cousa que os príncipes tem derredor de si, veo o Xeque Ismael encorrer neste perigo, em que houvera de perder a vida e estado per esta maneira: Tendo novas que o Turco vinha já mui perto deles, Cã Mahamede, como era cavaleiro e experimentado no modo de pelejar com os turcos, pola vezinhança que tinha com eles, disse ao Xeque Ismael: - Senhor, eu conheço esta gente; e posto que a tua seja mui 140v destra na guerra e animosa pera cometer maiores exércitos, que o de teu imigo, falece-te artelharia, de que se ele muito ajuda, cousa que pode ofender à tua gente; e por isto não me parece que te convém por em campo com ele; porque, como lhe deres tempo pera assentar arraial, ficas mui obrigado a este perigo. Se dele te queres em algua maneira aproveitar, dá-me dez mil de cavalo, e com estes meus que o já conhecem, irei a um passo que é lugar mui estreito, per onde ele há-de passar; e se o vencer, grã louvor será teu capitão desbaratar tam poderoso exército; e quando a fortuna me for contraira, não perdes nisso honra, e tua pessoa não se põe a perigo de artelharia. O Xeque Ismael, como Dormis Beque, seu sobrinho, lhe era mais aceito, tomou ante o seu conselho, que o deste seu cunhado; o qual Dormis Beque era que desse batalha campal, pois tantas vitórias lhe tinha dado Deus, e que não era menos poderoso o tártaro Xabá Hã que o Turco, pera a esperar dele, dando ainda em segredo entender ao Xeque Ismael ser aquele conselho de Cã Mahamede rodeado pera honra sua, por se mostrar aos turcos, de que era vezinho, sendo isto em grã vitupério de sua pessoa vir de tam longe buscar seu imigo, e à hora de pelejar retraer-se disto. O Xeque Ismael, assentado neste conselho, leixou vir o Turco té se assentar ao pé de ua serra diante de um campo mui espaçoso e disposto pera a gente de cavalo dele, Xeque Ismael, pelejar a seu uso; e em torno do arraial, 451 mandou-se valar, e na frontaria cercar de carretas de campo com artelharia, e além dela 448 ua grossa cadea de ferro, de fora da qual estavam quinze mil espingardeiros, e diante deles ua batalha pera os párseos virem travar escaramuça. O Xeque Ismael tinha assentado seu arraial obra de três léguas donde o Turco o esperava; e quando soube que estava mui cercado e tomara o pé da serra pera ter as costas seguras, pareceu-lhe que com temor de dar batalha se fizera ali forte. E como andava mimoso da fortuna, com muito alvoroço fez sua gente em três batalhas; e tanto que chegou a ele com a primeira, desbaratou logo a que o Turco tinha fora da cadea; e, vindo com a segunda, anteparou nela e no amparo das carretas, das quais começou a artelharia fazer tal obra, que ficaram ali a maior parte dos párseos. Sobre o qual estrago, saiu o Turco com o corpo de toda a gente, e veo dar com aquele ímpeto na terceira batalha, onde estava o Xeque Ismael, que vinha em socorro da segunda; e foram estas batalhas tam pelejadas per um grande espaço do dia, té que, não podendo os párseos sofrer o poder dos turcos, foram postos em fugida, e o Turco, por conseguir maior vitória, os foi seguindo perto de vinte cinco léguas. Indo o Xeque Ismael ao segundo dia nesta corrida já com mui pouca gente, disse-lhe um Alé Soltão, homem mancebo, com que se ele criara: - Senhor, tu vás em grã perigo; se te aprouver, quero-me leixar ficar com estes meus

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familiares que levo, darei azo que me tomem, e direi ser tua pessoa; porque é certo que, como cuidarem que te tem em poder, leixarão de te seguir, e assi podes escapar sem muito trabalho. O qual conselho o Xeque Ismael aceitou, e assi o fizeram os turcos; e tanto que Alé Soltão foi tomado, mostrando ser Xeque Ismael, com alvoroço de tam grande presa todos paravam ali sem ir mais avante. O Turco, como lhe foi nova que o Xeque Ismael era tomado, ordenou-se pera o receber com grande aparato, mandando muitos capitães seus que lho trouxessem em modo de triunfo. Alé Soltão, como esteve ante o Turco, vendo que lhe fazia acatamento como ao Xeque Ismael, que ele cuidou que era, disse-lhe: - Quem cuidas tu, senhor, que tens ante ti? Ao que o Turco respondeu: - Ao Xeque Ismael, cuja soberba e doudice está debaixo de meu poder. Ao que ele respondeu:. - Enganado estás comigo, porque Xeque Ismael está tam livre e tam senhor como sempre foi; e eu sou Alé Soltão Mirzá, o mais pequeno escravo que ele tem em sua casa; e se os teus, que iam em seu alcanço, se enganaram comigo, por lhe eu dizer ser o Xeque Ismael, que maior serviço lhe podia eu fazer, que oferecer minha vida por salvar a sua? Quando o Turco se viu assi zombado, foi tamanha a indinação nele, 452 que, sem mais consideração, o mandou logo ali matar, do qual feito se pesou depois, e assi a todolos príncipes que estavam com ele, e quiseram-no ter vivo, não somente pera lhe dar liberdade, mas ainda lhe fazer mercê, pois tivera tanta lealdade com seu senhor. Per esta maneira se salvou o Xeque Ismael, ao qual o Turco não leixou de seguir, 449 entrando per sua terra té Tabriz, a que muitos chamam Tauris, onde foi mui bem recebido de alguns principais, a quem depois Xeque Ismael mandou cortar a cabeça por tal recebimento. E primeiro que o Turco entrasse na cidade, teve alguas diferenças com os janíceros, a quem é concedido saco de qualquer cidade que tomarem, 141 dizendo ele que não havia de consentir que Tabriz fosse saqueada, por nela entrar pacificamente com solenidade de recebimento, e mais que esperava fazer nela cabeça de todo o que conquistasse naquelas partes; que, quanto ao que lhe era concedido do saco na entrada das cidades que tomassem, isto se entendia em as dos cristãos e não dos mouros. Finalmente, o negócio chegou a concerto, que os moradores deram aos janíceros trezentos mil xerafis, e per eles ficou a cidade livre do roubo. Entrado o Turco nela, não se deteve mais que vinte dias, por ser chamado pelo Governador de Constantinopla, com nova que teve que na Cristandade se fazia ua grossa armada pera vir sobre ela. Xeque Ismael, tornado o Turco, com muita gente veo sobre Tabriz, onde fez grande estrago, assi de turcos que ali ficaram em guarnição, como nos párseos, por se não defenderem; e havia um ano que isto passara, quando Afonso de Albuquerque lhe mandou Fernão Gomes de Lemos, por razão da qual embaixada fizemos esta tam comprida digressão, por termos menos que dizer nas outras que lhe depois os Governadores enviaram, e assi nos Comentários da nossa Geografia, quando viermos a falar no estado que ora tem.

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449 141 452 Capítulo VII. De alguas cousas que Afonso de Albuquerque fez em Ormuz; e do rendimento e estado que tem este reino; e a despesa que el-Rei faz em sua pessoa e casa. Despachado Fernão Gomes de Lemos com esta embaixada ao Xeque Ismael, começou Afonso de Albuquerque entender no governo da terra e dar pressa a se acabar a fortaleza; a capitania da qual deu a Pero de Albuquerque, filho de Jorge de Albuquerque, e a alcaidaria-mor a Vasco Fernandes Coutinho, filho de Jorge de Melo, e a feitoria a Manuel da Costa, de Alcácer do Sal. E porque el-Rei dos anos passados devia ua grande cópia de dinheiro, ca não pagava do tributo dos quinze mil xerafis 453 que lhe Afonso de Albuquerque pôs, mais que dez, e alegava que o Viso-Rei, D. Francisco de Almeida, lhe tirara os outros cinco, como mostrava per sua provisão, feita no tempo que ele, Afonso de Albuquerque, estevera em Cananor - e a este negócio viera o seu embaixador Nicolau Ferreira -, foi-lhe cousa mui dura pagar esta dívida, e assi dar toda a artelharia que tinha. A qual Afonso de Albuquerque lhe houve, mostrando ter necessidade dela pera a pôr na fortaleza, da qual dependia toda a defensão da cidade, por razão de ua 450 nova que viera per muitas vias de mouros, dizendo que de Suez era partida ua grossa armada do Soldão (a qual era falsa), lançada a seu propósito contra nós, e Afonso de Albuquerque com ela teve encoberta pera per bom modo lhe haver quanta artelharia tinha. Raix Nordim, Governador, e todolos oficiais da fazenda del-Rei, por ele não ter poder em cousa algua, e eles com Raix Hamede eram senhores dela, ante que Afonso de Albuquerque metesse a mão nas cousas do governo do reino, parecia-lhe que ficavam mais absolutos ministros, pera consumirem tudo entre si com a morte de Raix Hamede. Porém, depois que eles viram que na arrecadação do resto do tributo, que el-Rei devia dos anos passados, Afonso de Albuquerque pedia razão dos rendimentos do reino, a propósito de eles dizerem que não podia el-Rei pagar por estar pobre, e mais que houvera toda a artelharia, e sobre tudo quis-se informar de todolos rendimentos do reino e despesas que el-Rei tinha, foram estas cousas para eles ua grave dor, porque lhe parecia que toda esta diligência de Afonso de Albuquerque era querer passar a arrecadação das rendas do reino aos oficiais que leixava naquela fortaleza, e pouco e pouco os iriam tirando da posse, e isto faziam crer a el-Rei, dando-lhe a entender que, por mau homem que um seu Governador fosse, ainda debaixo do seu governo havia de ser mais senhor do seu, que tendo ali aquela fortaleza, a qual per tempo lhe havia de consumir todo seu estado - e prouvesse a Deus que não chegasse a mais! E posto que, nestas palavras que diziam a el-Rei mostravam zelar o bem de sua pessoa, estado e fazenda, a verdade era porque, sendo assi como eles diziam, ficavam fora do senhorio absoluto que tinham daquele reino, consumindo entre si todolos rendimentos dele, de maneira que, rendendo ele passante de duzentos mil xerafis, os que vinham em arrecadação dos livros del-Rei, além de comerem outros tantos, que não vinham aos livros, destes duzentos el-Rei tinha a menor parte, e a esta ainda davam saída per despesas do reino feitas à sua vontade. E pois Afonso de Albuquerque não somente tirou 141v estes Reis de Ormuz de cativeiro dos seus Governadores, mas ainda os fez senhores do seu, ante que passemos adiante, convém fazermos ua particular relação do estado do reino de Ormuz e seu rendimento; porque, vendo-se 454

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a grandeza dele e a tirania de antes, e quam pouco tributo Afonso de Albuquerque lhe pôs, se veja que el-Rei de Ormuz, em ser vassalo del-Rei D. Manuel, não recebeu sujeição mas amparo, ca, segundo eram tratados per aqueles tiranos de seus Governadores, se ele, Afonso de Albuquerque, tardara um pouco em acudir ao que estava ordenado, não houvera de ficar nenhum da estirpe de Gordum-Xá, primeiro fundador daquele reino de Ormuz. Segundo vimos per um quaderno do rendimento e despesa deste reino, a renda dele era per duas maneiras: ua per entrada e saída das mercadorias da própria cidade Ormuz, e per alguas cousas do maneo dela; e outra renda era das 451 novidades, tributos e impostos das terras deste reino, assi na parte da Arábia e Pérsia, como de alguas ilhas do seu mar, dentro das portas do Estreito. As da entrada da cidade eram da alfândega, que regularmente naquele tempo andava em cem mil xerafis, que são da nossa moeda trinta contos, e as outras da cidade andavam em quorenta e um mil e trezentos xerafis. As rendas que tem nas terras da Arábia e Pérsia são de vilas e lugares nos portos de mar, e alguns dentro pola terra; e os principais são como cabeça de almoxarifado (falando pelo nosso uso), aos quais acodem todolos outros da sua comarca (como dissemos das tanadarias de Goa); e aos governadores destas principais cabeças chamam eles guazil, e ao ofício guazilado. O principal dos quais, na costa da Arábia, é a vila Calaiate, que rende dezanove mil e duzentos xerafis, per esta maneira: o mesmo Calaiate, onze; Mascate, quatro; Soar, mil e quinhentos, Orfacão, outro tanto; Daba, quinhentos; Caços, setecentos; Julfar, que é outro guazilado nesta parte da Arábia com toda sua comarca, rende sete mil e quinhentos xerafis. E aqui não entram certas barcas de pescaria de aljofre que se ali pesca, porque são obrigadas ir pagar a Ormuz por ser perto, e o que lá pagam vale mil e quinhentos xerafis, e per esta maneira vale o rendimento de toda Arábia vinte oito mil e duzentos xerafis. E não dizemos aqui o rendimento da vila Catife, nem da Ilha Baharém, pegada com ela, do interior do Estreito, porque neste tempo andavam rebeladas a el-Rei de Ormuz, e não era este rendimento cousa certa, sendo mui grosso (como adiante veremos em seu lugar, quando fizermos a descripção deste Estreito). Na terra da Pérsia tem o guazilado de Minau, onde se faz ua feira que dura enquanto se acolhe a tâmara do Mogostão, que são os meses de Maio até Agosto, que rende dous mil e quinhentos xerafis. Outro guazilado há na vila Monajão, que é dentro neste Mogostão, que rende três mil e duzentos xerafis. E o guazilado da vila Basturde, que está ao pé da serra no estremo do reino, rende mil xerafis. As aldeas Rudore, Baracó, Biabem, Darduze, Dajaiza e Queringõ, que está no Mogostão, quatro mil e duzentos, e os direitos dos camelos que se aqui vendem, mil e quinhentos. Tem mais os portos Custe, que rende trezentos; Chacoá, setecentos e cinquenta, e Braini, mil; Ducate, oitocentos; Agõ, mil e quinhentos, e a estes dous derradeiros portos vem ter as cáfilas da Pérsia. 455 Per esta maneira rendem as terras da Pérsia dezasseis mil e setecentos xerafis, os quais juntos ao rendimento da parte de Arábia e corpo da cidade, soma toda a renda deste reino cento noventa e oito mil setenta e oito xerafis, sem aqui entrar o que rendiam as ilhas que tem, porque quási tanto gastam quanto rendem; o qual rendimento era naquele tempo, do ano de quinze e de outros anos atrás, que quási foram iguais. A qual renda, porque se saiba o modo do serviço daqueles príncipes, diremos como se dependia, ainda que meúde 452 e particularmente vá, e iremos fazendo a conta destas despesas per leques, que é número da mesma terra, e xerafis, azar, candil e dinar, que é moeda, por não sair dos termos da folha que houvemos destas cousas, tiradas dos livros da Fazenda dos Reis de Ormuz. Um leque contém número de cinquenta xerafis, e um xerafi vale da nossa moeda trezentos reais, e dous azares vale um xerafi, e dez candis meio xerafi; e cem dinares um candil. E fazendo conta per este número e moedas, despendia el-Rei cada ano em sua cozinha vinte e quatro leques; e em cardamomo, areca e cravo, de

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que se faziam certos bocados com alguns cordiais, que eles entre dia costumam tomar pera as humidades do estâmago, um leque e meio; e em melões de todo o ano, outro tanto. Em água rosada, vinagre de cheiro e romãs, dous leques; e ao barbeiro que lhe fazia a barba cinquenta azares, e quorenta em panos, onde vem a candea coberta, quando se traz pera se pôr ante el-Rei. Em azeite e cera pera alumiar, 142 e serviço da casa, seis leques e quorenta e dous azares; e outros seis e três azares em cinco tochas, que ardem no Paço, e mantimento de outros tantos escravos, que as tem na mão. E de perfumes e outros cheiros dous leques e meio e oito cadins; e um leque e oitenta azares pera algodão, com que enchem os colchões e almofadas; e em certas ordinárias que dá de açúcar;, um leque e vinte azares; e na água, que se despende em sua casa e estrebaria, a qual vem da terra firme em barcas, seis leques. Nos vestidos de sua pessoa, e alguas cabaias, que dá a fidalgos e embaixadores com seus feitios, cento e dous leques; e um e meio em vivos das fotas que traz na cabeça; e cinquenta azares em feitio dos carapuções. E pera vestido de suas mulheres, mancebas e escravas, quinze leques. Em duas páscoas que faz o ramadão, em que dá de comer a certas pessoas, quatro leques; e três em duas festas na lua de Maio e Setembro, que fazem os seus cacizes; e vinte leques em certas vezes que el-Rei vai à caça, onde chamam Turumbaque, que é ua ponta da ilha, na qual caça el-Rei dá de comer aos que vão com ele. Em falcões, açores e caçadores, que tem no Mogostão, nove leques; e dous e quatro azares em ua horta que tem onde chamam Broco; e quinze, 456 que despende em cavalos; e trinta e seis leques, em cevada para eles, e de alcacer no tempo do verde, e um leque em ferragem; e outro em freos, cabeçadas, selas comuns pera cavalgarem escravos, que os ensinam; e quinze leques em cavalos, que ordinariamente dá a certos fidalgos do Mogostão;, e dez em mercês a pessoas de casa, e outros dez a mulheres viúvas de seus oficiais, e outras pessoas pobres que pedem à porta, cinco leques; e em outras esmolas mais grossas a cacizes e parentes de Mahamede, quorenta e cinco leques; e em outras esmolas pelas almas dos passados, doze. E quorenta leques, oitenta e oito azares a quorenta e seis cacizes da sua mesquita, que tem ordenado; e três leques e sessenta azares a outros, que de contino estão rezando 453 por o pai defunto. Ao seu guazil e Governador pera cinco cavalos que tem, de ordenado cada um ano cinquenta leques; e dous pera água, que o guazil despende em sua casa; e em compra de escravos dez leques; e três que se gastam com os embaixadores, quando chegam ao porto de Bander Angom; e vinte, que se gastam em mercês ordinárias; e trinta e três, em comedias de escravos e escravas dos reis passados; e às suas bailadeiras, cinco; e aos tangedores, que vão diante dele quando cavalga, um leque e doze azares; e ao seu ourives, um leque e meio; e aos atabaleiros, que estão no Paço, outro tanto; e a doze homens que vigiam de noite a giros, e ao guarda-mor deles, seis leques e setenta e dous azares; e aos tintureiros, cinquenta azares; e a quatro porteiros, um leque e cinquenta e seis azares; e em repairo de casas de pedraria e gesso, dez leques; e a sua mãe pera vestidos, outros dez; e pera mantença sua e de seus parentes, cento quorenta e quatro leques; e dez a cinco mancebas; e a seis amas e pessoas da criação de seus filhos, vinte e três leques; e de ordenado a seus oficiais e mires, duzentos e cinquenta leques; e de certas despesas meúdas, cinco; e vinte e cinco de quitas a rendeiros. E tirada esta despesa, o mais que sobejava se metia no tesouro del-Rei; e se não foram alguas liberdades que antiguamente eram concedidas aos vezinhos, tevera este reino dobrada renda; porque o Rei da Pérsia, que então era o Xeque Ismael, sua mulher, filhos e embaixadores de tudo o que tirassem e metessem em Ormuz não pagavam dereito algum. E pela mesma maneira el-Rei de Lara, o de Xiraz, o de Macrão, o Xeque de Baçorá, o de Gualdel, o de Rexete, nem os portugueses, depois que ali tevemos fortaleza.

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453 142 457 Capítulo VIII. Como Afonso de Albuquerque despachou D. Garcia de Noronha pera se vir pera este reino com a carga de especearia; e, depois de sua partida de Ormuz, adoeceu Afonso de Albuquerque de enfermidade, que conveo partir-se pera a Índia; e do que passou no caminho té o porto de Goa, onde faleceu. Afonso de Albuquerque, como viu que se chegava o tempo de ordenar a carga da especearia, que havia de vir a este reino,; e que seu sobrinho D. Garcia de Noronha se queria vir aquele ano, deu-lhe a capitania-mor da armada, e despachou-o que se fosse pera Cochi dar aviamento, porque, quando as naus deste reino chegassem, estevesse tudo prestes, ao qual deu todolos poderes que ele, Afonso de Albuquerque, tinha pera melhor aviamento. E o dia que D.Garcia partiu per vontade del-Rei de Ormuz, 142v mandou-lhe meter em a sua nau Belém todolos parentes que ali tinha cegos com suas mulheres, filhos e criados, os quais, além de fazerem despesa a el-Rei, eram 454 causa de muita torvação na terra; e escreveu aos oficiais de Goa, que lhes dessem casas e todo o necessário, à custa da fazenda del-Rei. Estes cegos costumavam os Reis de Ormuz fazer naqueles de sua linhagem, assi como irmãos e parentes, que podiam herdar o reino; porque, como todos estavam naquela ilha, era este berço tam pequeno pera criação de tanto príncipe, que per os ter quietos e fora de alguns reboliços, de que muitos foram causa, não achavam os Reis melhor modo de os amansar, que privá-los da vista com ua bacia de arame acendida em fogo posta ante os olhos. Partido D. Garcia já no fim de Agosto, ficou Afonso de Albuquerque acabando de rematar alguas cousas pera segurança daquela fortaleza, cuidando ele que se podia ainda deter mais dias do que se deteve; mas quando veo a quinze de Setembro, adoeceu de câmaras, as quais ele já trazia do princípio de Agosto; mas como era fragueiro e pouco mimoso de sua pessoa, não se lançava em cama, senão quando mais não podia. E porque a enfermidade não era pera visitações, e onze dias apertou muito com ele, houve suspeita que era falecido, de maneira que lhe conveo dar ua vista de si a quantos o quiseram ir ver. E um dia que se achou bem, por segurar as cousas daquela cidade, que estavam mui frescas, e fazendo Deus dele algua cousa, podia haver entre os nossos algua diferença sobre a sucessão, mandou chamar todolos capitães, aos quais propôs o estado em que estava e a enfermidade que tinha, quam perigosa era nos homens de sua idade; e que, olhando ele quanto compria a sua consciência e ao serviço del-Rei, seu senhor, queria, enquanto tinha tempo pera isso, ordenar ua pessoa pera que, se o Deus levasse, o podesse suceder naquele cargo que tinha, té el-Rei, seu senhor, nisso prover. Portanto 458 lhe pedia, como leais a Deus e ao serviço del-Rei, estarem por a nomeação que ele fizesse, e confiassem dele que saberia fazer esta eleição, pola experiência que tinha e tempo em que estava, em que os homens não devem mentir a Deus e a seu Rei. E com estas palavras disse outras, que moveram todos a compaixão, no fim das quais todos prometeram estar polo que ele fizesse, de que mandou fazer um auto a Pero de Alpoém, em que todos assinaram, e em segredo (segundo se depois viu), nomeou a Pero de Albuquerque, seu sobrinho. E porque a enfermidade o tornou apertar, per conselho de médicos determinou de se partir pera a Índia, dizendo que no mar se havia de achar bem; com a qual nova el-Rei de Ormuz o veo ver, sentindo muito esta sua partida; porque, como Afonso de Albuquerque o tratava como filho em amor, e como a Rei em reverência, e nas cousas de

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seu estado e ordem de sua fazenda trabalhou muito, quando se viu ante ele, começou de chorar, dizendo quam desemparado ficava sem sua presença, e tam temeroso de sua vida, por as cousas de Raix Hamede, que lhe parecia não poder viver muito. Ao que Afonso de Albuquerque respondeu, que ele lhe leixava ali seu sobrinho Pero de Albuquerque, o qual o havia de guardar e defender, 455 e procurar por suas cousas, como se fossem del-Rei de Portugal, seu senhor, e outras palavras com que o consolou. Espedido el-Rei, di a pouco dias o quisera tornar a ver; mas Afonso de Albuquerque se escusou, por sua enfermidade não ser pera visitação de príncipes, e como quem se acolhia ao remédio do mar, por na terra o apertar muito a doença, um dia pela sesta, enroladamente, sem rumor, se embarcou em a nau de Diogo Fernandes, de Beja, por ir já tam aborrecido da conversação da gente, que entregou a sua Nazaré a seu sobrinho Vicente de Albuquerque, ao qual mandou que recolhesse todolos fidalgos e criados del-Rei, e lhe desse a mesa que ele costumava dar. E mandou diante a nau Enxobregas, capitão Simão de Andrade, que fosse ao porto de Calaiate tomar uns cavalos, que aí mandara comprar pera guarda das tanadarias de Goa, e levou consigo Aires da Silva, que ele leixava por Capitão-mor do mar em favor da fortaleza de Ormuz, com duas caravelas e duas galeotas pera dar ua vista àquela costa de Calaiate, onde ele fazia fundamento de chegar. El-Rei de Ormuz, como soube ser ele partido polo modo que foi, houve rumor que o embarcaram morto; e por ser certo disso, mandou duas terradas trás ele, cheas de refresco, e nelas Hácene Alé, que o visitasse de sua parte, pera se desenganar se era verdade o que suspeitava; o qual recado o foi tomar na paragem de Calaiate, em dia que a enfermidade lhe deu algum repouso. E quando viu Hácene, por ser muito seu familiar, e assi a lembrança que el-Rei tivera de sua visitação, ficou com o prazer disso muito melhor, de maneira que quando Hácene tornou a Ormuz, disse que ia já são. Peró quando passou per Calaiate, tornou a enfermidade outra vez apertar tanto, que espediu 459 Aires da 143 Silva, e não quis esperar por Simão de Andrade, pondo a proa na costa da Índia, na qual volta aquela tarde houve vista de ua nau, a que mandou um bargantim que levava pera recados, que lhe trouxesse o capitão, mestre e piloto. Com os quais, depois que vieram, ficou só; e porque sentiu em Tristão de Taíde, língua, que tinha sabido destes mouros algua cousa de que não estava contente, e que podia dar a ele paixão, deu-lhe juramento nos Evangelhos que não encobrisse nenhua cousa das que aqueles mouros dissessem. Então começou de lhe perguntar donde vinham, e que novas havia da Índia. Os quais responderam virem de Dio, e que à Índia eram chegadas doze naus de Portugal, e nelas vinha por Capitão-mor Lopo Soares; e o que logo mais confirmou esta nova, foram duas cartas que lhe estes mouros apresentaram, dizendo que nelas veria sua Senhoria mais certas novas do que eles podiam dar, porque ua era de Cide Alé, de Dio, seu servidor, e outra do embaixador do Xeque Ismael, que estava em Cambaia. E na carta de Cide Alé não somente nomeava Lopo Soares por Capitão-mor e Governador da Índia, mas ainda os capitães das naus e das fortalezas, e assi alguas pessoas notáveis que 456 vinham com ofícios. Afonso de Albuquerque, lida a carta, temendo que estas novas podiam fazer algua mudança no que ele leixava ordenado em Ormuz, pera onde a nau ia, tomou-lhe quantas cartas levavam de Dio, e pera isso lhe mandou dar juramento, e deu-lhe outras pera seu sobrinho Pero de Albuquerque, dando-lhe aviso do que devia fazer. Espedidos estes mouros com mercê que lhe fez, ficou só com Diogo Fernandes e Pero de Alpoém; e tornando ler a carta de Cide Alé, quando veo a dizer que vinha Lopo Soares por Capitão-mor, disse: - Lopo Soares por capitão-mor à Índia! Este é, e não podia ser outro; e Diogo Mendes, e

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Diogo Pereira, que eu mandei presos ao reino por culpas que tinham, el-Rei, nosso senhor, os torna cá mandar, um por capitão e feitor de Cochi, e outro por secretário! Tempo é de acolher à Igreja. E assi fico eu mal com el-Rei por amor dos homens, e mal com os homens por amor del-Rei. E levantando as mãos a Deus, disse que lhe dava muitas graças, pois em tal tempo el-Rei mandava Capitão-mor, porque (segundo o estado em que se ele achava), sua vida seria mui breve. E com isto começou tomar ua contínua de palavras, dizendo: - Tempo é de acolher à Igreja. - E quanto gosto tinha de dizer isto, tanto lhe aborrecia comer e todalas cousas de folgar e prazer, que Diogo Fernandes e Pero de Alpoém lhe representavam, por lhe verem enfraquecer muito os espíritos, assi com a enfermidade, como com as novas que lhe deram, esperando ele outras cousas de seu galardão. E o que mais o enfraqueceu, foi junto de Dabul, onde achou ua nau que fora em companhia de Lopo Soares, na qual ia por capitão e armador um Joanes Impole, o qual, per mandado de Lopo Soares, ia a Dio a vender mercadoria e fazer roupa pera levar a Malaca, onde per seu contrato havia de ir carregar. O qual Joanes mui particularmente lhe contou cousas 460 que pera sua saúde foram veneno, e pera a quietação do seu espírito mui danosas; porque, vendo ele as que el-Rei cá ordenara pera o governo da Índia, tam contrairas ao que ele entendia que deviam ser, e do que lhe tinha escrito, foram para ele ua abreviação da morte. Espedido Joanes, chegou sobre a barra de Dabul já com sinais dela, onde não fez mais detença que enquanto lhe trouxeram uns poucos de figos e rábãos e outras verduras, as quais fizeram nele pouco alvoroço, por lhe tudo aborrecer, e de nenhua cousa tinha mais sede que de chegar a Goa. A qual ele chamava terra da sua promissão, por a grande esperança que sempre teve de lhe el-Rei nela dar algum galardão de seus serviços com acrescentamento de honra; ca em alguas cartas que lhe el-Rei escrevia acerca do contentamento que tinha das vitórias que lhe Deus dava, isto lhe dava entender. E posto que as novas que ele houve de Lopo Soares lhe quebraram o ânimo desta esperança, ainda confiado na grandeza de seus serviços, desejava em extremo ver cartas del-Rei, porque nelas podia ver cousas que lhe dessem mais vida do que a enfermidade prometia. Indo assi com esta agonia do 457 espírito e morte, que já com ele começava lidar, porque Diogo Fernandes e Pero de Alpoém viam que muita parte daquele trabalho em que estava, era não ver em sua vida algum galardão de seus serviços, polo aliviar daquela dor do ânimo, fizeram com ele que escrevesse algua carta pera el-Rei, quási como que nisso em algua maneira podia desabafar. O qual, importunado deles, mandou escrever estas regras, que já mal assinou: - Senhor, esta é a derradeira que com soluços de morte escrevo a Vossa Alteza, de quantas com espírito de vida lhe tenho escrito, pola ter livre da confusão desta derradeira hora, e muito contente na ocupação de seu serviço. Neste Reino leixei um 143v filho, per nome Brás de Albuquerque, ao qual peço a Vossa Alteza que faça grande, como lhe meus serviços merecem. Quanto às cousas da Índia, ela falará por si e por mim. Chegado à barra de Goa, onde eram todos seus desejos, parece que permitiu Deus, pera sua salvação, não sair em terra; ca não houve mais espaço que enquanto o Padre Fr. Domingos, Vigairo Geral, que ele já diante per o bargantim tinha mandado buscar, esteve com ele nas cousas de sua alma, a qual deu a Deus da chegada à barra a cinco horas, um Domingo pela menhã, dezasseis de Dezembro de quinhentos e quinze, em idade de sessenta e três anos. E até àquela hora que espirou, sempre em suas palavras e acenos mostrou estar em perfeito juízo, e pronto em Deus, mandando que lhe rezassem a Paixão de Cristo, de que ele era mui devoto; e logo naquele dia foi tirado da nau em um cátele coberto de brocado, e almofadas pera a cabeça, vestido seu corpo em um hábito branco da Ordem de Santiago, de que ele era Comendador, com as mais insínias dos Cavaleiros dela. E derredor do pescoço ua beca de veludo, e na cabeça sobre ua coifa de couro, ua carapuça de

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veludo, tendo os olhos meios abertos sem aquela fealdade que a morte dá; 461 de maneira que, assi morto, todos lhe tinham aquele acatamento e reverência que lhe em vida guardavam. Posto em terra, onde já estava o capitão da cidade - D. Guterre de Monroy - com todolos fidalgos e gente dela, foi levado o seu corpo per eles com um pálio que o cobria; e era tamanho o choro em todos, que os frades de S. Francisco e os clérigos o não poderam encomendar. E como os gentios canaris da terra, nestes casos da morte usam de muitas gentelidades por pranto e dó, vendo o seu rostro descoberto com aquela honra e gravidade de sua pessoa e alvura da barba, que a idade e trabalhos lhe tinham dado, faziam e diziam cousas, que não havia pessoa que se tevesse ao choro, e principalmente movidos com o pranto de quantas mulheres ele tinha casado. Com este choro e sentimento foi enterrado em ua Capela de Nossa Senhora que ele mandara fazer na porta da cidade, a que chamam de Nossa Senhora da Serra, por causa da vocação da casa que fez, pola razão que já dissemos, na qual tem missa cotidiana, que hoje se diz por sua alma, 458 com renda que pera isso lá ordenou. Foi Afonso de Albuquerque filho segundo de Gonçalo de Albuquerque, senhor de Vila-Verde, e de D. Lianor de Meneses, sua mulher, filha de D.Álvaro Gonçalves de Taíde, primeiro Conde da Atouguia. Em vida del-Rei D.João, o segundo, foi seu estribeiro-mor. Era homem de compassada estatura, rosto alegre e gracioso; ao tempo que se indinava, tinha um acatamento triste; trazia sempre a barba mui comprida, depois que começou mandar gente, e como era alva, dava-lhe grande veneração. Era homem de muitas graças e motes, e em alguas manencorias leves, no tempo do mandar, soltava muitos que davam prazer a quem estava de fora; falava e escrevia muito bem, ajudado de alguas letras latinas que tinha. Era sagaz e manhoso em seus negócios, e sabia enfiar as cousas a seu propósito; trazia grandes anexis e ditos pera comprazer à gente, segundo os tempos, e qualidade da pessoa de cada um. Era muito fragueiro e rixoso, se o não comprazia qualquer cousa; cansava muito os homens no que lhes mandava fazer, por ter um espírito apressado; foi de muita esmola e devoto: no enterrar dos mortos ele era o primeiro. Nas execuções foi um pouco apressado, e não mui piedoso; fazia-se temer muito aos mouros e tinha grandes cautelas pera deles levar o melhor. Não foi casado, e porém teve um filho natural, a que leixou sua herança e nome, ao qual el-Rei D. Manuel fez mercê de trezentos mil reais de ouro, e o casou com D. Maria, filha de D. António de Noronha, escrivão da Puridade del-Rei D. Manuel, e filho do Marquês de Vila Real, D. Pedro de Meneses, ao qual D. António, el-Rei D. João, o Terceiro, nosso senhor, fez Conde de Linhares.

*** Compilado por RLJ a partir das Décadas da Ásia de João de Barros, CD-ROM da série OPHIR -

Biblioteca Virtual dos Descobrimentos Portugueses, da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998.

TERCEIRA DÉCADA

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1 1 11 Capítulo Primeiro. Como el-Rei D. Manuel mandou por Capitão geral e Governador da Índia Lopo Soares de Albergaria, em υa armada de treze naus, o qual partiu deste reino a ano de quinhentos e quinze; e do que fez depois que partiu, e assi na Índia com sua chegada. Como o coração dos reis (segundo diz a Escritura) está em a mão de Deus, por serem na terra seus ministros no governo dela, moveu o ânimo del-Rei D. Manuel a que este ano de quinhentos e quinze mandasse Governador à Índia, pola necessidade que havia de ter de quem a governasse, por causa do falecimento de Afonso de Albuquerque, segundo ele mesmo dezia, estando na agonia da morte; posto que a tenção del-Rei em o mandar vir era pera lhe dar galardão do trabalho das armas, que per espaço de dez anos tinha passado. E porque Lopo Soares de Albergaria, filho do Chanceler-mor Rui Gomes de Alvarenga, era neste reino estimado por υa pessoa de muita prudência, e na armada que o ano de quinhentos e quatro el-Rei mandou à Índia, de que ele foi por Capitão-mor, se mostrou poder servir este cargo de Governador e Capitão Geral da Índia, ordenou de o mandar na armada deste ano de quinze, em que Afonso de Albuquerque se havia de vir. No qual ano el-Rei tomou outro termo acerca do governo das cousas da Índia, assi naquelas que tocavam à conquista e guerra dela, como 1v 1v das ordenadas ao comércio e vencimento de ordenados de capitães, oficiais e homens de armas. Porque, como com Afonso de Albuquerque acabavam muitos capitães e oficiais o termo de três anos, que eram obrigados a servir, em nenhum tempo mais sem escândalo podia ordenar estas cousas, pera as quais fez muitos regimentos, lemitando o que cada pessoa podia trazer daquelas partes e os direitos que delas havia de pagar, dos quais regimentos se ora usa. 12 Pera a qual ida el-Rei mandou aperceber treze naus, em que haviam de ir mil e quinhentos homens de armas, além dos mareantes, muita parte da qual gente eram fidalgos e cavaleiros, e outra homens de boa criação. Os capitães da qual frota eram: Simão da Silveira, filho de Nuno Martins da Silveira, senhor de Góis; D. Guterre de Monroy, filho de D. Afonso de Monroy, craveiro que fora da Ordem de Alcântara, em Castela; Cristóvão de Távora, filho de Lourenço Pires de Távora; Álvaro Teles Barreto, filho de João Teles; Francisco de Távora, filho de Pero Lourenço de Távora, senhor do Mogadoiro; D. João da Silveira, filho de D. Martinho da Silveira; Jorge de Brito, copeiro-mor del-Rei D. Manuel e filho de Artur de Brito, alcaide-mor da Vila de Beja; Álvaro Barreto, de Montemor-o-Novo, e Simão de Alcáçova, filho de Pero de Alcáçova, em υa nau de armadores pera a China, de que Fernão Peres de Andrade, que ia com Lopo Soares, havia de ir por Capitão-mor desta viagem da China, e com ele Jorge Mascarenhas, filho de João Gonçalves Montans, e Joanes Impole, um mercador. Aos quais na Índia Lopo Soares havia de dar navios pera Fernão Peres fazer este descobrimento da terra da China. E porque el-Rei mandava a Lopo Soares que entrasse no Mar Roxo, quis enviar com ele o embaixador do Preste João, que Afonso de Albuquerque (como atrás fica) tinha mandado a este reino; porque nesta entrada ele, Lopo Soares, o podia entregar no porto de Arquico, que está dentro das portas do Estreito, que, segundo ele, Mateus embaixador, dizia, era do Preste. E assi ordenou de ir com ele, Mateus, Duarte Galvão, fidalgo da sua casa, filho de Rui Galvão, secretário que fora del-Rei D. Afonso o Quinto, o qual, por ser homem de muita prudência, e que já fora enviado a negócios de importância a reis e príncipes desta Europa, poderia mui bem fazer este tam novo e estranho, como era tratar amizade e comunicação com um príncipe cristão, senhor de mui grande

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estado, e metido no interior da Etiópia, cercado de pagãos e mouros, e que desejava meter-se no grémio da Igreja Romana, de cuja doutrina estava mui desfalecido, por não ter 2 2 comunicação com ela, por os bárbaros que entre ele e ela se metiam. Da qual obra ele, Rei D. Manuel, recebia grande louvor em toda a Europa, e mais outros proveitos e benefícios, tendo com ele prestança, como per este seu embaixador lhe mandava oferecer, em destruição da casa da abominação dos mouros, situada na Arábia, tam vezinha a este Preste. Com o qual Duarte Galvão mandava el-Rei sacerdotes, ornamentos e cousas do uso romano, pera que os daquelas partes podessem tomar doutrina; e assi mandava muitas cousas pera serviço da pessoa do Preste, por mostra das que havia nestas partes. Acabadas de prover todalas cousas necessárias pera esta viagem, partiu Lopo Soares do porto de Lisboa a sete de Abril; e com bons tempos que lhe cursaram, chegou a Moçambique, onde achou dous navios, de um dos quais era capitão Luís Figueira, cavaleiro da casa del-Rei, e do outro Pedreanes, 13 de alcunha Francês, que servia também de piloto, os quais o ano passado partiram deste reino a onze de Junho, per mandado del-Rei, a irem descobrir a Ilha de S. Lourenço e assentar nela feitoria pera comércio de gengivre, em um porto chamado Matatana, onde havia υa grande povoação de gente da terra, e alguns mouros da costa de Melinde. Porém Luís Figueira não fez na terra mais que υa força, em que se recolheu per tempo de seis meses, que o ali detiveram os moradores, dizendo que esperasse vir a novidade do gengivre; e per derradeiro levantaram-se contra ele polo roubar, que causou vir-se a Moçambique, onde achou Pedreanes, que havia poucos dias que era chegado. O qual ele, Luís Figueira, enquanto esteve em Matatana, tinha enviado a descobrir a costa da Ilha; e entre alguns portos que descobriu, foi υa baía, a que ora chamam de Santo António, por assi haver nome o navio que levava. No cabo da qual ilha, contra Leste, descobriu o porto a que os naturais chamam Bemaró, onde fez resgate de muita quantidade de ambre. E por lhe o tempo não servir pera se tornar onde leixou Luís Figueira, arribou a Moçambique. Lopo Soares, recolhidos estes dous navios e espedido Cristóvão de Távora, que ia por capitão pera a fortaleza de Sofala, na vagante de Sancho de Toar, que lá estava, partiu-se pera a Índia, e chegou a Goa a oito de Setembro. E a primeira cousa que fez foi meter de posse da capitania da cidade a D. Guterre de Monroy, que a levava por el-Rei na vagante de D. João de Eça, que a servia. E assi espediu Jorge de Brito, que levava a capitania da cidade Malaca, em lugar de Jorge de Albuquerque, que lá estava, e mandou com ele Diogo Mendes de Vasconcelos, que levava a capitania e feitoria de Cochi, pera lhe 2v 2v logo dar aviamento, por não perder aquela moução de Setembro. E fez-se todo o seu despacho tam brevemente, e teve Jorge de Brito tal viagem, que chegou a Malaca na fim de Outubro, cousa que té hoje não aconteceu a capitão algum - partir daqui a oito de Abril e chegar lá no Outubro daquele ano; em companhia do qual Lopo Soares mandou António Pacheco, que havia de servir de Capitão-mor do mar. Passados doze dias, em que Lopo Soares se deteve em Goa provendo algυas cousas, sem esperar a vinda de Afonso de Albuquerque, de que tinha nova estar em Ormuz mui próspero com a tomada da cidade, partiu-se pera Cochi a ordenar a carga às naus que haviam de tornar a este reino com especearia. E de caminho foi visitando as fortalezas e leixando nelas os capitães que de cá levava: em Cananor, Simão da Silveira, em lugar de Jorge de Melo, que acabava seu tempo; e em Calecute, Álvaro Teles, onde estava Francisco Nogueira. Os oficiais de Cochi, chegado ele ao porto, como era Governador novo, a que todos queriam complazer, o receberam com grande festa, somente el-Rei de Cochi, que lhe não fez muita, quando se viu 14

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com ele. A causa foi por não ser mui contente da vinda de outro Governador e ida de Afonso de Albuquerque, por lhe ter dado o ser de rei (como atrás escrevemos); e mais deteve-se ele tantos dias em se ir ver com Lopo Soares, mostrando não serem todos infelices pera as tais vistas, segundo lhe deziam seus agoureiros, que, enfadado Lopo Soares de esperar por ele, quando se viram, não lhe mostrou o gasalhado, nem fez aquelas cerimónias de cortesias que lhe Afonso de Albuquerque costumava fazer. Porque, além de Afonso de Albuquerque ter per condição υa facelidade no agasalhar e tratar as pessoas per artefício de negócio, sabia contentar aqueles de que tinha necessidade, principalmente el-Rei de Cochi, que havia mister ter contente pera bom e breve despacho da carga da especearia. A qual condição era pelo contrairo em Lopo Soares, por ser um homem grave e severo, que se dobrava mal a estes artefícios de comprazer. E é tam prejudicial e custosa esta severidade e secura naqueles que hão-de governar, que mais perdem em seus negócios do que ganham de autoridade em suas pessoas; porque a facelidade, ainda que seja pródiga no acolhimento das partes, sempre ganhou o ânimo de muitos; e a severidade, avara de autos e palavras, sempre perdeu com todos. Do modo do qual tratamento, assi nesta, como em outras vezes que el-Rei de Cochi se viu com Lopo Soares, dizia entre os seus, e assi a alguns oficiais da feitoria del-Rei, de que se ele mostrava amigo: - Lopo Soares trata-me à sua vontade, e por 3 3 isso eu farei a minha, na feitoria del-Rei de Portugal; e Afonso de Albuquerque tratava-me à minha, e por isso fazia quanto queria em meu reino. Passados os primeiros dias da chegada de Lopo Soares, veo D. Garcia de Noronha, que (como atrás escrevemos) Afonso de Albuquerque espedira de Ormuz com poderes de Governador, pera fazer a carga das naus e se vir pera este reino com ela. Por razão dos quais poderes e calidades de sua pessoa, não sabendo ainda a nova da morte de seu tio Afonso de Albuquerque, querendo ele ordenar e mandar nas cousas da carga, houve entre ele e Lopo Soares alguns desgostos, e muito maiores com a nova que Simão de Andrade levou do falecimento de Afonso de Albuquerque, que não tardou muitos dias. Porque, chegando Simão de Andrade mais embandeirado do que convinha a um homem que leixava seu capitão morto, Lopo Soares o recebeu com tanto prazer como ele trazia nas bandeiras e artelharia que tirou, que não pareceu bem a muitos. Peró que alguns que isto não louvaram a Simão de Andrade, por sua parte depois o desculpavam, dizendo que tinha razão de parentesco com Lopo Soares, e de Afonso de Albuquerque muitos agravos. Das quais cousas e de outras desta calidade se causou que, confiado D. Garcia nos méritos de sua pessoa e avorrecido do modo que Lopo Soares tinha no seu despacho, por não haver mais desgostos, se partiu pera este reino, trazendo ainda paióis vazios de pimenta na sua nau. E em sua companhia vieram 15 por capitães das outras Pero Mascarenhas, D. João de Eça, Jorge de Melo Pereira, Francisco Nogueira; e assi veo υa grande camada de fidalgos e cavaleiros, que naquele tempo eram a frol da Índia, criados na escola do Viso-Rei D. Francisco de Almeida e de Afonso de Albuquerque, em cujo tempo os homens tinham per honra os meios per que se ela ganha, e não tratos per que se aquire fazenda, que dali por diante se começaram usar mui soltamente; com que as cousas do Estado da Índia tomaram um termo, declinando mais em cobiça de υa cousa que da outra, com que estão postas no que ora vemos. Despachadas estas naus pera este reino, onde chegaram a salvamento, tornou-se Lopo Soares pera Goa, e de caminho, passando per Calecute, se viu com o Samori; nas quais vistas, que foram fora da fortaleza, houve pouca detença polos agouros del-Rei, de que se eles às vezes servem por desculpa de suas desconfianças. Do qual porto Lopo Soares espediu Simão de Andrade em υa nau grossa, que fosse a Baticalá carregar de mantimentos, e os levasse à cidade Ormuz, por estar desfalecida deles; e em o modo de contratar com a gente da terra, estando 3v 3v

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Simão de Andrade recolhendo estes mantimentos, se levantou um arroído, em que foram mortos dos nossos obra de vinte e quatro pessoas. Lopo Soares, vindo seu caminho pera Goa, e sendo sabedor deste caso per Jorge Mascarenhas, que ele topou ao Monte de Eli, chegado a Baticalá, tomou por satisfação dele entregarem-lhe os da terra dous mouros velhos, dizendo serem eles autores do arroído, que causou aquelas mortes. E porque Afonso de Albuquerque trazia a mão sobre a cabeça dos mouros mais áspera em satisfação de qualquer sangue que derramavam nosso, não recebeu a gente bem esta dissimulação de Lopo Soares; porque, como os mouros são manhosos, algυas vezes cometem estes crimes por tomarem experiência da condição do novo capitão; e quando vem que não acode com ferro a estes primeiros desmandos, tomam licença pera cometer maiores insultos. Chegado Lopo Soares tanto avante como Anchediva, já no mês de Fevereiro, onde se acolheu com um tempo que lhe deu, passado ele, espediu dali D. Aleixo de Meneses, filho do Conde de Cantanhede, por Capitão-mor de certas velas, mandando-lhe que desse υa vista à costa de Arábia, e soubesse algυa nova da armada dos rumes, e di se fosse invernar a Ormuz. Em companhia do qual foram estes capitães: Cristóvão de Brito, Francisco de Távora, D. Álvaro da Silveira, D. Diogo, seu irmão, Nuno Fernandes de Macedo, Álvaro Barreto, João Gomes Cheira-dinheiro. O qual D. Aleixo, por achar os tempos contrairos por ir já um pouco tarde, não pôde andar naquela costa de Arábia, e foi invernar a Ormuz, onde assentou algυas cousas da terra e assossegou o ânimo dos mouros, vendo a gente que levava; porque, pela morte de Afonso de Albuquerque, que os metera debaixo do nosso jugo, ordenavam de se livrar dele, como fizeram, segundo veremos a seu tempo. Assi que nesta viagem não fez D. Aleixo mais que segurar as cousas da cidade 16 e fortaleza nossa, e trabalhar, assi per terra como per mar (per meio de alguns mouros que el-Rei de Ormuz a isso mandou), saber o estado da armada que o Soldão mandava à Índia, de que havia diferentes novas; e com as mais certas que per este modo pôde haver, tanto que o tempo deu lugar, se partiu, pera a Índia.

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3v 3v 15 Capítulo II. Como Lopo Soares, despachado Fernão Peres com υa armada pera a China, pelo recado que lhe el-Rei D. Manuel mandou deste reino da armada que o Soldão do Cairo fazia pera a Índia, ele, Lopo Soares, partiu com υa grossa frota pera o Mar Roxo, em busca desta armada. 4 4 Depois que Lopo Soares deu aquela vista às fortalezas da costa Malabar e mandou prover a de Ormuz, assi per Simão de Andrade, como per as naus de D. Aleixo, deteve-se em Goa os dias necessários, enquanto deu ordem ao governo da cidade, e des i tornou-se a Cochi ter o inverno, no qual tempo despachou Fernão Peres de Andrade pera fazer sua viagem à China, da qual adiante faremos relação. E em todo aquele inverno, assi em Cochi como nas outras fortalezas, mandou fazer grandes apercebimentos pera, como viesse o verão, partir pera o Mar Roxo, por esta ser a cousa em que lhe el-Rei mandava primeiro entender. E a mais principal obra que mandou fazer foi acabar certas galés e navios de remo, que Afonso de Albuquerque já tinha principiado, assi em Calecute como em Cochi, por serem os mais proveitosos navios pera navegação do Estreito do Mar Roxo, onde ele esperava tornar. Andando no qual apercebimento, sobreveo chegar υa nau deste reino, capitão e mestre um Diogo de Unhos, homem diligente nas cousas do mar, o qual partira deste reino a vinte quatro de Abril do ano de quinhentos e dezasseis, depois de ser partida a armada que aquele ano el-Rei despachou pera a Índia. E teve tanta deligência e dita em sua navegação, que chegou primeiro um mês que as naus que partiram ante dele. A causa da qual partida foi por vir recado a el-Rei, per via de Rodes, como o Soldão do Cairo tinha feito υa grossa armada em o porto de Suez do Mar Roxo, a qual estava de todo prestes pera partir pera a Índia. E posto que ao tempo que ele, Lopo Soares, partiu deste reino, se dizia desta armada, e el-Rei lhe mandava que entrasse no Mar Roxo, não se havia a nova por tam certa, nem se sabia o número de velas e outras particularidades que per este Diogo de Unhos el-Rei mandava dizer a Lopo Soares, e o que sobre isso logo fizesse. Per o qual 17 Diogo de Unhos soube que, ante dele, eram partidas cinco naus, de que era Capitão-mor João da Silveira, trinchante del-Rei D. Manuel, filho de Fernão da Silveira, e os capitães das outras eram Afonso Lopes da Costa, filho de Pero da Costa, de Tomar, e Garcia da Costa, seu irmão, e António de Lima, filho de Francisco Ferreira e Francisco de Sousa, Mancias de alcunha, filho de Jorge de Sousa. Dos quais os primeiros dous chegaram à Índia um mês depois de Diogo de Unhos e os outros se perderam nos baixos de S. Lázaro, de que somente escapou Francisco de Sousa e a sua gente. E João da Silveira com mastos quebrados escapou milagrosamente daquele temporal, que causou invernar 4v 4v aquele ano em Quíloa. Lopo Soares, como viu o tempo passado em que estas três naus que faleciam podiam ir à Índia, parecendo-lhe que invernavam em Moçambique, sem saber a fortuna que passaram, enviou a Rodrigueanes em um navio que as viesse buscar, mandando dizer aos capitães que o fossem esperar à Ilha Socotorá, por quanto ele seria com eles em tal tempo, dando-lhe conta do que lhe el-Rei mandava fazer por razão da armada do Soldão. Espedido este navio a grã pressa, deu carga a quatro naus que este ano vieram com especearia, que lhe deram algum trabalho, por falecer neste tempo

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Diogo Mendes de Vasconcelos, que servia de feitor e capitão de Cochi, dos quais cargos proveo a Lourenço Moreno de feitor, por o servir dantes, e de capitão a Aires da Silva. Ficando Lopo Soares despejado do despacho destas naus, sendo já a este tempo chegado D. Aleixo de Ormuz, onde invernou, per o qual soube mais particularmente da armada do Soldão ser partida do porto de Suez, se partiu de Cochi pera Goa. Onde, por já ter providas todalas cousas, assi as necessárias pera sus viagem, como pera guarda das fortalezas da Índia, se deteve oito dias somente, e partiu dali aos oito de Fevereiro do ano de quinhentos e dezasseis, levando υa frota de trinta e sete velas entre naus de alto bordo, galés e galeotas, navios latinos e outros de remo. Os capitães das quais eram: D. Aleixo de Meneses, D. João da Silveira e D. Álvaro, seu irmão, Jorge de Brito e Lopo de Brito, seu irmão, Afonso Lopes da Costa e Garcia da Costa, seu irmão, D. Gonçalo Coutinho, Francisco de Távora, Gaspar da Silva, Antão Nogueira, Álvaro Barreto, Aires da Silva, Gonçalo da Silveira, Pero Lopes de Sampaio, Duarte de Melo, António Ferreira, Jerónimo de Sousa, Pero Ferreira, António de Miranda de Azevedo, António de Azevedo, Fernão Gomes de Lemos, Cristóvão de Sousa, João de Melo, D.Álvaro de Crasto, Dinis Fernandes de Melo, Lopo de Vila Lobos, Francisco de Gá, Lourenço de Cosme, João de Taíde, Gomes de Soutomaior, Lourenço Godinho, Bastião Rodrigues, Fernão de Resende, António Raposo, Diogo Pereira, João Fernandes Malabar e João Gomes Cheira-dinheiro. Na qual frota levaria mil e duzentos homens portugueses; e oitocentos malabares, afora a gente do mar, que seriam outros oitocentos. Chegado Lopo Soares à Ilha Socotorá, do dia de sua partida a vinte 18 dias não fez mais detença que enquanto tomou água e lenha, sem nela achar recado das naus que mandara buscar, e di se partiu pera a cidade Adem, onde o capitão Miramirjão, que a defendeu a Afonso de Albuquerque (como atrás 5 5 escrevemos), o recebeu com muita festa, mandando-lhe logo entregar as chaves dela e dizendo que a queria ter em nome del-Rei de Portugal; e que outro tanto fizera ele a Afonso de Albuquerque, se fora homem de algυa boa conclusão; mas como era mais amigo da guerra que da paz, não quisera aceitar nenhυa de quantas cousas lhe ofereceu, e por isso determinou de se defender dele; e outro tanto fizera dos rumes, que poucos dias havia que eram partidos dali bem escalavrados. A causa de este mouro tam levemente fazer esta oferta a Lopo Soares, foi temendo tam grande frota, e não se atrevia a defender a cidade com um pedaço do lanço do muro em terra, que lhe derribou Raix Soleimão, Capitão-mor da armada do Soldão, que Lopo Soares ia buscar, o qual havia pouco que se dali fora, e dera υa bataria à cidade, com que lhe derribou aquele lanço do muro; e, recebido muito dano, se tornou recolher pera dentro das portas do Estreito, do qual logo daremos razão. Lopo Soares, vendo a facelidade com que este mouro lhe entregava a cidade, fez fundamento de à tornada tomar posse dela, por lhe parecer que, leixando logo ali algυa gente, ficava com mais pouca pera cometer a armada do Soldão; ca, repartindo-se em duas partes, ficaria sem forças pera cada υa delas, e podia perder ambas estas empresas. Finalmente, por não dar lugar a que a armada do Soldão fosse avisada de sua ida, não se deteve mais que enquanto o capitão da cidade lhe mandou refresco de mantimentos da terra e lhe deu quatro pilotos pera a navegação daquele Estreito. E espedido dele, se partiu pera o Estreito, mandando diante alguns navios de remo, que lhe fossem tomar qualquer vela que achassem nas portas do Estreito, por não ser sabida sua ida; os quais navios, quando ele chegou, tinham tomado três velas, a que chamam marruazes. E parece que D. Álvaro de Castro, filho de Estêvão de Castro, capitão de υa galeota que tomou um destes, carregou-se tanto de roupa que achou nele, que, com um pouco de vento que se aquela noite levantou, a fez sessobrar sem se salvar pessoa algυa. E entre as de nome que se ali perderam com D. Álvaro (que per todos seriam quorenta), foi Jorge Galvão, filho de Duarte Galvão, que ia ali per

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embaixador pera o Preste João. E assi se perdeu a nau, capitão António Raposo, em que iam trezentos e tantos malabares e sete ou oito portugueses com toda a pedra e cal que levavam pera a fortaleza que Lopo Soares mandava fazer em a Ilha Camarão, ou onde lhe melhor parecesse, conforme a tenção del-Rei D. Manuel. Ao seguinte dia, que eram dez de Março, passada a noite em que se perderam estas duas velas, 5v 5v foi o vento tam furioso, que desapareceram a nau S. Pedro, capitão D. João da Silveira, em que ia o embaixador Mateus, e a do capitão Diogo Pereira, em que iam trezentos malabares e muitas munições, da fortuna dos quais veremos adiante. Lopo Soares, passada a fúria do 19 vento, mandou tomar as velas, por esperar estas quatro peças que achava menos da sua frota; e quando viu que tardavam sem saber de sua fortuna, parecendo-lhe que todas quatro seguiriam υa conserva, por ter dado regimento geral do que cada um havia de fazer, apartando-se dele, seguiu sua derrota, via da Ilha Camarão, peró que tevesse já nova em Adem serem os rumes partidos dali, temendo que, como os mouros sempre falam pouca verdade, podia ainda ali estar algυa parte da armada deles. E chegando na paragem da ilha à vista dela, mandou duas caravelas que lhe fossem saber se estavam ali, as quais trouxeram recado não haver já rastro deles; com a qual nova pôs o rostro no caminho da cidade Judá, em que teve assaz trabalho; porque saltaram os ventos por de avante, que o deteveram doze dias por entre muitos baixos de ilhas, que traziam os pilotos assombrados e cansados de andarem todo o dia com a sonda na mão, por se não fiarem muito na pilotagem dos mouros que levavam. Andando no qual trabalho, veo dar na armada um barco pequeno, a que os mouros daí chamam gelva, em que vinham certos homens cristãos, os mais deles veneceanos, e os outros daquelas partes de Itália, todos oficiais mecânicos da obra do mar, os quais vinham fugidos de Judá, da armada dos rumes, e deram novas do estado em que ficavam, e que eles foram tomados per mandado do Soldão em o porto de Alexandria de algυas naus que ali estavam fazendo sua mercadoria. Lopo Soares, depois que soube deles o que desejava saber do sítio e porto da cidade, e estado em que ficava a armada deles, os mandou repartir per as naus da frota, os quais alvoraçaram tanto aos nossos com o que contavam da pouca força dos mouros, que com este prazer sobreveo bom tempo, que pôs a nossa frota em poucos dias no porto de Judá. Do sítio da qual, e assi do princípio e fundamento desta armada do Soldão, e do que passou depois que se armou e partiu do porto de Suez, até se pôr no estado em que estava, faremos relação neste seguinte capítulo.

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5v 5v 20 Capítulo III. Em que se descreve o sítio da cidade Judá e o fundamento de υa armada que o Soldão tinha enviado por Raix Soleimão, seu Capitão-mor, que estava naquela cidade Judá. 6 6 A cidade Judá (ou Gidá, como lhe alguns arábios chamam) está situada na terra de Arábia Félix, em altura do Norte de vinte e um graus e meio, o qual sítio é mui estérele, sem ter em si um ramo verde, por toda a sua ribeira ser um triste areal, e a terra escampada, sem amparo dos ventos nortes e nordestes, que a escaldam. E peró que a terra per natureza seja tam estérele, depois da morte de Mahamede, que Meca ficou por casa de sua abominação, que será deste lugar até doze léguas, povoaram os mouros esta cidade, por ser porto conveniente pera os seus secaces, que habitaram todas aquelas partes da entrada e saída daquele Mar Roxo; e assi por causa do comércio da especearia, que por ser a meio caminho daquele Estreito, fizeram a tal escala. Verdade é que dizem os mouros que, no próprio lugar, houve já υa cidade nobre, donde alguns dos nossos, que entendem em as cousas de Geografia, querem dizer que esta cidade será aquela a que Ptolomeu chama Badeo Regia, a qual opinião nós não aprovamos. Porque a terra é tam estérele e seca, que a água que bebem de uns poços lhe vem di a sete léguas, de um lugar chamado Benihaçan, e é tam cara na cidade, que custa υa cárrega de camelo dela um quarto de cruzado; e se acerta de concorrer muita gente, no tempo que per ali passa algυa armada do Soldão, vale υa cárrega um cruzado. E mais toda aquela comarca é meia deserta, donde parece ser cousa novamente povoada dos mouros, por ser tam vezinha a sua Casa de Meca; e por autorizarem mais o lugar, dizem ser cousa mui antiga, e mostram fora da cidade um monte, em que dizem estarem sepultados Adão e Eva. A cidade Badeo, de que Ptolomeu fala, a nosso parecer, é υa povoação que está mais abaixo em altura de vinte graus, em que ele situa Badeo, ao qual lugar chamam os mouros Xerefém, onde há muita cópia de água, e ainda hoje aparecem duas torres antigas da grande povoação que ali foi. E logo mais adiante está outra cidade chamada Confutá, cousa mui antiquíssima, e em que aparecem letreiros que ninguém sabe ler, e ora é mui célebre por o sertão dela começar dali por diante a ser mui povoado de lugares, o que a terra atrás não tem. E tornando à estérele Judá: o porto dela é um pouco brigoso pera 21 quem a quiser demandar com mão armada, por não poderem chegar a ele per espaço de υa grande légua com baixos e restingas que tem, per os quais não pode nadar em muitas partes um batel, e de maré vazia fica υa praia de area, per que podem passear. Somente tem um canal per que a cidade se serve, da figura desta letra S, 6v 6v ficando a povoação no fim da ponta de cima, e à entrada do canal em a de baixo, e todo o outro circuito é cheo dos baixos que dissemos. A cidade parte dela é de boas casas de pedra e cal, e o demais de taipa e barro; e havia pouco tempo que com temor nosso da parte do mar tinha começada υa cerca do muro. E no princípio dele, quando entram por o segundo cotovelo que a terra faz, tinham feito à maneira de baluarte, em que estava assentada algυa artelharia, pera ofender a quem quisesse ir avante. A maior parte dos moradores da qual cidade eram mercadores, por razão das mercadorias que ali concorriam, assi per entrada como saída, e a outra gente era dos alarves da terra, e todos

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viviam atemorizados dos baduís do campo, que às vezes de sobressalto entravam a cidade, e faziam dano por a roubar ante que ela fosse cercada. A qual cerca do muro fez Mir Hocém, o capitão do Soldão que D. Francisco de Almeida, Viso-Rei da Índia, desbaratou em Dio (como atrás escrevemos). E porque este seu desbarato não somente causou cercar ele esta cidade, mas ainda fazer o Soldão outra armada contra nós, que era aquela que ali estava, será necessário fazer relação de tudo, pera melhor entendimento da história. Mir Hocém, vendo que com aquele desbarato de Dio ficava fora do estado e poder com que entrou na Índia, posto que, na morte de D.Lourenço e feito de Dabul, tinha bem servido ao Soldão, e na boca dos mouros da Índia e Cairo era louvado de cavaleiro e capitão, não ousou de tornar naquele estado ante a presença do Soldão. E como era homem prudente, cuidando no modo que teria pera se restituir na graça dele, achou que nenhum lhe seria mais leve e fácil que este: simular zelo de vertude, capa que cobre interesses próprios. E foi desta maneira: Per algυas vezes que teve prática com Melique-Iaz, capitão de Dio, e assi com el-Rei de Cambaia e outros seus capitães, fez-lhe crer que, segundo nossas armadas andavam senhoras daqueles mares, não seria muito cometermos a entrada do Mar Roxo e tomarmos a cidade Judá, porto muito perto per que podíamos ir a Meca, e di a Medine, roubar o corpo do seu Profeta e o termos em nosso poder, ao modo que eles tinham a cidade Jerusalém, que era a casa de toda nossa crença, cuja romagem era um dos maiores rendimentos que o Soldão tinha. E porque ele sentia que, por seus pecados, Deus lhe dera aquele castigo em o desbaratarmos, por seu serviço e de seu Profeta Mahamede, ele se queria dispor a cercar de muro a cidade Judá, e se pôr nela té acabar aquela obra, e a defender, se lá quiséssemos entrar, e pera isso havia logo de mandar recado 7 7 ao Soldão, que lhe mandasse oficiais, que lhe ajudassem fazer esta obra. 22 Pera a qual, per via de petitórios. assi del-Rei de Cambaia, como de Melique-Iaz e de muitos nobres, ajuntou tanta especearia, roupas e outras mercadorias de Cambaia, que carregou três naus, dando todos como quem fazia esmola mui aceita a Deus, por ser em defensão do corpo do seu Mahamede. Finalmente, chegado Mir Hocém com estas três naus a Judá, em companhia doutras naus de mercadores, foi recebido com grande festa e prazer de todos, sabendo o propósito que levava; porque, cercando ele a cidade, não, somente ficava segura de nossas armadas, mas do concurso dos mouros baduís do campo que os avexavam. E por se reconciliar com o Soldão, escreveu-lhe logo como começava pôr mãos à obra, na qual não somente tevera respeito ao serviço de Deus, mas ainda ao seu; porque, com cercar aquela cidade, ele a segurava de nós, por andarmos mui senhores de todos aqueles mares e portos da Índia, e mais dos alarves do campo; e sobretudo ficava ela com um jugo pera se não rebelar mais contra ele, como muitas vezes tinha feito. Ca sua tenção era, tanto que cercasse a cidade, fazer υa fortaleza pera a sojugar; e não começava logo nela, por não dar suspeita de sua tenção aos moradores, e poder-lhe-iam ir à mão a isso, enquanto ele não tinha mais gente consigo; portanto lhe pedia que o provesse com oficiais e gente, que dinheiro e cabedal ele vinha provido pera toda obra, e os mercadores da cidade queriam contribuir té se de todo acabar. Finalmente, com estes e outros enganos, tanto adoçou o ânimo do Soldão, que o proveo logo; e mais mandou com muita deligência fazer outra armada no porto de Suez, pera nela tornar a mandar ele, Mir Hocém, à Índia. Aconteceu que, andando este Mir Hocém na obra dos muros da cidade, que era no tempo que Afonso de Albuquerque fazia a fortaleza de Calecute, veo ter ao porto de Judá υa nau de mouros carregada de mercadorias, a qual partira de Calecute. E por razão das nossas pazes, per licença de Afonso de Albuquerque vinham muitos mouros nelas pera assentarem ali vivenda, os quais viviam em Calecute, e Afonso de Albuquerque, por eles despejarem a terra, lhe dava algυas franquezas, principalmente aos que levavam mulher e filhos. Calife, que assi havia nome o capitão daquela nau, como era costumado vir da Índia àquela cidade com mercadorias, quando viu que a cercavam, por ver a obra, foi lá um dia onde os oficiais

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andavam lavrando no muro, e acertou de ser em tempo que estava Mir Hocém presente; o qual, vendo 7v 7v o mouro Calife, e sabendo de ele ser capitão daquela nau que chegara, perguntou-lhe pelo nosso Capitão-mor; ao que ele respondeu que o leixava em Calecute fazendo υa fortaleza. E porque ele a gabou de muito forte, tomou Mir Hocém disso tanto desprazer, por ser em presença dos pedreiros que lavravam no muro, que disse contra o mouro Calife: - Porque hajas esta por mais forte que essa que dizes, tu e os da tua nau trabalhareis aqui um pouco. E assi como o mouro estava vestido, bem tratado, e os que com ele 23 vinham, mandou acarretar pedra e cal, e serviram na obra até noite, segundo ele depois contou aos nossos, quando tornou a Calecute, dizendo padecer aquele trabalho por louvar as cousas dos portugueses. O Soldão, porque pera a armada que ordenava fazer não tinha madeira, por a não haver naquelas partes do Egipto, per meio (segundo se disse) dos venezeanos houve a das montanhas de Escandalor, que eram do Estado do Turco, com quem ele então estava em rompimento de guerra. Da passagem da qual madeira pera Egipto foi el-Rei D. Manuel avisado, ante da partida de Lopo Soares pera a Índia; porque um Fr. André, cavaleiro da Ordem de S. João de Rodes, de nação português, que era conservador da mesma Ordem, que por parte del-Rei D. Manuel fazia lá as cousas deste reino, lhe mandou esta nova. E mais que o Soldão, indinado, de quam mal sucedeu à sua armada na Índia, fazia grandes tiranias e males aos cristãos da Europa que andavam naquelas partes, quási como quem queria fazer verdadeiro o que tinha escrito ao Papa per o Padre Fr. Mauros, que veo a este Reino (como atrás escrevemos). Sobre o qual negócio el-Rei D. Fernando de Castela mandou a este Soldão Pedro Mártir, segundo ele conta em um tratado que fez desta sua peregrinação, que anda impresso com suas obras, e estas mesmas cousas escreveu à Religião de Rodes um cavaleiro da Ordem, chipriano de nação, que também andava no Cairo; e assi os padres do Mosteiro de Santa Caterina de Monte Sinai. As quais novas, vindas per tantas mãos, não somente deram aviso a el-Rei D. Manuel pera melhor prover nas cousas da Índia, mas ainda foram causa que a mesma Religião de Rodes fez υa armada maior das que ordinariamente fazia cada ano, a capitania da qual deu ao dito Fr. André, conservador, que depois foi Bailio da Ordem neste reino, dinidade principal entre eles. Em a qual armada entravam seis naus, quatro galés e seiscentos homens de peleja, e, na passagem da madeira da Grécia pera Egipto, deu-lhe tal vitória contra a armada do Soldão, que, sendo vinte cinco velas, em que iam oitocentos 8 8 mamelucos e outros mil homens de peleja, lhe meteu cinco no fundo do mar, e tomou seis, em que lhe matou trezentos mamelucos. E afora esta obra, que Fr. André fez per si, um temporal, que depois deu em as naus que ficaram, foi tal, que somente escaparam dez. Parece que, como esta armada era contra portugueses, quis Deus que um capitão português começasse a primeira destruição dela. Posta a madeira que se salvou deste dano em o porto de Suez, já lavrada no Cairo, por ser menos custosa de levar em camelos, per espaço de vinte léguas, com alguns oficiais levantiscos que tomou das naus de toda Itália, que estavam em Alexandria, em breve acabou vinte-a-sete velas. No qual tempo, com fama desta armada que o Soldão queria mandar à Índia, 24 se veo a seu serviço um cossairo, que tinha grande nome naquele arcepélego das Ilhas de Grécia, do qual queremos fazer particular relação, por ser o que estava em Judá, quando Lopo Soares chegou. E também por causa de outro que andava com ele, com o qual havemos de continuar parte desta

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nossa história, por ser aquele Coge Sofar, o da cidade Dio, pessoa principal na morte del-Rei de Cambaia, em tempo do Governador Nuno da Cunha, como se verá em seu lugar, porque se veja de quam pequena fortuna os homens vem a grandes estados. Segundo soubemos per pessoas que andaram em companhia deste capitão Raix Soleimão, de que queremos falar, ele era natural de υa ilha do arcepélago chamada Mitilene, homem de baixa sorte, turco de nação, cujo ofício era carpinteiro de navios e fustas, o qual, por ser homem de espírito, quis tentar a fortuna, metendo-se a furtar em υa fusta que fez per suas mãos; e deu-se-lhe tam bem o ofício, que veo ter nome de cossairo entre os seus, já com número de oito fustas, seis próprias e duas de outros que se chegaram a ele. Lançado daquelas partes da Turquia, como encartado, polos queixumes que dele faziam ao Turco, veo ter à costa da Ilha de Sizília, onde tomou υa galeota que logo esquipou. Passado daqui à costa de Nápoles, topou seis galés, quatro do mesmo reino, de que era capitão um biscainho, de alcunha Vilamarim, que ali andava a soldo, e duas de genoeses, capitães dous irmãos, cujo apelido era Gobo; das quais galés havendo ele vista, pôs-se em fugida, à força de remo. Vilamarim, tanto que lhe viu fazer volta, começou de o seguir com suas quatros galés, e adiantaram-se neste alcanço duas delas tanto, que veo Soleimão a fazer volta sobre eles, e as tomou, e com elas as outras duas, onde Vilamarim foi preso; e as dos genoeses, por serem mais vagarosas nesta seguida, se salvaram. Havida esta vitória, ficou Soleimão tam poderoso, que andou naquela costa de Apulha fazendo muito dano. No qual tempo, entre alguns cativos, houve um moço natural da cidade Brinde, 8v 8v filho de um António Britime, albanês de nação, e de υa Maria Afrita, natural da mesma cidade, o qual depois houve nome Coge Sofar, aquele que dissemos. Finalmente, com as tomadias ele, Soleimão, ficou tam poderoso, que determinou de se ir pera o Soldão, em ódio do Turco, com fundamento de o servir naquela impresa da Índia. E com este aparato de velas se foi ao porto de Alexandria, e dali assentou suas cousas com o Soldão, dando-lhe a capitania-mor da armada que tinha feito em Suez, posto que, té sua chegada, sempre se fez com voz que Mir Hocém havia de tornar à Índia nela. Leixando ele, Soleimão, todalas suas velas repartidas per os capitães que lhe ajudaram ganhar aquela honra, se meteu em duas galés somente, mui bem esquipadas, levando mais de cinquenta cativos, todos oficiais de obra do mar, ao qual o Soldão recebeu com honra, e o espediu logo, que fosse tomar posse da armada, que eram vinte-a-sete velas, entre galés, galeotas e naus de alto bordo, pera mantimentos e munições, em que iriam até três mil homens, muita 25 parte deles mamelucos, arábios e alguns arrenegados artelheiros. Com a qual frota ele partiu do porto de Suez, e foi fazendo suas escalas até chegar a Adem levando de Judá em sua companhia Mir Hocém, como segunda pessoa da frota per ordenança do Soldão. O Rei de Adem, tanto que soube per o seu capitão Miramirjão, que tinha na cidade, a vinda desta armada, partiu a grã pressa da cidade Elhach, que é a cabeça do seu reino, e, com grande número de arábios que trouxe, se meteu nela, pera a defender. E peró que Raix Soleimão lhe deu bataria de maneira que derribou o lanço do muro que os nossos viram, quando per ali passaram, querendo os mamelucos entrar per combate, foi tanta a mortindade neles, que conveo a Raix Soleimão apartar-se daquele cometimento, e meio desbaratado se tornou recolher pera dentro do Estreito, à Ilha Camarão. Na qual o Soldão lhe mandava que fizesse υa fortaleza, quando não tomasse Adem, porque dali poderia fazer a guerra à Índia, até que lá houvesse outra cousa em que podesse estar seguro de nossas armadas. Postos na obra da fortaleza, cujo muro tinha vinte e oito pés de largo, enquanto nela trabalhava a gente comum, ordenou Raix Soleimão de entrar dentro na terra firme e tomar υa cidade chamada Zeibide, porque a gente que ali tinha era muita, e gastava-lhe os mantimentos; e quando neste caminho não fizesse mais que trazer alguns, isto tomaria polo trabalho dele. Finalmente, ficando Mir Hocém com toda a armada fazendo a obra da fortaleza, Raix Soleimão entrou pola terra

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dentro com a melhor gente que tinha, e tomou a cidade, que era dali obra de doze léguas, na qual se leixou estar alguns dias, por achar nela 9 6 muito esbulho, e por ser viçosa e abastada, era a gente má de sair dela. Neste tempo, veo nova da cidade Judá, que o Turco, em υa batalha que deu, ao Soldão desbaratara e matara; a qual nova, ainda que não se havia por mui certa, folgou Mir Hocém com ela, por favorecer a seu propósito. Porque, como tinha mortal ódio a Raix Soleimão, por lhe tirar a capitania-mor daquela armada, e mais era turco, e ele cordi, nações que sempre estão em ódio mortal, e mais, no modo de mandar a frota, tinha recebido dele alguns desgostos, amotinou a gente, dizendo: - Amigos, o Soldão nosso senhor é morto, e a nós os seus vassalos, que vimos nesta sua armada, convém defendermos sua terra; e ainda que a nova de sua morte não seja mui certa, basta termos por certo as batalhas que já per vezes houve entre o Turco e ele. E porque Raix Soleimão é turco e veo ao serviço do Soldão, fugido do Turco, pelos insultos e roubos que tem feito em sua própria pátria, e ora com esta nova quererá tomar voz por ele, pera se restituir na sua graça, enquanto se ele anda enchendo de dinheiro e riquezas, que houve na tomada de Zeibide, onde ele e os outros que o seguiram estão mimosos da fertelidade da terra, meu parecer é que nos vamos pera Judá, té se saber o certo em que termo estão as cousas do Soldão, nosso senhor; porque muito mais importa a seu serviço segurar-lhe aquela cidade, 26 que eu per seu mandado cerquei com tanto trabalho, e assi segurar esta sua armada, que custou um grande número de dinheiro, que estarmos nesta ilha morrendo com a pedra às costas nesta obra, que eu não hei por cousa importante a seu serviço. A gente, como andava cansada da obra e muita adoecia do trabalho e ruins ares da terra, e sobretudo mui indinada de Soleimão e dos de sua companhia, por lhe dizerem quanto despojo houveram na tomada da cidade, facilmente foram na opinião de Mir Hocém. Finalmente, ele se partiu com a melhor parte da frota, leixando algυas pera quando Raix Soleimão tornasse ter embarcação, e isto não por amor de sua pessoa, somente por mamelucos que andavam com ele, por serem naturais do Cairo. Raix Soleimão, tanto que soube esta partida de Mir Hocém, provida a cidade de gente que ali leixou em guarnição, tornou-se a Camarão, e, embarcado nas velas que achou, foi-se a Judá, onde Mir Hocém o não quis recolher, dando per escusa a nova do desbarato do Soldão, e que, enquanto não soubesse outra cousa em contrairo, ele o não leixaria entrar, por ser homem suspeitoso ao Estado do Soldão, posto que em seu serviço andasse, dando pera isso todalas razões que aprovavam sua openião. Sobre o qual negócio vieram às armas, ao que acudiu o Xerife Paracate, que estava na Casa de Meca, que eram dali doze léguas, o qual, como homem religioso, meteu a mão 9v 6v entre eles e os concertou por esta maneira: que Mir Hocém recolhesse a Raix Soleimão na cidade, e cada um estevesse por capitão da gente que tinha enquanto mandassem recado ao Soldão, que determinasse este caso entre eles, por se não ter por mui certo seu desbarato. Peró Raix Soleimão, depois que foi recolhido na cidade, não guardou que viesse o tal recado, posto que logo despachassem cartas pera o Soldão, porque, ante de poucos dias, manhosamente prendeu Mir Hocém com quanta vigia tinha sobre si. E não ousando de o matar nem ter preso, o mandou meter em υa galé, dizendo que o mandava ao Soldão, que o castigasse daquela união que fizera; e secretamente disse ao capitão da galé que, como fosse no mar largo, que o lançasse nele com υa pedra ao pescoço, e assi acabou. E porque a nova da morte do Soldão dobrou com υa batalha que lhe deu o Turco, Raix Soleimão em seu nome levantou bandeira per todalas torres do muro da cidade, posto que em

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verdade o Soldão não era morto neste tempo, somente tinha perdido algυas batalhas. Porém quando veo o ano de dezoito, a vinte quatro de Agosto, o Turco lhe deu outra em que ele morreu; o qual, entre os mouros, per excelência se chamava o Rei, per este vocábulo - Soldão - que nós corrompemos em Soldão, chamado per próprio nome Cansor Algauri, em quem acabou o nome do Soldão do Cairo, cabeça de todo o reino do Egipto, o qual estado ficou metido na Coroa da Casa Otomana dos turcos. Estas diferenças entre estes dous capitães havia poucos dias que passaram, quando Lopo Soares chegou ao porto de Judá; e com esta voz que 27 Raix Soleimão tomou pelo Turco naquela cidade, e presentes que lhe mandou do despojo de Zeibide, se tornou reconciliar com ele, e depois pagou a morte de Mir Hocém, como adiante se verá.

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9v 9v 27 Capítulo IV. Do que Lopo Soares passou no porto de Judá, e depois que se dali partiu té chegar a Camarão, onde invernou, onde veo ter D. João da Silveira, ao qual ele, Lopo Soares, mandou buscar à costa do Abassi. Surta a nossa frota no porto da cidade Judá, mandou Lopo Soares, por razão do canal per que se ela servia, que era retorcido da maneira que dissemos com o banco de area que tinha, que as velas de remo se posessem diante, e as naus grossas na boca do canal, ficando com toda a armada quási de rostro com a cidade; e ainda que seria espaço de υa légua, os pelouros de ferro coado, com que tiravam dous basaliscos, vinham saltar entre as naus. E era este banco de area tão baixo, que na vasante da maré ficava υa 10 10 praia, per a qual, ao terceiro dia da chegada de Lopo Soares, veo um homem, e acenando dali às naus, mandou ele a Bastião Rodrigues, Lagues de alcunha, que em um batel fosse ver o que queria. O qual era um arrenegado que falava mui bem o espanhol, e trazia υa carta de desafio a Lopo Soares de Raix Soleimão, chea de todalas rabolarias que os turcos costumam, cometendo batalha por mar ou por terra, um por um ou tantos por tantos, por evitar morte de gente. E posto que Gaspar da Silva e D. Afonso de Meneses pediram a Lopo Soares que lhe concedesse a cada um deles esta mercê, foi a reposta levada ao mouro, que dissesse a Raix Soleimão, que a reposta ele esperava de lha ir dar em terra. E quando veo ao seguinte dia, quási como em satisfação de seu requerimento, mandou Lopo Soares a D.Afonso de Meneses, e com ele Dinis Fernandes de Melo, em a sua galé, que lhe fosse sondar todo o canal; e enquanto eles isto faziam, foram outros capitães com alguns batéis poer fogo a υas naus, que estavam no meio do canal. O qual depois de ser posto, assi tomou posse de um galeão, fazendo-o todo em υa labareda, que parecia aos da cidade que ardiam já nele, e começaram de a despejar. Raix Soleimão, quando viu o alvoroço da gente, começou dizer: - Senhores e amigos, onde vos quereis ir? que temeis? Não vedes vós que aquela gente há três dias que veo, e não fez mais que queimar aquele, galeão que achou desemparado de defensão? Se credes que há-de sair em 28 terra, estais enganados, porque quem quere sair em terra, não há-de queimar o galeão, mas vir a ele e tomá-lo; portanto, tornai-vos a vossas casas, que não é aquela a gente que se há-de pôr nesse trabalho. E porque os assombremos de cá, tanto quanto os assombram os pelouros dos basaliscos que lhe lá vão fazer dano, demos-lhe υa mostra por fora dos muros, porque vejam que esta cidade não está tam desemparada como eles cuidam. Finalmente, com estas e outras amoestações, ele pôs toda a gente em ordenança com grande estrondo de seus tangeres e bandeiras, e deu de si mostra ao longo da ribeira, saindo por υa porta e entrando por outra; e de cima dos muros, onde todo o povo estava posto, eram tamanhos os alaridos, que, sendo υa légua donde os nossos estavam, lhe vinham estrugir as orelhas. E de quando em quando tiravam três ou quatro basaliscos de trinta palmos de comprido, cujo pelouro era de tamanho da cabeça de um homem, alguns dos quais andavam pulando entre as naus; mas aprouve a Deus que, andando nestes saltos como υa pela de vento, não fizeram 10v 10v dano algum.

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Lopo Soares, sabendo de D. Afonso e de Dinis Fernandes como pelo canal não se podia entrar senão com muitas voltas, e, ainda que fossem em navios de remo rasos, corriam muito risco, por os mouros terem posta a sua artelharia em parte que lhe faria muito dano, assentou com alguns capitães em segredo de mandar dous ou três dos cristãos cativos dos que fugiram na gelva, que fossem de noite em um batel encravar esta artelharia, nas costas dos quais iriam outros batéis pera porem entretanto fogo às galés que estavam no estaleiro. Peró nenhυa cousa destas houve efeito, porque os cativos, depois que lhe foi comunicado este negócio, prometendo-lhe Lopo Soares grande prémio, se o fizessem, responderam que aquilo era irem eles morrer sem fructo algum, porque a artelharia e galés tudo se velava de noite com muita gente; que seu parecer era pôr o peito em terra; por ventura quando vissem os mouros esta sua determinação, despejariam a cidade, como já o começavam fazer de temor, sem ver mais que o corpo de tam fermosa frota. Lopo Soares com estas cousas dessimulou per espaço de dous dias, parecendo-lhe que o tempo e o cuidado nelas lhe dariam algum modo com que comprisse com a vontade del-Rei D. Manuel, segundo o regimento que pera esta entrada do Estreito lhe tinha dado. E quando soube que per toda a frota havia grande murmuração, porque não saía em terra, chamou a conselho todolos capitães e pessoas notáveis; e por sua justificação, depois que lhe fez relação do que tinha feito e consultado com alguns deles nos dias que eram passados, depois de sua chegada, mandou-lhe ler pelo secretário o regimento que lhe el-Rei dera sobre a entrada daquele Estreito. No qual lhe mandava que em nenhυa maneira cometesse caso onde 29 manifestamente a gente corresse perigo da vida, e outras muitas cautelas, de que devia usar, tudo por resguardo da vida dos homens, e também por não aventurar o Estado da Índia em um feito, em que se não ganhava muito pera a segurança dele, falecendo-lhe já quatro velas que eram desaparecidas, que levavam a quarta parte da gente da frota, e a maior das munições que havia mister. E porque ele, Lopo Soares, sempre tinha mais respeito ao que lhe el-Rei mandava que a quantas murmurações podia haver naquela frota, em gente de pouca consideração, não compria com seus apetites, que era saírem todos em terra. E que verdadeiramente ele não tinha escândalo de quem isto dezia, ante os julgava por cavaleiros e homens de generoso ânimo, pois estimavam pouco a vida por serviço de seu Rei; porém também deviam de crer que ele 11 11 era tam amigo de ganhar honra, como cada um deles, e que deter-se na determinação deste feito não era a outro fim, senão esperar se veriam as outras velas, e também ver se achava algum caminho como podesse comprir com o que lhe el-Rei mandava, e eles desejavam; e porque té então nenhυa cousa destas sucedera, ele os ajuntara pera cada um dizer o que lhe nisso parecia. Leixando Lopo Soares este negócio nos votos dos capitães, foram eles tam diferentes e apassionados na maneira de se contrariar uns aos outros, que tomou ele por conclusão esta que lhe el-Rei encomendava: não aventurar a gente em casos de tam manifesto perigo. Dando por razão que eles não eram vindos ali a mais que a pelejar com aquela armada do Soldão, a qual, se a acharam no mar, per qualquer modo que fora a cometeram, té a meter no fundo, porque a tenção del-Rei era somente tirar àqueles mouros do Cairo navegarem pera a Índia per via de comércio, quanto mais com mão armada. Porém como as galés que ali estavam varadas já não eram pera navegar (segundo os cativos deziam), por estarem já gastadas do Sol, e mais com as escalas que Raix Soleimão andou fazendo e diferenças de antre ele e Mir Hocém se desbaratou a gente, a ele lhe parecia que, com a nova que se ali havia por certa da morte do Soldão, todalas armadas contra a Índia acabariam. Porque, primeiro que o Turco acabasse de tomar aquele grande Estado do Cairo e paceficar os mouros da Arábia, que naturalmente tem ódio aos turcos, passariam muitos anos. E quando o Turco fosse senhor pacífico de todo, não em conquistar a Índia, mas defender-se da Cristandade e do Xeque Ismael, Rei da Pérsia, que tinha da outra ilharga, havia mister seu poder por serem vezinhos de ante a porta. Assi que, per qualquer via destas, ele havia aquelas galés por desbaratadas, e ele se haveria por mais desbaratado no juízo aventurar, contra o mandado del-Rei, a frol de toda a Índia,

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por queimar um pouco de pau que já não servia, nem lhe podia fazer dano. E se o haviam 30 por razão de tomar a cidade, ele não comprava com tam grande preço, como era vidas de muita nobreza que nela podiam perecer, tam vil cousa como ela era, pois, segundo diziam os cativos que dela saíram, todolos seus moradores estavam de maneira apercebidos na salvação de suas fazendas, que, quando a leixassem, havia de ser com as paredes vazias. Finalmente, examinadas estas e outras razões por parte deste negócio, ficou assentado ser serviço del-Rei leixar o cometimento de cada υa das ditas cousas por o pouco que importavam e muito que se nelas aventurava, e determinou 11v 11v Lopo Soares de se partir di a dous dias, havendo onze que ali estava. E quando veo à saída da frota, como eram muitas velas e o lugar estreito, não poderam sair naquela maré υa nau, capitão Afonso Lopes da Costa, e duas galés, capitães Lopo de Brito e Fernão Gomes de Lemos, sobre as quais mandou logo Lopo Soares a D. Aleixo que se metesse na caravela de Francisco de Gá e que lhas recolhesse. Quando, na maré do outro dia, pela menhã, que D. Aleixo deu sinal com υa bombarda que levassem todos âncora, saiu de dentro do porto de Judá υa galé mui bem esquipada; e, em chegando junto de Fernão Gomes de Lemos, que era o que estava mais dentro do canal, tirou-lhe com um basalisco, a força do repuxo do qual foi tão grande, que fez dar à galé υa volta em redondo, de maneira que lhe viram os nossos a quilha. E ou que ela não vinha a mais que a fazer aquele tiro, que foi em vão, ou que ele lhe fez algum dano, tornou-se mais tesa pera dentro do que vinha, e na conjunção da sua chegada, Dinis Fernandes de Melo, como tinha υa galé bem esquipada, arrincou rijo, e foi dar um cabo à galé de Lopo de Brito, que era mui pesada no remo, por ser a maior de toda a frota. E porque a gente português, quando olha de fora, muitas vezes se não contenta do que os outros fazem, quiseram alguns taxar a Fernão Gomes no modo que teve de se recolher, fazendo ele nisso o que devia, como cavaleiro que era, e procedeu daqui o que adiante diremos. Lopo Soares, recolhida toda sua frota, fez seu caminho pera a Ilha Camarão, com fundamento de desfazer a fortaleza que Raix Soleimão ali tinha começada. E a primeira cousa que fez em chegando, foi mandar duas caravelas, capitães Francisco de Gá e Lourenço de Cosme, que fossem à outra costa do Abexi buscar D. João da Silveira e as outras velas que se apartaram da frota, por não ter sabido o que era feito delas. E também trabalhassem muito por tomar o porto da Ilha Maçuá e do lugar Arquico, que era na terra firme, os quais diziam ser do Preste João, e soubessem se era verdade ter ele mandado Mateus por seu embaixador a el-Rei de Portugal, pola dúvida que havia nisso, e tudo fosse o mais dissimuladamente que ser podesse, e se enformassem bem das cousas do Preste. Com os quais mandou ir o bacharel Juzarte Viegas e dous línguas, um chamado António Fernandes e outro Ajamete, mouro granadil, que já estevera naquela terra do Preste. Partidos estes navios, foram ter à Ilha Dalaca, e defronte dela, em 31 outra chamada Daruá, acharam D. João da Silveira, que aportou ali com assaz fortuna, e lhe deu nova 12 12 que, no dia do temporal que o fez apartar da frota, se perdeu o junco, capitão Diogo Pereira, salvando-se todolos malabares que iam nele, somente três ou quatro. E que da Ilha de Dalaca, cujo porto ele primeiro tomara, se passara àquela ilheta, por estar mais seguro dos mouros dela, por lhe dizer Mateus, embaixador do Preste, que com ele vinha, ser mui povoada deles, e o Rei, senhor dela, mui mau homem, de quem se não havia de fiar, principalmente depois que ele, D. João, tomara duas gelvas carregadas de mantimento, por necessidade que tinha dele. Passado o primeiro dia da chegada destes dous capitães, teve D. João conselho com eles e

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com o bacharel Juzarte Viegas sobre o que Lopo Soares mandava que eles fizessem pera ser certo das cousas de Mateus, e assentaram, o mais dissimuladamente que poderam (dando-lhe entender ser a outro fim), que em aqueles dous navios o levassem à Ilha Dalaca, porque, como ele sabia tanto do Rei dela, poderia ser que haveria ali quem o conhecesse. Peró Mateus, quando lhe foram com este negócio, em nenhυa maneira poderam com ele que saísse da nau, e fez grandes exclamações e requerimentos da parte del-Rei D. Manuel, que em nenhum modo navio algum fosse àquela ilha por a maldade del-Rei dela, como já muitas vezes tinha dito; e de como ele fazia este requerimento, pedia ao escrivão da nau que lhe desse um assinado pera apresentar ao Capitão-mor. D. João e os capitães, quando viram tantas exclamações dele, teveram pera si que tudo eram cautelas por não ser conhecido da gente da ilha, de quem se podia saber ser ele quem cuidavam algum mouro do Cairo enviado a Portugal por espia das cousas dele; e leixando-o em sua contumácia, espediu D. João as duas caravelas, que fossem fazer o que lhes Lopo Soares mandava, e ele partiu pera Camarão, onde chegou a salvamento. E ao tempo de sua chegada, que foi a primeira oitava de Páscoa do Espírito Santo, um clérigo per nome Francisco Álvares, que vinha em esta nau em companhia de Mateus, foi ver Duarte Galvão, que estava em estado de morte, não de enfermidade, mas de velhice e nojo. Ao qual Francisco Álvares, por ser da sua criação, ele, Duarte Galvão, disse: - Padre perguntais-me como estou, e não me dais nova da morte de meu filho Jorge Galvão? - Senhor - respondeu Francisco Álvares - estará prazendo a Deus em algum porto da terra donde nós vimos. - Por mais certo - disse Duarte Galvão - tenho eu que ele e meu sobrinho D. Álvaro, com quantos iam na sua fusta, estão no Paraíso, onde Nosso Senhor os levaria por sua misericórdia, pois morreram em seu serviço 32 e de seu 12v 12v Rei, ca podeis ter por certo que todos se alagaram no mar. E Lourenço de Cosme e alguns do seu navio, os mouros lhe cortaram as cabeças na Ilha Dalaca, onde os vós leixastes. As quais palavras foram tam verdadeiras como o mesmo caso; ca di a dous dias que Duarte Galvão faleceu, vieram as duas caravelas, e contaram como Lourenço de Cosme e o escrivão do navio, com alguns que em sua companhia saíram na Ilha Dalaca, por saberem as cousas de Mateus, foram mortos pelos mouros, e seis escaparam mal feridos, e que isso causara o mouro Ajamete, língua, que levavam. O qual caso não foi por culpa de Ajamete, ante ele foi o primeiro a que o Rei da terra mandou cortar a cabeça, dizendo que ele trouxera ali os portugueses. E isto souberam depois os nossos, quando Diogo Lopes de Sequeira ali veo ter, sendo Governador da Índia, e mandou D. Rodrigo de Lima por embaixador ao Preste, em companhia de Mateus, como em seu lugar será escrito. Parece que não quis Deus que fosse levada esta embaixada per Duarte Galvão, como levou outras a reis e príncipes da Cristandade; e permitiu que acabasse seus dias a nove de Junho de quinhentos e dezassete, em idade de setenta e tantos anos, e fosse enterrado naquela Ilha Camarão, e seu filho no ventre dos pexes do Mar Roxo, sem um saber da morte do outro, somente o pai que viu em espírito a do filho. Parece que o ânimo do homem, quando já está de partida pera o lugar dos espíritos, quási meio separado da carne, vê em espírito o que a nós não é manifesto. Foi este Duarte Galvão filho de Rui Galvão, secretário del-Rei D.Afonso, o Quinto. Era homem douto nas letras de Humanidade; compôs, per mandado del-Rei D. Manuel a Crónica del-Rei D. Afonso Hanriques, primeiro Rei deste reino de Portugal, ou (por melhor dizer) apurou a linguagem antiga, em que estava escrita; e quem quer que foi o primeiro compoedor dela, dará conta a Deus de macular a fama de tam ilustres duas pessoas, como foram a Rainha D. Tareija e El-Rei D. Afonso Hanriques, seu filho, nas diferenças que conta haver entre eles. Pois, ao tempo

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que seu pai, o Conde D. Hanrique, faleceu, ele, Príncipe D. Afonso, ficou em idade de seis anos debaixo da obediência e tuitoria de sua madre, sem ela lhe dar padrastro, nem ele a prender, e outras fábulas que a Crónica conta. A verdade da vida e feitos do qual Príncipe, se a Nosso Senhor aprouver dar-nos vida, se verá em nossa Europa. Compôs mais Duarte Galvão, no tempo que El-Rei o mandou com esta embaixada, υa exortação sobre a empresa daquela conquista e destruição da Casa de Meca, 13 13 trazendo pera isso muitas autoridades e algυas profecias, que denunciavam haver de ser feita pera Cristandade desta nossa Europa. Concluindo que per outro caminho se não podia mais levemente fazer, que per aquele Estreito do Mar Roxo, ajuntando-se as armadas del-Rei D. Manuel com as gentes do Rei dos abexis, chamado Preste João, e alguns príncipes 33 cristãos pela parte de Súria, em um mesmo tempo poderiam tomar das mãos dos mouros a Casa Santa de Jerusalém, onde estão todos os passos dos Mistérios de nossa Redenção. Sobre a qual exortação el-Rei D. Manuel, o ano de quinhentos e cinco, tinha mandado secretamente o mesmo Duarte Galvão ao Emperador Maximiliano e a El-Rei de França e ao Papa Alexandre, como mais largamente escrevemos em sua própria crónica. E no fim desta exortação, ele, Duarte Galvão, dá desculpa de si, sendo homem de tanta idade, aceitar υa tal empresa, com tantos e tais perigos de mar e de terra. Fizemos esta digressão sobre as cousas de Duarte Galvão, porque, pois tomámos cuidado de escrever os trabalhos que os naturais deste reino passaram naquela conquista de Ásia, convém que não neguemos a cada um, que a nossa notícia vier, o prémio deste lugar de memória; e também devemos isto a Duarte Galvão por rezão das letras, pois per elas, quanto sua possibilidade alcançou, deu nome a muitos. Os ossos do qual foram depois, em tempo de Diogo Lopes levados daquele lugar per Francisco Álvares, clérigo, e ele os mandou à Índia, e de lá os trouxe a este reino António Galvão, seu filho, vindo por capitão de υa nau. E não somente por causa das vezes que nossas armadas invernaram naquela Ilha Camarão, sepultura de tanta gente, mas ainda com esta particular de Duarte Galvão e com um caso que se cometeu junto dela, fica celebrada em nome acerca de nós. O qual caso procedeu da saída da galé de Fernão Gomes de Lemos per o canal de Judá, como atrás apontámos. Ca, ouvindo ele que se deziam algυas cousas que tocavam em sua honra, no modo que teve em se sair do canal, desafiou por isso a Simão de Andrade pera esta sepultura de Duarte Galvão. O sucesso do qual feito, por ser matéria de honra, ficará entre eles; basta saber que cada um fez o que compria à sua, e no fim ficaram amigos.

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13 13 34 Capítulo V. Como, partido Lopo Soares da Ilha Camarão, foi ter à cidade Zeila, que está na costa da terra África, principal porto do reino Adel, a qual tomou por armas e depois queimou. 13v 13v Falecido Duarte Galvão, que era a principal parte por cujo respeito el-Rei D. Manuel mandava a Lopo Soares que tomasse a costa da terra abexi, e também com a morte de Lourenço de Cosme e cousas que passaram em Dalaca, em que Mateus se havia por falso embaixador, posto que seus receos foram verdadeiros, nasceram daqui, entre ele e Lopo Soares, tais desgostos, que nunca mais um quis ver o outro, com que ele, Lopo Soares, assentou de não ir a este negócio, e fazer sua via caminho da Índia, com fundamento de escrever a el-Rei o que sentia de Mateus, e era passado por sua causa. Peró, ante da sua partida, enquanto ali invernou, passou trabalhos de fome, sede e enfermidades, que era cousa piadosa ver morrer a gente que ali ficou, dela enterrada na terra e outra lançada no mar. E o que também causou parte desta morte foi o trabalho que teve em derribar o que Raix Soleimão e Mir Hocém tinham feito na fortaleza. E porque, na terra firme da Arábia, que tinham por vezinha, pouco mais de υa légua, junto de um lugar chamado Ceilif, começaram acudir alguns mouros com mantimentos da terra, mandou Lopo Soares que, neste ir e vir a os comprar, andasse somente um bargantim, de que era capitão Bastião Rodrigues. O qual, havendo dias que servia neste comércio, dando e recebendo com os mouros pacificamente sem muitas cautelas, vieram duas gelvas, que são barcos leves, per mandado de Raix Soleimão, como descobridores do que fazia nossa armada; e vendo a seguridade com que o nosso bargantim fazia seu resgate com os mouros, assentaram estes das gelvas com os da terra que os entretevessem pera um tal dia, e que sairiam de υa encoberta, e fariam seu feito. O qual negócio sucedeu tanto em favor dos mouros, por o nosso bargantim estar quási em seco, quando deram sobre ele, que foi tomado com dezassete homens, e levados a Raix Soleimão, o qual os mandou de presente ao Turco, e um deles, que fugiu de Constantinopla e veo ter a este reino, contou todo o caso. Lopo Soares, agastado deste desastre e dos mais sucedimentos da entrada daquele Estreito, com os primeiros ponentes que ventaram se fez à vela e foi surgir diante da cidade Zeila, situada na terra África, em saindo das portas do Estreito obra de vinte seis léguas, em υa enseada que a terra ali faz, a qual (segundo sua situação) parece ser aquela povoação a que Ptolomeu chama a Avalites Emporium. Porque a cidade em si tem anteguidade de edefícios de pedra e cal, ao modo da cidade Adem, e a comarca dentro, no interior 35 da terra, fértil, e per ela saem 14 14 quási a maior parte das cousas, que per via de comércio se tiram da terra do Rei dos abexis, e assi entram as que se lá despendem. O senhor da qual é el-Rei do reino Adel, cuja metrópoli se chama Arar, que está dentro do sertão, no princípio da região a que Ptolomeu chama Tica, e distará desta cidade Zeila espaço de trinta e oito léguas contra o Sudueste. E a causa por que Lopo Soares quis dar nesta cidade Zeila foi por o favor que a armada de Raix Soleimão achou nela, depois do dano que leixava feito em Adem, como quem os favorecia em ódio dela; porque ambos estes Reis - o de Adem e o de Zeila - peró que não resedissem nelas, somente os governadores que tinham posto, e eles estavam dentro no sertão, era este ódio entre eles por causa do rendimento da entrada e saída

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das mercadorias do Estreito. Ca antigamente esta Zeila foi mais célebre empório e escala daquelas portas do Estreito do que era Adem; e depois que nós entrámos na Índia, começou esta de se nobrecer com diminuição de Zeila. E além desta causa, a principal, houve outra, que era irem os homens tam quebrados no ânimo e desgostosos daquela jornada, polo pouco que tinham feito, que, pera os satisfazer em algυa maneira, quis Lopo Soares sair nesta cidade, fazendo conta que Adem seguro tinha leixá-la debaixo da nossa obediência, polos oferecimentos e modos com que o capitão dela o recebeu. Assi que, com este fundamento chegada a nossa armada ao porto, sem muita resistência ela foi posta em nosso poder, a custa das vidas de muitos mouros que ficaram per essas ruas. A dianteira da qual entrada deu Lopo Soares a D. João da Silveira per υa parte, e a Jorge de Brito e D.Garcia Coutinho per outra. E não foi tam brevemente cometida, quam prestes foi despejada dos mouros, e logo dos nossos, porque lhe mandou Lopo Soares pôr o fogo, e deu às trombetas que se recolhessem a suas embarcações com mui pouco despojo, por ela o não ter em si, e algum que havia o fogo tomou posse dele. A causa de os mouros tam levemente despejarem a cidade e nela acharem pouca fazenda foi porque, neste tempo que Lopo Soares ali chegou, era ido o capitão dela a chamado do seu Rei com a melhor e mais gente que pôde levar, por razão de υa guerra que tinha com o Preste João, com quem ele vezinha. E temendo os mouros que nela ficaram que a saída de nossa armada fosse per aquela costa, como a entrada do Estreito fora pela outra da Arábia, da qual poderiam receber algum dano, por ficar com pouca gente, tinham a cidade despejada de toda sua fazenda, e somente ficou com a gente pera pelejar. E entre 14v 14v alguns cativos que se ali tomaram, foi um português chamado João Fernandes, marinheiro, que dezia ser natural de Leça, junto da cidade do Porto, que fora ali ter do bargantim de Gregório da Quadra, da armada de Duarte de Lemos, de que atrás escrevemos. O qual os mouros prenderam, polo acusarem três catelães, que ali foram a vender armas, a quem se ele 36 descobriu que era português, parecendo-lhe que com esta acusação podiam eles ter mais favor no vender suas mercadorias. Da qual obra eles não esperaram o galardão dos nossos, porque foram dos primeiros que se poseram em salvo, tanto que eles tomaram a praia, e naquele despojo foram achadas muitas folhas de espadas largas e compridas, ainda em preto, que eles ali tinham vendido. E o caso de maior contemplação acerca destas armas levadas àqueles infiéis per estes homens sem temor de Deus, foi que, não somente se perderam as que tinham por vender, mas as vendidas, que o capitão da cidade levou, quando o seu Rei o mandou chamar pera a guerra que dissemos ter com o Preste João, e ele na confiança delas foi morto per esta maneira: Querendo el-Rei de Adel fazer υa entrada nas terras do Preste com poder de gente, foi ele sabedor disso, e o mais em breve que pôde lhe saiu ao caminho, sendo naquele tempo em idade de dezassete anos; e per espias, sabendo que o mouro tinha assentado seu arraial em um grande campo cercado de montes, mandou-lhe tomar os passos per onde podia sair, e deu sobre ele υa ante menhã. O mouro, quando viu sobre si tam grande poder de gente, aconselhado per este capitão de Zeila, chamado Mahamede, pôs-se em salvo com cinco de cavalo, e ele, capitão, esperou a batalha; e como homem animoso e confiado nas boas armas que houvera dos catelães, estando as batalhas pera romper, saído do corpo da gente, chegou-se tanto à do Preste, que podia ser ouvido, e começou em voz alta chamar se havia alguém que se quisesse matar com ele, ante que as batalhas rompessem. Ao qual desafio saiu um frade chamado Gabri Andres, que como valente homem matou este capitão Mahamede, e foi apresentar sua cabeça ao Preste, como sinal da vitória que havia de haver de seus imigos, pois o seu capitão era morto, e assi foi; ca com esta morte o exército dos mouros se pôs logo em fugida, na qual o Preste ficou senhor do campo, matando um grande número deles. Do qual caso se fez υa cantiga ao modo como acerca de nós se cantam os rimances de

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cousas acontecidas, que os nossos ouviram cantar na Corte do Preste di a dous anos, quando Diogo Lopes de Sequeira, que sucedeu a Lopo Soares naquela governança 15 15 da Índia, entrou naquele Estreito, e mandou a D. Rodrigo de Lima por embaixador ao Preste, como se verá em seu lugar. E um Francisco Álvares, sacerdote, que foi nesta companhia de D. Rodrigo, conta em um Itinerário que fez desta ida, que ele viu este Gabri Andres andar na Corte do Preste, posto em honra por razão deste feito; e o Preste, gloriando-se desta vitória, mandara mostrar a D, Rodrigo cinco ou seis feixes de terçados de cabos de prata, que houvera no despojo desta batalha, tendo já dados outros muitos. E que, mandando-lhe dar υa tenda de brocadilho de Meca pera ele, Francisco Álvares, dizer missa ao embaixador, lhe mandara aviso que a desenviolasse e benzesse, por ser do uso del-Rei de Adel, tomada naquela batalha. 37 Assi que dous exércitos da Cristandade, um da Igreja Romana e de Rei ocidental, e outro da Igreja Abassia, de Príncipe oriental, concorreram ambos em um dia em destruição daquele bárbaro infiel, que é o mais poderoso daquelas partes da Etiópia.

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15 15 37 Capítulo VI. Como Lopo Soares se partiu pera a cidade Adem; e do que ali passou com o capitão dela; e querendo ir sobre a cidade Barborá, com um temporal que lhe deu, arribou a Ormuz, e a maior parte de sua armada per diversas partes passou grandes naufrágios e infortúnios. Lopo Soares, havida a vitória desta cidade, passou-se a outra costa da Arábia com fundamento de se ir prover de água e mantimentos à cidade Adem e a leixar tributária nossa, como quem estava seguro no que tinha passa com Miramirjão. Peró como tudo o que ele fez foi por ter o muro da cidade em terra, e ver que Lopo Soares naquele tempo ia mui poderoso e inteiro com sua gente, quando o viu ante o porto de Adem com a armada mui desfalecida de suas forças e desacreditada polo que passara em Judá, das quais cousas era sabedor, e tinha o seu muro bem repairado e a cidade provida pera se defender, dessimulou com o provimento da água e mantimentos que lhe Lopo Soares pediu, e muito mais descobertamente em se fazer vassalo del-Rei de Portugal. Finalmente, em mentiras, e em hoje lhe mandar υa pipa de água e amenhã outra, fengindo escusas de se não poder mais fazer, por a cidade estar mui necessitada, o deteve dez dias, até que Lopo Soares, por não perder tempo e acabar de gastar sobre âncora mais água do que ali lhe davam, por a grã necessidade que tinha dela e de mantimentos, 15v 15v se fez à vela pera a outra costa de África, com fundamento de ir dar em υa cidade chamada Barborá, que estava abaixo de Zeila, contra o Cabo Guardafu e defronte da cidade Adem. Mas como era no fim de Agosto, em que ali cursam os ventos levantes e as águas andam com eles, ambas estas cousas abateram e espaldearam tanto a armada, que perdiam do caminho, até que, havendo dias que andavam neste trabalho, com assaz clamor da gente, por perecer a fome e sede, veo υa trovoada, que durou per dias 38 da parte do Norte, com que se ela espalhou, tomando cada um o porto que pôde. Lopo Soares com dez ou doze navios tomou o porto de Calaiate, já em dez de Setembro, a Deus misericórdia, e dali espediu o caravelão de Lourenço de Cosme, que mataram os mouros. No qual mandou por capitão Lopo de Vila Lobos, um cavaleiro natural da Vila de Estremoz, e Pero Vaz de Vera por piloto com cartas a el-Rei D. Manuel, em que lhe dava conta do que passara no Estreito e sentia das cousas de Mateus, e isto afim que este recado viesse a el-Rei ante que a armada do ano seguinte partisse deste reino, pera prover nela o que havia por seu serviço que se fizesse. O qual caravelão veo, e foi υa das cousas que té então se viu da Índia por milagrosa, por ser tam pequena vasilha, que, como por cousa maravilhosa, nos templos se põe υa pele de lagarto chea de palha, por se ver quam grandes os cria a terra de África, assi diziam todos que el-Rei houvera de mandar dependurar aquele caravelão por memória de quam pequena cousa viera da Índia. Espedido Lopo de Vila Lobos, Lopo Soares se foi pera a cidade Ormuz a prover algυas cousas, e principalmente por ter nova que os rumes a queriam vir cercar; e di mandou D. Aleixo em a nau Santa Caterina e outras velas com todolos doentes, pera ir dar ordem à carga das naus que se esperavam deste reino. E quanto à viagem, casos que passaram os capitães que se apartaram de Lopo Soares, certo que, havendo-se de escrever o curso deles, era recitar υa triste e miserável tragédia, porque ante nem depois se viu tamanho corpo de armada sem pelejar, desbaratar-se per tantos desastres. Porque entre mortos de fome, sede, doenças, naufrágios, diferenças de alguns mal avindos e outros desastres em Melinde, Moçambique, Socotorá e outras partes daquela costa da

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entrada do Mar Roxo, onde alguns capitães foram ter primeiro que tornassem à Índia, passaram de oitocentos homens. Ca somente em a nau de D. Álvaro da Silveira, de cento e trinta que levava, ficaram vinte e cinco; e ainda estes, vendo lançar seus companheiros poucos 16 16 e poucos ao mar, por mantimento aos peixes, e eles mui necessitados do que haviam mister pera sustentar a vida, iam alguns tam mal avindos por pontos de vaidade de honra (matéria de toda a paixão da nação português), que, estando o seu capitão em terra, em υa aguada que fazia, dous deles, que se leixaram ficar com ele detrás dos outros que iam carregados dos barris de água, o mataram à traição, sendo ambos os principais que ele tinha por amigos e a que mais honra fazia. Um se chamava Jerónimo de Oliveira, filho de Antão de Oliveira, que depois por este caso per justiça foi degolado em Cochi; e o outro havia nome Mendafonso, o qual era em mais obrigação a D.Álvaro, porque fora criado de seu tio o Barão de Alvito, D. Diogo Lobo, e ele o tinha dado a el-Rei. E este, primeiro que saísse do porto do malefício, foi morto às 39 punhaladas per João Rodrigues Pau, um cavaleiro da cidade Évora, o qual o matou, não tanto por vingar a morte de seu capitão, quanto por se segurar dele, polo ter injuriado; e ele, João Rodrigues, primeiro que chegasse à Índia, se perdeu em um navio. E assi se perdeu em outro João de Taíde, e com ele entre algυas pessoas nobres foram Rui de Sousa e Lopo Mendes de Vasconcelos, indo ele em companhia de Francisco de Távora e Cristóvão de Sousa pera invernar em Socotorá, onde acharam D. Diogo da Silveira. E partindo dali todos pera a Índia, morreu no caminho D. Diogo de doença, e o seu corpo foi levado em um batel per popa da nau até Goa, onde o sepultaram. Destoutros seis capitães - Jorge de Brito, António de Azevedo, Aires da Silva, Fernão de Resende, Pero Ferreira e Antão Nogueira - uns foram invernar a Melinde, outros a Moçambique, e deles os dous derradeiros faleceram de doença daqueles trabalhos, e seus navios foram dados a Lourenço Godinho e Francisco Godiz; e todos, tanto que teveram tempo, foram com Lopo Soares a Ormuz. Fernão Gomes de Lemos na sua galé não somente correu a tormenta dos outros, mas ainda teve novo trabalho, ca lhe fugiu o seu piloto por desavença que houve entre eles; e não tendo outra agulha ou carta per que governasse sua viagem, pôs a proa no nascimento do Sol, até dar de rostro em Chaúl, onde estava por feitor nosso um João Fernandes, criado de Tristão da Cunha, e por seu escrivão António Mendes com até vinte homens portugueses, feitorizando algυas cousas pera as feitorias de Goa e Cochi, por aquela terra ser mui abastada de mantimentos e de outras provisões que não há na costa Malabar. O qual João Fernandes, por ser homem áspero, não estava ali benquisto de alguns 16v 16v mouros; e com a chegada de Fernão Gomes dobrou o ódio que lhe tinha; porque, como ele vinha sem remeiros, pediu este João Fernandes ao tanadar, capitão da cidade, que se chamava Cide Hamede, que governava a terra pelo Izamaluco, seu senhor, que lhe mandasse dar alguns remeiros da terra a soldo, pera esquipar a galé. E como se não achava gente que o quisesse fazer, temendo o trabalho do remo, e mais porque poucas vezes, depois que entram, os não leixam sair; vendo-se Cide Hamede apressado de João Fernandes sobre o não se acharem os remeiros, de importunado, disse-lhe:. - Não sei que vos faça. Vedes aí um homem meu, andai por essa cidade, e tomai os que achardes pera isso. O povo, como viu tomar alguns, e que lhe não valia acolherem-se à mesquita de sua oração, porque dali os ia tirar João Fernandes às pancadas, e os levava, alvoroçou-se contra ele em tanta união, que conveo a ele, João Fernandes, recolher-se às casas onde pousava. Sabendo o capitão Hamede o insulto do povo e o estado em que João Fernandes estava, acudiu rijo com alguns seus; e chegando a ele, que estava mui furioso, como é costume dos mouros, quando querem aplacar

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alguém de fúria, abraçarem-o per modo de 40 humildade quási por baixo pelas pernas, fazendo Hamede este ofício, tirou ele, João Fernandes, tam rijo per υa das pernas, por se livrar do abraço do mouro, que lhe deu com o pé nos narizes, que logo foram lavados em sangue. Quando os criados de Hamede o viram naquele estado, remeteram a João Fernandes, que logo ali foi morto, e trás ele os que o acompanhavam, que seriam até vinte e dous homens, porque naquela fúria a nenhum se deu vida, somente escapou um Lopo Dias, criado de Fernão Camelo, polo salvar um mouro seu amigo. O mouro Cide Hamede, como era homem prudente, e mais lhe importava a nossa paz que o sangue dos seus narizes, por ser capitão e rendeiro da entrada e saída das mercadorias daquele porto, cautelou-se logo do que podia suceder ao diante, mandando fazer inventário de quanta fazenda ali achou na casa da Feitoria, e a pôs toda em boa recadação, da qual ao diante deu boa conta, como veremos. Fernão Gomes de Lemos não somente teve bem que fazer em se salvar dos da terra e partir dali, mas ainda, sendo tanto avante como Dabul, vieram sobre ele cinco fustas que o vinham buscar; e se não acontecera pôr-se o fogo na pólvora de υa delas, andando pelejando com ele, o qual caso meteu as outras em pressa de salvar a gente que andava nadando, ele ficara ali. Mas este dano dos mouros e υa fusta nossa que sobreveo, a qual mandou D.Guterre, capitão 17 17 de Goa, sabendo como ele, Fernão Gomes, chegara a Chaúl desbaratado, foi causa de se salvar, por não ter consigo mais que dez homens portugueses, e os outros eram remeiros malabares, e alguns dos que tomou em Chaúl, causa da morte de João Fernandes. Este em soma foi o sucesso daquela grande armada, que Lopo Soares levou ao Estreito, ao qual nós leixaremos um pouco, por dar razão do que se passou na Índia, enquanto ele fez este caminho.

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17 17 41 Capítulo VII. Do que fizeram D. Fernando e Dom João, que D. Guterre mandou de armada; e o que sucedeu em υa entrada que ele mandou fazer em as terras firmes de Goa, onde mataram João Machado, e algυa gente da nossa, donde se causou o Hidalcão a mandar cercar, no qual tempo os nossos padeceram muito trabalho, té a chegada de António de Saldanha. Partido Lopo Soares pera as partes do Mar Roxo (de que té ora falámos), leixou recado a D. Guterre de Monroy, capitão da cidade Goa, que mandasse duas armadas, υa às Ilhas de Maldiva a guardar as naus, que, fugindo da costa da Índia, per entre o canal delas faziam seu caminho, assi de Cambaia como do Estreito de Meca, e iam buscar pimenta e outras especearias à Ilha Samatra; e outra armada andasse de Goa até Chaúl, também por razão destas naus de mouros, que ali iam carregar de algυa especearia, que furtadamente haviam da costa malabar. Pera o qual negócio D. Guterre ordenou seu irmão D. Fernando em υa nau, e em sua companhia João Gonçalves de Castelo Branco em υa galé, o qual partiu pera as Ilhas de Maldiva. E D. João de Monroy, seu sobrinho, ao longo da costa té Chaúl com cinco velas: ele em υa naveta, e das outras, que eram fustas e catures, eram capitães Hanrique de Touro, Pero Jorge, Domingos de Seixas e Paulo Cerveira. O qual D. João seguiu a costa e andou nela todo o verão, sem fazer cousa algυa, somente chegou té o Rio de Maim, onde achou υa nau, que vinha do Mar Roxo carregada de mercadoria; a gente da qual, por salvarem a si e as fazendas, entraram dentro no rio, e, varando-a em terra, salvaram-se com o melhor que poderam levar, e o mais houveram os nossos, levando tudo a Chaúl. Da tomada da qual o capitão de Maim, chamado Xequegi, se houve por muito ofendido: porque não somente lhe foi tomada a nau quási a vista dele, mas ainda lhe esbombardearam a fortaleza. E partidos os nossos, a grã pressa mandou trás eles dez fustas mui esquipadas, que os fossem atalhar à ponta de Chaúl; porque, como era já no princípio do inverno, começavam de se recolher pera Goa, e podê-los-iam tomar descuidados. Peró todo este seu pensamento lhe fundiu 17v 17v pouco; ca, pondo-se no lugar ordenado e cometendo os nossos, eles se houveram de maneira com que as fustas se poseram em fugida. Chegado D. João a Chaúl com a vitória destas fustas e esbulho da nau, foi provido de mantimentos pelo feitor João Fernandes, que os mouros mataram depois (como já atrás fica). E na demora que D. João ali fez, veo 42 ter com ele um Álvaro de Madureira, casado em Goa, o qual se tinha lançado com os mouros por matar um Lourenço Prego, tanadar da cidade, por causa de υa mulher pública português; o qual do Hidalcão, com quem se ele lançou, era passado àquelas partes. D. João, porque levava poderes pera isso, o segurou, e que se fosse com ele, prometendo-lhe perdão de Lopo Soares, o que ele aceitou. E por vir mal roupado, se tirou per todolos nossos, até contia de duzentos pardaus que lhe deram; com o qual dinheiro ele se tornou a terra, dizendo que ia comprar roupa pera se vestir e prover do necessário; mas ele, em lugar de se vir salvar, tornou-se ao estado de mouro em que andava. E por grateficar a boa obra que lhe os nossos fizeram, foi-lhe ordenar υa traição, que logo veremos. Enquanto D. João se deteve no Rio de Chaúl, como quinze fustas de Melique-Iaz, senhor de Dio, traziam o olho nele, tanto que o viram dentro, parecendo-lhe que se poderiam melhor ajudar dele, por o lugar ser estreito, o foram esperar na boca do rio, onde os nossos teveram bem que fazer enquanto se não viram no largo. Porque, como as fustas andavam melhor remeiras e tinham muita

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artelharia meúda, e trabalhavam por fugir abalroarem os nossos com elas, era o seu modo de peleja υa escaramuça bem travada entre remo, setas e fogo, até que, sendo υa das suas fustas abalroada, fez lançarem-se os mouros a nado e salvarem-se em terra, a qual deu aviso a que as outras se poseram a balravento das nossas, e di em salvo. D. João, como viu que lhe não podia fazer mais dano, por o tempo lhe não servir, pôs-se em caminho via de Goa, com fundamento de dar υa vista a Dabul e ir sempre à vista da costa, por causa de topar alguns navios de mouros, que saíam dos portos dela, furtados da nossa armada. E indo bem sequro do que lhe estava ordenado, e sendo já sobre o porto de Dabul, descobrindo um dos catures que levava diante υa ponta, viu seis ou sete velas, as quais trazia Álvaro de Madureira, com fundamento de dar sobre ele de noite em o porto de Chaúl, onde o ele leixava, parecendo-lhe que o poderia tomar descuidado. Porque, com a danada consciência que trazia naquele estado de mouro em que andava, depois de receber os duzentos pardaus que lhe deram, pera se repairar de quam desbaratado 18 18 vinha, foi-se a Dabul, e fez crer ao capitão do Hidalcão que ali estava, que poderia tomar os nossos às mãos, porque ficavam bem descuidados de haver per aqueles portos armada algυa, e mais que os nossos navios, tirando a naveta do Capitão-mor, tudo eram catures, navios que não vinham a conto pera os que ele tinha. Finalmente, por ele já lá ser conhecido, tanto crédito teve, que, mandando o capitão de Dabul, por nome Miral Melique, os seus navios de remo e capitães que seguissem o modo do ardil que ele, Álvaro de Madureira, dava, vinham todos com propósito de tomar os nossos de noite sobre âncora. Peró, quando houveram 43 vista do catur que os descobriu, assi como ele fez volta a dar aviso a D. João, assi eles mudaram o propósito, e foram-se todos meter no porto de Dabul, aos quais D. João não seguiu mais, que quanto os pôde alcançar com artelharia. E tornando a seu caminho via de Goa, chegou a ela a tempo que D. Fernando, seu irmão, era vindo das Ilhas de Maldiva, e naquela viagem tinha tomado duas naus de mouros de Cambaia, de que era capitão um mouro per nome Coge-Qui, homem de tanto ânimo que, sendo a maior parte da fazenda das naus sua, e vendo-se cativo, ele mesmo se consolava quando os nossos o queriam consolar, dizendo que os bens desta vida não tinham próprio senhor, porque Deus os dava e tirava a quem lhe prazia. E ao tempo que D. Fernando chegou com esta boa presa, estava D. Guterre pera cometer outro negócio per terra, em que di a bem poucos dias o meteu, no qual ele não teve tam boa fortuna como nos do mar, e causou pôr a cidade Goa em estado de muito perigo, e os nossos de grandes trabalhos. E pera se melhor entender o caso, convém trazer o fundamento dele de longe. Em tempo que Afonso de Albuquerque governou a Índia, um Fernão Caldeira, seu paje, casado em Goa, por algυas travessuras que fazia ao modo de cossairo em mouros que vinham ter a Goa e passavam pela sua costa, el-Rei D. Manuel o mandou vir a este reino, e depois o enviou solto com Lopo Soares, o qual, depois de chegado a Goa, saltou com Hanrique Touro, natural de Évora, um destes capitães de que ora fizemos menção, e lhe decepou υa perna, e deu υa cuitelada pelo rostro, pelo qual caso ele se passou pera a terra firme. Outros dizem que a este crime se acrescentou assombrarem-o alguns por parte de D. Guterre, que, como Lopo Soares tornasse de Cochi, o havia de mandar enforcar no lugar onde tinha feito o maior crime, e que isto fizera D. Guterre - por se ele mais temer que do crime 18v 18v acidental - por razão de olhar pera sua mulher, que ele, Fernão Caldeira, tinha em Goa, e também lhe ter má vontade por υas palavras que com ele passara em Moçambique. Seja como for, basta que ele se passou à terra firme dos mouros e se foi pera a tanadaria de Pondá, que será de Goa duas léguas, onde estava Ancostão, um capitão do Hidalcão.

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D. Guterre, tanto que soube que estava com ele, mandou-lho pedir, denunciando dele quantos males tinha feito, assi a cristãos como a mouros, e neste requerimento andou per alguns dias com Ancostão; a reposta do qual sempre foi que não sabia parte dele, e que a terra era larga per onde se podia esconder. Da qual escusa D. Guterre ficou tam escandalizado dele, Ancostão, que lhe mandou dizer algυas palavras em modo de desafio. Ao que o mouro respondeu que ele, D. Guterre, nascera do ventre de sua mãe com o nome que tinha, e não lho via acrescentado em outro de mais honra; e ele, sendo um escravo do Hidalcão, seu senhor, de homem de pouca sorte 44 per nascimento, per mérito de seus feitos chegara a merecer nome de Ancostão; e de homem que per seu braço tinha ganhado tanta honra, bem se devia de crer dele que o não teria fraco pera defender sua vida. Com a qual reposta D. Guterre ficou mais indinado, vendo que o mouro o motejava de fraco, e ele gloriava-se de cavaleiro; donde procedeu que, tornado Lopo Soares de Cochi pera Goa, quando se partiu pera o Estreito, D.Guterre lhe fez queixume deste mouro, acrescentando algυas outras culpas, per as quais determinava de o castigar per qualquer maneira que podesse. Lopo Soares, como D. Guterre era casado com D. Mariana, sua sobrinha, e o leixava com os poderes de Governador, enquanto fazia aquela viagem ao Estreito, respondeu-lhe que fizesse o que lhe nisso bem parecesse. Partido ele, no tempo que D. Fernando e D. João fizeram as viagens que ora contámos, per indústria de D. Guterre lançou-se na terra firme um João Gomes, valente homem de sua pessoa, com título de ir desavindo dele, capitão; e a primeira cousa que fez, foi ir pousar com Fernão Caldeira, como homem que já naquele tempo tinha valia com Ancostão. Finalmente, tanto andou pera o matar, até que um dia no campo o fez, andando ambos a cavalo, sobre o qual caso acudiu Ancostão, e ante que João Gomes se salvasse, foi tomado e morto. Do qual caso procedeu mandar D. Guterre seu irmão D. Fernando que entrasse nas terras firmes, ao qual aconteceu o que se verá neste seguinte capítulo.

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19 19 44 Capítulo VIII. Como D. Guterre mandou D. Fernando com gente de cavalo e de pé sobre o capitão Ancostão, na qual entrada morreu o alcaide-mor João Machado com muita gente nossa, e foi causa da cidade de Goa ser cercada, té a vinda de António de Saldanha, que partiu deste reino com υa armada. Dom Guterre, indinado mais com esta morte de João Gomes, determinou de se vingar; e pera isso ser mais a seu propósito, dissimulou o caso per alguns dias, nos quais exercitava os moradores que tinham cavalos, irem ao campo escaramuçar, trazendo-os adestrados pera o que esperava fazer; do qual negócio deu conta a João Machado, alcaide-mor de Goa, aquele que a salvou no cerco grande que teve (como atrás escrevemos). Ao qual João Machado el-Rei D. Manuel, por ele ser homem que sabia bem as terras firmes de Goa, deu um alvará que, havendo gente de cavalo ou de pé fazer algυa entrada naquelas terras, não indo o 45 capitão da cidade em pessoa, que ele fosse capitão desta gente. Por a qual razão D. Guterre quis que aquela vez desestisse do alvará dizendo que ele queria mandar seu irmão D.Fernando com algυa gente a castigar aquele mouro Ancostão, que tantas cousas lhe tinha feito, e que ele, João Machado, iria em sua companhia, como pessoa principal, por saber bem a terra e o modo de pelejar daqueles mouros, o que João Machado concedeu entre rogo e força. Finalmente, por se tudo fazer per modo que o mouro não tevesse algυa suspeita deste ajuntar gente de cavalo, meteu D. Guterre aos moradores que jogassem as canas na festa de Espírito Santo, que ele elegeu pera esta ida, e passadas as canas, ao outro dia à tarde, levou ao campo todolos encavalgados, e João Machado per outra parte levou a gente de pé, assi dos portugueses, como canaris da terra. Junta toda esta gente, depois que D. Guterre lhe denunciou sua tenção, pedindo-lhe quisessem acompanhar seu irmão naquela ida, que ele esperava ser de muita honra e proveito pera todos, passaram pelo passo de Benastari, onde estava prestes sua embarcação. Seriam de cavalo oitenta, e espingardeiros e besteiros de pé portugueses setenta, e muitos canaris da terra. Postos em caminho pera Pondá, quando veo ao passar de um passo mui estreito, como João Machado era homem de guerra e sabia bem a terra, disse a D. Fernando que naquele passo leixasse algυa gente de cavalo e de pé, porque, como aquele lugar estevesse em poder deles, não lhe podia sobrevir cousa que lhe fizesse dano; e se lho tomassem, vindo gente grossa sobre eles, seriam 19v #19v perdidos; ao que D. Fernando logo proveo. Peró tanto que se partiu, os que ali deixou foram-se trás ele, não que os visse, dizendo que eles guardariam o passo, e os outros iriam encher-se de muito despojo. E porque, quando chegaram ao lugar de Pondá, era ainda de noite, quisera João Machado que dessem no lugar ante menhã, pera tomarem os mouros na cama, o que D. Fernando não quis, senão que fosse menhã clara. E pedindo ele que lhe dessem a dianteira em modo do descobridor, entre enveja e alvoroço que se havia de achar muita riqueza, e que os primeiros fariam mais seu proveito, tanto que João Machado partiu, foram-se trás ele, e a todo correr dão - Santiago! - no lugar, no qual ímpeto meteram logo os mouros em fugida, que já os tinham sentido, passando-se além de um rio per υa ponte. No alcanço dos quais foram alguns dos nossos, mas não muito; porque, vendo os mouros quam poucos eram, tornaram sobre si, e os fizeram voltar per onde vinham, e isto já tam apertados, que como uns começaram virar as costas, os mais se poseram em fugida desordenadamente. E chegando ao passo onde D. Fernando cuidava que tinha algum refúgio nos homens que ali leixara, por vir já mui apressado de muitos mouros que o perseguiam, achou que

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era tomado per eles, os quais, como eram senhores dele, e a seu salvo, polo lugar ser azado, podiam ferir em os nossos, quantos vieram diante de D. Fernando, todos ficaram ali mortos. O qual, primeiro que chegasse àquele passo, tinha feito duas ou três 46 voltas sobre os mouros de cavalo; mas isso aproveitou pouco, porque, quando fazia υa volta, achava menos dez, à segunda vinte, de maneira que, vendo João Machado que se podiam perder todos, disse a D. Fernando: - Senhor, i tomar o passo, porque nele está nossa vida, enquanto eu faço υa volta comprida com estes mouros; e se vos Deus levar a Goa, direis a vosso irmão que esta era a honra pera que vos ele cá mandou - leixardes neste lugar os principais homens que tinha debaixo de sua capitania, por satisfazer a sua indinação. Na qual volta que João Machado fez, entreteve algum tanto os mouros, com que D. Fernando teve lugar pera passar o passo já per cima de corpos mortos da gente de pé nossa, e alguns de cavalo, que os mouros que o guardavam quási a mão-tenente mataram. Finalmente, João Machado ficou morto no campo; e com ele cinquenta entre de cavalo e de pé, e cativos vinte sete, em que entraram criados del-Rei e outros homens honrados, e dos canaris cento e tantos, entre mortos e cativos, e muito mais morreram deles, se não se embrenharam, por saberem bem a terra. O qual caso foi mui 20 20 sentido e chorado em toda a cidade, não somente neste dia, mas per muitos, polo que ao diante sucedeu dele; ca se levantou toda a terra contra nós, e o Hidalcão escreveu a Sufo Lari, seu Capitão-mor daquelas terras, o qual resedia em Bilgão, obra de quinze léguas de Goa, que com Ancostão que fez este feito, e outros capitães daquelas tanadarias fosse sobre Goa, e lhe posesse cerco, pois quebrara as pazes que com ele tinha. Sufo Lari, porque o Hidalcão lhe dava a capitania de Goa, se a tomasse, e muita parte das tanadarias da terra firme a ele e aos capitães que fossem neste feito, não era passado um mês da morte de João Machado, quando veo com trinta mil homens, em que entravam quatro mil de cavalo; mas acharam já pejados os passos que ele vinha demandar pera passar a ilha. Porque D. Guterre, com a nova de sua vinda, tinha provido na defensão deles com obra de catorze fustas e batéis, que repartiu em duas capitanias: a D. Fernando, seu irmão, deu υa, e outra a João Gonçalves, de Castelo Branco, com os quais andavam Hanrique de Touro, Domingos de Seixas, Paulo Cerveira, Pero Soares, Pero Gomes, Pero Jorge, e outros capitães. E a cidade repartiu em estâncias e vigias, derredor dos muros todolos canaris da terra que viviam pelas aldeas, temendo que cometessem algυa traição, como aconteceu em tempo de Afonso de Albuquerque. Com o qual cerco, posto que não foi derredor dos muros, somente per os passos da terra firme que Sufo Lari muitas vezes cometeu, sem poder passar à ilha, porque a cidade se mantinha do que cada dia lhe vinha de fora, o tempo que ali esteve a pôs em muita necessidade, e padeceu assaz de trabalho entre temor e vegia, por andarem assi os do mar como os da terra de dia e de noite com as armas às costas, acudindo ora υa parte, ora noutra, sem terem algum repouso. E o mais que Sufo Lari fez em esta sua vinda foi no passo Benestari, υa força 47 defronte da nossa fortaleza, onde assentou algυa artelharia, com que fez pouco; porque υa peça de metal, com que nos fazia dano, lhe foi logo quebrada. Finalmente, o cerco durou naquele trabalho, em que os nossos fizeram honrados feitos, até Setembro, que João da Silveira, que invernou em Quíloa, chegou a Goa com quatrocentos homens, que era a gente da sua nau, e a que se salvou da de Francisco de Sousa Mancias. E sobre ele veo Rafael Perestrelo em um bargantim, o qual havia pouco tempo que chegara a Cochi em υa nau; e como vinha rico da China onde fora, e era homem largo e cavaleiro, meteu-se com ele muita gente. E di a vinte dias chegou António de Saldanha com seis naus,

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20v 20v com que deste reino partira por Capitão-mor; com a chegada do qual, não somente Sufo Lari levantou o cerco, mas ainda, per mandado do Hidalcão, assentou paz, vendo que mais lhe importava que a guerra, pois per tantas vezes estava desenganado não ser poderoso pera tirar de nosso poder aquela cidade. E ficando de guerra, perdia o proveito que tinha com nossa comunicação, e mais aventurava perder as terras firmes, se as quiséssemos conquistar; ca ele, pola guerra que tinha com el-Rei de Bisnagá, não podia escusar Sufo Lari, e quantos com ele andavam. E se o mandou cometer Goa, não foi tanto pola entrada que D.Guterre mandou fazer, quanto par lhe parecer que a podia levar na mão aqueles meses do inverno, por haver conjunção pera isso, com as tréguas que com el-Rei de Bisnagá neste tempo tinha, que lhe escusava parte da gente que veo àquele cerco. E também teve grande esperança de lhe suceder bem, por se dizer que Lopo Soares era perdido com toda a armada no Mar Roxo, e por isso tomou por causa deste cometimento mandar D. Guterre fazer aquela entrada, tendo pazes com ele. E nestes concertos de paz fez Sufo Lari entrega dos cativos que tinha Ancostão, e ainda D. Guterre e António de Saldanha tomaram por cautela de honra que estas pazes seriam até vir Lopo Soares pera as confirmar, se lhe bem parecessem, as quais confirmou depois que veo. E posto que pareça que neste lugar convinha darmos razão da viagem de António de Saldanha, nós o leixamos pera outra parte, porque, pera se melhor continuar o fio da história, é necessário escrever primeiro as cousas que se passaram em Malaca, enquanto Lopo Soares foi ao Estreito, que não foram de menos trabalho e perigo que as que ele passou, e assi D.Guterre em o cerco de Goa.

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20v 20v 48 Capítulo IX. Do que sucedeu a Jorge de Brito, depois que entrou na capitania de Malaca; e do que se passou nela, depois de seu falecimento, sobre quem o sucederia no cargo de capitão. Como atrás escrevemos, na armada que deste reino partiu o ano de quinze, Capitão-mor Lopo Soares, foi Jorge de Brito, copeiro-mor del-Rei D. Manuel, ao qual ele fez mercê da capitania de Malaca, em lugar de Jorge de Albuquerque, que a servia, e fora provido dela por Afonso de Albuquerque. E de quam boa fortuna Jorge de Brito teve na brevidade de sua viagem (como escrevemos), tam contraira lhe foi 21 21 depois que tomou posse dela. Ca, estando em muita necessidade de mantimentos, e todo o povo da terra descontente e não mui seguro em sua vivenda ali, por causa da morte del-Rei de Campar, que Jorge de Albuquerque mandou matar, com a vinda dele, Jorge de Brito, se acabou de desbaratar de todo; e a causa foi querer usar de um regimento que levava del-Rei, sobre o qual caso ele foi mal informado. E posto que Jorge de Albuquerque, como experimentado nisto, aconselhava Jorge de Brito, todavia quis ele ante seguir o regimento del-Rei e conselho de alguns dos nossos, que teveram mais respeito a seus interesses que ao bem da cidade, começando logo de pôr mãos à obra; que era tomar todolos criados que foram del-Rei de Malaca, a que eles chamam ambarages, e assi as quintãs chamadas duções, que eram dos malaios naturais da terra, e repartir esta gente e propriedades per os moradores portugueses que ali viviam; e pera se melhor saber o dano que se daqui seguiu, repetiremos este caso de seu princípio. Quando Afonso de Albuquerque tomou Malaca, o povo dela, com temor da fúria da nossa entrada, fugia pera onde esperava ter salvação; sobre o qual caso (como já escrevemos) ele mandou lançar pregões, que todos se recolhessem à cidade povoar suas casas, segurando-lhe bom tratamento de suas pessoas, e os manter em justiça ao modo que dantes viviam. E quanto aos que se chamavam criados del-Rei per este vocábulo ambarages, e assi aos escravos do mesmo Rei que fora de Malaca, comprados per dinheiro, a que eles chamam balates, viviriam debaixo da obrigação de serviço e liberdade que tinham em poder dele; e não vindo eles té um certo tempo, todolos que fossem tomados seriam presos e cativos. Com este pregão e outros modos que Afonso de Albuquerque teve com alguns principais da cidade, assi como Utimuti-rajá, Nina Chetu, toda a gente que andava pelos matos fugida se tornou à cidade, de maneira que, em pouco tempo, ela se tornou reformar de moradores. Depois, em tempo de Rui de Brito, primeiro capitão desta cidade, e de Jorge de Albuquerque, que foi o segundo, per regimento de Afonso de Albuquerque, sempre estes ambarages e balates recebiam 49 um pano em dous tempos do ano pera seu vestir e certas medidas de arroz pera ajuda de se manterem. E a obrigação que tinham os escravos era servirem na ribeira em a varação das naus e outros misteres desta calidade; e os ambarages, por terem grau de honra, serviam no maneo da feitoria, e todos estavam em suas casas e liberdade, criando seus filhos e aproveitando suas fazendas; somente quando eram chamados acudiam ao serviço. 21v 21v Mas com a vinda de Jorge de Brito, todo este uso se desordenou, lançando mão destes ambarages com nome de escravos del-Rei; e algυas quintãs e propriedades que tinham homens principais da terra, lhe eram tomadas, dizendo não serem suas, mas de outros malaios que fugiram no tempo da entrada da cidade, e eles as tomaram como cousa devoluta. O qual negócio foi em tanta desordem

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feito, que muitos homens livres ficavam cativos; porque, como um homem da terra queria mal a outro, ia ao capitão e denunciava de ele ser escravo del-Rei, e com duas testemunhas ficava condenado, e outro tanto se fazia das propriedades. Vendo o povo como muitos homens livres eram cativos, com temor começaram despejar a cidade, uns per mar e outros per terra, o mais secretamente que podiam, por não serem reteúdos. Acrescentou-se mais a este mal outra cousa que muito indinou a gente mais nobre da terra; e foi que, estando em costume, quando da cidade Malaca partiam juncos pera Maluco, Banda, Timor, Borneo, Patane, China e outras partes, posto que neles fosse fazenda del-Rei ou do capitão e oficiais da feitoria, sempre a capitania do junco ficava com o senhorio dele. O qual costume Jorge de Brito mudou, mandando que o capitão do tal junco fosse português, e com ele fossem alguns homens portugueses, por maior segurança da fazenda. Finalmente, estas mudanças fizeram tanto escândalo nos malaios, e assi despovoaram a cidade, que, quando Jorge de Brito o quis remediar, mandando lançar pregões, que todos se tornassem com grandes seguros e liberdades que prometia, aproveitou pouco. No qual tempo veo ele falecer de doença, leixando por capitão da fortaleza a Nuno Vaz Pereira, irmão de sua mulher, que servia de alcaide-mor, e este cargo deu a António de Brito, seu sobrinho, filho de Lourenço de Brito, a qual mudança de ofícios também enquietou a terra e a meteu em grande confusão. Porque, dado que, per regimento del-Rei, os alcaides-mores sucedem aos capitães quando falecem, neste sucedimento não consentia António Pacheco, Capitão-mor do mar, dizendo pertencer a ele, por assi estar ordenado per Afonso de Albuquerque, quando leixou por capitão da fortaleza a Rui de Brito Patalim, ao qual havia de suceder Fernão Peres de Andrade. Partida em duas partes esta competência, Nuno Vaz com seus favorecedores estava na fortaleza, e António Pacheco com sua armada em υa ilheta defronte de Malaca, e um se vigiava do outro. No qual tempo foi ali ter Fernão Peres de Andrade, que ia pera a China (da viagem do qual adiante faremos relação), e nunca os pôde concertar. 50 22 22 E partido ele, indo um domingo António Pacheco ouvir missa e passando perante a porta da fortaleza com gente que o acompanhava, saiu Nuno Vaz de dentro, e, tendo-se no lumiar da porta, disse a António Pacheco que lhe pedia, pois andavam em concerto de se determinar o seu caso per juízes louvados, que o quisesse ouvir perante aqueles homens que o acompanhavam. Chegado António Pacheco à porta, a ouvir o que Nuno Vaz queria, saiu de dentro da fortaleza um Tomás Nunes, homem de muita força, e levou António Pacheco nos braços, e com ajuda de outros que estavam pera isso, deram dentro com ele. E querendo os que o acompanhavam fazer nisso o que deviam à sua amizade, apagou Nuno Vaz toda a fúria deles com grandes requerimentos de parte del-Rei, e perdimento de seus ordenados, e prendendo também Pero de Faria e outros da parcialidade de António Pacheco. As quais diferenças não somente acabavam em o dano que estas duas partes se faziam, como gente mal avinda, mas ainda se descuidavam tanto em a defensão da cidade, que poseram a el-Rei de Bintão em grande esperança de se tornar a restituir ao estado de Malaca. Porque, depois que Jorge de Albuquerque mandou degolar seu genro el-Rei de Campar, pelo artefício que ele, Rei de Bintão, teve (como escrevemos) ficou tam glorioso daquele negócio suceder segundo ele o ordenou, que com mais ânimo fez maiores armadas pera saltear as naus que daquelas partes do Oriente vinham com mantimentos e mercadoria a Malaca. E isto fazia ele enquanto a nova da morte de seu genro não foi sabida; porque, depois que a fama dela correu pelas terras vezinhas, e assi per a Jaua e ilhas comarcãs, causou tanto escândalo, e principalmente depois que Jorge de Brito começou o negócio dos ambarages, que quási todalas nações estavam indinadas contra nós, sem quererem acudir com os mantimentos que ordinariamente soíam trazer à cidade, que era a principal cousa que ela havia mister. Assi que, com nosso mau governo, viemos a lhe dar tantas armas, que já mui ousadamente, depois que soube a deferença que entre aquelas duas partes havia, mandava dar vista

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com suas armadas à cidade; porque os nossos, polo cuidado que traziam em si, se descuidavam deste imigo, que não estudava em outra cousa. Finalmente, per os bons sucessos que neste tempo teve, ele mandou a um capitão seu, chamado Ciribige de Rajá, homem valente de sua pessoa e prudente capitão, o qual, com υa armada de lancharas e calaluzes, que são navios de remo, se veo meter em o Rio de Muar, que é cinco léguas de Malaca, onde fez υa fortaleza de madeira, 22v 22v cousa tam defensável, que parecia impossível poder ser entrada; porque, além da força dos paus e entulho de terra, que da porta de dentro tinha, estava nos lugares de suspeita mui artelhada, que podia bem ofender a quem a cometesse. Da qual força, como de parte tam perto da cidade, este capitão todolos dias lhe vinha dar rebates, não se contentando de defender que não viessem navios de fora, mas tomando até um pescador, se saía pescar, sem neste tempo os nossos lhe poderem fazer algum dano, por a cidade estar pobre de gente, e o mouro dar estes rebates em modo de corredor, 51 a fim de levar os nossos ao Rio de Muar, onde tinha suas ciladas de mais velas. A nova destas cousas foi levada à Índia, a Lopo Soares, depois que veo do Estreito, per Veríssimo Pacheco, irmão de António Pacheco, preso, que andava em um navio por capitão; o qual Lopo Soares, vendo o risco que Malaca corria, ordenou de mandar D. Aleixo de Meneses a prover nela, e a meter de posse da capitania da fortaleza a Afonso Lopes da Costa, que deste reino fora provido por el-Rei D. Manuel, na vagante de Jorge de Brito. E provido de todalas cousas pera defensão da cidade, partiu de Cochi em Abril do ano de quinhentos e dezoito em três navios, de que eram capitães Jorge de Brito, D. Tristão de Meneses, e ele no terceiro, levando até trezentos homens, que haviam de ficar na cidade, por estar mui desfalecida de gente, o qual aportou nela a salvamento; e do que fez, tanto que chegou, diremos em outra parte, porque convém tornarmos a dar conta do que António de Saldanha passou, que com a armada em que foi por Capitão-mor, e assi de algυas cousas que sucederam com sua chegada à Índia, depois que assentou as pazes de Goa, de que atrás falámos.

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22v 22v 51 Capítulo X. Da viagem que António de Saldanha fez o ano de dezassete, que deste reino partiu, e as cousas que passaram na Índia com sua chegada; e como Lopo Soares o mandou de armada à costa da Arábia, e assi enviou D.João da Silveira às Ilhas de Maldiva. El-Rei D. Manuel, pola experiência que tinha dos serviços de António de Saldanha nas partes da Índia, ordenou de o mandar o ano de dezassete pera andar de armada na costa de Arábia e portas do Mar Roxo, em guarda das naus dos mouros, que navegam aquelas partes, como já outra vez andara o ano de quinhentos e três (segundo escrevemos). 23 23 E porque de cá do reino não podia levar navios de remo, segundo convinha pera aquelas partes, escreveu a Lopo Soares que o provesse deles, conforme às velas que ele mandava que António de Saldanha trouxesse de armada. E além desta capitania-mor, lhe deu mais a das naus da carreira, que aquele ano partiram pera a Índia, a trazerem a especearia, os capitães das quais eram: D.Tristão de Meneses, filho bastardo de D. Rodrigo de Meneses, Afonso Hanriques, filho de Fernão de Sepúlveda, e Manuel de Lacerda, que ia pera servir de capitão na fortaleza de Calecute, e Fernão de Alcáçova, de veador da fazenda, e Pero Coresma, de feitor de Cochi. Partido António de Saldanha com estas seis velas, chegou à Índia a dezassete de Setembro com menos duas que invernaram, e foi sua chegada 52 causa da paz que se assentou com Sufo Lari, como ora escrevemos; e neste mesmo tempo chegou também D. Aleixo de Meneses de Ormuz com os doentes, e trás ele veo Lopo Soares, que por ter lá pouco que fazer, não se deteve muito. O qual, chegado a Goa, vendo Fernão de Alcáçova com nome de veador da fazenda, e regimento e poderes del-Rei, que se estendiam a todo o governo da fazenda, e que quási não ficava a ele, Lopo Soares, mais que o cuidado das cousas da guerra e administração da justiça (não porém que nas provisões del-Rei lhe fosse a ele posta esta lemitação); ficou mui descontente, por lhe dar ele coadjutor em seu ofício, pois partira deste reino sem ele. E mais ser Fernão de Alcáçova homem que, além do regimento que levava se estender a muito, per condição ele o fazia chegar a tudo o que queria entender; donde nasceu que, primeiro que Lopo Soares chegasse, lhe achou já feito muitas cousas em Goa, que o a ele descontentaram. Finalmente aqui, e depois que as naus em Cochi esteveram à carga da especearia, sobre mandar, que é o fermento de toda discórdia, houve entre eles tanta, que causou vir-se Fernão de Alcáçova aquele mesmo ano pera este reino em companhia das naus da carga da especearia, por capitão de υa delas. As quais diferenças não somente lhe custaram honra, fazenda e muito trabalho que teveram lá e cá no reino, mas ainda a alguns capitães das fortalezas: assi como D. Guterre, capitão de Goa, e Simão da Silveira, de Cananor, e outros por empedirem a Fernão de Alcáçova em algυas cousas usar do regimento de seu ofício, da qual jurdição eles estavam em posse. Porque foram depois de sua chegada a este reino demandados polo Procurador da Fazenda del-Rei, e perderam seus ordenados; posto que el-Rei D. Manuel tornou 23v 23v boa parte a alguns, por lhe fazer mercê, e principalmente el-Rei D. João, seu filho, depois que reinou. E daqui começou este costume serem todolos Governadores da Índia, depois de sua vinda a este reino, acusados de culpas, e os que lá acabaram, a morte foi causa de não procederem contra eles, por ser cousa geral ser ela o fim de todas; ou (por melhor dizer) ela tira a enveja e competência entre os vivos, donde nascem os ódios, que fazem muitas vezes culpas onde as não há.

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E quanto neste reino reina esta enfermidade, o discurso de muitas cousas que vimos em nossos tempos e outras que ante passaram, são testemunho desta verdade, cousa certo muito pera condoer da nação português. Porque no meio da fome, da sede e de tantos mil géneros de trabalhos e muito perigo que passam naquelas partes, e no fervor da ocupação de adquerir fazenda, causa principal que os lá leva, assi estão inteiros e prontos pera espreitar os feitos de quem os governa e de seus naturais com que comunicam, como se fossem livres destas cousas, e neles não houvessem as próprias culpas e não podessem ser citados por maiores ante o juízo de Deus e dos homens. E o que pior é acerca deste modo de culpar, que são algυas vezes mais punidos vícios da pessoa, que erros do ofício, como se não fosse mais dano υa culpa que um defeito, por a culpa proceder de auto contra preceito, e o defeito da compleição 53 natural de cada um, cousa que mui trabalhosamente se muda, ainda que o paciente mude o estado. E por evitar este dano em cousa de tanta importância, como é o governo daquelas partes do Oriente, primeiro que os homens sejam providos das capitanias e ofícios principais dele, se devia ter respeito mais aos costumes e habilidade de cada um, que à calidade da pessoa e serviços que tem feito; porque estas duas cousas, quando obrigam, podem-se pagar com mercê de fazenda, e não com governo de estado; ca, fazer habilidade pera ele, ainda que os principais muito podem, nesta parte mais pode a natureza. Portanto não se aqueixem daqueles que são defeituosos em seus ofícios, mas de si mesmo; pois ante que metessem os tais nos cargos de que os querem arguir de mau governo, já eram sabedores quam mal se eles governavam; e quem mal governa sua pessoa e casa, não se deve esperar dele que governe bem as alheas, que é já υa polícia que requere grandes partes em um homem. Tornando a Lopo Soares, como ficou desabafado dos requerimentos e protestos de Fernão de Alcáçova, começou logo entender em mandar aquele verão alguns capitães a diversas partes e negócios: a D. João 24 24 da Silveira, às Ilhas de Maldiva, assentar pazes com o Rei de υa delas; a D.Aleixo de Meneses, assentar as cousas de Malaca, de que ora escrevemos; e Manuel de Lacerda, enquanto não entrava a servir a capitania de Calecute, que tinha, mandou a Dio com dous navios a negócio, em que não fez cousa pera nos determos na relação dela, e por isso não tornaremos mais a ele, somente aos outros, como se verá adiante. E assi mandou a António de Saldanha com υa armada de seis velas à costa de Arábia, como el-Rei D.Manuel mandava; e não levou os tantos navios de remo, como ele fazia fundamento levar, porque os havia mister Lopo Soares pera a ida de Ceilão, como se adiante verá. Os capitães das quais seis velas eram: ele, António de Saldanha, Álvaro Barreto, Miguel de Moura, Fernão Gomes de Lemos, António de Lemos, seu irmão, e Nuno Fernandes de Macedo. Na qual viagem, indo António de Saldanha tanto avante como o Cabo de Guardafu, que é o fim mais oriental de toda a terra de África, topou a nau Trindade, de que fora capitão D. Álvaro da Silveira, per cuja morte os da nau fizeram capitão Francisco Marecos, ao qual António de Saldanha prendeu, por achar na inquirição que tirou da morte de D. Álvaro, que ele emprestara um punhal a Mendafonso, principal autor dela; e assi prendeu Jerónimo de Oliveira, que era o outro segundo, que já escrevemos. Partido deste cabo, pola nova que lhe deram os da nau, foi buscar um mouro chamado Suf, morador em Cambaia, homem poderoso, que andava tratando per aquela costa com υa nau grossa e dous navios pequenos, em que trazia seiscentos homens, o qual per algυas vezes arribou sobre a nossa nau Trindade pera a tomar, que per aquela costa andava com vinte e cinco homens, que a mal podiam marear; mas salvou-os Deus em o tempo sempre lhe servir, com que o mouro não pôde chegar a ela. Peró António de Saldanha, posto 54 que nisso fez deligência per todos aqueles portos, nunca o pôde achar, e converteu a indinação que

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trazia dele em dar na cidade Bárbora, que está naquela costa de África. A qual cidade, peró que não é tam nobre como Zeila, que está dela contra o Norte dezoito léguas, quási a quere imitar em a maneira de seus edifícios e viver da gente, e entrada e saída das cousas do reino Adel, cujo Rei é senhor dela, e somente tem ali governador, como em Zeila. E segundo sua situação, parece ser aquela a que Ptolomeu chama Malaca, e faz empório e escala daquela costa, tam notável como Zeila, peró que as ponha mais distantes υa da outra do que elas estão. Os mouros moradores dela, 24v 24v depois que passou o feito da tomada de Zeila, que fora o ano atrás, sabendo que per aquela costa andava υa armada nossa, estavam tanto alerta, e assi tinham espias no mar em quantas voltas ela dava, que, quando António de Saldanha chegou, não teve mais que fazer, que entrar nela vazia de gente e fazenda, somente se houve algυa miséria e mantimento escondido; a tudo o mais, e ao casco da cidade, António de Saldanha mandou pôr o fogo, enquanto se deteve em fazer sua aguada. Passado daquela costa à outra de Arábia, foi tomar um porto abaixo da cidade Adem, onde mandou dar pendor à nau Trindade, que se ia ao fundo com a água que fazia, com fundamento de entrar no Estreito; o que leixou de fazer, por o tempo pera entrar e sair ser mui breve; e temeu que, invernando dentro, poderia receber a perda de gente, como era morta a Afonso de Albuquerque e Lopo Soares. Assi que com este conselho se fez à vela, pera ir invernar a Ormuz, e de passagem deu vista à cidade Adem, que o serviu com mantimentos. Chegado a Ormuz, onde esteve com toda sua frota aquele inverno, ante de sua partida, mandou Francisco de Gá, que ali ficara da armada de Lopo Soares, que lhe fosse fazer prestes mantimentos a Calaiate; peró, quando António de Saldanha chegou, não os achou prestes. Porque nesta costa, com um tempo que teve, se perdeu Francisco de Gá, com o qual se também perdeu João Rodrigues do Pau, aquele que matou Mendafonso, matador de D. Álvaro, capitão na nau Trindade, que António de Saldanha trazia em sua companhia. O qual, por razão destes mantimentos que lhe faleciam, se deteve ali alguns dias, e di pôs rostro na costa do reino de Cambaia, aquém da cidade Dio, onde andou enquanto o tempo lhe deu lugar, esperando as naus dos mouros de Meca, em que fez algυas presas, com que se partiu pera a Índia, e chegou a tempo que Lopo Soares era ido à Ilha Ceilão fazer υa fortaleza, que lhe el-Rei D. Manuel mandava fazer. E por esta ilha ser cousa tam notável, e de que muitos tem escrito algυas cousas não com verdadeira informação, entraremos no segundo Livro desta terceira Década, descrevendo o sítio e cousas notáveis dela.

LIVRO II 25 25 55 Capítulo Primeiro. Em que se descreve o sítio e cousas da Ilha Ceilão, a que os antigos chamam Taprobana. A ilha a que geralmente chamamos Ceilão, cujo Rei Lopo Soares ia meter debaixo da obediência del-Rei D. Manuel, esta situada defronte do Cabo Comori, que e a terra mais austral de toda a Índia, que jaz entre os dous ilustres rios Indo e Gange. A qual ilha é quási em figura oval, e o seu lançamento fica ao longo desta costa da Índia per o rumo a que os mareantes chamam Nordeste, cuja ponta, a que jaz mais ao Sul, está em altura de seis graus, e a do Norte quási em dez, com que o comprimento dela será setenta e oito léguas, e a largura té quorenta e quatro; e a ponta mais vezinha à terra firme distará dela pouco mais ou menos dezasseis léguas. E este trânsito e estreito antre ambas as terras é tam cheo de ilhetas, baixos e restingas, que se não pode navegar senão per certos canais; e se é fora do seu tempo, com tanto perigo, que anda entre as gentes daquele Oriente outra fábula, como a de Caribdes e Cila entre Sicília e a terra de Itália. E também, como cá se tem por opinião, que ambas estas terras foram contínuas ua à outra, assi naquelas partes tem outro tanto da Ilha Ceilão e da terra do Cabo Comori, e à mostra que ambas elas fazem, parece ser mais verdadeira a sua que a nossa. Porque no tempo que o mar está quieto, vão os homens que per ali navegam vendo tudo o que jaz no fundo da água, por 56 o parcel ser baixo, e a água mui clara; e quem disto tem mais experiência são os que ali pescam o aljofre. Da qual pescaria, por esta ser das mais principais daquelas partes, em os Livros do nosso Comércio, no capítulo das pérolas e aljofre, particularmente tratamos. Confirma também esta opinião de a terra da ilha ser conjunta à costa da firme, o que dizem os povos dela, principalmente os de Choromandel, 25v 25v falando do tempo que o bem-aventurado Apóstolo S. Tomé converteu à Fé de Cristo aquela região. Dizendo que, ante que se convertesse o Rei da cidade Meliapor, onde ele pregava, aconteceu que à costa do mar veo ter um pau de fermosa grandeza, o qual desejando el-Rei de aproveitar pera madeira e tabuado de uas casas, mandou ajuntar muita gente e elefantes pera o tirar a terra, peró nunca o pôde fazer, por mais trabalho e indústria que nisso pôs. O Santo, governado pelo espírito de Deus, porque este pau havia de ser um meio de ele ser conhecido e adorado naquela terra, pediu ao Rei que lhe desse o pau e lhe aprouvesse que, no lugar onde o ele levasse, de sua madeira edificasse ua casa de oração dedicada ao Senhor que ele pregava. Concedido pelo Rei este petitório do Santo, quási como cousa impossível, ele (tirada a cinta com que andava cingido) a atou em um esgalho da ponta dele, e, fazendo o sinal da Cruz, a arrojões o levou à cidade Meliapor, que eram dali seis léguas das suas e das nossas doze, onde fundou a casa. E o que sobre este caso mais sucedeu contamos adiante, falando particularmente da conversão da gente, que este Santo Apóstolo ali fez. Trouxemos aqui esta memória sua, porque se saiba que, estando a cidade Meliapor doze léguas há mil e quinhentos e tantos anos afastada do mar, comeu ele tanto da terra, que ao presente está um tiro de pedra desta povoação; e, segundo afirmam os naturais, o mesmo Santo profetou haver de ser assi, dizendo que, ao tempo que o mar chegasse àquela cidade, ua gente branca do Ponente, que cresse no Senhor que ele denunciava, viria ter àquelas partes, e faria nela habitação. E peró que da grandeza que a cidade Meliapor teve naquele tempo, quando os nossos ali foram ter, quási toda era assolada com guerras do tempo dos chins, por ali terem a maior habitação sua (de que hoje parecem grandes edifícios seus), os nossos, em memória deste Apóstolo Santo, reformaram

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esta povoação com muitas casas de pedra e cal, que nela são feitas; e, em reverência da Casa do Apóstolo, que hoje ali está, mudaram nome de Meliapor, e lhe chamam S. Tomé. E quando alguns dos nossos se acham cansados do trabalho das guerras da Índia, e principalmente tomados da pobreza, a esta cidade do Santo vão repousar, e é feita quási ua colónia de cavaleiros veteranos, como tinham ordenado os romanos àqueles que per decurso de anos jubilavam na guerra. Anda também na lembrança dos naturais da Ilha Ceilão este nome não ser próprio dela, mas imposto acaso, ca o seu nome antigo é Ilanare ou Tranate, como outros dizem, e entre os letrados assi é chamada, posto que o uso 57 comum e tempo tem já tomado tanta posse, que geralmente se chama Ceilão; e o caso donde lhe ficou este nome, segundo contam os seus letrados, 26 26 que algua memória tem das cousas antigas, foi este: No tempo que os chins conquistaram aquelas partes por razão da especearia, entre o trânsito desta ilha e a terra firme, com um tempo a que eles chamam vara, que é o que faz as maravilhas do seu Cila e Caribdes, em um dia perderam oitenta velas, donde aquele lugar se chama Chilão, e nós os Baixos de Chilão, que acerca deles quere dizer os perigos ou perdição dos chins. E como nas terras novamente descobertas primeiro se nota, per os mareantes que as descobrem, os perigos do mar, onde podem receber dano pera aviso dos vindoiros, que o próprio nome da terra, quando os arábios e párseos, que depois dos chins per comércio entraram em a navegação daquelas partes, do Cabo Comori por diante, como cousa em que deviam ter tento em seu navegar, traziam muito na boca estes Baixos de Chilão, e por não saberem o próprio nome da ilha, que era Ilanare, deram-lhe este dos seus baixos. E porque esta sílaba chi não corre muito na boca dos arábios e párseos, e é-lhe mais corrente na sua língua estoutra ci, por terem duas letras no seu alfabeto, que querem imitar a ela na prolação, as quais são cim e xim, mudando chi em ci, chamaram à Ilha Ceilão, ou (por falar mais conforme a eles) Cilan, e nós lhe chamamos Ceilão. Este nome é segundo a gente popular, que os letrados arábios e párseos em suas Geografias per nome antigo lhe chamam Serandib, dos quais nós temos alguns volumes em sua própria língua, onde o vimos; e a causa por que lhe deram este nome, em a nossa Geografia a escrevemos. E parece que naquele antequíssimo tempo de que os geógrafos dela escreveram, era da grandeza que a fazem os seus naturais, dizendo que tinha em roda mais de setecentas léguas, e que o mar a foi comendo, e daqui viria (se queremos salvar Ptolomeu), dar-lhe ele tanto comprimento, que passa além da Linha Equinocial contra o Sul dous graus e meio. E sendo isto assi, pode ficar verdadeiro o que conta Plínio: que, no tempo de Cláudio, vieram quatro embaixadores a Roma do Rei desta Ilha Taprobana, e que se espantavam verem cair as sombras que o Sol fazia pera a parte desta nossa habitação, e não pera a sua, que era contra o Sul, por habitarem além da Linha Equinocial. E que parece também no tempo de Ptolomeu já havia algua notícia deste nome Ceilão; porque, falando ele dela, diz que antigamente lhe chamavam Salica, e aos naturais sali. O nome simondi seria no tempo que os chins a senhorearam, e que por sua causa acerca daqueles que navegavam para ela destas partes do Mar Roxo, lhe dariam aquele nome, porque aos mesmos chins, falando Ptolomeu da própria região deles, chama ele sine. E depois, pola causa que dissemos que procedeu deles, perdendo a posse daquela ilha, foi chamada Ceilão, que corresponde 26v 26v ao nome corrupto de Salica ou Sali que lhe ele chama. E os povos do reino de Sião, falando dela, lhe chamam Lancá, e tem por memória de suas escrituras que foi já conjunta com a outra terra 58 firme do Cabo Comori, e isto no tempo que a veo habitar Adão, que assi chamam eles per nome próprio ao primeiro homem, e por outro nome lhe chamam Po Con, que quere dizer primeiro pai, do qual homem veremos logo o que a mesma gente da ilha sente.

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Serem os chins senhores da costa Choromandel, perto do Malabar e desta Ilha Ceilão, e das chamadas Maldiva, além de o afirmarem os naturais dela, são disso testemunho edifícios, nomes e língua que nela leixaram, como fizeram os romanos acerca de nós, os espanhóis, com que não podemos negar sermos já conquistados per eles. Na qual ilha leixaram (segundo os naturais dizem) ua língua, a que eles chamam chingala, e aos próprios povos chingalas, principalmente os que vivem da Ponta de Gale por diante na face da terra contra o Sul e Oriente. Porque, junta a esta ponta fundaram ua cidade, per nome Tanabaré, de que hoje muita parte está em pé; e por ser pegada neste Cabo Gale, chamou à outra gente, que vivia do meio da ilha pera cima, aos que aqui habitavam, chingala, e à língua deles também, quási como se dissessem língua ou gente dos chins de Gale. Os quais chins desistiram da navegação da Índia por lhe consumir muita gente, naus e substância; e os povos que ficaram deles, por ser gente mestiça de muitas e diversas regiões, avorrecida aos moradores do marítimo da outra parte da ilha contra a terra do Cabo Comori, leixaram os portos de mar, e recolhendo-se às serranias, onde sempre habitaram. E desta gente é a montanhês, com que eles ao presente tem guerra, e outros se foram à Comarca de Choromandel, que é na terra firme, onde havia muitas colónias e povoações dos mesmos chins, donde a gente desta terra também hoje tem a língua chingala, que dissemos. Os outros nomes e cousas que os geógrafos dão a esta ilha, leixamos pera os comentários das Távoas da nossa Geografia, por ser matéria própria daquele lugar, onde se verá o engano que alguns presentes recebem em dizer que a Áurea Quersoneso, a que nos chamamos Samatra, e a Taprobana, e o mais que a antiguidade fabulou destas duas ilhas. O que nos ora convém é saber ser ela de mui excelentes e puros ares, e pola maior parte fértil, viçosa, principalmente de oito graus pera baixo do marítimo, té o Cabo de Gale e a serra. E nesta distância, que será ua faixa de até vinte léguas de comprimento e dez de largo, é a maior povoação, e os mais portos de mar , e onde a 27 27 natureza produziu toda a canela, de que naquelas e nestas partes se tem uso. Verdade é que, em muitas das regiões do Oriente, se acha algua, mas é agreste e brava, como em os Livros do nosso Comércio se verá no capítulo dela, e assi dos rubis, olhos-de-gato, safiras e outro género de pedraria que nela há; peró nenhua chega em fineza em sua 59 própria espécia às três que nomeámos, ca estas três sortes, as finas delas, são as mais perfeitas de todas aquelas partes. Dos metais tem ferro somente, que se tira em duas partes, a que chamam Cande e Tanavaca; e se nela houvera tanto ouro como dizem os antigos, os naturais são tão amigos dele, e tam diligentes de pedir à terra o metal e pedraria que tem dentro em si, que já deram nele. Da especearia, além da canela, de que ela é madre (como dissemos), tem pimenta, cardamo, brasil e alguas tintas, de que os naturais se servem pera tintura de seus panos; delas são raízes, outras pau e outras folhas e frol. Tem grandes palmares, que é a melhor herança daquelas partes; porque, além do fructo dele ser mantimento comum, são estas palmeiras proveitosas pera diversos usos, do qual mantimento, chamado coco, há aqui grande carregação pera muitas partes. Os elefantes dela, de que há boa criação, são os de melhor distinto de toda a Índia; e porque notavelmente são mais domáveis e fermosos, valem muito; e tem muita criação de gado vacum e búfaras, de que se faz grande cópia de manteiga, que se leva de carregação pera muitas partes. Tem muito arroz, principalmente em ua comarca que jaz na face da ilha que está ao Oriente, chamada Calou, que é reino, por razão do qual arroz, que eles chamam bate, se chama o reino Batecalou, que interpretam - o reino do arroz. Finalmente assi dos fructos e sementes naturais, como das estranhas que nela plantam e semeam, é tam fértil, por ser a terra em si auta pera tudo, que parece que fez dela a Natureza um pomar regado, porque não há mês do ano que não chova nela, e o marítimo é quási alagadiço e retalhado com rios, uns deles de água doce, que descem do

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meio do sertão das serranias, e outros à maneira de esteiros que faz o mar. As quais serranias estão quási à feição oval da mesma ilha, lançadas de maneira que parecem um curral de pedra ensossa, porque no meio leixam a terra chã sem aqueles picos e aspereza que tem este circuito de serras. Não que elas sejam tam escalvadas, que em si não tenham arvoredo, porque per antre aquelas pedras e picos tudo é entulhado de árvores de muitos géneros, e per três ou quatro partes, à maneira de passos dos Alpes de Itália, se entra dentro neste circuito, que é 27v 27v um reino chamado Cande. E se os reis dela se não fizeram herdeiros de seus vassalos, tomando-lhes toda a fazenda que acham à hora da morte, de que dão aos filhos alguas cousas, se querem, fora muito mais fructífera e abastada; mas com este temor não querem agricultar cousa algua. Tem quási na ponta desta serrania, obra de vinte léguas da costa do mar, ua serra tam alta e íngreme, que sobe em altura de sete léguas; e em o cume dela faz ua planice em redondo de tam pequena quantidade, que 60 será pouco mais de trinta passos de diâmetro. Em meio da qual está ua pedra de dous côvados mais alta que a outra planice ao modo de mesa, e no meio dela está figurada ua pegada de homem, que terá de comprido dous palmos, a qual pegada é havida em grande religião, por a opinião que anda entre os naturais, ca dizem eles ser de um homem santo, natural do reino Deli, que é abaixo das fontes dos rios Indo e Gange, o qual veo ter a esta ilha, onde esteve per espaço de muitos anos, metendo os homens em uso de crerem e adorarem um só Deus, Criador do Céu e da Terra, a que eles chamam Deunu, e depois se tornou ao reino Deli, onde tinha mulher e filhos. E passados muitos anos de sua vida, à hora da morte, tirou um dente e mandou que fosse trazido a esta ilha e dado ao Rei da terra, pera ser tido em memória sua, além da pegada do pico, o qual dente hoje em dia os reis tem como relíquia santa, a que encomendam todas suas necessidades. E desta opinião gentia vieram os nossos chamar a este monte o Pico de Adão, ao que eles per nome próprio chamam Budo. Do qual monte nascem três ou quatro rios, que são os principais que regam a maior parte da ilha; e em alguns lugares é tam íngreme esta serrania do monte, que per espaço de trinta braças se sobe a ele per cadeas de ferro, em que se os homens pegam, por fazerem sua romaria a esta pegada. A qual cousa é tam celebrada de toda a gentilidade daquele Oriente, que de mais de mil léguas concorrem ali peregrinos, principalmente aqueles a que chamam jogues, que são como homens que, leixando o Mundo, se dedicaram todos a Deus, e fazem grandes peregrinações por visitarem os templos dedicados a ele. Muitas cousas contam os naturais desta ilha da sua santidade e da dos seus sacerdotes e brâmanes, que leixamos pera quando tratarmos dela em a nossa Geografia, e assi dos costumes da gente e estado dos seus reis e cerimónias com que se servem e guardam entre si. Ao presente o que convém pera nossa história é saber que ela está dividida em nove estados, e cada um destes se chama reino. O primeiro e mais estável é senhor quási 28 20 daquela faixa de terra, em que dissemos criar-se toda a canela, o qual jaz da parte do Ponente da ilha, e tem os mais e melhores portos do mar que há nela, cuja principal cidade se chama Columbo. Afastada do qual está ua força, em que se o Rei recolhe, chamada cota, como nós cá dizemos fortaleza, por se apartar do concurso dos mercadores que concorrem àquele porto de Columbo, e este era o que Lopo Soares ia buscar. Outro reino jaz a Sul deste, na ponta desta ilha, ao qual chamam Gale, e pela parte do Oriente confina com o reino de Jaula, e do Norte com outro chamado Tanavaca; e o que está no meio do sertão desta ilha, todo cercado de serrania, que tem em lugar de muro, é o reino Cande. E pelo marítimo desta ilha ficam estes reinos: Batecalou, que é o mais

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oriental dela; e entre ele e o de Cande, que lhe fica ao Ponente, está outro chamado Vilacém; e indo pela costa da ilha contra o Norte, arriba de Batecalou, está o reino Triquinamalé, que pela costa acima 61 vai vezinhar com outro chamado Jafanapatão, que está na ponta da ilha contra o Norte, os quais reinos per dentro do sertão se vão vezinhar uns com os outros. E são tam grandes entre si, quanto maior poder tem os gentios e infiéis que os possuem, ca não tem outras demarcações senão a posse de cada um; por isso não lhas podemos dar com verdade, pois a cobiça dos homens não tem certos limites, ainda que tenham leis divinas e humanas até onde se estende o que podem ter.

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28 20 61 Capítulo II. Como Lopo Soares, per mandado del-Rei D. Manuel, foi à Ilha Ceilão fazer ua fortaleza, e o que passou ante de ser feita com o Rei da terra, o qual ficou tributário deste reino. El-Rei D. Manuel, porque tinha muita informação da fertilidade desta ilha e sabia dela proceder toda a canela daquelas partes, e que o senhor de Gale, pelo modo que se teve com D. Lourenço (como atrás contámos), lhe queria pagar páreas, por estar em sua amizade; e que depois, per meio de Afonso de Albuquerque, o Rei de Columbo, que era o verdadeiro senhor da canela, queria ter essa paz e amizade, escreveu a ele, Afonso de Albuquerque, que em pessoa fosse a esta ilha, se lhe bem parecesse, fizesse neste porto de Columbo ua fortaleza, por segurar com ela as ofertas deste Rei. Peró, como Afonso de Albuquerque, enquanto viveu, teve outros negócios mais importantes ao Estado da Índia, 28v 20v e que primeiro convinha serem seguros que esta Ilha Ceilão, e mais como o Rei acudia mui bem com toda a canela que nos era necessária, dissimulou com as lembranças que lhe el-Rei cada ano sobre este caso fazia, dando-lhe estas e outras razões por que leixava de o fazer. Vindo Lopo Soares à Índia, também trouxe esta lembrança; e porém primeiro acudiu ao Estreito do Mar Roxo, que pelas razões de Afonso de Albuquerque era mais importante; e vendo quam pouco tinha feito neste caminho, por quam mal as cousas sucederam, e que aquele ano de dezoito podia vir outro Capitão-mor e Governador, quis, primeiro que se fosse, leixar feita esta obra de suas mãos. E, posto que tinha este ano mandado muita gente e naus a diversas partes, assi como António de Saldanha ao Estreito, D. Aleixo a Malaca, D. João da Silveira às Ilhas de Maldiva, que lhe minguavam pera fazer esta obra, e era honesta escusa pera a não cometer, com tudo se determinou a isso; porque, segundo a informação que teve de navegação da ilha por razão dos baixos que tem, bastavam galés e outros navios de remo e 62 alguns navios de alto bordo pera levar munições pera a obra da fortaleza. E, quanto ao número da gente de peleja, ele tinha por certo, segundo o que era passado da vontade que o Rei mostrava, não haver algum impedimento no fazer da fortaleza. Assi que, com este fundamento, no Setembro daquele ano de dezoito, partiu de Cochi, levando ua frota de dezassete velas, de que as sete eram galés, capitães Manuel de Lacerda, Lopo de Brito, António de Miranda de Azevedo, João de Melo, Gaspar da Silva, Cristóvão de Sousa, Dinis Fernandes de Melo, na qual ia Lopo Soares. E eram mais oito fustas, que D. Fernando de Monroy trouxera de Goa, que aquele inverno ele, Lopo Soares, mandara consertar pera esta viagem, e assi levou duas naus com munições, na qual frota iriam até setecentos homens de armas portugueses. Seguindo Lopo Soares sua viagem, sendo já quási abarcado com o porto de Columbo, que ele ia demandar, foram-lhe os ventos tam ponteiros, que as águas que corriam com eles ao longo da costa, lhe abateram o caminho, e deram com ele no fim da ilha, no porto de Gale, que será de Columbo vinte léguas, onde se deteve mais de um mês, até que o tempo lhe deu lugar pera ir a Columbo, e chegou com toda sua frota. Este porto de Columbo quási quere imitar um anzolo, porque tem aquela entrada espaçosa, per meio da qual corta um rio; e a ponta onde este anzolo faz a farpa com que prende, é tam aguda, e assi se afasta do corpo grosso da outra terra, que com ua pedra se pode passar a grossura dela, e cortada com ua cava, fica

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29 29 quási em ilha, sem ter outra entrada senão pela cava. Lopo Soares, como viu a figura do porto, e quam proveitoso era o agudo daquela ponta pera fazer a fortaleza, assentou logo com os capitães de ser naquele lugar. Porém, primeiro que saísse em terra, mandou recado a el-Rei per João Flores, noteficando-lhe a causa de sua vinda àquele porto, dando alguas razões por que el-Rei, seu Senhor, desejava ter ali ua fortaleza, referindo todo este caso à infidelidade dos mouros que ali vinham ter, e ao antigo ódio que tinham com os portugueses, e principalmente ao muito que ele, Rei, ganhava, fazendo-se ali aquela fortaleza; assi por razão del-Rei Dom Manuel, seu Senhor, com ela ficar obrigado à defensão dele, Rei, contra seus imigos, como porque, tendo comércio com os portugueses, todo seu reino seria mui rico e abastado das cousas do Ponente. El-Rei, como havia dias que com Afonso de Albuquerque andava neste trato, e era mui desejoso deste comércio, vendo quam rico se fizera el-Rei de Cochi com ele, e que depois que entráramos na Índia, ele mesmo, Rei, começava sentir em sua fazenda o proveito que havia de ter, tanto que viu o recado de Lopo Soares, lhe concedeu a fortaleza, mandando-o vesitar com palavras que mostravam este contentamento. Os mouros de Calecute e de toda aquela costa do Malabar, como, depois de nossa entrada na Índia, de todalas partes andavam enxotados de nós, e nesta Ilha Ceilão tinham algum refúgio, por nossas armadas não irem a ela, alguns que se ali acharam, na chegada de Lopo Soares, peró que se 63 assombraram em o verem no porto, quando souberam que el-Rei lhe concedia fortaleza, ficaram de todo mortos. Finalmente, à força de peitas, que em toda parte podem mais que vivas razões, assi transtornaram o ânimo dos aceitos del-Rei, e o seu com o conselho deles, representando-lhe perigos de sua vida e perda de seu estado, se ali nos desse lugar pera fortaleza, que, querendo Lopo Soares ua menhã sair em terra a abrir a cava naquela ponta que elegeu pera a fortaleza, achou que, per indústria dos mouros, estavam ali uns cavalos à maneira de trincheiras com repairos de madeira, em que poseram certas bombardas de ferro com gente frecheira, posta em defender a terra. E não abastou isto, mas ainda foram alguns homens dos nossos presos, que, como em parte segura, eram saídos em terra, dos que andavam nestes recados entre ele, Lopo Soares, e el-Rei, quási em modo de reféns, pera depois per meio deles se valerem, se o caso não sucedesse bem. Lopo Soares, quando soube o gasalhado com que o queriam receber em terra, havido conselho com os capitães, mudou o modo da saída, fazendo fundamento que a 29v 29v poder de ferro havia de lançar aquele empedimento, que lhe tolhia o fazer da fortaleza; o qual entendeu ser industriado pelos mouros, principalmente depois que mandou de perto ver as estâncias, e que gente era a que estava em defensão delas. A qual determinação fez em toda a gente de armas tanto alvoroço de prazer, quam triste estava dantes, vendo que el-Rei dava de boa vontade lugar pera se fazer a fortaleza, e que naquele negócio haviam de exercitar mais a força de seus braços, como mecânicos com pedra e cal às costas, sem prémio de fazenda e honra, que com a espada na mão como cavaleiros, com a qual eles conseguiam estas duas cousas. Lopo Soares, posto que viu este alvoroço na gente, depois que foi noteficado o que tinha assentado com os capitães, não quis sair aquele dia, leixando pera o seguinte ante menhã pera ir melhor provido; e assi se fez, tomando terra sem os imigos lha empedirem. Porque, como eles tinham as forças mais nas bombardas e tranqueira que no ânimo, não ousaram de se desapegar delas, e estavam naquele lugar como homens que se queriam mais defender que ofender. Os nossos, tanto que Lopo Soares deu Santiago, sem ter conta com a fumaça das suas bombardas, nem olhar onde apontavam, era a competência entre eles a quem primeiro treparia per as estâncias acima, como que no alto delas estava o prémio da vitória particular de cada um. Peró a alguns custou este ânimo sangue e vida; ca não somente de setas e espingardões foram alguns

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feridos, mas ainda mortos das bombardas, o principal dos quais foi Veríssimo Pacheco, que (como dissemos) era vindo de Malaca, com a nova da prisão de seu irmão, António Pacheco. Andando este conflito às escuras da fumaça da artelharia um pequeno espaço, enquanto os nossos se detinham no subir da estância, tanto que um golpe deles se fizeram senhores dela, assi descoseram na carne dos imigos, que os meteram a todos em fugida, não leixando de os seguir com os pés, e 64 perseguindo a ferro. Lopo Soares, porque viu alguns capitães que se metiam um pouco contra onde havia arvoredo, de que podiam receber algum dano, principalmente Cristóvão de Sousa, que passava um ribeiro longe da estância, mandou dar às trombetas que se recolhessem, pois já era senhor da força de seus imigos, e recolher aquelas peças de artelharia que ali achou; e sem fazer mais detença, por dar um fôlego aos homens, se tornou a embarcar. Quando veo ao seguinte dia, por ter já prestes todalas cousas pera seu intento, saiu em terra; e a primeira cousa em que entendeu, foi em se fortificar, ficando senhor da ponta, que ele desejava pera fundar a fortaleza, a qual força 30 30 não foi mais que cava e repairo de madeira, em que assentou muita artelharia, na parte que ia contra a terra, per onde os imigos o podiam cometer. E ua das cousas que o mais meteu em confusão, depois que se viu senhor daquele lugar, foi não achar nele pedra ou ostra pera fazer cal; porque, ante que partisse de Cochi, tomando informação destas cousas de alguns homens dos nossos que já ali foram, fizeram-lhe crer que havia pedra de que se poderia fazer cal; e quando esta não servisse, havia muito marisco, da ostra do qual se poderia fazer muita cantidade. E vendo ele que nenhua cousa destas havia pera cal, somente a ostra que era necessário trazer-se de longe, que o podia deter mais tempo do que ele tinha, por estar já em Outubro, convinha-lhe ser na Índia, por razão da carga das naus que se esperava do reino, em que lhe parecia que podia ir Governador que o sucedesse, assentou com parecer de todolos capitães, que, pois em breve se não podia fazer cal, que fizessem a fortaleza de pedra e barro. Porque, como atalhasse a terra da ponta de mar a mar, isto bastava por então pera recolhimento seguro dos que ali houvessem de ficar, até que da Índia se provesse, segundo a necessidade fosse. Assentado neste parecer de todos, mandou Lopo Soares a grã pressa abrir os aliceces e trazer pedra pera poer mão à parede, repartindo o trabalho de cada cousa per os capitães. El-Rei de Ceilão, quando viu muita da sua gente ferida e morta daquela saída dos nossos em terra, e que com pouco trabalho se fizeram senhores da força que os mouros tinham feita, e sobre isto começaram a obra da fortaleza contra sua vontade, havido conselho com os seus naturais, sem dar crédito aos mouros, quis ante a paz, que com Lopo Soares assentara, que o rompimento dela, que eles lhe aconselharam. Sobre o qual caso mandou a ele o seu governador, dando alguas desculpas do passado, atribuindo tudo a maus conselhos de homens, que lhe fizeram crer cousas contra o que ele, Lopo Soares, prometia da paz e amizade, que per meio da fortaleza podia ter com el-Rei de Portugal. E pois ele com morte e dano dos seus tinha pago aceitar conselho de maus homens, que causaram aquele rompimento, lhe pedia que tornassem a ficar no estado da paz, que com sua chegada logo aceitou, consentindo que se fizesse a fortaleza onde ele pedia. Lopo Soares, peró que em sua reposta se mostrou ofendido del-Rei, da pouca verdade que lhe tratara e traição que ele, Rei, cometera, 65 assi nos homens que lhe mandara prender como no que fizera sobre assento de paz, concluíu sua reposta nisto: Que ele era contente de tornar à paz, em que de ante estavam; porém, por a ofensa 30v 30v que tinha feita à bandeira real del-Rei de Portugal, seu Senhor, em permitir que os mouros e os naturais viessem contra ela com mão armada, no qual caso alguns portugueses foram feridos e

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mortos, ele, Rei, havia de soldar este dano com se submeter com título de vassalo del-Rei D. Manuel, seu Senhor, cujas insígnias eram as da bandeira do seu Rei, que representa sua pessoa; a qual, quando fosse ofendida, ou algum desprezasse sua paz, os seus vassalos perdiam a vida, té meter seu imigo debaixo do jugo dela. Partido o governador del-Rei com este recado, tornou, e foi tantas vezes, até que, per derradeiro, assentou com Lopo Soares, que el-Rei era contente de se fazer vassalo del-Rei D. Manuel, com tributo em cada um ano de trezentos bahares de canela, que do nosso peso são mil e duzentos quintais, e mais doze anéis de rubis e safiras das que se tiram nas pedreiras de Ceilão, e seis elefantes para o serviço da feitoria de Cochi, tudo pago ao capitão da fortaleza que ali estevesse, ou a quem o Governador da Índia mandasse. E que el-Rei D. Manuel e seus sucessores fossem obrigados de amparar e defender a ele, Rei, de seus imigos, como a vassalo seu; com outras mais condições, que no assento deste auto são declaradas, de que Lopo Soares houve um, e a el-Rei ficou outro, escrito em folhas de ouro batido (segundo seu uso) e o nosso em pergaminho. Feito este assento, mandou el-Rei escusar-se a Lopo Soares de o não ir ver, por estar mal desposto, e cousas da sua religião de brâmane que era; porque, acerca do gentio daquelas partes, estas duas cousas andam juntas - o sacerdócio e o governo dos homens. E peró que os reis tenham grande acatamento aos seus sacerdotes, e muito maior às cabeças deles, as quais tem aquela jurdição que acerca da clerezia entre nós tem os bispos, os mesmos reis são brâmanes, e são superiores de todos em seu reino. Tanto pode a ambição de senhorear, que não se contentaram os príncipes da terra em terem súbditos seus vassalos per via da administração do governo secular que lhe Deus deu, pela qual se fizeram senhores dos corpos e autos exteriores das obras que cada um faz pera executar nele as leis da justiça, segundo as que pera isso deram; mas ainda quiseram ser senhores das almas e autores interiores do ânimo, que somente pertencem a Deus, ou àqueles que (segundo o nosso Evangelho) são herdeiros deste mistério. Lopo Soares, feito este assento, assi com a ajuda que el-Rei pera isso mandou dar com a gente da terra, como pela gente da armada, em poucos dias acabou a fortaleza quási no fim de Novembro, à qual pôs nome Nossa Senhora 31 31 das Virtudes. E neste tempo chegou a ela D. João da Silveira, que (como atrás dissemos) com certos navios fora enviado às Ilhas de Maldiva; ao qual Lopo Soares, por ele ser pessoa que tinha calidades pera isso, e mais seu sobrinho, proveo da capitania dela, leixando-lhe a gente necessária pera sua defensão, e assi oficiais pera feitorizarem as cousas do comércio. E porque 66 os mouros eram costumados ir àquela ilha enxotados das nossas armadas, que andavam no Malabar (como dissemos), quis Lopo Soares tirar-lhe esta acolheita, leixando por Capitão-mor do mar com quatro velas, pera guarda daquele porto Columbo, a António de Miranda de Azevedo. Providas as quais cousas, Lopo Soares se partiu pera Cochi, e à saída do porto per desastre se perdeu a galé de João de Melo, mas salvou-se a gente. E levando Lopo Soares em propósito passar per Coulão, onde estava Heitor Rodrigues, um cavaleiro de Coimbra, por feitor e capitão da carga da pimenta, não o pôde fazer, polo que logo veremos. No qual lugar de Coulão quisera também fazer outra fortaleza; e a causa era porque, depois que António de Sá (como atrás escrevemos) foi morto, nunca mais os nossos que ali resediam, por razão de recolher a pimenta, esteveram seguros. E, posto que em tempo de Afonso de Albuquerque sempre acudiam os regedores de Coulão com a pimenta pera carga de ua e às vezes de duas naus, e a Rainha que governava aquele estado favorecia muito nossas cousas, e em tempo dele, Lopo Soares, Heitor Rodrigues, como homem prudente, acabava com ela e com seus oficiais muitas cousas em nosso favor, até lhe consentir que fizesse ua casa forte pera recolhimento da fazenda, que ele, feitor, tinha, teve sobre isso tantos contrastes e empedimento, por parte do induzimento dos mouros mercadores que ali resediam, peitando grossamente aos governadores da terra, que não podia ir avante com a obra, até que depois acabou de a fazer, sendo já Lopo Soares vindo pera este

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reino, e governando Diogo Lopes de Sequeira, que pera isso o mandou favorecer com a gente que Garcia da Costa, capitão de ua galé, levou. E a causa por que Lopo Soares não acabou esta obra, vindo de Coulão com este propósito, foi porque, sendo tanto avante como este lugar, foi-lhe recado que Diogo Lopes de Sequeira era chegado a Cochi, e vinha pera o suceder na governança da Índia; e era já tam tarde pera ele, Lopo Soares, se despachar em sua vinda, que passou per Coulão e chegou a Cochi a vinte de Dezembro. Peró, ante de sua partida, convém darmos razão de alguas cousas que ele mandou em seu tempo, por não confundirmos a ordem da história; e começaremos logo em D. João da Silveira, seu sobrinho, que ficava por capitão em Ceilão, dando conta do que passou na viagem que fez às Ilhas de Maldiva.

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31v 31v 67 Capítulo III. Do que passou D. João da Silveira nas Ilhas de Maldiva, onde o enviou Lopo Soares, e assi em Bengala, onde ele foi ter té chegar a Ceilão, a ser metido de posse da capitania da fortaleza de Columbo. Como já atrás fizemos menção, ua das principais cousas que havia nas Ilhas de Maldiva era o cairo, matéria de que se fazem todalas amarras e enxárcea, com que as naus daquelas partes navegam; e muitas delas não tem outra pregadura, somente este fio com que os costado delas é coseito; do qual cairo, e assi do grande número destas ilhas, em seu lugar particularmente escrevemos. E como este cairo fosse cousa tam importante a nossas navegações, pola informação que el-Rei D. Manuel tinha que estas ilhas eram ua escala que os mouros faziam em a navegação daquele Oriente, e outras cousas que lhe Afonso de Albuquerque delas tinha escrito, que convinham ao estado da Índia, desejava ele ter ali ua fortaleza. Sobre o qual caso escreveu a Lopo Soares, encomendando-lhe que mandasse à principal, chamada Maldiva, em que estava o Rei que senhoreava a corda delas, que jaz vezinha à costa Malabar; e fosse pessoa que soubesse notar as cousas e podesse assentar paz com o Rei, e o tentasse pera esta fortaleza, que desejava ser ali feita; e este foi o fundamento com que ele, Lopo Soares, mandou D. João da Silveira. E também a buscar um mouro de Cambaia, chamado Alé Cane, o qual andava de armada com sete navios de remo em guarda de seis naus de Cambaia, que naquela moução haviam de vir das partes de Malaca, aonde eram idas a tratar; o qual defendia que daquela parte onde ele andava não viesse pera as nossas fortalezas provisão de cairo e de outras cousas que os malabares de lá costumavam trazer. Partido D. João a este efeito com quatro velas, a em que ele ia, e três de que eram capitães Tristão Barbudo, João Fidalgo e João Moreno; e ante de chegar à Ilha Maldiva, onde el-Rei estava, tomou duas naus que vinham de Bengala pera Cambaia carregadas de roupa, de que a maior delas era de um mouro chamado Gromale, parente de outro que estava por governador em Chatigão, ua cidade principal do reino Bengala, por ser porto de mar, a que concorrem quási todalas cousas que entram e saem daquele reino. As quais naus ele mandou a Cochi, onde então estava Lopo Soares, e tornou a sua viagem caminho da Ilha Maldiva, onde foi recebido do Rei com muito gasalhado, mostrando ter grande contentamento 32 32 da paz e amizade, que el-Rei D. Manuel e seus Governadores com ele queriam ter, e prometendo que, em qualquer tempo que em sua terra quisesse fazer casa de feitoria pera trato de comércio, ele daria lugar e ajuda pera isso. Finalmente, dados e recebidos alguns presentes entre si, el-Rei ficou 68 mui contente de D. João, e ele se partiu muito mais dele por a facilidade com que acabou ao que ia; e foi-se dali em busca do mouro Alé Cane, por achar nova que andava mais adiante em outras ilhas. Peró nesta ida fez pouco, porque o mouro, tanto que houve vista dele, como aquelas ilhas são um labirinto de navegar per entre elas, e ele era mui costumado àquela navegação, e os nossos mui novos nela, andou-lhe furtando as voltas, até que, enfadado D. João, e mais necessitado de mantimentos, havendo já três meses que lá andava, se foi pera Cochi, onde se deteve somente o tempo em que se proveo do que lhe falecia, e di o mandou Lopo Soares que fosse a Bengala ao porto Chatigão, com o mesmo requerimento ao Rei da terra, pera ali fazer ua casa de feitoria, pera que os nossos podessem ter um recolhimento de suas mercadorias, e seguramente fazer comutação

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delas com outras da terra. E que de caminho passasse pela Ilha Ceilão, e do porto Columbo, onde os nossos costumavam ir buscar canela, tomasse pilotos pera o levarem a Bengala; e também que dessimuladamente visse e sondasse este porto Columbo e o sítio da terra pera com seu parecer se determinar no que tinha pera fazer per mandado del-Rei, que era ua fortaleza naquele lugar, a capitania da qual havia de ser dele, D. João. O qual, partido com os quatro navios com que andou nas Ilhas de Maldiva, chegou a Columbo; e visto e notado o lugar, e havidos pilotos, pôs se em caminho de Bengala; e o primeiro porto que tomou daquela enseada, que ainda per os nossos não era descoberta, foi do rio que vem do reino Arracão. Onde lhe saíram seis ou sete navios de remo; e, depois que na prática que teveram com ele souberam que ia a Bengala, como estavam de guerra com ela, quiseram ir em sua companhia. Peró D. João o não consentiu, aconselhado de um moço bengala, que ele levava, que era cunhado do piloto da nau que tomara, dizendo que, se levava aquela gente, por ser contraira aos bengalas, não seria bem recebido. E quanto este moço aproveitou aqui com isto que disse, tanto depois danou. Chegado D. João ao porto de Chatigão, que é ua cidade do reino Bengala mui frequentada de todolos navegantes que àquele reino vão tratar, porque, como ele era natural de Bengala 32v 32v e cunhado do piloto da nau que D. João tomara (como dissemos), não teveram resguardo nisso, e aos primeiros da terra com que falou descobriu tudo o que era passado, com que houve o capitão da cidade que D. João e quantos com ele iam eram ladrões. Porém, como naturalmente os bengalas é gente mais maliciosa de todas aquelas partes, porque não estavam apercebidos pera se defender, dessimularam com D. João, sem lhe darem a entender o que dele tinham sabido, até que se fortalecessem, como logo fizeram, fazendo de noite muitas tranqueiras e repairos pera os nossos não poderem cometer o lugar, querendo entrar nele com mão armada. Aconteceu que um dia, ante que D. João chegasse àquele porto, tinha entrado nele ua nau dali da terra, que vinha da cidade Pacém, que é na Ilha Samatra, carregada de pimenta e de outras sortes de mercadoria. Na qual nau 69 vinha um português chamado João Coelho, que Fernão Peres de Andrade, que estava naquele porto de Pacém carregando pera a China, mandava como mensageiro da parte del-Rei D. Manuel a el-Rei de Bengala. Fazendo-lhe saber como, estando naquele porto carregando ua nau de pimenta, pera com ela e outras ir àquela cidade Chatigão a lhe trazer ua embaixada del-Rei de Portugal, seu Senhor, per desastre se lhe queimara aquela principal nau de sua frota, como lhe podiam dizer os seus naturais, que eram presentes, em que se queimaram as principais cousas que tinha pera levar. Pedindo-lhe que, enquanto se ele ia reformar das cousas que ali perdera, e assi mandar por outras à Índia, das quais eram de Portugal, houvesse por bem que as naus e navios portugueses, que chegassem a seus portos, fossem bem recebidos, e per este modo outras palavras que ele, João Coelho, levava em sua instrução. O qual, tanto que viu surgir a D. João, foi-se logo a ele, inocente do que lhe havia de acontecer, ca D. João, sabendo a causa de sua ida, o reteve sem querer que tornasse a terra, dizendo que não compria a serviço del-Rei ir ele àquele negócio, ante danava, pois Fernão Peres não estava naquele porto. E mais que ele, Dom João, levava do Governador Lopo Soares, que mandasse este recado a el-Rei de Bengala, e não ele, Fernão Peres, o qual recado havia de ir com mais autoridade e com alguas peças de presente, que lhe havia de mandar per a pessoa que a isso fosse. Reteúdo per esta maneira João Coelho, dobrou a causa de se o Governador da cidade mais escandalizar de Dom João, porque era ele já sabedor como João Coelho ia com recado a el-Rei de Bengala da parte del-Rei de Portugal, per mandado de um seu capitão, que estava em Pacém. 33 33 Do qual capitão (segundo deziam todos os bengalas e mouros que vieram em a nau que trouxe João

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Coelho) receberam muito bom tratamento, e ele, Dom João, tomara as duas naus, que pouco tempo havia que dali partiram, segundo tinham sabido do moço malaio (como dissemos), do qual caso afirmavam que Fernão Peres era capitão del-Rei e D. João era algum português que andava feito cossairo. Finalmente, desta boa vontade que o Governador da cidade lhe tinha, no primeiro requerimento que lhe Dom João mandou fazer, respondeu que os não havia na terra, sendo aquele reino de Bengala o mais abastado de todas aquelas partes, por ser regada com as águas do ilustre rio Gange. Dom João, porque a necessidade o apertava, e per recados que foram e vieram, não achou graça no mouro, não sabendo a causa disso, mandou tomar ua campana, que são à maneira de barcas grandes, que estava carregada de arroz, da qual cousa sucedeu o que o mouro desejava, que era romper em guerra. E porque entre eles houve per muitas vezes paz e guerra, e nisso 70 se passaram muitas meudezas, baste saber que Dom João, enquanto ali esteve, que foi quási todo um inverno, per ferro e per fogo que lhe lançaram de noite pelo rio abaixo, e sobretudo per fome, padeceu muito trabalho e necessidade, porque, per razão do inverno, como não podia sair daquele porto, não havia mais que (como dizem) beber estes trabalhos ou verter a vida. No meio do qual tempo, em que de todo houveram de perecer à fome, veo o Governador da Cidade assentar paz com ele, Dom João, não por lhe dar repouso, mas por seu interesse. E foi que, esperando ele, Governador, que com a moução haviam de vir alguas naus àquele porto, temendo que Dom João as tomaria, assentou a paz, na qual, sabendo Dom João quam mal o Governador tomava ter ele reteúdo a João Coelho, e quanto folgaria de o ele leixar ir a terra, por se valer dele o mandou, e ele foi o que lhe deu a vida. Porque, além de ordenar, depois que saiu em terra, como Dom João houvesse mantimentos, uns furtados de noite per meio dos amigos dele, João Coelho, e outros dados de dia, per consentimento do capitão da cidade, depois lhe foi ainda muito mais proveitoso do que ele cuidava que era tê-lo reteúdo em o navio. Ca, vindas as naus que o mouro esperava, tanto que as teve despejadas do que trouxeram, tornou outra vez a fazer guerra a Dom João; com a vinda das quais foi ainda João Coelho mais acreditado na terra, por virem alguas do porto de Pacém, que contaram quanto gasalhado e favor tinham recebido de Fernão Peres de Andrade. Com o qual favor, que 33v 33v ele, João Coelho sentia em o capitão da cidade, e também por já a este tempo ser vindo recado del-Rei de Bengala, que mandava que ele, João Coelho, fosse levar sua embaixada, quási em modo de conselho, quis tratar este negócio com o Governador da cidade. Dizendo que lhe parecia que ele não levava com aquele capitão o modo que convinha pera se tirar da opressão que lhe dava naquele porto, ca, segundo tinha sabido, ele andava meio alevantado por certas naus que roubara e outros crimes que tinha feito. Por a qual razão, como homem, que receava o castigo do Governador da Índia, se lançara naquelas partes, e, segundo era de ânimo e meio desesperado da vida, ele se espantava não ter feito naquele porto mais destruição, e que lhe confessava que quási com temor dele sofrera estar reteúdo debaixo de sua mão, e que lhe não dava outro sinal de quem era, senão a sua prisão. Que, quanto ao que ele até então ali tinha feito, cousas eram naturais a todo homem buscar o comer e amparar a vida, porque, se tomara a champana dos mantimentos, fora depois que os ele pedira por seu dinheiro, e viu que lhos não queriam dar; e se fez danos na terra, era defendendo-se dos que lhe faziam. E quanto às naus que tomaram, não era cousa nova terem os portugueses guerra com os mouros do reino de Cambaia, e que como em fazenda de imigos se queriam entregar porque estas eram as leis da guerra, e que já podia ser que por esta travessura, e por outras tais, andaria ele fora 71 da graça do Governador da Índia. E se assi era, o remédio daquele dano que Gromale, seu parente,

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tinha recebido, por amor dele, Governador, tornado ele, João Coelho, à Índia da vinda do recado que levava a el-Rei de Bengala, ele seria remediado; ca o Capitão-mor da Índia per ele, João Coelho, saberia quanto isto importava a ele, Governador, e entretanto dissimulasse com aquele capitão, e não mandasse que o fossem mais cometer, ante lhe mandasse dar mantimentos, pera se ir dali a desabafar aquele porto. O mouro, posto que com esperança desta restituição da nau, em algua maneira afloxou de mais cometer descobertamente Dom João, todavia, como estava escandalizado e meio injuriado dos danos que tinha recebido em mortes e ferimento de muitos que mandou sobre ele, desejava de se vingar, e pera isso teve este modo: Carteou-se com el-Rei de Arracão, vassalo que naquele tempo era del-Rei de Bengala, o qual vivia em ua cidade deste nome, que per um rio dentro estaria obra de quinze léguas, e daquele porto de Chatigão trinta e cinco; e do que assentaram entre si, di a poucos dias veo ter com Dom João um homem bem tratado de sua pessoa, 34 34 e acompanhado de gente em três ou quatro navios de remo; o qual lhe apresentou da parte del-Rei de Arracão um rubi de preço, posto em um anel, dizendo que, por ter sabido estar ele um pouco mal avindo com a gente de Chatigão, por o mau tratamento que lhe faziam, e ele desejar muito ter amizade e comércio com os portugueses, pola boa fama que tinham naquelas partes, o mandava visitar, pedindo-lhe que se quisesse ver com ele no porto da sua cidade Arracão, onde poderia ser provido do que houvesse mister. Dom João, recebido o presente e dado os agradecimentos dele com alguas cousas, que deu ao embaixador, teve prática com os principais da frota; e visto o trabalho e perigo que naquele porto tinham passado, e a necessidade em que estavam de se prover, pera poderem navegar, porque as águas do inverno, que ali é grande, lhe tinham apodrecido todolos aparelhos e velame dos navios, em tanto que já se serviam de alguns de algodão, que fizeram de redes de uns pescadores que saltearam, assentou que lhe convinha ir ao porto de Arracão, de que já tinha notícia ser ua cidade abastada e de trato. Finalmente, ele se foi em companhia do embaixador, e na boca do rio Arracão foi recebido de alguns calaluzes que el-Rei mandava, apresentando-lhe muito refresco da terra, por segurarem melhor a entrada, a qual, sendo já no meio do rio, Dom João entendeu não ser tam segura, como os nossos navios haviam mister. Porque era já o rio ali tão estreito, que com as antenas da verga ia roçando pela rama do arvoredo, onde se ele espediu do embaixador, dizendo que bem via como os seus navios não eram pera navegar per cousa tão estreita; que se el-Rei se quisesse ver com ele, havia de ser naquele lugar, onde poderiam assentar paz e amizade, e que pera isso esperaria dous dias, até ver seu recado. O embaixador, quando viu que à força de razões o não podia levar adiante, mostrando que não tardaria os dous dias, por a cidade estar mui perto, 72 espediu-se dele, levando consigo os navios de sua companhia, mas ele não veo aos três, nem aos quatro. No qual tempo, porque Dom João trazia per vegia do rio os dous bargantins acima e abaixo, veo-lhe dizer um deles que em um certo passo estreito, per que eles abaixo tinham passado, onde acharam começada ua estacada, andava muita gente que metia mais estacas, como que queriam atravessar o rio. Dom João, ao passar pera cima, tinha visto o começo desta estacada, e pareceu-lhe que era artifício dos pescadores, como eles usam naquelas partes; peró, quando soube que andava muita gente na obra, entendeu o engano, e que lhe podia suceder outro tal desastre como aconteceu a Dom Lourenço 34v 34v de Almeida, no rio de Chaúl, e sem mais demora tornou-se per o rio. Ao passar da qual estacada, a gente da obra fugiu toda, como que receava receber algum dano dos nossos, por entenderem a traição que lhe eles queriam fazer. No qual modo de fugida Dom

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João entendeu ser assi, e depois, per boca de um deles, que João Fidalgo com o seu bargantim houve às mãos pera língua da verdade, o qual desengano causou determinar-se ele fazer sua viagem pera Ceilão, onde sabia que Lopo Soares havia de ser naquele tempo fazer a fortaleza, da capitania da qual lhe tinha dado palavra, e com sua chegada o meteu de posse (como dissemos). E João Fidalgo parece que o índio que tomou lhe deu tal esperança, com que, furtado de Dom João, se leixou ficar naquela boca do rio Arracão, e em lugar de navios de presa, em que ele esperava de se fazer rico, vieram dar com ele os calaluzes e lancharas, que el-Rei de Arracão armava sobre Dom João. E a vitória que deles houve, foi livrá-lo Deus do perigo que nisso passou; e mais cheo de trabalhos que de presas, se partiu pera a Índia, onde teve muito em haver perdão de Diogo Lopes de Sequeira, que já neste tempo governava.

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34v 34v 72 Capítulo IV. De alguas cousas que D. Aleixo de Meneses fez, depois que chegou a Malaca, entre as quais foi mandar Duarte Coelho a el-Rei de Sião, e do que ele passou nesta viagem. No mês de Abril, em que Lopo Soares mandou Dom João da Silveira às Ilhas de Maldiva, na qual viagem passou o que ora escrevemos, mandou também a Dom Aleixo de Meneses a Malaca sobre as diferenças e trabalhos que lá havia; o qual, partido nos três navios com a gente e munições que dissemos, chegou a Malaca na entrada de Junho daquele ano de dezoito. E verdadeiramente, se tardara mais quinze dias, nela 73 estavam outras novas diferenças ordenadas entre os nossos, com que não fora muito perder-se, por terem el-Rei de Bintão por vezinho. As quais diferenças eram entre Manuel Falcão, que servia de alcaide-mor, e o feitor Lopo Vaz, competindo a quem havia de servir de capitão da fortaleza per falecimento de Nuno Vaz, que estava cada dia pera morrer de doença, como morreu em Dom Aleixo chegando. E quem tecia toda esta tea, era um Pero de Guilhém, castelhano, que servia de escrivão da feitoria com outros oficiais de sua valia, de maneira, que estavam todos partidos em dous bandos; e el-Rei de Bintão, 35 35 que sabia parte de tudo, esperando em que haviam de parar suas competências, pera os vir estremar com todo seu poder, e se fazer senhor de Malaca. O qual, depois que mandou ao rio Muar o seu capitão Ciribiche, por quam bem lhe sucedia na guerra, que nos di fazia, ele mesmo em pessoa com todo seu poder se veo meter no rio Muar; e per ele acima pouco mais de dez léguas, em um lugar chamado Pago, fez ua fortaleza muito mais forte que a debaixo donde Ciribiche se recolhia, e dali guerreava a cidade Malaca com dobradas forças, de maneira que se contentavam os nossos com lhe não ser entrada, defendendo-a ao modo que fazem os cercados. Tanto que Dom Aleixo chegou, el-Rei de Bintão, no Pago onde estava, soube logo como trazia muita gente e munições, pera que lhe convinha mudar a ordem que até então tinha de fazer a guerra à cidade, não mandando correr suas armadas tam soltamente como soíam, ante começou de novo fortalecer mais suas fortalezas, principalmente a do Pago, em que ele estava, temendo que os nossos o fossem vesitar a ela, donde se causou que per alguns dias suas lancharas leixaram de correr a Malaca, somente algua que vinha em modo de espia. Dom Aleixo, porque o negócio principal a que ia era meter a cidade em assossego por causa das diferenças passadas, a primeira cousa em que entendeu, foi em meter Afonso Lopes da Costa de posse da capitania da fortaleza e a Duarte de Melo da capitania-mor do mar, e soltar António Pacheco e os outros presos. E no castigo das cousas passadas não quis entender, porque Nuno Vaz, que era ua das principais partes em ela, chegando ele, faleceu de sua doença (como dissemos), e aos outros deu-lhe por castigo os trabalhos, fome, guerra que tinham passado, e a perda de fazenda que cada um, por sustentar sua openião, recebeu; e principalmente por a cidade estar em tal estado, que havia mister mais homens soltos e contentes, que presos e castigados, e mais de cousas em que todos tinham culpa, cada um em seu modo. Acabando de assentar as quais cousas, e assi as da provisão e segurança da cidade, ordenou enviar Duarte Coelho a el-Rei de Sião com cartas 74 e um presente, que lhe el-Rei D. Manuel mandara na armada, em que deste reino partiu António de

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Saldanha o ano de dezassete. E isto em retorno do que o mesmo Rei lhe tinha enviado per António de Miranda, quando lá foi por embaixador per mandado de Afonso de Albuquerque, depois de tomada Malaca, em companhia do qual fora o mesmo Duarte Coelho, como atrás fica. Porque, além de ele, desta vez 35v 35v que lá foi, saber mui bem as cousas de Sião, o ano passado, indo ele com Fernão Peres de Andrade caminho da China, com um temporal que lhe deu, ele, Duarte Coelho, arribou à costa do reino de Sião e entrou per o rio Menão, que o atravessa. Nas correntes do qual está situada a cidade Hudiá, cabeça do reino, trinta léguas da qual ele invernou aquele ano, e di tornou fazer seu caminho pera a China, donde era vindo, como dissemos; e desta vez também teve grande inteligência em saber as cousas de lá, nas quais estava mui prático; assi que por estas razões o despachou D. Aleixo em um navio, em que o mandou bem acompanhado. E a substância da sua embaixada era confirmação das pazes que António de Miranda e ele assentaram com el-Rei de Sião; e a pedir-lhe que houvesse por bem mandar que alguns dos seus naturais viessem povoar Malaca, como lhe já mandara dizer, porque sua tenção era desterrar dela todolos mouros malaios; e povoando-se dos seus, seria um meio para se melhor comunicarem com os portugueses em amor e paz, e as cousas do comércio andariam em suas mãos e não dos mouros, com que se tinham feito senhores da maior parte do marítimo de todo aquele Oriente. Com a qual embaixada Duarte Coelho partiu a dezoito de Julho daquele ano de dezoito, e chegou lá em Novembro; porque o navio em que foi era do reino de Sião, e foi fazendo alguas demoras nos portos da costa. Com a chegada do qual el-Rei foi mui contente, e lhe fez grande honra; e quando veo a jurar as cousas da paz e amizade, que Duarte Coelho com ele assentou, em modo de sacramento de nossa religião, arvorou ua grande cruz de pau, com as armas deste reino ao pé, no mais notável lugar da cidade, como memória e testemunho da paz que jurava, de que el-Rei ficou mui contente. E di a poucos dias ao pé dela enterrou Duarte Coelho um Pero Lobo, criado do Duque de Bragança D. James, que levava consigo, o qual faleceu de doença. Despachado Duarte Coelho muito à sua vontade per el-Rei de Sião, ele partiu da cidade Hudiá em Novembro do ano de dezanove com três navios, um seu e dous que o mesmo rei mandava em sua guarda, por causa das armadas del-Rei de Bintão. E sendo já no fim da costa do reino Camboja, por os ventos lhe não servirem pera vir pela de Patane, querendo atravessar a ela pera tomar a ponta de Cingapura, deu-lhe tam grande temporal, que veo dar à costa junto de Pão, que era de um genro del-Rei de Bintão, nosso imigo. O qual, em lugar de tratar mal a Duarte Coelho, o 36 36 agasalhou, e aos que com ele se salvaram; e per derradeiro, por causa da prática que Duarte Coelho com ele teve sobre as cousas de Malaca e del-Rei de Bintão, seu sogro, com quem 75 naquele tempo estava mal, ele se fez vassalo del-Rei D.Manuel, prometendo de lhe dar cada ano em sinal de obediência um vaso de ouro, que pesasse quatro cates, peso que naquelas partes se usa. E posto que esta obediência, a que ele voluntário se someteu, durou pouco, e quási fez esta obra em ódio de seu sogro, por paixões que entre ambos havia, e principalmente por el-Rei de Bintão neste tempo estar mui quebrado, e ele queria estar seguro de nós e não perder o trato de Malaca, que lhe importava muito, ao menos naquele tempo salvou a Duarte Coelho, e o enviou a Malaca em navio seu. Quisemos aqui dar razão desta vinda de Duarte Coelho, posto que foi já no fim de Fevereiro do ano de vinte, em que governava Diogo Lopes de Sequeira, por não quebrar o fio da história, que importa mais a continuação dela, pois não são anais, que sobressaltá-la por causa dos tempos, quanto mais que dele se dá também razão. E por este mesmo respeito, pois Duarte Coelho quási em modo de posse de nosso descobrimento arvorou aquele divino sinal de Cruz, mistério de nossa Redenção, como padrão de eterna memória, em ua das mais populosas cidades daquele grande e

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ilustre reino de Sião; necessário é que dêmos aqui notícia dele, por este ser o mais próprio lugar em que o podemos fazer, posto que em a nossa Geografia se faz mais particularmente.

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36 36 75 Capítulo V. Em que se descreve o grande reino de Sião e alguas cousas notáveis dele. Em as partes de Ásia que descobrimos, há três príncipes gentios, com que temos comunicação e amizade, aos quais podemos chamar imperadores de toda a gentelidade oriental, que habita a terra firme dela; porque debaixo de seu império há muitos reinos e potências, que nesta nossa 76 Europa podiam constituir um poderoso príncipe. O primeiro e mais oriental é el-Rei da China, de que logo daremos algua notícia; e o segundo, a ele vezinho, el-Rei de Sião, de que ora a queremos dar; e o terceiro el-Rei de Bisnagá, 36v 36v de que adiante também a daremos. E não tratamos aqui dos príncipes, que vezinham com estes dentro pelo sertão; assi como el-Rei de Orixá e el-Rei de Bengala, que tem muitos portos do mar, que nós navegamos, e com que temos comércio, posto que são senhores de grandes estados; porque, ainda que estes sejam mui poderosos em terra, povo, trato e riqueza, não se podem comparar aos três que dissemos. Ca debaixo deles há príncipes seus vassalos, que, se fossem os seus estados nesta nossa Europa, podiam constituir grandes reinos e principados; a maior parte dos quais é do povo gentio, de que aquela terra do Oriente é a madre a mais política dele, porque a do Ponente, habitada de gentio, é a mais bárbara de todolos bárbaros. E porque melhor se entendam as demarcações e figura do estado e reino deste Rei de Sião, de que ora queremos falar, e assi fique na memória ua imagem pera o que havemos de escrever dos de Bisnagá, Bengala e Pegu, tornaremos à demonstração, que já fizemos atrás, falando da marítima costa da Índia até o fim do Oriental da China. Quem na mente quiser receber a terra destes reinos, vire a mão esquerda com a palma pera baixo, e aparte o dedo polegar do segundo chamado índex ou mostrador, e depois aparte este índex dos três seguintes, os quais cerre e encurte pelo primeiro nó, que é quási o meio, per onde eles levemente se encurtam e estendem. E depois que tiver assi a mão, olhe que a costa da Índia lhe fica ao longo do dedo polegar da banda de fora, e esta é a parte do Ponente, e na ponta dele é o cabo Comori, que está em altura do Polo Ártico sete graus e meio. E na ponta do segundo dedo índex, que está ao Levante, ante de chegar ao fim dele, que está em três quartos de grau da mesma parte, fica em dous a cidade Malaca. Figure mais que, defronte do primeiro dedo polegar, quási da banda de dentro, está a Ilha Ceilão, a mais austral ponta da qual fica em seis graus, e na ponta do índex está a Ilha Samatra, per meio da qual passa a Linha Equinocial. Os quais cabos e ilhas são das mais notáveis partes que a Índia tem, e que ante de nosso descobrimento em algua maneira eram sabidas e notas aos antigos geógrafos, ainda que per modo confuso. Todo aquele vão assi largo, como fica entre estes dous dedos, é o mar da enseada de Bengala, chamado assi do mesmo reino Bengala, cuja costa fica a mais curva desta enseada, ocupando aquela distância, que se faz entre os nós dos dous dedos, quando começam a sair da mão, a qual distância quási toda fica retalhada com as bocas do rio Gange, que per ali entra no mar. E no 37 37 meio do dedo polegar, onde ele tem o nó, apartada da costa obra de setecentas léguas, ali pode situar a cidade Bisnagá, de que todo o reino tomou o nome, o qual participa de dous mares: da

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banda de dentro com o de Bengala,que lhe fica no Levante; e de fora com o Mar da Índia, em que tem poucos portos; e esta é a largura deste reino, um dos três gentios que nomeámos, e o seu comprimento é do nó até o fim do dedo demarcado per esta maneira. Da banda de fora, que é do Ponente, fica toda a terra malabar, que ocupa não ainda o terço da largura deste dedo, porque somente é ua faixa de terra mui estreita, e toda a mais terra é de Bisnagá. E do nó pera cima contra a mão, que é a parte do Norte, lhe ficam estes dous estados, o reino Decão, que tem todo o marítimo da parte do Ponente, e o reino Orixá, que tem o marítimo do Oriente, o qual fica entre este reino Bisnagá e o de Bengala, e pelas costas vezinha com o reino Decão. Passando-nos ao segundo dedo índex ou demostrador, toda a distância 77 que está entre o primeiro nó, quando ele sai da mão, ao segundo desta parte do Ponente, que é o mar de Bengala, é do reino Arracão, que vezinha com o de Bengala, que lhe fica ao Norte, e o de Pegu, que jaz ao Sul. E ambos pela parte do Oriente vão dar nas serranias e terras dos reinos Avá e Bremá, os quais correm ao longo do dedo pelo meio dele, porque já da outra parte, onde ele faz outra enseada com os três dedos dobrados, aquele é o marítimo do reino de Sião, o qual participa de dous mares; porque com ua chave de terra vem tomar outra costa marítima da parte do Ponente, que é na enseada de Bengala, começando do nó onde acaba Pegu até o terceiro nó do mesmo índex, onde jazem as cidades, Rei Tagala, Tavão, Pulor, Meguim, Tenaçari e Cholom; os governadores das quais, ainda que se intitulam por reis, são sujeitos ao estado de Sião. Finalmente, tirando o que ocupam os dous reinos Arracão, Pegu e Malaca, que está no fim do dedo índex, os lemites da qual tem aquela porção de terra que tem a unha no dedo, todo o mais dele é do reino Sião até a juntura que ele faz com a mão. Verdade é que aquela parte que cerca, a unha e chega té aquela juntura a ela conjunta, posto que foi de seu estado, alguns mouros que lhe não obedecem, se tem feito senhores do marítimo, porque o interior mais é povoado de bestas feras, que de homens, ou que tem vida delas. E no fim do dedo, onde se ele ajunta com os outros três seguintes, faz ua pequena enseada, porque sai um poderoso rio chamado Menão, que na língua deles quere dizer mãe das águas, o qual vem fendendo de alto a baixo todo o reino de Sião, começando no lago Chiamai, que está 37v 37v em trinta graus de altura da parte do Norte, até se meter no mar em altura de treze, com que toda a terra deste reino fica entre os dous nervos que correm até a juntura do braço, e governam os dous dedos índex e o do meio. Porque à semelhança desta demonstração, contém este reino de comprimento vinte e dous graus, que são léguas espanhóis, per que sempre nesta nossa história falamos, trezentas e trinta e duas léguas e meia. E pela parte do Ponente, indo sempre pelo nervo do dedo índex, confina com as serranias que cortam de Norte-Sul, onde jazem os reinos Avá e Bremá e Jangomá. E pelo segundo nervo com um dos mais notáveis rios daquele Oriente chamado pelos siames Mecão, que quere dizer capitão das águas, porque traz tanta cópia delas, que quando vem sair ao mar naquele nó do terceiro dedo do segundo nervo que dissemos, ante de sair a ele, retalhando a terra per muitas partes, por se estender, faz um lago de mais de oitenta léguas em comprimento, com que fica dividindo estes dous reinos - o de Camboja, pegado com o de Sião pela parte marítima da pequena enseada, que dissemos, e o de Choampá, que fica no Oriente dele; e um e outro entram mui pouco pelo sertão da terra, que na figura que fizemos é todo o corpo da mão. E onde ela se ajunta com o colo do braço, ali se atravessam uas serranias tam ásperas como os Alpes, em que habitam os povos chamados guéus, que pelejam a cavalo, com os quais continuadamente el-Rei de Sião tem guerra, e vezinham com ele 78 somente pela parte de Norte, ficando entre eles os povos laus, que cercam todo este reino de Sião, assi per cima do Norte, como do Oriente ao longo do rio Mecão, os quais vão vezinhar com a grande província China, que contém em si os dedos derradeiros com todo o resto da mão, e pela

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parte do Sul ficam a estes laus os dous reinos Camboja e Choampá, que são marítimos. Os quais laus, que per este modo vão cercando destas duas partes Norte e Levante o reino de Sião, por serem senhores de tam grandes terras, que contém em si três reinos, todos são sujeitos a este rei de Sião, posto que muitas vezes se rebelam contra ele. E se lhe algua obediência dão, é porque os segura dos povos guéus, que dissemos, por serem homens tão feros e cruéis, que comem carne humana; e, segundo o uso deles e lugar de sua habitação, parece serem aqueles povos que Marco Paulo diz em o livro que escreveu de sua peregrinação, habitarem um reino, a que ele chama Cangigu. Porque estes guéus, a que ele não dá nome, como ao reino, geralmente se pintam e ferram 38 38 per todo corpo ao modo que fazem estes de que ele fala, e vemos os mouros de Berberia ferrados, cousa que em todas aquelas regiões não sabemos que outra gente o faça. E como habitam em altas e ásperas serranias, onde os ninguém pode entrar, descem daqueles lugares fragosos às terras chãs dos laus, e fazem nelas grande estrago. E tanto que, se não fosse pola potência deste Rei de Sião, que com grande número de gente a cavalo e de pé e elefantes de guerra vai contra eles, já os laus foram destruídos e as mesmas terras de Sião tomadas por eles. Contra os quais indo el-Rei de Sião ua vez, era presente um português per nome Domingos de Seixas, homem de boa linhagem, o qual foi levado cativo com outros nossos a este Rei de Sião (como a história adiante dirá) e o teve vinte e cinco anos, no qual tempo, pola experiência que teve de ele ser homem cavaleiro e de sua pessoa, o fez capitão de gente. E, segundo a informação que dele houvemos, neste ajuntamento de gente que el-Rei fez pera ir a esta guerra, levaria vinte mil homens de cavalo, e estes cavalos não são grandes, como os de Espanha, mas pequenos, e porém mui rijos e aturadores de trabalho. A gente de pé eram duzentos e cinquenta mil homens, e elefantes dez mil de peleja e de carga, porque este é o reino em que há maior cópia deles que em parte algua, e de que os reis se mais servem. E afora eles, levou grande número de bois e búfaros, que também lhe serviam de carga; e quando na terra per onde foi lhe desfalecia o mantimento, servia-lhe este gado de provisão dele. E esta gente que então el-Rei levou, é a ordenada, que sempre tem feita pera qualquer acidente de guerra que sobrevier ao reino, a qual el-Rei tem repartida per capitanias e senhores, a que ele dá terras e comedias pera isso, e são obrigados que do dia que os chamarem a três 79 seguintes, hão de estar postos no campo, e em caminho pera onde os mandarem ir. A qual gente el-Rei faz sem dar opressão ao reino, porque per este modo é paga à sua custa; e quando quisesse ajuntar mais, podia poer em campo um conto de homens, ficando-lhe todalas fronteiras, em que tem posta gente de guarnição provida do seu ordinário. Porque o reino é grande e mui povoadas as cidades e povoações dele; ca somente da cidade Hudiá, que é a cabeça do reino Sião, onde el-Rei reside, lança de si cinquenta mil homens. E se quisesse levar gente dos outros reinos de que é senhor, não teria conta, mas ordinariamente per constituição e conselho, está assentado não trazer em seus exércitos senão dos próprios siames, por 38v 38v cautela de se não fiar de outra nação, ainda que sejam seus súbditos, ca não querem que lhe saibam sua ordenança, modo e avisos nas cousas da guerra. Os quais siames de nove reinos, de que o Príncipe daquele estado é senhor, somente povoam dous: o primeiro é onde está a cidade Hudiá, que da parte do Sul vem entestar com as terras de Malaca, ao qual eles chamam Muantai, que quere dizer o reino de baixo. E neste Muantai se compreendem estas cidades portos de mar: Pangoçai, Lugo, Patane, Calantão, Talingano, ou Talinganor e Pão. Em cada ua das quais está um seu governador, a que eles chamam oiá, dinidade como acerca de nós duque, e alguns deles se tem intitulado por reis, porque tem polo sertão muita terra. Dos quais o mais vezinho ao nosso reino Malaca é Pão, que já lhe não obedece, e assi fazem outros acima, como se convertem à seita de Mahamede.

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O segundo reino continuado a este pela parte do Norte, é Chaumua, os povos do qual tem língua per si; e propriamente o reino a que nós chamamos Sião, nome entre eles mui estranho e imposto pelos estrangeiros àquele seu estado, e não per eles. Três, que estão sobre a cabeça destes, são dos povos laus, que (como dissemos) obedecem por temor: ao primeiro chamam Jangamá, cuja principal cidade há nome Chiamai, donde muitos por causa dela chamam ao reino Chiamai: ao segundo Chancrai Chencran; e o terceiro Lanchã, que é abaixo destes, e vai vezinhar com o reino Cachó ou Cauchi-China, como lhe nós chamamos; os quais povos laus tem língua per si. Têm mais dous reinos, que um vezinha com o outro, ambos marítimos: o primeiro chamado Como, e o segundo Camboja, cada um dos quais tem língua própria. Da parte do Ponente lhe fica o reino Chaidoco, que tem língua per si, e a este se segue o reino Bremá, que vai correndo estreito, como ua faixa contra o Norte per muita distância, mudando quási a terços o nome, porque em baixo se chama Bremá Ová, e logo Bremá Tangut, depois Bremá Pão, e mais acima Bremá Becá, e por cabeça Bremá Limá, os quais tem língua própria, posto que nesta diferença de terras variam pouca cousa. Finalmente, todos estes sete reinos, tirando os dous que dissemos serem da própria língua dos siames, como são gente estrangeira e conquistada per 80 eles, o temor e necessidade os faz súbditos a el-Rei de Sião, e com eles sempre tem que fazer em seus alevantamentos. Os quais com toda a outra terra que tem por vezinhança é de gente idólatra, e quási em todalas cousas de sua crença se conformam, por tudo ser trazido da religião dos povos 39 39 da província China, que foi já senhora deste estado. Têm os siames que Deus é criador do Céu e da Terra, e que dá glória às almas dos bons e inferno às dos maus, e que a alma do homem tem dous espíritos custodes que a guardam, e um que a tenta. Geralmente esta gente dos siames é mui religiosa e amiga da veneração de Deus, porque lhe edificam muitos e mui grandes e magníficos templos, deles de pedra e cal, e outros de tijolo e cal; nos quais templos tem muitos ídolos de figuras de homens, os quais eles dizem estar no Céu, porque viveram bem na terra, e que tem suas imagens por sua lembrança, mas não que as adorem. Entre estes tem um de barro, que jaz dormindo encostado sobre uas almofadas do mesmo barro, o qual será de cinquenta passos de comprido, a que eles chamam pai dos homens, e dizem que Deus o mandou do Céu, e não foi criado na terra, e que dele nasceram alguns homens, que foram martirizados por Deus. E a maior figura destas, que tem de metal entre outras muitas que há naquele reino, é ua, que está em um templo da cidade Socotai, que eles dizem ser a mais antiga do reino, o qual ídolo é de oitenta palmos, e daqui pera baixo até da estatura de homem tem grande número deles. Os templos são grandes e sumptuosos, e nisto despendem os reis muito, e todo o rei, como herda o reino, em louvor de Deus logo começa um templo, e deles fazem dous e três, aos quais eles dotam grandes rendas. Todos estes templos como são grandes, logo lhe fazem uns pirames mui altíssimos, isto tanto por ser figura dedicada a Deus, como por ornamento do templo, ao modo que se cá fazem os curuchéus; peró estes são de pedra ou de tijolo. Do meio pera cima dourados de ouro de pão, sobre betume que dura per muito tempo, e pera baixo é todo pintado de cores, e per remate dele em todo cima, assi como nós pomos grimpa, põem eles ua maneira de sombreiro, e em roda da aba muitas campainhas, assi leves em seu movimento, que com qualquer ar que lhe dá tangem. Os sacerdotes destes templos são mui venerados, e eles em seu modo religiosos e tam honestos, que dentro nas oficinas de suas casas não pode entrar mulher, nem querem ter galinhas, por serem fêmeas; e se algum é compreendido em cousa de mulher, logo é punido e lançado fora da casa. Seu hábito é de pano de algodão e de cor amarela, porque todo amarelo, por a semelhança que

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tem com o ouro, é dedicado a Deus, e é tam comprido, 81 que lhe chega até os artelhos, ao modo do hábito dos nossos religiosos. Somente tem esta diferença - que o braço esquerdo trazem nu, e daquele ombro pera 39v 39v a parte direita lhe atravessa ua tira de pano comprida, ao modo de estola, de que usam os nossos sacerdotes chamados diáconos, que dizem o Evangelho, a qual apertam com outra que lhe cinge o hábito, e nesta tira atravessada está a denotação de religioso, como na terra malabar a linha vermelha dos brâmanes, lançada a este modo. Trazem mais por religião andarem rapados e descalços, e na mão um abano de papel grande da figura de ua adarga, com que cobrem a cabeça do Sol, e emparam o rosto da gente, quando prepassam per eles, e no tempo das chuvas trazem capelos na cabeça. São homens mui temperados no comer e beber; e se algum beber vinho, é entre eles tam grande pecado, que o apedrejam por isso. Têm muitos jejuns per todo ano, principalmente em um tempo, em que geralmente todo povo concorre aos templos ouvir sermões, ao modo que nestas partes da Cristandade se costuma nas Quadragésimas. Têm alguas festas principais, e todas são no princípio da lua nova, ou quando está chea, e o rezar deles é em coro, de dia e de noite, a certas horas. Nestes sacerdotes está toda a doutrina, porque não somente estudam nas cousas de sua religião, mas ainda na revolução do céu e dos planetas, e nas cousas da Filosofia natural. Têm que o Mundo teve princípio e que houve delúvio geral, e que o termo da duração do Mundo é de oito mil anos, de que já são passados seis mil, e disto davam alguns doutros razão o ano de mil e quinhentos e quorenta a um Domingos de Seixas, de que atrás fizemos menção, que lhe perguntava por estas cousas. Dizem que a fim do Mundo há de ser per fogo, e que neste tempo se abrirão no Céu sete olhos de Sol, e que cada um sucessivamente secará ua cousa, até que aos cinco secará o mar, e que nos dous últimos se queimará toda a terra, na cinza da qual ficarão dous ovos - macho e fêmea - de que se tornarão a produzir todalas cousas, de que o Mundo se tornará a reformar. E que não haverá nele mar de água salgada, senão rios que reguem a terra, a qual será mui fértil, e dará seus fructos sem trabalho dos homens, com que eles vivam a seu prazer perpetuamente. Fazem o ano de doze meses, e começam o seu ano na primeira lua de Novembro; e a causa é, porque entre eles neste tempo começa o verão, e os rios, metidos na madre, trazem suas águas claras. E como acerca de nós a cada um dos meses atribuímos um signo de Zodíaco, notado per ua figura de animal, assi eles denotam os seus per estas: Ao primeiro, que é Novembro, dão a figura de rato; a Dezembro, vaca; a Janeiro, tigre; a Fevereiro, lebre; a Março, cobra grande; a Abril, cobra pequena; a Maio, cavalo; a Junho, cabra; a Julho, bogio; a Agosto, galinha; a Setembro, cão; a Outubro, porco. São grandes astrólogos, e não movem um pé sem 40 40 eleição de tempo pera 82 seus orapostos; e posto que sigam as horas do Sol, não tem relógios de sombra, e pera o decurso do dia e da noite, somente nas casas del-Rei há relógio de água, que de dia e de noite se vigia; e ao tempo das horas dão tantas pancadas em um atabaque, que se ouve per toda a cidade, e a têmpera sua está calculada pelo ascendente do Sol. E com esta astronomia e astrologia de que usam, também misturam outras artes que dela dependem, como geomância, piromância, e mil modos de feiteceria, e esta per doutrina da gente quelim da costa Choromandel, a qual por esta causa é mui estimada naquele reino, e vem a ele a ler esta crença.

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A outra doutrina comum, assi como ler, escrever e artes liberais, os mestres delas são os mesmos sacerdotes nos próprios templos, e ali vão os meninos aprender estas cousas deles; e assi como os mandamentos e cerimónias de sua religião aprendem na língua da terra, assi as cousas da ciência ensinam em língua antiga, que é acerca deles como entre nós a língua latina. Escrevem ao nosso modo - da mão esquerda pera a direita -; tem grandes livrarias, todas de mão, por não terem impressão, como os chins. Todo este reino, tirando as partes per que o confrontamos com os outros povos, que são partes montuosas e de grandes arvoredos e alagadiços, que quási são limites de uns se demarcarem com outros, a mais terra dele é chã e de campinas, principalmente aquela que vem regando o rio Menão, que faz o reino mui abundoso de todalas sementes e mantimentos. A agricultura dos quais a gente se dá mais que ao outro exercício, e por esta causa é este reino pouco frequentado per via de comércio; ca onde não há mecânica, não há obras que os povos estranhos lhe vão comprar. E alguas mercadorias que tem, as quais procedem do reino Chiamai, assi como prata, pedraria, almiscre (este reino Chiamai vezinha com o chamado Tongu, que é a cabeça dos povos bramás, os quais confinam dentro pelo sertão com Pegu), todas elas vasam por este reino marítimo e por Martabão, por a grande navegação que tem com a Índia, que lhe fica mais vezinha per o mar de Bengala, que per o de Sião. Há neste reino ouro, prata e os outros metais, e deles se leva pera outras partes; verdade é que a prata lhe vem das serranias dos povos laus. Geralmente todo Sião é mui sujeito a seu rei, porque todos vivem dele: ca ninguém tem um palmo de terra que seja própria, toda é dele, ao modo que neste reino de Portugal são os reguengos, que são as melhores empolas e comarcas da terra, que os primeiros reis tomaram pera si em lugar de património; e quem lavra na tal terra, paga a el-Rei o quarto. Assi neste 40v 40v reino de Sião todo é reguengo, de que os lavradores pagam um tanto a el-Rei, ou aos senhores, a quem ele dá alguas terras pera sua mantença. A repartição das quais é per ua medida a que eles chamam cem, a qual contém em si 83 vinte braças em quadrado; e seiscentos cens destes é ua medida itinerária per que medem os caminhos e distâncias que há de lugar a lugar, per a qual nós assentámos toda a Geografia daquela região em as nossas Távoas. E pera que os vassalos se animem a servir seu rei, principalmente aqueles que servem na guerra, são seus serviços escritos em livro e em modo de crónica. Estes autos dos homens são lidos ante el-Rei, assi pera com a lembrança haverem igual prémio de seu serviço, como pera glória de seu nome aos que dele descenderem, e todos são pagos nestes rendimentos da terra; dela se dá per anos, e algua em vida da pessoa, e nenhua de juro. O qual modo não somente usa com a gente nobre, mas ainda com os senhores que tem nome de oiás, que entre eles é o que acerca de nós denotam duques, e di pera baixo a outras dinidades. Ca todos estes, peró que del-Rei tinham cidades e vilas com jurdição ao nosso modo, não tem este domínio senão por anos, ou em sua vida, e todos com obrigação de o servirem na guerra com tanta gente de cavalo e de pé, e tantos elefantes. E porque a maior parte dos méritos, pera haverem estas comedias, está no uso da guerra, ainda que estém na paz, sempre se exercitam nos autos e manhas dela; e alguas festas que há no ano, que el-Rei muito celebra em a cidade Hudiá, todas são ordenadas a este fim de os homens mostrarem suas habelidades nas armas. Ua destas festas se faz no rio Menão, onde se ajuntam mais de três mil paraus, e parte-se este auto em dous, ao modo que os romanos faziam as suas naumachias; porque depois que tem curso de quem chegará primeiro a um posto à força de remo, entram na peleja de uns com outros. A festa da terra é de se encontrarem a cavalo e em elefantes, e pelejarem a pé de espada e escudo uns com outros, e deles com alimárias feras, e alguns condenados à morte são lançados a elas; e se fica com vitória, além de ter vida, tem mercê del-Rei.

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Finalmente, todos seus exercícios são ordenados a este auto de guerra;, e peró que sejam homens que se prezam dela, e cavaleiros de sua pessoa, e principalmente os das comarcas onde estão situadas as cidades Suruculoco e Socotai, que são do reino Chaumua, o mais da vida geralmente gastam em delícias e vícios. Porque naturalmente são comedores, sem fazerem exceição de algua imundícia, assi das que cria o marcomo da terra, e mui dados a mulheres, e 41 41 tão ciosos delas, que assi o Rei, como todo homem nobre da casa pera dentro, onde elas estão, não lhe entra macho; todo o serviço é de mulheres, e tem porteiras que guardam estas entradas. E segundo dizem, tem eles razão, por elas serem tais nesta parte da castidade, que hão mister vigiadas; porque, como se elas prezam de a mulher ser inventor daquele torpe 84 uso dos cascavéis, que os homens enxeriam na parte da geração (segundo contámos, falando de Pegu), e assi se prezam que a deleitação deste bestial uso é mais seu que dos homens, todo o mal que nesta parte delas se poder presumir se deve crer. Muitos e vários costumes tem esta gente e o seu príncipe, que leixámos pera os Comentários da nossa Geografia.: o dito baste pera notícia deste tam grande reino.

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41 41 84 Capítulo VI. Como el-Rei D. Manuel mandou Fernão Peres de Andrade descobrir a enseada de Bengala e a costa da China, e o que passou primeiro que fosse à cidade Cantão, que é a principal de ua das províncias que a China tem. Além dos trabalhos e diligência que Afonso de Albuquerque teve enquanto governou o Estado da Índia e conquistou os reinos e terras que per seu falecimento ficaram à Coroa deste reino, teve mais um vivo e natural espírito acerca de inquerir todolos reinos e províncias daquele Oriente, trabalhando por saber o estado dos príncipes delas, e como se governavam, e os tratos e comércios que entre si tinham, provocando-os em nossa amizade per todos modos e meios que ele podia. A qual deligência e indústria (salva a graça dos outros governadores que o sucederam) a ele se pode atribuir como própria prerrogativa. Donde, na tomada de Malaca (segundo escrevemos), naquele pequeno espaço de tempo que nela esteve, enviou seus mensageiros a Sião, a Maluco, a Pegu, à Java e à China. E de Ormuz, quando o tomou, enviou Fernão Gomes de Lemos ao Xeque Ismael, Rei da Pérsia, que naquele tempo era o temor das gentes daquelas regiões, tudo porque o nome português fosse conhecido no interior delas, pois o marítimo per potência de armas a ele obedecia. E ao tempo que partiu de Malaca, ua das principais cousas que encomendou a Rui 41v 41v de Brito Palatim, que leixou nela por capitão, e depois a Jorge de Albuquerque, quando o mandou de Cochi a servir este cargo, era que não partisse navio de mercadores daquela cidade, onde não fosse um português, homem de bom espírito e descrição, pera trazer informação do que visse e ouvisse daquelas regiões e tantas mil ilhas, como aquele Mar Oriental tem. O que estes capitães fizeram em todo o tempo que residiram naquela cidade Malaca, donde, no tempo de suas mouções (de que atrás escrevemos), partiram pera aquelas partes. Das quais el-Rei D. Manuel tinha grandes informações, não somente per os primeiros mensageiros que Afonso de Albuquerque per si mandou, 85 mas ainda pelo cuidado que estes capitães tiveram. E como el-Rei estava avisado da grandeza daquele Oriente e da muita riqueza que nele havia, assi de cousas naturais como artificiais, determinou enviar ua armada a este descobrimento, principalmente a Bengala e à China, por lhe dizerem serem os reinos do maior comércio, e os mais ricos e poderosos que havia do Cabo Comori em diante. A capitania da qual frota, que havia de ser de quatro velas, que na Índia se haviam de armar, deu a Fernão Peres de Andrade, que naquelas partes, principalmente em Malaca, tinha mostrado quanto nele cabia este e outros cargos de maior calidade, o qual (como escrevemos) partiu com Lopo Soares, e ele o espediu, tanto que chegou à Índia, pera ir fazer este descobrimento. Fernão Peres, seguindo sua derrota, o primeiro porto que tomou foi em a cidade Pacém, cabeça de um dos reinos que tem a Ilha Samatra, à qual os geógrafos (como adiante veremos), erradamente fizeram terra firme, e não ilha, como é, chamando-lhe Áurea Quersoneso. Onde, pela ordenança que levava, havia de tomar carga de pimenta da muita que nela há, e outras mercadorias que tem grande preço na China, a qual ele fazia fundamento ir primeiro descobrir, e depois a Bengala e costa de Pegu. No qual porto de Pacém achou Gaspar Machado com alguns portugueses, que ali estavam per mandado do capitão de Malaca, feitorizando carga de pimenta aos juncos que iam a Bengala e à China, ordenados pela feitoria de Malaca, segundo o modo que ordenara Jorge de Brito, que foi ua das causas de se despovoar a cidade, como escrevemos. E Manuel Falcão andava também com ua galé fazendo arribar a Malaca todalas naus que ali

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vinham ter de Bengala, Choromandel, Cambaia, pera que fossem com suas mercadorias a ela. A qual cousa os mouros não queriam fazer sem esta força, e isto em ódio nosso, trabalhando por 42 42 avocarem ali todo género de comércio, assi das cousas que havia na terra, como das que costumavam ir a Malaca, por desfazerem em o trato dela, e desfeito, nós leixaríamos a povoação, por a terra em si não ter cousa que nos obrigasse a sustentá-la. Recebido Fernão Peres do Rei da terra com grande honra e começando entender em o negócio da carga da pimenta, aconteceu que, per descuido dos marinheiros, da pevide de ua candea, que foi levada abaixo pera tomar água, a nau em que ia Joanes Impole por capitão e feitor, ardeu com quanta fazenda levava debaixo da coberta, somente se salvou a de cima com toda a gente. Quando Fernão Peres viu que per aquele desastre, por ser a maior nau que levava em sua companhia, ficava desaviado, e esperar per outra nau, que em Malaca lhe havia de ser dada per novamente começar tomar outra carga de pimenta, perdia a moução e tempo em que lhe convinha partir pera a China, determinou de se ir a Malaca, e com as mercadorias que lhe haviam de dar na feitoria, e o mais que deste reino levava e se salvou do fogo, fazer ua viagem a Bengala e descobrir primeiro esta enseada, e da vinda ir à China. Com o qual fundamento, pera nesta sua ida a Bengala ser melhor recebido 86 quando lá chegasse, determinou de mandar diante um João Coelho em a nau do mouro Gromale, parente do governador de Chatigão, com as cartas e recado que atrás dissemos, quando tratámos do que ele fez nas cousas de Dom João da Silveira. Chegado Fernão Peres a Malaca com este fundamento de ir a Bengala, em nenhum modo o consentiu Jorge de Brito, que era capitão dela, ante lhe requereu da parte del-Rei, que, como cousa muito importante a seu serviço, ele fosse primeiro à China, dando pera isso muitas razões. A principal das quais era que Jorge de Albuquerque tinha enviado lá Rafael Perestrelo em um junco de um mercador que ali vivia chamado Pulate, o qual parecia ser reteúdo na China, por ser já passado o tempo em que se esperava por ele. Finalmente, por estas e outras cousas do serviço del-Rei e bem do crédito daquela cidade Malaca, posto que era já tarde pera a navegação daquelas partes, Fernão Peres se partiu a doze de Agosto do ano de quinhentos e dezasseis; e ainda pera maior empedimento, foram os tempos tam mortos, que chegou meado de Setembro à vista da costa do reino da Cochi-china. Na qual paragem, por ser no fim do tempo da moução, lhe deu um temporal por de avante, que o fez arribar à costa do reino Choampá, com todolos navios que levava; somente um junco, em que ia Duarte Coelho, 42v 42v que desta feita foi ter ao rio Menão, que corre per meio do reino de Sião, onde invernou (como ora atrás dissemos), na qual costa ele, Fernão Peres, correu maior perigo de sua vida que em toda a tormenta, per esta maneira: Como por razão das calmarias que trouxe, ante que lhe sobreviesse este tempo, ia necessitado de água, passou-se a ua caravela, de que era capitão António Lobo Falcão, e leixou recado às outras velas que levava, que corressem a costa sempre à vista dele, porquanto se queria chegar bem a terra, pera a descobrir e ver se achava lugar onde fizessem aguada, e quando a achasse, lhe faria sinal. Indo com este propósito ao longo da terra, tam perto que podiam notar a calidade dela, onde a viu verde e uns córregos dispostos pera neles haver água, surta a caravela, saiu ali em um batel, postos dous berços com um bombardeiro pera servir com eles, e a mais gente eram marinheiros e grumetes com barris pera tomarem água, e António Lobo, capitão da caravela, com que per todos seriam nove pessoas. Tomando os barris pera irem buscar água, leixou dous grumetes em guarda do batel um pouco largo, com aviso que tevessem olho se vinha alguém, e que fizessem sinal, tirando com um

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dos berços; mas eles tiveram tam bom cuidado, que, por razão da grande calma que fazia, se saíram do 87 batel, e foram-se lançar a dormir debaixo de uas árvores. Um dos quais, depois que acordou, pelo que viu, foi-se pelo córrego acima em pés e mãos, sem ousar de se erguer, onde achou Fernão Peres em um ribeiro, o qual estava enchendo os barris de água, e quando o viu vir daquela maneira, perguntou-lhe: - Que cousa é essa? O grumete, como ia cortado do medo, não respondeu, mas apertou os beiços com o dedo, fazendo-lhe sinal que se calasse. Fernão Peres, porque os da companhia não ouvissem o que dizia, parecendo-lhe algum mistério, apartou-se com ele. Do qual soube que, por razão da grande calma que fazia, se foram lançar debaixo de ua árvore à vista do batel; e que, acertando de dormir, quando acordaram, viram estar o batel em seco, e derredor dele mais de cinquenta homens, e que esta fora a causa de ir a ele em pés e mãos, e o outro seu companheiro estava escondido à vista do batel, pera ver que faziam dele. Quando Fernão Peres soube deste perigo, dissimulou com António Lobo, e disse-lhe: - Ficai aqui com esta gente, e não façais muito rumor, que eu quero ir ver o que este viu, que me parece sonho, porque ele vem de dormir debaixo do pé de ua árvore. E tomando ua lança e adarga, disse ao grumete: - Anda per diante. - Senhor (disse ele) não vá vossa mercê 43 43 assi, senão em pés e mãos, como eu venho, por não ser visto. Ao que Fernão Peres respondeu: - Amigo, eu já leixei de engatinhar. Faze o que te digo, anda diante, não hajas medo. Indo per este modo o mais encobertamente que pôde, quando chegou onde o outro grumete ficava escondido, viu estar o batel na praia atravessado, e os berços fora, e muitos homens à sombra dele, com lanças e arcos; o número dos quais (segundo sua estimação), lhe pareceu ser de setenta pessoas. Tornado onde leixou António Lobo, por não enfraquecer o ânimo dos que com ele estavam, disse: - Bem sabia eu que sonhara o grumete. O caso é este: Ele e seu companheiro lançaram-se a dormir ao pé de ua árvore, com que o batel ficou em seco; derredor dele, lançados à sombra, estão dez ou doze homens da terra; cumpre que nós vamos caladamente até as árvores, onde estes grumetes jaziam, e dali remetamos com ua grande grita, e ninguém entenda senão em pôr ombros ao batel, porque, se nos posermos a pelejar com os negros, per ventura apelidarão gente da terra, que nos dê algum trabalho, pera nos empedir a embarcação. Ditas estas palavras, tomou Fernão Peres a dianteira; e tanto que chegou ao lugar assinado, saiu com ua grita, com que fez fugir a gente tam 88 sem tento, que leixaram os mais deles as armas e fato que traziam, no qual reboliço os nossos aos ombros poseram o batel na água e se recolheram nele. Fernão Peres, como se viu recolhido, mandou bradar per ua língua que levava aos que fugiram, os quais também já tornavam sobre si do primeiro assombramento que teveram, vendo quam poucos eram os nossos. E chegados espaço que podiam estar à fala, mandou-lhes Fernão Peres lançar as armas e cousas que leixaram, e assi alguns barretes vermelhos e brincos de cousas meúdas, que os marinheiros levavam. Com as quais assi ficaram domésticos, que não somente naquele instante per meio deles os nossos houveram a água que buscavam, mas ao segundo dia, por eles dizerem a Fernão Peres que tinham ali perto ua povoação, mandou ele recado às outras velas

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que iam de largo, as quais fizeram sua aguada e houveram muito refresco de galinhas e mantimentos da terra, que lhe esta gente trouxe. Partido Fernão Peres, foi ter a ua ilha chamada Pulo Condor; Pulo em língua malaia de Malaca, quere dizer ilha, Condor é o próprio nome; e daqui se pode entender que, quando nesta história falarmos por este nome pulo, não é próprio, mas comum. Na qual Pulo Condor, ainda que era despovoada, por ser mui frequentada dos navegantes, onde geralmente fazem aguada 43v 43v e às vezes tiram os navios em terra, há tantas galinhas das que eles ali leixam, que teveram os nossos um grande refresco nelas, e assi em outro muito género de aves que há nela, e principalmente tanta tartaruga e variedade de peixes, que poderam carregar as naus. E o porque a eles foi mais novo por até então as não terem visto naquelas partes, foi acharem alguas parreiras de uvas pretas no tempo que se acham inda entre nós; ca era no fim de Setembro. Partido Fernão Peres dela, foi ter à costa da terra firme, que corre de Malaca pera o reino Sião, e tomou o porto da cidade Patane, que é do mesmo reino, onde concorrem muitas naus de chins, léquios, jaus e de todas aquelas ilhas vezinhas, por ser em trato do comércio mui célebre, e ora por causa nossa, com a tomada de Malaca, é mui frequentada de toda a mercadoria daquelas partes. Finalmente, Fernão Peres assentou paz com o governador da terra, pera nossas naus poderem ir a ela, e as suas virem a Malaca, e daqui veo correndo todolos portos daquela costa, fazendo outro tanto, donde se causou que Jorge de Brito logo lá mandou, e assi fizeram todolos outros capitães de Malaca, por acharem ser negócio proveitoso, enquanto não romperam a paz. E ao tempo que chegou a Malaca, achou que era vindo da China Rafael Perestrelo, que ele ia buscar, o qual, com as cousas que de lá contava e com o grande ganho que fez do que levou e trazia, alvoroçou tanto a Fernão Peres e aos de sua frota, que houve por melhor fazer primeiro aquela ida que a de Bengala. Per conselho do qual, logo em Dezembro, Fernão Peres se partiu pera Pacém fazer carga da pimenta - e por esta ser a melhor mercadoria que lá podia levar - e neste porto se deteve até Maio, em que houve espaço pera Simão 89 de Alcáçova, que era um dos capitães de sua armada, ir à Índia carregar a sua nau e tornar. Partido Fernão Peres deste porto de Pacém pera Malaca, chegou a tempo que Jorge de Brito, capitão dela, era felecido; e sobre quem seria capitão, havia entre Nuno Vaz Pereira, cunhado dele, defunto, e António Pacheco, Capitão-mor do mar, grande contenda a quem serveria este cargo (como atrás fica). Entre os quais ele, Fernão Peres, se meteu pera os concertar; e vendo que era já em Junho do ano de dezassete, tempo em que lhe convinha partir, por não perder a moução pera a China, leixou-os em suas diferenças. Fazendo sua viagem com ua armada de oito velas, de que eram capitães das sete Simão de Alcáçova, Jorge Mascarenhas, Jorge Botelho, de Pombal, António Lobo Falcão, Pero Soares, Manuel de Araújo e Martim Guedes, com as 44 44 quais a quinze de Agosto do ano de dezassete chegou à Ilha Tamão a que os nossos chamam da Beniaga, que quere dizer mercadoria, vocábulo daquelas partes já tam recebido entre eles, que o tem feito próprio. E a causa por esta ilha ser assi chamada, é porque todolos estrangeiros que vão à província de Cantão, é a marítima mais ocidental que o reino da China tem; a ela por ordenança da terra hão-de ir surgir, por estar per espaço de três léguas da terra firme, e ali provêem os navegantes do que vão buscar. E porque as cousas desta região da China são tam grandes como a mesma terra é, posto que em a nossa Geografia damos toda a relação que dela temos sabido, aqui sumariamente de alguas cousas o queremos fazer, começando primeiro na descrição da terra e cousas dos moradores dela, e des i a daremos da cidade Cantão, cabeça de ua das governanças que esta região China tem, onde Fernão Peres esteve e fez todo o negócio a que foi.

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44 44 90 Capítulo VII. Em que se descreve a terra da China e relata alguas cousas que há nela, e principalmente da cidade Cantão, que Fernão Peres ia descobrir. A Grã Província (se este nome pode ter aquela parte da terra, a que nós chamamos China) é a mais oriental que Ásia tem; a maior parte da qual é lavada do Grande Oceano, à maneira que é a nossa Europa opósita a ela, começando da Ilha Calez. Porque, como desta ilha ela vai torneada e cengida do Mar Ocidental, e depois que chega ao Cabo de Fisterra, como ao Norte até chegar às regiões e reino Dinamarca, e des i faz a grande enseada a que chamam Mar Báltico, entre a Sarmácia e Norduégia, com o mais que se vai continuando com a terra Lapónia e a outra regelada a nós incógnita; assi esta região, a que chamamos China, começando da Ilha Ainão, que é a mais ocidental que ela tem, vezinha ao reino Cachó per nós chamado Cauchi-China que é do seu estado, o mar a vai cengindo pela parte do Sul, e corre nesta continuação pelo rumo a que os mareantes chamam Lesnordeste, encolhendo-a quanto pode pera o Norte, até chegar a um cabo o mais oriental dela, onde está a cidade Nimpó, a que os nossos corruptamente chamam Liampó. E daqui volta contra o Noroeste e Norte, e vai fazendo outra enseada mui penetrante, levando per cima de si outra costa opósita à de baixo, 44v 44v com que a terra de cima fica metida debaixo dos regelos do Norte, onde habitam os tártaros, a que eles chamam tátas, com quem tem contínua guerra. A qual semelhança entre estes dous fins da terra habitada não está tanto em situação de graus, quanto em modo de figura; porque a Ilha Calez está em altura de trinta e sete graus escassos do nosso Polo Árctico, e muita parte da terra desta Europa, quanto ao per nós sabido, acaba em altura de setenta e dous graus. E a Ilha Ainão está em dezanove graus, e a terra da China, a que ela está conjunta (à maneira que Calez o está com a nossa Europa), a parte dela, de que temos notícia, acaba em cinquenta graus de altura, afora o mais que a ela vai continuada. Da qual distância podemos tirar a grandeza deste estado, pois que em largura (falando nas mensuras geográficas), esta terra da China tem trinta e um graus, e a nossa Europa trinta e cinco graus. E não falamos na longura, porque, por razão da diferença 91 dos paralelos, os quais ainda não temos verificados pelo instrumento de que usamos na descrição das Tábuas da nossa Geografia, pera este lugar leixámos a sua distância. Somente diremos aqui ua maravilhosa cousa que tem esta região da China na travessa da sua largura, que é a longura ao respeito de como contamos a graduação da terra: que entre quorenta e três e quorenta e cinco graus vai lançado um muro, que corre de Ponente de ua cidade per nome Ochioi, que está situada entre duas altíssimas serras, quási como passo e porta daquela região, e vai correndo pera o Oriente, até fechar em outra grande serrania, que está bebendo em aquele Mar Oriental em modo de cabo, cujo comprimento parece ser mais de duzentas léguas. O qual muro dizem que os reis daquela região da China mandaram fazer por defensão contra os povos a que nós chamamos tártaros e eles tatas ou tancas (segundo lhe outros chamam), posto que, além do muro contra o Norte, ainda tem estado ganhado a estes tatas. Este muro vem lançado em ua carta de geografia de toda aquela terra, feita pelos mesmos Chins, onde vem situados todolos montes, rios, cidades, vilas, com seus nomes escritos na letra deles, a qual mandámos vir de lá com um chim pera a interpretação dela e de alguns livros seus, que também houvemos. E ante desta carta tínhamos havido um livro de Cosmografia de pequeno

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volume com tábuas da situação da terra e comentário sobre elas, à maneira de Itinerário; e ainda que nele não vinha este muro figurado, tínhamos informação dele. E o que sobre isso nos davam a entender era não ser per todo continuado, somente haver entre os 45 45 chins e os tatas ua corda de serras mui ásperas, e em alguns passos estava este muro feito; mas agora que per eles o vimos pintado, fez-nos grande admiração. A qual carta, posto que não vem agraduada, somente pera demonstração, o livro das Tábuas, que diante tínhamos, responde a ela na mensura itinerária de que eles usam, que são três, ao modo de estádio, milha e jornada, de que nós usamos. A primeira e menor distância sua é li, que tem tanto espaço, quanto per terra chã em dia quieto e sereno se pode ouvir o brado de um homem; dez dos quais lis fazem um pu, que responde pouco mais de ua légua das nossas espanhóis, porque dez deles fazem jornada de um homem, a qual eles chamam chan. E até ora não temos sabido que situem a distância da terra per graus correspondentes ao orbe celeste, posto que sabemos terem este uso nos seus horóscopos, quando usam da astrologia, de que são grandes homens; e não é muito não haver entre eles esta maneira de graduação terrestre, pois até o tempo de Ptolomeu não era usado dos geógrafos. Dentro desta terra que divisámos, a qual é toda de um príncipe gentio (como já atrás fizemos menção), se contém quinze reinos ou principados, a que eles chamam governanças, os nomes das quais ora tornaremos repetir: Cantão, Foquiem, Chequeão, Xantom, Nauqui, Quinci, que são as marítimas dele. E Quicheu, Juná, Quanci, Sujuão, Fuquão, Cansi, Xianxi, Honão e 92 Sanci, são do sertão. Em as quais, segundo mostra a carta da Geografia que houvemos, contém duzentas quorenta e quatro cidades notáveis, as quais todas acabam nesta sílaba fu, que quere dizer cidade, assi como Chincheufu, Nimpofu, polas cidades Chinchéu e Ninpó, onde os nossos vão fazer seus comércios. No qual modo eles se conformam com os gregos, dizendo Constantinópolis, Andrianópolis, por as cidades que edificaram ou renovaram Constantino e Adriano, emperadores; e as mais das vilas também tem seu termo final, que denota vila, que é cheu, a qual ordem não guardam nas outras povoações, como são aldeas, posto que há muitas delas que passam de três mil vezinhos. Nem acerca deles fazem esta divisão de vila à aldea, por razão de muitos ou poucos povoadores, somente porque as vezinhas são cercadas de muro, como as cidades, e mais tem suas insígnias, assi na administração de justiça, como nas outras cousas do governo da terra e preeminência de honra. Porque, como cada ua destas quinze governanças ou províncias tem ua cidade, que é sua cabeça, a que acodem todalas cidades que nela há, assi as vilas acodem às cidades do seu 45v 45v termo, e as aldeas às vilas. Às quais cabeças vão todalas apelações de qualquer caso, ora seja do estado e justiça, ora da fazenda, ora da guerra, onde residem os governadores principais, que presidem àquela governança. O primeiro e principal, a que eles chamam tutão, este é governador das cousas que pertencem ao Estado e administração da justiça; e o do regimento da fazenda se chama concão; e o capitão geral da guerra, chumpim. E posto que cada um destes, debaixo de sua jurdição, tenham grande número de oficiais, com que servem particularmente seus ofícios, com casas próprias, em ua, que é a principal da cidade pera isso ordenada, cada mês em certos dias se ajuntam todos três a comunicar as cousas principais, que sobrevêm diante de cada um, isto em modo de consulta, pera com mais maduro conselho determinarem as cousas. Os quais cargos naquela cidade não lhes duram mais que três anos, e ainda muitas vezes no meio tempo, sem o eles saberem, são sobressaltados, com que os tiram dos tais cargos e os mudam pera outra parte; e isto quando as culpas são leves, porque, nas graves, gravemente são punidos, té o castigo chegar à morte; per esta maneira:.

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O Rei e Príncipe deste grande Império, dos homens que andam derredor dele, elege um de que muito confia, e dá-lhe de beber três vezes do vinho que eles lá usam, isto em modo de juramento e menagem, e manda-o a ua cabeça destas províncias, ao qual dá tanta jurdição e autoridade, que, segundo calidade do crime, ele o possa castigar sem vir mais a ele, el-Rei, e isto com todo o segredo que pode ser; porque, ainda que leva provisões 93 assinadas pelo Príncipe, falam geralmente que lhe obedeçam, mas não particularizam onde vai, por não ser sabido dos oficiais que fazem as provisões, somente ele, que verbalmente lho diz el-Rei. Partido com estes poderes, chega à cidade onde é enviado e, desconhecido, vê e ouve como cada um daqueles oficiais serve seu cargo; e depois que tem informação das obras de cada um, o dia que os três governadores se ajuntam, vai diante deles como homem que quere requerer algua cousa. E apresentando a provisão que trás del-Rei, eles se descem das cadeiras onde estavam e se põem ante ele, que sobe no seu lugar, esperando eles que sentença ouvirão de si, a qual, por grave que seja no culpado, logo é executada; e este Superior (a que eles chamam Ceuhi) provê de outros novos oficiais; e aos que servem bem, muda pera outros ofícios de mais confiança na mesma província a que é enviado. Tem ainda o Príncipe deste Império outra ordem na maneira de o governar: que os oficiais 46 46 do governo da justiça não hão-de ser naturais da terra, mas estrangeiros, à maneira que neste reino de Portugal se usam os juízes que chamam de fora, e isto por administrarem justiça em toda pessoa, sem afeição de parentesco ou amizade; e os capitães da guerra hão-de ser naturais da própria terra; ca dizem eles que o amor da pátria lhes fará trabalhar mais pola defender. E bem como os gregos, em respeito de si, todalas outras nações haviam por bárbaras, assi os chins dizem que eles tem dous olhos de entendimento acerca de todalas cousas, nós, os da Europa, depois que nos comunicaram, temos um olho, e todalas outras nações são cegas. E verdadeiramente quem vir o modo de sua religião, os templos desta sua santidade, os religiosos que residem em conventos, o modo de rezar de dia e de noite, seu jejum, seus sacrifícios, os estudos gerais onde se aprende toda ciência natural e moral, a maneira de dar os graus de cada ua ciência destas, e as cautelas que tem pera não haver subornações e terem impressão de letra muito mais antiga que nós, e sobre isso o governo de sua república, a mecânica de toda obra de metal, de barro, de pau, de pano, de seda, haverá que neste gentio estão todalas cousas de que são louvados gregos e latinos. A qual gente, por não perder nome de conquistador, já seguiu este modo, conquistando per dentro da terra, até vir ter ao reino de Pegu, no qual ainda hoje estão obras de suas mãos com letras que o dizem, assi como sinos de metal de mui descompassada grandeza, e bombardas da mesma sorte, donde parece que primeiro este uso se achou entre eles, que acerca de nós; e em um campo no reino Avá, ao Norte de Pegu, entre estas duas cidades - Piandá e Mirandu - se acham grandes ruínas de ua cidade que eles ali 94 edificaram. E não somente estes reinos nomeados, mas quantos compreendem em si o grande reino Sião, de que atrás escrevemos, com os reinos Melitai, Bacão, Varagu, que ficam ao Norte de Pegu, com outros do interior da terra que com eles vezinham, todos em algua maneira observam e guardam parte da religião deles, chins, e o conhecimento da ciência das cousas naturais: contam do ano per meses da Lua, doze Sinos no Zodíaco, e outras notícias do movimento dos corpos celestes. Porque no tempo que per eles foram conquistadas aquelas partes, leixaram semeada esta doutrina; e ainda em modo de reconhecimento que todos estes reinos foram conquistados daquele Império da China, quási até nosso tempo, de três em três anos, os reis deles lhe mandavam seus embaixadores com algum presente. Os quais embaixadores sempre haviam de ser de 46v 46v

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quatro pera cima; porque, primeiro que chegassem a este grande Imperador, príncipe daquele estado, era tamanha a distância do caminho e tardavam tanto tempo em serem ouvidos e despachados, que primeiro morriam um par deles; e quando a doença os não matava, em algum banquete lhe davam cousa com que os enterravam. Ao qual ou quais faziam ua sumptuosa sepultura com letreiro, em que se continha quem, era e per quem fora mandado, tudo por perpetuar a memória de seu império. Porém, assi nesta conquista terrestre, como na per mar, quando vieram à Índia (como já dissemos), tiveram maior prudência que os gregos, cartagineses e romanos; os quais, por causa de conquistar terras alheas, tanto se alongaram da pátria, que a vieram perder; peró os chins não quiseram experimentar este total dano. Antes, vendo como a Índia lhe consumia muita gente, muita substância de seu próprio reino, e que eram avexados dos vezinhos, em quanto eles andavam derramados, conquistando o alheo, havendo na sua terra ouro, prata e todo outro metal e muita riqueza natural, e tam grã mecânica, que todos tomavam deles e eles de ninguém, per decreto de um rei prudente, que então governava, tornou-se recolher nos termos do estado que tinha, fazendo ua premática e defesa, que sob pena de morte ninguém navegasse pera aquelas partes, da qual lei hoje se guardam estas duas cousas: Per terra nem per mar pode entrar um só homem no seu reino; e os que entram com algum negócio importante ao serviço del-Rei, é com nome de embaixador, e os passos destes são contados per olheiros a isso ordenados, que se sabe quanto faz; e até os mercadores, que per terra querem ir a esta China, ajuntam-se muitos e fazem um deles cabeça com nome de embaixador, e com esta cautela compram e vendem. A segunda cousa é que nenhum natural pode navegar pera fora, e sofre-se alguns que vivem nas ilhas pegadas na terra firme, irem a parte que torne aquele ano, e pera esta tal ida pede licença aos regedores da terra, e dá fiança de tornar em tal tempo, e não há-de levar navio que passe de cento e cinquenta toneladas; e se pede licença pera maior, não lha querem dar, ca dizem que quere ir longe do reino; e se alguns estrangeiros per mar lá vão, é a estas ilhas, e ali, meios furtados, vem os da terra comprar e vender, e per 95 esta maneira o fazem hoje os nossos; porque, ainda que Fernão Peres de Andrade desta vez assentou paz e amizade com eles, foram lá depois outros, que fizeram obras com que eles ficaram de guerra connosco. A gente desta província Cantão, onde ele esteve, em respeito da outra 47 47 que vive mais vezinha ao Norte, é como a gente de África aos alemães, assi no parecer, na alvura e trajo, como no tratamento de sua pessoa, de maneira, que os debaixo parecem escravos dos de cima. Somente, por respeito do comércio, nesta cidade Cantão a gente se trata bem, e é rica no seu modo: ca, por razão dele, concorrem das outras províncias do sertão muitas mercadorias de toda sorte e assi de diversas nações deles, que já variam a língua natural de Cantão, posto que entre si se entendem quási ao modo dos gregos, contraendo os vocábulos uns mais que outros. Geralmente são homens delgados em todo negócio, principalmente em o da mercadoria; e nos da guerra mui astuciosos, e que em artifícios de fogo pera guerra naval, pola experiência que os nossos tem, não hão enveja aos da Europa, e já quando lá fomos tinham artelharia. Porém, depois que viram a forma da nossa, logo tomaram o modo, porque são tam excelentes fundidores, que lavram o ferro em vasos do serviço de casa, como vemos o latão de Nuramberga, e é levado per mercadoria per todas aquelas ilhas do Grande Oriente; mas por ser ferro pedrez, quebra como vidro. As mulheres são de bom parecer em seu modo, e tratam-se muito bem, e eles, são tam ciosos delas, que poucos lhas vem, e quando hão de ir fora, vão metidas em andas todas cobertas de seda, em colos de homens, rodeadas de servidores; e, peró que todos geralmente tem duas ou três mulheres, ua só, que é a primeira, tem por legítima na estimação. Assi elas como eles são mui mimosos e deliciosos no trajo, no serviço de suas pessoas; e no comer dispendem tanta substância como tempo, porque tudo são banquetes, em que gastam dias e noites, de maneira que lhe não

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chegam framengos nem alemães. Nos quais banquetes há todo género de música, de volteadores, de comédias, de chocarreiros, e toda outra deleitação, que os pode alegrar. O serviço do qual comer é o mais limpo que pode ser, por ser tudo em porcelana muito fina, posto que também se servem de vasos de prata e ouro, e tudo comem com garfo feito a seu modo, sem pôr a mão no comer, por meúdo que seja. Peró tem ua diferença dos banquetes de cá, porque de dous em dous tem ua mesa pequena, posto que na casa haja cinquenta convidados, e a cada sorte, de iguarias há de vir serviço novo de toalhas, pratos, facas, garfos e colheres. E de ciosos não comem as mulheres com eles, sendo logo servidos naqueles banquetes per mulheres solteiras, que ganham sua vida neste ofício, as quais são quási como chocarreiros, porque todo o serviço da mesa se passa com graças, assi delas, como dos outros menistres 47v 47v alugados pera isso. As mulheres próprias, posto que não estém nestes banquetes, com suas amigas no 96 interior das casas fazem outro, onde não entra homem, somente alguns cegos, que tangem e cantam. Geralmente os homens nobres tem grandes apousentos, com pátios, alpendres cobertos, jardins, e tudo são casas térreas ao menos na cidade Cantão, e todo o marítimo que os nossos viram; e de ouvida dizem que nas províncias mais ao Norte há edifícios sobradados. Quási a maior parte destas províncias ou governanças (como lhe eles chamam), principalmente as marítimas, todas são retalhadas com rios, deles de água doce, e outros são esteiros de salgada, que entram muito pela terra, e, por ser mui chã, o marítimo dela parece alagadiço, não o sendo; mas per indústria dos naturais trazem o habitado dela à maneira de um pomar regado. Donde vem que há tanta cópia de barcos da serventia destes rios, que parece habitar tanta gente na água, como na terra; porque os barqueiros, como aquela é sua herança, ali trazem mulher, filhos e a sua fazenda; a ua parte da barca coberta à maneira de casa, e a outra parte também coberta, segundo o tempo do ano, pera os passageiros. E como qualquer rio for grande e largo, per que uas possam ir e outras vir, quási todo está coalhado de outros barcos estantes à maneira de vendas, onde se acham todalas polícias que pode haver nas cidades. Finalmente, é gente que per indústria de ganhar de comer não há cousa que não invente, até carretas à vela nos lugares de campina, as quais governam como podem fazer a um barco per um rio, onde a gente caminha ao modo dos carros de Frandes e Itália, posto que tem outros de cavalos. A cidade Cantão, onde Fernão Peres esteve, não somente pela informação que tevemos dele e de outros que foram em sua companhia, mas per um debuxo do natural dele, que nos de lá trouxeram, sabemos estar situada ao longo de um destes rios navegáveis, que dissemos, o qual à entrada da barra tem alguas ilhas povoadas de agricultores, e dali até à cidade corre o rio em largura de duzentos passos, e de altura de três até sete braças, todo pela margem povoado de lugares pequenos viçosos. O assento da cidade é em campo chão e gracioso com agricultura dele; somente quási no meio dela, dentro dos muros, está um teso alto, que parece ua teta, onde está edificado um sumptuoso templo, que com seus curuchéus à maneira de pirames, de que eles usam, do cimento até o cume, faz mostra da cidade mui fermosa, além de outros templos que ela tem, que se não mostram tanto, e assi as casas, porque (como dissemos) todas são térreas. O circuito do muro dela parece que será mais de três milhas, não tanto per estimação de vista, quanto per conta; 48 48 porque ua noite em que eles fazem festa solene de grandes iluminárias, ao modo que nós celebramos a véspera de S. João Bautista, um António Fernandes, homem curioso, dos que levava Fernão Peres, estando neste tempo dentro na cidade (porque de dia não ousava de o fazer), correu per cima do muro toda a cidade, e contou noventa torres, que eram ao modo de baluartes. 97

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Todo este muro é alomborado per fora, assentado sobre a face da terra sem outro alicece, liado de cantaria e cal, e tam grosso no pé, que quando vem a responder ao meio, é três vezes menos em largura; e per cima, per onde se ele corre, todo será mais de vinte palmos, entulhado per dentro mais das duas partes da altura dele, que poderá ser de quorenta palmos, o qual entulho saiu de ua cava mui larga, que, chea de água, tornea todo este muro, ficando entre ele e ela espaço tam largo, que poderão ir a par seis homens a cavalo, e per dentro do muro outros tantos, de maneira que se possa todo ver e servir de dentro e de fora, sem algum edifício de casas lhe fazer nojo. Em cada ua das quais torres há ua maneira de guarita ou guarida (que é mais português), coberta do sol e da chuva, onde per ordenança da cidade todalas noites estão velas que vigiam. O que faz esta situação da cidade mais fermosa na ordem das casas é ter duas ruas feitas em cruz, que tomam quatro portas da cidade, das sete que tem de sua serventia; e assi estão direitas e compassadas, que quem se põe em ua porta pode ver a outra defronte. Sobre as quais das ruas todalas outras vão ordenadas; e à porta de cada casa está plantada ua árvore, que tem todo ano folha, somente pera sombra e frescura, e assi postas em ordem, que per o pé de ua se podem com a vista enfiar o de cada ua das outras. Nas sete portas per que se a cidade serve, há sete pontes de pedra e cal, e cada porta tem ua torre com a entrada requestada per três portas, que, passando ua, fica defensão na outra; e se alguns barcos querem ir per debaixo da ponte, bem o podem fazer, que a cava tem altura pera ser navegada, peró há-de ser indo eles desemasteados. Em cada ua das portas da entrada da cidade, há um homem como capitão da guarda, que tem consigo ministros, sem leixar entrar senão homem natural e conhecido; e dos naturais nenhum pode levar armas, somente os que são ministros da guarda dela, como cá são os soldados, que per seu trajo são conhecidos. A gente estrangeira, que ali vem ter das outras províncias e de fora da China, pousa em um arrabalde que a cidade tem, e porém não há-de haver homem que se não saiba donde é, a quem vem; e se é vadio, logo é preso. Finalmente, é o governo e prudência desta terra tal, que as mulheres solteiras vivem fora 48v 48v dos muros, por não corromper a honestidade dos cidadãos, e não há homem do povo que não tenha ofício. Donde vem que não há pobre que peça esmola, porque todos ou com os pés, ou com as mãos, ou com a vista, hão de servir pera ganhar de comer; e de cegos haverá dentro na cidade passante de quatro mil, e estes servem de moer nas atafonas em mós de braço, assi trigo, como arroz. As outras cousas da grandeza desta terra e do seu governo e costumes (como dissemos) se guardam pera os livros da Geografia; baste o dito pera intendimento do que Fernão Peres aqui passou, de que queremos dar relação o mais breve que podermos.

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48v 48v 98 Capítulo VIII. Do que Fernão Peres passou enquanto esteve na China. Ao tempo que Fernão Peres começou a entrar pelas ilhas adjacentes ao porto da cidade Cantão e Ilha Tamou ou da Beniaga, segundo lhe os nossos chamam (como dissemos), primeiro que tomasse o pouso nela, per conselho de pilotos chins que levava, achou ua armada dos mesmos chins de muitas velas com um capitão, que per ordenança da cidade andava em guarda da costa; porque os navios que vinham a seu porto com mercadorias e mantimentos não fossem roubados dos cossairos, que às vezes vinham andar naquela paragem. Fernão Peres, posto que foi logo quási rodeado deste capitão e tentado com alguns tiros de bombarda de ferro fracos, pera saberem se era homem de guerra, se de paz, não respondeu com sua artelharia, ante se leixou ir todo aquele dia embandeirado, mandando tanger suas trombetas e fazer todolos outros sinais de paz, posto que ia apercebido pera pelejar, se os chins quisessem vir a mais que àquela tentação. Ao seguinte dia nesta ordenança, levando sempre à ilharga aquela armada dos chins, foi Fernão Peres ancorar na Ilha Beniaga em um porto chamado Tamou, onde achou Duarte Coelho, que havia um mês que chegara; o qual (como dissemos), quando se dele apartou com o temporal, foi invernar ao rio de Sião, e desta vinda topou com ua armada de trinta e cinco velas de chins cossairos, com que pelejou animosamente, e quási entre eles esteve de todo tomado. Do qual Duarte Coelho, como Fernão Peres soube que aquela armada, que vinha ladrando trás ele, andava ali per ordenança da cidade Cantão, por causa dos cossairos, mandou um recado ao capitão dela, fazendo-lhe saber quem era, e como vinha com ua embaixada del-Rei 49 49 D.Manuel de Portugal, seu senhor, a el-Rei da China, e que por vir a caso de paz mais que de guerra, não respondera à tentação dela, que lhe os seus navios fizeram. Ao que este capitão respondeu, que ele fosse mui bem vindo, e já per aquele navio de sua companhia, que havia dias que viera ante ele, tinha sabido como ele partira de Malaca; e per os chins que a ela iam, também tinha notícia da verdade e cavalaria dos portugueses. Que qualquer cousa que houvesse mister, mandasse pedir ao Pio da vila de Nantó, que viria estar diante, o qual era seu superior, porque ele não tinha mais jurdição que andar em guarda das naus que àquele porto viessem, por não receberem algum dano de cossairos, e que se tornava ao mar a esse ofício. O Pio a que este capitão encaminhava Fernão Peres, era um homem que servia um cargo como entre nós o ofício de Almirante do Mar, e era nome do ofício e não da pessoa. O qual por razão daquela governança de Cantão ser a mais requestada de estrangeiros e mais célebre em o trato do comércio, residia naquela vila Nantó, e ali ordenava todalas armadas pera guarda da costa, e tinha cuidado de fazer saber à cidade Cantão que navios 99 eram ali chegados, e donde vinham, e o que traziam e queriam, e assi de os mandar prover do necessário, de maneira que não se bolia um batel sem licença e ordenança sua. Fernão Peres, como teve este recado do capitão e soube de Duarte Coelho que já estava instruto em o regimento daquele porto ordenou de enviar a Nantó um homem com seu recado ao Pio; mas ele, como oficial diligente, antecipou em mandar outro perguntar a ele, Fernão Peres, quem era e o que queria. Ao qual ele deu razão de si, e que a principal causa de sua vinda era trazer um embaixador, que el-Rei de Portugal, cujo capitão ele era, mandava a el-Rei da China com cartas sobre assento de paz e amizade; que lhe pedia houvesse por bem de lhe dar pilotos, que com aquelas velas que trazia o metessem dentro na cidade Cantão. Tornado este mensageiro a Fernão Peres, trouxe por resposta do Pio muitas palavras de

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contentamento de sua vinda e oferecimentos do que houvesse mister; e quanto à sua ida a Cantão, não podia ser sem primeiro o mandarem os governadores da cidade, que lhe faria saber de sua vinda; e como a reposta viesse, ele lha enviaria. Passados alguns dias, em que Fernão Peres esperou este recado, mandou fazer lembrança ao Pio; mas ele satisfazia tudo com desculpas, dizendo que não podia fazer mais que a notificação que tinha feito de sua vinda aos governadores das cidades. E sobre este 49v 49v negócio houve tantos recados de parte a parte, que, enfadado Fernão Peres desta dilação, mandou tirar do porto da ilha alguns navios pera se pôr em caminho, e com os pilotos chins que trouxera de Malaca, meter-se em Cantão. Mas parece que não queria sua dita que tam levemente fizesse este caminho, porque não eram os navios fora do porto, quando saltou um temporal travessão, que muitas vezes ali acode, com que ele, Fernão Peres, não teve outro remédio de se salvar, senão cortar mastos e arrasar castelos, que é toda a segurança que tem os juncos que se ali acham no tal tempo, como lhe os chins disseram. Com a qual tormenta aos da vila de Nantó não pesava, porque roubavam muita fazenda dos navios que iam ter à costa, e tinham grande esperança que, por os nossos serem novos naquele porto, haveriam boa parte da sua, ou ao menos que, desaparelhando os navios, ficariam os nossos o inverno ali, dos quais haveriam as mercadorias a bom preço. E isto sentiu logo Fernão Peres, porque nunca pôde haver de Nantó masto, verga ou tábua algua pera consertar as naus que o tempo lhe desaparelhou; e quando viu que tudo lhe havia de sair de casa, lá andou mudando os mastos de uas naus a outras e repairando-se de maneira, até que se tornou a reformar. Acabado este trabalho, que o deteve alguns dias, em que houve espaço pera poder vir recado da cidade Cantão pera a sua ida, quando viu que não vinha, por lhe parecer que tudo procedia de algum particular interesse do Pio ou cautelas dos oficiais per que aquele negócio passava, mandou aparelhar dous navios somente - o de Martim Guedes, em que se meteu, e o de 100 Jorge Mascarenhas - e derredor de si os batéis das outras naus, todos mui bem aparelhados, assi de guerra como de paz, e partiu-se pera o porto de Nantó, leixando por capitão das outras velas a Simão de Alcáçova, com fundamento de mais perto mandar seus recados e requerimentos ao Pio, que o leixassem ir à cidade Cantão; e quando lho impedisse, tomar per si a licença. Chegado a Nantó, mandou logo o feitor da armada, Joanes Impole, mui bem acompanhado de gente limpa e trombetas, com um requerimento ao Pio, pedindo-lhe licença pera passar a Cantão, com recado e embaixador que levava; e, não o querendo fazer, protestava não incorrer em desobediência das premáticas dos governadores de Cantão, porquanto ele se ia aqueixar a eles do que até li era passado. O Pio, quando viu esta determinação de Fernão Peres, depois de se desculpar ao feitor, dizendo não ser o despacho deste negócio nele, e outras 50 50 palavras brandas envoltas com alguas amoestações, tomou por conclusão que se detevesse por aquele dia; e quando o recado não viesse até o seguinte a tais horas, que então lhe dava licença que se fosse em boa hora. E porque este recado não veo, passando o termo que lhe o Pio pôs, na ordem em que ia, começou Fernão Peres fazer seu caminho; ao qual o Pio, quando o viu partir, lhe mandou pilotos da terra, que o levaram ante a cidade Cantão. Ao tempo que Fernão Peres aqui chegou, que foi quási em fim de Setembro com toda a pompa e festa que ele pôde, não eram na cidade os três governadores, que dissemos haver nela, que eram o Tutão, Cantão, Chumpim, e estava um chamado per nome de ofício Puchanci, que servia em lugar do Tutão, o qual mandou logo recado a Fernão Peres, que se espantava de ele naquela sua entrada fazer três cousas contra a ordenança da cidade: a primeira, vir sem licença dos governadores dela; a segunda, tirar com artelharia; e a terceira, arvorar bandeira ou lança. Ao que Fernão Peres

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respondeu o que tinha passado sobre sua entrada com o Pio de Nantó, e que per fim dos recados que entre eles houve, lhe deu licença, e pera isso lhe mandara pilotos que o metessem naquele porto. E quanto às outras duas cousas, em todalas partes onde os portugueses navegavam as costumavam fazer em sinal de prazer e paz, e não lhe eram empedidas, e o mesmo faziam os chins quando chegavam a Malaca, como ele podia saber. A qual cidade, sendo del-Rei de Portugal, cujo capitão ele era, não lhe punha empedimento algum, ante eram tratados mui bem, como vassalos de um tam poderoso príncipe como era el-Rei da China, a quem ele trazia ua embaixada del-Rei, seu senhor, como já teria sabido per o Pio de Nantó; que lhe pedia houvesse por bem dar ordem como podesse mandar o embaixador e presente que trazia a el-Rei, à Corte onde ele estava. 101 O Puchanci, ouvindo estas razões de Fernão Peres, se deu por satisfeito; e quanto ao despacho do embaixador, mandou-lhe dizer que os governadores da cidade eram fora, e que se esperava por eles cedo; que, como viessem, seria despachado; que se entretanto houvesse mister algua cousa, que de mui boa vontade o proveriam. A ida dos três governadores fora da cidade, segundo depois pareceu, foi mais artefício pera Fernão Peres ver a majestade e pompa de suas pessoas quando entrassem nela, que algua outra necessidade; e ainda pera ver os graus da precedência de cada um, e a diferença que a cidade fazia no seu recebimento, vieram um e um, tomando dia próprio pera isso. E porque gastaríamos muito tempo em contar como o Concão, que tem administração da fazenda, que era o primeiro 50v 50v na entrada, foi recebido per todolos oficiais que estão debaixo de sua jurdição, e depois a entrada do Chompim, capitão da guerra, com seus ministros, e ao terceiro dia como toda a cidade recebeu o chamado Tutão, que é o mais principal, baste saber em soma que todos três entraram com tanta pompa, como se cada um fora senhor da cidade, principalmente na entrada do Tutão. Porque o rio era coalhado de batéis, todos com bandeiras e toldos de seda, e a terra coberta do povo da cidade com festas a seu modo. E em ua grande praça, onde estava um cais de pedra muito bem lavrado, em que ele desembarcou, era cousa fermosa de ver a diferença que faziam em cores, em trajo e em número os menistros de cada um destes ofícios da fazenda, da guerra, da justiça e do estado: uns, que haviam de ir a pé, e outros a cavalo, e sacas guarnecidas estranhamente, com mais retranças e borlas do que ca usamos em ua grande festa. E neste mesmo dia todo o muro estava embandeirado de bandeiras de seda, e nas torres havia mastos arvorados, de que dependiam bandeiras, também de seda, que podiam servir por vela de um navio redondo: tanta é a riqueza daquela terra e tanta a cópia de seda, que assi gastam eles o ouro batido em pão e a seda nesta bandeiras, como nós gastamos as tintas de pouco preço e o lenço de linho grosso. Levado o Tutão com esta festa e aparato a sua casa, Fernão Peres o mandou logo vesitar de sua boa vinda, como o tinha mandado fazer aos outros, quando vieram. E teve neste tempo, enquanto eles não vieram, grande resguardo, que nenhum seu fosse à cidade, nem consentiu que chins entrassem em os navios, o que também eles sob graves penas não podiam fazer, senão depois que os navios fossem despachados e pagassem os dereitos à cidade da mercadoria que traziam. Passados aqueles dias da entrada dos governadores da cidade, no qual tempo, entre eles e Fernão Peres, houve vesitações, ajuntaram-se todos três em a principal casa de seu despacho, onde quiseram ouvir o que ele, Fernão 102 Peres, queria, pera lhe responderem à conclusão do caso, posto que já tinham sabido a causa de sua ida. No qual dia Fernão Peres mandou o feitor da armada, Joanes Impole, bem acompanhado de gente vestida de festa e com trombetas diante, por ir com mais pompa, vendo que os chins nestas cousas eram mui fumosos, e que as celebravam com grande aparato, e que com esse estavam esperando este recado. Chegado o feitor ao cais nos batéis que levava, ali foi recebido de alguns principais da cidade, e levado aos governadores; diante dos quais propôs como el-Rei D. Manuel, que reinava no

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Ponente, da terra chamada Portugal, que descobrira muitas terras e regiões até suas armadas 51 51 virem ter a Malaca, parte tam remota do seu reino, sendo sabedor per um seu capitão, chamado Afonso de Albuquerque, que tomou aquela cidade Malaca aos mouros, como ao tempo que houvera esta vitória, achara ali alguns juncos de chins, aos quais ele vingara de alguas tiranias que o tirano daquela cidade lhe tinha feito, por lhe dizer serem vassalos de um príncipe o mais poderoso de todo aquele Oriente; e que, na comunicação que teve com eles, viu ser gente nobre, política, douta em todo género de ciência, e que se não tratava per o modo bárbaro das outras nações da Índia, por causa desta nova, desejando este seu Rei e senhor ter conhecimento e prestança de amor e amizade com este tamanho príncipe, como era el-Rei da China, mandara armar alguns navios a ele, Fernão Peres, seu capitão, pera trazer um embaixador com cartas e presente que ali vinha. O qual embaixador e presente ele, Senhor Rei, mandava que fosse entregue aos seus governadores de Cantão, que (segundo tinha sabido), per meio deles podia ser encaminhado à Corte, onde estava o seu Rei, e ele, Fernão Peres, se tornasse pera Malaca, e no seguinte ano tornaria lá outro capitão pera trazer o dito embaixador, porque já neste tempo poderia ser despachado. E porquanto ele, Fernão Peres, havia dias que era vindo, e fora detido muito tempo per o Pio de Nantó, onde com um temporal houvera de perder seus navios, lhe pedia que o mais breve que podesse ser o despachassem. Ouvido este recado pelos governadores, responderam a Fernão Peres muitas palavras de contentamento que tinham de sua vinda, e sabiam que havia de ter el-Rei da China, pola boa fama que naquelas partes havia dos portugueses e do seu Rei. E quanto ao embaixador, que logo se daria aviamento pera ser agasalhado em terra; e tanto que eles recebessem a entrega dele, escreveriam a el-Rei, seu senhor, a causa de sua vinda, pera saber o que mandava que nisso fizessem, porquanto sem recado seu não podia dali partir. E se ele, capitão, entretanto algua cousa quisesse da cidade, ou trazia mercadoria pera fazer comutação com as da terra, que o podia mui bem fazer, e isto seria depois que o embaixador estevesse em terra. Fernão Peres, assi per esta reposta, como per recados que depois entre eles houve, sabido o modo que havia de ter, ordenou de pôr em terra o embaixador com as pessoas que com ele haviam de ficar, e presente que levava, 103 o qual havia nome Tomé Pires, que Lopo Soares, na Índia, escolheu pera isso. E posto que não era homem de tanta calidade, por ser boticairo e servir na Índia de escolher as drogas de botica que haviam de vir pera este reino, pera aquele negócio era o mais hábil e auto que podia ser; porque, além de ter pessoa 51v 51v e natural descrição com letras, segundo sua facultade, e largo de condição e aprazível em negociar, era mui curioso de enquerer e e tinha um espírito vivo pera tudo. Finalmente, no dia que entregou no cais de pedra com grande estrondo de artelhar e a gente vestida de festa, ele com sete portugueses, que ficaram em sua companhia pera irem com ele a esta embaixada, foram levados a seu aposentamento, que eram uas casas das mais nobres que haviam na cidade. O qual foi logo visitado dos principais da cidade, e os regedores lhe ordenaram certa cousa pera seu mantimento, segundo o uso que a cidade tem com os embaixadores; mas Fernão Peres o não consentiu enquanto ali esteve, dizendo que, depois que estevesse posto em caminho pera a Corte del-Rei, que então segueria o costume da cidade. Feita esta entrega, mandaram os governadores pedir a Fernão Peres que houvesse por bem sair em terra pera ver e festejar sua pessoa, de que se ele escusou, dizendo que, segundo seu uso, tinha dado menagem a el-Rei, seu senhor, daqueles navios, dos quais não podia sair, mas que em seu lugar mandaria o feitor daquela armada com alguas mercadorias; que lhe pedia o mandassem agasalhar em algua casa perto de água, por estar mais vezinho aos navios, pera o maneo delas.

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Ordenada esta casa, mandou Fernão Peres o feitor e escrivão com alguns homens da feitoria e mercadorias, poucas e poucas , segundo seu comércio, com o melhor regimento que podia ser, dando licença a alguns homens que fossem à cidade, pera ele, também desconhecido, ter modo como a podessem ver e notar as cousas dela, como fez. E depois que pôs tudo em ordem corrente, sucederam duas cousas, que lhe conveo partir-se dali: a primeira, vir-lhe nova de Simão de Alcáçova, que fora cometido per alguns juncos de cossairos; mas como ele estava a recado, não poseram em o efeito seu desejo; e a segunda, adoecer-lhe gente, por aquele rio ser enfermo aos nossos; e enquanto ali esteve, que foi todo o mês de Outubro, lhe morreriam de febres, nove homens, o principal dos quais foi o feitor, Joanes Impole. Assi que, por estas cousas, ele se mandou espedir dos governadores da cidade, dizendo que se tornava à Ilha Tamou, onde lhe ficaram as naus, pera as ir repairar do dano que tinham recebido no temporal passado, e assi o fez; porque, como era já aceito na terra, mor provisão houve de todalas cousas pera se repairar, do que podera haver, estando na ribeira de Lisboa; tanta é a abastança de tudo naquela terra. 104 E ele foi o primeiro homem que, por ver este bom 52 52 uso aos chins, lançou lapes às naus e navios que levou, o que se ora costuma entre nós, e assi as varandas sobre o leme fora do corpo da nau. O qual lapes é um forro de tavoado delgado, que se prega per todo o costado da nau, vindo debaixo até um pouco acima das cintas, já onde o mar não chega; e entre este tavoado novo e o debaixo se mete um betume feito de cal e azeite de peixe, picado ali do maceme velho da nau, com que a távoa de cima se gruda com a outra debaixo. E depois, em lugar de breu, somente com a cal e azeite vai o novo tavoado coberto per cima, a qual composição é tam proveitosa ao tavoado, que o busano não entra nele, e faz-se este betume com água em pouco tempo quási pedra. E de ser cousa que faz durar um junco muito tempo, e o tem estanque de água, entre os chins se acham juncos que tem quatro e cinco lapes, com que o costado deles parece um muro; peró ficam com esta fortaleza muito pesados na vela. Fernão Peres, porque levava regimento del-Rei D. Manuel que se detevesse nestas partes da China o mais tempo que podesse, por se melhor informar das cousas dela, e enquanto esteve naquela Ilha da Beniaga, e vieram ali ter alguns juncos dos povos a que chamam léquios, de que já em Malaca havia grã notícia que habitavam em uas ilhas adjacentes naquela costa da China, e ele viu que a mais mercadoria que traziam era grande cópia de ouro e outra de muito preço, e pareceu-lhe mais desposta gente que os chins e melhor tratados de sua pessoa, desejando ter informação da terra deles per olho dos próprios portugueses, ordenou de mandar a isso Jorge Mascarenhas em o seu navio, pera que houve licença dos governadores de Cantão. O qual Jorge Mascarenhas partiu dali em companhia de alguns juncos, que iam pera a província Foquiem, que é além de Cantão pela costa em diante contra o Oriente, à qual província os nossos, por razão de ua cidade que ali está, marítima, chamada Chinchéu, onde alguns depois foram fazer comércio, geralmente lhe chamam o nome da cidade. E porque Jorge Mascarenhas foi um pouco tarde, pera atravessar dali às ilhas dos léquios, que serão contra o Oriente obra de cento e tantas léguas, a primeira das quais está em vinte e cinco graus e meio do Norte, e di vão correndo ua corda delas per o muro, chamado Lesnordeste, e des i caminho do Norte; havendo conselho com os pilotos chins que levava, não partiu dali, e leixou-se estar fazendo seu comércio com dobrado proveito do que se fez em Cantão. Porque, como aquela parte não é tam frequentada dos mercadores, valem as cousas da própria terra 52v 52v pouco, e as de fora muito. E neste mesmo tempo espediu Fernão Peres a Duarte Coelho, por 105 estar já de todo prestes, pera levar nova a Malaca como fora recebido o embaixador que levara, e

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tinha assentado paz com os governadores de Cantão, e como nossas cousas eram mui bem recebidas naquelas partes. O qual Duarte Coelho (segundo atrás fica) chegou a Malaca no fim de Março do ano de dezoito; e esta boa nova que trouxe causou armar o capitão e oficiais um junco pera ir à China, e assi pera dar nova a Fernão Peres dos trabalhos em que aquela cidade estava por causa da guerra que lhe el-Rei de Bintão fazia, como pera vir carregado de munições e mercadoria. Fernão Peres, sabendo per Jorge Álvares, capitão deste junco, o estado de Malaca, por ser cousa tam importante, mandou logo per terra chamar Jorge Mascarenhas à cidade Chinchéu, onde soube que estava, e não partira pola razão do tempo, o qual teve logo este recado per posta que naquelas partes também usam. Somente os correos, em lugar de corneta, como usam os nossos, trazem o peitoral do cavalo cheo de muitos cascavéis, assi pera serem conhecidos, como pera com o rugido darem espírito ao cavalo em seu curso, como costumam os castelhanos da vila de Xerez, pera correr melhor a carreira. Chegado Jorge Mascarenhas aonde Fernão Peres estava, não teve ele mais que fazer que mandar-se espedir dos governadores de Cantão, dos quais tinha nova como lhe era vindo recado do seu Rei, que podia mandar o embaixador Tomé Pires a ele. E ante de sua partida, em Cantão e na vila de Nantó, como naquele porto de Tarnou em que ele estava, mandou Fernão Peres lançar pregões que se queria partir; que se houvesse pessoa que de algum português tevesse recebido algum dano, ou lhe devesse cousa algua, viesse a ele pera lhe mandar satisfazer tudo; a qual cousa foi mui louvada dos naturais e nunca entre eles vista, e houveram sermos homens de muita verdade e justiça. Partido Fernão Peres com toda sua frota, no fim de Setembro do ano de dezoito, e sendo tanto avante como a Ilha Ainão, onde se pesca aljofre, que é junto de ua ponta da terra da China, quando querem entrar na enseada Cauchi-China, com tempo se perdeu dele o navio Santo André, capitão Pero Soares, com certos portugueses. E depois, quando Simão de Andrade, irmão dele, Fernão Peres, foi à China (como se adiante verá), os chins lhe entregaram este Pero Soares e os portugueses que foram ter à costa, perdidos. Fernão Peres, seguindo sua viagem, quando entrou no Estreito de Cingapura, que é na costa de Malaca, per onde entram os que vem 53 53 daquelas partes, achou Diogo Pacheco com ua armada, que D. Aleixo de Meneses mandara em guarda dele, Fernão Peres, esperando que, por razão da moução do tempo, podia ser ali aquele mês, e receber algua afronta das armadas del-Rei de Bintão. Em companhia do qual ele entrou em Malaca mui próspero em honra e fazenda, cousas que poucas vezes juntamente se conseguem, porque há poucos homens que per seus trabalhos as merecem pelo modo que Fernão Peres naquelas partes as ganhava.

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53 53 106 Capítulo IX. De alguas cousas que passaram em Malaca, enquanto D. Aleixo de Meneses esteve nela. A chegada de Fernão Peres a Malaca foi mui festejada de todos, não somente por as cousas que leixava feito na China em favor nosso, por ser terra mui proveitosa pera os que estavam naquela cidade Malaca e retorno que vinha a muitos dos que Fernão Peres ali leixara, por mandarem suas mercadorias em os seus navios, mas ainda porque vinha ele mui provido de munições de toda a sorte pera as necessidades que aquela cidade tinha, de que se ele aprovera pelo recado que lhe Jorge Álvares levou do estado em que ela ficava. E daquela viagem não somente à feitoria de Malaca, mas ainda a todolos que levaram seus empregos naquela armada, fizeram mui grossa fazenda, assi no que se ganhou na China, como no retorno em Malaca. Afonso Lopes da Costa com todolos oficiais da fortaleza, e assi Duarte de Melo, capitão do mar, e os outros que haviam de ficar por moradores em Malaca, ante da vinda dele, Fernão Peres, tinham pedido muito a D. Aleixo que houvesse por bem de irem dar ua vista à força que o capitão Ciribiche tinha feito à entrada do Rio Muar, donde lhe corria, pera lhe desfazerem aquele covil, e isto ante que D. Aleixo se partisse para a Índia. O qual requerimento lhe D. Aleixo não concedeu, porque, depois que ele chegou àquela cidade, cessara o capitão Ciribiche de vir dar os rebates que ante dava à cidade com suas lancharas, somente com ele, Dom Aleixo, mandar pôr na boca do Rio Muar ua galé e alguns calaluzes de remo, e isto bastava pera ter aquele mouro cercado, sem lhe poder vir mantimento de fora, com que lhe perecesse a gente à fome. Porém, porque Fernão Peres era vindo da China, e, além da gente que trouxera, tinha provida a cidade com muitas munições, 53v 53v e Afonso Lopes se aqueixava a ele, D. Aleixo, que se queria partir pera a Índia, e em sua companhia Fernão Peres, com os quais havia de ir muita gente, e ele ficava com a guerra à porta, quási querendo encarregar sobre ele, D. Aleixo, qualquer cousa que por esta causa sucedesse, chamou D. Aleixo a conselho todolos capitães e notáveis pessoas, e, posto que todos não eram deste voto de Afonso Lopes, todavia, por não ter causa de se mais queixar, nem ter que temer daquela parte tão vezinha, ordenou D. Aleixo que o mesmo Afonso Lopes fosse per pessoa com a gente necessária. E, posto que ele se escusava por causa da menagem que tinha dado da fortaleza, D. Aleixo, que lha tomara, a houve por levantada naquele caso, e ele, 107 D. Aleixo, não foi a isso, por trazer por regimento de Lopo Soares que por nenhum caso saísse de Malaca, pois o não enviava a mais que a prover das desordens dela, de que atrás escrevemos. Nem menos foi Fernão Peres, porque não havia de ir debaixo da capitania de Afonso Lopes, pois não ia o mesmo D. Aleixo. Finalmente foram com Afonso Lopes da Costa, D. Tristão de Meneses, D. Rodrigo da Silva, D.Manuel, seu irmão, Álvaro de Sousa, Francisco Pereira, Duarte Furtado, Jorge Mascarenhas, Jorge Botelho, Duarte de Melo, Capitão-mor do Mar, Diogo Pacheco, Manuel Falcão, Pero de Faria, António Lobo Falcão, e outros, que iam por capitães de calaluzes e lancharas, e Jorge Mascarenhas que viera da China em o seu navio, que era forte e maior que as outras velas, pera com ele poderem abalroar com a tranqueira da força, que estava na borda da água, e com ele seriam até trezentos homens portugueses, além de alguns principais malaios com gente da terra. Chegada esta frota ao Rio Muar, foi a tempo que a maré começava descabeçar e descobria ua grossa estacada, com que os mouros tinham atravessado o rio um bom espaço da fortaleza; e porém não tam perto que, com a nossa artelharia, ela podesse receber dano.

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Afonso Lopes, quando viu que não podia passar a estacada em a galé em que ia, nem menos o navio de Jorge Mascarenhas, que era o maior, em o qual levavam muita artelharia, surgiu aquém da estacada com toda a frota. Álvaro de Sousa, filho de Nicolau de Sousa e cunhado dele, Afonso Lopes da Costa, como era mancebo de até dezoito anos, de ânimo generoso, que desejava ganhar honra naquele feito, em um calaluz, em que levava sete portugueses, passou além da estacada, e foi-se pôr diante da fortaleza. Afonso Lopes, seu cunhado, quando o viu assi desmandado e metido em tanto perigo, porque da fortaleza tiravam com 54 54 espingardas, mandou depressa a Jorge Botelho que em um calaluz, em que ia, o fosse recolher; mas por muita deligência que Jorge Botelho nisso pôs, quando o recolheu, estava ferido dos tiros de dentro, de que logo morreu em Malaca. Jorge Botelho, por lhe parecer que estava mais prestes pera quando ao outro dia pela menhã houvessem de dar na fortaleza, leixou-se ficar dentro da estacada, ao qual outros houveram enveja, por ser lugar de honra, e foram-se para ele três ou quatro capitães de calaluzes. E estando ele e os outros contentes, cuidando terem bom posto, pera quando viesse a maré da menhã, em que haviam de cometer a fortaleza, foram de noite todos chamados, e assi os mais principais capitães e fidalgos, à galé de Afonso Lopes da Costa, a conselho sobre aquele feito. O qual, no parecer de alguns, se houve por tam duvidoso, por muitas razões que deram, quam fácil parecia a outros de contraira opinião, entre os quais era Dom Tristão de Meneses, a quem o caso parecia mais leve que a Jorge Mascarenhas e Afonso Lopes, que o haviam por mui duvidoso. E não era muito parecer este cometimento fácil a Dom Tristão; porque 108 como o ano de quinhentos e oito, quando Dom João de Meneses, seu tio, irmão de seu pai, saiu na praia de Arzila lançar el-Rei de Fez fora da vila que tinha tomada, ele, Dom Tristão, foi o primeiro homem que pôs os pés em terra e o peito na boca das bombardas dos mouros, tinha pera si que menos seria cometer aquela tranqueira de Muar. Porque a diferença que havia da praia de Arzila à tranqueira de Muar, é a que pode haver de um lião a um gato, posto que tem a mesma figura e natureza. Ca, segundo afirmam homens que se acharam em honrados feitos, dous viram que tinham a morte ante os olhos de quem os cometeu: este do socorro de Arzila, saindo em pequenos batéis em um recife de pedras, onde quebrava o mar da costa brava; e pondo os pés em terra, punham o rosto na boca das bombardas; e outro socorro que em outra tal costa e recife fez Dom Hanrique de Meneses, sendo Governador da Índia, quando socorreu a fortaleza de Calecute, estando nela por capitão Dom João de Lima, como a história contará em seu tempo. Assi que, desfeita esta ida de Muar em perfias, tornaram-se pera Malaca com menos honra da que levaram, com a qual cousa Dom Aleixo não tinha paciência, lembrando-lhe quam pesadamente concedera aquela jornada, o caso da qual ele havia por maior desastre, que ser cometida a fortaleza e virem os homens bem sangrados sem vitória algua. Mas parece que não quere Deus que, nestes casos da vitória contra os imigos, os homens vão mui confiados em 54v 54v suas próprias forças, somente na esperança de sua ajuda. Donde vem vermos casos cometidos per tantas e tais pessoas, que no juízo dos homens parece não haver cousa que lhe possa resestir, e tudo sucede ao contrairo, e outros em que tudo fica na misericórdia de Deus, e sucedem prosperamente, como aconteceu nesta, tornada a repetir di a poucos dias. Dom Aleixo, passado este caso, que ele havia por próprio seu, determinou de mandar a Dom Tristão de Meneses às Ilhas de Maluco, como lhe Lopo Soares mandara; e sucedeu ainda, pera o ele fazer melhor, chegarem juncos da Java. Em os quais vinham cartas de Maluco pera o Governador da Índia e capitão de Malaca, as quais cartas mandava el-Rei Boleife de Ternate, ua das Ilhas de Maluco, e Francisco Serrão, que era um dos capitães que Afonso de Albuquerque lá mandara (como atrás escrevemos). E nelas mui estreitamente pedia este Rei ao Governador e

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capitão de Malaca, que mandasse lá navios e gente pera fazerem ua fortaleza, obrigando-se el-Rei a toda a despesa que se nisto fizesse, por desejar muito ter amizade e comércio com el-Rei de Portugal e seus vassalos, escrevendo também Francisco Serrão muitas cousas daquelas Ilhas, e quam proveitosa cousa seria haver nelas ua fortaleza nossa, dando pera isso muitas razões. Finalmente, D. Tristão se partiu pera aquele negócio em um navio, em que levou cinquenta homens e dous juncos de mercadores de Malaca, a viagem do qual escrevemos em seu lugar. El-Rei de Bintão, per alguns mouros que da sua mão tinha em Malaca, soube que não cometerem os nossos sua fortaleza na ida que fizeram, fora mais por paixões e deferenças que houve entre os capitães da frota, que por 109 outro caso; e que Dom Aleixo de Meneses, que ali estava, era sobrinho do Governador da Índia, e trazia os seus poderes, e estava tão indinado contra os capitães por não cometerem a fortaleza com as paixões que teveram entre si, que lhe parecia ante de poucos dias ele em pessoa, com quanto poder havia na cidade, haviam de ir outra vez sobre sua fortaleza. El-Rei, tanto que foi disto sabedor, como era sagaz e mui prudente em seus negócios, considerando a maneira que teria pera abrandar esta fúria de Dom Aleixo, determinou de lhe mandar cometer algum modo de paz. Porque sabia que, partido ele pera a Índia, pera onde estava de caminho, segundo lhe diziam, em cuja companhia havia de ir Fernão Peres e muita da gente que viera da China, com a que ficasse em Malaca, depois da sua partida, ele se haveria bem. Com o qual fundamento mandou alguns recados a Dom Aleixo, pedindo-lhe que mandasse algua pessoa a ele, pera 55 55 praticar sobre este negócio. E como lhe foi aceitado per recados que foram e vieram, houve Dom Aleixo e Afonso Lopes da Costa quási por acabado tudo, e que somente se detinha por eles não concederem alguas cousas, que el-Rei deles queria em modo de segurança, pera que ele pedia vontade do próprio Governador da Índia, mostrando desconfiar sem vontade dele aquele negócio ficar seguro, tudo isto a fim de o dilatar, até se chegar a partida de Dom Aleixo. O qual, partido na moução, trazendo consigo Fernão Peres com alguns que com ele vieram da China, ficou o negócio quási em modo de trégua, até ele mandar confirmação do concerto da paz, que ele, el-Rei de Bintão, queria, tendo ele no peito guardada a traição que pôs em obra ante de pouco tempo, como se verá. E porque, quando Dom Aleixo chegou à Índia, Lopo Soares, em chegando de fazer a fortaleza de Ceilão, a entregara a Diogo Lopes de Sequeira, o qual governava já, é necessário que neste terceiro Livro, que ora queremos começar, entremos com o novo Governador, escrevendo as cousas de seu tempo.

LIVRO III 55v 55v 111 Capítulo Primeiro. Como el-Rei Dom Manuel o ano de quinhentos e dezoito mandou por Capitão geral e Governador da Índia a Diogo Lopes de Sequeira. Porque Lopo Soares, neste ano de quinhentos e dezoito, acabava os três anos que el-Rei Dom Manuel, per ordenança, quis que os Governadores das partes da Índia resedissem nela, e assi todolos capitães e oficiais das fortalezas que nela tinha, mandou fazer ua grossa armada pera ir Diogo Lopes de Sequeira, almotacé-mor do Príncipe Dom João, seu filho, e alcaide-mor da vila Alandroal, filho de Lopo Vaz de Sequeira, que tevera a mesma alcaidaria. Ao qual Diogo Lopes el-Rei houve por bem dar esta governação da Índia, pola experiência que tinha de sua pessoa, não somente em viagem que fez a Malaca, quando a descobriu (segundo escrevemos), mas ainda em outras armadas sobre mar, e principalmente na vila de Arzila, em África, onde esteve por capitão. E porque com Lopo Soares acabavam também muitos capitães e oficiais os três anos que haviam de servir, e por esta causa convinha irem outros que os sucedessem, e gente de armas pera defensão das fortalezas, pola muita que era falecida, mandou el-Rei aperceber nove velas pera mil e quinhentos homens, de que estes eram capitães: D. João de Lima, que ia pera servir el-Rei de capitão de Calecute; Rui de Melo, filho de Fernão de Melo, pera capitão de Goa; Dom Aires da Gama, pera capitão de Cananor; Garcia de Sá, filho de João Rodrigues de Sá; Lopo Cabreira, pera alcaide-mor 112 de Malaca; João Lopes Alvino, pera andar na costa de Melinde pera Sofala; Pedro Paulo, filho de Bartolomeu Forlentim, João Gomes Cheira-dinheiro, pera as Ilhas de Maldiva. Aparcebida esta frota, partiu Diogo Lopes de Lisboa a vinte-a-sete do mês de Março deste ano de dezoito, e com bons tempos que teve, chegou a Moçambique. 56 56 E ante que chegasse aqui; na paragem do Cabo da Boa Esperança, um peixe deu ua encontrada em a nau de Dom João de Lima, que cuidaram alguns, no estremecer que ela fez, que dera em algum penedo; e acudindo logo à bomba, parecendo que podia a nau fazer água, viram que não fazia mais que a ordinária. Porém, depois em Cochi, dando pendor à nau, acharam metido no costado dela um focinho de um peixe, que seria de comprimento de dous palmos e meio, agudo na ponta e preto e duro à maneira de corno das alimárias, a que os gregos chamam rinocero, e nós ganda, como lhe os índios chamam. Somente tinha este ua deferença, que a crespidão da superfície dele era à maneira de grossa de ferro, e tam dura que o limava, como faz ua lima de dura têmpera. E parece que, quando deu este encontro no costado, entrou grande parte per um liame, e ao espedir, barafustando com o corpo, fez estremecer a nau, e esnocou per junto das cachages; o qual foi trazido por mostra a este reino, dizendo ser de um peixe e outros de outro. Depois, passados alguns anos, confirmei ser do peixe-agulha, como alguns diziam; porque, indo eu pera o castelo de S. Jorge da Mina, que é na costa de Guiné, levando o piloto per popa do navio ua linha com seu anzolo pera tomar os peixes a que os mareantes chamam albecoras, que são do tamanho e feição do atum, veo cair no anzolo um destes peixes-agulha, o qual anzolo ficou metido entre as duas farpas das cachages, com que teve o peixe, até que, ao estremecer do navio, acudiram todos; e, suspendendo o focinho fora da água, ou (por melhor dizer) o bico, tanto andaram marinheiros com fisgas e arpões, que o prenderam per muitas partes, e lhe lançaram no governo do rabo ua laçada. Finalmente, eram a o arribar mais de vinte homens, e repartido depois per todos, tinha mais polpa do que um touro tem de carne; e o seu focinho, posto que limasse o ferro e fosse da feição do da nau de Dom João de Lima, era mais pequeno, com o que o outro peixe era maior; e porque ambos estes dous focinhos ou bicos de peixe tivemos na mão, e o que se tomou neste navio afirmaram os mareantes ser peixe-agulha, nos parece

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que também era o outro. Diogo Lopes, partido de Moçambique, chegou a Goa a oito de Setembro, onde se deteve poucos dias, por achar nova que Lopo Soares estava de caminho pera ir a Ceilão, parecendo-lhe que o podia tomar ante que se partisse pera lá. E sendo tanto avante como Pondarane, foi dar com ele António de Saldanha, que (como atrás fica) vinha de Ormuz, onde invernara; e posto que o topou de noite, ela foi bem alumiada com o fuzilar da artelharia, com que se ambas 56v 56v estas armadas salvaram. Acabado este prazer, foi logo António de Saldanha em um batel visitar 113 Diogo Lopes, e ficou lá com ele toda aquela noite, dando-lhe conta das cousas do Estado da Índia, que fez apressar mais a ele, Diogo Lopes, não se querendo deter pelas fortalezas per que passou, somente leixava os capitães que levava pera residirem nelas; porque sua tenção era (como dissemos) tomar Lopo Soares primeiro que partisse de Cochi pera ir a Ceilão, e empedir-lhe aquela ida, por não ser cousa tam importante naquele tempo a fortaleza que ia fazer, como outras cousas que levava del-Rei mais encomendadas, pera as quais lhe convinha a gente e naus, que Lopo Soares levava pera aquele feito. Mas os tempos foram tais, que em Baticalá o deteveram nove dias, donde mandou recado a Lopo Soares somente polo entreter; e chegou este seu recado a Cochi ua tarde da menhã que ele, Lopo Soares, era partido. E posto que este recado, per mandado de Diogo Lopes, não passou mais adiante, ao caminho foi aviso a Lopo Soares da vinda dele, Diogo Lopes, o qual ele dissimulou, e foi avante com seu intento, que acabou (como escrevemos). Chegado Diogo Lopes a Cochi, onde foi recebido com muita festa, teve ele tanta temperança e reverência à pessoa de Lopo Soares, que não quis pousar na fortaleza, que é o apousentamento dos Governadores, e agasalhou-se em uas casas de Lourenço Moreno, enquanto Lopo Soares não veo de Ceilão, nem usou de seu ofício até dele receber a entrega, segundo a el-Rei mandava em suas provisões com as solenidades costumadas, porque tinha Lopo Soares ua provisão que governasse, até se de todo embarcar. Depois da vinda do qual, que foi a vinte de Setembro, teve ainda Diogo Lopes muito primor nos comprimentos de honra com ele, o que té hoje não temos visto, ante grandes desgostos, e tais, que podiam bem macular a honra, não dos que se embarcaram (porque os mais destes muita ganharam na paciência do que lhe foi feito), mas daqueles per cujas culpas se partiram bem descontentes: matéria certo não de barões, que entram em tam grande cousa, como é o governo da Índia. A qual nestes autos sempre lhe vimos aos seus novos Governadores mostrar bom rostro, e o contrairo aos que se partem dela; e o que pior é, que quem nela mais suor e sangue verteu pola servir, menos galardão tem de seus fructos; quási como que quere ser tida por crua madrasta de uns, e a tempo lisongeira madre de outros; certo duro castigo de Deus, cuja causa é escondida a muitos, e a poucos descoberta. Lopo Soares, entregue a Índia a Diogo Lopes, partiu-se de Cochi e veo per Cananor, onde 57 57 tomou gengivre, e di pera este reino a vinte de Janeiro, ano de dezanove, com nove naus carregadas, com que chegou a ele. Parece que toda a fortuna dele, Lopo Soares, estava em ir e vir com sua frota e boa carga de especearia, porque desta vez não lhe sucederam as cousas da governança da Índia tam prosperamente, ao menos na ida do Mar Roxo, como a primeira vez, o ano de quinhentos e quatro, no feito de Panane. Diogo Lopes, ficando em seu governo, enquanto ali esteve em Cochi, espediu alguns capitães per diversas partes, por a necessidade que disso havia: D. Afonso de Meneses com três navios pera estar sobre a barra de Baticalá, sem leixar entrar 114 ou sair vela algua, até ele, Diogo Lopes, ali ser e tomar vingança do governador da cidade, por estar alevantado contra nós e não querer pagar as páreas que devia. E assi espediu a João Gomes

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Cheira-dinheiro pera ir fazer ua fortaleza nas Ilhas de Maldiva, onde el-Rei D. Manuel mandava que ele ficasse por capitão. No qual tempo também espediu Cristóvão de Sousa com ua armada de três velas, ele em ua galé, e em duas caravelas Rui Gomes de Azevedo, de Elvas, e Lourenço Godinho. Ao qual se havia de ajuntar João Gonçalves de Castelo Branco, que com três fustas estava sobre a barra de Dabul, por mandado de Lopo Soares, polo que ali passara D. João de Monroy por causa de Álvaro de Madureira, que andava lançado com os mouros (como atrás escrevemos), e de caminho havia ele, Cristóvão de Sousa, levar de Goa dous catures, que lhe havia de dar Rui de Melo, capitão dela, como deu, com que ele, Cristóvão de Sousa, fez corpo de cinco velas, em que levava até cento e sessenta homens. Diogo Lopes, despachados estes capitães e providas as cousas de Cochi, partiu-se pera Goa, e de caminho veo provendo as fortalezas de Calecute e Cananor, e assi no levantamento de Baticalá, onde tinha mandado Dom Afonso de Meneses, tornando o governador à nossa obediência com pagar as páreas que devia, e outras satisfações que Diogo Lopes quis dele, por causa da rebelião passada. Chegado Diogo Lopes a Goa, começou logo a entender em mandar outros capitães a diversas partes: o primeiro foi António de Saldanha, com ua frota de mais quatro velas, além das que trazia consigo, pera andar na costa de Arábia, e di vir invernar a Ormuz, e de caminho passar pela costa de Dio, onde se havia de deter, esperando as naus de Meca pelo modo que fez, quando Lopo Soares o enviou. E assi mandou Simão de Andrade pera a China com certos navios, ao qual el-Rei Dom Manuel proveo de cá per seu alvará da capitania-mor daquela viagem, depois que viesse seu 57v 57v irmão Fernão Peres de Andrade. O qual a este tempo era já chegado à Índia, em companhia de Dom Aleixo de Meneses, que (como atrás fica) partiram de Malaca, nas costas dos quais veo nova como os cometimentos de paz, que el-Rei de Bintão movera, tudo fora simulações, até se Dom Aleixo partir, e que viera sobre Malaca com grande poder, a qual metera em grande trabalho, e que ficava em muito maior, assi por estar desfalecida de mantimentos como de gente, e essa pouca que havia era toda enferma; por causa da qual nova, e assi por aproveitar António Correa, com que tinha razão de parentesco, ele lhe deu ua nau e um navio, que fosse a Malaca com alguas provisões que de lá pediam, onde o capitão Afonso Lopes da Costa lhe daria mais dous juncos, com que fosse a Pegu assentar paz e trato com o Rei dele; e carregados os juncos e navios de mantimentos, por ali haver grande cópia deles, os enviasse a Malaca, pera provisão dela, e ele carregasse a nau de outras mercadorias 115 que tem valia em Ormuz, e as levasse lá. Mas Deus ordenou esta sua ida de outra maneira mais em favor das cousas de Malaca, pera entendimento das quais convém dizer primeiro o que se nela passou, depois da vinda de Dom Aleixo.

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57v 57v 115 Capítulo II. Do que se passou em Malaca, depois que D. Aleixo de Meneses se partiu, assi no cerco que lhe el-Rei de Bintão pôs, como na vitória que os nossos houveram na ida do Rio Muar, tomando-lhe a fortaleza que ali tinha feita na entrada do rio. Ao tempo que Dom Aleixo de Meneses partiu de Malaca, ficava a cidade no estado que dissemos, e peró que com esperança de paz, segundo el-Rei de Bintão simulava, com as cautelas que nisso mostrava ter, leixou-a D.Aleixo assi fortalecida, que pôde sofrer o ímpeto da vinda del-Rei, que di a poucos dias per terra e mar a veo cometer. Per terra, com mais de mil e quinhentos homens com muitos elefantes armados; e per mar, com sessenta lancharas e calaluzes, navios mui guerreiros e leves no remo. Chegado ua menhã subitamente com esta frota e exército, pôs os nossos em grande confusão e trabalho; porque na fortaleza não haveria mais que até duzentos homens, muita parte deles doentes de febres e outras enfermidades, que 58 58 se geram da corrupção dos pestíferos ares que a terra tem, por razão de seu sítio. Porém, como a honra e a vida nos tais conflitos ambas se animam pera se defender, foi esta vinda del-Rei de Bintão quási um aziar pera esquecerem todalas febres, de maneira que a muitos não lhe vieram mais, e todos cobraram força pera se levantar e vestirem as armas. Afonso Lopes, ante desta vinda del-Rei, tinha repartida a vegia e guarda da cidade em estâncias, e estas em capitanias per esta maneira: na parte da povoação chamada Ilher, em duas estâncias feitas sobre a cava, estavam Francisco Fogaça e André Pessoa; e no outeiro, que está sobre a nossa fortaleza, onde depois Duarte Coelho fundou ua ermida da vocação de Nossa Senhora da Graça, estava Jorge Botelho, de Pombal, e os portugueses casados na terra, onde chamam a Bato China; e na ponte que atravessa o rio per onde vão à povoação grande dos mouros, que é contra Upi, guardava Fernão de Lemos; e a guarda desta mesma povoação, que também estava cercada de cava, per que entrava água, tinha ele, Afonso Lopes, entregue às principais cabeceiras dos mouros e gentios que ali viviam, assi como ao bendara, ao colascar, ao tamungo e outros, todos oferecidos a morrer por sua casa, mulher 116 e filhos: ca tinham por certo, se el-Rei de Bintão entrasse a cidade, não haver de ficar algum com vida, polo ódio em que estava com eles. Do mar tinha cuidado Duarte de Melo, Capitão-mor dele, com os outros capitães, que eram Dom Rodrigo da Silva, Fernão Figueira, Diogo Mendes, Graviel Gago, Carlos Carvalho; e ele, Afonso Lopes, ficava pera acudir às estâncias da terra, onde visse mais necessidade. Chegado el-Rei ua menhã (como dissemos), foi a tempo que a maré era vazia, e os nossos navios estavam quási todos na vasa, que causou terem os imigos lugar pera pôr fogo a ua galé nossa desemasteada, que estava pera se renovar, por ser já mui velha, e assi a duas naus de mercadores já descarregadas. E como a primeira notícia que os nossos teveram desta vinda del-Rei, foi a mostra da sua armada do mar, já quando punham fogo a estas peças, todos naquele primeiro súbito da vista acudiram à praia, cuidando que queria poiar em terra. Porém, quando eles nas costas ouviram ua grita de outros que saíram do mato, onde estavam lançados em cilada, e remetiam às estâncias que dissemos, leixou Afonso Lopes da Costa esta parte do mar entregue a Duarte de Melo, que a defendesse, e com a outra gente ordenada às estâncias acudiu a eles, onde já achou mouros da cidade, que lhe defendiam a subida. E posto que estes imigos da cilada, naquele 58v

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58v primeiro ímpeto, ousadamente cometeram as estâncias, como quem nelas achou fraca defensão, por ser da gente da terra, tanto que os nossos chegaram, assi lhe poseram o ferro de vontade, que os fizeram descer dos lugares das estâncias onde tinham subido, havendo entre eles ua cruel competência à custa do sangue e vida de muitos, assi às lançadas, espingardadas, como com alguns berços encarretados, que Afonso Lopes mandou trazer aos lugares de maior perigo, que varejavam e despendiam bem de pelouros. Duarte de Melo com os outros capitães, por causa da maré, deteveram-se um bom pedaço primeiro que nadassem, pera ir cometer os imigos; e tanto que começaram desparar neles sua artelharia, desaparelharam tantos, que lhe conveo a eles alargarem-se um pouco, com que os nossos teveram tempo de apagar o fogo que tinham posto. Mas não foi este negócio tam levemente de fazer, que primeiro não custasse vidas e sangue dos nossos; porque Graviel Gago com quantos levava na sua lanchara se afogaram per desastre de lhes faltar fogo na pólvora, sem poder ser socorrido, quando a lanchara se abriu, por todos terem tanto que fazer em si, que não podiam socorrer aos outros. E a Diogo Mendes, capitão da outra, ua bombarda dos imigos lhe levou a cabeça fora dos ombros, ficando o toro do corpo em pé. Finalmente, assi no mar como na terra, os nossos teveram tanto que fazer per espaço de três horas que durou aquela fúria, que se contentaram com ficar em posse do seu, recolhendo-se os imigos aos lugares 117 que elegeram pera seu alojamento: os do mar pera a ilha grande que está defronte da cidade; e os da terra quási à vista das estâncias, fazendo-se todos fortes, como quem vinha de vagar, e assi o fizeram; porque el-Rei per dezoito ou vinte dias contínuos teve os nossos cercados, dando-lhe per muitas vezes duros e fortes combates, que os trazia mui cansados, assi do trabalho como da vegia e necessidade de mantenedores, que lhe começaram falecer. Mas aprouve a Deus que, em todo este tempo, os imigos acharam neles tanta resistência, e houve entre eles tantos mortos e feridos, que, vendo el-Rei que recebia mais dano do que fazia, e que os nossos começavam já tomar tanta ousadia contra eles, que o iam cometer, temendo que saltassem com ele dentro no seu próprio arraial, ua noite, o mais caladamente que pôde, se partiu, tornando-se ao Pago donde viera. Na qual vinda, posto que deu muito trabalho aos nossos, e deles morressem dezoito homens, assi no mar como na terra, de que os principais foram os capitães que nomeámos, dos imigos se soube serem mais de trezentos e trinta, e um grande número 59 59 de feridos, com que el-Rei entre os mouros, que veviam em Malaca, perdeu muito crédito, vendo que deste feito que ele pôs todas suas forças, e os nossos eram poucos e mui debilitados nelas por causa da enfermidade e fome que padeciam, em todolos combates sempre levou a cabeça quebrada. Ele, como teve esta experiência, que rostro por rostro não podiam levar o melhor deles, por pelejarem como gente que não tinha mais salvação que o seu braço, determinou tornar à guerra que lhe ante fazia, por se achar melhor dela, mandando suas lancharas correr a Malaca, e a saltear os juncos que a ela vinham. E alguas vezes per terra mandava gente, que cometiam as tranqueiras, combatendo-as de dia e de noite; e como achavam defensão, tornavam-se recolher, parecendo-lhe que algum dia podiam tomar os nossos descuidados; ou ao menos pera os cansar tanto, que entre este trabalho da guerra, enfermidade da terra e fome que lhe fazia padecer, defendendo-lhe trazerem mantimentos, os podia deminuir, de maneira que não houvesse quem defendesse a cidade e se viesse meter nela. Pera conseguir o qual efeito, tirou da força que tinha no Rio de Muar o capitão Ciribiche, que vinha fazer estes saltos, e pôs outro per nome Sansotea de Rajá, que era o mais afamado cavaleiro daquelas partes. E o que tinha dado a este mouro tanto crédito entre eles, era por ter acima do artelho um mamilo de carne duro, à maneira de calo, à semelhança de esporão de galo, e haviam

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todos que este sinal era de animoso; porque naquelas partes, como acham galo que tem grande esporão, dão por ele muito, por os achar mais feroces que os outros que o tem menor, nos desafios em que os metem; por ser cousa mui costumada e um grande passatempo e delícias, que os nobres daquela região costumam ter, principalmente em Patane, meteram estes galos em desafio. E perde-se e ganha-se grande soma de dinheiro nas apostas, que sobre isso fazem os que vão ver este espectáculo; porque uns 118 põem por parte de um galo, e outros por outro; do qual duelo e peleja há juízes que julgam qual deles o fez melhor. Este Sansotea de Rajá, posto que era cavaleiro de sua pessoa e bom capitão, mais tinha ganhado esta opinião que dele havia com artefício e ardis da guerra, que por seu próprio braço. Por não perder a qual opinião, e mais mostrar quanta diferença havia dele a Ciribiche, per um grande tempo, assi per mar como per terra, fez muita guerra à fortaleza. E tanto a apertou com defender que lhe não viesse mantimento, e da Índia foi tarde provida, que valia, algum que se achava, tanto preço, que quási ficava pesado a ouro: e de não haver 59v 59v vinho, muitos dias se leixou de celebrar missa. Com a qual necessidade pôs os homens em tal estado, entre fome e doença, principalmente a gente comum, que não podiam mover os braços; no qual tempo teveram algum socorro com a vinda de António Correa, que (como atrás dissemos) Diogo Lopes de Sequeira mandara àquela cidade com algua provisão, e dali havia de levar dous juncos a Martabão, ou a Pegu carregar de mantimentos. O qual, enquanto eles se faziam prestes, assi com o que trouxe, como com sua pessoa, muito resistiu aos rebates, com que este Sansotea de Rajá apertava a cidade: té que sobreveo cousa não cuidada dos nossos (sendo já António Correa partido pera Pegu), com que ele, Sansotea, perdeu a vida em ua vitória que houveram dele; e o caso sucedeu per esta maneira: Continuando ele este modo de nos fazer a guerra - per terra rebates nas tranqueiras e per mar correndo a Malaca, às vezes mais a se mostrar que a pelejar - convertia a vingança do que não podia fazer em esbulhar os navios que vinham à cidade, principalmente àqueles que eram de partes que estavam em nossa amizade; e aos outros fazia entrar no Rio de Muar, e tomando-lhe o melhor do que traziam, como direitos, e do mais pagava-lhe ao preço que queria, dizendo que aquelas cousas eram pera el-Rei de Malaca, seu senhor, o qual, posto que tevesse perdido a posse do sítio da cidade, não tinha perdido a posse da navegação daqueles dous estreitos, per que se navegava a ela; por razão do qual senhorio se lhe devia tudo o que lhe pagavam, quando em sua prosperidade ele estava em Malaca. E aconteceu que, entre estas tomadias, foi o junco de um mercador, jau de nação, que continuava vir muitas vezes a Malaca com mantimentos, ao qual ele meteu dentro no Rio Muar, e levou à fortaleza que tinha, com lhe dizer querer-lhe pagar quanto trazia. Porém, depois que o esbulhou de todo, disse-lhe que da vida lhe fazia graça; pois, sendo nós imigos del-Rei, seu senhor, com quem ele estava de fogo e sangue, por o terem lançado fora da sua cidade, ele trazia mantimentos e outras cousas pera nos sustentar e favocer. Finalmente, o jau, quando se viu perdido de todo, somente com o casco do navio veo-se a Malaca apresentar a Afonso Lopes da Costa, dizendo ser-lhe feito aquele dano por nossa causa, e que Sansotea não dava outra razão de o esbulhar do seu. Afonso Lopes da Costa, porque este jau era homem mui poderoso e 119 acreditado na cidade entre todolos mercadores, sentiu muito este mal que lhe foi feito; porque, perdendo ele o seu, sem outra emenda ou restituição, não ousaria mercador algum vir 60 60 à cidade, com que se perderiam de todo, pois ela de si não tinha cousa algua. E depois que o

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consolou de sua perda, dando-lhe esperança de restituição dela, esteve-lhe perguntando polo lugar onde Sansotea tinha assentada a fortaleza, e outras cousas de que desejava ter mais informação do que ele tinha visto dela, quando lá foi, como escrevemos atrás. O mouro, depois que satisfez às perguntas de Afonso Lopes, afirmou-se em que ele daria modo como aquela fortaleza fosse tomada, dando pera isso razões por causa das entradas e saídas, que ele notou, assi pela parte do mar como da terra. Finalmente, posto este negócio em conselho, chamando Afonso Lopes pera isso as principais pessoas, depois que se ouviram razões uas em contrairo de outras, em que havia dúvida no cometimento desta fortaleza, pola ida passada que foi sem fructo algum, como por parte do crédito que se dava pera tamanho feito a este jau, venceram outras razões. E assentou-se que Duarte de Melo devia ir cometer esta força, repartindo logo o cometimento dela per duas partes: ua per mar de rostro a ela, e outra per terra per um certo lugar, porque o mesmo jau ofendido prometia levar a gente encobertamente, até a pôr pegada nos paus da tranqueira, onde não havia mais perigo, que resguardar-se dos esterpes da peçonha que ali estavam semeados, os quais ele iria tirando todos, por os nossos não encorrerem neste perigo. A qual entrada per terra Afonso Lopes da Costa encomendou a Manuel Falcão, debaixo da capitania do qual havia de ir António Lobo Falcão, seu sobrinho, Diogo Pacheco, Manuel Pacheco, seu irmão, Diogo Brandão, do Porto, João Guedes, de Santarém, e outras pessoas nobres; e o mesmo jau com dous filhos, e alguns criados, iam diante, por guia de todos. Levando mais esta ordenança: que, tanto que entrassem no Rio Muar, um pedaço ante de chegar à fortaleza, que havia de sair Manuel Pacheco com sua gente em um certo lugar, e ir per ua vereda, que corria entre a espessura do arvoredo ao longo do mar. A qual vereda ia dar nas tranqueiras da fortaleza, per a qual o jau os havia de encaminhar; e não haviam de cometer a entrada dela, senão depois que ouvissem varejar a artelharia, com que Duarte de Melo per mar a havia de combater. Assentada esta ida o mais secretamente que se pôde fazer, apercebeu-se Duarte de Melo, com fama que havia de ir ao Estreito de Sabão dar guarda aos navios que vinham à cidade, por não receberem dano da armada que trazia Sansotea de Rajá. E tanto que de todo foi prestes, partiu Duarte de Melo béspora de Todolos Santos, do ano de quinhentos e 60v 60v dezanove, levando em toda a frota até duzentos homens, de que seriam cento e vinte portugueses, e 120 os mais eram malaios da terra, e foi a tempo que lhe amanheceu no lugar, onde Manuel Falcão havia de sair. O qual, tomando o jau por guia, segundo tinham assentado, começou caminhar com assaz trabalho; porque, como a terra era alagadiça e havia alguns esteiros que passar, e sobre isso aquela noite chovera, iam todos mais pera tomar por repouso ua cheminé de fogo onde se enxugassem, que do fogo de pólvora que acharam. Duarte de Melo, por lhe dar espaço a eles fazerem este caminho e também por ser menos sentido, a remo surdo foi de vagar, até que, ao tempo que lhe pareceu que seriam no lugar que o jau dizia, se mostrou ante a fortaleza, dando Santiago com a artelharia. Manuel Lobo, tanto que a ouviu, como ainda não estava junto da tranqueira, apressou o jau que ia diante às costas de um escravo seu, tirando os esterpes, o qual com a pressa descido dos ombros do escravo, por muito resguardo que teve, não andou muitos passos que não foi encravado, com que lhe conveo tornar a subir aos ombros do mesmo escravo; mas aproveitou-lhe pouco, por ser a peçonha deles de tanta potência, que morreu logo. Manuel Falcão, posto que perdera a guia, não deixou de seguir seu caminho, levando ante si dous filhos do jau homens, e os seus escravos, que lhe fossem tirando estes esterpes. Dos quais, posto que Deus guardou Manuel Falcão, não se pôde ele guardar na primeira chegada, cometendo entrar na tranqueira, porque veo ua das bombardas, que os imigos naquela parte tinham posta, que lhe quebrou ua perna, com que logo ficou quási morto ao pé de ua palmeira. Vendo os nossos que com ele iam em que estado ficava o seu capitão, e o jau guia, que os

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até li trouxera, era esterpado, e outros que se não poderam guardar, ficaram suspensos no que fariam, porque ainda neste tempo não tinham sabido do que fazia Duarte de Melo, somente ouviam na parte do mar os trons da artelharia, per que sabiam ser já diante da fortaleza. E estando assi confusos, levantou a voz um João Fernandes, de Santarém, e disse contra todos: - Senhores, que fazemos? Aqui está o Senhor Diogo Pacheco; tomemos a ele por capitão, porque ele é tal cavaleiro, que nos meterá em parte onde ganhemos honra com vitória. Com o qual parecer houve, nos que se ali acharam juntos, um rumor que eram neste voto. Ao que Diogo Pacheco respondeu: - Não é tempo de mais eleição, nem de capitão; cada um o seja de si mesmo: Santiago! No qual apelido assi ficaram animados, que, como homens que se ofereciam 61 61 em sacrifício a Deus, todos juntamente cometeram a tranqueira, onde acharam assaz resistência, porque ela estava naquela parte já mais defensável 121 do que a leixou o jau, que levou este ardil de cometerem a entrada per aquela parte. Duarte de Melo pela outra, que estava fronteira à margem do rio, pôs-se a dar bateria per meio de fogo, setas e outros aguilhões de morte, uns de arremesso, outros a mão-tenente, passando avante, até que fez afastar os mouros. E porque assi nesta sua entrada, como na outra do Santiago que deu Diogo Pacheco, era tamanha a fumaça e tanta a confusão, que uns se não conheciam dos outros, somente no apelido, seria cousa muito mais confusa e incerta querer dar razão do que cada um fez e disse, depois que a fúria acendeu o ânimo de todos. Baste saber que espaço de duas horas os mouros se defendiam animosamente. Porque, além de passarem de oitocentos homens, número mui desigual dos nossos, eram todos gente limpa, em que entravam obra de trezentos mandarins, que são como entre nós os fidalgos, e muitos destes tinham este apelido rajá, que (como já escrevemos) se dá em denotação de grande honra, ao modo que nós temos o título de conde. Peró nem a cavalaria, nem a nobreza, nem o seu capitão tam nomeado Sansotea de Rajá, o qual ali fez maravilhas, os pôde livrar de morte, leixando a sua bem vingada em vidas e sangue, que derramaram dos nossos. Finalmente, este foi um dos honrados feitos que se naquelas partes fizeram, assi no cometimento, como no pelejar dele, no qual quási todolos mouros que defendiam aquela força ficaram estirados no meio dela, e deles foram cativos, sem algum estar inteiro em suas carnes; e dos nossos morreram mui poucos, porém feridos houve assaz. Havida esta vitória, mandou Duarte de Melo recolher a artelharia que nela estava, a qual passou de trezentas peças, em que havia muitas de bronço sem outro esbulho; porque, como todos estavam ali em guarnição e defensão desta força, não tinham mais móvel, que quanto traziam sobre suas pessoas, e per derradeiro foi queimada e feita em cinza. Duarte de Melo, porque a armada que ia dar os rebates a Malaca, tanto que ele entrou no rio per mandado do capitão Sansotea de Rajá, se recolheu per ele acima, quisera ir trás ela, até o lugar de Pago onde el-Rei de Bintão estava, e em modo de salto dar também sobre ele com aquela vitória que lhe Nosso Senhor mostrava; mas não o pôde fazer. Porque, como el-Rei tinha sabido que a sua armada, por grande que fosse, não havia de poder resistir à nossa; toda a sua guerra era saírem dali as suas lancharas a saltear os 61v 61v juncos que vinham a Malaca, e às vezes dar mostra de si à cidade, em modo de rebate, e tornar-se logo a recolher a esta guarida do rio. E temendo que a nossa armada podia subir pelo rio acima, té onde o Pago, seu apousento, tinha mandado atravessar o rio com grande tranquia de madeira em partes, porque as nossas, quando subissem acima, fosse per caneiros mui estreitos e de passagem perigosa. O primeiro atalho dos quais era ante de chegar a esta força que lhe tomaram, e acima dela outro e outros, de maneira que di à povoação do Pago, onde el-Rei estava, nos lugares mais estreitos

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havia estes atravessados 122 de tranquia. E, segundo Duarte de Melo soube dos cativos que ali houve, a causa por que Sansotea de Rajá mandou que sua armada se fosse por o rio acima, foi porque lhe pareceu que ele, Duarte de Melo, não vinha a mais que a lha queimar, e não a cometer a fortaleza, por estar mui defensável, e com mais gente que quando ali foi ter o capitão Afonso Lopes da Costa, que levava dobrada frota do que ele trazia. Vendo Duarte de Melo, depois que se embarcou, a segunda estacada de tranquia, que estava logo acima da fortaleza, e que acima havia outras, que lhe empediam seu desejo, contentou-se com aquela tam ilustre vitória que lhe Nosso Senhor deu, e veo-se pera Malaca, onde foi recebido com grande festa e prazer de todos, por ficarem desabafados dos sobressaltos deste capitão Sansotea, e mais poderem haver mantimentos de fora, que com temor dele não vinham, cousa que os mais atormentava que a mesma guerra.

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61v 61v 122 Capítulo III. Como Garcia de Sá foi ter a Malaca, e Afonso Lopes da Costa, por estar mui doente, lhe entregou a capitania da cidade, e se veo à Índia, onde morreu em chegando; e do que António Correa passou, assi em Pegu como em Malaca, onde Diogo Lopes de Sequeira o mandou. Havendo pouco mais de três meses que este feito era passado, adoeceu Afonso Lopes da Costa, capitão da cidade, a qual quis Nosso Senhor livrar de outras tais revoltas, como vimos que houve nela sobre o suceder à capitania por falecimento de Jorge de Brito; porque em tal estado estava Afonso Lopes, que não dava a sua doença muita esperança de vida. E ante que o Nosso Senhor levasse, acertou de vir à Índia Garcia de Sá, filho de João Rodrigues de Sá, a quem Diogo Lopes de Sequeira deu licença que, enquanto não entrava em cargo algum, e ele não ia ao Estreito de Meca, onde esperava ir o ano 62 62 seguinte, fosse em ua nau a Malaca fazer seu proveito. E também afim que, com sua chegada, Malaca receberia favor, assi de gente como de mantimentos, porque de todas estas cousas havia de ir bem provido; e mais tornaria na moução de Dezembro com o cravo, noz, massa e as outras sortes de drogas, que daquelas partes soem vir pera a carga das naus, que haviam de partir o Janeiro seguinte de quinhentos e vinte. Afonso Lopes da Costa, quando viu Garcia de Sá, pessoa tão principal, 123 e que levava consigo passante de sessenta homens de armas, além da gente que amarinhava a nau, houve que Nosso Senhor o vinha a ver, e à mesma cidade, porque ele estava mui desconfiado de sua vida; e segundo lhe dizia o mestre, no mar ou na Índia podia haver saúde. Finalmente, chamando ele, Afonso Lopes, os capitães, oficiais e pessoas principais da cidade, lhe propôs o estado em que estava; e que, vendo quanto compria a serviço del-Rei e bem daquela cidade ser governada per ua tal pessoa como era Garcia de Sá, ele desestia da capitania e lha entregava, pois a sua doença era mais de morte que vida. E sua tenção era ir-se pera a Índia na própria nau em que ele, Garcia de Sá, fora, com o qual (segundo já o tinha praticado) haviam de ficar mais de sessenta homens, que vinham em sua companhia pera guarda e defensão da cidade, que era um grande socorro para ela, por quam desfalecida estava de gente, e a que havia (como todos sabiam) estava doente, e não mui inteira nas forças corporais pera sofrer os trabalhos daquela terra, que sempre havia mister ser cevada com gente fresca pera isso. A esta vontade de Afonso Lopes da Costa contrariou Lopo Cabreira, alcaide-mor da fortaleza, alegando o regimento del-Rei ser em contrairo do que ele queria fazer, porquanto a ele pertencia a sucessão da capitania, fazendo sobre isso alguns requerimentos; mas tudo cessou, havendo respeito às calidades de Garcia de Sá e à gente que com ele ficava. Por a qual razão Afonso Lopes lhe entregou a capitania per um auto solene; e ele partiu em a nau caminho da Índia, onde faleceu em chegando, por ir já mui debilitado. Garcia de Sá, tanto que começou entender no governo e estado da terra e nas cousas del-Rei de Bintão, soube que todo seu intento e trabalho era ajuntar parentes, amigos, e grandes aparatos de guerra, com fundamento de vir cercar Malaca, e não se levantar dela té a tomar ou morrer sobre isso. Porque, ainda que tinha muito sentido tam grande quebra, como foi a perda de tanta gente e munições de guerra que se perdeu na fortaleza do Rio Muar (segundo vimos), muito mais sentia ir já perdendo o crédito em todas aquelas partes. 62v

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62v Ca os parentes, genros e outras ajudas, que levemente achava no tempo de sua prosperidade, quando as pedia, começavam de lhe falecer, por ser cousa mui geral o favor seguir a prosperidade, e não a quebra. As quais cousas posto que Garcia de Sá sabia, vendo-se pobre de gente e de outros provimentos, com que não podia por em efeito seu desejo - que era, ante que esta serpe criasse mais cabeças das que queria ajuntar à sua, ir à fortaleza de Pago a lha cortar, se o Deus ajudasse convertia esta sua tenção em prover e repairar a cidade, reformando também navios velhos, de que tinha necessidade. Alguns dos quais deu a Duarte Coelho, que era vindo do reino de Sião, onde o mandou Dom Aleixo, segundo atrás fica, o qual, per espaço de três meses, andou no Estreito de Sabão e naqueles canais, per onde vinham os juncos a Malaca em guarda deles, por causa das armadas del-Rei de Bintão, até que aprouve a Deus que, tornado António Correa de Pegu, onde era ido, veo ter a Malaca, com que el-Rei foi fugindo do Pago. 124 Pera entendimento do qual feito (ainda que vai mais adiante), convém fazermos aqui relação do que primeiro procedeu. Atrás escrevemos como Diogo Lopes de Sequeira mandou António Correa com ua nau e um navio que viesse a Malaca, onde Afonso Lopes lhe daria juncos pera ir a Martabão e Pegu carregar de mantimentos pera provisão da cidade, e ele carregasse a nau e navio de lacre e outras mercadorias, e se fosse a Ormuz entregá-las aos oficiais del-Rei, por o muito proveito que se nesta viagem fazia. Deste navio que ele levava era capitão António Pacheco, que ia pera servir o seu cargo de Capitão-mor do mar de Malaca, do qual cargo fora tirado de posse, quando o prendeu Nuno Vaz Pereira sobre suas deferenças, como fica atrás; e tanto que o navio fosse em Malaca, havia de ficar por capitão dele um cavaleiro per nome Duarte Franco, que ia no mesmo navio, e assi ia também Manuel Pacheco, irmão dele, António Pacheco. E além deste navio, houvera de ir em companhia de António Correa até a Ilha Samatra, Diogo Pacheco, irmão destes dous, o qual havia pouco que com Manuel Pacheco viera de Malaca, e trouxera grandes informações das Ilhas do Ouro, de que havia geral fama na Índia estarem ao Sul de Samatra. Sobre o qual descobrimento Diogo Lopes o mandava, por ele, Diogo Pacheco, ser mui esperto nas cousas do mar e ter grande habelidade pera descobridor, além de ser cavaleiro de sua pessoa; e pera isso lhe mandou armar um navio, em que ele ia, e um bargantim, de que era capitão Francisco de Sequeira. E como, pera o resgate e comércio do ouro, se haviam 63 63 mister alguas sortes de panos de Cambaia, que não havia na feitoria de Cochi, ao tempo que António Correa dali partiu, não pôde ir com ele, somente António Pacheco, seu irmão, cuja companhia lhe durou pouco a ele, António Correa, com um temporal que sobreveo, com que foi ter ao porto de Pacém, e di a Malaca, e depois partiu pera Pegu, como já dissemos; e do que lá passou adiante se verá, porque queremos continuar este capítulo, relatando os trabalhos destes irmãos Pachecos. Os quais se teveram tanto favor da fortuna na Índia quanto tinham de serviço e cavalaria, eles foram bem prósperos em fazendas. Peró, como neste Oriente, a que chamamos Índia, reina mais a cegueira da fortuna que a luz da razão, dissemos já por ela ser crua madrastra dos fiéis e lijongeira madre dos artificiosos, cousa tão aprovada na boca do povo deste reino, cabeça dela, que, quando vem passar um destes seus mimosos com a pompa da sua prosperidade, dizem: - Vedes, ali vai um filho da Índia. O qual dito nunca se pode dizer por algum destes irmãos, porque quatro de que se ela servia, a três sepultou em si; e um que cá veo - foi António Pacheco - acabou neste reino mais farto de serviços que de galardão. E tornando à viagem de Diogo Pacheco, que partiu logo nas costas de António Correa, tanto que começou tomar per rumo de sua navegação a costa da Ilha Samatra pela parte do Sul, sendo

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tanto avante como o reino 125 chamado Daia, que será vinte léguas do de Achém, que fica ao Ocidente, na ponta da Ilha, com um tempo que teve, perdeu-se dele o bargantim, o qual foi ali dar à costa, e dele escapou somente um escravo canari, que depois veo ter a Achém, onde os nossos o acharam, e dele souberam a perdição deste bargantim. Diogo Pacheco, seguindo a costa, foi ter ao reino de Barros, mui nomeado naquelas partes polo muito ouro que nele há, e assi o cheiroso beijoim, a que os nossos por a suavidade chamam beijoim de boninas, e por outras mercadorias de preço. Por causa das quais cousas concorrem ali alguas naus de Cambaia e navios dos reinos de Pacém, Pedir, Achém e Daia, das quais partes ele achou surtas três velas, que, como conheceram ser navio nosso, ficaram desamparadas, acolhendo-se a gente a terra. Diogo Pacheco, entendendo o seu temor, fez sinais de paz, com o que os governadores da terra mandaram saber quem era e o que queria, vesitando-se com algum refresco. Aos quais ele, depois de grateficar seu presente com alguas cousas das que ali podiam ser estimadas, respondeu ser um capitão del-Rei de Portugal, mandado pelo seu governador da Índia rodear aquela ilha per a banda do Sul; e nos portos que descobrisse, 63v 63v notificasse que seguramente podiam levar suas mercadorias a Malaca, e que também podiam vir a ele, se lhe aprouvesse, porque mercadorias levava pera com eles fazer pacífica comutação. E quanto à gente que fugira dos navios com sua chegada, seguros podiam tornar a eles, posto que fossem de lugares com que os portugueses tevessem guerra; porque, por reverência de estarem naquele porto del-Rei de Barros, com quem el-Rei D. Manuel de Portugal, seu Senhor, desejava ter conhecimento, ele lhe faria muita honra, e os empararia, se ali outrem lhes quisesse fazer algum mal ou dano. Da qual reposta o Rei da terra e seus governadores ficaram mui contentes, e mandaram logo a bordo do navio refresco, e que fossem fazer com ele comutação das cousas que havia na terra com as que ele trazia. Diogo Pacheco, porque se viu sem o bargantim, que era a principal cousa que ele havia mister pera aquele descobrimento a que ia, determinou de gastar os panos, que levava pera o resgate do ouro, a troco do que lhe ali deram, que foi um pouco de ouro e beijoim, e alguas cousas que dali levam a Malaca. Porque os mouros, como são ciosos de nós, poucas vezes em terras, onde novamente imos ter, descobrem a grossura que tem, temendo que nos façamos senhores dela, e os lancemos daquele proveito que eles logram. E enquanto ali esteve, somente trabalhou em duas cousas: em se vigiar, temendo que de noite, per indústria dos mouros de Cambaia, não lhe fosse feita algua traição; e em se informar dos da terra do que tinham sabido, e se dizia das Ilhas do Ouro, que estavam ao Sul daquela Ilha Samatra; porquanto, geralmente em Malaca, onde iam alguns mercadores daquele reino Barros, se dizia que na terra não havia tanto ouro como eles levavam, mas que a maior 126 contia haviam per resgate nas Ilhas do Ouro, a que eles navegavam. E posto que os mouros e naturais da terra deste negócio eram mui ciosos, tanto poderam peitas, que Diogo Pacheco deu a dous ou três naturais dali, que já lá foram, que vieram a lhe dizer o que tinham visto e experimentado, dizendo que quási ao Sueste daquele porto de Barros cento e tantas léguas, havia ua corda de baixos e restingas, em meio dos quais estava ua ilha não muito rasa, e per as fraldas chea de palmares, dentro na qual vevia muita gente preta, com que faziam resgate de ouro à borda da água, por não consentirem que alguém fosse onde eles habitavam, e por isso não sabiam o sítio da terra per dentro, nem o mais que nela havia, nem o modo da vida daquela gente, a qual dava muita cantidade de ouro a troco de uns panos de Cambaia da sorte que ele ali trouxera, 64 64

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que eram vespícias, mantazes e bretangis azuis e vermelhos. E posto que eles faziam bom barato do ouro a troco de tam baixos panos, ainda havia muitos homens, que se lá fossem ua vez, por mais ouro que trouxessem, não tornariam lá outra, com temor de perder a vida; porque geralmente de vinte velas que lá fossem, não ficava a quarta parte, por ser esta navegação mui perigosa. A causa era não se poder ir a esta ilha, senão em moução de tempo, que durava três meses, e em vasilhas mui pequenas, por os muitos baixos e restingas que tinha, em que havia alguns canais per que navegavam, e estes mui estreitos, e que cada ano se mudavam, por serem de area, com a revolução das águas no inverno daquelas partes. E quando acertavam de entrar ou sair per eles, em dia que não fosse muito brando e sereno, quebrava o mar em frol e acapelava qualquer cousa que achava diante. Diogo Pacheco, peró que estes homens lhe fizessem maiores deficuldades, ciosos deste negócio, segundo ele entendia, não leixava de lhe perguntar muitas cousas, assi pera seu aviso, como pera ver se os compreendia em algua contradição. E depois que deles tirou o que pôde, como isto era o principal que o ali fez deter alguns dias, mandou-se espedir del-Rei e de seus governadores, e fez seu caminho correndo a costa da ilha adiante, até chegar ao canal que ela e a terra de Jaua fazem, chamado de Polimbão, de ua cidade cabeça do reino da mesma Jaua, que jaz sobre aquelas praias. E di, torneando a ilha per a outra costa do Norte, foi ter a Malaca, onde achou Garcia de Sá por capitão, e partido pera a Índia Afonso Lopes da Costa, o qual, ante que adoecesse, sendo já António Correa em Pegu, prendeu a seu irmão António Pacheco, e o tinha mandado à Índia, sem o querer leixar servir a capitania-mor do mar. Alguns dizem que a causa principal desta prisão foi ser Afonso Lopes da Costa homem de forte condição e rixoso, enquanto esteve em Malaca, com muitas pessoas; e porque António Pacheco era homem que não lhe havia de sofrer algua soltura de palavras, que ele tinha, quando o viu em Malaca, e que vinha com ele seu irmão Manuel Pacheco, e que Diogo Pacheco do descobrimento que ia fazer ali havia de ir ter, temeu que três irmãos, e mais 127 tão cavaleiros, aviassem com ele ter moderação de palavras. Finalmente, ele mandou fazer autos de sua prisão, dizendo que lhe era descortês e homem mal sofrido, e condenando-o em culpas, que ele mesmo, Afonso Lopes, tinha, o entregou a seu irmão Gaspar da Costa, que ele mandou à Índia em ua nau, que se foi perder nas Ilhas de Gamispolá. As quais, por serem fronteiras e 64v 64v mui vezinhas à cidade Achém, tanto que se soube nela que a gente daquela nau estava ali perdida, foram a eles lancharas de mouros, com os quais pelejaram tanto, que não ficaram mais vivos que o capitão Gaspar da Costa, António Pacheco, Gregório Gonçalves, do Algarve, Diogo Fernandes e outros três, cujos nomes não vieram à nossa notícia; e todos tam feridos, que se houveram por tam mortos como os outros. Dos quais tanto que Garcia de Sá, que já servia de capitão de Malaca, soube parte, ele os mandou resgatar per meio de Nina Cunapão, um gentio, grande nosso amigo, que estava por xabandar em Pacém, que dará de Achém até vinte léguas. E a este negócio enviou Diogo Pacheco, que, quando chegou a Malaca (como dissemos), estava bem inocente dos tais trabalhos de seu irmão. Mas maiores os padeceu ele em tornar ao seu descobrimento do ouro o ano seguinte, pera onde o armou Garcia de Sá em um navio da terra e um bargantim, com que chegou ao porto de Barros, onde estevera, no qual tornou achar quatro ou cinco velas de Cambaia e de outras partes, que lhe não consentiram tomar pouso dentro no porto, tirando-lhe às bombardadas. Diogo Pacheco, porque o vento lhe era contrairo, e viu que gente da terra a grã pressa se metia em lancharas pera vir também contra ele, meteu-se no bargantim, querendo tirar à toa o navio ao mar largo polo não tomarem; e foi o tempo tanto, que o mar comeu o bargantim, e o navio veo à costa, do qual escaparam alguns malaios, homens do mar, casados em Malaca, que se meteram pelo

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sertão da ilha atravessando-a toda, e vieram ter da outra banda do Norte, onde acharam embarcação que os levou a Malaca, os quais contaram esta perdição de Diogo Pacheco, que foi o primeiro dos nossos que perdeu a vida por descobrir esta Ilha de Ouro.

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64v 64v 128 Capítulo IV. Como António Correa chegou ao reino de Pegu, e assi se descreve o sítio e cousas dele, e da paz que ele, António Correa, assentou com o seu Rei, e do mais que fez até chegar a Malaca. Tornando a continuar com a viagem que António Correa fez a Pegu, com bom tempo que teve, depois que partiu de Malaca, chegou ao porto da cidade chamada Martabão, que é do estado del-Rei de Pegu. E como, per um rio navegável que tem, do sertão concorrem ali quási todalas mercadorias, que vão ter à cidade 65 65 Pegu, cabeça deste reino assi chamado, e na própria terra havia os mantimentos que ele ia buscar, e muita cópia de lacre, e dali per terra à cidade de Pegu, onde el-Rei estava, seriam até sessenta léguas, determinou não subir mais pela costa acima, pera entrar per o Rio de Cosmi, per onde vão ter à própria cidade Pegu. Porque, como naquele tempo toda a costa deste reino estava ainda por descobrir por nós, a qual é mui chea de ilhas, e os mais dos rios dos principais portos tem tam grande macaréu, que perigam muitas naus, abastou o em que se ele viu no porto de Martabão, pera não querer fazer mais experiência; e também pareceu-lhe que per este modo podia dar mais prestes aviamento aos juncos, que havia de carregar de mantimento pera Malaca, por a necessidade em que a leixava, e principalmente por achar ali muitos juncos, que a frete vão cada dia a ela, por ser mui breve viagem. Assi que por estas causas dali quis mandar recado a el-Rei de Pegu, e pera isso ordenou António Passanha, natural da Vila Lanquer em modo de messageiro, e por escrivão desta message Belchior Carvalho, e seis ou sete homens pola mais autorizar, afora seus servidores e alguns piães da terra, que o governador da cidade lhe ordenou que fossem em sua companhia com provisões pera os agasalhar per todo o caminho. E porque António Correa foi o primeiro capitão e pessoa notável, que ali foi enviado assentar paz com el-Rei de Pegu, depois que Afonso de Albuquerque de Malaca mandou a ele, Rui da Cunha, e esta paz e amizade, que ele, António Correa, assentou, foi com grande solenidade, ante que venhamos à relação dela, faremos outra das cousas deste reino. Pegu, per que geralmente nomeados este reino, nome é imposto pelos estrangeiros; os naturais chamam-lhe Bagou, e assi chamam à principal cidade, donde o reino tomou o nome. Pela parte do Ponente, é cercado este reino do mar da enseada de Bengala, e o seu comprimento é da cidade Rei, marítima, que está em catorze graus e um terço de elevação do Polo Árctico, e acaba em dezoito na cidade Sedoe, também marítima. Porém nesta costa se contém mais léguas do que se mostra per estes quatro graus e um terço, porque vai ela repartida per esta maneira: o primeiro terço de toda a distância 129 sua é de Norte-Sul, e o segundo de Levante a Ponente, e o outro torna ao Norte, per onde se vê que os dous terços somente multiplicam em graus, e o mais em número de léguas por a feição que a terra faz. Pela banda do Norte, vai entestar em o reino chamado Arracão, com que muitas vezes tem guerra, e não pode tomar, por ser mui montuoso e 65v 65v cercado de grande arvoredo. E correndo desta parte dentro pelo sertão, até chegar ao sertão da cidade Rei, onde ele fenece da banda do Sul, vem fazendo ua faixa de terra à maneira de meia lua.

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A maior parte da qual é montuosa e habitada dos povos bramás e jangomás que se metem pela parte do Oriente deste reino, entre ele e o grã reino Sião, o qual Sião vem beber no mar da cidade Tavai pera baixo. Toda esta terra de Pegu ou Bagou, como lhe chamam os naturais, é mui chã à maneira de campina, que a faz ser alagadiça, com muitos esteiros do mar, que entram per ela; e per as bocas de dous notáveis rios, que a retalham toda em grande número de ilhas à maneira de ua horta regada. As quais águas doces a fazem mui fértil de todo género de mantimento, assi dos agricultados, como dos que a própria terra brota de si; e pela mesma maneira tem a criação dos gados e alimárias com grande cópia de aves e pexes, que se pescam na água salgada e doce, com que a terra é mui abastada de mantimentos. Té este tempo que António Correa chegou aqui, e depois per alguns anos, se demarcava este reino (como dissemos), em que haveria de comprimento pouco mais de noventa léguas, e no mais largo outro tanto. Porém de poucos anos a cá, com a comunicação nossa e algua ajuda que houve dos nossos, que lá estavam fazendo suas fazendas, fez el-Rei guerra aos povos bramás, e tomou-lhes alguns reinos, até que a Fortuna lhe virou as costas, e o rostro a um vassalo dele mesmo, Rei, que ele tinha posto por governador do reino Tangú dos bramás. O qual com esta gente bramá, que é mui belicosa, lhe tomou o reino, e ainda custou a vida a um cavaleiro per nome Fernão de Morais, português, que lá estava com um galeão fazendo carga de lacre per mandado do governador da Índia, com o qual morreram aqueles que consigo tinha no galeão. E foi tamanha a fortuna deste novo tirano, que não somente, tomou todo este reino Pegu, matando todolos principais da terra, um e um, por se segurar deles, mas ainda conquistou estes reinos: Prom, Melitai, Chalão, Bacão, Mirandu e Avá, que correm contra o Norte mais de cento e cinquenta léguas, todos de povos bramás, sempre ao longo do rio, que vem do lago Chiamai, o qual com suas correntes rega grã distância de terra por vir per campinas; e quando com sua crescente saem da madre, se alarga mais de trinta léguas, com que as terras ficam estercadas do seu nateiro, e responde tam em breve com a novidade das sementeiras de arroz e criação dos gados, à maneira da terra do Egipto com a crescente da chea do Nilo. E depois de 66 66 havidas estas vitórias, em que também alguns dos nossos melitaram, quási nos anos que compúnhamos esta história, tentou de ir tomar 130 o reino Sião, peró não lhe sucedeu como ele desejava. Ca, por ser caminho comprido e muita parte montuosa, e tam cego com arvoredo, que lhe convinha, à força de machado, fazer estrada per distância de muitas léguas, não ganhou nesta jornada mais que perda de grande número de gente; e porém chegou à vista da cidade Hudiá, cabeça do reino Sião, que lhe foi bem defendida. Este povo de Pegu tem língua própria, diferente dos siames, bramás, Arracão, com que vezinha, por cada um ter língua per si. Porém quanto à maneira de sua religião, templos, sacerdotes, grandeza de ídolos e cerimónias de seus sacrifícios, uso de comer toda imundícia e torpeza de trazer cascavéis soldados no instrumento da geração, convém muito com os siames. E ainda dizem eles que os siames procedem da sua linhagem; e será assi, porque esta torpeza dos cascavéis em todas aquelas partes não se acha em outro povo. Donde se pode crer ser verdade o que eles contam - que aquela terra se povoou do ajuntamento de um cão e ua mulher; pois que no auto do ajuntamento deles querem imitar os cães, porque quem o imita, dele deve proceder. E a história desta sua geração é que, vindo ter à costa daquele reino Pegu, que então eram terras ermas, um junco da China, com tormenta se perdeu, de que somente escapou ua mulher e um cão, com o qual ela teve cópula, de que houve filhos, que depois os houveram dela, com que a terra se veo a multiplicar, e por não degenerarem do pai, inventaram os cascavéis; e daqui, depois que a gente foi muita, se passou a Sião, donde os daquele reino tem o mesmo costume; e porque em ambas estas partes as mulheres tem melhor parecer que os homens, dizem elas que as fêmeas saem à primeira mãe, e os machos ao pai. Outros dizem que esta terra e a de Arracão foi povoada de

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degradados, e que o uso dos cascavéis foi remédio contra aquele nefando pecado contra natura. E ainda alguns judeus daquela região, que sabem a língua e entendem a escritura deles, dizem que estes degradados eram enviados per el-Rei Salamão, de Judea, no tempo que as suas naus navegavam àquelas partes, em busca de ouro, que levavam de Ofir, que eles tem ser na Ilha Samatra, que naquele tempo haviam ser terra contínua a esta. Seja como for, pois de tempos tam antigos não temos escrituras, somente o que o povo recebe de pai a filho - e segundo o demónio, naquele 66v 66v tempo e ainda agora, reina em toda aquela gentelidade - mais nefandos abusos, fora do pensamento nossa, tem entre si. Basta para notícia das cousas deste reino e discurso de nossa história, saber as demarcações dele, o sítio, abastança e religião da gente; o mais de seus costumes, governo e estado de seu Rei, uso de suas armas, e outras cousas que entre eles se usa, leixamos pera os Comentários da nossa Geografia, a que sempre nos remetemos, por ser da própria matéria, quando mais particularmente falamos de cada reino per si. E tornando aos mensageiros que António Correa mandou ao Rei de 131 Pegu, que reinava ao tempo que ele chegou ao porto de Martabão: tanto que per eles foi informado do que estava ali, e que sua vinda não era a mais que assentar pazes e amizade com ele, com alguns justos impedimentos de não poder ir a ele, foram logo despachados com dádivas em retorno do que lhe António Correa mandou. E pera efeito da amizade e paz que ele queria assentar com António Correa em nome del-Rei de Portugal, como seu capitão que era, enviou com o mesmo António Passanha duas pessoas notáveis de sua casa, um secular e outro religioso, que era o seu raulim maior, a que todolos outros do reino Pegu obedecem. Chegadas estas duas pessoas tam principais à cidade Martabão, que por causa de sua vinda foi logo metida em prazer e festa, e mais sabendo serem vindos a este assento de amizade nossa, que eles muito desejavam pola vezinhança que tinham com Malaca, que era a vida e principal comércio de toda aquela enseada de Bengala, houve com eles e António Correa suas vesitações. E quando veo ao dia que todos três se haviam de ver pera jurar estas pazes, o qual auto, pera maior solenidade, se havia de fazer no templo da cidade, com muita gente que veo a ele, esperaram por António Correa, o qual foi com os seus na maior pompa que ele pôde, por mais solenizar esta festa, levando o capelão da nau, que lhe servia de raulim. E como já entre eles as pazes estavam assentadas, e não vinham àquele lugar a mais que serem juradas, segundo seu uso, tanto que todos foram juntos, não houve mais que fazer que tirar o samibelegão ua folha de ouro batido, onde (segundo uso dos reis daquele Oriente), vinham escritas estas capitulações. E entregues a um oficial, foram lidas em alta voz duas vezes: a primeira na própria língua da terra, pera serem entendidas dos naturais; e a segunda interpretadas em a nossa pera os nossos; e per modo semelhante mandou António Correa ler as suas per o escrivão da nau, 67 67 escritas em papel, a nosso uso. Lidas e assinadas as quais cousas, quando veo ao juramento, que o samibelegão havia de fazer, o seu raulim começou a ler per um livro de sua religião, e per fim da lição tomou uns papéis amarelos (cor dedicada ao culto divino), do tamanho de letras de cambo, e alguas folhas de árvores odoríferas, em que iam escritas palavras, as quais, acendidas em fogo, se fizeram em cinza. E des i tomou as mãos do samibelegão entre as suas, e as pôs sobre aquelas cinzas, dizendo alguas palavras, a que o samibelegão respondia, como que concedia naquele juramento, prometendo em nome del-Rei ser firme e valioso o que assentava, tudo isto com tanta cerimónia, atenção e silêncio, que fez grande admiração aos nossos. António Correa, quando veo a fazer seu juramento, chegou-se a ele o capelão da nau vestido em sua sobrepelisa alva. E porque em a nau não

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132 havia outro livro que fizesse maior pompa, por ser de folha de papel inteira, que um Cancioneiro de trovas emprimidas, em o qual estavam as obras que os fidalgos e pessoas deste reino, que tinham vea pera isso, té aquele tempo tinham feito, quis António Correa levar ante este livro, que o Breviário do Crélego, ou algum livro de razar, que na vista do gentio, que era presente, parecia pouca cousa, e que não ornamentávamos bem as palavras de nossa crença. Finalmente, tomando o capelão o livro na mão, e aberto pera António Correa jurar, pondo os olhos na letra, começou a ler alto, segundo o auto requeria, o princípio das trovas, que tinha feito Luís da Silveira, guarda-mor do Príncipe D. João, que depois de rei o fez Conde de Sortelha; o argumento das quais é do Eclesiastices de Salamão, que começa: Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade. Na qual hora, por razão destas palavras, tomou tamanho receo a António Correa com admiração delas, e lhe saltou no espírito um tremor, como se posesse as mãos nas palavras de toda nossa Fé. E teve pera si que era obrigado comprir aquele simulado juramento; porque Deus não e testemunha de enganos, ainda que sejam os tais autos feitos entre pessoas diferentes em fé, quando ambas as partes contratam de paz e concórdia em bem comum. Acabado este auto de paz e concórdia, que causou ser logo António Correa provido de todolos mantimentos, que havia mister pera Malaca - lacre e outras cousas pera a sua viagem de Ormuz -, ante que se partisse, lhe aconteceu cousa que lhe mudou esta viagem; e o caso foi este: Havia naquela cidade Martabão, ao tempo que ele, António Correa, chegou, 67v 67v alguns mouros ali estantes fazendo suas mercadorias, os quais foram presentes a todo o auto de paz, que ele assentou; e como isto foi para eles ua grande dor, porque logravam o comércio daquele reino, onde té aquele tempo navios nossos não continuavam, em alguas vezes que o piloto e mestre da nau de António Correa foram a terra consertar as velas e prover-se do necessário pera sua viagem, em banquetes que lhe pelos da terra foram dados per alguns principais homens da terra, como nossos amigos, parece que teveram os mouros tal indústria, que lhe deram peçonha, de que morreram, estando António Correa pera partir. Quando se ele viu manco destas duas tam principais partes de sua navegação, tomou por remédio tornar-se a Malaca em companhia dos juncos, que tinha carregado de mantimentos, porque neles havia pilotos da terra que sabiam esta navegação, e não os tinha pera a Índia; e sem esperar mais, como fez tempo, se partiu pera Malaca, onde chegou a tempo que tanto aproveitou com sua pessoa, como com os mantimentos que levava. Parece que pera isso permitiu Deus o desastre da morte do piloto e mestre, como se verá neste seguinte capítulo.

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67v 67v 133 Capítulo V. Como Garcia de Sá ordenou ua armada a António Correa pera entrar no Rio Muar, e assi ir ao Pago, onde el-Rei de Bintão estava, ao qual ele desbaratou e destruíu. Enquanto António Correa se deteve nesta viage de Pegu, em Malaca passaram as cousas que atrás contámos, assi do tempo de Afonso Lopes da Costa, como outras, depois que Garcia de Sá entrou na capitania; e todas as mais que se neste tempo fizeram até a chegada dele, António Correa, deram muito trabalho à cidade, por não haver nela mais descanso que armas às costas, dos rebates e cercos del-Rei de Bintão, fome de que suas armadas eram causa, defendendo os mantimentos e doenças que cada dia iam gastando a gente que na cidade havia. Com a vinda do qual António Correa, porque do comer geralmente pende a maior parte do contentamento dos homens, trouxe ele tanta abastança à terra, que deste esforço tomaram todos forças com que os rebates del-Rei de Bintão cessaram, achando tanta resistência nas tranqueiras que soião cometer, que entenderam ser vindo à cidade socorro 68 68 de mantimento e gente. Garcia de Sá, como viu que el-Rei de Bintão mais dano lhe fazia per fome que per armas, determinou, nesta prosperidade e alegria que os homens tinham com aquela abastança, atalhar ao diante, e mais aos ajuntamentos que el-Rei de Bintão fazia (como atrás escrevemos), pera vir em pessoa cercar a cidade. Finalmente, ele pôs sua tenção em conselho; e propostas muitas razões e inconvenientes sobre o caso, assentou que, pera tirar aquela serpe que tinham tam perto, como era o Pago, donde cada dia eram cometidos, convinha, pera quietação daquela cidade, ir sobre el-Rei de Bintão, ante que se fizesse mais poderoso com as ajudas que convocava a si, e o lançassem daquela fortaleza. E que, vistas as calidades da pessoa de António Correa, e quanto bem aquela cidade per meio dele tinha recebido, este, por ser o principal, convinha que também viesse da sua mão - que era ir por Capitão-mor de ua armada, que se faria pera este feito. E porque demos o seu a cada um, as principais pessoas que eram neste voto foram Garcia de Sá, que havia dias que o trazia no peito, Dom Rodrigo da Silva, Duarte Coelho, Manuel Pacheco, e outros três ou quatro. Prestes a frota, que seria de trinta velas, as mais delas navios de remo e alguns redondos, e caravelas, que Duarte de Melo, Capitão-mor do mar, trazia de armada, em que iriam até quinhentos homens, cento e cinquenta portugueses, e os mais era gente da terra, partiu António Correa a quinze de Julho do ano de quinhentos e vinte, em cuja companhia, além dos nomeados, iam mais estes capitães: Duarte Furtado, Francisco de Sequeira, Hanrique 134 Leme, Carlos Carvalho, Bartolomeu da Fonseca, Cristóvão Dias, Rui Mendes, Diogo Dias, João Salvado, e outros cujos nomes não vieram à notícia nossa. Este rio per que António Correa havia de ir (como já dissemos), na entrada tinha aquela força que Duarte de Melo destruíu; e em alguas partes onde era estreito, tinha alguas estacadas e tranquias que o atravessavam, leixando somente alguns canais per onde navegavam as lancharas del-Rei, todo per ambas as margens dele mui coberto de grande e espesso arvoredo, que o assombrava em tanta maneira, que não entrava o Sol nele, senão quando se podiam enfiar os seus raios com a madre do mesmo rio. E quando iam per ele, tombava a folha, ou qualquer moto que se fizesse, como em ua abóbada, de maneira que um batel que fosse remando era ouvido longe. Somente nos cotovelos que ele fazia com as torturas aqui era empedido

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68v 68v e se quebrava muito o termo do ouvido, em os quais lugares el-Rei de Bintão trazia sempre escuitas, pera ser avisado do que entrava per ele, com temor nosso, o qual estava em ua fortaleza situada não ao longo deste grande Rio de Muar, de que falámos, mas nas correntes de outro pequeno, quási como estreito, ao qual os naturais chamam Pago, donde ao lugar e sítio dela chamavam Pago, e vinha-se meter neste grande, que corre mui longe pela terra, sempre per lugares baixos e apaulados; e o Pago, como é de pouca água e mui estreito, passado o lugar onde el-Rei tinha feito seu assento, não passava mui adiante. Na margem do qual, de ambas as partes, ao modo de Malaca, el-Rei tinha feito ua grande povoação, toda de madeira, a ua das quais partes ficava o povo, e ele na outra, e no meio atravessava ua ponte per que se serviam. E posto que estas forças e povoações são de madeira, principalmente as que eles ordenam em modo de fortalezas, é cousa tam defensável, que a muitas delas não chega muro de pedra e cal; porque fazem ua estacada de paus tam fortes e duráveis, que lhe chamam os nossos pau ferro, e deles tam grossos como mastos, e tão juntos uns aos outros, que não pode um homem passar per entre eles, e são entulhados per dentro; e este entulho é um terço de toda sua altura, e per este modo são entulhados os baluartes, em que tem assestada artelharia. E como el-Rei de Bintão sempre teve receo de o cometerem ali, não somente neste lugar de sua habitação, mas ainda onde este pequeno Rio Pago se metia no de Muar, tinha feito em um cotovelo dele outra tal força de grossa madeira de ua banda e da outra do rio, onde se recolhia parte da sua armada, e a entrada do rio era per ua cancela, que se fechava cada noite, onde havia gente de guarnição, que guardava este lugar, que também tinha muita artelharia. 135 Finalmente, em baixo e em cima, tudo eram perigos e trabalho per que os nossos haviam de passar; pera tirar os quais empedimentos de madeira, ainda que não fosse tomar a espada e lança na mão, somente machados pera a cortar, cansaria mil homens, quanto mais tam pouca gente como a nossa era. Porém assi constituíu Deus as obras dos homens, que os mesmos homens per outro artifício, quando lhe a ele apraz, as vencem e desfazem. Porque, como António Correa per alguns malaios que sabiam bem estas entradas, era avisado de tanto embaraço e empedimento, levava ante si ua manchua com mais de vinte homens com machados pera os desfazer. Indo assi com esta ordem pelo rio acima, ante 69 69 que chegasse ao cotovelo, que dissemos terem os mouros feita a primeira força, que seria obra de sete léguas da barra, foi sentido e houve logo rebate, assi onde eles estavam, como na povoação del-Rei. O qual, suspeitoso de seu mal, a grande pressa mandou recolher muita parte da armada, que tinha em baixo pera a povoação onde ele estava; e, depois de recolhida, cortar muitas árvores das que estavam à borda do rio, pera o encher de tranquia. E em alguns passos mandou decepar outras té o meio, e estarem assi com cordas lançadas nas pontas com gente da outra banda prestes, pera que, querendo algum dos nossos navios passar, que as abatessem sobre eles. António Correa, quási noite, chegou junto da primeira estância, que os mouros tinham feita; e como a terra ali fazia um cotovelo agudo, ficava a tranqueira dos mouros da parte dianteira, e a nossa armada da parte traseira, tam vezinhas pelas costas, que se no meio não houvera tam alto e espesso arvoredo, viram-se todos; e porém ouvia-se o rumor de âmbalas partes, por as razões do tombar do rio, que dissemos. Ouvindo António Correa esta vezinhança, passada parte da noite, em que a gente algum tanto assossegou do rumor, mandou em um balão pequeno a Jorge Mesurado, feitor da sua nau, por saber a língua malaia, que lhe fosse espreitar a tranqueira dos mouros e escuitasse o rumor deles, pera saber em que determinação estavam. O qual, tornado a António Correa, disse que a prática da vegia dos mouros era que pela menhã haviam de pelejar com ele e animar-se uns aos outros; e que,

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segundo o rumor deles, lhe parecia que era muita gente. António Correa, por ter dado pera isso um certo sinal, tanto que foi ouvido, todolos capitães foram com ele, onde se consultou o modo que haviam de ter ao outro dia ante menhã, em que ele se determinava cometer os imigos; e a ordem que pera isso deu foi esta: Que Duarte de Melo, Capitão-mor do mar, por ter ua caravela que podia com os castelos ficar igual das tranqueiras e cancela per que era a entrada, iria diante, levada a caravela per batéis à toa, pera pela enxárcea e mareagem dela subir a nossa gente; e logo junto a ela iria ele, António Correa, por causa de um tiro grosso que levava na galé em que ia, e assi os outros navios maiores, que levavam artelharia pera se servirem naquela 136 chegada dela, e mais serem amparo aos navios de remo rasos, até entestarem nas tranqueiras, e principalmente na passagem da caravela. A qual assi estava feita e fechava aquele lugar da entrada, que muito mais receava António 69v 69v Correa o embaraço que lhe ela podia fazer na passagem, entalando-lhe os navios no meio da vea, que cometer a força que os mouros tinham feito à de dentro dela, onde tinham posta sua artelharia. E como este empedimento era o que lhe maior confusão fazia, ordenou que na caravela fosse da gente do mar a mais despachada e destra pera subirem pela enxárcea; e tanto que emparassem com a cancela, se lançasse nela um golpe de homens, e, entrados dentro, fossem com machados cortar qualquer fecho, com que estevesse fechada. Posto António Correa nesta ordem, tanto que foi menhã, começou a descobrir o cotovelo que a terra fazia, na volta do qual os mouros tinham feito sua fortaleza. E ainda a caravela não era descoberta de todo, quando a artelharia dos mouros, que estava ali apontada, começou a varejar, sem ela lhe responder com a sua, por assi o ter ordenado António Correa, senão depois que ele tirasse com ua espera, em sinal que dava Santiago. Dado o qual sinal, com que a artelharia de âmbalas partes começou a fuzilar, entrou no vão daquele rio um trovão contino, cousa tam espantosa, que não parecia ser instrumento de homens, mas que a natureza da terra e o furor do ar com todolos elementos concorriam em guerra e própria destruição sua, com que os homens não sabiam em que lugar estavam. Porque este contino e espantoso trovão, per ua parte; a grossura do fumo, que não saía daquele opaco e sombrio lugar, per outra; e a luz escura dos relâmpados, que de quando em quando, per outra, afuzilavam; e per derradeiro a grita de tanta gente, fazia tudo ua tal mistura nos ouvidos e vista, que se não podiam entender, responder ou conhecer uns aos outros, somente às cegas cada um lançava mão do que achava ante si. E quási apalpando mais que vendo o que faziam, os da caravela de Duarte de Melo, peró que lhe foi assaz trabalhoso, subindo pela enxárcea, houveram a cancela à mão; e depois que foram senhores dela, se lançaram dentro da tranqueira; e como não levavam outro intento, por lhe assi ser mandado, a primeira cousa que fizeram, foi vir abrir as portas da cerca à caravela pera entrarem os outros navios. Na qual entrada, sem mais pelejar, assi se houveram os mouros por vencidos, que nenhum quis esperar a fúria do nosso ferro. Finalmente, António Correa com toda sua gente se fizeram senhores daquela fortaleza, até do almoço que os mouros tinham posto ao fogo, que era arroz cozido e outras viandas segundo seu uso, que os nossos houveram por melhor que as lançadas e frechadas que naquela entrada esperavam achar. 137 Mas aprouve a Deu que os livrou deste 70 70 perigo e ficaram com o ânimo dobrado pera logo com esta vitória ir avante onde el-Rei estava; o que António Correa fez, tanto que os nossos esbulharam o que ali foi achado, que, por ser de gente

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de guarnição, era pouca cousa, e a melhor foram vinte e tantas peças de artelharia, a maior parte dela de metal, e alguas que foram nossas, que eles tinham havido nas afrontas que nos deram em Malaca. António Correa, porque temeu que, indo ele per aquele pequeno Pago acima, nas costas lhe podiam dar algua afronta as lancharas da armada del-Rei, que per ventura estariam escondidas per estes esteiros que vinham dar no rio grande, leixou ali Duarte de Melo na sua caravela e outros navios, que por grandes não podiam ir acima, por ficar seguro, e mais entre tanto recolheriam a artelharia e munições que ali ficavam. E assi ordenou, por causa das árvores que estavam atravessadas per o rio que havia de ir, e outras que estavam serradas, pera darem sobre ele à passagem dos nossos, ou ao menos pera lhe fechar à tornada o caminho, que fossem diante os batéis com os homens de machado, pera lhe tirar este empedimento e perigo. A qual providência aproveitou tanto que, sem ela, não podera ir adiante; porque, além da tranquia atravessada, havia em alguas partes muita estaca metida ao maço, tam profunda na vasa, por a terra ser apaulada, que lhe deu grande trabalho o arrancar e cortar desta madeira, e foi causa que se deteve muito em chegar à povoação onde el-Rei estava. O qual, com esta doença de António Correa, teve tempo de pôr sua gente em ordem, e seus elefantes armados, e tudo tam a ponto que, quando os nossos chegaram e o viram estar em ua chapa da terra que se fazia sobre o rio, onde ele havia de desembarcar, lhe fez assaz de temor. Porque, além desta vista, que parecia ser de dous mil homens bem armados pera dar e receber, em eles descobrindo este lugar, foram recebidos com ua grita, que rompia os ares estrogindo as orelhas; e quando foi aos nossos quererem poiar em terra, foram recebidos de muita artelharia, e ua nuvem de frechas, que cobriam o Sol. No qual feito claramente os nossos viram obrar mais o poder de Deus que o seu; porque, no primeiro ferro que começaram pôr na carne dos mouros, assi os cortou o temor e perderam as forças e sentido, que em nenhua outra causa o tinha senão em os pés; o qual desbarato causou pôr-se el-Rei em salvo com toda a potência de seus elefantes, parecendo-lhe que dentro no mato os nossos o haviam de tomar. Tanto foi o temor que lhe Deus pôs no ânimo, sem 70v 70v haver homem que tornasse atrás. Acabando esta gente de despejar a cidade, posto que os corpos de alguns ficaram atravessados per essas ruas, os nossos se fizeram senhores dela, 138 sem António Correa consentir que entrassem pelo mato em alcanço del-Rei, contentando-se com tamanha mercê, como lhe Deus fizera em lançar este tirano, que tanto nos perseguia, daquele lugar tam perigoso de entrar, que somente em o cometer era grande feito, quanto mais acabar-se sem morte de algum dos nossos, que foi outro novo milagre. Finalmente, a cidade e casas del-Rei foram esbulhadas do melhor que em tam pequenas vasilhas, como eles traziam, se pode levar, e per derradeiro se pôs fogo a tudo; e os mouros, em fugindo, por nos não lograrmos delas, o poseram em mais de cem peças de navios, uns que eram da armada del-Rei, assi como lancharas, calaluzes e outras de seu serviço, em que havia alguns de estado, douradas as popas e proas, ornamento em que estes príncipes querem mostrar a majestade e polícia de seu serviço, alguns dos quais, por mostra, António Correa levou a Malaca, leixando feito em cinza aqueles dous sítios. Na qual cidade foi recebido com o maior prazer, que ela havia dias que tivera; porque, com a destruição deste tirano (a quem daquela vez não ficou um barco nem peça de artelharia), ficava ela segura das perturbações que lhe dava. O qual, como homem desconfiado de mais poder viver naquela parte, se foi assentar na Ilha Bintão, que será de Malaca quorenta léguas, onde per algum tempo quietou, em quanto não teve forças.

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70v 70v 138 Capítulo VI. Como Garcia de Sá mandou de armada a Manuel Pacheco sobre o porto de Pacém e Achém, e do feito que cinco portugueses, que com ele foram, fizeram, e do mais que sobre este caso sucedeu. Com este feito, que foi mui soado per todas aquelas partes, ficaram os amigos e liados del-Rei de Bintão mui quebrados no favor que tomaram dele pera nosso dano, e alguns deles tinham cometido crimes e insultos contra nós, de que até então não houveram castigo, por estar Malaca tam afortunada da perseguição deste tirano, que não podia acudir a isso. E entre estes, que começaram tomar ousadia contra nós, foi um tirano que estava em Pacém, que se tinha intitulado por rei, e assi o Rei 71 71 do reino Achém, dos quais adiante particularmente faremos relação, por 139 lá ser mais próprio lugar. Aqui baste saber que tinha este de Pacém roubado alguns dos nossos, que ali foram ter com fazenda, assi no tempo que Lopo Soares governou, como depois que lhe sucedeu Diogo Lopes de Sequeira. E a cousa mais fresca, que então tinha feito, era serem ali mortos mais de vinte e tantos homens, deles criados de Dom Aleixo de Meneses, outros de D.João de Lima, capitão de Cochi, os quais ali foram ter em ua nau do mesmo Dom João, em que também se perdeu muita fazenda. Garcia de Sá, como com a vitória que houve del-Rei de Bintão ficou com mais algum repouso pera poder entender no que estes tiranos da Ilha Samatra tinham feito, os quais ele dissimulava pola opressão em que Malaca estava, ordenou logo de armar ua nau, a capitania da qual deu a Manuel Pacheco, que polo que ali era acontecido a seu irmão António Pacheco, quando foi cativo (como escrevemos), teria mais sabor de fazer esta guerra ao tirano de Pacém e Rei de Achém, andando per aquela costa defendendo-lhe a entrada das naus, que com mercadorias viessem a seus portos, e as fizesse arribar a Malaca, e assi não consentisse que os seus fossem pescar ao mar; porque, como os gentios da Índia, e assi os mouros que vivem no marítimo dela, mais se mantém do pescado que de carne, em nenhua cousa lhe podia fazer maior dano, que em lhe defender a pescaria, e assi as naus que vão àqueles portos, grande parte das quais levam das Ilhas de Maldiva muita muxama, que se faz de pescado, e é entre eles mui estimada. Partido Manuel Pacheco a este feito, começou atormentar aqueles dous portos de Pacém e Achém, tomando-lhe quantos pescadores vinham pescar, com um batel que pera isso trazia bem esquipado; e as naus estrangeiras fazia-as arribar a Malaca, e as que per força queriam tomar estes portos, metia-as no fundo. No qual tempo, por lhe falecer água, mandou a isso o batel remado per marinheiros malaios, e em seu resguardo com eles estas cinco pessoas: António de Vera, do Porto; António Passanha, de Lanquer; Francisco Gramaixo; João de Almeida, de Quintela; e o barbeiro da nau; porque, pela experiência que tinha de suas pessoas, não lhe haviam de leixar o batel em mãos dos mouros, sucedendo algum caso, enquanto os marinheiros fizessem aguada. Entrando este batel em um rio chamado Jacapári, que será do porto de Pacém ua légua, onde fez sua aguada, quando veo ao sair, como os mouros os tinham em 71v 71v olho, de ua parte e da outra choviam setas sobre eles, por os virem esperar à margem do rio; tudo

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polos entreter enquanto se faziam prestes três lancharas no porto de Pacém, pera os vir tomar ante que saíssem do rio ao mar, onde a nau lhe podia socorrer, e deram-lhe os mouros tanto trabalho com as nuvens de frechas que lhe tiravam, que, se não se cobriam com 140 as adargas, as quais iam cobertas das mesmas frechas, nenhum deles ficara com vida. Passado o qual perigo, já na boca do rio, começou vir a eles a maré, e com ela a viração, que os entreteve tanto, sem à força de braços poderem surdir avante, que vieram a ele três lancharas, que o vinham buscar. Ua das quais, que era a capitaina, por ser mais veleira, vinha um bom pedaço das outras, em cada ua das quais passavam de cento e cinquenta homens, todas mui bem remadas, e o capitão dela era um mouro, jau de nação, per nome Rajá Sudamici, que servia a el-Rei de Pacém de capitão de suas armadas. Os nossos, quando se viram tam longe da nau, e que o vento não servia pera lhe poder socorrer a tempo, sem primeiro passarem pela fúria daquelas três lancharas, determinaram morrer ante que se deixar cativar. E o conselho que tomaram foi oferecer-se a Deus em sacrifício, dizendo que não pelejassem no batel senão em lanchara, abalroando com eles juntamente, se lançassem dentro e se metessem às lançadas com os mouros, e o mais Nosso Senhor o faria por eles. A lanchara, como vinha com alvoroço de os levar na mão primeiro que as outras chegassem, como cousa de pouca presa chegou a eles, quási como que os queriam tomar à mão vivos; mas de outra maneira lhe sucedeu. Porque, ainda ela não chegava, quando os nossos com o nome de Jesu na boca se lançaram dentro tam levemente, que ainda o pé não era posto na coxia, quando o ferro das lanças era no peito dos mouros; assi animosamente, que como carneirada em que dão lobos, os fizeram logo remoinhar. E como eram muitos, uns embaraçavam os outros, por se resguardar de se não ferirem; e os nossos não tinham outro ofício, senão fornear e ensopar as lanças neles, com que alguns se lançaram ao mar. Finalmente, foi tamanha a desenvoltura e despacho que estes cinco homens com os marinheiros teveram naquele cometimento, que ainda que andavam bem sangrados, o Senhor Deus, que os animava e favorecia, lhe deu força pera que ficassem senhores da lanchara, morrendo grande parte dos mouros, uns deles às lançadas e outros afogados. E seu 72 72 próprio capitão, rouco de brados - que se não lançassem ao mar - não como quem fugia, mas com indinação deles, se lançou também; e com um terçado na mão dereita, remando com os pés e a esquerda, matava neles por se vingar, como homem desesperado. Quando as outras duas lancharas de longe viram que os nossos eram senhores desta, parecendo-lhe que o batel trazia tanta gente que podia fazer aquele feito, e mais que a nau começava de sobrevir a eles, fizeram a volta ao porto donde saíram, que foi vida pera os nossos, por estarem tais, que não 141 tinham já alento, e vasavam muito sangue; e o que Nosso Senhor fez mais por eles, foi que, das feridas que houveram, nenhum deles morreu. El-Rei de Pacém, vendo-se com esta injúria e temendo que, pois Malaca destruíra el-Rei de Bintão, que outro tanto poderia fazer a ele com algua armada, e também sabia que era ido um Príncipe herdeiro daquele Estado ao Governador da Índia, requerer ajuda contra ele, por segurar suas cousas, mandou dizer a Manuel Pacheco que queria paz e não guerra; e que, se o capitão de Malaca a mandava fazer por causa de alguas perdas que os portugueses ali tinham recebido, em que ele não era culpado (como se mostraria, quando o quisesse saber), ele era contente de compoer todo este dano. Manuel Pacheco, porque havia já tempo que andava ali e tinha vindo ao ponto que Garcia de Sá desejava, - que era ter paz com esta cidade Pacém, por ser mui importante ao estado de Malaca, e este tirano se sometia com obrigação de satisfazer as perdas que os nossos receberam, e mais que lhe convinha ir dar um fôlego à gente que com ele andava, - fengiu que ele não tinha

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poder pera assentar paz com ele, senão fazer-lhe crua guerra; e porém, porquanto a ele lhe convinha chegar a Malaca, daria conta ao capitão deste seu requerimento. Partido Manuel Pacheco, levou a lanchara que os nossos tomaram, pera estar em Malaca por memória de tam honrado feito, onde foi recebido com muito prazer de todos. E porque Duarte Coelho estava pera ir à China, onde Garcia de Sá o mandava com ua nau e um navio a fazer fazenda del-Rei, pera a qual viagem era mui necessário levar pimenta, e el-Rei de Pacém requeria paz; por vir em tam boa conjunção este seu requerimento, leixou de mandar a isso Manuel Pacheco, por se não fazerem duas despesas, e foi Duarte Coelho a este negócio. O qual assentou a paz e carregou as duas naus que levava, de pimenta e seda e outras mercadorias que ficaram em Malaca, em que se fez boa fazenda; e com a pimenta e outra carga partiu pera a China, da viagem 72v 72v do qual adiante faremos relação. E por ser já vinda a moução pera a Índia, partiu-se António Correa carregado de honra e da fazenda que fez em Pegu, cousas que poucas vezes se conseguem, onde ele chegou a salvamento. E per aqui acabamos as cousas que naquelas partes de Malaca se fizeram o ano de dezanove e vinte, no qual tempo passaram outras na Índia, de que convém darmos razão, por haver muito tempo que dela partimos.

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72v 72v 142 Capítulo VII. Em que se descreve o sítio das Ilhas de Maldiva, e alguas cousas delas; e como João Gomes, que foi enviado a fazer ua fortaleza na principal chamada Maldiva, a fez, e depois o mataram os mouros, e a causa porquê. Ao tempo que Diogo Lopes de Sequeira despachou António Correa, Garcia de Sá, Simão de Andrade e outras pessoas pera as partes de Malaca, em a relação do que alguns passaram nos detiveram até este passado capítulo, também despachou outros capitães. E porque João Gomes, de alcunha Cheira-dinheiro, foi o primeiro pera fazer ua casa forte nas Ilhas de Maldiva, primeiro que entremos na relação do que ele fez, convém darmos ua geral notícia destas Ilhas de Maldiva, em que tantas vezes falamos. Este nome Maldiva, posto que seja nome próprio de ua só ilha, como logo veremos, a etimologia dele em a língua malabar, quere dizer mil ilhas, mal - mil, e diva - ilhas, porque tantas dizem haver em ua corda delas. Outros dizem, que esta palavra mal é nome próprio da principal, em que reside el-Rei, que se intitula por senhor de todas, e a ela comunmente chama Maldiva, como se dissessem a Ilha de Mal, e como ela é cabeça de todas, todas se intitulam dela. E esta corda, que corre à semelhança de ua faixa estendida, fronteira à costa da Índia, começa nos baixos a que chamamos de Pádua, na paragem de monte de Eli, e vai entestar na terra da Jaua e costa de Sunda. Isto segundo demonstram alguas cartas da navegação dos mouros, porque os nossos até ora tem notícia somente de obra de trezentas léguas do curso delas, começando nas a que chamam de Mamale, nome de um mouro de Cananor, que era senhor das primeiras, que estão apartadas da costa Malabar per espaço de quorenta léguas em altura, doze graus e meio da parte do Norte. E as derradeiras nesta distância de trezentas léguas chamadas Candu e Adu, estão em sete graus da parte do Sul; e quási no meio 73 73 desta faixa de trezentas léguas está a principal delas, chamada da Maldiva, que dissemos, onde reside o Rei, que se intitula por senhor de todas. As quais ilhas, as mais pequenas, estão encabeçadas em as maiores, de maneira que ua governa trinta, quorenta, segundo estão situadas; e a este número assi encabeçado em ua chamam eles patana. E posto que o Rei, que se intitula por senhor de todas, e todo o povo delas seja gentio, os governadores são mouros, cousa que eles sempre trabalham; porque, com ter a governança das terras, pouco e pouco se vem a fazer senhores delas. E o modo que nisto tem é fazerem-se rendeiros da renda das terras, principalmente dos portos de mar, porque com este arrendamento anda junto o governo da justiça, 143 por se melhor arrecadarem as rendas do príncipe da terra; e este uso que os mouros tem, mais é inda nas terras firmes que nas ilhas. A situação destas de Maldiva, ainda que alguas das maiores sejam apartadas uas das outras per espaço de vinte, quinze, dez e cinco léguas, o maior número delas é estarem tam conjuntas e apinhoadas, que parecem um pomar meio alagado de água, que quási tanta parte é coberto como descoberto dela; e que de salto em salto, por não molhar os pés, e às vezes lançando a mão nos ramos das árvores, se anda todo. E são os canais desta água que as retalha tam retorcidos, que os mesmos naturais às vezes ua maré os apanha, e lá os vai lançar em parte, onde não sabem atinar. Porque ainda que estes canais muitos deles tem tanta altura, per que possam navegar naus mui grossas, são tam estreitos, que em partes vão dando com a entena das velas nos palmares; não que

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dem tâmaras, como dão as de Berberia e toda África, mas um pomo do tamanho da cabeça de um homem; ao miolo do qual, primeiro que lhe cheguem, tem duas cascas à maneira de noz. A primeira, posto que per cima, é mui lisa; passada aquela tez lisa, todo o mais é tam estopento, que se fia todo melhor que esparto, da qual cordoalha se serve toda a Índia, e principalmente em amarras, por serem as que se fazem deste fiado mais seguras e duráveis no mar que nenhua sorte de linho. E a causa é porque enverdece com a água salgada; e faz-se tam correento nela, que parece feito de coiro, encolhendo e estendendo à vontade do mar. De maneira que um cabre destes bem grosso, quando a nau com a fúria da tempestade, estando sobre âncora, porta muito per ela, fica tam delgado, que parece não poder salvar um barco; e no outro saluço que a nau faz arfando, torna a ficar em sua grossura. Servem-se mais deste cairo em lugar de pregadura; porque, como tem esta virtude de reverdecer e engrossar no mar, cosem com 73v 73v ele o tavoado do costado das naus, e tem-as por mui seguras. Verdade é que eles não navegam pela fúria dos mares do Cabo de Boa Esperança, nem menos tem um pairo, apesar dos ventos, como fazem as nossas naus; somente navegam no tempo do verão em mouções, que são tempos bonanças regulados em seu curso per espaço de três meses, e como entra inverno, logo cessam de navegar. Tem mais este pomo tam proveitoso outra casca de mui duro pau, per cima da qual ficam os sinais daqueles nervos e fios da outra, à maneira do entre-casco da sovereira, ou (por melhor dizer), à maneira de ua noz descoberta da casca verde. Esta casca per onde aquele pomo recebe o nutrimento vegetável, que é pelo pé, tem ua maneira aguda, que quere semelhar o nariz posto entre dous olhos redondos, per onde ele lança os grelos, quando quere nascer; por razão da qual figura, sem ser figura, os nossos lhe chamaram coco, nome imposto pelas mulheres a qualquer cousa, com que querem fazer medo às crianças, o qual nome assi lhe ficou, que ninguém lhe sabe outro, sendo o seu próprio, como lhe os malabares chamam, tenga, e os canaris, narle. O miolo que tem dentro nesta segunda casca, ficará de tamanho de 144 um grande marmelo, e porém de parecer diferente, porque sua própria semelhança na cor de fora e de dentro é ua avelã, que tem dentro algum vão, sem ser macia e do mesmo sabor, mas com mais grossura e substância, ca tem mais partes oleoginosas que a avelã. Dentro no qual vão se estila ua água mui doce e cordeal, principalmente ao tempo que ele está na árvore já de vez; e quando quere nascer, todo este côncavo em que esta água está, se faz ua massa espessa à maneira de nata, a que eles chamam lanha, cousa mui suave e saborosa, e de melhor substância que as amêndoas, quando na árvore querem coalhar. Porque este fructo na substância, na alvura, no uso de comer e óleo que em si tem, muito semelhável é às avelãs e amêndoas, e assi tem per cima aquela cor alionada, e per dentro é alvo. Este pomo, e a palmeira que o dá, parece ser das mais proveitosas cousas que Deus deu ao homem pera sua sustentação e necessário uso; porque, além de servirem no que já dissemos, fazem dele mel, vinagre, azeite, vinho, e mais é mui substancial mantimento per si só comido e mesturado com arroz, e per outros modos de que os índios em seus comeres se servem dele. E da primeira casca que o cobre, se faz o cairo, que dissemos ser tão comum e necessário pera a navegação de todo aquele Oriente, depois que o curtem, maçam a fiam à maneira do linho cânamo. As palmeiras que o dão também servem de madeira, de lenha e telha, porque cobrem 74 74 as casas com as folhas, por vedar bem a água, e assi lhe serve de papel, escrevendo nelas da maneira que já dissemos; e os seus palmitos, quando são novos, não lhe chegam da Berberia. Finalmente, como um homem naquelas partes tem um par de palmeiras, há que tem todo o necessário pera seu uso; e quando querem gabar algum de bondade em suas obras, dizem por ele:

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- É mais fructífero e proveitoso que ua palmeira. Afora estas árvores que se criam naquelas ilhas sobre a terra, parece que é tam viva a semente delas, que a natureza ali repositou, que em alguas partes debaixo da água salgada nasce outro género delas, as quais dão um pomo maior que o coco; e tem experiência que a segunda casca dele é muito mais eficaz contra a peçonha, que a pedra bezoar, que vem daquelas partes orientais, que se cria no bucho de ua alimária, a que os párseos chamam razon, de que nos livros do nosso Comércio tratamos largamente, falando das cousas contra peçonha. A mais comum e notável mercadoria que estas ilhas tem, por cuja causa se navega para elas, é o cairo que dissemos, por se não poder navegar em todas aquelas partes sem ele. E assi tem ua maneira de marisco tam meúdo como caracóis, mas de ua feição e de um osso duro, branco e lustroso, entre os quais se acham alguns tam pintados e lustrosos, que, feitos em botões com um cerco de ouro, parecem algua cousa esmaltada, dos quais se carregam por lastro muitas naus pera Bengala e Sião, onde servem de dinheiro, ao modo que entre nós serve a moeda meúda de cobre pera comprar 145 as cousas meúdas da praça. E a este reino de Portugal também se trazem por lastro dous e três mil quintais alguns anos, os quais se levam a Guiné, aos reinos de Beni e Congo, onde se gastam no mesmo uso de moeda, e o gentio do interior daquelas terras fazem desta moeda tesouro. E a maneira de como os moradores daquelas ilhas o apanham e pescam, é fazerem grandes balsas de folha de palma, liadas uas com outras por se não espedaçarem; e lançadas no mar, sobe este marisco a elas buscar algum cevo; e como estas balsas estão bem cobertas dele, tiram-as à terra, e apanhado, todo é metido debaixo da terra até que apodrece o pescado que tem, e de si lavado no mar, ficam os búzios (que assi lhe chamamos nós, e os negros igovos), mui alvos, pera com menos nojo os tratar nas mãos que a moeda de cobre, de que neste reino vale um quintal de três até dez cruzados, segundo vem muito ou pouco da Índia. Têm mais estas ilhas muita pescaria, de que se faz grande cópia de moxama, que se leva pera muitas partes por mercadoria, em que se ganha bem, e assi em azeite de pexe e cocos e jagara, que se faz deles ao 74v 74v modo de açúcar. Quanto às cousas de artifício que a gente delas faz, são panos de seda e algodão, e deles são tais, que cousa de tecedura não se faz melhor em todas aquelas partes, e isto principalmente nas Ilhas Cendú e Cudú, onde dizem que há melhores tecelões que em Bengala e Choromandel. Porém toda a seda e algodão de que fazem estes panos, lhe vem de fora, por serem mui desfalecidas destas duas cousas, e assi de arroz, que todo lhe vai de carreto. Têm criação de gado vacum, carneiros e ovelhas; mas não tanto que lhe não vão de Ceilão e de outras partes, em que se faz muito proveito. A gente destas ilhas, com que os nossos tem comunicação, é baça, fraca e maliciosa, cousas que sempre andam juntas, não somente em a natureza dos homens, mas ainda nos brutos animais, donde se pode verificar ua paradoxa - que todo fraco de ânimo é malicioso em cautelas. Veste a principal gente panos de seda e algodão; e a outra da plebe, das mesmas palmeiras e de ervas tecem sua cobertura. Têm língua própria, posto que os que vezinham com a costa do Malabar falam a sua língua, principalmente na Ilha Maldiva, onde está el-Rei, por causa de concorrerem a ela muitos malabares. E a esta ilha chegou João Gomes, que (como no princípio dissemos) Diogo Lopes despachou pera vir a ela fazer ua casa forte à maneira de fortaleza, pera dali feitorizar cairo e outras cousas que há na terra, pera provimento das armadas. O qual, polo que já estava assentado entre el-Rei e Dom João da Silveira sobre o fazer desta casa, como atrás fica, ele, João Gomes, foi recebido del-Rei com gasalhado, e lhe deu lugar onde podesse

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146 fazer a casa que requeria. E porque ele levava recado que mandasse logo cairo e outras cousas que há na terra pera provisão da feitoria de Cochi, e não podia juntamente dar aviamento a isso, e mais fazer a casa forte de pedra e cal, por não achar estas achegas prestes, pera que havia mester mais vagar, como homem que estava em terra pacífica e que tinha o Rei por si, fez ua força de madeira pera seu recolhimento, no qual durou pouco tempo; porque o regular curso das cousas em que os homens trabalham, é que cada um colhe a novidade da terra segundo o que nela semeou. E como João Gomes, por ser homem cavaleiro de sua pessoa, era um pouco imperioso, e queria que todo mundo lhe obedecesse, e que bastava ser português pera isto assi ser, e mais capitão del-Rei de Portugal, quantas naus de mouros ali vinham ter, todas queria que estevessem a seu mandar, como se ele fora o rei da terra. Do qual modo e tratamento os mouros se escandalizavam; e sobre este escândalo se ajuntou o dano e perda que Gromale, mouro de Cambaia, recebeu em a nau 75 75 que lhe tomou Dom João da Silveira, quando ali veo ter (como atrás escrevemos). Finalmente, tanto que ele soube que João Gornes ali estava, e que tinha dez ou doze homens consigo somente, ajuntaram-se os mouros escandalizados de João Gomes, que foram ter a Cambaia e, armados certos navios, deram sobre ele, e o mataram com quantos tinha consigo.

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75 75 146 Capítulo VIII. Do que fez Cristóvão de Sousa com ua armada que lhe o Governador Diogo Lopes deu pera ir à costa de Dabul; e assi do que passaram outros, que também enviou o ano seguinte. Atrás fica como Cristóvão de Sousa foi mandado per Diogo Lopes de Sequeira com seis velas de armada pera andar na costa de Dabul, por razão do que os mouros ali tinham feito no tempo de Lopo Soares. Sobre o qual caso ele tinha lá enviado João Gonçalves, de Castelo Branco, com três fustas, ao qual Diogo Lopes mandava que se ajuntasse com Cristóvão de Sousa e andasse com ele até a entrada do inverno em guarda daquela costa e naus que de Goa, Cananor, Cochi iam carregar a Chaúl, onde tínhamos ua feitoria, de que era feitor Diogo Pais. Seguindo Cristóvão de Sousa esta viagem, como foi já no fim de Janeiro, achou os ventos noroestes, que naquela costa pera sua viagem eram mui contrairos. E parecendo-lhe que, abraçando-se mais com a costa, em alguas enseadas ficaria mais abrigado dos ventos que lhe eram ponteiros, e 147 também nas abras dos rios podia achar alguns navios de mouros, que furtadamente de nós passavam dali pera Cambaia com algua pimenta, coseu-se bem com a terra, até chegar à barra do rio Citapor, onde soube que estava ua nau que carregava de pimenta. A gente da qual, tanto que viu um catur que Cristóvão de Sousa mandava a ela, salvou-se em terra, leixando a nau desemparada, com que o catur não teve mais que fazer que levá-la. Cristóvão de Sousa, tanto que os noroestes o leixaram, se pôs em caminho pera Dabul, onde achou nova que os mouros, chegando Rui Gomes de Azevedo à barra do rio, ao longo do qual está a cidade Dabul situada, o vieram cometer com muitas fustas; e estando com elas às bombardadas, saltou-lhe fogo na pólvora, com que se queimou ele e a gente; do qual desastre escapou ua mulher português, que os mouros cativaram, e isto haveria seis ou sete dias que passara, cuidando Cristóvão de Sousa que esta caravela lhe ficara atrás, por não ser boa pera abolinar no tempo que a levou ao longo da costa, e ela lançou-se ao mar pera 75v 75v mais cedo se ir perder. Cristóvão de Sousa, com o primeiro ímpeto da indinação que teve deste caso quisera cometer ir dar sobre a cidade Dabul; peró leixou de o fazer, porque a entrada do rio tinha um baluarte mui forte, e cheo de tanta artelharia, que podia meter no fundo quantas velas quisessem entrar pera dentro, e mais tinha já perdida a gente da caravela. E estando determinado pera ir a Chaúl ver se andava lá João Gonçalves, e com ele vir cometer este caso com mais cópia de gente, deu-lhe tamanho temporal de Noroeste, que o fez recolher na Enseada dos Malabares, que será de Chaúl duas léguas. Passada a qual fúria do temporal, depois de naquela enseada ter posto o fogo a ua povoação de mouros, tornou-se à barra de Dabul, onde achou outra tal nova como a primeira de ua nau nossa, que os oficiais de Cananor mandavam à feitoria de Chaúl, a qual as fustas de Dabul tinham metido no fundo. Quando Cristóvão de Sousa se viu em meio destes dous desastres, que ele atribuía a si mesmo pelo modo que passaram, foi-se com esta indinação a Chaúl em busca de João Gonçalves; mas achou lá nova ser partido pera Goa, donde depois o tornou o Governador a mandar, como veremos.

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Cristóvão de Sousa, porque não o leixavam os noroestes, que naquele tempo ali cursavam muito, e podia já mal sofrer a vela, e também não via modo para tomar emenda dos mouros de Dabul, recolhidos mantimentos, fez-se à vela caminho de Goa, dando primeiro em um lugar chamado Calaci, cinco léguas de Dabul, por ser seu, o qual cometimento houvera de custar a vida de muitos, per esta maneira: Cristóvão de Sousa, chegado de noite à barra deste lugar, parecendo-lhe que por ser de noite se poderia melhor vingar dos mouros, se os tomasse de sobressalto, leixou a caravela de Lourenço Godinho e a sua galé na barra, e em duas fustas e um parau e batéis se meteu pelo rio acima, sendo luar bem claro. Peró como os mouros estavam de aviso sobre ele, que sabiam 148 andar pera aquela costa, escandalizado do que os mouros de Dabul lhe tinham feito, quando entrou no lugar, posto que era grande e nobre, com sumptuosas mesquitas, era já todo despejado, com que não teve mais que fazer que entrar no lugar, e dessa pouquidade que se pôde haver da gente comum recolhia à praia, pera embarcar pela menhã. A qual não lhe pareceu tam pacífica como a noite, ca com sua vinda apareceu sobre o lugar um capitão com até quatrocentos homens, os mais deles frecheiros, como gente determinada e oferecida a morrer. Cristóvão de Sousa, parecendo-lhe que andava ainda no lugar algua gente nossa no engodo do esbulho, saiu com até quorenta espingardeiros, e a mais gente que tinha, que seriam cento e cinquenta homens per todos. E quando chegou a 76 76 ua rua do lugar, traziam os mouros diante si às frechadas alguns dos nossos que lá andavam; e dando Santiago, com o alvoroço que a gente levava, descarregaram as espingardas nos mouros. Os quais, sofrendo aquele primeiro ímpeto, como todos eram frecheiros, amiudaram suas frechas, que nunca mais os nossos espingardeiros poderam cevar suas espingardas. E porque estes não trazem adargas, como a outra gente de armas, foram os primeiros que começaram receber o dano das frechas, e assi os primeiros que se poseram em salvo, caminho das fustas. O qual desemparo fez a Cristóvão de Sousa vir-se também recolhendo a elas, pera se ajudar da artelharia que nelas estava, com que podiam varejar ao longo da praia, pera os mouros darem lugar a se embarcarem; mas desta indústria Cristóvão de Sousa se não pôde servir, porque, sentindo-a os mouros, meteram-se entre os nossos e a embarcação, de maneira que não podiam tirar das fustas, que não fizessem tanto dano em os nossos como neles. Finalmente, Cristóvão de Sousa, por tomar a embarcação, e os mouros por lha defender, se passaram três horas, até que à força de ferro ele se achou ao embarcar somente com dez homens derredor de si, porque de cento e cinquenta, com que ele saiu, todolos outros eram embarcados, de que as pessoas que o mais acompanharam até se meter na fusta, foram Francisco de Sousa Tavares, seu sobrinho, e Belchior Tavares. O qual negócio foi tam quente, que entraram os mouros com eles dentro na água, e com as mãos queriam reter a fusta, dos quais muitos ficaram na praia estirados, e dos nossos foram feridos trinta e cinco; e um bombardeiro, estando dentro na fusta, ua frecha o foi matar. Recolhido Cristóvão de Sousa às suas embarcações, foi-se caminho de Chaúl, para aquela gente ferida ser melhor curada. Diogo Lopes de Sequeira, porque a Goa lhe foi recado do que acontecera na perdição da caravela e nau que os mouros de Dabul meteram no fundo, como ora contamos, e na informação deste caso foi culpado tanto 149 Cristóvão de Sousa, que, sem mais aguardar outro recado, o mandou logo vir. O qual recado levou António Raposo, que ia em companhia de João Gonçalves, que Cristóvão de Sousa cuidava estar em Chaúl, e ele era já partido pera Goa, como dissemos, o qual trazia quatro ou cinco navios, e com os mais que tinha Cristóvão de Sousa, a quem ele escrevia que lhe entregasse os que trazia consigo, João Gonçalves, havia de andar naquela costa.

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Peró Cristóvão de Sousa, como lhe constou que, por Diogo Lopes ser mal informado do caso, lhe mandava que entregasse a armada, ele o não quis fazer, estando ainda em Chaúl curando a gente ferida do caso que ora contámos; e depois que foi em Goa, Diogo Lopes ficou satisfeito das razões que lhe ele deu da culpa que ante ele lhe quiseram dar, porque também soube 76v 76v Diogo Lopes não ser culpa sua, senão desastres; e que, quando conveo pelejar, ele o fizera como cavaleiro que era. E logo no verão seguinte mandou Diogo Lopes a Cristóvão de Sá, filho de Hanrique de Sá, senhor de Matozinhos e alcaide-mor do Porto, com três galés pera andar de armada na costa de Chaúl e paragem de Dio. Porque soube per João Gonçalves quantos modos Melique-Iaz, senhor de Dio, buscava pera com suas fustas danar as nossas cousas, quando se podiam ajudar de nós; e também por causa das fustas de Dabul, de quem as nossas naus e navios, que iam a Chaúl, recebiam muito dano. E os capitães das duas galés que iam com Cristóvão de Sá, eram Dom Jorge de Meneses, seu primo com-irmão, filho bastardo de Dom Rodrigo de Meneses, comendador da Grândola, da Ordem de Santiago, e Jorge Barreto, de Beja. Com as quais velas Cristóvão de Sá andou naquela costa de Cambaia, e assi assombrou Melique-Iaz, vendo que começavam já de atentar nele, que recolheu suas fustas; e acabado o tempo que lhe Diogo Lopes lemitou que andasse ali, tornou-se pera Goa. Nas costas do qual, veo António de Saldanha ter naquela paragem de Dio, o qual vinha de Ormuz, onde invernara da vinda do Estreito, como atrás escrevemos. E este pequeno tempo que António de Saldanha andou na costa de Dio, quási de passada, como era na moução que as naus de Meca vem pera aquela cidade, fez nelas boas presas, que se acrescentaram às outras que trazia da costa de Arábia. Com as quais chegou à Índia, onde todalas armadas, que Diogo Lopes fez os anos de dezoito e dezanove, se recolheram, porque assi o tinha ele ordenado, pola necessidade que havia das velas e da gente pera ua grossa armada, que o ano de quinhentos e vinte havia de fazer pera entrar o Estreito do mar Roxo, que lhe el-Rei mandava, como fez; e adiante faremos relação desta sua ida.

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76v 76v 150 Capítulo IX. Do que passou ua armada de catorze velas, Capitão-mor Jorge de Albuquerque, que o ano de quinhentos e dezanove el-Rei Dom Manuel mandou à Índia; e do que Diogo Lopes de Sequeira nisso fez. O ano de quinhentos e dezanove fez el-Rei Dom Manuel ua grossa armada de catorze velas, porque mandava fazer alguas fortalezas na Índia, e capitães a novos descobrimentos, pera que convinha cópia de velas e gente, a capitania-mor da qual frota deu a Jorge de Albuquerque, que na Índia havia de servir de capitão da cidade Malaca, depois de Afonso Lopes da Costa. E enquanto não entrasse nesta capitania, dava-lhe el-Rei 77 77 ua viagem pera a China, pelo modo de Fernão Peres de Andrade, pera a qual ida lá na Índia lhe haviam de ser dados navios. O que lhe dava pola experiência que tinha de seus serviços naquelas partes, em que mostrou muita virtude e cavalaria que havia nele. Da qual armada aquele ano passaram somente quatro naus, de que eram os capitães Lopo de Brito, filho de João de Brito, Pero da Silva, filho de Rui Mendes de Vasconcelos, senhor das vilas de Figueiró e Pedrógão, que havia de andar por capitão do trato de Cochi pera Ormuz, João Rodrigues de Almada e Francisco da Cunha, que, partindo depois a sete de Junho, chegou a Cochi a dez de Outubro. E os que não passaram aquele ano à Índia e invernaram em Moçambique e per aquela costa, foram estes: o mesmo Jorge de Albuquerque, Cristóvão de Mendoça, filho de Diogo de Mendoça, alcaide-mor de Mourão, Rafael Perestrelo, Rafael Catanho, Diogo Fernandes, de Beja, o doutor Pero Nunes, que ia pera servir de veador da fazenda daquelas partes, pelo modo de Fernão de Alcáçova, de que atrás falámos, Manuel de Sousa, filho de Duarte de Sousa, Gonçalo Rodrigues Correa, Dom Diogo de Lima, que arribou a este Reino, e Dom Luís de Gusmão, fidalgo castelhano, que se levantou com um fermoso galeão que levava; e o caso sucedeu per esta maneira: Seguindo este Dom Luís sua viagem, quando foi na travessa do Cabo de Santo Agostinho pera o de Boa Esperança, que é a regular derrota, deu-lhe um tempo que lhe quebrou o leme e ficou tam sem corregimento, que lhe foi forçado arribar à terra de Santa Cruz, do Brasil. Na qual parte, per descuido que teve, estando em terra fazendo o leme, os brasis lhe mataram cinquenta e tantos homens, em que entrou o piloto. Vendo-se Dom Luís com este desastre, que ele houve por boa fortuna, segundo seus maus propósitos, de que já havia algua notícia em palavras que ante tinha soltado, como era homem à maneira de soldado, assentou em seu peito de se tornar, e ir-se pera Itália, e andar naquele arcepélago a toda roupa. E porque se podesse melhor senhorear dos portugueses que 151 ficaram, fengiu que queria buscar as arcas de todos, dizendo que tinha sabido que dos defuntos que os brasis mataram, muitos tinham tomado parte de sua fazenda. A qual busca fazia per mãos de castelhanos, que iam em o galeão, entre criados e outros que convocou pera seu propósito; e como achava arma algua nas arcas, tomava-a logo, dizendo que o fazia por evitar brigas em a nau. Per este modo feito senhor da nau, começou descobertamente mostrar quem era, fazendo cruezas como um algoz, em que matou alguns portugueses; e posto na volta das Ilhas Terceiras, o mestre Fernando Afonso, que ele trazia como preso per artefício lhe fugiu, o qual lhe servia de piloto, e assi um batel com alguns marinheiros. E porque 77v 77v

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ele levava já tomada ua naveta de Duarte Belo, um mercador de Lisboa, a qual vinha da Ilha S. Tomé carregada de açúcares e escravos, e ua caravela que tomou entre as ilhas, e com os pousos que de uas em outras andou fazendo, e fama que os fugidos deram dele, se soube seu propósito, vigiaram-se as povoações pequenas dele, e nos primeiros navios que partiram pera este reino se veo o mestre dar conta a el-Rei. O qual logo a grã pressa mandou dar aviso a todolos portos de Castela, que, vindo ali, o prendessem e trabalhassem por lhe tomar o galeão. Ele, tanto que nas ilhas houve estes dous navios, partiu-se com eles caminho das Canárias, ante de chegar às quais, tomou outros dous carregados de pastel e pescado, com que entrou no porto da Gomeira por vender estes roubos. Sobre a qual venda, em que entrevinha o capitão do lugar, houveram ambos deferenças, com que Dom Luís começou de lhe esbombardear a povoação; e houve tal reposta da artelharia que nela havia, que lhe quebraram a verga grande do galeão. Vendo-se ele manco, sem o poder marear, já como homem assombrado dos males que tinha feito, e que não se atrevia com tamanha presa, pera que havia mister mais poder de gente, e que ela ia dizendo quem era, baldeou a artelharia do galeão na melhor caravela, com o mais precioso que lhe pareceu destes roubos, e com gente de sua quadrilha se partiu pera Castela, leixando o galeão e as outras velas, que depois vieram ter a poder de seus donos. E por acabarmos esta sua vil tragédia: chegado ele, Dom Luís, ao porto de Calez, onde já era o aviso del-Rei sobre ele, escapou da prisão em que o quiseram tomar; mas depois foi tomado em terra, e levado a ua torre do alcácer de Sevilha, da qual per tiras, que fez dos lançóis em que dormia, se lançou; e como ainda tinha grande altura pera chegar a baixo, leixou-se cair, onde quebrou ambas as pernas. E jazendo assi como mereciam suas obras, aos gemidos da dor que tinha acudiu um homem, que o salvou às costas em um mosteiro de frades, e depois foi ter a Itália, onde acabou mal, como suas obras mereciam. Outro galeão que também ia nesta armada, de que era capitão Manuel 152 de Sousa, tem outra tragédia mais miserável: o qual, apartando-se da companhia de Jorge de Albuquerque e chegado a Moçambique, posto que era já tarde, cometeu passar à Índia. Peró como os ventos levantes eram forçosos, não os podendo sofrer, arribou a terra aquém do cabo Guardafu, pera se prover de água, de que andava mui desfalecido, à míngua da qual, por a muita gente que levava, que passavam de duzentos homens, lhe eram mortos alguns. Com a qual necessidade, seguindo a costa caminho de Melinde, veo ter a um lugar chamado Matua, onde, leixado o galeão um pouco largo da costa com quorenta 78 78 homens no batel, saiu em terra buscar água, a qual achou em fontes um pouco afastadas da povoação. A gente da terra, tanto que os viram, com refresco de galinhas e outras cousas os vieram buscar, aos quais acharam ocupados enchendo barris e vasilhas de água; e como todos vinham famintos destas duas cousas, descuidaram-se tanto do batel, que lhe ficou em seco com a maré, que ali espraia muito. Quando o eles viram tão longe da água, uns a levar a que tinham recolhido nos barris, outros aos ombros, a ele começaram de se apressar; a qual pressa os mouros lhe atalharam com outra maior, vindo sobre eles mais de dous mil, que os tinham em olho do lugar onde estavam escondidos, esperando algua conjunção; e foi ela tal, por o galeão estar mais de meia légua a-la-mar, que todolos nossos ficaram enterrados naquela praia. Os do galeão, vendo tamanho desastre, em que entrou o capitão e piloto que haviam de governar a ele e a eles, não ousando sair em terra, nem esperar mais tempo, por a grande necessidade que tinham de água, deram à vela o melhor que poderam, por a maior parte da gente andar enferma, e foram a um lugar chamado Oja, que será além de Melinde contra a Índia vinte léguas. No qual lugar acharam mantimentos e o mais que haviam mister; e houve tanta facelidade na maneira desta comunicação, per espaço de dias, que se foi à terra o mestre com cinco pessoas, de que os principais eram: Simão de Pedrosa, moço da Câmara del-Rei, e Belchior Monteiro, ambos naturais do Porto, onde o senhor de Oja os teve seis dias, sem os querer leixar ir ao galeão,

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mostrando ter muito contentamento de sua estada, pedindo-lhe que invernassem ali, onde lhe seria dado todo o necessário. Os do galeão, parecendo-lhe que eram eles mortos ou cativos, como já não traziam cabeça que os governasse, e todo seu estado era salvar-se das mãos dos mouros, pois o não podiam fazer da enfermidade de que o galeão andava tam iscado, que cada dia lançavam mortos ao mar, porque entre eles não havia força pera levar âncoras, cortaram-as, fazendo-se à vela, com temor que os podiam tomar às mãos - tanta era a confiança que eles tinham na sua força. Quando o mestre, que estava em terra, o viu partir, foi-se ao senhor que o entretinha, a que eles chamam rei, o qual, havendo compaixão do que lhe sobre isso disseram, lhe mandou dar um parau pera irem tomar o galeão; 153 mas ele ia já tam longe, que tomaram eles por salvação tornar-se à terra a el-Rei, que os recebeu mui bem. O galeão, como não levava outro piloto senão o contra-mestre, que do ofício sabia mui pouco, foi assentar a quilha em um seco de area junto da Ilha de Quíloa, onde per os mouros dela e de Monfia e Zenzibar foram mortos, sem darem vida a mais que a um moço, sobrinho do mestre, o qual el-Rei de Zenzibar salvou pera mandar em 78v 78v presente a el-Rei de Mombaça, cujo vassalo ele era; e per derradeiro, escorchado o galeão de quanto levava, lhe poseram o fogo, que é o consumidor de todalas cousas. As outras velas que foram em companhia de Jorge de Albuquerque, posto que não teveram tantos trabalhos, assaz foram aqueles que lhe fez não passarem à Índia e invernar em Moçambique, onde muitos ficaram enterrados de enfermidade. Diogo Lopes de Sequeira, posto que não sabia destes desastres, per as naus que chegaram à Índia soube como partiram deste reino catorze velas, e que segundo os tempos que teveram nesta viagem, parecia que invernavam todas em Moçambique e per aquela costa. E como pelas cartas que el-Rei D.Manuel lhe escrevia apertava muito que em toda maneira entrasse o Estreito de Meca, se o já não tinha feito, pera a qual ida ele se apercebia, e, como viesse a moução, partir, houve que esta invernada de Jorge de Albuquerque lhe vinha a popa, pera de Moçambique o ir esperar ao cabo Guardafu, e levar parte das naus e gente fresca que com ele ia. Pera o qual negócio mandou um Gonçalo de Loulé, homem deligente, e que entendia bem as cousas do mar, com cartas a Jorge de Albuquerque em um navio que lhe deu, em que lhe escrevia que com o primeiro tempo ele se posesse em caminho, e o fosse esperar ao cabo Guardafu com toda sua frota; e achando nova que era já passado, se fosse trás ele, caminho do Estreito. E posto que nesta viagem também Gonçalo de Loulé, entre ânimo, cobiça e necessidade, passou muitas cousas, por serem mui meúdas, que nos poderiam deter, basta saber que, tomando ele a costa de Melinde, na mão fez muitas presas, por recolher as quais despejou o seu navio do necessário, e depois com tormenta alijou tudo. E porém per aquela costa foi apanhando alguas relíquias que ficaram do galeão Santo António, assi como o mestre com seus companheiros em Oja, o sobrinho em Zenzibar, e assi algua artelharia grossa em a Ilha Monfia, as quais peças ele entregou em guarda ao Rei, por serem tam grossas que as não podia levar, e per derradeiro foi levar o recado a Jorge de Albuquerque. O qual, tanto que teve tempo, se fez à vela; e quando chegou ao Cabo Guardafu, achou nova ser Diogo Lopes já passado; e não o seguiu como lhe mandava, por muita parte das naus que levava serem da carga da especearia e de armadores, que lho tolheram com muitos requerimentos e protestos, 154 apresentando o treslado de seus contratos, per os quais não eram obrigados andar em armadas. Finalmente, Jorge de Albuquerque pôs a proa no Cabo de Rossalgate da costa Arábia, onde sabia que Diogo Lopes havia de tornar; e sendo tanto avante como as Ilhas da Maceira, teve um tam

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grande temporal, que esteve quási perdido 79 79 em fundo de cinco braças. Saído do qual perigo, em que se também achou ua nau de um Bastião Figueira, de Goa, que ia pera Ormuz, foi ter ao porto de Calaiate, onde passou outro maior, por ser causado não dos temporais, mas da malícia e cobiça dos homens, que é mais perigosa que os temporais da natureza; e o caso foi este: Estava naquela vila de Calaiate, que é del-Rei de Ormuz, um seu governador, a que eles chamam guazil, o qual havia dias que era chamado por el-Rei por causa de mexericos, o que ele dissimulava, dando alguas escusas que el-Rei não recebia. E desejando ele de o haver à mão, escreveu a Duarte Mendes de Vasconcelos, que ali andava com ua fusta, per mandado do capitão de Ormuz, que sabia ser grande amigo do guazil, que havia nome Raix Xabadim, que trabalhasse por lho haver à mão; por a qual cousa lhe prometia muito, além do serviço que fazia a el-Rei de Portugal, pois o reino de Ormuz era seu. Duarte Mendes, como viu Jorge de Albuquerque no porto, pareceu-lhe que tinha acabado este feito; e dando-lhe conta do caso, acrescentou tanto com suas razões importar muito ao serviço del-Rei Dom Manuel, por aquele mouro estar meio alevantado, que concedeu ele na prisão. E assentou com ele que o modo de o prender seria ir ele, Duarte Mendes, ao serão com algua gente, com que costumava ir visitar o mouro, no qual tempo estariam os capitães das naus na praia, e a um certo sinal dariam de súbito na casa, e assi o prenderiam. Peró o negócio foi feito tanto com mais alvoroço que prudência dos menistros que nisso eram, e o mouro se vigiava de maneira que custou este cometer entrá-lo nas casas vinte dos nossos, que morreram, e cinquenta e tantos feridos. E ainda houvera de chegar a mais, senão fora Diogo Fernandes, de Beja, que estando sangrado daquele dia, acudiu com a gente da sua nau à praia, e segurou a embarcação aos nossos, e per derradeiro o mouro salvou-se per ua janela, e não lhe mataram mais de três homens. Este fim tem as obras que se cometem, dando o beijo na face com a espada escondida. O qual caso, depois da vinda de Diogo Lopes, ele castigou na pessoa de Duarte Mendes, levando-o dali preso a Ormuz, por enduzir a isso Jorge de Albuquerque, da viagem do qual Diogo Lopes ao Estreito escrevemos neste seguinte capítulo.

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79 79 155 Capítulo X. Como o Governador Diogo Lopes de Sequeira partiu com ua grossa armadia ao Estreito do Mar Roxo, e do que passou té chegar à Ilha Maçuá, onde o embaixador Mateus foi conhecido ser do Preste João; e do mais que se ali passou. 79v 79v O Governador Diogo Lopes de Sequeira, tanto que enviou a Gonçalo de Loulé ao caso que ora dissemos, e despachou as naus que aquele ano haviam de vir com carga da especearia a este reino, a capitania-mor das quais deu a Fernão Peres de Andrade, que com elas chegou a salvamento; por não perder tempo, posto que ainda de todo não tinha prestes as naus que esperava levar, partiu-se de Cochi a dous de Janeiro do ano de quinhentos e vinte, vindo per Cananor, Calecute, Baticalá, provendo-se de mantimentos e cousas que ali tinha mandado fazer, e a estas fortalezas do necessário pera sua segurança, enquanto ele fazia aquela viagem. E porque uns galeões, que tinha mandado fazer em Calecute, não eram de todo acabados, foi necessário deter-se alguns dias em Goa, donde partiu a treze de Fevereiro com ua frota de vinte quatro velas, nas quais levava até mil e oitocentos homens portugueses, afora outros da terra Malabar e Canari, com os quais fez número de três mil homens de armas, leixando a Dom Aleixo de Meneses por Governador em sua ausência. Das quais velas eram dez naus grossas, dous galeões, cinco galés, quatro navios redondos, duas caravelas latinas e um bargantim pera recados, de que estas pessoas eram capitães: Dom João de Lima, Francisco de Távora, Cristóvão de Sá, Cristóvão de Sousa, Jerónimo de Sousa, Manuel de Moura, Dinis Fernandes de Melo, Jorge Barreto Pereira, Pero Gomes Teixeira, ouvidor geral, António Raposo, de Beja, Fernão Gomes de Lemos, António de Lemos, seu irmão, Nuno Fernandes de Macedo, Hanrique de Macedo, seu irmão, Gaspar Doutel, Lourenço Godinho, Simão Guedes, Pero de Faria, Francisco de Melo, Pero da Silva, António Ferreira, Diogo de Saldanha e António de Saldanha. Ao qual Diogo Lopes de Sequeira mandou cinco dias ante de sua partida com quatro velas dos capitães que com ele andavam de armada, que se fosse diante dar vista à Ilha Socotorá, e achando nela alguns navios de mouros, que os entretevesse, por não levarem nova de sua ida, ca sua tenção era não tomar a costa de Arábia, senão a de África, começando no Cabo Guardafu, onde havia de fazer sua aguada, e ali o esperasse. E sendo caso que no mar achasse algua nau de mouros, que ia abocando entre âmbalas terras pera entrar o Estreito, que lhe desse pouca caça, pera se ela poder salvar e dar nova que andava ali armada nossa de poucas velas, com que 156 ficassem sem suspeita da frota, e que aquele ano não havia ele entrar no Estreito. E posto que António de Saldanha levou 80 80 diante cinco dias, teve Diogo Lopes tam próspera viagem, que quási em um mesmo tempo chegaram todos ao Cabo Guardafu, e assi ua caravela que deste reino partiu, piloto e capitão Pero Vaz de Vera, aquele que Lopo Soares, em saindo do Estreito, mandou com Lopo de Vila Lobos com cartas a el-Rei, como atrás escrevemos. O qual Pero Vaz trazia por regimento que fosse ter neste Cabo Guardafu neste tempo, porque sabia el-Rei, pelo que tinha escrito a Diogo Lopes da entrada do Estreito, que então podia ser ali. A causa da vinda do qual foi trazer cartas a Diogo Lopes, per que lhe el-Rei fazia saber como, per via de Levante, tinha sabido a ida dos rumes àquelas partes, encomendando-lhe que os

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fosse receber dentro no Estreito o mais poderosamente que podesse, e que em toda maneira levasse consigo o embaixador Mateus, o qual ele, Diogo Lopes, já levava, pera fazer sobre o seu negócio o que lhe el-Rei mandava. E porque em todalas partes que no rostro de Guardafu ele quis tomar pera fazer aguada não achou lugar pera isso, foi correndo a costa, até chegar ao porto de ua povoação chamada Mete, que com sua vista logo se despovoou, somente ua moura velha de tanta idade, que não teve pés pera se salvar. Per meio da qual Diogo Lopes fez a sua aguada, mostrando ela um rio seco, e que cavassem debaixo do muito seixo que tinha, porque naquele tempo seco toda a sua água ia furtada per baixo. À qual velha Diogo Lopes, em galardão desta sua obra, mandou dar panos, e em modo de graça disse que a fazia senhora daquele lugar, porque ela o merecia melhor que quantos nele viviam, pois todos o desempararam, e ela não; e por amor dela mandou que lhe não fosse posto fogo, posto que do tempo de António de Saldanha ele ficou bem destruído, quando o tomou, segundo atrás escrevemos. Partido o governador daqui, indo sempre ao longo da costa, como lhe pareceu ter passada a cidade Adem, atravessou à parte da terra Arábia em que ela está situada, e chegou a esta costa a treze de Março. Onde, sendo tanto avante como um lugar chamado Ara, por ele, Governador, com a sua Santo António ir tomar o pouso junto de António de Saldanha, que estava já surto, sem ambos saberem o perigo que tinham debaixo da água, que era um penedo, deu tamanha pancada nele, que foi logo a nau aberta, da qual se não salvou mais que a gente e algua pouca de artelharia, e fato que vinha sobre coberta. O qual desastre deu nome ao lugar, porque lhe chamam agora os nossos o Penedo de Santo António. Repartida a gente desta nau, que seriam até quatrocentas pessoas, pelas 157 outras, passou-se Diogo Lopes ao galeão S. Dinis, 80v 80v em que ia Pero de Faria, e aos dezassete de Março entrou per as portas do Estreito. A qual entrada ele mandou festejar com bandeiras, estendartes, trombetas, artelharia; e ainda por maior festa e animar a gente da perda da sua nau, mandou soltar alguns mouros que andavam nas galés a banco, por serem doentes; e foi dita que logo os assentos destes foram reformados com outros de novo, que tomou Jerónimo de Sousa em ua gelva. Dos quais Diogo Lopes soube como ao porto de Judá eram vindos mil e duzentos homens e seis galés de rumes vinham pera lançar gente em Zeibid, e di haviam de ir a Adem. Diogo Lopes, como quem os ia buscar, mandou logo pôr todalas velas em ordem, pera que, em vendo, cometendo; mas eles teveram cuidado de se guardar deste encontro, por serem avisados da entrada daquela frota, tornando-se recolher ao longo da terra e leixando o mar largo, per onde ela podia navegar. Diogo Lopes de Sequeira, posto que já na Índia tinha denunciado aos capitães daquela frota como lhe el-Rei mandava que entrasse o Estreito, ante que partisse daquele lugar do pouso que tomou, passada a porta dele, os mandou chamar, e ali em conselho lhe tornou resumir a tenção del-Rei Dom Manuel naquela entrada do Estreito que lhe mandava fazer, e o que novamente escrevia per Pero Vaz de Vera, que era chegado, como todos sabiam, e assi a nova que ali achavam dos rumes. E finalmente que toda aquela frota, em que era feita grande despesa, somente a duas cousas era vinda: a primeira, a desbaratar a armada dos rumes, se lhe a ele Nosso Senhor fizesse tanta mercê que os achasse; e a segunda, pôr o embaixador Mateus na terra do Preste, e saberem particularmente das cousas daquele príncipe, a notícia do qual era tam desejada, como todos sabiam. Praticadas alguas cousas sobre esta notificação que o Capitão-mor fez, acerca do modo que teriam em a navegação dali a Judá, onde estavam os rumes, porque o caso não estava em termos pera tratarem de outra cousa, partiu-se a frota posta na ordem e com o regimento que lhe ele deu. E como os ventos gerais, contrairos a sua navegação, começavam já a cursar, andou tam pouco, e isto

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ainda com muito trabalho, que tinha dali (onde de todo surgiu, por não poder ir mais avante) ao porto de Judá passante de cento e vinte léguas. Sobre o qual caso havido conselho, e praticados todolos enconvenientes e danos que sucederam a Afonso de Albuquerque e a Lopo Soares, quando cometeram aquele caminho, por ser fora de tempo, que assentaram, vista a instância com que lhe el-Rei encomendava as cousas do Preste, ser mais seu serviço ir buscar a sua costa, que trabalhar 81 81 por ir a Judá. E por 158 ventura deste descobrimento de seu estado e portos se saberia cousa que desse mais breve caminho e mais seguro modo pera darem fim às entradas dos rumes naquele Estreito; e quando não houvesse mais que fazer, que poer Mateus em terra, ficava tempo pera darem um castigo ao rei da Ilha Dalaca, por causa da morte de Lourenço de Cosme, e di irem invernar a Ormuz. Aprovado este parecer em que todos concorreram, por ser em parte que, demandando a terra rota abatida, nem saberiam tomar a Ilha Maçuá, por se não atreverem os pilotos a isso, nem menos Pero Vaz de Vera, que já ali fora, foi necessário tornar à Ilha Ceibão, que ficava atrás, pera dali fazerem seu caminho. Na qual mudança se mudou o tempo de maneira que não podiam ir atrás nem adiante, com que assentou Diogo Lopes de leixar ali António de Saldanha com todalas naus e velas de alto bordo, e ele em as de remo passar-se à costa Abassia; mas aprouve a Nosso Senhor que, ante de poer isso em efeito, béspora de Páscoa de Ressurreição, lhe sobreveo tempo, que com toda sua frota fez seu caminho ao porto da Ilha Maçuá, ainda com assaz trabalho. E ao poer do Sol per detrás de ua alta montanha no dia de Páscoa, viram todos ua bandeira preta da feição daquelas a que chamam rabo-de-galo, dentro no corpo do Sol, afirmando-se alguns que a viam mover, cousa que a todos fez grande admiração; e tomaram este sinal em favor de nossas cousas e destruição da seita de Mahamede, por ser naquele dia de tanta solenidade, e em parte onde ele prevalecia com abusão de sua sepultura, e nós com poder de armas contra ele. Com prazer e alvoroço da qual vista, além de o dia ser festival e o mais celebrado de nossa Religião, houve per todalas naus grandes folias e alegria; e quando veo ao seguinte, que eram dez de Abril, chegaram à Ilha Maçuá. A qual Diogo Lopes com os navios pequenos logo mandou rodear, porque a gente de sua povoação se não passasse a terra firme, que será dela em parte pouco mais de dous tiros de besta; mas ela havia já cinco dias que estava despejada, assi de pessoas como de fazenda, porque tantos havia que a nossa frota era vista das gelvas que andavam na pescaria do aljofre que ali há. Porém ainda os nossos acharam algua pobreza em navios pequenos, que, como a nossa armada entrou no porto, foram tomados, e assi duas naus de guzarates, que se fizeram à vela na volta da cidade Suaquém, onde Jerónimo de Sousa com sua galé foi tomar ua e queimou outra, salvando-se toda a gente em terra no lugar de Arquico, onde os moradores da Ilha Maçuá estavam todos recolhidos, por ser povoado de cristãos do Preste, e assi em outro seu lugar vezinho menos povoado, por nome Decani. E segundo 81v 81v se depois soube deles, tanto fugiram os mouros de Maçuá, quando 159 viram as velas, parecendo-lhe serem de rumes, como nossas; porque alguas vezes que ali vieram ter navios seus, tinham recebido tanto dano deles, que os temiam como a nós, de que tinham ouvido grandes males. Um bargantim da nossa armada, que também andava por haver à mão algua das gelvas que se acolhiam ao lugar de Arquico, que lhe o governador mandava tomar, pera haver língua da terra, tanto se chegou à praia, que em ua almadia vieram ter com ele três homens. Os quais, sabendo ser o

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bargantim de portugueses, foi tamanho o prazer neles, que dous se lançaram dentro do bargantim, dizendo que os levassem ao Capitão-mor, pera lhe darem ua carta, que levavam do capitão daquele lugar, que era del-Rei dos abexis. Levados estes dous homens ao governador Diogo Lopes, um dos quais era abexi de nação e outro mouro, em chegando ante ele, lançaram-se aos seus pés, os quais ele mandou levantar e recebeu com gasalhado, sabendo ser enviados do capitão do Preste. E recebida a carta, que vinha escrita em arábigo, continha-se nela como ele, capitão de Arquico, per el-Rei de Etiópia, seu senhor, dava muitos louvores a Deus por ser chegado aquele dia, em que cristãos haviam de vir àquele porto, como entre eles se esperava per profecias que disso tinham; que sua vinda fosse muito boa, e pera tanta paz, amizade e bem daquela terra del-Rei, seu senhor, como todolos seus vassalos esperavam. E porque os moradores daquela Ilha Maçuá, ainda que mouros fossem, eram seus, lhe pedia por mercê os houvesse por seguros daquela sua frota, os quais, com temor dela, eram acolhidos àquele lugar Arquico, em que ele estava, e ao outro, Decani. E quanto aos cristãos que neles havia, nestes não falava, porque aos tais bastava-lhe o nome que tinham pera estarem seguros de suas armas, pois as do ânimo de todos eram das chagas de Cristo Jesu, em que todos eram salvos. E que, em retorno de um anel de prata, que lhe aquele seu homem daria, como sinal da paz que no seu ânimo havia, pera receber e agasalhar aquele povo cristão de sua armada, e o prover do que na terra houvesse, pedia que lhe mandasse outro sinal tam notável, que fosse visto per aquela mesquinha gente da povoação de Maçuá, que com seu temor leixara sua casas. Diogo Lopes, lida esta carta e recebido o anel que lhe deu o abexi, por as cousas que o embaixador Mateus contava daquela Ilha Maçuá e lugar de Arquico responderem às que aquele capitão dizia, entendeu serem seus aqueles homens e recado, e não algum artifício de mouros pera se salvar. E feita mercê a ambos, mandou-lhe dar ua bandeira de damasco branco com ua cruz no meio, daquelas que costumam andar em nossas armadas, da semelhança que tem as da 82 82 Ordem da Melícia de Cristo, respondendo ao recado do capitão, quanto tempo havia que el-Rei Dom Manuel de Portugal, seu senhor, encomendava aos seus capitães-mores da Índia que trabalhassem por vir àquele porto assentar paz e amizade com o Preste, senhor daquelas regiões da Alta Etiópia. E em sinal desta verdade e retorno do anel que lhe ele 160 enviara, perque lhe pedia paz pera os vassalos deste Príncipe, cujo capitão ele dizia ser, lhe mandava aquela bandeira com o sinal da verdadeira paz dos cristãos, pois por ele Cristo, nosso Redentor, fez paz entre Deus e os homens. Tornado o bargantim a terra com estes dous homens, ia o mouro tam ledo, polo seguro que levava aos seus, que, temendo que o abexi, que ia ocupado com a bandeira, levasse a alvícera daquela nova, ante que chegasse mais a praia, se lançou ao mar, por ir diante com ela. E parece que foi isto permissão de Deus pera aquele sinal de nossa Redenção ser dali levado com mais pompa, porque, polo recado que o mouro deu no lugar, se ajuntaram mais de duas mil almas, entre mouros e cristãos a quem mais corria; e chegados ao bargantim, parecia que o queriam levar nas palmas. Finalmente, o capitão do lugar, sabendo o dom que lhe o Capitão-mor mandava, veo à praia a o receber com grande veneração; e mostrando aos nossos quanto contentamento tinha de sua vista, depois que per mandado dele a gente se pôs em procissão, levou arvorada a bandeira com cantares de alegria ao lugar, e mandou-a arvorar sobre suas casas. Diogo Lopes, como espediu os homens que levaram este recado ao capitão, quis dar ua vista à povoação da Ilha Maçuá, porque lhe diziam haver nela muitas cisternas de água, da qual a armada vinha um pouco desfalecida, e achou haver nela quorenta e nove, de que as dezasseis eram de seis braças de comprido, três de largo e duas e meia de alto, e as outras somenos, e em todas havia tanta cópia de água, que não quis pôr muita taixa às naus, e porém repartiu-a per todas. E porém, depois de vagar ele, Diogo Lopes, per si, quis ver toda a ilha pera melhor enformação sua, com fundamento do que lhe el-Rei escrevia: que notasse tudo, pera ver onde se

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poderia melhor fazer ua fortaleza contra os rumes - aqui ou na Ilha Camarão; e segundo a medição que ele mandou fazer no cercuito dela, haverá mil e duzentas braças. A sua figura é quási como ua meia-lua; e jaz o lançamento dela com a terra firme (de que estará afastada obra de dous tiros de besta), de maneira que fecha um porto e acolheita de naus, que muitos dos nossos diziam ser melhor que o de Cartagena e o de Modão. A povoação dos mouros era segundo eles costumam per toda aquela costa: as casas principais de pedra e cal com terrados, 82v 82v e as outras de taipa e cobertas de palha, e ua mesquita, onde depois o capitão com a gente da armada per vezes mandou dizer missa; e a primeira foi das Chagas de Cristo Jesu, por ser dita ua sexta-feira depois das oitavas da Páscoa; e pôs nome a esta casa já com este sacrefício dedicada a Deus Nossa Senhora da Conceição. A terra desta Ilha em si era grossa e desabafada, em que andava 161 criação de gado vacum e gazelas; e tam grande número de lebres, que alguns dos nossos as tomavam a cosso com rejeitos que lhe remessavam. Tornando Diogo Lopes desta primeira vista que deu a esta ilha, um pouco chegado a terra, viu descer do lugar Arquico contra a praia um homem a cavalo com quatro bois diante, e dous a pé, que os tangiam; e entendendo que vinha a ele com algum recado, mandou chegar o bargantim em que ia bem a terra pera lhe falarem. Os quais, tanto que chegaram, por mostrar quem eram neste sinal, começaram nomear Cristo Jesu e sua Madre, amostrando ua carta de porgaminho grande, em que traziam pintadas suas figuras, dizendo serem cristãos. Diogo Lopes, em eles entrando no bargantim, que lhe apresentaram diante estas imagens, tirado o barrete, com adoração as beijou, do qual auto eles ficaram muito contentes e se houveram por seguros de todo; e como gente já mais confiada, falaram ao Governador, dando-lhe aqueles quatro bois da parte do capitão de Arquico, e ua carta, por a qual lhe dava os agradecimentos da bandeira que lhe mandara; e lhe fazia saber como tinha escrito a um senhor que governava aquela comarca, chamado Barnagás, da vinda dele, Capitão-mor, e a causa dela; e também tinha mandado chamar os frades do Mosteiro de Visão, que ali estavam perto, por serem aqueles que mais falavam na vinda dos cristãos àquele porto, e que disso tinham profecias. Porém que lhe parecia que não veriam senão passado o outro Domingo, por guardarem todolos oito dias daquela somana, por razão da festa, e ter tantos dias de seu oitavairo; ainda que per outra parte (por esta sua vinda deles serem passos dados em louvor de Deus), a ele lhe parecia que logo partiriam. Diogo Lopes, recolhidos aqueles homens no bargantim, folgou de os ver, porque todos traziam ao pescoço em um cordão ua cruz pequena de pau, ao modo que nós costumamos trazê-las de ouro; senão que nós as trazemos por galantaria e jóia, e, o pior é, pera jurarmos per elas, e eles por devação e sinal do que professam. E, o que mais lhe contentou deles foi achá-los zelosos das cousas da Fé, assi no que lhe respondiam às perguntas que lhe ele fazia, como no que lhe eles perguntavam. E houve tanta prática de ua parte e de outra per meio 83 83 de André de Taíde, língua dos governadores, sem ele, Diogo Lopes, lhe querer mentar Mateus, o embaixador, pera ver se falavam nele, que vieram eles a perguntar se fora ter à Índia ou a Portugal um embaixador, que o Preste tinha enviado, o qual havia nove ou dez anos que era partido, e dele não tinha nova. Diogo Lopes, dessimulando o caso, perguntou-lhe pelo nome e alguns sinais, per que se podia mais certificar de suas cousas. Ao que eles responderam mui conformes à verdade, dizendo ser um mercador que negociava no 162 Cairo, de que o Preste se servia muito em recados e negócios, e assi sua madre a Rainha Helena. E

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por ser homem diligente, ambos, mãe e filho, determinaram de o mandar à Índia, pera di ir com recado a um Rei cristão do Ponente, cujas armadas deziam serem aquelas que novamente conquistavam a Índia e faziam guerra aos mouros. Ao qual mandando o Governador que viesse ver aqueles homens, quando eles o viram e conheceram, lançaram-se a ele, beijando-lhe a mão com grande reverência, chamando-lhe Aba Mateus, que quere dizer padre Mateus, em denotação da honra que naquela terra per suas cans e dinidade lhe era dada. Ele, quando os viu ante si, com aquele modo de reverência que lhe faziam sinal que naquele terra sua pessoa era estimada, com prazer começaram os seus olhos a verter lágrimas pela alvura de sua barba, que ele trazia bem comprida. E depois que os beijou no ombro e na cabeça, segundo o uso dos arábios, em lugar de paz, disse: - Louvores sejam dados ao eterno e piadoso Deus, que se lembrou de meus trabalhos, infâmia e injúrias, pois lhe aprouve que houvessem fim e se manifestasse ante o Senhor Governador e tanta fidalguia e nobreza, como é presente, ser eu verdadeiro neste caminho que fiz, todo endereçado a serviço dele mesmo, Deus, pois era pera ajuntar em paz e amizade dous tam cristianíssimos Príncipes, como são el-Rei Davide de Etiópia e el-Rei Dom Manuel de Portugal, contra os mouros imigos de sua santa Fé, e não sou visto ser um mouro enganador, falsário, espia do Soldão, com outras infâmias e injúrias, que pera minhas orelhas eram maior trabalho, que quantos tenho passado de dez anos a esta parte, per tantos mares e regiões como peregrinei. - Porém, se pera efeito de tamanha armada, como aqui traz o Senhor Governador, se não podia menos fazer, eu dou todalas minhas tribulações, perigos e injúrias per bem empregadas, e de tudo me esqueço com o prazer desta hora. E pera que de todo seja perfeito, vós outros, amigos, que me conheceis, ide chamar o capitão de Arquico de minha parte, e que lhe peço mande chamar o Barnagás e os frades do Mosteiro de Visão, 83v 83v porque eles sabem a verdade das minhas cousas; e também pera me entregar a eles o Senhor Governador, que não vem a outra cousa a este porto per mim tam desejado. O Governador Diogo Lopes e pessoas que eram presentes, vendo o modo e lágrimas com que Mateus disse estas palavras, e lembrando-lhe quanto se dele dizia, que causou padecer ele algum trabalho, além do que ele merecia, por ser homem forte de condição, mimoso e mau de contentar, 163 houveram piadade dele e teveram grande contentamento de se acharem presentes àquela hora, em que se manifestou ser verdadeiro e não falso embaixador. Às palavras do qual acudiu Diogo Lopes com outras, em que o consolou; e que quanto à vinda do Barnagás e padres, que ele mandava chamar o capitão, como tinha feito, não sabendo dele, Mateus. Tornados estes abexis com o recado do Governador ao capitão, per os quais se soube que ali vinha Mateus, começaram alguns que o conheciam vir às naus, e com grande prazer se lançaram ante ele, beijando-lhe a mão, mostrando neste e outros sinais ser homem estimado na terra. E como os nossos viram este alvoroço naquele povo cristão e houve logo fama per toda a armada que aquele Rei dos abassis era mui rico de ouro, por nas suas terras haver grandes minas dele, movidos três homens de armas da gente comum com cobiça deste ouro (a fama do qual tem feito maiores males), fugiram da galé de Jorge Barreto, determinados de se ir à Corte do Preste. Ao que Diogo Lopes logo acudiu, mandando ao ouvidor Pero Gomes Teixeira com recado ao capitão de Arquico, pedindo-lhe que ordenasse como ambos se vissem, pera praticarem alguas cousas do serviço de Deus e dos Reis a que ambos serviam; e também que três homens de baixa sorte eram fugidos da armada e se dezia serem lançados em terra, lhe pedia que lhos mandasse entregar. Partido Pero Gomes ao lugar de Arquico, que era duas léguas dali do pouso onde a armada estava surta, ao outro dia tornou em companhia do mesmo capitão de Arquico, que vinha ver Diogo Lopes, e trouxe consigo os três fugidos, que foram tomados cinco léguas caminho da Corte do

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Preste. E as vistas entre o capitão e Diogo Lopes foram na praia, por alguas desconfianças de temor de entrar no mar, que o ouvidor sentiu no capitão. E assentados em três cadeiras, ele em ua, Diogo Lopes na outra, e na terceira o embaixador Mateus, foi toda a prática do prazer e contentamento que todos tinham daquele ajuntamento, o qual seria pera muito serviço de Deus e exalçamento de sua Santa Fé e destruição da seita de Mahamede, pois pera isso em amor e caridade de irmãos se ajuntaram 84 84 dous Príncipes tam poderosos - el-Rei Dom Manuel, no mar, e el-Rei Davide, de Etiópia, na terra. Espedidos um do outro, tornou-se Diogo Lopes embarcar e o capitão mui contente com ua espada e outras peças que lhe ele deu, não quis cavalgar em ua mula em que veo, senão em um cavalo que trazia destro; e por mostrar o contentamento que levava, afastados obra de trinta de cavalo e duzentos piães, que trouxe consigo, começou com ua lança correr o campo, maneando-a a ua mão e a outra com tanta desenvoltura e graça, que folgavam os nossos de o ver. Principalmente a Diogo Lopes, que já estevera por capitão da 164 vila de Arzila nas partes de África, e dezia por ele que lhe parecia ter ante os seus olhos o alcaide Laroz, senhor de Alcácer-Quebir, que neste modo de escaramuçar era mui destro; e mais este capitão vinha vestido ao modo mourisco - camisa branca das que eles usam, e seu bedém em cima, e na cabeça ua touca. Passado este dia, que todo foi de prazer com a vista deste capitão, quando veo ao outro, mandou Diogo Lopes a terra o bargantim recolher sete frades que do Mosteiro de Visão vinham ver o embaixador Mateus, os quais, à entrada do galeão, foram recebidos com ua cruz de prata arvorada, e com o cântico Benedictus Dominus Deus Israel, sendo pera isso juntos todos os clérigos da armada com suas sobrepelizes, e os cantores do Governador. No qual recebimento não houve alguém que podesse reter as lágrimas com ua piadosa lembrança de ver dous povos cristãos, um ocidental e outro oriental, tam remotos em lugar, tam diferentes em polícia, costumes e ceremónias da religião que professavam; somente aquele sinal da cruz alevantada ante eles assi os inflamava em fé dela, amor e caridade entre si, que os tinha atados em vínculo de irmandade espiritual, como se entre eles precederam particulares benefícios de parte a parte. Certo, grande e maravilhoso sinal da obra que faz o espírito da Verdade no coração daqueles que professam nossa Religião Cristã. E porque estes povos abassis, ante deste nosso descobrimento, nunca souberam que cousa era dar obediência à Igreja Romana, e estas vistas foram causa que os Reis daquela grande Etiópia per meio del-Rei D. Manuel mandaram sua obediência aos Sumos Pontífices Romanos, posto que já tinham seu patriarca, de quem recebiam os sacramentos do que professavam, ante que mais precedamos neste Quarto Livro, queremos escrever algua cousa da antiguidade, religião e estado destes Príncipes da Abassia, a que vulgarmente chamamos Preste João.

LIVRO IV 84v 84v 165 Capítulo Primeiro. Em que se escrevem as cousas del-Rei da Abassia ou Etiópia-sobre-Egipto, a que vulgarmente chamamos Preste João; e as cousas do error deste nome, e o mais que deste príncipe temos sabido, e assi do seu estado e povo. Ante que descobríssemos estas partes da Índia, toda a diligência que el-Rei Dom João o Segundo pôde fazer por descobrir este Rei dos abassis, ele a fez com assaz custo de sua fazenda, como consta pelo que atrás escrevemos. Depois, el-Rei Dom Manuel, a instrução que deu a Vasco da Gama, quando o mandou a descobrir este Oriente, quási toda se resumia em saber o estado e cousas deste príncipe; e em todalas armadas que pelo tempo em diante foram, os degredados que mandava a lançar na costa de Melinde, no Cabo Guardafu, a este fim eram lançados. Porque, como nestas partes da Cristandade comunmente andava este nome Preste João das Índias, e víamos alguns religiosos que habitavam nesta Abassia, parecia-nos, por a pouca notícia que se tinha daquelas partes, ser este seu príncipe aquele grande Preste João das Índias, donde procedia trabalharem os da nossa Cristandade por ter sua amizade e comunicação. E peró que em a nossa Geografia largamente escrevemos do Estado deste Rei da Abassia, pera declaração desta história aqui trataremos algum pouco de suas cousas, e principalmente deste error, que anda entre o vulgo, cuidando ser ele aquele grande Preste João das Índias, a qual openião tem enganado a homens doutos. 166 Segundo o que temos alcançado per alguas escrituras, assi dos ocidentais como orientais da parte Ásia, entre os tártaros chamados jagatai, que habitam a província Hatai, a que nós chamamos Cataio, que é aquela a que Ptolomeu chama Scythia, fora do monte Imão, houve alguns príncipes cristãos nestorianos, que foram dos mais poderosos daquelas partes, a que os tártaros gentios naquele tempo chamavam Unchá, e os seus naturais, vassalos dele, o intitulavam per este nome Jovano, do nome 85 85 de Jonas, Profeta. O qual nome andava per todolos herdeiros daquele império, por ser próprio do seu estado, como o de César aos romanos, depois de Júlio César, primeiro emperador; e per nós outros, ocidentais da Igreja Romana, era chamado Preste João das Índias, por o seu estado ser naquelas partes orientais. E chamavam-lhe Presbiter, porque quando estes príncipes prosperavam (segundo escreve António, Arcebispo de Florença), levavam ante si, em lugar de bandeira, ua cruz no tempo da paz, e no da guerra duas, ua de ouro e outra de pedras de grande preço. É de notar que excedia a todolos príncipes da terra em nobreza e riqueza, significadas estas duas cousas pela matéria de que elas eram e pelo sinal ser defensor da Fé; donde lhe davam este nome de Presbiter, de que nós corrompemos Preste; e era tam podroso (segundo alguns dele descrevem), que tinha debaixo de seu império setenta e dous reis. Vindo o império destes príncipes a um per nome próprio chamado Davide, pedindo aos tártaros, seus tributários, o tributo que lhe pagavam, per induzimento de um seu próprio capitão, chamado Singis, ou (segundo outros) Chingis, os tártaros se rebelaram, donde entre ele e eles houve guerra, no fim da qual ele perdeu o estado e pessoa. O qual estado se trespassou no seu capitão Singis, autor desta guerra, que (segundo alguns querem), era da linhagem do mesmo príncipe per via de mulher; e por se reconciliar em amor do povo, casou com ua filha sua; e não tomando o título que andava nos herdeiros daquele estado, tomou outro novo, chamando-se Ularcão do Cataio. Da qual batalha que houve entre este príncipe Davide e seu capitão, falando Marco Paulo em o que escreveu de sua peregrinação naquelas partes, diz que a causa dela foi por este Singis, a

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que ele chama Chinchis, ser desprezado deste emperador Preste João, mandando-lhe pedir per seus embaixadores ua filha em casamento, sendo ele, Chinchis, a este tempo já levantado por rei entre os tártaros. E deste Chinchis Cão, ou Cingis, que foi levantado por emperador o ano de mil cento e oitenta e sete, começa ele, Marco Paulo, 167 contar a genealogia dos emperadores tártaros de Cublai, que era o sexto na ordem deles, em cuja Corte ele andava no ano de mil e duzentos e oitenta e nove, que é deferente princípio do que escreveu Haitónio, arménio, do império dos tártaros. Os quais, por ambos serem estrangeiros daquelas regiões, se enganaram nestas genealogias, polo que temos lido em ua crónica em párseo que houvemos dos feitos de Tamor Langue, a que os nossos chamam Tamerlão, na qual se contém a genealogia daqueles príncipes tártaros, per decurso 85v 85v de muitas centenas de anos, até o tempo dele o Tamor, dos quais escreveremos em a nossa Geografia, quando tratarmos daquelas regiões. E ainda que o escritor dela seja mouro, confessa que deste Príncipe Preste João, a que eles (como dissemos) chamavam Unchá, ficou um rei de pequeno estado, que recolheu as relíquias daquela cristandade nestoriana. A qual, por ser mui avexada dos príncipes tártaros, que depois sucederam nos anos de mil e duzentos quorenta e seis, o Papa Inocêncio Quarto, ouvidos seus clamores, mandou ao príncipe tártaro, que então imperava, certos frades dominicos, o principal dos quais se chamava Fr. Anselmo, pedindo-lhe que não quisesse tengir as mãos em o sangue cristão, e amoestando-o que quisesse receber a Fé de Cristo. E porque no tempo que os príncipes cristãos deste estado de Ásia, entre nós, os da Europa, eram nomeados per este nome Preste João das Índias, perdido o seu império, ficou na boca das gentes, e elas o trespassaram no rei dos abassis, que habitavam a Etiópia-sobre-Egipto, de que tratamos. Porque, vendo nestas partes os religiosos daquela província e sabendo serem súbditos a um príncipe cristão, que também traz por estado ua cruz na mão em denotação de defensor da Fé, parecia-lhe ser este o Preste João das Índias tam celebrado nestas partes da nossa Europa. Os quais religiosos, quando ouviam nomear o seu rei por este nome Preste João, parecia-lhe ser nome dado a ele per nós, sem saberem donde procederia. E ainda quando per alguas pessoas doutas e curiosas eram perguntados da interpretação deste nome que dávamos ao seu príncipe, davam-lhe evasões, segundo o juízo de cada um. E daqui procedeu um embaixador deste reino de Abassia, que veo a este Portugal, dizer ao nosso lusitano Damião de Góis, quando escreveu da religião e costumes desta gente, que em sua linguagem Bebule e Encoe queria dizer Precioso Joane; e um religioso desta nação dizer a Marco António Sabélico, quando compunha a sua Rapsódia, que este vocábulo Gião na sua língua queria dizer potente, e que chamarmos-lhe João, seria corrução destoutro; e Pico Mirandola, per outra tal informação, em sua escritura chamar-lhe Prestão, Rei dos Índios. O qual engano, que estas pessoas tam doutas receberam, foi por naquele tempo não termos mais notícias daquele príncipe que quanto sabíamos 168 per os religiosos do seu reino, que víamos nestas partes, muitos dos quais contam cousas diferentes do que os nossos tem visto; principalmente depois que Diogo Lopes de Sequeira (como logo veremos), dali mandou um embaixador a el-Rei Davide, que então reinava naquela Etiópia; e muito mais particularmente no tempo que 86 85 Dom Estêvão da Gama, sendo Governador da Índia o ano de quorenta e um, entrou naquele Estreito, e foi até o lugar de Suez, onde o Turco tinha feito ua armada, com tenção de a queimar. Na qual tornada leixou, a requerimento deste rei, seu irmão Dom Cristóvão da Gama com quatrocentos homens pera lhe ajudar a recobrar seu reino, que de todo lhe tinham tomado os mouros, havendo já treze anos que o tinha perdido. Na restituição do qual os nossos que lá ficaram,

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trilharam todo seu estado; e per informação dos que são vindos (porque grã parte dos outros morreram nesta guerra, e hoje andam lá), nós compusemos a Geografia daquelas regiões e houvemos notícia das que daqui em diante escrevemos, e assi do que escreveu Francisco Álvares, um sacerdote que foi com o nosso embaixador. E segundo o que per estas pessoas temos alcançado, o rei daquelas partes, que já per direito de posse tem entre nós adquerido nome de Preste João, é um príncipe cristão jacobita, a que os seus povos chamam em geral rei da terra Abassia, e ele em suas cartas se intitula assi: Davide, amado de Deus, coluna da Fé, parente da estirpe de Judá, filho de Davide, filho de Salamão, filho da coluna de Sião, filho da semente de Jacob, filho da mãe de Maria, filho de Nahu per carne, Emperador da grande e alta Etiópia, e dos seus grandes reinos e províncias, Rei de Xoá, de Gassate, de Fatigar, de Angote, de Buri, de Buze, de Adeá, de Vangue, de Gojame onde nasce o Nilo, de Damara, de Bagamedre, de Ambea, de Vague, de Tigre Mahom, de Sabai, donde foi a Rainha Sabá, de Barnagax, senhor até Nobia onde é o fim do Egipto. Das quais regiões e senhorios, posto que a maior parte pessuia pacificamente, de alguns, assi de mouros como de gentios, tem somente o título, como alguns príncipes desta nossa Europa, que se intitulam per senhores de reinos e estados, de que será mais certo senhor aquele que os conquistar da mão dos infiéis, em cujo poder eles estão. Porque muitos a este Rei obedecem quando querem e o mais do tempo estão alevantados, donde se causa andar ele sempre no campo com a mão armada, ora contra mouros ora contra gentios, em meio dos quais ele tem seu estado. E sendo tam grande como é, e o mais numeroso em povo de toda Etiópia, não tem cidade ou povoação nobre, havendo na mesma Etiópia, fora de sua jurdição, entre povos mui bárbaros na vida política, povoações nobres per edifício, defensáveis per arte, populosas per mercadores e ricas per trato de comércio, que a eles concorrem, as quais com razão se podem chamar 169 cidades. Muitas das quais são cercadas de muro de pedra, tijolo ou taipa, com valos e cavas tam profundas 86v 85v e largas, e água que as enche, que se podem defender do ímpeto de quaisquer imigos. E vendo os nossos que andavam na corte daquele príncipe Preste João, quantas vezes os mouros e gentios faziam entrada em suas terras, e à míngua destas defensões lhe matavam e cativavam muito povo com outros danos de guerra, praticando com os principais senhores sobre este caso, e dizendo-lhe o modo que os reis desta nossa Europa tinham na defensão de seu estado, edificando cidades, vilas e castelos cercados de muro, respondiam que o seu rei não punha a potência de seu estado em cercas de pedra, mas no braço de seu povo. E que este com as tais defensões descuidar-se-ia tanto de si, que veria a receber maior dano e perderia o exercício das armas, que se conserva com o cuidado de segurar a vida e defender a fazenda, o qual exercício se ganhava, andando sempre no campo e não em o repouso das casas. Per o qual modo os reis daquela grande Etiópia tinham ganhado dos infiéis a maior parte do seu estado; e que, se algua pedra e cal gastavam, era em fundar sumptuosos e magníficos templos, em que Deus era louvado, porque as casas de sua adoração haviam de ser diferentes da habitação dos homens, assi por ser casa a ele, Deus, dedicada, como por os menistros do culto divino estarem seguros dos insultos dos infiéis que tinham por vezinhos, o qual modo os seus reis tinham já continuado per muitas centenas de anos, e o receberam da doutrina de Salamão, rei de Judea, donde o seu primeiro rei descendia. E parece, posto que estes abassis dessem aos nossos estas rezões de não fundarem cidades ou castelos cercados, que costume mui antiquíssimo é entre eles não as haver, porque vemos que os geógrafos e Ptolomeu, que foi o mais moderno, em suas Távoas, três ou quatro cidades mediterrâneas situava em toda esta região da Ilha Méroe pera cima. E ainda destes não há memória, somente da cidade Axuma, que segundo os abassis dizem, foi câmara e quási metrópoli da Rainha Sabá, da qual ora não aparece mais que alguas antigualhas de edifícios arruinados e pedras ao modo de pirames, que por sua grandeza o tempo não pode consumir, ao qual lugar eles chamam Acaxumo.

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Peró per demarcação dos reinos e comarcas usam aqueles príncipes, na parte onde há maior povoação (poucas das quais chegarão a dous mil vezinhos), ter ua casa de pedra e cal ou de taipa; não pera defensão da terra, mas, como cá usam ua casa pública, a que chamamos do Conselho,a qual eles chamam Betenegus, que quere dizer casa del-Rei. Na qual casa pousa o governador da terra quando aí está, e ali faz suas audiências ao povo, e quando pousa em outra parte ou não é na terra, sempre 87 87 está aberta, e porém ninguém ousa entrar nela, ca seria logo punido como tredor, que se queria 170 levantar com a terra, e a esta causa em as Távoas da nossa Geografia tomamos estes betenegus por situação de cada ua das comarcas que aquelas regiões tem. E segundo o que do estado deste Emperador da Etiópia temos sabido, ele jaz entre as correntes dos rios Nilo, Astabora e Astapus, que Ptolomeu descreve na quarta Távoa de África, aos quais rios os naturais chamam Tacuí, Abavi, Tagazi. Dos quais rios eles tem por maior o do meio, e por isso lhe deram o nome que tem, que quere dizer pai das águas; o qual procede do lago a que Ptolomeu chama Coloc, e eles Barcená; e este lago podemos dizer ser o coração de todo o estado do Preste; ca lhe fica no meio, e em torno vai cercado dos reinos e províncias que se ele intitula, como ora dissemos. Os confins do qual estado pela parte do Oriente entesta no Mar Roxo, começando quási na frontaria das portas do Estreito, que estão em altura da elevação do Polo Ártico doze graus e um terço, e acaba na paragem da cidade Suaquém marítima, que está em dezanove graus e um quarto; assi que deste lado oriental podemos dizer que contém, pouco mais ou menos, cento e vinte e duas léguas. Peró, entre o mar e as suas terras vai ua corda de serrania quási sobre as praias dele, que é povoada de mouros, que são senhores dos portos de mar, sem ele ter mais que o da vila Arquico ou Arcoco, como lhe alguns chamam, onde (segundo atrás escrevemos) Diogo Lopes de Sequeira estava com sua frota. Da parte ocidental vai entestar em grandes minas de ouro, cujos habitadores são negros gentios, que lhe obedecem e pagam tributo, as quais serranias vão correndo quási com as correntes do Rio Nilo, que eles chamam Toavi, de que eles tem somente notícia sem uso das suas águas, por razão das grandes serranias de Damude e Sinaxi (em que também há outras minas) se meterem entre eles e ele. E daqui vem chamarem eles ao rio Abavi - pai das águas, por não verem as do Nilo; e estas dizem eles que bebem dous géneros de gente, de que tem notícia: ua é hebrea, que jaz mais ao Ponente, a qual tem rei mui poderoso, de que eles fabulam grandes cousas, e chamam-lhe per nome comum negus tederos, que quere dizer rei dos judeus. A outra gente fica mais vezinha ao ajuntamento que fazem os rios Nilo e os outros dous, isto da parte do Ponente, a qual é de amazonas, a que eles geralmente chamam Manguiste das Suetes, que quere dizer Reino das Mulheres. E parece que ou estas procederam da Rainha dos nobis, a que eles chamam Gaúa, ou ela delas, porque esta Gaúa fica 87v 87v com o seu estado fronteiro a elas pela parte do Oriente, e mete-se entre todos os rios Abavi e Tagazi, quási na paragem onde se eles ajuntam, e em um corpo se vão meter no Rio Nilo, e assi se metem as serrarias de Magaza, onde também há outras minas de ouro mui ricas. E lançando ua linha com o entendimento da cidade Suaquém, marítima, que dissemos, ao fim da Ilha Méroe, que ao presente se chama Nobá, onde o Nilo vai já todo em ua vea, levando todolos outros 171 rios encorporados em si, fica este lado da parte do Norte, que aparta o estado do Preste dos mouros, em comprimento de cento e vinte cinco léguas. E caminhando deste fim do Nilo pela parte do Ocidente, que descrevemos, fazendo ua maneira de arco não mui curvo, que vai fenecer contra o

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Sul, chega ao reino Adeá, que é a mais austral terra que ele tem; nas serras do qual nasce o rio Obi, a que Ptolomeu chama Raptus, que vai sair ao Oceano, na povoação Quilmance, junto de Melinde. Na qual distância de caminho per a linha curva que dissemos, haverá duzentas e cinquenta léguas; e toda a vezinhança que per esta parte tem é de gentios, gente preta, de cabelo revolto, mui belicosa, principalmente os povos a que eles chamam galas, vezinhos a este reino Adeá. E partindo dele (que está em altura de seis graus da parte do Norte) pera Oriente, vai entestar com o reino Adel, que é de mouros, cuja metrópoli se chama Arar, e está em altura de nove graus, na qual distância pode haver pouco mais ou menos cento e oitenta léguas. Assi que, ajuntando as distâncias destes quatro lados, que cercam o estado deste príncipe, podemos dizer que contém pouco mais ou menos seiscentas e setenta e duas léguas. E os três rios que dissemos que o regam, não são soberbos quando saem de suas fontes que bastem regar a terra do Egipto; mas são ajudados das águas de outros mui notáveis; porque, em o chamado Tagazi, que é mais oriental, entram sete, e no segundo, Abavi, oito, Tacuí quatro, que nascem nas serras de Damute, Bizamo e Sinaxi, afora outros que ele já traz encorporados em si quando aqui chega. O curso e nome dos quais se verá em as Távoas de nossa Geografia, e no Comentário dela, quando tratamos do Egipto e a razão do seu crescimento no tempo de nosso Verão: matéria bem descutida entre graves autores, e poucos entenderão a causa, por não terem notícia dos temporais daquelas partes. E assi escrevemos particularmente da origem dos reis deste império, com os costumes de sua religião; e por isso neste seguinte capítulo somente queremos dar ua geral notícia de suas cousas, pera enfiar assi o que nesta parte Abassia fez Diogo Lopes, como o que fizeram os outros Governadores pelo tempo diante.

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88 88 172 Capítulo II. Como a Rainha Sabá se foi ver a Jerusalém com Salamão, rei da Judea, de que houve um filho chamado Davide, do qual, segundo dizem os povos abassis, procedem os seus reis; e o mais que eles dizem desta Rainha Sabá, e assi da chamada Candace, e de alguas cousas do estado deste príncipe, e sua religião e costumes. Segundo o que estes povos abassis tem per escritura, de que se gloriam, é que, ouvindo a Rainha Sabá daquela Etiópia a fama do poder e sapiência de Salamão, Rei de Judea, por se informar da verdade, mandou a Jerusalém um embaixador. E sendo per ele, depois de sua vinda, certa do que vira e ouvira, desejando em pessoa participar da sapiência dele, peró que idólatra fosse, partiu pera Jerusalém com grande aparato de estado e riquezas, embarcando no Mar Roxo em um porto, onde se depois edeficou ua cidade do seu nome Sabá, em memória desta passagem. A qual Ptolomeu situa em altura de doze graus e meio, de que ao presente não há mais memória que dizerem alguns ser na terra defronte da qual está ua ilha chamada Sarbo, em altura de quinze graus e um oitavo, a qual em algua maneira retém o nome da cidade, e é mais propinca à situação de Ptolomeu que Maçuá ou Suaquém, onde outros querem que fosse. Passando ela este Mar Roxo a outra parte da terra Arábia, e atravessando aquele deserto, ante de chegar a Jerusalém, em ua lagoa, no cabo da qual estavam uas traves atravessadas a modo de ponte per que a gente passava, ela, alumiada de espírito profético, não quis passar per elas, dizendo que não havia de poer os pés onde o Salvador do Mundo havia de padecer; e depois que se viu com Salamão, pediu-lhe que as mandasse dali tirar. O qual em sua chegada a recebeu com honra, assi por razão de sua pessoa, como polos grandes dões de ouro, cousas aromáticas e pedras preciosas, que levou pera o Templo do Senhor e serviço da casa dele, Salamão, com o qual esteve até ser instructa em as cousas da Lei, e concebeu um filho dele, que pariu no caminho, à tornada pera seu reino. E depois que foi em idade, com grande aparato e riquezas, o enviou a seu padre, pedindo-lhe que ante o tabernáculo do Santuário lhe aprouvesse de o ungir por Rei daquela Etiópia, pera ficar por sucessor dela; posto que até aquele tempo seu reino andasse na linha femenina e não masculina, per costume do gentio da terra. Chegado Meileque (que assi havia ele nome) 88v 88v a Jerusalém, foi recebido de seu padre com muito amor, e dele alcançou seu requerimento; e ao tempo que foi ungido por rei, lhe mudou o nome, chamando-lhe Davide, como seu avô. E sendo já doutrinado em todalas cousas da Lei de Deus, ordenou Salamão de o enviar a sua madre com aparato de rei; e pera isso, de cada um dos doze tribos lhe deu oficiais ao modo de sua casa dele, Salamão, e 173 por Príncipe dos Sacerdotes Azaria, filho de Sadoque, que também era Príncipe dos Sacerdotes do Templo de Jerusalém. O qual Azaria, poucos dias ante de sua partida, alcançou per intercessão de Davide que podesse entrar em o Sancta Sanctorum a orar e sacrificar por sucesso do caminho, na qual entrada ele furtou as Táboas da Lei, poendo outras em seu lugar, que pera este caso tinha feitas, sem disto dar conta a Davide, até que, partido ele, e sendo já nos confins da Etiópia, lho disse. Davide, como quem queria imitar a seu avô em zelo da honra da Lei de Deus, com grande prazer e alegria se foi à tenda de Azaria; e tiradas as Táboas do lugar onde as trazia, começou ante elas a bailar e cantar louvores e glórias ao Senhor, ao qual todolos seus imitaram, vendo a causa do

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seu prazer. Finalmente, chegado Davide ante sua madre, ela lhe entregou o reino; e deste príncipe dizem eles, abassis, que procedem todolos seus reis per linha masculina té hoje, e que acerca deles não reinou mais mulher. E mais, que todolos oficiais, de que se ora os reis servem, são da linhagem daqueles que este seu primeiro Rei Davide trouxe; e que não pode tomar outros pera governo de sua casa e reino, senão destes tribos, no grau e calidade que cada um trouxe naquele princípio. E também se gloriam que per rainhas suas naturais, celebradas na Sagrada Escritura, teveram conhecimento de duas leis que Deus quis dar aos homens pera se salvar em diversos tempos; per a Rainha Sabá, a que deu per Mosés; e per a Rainha Candace, a que deu per Cristo Jesu, seu Filho. E porque parece contradição dizerem estes povos abassis que os seus reis daquela Etiópia procedem desta Rainha Sabá, e que não houve depois dela mais rainhas no seu reino, e dizerem que a Rainha Candace, que foi depois desta ao menos mil e oitenta anos, também sua Rainha, convém que não leixemos esta confusão aos ouvintes. Este nome Etiópia não somente é nome comum das duas regiões oriental e ocidental a que os cosmógrafos o deram, mas ainda de ua cidade situada junto da Ilha Méroe, em ua província oriental a ela, que carrega um pouco contra o Sul, à qual os abassis chamam Tigrai e Estrabo Tenesis, a qual província sabemos ser governada per mulheres com título de 89 88 rainhas. E parece que se intitulavam do nome da cidade Etiópia, como metrópoli do reino, e não de toda a região de Etiópia-sobre-Egipto, porque, no mesmo tempo, havia príncipes que tinham o título de reis da Etiópia comum. Da qual região Tenesis, falando Estrabo, diz: - E depois o porto de Sabá e o lugar da caça dos elefantes, assi chamada deste uso, e a região interior se chama Tenesis, a qual tem os desterrados que em outro tempo fugiram de Psammiticho, Rei do Egipto, os quais são chamados sebritas, que quere dizer estrangeiros, e tem rainha, debaixo do senhorio da qual está a Ilha Méroe, vezinha a estes lugares, e assentada em o Nilo. 174 E mais adiante, falando ele das vitórias que Petrónio, capitão romano, houve nesta terra, diz: - Destes povos eram os capitães da Rainha Candace, a qual em nossos tempos imperou os etiopas, certamente mulher baroíl, a qual tinha um olho perdido. E procedendo ainda mais em as vitórias de Petrónio, conta dos embaixadores que lhe esta Candace enviou, ao requerimento da qual ele não concedeu, ante lhe tomou ua cidade per nome Napata, em que estava um filho dela, Candace, que se salvou do ímpeto dele, capitão. E segundo a conveniência dos tempos, esta deve ser a Rainha Candace, cujo era o eunuco, a quem o Diácono S. Felipe declarou a profecia de Isaías e converteu à Fé de Cristo. Per o qual eunuco, e per a pregação de S. Mateus, confessam os abassis receberem a Fé; peró não celebram muito a vida deste Santo, por ser autor da sua conversão, nem tem a sua lenda conforme a Igreja Romana; ca, segundo ela, este Apóstolo esteve naquelas partes per espaço de trinta e dous anos, e a sua primeira entrada foi em ua cidade chamada Nabader, e pousou com o eunuco convertido per Felipe, e ele o levou a el-Rei Egipto, o qual se converteu com toda sua casa, por este Apóstolo lhe ressuscitar um filho. Ao qual Rei sucedeu Hitárcus, que martirizou o Apóstolo, e per morte deste tirano os povos elegeram um filho del-Rei Egipto defunto, que viveu per espaço de setenta anos, e leixou por herdeiro do reino um filho, que foi barão santíssimo. Assi que, em um mesmo tempo, vemos nesta parte da Etiópia barões intitulados por reis dela, e mulheres do mesmo título, que não eram conjuntas per matrimónio a algum deles. Porque ora Candace, de que se fala no Auto dos Apóstolos, e a de Estrabo seja toda ua, sabemos (segundo conta Alexandro de Alexandro em os seus Dias Generais), que rainhas destas partes em memória da primeira, pola excelência de sua pessoa, foram chamadas candaces, como césares os emperadores romanos, e faraós os reis de Egipto, tendo cada ua nome próprio, como tinha a senhora do eunuco, a qual

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89v 88v chamam Judite, segundo dizem os próprios abassis. E ainda que não seja com nome de Candace, sabemos que, quási naqueles confins que dissemos, hoje reina ua mulher, e não de pequeno estado, a qual os mesmos abassis chamam Gaúa. Nas terras da qual, principalmente nas que são da região a que chamamos Nobia, e os abexis Nobá, alguns dos nossos que ali foram viram muitos exemplos da Cristandade que aquela terra teve, os quais jaziam arruinados das mãos dos mouros, e em alguas paredes imagens de santos pintadas. E a causa desta destruição (segundo eles diziam), foi serem desemparados da Igreja 175 Romana, por razão do grande número de mouros que os tinham cercado. E sendo os nossos na Corte do Preste João, em companhia de um embaixador que Diogo Lopes de Sequeira desta vez do porto de Arquico lhe mandou (como logo veremos), esta Gaúa, Rainha daqueles nobis, mandou pedir ao mesmo Preste per seus embaixadores que lhe mandasse clérigos e frades pera lhe reformar o seu povo, que com a entrada dos mouros havia muito tempo que estava sem doutrina evangélica, por não poderem haver bispo romano, como já teveram. Ao que o Preste respondeu que o não podia fazer, porque também o seu Abuná, debaixo da doutrina do qual estava toda a Igreja da Etiópia, ele o havia do Patriarca Alexandrino, que estava entre os mouros; e sem recado do que pediam, se tornaram estes embaixadores da Gaúa. Certo grave cousa pera as orelhas de um cristão zeloso da Fé ouvirem, vendo que o grão do Senhor, semeado nesta e outras partes per os primeiros agricultores de seu Evangelho, que foram os Apóstolos, se perde per os seus sucessores não tirarem a zizânia dele, pera que a espiga do número centésimo cresça. E os principais a quem compete o adjutório desta obra, polo poder do segundo gládio que lhe foi dado, leixam este antigo agro da primeira semente, e vão romper terras novas apauladas da muita idolatria que em si contém, porque lhe responde ao presente mais com temporais fructos, que com as almas ganhadas ao Senhor. E praza a Ele que os menistros e jornaleiros desta obra não se entreguem tanto na temporalidade e abominações do ceno dos tais paúis, com que no dia do final juízo não apareçam ante o Tribunal de Cristo, deles feitos mais gentios do que eles per católica doutrina daquele gentio ganharam almas, que apresentem ao Senhor como fiéis servos, que deram à usura o talento de sua possebilidade. E tornando às nossas rainhas da Etiópia de que falámos: confirma também não serem elas senhoras universais da região de que se nomeam, somente da cidade do tal nome, o título que Josefo no livro da Antiguidade Judaica dá à Rainha Sabá, quando conta como foi ver Salamão; 90 88 ca ele a intitula por Rainha da Etiópia e de Egipto, havendo neste tempo Faraó, sogro do mesmo Salamão, que era Rei de todo o Egipto; ca, se fora verdade ser ela Rainha desta região, per ali fizera o caminho a Jerusalém, que era mui perto, e não atravessara o Mar Roxo e o deserto de Arábia. E porque fez este caminho, per ela disse a Escritura: Veo a Rainha do Austro. Donde alguns quiseram comentar ser Rainha da região Sabea, que é nas partes da Arábia Félix, a que ora os mouros arábios dela chamam Iáman. E pois Josefo, não sendo ela Rainha do Egipto, lhe dá o título dele, assi se deve crer que não 176 de toda a província da Etiópia era Rainha, senão da cidade assi chamada, e das comarcas a ela vezinhas. E também o próprio nome dela não era Sabá, mas Maqueda, segundo dizem os abassis; peró davam-lhe aquele nome Sabá, que era o próprio de ua cidade metrópoli daquela região que ela imperava; e por já não haver tal cidade, os abassis chamam àquela região Sabai (como dissemos). A qual cidade Sabá, ante de ela ser Rainha, havia muitas centenas de anos que era fundada; ca, segundo o sítio, esta era aquela Sabá que Mosés cercou e tomou per indústria da filha do Rei dela, quando Faraó, Rei do Egipto, o mandou por capitão a esta guerra, segundo conta Josefo no livro que alegámos. E passados quatrocentos e setenta anos, pouco mais ou menos, Cambísis,

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conquistando desta Etiópia, mudou o nome a esta cidade Sabá, chamando-lhe Méroe, que era de sua irmã, ou, segundo querem outros escritores, de sua madre; donde ficou este nome à ilha que faz o Nilo, em a qual ela era edificada. Parece que estes escritores, quando falavam destas rainhas, às vezes tomavam a parte polo todo, e outras ao contrairo, intitulando-as ora per ua maneira, ora per outra. E os mesmos abassis, que se gloriam delas, mostram alguas memórias da sua habitação; porque, ainda que a Rainha Sabá se intitulasse da cidade Sabá, que era na Ilha Méroe, dizem eles que a câmara em que ela tinha seus tesouros, é um lugar chamado Acaxuma, onde ora se mostram grandes edefícios e alguns pirames da grandeza da agulha de Roma, a qual naquele tempo foi tam principal cidade, e durou tanto curso de anos, que Ptolomeu, como cousa célebre, chamando-lhe Axuma, a situa em altura de dez graus da parte do Norte. E assi dizem que a Rainha Candace nasceu em um lugar perto desta cidade Acaxuma, o qual ora é ua aldea de ferreiros; e o próprio lugar de Acaxuma era a principal estância dela, posto que o reino próprio, de que se ele intitulava, era a terra a que eles chamam Buro, mui vezinha à cidade Acaxuma. E também 90v 88v dizem que o capado da Rainha Candace não converteu à Fé de Cristo somente o reino chamado Tigrai, - que (como dissemos) é aquela parte da terra a que Estrabo chama Tenesis, na qual ainda hoje há ua povoação chamada Temei, que parece que dele procederia a toda a comarca, e que algum destes nomes é corrupto do outro - mas ainda converteu outras comarcas. E assi dizem que Davide, filho da Rainha Sabá, se coroou por rei naquela cidade Acaxuma, donde ficou em uso que os reis que depois o sucederam até hoje, se vão coroar àquele lugar; e não o fazendo, reina injustamente. E que assi os reis que sucederam a este Davide até o tempo que receberam a Fé de Cristo, como desta sua conversão 177 té ora, sempre foram acrescentando seu estado per conquista de armas, e todolos reinos e senhorios, que per este modo tem acrescentado a sua Coroa, como de cousa própria, quando provêm deles a alguas pessoas, ainda que procedem da linhagem daqueles de quem os houveram, é enquanto lhe bem parece, somente o reino Dambeá. Ca este, ainda que o príncipe que o governa seja vassalo dele, Preste João, não o pode remover, nem tirar daquele estado, e herda-se de pai a filho. E a causa é que, no tempo que Davide, filho da Rainha Sabá, começou conquistar os reinos da gentilidade a ele vezinhos, este se deu a ele por vassalo, ante de ser conquistado. E dos outros reinos que estes príncipes conquistaram dos reis gentios daquela Etiópia, assi como dos povos goragnes e de outros, quando os nossos lá andaram, gloriando-se eles, abassis, daquelas vitórias, lhe mostravam as próprias casas onde aqueles reis gentios habitavam. E dizem que o primeiro reino que este seu primeiro Rei Davide conquistou da mão do gentio daquela Etiópia, foi o que eles chamam Tigrai. Trouxemos todas estas cousas, porque se veja que em um mesmo tempo houve naquela Etiópia os reis e rainhas ilustres que nomeamos; e que os abassis, por glória do seu princípio, que começou neste primeiro Davide, querem encobrir os outros reis que também houve naquelas partes. Condição mui geral de todalas gentes, que por darem antigos e ilustres princípios à sua linhagem, sempre fabularam cousas a que a antiguidade não testemunha dá licença; posto que per outra parte estes abassis mostram o contrairo na conquista que dizem ter os seus príncipes com os reis gentios comarcãos, de que conquistaram tantos reinos, como tem. O que parece, pelo discurso do tempo e per as rainhas que sempre naquelas partes houve até hoje, é que a Sabá daria a seu filho algua parte da terra, da que ele pessuia, pera herança sua, e tudo o que fosse conquistado do gentio daquelas regiões acrescentasse a sua coroa; e o mais que ela pessuia como Rainha, conformando-se com o costume 91 90 e lei da terra, ficava à outra fêmea, até vir ter per este modo a Candace, e desta sucessivamente a Gaúa, que ora reina, da qual particularmente falamos em a nossa Geografia. Muitas cousas destas

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não estão alumiadas antre os abassis, por ser gente que não se dá a escrever os anais dos seus reis, como costumaram os gregos e latinos, que não são tam antigos na Lei de Deus como eles dizem ser. E prevalece entre eles tanto esta anteguidade da Rainha Sabá e Lei de Mosés, por ser o leite de sua primeira doutrina, que ainda hoje estão aguados dela, porque todos guardam o sábado e domingo, tem circuncisão e bautismo de água, ao nosso modo. Peró diferem nisto: o macho é levado à Igreja a receber este sacramento aos quorenta 178 dias, e a fêmea a sessenta, e sempre há-de ser ao sábado ou domingo; porque como guardam estes dous dias e neles celebram missa, dão o sacramento às crianças, dando-lhe logo a madre a mama pera poder levar aquela pequena partícula. E quanto a um sinal de fogo que trazem sobre o nariz, que alguns queriam dizer ser bautismo de fogo, tirado daquela palavra da Escritura: Ipse vos baptisabit in Spiritu Sancto et igne, não é assi, somente usam dele per preceito dos primeiros reis que foram católicos. Os quais, como viviam em meio de tanta gentilidade, porque o seu povo fosse conhecido, mandaram que se assinasse com fogo naquele lugar; e é guardado o tal preceito, que achando-se algum homem sem ele, sendo acusado, fica cativo do príncipe. A circuncisão, de que também usam, é feita aos oito dias em casa per sacerdote; os homens no lugar ordenado, e as mulheres cortando-lhe ua partícula glandosa, a que os latinos chamam nympha, o qual uso não havia acerca dos hebreus, e dizem eles que o tem por preceito da Rainha Sabá. Além destas ceremónias da Lei Velha, que eles hão por sacramentais, tem outras acerca de não comer porco e cousas a que chamam imundas e muitos abusos que eles confessam tomarem, não somente por preceito do seu Abuná, que (como dissemos) tem a doutrina dos jacobitas, mas ainda por premática do seu Rei. Porque, excepto os sacramentos e ordenar os clérigos nas ordens pera o sacerdócio, que se faz pelo Abuná, em todo o mais o Rei é sobre todos; ca ele os provê dos benefícios e os remove quando lhe apraz, e castiga seus delitos, como se fossem leigos. Os clérigos não tem dízemos, ca todolos rendimentos da terra são del-Rei, somente tem alguas terras que lhe os reis ordenam, que rendem pera as Igrejas; e isto é segundo a devação dos príncipes, os quais neste modo de repartir com a Igreja se tem mostrado serem zelosos da honra de Deus. Porque em toda aquela Etiópia (como dissemos) não há um edefício ou casa que os reis 91v 90v tenham feito pera si; e pera se louvar Deus, são tantos os mosteiros de frades da Ordem de Santo Antão (porque não tem outra), e tantas as igrejas de cónegos regrantes que eles tem, ao modo que temos as sés catedrais e tanta outra igreja peróquia e tanta ermida, que não tem número; e a todas os reis provêem de renda, ornamentos, e nisto somente se mostra a grandeza e polícia daqueles príncipes. Aos frades e cónegos regrantes nas comarcas onde habitam dá terras assinadas, a que eles chamam gultos, que rendem pera a casa; e assi vive o sacerdote abastadamente, e é estimado naquelas partes, principalmente os que residem nos conventos e igrejas colegiais, que por nenhua outra cousa os homens mais trabalham naquelas partes, que por ter grau de sacerdote, porque com isto tem a vida certa. E daqui vem haver naquelas partes grande número de frades e clérigos; ca a multidão 179 deles fundada na cobiça de ter o necessário em aquele estado, faz conservar-se entre eles tanto tempo o que professam da lei. Geralmente todo aquele povo é bárbaro nas cousas da ciência; porque, tirando as que pertencem às cerimónias do seu sacerdócio (e ainda estas barbarizadas), em todo o mais não se acha neles doutrina algua, nem procuram por isso; até nas cousas mecânicas não tem engenho algum; e se lá acolhem algum estrangeiro engenhoso, não o leixam vir; e porém não pera lhe servir em mais que na estrutura de seus templos, por entre eles não haver pedreiros, carpinteiros ou pintor que lhos

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faça, e esses que tem são obra de estrangeiros. E todolos ornamentos, paramentos que tem, que são muitos, e mais do que se espera em tam bárbara gente, assi pola cópia, como por serem de seda e brocadilhos, todo este pano lhe vai da Índia, do Cairo e de outras partes; até os panos das tendas do seu Rei e ornamentos de sua casa, na qual e nas igrejas estão todalas alfaias, que per partes a gente nobre de toda aquela Etiópia podia ter. E é tam estranha cousa entre eles algum artefício, do pouco uso que tem da polícia, que até um ferreiro, que lavra o ferro pera suas necessidades, tem per cousa que se faz por arte diabólica; e por esta causa são antre eles infames; e se acertam de ver pela menhã um ferreiro e adoecem naquele dia, dizem que do olho do ferreiro lhe veo aquele mal. E chega esta inorante opinião a tanto, que vivem estes ferreiros quási apartados do consorço da outra gente, e não os leixam entrar nas igrejas. Finalmente, é nação tam bruta, que muitos dos vezinhos, sendo negros de cabelo torcido, tem mais polícia na mecânica das cousas, do que eles tem. E não pode ser mais bruto do engenho, que, acertando um arménio que se achou 92 91 naquelas partes de fazer a el-Rei um moinho de água pera moer o trigo e todo outro género de pão, a farinha do qual eles fazem entre uas pedras à mão, mais remoendo que moendo, e isto com muito trabalho, acabando el-Rei de ver a obra que fazia, mandou-a logo desfazer, dizendo que aquilo não servia em sua terra, porque ele andava sempre no campo per todo o seu reino, e não havia de levar consigo aqueles engenhos, que sempre estavam em um lugar. Como se aquele artifício não convinha a mais que onde ele fosse presente, e não ao povo de todo seu reino! O qual povo tudo merece, ca, habitando tam grossas terras, onde há grandes criações pera se aproveitarem das lans, regadios pera linhos e sítios pera todo algodão que quiserem semear, de bruteza e preguiça padecem andarem vestidos geralmente de peles por curtir; e quem as traz curtidas, é ua grande polícia. E são tam curtas estas suas vestes, que lhe cobrem pouca parte do corpo; até o comum dos clérigos, frades e freiras é ua vergonha ver como andam, sem a eles terem de quanto lhe parece. Somente os 180 cónegos e frades que residem em seus conventos, estes vestem pano de algodão e trazem as roupas compridas, como convém a seu hábito; e assi a gente nobre usa deste pano, o qual lhe vai da Índia e de alguas partes vezinhas. Porque (como dissemos) são tais que nem pera vestir, tomar um peixe, ua ave, ua fera per modo de artifício, não tem pera isso engenho; somente pera furtar são assi engenhosos, que lhe não chegam os ciganos vagabundos, e isto na Corte del-Rei, que nas outras partes não há esta soltura sem punição. E parece que de andar o seu príncipe sempre no campo pastando as ervas, ao modo dos alarves, segundo os temporais do ano, ora em ua região, ora em outra, na qual inquietação e concurso de muitas e várias nações, assi das que andam naquele arraial como das que conquistam, os poseram em necessidade de dous usos, os quais lhes fez a natureza, pera roubar e pelejar, a que naturalmente são inclinados, de onde vem que estes abassis, geralmente, como são fora da miséria de sua pátria, tem ânimo ousado, principalmente naquelas partes orientais, e alguns deles são excelentes capitães, como os nossos tem experimentado. O estado do Preste - peró que ao presente que nós compomos esta História seja bem pequeno e mudado com a entrada que os mouros fizeram em todo o seu reino, fazendo-se senhores dele quási per discurso de treze anos, sendo ele recolhido em partes remotas de serranias, por salvar a vida, té que os nossos à custa de seu próprio sangue o restituíram, como se dirá em seu tempo -, neste em que o Governador Diogo Lopes de Sequeira enviou a ele 92v 91v D. Rodrigo de Lima por embaixador da parte del-Rei D.Manuel (como logo veremos), era mui poderoso em terras e povo. Em terras, porque tinha as que atrás nomeámos; e povo, porque com sua potência não somente era senhor obedecido de toda a cristandade daquela Etiópia,mas ainda muitos

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povos da gentilidade e dos mouros, em que entravam grandes senhores. E em nenhua cousa se mostrava mais a potência dele, que no assentar do seu arraial; porque (como dissemos) por antigo costume estes príncipes andam sempre no campo pastando as ervas, ora a ua parte, ora a outra, ao modo dos partos, párseos e arábios, que seguem este costume. E verdadeiramente era cousa maravilhosa de ver, ca em ua populosa cidade de pedra e cal achar-se-ão edefícios, templos, praças, ruas, mantimentos, mercadorias e polícia de bom regimento; e neste arraial achava-se ua cidade de pano, de grande número de tendas de algodão, uas de ua cor, outras de outra, e delas de seda entretelhadas, assi armadas e arruadas, e os 181 ofícios postos em bairros, e as igrejas em freguesias, que por muitas vezes que se o Preste mudasse, já cada um sabia onde se havia de assentar, se ao Levante, se ao Ponente e a que mão e em quanta distância; de maneira que nenhum homem tinha necessidade de perguntar: - onde pousa Foão? porque pola ordenança do lugar em que cada um se havia de apousentar, já sabia que os oficiais del-Rei em tal parte, e os da justiça em tal, e os mecânicos de tal ofício em tal, e a tantas tendas. E segundo o grande número de gente que este príncipe trazia, se não houvera esta ordem, pola pouca demora que ele às vezes fazia em lugares, primeiro que se um homem achara, se partira dali. Porque arraial que, estando a praça principal situada no meio dele, era dali às tendas del-Rei ua légua, e, se era em campo chão, légua e meia, tudo per ua rua tam dereita e larga, que das portas dos paços del-Rei se via o concurso dela, por eles sempre serem assentados no lugar mais alto daquele sítio, bem se deve crer que não tomaria este arraial pouco espaço de terra, e que a gente dele não era de pequeno número, pois tinha treze freguesias, ua das quais era dos cozinheiros del-Rei. E quando se mudava, além do grande número de homens que serviam de levar cargos à cabeça, de mulas de carga dizem que passavam de cem mil, afora muitos camelos que levavam as tendas. Das quais mulas eles se servem, não somente neste serviço de carga, mas ainda pera caminharem nelas, e os cavalos levam a destro; porque, como entre eles não se usa ferrarem as bestas, e são mais mimosos que as mulas, pelejam neles e caminham nas mulas. A maneira do serviço del-Rei e tratamento de 93 93 sua pessoa, naquele tempo que florecia em potência de todalas cousas, era mais de homem divino que humano; peró agora que a guerra dos mouros trouxe à terra necessidade de homens, já se comunica e já o conversam e já se leixa ver como homem, e não com aquelas cerimónias de que ante usava, como se ele fora algua divindade. Porque até os senhores de seu estado, no modo de o ver e falar, não pareciam vassalos, mas escravos; em tanto que, mandando ele recado ao mais poderoso deles per o mais baixo homem de sua casa, ainda que fosse ao Tigre Mahom, ou ao Barnagás, que na dinidade representavam reis, tanto que em sua casa lhe era dito que lhe vinha um recado do Preste, logo em continente se saía de sua casa, e no campo e a pé, nu da cinta pera cima, havia de receber o seu recado. Ouvido o qual recado, se era contentamento do Preste, vestia-se das mais nobres vestiduras que tinha, e tornava a cavalgar e ia-se pera casa; e se era em seu descontentamento, a pé, nu como estava, se tornava. E a primeira palavra que estes messageiros diziam da parte del-Rei, era: - El-Rei vos envia saudar; à qual palavra todos por cortesia e acatamento iam com a mão ao chão. Outros muitos costumes tem a gente abassi e o seu príncipe, que são mui diversos dos nossos, os quais (como já dissemos) leixamos pera o Comentário da nossa Geografia, porque este lugar não requere mais.

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93 93 182 Capítulo III. Como Diogo Lopes de Sequeira se viu com o Barnagás, um principal capitão do Preste, com o qual assentou paz; e entregue o embaixador Mateus e D. Rodrigo de Lima, que ele em sua companhia mandou ao Preste, se partiu pera ir invernar a Ormuz: e o mais que fez neste caminho. O Governador Diogo Lopes de Sequeira ante que estes padres do Mosteiro da Visão que ele com tanta solenidade (como dissemos) mandou receber, tinha secretamente enviado a ele um Fernão Dias, homem que sabia mui bem a língua arábia, que geralmente se fala per aquelas terras, pera que, notadas as cousas do mosteiro e religiosos dele, o podesse bem informar, e de tudo estar avisado quando os religiosos que Mateus mandara chamar, viessem saber se respondia o seu dito com a vida dele, Fernão Dias. E porque ele tardava e os frades eram vindos, os quais contavam muitas cousas da sua religião, número, grandeza das casas que tinham, e assi dos muitos religiosos que nelas havia; 93v 93v e que o Mosteiro de Visão, que é da vocação da Ordem de Jesu, era um dos principais que eles tinham, o ouvidor Pero Gomes Teixeira, zeloso das cousas de nossa Fé, desejando ver per si o que estes frades deziam, pediu licença ao Capitão-mor, que em companhia deles o deixasse ir ver aquele Mosteiro. Diogo Lopes, quando viu que ua tal pessoa, como era Pero Gomes, se oferecia a este caminho, per o qual podia ser melhor informado das cousas que desejava, que per outra pessoa algua, agradecia-lhe muito esta ida, dizendo que lhe havia grande enveja a ela. Finalmente, Pero Gomes se foi em companhia dos frades até a vila de Arquico, e dali o capitão do lugar mandou um seu irmão com ele; e, sendo no caminho, começaram achar magotes de gente do Barnagás, que se vinha ver com Diogo Lopes. E quando chegavam a estes magotes, o irmão do capitão de Arquico, por obediência e reverenciar a pessoa do Barnagás, cuja aquela gente era, se descia a pé e lhe falava; e tornado a cavalgar quando vinha outra, fazia outro tanto, nas quais cerimónias, segundo seu uso, se foram detendo um bom espaço, até que vieram encontrar com a pessoa dele, Barnagás, o qual trazia ante si quatro mulas a destro mui fermosas e quatro cavalos grandes, como os de Andaluzia em Espanha, e toda a gente que acompanhava o Barnagás vinha de mulas. 183 O irmão do capitão de Arquico, visto a pessoa dele, per espaço de um tiro de besta se apeou e fez apear a Pero Gomes, e ambos a pé foram contra o Barnagás a lhe falar; o qual, por honrar Pero Gomes, teve a rédea da mula em que vinha; e chegados eles, lhe beijaram a roupa no lugar do geolho dereito, segundo seu costume de reverenciar as pessoas tam notáveis. O qual Barnagás, depois que soube de Pero Gomes quem era e a romaria que ia fazer, e como o capitão estava esperando por ele, respondeu com palavras de homem prudente que o mesmo desejo de se ver com o Capitão-mor o movera àquele caminho que fazia; e que a romaria que ele, Pero Gomes, ia fazer era tam perto, que bem poderia tornar ante que ele, Barnagás, se visse com o capitão; que lhe pedia por amor dele que assi o fizesse, porque folgaria de falar primeiro com ele. E assi se fez. Porque Pero Gomes, vista a casa e tomada informação do que desejava saber dos padres do Mosteiro, dos quais foi mui bem recebido, se tornou pera Arquico. Dos quais religiosos houve um livro escrito em língua caldea, em que eles tem toda a lenda da Igreja, de Evangelhos, Epístolas, Salmos de Davide, que rezam, e outras cousas que respondem à Igreja Romana, e alguas segundo seu uso. Chegado o Barnagás ao lugar Arquico, per meio de Pero Gomes houve alguns

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94 95 recados entre ele e o Capitão-mor Diogo Lopes sobre o lugar onde se ambos haviam de ver; porque um requeria que fosse no próprio lugar Arquico, que do pouso onde as naus estavam (que era um pouco abaixo) a ele haveria duas léguas, e outro queria dentro em as naus. Nas quais dúvidas se meteu conselho dos mouros, a quem nossa amizade com o Preste era mui odiosa, por ser em sua destruição, os quais meteram tanta desconfiança no ânimo do Barnagás, que não havia remédio pera querer que as vistas fossem de outra maneira, até que entreveo nisto ir António de Saldanha a ele. E entre muitas práticas que ambos teveram sobre este negócio, depois de ele rejeitar arreféns de parte a parte, escusando-se disso com dizer que, onde havia Cristandade, havia de haver toda a verdade, em um sacerdote querendo descobrir ua Cruz que levava, de prata, que António de Saldanha, pera o provocar, lhe queria entregar, como penhor de seguridade de sua pessoa naquele auto das vistas, levantou-se muito rijo donde estava, indo à mão ao sacerdote, que não descobrisse a Cruz, dizendo que pera cousas de tam pouca importância como eram as que se entre eles tratavam, pera que era entrevir o sinal de que dependia toda nossa Fé? E sem mais altercar nas dúvidas que tinha, disse que era contente de chegar à praia que estava defronte de Arquico. E pois diziam que as naus, por razão dos baixos, não se podiam mover do lugar onde estavam pera vir ali, que viesse o Governador em navios de remo, e que ambos se veriam na praia. 184 Tanto poder tem a vista daquele sinal entre aquela bárbara e rústica gente, criada na côdea da nossa lei, e mais os segura a vista dele pera não temerem perder a vida, que a nós, criados na polícia da Igreja Romana e verdadeiro entendimento da lei evangélica, os juramentos solenizados com tanto sacramento de palavras, na segurança dos bens a que chamamos fazenda. Donde parece que mais tem aproveitado a estes, nesta parte, a inorância da luz da lei, que a nós a claridade dela. Finalmente, este Barnagás, como homem seguro dos temores que lhe os mouros punham, e sem pontos de honra (matéria que faz toda discórdia), ele se veo ver com Diogo Lopes à praia, acompanhado com até duzentos homens de cavalo e dous mil de pé, os quais entregou ao capitão de Arquico como guarda do campo; e saindo-se do corpo desta gente, veo com até seis pessoas ao lugar onde estavam ordenados assentos em que se haviam de assentar. O vestido de sua pessoa era ao modo alarve - ua camisa branca de lenço vestida sobre outras roupas, e em cima um bedém preto, e na cabeça ua touca branca de lenço. E segundo 94v 95v se depois soube, ele e os seus vinham em hábito honesto e triste, por haver poucos dias que, em ua entrada que ele fizera nas terras dos mouros, contra as partes do Egipto, perdera um filho e quatrocentos de cavalo, per o qual caso o Preste estava descontente dele, dando-lhe a desculpa disso. Diogo Lopes veo a modo contrairo com até seiscentos homens vestidos de festa; e quando viu a ordenança em que o Barnagás leixava a gente que trouxera consigo, pôs a sua ao longo da praia em ordem de boa mostra; e saído com outros seis homens, foi-se onde estavam seus assentos, cadeiras pera ele, Diogo Lopes, e embaixador, e um cátele coberto de seda pera o Barnagás, por este ser o modo da maior honra que eles podem ter em seu assento. Chegados a um tempo a este lugar, assentaram-se todos três; e depois de feitas suas cortesias, segundo o uso de cada um, e darem graças a Deus polos ajuntar naquele auto de congregação cristã, em amor e paz, começou Diogo Lopes dar conta das cousas que eram passadas, assi nas deligências que os Reis de Portugal tinham feito por ter conhecimento e comunicação com aquele Emperador da Abassia, tam nomeado per toda a Cristandade, como as dúvidas que os capitães da Índia teveram, quando viram lá o embaixador Mateus, parecendo a todos ser algua indústria dos mouros pera fim de seus negócios. Porém, depois de ele ser em Portugal, el-Rei D. Manuel, que então reinava, o recebeu como se devia receber o embaixador de tal príncipe, e que per alguns inconvenientes e ocupações que houve no reino, não foi logo despachado. Depois, vindo à

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Índia, el-Rei D. Manuel, seu Senhor, 185 mandara a Lopo Soares, o Governador passado, que fora ante dele, que entrasse no Estreito poderosamente, e entregasse a ele, Mateus, naquele porto de Arquico aos capitães dele; e assi por falecer o mesmo embaixador, que el-Rei com ele mandava, e por tempos contrairos não pôde haver efeito aquela vista e auto de irmandade, em que ele, Diogo Lopes, e ele, Barnagás, estavam. Porque as cousas per Nosso Senhor ordenadas pera tamanho fructo, como aquele seria, convinha terem estes princípios de trabalho, pera maior consolação e mérito daqueles que per ele mesmo, Deus, sofriam. E pois Deus fizera a ele, Diogo Lopes, tam particular mercê, que o chegara àquela hora em que estava, duas cousas lhe convinha fazer pera comprir com a instrução que lhe el-Rei D.Manuel, seu Senhor, mandava: a primeira, levar ua autêntica certidão dele, Mateus, como ficava naquele porto entregue a ele, Barnagás, pessoa das mais principais daquele reino, e assi um embaixador seu, que mandava que 95 97 fosse ao Preste em companhia dele, Mateus, em lugar do outro que faleceu. E a segunda era fazer ua fortaleza na Ilha Camarão, ou naquela Maçuá, qual parecesse mais proveitosa pera guerrear os mouros daquele Estreito do Mar Roxo, conformando-se nisto com a vontade do Preste, e também tomar emenda del-Rei da Ilha Dalaca, pola morte de um capitão português, que ali foi ter na entrada de Lopo Soares, segundo ele, Mateus, sabia, como pessoa que este negócio prognosticou, por saber ser aquele mouro homem atraiçoado. E que quanto a ele, Mateus, ser entregue, disso estava já satisfeito, e o embaixador que com ele havia de ir, era aquele fidalgo (amostrando a D. Rodrigo de Lima, filho de Duarte da Cunha, de Santarém), o qual era um dos seis que levava consigo já ordenado pera este auto, que, por não estarem ainda prestes alguas pessoas que com ele haviam de ir, e assi cousas pera a pessoa do Preste, por isso lho não entregava logo. Que ele havia de ir em companhia dele, Mateus, até o Mosteiro de Visão, onde (segundo ele dizia) por sua devação havia de estar alguns dias; que ali pedia a ele, Barnagás, que mandasse algua pessoa que o encaminhasse até a Corte do Preste, quando ele, Mateus, tevesse algum empedimento de não poder ir tam cedo. Que, quanto ao fazer da fortaleza, por aquele ano lhe parecia que não podia ser, assi porque a ele, Capitão-mor, lhe convinha ir invernar fora do Estreito, por ter perdidas a maior parte das munições que trazia em ua nau que perdera, como por haver ainda de vir recado do parecer do Preste sobre este caso; e que, conformando-se com o breve tempo que tinha de caminho, daria ua vista a Dalaca. O Barnagás, enquanto Diogo Lopes disse estas cousas, esteve mui atento, e a todas respondeu como homem prudente; e per darradeiro, em confirmação da paz e amizade que ali assentaram, veo um sacerdote e apresentou ua cruz de prata dourada, em que ambos a haviam de jurar. A qual cruz tomando o Barnagás na mão pelo pé, e posto em geolhos, disse: - Aquela paz e amor que Cristo Jesu, nosso Redentor, mandou a 186 seus discípulos que houvesse entre eles, esta seja entre nós outros, que professamos sua Fé, a qual, quanto em mim for, por parte del-Rei Davide, meu Senhor, comprirei, e assi o juro neste sinal de nossa salvação. Diogo Lopes per seu modo feito outro tal juramento, tornaram-se assentar; e depois que um pedaço esteveram praticando nas cousas da guerra, que aqueles dous príncipes (cujas pessoas eles ali representavam) tinham com os mouros e pagões, espediram-se um do outro, por o tempo não ser pera mais, por causa da grande calma que fazia. Na qual vista Diogo Lopes mandou 95v 97v dar alguas peças de armas ao Barnagás, e um corpo inteiro delas, com que estava armado um homem que ele pediu, por ser a ele cousa nova aquele corpo de armas brancas. Em retorno das quais

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peças ele mandou logo a Diogo Lopes um cavalo e ua mula e cinquenta vacas, que se repartiram pelas naus; e ao seguinte dia o tornou Diogo Lopes visitar com mais alguas peças, e assi ao capitão de Arquico. Finalmente, naqueles dous ou três dias que o Barnagás esteve em Arquico depois destas vistas, sempre de ua parte e da outra houve vesitações, até que ele se mandou espedir de Diogo Lopes, dizendo que lhe convinha partir-se, e que ao capitão de Arquico ficava recado pera dar aviamento ao embaixador que havia de mandar. No despacho do qual Diogo Lopes entendeu logo e ordenou irem em sua companhia até treze pessoas, de que as principais eram Jorge de Abreu, de Elvas, segunda pessoa depois de D. Rodrigo, João Escolar, escrivão da embaixada, Lopo da Gama, João Gonçalves, feitor e língua, Manuel de Mariz, tangedor de órgãos, por razão de uns que iam de presente ao Preste entre outras cousas da Igreja que lhe mandava, e Francisco Álvares, sacerdote. O qual desta viagem em que foi, e assi do que lá soube e alcançou, segundo a possibilidade de seu engenho, compôs um livro, mais pura que doutamente, que ora anda convertido em língua italiana. Apercebido D. Rodrigo do necessário a sua viagem, com um honrado presente que levou, assi de armas, como de ornamentos de casa, e principalmente das cousas necessárias ao culto divino, segundo o uso romano, foi ele e sua companhia e o embaixador entregues ao capitão de Arquico, segundo a ordem que o Barnagás pera isso leixou; e por testemunho do auto desta entrega que se em Arquico fez, no próprio lugar dela se arvorou ua grande cruz de pau. E parece que Nosso Senhor tinha lemitada a vida de Mateus no Mosteiro de Visão, onde ele desejava chegar; porque, chegados a ele, 187 faleceu e D. Rodrigo seguiu seu caminho à Corte do Preste, onde chegou; e do que lá fez adiante faremos relação, porque aqui convém continuar com Diogo Lopes. O qual, enquanto esteve naquela Ilha Maçuá, sempre ia ouvir missa à mesquita da povoação, à qual mandou poer nome Santa Maria da Conceição; e a primeira missa que se nela disse, foi das Chagas, por ser em sexta-feira depois das oitavas da Páscoa, em que houve muitas lágrimas de devação dos nossos, vendo o lugar onde Nosso Senhor os tinha levado, e quanta mercê dele recebiam, pois em lugares onde ele era blasfemado per mouros e gentios, eles eram ministros daquelas 96 99 oblações e sacrifícios a ele aceitos, por ser em memória do sangue de Cristo Jesu. Por a qual obra sempre a nação português seria louvada e trazida na boca das gentes, de geração em geração, té a fim do Mundo; e no outro teriam prémio de católicos nesta vinha melitante do Senhor. Diogo Lopes, acabadas estas cousas com grande prazer de todos, e feita sua aguada nas cisternas que havia na Ilha, partiu-se via da outra chamada Dalaca, onde chegou, a qual será de trinta léguas, quási todo este comprimento lançado ao longo da terra firme de África chamada Abassia. A terra da qual ilha é baixa, chea de muitas ilhetas e baixos; e se não é tam doentia como o sítio dela mostra, é porque os ventos que ali cursam, quási todos lhe vem por cima da água, na qual há somente ua cidade nobre, chamada com a mesma ilha, afora outras povoações pequenas à maneira de aldeas. As quais, por serem marítimas, onde os nossos podiam ir, todas estavam despejadas, temendo esta visitação que lhe havia de ser feita, e por isso não houveram delas mais despojo que algum gado, que a gente comum matou, entre o qual eram camelos, a carne dos quais havia por bom refresco. Diogo Lopes, porque ali não havia mais que fazer, por sinal do que fizera aos moradores, se os acharam, mandou derribar alguas casas notáveis de pedra e cal e poer fogo à cidade. Partido dali, foi haver vista da outra costa da Arábia; porque, como aquela da Abassia era chea de muitas ilhas e baixos, e ainda per nós não navegada, não quis sair do Estreito per aquele canal; e também pera de lá mandar à Ilha Camarão um navio saber se foram lá ter dous galeões, que se apartaram dele, capitães Cristóvão de Sá e Francisco de Melo, e não achando nova deles, que o

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seguisse. Saído do Estreito, foi ter onde perdeu a sua nau Santo António, de que ainda mandou recolher três âncoras que se poderam haver, e daqui partiu pera Adem, onde foi visitado com muito refresco. E por muita pressa que 188 se deu em sair de entre estas duas terras que fazem o Estreito, temendo poder sobrevir o tempo que tanto dano fez a Lopo Soares, já quando começou descobrir a garganta que faz o Cabo de Guardafu e a terra Arábia, achou tamanhas cerrações e tempo do inverno, que não se pôde espedir daquela paragem sem perder todolos batéis das naus que levava per popa, por os comerem os mares grossos. E assi ua galé real, capitão Jerónimo de Sousa, que se alagou junto da terra Arábia, além do Cabo Fartaque, onde morreu muita gente nobre, entre os quais foi Manuel de Sousa Galvão, filho de Duarte Galvão, com que aquele Estreito ficou por sepultura de dous filhos e um pai, e assi morreu Pedro 96v 99v da Silva, de alcunha o Cafre; e milagrosamente no batel da galé escapou o capitão Jerónimo de Sousa com onze homens, de que os principais eram Hanrique Homem e Pero Borges. E havendo dous dias que andavam na língua das ondas, a Deus misericórdia, chegaram a terra, onde passaram outra tanta fortuna. Porque, como toda aquela costa é de mouros arábios, per espaço de cem léguas que fizeram caminho sempre ao longo da praia, além da fome, sede e outros trabalhos de tam comprida jornada, receberam deles tal companhia de pancadas, vitupérios, leixando-os em coiro, que, quando chegaram a Lalão, que está na fronteira do Cabo Rossalgate, não levavam já figura de homens, tam cortidos os tinha o Sol e tão desfigurados os fizera a fome, sede e trabalhos que passaram. E porque o Xeque desta cidade era vezinho de Calaiate per espaço de quinze léguas, e mui familiar del-Rei de Ormuz, por lhe parecer que nisto o comprazia, os teve ali alguns dias pera recobrarem suas forças, e depois vestidos e acompanhados de gente, os mandou a Calaiate, e dali vieram os nossos, como veremos. Diogo Lopes de Sequeira, correndo também sua tormenta, veo com a armada ter à vila Calaiate, onde achou Jorge de Albuquerque, que (como atrás fica) o veo aqui esperar, e assi ao Doutor Pero Nunes, a quem deu posse do ofício de Veador da Fazenda, que levava per el-Rei. E ante que se daqui partisse, sendo já no fim de Junho do ano de quinhentos e vinte, chegou ua nau que deste reino partiu aquele ano, capitão e piloto Pedreanes, Francês de alcunha, ao qual, por ser homem deligente, e que sabia bem as cousas do mar, el-Rei D. Manuel mandava com cartas a Diogo Lopes sobre alguas cousas de seu serviço, e também com a nova do que tinha sabido da armada que o Soldão fazia, e lhe tinha enviado dizer per Pero de Vera, temendo que per algum acontecimento não passasse à Índia com este recado. E esta foi a causa por que Pedreanes foi demandar aquela paragem, por em Moçambique achar recado como Diogo Lopes mandara ali chamar Jorge de Albuquerque. E entre outras cousas que el-Rei mandava a Diogo Lopes que fizesse aquele ano, era que na mesma nau com Pedreanes enviasse algua pessoa, de que ele confiasse esta ida, a descobrir as Ilhas do Ouro, através da Ilha Samatra, de que já atrás escrevemos, por lhe muitas pessoas, que andaram 189 naquelas partes da Índia, darem grande esperança de se poderem descobrir. A qual ida Diogo Lopes logo ali deu a Cristóvão de Mendoça, filho de Pero de Mendoça, alcaide-mor de Mourão, da viagem do qual adiante faremos menção. E pera que el-Rei soubesse o que ele, Diogo Lopes, fizera naquela entrada 97 97 do Estreito, que lhe mandara fazer, enviou com este recado a Pero Vaz de Vera, costumado levar as novas deste Estreito, o qual chegou a este reino, onde a sua vinda foi mui celebrada, não somente com festas temporais, mas ainda espirituais de solenes procissões, dando louvores a Deus polo

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descobrimento daquele Emperador da Abassia, chamado Preste João, tam desejado neste reino. E porque estas novas fossem mais celebradas em as cidades e vilas do reino, el-Rei lhe escreveu, notificando-lhe o que Diogo Lopes fizera, tudo muito particularmente por dar notícia a todos do estado daquele príncipe cristão até então mal sabida, da qual obra ele tinha tanto contentamento, como de se descobrir per ele a Índia, por estas duas cousas nestas partes da Cristandade serem muito incógnitas, e a notícia delas escura, e em muitas cousas falsa. Diogo Lopes, despachado Pero Vaz, porque aquele porto de Calaiate não era tam bom como o de Mascate pera as naus grandes invernarem, passou-se a ele, e ali leixou Jorge de Albuquerque por capitão de todas, e ele foi invernar aquele ano a Ormuz, levando consigo todas as velas de remo; ao qual leixaremos, até dar conta do que se passou na Índia, enquanto ele fez esta viagem do Estreito, e invernou em Ormuz.

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97 97 189 Capítulo IV. Em que se escrevem alguas cousas dos estados del-Rei de Narsinga e Hidalcão, e ua guerra que entre si teveram, enquanto Diogo Lopes foi ao Estreito, e o que dela resultou em proveito nosso. No princípio do Livro Quinto da Segunda Década, tratando das cousas de Goa, e como os mouros se fizeram senhores da terra chamada Decão e parte da Canará, demos ua geral notícia dos príncipes que nelas havia, e as contendas que entre si tinham. E como esta guerra sempre foi entre estes dous estados, um dos mouros e outro dos gentios, e os mais poderosos no tempo em que nós entrámos na Índia, nestas duas províncias Decão e Canará, eram Hidalcão, mouro, e el-Rei de Narsinga ou Bisnagá, gentio, e deste não temos dado tanta notícia como do outro polo 190 que 97v 97v convém determo-nos um pouco nisso, pera se mais claramente ver a causa que Rui de Melo, capitão de Goa, teve pera tomar as terras firmes sujeitas ao Hidalcão, enquanto Diogo Lopes de Sequeira andou nas partes que escrevemos. E também porque se saiba a potência deste príncipe, com que tínhamos vezinhança e tantos negócios, como se verá per o discurso desta história; posto que entre ele e nós não houve rompimento de guerra, ante procurou sempre nossa amizade, e de nós recebeu ajudas, com que alcançou vitórias de seus imigos, como se logo verá. E posto que, dando nós notícia de como se serve e dos aparatos de sua casa, dávamos ua mostra em que se podia julgar sua riqueza e poder, por serem cousas de príncipes deliciosos e soberbos, que querem com ouro, prata e muita polícia fazer suas casas templos de adoração, e no serviço de suas pessoas ua maneira de idolatria, com que querem ser servidos dos seus povos, leixaremos todas estas superstições, que procedem do sobejo ter e repouso da vida, por tratar da maneira com que este príncipe gentio se apercebeu pera ir tomar ua cidade que era do Hidalcão; porque em nenhua cousa com razão se pode melhor notar a potência e ser de um príncipe, que nos aparatos e ordem das cousas do exercício militar. Porém, porque este seu aparato não pareça, aos que tem pouca notícia dos príncipes daquele Oriente, maior nesta escritura do que seria em verdade, diremos o modo que tem de fazer tanta gente de guerra. Segundo o que temos sabido dos oficiais da fazenda daquele príncipe, quási regularmente em cada um ano tem de renda doze contos de pardaus de ouro, cada um dos quais pardaus vale da nossa moeda trezentos e sessenta reais, e deles somente entesoura em cada um ano três contos ou dous e meio. Todo o mais despende no governo de seu reino e serviço de sua casa; e principalmente em ter feita gente contra dous géneros de vezinhos, com que a maior parte do tempo tem guerra: um é el-Rei de Orixá ou Oria, gentio, e os outros são os capitães do reino Decão, mouros. E esta gente de guerra se faz per duzentos capitães que ele tem, aos quais dá terras no reino com obrigação que tenham ordinariamente feita certo número de gente de cavalo e tanta de pé e tantos elefantes, pera, quando quere que forem chamados, acudirem logo. E pera estarem melhor apercebidos, certas vezes cada ano hão de fazer alardo; e se lhe acham menos gente 98 98 de sua obrigação, ou mal armada, manda-lhe el-Rei tirar a capitania; e aos que andam concertados com o número e armas da sua gente vai-lhe el-Rei acrescestando as contias. E o rendimento das terras que el-Rei dá a estes capitães, se reparte em terços: el-Rei leva um e os dous são pera os

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soldados de sua capitania e mantença de sua 191 pessoa. E há capitania destas que rende um conto e cem mil pardaus, outra oitocentos, e daqui pera baixo até cinquenta mil. E quem tem tal rendimento de seu reino, e assi reparte com seus capitães, e tem tal ordem na maneira de seu governo, levemente põe em campo um tam grande exército como este príncipe levou pera ir tomar a cidade Rachol; e o fundamento disso procedeu desta causa: Havendo o Hidalcão, o principal senhor do reino Decão, e el-Rei Crisnarau, de Bisnagá, paz assentada pera muitos anos das guerras que entre estes dous estados houve, e desejando ele, Crisnarau, comprir o que seu pai Marsanai mandara em seu testamento, que era tomar a cidade Rachol, que o Hidalcão nas guerras passadas tinha tomado, por não lhe mover guerra sem causa, usou de um artifício com que podesse quebrar; e foi este: nas capitulações das pazes que entre eles eram assentadas se continha que, quando de reino a reino fugisse algum homem que fizesse roubo ou furto, era cada um deles obrigado de o entregar ao outro; e não o entregando, e querendo-o defender, quebrava a paz. A qual capitulação nunca o Hidalcão compriu em muitos gentios e mouros que se tinham acolhido a suas terras com somas de dinheiro, que levavam del-Rei e de seus capitães, e com peitas que davam se dissimulava com eles, de maneira que as partes nunca houveram o seu. Crisnarau, como sabia que neste laço podia acolher o Hidalcão, chamou um mouro per nome Cide Mercar, o qual andava em cousas de seu serviço havia muitos anos, e mandou-lhe entregar quorenta pardaus, com os quais fosse a Goa comprar cavalos, dos que ali vinham de Ormuz. Escrevendo ele, Crisnarau, cartas ao capitão nosso, em que lhe encomendava que, pera aquele negócio, lhe desse todo favor, isto afim de o caso ser mais notório a todos pera seu propósito. Cide Mercar, ou que a soma do dinheiro o tentou, ou que foi movido por ua carta que dizem ser-lhe dada do Hidalcão, em ele chegando a ua tanadaria chamada Pondá, três léguas de Goa, dali se foi a ele. O qual, como o teve consigo, o mandou logo a Chaúl, dizendo que lhe dava aquela tanadaria por ser homem honrado da casta de Mahamede, a que ele, Hidalcão, queria honrar; peró di a poucos dias desapareceu, e dizem que foi por ele 98v 98v o mandar matar, depois de lhe ter tomado os quorenta mil pardaus. Sobre o qual caso, depois de recados de parte a parte, el-Rei Crisnarau moveu seu exército pera tomar a cidade Rachol, denunciando que o Hidalcão per este modo tinha quebrado a paz que entre eles havia; e ainda pera mais justificação sua, escreveu a alguns capitães do estado do reino Decão, assi como ao Cota Maluco, Madre Maluco e a Melique-Verido, vezinhos dele, Crisnarau, por saber que não estavam bem com o Hidalcão, e que lhe haviam de aprovar aquele seu propósito. Partido el-Rei Crisnarau da cidade Bisnagá, sua metrópoli, depois de ter feito muitos sacrifícios e oblações aos seus deuses polo sucesso daquela 192 ida, começou a caminhar nesta ordem: o seu porteiro-mor, chamado Camanaique, levava a vanguarda com mil de cavalo e dezasseis elefantes, e trinta mil homens de pé; e trás ele ia um capitão, per nome Trimbecara, com dous mil de cavalo, vinte elefantes e cinquenta mil homens de pé. Seguia a este outro capitão, per nome Timapanaique, com três mil e quinhentos de cavalo, trinta elefantes e sessenta mil homens de pé. Hadapanaique, que seguia este, levava cinco mil de cavalo, cinquenta elefantes e cem mil homens de pé; e trás ele ia Condomara, outro capitão, que levava seis mil de cavalo, sessenta elefantes e cento e vinte mil homens de pé, ao qual seguia o capitão Comora, com dous mil e quinhentos de cavalo, quorenta elefantes e oitenta mil homens de pé. Gendrajó, governador da cidade Bisnagá, que seguia a este, levava mil de cavalo, dez elefantes e trinta mil homens de pé; e trás ele iam dous capados privados del-Rei com mil de cavalo, quinze elefantes e quorenta mil homens de pé. O page do batel del-Rei levava duzentos de cavalo e quinze mil homens de pé, sem elefantes, ao qual seguia Comarbereá com quatrocentos de cavalo, vinte

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elefantes e oito mil homens de pé. Vinha logo el-Rei com a gente de sua guarda, que eram seis mil de cavalo, trezentos elefantes e quorenta mil homens de pé, nas costas do qual ia o Gim da cidade Bengapor; ao qual, per razão do ofício, se ajuntavam grande número de capitães, com os quais fazia soma de quatro mil e duzentos de cavalo, vinte e cinco elefantes e sessenta mil homens de pé. Além desta gente posta em tal ordenança, iam repartidos dous mil de cavalo e cem mil homens em capitanias pequenas, os quais a maneira de descobridores pela dianteira, trazeira e lados de toda parte, duas e três léguas descobriam a terra, e assi ordenados, que, per atalaias de uns à vista de outros, em um instante se 99 99 sabia o que havia naquela distância. E da provisão que cada um destes capitães levava de água, por não perecer esta gente à sede, iam doze mil homens sobressalentes, repartidos pelo comprimento do fio desta gente, cada um com o seu odre de água às costas, pera que com necessidade dela não se saíssem da ordenança que levavam. A recovagem deste exército não se podia numerar, porque somente de mulheres públicas passavam de vinte mil, e homens que lavam roupa, a que eles chamam mainatos, e regatães, mercadores, oficiais mecânicos de todo ofício, era cousa maravilhosa ver o número deles, e a ordem que cada um tinha de se agasalhar, quando el-Rei se apousentava em algua parte dous e três dias. Porque neste arraial se achavam praças cheas de todolos mantimentos, ruas e tendas de mercadorias de toda sorte, até ourivezes, que não se contentavam de vender jóias feitas, mas ainda as faziam e lavravam a pedraria pera as fazer a contentamento dos compradores, como se estivessem 193 em suas casas dentro na cidade Bisnagá. E em que se notou o grande número de gente e animais que foram neste exército, foi ao passar de um rio, o qual aos primeiros dava por meia perna; e quando veo aos derradeiros, querendo beber, achavam area, onde faziam covas por recolher ua pouca de água. E não era muito, porque, além deste número de gente, cavalos e elefantes de peleja que dissemos, havia tam grande multidão de bois e búfaros, que seguiam este arraial, que cobriam os campos e podiam esgotar um rio, por cabedal que fosse; aos quais levavam todalas cousas que pera tamanho exército se requeria, porque naquelas partes não de bestas, mas de bois e búfaros se servem em as cousas da carga. A el-Rei, em todo este caminho, no lugar onde se havia de alojar, per ordenança, em meio de todo o exército, quási per centro dele lhe havia de ser feita ua cerca de mato grosso, de ua sorte de espinhos que se dão naquelas partes, cousa mui áspera de romper, e que em cercuito de muitas povoações se plantam pera lhe ficar em lugar de defensão, por serem sempre verdes, de maneira que até o fogo entra mal neles. Dentro da qual cerca se armavam as tendas do serviço da pessoa del-Rei; e pegada à sua estava outra, que lhe servia de templo, onde adorava seus ídolos. E todalas menhãs, primeiro que outra cousa fizesse, recebia as benções do seu principal sacerdote brâmane, e era per ele mesmo lavado com água pura e outras cerimónias, em que eles põem a remissão dos pecados, e naquele lugar recebia per este brâmane a reposta do que ele queria saber dos seus ídolos sobre o sucesso daquela guerra. Primeiro que movesse a qual, per número de 99v 99v noves lhe tinha sacrificado tantas mil aves e tantas mil alimárias, dobrando cada um destes nove dias o número de cada sorte, de maneira que, no derradeiro dia dos noves, matou de cada nove sortes das aves e alimárias duas mil trezentas e quatro cabeças, que fazem todas vinte mil setecentas e trinta e seis, que é bem diferente número das hecatombas de que usava o gentio grego (tanto faz ua progressão dobrada), e a carne destes animais se dava aos pobres por amor do ídolo a que eram sacrificados. Toda a sua gente de guerra, a de cavalos levava laudéis de algodão, embutidos assi no corpo como na cabeça e braços, tudo tam duro, que defendiam qualquer bote de lança, como se fossem

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lâminas de ferro. E os cavalos acobertados também iam armados da mesma sorte, e assi os elefantes, cada um dos quais levava seu castelo, de que pelejavam quatro homens, e nos dentes postas uas bisarmas em revés das outras, assi talhantes, que não se lhe tinha cousa algua. A gente de pé, que havia de pelejar, era repartida em frecheiros, lanceiros e outros de espada e adarga, as quais adargas eram tam grandes, segundo seu uso, que cobriam todo um homem, e por isso estes não levavam outras armas defensivas, como os outros que eram laudéis.

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99v 99v 194 Capítulo V. Como el-Rei Crisnarau assentou seu arraial e combateu a cidade Rachol, a qual tomou, depois que deu ua batalha ao Hidalcão, em que o venceu; e esta tomada foi per favor dos nossos que se acharam com ele; e do mais que se passou entre estes dous príncipes, no qual tempo Rui de Melo, capitão de Goa, tomou as terras firmes. Chegado el-Rei com este grande exército à cidade de Molabundim, que será pouco mais de ua légua da cidade Rachol, que ia tomar, assentou aqui seu arraial por dar repouso à gente, e também porque era tam perto que, segundo o número da gente que levava, em estar aqui alojada ficava ao pé do muro de Rachol, onde lhe ainda veo muita gente de outras comarcas, com que ocupava as campinas daquelas cidades, nas quais, delas feitas à mão e outras nadíveis, havia grandes alagoas de água. E ainda pera que a gente não perecesse com a necessidade dela, estava a cidade Rachol assentada entre dous rios cabedais, o maior dos quais, que lhe ficava da parte do Norte, era da parte donde el-Rei esperava que podia vir o Hidalcão, e outro, que estava da parte do Sul, era per onde ele viera, e di ao rio haveria espaço de seis léguas, ficando a cidade Rachol quási no meio desta distância. A qual cidade 100 100 per natureza estava mui bem situada, porque era sobre um outeiro feito de ua teta que a Natureza no meio daquela campina criou, e de ua certa parte era pena viva, e todo o mais terra; e além deste sítio per si ser mui defensável, os primeiros fundadores dobraram esta defensão com três cercas de muros que lhe fizeram, todo de tam grande cantaria, que, estando ua sobre outra sem ter cal, a grandeza das pedras e largura dele sofria ser per dentro entulhado, assi da situação do monte, que era bem íngreme, como de terra sobreposta quási até as ameias. E em torno destas cercas, pelo pé do monte, tinha ua profunda e larga cava, as torres da qual cerca eram tam bastas, que de ua a outra se podia falar e ouvir o que diziam; e entre torre e torre, principalmente nos lugares de suspeita, posta muita artelharia, de que somente a grossa eram duzentas peças. Além destas cousas, o que fazia mais forte esta cidade, era que, no bico alto desta teta, onde estava feita ua fortaleza, ali arrebentava ua fonte de muita e boa água, a qual, e assi poços e tanques feitos à maneira de cisternas descobertas, que estavam dentro das cercas, tinham tanta cópia dela, que bastava pera quatrocentos homens de cavalo, vinte elefantes e oito mil homens de pé, que ali estavam de guarnição, pera os quais havia tanta provisão de mantimentos recolhidos, que poderiam sofrer um cerco por tempo de três anos. 195 El-Rei, depois que per seus capitães foi certificado desta defensão que a cidade tinha, no dia e hora que os seus brâmanes deram por eleição, a mandou combater; peró assi neste dia como em outros, que foi combatida per espaço de três meses, ela se defendeu a custa de muitas vidas de ambas as partes. E chegou o negócio a tanto, que, pera dar ânimo à gente de pé, que se não chegava bem ao combate do muro, por a artelharia fazer muito dano, vieram os capitães deste combate comprar por dinheiro qualquer pedra que um homem trouxesse do pé dele, por os fazer chegar. No fim do qual tempo veo nova a el-Rei que o Hidalcão era chegado e se apousentara além do rio, que estava da parte do Norte, per onde ele esperava que podia vir, e que trazia dezoito mil cavalos, cento e cinquenta elefantes e cento e vinte mil homens de pé, archeiros, espingardeiros e outros de lança e espada ao seu modo. Passados alguns dias, nos quais el-Rei mandou sempre ter vigia no que o Hidalcão fazia de

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si, vendo que se não mudava, mandou combater a cidade pera ver em que se determinava. O Hidalcão, havido seu conselho, e vendo que el-Rei, como quem não fazia muita conta dele, não se mudava da estância que tomara, nem menos lhe vinha defender o passo do rio, e ia per seus combates em diante, 100v 100v quási como afrontado desta pouca estima em que el-Rei tevera sua chegada, foi tomar um vau abaixo que o rio fazia. Passado o qual, foi assentar de noite seu arraial logo na margem dele, porque não somente lhe defendia as costas, mas ainda lhe servia pera beber o grande número de gente que trazia; e per toda outra parte ficou cercado de ua cava que mandou fazer, e valos com sua artelharia, que era muita e grossa, em que ele trazia grande confiança, por saber que seu imigo não vinha tam provido dela. El-Rei, como não desejava mais que vê-lo, passado da parte donde ele estava, ainda que seria de um a outro espaço de três léguas per as campinas que dissemos, tomada eleição do dia per seus brâmanes, com suas azes ordenadas foi cometer o arraial; o qual, logo naquele primeiro ímpeto da gente, quási per todo foi tam bem cometido, que muita dela era já dentro nas cavas, quando o Hidalcão mandou desparar a artelharia, que até àquela hora de indústria mandou que não tirasse. E como o campo todo era coalhado de gente de pé e cavalo, foi tamanho o estrago que fez em todos, e os elefantes assi tornaram atrás furiosos do espanto dela, que somente eles fizeram grande parte do dano. Sobre o qual estrago saiu um corpo de gente de dentro do arraial, que pôs todo o gentio em fugida per espaço de meia légua. Quando o rumor da gente que fugia foi dar onde el-Rei vinha em sua 196 batalha, como era cavaleiro de sua pessoa, tirou um anel de um dedo e o deu a um page, dizendo em alta voz: - Trabalha por te salvar, e leva este sinal a minha principal mulher, e dize-lhe que ela e as outras, tanto que souberem que eu sou morto, me acompanhem na morte, porque ante eu quero que o Hidalcão se glorie que me matou, que venceu. E tornando virar o rostro, disse aos principais capitães que estavam com ele: - Quero ver quem segue minha fortuna. Acabando as quais palavras, como homem oferecido a morrer, fez volta à gente que fugia, mandando matar nela como nos próprios imigos; porque, se fugiam de um perigo, soubessem ter a morte no lugar onde buscavam emparo da vida. Finalmente com este furor del-Rei assi se mudou o ânimo dos seus, que, vindo fugindo como ovelhas, voltando se fizeram leões, até que meteram os mouros em fugida; e não curando parar no arraial, lançavam-se ao rio, onde morreu grande número de gente. E se el-Rei não se mostrara piedoso, mandando aos seus que não fizessem mais mal, dizendo que eram inocentes da culpa do Hidalcão, quási toda aquela gente perecera na passagem do rio. E vendo-se senhor do arraial, foi descer à tenda do Hidalcão, dizendo que bastava a um homem fazer-se senhor da casa de 101 101 seu imigo. No qual desbarato foram presos cinco capitães do Hidalcão, e o geral deles, que se chamava Salebatecane, em guarda do qual andavam quorenta portugueses, que se lançaram com os mouros por crimes que tinham feito entre nós; os quais, por salvar a pessoa de Salebatecane, morreram todos; e ele, depois de lhe serem mortos dous cavalos, com duas feridas foi tomado. O despojo que se tomou naquele desbarato, foram quatro mil cavalos dos arábios, cem elefantes, quatrocentos tiros de artelharia grossa, afora outra meúda, rocis da terra, bois, búfaros, gado, tendas, pavelhões; e cativos, e cativas foi cousa sem número, dos quais cativos el-Rei, por grandeza, mandou soltar muitos. Passado este dia, deteve-se el-Rei no arraial do Hidalcão quatro, nos quais mandou queimar

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dezasseis mil corpos de homens dos seus, que ali morreram, e por suas almas dar muitas esmolas pera os seus templos e pagodes; e dos mouros que morreram não se fez conta, porque a não tinha. O modo que o Hidalcão teve de escapar deste furor del-Rei, foi conselho de Sufo-Larim, senhor de Bilgão, que depois, por acrescentamento de honra, houve nome Sadacane, com quem pelo tempo em diante tevemos muitos negócios. O qual, como era homem que sempre usou de artefícios, e todos seus serviços eram de cautelas e resguardos à vida, aconselhou ao Hidalcão que se leixasse estar dentro no arraial, té passarem os primeiros 197 ímpetos de ambos os exércitos; e como viu a fúria com que el-Rei vinha com quatrocentos homens de cavalo, disse ao Hidalcão: - Senhor, hoje não é o teu dia; se queres viver, sigue-me, que eu te porei em salvo. E assi o fez, indo buscar outro vau e caminhos que ele trazia bem decorados pera os tais tempos. E não somente ele, mas um capado capitão, de dous que estavam dentro na cidade Rachol, fez outro tanto, o qual, vendo que el-Rei abalava pera ir ao arraial do Hidalcão, saiu da cidade nas costas dele com duzentos de cavalo, e elefantes, e algua gente de pé; e como viu o desbarato, tornava-se recolher à cidade, mas não o quiseram recolher, com que lhe conveo pôr-se também em salvo. Tornado el-Rei ao seu arraial, depois de recolhido o despojo do Hidalcão, ordenou de tornar ao combate da cidade, no qual tempo acertou de ir ter com ele um português per nome Cristóvão de Fegueiredo, que vivia em Goa e levava uns poucos de cavalos arábios a vender a el-Rei, em companhia do qual iriam até vinte portugueses, deles que também iam lá fazer sua fazenda, e outros em sua companhia, e todos com espingardas e armados como gente de guerra. El-Rei, porque Cristóvão de Fegueiredo era já conhecido dele por razão destes cavalos que costumava 101v 101v levar, e também por ser homem mui aprazível em toda parte, fez-lhe grande gasalhado. O qual per seu modo de comprazer a el-Rei, pediu-lhe licença que lhe leixasse ir ver o sítio da cidade, o que lhe concedeu, dando-lhe algua gente que fosse com ele em sua guarda. Chegado Cristóvão de Fegueiredo mui perto dos muros da cidade per a parte mais encoberta que ele viu, esteve notando os lugares per onde lhe parecia ser a entrada menos perigosa; e estando assi com os portugueses de sua companhia mais perto do muro que o gentio que lhe el-Rei mandou dar, apareceram per cima das ameias muitos mouros. Cristóvão de Fegueiredo, como levava sua espingarda cevada, e assi os outros portugueses, disse-lhes: - Amigos, não percamos tiro. E dizendo isto, descarregaram todos a primeira cevadura. E porque cada um derribou o seu, foi-se por aqui ateando o fogo da ousadia, que quantos gentios levava consigo, se achegavam ao muro; e correu a nova tanto, que deu rebate em el-Rei, que Cristóvão de Fegueiredo entrava a cidade. Finalmente, foi tanto o alvoroço no arraial, que acudiu a gente toda; e per aquele dia tanta pedra se tirou do muro, que quando veo aos combates que se depois deram, o próprio Cristóvão de Fegueiredo com os outros portugueses acabaram de rematar a vitória do combate da cidade. Porque, querendo o capitão dela olhar o dano que os seus recebiam pola parte onde andavam os portugueses, de que já tinha sabido serem eles a causa do mal 198 que recebiam, em lançando a cabeça fora per entre as ameias, foi derribado, de ua espingarda dos nossos, e dizem ser a de Cristóvão de Fegueiredo. Vendo a gente de dentro a morte de seu capitão, ao outro dia se entregaram a el-Rei, que lhe deu as vidas e fazendas, somente tomou a artelharia. E porque depois dele entrar na cidade se fizeram alguns roubos aos mouros, mandou castigar os culpados, dizendo que, pois ele tinha segurado aquela gente pola lealdade que guardaram a seu senhor em lhe defender aquela cidade, não havia vassalo seu olhar com ódio àqueles em quem ele punha os seus de piadade.

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Provida a cidade de gente pera sua defensão, tornou-se el-Rei a Bisnagá, onde lhe vieram embaixadores do Izamaluco, Cotamaluco, Verido, e de outros capitães do reino Decão, dizendo como tinham sabido o desbarato do Hidalcão, que lhe pediam que se contentasse com a vitória que houvera, por ser fortuna que todos aqueles que andavam na guerra eram obrigados sofrer. Peró, porque a fazenda e esbulho não pertencia a tamanho príncipe como ele era, lhe pediam houvesse por bem de o mandar tornar ao Hidalcão; porque os cavalos, elefantes, artelharia e outras munições, que 102 102 o Hidalcão perdera naquele desbarato, eram do estado do reino Decão, cujo capitão o Hidalcão era, e não próprio dele. E porque eles também eram capitães e defensores daquele reino, a eles competia, por o bem comum dele, porem sua fazenda e pessoas; portanto lhe pediam que não quisesse que se ajuntassem com mão armada, a vir buscar o que como amigos pediam. Ao que el-Rei respondeu que a ele lhe pesava ver homens de tanta calidade, como eles eram, mais tristes pola perda da fazenda que da honra do Hidalcão, o qual lhe tinha roubada muito mais no que tinha tomado àqueles ladrões, que do reino Bisnagá se acolhiam a ele, do que lhe fora tomado no arraial; que, quanto a se ajuntarem todos com mão armada, que a ele lhe pesava de os perder de amigos por culpas alheas; mas pois assi queriam, que ante os queria juntos, que cada um per si, por os não andar buscando por tam derramadas terras como habitavam. Dada esta resposta a estes capitães, não tardou muito outro tal requerimento do próprio Hidalcão per seu embaixador, dando grandes desculpas pola causa daquele rompimento, e culpando el-Rei por tam leve causa quebrar a paz assentada per tantos. Ao que el-Rei respondeu que ele lhe perdoava o mais que lhe tinha merecido, e não queria outra satisfação dele, que vir-lhe a beijar o pé, como a supremo Senhor que era do império Canará; e feita esta obediência, lhe mandaria tornar tudo o que lhe fora tomado, porque ele não movia guerra por razão do esbulho, senão por castigar culpas e glória da vitória. Partido o embaixador do Hidalcão, foi ele posto em grande confusão acerca do que faria; porque por ua parte contendia a honra de sua pessoa, e pela outra perder o estado, pois o não podia suster nem defender senão 199 com o que tinha perdido, que era o nervo de quanto ser ele tinha. Finalmente, depois de muitos conselhos, e irem e virem recados, ele se determinou com el-Rei que era contente, contanto que havia de ser esta reverência no estremo do estado dele, Hidalcão, junto de ua cidade sua, chamada Mudogal. El-Rei, polo desejo que tinha de ver este mouro ante seus pés, feito seu exército, chegou à cidade, mas não achou o Hidalcão, e com lhe dizerem: - Aqui está, ali está - entrou tanto pela terra, que foi ter a outra cidade por nome Bisapor, ua das mais populosas e de melhores casas que o Hidalcão tinha. E porque ainda aqui o Hidalcão não se atreveu ir ante el-Rei, e tamanho exército nos lugares per onde el-Rei ia não se achava água, tornou-se ele a Mudogal. O Hidalcão, vendo o estrago que ficava feito em Bisapor, e que ele fora causa disso polo modo que teve naquele negócio em mentir tantas vezes, mandou a el-Rei 102v 102v Sufo-Larim, per cujo conselho se ele então governava, e fora causa de se sair do arraial, oferecendo-se o mesmo Sufo-Larim a abrandar el-Rei de toda a indinação que tinha contra ele. O qual, como era homem malicioso e de grandes cautelas, ofereceu-se a el-Rei pera ir a este negócio mais porque pretendia ua maldade, que nesta ida cometeu, que por desejo de servir ao Hidalcão. A qual maldade foi que, estando ante el-Rei Crisnarau desculpando o Hidalcão de não ir a ele, disse que a causa de o não ter feito, fora porque Salebatecane, que tinha cativo em Bisnagá, o avisava que em nenhua maneira fosse ante el-Rei; porque a nenhum outro fim se movera de Bisnagá com tamanho exército, senão pera, depois de o ter acolhido e morto, entrar pelas terras do Decão e as

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tomar; e que homem que per um seu Capitão-mor era avisado destas cousas, não lhe devia pôr culpa nas cautelas e resguardos que té então tinha dado à sua vida e estado. El-Rei Crisnarau, indinado de Salebatecane, parecendo-lhe ser assi como Sufo-Larim dizia, e mais da parte do Hidalcão, a quem tanto importava dizer-lhe mais verdade do que até li lhe tinha dito, sem mais examinar o caso, mandou a grã pressa recado a Bisnagá, que cortassem a cabeça a Salebatecane, e dilatou a reposta a Sufo-Larim do que requeria até vir recado do que mandara fazer. A causa por que este Sufo-Larim ordenou a morte de Salebatecane, foi porque sabia que dizia ele em Bisnagá, onde, estava cativo, que ninguém tinha destruído o Hidalcão, seu Senhor, assi na honra como na fazenda, senão ele, Sufo-Larim, no conselho que lhe deu que fugisse do arraial, e em outras cousas que ante e depois tinha feito; e que príncipe que se governava per parecer de um seu escravo, como ele era, e não per conselho de muitos capitães, homens nobres, e que haviam de pôr a vida por seu estado, como poseram, merecia ver-se em tal estado como estava. Sufo-Larim, por se vingar destas palavras, e também temendo que no concerto do Hidalcão havia de entrar a liberdade dele, Salebatecane, o 200 qual tornando a seu estado, pola valia que tinha com o Hidalcão, o podia indinar contra ele, por se segurar dele buscou este modo de o matar. E como veo a nova de sua morte, temendo que, se estevesse mais dias na Corte del-Rei, se poderia saber a maldade que tinha feito, secretamente fugiu, e foi-se pera o Hidalcão, dizendo que el-Rei o quisera matar, como matou a Salebatecane; por isso lhe aconselhava que em nenhua maneira se fiasse dele. E, dissimulando com el-Rei alguns dias, fingiu ua súbita necessidade com que se veo pera a cidade Bilgão, que era sua, quinze léguas de Goa, e se fez forte nela, leixando o Hidalcão e el-Rei travados em guerra, com 103 103 causa de maiores ódios, por a maldade que ele ordenou, que logo foi sabida de ambos estes príncipes, da qual guerra se causou tomar Rui de Melo, capitão de Goa, as terras firmes dela, como dissemos; e foi por esta maneira: Entre o gentio que habita aquelas comarcas e terras vezinhas a Goa, há duas linhagens antigas e nobres, que eram as cabeceiras debaixo de cujo governo estavam todas aquelas tanadarias, ante que os mouros as conquistassem da mão deles (como já escrevemos). Ua linhagem destas tinha por apelido Berás, que era a mais principal, e a outra Gis. Destes Gis, dous irmãos, um per nome Gomo-Gis e outro Appa-Gis, vendo como o Hidalcão fora desbaratado per el-Rei Crisnarau, e que lhe não ficava posse pera poder defender as terras da fralda do mar da serra do Gate pera baixo, que foram deles, ajuntaram obra de oito mil homens, e pouco e pouco vieram tomando a terra aos mouros de guarnição que nelas havia, até virem dar nas tanadarias que foram de Goa, onde estava um capitão mouro polo Hidalcão. O qual capitão, vendo o tempo desposto polo desbarato de seu senhor, determinou naquela água envolta (como dizem) ver se, dos rendimentos que tinha recebidos das terras, lhe podia ficar algua cousa na mão. E pera efeituar este seu propósito, mandou dizer a Rui de Melo que ele era mui perseguido daqueles gentios que se levantaram, os quais andavam roubando a terra, donde se causava não acudirem tantos mantimentos à cidade Goa, como acudiam no tempo que a terra estava sem aqueles levantamentos; que lhe pedia por mercê, pois entre ele e o Hidalcão havia tanta paz e comércio, como vezinho e amigo o quisesse ajudar com algua gente contra aqueles ladrões, que tanto dano faziam a todos, enquanto o Hidalcão tardava com socorro, por causa das diferenças que havia entre ele e el-Rei de Bisnagá. E que, quando a esta ajuda tevesse algum impedimento, podia ir tomar as terras da mão daqueles gentios, porquanto ele se não atrevia defendê-las com quam pouca gente tinha; e que pera isso daria qualquer ajuda e indústria que necessária fosse, por ter sabido do Hidalcão, seu senhor, que muito mais havia de folgar estarem as terras em mão dele, capitão, que dos gentios. Rui de Melo, havido conselho sobre este caso, assentou com os principais da cidade (por D. Aleixo de Meneses naquele tempo estar invernando em Cochi, a quem Diogo Lopes leixava o governo da Índia), que, quanto às

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201 ajudas que pedia, se lhe deviam negar, dando a isso algua honesta escusa; e quanto a tomá-las, pois o tempo e caso as trazia a casa, e a pouco custo, que as havia de aceitar e ir logo sobre elas. Sabida pelo mouro esta determinação 103v 103v que Rui de Melo tomava, ficou mui contente, porque não desejava ele outra cousa pera conclusão de seu propósito. Finalmente, Rui de Melo com mui pouco trabalho em ua entrada que fez com até duzentos e cinquenta de cavalo e oitocentos piães canaris, da terra, em espaço de dez ou doze dias tomou as principais tanadarias, leixando nelas Rui de Jusarte por capitão do campo com algua gente de cavalo e de pé em seu favor. Na qual cousa os gentios teveram tanta prudência, vendo que a requesta era connosco, que somente saber que Rui de Melo as ia tomar, as leixaram, e foram correndo toda aquela fralda do mar até Chaúl, por serem terras que já não eram do senhorio de Goa, em que nós pretendíamos ter direito, por a cidade ser nossa; e per espaço de quatro anos andaram aqueles gentios tam prósperos, que comeram os rendimentos da terra, apesar do Hidalcão. O mouro, seu capitão, que teceu esta tea de nós havermos as de Goa, por ele salvar o que tinha roubado delas, veo-se a Goa, fingindo temor do Hidalcão por não defender as terras, confiando que ali lhe seria feito honra polo que fizera por nós. E não se atrevendo per si poder salvar a prea do roubo, dizem que em dinheiro o entregou a ua pessoa, em cuja mão lhe parecia que o tinha seguro; e porque depois, quando o pediu, lhe foi negado, endoudeceu. O qual depósito, ainda que foi secreto, o mouro o publicava, andando por muito tempo pelas ruas de Goa com esta mania; e cá neste reino menos o logrou a pessoa de quem se ele queixava, porque a justiça de Deus, se tarda em tempo, não dissimula os exemplos de seu castigo, pera que vejamos que tem conta com todos, e que, se lhe desapraz a maldade do infiel, por mais ofendido se há daqueles que professam sua lei; porque, quanto por ela são mais chegados à verdade e caridade proximal, tanto mais obrigados de a guardar a todo género de pessoa, principalmente em casos de confiança. E neste de cobiça, que começou no Hidalcão, tomando os quorenta mil pardaus que el-Rei Crisnarau entregou a Cide Mercar, pera lhe comprar cavalos, vemos um notável exemplo, em que se vê os fructos que se colhem dela, perdendo o que dissemos, e outras cousas que pelo tempo diante os danos da guerra em que ficava lhe trouxeram. E pelo modo semelhante o seu capitão, que se acolheu a Goa com o roubo, se não foi morto, como ele matou Cide Mercar, endoudeceu pera maior pena. E quem lhe negou o depósito, além de o não lograr, segundo dizem, jazendo na cama de doença de que morreu, também falando com o dinheiro, teve quási outra 202 mania; e depois de sua morte, pessoa em cuja mão ele confiou 104 104 parte desta fazenda, ainda que não foi negada per ele a seus herdeiros, eles a não logram. E por não ficar sem pena o artefício de que el-Rei Crisnarau usou pera romper a paz, depois tornou a perder per guerra o que naquela guerra ganhou. Finalmente, porque cada um colhesse o fructo da semente que semeou, até um Manuel de Sampaio, tanadar do passo chamado Noroá, que é da mesma Ilha de Goa, o qual andou por medianeiro entre Rui de Melo e o capitão do Hidalcão, que se acolheu à cidade (segundo se disse), ele houve esta paga da terçaria: Estando doente de enfermidade de que morreu, temendo que, por sua mulher ficar rica, o capitão da cidade que então era a casasse com pessoa de menos calidade que a sua, estando na cama, quisera per si fazer os desposórios da mulher com um seu amigo; peró ante que efeituasse este desejo, morreu, e a mulher casou logo, como ele receava. E nós, ainda que provocados tomássemos aquelas terras firmes de Goa, não tardou muito que as não perdêssemos (como se adiante verá), de maneira, que todos pagaram na moeda que receberam.

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104 104 202 Capítulo VI. Do que Lopo de Brito, capitão da fortaleza de Ceilão, passou com a gente da terra. Neste mesmo tempo estava por capitão da fortaleza de Ceilão Lopo de Brito, filho de João de Brito, o qual o ano passado de dezoito el-Rei D.Manuel ordenou que fosse fazer esta fortaleza com até oitocentos homens, em que entravam muitos oficiais mecânicos deste mister; acabada a qual obra, havia de ficar com a gente necessária pera defensão dela, e oficiais da fazenda, e a mais se havia de ir às outras fortelezas. Sucedeu,que, estando el-Rei com esta determinação, veo Lopo de Vila Lobos, que Lopo Soares despachou pera este reino, quando saiu do Estreito (como escrevemos atrás), per o qual ele escreveu a el-Rei como, tanto que chegasse à Índia, havia de ir fazer esta fortaleza de Ceilão. Contudo o ano de dezanove el-Rei o despachou pera ir servir a capitania dela, e seu irmão António de Brito, que lá andava, fosse alcaide-mor, e feitor André Rodrigues, de Beja, e escrivães João Rabelo e Gaspar de Araújo, de alcunha Benimagre, ambos seus moços da câmara. Da qual fortaleza, chegado Lopo de Brito à Índia, foi entregue per D. João da Silveira, que estava nela por capitão. E como ele, Lopo de Brito, levava quatrocentos homens, em que entravam muitos pedreiros 104v 104v e carpinteiros, e ela estava quási pera se vir a terra, por 203 ser feita de pedra e barro, ordenou Lopo de Brito de a fazer de pedra e cal. E porque ali perto não achou pedra nem marisco pera poder fazer a cal, mandou alguas champanas à pescaria do aljofre de Calecare, que é dali mui perto, carregar da ostra donde se tira o aljofre, da qual fez quanta quantidade de cal lhe era necessária, com que não somente fez a fortaleza, mas ainda alguas casas; e além desta obra guarneceu mui bem a cava, que atalhava o terrado mar a mar, com que a fortaleza ficava em ilha, pelo modo que já dissemos. Os da terra, quando viram esta reformação da fortaleza, como gente assombrada do que lhe os mouros diziam de nós, começaram temer mais aquela força, parecendo-lhe que tudo era pera lhe tomar a terra. Finalmente, a esta suspeita ajuntaram outras causas, que importavam sua liberdade, porque os nossos não lhe consentiam que viessem ali mouros contratar com eles, de que recebiam muita perda, assi uns como outros. Da qual defesa procedeu não acudirem aos nossos com o mantimento da terra, que lhe vinham vender; e sobre isso, se achavam algum desmandado fora da nossa fortaleza, era ferido ou morto, se o podiam fazer. Lopo de Brito, por conservar a paz que estava assentada per Lopo Soares, dissimulava alguas cousas destas, levando-as per pontos tam brandos, que começou entre os nossos haver murmuração, não chamando a este sofrimento prudência, mas covardia; donde se causou querer ele comprir ante com a vontade da gente de armas, que com o sofrimento seu, ainda que lhe parecia ser mais proveitoso pera o governo da terra. Finalmente, estimulado tanto dos imigos como dos amigos, ua sesta, tempo em que o gentio da terra, por ser depois de comer se lança a repousar, e menos suspeitoso pera este caso, com até cento e cinquenta homens escolhidos, deu na povoação de Colombo, que era pegada com a nossa fortaleza. E como esta saída foi de sobressalto, ficaram os imigos tão cortados de medo, que, sem lhe lembrar mulher nem filhos, todos se poseram em fugida naquele primeiro ímpeto. Lopo de Brito, porque sua tenção era assombrar e não matar, pera ficarem temerosos de cometerem mais o que tinham feito, mandou-lhe atar as mulheres e filhos às portas das casas, pera verem que os teveram em seu poder e não lhe quiseram fazer mal. Porém, quando se espediu, mandou pôr fogo a ua rua larga e direita, que era a principal da cidade, e de maior concurso da

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gente, temendo que ao recolher dos nossos, por a rua vir direita demandar a nossa fortaleza, os imigos lhe viessem dar nas costas, com que recebesse algum dano; e assi foi. Porque, passado 105 105 o primeiro ímpeto do temor, que os fez por em salvo, vendo que lhe ficavam mulher e filhos, voltaram com o amor deles, como gente oferecida a morrer. E posto que o fogo foi grande amparo nos nossos, por ser já grande e se meter entre uns e outros, todavia, com aquela fúria, custou a vida a muitos deles e dos nossos; ca, primeiro que se espedissem desta sua fúria, ficaram feridos mais 204 de trinta, de que depois morreram alguns. E verdadeiramente, se eles não se ocuparam em matar o fogo e não acharam as mulheres e filhos atados às portas, em que entenderam que aquela saída de Lopo de Brito fora mais ameaça que vontade de os ofender, segundo acudiram muitos e vinham furiosos, não fora muito entrar de envolta com os nossos na fortaleza. Todavia, com o dano que ali receberam em cometer os nossos, dobrou-se sua indinação, com que descobertamente mostraram o ódio que nos tinham, não tardando muitos dias em vir pôr cerco à nossa fortaleza. Na primeira chegada do qual, peró que Lopo de Brito se viu em muito trabalho, por serem perto de vinte mil homens, como vinham mal ordenados, à custa das vidas de muitos ele os afastou e fez industriosos em assentar seu arraial, fazendo seus valos de terra e repairo de muitas palmeiras; e pouco e pouco, como gente que vinha de vagar, foram-se chegando à nossa fortaleza, até armarem dous baluartes das mesmas palmeiras, em que assentaram algua artelharia. A qual, peró que não fosse tão furiosa como a nossa, o grande número supria a fúria, porque naquele cerco haveria mais de seiscentos espingardões, de que alguns eram do tamanho de berços, que tiravam virotões de pau de dez palmos de comprido, com penas de coiro de porcos monteses, que a duzentos passos faziam mui grã passada. E além deste trabalho, em verem de dia o ar coalhado destes virotões, de noite tinham outro, que era ser alumiado com setas de fogo pera lhe queimar as casas de palha que tinham; e o maior de todos era irem buscar água pera beber fora da fortaleza, porque toda custava muito sangue. O qual cerco durou per espaço de cinco meses; porque, como era no tempo do inverno, e da Índia não lhe podia vir socorro, foi causa de os nossos padecerem muito trabalho; até que de Cochi lhe veo em socorro ua galé, capitão António de Lemos, filho de João Gomes de Lemos, senhor da Trofa, na qual trazia até cinquenta homens, e ainda estes com deficuldade se poderam mandar. Porque, como neste tempo Diogo Lopes de Sequeira era ido ao Estreito do Mar Roxo, com a potência de tantas velas e gente (como escrevemos), e as fortalezas da Índia ficaram somente com a ordenada pera sua defensão, e a de Cochi, que era mais vezinha a Ceilão, 105v 105v tinha menos gente que as outras, por ser mais segura, não se pôde mandar maior socorro a Lopo de Brito. E este que lhe foi ainda era mais por salvação dele e das pessoas que ali estavam, que por causa da posse da mesma fortaleza; ca não se havia por causa importante ao Estado da Índia termos ali tomado aquela posse, porque sem ela havíamos toda a canela pera carga das nossas naus, e el-Rei da terra, sem este jugo que o assombrava, queria pagar suas páreas. E depois, correndo o tempo, se viu quam escusado era, com que se mandou desfazer, ficando somente ua casa de feitoria, com que o Rei da terra ficou desassombrado de todo; e ainda a alguns deles foi proveitosa, com 205 ajuda que houveram de nós contra seus imigos com que tinham guerra, como adiante escrevemos. Lopo de Brito, vendo quam pouco socorro lhe viera, e sabendo as causas por quê, determinou lançar dali aquela vezinhança, de que tanto dano tinha recebido, primeiro que eles entendessem quam pouca gente lhes acudira. Fazendo conta que, quando mais não podesse fazer naquela sua saída fora da fortaleza, que tomar os dous baluartes que tanto dano lhe tinham feito, isto haveria por grande vitória. Assentado em conselho o modo que haviam de ter naquela saída, mandou Lopo de Brito a

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António de Lemos que com sua galé se posesse diante dos baluartes, mostrando que per ali lhe havia de dar bateria com as peças grossas que levava na galé; e ele ao outro dia, pela sesta, que é o tempo do repouso do gentio (como já dissemos), feito sinal com até trezentos homens, deu nas estâncias dos imigos. E aprouve a Deus que, como eles sentiram em si o ferro dos nossos, deram lugar a que se fizessem senhores dos baluartes, tendo já neste tempo António de Lemos a sua galé coberta de frechas e virotões, de que recebeu muito dano. Vendo o corpo da gente que estava mais metida no arraial, e assi a que se alojava na cidade, que era a principal, como estes dous baluartes eram entrados per nós, e o grande arroído que havia por cada um se salvar, acudiram os capitães de todas as partes, em que se fez um grã número de gente, na qual entravam cento e cinquenta de cavalo, que pera aquela Ilha Ceilão, onde não há muito uso deles, era ua grande cópia; e assi vinham até vinte e cinco elefantes armados com seus castelos, de que pelejavam muitos homens com frechas. Quatro dos quais, como mais adestrados no uso do pelejar, vinham fazendo grandes montantes com uas espadas que traziam atadas em revés nos dentes. O qual espectáculo de feras, por virem acompanhadas de tam grã peso de gente, meteu os nossos em tamanha confusão, que muitos fizeram pé atrás. Lopo de Brito, recolhida toda a gente a si, ante 106 106 que aquelas feras lhe arrombassem tudo, juntamente em desparando todolos espingardeiros que levava consigo nos quatro elefantes dianteiros, deu Santiago neles, e com as lanças em teso os feriram asperamente. Os quais, como se acharam escandalizados das espingardas e lanças, voltaram urrando contra os seus, fugindo tam sem tento, que deram nos que vinham atrás uns dos outros, de maneira que o seu desbarato deu maior ousadia aos nossos, levando-os ante si com grande grita às lançadas. E porque no corpo dos mouros e gentio da ilha não havia tanta dureza como no couro dos elefantes, que, quando embravecem, não faz mais o ferro de ua lança nele, do que faz o ferrão de ua aguilhada no coiro de um boi quando o castigam, ficaram daquela feita muitos dos imigos mortos e feridos. Lopo de Brito, passada ua rua larga per que esta gente vinha, tanto 206 que começou entrar por arvoredo, tornou-se a recolher, temendo o sítio da terra, e contentou-se da vitória que Deus lhe dera, a qual também custou assaz do sangue dos nossos. E porém sucedeu deste feito que, vendo el-Rei algua da sua gente nobre morta, e que os mouros que o metiam nesta rebelião contra nós não eram parte pera o livrarem da nossa sujeição, como lhe eles prometiam, passado este dia, não tardaram muitos que não mandasse pedir a Lopo de Brito, com que as cousas daquela fortaleza ficaram no estado da paz, como dantes estavam.

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106 106 206 Capítulo VII. Em que se dá notícia do curso dos tempos nas partes do Oriente que navegámos, donde se causa o Verão e Inverno aos navegantes, e das suas mouções. E como Diogo Lopes se partiu de Ormuz, onde invernou, passando per Mascate onde achou recado de ua armada que aquele ano partira deste reino, e dali se foi pera a Índia; e o que lhe sucedeu no caminho, e assi em Dio com Melique-Iaz. Atrás escrevemos como o Governador Diogo Lopes de Sequeira, por razão do Inverno que começava, em ele saindo das portas do Estreito, perdera os batéis das naus da armada, e de Calaiate se fora invernar a Ormuz, sendo isso no fim do mês de Junho. E porque a nós os que vivemos nestas partes da Europa, parecerá estranho Inverno em tais meses, e muitas vezes nesta história tratamos de invernarem as naus em Moçambique, quando vão e quando vem, e assi outras armadas nossas, que decorrem per todos aqueles mares, dizemos invernarem em tal 106v 106v parte, sendo nos meses do nosso Verão, e também falamos per mouções, que são os tempos que lá navegam, parece-nos bem tratarmos um pouco da maneira dos temporais daquelas partes do Oriente, posto que alguas vezes o tenhamos tocado; pera que aqueles que desta cousa não tem experiência, per nós tenham algua notícia delas, por não terem dúvida na maneira de nossa elocução, que vai conforme a uso dos navegantes daquelas partes, e isto será conferindo os tempos que nelas cursam com os desta nossa Europa, e principalmente 207 da costa de Espanha. Não dividindo o curso do ano em quatro tempos, como geralmente per todos é repartido, dando a cada quartel dele seu próprio nome, mas falando em curso de navegação, na costa da nossa Espanha de onze de Março até catorze de Setembro, que são os dous Equinócios, chamamos-lhe Verão, pera partir dela e tornar a ela sem tormenta algua, porque neste tempo anda o Sol da Equinocial pera esta parte do Norte que nós habitamos. E porque nesta nossa região o movimento do Sol causa o curso dos ventos, como se verá em o primeiro Livro da nossa Geografia, onde tratamos esta matéria mais precisamente, é cousa mui regular nestes meses ventarem noroestes, e nortes e nordestes; e no Inverno os opósitos a estes, e os outros a eles transversais ou colaterais, se ventam, é por acidente e não per curso de muitos dias. Na Índia per experiência vemos que os ventos não se regulam com o acesso ou recesso do Sol, per o modo que faz acerca de nós; porque os meses do seu Verão não convém com os nossos acerca do navegar, posto que toda a terra da Ásia jaz de aquém da linha equinocial, como nós estamos. E ainda na mesma costa dela, posto que estê em um paralelo, há tanta diferença de um tempo ao outro, que a um chamam Inverno e a outro Verão. E vem-se este modo, ou por melhor dizer, este curso da Natureza a particularizar tanto com seus efeitos, que somente ua ponta ou cotovelo de terra, a que nós chamamos cabo, cuja distância às vezes é pouco mais que o comprimento de ua nau; em esta nau chegando àquele termo da ponta, que é divisão, onde ela participa de duas costas contrairas, na vela dianteira dá-lhe o embate do vento contrairo, e na trazeira vai à popa. E assi como acha estes dous ventos contrairos em um lugar tam pontual, assi participa de dous tempos: um é Verão e outro Inverno. E onde se isto muitas vezes per os nossos experimenta, é no Cabo Rossalgate, como se viu vindo Diogo Lopes do Estreito; ca eram já com ele tam grandes cerrações, que se não viam os navios uns aos outros, vindo mui juntos e sendo no mês de Junho. Dobrado o qual cabo per mui pequena distância, achou

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107 107 a região da outra costa clara, serena e com o Sol tanto na força de sua quentura, que da grande calmaria não se afastavam as velas dos mastros. E em outro tempo quem vem da costa de Choromandel pera o Malabar com tempo desfeito e mares grossos, que parece que querem comer o navio, emparelhando onde ele participa da outra linha da costa transversal, acha (como dizem) calma borralho, e a contrairo modo, indo da Índia pera Choromandel; em tanto que um mesmo navio (como dissemos) na vela da proa tem um vento geral e na popa outro, e por a mesma maneira há outras partes naquele Oriente onde isto acontece. Donde podemos ter quási por regra geral, em as costas 208 marítimas daquelas regiões, mais responder o seu Verão e Inverno ao curso do Sol; e estes ventos se regulam mais por razão dos golfãos, estreitos do mar, pontas e torturas que a terra faz, que por causa particular do mesmo Sol, posto que dele depende a universal de todolos motos naturais, pera entendimento da qual regra neste material exemplo se pode ver: O raio do Sol, quando fere direito dando na terra, aquele primeiro auto seu é; peró, quando o corpo da terra o empede que não passe mais abaixo, torna rebater este raio, e faz outro, ao modo que vemos pular a pela, a qual, quando sai da mão, quanto com maior força dá no chão, tanto mais alto pula per cima, donde podemos dizer que o movimento de cima pera baixo foi do braço que a lançou, e o debaixo pera cima fez a terra com o rechaço de sua dureza. Assi nestas partes da Índia o Sol causa o movimento dos ventos; peró quando eles correm com aquele curso natural dos grandes golfãos de mar daquele Oriente e vem dar com aquele ímpeto em algua costa da terra, principalmente se é montuosa, que os não leixa passar avante, ela os torna rebater per outro rumo, com que de um vento procedem dous, um causado do Sol como prima causa, e outro do rebate da terra, e daqui vem dizerem os mareantes alguas vezes: - Este vento não é geral, mas embate da terra. E como os ventos são o espírito exterior do mar, que o move a ua e a outra parte, e a fúria ou mansidão dele faz o Verão e Inverno aos navegantes, acontecem naquelas partes grandes diferenças de tempos em um mesmo clima e paralelo. A demonstração da qual variação fazemos nos livros da nossa Geografia, onde a olho, por razão da pintura da terra, se verá ser mui regular este curso do Sol, posto que comparado o seu curso ao desta nossa região o hajamos por vário. O qual curso de todo ano, também como cá se reparte em quatro tempos de Verão, Estio, Autuno e Inverno, mas não tam distantemente como acerca de nós, por razão de terem o Sol mui vezinho, principalmente nas terras que jazem entre os 107v 107v dous Trópicos, que em um mesmo tempo muitas árvores tem juntamente frol, fructo verde e outro maduro, e isto mais notavelmente nas terras que jazem debaixo da Linha. Verdade é que as que jazem da Equinocial pera esta nossa parte, regularmente respondem com suas novidades nos meses do nosso Verão, um pouco mais cedo ou tarde, segundo vemos em a nossa Europa nas terras que tem diferença de mais ou menos quentes. Porém acerca da navegação ao nosso modo tem seis meses de Inverno e seis de Verão; não em um próprio tempo, ca esta é a diferença de que tratamos. Porque o Inverno daquele Estreito donde Diogo Lopes saiu até o Cabo Guardafu e de Rossalgate, que 209 é a garganta dele, o seu Verão começa em Setembro e acaba em Abril, e os outros meses do ano são do Inverno. Neste Verão ventam regular e geralmente leste, lesnordeste, que entram pera dentro do Estreito; e no Inverno oestes, oesnoroestes, com que saem de dentro. E o Inverno de Ormuz é como nesta costa de Espanha, de Outubro até fim de Fevereiro; porque o lançamento do Mar Párseo, em que esta ilha jaz, per o rumo a que os mareantes chamam aloesnoroeste, em comprimento de cento e

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cinquenta léguas, com as correntes dos rios Eufrates e Tigre e terra acampada per que eles passam, quando se já vem meter no mar, participa dos tempos do nosso clima, e cursam per aquele Estreito noroestes, nortes e nordestes o mais do tempo destes meses do Inverno, e os do Verão são os que falecem pera doze do ano. E na costa da Índia, porque se vai já metendo entre o Trópico e linha Equinocial, pera poderem navegar, há mais meses de Verão que em outras partes, porque começa em Agosto e acaba per todo Abril, e os outros são do Inverno. E per toda a costa, de Melinde até Moçambique, nos meses do seu Verão, geralmente ventam lestes, lesnordestes, que são da entrada de Outubro até fim de Março; os do Inverno são os que falecem e ventam naquela paragem - oestes, oesnoroestes. E o Verão do Cabo de Boa Esperança começa no princípio de Janeiro até quinze de Maio, e ventam oestes, oesnoroestes e alguns suduestes, que é travessia no Cabo, e no seu Inverno os contrairos. Estes tais tempos, por serem gerais pera navegar a certas partes e não a outras, comunmente os mareantes nossos, conformando-se com os daquele Oriente, chamam-lhe moução, que quere dizer tempo pera navegar pera tal parte. Dizem também moução grande, moução pequena; a grande é tempo que cursa a maior parte dos seis meses do Verão seu, e a pequena a menor. Porque, falando propriamente, não é um vento tam contino, que per todolos seis meses curse de um rumo; mas venta ao modo que vemos em a nossa costa de Espanha, que o geral, no tempo do seu Verão (como dissemos), pela maior parte 108 108 cursam noroestes, nortes e nordestes. Porém nestes meses também per alguns dias ventam levantes até meio dia; e dele até o poer do Sol, ponentes, a que chamamos virações do mar, por virem com a maré, e de noite vão buscar a Estrela do Norte, e este é o curso natural da costa de Espanha. E por a continuação de um rumo durar em uns meses mais que em outros, esta duração de tempo se chama moução maior, e a de menos menor. E como a de Ormuz pera a Índia era em Agosto, tanto que veo este mês, Diogo Lopes, que ali invernou (como dissemos), se espediu del-Rei, leixando alguas cousas ordenadas na cidade pera bem da fazenda dele, Rei, que foram causa do dano que adiante veremos. Partido com sua frota, chegou a Calaiate, onde leixara Jorge de Albuquerque com a frota das naus, e achou ali Jerónimo de Sousa com seus companheiros, que (como atrás dissemos) milagrosamente Deus os salvou 210 dos trabalhos e perigo que passaram, aos quais proveo segundo suas necessidades. E ante que se dali partisse, chegou Rui Vaz Pereira, filho bastardo de João Rodrigues Pereira, senhor de Basto, o qual partiu deste reino por capitão de um galeão, em companhia da frota de nove velas, que el-Rei D. Manuel aquele ano de quinhentos e vinte mandou à Índia, capitão-mor Jorge de Brito, filho de João de Brito, o qual ia fazer ua fortaleza em as Ilhas de Maluco; e os outros capitães eram ele, Rui Vaz Pereira; Lopo de Azevedo, filho de Rui Gomes de Azevedo; Gaspar da Silva, filho de Diogo Gomes da Silva, que ia pera servir de ua fortaleza que el-Rei mandava fazer em Chaúl; Pero Lopes de Sampaio, que ia pera servir outra nas Ilhas de Maldiva; Pero Lourenço de Melo, que havia de fazer ua viagem pera a China; Pedro Paulo, filho de Bartolomeu Florentim; António de Azevedo e André Dias, alcaide de Lisboa, que havia de feitorizar a compra de quanta pimenta aquele ano se carregasse pera este reino; D. Diogo de Lima, filho de D. João de Lima, Bisconde de Vila Nova da Cerveira. Partida esta frota do porto de Lisboa, peró que os tempos que levou fizeram que uns chegassem primeiro que outros em diversas partes, todos foram a salvamento. Na qual viagem a Rui Vaz Pereira aconteceu um maravilhoso caso, e de grã perigo em um galeão em que ia; porque, passado o Cabo de Boa Esperança, indo ua noite com todalas velas metidas, subitamente esteve quedo, como se encalhara em algua cabeça de area, e por encalhado o houveram todos, segundo o rojo grande que fez. E acudindo logo à bomba, pera ver se abrira e fazia água, e também aos

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prumos, lançando-os de ua e de outra parte, acharam que o galeão nadava, e que quem os detinha era um monstro do mar, o qual jazia pegado na quilha do galeão per todo o comprimento dele, sendo de vinte 108v 108v e um rumos, que são cento e cinco palmos, e com o rabo retinha o leme, e com as asas ou perpetanas abraçava os dous costados de maneira que chegavam té a mesa da guarnição, e alguns dos nossos lhe tocaram com a mão. A cabeça do qual, que foi a derradeira cousa que ele mostrou, seria do tamanho de ua pipa, e junto dela tinha uas trombas per que espirava, lançando maior espadana de água que ua balea; a qual cousa, como era mui nova e nunca vista dos nossos, fez neles tam grande espanto, e mais por ser de noite, que lhe não leixava bem divisar a figura deste mostro, que alguns houveram ser espírito mau, que os vinha sossobrar. Outros, querendo-lhe fazer arremesso de lanças, fisgas e arpões pera o fazer mudar, havendo ser algum pexe, não o consentiu o capitão, porque com a fúria da dor, ao espedir-se, não sossobrasse o galeão. Finalmente, depois de muitas dúvidas per espaço de um quarto de hora que esteveram neste temor, veo o capelão da nau, que o esconjurou, e com alguns exorcismos ele abaixou as perpetanas e espediu-se per baixo, sem fazer mais que respirar grande quantidade de água per as trombas; e segundo diziam alguns mareantes, era pexe sombreiro, chamado assi per eles, 211 por haver um no mar mui grande, que sobre a testa tem ua cobertura a este modo. E deles era lembrados andar outro tal (ainda que não tam grande) na paragem da vila Atouguia, o qual metia a cabeça dentro nas barcas que iam a pescar, por tomar homens, com que tinha sossobrado já duas; e de maneira assombrou a gente, que não ousavam ir pescar, até que orações e preces do povo o trouxeram morto à costa. Rui Vaz, passado este perigo e chegado a Moçambique, por nele achar nova que o Governador Diogo Lopes invernara em Ormuz, leixando a derrota da Índia, quis ir buscá-lo, porque levava ua via das cartas que lhe el-Rei escrevia. Per as quais e per o mesmo Rui Vaz soube das naus que aquele ano iam pera a carga, as quais lhe deram grã cuidado por causa das outras da armada de Jorge de Albuquerque, que faziam grande número, e não sabia se poderia haver tanta especiaria , que podesse haver carga pera todas. E parece que o espírito lhe dizia o que este ano havia de suceder sobre a carga desta especiaria; porque, mandando el-Rei a André Dias por feitor desta carga, por ser homem que sabia bem os negócios da compra e carregação da pimenta, por estar muito tempo em Cochi servindo de escrivão da feitoria, ou que fosse por os oficiais, que então lá estavam, tomaram por injúria ir deste reino pessoa somente àquele negócio, em que parecia ter el-Rei desconfiança deles, ou que André Dias não teve respeito à bondade da pimenta, somente a carregar muita, foi toda a que ele trouxe tam verde e mascabada 109 109 e falecida em peso, que alguas naus quebraram a trinta e quorenta, a sessenta e a setenta por cento, e outras mais de cento por cento. Porque, havendo trinta e três anos que isto passou, ainda hoje na Casa da Índia, em Lisboa, que nós feitorizamos, estão paióis cheos dela, tam mascabada que parece haver ainda de custar dinheiro lançá-la ao mar, em que se tem perdido grã soma de dinheiro. Além deste negócio da carga da especiaria, assi pela armada de Jorge de Albuquerque, como na de Jorge de Brito daquele ano, mandava el-Rei muitas cousas a Diogo Lopes, segundo via por suas cartas, que lhe davam grande cuidado, vendo concorrerem tantas em um tempo, pera que lhe convinha muita gente de armas, muitas naus e grande número de mareantes e munições. Ca el-Rei queria que se fizesse ua fortaleza em Maluco, outra em Samatra, outra nas Ilhas de Maldiva, outra em Chaúl, e que entrasse no Estreito e trabalhasse por tomar Dio, onde também fizesse outra fortaleza, e que mandasse à China e descobrisse as Ilhas do Ouro, e a outras partes; cuidar nas quais

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cousas cansava o espírito, quanto mais põe-las em efeito. E porquanto a em que el-Rei então mais apertava que ele, Diogo Lopes, 212 cometesse, era fazer ua fortaleza em a cidade Dio per vontade del-Rei de Cambaia e de Melique-Iaz, capitão e senhor dela, e, quando o não consentisse, a tomasse per força de armas, e a capitania da fortaleza desse a Diogo Fernandes, de Beja, de que já levava alvará seu, logo dali quis ele, Diogo Lopes, tentar este caso, mandando o mesmo Diogo Fernandes com três velas diante, que o fosse esperar à ponta de Dio, à qual geralmente vão demandar as naus que vão do Estreito de Meca, e de toda a costa da Arábia, pera nelas fazer as presas que podesse. Peró, como Diogo Lopes, depois que espediu Diogo Fernandes, se deteve pouco, logo o alcançou, e juntamente com toda a frota seguiu sua viagem, a qual, indo junto da costa de Dio, acharam ua mui grande e poderosa nau, que confiada na muita gente e artelharia que levava, se quis defender a dous navios pequenos, que, por serem leves de vela, foram os primeiros que lhe chegaram. Mas como ela era alterosa e eles lhe ficavam muito abaixo da mareagem, o mais dano que lhe poderam fazer, em perpassando ao longo do costado dela, foi de cima da gávea lançar-lhe alguas panelas de pólvora sobre a ponte que levava, as quais foram queimar muitos mouros que vinham de baixo. E com todo este dano, pola muita artelharia que trazia e gente bem armada, os navios se não podiam melhorar, até que veo Rui Vaz Pereira com o seu galeão, em que levava trezentos homens, 109v 109v que a ferraram, e entrando às lançadas com eles, começaram alguns mouros com temor do ferro lançar-se à água. Andando já os nossos como senhores da nau buscando o esbulho dela, uns dizem que foi obra dos mouros, outros desastre de faíscas do fogo que os navios lançaram, que foram dar em jarras que traziam pólvora, com que a nau, lançando as cobertas pera o ar, se foi ao fundo, onde morreram alguns dos nossos, entre os quais foi o contra-mestre. Diogo Lopes quando chegou à nau e não viu dela mais que uns poucos de mouros meios assados do fogo, os quais os nossos batéis andaram tomando, e soube dos mesmos mouros que, por rezão das panelas de pólvora que lhe os navios lançaram, fora a nau queimada, assi por a perda dela, como por serem causa de os nossos, que entraram dentro, ficarem queimados, mandou prender os capitães dos navios, e também por dar melhor cor ao que esperava fazer, chegando a Dio, como fez. E foi mandá-los em presente a Melique-Iaz, senhor dele, dizendo como topara aqueles seus hóspedes, que vinham pera sua casa; e que se iam tam mal tratados, fora por sua culpa, por não quererem amainar à bandeira del-Rei de Portugal, seu senhor, e, sobre isso, eles mesmos poseram fogo à nau, com que ficaram naquele estado, aos quais ainda ele mandara salvar que se não afogassem, como lhe eles diriam, e este bem lhe fizera por amor dele. Melique-Iaz, como era prudente, lançou o feito a termos de paço, respondendo que ainda aqueles mouros iam pouco assados pera o que mereciam, 213 pois foram tam mal ensinados, que, em vendo Sua Senhoria, não se vinham lançar a seus pés. Passados estes primeiros recados, Fernão Martins Evangelho, que ali estava por feitor em Dio, já do tempo de Afonso de Albuquerque (como atrás escrevemos), veo ver Diogo Lopes, per o qual soube do estado da cidade. E pelas práticas que deste tempo de Afonso de Albuquerque eram passadas, sobre el-Rei de Cambaia dar lugar pera se ali fazer ua fortaleza em modo de feitoria, em que ele, Melique-Iaz, mostrava ter muito contentamento (posto que se sabia quanto ele trabalhara que não houvesse efeito), mandou Diogo Lopes tentar a Melique-Iaz per ele, Fernão Martins, deste caso, trazendo-lhe à memória quanta palavra ele e el-Rei de Cambaia já sobre isso tinham dada, e que importava a bem dele, Melique-Iaz, estar ali aquela casa; porque, depois que ele, Fernão Martins, feitorizava as cousas del-Rei, seu senhor, naquela cidade, ele, Melique-Iaz, neste trato tinha recebido muito proveito. E porque de ua e de outra parte se passaram muitos recados, que

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tudo eram palavras desatadas, por as cautelas que cada um tinha em não descobrir nelas sua tenção, principalmente Diogo Lopes, a quem el-Rei aquele ano escrevia, que quando lhe não desse Melique-Iaz lugar de fortaleza, 110 110 trabalhasse por tomar a cidade, não lhe queria ele mostrar ter muita sede do negócio, polo segurar de a não fortalecer mais, enquanto se ele ia fazer prestes a Cochi pera vir sobre ela com armada poderosa, como lhe el-Rei mandava que a cometesse. E o em que ele, Melique-Iaz, se resumiu acerca daquele requerimento de Diogo Lopes, foi que, por haver já muitos anos que per Afonso de Albuquerque fora requerido a el-Rei de Cambaia, e nisso se não falara mais, era necessário ele, Diogo Lopes, mandar-lhe seu embaixador sobre isso, e que ele, Melique-Iaz, daria logo ordem como partisse dali; e havida a vontade del-Rei, na sua pouco havia que fazer, porque sempre estevera prestes pera o servir. Finalmente, Diogo Lopes, por não mostrar a Melique-Iaz que de propósito vinha àquele porto de Dio a este negócio, e também polo segurar, disse que da Índia mandaria aquele recado a el-Rei, porque então abastava saber a boa vontade dele, Melique-Iaz, mostrando-se muito contente dele. E aqueles dias que se ali deteve veo ter com ele Gaspar da Silva, capitão da nau Nazaré, que foi ua das mais fermosas deste reino, em que ele levava quatrocentos homens, o qual também com nova que podia achar Diogo Lopes naquela paragem, fez o caminho de Rui Vaz Pereira, que no seu galeão levava trezentos homens; e segundo toda esta gente ia fresca do reino e bem disposta, com ela e com mil e quinhentos homens, que Diogo Lopes trazia nos outras naus, bem se podera tomar a cidade de Dio. Ca, segundo se depois soube, ela estava mui pobre de gente estrangeira, de que Melique-Iaz sempre fez mais cabedal que dos naturais guzarates, por ser gente fraca; e a estrangeira, em que ele confiava, eram mouros, arábios, 214 turcos, párseos e rumes, que naturalmente todos nos tinham ódio, por lhe termos tomada aquela navegação; e mais eram homens animosos e mui astuciosos nas cousas da guerra, e sobre isso mui ofendidos de nossas armadas. E porque, com a entrada que Diogo Lopes fez no Estreito, e mais invernar aquele ano em Ormuz e Jorge de Albuquerque em Calaiate, não ousaram as naus do Estreito de Meca vir aquele ano a Dio, e aquela que Rui Vaz aferrou houve o fim que dissemos; assi que, com desfalecimento de gente e mercadorias que estas naus traziam, que também é nervo da guerra, estava a cidade pobre e Melique-Iaz assombrado. Peró, como era sagaz, contrafazia as cousas de maneira que ninguém lhe sentia necessidade nem desconfiança; e naqueles dias que Diogo Lopes ali esteve, fez vir tanta gente da terra com mantimentos e cousas de refresco que mandou em abastança a toda nossa armada, que com o muito povo que vinha das aldeas a trazer estas cousas, não se podiam revolver pelas ruas da cidade. E inda pera contentar a todos, não 110v 110v somente a Diogo Lopes, mas a todo o capitão, mandou peças de presente, e per derradeiro como homem seguro e que se não vigiava de nós, mandou dizer a Diogo Lopes que lhe disseram que, naquela nau que ali então chegara de Portugal, vinham alguas mulheres, que lhe beijaria as mãos mandar-lhe mostrar ua, porque desejava ver as fêmeas que pariam homens tam cavaleiros e gentis homens como eram os portugueses. Diogo Lopes, além das peças que lhe também enviou, em retorno das suas, mandou-lhe mostrar ua mulher mourisca, que ali vinha casada, per o mesmo seu marido; e posto que era mulher de bom parecer, em a vendo, Melique-Iaz era tam discreto, que disse:. - Não é esta a que pare portugueses. E quando lhe disseram de que nação era, respondeu que bem parecia ser da linhagem daquela gente arábia. Depois que se Diogo Lopes espediu dele e partiu pera a Índia, ficando ali Rafael Perestrelo com fama de carregar sua nau de roupa pera levar a Malaca, onde ele esperava ir, como veremos,

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pera neste tempo ele poder notar bem as forças e entradas daquela cidade, pera Diogo Lopes vir sobre ela, como lhe el-Rei nas cartas daquele ano mandava, acertou que, entre alguas cousas que Rafael Perestrelo mandou a Melique-Iaz de presente (pera com mais facelidade poder fazer seus negócios), ir um pano de armar de figuras, o qual, em se abrindo, que Melique-Iaz viu as figuras de mulheres, disse aos que estavam presentes:. - Estas são as mulheres que parem os portugueses, e não me espanto agora da cavalaria e parecer deles, pois procedem destas.

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110v 110v 215 Capítulo VIII. Como Diogo Lopes de Sequeira, depois que despachou as naus que o ano de quinhentos e vinte vieram com carga de especearia pera este reino, fez ua grossa armada, em que foi pera Dio com tenção de fazer i ua fortaleza. Diogo Lopes de Sequeira, tanto que chegou a Goa, providas alguas cousas necessárias ao governo da cidade, principalmente as terras firmes, que achou que Rui de Melo tinha tomado, pela maneira que atrás escrevemos, passou-se a Cochi a dar aviamento à carga das naus, que aquele ano haviam de vir com especearia pera este reino, e assi ordenar as cousas necessárias pera com ua poderosa armada tornar sobre Dio, como lhe el-Rei mandava. E porque da frota que Jorge de Albuquerque levou que invernou em Moçambique, ficaram na Índia muitas naus, que com as daquele presente ano da armada de Jorge de Brito fazia um grande número pera todos 111 79 tornarem com especearia, despachou somente aquelas a que pôde dar carga, de que veo por capitão-mor António de Saldanha, que chegou a este reino a salvamento, e as outras ficaram pera ir com ele ao feito de Dio; e por esta causa, e lhe el-Rei mandar que fosse o mais poderosamente que podesse, reteve todolos capitães que iam ordenados pera aquelas partes de Malaca, com fundamento que, acabado este negócio, os espederia, como fez; e segundo o que depois sucedeu, per ventura lhe fora mais proveitoso ir ao mesmo feito sem eles, que levá-los em sua companhia, como se verá. Melique-Iaz, como não estudava em outra cousa senão em se vigiar de nós, e sobre isso trazia grandes espias, tanto que soube dos grandes aparatos que Diogo Lopes fazia (ainda que a fama deles eram pera tornar ao Estreito do Mar Roxo fazer ua fortaleza), mandou um mouro per nome Camalo visitar Diogo Lopes com um presente, levando per instrução que, depois que o visitasse da sua parte e lhe desse o presente, se leixasse andar de vagar, espreitando o que ele fazia; e, neste tempo, como de seu lhe dissesse que ele, Melique-Iaz, estava esperando que mandasse algua pessoa a el-Rei de Cambaia sobre a casa de feitoria que queria fazer, como com ele assentara; porque segundo ele, Camalo, tinha entendido de Melique-Iaz, em chegando, não haveria muito que fazer neste negócio. E depois que este mouro per tal modo tentou Diogo Lopes, porque sentia nele que o não queria despachar, sendo 216 esta a cousa que ele mais desejava, pera melhor notar tudo o que ele fazia, de que logo avisava Melique-Iaz, disse-lhe um dia que tinha cartas de Melique-Iaz, seu senhor, que se fosse o mais prestes que podesse; e que também lhe escrevia que, quanto a casa da feitoria que ele, Capitão-mor, desejava ter em Dio, que ele, Melique-Iaz, tinha cartas da Corte del-Rei de Cambaia, em que lhe escreviam alguns seus amigos, a quem ele, Melique-Iaz, tinha encomendado este negócio da casa, que el-Rei de Cambaia não leixava de dar esta licença somente por esperar que Diogo Lopes lha mandasse pedir; que de seu conselho, ele o devia logo fazer, por ser cousa geral a todolos príncipes quererem-se rogados ao modo das mulheres, posto que muito desejem fazer a mesma cousa. E pois que este negócio estava em tal estado, a ele, Camalo, lhe parecia - e assi lho escrevia seu senhor Melique-Iaz que lho dissesse - que ele, Diogo Lopes, devia mandar algum capitão com naus, munições e oficiais pera logo poer mão à obra, por não se perder tempo em irem e virem recados. Diogo Lopes, ainda que não entendia naquele tempo todos estes artefícios de Melique-Iaz, o que então alcançou deles era que, de assombrado da armada que lhe deziam que ele fazia, lhe mandava 111v

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79v aconselhar que mandasse lá um capitão, porque ele, Diogo Lopes, desistisse do que ordenava, com que poderia poer o peito em terra e tomar a cidade, que ele, Melique-Iaz, receava; o que não podia fazer qualquer outro capitão que ele lá mandasse; e por o mais assombrar, entretinha a Camalo, porque visse o grande aparato da armada - e Camalo não andava olhando outra cousa. Finalmente, vindo o tempo em que podia partir, ele se pôs em caminho com ua frota de quorenta e oito velas, entre naus, galeões, galés, fustas, bargantins e outros navios de remo, a qual frota foi a maior que até aquele tempo se ajuntara naquelas partes, os capitães da qual eram estes: D. Aleixo de Meneses, D. João de Lima, Jorge de Albuquerque, António de Brito, Fernão Gomes de Lemos, António de Lemos, seu irmão, Cristóvão de Sá, Francisco de Mendoça, André de Sousa Chichorro, D.Jorge de Meneses, Miguel de Moura, Lopo de Azevedo, Jerónimo de Sousa, António Ferreira, Francisco Pereira de Berredo, Francisco de Sousa Tavares, Pero Lourenço de Melo, Francisco de Mendoça, de Murça, Simão Sodré, Diogo Fernandes, de Beja, Rafael Catanho, Rafael Perestrelo, Pero da Silva, Cristóvão Correa, Nuno Fernandes de Macedo, António Raposo, Rui Vaz Pereira, António de Brito de Sousa, António Correa, Aires Correa, seu irmão, Gonçalo Pereira, Cristóvão Jusarte, Francisco de Melo Galego, Duarte da Fonseca, André Dias, alcaide de Lisboa, Diogo Pereira, Gaspar Doutel, Álvaro de Almada, Gonçalo de 217 Loulé, Paulo Machado, Tomé Rodrigues, Aires Dias, Lourenço Godinho, o Pireirinha, Pero Gomes de Sequeira Malabar, João Fernandes Malabar, o Panical de Cochi, que depois desta vinda se fez cristão, Malu Mocadane, dos canaris de Goa, que também se fez cristão e ora há nome Manuel da Cunha. Na qual frota iam até três mil homens portugueses e oitocentos malabares e canaris de baixo do governo dos capitães gentios da terra que nomeamos. Seguindo Diogo Lopes sua viagem com esta grande frota, foi tomar o Rio Banda, cinco léguas aquém de Chaúl; porque, como é rio largo e sem banco algum na barra, podia dentro sem perigo agasalhar toda a frota. No qual lugar Diogo Pais, que estava por feitor em Chaúl, lhe trouxe toda a provisão de mantimentos que lhe Diogo Lopes tinha mandado fazer prestes pera aquela viagem. E recebidos os mantimentos, denunciou a todos os capitães a tenção del-Rei D. Manuel sobre aquela ida sua, que era mandar-lhe que naquela cidade Dio fizesse ua fortaleza; e quando Melique-Iaz lhe não quisesse dar lugar pera isso, que então a tomasse ele per força de armas polo muito que importava ao Estado da Índia ser feita naquele lugar, por evitar ser 112 112 aquela cidade Dio ua acolheita de quantos turcos, arábios e rumes iam àquelas partes. E porque além de el-Rei D.Manuel encomendar a ele, Diogo Lopes, que trabalhasse muito per todolos modos que a fortaleza se fizesse ante per vontade del-Rei de Cambaia e de Melique-Iaz, que per força de armas, e o mouro Camalo, por parte do mesmo Melique-Iaz (como ora dissemos), lhe dezia que mandasse algua pessoa a el-Rei de Cambaia por quam facilmente havia de conceder naquela fortaleza, e que bastava mandar a isso um capitão com algua gente e munições, pera, em vindo o recado, se poerem logo mãos à obra, assentou Diogo Lopes no conselho que teve com os capitães de mandar diante D. Aleixo com até vinte velas, entre grandes e pequenas, pera tentar a tenção de Melique-Iaz, quási pelo modo que o ele mandara aconselhar per seu criado Camalo, por mostrar que, naquele negócio, em tudo queria seguir seu conselho, porque, quando ele, Diogo Lopes, chegasse, o poder mais culpar se fizesse o contrairo do que aconselhava; e que a voz da outra frota, que com ele ficava, seria que era pera Ormuz, por ele com grande instância ser chamado por el-Rei, que lhe fosse dar vingança del-Rei Mocrim, que por ele governava a Ilha Baharém, o qual estava meio levantado e não lhe queria acudir com os rendimentos. E por isto passar assi em verdade do levantamento deste mouro e requerimento del-Rei de Ormuz, e ser já sabido em Cambaia pola vezinhança e comunicação que um reino tem com outro, podia-se bem dissimular o mais que ele ia fazer. E querendo ele, Diogo Lopes, mandar o mouro Camalo em companhia de D. Aleixo, 218

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não foi achado, e soube que à sua partida de Goa com toda a frota fugira em ua fusta; o que deu má suspeita a Diogo Lopes, parecendo-lhe que não respondiam suas palavras e conselhos com o auto da fugida. Finalmente, ele se partiu dali com toda sua frota, e tanto que foi na paragem da Ponta de Damão, donde se pode atravessar de lugar mais perto a enseada de Cambaia pera Dio, espediu D. Aleixo, ficando Diogo Lopes com toda a mais frota um pouco de vagar, por dar espaço ao que D. Aleixo havia de fazer. Mas como nestas cousas sempre se acha ua pouca de enveja, dizem que, partido D. Aleixo, não faleceu quem fizesse crer a Diogo Lopes, que não convinha muito a sua honra mandá-lo diante. Porque, se era verdade o que Diogo Lopes dizia que lhe Melique-Iaz mandava dizer quam facilmente se podia impetrar aquela licença del-Rei de Cambaia, per ventura estaria esta matéria tam disposta na 112v 112v vontade del-Rei e dele, Melique-Iaz, que, em ele vendo D. Aleixo com aquela frota, ou por vontade ou por temor acabaria logo tudo; de maneira que, quando ele, Diogo Lopes, chegasse, iria (como deziam) ao atar das feridas, e ficaria D. Aleixo com a honra daquele feito. Diogo Lopes, como lhe tocaram nesta parte da honra do caso, parece que o removeu de maneira que não lhe levou D. Aleixo mais que um dia somente. No qual dia não era mais feito (por Melique-Iaz não ser na cidade), que terem entrado dentro nela Pero Lourenço de Melo, capitão de ua nau, e Jorge Dias Cabral, um cavaleiro que andara muito tempo em Itália, nas guerras de Nápoles, com o grã Capitão Gonçalo Fernandes, donde trouxe, honrado nome de feitos que lá fez, aos quais Diogo Lopes encomendou que, tanto que D. Aleixo chegasse, em hábito de marinheiros fossem dentro à cidade, como que iam pedir algum mantimento ao feitor Fernão Martins, e que notassem bem a entrada do rio e do modo que Melique-Iaz tinha provido a defensão da cidade.

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112v 112v 219 Capítulo IX. Como Diogo Lopes de Sequeira com sua frota chegou sobre a cidade Dio, onde não fez fortaleza, e a causa por quê; e como foi invernar a Ormuz, espedindo os capitães que iam ordenados pera as partes de Malaca, os quais foram em companhia de D. Aleixo de Meneses, que os havia de despachar em Cochi. Chegado Diogo Lopes ante o porto da cidade Dio em nove de Fevereiro do ano de quinhentos e vinte e um, achou o negócio a que ele ia bem diferente do que cuidava; e em duas cousas logo notou ser falso quanto lhe Melique-Iaz mandava dizer da facelidade do caso; a primeira, porque o não achou na cidade, e, segundo lhe contaram Pero Lourenço e Jorge Dias, que o souberam de Fernão Martins, ele era ido à Corte del-Rei de Cambaia; e posto que lançou fama que el-Rei o mandara chamar, a ele, Fernão Martins, parecia o contrairo. Porque, quanto ele pôde alcançar da sua ida, ela fora a empedir a vontade del-Rei de Cambaia, que em nenhua maneira desse palavra pera se fazer a fortaleza, se ele, Diogo Lopes, lá mandasse com este requerimento algua pessoa. Ca esta ida fora depois que soubera que ele, Diogo Lopes, partira com aquela grande frota, e que o mouro Camalo, que lá andava nestes enganos, havia poucos dias que chegara, e logo se partira em busca dele; e polo que ele contou a Melique-Saca, seu filho, que ali estava, e a seus capitães, 113 113 a cidade ardia assi no mar como na terra, provendo toda parte per onde podia ser entrada. A segunda cousa, em que também Diogo Lopes notou que não o queriam hospedar nela, foi que lhe disse D. Aleixo que no dia de sua chegada, e depois no seguinte, o porto da cidade estava despejado e aberto pera sair e entrar, e a menhã que ele, Diogo Lopes, aparecera ao mar, logo se atravessara a cadea que viu e as naus que estavam junto dela. E mais, que mandando ele chamar aquele dia Fernão Martins pera praticar com ele as cousas que lhe mandara, não viera, e que lhe dera a entender per um recado que lhe mandara de escusa, que estava quási reteúdo sem ousar cometer o caminho, por não descobrir a vontade dos mouros, até que ele, Diogo Lopes, viesse, porque vendo sua pessoa diante, tomariam melhor conselho. Havida esta primeira notícia das cousas da cidade, no dia que Diogo Lopes chegou, não teve nele tempo pera mais que mandar ancorar as naus, galeões e galés nos lugares que convinham, segundo a ordem que já pera isso tinha dado aos capitães. E primeiro que algum recado mandasse a Melique-Saca, filho de Melique-Iaz, quis tomar algua mais informação de como a 220 cidade estava provida, e achou que com Melique-Saca ficaram estas três pessoas, per cujo conselho se haviam de fazer e ordenar todalas cousas, assi da paz como da guerra. Um dos quais era o capitão principal de Melique-Iaz, chamado Haga Mahamede, tártaro de nação e parente seu; o outro havia nome Sufo, turco, capitão da sua armada; e o terceiro, chamado Sedalim, que servia de capitão-mor dela, os quais eram homens de que tinha muita experiência de seu saber e cavalaria. E além destas três cabeças ficava a gente da terra, de que a cidade estava atulhada, e mais muita gente estrangeira de arábios, párseos, turcos e muitos arrenegados de várias nações, deles a soldo e outros que eram vindos a seus tratos de mercadoria em naus que ali estavam. E de um baluarte que estava no meio do rio, que era à entrada do porto da cidade, atravessava ua grossa cadea de ferro, enroladas nela amarras de cairo, por o ferro não desfazer uns barcos sobre que ela se sostinha naquele grande vau do canal que havia entre o baluarte e a terra onde ela estava presa. E junto dela, no meio deste canal, estavam três naus grandes, carregadas de pedra com rombos dados, pera ao tempo da necessidade as

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encherem de água e as calarem no fundo, com que o canal ficasse de todo atupido. E além destas naus, estava toda a fustalha que Melique-Iaz, senhor da cidade, tinha prestes, que seriam até cento e oitenta peças, afora muitas naus de carga 113v 113v suas e dos mercadores que ali eram vindos, as quais naus ele tinha arrestado pera esta defensão. E ainda pera empedir mais aquela passagem, tinha feito ua estacada de grossa e espessa madeira, assi ordenada, que parecia a quem entrava per ela entrar per as torturas que contam do laberinto. Tinha mais feita outra obra derredor do baluarte, que estava no meio do rio, que era muita pedra grossa, quási penedos, lançada derredor dele à maneira de recife, porque não podessem as nossas galés pela banda de fora abalroar com ele. As quais pedras, se naquele tempo nos empediram entrar na cidade, depois, no ano de quinhentos e trinta e oito, nos aproveitaram muito, quando Soleimão Bassá, capitão do Turco, veo sobre esta cidade a instância de Soldão Badur, Rei de Cambaia, em ódio nosso, tendo nós já feito nela fortaleza, de que era capitão António da Silveira de Meneses, como se verá em seu tempo. Entre o qual baluarte e a terra firme, fronteira à cidade, onde está a povoação a que chamamos dos rumes (segundo fica atrás na descrição que fizemos do sítio desta cidade), era aquele lugar tam aparcelado e baixo, que não podia per ali passar um navio, por leve e raso que fosse. Finalmente, no mar, na terra e per todo o muro eram artefícios e artelharia, como que os nossos eram aves que haviam de subir pela agrura da penedia sobre que o 221 muro estava feito, naquela parte do mar per que os nossos podiam ter algua subida. Diogo Lopes, vendo que a entrada daquela cidade estava mui diferente do que ele cuidava, e que, com a ida de Melique-Iaz, ficavam suas promessas desfeitas, mandou chamar Fernão Martins Evangelho, que já estava com mais liberdade do que teve na chegada de D. Aleixo, do qual teve ainda mais particular informação da força e defensão que a cidade tinha. E, primeiro que passasse mais tempo, depois que entre ele e Melique-Saca houve visitações, mandou-lhe dizer como ele ia caminho de Ormuz ao negócio que lhe Fernão Martins diria; e que, por não perder tempo e seu pai lhe mandar muitos recados per Camalo, seu mensageiro, sobre a fortaleza que ali queria fazer, em que ele, Melique-Saca, já estaria mui prático, por haver tanto tempo que se nisso tratava, folgaria que lhe mandasse dizer o lugar que seu pai pera isso queria dar, porque ele vinha apercebido de munições, oficiais e gente pera tudo o que aquela obra havia mister. E mais que como ele sabia, os portugueses em poucos dias punham ua fortaleza em pé, e isto quando tomavam a peito de a fazer, como fizeram outras que tinham feitas na Índia. Melique-Saca, como de seu pai ficara instruto do que 114 114 havia de responder a ele, Diogo Lopes, se ali viesse com tal requerimento, e mais tinha à ilharga os três mestres que dissemos, respondeu que por ele, Fernão Martins, Sua Senhoria podia saber como seu pai fora chamado del-Rei de Cambaia, e que havia poucos dias que lhe escrevera; que ua das cousas que o ainda lá detinha, era estar esperando que ele, Senhor Governador, mandasse algua pessoa a el-Rei, como lhe muitas vezes tinha mandado dizer, porque, enquanto ele, Melique-Iaz, lá estivesse, com seus amigos podia aproveitar muito neste negócio. E pois seu pai estava esperando que ele, Senhor Capitão-mor, mandasse alguém a este negócio, que o devia logo fazer, por não perder tempo, como ele dizia; e que ele, Melique-Saca, daria aviamento à sua partida pera em breve ir e vir com recado, porque ele não tinha outro de seu pai, e, por ser filho, não podia tomar mais licença, por haver a benção dele, que quanta lhe dera; e que ainda que em mais ele quisesse servir, Sua Senhoria, tinha as mãos atadas por três velhos que seu pai leixara em guarda daquela cidade. Que pera qualquer outra cousa de mantimentos e provisão pera aquela armada, a cidade estava tam abastada deles, que nisso lhe faria pouco serviço. E além destas palavras, que eram a força de sua reposta, disse outras a Fernão Martins que também tinham outro entendimento, ao modo das que lhe

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Diogo Lopes mandou dizer - quási que não lhe havia de 222 custar a entrada na cidade tam barato, como custaram as outras, em que ele dizia que os portugueses tinham feito fortalezas. Diogo Lopes com esta reposta de Melique-Saca teve logo conselho com os capitães, diante dos quais ele quis que Fernão Martins dissesse o que lhe parecia de Melique-Saca, e assi da força que a cidade tinha, e se era cousa que se devia cometer. E assi per ele como per Pero Lourenço e Jorge Dias foi dito que, pera cometer a cidade per alguns lugares que parecia poder-se entrar, havia mister mais de dez mil homens, e com menos era cousa impossível. Diogo Lopes, depois que ouviu a prática que se teve sobre o tomar a cidade per força de armas, como houve mui diferentes votos, não quis tomar final conclusão, sem primeiro mandar mais alguns recados a Melique-Saca, sem lhe dar a entender que o entendia, pera entretanto examinar este caso. O qual exame foi pedir ele a alguns capitães e fidalgos principais que em hábito de marinheiros fossem à feitoria, como que iam buscar algua provisão, e notassem bem tudo, pera de vista poderem dar seu voto naquele caso. E porque no cabo da cidade, que estava mais ao mar sobre a entrada do rio, estava um lanço de muro, 114v 114v que não era maciço como o outro que estava feito na pena viva, e este dizia João de la Câmara, condestabre-mor, que daria em duas horas com ele em terra, foi ele, Diogo Lopes, em um batel com o condestabre e alguns fidalgos ver este lugar, e se era cousa possível o que ele dizia. A qual vista não aproveitou pera mais que pera depois, como em lugar de suspeita, fazer Melique-Iaz um baluarte mui forte, que assegurou aquela parte, ao qual ora chamam o Baluarte de Diogo Lopes, por ele com esta vista ser causa de se fazer. Feitas todas estas diligências, e ele, Diogo Lopes, estar desenganado de Melique-Saca, por recados que foram e vieram, dizendo ele que não podia naquele caso mais fazer que dar aviamento ao embaixador, que ele podia mandar a el-Rei de Cambaia, se quisesse, teve Diogo Lopes outra vez conselho sobre a determinação daquele caso; e a conclusão dele acerca dos mais foi que não era cousa pera cometer tomar aquela cidade à escala vista. E porque toda a gente da armada estava com grande alvoroço da vista do muro, que Diogo Lopes foi ver, per onde João de la Câmara dizia que daria com ele em terra, houve por toda a armada rumor que por ali haviam de cometer. Peró, quando ao outro dia se disse que não se havia de combater a cidade, foi a tristeza tam grande na gente de armas e tanta a marmuração contra Diogo Lopes, que não faleceu cousa que lhe não levantassem; e a causa disto foram duas cousas: A primeira, que em dous ou três dias que andaram aqueles tratos per meio de Fernão Martins entre ele, Diogo Lopes, e Melique-Saca, temendo Fernão Martins pelo que sentia em ele, Diogo Lopes, que a cidade fosse cometida, e que se podia perder ua soma de dinheiro, que ele tinha feito na 223 fazenda del-Rei, que ali feitorizava, e em que com algum seu e do escrivão de seu cargo, podia fazer até trinta mil cruzados, ua noite veo com eles à nau de Diogo Lopes a os pôr em cobro, e ele os mandou entregar a Bastião Rodrigues, Lagues de alcunha, da qual cousa se logo afirmou ser aquilo peita. E a outra cousa por que a mais da gente de armas julgava mal Diogo Lopes, foi que muitos dos capitães que no conselho passado votavam que lhe não parecia serviço de Deus nem del-Rei D. Manuel cometerem aquela cidade a escala vista, estes mesmos por fora, cada um na sua nau de que era capitão, por se congraçar com a gente dela e habilitar sua pessoa, diziam ser a mais malfeita cousa que podia ser não cometerem aquela cidade, e que seu voto não fora outro, com outras mil cousas desta calidade. Diogo Lopes, tanto que soube o que estes capitães diziam, tornou outra 115 115

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vez a os ajuntar, como que se queria retificar em seu parecer; e mandou ao secretário que tomasse o voto de cada um per escrito, e os fez assinar. E contudo, neste caso de Diogo Lopes mais verdadeiramente se pode dizer estar a culpa em outras duas cousas que nele: ua foi ter Diogo Fernandes, de Beja, um alvará del-Rei D. Manuel, que levou deste reino, per que lhe fazia mercê da fortaleza que se fizesse ali em Dio; e outra, haver mais de vinte capitães que estavam todos ordenados pera fazer suas viagens de mais seu proveito, que ir tomar experiência da pólvora das bombardas de Melique-Iaz se tinha muito ou pouco salitre; e quais estes foram, adiante na espedida deles se verá. Assi que, tendo todos mais respeito à conta que cada um fazia de seu proveito que à honra que Diogo Lopes ganhava naquele feito, os mais deles assinaram o que de antes tinham dito. E as causas que houve pera se resolverem todos no que tinham votado, foram: que naquele negócio não se havia de ter tanto resguardo ao perigo das bombardas e artefícios com que Melique-Iaz tinha provido aquela cidade, e número de gente com que ele esperava de a defender, como capitão que era dela, quanto respeito convinha que se tevesse a el-Rei de Cambaia, que era senhor dela. O qual se haveria por muito ofendido naquela força que lhe fosse feita; e não havia mais mister pera começarem abrir ua guerra de novo, que era a cousa que el-Rei mais defendia a todolos Governadores. E pois el-Rei, nas cartas que aquele ano escrevia, encomendava a ele, Diogo Lopes, que primeiro tentasse todolos meios, e que o derradeiro fosse cometer a cidade, e isto ainda com grandes cautelas sobre o risco da gente, o qual todos viam estar ante os olhos, devia-se primeiro tentar este modo, em que Melique-Iaz tantas vezes repetia, que era mandar algua pessoa a el-Rei. E quando este seu conselho fosse falso, então tempo ficava pera lhe fazerem a guerra; porque, depois das pazes que tinham feitas, em que então estavam, erros tinha ele, Melique-Iaz, cometido em tempo de Lopo Soares com suas fustas, donde se podia tomar a causa de lhe fazer a guerra, e assi do recolhimento que não havia de dar aos turcos e rumes, como ficara assentado pelo Viso-Rei D.Francisco de Almeida; quanto 224 mais que bastava quanta mentira neste caso tinha dito. E entretanto devia ficar sobre aquele porto Diogo Fernandes, de Beja (que era o noivo que havia de ser desposado com a fortaleza) com alguas velas esperando o recado del-Rei; e vindo mandado que havia por bem que se fizesse, começaria logo abrir aliceces, enquanto levavam recado a ele, Diogo Lopes, a Ormuz. E quando fosse o contrairo, ele mesmo 115v 115v podia logo denunciar a guerra, não leixando entrar nem sair um barco; e este era o maior dano que lhe podiam fazer - pôr-lhe a mão na garganta per onde ele recebia vida -; e depois que ele, Diogo Lopes, tornasse de Ormuz, então lhe ficava lugar pera o mais que o tempo desse de si. Tanto que Diogo Lopes ficou satisfeito dos capitães per este modo, não houve mais que dizer, somente dissimular ele com Melique-Saca e mandar-lhe dizer que, naquele caso da fortaleza que ali queria fazer, sempre ele e os Governadores passados se quiseram conformar com o parecer e vontade de seu pai; e pois a ele lhe parecia bom conselho o recado que ele, Diogo Lopes, devia mandar a el-Rei, que assi o queria fazer. Que lhe pedia que a Rui Fernandes, que ele ali leixava com o feitor Fernão Martins Evangelho, pera ir a el-Rei de Cambaia com seu recado, lhe mandasse logo dar aviamento pera isso. E que enquanto ele fosse, leixaria Diogo Fernandes, de Beja, com alguns navios e munições, pera, tanto que viesse recado, começar logo poer mãos à obra; que ele lho encomendava que lhe fizesse bom gasalhado, porque havia de ficar ali por hóspede alguns dias na fortaleza. Melique-Saca, ouvida esta determinação de Diogo Lopes, como homem desabafado daquela armada, que lhe tinha posto a mão na vida, não teve que dizer a Diogo Lopes, senão mandar-lhe louvar tam bom conselho e fazer grandes promessas de si acerca do aviamento do homem que queria mandar, dando o negócio por acabado por parte de seu pai em estar lá; e assi a diligência que se daria ao que Diogo Fernandes houvesse mister, tanto que viesse recado.

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Finalmente, postas estas cousas em efeito, Diogo Lopes entregou Rui Fernandes ao feitor Fernão Martins que o provesse do necessário pera aquela jornada, e leixou Diogo Fernandes naquele porto em ua nau, e com ele Nuno Fernandes de Macedo em um navio, e seu irmão Manuel de Macedo em outro, com o regimento do que havia de fazer. E espediu todos os capitães que iam ordenados pera vir com as naus que deste reino foram pera trazerem a carga da pimenta; e assi os ordenados pera as partes de Malaca, e outros que tinham naus e navios que haviam mister corregimento, aos quais mandou que se fossem a Cochi com D. Aleixo, ao qual deu todos os poderes que ele tinha de Governador pera prover nestas cousas e em todos os negócios daquelas partes, enquanto ele, Diogo Lopes, ia a invernar a Ormuz. E porquanto ele esperava tornar ali sobre Dio acabar de rematar as cousas daquela fortaleza ou fazer outra em Madefadar, cinco léguas de Dio, onde 225 ele já tinha mandado António Correa e o piloto-mor João de Coimbra ver 116 116 o sítio e desposição do lugar, mandou ele a D. Aleixo que fosse ali naquele tempo com quantos navios e gente podesse ajuntar. E mandou também dali Fernão Camelo, que já estevera por feitor em Chaúl, que da sua parte fosse ao Nizamaluco, um dos principais capitães do reino Decão, que era senhor daquela cidade, pedir-lhe licença pera ali fazer ua fortaleza, porque seu fundamento dele, Diogo Lopes, era estar tam bem provido per esta parte, que, quando o negócio da fortaleza de Dio ou Madefadar não sucedessem bem, ter lugar pera isso nesta cidade Chaúl, onde nossas cousas eram bem recebidas. E mais sabia ele, Diogo Lopes, que o Nizamaluco desejava ter ali esta fortaleza nossa, por causa do grande interesse que lhe disso vinha, e de outros fundamentos que ele fazia, de que adiante daremos conta. Donde procedia consentir ele pagarem os moradores da cidade dous mil pardaus de páreas, que lhe o Viso-Rei D. Francisco de Almeida pôs, em penitência de não serem em ajuda de seu filho D. Lourenço, quando os rumes pelejaram com ele e foi morto polo modo que atrás fica, e também el-Rei D. Manuel encomendava a ele, Diogo Lopes, que tentasse este Nizamaluco desta licença. Finalmente, acabadas estas cousas, Diogo Lopes se partiu pera Ormuz e Diogo Fernandes ficou sobre Dio, e D. Aleixo fez sua viagem caminho da Índia com toda a mais frota; com o qual nós iremos um pouco de tempo, por dar razão do que fizeram tantos capitães como iam ordenados pera aquelas partes de Malaca.

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116 116 225 Capítulo X. Do que aconteceu a Simão Sodré ao longo da costa, caminho de Goa, e houvera de acontecer a D. João de Lima que se com ele achou; e do despacho que D. Aleixo deu, depois que chegou a Cochi, aos capitães que levava em sua companhia. Como em companhia de D. Aleixo iam velas diferentes, que eram naus, galeões, fustas e catures, uns haviam mister ua navegação e outros outra. As naus e galeões, por serem de grande porte, tomavam o golfão do mar por atravessarem mais cedo à Índia; e as outras velas de remo, que eram pequenas vasilhas, seguiam a costa da terra, que foi causa de esta frota ir um pouco derramada. E também como muitos iam descontentes daquela viagem, de que levavam as mãos vazias, e sempre ao longo da costa se achava algum navio de mouros, que de um 226 porto ao outro, furtados de nós, andavam fazendo suas comutações, 116v 116v e assi havia alguns ladrões que os nossos sabiam andarem ali ao salto, e se acolhiam a certas guaridas, com esta tenção alguns se leixavam esquecer da companhia dos outros, e outros não podiam mais andar. E peró que neste caminho alguns tiveram que contar dele, tomamos nós somente um caso que aconteceu a ua fusta, de que era capitão Simão Sodré, e o que houvera de acontecer a D. João de Lima em um bargantim, por razão do que ele passou na barra de Dio com Diogo Lopes de Sequeira, de quem ele ia agravado. E o caso foi este: Como os homens nobres nos lugares de honra, como era cometer o combate da cidade Dio, todos se querem mostrar, trabalhava cada um de tomar bom posto. D. João de Lima, porque naquela jornada ia por capitão de um galeão, que era das melhores peças de toda a frota, e por as calidades de sua pessoa, pertencia-lhe aquele posto que ele tomou, o qual era no meio do canal junto onde a cadea de ferro que dissemos estava atravessada. Veo de outra parte Cristóvão Correa, filho de Cristóvão Correa, comendador dos Colos, com outro galeão pequeno, e com o mesmo desejo de ganhar honra, como mancebo e novo no ofício de capitão, sem ter resguardo de D. João, passou-se diante dele. Gonçalo de Loulé (de que atrás fizemos menção), sendo homem que (segundo diziam) de mareante viera a estado de capitão de um navio, não tendo respeito a quem eles eram, perpassou per ambos, e vai-se pôr diante de Cristóvão Correa, junto com ua lágea contra a cidade. Donde D. João de Lima, quando viu Gonçalo de Loulé naquele lugar, ainda que folgou polo que Cristóvão Correa lhe fez, levantou-se do pouso em que estava, e foi-se pôr diante de Gonçalo de Loulé; e como o galeão demandava muita água, e D. João, com a indinação que tinha, fazia com o mestre dele que fosse mais avante, foi dar com ele quási sobre a lágea, em que se houvera de perder, se lhe logo não acudiram muitos batéis. No qual caso houve tirar com ua bombarda do mesmo galeão que lhe acudissem; e foi tanta a revolta em toda a armada, que cuidavam todos que começava já o galeão dar bateria à cidade. Também os mouros acudiram acima ao muro que ficava sobre o galeão, e travou-se ua união que acudiu Diogo Lopes, parecendo-lhe ser outra cousa. E porque naquele tempo se tratava entre ele e Melique-Saca o negócio da fortaleza, e houve da cidade recados que cousa era aquela, como que se agravavam de se romper a paz, estando em requerimento de fortaleza, passou Diogo Lopes palavras com D. João sobre aquele desmancho, donde lhe tirou a capitania do galeão. Tanto polo feito, como porque 117 117

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D. João, retorcido pera os que estavam per derredor, disse que o Diogo Lopes que havia 227 de tomar Dio, ficava em Portugal, a qual palavra dizem que ouviu Diogo Lopes. E a pessoa por quem D. João dizia aquilo, era por Diogo Lopes de Lima, seu irmão, o qual tinha aquela capitania-mor da Índia; e a frota que Diogo Lopes de Sequeira levou, pera ele, Diogo Lopes de Lima, se ordenava. Mas como a corte dos reis é chea de muitas mudanças, foi Diogo Lopes de Sequeira, e Diogo Lopes de Lima foi satisfeito da mercê que lhe era feita a dinheiro de contado; e per esta maneira vem os reis despender mais em pagar injúrias, que fazer honras. Passada aquela primeira indinação que Diogo Lopes de Sequeira teve, tornava depois a dar o galeão a D. João, mas ele o não quis aceitar; e quando veo à partida pera Goa, em companhia da outra frota, não quis ir senão em um bargantim; e como homem desgostoso, ia mui mal provido de remeiros, e sem lhe parecer que podia achar cousa que lhe empedisse seu caminho. O qual, sendo tanto avante como ua enseada que está além de Dabul, foi dar de súbito com ua fusta de turcos, que estavam em resguardo de ua nau que ali carregava de Adem, a qual era de um mouro arrenegado per nome Alé Frange, que estava em Dabul, a quem, como a nosso amigo, Diogo Lopes tinha dado licença pera poder navegar com aquela nau suas mercadorias, e posto que tinha este seguro, como cauteloso, pôs a fusta em resguardo dela. E verdadeiramente, segundo D. João ia descuidado e mal provido pera aquele ofício de lançadas, per ventura ali acabaram seus desgostos. Peró, como Simão Sodré ia diante sem D. João o saber, nele empregaram os turcos sua fúria, metendo-se com ele tam rijo no primeiro ímpeto, que lhe entraram a fusta, por todos irem tam descuidados e com as armas postas em parte, que foi muito terem tempo pera as vestir, tam subitamente deram os turcos neles detrás de ua ponta, onde os estavam esperando, como gente que vigiava a costa. Eram com Simão Sodré naquela fusta Tristão de Taíde, filho bastardo de Álvaro de Taíde, senhor de Penacova, Paio Correa, filho de Fr. Paio Correa, Comendador da Ordem de S. João, João Cerregeiro, moço da Câmara del-Rei, João de Góis, casado em Cananor, e outros que fariam número de até quinze pessoas, os quais deram de si tal conta, que meteram os turcos em fugida, porque viram eles vir D. João de Lima em o seu bargantim, e cuidaram serem mais velas. Ainda que não se haviam muito de gloriar deste cometimento, por irem bem feridos; e dos nossos os que ficaram mais frechados foram Simão Sodré e Paio 117v 117v Correa. Vendo todos que a costa não estava tam segura como eles cuidavam, ajuntaram-se ambos, e foram a salvamento, como os outros daquela frota 228 de D. Aleixo. O qual, tanto que chegou a Cochi, começou a entender em o despacho das naus que haviam de vir aquele ano de quinhentos e vinte um com a carga da especearia pera este reino. E como acabou de as despachar, entendeu no aviamento das outras que haviam de partir pera as partes de Malaca; e por serem muitos capitães ordenados pera diferentes negócios, faremos ua pequena detença em tornar repetir alguas cousas que ficam atrás, porque convém ser assi, pera levarmos enfiada nossa história. Atrás escrevemos como deste reino partira Jorge de Albuquerque por capitão-mor de toda a frota que aquele ano partiu deste reino, o qual levava a capitania de Malaca, onde já estevera em tempo de Afonso de Albuquerque, e que, enquanto nela não entrasse (porque a servia Diogo Lopes da Costa), que podesse fazer ua viagem à China. E como, por razão de não passar à Índia e invernar em Moçambique, e depois andar em companhia de Diogo Lopes de Sequeira, não houve lugar de ir fazer sua viagem, neste meio tempo faleceu Afonso Lopes da Costa, e servia de capitão de Malaca Garcia de Sá, que lá foi ter pelo modo que escrevemos, de maneira que estava ela vaga pera ele, Jorge de Albuquerque, a poder logo servir, sem primeiro ir à China. Por a qual rezão, ante que Diogo Lopes em Dio o espedisse, mandou-lhe que levasse um

LIVRO IV

Príncipe herdeiro do reino Pacém, na Ilha Samatra; o qual, sendo ele, Diogo Lopes, no Estreito do Mar Roxo, lhe viera pedir ajuda contra um tirano que lhe tomara o reino, encomendando-lhe muito que trabalhasse por lançar o tirano fora do reino e meter o Príncipe em posse dele, porquanto se fazia vassalo del-Rei D. Manuel, e o queria ter por senhor. E acabado este feito, no lugar de Pacém fizesse ua fortaleza, na qual havia de ficar por capitão-mor António de Miranda de Azevedo com mais outros oficiais e gente ordenada a ela pera sua defensão e favor do Príncipe. E pera isso levaria duas ou três naus, além de outra companhia que até li o haviam de seguir, pera serem naquele feito de lançar o tirano fora e meter o Príncipe em posse do seu. E a outra companhia que até li o haviam de seguir, eram Cristóvão de Mendoça com três navios a descobrir as Ilhas do Ouro, e com ele, Pedro Eanes Francês, como também escrevemos, e Rafael Perestrelo em ua nau pera a China e Bengala, e Rafael Catanho pera Malaca, e ambos haviam de fazer em Pacém carga de pimenta. E assi Dinis Fernandes de Melo, com um navio ia fazer ua viagem a Malaca, 118 118 e se aproveitar por ser homem de serviço; e Pero Lourenço de Melo também em outra nau havia de fazer outra viagem pera Bengala, depois de Rafael Perestrelo. Todos estes capitães mandava Diogo Lopes de Sequeira que partissem juntos; porque, ainda que cada um tinha seu lugar limitado a que iam ordenados, podiam mui bem ser no feito de Pacém, sem perder tempo; e mais os ordenados pera a China e Bengala, por força haviam de ir tomar carga de pimenta e de outras mercadorias em Pacém. 229 Havia mais outro capitão ordenado contra aquelas partes do Oriente, o qual era Jorge de Brito, que (como também escrevemos), el-Rei mandava que com certas velas fosse fazer ua fortaleza em Maluco, o qual aquele ano de quinhentos e vinte partira, como Jorge de Albuquerque por capitão-mor de toda a frota, que deste reino foi, e por a mesma causa do negócio de Dio foi detido como os outros. Assi que, neste ano, podemos dizer que na Índia se acharam dous capitães-mores da carreira daqui pera a Índia, ambos ordenados pera irem fora da Índia que jaz dentro do Gange, com outros muitos capitães a diferentes negócios, e todos se acharam juntos em o negócio de Dio, sem fazer mais do que vimos; e todos despachou D. Aleixo e o Doutor Pero Nunes, veador da fazenda, os quais levariam dezassete velas, entre grandes e pequenas, em que iriam mil homens, dos quais não tornaram à Índia cento e a este reino vinte, todolos mais o mar e aquelas bárbaras terras gastaram; da qual triste tragédia algua relação faremos em soma, porque, descer ao particular dela, o ânimo entristece, e a pena recea entrar. E porque todos se foram ajuntar em a Ilha Samatra, primeiro que entremos na relação dos feitos, faremos ua digressão, dando conta dela.

LIVRO V 118v 118v 231 Capítulo Primeiro. Em que se descreve a situação da Ilha Samatra e reinos dela, e de alguas cousas que nela aconteceram aos nossos; e a causa por que o Príncipe do Reino Pacém mandou à Índia pedir ajuda ao Governador contra um tirano, que lho tinha tomado. No princípio do Sexto Livro da segunda Década, escrevendo da fundação e princípio que teve a cidade Malaca, dissemos a causa por que se enganaram os antigos geógrafos, chamando a esta Ilha Samatra, Quersoneso. O lançamento da compridão dela jaz pela nossa navegação per o rumo a que os mareantes chamam Noroeste-Sueste, e toma da quarta do Sul, e terá duzentas e vinte léguas de comprido, e de largo sessenta, ou setenta na maior sua largura. A qual fica tam vezinha à terra de Malaca, que no lugar mais estreito do canal que há entre elas não será mais que até doze léguas, quási na frontaria da cidade Malaca; e dali, assi pera a parte do Levante como Ponente, vai esta terra da ilha afastando-se da firme, de maneira que faz estas duas entradas daquele estreito mais largo que no meio. E porém per todo ele tudo são baixos, restingas, ilhetas com canais, os quais errados, se perdem as naus que per ali navegam; e daqui (como atrás dissemos) procedeu, 232 naquele antigo tempo de Ptolomeu e dos outros geógrafos, não ser aquele trânsito navegável como ora é, porque a cobiça dos homens todolos atalhos busca, ainda que perigosos, pera conseguir seu intento. Fica esta ilha com a Linha Equinocial, que a corta pelo meio em figura de ua aspa, donde a ponta mais oriental está em seis graus da parte do Sul, e com ela vai vezinhar na terra da Jaua, fazendo ambas um estreito per que antigamente se navegava pera aquelas partes orientais; por esta parte ao presente fica ela menos povoada, e em torno mui chea de ilhas e baixos. E pela 119 119 parte do Ponente, que está em quatro graus e três quartos da banda do Norte, é mais limpa, principalmente da banda de fora, mas muito mais povoada, por nela haver grande concurso de navegantes e a terra em si ter muitas sortes de mercadoria. Geralmente per toda a fralda do mar é terra alagadiça e de grandes rios, e pelo sertão montuosa, onde está um lago, de que alguns deles procedem. E como jaz debaixo de Linha Equinocial, é a terra tam húmida com as águas, e quente do Sol, que cria grandes arvoredos, com que ela fica mui fumosa de tam grossos vapores, que, ardendo o Sol per cima dela, não tem força pera os gastar, nem os ventos livre entrada pera os lançar daqueles lugares sombrios da espessura do arvoredo, que a fazem doentia, principalmente aos estrangeiros. Além da muita cantidade de ouro que nela há, também se acha muita cópia de estanho, ferro e algum cobre, salitre, enxofre, tintas de minas e ua fonte de que mana óleo, a que chamam napta, em o reino de Pacém, e no meio tem um monte como o chamado Etna em a Ilha Cecília, per que lança fogo, a que os da terra chamam Balaluão. Entre o grande e diverso número de árvores e plantas que cria, delas de fructos de que a gente comum se mantém, e outras que a natureza deu pera seu ornamento, tem as do sândalo branco, águila, beijoim, e as que dão a cânfora, como a da Ilha Burneo, posto que alguns digam que a daqui é mais fina e de outro género da que vem da China, que é composição, e estroutra é cousa natural de outra espécia. Das especearias tem pimenta comum, pimenta longa, gengivre, canela; e cria seda em tanta cantidade, que há i grande carregação pera muitas partes da Índia. As feras e bichos que cria é tanta a variadade deles, que falece nome a nós e aos naturais da terra pera per ele poder fazer a diferença que uns tem dos outros. Os rios, como são cabedais, tem grande variedade de pescado e pexes; e em alguns, assi como no Rio de Siaca, onde se pescam saves menores que os destas partes, não lhe aproveitam mais que as ovas, e, destas, há maior carregação do que nós cá temos dos mesmos saves. O geral

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233 mantimento da gente é milho e arroz, e muitas sementes e fructas agrestes do mato, porque, per razão do clima, não pode criar outras sementes que venham com fructo maduro, como aquelas que nós usamos. A terra é povoada de dous géneros de gente, mouros e gentios: estes são naturais e os outros no princípio foram estrangeiros, que per via de comércio começaram povoar o marítimo, até que, multiplicando, de pouco mais de cento e cinquenta anos a esta parte, se vieram fazer senhores e intitular com nome de reis. O gentio, 119v 119v leixando o marítimo, recolheram-se pera o interior da Ilha; e o que vive naquela parte da Ilha, que cai contra Malaca, é aquela geração a que eles chamam batas, os quais comem carne humana, gente mais agreste e guerreira de toda a terra. Os que habitam a parte contra o Sul, chamados sotumas, são mais conversáveis; e assi este gentio, como os mouros que vivem pelas fraldas da ilha que vezinham o mar, peró que uns dos outros difirem na língua própria, quási todos falam malaio de Malaca, por ser a mais comum daquelas partes. E assi estes como os de dentro do sertão da ilha, todos são baços, de cabelo corrido, bem dispostos e de bom aspecto, e não do parecer dos jaus, sendo tam vezinhos, que é muito pera notar em tam pequena distância variar-se tanto a natureza. E principalmente chamando-se per nome comum toda a gente desta ilha jaus, por se ter entre eles por causa mui certa serem já os jaus senhores desta grande ilha; e primeiro que os chins, teveram o comércio dela e da Índia. E com esta variedade tam notável no aspecto do rostro, parece ficar verificado o que dissemos desta gente da Jaua - não ser natural da terra que habitam, mas gente vinda das partes da China, por imitarem os chins no parecer e na polícia, e engenho de toda obra mecânica. Ante que conquistássemos a Índia, as armas destes habitadores da Samatra eram frechas de zarvatanas ervadas, como os mesmos jaus usam; mas depois que tomámos Malaca, com a continuação da nossa guerra se fizeram industriosos em pelejar, e em todo género de armas, até artelharia de ferro e bronze, principalmente com algua nossa, que houveram de naus e navios que ali foram ter, e com outros casos de má fortuna que ali tevemos, de que ao diante faremos relação. A terra das fraldas do marítimo desta grande ilha, ao tempo que nós entrámos na Índia, estava repartida em vinte-a-nove reinos; mas como nos mudámos todos aqueles estados orientais, favorecendo uns e supremindo a outros, segundo recebiam nossas cousas, destes vinte-a-nove que abaixo nomeamos, alguns estão já encorporados no vezinho mais poderoso. E começando da ponta da ilha mais ocidental e austral, e indo rodeando-a pela parte do Norte, o primeiro se chama Daia; e os que se seguem, assi como a costa vai, são: Lambri, Achém, Biar, Pedir, Lide, Piradá, Pacém, Bara, Daru, Arcate, Ircã, Rupate, Puri, Ciaca, Campar, Capocau, Andragueri, Jambi, Palimbão, Taná, Malaio, Sacampão, Tulumbavão, Andaloz, Piriamao, Tico, Barros, 234 Quichel e Mancopa, que vem cair sobre Lambri, que é vezinho de Daia, o primeiro que nomeámos. Dentro no sertão da Ilha, como é grande, há muitos príncipes e 120 120 senhores de que não temos notícia em particular, e por isso trataremos somente daqueles com que tevemos comércio ou guerra, cujo estado de alguns deles não tem mais que ua cidade, de que se intitulam por reis; e outros tem ao presente tanto poder, que nos tem custado sangue, como no discurso desta nossa história se verá. De todos estes reinos o de Pedir foi o maior e mais celebrado naquelas partes, e isto antes que Malaca fosse povoada. E a ele concorriam todalas naus que iam do Ponente e vinham do Levante, como a empório e feira onde se achavam todalas mercadorias, por este reino ser senhor daquele canal entre esta Ilha Samatra e a terra firme. Peró, depois que Malaca se fundou, e principalmente com nossa entrada na Índia, começou crescer o reino de Pacém e deminuir este de

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Pedir. E sendo o de Achém, seu vezinho, o somenos em poder, ao presente é o maior de todos, tanta variação tem os estados, de que os homens fazem tanta conta; e quem a este reino deu princípio de ser o que ora é, foi a chegada de Jorge de Brito, como logo veremos. O reino de Pacém, a que Jorge de Albuquerque ia a meter de posse o Príncipe que dissemos, tinha um novo costume, e tal, que não era pera alguém desejar ser rei dele, porque o povo não lhe dava muito tempo vida. E de quam mal afortunado era o herdeiro desta herança, que o povo dava a quem queria, tinha um bem que não se concedeu a todo homem - que era saber a hora da sua morte; e se não era a hora, era o dia, e, quando muito incerta, não saía da somana. Porque, como esta doudice ou fúria saltava no povo, todos andavam pelas ruas, quási em modo de cantiga: - Há de morrer a el-Rei - sem haver quem contrariasse esta voz, nem ela fazer nojo às orelhas de alguém, somente a el-Rei e a alguns seus privados, que, logo como ouviam cantar este canto de morte, recolhiam-se com ele, e às vezes juntamente pereciam. De maneira que, quando Fernão Peres de Andrade foi à China e esteve ali em Pacém fazendo carga de especearia, mataram dous reis, e não se fez mais conta disso, nem houve mais rebuliço e alvoroço na cidade, como se não fora morto um rei que os governava e levantado outro que elegiam pera os governar. E tem eles pera si que este seu costume (o qual aprovam por mui bom) que Deus o ordenou, dizendo que tam grande cousa como é um rei, que governa na terra em lugar de Deus, não ousaria alguém de o matar, se Deus o não permitisse; e que, quando o permitisse, é por ele ter tais pecados, que não merece ser rei, e quere que o seja o matador. E por esta causa, como este matador é da linhagem real, tanto que mata o rei e se assenta em sua cadeira e está nela um dia assentado pacificamente, é 120v 120v entre eles havido por legítimo rei. E às vezes há sobre este reinar 235 tanta revolta, que já aconteceu em um dia fazerem três reis, um per morte do outro. E sabendo o Príncipe, que Jorge de Albuquerque levava, este cruel costume, é tam doce cousa reinar, que não somente ele, que não tinha idade pera temer, mas outros de maior juízo, procuravam de haver este reino. E o caso que obrigou a este Príncipe ir à Índia pedir socorro nosso procedeu daqui: Atrás fica escrito como, indo Afonso de Albuquerque pera tomar Malaca, tomou na costa desta Ilha Samatra um junco, a que os nossos chamaram bravo, pelo grande trabalho que lhe deu primeiro que o tomassem, no qual junco ia um Príncipe herdeiro do reino Pacém, por se lhe levantar contra ele um seu tio, que era Governador dele; e como Afonso de Albuquerque, depois que soube sua fortuna, o levou consigo a Malaca, dando-lhe esperança de o restituir em seu reino, o que ele não quis esperar, e desapareceu ao tempo que Afonso de Albuquerque estava de partida pera a Índia. Este Príncipe, chamado Geinal, ou porque lhe pareceu que Afonso de Albuquerque o queria levar consigo à Índia, ou per qualquer outra cousa, quando lhe fugiu, foi-se a el-Rei que fora de Malaca, que naquele tempo andava tam desbaratado como ele. O qual Rei o foi entretendo com esperanças, que, como acabasse de assentar suas cousas, lhe daria ajuda pera cobrar seu reino. Sendo já passados seis ou sete anos nestas esperanças, no qual tempo el-Rei o casou com ua filha sua, tanto que se viu em Bintão com algum repouso por causa de alguas vitórias que houve em nosso dano, ordenou de o mandar com ua frota, porque também no mesmo reino de Pacém sucederam cousas pera isso, e foram estas: O tio de que este Príncipe Geinal fugia, segundo se depois soube, era irmão de sua mãe e rei de Aru, vezinho de Pacém, o qual se apoderou do reino e ficou senhor de ambos. Os pacéns, por terem por costume o que dissemos - que, como se anojavam de um rei, logo lhe procuravam a morte - como este era estrangeiro, não tardaram muito em lha dar, e levantaram outro natural, o qual também não tardou muito tempo. Porque, como já havia alguns arus em Pacém, que ficaram do rei passado, seu natural, trabalharam por lhe dar a morte, e assi o fizeram; e levantado outro em seu lugar, chegou o Príncipe Geinal poderosamente com o favor de seu sogro, e matou o que então reinava, cujo filho era o moço que Jorge de Albuquerque trazia. Do qual moço, que seria de até

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doze anos, lançou mão um mouro per nome Moulana, que naquelas partes entre os mouros era como o supremo Califa de sua seita, e este o trouxe à Índia pedir ajuda a Diogo Lopes. Fazendo 121 121 conta que, como Geinal pela ajuda que trouxe del-Rei de Bintão, tomara o reino de Pacém, que muito melhor o poderia haver aquele órfão, fazendo-se vassalo del-Rei de Portugal; e mais requerendo ajuda contra um imigo dos portugueses, assi por ser genro del-Rei de Bintão, como 236 polo que ele tinha feito a alguns portugueses que ali foram ter, depois que tomou o reino, pelo qual estava posto em ódio com eles. E o caso foi este: Ao tempo que este Geinal chegou a Pacém, estava ali feitorizando alguas cousas um Gaspar Machado, per mandado do capitão de Malaca, o qual Gaspar Machado, temendo que poderia receber algum mal, por ser genro del-Rei de Bintão, nosso imigo, escapuliu o mais encobertamente que pôde naquela revolta de sua chegada, e foi-se pera Malaca, leixando em terra muita fazenda. El-Rei Geinal, quando soube que estava ali aquele português e que fugira com temor seu, pesou-lhe muito; porque, ainda que entre ele e el-Rei de Bintão estava assentado que ambos haviam de fazer guerra a Malaca - e por este respeito lhe dera el-Rei sua filha e mais ajuda pera cobrar seu reino sua tenção era ao presente não ofender, mas favorecer nossas cousas, temendo que, se nos indinasse, não estava seguro em seu reino. Com o qual fundamento, como algum navio nosso per ali passava, fazia-lhe quanto gasalhado podia, de maneira que provocou a que Garcia de Sá, capitão de Malaca, mandasse lá Duarte Coelho assentar pazes com ele. E correndo o trato do comércio, entre os nossos e ele, em toda paz e concórdia, acertou de ir àquele seu porto um Diogo Vaz, homem de má cabeça e de pior consciência, que fez quebrar esta paz per esta maneira: Este Diogo Vaz fora com João Gomes às Ilhas de Maldiva por capitão de ua fusta (segundo atrás escrevemos), o qual, chegando às Ilhas, dizem que se fez esgarrado delas com tempo e correntes, e deu consigo na costa de Choromandel, onde tomou ua nau carregada de muita roupa, que ia pera Samatra e Malaca, não levando mais gente que a do mar, que mareava a nau. Morta a qual gente, meteu a fusta no fundo do mar, passando-se à nau, e deu consigo no porto de Pacém, onde foi bem recebido del-Rei Geinal, que já reinava. E porque, per costume de todos aqueles reinos, qualquer mercadoria que vem a seu porto, primeiro que venda, os oficiais del-Rei hão de tomar por os preços da terra a que el-Rei houver mister, tomaram a este Diogo Vaz a mais da mercadoria que levava pera el-Rei. O qual Geinal, com os trabalhos de assentar as cousas do reino, não estava ainda com tanta substância, que logo podesse pagar o que tomaram pera ele, ca primeiro havia de 121v 121v mandar vender na terra as cousas, pera da venda delas lhe pagar, e ele ficaria com ganho. No qual modo de paga houve algua detença, que Diogo Vaz mal sofria; e como homem alevantado e pouco paciente, muitas vezes requerendo seu pagamento a el-Rei, tinha-lhe dito alguas palavras tam soltas, que, anojados alguns homens aceitos a el-Rei, tornando ele outra vez requerer o seu com esta soltura de palavras, foi ali morto às crisadas, diante del-Rei. E com esta indinação alvoroçou-se a gente da cidade com voz: - Matá-los! matá-los! - em que morreram alguns portugueses, assi dos que foram com Diogo Vaz, como os de ua nau que i estava de Goa, do feitor Rui da Costa, de que era capitão um João de Borba. Porém, como 237 aquela morte foi mais acidente que ordenada, mortos os primeiros, que acharam pelas ruas da cidade, não curaram de ir à nau de João de Borba. O qual, posto que em terra tinha ainda muita fazenda por recolher, acolheu-se ante que mais fosse, com a qual nau ele chegou a Goa, onde foi noteficado por nosso amigo este Rei Geinal. Sobre o qual caso sucedeu vir o Príncipe, que levava Jorge de Albuquerque, pedir socorro contra ele, que lhe foi concedido, e fez sobre isso o que veremos neste seguinte capítulo.

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121v 121v 237 Capítulo II. Como Jorge de Albuquerque chegou ao reino de Pacém, onde pelejou com o tirano que o tinha, e o tomou com quanta gente consigo tinha em ua fortaleza, e depois meteu o Príncipe em posse dele. Despachado Jorge de Albuquerque em Cochi com a ordem que dissemos - que pois todolos capitães iam pera aquelas partes, e forçadamente haviam de tomar o porto de Pacém, pera se ali prover de suas mercadorias, todos fossem em sua conserva, tirando Jorge de Brito, que levava armada de oito velas pera Maluco -, quando veo ao seguir a bandeira de Jorge de Albuquerque, uns ficaram diante, outros atrás, e outros foram surgir em outro porto e não ao de Pacém. Peró quando chegou a ele, achou já surto Rafael Perestrelo na barra; e das seis velas que eram da sua conserva, esta foi diante, e somente o seguiu D. Afonso de Meneses, D. Sancho Hanriques, seu genro, que ia por Capitão-mor do Mar de Malaca, e assi Dinis Fernandes; e Rafael Catanho chegou depois que o feito do negócio a que foi era acabado. Achou mais com Rafael Perestrelo Manuel da Gama, que Garcia de Sá, 122 122 capitão de Malaca, ali mandara em ua caravela armada em favor de um junco, o qual o feitor del-Rei e alguns mercadores de Malaca mandavam com fazendas, pera com elas fazerem comutação de outras, como se entre eles usa. Achou também outro junco, de que era capitão um João Pereira, o qual fora ter ao porto de Arú fazer sua fazenda. E como o Rei daquele reino tinha guerra com os de Pacém pola morte do seu Rei, que (como escrevemos) era tio do Príncipe Geinal, que ora estava em posse do reino, concertou-se com ele que viesse per mar com algua gente sua, e ele iria per terra com toda a mais. A qual ida João Pereira aceitou, por saber o que este Geinal tinha feito aos portugueses que se acharam com Diogo Vaz. Donde sucedeu que este Rei de Aru, o dia ante que Jorge de Albuquerque chegasse, 238 era vindo; e quando soube da sua chegada à barra de Pacém, deteve-se até ver o que ele, Jorge de Albuquerque, faria, posto que logo entendeu o caso, por ter já nova que ao Príncipe órfão era concedida ajuda, e que podia ser esta. O que ele logo soube per meio de João Pereira, per quem mandou visitar Jorge de Albuquerque, dando-lhe conta da causa de sua vinda, e que estava ali com aquela gente junta a seu serviço, por ele ser grande servidor del-Rei de Portugal. E posto que o seu porto de Aru não fosse tam celebrado dos portugueses como era aquele de Pacém, sempre os capitães de Malaca dele receberam boas obras. Jorge de Albuquerque lhe mandou agradecimentos desta sua oferta, e denunciar como vinha meter de posse aquele Príncipe e lançar fora do reino a Geinal, que o tinha indevidamente, e mais era imigo dos portugueses; que se ele, Rei de Aru, vinha tomar vingança dele, ante de pouco tempo ele, Jorge de Albuquerque, esperava de lha dar, porquanto, se quisesse esperar, que o podia fazer. Ao qual recado respondeu que lhe pedia por mercê que, havendo o negócio de vir a determinar-se per armas, houvesse por bem que ele fosse com sua gente nisso; e por o trabalho que nisso posesse, não queria mais, por honra sua, que levarem os cavaleiros, que consigo trazia, o despojo que enjeitassem os seus dele, Jorge de Albuquerque. O que lhe ele concedeu, quando o caso estivesse nesses termos, e que entretanto ele se fosse pôr à vista da fortaleza onde estava o tirano, e que ali lhe mandaria dizer o que fizesse. El-Rei Geinal, quando sobre si viu um exército per terra e armada nossa per mar, e tudo contra si, bem entendeu que o fim daquele negócio havia de ser leixar ele o reino, ou perder a vida,

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se o quisesse defender, pois na terra e no mar tudo era contra ele, até o natural povo da cidade Pacém, por ter morto o Rei que eles tinham levantado. Porque, como eles tem em pouca conta matar um rei pelo modo que dissemos, 122v 122v assi tem em pouco morrerem todos por defenderem aquele que eles alevantam ou vingar sua morte. E se até então o não tinham feito, era porque Geinal, como sabia o costume deles, não se quis apousentar na cidade, que está obra de meia légua per um rio acima, que vem de dentro da terra, por não ficar sujeito a eles, e aos nossos navios que ali fossem ter. E fez pera seu apousento, à vista da mesma cidade, em um escampado, ua grande cerca de grossa madeira, ao modo de muro de vila, com ua cava em torno, ficando somente duas portas pera sua serventia. E dentro desta grande cerca fez outra mais forte como castelo, onde ele tinha suas casas da mesma madeira e canas da terra, segundo seu uso, nas quais tinha sua fazenda e mulheres. E a cerca de fora ficava em povoação de gente que tinha da sua guarda, da qual, ao tempo que Jorge de Albuquerque chegou, seria pouco mais de até três mil homens da mais escolhida gente e mais fiel que ele pôde haver. E ainda como homem não confiado deles, temendo que se sucedesse algua cousa, pera que lhe conviesse pôr-se em defensão, e que eles o podiam desemparar, fez-lhe recolher dentro 239 na grande cerca suas fazendas e parte das mulheres. Finalmente, ele estava como homem que determinava não sair dali senão perdendo a vida; e dessimulando esta sua determinação, em Jorge de Albuquerque lançando âncora, o mandou logo vesitar. As palavras da qual vesitação foram de homem que não se temia ter feito cousa, per onde esperasse dele, Jorge de Albuquerque, poder receber algum dano, dizendo que sua vinda fosse mui boa; e que, pois ia pera Malaca, onde tinha sabido que ele havia de estar por capitão, lhe pedia por mercê que quisesse dele algum serviço de mantimentos ou de qualquer cousa que houvesse mister; porque, pois haviam de ser vezinhos, que se começassem de prestar um com o outro. Ao que Jorge de Albuquerque respondeu que, ao presente, não havia mister dele mais que despejar aquele reino, pera meter de posse dele o Príncipe herdeiro que ali trazia consigo, o qual era feito vassalo del-Rei de Portugal, seu Senhor; e também mandar-lhe entregar a fazenda dos portugueses que ali ficou, assi dos mortos que os seus ali mataram, como dos vivos que fugiram com temor seu. E que, porquanto ele tinha pera fazer muitos negócios em Malaca e se não podia ali deter, que se determinasse logo, pera ele poer em execução o que naquele caso lhe mandava fazer o Governador da Índia. Geinal não ficou mui espantado desta reposta de Jorge de Albuquerque, porque bem sabia ele que esta havia ele de ter; porém, parecendo-lhe que per aqui podia sair fora daquela afronta, mandou-lhe outro recado per Nina Cunapão, o gentio nosso amigo que estava ali por xabandar, aquele que resgatou Gaspar 123 123 da Costa, António Pacheco e outros que escaparam em Achém (como atrás contámos). Per meio do qual Nina Cunapão, por causa desta amizade que tinha connosco, lhe parecia poder moderar a indinação que tinham dele; e a substância das palavras eram que ele não sabia que causa haveria pera aquele moço de tam pequena idade ser mais verdadeiro herdeiro do que ele era, como todo mundo sabia; que, se era por dizer que se fizera vassalo del-Rei de Portugal, ele o queria ser da maneira que bem parecesse, e que assaz mostrava desejar isto na paz e amizade em que estava com o capitão de Malaca, como podia saber per ele mesmo, Nina Cunapão, pois fora medeaneiro em alguas cousas que entre eles passaram por razão desta amizade e de outras que ele, Geinal, tinha feitas por servir a el-Rei de Portugal. Que fazenda de portugueses, ele não sabia de tal parte; que verdade era vir ali ter um homem de má cabeça e pior língua, o qual foi morto havendo razões com os seus; e a fazenda que ali trouxera, depois da sua morte soubera que a roubara ele de ua nau que 240

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vinha derigida a certos mercadores que resediam naquela cidade, aos quais a mandara entregar, depois que fizeram certo ser sua. E quanto a ele leixar o reino que fora de seu pai, isto não podia ser senão perdendo a vida, e esta tinha ele oferecido polo defender, quando as outras cousas que oferecia lhe não fossem a ele, Jorge de Albuquerque, aceitas. Finalmente, porque de ua, e de outra parte houve mais recados, sem Geinal vir à conclusão que Jorge de Albuquerque queria, conforme ao que trazia per regimento, havido conselho, sem embargo da pouca gente que com ele estava, que não seriam mais que trezentos homens, e os imigos três mil, Jorge de Albuquerque se determinou ir dar ua vista à fortaleza em seus batéis; e vista, se determinaria de todo, porque, como não tinha mui certa informação no lugar e sítio dela, não podia fazer outra cousa. Posto neste caminho, tanto que se pôs com sua gente junta ao pé de ua árvore já um pouco sobre a tarde, por se não poder dar maior aviamento, veo logo Nina Cunapão com recado de Geinal, pedindo-lhe por mercê que sobrestevesse um pouco da indinação que trazia contra ele, porque ele queria conceder no que mandava, e que pera isso estava em conselho com os seus no modo que seria melhor fazer-se. Tornado Cunapão com a reposta, veo e tornou outra vez, tudo por ele, Geinal, ter espaço de despejar as mulheres e se recolher pouco e pouco pera o mato, per outra porta que tinha naquela parte. E porque a reposta que lhe Jorge de Albuquerque mandava era mui apressada, e ele, Nina Cunapão, entendia que Geinal a não havia de comprir, e 123v 123v que depois ficaria em ódio de Jorge de Albuquerque, não quis tornar mais dentro, dando a entender que fizesse o que havia de fazer, porque Geinal estava em outro propósito. Finalmente, Jorge de Albuquerque, praticando assi em pé com os capitães e principais pessoas, assentou que, porquanto não traziam escadas nem cousa pera cometer aquela força, somente espadas, lanças e espingardas, deviam dormir com boa vegia aquela noite ao pé daquela árvore, e que entretanto veriam as munições das naus, e dariam combate pela menhã. A este tempo estava el-Rei de Aru à vista deste, Jorge de Albuquerque, esperando que lhe mandasse recado do que faria, entre os quais houve alguns recados, e na fim deles Jorge de Albuquerque lhe mandou dizer que estevesse prestes, e não cometesse entrar a fortaleza, senão depois que visse que os portugueses tinham feito portal pera isso. E porque na entrada dos seus podia haver algua desordem, lhe pedia que se mudasse dali pera a outra banda do mato, porque, como eles sabiam bem a terra, podiam seguir milhor o alcance dos imigos; ca (segundo via) não tinham outra acolheita, e mais que mandasse logo pôr aos seus um ramo verde na touca da cabeça pera diferença dos imigos, por não receberem algum mal dos portugueses, sem o qual sinal o poderam padecer. Enquanto se estes recados passavam, acertou que de dentro da cerca 241 dos mouros se tirou um ou dous tiros de ua espingarda, um dos quais veo quebrar ua perna a Francisco Quatrim, criado do Conde de Portalegre, D. João da Silva. Quando a nossa gente viu este dano, começaram de se queixar, dizendo contra Jorge de Albuquerque: - Senhor, que fazemos aqui? Quereis que nos matem a todos esta noite? Que aguardamos mais escadas? Não temos nós mãos? E com isto começou um rumor entre a gente, alvoroçando-se pera o combate. Vendo Jorge de Albuquerque este alvoroço ser a verdadeira conjunção que os negócios da guerra querem, por a não perder, disse contra os capitães: - Pois que nos Deus chama, sus, senhores, a eles! - e em dizendo isto, mandou dar às trombetas e disse: - Nome de Jesu, Santiago! Bem como quando ua presa de grossa água, cujo peso quere romper o empedimento que a detém, quando lho atalham ou tiram, sai com um ímpeto que ninguém pode esperar sua força; assi a nossa gente, dado Santiago, saiu em corrida tão impetuosamente, que nenhum parou senão com as

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mãos nos paus que faziam aquela cerca, trabalhando uns por subir per eles acima, outros por os arrincar, aluindo dous e três homens a um pau, outros fazendo vai-e-vem dos que achavam soltos, de maneira que todos estavam ocupados no em que trabalhavam, e 124 124 não no que lhe faziam, que era de dentro tirarem-lhe os mouros muitas frechadas, zargunchadas de arremesso, e todo género de armas, como que os podiam apartar. E como a gente do mar é mais destra e leve em trepar, por razão de seu ofício, o primeiro homem que trepou per aqueles paus acima foi um calafate da nau de Rafael Perestrelo, de alcunha Marquês, e o segundo Pestana, marinheiro, e trás estes um mulato, também homem do mar. Per outra parte, Dinis Fernandes de Melo, com a gente de seu navio, correndo ao longo daquela bastida de madeira, achou em um canto um pau abalado; e tanto aluíu com ajuda de outros, que entrou com aqueles que o seguiam, e veo per dentro ao longo da bastida demandar a porta da entrada dela pera abrir aos nossos; mas quando chegou, estava já aberta. Porque, como ali concorreu o maior peso da gente, por ser a entrada, e nela a maior defensão, trabalharam os nossos, que iam em companhia de Jorge de Albuquerque, por despejar aquele lugar, no qual lhes quis Nosso Senhor mostrar o princípio de sua vitória. Havia sobre este lugar da porta ua maneira de guarita assi ordenada, que podiam de cima vinte ou trinta homens, pelejando e lançando pedras e outros tiros, defender poer-se alguém de baixo pera arrombar a porta, no qual lugar foram alguns dos nossos, dos primeiros que se a ela chegaram, bem escalavrados. 242 Soltão Geinal, como este era o lugar em que ele tinha posto maior defensão, andava encima mandando e animando os seus, até que, por acerto, sem saber ser tam ilustre pessoa, somente pelo ver mais deligente naquela defensão, apontou nele Cide Cerveira ua espingarda que levava, com que logo veo abaixo, como se fora ua ave derribada do caçador, por lhe dar o pelouro no meio da testa. Com a morte do qual os seus desempararam a porta, e o primeiro que per ela entrou foi um Bertolameu Caiado, criado do Duque de Bragança D. James, e atrás ele entrou todo o corpo da nossa gente. Peró não foi muito avante, porque aquele grande terreiro de povoação de dentro estava coalhado de mouros, que como homens oferecidos à morte, por ser lugar mais despejado, começaram de ferir animosamente os nossos, com que conveo a Jorge de Albuquerque recolher em um corpo os seus. Porque com aquele primeiro ímpeto da entrada da porta, os que foram com ele, e outros que entraram per outra parte, começaram de se espalhar de maneira, que não enxergavam entre tanta multidão de mouros; e feitos em um corpo, deu outro Santiago onde se fazia ua maneira de rua larga, que ia dar na outra fortaleza. No qual rompimento começaram alguns dos 124v 124v nossos a cair mortos: os primeiros foram Cristóvão da Costa, criado da Rainha D. Lianor, e Afonso de Freitas, natural de Alcácer do Sal. E querendo Heitor Hanriques, de Santarém, como homem de ânimo, poer a lança na testa de um elefante, de dous que ali andavam pelejando, desviou o elefante a lança com a tromba, e apanhou-o com ela per entre as pernas, e lançou-o pera o ar como se fora ua laranja; e quis-lhe Deus bem, que, indo armado, caiu em lugar e de maneira que o não matou. A outro elefante cometeram também Domingos de Seixas e João do Vale, mas teveram outra indústria: que Domingos de Seixas pôs a lança em o negro que governa de cima o elefante, e o derribou, e João do Vale nele. O elefante, tanto que sentiu o ferro da lança em si, e não teve quem o governasse, com a dor da ferida e espanto das nossas espingardas, que tiravam como um trovão, tornou contra os seus, e foi derribando e trilhando neles. Andando a fúria da guerra em estado que os mouros começavam de ir apinhoando e recolhendo à outra cerca pequena que dissemos que tinham em lugar de fortaleza, quási como homens que esperavam de se recolher per detrás per ua porta que ela tinha pera o mato, acertou D.

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Afonso de Meneses com a gente da sua nau andar per de fora buscando entrada, porque não se achou no que se fez pela porta. Os mouros, quando sentiram que de fora queriam entrar com eles, parecendo-lhe que os tinham cercado de todo e que não tinham outra salvação senão o seu braço, pois detrás e diante tudo era ferro e morte, a pé quedo se leixavam atassalhar, e eles também respondiam com retorno. Finalmente, a esta entrada de D. Afonso per aquela parte onde el-Rei 243 de Aru tinha olho, por ser o lugar per que seus imigos se haviam de acolher ao mato, acudiu ele com toda a sua gente, a qual, como vinha folgada, acabaram de rematar o caso com morte de seus imigos, ficando aquelas duas cercas cobertas com mais de dous mil corpos mortos, de que somente na pequena passavam de setecentos estirados em terra, a mais fea causa que podia ser. E dos nossos, além dos nomeados, foram mortos Bertolameu Fernandes, criado do Duque de Bragança, e um grumete da nau de Jorge de Albuquerque, e feridos um grande número deles, de que os principais foram Jorge de Melo, Gaspar da Costa, Jorge Lobo, e Jorge de Albuquerque de duas frechadas, ua no rostro e outra no corpo. E porque a gente daquela terra usa muito de peçonha, mandou ele logo que lhe fossem chupadas, porque, se a levavam, que lhe não empedisse; e des i mandou um recado a el-Rei de Aru, que ele vira vingança de seu imigo, que lhe entregava aquela 125 125 fortaleza pera ao outro dia lha entregar, porquanto ele se recolhia às naus, por ser já tarde. Peró quando veo o dia seguinte, que Jorge de Albuquerque lhe mandou que a despejasse, andavam os arus tam encarniçados no despojo dela, que eram maus de sair; contudo el-Rei os tirou fora, e se mandou espedir de Jorge de Albuquerque com grandes oferecimentos de sua pessoa e estado. Acabado este feito de armas, entrou Jorge de Albuquerque em outro de posse ao Príncipe, mandando concertar um elefante com panos de seda, em que o menino foi posto; e com os principais mouros da cidade diante e nossos detrás, em que entravam muitos fidalgos, foi levado com esta pompa e muitas trombetas per toda a cidade, denunciando-o por Rei daquele reino, e que ele, Jorge de Albuquerque, em nome del-Rei D. Manuel de Portugal o metia de posse, e o havia por envestido nele, como cousa que ele tomara per justo título de armas daquele tirano que o possuía, e isto como obrigação de seu vassalo. Feita esta cerimónia de posse, de que ele, Jorge de Albuquerque, mandou fazer um auto, em que também dava por Governador dele ao mouro Moulana, e por seu Xabandar a Nina Cunapão, havendo respeito aos serviços e boas obras que tinha feito aos portugueses, e a ele já servir o mesmo cargo em vida do pai do novo Rei. No qual auto também se continha como el-Rei de Pacém recebia da mão dele, Jorge de Albuquerque, aquele reino, o qual ele ganhara per força de armas; e que ele, em nome del-Rei D. Manuel de Portugal, cujo capitão era, lho entregava com obrigação de vassalagem, e que pagaria de tributo todolos ordenados dos oficiais daquela fortaleza, que ali havia de fazer pera segurança do mesmo reino, e assi os soldos da gente de armas; e toda a pimenta que el-Rei houvesse mister pera a carga 244 das suas naus, ele, Rei de Pacém, lha daria, a rezão de dous cruzados o bahar, de quatro quintais cada um. E da madeira que estava na cerca que os nossos tomaram a Soltão Geinal, mandou Jorge de Albuquerque fazer ua fortaleza junto da barra do rio, no lugar mais conveniente, e esta enquanto se buscasse algum modo pera ser de pedra e cal, porquanto em tam breve tempo não se podia fazer mais. Pera guarda da qual leixou cem pessoas, e os oficiais eram António de Miranda de Azevedo, que ia já ordenado pera capitão, António Barreto, alcaide-mor, feitor Pero Cerveira, com seus escrivães, e os mais oficiais, como as outras fortalezas da Índia. Havendo poucos dias que Jorge de Albuquerque tinha havido esta vitória, chegou António de Brito com a frota de seu irmão Jorge de Brito bem desbaratada de gente, a qual com ele foi morta 125v 125v

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em o porto de Achém per um desestrado caso que lhe aconteceu no próprio dia da vitória dele, Jorge de Albuquerque, como se verá neste seguinte capítulo.

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125v 125v 244 Capítulo III. Como Jorge de Brito com sua armada foi ter ao reino Achém, onde ele e outros capitães com muita gente foram mortos em ua peleja que teveram com o rei da terra; e vindo seu irmão António de Brito ter com os navios a Pedir, onde os achou, tomou posse da capitania deles; e do mais que ele e Jorge de Albuquerque passaram té chegarem a Malaca, e aconteceu aos outros capitães que ficaram em Pacém. Jorge de Brito, porque se não pôde despachar tam brevemente como Jorge de Albuquerque, não saiu com ele de Cochi; e porém não tardou ir logo na sua esteira, levando seis velas, de que eram capitães Cristóvão Correa, Cristóvão Pinto, Francisco Godiz, Lourenço Godinho, Pero Fernandes e Gaspar Galo em ua fusta, e as outras velas eram navios redondos e latinos. Afora um navio, de que era capitão António de Brito, irmão dele, Jorge de Brito, que por não estar de todo aparelhado, não saiu naquele dia, e depois foi ter no porto da cidade Achém, na Ilha Samatra, onde foi herdar a capitania-mor de toda a armada, pelo que ali aconteceu a seu irmão, como se logo verá, na qual frota iriam passante de trezentos homens de armas, além da gente mareante. Com as quais cinco velas 245 ele, Jorge de Brito, chegou ao porto da cidade Achém, que está abaixo de Pacém obra de vinte léguas, contra o Sul. Na qual cidade achou um João de Borba, natural desta vila de que tinha o apelido, homem que sabia bem a língua arábia, e alguas daquelas partes, por a qual rezão era conhecido dos mouros dali, onde ele já fora quando fugiu de Pacém, por causa da morte de Diogo Vaz, como no capítulo atrás contámos. O qual, por rezão do proveito que achava naquelas partes, alguns oficiais del-Rei de Goa o tornaram armar com outra nau, que foi carregar de moxama a Mascate, que era mercadoria em que se ganhava muito em Samatra; peró a nau com um temporal que lhe deu no meio do golfão antre as Ilhas de Maldiva e aquela Ilha Samatra, abriu e se foi ao fundo. Da gente da qual quinze pessoas se salvaram no batel, e ele com nove em ua almadia; e eram os mares tam grossos, que não pôde ele haver o batel 126 126 à mão, e foi ter com toda esta gente a Pegu, os quais depois houve Rafael Perestrelo, estando em Bengala, per meio de um mouro que ali tratava, por nome Alé Aga. E ele, João de Borba, com as nove pessoas correu contra Samatra per espaço de nove dias, e foi ter naquele porto de Achém milagrosamente, porque em todo este tempo ele e as outras oito pessoas não comeram nem beberam, somente cada um tomava um grão de anfião tamanho como um grão de pimenta, o qual acertou de levar no seo um mouro que ali ia, por ser entre eles tam costumado o uso daquela mezinha, que não sabem andar sem ela, do qual anfião particularmente falamos em os livros do nosso Comércio. Chegado João de Borba a este porto de Achém, como era homem de bom saber e naturalmente locaz em qualquer das línguas que sabia, el-Rei da terra o recebeu em graça, principalmente sabendo que se perdera com ua nau de mercadoria, que vinha pera aquele seu porto. Este, tanto que Jorge de Brito chegou, logo o foi visitar à nau em companhia de uns messageiros, per os quais o el-Rei mandou visitar de sua boa chegada com algum refresco da terra, e deixou-se ficar, dando-lhe conta de sua fortuna e do estado da terra e de alguas cousas que alvoroçaram os nossos, e moveram a Jorge de Brito pera cometer o que fez. Ua das quais foi dizer-lhe que ali havia um templo dos gentios, no qual (segundo fama) havia muito ouro; e mais que aquele rei tinha

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tomado toda artelharia e fazenda da nau em que ali veo ter Gaspar da Costa, irmão de Afonso Lopes da Costa, capitão de Malaca, a qual se ali perdeu. E também tinha havido à sua mão a fazenda de um bargantim, que se perdeu junto de Daia, que era perto dali, no qual ia pera descobrir as Ilhas do Ouro Diogo Pacheco, e era capitão dele Francisco de Sequeira; e mais tinha tomado ua nau, que D. João de Lima mandara de mercadoria às Ilhas de Maldiva, e di havia de ir a Malaca; e andando em calmaria à vista deste porto Achém, saíram as lanchas del-Rei a ela, e a tomaram e mataram seis portugueses que nela iam, porque a mais gente era malabar. 246 Jorge de Brito, depois que se afirmou bem destas cousas e do estado del-Rei e força que tinha pera se defender, quis-se mais certificar delas per um Diogo Lopes, que levava consigo pera Maluco, onde ele estivera com Francisco Serrão, o qual também, vindo com Gaspar da Costa em a nau que se ali perdeu, fora cativo e resgatado com ele per Nina Cunapão, como ora escrevemos, do qual cativeiro sabia a língua da mesma terra, como João de Borba. E movido ele, Jorge de Brito, per estas duas línguas que o pecado 126v 126v lhe ofereceu e desviou de sua jornada, per o mesmo João de Borba, que estava na terra e era o mais linguaraz, mandou dizer a el-Rei como ia de caminho pera Malaca; e por o Governador da Índia ter sabido como ele recolhera toda a fazenda e artelharia que se ali perdera de ua nau e bargantim, lhe mandara que passasse per ali, e arrecadasse tudo dele, Rei, em cujo poder estava; e que lhe pedia que lhe mandasse entregar tudo. Ao que o Rei da terra respondeu que ele não sabia outro mais certo autor, em cujo poder estivessem aquelas cousas, que no fundo do mar, em que se a nau e bargantim perderam, segundo ouviu dizer; portanto com ele devia ter este requerimento. Que, havendo ele meter algua cousa daquele seu reino, que de mui boa vontade folgaria de a dar, como fazia aos portugueses que ali chegavam, de que ele, João de Borba, era testemunha em que estado ali veo ter, e como foi per ele agasalhado. Enquanto este e outros recados andaram entre el-Rei e Jorge de Brito, veo ali ter Rafael Catanho, que se apartara no mar com tempo da conserva de Jorge de Albuquerque, e quisera ficar ali com Jorge de Brito, o qual ele não consentiu; porque estavam já todos tam cheos da esperança do ouro daquele pagode, que lhe parecia que eram muitos pera a repartição, eles foram poucos salvos do perigo que lhe aconteceu. Ou quis Deus livrar a Rafael Catanho dele; porque, como era cavaleiro, per ventura ficara ali, como ficaram outros deste nome. E vendo que não queriam sua companhia, por não ser daquela conserva, foi correndo a costa caminho de Pacém, e no porto de Pedir achou Cristóvão de Mendoça, que ia ordenado ao descobrimento do ouro, tam incerto e perigoso, como era o do pagode; e ambos se partiram dali e foram ter com Jorge de Albuquerque, que estava ordenando a fortaleza de madeira que dissémos. Jorge de Brito, depois que aquele urdidor do pecado, João de Borba, andou tecendo com recados de ua e outra parte aquela tea de morte, já com indinação de quam pouca rezão fazia de si aquele bárbaro, determinou, per conselho de todolos capitães, entrar na cidade. E porque do pouso onde estavam as naus a ela haveria ua légua per um rio acima, ordenou de ir em os batéis, e assi na fusta, capitão Gaspar Galo, na qual embarcação podiam ir até duzentos homens. E por a fusta ser maior vasilha de todas, mandou que fosse nela quási todos os besteiros e espingardeiros, que seriam até sessenta, com algua artelharia, fazendo fundamento que, ao tempo da saída em terra, esta 247 fusta assi provida lhe podia servir em lugar de baluarte, que defendesse a ribeira, por lhe não ser empedida sua embarcação 127 127 em algum aperto em que se podia ver. Ordenada esta ida, partiu Jorge de Brito ante menhã; e sendo quási a meio caminho, achou

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ua povoação de poucas casas ao sob-pé de um teso que vinha beber na água, a qual quebrava em ua ribanceira alta de barreiras, onde estava feito ua força de madeira, ao modo de baluarte com alguns berços pera defender a passagem. Chegado Jorge de Brito já dia bem claro a este lugar, deteve-se um pouco esperando pola fusta de Gaspar Galo que não vinha, por vir mais carregada que os batéis, assi de gente como artelharia; e sobre tudo ventava o terrenho da terra, enfiado pela madre do rio, que lhe era ainda maior inconveniente. Estando assi quedos, pareceu aos do baluarte que sua detença era por temerem passar per diante dele, por ser tam perto que lhe podiam chegar com os berços que tinham; e por dar mostra de si e assombrar os nossos, fizeram alguns tiros. Vendo a gente que lhe tiravam, começou de se agastar, dizendo a Jorge de Brito pera que era mais esperar, porque não saíam em terra tomar aqueles tiros, ante que os matassem ali, sem fazer algua cousa? e mais que pera passar por diante, de força os haviam de tomar. Importunado Jorge de Brito da gente, e vendo que não aparecia Gaspar Galo, mandou a Lourenço Godinho com alguns besteiros e espingardeiros que ficaram nos batéis, que rodeasse o teso que a terra fazia, por ser ua encoberta per onde podia vir gente, que lhe tomasse a embarcação e lha segurasse. Dado este resguardo àquele lugar de suspeita, foi ele cometer o outro em que a tinham menos, onde acharam maior perigo; não tanto por culpa do lugar, quanto da leviandade de um dos que levava consigo, chamado João Serrão. Porque, tendo já entrado o baluarte levemente e lançado fora os mouros que estavam dentro, e tomados três ou quatro berços com que tiravam, estava Jorge de Brito determinado de se fazer ali forte, até que viesse Gaspar Galo e Lourenço Godinho, pera juntamente fazer seu caminho. E porque os mouros da povoação que estava ao sob-pé do baluarte, e assi dos que fugiram dele, tiravam de baixo, este João Serrão, a que os outros chamam Pero de Gião, ou, por lhe dar mais certo nome, homem que levava o aguião de Jorge de Brito na mão, e na cabeça os fumos do vinho em que se entregara aquela madrugada, por lhe dar coragem ao cometer, desatentadamente lança a correr pelo teso abaixo, e não parou senão entre os mouros, onde logo foi morto, e trás ele Aires Botelho, que o seguia. Ao correr dos quais acudiram outros, e travou-se ua peleja de maneira, por verem perder o aguião de Jorge de Brito, que lhe conveo a ele sair do baluarte com toda a outra gente. Na qual conjunção 127v 127v chegou el-Rei que vinha 248 com até oitocentos ou mil homens, e seis elefantes armados a seu modo. E a primeira cousa de que se quis ajudar dos nossos, foram uns búfalos bravos, que naquele lugar tinham encerrados; porque dando os nossos nele, achassem ali aquelas feras, de que podiam receber dano, como receberam, e assi dos elefantes que vieram trás eles. Um dos quais, querendo-lhe Gaspar Fernandes pôr o ferro da lança, ele com a tromba o lançou tam alto, que, quando caiu, por ir muito armado, embaçou de maneira que à mão tenente o mataram os mouros. Jorge de Brito, vendo o dano que lhe faziam estas feras, a grã pressa mandou per um page seu chamar Lourenço Godinho, que acudisse com os besteiros e espingardeiros e o desabafasse deles, porque com a gente bem se haveria; e espedido este recado, veo-se retraendo contra o baluarte, onde esperava de se fazer forte. Porém, era já tanto mouro sobre eles com zargunchos, frechas e paus tostados de arremesso, que não havia couraça ou adarga que não passassem, com que derribaram ali alguns dos nossos. Por acudir aos quais trespassaram com ua azagaia de arremesso as queixadas a ele, Jorge de Brito; e vendo alguns dos capitães que o acompanhavam naquele estado, começaram de o obrigar a que se recolhessem, pois não vinha Lourenço Godinho nem Gaspar Galo. Ao que ele respondeu, como cavaleiro que era, já mal pronunciando a palavra: - Pera que é vida sem honra? adiante, senhores, que nos tais trabalhos acode Deus! Mas não tardou muito que sobre esta ferida veo um daqueles paus tostados, que lhe

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atravessou as pernas, com que caiu, e ali acabaram de o matar. E como aqui foi o maior conflito dos nossos, ficaram naquele lugar mortos com Jorge de Brito, Cristóvão Correa, Cristóvão Pinto, João Pereira, Francisco Godiz e outros em que entravam quatro ou cinco músicos, que por ser cousa nova aquela jornada de Jorge de Brito, e ele ser dado a isso, folgou de os levar. Entre os quais era um chamado Gomes, moço da Capela del-Rei D. Manuel, que não se podia bem determinar qual era o maior estremo dele: a voz e a suavidade e modo do seu cantar, ou os vícios a que era inclinado. Ouvindo Luís Raposo e Pero Veloso, ambos criados del-Rei, os quais foram da criação de Jorge de Brito, como ele ficava entre os mouros, começaram bradar: - Volta, volta, senhores! acudi ao vosso Capitão! Mas todos estes seus brados não aproveitaram pera mais que pera ambos se irem oferecer em sacrifício, por acudir àquele de que tinham recebido criação, cuidando de o achar vivo. Finalmente, eles houveram de perecer ali todos, senão sobrevieram Lourenço Godinho e Gaspar Galo, que com os besteiros 128 128 e espingardeiros que fizeram praça, se poderam embarcar as relíquias que ficavam de obra de cento e vinte homens, que eram com Jorge de 249 Brito; porque os mais, que fazia o número de duzentos, com que ele partiu das naus, andavam com estes dous capitães; e naquele bárbaro e estranho lugar ficaram mais de cinquenta homens fidalgos e cavaleiros da mais nobre e limpa gente que ia naquela armada, afora outros que foram no conto dos feridos, que faleceram depois. Recolhidos aos navios, não teveram mais certo conselho, que fazer-se à vela ao longo da costa com fundamento de acharem Jorge de Albuquerque em Pacém, onde sabiam que havia de ir com o Príncipe que levava. E sendo tanto avante como o porto de Pedir, acharam Rafael Catanho e Cristóvão de Mendoça com os três navios do seu descobrimento pera as Ilhas do Ouro. O qual, quando viu aquela armada assi desbaratada e sem capitão, quisera lançar mão dela; peró, como ainda ali iam alguns homens fidalgos e de conta, o não consentiram, esperando que viesse António de Brito, irmão de Jorge de Brito, que (como dissémos) ficara consertando o navio; com a vinda do qual cessou tudo. Porque, entregando-se dos papéis que seu irmão levava, foi achada ua provisão del-Rei D. Manuel, em que havia por bem que ele sucedesse naquela capitania, falecendo seu irmão. O qual a primeira cousa em que entendeu, tanto que teve posse dela, foi prover as capitanias e ofícios em lugar dos que faleceram. De Capitão-mor do Mar, que ele havia de servir, proveu a Simão de Abreu; e a Pero Botelho, irmão de Lourenço Godinho, e a Francisco de Brito, de capitães de dous navios; e de feitor a Rui Gago, e de almoxarife, a Gaspar Rodrigues, e a outros de outras cousas, que vagaram por morte de outros. Partidos estes capitães, foram a Pacém, onde acharam Jorge de Albuquerque, que tinha já provido destes mesmos cargos a outras pessoas, e de capitão, em lugar de Jorge de Brito, a D. Sancho, por ter alvará del-Rei D. Manuel, que todolos ofícios que vagassem em Malaca e naquelas partes, em que ele tinha jurdição, havia por bem que os provesse até vir pessoa que ele mandasse que o servisse. E peró que houve razões de ua parte e outra como se haviam de entender estas duas provisões - a sua e a de António de Brito - todavia António de Brito ficou com a sua capitania. E porque tinha alguas cousas de que se havia de aperceber em Malaca, pera fazer sua viagem, foi-se deante de Jorge de Albuquerque, por ele ainda ter que prover naquela fortaleza de Pacém, o qual não tardou muitos dias que não foi trás ele. Porque, como o acabamento da fortaleza havia mister muito tempo, e Rafael Catanho, Rafael Perestrelo e Cristóvão 128v 128v de Mendoça ali se haviam de prover e carregar de pimenta e de outras cousas pera fazerem suas

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viagens, e também o tempo não era da moução pera onde cada um havia de ir, principalmente a de Cristóvão de Mendoça, que era já passada, mandou a todos que ficassem ali em ajuda e favor daquela fortaleza, enquanto ela não estava em estado pera se poder defender. Finalmente, acabadas estas cousas, ele se partiu pera Malaca, onde 250 chegou a salvamento, e achou António de Brito e Garcia de Sá, que lhe entregou a capitania. E verdadeiramente se estes capitães não ficaram em favor daquela fortaleza de Pacém, ela não durara em pé muitos dias; e per ventura fora melhor naquele tempo, que durar até outro, que a fez mais custosa e com muito dano nosso. Porque, tanto que Jorge de Albuquerque se partiu, Melique-Ladil, um mouro que dezia pertencer-lhe aquele reino de Pacém, per um rio que vem cortando dentro pelo sertão, té se meter no que vem dar na cidade, vinha com lancharas (que são os navios de remo que naquelas partes de Malaca se mais usa) e dava muitos saltos nela, com que a gente recebia muita opressão. E, o que pior era, que lhe não leixava vir os mantimentos que per aquele rio abaixo soíam vir, de que se ela mantinha; e não se contentando com este dano que fazia, por andar mui poderoso com treze lancharas e cevado nos saltos que fazia a seu salvo, atreveu vir à nossa fortaleza dar rebates de noite, até lhe vir pôr fogo, e acolhia-se logo a um estreito que tomava por acolheita. Os capitães, vendo esta sua ousadia, fizeram-se prestes, e foram trás ele; o qual, depois que começou a sentir o seu ferro, largou as lancharas, metendo-se pelo mato, com que ficou de todo desbaratado, trazendo os capitães todalas lancharas pera serviço da fortaleza, a qual, depois que foi posta em estado que bem se podia defender, Cristóvão de Mendoça e Dinis Fernandes foram-se pera Malaca. E Pero Lourenço de Melo, que ali depois também veo ter, foi-se perder nas ilhas que chamam de Andramu, a gente das quais come carne humana, indo ele pera Bengala carregado de pimenta, que tomou ali em Pacém. E o mesmo risco de se perder correu Rafael Perestrelo, indo também pera Bengala, onde chegou; e do que ali fez, ao diante daremos razão.

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128v 128v 250 Capítulo IV. Como Jorge de Albuquerque foi à Ilha de Bintão pera destruir a povoação que el-Rei nela tinha, e o que lhe sucedeu nesta ida, no fim da qual António de Brito se partiu pera Maluco. 129 129 Jorge de Albuquerque, tanto que foi entregue da fortaleza de Malaca, quis logo entender nas cousas del-Rei de Bintão, o qual (segundo lhe disseram) estava mui próspero na Ilha Bintão, e dali mandava com suas lancharas correr a Malaca, e não leixava vir pelo Estreito de Cingapura navio algum, com que tinha a cidade posta em necessidade de todalas cousas. Ao que Garcia de Sá não podia acudir por estar mui desfalecido de 251 gente, e algua que tinha, não a queria aventurar, ca podia com isso pôr-se em estado que perdesse a fortaleza; tam pouca era a gente que nela havia. E posto este caso em conselho dos capitães que ali estavam, vista a necessidade em que a cidade estava posta, e quam poderoso el-Rei de Bintão se ia fazendo com fazer arribar quantos juncos vinham per o Estreito de Cingapura, por ele estar na garganta dele, e quanta e boa gente então ali estava, assi da armada de António de Brito, como dos outros capitães, que per ventura passariam muitos anos em que não houvesse outra tal conjunção, acordaram de o fazer polo muito que este negócio importava ao estado daquela cidade. E porque António de Brito, que havia de ir pera Maluco, não fosse e tornasse outra vez a Malaca, ordenou ele com Jorge de Albuquerque que esta ida a Bintão fosse indo ele já de caminho, ca não faria mais que chegar a Bintão com ele, e di se despedir. Porque chegara António de Brito em conjunção a Malaca, que tanto importava a sua ida ser logo, como aquele negócio de Bintão. A qual conjunção era haver pouco tempo que era partido de Malaca um mouro per nome Cachilato, parente del-Rei Boleife, de Ternate, das Ilhas de Maluco, enviado per ele, Rei, ao capitão de Malaca em um junco que pera isso armou, em companhia do qual (segundo ele contou) partira também outro junco, em que vinha por capitão Francisco Serrão, que Afonso de Albuquerque, quando tomou aquela cidade Malaca (segundo escrevemos) mandou com António de Abreu, e havia anos que lá estava. E por as cousas que disse a el-Rei e outras que depois sucederam, assi da nossa como da sua parte, desejava ele, Boleife, que el-Rei D. Manuel mandasse lá fazer ua fortaleza. E quando viu que com cartas que per vezes ele e Francisco Serrão tinham escrito aos capitães de Malaca e Governadores da Índia, por juncos que lá iam carregar de cravo, não eram respondidos, determinou el-Rei, como homem prudente que era, mandar o mesmo Francisco Serrão em um junco, e 129v 129v este Cachilato, seu parente, em outro; porque, acontecendo algua fortuna a um, que o outro podia vir a Malaca; e assi foi (como se depois soube) que o de Francisco Serrão tornou arribar a Malaca. Ao qual Cachilato Garcia de Sá fez muita honra e deu muitas dádivas pera ele e pessoa del-Rei, respondendo que as cartas que lhe dera pera el-Rei D. Manuel e seu Governador da Índia, ele as enviara. E polo que ele, Garcia de Sá, sentia del-Rei e do seu Governador, pelas cartas que lhe escreviam da maneira que ele, Garcia de Sá, se havia de haver com as cousas de Maluco, a ele lhe parecia que não tardaria muito mandarem um capitão pera fazer a fortaleza, que el-Rei Boleife tanto desejava. Sobre o qual negócio o ano passado era partido pera lá um capitão per nome Dom Tristão de Meneses, o qual, se os tempos o não contrariaram, ele estaria já com el-rei Boleife, ou seria de lá partido. Partido este Cachilato mui contente de Garcia de Sá, chegou o mesmo D. Tristão, que lhe

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ele dizia, o qual vinha muito mais contente del-Rei Boleife e de as cousas daquelas partes 252 estarem postas no que el-Rei D. Manuel quisesse ordenar daquele Rei Boleife e de todo seu estado. Peró este contentamento não o trazia ele de si, porque, como era cavaleiro e de muito primor nas cousas da honra por o que lá passou, que não foi por defeito de sua pessoa, mas desastre, gerou-se-lhe ua postema (segundo dizem) desta paixão, de que morreu de sua chegada a Malaca a poucos dias; da viagem e sucedimento do qual, por pertencer às cousas de Maluco, daremos adiante razão. Com esta pressa que el-Rei Boleife dava a que os nossos lá fossem, e cousas que António de Brito e os de sua armada ouviam das riquezas e variedade daquelas tantas mil ilhas que havia naquele Oriente, era tamanho o alvoroço neles de se partir, por chegar aonde eram chamados, que o mesmo António de Brito era o que mais apressava que fossem ao feito de Bintão, por fazer esta sua viagem. Do qual lugar de Bintão, que é ua ilha, será necessário darmos primeiro notícia do sítio dela e povoação que el-Rei ali fez, e quanto importava ser totalmente destruída. El-Rei que foi de Malaca (como temos escrito) andou de ua a outra parte buscando sítio de sua habitação o melhor e mais seguro, e também proveitoso para nos fazer a guerra, como fazia. E destruída a que fez em o Pago per António Correa, não achou outro mais conveniente que a Ilha Bintão, ainda que um pouco longe de Malaca, porque distava dela per espaço de quorenta léguas. Porque (como atrás é escrito) a navegação de todo aquele Oriente pera vir a Malaca 130 130 é per dous canais, a que chamamos estreitos, que se fazem entre a terra da costa Malaca e a Ilha Samatra: um corre ao longo desta ilha, que se chama de Sabão, e o outro ao longo da costa de Malaca, chamado de Cingapura, por rezão da cidade que ali esteve antigamente, onde se fazia o comércio de Malaca, como atrás escrevemos. E o que faz estes dous estreitos em tanta largura como há da terra firme a Samatra, que poderão ser vinte léguas, é meterem-se no meio deste espaço tantas ilhas, baixos e restingas, que não se pode navegar per ali, e ficam ao longo destas duas costas que dizemos dous canais, per onde a força da água entrou mais liberalmente, per os quais se comunicam e navegam todalas mercadorias daquele Oriente do Mar da China e do Ponente do Mar da Índia. Per o canal chamado de Sabão navegam todalas que vão e vem pera a Jaua, Banda, Maluco e a todas aquelas ilhas a elas adjacentes, que jazem da Linha Equinocial pera o Sul; e pelo da banda de cima, chamado de Cingapura, navegam da linha contra o Norte, em que entram Ilhas de Japão, Léquios, Luções e outras mil ilhas com todos os reinos da costa da China até a ponta de Ugentana; e este em partes é tam estreito, que vão as entenas das velas roçando com o arvoredo da serra. Finalmente, per estes dous canais se navegam as partes orientais além de Malaca, na entrada de um dos quais, que é o de Cingapura, el-Rei, que foi dela, por lhe tirar todo o comércio daquelas partes, se foi apousentar 253 junto em ua ilha chamada Bintão, onde naquele tempo era intitulado rei. A qual ilha da entrada deste canal estará pouco mais de seis léguas, cuja forma é como quando a Lua tem a terça parte chea do Sol. E porque os mouros naquela língua malaia chamam à figura da Lua, quando assi esta, bintão, houve a ilha este nome. O circuito dela será pouco mais de trinta léguas; e per meio daquela angra ou enseada que tem, corre um rio de água doce, per que a maré entra um bom pedaço por a ilha per as fraldas ser baixa e alagadiça e no meio montuosa e per toda chea de muito arvoredo. Cortada esta ilha em duas partes com este rio, ao modo de Malaca, em ua onde a terra era mais fragosa per dentro e alagadiça na entrada, ali junto ao rio que a cortava, fez ua povoação grande, onde se apousentou. Atravessando o rio com ua ponte de mui grossa e forte madeira de pau, a que os nossos chamam ferro, por ser mui durável, que per nome próprio é chamado barbusano, e no fim da ponte da outra banda despovoada um baluarte do mesmo pau entulhado de terra, de

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maneira que ficava todo maciço, onde pôs grande número de artelharia. E leixando a madre per onde corria 130v 130v o rio, porque quando a maré era vazia ficava tudo ua vasa descoberta, por que não se podia sair em terra senão de maré chea, toda aquela parte que ficava em vasa, começando da ponte até a barra onde o rio entrava no mar, que era um grande espaço, de ua banda e da outra mandou meter estacadas de madeira de nove ordens, que ocupavam toda a vasa descoberta. E na foz do rio mandou lançar muita pedra solta, por a fazer mui estreita, e per ele acima meter outra estacada à força de maço, assi fortes e compridos, que parecia nascerem ali. Os quais iam metidos per tal ordem, que ficava a serventia da cidade per um canal tam estreito e retorcido, que parecia ua cobra ferida, de maneira que subir um navio per ele até chegar à ponte com boa paz era com muito trabalho. Estava mais a cidade cercada de madeira per dentro boa altura, toda em panos à semelhança de dentes de serra, que uns defendiam os outros, com a artelharia neles posta; pois querer ir à cidade per outra parte era impossível, por a ilha em torno ser alagadiça, e tam coberta de arvoredo, que per dentro não se andava senão per uas certas veredas. Finalmente, assi per sítio como per arte, aquela cidade estava tam defensável, que qualquer homem que a notasse bem, o faria duvidoso de se poder cometer, quanto mais entrar. Jorge de Albuquerque, peró que soubesse muita parte destas cousas per alguas pessoas que o informaram, não era assi particularmente como o caso requeria. Contudo, porque a estacada que ia posta per meio da madre 254 do rio havia de ser o maior empedimento pera chegar à ponte, mandou ante de sua partida três navios mui bem artelhados e providos pera isso, que lhe fossem pouco e pouco tirando aquelas estacas, pera que, quando ele chegasse com toda a frota, achar o canal despejado, e ir logo avante com um dos navios mais altos dos castelos a se iguar com a ponte. Dos quais navios eram capitães D. Rodrigo da Silva, João Fogaça e Hanrique Leme; e chegados à barra do rio, começaram sua obra, arrincando as estacas pequenas a gaviete com um batel, e as maiores ao cabrestante do navio de Hanrique Leme. Ao qual passaram muita parte da gente dos outros, por o muito trabalho que nele havia de haver, e se revezarem a ele, ordenado logo com suas arrombadas, que também havia de fazer emparo ao batel. A qual obra lhe foi mais trabalhosa e perigosa do que lhe pareceu no princípio; porque, como foram per dentro do canal, começaram receber muitas bombardadas de alguns lugares, onde os mouros vieram pôr sua artelharia pera lhe impedir o que faziam, com que mataram dous ou três homens, e feriram muitos com as rachas do navio, que a artelharia 131 131 quebrava. Havendo já seis dias que continuavam esta obra, assi de noite como de dia, estando ua noite o navio amarrado a quatro estacas, por serem águas vivas, foi tamanha a força da água quando vasava, que quebraram as estacas e amarras. Com que o navio foi dar a través sobre ua fossa alcantilada, que quando a maré acabou de vasar, ficou enforcado, sem os nossos entenderem o perigo em que estavam, senão quando sentiram outro maior já no quarto da alva - que eram muitas lancharas, que demandam pouca água, que começaram querer entrar. E quando se viram cercados e o navio posto de maneira que não se podiam ter em pé, sem estar apegados, e eles neste tempo haviam mister quatro mãos, houve ali alguns que cometeram querer-se recolher ao batel que tinham a um costado do navio. Porém, como o perigo era comum, em que se tratava da vida de todos, e não se podiam recolher sem leixarem a artelharia e a honra com ela, e ainda o não podiam fazer a seu salvo, por quam rodeados estavam dos mouros, não acharam melhor remédio que subir-se aos

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castelos da popa dele, donde, como de baluarte, começaram defender que não entrassem os mouros dentro; até que, em amanhecendo, viram os outros navios seu perigo e acudiram-lhe, recolhendo a gente e artelharia sem os imigos ousarem de os cometer, porque acertou a esta hora de aparecer Jorge de Albuquerque, que subia pera cima da barra, onde tomara o pouso, com temor do qual se recolheram. Na qual frota vinham estes capitães: Jorge de Albuquerque, D. Sancho e D. Garcia Hanriques, seus cunhados, e Jerónimo de Albuquerque, seu filho; D. Afonso de Meneses, Garcia de Sá, D. Estêvão de Crastro, Manuel Pacheco, Hanrique de Figueiredo, 255 Jorge Botelho. E das outras era António de Brito e os que iam com ele pera Maluco, cujos nomes já dissémos. Em que haveria, com a gente que já ali estava dos três navios, até seiscentos homens, muita parte dos quais eram fidalgos cavaleiros e criados del-Rei com outra gente limpa. Visto o lugar e a deficuldade de sua entrada, e o dano que os primeiros navios tinham recebido, e quam pouco era feito no tirar das estacas, pera o que se ainda havia de fazer, com parecer dos capitães, assentou Jorge de Albuquerque mudar o propósito que trazia acerca de cometer aquele feito, que era ir com os navios acima até abarbar na ponte, pois o sítio e deficuldades do lugar não dava de si tanta esperança, quanta Manuel Pacheco lhe deu, e per cuja informação cometera aquele negócio do modo que vinha. Todavia, porque ele, Manuel Pacheco, dizia que andara já per ali em outro tempo de armada e sabia as entradas daquele lugar, aceitou Jorge de Albuquerque 131v 131v levá-lo por guia per entre um arvoredo de mangues, que nasciam na vasa, e di haviam de ir sair diante da fortaleza. E per outra parte em batéis iriam demandar abaixo um pouco do baluarte pera cometer este combate per dous lugares: a dianteira de um dos quais Jorge de Albuquerque deu a António de Brito, que era o da parte da cidade, e o da ponte, a Garcia de Sá, e ele iria com o corpo da outra gente pera acudir onde mais necessário fosse. Posta em obra esta saída, foi ela tal principalmente per onde guiou Manuel Pacheco, por tudo ser vasa, que dava pela coixa aos homens que, quando chegaram a um canto da fortaleza per onde quiseram entrar, tanto dano lhe fazia a vasa que levavam em si pera cometer, como pera se reguardar da artilharia, porque andavam tam pegados, que não se podiam revolver. Contudo, depois que os homens começaram de se esquentar em fúria, houve alguns que começaram a trepar pela tranqueira acima; mas foram logo derribados, porque tudo eram pelouros de artelharia, espingardas, setas, zargunchos, e de tudo tanto, que o ar andava coalhado destas cousas. Com as quais logo ali ficaram mortos quinze homens, de que os principais eram: D. Estêvão de Crastro, Fernão da Gama; e Jorge de Melo também ficou de maneira que di a poucos dias morreu; e feridos D. Rodrigo da Silva, Hanrique Leme, Jorge Botelho e outros muitos. Garcia de Sá, na outra parte do baluarte onde chegou, também foi recebido com outra tal nuvem de tiros; e aperfiou tanto por subir ao baluarte per cima dos paus, que, querendo-se ajudar de dous homens seus, que o tomassem às costas, houve duas lançadas, ua no rostro, pequena, e outra per ua perna, que o derribou abaixo, e assi foram feridos outros, que o seguiam. Finalmente, em toda parte tinham os nossos tanto que fazer, sem terem algum artefício de escadas, machados ou outra cousa de que se podessem ajudar, que vendo Jorge de Albuquerque quanto dano recebia, e quam pouco podia fazer à míngua destas cousas, se recolheu com parecer dos outros capitães. E em dous dias que esteveram no porto, teveram conselho, no qual se 256 assentou tornarem-se pera Malaca, visto quanto mais lhe ali servia o artefício de escadas, machados e de outras cousas desta calidade, que o seu ânimo. Porque este como era de pessoas nobres, que desejavam honra, matavam neles como em homens decepados, sem poder chegar aos imigos, por estarem debaixo, e eles em cima. E esperarem ali, até que fossem a Malaca buscar alguas destas cousas, era dar mais ânimo aos mouros - deterem-se tantos dias sem os cometer; e mais convinha que António de Brito se partisse fazer sua viagem, que começava

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132 132 tardar por rezão da moução, e também por causa das novas que achou em Malaca. Assi que, havendo respeito a estas cousas, Jorge de Albuquerque se tornou, não com tanta vitória como a de Pacém; no cometer da qual, esperando também por escadas e machados pera cortar aquela tranqueira, que era os mouros que lhe defendiam aquela entrada, pelo caso que contámos, Deus o chamou pera lhe dar aquela vitória. E quanto pela parte do seu ânimo, onde quer que se ele achara, a houvera de levar, porque ele era muito cavaleiro; e peró como virtuoso e confiado no que lhe os homens diziam, não era muito previsto nas cautelas e casos da guerra. E daqui procedeu não levar este feito avante, porque fiou-se no que lhe Manuel da Gama disse de quam fácil era a entrada do rio, e assi a defensão da madeira da fortaleza e baluarte, que sem escadas podia um homem subir per ela. E posto que nosso ofício não seja condenar ou assolver estes feitos, apontamos as cousas deles pera doutrina das que estão por vir, por este ser o fructo da História - em os negócios presentes sempre os aplicar aos casos passados daquele género de que ela faz menção. Chegado Jorge de Albuquerque ao Cabo de Cingapura, pera dali espedir António de Brito, vinha Jorge de Melo tal das suas feridas, que ali ficou sepultado; e António de Brito proveu da capitania do seu navio a António de Melo, seu irmão, e assi proveu outras pessoas de cargos per morte de alguns homens que morreram naquele cometimento. E, leixando Jorge de Albuquerque, que dali se foi pera Malaca, onde chegou a salvamento, continuaremos com António de Brito, que fez sua viagem caminho das Ilhas de Maluco, dando primeiro neste seguinte Capítulo ua geral notícia delas, pera entendimento da história.

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132 132 257 Capítulo V. Em que se descrevem as ilhas chamadas Maluco, e se dá notícia de alguas cousas delas. Toda aquela parte do Oriente, que jaz além da Ilha per nós chamada Samatra, e os antigos geógrafos Áurea Quersoneso, não foi sabida per eles. E peró que assi seja, e Ptolomeu o confesse na descrição de suas Távoas, todavia ele faz a todo aquele Oriente ua testa de terra contínua, e vem descendo com ela até nove graus da parte do Sul. Com a qual testa se aparta da Ilha Samatra contra o Oriente per espaço de dous graus e meio, em que cerra e acaba o número dos cento e 132v 132v oitenta graus da quarta parte do Mundo, pouco mais que em seu tempo era sabido; e naquele canto onde fecha esta longura e largura, situa ua cidade chamada Caltigara, que parece mais pera o termo desta sua computação, como ponto celeste imaginado, que por ser assi. E ainda pera mais testemunhar este ponto por verdadeiro, per toda esta testa vai situando outras cidades e deliniando rios, nomeando enseadas e promontórios, como se ali houvera algua cousa destas. Parece que assi desta parte como de outras muitas, por o Mundo naquele tempo não ser mui cursado e navegável, ele foi mal informado, com que caiu nos erros que suas Távoas tem, como nós ao presente, tendo tanto navegado e descoberto, também per bocas alheas vimos a cair em outros tais. Porém, quanto a este, sabemos per nossas navegações ser mar e terra retalhada em muitas mil ilhas, que juntamente ele e elas contém em si grande parte da redondeza da terra, do que ante de nossos tempos era sabida; e no meio deste grande número de ilhas estão as chamadas Maluco, de que queremos dar notícia por causa da nossa História. Por isso, leixando a divisão geral deste Oriente repartido em duas partes - Boreal e Austral - por causa da Linha Equinocial, rematando tudo no meridiano lançado entre Portugal e e Castela por razão de suas conquistas (como fazemos em a nossa Geografia), quanto a estas Ilhas do Maluco, o seu sítio é debaixo da Linha Equinocial. Per o qual paralelo distam contra o Oriente da nossa cidade Malaca, pola navegação dos nossos, espaço de trezentas léguas, pouco mais ou menos, e não per situação geográfica de eclipses e outras observações de conjunção e oposição de outros planetas com o Sol e com a Lua, que pera vereficação das nossas Távoas temos sabido. Estas cinco ilhas jazem ua ante outra pelo rumo de Norte-Sul, ao 258 longo de outra ilha grande; o comprimento da qual per este mesmo rumo será até sessenta léguas, e isto pela costa desta grande ilha, que está da parte do Ponente, a qual eles chamam Batochina do Moro. E de quam dereita ela corre com esta face do Ponente, tam curva e escachada é do Levante, lançando três braços, um na cabeça que tem contra o Norte, o qual corre ao Nordeste, e dous no meio, que correm direito a Oriente, e isto segundo a pintam nas cartas de navegar, com a qual figura quere parecer um troço de pau liso, per ua face, e três esgalhos, pela outra. As outras cinco, chamadas Maluco, que jazem ao longo desta, todas estão ua à vista da outra per distância de vinte-a-cinco léguas. E não dizemos serem cinco, porque naquele contorno da Batochina, e entre elas não há já i outras, nem menos lhe chamamos Maluco, por não 133 133 terem outro nome; mas dizemos serem cinco, porque naturalmente nestas há o cravo, e em três há rei próprio de cada ua. E também juntamente todas se chamam Maluco, como cá dizemos entre nós Canárias, Terceiras, Cabo-Verde, havendo debaixo deste nome muitas ilhas, que tem o seu próprio.

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E o de cada ua destas, começando da parte do Norte, vindo pera o Sul, o da primeira é Ternate, que se aparta meio grau da Linha Equinocial, e a segunda, se chama Tidore, e as seguintes Moutel, Maquiém e Bachão. As quais antigamente per nome do gentio natural da terra se chamavam Gape, Duco, Moutil, Mara Seque. Todas são mui pequenas, porque a maior não passa de seis léguas em roda; a figura delas ao longe quere parecer um curuchéu redondo, e pelas fraldas há algua terra chã. E porém todo o seu marítimo é de muitos recifes de pedra, em que as naus que ali estão surtas com qualquer vento travessão correm muito risco senão estão à-de-dentro de alguas calhetas, com que o mar quebra no recife, e não em o costado delas. A terra destas ilhas em si é mal assombrada e pouco graciosa; porque, como o Sol sempre anda mui vezinho, ora passe ao Solstício Boreal, ora ao Austral, com a humidade da terra cobre-a de tanto arvoredo, plantas e ervas, que isto faz aquela terra carregada no ar e vista dela com as exalações dos vapores terrestres, que sempre andam per cima delas, que faz nunca as árvores estarem sem folhas. Porque ainda que mudem ua, já per outra parte está com outra nova, e outro tanto é nas ervas; e contudo cada cousa vem com sua novidade a um certo tempo cada ano. Somente as árvores que dão o cravo respondem com novidade de dous em dous anos, porque no apanhar quebram-lhe o novo, onde ela lança os cachos dele à maneira de madre-silva, como vemos que a oliveira, se é muito açoutada da vara, di a dous anos não responde com novidade porque há mister aquele tempo pera criar rama nova, em que dê azeitona. Geralmente per a fralda destas ilhas a terra é sadia, e isto a que é alta; a que tem este marítimo alagadiço, como a Ilha de Bachão, é doentia. A terra de todas pela maior parte é preta, grossa, fofa e tam sequiosa e porosa em si, que por muito que choiva, logo é bebida toda aquela água; 259 e se algum rio tem que venha do alto das serranias, primeiro que chegue ao mar, a terra o bebe todo. E assi despôs a Natureza suas sementes, que, sendo a Batochina maior que estas cinco juntas, e todas dentro em um pequeno espaço de mar, nesta grande não há cravo, e tudo o que tem é mantimentos, e nas cinco cravo sem eles. Finalmente, veo a Natureza a particularizar tanto a desposição de sua específica virtude, que até barro pera 133v 133v louça deu somente em ua que jaz entre Tidore e Moutel, chamada Pulo Cabale, que quere dizer Ilha das Panelas, polas que se ali fazem do barro que tem, ca entre eles, pulo significa ilha, e cabale, panela. E não somente nas cousas naturais, mais ainda nas artificiais assi estão repartidas na inclinação e uso dos homens pera uns pola necessidade delas se comunicarem com os outros, que na Ilha Batochina, em um lugar chamado Geilolo, se fazem os sacos em que se enfardela todo o cravo, que dão todas as cinco pera se carregar pera fora, quando o não querem trazer a granel em suas peitaças, como eles costumam. Alguas destas ilhas lançam fogo no cume de sua maior altura, assi como a Batochina do Moro, e a Batochina de Muar, e outras a estas vezinhas. E o mais notável aos nossos é o da Ilha Ternate, de que somente daremos notícia pola que houvemos de António Galvão; o qual, sendo capitão destas ilhas o ano de quinhentos e trinta e oito, resedindo nesta Ilha Ternate em a fortaleza S. João que i temos, quis ir ver aquele mistério da Natureza, porque daquela fortaleza viam no cume da ilha vaporar fogo, ao modo que um forno de cal quando começa cozer, sem luz algua de dia; e de noite era cousa espantosa ver as cores e faíscas do fogo e rescaldo que lançava em torno, cobrindo muita parte do arvoredo, da maneira que se ele cobre quando nestas nossas regiões neva. Peró isto não é em todo o ano, somente nos meses de Setembro e Abril, quando o Sol se muda de ua parte a outra, que passa a Linha Equinocial, que corta meio grau desta ilha; ca então ventam uns ventos que acendem aquele natural fogo na matéria que lhe dá nutrimento per tantas centenas de anos. Subido António Galvão àquela altura onde viam este fogo, achou toda a coroa daquele

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monte escaldada e a terra dele fofa, não feita em cinza, mas ligada ua à outra, e leve. E per toda aquela coroa havia uns redemoinhos à maneira que vemos fazer a água, quando, estando estanque, lhe lançam ua pedra que vai fazendo aqueles circos; e porém os que estavam feitos nesta terra eram profundos em modo de algar, a que podiam descer per aqueles degraus circulados que a terra fazia. Contou mais António Galvão, que do meio do monte pera baixo tudo eram grandes arvoredos, e a terra assi fragosa e coberta dele, que em muitos 260 passos ele e os de sua companhia subiam per cordas; e de entre esta fraga corriam ribeiros que vinham regar o chão dela, como que o fogo que andava no centro daquele monte fazia estilar e suar aquelas águas. E se Plínio, quando quis ver o outro tal fogo do Monte Vesúvio, em Itália, buscara outra tal conjunção, como António Galvão 134 133 buscou, não ficara ele lá pera sempre, como ficou, segundo dizem. O cravo que per todo o Mundo corre, nasce nestas cinco ilhas que dissemos, e não se acha notavelmente em outras; e as árvores que o dão, como cousa de menos uso das gentes, veo Deus, universal distribuidor do criado, encerrar nestas cinco ilhetas; e a massa e noz em outra chamada Banda, que também é senhorio destas, da qual adiante faremos relação. Geralmente, ainda que tem algum milho e arroz, toda a gente destas Ilhas de Maluco comem de um mantimento, a que chamam sagum, que é o miolo de ua árvore à semelhança da palmeira, senão que a folha é mais branda e macia, e o verdor seu é um pouco escuro, cujo toro tem altura de vinte palmos, e no cima lança uns cachos como palmeira de tâmaras, e nelas nasce um fructo como maçãs de acipreste, dentro dos quais estão uns pós, que, se tocam em carne, escaldam. Quando este ramo é tenro, podam um pedaço dele, e metem-no em um vaso de boca pequena; e per espaço de ua noite estila tanta quantidade do seu licor, que fica o vaso cheo, cuja cor é de leite anaçado, ao qual licor eles chamam tuaca; e bebido em fresco, segundo dizem os nossos que usam dele, é sadio e engorda muito, e o sabor é doce e gostoso. E per modo de cozimento, segundo nós usamos do mosto das uvas, fazem deste licor vinho e vinagre; e depois que a árvore é já bem sangrada com estas podas, e velha, em tempo que tem grosso tronco, a decepam rente com o chão. Do qual tronco feito em achas, com uns sachos de pau cavam ua massa branca e tenra, que é o miolo da árvore, a qual jaz entre os nervos que a sustêm. E tomada aquela massa, a dilem na água à maneira de polme, porque se aparte bem dos nervos; e depois que faz pé em baixo, e os nervos vem acima, apartam eles,e escoam a água clara, e a massa fica apartada e limpa. Esta, tomada assi em polme grossa, é lançada em uas formas quadradas de barro quente, onde se coze, o qual mantimento em fresco tem mui bom sabor; e pera levar sobre mar em viagem comprida, dizem alguns dos nossos que dele usaram, ser melhor que o nosso biscoito. E quando querem fazer depósito desta farinha, é primeiro muito enxuta, e depois metida em vasilhas, que lhe não entre a humidade por não arder; e ao tempo do comer, geralmente, assi como cozem outra vianda, assi fazem quente este pão. E porque o hão por bom mantimento, ainda que na Ilha de Moro, 261 sua vezinha, haja arroz, e custe mais barato que o sagum, ante querem este, porque o acham de melhor degestão, e mais soboroso. Tem outras duas espécies de árvores, ua chamada nipa, e outra; ambas lhe dão pão e vinho e vinagre 134v 133v como o sagum; e porém entre elas é mais estimado o pão desta que das outras. Finalmente, destas três árvores ao modo de palmeira (como atrás escrevemos), delas tem uso pera comer, beber, vestir, cobrir casas e outros muitos usos. Têm mais outro licor que se estila de uas canas grossas pera beber, muito mais suave e

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estimado que os outros, e por isso somente as pessoas nobres, que sofrem o culto das cousas de muito preço, usam dele, o qual licor se cria dentro de uns canudos de ua cana grossa, que terão de comprido, de nó a nó, cinco palmos. Além destes fructos e licores, tem outras mui várias cousas, assi de sementes, panos e fructas que lhe servem de mantimentos, que é muito estranho a nós os que vivemos em Europa; e peró que não temos cá uso dele, quando nos vemos naquelas partes, algum se come com mais gosto que o natural com que nos criamos. E posto que na terra haja animais que servem de mantimento, assi como porcos, carneiros, cabras e outras sortes de animais monteses e aves caseiras e bravas, geralmente mais usam aqueles povos do pescado que da carne. Do qual pescado eles tem grã abastança, assi do que se pesca nesta nossa costa de Espanha, como de outro género a nós mui estranho. Metal algum não se acha naquelas ilhas, peró que alguns querem dizer que há ouro; mas os nossos nunca o viram, sendo a cousa per que o geral dos homens mais trabalha. Os povos destas ilhas é de cor baça e cabelo corredio, de corpo robusto e fortes membros, carregados em sua acatadura, muito dados a guerra, e pera todo outro exercício mui perguiçosos; e se algua indústria há, assi no modo de agricultar o mantimento de que vivem e trato de vender e comprar, este trabalho é das mulheres. Envelhecem cedo em cãs e vivem muito; são mui ligeiros na terra e muito mais no mar, porque em nadar são pexes e em pelejar aves, em toda parte gente maliciosa, mentirosa e desagradecida, e hábil pera aprender qualquer cousa; e sendo pobres em fazenda, é tanta a sua soberba e presunção, que se não abatem per necessidade algua, nem sujeitam senão per ferro que os escala e sangra na vida. Finalmente, aquelas ilhas, segundo dizem os nossos, são um viveiro de todo mal, e não tem outro bem senão cravo; e por ser cousa que Deus criou, lhe podemos chamar boa; mas quanto a ser matéria do que os nossos por ele tem passado, é um pomo de toda a discórdia. E por ele se podem 262 dizer mais pragas que sobre o ouro; e se fora em tempo dos poetas gregos ou latinos, eles teveram mais que dizer e fabular delas, que das Ilhas Gorgondas. E duas cousas dão argumento pera se poder afirmar, que os habitadores destas são de mui várias 135 135 e diversas nações: a primeira, a inconstância, ódio, suspeitas e pouca fé que entre si tem, como gente que sempre se vigia entre si ua da outra; e a segunda, a grande variedade de suas linguagens, ca não lhe chega o vasconço de Biscaia, de maneira que um lugar se não entende com outro, e como são várias, assi é o tom e modo diverso; porque uns formam a palavra no papo, outros na ponta da língua, outros entre os dentes, outros no padar, e o cantar, pelo qual ainda que se não entenda a palavra, basta pera pelo tom dele ser conhecido. E se tem algua língua comum per que se possam entender, é a malaia de Malaca, a que a gente nobre se deu de pouco tempo pera cá, que é depois que os mouros foram a elas por causa do cravo. E ante deles não havia conta do ano, peso ou medida, e veviam sem conhecente de um só Deus ou notícia de algua certa religião: somente tomavam alguns deles pera sua adoração o Sol, Lua e estrelas, per que Deus quis chamar o entendimento de todo racional a olhar pera cima estas primeiras notícias e sinais. E outros adoravam qualquer cousa da terra, como ainda hoje tem os que habitam o sertão, que o marítimo já está em poder de mouros, intitulados em reis, como veremos. Da anteguidade da povoação daquelas ilhas, como é gente bestial sem letras, e das cousas passadas não tem mais notícia, que trazerem alguas em cantares à maneira de rimances, que nós usamos, por memória de algum feito, entre eles não há cousa certa; e porém todos confessam serem estrangeiros, e não próprios indígenas e naturais da terra. E ante que entre eles houvesse senhor ou rei que os governasse, viviam debaixo dos mais velhos, repartidos em parentelas. Depois, dizem que aportaram ali juncos destas três nações - chins, malaios ou jaus - e mais se afirmam em chins que

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em outros, porque ainda agora fica a sua notícia em o nome que tem a grande ilha chamada Batechina do Moro. Ao longo da costa da qual estão estoutras, porque acerca dos seus moradores geralmente bate quere dizer terra, e composto com China, chama-se a Terra da China, e dão-lhe por denotação Moro, nome próprio da terra, à diferença de outra chamada Batechina de Muar. E até à vinda destes não houve notícia do cravo pera se aproveitarem dele em mais que, quando estavam doentes, porem o seu pó pela testa e rosto, ao modo que fazem os negros de Guiné de malagueta; e desta entrada dos chins, que foram monarcas daquele Oriente, começou haver notícia do cravo, e entrou neles a cobiça de o pessuir, vendo que por ele lhe davam cousas pera suas necessidades. E principalmente 263 ua moeda de cobre do tamanho dos nossos ceitis, sem figura ou carácter algum, somente um 135v 135v buraco no meio per que enfiam número de mil em cada fio; à qual moeda eles chamam caixas, de que mil e duzentas fazem ora em nossos tempos um cruzado em valia, e esta e a moeda que corre per todo aquele Oriente, de Malaca por diante. E posto que os naturais daquelas ilhas com seu juízo e memória não tornem tanto atrás em tempo, que dem notícia de outra maior antiguidade, parece que estas ilhas pequenas, que jazem ao longo da Batochina, foram a maior parte delas, ao menos o baixo e não o alto dela, coberto do mar. Porque, segundo os nossos dizem, cavando a superfície daquela terra preta e fofa que tem, onde todalas árvores lançam suas raízes à frol dela, logo acham area e muito cascalho do mar, donde parece que o tempo foi tomando aquela posse ao mar, e a deu à terra pera criação do fructo que em si contém. Depois que estes chins (como dissemos) começaram continuar a navegação destas ilhas, e gostaram deste seu cravo e da noz e massa de Banda, à fama deste comércio acudiram também os jaus e cessaram o chins. E, segundo parece, foi per razão da lei que os reis da China poseram em todo seu reino que nenhum natural seu navegasse fora dele, por importar mais a perda da gente e cousas que saíam dele, que quanto lhe vinha de fora, como já atrás escrevemos, falando das cousas da China, e conquista que teveram na Índia por rezão das especearias. Ficando o comércio daquele Oriente per um curso de tempo em os jaus, como senhores da sua navegação, segundo também escrevemos, falando da Ilha Samatra, veo-se fundar a cidade Cingapura e depois a cidade Malaca, com a navegação do seu estreito, com que os malaios também começaram a ter estado e posse pera navegar aquele grande número de ilhas. Finalmente, ao tempo que nós entrámos na Índia, estas duas nações - jaus e malaios - navegam toda a especearia e cousas orientais, trazendo todo àquele ilustre empório e lugar de feira, que é Malaca; tomada a qual, ficou em nosso poder. E porém já neste tempo havia nas Ilhas de Maluco muita gente convertida à seita de Mahamede; porque, como pela navegação que os párseos e arábios teveram na Ilha Samatra e Malaca, trouxeram o natural gentio à sua Seita, assi os jaus e malaios já convertidos, navegando às Ilhas de Maluco e Banda, converteram as povoações marítimas com que tinham comércio. E de catorze reis que havia em as de Maluco, de que logo falaremos, o primeiro que se fez mouro foi o de Ternate, per nome Tidore Vongue, pai del-Rei Boleife, o nosso amigo, que agasalhou Francisco Serrão. E segundo a conta que eles dão, ao tempo que os nossos descobriram aquelas ilhas, haveria pouco mais 136 136 de oitenta anos que nelas tinha entrada esta peste; e ainda quando António de Brito (como veremos) chegou a Ternate, como em cabeça daquelas ilhas, estava um caciz que lhe deu esta infernal doutrina. E é tanta a divindade que o estado real quis em toda parte do Mundo atribuir a si mesmo, que até 264 nestas Ilhas Maluco, entre gente bestial, buscou fábulas de sua genitura e princípio por mostrar aos súbditos que não vem de tam vil compostura como os outros homens, na qual fábula a gente tem

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tanta fé, que ainda hoje há lugares desta religião dos seus primeiros reis. E fabulam per esta maneira: que no tempo que se governavam aquelas ilhas per os mais velhos, um destes, principal, per nome Bicocigará, que vevia na Ilha Bachão, andando um dia em um barco ao longo da terra, viu entre uns penedos ua grande mouta de rotas, que são uas canas mociças chamadas rotas, que quando são delgadas, fazem delas cordas, e pera atar qualquer cousa servem-se muito delas. Bicocigará, parecendo-lhe bem estas canas, do batel donde estava mandou aos seus familiares que as fossem cortar e trouxessem ao batel. Peró eles, chegados ao lugar delas, tornaram-se, dizendo que a vista o enganara, porque não havia ali tais canas. O qual, como do batel em que estava as visse, quási em modo de perfia com eles saiu em terra; e chegando a elas, que as viu, com grande indinação dos servidores que aperfiavam lhas mandou cortar. Fazendo a qual obra, começou a correr sangue da cortadura delas, e viram jazer entre as raízes quatro ovos, que pareciam de cobra; e juntamente ouviu ua voz que lhe disse que tomasse aqueles ovos, porque deles haviam de nascer os principais que os haviam de governar. Tomando estes ovos com grande admiração e religião, os levou pera casa, e guardou em lugar seguro e fechado. Dos quais di a pouco tempo disse que nasceram quatro pessoas - três de homens e ua de mulher. Os homens foram havidos por reis com grande religião da gente: um reinou na mesma Ilha Bachão, outro na de Butão e outro nas Ilhas chamadas papuas, que estão ao Oriente de Maluco. A mulher casou com o senhor de Loloda, lugar na Batochina do Moro, junto da grã Boconora; destes dizem eles que procederam os seus reis. E está entre eles tão aringada esta openião, que hoje tem os penedos onde foram achados os ovos por cousa sagrada, e o Bicocigará por homem santo. Peró a verdade, segundo parece per outras cousas que eles contam deste Bicocigará, é que ele era homem prudente e buscou este artefício pera leixar quatro filhos que tinha tam honrados como leixou. E quando os nossos lá foram, que foi em vida de Boleife, tinham reinado naquela 136v 136v Ilha Ternate treze reis, e o primeiro que se fez mouro foi o pai deste Boleife, ao qual chamaram Cachil Tidore Vongue, porque os mais deles se nomeam per três nomes ao modo nosso - pronome, nome e cognome. E dizem que a causa de se fazer mouro foi ua mulher nobre da Jaua, com que casou, que era moura; e ao tempo que António de Brito lá chegou, reinava um menino de idade de sete anos per nome Cachil Bohaát, filho del-Rei Boleife, o qual Boleife se tinha mostrado tanto nosso amigo, e de sua amizade procederam tais cousas, que obrigou a el-Rei D. Manuel mandar Jorge de Brito fazer lá ua fortaleza; das quais cousas e causas nos seguintes capítulos queremos dar razão.

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136v 136v 265 Capítulo VI. Das cousas que sucederam a António de Abreu e Francisco Serrão, que Afonso de Albuquerque, na tomada de Malaca, mandou descobrir as Ilhas de Maluco e Banda; e o que sucedeu em todo aquele tempo, até a partida de António de Brito, que ia fazer ua fortaleza por causa das razões precedentes, que eram requerimentos del-Rei de Ternate, que é a principal delas. Afonso de Albuquerque, tomada a cidade Malaca no ano de onze (segundo atrás escrevemos), como ela era ua feira do Oriente e Ponente, onde concorriam as mercadorias daquelas províncias e tantas mil ilhas, e a ela vinham todalas nações por razão deste comércio, porque não tevessem algum receo, sabendo que estava em nosso poder, determinou, pelo muito que importava à conservação dela, mandar per aquelas partes orientais noteficar, que todos viessem sem receo algum; ca lhe seria guardada sua justiça e feito todo favor em seus negócios. Sobre a qual cousa, pera a mais favorecer, mandou António de Miranda de Azevedo a Sião, a Pegu Rui da Cunha, e à Jaua e a Maluco António de Abreu, indo diante dele um mouro natural de Malaca, per nome Nehodá Ismael, com um junco de mercadoria de alguns mouros jaus e malaios, que tratavam nestas partes, pera que, quando António de Abreu chegasse àqueles portos, que fosse bem recebido; ca, segundo o nosso nome era espantoso entre aqueles povos, não seria muito ser ele mal recebido. E a voz da ida deste Nehodá era ir buscar cravo a Maluco e noz a Banda; e que como de seu denunciasse quam pacífica ficava Malaca e quanto favor o Capitão-mor mandava fazer a todo mercador estrangeiro, sem lhe serem feitas as tiranias de que usava el-Rei de Malaca. 137 137 Partido este António de Abreu com os três navios que dissemos, fez viagem caminho de Jaua, levando, além de pilotos portugueses, alguns malaios e jaus que andavam naquela navegação. E o primeiro porto que tomou foi da cidade Agacim, que é na Jaua, e di foi ter à ilha de Amboíno, que é já do senhorio de Maluco, que será dela obra de sessenta léguas; e assi aqui, como nos dous portos que tomou, em todos pôs seus padrões ordinários, pela maneira que os nossos capitães teveram no primeiro descobrimento que faziam. E seguindo seu caminho, com tempo que teveram se perdeu o navio de Francisco Serrão, mas aprouve a Deus que se salvou toda a gente, a qual 266 António de Abreu recolheu; e di foram ter à Ilha de Banda, que é do senhorio de Maluco. E bem como neste nome Maluco se comprendem as cinco ilhas, cada ua das quais tem próprio nome, assi neste nome Banda se contém outras cinco ilhas juntas. Verdade é que a principal delas se chama Banda, onde todalas outras acodem a um lugar chamado Lutatão, por a ele concorrerem todolos navios que vão ao comércio da noz; e as outras se chamam Rosolanguim, Ai, Rõ e Neira, e todas estão em altura de quatro graus e meio da parte do Sul, e a Lutatão iam cada ano os povos jaus e malaios carregar de cravo, noz e massa. Porque, como estava em paragem que se podia melhor nevegar e lhe era mais segura, e aqui ordinariamente em juncos da terra soía vir o cravo que havia em Maluco, não trabalhavam polo lá ir buscar. Nestas cinco ilhas nasce toda a noz e massa que se leva per todalas partes do Mundo, como em Maluco o cravo. E a chamada Banda é a mais fresca e graciosa cousa que pode ser em deleitação da vista; ca parece um jardim em que a Natureza com aquele particular fructo que lhe deu se quis deleitar na sua pintura. Porque tem ua fralda chã, chea de arvoredo que dá aquelas nozes, as quais árvores, no parecer, querem imitar ua pereira. E quando estão em frol, que é no tempo que a tem muitas plantas

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e ervas que nascem per entre elas, faz-se da mistura de tanta frol ua composição de cheiro, que não pode semelhar a nenhum dos que cá temos entre nós. Passado o tempo das flores, em que as nozes já estão coalhadas e de cor verde (princípio de todo vegetável), vai-se pouco e pouco tengindo aquele pomo da maneira que vemos neste reino de Portugal uns pêssegos a que chamam calvos, que parecem o arco do Céu chamado Iris, variado de quatro cores elementares, não em círculos, mas em manchas desordenadas, a qual desordem natural o faz mais fermoso. E porque neste tempo que começam amadurecer acodem da serra, como a novo pasto, muitos papagaios e pássaros diversos, é outra pintura ver a variedade da feição, 137v 137v canto e cores de que a Natureza os dotou. Passada esta fralda tam graciosa, levanta-se no meio da ilha ua serra pequena, um pouco íngreme, donde correm alguas ribeiras que regam o chão de baixo; e como se sobe com trabalho o áspero daquela subida, fica ua terra chã, assi coberta e pintada como a de baixo. A figura desta ilha é à maneira de ua ferradura, e haverá de ponta a ponta, que jazem Norte e Sul, quási três léguas, e de largura ua; e na angra que ela faz com sua feição, está a povoação de seus moradores, e as árvores da noz. Na ilha chamada Gunuape não há árvores de noz, mas outras pera madeira e lenha, de que se os moradores das que tem este fructo se servem em seu uso; na qual também há outra garganta de fogo, como a de Ternate em as Ilhas de Maluco, e por esta razão lhe deram o nome que tem, porque guno quere dizer aquele fogo, e Ape é o próprio nome da ilha. O qual 267 guno, por ser pouca cousa, os nossos vão a ele, e da sua boca apanham enxofre, de que se aproveitam por o acharem bom; e toda a noz que há nas outras três ilhetas, a trazem a esta Banda como a sua cabeça, por a ela acudirem os mercadores. A gente delas é robusta e a de pior acatadura daquelas partes, de cor baça e cabelo corredio; segue a seita de Mahamede, e mui dada ao negócio do comércio, e as mulheres ao serviço das cousas da agricultura. Não tem rei ou senhor, e todo o seu governo depende do conselho dos mais velhos; e muitas vezes, porque os pareceres são diversos, contendem uns com os outros. E a gente que os mais enfrea é aquela que povoa os portos de mar, per onde lhe entra o necessário pera seus usos, e tem saída suas novidades, que é massa e noz, porque a terra não tem outra que saia pera fora. O arvoredo do qual pomo é tanto, que a terra é chea dele, sem ser plantado per alguém, porque a terra o produziu sem benefício de agricultura. Querem imitar estas árvores o parecer das nossas pereiras, e porém a sua folha tem semelhança de nogueira, e o pomo deste tamanho é, e a noz em verde o mesmo parecer tem. Estas matas não são próprias de alguém, como herança particular, são de todo o povo; e quando vem Junho até Setembro, em que este pomo está de vez pera ser colhido, estão já estas matas repartidas per os lugares e povoações, e cada um acode a apanhar; e quem mais apanha mais proveito faz. Como acerca de nós são as matas do conselho, assi da bolota, como as serras do carrasco da grã, que no tempo do apanhar geralmente se descouta aos da vila daquele termo. António de Abreu, depois que nesta Ilha Banda pôs padrões de seu descobrimento, porque havia carga pera isso de noz, massa e assi de cravo que os juncos de Maluco costumam 138 138 trazer ali (como dissemos), comprou um junco da terra pera vir nele Francisco Serrão; e por lhe o tempo servir pera Malaca, houve por mais serviço del-Rei tornar-se com nova do que tinha descoberto, e mais vindo tam carregado, que ir adiante a Maluco, pera onde lhe não servia, e principalmente por os navios estarem já tam desbaratados daquela comprida viagem, que não se atreveu andar com eles tanto tempo no mar. Finalmente, partido daquelas ilhas de Banda muito contente de quam bem fora recebido da gente da terra, porque não chegasse com este contentamento a Malaca, com um temporal que lhe

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sobreveo, apartou-se dele Francisco Serrão. Contudo ele, António de Abreu, chegou a Malaca; e depois, vindo em companhia de Fernão Peres a este reino pera dar conta do que descobrira naquela viagem, faleceu no caminho. 268 Francisco Serrão, quando se apartou dele, foi-se perder em uas ilhas a que os da terra chamam de Luco Pino, que quere dizer Ilha das Tartarugas, por causa das muitas que ali há, que serão de Banda até trinta e sete léguas pouco mais ou menos. E estando em terra com toda a gente naquele estado, e mais em ilhas despovoadas, sem provisão pera se manter, quis Deus que houvessem remédio per quem lhe queria fazer mais mal; e foi per esta maneira: Como naquelas ilhas, porque estão em lugar pera isso, se perdem muitos navios, sempre são vesitadas de certos ladrões que per ali andam a roubar os que se perdem nelas; os quais, por haverem vista do naufrágio dos nossos, acudiram logo em um navio de remo, chamado coracora. Da qual cousa Francisco Serrão foi logo avisado per os mouros pilotos que vinham com ele, dizendo que se apercebesse, porque havia de ser cometido per eles; mas desta feita ficaram no laço que vinham armar: porque, tanto que Francisco Serrão os viu vir, pôs-se em celada, e saídos eles em terra, desejosos de prear, remeteram os nossos ao navio, e tomaram posse dele. Os ladrões, vendo-se assi salteados, como sabiam que a ilha não tinha água nem cousa de que se mantivessem, e ficando nela eram logo mortos, vieram a tratar com os nossos que os recolhessem consigo, que eles os levariam à Ilha Amboíno em um porto chamado Ruçotelo, onde os agasalharam tam bem, que por causa deles teveram contenda com os moradores da cidade Veranula, que é a principal da Ilha Batochina de Muar, que seria de ua ilha à outra pouco mais de duas léguas, com quem por razão da vezinhança sempre tinham competência. Os quais imigos, vindo em suas coracoras armados, com este requerimento que lhe fizessem entrega 138v 138v deles, vieram em rompimento de pelejarem; e como os nossos foram em ajuda dos da terra, pois por eles era a contenda, houveram vitória destes de Veranula. E porque a gente daquelas partes é mui gloriosa de qualquer vitória, e logo levantam algua obra por memória dela, fizeram estes de Ruçotelo um bailéu de madeira, que naquelas partes serve o que a nós varandas ou eirados de vista. Na qual obra, que toda era mui bem lavrada a seu modo, esculpiram as armas deste reino e a cruz de Cristo da Ordem da sua milícia, que há neste reino, debaixo da qual insígnia os portugueses militam na guerra, o qual bailéu ainda hoje dizem os nossos que está em pé. Esta vitória foi logo denunciada per todas aquelas ilhas, que se houve por grande cousa, por os de Ruçotelo não virem a conto em poder e cavalaria com os de Veranula. Porém, quando souberam que fora por razão da ajuda dos nossos, confirmaram a fama que lá tinham deles da tomada de Malaca, que assombrou todo aquele Oriente, por ser a mais célebre cousa que havia entre os mouros orientais. Havia neste tempo naquelas ilhas (como há em todalas partes) alguns 269 reis e senhores, que contendiam com seus vezinhos, entre os quais eram os reis de Ternate e Tidore, das Ilhas de Maluco; os quais, tanto que souberam estarem os nossos ali, desejou logo cada um de os haver em sua ajuda, e principalmente el-Rei de Ternate, por já estar informado das nossas cousas per Nehodá Ismael, que (como escrevemos) Afonso de Albuquerque mandou diante e fora ali ter. O qual Rei de Ternate, temendo que o de Tidore enviasse também em busca deles primeiro que o ele fizesse, mandou armar dez navios, em que iriam até mil homens, de que era capitão um Cachil Coliba. Nas costas do qual também el-Rei de Tidore mandou sete navios;, peró, quando chegou, já Cachil Coliba os tinha levado a el-Rei de Ternate, com o qual Francisco Serrão folgou ir, por a sua viagem ser àquelas Ilhas de Maluco. Havia nome este Rei de Ternate Cachil Boleife, homem de muita idade e grã prudência, e havido entre os mouros quási por profeta nas cousas que dizia, as quais ele alcançava com o

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descurso que tinha de muitos anos, mais que por a santidade que eles punham nele. E como em todalas partes comunmente vemos andar entre o povo uas esperanças futuras de bem ou mal que há de sobrevir à terra onde cada um vive, assi havia ua opinião entre a gente daquelas ilhas, que a elas haviam de vir uns homens de ferro de mui remotas partes do Mundo, os quais haviam de fazer ali morada; e per o poder e força deles o reino de Ternate se estenderia 139 139 per todas aquelas ilhas, a qual opinião diziam proceder del-Rei Boleife: quási que a denunciava em modo de profecia aos seus vassalos. Donde, quando ele viu Francisco Serrão ante si armado em uas armas brancas inteiras, acompanhado de outros portugueses também armados das armas que tinham, levantou as mãos, dando louvores a Deus, pois lhe mostrara ante de sua morte os homens de ferro, em cujas forças estava a seguridade de seu reino e per cujo favor os seus descendentes haviam de permanecer per muitos anos com título de reis daquela terra. Parece que o espírito do homem, em as cousas que deseja ou teme, o fervor que o enleva à contemplação delas, o faz pronosticar em futuro parte do seu sucesso. Porque, como os cuidados de dia fazem que o espírito entre sonhos de noite esteja maginando muitas cousas, que nós depois vemos postas em efeito, por razão de ua simpatia natural a que a Natureza obedece, assi em futuro esta mesma simpatia, que é obediente aos influxos celestes, faz afirmar, não per fé, mas per temor ou esperança, parte do que teme ou deseja. Porque sabemos que os estrólogos, pera o pronóstico de qualquer pergunta que lhe fazem, fazem a raiz da interrogação na hora que a parte concebeu o desejo de fazer a tal pergunta, pera a calcular como o ascendente do planeta que então é predominante. E como os aritméticos de dous termos notos 270 tiram um terceiro, per que julgam a verdade da conta proporcional, assi o estrólogo naturalmente per dous termos notos - um superior, que é autivo, e outro inferior, passivo, que está na concupiscíbele ou irascíbele do homem - vem a sologizar as repostas que dá. E se este terceiro operante julga os casos alheos per este modo, em que muitas vezes se engana por não calcular bem os termos notos, como não será mais certo o ânimo de um homem prudente, que é mais fiel pera se julgar, do que o pode ser o juízo alheo? Seja como for, pois destas cousas não podemos mais alcançar que andar apalpando pera achar a razão delas, como faz o cego que quere atinar o caminho: O que sabemos em certo é que muitas cousas, primeiro que se viessem a efeituar, andaram muito tempo na boca das gentes, sem saber donde nasceu a tal opinião; e assi aconteceu a esta da gente de Ternate, ora que procedesse da imaginação del-Rei Boleife, ora de outra qualquer causa. E ainda que por razão destas armas, com que ele viu armado a Francisco Serrão e seus companheiros, a nós não competisse ser havidos pelos homens de ferro que ele esperava, somente pela constância e contínuos trabalhos e perigos, que padecemos em tam comprida viagem sem cansar, propriamente 139v 139v a nós convém o tal nome. Quanto mais que, por razão da esperança que este Boleife tinha na continuação do seu reino nos de sua linhagem até hoje, os nossos, por enfiar esta sua herança de herdeiro em herdeiro, tem vestido mais vezes as armas do que há de cravos na sua ilha. Até que, vindo a reinar Cachil Tabarija, em tempo que lá em Ternate residia Tristão de Taíde por capitão da fortaleza que ali tínhamos, o ano de trinta e quatro, per algua suspeita que teve dele, o prendeu e com os autos de sua prisão o mandou à Índia, ao Governador Nuno da Cunha. E por as culpas não serem de qualidade de mais castigo que o trabalho de tam comprido caminho, ele foi livre, e per sua própria vontade se fez cristão e houve nome D. Manuel, em memória del-Rei D. Manuel, autor do descobrimento daquelas ilhas. Parece que permitiu Nosso Senhor esta opressão que lhe foi feita, de ser preso e fazer tam comprida jornada pera dous efeitos: um, pera se salvar da aceitação do bautismo, em que se mostrou sua inocência; e o outro efeito foi na obra que fez no caminho de sua tornada, estando na hora da

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morte. Porque, indo este Rei Dom Manuel de Ternate em companhia de Jordão de Freitas, que havia de servir de capitão da fortaleza que ali temos, adoeceu o mesmo Rei em Malaca, com o qual ficou sua mãe e um Pate-Sarangue e outros homens nobres mouros, seus vassalos, que o acompanharam. E Jordão de Freitas partiu-se via de Maluco, por não poder esperar por ele e ser mui necessária sua ida, por causa das revoltas que lá havia. Partido 271 ele, e el-Rei posto em estado de morrer, fez todolos autos de católico cristão; e em seu testamento, por não ter legítimo herdeiro que o sucedesse, fez universal herdeiro daquele reino de Ternate, com todolos senhorios das outras ilhas a ele súbditas, a el-Rei D. João o Terceiro, Nosso Senhor, que hoje reina. O qual testamento, levado à cidade Ternate, cabeça daquele reino, os principais e povo dele receberam com solenidade e aceitaram por Rei e Senhor ao dito Rei D. João, segundo forma do testamento; e pera mais confirmação, todos per modo de eleição pera os reger e governar, o quiseram e aceitaram por Rei. O qual auto foi feito com a bandeira real deste reino e pregões per toda a cidade, com posse autual daquela herança, e com toda outra solenidade, segundo quere o Direito, posto que ante tínhamos esta posse já adquirida per armas, como consta pelos instrumentos que Jordão de Freitas, capitão daquela fortaleza, tirou o ano de mil e quinhentos e quorenta e sete, segundo mais particularmente 140 140 irá escrito em seu lugar. Per esta maneira que acima contámos, ficou Francisco Serrão naquela Ilha Ternate com os outros portugueses de sua companhia tam aceito a el-Rei, que assi estimava sua pessoa como seu estado; porque havia que nele o tinha seguro pera seus herdeiros, pola esperança que lhe o espírito prometia pola causa que dissemos. Sendo já neste tempo Nehodá Ismael, que viera diante dele, Francisco Serrão, carregado de cravo, o qual vindo pela Jaua, se perdeu em um porto da cidade Tumbão, governada per um senhor a que eles chamam Sangue de Pate, dinidade entre eles, como acerca de nós o Duque. E em Março do ano de quinhentos e treze, Rui de Brito Patalim, capitão de Malaca, sabendo como a fazenda daquele junco se salvara, mandou que fosse por ela João Lopes Alvim com quatro navios. Na qual viagem foi ele mui bem recebido em todolos portos da Jaua, principalmente em a cidade Sindaio, que era de Pate-Unuz, aquele príncipe que Fernão Peres desbaratou em Malaca. E neste mesmo ano, depois da vinda de João Lopes Alvim, foi António de Miranda de Azevedo com ua armada às Ilhas de Maluco e Banda carregar de cravo, na qual viagem perdeu um junco; e ambos os Reis, assi de Ternate, como Tidore, contendiam a quem lhe faria mais favor no despacho da carga do cravo que havia de trazer, por entre eles haver contendas e envejas de vezinhos, que nunca falecem, posto que o de Ternate fosse genro do outro, casado com ua sua filha. Em concertar os quais António de Miranda se meteu; e por derradeiro, temendo-se eles que aquele seria mais poderoso que nos tevesse em sua terra, cada um escreveu a el-Rei D. Manuel, pedindo-lhe houvesse por bem de mandar fazer em suas terras ua fortaleza, dando rezões, cada um per si, do serviço que lhe fariam. E quando o requerimento 272 de ambos o posesse em confusão e fosse causa de se não determinar nesta fortaleza que pediam, em tal caso eles tinham ua ilha comum de ambos, que se chamava Maquiém, na qual a podia mandar fazer, e não ficariam com escândalo da obra. Vindo António de Miranda tam carregado de cravo como do requerimento destes Reis, trouxe consigo os portugueses que estavam com Francisco Serrão, e ele não veo, a requerimento del-Rei Boleife, porque lhe parecia que, vindo-se ele, perdia a esperança que tinha (como dissemos), e quási como penhor dela o retinha, enquanto não via a fortaleza que desejava. E desta vinda de António de Miranda de Azevedo, per um Pero Fernandes, que veo com ele, que era um homem dos que estavam com Francisco Serrão, houve el-Rei D. Manuel as cartas que lhe estes Reis escreveram, e foi informado 140v

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140v particularmente das cousas daquelas partes, e per outras cartas do mesmo Francisco Serrão. O qual, além de escrever a el-Rei, escreveu a seus amigos, e principalmente a Fernão de Magalhães, que já na Índia e em Malaca tinha particular amizade, de pousarem ambos; e por dar maior admiração àquela sua viagem, engrandeceu o modo e trabalho dela, fazendo a distância daquelas ilhas dobrado caminho do que havia de Malaca a elas, dando entender que tinha descoberto outro Novo Mundo maior e mais remoto e rico, do que descobrira o Almirante D. Vasco da Gama. Das quais cartas começou este Fernão de Magalhães tomar uns novos conceitos, que lhe causaram a morte, e meteu este reino em algum desgosto, como logo veremos. Neste mesmo tempo que António de Miranda partiu pera aquelas partes, e Jorge de Albuquerque pera Malaca, servir de capitão dela, mandou Afonso de Albuquerque com ele a Duarte Coelho, que viera de Sião, que, tanto que chegasse a Malaca, o enviasse logo em um navio com vinte homens, além dos mareantes, e fosse fazer ua casa de madeira em modo de feitoria na Ilha de Banda, pera ter feita a carga da noz, massa e cravo pera os navios, que de Malaca a fossem buscar, a qual ida não houve efeito, por haver necessidade de ir à China, como foi. Peró bastaram as cartas que António de Miranda trouxe, pera el-Rei D. Manuel se determinar em mandar fazer ua fortaleza naquelas Ilhas de Maluco; porque na armada que partiu deste reino o ano de quinhentos e dezassete, capitão-mor António de Saldanha, escreveu ele a Lopo Soares, que então era Governador naquelas partes, que enviasse a este negócio ua pessoa auta pera a tal obra. Com o qual fundamento D. Aleixo, estando em Malaca, mandou D. Tristão de Meneses, como atrás fica, o qual fez seu caminho pela Jaua e per Banda; e a primeira Ilha das de Maluco que tomou, foi Ternate, onde estava Francisco Serrão. E porque estes dous 273 Reis - Boleife, de Ternate, e Almançor, de Tidore (como dissemos) - andavam em competência a quem nos teria em sua companhia, tanto que el-Rei de Ternate viu D. Tristão no seu porto, mandou-lhe fazer de madeira ua casa forte em um porto chamado Talangame, que será da cidade Ternate ua légua, por ser o melhor que a ilha tinha pera estância das naus, cuidando que ia ele pera estar ali de assento. Feita esta força, começou entre os Reis nova desavença; e mais polo que tinham escrito per António de Miranda - que fosse esta fortaleza em a Ilha Maquiém, que era de ambos. Com o qual requerimento de também nos querer em sua terra, veo Cachil Laudim, Rei da Ilha de Bachão, de maneira que D. Tristão era importunado 141 141 com requerimentos e partidos que lhe faziam. E vendo ele que se começava entre estes príncipes diferenças que podiam vir a tanto rompimento de guerra, com que não houvesse a carga do cravo que ia buscar, meteu-se entre eles pera os concertar, ou ao menos quietar por então. E com seu trabalho e as cartas que levava del-Rei D. Manuel pera estes Reis, e principalmente com não fazer a fortaleza que cada um receava ser feita na terra de seu competidor, os teve contentes. Dando por escusa que sua vinda era somente levar aquelas cartas del-Rei D. Manuel, seu Senhor, e notar a desposição da terra, e se era sadia pera seus vassalos nela estarem, pera com a reposta que ele, D. Tristão, trouxesse, el-Rei se determinaria nisso. Praticando o qual negócio mais particularmente com el-Rei Boleife, de Ternate, disse-lhe que, pera el-Rei D. Manuel, seu Senhor, mais em breve se determinar em fazer ali fortaleza, convinha que Francisco Serrão viesse com ele, D. Tristão. Porque, como era homem que sabia bem a terra e podia dar a el-Rei inteira notícia do que dele quisesse saber, e amigo e servidor dele, Boleife, devia consentir que viesse com ele. Este requerimento assi corado teve D. Tristão com el-Rei Boleife, porque sentia dele que per outro modo não veria Francisco Serrão, e ele mesmo não se matava muito por vir, como homem que tinha esperança que, havendo-se de fazer lá fortaleza, e estando ele ainda lá, el-Rei D. Manuel o encarregaria nisso. Finalmente, D. Tristão se partiu daquelas ilhas com cinco velas - o seu navio e quatro

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juncos carregados de cravo, em um dos quais vinha Francisco Serrão, e com ele um homem nobre, per nome Cachilato, que el-Rei Boleife mandava por embaixador a el-Rei D. Manuel, com este requerimento da fortaleza que queria ter naquela ilha. Mas não tardou muitos dias que com um temporal que teveram, ele, D. Tristão, chegou no princípio de Abril do ano de quinhentos e vinte à Ilha de Banda com três juncos menos, capitães Francisco Serrão, Simão Correa e Duarte da Costa. E quando se viu sem 274 eles, parecendo-lhe que arribaram às Ilhas de Maluco, por já partir tarde, tornou em busca deles, por o tempo lhe servir mais pera isso que pera Malaca, e achou Francisco Serrão no porto de Talangame, da Ilha Ternate, onde estava a casa de madeira que el-Rei mandara fazer, e Simão Correa estava no outro de Bachão, e de Duarte da Costa não teve nova. Vendo ele, D. Tristão, como, por a moução ser passada, lhe convinha invernar ali, descarregou algua parte do cravo em terra pera dar pendor aos navios e os consertar. E ante de o tornar a recolher, sendo já no fim do Inverno, mandou-lhe dizer 141v 141v Simão Correa que lhe fosse socorrer, porquanto os mouros o queriam matar. D. Tristão com este recado, peró que el-Rei de Ternate lhe dizia que não fosse, que ele o mandaria trazer seguramente, porque não quis confiar isto senão de si mesmo, foi a Bachão, e achou ser desmando de seis ou sete portugueses que estavam em companhia de Simão Correa, porque a mais gente do junco eram mouros malaios marcantes. E porque com esta ida de D. Tristão alguns mouros cativos, que andavam nos juncos, fugiram pera a serra, e ele quis culpar a el-Rei em o negócio por cujo respeito ali viera a chamado de Simão Correa, e também em não mandar fazer a entrega dos escravos fugidos, de que ambos não estavam contentes um do outro, aconteceu que se armou um arroído (ordenado pera isso) com os portugueses do junco de Simão Correa, que estavam em terra, sobre que fora a paixão, aos quais mataram os mouros sem escapar mais que um só, que se acolheu a nado ao junco. D. Tristão, porque isto foi em conjunção que faltou o vento travessia, foi forçado fazer-se à vela, e per muito que depois trabalhou, não pôde tomar a ilha; e foi tanto tempo e tam continuado per alguns dias, que lhe conveo ir-se à Ilha de Amboíno, onde acabou de carregar o navio, com que se veo a Malaca; da paixão do qual caso dizem que se lhe gerou ua postema, de que morreu em chegando a Malaca, como dissemos. Assi que, havendo tantas causas precedentes, e mais irem ordinariamente de Malaca àquelas Ilhas de Banda e Maluco buscar especearia, dobrando sempre este requerimento daqueles Reis, ordenou el-Rei D. Manuel enviar ua armada a este negócio, que foi a de Jorge de Brito. E por sua morte sucedeu seu irmão António de Brito, como atrás escrevemos, com a viagem do qual tornaremos a continuar neste seguinte capítulo.

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141v 141v 275 Capítulo VII. Da viagem que António de Brito fez nas Ilhas de Banda e Maluco; e o que passou até fazer ua fortaleza em a Ilha Ternate. Partido António de Brito do Cabo de Cingapura, onde se espediu de Jorge de Albuquerque, fez sua viagem per o Estreito de Sabão, levando seis velas com a em que ele ia, de que eram capitães Francisco de Brito, Jorge de Melo, Pero Botelho, Lourenço Godinho, Gaspar Galo, nas quais velas levaria mais de trezentos homens. E a primeira terra que tomou foi a cidade Tumbão da Ilha Jaua, e daqui foi à outra chamada 142 142 Agacim, onde, por ser escala da navegação daquelas partes, e a ela concorrerem muitas mercadorias e mantimentos, deteve-se dezassete dias, provendo-se de alguas cousas. E porque a Ilha Madura, que naquelas partes tem nome, estava defronte daquela cidade Agacim e ele desejava ter informação das cousas dela, mandou lá um navio de remo com dezassete homens. Os quais, entrando per um gracioso e fresco rio, per a margem do qual havia muitas fructas da terra, assi como duriões e jacas, vianda assaz gulosa a quem começa de a gostar, assi enganou os do batel, que saindo todos em terra a comer dela, os moradores, vendo seu descuido, lhe tomaram o batel e os prenderam a todos, que não deram pouco trabalho a António de Brito, per via de resgate havê-los à mão; e isto ainda com favor do senhor da cidade Agacim, que nisso enterveo. Recolhida toda esta gente, estando já António de Brito pera partir, chegou D. Garcia Hanriques com quatro velas - um navio em que ele ia e três juncos - de que eram capitães Hanrique de Figueiredo, um fidalgo de Coimbra, Duarte da Costa e Francisco de Lamar, o qual D. Garcia ia buscar carga de especeria à Ilha de Banda, como ordinariamente os capitães de Malaca cada ano mandavam os juncos da terra. Chegado ele, veo naquela conjunção um junco da mesma Ilha Jaua, que também fora a Banda buscar especearia, o qual deu nova como lá achara gente branca ao modo dos nossos, entrada novamente na terra, e que lhe deram a eles, jaus, ua carta pera navegarem seguramente, se pelo mar achassem outra gente da sua companhia. António de Brito, havida a carta, achou ser de letra castelhana e dada per castelhanos em nome del-Rei de Castela, tam pomposa e copiosa em palavras como esta nação costuma em sua escritura, principalmente em cousas desta calidade, em que ela espraia muito. E porque na Índia, quando ele, António de Brito, partiu, havia nova que Fernão de Magalhães (de que atrás falámos) se fora a Castela, com fundamento de ir ter àquelas partes, assentou com D. Garcia que podia ser esta gente de sua companhia, e que convinha 276 ambos irem em ua conserva pera qualquer caso que sucedesse naquele caminho. Mas como as cousas do mar são mui incertas, principalmente per entre aquele número de ilhas, que é um labirinto acertar os seus canais, e sobre isso muitas correntes e mares revessos da diferença dos ventos; tendo já passada a cidade de Tumbaya, onde se deteveram três dias, emparando no boqueirão de Anjane, ali lhe apanharam as correntes um junco de Duarte da Costa. O qual indo com a força da corrente, sem lhe poder valer, esgarrado contra o Sul, o melhor que pôde, ele e 142v 142v os portugueses que levava, acolheram-se em ua champana, na qual foram ter à Jaua, e dai a Malaca,

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sem do junco se saber onde fora parar. Passadas estas correntes, sendo já na paragem de Amboíno, deu-lhe ua trovoada que os apartou, de maneira que António de Brito correu contra a Ilha Banda, aonde chegou somente com Lourenço Godinho. Porém depois poucos e poucos vieram ter com ele, achando já na mesma ilha D. Garcia, o qual lhe deu mais certas novas da armada de Castela, e o que fizera naquelas ilhas, de que adiante faremos relação. António de Brito, porque os navios pequenos que levava haviam mister corregimento, por haver muito que andavam no mar, deu-lhes pendor; e entretanto por ainda não ser acabado de assentar per nós o preço da especearia e cousas que dávamos a troco dela aos da terra, fez contrato com eles, ao modo de Cochi, pera assi o que eles tinham, como o que lhe nós havíamos de dar, estevesse sempre em um preço, porque com a ida de muitos navios que ali iam ter de Malaca, depois que foi nossa, tinham os nossos danado aquele trato em dano seu e proveito dos naturais da terra; por serem os portugueses homens neste negócio do comércio tam apressados e descobertos em seus conceitos, que lhe está a parte vendo o ânimo de seu apetite. E como gentios e mouros daquele Oriente em comprar e vender são os mais delgados e sotis homens do Mundo, e sobre isso tam pacientes e frios em descobrir seus apetites e necessidades, que ninguém lhas sente, sempre neste auto do comércio nos levam debaixo, como nós em os da guerra os sobpeamos. Acabadas estas cousas e tomada carga pera os juncos que D. Garcia levava, partiram-se ambos, via de Maluco, leixando ali alguas velas que se não poderam tam brevemente aviar, por acudirem às cousas que lhe contavam serem feitas com a chegada dos castelhanos. E porque na Ilha Bachão, de que era Rei Laudim, foram mortos os portugueses do junco de Simão Correa, como se viu neste passado capítulo passando António de Brito per ela, deteve-se enquanto mandou Simão de Abreu com algua gente que saísse em ua aldea sua, e a queimasse e matasse os que podesse; porque soubesse el-Rei Laudim que não ficavam sem emenda os danos e mal que se faziam aos portugueses: e que, como aquela sua ilha fora a primeira daquelas partes que os encetou com ferro de morte, com outro tal per eles fosse ela a primeira castigada. 277 Dado este castigo a seu salvo, foi-se António de Brito à Ilha Tidore, de que era Rei Almançor, a chegada do qual foi a tempo, que as cousas daquelas ilhas, principalmente as do reino de Ternate, estavam em estado de se perder, pera que convém fazermos 143 143 ua pequena demora na relação destas cousas, pois tudo é necessário ao prosseguimento da história. Ao tempo que António de Brito chegou a estas ilhas, era falecido el-Rei Boleife, de Ternate, e dizia-se sua morte ser de peçonha, industriada per mouros que andavam naquele trato do cravo, vendo quanto este Rei desejava termos ali fortaleza, e quanto eles perdiam se assi fosse. Sendo já a este tempo, poucos dias ante do falecimento del-Rei, morto Francisco Serrão, e também per meio dos mouros, e segundo os nossos depois souberam, quási na conjunção que mataram Fernão de Magalhães, como veremos. Parece que permitiu Deus que ambos não vissem o rostro um do outro, nem o dos nossos, por serem causa do que depois sucedeu a este reino; e nos papéis que ficaram dele, Francisco Serrão, se acharam cartas de Fernão de Magalhães, em que dava conta de si e do que esperava fazer em reposta de outras que houvera dele, como adiante se dirá. E ao tempo que el-Rei Cachil Boleife se viu no auto da morte (posto que não entendeu a causa dela), como homem prudente, e que via na imaginação o sucesso do seu reino nas diferenças que havia de ter depois de seu falecimento, por leixar dous filhos lídimos, o maior dos quais, chamado Bohaat, era de até sete anos, que o havia de suceder, e outro havia nome Daialo, e bastardos sete, os mais deles homens, ordenou seu testamento, em que mandou que a Rainha, sua mulher, que era filha del-Rei Almançor, de Tidore, ficasse por titor de seus filhos menores e governador do reino. Porque, com o favor de seu pai, el-Rei Almançor, poderia ser temida e acatada, e não ousariam os seus mover algua novidade contra seu filho; e assi encomendou a ela e ao filho sucessor e todolos principais do reino, no próprio

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testamento, que trabalhassem muito por haver nossa amizade. E não contente com as palavras do testamento, em que fazia esta encomendação, depois que o teve cerrado, mandou vir ante si a Rainha, filhos menores e os bastardos, com as principais pessoas de seu reino, e fez-lhe um arrazoamento, encomendando-lhe a paz e concórdia entre si, porque em o espírito ele os via todos com a mão armada, não por defensão do reino, mas em destruição dele, competindo a quem o havia de governar enquanto seu filho Bohaat, ligítimo herdeiro, não tinha idade pera isso. Por evitar as quais diferenças, ele leixava o governo dele à Rainha, por confiar na virtude e prudência dela que o podia bem fazer, assi pera bem dele, como a prazer dos bons. E quando ela, pela ocupação da criação de seus filhos e outras cousas próprias das mulheres, não podesse acudir a tudo, 278 ela de antre eles elegeria algum que 143v 143v a ajudasse neste trabalho do governo; e esta era a primeira cousa que pedia a todos, com a qual sua alma iria descansada. E a segunda cousa, por também depender da conservação e aumento do seu reino, e bem comum de todos, era que fizessem grande fundamento da amizade dos portugueses, porque estes os haviam de defender de seus imigos, estes lhe haviam de dar saída às novidades do seu cravo, estes lhe haviam de trazer todalas cousas de que tinham necessidade pera seu uso, e finalmente neles haviam de achar paz, fé, verdade e outras virtudes, que naquelas ilhas se não achavam; com tal que lhe guardassem as mesmas cousas, porque com estas partes se ganhava o ânimo dos homens; e ainda que fossem diferentes em lei, conservar-se-iam no ser e sustentamento da vida. E peró que naquela hora em que el-Rei propôs estas e outras cousas, que todas vinham a concluir nestas duas, os presentes tivessem ânimo de as cumprir, como ele faleceu logo se revolveu tudo; de maneira que faleceu pouco pera uns com os outros virem a rompimento de guerra. E o que mais os acendeu a cada um procurar por ser governador do reino e a ter em poder o novo Rei Bohaat, foi a vinda de Cachilato, parente del-Rei Boleife, que (como atrás fica) veo a Malaca por seu mandado a Garcia de Sá, capitão dela, e quando achou el-Rei falecido, trabalhou também por ser um dos que governassem. Porque, como levava recado que nossa armada não tardaria muito em ir àquelas partes, e naquela ilha faríamos fortaleza, queria que o achassem em posse pera com nosso favor ficar mais firme nela. A Rainha, neste tempo, não somente era atormentada com estas públicas diferenças, mas ainda com outras que ela secretamente sentia de seu pai el-Rei Almançor, o qual não esperava mais pera, com título de acudir a ela e ao neto, tomar o reino pera si, que ver travados em armas os filhos bastardos e parentes del-Rei, que eram os que competiam neste caso. A qual cousa ela, como mulher prudente, dessimulava, sem dar a entender a seu pai que o sentia na maneira que ele tinha com ela nos conselhos que lhe mandava acerca de como se havia de haver com os filhos del-Rei naquelas competências que tinham, porque tudo ia ordenado pera ele pôr em efeito seu propósito. E como estava aconselhada da prudência de seu marido, peró que contra sua natureza ela movesse isto, por ser mui amiga de mandar, todavia, constrangida da necessidade, mandou chamar todos seus enteados e os principais do reino a conselho, fengindo ser ocupada na criação de seus filhos, e por sua fraqueza natural não poder acudir aos negócios do reino; disse que ela os mandara chamar pera que soubessem 144 144 que, daquele dia em diante, elegia pera seu ajudador no governo daquele reino a Cachil Daroez, porque, além de ser irmão de seu filho e ter calidades pera isso, era homem de que todos haviam de ser contentes; portanto a ele obedecessem, como à própria pessoa dela e de seu filho. E os negócios da defensão e cousas da guerra, quando o 279

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caso o requeresse, ela os punha nas mãos dele e conselho de todos, por os tais exercícios pertencerem a eles, e não a ela. Posto o reino em assossego com esta obra da Rainha, sobrevieram os castelhanos àquelas ilhas, os quais, peró que chegassem a esta Ilha Ternate, ela nem Cachil Daroez os quiseram receber, e passaram-se a Tidore, onde foram bem recebidos del-Rei Almançor. Porque, vendo ele quam inclinados nós estávamos às cousas del-Rei Boleife, por razão das obras que dele tínhamos recebido e embaixador que mandara a Malaca, de que já tinha recado não tardarem muito ir nossas armadas àquelas ilhas, temendo que nos poderíamos mais afeiçoar por estas causas ao outro, e não a ele, e que, tendo aquele reino de Ternate fortaleza nossa, ele, Almançor, ficava mui acanhado, determinou recolher os castelhanos que lá foram ter com duas naus. Porque, além destas razões que el-Rei Almançor, por parte de seu proveito, punha ante si, deram eles outras em abonação da grandeza e estado do seu príncipe, com que houve Almançor que nesta parte de adjutório e favor não tinha menos sorte em ter consigo os castelhanos, que os de Ternate terem portugueses. Finalmente, ele lhe deu carga de cravo pera duas naus, e recolheu consigo certos homens que ali leixaram em modo de feitorizar cravo, pera tornarem as outras a este comércio. Um dos quais homens, chamado João de Campos, que ficara ali com nome de feitor, tanto que viu António de Brito ao mar, parecendo-lhe serem as naus suas, que dali eram partidas, ou de algua outra armada de Castela, meteu-se em um parau vestido em um saio de veludo e ua gorra na cabeça com outras insínias de trajo, que logo de longe deu suspeita aos nossos ser castelhano. Ao qual, ante que houvesse reconhecimento das nossas naus, António de Brito mandou um calaluz esquipado que trazia, em que o trouxeram, e dele soube todo o processo de sua vinda, e como carregara ali duas naus, ua das quais era partida per via da nossa navegação em busca do Cabo de Boa Esperança. E a outra, que também partiu em sua conserva, por lhe abrir ua grande água, tornara arribar a Tidore; e depois que foi consertada, partira com fundamento de ir demandar a terra firme, que está na costa das Antilhas, e ali descarregar, por se não atreverem a tornar pelo estreito por onde vieram. António de 144v 144v Brito, porque estas cousas se conformavam com outras que ele soubera de outro castelhano, per nome Alonço da Costa, que trazia já em a nau tirado de um junco onde o ele achara naquele caminho, o qual ele não quis que aparecesse enquanto praticava com estoutro, pera ver se concordavam ambos, levou também consigo a João de Campos, e foi surgir no porto da cidade Tidore, del-Rei Almançor, e naquele dia não houve mais entre ambos que visitações. E quando veo de noite, ouviram os nossos grande estrondo de tambores e uns sinos de metal que se usam naquelas partes, inventados na Jaua pera os remadores ao compasso e tom deles irem 280 cantando e remando, ao modo que os alemães de ordenança lançam os passos, remissos ou apressados segundo o sentem no pífaro e tambor; e com estes sinos e cantares e outros instrumentos daquele mister em frota de remos de muita gente, é cousa muito pera ouvir, principalmente de noite. E posto que alguns dos nossos tinham já visto e ouvido aquele seu modo de remar, como sentiram grande número de navios no rumor de cantar e estrondo dos sinos e não sabiam com que propósito vinham, meteu-os em alvoroço de se aperceber pera pelejar; até que António de Brito foi certificado que era Cachil Daroez, governador de Ternate, que, per mandado da Rainha, vinha buscar a ele, António de Brito, sabendo que chegara à Ilha Bachão. Entre os quais houve grande festa de salva de artelharia, e pela menhã, na vista de ambos, muito maior, o qual prazer e festa foi pera el-Rei Almançor grande confusão e tristeza. Porque bem viu ele que a deligência da Rainha de Ternate, sua filha, e de Cachil Daroez em vir tomar nossa armada ao caminho com tam grande festa, tudo era em seu dano, principalmente polo que tinha feito contra nós no gasalhado e carga que tinha dado aos castelhanos. E como homem que queria remediar o passado ante que mais fosse, veo logo ver António de Brito à sua nau, desculpando-se de o não ter feito o dia de antes; e porém que, em todo o

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tempo que fosse, ele o vinha buscar como homem mui desejoso de ter portugueses naquele seu porto, por ser a cousa que ele tanto tempo havia que procurava com cartas e recados que tinha enviado a el-Rei de Portugal e aos seus capitães que estavam em Malaca. António de Brito per o mesmo modo lhe respondeu; e que el-Rei de de Portugal, seu Senhor, por causa destes recados e cartas que ele tinha enviado, o mandava com aquela frota a fazer naquelas ilhas ua fortaleza no seu porto de Tidore ou Ternate, onde a ele, António de Brito, bem parecesse; havendo respeito à desposição do sítio do lugar e saúde dele, e também onde 145 145 achasse melhor gasalhado e mais verdade e fé. Porque os portugueses, quando edificavam algua casa, em que esperavam viver muito tempo, a duas cousas principalmente tinham respeito: ao sítio e desposição do lugar, e à boa ou má vezinhança; porque, na primeira, seguravam a saúde corporal, e na segunda, paz e verdade, de que dependem todolos bens da vida. E porque ele achava aquela sua ilha ocupada com os novos hóspedes que nela agasalhara, vindo eles ali mais acaso que por os ele procurar ou chamar, como tinha feito aos portugueses, a ele lhe parecia escusado buscar porto naquela sua ilha, pois ele, Almançor, estava satisfeito daqueles novos amigos. E que por isso se queria partir para Ternate, onde esperava recado do que el-Rei de Portugal, seu Senhor, lhe mandava que fizesse naquele caso, sobre que lhe logo escreveria em a primeira moução. El-Rei Almançor ficou tam confuso com estas palavras, que todas as suas foram uas desculpas mal atadas, às quais Cachil Daroez respondeu, porque via que el-Rei retorcia tudo a que era mais razão fazer ele, António de 281 Brito, fortaleza naquela sua ilha que em Ternate. E foi entre eles a profia tam travada, e Cachil Daroez falava com ua liberdade de fé que nos tinha guardada, e tam confiado em sua pessoa, como cavaleiro que ele era, que foi necessário lançar António de Brito o bastão no meio. E depois que de ua parte e de outra se altercou mais brandamente, disse ele a el-Rei que queria mandar ver os portos daquela sua ilha; porque, vistos os dela e os de Ternate, conformar-se-ia com o regimento que lhe pera isso dera el-Rei, seu Senhor. El-Rei, já mais contente de si, espediu-se de António de Brito, dizendo que ele se ia a terra pera lhe mandar entregar aqueles hóspedes, por cuja causa ante ele tanto tinha perdido; ca não os queria ter consigo, pois ele se descontentava disso. João de Campos, feitor dos castelhanos, como sentiu o caso, não lhe faleceu descrição pera requerer a António de Brito que mandasse pôr em cobro a fazenda que ali tinha, e que a não leixasse em poder del-Rei. Ao que António de Brito respondeu que a fosse ele recolher; e que, pois as pessoas que com ela estavam haviam de vir e eram de mais preço, onde eles estevessem, estaria ela com eles seguramente. E pera isso mandou com ele a Lisuarte de Liz, que era escrivão da feitoria, pera que, além do inventairo que os castelhanos fizessem dela, fizesse ele outro por mais segurança da fazenda del-Rei de Castela, que eles deziam ter ali. Finalmente, recolhida ela, e os castelhanos que a trouxeram em seu poder, António de Brito se foi com Cachil Daroez a Ternate, onde o novo Rei e sua madre, com todolos principais, o receberam 145v 145v com grande aparato e tanto prazer e festa, como que entrava naquela terra um remidor de seus trabalhos e defensor de todos. António de Brito, posto que mais por contentar el-Rei Almançor, que por desejar fazer fortaleza em Tidore, ele mandasse lá correr todolos portos, todavia, se achara outro melhor que o de Ternate, por então ele o aceitara, até assossegar o ânimo daquele mouro sobre as cousas em que os castelhanos o tinham metido, posto que ele se mostrava disso muito arrependido. Mas como o de Ternate, ainda que fosse recife, era melhor que todolos de Tidore, teve ele aparente escusa de não fazer lá fortaleza, que não foi pouca dor pera el-Rei.

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Elegido este lugar por não haver outro melhor, e mais estar pegado na cidade Ternate, começou António de Brito entender na obra; e a primeira enxadada que se deu no seu alicece e pedra que se nele lançou, foi per mão de António de Brito a vinte e quatro dias de Junho do ano de mil e quinhentos e vinte dous, estando ele e todolos nossos com capelas na cabeça e 282 grande festa por a solenidade do dia, que era de S. João Bautista; e todolos outros fidalgos, cavaleiros e gente de armas fizeram outro tanto, e por memória deste santo houve a fortaleza nome S. João.

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145v 145v 282 Capítulo VIII. Como Fernão de Magalhães se foi a Castela em desserviço del-Rei D. Manuel, e as causas porquê; e como el-Rei D. Carlos de Castela, que depois foi Emperador, aceitou seu serviço e se determinou em o mandar às Ilhas de Maluco per nova navegação. Atrás escrevemos como Francisco Serrão, das Ilhas de Maluco onde foi ter, escreveu alguas cartas a Fernão de Magalhães, por ser seu amigo do tempo que ambos andaram na Índia, principalmente na tomada de Malaca, dando-lhe conta das ilhas daquele Oriente. Ampliando isto com tantas palavras e mistérios, fazendo tanta distância donde estava a Malaca, por fazer em si pera méritos de seu galardão ante el-Rei D. Manuel, que parecia virem aquelas cartas de mais longe que dos antípodas, e de outro Novo Mundo, em que tinha feito mais serviço a el-Rei, do que fizera ao Almirante D. Vasco da Gama no descobrimento da Índia. As quais cartas foram vistas na mão de Fernão de Magalhães, porque se prezava ele muito da amizade de Francisco Serrão, e em as mostrar denunciava aquele grande serviço que tinha feito a el-Rei; e também ele estribou logo tanto nelas pera o propósito que delas concebeu, que não falava 146 146 em outra cousa. O qual propósito se viu depois em cartas suas, que se acharam entre alguns papéis que ficaram per falecimento de Francisco Serrão, lá em Maluco, que António de Brito mandou recolher, e eram repostas das que lhe ele, Francisco Serrão, escrevia (como ora veremos), nas quais dizia que, prazendo a Deus, cedo se veria com ele; e que, quando não fosse per via de Portugal, seria per via de Castela, porque em tal estado andavam suas cousas; portanto que o esperasse lá, porque já se conheciam da pousada pera ele esperar que ambos se haveriam bem. E como o demónio sempre no ânimo dos homens move cousas pera 283 algum mau feito e os acabar nele, ordenou caso pera que este Fernão de Magalhães se descontentasse de seu Rei, e do reino, e mais acabasse em maus caminhos, como acabou. E foi per esta maneira: Estando ele, Fernão de Magalhães, em Azamor, sendo capitão daquela cidade João Soares, em ua corrida que se fez contra os mouros a um repique, foi ele, Fernão de Magalhães, ferido com ua lança de arremesso; e parece que lhe tocou em algum nervo da juntura da curva, com que depois manquejava um pouco. Sobre o qual caso sucedeu em ua entrada que fez João Soares, (por ser causa notável, segundo contamos em a nossa parte África, se chama a de Lei de Farax), em que se tomaram oitocentas e noventa almas e duas mil cabeças de gado vacum, da qual cavalgada João Soares, por razão de sua aleijão lhe dar algum proveito, fez quadrilheiro-mor a este Fernão de Magalhães, e com ele a um Álvaro Monteiro. Os quais, segundo se depois os moradores da cidade aqueixavam, por razão das partes que haviam de haver da cavalgada, ambos meteram bem a mão nela, principalmente no gado, dizendo que venderam aos mouros de Enxouvia quatrocentas cabeças. E o concerto foi que viessem de noite por ele, por o terem ao longo do muro da cidade; e depois de ser levado e que os mouros o teriam já posto em salvo, fizeram repicar, dizendo que furtavam o gado, e ao outro dia foram pela trilha dele, cuidando que estava, ainda daquém do rio, e foram dar no vau per onde o passaram. Fernão de Magalhães, passado este ímpeto da murmuração, como era cousa de muitos, a que ninguém quis acudir, principalmente por se vir João Soares de Azamor e ir de cá por capitão D.

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Pedro de Sousa, que depois foi feito Conde do Prado, nesta envolta de capitão novo veo-se ele também pera este reino sem licença de D. Pedro. E como ele, Fernão de Magalhães, era homem de nobre sangue e de serviço, e também manquejava da perna, começou ter logo alguns requerimentos com el-Rei Dom Manuel, entre os quais dizem que foi 146v 146v acrescentamento da sua moradia - cousa que tem dado aos homens nobres deste reino muito trabalho, e parece que é ua espécia de martírio entre os portugueses, e acerca dos reis causa de escândalo. Porque, como os homens tem recebido por opinião comum que as mercês do príncipe dadas per mérito de serviço são ua justiça comutativa que se deve guardar igualmente em todos, guardada a calidade de cada um, quando lhe negam a sua porção, peró que o sofram mal, ainda tem paciência; mas quando vem exemplo em seu igual, principalmente naqueles a que aproveitou mais 284 artefícios e amigos que méritos próprios, aqui se perde toda paciência, daqui nasce a indinação, e dela ódio, e finalmente toda desesperação, até que vem cometer crimes, com que danam a si e a outrem. E o que mais danou a Fernão de Magalhães, que mais meio cruzado de acrescentamento cada mês em sua moradia, que era seu requerimento, foi que alguns homens que se acharam em Azamor no tempo que ele lá esteve, sobre a fama que trouxe do furto do gado, começaram dizer que a sua manqueira era fengida e artefício pera seu requerimento. As quais cousas com outras que ele soltava como homem indinado, vieram à notícia del-Rei, com que lhe entreteve seu despacho. Acrescentou-se mais em seu dano escrever D. Pedro de Sousa, capitão de Azamor, a el-Rei, como ele, Fernão de Magalhães, se viera sem sua licença, e o que tinha feito na cavalgada, segundo se os moradores queixavam; que pedia a Sua Alteza mandasse saber como passava, pera lhe dar a emenda que merecia. Fernão de Magalhães, posto que com palavras se queria justificar ante el-Rei, não lhas quis receber, e mandou que se fosse logo a Azamor livrar por justiça, pois lá era acusado. Chegado lá, ou porque ele seria limpo desta culpa, ou (segundo se mais afirma) os fronteiros de Azamor, polo não avexar, o não acusaram, ele se tornou a este reino com a sentença de seu livramento; peró sempre lhe el-Rei teve um entejo. E quando veo ao despacho de seus requerimentos, porque não foram à sua vontade, pôs ele em obra o que tinha escrito a Francisco Serrão, seu amigo, que estava em Maluco; donde parece que sua ida pera Castela andava no seu ânimo de mais dias, que movida de acidente do despacho. E prova-se: porque, ante de o ter, sempre andava com pilotos cartas de marear e altura de Leste, Oeste - matéria que tem lançado a perder mais portugueses inorantes, do que são ganhados os doutos per ela, pois ainda não vimos algum que o posesse em efeito. Da qual prática, que tinha com esta gente do mar e também por ele ter um engenho dado a isso e experiência do tempo que andara na 147 147 Índia, com mostrar as cartas que lhe Francisco Serrão escreveu, começou semear nas orelhas desta gente que as Ilhas de Maluco estavam tam orientais quanto a nós, que caíam na demarcação de Castela. E pera confirmação desta doutrina, que semeava nas orelhas dos mareantes, ajuntou-se com um Rui Faleiro, português de nação, astrólogo judiciário, também agravado del-Rei, porque o não quis tomar por este ofício, como se fora cousa de que el-Rei tinha muita necessidade. Finalmente, avindos ambos neste propósito de darem algum desgosto a el-Rei, deram consigo em Sevilha, levando alguns pilotos também doentes desta sua enfermidade, e lá acharam outros amorados deste reino, com que fizeram corpo de sua abonação por naquela cidade concorrer muita gente deste mister do mar, por causa das armadas que se ali faziam pera as Antilhas. 285 Na qual cidade achou ele, Fernão de Magalhães, gasalhado e favor pera suas cousas em casa de um Diogo Barbosa, natural português, que no ano de quinhentos e um (como atrás escrevemos), na

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primeira armada foi com João da Nova por capitão de um navio que era de D. Álvaro, irmão do Duque de Bragança, D. Fernando. E no tempo que ele, D. Álvaro, andou em Castela, este Diogo Barbosa teve por ele, como alcaide-mor, o castelo de Sevilha. Do qual gasalhado, que Fernão de Magalhães recebeu dele, Diogo Barbosa, e parentesco que também entre eles havia, veo o mesmo Fernão de Magalhães casar com ua filha sua, já acreditado por el-Rei D. Carlos de Castela, que depois foi eleito por Emperador e Rei dos Romanos. Ao qual Rei Álvaro da Costa, camareiro e guarda-roupa-mor del-Rei D. Manuel, que então estava em Castela por seu embaixador sobre o casamento da Infante D. Lianor, requereu que não quisesse intentar a tal empresa, por ser cousa que pertencia a este reino, dando pera isso as rezões e cousas da antiga demarcação feita entre estes reinos de Portugal e Castela. E primeiro que com ele tevesse esta prática, a tevera com o mesmo Fernão de Magalhães, provocando-o a que desistisse daquela openião, pois no que cometia não somente ofendia a Deus e a seu Rei, mas ainda maculava perpetuamente sua honra e danava a seus parentes, e finalmente era causa de haver paixões e desgostos entre dous Reis tam amigos, liados e parentes. Às quais rezões deu por escusa ter já dado palavra de si a el-Rei de Castela, como que em não ir avante com ela ofendia mais a sua alma, e menos em seguir sua indinação. El-Rei de Castela, como estava namorado das cartas e pomas de marear que Fernão de Magalhães lhe tinha mostrado, e principalmente da carta que Francisco Serrão escreveu a ele, Fernão de Magalhães, 147v 147v de Maluco, em que ele mais escorava, e assi das rezões dele e do Faleiro, astrólogo, teveram estas pinturas e palavras de homens indinados mais força pera el-Rei se determinar em mandar ua armada a este negócio, que quantas rezões lhe apresentou Álvaro da Costa, sendo no maior fervor da liança que el-Rei queria ter com ele, que era tratando o casamento da Infante D. Lianor com ele, que se então fez, como particularmente escrevemos em sua própria Crónica. As quais vodas, por serem nesta conjunção, parece que trocaram a ordem de todalas dos príncipes, porque as mais das pazes que se entre eles fazem, passadas muitas diferenças, guerras e contendas, a paz destas cousas se remata per casamentos à maneira de comédias; e este casamento e nova liança del-Rei D. Manuel, por guardar o decoro das reais pessoas com que se tratava e fazia, houve-se mais respeito ao modo que à cousa e causa de tanto parentesco, porque teve o princípio no fim das tragédias, que acabam 286 em trabalhos e desgostos, como daqui procederam. Porque o interesse é tam próprio a si mesmo, que, como faz assento no ânimo de alguém, poucas vezes dá lugar a outras rezões, por mui conjuntas e obrigatórias que sejam. Finalmente, el-Rei D. Carlos de Castela, pera este novo descobrimento que Fernão de Magalhães prometia, mandou armar cinco velas, de que o fez Capitão-mor, e os outros capitães haviam nome Luís de Mendoça, Gaspar de Quexada, João de Cartagena e João Serrão, todos naturais castelhanos; e assi toda a mais gente da armada, que seria até duzentas e cinquenta pessoas, em que entravam alguns portugueses, deles parentes dele, Fernão de Magalhães, assi como Duarte Barbosa, seu cunhado, e Álvaro de Mesquita, e Estêvão Gomes, e João Rodrigues Carvalho, ambos pilotos, e outros homens induzidos per eles. E não foi o astrólogo Rui Faleiro, ou porque se arrependeu da jornada, ou por ver per sua astrologia em que fim havia de parar aquela armada, e segundo dizem fengiu doudice; mas permitiu Deus que fosse ela verdadeira, com que ficou preso em Sevilha na casa dos doudos, e em seu lugar foi outro astrólogo, chamado Andrés de San Martim, homem douto na ciência de astronomia, segundo vimos nas operações que fez nesta viagem, de que adiante faremos declaração. Mas parece que também este não calculou bem a hora do dia que a armada partiu de São Lucar de Barrameda, que foi a vinte e um dias de Setembro do ano de quinhentos e dezanove, pois não viu como ele e Fernão de Magalhães haviam de acabar na Ilha de Subo; nem menos viu a

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justiça que se fez entre eles dos capitães, nem quanta fortuna aquela armada passou, como se verá neste seguinte Capítulo.

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148 148 286 Capítulo IX. Da viagem que Fernão de Magalhães fez com esta frota; e o que sucedeu a ele e a ela, até descobrir um estreito que passava ao mar do Ponente. Partida esta frota de S. Lucar de Barrameda, foi ter às Canárias, onde se deteveram quatro dias; e aqui veo a Fernão de Magalhães ua caravela, na qual dizem que lhe veo aviso que tevesse tento em si, porquanto os capitães que levava iam com propósito de lhe não obedecer. E peró que ao diante eles vieram cometer este caso, mais parece que procedeu das causas do caminho e do modo que ele, Fernão de Magalhães, se havia com eles, que de o levarem em propósito. Porque, passados o Rio 287 de Janeiro da nossa Província de Santa Cruz, a que vulgarmente chamam Brasil, tanto que começaram achar os mares frios, principalmente do Rio da Prata por diante, que está em trinta e cinco graus, quiseram os capitães pedir razão a ele, Fernão de Magalhães, do caminho e do que esperava fazer, vendo que não achava cabo nem estreito, de que ele fazia tanto fundamento. Aos quais ele respondia que o leixassem fazer, que ele o entendia mui bem, dando-lhe entender que sobre seu conselho pendia todo aquele negócio, e não deles. Seguindo seu descobrimento, chegaram a dous dias de Abril do ano de quinhentos e vinte a um rio a que chamaram de S. Julião, que está em cinquenta graus, e isto já com tantas tormentas e frios, que os mareantes não podiam marear as velas; porque naquelas partes o Inverno em proporção de clima é mais frio que da parte do Norte, assi por razão do auge do Sol, como querem os astrónomos, como por ser desabrigado de terra firme da parte do Pólo. No qual rio houve entre o Capitão-mor e os outros consulta sobre a navegação que fizeram e tinham por fazer, da qual procederam alguas paixões entre todos. Ca Fernão de Magalhães não recebeu bem nenhum de quantos inconvenientes lhe poseram sobre irem mais avante, ante se determinou que havia de invernar ali, e como viesse o verão, prosseguir no descobrimento do cabo ou estreito, até setenta e cinco graus, dizendo que, pois os mares da costa da Noruega e Islanda, que estavam em maior altura, no tempo do seu Verão eram tam fáceles de navegar como os de Espanha, assi o seriam aqueles. E porque Fernão de Magalhães nesta prática se mostrou isento e não sujeito aos votos dos capitães e pilotos, houve entre todos murmuração: os principais e de melhor juízo, afirmando-se que aquele descobrimento não era proveitoso aos reinos de Castela; porque, ainda que onde eles estavam, que era em cinquenta graus de altura, fora cabo ou estreito, já não era clima pera se navegar de tam longe. E se os mares de Noruega e Islanda se navegavam, como ele, Fernão de Magalhães, dava por razão, isto era per gente natural da mesma terra, ou tam 148v 148v vezinha a eles, que em espaço de quinze dias de navegação podiam chegar ao mais remoto deles. Mas vir de Castela, e passar a Linha Equinocial, e correr a costa de todo o Brasil, que haviam mister mais de seis ou sete meses de navegação, e em tam diversos climas que na mudança de um se mudavam os tempos, eram todos estes perigos perdição de naus, de gente e de tanta substância de fazenda, que importava mais em proveito comum, que todo o cravo de Maluco, quando tam fácil fosse o caminho, que estava por passar da banda do outro mar, que ainda tinha por descobrir. A outra gente comum, que não tinha este discurso, dizia que ele, Magalhães, por se restituir na graça del-Rei de Portugal, a quem tinha ofendido naquela impresa que tomaram, os queria a todos ir meter em parte onde morressem, e depois tornar-se a Portugal. Finalmente, como todos não se 288

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podiam amparar do frio e padeciam trabalhos incomportáveis, ajuntando esta impaciência ao escândalo, copilaram estes três capitães - João de Cartagena, Gaspar de Quexada e Luís de Mendoça - de prender ou matar a Fernão de Magalhães, e tornar-se pera Castela, e dar razão do que até li tinham passado, e da contumácia dele. Fernão de Magalhães, sabendo esta sua consulta, teve modo como mandou matar Luís de Mendoça dentro na sua nau, que estava de fora da boca do rio, per um Gonçalo Gomes, de Espinhosa, que servia de meirinho da armada, levando-lhe um recado de sua parte; e tanto que este foi morto às punhaladas, prendeu os outros dous, de que o Gaspar Quexada logo foi esquartejado vivo, e assi o Luís de Mendoça, depois de morto. E porque na armada não havia quem servisse deste ofício, deu Fernão de Magalhães a vida a um criado de Gaspar de Quexada pera o fazer, por ele ser comprendido na traição do senhor, porque com título de tredores ao serviço del-Rei de Castela se fez esta justiça. E a João de Cartagena foi perdoada aquela morte natural, e houve outra cível de perpétuo degredo naquela erma terra; e com ele ficou também um clérigo, que tinha a mesma culpa, com trinta arráteis de pão a cada um pera se manter. E peró que muita gente era com eles nesta consulta, somente em suas pessoas se fez justiça de todos, porque havendo de punir os culpados, poucos lhe ficariam pera fazer sua viagem; mas no trabalho que deu a alguns, receberam assaz de pena. Porque, como ele assentou de passar ali o Inverno, que eram estes meses - Maio, Junho, Julho e Agosto - que o Sol anda cá parte do Norte que habitamos, neste tempo não somente os ocupou em corregimento das naus, que era cousa piadosa ver o que padeciam com frio, mas ainda os mandou entrar pela terra dentro, 149 149 que fossem descobrir e a tentar se ouviam da outra parte algum tom do mar, pormetendo mercê aquele que trouxesse algua boa nova. Na qual ida entraram vinte léguas pelo sertão, em que gastaram dez dias e trouxeram consigo uns homens da terra, cujos corpos passavam de doze palmos, aos quais o Capitão-mor mandou dar dádivas, e reteve dous por mostra de sua grandeza e os trazer a Castela; mas duraram pouco por ser gente costumada comer carne crua. Neste mesmo tempo se lhe perdeu um navio, capitão João Serrão, o qual ele, Fernão de Magalhães, mandara diante ver se achava algum cabo ou estreito. E posto que a gente se salvou daquele naufrágio, sendo donde a armada ficava até vinte léguas, em onze dias que parte da gente melhor desposta a veo buscar per terra, padeceram tantos trabalhos de fome e frio, que, quando chegaram, quási os não conhecia, por virem semelháveis à mesma morte, e os mais que lá ficaram mandou vir Fernão de Magalhães em um batel. Partido daqui, onde lhe faleceu algua gente de frio e trabalho de repairar as naus, foi costeando a terra, entrando em baías e portos, por ver se achava algum estreito, até que chegaram a um cabo a vinte dias de Outubro, 289 a que chamaram das Virgens, por ser no dia que a Igreja celebra a festa das onze mil, o qual está em cinquenta e dous graus; e adiante dele, obra de doze léguas, acharam a barra de um estreito que estava em altura de cinquenta e dous graus, cinquenta e seis menutos, e tinha de boca obra de ua légua. E como, pela grande força da corrente que trazia e deligências que mandou fazer e sinais de baleas mortas que achavam na praia, Fernão de Magalhães entendeu que estava na boca de algum estreito, que passava a outro mar largo, mandou fazer grande festa per todalas naus, como que ali estava o fim de toda sua esperança. E porque entre a gente havia grande rumor sobre o pouco mantimento que tinham, visto como ele, Fernão de Magalhães, se determinava de entrar pelo estreito e seguir seu intento, mandou lançar um pregão per todalas naus, que qualquer pessoa que falasse em não haver mantimento que morresse por isso. Com a qual deteminação ele entrou pelo estreito, que em partes tem largura de tiro de espingarda e bombarda, e em outras de légua e légua e meia, tudo de ua parte e da outra terra alta, muita dela escaldada dos ventos, e a outra com arvoredo, em que havia aciprestes. E no cume das mais altas montanhas viam jazer a neve, como que todo ano estava sem se derreter, e algua declinava a cor celeste, ou de mui antiga e recota ou de

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qualquer outra cousa natural, que a gente não alcançava. Sendo já per dentro do qual estreito 149v 149v até cinquenta léguas, vendo per a ribeira dele angras, rios e esteiros, que entravam pela terra, passaram um lugar mais estreito, que se fazia entre duas serras mui altas, e além desta estreiteza viram que se fazia em dous braços. Fernão de Magalhães, porque se não soube determinar qual daqueles era o que passava a outro mar, pelo da parte do Sul mandou entrar ua nau, capitão Álvaro de Mesquita, que fosse descobrir o que lá ia dentro; e pelo outro mandou um batel, que logo tornou, descobrindo somente até doze léguas. E porque ele pôs lemitação à nau, que aos três dias tornasse com nova do que achava, e eram já passados seis, mandou outra nau que a fosse buscar, o capitão da qual tornou daí a três dias sem achar notícia algua. Fernão de Magalhães, desejando saber o que era feito dela, disse ao astrólogo Andrés de San Martim que pronosticasse pela hora da partida e sua interrogação; o qual respondeu que achava ser a nau tornada pera Castela, e que o capitão ia preso. E posto que Fernão de Magalhães não deu muito crédito a isso, todavia passou assi; porque o piloto com favor de toda a gente, se fez à volta de Espanha; e ainda sobre o capitão Álvaro de Mesquita o contrariar, foi ferido e preso, e vieram-se per onde leixavam os dous degredados João de Cartagena e o clérigo, e chegaram a Castela passados oito meses depois que se partiram de Fernão de Magalhães. Ele, quando se viu sem aquela nau, por nela ir Álvaro de Mesquita e alguns portugueses, e não ficava com mais favor que de Duarte Barbosa e alguns poucos de que se esperava ajudar, porque toda a outra gente castelhana 290 estava dele escandalizada, além do avorrecimento que tinha aquela jornada, polos grandes trabalhos que tinham passado, ficou tam confuso, que se não sabia determinar. E por se justificar com estes do que se receava, passou dous mandados seus ambos de um teor pera as duas naus, sem querer que as pessoas principais viessem a ele; já como homem que não queria ver na sua nau muito ajuntamento, temendo algua indinação deles, se lhe não respondesse à sua vontade. E porque um destes seus mandados foi ter à nau, capitão Duarte Barbosa, onde estava o astrólogo Andrés de San Martim, o qual registou este mandado em um livro, e ao pé pôs sua reposta pera em todo tempo ele dar razão de si; e este seu livro, com alguns papéis seus, por ele falecer naquelas partes de Maluco, nós os houvemos e temos em nosso poder, como adiante diremos, não parece fora da história pôr aqui o trelado deste mandado e a reposta dele, Andrés de San Martim; porque se veja não per nós, mas per suas próprias palavras, o estado em que eles iam; e o propósito dele, Fernão 150 150 de Magalhães, no caminho que se esperava cometer per via do nosso descoberto, quando lhe falecesse o que ele desejava achar. E peró que em a nossa linguagem, estas são suas palavras formais e frases da escritura, sem mudar letra, segundo estava registado per Andrés de San Martim, como dissémos: Eu, Fernão de Magalhães, Cavaleiro da Ordem de Santiago e Capitão geral desta armada, que Sua Majestade envia ao descobrimento da especearia, etc. Faço saber a vós, Duarte Barbosa, capitão da nau Vitória, e aos pilotos, mestres e contramestres dela, como eu tenho sentido que a todos vos parece cousa grave estar eu determinado de ir adiante, por vos parecer que o tempo é pouco pera fazer esta viagem em que imos. E porquanto eu sou homem que nunca enjeitei o parecer e conselho de ninguém, ante todas minhas cousas são praticadas e comunicadas geralmente com todos, sem que pessoa algua de mi seja afrontada, e por causa do que aconteceu no porto de S. Julião sobre a morte de Luís de Mendoça, Gaspar de Quexada e desterro de João de Cartagena e Pero Sanches de Reina, clérigo, vós outros com temor leixais de me dizer e aconselhar tudo aquilo que vos parece que é serviço de Sua Majestade e bem segurança da dita armada, e não mo tendes dito e aconselhado: errais ao serviço do Emperador-Rei, nosso Senhor, e is contra o juramento e

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pleito e menage que me tendes feito. Polo qual vos mando, da parte do dito Senhor, e da minha rogo e encomendo, que tudo aquilo que sentis que convém à nossa jornada, assi de ir adiante, como de nos tornar, me deis vossos pareceres per escrito cada um per si, declarando as cousas e razões por que devemos de ir adiante ou nos tornar, não tendo respeito a cousa algua por que leixeis de dizer a verdade. Com as quais razões e pareceres direi o meu, e determinação pera tomar conclusão no que havemos de fazer. Feito no Canal de Todos os Santos, defronte do Rio do Ilhéu, em 291 quarta-feira vinte e um de Novembro, em cinquenta e três graus, de mil e quinhentos e vinte anos. Per mandado do Capitão-geral Fernão de Magalhães. Leon de Espelece. Foi noteficado per Martim Mendes, escrivão da dita nau, em quinta-feira, vinte dous dias de Novembro, de mil e quinhentos e vinte anos. Ao qual dito mandado eu, Andrés de San Martim, dei e respondi meu parecer, que era do teor seguinte: Mui magnífico Senhor: visto o mandado de Vossa Mercê, que quinta feira, vinte dous dias de Novembro de mil e quinhentos e vinte, me foi noteficado per Martim Mendes, escrivão desta nau de Sua Majestade, chamada Vitória, per o qual em efeito manda que dê meu parecer acerca do 150v 150v que sinto que convém a esta presente jornada, assi de ir adiante como tornar, com as razões que pera um e pera o outro nos moverem, como mais largo no dito mandado se contém, digo: Que ainda que eu duvide que per este Canal de Todolos Santos, onde agora estamos, nem pelos outros que dos dous estreitos que a dentro estão, que vai na volta de Leste e Lesnordeste, haja caminho pera poder navegar a Maluco, isto não faz nem desfaz ao caso, pera que não se haja de saber tudo o que se puder alcançar, servindo-nos os tempos, enquanto estamos no coração do Verão. E parece que Vossa Mercê deve ir adiante por ele agora, enquanto temos a frol do Verão na mão; e com o que achar ou descobrir até meado o mês de Janeiro, primeiro que virá, de mil e quinhentos e vinte anos, Vossa Mercê faça fundamento de tornar na volta de Espanha, porque daí adiante os dias minguam já de golpe, e por razão dos temporais hão-de ser mais pesados que os de agora. E quando agora que temos os dias de dezassete horas, e mais o que há da alvorada e depois do Sol posto, tevemos os tempos tam tempestosos e tam mudáveis, muito mais se espera que sejam quando os dias forem descendo de quinze pera doze horas, e muito mais no Inverno, como já no passado temos visto. E que Vossa Mercê seja desabocado dos estreitos afora pera de todo o mês de Janeiro; e se puder neste tempo, tomada água e lenha que basta, ir de ponto em branco na volta da Baía de Calez, ou porto de S. Lucar de Barrameda donde partimos. E fazer fundamento de ir mais na altura do Polo Austral do que agora estamos ou temos, como Vossa Mercê o deu em instrução aos capitães no Rio da Cruz, não me parece que o poderá fazer, por a terrebilidade e tempestuosidade dos tempos, porque quando nesta que agora temos se caminha com tanto trabalho e risco, que será sendo em sessenta e setenta e cinco graus e mais adiante? Como Vossa Mercê disse que havia de ir demandar Maluco na volta de Leste, Lesnordeste, dobrando o Cabo da Boa Esperança, ou longe dele, por esta vez não me parece; assi porque quando lá formos seria já Inverno, como Vossa Mercê melhor sabe, como porque a gente está 292 fraca e desfalecida de suas forças; e ainda que ao presente tem mantimentos, que bastem pera se sustentar, não são tantos e tais, que sejam pera cobrar novas forças, nem pera comportar trabalho demasiado, sem que muito o sintam em o ser de suas pessoas; e também vejo dos que caem enfermos, que tarde convalescem. E ainda que Vossa Mercê tenho boas naus e bem aparelhadas (louvado Deus!) todavia ainda falecem amarras, em, especialmente, esta nau Vitória. E além disso a gente é fraca e desfalecida, e os mantimentos 151 151

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não bastantes pera ir pela sobredita via a Maluco, e de ali tornarem a Espanha. Também me parece que Vossa Mercê não deve caminhar por estas costas de noite, assi por a seguridade das naus, como porque a gente tenha lugar de repousar algum pouco; ca, tendo de luz clara dezanove horas, que mande surgir por quatro ou cinco horas que ficam de noite. Porque parece cousa concorde à razão surgir por quatro ou cinco horas que ficam da noite, por dar (como digo) repouso à gente, e não tempestear com as naus e aparelhos. E o mais principal por nos guardar de algum revés, que a contraira fortuna poderá trazer, de que nos Deus livre. Porque, quando em as cousas vistas e olhadas soem acaecer, não é muitos temê-los em o que ainda não é bem visto, nem sabido, nem bem olhado, senão que faça surgir ante de ua hora de Sol, que duas léguas de caminho adiante e sobre noite. Eu tenho dito o que sinto e o que alcanço, por comprir com Deus e com Vossa Mercê, e com o que me parece serviço de Sua Majestade e bem da armada. Vossa Mercê faça o que lhe parecer e Deus lhe encaminhar; ao qual praza de lhe prosperar vida e estado, como ele deseja. Fernão de Magalhães, recebido este e os outros pareceres, como sua tenção não era tornar atrás por cousa algua, e somente quis fazer este comprimento, por sentir que a gente não andava contente dele, mas assombrada do castigo que dera, pera dar razão de si, fez ua comprida reposta, em que deu largas razões, tudo ordenado a irem avante. E que jurava pelo hábito de Santiago que tinha no peito, que assi lho parecia, polo que compria a bem daquela armada; portanto todos o seguissem, ca ele esperava na piadade de Deus que os trouxera até aquele lugar, e lhe tinha descoberto aquele canal tam desejado, que os levaria ao termo de sua esperança. Noteficado pelas naus este seu parecer e mandado, ao outro dia, com grande festa de tiros, mandou levar âncora; e dado à vela, fez seu caminho até que saiu daquele canal ao outro Mar de Ponente. E posto que faça alguns tornos ora a um rumo, ora a outro, quási a saída está na altura da entrada, e em muitas partes vasa com a maré oito e nove braças, e vai a água tam tesa que corre ua nau grande perigo, se não está mui bem amarrada, porque porta muito polas amarras.

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151 151 293 Capítulo X. Do que Fernão de Magalhães passou em sua navegação do Mar do Ponente até chegar à Ilha Subo, onde mataram a ele e a principal gente de sua armada; e do que mais sucedeu aos que ficaram. 151v 151v Tanto que Fernão de Magalhães se viu no Mar do Ponente, porque andava tam furioso como o oriental donde vinha por causa da frialdade do clima, mandou navegar contra a Linha Equinocial pera se meter no quente; e como achou os mares mais brandos, pôs a proa em Aloesnoroeste per espaço de quatro meses. E sendo obra de mil e quinhentas léguas da boca do estreito, segundo sua estimação, e em altura de dezoito graus da banda do Sul, acharam ua pequena ilha, que foi a primeira terra que viram depois da saída do estreito, a que poseram nome Ilha Primeira. E di a duzentas léguas ao Noroeste, desta em altura de treze graus, acharam outra que seria de ua légua, em a qual fizeram pescaria; e polos muitos tubarões que nela havia, lhe chamaram dos Tubarões. E porque ele, Fernão de Magalhães, sabia que as Ilhas de Maluco estavam debaixo da Linha Equinocial, desta Ilha dos Tubarões foi navegando até se meter nela. Cursando tanto per este rumo que levava, que, de lhe parecer que tinha escorrido as Ilhas de Maluco, (ca, segundo sua Carta, passava de cento e oitenta graus de longura), passou-se da banda do Norte em altura de quinze graus e meio, a ver se achava alguas ilhas ou terra das que nós navegamos, pera tomar língua e saber em que paragem era, já como homem que tinha perdido a estimação do lugar em que podia ser. Na qual paragem achou um número de ilhas pequenas, e di, por serem desertas, foram subindo té altura de vinte e um graus, desejando achar algua terra firme, e fazendo interrogações sobre isso ao astrólogo Andrés de San Martim, porque, como lhe já falecia a conta e rezão do marear, leixando a astronomia, convertia-se à astrologia. Finalmente, porque ele andou per aqui tornando a deminuir da altura de ilha em ilha, como dizem, às redes - em ua parte lhe matavam homens, em outra lhe furtavam o batel, e se aqui recebiam mantimentos, ali afrontas e perigos - veo ter a ua ilha chamada Subo, onde acabou seus trabalhos. A qual ilha está em altura de dez graus da parte do Norte, e terá em roda dez ou doze léguas, onde acharam ouro e tanto gasalhado no Rei gentio dela, que veo Fernão de Magalhães a o querer fazer cristão, o que ele aceitou, bautizando-se com sua mulher e filhos e mais de oitocentas pessoas, e isto mais por artifício do que havia mister dele, que por devação ou eleição de melhor estado. E o caso foi este: Como onde há vezinhança logo há competência, este Rei, a que ele, no bautismo pôs nome D. Fernando, acertou de ter por vezinho outro Rei 294 com quem andava em guerra, contra o qual ele lhe pediu ajuda, pois era já feito cristão e chamado 152 152 Fernando, do seu nome. Fernão de Magalhães, polo comprazer, meteu-se neste negócio de guerra; e peró que houve duas vitórias do Rei imigo de D. Fernando, quando veo a terceira, com duas ciladas que lhe armaram os imigos, foi necessário os castelhanos recolherem-se aos batéis. E primeiro que se salvassem, foram mortos Fernão de Magalhães e o astrólogo Andrés de San Martim e um Cristóvão Rabelo, português, com outros seis ou sete homens, a vinte sete dias do mês de Abril, de quinhentos e vinte um.

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O qual tempo e lugar de suas mortes não alcançou o astrólogo Andrés de San Martim, posto que pelo ascendente de sua partida e per alguas interrogações que lhe Fernão de Magalhães fizera, ele lhe tinha dito que naquele caminho lhe via um grande perigo de morte. Parece que levava errados os números das Távoas do Almanaque per que se regia, como ele dizia e adiante veremos em alguas operações que fez de oposições de planetas com a Lua, pera saber a distância do merediano de Sevilha ao lugar onde as tomava. Sobre este grande desastre sucedeu outro, que os meteu em maior confusão; e foi que os Reis imigos vieram fazer paz entre si, com tal que o Rei Fernando trabalhasse por os matar a todos. E porque não pôde mais, acolheu vinte dos principais, em que entravam os capitães Duarte Barbosa, João Serrão, e com simulação de lhe dar um banquete, foi do vaso da morte, do qual feito escapou somente vivo João Serrão. Este foi trazido à praia com as mãos atadas à vista das naus, o qual deu nova do caso, e que o traziam ali pera o resgatarem por dous berços de metal e algua pólvora. E peró que os castelhanos se posessem em um batel, chegados um pouco à praia, onde os índios estavam com ele, a quem havia de fazer a entrega, começaram a pedir mais, entretendo os castelhanos de maneira que, temendo eles algua traição, sem terem de ver mais com João Serrão, nem com as palavras que ele dizia pera os mover a piadade, se recolheram à nau. E quando viu que o leixavam naquele estado, porque João Lopes Carvalho, o português, ficou ali por principal cabeça, disse contra ele: - Ah! compadre, mal vos demande Deus minha morte, pois me não quereis livrar dela! E então pediu que por amor de Deus que não esbombardeassem o lugar, por o não matarem logo, se com os tiros fizessem algum dano, ca se tornariam a ele. Os castelhanos, partidos dali o primeiro de Maio de quinhentos e vinte e um, que foi o dia em que lhe aqueceu esta má fortuna, foram ter a ua 295 ilha dez léguas desta; e feito alardo da gente que tinham, por terem perdidos cinquenta homens na ilha, e outros per o caminho, acharam-se per todos cento e oitenta pessoas. 152v 152v E havido conselho, porque não podiam navegar três naus, queimaram ua, e per as duas repartiram a gente; e de ua chamada a Vitória fizeram capitão um João Sebastião, que era mestre da mesma nau, e da outra o piloto João Lopes Carvalho, o qual depois foi tirado do cargo e preso por alguas cousas que não aprouveram aos castelhanos, por ser homem vicioso. E esta prisão foi em a Ilha Burneo, tendo já passado por Mindanau e por outras ilhas, onde os quiseram matar; e em lugar dele fizeram capitão a um João Bautista, que era mestre da mesma nau. Finalmente, de ilha em ilha foram ter às de Maluco, onde el-Rei de Tidore, polos ciúmes que tinha de nós querermos fazer fortaleza ante em Ternate que em sua terra, os agasalhou mui bem, e aceitou ficarem ali alguns pera feitorizar cravo, que eram aqueles que ficaram com João de Campos, como atrás escrevemos. E porque nas ilhas não havia tanto cravo que abastasse pera carregar as duas naus por ser fora da novidade, e somente havia algum velho, quisera-os el-Rei deter até vir a novidade, e lho dar em abastança; o que eles não quiseram esperar, temendo que fossem lá ter nossas naus, como cada ano costumavam. El-Rei, quando viu a sua pressa, em um mês, que foi o mais tempo que os ali pode deter, não somente mandou buscar quanto pode haver na sua terra, mas ainda teve muita deligência como pelas outras ilhas, e principalmente em Ternate, lhe fizeram boa soma, muita parte do qual lá tinham feito portugueses per seus feitores. E um português per nome João de Lourosa, que estava em Ternate, como homem desleal à pátria, foi ainda em ajuda de fazer esta carga, e meteu por condição que ele se queria vir em as mesma naus, e que lhe haviam de trazer nelas trinta bahares de cravo. O qual partido os castelhanos aceitaram, porque, pelos avisos que lhe ele dava das cousas da Índia e promessas de os levar à Ilha de Banda a carregar de massas, e assi a Timor de sândalo, houveram eles que este homem lhe era

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enviado per Deus, com que, polo contentar ao presente, assentaram de o fazer capitão da nau de que tiraram o Carvalho, e ali o fizeram. Porém depois teveram outro conselho, que melhor lhe vinha pera sua viagem tornar a capitania ao Carvalho, por ser piloto que vir por capitão João de Lourosa. Vindos de Banda, tomaram ali algua maça em dez dias, ca não se quiseram mais deter, assombrados do que lhe João de Lourosa fazia crer, dizendo que tinha por nova que na Índia se fazia ua armada de certos galeões, de que era capitão um Pero de Faria, o qual mandava o Governador da Índia a fazer ua fortaleza em Maluco; e que, se os achasse, cressem verdadeiramente 153 153 que era homem que os havia de meter no fundo. E não se contentou de dizer aos castelhanos isto, não sendo assi, mas ainda fez alguas cartas a seus amigos 296 da Índia, em que lhe notificava como ia naquelas naus de Castela, e as escusas que dava eram com dizer alguas cousas contra este reino; as quais cartas António de Brito, quando per ali veo, houve à mão; e polo que disse e fez, lhe foi depois cortada a cabeça per ele mesmo, António de Brito, em Ternate, com pregão de tredor, como veremos. Partidas estas duas naus de Banda, passaram per a Ilha de Timor pera saírem pelo Canal de Solor, e atravessarem aquele golfão, e per fora da Ilha de S. Lourenço virem demandar o Cabo de Boa Esperança. E porque a nau de que era capitão e piloto o Carvalho, sendo da Ilha Banda obra de cento e oitenta léguas, lhe abriu ua água, de maneira que se iam ao fundo, houveram conselho que a outra nau se partisse pera Castela, e eles tornassem arribar a Ternate, como fizeram, e a de Castela fez seu caminho, e veo cá ter, que causou o que adiante diremos, e a outra tornou a Ternate. A qual foi logo mui bem consertada; e ante que partisse, não polo caminho da outra, senão com fundamento de tomar a terra do porto de Panamá, que é nas costas da terra firme das Antilhas, faleceu o piloto João Carvalho, e em lugar dele fizeram o mestre chamado Bautista Genoês e capitão Gonçalo Gomes, de Espinosa, que fora meirinho de toda armada. O qual, seguindo sua viagem, e sendo já oitocentas léguas de Maluco em quorenta e dous graus de altura, tornou outra vez arribar, e veo ter nas costas da Ilha chamada Batochina, em o porto de ua vila per nome Gramboconora, do qual lugar António de Brito foi logo avisado como ali estava e tam desbaratada de água que fazia e fortuna que passara, que, se lhe logo não acudira, ela e a gente se perdera. E a primeira cousa que fez, a requerimento de um Bertolameu Sanches, escrivão da mesma nau, o qual o capitão Gonçalo Gomes mandava pedir misericórdia polo estado em que ficava, foi mandar ua caravela com muitos mantimentos e âncoras pera a nau. E trás ela mandou logo Cachil Daroez, governador de Ternate, com alguas coracoras, que são grandes navios de remo; e trás ele foi D. Garcia Hanriques em navios pera trazerem a nau àquele porto, e se não perder de todo, como o mesmo Gonçalo de Espinosa lhe mandava requerer. E porque Cachil Daroez, per rezão dos seus navios serem de remo, chegou primeiro à nau que a caravela de D. Garcia, como homem que se queria mostrar leal a nossas cousas e estar mui escandalizado del-Rei Almançor receber em seu 153v 153v reino os castelhanos, entrando em a nau, quisera com sua gente de guerra que levava fazer logo sangue. E verdadeiramente, se não fora o feitor Duarte de Resende, ao qual António de Brito com certos portugueses mandou ir com ele, sem dúvida Cachil Daroez houvera de lavrar do ferro. Finalmente, entrada a nau, quando Duarte de Resende viu a gente, 297 houve grande piadade, porque os mais deles andavam derreados, que se não podiam mover senão com ajuda, quási paralíticos, e eram já mortos trinta e sete homens, e andava a nau tam iscada da infermidade, além dos trabalhos de fome e outras necessidades, que receavam os nossos, depois que veo D. Garcia, entrar dentro como em cousa de peste.

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Trazida a nau e a gente ao porto de Ternate, como vinha desbaratada, com um tempo que logo sobreveo se desfez toda em o recife de pedras que o porto tem. A gente, António de Brito a mandou curar e prover com tanto cuidado como se foram naturais deste reino, e não levados aquelas partes pera lhe darem desgosto; e quando se D. Garcia Hanriques veo pera a Índia, todolos que com ele se quiseram vir ele os trouxe, e assi Gonçalo Gomes, de Espinosa, o capitão, que depois, o ano de quinhentos e vinte seis, veo ter a este reino. Do qual eu houve alguns papéis que lhe achei, entre os quais foi um livro feito per ele de toda aquela sua viagem; e assi houve outros papéis e livros que Duarte de Resende, feitor de Maluco, recolheu do astrólogo Andrés de San Martim. Porque, como era latino e homem estudioso das cousas do mar e geografia, entendeu logo nelas; e vindo a este reino, houvemos dele alguns, principalmente um livro que ele, Andrés de San Martim, escreveu de sua mão, em o qual está o descurso do caminho que fez e de todas suas alturas, observações e conjunções que tomou. E porque acerca desta matéria alguas pessoas tem escrito cousas de que não teveram boa informação, e outros maleciosamente dizem muitas falsidades, que aqui dissermos será do mesmo seu livro, por ser parte sem suspeita polo que toca à nossa. No Rio de Janeiro, a dezassete dias do mês de Dezembro de quinhentos e dezanove, tomou ele ua conjunção de Júpiter com a Lua; e no primeiro de Fevereiro de quinhentos e vinte tomou outra posição da Lua e Vénus; e a vinte três do dito mês e era, outra do Sol e da Lua; e em dezassete de Abril do mesmo ano, um eclipse do Sol, e a vinte três de Dezembro, já passado o estreito, ua oposição do Sol e da Lua, e todas estas observações calculava sobre o meridiano de Sevilha. E de lhe não responderem a seu propósito sobre o negócio a que iam, aqueixa-se de uas 154 154 Távoas de Joanes de Monte Régio, dizendo que não pode ser senão que os números estavam errados, e que lhe parecia que devia ser por culpa dos impressores. E em ua destas observações (não dizemos em que parte foi, porque tudo guardamos pera seu tempo), depois de ter calculado suas equações, diz estas formais palavras: «De maneira, que haveria diferença deste merediano ao merediano de Sevilha, não estando erradas as Távoas do dito Almanaque quorenta e dous minutos de hora, porém, porque me consta ser muito mais a diferença, infiro haver erro nas Távoas, que certo não sei a que o atribuía. Porque atribuí-lo a vício da impressão, não é de crer ua cousa tam comum e tam divulgada como os Almanaques de Joanes de Monte Régio, da impressão de João 298 Liertesteim abandonar de tantos vícios nela, por razão do crédito de sua impressão. Pois atribuí-lo a que João de Monte Régio errasse a equação dos movimentos, também me parece grave cousa dizer um homem de tanta veneração e autoridade em astronomia, ter errado sua obra. Também me maravilho, e muito mais ver minhas experiências não convirem com o escrito. Infiro e cerro-me em dizer que Quod audivimus, loquimur; quod vidimus, testamur; e que, toque a quem tocar, em o Almanaque estão errados os movimentos dos céus: Sicuti experientia experti fuimus». Foram também tomadas alguas cartas de mar; e peró que não houvéssemos algua, sabemos que delas vinham somente arrumadas pera lançarem as terras que descobrissem. E porque viam per estas operações do astrólogo, e assi per suas singraduras e estimativa ao modo da sua arte, ser mais em nosso favor que no seu, situavam as terras da derrota a seu propósito, e não segundo o que achava ele, Andrés de San Martim. E de estas, e outras cousas serem feitas com malícia, testemunhou à hora de sua morte um deles, per nome Bustamente, o qual, indo em um navio nosso de Malaca pera a Índia, foi ter às Ilhas de Maldiva, onde faleceu por ir muito infermo. E no seu testamento disse que, por descargo de sua consciência, declarava que tal cousa e tal, em alguns instromentos que os castelhanos tiraram em Maluco sobre aquele seu negócio, ele testemunhara o contrairo da verdade, porque o fazia em seu favor; e onde se as cousas querem provar per este modo, elas ficam bautizadas em nome. Fica aqui dizer ua cousa por honra de Duarte de Resende, a que quero acudir por razão de

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sangue e também das boas letras que tinha. Ele me deregiu um Tratado sobre esta navegação de Castela, como quem teve na mão uns apontamentos que o astrólogo Faleiro tinha feitos ante de sua doudice, nos quais 154v 154v dava modo como se poderia vereficar a distância dos meredianos, a que vulgarmente os mareantes chamam altura de Leste-Oeste. Sobre os quais Fernão de Magalhães, em cujo poder eles ficaram, ante que passassem o estreito no porto de S. Julião, quis ter prática; e foi assentado per todolos pilotos, que em nenhum modo se podia navegar per ali. Do qual regimento, que era trinta capítulos, Andrés de San Martim, como homem douto na astronomia, concede o quarto capítulo, que era pelas conjunções e oposições da Lua com os outros planetas, por ser causa certa e fácil. E porque Duarte de Resende traz as formais palavras que Andrés de San Martim diz sobre esta matéria, e também sobre um eclipse do Sol, que ali tomou, de que atrás falámos, e fala per termos astronómicos, ou foi do Tratado que me ele deregiu que eu emprestei, ou que também ele em sua vida daria o trelado a outrém, donde quer que fosse, quiseram-se aproveitar dele em ua escritura 299 desta navegação do Magalhães. E o autor da obra, quando vem a falar no caso (bem sei que o não fez de malícia, mas de algum descuido ou de não ter notícia dos termos), confunde-os, dizendo, que o merediano daquele porto distava do de Sevilha donde partiram, sessenta e um graus de Norte e Sul. E ele, Andrés de San Martim, diz que o merediano daquele porto distava do merediano de Sevilha sessenta graus da Linha Equinocial; porque graus da Equinocial são graus de longura; e graus de Norte-Sul são de largura. E quem estava além da Linha em quorenta e nove graus e dezoito menutos, em que está o Rio de S. Julião, segundo o mesmo Andrés de San Martim tomou, e em Sevilha que está da parte do Norte em trinta e sete e meio, ajuntando uns aos outros, faria oitenta e seis graus, quorenta e oito menutos de Norte e Sul; mas isto não se conta assi, nem menos Andrés de San Martim faz esta conta. Quisemos apontar este erro, porque pode a tal escritura dele ir à mão de pessoas doutas nesta facultade; não queria que dessem a culpa a Duarte de Resende, senão a quem mal usou dos seus termos; ou demos por desculpa ao autor da obra, a que tomava Andrés de San Martim nas suas equações, que estavam os números errados por culpa do impressor, que é mui bom velhacouto aos que compomos algua cousa. E assaz de prudência é quem se dela sabe aproveitar, posto que mais modéstia seria confessar que somos homens, de que é próprio errar. O que resultou da vinda da nau que veo ter a Castela, foi haver entre el-Rei D. João, nosso Senhor, e o Emperador D. Carlos Quinto e Rei de Castela alguas dúvidas, tratando-se o caso sobre estes dous pontos -posse e propriadade - por razão das demarcações, que entre estes dous reinos 155 155 havia; pera o qual negócio se ajuntaram de âmbalas partes três géneros de pessoas: juristas, geógrafos e mareantes. E porque entre eles houve mais dúvidas das que havia no caso, estes dous Príncipes se concertaram depois per si da maneira em que ora o caso está; e parece-nos que o há-de vir a determinar por parte da propriedade o mesmo Andrés de San Martim com seus eclipses, como demonstraremos em a nossa Geografia; e verificá-los-emos per suas próprias experiências que fez, e per livros que não tenham erros na impressão, porque não haja valhacouto contra a verdade. E quanto à posse, quem ler o que atrás escrevemos da continuação que os nossos tinham naquelas ilhas, do ano de onze que Afonso de Albuquerque as mandou descobrir até o ano de vinte, ante que a armada de Castela lá fosse, que são dez anos de tempo, com todolos outros negócios de cartas e requerimentos que os Reis daquelas ilhas teveram connosco, parece que julgará a posse por boa. E pois estamos em a narração das partes mais orientais que descobrimos 300 e conquistámos, que são estas de Maluco primeiro que partamos delas, queremos dar conta do que Simão de Andrade fez na China, terra também a mais oriental da Ásia; e do que passou Tomé Pires,

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nosso embaixador, que Fernão Peres de Andrade enviou ao príncipe daquelas regiões, como atrás escrevemos, e des i trataremos do que Diogo Lopes de Sequeira fez em Ormuz e na Índia, em a narração das quais cousas começaremos e daremos fim a este seguinte Sexto Livro.

LIVRO VI 155v 155v 301 Capítulo Primeiro. Como Simão de Andrade foi à China, e do que lá sucedeu a Tomé Pires, que Fernão Peres de Andrade, seu irmão, deixou em Cantão pera ir a el-Rei da China; e como se lá apregoou guerra contra nós, e as causas porquê. Depois que Fernão Peres de Andrade partiu da cidade Cantão da província da China, ficaram as cousas daquelas partes tam assentadas per ele, que segura e pacificamente corria o comércio entre nós e aquela gente, em o qual negócio os homens faziam muito proveito. E estando as cousas em tal estado, porque seu irmão Simão de Andrade foi provido per el-Rei D. Manuel que fizesse ua viagem pera aquelas partes da China, partiu ele pera lá em Abril de quinhentos e dezoito, em tempo de Lopo Soares; em companhia do qual de Malaca foram três juncos, cujos capitães eram: Jorge Botelho, Álvaro Fuseiro, Jorge Álvares e Francisco Rodrigues. Chegado com estas quatro velas à China em Agosto daquele ano, tomou o pouso no porto da Ilha Tamou, onde seu irmão estevera; porque, como já escrevemos, per ordenança da cidade Cantão não podiam ir mais adiante, e ali fazia seu comércio. No qual tempo acharam ainda que não era partido Tomé Pires, o embaixador que Fernão Peres leixou pera ir a el-Rei da China, por lhe não ser vindo recado del-Rei que fosse; porque (como atrás escrevemos) é tanta a majestade deste príncipe e os negócios desta calidade 302 são tam vagarosos, principalmente quando gente estrangeira há-de ir a ele, por tudo ser resguardos e cautelas, que há mister muita paciência quem houver de esperar seus vagares. E contudo, sendo já idos três recados de Cantão a el-Rei, e ele ter mandado outros tantos aos governadores da cidade, perguntando mui meudamente por nossas cousas, mandou que fosse o embaixador. O qual partiu em Janeiro de quinhentos e vinte, que foi depois da chegada de Simão de Andrade, levando 156 156 três navios de remo à maneira de fustas concertados ao nosso modo, de bandeiras e toldo de seda. Não porque nestes concerto lhe façamos vantage, ante eles a fazem a nós; somente por honra deste reino levava as bandeiras com as armas e divisa dele, arvoradas per meio daquelas regiões tam remotas, a que podemos chamar fim do Mundo, pois eles tem o Oriente de terra habitável e nós o Ocidente; e mais sendo o príncipe delas de tanta majestade, que não pode alguém arvorar bandeira senão das suas armas, que é um lião rompente. Partido Tomé Pires com aquela pompa, sempre per água, chegou ao pé de ua serrania, onde nasce o rio per que ele foi, a qual serrania, chamada Malenxão, começa em a enseada da Cauchi-China e vai atravessando grande espaço de terra contra o Oriente, até acabar na província Foquiém, que é a marítima, e das mais orientais daquele grande estado da China, leixando esta serrania pera a parte do Sul, que é a marítima, estas províncias - Cansi, Cantão, Foquiém - ao modo que os montes Perinéus apartam a Espanha de França. E em toda esta serrania não há mais que dous portos, per que estas províncias debaixo se comunicam com as de cima. Um destes passos é onde Tomé Pires foi aportar, que da parte do Sul à entrada da serra tem ua cidade, e passada ela, de Norte, tem outra, onde se pagam os direitos do que entra e sai de cada parte. O qual porto escreveu Tomé Pires a Simão de Andrade, como chegara ali a salvamento, e que houvesse a cidade Cantão por pequena cousa em respeito de outras que tinha visto. Partido ele, Tomé Pires, deste passo, chegou à província de Nanqui, à principal cidade dela, chamada do mesmo nome, onde el-Rei estava, e pôs em vir de Cantão aqui, caminhando quási sempre pera o Norte, quatro meses, em que se pode notar quam grande cousa é o império daquele príncipe gentio. O qual mandou dizer a Tomé Pires que o fosse esperar a Pequi, que lá o despacharia, que é ua cidade de outra província também assi chamada, que está muito mais contra o

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Norte, na qual el-Rei estava o mais do tempo, por ser na fronteira dos tártaros, a que eles chamam tátas ou tancas (como já dissemos), com quem continuadamente tem guerra. Chegado Tomé Pires a esta cidade, já em Janeiro do ano seguinte de quinhentos e vinte e um veo el-Rei; e primeiro que entrasse na cidade, deteve-se em um lugar duas léguas dela, a julgar um feito de um parente seu, o qual tinha amotinado ua província, levantando-se contra ele, e foi condenado que morresse per esta maneira: primeiro, foi enforcado com pregão de 303 ladrão, dizendo levantar-se com outros ladrões a roubar a terra, e depois queimado com pregão de tredor, porque este crime 156v 156v se pune com fogo, por não ficar memória na terra dos ossos do culpado neste caso. Acabado este feito, que el-Rei não quis que se fizesse na cidade Pequi, por ser cabeça principal das quinze províncias que tem, por a não macular com castigo de tal crime, entre eles o mais estranhado, entrou nela, e quis logo entender no despacho de Tomé Pires, por serem idas cartas dos governadores de Cantão, e assi do governador da cidade Manqui, onde el-Rei estevera. As quais cartas eram de males de nós outros, dizendo que todo nosso ofício era ir espiar as terras com título de mercadores, e que depois vínhamos às armas e tomávamos qualquer terra onde metíamos um pé, e que este modo tevéramos na Índia, e assi em Malaca; portanto que não convinha darem-nos entrada em parte algua daquele reino. A causa de os governadores de Cantão escreverem estas cartas, foi de alguas cousas que Simão de Andrade fez, enquanto esteve na Ilha Tamou, fazendo seu comércio, como veremos; e também um embaixador chamado Tuão Mahamede, que el-Rei de Bintão, que fora de Malaca, mandara diante de Tomé Pires, queixando-se a el-Rei da China como lhe tínhamos tomado o seu reino, pedindo-lhe que o mandasse socorrer, pois era seu vassalo, e tinha recebido o seu selo em sinal de obediência. O qual embaixador, quando Tomé Pires chegou à cidade Manqui, andava esperando que o ouvisse el-Rei; e quando se el-Rei partiu pera Pequi, mandou-lhe dizer que fosse trás dele, que lá o ouveria. Ficando este Tuão Mahamede alguns dias em Manqui, teve inteligência com o governador da cidade, e com peitas alcançou dele que escrevesse a el-Rei todalas más informações que ele, Tuão Mahamede, lhe deu de nós, pera que, quando chegasse a Pequi, fosse ele lá melhor ouvido do que até então fora. E assi foi. Das quais cartas sucedeu, em el-Rei entrando na cidade, querer logo saber ao que Tomé Pires ia, e mandou-lhe que entregasse as cartas que levava pera ele, e que depois lhe responderia ao mais que dissesse; e estas que ele entregou, foram ainda mais danosas que as outras. Porque ele levava três cartas: ua del-Rei D. Manuel, o qual escrevia ao modo que ele usava escrever aos reis gentios daquelas partes, guardando mais algua primenência àquele príncipe, por a grandeza de seu império e polícia dele. Outra carta era de Fernão Peres de Andrade, e esta escreveu ele também conforme a instrução que levava del-Rei Dom Manuel sobre a ida daquele embaixador, a qual ele mandou tresladar em língua dos chins, pera logo se achar quem a lesse. Cuja sustância os trasladadores mudaram quási toda, por imitarem o modo que se tem de falar ao seu príncipe, sem Fernão 157 157 Peres o saber. Dizendo nela, que ele, Capitão-mor do Rei dos 304 frangues (nome per que nos nomeam aqueles orientais), chegara àquela cidade Cantão com um embaixador, o qual ia a ele, filho de Deus e Senhor do Mundo, pedindo o seu selo pera o Rei dos frangues, porque queria ser seu vassalo, e levar mercadorias boas e ricas pera o seu reino. Este selo, que aquele Imperador dá a todolos reis e príncipes que se fazem seus vassalos, é da sua divisa, e com ele se assinam eles em todalas cartas e escrituras, por demostração de serem seus súbditos. A

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terceira carta que mais levava Tomé Pires, era dos governadores de Cantão; e como no tempo que a deram estavam muitos contentes de nós, porque foi ante que tomassem escândalo do que se fez enquanto Simão de Andrade esteve no ilha, ia quási conforme à de Fernão Peres que os línguas tresladaram. E dizia mais esta carta, que pedíamos casa na cidade de Cantão pera ter ali feitoria, e mais que éramos gente má de contentar e muito fumosa em cousas de honra, e que se dizia termos tomado Malaca ao Rei dela. Vistas estas cartas no Conselho del-Rei quam diferentes eram, foram chamados os línguas e perguntados, cada um por si, como dizia a carta que eles tresladaram cousa tam diferente do que dezia a do Rei dos frangues. Responderam que eles não viram a carta do Rei dos frangues, porque o seu embaixador que ali vinha lhe dissera que ia sarrada e não se podia abrir, porque se havia assi de dar na mão do Filho de Deus e Senhor do Mundo. Que a outra que eles tresladaram, posto que ela dizia outras palavras, fora a sua tresladação como aquelas com que se fala à pessoa do filho de Deus, e não como os frangues falavam; e quanto à dos regedores de Cantão, não sabiam como a eles escreveram. Finalmente, com a diferença destas cartas e más informações das segundas, que foram (como dissemos) primeiro lidas, foi assentado entre aqueles do Conselho del-Rei, que aquela embaixada era falsa, e que Tomé Pires ia a espiar a terra. E o pedir da casa em Cantão era pera dai começarmos a fazer guerra, como costumávamos nas outras partes da Índia, e que bem se mostrava ser assi; porque, quando ali veo o primeiro capitão que leixara aquele embaixador, no tempo que estevera na Ilha Tamou fazendo mercadoria, ele mandara um seu navio descobrir a terra e costa do Chinchéu. Levado ante el-Rei este parecer e voto de seus oficiais, a que pertencia o despacho daquelas cousas, a primeira que mandou, ante que se determinasse no que devia fazer a Tomé Pires, foi mandar que ele não fosse mais ao Paço a lhe fazer obediência. E pera se saber o modo que este Príncipe tem de receber os embaixadores 157v 157v que vem a ele, diremos o que fez ao nosso, e assi a outros que depois dele vieram. A um dos tártaros, com que tinha guerra, e assi a outros reis vezinhos que havia mister pera seus negócios, foram recebidos com honra, indo por eles ao caminho, no dia da entrada onde el-Rei estava, alguns dos principais senhores, ao modo que se cá usa entre nós. E a outros embaixadores 305 de reis e príncipes, que lhe tinham dado sua obediência ou eram de partes remotas e de que el-Rei tinha pouco notícia, não lhe fizeram recebimento algum. Porém, depois que entraram na cidade onde el-Rei estava, e per as cartas que levavam e informação de pessoas que mandou saber deles a que vinham, ante que fossem a ele, soube serem seus requerimentos cousa de seu contentamento, então foram levados ao Paço com algum modo de honra. E a que os nossos viram fazer a alguns destes, foi esta, (à qual o nosso embaixador não chegou, polo que logo veremos): Depois que foram apousentados, não podiam ir ao Paço, senão quando lhe era concedido; e isto tanto por ser costume daqueles príncipes não ir a ele pessoa estrangeira senão per sua licença, por majestade sua, como por razão de querer que seja em hora eleita per astrologia, pera que os negócios sejam em seu contentamento e proveito, e as mais das vezes são aos quinze dias da Lua. E quando este embaixador ia, era a pé ou em cima de um rocim com cabresto de palha por humildade; e tanto que chegava em um grande terreiro ante as casas del-Rei, ali estava quedo, até que vinha a ele um homem ao modo que se costuma em Roma ante o Papa - o mestre das cerimónias. O qual mestre em um certo lugar, levando o embaixador pela mão, o fazia poer os giolhos em terra e as mãos levantadas juntas, como quando louvamos a Deus, e depois debruçava a face no chão, inclinando a vista contra ua parede das casas dos Paços, onde lhe dizia este mestre que estava el-Rei. Levantado o embaixador, a tantos passos tornava mais adiante outra vez à mesma reverência, e não se chegando mais contra a parede, fazia esta adoração cinco vezes, e dali per o mesmo modo, vindo recuando, tornava fazer outras cinco, até se tornar aonde começou a primeira, e

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ali era espedido, que se fosse pera sua casa - e isto chamavam eles ir ver el-Rei. E quando era no tempo que lhe davam licença que podia falar em o negócio a que era inviado, então, na derradeira adoração, estava assi em giolhos, até que vinha um homem à maneira de secretário, que recebia per escrito tudo o que dezia, e espedia-o que se fosse, dizendo que se daria razão daquele seu requerimento ao Senhor do Mundo. Esta ida ao Paço del-Rei, que Tomé Pires, nosso embaixador, 158 158 houvera de fazer, lhe não foi concedida por razão das cartas que dissemos que deram má opinião de nós, e que ele, Tomé Pires, era enviado mais a espiar a terra que a outro fim. Sucedeu que, nestes dias em que Tomé Pires estava esperando o que fariam dele, segundo lhe as línguas diziam, adoeceu el-Rei, e foi de tal enfermidade, que di a três meses morreu, de maneira que se entreteve o seu despacho outro tanto tempo. Finalmente, dando-se conta ao Rei novo daquele caso, posto que a voz dos seus oficiais, per que passavam aquelas 306 cousas, era que Tomé Pires e quantos com ele foram morressem como espias, disse que, ou fosse verdadeira ou falsa sua embaixada, bastava pera lhe não ser feito mal em suas pessoas, entrarem naquele reino com título de embaixada. Que, visto o que se deles dizia nas segundas cartas, e assi o que contra eles requeria o embaixador del-Rei de Malaca, que ali andava, pois era seu vassalo, a que devia favorecer, ele havia por bem que o nosso embaixador se tornasse a Cantão com o presente que levava, e os governadores o tevessem em custódia, enquanto fossem cartas ao capitão nosso, que estava em Malaca, e ao que estava na Índia, e assi ao seu Rei, que despejassem Malaca ao Rei que lançaram fora dela, por ser seu vassalo. E que, enquanto não viesse este recado, cousa nossa não fosse recebida nem recolhida em porto algum de seu reino, pois éramos gente tam prejudicial. E vindo recado como Malaca era entregue ao Rei dela, que então o nosso embaixador fosse solto com sua gente, e espedido sem escândalo, mandando-lhe que não fôssemos mais àquelas partes, sendo certo que, se lá fosse navio algum nosso, que seríamos tratados como imigos, porquanto ele não havia por bem que gente tam revoltosa e cobiçosa tratasse em seu reino. E quando viesse recado que não queríamos desistir de Malaca, em tal caso o nosso embaixador fosse julgado per justiça, segundo as leis do seu reino; pois, tendo ofendido a el-Rei de Malaca, seu vassalo, não lhe queriam fazer restituição do que lhe tinham tomado. E quanto às outras cousas que mais se deziam de nós, bastava sermos gente estrangeira, que não sabíamos os costumes da terra, que as gentes desta calidade, enquanto faziam as cousas per inorância, não deviam ser punidas, senão avisadas do que deviam fazer. Dado este despacho, Tomé Pires foi trazido per guia até Cantão, no qual caminho pôs quatro meses e meio de tempo. E pera que se veja se o despacho que este novo Rei deu foi justo ou não, segundo o que se dezia de nós, neste seguinte capítulo escrevemos parte das cousas de que ele teve informação termos nós feito no porto de Tamou, as quais eram verdade. E segundo 158v 158v aquele príncipe cuida de si que é senhor do Mundo e que todos lhe hão-de obedecer, e é cioso de gente estrangeira entrar no seu reino, estas verdades bastavam pera o que fez com Tomé Pires. Quanto mais ter cartas dos governadores de Cantão, que diziam roubarmos os navios de estrangeiros, que chegavam ao porto de Tamou, e que lhe não queriam leixar fazer suas mercadorias, nem pagar direitos das suas; e que um Foão, homem principal oficial seu do arrecadar os tais dereitos, indo falar ao capitão nosso sobre aquele caso, ele o mandara tratar mui mal. Finalmente, diziam que comprávamos moços e moças furtadas, filhos de pessoas honradas, e que os comíamos assados, as quais cousas eles criam serem assi, porque de gente que nunca teveram notícia e éramos terror e medo a todo aquele Oriente, não era muito crer-se que fazíamos estas cousas, porque outro tanto cremos nós deles, e de outras nações tam remotas, e de que temos pouca

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notícia.

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158v 158v 307 Capítulo II. Do que Simão de Andrade fez enquanto esteve no porto de Tamou da China, por onde houve causa do alevantamento daquelas partes contra nós; e dos males que os nossos passavam neste tempo, e depois que Duarte Coelho pelejou com os capitães dos chins. Simão de Andrade, tanto que chegou à Ilha de Tamou, a primeira cousa em que entendeu, como quem esperava fazer seu comércio devagar, foi fazer em terra ua força de pedra e madeira, com sua artelharia posta nos lugares per onde o podiam ofender, por ter sabido que ordinariamente sempre acudiam ali muitos cossairos a roubar os navegantes, e às vezes vinham tantos e tam poderosos, que as armadas que el-Rei da China mandava andar naquela paragem, muitas vezes se acolhiam a boas abrigadas, sem ousar de os cometer. Fez mais, que defronte, em um ilhéu, mandou fazer ua forca, dizendo ser pera qualquer dos nossos que fizessem algum insulto, porque vissem os chins que castigo se dava aos que faziam algum mal ou dano, na qual forca ele mandou enforcar um homem do mar por um delito que fez, com pregão e tanta cerimónia, como se fora dentro neste reino. Porque Simão de Andrade, como era cavaleiro de sua pessoa, mui pomposo, glorioso e gastador, todas suas obras eram com grande majestade, e tanta, que ele foi o primeiro homem que mandou ensinar índios e tanger charamelas 159 159 e servir-se com elas. O qual modo de justiça os de Cantão houveram por grande soltura nossa e desacatamento à pessoa do seu Rei, e assi ter feita casa forte com artelharia, como quem queria tomar posse na terra, sem pera isso ter licença del-Rei. Aconteceu também que, enquanto ele ali esteve, vieram alguas naus dos reinos de Sião, de Camboja, Patane e de outras partes, que costumavam vir fazer ali suas mercadorias, aos quais Simão de Andrade não consentia venderem primeiro que ele, pela premática da terra, que era o primeiro junco que chegasse àquele porto ficava capitão dos outros que depois viessem, e ele faria primeiro sua carga que os outros, e per este modo os segundos com os terceiros, o qual caso, pelo modo com que se fez, foi causa de grande escândalo. E o que mais indinou aos moradores de Cantão foi que, despachado ele e vindo pera a Índia, onde chegou a Cochi a tempo que Diogo Lopes de Sequeira estava sobre a cidade Dio, acharam-se menos de Cantão muitos moços e moças, filhos de gente honrada, os quais Simão de Andrade e os de sua armada compravam, não lhe parecendo que ofendiam nisso a cidade. Porque sabiam que geralmente, em todas aquelas partes orientais, costumam os pais e mães venderem os filhos, e os dão em pagamento ou penhor, pareceu-lhe que 308 aqueles que lhe vieram vender, eram desta calidade, e não furtados per ladrões, como eram os que houve. E posto que, por lei da terra, isto assi seja, quando algua pessoa quere vender filho, há-de vir ao juiz denunciar sua necessidade; e se é tal que a não pode suprir outro modo, então usam desta cerimónia: o escrivão de ante o juiz faz ua carta de venda em nome do pai e da mãe que vendem o filho, onde cada um deles, se o outro é falecido, assina que, se são vivos, ambos hão-de concorrer neste consentimento da venda. E por sinal da escritura, o escrivão faz o seu ordinário, e o pai do moço borra a palma da mão dereita com tinta grossa à maneira da que usam os impressores acerca de nós, a qual põe sobre a carta, impremindo toda a figura da mão, e outro tanto faz com a planta do pé dereito, e a mãe usa de outra tal cerimónia; no fim da qual, ambos, tanto um como outro, recebem seu dinheiro, entregando o filho. E o acredor, per semelhante modo levando seu devedor a juízo, ele assina a escritura como se dá por cativo por tanto que deve; ou, se é pessoa que se vende a si mesmo, declarando a contia com pauto de tornar à sua liberdade, dando a soma que deve ou

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recebe. Usam deste modo de sinal neste caso de se vender, por ser natural da pessoa, e mais certo e verdadeiro que os arteficiais, que se podem falseficar, porque não possam as partes vendidas 159v 159v ou que se vendem alegar falsidade. Sobre estas cousas que eram passadas entre os nossos, as quais fizeram grande escândalo na terra, sucedeu a morte del-Rei, como dissemos. E também sucedeu chegar no porto de Tamou ua nau que partiu deste reino, a qual era de D. Nuno Manuel, almotacé-mor, a quem el-Rei Dom Manuel deu licença que podesse armar pera aquelas partes, de que era capitão Diogo Calvo. Em companhia do qual de Malaca foram outros navios, os quais, por irem já tarde, não se poderam despachar pera se partir em companhia de Simão de Andrade, nem menos o junco de Jorge Álvares, por haver mister corregimento. E como, per ordenança da China, tanto que morre o rei, nenhum estrangeiro pode estar na terra, nem menos em algum porto, sob pena de morte, vinda a nova, foi Diogo Calvo e os outros requeridos que se partissem dali, o que eles não quiseram fazer, ante se poseram em defensão. E a causa desta premática foi porque tinha acontecido muitas vezes saquearem os naturais da terra suas próprias cidades com favor das naus e navios que estavam no porto, e depois diziam que os estrangeiros o faziam; dos quais insultos, por os naturais não terem que alegar, procedeu fazer um rei esta ordenança. Diogo Calvo, Jorge Álvares e os outros que com eles estavam, não o quiseram fazer por não terem feito sua mercadoria, de que sucedeu prenderem Vasco Calvo, irmão de Diogo Calvo, e alguns homens com ele, que andavam em Cantão. E foram também tomados dous navios que ali vieram ter, um de Patane e outro de Sião, em que iam alguns nossos, que andavam neles ganhando sua vida, e vieram cair em laços de morte, porque, hoje um 309 e amenhã outro, tomaram todos três. E as principais pessoas deles eram Bertolameu Soares, Lopo de Góis, Vasco Álvares e um clérigo per sobrenome Mergulhão, que morreu em um deles pelejando, e os outros foram levados presos. E como o governadores e oficiais de Cantão começaram gostar deste roubo, favorecidos do tempo e desobediência nossa, e principalmente por terem nova quam mal fora recebido Tomé Pires na Corte del-Rei, meteram todo seu poder pera tomar esta nau, e sete ou oito juncos que ali estavam nossos. Pera o qual feito fizeram ua armada de muitas velas, que os tinha quási cercados, depois de os terem cometidos alguas vezes no porto onde estavam, sem ousarem abalroar com eles. Estando os nossos no qual trabalho e perigo, em vinte e sete de Junho de quinhentos e vinte e um, chegou Duarte Coelho em um junco seu bem apercebido, e com ele outro dos moradores de Malaca. O qual, tanto que soube dos nossos o estado da terra, 160 160 e como o Itau, que era Capitão-mor do Mar, os cometera já per vezes, quisera-se logo tornar a sair; mas, vendo que os nossos não estavam apercebidos pera isso, polos ajudar a salvar, ficou com eles. E principalmente por amor de Jorge Álvares, que era grande seu amigo, o qual estava tam enfermo, que da chegada dele, Duarte Coelho, a onze dias faleceu, e foi enterrado ao pé de um padrão de pedra com as armas deste reino, que ele mesmo, Jorge Álvares, ali posera um ano ante que Rafael Perestrelo fosse àquelas partes; no qual ano que ali esteve, ele tinha enterrado um seu filho, que lhe faleceu. E peró que aquela região de idolatria coma o seu corpo, pois por honra de sua pátria em os fins da terra pôs aquele padrão de seus descobrimentos, não comerá a memória de sua sepultura, enquanto esta nossa escritura durar. O Itau, Capitão-mor do Mar, tanto que soube que eram entrados estes dous navios, por vir já com dobrada força de té cinquenta velas, sendo as nossas cinco, três que estavam dantes, e duas que trouxera Duarte Coelho, da sua chegada a dous dias veo sobre eles. Duarte Coelho, vendo o grande perigo em que estavam, mandou-lhe um recado,

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pedindo-lhe que houvesse por bem não haver mais rompimento de guerra, e o passado se remediasse com paz e fossem amigos, e outras palavras que aproveitaram tam pouco, que veo logo sobre os nossos. Mas aprouve a Deus que se houveram com ele de maneira que se apartou bem escalavrado da nossa artelharia, com morte de muita gente, que foi causa que o cometia poucas vezes, somente estava sobre eles em modo de cerco, por ser lugar tam estreito, que mais se ajudavam as nossas cinco velas deles, que o grande número das suas delas, principalmente por a melhor artelharia que tinham. E havendo quorenta dias que estavam neste trabalho, sobreveo Ambrósio do Rego com um navio, e com ele outro junco dos moradores de Malaca. E a causa de ele, Ambrósio do Rego, não ser visto da armada do 310 Itau foi porque, ao tempo da sua entrada no porto, estava o Itau em ua baía, três léguas donde os nossos estavam, enterrando uns poucos de mortos que lhe eles mataram havia três dias, em ua peleja que tevera com ele. Duarte Coelho, Diogo Calvo e Ambrósio do Rego, vendo-se cercados, e que lhe convinha per qualquer modo saírem-se dali, e que Jorge Álvares era falecido, e que no seu junco havia pouca gente, por ter já perdida algua e outra lhe ser presa logo no princípio daquele rompimento, quando tomaram os juncos, e que nos outros que ali estavam nenhum passava de oito homens portugueses e toda a mais gente eram escravos que mareavam os navios, ordenaram de recolher tudo 160v 160v em os seus três navios e cometer a saída, como fizeram de noite. Peró como o Itau tinha vegia sobre eles, ao outro dia pela menhã os foi cometer, e houve neste cometimento ua semelhança do inferno entre fogo e fumo; porque abalroarem não convinha aos nossos, por não haverem mister mais que caminho despejado pera sua viagem, nem eles ousavam de o fazer, por quam queimados já andavam deste cometimento. Duarte Coelho, sobre quem então pendia a ordem daquele negócio, além de ser cavaleiro de sua pessoa, era homem mui católico e devoto de Nossa Senhora; e por este cometimento dos imigos ser a oito de Setembro do ano de quinhentos e vinte um, que era a festa do Nascimento de Nossa Senhora, encomendou a todos que tomassem o seu apelido, porque com o seu nome ele esperava que os salvaria. E como ela costuma acudir àqueles, que a chamam em tais necessidades, acudiu com ua trovoada, que pera nós foi a popa, e aos imigos causa de se derramarem e perderem alguns, com que Duarte Coelho e seus companheiros vieram ter a Malaca no fim de Outubro do ano de vinte um; onde ele, em louvor de Nossa Senhora, fundou ua casa no outeiro que está sobre a fortaleza, que se ora chama Nossa Senhora, por memória deste milagre que fez por eles. E porque o Itau, além das perdas que dantes tinha recebido dos nossos, naquele dia não somente recebeu outra da gente morta e navios perdidos da tromenta, mas ainda se houve por injuriado de lhe assi escaparem, foram todas estas cousas causa de indinarem mais a ele e aos governadores de Cantão, de maneira que, chegando Tomé Pires nesta conjunção com o despacho que dissemos, foi logo preso e toda a sua gente. E não somente ele, mas quatro ou cinco juncos que, depois da partida de Duarte Coelho, vieram ter ao porto de Tamou, foram roubados, e a gente morta e outra presa: deles eram de Patane, e os outros de Sião, por irem neles alguns portugueses. E, segundo duas cartas que os nossos di a dous ou três anos houveram destes dous homens - Vasco Calvo, irmão de Diogo Calvo, e Cristóvão Vieira - que estavam presos em Cantão, era cousa piadosa ouvir os martírios que passaram e os roubos que os governadores fizeram em navios de estrangeiros, tudo com achaque que levavam portugueses. Até que de cá foi Martim Afonso de Melo, que com sua chegada lá (como adiante veremos) acabaram de matar alguns dos nossos que ficavam, 311 e Tomé Pires morreu em ua cadea, e o presente que levou foi roubado. E a ele, segundo diziam as cartas dos presos, foi tomada esta fazenda: vinte quintais de ruibarbo, mil e seiscentas peças de

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damasco, cetim e outro género 161 161 de seda tecida de que eles usam, e mais de quatro mil lençóis de seda, a que eles chamam xopas, e de ouro oitenta taéis, cada um dos quais reduzidos aos taéis de Malaca, vale ua onça três oitavas e meia das nossas. E mais três arrobas de almiscre em pó, e três mil e tantos papos dele, e quatro mil e quinhentos taéis de prata por lavrar, e muitas peças ricas daquelas partes, de grande estima, com outra muita fazenda da que levara da Índia, a qual até então tinha por empregar.

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161 161 311 Capítulo III. Como Diogo Lopes de Sequeira, estando em Ormuz, a requerimento del-Rei, mandou António Correa à Ilha Baharém sobre el-Rei Mocrim, que estava alevantado contra Ormuz. Em a Segunda Década, falando na linhagem dos reis de Ormuz e sucedimento de uns a outros, escrevemos como, pola ajuda que Atjoate, Rei de Laça, deu a Sargol pera ele reinar em Ormuz, houve contrato entre eles, per o qual Sargol deu a Atjoate a Ilha Baharém e Catifa, na terra da Arábia, que eram suas. Sargol, depois que se viu pacífico rei deste reino Ormuz, como aquelas duas peças que deu a Atjoate eram as melhores em rendimento de quantas tinha, arrependeu-se. E não lhe falecendo razões pera as tomar a Atjoate, que já estava em posse delas, mandou a Raix Nordim, seu Governador do reino, sobre elas; e porque daquela vez lhe foram defendidas, feita outra maior armada, el-Rei Sargol em pessoa foi nela, e as tomou. Finalmente, ficou daqui ateada ua guerra entre eles sobre esta propriedade, que ora a pessuía um, ora outro, de maneira que já de cansados daquela demanda, houve entre eles concerto: que el-Rei de Laça ficasse com a propriedade, e fosse obrigado pagar de páreas a el-Rei de Ormuz um tanto. A continuação do qual pagamento durou per muitos anos, até que, tomado per nós o reino de Ormuz, el-Rei de Laça se levantou com as páreas, com que obrigou a el-Rei Ceifadim, que então reinava, ir sobre ele. E esta ida 312 era em tempo que Diogo Fernandes, de Beja, per mandado de Afonso de Albuquerque, foi buscar as páreas a Ormuz (como atrás escrevemos), e por esta causa o não achou em Ormuz, e Raix Nordim, Governador do reino, lhas entregou, reinando em Laça um rei per nome Mocrim, filho de Zamel e neto de Atjoate, donde vinha esta unção de Baharém pelo contrato que fizera com Sargol (como dissémos). O qual Mocrim, além de não querer pagar as páreas a el-Rei de Ormuz, não consentia que 161v 161v Raix Xarafo, Guazil del-Rei e Governador do reino Ormuz, arrecadasse as rendas que tinha na Ilha Baharém de seu património, que lhe importavam mais de cinco mil xerafis. E estando Mocrim nesta contumácia e Dom Garcia Coutinho, capitão da fortaleza que tínhamos em Ormuz, pedindo ele as páreas a el-Rei Torum-xá, que então reinava, dava-lhe por escusa a rebelião deste Mocrim, e as armadas que contra ele fizera, até ir lá em sua pessoa, como ele sabia, em que tinha feito grandes despesas. E pois el-Rei de Portugal era senhor daquele reino, e ele era obrigado a o emparar e defender, e não consentir serem seus tributos e rendimentos roubados e retidos per alguém, lhe pedia que mandasse dar gente e navios pera, em companhia de ua sua armada, irem tomar Baharém e Catifa. Porque, além de Mocrim negar as páreas que lhe devia, novamente começava intentar ua cousa que, se fosse avante, ser opressão pera Ormuz, a qual já sentia. E o negócio era que Mocrim tinha feito alguns navios de remo per indústria de alguns turcos que pera isso tinha, com os quais começava roubar alguns navios, que iam e vinham de Baçorá pera Ormuz, da qual soltura podia depois tomar tanta licença, que ocupasse todo aquele estreito com navios. D. Garcia, tendo já informação deste negócio e vendo como el-Rei de Ormuz desfalecia na paga das páreas que cada ano era obrigado pagar, por esta e outras rendas das terras firmes lhe não acudirem, ordenou de lhe dar a ajuda que adiante veremos, que fez pouco ou nada, com que Mocrim ficou com maior ousadia. Entanto que, quando Diogo Lopes de Sequeira chegou a Ormuz, onde foi ter a quinze dias de Maio de quinhentos e vinte um, depois que se partiu de Dio (como atrás fica), querendo ele pôr os oficiais portugueses na alfândega e ordenar outras cousas que el-Rei D. Manuel

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mandava que fizesse (como adiante escrevemos), ua das cousas principais com que lhe davam no rostro pera não poder pagar estas páreas, era o levantamento deste Mocrim. Dos quais queixumes forçado, ele, Diogo Lopes, entendeu logo em remediar este mal. Pera o qual negócio ele, Rei, ofereceu duzentas terradas, que são navios de remo, e três mil homens párseos e arábios, da qual frota havia de ir por capitão Raix Xarafo, Regedor 313 do reino; porque, além de lhe competir esta ida por ser ua cousa tam principal, ele a requereu por também tomar conclusão no seu que lhe Mocrim em pedia. Ordenada ua armada de sete velas, deu Diogo Lopes de Sequeira a capitania-mor a António Correa, e os outros capitães eram Rui Vaz Pereira, Gomes de Soutomaior, João Pereira, Álvaro de 162 162 Moura, Fernão Álvares de Cernache, e outro de alcunha Pinto. Em a qual armada levaria até quatrocentos portugueses, de que os cento deles eram homens fidalgos e cavaleiros, criados del-Rei, e parte da outra gente era de besteiros e espingardeiros, e os mais de espada e lança. Partido António Correa a quinze de Junho, via de Baharém, com bom tempo, aos dous dias saltou com ele vento tam furioso e contrairo, que lhe espalhou toda a armada, de maneira que aos vinte um dias ele se achou somente com João Pereira, toda a outra frota correu a diversas partes. E quando ele se determinou (como adiante veremos) sair em terra, que foi a vinte sete de Julho, ua das fustas era arribada a Ormuz, e a outra chegou, como dizem, ao atar das feridas, porque as houve e boas neste caso, e das terradas de Xarafo faleceram muitas. E não era muito ser isto assi, por elas serem costumadas buscar nestes tais tempos boas abrigadas, não somente por rezão do vento, mas de pelejar, e mais contra mouros, muitos dos quais iam lá contra sua vontade, e assi o mostraram eles no cometer do caso, como veremos, e muito mais tinham mostrado da primeira que lá foram, per mandado de D. Garcia Coutinho. O qual (como atrás fica), a requerimento do mesmo Rei de Ormuz e de Raix Xarafo, mandara Gomes de Soutomaior na galé em que andava, e Fernão Álvares de Cernache, na fusta, Rui Varela em outra, com os quais iriam até cento e vinte homens, e em sua companhia o mesmo Raix Xarafo com quorenta terradas, em que levaria até mil e duzentos homens. E sendo tanto avante como o Cabo Verdastão, que é na terra firme da Pérsia, pera aí atravessarem a Baharém, deu-lhe também um tempo, com que toda a armada de Raix Xarafo arribou a Ormuz. E somente ua das suas terradas com dous cavalos foi ter a Baharém com Gomes de Soutomaior, o qual esteve naquele porto treze dias esperando pelos outros dous capitães, e assi por Raix Xarafo. E quando viu que não vinham, mandou tirar fora um cavalo, e com até sessenta homens lavradores e seis portugueses espingardeiros, entrou dentro pela ilha até ua mesquita, que seria da ribeira ua boa légua por ele dizer aos mouros que desejava dar ua vista ao sítio da terra, sem achar cousa que lhe desse presunção de muito atrevimento ou desconfiança dos mouros que levava, tam pacífica estava a terra e tam desejosa de ser súbdita a el-Rei de Ormuz. E a causa de a terra estar tam só que lhe isto fez cometer, era por el-Rei Mocrim ser ido em romaria a Meca, visitar seu sogro, o Xeque dela, 314 e tinha levado consigo toda a gente nobre da ilha por duas causas: 162v 162v a primeira, porque não confiava muito neles, por lhe ver ua inclinação a el-Rei de Ormuz, e temia que, enquanto ele fosse a Meca, que lhe dessem aviso com que ele mandasse tomar posse da terra, e quando ele, Mocrim, tornasse, que lha defenderiam E levando-os consigo, era em modo de reféns, por lhe ficarem suas mulheres e filhos na terra, e trabalhariam por se tornar a restituir no seu, se el-Rei de Ormuz mandasse meter gente na terra pera lhe empedir a ele, Mocrim, a tornada. A segunda causa era que o principal caminho que os párseos fazem, quando vão em romaria a Meca, e

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assi os arábios que habitam naquelas comarcas de Laça, nesta mesma cidade se vem ajuntar em cáfilas, pera atravessarem aquele deserto de Iaman. A qual cáfila muitas vezes é cometida dos alarves que pastam aquele deserto, que são de ua cabilda chamada Bengebra; temendo ele, Mocrim que poderia destes alarves receber algum dano, quis ir poderosamente. Assi que por cada ua destas causas, ou por ambas, não quis leixar na terra algua gente nobre; e se Raix Xarafo com sua armada chegara, e os outros nossos navios, sem dúvida ela fora tomada; mas parece que não era vinda sua hora. Gomes de Soutomaior nesta jornada não ganhou mais que a seguridade com que entrou na ilha, pera saber dar rezão a D. Garcia Coutinho do que havia nela, e do modo da terra, pera com esta informação poder prover no caso, quando outra vez lá mandasse, e com este recado se tornou a Ormuz. El-Rei Mocrim, além do cuidado que tinha de se armar de maneira com que se podesse defender del-Rei de Ormuz, trabalhava também por se fazer senhor daquele estreito, com trazer muitos navios no mar, e desta vez que veo de Meca trouxesse alguns turcos, oficiais de fazer fustas, e outros que andassem nelas, por os alarves arábios, de que ele era senhor, não saberem das cousas do mar. E quando chegou de Meca e achou nova do que Gomes de Soutomaior fizera, e que se a armada que levava chegara junta, segundo a terra ficava, sem dúvida se fizeram senhores da terra, deu-lhe esta ida grande aviso pera o que ao diante havia de fazer. E posto que logo começou a se prover de armas, pólvora, artelharia e outras cousas necessárias a seu intento, quando soube que Diogo Lopes era em Ormuz, dobrou todas estas munições e forças; consirando que, se D. Garcia, que era capitão de Ormuz, mandara quorenta terradas e três navios portugueses e tanta gente como levavam, que faria o Governador da Índia? Assi que destas suas considerações e da nova que lhe logo foi de Ormuz, tanto que António Correa se fez prestes, a grã pressa começou de se fazer forte; e ainda pera dobrar mais nestas forças, chegou António Correa da maneira que dissemos. E o apercebimento 163 163 com que este Mocrim o estava 315 esperando, eram doze mil homens, em que entravam trezentos de cavalo, arábios, e quatrocentos frecheiros párseos e vinte remes espingardeiros, com outros da terra a que eles tinham ensinado este uso. E no porto, diante da cidade Baharém, de que a ilha tomou o nome, onde se podia desembarcar, por não ter outro porto, tinha feito um entulho de dez palmos de largo, e as faces deste entulho eram de pés de palmeiras, tudo tam alto e forte, que supriu por um muro de pedra e cal mui forte. E em dous ou três lugares, per o comprimento deste muro ser mui grande, ficavam serventias pera a ribeira, as quais tanto que António Correa surgiu no porto, logo ele mandou fechar. E per cima do muro, nos lugares de suspeita, pôs toda a artelharia que tinha, e repartiu aquele comprimento de muro em capitanias, tudo ordenado como homem industrioso e bom capitão e cavaleiro que era, porque todas estas cousas ele mostrou de ir no dia que António Correa o cometeu. E porque convém, pera melhor entendimento deste feito e de outros que ao diante sucederam, queremos aqui dar notícia desta Ilha Baharém e das suas cousas; primeiro, porém, do marítimo que jaz dentro deste mar párseo, porque o não temos ainda feito; e quando demos geral notícia das outras costas da Índia, de indústria leixámos a relação dele pera este lugar.

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163 163 315 Capítulo IV. Em que se descreve todo marítimo que o Mar Párseo contém em si; e assi do sítio e fertilidade da Ilha Baharém. Este mar a que chamamos Párseo, jaz entre duas terras, ua que lhe fica ao Ponente, chamada Arábia, e a do Levante Pársea, e tomou mais o nome desta que da outra, porque o marítimo da Pérsia é bem povoado. E ainda que não seja de tam notáveis e célebres cidades como ela tem, são vilas e nobres povoações que se servem dele; e do interior da mesma Pérsia alguns rios notáveis vem descarregar suas águas nele, e a terra da Arábia não tem algua cousa destas. Porque, começando do Cabo chamado Muçandão, a que Ptolomeu chama Asaboro Promontório, que situa em vinte três graus e dous terços de altura do Norte, e nós em vinte seis até o fim deste mar, que é na foz dos rios Eufrates e Tigre, não há em toda esta costa mais que quatro povoações. Logo em dobrando este Cabo Muçandão jazem estes três: Camuzar e Gaçapo, que estão mui vezinhos um ao outro, ambos aldeas de pescadores de algum aljofre, pouco, que ali pescam, e a vila 163v 163v Julfar, que é mais povoada e de maior pescaria, e por isso rende a el-Rei 316 de Ormuz o dobro dos outros. A quarta povoação é a vila de Catifa, que está defronte da Ilha Baharém obra de dez léguas, que, segundo a situação dela, parece ser aquela a que Ptolomeu chama Itmar, que está fronteira à ilha chamada per ele Ichara, que por ser a maior e mais junta à terra Arábia, digamos que seja a de Baharém, posto que ele situe o lugar e a ilha em altura de vinte cinco graus do Norte, e nós em vinte seis e um quarto. Todo o outro marítimo, sob reverência de quantas cidades, vilas, lugares, portos e rio Láris, que ele, Ptolomeu, ali situa, tudo é um areal o mais deserto e esterele dos que Arábia tem, a qual parte os arábios chamam Iaman. E por rezão da esterilidade desta costa deram ao mar denotação mais de párseo que arábio, porque da parte da Pérsia tem os lugares que veremos. Leixado o cabo de Iasque, que é a mais notável cousa que aquela costa tem, ainda que está fora da garganta daquele estreito, o qual nós situamos em vinte quatro graus largos da parte do Norte e Ptolomeu em vinte dous e meio, chamando-lhe Carpela Promontório, e indo pera dentro do estreito, entramos na terra chamada Mogastão, que quere dizer palmar, por o grande número de palmeiras que há per toda aquela comarca, onde há muitos lugares pequenos, de que el-Rei de Ormuz tem rendimentos. No qual Mogastão hoje aparece a memória da cidade Ormuz que ali esteve, a que Ptolomeu chama Armuza, que se trespassou na Ilha Geru, que é a que hoje chamamos Ormuz, pola causa que já atrás dissemos, falando no fundamento deste reino. E como a mais desta terra Mogastão é alagadiça e doentia ao longo da costa, não tem lugares célebres senão ao modo de aldeas, de que os principais são estes: Cuxtache, Chacoá, Braemi, que é o porto de Mogastão, e Ducar, Angom, defronte dos quais está a Ilha Geru, em que está situada a cidade Ormuz, que será da terra firme até quatro léguas pouco mais ou menos, junto da qual ilha está outra mui pequena, per nome Lareque. E tornando à costa, corre ao longo dela a Ilha Quêixome, que tem de comprido vinte léguas, em que há alguns lugares pouco notáveis por ser mui doentia. E do fim desta ilha até o Cabo chamado Nabão, que será distância de trinta e seis léguas, a qual costa de terra os naturais chamam Dolestão, jazem estas ilhas de nome Pilote, Caix, que foi já cabeça do reino, e se desfez com a fundação da cidade Ormuz (como atrás escrevemos), e adiante está Lara. E deste Cabo Nabão até vila Reixete, onde entra o rio Rodom, se faz a terra curva à maneira de enseada, 164 164

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na qual distância, em que haverá quorenta léguas, estão estas vilas - Bedicane, Chilau, e o Cabo de Verdestão. E da vila Reixete até a foz do rio Eufrates, que será espaço de cinquenta e oito léguas, está a Ilha Cargue, notável neste mar, que distará da terra firme cinco léguas, e da vila Reixete quinze: e mais adiante, seguindo a costa, Mahar, onde entra um rio, e depois Dirtau, Ancuza, Turaco, e o Rio Charom. Leixando o interior que jaz das fozes do rio Eufrates, a que os párseos 317 chamam Flate, ao Tigres, que se ele mete, Digila; e começando na Ilha Murzique, que faz ao rio duas fozes, a qual Ptolomeu chama Teredon, e situa em trinta e um graus, e nós em trinta escassos, torna a costa a voltar pera o Sul com nome da terra Arábia. E o epíteto de deserta bastava pera se saber não ser tão habitada como ele, Ptolomeu, a faz, por a terra em si ser tal, que mais se pode dizer pastada que habitada; e ainda em partes é tam areenta e tal, que não há i pasto pera aves, quanto mais pera alimárias, de maneira que daqui até a vila de Catifa, que está defronte da Ilha Baharém, e dela até o Cabo Muçandão, não há mais povoações das que dissemos. O que a terra tem em si, e que cabildas a pastam, e o modo de seu viver, em os Livros da nossa Geografia se verá, tirado da Geografia dos próprios arábios e párseos, dos quais nós temos cinco Livros, dous em a língua arábia e três na pársea. Fica agora pera sabermos deste Mar Párseo estar nele a Ilha Baharém, a conquista da qual nos fez dar notícia do marítimo dele, a qual terá em roda pouco mais ou menos trinta léguas, e na maior longura dela haverá pouco mais de sete léguas, e distará da Ilha Ormuz cento e dez. E na terra a ela fronteira, dentro no sertão, vinte léguas, pouco mais ou menos, está a cidade Laça, a qual com seu contorno de terra é a mais fértil e mimosa que tem toda aquela parte chamada Iaman, e de que Mocrim, sobre quem António Correa ia (como dissemos), era rei. O sítio desta ilha em si é terra baixa e de grandes palmeiras, e terra mui húmida e viçosa; porque, em qualquer parte que cavam, acham logo água, mas é salobra, donde se causa ser mui doentia, e principalmente em certos meses do ano, que são do fim de Setembro até Fevereiro; e é às vezes tam pestenencial neste tempo, que a mais da gente nobre nestes meses vão estar na vila Catifa e pelo marítimo de Arábia. O maior rendimento que esta ilha tem da novidade dela é de tâmaras, por serem tantas, que daqui se levam pera muitas partes, e há delas grande diversidade, por uas serem de ua sorte e outras de outra, ao modo que cá vemos nos figos e peras. Além desta fructa, tem quási toda a nossa de Espanha, principalmente a ortada, 164v 164v assi como romãs, pêssegos, figos e todo género de hortaliça. Os moradores dela todos são mouros arábios, e a principal povoação que tem, é ua cidade chamada Baharém, que deu o nome da ilha; e todalas outras povoações, que são mais de trezentas, não tem a polícia desta. A qual é de boas casas de pedra e cal, sobradadas, com eirados, varandas e janelas, principalmente os paços del-Rei, que querem imitar a polícia dos párseos, por a terra ser mui rica. Ca ela tem duas cousas que a fazem ser frequentada, assi da Arábia como da Pérsia: a primeira, a novidade das tâmaras, que naquelas partes é como acerca de nós o mantimento do figo 318 passado do Algarve, que corre pera diversas partes; e a outra cousa que a mais nobrece é a pescaria das pérolas e aljofre que se ali pescam, que é o melhor de todo aquele Oriente, assi em grandeza com em ser oriental, principalmente as pérolas. Mas não é tamanha esta pescaria como a da Ilha Ceilão, da Índia, e Ainão, da China, as quais três ilhas são os principais meneiros de todo aquele Oriente, onde se aquela ostra cria. Das quais pescarias, e assi das que há nas Antilhas, de Castela, tratamos particularmente em os nossos Livros do Comércio, no capítulo das Perlas e Aljofre, como já em outra parte apontámos.

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164v 164v 318 Capítulo V. Como António Correa saiu em terra na Ilha Baharém e pelejou com el-Rei Mocrim, na qual peleja foi ferido de ua espingarda, que causou haverem os nossos vitória, e depois foi tomado o seu corpo já morto. António Correa, tanto que os navios de sua armada chegaram, per os quais esperou seis dias primeiro que se ajuntassem com ele, teve conselho com os capitães no modo que teriam ao desembarcar, pera cometer aquela força que el-Rei Mocrim tinha feita, a qual ele mais fortaleceu do que escrevemos, enquanto António Correa se deteve esperando polas outras velas que lhe faleciam. Na qual consulta se assentou que cometessem aquela força per duas partes, ele per ua com o corpo de toda a gente português, e Raix Xarafo com os seus mouros per outra; porque, como eram muitos, e mais gente não mui fiel, pareceu cousa mais segura cada um pelejar a sua parte. Peró nunca pôde acabar com Raix Xarafo que fosse como ele, António Correa, queria, nem menos em o dia que ele desejava, que era dia do Apóstolo Santiago, por ser Patrão de Espanha, cujo apelido se invoca no cometer batalha contra 165 165 mouros. Finalmente, ele, António Correa, passado o dia de Santiago, di a dous, que eram vinte sete de Julho, se embarcou em todolos batéis, tendo assentado com Raix Xarafo que faria outro tanto; e assi o fez, não que fosse romper nos mouros, mas foi-se pôr em um teso donde podesse seguramente ver o sucesso da batalha, pera se determinar no que faria. António Correa, porque ir cometer de frecha a força dos mouros no lugar onde se desembarca era muito maior perigo, por razão da artelharia 319 que tinham ali assestada, e mais podiam-lhe empedir a saída, quis que fosse um pouco mais acima, pera vir ao longo da força cometer per onde a gente não fosse tão aventurada. E posto que nisso teve bom resguardo no lugar que tomou, ainda que não foi de tanto perigo, foi de mais trabalho; porque, como o mar onde ele saiu espraiava muito, por ser ali mui baixo, a toda a gente lhe dava a água pola coixa, de maneira que, em saindo, iam mais pera se pôr a escorrer da água que correr o caminho, que logo tomaram apressado; seu irmão Aires Correa com cinquenta homens, a que ele deu a dianteira, e ele, António Correa, ficou na trazeira com todo o outro corpo da gente, que seriam até cento e setenta. E porém primeiro que se apartasse dos batéis, leixou neles toda a gente do mar, e por capitão dela Tristão de Castro, ao qual mandou que se posesse de largo com os batéis, e que em nenhua maneira recolhesse pessoa viva, senão per seu mandado. Aires Correa, como era homem mancebo, desejoso de honra, e ia acompanhado de alguns fidalgos de sua idade, que também a desejavam ganhar, e mais pois lhe davam aquela dianteira, meteu-se tam rijamente com os mouros, como chegaram ao lugar do combate, que assi com besteiros e espingardeiros que levavam como às lançadas, feriram e derribaram muitos mouros. Porém esta obra também foi à custa do seu sangue, recebendo logo Aires Correa duas frechadas, e assi os outros que com ele iam também foram encravados; na qual fúria sobreveo António Correa com o corpo de toda a gente. O qual, tanto que deu Santiago, assi obrou o ferro de todos, que, apesar dos mouros, eles se fizeram senhores de algua parte das tranqueiras; e seguindo mais avante, começaram os mouros desemparar sua defensão e recolher-se pera a cidade. O qual retraimento pareceu em algua maneira artefício; porque, como eles eram muitos, assi de pé como de cavalo, e não havia um dos nossos pera cento deles, fizeram tam grande praça, que pareceu a António Correa que os levava de vencida. Senão quando, el-Rei Mocrim saiu com um

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corpo de gente de cavalo, e assi apertaram com os nossos, que lhe fizeram perder o lugar que tinham tomado 165v 165v e os lançaram pelas tranqueiras fora, de maneira que os nossos ficavam entre eles e o mar. E como era lugar mais largo, acudiu tanto peso de gente sobre os nossos, que andavam mui mal tratados; ca não se aproveitavam tam bem das suas armas como os mouros. Os quais traziam uas lanças de trinta palmos, que eram maiores um terço que as dos nossos, de maneira que a seu salvo davam quatro lançadas primeiro que recebessem ua; e neste aperto delas, e assi de muita frechada, em que os párseos são tam destros como os arábios no ferir de lança, foi derribado e mui mal ferido Aires Correa. E dando a nova a seu irmão António Correa, dizendo que era morto, respondeu: - Avante, amigos! leixai-o, que acaba em seu ofício. E verdadeiramente ele acabara ali seus dias, senão fora per Aleixo 320 de Sousa Chichorro, filho de Garcia de Sousa, e per Rui Correa, filho de Jorge Correa do Pinheiro, e outros que eram com ele, os quais o defenderam que o não acabassem de matar, já com dez ou doze feridas, andando eles também vertendo o seu sangue de outras que ali houveram. A este tempo em ambas as partes havia assaz trabalho, porque os nossos se viam mui perseguidos do grande número dos mouros e das compridas lanças que traziam e frechadas que pareciam exames de aguilhões de morte. E eles também andavam de maneira que eram mortos dous cavalos debaixo das pernas a el-Rei Mocrim, sem ser conhecido em mais que ser um dos que melhor pelejava na dianteira; com o qual trabalho houve de âmbalas partes reter-se cada ua em si, pera tomar algum alento. Porque, além do trabalho do ferro, era tam grande a calma, que andavam os homens afogados sem alento algum, com o qual tempo de trégua António Correa muito folgou, não tanto por dar vida a uns, quanto por não acabarem de morrer naquela praia todos que se não podiam ter nas pernas do muito sangue que se lhe ia, os quais logo mandou recolher aos batéis, e a seu irmão Aires Correa com eles. Recolhida esta gente ferida, e feito António Correa em um corpo com a outra, deu novamente Santiago nos mouros; e foi a cousa assi favorecida de Deus, que começaram eles de se retraer, e porém não perdendo o campo em modo de fugida, mas como gente atentada e que não ousava desaparecer deante os olhos de seu Senhor. O qual, como era homem que entre os alarves tinha fama de cavaleiro, e queria mostrar que o era em ferir os nossos, ousadamente se punha na dianteira, com que um dos nossos espingardeiros veo a tentar naquela sua soltura, e sem saber quem era, lhe deu per ua coixa que lha passou, com que se ele saiu daquele conflito e fúria da peleja, e em 166 166 sua companhia alguns mouros principais, que andavam em sua guarda. A outra gente comum, como soube da causa da ida del-Rei, começou logo largar o campo, e de pouco em pouco vieram de todo a virar as costas a quem melhor corria. Aos quais António Correa não quis seguir; porque, ainda que em todos havia boa vontade, as pernas os não ajudavam: ca, além do trabalho de pelejar, era tanta a calma, que ela bastava pera os deter e não seguir mais a vitória. Raix Xarafo, quando viu que era por nós a vitória, saiu com sua gente das terradas, mostrando que até então não podera mais fazer por a sua gente ser muita, e outras desculpas de homem manhoso, que primeiro quis ver o termo em que os nossos ficavam pera se determinar. António Correa, posto que entendeu o seu modo e cautelas, dessimulou com ele, recebendo-lhe sua desculpas, e mandou que soltasse sua gente no alcance dos imigos. Mas ele tinha mais olho no roubo da cidade, que ir trás eles, e começou de entrar nela, o que lhe António Correa não consentiu até primeiro se fazer senhor das casas del-Rei Mocrim, que eram mui boas, onde ele, António 321 Correa, se pôs a fazer cavaleiros àqueles que o quiseram ser, por o feito ser mui honrado, e dos bem pelejados daquelas partes, em que correram dos nossos seis ou sete, dos quais um deles era Jorge

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Pereira, e assi houve muitos feridos. E dos mouros, além del-Rei Mocrim, que morreu di a três dias, na mesquita onde foi ter Gomes de Soutomaior (como atrás dissemos), morreu o Governador daquela Ilha Baharém, e cinco ou seis mouros honrados, afora outros de cavalo, que seriam per todo até vinte cinco, e da gente comum mais de duzentos, tudo feito em espaço de duas horas. António Correa, entregues as casas del-Rei a Raix Xarafo, recolheu-se ao mar, e mandou primeiro pôr fogo a mais de cento e quorenta terradas, assi das que havia na terra pera a pescaria do aljofre, como pera serviço da cidade, e não mandou queimar ua galeota que estava em estaleiro, que os turcos tinham feita, porque a quis levar a Ormuz; e ao outro dia que a mandou lançar ao mar, que não foi com pequeno trabalho, lhe pôs nome Mocrim em memória del-Rei que a mandara fazer. E quando chegou ao galeão, foi ua piadade ver como a gente jazia, muita dela ainda por curar; e posto que ele também houvera mister ser curado de ua ferida que levava em um braço, não descançou até mandar curar a todos. E não foi nada o trabalho daquela primeira cura pera o que teveram aquela noite com um pouco de fogo que se acendeu no galeão; a revolta do qual fez levantar a todos, e a muitos deles quebraram os pontos, e ao outro dia 166v 166v lhos tornaram a coser. Havendo já quatro ou cinco dias que era passado este da vitória, mandou Raix Xarafo dizer a António Correa que ele tinha sabido como Mocrim aquela noite passada falecera, e os seus determinavam levar o seu corpo a enterrar a Laça, ou Catifa aquela noite seguinte; que lhe pedia houvesse por bem de ele mandar a Raix Sadradim, seu parente, com alguas terradas pera na travessa da ilha à terra firme o irem tomar e lhe ser cortada a cabeça publicamente, o que lhe foi concedido. E foi esta ida feita tam prestes, que chegaram a tempo que tomaram o corpo de Mocrim, e foi-lhe tirada a cabeça e esfolada, e chea de algodão, tudo feito tam sutilmente pelos mouros, que foi levada em sinal de vitória a el-Rei de Ormuz per Baltesar Pessoa, que António Correa mandou em ua fusta a Diogo Lopes de Sequeira. O qual com parecer del-Rei de Ormuz se fez na praça da cidade ua sepultura, em que ela foi metida com dous letreiros, um em nossa linguagem português e outro em párseo, em que se relatava o caso como passou. Com a morte del-Rei Mocrim e pregões que se lançaram pela Ilha Baharém, noteficando como aqueles que não se viessem meter debaixo da obediência del-Rei de Ormuz, se procedia contra eles como tredores, um sobrinho del-Rei Mocrim, chamado Xeque Hamede, debaixo do governo do qual toda a gente da ilha estava, e 322 assi a vila Catifa, mandou a António Correa dous cavalos de presente em lugar de visitação, dizendo que ele e toda a gente daquela ilha, e assi da vila Catifa, desejavam meter-se debaixo da obediência del-Rei de Portugal; que, se lhe desse seguro, veria a ele tratar alguas cousas pera haverem efeito as que lhe mandava dizer. Dado este seguro per António Correa, veo a ele e assentou que se desse passagem pera a terra firme de Arábia a ele e todolos turcos e estrangeiros, assi arábios como de qualquer outra nação que ali eram vindos em favor del-Rei Mocrim, seu sobrinho; ele lhe entregaria a ilha e a vila Catifa pacificamente, sem mais trabalho algum. O que lhe António Correa concedeu, contanto que não levassem armas nem cavalos consigo, somente suas pessoas e qualquer outra fazenda que tivessem; e por serem contentes disso, depois de a terra firme ficar posta em nosso poder, Raix Xarafo nas suas terradas passou da outra banda da Arábia todos aqueles que se quiseram ir. E per derradeiro ele mesmo foi tomar posse da vila Catifa, onde esteve per alguns dias até ir pera Ormuz, leixando ali algua gente sua de guarnição. E também leixou António Correa por governador de Baharém a um homem, velho e honrado per nome Bucate, arábio de nação, com que os da terra 167 167 ficaram contentes, porque sofrem mui mal serem governados por gente pársea, polo ódio que entre si tem. E despois que António Correa foi em Ormuz, mandou Diogo Lopes pera ali João Boto,

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moço de Câmara del-Rei por feitor, e António Abul, seu escrivão, com seis ou sete portugueses, os quais depois foram mortos pelos mouros no alevantamento de Ormuz, como adiante se verá, em que este João Boto foi havido por verdadeiro mártir de Cristo no género de sua morte. António Correa, posto que ainda tinha muitas cousas por acabar na terra, assi na arrecadação dos cavalos e armas que leixaram os arábios, como em outras cousas pera bem da fazenda del-Rei e mais assento da terra, entregou o cuidado de tudo a Raix Xarafo, por se não poder mais deter; ca levava por regimento de Diogo Lopes que não fizesse mais demora, que até poder ser com ele em Ormuz per fim de Julho, porque neste tempo esperava de se partir pera a Índia, e ele não se pôde espedir dos negócios menos que a doze de Agosto, que se partiu com sua frota, e chegou a vinte cinco, onde foi recebido com grande honra e prazer de todos, e principalmente del-Rei de Ormuz, mandando-lhe cavalos, arreos e muitas peças, e assi aos capitães que com ele vieram, por o trabalho que levaram em lhe restituir aquela ilha à sua obediência.

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167 167 323 Capítulo VI. Como D. Aleixo de Meneses mandou D. Jorge de Meneses per terra com socorro a el-Rei de Cochi, que estava em guerra com o Samori de Calecute; e do que Diogo Fernandes, de Beja, passou sobre a barra de Dio; e o que Diogo Lopes de Sequeira sobre isso fez, depois que o soube. Enquanto estas cousas passaram em Baharém, se fizeram na Índia outras, de que convém darmos relação polas infiarmos em seu próprio lugar. A primeira foi que, entre el-Rei de Cochi e o Samori de Calecute, havia grande rotura de guerra. E peró que el-Rei de Cochi com favor nosso tinha entrado pela terra obra de sete léguas e estava em seu arraial fronteiro a seu imigo, todavia em comparação do poder do Samori, era cousa mui desigual, que causou ver-se ele tam apertado, que mandou pedir a D. Aleixo, que estava invernando em Cochi com os poderes de Governador, que o provesse de algua gente de besteiros e espingardeiros pera se favorecer com eles, por estar posto em muita necessidade. O que D. Aleixo logo proveo, mandando D. Jorge de 167v 167v Meneses, filho bastardo de D. Rodrigo de Meneses, com até trinta espingardeiros e cinco trombetas, o qual, ante de chegar ao arraial onde el-Rei de Cochi estava alojado, ele o veo receber obra de meia légua, dando-lhe muitos agradecimentos de sua ida, sabendo ser primo com-irmão de D. Aleixo. E dizendo que, com sua chegada, tinha certa a vitória de seu imigo, porque nunca tivera portugueses em sua ajuda, que não fosse vitorioso, quanto mais com sua pessoa, em que havia tantas calidades. E não se enganou nisso el-Rei de Cochi, porque Dom Jorge era muito cavaleiro, e logo na primeira batalha que deu ao Samori ele sentiu tanto ser aquela ajuda nossa, que se afastou do lugar onde estava três léguas, tendo naquele tempo juntos mais de duzentos mil homens, e el-Rei de Cochi quorenta. E deste pouso foi tomando outros dous, de três em três léguas, sem entre eles haver rompimento. Porque, como estes príncipes toda a sua guerra são os aparatos dela e eleições do dia da peleja, e ua sigralha que voa da parte contraira, segundo suas feitecerias, é empedimento pera não pelejar, andou lá D. Jorge um mês sem fazer mais cousa algua. E ainda deram entender os sacerdotes a el-Rei de Cochi que ele era empedimento andar naquele arraial, porquanto os seus ídolos se anojavam de sua estada ali, e não queriam dar reposta do que eram perguntados; e que soubesse certo que seu imigo de todo se recolheria pera suas terras, como ele, D. Jorge, fosse partido. A qual reposta estes sacerdotes davam, segundo os nossos depois souberam, porque viam que, com eles serem presentes, estava el-Rei de Cochi tam confiado e seguro, que fazia poucas enterrogações a eles, 324 sacerdotes; e vendo que perdiam parte do seu crédito e não eram tantas vezes chamados às consultas, fizeram esta amoestação a el-Rei - que espedisse a D. Jorge. E assi se fez, tornando-se ele pera Cochi, mostrando-lhe el-Rei o grande contentamento que tivera de sua ida, e que ele fora causa de seu imigo se recolher. Tanto pode o interesse particular, que muitas vezes a vida e o estado de um príncipe pende de um mau conselho; e assi houvera de acontecer a este Rei de Cochi polo crédito que deu a estes seus sacerdotes. Os quais, ainda que fossem do Demónio e não podiam aconselhar outra cousa senão obras dele, muitos falsos profetas houve na Lei da Escritura, per os quais, assi nas cousas da guerra como da paz, os reis e príncipes daquele povo de Israel se governavam; e com eles dizerem estas cousas - manda Deus - aconselhavam outras que mandava o seu próprio interesse. O qual modo ainda vemos continuado na Igreja de Deus, e permetiu ele; porque, como a Congregação Cristã 168

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168 consta de dous gládios - espiritual e temporal - em muitas partes se troca este poder em pessoas incompetentes, lavrando a terra com a espada e pelejando com o arado. O qual abuso vem a ser o próprio açoute do erro; ca nunca Deus disse verdades per instrumento impróprio, senão per o natural daquele uso por que guarda a justiça nas cousas, excepto alguns particulares casos sinificativos de mistério, como a profecia de Balão e a sua asna, etc. Assi este Rei de Cochi, tendo necessidade de gente de armas, que era o instrumento próprio que lhe servia no estado em que ele estava, com a chegada do qual viu logo princípio da sua vitória, aceitou o conselho de profetas falsos, por razão de seu particular interesse, que lhe fizeram perder a honra que tinha ganhada com a vinda de D. Jorge. Ca, sabendo o Samori sua partida, veo outra vez sobre el-Rei, o qual se viu tam necessitado de remédio, que se acolheu a Cochi a buscar o nosso abrigo, que tinha enjeitado na espedida de D. Jorge. Neste mesmo tempo que Diogo Lopes esteve em Ormuz, foi dar com ele Diogo Fernandes, de Beja, que ele leixara sobre a barra de Dio, esperando pelo recado del-Rei de Cambaia, a que tinha mandado Rui Fernandes (como atrás escrevemos), o qual recado foi conforme a todalas outras verdades de Melique-Iaz. Porque, como ele não trabalhava em outra cousa senão em que nós não houvéssemos del-Rei fortaleza em Dio, quando Rui Fernandes chegou onde el-Rei estava, que era na cidade Champanel, já Melique-Iaz per seu filho tinha recado do que passara com Diogo Lopes, e que a este fim mandava aquele mensageiro a el-Rei. Donde Melique-Iaz, primeiro que ele viesse a el-Rei, já tinha assentado com ele a reposta que havia de dar, de maneira que não deu espaço algum que ele, Rui Fernandes, podesse ter inteligência com alguns dos senhores da Corte, que a ele, Melique-Iaz, não tinham boa vontade, per meio dos quais ele, Rui Fernandes, podesse mover a el-Rei ao que lhe Diogo Lopes mandava pedir. E a reposta que el-Rei deu foi que se 325 tornasse logo e dissesse ao Governador Diogo Lopes, que Melique-Iaz andava lá com aquele requerimento per sua parte polo muito que desejava estar ali ua fortaleza del-Rei de Portugal, e que com alguas ocupações ele o não tinha despachado; que, como os negócios lhe dessem lugar, ele o despacharia com recado pera ele, Governador. Diogo Fernandes, quando viu esta reposta, dessimulou com Melique-Saca, mostrando que queria esperar que viesse seu pai, pera com sua vinda levar recado a Diogo Lopes; e entretanto ordenou com Fernão Martins Evangelho, que começasse recolher pouco a pouco a fazenda que tinha 168v 168v consigo, porque ele esperava de noteficar a guerra a Melique-Saca, como lhe Diogo Lopes mandava. Fernão Martins, porque também sentia dele, Melique-Saca, que por recado que tinha de seu pai reinava algua malícia se Diogo Fernandes quisesse estar ali muitos dias, o mais dessimuladamente que pôde, polo não sentirem e reterem (como já outras vezes fizeram), dinheiro e algua fazenda que se podia encobrir, de dia a mandava em cestos envolta com os mantimentos, que ordinariamente enviava a Diogo Fernandes, até que ua noite recolheu sua pessoa. Melique, quando pela menhã soube ser ele, Fernão Martins, recolhido, e a casa estava como cousa leixada, e com alguas que ele não podia levar consigo, assi como cobre e outras sortes de mercadorias de grande volume; entendeu que Diogo Fernandes estava mudado do que dezia, e dessimuladamente lhe mandou um recado. Trás o qual veo logo outro, dizendo que a ele se vieram queixar alguns mercadores que Fernão Martins lhe devia muito dinheiro de mercadorias, que lhe tinham vendido fiadas; que o mandasse logo a terra pera estar à conta com eles e lhe pagar, senão que seria necessário, por ele fazer justiça às partes, mandar suas fustas fazer represária naqueles seus navios. Ao que Diogo Fernandes respondeu que ele mandara a Fernão Martins que se recolhesse, por estar naquela cidade havia muito tempo, quási em modo de arrefém, sem ele nem seu pai consentirem que se fosse, e que levar fazenda alhea, ele a não levava, ante leixava muita na casa onde pousava, a

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qual ele, Diogo Fernandes, lha havia por entregue, pera em todo tempo dar dela razão. E quanto ao que dezia das suas fustas, elas podiam ir; e se fossem, soubesse certo que lhe havia a paz por quebrada e lhe faria todo o dano que podesse, como a cousa de imigos. Melique-Saca, porque este rompimento era o que seu pai desejava, por não vir a descobrir quanta mentira tinha dito, se a paz mais durasse, logo pela menhã mandou sobre Diogo Fernandes o seu capitão Aga Mahamude com grande número de fustas. E assi trataram os nossos navios com sua artelharia, que muito maior dano fizeram a Diogo Fernandes, do que lhe ele fez, com que lhe conveo fazer-se à vela caminho de Ormuz, levar este recado a Diogo Lopes. 326 O qual, peró que tinha dado por regimento a Diogo Fernandes que, quando denunciasse a guerra a Melique-Saca ou a seu pai (se fosse presente), não se detivesse mais senão fazer seu caminho, posto que as suas fustas o cometessem, quando soube o caso e o modo de sua partida, ficou mui agastado, por ver quanto mal lhe tinha feito o geral voto dos capitães no conselho que lhe deram sobre o negócio 169 169 de dar em Dio. E como estas indinações que os homens tem nos casos da conjunção perdida, se rematam na esperança de se poderem vingar, consolou-se Diogo Lopes no que esperava fazer sobre este caso. E primeiro que partisse de Ormuz, acabou de assentar outro, que não deu menos trabalho que este de Dio, parecendo a el-Rei D. Manuel, que lho mandou fazer, que assentava as cousas daquele reino em mais proveito do mesmo Rei. E o caso foi este: Ao tempo que Afonso de Albuquerque mandou fazer um livro de todolos rendimentos que ele tinha, e assi de sua despesa, não foi pera mais que saber puntualmente o que podia ficar a el-Rei de Ormuz pera lhe pagar as páreas que lhe per ele, Afonso de Albuquerque, eram postas. E achou-se, visto o rendimento e despesa (de que atrás demos relação), que folgadamente o podia fazer, se el-Rei não fosse tam roubado como era per seus oficiais. E porque todolos anos, quando lhe mandavam pedir estas páreas, clamavam que não rendiam as entradas das mercadorias, nem menos as terras firmes e os outros direitos e impostos que el-Rei punha, tanto que bastasse pera a despesa ordinária do reino, quanto mais pagar páreas, e estas cousas todas vinham cá ter a el-Rei D. Manuel, escreveu sobre isso a Diogo Lopes de Sequeira, mandando-lhe que, como fosse em Ormuz, dando conta a el-Rei que tudo se fazia pera melhor arrecadação de sua fazenda, ele posesse oficiais na alfândega da cidade, onde se pagavam todolos direitos que a ela vinham, assi per entrada como saída, segundo o foral da terra, por este ser o maior rendimento que o reino tinha. Os quais oficiais fossem portugueses, pessoas de bom saber, que se aviessem bem com os mouros que o mesmo Rei ali havia de pôr da sua mão, com os quais se haviam de concertar os livros que fizessem deste rendimento, pera no cabo do ano, assi os livros dos oficiais portugueses como dos mouros, se cotejarem e ver em verdade quanto valia toda a maça da alfândega, sem entender no rendimento das terras firmes. Raix Xarafo, que era Governador do reino, e os tesoureiros e oficiais per cujas mãos se despendia toda a fazenda del-Rei, ou (per melhor dizer) se repartia, que ele levava a menos parte, não podiam sofrer este jugo, por ser o mais duro que lhe podiam pôr. E já quando Afonso de Albuquerque 327 quis saber de todolos rendimentos, o sofreram mal, quanto mais pôr oficiais portugueses, que haviam de ser olheiros de suas cousas; porém, como não podiam mais fazer, dessimulavam e encobriam esta dor pera a mostrar em seu tempo, como veremos. Finalmente, pera este negócio ficaram postos estes oficiais na alfândega: Manuel Velho por juiz e provedor dela, Rui Varela, tesoureiro, e por escrivães Miguel do Vale, Rui Gonçalves da Costa, Diogo Vaz, Nuno de Castro, Vicente Dias. Acabado o qual negócio,

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169v 169v como Diogo Lopes não esperava mais que a vinda de António Correa, tanto que chegou com a vitória que houve em Baharém, partiu-se pera Dio, tendo já mandado diante a Diogo Fernandes, de Beja, que se fosse andar na paragem da ponta de Dio às naus que vinham do Estreito, e ali o esperasse, com o qual iremos continuando neste seguinte capítulo.

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169v 169v 327 Capítulo VII. Do que sucedeu a Diogo Fernandes, de Beja, na costa de Dio, onde Diogo Lopes lhe mandou que esperasse até ele partir de Ormuz; e o que ele também passou naquele caminho, até Chaúl, onde começou ua fortaleza, e as causas porquê. Diogo Fernandes, pera este caso que Diogo Lopes o enviava diante, levou quatro velas, ele em um galeão grande, e Nuno Fernandes de Macedo e Gaspar Doutel eram capitães dos outros navios. O qual, tanto que foi na paragem da costa da cidade Patane, tomou dous zambucos, e Nuno Fernandes, que ia mais empegado, posto que per desastre lhe escapuliu ua nau que vinha do Estreito, veo dar com ele outra muito maior e mais rica e armada, em que vinham mais de cento e vinte homens, mouros brancos e rumes. Com a qual, tanto que abalroou na entrada dela, foi ele ferido com um zarguncho de arremesso, e António de Araújo, que foi o primeiro que entrou, e com ele Álvaro de Brito e outros. Peró eles foram vingados deste dano; porque, como a outra gente que ficava no galeão entrou, foi a cousa de maneira travada, que durou o jogo de lançadas, frechadas, pedradas e outros artefícios de morte per toda ua hora, defendendo e ofendendo a si e a seu imigo, até que a maior parte dos mouros ficaram estirados onde a morte os tomou, leixando os nossos bem sangrados. E porque em a nau vinham muitas mulheres e crianças, acabada a nau de se entregar, mandou-as Nuno Fernandes passar ao seu galeão; e baldeada 328 da nau parte da fazenda que se achou per cima, mandou a dous carpinteiros que dessem dous rombos à nau pera se ir ao fundo. Os quais rombos foram tais, que apartado Nuno Fernandes dela, alguns mouros que ficaram escondidos acudiram a eles, com que a nau ficou segura, e sempre Nuno Fernandes tornara a ela, se não sucedera caso que lho empediu; e foi este: Melique-Iaz, como sabia que este era o tempo em que Diogo Lopes havia de vir de Ormuz, por ser já meado Setembro, e também era moução de as naus de Meca e de toda aquela costa de Arábia virem a Dio, por as segurar de nós e lhe dar guarda, tinha mandado sair a sua armada de fustas, que feriram até vinte, de que era capitão Aga Mahamude, que andassem naquela paragem, por ser 170 170 já perto de Dio. E como ele trazia suas atalaias, que lhe descobriam o mar, tanto que houve vista das nossas naus, e principalmente o galeão e naus dos mouros, que tinham aferrado entendendo o que era, veo dar-lhe vista. Os nossos, como naquela paragem não eram costumados verem tal recebimento como este que lhe iam fazer, e estavam descuidados disso, acharam-se um pouco confusos, porque, além de não estarem muito apercebidos, acalmou o tempo, que era próprio das fustas, e eles ficavam decepados pera poderem andar ou ajudar uns aos outros. Ca, per ordenança de Diogo Fernandes, iam todos três tanto afastados um do outro, que se podessem ver, pera que, vindo algua nau pera Dio, que viesse a cada um deles cair-lhe na rede; e esta ordem que eles traziam pera danar a outrem ofendeu a eles. E foi per esta maneira: Aga Mahamude, como os viu assi espalhados, e que o mar estava por ele, a primeira cousa que fez foi mandar duas fustas à nau dos mouros, que Nuno Fernandes leixou, que a rebocassem e levassem caminho de Dio, e com as outras fustas se repartiu de maneira que a todalas três naus deu tanto que fazer com artelharia que trazia, que meteu o navio de Gaspar Doutel no fundo, e tomaram vinte cinco dos nossos cativos, em que entrou o mestre da nau. Aga Mahamude, dando cabo a esta, dobrou as fustas sobre as outras, e trataram tam mal a Diogo Fernandes com alguns tiros grossos de artelharia, que lhe houveram de meter o galeão no

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fundo; porque houve tiro tam grosso ao lume da água, que à míngua de não haver em o galeão ua pasta de chumbo com que lhe tapassem aquele buraco, per que entrava muita água, lhe pregaram um bacio de prata de água às mãos, de maneira que esteve Diogo Fernandes quási metido no fundo, se não acertara de fazer dano a alguns, com um camelo e dous falcões que estavam postos em um batel grande que tinha junto de si, que as fez afastar longe. Nuno Fernandes de Macedo também neste tempo não padecia menos trabalho; ca, além de lhe matarem cinco ou seis homens, um dos quais foi o escrivão do galeão, e ferirem mais de vinte, todos com artelharia grossa, chegavam-se tanto a ele, sem a nossa os poder caçar, que não havia cousa 329 que não estevesse encravada com setas; e verdadeiramente se per muito tempo o mar estevesse morto, as fustas os meteram no fundo. Mas aprouve a Deus que refrescou o vento de maneira que lhe teveram os nossos vantagem. E como iam necessitados de água e de se repairar, fizeram sua derrota via de Chaúl, pera tornarem outra vez esperar Diogo Lopes, indo sempre as fustas ladrando trás eles, enquanto o tempo lhe deu lugar, até que ua trovoada que sobreveo as fez recolher pera Dio. E posto que naquela trovoada lhe supriu parte da necessidade da água que tinham, todavia encaminharam a Chaúl, e nesta 170v 170v travessa tomaram dous zambucos que iam da terra de África, da cidade de Brava, carregados de escravos daquela costa. Chegado Diogo Fernandes a Chaúl, foi logo provido de água e mantimentos per o feitor Diogo Pais que i estava; e leixados os feridos em cura com esta gente que tinha, tornou em busca de Diogo Lopes, o qual veo tomar a tempo que lhe aproveitou muito; porque Diogo Lopes tinha assentado em Ormuz que, quando tornasse, havia de fazer fortaleza em Madrefabá, cinco léguas além de Dio, pera a enseada de Cambaia, onde ele tinha mandado ver e sondar o porto per António Correa, quando esteve sobre Dio. E como isto foi negócio público e não ordenado com aquele segredo que se querem as tais cousas, per os portugueses que se tomarem em o navio de Gaspar Doutel foi Melique-Iaz sabedor desta sua determinação, e dobrou logo sobre ele com o favor que tomou daquela vitória, fazendo gente na terra e defensão no porto, e mais número de fustas, pera na terra e no mar lhe dar trabalho. Das quais cousas houve logo nova em Chaúl, e soube-as Diogo Fernandes, que foram grande aviso a Diogo Lopes pera não cometer o que trazia determinado; e o que além disto o mais desviou foi um desastre que lhe aconteceu já sobre Dio, que, ainda que nele se perdeu gente e fazenda, per ventura, segundo a cousa estava esperando por ele, foi mercê de Deus. Ca verdadeiramente, polo que depois sucedeu da soltura destas fustas de Melique-Iaz em Chaúl (como veremos), não podera leixar de acontecer muito maior desastre, se Diogo Lopes cometera fazer a fortaleza em Madrefabá. E o desastre foi este: Vindo ele, Diogo Lopes, com sua frota de Ormuz, tomou no caminho ua nau de mouros que ia pera Dio, os cativos da qual mandou repartir pelas naus. E estando já defronte de Dio, os mouros que iam na nau chamada Santa Maria da Serra, de que era capitão Aires Correa, como desesperados, estando debaixo da coberta, poseram-lhe fogo, o qual, tanto que foi dar na pólvora, pinchou logo as cobertas pera o ar, e o casco se foi ao fundo. Em o qual desastre, sem pelejar, morreu Aires Correa, livrado de tanta ferida como houve em Baharém. quási atassalhado delas, segundo contámos; e assi se perdeu a maior parte da gente. E porque Diogo Soares nesta nau trazia todalas munições com que esperava de poer mãos à obra da fortaleza que queria fazer em Madrefabá, quando se viu manco, sem o necessário para ela, 330 e mais per tal desastre morrer Aires Correa, a que queria muito, tanto por ser seu sobrinho como por sua pessoa, desistiu de fazer a fortaleza em Madrefabá. E principalmente por não achar ali D. Aleixo de Meneses, a que ele tinha mandado que o viesse esperar até per 171

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171 todo Agosto, que havia de trazer gente e provisões pera este feito, e também por saber de Diogo Fernandes como Melique-Iaz estava mui apercebido pera lhe defender aquele lugar; com as quais cousas ele se foi dereito a Chaúl, pera lá fazer esta fortaleza, porque, quando se partiu pera Ormuz, a este fim mandou Fernão Camelo a Nizamaluco, como atrás escrevemos; da reposta do qual neste seguinte capítulo daremos razão.

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171 171 330 Capítulo VIII. Como Fernão Camelo veo de Nizamaluco e trouxe recado seu a Diogo Lopes de Sequeira, que fizesse fortaleza em Chaúl, e a causa por quê; e, começando-se a obra vieram as fustas de Melique-Iaz a empedir que se não fizesse; e o dano que os nossos receberam dele. Ao tempo que Diogo Lopes chegou a Chaúl, era já vindo Fernão Camelo com recado do Nizamaluco, o qual havia por bem que se fizesse ali ua fortaleza com certas condições, segundo ele escrevia a um seu capitão que i estava, chamado Leteficane, mouro párseo coraçone, homem principal, que o Nizamaluco ali mandara vir pera assentar as cousas daquela cidade Chaúl, que havia pouco tempo que fora queimada pelas fustas de Dabul, que eram do Hidalcão, com quem ele naquele tempo tinha guerra, que foi grande parte pera o Nizamaluco dar licença pera se fazer a nossa fortaleza. Verdade é que já dantes ele desejava ua feitoria nossa, por causa do proveito que nisso podia ter, e a este fim era os feitores nossos que ali estavam quási senhores da terra. E o primeiro que ali esteve foi João Fernandes, o qual, no tempo que ali veo ter Fernão Gomes de Lemos, desbaratado do Estreito de Meca, onde fora com Lopo Soares, de ser mui senhor da terra, os mouros o mataram (como atrás fica). Ao qual sucedeu Fernão Camelo, que serviu poucos meses, e a ele, Diogo Pais, que neste tempo servia, os quais sempre arrecadaram os dous mil pardaus de ouro que o Viso-Rei D. Francisco posera de tributo àquela cidade, por causa da morte de seu filho D. Lourenço (como atrás escrevemos), onde também tratamos do sítio desta cidade. Consentir o Nizamaluco 331 neste tributo, sendo depois do Hidalcão o maior senhor do reino Decão, e todos tam fumosos que não sofriam estas cousas a ninguém, não era por temor que tevesse de nossas armadas, posto que fossem senhoras daqueles mares, porque ele tinha mui pouco que entender nele, somente por esta causa que diremos: Como muitas vezes atrás é escrito, ua das cousas que dava o principal ser àqueles capitães do reino Decão eram os cavalos que vinham da Arábia e da Pérsia per via de Ormuz, muita parte dos quais, ante que nós entrássemos 171v 171v na Índia, vinham ter a esta cidade Chaúl e a Dabul, e outros a Goa, de maneira que se repartiam per estes capitães e per el-Rei de Narsinga, entrando-lhe por Baticalá e outros portos que tinham neste mar. Tomada Goa, ordenou Afonso de Albuquerque que nenhum cavalo fosse a outra parte senão àquela cidade, por o grande direito que ali pagam deles, que comunmente são quorenta e dous pardaus per cabeça, no qual tempo de Afonso de Albuquerque e depois, houve grandes requerimentos destes mouros, e assi del-Rei de Narsinga, sobre entrarem estes cavalos pelos seus portos; não tanto por haver os direitos deles, quanto por os haver à sua mão, e dela comerem os outros, por ser a principal força e nervo da guerra, e tam substancial, que trazem os mouros em modo de provérbios estas palavras: Senão houvesse sofrimento, não houvera já Mundo; e senão houvesse cavalos, não haveria guerra. Pois como o Nizamaluco via que o Hidalcão, seu imigo, nenhua outra cousa o tinha feito poderoso senão irem os cavalos a Goa e Chaúl, que era a meio caminho a que as partes mais folgavam de vir, por não correrem tanto risco, não ousavam connosco senão furtadamente; desejava ele fazer-nos tais obras e tanto serviço a el-Rei de Portugal, que houvesse por bem entrar per aquela sua cidade Chaúl (que não tinha outra marítima algua) certa soma de cavalos, por a grande necessidade que tinha deles. E daqui vinha que, quanto aos dous mil pardaus que Chaúl pagava de

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tributo, era mui contente, quanto mais que ele os não pagava, senão os mercadores da mesma cidade e os seus rendeiros, polo muito que lhe mais importava, assi pera poderem navegar seguros de nossas armadas, como no ganho que connosco tinha da entrada e saída das mercadorias. E quando Leteficane, o governador de Chaúl, assentou o contrato com Diogo Lopes sobre o fazer da fortaleza, pera que o Nizamaluco dava licença, todalas condições dele quási se rematavam nesta entrada de cavalos; e tanto estimava isto, que se contentou que fossem cada ano trezentos, dos quais os direitos se haviam de arrecadar pelo nosso feitor, ao modo de Goa. Assentado este contrato, começou Diogo Lopes a obra da fortaleza meia légua da povoação dos mouros contra a barra do rio, da parte do Norte, onde pareceu que ficava mais segura e podia ter melhor socorro em tempo de necessidade, por ter as outras nossas fortalezas mui longe e por vezinha a cidade Dio, que começava já tomar ousadia polo que lhe tinha sucedido 332 em seu favor, porque até então tudo foram artifícios e manhas, de que Melique-Iaz era grande mestre; e tirando o caso de D. Lourenço, onde ele acudiu como ajudador, e ainda um pouco vagaroso, 172 172 nunca veo com mão armada contra nos tam descobertamente como neste tempo. O qual, favorecido do que seu capitão Aga Mahamude fizera, tanto que soube que Diogo Lopes estava na obra da fortaleza per consentimento do Nizamaluco, entendeu que lhe não convinha sermos tam vezinhos, e que com nosso favor Chaúl se faria mui próspera, com que avocasse todalas naus que vinham de Meca, por ser per ali ua grande entrada e saída de mercadorias pera o reino Decão, o proveito das quais ele perderia. Por evitar o qual dano, ordenou logo de nos empedir esta fortaleza, assi per mar como per terra; e o modo que pera isso teve, foi este: Havia em Chaúl dous irmãos, mouros da terra, homens honrados, que a revezes governavam a cidade, e isto per via de arrendamento; porque geralmente os príncipes daquelas partes, ora sejam mouros ora gentios, fazem governadores da terra os rendeiros de suas rendas, porque com esta jurdição arrecadam e roubam melhor, e per este modo lhe crescem as rendas. Um destes irmãos, chamado Xeque Hamede, que era muito nosso amigo, fora os anos passados regedor, e per envejas veo lançar sobre ele o outro irmão, chamado Xeque Mahamude, o qual, quando Diogo Lopes fazia esta obra, governava a terra, e não nos tinha boa vontade por estar mal com o irmão por ser nosso amigo, tendo ele ofendido ao mesmo irmão em o fazer tirar do governo. Este Xeque Mahamude, peró que obedeceu ao que lhe o governador Leteficane mandou da parte do Nizamaluco sobre o aviamento da obra da fortaleza, e ele mostrava ter muito contentamento dela, pelo proveito que recebia de nós, pôde tanto o interesse particular que recebia de Melique-Iaz, que não movia Diogo Lopes ua pedra, que per ele o não soubesse Melique-Iaz. O qual Melique-Iaz não somente com este Mahamude estava liado contra nós, mas ainda tinha da sua mão a um Xeque Gil, capitão del-Rei de Cambaia, que resedia em Baçaim e guardava aquela costa de nossas armadas, em cuja companhia andava um capitão abassi, também homem de muita calidade, de que el-Rei de Cambaia fazia grande conta, e ambos teriam até trinta fustas. Melique-Iaz, como teve a vontade destes capitães, os quais per terra eram sempre avisados de Xeque Mahamude do que Diogo Lopes fazia, assentou com eles que mandaria o seu capitão Aga Mahamude, pera que juntamente a um tempo corressem a Chaúl empedir com rebates não fazerem os nossos a fortaleza. Ante da vinda dos quais a este feito, era chegado D. Aleixo de Meneses com três galés, ua em que ele vinha, capitão D. Jorge de Meneses, seu primo com-irmão, e outra, capitão André de Sousa 172v 172v Chichorro, e Francisco de Mendoça da terceira, o qual, por rezão das barras dos rios, que não se abriram senão de meado Agosto por diante, não pôde ser com Diogo Lopes mais cedo, e ele lhe deu nova como sobre Baticalá

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333 achara D. Duarte de Meneses, filho de D. João de Meneses, Conde de Tarouca e Prior do Crato, o qual vinha pera governar a Índia. E esta nova lhe tinha já dado Simão Sodré, que viera visitar Diogo Lopes da parte de D. Aires da Gama, que estava por capitão de Cananor, em duas fustas com pólvora e alguas munições, de que sabia ficar ele desfalecido, por causa da nau Serra, que se lhe queimara. E quando Simão Sodré partiu de Cananor, foi com três fustas, ele em ua, Diogo Lobo em outra, e Duarte Fernandes na terceira; o qual, com desejo de tomar algua vaca pera refresco, foi tanto perlongando com a terra, até que saltou nela, onde o mataram, querendo-se já recolher. Dado rebate a Simão Sodré deste desastre, tornou atrás; e onde soube que se acolheram os mouros, que era em ua povoação junto de Bracelor, deu nela, e com morte de alguns a despejou. E tornando-se a recolher, espediu dali a fusta de Diogo Lobo, que se tornasse a Cananor, e ele seguiu seu caminho até chegar a Diogo Lopes, a quem deu a nova da vinda de D. Duarte (como dissemos), e também deu a vida a muitos com refresco e provisão que D. Aires mandava. E esta nova de como Diogo Lopes ali estava tam necessitado, soubera ele, D. Aires, por duas naus que Diogo Lopes espediu chegando à barra de Chaúl, capitães Cristóvão de Sá e Lopo de Azevedo. Diogo Lopes, porque tinha já sucessor na Índia, apressava-se quanto podia por leixar posta aquela fortaleza em estado que se podesse ele ir; mas parece que ainda os seus trabalhos e dos outros capitães e pessoas que com ele se haviam de vir pera este reino, ainda não eram acabados. Porque, pelo concerto que Melique-Iaz tinha feito com o capitão de Baçaim, Xeque Gil (como ora dissemos), mandou lá o seu Aga Mahamude com trinta fustas, e, com as que ele tinha, fizeram número de cinquenta, com que vieram demandar a barra de Chaúl a tempo que andava pera entrar nela ua nau nossa, que vinha de Ormuz, capitão Pero da Silva de Meneses, filho de Rui Mendes de Vasconcelos, senhor das Vilas de Figueiró e Pedrógão, o qual leixava lá Diogo Lopes pera certas cousas de presente que el-Rei de Ormuz queria mandar a el-Rei D. Manuel, que não mandou, por ter já o ânimo danado pera o que cometeu (como se adiante verá). Do qual Pero da Silva tanto que as fustas houveram vista, foram-se nele, e por o vento lhe não servir bem pera entrar, em breve espaço às bombardadas o meteram no fundo, sem 173 173 lhe Dom Aleixo de Meneses, Capitão-mor do Mar, poder valer, quando com sua armada saiu de dentro do rio a lhe acudir. Porque, sendo na barra, como trazia três galeões que haviam mister vento, e ele era-lhe contrairo, o mais que fez, espediu de si as três galés, de que eram capitães os atrás nomeados, e ua caravela, capitão Manuel de Macedo. Mas os mouros, como viram a vantage que tinham na levidão do remo, por se remarem pera diante e pera trás, haviam-se com elas como ginetes com os homens de armas, entre os quais houve tanta fúria de fogo, que todo aquele mar andava feito ua névoa grossa de fumo, com que se não viam 334 uns aos outros, em que os nossos receberam assaz de dano; porque somente na galé de D. Jorge, por ser mais leve no remar, de um tiro lhe mataram três homens e assombraram alguns com o ar do pelouro. Gastada esta parte do dia, ficaram de noite todos na costa do mar, tam juntos uns dos outros, que se atreveu um dos nossos, dos que tomaram em a nau de Pero da Silva, fugir a nado, e levou nova a D. Aleixo como ele era morto de ua bombarda que lhe levara em craro a cabeça fora dos ombros, sem os nossos até então terem sabido ser ele o que vinha em aquela nau tomada. Dom Aleixo, quando veo pela menhã, foi cometer Aga Mahamude, e ele o veo receber como homem que andava favorecido do tempo, repartindo-se em três capitanias: ele com suas trinta fustas a ua, e Xeque Gil com vinte, e o capitão abexi em outras suas. E tornando outra vez ao jogo das bombardadas, tinham esta ordem: espalhadas estas três capitanias, elas mesmas se faziam em mais partes por espalhar as nossas velas; e como via manquejar algua, que se não podia ajudar da outra, carregavam sobre ela, descarregando todos ali sua artelharia pola meter no fundo. E peró que

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tinham tanta vantage neste modo sobre os nossos, todavia D. Aleixo os foi encerrar no rio de Baçaim, que era a sua acolheita por parte de Xeque Gil, no qual Dom Aleixo não podia entrar, pola muita água que demandavam as suas velas. Os mouros, como eram avistados per terra de Xeque Mahamude, di a dous dias tornaram cometer D. Aleixo, que estava ainda na boca do rio esperando sua vinda, e ordenaram-se pelo mesmo modo, quando foi ao pelejar; e neste dia, porque Francisco de Mendoça ficou em parte que não pôde ser ajudado senão de D. Jorge, ele levou mais dano que as outras velas de gente morta e ferida. D. Aleixo, vendo que dos galeões não se podia aproveitar, meteu-se na galé de D. Jorge, e ordenou um batel grande de um galeão com ua bombarda grossa, que deu a Francisco de Sousa Tavares, e com mais ua fusta e ua caravela 173v 173v e duas galés foi buscar Aga Mahamude que estava em uns ilhéus acima de Chaúl. O qual, como homem que já sabia andar às voltas com os nossos navios, que eram pesados, o veo receber, e começaram seu jogo de bombardadas de novo, andando sempre as fustas naquela repartição de capitanias que dissemos. E tinha tal indústria que, como vinha a viração do mar, logo se punha de maneira e em parte, que não podessem os nossos ir a eles, porque naquele tempo, por ventar vivo, tinham mais algua melhoria sobre eles. Finalmente, per espaço de vinte dias nunca outra cousa fizeram, recolhendo-se às vezes a Baçaim a se reparar do dano que recebiam, assi em remeiros como em lhe desaparelharem as fustas; porém logo tornavam à barra do rio onde D. Aleixo estava, tudo afim de pelejar e ocupar os nossos, de maneira que a obra da fortaleza se não fizesse, ou ao menos fosse mui devagar. Porque ele, Aga Mahamude, todolos dias era avisado quanto Diogo 335 Lopes trabalhava por leixar aquela fortaleza feita, por já ter nova ser outro Governador vindo. Diogo Lopes, temendo que por estas fustas andarem mui azedas podiam cometer entrarem pelo rio e ir dar sobre certos cavouqueiros que da banda dalém do rio arrincavam pedra, e isto indo-se ele dali, como esperava fazer ante que ela fosse acabada, porque lhe convinha ser em Cochi pera a carga das naus, ordenou na entrada do rio daquela mesma parte um modo de baluarte de madeira com entulho de terra, ao sob-pé de um morro que estava naquela ponta da terra. Com o qual baluarte ficava a entrada daquela barra a eles mui defendida, e mais não podiam fazer tantos cometimentos à nossa armada, que ficava defronte, na outra parte da banda da terra onde se fazia a fortaleza; e se a cometessem, ficava-lhe a artelharia do baluarte nas costas, de que podiam receber muito dano. E nesta força pôs até quinze ou vinte homens, e por capitão deles a um cavaleiro chamado Pero Vaz Permão, homem costumado andar na guerra, e que trouxera honrado nome de Itália, onde andou muito tempo. E aproveitou esta força tanto, que ficaram as fustas tam escarmentadas do primeiro cometimento, segundo seu costume nos dias passados, que não tornaram ali mais.

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173v 173v 335 Capítulo IX. Como Diogo Lopes de Sequeira entregou a capitania da fortaleza de Chaúl a Hanrique de Meneses, e a capitania do mar a Diogo Fernandes, de Beja; saído do rio de Chaúl pera se ir à Índia, se deteve por causa das cousas que Aga Mahamude fez em a armada em que morreu Diogo Fernandes; e entregou a armada que ele tinha a António Correa, e ele, Diogo Lopes, se partiu pera a Índia. 174 174 Tanto que Diogo Lopes segurou aqueles cometimentos das fustas, determinou de se partir pera Cochi, pera ir fazer a carga da especearia e se despachar cedo pera se ir a este reino, por ser já na fim de Outubro. E primeiro que o fizesse, tomou a mensage da capitania daquela fortaleza a Hanrique de Meneses, filho de Gonçalo Mendes da Silveira, que era sobrinho dele, Diogo Lopes, filho de sua irmã, e deu a alcaidaria-mor a Fernão Camelo, e feitoria a João Caminha, e os mais ofícios a pessoas que per seu serviço o mereciam. A qual fortaleza ficava somente 336 com a torre da menagem no primeiro sobrado, e as outras oficinas junto a ela, sem ter mais muro que as cerrasse, que a primeira cerca de madeira, que se fez pera elegemento da grandeza da obra, dentro da qual se lavrara a outra de pedra e cal. E leixou por Capitão-mor do Mar a Diogo Fernandes, de Beja, o qual havia de ficar ali na boca daquele rio com as três galés, caravela, bargantim e mais três naus, até que viesse D. Luís de Meneses, que vinha pera servir de Capitão-mor do Mar com seu irmão D. Duarte de Meneses (como dissemos), que era vindo pera servir de Governador da Índia; ao qual D. Luís, ele, Diogo Fernandes, havia de entregar toda aquela armada. Assentadas estas cousas, saiu Diogo Lopes de dentro do rio, e veo-se lançar na boca da barra, pera que, quando viesse a noite com o terrenho, se fazer à vela via de Cochi. E porque ainda de todo não eram saídas as naus que com ele haviam de ir, e quási todolos capitães, que ficavam com Diogo Fernandes, se quiseram lançar junto dele, Diogo Lopes, que era da banda donde estava o baluarte - e isto por cortesia e segurança de sua pessoa, por Aga Mahamude andar per diante dele ladrando, o que Diogo Lopes houve por afronta -, mandou a André de Sousa Chichorro que se fosse lançar com sua galé na barra, chegado um pouco a terra, porque poder-se-iam coser tanto com ela os mouros com suas fustas, que entrassem no rio a fazer algum dano. Aga Mahamude, tanto que viu André de Sousa a tempo que não podia ser socorrido, foi-se a ele já bem tarde com suas trinta fustas, e as outras se repartiram em duas partes, segundo seu costume, fazendo-se na volta do mar. E como a noite veo, por terem marcada a galé de André de Sousa, onde lhe ficava pera apontar nele sua artelharia, começaram descarregar nela sem cansar até pela menhã, no qual tempo lhe mataram sete homens e feriram muitos, e seu irmão Aleixo de Sousa foi aleijado de um braço. E vieram-se os mouros tanto a esquentar em ânimo, vendo que não podia ser socorrido, por o vento ser contrairo a toda nossa armada, 174v 174v pera poder ir a ela, que abalroaram com ela, em que cessaram as bombardadas e vieram às lançadas até aos terços das espadas. D. Jorge de Meneses, como a sua galé era leve no remo e ficava mais perto de André de Sousa que as outras nossas velas, foi-lhe socorrer o mais prestes que ele pôde; e indo a meio caminho, tirou um tiro por sinal que ia a ele, com que deu ânimo aos nossos, porque estavam já tam cansados, que não podiam manear os braços a tantas partes como eram cometidos. Chegado D.

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Jorge já junto da galé, vendo que na popa tinha um cardume de fustas, que a tinham cercada pera de todas partes a entrarem, mandou apontar nelas um tiro grosso, o qual fez tanto dano nelas, metendo ua no 337 fundo e outras desaparelhando, que não ousaram de esperar outro, posto que Aga Mahamude trabalhava, ante que D. Jorge chegasse, de se fazer senhor dela. Mas não lhe sucedeu como ele cuidou; ca D. Jorge rompeu per meio deles, e foi-se ajuntar com a galé, fazendo em uns e outros bem de lenha na madeira e sangue nas pessoas. Na qual fúria chegou Diogo Fernandes, que vinha na galé de Francisco de Mendoça com mais quatro batéis, que acabou de apartar aquela fustalha, que, se dano leixou feito, também levou sua parte. Diogo Fernandes, porque a galé de André de Sousa era maravilhosa pera ver, segundo era desfeita e desbaratada, assi da mareagem como da gente, mandou-a assi apresentar ao Governador Diogo Lopes. E ele com os outros navios foi-se pôr na entrada do rio polo defender às fustas, passando-se da galé de Francisco de Mendoça à de D. Jorge de Meneses, por ser melhor de remo; parece que o chamava o seu derradeiro dia naquelas mudanças, porque Aga Mahamude foi avisado aquela noite como a saída do Governador era ir-se já de caminho pera a Índia, e que a galé com que pelejara ficara tal, que não poderia mais servir, senão com grande corregimento. E que entre os portugueses havia nova que seria ali cedo um irmão do novo Governador; portanto que se trabalhasse por dar fim ao que tinham começado, pois o Deus favorecia; que soubesse seguir a vitória enquanto tinha tempo e não vinha o capitão que esperava. Aga Mahamude, com este recado, logo aquela noite se ordenou pera o outro dia cometer as nossas galés; e quando veo a menhã que não viu a galé, entendeu ser verdade tudo o que lhe mandaram dizer, com que ficou com tanto ânimo, que se apartou com suas trinta fustas, e foi demandar Diogo Fernandes, que (como dissemos) se passara à galé de D. Jorge. E pera o caso lhe ser mais favorável, acertou que a outra galé estava lançada um bom pedaço dela contra onde jaziam as naus, em que Diogo Lopes estava pera partir, e em parte 175 174 onde com o vento que ventava, que era o terrenho da menhã, não se podiam ajudar ua à outra. E as outras fustas da capitania de Xeque Gil também se ordenaram pera ir cometer a de Francisco de Mendoça; mas como elas ficavam em posto que, assi do baluarte que estava feito na entrada do rio, como das naus de Diogo Lopes, poderia receber muito dano com a artelharia, leixaram-se estar até verem o que ela fazia de si. Aga Mahamude, como andava já dentro naquele jogo de bombardas, e favorecido do tempo, pela ponta do remo de que se ele mais ajudava e em que tinha avantaje aos nossos, com grande grita foi cometer Diogo Fernandes e a três ou quatro batéis, que estavam com ele; os quais, como o ar foi cego da fumaça da artelharia, todos se fizeram em um corpo, emparando-se com a galé. E durou esta fúria de fogo tanto, que o mastro, verga, remos e toda a cousa com que a galé se podia servir, foi quebrada e feita em pedaços, e era arrombada no costado per sete ou oito partes. O piloto, vendo o muito dano que tinham recebido, foi-se a Diogo 338 Fernandes, dizendo que seria bem mandar cear com alguns remos, pera irem descaindo sobre a outra galé, que lhe ficava per popa, e que se meteriam nela e nos batéis, o que pareceu bem a Diogo Fernandes pera se ajudar ua à outra. D. Jorge, capitão da galé (posto que Diogo Fernandes era capitão-mor), vendo que não havia remos pera aquela obra, e mais ainda que os houvesse, mostravam terem recebido muito dano, e sobre isso grande fraqueza diante de quantos mouros havia em Chaúl, os quais de terra, como quem vinha a ver festa, eram postos pelos lugares altos a olhar, disse contra o piloto: - Ninguém tome remo na mão pera cear, porque lhe cortarei a cabeça com esta espada; ante remem avante se i há com quê; mostremos ter vontade pera ir a eles. O que pareceu bem a Diogo Fernandes. E porque os batéis nossos, que traziam peças de

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artelharia, posto que os enxotavam derredor da galé, não faziam senão buscar abrigada dela, houve Diogo Fernandes paixão; e remetendo da popa, veo-se à proa a bradar com os batéis, dizendo-lhe palavras feas, porque não iam avante. No qual tempo veo um pelouro de ua bombarda, e deu em um pião de um falcão, e dali resbalou e veo dar ele em Diogo Fernandes per ua ilharga, que lhe meteu as armas per dentro, e caiu morto, sobre o qual um moço seu, que estava junto dele, se pôs a prantear; a que D. Jorge logo acudiu, e bradou com o moço que se calasse, e mandou cobrir o corpo do morto com o bérnio de um remeiro. Quando os remeiros viram o rumor da morte do capitão, como os mais deles eram mouros e gente forçada, começaram bradar per 175v 174v os mouros das fustas, que fossem tomar a galé, ao qual rumor acudindo D. Jorge, feriu com a espada a seis ou sete, que os fez calar. E porque eram já muitos homens mortos, em que entrava o condestabre e o comitre, e outros tam feridos que não podiam trabalhar, chamou um mouro remeiro, que lhe pareceu homem pera isso, e disse-lhe que mandasse a galé, que ele lhe dava liberdade e o havia por seguro, e assi soltou dez ou doze degradados cristãos, mandando-lhe que o ajudassem, que além da soltura lhe faria mercê. Finalmente, favorecida a gente, aprouve a Deus que os imigos enfraqueceram, e com o dano que recebiam dos tiros da galé se foram acolhendo. D. Jorge, quando os viu ir, meteu-se no esquife da galé, e, acompanhado dos outros batéis, fez que ia trás eles, por mostrar aos mouros de Chaúl que os levava em fugida. Tornando à galé, fez que surgisse, e mandou-a embandeirar, mostrando a vitória que houvera, e esteve assi surto até véspora, que com a viração se foi apresentar a Diogo Lopes, que estava bem largo ao mar, o qual o recebeu com tanta honra, quanta teve de tristeza pela 339 morte de Diogo Fernandes; porque, além de se nele perder um homem que pera aquele ofício da guerra havia poucos que lhe fizessem vantage, era grande seu amigo por cousas particulares. Ao qual mandou logo desarmar, havendo mais de quatro horas que era morto; e tirando-lhe do pescoço ua cruz de ouro em que trazia relíquias, começou lançar pelos narizes algum sangue, não tendo até então lançado ua gota, e dali o mandou levar em um esquife a enterrar a Chaúl. Em lugar do qual proveo logo da capitania-mor da armada, que ali havia de ficar até vinda de D. Luís de Meneses, a António Correa, e deu-lhe um galeão, por ser peça que lhe podia servir de baluarte enquanto estevesse na barra, onde lhe mandou que fizesse um, pera daquela parte estar a entrada do rio tam segura como da fronteira onde estava o outro, de que era capitão Pero Vaz Permão. Dada esta ordem pera guarda daquela fortaleza, partiu-se Diogo Lopes na fim de Dezembro pera Cochi. E no caminho, sendo tanto avante como Dabul, começou a Índia fazer seu ofício (como já dissémos) - que recebe aos que a vão governar com alegre rostro, e, quando os espede de si, é com todalas injúrias que lhe pode fazer. Porque nesta paragem achou D. Luís de Meneses, que vinha com aquela pompa de muitas velas e Capitão-mor do Mar, ao qual mandava D. Duarte, seu irmão, que viesse acudir àquela fortaleza, que se começava fazer em Chaúl, por ter nova do trabalho que os nossos sofriam das fustas de Melique-Iaz, Diogo Lopes, encontrando D. Luís, esperou que por sua dinidade e idade que 176 176 o fosse ver; e quando viu que o não fazia, meteu-se no batel do seu galeão, porque não levava mais velas, por as leixar todas a António Correa, e foi ver D. Luís ao seu. Da qual vista não ficaram contentes um do outro, porque ainda D. Luís quisera que ele, Diogo Lopes, lhe dera o galeão que levava, e que se fora em outro navio pequeno, que lhe mandava dar. Partido um do outro, chegou D. Luís a Chaúl a tempo que António Correa tinha acabado um honrado feito. E foi este:

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176 176 340 Capítulo X. Como Aga Mahamude mandou per um ardil cometer o baluarte onde estava Pero Vaz Permão, no qual cometimento, posto que morreu Pero Vaz e outros, os mouros foram vencidos; no fim do qual feito veo D. Luís de Meneses, a quem António Correa entregou a armada, e di se foi a Cochi embarcar com Diogo Lopes de Sequeira, que partiu pera este reino, onde chegou a salvamento. Partido Diogo Lopes, tomou António Correa posse com toda sua armada da boca da barra, chegado muito a terra da banda de Chaúl onde Diogo Lopes lhe mandou que fizesse outra força como a fronteira em que estava Pero Vaz; ca esta defenderia cometerem as fustas entrar per aquela parte por varejarem com sua artelharia aquele lugar. Porque a ordem que António Correa (segundo assentara com Diogo Lopes) esperava ter com aquele mouro Aga Mahamude, que tanto os perseguia com a ligeireza das sua fustas, era que ele, António Correa, não se movesse dali, e muito temperadamente, se ele viesse, gastasse a pólvora, por a pouca que tinha; ca, despendendo em tiros perdidos, em poucos dias a poderia gastar de todo. Xeque Mahamude, o nosso imigo, avisou a Aga Mahamude, que estava em Baçaim reformando-se do dano que também recebeu de Dom Jorge, dando-lhe conta como o Governador era partido, e que António Correa ficava pera fazer um baluarte da parte de Chaúl. E que estava assentado que não havia de sair a ele a pelejar, somente defender a entrada; que a ele lhe parecia que seria bem ordenar-se de maneira como per algum modo entretevesse a António Correa, e entretanto mandasse cometer o baluarte já feito da outra banda, onde não havia mais que até quinze homens. E que, se tomasse esta força, ficaria senhor do mar e da terra, porque ele meteria também o lugar em alvoroço, de maneira que podia suceder com que de todo nos lançasse dali fora; e pera o encaminhar per terra até ele dar no baluarte, lhe mandaria aquele homem 176v 176v que lhe daria a carta. Aga Mahamude, como teve este aviso de Xeque Mahamude, informado bem do ardil per este homem que lhe mandou, à grande pressa reformou toda sua frota de munições e gente fresca e di a dous dias veo-se pôr ante António Correa, provocando-o a sair do pouso que tinha tomado; e quando entendeu ser verdade o que Xeque Mahamude lhe tinha escrito, ordenou o seu ardil per esta maneira:. O baluarte que dissémos que guardava Pero Vaz, estava ao pé de um 341 morro, assentado de maneira que, da parte do rio, a terra era rasa e descoberta, com que ele podia bem varejar sua artelharia a quem a quisesse cometer entrar pelo rio. E da outra parte, contra a costa do mar, estava este outeiro assi ordenado, que quem se posesse detrás dele, na parte de ua calheta, onde se podia desembarcar em terra, ficava encoberta do mesmo outeiro, pera não poder ser visto do lugar onde António Correa estava, nem do mesmo baluarte que estava ao pé dele. Nesta calheta determinou Aga Mahamude que fosse demandar Xeque Gil e o outro capitão abexi com até trezentos homens, e que levasse por guia o mouro que lhe mandou Xeque Mahamude; ca ele os levaria ao baluarte dos nossos, e que, enquanto eles cometessem o baluarte, ele, Aga Mahamude, estaria no lugar onde estava às bombardadas por entreter os nossos. Assentado este seu ardil, levou Xeque Gil quinze fustas, e de noite, por não ser visto, foi ter à calheta, onde desembarcou com sua gente, que foi levada pela guia que os havia de encaminhar ao baluarte dos nossos, onde estavam mais quinze homens, que António Correa o dia dantes mandara a Pero Vaz, como se lhe o espírito dissera o que havia de ser, com os quais fez trinta e tantas pessoas.

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Os mouros, porque per onde a guia os levou era tudo mato, teveram bem que fazer em chegar à fortaleza já alto dia; e primeiro que saíssem da cilada, tomaram fôlego do caminho, e dali remeteram com ua grita, que deu grande sobressalto aos nossos, por estarem descuidados daquela parte. Mas como o temor ensina a salvação, e eles não tinham outra senão de suas mãos, vendo que entre eles e os mouros havia tam desigual número, e mais não tendo por emparo mais que uns valos e um pouco de tavoado com entulho de terra per dentro, receberam os imigos tam animosamente, que, sendo pouco mais de trinta, pareciam outros trezentos como os mouros eram. António Correa, que estava no seu pouso, quando da outra banda ouviu a grita dos mouros e viu o combate que davam, entendeu per onde fora a sua entrada, e a grande pressa mandou dous batéis grandes com as peças de artelharia que traziam ordenadas pera aquela defensão das fustas, que acudisse ao baluarte com até 177 177 sessenta homens, dos quais era capitão Rui Vaz Pereira. O qual, atravessando o rio da parte de além, chegaram a tempo que eram já mortos Pero Vaz, o capitão, Simão Ferreira, o condestabre dos bombardeiros, e outros com a mais da gente muito ferida. E havia homem que em ua rodela que tinha a cruz de Cristo (devisa dos cavaleiros da melícia desta Ordem), estavam pregadas sessenta frechas, e nenhua delas era na cruz, ocupando ela com sua figura a maior parte do campo derredor dela. E outros dous, que eram Manuel da Cunha e Pero de Queirós, cada um tinha na sua rodela de vinte cinco pera cima. Finalmente, segundo os mouros eram muitos, foi um grande milagre não terem tomado o baluarte, ante que lhe os dous capitães acudissem com sua gente, os quais fizeram tal obra, que 342 poseram os mouros em fugida; e se não fora o mato do outeiro per onde eles vieram, no qual se embrenharam, todos ali houveram de perecer; contudo, ficaram estirados uns sessenta e tantos. Aga Mahamude, quando soube deste desbarato dos seus, foi recolher suas fustas, e contentou-se em o não irem demandar, com que ficou mais manso do que andava de ante. Porque além de perder muita gente, a maior parte da qual era da mais nobre que ele trazia, entrou nela o capitão das fustas, Xeque Gil, e o outro abexi, e assi morreu a guia que os levava, criado de Xeque Mahamude. O qual, desejando saber como aquele caso passara, por ter vigia nele, e lhe ser dito que António Correa estava no baluarte, mandou-lhe um batel carregado de refresco com um recado de visitação. António Correa, como tinha sabido quem ele era acerca de nossas cousas, mandou cortar as cabeças daqueles mouros, que nos vestidos pareciam honrados, e mandou-lhas, dizendo que, em retorno do refresco, lhe mandava aquelas cabeças, por saber quanto havia de folgar com a vitória que houveram os do baluarte; e os corpos de todos mandou enforcar ao longo da praia, que foi ua triste vista a todos os mouros de Chaúl. Quando ele, Mahamude, conheceu as cabeças dos capitães e a do criado e outras pessoas nobres, foi tamanha a dor nele, que sem temor publicamente mostrou quanto lhe pesava daquela obra, dizendo que António Correa não lhe houvera de mandar tal presente em retorno da sua visitação, e abastava a vitória, e não mandar-lhe cabeças de homens, e mais sendo mouros, entre as quais podia haver cousa sua. E como homem que se despunha a tomar de nós toda vingança, escreveu a Aga Mahamude que se aviasse não partir dali; ca lhe fazia saber que os nossos tinham gastado toda a pólvora que trouxeram, e com pouca afronta que lhe fizessem, lhe faria despender a que lhe ficava, de que lhe podia suceder ua boa ventura, com que recompensasse aquela perda. Aga Mahamude, tomando seu conselho, não leixou de esbombardear a António Correa; mas ele o entretinha, e 177v 177v todo seu cuidado era defender que não fosse impedir acabar-se de fazer o baluarte, em que pôs vinte cinco espingardeiros, e por capitão Álvaro de Brito. No qual tempo chegou D. Luís de Meneses, a que ele, António Correa, como Capitão-mor do Mar, entregou as velas que tinha, e ele veo-se pera

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Cochi em um galeão pera tomar Diogo Lopes de Sequeira, ante que partisse pera este reino, por ser já na fim de Dezembro. O qual Diogo Lopes ainda não tinha feito entrega a D. Duarte do governo da Índia, por ter provisão del-Rei D. Manuel que até se embarcar governasse; e acabando de fazer sua carga, entregou o governo a D. Duarte de Meneses, a vinte dous de Janeiro de quinhentos e vinte dous, e ele, Diogo Lopes, com oito velas carregadas de especearia se partiu pera este reino, de que estes eram os capitães: ele, D. Aleixo de Meneses, Rui de Melo de Castro, D. Aires da Gama, Manuel de Lacerda, André Dias, Sancho de Toar, Pero Coresma, que todos chegaram a este reino a salvamento. 343 E diante dele, em vinte oito de Março, chegou a nau Nunciada, de Bertolameu Florentim, capitão seu filho Pero Paulo Marchone, as quais naus trouxeram muito boa carga de especearia, e alguas delas eram do ano de vinte, por não terem então carga; por esta causa vieram nove naus. E peró que a carga foi grande, foi a pimenta tal, que algua quebrou a setenta por cento, e duas naus dela se gastaram à míngoa de não haver outra na casa o ano de quinhentos e sessenta e um. A culpa da qual pimenta não teve Diogo Lopes, por ele ser neste tempo em Ormuz e em Chaúl, fazendo a fortaleza, mas André Dias, alcaide de Lisboa, que veo por capitão da nau Santiago. Ao qual el-Rei D. Manuel mandou o ano de quinhentos e vinte com grandes poderes e regimento pera ele feitorizar a carga daquele ano, por ser homem que já no tempo do Viso-Rei D. Francisco estevera por escrivão da feitoria em Cochi, e sabia o negócio daquelas partes. E ele, em lugar de comprar pimenta, trouxe terra; porque, como os mercadores da especearia entenderam que ele desejava de trazer grande carga pera abonar sua deligência, davam-lha verde, e ainda o ano de vinte e um, que ele houvera de vir com ela, porque não pôde haver quanta queria, ficou na Índia, e mandou alguas naus com aquela que pôde haver, e veo-se este ano de quinhentos e vinte dous. Posemos esta lembrança aqui, não por razão de história, mas como oficial do cargo de feitor que temos desta casa, por cuja mão passa a pimenta e bondade dela, porque seja aviso que pimenta, na Índia hão de estar os oficiais compradores dela, e não mandados de cá em descrédito seu. E o que acerca disto passa, leixo no meu peito; basta que tenho experiência de trinta e oito anos de oficial, e vi passadas e presentes experiências neste negócio, que me faz dizer quanto mais aproveita aos príncipes, pera fazerem sua fazenda, fazerem mercê aos 178 178 fiéis e castigar cobiçosos, que desconfiar daqueles per meio dos quais necessariamente se hão de servir, porque na desconfiança não assombram mas indinam a quem tem pouca conta com a alma. E de el-Rei D. João, o Segundo de Portugal (que foi um príncipe de grande governo) conhecer bem a natureza dos portugueses, que com mais paciência recebem castigo que injúria, dizia por eles: Ao português não o enxovalhar, mas castigar quando o merecer. E já lhe aconteceu receber capítulos de oficial de sua fazenda bem honrado, e mostrar à parte que lhos deu ter descontentamento disso, por saber que procedia mais de ódio que de zelo de seu serviço. E também, por não enxovalhar a parte, dissimulou o caso mais de um ano, e neste tempo, sem o ninguém sentir, per si mesmo tirou os capítulos, e 344 achando a parte culpada neles, lhe tirou o ofício, e deu-lhe outro não menos honrado em casa do Príncipe D. Afonso, seu filho, a quem então dava casa, mostrando ao mundo que fazia aquela mudança por fazer mercê à parte. A qual em segredo reprendeu do que tinha sabido dele, não per via de capítulos, mas como Rei, cujo ofício é saber como seus oficiais vivem, pera agalardoar os bons e os que não são tais haverem seu castigo. E porque as culpas desta parte eram de cobiça, por ser oficial de sua fazenda, em que ela padecia o detrimento, e não parte algua, não foi o castigo mais severo que tirar-lhe o azo de mais pecar; porque trazia ele por costume não castigar a homens que comiam de sua fazenda, senão a quem queria mais que comer. E esta respota deu ele a um almoxerife dos mantimentos dos almazéns da cidade de Lisboa, ao qual, pedindo-lhe que acrescentasse o mantimento, el-Rei perguntou que cousas recebia de seu ofício; e ele respondeu que

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farinha, biscoito, carne, pescado, vinho, azeite, vinagre e outras cousas desta calidade, pera dar às armadas. Ao que el-Rei respondeu: - Pois essas cousas não são mantimentos? - São, Senhor - disse ele - mas são de Vossa Alteza, e hei-de dar boa conta delas. - Comei vós - disse el-Rei - que eu não castigo quem come, mas quem furta; havendo que comer, não merece castigo senão quem faz casarias pera viver e lhe renderem, e casa de honra e fazenda pera memória de seu nome. E ua das cousas de grande prudência e que louvam o Emperador Carlos V é que, de experimentado quanto dano lhe fazia per capítulos e mexericos remover homens de cargos de seu estado, principalmente quando per ele eram postos no tal cargo e não inculcados per outrem, e de que tinha experiência, dissimulava com eles sem os ameaçar com desgostos e desconfiança, ante neste tempo mostrava ter deles muita, e os favorecia em suas cousas, por os mais confundir e castigar em seu tempo, que era quando acabavam de servir seu cargo, como fazia, e achando o contrairo, os remunerava com mercê. E já aconteceu ser-lhe dados capítulos de homem que ele tinha posto em cargo de grande confiança 178v 178v de seu estado, e calando o nome de quem lhos deu, lhe mandou os próprios capítulos com palavras da confiança que tinha dele, per experiência de seus serviços passados. Isto quási ao modo de Alexandre Magno, que, sendo-lhe dada ua carta em que o avisavam que não tomasse ua purga que lhe havia de dar o seu médico Felipo, porque nela ia peçonha pera o matar, estando ele doente; e pola grande confiança que 345 tinha nele, quando veo ao tomar da purga, com ua mão tomou o vaso, per que a bebeu, e com a outra lhe deu a carta que a lesse. Porque dezia ele, Emperador Carlos, que milhor se achava da confiança que mostrava aos homens de que tinha experiência, que de os remover dos ofícios em que os tinha posto, porque lhe acontecera muitas vezes danar seus negócios em estas mudanças. E nós-outros, portugueses, mais glória temos no enxovalhar que no castigar, sendo mais próprio da justiça o castigo que a injúria: ca o primeiro faz indinação, de que procede vingança; e o segundo confunde com arrependimento da causa, porque recebe a pena do castigo.

LIVRO VII 179 179 347 Capítulo Primeiro. Como el-Rei D. Manuel mandou por Governador à Índia D. Duarte de Meneses, o qual partiu deste reino o ano da quinhentos e vinte um. Este ano de mil e quinhentos e vinte um, em Lisboa, a treze dias do mês de Dezembro, às nove horas depois de meio dia, faleceu el-Rei D. Manuel, o quatorzeno de Portugal e primeiro deste nome, em idade de cinquenta e dous anos, seis meses e treze dias. Dos quais reinou vinte seis, um mês, dezanove dias. Foi sepultado no Mosteiro de Nossa Senhora de Belém, em Rastelo, que (como no princípio desta História escrevemos) ele novamente fundou em louvor de Deus, por lhe gratificar a mercê que lhe fizera no descobrimento da Índia. O Príncipe D. João, seu filho, sendo em idade de vinte anos e quatro meses, foi logo levantado por Rei na mesma cidade de Lisboa, nos alpênderes do Mosteiro de S. Domingos. E posto que na Índia não se soube esta nova senão no ano seguinte de vinte dous, em as naus que então partiram deste reino, porque D. Duarte de Meneses, que ele, Rei D. Manuel, tinha enviado a ela por Governador, não foi entregue deste governo senão a vinte dous de Janeiro de quinhentos e vinte dous (como ora escrevemos no fim deste Sexto Livro, que atrás fica), convém que entremos neste sétimo com o novo Rei, Senhor da Conquista, Navegação e Comércio do grã Oriente, que aquele felecíssimo, bem-aventurado e de gloriosa memória el-Rei, seu padre, lhe leixou por herança, acrescentada per ele à Coroa destes reinos de Portugal. E também começamos com novo 348 Governador, D. Duarte de Meneses, filho herdeiro de D. João de Meneses, Conde de Tarouca, Prior do Crato da Ordem de S. João do Hospital e Capitão da cidade Tanger, em África, e 179v 179v Mordomo-mor que fora da casa del-Rei Dom Manuel e seu Alferes-mor, pessoa das notáveis deste reino, assi pelo claro sangue de sua linhagem, como por sua cavalaria e grandes calidades. O qual D. Duarte não somente tinha os méritos de seu pai, mas ainda os de sua pessoa, em honrados feitos que tinha acabado em Tanger, onde esteve por capitão. Por os quais respeitos e calidades que até então não concorreram em quantos Governadores foram à Índia, el-Rei D. Manuel o escolheu pera este governo e conquista, e lhe deu maior ordenado do que tiveram os outros passados, e depois algum teve. E apercebida ua frota de doze velas, partiu deste reino a cinco de Abril de quinhentos e vinte um; os capitães das quais velas eram: ele, Dom Luís de Meneses; seu irmão, monteiro-mor do Príncipe D. João, que logo reinou (como ora dissemos); D. João de Lima, filho de Fernão de Lima, alcaide-mor de Guimarães, que ia pera capitão da fortaleza de Calecute; D. Diogo de Lima, filho do Bisconde D. João de Lima, pera capitão de Cochi; João de Melo da Silva, filho de Manuel de Melo, alcaide-mor de Olivença, pera capitão de Coulão; Francisco Pereira Pestana, filho de João Pestana, pera capitão de Goa; D. João da Silveira, filho de D. Martinho da Silveira, pera capitão de Cananor; Diogo de Sepúlveda, filho de João de Sepúlveda, pera capitão de Sofala; Martim Afonso de Melo, filho de Jorge de Melo, Lageo de alcunha, que da Índia havia de partir com três ou quatro velas pera ir assentar o trato da China; Gonçalo Rodrigues Correa, de Almada, armador da própria nau em que ia, e Vicente Gil, filho de Duarte Tristão, que também era armador da sua nau. E assi ia em companhia de Diogo de Sepúlveda em um navio António Rico, que havia de servir de alcaide-mor e feitor de Sofala, e nele havia de vir Sancho de Toar, que lá estava por capitão. E após ele, D. Duarte de Meneses partiu Bastião de Sousa, de Elvas, filho de Rui de Abreu, alcaide-mor que fora de Elvas, por capitão de duas velas, ele em ua nau e João de Faria e Hanrique Pereira, cavaleiros da casa del-Rei, em um navio, um pera servir de alcaide-mor e outro de feitor de ua fortaleza que el-Rei D. Manuel mandava fazer per ele, Bastião de Sousa, de que havia de ficar capitão na Ilha de S. Lourenço, em o porto Matatana, por razão do gengivre que ali havia. Ao qual

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negócio já el-Rei mandara a Luís Figueira, que fez tam pouco como escrevemos, quando Lopo Soares, o ano de quinhentos e quinze, indo pera a Índia, o achou em Moçambique; e muito menos fez Bastião de Sousa (como em seu lugar se verá). D. Duarte, partido com sua frota e chegado a Goa, sabendo como Diogo Lopes, a quem ele ia suceder na governança da Índia, estava na pressa de fazer a fortaleza de Chaúl, pola necessidade que tinha e o tempo ser chegado pera se ele vir pera este reino, não fez mais que espedir D. Luís 180 180 349 de Meneses, seu irmão, como Capitão-mor que era do Mar, e des i meter os capitães das fortalezas em posse, pera que tevessem tempo de se aperceber os que haviam de vir com Diogo Lopes de Sequeira. Entregue per Diogo Lopes da governança da Índia a vinte dous de Janeiro (como dissemos) e ele partido pera este reino, começou D. Duarte de Meneses entender no governo das cousas que ao presente eram mais importantes acudir. E foi mandar alguas velas a seu irmão D. Luís, a Chaúl, onde estava, pera leixar em guarda da fortaleza, e que ele a grã pressa socorresse a cidade Ormuz; porquanto viera recado, estando ainda ali em Cochi Diogo Lopes, que el-Rei se levantara contra os nossos, e que a maior parte dos que pousavam fora da fortaleza eram mortos e os outros postos em cerco. Ido este recado a Dom Luís, porque D. Duarte soubera que todo o dano que se recebera de Aga Mahamude fora por razão dos navios de remo leves que trazia, ordenou de mandar logo doze fustas, seis das quais à sua custa fez Simão de Andrade, a quem ele, D. Duarte, deu a capitania da fortaleza Chaúl, leixando Diogo Lopes nela Hanrique de Meneses (como atrás fica). Alguns quiseram culpar D. Duarte, por tirar este sobrinho de Diogo Lopes, a quem ele com mais razão podia dar esta fortaleza que a Hanrique de Meneses, por terem todolos Governadores provisão del-Rei, que em qualquer fortaleza que fizessem de novo, podessem prover de capitães e oficiais, até ele de cá do reino prover, o que D. Duarte não podia fazer, pois não vagara. E o porque se isto mais estranhou, foi por ele, D. Duarte, casar ua filha bastarda, que cá leixava no reino, com Simão de Andrade, e parecia ser a fortaleza dada por dote, o que não houve efeito, por ele falecer sem vir a este reino. Ao que D. Duarte dava por desculpa, que o fizera por Simão de Andrade ser um homem mui antigo na Índia e experimentado na guerra dela, e que viera pouco havia da China muito rico, e logo de boa entrada à sua custa fizera seis fustas. E que os homens destas calidades eram aqueles a que se deviam entregar as fortalezas del-Rei, por terem substância pera suster todo trabalho, principalmente naquela de Chaúl ainda por acabar, e tam requestada dos mouros e afastada de Goa, de que não podia em breve receber ajudas. E que Hanrique de Meneses, posto que fosse bom fidalgo e cavaleiro, era mancebo e novo da Índia, e sobre isso tam pobre, que não poderia sofrer gastos de capitão; e que, segundo a fortaleza estava inquieta, primeiro ficaria de todo estruído que houvesse algum proveito. Finalmente, com estas e outras rezões, em que D. Duarte mostrou ser necessária esta mudança pelo estado em que a fortaleza estava, Simão de Andrade partiu pera Chaúl com regimento que, como fosse metido de posse da fortaleza de Chaúl, assi as fustas como 180v 180v as outras velas que levava repartisse em três capitanias, pera guarda daquela costa. Um dos quais capitães fosse D. Vasco de Lima, outro Francisco de Sousa Tavares e outro Martim Correa, 350 porquanto seu irmão D. Luís era ido ao levantamento de Ormuz a grã pressa, como logo veremos. Deste caminho foi Simão de Andrade ter à barra de Dabul, onde soube que dentro no rio estavam duas galés de rumes, que ali foram ter acaso, vindo de Dio; sobre as quais mandou um recado ao capitão da cidade, que lhas mandasse entregar, por serem de gente nossa contraira. E posto que ele se defendia com rezões de o não poder fazer, quando soube que Simão de Andrade se apercebia pera as ir tomar à força de ferro, houve por melhor conselho mandá-las entregar, temendo

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que, não somente daquela saída, mas polo tempo em diante, podia receber de Simão de Andrade muito dano, pois vinha a ser seu vezinho na capitania de Chaúl. Com as quais galés Simão de Andrade não se contentou, mas ainda fez obrigar a cidade que pagassem de páreas a el-Rei de Portugal dous mil pardaus, pera ficarem em amizade e paz com eles, por a vezinhança que haviam de ter, o que todolos moradores com o tanadar concederam. Chegado Simão de Andrade com esta vitória a Chaúl, Martim Afonso de Melo lhe entregou a fortaleza, ao qual D. Luís leixara ali em guarda daquele porto, até ele, Simão de Andrade, vir. E também pera se prover das cousas que lhe convinha levar dali pera o resgate da pimenta, que havia de tomar em Pedir, que era a principal mercadoria que havia de levar à China, onde havia de ir. E esta foi a causa por que ele veo a Chaúl com D. Luís - haver ali muita cópia da mercadoria pera aquela parte de Samatra. E enquanto ali esteve, não recebeu aqueles cometimentos das fustas de Aga Mahamude, porque a chegada de D. Luís assombrou muito a Melique-Iaz. Porque, como ele sempre viveu de cautelas e artefícios de prudência e malícia pera seus negócios, tanto que D. Luís ali foi, soube quem era, e cujo filho, e irmão do Governador que novamente vinha, que era cavaleiro e mui usado na guerra dos mouros, por estar muito tempo em a cidade de Tanger em África, dos quais tinha havido muitas vitórias. As quais novas o enfreavam de maneira que mandou cessar as fustas, e ordenou logo um mensejeiro a D. Duarte, e mandou-lhe de boa entrada uns portugueses cativos que lá tinha, dos que foram tomados da nau de Pero da Silva (como atrás fica). Martim Afonso de Melo, tanto que se aviou, foi-se pera Goa, e ali se despediu de D. Duarte pera Cochi, donde partiu pera a China; da viagem do qual adiante faremos relação, e assi de D. André Hanriques, que também D. Duarte mandou a tomar posse da fortaleza de Pacém em a Ilha 181 181 Samatra. E ante destes dous capitães tinha mandado três naus caminho de Ormuz, que levaram João Rodrigues de Noronha pera capitão da fortaleza, e também 351 favoreceram a D. Luís de Meneses, que era ido em socorro do alevantamento da cidade, do qual levantamento convém repetir-se a causa dele de longe, pera melhor entendimento da história.

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181 181 351 Capítulo II. Das cousas que moveram a el-Rei D. Manuel mandar que na alfândega de Ormuz houvesse oficiais portugueses; e o que sobre isso primeiro passou; e como el-Rei de Ormuz se levantou por esse respeito. Depois que Afonso de Albuquerque o ano de quinhentos e oito per força de armas fez que el-Rei Ceifadim, de Ormuz, pagasse de tributo a el-Rei D. Manuel em cada um ano quinze mil xerafis de ouro; e por as razões que atrás escrevemos, leixando a fortaleza por acabar, se partiu pera a Índia, com que parecia que estas páreas não ficavam mui certas, todavia ele as mandava arrecadar. Verdade é que, quando lá mandou Diogo Fernandes, de Beja, trouxe menos vinte mil xerafis do que devia. E no ano de catorze, que lá foi Pero de Albuquerque, quando descobriu Baharém, devia sessenta e cinco, e não pagou mais que dez mil, aqueixando-se render o seu reino tam pouco, que não era poderoso pera pagar tam grande tributo. Movido dos quais queixumes, o Viso-Rei, D. Francisco de Almeida, ante disto lhe quitou cinco mil xerafis, e outros tantos Duarte de Lemos, quando, sendo capitão da costa da Arábia, foi ter a Ormuz. E como Afonso de Albuquerque sabia que os rendimentos daquele reino eram mui grandes, e a maior parte era sonegada a el-Rei per os seus governadores, quando o ano de quinhentos e quinze tornou a tomar posse daquele reino, mandou fazer a deligência que escrevemos, em saber particularmente quanto rendia o reino, e as despesas ordinárias que tinha, por el-Rei não alegar pobreza. E também porque, como lhe entregava aquele reino, que ele, Afonso de Albuquerque, tinha ganhado por armas, como Capitão-geral que era del-Rei D. Manuel de Portugal, convinha que meudamente soubesse parte destas cousas, posto que naquele tempo, pera quietação e governo do mesmo reino, foi necessário torná-lo a entregar ao próprio Rei a que foi tomado, pera o governar em nome del-Rei como vassalo seu, pela maneira que atrás escrevemos. Depois, em todo o tempo de Lopo Soares, que sucedeu no governo da 352 Índia a ele, Afonso de Albuquerque, posto que as páreas que el-Rei de Ormuz pagava, que eram quinze mil xerafis, fossem tam pouca cousa que 181v 181v levemente o podia fazer, sempre o pagamento se havia com trabalho e clamor do mesmo Rei, dizendo, que o reino rendia pouco, porque os mouros, assi da costa da Índia e Cambaia como os da parte da Arábea, por nossa causa, não frequentavam tanto aquela cidade Ormuz como soíam, e isto com temor de nossas armadas, em que se perdia muita parte do rendimento da entrada e saída das mercadorias, que era a maior renda que o reino tinha. E além disto, estava posto em tanto ódio dos vezinhos, por ser nosso, que assi per mar como per terra padecia muitas afrontas, pera que lhe convinha manter muita gente de armas, ua pera andar de armada contra os nautaques e outra a defender as cáfilas da Pérsia, que vinham aos lugares da terra firme que o reino lá sustentava. E mais tinha outro novo trabalho muito importante, depois que tomáramos aquela cidade: que se viera levantar o governador de Baharém com o tributo que era obrigado pagar a ele, Rei de Ormuz, e pela mesma maneira o fazia o guazil da vila de Calaiate, de que el-Rei tinha muito rendimento, sem nossas armadas acudirem a estas opressões e levantamentos, sendo o mesmo reino nosso. Finalmente, per este modo apontava muitas cousas em que nos queria culpar e desobrigar a si mesmo do que devia, não havendo outra mais verdadeira causa, que os roubos de seus regedores e oficiais. E porque el-Rei D. Manuel era informado destes roubos, quando António de Saldanha o ano de quinhentos e dezassete foi deste reino (como atrás escrevemos), pera andar com ua grossa armada, que havia de correr da costa de Cambaia até o Cabo Guardafu, levava em regimento que

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fosse a Ormuz, e tirasse e posesse oficiais pera tudo andar em boa recadação. Sobre o qual caso escreveu a Lopo Soares, mandando-lhe que fizesse esta armada a António de Saldanha de até dezassete velas com mil homens, pera tolher a navegação aos mouros do Mar Roxo e de toda a costa de Arábia; e os da Índia não podessem navegar, senão com um salvo conduto nosso, a que eles chamam cartaz, pera seguramente irem e virem a nossas fortalezas até Ormuz, por razão do rendimento. E assi lhe mandava que metesse debaixo da obediência del-Rei de Ormuz qualquer seu guazil e regedor que contra ele estevesse levantado. Mas nenhua destas cousas houve efeito com a ida de Lopo Soares ao Estreito do Mar Roxo; porque no inverno que veo ter a Ormuz, saindo deste Estreito, entendeu em alguas cousas do rendimento daquele reino, e houve por inconveniente ao serviço del-Rei D. Manuel bolir com isso. E por esta causa mandou ele, Lopo Soares, a António de Saldanha, ao tempo que lhe fez a armada pera andar na boca do Estreito, da vez que ele destruíu a cidade Bárbara (como atrás escrevemos), que, quando se recolhesse a invernar em Ormuz, não usasse do regimento que lhe el-Rei 182 182 dera pera tirar os oficiais da alfândega, até ele informar a el-Rei daquele negócio, por ser causa mui prejudicial seu serviço então 353 fazer aquela mudança. Todavia António de Saldanha, desta vez que foi ter a Ormuz, posto que não fez mudança, sabendo el-Rei de Ormuz que tinha ele poderes pera isso, levemente aceitou acrescentar-lhe mais dez mil xerafis cada ano. Em recompensão deste acrescentamento, fez com el-Rei de Baharém que pagasse o que devia; e em pena das rebeliões que fez a el-Rei de Ormuz, lhe pagasse mais em cada um ano dous mil xerafis, e a el-Rei D. Manuel mil. Todas estas cousas eram passadas ante que Diogo Lopes de Sequeira fosse por Governador à Índia, e outras de que el-Rei era informado per os capitães e oficiais que estiveram em Ormuz, fazendo-lhe crer importar muito a seu serviço mandar pôr oficiais seus na alfândega que tevessem conta com os rendimentos daquele reino, porquanto era roubado per os mouros, e que el-Rei havia o menos, por ser homem que no governo era ua estátua. Finalmente, com estes e outros conselhos de homens que querem comprazer os príncipes, quando Diogo Lopes de Sequeira foi por Governador à Índia, el-Rei lhe mandou que desse ua vista a Ormuz e fizesse o que tinha mandado a António de Saldanha. E porque ao tempo que ele, Diogo Lopes, saiu do Estreito de Meca, quando veo invernar a Ormuz, como testemunha de vista, julgou ser mais serviço del-Rei D. Manuel leixar correr as cousas do rendimento e arrecadação dele per as mãos dos mouros que per nós, não quis bolir na ordem que os mouros nisso tinham. Porém, porque achou na Índia cartas del-Rei, em que lhe mandava estreitamente que posesse aquela obra em efeito, se a ainda tinha por fazer, não quis tomar juízos sobre si, posto que outra cousa sentisse, e desta derradeira vez que invernou em Ormuz, fez o que lhe el-Rei mandava (como atrás escrevemos). E o modo que teve neste caso foi dar primeiro a el-Rei de Ormuz ua carta del-Rei D. Manuel, a substância da qual era ser ele informado dos grandes roubos que os seus oficiais da fazenda faziam na arrecadação dos rendimentos do reino, principalmente na alfândega, pela maneira que Diogo Lopes, seu governador, lhe deria. El-Rei, como já no tempo de António de Saldanha andava assombrado disto, pareceu-lhe que, não consentindo no que el-Rei queria, o podiam tirar do reino, respondeu que ele era vassalo del-Rei de Portugal e aquele reino de Ormuz era seu; que estava obediente ao que Sua Alteza mandasse. Porém, como isto era cousa mui nova e que poderia dar algum escândalo aos seus mires, e principalmente aos oficiais da sua fazenda que traziam o maneo destas cousas, pedia a ele, Diogo Lopes, que sobrestevesse assi dous ou três dias, até ele o praticar com eles e os levar brandamente e da maneira que convinha, pera el-Rei de Portugal ser melhor servido, sem alvoroço algum. 182v 182v Passados este dous dias em que el-Rei praticou com os seus, peró que os achou conformes

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ao seu próprio ânimo, que era perder ante a vida que ficarem cativos e atados das mãos per este modo, porque ao presente assi lhe convinha, tornou a Diogo Lopes com reposta. E por dessimular com ele, 354 propôs-lhe alguns fracos inconvenientes ao que el-Rei D. Manuel ordenava, os quais ele, Diogo Lopes, lhe desfez, com que o negócio ficou concluído. Do qual sucedeu meter-lhe na alfândega estes oficiais: Manuel Velho por juiz e provedor das rendas dela, tesoureiro Rui Varela, escrivães Nuno de Castro, Vicente Dias, Miguel do Vale, Rui Gonçalves, Diogo Vaz. E com estes quatro escrivães eram outros quatro mouros, que também faziam livros per si, que respondiam aos nossos; e sobre os mouros havia a modo de feitor um per nome Coge Hamede, grande oficial daquela alfândega. E porque nesta prática que Diogo Lopes teve com el-Rei e seus governadores sobre este rendimento e paga das páreas, clamavam que se não podiam fazer, por Cambaia estar de guerra connosco e el-Rei Mocrim, de Baharém, levantado contra Ormuz, sem querer pagar o que devia, ordenou Diogo Lopes, polos satisfazer, de mandar António Correa a Baharém, onde fez o que atrás escrevemos. Finalmente, tanto que os oficiais del-Rei se viram enfreados com os nossos, e que não podiam usar dos roubos de que veviam, nem menos el-Rei fazia as quitas dos dereitos que dantes fazia a pessoas principais da fazenda que mandavam vir da Índia, que importava pera rendimento ua grande cantidade, e outras graças e mercês que dava, por ser homem de boa condição e de pouco governo, aqui se perdeu entre eles toda a paciência e determinação de se levantarem contra nós. Peró, enquanto Diogo Lopes esteve em Ormuz, encobriram muito esta indinação, que na vontade del-Rei não era tam grave como nos seus. Porque ele, Rei Torum-xá, era homem moço de boa condição e pouco saber, sujeito a qualquer conselho; e enquanto viveu seu pai, que os mouros tinham cegado, sempre foi muito sujeito a nós. Porque este o aconselhava, como homem experimentado, que se não fiasse dos mouros e todo se submetesse ao que el-Rei D. Manuel lhe mandasse; porque, enquanto lhe tevesse esta obediência, seria Rei; e levantado, não teria reino nem vida. Mas como lhe faleceu este conselho do pai, e teve à orelha um Xeque, seu sogro, e Mir Hamede Morado, homem manhoso e tam aceito a ele, Rei, que se ia criando nele outro Raix Hamede, que Afonso de Albuquerque matou (como atrás escrevemos), logo ficou sujeito ao conselho deste, esquecido dos que lhe dava seu pai. E posto que Diogo Lopes, estando em Ormuz, foi avisado per alguas pessoas, como entre alguns mouros andava rumor desta vontade que os principais tinham de se levantar, e a principal pessoa que isto descobriu a ele, Diogo Lopes, 183 183 era um Raix Delamixar, irmão de Raix Xarafo, guazil del-Rei, o qual ficara em Baharém (como escrevemos) da ida que foi com António Correa, e tinha paixões com estes dous aceitos a el-Rei, parecia a ele, Diogo Lopes, que toda esta murmuração eram artifícios dele, Xarafo, pera ficar só no governo do 355 reino, por ser homem prudente e mui sagaz no infiar dos negócios a seu propósito, ficando sempre de fora e livre de suspeitas que se dele podessem ter. E ainda pera se Diogo Lopes melhor enganar, per conselho destes dous seus aceitos, el-Rei lhe pediu, quando se queria partir, que lhe leixasse ali ua nau, porque nela queria mandar a el-Rei D. Manuel um presente de jóias e peças ricas. E com elas também um seu embaixador sobre a mudança dos oficiais daquela alfândega, porque lhe parecia que aquela ordem que Sua Alteza mandava, fora per conselho de homens que mal entendiam o negócio, e que não podia muito durar. O qual requerimento Diogo Lopes lhe concedeu, e a este fim leixou Pero da Silva com a nau em que foi morto pelas fustas de Melique-Iaz, estando Diogo Lopes em a barra de Chaúl (como atrás escrevemos). E alguns dos nossos que sabiam bem das cousas del-Rei Torum-xá, de Ormuz, quiseram dizer, e com verdade, que este petitório da nau que ele fez a Diogo Lopes, sua tenção era mandar o

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presente a el-Rei D. Manuel, e que pera isso tinha eleito alguns homens nobres pera embaixadores, os quais representassem a el-Rei quanto mais dano havia de trazer esta novidade de mandar poer oficiais portugueses na alfândega, que proveito algum, e também a lhe dar conta de alguas opressões e mau tratamento que recebia de alguns capitães que ali estavam, e outras cousas que ele não ousava dizer. E quanto a mandar o presente, D. Garcia Coutinho, que então estava por capitão em Ormuz, lho empederia, dizendo que pera o ano o mandaria per ele, por acabar o tempo que havia de estar na fortaleza, e que levaria consigo os embaixadores. Finalmente estas e outras cousas que leixamos de contar, por não macular fama de nobre gente, padeceu el-Rei, e assi indinou a ele e aos seus, que determinaram de tirar o jugo que lhe cativava o seu modo de vida e uso e condição. E o que eles mais sentiram, era tomarem-lhe parentas e servidores, de que os nossos queriam ter uso, muitas das quais lhe faziam cristãs a seu pesar. Partido Diogo Lopes, concorreram alguas cousas pera em mais breve tempo os mouros efeituarem seu desejo, que era levantarem-se contra nós. E a principal foi não leixar Diogo Lopes tanta armada em guarda da fortaleza, como lhe el-Rei D. Manuel mandava, e assi pera guarda da costa de Arábia e a entrada daquele Estreito de Ormuz, onde acudiam os nautaques, povos que habitam o marítimo das regiões Quermão e Macrão, que jazem entre o Rio Índio e boca do Estreito de Ormuz. Os quais povos, posto que seu 183v 183v próprio nome seja baloches, o ofício que usam de ladrões lhe deu o 356 de nautaques, que quere dizer em sua língua o que nós dizemos per ladrões do mar, chamando-lhe cossairos. Os quais nautaques tinham por vida sair de seus portos em navios pequenos e leves; e como a nau passava per sua paragem, senão ia bem artelhada e defensável, a cometiam e roubavam de maneira que, pera segurança dos que navegavam pera Ormuz, os reis deste reino, polo muito que lhe importava o rendimento da entrada e saída das mercadorias que a ele concorriam, sempre no tempo da moução com que aquele mar se navegava, traziam naquela costa ua armada pera defensão dos navegantes. A qual armada, assi pera este efeito como pera guarda da fortaleza não leixou, porque, como dali partiu com fundamento de fazer fortaleza em Dio ou Chaúl, como fez, tinha necessidade da gente e velas que levava, e pareceu-lhe que bastavam estas quatro que lhe leixou, um navio redondo, ua galeota, ua fusta e ua caravela; das quais Manuel de Sousa Tavares era capitão-mor e os outros capitães eram Francisco de Sousa, de alcunha o Bravo, Fernando Álvares Cernache e João de Meira. Concorreu também pera os mouros porem em obra seu desejo ua nova falsa que lançaram, dizendo que os nautaques, que ora dissemos, eram lançados na costa de Arábia, e que faziam muito dano nas povoações que el-Rei de Ormuz ali tinha, a que convinha logo acudir. Com o qual fengimento el-Rei pediu a D. Garcia Coutinho, capitão da fortaleza, que mandasse lá Manuel de Sousa em socorro com os navios que ali tinha. Manuel de Sousa, como este era seu ofício, o mais brevemente que se pôde aviar, com parecer de D. Garcia se partiu, levando somente o navio em que ele andava, e a galeota de que Fernando Álvares Cernache era capitão. E os outros dous navios ficaram pera serviço da fortaleza, que não aprouve muito aos mouros; ca seu desejo era ficarem os nossos sem socorro algum. Neste tempo, porque a nossa fortaleza não era tam grande como ora é, não se podia toda a gente agasalhar dentro e pousavam na cidade entre os mouros muitos dos nossos, e o mais perto que podiam da fortaleza, principalmente Inácio de Bulhões, que era feitor, e os oficiais da feitoria, e assi Manuel Velho com os oficiais da alfândega, ouvidor e outras pessoas que haviam mister por causa dos seus ofícios grande gasalhado. E ainda a feitoria de indústria a poseram fora, por razão dos muitos mouros que por causa do comércio concorriam a ele. E estando dentro na fortaleza, simulando que iam a este negócio, sendo muitos, podiam cometer algua traição. Finalmente, como tiveram lugar pera isso, com a ausência de Manuel de Sousa, que foi um Domingo à noite, sendo passados os trinta dias do mês de Novembro, do ano de quinhentos e vinte

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um, na maior força do sono o xaebandar, que tem cargo das cousas 184 184 do mar, a quem el-Rei tinha cometido 357 esta primeira obra, foi-se com oito terradas, navios leves, onde estava a nossa caravela e galé, e repartidas as terradas em duas partes, em um instante as cometeram, nas quais não havia mais gente que alguns marinheiros. E porque a galé tinha menos que o navio, foi logo entrada, matando nela um homem, e os outros se salvaram a nado, acolhendo-se à fortaleza, quási todos frechados. Despejada a galé dos nossos, poseram-lhe os mouros fogo; e como foi sobre ua pouca de ola que estava na coxia, matéria, por ser de folhas de palma, que dá muita claridade em labareda, foi vista de ua torre alta, onde estava posta ua atalaia pera dar sinal. O qual sinal foi tanger nela, e depois per todas as partes da cidade, muitas bacias de arame, ao modo que costumam em Espanha os moços, quando lançam Entrudo fora. E ainda sobre esta motinada de bacias, este mouro que estava por atalaia na torre, a que eles chamam alcorão, feito o sinal, bradava altas vozes: - Matá-los! matá-los! Os que poseram na galé este fogo que deu o sinal, com alvoroço das bacias e desejo de acudir às pousadas dos nossos, por roubar, como que leixavam já a galé posta em labareda, saíram-se dela. A qual labareda, como era das palhas da ola que dissemos, foi logo apagada per um moço grumete que se escondeu, quando sentiu os mouros dentro, que Nosso Senhor salvou pera este benefício de se não queimar a galé. O navio que foi cometido per as outras quatro terradas defendeu-se mui bem, por nele dormir mais gente do mar que na galé, com que se os mouros afastaram. E por dissimular o caso e assossegar os nossos, disseram que vinham da terra fime, e que lhe traziam água, mas, pois a não queriam receber, que lha não queriam dar, e foram-se também à cidade com alvoroço de prear. E porém de sete ou oito homens que nele havia, um ficou morto e outros feridos, o qual dano lhe deu certo sinal ser traição dos mouros, e não a água que deziam; porque, ainda que per muitas vezes a tinham deles recebido, não era per aquele modo de os ferir, ante, ouvindo a revolta da cidade, estevera mais alerta. Os mouros, dado o sinal da obra que era feita no mar e ouviam na terra, juntos em magotes, uns per ua parte, outros per outra, foram buscar onde a mais da nossa gente pousava, que era em uas casas grandes, a que eles chamavam madraçal, e assi a um espirital nosso, e as casas da feitoria, que eram em outra parte. E muitos foram tomar a porta da fortaleza, porque, quando os nossos se viessem recolher, e escapassem das mãos de quem os ia buscar, viessem cair nas suas. E verdadeiramente era tamanha a revolta, assi em os nossos por se salvar, como no cometer dos mouros, que se não entendiam uns nem outros, nem havia naquele tempo mais certa cousa que fogo e sangue. Porque, se os nossos se defendiam em seus apousentos, a poder de fogo os faziam sair das casas e saltar janelas; e se per ventura escapavam daqui, pelo caminho, indo-se 184v 184v recolhendo à fortaleza, eram mortos e feridos. E os mais que escapavam eram aqueles que levavam consigo muita 358 companhia, assi como o feitor Inácio de Bulhões com seus oficiais e Manuel Velho com os seus, e outra gente nobre, cuja família lhe fazia corpo pera se defender, muitos dos quais foram feridos primeiro que entrassem, apesar dos mouros, dentro na fortaleza. Finalmente, este levantamento (não falando em perda de fazenda, porque neste tempo todos tinham mais tento em salvar a pessoa que a ela) custou mais de cento e vinte portugueses, afora escravos e escravas cristãos que os serviam. E porém esta mortindade não foi toda em Ormuz, porque na cidade morreriam até vinte tantos, e cativos seriam até quorenta; os outros neste mesmo tempo foram sobressaltados em as vilas de Mascate, Curiate, Soar e em Baharém, que eram do reino de Ormuz, onde nós tínhamos feitorias com oficiais do mesmo negócio, afora outros muitos

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que se lá salvaram, que logo veremos. Porque, como el-Rei assentou de se levantar, a todos os governadores destas partes escreveu que não dessem vida a português algum; e lemitava-lhe o tempo, porque não houvesse espaço de se saber de um lugar a outro. E entre estes que padeceram nesta traição dos mouros, que se pode chamar mártir da Fé, foi Rui Boto, que António Correa deixou por escrivão da feitoria de Baharém. No qual, por se não querer fazer mouro, fizeram cruezas e lhe deram tais tormentos, que não houvera homem que neles vivera, se o Deus não deleitara neles com o fogo da Fé, que o animava com tanta constância, que, segundo o que se viu enquanto neles viveu, e depois nos sinais e mistérios de sua morte, bem se pode contar entre os mártires da Fé de Cristo.

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184v 184v 359 Capítulo III. Do mais que os nossos passaram passada aquela noite; e como mandaram nova à Índia deste caso, e foram socorridos por Tristão Vaz da Veiga, e depois per Manuel de Sousa, Capitão-mor do Mar. Passada em Ormuz aquela parte da noite, com tanto trabalho e confusão de morte como a em que se os nossos viram, em rompendo alva, porque no madraçal e esprital, onde (como dissemos) pousavam muitos deles que ainda não eram recolhidos, por a grande fumaça que nestas casas havia, mandou o capitão D. Garcia vinte e cinco homens, que vissem se podiam salvar alguns que ainda lá podiam estar. E per outra parte mandou gente com Francisco de Melo e João de Meira, que fossem trazer os seus navios, que ainda estavam sem dano algum, e os trouxessem ante a fortaleza, pera os defender com artelharia, ante que os mouros os tornassem outra vez cometer; e tomada 185 185 posse deles, fossem pôr fogo a certas naus que estavam no porto. A qual obra Francisco de Melo e João de Meira fizeram mais a seu salvo, que os outros que fizeram ao madraçal; ca estes, por salvarem alguns que ainda eram vivos, pelejaram tam cruamente, que de ua e de outra parte houve mortos e feridos, afora o ouvidor e outros, que morreram afogados de fumo e queimados do fogo que havia nas casas onde os nossos se tinham a noite passada acolhido. E as pessoas notáveis que vieram a salvar os que se salvaram, foram: Manuel Velho, Rui Varela, Manuel do Vale, Diogo Vaz, Diogo Forjão, Gonçalo Vieira, Vicente Dias, Nuno de Castro, os mais deles oficiais del-Rei. Feita per eles esta obra e pelos outros salvos os navios e postos defronte da fortaleza, porque ficava ainda por salvarem ua nau que era de Manuel Velho, carregada de tâmaras, que estava pera partir pera a Índia, foi o mesmo Manuel Velho com gente per terra e outra per mar, e a trouxeram com assaz perigo e custo de sangue de todos, e vida de um Gonçalo Vieira, que pelejou como valente homem de sua pessoa que era. A qual nau lhe foi mui proveitosa a carga das tâmaras pera mantimento, e a madeira pera repairos da fortaleza, em que depois serviu no cerco que tiveram. Tanto que estas velas foram seguras, ao segundo dia espediu D. Garcia, per conselho que sobre isso teve, a João de Meira na sua caravela com recado ao Governador da Índia, Dom Duarte de Meneses, fazendo-lhe saber este levantamento e o estado em que ficavam. E mandou a ele, João de Meira, que passasse per a costa dos lugares Mascate, Curiate e Calaiate, até se ver com Manuel de Sousa, que lá era ido (como dissemos), e lhe desse esta nova, assi pera lhe acudir, como avisar os nossos que estavam per aqueles 360 lugares, não encorrerem em algum perigo se el-Rei de Ormuz lá mandasse algum recado, como de feito mandou aos guazis deles. No qual tempo, Tristão Vaz da Veiga, que Diogo Lopes de Sequeira tinha leixado em Calaiate pera fazer alguns negócios de serviço del-Rei, acertou de vir a Mascate sobre o mesmo negócio, onde achou Manuel de Sousa. E saindo ele, Tristão Vaz, em terra, como era amigo do Xeque que governava a vila, deu-lhe aviso que se salvasse, porque tinha recado del-Rei de Ormuz que prendesse e matasse quantos portugueses ali fossem ter, dando-lhe conta do levantamento. O que Tristão Vaz logo fez, acolhendo-se com grã trabalho ao navio de Manuel de Sousa, dando-lhe nova do que passava. E ante que fizessem mudança de si, veo João de Meira, que levava o recado que D. Garcia mandava ao Governador D. Duarte. E porque ele, João de Meira, não levava batel, e alguas cousas necessárias pera o caminho, Manuel de Sousa o proveu de tudo, com que chegou à Índia e deu a nova a D. Duarte.

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O aviso que o Xeque deu a Tristão Vaz não foi tanto por ser seu amigo, quanto por ser arábio, que naturalmente 185v 185v querem mal aos párseos, e além disso por ser homem prudente, e entendeu que este levantamento del-Rei era feito por conselho dos seus aceitos e que per derradeiro nós havíamos de tornar a ser senhores de Ormuz e tomar emenda do dano e mal que nos fosse feito, e por isso naquele tempo quis-nos fazer esta amizade, descobrindo este negócio a Tristão Vaz. E ainda per exortações que lhe o mesmo Tristão Vaz fez, levantou a voz por el-Rei de Portugal, dizendo que negava a vassalagem a el-Rei de Ormuz pola traição que cometera, do qual voto foram todolos homens honrados da terra, e atrás estes foi o povo. O guazil e governador de Calaiate, que era párseo, com outro tal recado que teve, fez o contrairo deste, prendendo obra de trinta e tantos portugueses que i estavam, deles da armada de Manuel de Sousa, que com um temporal que lhe deu sobre amarra se levantou e os não pôde recolher e foi ter a Mascate, e os outros eram de Tristão Vaz. E parece que Nosso Senhor ordenou este temporal pera Manuel de Sousa se achar em Mascate com ele, Tristão Vaz, pera fazerem a obra que fizeram com o Xeque, o qual os proveu de mantimentos, água e do necessário pera partirem a socorrer os de Ormuz. Partido Manuel de Sousa em o seu navio, e Fernão Vaz Cernache na fusta, acompanhou-os Tristão Vaz em um parau, em que viera de Calaiate ali ter aos negócios que (como dissémos) lhe mandou Diogo Lopes, em o qual parau levaria até quorenta homens. E porém esta companhia durou até meia noite seguinte, que lhe sobreveo um temporal, do qual apartamento Manuel 361 de Sousa se queixava depois, dizendo que Tristão Vaz o fizera por não ir debaixo de sua bandeira, e não por o temporal. E se assi foi que por esta causa Tristão Vaz o fez, ele se aventurou a maior perigo do que importava a injúria que deste caso podia receber. Porque, em ua aguada que fez no caminho, lhe mataram dous homens, e quási milagrosamente escapou de não ser morto com toda a gente que levava per ua armada que el-Rei de Ormuz tinha posta sobre a ilha. Mas parece que o quis assi Nosso Senhor, polo estado em que os nossos estavam, que os metia em grande confusão; ca o primeiro trabalho em que se viram depois daquela fúria da morte, foi queimarem-lhe a galeota que salvaram, e assi ua nau carregada de mantimentos, que vinha de Chaúl pera o capitão D. Garcia, e isto ante os seus olhos. E o outro era que el-Rei tinha até três mil espingardeiros que mandou vir da terra firme, feitos lá secretamente pera este caso, afora os que na cidade havia ordinários pera as armadas, e com estes frecheiros e artelharia, a que a nossa fortaleza ficava sujeita per sítio, nos fazia muito dano, de maneira que não lançava um homem a cabeça per qualquer parte, que logo não fosse frechado. Além deste perigo que os muito afadigava, tinham um grande temor, que era falta de mantimentos e tam pouca água, que, se D. Garcia não fechara a cisterna, por não verem 186 186 quam pouca era, esmoreceram de se ver mortos à sede. Mas como Nosso Senhor nos casos de maior temor acode com ânimo que da sua misericórdia procede, permitiu que a chegada de Tristão Vaz fosse estando todos com grande devação ouvindo a missa que se diz de noite pela nascença de Cristo Jesu, nossa Redenção. A vinda do qual houveram ser milagre, porque o castelo estava todo cercado por terra, e por mar tinha mais de cento e sessenta terradas, que foi ua grande ousadia dele, Tristão Vaz, meter-se por meio deles, sem os mouros o sentirem, porque haveriam ser cousa impossível vir barco nosso ali; e ainda que o sentissem, como era de noite, cuidavam ser navio seu. A festa do Santo Nascimento foi com este prazer celebrada de novo, com tantas folias e prazer, que os mouros de fora vieram a sentir que algua cousa nova lhe era chegada, ainda que per outra parte, per escravos cristãos cativos que tinham consigo, cuidaram que procedia aquele grande prazer da festa do Natal. Quando veo ao dia desta solenidade, começaram os nossos a pôr os olhos no mar, olhando se aparecia Manuel de Sousa, de que Tristão Vaz dera nova, e que se apartara dele

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com o tempo que lhe deu; o qual Manuel de Sousa, à terceira oitava de Natal, amanheceu surto duas léguas da fortaleza, da banda da Ilha Quêixome. D. Garcia, porque tinha sabido per Tristão Vaz que ele trazia mui pouca gente, por razão da que lhe cativaram em Calaiate, e também sentiu logo grande rumor nas atalaias, como que mandava el-Rei embarcar gente nelas pera irem contra Manuel de Sousa, teve logo conselho sobre o que 362 fariam naquele caso. E assentaram que, pois na salvação dele, Manuel de Sousa, estava a de todos, e a dele neles, pois corria tanto risco, era necessário acudir-lhe com gente no parau de Tristão Vaz, por i não haver outra embarcação. Finalmente, ante de se eleger quem havia de ir no parau, Tristão Vaz se ofereceu com a gente que com ele viera, dizendo que, pois Nosso Senhor lhe dera de noite entrada naquela fortaleza per meio das terradas, assi esperava que lhe daria caminho pera ir e vir. Partido ele com esta gente que trouxe, e outra honrada que com ele quis ir, quando foi no mar à vista del-Rei, a grande pressa mandou chamar Coge Mamude, seu capitão, e disse-lhe: - Ou aquela gente é douda ou desesperada, porque ousadia não pode ser. Por amor de mi, que mos vades tomar às mãos, e mandeis à gente que levais que os não mate. Este capitão não pôde tam preste sair do porto com oitenta terradas que levou, que, quando se pôs em caminho, já Tristão Vaz ia bom pedaço; em vista do qual os nossos estavam encomendando-o a Deus, principalmente quando viram a força de remo ir trás ele aquele grã número de terradas, as quais iam tam alvoroçadas por lhe chegar, e corriam tanto por isso, como que era algum parau que haviam de ganhar na chegada. Tristão Vaz, como também remava seu remo igual e nunca fez tiro 186v 186v senão depois que elas foram tam perto, que lhe lançaram dentro ua chuiva de frechadas, então começou de as entreter que não chegassem a ele com artelharia meúda que levava. Com a qual eles também o serviam e lhe atravessaram o leme, e outra peça lhe deu pelo costado do parau, mas não lhe feriu pessoa algua. Indo assi todos ladrando e frechando nele, sem ousarem de o abalroar, polo dano que também recebiam, sendo já bem perto do navio de Manuel de Sousa, mandou-lhe bradar que estivesse prestes pera o recolher e afastar de si as terradas. Manuel de Sousa, parecendo-lhe que o parau era negaça e que vinha nele algum arrenegado que falava português, mandou-lhe tirar como a cada um dos outros imigos, e com ua espingarda de outro tiro atrevessaram a mão ao que governava. Quando Tristão Vaz viu o perigo que corria, entendendo que de o não conhecer lhe mandava tirar, levantou-se em pé, e começou a bradar, nomeando-se. E como era homem tam grande de corpo que, visto em pé per quem o conhecesse, diria logo ser ele, e também não mudara o trajo com que poucos dias havia o viram, foi aqui mais conhecido pelo corpo que pela voz, que naquele tempo era tamanho estrondo, que não podia ser ouvido, quanto mais conhecido per ela. As terradas, tanto que viram Tristão Vaz recolhido dentro no navio, desesperaram de o tomar, e mais levando já morto o seu capitão e trinta e tantos homens, a maior parte dos quais era gente nobre, e muitos outros feridos; porque, como as terradas faziam grande cardume, não desparava o parau 363 tiro que fosse sem dano dos imigos. E porque os mortos, por serem pessoas notáveis, faziam mais receo aos outros, mandaram alguas terradas a terra com estes corpos e recado a el-Rei que mandava que fizessem. Chegadas estas terradas à cidade, foi logo posta em tam grande pranto, que os nossos sentiram, na fortaleza onde estavam, terem recebido algum grande dano; e por lhe quebrar os corações, mandou D. Garcia tanger as trombetas e fazer grande estrondo de folias e prazer. El-Rei, tanto que soube o que era feito dos seus, começou de se indinar contra aqueles que lhe aconselharam o levantamento, dizendo que foram causa de perder seu estado, e que esperança teria ele de combater a nossa fortaleza e de a tomar, pois em oitenta terradas não houve homem que

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ousasse abalroar um barco, o qual, se fora cercado de todas, somente o bafo de tanta gente como nela ia, os afogara, quanto mais tanta mão? E com grande fúria disse que se fossem todos diante a embarcar nas outras terradas que i estavam, e que qualquer homem que abalroasse a nosso navio, que lhe prometia de lhe fazer muita mercê; e quem o não fizesse, que lhe havia de mandar pôr na cabeça um toucado de mulher. E saindo-se de suas casas meio doudo, foi-se à praia e mandou pôr duas mesas, ua chea de moedas de ouro e prata, e outra de toucados de mulheres, a que eles chamam macana; e quando se põe na cabeça de um homem, é por algua grande fraqueza que fez, e fica inábel pera toda sua vida, cousa entre os párseos mui usada. 187 187 Postas as mesas com estas duas diferenças de prémio, assi como andava doente, pôs-se el-Rei a cavalo, e com um pau na mão fazia embarcar a todo homem, indinando-se muito contra os principais, que os não via muito deligentes nisso. Raix Xabadim, homem principal, nosso amigo, e por cujo respeito tinha recebido grandes ofensas del-Rei e de seus privados, vendo-o assi indinado, disse-lhe: - Senhor, se os que vos aconselharam que era leve cousa lançardes os portugueses daqui, amaram tanto vosso serviço como eu amo, não estevéreis agora posto neste trabalho; nem vos façam crer que é gente que entregue logo o que tem na mão, senão entregando primeiro a vida. Eu irei aonde mandais a todos, e vos prometo de perder a vida ou de vos trazer vossos imigos a esses vossos pés, se me Deus não decepar as mãos. Espedido este Raix Xabadim, meteu-se nas terradas com a gente que tinha, as quais se ajuntaram com as outras, e fariam todas um corpo de cento e trinta, nas quais iam todolos capitães e mires del-Rei, que são como cá dizemos os fidalgos de limpo sangue. E el-Rei escolheu outros que ficassem com ele, com os quais se pôs a cavalo, e saindo da cidade, se foi pôr em um 364 lugar teso, donde podia ver o que os seus faziam com os nossos, pera os obrigar a mais. D. Garcia e a gente da fortaleza, que também estavam com os olhos no que havia de suceder naquele caso, quando viram o grande número de terradas e a fúria que todos levavam por chegar, houveram que, se Nosso Senhor milagrosamente os não salvasse, não havia outra esperança de suas vidas. Manuel de Sousa, porque até aquele tempo não era vinda a viração, com a qual ele esperava de se fazer à vela, estava surto, ordenando-se pera entrar naquele conflito de morte. E o modo que teve pera mais seguramente (se ali havia seguridade) poder chegar à fortaleza foi este: Tomou a fusta e parau de Tristão Vaz, e pô-los nas ilhargas do seu navio mui bem aterracados, que se não podessem alagar, e de maneira que de um em outro podessem saltar e acudir onde mais necessário fosse. E porque a artelharia deles lhe servisse a toda a parte, pôs as proas da fusta e parau na popa do navio, de maneira que ficavam ao longo do costado dele, e da popa à proa tudo fogo, com que ficavam um baluarte de madeira com artelharia pera fora, e per cima a mareagem das velas do navio, pera que, vindo o vento, navegassem. Chegado aquele grande cardume de barcas onde Manuel de Sousa estava já posto à vela, na primeira salva que lhe deram, foi juncarem os navios de frechas, de envolta com pelouros dos tiros de fogo que levavam, que fez ua fumaça com que todo o cercuito deles ficou sem vista uns dos outros, porque também a artelharia dos nossos fez boa parte desta escuridão. E porém nesta primeira chegada lhe encravaram muita gente da que estava na fusta, por ser rasa sem emparo algum, com que o capitão ficou ferido. E não somente lhe fizeram este dano, mas ainda, como vinham com a fúria das injúrias de seu Rei, de rondão entraram na fusta pelo esporão dela, sem temor da 187v 187v nossa artelharia. E em continente per o mesmo esporão Raix Xabadim, com seis homens que pera isso escolheu, como homem oferecido à morte e que queria fazer verdadeira a promessa que fizera a el-Rei, começou de trepar per bordo do navio.

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O capitão Fernão Vaz Cernache, peró que estava ferido, com os outros de sua companhia, acudiram àquele lugar; e assi Manuel de Sousa quando viu a ousadia dos mouros, onde houve maior fervor de peleja que em outra parte. No qual tempo Tristão Vaz da Veiga não se contentou com esta defensão de cima do navio, mas lançou-se dentro na fusta, e atrás ele Bastião Vaz e Mendanha, e outros que com grande ânimo se meteram às cutiladas 365 com os mouros, de maneira que os enxotaram todos fora da fusta. E porque um bombardeiro que nela havia já não podia usar de seu ofício pera cevar um berço, por andarem todos mais pelejando a braços que a pontaria de artelharia, com este alijamento que Tristão Vaz e os outros fizeram, teve o bombardeiro braços pera fazer alguns tiros com um berço, e fez tanto dano, que se alargaram os mouros mais depressa do que entraram. E entre alguas pessoas que, no cometimento que os mouros fizeram, em querer subir per o bordo do navio, foi um framengo, condestabre dos bombardeiros do navio, porque este não achou outra arma mais prestes que o marrão com que atacava sua artelharia, e com ele derribou cinco ou seis mouros, como que matava porcos. Finalmente, como homens que andavam lutando travados um em outro, sem se poderem derribar de bons lutadores, e assi travados correm todo o terreiro da luta, até irem dar nos circunstantes que estão vendo, assi as terradas travadas em os nossos navios, e eles nelas, e uns e outros servidos de frechas e pelouros da artelharia, já bem tarde, e todos bem cansados, a maré os levou à fortaleza, onde os nossos foram favorecidos dela, tirando com artelharia às terradas pera lhe despejarem o porto onde surgiram, dos quais trinta e tantos foram feridos, e um só grumete negro foi morto. E pelo que se despois soube, dos mouros foram mais de oitenta mortos da artelharia, e muitos mais feridos. E segundo os nossos navios chegaram juncados de frechas, e as velas, enxárcea, mastros, costados, tudo encravado delas, foi um grande milagre não receberem maior dano, ante receberam algum proveito, trazendo muita lenha pera casa, porque se afirma que muitos dias no fogão dos navios, à míngua de lenha, se queimaram frechas, e a maré quando encheu trouxe à praia grande número delas.

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187v 187v 366 Capítulo IV. Do que passaram os nossos no cerco que tiveram; e vendo el-Rei de Ormuz quam pouco dano lhe podia fazer, despejou a cidade e se foi pera a Ilha Quêixome, e depois a mandou queimar; e como com a vinda de um navio e ua nau foram providos do necessário. 188 187 Recolhidos os nossos a salvamento daquele perigo, de que os Nosso Senhor livrou, quando veo ao outro dia teve D. Garcia conselho, pondo a todos quam desfalecidos estavam de tudo o que haviam mister pera aquele cerco, principalmente de mantimento e água de que haviam de viver, e de pólvora e outras munições da guerra, com que se haviam de defender de todo combate; que a ele lhe parecia bem despejarem a fortaleza de escravos, mulheres, moços e gente sem proveito, que lhe comia os mantimentos. Os quais deviam mandar à Índia em aquele navio de Manuel de Sousa, e também levaria nova a D. Duarte em que estado estavam, porque podia acontecer cousa a João de Meira, que o impedisse ir lá ter. E pela ida deste navio seguravam duas cousas: terem o socorro certo, e enquanto não viesse, comeriam o que eles haviam de comer. O parecer de muitos foi contrairo a este de D. Garcia; e depois de haver contradição de votos, assentaram que logo armassem o navio e fusta e parau, e fossem a pelejar com as atalaias del-Rei, pois já tinham experiência deles quam fracos eram, e o pouco dano que lhes podiam fazer. E dando-lhe Nosso Senhor vitória, como tinha dado já duas vezes, ficavam mais senhores do mar, com que podiam haver à mão naus ou navios, dos que ordinariamente vinham a Ormuz, dos quais se podiam prover de muitas cousas, de que tinham necessidade. E per ventura neste tempo veria algum navio nosso ali ter, com as quais ajudas ficariam providos pera muitos dias. E feita esta obra, aí lhe ficava tempo de mandarem à Índia o navio que dezia, e quando os mouros o vissem ir antes deles fazerem esta mostra de si, deriam que ia fugindo; e indo depois, entenderiam que o mandavam a pedir socorro, já como gente confiada e não temerosa. O qual voto e conselho se pôs logo em efeito; mas os mouros tomaram outro, por causa do dano que tinham recebido, chegando suas terradas tanto a terra, que ficava o nosso navio muito ao mar, sem lhe poder fazer algum mal, que mais não recebesse. E a fusta e parau que se mais chegavam, em suas barbas (como dizem) lhe tomaram um parau que vinha de fora carregado de mercadoria, cousa que eles muito sentiram. Com a qual indinação per indústria de um turco, homem a que el-Rei dava grande crédito, ordenou logo estâncias com artelharia nos lugares onde nos podiam ofender, e assi muros falsos pera entrarem per eles encobertos, com paredes de casas pera 367 os nossos não poderem ver a obra. O que tudo, posto que nos dava muito trabalho, serviu-lhe pouco pera seu intento, ante azo de receberem de nós maior dano. Até uas escadas que quiseram acostar à nossa fortaleza, foram tantos deles queimados de panelas de pólvora, que, vendo-se el-Rei desesperado de nos poder ofender, creu que não tinha gente pera mais do que tinham feito saltear-nos de noite como a gente descuidada e não fraca pera defender as vidas, e que ua nossa havia de custar muitas dos seus. Finalmente, como homem desesperado e temeroso que, vindo o Governador da Índia, ele havia de pagar todo o dano que nos fizera, senão com a vida, 188v 187v ao menos seria tomar-lhe o governo daquele reino, determinou, per conselho dos que governavam, leixar a cidade deserta, e se passar à ilha de Quêixome. E esta ilha está pegada na terra firme da Pérsia, e será três léguas de Ormuz, à vista dela;

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corre ao longo desta costa da Pérsia quási per comprimento de quinze léguas, à maneira de ua faixa, por ser mui estreita. A terra é fértil em si, mas muito doentia, por razão do mau sítio em que está, sem ser lavada dos ventos, que dão saúde ao corpo humano. O fundamento del-Rei e de quem o mandava, que era o Xeque, seu sogro, e Mir Hamede Morado com todolos mais, em leixar aquela cidade, era que os nossos leixariam a fortaleza. E ainda que el-Rei, por razão daquela mudança a Quêixome, perdesse um par de anos as rendas que tinha na alfândega, não vindo naus, melhor lhe vinha que ser sujeito e tributário nosso por tam pouca cousa como era perder aquela cidade. E tenteando estas e outras razões, que todos davam a el-Rei em seu favor, mandou-se lançar um pregão, que toda pessoa sob pena de morte embarcasse sua pessoa, família e fazenda pera a Ilha de Quêixome, pera onde se el-Rei passava a viver, pera o que mandava a todos dar embarcação nas terradas pera sua passagem. Quando o povo ouviu o pregão, fez nele um tam grande espanto, que, sem temor algum, todos a ua voz deziam mal del-Rei e de quem o aconselhava, e isto com tantas lágrimas, que os metia a todos em grande confusão, de maneira que, entre os principais, começou haver deferenças, culpando uns aos outros, e quási todos desculpavam a el-Rei, por saberem ser homem de boa condição e entregue àqueles dous homens, que pera este efeito eram grandes amigos, e pera todo o mais comiam-se um a outro. Ordenada a partida, el-Rei se passou ua noite o mais caladamente que pôde, e leixou na cidade um capitão seu, per nome Mir Corxete, com mil e quinhentos frecheiros e sessenta terradas pera a gente se passar pouco e pouco. O qual capitão teve fala com D. Garcia, dizendo que el-Rei se fora não tanto por sua vontade, quanto por seguir o conselho de quem o governava, e que sentira tanto o que era feito, que adoecera de paixão, de que ia mal. Como em verdade, ainda que era homem de pouco saber e discurso das cousas, achava-se cada dia mais desacatado, que era sinal de um dia o desporem, como os governadores dos reis passados o tinham feito; mas o negócio 368 chegou a mais, como adiante veremos. Parece que o seu espírito lhe revelava este mal. E ainda teve este capitão Mir Corxete tanta prudência pera encobrir a causa principal de sua ficada ali, que deu a entender a D. Garcia e às principais pessoas da fortaleza, com que às vezes estava à fala, que não era a outro fim senão pera tratar em negócio de paz, porquanto ele não fora no levantamento; e quando com ele não quisessem assentar esta paz, que 189 189 fosse com seu cunhado, Mir Cacero, que era homem de tanto crédito ante el-Rei como eles sabiam, e também fora contra o conselho do levantamento, e ambas tinham comissão del-Rei pera isso. Estes dous homens eram mui acreditados entre os nossos, por se mostrarem publicamente seus amigos, donde conceberam deles, principalmente do Mir Corxete, que poderiam mover a el-Rei e aos principais de seu conselho pera se tornarem à cidade. Nas quais práticas deteveram o capitão enquanto fazia sua obra, que era alijar o que haviam mister, até que veo o xabandar com recado del-Rei, que posesse fogo à cidade, o qual era desenganar os nossos, que se iam povoar a outra parte. Posto este fogo a dezanove dias de Janeiro do ano de quinhentos e dous, ardeu a cidade quatro dias com suas noites tam bravamente, que os nossos temiam poder vir a eles. E entre temor e piadade, fazia-lhe grande admiração verem que per mãos dos próprios naturais se punha fogo a ua tam nobre e fermosa cidade em edefícios, principalmente às casas dos principais, que todas eram cousa maravilhosa de ver seus lavores e pinturas, por os mouros serem mui deliciosos nisso. E com todo este estrago que os nossos viam fazer, ainda este Mir Corxete fazia crer a D. Garcia que ele não era autor daquela obra, nem consentia nela por sua vontade, somente temia a Raix Xabadim, que o fazia por estar mui poderoso com mais gente que ele. E posto que a voz era que o fogo se pôs acaso, e não per vontade, todavia deziam que Raix Xabadim o fizera por encobrir quantos roubos tinha feito nela, e também o fazia por se vingar del-Rei e de nós. Com estas e outras palavras simuladas, estando D. Garcia apercebido pera ambos se verem em lugar conveniente pera assentarem a paz, neste dia que eram vinte três de Janeiro, ua ante

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menhã mandou ele, Mir Corxete, pôr fogo a um trabuco que estava nas casas del-Rei, com que nos eles tiravam, e também nas próprias casas. Porém nelas acertou de ser em parte que logo se apagou, e com esta derradeira obra se embarcou com toda a gente que consigo tinha, sem ficar na cidade mais pessoas, que até duzentas e cinquenta ou trezentas almas, tudo gente aleijada, velha e tam pobre, que não tinham com que se embarcar. D. Garcia, quando se achou assi enganado, ficou mui confuso; e suspeitando 369 ainda que debaixo daquela ida ficava na cidade algum grande perigo, principalmente nas casas nobres, por não serem queimadas, não quis que este perigo corressem os nossos, e mandou alguns malabares que estavam em nossa companhia, que fossem ver per toda a cidade se era toda despejada. Temendo ua de duas cousas: ou que nestas casas nobres ficava escondida muita gente de armas, e como os nossos saíssem e se derramassem pelas casas a roubar, dariam neles; ou leixariam feitas alguas minas de pólvora, a que poriam 189v 189v fogo, como os tevessem nestas casas grandes. Feita experiência per estes malabares como a cidade era toda despejada, e que não havia nela senão aquela pouca gente mesquinha e inútil, saíram então os nossos, cada um acudindo a sua pousada ver se achava algua cousa das que leixara, e tudo era feito em carvões. Já as casas nobres era a maior piadade ver a destruição delas que as queimadas, porque nestas não havia cousa de que haver dó, por tudo ser carvões, e em as nobres não havia laço, pintura, nem portas, janelas ou cousa que fosse pera ver, uas levadas, outras arrincadas e espedaçadas, por não nos aproveitarmos de algua. Finalmente o despojo foi acharem alguas jarras escondidas de mantimento e cisternas particulares com água e lenha desta destruição pera o fogo. E verdadeiramente o que queimou esta tam nobre cidade (ao menos os dous terços dela), mais se pode dizer vir do Céu que da terra. Porque, ainda que ele foi posto per mão de seus próprios moradores, sem serem constrangidos per nós, chegarem a tal estado que os obrigasse leixar o berço em que se criaram, e casas de seu viver e repouso! Deus os indinou de si mesmo, com que os meteu em fúria de fogo, e que fossem algozes de suas tropezas e nefandos vícios, vivendo tam publicamente neles, que nesta premissão ficaram culpados alguns dos nossos, os quais per outro modo também se lhe queimou sua fazenda, até pagarem com a vida; e se todos não pagaram lá, cá os vimos assinados do dedo de Deus. E permitiu assi sua justiça, porque saibam os homens que pecados públicos, publicamente os castiga Deus diante dos olhos que foram testemunha deles, por ele não ser arguido per juízos de homens de pouca fé. E logo no meo daquele fogo, por trazer os nossos em consideração destas cousas, os espertou Deus com a mais contraira que o fogo tem, que é água, porque entendessem que o fogo abrazou as tropezas dos mouros, e connosco queria usar de lavatório de sua misericórdia com ua chuiva que mandou, com que encheram muitas cisternas de água, de que tinham muita necessidade. Porque além de terem pouca, o grande número de gatos que havia na cidade, vinham demandar as cisternas a beber; e dos muitos que caíram dentro, assi corromperam a água, que não ousavam de beber senão 370 cozida. E não somente com esta água que choveu ficaram remediados do beber, com alguas aguadas que também depois foram fazer a terra firme, por beberem água fresca e sem suspeita de veneno, mas ainda do comer, com vinda de um navio da Índia, de Bastião Ferreira, com mantimento. Com as quais provisões, e saber per este navio de Bastião Ferreira como já na Índia era a nova daquele levantamento, D. Garcia tomou causa de mandar alguns recados a el-Rei de Ormuz, à Ilha de Quêixome. E porque estes recados eram per um António Dias, língua, criado dele, D. Garcia, e isto se continuava secretamente entre eles, sem comunicar este negócio com as pessoas principais, a que se devia pedir voto se era bem do serviço del-Rei de

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190 190 Portugal, hou ve presunção (e depois o tempo o descobriu), que D. Garcia tratava cousa de seu enteresse - querer que el-Rei lhe pagasse algua perda que houvera naquele levantamento. E pera obrigá-lo a isso, o mandava aconselhar o modo que havia de ter com o capitão da fortaleza, quando viesse, que era João Rodrigues de Noronha, que se esperava cada dia por ele. E também que desculpas havia de dar a D. Duarte, quando i fosse ter. Os quais conselhos e modos que D. Garcia nisto teve, danaram muito a el-Rei em seus negócios, e assi ao que nos convinha, sem ele entender que nisso fazia tanto mal. E quem acabou de o danar, foi D. Gonçalo Coutinho, seu primo, filho de D. Diogo Coutinho, também cuidando que nisso acertava, à volta de seu interesse, ao qual D. Luís de Meneses, que estava em Chaúl, a grande pressa, tanto que soube parte deste levantamento, mandou um galeão bem armado, com muitos mantimentos e cousas necessárias pera provisão daquele acidente. E vindo ter a Calaiate, tomou ali D. Gonçalo ua nau dos filhos de Alé Langerim, um mercador dos principais de Ormuz, que tratava em cavalos, e assi esbombardeou a vila, por lhe fazer sobrançarias. E passando per Mascate, achou Manuel de Sousa, Capitão-mor do Mar, e Tristão Vaz da Veiga, aos quais deu nova que D. Luís de Meneses não tardaria, e que ele trazia recado das pazes que logo havia de assentar com el-Rei de Ormuz. E com voz destas pazes chegou a Ormuz, e di foi a Quêixome, onde el-Rei estava tam necessitado de mantimentos, que lhe deu a vida com os que lhe vendeu, e boa esperança de D. Luís, que di a poucos dias seria com ele, e tudo se faria bem.

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190 190 371 Capítulo V. Como Manuel de Sousa e Tristão Vaz da Veiga tornaram à Costa de Mascate, e das cousas que ali fizeram, até vir D. Luís de Meneses, e do que ele ali fez sobre a tomada da vila Soar; e do mais que passou até chegar a Ormuz. Manuel de Sousa e Tristão Vaz da Veiga, que D. Gonçalo achou em Mascate, eram ali vindos per mandado de D. Garcia Coutinho, capitão de Ormuz, a ver se poderiam tirar os portugueses do poder dos mouros, os quais ficaram em terra quando ambos se partiram a socorrer Ormuz, como atrás fica. E vindo de caminho, na paragem de Orfacão, o guazil que ali estava deu a Tristão Vaz, que chegara ao porto buscar provimento, o que lhe pediu, como homem que estava em nossa amizade, e mais um português e ua mulher que ali estavam. E também neste caminho tomou Manuel de Sousa duas terradas - ua que viera ali ter, em que tomou três bombardas, e outra que estava quási descarregada do fato que trouxera de Mir Hamede Morado -; e quando chegaram a Mascate, acharam o lugar despejado, por ter o Xeque nova que Raix Delamixar, irmão de Raix Xarafo, vinha pera Calaiate a servir de guazil; e receoso de lhe destruir o lugar, por tomar voz por el-Rei de Portugal, mandou pôr 190v 190v toda a gente e fazenda na serra, e folgou muito com a chegada dos nossos; o qual veo logo dar conta disto a Manuel de Sousa, pedindo-lhe que o amparasse e se leixasse ali estar pera o defender, quando viesse este seu imigo, a qual detença não foi mais que quatro ou cinco dias; e neste tempo passou per ali D. Gonçalo Coutinho, que deu a nova a D. Luís, como ora dissemos. E porque em Calaiate estavam os mais dos cativos, e também a ele acudiam mais navios pera as presas que ali, passou-se lá, onde teveram prática com o guazil, provocando-o à entrega dos cativos e fazer outro tanto como o Xeque de Calaiate, o que ele não quis. Dando em reposta que havia de ser leal a el-Rei, que ele tinha ali ua carta sua pera dar ao Capitão-mor D. Luís, quando viesse, e que nela estava toda a reposta que ele podia dar. Tristão Vaz, porque Manuel de Sousa se foi contra o Cabo de Rossalgate às presas, esperando que viesse D. Luís, leixou-se ali ficar, e com o seu parau defendia que os pescadores não viessem ao mar, porque não podia fazer maior guerra à vila, até que veo D. Luís; o qual trazia três galeões e quatros fustas e ua caravela, de que eram capitães ele, Rui Vaz Pereira, António de Lemos, Nuno Fernandes de Macedo, Hanrique de Macedo, seu irmão, Duarte de Taíde, Pero Vaz Travaços. E ali se ajuntou com ele, Manuel de Sousa, per os quais ele soube o estado de Ormuz e lugares daquela costa. Ao qual veo logo um mouro, dos honrados da terra, e trouxe-lhe da parte 372 do guazil, Coge Zeinadim, a carta que dezia ter del-Rei de Ormuz pera ele, e assi lhe apresentou algum refresco da terra. E na carta não se continha mais que agravos de Diogo Lopes de Sequeira e dos capitães de Ormuz; e que estes escândalos indinaram tanto a gente, que fizeram o levantamento, em que ele não tinha culpa, e que com sua vinda ele esperava que tudo seria remediado. D. Luís teve alguns recados do guazil em reposta do que lhe ele mandava dizer, sem tomar conclusão sobre os portugueses cativos que tinha em seu poder, nem suas fazendas que lhe pedia, e nisto acabou de se resumir: que Raix Delamixar, que vinha por guazil, seria ali mui cedo, e poderia trazer algum recado sobre a sua entrega; que entretanto devia de ir fazer sua aguada a Teive. O qual conselho ele tomou, sem querer tomar emenda do lugar, temendo que qualquer dano que lhe fizesse, seria causar a morte aos cativos, que eram vinte seis portugueses; e mais sabendo que toda a gente e fazenda era posta em salvo; somente estavam ali uns poucos de homens de armas, frecheiros, que

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haviam de leixar a vila, pois ali não tinham mulheres, filhos, nem fazenda. Chegado D. Luís à aguada de Teive, porque os árabes dali lhe vinham fazer suas algazarras e sobrancerias, segundo seu costume, mostrando que lhe queriam defender a aguada, mandou D. Luís a Nuno Fernandes de Macedo, que com sua gente ua menhã os afugentasse dali. Na qual saída em terra cativou e matou alguns, com que os arábios ficaram tam assanhados, que os parentes dos mortos e cativos saltaram onde estavam sete ou oito portugueses cativos 191 191 pera os matar, e de feito foram mortos, se os não salvaram as pessoas que os tinham em poder; e todavia per desastre houveram um à mão, em que fizeram sua gazua. E estando ainda aqui D. Luís esperando João Rodrigues de Noronha, que da Índia era partido pera entrar na capitania de Ormuz, polo qual D. Duarte de Meneses mandava esperar naquela paragem, porque havia de vir com velas e gente pera ele, D. Luís, chegar a Ormuz mais poderoso, por não saber em que estado estava, chegou ua terrada do Xeque de Mascate, que estava por nós. O qual Xeque soube ser D. Luís ali per ua fusta de sua companhia, que se apartou dele com tempo no Cabo Rossalgate, e foi ter a Mascate, per a qual terrada lhe fazia saber como ele estava por el-Rei de Portugal, segundo já teria sabido per Manuel de Sousa e Tristão Vaz; que lhe pedia que o favorecesse com algum socorro, porquanto lhe fazia saber como Raix Delamixar vinha sobre ele com poder de gente. D. Luís, por estar já informado do que este Xeque tinha feito, mandou lá em seu favor a Hanrique de Macedo, capitão da caravela, e que ele 373 com a fusta que lá foi ter dessem todo favor que podessem ao Xeque; e porém que por nenhum caso saíssem em terra, nem homem algum. Chegado Hanrique de Macedo a Mascate nas oitavas da Páscoa, soube do Xeque como Raix Delamixar era chegado per terra di a três léguas com até trezentos frecheiros; que lhe pedia que o ajudassem com algua gente, porque ele determinava de o ir esperar a um certo passo de ua serra a lhe empedir a passagem, porque não tinha outro caminho. Hanrique de Macedo como lhe era defeso lançar gente em terra, se escusou com o regimento de D. Luís, com que o Xeque ficou muito desconsolado. Mas como receava que, passando o passo Raix Delamixar, ficava ele sujeito a muito perigo, por a pouca gente que tinha, e que lhe convinha partir-se logo ante que ele chegasse ao passo, tomou algua gente arábia que i estava de uas naus de Baçorá, e cinco portugueses que estavam com ele, que por suas vontades o quiseram acompanhar, dous dos quais eram criados de Tristão Vaz da Veiga. Finalmente, ele defendeu o passo, estando já desbaratado e acolhido a um alto, com matarem Raix Delamixar com ua espingarda dos nossos, que fez pôr em fugida a todolos párseos com morte de dez ou doze; e se houvera quem lhe seguira o alcanço, ali ficaram todos. De i a dous dias que o Xeque tinha havido esta vitória, chegou D. Luís, e quis Deus que chegaram também duas terradas carregadas do fato de Raix Delamixar, que vinham tomar pousada per mar, e ele estava já enterrado. As quais D. Luís, à míngua de seu dono, mandou recolher, e fez honra e agasalhado ao Xeque, dando-lhe muitas peças, e mais leixou-lhe ali ua fusta com quorenta portugueses, vinte pera andarem nela e vinte pera estarem em terra em seu favor. E havendo quatro dias que D. Luís ali era chegado, veo João Rodrigues de Noronha em ua nau per nome S. Jorge, e com ele outra nau 191v 191v chamada As Virtudes, capitão da qual era Lopo de Azevedo; e porque D. Luís não esperava outra cousa, partiu-se logo caminho de Ormuz. Neste caminho, treze ou catorze léguas de Mascate, está um lugar chamado Soar, o qual, posto que seja de pouco trato e tráfego, e não de muitos moradores, tem ua fortaleza; e como é mais perto de Ormuz que os outros, sempre é provido de gente de guarda e frontaria, por alguns imigos

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que tinham perto. Um vezinho era Soltão Maçoude, que vevia dentro no sertão perto da serra; o qual se intitulava por rei, como sinifica este nome soltão entre os mouros; o poder do qual seria até duzentos e cinquenta de cavalo e três mil homens de pé. O outro vezinho era um Xeque Hocém Bençaide, capitão do grande Bengebra, que teria até trezentos de cavalo e quatro mil de pé, o qual Bengebra é um alarve, que come mais de quinhentas léguas de terra. Porque ele é senhor quási de todo o sertão, que se comprende da Ilha 374 Baharém, correndo a costa até Dofar, dando sempre rebates nos povoados que estão nesta terra, a que os arábios chamam Iaman. E os rebates são no tempo da novidade das tâmaras, de que esta terra é mui fértil, e assi de outros mantimentos, recolhendo o que hão mister pera todo o ano, parte por rapina, parte por pacto, em maneira de páreas que lhe pagam estes vezinhos. D. Luís, pola informação que teve destas duas pessoas tam poderosas, os quais, por serem arábios, sempre estavam em guerra com os párseos do reino de Ormuz com que vezinhavam, ele os mandou chamar, e teve prática com eles, dizendo que sua tenção era dar em Soar, onde sabia estar um guazil del-Rei de Ormuz com gente em guarda; que lhe queria entregar este lugar, por saber que os arábios era gente mais fiel, e por esta causa el-Rei de Portugal, seu Senhor, havia muito de folgar ficarem os lugares daquela costa em seu poder e não dos párseos, e mais sendo eles pessoas de tanta calidade. E que deles não queria mais que cercarem o lugar per parte da terra, e ele daria pelo mar, porque temia que o guazil, Raix Xabadim, que estava na fortaleza, se acolheria pera o sertão, quando pelo mar fosse entrado. Aos quais ele deu alguas peças, ficando mui contentes do partido, porque nisso não metiam cabedal algum e ficavam senhores do que desejavam à custa alhea. Mas o caso não sucedeu como D. Luís desejava, porque o tempo foi um pouco contrairo a D. Luís; e ante de chegar a Soar, surgiu tanto avante como um lugar do mesmo Soltão. E porque do mar no porto do lugar viram os nossos uas terradas, sem D. Luís saber que havia ali povoação, mandou a elas António de Lemos no seu esquife, e com ele uas almadias. O qual, sem licença de D. Luís, queimou as terradas e o lugarinho, cativando obra de vinte mouros bem pobres, sem até então se saber o mal que fizeram, o que logo veremos. Chegando a Soar a onze de Março de quinhentos e vinte dous, soube D. Luís que Raix Xabadim era já dali 192 192 partido, e que leixara em guarda da fortaleza até oitenta párseos, os quais tinha cercado per terra Xeque Hocém Bençaide, como ficara assentado. D. Luís, como soube pelo mesmo Xeque Hocém este recado, e viu que sua armada vinha espalhada, e era tam tarde que não podia sair aquele dia em terra, mandou a alguns dos capitães, que já eram chegados, que com sua gente fossem guardar a praia, per se não irem os párseos, pois por terra os tinha seguros, segundo lhe mandara dizer o Xeque Hocém, e pela menhã sairia ele com o corpo de toda a gente. Os párseos, tanto que viram surta a nossa frota, parece que peitaram os arábios, e ante menhã per buracos do 375 muro da fortaleza os leixaram fugir. Os capitães que guardavam a praia, sentindo o rumor desta fugida, sem D. Luís ser presente, remeteram deles à fortaleza, outros a queimar ua nau que estava no porto. E quando acharam a fortaleza despejada, deram na vila e fizeram nela um bom estrago, matando e cativando quantos acharam, e per partes poseram-lhe fogo. D. Luís, quando chegou a terra e soube como os párseos eram fugidos e o lugar entrado e as duas partes dele queimadas, sem esperarem por ele, ficou muito indinado contra os capitães, e muito mais quando soube como o caso passava. Porque, quanto ao lugarinho que António de Lemos atrás destruíra, era de Soltão Maçoude, o qual, vendo o dano que lhe os nossos fizeram, ficou tam agravado de D. Luís, que não quis ir ao cerco dos párseos, como lhe prometera. Também a povoação de fora da fortaleza de Soar era toda povoada de arábios, muitos dos quais eram parentes dos arábios que andavam com Soltão Maçoude e Xeque Hocém, por cujo respeito ambos ficaram

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bem escandalizados, e houveram que não falávamos verdade. D. Luís, vendo que no feito não havia remédio, quis satisfazer a este escândalo, mandando entregar quantos cativos se ali tomaram, e toda a fazenda, ainda que era pouca, e ele per si mesmo andou per todas as naus vendo se dos cativos os nossos escondiam algum. Finalmente, ele leixou por guazil e capitão daquela fortaleza a Xeque Hocém Bençaide, e ao que dantes ali estava leixou por escrivão das rendas e despesa do lugar, obrigando-se este Xeque Hocém de o ter por el-Rei de Portugal, e sobre isso fizeram seus contratos com toda obrigação que o caso requeria, com que Xeque Hocém em algua maneira ficou satisfeito. Ante que D. Luís se partisse daqui, chegou a ele um criado de D. Garcia Coutinho, per o qual lhe fazia saber como ele mandara o alcaide-mor de Ormuz em um navio e ua fusta a queimar o lugar de Lema, que era del-Rei de Ormuz, o qual estava aquém do Cabo Moçandão ante de entrar no Estreito obra de dez léguas, e houveram na destruição deste lugar muitos cativos. E assi mandara dar alguns saltos derredor da Ilha Quêixome, de que el-Rei estava mui agastado, vendo 192v 192v que os seus não podiam navegar sem receber muito dano de nós, e morriam à fome, porque não tinham mantimentos, e não podiam haver por outro modo, senão per este de navegar. E também lhe fazia saber que el-Rei desejava muito sua chegada; porque D. Gonçalo Coutinho lhe dissera que, em o negócio da paz, faria tudo o que el-Rei quisesse, e com ele, D. Garcia, saber isto de D. Gonçalo, leixara de fazer a guerra a el-Rei. E porém, depois que estas cousas com a chegada de D. Gonçalo virem a este 376 estado, sucederam outras, em que totalmente aquele reino era perdido; porque entre os principais que governavam el-Rei Torum-xá, houve estas deferenças: Mir Corxete e Coge-Lal feriram Mir Hamede Morado, aquele grão privado del-Rei, e se acolhera a Ormuz, e tornara outra vez a Quêixome, depois que soube que Raix Xarafo, o guazil, mandara prender ao mesmo Mir Hamede Morado. E que ele, Raix Xarafo, temendo que el-Rei descobrisse a ele, D. Luís, e ao Governador D. Duarte, se ali viesse, quanto mais culpa ele, Xarafo, tinha neste levantamento que pessoa algua das outras, por ser homem que sabia tirar a pedra e esconder a mão, ele fizera com Raix Xamixer e Raix Gelal que matassem a el-Rei Torum-xá. Porque sobre ele morto lançaria todalas culpas dos males que eram feitos, visto que os mortos não se podem desculpar do que contra eles se diz. A qual morte houve efeito, e logo levantaram por rei um moço de até treze anos, per nome Mamude-Xá, filho del-Rei Ceifadim, passado; e que Xarafo governava tudo absolutamente, e tinha este moço em seu poder, e todo o tesouro e fazenda do reino. D. Luís quando ouviu tanta revolta, ante que tudo se acabasse de todo, partiu-se logo, e sendo tanto avante como o Cabo Moçandão, chegou a ele ua terrada, em que vinha um mouro honrado per nome Coge Mamude Safu-xá, per o qual o novo rei Mamude-Xá o mandava visitar, e que sua vinda fosse muito boa, e assi lhe mandava um pouco de refresco. D. Luís, ante desta visitação, per o criado de D. Garcia tinha havido ua carta do feitor Inácio de Bulhões, o qual como fora criado do Conde Prior, seu pai, com a mais liberdade que algum homem outro, o avisou do que lá passava. E entre muitas cousas lhe dezia, que os governadores del-Rei de Ormuz e todolos seus aceitos estavam costumados a fazerem tudo o que queriam, e depois remiam as culpas com dinheiro, e que até então ainda não tinham visto quem lho enjeitasse. E posto que ele o conhecia mui bem, e sabia que era filho de seu pai e neto de seus avós, que nunca fizeram cousa com mouros que a cobiça lhe fizesse perder a honra, todavia lhe fazia esta lembrança: Que se ante de se ver com el-Rei o mandasse visitar, e lhe mandasse algum refresco, como eles costumavam mandar, no qual refresco vai envolta a brandura com que eles amansam os ânimos dos 193 193 furiosos, se houvesse de maneira com a visitação, que de falar com ele somente não se podesse presumir cousa algua. Porque ainda que em toda parte os homens que mandavam e governavam, se

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não são mui cautelosos no modo de suas cousas, muitas vezes o juízo dos homens os condenava por suspeita; na 377 Índia corriam muito mais risco que em outra parte, por estarem acostumados os mouros e gentios a peitar grossamente, que este seu costume infamava a todo homem por justo que fosse. Por o qual respeito D. Luís não quis ouvir este mensajeiro, nem vê-lo somente, e mandou-lhe dizer per Tristão Vaz da Veiga, que ele estava tam perto de Ormuz como via; que lá o fosse esperar, e i lhe tomaria o recado del-Rei. E assi o espediu.

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193 193 377 Capítulo VI. Como D. Luís de Meneses chegou a Ormuz, e di foi ter à Ilha de Quêixome, onde el-Rei estava; e os meios que teve pera assentar paz com ele, com as condições nela conteúdas. Tanto que D. Luís chegou a Ormuz e se informou do que lhe convinha saber, não somente de D. Garcia, mas de Inácio de Bulhões, o qual, polas razões que dissemos, o podia informar de toda a verdade, e ele aceitar seu voto como de homem que tinha amor a sua honra e mais calidades pera isso de prudência e cavalaria, mandou vir publicamente o mensajeiro del-Rei, e tomou-lhe seu recado, o qual era de visitações. Ao que D. Luís respondeu graciosamente; e porém não lhe quis aceitar o refresco, nem vê-lo, somente tomou ua pouca de verdura, dizendo que era tam próprio dos homens que andavam no mar folgarem com ela, que por isso a aceitava, e mais por ser da mão de um rei inocente, como era ele, Mamude-Xá, que não tinha culpa algua em tam más cousas, como eram passadas em Ormuz. Partido este mensajeiro, ao outro dia veo outro por nome Coge Ceidadim com duas cartas ua del-Rei e outra de Raix Xarafo, seu regedor - e com muitas peças de seda e outras cousas que eles usam mandar na chegada dos capitães. Nas quais cartas se continham culpas del-Rei Turum-xá, morto, inventor e urdidor de quanto mal até então era feito, e que a sua morte fora ordenada por Deus, por tirar daquele lugar um tam mau homem; porém ele, Mamude-Xá, sempre havia de obedecer aos mandados del D. Manuel, Rei de Portugal, e que esta fora a primeira causa de aceitar a eleição de rei de Ormuz que os seus mires nele fizeram. Finalmente, per este temor o morto era condenado, e eles mereciam mercê e favor pola vontade que tinham, sem nas cartas se tratar de outra cousa: tudo eram palavras gerais. E outro tanto fez este mesmo mensajeiro, assi desta vez como doutra que tornou, sem D. Luís lhe tomar de ambos cousa algua das que trouxe, e 378 também lhe respondia 193v 193v com palavras gerais. Porém, porque ele, Coge Ceidadim, nesta segunda vez, como de seu apontou, em prática a D. Luís, que, se lhe desse um seguro pera a pessoa del-Rei e todolos seus, ele se tornaria à cidade, respondeu D. Luís que ele não lhe respondia por o requerimento não ser da parte del-Rei, senão prática dele, Coge Ceidadim; e quando el-Rei nisso mandasse falar, então responderia. E com isto o espediu. Partido este mouro, teve D. Luís prática com os capitães e principais pessoas que ali eram, dando-lhe conta destas visitações que lhe el-Rei fazia e do que lhe movera este mouro, que tudo isto lhe parecia artefícios de Raix Xarafo. Também havia oito dias que eram chegados, e passava-se o tempo sem ter feito cousa algua; que a ele lhe parecia que deviam ir a Quêixome, pera qualquer cousa que sucedesse tomarem logo lá conclusão nela, e não estar esperando recado vai, recado vem; no qual parecer todos foram, e partiu-se ao outro dia com a maré. Raix Xarafo, como se vigiava de todolos autos que D. Luís fazia, quando soube que ia pera Quêixome, temendo que el-Rei Mamude-Xá, que ele levantara, fosse desposto por lhe não pertencer, e que em seu lugar D. Luís levantasse a um moço de doze anos, filho del-Rei Torum-xá, morto, cegou este moço pelo modo que eles cegavam os de que se temiam, cousa mui costumada naquele reino, como já escrevemos. A nova do qual caso deram a D. Luís, indo de caminho pera Quêixome, a qual cousa não era verdade, mas artefício pera o mais indinar. E tanto que chegou, que foi o primeiro de Junho, vieram logo a ele Coge Abrahém, secretário del-Rei, Coge Ceidadim e

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outros homens nobres a vesitá-lo de parte del-Rei, e com algum refresco, aos quais ele recebeu com gasalhado, e assi o refresco, por ser fructa e os não escandalizar, e com isto os espediu. A tenção de D. Luís acerca do castigo que queria dar a Raix Xarafo, e assi àqueles mouros que revolveram as cousas que até li eram passadas, era haver a seu poder a pessoa del-Rei e deles per algum modo, e a eles ter presos até o fazer saber a seu irmão D. Duarte, pera determinar o que fariam, com que aquele reino ficasse em poder de homens de menos suspeita do que eles eram. E com parecer de pessoas particulares, que eram poucas, por se o segredo não descobrir, determinou de buscar pera fazer isto a seu salvo, e sem perigo da nossa gente, pessoas que per terra o ajudassem, e ele daria pelo mar. E achou dous homens poderosos, que tinham seu estado na terra firme, os quais davam obediência a el-Rei, e porém tinham ódio mortal a Raix Xarafo, por a qual razão aceitariam qualquer partido que lhe fizesse. A um deles chamavam Mir Carcero, cujos avós foram muito tempo governadores do reino Ormuz, e ao outro Mir Corxete, seu cunhado. D. Luís, como soube particularmente de suas cousas e poder que tinham, secretamente a Mir Carcero mandou Rui Varela, e a Mir Corxete António de Figueiredo, os quais 194 194 assentaram com eles serem contentes virem 379 a um certo tempo com gente dar nas casas del-Rei, e ele, D. Luís, per outra parte, e o tomarem às mãos, e àqueles que foram causa dos males passados. Ao Mir Carcero prometia D. Luís a governança de Ormuz, e ao outro as cousas de que se ele contentava. Tendo assentado com estes dous homens este negócio, sentiu D. Luís depois deles ua frieza, de maneira que converteu este ardil o negócio corrente de contrato com o mesmo Rei Mamude-Xá e com os seus governadores. E ainda se meteu neste negócio por concertador um embaixador do Xá Ismael, que ali era vindo, per meio do qual D. Luís concedeu alguas cousas, mostrando que o fazia por amor do Xá Ismael, e comprazer a ele, embaixador, sendo elas tais que a necessidade o fazia conceder nelas, porque se lhe gastava o tempo, e os mouros andavam mui vagarosos, e sobre isso moviam cousas novas, de maneira que havia D. Luís que, torná-los ao estado em que estavam, ante de lhe porem oficiais na alfândega, acabava grande cousa. E o que mais obrigou a ele, D. Luís, a isto, foi mandar-lhe dizer Mir Carcero que ele não podia ser naquele negócio, consirando os trabalhos que os capitães da fortaleza davam aos governadores; que ele queria viver em paz, e esta somente tomava por a milhor honra que alguém podia desejar. Seu cunhado Mir Corxete também se escusou com dizer, que, pois seu cunhado não entrava nisso, que ele o não podia fazer só. Além deste desengano houve i outra cousa mui principal, que fez concluir a D. Luís; ca foi certificado que estava Raix Xarafo tam temeroso de sua vida, que determinava de tomar el-Rei e se ir com ele e com o seu tesouro à Ilha Baharém ou pera Chilau, ua vila na costa de Pérsia, de que ele, Raix Xarafo, era natural, e levar consigo também os principais mercadores. Finalmente, D. Luís se contentou com el-Rei por esta maneira: que ele, Rei, com todolos seus tornasse a povoar a cidade Ormuz e pagasse os vinte mil xerafis que pagava, e livremente governaria o reino, sem os capitães entenderem nas cousas de sua fazenda nem justiça, e que tornariam todolos portugueses cativos e fazenda que lhe tomaram, e também pagariam aos que eram vivos o que naquela revolta perderam, constando por escritura ou testemunhas dinas de fé, e pagariam as páreas que até o tempo do levantamento eram devidas. Acabado este concerto de pazes, depois que foi assinado per D. Luís, e per el-Rei e seu guazil Xarafo, como Governador do reino, mandou el-Rei a ele, D. Luís, pera enviar a Portugal a el-Rei e à Rainha perlas e jóias de ouro, e muitas peças de seda e ouro, e outras pera ele mesmo D. Luís, que 380 ele aceitou, por não desprazer a el-Rei; porém mandou-as entregar ao feitor Inácio de Bulhões, pera as enviar com as outras a este reino, pera el-Rei.

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E porque as naus que João Rodrigues de Noronha levou consigo 194v 194v haviam de vir pera este reino com especearia, ele as despachou logo pera Cochi, mandando nelas estas peças que el-Rei de Ormuz deu, e assi o dinheiro das páreas que pagou. Em ua das quais vinha Lopo de Azevedo, e Duarte de Taíde em outra, e na terceira Manuel Velho, por Pero Travaços, capitão dela, ficar doente em Ormuz. As quais junto de Mascate, em ua aguada que chamam de Coge Atar, teveram um temporal tam forte e súbito de noite, estando sobre âncora, que foi ter à costa a de Duarte de Taíde, em que ele pereceu e um filho seu, e Vasco Martins de Melo, João Rabelo e D.Garcia Coutinho, capitão que fora de Ormuz, e muita outra gente nobre. E ao tempo que foi ter à costa, com a fúria que levava do temporal, deu pela nau de Lopo de Azevedo, que desaparelhou e houvera de se perder com ela, se lhe não acudira Manuel Velho, que a salvou. E assi se salvou a maior parte da fazenda perdida per indústria e ajuda do Xeque de Mascate, que mandou mergulhadores a isso. O qual benefício, ante que os nossos se dali partissem, foi pago a este Xeque Raxite com lhe ser dada a vida per esta maneira: Como ele tinha morto Raix Delamixar, irmão de Raix Xarafo, no passo que lhe defendeu, segundo atrás escrevemos, tanto que Xarafo teve os concertos feitos com D. Luís, sem o guardar pera mais tarde, mandou um seu criado em ua terrada com gente armada a matar este Xeque Raxite, em vingança de seu irmão. Sabida a qual vinda, Manuel Velho se meteu em o batel da sua nau, e com gente armada foi ter à aguada de Coge Atar, onde estava este criado de Raix Xarafo. E dando de súbito nele, o prendeu na própria terrada, sendo a gente de armas em terra, e o levou com os remeiros dela à sua nau, onde mandou vir Xeque Raxite, e os fez amigos, escrevendo sobre isso a D. Luís e a Raix Xarafo. Acabadas estas amizades, e as duas naus remedeadas do dano que receberam do temporal, partiram caminho da Índia onde chegaram a salvamento. D. Luís também, leixando as cousas de Ormuz no estado que dissémos, porque havia de ir esperar as naus de Meca à ponta de Dio, partiu-se por ser já moução pera isso, levando consigo cinco galeões, um navio e ua caravela. E sendo tanto avante como Dio, tomou ua nau em que houve pouca presa, e por lhe vir um temporal que o fez arribar a Chaúl, a dezasseis de Setembro, e o tempo não ser já pera mais, daqui se partiu pera Goa, onde achou seu irmão D. Duarte, o qual estava posto em toda tristeza, por a nova que tinham deste reino per ua das três naus, que o ano de quinhentos e vinte dous partiu, como veremos neste seguinte capítulo.

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195 195 381 Capítulo VII. Como, per ua das naus que este ano partiram pera a Índia, D. Duarte soube do falecimento del-Rei D. Manuel, e o que sobre isso fez, e as naus que despachou pera diversas parte; e como D. Pedro de Castro, capitão de ua de duas naus que invernaram em Moçambique, destruíu a Ilha de Querimba, e como em Goa, sobre amarra, a sua nau Nazaré se foi ao fundo. Estando D. Duarte de Meneses em Goa, na Sé, um Domingo, à missa, ouvindo a pregação do Bispo D. Fernando, religioso da Ordem de S. Francisco, chegou um homem, e deu um escrito a ele, D. Duarte, o qual era de D. Pedro de Castelo Branco, filho de D. Pedro de Castelo Branco, que chegara à barra de Goa por capitão de ua nau, de três que este ano de vinte dous partiram deste reino pera a Índia; e os capitães das outras duas eram Diogo de Melo, que ia pera capitão de Ormuz, na vagante de João Rodrigues de Noronha; e outro era D. Pedro de Castro, filho de Estêvão de Castro, os quais, por não poderem passar à Índia, invernaram em Moçambique, de que adiante faremos mais relação. Acabando D. Duarte de ler o escrito, foi tamanho o sentimento, que não podendo dissimular a dor e tristeza da nova que lhe D. Pedro dava, pôs um lenço no rostro, e sentindo os que estavam junto dele o seu choro, cuidaram que no escrito vinha nova que era falecido seu pai, o Conde Prior. Mas como pelo mensajeiro da carta souberam ser el-Rei D. Manuel, assi a pregação como a missa foi ua contínua tristeza, e fez em todos grande confusão. E o que isto mais acrescentou, foi verem que de três naus que somente aquele ano partiram deste reino, ua chegara à Índia, e parecia-lhe que com a morte do seu Rei tudo falecia; posto que no Príncipe D. João, seu filho, que era levantado por Rei, polo que dele tinham conhecido, cada um em seu modo se confortava, não perdendo a esperança de seus serviços. D. Duarte logo aquele dia à tarde mandou lançar pregões, que todos tomassem dó e o dessem aos seus escravos, e que não ficasse mouro ou gentio que o não tomasse, sob graves penas. E logo na Sé mandou ordenar ua eça e concertar todo o necessário, e com grande solenidade se cantaram bésporas, e ao dia seguinte missa e pregação por alma del-Rei, ao modo deste reino. Tendo ele, D. Duarte, per sua própria pessoa feito os dous autos, assi o da tristeza denunciando o falecimento del-Rei, como o do prazer e festa com toda solenidade, que convinha ao levantamento del-Rei D. João, o terceiro deste nome. E parece que permitiu Deus que ele fizesse este auto como filho de seu pai, D. João de Meneses, Conde de Tarouca e Prior do 382 Crato, que era Alferes-mor deste reino, a quem ele sucedia, o qual Conde 195v 195v o fez também neste reino em Lisboa. E não somente em Goa se fizeram estes autos, mas em todas as fortalezas da Índia nossas, e el-Rei de Ormuz tomou dó como vassalo del-Rei, e o de Cananor e Cochi como amigos e servidores. E no fim destes autos chegou (como dissémos) D. Luís de Meneses, que vinha de Ormuz, e de noite saiu do mar e se foi pera D. Duarte, que de novo entre si fizeram outro novo pranto. Porque, além de perderem Rei e Senhor, que os criou em grande mimo, por filhos de seu pai, o qual per suas qualidades ainda ficava naquela estima em que de todos era havido, ficava sem o ofício de Mordomo-mor da Casa del-Rei, que é o mais principal dela. O qual cargo ele já tivera do Príncipe D. Afonso, filho del-Rei D. João, o segundo, não tendo ainda título de Conde nem o de Prior do Crato, que estes lhe deu el-Rei D. Manuel somente por sua fidalguia, cavalaria e

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qualidades. E no modo de lho dar ganhou ele ainda mais honra e mercê que o próprio ofício; porque, havendo naquele tempo pessoas muito nobres e que tinham casa e herança e não menos nobreza, em que o ofício por estas razões parecia a muitos que lhe pertencia, disse el-Rei publicamente que dava aquele cargo a D. João de Meneses, porque era homem que sempre lhe falara verdade, e nunca à vontade. Na qual palavra el-Rei se mostrou justo e verdadeiro, e imigo de lisongeiros, e louvou a D. João de Meneses das mais principais partes que um homem pode ter pera andar junto dos reis, se eles são tais, que as palavras e obras lhe dão este nome e dinidade. Tornando a D. Duarte de Meneses: com esta triste nova se foi a Cochi dar carga às naus que este ano haviam de vir pera o reino; e por as outras duas da companhia de D. Pedro invernarem, vieram aquele ano somente estas naus, de que eram capitães Garcia de Sá, Aires da Silva, Bastião Ferreira, Diogo Calvo em ua nau de D. Nuno Manuel, a qual veo ter à Ilha de S. Tomé, onde foi roubada dos franceses, Manuel Gil, filho de Duarte Tristão, armador e senhorio da nau em que vinha, e Sancho de Toar, que veo de Sofala, por ter acabado seu tempo de capitão, e em seu lugar foi Diogo de Sepúlveda. O qual, quando daqui partiu com D. Duarte de Meneses, foi ter à Ilha de S. Tomé, e aí se partiu pera Sofala. E assi despachou a Pero Lourenço de Melo pera ir fazer ua viagem à China, com o qual ia também Martim Afonso de Melo Jusarte, o qual foi diante, a Pedir, fazer carga de pimenta; e Pero Lourenço com um temporal que lhe deu foi ter às Ilhas de Andramum, adjacentes à costa do reino Pegu, onde se perdeu, estando já no tempo de Diogo Lopes de Sequeira despachado pera partir, e parece que 383 lhe foi dilatada aquela ida por então, pera viver mais aquele tempo, até se perder neste. E também despachou André de Brito pera Malaca em ua nau própria dele, André de Brito, pera ir àquelas partes fazer seu proveito, 196 196 onde passou o que adiante veremos. As outras duas naus que dissémos invernaram em Moçambique, capitães Diogo de Melo e D. Pedro de Castro. Quis João da Mata, que ali era capitão e feitor, aproveitar-se deles por a gente não esta ociosa, e estando na terra aqueles meses, podia adoecer; e a causa que o moveu a isso foi esta: Dous mouros, senhores de duas ilhas - Zenzibar e Pemba - que estão naquela costa de Mombaça mui vezinhas a ela, fizeram-se vassalos del-Rei de Portugal, e pagavam-lhe páreas. E a eles pagavam outras páreas as Ilhas de Querimba, as quais, por serem mui vezinhas a el-Rei de Mombaça, com favor seu, por ser nosso imigo, negavam estas páreas, e mais faziam-lhe guerra, da qual cousa eles se mandaram queixar per vezes a João da Mata, e que esta era a causa por que lhe não podiam pagar as páreas. E vendo estes dous senhores de Pemba e Zenzibar que invernavam ali aquelas duas naus, mandaram mensajeiros a João da Mata com este requerimento; o qual foi dar conta aos capitães do caso, levando consigo os próprios. Dizendo-lhe quanto importava isto ao serviço del-Rei, pedindo-lhe da sua parte quisessem ir dar um castigo àqueles mouros de Querimba, e meter debaixo da obediência daqueles vassalos del-Rei, pera deles haver as páreas, que por esta causa havia tempo que não pagavam. Diogo de Melo, como ia ordenado pera servir a capitania de Ormuz, dando alguas razões de o não poder fazer, aceitou D. Pedro de Castro a ida, e levou um navio, em que andava Pero de Montarroio, que era capitão daquela costa, e o batel grande da sua nau a que D. Pedro mandou levantar uas falcas pera poder agasalhar a gente; e assi levou mais o seu esquife e dous ou três zambucos da terra, em as quais vasilhas levaria até cem homens, em que entravam estes fidalgos, que o quiseram acompanhar: D. Roque de Castro, seu irmão, e D. Cristóvão, seu primo, D. Hanrique de Eça, Cristóvão de Sousa, que ia pera capitão de Chaúl, António Galvão, e outras pessoas nobres. Chegados à Ilha Querimba, onde tinha ua boa povoação pegada no mar em um escampado

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gracioso, repartiu D. Pedro a gente em duas partes: ua deu a Cristóvão de Sousa por as calidades de sua pessoa, e mandou-lhe que, leixando a praia, fosse encavalgando o lugar per cima dentro da terra, e ele com a outra parte da gente foi ao longo da praia. Indo nesta ordem ambos, cada um per sua parte, foram recebidos de muita frechada, de que os mouros também levavam em retorno lançadas e cuitiladas, com que os nossos os sangravam de morte. Em ajuda dos quais mouros, por haverem sentimento da ida dos nossos, era i vindo com muita gente um sobrinho del-Rei de Mombaça, o qual caiu na parte de D. Pedro; mas ele não se havia muito de gloriar 384 da honra que ali ganhou, porque assi apertaram os nossos com ele, que começou logo de se pôr em salvo. Cristóvão de Sousa, por o grande rodeo que fez per cima do lugar, levava já a gente tam cansada, que houvera mester um pouco de fôlego pera repousar, e não a fúria dos mouros que lhe saíram ao 196v 196v encontro por lhe tirar a vida, por ser tal a peleja que foi ele ferido, e Nuno Freire, Luís Machado e outros da sua companhia. Finalmente, poucos ficaram que pouco ou muito não fossem magoados na carne, e não a honra que ali ganharam, porque, à força do seu ferro, despejaram o lugar, que era grande e mui rico, ao qual, depois que foi despejado, D. Pedro mandou pôr o fogo, com que de todo se queimou. E porque deste feito os nossos não ficassem com mais que com a honra dele, quanto fato tinham carregado do esbulho, todo o mar comeu. Porque, per descuido e alvoroço da vitória e cobiça de carregar as vasilhas em que o embarcavam, ficaram com a muita carga em seco na vasante da maré; e como estavam mais sobre o costado que sobre a quilha, quando tornou a encher, com a maresia embarcou as vasilhas, e o fato ficou perdido; e ainda fez Deus mercê aos que já estavam recolhidos salvarem-se, e muito maior ser ante aquele dano ali no porto que depois que partiram dele, porque sem dúvida de todo se perderam com o grande trabalho que teveram em se tornar; em tanto que conveo a D. Pedro, por ter o vento contrairo pera Moçambique, mandar o navio que levava com a mais gente a Melinde, fazendo fundamento de a ir tomar ali, indo pera a Índia, como fez. E por razão deste tempo contrairo, se passou ele, D. Pedro, a um barco da terra, e navegava ao longo dela, não ousando de a leixar. E como ele era quartanairo, estando com a febre ancorado, sem o sentir, saiu-se D. Cristóvão, filho de Filipe de Castro, e outros a comer fructa do mato, por a grande fome que passavam. Aos quais saíram uns poucos de negros da terra, e os vieram frechando até praia, a que acudiu D. Pedro com a febre que tinha, quando soube do caso, de que os salvou; porém ficou D. Cristóvão tam ferido, que ao outro dia morreu. Finalmente ele, D. Pedro, neste barco, e Cristóvão de Sousa em outro, e António Galvão no esquife, cada um per sua parte, todos passaram mais perigos de fome, sede e trabalhos em chegar a Moçambique, do que foi o perigo da guerra de Querimba. Onde, ante que partissem às ilhas circunstantes, se vieram a D. Pedro, temendo o castigo dele, e se meteram debaixo da obediência de Zenzibar e Pemba, que foi o fim de sua ida, com que João da Mata arrecadou as páreas 385 que deviam. E vindo tempo, D. Pedro e Diogo de Melo se partiram caminho da Índia, e a D. Pedro não lhe bastaram estes trabalhos que nesta ida e vinda de Querimba passou, mas ainda foi ver outro maior na barra de Goa, estando ancorado, por sua nau, chamada Nazaré, ser mui velha e das maiores que se fizeram neste reino, com um tempo forte se perder.

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196v 196v 385 Capítulo VIII. Como D. Duarte de Meneses partiu pera Ormuz; e como no caminho per um descuido os mouros de ua nau rendida tomaram ua galé de duas que a tinham tomado; e do que em Ormuz se passou ante dele chegar. 197 197 Tornando a D. Duarte, que (como dissémos) veo despachar as naus que haviam de vir pera este reino, e outras que espediu pera diversas partes, ordenou duas armadas: ua pera ele ir dar vista a Ormuz, por acabar de assentar as cousas que D. Luís, seu irmão, leixava no estado que vimos, e outra armada pera o mesmo D. Luís ir ao Estreito do Mar Roxo a trazer D. Rodrigo de Lima, que Diogo Lopes de Sequeira enviou por embaixador ao Preste, como atrás escrevemos; e primeiro que ele partisse pera Ormuz, se partiu D. Luís pera o Estreito, da viagem do qual adiante faremos relação. Ele, tanto que se apercebeu, partiu com seis velas, de que eram capitães D. Vasco de Lima, Francisco de Mendoça, Francisco de Sousa Tavares, Dinis Fernandes de Melo e Bastião de Noronha e Luís de Noronha, ambos irmãos, cada um em sua galé. Chegado a Chaúl, não se deteve mais que enquanto leixou alguas cousas ordenadas a Simão de Andrade, capitão da fortaleza, e aí atravessou a costa de Dio um pouco largo da terra. Na qual passagem, indo as galés de Bastião de Noronha e Luís de Noronha juntas, largas da armada dele, D. Duarte, foram encontrar com ua nau de mouros que vinha de Pegu mui rica de mercadorias, a qual era da cidade Reiner, que está dentro da enseada de Cambaia. Eles, desejosos de tomar a nau, logo no princípio teveram boa cautela não a querendo abalroar, por ser mui alterosa, e eles tam rasos como é ua galé, e começaram de a varejar com artelharia, de maneira que a nau ia toda trespassada dos pelouros; e como era sobre a noite, por a não perderem, um de ua parte e outro da outra, leixaram-se estar esperando a menhã. Os mouros, porque se viam ir ao fundo, por a nau estar mui rota, 386 determinaram de se aventurar e perder as vidas, pois não podiam salvar a fazenda, e leixaram-se carregar sobre ua das galés que sentiram mais quieta, como que dormia a gente. E como lhe o masto da galé ficou ao longo do costado da nau, mansamente o reataram ao masto de mesma nau; e tanto que a teveram segura, às pedradas e zargunchadas fizeram acordar os que dormiam, e acordados do sono e desacordados na honra, lançaram-se ao mar, por fugir aos mouros, que tomavam posse dela, e acolheram-se a nado à outra. A qual também teve tam pouco acordo, que não curou de seguir a galé em que se os mouros salvaram, e a sua nau se foi ao fundo no mesmo tempo, sem dela salvarem mais que as pessoas, que foram ter a Reiner, onde logo Melique-Saca, filho do grande Melique-Iaz, que havia pouco mais de ano e meio que era falecido, mandou comprar a galé, e a pôs em Dio coberta de telha, gloriando-se a quantos rumes ali vinham, dizendo que as suas cotias a tomaram aos nossos. Do qual feito, quando os irmãos chegaram a Mascate, onde D. Duarte estava, 197v 197v houve grande paixão, não tanto da perda da galé, como por leixarem ir os mouros em salvo, sem os seguir com a outra. E primeiro que ele chegue a Ormuz, queremos escrever o que passou depois que se D. Luís partiu, e o estado em que D. Duarte achou aquela cidade, que era mui diferente do que ele cuidava.

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D. Luís, no tempo que esteve em Ormuz, todolos recados e cousas que se passaram entre ele e el-Rei, até assentar que se viesse da Ilha Quêixome povoar a cidade Ormuz, bem sabia que todalas cautelas e artefícios que nisso passaram não procediam del-Rei, que era moço de treze anos, nem dos seus mires e principais da cidade, somente de Raix Xarafo, de cuja vontade tudo pendia. Porque já neste tempo o Xeque, sogro del-Rei Torum-xá, morto, per quem ele era mandado, era lançado fora de Quêixome, e assi Mir Mahamede Morado, aos quais ele tinha tomado sua fazenda. E por ele, D. Luís, ser informado que, enquanto Raix Xarafo fosse vivo, as cousas de Ormuz não haviam de segurar, por ser homem mui sagaz, e que podia revolver tudo, e pera seus negócios tinha grande ajuda em Raix Xabadim, seu cunhado, e ele, D. Luís, o não poder acolher, cometeu a um Raix Xamexir (homem pera qualquer feito desta qualidade, por ver nele desposição pera isso, por o mal que queria a Raix Xarafo), que o matasse, e a Raix Xabadim, seu cunhado, prometendo-lhe por este feito o guazilado do reino, e mais dez mil xerafis, de que lhe deu um assinado condicional, que havia de ser dentro em quorenta dias; e mais lhe deu outro de perdão daquele feito, pera poder mostrar ao capitão de Ormuz, sendo-lhe necessário, polo muito que importava a serviço del-Rei ser isto assi. Este Raix Xamexir, depois de aceitar o caso, vendo quam recatado e guardado Xarafo andava, disse a D. Luís que este feito não podia ser senão depois da partida dele pera a Índia, porque descuidar-se-ia Xarafo 387 com sua ausência de andar tam acompanhado de tanta vigia como trazia sobre si. Partido D. Luís, ficou Xarafo desabafado do temor que tinha dele e pareceu-lhe que não havia em Quêixome de quem se temer, e todo seu intento era buscar modos de não ir a Ormuz, como tinha contratado com D. Luís; mas ele o fez mais depressa do que cuidava. Porque Raix Xamexir, como viu tempo, indo Raix Xabadim pera ver el-Rei, mais seguro do que andava, saltou com ele no meio do terreiro das casas del-Rei, e ali o matou, e quis ir fazer outro tanto a Xarafo às casas; mas ele fugiu à fúria deste, quando soube o que passava, e foi de ua casa em outra, até se lançar de ua janela per ua touca. E porque no seu dinheiro tinha ele sua vida, assi com a corrida do temor que levava, foi-se a sua casa, e apanhando três cofres, meteu-se em ua terrada com seus servidores, e deu consigo em Ormuz. Chegado à praia, mandou pelos seus levar os cofres a sua casa, e ele foi-se à fortaleza apresentar ao capitão. Ao qual disse como Raix Xamexir com alguns de sua valia matara seu cunhado, e quisera matar a ele, se o Deus não 198 198 livrara; e tudo isto era porque queria comprir o que assentara com D. Luís, que era trazer el-Rei pera a cidade. O que ele com seus amigos e aliados contrariavam; e pois se vinham abrigar ao poder daquela cidade del-Rei de Portugal, de que ele era capitão, lhe pedia que o amparasse, e lhe desse licença pera se ir pera suas casas. João Rodrigues, porque isto o tomou de súbito, não se sabendo determinar no que faria, disse-lhe que repousasse um pouco, que não se fosse logo meter nas suas casas, que mais seguro estava ali com ele, ou fizesse o que lhe mais aprouvesse, tudo polo mais segurar. Partido ele, Raix Xarafo, teve João Rodrigues prática com alguas pessoas principais, e foi voto de todos que mandassem por ele e o tevessem a bom recado, até saber per outrem como isto passava. Trazido per Inácio de Bulhões, feitor, per quem João Rodrigues o mandou chamar, foi apousentado em um cubelo, e por guarda Manuel de Vasconcelos. E não seria posto nesta custódia e guarda, quando chegou um recado del-Rei de Ormuz a João Rodrigues, pedindo-lhe que mandasse prender aquele tredor, e não lhe cresse cousa algua de quantas dissesse, porque ele lhe mandaria dizer as causas per que merecia esta prisão; e outro tanto lhe mandou dizer Raix Xamexir. Xarafo, como soube que era acusado per el-Rei e per seu imigo, per este e outros recados que cada hora vinham e que a ele atribuíam o levantamento de Ormuz, e que ele entretevera a el-Rei até aquele tempo, sem querer vir pera a cidade, dobrou sobre estas culpas, dizendo a João Rodrigues

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que soubesse certo que el-Rei em nenhum tempo veria a Ormuz, porque 388 todolos que ficavam com ele lhe aconselhavam que o não fizesse; e soubesse certo que, de morto ou desposto de rei, não podia escapar. E que ele, por serviço del-Rei de Portugal, queria fazer ua cousa, pera segurança da qual leixava em Ormuz sua mulher e filhos, e parte de sua fazenda, porque a outra havia mester pera ajuntar gente e seus parentes. E era que, com ajuda de cem portugueses que com ele fossem nas terradas, ele daria em Quêixome, e o destruiria todo. E ele com seus parentes e amigos se atrevia a povoar a cidade Ormuz, e a tornar a tam próspero estado como estava ante do levantamento; e que as rendas todas daquele reino seriam del-Rei de Portugal, pois o reino era seu, e que não havia necessidade de haver rei, que o capitão seu abastava; e tudo isto queria ordenar e fazer à sua custa. El-Rei, como foi avisado destas promessas de Xarafo, mandou pedir ao capitão João Rodrigues que lho mandasse, pera fazer justiça de quantos males contra sua pessoa e fazenda tinha cometido, da qual entrega João Rodrigues se escusou com boas razões. Ante, em favor das que Xarafo dava, lhe mandou dizer que, se era verdade que ele empedia vir-se pera Ormuz, agora que estava fora de seu poder como se não vinha, pois eram tantos dias passados do termo que pera isso tomou? El-Rei, quando viu que João Rodrigues lhe não respondia a seu propósito, mas que o culpava por se não vir, e que daqui poderia 198v 198v tomar suspeita ser verdade quanto lhe Xarafo deria (esta fé lhe daria favor pera o que prometia de destruir Quêixome) determinou-se com esses que o aconselhavam de se vir pera a cidade como veo a vinte-a-cinco de Novembro do mesmo ano de quinhentos e vinte dous. E posto que com ele se veo toda a gente nobre dos mires, que é a sua fidalguia, e os mercadores, nenhum deles trouxe sua mulher, filhos, nem fazenda, somente as pessoas a modo de fronteiros; e naquele primeiro dia el-Rei dormiu fora da cidade, em tendas. Porque mais temiam ter Raix Xarafo ordenado algua cousa (que, em chegando, primeiro que o capitão estevesse com eles, lhe fizesse algum mal), que ao mesmo capitão e a nossa gente. Todavia já com mais seguridade, passada aquela noite, ao seguinte dia el-Rei se foi pera suas casas, onde João Rodrigues o foi ver, e aconselhou acerca dos temores que tinha; e quanto às cousas de Raix Xarafo, que ele estava a bom recado, até vir o Governador D. Duarte, a quem o entregaria. Passadas estas e outras cousas entre ambos, di a cinco dias, Raix Xamexir, autor da morte de Raix Xabadim, foi visitar o capitão João Rodrigues. No qual tempo não ficou mouro que não olhasse pera as ameas da nossa fortaleza, quando o haviam de ver enforcado em ua delas; mas como ele levava as provisões que lhe D. Luís de Meneses dera, tornou pera casa del-Rei com ua cabaia de seda vestida, que lhe João Rodrigues deu, e um carapução dos que eles usam em sinal de honra e mérito de serviço, de que todos ficaram espantados, 389 não sabendo a causa, e corria a gente a ele a lhe dar a prolfaça, como se o viram escapar de algum grande perigo. Depois destas primeiras visitações, começaram de se mover queixumes de todos os principais mouros contra Raix Xarafo, dizendo ao capitão que o mandasse prender em ferros, e que ali lho requeriam da parte del-Rei de Portugal, porque os tinha todos roubados. Porquanto era um homem mui manhoso, e que se poderia ir sem dele fazerem justiça, como esperavam de haver, tanto que viesse o Governador; a qual obra João Rodrigues, importunado dos requerimentos, mandou fazer. E também ele mandou requerer a el-Rei que uns três mil homens de armas frecheiros que tinha dentro na cidade, que os mandasse sair dela, porque, havendo antre eles paz, não parecia bem gente de guerra na terra. Ao que ele respondeu que, se os tinha, era por defender aquele reino, que era del-Rei de Portugal, porque bem sabia ele que os nautaques andavam roubando quantos navios vinham pera aquela cidade e também que alguns lugares da costa da Arábia estavam levantados

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contra ele, e em Julfar estavam todolos homens de armas de Raix Xarafo, e lá se acolheram todos seus parentes com um filho de Raix Xabadim. O qual com os homens de seu pai fizera um corpo de gente, com que andava destruindo toda a terra, que lhe pedia o mandasse prover com algua embarcação, pera nela mandar aquela gente, ante que mais dano se fizesse.

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199 199 389 Capítulo IX. Como o Governador D. Duarte de Meneses chegou a Ormuz, e tornou assentar as cousas daquele reino, com acrescentar sobre os vinte cinco mil xerafis, que el-Rei pagava, outros trinta e cinco mil; e como, per conselho de Raix Xarafo, mandou um embaixador a Xá Ismael; e do que D. Luís de Meneses fez na ida do Mar Roixo, e das naus que partiram deste reino. Neste estado estavam as cousas de Ormuz quando o Governador D. Duarte chegou, o qual, sendo informado de tudo, e passados os primeiros dias das visitações antre ele e el-Rei, começou a entender nas culpas das partes que foram autores do levantamento e dos males que até ali foram feitos. No modo que D. Duarte teve em pacificar todas aquelas revoltas e tornar aquela cidade ao estado de ser povoada como dantes era, contendem diversos juízos, uns havendo por bem tudo o que fez, pois o fim do caso ficou 390 em el-Rei de Portugal ter mais páreas das que antes tinha naquele reino, e os culpados ficaram com seu castigo per diverso modo, e mais tirou algua semente de escândalo; outros seguem o contrairo, até tocarem na limpeza da pessoa dele, D. Duarte, em verem que, pedindo el-Rei justiça de Raix Xarafo e muitas partes a que tinha ofendido em casos de tirania per diverso modo, todalas trovoadas que nisso houve foram como são os libelos postos sobre algum malfeitor que se livra com boas ou más razões, cuja sentença neste caso foi esta: ficar Raix Xarafo no ofício de guazil como era, e que el-Rei casasse com ua filha de Raix Xarafo, pera lhe ter amor de filho, e ele de pai, por não haver mais ódio entre ambos. E as culpas do levantamento se carregaram sobre el-Rei Torum-xá, morto, e sobre seu sogro, o Xeque, e Mahamede Morado e nos seus aceitos, que eram passados à terra da Pérsia. E as culpas de Xarafo dizem que as remiu ele per dinheiro, e as que tinha aquele Rei inocente de treze anos, foram pagas com pagar cada ano mais trinta e cinco mil xerafis, que com os vinte cinco que dantes pagava, eram sessenta mil. E que da fazenda que roubaram às partes, se fizessem dous livros, um tal como o outro, e feita diligência pera verdadeiramente, per escrito, testemunhas e juramento, se saber o que cada um perdeu, assi os presentes como ausentes em todo o tempo haverem o seu; e assi se fez, um dos quais livros fez Rui Gonçalves da Costa, e outro Coge Abraém, que era escrivão da alfândega de Ormuz. E o galardão que houve Raix Xamexir por matar Raix Xabadim, foi-lhe pago em ser desterrado do reino 199v 199v de Ormuz, por tirar este imigo mortal a Raix Xarafo, porque também houve causas novas pera isso. E foram estas: Como ele viu o fim destes concertos, ou que fosse verdade, entre favorecido polo que fizera e temido de Xarafo, trazia muita gente consigo, e um dia se levantou um arroído entre os mouros, em que foram mortos alguns dos nossos, a qual morte foi atribuída a ele, e mais diziam que andava ordenando levantarem-se os mouros contra nós. E como este mouro era assomado e falava muitas cousas um pouco soltas, foram todas tam claros sinais de quam perigoso seria na terra, que o lançaram fora de Ormuz, com que os ânimos de todos ficaram mais quietos por então. Mas como Xarafo era homem que sempre urdia cousas a seus propósitos, parece que no tempo do levantamento fez com el-Rei de Ormuz, depois que esteve em Quêixome, que, pera se valer de nós, convocasse ajuda do Xá Ismael, oferecendo-se a cousas que ele mal poderia comprir. Porque, como D. Duarte acabou de assentar as cousas daquele reino e páreas que 391

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havia de pagar com tanto acrescentamento, disse-lhe Raix Xarafo que, na terra firme da Pérsia, era chegado um capitão do Xá Ismael, o qual não leixava vir as cáfilas a Ormuz, e pedia que lhe dessem as páreas que lhe deviam de muitos anos. Que lhe parecia muito serviço del-Rei de Portugal mandar um embaixador ao Xá Ismael, declarando-lhe o que era passado do levantamento daquela cidade, por el-Rei Torum-xá ser homem de mau governo e mui sujeito a quatro ou cinco homens que lhe fizeram mover não somente o que fez, mas mandar pedir ajudas contra portugueses. E de ele ser homem que não merecia governar, os próprios mouros o mataram, por se não perder de todo a terra; e em seu lugar levantaram a Mahamude Xá, ao qual ele, D. Duarte, por os poderes que tinha del-Rei D. João de Portugal, como seu Governador, confirmara em rei per aprazimento de todolos principais, com que a terra estava de todo assentada. E porquanto ao Bander de Angom, que é um porto da terra firme da Pérsia, onde vem ter todalas cáfilas do interior dos seus reinos, era vindo um capitão, que dezia ser seu, a empedir aquelas cáfilas em modo de represária, até lhe pagarem certas páreas, lhe pedia passasse seu formão e patente a el-Rei de Ormuz, que ora reinava, e aos que diante fossem, que nenhum capitão seu empedisse a vinda e ida das cáfilas àquele reino, pois era del-Rei de Portugal, com quem tinha assentado amizade per meio de seu embaixador, em tempo de Afonso de Albuquerque, que aquele reino conquistou. D. Duarte, ouvidas estas e outras rezões de Raix Xarafo e praticado tudo em conselho, assentou de mandar a este negócio embaixador. E por espedir o capitão que estava no Bander, Raix Xarafo lhe mandou um presente, e D. Duarte recado que leixasse o porto e caminhos abertos pera virem as cáfilas, porquanto ele mandava sobre o requerimento 200 300 a que ele vinha um embaixador a Xá Ismael, o qual capitão com este recado e presente de Xarafo se partiu. E daqui e doutros sinais que se viram neste negócio, houve depois suspeita que tudo isto foram artefícios de Xarafo, pera se desculpar do pouco rendimento da alfândega, donde se haviam de tirar os sessenta mil xerafis que lhe D. Duarte posera de tributo. E a pessoa que o Governador mandou com este recado ao Xá Ismael, foi um cavaleiro da Casa del-Rei, chamado Baltesar Pessoa, com dezoito homens de cavalo, dos quais João de Gouvea ia pera ficar em seu lugar, falecendo ele, e Vicente Correa, escrivão da embaixada, e Francisco Calado, sacerdote, por capelão, e António de Noronha por língua. E levou também em sua companhia um mouro per nome Abedelá, que era criado do Xá Ismael, que ele enviara a certos negócios à Índia, e era aquele a que D. Luís de Meneses, nos concertos que teve com el-Rei de Ormuz, deu entender que, por ser criado do Xá Ismael, com quem tínhamos amizade, e por sua pessoa, ele folgava de o comprazer. Com o embaixador foi também um presente del-Rei de Ormuz e alguas peças do nosso uso, que respondiam ao requerimento; porque 392 ainda que em todalas partes se negocea por dar, hão por estranho naquelas ir ante um príncipe com as mãos vazias. Foi também com Baltesar Pessoa, António Tenreiro, um cavaleiro morador em a cidade de Coimbra, da qual viagem ele fez um itinerário, que em algua cousa nos deu lume à nossa Geografia, porque, como sabia a língua pársea, de curioso de ver terras se leixou lá ficar, e foi di ao Cairo. E depois, tornado ele a Ormuz, como homem cursado na terra, Cristóvão de Mendoça, capitão desta cidade Ormuz, per mandado de Lopo Vaz de Sampaio, que era Governador, o mandou a este reino com recado a el-Rei de cousas de seu serviço. E peró que Baltesar Pessoa foi mui bem recebido do Xá Ismael, ele se tornou sem trazer recado do que ia requerer, porque da sua chegada a poucos dias faleceu o Xá Ismael, e foi levantado por Rei da Pérsia Xá Tamás, seu filho maior, moço de quinze anos. O qual teve tanto que fazer com os levantamentos e desassessegos pola morte de seu pai, que em outra cousa não entendia. D. Duarte, como tinha assentado com seu irmão D. Luís que, quando viesse do Estreito, passasse per Ormuz pera se irem ambos, tanto que chegou, pôs em obra partir-se. Mas porque ele, D. Luís, nesta ida do Estreito passou alguas cousas, primeiro que vamos mais adiante convém dar

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relação delas. Ele, D. Luís, quando partiu pera este Estreito do Mar Roxo, levou nove velas, de que eram capitães ele, Francisco de Mendoça, Nuno Fernandes de Macedo, Rui Vaz Pereira, Aires da Silva, Fernão Gomes de Lemos, Hanrique de Macedo, e Lopo de Mesquita e Cosmo Pinto em ua caravela. E chegado à Ilha Socotorá, aqui com tempo se perdeu Aires da Silva, dando à costa com tormenta; e feita sua aguada, atravessou daqui à costa 200v 300v de Arábia, a dar ua vista aos lugares dela, e o primeiro foi à cidade Xaer, situada em costa brava, e tinha no porto ua só nau varada em terra. Ao qual vieram receber seis ou sete portugueses que ali estavam em um navio fazendo seu comércio, e deles soube que àquele porto viera um Afonso da Veiga com outro navio a fazer mercadoria, como ele vinha, o qual havia quatro ou cinco meses que era falecido, e o Rei da cidade lançara mão da sua fazenda, que valeria seis ou sete mil pardaus, e não a queria entregar, requerendo-a eles pera a levar e entregar ao provedor dos defuntos. O seu regedor e principais da cidade, como viram aquela armada sobre o porto, por el-Rei ser fora, mandaram logo vesitar a D. Luís com refresco da terra, o que ele não aceitou e mandou dizer que não queria outro refresco, senão a fazenda de Afonso da Veiga, que ali falecera, e el-Rei tinha em seu poder. Ao que eles responderam que el-Rei era dentro no sertão, que não sabiam parte disso; que veria ele, então saberiam responder ao que dezia. D. Luís, como era costumado a palavras de arábios e às suas dilações, 393 polo que já tinha visto deles, mandou-lhe dizer que aquela cidade tinha em si a fazenda daqueles portugueses; que se determinassem de lha mandar logo, senão que eles a iriam buscar. E com este recado mandou aos portugueses que estavam em terra que se recolhessem ao seu navio; e, não o podendo fazer a seu salvo, que de noite se fizessem fortes onde pousavam, porque ele esperava saírem em terra em rompendo alva; e que, nas casas onde se recolhessem, posessem um sinal de ua touca branca em um pau, a modo de bandeira. A qual saída D. Luís fez com quatrocentos homens, quási todos molhados por a costa ser brava; e como sua saída foi mais prestes do que os mouros cuidavam, e sempre lhe pareceu que as palavras de D. Luís eram ameaças, posto que eles acudiram à praia, não fizeram muita resistência, ante logo a desampararam, por se segurar dentro dos muros da cidade. Mas como os nossos lhe levavam boa vontade, às lançadas, cutiladas e com espingardas os foram levando per essas ruas, e eles sem virarem rostro atrás, vasaram per as portas que tinham contra a terra firme, de maneira que maior trabalho teveram os nossos em acarretar o móvel que se achou na cidade, de que estava bem chea, que de os lançar fora. Mas deste trabalho houveram pouco fructo. Por se erguer um vento travessão, embraveceu o mar, de maneira que ao primeiro batel que se atreveu a salvar algua cousa sessobrou, e a gente se salvou com trabalho, e ainda por encher comeu muito do fato que os homens tinham posto à borda da água por o ter mais prestes pera a embarcação. D. Luís, desesperado de poder embarcar e vendo que lhe convinha dormir em terra, do mesmo fato e trouxas dele mandou fazer um cerco, à maneira de recolhimento, com alguns berços que se tiraram dos batéis, e toda a noite passou em vegia, temendo algum rebate. E tanto que rompeu 201 301 a menhã, que o vento deu lugar, a grande pressa se recolheu, recolhendo os homens mui pouca cousa do que tinham na praia. E foi grande dita este seu recolhimento, porque a nova daquele feito chegou el-Rei, que estava perto, o qual a mata-cavalo acudiu com tanta gente, que cobria os campos, mas os nossos iam à vela, e houveram vista dele e ele da armada. E daqui espediu D. Luís a Cosmo Pinto, capitão da caravela, pera Ormuz, por ser navio mui mau da vela, e no caminho achou três portugueses que estavam em Mete, em poder do Xeque dali, vindo perdidos da companhia de

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um António Faleiro, alevantado, que andava per aquela costa roubando e escandalizando os lugares dela. Seguindo D. Luís seu caminho, ante da noite chegou ao porto de um lugar chamado Verruma, que era del-Rei de Xaer, onde Francisco de 394 Mendoça estava sobre ua nau, a que dera caça vindo com D. Luís; e vendo-se mui acossada dele, varou em terra junto de outras três, que já estavam descarregadas em Xaer, e por este ser milhor porto se vieram ali. E de noite a que varou em terra tirou seu fato, de maneira que, quando veo pela menha, não se houve dela mais que um pouco de cobre que trazia por lastro, que D. Luís mandou recolher, e a elas queimar. Partido daqui, foi ter a Adem, onde somente esteve meio dia esbombardeando a cidade sem mais outra cousa, por não levar força pera isso; e passando per Mocá, que está à de dentro das portas do Estreito, atravessou a outra costa da parte África. A qual costa os mouros chamam da Abassia, por ser dos povos abassis, estado do Preste, e com bom tempo chegou ao porto de Maçuá, onde Diogo Lopes de Sequeira leixou D. Rodrigo. O qual, por muitos inconvenientes, posto que D. Luís lhe mandou dali recado à Corte do Preste, não pôde vir ao termo que lhe ele limitou, por causa da moução com que lhe convinha sair daquele Estreito, e não aventurar tanta gente a morrer, como era morta a três capitães que naquele Estreito entraram, como atrás escrevemos. Assi que por esta causa D. Luís se partiu pera a Índia, leixando recado a D. Rodrigo da causa de sua partida, e que pera o ano se fizesse prestes, pera no tempo da moução virem por ele. E no tempo que ali esteve, quatro portugueses por sua doudice e traição de certos turcos que ali estavam, foram mortos, o que D. Luís dessimulou, por aquele lugar Arquico, onde os mataram, ser do Preste, e mais soube que o caso não era de castigo por a culpa que os mortos nisso teveram. E todavia o fez saber ao capitão que o Preste ali tinha, pera judicialmente, segundo seu costume, castigar o delito, dizendo que, se o lugar não fora do Preste, ele o leixara feito em cinza. Partido daqui D. Luís, passou per a vila Dofar, que é na costa Arábia, além do Cabo Fartaqui; e por ele se despejar sem perigo algum, mandou saquear da pobreza, que os mouros não poderam salvar. E seguindo a via de Ormuz, chegou a tempo (como dissémos) 201v 301v que D. Duarte, seu irmão, tinha assentado as cousas do reino, alguas não conforme ao que ele quisera, por onde se partiu, logo em Agosto, desgostoso dele pera a Índia, com fundamento de ir esperar as naus à ponta de Dio. Mas como o tempo era ainda verde, tornou a arribar, e depois foi com o mesmo D. Duarte pera a Índia, onde acharam, de oito velas que este ano deste reino partiram pera a Índia, duas somente pera trazer carga de especearia, capitães Heitor da Silveira, filho de Francisco da Silveira, Coudel-mor deste reino, e António de Abreu, filho de João Fernandes do Arco, da Ilha da Madeira, que partiram de Lisboa a 395 três de Maio. E D. António de Almeida, filho do Conde de Abrantes, D. Lopo de Almeida, e Pero da Fonseca, filho de Gonçalo da Fonseca, e Diogo da Silveira, filho de Martim da Silveira, invernaram em Moçambique, partindo primeiro, e Aires da Cunha; outra nau se perdeu através de Moçambique, e salvou-se a gente. Manuel de Macedo, que ia em um galeão pera andar na Índia, passou, e assi passou a Ormuz em um navio Simão Sodré, e foi lá tomar D. Duarte, primeiro que partisse. Estas são as fortunas do mar, que uns se perdem, outros invernam, partindo primeiro, e os derradeiros chegam ao lugar que vão - cousa mui regular neste caminho da Índia em as naus que partem em um dia, quanto mais em diversos tempos. E já aconteceu estarem duas naus neste porto de Lisboa pera partir pera Frandes, e por ua delas não poder sair na maré da outra, nunca mais lhe fez tempo pera partir, e tornou de Frandes primeiro que ela partisse. Porque as cousas do mar são as mais incertas que os homens podem esperar nesta vida, por não estarem na sua mão; e de alguns confiarem nele mais do que deviam, chegaram a estado de muita pobreza, porque às vezes pescam

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com anzolo de ouro, que Salamão defende.

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201v 301v 395 Capítulo X. Como as terras firmes de Goa, que Rui de Melo tomou, sendo capitão de Goa, os mouros as vieram conquistar em tempo de Francisco Pereira Pestana, capitão de Goa; e alguas pelejas que foram sobre elas, e por derradeiro se leixaram ao Hidalcão, cujas eram dante, por causa da paz que tínhamos com ele. Atrás escrevemos que Rui de Melo, capitão de Goa, teve modo como tomou as terras firmes dela, em tempo que Diogo Lopes de Sequeira era no Estreito do Mar Roxo; agora escrevemos o contrairo: como os mouros as cobraram de nós, sendo capitão de Goa Francisco Pereira Pestana. Tanto poder tem conjunção das cousas! Porque, no tempo de Rui de Melo, andava o Hidalcão ocupado na guerra que tinha com el-Rei de Narsinga, 202 302 e neste que as tornou a tomar, estava ocioso, 396 e porém em todolos tempos sempre as pessuía com a lança na mão; porque o gentio, cujas elas foram, como viam tempo, desciam da serra arrecadar dos gançares o rendimento delas, e de todos eram cobiçadas, por renderem mais de cem mil pardaus. E a força que nela tínhamos em tempo que estavam por nossas, era somente com favor da cidade Goa, e tam pouca gente como abaixo veremos. E pera se esta posse milhor entender, posto que quando falámos da fundação de Goa, algua notícia demos disso, aqui convém tratar das tanadarias, pera se milhor entender o que dissémos. Todas aquelas terras firmes de Goa, fora da ilha em que ela está situada, pagavam ao senhor dela certo rendimento, segundo se com ele concertaram per modo de contrato, e isto antigamente (como atrás escrevemos). E pera se saber o que cada um devia pagar, partiram estas terras em comarcas, em cada ua das quais fizeram ua cabeça, onde o rendimento de toda a comarca se recolhia, a qual cabeça chamavam tanadaria, como em Espanha chamamos almoxarifado, e sobre todas havia ua onde as outras acudiam, ao qual direito ou tributo eles chamavam cociverado. E porque (como dissémos) o Hidalcão por causa do gentio, cujas elas foram, sempre um capitão seu andava no campo com gente de cavalo e de pé, defendendo não virem a elas, e tratarem mal os gançares, que haviam de pagar aquele tributo, a este modo também nós, depois que as Rui de Melo tomou, as sostínhamos. Das quais havia um capitão, que andava no campo, a que por razão delas chamavam tanadar-mor, que andava de uas em outras, sabendo se havia alguns levantamentos e favorecendo a terra, porque a gente não padecesse algua força. Quem neste tempo servia este cargo era Fernão Rodrigues Barba, ao qual encarregou nisso Francisco Pereira Pestana, capitão de Goa, por serem ambos parentes. E era tesoureiro destas tanadarias João Lobato e escrivão Álvaro Barradas, dous cavaleiros da Casa del-Rei, e na tanadaria de Pondá, que tem ua fortaleza, estava por tanadar António Raposo, e na de Mardor e em Cocorá Rui de Morais, e na de Margão, que eram as principais cabeças, as quais Fernão Rodrigues Barba andava correndo; e porém o mais do tempo estava em Pondá, e trazia consigo até vinte cinco de cavalo, e de pé setenta, a fora seiscentos piães da terra, canaris, de que eram capitães dous gentios da terra, homens conhecidos por fiéis a nós e cavaleiros de sua pessoa: a um chamavam Raulu Branco, e ao outro Malá Naique. Estando as tanadarias neste estado, e correndo o rendimento por nós do tempo de Rui de Melo, entrou um capitão gentio, chamado Temerseá, que era del-Rei de Bisnagá, com até cem homens de cavalo e quatro mil

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397 de pé, per aquela parte donde estava a fortaleza Pondá. António Raposo, porque a este tempo Fernão Rodrigues Barba andava apartado dele, 202v 302v mandou-lhe logo recado da entrada daquele gentio, e não tardou que se veo ver com este capitão. O qual gentio tinha tomado um português, a que chamavam Francisco Fernandes, que andava à caça de veados com ua espingarda; e tendo-o atado ao pé de ua árvore pera o assetear, deram-lhe nova que vinha a nossa gente, e foi tamanho o medo que, leixando de torvação a Francisco Fernandes, escapou, e depois, por razão daquele caso, chamam-lhe por apelido Temerseá, que era o nome do capitão gentio. O qual, posto que sabia ter gente pera pelejar com outra tanta da nossa, e ainda com vantage, todavia temeu Fernão Rodrigues, e recolheu-se a um passo entre uas penedias, como quem se queria segurar. A este tempo era ido João Lobato e Álvaro Barradas a Goa buscar dinheiro pera fazer pagamento à gente que se devia seu soldo; e quis Deus que chegassem já per uas encobertas, por os não tomarem estes gentios, ante que dessem batalha. Com a chegada dos quais, não somente com suas pessoas ajudaram muito, como cavaleiros que eram, mas ainda deram ânimo por levar a paga que toda a gente estava esperando. Posto Fernão Rodrigues em prática com eles, assentou de dar no capitão; e porém não com a gente de cavalo, que seriam até vinte, por o lugar onde estavam ser fragoso, senão lançou-lhe diante os dous capitães gentios. E como os rompeu esta gente de pé, porque eles mesmos se resolviam mal em sua defensão, por o lugar ser estreito, desceram abaixo onde pagaram a vinda, porque os trataram de maneira os nossos, que se poseram em fugida, e porém à custa do seu sangue, ficando Fernão Rodrigues, com o seu cavalo decepado, a pé, mas em pagamento dele houve o do capitão Temerseá. Finalmente, os nossos ficaram senhores do campo, e Fernão Rodrigues com esta vitória se veo a Goa, trazendo perto de duzentas almas cativas. E a causa de sua vinda foi porque chegou a este tempo Fernão Anes de Soutomaior, a que o Governador D. Duarte mandava por tanadar-mor. E passados dez ou doze dias, foi logo visitado per outro capitão del-Rei de Bisnagá, chamado Caro Ponaique, sobrinho del-Rei de Garsopa, com título que a herança daquelas terras lhe pertenciam, e trazia três mil homens de pé e duzentos de cavalo, em que entravam vinte acobertados. O qual começou fazer algum dano nas terras que ainda estavam por nós, que era Pondá e as a ela vezinhas; ao que Francisco Pereira acudiu, indo-se pôr no passo Agacim, e dali mandou Álvaro Barradas e Duarte Dinis, de Carvoeiros, com até cinquenta 398 homens de pé e dous de cavalo, quási por descobridores da terra, por não ter certa nova de quanta gente era; e sendo ela muita, saltou tamanho temor nela, parecendo-lhe que os nossos os iam já ferindo, que, sem os ver, os nossos se tornaram pera Goa, como souberam que fugiam. Passada esta afronta, dai a um mês mandou o Hidalcão um capitão com quatrocentos de cavalo e cinco 203 303 mil de pé, no qual tempo acertou Fernão Anes andar naquela parte do Sul, onde chamam Salsete, cujas tanadarias são mais vezinhas ao mar, e este capitão entrara pela parte de Pondá. E como soube que Fernão Anes andava naquelas partes, confiado na muita gente que trazia, seus passos vagarosos, foi atrevessando as terras de Antruz e recolhendo dos gançares quási per força o rendimento do primeiro pagamento daquele ano. E achando em ua daquelas tanadarias António Pinto, um dos tanadares pequenos, o matou, e a cinco portugueses que com ele estavam. E di se foi contra Caçatorá de que era tanadar Rui de Morais, ao qual mataram cinco ou seis piães da terra; e vindo-se ele recolhendo pera Mardor, onde estava Fernão Anes de Soutomaior, acertaram de estar Duarte Dinis e Pero Gomes, dous cavaleiros, e a aldea Vernão, que o ajudaram a salvar, até chegarem todos em salvo onde estava Soutomaior. O qual, pola nova que lhe estes deram da muita gente que vinha, por não ter consigo mais

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que vinte cinco de cavalo, e até setecentos piães do gentio, em que entravam dos nossos cinquenta, quis ante usar aqui de ofício de capitão que de cavaleiro que ele era. Porque o gentio se pôs logo dali em salvo, com que lhe conveo sofrer o cerco que lhe este capitão pôs, onde já Fernão Anes pola gente da terra tinha sabido do que este mouro leixava feito. E como era cavaleiro, costumado aos repiques dos mouros de África, saiu esperar a estes com até trinta de cavalo, e quando se achou com tam pouca gente e que os de pé, principalmente os canaris, eram acolhidos, temendo a multidão dos imigos, deu vista de si, e em voltas foi pelejando com eles, até se recolher no templo de Mardor, o qual é feito a modo de ua fortaleza, e ali o teveram os mouros cercado dous dias, até que Francisco Pereira, capitão da cidade, sabida esta nova, a grã pressa mandou António Correa com fustas per o rio de Goa-a-Velha em socorro. Com o qual foi Malu, um gentio, que era mocadão dos marinheiros das fustas de António Correa, o qual saiu também em terra com ele. E como homem da guerra, levou ua bandeira de cristãos das fustas e três ou quatro câmaras de berço carregadas de pólvora; e tanto que saiu do rio, indo diante de António Correa, por saber bem a terra, chegando a ua assomada donde pôde ser visto dos imigos, levantou sua bandeira e tirou com as câmaras. Os que tinham cercado Soutomaior, tanto que lhe foi dado esta mostra, 399 entenderam que era socorro; e receando que levavam artelharia, que eles muito temem, leixaram Mardor e foram-se mais abaixo, como gente vitoriosa e que tinha o campo por seu. Fernão Anes, por se eles não irem gloriando que o tiveram cercado, levando a gente que António Correa trazia, seguindo sua trilha, guiado por a gente da terra, que o encaminhava, foi-os achar junto de um rio contra o mar, a que os nossos chamam do Sul, que é um estreito que vai do mar e entra pela terra; os quais, 203v 303v como gente descansada, jaziam em folga, estendidos pela erva verde, com que tomavam tanto campo, que, quando de ua assomada os nossos os viram jazer, houveram ser dobrada gente da que partira de Mardor, em tanto que os mais dos nossos eram em parecer que não convinha pelejar com eles. Mas acudiu-lhe Deus, que veo João Lobato com até sessenta besteiros e espingardeiros, e cinco de cavalo, com a chegada do qual ficaram todos tam contentes, e assi os esforçou Fernão Anes, que determinaram de dar neles, como de feito deram. A qual ousadia e ânimo Deus ajudou, porque, segundo os mouros eram muitos e os nossos somente trinta de cavalo, se ele não intreviera com a sua ajuda, todos ali pereceram. Porque, no primeiro rompimento da batalha, os canaris e toda aquela gente cível da Índia, como não tem por injúria fugir, se poseram em salvo, tornando porém depois ao despojo, por este ser seu costume. Finalmente, nesta batalha logo no primeiro rompimento morreram dos nossos cinco de cavalo, de que os principais foi Paio Correa, alcaide-mor de Pondá; e Rui de Morais foi morrer a Goa; e outros três. E feridos foram o capitão Fernão Anes de Soutomaior, Duarte Dinis; e da gente de pé foram quatro mortos e muitos feridos; e dos mouros logo ficaram mais de vinte, afora outros que foram morrer entre os seus. E quem naquela peleja se mostrou tomar grande parte do vencimento sobre si foi João Lobato, no que fez de sua pessoa, mas todos ficaram tais, que foi necessário virem-se curar a Goa. E assi pouco e pouco se foi dessimulando com estas terras firmes, que por não quebrar as pazes que tinham com o Hidalcão, como ele entendeu nisso, as leixaram.

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203v 303v 400 Capítulo XI. Das cousas, que em diversos tempos os nossos poderam saber, por mandado del-Rei, do corpo do Bem-aventurado S. Tomé, que pregou e converteu a gente do Malabar e terra de Choromandel, onde estava sua sepultura. Hua das cousas que el-Rei D. Manuel muito encomendava aos Governadores na Índia, era que mui particularmente soubessem o que tinha aquela Cristandade do Oriente da vida do Apóstolo S. Tomé, e se era verdade que o seu corpo jazia naquelas partes; e outro tanto mandou el-Rei D. João, seu filho, depois que reinou. E porque atrás prometemos de dar razão das cousas que esta Cristandade tinha deste Apóstolo santo Padroeiro nosso naquelas partes da Índia, como Santiago é da Cristandade de Espanha, aqui o queremos fazer, por D. Duarte de Meneses ser o primeiro que nisso fez a deligência que veremos. Posto que Nuno da Cunha o ano de quinhentos e trinta e três, sendo Governador da Índia, por comprir o mandado del-Rei, mandou tirar ua inquirição em Paleacate 204 304 per Miguel Ferreira, que lá estava por capitão. A qual ele tirou per uns apontamentos que lhe el-Rei de cá mandou, em que ia escrita a vida de S. Tomé, segundo a tem a Igreja Romana, pera ver se a Cristandade daquelas partes tinha algua conveniência com ela. E primeiro que venhamos ao que esta gente disto tem, diremos o que os nossos, ante de D. Duarte mandar a isso, tinham per si sabido, e o mais que per ele e Nuno da Cunha se soube, e des i diremos o que os desta Cristandade contam de alguas cousas do Apóstolo. A primeira notícia que os nossos teveram de sua sepultura, foi o ano de quinhentos e dezassete per Diogo Fernandes e Bastião Fernandes, com outros portugueses que vinham de Malaca, e com eles um arménio per nome Coje Escander e outros seus companheiros, também arménios. O qual arménio, como já estevera na cidade de Paleacate, que é na província Choromandel do reino Bisnagá, na volta do Cabo Comori, indo pera Bengala, e tinha notícia do lugar onde deziam estar o corpo de S. Tomé, chegando ao porto Paleacate com tempo contrairo a sua viagem e saídos em terra, disse este arménio aos nossos: se queriam ir ao lugar onde deziam jazer o corpo de S. Tomé, que os levaria lá, com que eles muito folgaram. Chegados ao lugar onde os levou o arménio, acharam um grande sítio que ocupava muito espaço de terra, tudo edefícios, a maior parte deles 401 arruinados, e entre eles alguns pirames, torres, colunas e outras peças também lavradas de folhagem, figuras humanas, alimárias e aves, tudo tam sutil e perfeito, que de prata não se podia fazer melhor obra, sendo a maior parte de pedra negra e mui rija pera lavrar, e oura branca, parda e de outras cores, em que mostrava a sumptuosidade da povoação que ali fora. Em meio das quais antigualhas estava um templo também mui mal tratado, somente tinha ua pequena capela em pé, que era de abóbada de pedra e cal e tijolo, o qual tinha a feição das nossas na situação, com esta capela pera o Oriente, e sobre ela um curuchéu. E assi per ele como em muitas partes, per dentro e per fora do templo, tudo eram cruzes, da feição que são as dos comendadores da Ordem de Avis, em Portugal. E ali acharam um mouro, homem de sessenta anos, que havia poucos dias que cegara e (segundo contou) viera ali encomendar-se ao Apóstolo e cobrara a vista que tinha perdida; e que seu pai e seu avô, sendo gentios, tinham cuidado de alumiar aquela casa, e ele havia dez anos que se fizera mouro, dando a entender que vinha da linhagem dos cristãos que em outro tempo ali houvera. E perguntando-lhe os nossos que notícia tinha do Santo e daquela casa, disse que a casa deziam ser

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feita per aquele santo homem que ali pregara a Fé dos cristãos, e sua sepultura era fama estar ali naquela que sempre estevera em pé, por reverência sua. E o mais do corpo da igreja fora destruído, e também deziam estarem ali sepultados dous discípulos do Santo, e o Rei que ele convertera à Fé de Cristo; e disto não sabia mais. Partidos estes nossos pera a Índia, passados dous anos, vieram ali ter António Lobo 204v 304v Falcão, João Falcão e João Moreno, que também andaram vendo aquela igreja, e souberam que havia pouco tempo que fora ali enterrado um homem fidalgo, de nação húngaro, chamado Jorge, que partira de sua terra com desejo de vir a esta casa do Apóstolo. E no ano de quinhentos e vinte dous, D. Duarte de Meneses, per estas notícias precedentes e pelo mandado del-Rei, que lho encomendava, mandou Manuel de Frias por capitão daquela costa de Choromandel, e com ele um clérigo per nome Álvaro Penteado, pera concertarem esta casa e a ordenar pera nela celebrar o culto devino. E como o demónio nas cousas do louvor de Deus sempre dá desvios pera se não porem em obra, sobre o fazer dela se vieram a desconcertar, que Álvaro Penteado se veo pera este reino; e todavia daquela vez Manuel de Frias leixou na casa um Pero Fernandes, clérigo, homem de idade e boa vida, pera capelão da casa, até que D. Duarte provesse. O qual no ano seguinte tornou a mandar o mesmo Manuel de Frias, e com ele um sacerdote chamado António Gil pera provedor da obra, e Vicente Fernandes, pedreiro, e dinheiro necessário pera reformar o que estava caído da capela. E des i fariam o mais como fosse favorecida da gente da terra, porque, segundo o gentio é cioso, vendo começar maior obra, parecer-lhe-ia que faziam algua fortaleza. E começando a cavar em um cunhal da 402 capela, onde o coruchéu se afirmava pera fazer um alicece, e reformar ua parede dele, por estar mui perigosa pera cair, aos cinco palmos foram dar com ua sepultura, e na pedra que era coberta dela, na face de baixo, acharam uas letras na língua badegá, que é a da terra. As quais deziam que, no tempo que o Apóstolo fundara aquela igreja, o rei da cidade Meliapor lhe dera os dereitos das mercadorias que a ela viessem por mar, que era de dez um, encomendando a seus sucessores que lhos não tirassem. E indo mais abaixo, deram com a ossada de um homem, e per a fama que havia na gente da terra, aquele era o corpo do rei que o Apóstolo converteu à Fé de Cristo. Manuel de Frias, porque lhe convinha tornar-se ao porto de Paleacate, que era dali sete léguas, foi-se, e ficou o Padre António Gil com o outro Pero Fernandes, que era capelão, fazendo na obra. E porque convinha ir mais adiante com o alicece, foram dar com outra capelinha, onde era fama entre a gente da terra que estava o corpo do Apóstolo; pera abrir a qual cova, por não ser per mão de gentios, que traziam a cavar, chamou António Gil a Diogo Fernandes, que foi o primeiro que ali veo, e assi um Brás Dias, os quais se fizeram ali moradores. Mas eles não quiseram poer mão na obra, dizendo que não se achavam dinos, até se confessarem e tomarem a comunhão, como fizeram. E despois com muita devação foram cavando em ua cova de quatro paredes de tijolo e cal, mui bem guarnecidas, que teria de altura até quinze palmos, e ia até baixo em lastros de três em três palmos ua de terra solta e outra de tijolo, e o derradeiro foi de argamassa, que à força de picão não podiam romper. Debaixo da qual deram em duas pedras grandes, que estavam sobre outras à maneira de tumba, tudo 205 305 cheo de area e cal e ossada de corpo de homem, e o ferro de ua lança, e um pequeno de pau metido no alvado dele, e mais um pedaço de pau com um conto de ferro, que parecia servir de bordão. E aos pés deste corpo estava um vaso de barro, que levaria um alqueire, todo cheo de terra, sem mais outra cousa. E per opinião comum da gente e ferro da lança, pareceu ser aquele corpo do Apóstolo; porque, além desta ossada ser alva, o que não era a do rei e outra que depois acharam de um discípulo seu, que tinham cor de terra, pelo que a gente contava de como ele fora morto com ua

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lança, creram ser aquele o corpo de S. Tomé. António Gil, achado o que tanto desejava, mandou logo chamar Manuel de Frias, noteficando-lhe que não haviam de bolir mais com aquela ossada, até ele não vir, pedindo-lhe que trouxesse algum cofre onde a recolhesse, o que ele fez com muita deligência, trazendo dous cofres um da China, guarnecido de prata, em que foi metida a ossada do Apóstolo, e no outro as duas do seu discípulo e a do rei. E feita ua solene precissão de todolos nossos, 403 que ali vieram com Manuel de Frias, foram postos no altar, até se ordenar algum lugar onde os encerrassem, e a chave dos cofres levou Manuel de Frias, que se partiu pera a Índia com esta nova a D. Duarte, a quem as entregou. Passados dous anos, foi deste reino o Padre Álvaro Penteado com provisão pera ter cargo daquela casa, o qual meteu esta ossada em um caixão de pau, e depois encerrou dentro no altar em parte que ninguém sabia parte deles, senão ele e um Rodrigo Álvares, que depois, em tempo de Nuno da Cunha, quando mandou tirar inquirição per Miguel Ferreira (como dissémos), deu testemunho do que disto sabia, sendo já cá no reino Álvaro Penteado. No qual tempo ali estava um francês e alguns cristãos da terra, e per eles e per gentios e mouros antigos vieram a testemunhar o que tinham ouvido a homens mui antigos das cousas de S. Tomé, dizendo, que haveria mais de mil e quinhentos anos que ali viera ter aquele Santo, estando aquela cidade arruinada em pé em tanta prosperidade, que por sua fermosura lhe chamavam Meliapor, que é nome que tem os pavões, por ser a mais fermosa das aves. Porque, além da sua comarca ser mui fértil e abastada de todas as cousas, por razão do comércio concorriam ali todas nações, assi do Oriente como do Ponente, cada ua das quais nações, por ser mui frequentada deles, tinham muitos templos de sua adoração. E dizem haver nela três mil e trezentos templos, de que ainda se mostravam suas ruínas lavradas como se viam, de obra tam sutil, que de prata se não podia mais fazer. A qual cidade naquele tempo estava do mar seis graus, medida de caminho naquelas partes, que farão doze léguas das nossas, e o mar per tanto tempo comeu até estar daquela casa um tiro de pedra. E que este Santo dissera que, quando o mar chegasse a sua casa, gentes da parte do Ponente, que professariam a Fé do Deus que ele pregava, veriam ali honrar o mesmo Deus em seus sacrifícios. O qual Santo convertera o rei daquela cidade a honrar este seu Deus, e se fizera cristão com toda sua família, 205v 305v e isto fora por duas grandes cousas, que fez de muita admiração: A primeira foi que acertou de vir à costa do mar um grandíssimo pau; e desejando el-Rei de o tirar em terra pera dele fazer ua pouca de obra em uns seus paços, ajuntou muita gente, até vir grande número de elefantes, e nunca o pôde mover do lugar onde estava. E vendo o Santo o que era passado, pediu ao Rei que lho desse, e permetisse que no lugar onde o ele levasse, fizesse com ele um templo pera o Deus que ele pregava, o que lhe el-Rei concedeu em modo de zombaria, por haver isto por impossível; mas o Santo, desatado um cordão com que se cingia, o atou em um esgalho do pau, e, fazendo o sinal da Cruz, o levou a rojões até aquele lugar onde fez a casa. E a segunda cousa que confirmou de todo sua santidade, foi que um brâmane, que era sacerdote maior del-Rei, de enveja das obras que o Santo fazia, matou um próprio filho seu, e foi fazer queixume a el-Rei que Tomé lho matara, por lhe querer grande mal, e per este modo lhe ordenaria que o matassem. Chamado o Santo diante del-Rei, e indinando-se contra ele, como 404 se fora culpado nisso, veo o caso a tanto, que disse o Apóstolo que trouxessem o moço morto, e que ele deria quem o matara; e assi se fez. O qual, perguntado que da parte de Deus, que ele pregava, dissesse quem o matara, respondeu que seu pai com ódio que tinha a ele, Apóstolo de Cristo, Deus verdadeiro. A qual cousa fez tam grande admiração, que el-Rei se converteu, e com ele se bautizou muita gente; e o brâmane que isto fez, foi per el-Rei dali degradado. Nesta inquirição que Nuno da Cunha mandou tirar particularmente, também testemunhou um bispo arménio, o qual jurou per suas ordens que havia vinte anos que era vindo àquela terra, e

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que andava visitando per dentro da terra firme algua gente da cristã do Apóstolo, a qual habitava nas terras abaixo de Coulão. E o que sabia do Santo Apóstolo, segundo o tinham per escritura, era que, quando os Apóstolos se partiram pelo Mundo a pregar o Evangelho, juntamente partiram três: S. Tomé, S. Bartolomeu e S. Judas Tadeu - os quais vieram ter a Babilónia, e ali se apartaram: S. Judas pera ua terra contra o Norte, que chamava Cabeçada Despone, onde converteu muita gente, e fez igrejas, que tudo era em poder de mouros; e S. Bartolomeu fora contra a Pérsia, onde também fizera outro tanto, e jazia sepultado em um lugar chamado Taron, em um mosteiro de frades arménios, que é através da cidade Tabris; e que o Apóstolo S. Tomé embarcara na cidade Baçorá, situada junto do rio Eufrates, e navegara pelo mar párseo, fora à ilha Socotorá, onde pregara o Evangelho; e feitos muitos cristãos, daí foi à Índia, àquela cidade Meliapor, que naquele tempo era das mais notáveis da Índia. E feita ali muita cristandade, embarcara pera a China em navios de chins, e foi a ua cidade per nome Cambalia, onde convertera muita gente e fez templos pera honrar a Cristo, e se tornou a esta mesma cidade Meliapor, onde fizera aqueles dous celebrados milagres, 206 306 que a gente da terra muito celebrava - do pau e vida que dera ao filho do brâmane e per derradeiro padeceu martírio per esta maneira: Estando um dia pregando ao povo junto de um tanque, que ainda ali estava, era tam avorrecido dos brâmanes da terra pelo crédito que perdiam em seus errores, que ordenaram um arruído per alguns de sua opinião, na revolta do qual o Santo foi apedrejado. E, jazendo no chão quási morto de pedradas, per derradeiro veo um daqueles brâmanes, e com ua lança o atrevessou, com que o Apóstolo ficou morto de todo, e foi logo enterrado per seus discípulos naquela casa. Posto que toda a Cristandade da Índia tinha que o Apóstolo morreu aqui, e que ele fez esta casa, ao tempo que nós entrámos na Índia, mais gente desta cristã vevia no Malabar, na terra de Cranganor e onde chamam Diamper, vezinhas a Cochi, que em Paleacate, ainda que lá estava o corpo de S. Tomé. E a causa era por serem os cristãos de lá lançados per guerra ao tempo que a cidade Meliapor se destruíu; e nestas terras de Cranganor e Diamper, eram 405 mais favorecidos por os muitos cristãos que nelas havia, ante de serem de lá degredados, donde, quási como dito comum, chamam a este senhor de Diamper Reis dos cristãos, e a el-Rei de Cochi dos judeus, e ao de Calecute dos mouros, por a muita gente destas três nações que há em cada um destes reinos. E a causa de haver muita cristandade em Cranganor e Diamper, e per todas aquelas terras do Malabar, vezinhas a Coulão, é por nelas haver igrejas feitas no tempo do Apóstolo, per esta maneira: A este reino veo um destes cristãos aprender latim, ao qual el-Rei D. João mandou ensinar as Letras Sagradas pera poder doutrinar a gente per meio da língua malabar que tinha. E praticando muitas vezes com ele, pera nos informar das cousas do Santo Apóstolo pera este fim de escrever, ele nos disse que em Cranganor, que será de Cochi espaço de cinco léguas, estava ua casa feita e outra em Coulão, onde está a nossa feitoria, feitas per dous discípulos do Apóstolo, as quais entre eles eram tidas em mais veneração que as outras que estão per dentro do sertão, as quais fizeram os cristãos da própria terra, depois que multiplicaram em grande número. Os quais discípulos o Apóstolo leixou ali pera este efeito, indo de passagem pera Choromandel, e ambos jazem nelas enterrados; o de Cranganor, debaixo de ua torre, que os nossos fizeram na fortaleza que ora ali está. E porque o Patriarca de Arménia de tempo antigo sempre mandava visitar esta Cristandade do Malabar, por o número grande que aqui havia dela, tinham mais notícia das cousas de Cristo que os outros. E porém havia tanta avarícia nestes bispos arménios, que vinham a esta visitação mais por cobiça que por servir a Deus; ca até por fazer a gente cristã levavam dinheiro. E por a gente ser pobre, poucos tinham água de bautismo, e não queriam ordenar algum pera sacerdote sem grande cópia dele, e ainda mui poucos habilitavam pera rezar as Horas na igreja, o qual rezar era na língua caldea. 206v

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306v E ante que nós entrássemos na Índia poucos anos, o Patriarca arménio mandara quatro bispos pera se repartirem pela terra por a Cristandade ser muita, de que logo em chegando faleceram dous, os quais repartiram a terra em duas comarcas: ao mais moço coube a Coulão per abaixo contra o Cabo Comori, e o mais velho resedia em Cranganor. E este, por ser homem virtuoso, tirou aquela tirania fazer cristãos por dinheiro. E Nuno da Cunha, sendo Governador, o favoreceu sempre por a virtude que achava nele, porque também era ele mui inclinado acerca da ordem do sacerdócio e cerimónias da Igreja do nosso costume romano. Contou-nos mais este cristão que, na casa de Coulão, que fora feita per outro discípulo do Apóstolo S. Tomé, estava ua sepultura da Sibila que chamavam Índica, e que esta igreja fora num seu oratório. E que por amoestação sua denunciando o nascimento de Cristo Jesu, um rei da Ilha Ceilão, chamado Pirimal, fora em ua nau à costa de Mascate a se ajuntar com dous reis que foram adorar o Senhor de Belém, e ele fora o terceiro; o qual, a rogo dela, Sibila, lhe trouxera a imagem de Nossa Senhora pintada em um retávalo, 406 que estava metido em sua própria sepultura. Da viagem dos quais reis e onde habitavam os dous em cuja companhia ele foi, escrevemos em nossa Geografia, quando tratamos das cidades Nazua e Bala que estão detrás das costas da serrania que correm per a costa de Mascate, a qual província os mouros chamam Iaman. Isto baste quanto à notícia das cousas do Bem-aventurado Apóstolo Santo Tomé, patrão nosso nas partes da Índia; mas quanto à Cristandade da terra, é gente a maior onzeneira e de mais falsidades em pesos e medidas e em todo engano de comprar e vender de todo o Malabar; e nisto não dão a vantage aos índios dele. Parece que o demónio na terra mais fraca de seu património, nestas trabalha por estercar com suas maldades e malícias, pera que, quando produzirem fructo, lhe respondam a mil por um. Depois pelo tempo todas estas casas de S. Tomé, principalmente no que Nuno da Cunha governou, foram crescendo em mais polícia cristã, e (como já dissémos em outra parte) os moradores portugueses, que foram viver a Paleacate, por memória deste Bem-aventurado Apóstolo fizeram ua grande povoação com casas de pedra e cal, ao modo da Espanha, a que chamaram S. Tomé, com que fica ua nobre cidade, colónia e habitação de muitos portugueses. Quisemos escrever todas estas cousas, posto que muitas se fizeram depois do tempo do Governador D. Duarte de Meneses, porque, como ele foi o primeiro autor que abriu os fundamentos deste santo templo do Apóstolo, foi cousa justa no seu tempo recontarmos o que dele e de suas obras temos sabido, segundo anda na memória daquela bárbara gente.

LIVRO VIII 207 207 407 Capítulo Primeiro. Em que se descreve parte da Ilha Samatra e os reinos que tinha por vezinhos nossa fortaleza Pacém, onde D. André Hanriques estava por capitão; e as diferenças que entre os reis bárbaros deles houve, donde procedeu deixar D. André a fortaleza. O descobrimento, conquista e comércio deste Oriente, de que escrevemos, a que chamamos Ásia, assi estão três cousas travadas entre si, e nos havemos na obra e uso delas, que quási as fazemos correlativas e respondentes uas das outras de maneira que per este modo há sessenta anos que as conservamos, sendo tam remotas em lugar, como são as fortalezas que naquele Oriente temos. Porque, começando da fortaleza de Sofala, que é a primeira quanto a nós, e mais ocidental, e acabando na de Maluco, que está ao Oriente (de doze que temos naquelas partes ao tempo que compunha esta escritura), haverá nesta distância, segundo a navegação dos mareantes, pouco mais ou menos mil e quatrocentas léguas, afora outras fortalezas que entre estes dous estremos leixamos, como a história o relata, por casos e cousas como veremos nesta de Pacém, de que queremos escrever. E porque tamanha distância de mares que navegamos e fortalezas que pessuímos e sustemos, se em um mesmo tempo que os casos neles aquecidos quiséssemos ajuntar em curso de história, seria este curso 408 de diversos remendos, por se não enxergar este defeito, faremos dous cursos de história, porque assi será melhor retida da memória dos lentes. Da fortaleza de Sofala até a enseada de Bengala será um curso, enfiando todolos feitos desta distância nele; e da Ilha Samatra até fortaleza de Maluco, faremos em outro, ajuntando este oriental ao da Índia, por causa do Governador daquelas partes sempre nela assistir, donde todolos feitos dependem, como de sua cabeça. E como a fortaleza de Pacém, situada na Ilha Samatra, neste ano de quinhentos e vinte e dous estava em pé, e nesta repartição de curso de história é o princípio da parte Oriental, começamos este Oitavo Livro nela, escrevendo o que os nossos passaram, depois de Jorge de Albuquerque a deixar entregue a António de Miranda de Azevedo (como atrás escrevemos), e des i iremos adiante, até o fim do outro estremo. Porém, porque esta fortaleza de Pacém foi a primeira que até hoje temos leixada contra nossa vontade, por os combates que os da terra nos deram, será necessário primeiro, mais particularmente do que temos feito, tratar dos 207v 207v reis e senhores que tinha por vezinhos, e assi as diferenças que entre eles houve, por cujo respeito a nós leixámos, e amizade que tínhamos com todos, se converteu em ódio de um só. O qual ao presente é feito senhor de todos aqueles estados, e tam poderoso com nosso dano, que com suas armadas comete a nossa cidade Malaca, como veremos em seu lugar: tanta mudança tem os estados, que de um servo escravo se faz um rei poderoso, como se este fez à nossa custa. Na parte mais ocidental e marítima da Ilha Samatra estão estes reinos: Daia, Achém, Lambri, Biar, Pedir, Lide, Pirida, Pacém, Bata e Darum, na costa das quais poderá haver pouco mais ou menos cem léguas. E por dentro do sertão vão vezinhar com o gentio da terra, que não somente é bruto e salvage, mas cruel e guerreiro, algum do qual, assi como alifares e bates, comem carne humana; e estoutro povo que habita o marítimo segue a seita de Mahamede. Os principais da qual gente marítima eram párseos, arábios, e mouros do reino Guzarate, da Índia e Bengala, que por causa do comércio vieram àqueles portos. E vista a desposição da terra e sua grossura, e o gentio sem lei e inclinado a receber sua seita, com esta inclinação e avarícia das cousas que lhe os mouros davam e casamentos com as da terra, que é um vínculo com que eles atam o ânimo dos naturais, honrando-lhe as filhas em seu modo de estado, converteram muito gentio, e mais fizeram-se senhores da terra, intitulando-se pelo tempo em diante deste nome rei. Porém, ao tempo que nós

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entrámos na Índia, somente o de Pacém e o de Pedir se intitulavam per este nome soltão, que acerca dos arábios quere dizer rei; os quais, quando Diogo Lopes de Sequeira descobriu Malaca, e depois quando 409 Afonso de Albuquerque a foi tomar, ambos acharam nestes reis o agasalhado e ofertas, que de suas pessoas e estado fizeram, como atrás escrevemos. A mais comum opinião daquelas partes, segundo a relação geral que já fizemos daquela Ilha Samatra, o reino Pedir foi o maior e mais celebrado de todos, em tanto que alguns destes que acima nomeámos, eram seus vassalos, e depois, per vários casos que o tempo traz, se fizeram livres dele. E quando nós tomámos a cidade Malaca, ainda o senhor de Daia e Achém eram escravos deste Rei de Pedir, e regiam por ele, sendo porém já casados com duas sobrinhas suas. E porque não seja estranho nas orelhas de alguém escravos virem a este estado, queremos dar razão do uso daquelas partes, posto que tenhamos grande exemplo nas leis dos romanos, que permitiam que um homem livre, passando de idade de vinte anos, se podia vender, pera participar do preço per que se vendia. E não somente os que se faziam servos per este modo, mas os ganhados per título de guerras ou havidos per qualquer outra lei civil, muitas vezes eram adoptados per filhos e livres per testamento e per outro modo de liberdade, com que depois vieram a grandes dinidades. Assi, naquelas partes da Índia geralmente pai e mãe vendem os filhos, e às vezes é per tam pouco preço, como é ua tanga, que vale da nossa moeda 208 308 três vinténs, um dos quais comprados per este preço de nação Guzarate eu já tive em minha casa, vendido per sua mãe. Outros já em idade de homem, por participar do preço se vendem, muitos dos quais em seu modo são dos nobres da terra; e são os senhores tam gloriosos de ter escravos nobres, que dão per eles muito preço. O qual preço é às vezes tanto, que tem eles que gastar um ano, tratando-se tam honradamente, que, depois de gastado o preço, o mesmo senhor os trata da maneira que o eles faziam, e ainda os casam com parentas e filhas suas, quando eles tem qualidades pera isso, principalmente de fieldade e cavalaria. As quais qualidades achando el-Rei de Pedir nestes dous seus escravos que dissémos, casou com duas sobrinhas, filhas de seu irmão, e a um deu as terras de Daia e a outro as de Achém. Porém tinha este modo com eles: quando havia necessidade de seu serviço, vinham a ele, e, tornados a sua casa, leixavam-lhe seus filhos, de maneira que vinham estes herdar o que seus pais tinham per próprios serviços de sua pessoa, assi na paz como na guerra. E aconteceu que, andando em casa del-Rei dous filhos do senhor de Achém, o maior dos quais havia nome Rajá Abraemo, e o segundo Rajá Lila, os quais tinham bem merecido per serviço o que seu pai tinha, a requerimento dele, por ser já mui velho, el-Rei houve por bem dar aquele estado de Achém ao maior. 410 Posto ele, Rajá Abraemo, em posse dele, quis executar o que trazia no peito havia tempo, que era vingar-se do senhor de Daia, por razão de uas diferenças sobre pontos de honra que tiveram, andando ambos em casa del-Rei de Pedir. E como el-Rei favoreceu mais ao outro que a ele, Rajá Abraemo, ficou-lhe daqui não somente desejo de vingar-se dele, mas ainda ódio contra el-Rei, a qual vingança começou tomar, entrando-lhe pela terra, por serem vezinhos. E peró el-Rei mandou amostar disso a ele, Rajá Abraemo, e mandou alguas ajudas ao outro de Daia, teve ele pouca conta com tudo. A este escândalo que el-Rei lhe teve, sucederam outros havidos por nossa causa, que ele mais sentiu, donde Abraemo descobertamente lhe levantou a obediência. E ainda porque seu pai já mui velho o quis reprender, trazendo-lhe à memória ser escravo del-Rei, do qual tinha recebido tanta honra como ele sabia, e a mais ser seu tio, contra o qual não devia de levantar olhos, ele, Rajá Abraemo, o mandou prender em ferros em ua gaiola, onde morreu; e o escândalo que el-Rei por nossa causa teve dele, foi este: Atrás contámos como naquela parte de Achém se perdeu Gaspar da Costa, irmão de Afonso

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Lopes da Costa, capitão de Malaca, e os que escaparam foram cativos pelas lancharas deste Senhor de Achém, os quais foram resgatados a requerimento del-Rei de Pacém per meio de Nina Cunapão, Xabandar do mesmo Rei de Pacém. Estes cativos quando foram tomados, já Rajá Abraemo tinha passado com el-Rei de Pedir o que acima dissemos; e por ele, Rei, ser muito nosso amigo e desejar per méritos de boas obras ter-nos obrigado pera algum tempo de sua 208v 308v necessidade, mandou pedir estes cativos a Rajá Abraemo, como a um seu escravo, com fundamento de os mandar de presente ao capitão de Malaca; mas ele não lhos quis dar, e os deu a el-Rei de Pacém, como dissemos. A qual cousa el-Rei sentiu em tanta maneira, que, ajuntando a isto a desobediência de fazer guerra a el-Rei de Daia e a prender seu pai por as amoestações que lhe fazia, lhe mandara per mar e terra fazer a guerra. Neste meio tempo sucedeu ir lá ter ua nau nossa com mercadoria, a qual, andando em calmaria, mandou este Abraemo suas lancharas a ela, e a tomaram, matando seis portugueses que nela iam. Depois foi ter Jorge de Brito àquele porto deste Senhor de Achém, onde o mataram pola maneira que atrás escrevemos. Com a qual vitória ele, Rajá Abraemo, ficou tam soberbo e abastado de artelharia e munições de guerra, que não somente se defendia del-Rei, seu Senhor, mas ainda lhe fazia quanto dano podia. Finalmente, tanto o favoreceu a fortuna nesta impresa que tomou, de se querer fazer Rei de todos aqueles estados, que em menos de três anos, per artes de 411 guerra e traições que os próprios naturais cometeram contra seus senhores, os houve a seu poder, até fazer fugir el-Rei de Pedir, seu Senhor, pera a nossa fortaleza de Pacém, estando já nela D. André Hanriques, de que se causou a perdição dela, como veremos neste seguinte capítulo.

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208v 308v 411 Capítulo II. Como D. André Hanriques, por ajudar a el-Rei de Pedir, nosso amigo, que se recolheu à nossa fortaleza, em que ele estava, mandou com ele seu irmão D. Manuel Hanriques, que morreu naquela ida, per ua traição que os mouros tinham ordenado, e o mesmo Rei escapou; e do que passou Domingos de Seixas com uns alevantados portugueses, onde foi preso e cativo. D. André Hanriques, filho de D. Hanrique Hanriques, senhor da vila das Alcáçovas, foi na armada de D. Duarte de Meneses provido por el-Rei D. Manuel desta fortaleza de Pacém, ao qual D. André, tanto que D. Duarte chegou à Índia, enviou a tomar posse dela. A qual António de Miranda de Azevedo lhe entregou a vinte três de Maio do ano de quinhentos e vinte dous, e se foi pera Malaca, até vir o tempo da moução pera se vir à Índia. Tendo já neste tempo que a entregou recebido muitas opressões deste Rajá Abraemo, assi per terra como, com suas lancharas, per mar, de que sempre os nossos houveram vitória, de maneira que, começando este Abraemo a guerra connosco, por respeito do ódio que lhe nós tínhamos por causa do dano que os nossos receberam em seu porto (como atrás escrevemos), depois que os da nossa fortaleza feriram e mataram muita da sua gente, que 209 309 queriam fazer entradas em nosso dano, converteu a guerra em causa de vingança. Posto que tudo isto ele sofrera, senão fora el-Rei de Pedir, seu Senhor, o qual era tanto nosso amigo, que se pôs em não querer casar com ua filha do Rei passado de Pacém, importando-lhe este casamento muito, senão com condição que havia de ser nosso amigo. E pera isto assi ser, mandou um seu embaixador a Malaca, estando nela por capitão Jorge de Brito com outro 412 embaixador do mesmo Rei de Pacém, a fazer estes concertos de pazes, por estar este Rei então em ódio connosco, como atrás escrevemos. E quando Abraemo viu que se acolhia ele a nós, e que havia muito tempo que era nosso amigo e nos tinha obrigado com boas obras, pareceu-lhe que, com nossa ajuda, vindo outra armada como a de Jorge de Albuquerque, o poderia restituir no seu reino, e ele, Rajá Abraemo, corria risco de perder o estado e vida, como tinha por exemplo no caso de Soltão Geinal, Rei de Pacém, que Jorge de Albuquerque matou. Pera evitar este caso, como era homem manhoso e de grandes artefícios, e que as mais das vitórias que tinha havido foram per astúcias de traições e por corromper com dinheiro, assi aos principais capitães de Daia como del-Rei de Pedir, seu Senhor, ordenou com estes mesmos capitães e principais da cidade Pedir, onde ele estava, que escrevessem a el-Rei, que estava em a cidade Pacém acolhido à nossa sombra. A forma da qual carta foi desculparem-se de acolherem Rajá Abraemo dentro na cidade, dando alguas fracas rezões, pedindo-lhe que, com ajuda dos portugueses, se viesse logo a Pedir, porquanto eles lhe entregariam a cidade. Pera efeito do qual caso eles o tinham já lançado dela, e nenhua outra cousa esperavam senão sua ajuda; portanto que se apressasse ante que recebessem mais dano, porquanto os tinha cercado. O qual lançamento eles, ante desta carta três ou quatro dias, tinham feito, simulado este levantamento, havendo que tinham feito grande erro contra seu Rei, e sofriam um seu escravo, que os terenizava. El-Rei de Pedir, ao tempo que se acolheu pera Pacém por se abrigar a nós, levou consigo o sobrinho, Senhor de Daia, que também era per este tirano despojado do seu, e teriam consigo até

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duzentos homens, que os quiseram seguir. E vendo el-Rei a carta dos seus, e sabendo como Abraemo era lançado da cidade, falou a D. André, pedindo-lhe que, por não perder tam boa conjunção, o quisesse ajudar per mar com algua gente, e ele iria com a sua e outra que lhe também dava de ajuda el-Rei de Pacém. D. André, movido dos rogos deste Rei, per as cousas precedentes de nossa amizade, e que nosso costume era favorecer e ajudar nossos amigos, e que aquela fortaleza de Pacém por causa de ajudar um moço órfão contra um tirano se fizera, pareceu-lhe cousa justa e conveniente dar-lhe esta ajuda que pedia. Quanto mais que já convinha tanto a nós como a el-Rei de Pedir atalhar ao poder daquele tirano, o qual com dano e 209v 309v morte dos nossos se tinha feito poderoso, e que aquela conjunção era a milhor que podia ser pera totalmente o destruir. Finalmente, ele, D. André, mandou per mar em ajuda del-Rei de Pedir seu irmão D. Manuel em ua fusta e alguas lancharas da terra 413 com até oitenta portugueses e duzentos mouros, entre gente de armas e remadores. E a ordenança que el-Rei deu foi que D. Manuel fosse per mar de vagar, tomando todolos portos por dali até Pedir, que será obra de dez léguas, e ele iria sempre ao longo da costa, donde dariam vista um ao outro nos portos do mar. Seguindo el-Rei esta ordem com até mil homens de pé e quinze elefantes de peleja, porque lá não há cavalos, acertou de vir um tempo que os tirou desta ordenança, com que a fusta foi ter a ua parte e as lancharas de sua companhia foram ter ao porto de Pedir, havendo dous dias que era chegado. Porém, depois que todos foram juntos e el-Rei recebido dos seus com grande festa, assentaram em conselho que, ao seguinte dia, ante menhã, assi os seus, como os nossos que estavam no mar, saíssem a dar no arraial de Abraemo. Parece que entre tantos maus houve algum bom e fiel, que aquela ante-menhã se foi a el-Rei e lhe disse: - Senhor, ponde-vos em salvo, porque nesta saída vos hão-de prender e entregar a este vosso escravo; ca tem assentado de o fazer quem vos mandou chamar, e o caso passa desta maneira.. - contando-lhe tudo meudamente. E que lhe fazia saber que, logo a noite que chegou, se o não tinham feito, fora porque queriam acolher em terra os portugueses, onde esperavam de os tomar todos à mão; e pera tomar suas embarcações, per o rio acima estavam escondidas muitas lancharas do tredor, que haviam de vir sobre elas, tanto que lhe fosse dado sinal. Quando se el-Rei viu no perigo em que estava, o mais manhosa e dessimuladamente que pôde, em dous elefantes pera si e seus sobrinhos se saiu da cidade e pôs em salvo com até duzentos homens que o seguiram. Os nossos, pelo aviso que lhe el-Rei mandou, querendo sair do rio, a maré, que era vazia, os decepou, sem o poderem fazer; e enquanto ela não veo, esteveram por barreira das frechas e zargunchos e outras armas de arremesso, que os imigos de ua parte e da outra margem do rio lhe tiravam, por ser mui estreito e emparado de barreiras, que os defendia da artelharia das lancharas. E quando veo, por as suas serem mais leves e bem rebocadas, desceram de cima, e assi se vingaram dos nossos, que ficou ali D. Manuel morto com até trinta e cinco portugueses, porque os mais se salvaram. Com a qual perda D. André se houve logo por perdido naquela fortaleza, assi por lhe ficarem até oitenta homens, e ela ser de madeira já podre das chuivas e rescaldo do Sol, por ser vezinha à Equinocial com cinco graus, pouco mais ou menos, em que está da parte do Norte. E o que ele mais sentia que tudo, era a necessidade dos mantimentos, que já ante deste desastre 414 da morte de seu irmão os da terra lhe começavam a negar, sem os da cidade consentirem que a gente 210 310

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meúda da terra os trouxesse, sendo costumada três vezes na somana vir com eles a ua feira que faziam, com que a fortaleza se provia no necessário. E temendo-se que esta necessidade deles os posesse em maior afronta que pelejar com os imigos, em ua nau que ali estava de Bengala, que veo carregar àquele porto de Pacém, mandou um português, por nome Jerónimo de Sorande, com cartas a Rafael Perestrelo, que estava em Chatigão, principal porto de Bengala, pedindo-lhe um junco carregado de mantimentos, pola necessidade que tinha. Rafael Perestrelo, como ainda ali estava do tempo que se despediu de Jorge de Albuquerque (de que atrás fizemos menção), mandou a este negócio dos mantimentos Domingos de Seixas, escrivão da sua nau, em um navio de um Gaspar Ferraz, da cidade do Porto, de Portugal, o qual viera ali fazer sua fazenda, e havia de passar per o porto da cidade Tenaçari, que é na costa de Malaca, onde havia muitos mantimentos, e ali fretasse um par de navios da terra e os levasse carregados a Pacém. Posto ele, Domingos de Seixas, em Tenaçari, e tendo comprados mantimentos com que podia carregar dous navios que tinha fretado, aconteceu que andava per aquela costa um navio dos nossos às presas (como eles dizem), que é serem cossairos alevantados da obediência do Governador, a roubar os mouros que navegavam. Os quais alevantados seriam até cinquenta homens, de que era capitão um Diogo Gago, filho bastardo de Foão Gago, e de ua mourisca; e dos outros eram Baltesar Veloso, João Barbudo, Simão de Brito, filho bastardo de João Patalim, João Carregueiro, João Botelho, Antão da Fraga, e outros que se contentavam de andar neste fadairo, sendo os mais deles de bom sangue. Os quais se armaram em Choromandel e vinham já de Chatigão, onde estava Rafael Perestrelo, que trabalhou por os recolher a si e tirar daquele mau ofício. E ante que chegassem a Tanaçari, sobre paixões que Baltesar Veloso houve com o capitão Diogo Gago, jazendo ele dormindo no regaço de ua sua escrava, o matou às punhaladas, com favor de João Barbudo. Feito este caso, dino dos que andam naquele ofício, per concerto de paz, enlegeram por capitão Simão de Brito. A vinda dos quais determinadamente àquele porto de Tenaçari, era terem sabido que estavam ali quatro naus de mouros guzarates, do reino de Cambaia, e vinham a fazer presa delas; mas elas se acolheram ante que eles afeituassem seu propósito. E cometeram outro pior feito, pois causou tanto mal a Domingos de Seixas e dezassete portugueses que ali estavam com eles. E o caso foi este: Um mouro per nome Rete Cão serviu a el-Rei de Bengala nove anos de governador de duas cidades, cada ua per si - Naomaluco e Chatigão - no qual tempo roubou o que pôde na terra e a el-Rei, e com sete naus carregadas de muita roupa e grossa fazenda, partiu de Chatigão pera Malaca, com fundamento 415 de viver naquela cidade, amparado do nosso favor. O qual, ante de chegar a Tenaçari teve tam grande temporal que quatro das 210v 310v naus tornaram arribar a Chatigão donde partiram, e com as três chegou a Tenaçari, fazendo fundamento de negociar dali as naus arribadas e des i fazer sua ida a Malaca; e porque temeu que, enquanto ali estivesse, a gente da terra o podia roubar, pediu ao governador de Tenaçari lhe desse um pedaço do cotovelo que a terra fazia em a volta do rio, pera se fortalecer ali. Dada a terra e cortada de maneira que ficava em ilha lavada da água, e feita ua fortaleza de madeira, em que se queria recolher com duzentos homens, ou que foi per artefício do mesmo governador da cidade Tenaçari, que era del-Rei de Sião, ou que o povo o moveu com voz que este Rate Cão se queria ali fazer forte, como tirano da terra, com favor dos nossos e de outra gente estrangeira que ali estava fazendo comércio, saltaram com ele, e o roubaram ua ante-menhã. E levando os menistros daquele negócio ua champana grande carregada da melhor fazenda que ele tinha, a qual diziam ser do governador da cidade, Simão de Brito, capitão dos alevantados que dissémos, tomaram a champana

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e acolheram-se com ela, sem lhe lembrar que Domingos de Seixas com a outra nossa gente estava em terra. Sabida a qual tomadia, o governador lançou mão de quantos mantimentos Domingos de Seixas tinha comprado, e mais da sua fazenda, e dos nossos que com ele estavam na terra, que (como dissémos) eram dezassete homens, que cativos per terra foram levados a el-Rei de Sião. Com a qual obra D. André não foi provido de mantimentos, e os nossos levantados do roubo não houveram boa fim. Do qual Domingos de Seixas, que naquele reino de Sião esteve cativo vinte e cinco anos, soubemos a maior parte das cousas dele, e isto não tam cegamente como um cativo pode saber de um reino onde está sujeito às leis do cativeiro de quem o tem, mas como de um capitão de gente de armas que ele foi do mesmo Rei. Porque, depois que alguns anos esteve preso e tratado como cativo com os outros que foram presos com ele, a maior parte dos quais faleceram lá, nas guerras que el-Rei teve com seus vezinhos, pola amostra que ele deu de sua pessoa, lhe deu liberdade e o fez capitão da gente, e com este mando teve informação mui particular daquele reino. E em verdade que foi um dos homens de mais particular memória com que falámos, principalmente em as cousas da Geografia, que nos deu grã lume ao que escrevemos daquele reino. Porque, como el-Rei quási com todolos vezinhos teve guerra e ele atrevessou com os exércitos del-Rei muitas terras, viemos per ele vereficar outras informações que daquela província tínhamos. Fizemos aqui esta lembrança de Domingos de Seixas, porque, pois lhe não aproveitou o serviço que naquelas partes fez nem o cativeiro que passou pera lhe darem de comer, sendo homem de boa linhagem, não vir a morrer 416 no espirital de Lisboa, onde morreu, ao menos neste nosso trabalho terá memória do que passou naquele Oriente, pois este é o registo daqueles que nele 211 311 algum bem tem recebido. E verdadeiramente que maior deleitação temos na relação dos méritos dos homens a que o Mundo desemparou em seu galardão, que naqueles que foram bem pagos dele. Porque, como o mundo não tem mais que temporalidades, quem fica bem herdado nelas, já em algua maneira é satisfeito; mas a quem ele as nega, parece que lhe devemos esta lembrança, pois não tem outro galardão.

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211 311 416 Capítulo III. Como por alguas diferenças que D. André teve com Lopo de Azevedo, que o Governador mandava pera capitão daquela fortaleza de Pacém, a requerimento dele, D. André, Lopo de Azevedo se foi pera Malaca; e do mais que passou até D. André entregar a fortaleza a seu cunhado Aires Coelho, e se ir pera a Índia. Tornando a D. André, que estava bem necessitado de tudo o que havia mester pera sustentar aquela fortaleza, e principalmente saúde, por a terra ser mui doentia aos nossos, duas cousas fez: a primeira, enviar à Índia recado per um navio ao Governador D. Duarte de Meneses, fazendo-lhe saber o estado em que ficava a fortaleza, e ele tam doente, que se não achava em desposição pera a poder defender, pedindo-lhe que, o mais em breve que podesse ser, mandasse algum capitão a ela com as cousas necessárias pera segurança dela, dando-lhe particularmente conta do estado em que estavam as cousas daqueles reinos, por as guerras daqueles tiranos que eram levantados contra seu Rei. E a outra cousa que atrás esta fez, foi escrever a el-Rei de Aru, que era nosso amigo, pela amizade que com ele assentou Jorge de Albuquerque na tomada de Pacém. O qual, além desta obra de nos ajudar (como atrás escrevemos), todo navio nosso, ora per fortuna, ora por razão de comércio que ia ter à costa do seu reino, recebia com gasalhado e bom tratamento; e naquele tempo, em grandeza da terra e número de gente, era o mais poderoso daquela ilha. Somente era prove de dinheiro, por o seu reino não ter tanta cópia de mercadorias como o de Pacém, 417 de que era vezinho; porque a mais principal cousa que faz um reino rico e político, é o auto do comércio, ora seja per mercadorias naturais que a terra produze, ora per artefício de mecânica, o que este não tinha, como os outros que ficam atrás dele contra o Ponente e Sul. O qual Rei, não somente pela amizade que connosco tinha, mas ainda por estar mui indinado contra Rajá Abrahemo, por a guerra que fazia a seu Senhor, quando D. André mandou este recado, porque o apercebia que o viesse ajudar a defender aquele reino de Pacém, quando quer que Rajá Abraemo quisesse entrar nele, mandou-lhe dizer que ele se faria prestes pera o tempo que fosse necessário ser presente, e isto com muitas palavras do contentamento que tinha poder ele fazer algua cousa, de que el-Rei de Portugal fosse servido. D. Duarte de Meneses, tanto que teve o recado de D. André, mandou logo Lopo de Azevedo em um navio com alguas cousas necessárias pera provimento da fortaleza e provisões pera ele, D. André, a entregar a Lopo de Azevedo, o qual chegou 211v 311v a Pacém em Junho de quinhentos e vinte três. D. André, quando viu Lopo de Azevedo, peró que ele muito desejava de se vir pera a Índia, por a moução e tempo com que havia de partir ser dai a dous meses, não quis entregar a fortaleza, dizendo a Lopo de Azevedo que, enquanto ele estivesse esperando pelo tempo, não lha havia de entregar, senão o dia que se embarcasse, o que ele concedeu por lhe assi parecer bem. E porque D. André, como homem que se havia de partir, não provia as cousas à vontade de Lopo de Azevedo, e ele, pelo que lhe compria, era necessário acudir a isso, aprecebeu-se de mantimentos. E vendo que o xabandar del-Rei de Pacém abria grandes aliceces e cavas, e ajuntava madeira pera fazer ua força junto da nossa fortaleza, e fazia outras cousas, como homem favorecido de D. André, as quais obras eram mui prejudiciais à mesma fortaleza, disse a D. André que toda aquela obra do xebandar ele a havia por mui suspeitosa e contra o bem e segurança da fortaleza; que se ele, por ser amigo do xebandar, tevesse pejo de lhe ir à mão, que ele o faria, e mais que havia de tomar quanta madeira

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ele ali tinha junta, e com ela havia de repairar a fortaleza; e que, pera recolhimento do xebandar, ele lhe daria outro mais seguro a sua pessoa e menos prejudicial. D. André era cavaleiro, e assi o tinha mostrado todo o tempo que viveu em Tanger, onde era casado; e quanto tinha de ânimo pera esta guerra de África, tanto lhe falecia na pessoa, por ser mui pequeno de corpo e tam esmagado como homem aleijado; e por esta causa era mui desconfiado e por outra parte pouco cauteloso nas cousas da honra, por ser sujeito aos proveitos que aquela terra dava; e sobre isso cria a homens que tinham pouca conta com a sua. E tanto que lhe Lopo de Azevedo tocou em mandar, lá se trastornou de maneira que lhe mandou logo dizer que se fosse embora caminho de Malaca, porquanto lhe não havia de entregar a fortaleza. 418 Sobre o qual caso houve tantos estormentos de parte a parte, mostrando cada um os poderes que tinha, que, cessando eles, houvera de vir o caso a força, se Lopo de Azevedo se não embarcara e fora pera Malaca, onde chegou. Alguns quiseram dizer que a ida de D. André pera a Índia e deixar a fortaleza não procedia tanto de sua infermidade, quanto porque não queria experimentar a fortuna do sucesso da guerra que esperavam daquele tirano, e queria ir lograr alguns vinte mil pardaus que poderia haver da nau que tomou de presa, indo da Índia pera aquela fortaleza. A qual nau era de mouros, e ele os mandou todos passar em ua champana, por não ficar nela cousa viva. Outros dizem que os mesmos mouros a desempararam com temor, sendo obra de cento e noventa homens todos mercadores, e não gente de guerra. Os quais na champana foram ter à cidade Tenaçari, a tempo que estava em terra Diogo Pereira com muita gente portuguesa que ali ficara da companhia de António de Brito, que fora a Bengala com ua armada. E vendo a gente de Tenaçari estes mercadores, por serem na terra conhecidos, indo e vindo àquele porto com mercadorias, 212 312 sabendo serem postos naquele estado per os nossos, correu Diogo Pereira e os da sua companhia grande risco de os matarem; mas a poder de peitas que deram ao regedor e oficiais, abrandaram tudo, partindo-se logo caminho da Índia. E tornando a esta nau que D. André tomou, foi vendida em Pacém, e sendo mui rica na conta das presas das partes, houveram mui pequena parte, e el-Rei muito menos, e quási tudo ficou na sua mão e dos oficiais ministros da venda. E o não querer entregar a fortaleza a Lopo de Azevedo foi temor do xebandar, se ele houvesse de ficar na fortaleza, vendo que lhe ia à mão aquela obra que ele quis fazer, o qual, além de corromper a muitos, que eram aceitos a ele, D. André, com dádivas e grandes esperanças, também ele, D. André, se contentou com ele, xebandar, lhe prometer de o fazer mui rico, não se indo pera a Índia. E confirmou aceitar D. André estas esperanças, ou que quer que fosse; porque, partido Lopo de Azevedo pera Malaca, tornou ele, xebandar, a sua obra. A qual, tanto que foi acabada, di a trinta dias partiu Rajá Abraemo com todo o seu exército e muitos elefantes a nos vir cercar, sendo sabedor, per meio do xebandar, dos movimentos de D. André e diferenças que houve entre ele e Lopo de Azevedo. Verdade é que o xebandar não se determinou a esta sua traição, senão depois que viu o reino de Pacém tomado, sem ficar mais que a cidade vezinha à nossa fortaleza. Porque Rajá Abrahemo, como tomou a cidade Pedir e ficou absoluto senhor dela, mandou seu irmão, Rajá Lalila, com grande exército 419 que tomasse todalas povoações, notáveis lugares de Pacém, e per derradeiro se viesse lançar sobre a cidade Pacém, e ele leixou-se ficar em Pedir, por segurar as cousas daquele reino. Rajá Lalila, conquistado todo o reino de Pacém por espaço de três meses, veo assentar seu arraial meia légua da cidade Pacém, e mandou aviso a seu irmão como já estava ali. E entre muitas cousas que este mouro teve de em tam breve tempo se fazer senhor daquele reino, foi ser morta a maior parte da gente nobre dele, com Soldão Geinal, que Jorge de Albuquerque matou, como atrás

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escrevemos. E também foi tam apressado em combater a cidade, sabendo que esperávamos ajuda del-Rei de Aru, que, quando ele veo, já era (como dizem) ao atar das feridas, e assi ter por olheiro de quanto entre nós se fazia o xebandar. O qual, quando viu que todo o reino era conquistado, e nossas necessidades e deferenças, simulando que, por temor de Rajá Lalila, lhe convinha fortalecer-se, cometeu D. André que lhe prometesse fazer aquela força, a qual ele já fazia com algua inteligência que tinha com Rajá Lalila. Chegado Rajá Abrahemo onde estava seu irmão, a primeira cousa que fez foi mandar lançar um pregão per todo seu arraial, pera ser notório na cidade que quem se quisesse vir a sua obediência, ele o segurava com toda sua família e fazenda; e esta palavra manteria na notificação dela a seis dias, 212v 312v passado o qual termo não haveria misericórdia, ainda que a pedissem. A gente da cidade, atemorizada desta notificação, e assi das cruezas que ele e seu irmão tinham feito naquelas que se defendiam em tudo o que tinham conquistado, e também por ser gente que, como lhe um rei enfadava, faziam logo outro com morte deste avorrecido (como já contámos), começou cada um, de noite e de dia, como tinha lugar, de se ir pera o arraial do imigo. Finalmente, os primeiros três combates ele tomou a cidade per força de armas, e já com ele entrou mais gente da que era saída dela, da que estava dentro, de maneira que cada um tornou povoar sua própria casa que tinha leixado; e alguns que escapavam daquela primeira fúria na entrada da cidade, acolheram-se à serra do sertão e matos mui espessos que tem por vezinhos. Enquanto este Rajá Abrahemo esteve em cerco sobre a cidade, que foram poucos dias, mandou alguns recados a D. André, em que lhe fazia saber que ele tinha tomado todo aquele reino de Pacém, e somente lhe ficava por tomar posse daquela cidade, metrópoli e cabeça dele; que lhe aconselhava que entretanto se fosse embora e levasse tudo o que tinha na fortaleza, porque ele não vinha a pelejar com ele por ódio que tivesse aos portugueses, nem o havia de fazer enquanto fosse senhor da cidade. Porém, tomada ela, duas auções lhe ficavam pera o ir lançar daquela fortaleza: a primeira, estar em terra sua, pois ficava senhor do reino, como o fosse da cidade, e não havia de consentir que alguém metesse nela ua estaca, quanto mais 420 ter ua força; e a segunda, tinha consigo dous mortais seus imigos - o Senhor que fora de Daia e o de Pedir - e que ambos havia de perseguir onde quer que os achasse. D. André não lhe faleceu a este recado reposta; peró, depois que viu três combates na fortaleza, como era homem doente e um pouco vário em seus prepósitos, teve mais conta com a vida e fazenda que ali tinha aquerido, que com outros primores de cavalaria, e parecia-lhe que bastava o que tinha feito em Tanger, na guerra dos mouros, e por isso entregou a fortaleza a Aires Coelho, seu cunhado, irmão de sua mulher, que servia de alcaide-mor. O qual Aires Coelho, como filho de Gonçalo Coelho, alcaide-mor de Tanger, era nascido e criado na guerra de África, e mais era cavaleiro de sua pessoa, não receou tomar a seu cargo a defensão daquela fortaleza em tal estado.

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212v 312v 420 Capítulo IV. Como Bastião de Sousa e Martim Correa chegaram a Pacém, depois que partiram da Índia e Bastião de Sousa ter passado muito trabalho na Ilha de S. Lourenço; e como D. André tornou arribar a Pacém, e, não podendo defender a fortaleza, a leixaram e se foram pera Malaca. 213 313 Partido D. André caminho da Índia, sendo na paragem da costa do reino Pedir, encontrou duas naus, de que eram capitães Bastião de Sousa e Martim Correa, que iam pera a Ilha Banda carregar de noz e maça. E porque atrás, dele, Bastião de Sousa, fazemos menção como o ano de vinte um partiu deste reino a fazer ua fortaleza em a Ilha S. Lourenço, e ora o achamos aqui em fim de Setembro do ano de vinte três, junto de outra ilha que é Samatra, tam grande como a de S. Lourenço, mas mui oriental em sítio, ante que vamos mais adiante, queremos dar rezão do que fez até aqui, pois havemos de continuar com ele os trabalhos da fortaleza de Pacém, a que D. André também foi presente. Bastião de Sousa, partido deste reino pera fazer a fortaleza em o porto Matatana, porque a outra nau da sua companhia, em que ia por capitão João de Faria, se apartou dele com um temporal, quando chegou ao porto onde esperava que podia ir ter, não o achou, de que ficou mui descontente, porque naquela nau levava todalas cousas e oficiais que haviam de fazer a fortaleza, 421 e sem ela sua chegada não servia pera efeito que lhe el-Rei mandava; depois que ali esteve alguns dias esperando por ela, partiu-se pera Moçambique, parecendo-lhe que podia a nau ser lá. E como a não achou e o tempo, por razão do Inverno, lhe não dava mais lugar, invernou em Moçambique; e como veo a moução já no ano de vinte dous, fez-se à vela caminho da Índia com fundamento que o Governador, D. Duarte de Meneses, o proveria pera tornar fazer a fortaleza. E sendo já mui perto da costa da Índia, topou a própria nau que buscava, a qual também andava em sua busca, por chegar depois que se ele partiu do porto de Matatana dez dias; e quando soube que se fora, também por razão do Inverno, invernou na ilha, e vindo o tempo ia-se pera a Índia dar rezão de si ao Governador. Chegado Bastião de Sousa a Goa, a vinte de Agosto, daí a dez ou doze dias chegaram também as naus que deste reino partiram o ano de vinte dous, de que atrás escrevemos, como levaram nova del-Rei D. Manuel ser falecido, e era levantado por Rei o Príncipe D. João, seu filho. O qual, por assi o haver por mais seu serviço, escreveu ao Governador, D. Duarte, que as fortalezas que el-Rei seu pai novamente mandava fazer naquelas partes, que se não fizessem, e se algua era feita, que se sustentasse até lhe mandar recado, e ele prover como lhe parecesse bem. Com o qual mandado Bastião de Sousa ficou suspenso do seu negócio; mas D. Duarte, por ele ser um fidalgo honrado e de serviço, assi naquelas partes como cá no reino, lhe deu aquela viagem que ia fazer a Banda, e com ele Martim Correa por capitão de outra nau, os quais partiram de Cochi a vinte de Setembro do ano de vinte três, e vieram-se ali encontrar com D. André, o qual esteve em prática com Bastião de Sousa, dando-lhe conta como ia, e o estado em que leixava a fortaleza. E o espaço que se com ele deteve, se adiantou Martim Correa, e foi tomar primeiro 213v 313v o pouso do porto de Pacém, obra de ua légua a-la-mar, por ali haver muito parcel, e Bastião de Sousa três léguas dele, por lhe acalmar o vento. Quando veo a noite, Martim Correa ouviu muitos tiros de artelharia, não que fizessem sinal,

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mas como que havia algum combate na fortaleza; e no quarto da alva sentiu derredor da sua nau dez ou doze lancharas dos mouros que a rodeavam. E como os mandou salvar com um par de berços, vendo que eram sentidos e também magoados dos pelouros, com ua grande grita apertaram o remo, acolhendo-se. Vindo o dia, chegou à nau de Martim Correa ua almadia com recado dos nossos, em que lhe faziam saber que aquela noite, vendo os mouros a ele e a outra nau, conhecendo que vinha da Índia e que podiam vir a seu socorro, os apertaram aquela noite com um forte combate, de maneira que lhe tomaram um baluarte com quanta artelharia nele estava. Que lhe pedia o capitão Aires Coelho e todolos moradores, que em toda maneira desembarcassem a os ajudar a defender aquela fortaleza, e assi lho requeriam da parte del-Rei, seu Senhor; porque, não o fazendo aquele 422 dia, segundo a fortaleza estava desbaratada e os homens maltratados e doentes, não seria muito, dando-lhe a noite seguinte outro tal combate, serem entrados. Martim Correa com esperança de sua ajuda os mandou a Bastião de Sousa, o qual mandou dizer a Martim Correa por os da almadia que se apercebesse, que ele se vinha logo pera ambos saírem em terra. Entrados na fortaleza em seus batéis, com a mais gente que poderam levar, leixando boa guarda em as naus, que já ficavam juntas, foram recebidos como remidores de sua vida, segundo o mal que esperavam e dano que havia na fortaleza. E logo, por mostrarem aos mouros que tinham ânimo, pola ajuda que lhe viera, de os ir cometer às suas estâncias, onde estavam alojados ao longo do rio, espaço que podiam receber dano, Martim Correa, que vinha de refresco, e outros da fortaleza nos batéis com alguns berços, e gente de espingardas lhe foram dar um varejo, que com morte de muitos os fizeram afastar do rio. E dos nossos vieram feridos dous ou três de setas de erva, que eles muito usam; mas não perigaram, por já terem sua mezinha contra ela. Havendo oito dias que os nossos andavam neste trabalho de tapar uas minas que os mouros tinham feito pera entrar na fortaleza e repairar muita parte do dano que tinham feito nela, e alguas vezes saindo fora, dando mostra que queriam pelejar com eles, chegou D. André, que não pôde fazer seu caminho com tempo contrairo, por já ser passada a moução. Os mouros com esta chegada dele afastaram-se tanto da fortaleza, que não podessem ser vistos dela, mostrando que temiam a vinda daquela nau, em que desesperavam de a poder tomar com tanto socorro. Posta esta mudança em prática entre os nossos, ua das pessoas que sentiu ser isto mais ardil que temor, foi Martim Correa; porque, vendo que os mouros, segundo 214 314 a estimação de todos, seriam quinze mil e os nossos até trezentos e cinquenta homens, a maior parte doentes e feridos e bem cansados do trabalho e continuada vigia, da qual cousa os mouros eram sabedores per aviso que tinham, fez que aquela noite estivessem mais alerta e apercebidos pera combate, como de feito assi foi. Vindo duas horas ante menhã tam calados, como se foram dez homens, sendo mais de oito mil, e cercada toda a fortaleza em torno, começaram de arrimar mais de setecentas escadas de cana, que a seu modo são mui leves e prestes pera subir per elas; e tanto que sentiram serem sentidos, acudiram com ua grita per todalas partes, que parecia vir o Céu abaixo, com que meteram os nossos em grande confusão, posto que já estavam esperando aquela hora. Mas naqueles tais casos muito vai de esperar a experimentar. Porque a gente desta ilha, principalmente a nós, por causa de temerem a artelharia e armas de arremesso, por não fazerem pontaria de dia, sempre cometem de noite. E quando ela é mais escura, então mais ousados; e se chove, muito mais, porque sabem que neste tempo não lavra pólvora, que eles muito temem. 423 Nos quatro lanços do muro estavam repartidos em quatro capitanias: ua tinha Aires Coelho, outra Bastião de Sousa, outra Martim Correa, e a quarta de Manuel Mendes de Vasconcelos, Capitão-mor do Mar, com muitas estâncias repartidas per as principais pessoas da fortaleza. E no

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primeiro ímpeto dos mouros, houve tanta pressa em todalas partes, que ninguém leixava a sua, porque àquela hora todalas escadas que traziam foram arvoradas sem algum temor; e de muito ousados, sem saber o que faziam, por razão do escuro, os pés vinham a meter per as bocas das bombardas, querendo trepar per elas. Havendo já ua grande hora que de âmbalas partes se contendia animosamente, os nossos por os lançar abaixo e os mouros por subir, vieram sete elefantes ao lanço que tinha Aires Coelho, e com as testas sem temor das lanças que os feriram, a um tempo, como se foram homens do mar, que salameam pera a um tempo porem toda a força, assi a poseram eles em o lanço da escada de madeira, com que a inclinaram pera dentro, como se fora ua sebe, e caíram todolos homens que estavam em cima. E porque a revolta foi ali grande, acudiu Bastião de Sousa e Martim Correa, e acharam Aires Coelho com ua chuça na mão, e outros com lanças a dar nas trombas dos elefantes, de que faziam pouca conta, ante, por serem afalados de quem os mandava, iam por diante. Ao qual trabalho acudiram estes dous capitães com gente e panelas de pólvora, de que os elefantes assi foram escaldados e assombrados que, fazendo volta atrás, foram trilhando e esmagando, até lançarem a vida a muita gente do arraial, e não pararam di a duas léguas, sem ao outro dia os poderem trazer ao arraial. Desapressados os nossos um pouco com muito dano que os mouros recebiam em toda a parte, como gente que se queria vingar, foram-se a uns tanques de madeira do tamanho de cubas de ter vinho, que naquelas partes servem em as naus 214v 314v em lugar de pipas de trazer água, aos quais poseram fogo, e assi a uns navios que estavam postos em estaleiro. O qual fogo foi a eles causa de maior destruição com a muito claridade, porque começou Martim Correa com um camelo a fazer alguns tiros, e matou-lhe dous elefantes, e nos mouros fez restolhada de corpos mortos. Finalmente, a noite ainda que pera os nossos foi de muito trabalho, somente ua mulher prenhe, de ua seta de erva, que a foi caçar onde estava, morreu, e muita gente foi ferida, e a principal pessoa era Manuel Mendes, que tinha ua das quadras, com ua lançada que houve pelo pescoço. Porém a eles a noite lhe custou mui caro, por ficarem estendidos per derredor da fortaleza bem dous mil corpos mortos, e mais de trezentas escadas das que traziam, que serviram pera o fogo da fortaleza. E assi acharam os nossos 424 grande número de feixes de lenha untados com um óleo da terra, a que os médicos chamam napta, o qual se dá em ua fonte que está naquele reino de Pedir, cousa muito pera temer o fogo dela, por arder debaixo da água; os quais feixes foram logo queimados, por ser cousa de muito perigo estarem ali. A noite deste trabalho, D. André estava ainda em a nau, e ao outro dia, leixando nela António Coelho de Sousa, que era o capitão, e dante servia de Capitão-mor do Mar, e também per doente ia com D. André a se curar, em ele chegando à fortaleza, Aires Coelho, seu cunhado, lhe entregou a capitania. E passados os primeiros dias de sua chegada, em que se consertou o dano que os elefantes tinham feito e repairaram outras cousas pera sua defensão, porque já mais entendiam em se defender que ofender, ajuntaram-se estas pessoas, que eram as principais: D. André, Aires Coelho, alcaide-mor, Bastião de Sousa, Francisco de Sousa e João de Sousa, seus sobrinhos, Martim Correa, Manuel Mendes de Vasconcelos, António Coelho de Sousa, Simão Toscano, Manuel de Faria, Manuel Lobato, Francisco Velho, todos pessoas nobres, e oficiais daquela fortaleza, e consultaram se era cousa que podia ser sustentar aquela fortaleza. E postos todolos inconvenientes, assi de não poderem esperar socorro a menos tempo que a seis meses, o qual havia de vir da Índia, que por razão da moução não podia ser mais cedo, com a má desposição da gente que cada dia adoecia, e também falta de mantimentos, era certa cousa correrem grande risco. Finalmente, praticado este negócio entre as pessoas principais, veo a que fosse a mais da

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gente neste conselho, do qual saiu que leixassem a fortaleza. E porque os mouros não sentissem que se embarcavam a este fim, ordenaram que a artelharia meúda se enfardelasse e como cousa de mercadoria a metessem nos batéis; e, quanto à grossa, que a carregassem tanto, que, quando lhe posessem fogo, arrebentasse. Porque, como os mouros estavam de além do rio, e ele era estreito, não podiam embarcar peças tam grossas, senão à vista sua. E pera efeito deste recolhimento, ordenaram que Martim Correa ficasse na traseira com doze homens e os bombardeiros, 215 315 e depois de toda a gente recolhida, posesse fogo à fortaleza e artelharia. O qual se foi à igreja, e tirados os retávolos e postos no chão, foram cobertos de pólvora, e posta ela per caminhos e partes que corresse o fogo per todo, até ir dar na artelharia grossa, veo-se recolhendo, e um bombardeiro detrás com um murrão na mão, com que pôs o fogo, estando já na praia. A pólvora, tanto que lhe tocou o fogo, fez obra de tanto terror, que até os mesmos autores ficaram assombrados; mas não que os mouros leixassem de acudir, assi a impedir os que se embarcavam como à fortaleza. E deram tanto trabalho aos que se embarcavam, que foi dando-lhe a água pelo pescoço, 425 leixando muita fazenda na praia, de que logo foram senhores, e assi da que ficou na fortaleza, vindo a dar mostra a seus donos como não era queimada. Porque, passada a trovoada primeira, acudiram mui prestes apagar o fogo, que se começava atear na folhada das casas e madeira; e o que pior foi - não chegou a muitas peças da artelharia, com que agora nos fazem bem de guerra. E com ela e outra que ante e depois (como se adiante verá) este mouro houve de nós com dano nosso, é feito o mais poderoso tirano que há naquelas partes, sem até hoje lhe termos dado castigo notável. E verdadeiramente o modo que se teve neste recolhimento foi tam desordenado, que quanta honra os nossos tinham ganhado na defensão desta fortaleza, tanta perderam no modo de a deixar: tanto vai de defender a vida a desemparar fazenda alhea, porque esta foi a primeira cousa que os nossos deixaram naquelas partes, com o temor no rostro e vergonha nas costas. E o que fez este caso mais desastrado foi que, saindo da barra daquele rio os nossos em três navios e ua nau em que iam aqueles principais despossados do seu, acharam trinta lancharas carregadas de mantimento com muita gente, que mandava el-Rei de Aru em socorro a D. André, que lhe ele mandara havia dias pedir (como escrevemos), e ele vinha per terra com mais de quatro mil homens. E quando as lancharas viram o desbarate dos nossos, tornaram-se recolher, e eles seguiram seu caminho até chegarem a Malaca, onde também acharam embarcados com gente e munições António de Miranda e Lopo de Azevedo, que iam socorrer aquela fortaleza, não lho merecendo D. André, o qual se veo pera a Índia, e Bastião de Sousa seguiu sua viagem de Banda. E o remédio que houveram aqueles principais que foram buscar o emparo de nossa fortaleza, em ua nau de mercadores, que estava no porto de Pacém, se embarcaram e foram em companhia dos nossos até Malaca. El-Rei de Pacém ficou com sua mãe em Malaca; el-Rei de Pedir e o de Daia se foram pera el-Rei de Aru, e ua irmã deste de Daia, que foi mulher deste tirano que os roubou e desterrou, pelo ódio que lhe tinha, por causa do irmão, ela o matou com peçonha no ano de quinhentos e vinte oito, como veremos em seu lugar.

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215v 315v 426 Capítulo V. Como Martim Afonso de Melo Coutinho foi à China pera fazer ua fortaleza e assentar paz; e como a armada dos chins pelejou com ele, com que lhe conveo tornar-se. Pois estamos nesta parte da Índia-além-do-Gange, por seguir a ordem a história, que no princípio deste Oitavo Livro dissémos, convém tratar do que se fez, depois que D. Duarte começou governar, até que entregou a governança da Índia ao Conde Almirante, que o sucedeu, como veremos. E a primeira cousa será o que fez Martim Afonso de Melo Coutinho na viagem que fez pera a China, que ele, Governador, despachou, depois que D. André Hanriques era partido pera esta fortaleza de Pacém, onde ele, Martim Afonso, veo ter; e aqui com as mercadorias que fez em Chaúl, como escrevemos, e outras de que se proveo em Cochi, fez sua carga de pimenta. Feita a qual, se partiu pera Malaca, onde chegou com quatro velas, de que ele era capitão-mor, e das outras Vasco Fernandes Coutinho, Diogo de Melo, ambos seus irmãos, e Pedro Homem, filho de Pedro Homem, estribeiro-mor que fora del-Rei D. Manuel. E o regimento que levava del-Rei D. Manuel, era ir assentar amizade com o Rei da China, parecendo-lhe que a tinha a terra connosco, por razão da ida de Tomé Pires, que Fernão Peres de Andrade lá enviara com nome de embaixador (como atrás escrevemos), sem saber em que estado viera ter esta sua ida. E que trabalhasse muito no porto de Tamou, ou onde fosse mais proveitoso e seguro pera nossas cousas, fazer ua fortaleza, onde ele ficasse por capitão com os oficiais e gente que levava, e ordenasse tudo como as cousas do comércio ficassem em negócio corrente. Esta era a substância da sua ida. E porque Duarte Coelho, que a este tempo estava em Malaca, por as vezes que fora à China, sabia bem do negócio daquelas partes, e assi Ambrósio do Rego, que o ano passado viera de lá a requerimento dele, Martim Afonso, e de Jorge de Albuquerque, capitão de Malaca, foram ambos com ele, mais por comprazer a eles que per sua vontade, porque sabiam que a terra não estava tam assentada como eles cuidavam, polo que com eles tinha passado. E assi sucedeu. Porque, partindo de Malaca com seis velas - as quatro que ele, Martim Afonso, levava da Índia e as de Duarte Coelho e Ambrósio do Rego - a dez de Julho de quinhentos e vinte dous, chegaram ao porto de Tamou em Agosto do mesmo ano, a tempo que os oficiais del-Rei estavam encarniçados na prea e roubo que fizeram na fazenda dos nossos, principalmente de Tomé Pires, como atrás escrevemos. 427 Duarte Coelho, como homem que tinha ofendido aquela gente, ou que fosse de cautela ou que o seu navio, por ser junco, não era tam companheiro como os outros, não entrou com Martim 216 316 Afonso dentro no porto, e ficou fora obra de sete léguas. Neste tempo, porque era o da moução que os navios de Malaca, do Patane e Sião vão demandar aquele porto, pera fazerem seus comércios, andava o capitão-mor da armada del-Rei da China per aquela costa e entrada da cidade Cantão. E como viu que os nossos navios foram tomar porto, como gente confiada e que tinha pouca conta com o que tinham feito, leixou-se estar, e o fez logo saber aos oficiais de Cantão; os quais, temendo que com sua vinda houvesse algua concórdia de paz, e eles tornassem o que tinham tomado, mandaram-lhe dizer que em nenhum modo os consentisse, por serem havidos por ladrões, espreitadores das terras, e que el-Rei assi o mandava; mas que tivesse modo de romper com eles, posto que pedissem a paz, porque tudo era fengido. O qual recado mandaram secretamente, sem o saber o Ceuí, que então chegara, e não sabia parte do que eles tinham feito; e por ser oficial superior deles, temiam que, cometendo os nossos paz, e ele

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lha concedesse, poderia fazer justiça deles. Finalmente, assi como o ordenaram, aconteceu; porque Martim Afonso, sem fazer algum mal nem dano, posto que fosse provocado a pelejar, tirando-lhe artelharia, com que entendeu que o não queriam receber na terra, determinou de haver língua dela, tomando duas línguas de um barco, a que vestiu e deu dávidas, e per eles mandou recado ao capitão-mor da armada. Mas estes não tornaram, nem menos outros que foram os segundos, ante estes lhe disseram como a terra toda estava contra eles, polos danos e males que os outros capitães tinham feito naquele porto; e que el-Rei mandava que não os consentissem ali, e per ventura esta era a causa por que o Capitão-mor queria guerra com eles. Neste tempo mandou ele, Martim Afonso, dous batéis nossos fazer aguada a terra, os quais foram cometidos dos chins de maneira que vieram com sangue e sem água, e ainda houveram que lhe fizera Deus mercê tornarem-se a recolher com a vida às naus. Duarte Coelho, como sabia que esta armada tinha tomada a entrada per onde se ele havia de ir ajuntar com Martim Afonso, não ousando de romper tam grossa cousa, mandou de noite ua manchua bem esquipada de remos saber o que fazia Martim Afonso e dizer-lhe que seu voto era que se deviam todos ajuntar. Mas a manchua, ou que não pôde ou como quer que fosse, tornou di a dous dias, e o recado que trouxe foi dizer que somente houvera vista dos nossos, e que os via estar como gente mais segura do que o tempo requeria, e que com os muitos navios pequenos da armada dos chins não se atrevera chegar a ele. Martim Afonso, polo que tinha sabido dos da terra, e por ter pior 428 sinal não haver reposta do capitão dos chins que vir a pelejar com ele quis-se fazer à vela e tirar daquele lugar ao mar largo, porque melhor lhe vinham achar-se no largo, que metido naquele estreito. E ante que descobrisse ua ponta onde se eles haviam de determinar, indo diante seu irmão Diogo de Melo e Pedro Homem, por trazerem os navios mais 216v 316v pequenos, quási como descobridores, como os chins estavam em olho do que eles faziam, vieram demandar os dous navios e começaram de os esbombardear, ao que eles também respondiam. Mas como aquela hora não era dos nossos, o primeiro sinal que deram de vitória aos imigos foi acender-se fogo na pólvora que trazia Diogo de Melo, com que as cobertas do navio foram postas no ar, e ele e o casco se foi ao fundo. Pedro Homem, posto que tinha bem que fazer em si, todavia mandou alguns marinheiros que com o batel recolhessem alguns dos nossos que andavam nadando, parecendo-lhe que algum poderia ser Diogo de Melo; e isto foi azo de mais prestes os chins lhe entrarem o navio, polo achar com aquela gente menos. Posto que lhe custou a entrada mui caro, porque Pedro Homem, assi como era no corpo um dos maiores homens de Portugal, assi a valentia de seu ânimo e forças corporais eram diferentes do comum dos outros, o que poucas vezes se acha nos de sua estatura. E foi o seu pelejar de maneira que, se não foram os tiros da artelharia, nunca morrera: tamanho temor tinham os chins de chegar a ele. Mas como esta não perdoa a pessoa algua, quando anda entre ela, ela o matou, e muitos que o ajudavam. E porque os chins quási todos acudiram à entrada deste navio, teve Martim Afonso lugar de escapulir daquela multidão, e veo-se depois achar com Duarte Coelho na costa de Choampa. O qual também teve que contar de como escapou de duas armadas dos chins; mas parece que tinha melhor fortuna só com eles que acompanhado. Os chins (como já atrás contámos) não quiseram mais, pera abonar suas razões, que este desastre, e levaram muita da nossa gente presa, tudo por mostrarem ao Ceuí que nós éramos os culpados, e tam soberbos, que cometêramos a armada del-Rei. Com o qual feito acabaram de matar a Tomé Pires, e assi os que com ele foram presos, e ficou total guerra entre nós e eles. E segundo alguns dos nossos depois escreveram, mais morreram na cadea de fome e mau tratamento que lhe nela davam, que per justiça. Porque esta de morte, como há de ser confirmada

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per el-Rei e com pregão, não se fez a execução neles, senão depois de vir recado del-Rei, que foi em Setembro do ano de vinte três. E segundo seu modo, vinte três pessoas foram feitas em pedaços, cortando-lhe pés e mãos, cabeça, e afora, a outra parte, com pregão de ladrões, roubadores das terras; e outros foram mortos à besta, celebrando muito esta justiça por tirarem a opinião que o povo tinha concebido 429 de nós, assi em valentia como em proveitosos no comércio às terras onde o fizemos. Martim Afonso, como não se deteve na China mais que catorze dias, em que passou este trabalho, chegou a Malaca meado Outubro de quinhentos e vinte dous, e na moução de Janeiro de vinte três se veo pera a Índia, e di pera este reino o ano de quinhentos e vinte cinco, aonde chegou a salvamento.

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217 317 429 Capítulo VI. Como com o favor do dano que Jorge de Albuquerque recebeu em Bintão, o Rei desta ilha mandou um capitão com grande frota sobre Malaca; e mandando Jorge de Albuquerque sobre ele ao Rio de Muar seu cunhado D. Sancho Hanriques, por saber que estava ele dentro, por ua trovoada que veo, se veo desbaratado pera Malaca com perda de muita gente que lhe os mouros mataram, e se afogou. Atrás, tratando dos feitos que se fizeram em Malaca, escrevemos o que aconteceu a Jorge de Albuquerque, capitão dela, na ida que fez a Bintão; e por lhe suceder de maneira que foi mais em favor dos mouros que nosso, cobrou el-Rei de Bintão tanto ânimo, que logo nas costas de Jorge de Albuquerque mandou o seu Capitão-mor do Mar com alguas lancharas ladrando trás ele, a ver se lhe podia derrabar algum navio manco. Mas, como desta sua vinda não levou muita glória, viremos a enfiar as cousas que ele mais fez no tempo de Jorge de Albuquerque até um grande curso, em que se passaram muitas naquela cidade. E a primeira que este mouro cometeu a seu salvo, passada esta de Bintão, sabendo que António de Brito era partido pera Maluco e levava muita gente, e na cidade havia pouca, e mais dela inferma e a outra fora morta naquela ida, veo com suas lancharas, que são uns navios de remo mui ligeiros, de que eles usam pera a guerra do mar. E em se Jorge de Albuquerque recolhendo à cidade, nas costas dele chegou a Malaca e queimou dous juncos que estavam surtos no porto, que eram de mercadores e estavam por descarregar de 430 muita mercadoria. Ao qual atrevimento, querendo acudir Gil Simões, capitão de um bargantim, foi morto com quantos levava. Porque, como andava mascabado na honra de um feito em que ele mostrou fraqueza, quis-se neste mostrar tam cavaleiro, que se foi meter no meio das lancharas. E por não poderem remar tanto como ele as outras que levava em sua companhia, vendo que era tomado, e as velas de Laquesemena muitas, não o quiseram seguir, com o qual bocado ele se foi em salvo. Depois deste desastre, aconteceram outros, que favoreceram a el-Rei de Bintão pera mais ousadamente mandar fazer guerra a Malaca; porque, como ele viu que a cidade estava desfalecida de gente, estendeu-se com suas lancharas a mais que andarem derredor de Bintão, mandando um seu capitão, per nome Perduca Rajá, com quorenta lancharas, todas a ponto pera cometer qualquer feito. O qual trazia por ardil vir dar ua vista a Malaca de noite ou ante-menhã, e tornar logo ao outro dia, recolhendo-se ao rio de Muar, que são sete léguas de Malaca, e com estes saltos a meúdo nos cansar; e também faria prea em os navios, que a ele vinham com suas mercadorias. Vindo este Perduca Rajá no fim de Abril de 217v 317v quinhentos e vinte três com estas quorenta lancharas, em se recolhendo pera dentro do Rio de Muar, quási sobre a noite, houve vista deles Duarte Coelho, o qual ia em um navio seu descobrir a enseada de Cauchi-China, per mandado del-Rei D. Manuel, por ter sabido ser aquela enseada cousa de que saíam mercadorias ricas. A qual terra os chins chamam Reino de Cacho, e os siames e malaios Cauchi-China, à diferença do Cochi do Malabar. Mas desta feita o não fez pelo que topou no caminho, como logo veremos, e depois descobriu esta enseada sem assentar pazes com o Rei, por ser morto, e dous filhos contendiam sobre a herança, com a qual diferença Duarte Coelho escapou da fúria da guerra que então andava entre eles, e o mais que fez foi meter os padrões de seu descobrimento. E o que topou no caminho que per esta vez o tornou a Malaca foi haver vista das lancharas de Perduca Rajá; e suspeitando ao que vinham, veo dar nova a Jorge de Albuquerque. E primeiro

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que dali saíssem, ordenou de dar sobre eles, mandando D. Sancho Hanriques, seu cunhado, a grã pressa com dez velas, ele em um galeão por capitão-mor, Duarte Coelho em sua naveta, Hanrique Leme em ua galeota, Manuel de Berredo em outra, e Diogo Lourenço, Francisco Fogaça, João de Sória, Afonso Luís e Fernando Álvares, cada um em sua lanchara, nos quais navios iriam até duzentos homens. E porque fossem mais dessimulados, mandou D. Sancho a Hanrique Leme, que ele com as lancharas se fosse cosendo com a terra pera tomarem a boca do rio, e ele com Duarte Coelho e Manuel de Berredo iriam largos ao mar; porque, tendo os imigos vista deles, parecer-lhe-ia que eram navios de mercadores e perderiam o tento da terra, com que os poderiam cometer mais a seu salvo. E também se eles quisessem vir dar em Malaca, cosendo-se com a terra, e 431 encontrá-los-iam, e como os acolhessem em mar largo, seriam mais senhores deles. Hanrique Leme, chegado à boca do rio Muar, desejoso de ganhar só aquela honra, mandou ua manchua, que é um pequeno barco, que entrasse dentro no rio, e lhe fosse descobrir o que faziam as lancharas dos imigos. A qual manchua deu com outra espia deles, que também vinha descobrir a boca do rio; e com a mesma cobiça de Hanrique Leme de ganhar honra, o da nossa manchua deu na outra e a tomou, em que houve tirarem de ambas as partes espingardas. Hanrique Leme, quando ouviu os tiros, parecendo-lhe que a sua manchua era tomada das lancharas dos imigos, entrou dentro no rio com aquele ímpeto, sem esperar por seu capitão, no qual instante ua trovoada que estava prenhe de vento, em ele entrando, rompeu tam fortemente, que ante de ver as lancharas dos imigos, sessobraram logo alguas nossas e outras; e a galeota de Hanrique Leme, com a fúria do vento, foram dar entre a armada dos mouros, que os cercaram logo, e no meio do grande murulho do mar foram a maior parte mortos, e alguns 218 318 escaparam em ua lanchara de Francisco Fogaça, que veo de noite; e o mais que pôde fazer com seus companheiros foi desalagar a galeota da água e salvar alguns. Vinda a menhã, quatro lancharas das dos imigos os vieram demandar, e como gente vitoriosa, pelejando, foram ter ao galeão de D. Sancho pera mal de outros, que estavam em salvo. Porque D. Sancho, com desejo de vingança, mandou Manuel de Berredo em a sua galeota, e Francisco Fogaça com a sua lanchara, por ter gente fresca, que a outra que escapou não estava pera isso, cuidando que podiam entreter os imigos e não saírem do rio, e foram a morrer a poder deles, por serem já muitos. E a ele, D. Sancho e Duarte Coelho, que estavam largos ao mar, fez-lhe Deus mercê em virem em salvo pera Malaca; porque, com a ocupação de peleja destes dous, não os viram nem se vieram a eles, leixando lá sessenta e tantos homens afogados e mortos a ferro.

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218 318 432 Capítulo VII. Como, estando D. Sancho Hanriques no reino de Pão a buscar mantimentos, foi morto das lancharas de Bintão; e de outros desastres que os nossos teveram com esta guerra que eles faziam a Malaca. Todo o dano que os nossos recebiam nesta guerra era favor a el-Rei de Bintão, e dava-lhe tanto crédito e estima, que começou a cobrar entre os mouros vezinhos a autoridade que tinha perdida; de maneira que, sendo os mais destes nossos amigos e contrairos deste, mudou-se-lhe esta vontade com a mudança de sua fortuna, fazendo que el-Rei de Pão, da costa de Malaca, sendo nosso amigo, viesse a casar com ua filha sua, em ódio nosso, e teveram este casamento encoberto até el-Rei de Bintão fazer algua boa presa, como fez. Porque, como estas lancharas del-Rei de Bintão não leixavam vir mantimentos a Malaca, ordenou Jorge de Albuquerque de os mandar buscar per todalas partes. E por chegar então da Índia André de Brito, a quem o Governador D. Duarte de Meneses dera licença que fosse àquelas partes fazer seu proveito, e ele trazia pera isso ua nau sua bem concertada, mandou Jorge de Albuquerque em sua companhia dous juncos, que fossem todos três a Sião, por ser um reino mui abastado de arroz e de todo mantimento. Tanto que estas três velas foram partidas, com a mesma necessidade mandou D. Sancho no galeão em que andava, e outros dous navios em sua companhia, de que eram capitães Ambrósio do Rego e António de Pina, ao porto do reino de Pão, que é na mesma costa de Malaca, caminho de Sião, por ser Rei nosso amigo, e que até então nos vinha do seu reino tudo o que nele havia, sem saber como ele estava aparentado em nosso dano com el-Rei de Bintão. D. Sancho, pola necessidade em que leixava 218v 318v Malaca e se aviar mais prestes, tanto que carregou o navio de Ambrósio do Rego, mandou que se saísse do Rio de Pão e o fosse esperar a ua ilha a que chamam a Pedra Branca; e como o navio de António de Pina foi também carregado, mandou-lhe que se saísse do rio e o esperasse na barra. E parece que assi havia de ser - que espedisse de si as ajudas de sua vida; porque, ainda este navio não era posto na barra, quando saíram trinta e cinco lancharas del-Rei de Bintão, que estavam pelo rio dentro, postas em cilada. E assi se houveram com D. Sancho, que mataram a ele e a seu irmão D. António, ambos filhos de D. Afonso Hanriques, senhor de Barbacena, e com eles trinta portugueses, somente dous grumetes que levaram por sinal de vitória a Bintão, a quinze 433 de Novembro de quinhentos e vinte três. E querendo vir fazer outro tanto a António de Pina, que era já em mar largo, posto que o seu navio era zorreiro, por ser junco, ele a poder de vela lhe escapou com grande perigo; ca, vendo que as lancharas lhe iam tomar a boca do estreito per onde havia de entrar, que é de travessa pouco mais de um tiro de besta, navegou per cima das Ilhas de Súria Rajá, mais por escapar às lancharas, que por ter a navegação segura. E foi dar consigo na Jaua, no porto da cidade Agacim, com que tínhamos comércio, de que adiante veremos o fim de sua fortuna, por contar outro tal desastre, que aconteceu a André de Brito. O qual, estando no porto do Rio Sião carregado de mantimentos, e assi os dous juncos que dissemos que foram em sua companhia, foi ter com eles Duarte Coelho, que ia da enseada de Cauchi-China, quando foi descobrir correndo a costa do reino Choampa. E como era pessoa conhecida no reino Sião, polas vezes que lá fora (segundo já escrevemos), achando André de Brito e os juncos quási retidos pelos oficiais del-Rei, per maldades e cousas que mouros nossos imigos

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tinham ordenado, ele os desempediu e se veo com eles pera Malaca. E por o seu navio ser veleiro, veo esperá-los à ilha a que chamam Pulo Timão, onde lhe tinha dito que os havia de esperar. Peró, como eles tardavam e ele soube ali da morte de D. Sancho, e a necessidade em que Malaca estava, por lhe acudir, partiu-se pera lá, onde chegou a salvamento. Os juncos apartados da nau de André de Brito, chegando donde Duarte Coelho se partira com a nova que lhe deram da morte de D. Sancho, e também que as mesmas lancharas tinham tomado a André de Brito, em Abril de quinhentos e vinte quatro, e mortos todos à espada, como era verdade, por se ir ali meter em Pão com desejo de fazer algum proveito, não ousaram de ir caminho de Malaca, e tornaram-se a Sião, aonde depois o mesmo Duarte Coelho, per mandado de Jorge de Albuquerque, os foi buscar, leixando já outro desastre feito em Malaca, que foi virem as lancharas com o favor destas vitórias ua noite, e mataram a Simão de Abreu, parente de António de Brito, que estava por capitão em Maluco, o qual com as necessidades que tinha o mandou em um navio. E passando 219 219 muitos trabalhos e perigos naquela viagem que fez, por não vir per o caminho ordinário, mas per um novo que ele descobriu per via da Ilha de Burneo, que é ora mui navegado pelos nossos, vieram as lancharas ua noite ter com ele à Ilheta das Naus, que é defronte da cidade de Malaca obra de mil e quinhentos passos. E posto que ele com treze homens que tinha em o navio se defendeu à força de ferro, não se pôde defender ao fogo que os mouros poseram a um junco que estava despejado, que foram 434 trazer do porto da cidade, por ser alteroso. E tanto que o ajuntaram ao costado do navio, poseram-lhe fogo, e o entreteveram até que ambos foram queimados, sem haver na fortaleza quem lhe podesse valer. Porque naquele tempo não havia navio nosso que lhe podesse acudir, por todos serem fora a buscar mantimentos pela costa, por a grande fome que havia na cidade. E D. Garcia Hanriques neste tempo também era ido a Bintão a tolher os mantimentos e fazer a guerra que podesse; e ele veo de lá com dous navios perdidos, e a gente deles morta per um ardil que teve Laquesemena, Capitão-mor do Mar del-Rei de Malaca. E foi per esta maneira: Havendo pouco tempo que D. Garcia Hanriques, cunhado de Jorge de Albuquerque, era chegado de Maluco, da viagem do qual àquelas partes adiante daremos conta, pola muita guerra que el-Rei de Bintão mandava fazer a Malaca, e não lhe deixar vir mantimentos, que era a maior guerra que lhe podia fazer, quis ele, Jorge de Albuquerque, per o mesmo modo fazer-lhe a guerra. E mandou D. Garcia a Bintão com sete velas, três navios de gávea, dous caravelões, ua lanchara e um calaluz, de que eram capitães ele, D. Garcia, Roque Coelho, de Tanger, Garcia Queimado, João Monteiro, Lucas Rodrigues, João Estevens e Vasco Lourenço, em que iriam até duzentos homens, em que entravam muitas pessoas nobres. Chegado D. Garcia à boca do rio de Bintão, leixou-se estar esperando que saísse Laquesemena, capitão del-Rei, pera pelejar com ele de fora, como lhe mandava Jorge de Albuquerque, porque dentro no rio era cousa impossível, pela experiência que tinha das estacas com que estava tapado e retrocido, sem navio de quilha poder entrar. E quando Laquesemena não saísse, que se leixasse estar no porto, como ele fazia no estreito de Cingapura, e lhe tolhesse os mantimentos e tomassem os que viessem demandar o porto. Laquesemena era afadigado del-Rei que viesse pelejar com D. Garcia; ao que ele respondeu: - Senhor, com portugueses e navios de alto bordo não se pode pelejar com as lancharas rasas como eu trago. Leixa-me, que eu conheço esta gente, por me ter custado sangue. A boa fortuna anda ora contigo. Eu te vingarei deles - e assi o fez. Porque, logo na entrada do rio, em um cotovelo que o encobria, mandou ajuntar as suas lancharas, e cobriu-as tanto de rama, que pareciam árvores do mato a quem as visse de longe; e feita esta encoberta, mandou duas manchuas que viessem esbombardear os nossos.

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D. Garcia, quando as viu tam 219v 219v atrevidas, mandou os dous caravelões trás elas, as quais, fingindo temor, se foram recolhendo pera dentro, e os 435 caravelões, com açodamento de as tomar, não ouviam os sinais dos tiros que lhe D. Garcia mandou tirar por sinal que se recolhessem. Mas parece que aquele era o seu derradeiro dia, porque saiu Laquesemena tam prestes e vivo no remo, que, primeiro que elas fizessem volta, as tomou. D. Garcia, quando as viu traspor da vista pelo rio dentro, mandou a Roque Coelho e a Garcia Queimado que fossem trás eles; mas não fizeram tam pouco em escaparem, porque, como o rio todo estava cheo de tranquia e empedimento pera navios grandes não entrarem, foram dar em seco, e houveram de ficar ali, se a maré não viera tam açodada, que os salvou. Vendo D. Garcia este mau princípio, e que não era esta a sua hora, tornou-se pera Malaca.

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219v 219v 435 Capítulo VIII. De alguas cousas que os nossos passaram na Ilha da Jaua, em que alguns pereceram per traições de mouros; e do que Simão de Sousa e Martim Correa fizeram na Ilha de Banda, onde acharam Martim Afonso de Melo Jusarte em guerra com os naturais; e como depois cada um se partiu a fazer suas viagens, por razão de seu proveito. Primeiro que entremos nas cousas de Maluco, de caminho iremos contando alguas que passaram os nossos que lá eram, e assi em Banda a fazer comércio da maça e noz que ela tem, e começaremos no que aqueceu a António de Pina, que ainda é parte dos desastres de Malaca. O qual, escapando das lancharas de Laquesemena e atravessando per cima das Ilhas de Súria Rajá (como atrás escrevemos), veo dar consigo na Jaua, no porto da cidade Agacim, que é das mais célebres que ela tem, onde com ele veo ter Simão de Sousa e Martim Correa, que iam caminho de Banda, per o qual souberam a morte de D. Sancho e os trabalhos que ele passou. Havendo sete ou oito dias que António de Pina chegara, e como os Jaus é gente atreiçoada, quiseram fazer outro tanto à nau de Martim Correa, vindo ante-menhã seis lancharas, três de ua parte e três da outra, e cometeram 436 entrar nela. Mas quando acudiu Martim Correa, que às lançadas os fez apartar, lançaram o feito a zombaria, dizendo que mal recebiam a gente que lhe trazia mantimentos. O que Martim Correa dessimulou e disse que comprar e vender não se fazia ante-menhã; que se alevantaria mais o Sol, então o faria. E assi o fez, não consentindo que entrassem dentro, somente a bordo. Partidos eles, chegou um homem português em um parau com ua carta a ele, Martim Correa, de Manuel Botelho, escrivão de um navio que estava mais abaixo em outra cidade per nome Surubaia. O qual navio era de duas pessoas - de Jorge Soares de Brito e de Cristóvão Soares, vindos de Malaca fazer ali seu proveito. Na qual carta ele, Manuel Botelho, lhe dezia como per ua escrava sua soubera que se armavam certas lancharas pera ir dar sobre eles; por isso que tevessem tento 220 220 em si ou se partissem, se já estavam prestes. Com o qual recado Martim Correa se foi logo a Simão de Sousa, e, por já estarem apercebidos e não se porem em risco do que podia suceder se partiram ao outro dia pera Banda, onde era sua viagem. Ao seguinte dia, ou seriam estas do aviso ou outras, tanto que viram partidos os nossos navios, como gente magoada que perdera aquela presa, saltaram com António de Pina, que estava apousentado em terra, e o mataram, com dez ou doze portugueses, e depois vieram tomar o seu navio com quanto tinha. Assi que, fugindo de tantos perigos, não pôde fugir àquele da morte que lhe estava limitada na Jaua. E Manuel Botelho, dando aviso aos outros, não o teve consigo, ou ao menos os senhorios dele, que andavam em terra muito descansados em Surubaia, onde também foram mortos, e em sua companhia um fidalgo per nome Fernão da Silva, com outros seis ou sete portugueses. E querendo alguns paraus nesta revolta vir ao navio polo tomarem, os que ficaram nele se defenderam mui bem, e fazendo-se à vela pera Malaca, chegaram a salvamento. Tornando à viagem de Simão de Sousa e Martim Correa, que partiram de Agacim, temendo estas traições, chegaram à Ilha Banda a tempo que deram a vida a Martim Afonso de Melo Jusarte. O qual estava de fogo e sangue com os moradores do lugar Lantor, que é da Ilha Banda, onde se faz comércio da maça e noz. Porque, sobre diferenças que teveram, tinham queimado um junco que ali fora ter, e ele estava acolheito em ua tranqueira em terra, que fizera de palmeiras que cortara, com

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as quais acrescentou maior ódio, por elas serem árvores de seu mantimento. E sobre isso fez também um junco da madeira de árvores que davam noz e de outras dos seus pomares de fructo, o qual mandou a Maluco carregar de cravo. E além disso veo a sua gente a tanta soltura, que tomavam o mantimento na praça, sem os querer castigar, necessitados de os não quererem vender. Com o que estava em tanto rompimento, que se recolheu àquela tranqueira somente com sete portugueses que tinha consigo e setenta mouros malaios que vieram pera amarinhar o junco que lhe queimaram; os quais mouros estavam já confederados com 437 os da terra pera os matarem, posto que eram casados em Malaca. E quem ali levou Martim Afonso foi partir ele diante de Pero Lourenço de Melo, e o foi esperar em Pedir a fazer carga de pimenta, pera ambos di irem à China, e Pero Lourenço foi-se perder nas ilhas que já atrás dissemos. E vendo Martim Afonso que o tempo da moução pera a China se passava, pareceu-lhe que Pero Lourenço escorrera e seria em Malaca, onde o ele não achou, esteve ali perto de um ano. No qual tempo, Jorge de Albuquerque mandou a D. Rodrigo da Silva, filho de D. Hanrique Hanriques, com um navio pera ir a Banda e a Maluco; e Garcia Cainho, que era feitor de Malaca, armou um junco e fez ua armação com ele, Martim Afonso, pera ir carregar de maça e noz. Chegados eles a Banda, veo ali ter D. Garcia Hanriques, que vinha de Maluco, e por a necessidade com que ficava António de Brito, D. Rodrigo se partiu pera Maluco, onde foi morrer de 220v 220v febres. E Martim Afonso ficou ali posto em ódio com a gente, e havia mais de oito meses que isto era passado, quando Simão de Sousa e Martim Correa chegaram. Os mouros da terra, que o tinham posto em cerco, vendo os dous navios de Simão de Sousa, temendo que os havia de castigar polo que fizeram, primeiro que ele tomasse o pouso da ancoragem, vieram-se a ele e fizeram-lhe queixume de Martim Afonso, dos males que tinham recebido; e ele também depois deu suas razões, por o não terem por autor daquelas diferenças. Porém, como cada um queria seguir seu parecer, depois as teveram ambos por duas causas: a primeira, por ele, Martim Afonso, querer que Simão de Sousa com a sua gente tomasse emenda dos males que os mouros lhe tinham feito, o que ele não concedeu, porque vinha a fazer comércio e não guerra. E por esta causa, depois de ele, Simão de Sousa, estar ali, per desordens de alguns de sua companhia os mouros lhe mataram sete portugueses em Lutatão, onde ele estava, em que entravam estas pessoas nobres: Martim de Lemos, mui especial cavaleiro, Francisco Veloso, João Vaz e Tomé Dias, escrivães dos juncos dos armadores e de Martim Correa; o que ele dessimulou, por saber que a soberba dos nossos o merecia, e compria-lhe ter a terra em paz e não de guerra. E a outra causa de desavença entre eles e Martim Afonso foi que António de Brito, que estava por capitão em Maluco, por a muita necessidade em que estava, mandou Gaspar Galo em um navio que fora de D. Rodrigo da Silva, já falecido, como dissemos, pedindo a ele, Martim Afonso, que lhe mandasse todolos mantimentos que podesse haver de quaisquer navios e juncos que ali estevessem de moradores de Malaca, e isto pola muita necessidade em que estava, mandando-lhe apresentar os poderes que tinha del-Rei, de capitão daquela Ilha Banda. 438 O qual Gaspar Galo faleceu de febres em chegando, com que o navio ficou vago sem capitão. Martim Afonso lançou mão dele, dizendo, que vinha a ele deregido. Simão de Sousa, como também trazia provisões do Governador D. Duarte de Meneses, porque mandava que ele fosse Capitão-mor de todolos juncos, naus, navios que fossem ter a Banda, enquanto ele nela estevesse, e aos capitães deles que lhe obedecessem, quisera tomar este navio pera o dar a seu sobrinho Francisco de Sousa, dizendo que ele, Martim Afonso, podia ir a Maluco em um junco que com a vinda dele começou a fazer. Finalmente, Martim Afonso de Melo, como o navio vinha deregido a ele, por António de Brito saber que estava ele ali havia tempo, ficou o navio com ele, e feita cada um sua fazenda, Bastião de Sousa se veo pera Malaca. Em companhia do qual se vieram estes juncos que lá foram ter: um de Martim Correa, que

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ele em Banda comprou por vir nele, e a sua nau por desgostos que teve a vendeu a Troilos de Sousa, sobrinho de Simão de Sousa; e outro junco era de Martim Afonso de Melo, que ele ali fez em lugar do que lhe queimaram. E mandou nele António Pessoa, que era feitor da armação que ele tinha feito com Garcia Cainho, e nos outros dous vieram Martim Pegado, de Elvas, e Bastião Pegado. E Martim Afonso de Melo, polo que lhe escreveu 221 221 António de Brito da necessidade em que estava e proveito que se lá poderia fazer, por a grande novidade que havia de cravo, se foi pera ele em o navio em que veo Gaspar Galo; e estoutros, se teveram paixões na carga, muito mores trabalhos foram os do caminho. Porque o junco de Martim Pegado, por ser pequeno e muito carregado, com o primeiro tempo se alagou, e somente escaparam na champana que levavam per popa três ou quatro portugueses, que nela foram ter à Ilha Bachão, os quais el-Rei mandou a António de Brito, capitão de Maluco. E o junco em que ia António Pessoa chegou primeiro que os outros à cidade de Agacim; e como os jaus estavam levantados pola morte de António de Pina que contámos, por emendar este mal, fizeram outro tanto a ele, e tomaram o junco assi como ia carregado, e outro tanto quiseram fazer ao de Bastião Pegado, quando ali chegou em companhia de Simão de Sousa, e valeu-lhe cortar as amarras. Assi que dos navios que partiram em sua companhia, o seu e este com outro foram ter a Malaca, e o de Martim Correa deu-lhe um temporal no dia da partida, e foi ter a três ilhas de Banda, onde houvera de ser morto pola gente da terra; e por evitar este perigo se dispôs a navegar bem mal consertado, e foi ter à Ilha Amboíno, onde achou Martim Afonso. E como os mouros que ele levava entenderam que não iam pera Malaca, os mais deles lhe fugiram, e os outros que ficaram arrombaram o junco; mas Martim Correa lhe acudiu. E partidos dali, chegaram a Maluco a doze do mês de 439 Setembro do ano de quinhentos e vinte quatro, onde logo foram justiçados os mouros que arrombaram o junco, e outros ficaram cativos. Contamos esta revolta, que foi a primeira que os nossos teveram naquela Ilha de Banda, por mostra de outras piores cousas que entre os nossos passaram, mais causadas da cobiça do fructo que ela dá, que todos pretendem trazer, que da desordem dos temporais. E às vezes permite Deus que da semente da cobiça se colhem os desastres do perdimento dos juncos e da fazenda que neles vai, e o dono em cima.

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221 221 439 Capítulo IX. Como Cachil Mamole, irmão bastardo de Cachil Daroez, que andava degredado em vida del-Rei seu pai, porque seu irmão o não consentia na terra, determinou de o matar, e ele caiu no laço; e do ódio que el-Rei Almançor teve a Cachil Daroez, polo favor que tinha nosso. Pera enfiarmos as cousas de Maluco, enquanto D. Duarte governou a Índia, será necessário tornar ao estado em que leixámos António de Brito, capitão da fortaleza de S. João de Ternate, e quando a ele começou a fazer, que foi o ano de quinhentos e vinte um (como fica atrás no fim do sétimo capítulo do Quinto Livro desta Década.) A qual foi fundada com tanto prazer, como depois, prosseguindo a obra, deu de trabalho aos nossos, por ser ofício do demónio urdir e tecer cousas pera se não efeituar algua obra em serviço de Deus. E a primeira foi esta: Em vida del-Rei Boleife, defunto, pai do Rei Aialo, menino, que então vivia, 221v 221v andava desterrado um Cachil Mamole, seu filho bastardo, irmão de Cachil Daroez, por travessuras e cousas per que seu pai o lançara fora de si, e a este tempo estava na Ilha Geilolo. O qual, vendo que seu irmão Cachil Daroez o não queria recolher, e que por razão do governo que lhe a Rainha entregara (como atrás escrevemos) e muito favor que tinha de António de Brito, estava tam isento que fazia pouca conta dele e de outros homens principais, começou ordenar com eles e com a Rainha, per meios que pera isso teve, que não deviam consentir que mais governasse, porque ia tomando tanta posse do governo, que se levantaria com o reino. E isto também teceu com el-Rei de Tidore, pai da Rainha, que nenhua outra cousa desejava senão 440 destruir Cachil Daroez, quanto mais via crescer a obra da nossa fortaleza. E feita a torre da menage com muros e baluartes de pedra e cal e defensões que ele não era costumado ver, via neles a mesma morte. A Rainha também, aconselhada por seu pai e arrependida do poder que tinha dado a Cachil Daroez, pareceu-lhe que este seu poder havia de matar seu filho e destruir a ela. Finalmente, foi o demónio tecendo uns ódios e suspeitas deste Cachil Daroez, que o irmão Cachil Mamole determinou de o matar, e não sem favor e conselho destas principais pessoas que lhe queriam mal. Mas porque ele isto não podia fazer a face descoberta, veo a Ternate de noite muitas vezes, ua das quais ele mesmo foi morto mui perto da nossa fortaleza. A fama da sua morte teve duas culpas na opinião da gente: os que queriam mal a Cachil Daroez a davam a ele, dizendo que soubera vir ele àquela ilha de noite, que o mandara fazer; outros deziam que as guardas que vigiavam, cuidando ser algua escuita, o fizeram, sem saber quem era. A morte do qual causou maior indinação contra Cachil Daroez. E como eles sabiam que todo seu poder e valia procedia de António de Brito, determinaram de o matar a ferro ou com peçonha, como melhor podessem. E pera isso el-Rei de Tidore ordenou um banquete, o qual queria dar por honra de seu neto em Ternate em suas casas, que eram perto da nossa fortaleza, onde António de Brito havia de ser convidado, da qual cousa ele foi avisado per Cachil Daroez. Vindo o dia do banquete, pera o qual era chamado, el-Rei de Geilolo e todolos principais destas ilhas, em que se ajuntou grande número de gente, quando vieram chamar António de Brito estava ele lançado na cama com mostra de um acidente que lhe dera. E per os mensageiros del-Rei e da Rainha se mandou desculpar, mandando em seu lugar o feitor Rui Gago, pera receber aquela honra, com que el-Rei de Tidore ficou em vão de seu propósito. Passado o dia da festa, em que a mais da gente se foi pera suas casas, leixou-se ficar el-Rei

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de Tidore, dizendo que queria folgar alguns dias com sua filha e seu neto, e às vezes o ia visitar António de Brito com mostras de amizade. No qual tempo, ele tinha boa guarda na fortaleza, e tudo estava a recado, dessimulando com o Rei, até que se foi bem triste por ver que a obra crescia em mais fortaleza. Porém 222 220 este trabalho custou a vida a muitos, adoecendo a gente com ele e com a variedade dos mantimentos, e mais estando debaixo da Linha Equinocial. Entre as pessoas que daquela infermidade morreram, as principais foram: Rui Gago, o feitor, e ficou no seu ofício Duarte de Resende, que era escrivão da feitoria. Estando as cousas neste estado entre António de Brito e el-Rei Almançor, 441 de Tidore, crescia o ódio cada vez mais e o crédito de Cachil Daroez, porque ele era o que sustentava nossas cousas, com que recebia muita honra dele, António de Brito, que pera todos seus imigos era ua dor sem paciência, a qual se convertia em danarem a nós no que podiam, de maneira que começaram de lhe fazer guerra a mais dessimulada que poderam, com mandar que a gente costumada trazer mantimentos à praça não os trouxessem. Além disto, aconteceu neste tempo virem alguns juncos da Ilha Banda à Ilha Tidore a buscar cravo, cousa que não podiam fazer. Porque, como esta Ilha Banda estava debaixo do senhorio del-Rei de Ternate, eram eles obrigados a vir a ela e não a outra parte; e assi estava assentado com el-Rei Almançor que os não havia de receber na sua ilha, e ele e eles, em ódio da nossa fortaleza, iam lá vender e comprar. António de Brito mandou-se per vezes queixar a el-Rei Almançor; mas ele deu tam pouco por isso, que ordenou António de Brito de mandar lá ua fusta pera dar cata a alguns juncos que ali estavam, e que, achando-lhe cravo, que o tomasse; ao qual feito foi António Tavares, e por língua António Cabral. Na qual fala parece que se desmandou muito, com que el-Rei ficou escandalizado, e muito mais por irem dar cata a um junco que tinha tomado um pouco de cravo em tempo que a gente dele era em terra. E aconteceu que, com um tempo que veo súbito, a fusta foi ter à costa, e os mouros, como viram os nossos em terra, mataram todos, e assi alguns escravos que remavam, o qual feito disseram a António de Brito que fora per mandado del-Rei. E mandou-se queixar a ele da morte daqueles homens, e que devia mandar castigar os que tal obra fizeram; ao que el-Rei respondeu com palavras, mostrando ter disso muito pesar, e que, quanto aos autores de tal obra, que aí os mandava, pera deles tomar emenda. O que António de Brito houve per um grande desprezo, por serem estes homens que mandava muitos cíveis, e que ele por outros delitos tinha condenados à morte. Finalmente, daqui se moveu que António de Brito assentou com Cachil Daroez que era melhor fazer descobertamente a guerra a el-Rei de Tidore, porque ela faria que não prosseguisse em tais obras com título de amigo, as quais havia de usar por ser mui manhoso, enquanto não fosse castigado. E pera se esta guerra fazer com melhor cor, fez António de Brito, per meio de Cachil Daroez, ajuntar el-Rei e a Rainha com todolos principais do Reino, e lhe propôs esta injúria e dano que tinha recebido del-Rei Almançor, e assi outras cousas, que todas eram sinais de imigo. Dadas per ele muitas razões e tais que a Rainha e todolos seus, não tendo que responder em contrairo, disseram que a guerra 222v 220v se movia justamente, pois el-Rei Almançor tais cousas consentia. 442 E porém disse a Rainha que ela e seu filho queriam ir estar primeiro à prática com seu pai; per ventura cessariam estes movimentos de guerra. A qual vista foi no mar, onde Almançor veo, e em lugar de paz, consultaram como fariam guerra à fortaleza, do que Cachil Daroez, como homem que trazia escuitas nas cousas que se moviam contra nós, foi logo sabedor. E o que mais afirmou ser

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isto verdade, foi tolherem totalmente os mantimentos que vinham à praça, de que a fortaleza se mantinha, e não se podia haver ua galinha pera um doente a peso de ouro. Cachil Daroez, a quem António de Brito fazia queixumes destas cousas, respondeu-lhe que, ante que o negócio viesse a mais mal, seu conselho era que lançasse mão da Rainha e del-Rei, e os trouxesse à fortaleza e os tevesse nela em modo de reféns, enquanto a não tinha acabada, e estava tam pobre de gente como havia nela, e isto fosse logo ante que a Rainha se acolhesse pera a serra, onde tinha sabido que se queria ir com todolos filhos. António de Brito, dando conta aos principais da fortaleza, posto que houve muitas dúvidas sobre o caso, assentaram per derradeiro este ser o remédio mais seguro, por não morrerem todos à fome. Ordenado o dia que isto havia de ser, escolheu António de Brito quorenta ou cinquenta homens, aos quais mandou rodear as casas del-Rei, e que lá achariam Cachil Daroez, que daria ordem como haviam de trazer a Rainha e el-Rei, e ele ia logo trás eles. Chegando os nossos onde estava el-Rei, sentindo a Rainha a gente, como mulher culpada e que receava algua cousa, se pôs em salvo, deixando os filhos, el-Rei e Cachil Daialo e Cachil Tabarija, que era o menor. Aos quais Cachil Daroez não consentiu tocar algum dos nossos, dizendo que as pessoas reais haviam de ser levantadas pelos de sua linhagem; e chegando a el-Rei, com muita veneração o tomou nos braços e mandou a dous homens fidalgos que tomassem a seus irmãos, e os levaram todos três ao colo. O rebate foi logo dado na cidade; e saindo com eles já fora dos seus Paços, chegou António de Brito, e os levou com aquela mesma honra e acatamento. Postos em cima em um apousentamento da torre, onde lhe estava ordenada, como a seu modo e como Rei que era, foi tanta gente derredor da fortaleza, que foi necessário a António de Brito chegar a ua janela, e per meio de Cachil Daroez lhe fez um razoamento, todo fundado no serviço del-Rei, seu Senhor, e segurança de sua pessoa e por assossegar o ânimo de alguas pessoas que queriam meter aquele reino em revolta. E que lhe lembrasse quanto el-Rei Boleife tinha encomendado a todos a amizade dos portugueses, e quanto procurara aquela fortaleza, que ali viam feita, a qual estava toda oferecida, com quantos portugueses nela houvesse, ao serviço del-Rei, pera lhe defender seu reino e estado de seus imigos. E que soubessem certo que el-Rei estava tam contente, como nos braços de sua mãe, e assi seus irmãos. 443 Per este modo Cachil Daroez, 223 323 como homem prudente, lhe disse tais cousas, com que todos se tornaram pera suas casas contentes do que era feito. E por mostra de mais segurança da pessoa del-Rei, Cachil Daroez ordenou que três ou quatro pessoas nobres do serviço del-Rei se viessem pera o servirem, e que nos seus Paços lhe fizessem o comer, e pera seus irmãos, e de lá o traziam feito pera as pessoas que o acostumavam fazer. Como António de Brito teve este penhor, per conselho de Cachil Daroez, com trombetas mandou denunciar guerra contra el-Rei de Tidore e prometer a qualquer homem que lhe apresentasse a cabeça de um dos seus moradores, que lhe daria um tanto. E como aquela gente é belicosa e cobiçosa, foi tamanho o alvoroço neles de prazer, que os mantimentos pera os nossos vieram logo à praça, e eram tantos os saltos que se faziam na ilha por ganhar o prémio, que em poucos dias mandou pagar António de Brito mais de seiscentos panos. E além desta guerra que fazia a gente comum em seus paraus, mandou António de Brito armar um navio pera ir sobre o porto da Cidade Tidore e lhe defender todolos mantimentos e cousas que lhe iam de fora, a capitania do qual deu a Jorge Pinto da Silva. O qual, estando prestes pera partir, chegaram Martim Afonso de Melo Jusarte e Martim Correa, que (como atrás escrevemos) ambos se ajuntaram em companhia pera vir àquela parte. Com a qual chegada António de Brito deteve Jorge Pinto até ver o que faria, por não ir só, esperando que com estes dous capitães e gente que traziam poderia fazer a guerra a Ternate mais poderosamente.

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Passados os primeiros dias que estes novos hóspedes descansaram, teve António de Brito conselho com eles e com Cachil Daroez. Porque, como era homem fiel a nós e cavaleiro de sua pessoa, e de grã conselho pera aquele negócio da guerra, convinha ser presente. E assentaram que fossem chamados todolos principais e amigos e vassalos del-Rei de Ternate, de todalas ilhas a ele vezinhas, que o viessem ajudar com todo seu poder, os quais neste ajuntamento, por ser muita gente, se deteveram mês e meio. No qual tempo, porque quando fossem tomassem a el-Rei Almançor mais necessitado, mandou António de Brito ao mesmo António Pinto, que em o navio que tinha armado se fosse lançar sobre o porto da cidade Tidore, e com ele foi Lionel de Lima, um fidalgo mancebo, em um zambuco, os quais atormentaram bem a cidade uns dias que ali esteveram em lhe tolher os mantimentos. E como os mouros viram que o modo deles era em aparecendo o navio ou barco que se vinha pera a cidade, logo iam a ele, ordenaram de os acolher per este seu modo, mandando de noite ua coracora, que são navios leves de remo, que a outro dia aparecesse ao mar, como que vinha com algum mantimento da Ilha Geilolo, que está defronte. E tanto que os nossos navios fossem a ele, se fizesse em outra volta, como que se acolhia a 444 um seio que a mesma Ilha Tidore fazia, onde estava ua calheta, a de dentro da qual haviam de estar certos paraus em cilada. 223v 323v E na entrada da calheta estava um recife de pedras que a água lavava de maneira que se não viam, e per cima podia entrar barco leve, fazendo conta que este recife seria ua rede, em que eles esperavam caçar. E assi foi. Porque, tanto que amanheceu, vista esta coracora, Jorge Pinto, por lhe cair mais à mão, se foi a ela. E como ia alvoroçado com o remo teso quási a proa sobre a popa dele, como galgo sobre as ancas da lebre, entrando na calheta, encalhou, por ser navio pesado e de quilha. Ao qual logo saíram os paraus; e posto que Jorge Pinto pelejou como cavaleiro que era, todavia ele ficou ali morto com seis portugueses e quorenta remeiros que iam com ele. Lionel de Lima, quando de longe viu a peleja de Jorge Pinto, acudiu-lhe; mas não ousou de entrar no recife, por não ficar da mesma maneira encalhado, e mais era já tam tarde este seu chegar, que não aproveitara. Os mouros dos paraus não se contentaram com este feito, que lhe sucedeu segundo cuidaram, mas ainda, por mostrar a seus vezinhos a vitória, cortaram as cabeças aos nossos e foram-se a ua Ilha chamada Moutel, meia légua de Tidore (por esta Moutel ser do senhorio de Ternate), e com grande festa em seus paraus embandeirados, do mar mostraram as cabeças dos nossos aos da terra, perguntando-lhe se as conheciam, e que levassem esta nova ao capitão António de Brito. O qual como isto soube per estes moradores de Moutel, mandou logo vir Lionel de Lima pera prover ao diante nesta guerra, que teve tam mau princípio.

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223v 323v 444 Capítulo X. Como, ateada a guerra entre os nossos e el-Rei Almançor de Tidore, ainda que no princípio dela aconteceram desastres com morte e feridas de alguns dos nossos, por fim de alguns grandes danos que el-Rei recebeu, veo pedir paz a António de Brito, que lhe ele não concedeu. Ao tempo que aconteceu este desastre eram perto de mil e quinhentos homens juntos na cidade de Ternate, todos convocados para esta guerra contra el-Rei Almançor. E tendo António de Brito conselho sobre este caso aquecido, e prosseguimento da guerra com os capitães que vieram de Banda, Cachil Daroez e outros mandarins principais, propostas muitas cousas de ua e de outra parte, assentou-se que era mui bem prosseguir na guerra, porque era a melhor conjunção que podia ser, por ser junta tanta gente pera servirem el-Rei, com ânimo de morrerem por ele, e 445 mais por não parecer fraqueza nossa, que com o primeiro dano perdíamos o fervor daquela guerra. E ordenou-se assi, que Martim Afonso de Melo como principal pessoa se partisse logo em um navio, e com ele Lionel de Lima e Martim Correa em outros, e se fosse lançar sobre a calheta, onde mataram António Pinto, e ali esperassem Cachil Daroez, o qual havia de 224 324 partir com ua frota de cem paraus, com toda a gente da terra que era junta. E assi se fez. Chegado Martim Afonso ao lugar ordenado, porque estava ocioso, esperando Cachil Daroez, e um Gaspar de Almeida, que ia em sua companhia saber ua aldea junto da água ua légua donde estavam, disse que lhe parecia bem que aquela noite a fossem queimar, o que Martim Afonso aprovou, e apercebeu pera isso dous paraus e dous batéis com até quorenta homens. E porque determinou dar nela ante-menhã, partiu-se de noite por não ser visto da cidade Tidore, porque havia de passar ao longo dela pera ir à aldea que estava além. E por mais que ele, Martim Afonso, se despachou, por lhe ser contrairo o vento, era já alto dia quando passaram perante a cidade. O porto da qual estava cheo de paraus de guerra; e quando viram que os nossos não eram mais que quatro vasilhas tam pequenas, entenderam que iam dar no lugar, e foram-se trás eles, com prepósito que com eles saltassem em terra, de lhe tomar a embarcação. E porque Martim Afonso, chegando ao lugar, caiu no ardil que eles levavam, fez ua volta sobre eles, e com os berços e artelharia os enxotou bem longe ao mar, e tornou-se a ua calheta que o lugar tinha. Os moradores do qual, com o temor da guerra que com eles tínhamos, deixaram a povoação de baixo, que seriam alguas dez ou doze casas, por ser de pescadores, com ua mesquita, e subiram-se em cima de ua rocha de pedra viva, que estava em um teso pouco afastado da aldea. Martim Afonso, por não ir debalde, determinou de sair em terra; e chegando ao pé da fraga da penedia, não acharam outro caminho, senão ua vareda entaliscada com os penedos de ua parte e da outra, que um homem despejado teria bem que fazer em ir per ela acima. E no meio desta subida, onde era mais estreita, estava um parau atravessado como defensão da passagem, pera no tempo da necessidade, vindo os imigos a eles, o lançarem sobre eles, e mais acima outro polo mesmo modo. Martim Correa, como ia diante e viu cousa tam dificultosa, começou de bradar com Gaspar de Almeida porque os enganara. Ao que ele respondeu: - Ao tempo que eu vim a este lugar, não sabia que tinha este minhoto o ninho tam alto. 446 Martim Correa, em modo de graça, disse: - Pois eu hei-de ver estes minhotos como estão aninhados - e começou de ir adiante até

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chegar aos paraus; achando ir diante si um Gomes Botelho, clérigo, perguntou-lhe onde ia. Respondeu: - Vou lançar aquele parau donde está, pera termos lugar de ir e subirmos acima. - Pois assi é - disse Martim Correa - eu vos quero por companheiro. E ambos o foram lançar. Vendo isto Francisco Lopes Bulhão, que estava em baixo com Martim Afonso - que Martim Correa achara caminho - como era cavaleiro e tinha grandes pontos nisso, foi-se pela vareda acima ajudar a lançar o outro segundo, e assi o fizeram, que fez tamanho estrondo, vindo pelos penedos abaixo, que acudiram os mouros de cima. 224v 324v E vendo que os nossos encaminhavam a eles, começaram às pedradas, e com galgas de pedra tam furiosas a defender irem adiante, que conveo a Martim Correa e aos outros meterem-se debaixo de ua lapa que faziam uns penedos, até que Martim Afonso chegou com a gente, e começaram com as espingardas apartar os mouros de cima, por não tirarem mais. Na qual chegada da gente, como o lugar era estreito e uns queriam ir por cima dos outros, acertou um dos nossos espingardeiros fazer um tiro, e não lhe querendo a pólvora tomar fogo, abaixou-se pera a concertar. E estando nisto, parece que lhe ficou algua faísca na escorva, com que desparou a espingarda, e foi dar pelo ombro dereito a Martim Afonso, passando-lhe os bocetes da malha, até entrar dentro no corpo. Ao qual desastre acudiu logo Martim Correa, e tirados os bocetes, que viram bufar o sangue, porque parecia a ferida mortal pelo lugar onde foi, o trouxeram a um batel, apertando-lhe a ferida com ua touca do mesmo Martim Correa, que lhe servia de capacete. E foram-se com esta empresa tam mal acabada, que se rematou em queimarem a mesma mesquita e casas que ali estavam. Tornados todos à calheta onde estavam os navios, foi mandado Martim Afonso em um parau à fortaleza a se curar, e Martim Correa se deixou ficar com os navios na guarda da cidade, até vir Cachil Daroez com a gente que ficava ordenada. Mas António de Brito sentiu tanto este desastre, que entreteve Cachil Daroez, e logo ao outro dia mandou vir Martim Correa, com determinação de totalmente deixar a guerra, temendo que com aqueles desastres viesse a perder tanta gente, que não tevesse quem lhe defendesse a fortaleza, porque não tinha per todolos portugueses que eram juntos, mais de cento e vinte. Peró, como Cachil Daroez tinha metido neste negócio muito cabedal e junto muita gente, e também mostrávamos grande fraqueza, por causa de dous desastres, desistir logo da guerra, concedeu-lhe António de Brito ir ele com toda a gente da terra tomar um lugar chamado Mariaco, 447 situado no meio da ilha em um teso, que parecia de todalas partes, principalmente da face que estava contra a Ilha Ternate, onde tínhamos a fortaleza. E a rezão que o moveo a dar neste lugar, foi por ser o mais nobre e o melhor da ilha, onde antigamente os reis dela estavam; mas depois, por causa do comércio dos navios que ali iam buscar o cravo, se desceu el-Rei à fralda do mar, fazendo novamente a cidade em que estava. Na qual viagem, logo no cometimento do caso aconteceu outro tal desastre a Francisco de Sousa, que ia por capitão dos portugueses, per esta maneira: Cachil Daroez, como levava muita gente, tanto que chegaram ao porto, encaminhou a Francisco de Sousa per um caminho mais breve pera o lugar Mariaco, e disse-lhe que com o corpo da sua gente havia de rodear per outra parte, pera encavalgar a serra onde ele estava assentado, e que veria dar nele; como 225 325 desse, que daria ua grita, a que ele, Francisco de Sousa, acudisse. Assentado este modo, fazendo Francisco de Sousa de vagar seu caminho dereitamente ao lugar, como os mouros se vigiavam e sentiram que vinha per o caminho ordinário, desceram ao

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encontro dele com ua grande grita. Francisco de Sousa, parecendo-lhe que era Cachil Daroez que entrava já no lugar, apressadamente foi dar nos contrairos. Na qual revolta foi ele ferido em ua perna com a espingarda do mesmo espingardeiro, que feriu a Martim Afonso, por ser um homem um pouco embaraçado quando vinha ao usar de seu ofício. Parece que o temor o trovava no que devia de fazer; e se Cachil Daroez não acudira, houvera-se de fazer mais mal, que ferirem quantos feriram dos nossos. E por salvar a pessoa dele, Francisco de Sousa, tornou-se aos batéis, mandando ele e os feridos a António de Brito, aqueixando-se de ele guardar tam mal a ordem que lhe dera; que lhe pedia que se não agastasse, que ele somente com os seus queria prosseguir naquela cousa, e que não se havia de ir dali, até lhe Sua Mercê mandar Martim Correa, por ser homem mais maduro e ufano na guerra que Francisco de Sousa, por ser ainda mancebo e novo nela, e com Martim Correa viessem de quinze até vinte portugueses, e que não queria mais. António de Brito totalmente, com este terceiro desastre, pôs-se em não querer mais prosseguir na guerra, e assi o mandou dizer a Cachil Daroez, e que espedisse a gente; mas ele, como era homem cavaleiro, e por não perder seu crédito e também não dar glória a seus imigos, deixou a sua gente onde estava encomendada a um seu capitão; e tanto pôde com suas razões, que houve António de Brito por bem que fosse com ele Martim Correa com até vinte homens. E escreveu a Lionel de Lima, que estava sobre o porto 448 de Tidore pera lhe tolher os mantimentos, que se fosse pera Martim Correa com alguns homens, deixando o navio a bom recado; o que ele fez, levando consigo quinze homens. Este lugar de Mariaco, como dissemos, estava em um alto todo cercado de madeira mui grossa e basta, com travessas de outros paus per dentro pregados com pregos grossos e suas guaritas em cima em partes pera defender a subida, e por causa do rebate que lhe deram, estavam com dobrada artelharia e gente. E posta toda em cima, assi a de Cachil Daroez como a nossa, quis Martim Correa dar ua vista ao assento do lugar, e tomou logo posse de duas serventias, onde pôs homens. E na que ia contra Tidore pôs um berço de metal, e com ele Lionel de Lima, donde podia fazer muito dano ao lugar, por lhe ficar ao sob-pé, e mais defenderia se algum socorro lhe viesse per aquela parte. E depois que andou notando, e per onde era mais fácil entrada, primeiro que começasse a fazer algua obra, foi-se a um vale aí perto, onde Cachil Daroez estava lançado com sua gente, logrando a frescura de ua ribeira que corria mui graciosa, por desencalmar 225v 325v da calma grande que fazia. E entrando Martim Correa per entre a gente, que estava toda bem descansada, como quem queria primeiro ter a sesta e vinha de vagar a cercar o lugar, começou-lhe a dizer: - Sus! Sus! É tempo! Vamos a fazer nossa obra! Ao que eles responderam: - Ainda não nos chegou a vontade - porque eles, enquanto lhe não vem aquele furor de pelejar, ninguém os move. Cachil Daroez, vendo Martim Correa como vinha apressado, disse-lhe: - Logo me vou trás ele, porque esta gente eu sei como se quere, e não se move senão a seu modo. Martim Correa, como viu o seu vagar, tornou-se, e levando consigo sete ou oito mandarins deles, homens seus amigos, que se prezavam de cavaleiros, e com outros tantos que o quiseram seguir, foi-se pôr em ua parte de cerca que tinha os paus mais ralos, e não tam fortes, por ter de dentro ua parede de ua casa comprida, que encobria aquela entrada, a qual Martim Correa tomava por mais segura; porque, entrando na casa, ficava já além da cerca dentro na povoação, e defendido com as paredes da casa. Determinando-se de entrar por aquela parte, mandou chamar Lionel de Lima, que estava em

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guarda do berço, e trouxe consigo algua gente; ao qual deu conta de sua determinação, e ele respondeu que tal não fizesse, por ser cousa mui perigosa, e que ele tinha ua carta de António de Brito, em que lhe mandava que, cometendo ele, Martim Correa, cousa de tanto perigo, que lhe requeresse de sua parte que tal não fizesse. E sobre isso tirou ua 449 carta, e começou de a ler diante da gente em alta voz, que ouvissem todos, amoestando-lhe que obedecessem a seu Capitão-mor. Ao que Martim Correa respondeu: - Senhor Lionel de Lima, António de Brito me dava um regimento, quando determinou de eu vir a este negócio, e eu lhe respondi que não tinha já idade pera ler regimentos; que o deixasse em mim e não me atasse o entendimento e as mãos. Vossa Mercê se vá embora guardar o berço com a gente que lá tendes. Leixai-me esses homens que trazeis, se comigo quiserem ficar. Peró, como eles queriam mais obedecer às palavras da carta de António de Brito que às de Martim Correa, seguiram a Lionel de Lima. Somente Joane Mendes, um cavaleiro (como o era de sua pessoa), disse a Martim Correa: - Eu, senhor, não tenho mais companhia comigo que esta chuça e adarga que trago nas mãos. Se vos eu contento com elas, vamos onde quiserdes, que eu vos acompanharei até morte. Martim Correa, dando publicamente a Joane Mendes os agradecimentos de tam honradas palavras, chegou-se a ele passo e disse-lhe o que haviam de fazer. E porque desta banda de fora, ao longo dos paraus, per onde ele esperava entrar, estava ua caniçada, disse Martim Correa aos mandarins que com os seus criados a derribassem, e vissem se tinham os mouros metidos per ali alguns estrepes de peçonha, cousa entre eles mui usada. Derribada a caniçada e o lugar seguro da suspeita dos estrepes, chegou-se 226 335 Martim Correa, e per um canto abalou um pau daqueles com tanta força, que o moveu per ua parte per onde entrou de ilharga, e trás ele dous criados seus com espingardas. Joane Mendes, que também andava buscando entrada per algua parte, como viu Martim Correa entrar, foi-se atrás dele, e assi um dos mandarins que o seguiam. Os mouros, como sentiram sua entrada, assi das guaritas como de dentro, a pedradas, frechadas e zargunchos ofendiam bem; e o primeiro sinal que tiveram de boa ventura, foi que, andando entre eles um mouro honrado, parente del-Rei de Tidore, muito afinado, governando os outros, fez tam boa pontaria um dos espingardeiros, com que o derribou. Sobre o qual caso Lionel de Lima, do lugar onde estava, por ser alto, vendo o trabalho em que Martim Correa andava, acudiu com sua gente, e juntos todos em um corpo, começaram a ferir os mouros de maneira que fizeram ua boa praça. A este tempo foi dado nova a Cachil Daroez como o lugar era entrado dos nossos, e com alvoroço, bem como ua banda de estorninhos desce a ua árvore onde se quere pousar, assi a sua gente foi em um avôo sobre as tranqueiras, e aí entraram na povoação, fazendo maravilhas nos mouros que estavam dentro, sendo todos homens de peleja, porque as mulheres e filhos tinham postos em suas fazendas lá por dentro da terra, receando esta entrada nossa. 450 Alguns dos quais, que seriam até cento e tantos homens, cuidando que podiam segurar a vida, subiram-se em uas árvores altas de fructo da terra, que os moradores tinham postas nas portas pera sombra. Os contrairos, que era a gente de Cachil Daroez, não faziam senão derribar neles às frechadas, como se foram aves de caça, sem lhes aproveitar entregarem-se por cativos. A este tempo estava Martim Correa assentado sobre um assento a ua porta, que se não podia bem afirmar sobre ua perna, que tinha ferida, de um arremesso que lhe fizeram à entrada; e quando soube a crueza que os debaixo usavam com os de cima da árvore, chegou lá, e não havia remédio com Cachil Daroez que quisesse dar vida àquela gente, que se entregava, dizendo ser antigo costume, e quási antre eles religião que não podiam quebrar: que, quando algum rei ou pessoa em seu nome era em guerra e os imigos, ante de virem pelejar, se não entregavam, depois não lhe davam vida.

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Nesta prática parece que um dos de cima desesperou da vida, e, por se vingar, deixa-se cair da árvore, e tanto que foi no chão, arremeteu a um dos nossos com um cris, que é arma como as nossas adagas, e meteu-lho pelos peitos; mas ele foi logo feito em selada, sem lhe ficar membro inteiro, a qual cousa azedou mais Cachil Daroez. Todavia, Martim Correa não podendo ver a carneçaria que os mouros faziam em descabeçar e andar às rebatinhas a quem levaria ua cabeça deles, como se fora ua fructa muito gulosa que se lançava da árvore, 226v 335v moveu a Cachil Daroez com esta razão, dizendo ser aquela guerra feita em nome del-Rei D. João de Portugal e não del-Rei de Ternate, com que ele concedeu recebê-los com seguro das vidas. E pera isto foi necessário fazer ua certa cerimónia, segundo seu uso, quando concedem tal cousa, que foi mandar trazer ua pouca de água, e, lançada pelo punho de espada, a bebeu pela ponta. Martim Correa, acabada a sua cerimónia, tornou-se a assentar onde estava, enquanto os ternates andavam a descabeçar os corpos mortos dos tidores, por não haver já mais que fazer; mas primeiro que se ele fosse dali, se viu em maior perigo e trabalho que em todo aquele feito. E o caso foi este: Tem o demónio tanto poder, que tem semeada per todalas gentes ua opinião de honra de cavalaria; e quanto eles são mais bárbaros, mais barbaramente usam no vencimento de seus imigos. Das quais opiniões vem que naquelas partes o maior sinal que um homem pode levar de guerra pera ser estimado de cavaleiro e receber acrescentamento de seu rei, é levar muitas cabeças de seus imigos; e não se tem em conta se os matou ele ou não: leve-as ua vez, que isto basta pera ser tido por cavaleiro. Com a qual glória de honra vinha um mouro dos ternates com duas cabeças atadas ua na outra ao pescoço, correndo-lhe o sangue pelos peitos, mais contente que se trouxera um fio de pérolas com duas jóias muito ricas. Atrás o qual mouro vinha outro, e, de quando em quando, tirava-lhe de ua 451 das cabeças que lhe queria tomar, e o que era senhor delas, arremetia a ele com grande fúria, defendia-se dele com as mãos e doestos da língua. Chegados com este entremês onde estava Martim Correa, começou o velho com grande paixão dizer: - Senhor, valei-me aqui! Dizei a este homem que me dê ua cabeça destas, porque sou senhor de um parau, e não tenho nenhua pera levar nele pera minha honra, e ele leva duas, sem ter parau. Martim Correa cuidou que não fazia tanto mal. Começou de rogar ao das cabeças que desse àquele homem honrado ua das que levava; ao que ele respondeu que não dormira ele a sesta no vale onde as fora buscar e houvera cabeça; mas sem suor e sem sangue querer ganhar honra, que não estava em razão, porque a honra era filha do trabalho e a preguiça madre da baixeza. O outro dava desculpas e matava-se, pedindo a Martim Correa que em toda maneira lhe houvesse ua daquelas cabeças; o qual, querendo lançar mão do senhor delas, pera lhe tomar ua, deu dous pulos pera trás, bradando como se fora um homem só que o querem roubar ladrões; a que logo acudiram alguns tam indinados, como que queriam defender aquela força, de maneira que os deixou Martim Correa letigar em sua honra. Acabado de se desembaraçar deles, em que se mais detiveram que no vencimento, mandou per parte pôr fogo ao lugar. O qual, como era de madeira e bem seca, começou de lavrar de maneira, e fez tamanha 227 227 luz, que, vinda a noite, parecia ua serra de labareda, que foi vista da nossa fortaleza, e deu sinal aos nossos da vitória que tinha havida Martim Correa.

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O qual, embarcado com toda a gente a requerimento de Cachil Daroez, passou pela Ilha Maquiém, a metade da qual era del-Rei Almançor, de Tidore, e a outra del-Rei de Ternate. E chegando a um lugar dos de Tidore, que estava à borda da água, mandou Cachil Daroez chamar alguns dos moradores, amostrando-lhe as cabeças que levavam dos tidores, dizendo que se fizessem vassalos del-Rei de Ternate, e não curassem del-Rei Almançor; e senão, que sairiam logo em terra a lhe fazer outro tanto. Finalmente, estes com trazerem logo presentes e outros que também se deram, e outros que foram conquistados a ferro, saindo os nossos em terra, não se foram daquela ilha sem toda ficar por el-Rei de Ternate. E não tardou muitos dias depois que Martim Correa chegou a Ternate, onde foi recebido com muito prazer e honra, que, per ordem de Cachil Daroez, ele, Martim Correa, foi à Ilha Batochina, um lugar chamado o Gane, que era del-Rei de Tidore, sessenta léguas de Ternate, o qual destruíu, e assi houve muitas vitórias dos tidores no mar, servindo já neste tempo de Capitão-mor 452 do Mar e alcaide-mor da fortaleza, que lhe António de Brito deu pelos serviços que ali fez. Com as quais vitórias el-Rei Almançor se viu tam perdido e atribulado, que mandou pedir pazes a António de Brito, que lhe ele não concedeu porque o temor deste assombrasse os outros vezinhos a não quebrarem a nossa amizade, como este quebrou. E porque estas cousas já foram feitas no fim do ano de quinhentos e vinte e quatro, e na entrada de vinte e cinco, em que na Índia estava o Conde da Vidigueira, Almirante dos Mares dela, de que veo por Viso-Rei pera a governar, deixaremos as mais deste Oriente pera seu tempo, por escrever as que ele passou depois que partiu do reino de Portugal, e nelas começaremos o Livro Nono desta Terceira Década.

LIVRO IX 227v 227v 453 Capítulo Primeiro. Em que se escreve o modo que se tem na eleição da pessoa do Governador da Índia; e quando falece, como o sucede a pessoa que lá está; e como o ano de quinhentos e vinte quatro el-Rei D. João mandou o Conde de Vedigueira por Viso-Rei à Índia; e do que passou no caminho até chegar a Goa. Muitas cousas leixam de escrever os escritores da História por serem mui sabidas e notas aos vivos daquele reino e tempo em que eles escreveram, donde se segue ficarem elas sepultadas no decurso do tempo, cuja memória é mui fraca, senão é ajudada da escritura. Porém, quando em algua particular achamos cousa do que eles não fizeram menção, ora seja de caso aquecido, ora de costume e governo da nossa própria pátria, deleitamo-nos muito com esta tal novidade, e às vezes tomamos a mesma cousa passada pera exemplo do presente governo. E porque a principal que a Índia tem é a pessoa do Governador e Capitão Geral dela, diremos aqui o modo de como é eleito quando daqui parte, e o juramento que lhe dão, e, quando acaba o seu tempo, o que faz na entrega do próprio cargo àquele que deste reino 454 vai provido em seu lugar, e também per que modo sucedeu o que lá está, quando algum falece. Porque ainda que estas cousas a nós, os presentes, sejam comuas, podem ser conhecimento aos estranhos de como governamos aqueles estados do Oriente, e os nossos que depois vierem, saibam como se conservou per bom conselho; pois muitas das cousas per que se ele descobriu e conquistou, que foram obras de seus avós, esta nossa escritura os tem feito herdeiros da honra que, vertendo seu sangue, eles ganharam. O Governador que deste reino é enviado, sempre na eleição dele se 228 228 tem esta consideração: que seja homem de limpo sangue, natural e não estrangeiro, prudente, cavaleiro, bem acostumado, e que se tenha dele experiência em casos semelhantes de mandar gente na guerra. E por evitar os artefícios que sempre há nestas eleições acerca dos oficiais e pessoas do conselho del-Rei, com os quais ele consulta estas cousas, donde se pode preverter esta sua ordem de eleger, além das cousas que este eleito pera Governador jura de guardar e comprir, pondo corporalmente as mãos nos Evangelhos, é que per si, nem per outrem pediu nem requereu o tal cargo. Porque quere el-Rei que ua tam grande cousa como é ser Governador da Índia, não seja havida per requerimento, somente per eleição. E as outras cousas que jura acerca de fazer e guardar justiça, comprir os regimentos del-Rei que lhe forem dados e não receber serviços e peitas de todo género de homem, e que proveja os cargos e ofícios aos criados del-Rei, e não aos seus, e outras cousas que há-de guardar, é um temor ouvi-las, quanto mais confiar um homem que as pode inteiramente comprir. E não dá S. Paulo tantas partes a um sacerdote que há-de aceitar a dinidade episcopal pera ser aceito a Deus, quantas em seu modo um Governador da Índia jura primeiro que entra nesta religião, que geralmente dura pouco mais de três anos. E prouvesse a Deus que, no primeiro ano de seu noviciado, guardassem alguns a meia parte do que os obriga o juramento; porque, se assi fosse, não veríamos, em eles chegando a este reino, os libelos que contra os tais faz o Procurador del-Rei. Peró, como a cobiça é raiz de todolos males, quando ela entra em peito de um homem, e ele a tem abonada per este provérbio do Mundo - Dos néscios leais se enchem os hospitais - e per experiência tem visto que, acerca do mesmo mundo, em melhor estado ficam os culpados que os sem culpa, fazem conta que quem passou tantas trovoadas dos mares daquele Oriente, que assi passarão as trovoadas e relâmpagos secos dos libelos cá na terra do Ponente, a qual é pátria e mui piedosa, de quem tem, e esquiva a quem se mal aproveitou, pois não podem aproveitar com a fazenda, que não trouxeram, que da pessoa poucas vezes tem seus

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amigos necessidade dela, pois, louvado Deus, vivemos em terra em que não há bandos pera se haverem mester armas. Quanto à entrega que o Governador faz na Índia a quem o sucede, as mais vezes costuma ser feita em algua igreja das que temos fundadas 455 naquele Oriente. E ali, per virtude das patentes que leva o outro que de cá vai, que é apresentada e lida por o secretário, sendo presentes os capitães e principais fidalgos que se ali acham, e assi os oficiais da justiça e fazenda, ele faz a entrega, pedindo logo um instrumento de como a entregou, nomeando as fortalezas que lá temos, e em que estado a entrega. E além deste instrumento, pera mais sua abonação, pede certidões aos oficiais de fazenda de cada ua das fortalezas, 228v 228v de como as deixou providas do necessário pera sua defensão e de todo o mais necessário; e quando algum Governador lá falece, tem-se este outro modo: Em poder do veador da fazenda da Índia, que é a segunda pessoa no governo da fazenda, depois do Governador, está um cofre com três ou quatro patentes del-Rei, fechadas e seladas, as quais chamam sucessões, e tem per cima esta escritura: Sucessão de Foão, e isto nomeando ao que então governa, que nos outros, por se não saber quais são os que estão por vir, chamam às tais segunda, terceira, quarta sucessão - e aqui assina el-Rei. E na escritura que tem dentro, declara el-Rei haver por bem que ele suceda a Foão, quando falecer etc., onde el-Rei tem assinado. Este é o modo que se tem no prover dos Governadores da Índia; e damos esta notícia por as razões acima ditas e também porque, daqui em diante, veremos uns aos outros suceder per óbito, o que até ora não vimos, e o perigo em que a Índia esteve por se não guardar este modo de abrir as sucessões. E porque este ano de mil e quinhentos e vinte quatro D. Duarte de Meneses acabava de servir de Governador em aquelas partes os três anos ordenados a ela e aos outros ofícios, e el-Rei D. João, o terceiro deste nome, por haver pouco que reinava, não tinha de cá do reino enviado ainda algum, quis que este primeiro, que ele elegia, fosse o primeiro que descobriu a mesma Índia, o qual era o Conde da Vidigueira, D. Vasco da Gama, Almirante do Mar Índico. Porque, além de nele concorrerem as calidades que acima dissemos haverem de ter os eleitos pera este ofício, como ele no descobrimento dela padecera tantos trabalhos, ter-lhe-ia amor pera a governar e trazer ao estado do jugo da servidão, de que os infiéis dela se queriam livrar, e pera acrescentamnto do seu nome lhe deu o título de Viso-Rei. Pera a qual ida, estando el-Rei na cidade de Évora, se apercebeu em Lisboa ua frota de catorze velas, de que as nove eram naus grossas de carga e as cinco caravelas latinas, a qual partiu de Lisboa a nove de Abril do mesmo ano vinte quatro. Os capitães das quais naus eram: D. Hanrique de Meneses, filho de D. Fernando de Meneses, de alcunha Roxo, que havia de servir de capitão de Ormuz; Pero Mascarenhas, filho de João Mascarenhas, que havia de servir de capitão de Malaca; Lopo Vaz de Sampaio, filho de Diogo de Sampaio, que ia por capitão de Cochi; Francisco de Sá, veador da fazenda do Porto, filho de João Rodrigues de Sá, alcaide-mor da mesma cidade 456 e senhor de Matozinhos e das terras de Sever, Baltar e Paiva, o qual com ua armada havia de ir à Jaua fazer ua fortaleza onde chamam Sunda; D. Simão de Meneses, filho de D. Rodrigo de Meneses, provido pera capitão de Cananor, e D. Jorge de Meneses, que fez aquele honrado feito em Chaúl, quando mataram Diogo Fernandes, de Beja; e António 229 229 da Silveira de Meneses, filho de Nuno Martins da Silveira, senhor de Góis, o qual ia provido de capitão de Sofala; e D. Fernando de Monroy, filho de D. Afonso de Monroy, craveiro que foi de Alcântara, em Castela, que também ia provido de capitão de Goa; e da última nau era capitão Francisco de Brito, filho de Simão de Brito, que havia de andar por Capitão-mor das naus da

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carreira da Índia pera Ormuz. E os capitães das caravelas eram Lopo Lobo, Pero Velho, Cristóvão Rosado, Rui Gonçalves e Mosém Gaspar Malorquim, que na Índia havia de servir de condestabre-mor dos bombardeiros. Em a qual armada iriam até três mil homens, muita parte dos quais eram fidalgos, cavaleiros e moradores da casa del-Rei, e outra gente limpa e de boa criação. E além da gente mareante ordenada à navegação, levava outra muita sobresselente e bombardeiros pera prover as outras velas da Índia. Partida esta frota (como dissemos) a nove de Abril, com bons tempos que lhe cursaram, chegou a Moçambique a catorze de Agosto, onde se deteve enquanto se proveu de água e reparou de ua verga, que quebrou à sua própria nau. E partido dali, primeiro que se despedisse daquela costa, que sempre é perigosa, por causa das muitas ilhas que a ela são adjacentes, perdeu-se a nau, Capitão Francisco de Brito, sem dela aparecer cousa algua, e assi se perdeu o galeão de D. Fernando de Monroy em os baixos de Melinde, mas salvou-se a gente. E das caravelas se perdeu a de Cristóvão Rosado; e a gente da de Mosém Gaspar, por ser homem estrangeiro, o mataram sobre paixões de mandar, e o fim que os autores deste feito houveram adiante se verá. O Almirante, seguindo sua viagem com estas velas, por levar per regimento que fizesse seu caminho pela costa de Cambaia, por ir dando vista a toda a costa da Índia, pôs a proa naquela parte, leixando a derrota do Malabar. E porque, com as grandes calmarias, não podia tomar esta costa que ia demandar, na paragem da qual ele ia sem os pilotos o saberem, por não ter tam cursada esta navegação como a que levavam caminho da Índia, ua quarta-feira, véspera de Nossa Senhora de Setembro, às oito horas da noite, saltou tamanho tremor em todalas naus, que cada ua se houve por perdida, parecendo-lhe que ela só padecia este tremor, sem entender a causa. Tudo era com as bombardas fazerem sinais uas às outras, cuidando serem aguages sobre alguns baixos, tudo era posto em revolta, uns acudindo ao leme que não podiam ter, outros à bomba, à sonda, e muitos a barris e a tábuas em que 457 esperavam de se salvar, não podendo entender uns aos outros, de confusos deste perigo; até que o mesmo Almirante veo em conhecimento do que era, dizendo: Amigos, prazer e alegria! O mar treme de nós! Não hajais medo, que isto é tremor da terra. Finalmente, como 229v 229v isto era assi na verdade, todo o temor e tristeza deste novo caso ficou no pesar que houveram de um homem que se lançou ao mar, cuidando que a nau dava em algum baixo; e o prazer, além de ficar em todos, por se verem fora daquele perigo, particularmente ficou em muitos enfermos da nau, que houveram saúde. Ca o temor daquele súbito caso, que durou um quarto de hora, assi deu ânimo a todos pera se levantar donde jaziam com sua febre, buscando modo de se salvar, que ficou a natureza sobressaltada. E recolhendo-se a quentura das partes exteriores, per que andava derramada, a seu próprio centro e vaso, ficaram sem a febre acidental que tinham. Posto que passado este temor sobreveo outro caso de não menos admiração e foi que, sem vento e outros sinais precedentes, veo ua chuiva de água tam grossa, que parecia algum dilúvio; mas como isto durou pouco, ficou a gente com algum espírito daqueles dous casos nunca vistos de quantos homens andavam naquela navegação da Índia. E pera leixarem a prática deles, sobreveo outro todo de seu prazer, que foi haverem vista de ua nau de mouros, que ia do Estreito de Meca pera Cambaia, sobre a qual todos arribaram; e por lhe cair mais em lanço, o primeiro que chegou a ela com o seu galeão foi D. Jorge de Meneses, que a fez amainar. O Almirante, depois que o capitão, mestre e piloto vieram ante ele e deles soube da viagem e fazenda que levavam, mandou meter nela Tristão de Taíde, seu cunhado, e Fernão Martins Evangelho, e, levada a Chaúl, valeu lá a fazenda, que veo a boa recadação, mais de sessenta mil cruzados. E per o piloto desta nau soube o Almirante que se fazia ele per sua conta perto da costa de Dio; e que o tremor que as nossas naus teveram também deu na sua; com a qual nova ele,

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Almirante, mandou seguir outro rumo por dar ua vista à cidade Dio. E como per espaço de seis dias cortaram as naus sem darem com terra, dizendo o mouro piloto ao Almirante que di a três dias a veria, saltou na gente comum outro maior temor, dizendo que a terra com aquele tremor per ventura se alagaria. E a causa de darem algum crédito a isto era ua opinião que de cá do reino levavam, autorizada per muitos astrólogos da Europa, os quais afirmaram que, neste ano de quinhentos e vinte quatro, se fazia ua conjunção de todolos planetas na casa de Pices, que prognosticava 458 quási dilúvio geral, ou ao menos de muita parte da terra, principalmente da costa marítima. E chegou esta opinião a tanto, que houve pessoas nobres neste reino que mandaram fazer gasalhado em serras altas e biscouto. E segundo Alberto Pighio, campense, conta em um tratado que doutamente escreveu contra esta opinião, alguns na sua pátria, pola fé que tinham nela, deixaram de fazer negócios de grande importância. Porém, com toda esta fé não sabemos o que fariam estes que Alberto diz, e sabemos que os nossos não leixavam de viver a seu prazer e nos serviços que tinham. 230 230 Parece que como estes profetas da Astrologia não eram mandados per Deus, como o Profeta Jonas aos ninivitas, que fizeram penitência por temerem a Deus, e estoutros temiam mais a morte que a ele; ca uns vestiam-se de celício, orando, jejuando três dias toda a alma, pedindo a Deus perdão de seus pecados; e os ninivitas do nosso tempo, tendo bautismo, apercebiam-se de biscouto e de outras provisões pera segurar a vida, sem preparar sua alma pera o que Deus quisesse fazer deles. Assi que, desta geral opinião que a gente da nossa armada levava, ou (por melhor dizer) fábula de ignorantes astrólogos, pois o ano pecou mais de seco que de invernoso, iam tam assombrados com os sinais precedentes, que conveo ao Almirante tornar outra vez perguntar ao piloto mouro por que o enganara no termo que lhe pôs que veria terra; ao que ele respondeu que, se Sua Senhoria mandara governar pera onde dizia, já tevera visto a costa de Dio; mas como posera a proa em Chaúl, tinha escorrido a outra costa; e que, quanto à sua conta, por aquele caminho que fazia ao outro dia veriam Chaúl. E posto que não foi assi, viram Baçaim, que é acima de Chaúl contra o Norte na mesma costa seis léguas; e ao outro dia, que eram cinco de Setembro, foi o Almirante surgir com sua armada no porto de Chaúl. Na qual fortaleza estava por capitão Cristóvão de Sousa, filho de Diogo Lopes de Sousa, e achou ali duas naus que deste reino partiram o ano passado, capitães D. António de Almeida e Pero da Fonseca, como atrás escrevemos. Os quais, por não poderem tomar a costa da Índia, invernaram ali, e assi achou um navio, capitão Nuno Vaz de Castelo Branco, que andava na costa de Sofala no resgate do ouro, e viera ali buscar roupa. Ao qual o Almirante leixou pera fazer seu negócio e levou as outras duas naus, e aqui tomou o título de Viso-Rei, por o levar assi ordenado per el-Rei, que o tomasse na primeira fortaleza da Índia que chegasse. Emitando nisto o modo que el-Rei D. Manuel, seu pai, teve, quando mandou D. Francisco de Almeida àquelas partes, que não se intitulou deste nome, senão depois que lá foi: e ora é esta dinidade mais corrente e barata na Índia. A qual não medrou 459 Afonso de Albuquerque, andando nela nove anos, com deixar a este reino três fortalezas feitas, as mais importantes daquelas partes, nem menos Nuno da Cunha, que fez outras três e governou aquele Oriente dez anos; e se o mereceram ou não, esta nossa História e quantos nela vão nomeados são testemunha. Tornando ao Viso-Rei, Conde Almirante: partido de Chaúl a doze de Setembro, além de Dabul, achou António Correa, morador em Goa, por capitão de três navios, per mandado de Francisco Pereira Pestana, capitão da cidade, a fazer arribar as naus a Goa, que vinham do Estreito de Ormuz com cavalos, por andar ali um ladrão de Dabul, que as fazia entrar dentro; e já António Correa dali levara ua com cavalos e tornava à mesma cousa e esperar se vinha ali ter algua nau deste reino, por ser

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230v 230v já tempo, temendo que deste ladrão podesse receber algum dano. Ao qual António Correa o Viso-Rei leixou, afim de empedir este ladrão que não fizesse entrar as naus em Dabul, com limitação do tempo que ali havia de andar, e depois que se fosse a Goa. À qual cidade o Viso-Rei chegou no fim de Setembro, onde foi recebido com grande solenidade, deixando por capitão das naus que ficavam na barra a D. Jorge de Meneses, porque os mais dos capitães delas foram com ele em navios de remo.

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230v 230v 459 Capítulo II. Do que o Viso-Rei fez em Goa e no caminho di até Cochi, onde chegou; e as armadas que ordenou pera diversas partes, estando doente da infermidade de que faleceu. Ao tempo que o Viso-Rei chegou à Índia, era D. Duarte de Meneses em Ormuz e D. Luís, seu irmão, em Cochi, dando ordem à carga das especearias que este ano haviam de vir pera cá. E como o Viso-Rei levava per regimento que desfizesse as fortalezas de Coulão, de Ceilão, de Calecute e a de Pacém, e fizesse ua em Sunda, e além disto, convinha em breve prover muitas cousas, deu-se ele, Viso-Rei, grande pressa logo em Goa a prover algua. E a principal foi entender nas de Francisco Pereira Pestana, capitão da cidade, do qual o Viso-Rei teve alguns queixumes, 460 por ser homem forte de condição; e foram tais, que o tirou da capitania e proveu dela a D. Hanrique de Meneses, enquanto ele ia a Cochi ordenar as cousas da carga, por não ser vindo D. Fernando de Monroy, que se perdera (como atrás dissemos). E mandou o Viso-Rei a D. Hanrique que se ali viesse ter D. Duarte de Meneses, que o não consentisse sair em terra e lhe dissesse da sua parte que logo se partisse pera Cochi, onde o esperava pera o despachar e partir cedo pera o reino. Partido o Viso-Rei com sua frota via de Cochi, passou pera Cananor e meteu de posse da fortaleza D. Simão de Meneses, em lugar de D. João da Silveira, que acabava seu tempo. El-Rei de Cananor, por comprazer ao Viso-Rei, logo de boa chegada lhe mandou entregar um mouro principal da terra, chamado Bala Hacém, o qual era feito cossairo com grande dano dos que navegavam per aquela costa, e assi pera as Ilhas de Maldiva, intitulando-se por Capitão-mor do Mar; o qual o Viso-Rei mandou entregar a D. Simão, que o tevesse a bom recado, preso até ele mandar recado de Cochi que se faria dele. Partido o Viso-Rei daqui, foi ter a Calecute, onde estava por capitão D. João de Lima, quási em rompimento de guerra com os mouros, e de maneira que foi necessário leixar providas alguas cousas, até ele de Cochi prover mais. E a causa principal deste rompimento (posto que entre D. João e os mouros havia particulares escândalos) era por o Samori, Rei de Calecute passado, 231 231 ser morto e reinar outro mui sujeito à vontade dos mouros. E no tempo que o Viso-Rei aqui chegou, estava ele metido pelo sertão ao pé da serra, em guerra com um senhor que per aquela parte lhe fazia alguas entradas no seu reino; e por causa desta ausência, tomou o regedor mais licença pera danar a nossa fortaleza; em tanto que, mandando D. João fazer-lhe queixume de alguns escândalos que recebia dos mouros per um Gonçalo Tavares, feitor da nossa fortaleza, com dous homens que o acompanhavam, os mouros os mataram a todos três em um arruído feitiço. Finalmente, por este caso e por inconvenientes de a traição quererem matar a D. João, e ele que às vezes não se mostrava muito paciente, azedou o ânimo a todos na rotura em que estavam, quando o Viso-Rei chegou. E como ele tinha grande nome entre os mouros e o temiam muito polo que ali tinha feito, por ser homem que lhe não perdoava os pecados do pensamento, quanto mais os da obra, em ele chegando, soube de D. João que diziam os mouros - que não era verdade ser ele vindo à Índia, e que tudo era artefício nosso por atemorizar o gentio inorante. Por a qual causa quis dar aos mouros ua mostra de si, saindo em terra, e rodeou a fortaleza, dando entender que da tornada de Cochi havia de pôr 461 mãos nela, pera ser mais forte. E também mandou noteficar ao Samori sua chegada, e que folgara de o achar ali pera alguas cousas que tinha que praticar com ele, as quais leixava pera quando tornasse

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invernar a Goa. Partido o Viso-Rei desta fortaleza, sendo já à vista de Cochi, veo D. Luís de Meneses a o receber, e em terra foi recebido com tanta pompa e solenidade como a seu título requeria. E peró que de passada não dissemos o que lhe neste caminho de Goa até Cochi aconteceu, por não decepar o curso da jornada, aqui o queremos fazer, que tudo foram afrontas, que pera sua condição eram tam grandes, que lhe deram pressa ao que logo ordenou, em chegando a Cochi. Ele achou neste caminho que fez a Francisco de Mendoça com oito velas, que andava guardando aquela costa, do qual os mouros faziam pouca conta; porque, como eles traziam navios mui leves de remo e os nosso grandes e pesados, haviam-se com eles como genetes com os homens de armas. Por a qual razão andavam tam ousados, que per todo aquele caminho, uns aqui, outros ali, apareciam diante do Viso-Rei, mostrando que o não tinham em conta; e chegou a tanto que mandou ele com seu filho D. Estêvão, António da Silva, Tristão de Taíde e outros fidalgos com batéis a os assombrar, até que alguns pagaram por outros; porque abaixo de Cananor correram trás oito tam apertadamente, que os fizeram varar em terra, onde houve alguns mortos e muitos feridos; e junto de Panane houve outra remetida já mais perigosa de doze paraus. Os quais, vendo-se mui apertados dos nossos, vararam em terra, e por os defender, acudiu gente da mesma terra, em que morreram muitos deles e dos nossos foram feridos António da Silva de Meneses, Manuel da Silva, 231v 231v de alcunha o Galego, e João de Córdova, ambos capitães de fustas, e mortos foram dous. O Viso-Rei, como ia escandalizado deste desacatamento de o não estimarem, e pouco temor, chegando a Cochi, a primeira cousa em que entendeu, foi mandar duas galés e ua galeota e ua caravela com provisão de pólvora, e outras cousas de que a fortaleza de Calecute tinha necessidade, e que as três velas de remo andassem per aquela costa castigando os paraus dos mouros da soltura que traziam. Das quais eram capitães Francisco de Mendoça, o Velho, António da Silva de Meneses e Jerónimo de Sousa, que era Capitão-mor. Entregue à caravela o que levava, saíram-se estes capitães do porto; e por a galé de António da Silva ser pesada no remo, ficou atrás, sobre a qual, como que a tinham em olho, saíram a ele cinquenta paraus de Calecute, com que pelejou obra de três horas, em que lhe feriram muitos homens e mataram 462 três. E totalmente ele fora de todo desbaratado, se lhe não acudiram seus companheiros, que fizeram fugir os catures, fazendo varar alguns em terra. Além destas duas velas que o Viso-Rei ordenou que por então estevessem no porto de Calecute pera andarem na costa, mandou ua armada de outras seis, todas de remo, a capitania-mor das quais deu a Jerónimo de Sousa, pera castigar os mouros daquele Malabar, como ele fez, destruindo mais de quorenta paraus; o capitão dos quais era um mouro chamado Cutiale, que se armou em Calecute per mandado do Samori, pera tolher os mantimentos que de Cananor se levavam à nossa fortaleza de Calecute. E assi mandou recado a Fernão Gomes de Lemos, que estava por capitão da fortaleza da Ilha Ceilão, que a derribasse, por el-Rei mandar que se desfizesse e se viesse em os navios que seu irmão António de Lemos trazia em guarda daquele porto, de que era Capitão-mor do Mar - o que ele fez. Também das primeiras cousas que ordenou, foi mandar Simão Sodré com quatro velas às Ilhas de Maldiva sobre alguns mouros que faziam guerra aos nossos amigos e empediam muitas cousas de que se proviam nossas armadas, principalmente cairo, sem o qual elas não podem navegar. E desta ida desbaratou Simão Sodré seis fustas, de que era capitão um mouro dos principais de Cananor, das quais lhe ficaram duas na mão, achando-se com ele Simão Sodré, estes capitães: Palos Nunes Estaço, Pero Velho e Pedrálvares. E porque determinou de perseguir este mouro, que escapou à força de remo, até lhe tomar todalas velas, deixou pera si ua caravela e ua fusta, e as outras entregou a Palos Nunes, que as carregasse de cairo e se viesse a Cochi; e ele invernou lá debalde, por não poder entre tantas ilhas topar com o mouro.

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Neste mesmo tempo despachou a Fernão Martins de Sousa com um navio e ua fusta pera a costa de Melinde, o qual levava deste reino a capitania-mor do mar de Malaca, em lugar de seu irmão Martim Afonso de Sousa, que morreu das feridas que houve no desbarato das fustas de Laquesemena, como adiante veremos; e por ainda não ser falecido, 232 342 aceitou esta ida que lhe o Viso-Rei deu pera lá ir morrer, onde se perdeu junto de Melinde, salvando-se algua gente. E assi ordenava o Viso-Rei ua grossa armada pera ir ao Mar Roxo seu filho D. Estêvão; mas leixou de ir, porque, no fervor destas cousas adoeceu seu pai. E porque os navios que Jerónimo de Sousa trazia eram poucos, e por serem galés pesadas não podiam fazer muito dano aos paraus dos mouros, que eram leves e muitos, deu-lhe mais duas galeotas pera andar na paragem de Calecute. Com as quais velas no Rio de Bracelor pelejou com oitenta paraus, que iam carregados de especearia pera Cambaia, de que tomou doze, assi como iam carregados, e os outros se salvaram por ser já sobre noite. Na qual peleja morreram dos nossos quatro homens, e foram muitos feridos, 463 e leixaram-se ali estar, porque os paraus se tornaram recolher ao Rio de Bracelor; tinha-os ali encerrados por não navegarem a especearia. Neste tempo, como a infermidade do Viso-Rei ia muito em crescimento, vendo-se já mui quebrado de suas forças, mandou chamar alguas pessoas principais e, representando-lhe o estado em que estava e mostrando os poderes que tinha, disse que ele, per virtude daqueles poderes, havia por serviço del-Rei, seu Senhor, que Lopo Vaz de Sampaio, capitão daquela fortaleza, mandasse o que ele podia mandar; e levando-o Deus, servisse de Governador da Índia, porquanto a pessoa que sucedia a ele, Viso-Rei, podia ser ausente até vir receber a entrega da Índia. E disto mandou fazer um assento, e deu juramento ao vedor da fazenda, Afonso Mexia, e às outras pessoas, que pera esta notificação eram chamadas, que assi o guardassem, e ele lho mandava da parte del-Rei, seu Senhor, e assinaram todos no auto. Todas estas cousas o Viso-Rei ordenou ante que D. Duarte de Meneses viesse de Ormuz pera lhe entregar a governança da Índia, o que fazia algum escrúpulo aos fidalgos usar ele deste ofício, sem receber a entrega, segundo a ordem que nisso havia de ter. E porque no princípio deste Noveno Livro quisemos dar notícia da ordem que el-Rei tinha na eleição dos Governadores da Índia e o modo de sucederem uns aos outros, porque no futuro tempo, e assi aos estranhos, se veja a forma da provisão del-Rei, per que um Governador entrega a Índia a outro, queremos aqui trasladar a que levou o Viso-Rei pera receber a entrega de D. Duarte de Meneses, e também dar rezão por que usou deste ofício, ante da vinda dele, D. Duarte: D. João per graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves, Aquém, e Além mar em África, Senhor de Guiné e da Conquista, Navegação, Comércio de Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia. Fazemos saber a vós, D. Duarte de Meneses, capitão e governador da nossa cidade de Tanger, e nosso Capitão-mor e Governador nas partes da Índia, que Nós vos escrevemos per outra carta, que havemos por bem que vos venhais embora pera estes reinos nesta armada. Porém vos mandamos que, 232v 342v tanto que vos esta for apresentada, entregueis a dita capitania-mor e governança a D. Vasco da Gama, Conde da Vidigueira e Almirante do Mar Índico, que enviamos, por nosso Viso-Rei a essas partes da Índia. E não usareis mais da dita capitania-mor e governança, nem das cousas da justiça e de nossa fazenda, nem doutra algua de qualquer calidade e condição que seja, que ao dito cargo toque e pertença, e de que dantes usáveis, por virtude do poder e jurdição e alçada que tínheis. Porquanto havemos por bem e nosso serviço, como per outra carta vos escrevemos, que o dito Viso-Rei seja logo metido de posse de tudo e use logo do poder, jurdição e alçada que leva por

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nossa Carta Patente, sem mais vós entenderdes em cousa algua. 464 Porém declaramos que o tempo que esteverdes na Índia até vos embarcardes, possais estar em Cochi ou em Cananor, qual vos mais aprouver; e que acerca de vossos criados e pessoasde vossa casa, e dos criados do Conde vosso pai, que convosco foram, e dos criados de D. Luís, vosso irmão, e vossos cunhados e pessoas suas, que o dito Conde não entenda com eles em maneira algua, nem tenha sobre eles, nem sobre cada um deles, mando nem jurdição e alçada que tínheis pela carta de vosso poder e alçada. Ressalvando, porém, que, se vós ou os tais per alguas pessoas, assi nossos naturais, como dos mercadores da terra e quaisquer outros de qualquer calidade, estado e condição que sejam, que lá houverem de ficar e não houverem de vir nesta armada em que vós haveis de vir, fordes requeridos e citados e demandados, assi em casos cíveis, como em crimes, vos possam a vós e a eles demandar perante o dito Conde e ouvidor, que com ele há-de ficar, e não perante vós, pera se fazer comprimento de justiça. E sendo caso que, quando o dito Conde chegar à Índia, vos não ache nela, por serdes fora dela a prover alguas cousas de nosso serviço, neste caso havemos por bem que ele, dito Conde, use logo inteiramente de todo poder, jurdição e alçada que de nós leva, como faria se vos achasse e vos apresentasse esta carta pera lhe entregardes a capitania-mor e governança, porque assi o havemos por nosso serviço. E sendo caso que, por impedimento de doença, vós, dito D. Duarte, vos não possais embarcar e vir nesta armada, e ficásseis na Índia, neste caso havemos por bem que vos fiqueis e vos recolhais com todos vossos criados e pessoas da vossa casa, e criados dos sobreditos vosso irmão e cunhados, que ficarem convosco em a nossa fortaleza de Cananor. E que esteis nela até a vossa partida da Índia; e useis de todo o poder, jurdição e alçada que tendes de Capitão-mor e Governador da Índia sobre eles, e sobre o capitão, alcaide-mor, feitor, e escrivães da feitoria da fortaleza. E de todos seus casos cíveis e crimes conhecereis e os julgareis como vos parecer justiça, sem sobre os ditos nem sobre cousa sua que lhe toque, que seja de antre partes, o dito Conde 233 233 poder usar do dito ofício de Viso-Rei, nem poder, jurdição e alçada que lhe temos dada, porque queremos que tudo fique a vós, D. Duarte, até vossa partida da Índia. E mandamos ao capitão e alcaide-mor, feitor e escrivães da feitoria, e a todas as pessoas que temos ordenadas na dita fortaleza de Cananor, que vos obedeçam e cumpram vossos requerimentos e mandados, como a nosso Capitão-mor e Governador, sobre as penas que lhe poserdes, assi nos corpos, como nas fazendas. As quais havemos por bem que deis à execução naqueles que nelas encorrerrem, segundo forma do poder, jurdição e alçada que vos temos dada e é conteúda na carta do poder dela. E assi havemos por bem que se entenda e o façais no caso que vos fôsseis fora da Índia por nosso serviço, e viésseis a ela depois da partida das naus pera estes reinos desta 465 armada que leva o Viso-Rei pera trazerem as especiarias, na qual vos haveis de vir. Ressalvando, porém, que o dito poder e alçada que vos damos sobre todos os acima declarados, se não entenderão em cousa que toque à nossa fazenda e tratos da Índia. Porque, no que a estas cousas tocar, não haveis de entender nem usar da dita alçada e poder que vos leixamos nos casos sobreditos, porque isto há-de ficar ao dito Viso-Rei pera neles fazer como vir que é justiça e nosso serviço, e usar de todo seu poder e alçada. E da entrega que ao dito Viso-Rei fizerdes da dita capitania-mor e governança, como por esta vos mandamos, cobrareis estromento público, em que se declare as naus e navios que lhe entregastes, e artelharia e armas que andam neles, e assi as fortalezas e armas e artelharia e mantimentos que nelas havia, e gente que andava nessas partes; e declarando a sorte e calidade dela, e todas as outras cousas que ao cargo de Capitão-mor e Governador tocarem, pera todo podermos ver.

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E como assi entregardes a dita capitania-mor e governança, e cobrardes o estromento da dita entrega, no modo que dito é, vos havemos por bem desobrigado de toda a obrigação em que nos sejais pela dita capitania-mor e governança, e vos damos por quite e livre, de agora pera em todolos tempos. E esta carta per nós assinada e asselada do selo redondo de nossas armas, com o dito estromento, tereis pera vossa guarda. Dada em a nossa cidade de Évora, a vinte cinco dias de Fevereiro. Bartolomeu Fernandes a fez, ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesu Cristo, de mil e quinhentos e vinte quatro. Per virtude da qual carta D. Duarte fez a entrega da governança da Índia, e dela houve este conhecimento público de como a entregou: Saibam quantos este estromento de conhecimento virem, que, no ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesu Cristo de mil e quinhentos e vinte quatro anos, aos quatro dias do mês de Dezembro do dito ano, em a cidade de Santa Cruz de Cochi, em a fortaleza del-Rei, Nosso Senhor, estando D. Vasco da Gama, Conde da Vidigueira, Almirante do Mar Índico e Viso-Rei das Índias, disse que recebia de D. Duarte de Meneses, Governador 233v 233v que foi nelas ante dele, Viso-Rei, a governança das ditas Índias do tempo que a elas chegou e as começou de governar, segundo per suas provisões e patentes lhe era mandado por el-Rei Nosso Senhor que as recebesse e governasse. As quais Índias ele recebeu e disse ter recebidas assi, e da maneira que as achou e elas ora estão, e se houve por obrigado de dar conta delas a Sua Alteza, e houve por desobrigado ao dito D. Duarte da obrigação que tinha de dar conta delas. E em testemunho de verdade, lhe mandou dele ser feito este estromento do recebimento delas, testemunhas que estavam presentes: Lopo Vaz de Sampaio, capitão desta fortaleza, Fernão Martins de Sousa, D. Pedro de Castelo Branco, Afonso Mexia, vedor da fazenda da Índia, Pero Mascarenhas e o Licenciado 466 João do Souro, ouvidor geral da Índia. E eu, João Nunes, escrivão público na dita cidade, por especial mandado do dito Senhor Viso-Rei, que esto escrevi, e aqui meu sinal público fiz. Per este estromento ficou D. Duarte desobrigado da governança das Índias; e quanto ao mais que a Carta del-Rei manda - da entrega das naus, navios etc. - de fora deste estromento trouxe certidões de todalas fortalezas assinadas pelos oficiais da fazenda e feitorias del-Rei, e com isto se partiu pera este reino, como no fim do Livro Octavo escrevemos. O Viso-Rei neste tempo, assi da força da enfermidade, como do trabalho do espírito que teve sobre alguas cousas do governo e entrega que lhe D. Duarte fez, veo a tal estado, que chegou a sua hora limitada de viver, que foi até véspora da festa do Nascimento de Nosso Senhor Jesu Cristo, de mil e quinhentos e vinte cinco, em que faleceu. Assi que durou a vida do Conde Almirante na Índia três meses e vinte dias, contando de cinco de Setembro, que chegou a Chaúl, até vinte cinco dias de Dezembro, que faleceu em Cochi, onde foi enterrado no Mosteiro de S. Francisco dos frades desta Ordem. E depois foi trazida sua ossada a este reino e posta em seu jazigo na Vila da Vidigueira, de que foi intitulado Conde. Este Conde D. Vasco da Gama, Almirante do Mar da Índia, filho de Estêvão da Gama, era homem de meia estatura, um pouco envolto em carne, cavaleiro de sua pessoa, ousado em cometer qualquer feito, no mandar áspero e muito pera temer em sua paixão, sofredor de trabalhos e grande executor no castigo de qualquer culpa por bem de justiça.

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233v 233v 466 Capítulo III. Como, aberta a sucessão do Conde Almirante, se achou que havia de governar a Índia D. Hanrique de Meneses, que ficara por capitão em Goa; e o que fez neste tempo, até lhe ir recado da sucessão; e partido de Goa pera Cochi, fez alguas cousas no caminho. 234 234 Sepultado o Viso-Rei Conde da Vidigueira, foi aberta a sua sucessão com aquela solenidade que atrás escrevemos, na qual se achou por Governador D. Hanrique de Meneses, que estava por capitão em Goa. Lopo Vaz, a quem ficou o cargo de Governador, mandou logo fazer prestes cinco velas, a capitania-mor das quais deu a Francisco de Sá, que fosse a Goa pera D. Hanrique com as provisões da sua sucessão de Governador. E passou per Bacanor e deu recado a Jerónimo de Sousa de Lopo Vaz, que se fosse pera D. Hanrique; mas quando Francisco de Sá chegou, já ele sabia 467 a nova do falecimento do Viso-Rei per recado de D. Simão de Meneses, capitão de Cananor. E havendo respeito às calidades de Francisco de Sá, enquanto não ia fazer a fortaleza de Sunda, que el-Rei mandava, o proveu da capitania de Goa, e ele embarcou-se em os navios que pera ele levava, e partiu a oito dias de Janeiro, e ao caminho o veo receber Jerónimo de Sousa com as cinco velas que tinha sobre Mangalor. E a razão por que ele, D. Hanrique, partiu de Goa tam desacompanhado de velas, foi por não haver mais que aquelas que vieram por ele, porque não somente o Viso-Rei, quando per ali passou, levou consigo Luís Machado, Capitão-mor do Mar daquela costa de Goa, com quatro navios que trazia, mas ainda ele, D. Hanrique, uas que ordenou na partida do Viso-Rei tinha-as mandado fora, ao que ora veremos. Partido ele, Viso-Rei, de Goa pera Cochi, quando no caminho achou aquele grande número de paraus que escrevemos, desta sua passagem e entrada na Índia não faziam os mouros senão o que faz quem vê vir de longe nuvem carregada de água, que a grã pressa apanha e recolhe sua roupa que tem estendida no campo; e o que estes mouros queriam salvar era pimenta que da costa do Malabar levavam pera Cambaia. E como a entrada do Viso-Rei na Índia pera eles era ua nuvem carregada de muitos trabalhos, que esperavam ter polo nome que nela tinha, ferviam debaixo pera cima, passando cada dia muitos à vista de Goa, onde D. Hanrique estava; as novas da qual passagem era pera ele ua grande dor, e nisso recebia muita afronta. E querendo atalhar esta passagem, andou olhando pela ribeira, onde achou dous paraus que traziam sal pera a cidade, que comprou a seus donos, e mandou consertar a grão pressa. E a este seu desejo favoreceu Deus com a vinda de António Correa, que vinha de Dabul, onde o Viso-Rei o leixara como escrevemos, e trazia três paraus e ua galeota, que foi pera D. Hanrique grande prazer. Os quais cinco paraus repartiu per estes capitães: António Correa, Paio Rodrigues de Araújo, Álvaro de Araújo, seu irmão, João Caldeira, de Tanger, Duarte Dinis, de Carvoeiros, e a galeota deu-a a seu sobrinho D. Jorge Telo, filho de D. João Telo de Meneses, e a capitania-mor de todos; e com a gente necessária o mandou sair de Goa dia do Apóstolo S. Tomé. 234v 234v E como ele é nosso Padroeiro naquelas partes, assi guiou D. Jorge, que onde chamam os Ilhéus Queimados, junto de Goa, lhe deparou trinta e oito paraus, que debaixo da costa Malabar pera Cambaia iam carregados de especearia, e era capitão deles um mouro de Calecute per nome China Cutiale. Com os quais D. Jorge pelejou, e assi o fez ele e os outros capitães com sua gente, que os desbarataram, dando com a maior parte deles à costa, e tomaram quatro. E os que não quiseram

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fazer experiência do nosso ferro, se salvaram, e dos mortos se acharam depois na praia, que o mar lançou fora, mais de sessenta. E as bandeiras com que entraram por o Rio de Goa desta vitória dous dias ante Natal, foram corpos de mouros enforcados dos paraus que houveram à mão, porque os canaris de Goa fossem testemunha daquele caso aos outros 468 das terras firmes. E os próprios canaris remeiros dos nossos paraus, por glória do que fizeram, levaram trinta cabeças cortadas e doze mouros vivos, que se entregaram aos moços de Goa pera os matarem às pedradas; e isto permitiu D. Hanrique, porque andavam os mouros tam soltos e atrevidos, que convinha mostras de temor pera os tornar a encolher. Dai a três dias o tornou D. Hanrique a mandar, e desta vez achou ua nau de Calecute que também ia pera Cambaia, à qual davam guarda nove paraus, de que também houve vitória, tomando alguns deles, e com a nau deu à costa, e tornou-se a recolher a Goa. D. Hanrique, por ter já recado da governança da Índia que sucedera e levava consigo D. Jorge Telo, deixou ordenado que Cristóvão de Brito, alcaide-mor de Goa, filho de Rui Mendes de Brito, fosse com ua armada pera andar naquela costa de Goa até Dabul, por causa dos mouros que ali andavam, e deu o cuidado desta armada a Francisco de Sá, capitão de Goa, o qual a fez prestes de sete navios, ua galeota e seis fustas e catures, de que eram capitães Paio Rodrigues de Araújo, Álvaro de Araújo, seu irmão, Duarte Dinis, de Carvoeiros, Jordão Fidalgo, Bartolomeu Bispo, João Caldeira, de Tanger, a qual frota levava cento e tantos homens, e com ela foi correndo toda aquela costa até o rio Zenguizar, que está aquém de Dabul cinco léguas, sempre havendo encontros com navios de mouros, que castigava. O qual, havendo dous dias que estava dentro no rio, por ser dos fermosos daquela costa, fazendo-lhe os da terra todo serviço que podiam nos mantimentos que lhe davam, parece que per terra foi a nova a Dabul. O tanadar da qual cidade, por ser nosso imigo, armou logo duas galeotas e sete fustas com mais de trezentos homens de gente limpa, e vieram buscar os nossos. Vendo que os tinham tomados, por saberem quam pequenas vasilhas tinham, e quam pouca gente, e por já a este tempo Cristóvão de Brito ter saído dentro do rio, pelejaram fora no mar largo, onde no primeiro rompimento, Cristóvão de Brito foi morto de duas setas que lhe atravessaram a garganta, saltando-lhe 235 235 um gorjal que levava. Os nossos, vendo seu capitão morto, assi se houveram animosamente com os mouros, pelejando de pela menhã até às nove horas, com que a maior parte dos mouros morreram a ferro e afogados no mar, e alguns foram cativos, entre os quais foi o seu capitão; e dos nossos morreram dezassete, e a maior parte foram feridos, porque a peleja foi muito cruel. Finalmente, os nossos partiram com o seu capitão morto; e o dos mouros, que era turco, chegando a Goa, se fez cristão, e logo morreu das feridas que levava, o qual foi enterrado no Mosteiro de S. Francisco, junto com a sepultura de Cristóvão de Brito. Francisco de Sá, em lugar dele, fez capitão a Manuel de Magalhães, e o mandou com os mouros cativos apresentar a D. Hanrique, que neste tempo já estava em Cochi, da viagem do qual aqui daremos conta. 469 Ele partiu de Goa a dezassete de Janeiro, em companhia do qual ia um mouro per nome Cide Alé, que era vindo de Dio per mandado de Melique-Aliaz a visitar o Viso-Rei da sua parte, e trazia-lhe de presente uas cobertas de cavalos com todos seus comprimentos, ao seu modo. E quando achou o Viso-Rei morto, todavia fez a visitação a D. Hanrique; mas ele não quis aceitar o presente, dizendo serem peças que vinham pera o Viso-Rei; que, quanto à visitação e amizade que Melique queria ter com ele, que folgava muito; e porque ele estava embarcado pera Cochi, que fosse com ele, e lá o despacharia. Em companhia do qual Cide Alé veo Álvaro Mendes, que estava em Dio por escrivão de

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Gaspar Pais, que lá servia de feitor, com o qual D. Hanrique em segredo praticou muitas cousas de Dio. E ele lhe deu aviso que no porto de Dio estavam duas naus carregadas de madeira de Baçaim, que levavam pera corregimento das galés dos rumes que estavam em Gidá ou Judá, como lhe nós chamamos. Pera tomar as quais D. Hanrique, ante que partisse de Goa, mandou duas caravelas com recado a Manuel de Macedo, que estava em Chaúl com um galeão e ua caravela, que se fosse esperá-las na passagem onde havia de ir ter António de Miranda, que partiu de Cochi com ua armada pera o Cabo Guardafu, e se ajuntasse com ele. Este Cide Alé, indo com D. Hanrique com seis atalaias, com que veo acompanhado, sendo tanto avante como Baticalá, de noite fugiu por levar nova a Melique-Aliaz da morte do Viso-Rei. E quando veo pela manhã da noite que este mouro se acolheu, vieram dar com D. Hanrique trinta e seis paraus, a tempo que vinha quási nas costas deles D. Jorge de Meneses, de Cochi em um galeão; que foi grande conjunção pera mais cedo os desbaratar, tomando dezassete, e alguns deram consigo à costa, e outros se salvaram. Chegado D. Hanrique a Cananor, a vinte seis de Janeiro do ano de quinhentos e vinte cinco, el-Rei o mandou logo visitar; e porque D. Hanrique se receou que lhe mandasse ele logo pedir o mouro Bala Hacém, que o Viso-Rei ali entregara, e ter sabido ser ele um grande cossairo com muito dano nosso, o sentenciou logo à morte, 235v 235v sem querer trinta mil pardaus que ele dava por si. E quando o recado del-Rei de Cananor chegou sobre a vida deste mouro, estava já enforcado em ua palmeira à vista dos mouros, muitos dos quais eram seus parentes, e os mais honrados da terra, de que ficaram tam injuriados, que muitos em ódio del-Rei de Cananor (dizendo ter ele muita parte na sua morte, na entrega que dele fez ao Viso-Rei), se passaram da banda de além do rio que está junto de Cananor, e foram viver a ua povoação chamada Tramapatão onde viviam os mais dos cossairos que ali saíam. 470 Sobre a qual passagem el-Rei mandou recado a D. Hanrique, pedindo que lha mandasse defender, porque temia que, indo ele, eles iriam povoar as povoações que estavam dentro pelo rio, e fariam dali muito dano por a vezinhança que tinha el-Rei de Calecute, nosso imigo declarado. D. Hanrique, com este recado del-Rei folgou muito, por ter azo de castigar os moradores daquele rio, e por ser um formigueiro de ladrões, e espediu logo Heitor da Silveira, que fosse ao rio Tramapatão, que são duas léguas abaixo de Cananor contra Calecute, e com duas galés e um bargantim queimou o lugar e quantos navios aí estavam. E foi pelo rio acima a queimar três lugares que eram dos povoadores, de que el-Rei se queixava, que custaram bem de trabalho e sangue dos nossos. Porque os mouros tinham feito suas tranqueiras e forças com artelharia; mas por derradeiro foram entrados, e lhe foi tomada com morte e feridas de muitos, e isto fez Heitor da Silveira em espaço de dous dias que lá andou. E porque D. Simão de Meneses era primo do Governador D. Hanrique, quis ante andar em sua companhia, por servir de Capitão-mor do Mar, que da fortaleza de Cananor, da qual ele proveu a Heitor da Silveira. E primeiro que se daqui partisse, mandou a Fernão Gomes de Lemos em um galeão e duas galeotas, capitães Gomes Martins de Lemos, seu irmão, e António da Silva de Meneses, que se fosse lançar sobre a barra do Rio de Mangalor, que ficava atrás, e tevesse encerrados mais cento e tantos paraus, que estavam carregados de especearia pera partir caminho de Cambaia, segundo ali soube. Acabadas estas cousas, mandou-se espedir del-Rei, e sem se verem, partiu pera Cochi, no qual caminho veo ter com ele António de Miranda, que Lopo Vaz despachara com ua armada, que o Viso-Rei tinha ordenado pera mandar ao Estreito de Meca com seu filho D. Estêvão. E peró que António de Miranda não levava tantas velas como estavam ordenadas, ainda dessas lhe tirou D. Hanrique alguas, porque o intento seu era um, e o de Lopo Vaz era outro - que era alimpar aquela costa do Malabar daquele fervor que os mouros tinham de levar especeria. E disse a António de Miranda que ele mandara a Chaúl duas caravelas pera António de

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Macedo, que tinha um galeão, que se fossem ajuntar com ele, António de Miranda, e lhe havia de obedecer; e dando-lhe regimento do que havia de fazer, o espediu. E ele, 236 236 D. Hanrique, seguiu seu caminho, e de passagem deu ua vista a Calecute e soube de D. João como estava em tréguas com o regedor de Calecute até assentarem a paz, por entre eles haver rompimento de guerra. E deu-lhe conta como havia poucos dias que per vezes viera cometer queimar-lhe a casa da feitoria e almazéns que tinham fora da fortaleza, e isto com favor de três capitães do Samori, que eram vindos a essa obra. Com que lhe conveo sair da fortaleza a lha defender com até cinquenta homens somente, de que deu vinte cinco a D. Vasco de 471 Lima, e ele outros vinte cinco; e Nosso Senhor lhe fez tanta mercê, sendo grande número de mouros e naires, que lhe mataram um dos principais capitães, com que os poseram todos em fugida, e não tornaram mais. No qual feito se acharam estes fidalgos: D. Vasco de Lima, capitão de vinte cinco homens, Jorge de Lima, Fernão de Lima, Miguel de Lima, Lionel de Melo, Rui de Melo, António de Sá, seu irmão Diogo de Sá, e outros, que por ser gente nobre, fizeram maravilhas; e as que ali fez Jorge de Lima lhe custou ser muito mais ferido que todos, por o feito ser tam furioso, que foi ua grande mercê de Deus não morrer algum destes nomeados, segundo cada um se oferecia ao ferro dos imigos. Finalmente, com estas e outras cousas que D. João contou ao Governador do estado em que estava com os mouros, e que o Governador da cidade não tardaria sem lhe logo mandar falar na paz, D. Hanrique, por lhe não dar azo a ser ali cometido, se partiu, provendo D. João de algua cousa pera sua defensão. E ante que D. Hanrique chegasse a Cochi, mandou diante um catur com recado ao capitão e veador da fazenda, que o não recebessem com festa por causa do falecimento do Viso-Rei, e também que não lhe falassem por senhoria, que não se contentava com cousas emprestadas; que prazeria a Deus que ele faria tais serviços a el-Rei, seu Senhor, porque lhe ficasse em vida; e mais que acerca dos homens honrados, mais se estimavam os méritos da honra, que os vocábulos dela.

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236 236 471 Capítulo IV. Como D. Hanrique se apercebeu em Cochi de ua armada que fez de cinquenta velas, e foi sobre o lugar de Panane del-Rei de Calecute, o qual destruíu; e passando per Calecute, lhe deu um castigo, e daí foi ter ao lugar de Coulete. Dom Hanrique de Meneses quando, a quatro de Fevereiro, chegou a Cochi, era já partido D. Duarte de Meneses pera este reino; e alguns quiseram dizer - e assi foi na verdade - que a causa dele, D. Hanrique, não vir mais cedo a Cochi, e vir fazendo as demoras do caminho, pois logo havia de tornar dar vista à costa, fora por amor de D. Duarte; porque, como eram parentes 236v 236v e tinha sabido que não iam muito contentes do Viso-Rei, ele e seu irmão D. Luís, polo modo que se teve com 472 eles no despacho de sua embarcação - e ele era oficial a que competia justiça mais que parentesco, e todo o favor havia-se de atribuir ao sangue por evitar escândalos das partes, e mais sendo cousa em que o Viso-Rei posera a mão - veo fazendo a demora que vimos, que não foi ociosa; e as cartas que havia de escrever a el-Rei de Portugal, do caminho as mandou. E porque a principal cousa que o trouxe a Cochi foi fazer ua armada pera tornar a dar ua vista à costa Malabar, começou logo entender nisso; e enquanto trabalhavam no corregimento dos navios, mandou fazer três ou quatro alardos de apuração da gente que havia mister. Ao derradeiro dos quais veo el-Rei de Cochi, por comprazer a D. Hanrique, e também dar mostra da sua gente, que estava prestes pera se ele aproveitar dela em serviço del-Rei de Portugal; nos quais alardos houve tirar com espingardas e as outras mostras que a gente de armas faz. E porque um pião dos nossos tirou com ua besta com um farpão, e passou o braço de um naire del-Rei de Cochi, que é a sua gente mais nobre, houve aí reboliço deles, ao que D. Hanrique acudiu, e mandava enforcar o pião por não ser da essência do alardo tirar com farpão, e parecia ser malícia, mais que descuido. Ao que el-Rei logo acudiu, pedindo a vida do homem, com que não houve efeito a justiça, de que ele ficou mui contente, vendo que D. Hanrique dava tal castigo por tocarem em cousa sua, e ele, D. Hanrique, a este fim mostrava fazer aquela justiça. El-Rei de Calecute, como trazia espias no que D. Hanrique fazia, sabendo desta apuração de gente e armada que se ordenava, como homem que tinha merecido castigo de suas culpas acerca de nós, escreveu a D. Hanrique sobre negócio de paz; e que folgaria de mandar entender nisso; ao que respondeu que ele esperava de ser lá cedo, e então poderia de mais perto mandar falar nisso. Partido este, per artefício do mesmo Samori, por ele ser seu vassalo, veo um mensageiro do Governador de Panane, o qual lhe mandava dizer que seu Senhor, o Samori, queria que lhe fossem entregues certos paraus que estavam no seu rio; que os mandasse receber, que ele os entregaria logo. Ao que D. Hanrique respondeu que ele estava de caminho pera lá; que entretanto que o fosse ele fazer prestes, e fosse depressa; ca poderia ser que o acharia já lá mais ocupado do que então estava; e com esta reposta o espediu, sem os mais querer ouvir. A este tempo, estava já D. Hanrique tam apercebido, que se embarcou logo, e partiu a dezoito de Fevereiro com ua armada de cinquenta velas, entre galeões, galés, galeotas, fustas, bargantins e catures, de que estes eram os principais capitães: Pero Mascarenhas, D. Simão de Meneses, D. Afonso de Meneses, D. Jorge de Meneses, D. Jorge Telo de Meneses, Simão de Melo, Jorge Cabral, João de Melo da Silva, Rui Vaz Pereira, Jerónimo de Sousa, António da Silva 237

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237 de Meneses, Francisco de Mendoça o Velho, Francisco de 473 Mendoça o Mancebo, D. Jorge de Noronha, Aires da Cunha, Francisco de Vasconcelos, Nuno Fernandes Freire, Diogo da Silveira, António de Azevedo, Gomes de Soutomaior, António Pessoa, Rodrigo Aranha, Aires Cabral, e alguns moradores de Cochi e o Arel de Porcá, com vinte sete catures. O qual era vassalo del-Rei de Cochi e vivia na povoação de Porcá, que é abaixo de Cochi nove léguas, com o qual D. Luís de Meneses tinha assentado quási per contrato que, cada vez que fosse chamado pera servir el-Rei de Portugal com os seus catures, que fosse; e não querendo ele meter nisso sua pessoa, que desse os catures equipados de remeiros; e por esta obrigação quis ele pessoalmente ir com D. Hanrique; assi que com os seus catures faziam o número das cinquenta velas, em que iriam até dous mil homens. Com a qual armada chegou a Panane a vinte cinco de Fevereiro, que é ua povoação del-Rei de Calecute, das principais que ele tem, situada toda ao longo do rio que tem. E peró que não era cercada de muro, por em todo aquele Malabar todalas povoações o não serem, estava em lugar dele, entre o rio e as casas, feita ua defensão de palmeiras e madeira replenada de terra tam taipada, que supria por um forte muro. E vinha torneando esta defensão toda a povoação pela parte do mar, de maneira que não se podia chegar às casas, que grã parte delas eram de pedra e cal, senão per cima de muita artelharia que os mouros tinham posta naquela força. Da qual artelharia (como se depois soube) era condestabre um português arrenegado, que a governava, e dentro no rio havia muitos navios de toda sorte de carga e remo, também postos em ordem de pelejar, se alguém os fosse cometer. D. Hanrique, primeiro que algua cousa cometesse, mandou um recado ao Governador, dizendo que ele passava per ali, que bem lhe poderia mandar os paraus, que lhe mandara dizer que o Samori havia por bem que lhe fossem entregues. E enquanto ia este recado, mandou certos bargantins que entrassem pelo rio acima, mostrando que queria fazer aguada, por ele ser de água doce, e que o fossem sondando. Aos quais bargantins os mouros que estavam em guarda dos navios, e assi na força ao longo do rio, começaram de esbombardear. D. Hanrique, quando viu que bombardas não respondiam à entrega dos paraus, nem o seu recado com a fúria da artelharia não foi ouvido nem respondido, e tudo eram mentiras e manhas do Samori, governado per mouros que eram contra a paz, feito conselho com os capitães, a saída em terra foi pela informação que lhe os bargantins deram daquele pouco que do rio poderam alcançar; mas não houve efeito a saída aquele dia que ele ordenou; e a causa foi esta: Querendo-se D. Hanrique (a menhã que haviam de saltar em terra) passar de ua galé em que ia a um batel, lançou pelo ombro o braço de seu lugar, que causou anteparar a saída e tornar-se ele à galé, onde lhe consertaram o braço, 237v 237v e posto um emprasto nele, saiu a outro dia contra vontade de 474 muitos, por não crer em agoiros. E ainda disse a um homem, seu familiar, que o muito apertava nisso: - Se este agoiro fora baterem-me um sapato, como a meu tio D. João de Meneses, per ventura me provocaríeis a não sair; mas isto é lançar-me ombro fora, que eu tomo por muito bom pronóstico, que não tenho necessidade de ele pelejar, somente pôr os pés em terra. E o negócio do sapato de D. João de Meneses era ua cousa que andava muito na boca dos capitães da guerra, quando cometiam algum feito, a qual história contámos no Livro Terceiro da Segunda Década, no fim do Capítulo Décimo, quando mataram o Viso-Rei D. Francisco, falando ele neste sapato de D. João de Meneses. D. Hanrique, leixando os agoiros, saiu nesta ordem como tinha assentado com os capitães: Pero Mascarenhas acima, metido mais dentro no rio com trezentos homens, e D. Simão com outros

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trezentos abaixo, na praia do mar, em companhia do qual ia D. Jorge, seu irmão; e ele, D. Hanrique, entre ambos com todo o mais corpo da gente, pera dali acudir abaixo ou acima, onde necessário fosse. A qual saída, ainda que ela foi bem festejada dos nossos com trombetas e gritas que rompiam os ares daquela menhã, teveram por reposta outro tom mui diferente, que foram as bombardas que encobriam as gritas nossas e suas, e de envolta muita espingardaria, de que os mouros estavam bem providos. E per todalas partes houve tanta fúria, que uns não entendiam os outros naquela primeira chegada, que os nossos chegaram a querer entrar per cima da força que os mouros tinham feito; e porém teveram tempo que na parte da praia per que D. Simão vinha, por ser um pouco longe e afastado dos outros dous corpos da gente, acudiram muitos a ele. Pero Mascarenhas também, como na parte que lhe coube havia mais defensão, teve assaz trabalho em chegar lá; eles contudo, a seu pesar, tomaram entrada, e vindo já a bote de lança e fios da espada, assi cortavam nos mouros de morte, que começaram a desemparar a defensão. D. Hanrique, por trazer o sentido em todalas partes pera acudir onde fosse necessário, vendo que sobre D. Simão acudiam muitos mouros pola razão que acima dissemos, mandou algua gente que lhe leixou tomar fôlego. E porém foi já a tempo que os mouros se punham em fugida; e ao pé das bombardas acharam o condestabre arrenegado morto, e o rosto todo retalhado em cutiladas. Parece que, quando se viu na agonia da morte, como homem desesperado de viver, assi polas feridas que tinha, como porque, vindo a nosso poder, padeceria o que tinha merecido com sua infidelidade, por não ser conhecido, mandou a algum mouro que lhe retalhasse o rosto. D. Hanrique, como viu que a sua gente entrava per cima da artelharia e que começavam a correr trás os mouros, por se não espalhar pelas ruas da povoação, per toda andar derramada, mandou aos capitães que entretevessem 475 a gente, até que o temor 238 238 que os mouros levavam os fez não parar nas casas, e acolhiam-se aos palmares. E posto que a povoação estava despejada de todo, todavia, por dar ua cevadura ao gentio que consigo levava, deu-lhe lugar que fossem recolher algua pouquidade que podia ficar, e ao mais mandou poer o fogo per muitas partes da povoação, e cortar palmeiras, que é o maior mal que lhe pode fazer. E também mandou entrar navios de remo per o rio, que foram queimar os que nele estavam, com que este lugar ficou destruído e castigado por uns dias. E entre muito grande número de peças de artelharia que mandou recolher, achou algua nossa que os mouros em diversos lugares e tempos tinham tomado a navios nossos. Todavia, não custou este feito tam barato, que não morressem nele nove homens de armas, feridos passaram de quorenta, de que os principais foram: Jorge de Lima, Simão de Miranda, Paio Rodrigues de Araújo. Partido D. Hanrique, ao outro dia foi dar um açoute a Calecute, mandando-lhe queimar dez ou doze velas que estavam no porto. E enquanto no mar faziam esta obra, D. João de Lima também com sua gente foi à cidade a lhe pôr fogo per partes nos arrebaldes dela; e por os imigos acudirem e ele se meter mais do necessário no corpo dela, correu grande risco, até se recolher. Daqui também mandou D. Hanrique a Coulete, onde era seu principal intento, a João de Melo da Silva, com o piloto-mor da armada, que lhe fosse sondar a estância dos navios que ancoravam no porto, pera saber o que havia de fazer quando chegasse. O qual lugar era seis léguas de Calecute contra o Norte, assentado em ua praia curvada a maneira de mea-lua, tudo raso, que com qualquer tiro podia ofender a ambas as partes, e somente pegado na povoação tinham um esteiro pequeno. Defronte da qual povoação ficava a praia um pouco íngreme, e sobre ela por defensão tinham feito outro muro de madeira replenado de terra, à maneira de Panane, e das ilhargas tinha outro tal amparo, ficando-lhe tudo em lugar de muro. E ao sob-pé tinham todolos seus navios em ordem com as popas quási em seco, assi despostos que das tranqueiras de cima os

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podiam defender com artelharia; de maneira que quem houvesse de ir ao lugar per esta frontaria do mar, lhe convinha passar per estas duas estâncias - a dos navios e dos replenos, tudo com muita artelharia. D. Hanrique, tanto que mandou João de Melo da Silva a sondar este porto com até dezoito bargantins e catures, foi-se logo nas costas dele, e em descobrindo ua ponta, viu que se vinha João de Melo recolhendo de cinquenta e seis paraus que lhe saíram ante que chegasse ao porto, que como gente que corre pário, vinham a ele com grandes apupadas. Aos quais João de Melo leixava, porque não ia a pelejar, somente a sondar o porto, e mais primeiro a ele o leixaram doze dos catures que levava do Arel de Porcá, todos equipados de negros malabares, que corriam, fugindo melhor que os 476 outros que perseguiam a ele, João de Melo. 238v 238v Porém quando os mouros viram aparecer diante da ponta que os descobria a D. Hanrique, e entenderam ser ele o Governador, já surdos de suas apupadas, foram-se pôr no lugar de seu abrigo, que era ao sob-pé da artelharia, que estava nas estâncias que dissemos, havendo neles e nos outros grande revolta, buscando cada um o lugar mais seguro a seu parecer, querendo o Governador cometê-los, de que tinham grande temor polo feito de Panane, que já entre eles era sabido.

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238v 238v 476 Capítulo V. Como D. Hanrique determinou de sair em Coulete, o qual com ua grande vitória que houve dos mouros, o queimou, e assi grande número de navios que estavam no porto; e dai se tornou a Cananor, e espediu D. Simão de Meneses com ua armada pera aquela costa de Malabar. Sabendo D. Hanrique de Meneses de João de Melo o que passara, e que se ia recolhendo para ele, polas razões que dissemos, foi surgir com toda a sua frota um quarto de légua desviado da frontaria do lugar, pera ali assentar o modo que haviam de ter pera sair em terra. E como toda a frota foi surta, fez sinal que viessem a conselho à galé onde ele vinha, no qual houve mui diferentes votos, e todos pararam que o negócio era de muito perigo; e que a saída naquele lugar não era cousa de tanta substância, que por isso aventurasse tanta gente; e toda a vitória do caso estava em queimar uas poucas de casas palhaças e aqueles paraus que tinham diante - o que estava mui bem defendido per vinte mil homens de peleja que diziam estarem em terra. E correndo a prática mais, uns eram que, já que haviam de pelejar, fosse no mar, pera tomarem aqueles navios e paraus ou os queimarem, e não saíssem em terra; outros, que saíssem nela e não cometessem os paraus; alguns, em que parte deviam pelejar, por sentirem D. Hanrique inclinado a isso e desejavam de o comprazer, e também por ter ânimo deferente. D. Hanrique, quando se viu entre tam vários pareceres, quis alargar o seu com alguas razões, dizendo que a principal cousa que o movera a 477 partir de Cochi fora castigar el-Rei de Calecute, o qual (como eles sabiam) simulava estar ocupado em guerra e tinha em Calecute um governador que como de si fazia guerra à nossa fortaleza, em que D. João tinha recebido muita afronta. E como ele o não podia castigar na pessoa, nem em lugar onde estevesse, queria-o castigar nas partes em que tinha mais olho, e ele não sabia outras mais importantes a seu estado, que Panane e Coulete, onde eles estavam. E este Coulete desejava ele mais destruir que outro algum, por quantos navios dele partiam pera Meca, e isto o trouxera ali, e não pera andar à caça de paraus, por este ser ofício de um capitão da costa e não da pessoa do Governador. E se isto era verdade, que conta daria ele de si a todolos mouros da Índia chegar 239 248 ali com tal armada e não sair em terra e assolar tudo com tanta e tam nobre gente como ali vinha? Que a ele lhe parecia que, leixando de o fazer, fazia os mouros verdadeiros com ua palavra com que ameaçam aos portugueses, dizendo: Uxar Coulete! - que quere dizer: guarda de Coulete! Verdade era (como eles diziam) ser perigosa cousa quási a escala vista cometer aquela entrada, onde se aventurava tanta fidalguia, porque estes por honra de seu sangue sempre eram os primeiros; e não tendo ele este respeito, cometia dous erros: o primeiro, não fazer o que lhe el-Rei mandava em seu regimento, que no cometer de qualquer feito sempre tevesse muito resguardo à vida dos homens; o segundo erro era não ter lei nem amizade com muitos parentes e amigos que ali vinham, todos tam cavaleiros, que ele já na fantesia os estava vendo avoar per cima daquelas tranqueiras. Porém, por se conformar com o que el-Rei mandava e com o parecer de todos, e também com o seu, que não queria aventurar tanta gente, e ele queria tomar somente trezentos homens que levaria per ua parte D. Simão de Meneses, seu primo, e ele pera si queria somente cento e cinquenta, pera dar per outra parte, que seria per ambas as ilhargas. E a mais gente lhe parecia bem ficar na armada, pera cometer os cento e cinquenta navios que tinham diante dos

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mouros. Os quais, quando vissem de terra abalar tanta gente per diversas partes, como não sabiam a contia que havia de ficar no mar, e quanta poiar em terra, esta dúvida os faria não se determinarem à parte principal, e o temor do feito de Panane, que tinha outra defensa semelhante, os meteria em fugida. Porque (louvado Deus), dês que a nação português contendia com mouros da Índia, ainda estava por ver recolherem-se às embarcações fugindo, e esta só razão naquele tempo queria ter por si contra todalas outras, que algum desconfiado de si mesmo podia dar. Por isso esta mercê pedia a todos: 478 que cada um confiasse de si quanto ele confiava neles, porque a desconfiança era o mais forte imigo que podiam ter contra si. E bastava pera daquele feito terem vitória a outra que havia poucos dias que tinham havido, de que ainda não tinham limpas as espadas do sangue de outros tais mouros. Finalmente, com estas e outras razões que lhe D. Hanrique propôs, todos se conformaram com seu voto só, pera o outro dia pela menhã porem o peito per mar e em terra ao perigo. Vinda a hora da maré, começaram os navios que haviam de pelejar ir demandar os paraus dos mouros, que (como dissemos) estavam abrigados aos seus repairos e defensão da terra. No qual tempo, D. Simão com a sua gente em vasilhas pequenas tomaram ua parte da terra, que era à esquerda, e D. Hanrique à direita, em companhia do qual ia Pero Mascarenhas, ficando os paraus entre eles, e levava diante Jorge Cabral em ua fusta que lhe ia sondando o caminho. Postas estas três alas, cada um teve tanto cuidado de si, como tinham de ânimo; e posto que o lugar era bem perigoso, o fumo da artelharia os fez mais seguros, porque não havia apontar a ua e outra parte, com que se chegaram ao lugar 239v 248v de tomar terra e virem a bote de lança e (como dizem) mão por mão. Porque os mouros todos estavam oferecidos a morrer, e assi o fizeram, que logo na primeira chegada dos nossos estiveram tam firmes e constantes, que custou a vida de Diogo Pereira, de alcunha o Malabar; que, como era capitão-mor dos catures do Arel de Porcá, por cada um acudir milhor a seu lugar, repartiu-os per estes capitães: per João de Cerqueira, Manuel da Gama e outros; e querendo fazer vantage à honra em querer sair primeiro em terra, não a fez à vida, porque o mataram ali. E Manuel da Gama pela garganta houve ua frechada mui perigosa, e assi receberam outros sinais de honra, ficando bem feridos. No cometer dos quais navios, assi da sua parte como da nossa, foi ua nuvem que cobriu a todos, chea dos foguetes da luz de tanta artelharia, a qual nuvem foi aos nossos (como dissemos) mui proveitosa, porque primeiro os mouros sentiram o ferro em si que entendessem que saltavam nos seus navios: tam cego andava o ar que a todos cobria! E a primeira cousa que começou prometer a vitória aos nossos, foi sentirem-se os mouros do mar tam apertados deles, que, por se salvar, saltavam em terra e iam-se abrigar à estância que tinham feita, em que estava a sua artelharia. E quem neste abalroar dos paraus se houve animosamente, por ser o primeiro que abalroou e enxorou os mouros em terra do parau que aferrou, foi Rodrigo Aranha, no qual tempo houve grande trabalho em todos; porque, como os mouros começaram a saltar, acudiram D. Afonso de Meneses, D. Jorge de Noronha, D. Tristão de Noronha, Jerónimo de Sousa, António Pessoa, e outra gente nobre, que começaram levar os mouros ante si. 479 D. Hanrique, como trazia os olhos em todalas partes, pera saber onde havia de acudir e mandar, vendo que o Arel de Porcá nesta entrada dos nossos se leixava estar com alguns dos seus catures, como homem que se não queria meter em perigo, depois de lhe mandar bradar e fazer muitos sinais que saísse com os seus, mandou-lhe tirar com um berço, e foi ele tam mofino, que lhe quebrou ua perna. E sobre isso mandou-lhe dizer D. Hanrique que se fosse, que não tinha necessidade de homens que vinham à guerra por razão de apanhar o despojo, como os seus

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malabares faziam, e não pera pelejar. No qual tempo andava já D. Hanrique contente, por ver que muitos dos nossos tinham já, além da força que aos mouros servia de muro, arvorado seus guiões, porque os primeiros nesta subida foram os mais ditosos; ca o fumo os cobria de maneira e a luz da escorva lhe dezia onde estava a bombarda, por cima da qual subiam sem perigo; e passados da parte de dentro, por acudirem muitos mouros, fizeram maravilhas. A este tempo D. Hanrique, pela parte per onde entrou, por ser onde estava o capitão-mor daquelas estâncias, como levava gente muito nobre, faziam maravilhas, e era já morto este capitão com outros três aos seus pés, que tinham jurado no seu Alcorão de acabarem ali por defensão de sua pessoa. Da outra parte de D. Simão, por o seu caminho ser um pouco longe, deteve-se 240 240 pera encavalgar per cima da estância da sua ilharga, que tomou, onde acudiu grande peso de gente, por cuidarem os mouros que ali ia o Governador, vendo que a gente era dobrada. Mas como todos já andavam travados, tanto que a gente dos navios tomou terra, foi ele mui bem ajudado, principalmente destes fidalgos e cavaleiros: Jorge Cabral, João de Melo, João de Betancor, Manuel da Gama, Fernão de Morais, Rui da Costa, com que acabou de rematar neste grande conflito a vitória, pondo-se os mouros em fugida. No qual ficou morto Diogo Pereira e outros catorze em este feito, e todolos acima nomeados feridos, afora outros em outras partes, que por todos seriam quorenta e oito. Acabada esta vitória, foram recolhidas trezentas e sessenta peças de artelharia de toda sorte e grande número de espingardas, e tomados cinquenta e três navios, muita parte deles carregados de especearia, que estavam pera fazer viagem; e os mais por serem velhos, e não pera uso nosso, foram queimados; e por derradeiro foi queimado todo o lugar. Com esta vitória se tornou D. Hanrique a Cananor, a onze de Março, onde se viu com el-Rei em terra, com aquele aparato (segundo seu uso, de 480 que já escrevemos). E entre alguas cousas que lhe el-Rei requereu, foi a entrega de certas ilhas das chamadas de Maldiva, de que lhe apresentou ua provisão del-Rei. A qual, como vinha com ua cláusula, que pagaria delas o que bem parecesse ao Governador, e ele, Rei, não se quis obrigar a pagar a quantidade do cairo que lhe D. Hanrique pedia, ficou sem as ilhas, e assi sem uns paraus com a artelharia de certos ladrões que se acolhiam no seu reino; porém concedeu-lhe outras cousas levemente, com que ambos ficaram contentes um do outro, e se deram peças: el-Rei um colar de ouro e pedraria a D. Hanrique, que ele mandou a este reino a el-Rei, e com esta condição o tomou, por ele se haver por injuriado em o não tomar D. Hanrique; e ele em retorno lhe deu outras peças. E daqui mandou D. Hanrique a D. Simão de Meneses com vinte navios, em que iriam até quinhentos homens pera correr aquela costa até Bracelor; e primeiro que se recolhesse invernar a Cochi, fosse carregar de arroz a Baticalá, e, leixando algum em Calecute, o resto levasse a Cochi. E assi espediu a um mensageiro del-Rei de Ormuz, que com agravos que dizia ter do tempo de D. Duarte de Meneses e de Diogo de Melo, capitão, escrevia ao Viso-Rei, Conde da Vidigueira; e vendo que era falecido, apresentou as cartas a D. Hanrique, e assi um fio de perlas e alguns panos de seda, que lhe mandava de presente. As quais peças D. Hanrique lhe aceitou, polo não escandalizar, e as mandou a este reino a el-Rei com o colar que lhe deu el-Rei de Cananor; e escreveu a el-Rei e a Raix Xarafo as palavras que haviam mister queixumes, que eram de consolação e justiça em seus agravos; e outra a Diogo de Melo, encomendando-lhe o bom tratamento del-Rei, e seu Governador, por não terem causa de se queixar. E daqui se partiu pera Cochi a ordenar as cousas pera o fundamento que ele trazia.

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240v 240v 481 Capítulo VI. Do que passou António de Miranda de Azevedo com a armada que foi ao Estreito: e assi a D. Simão de Meneses, na costa de Malabar, até se recolher a invernar. Por o recado que D. Hanrique mandou a Manuel de Macedo a Chaúl sobre as naus de madeira que iam pera Meca, de que lhe Álvaro Mendes deu conta, como atrás fica, ele partiu de Chaúl, meado Janeiro, em um galeão, e levou duas caravelas: de ua era capitão Rui Vaz e da outra Rui Gonçalves. E porque ele foi primeiro que António de Miranda, o qual partiu de Goa a cinco de Fevereiro, em chegando a Socotorá, achou ali nova como no Cabo de Guardafu andava ua caravela dos nossos às presas, a qual ele foi tomar, e era da armada do Conde Almirante, capitão Mosém Gaspar, de que atrás fizemos menção. O qual, como era estrangeiro, sobre palavras de querer mandar que alguns dos nossos mal sofreram, ele foi morto; e temendo o castigo que por isso haviam de haver os autores de sua morte, determinaram de se fazer per ali ricos, andando às presas, fazendo seu capitão um António Lopes, que não durou muito tempo no ofício. E em seu lugar fizeram outro, de apelido Aguiar, autor da morte de Mosém Gaspar, que depois foi degolado em Cochi por este feito; e dos outros, deles foram enforcados em Chaúl, e outros degredados pera diversas partes, segundo suas culpas. Feita esta presa de presos, ajuntou-se Manuel de Macedo com António de Miranda pera andar ali de armada, já desesperado das naus de madeira, por serem passadas daquela paragem. O qual vinha em ua galeaça, e com eles estes capitães: Rui Mendes de Mesquita em um galeão, Francisco de Vasconcelos, Rui Vaz Pereira; e seria a gente que levou até trezentos e cinquenta homens. E o modo que tem as nossas armadas de andar guardando a boca daquele Estreito, por não passar algua vela de mouros que lhe não caia na mão, é o que fazem os pescadores na sua pescaria, atravessando o rio de terra a terra com sua rede; e por esta ser a ordem de todalas armadas que vão ali, a este fim o escrevemos aqui, por a não repetir muitas vezes. Do Cabo de Guardafu, que é a mais austral e oriental terra da parte África, ao Cabo de Fartaque, que lhe fica ao Oriente na terra da Arábia, se faz ua garganta do mar, que vai fazer o Estreito do Mar Roxo. Esta garganta será pouco mais de cinquenta léguas pelas cartas de marear, e nesta 482 distância as nossas armadas com seus navios se vão estender quási uns à vista de outros, porque não passe vela que per eles não seja vista. E per este modo se ordenou António de Miranda, e deu a caravela dos alevantados a Paio Rodrigues de Araújo, e nesta pescaria a pouco custo de peleja houveram dez zambucos carregados de ruiva, 241 241 cousa de pouco preço, e três naus. Das quais a mais rica tomou Rui Mendes de Mesquita, e por o terem assi por regimento, por não andarem com naus carregadas trás si, Rui Mendes por andar da banda da costa de Arábia a mandou por Francisco Borges a Chaúl, por ordenança de António de Miranda, da qual fazenda ele não deu boa conta. E a Manuel de Macedo em seu lanço lhe coube um parau carregado de pimenta, que pelejou tam furiosamente, que pereceram todos sem se querer entregar, e ficaram somente dous vivos. E vindo o tempo em que já não podiam andar naquela pescaria, António de Miranda foi dar ua vista a Xael, onde D. Hanrique lhe mandou que fosse pedir algua artelharia, que D. Luís de Meneses não pôde recolher com o tempo do mar, quando saqueou aquela cidade. E assi que

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houvesse outra artelharia de ua nau que, indo pera Ormuz, com tempo se foi ali perder; mas os mouros como estavam escandalizados do feito de D. Luís, o não quiseram fazer. E converteu António de Miranda a fúria em pôr fogo a uas poucas de naus, porque, acudindo eles a elas, os castigasse, como fez, onde correram muitos sem sair em terra, e das naus foram queimadas sete, e cinco foram tomadas, em que houve bom esbulho. E porque o tempo não sofria andar mais naquela costa, e o galeão de Manuel de Macedo fazia muita água, António de Miranda o espediu que viesse a Chaúl, como veo, e ele invernou em Mascate, e depois veo ter com D. Hanrique a tempo que ele estava sobre Calecute, como se verá adiante. D. Simão também neste tempo, com a armada que levou pera andar na costa, foi correndo todolos rios até chegar a Mangalor, onde ele cuidou achar Fernão Gomes de Lemos, por levar recado de D. Hanrique que o tomasse debaixo de sua bandeira e alimpasse aquela costa de ladrões, por D. Hanrique ter sabido o que ali lhe tinha acontecido, de que estava descontente, e Fernão Gomes muito mais. E o caso foi este: Dentro deste rio estava grande número de paraus carregados de pimenta; e como ele não tinha navios pequenos pera poder entrar, por o seu navio ser um galeão, e as outras duas peças de seu irmão Gomes Martins de Lemos, e de António da Silva serem galeotas, estavam mais em guarda que não saíssem, que em auto de poder ir a eles. Os paraus, como estavam ali encarcerados sem poderem sair, parece que deram aviso por terra a Calecute do estado em que ficavam, e ordenavam este ardil: que viessem de mar em 483 fora muitos paraus de lá a esbombardear Fernão Gomes. Porque como ele não tinha navios leves, e eles o podiam provocar a se mudar da boca do rio, pera no mar largo vir pelejar com eles, e só nesta mudança ficavam eles de dentro despejados pera saírem com a sua carga, pera o qual negócio estavam prestes. O qual ardil foi como eles o cuidaram: vindo um grande número de paraus todos a ponto de pelejar, e cometendo a Fernão Gomes, foi tanta bombarda neles, que lhe 241v 241v conveo sair-se do lugar ao mar largo com as galeotas. E saindo os paraus, começaram de se espalhar, e como eram leves, não lhe podiam os nossos fazer dano senão com alguns pelouros da artelharia, se os acertavam. No qual tempo os que estavam dentro, como presa de água que lhe tiram o impedimento que tem, saíram os que estavam carregados e outros de pequeno porte, vasios. E em Fernão Gomes fazendo volta, como que queria acudir a os entreter, se meteram pelo rio dentro, e por este modo os carregados foram sua via de Cambaia, e Fernão Gomes ficou mui descontente, e muito mais quando soube que os de dentro não tinham carga algua, com que determinou de se ir dali quási em busca dos outros que o fizeram mover, até que D. Simão veo dar com ele, e, com indinação do caso, ele, D. Simão, foi dar em Mangalor, e o queimou, e dez ou doze navios que i estavam; e os outros de menos porte se meteram por estes esteiros, onde os nossos lhe não podiam fazer dano. Partido daqui, foi correndo a costa já acompanhado de Fernão Gomes, e pelejou três ou quatro vezes com paraus. E a maior peleja que teve, foi dia de Páscoa com até setenta paraus, de que tomou vinte, e com outros deu à costa. Aos quais perseguiam António Pessoa e Domingos Fernandes por levarem catures de remo, que são navios mui leves, chegando-se tanto a eles, que vinham ao bote da lança, onde mataram muitos mouros. E vendo os outros que não tinham salvação, lançaram-se ao mar, e outros foram tomar por abrigo o rio Marabea, dentro do Cabo de Cananor. Seguindo os quais foi D. Simão, António da Silva, Gomes Martins de Lemos; os mouros do qual lugar, vendo ir os nossos, com grande grita trás os paraus, como quem os queria defender, começaram a ofender os nossos. E quem nisso se ventajou de entrar pelo rio acima, foi Domingos Fernandes, por ter leve navio, confiado na vitória que houvera dos outros paraus.

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D. Simão, quando o viu ir assi com aquele alvoroço, desatentamente e só, mandou a Gomes Martins de Lemos, filho de João Gomes de Lemos, que ia em um batel, que lhe acudisse; e ele em lugar de ir salvar a vida do outro, perdeu a sua, por dar em seco com o alvoroço de chegar; onde os 484 mouros de Marabea o mataram às frechadas, e com ele D. Miguel de Lima, filho de D. Afonso de Lima, e quantos iam no batel, em que entraram sete portugueses, afora estes dous fidalgos. Domingos Fernandes, quando quis tornar sobre ele, era já o caso feito, e teve bem que fazer em se salvar, e foi-se pera D. Simão, que não ficou mui contente dele, por o seu açodamento ser causa daquele desastre, de que ficou muito triste. E por não ter vasilhas pequenas, leixou de ir destruir o lugar de Marabea, posto que del-Rei de Cananor fosse; e porque esperava de haver o castigo por o mesmo Rei, e o tempo não sofria mais andar na costa, foi carregar de arroz a Baticalá como D. Hanrique lhe mandava, provendo dele Cananor e Calecute. E também lhe leixou algua gente, por estarem já de guerra com o Samori; e dai se foi pera Cochi invernar. 242 242 E quando passou per Cananor, fez queixume a el-Rei do que os seus lhe fizeram, o qual polo satisfazer mandou matar alguns naires e mouros que achou serem culpados. E neste tempo, que era no princípio de Maio, quando chegou a Cochi, por ser o tempo da moução pera ir pera Malaca, achou que D. Hanrique acabava de despachar Pero Mascarenhas pera ir servir a capitania dela. Da chegada do qual adiante faremos relação, falando nas cousas desta cidade.

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242 242 484 Capítulo VII. Como o Samori de Calecute, desejando de tomar a nossa fortaleza de Calecute, por artefício mandou cometer pazes ao Governador D. Hanrique; e por lhe não serem concedidas com as condições que ele queria, veo cercar a nossa fortaleza. O Samori, Rei de Calecute, como neste tempo que D. Hanrique começou governar viu a grande destruição que lhe fez em seus lugares, e quantos navios tinha perdido, e que ele desprezava os cometimentos de paz, entre indinação sua e conselho de mouros mercadores, que muito o demoveram, ordenou de cercar aquele inverno a nossa fortaleza, e a tomar, se podesse. E quando não o podesse fazer, pô-la-ia em tanta necessidade, que esta obrigaria a D. Hanrique consentir na paz, conforme às capitulações que ele quisesse; ca, segundo aquele homem entrava em seu governo furioso, seria o seu reino de todo perdido, sem ua almadia poder pescar, quanto mais navegar navios. E porém primeiro quis usar de ua cautela pera dissimular com ele: mandar-lhe cometer pazes; porque, quando 485 visse que lhas cometia, assentaria em seu ânimo que ele, Samori, não havia de cercar a fortaleza, e não a proveria de novo. A qual tenção ele fez logo no fim de Maio, mandando a Cochi um gentio, homem principal, per nome Lambea Mori, que D. Hanrique ouviu, e tudo eram palavras de desculpas - ser movida aquela guerra com D. João de Lima, por ser um homem mau de contentar e grande executor crimemente em toda venial culpa. E se da parte do seu capitão da cidade Calecute se houve algua, foi por ele, Rei, ser ao pé da serra a ua guerra que tevera com seus imigos, que tinha acabada. E desejando muito sua amizade dele, D. Hanrique, tanto como os benefícios da paz, lha mandava requerer. D. Hanrique a estas suas razões deu outras; e per fim dos apontamentos e condições da paz, o embaixador se tornou não mui contente, sem o Samori mais a mandar requerer, e folgou de lhe não ser concedida, pera pôr em efeito mandar cercar a fortaleza. E porque este cerco foi ua das cousas mais perigosas que até aquele tempo tevemos na Índia, assi por causa do tempo, que era na força do inverno, como do sítio da fortaleza, pera se melhor entender o modo do cerco, será necessário darmos mais particular declaração dela, posto que já atrás em algua 242v 242v maneira o tenhamos feito, na relação da cidade dos mouros. Esta costa em que a fortaleza está situada não tem rio nem porto abrigado onde os navios possam estar seguros; tudo é ua costa brava com um recife de pedras com alguns canais pequenos per que podem entrar navios pequenos. A qual costa se corre Norte-Sul e tem a nossa fortaleza nas costas da parte do Oriente junto à cidade dos mouros, e do Ponente o mar, tudo tam desabrigado e patente aos ventos, que, pera sair na fortaleza em paz, há mister que seja o dia quieto, pera o mar dar saída em terra, quanto mais querer sair com mão armada e o mar que rompe (como dizem) em frol. Os mouros a primeira cousa em que entenderam foi cercarem a fortaleza com ua cava de até vinte cinco palmos de largo, à maneira de meia-lua, cujas duas pontas vinham beber no mar. No fim das quais pontas em cada ua fizeram seu baluarte mui forte com artelharia, que jogava em revés ao longo da praia, pera que, vindo socorro per mar, não podesse entrar na fortaleza. E em contorno de toda esta cava, em lugar de repairo, principalmente donde podiam dar bateria à fortaleza, fizeram outros cinco baluartes, e toda a terra que tiravam da cava faziam ua trincheira pera tirar com espingardas e frechas e se emparar dos nossos tiros, e per estes principais baluartes punham a

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artelharia. Da qual obra era mestre um siciliano de nação, arrenegado, que era grande oficial, e ele se gloriava que aprendera todos aqueles artefícios da guerra no cerco que o Turco teve sobre Rodes. 486 Finalmente, quando os mouros chegaram a fazer esta cava e baluartes, já os nossos tinham passado muito trabalho, e D. João de Lima saído per vezes fora da fortaleza a pelejar com eles. E o primeiro movimento que o Samori teve neste cerco foi mandar dez ou doze mil homens com um seu capitão e o siciliano que dissemos, fazer a cava. A empedir a qual, D. João de Lima em diversos tempos do dia, ora com cinquenta, ora com cem homens (porque na fortaleza não havia mais que trezentos) lhe dava rebates, matando e ferindo aos que andavam nesta obra. E ainda pera o fazer mais a seu salvo, serviam-lhe muito uas casas nossas, que estavam fora dos muros da fortaleza, que serviam de almazéns e casas de feitoria, porque emparavam os nossos, que saíam a empedir a obra que os mouros faziam. O arrenegado, vendo quanto empedimento lhe fazia D. João com estes rebates, com que lhe matava muita gente, mandou cobrir da cava parte dela com vigas e rama e terra, pera os homens per baixo irem trabalhando. E porque, com ser muita gente, venciam o trabalho dos nossos, ante que lhe viessem a queimar as casas dos almazéns e feitoria que estavam fora da fortaleza, D. João mandou recolher dentro toda a fazenda principal, sem derribar as casas, por lhe servirem de amparo, quando saía dar os rebates. Também vendo ele que a tenção dos mouros era tomar-lhe a serventia do mar, com os baluartes que jogavam em revés, da porta da fortaleza até beber 243 243 no mar, com pipas entulhadas de area e outros repairos, mandou fazer ua rua ao modo de coiraça, pera per ela irem e virem os nossos seguros, e mais per entre pipa e pipa jogar em os nossos com a artelharia meúda e espingardas. A este tempo, que era já na entrada de Junho que a cava era acabada, chegou o Samori, o qual deziam trazer noventa mil homens. E quem vir esta gente em campo, dirá ser menos a metade; porque, como faz pouco aparato, somente com um arco e frechas, espada ou cofo, e alguns deles espingardas, e todos com um pano derredor de si, sem luzirem mais armas, fazem pouca mostra em vista e muita no cometer. Na qual gente vinham reis e senhores, deles vassalos e outros amigos; e por assombrar os nossos e ele abonar seus artefícios, o cezeliano trouxe el-Rei encobertamente a os ver, dando-lhe esperança que com sua chegada em poucos dias os nossos seriam tomados às mãos. El-Rei assi lhe pareceu, pondo os olhos em a pouquidade da nosso fortaleza e no grande número da gente que tinha; tanto que, gloriando-se ele entre os seus do que vira, dezia que com punhados de terra sem mais armas os seus alagariam a fortaleza. Ao que o seu capitão que ali andava, como escaldado do que tinha passado, respondeu: 487 - Aquela gente, Senhor, não se leixa alagar com terra, nem teme ferro, e é como ua pouca de pólvora metida em um pequeno vaso, que se lhe chega ua faísca de fogo, faz maravilhas, de que muitos mortos e feridos e eu fomos testemunhas da sua fúria. D. João de Lima, porque o arrenegado veo estar à fala com os da nossa fortaleza, dizendo que seria bom darem-se, por ter vindo o Samori com aquele grande exército de gente, com que viram o dia de antes aquelas praias cobertas, mandou-lhe responder que agora veria ele que os cavaleiros que estavam dentro naquela fortaleza pelejavam de melhor vontade, pois eram vistos de um tal Príncipe. E por fazer sua palavra boa, e que não temia aquela multidão de gente, saiu por detrás das casas da feitoria, que estavam fora do castelo, a dar nos imigos, o que lhe houvera de custar a vida, por serem tantos sobre ele, que quási o teveram cercado; e à força de ferro e feridas que levaram os seus, se recolheu à fortaleza. E por experimentar naquela saída que já as casas lhe não serviam de amparo, ante podiam ser azo na confiança delas de algum grande desastre, per conselho que sobre isso teve, as mandou derribar, ao qual feito os mouros não acudiram por ódio, segundo o dano que delas recebiam. E porque houveram que o temor fizera aos nossos fazer aquela

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obra, apressaram-se muito acabar a sua cava, e ordenar seus baluartes com toda artelharia que tinham, pera dar bataria à fortaleza em que entrava peça que tirava pelouro de seis palmos de roda.

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243v 243v 487 Capítulo VIII. Como el-Rei de Calecute começou combater a fortaleza, e o socorro que o Governador D. Hanrique lhe mandou; e dos trabalhos que os nossos padeciam neste cerco. O primeiro dia que começaram dar esta bataria, foi ua menhã treze de Junho, a qual menhã naquele tempo não teve mais claridade que os relâmpagos do afusilar do fogo, porque todo o mais foi um grosso e escuro fumo, que cobria o cercuito da fortaleza, com tamanho estrondo das bombardas e grita da gente, que por alto que os nossos falavam dentro na fortaleza, não se ouviam entre si. Finalmente, a terra tremia, o mar se empolava com alguns pelouros que lá iam parar e o ar roncava com aquele rumor desvairado do estrondo das peças da artelharia, e tudo era ua semelhança do Juízo Final; porque o ânimo dos homens 488 e a palavra se lhe encobria de horror, assi nos cercados; como ao gentio de fora, ainda que autores daquela obra. D. João neste tempo tinha repartido a guarda da fortaleza em estâncias, de que estes eram as principais pessoas: D. Vasco de Lima, Jorge de Lima, Rui de Melo, António de Sá, seu irmão, João Rabelo, feitor, Duarte de Faria e António de Serpa, ambos escrivães da feitoria, com gente ordenada que continuadamente estavam neles. E D. João andava com outra sobressalente pera acudir a qualquer parte mais necessária; mas naquele dia não houve mais que fogo, de que os mouros receberam o maior dano, porque a fúria da sua artelharia parava em o muro da fortaleza, e muita dela não lhe fazia cousa algua, por não serem os bombardeiros mui certos; e a nossa que lhe respondia, dava no cardume da gente e pés das palmeiras, as côdeas das quais era outro género de tiros, que matou e aleijou muitos. Passado este dia, espertou os nossos de maneira, que foi necessário espertar outra vez a D. Hanrique, o Governador, dando-lhe conta como tinham recebido o primeiro combate e estado em que ficavam, pedindo-lhe D. João socorro de gente, porque a que tinha andava mui cansada do trabalho de dia e vigia de noite; e nas saídas que fizeram foram alguns feridos. D. Hanrique, tanto que teve este recado, per ua almadia, que foi milagre aportar lá, com a fúria do mar, por ser na força do inverno, que era a dez de Julho, espediu a Cristóvão Jusarte, filho de Bartolomeu Jusarte, alcaide-mor da vila Monforte, e com ele Duarte da Fonseca, filho do Doutor Fernão da Fonseca, debaixo da sua bandeira. E ambos se ofereceram a este grande perigo, por ser cousa de muita honra, em duas caravelas que levariam cento e quorenta homens, os mais deles de bom sangue, com outra provisão de pólvora e cousas que mandava pedir. Chegando ambos a Calecute, teve 244 244 Cristóvão Jusarte ua vantage, que chegou primeiro e a tempo que pôde entrar dentro do recife; e a Duarte da Fonseca acalmou-lhe o tempo e ficou de fora. Cristóvão Jusarte, como nas cousas da guerra era sem medo e ardido, peró que D. João, quando o viu no lugar onde estava, temeu sua saída, e pôs-se à porta da coiraça que tinha feita, acenando-lhe com ua bandeira que não saísse, contudo, ou que ele o não entendeu, ou que teve pouca conta com isso, determinou sair, sem ter aquela cautela e resguardo que lhe D. Hanrique mandava ter na saída. Escolheu entre oitenta homens trinta e cinco do seu voto, e aos outros que lhe contrariavam a saída, mandou ficar em o navio em guarda dele; e tanto que lhe vissem tomar terra, varejassem aos mouros que sobre eles viessem. E pera ser maior milagre esta sua saída, a força da água carregou tanto no parau em que saiu, que não foi direito à boca da coiraça onde D. João estava.

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E como os mouros o viram ficar fora da garganta dela, de que podiam receber dano das nossas espingardas, que estavam naquele lugar, ainda o parau não tomava terra, quando a multidão dos mouros no colo 489 queriam tomar os nossos. O qual tomar de terra era quási com água pelos peitos, onde os mouros e gentio, como não tem custo de despir vestidos e sempre andam pera nadar, andavam a braços com os nossos. E se lhe de terra os outros não tiravam com espingardas e frechas, era por temerem que ferissem os seus, tendo já Cristóvão Jusarte espedido o parau pera o navio, polo não tomarem os imigos. E eram tantos a ele, que mais afogados andavam os nossos deles que da água; e quási remando vieram ter onde estava D. Vasco de Lima, que per mandado de D. João lhe acudia, por se não perderem todos. E chegando ao lugar da entrada, por já irem um pouco soltos da água, foi a peleja tam travada, que quási os imigos houveram de entrar de envolta com os nossos, até que, a poder de ferro e fogo, Cristóvão Jusarte foi salvo, perdendo naquela entrada Fernão de Sequeira e João de Macedo, pessoas nobres, e dous homens de armas, e muitos feridos, entre os quais foi Manuel Cerniche. O qual, por salvar um homem seu amigo, que ficava entre os mouros, tornou atrás como cavaleiro que era, e, rompendo per eles, tanto fez até que o salvou, e não pôde salvar a si mesmo de quantas feridas lhe deram, de que morreu daí a poucos dias. E neste tempo da entrada de Cristóvão Jusarte se viu D. João em maior perigo do que até li tevera; porque, vendo os mouros que ele havia de acudir à entrada dos que lhe vinham pera socorro, ousadamente remeteram aos muros da fortaleza pela banda da terra, pondo neles escadas pera subir. Dado este rebate a D. João, acudiu prestes, e com panelas de pólvora e muita espingardada e lançada se tornaram, 244v 244v queimados do fogo, sangrados do ferro, a suas estâncias. Duarte da Fonseca, quando viu os perigos per que Cristóvão Jusarte passara, posto que era cavaleiro, quis obedecer ao regimento que levava, e tomado conselho, pareceu a todos que devia noteficar a D. João a dúvida que tinha e regimento que trazia, e contudo faria o que a ele, e assi os senhores que com ele estavam, bem parecesse. E esta notificação foi per ua carta atada em ua seta, que mandou tirar do parau, que podia chegar bem a terra, e segurar que não caísse fora da coiraça. Vista a carta em conselho, foi-lhe respondido per outra carta por o mesmo modo da frecha, que sua saída era tentar a Deus, porque desembarcar na praia não podia ser com menos de quinhentos homens, e destes tinha a fortaleza necessidade, porque muitos dos que estavam dentro eram feridos, e os outros não podiam vencer o trabalho que lhe davam os imigos em cometimentos de refregas e de repairar lugares perigosos; e que isto escrevia a D. Hanrique na outra carta, que com aquela lhe mandava. Duarte da Fonseca, vista a carta, e tomada a outra caravela consigo, 490 partiu daquele porto e veo dar com ele Francisco de Vasconcelos, a quem entregou a caravela, que a levasse a Cananor, a Heitor da Silveira, que ali estava por capitão. Ao qual D. Hanrique per ele, Francisco de Vasconcelos, mandou que socorresse com qualquer cousa que podesse a D. João, pois estava tam vezinho dele. Chegado Duarte da Fonseca a Cochi, D. Hanrique o recebeu com gasalhado, e louvou tanto o que fez, atribuindo-o a cavalaria, como a Cristóvão Jusarte em entrar, posto que não cumpriu seu regimento. E vista a carta que lhe D. João escrevia e nova do modo que o Samori tinha situado seu arraial, segundo o que ele, Duarte da Fonseca, pôde devisar aquele pouco tempo que ali esteve, ordenou logo a mesma caravela de Duarte da Fonseca e outra, capitão Pero Velho, e Duarte de Azevedo em um navio, e Dom Afonso de Meneses e António da Silva em duas galeotas, e Jerónimo de Sousa em ua barcaça, e por capitão-mor destes navios Francisco Pereira Pestana, que fora capitão de Goa. E porque em saindo pola barra de Cochi, com o temporal quebrou o leme à galeota em que Francisco Pereira ia, pediu a D. Hanrique que lhe mandasse dar um galeão que se lançava

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ao mar, que lhe D. Hanrique concedeu. E porém, porque convinha fazer deligência, mandou que entretanto se fossem os navios, e por capitão-mor deles António da Silva, e esperassem Francisco Pereira no porto de Calecute, e não saísse em terra até ele não chegar, pera juntamente saírem com o corpo dos quinhentos homens que lhe D. João de Lima mandava pedir. Porque, pela carta que lhe ele escreveu, com menos gente não podia tomar terra, senão com tanto perigo como foi a 245 245 saída de Cristóvão Jusarte, que (segundo lhe contou Duarte da Fonseca) foi milagre não perecerem todos. Partido António da Silva juntamente com os navios de sua companhia, por rezão do tempo ser forte, não houve navio que podesse seguir bandeira de capitão, porque seguiam mais a vontade do mar, que naquele caminho foi mais forçoso capitão que a vontade deles. E enquanto António da Silva fez este caminho, se viu D. João em muita afronta e perigo, porque o Samori tinha espias per terra do que fazia D. Hanrique em Cochi e do socorro que mandava, e como se fazia prestes pera vir socorrer a fortaleza; e ante que viesse com tal socorro, queria ele tomar conclusão com ela. E como o arrenegado seciliano neste negócio era o mestre de todos os artefícios, e el-Rei desejava ver esta conclusão ante que D. Hanrique viesse, apertado dele, não ficou cousa que por míngua de sua deligência ficasse por fazer: ora com trabucos que davam grande opressão e faziam muito dano dentro na fortaleza, porque não havia já dentro nela lugar seguro pera a gente estar; ora com mantas e minas, até vir a fazer 491 aquelas grandes albarradas que ele aprendeu no cerco de Rodes, quando o Turco o tomou. As quais albarradas são uas serras de ajuntamento de terra que trazem ante si, e vem-se com ela amparando que lhe não faça nojo a artelharia de dentro da fortaleza, até que vem igualar a serra com o muro, e ainda pera ficarem mais senhores dos de dentro, sempre a serra é mais alta que o mesmo muro. No meio dos quais artefícios, que davam muito trabalho na defensão aos nossos, Deus os quis prover de um seguro remédio não cuidado, porque estas são as suas misericórdias: Andava um mancebo grumete, per nome Bastião, lançado com os mouros, o qual às vezes falava com os nossos e também com D. João; e segundo pareceu nos avisos que deu, o seu ofício mais era de anjo que arrenegado; até ua mina que os mouros faziam, porque não achou outro modo, cantando a denunciou. Finalmente, em todo este tempo com o trabalho de acudir a tanto artefício, como resistiam, andavam os nossos de dia e de noite em pé e em força por razão do mantimento que lhe falecia, e não comerem mais que um pouco de arroz cozido com água tal. Mas o ânimo e sangue generoso os espertava e trazia vivos, e assi pera empedir pelejando, como cavar, queimar e usar de todolos artefícios que podiam, com que vieram os mouros a se enfadar e o Samori anojar tanto, que mandou que não houvesse mais artefícios, por não ver tanta morte dos seus e mágoa de quam pouco lhe aproveitavam, segundo logo eram contrariados dos nossos, e assi mandou que houvesse combates e bateria sem mais outra cousa, pondo sua esperança em os render ou matar por fome.

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245v 245v 492 Capítulo IX. Como o Governador D. Hanrique proveu por alguas vezes a fortaleza de Calecute com gente e mantimentos e outras munições, e as cousas que nela passaram, até ele vir em seu socorro; e as diferenças que teve no seu conselho sobre sair ele com a gente em terra, e por fim destas diferenças se assentou que saísse. A este tempo eram já dos nossos mortos mais de cinquenta homens; porque onde houve tanta defensão e ofensão, não pôde ser sem custar vidas e muito sangue. E verdadeiramente, se houvesse de particularizar cousas que pessoas particulares fizeram, bem se podia deste cerco fazer ua particular história; mas nós seguimos a figura de todo e não os seus meúdos membros. E estando neste trabalho, chegou António da Silva só, porque os outros navios que partiram de Cochi com ele, a força do tempo os espalhou. E de noite, a nado, per um homem soube o que D. João queria que ele fizesse, e ele o mandou amoestar que não saísse em terra, somente o provesse com algua pólvora de noite; o que se fez com muito trabalho, por os mouros estarem alerta, e a qualquer cousa que sentiam eram logo ali. E porque estar no recife não servia cousa algua, António da Silva se tornou a Cochi com recado do estado em que leixava a fortaleza, e lá achou os outros navios de sua companhia, que arribaram com o tempo. Partido ele de Calecute, chegou Heitor da Silveira, capitão de Cananor, com a caravela e fusta que levou Francisco de Vasconcelos e cinco paraus da terra, com muitos mantimentos, provisões de pólvora e de outras cousas, de que a fortaleza tinha necessidade. E havendo recado de D. João de como o havia de prover das cousas que trazia de noite, ele mesmo, D. João, acudiu com gente à boca da coiraça; e a poder de ferro, pólvora e muito trabalho, Heitor da Silveira o proveu de tudo o que trazia, e se tornou pera Cananor, porque D. João neste tempo não queria mais gente, por ver que os mouros, já de cansados ou desesperados de poder tomar a fortaleza per combate, não os davam tam a meúdo, e faziam mais fundamento de a tomar per fome. E porque deziam a D. João que os mouros cantavam cantigas no arraial desta fome em que esperavam de os pôr, mandou chamar o moço Bastião ao pé do muro, e o convidou com tassalhos de carne fresca e outras cousas, até folhas do bétele, de que eles muito usam trazer na boca por derramar a humidade do estômago, dizendo-lhe que convidasse seus amigos. A este tempo, que era já na fim de Setembro, e o verão começa naquelas partes, chegou Francisco Pereira Pestana, o 246 246 qual até então estevera metido 493 no rio Chatuá, por não poder navegar no galeão em que vinha, como fizeram os outros, que foram em pequenas vasilhas. E por esta rezão de navio grande não entrou dentro no recife, e pôs-se de largo, parecendo-lhe que veriam os outros navios que ele cuidou achar ali, até que per um parau que levava consigo soube de D. João o que era passado, dizendo que ao presente não havia mester mais que provê-lo de alguas cousas que lhe pediu. E como a noite em que o proveu era de grande luar, acudiu grande número de mouros a empedir esta provisão, magoados das que lhe eram dado, segundo viram em os sinas do refresco que o moço Bastião mostrou. E foi tamanha a revolta, por acudir quási todo o arraial per ua e outra parte, que mataram cinco dos nossos e foram muitos feridos, até D. João com ua espingarda o feriram em ua perna, de maneira que, não podendo ir per si, Jorge de Lima o tomou às costas e meteu na fortaleza, e foi lançado na cama, por a ferida ser pera isso. E querendo Francisco Pereira dai a dous dias prover ainda a fortaleza, sem ter recado de

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D. João nem ter sabido como fora ferido, por lhe parecer que era melhor tempo pela sesta, em que toda a gente está em repouso, como quem lhe furtava a volta, mandou o parau com a maré. O qual foi rebatido da água, de maneira que aportou abaixo da coiraça em poder dos mouros, sem os nossos lhe poderem valer, e houveram à mão cinco marinheiros, entre mortos e cativos. E teveram os mouros ainda outro ardil, que primeiro que viessem ao parau, um capitão deles se lançou como em cilada junto da boca da coiraça; e em vindo D. Vasco de Lima com setenta homens pera receber o batel, saiu este capitão com sua gente, e houve entre eles ua peleja tam brava, que dos mouros foram muitos mortos e feridos. No meio do qual conflito, por a grande revolta que havia, não se pôde D. João sofrer na cama, e chegou a ua janela ferrada que estava sobre a coiraça, e vendo a peleja, também dali quis ajudar os seus. E porque não tinha consigo homens, somente ua escrava, esta lhe acudiu com duas espingardas e dali, ua carregada e outra descarregada, pelejou também, empregando seus tiros como os que andavam em baixo. Finalmente, a fúria foi tal, que Jorge de Lima foi ferido com ua espingarda que lhe meteu o capacete pela carne, e assi o foram alguns dos nossos, a té que, com morte do capitão mouro, que D. Vasco de Lima matou, que foi causa pera os seus alargarem o lugar, e os nossos se recolheram, do qual trabalho D. João ficou maltratado, porque o mover da perna e acendimento do espírito lha assanhou. E ainda fez esta sua perna outro dano, além de se pôr em perigo de morte, porque lhe houvera de saltar herpes, que deu presunção entre os imigos ser morto polo não verem pelejar. A qual cousa desejando o Samori saber, polo ódio que lhe tinha, 246v 246v como 494 sabia que o arrenegado Bastião às vezes falava com ele, mandou-lhe que soubesse se estava doente, ou como não aparecia, e se lhe dissessem que estava doente, pedisse seguro pera o ir visitar, como logo assi se fez. Quando D. João viu Bastião ante si, fez-lhe grande gasalhado e entendeu a causa de sua vinda, que o mesmo Bastião lhe confessou; e sobre este propósito do Samori D. João praticou muitas cousas com ele, e mandou-lhe dizer per ele que se espantava de um tal príncipe tam cavaleiro haver tanto tempo que durava aquele cerco, e nunca o ver, cousa que os príncipes fazem por animar os seus naqueles lugares, e assi outras palavras retorcidas a fraqueza. Partido Bastião, contente do vestido e mimos que lhe D. João fez, ficou o Samori tam corrido do que lhe disse, que, entre indinação e conselho dos mouros, mandou logo pôr fogo a um baluarte de madeira, que D. João tinha feito à porta da fortaleza, por segurar aquela entrada. E verdadeiramente que esta foi a mais trabalhosa cousa e de maior perigo em que os nossos até li se tinham visto, por o baluarte arder sem haver modo de o apagar nem empedir, por a grande multidão dos mouros que eram a este feito; mas onde desfalece a força e indústria humana, acode Deus com seu remédio, e foi este: não de chuiva pera apagar o fogo, mas com vinda de Heitor da Silveira, que chegou neste instante. O qual vinha com os próprios navios que veo da outra vez, e trazia alguas provisões pera a fortaleza, e deixava em Cananor D. Simão de Meneses, cuja ela era, por vir desavindo de D. Hanrique, por lhe não querer dar o ordenado que lhe pedia do Capitão-mor do Mar, como trazia D. Estêvão da Gama. filho do Conde Almirante, que levou este cargo quando deste reino partiu. E como D. Hanrique era mui regulado em dar ordenados que as partes não tinham senão por el-Rei, e D. Simão esperava isto dele, e com este propósito leixara a fortaleza de Cananor, tornou-se a ela, o que D. Hanrique muito sentiu, por razão do grande parentesco que tinham. Esta foi a causa por que Heitor da Silveira leixou a fortaleza de Cananor; e quando chegou naquele acidente que o baluarte ardia à porta da fortaleza, chegou-se quanto pôde ao porto, e começou de esbombardear contra a gente que andava derredor do fogo. Os mouros, vendo sete ou oito velas no porto, e o que faziam, parecendo-lhe que eram da armada do Governador que vinha, e

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que, confiados nela, queriam tomar terra, leixaram o baluarte, e a grã pressa acudiram à boca da coiraça, com o qual fôlego que os nossos receberam na fortaleza, teveram tempo de apagar o fogo com terra. E pera os mouros ficarem mais certos em sua opinião, entraram sobre ele vinte cinco velas com até trezentos e trinta homens, que trazia Pero de Faria, o qual per aviso de D. Hanrique, que mandou per terra, partiu de Goa em fim de Julho, e com os fortes tempos que passou, não pôde chegar mais cedo. 247 247 Estes dous capitães, como eram cavaleiros e prudentes no governo, todo seu ofício, enquanto o Governador não vinha, foi prover a fortaleza 495 de algua cousa que D. João pedia, e de fora esbombardear aos imigos, que não lhe fizessem dano, até que D. Hanrique chegou, a vinte de Setembro, com vinte velas, em que levaria mil e quinhentos homens, da qual frota estes eram os capitães: D. Afonso de Meneses, D. Jorge Telo de Meneses, D. Jorge de Meneses, D. Jorge de Castro, D. Pedro de Castelo Branco, Jorge Cabral, D. Diogo de Lima, D. Tristão de Noronha, João de Melo da Silva, António da Silveira, Fernão Gomes de Lemos, António de Lemos, António da Silva de Meneses, António de Azevedo, Manuel de Macedo, Hanrique de Macedo, seu irmão, Jorge de Vasconcelos, Duarte da Fonseca, António Pessoa, Rodrigo Aranha. E além das velas principais em que vinham estes capitães, havia também outros catures, de maneira que, com os navios que achou no porto de Calecute e António de Miranda, que era vindo donde invernara (como dissemos), enchiam toda aquela frontaria de Calecute. D. Hanrique,depois que foi mui particularmente informado do estado da fortaleza, e notou per si, com alguns capitães que a isso levou, a situação do arraial com todo o mais que ele podia ver do mar, donde estas cousas notava, teve três ou quatro conselhos com todolos capitães no seu galeão, os quais duraram tantos dias, e houve mui diferentes votos, sem D. Hanrique se determinar no que havia de fazer, desejando ele muito de sair em terra. Somente alguns seus parentes e amigos, como conheciam sua natureza, eram em contrairo parecer de outros, que não aprovavam a saída, visto como el-Rei mandava desfazer aquela fortaleza, segundo se dezia que o Conde Almirante levava isso em regimento. D. Hanrique, a muitas razões que alguns destes davam do perigo da saída por causa do arrecife, e que havia mister um dia muito brando, e outras razões do grande poder do Samori, e artelharia que tinha assestada nos baluartes que dissemos, tinha a experiência em contrairo, porque sabia quam poucos homens já por aqueles perigos entraram, apesar dos mouros, dentro na fortaleza; e a mais principal cousa que tinha ante os olhos, era ver outra semelhança daquele caso em outra parte, em que houve outras tantas e tais dúvidas; e quando se pôs o peito em terra, ficou o caso leve. E isto fora na vila de Arzila, em África, quando o ano de quinhentos e oito el-Rei de Fez a cercou, e entrou a vila, somente o castelo ficou por entrar, em poder de D. Vasco Coutinho, Conde de Borba, capitão dela, à qual chegou D. João de Meneses, tio dele, D. Hanrique, em cuja companhia ele ia na armada que el-Rei D. Manuel fez pera Azamor aquele ano de oito. Sobre o qual castelo estava el-Rei de Fez com tanta potência de gente como o Samori; e tendo outros baluartes com tanta e melhor artelharia, e a saída da gente havia de 247v 247v ser per mais perigoso recife de pedras, e o mar mais furioso, e tudo isto não foi impedimento pera D. João de Meneses leixar de sair em terra. E o primeiro que a tomou foi um primo dele, D. Hanrique, per nome D. Tristão de Meneses, filho bastardo de D. Rodrigo de Meneses, que ganhou o preço de trezentos cruzados, que seu tio D. João prometeu ao primeiro que 496 posesse o pé em terra. Pois, vendo D. Hanrique este perigo da saída do mar e potência da terra, de homens armados a cavalo e a pé,- e ele passou pelo perigo deles, como cavaleiro mancebo sem algum temor, - como o poderia ele ter, ainda que capitão e de mais maduro conselho, vendo indios

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menos armados, posto que mais frecheiros que os alarves de Berberia? Assi que o seu ânimo estava posto entre prudência e cautelas de capitão e ânimo de cavaleiro já mui experimentado nestas partes cá de Berberia e naquelas de lá, nas cousas que passou em Coulete e Panane, que sabia até onde chegavam os receos e temores das cousas, ante de cometidas. E mais conhecia os homens que eram em um voto e outro, cujos nomes ficam na pena, por não darmos notícia dos ditos de cada um, que muitas vezes nestes casos tais que não são fraqueza do ânimo, mas particulares respeitos. E porque António de Azevedo viu D. Hanrique inclinado a sair em terra, e era grande amigo de D. João de Lima, mandou-lhe ua carta per um seu criado, que foi e veo a nado, em que lhe resumia a confusão em que D. Hanrique estava. Que devia um dia sair a tomar ua bombarda grossa, e outros tiros postos no baluarte da principal desembarcação, porque todos em seus pareceres tiravam àqueles tiros. Este baluarte, na verdade, estava abaixo da banda do Sul, onde eles chamavam Cota China, por razão que, quando os povos chins teveram o comércio da pimenta, teveram ali ua fortaleza, a que os da terra chamam Cota, e China, por ser dos chins, de que ainda ali estavam as ruínas dela, e por esta razão era mais prejudicial que a outra de cima. Alguns quiseram dizer que esta carta e modo de cometer aquelas bombardas, D. Hanrique industriara tudo, porque quando aprovasse o feito, não dissessem que tudo ordenavam ao seu voto, posto que até ali não se tenha determinado. D. João, como entendeu que D. Hanrique teria disso prazer, ao outro dia, pela sesta, mandou sair até cinquenta homens escolhidos, e por capitão deles Jorge de Vasconcelos, um fidalgo que tinha prudência e ânimo pera aquele feito, o qual cometeu o caso como se dele esperava. E porque sua saída foi pela sesta, em que os mouros estavam descuidados, e toda sua vegia era na praia, se desembarcavam, em dando neles, ficaram tam sobressaltados, que mais tento teveram em se afastar que defender a artelharia. No qual tempo, porque os mouros haviam de fazer grande rumor, D. João de Lima mandou desparar muita artelharia nas suas estâncias, que estavam no muro contra o 248 248 corpo de todo o arraial. E o primeiro que pôs os pés em cima da bombarda grossa, que era um camelo, foi Belchior de Brito, filho de Jorge de Brito, copeiro-mor que fora del-Rei D. Manuel, 497 dizendo em alta voz aquelas palavras que os homens mancebos e cavaleiros como ele era, dizem: Amores! amores! No qual instante, era já tam grande a grita entre os mouros, por acudirem, que teveram os nossos tempo pera tirar dali as peças da artelharia; as quais custaram a vida de dous homens: um era Jorge Vaz, almoxerife da fortaleza, e outro um amo de D. Diogo de Lima. Tendo D. João provido com sua pessoa, porque, como viu que Jorge de Vasconcelos era cometido dos mouros, acudiu com gente que tinha prestes, e não se poderam espedir uns dos outros sem a vida destes dous e outros feridos; dos mouros também levaram parte de seu dano. O qual feito teve tanta parte de prudência, como de cavalaria pelo modo que se cometeu, e geralmente foi gabado na frota, de que D. Hanrique teve muito prazer, por abonar seu voto. Do qual escreveu logo os agradecimentos a D. João, e a todolos que foram nele, pedindo a D. João que lhe mandasse um homem honrado, que lhe podesse dar informação do que lhe perguntasse. Pera a qual ida se ofereceu Jorge de Lima, e ainda pedindo-a em modo de mercê a seu tio, por ele duvidar sua ida, por causa do perigo. Todavia, como veo a noite, em ua manchua, que estava dentro na fortaleza, cousa mui pequena, ele, Jorge de Lima, se meteu com um marinheiro, que se chamava de alcunha Guisado; mas não pôde isto ser tam surdo, que os mouros o não sentissem. E tirando a montão onde viam a ardência da água um tiro arrombou a manchua, e ficaram ambos a nado, e salvaram-se no primeiro navio que poderam tomar. Levado Jorge de Lima ao galeão do Governador, quando o viu, sabendo as cousas que tinha feito e aquele perigo a que se oferecera, e que tudo procedia de ânimo de cavaleiro, sendo ele de

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idade de vinte anos, queria o meter na alma com amor; e não o quis muito deter, por lhe ele pedir que o leixasse aquela noite ir dormir à nau de D. Diogo de Lima, seu tio. E assi o fez. Quando veo a outro dia, mandou chamar Jorge de Lima, e assi a conselho, pera ante os capitães dar o parecer de D. João de Lima, que ele trazia sobre o que entendia que devia fazer naquele caso, em que até então se não determinava. Posto D. Hanrique em conselho, quis que dissesse Jorge de Lima primeiro o parecer de D. João, e assi das outras pessoas de calidade que estavam na fortaleza, e assi o seu, com as mais razões pera confirmação do seu parecer. Jorge de Lima, depois de propor o que mandava dizer D. João e o voto dos que com ele estavam - que tudo vinha a concluir que ele, D. Hanrique, saísse em terra per honra do estado del-Rei e de quanta fidalguia era presente, posto que logo ao outro dia houvesse de mandar derribar a fortaleza começou de dar seu parecer, que era este, e 248v 248v bem confirmado com 498 muitas razões do que era passado e se podia fazer pera fazer o caso mais leve, do que eram os temores e inconvenientes que se podiam pôr. E porque o negócio dos votos foi ua nova peleja de perfias, rematou D. Hanrique o caso em duas palavras; e por magoar a ua certa pessoa que contrariava muito o caso, e disse com grande confiança de sua cavalaria: - Ora bem. Lá iremos e veremos o que cada um faz - respondeu D. Hanrique: - Eu juro a este Livro que tenho na mão, em que estão os Evangelhos, que sobre o caso não tenha mais conselho se sairei em terra, mas o modo da saída, visto o parecer e razões de D. João e dos que tem experimentado poder dos imigos há três meses e meio, e também de muitos destes senhores capitães que aqui estão. E assi juro de dar trezentos cruzados ao primeiro que for diante do senhor Jorge de Lima, que aqui está, e será a cada um daqueles que contraria o seu voto, com o qual me eu contento. E levantou-se por então, por evitar mais perfias.

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248v 248v 498 Capítulo X. Como D. Hanrique logo aquela noite, depois de ter este conselho, ordenou de meter gente dentro na fortaleza, e depois saiu em terra; e passados certos dias de trégua que lhe o Samori pediu pera entenderem na paz, porque não se concertaram nas capitulações dela, D. Hanrique derribou a fortaleza e se partiu; e o que o Samori por isso fez. Passada aquele conselho em que D. Hanrique assentou de sair em terra, por embarcar os mouros e não entenderem este seu propósito, por lhe não dar matéria de fazerem alguas minas de pólvora e outros artefícios de que podesse receber dano, e também pera ter gente em terra, que viesse entreter aos mouros quando ele quisesse poiar nela, logo aquela noite ordenou de meter dentro na fortaleza um bom golpe de gente, e assi o fez a noite seguinte, com que os mouros tomaram suspeita que ele não queria mais que socorrer a fortaleza, que pera o Samori foi um grande prazer, porque lhe pareceu que D. Hanrique leixava de o fazer com 499 temor dele, e assi lho davam a entender os mouros. E a primeira gente que meteu, foram cento e cinquenta homens, capitão Heitor da Silveira, que entrou com assaz trabalho; e na seguinte noite levou D. Diogo de Lima, primo de D. João de Lima, outros cento e cinquenta. Quando veo ao quarto da alva, pelo sinal que D. Hanrique tinha mandado fazer na gávea do seu galeão, Heitor da Silveira por sua parte com a gente que levou, e D. Vasco de Lima com duzentos homens, cometeram dar rebate nos mouros, e entretanto o Governador chegou a desembarcar. E diante si mandou ir D. Jorge de Meneses e D. Jorge Telo de Meneses, ambos seus primos, com sessenta 249 249 homens, cada um com panelas de pólvora, e um entrasse pela cava da parte do Norte, que vinha dar no mar, e o outro pela outra da banda do Sul, e fossem queimando os mouros que achassem dentro, pera ir fazendo caminho à gente detrás. E per outra parte ia Heitor da Silveira levando ante si Fernão de Morais com vinte homens com panelas de pólvora, e D. Vasco per o mesmo modo. Postos todos na ordem, segundo lhe era mandado (barba em terra, como dizem), começou o Governador dar às trombetas, e D. João em terra da parte da fortaleza respondendo com as suas. E bem como quando se solta ua grande presa de água, a qual não cabe no açude, a quebra per partes, sai tam furiosa que leva quanto acha ante si, assi romperam os dianteiros, e trás eles os traseiros, que não houve naquele primeiro ímpeto cousa que os esperasse. A grita deles, dos da fortaleza e dos que ficavam em os navios, por quebrar o ânimo aos mouros e gentios, era cousa que rompia os ares: tudo eram gritas da gente, som das trombetas, estrondo da artelharia e fumo da sua pólvora, que cegava a luz da menhã que rompia, de maneira que os imigos, naquela primeira saída, não sabiam onde haviam de acudir, com que muita da nossa gente, ao desembarcar, não teveram impedimento algum. Os que levavam as panelas de pólvora, com elas iam despejando as cavas; e quando os imigos queriam subir pera cima, achavam dos nossos espingardas, lançadas, bombas de fogo e mil géneros de morte. Outros dos nossos, a que este ofício era encomendado, punham fogo aos trabucos, que tanto mal tinham feito na fortaleza; e a pólvora que achavam nas estâncias lançavam nas cavas, que lavrava nos imigos com fúria do fogo que lhe lançavam. E em ua grande casa, que fora nosso almazém de recolher o gengivre, aqui foi grande mortindade deles, porque mais de trezentos homens que estavam recolhidos dentro, todos foram queimados. E em um dos seus baluartes em guarda da artelharia morreram mais de duzentos com o seu capitão; e tendo ua

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bombarda grossa, de torvação, ou (por melhor dizer) polo Deus empedir, nunca lhe quis tomar fogo, porque sem dúvida fizera 500 muito dano em os nossos; e aqui morreu o seciliano arrenegado que nos tinha feito grande mal com suas obras. Finalmente, foi a cousa tam baralhada, que não se pôde particularizar o que cada um fez; basta que os capitães que nomeámos, como andavam mais na vista da gente pola obrigação do sangue e principalmente de seu cargo, satisfizeram com seu ofício. Assi como D. João de Lima, capitão da fortaleza, D. Vasco de Lima, D. João de Lima, seu irmão, chamado o Moço, a diferença do tio Jorge de Lima, António de Sá, Rui de Melo, seu irmão, cada um per sua parte, como homens que receberam dano dos imigos, neste tempo quiseram vingar sua indinação. E ainda D. Vasco de Lima, por se mostrar ante o Governador e toda aquela fidalguia, quis perseguir tanto um caimal, pessoa bem nobre dos gentios, o qual se ia recolhendo pera a cidade com um corpo de gente de até quatrocentos homens; e 249v 249v quis-se meter tanto entre eles, por chegar ao caimal que ia diante, confiado em ua espada de âmbalas mãos, que se houvera de perder, se lhe não acudiram. Heitor da Silveira, quando já acudiu a este perigo de D. Vasco, tinha feito maravilhas pela parte que lhe coube em sorte, em companhia do qual ia Fernão de Morais com as panelas de pólvora, e Belchior de Brito e Cristóvão Jusarte. Pois D. Jorge de Meneses nas cavas per onde foi o seu caminho, também com outra espada de ambas as mãos fez despejo até que lhe cortaram a mão direita, e cumpriu-lhe por salvar a vida, que trocou a espada grande com outra pequena a um Baltesar Fernandes, que andava com ele, criado de D. Antão de Almada, capitão de Lisboa. Finalmente, os mouros que ficaram vivos despejaram suas estâncias, e os mortos ficaram enterrados nas cavas, e deles onde a morte os derribou; e por serem tantos que com fedor e quentura do Sol podiam corromper o ar, D. João mandou noteficar à cidade aos mouros que viessem enterrar os corpos dos seus, que ele os segurava de lhe não tirarem com artelharia, nem ser feito outro dano. E ante que estes mouros viessem, o Governador D. Hanrique mandou que todolos marinheiros e grumetes viessem com enxadas e pás, com que abateram os valos das estâncias sobre as cavas, onde ficaram enterrados muitos daqueles corpos mortos. E afirma-se que pereceram aquele dia mais de três mil homens, e dos nossos passaram de trinta, sem haver entre eles pessoa notável, e feridos duzentos e trinta. E não somente as enxadas vieram pera a gente do mar enterrarem os mortos, mas ainda pera assentar seu arraial. Na qual obra não ficou fidalgo que com enxada, com pá, com cesto, ou com madeira às costas não trabalhassem de maneira que o resto que ficava do dia se gastou em fortalecer aquela praia, em que se assentou seu arraial, 501 e os feridos foram levados aos navios. E porque ua das maiores injúrias que o gentio recebe naquele Malabar no estado da guerra, é serem-lhe cortado suas palmeiras, porque significa ser senhor do campo quem faz esta obra, e junto da fortaleza tinham um palmar novo, temendo que o Governador o mandasse cortar, mandou-lhe dizer que desse seguro a Coge Bequi, que o queria enviar a ele sobre cousas que importavam ao bem da paz. Este Coge Bequi era um mouro honrado, que no tempo do levantamento, quando mataram Aires Correa, estando Pedrálvares Cabral naquele porto e depois, tinha servido bem a el-Rei de Portugal, e tinha dele vinte mil reis de tença cada ano, assentados na feitoria de Cananor. E como era tam conhecido, depois que D. Hanrique deu licença que viesse a ele, por o mais honrar, entrando em o nosso arraial, ele o mandou receber com trombetas e fidalgos, que lho levaram à tenda que tinha, mostrando-lhe muito amor no agasalho que lhe fez, por saber quam leal sempre fora às cousas do serviço del-Rei, seu Senhor. Coge Bequi, depois de lhe agradecer as palavras, que lhe disse em sua chegada, logo naquele negócio a que vinha quis pagar a confiança que se tinha

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250 250 de sua lealdade, dizendo que o Samori o mandava a ele pera contratarem de paz, mas que ele entendia que nunca a poderia ter com ele por muitas razões, que logo apontou. E porém não se perdia ouvir as condições dela, e tais podiam ser, que sua Senhoria folgaria de a conceder e de se comprirem; e isto é o que ele duvidava. E que pera tratar este negócio, pedia ele, Samori, quatro dias de trégua; e este tempo, pola lealdade com que sempre servia el-Rei de Portugal, pedia a Sua Senhoria ser-lhe a ele concedido. E assi se fez, mandando logo o Governador apregoar esta trégua, e o Samori fez outro tanto no seu arraial, que foi mui proveitosa aos nossos, porque vinham muitos gentios ao nosso arraial vender mantimento, e todo refresco que tinham necessidade. O Samori, quando soube de Coge Bequi com quanta honra fora recebido, como homem que desejava ficar em paz, prometeu-lhe a ele, Coge Bequi, o ofício de xebandar, que é o mais honrado e proveitoso que ele tem pera dar - que é o supremo na justiça entre os mouros - se ele fizesse com o Governador que lhe concedesse a paz com as condições que ele apontasse. Ao que ele respondeu que sem esse prémio trabalharia polo servir quanto nele fosse; e querendo-lhe remunerar seu trabalho, como ele dizia, esta mercê podia fazer a seu filho, por ele já não ter idade pera isso. O Samori logo, polo mais obrigar, deu o ofício ao filho, como lhe pedia, com grande cerimónia de honra, segundo seu uso. Satisfeito Coge Bequi, tornou ao Governador com as capitulações da paz, que eram estas: 502 Querer ele, Samori, à sua custa tornar pôr a fortaleza no estado em que estava ante que fosse combatida e pagar as perdas e danos que el-Rei de Portugal, por causa daquela guerra, tinha recebido, e a liquidação se faria depois de a paz jurada; e mais queria dar a pimenta que houvesse no seu reino ao modo e pelo preço que dava el-Rei de Cochi; e mais queria entregar a artelharia, que em seu reino se achasse ser del-Rei de Portugal. D. Hanrique, vistos estes apontamentos, não ficou satisfeito deles, e acrescentou outros, um dos quais foi que lhe havia de entregar o Arel de Porcá, que se passara naquela guerra del-Rei de Cochi para ele, Samori, e isto em ódio dele, D. Hanrique, polo que lhe aconteceu com ele em Coulete, quando per desastre com o tiro que lhe mandou tirar, lhe quebraram ua perna. Coge Bequi, polo que tinha dito a ele, D. Hanrique, do que sentia daquela paz que o Samori cometia, como homem que sabia os conselhos que lhe davam os mouros, desejava não perder nossa amizade, e como discreto quis usar de ua cautela por não entrevir no assentar das capitulações do contrato. E disse a D. Hanrique que, por não haver tantas idas e vindas, em que se podiam passar os quatro dias da trégua, que lhe parecia bem mandar Sua Senhoria um homem de autoridade ao Samori com a resolução de sua vontade; o que pareceu bem a D. Hanrique, e, por então, este só recado levou ao Samori. Quando veo ao outro dia, mandou D. Hanrique a este negócio das pazes 250v 250v Fernão Martins Evangelho, um cavaleiro, homem antigo na Índia e que tratara muitas vezes com príncipes gentios e mouros cousas de muita importância, e sabia bem seus modos e costumes. O qual Fernão Martins foi e veo duas vezes, sem o Samori querer conceder o que D. Hanrique queria, principalmente o Arel de Porcá. E mais desejavam os mouros tanto de se não fazerem estas pazes, que, estando Fernão Martins com o Samori, moveram um arroído fora da casa onde el-Rei estava, por matarem dous portugueses que levava em sua companhia, que, se não fora por alguns naires e polo mesmo Samori acudir a isso, Fernão Martins viera sem eles. E ainda, temendo ele, Samori que no caminho recebesse ele algua afronta dos mouros, mandou com ele um capitão naire até o pôr dentro dos nossos. A qual cousa tanto descontentou ao Governador, com o mais que o Samori negava, que não quis que tornasse lá mais Fernão Martins, e nisto se acabaram os quatro dias da trégua, com que

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tornaram a ficar no estado da guerra. Finalmente, vendo D. Hanrique, que com estes recados de ir e vir se começava de encruar mais ódio que termos de paz, por o não obrigar a mais, teve conselho sobre o que faria da fortaleza. E posto que nele houve mui diferentes pareceres, visto como o Conde Almirante levava recado del-Rei que a derribasse, assentou que logo se fizesse. E mostrando aos mouros que a mandava reformar, por não ser deles sentido, mandou-a picar per partes e meter-lhe pólvora em certos lugares; no qual tempo, por modo que 503 não fosse sentido, se recolheu quanto havia nela e no arraial, e ua ante menhã apareceu aos mouros embarcado na sua frota, e todas suas estâncias começaram arder. Os mouros, parecendo-lhe que na fortaleza podiam achar algua rabusca da fazenda que os nossos tinham dentro, acudiram logo a ela; e como o fogo ia per baixo da terra per seu caminho lavrando, tanto que chegou aos lugares da pólvora, fez maravilhas nas paredes do muro, onde morreram grande número deles, e outros ficaram tam aleijados e feridos, que lhe fora milhor a morte. E todavia, ainda que Manuel de Macedo, que ficou pera fazer esta obra, trabalhou pera a pólvora obrar per todas as partes, ainda ficou da torre da menage um cunhal todo inteiro com grande parte da parede. O Samori, vendo o Governador partido, toda a fúria de sua indinação, por ficar sem as pazes que cometia, pôs contra Coge Bequi, dizendo que ele lhe estorvara tudo, porque ninguém sabia ser o Arel de Porcá vindo a seu serviço senão ele, por haver dous dias que viera, quando o Governador lho mandou pedir. A qual indinação parou em lhe mandar cortar a cabeça, e os filhos nesta revolta fugiram pera Cananor, por se amparar naquela fortaleza nossa, onde sempre lhe foi paga a tença que lhe el-Rei D. Manuel tinha dada a seu pai.

LIVRO X 251 251 505 Capítulo Primeiro. Como D. Hanrique de Meneses, depois que acabou as cousas de Calecute, ordenou outras com fundamento de ir tomar a cidade Dio, entre as quais foi mandar ua armada, capitão Heitor da Silveira, o qual, por lhe não ir o recado que ele esperava, foi buscar, por lhe ser mandado, D. Rodrigo de Lima ao reino do Preste João. Dom Hanrique de Meneses, leixando a fortaleza de Calecute posta per terra pelo modo que escrevemos neste precedente Livro, como quem se queria recolher a Cochi despachar as naus, que este ano haviam de vir com carga da especearia, e outras cousas que tinha por fazer, logo dali espediu a Pero de Faria com todalas velas que trouxe de Goa pera andar per aquela costa de Malabar. Chegado a Cochi, ordenou que fossem logo despachados cinco naus que este ano de quinhentos e vinte seis viessem com a carga da especiaria, os capitães das quais foram: D. Diogo de Lima, filho do Visconde D. João de Lima; Diogo de Sepúlveda, que vinha de servir de capitão de Sofala; João de Melo da Silva, que neste caminho se perdeu sem se saber onde nem como. E depois destas três naus partidas, partiram mais D. João de Lima e Diogo de Melo, que se perdeu em a barra de Lisboa; mas salvou-se toda a gente. E este Diogo de Melo era um dos quatro capitães 506 das naus que de Lisboa partiram o ano de quinhentos e vinte cinco pera trazer esta carga, e os outros três capitães eram: D. Lopo de Almeida, filho de D. Diogo de Almeida, Prior do Crato, da Ordem de S. João, o qual ia pera capitão de Sofala, em lugar de Diogo de Sepúlveda; e Francisco de Anhaia, filho de Pero de Anhaia, que se perdeu também à saída da barra de Lisboa. E o capitão-mor de toda era Felipe de Castro, filho de Álvaro de Castro, o qual se foi perder na costa da Arábia, junto do Cabo Rossalgate por má vegia, dando o piloto com a nau em terra. E daqui 251v 251v mandou recado à vila Calaiate do nosso reino de Ormuz, que lhe mandou ua nau, em que recolheu o que se salvou, assi que à ida se perderam duas e à vinda outras duas. Despachadas estas naus pera este reino, começou D. Hanrique entender nas cousas que ele trazia no peito, sem as comunicar com alguém, esperando de as pôr em ordem pera então as descobrir, que era ir tomar a cidade Dio, do reino de Cambaia. Com o qual fundamento, peró que de Álvaro Mendes, que viera de lá com Cide Alé, tinha muita informação da fortaleza dela, como de homem que lá estava por escrivão da feitoria com Gaspar Pais, como dissemos, todavia quis mandar outra pessoa de mais autoridade a ver o sítio dela e a lhe sondar a entrada da barra, e foi António da Silva de Meneses. E a voz da sua ida era ir buscar roupas que lhe havia de entregar o feitor Gaspar Pais, que lá estava, e as levar a Malaca, por ser capitão dos navios que andavam de Cochi pera Malaca, pera trazer as drogas que daquelas partes vem pera este reino. E por outra via, por se mais certificar do caso, mandou Pero Barreto pera per si notar o sítio e entradas e saídas da cidade, e com ele o piloto-mor da Índia, pera lhe sondar a barra e rio. Também, por não fazer grande estrondo, mandou fazer ua armada de seis velas, a capitania-mor das quais deu a Heitor da Silveira, com fama que o mandava ao Mar Roxo a trazer D. Rodrigo de Lima, que leixou de vir com D. Luís de Meneses polas razões que atrás dissemos. E em segredo lhe mandou que sua derrota fosse direito à Ilha Socotorá, e, feita sua aguada, andasse no rostro do Cabo Fartaque até quinze de Março; e se ele, D. Hanrique, não fosse até este tempo com ele, então fizesse sua viagem ao Estreito, e dai a Maçuá trazer D. Rodrigo de Lima. Despachado Heitor da Silveira do Governador, partiu de Goa a dous dias de Fevereiro do ano de quinhentos e vinte seis, com quatro galeões, ua galeota e ua caravela, de que eram capitães: do seu dele, Heitor da Silveira e Nuno Barreto e dos outros Manuel de Macedo, Hanrique de

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Macedo, seu irmão, e Francisco de Mendoça; e das outras duas peças, Fernão de Morais da caravela, e Francisco de Vasconcelos da galeota, o qual logo se perdeu da armada; e iriam nela até quinhentos homens. Chegado a Socotorá, onde fez sua aguada, foi-se pôr na paragem das presas como lhe D. Hanrique mandou, onde se deteve até vinte de Março, mais cinco dias do que trazia em regimento; e não vendo recado de D. Hanrique, quis fazer mais esta deligência: - ver se per ventura na costa de Dosar, 507 que é na Arábia, achava algum navio com recado, porque os navios sempre se inclinam mais àquela costa por causa das presas, que ao mar largo. Na qual travessia teve tantas calmarias, andando já à vista de terra, que primeiro de chegar à cidade Dosar, os mouros a tinham despojado do fato, de que era senhor um mouro arábio, que se intitulava por rei. E peró que ela era pequena, 252 252 por sítio era forte, por estar assentada em costa brava e ter os mares de levadia, e mui bem cercada de muros e torres de pedra e cal, ao modo de Espanha. Heitor da Silveira, chegando ao porto já quási noite, quando veo pela menhã, viu a praia chea de gente, posta em armas, como quem não consentia alguém sair em terra contra sua vontade. A qual mostra deu mais sabor a Heitor da Silveira e a todolos nossos de ir experimentar a rabolaria daquela gente; e assi se fez, saindo logo com até trezentos e cinquenta homens. Ao qual os mouros ousadamente vieram receber, como gente que ainda não tinha experimentado o nosso ferro; mas depois que o sentiram nas carnes, viraram as costas, acolhendo-se à cidade. E na entrada da porta foi tamanha a revolta, que mataram dous dos nossos e feriram oito ou nove, na qual porta, tanto que foi fechada, de dous berços de ferro que lhes servia de tiros, fizeram vai-e-vem, com que a quebraram pera entrar. Ao qual tempo já outros dos nossos entraram per cima do muro com escadas que pera isso traziam, o primeiro dos quais foi um Diogo Correa, criado de D. Hanrique de Noronha, irmão do Marquês de Vila Real, sendo homem tam fraco nas forças corporais, que não esperavam isto dele; mas no ferir do seu ferro mostrou as que tinha no ânimo. Abertas estas duas entradas - a do muro pelas escadas e do rachar das portas - começaram os mouros de se acolher, não pera o castelo que a cidade tinha, mas pera fora. No qual os nossos não acharam fazenda, somente acharam alguas almas sem corpos e forças pera fugir, que eram velhos, velhas e meninos, que se meteram em cisternas secas pera se salvar; mas a sua idade foi a própria defensão pera ficarem vivos e livres, porque não lhe foi feito mal; nem menos na cidade houve cousa de substância, porque (como dissemos) nos três dias que os nossos andaram em calmaria à vista dela, teveram tempo de salvar as fazendas. E ao embarcar de ua pouca de pobreza que acharam, e algua artelharia, aconteceu-lhe com ela o que passou D. Luís de Meneses, quando quis embarcar a que houve no escalamento da cidade Xaer, porque os mares dos lugares daquela costa todos com leve tempo são postos em as nuves. Assi que a saída nesta cidade custou aos nossos os dous que dissemos serem mortos à entrada da porta e vinte e tantos feridos, e dos mouros, assi na praia como pelas ruas, ficaram muitos estirados. Tornado Heitor da Silveira embarcar com assaz trabalho e mãos vazias 508 do despojo, fez sua viagem às portas do Estreito, e dai pera Maçuá, onde chegou nos primeiros dias de Abril, a qual Ilha Maçuá estava de guerra connosco; e peró que Heitor da Silveira a mandou rodear de batéis daquela parte que ela tem, pera dali se passar a terra firme, por empedir aos moradores que o não fizessem, por esta terra firme ser do Rei da Abassia, a que nós chamamos Preste João, onde ia buscar D. Rodrigo de Lima, não pôde ele fazer isto com tanta deligência, 252v 252v

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que não fossem já passados muitos, por haverem vista da sua armada e conhecerem ser nossa, com quem estavam mal. E os que não teveram prestes embarcação, no meio do caminho foram tomados, e no lugar, que seria de dous mil vezinhos, acharam os nossos panos de algodão, a que chamam teadas, e são trazidas pelos mouros da Índia àquela ilha, porque os seus moradores as resgatam per ouro com os abassis. Da qual roupa, por ser boa quantidade, Heitor da Silveira a mandou passar às naus e em Arquico, lugar do Preste, se vendeu e trocou por escravos e mantimentos aos próprios naturais do lugar Maçuá, que ali estavam, e se lhe fez bom barato, por serem seus; os quais ficaram em nossa amizade, sem serem castigados, e assentaram paz com Heitor da Silveira, com páreas de trezentos pardaus por ano, de que logo fizeram a primeira paga. A exemplo das quais, a ilha Dalaca, que é de três léguas em torno ali vezinha, temendo ser-lhe dado outro tal salto, ajuntaram três mil pardaus, que lhe logo trouxeram, e queriam pagar de páreas cada ano, ficando em nossa paz e amizade, o que lhe Heitor da Silveira aceitou, por a virem demandar e requerer humildemente, peró que entendesse que era prudência sua deles, como quem vinha comprar ou (por melhor dizer) resgatar pessoas e fazenda, por ele não sair com a mão armada sobre eles. E em doze dias que Heitor da Silveira ali esteve, enquanto não vinha D. Rodrigo de Lima, que ele mandara chamar, fez estas cousas com os moradores destas duas ilhas - Maçuá e Dalaca. Chegado D. Rodrigo com sua gente, foi entregue a Heitor da Silveira por aquele senhor chamado Barnagaz, que o recebeu quando Diogo Lopes de Sequeira lho entregou, como atrás escrevemos, e assi lhe entregou um embaixador, homem religioso, que o Preste João mandava a el-Rei D. João de Portugal, o qual veo a este reino. E passadas as entregas dele, Barnagaz, de que levou sua certidão ao Preste, e dadas de ua parte a outra dádivas, Heitor da Silveira se partiu daquele porto a vinte oito de Abril de quinhentos e vinte seis, caminho da Ilha Camarão, onde chegou ao primeiro de Maio. E enquanto ali esteve, fazendo sua aguada, o Padre Francisco Álvares, que foi com D. Rodrigo de Lima e vinha com ele, lembrado da criação que recebera de Duarte Galvão e sabia onde o leixara enterrado (como atrás escrevemos), secretamente com Gaspar de Sá, com quem tinha razão, foram buscar os seus ossos. Os quais o mesmo Francisco Álvares depois trouxe a este reino e entregou a seus herdeiros, pera lhe darem natural sepultura, e não tam estranha como era a Ilha Camarão. E como vieram os ponentes, que é a 509 própria moução pera sair daquele Estreito, Heitor da Silveira partiu; e tanto que foi desembocado dele, saltou tamanho temporal com ele, por começar já o Inverno, que não pôde dar vista à cidade Adem, como lhe D. Hanrique mandava, e contentou-se com saber novas do estado da terra per alguns mouros dela, pera dar razão a 253 253 D. Hanrique; porque a primeira cousa que o temporal fez foi derramar-lhe as velas, de maneira que cada ua correu por onde o vento a levou, passando todas grande risco de se perder; e o maior que Heitor da Silveira passou foi sede, em tanta maneira que lhe faleceu gente por falta de água, nem o tempo lhe dar lugar pera ir tomar a terra, até que Deus o levou a Mascate, e dai foi invernar a Ormuz.

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253 253 509 Capítulo II. Em que se conta a ida de Pero Mascarenhas a Malaca, e alguas cousas que lá eram acontecidas no tempo do Governador D. Hanrique de Meneses, que o despachou, sendo capitão Jorge de Albuquerque, a quem ele, Pero Mascarenhas, sucedeu. Pera ir enfiando nossa história no tempo e na ordem que demos no princípio no Oitavo Livro desta Terceira Década, como havíamos de ajuntar as cousas de Malaca por diante com as da Índia, até o Ponente da nossa fortaleza Sofala, convém que demos ora conta do estado em que Pero Mascarenhas achou a cidade Malaca, pois o Governador D. Hanrique o despachou pera ir suceder a Jorge de Albuquerque. Ele, Pero Mascarenhas, partiu de Cochi a oito de Maio do ano de quinhentos e vinte cinco com quatro velas, em que levava trezentos e cinquenta homens e muitas munições, de que a cidade estava mui desfalecida; e Jorge de Albuquerque, por a necessidade que disso tinha, o chamava per cartas, com a qual provisão chegou a salvamento a tempo que a cidade estava bem necessitada de todalas cousas que ele levava, assi da gente, como navios e munições, por os trabalhos que tinham passado. Dos quais nos convém dar razão ante que Jorge de Albuquerque, capitão da cidade, se parta dela, pois ele os passou, e nós passa de um ano que leixámos de falar nela, e assi na fortaleza de Maluco, de que também é necessário que demos conta. Por os grandes trabalhos e necessidade que Jorge de Albuquerque padecia, escreveu a D. Duarte de Meneses, Governador da Índia, pedindo-lhe que o provesse de gente, navios e munições, pera poder resistir à contínua guerra que lhe fazia el-Rei de Bintão, dando-lhe conta meudamente dos trabalhos 510 que padecia aquela cidade. E porque D. Duarte, ao tempo desta carta, era em Ormuz, e D. Luís de Meneses, seu irmão, com os seus poderes estava em Cochi, mandou com ele socorro a Martim Afonso de Sousa, filho de Manuel de Sousa, o qual andava por capitão-mor da armada, que trazia do monte de Eli até a Ilha Ceilão, de que o Governador D. Duarte o provera, em lugar de Pero Lopes de Sampaio, que ali andara em guarda daquela costa. E levou Martim Afonso de Sousa seis velas com até duzentos homens de armas, das quais eram capitães debaixo de sua bandeira (por ele levar ofício de Capitão-mor do Mar), Álvaro de Brito, André de Vargas, António de Melo, 253v 253v Vasco Lourenço, André Dias e ele, em outra vela. Jorge de Albuquerque, tanto que ele chegou, como ia com gente fresca e bem provido, e estava magoado do que Laquesemena tinha feito (como atrás fica), em tempo de D. Duarte, logo o mandou que se fosse lançar sobre o rio da Ilha Bintão pela maneira que ele mandara seu cunhado D. Garcia Hanriques, a quem aconteceu o que atrás escrevemos. Peró Laquesemena, vendo Martim Afonso na boca do rio, e que não podia sair pera fora, por se não atrever pelejar com os nossos, nem menos usar de outro tal ardil como fez a D. Garcia, e estava seguro de Martim Afonso poder subir acima à cidade, por muitas estacas com que o rio estava pejado, determinou de o enfadar, e com boa vegia leixou-se estar. Porque, como el-Rei de Bintão tinha suas inteligências de tudo o que se fazia em Malaca, tanto que Martim Afonso chegou, soube logo de sua vinda e gente que trazia, e como vinha de andar por capitão-mor da costa do Malabar, e era já oficial velho de mandar gente e peleja. A notícia das quais cousas fez entreter Laquesemena pera o enfadar, ou, acudindo a doença que ali acode em certos meses, o fizesse acolher. E como ele, Laquesemena, o cuidou, assi foi: que, enfadado Martim Afonso de esperar que saísse, teve conselho com os capitães que levava, que lhe aconselharam o que fez. Porque, como ali iam homens estantes em Malaca, escandalizados da

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guerra passada, em que tinham perdido muito do seu, e também saberem a terra ser doentia, disseram-lhe que se fosse à costa de Malaca contra o reino de Pão, porque fazia nisto duas cousas: dar saída àquele mouro que estava encurralado, e no mar largo se podia vingar dele,; e a outra cousa era ir fazer guerra à costa de Pão por castigo da morte de D. Sancho Hanriques e André de Brito, pera a qual costa este Laquesemena cada ano navegava por dar favor aos seus navios; e vindo ele a isso, vinha-lhe cair na rede. Martim Afonso, como homem novo na terra - e o parecer e voto daquela mudança era de homens costumados a peleja dela - aceitou o conselho, e começou de ir fazendo guerra a fogo e sangue per toda aquela costa caminho de Sião até o porto de Calantão, onde queimou um junco de um nosso amigo, e dai até Patane fez estrago, cujo Rei, por ser vassalo del-Rei de Sião, era ido a ele. E ante de chegarem à cidade que estava pelo rio dentro, destruíram alguas aldeas, a qual nova sabida em Sião, fez que houveram de 511 tomar Duarte Coelho e os juncos que fora buscar, como atrás dissemos, por estas terras serem dos vassalos del-Rei de Sião. Mas como Duarte Coelho era muito conhecido del-Rei, lá apagou este dano de maneira que se veo pera Malaca, onde já achou Martim Afonso, e tam ferido, que dai a poucos dias morreu do que tinha passado em Malaca depois de sua chegada. E o caso foi este: Com aquela obra que ele foi 254 254 fazendo per toda a costa em dano de muitos amigos del-Rei de Bintão, e de alguns nossos, ficaram todos tam escandalizados, que achou o mesmo Rei de Bintão ajuda em todos pera ir cercar Malaca com obra de mil e trezentos homens em vinte lancharas. Da qual armada era capitão-mor Laquesemena, e Coja Cameçum sota-capitão, e com ele vinha o capitão dos luções, que é ua gente da Ilha de Borneo, a mais guerreira e belicosa daquelas partes. E teve Laquesemena este ardil, por não ser sentida sua chegada: veo-se a longo da Ilha de Samatra, e de noite atravessou a costa de Malaca, de maneira que ante-menhã veo lançar um golpe de gente junto de Upe, que está mui perto da povoação dos mouros, a tempo que Jorge de Albuquerque estava ouvindo missa, dia da Anunciação de Nossa Senhora, que é a vinte cinco de Março. E sabendo ele a chegada da armada e revolta da povoação dos mouros, a grã pressa mandou o feitor Garcia Chainho com até oitenta homens que acudissem àquela parte, em que entravam estas pessoas nobres, que eram oficiais da fazenda del-Rei: Gaspar Velho, Simão Mendes, Francisco Bocarro, Nicolau de Sá e Antão de Aguiar. E assi mandou Martim Afonso de Sousa, Capitão-mor do Mar, em duas fustas que havia aí mais, ele em ua e João Vaz Serrão por capitão de outra, em que iriam até outras oitenta pessoas. Entre as quais eram estas de nome: Aires Coelho, Gonçalo de Taíde, Garcia Queimado, Álvaro Botelho, Francisco Fernandes Leme, Francisco Rabelo, Gaspar Barbudo, António Carvalho, Duarte Borges. Os que foram per terra, como eram os primeiros que tomaram as armas, deram primeiro vista de si aos imigos que saltaram em terra; os quais, quando viram que os nossos não dormiam e que acudiam mais prestes do que cuidavam, sem ousar experimentar o seu ferro, a grande pressa se tornaram recolher. Os que acudiram ao mar, porque os mais deles andavam ofendidos de Laquesemena, poseram o rosto nele com remo teso e grandes apupadas, chamando por Nossa Senhora, cujo dia era. O mouro, como era sagaz, alargou-se ao mar, e fez duas partes das suas velas, cercando as nossas, com esperança que os havia de tomar à mão, quási abafados da muita gente que trazia. Aferrados uns nos outros, era já o ar feito tam escura noite que se não viam: tudo era fumo, fogo, ferro e sangue, em que morreu muita gente. E foi tanta a ferida, que não havia já quem remasse, somente andavam travados uns nos outros à vontade do mar, que os levava de ua parte à outra; em a qual peleja morreu João Serrão em a proa do seu bargantim, Aires Coelho, de Tanger, que fora alcaide-mor 512

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de Pacém, Duarte Borges, Gonçalo de Taíde, sobrinho do Capitão-mor, e outros que não eram de tanto nome; o Capitão-mor ficou tam ferido, que faleceu a vinte cinco de Julho de quinhentos e vinte cinco, vivendo neste ofício de Capitão-mor 254v 254v um ano e dez dias, porque começou a servir a quinze de Julho de quinhentos e vinte quatro. E como a noite foi o partidor desta fúria que lhe deu a morte, pela menhã mandou Jorge de Albuquerque em busca dos nossos; e estavam os mais deles tam feridos e cansados, que não havia quem remasse, e os navios andavam à vontade da água, sem mais governo. Laquesemena também ficou com tanta gente morta e ferida, que, não tendo quem lhe remasse os navios, foi-se meter no rio de Muar, onde se refez de remeiros, e dai se acolheu a Bintão. El-Rei, primeiro que ele saísse das lancharas com que escapou, sabendo que somente dous navios nossos o desbarataram, mui indinado contra ele, mandou-lhe dizer que não lhe visse o rostro; e posta a gente ferida em terra, pois nas feridas traziam sinais que pelejaram, ele com a outra se fosse apresentar a Rajá Nara, seu capitão, que estava sobre el-Rei de Linga, e fizesse o que lhe mandasse. Ao que Laquesemena logo obedeceu. Este Rei de Linga era grande nosso amigo, e por esta causa el-Rei de Bintão o queria destruir, e mandou a este Rajá Nara, seu genro, casado com ua sua filha, e se intitulava por Rei de André Geri, vezinho a Linga, que é na Ilha de Samatra, que o fosse cercar. Isto mandou ele no tempo que Laquesemena vinha cercar Malaca, porque com este empedimento que nós teríamos, não poderia ser ajudado per nós este nosso amigo. Laquesemena, obedecendo ao que lhe el-Rei mandava, foi-se ajuntar com Rajá Nara; e não como homem que ia meio corrido, mas mostrando-se mui soberbo e vitorioso de nós, mandou dizer a el-Rei de Linga que despejasse a terra ou se fizesse vassalo del-Rei, seu senhor, e leixasse a amizade que tinha com os portugueses, porque ele vinha de os desbaratar e leixava morto o seu Capitão-mor do Mar. Ao que el-Rei de Linga respondeu que outra nova tinha ele em contrairo, porque a noite passada lhe era vindo recado de Malaca que ele fora o desbaratado, e com prazer desta vitória que os portugueses dele houveram, celebrara a festa com mandar matar cinquenta cabras. E que, antes de poucos dias, esperava de mandar matar cento pola vitória que dele e de sua companhia havia de ter. Esta nova era verdade, a qual ele soube per um seu criado que tinha mandado a Malaca, pedindo-lhe socorro contra aquele Rajá Nara, que o vinha cercar per mandado del-Rei de Bintão; ao que Jorge de Albuquerque logo acudiu com lhe mandar oitenta homens e dous navios, de que eram capitães Álvaro de Brito e Baltesar Rodrigues Raposo, de Beja. Os quais, chegados ao porto do rio Linga, por a cidade estar por ele acima, um dia pela menhã foram vistos das vegias que Laquesemena trazia no mar; e receando que o tomassem dentro no rio, começou de se desamarrar e sair pera fora. 513 Álvaro de Brito, indo pera embocar o rio, houve vista deles por se ajuntarem ambos, Laquesemena e Rajá Nara, que fazia um corpo de oitenta lancharas, com que ocupavam 255 255 todo o rio, e surgiu deles a tiro de bombarda, até a água ficar estofa, sem vasar nem encher. E tanto que a teve a seu propósito, querendo-se ir a eles, eles mesmos os vieram cercar, de maneira que os navios dos nossos, ambos juntos e aferrados um ao outro, ficavam no meio como baluarte, e as lancharas ua praça de madeira, per que de ua em outra se podiam correr todas. Finalmente, a peleja foi travada, e tal, que mais pareceu a vitória que os nossos houveram milagre de Deus que forças humanas, por perecerem mais de seiscentos mouros, de dous mil que eram, e dos nossos um somente foi morto; e muita parte deles feridos, com que Laquesemena e Rajá Nara se foram com a metade das lancharas perdidas e queimadas. El-Rei de Linga, vendo-se em um meio dia livre de seus imigos, sem saber que esta ajuda lhe era chegada em favor, parecendo-lhe que partirem-se assi as lancharas pelo rio abaixo, sem

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tornarem mais, era algum ardil deles, mandou ua espia descobrir o que faziam. E quando lhe levou a nova da vitória, veo com grande festa em seus paraus receber os nossos navios, e os levou à cidade, onde celebrou esta vitória com grande festa, a seu modo. Porque, além de per os nossos ser descercado e ficarem senhores de muito despojo do lugar onde tinham os imigos situado o cerco em terra, recebeu um grande presente que lhe Jorge de Albuquerque mandou; o qual ele mostrou estimar em tanto, por ser sinal de honra e amizade, como a vitória, e ele também o gratificou com cousas da terra, que mandou a Jorge de Albuquerque, e assi deu outros aos capitães. Os quais se tornaram a Malaca, onde foram honradamente recebidos, por ser esta ua vitória que alegrou muito a todos por os trabalhos e perdas de gente e honra e fazenda que tinham perdido todo o tempo atrás, per tantos desastres.

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255 255 514 Capítulo III. Como um arrenegado de apelido Avelar, que andava lançado com el-Rei de Bintão, lhe moveu um modo de guerrear Malaca; e como não aproveitaram suas indústrias cousa algua. Andava neste tempo lançado com el-Rei de Bintão um português, cujo apelido era Avelar, porque nome da pia já o não podia ter, pois era arrenegado. O qual, vendo el-Rei de Bintão mui agastado daquela grande perda que houve em Linga, o quis confortar com esperança de se vingar per este modo, dizendo: - Senhor, tu és experimentado que Malaca, se lhe põe a mão na garganta, não tem vida, e esta mão é tolher-lhe os movimentos; e por termos sabido que eles estão em grande necessidade, parece-me que seria bem atormentar esta gente per duas partes: per mar, tolhendo-lhe os mantimentos, no qual mister e defensa andará Laquesemena 255v 255v com suas lancharas; e por terra, dando-lhe a meúde rebates com corridas pera os cansar, por ser mui pouca gente, e muita dela com a fome fraca e tão debelitada, que não podera resistir a tanto trabalho; e se tu houveres por bem que eu seja o capitão desta gente da terra, eu me ofereço a isso, e espero de te fazer grande serviço. A qual cousa, dando el-Rei orelhas, quis ter prática com Laquesemena e com outros seus mandarins e capitães. O qual modo de nos guerrear dizem que o mesmo Laquesemena industriou com este Avelar, por ser grande seu amigo e o queria meter com el-Rei em negócios de confiança, e também alegrar a el-Rei da tristeza que tinha do caso de Linga, e ele se tornar a restituir na sua graça, de que andava muito descaído, por neste feito de Linga perder tanta gente e lancharas, com os nossos serem oitenta homens e dous navios, e pelo outro em que Martim Afonso foi morto. Acordado este conselho, que Laquesemena aprovou polas razões acima, ele fez prestes suas lancharas, e ao Avelar foram dados três mil homens, e per terra se veo lançar obra de meia légua de Malaca naquela parte a que eles chamam Campuchina. E como na cidade pera poder pelejar havia pouco mais de cem homens, e ainda deles doentes, dava este arrenegado muito trabalho com suas corridas; porque, como Jorge de Albuquerque sentiu o cerco, pera que lhe conveo pôr a gente em suas estâncias, foi necessário, por a pouca que havia, mandar a eles os homens enfermos, que era um grande trabalho aos sãos, quanto mais a eles; ca, no tempo que lhe a eles parecia poder ter repouso, acudiam os mouros com rebates, muitas vezes delas de noite, em tanto, que ua, vendo o Avelar que todas suas arremetidas eram 515 mais dano seu que nosso, por lhe custar caro a resistência que achava, determinou de fazer ua entrada real, porque até li tudo eram cometimentos por afadigar e cansar os nossos. Ca a tenção deles já era mais matá-los per fome e canseira que per ferro; e a este tempo tinha Laquesemena per sua parte bem defendido que não viessem navios à cidade com mantimentos da Jaua, de Sião e de outras partes costumados a os trazer. E era tanta a necessidade deles, que valia em Malaca ua ganta de arroz dez cruzados e ua galinha dous. E se Jorge de Albuquerque e Garcia Chainho, feitor, que era um homem largo e rico, não deram de comer a muita gente, e podiam sustentar a despesa, muita dela perecera. Finalmente, o que Avelar ua noite acometeu com grande ímpeto foi com a força de toda a gente que tinha querer entrar a cidade pela parte onde habitavam os quelis (que são os mercadores), por terem bairro apartado per si, cuja cerca era de madeira; e por haver muito tempo que isto era

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feito, estava já tam podre, que em este ímpeto dos mouros lhe pondo os peitos, a levaram ante si como ua fraca sebe; e não foi tam pequeno lanço, que não fizesse ua entrada de sete braças. Ao cair da qual foi tamanho o estrondo, que acudiu toda a gente que dormia cansada do trabalho e do pouco 256 255 repouso que tinha de dia e vegia de noite; ao que acudiu Garcia Chainho com a outra vegia daquele lanço derribado, o qual foi grande defensa aos mouros não entrarem. Porque, como era de madeira e eles à força de peitos alastraram todo aquele lanço, ficou de maneira retorcido e quebrado, que de dia não ousara um homem passar per ela, quanto mais de noite. E sobre esta defensa, com a grande grita dos nossos, acudiu tanta gente, que os mesmos mouros ficaram no ânimo mais cortados que na carne; e como que ia trás eles o mundo de gente, sem haver dar e tomar, desampararam o lugar, e não pararam menos de sete léguas, onde o Avelar os levou. E como homem que via a gente receosa de chegar àquele trabalho, por andar escaldada do ferro que sentiam no cometer suas entradas, quis contentá-los, ajudado do conselho de Laquesemena, por se comunicarem por recados e avisos do que cada um fazia. E um dia, de propósito, lá onde estava quis dar aos principais um jantar a seu modo, porque sempre sobre este comer e beber os homens (como se diz) estão dispostos, com coração de pousada. E no fim da prática que teveram sobre cometer, se determinaram cinquenta homens, per voto que todos fizeram, de uns morrerem por outros, até fazerem um feito grande, de trazer a cabeça do capitão ou do feitor, Garcia Chainho, e a levar a el-Rei de Bintão. Sabido o qual voto da outra gente, foi em todos tanta a competência de honra, que se ofereceram outros, com que fizeram número de duzentos e cinquenta. Notificada esta determinação a Laquesemena per Avelar - que lhe mandasse vasilhas pera se embarcarem a vir cometer o feito - ele lhe mandou 516 doze peças as mais pequenas que entraram per um esteiro, até irem dar onde estavam. E dai se vieram lançar em cilada obra de duas léguas da cidade, e mandaram alguns como descobridores, que fossem fazer algum dano; e acudindo alguns portugueses, os fossem cevando e entretendo, até os meter na cilada. Chegados à parte encoberta que desejavam, metendo os navios no mais espesso lugar do arvoredo, foram alguns saltear uas vacas, que andavam pacendo, do qual salto os que guardavam as vacas apelidaram a gente da cidade, ao que acudiu Garcia Chainho, que eles desejavam. O qual, por o mato ser espesso, vendo que os mouros fugiam, não os quis seguir, havendo que seriam alguns ladrões que vinham roubar as vacas; e fazendo volta, veo-se de seu vagar pera a cidade. Da companhia do qual, logo no primeiro ímpeto de sua chegada correram trás os mouros; e não vendo como Garcia Chainho se tornava, os primeiros que iam diante seguiram um bom pedaço aquele curso, até irem dar na cilada. Os quais, quando se acharam no meio de tanta gente, quisera fugir; mas vendo Francisco Correa, que era um dos seis que estavam naquele perigo, que não tinha pernas pera se acolher, por ir muito doente da enfermidade da terra, tais palavras lhe 256v 255v disse, que tomaram por remédio acidental ampararem-se todos seis a uas árvores mui bastas, que per ua parte os pés e ramas lhe guardavam as costas, e o rosto lhe ficava contra um descoberto, per onde os mouros os cometiam com frechadas. Posto que os nossos estavam ali como liões assanhados, e com três espingardas que tinham, em os mouros vindo a eles, ficavam logo ali estirados, e sempre temerosos, parecendo-lhe que a estância que os nossos tomaram naquele lugar era mais em modo de anagaça, por terem nas costas gente em sua guarda, que per outro respeito. Os nossos, vendo que eles não ousavam de sair a terreiro descoberto, mais que dez ou doze, mostrando ser verdade o que eles suspeitavam - que tinham algum em sua guarda - com ua grande

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grita saíram impetuosamente dos pés das árvores. Quando os mouros os viram remeter, houveram que vinha o mundo trás eles de gente; e quem mais corria, milhor cavaleiro era, com que de todo leixaram o lugar e a empresa, ficando ali catorze mortos, e dos seis nossos ficou um bombardeiro, e isto por cobiça de querer ir tomar ua arma, a que eles chamam cris, ao modo de adaga, por ser lavrado de ouro. E nesta contenda, que foi duas horas de tempo, trazendo os quatro sobraçado Francisco Correa, mais por não poder vir de sua má disposição, que por ferido, teve Jorge de Albuquerque, aviso per eles do que passaram com os mouros, e que iam fugidos, como gente que cuidava levar trás si o mundo de homens. E porque aos temerosos o medo os vence, determinou logo Garcia Chainho em continente, com licença de Jorge de Albuquerque, ir pelo rastro deles; e assi o fez. E o melhor e mais certo sinal que levou pera ir dar com eles, foi o sangue, ao modo que faz o monteiro, quando o veado 517 vai da sua mão ferido, por a terra ter mato espesso, até junto da praia, onde Garcia Chainho lhe deu tal castigo, que se poseram em fugida. E depois que os fez acolher, foram os nossos dar com os barcos que tinham escondidos, os maiores dos quais foram arrombados pera não servirem mais, e os outros mandou levar à fortaleza, e ele per terra ao outro dia chegou a ela, e este foi por então o remate dos acometimentos daquele arrenegado. E porque neste tempo D. Garcia Hanriques, cunhado de Jorge de Albuquerque, era ido a Maluco a servir de capitão daquela fortaleza, em lugar de António de Brito, e é necessário dar conta das cousas daquelas partes, contaremos o que ele fez neste caminho, até chegar a Maluco, e o que lá também lhe aconteceu no modo da entrega da fortaleza.

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256v 255v 517 Capítulo IV. Como D. Garcia Hanriques partiu de Malaca pera servir de capitão de Maluco, em lugar de António de Brito; e como na Ilha de Banda achou Martim Afonso de Melo Jusarte, e o que aconteceu a ambos com a gente da terra. 257 257 Ao tempo que D. Luís de Meneses em Cochi despachou Martim Afonso de Sousa pera ir servir de Capitão-mor do Mar de Malaca, levou ua provisão a Jorge de Albuquerque de D. Duarte de Meneses, que ele mesmo mandara pedir, a qual era, per que fazia mercê a ele, Jorge de Albuquerque, em nome del-Rei, da capitania de Maluco pera um dos seus cunhados D. Sancho Hanriques ou D. Garcia Hanriques. E estas cousas, quando os Governadores da Índia as provêem, como é cargo, ofício ou mercê, de qualquer calidade que seja, sempre na tal provisão diz que faz mercê de tal cousa em nome del-Rei Nosso Senhor a Foão, havendo respeito aos serviços que tem feitos a Sua Alteza. E per este modo fez D. Duarte esta a Jorge de Albuquerque, nomeando ambos os cunhados, por terem as calidades em serviço, fidalguia e pessoa, que o tal cargo requeria. E o que moveu a Jorge de Albuquerque a este requerimento, e a D. Duarte conceder-lho, estando António de Brito servindo esta capitania, foram cartas que ele escrevia assi a um como ao outro, que mandassem alguém servir aquele cargo, pois não era provido das cousas necessárias pera defender aquela fortaleza. Porque, da primeira pedra que nela posera, tudo foram guerras e trabalhos, sem ter algum proveito, e sobre isso mau provemento do necessário, 518 assi pera o negócio da guerra, como provemento de roupas e outras cousas, com que os homens da fortaleza são pagos de seus soldos. E vendo D. Duarte que Jorge de Albuquerque pedia esta vagante de António de Brito pera cada um de seus cunhados, folgou de lha conceder, porque per esta razão de cunhado e vezinhança que tinha com Maluco, com mais deligência e cuidado trabalharia por acudir e prover a fortaleza; e também porque os capitães de Malaca comem o melhor bocado dela no trato de noz e maça de Banda e cravo de Maluco. Assi que, vinda esta provisão em companhia de Martim Afonso de Sousa, veo a mui tempo pera D. Garcia não ficar escandalizado tirar-lhe Capitão-mor do Mar de Malaca, que servia, e dá-la a Martim Afonso, da qual fortaleza de Maluco ele foi mais contente, por ser de mais honra e proveito. E tomada posse Manuel de Sousa da sua capitania-mor do mar, Jorge de Albuquerque despachou logo seu cunhado D. Garcia Hanriques, o qual partiu de Malaca na entrada de Janeiro do ano de quinhentos e vinte cinco, com quatro navios - um junco da terra, dous navios redondos e ua fusta - em que levaria até sessenta portugueses, e toda a outra gente era do mar, naturais malaios de Malaca. Com os quais navios chegou à Ilha Banda, por ser no caminho de Maluco, e achou ali Martim Afonso de Melo, que vinha de Maluco, onde o nós leixámos, e trazia um junco seu carregado de cravo e os outros três eram de mercadores de Malaca. E como ele, do tempo que ali esteve (como atrás escrevemos), 257v 257v leixara os moradores dali escandalizados, não folgaram muito com sua vinda, e vigiavam-se uns dos outros, como grandes imigos. Chegado D. Garcia, por Martim Afonso estar indinado contra aqueles mouros, e desejava de se vingar, fez-lhe logo queixume deles, ao modo que foi da outra vez, quando ali foi ter com ele

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Bastião de Sousa. E cometeu D. Garcia que o quisesse ajudar, porque ele determinava de lhe dar um bom castigo, tendo-lhe já ele, Martim Afonso, queimado um junco, que estava ali à carga na Ilha Neira, que era de mouros de Patane. Ordenados pera esta ida, mais com ódio que com rezão e prudência, por ser aquela ua terra a que cada ano os nossos vão fazer seu comércio de noz e maça, e convém não escandalizar a gente, ambos foram castigados no lugar de Lonter, que é cabeça de todolos outros da Ilha, vindo muitos deles bem escalavrados. E posto que queimaram a1guas casas palhaças àquela pobre gente, foi ela tanta em acudir ao dano que lhe faziam, e foi tamanha a revolta, que foi D. Garcia ferido com um zarguncho de arremesso. Finalmente, com esta vitória eles houveram por bem (como dizem) de ficar custas por custas, e cada um fazer seu caminho - Martim Afonso pera Malaca e D. Garcia pera Maluco, onde chegou a salvamento.

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257v 257v 519 Capítulo V. Como D. Garcia Hanriques chegou a Maluco, e as diferenças que teve com António de Brito, até lhe entregar a fortaleza; e como ambos mandaram descobrir ouro à Ilha de Celebes, e como descobriram outra ilha nova de gente mui estranha. A tempo que D. Garcia chegou a Maluco, estava António de Brito ordenando pera mandar sobre um lugar del-Rei de Tidore, com quem estava de guerra (como atrás escrevemos). E por ele, D. Garcia, ir pera servir de capitão, cessou António de Brito daquele ímpeto, por suceder outra cousa que foi aziar de mais dor pera se esquecer desta, que era de mais obrigação. O qual aziar foi que D. Garcia não quis ir ancorar ao porto da fortaleza de S. João, em que estava António de Brito, e foi tomar outro na própria Ilha de Ternate, a que chamam Talangame, que é duas léguas da fortaleza. Verdade é que este não tem recifes tam perigosos, e é pera naus grandes, o que não tem o da fortaleza; e pareceu a António de Brito que ele, D. Garcia, tomaria aquele porto de Talangame por segurar o seu junco. Peró, quando ouviu os requerimentos de D. Garcia, entendeu que por esta razão o fizera; porque António de Brito, vendo um recado de D. Garcia em que lhe notificava que era vindo pera capitão da fortaleza, que lha mandasse Sua Mercê despejar, porque não havia de desembarcar até lhe ser despejada, respondeu que 258 258 saísse Sua Mercê em terra, e lá falariam nisso, e tudo se bem faria. D. Garcia, como ouviu este recado, começou de tomar ua presunção pera ambos se desavirem - que António de Brito, tanto que o visse em terra, não lhe havia de entregar a fortaleza. E mais que lhe tomaria a embarcação que trazia, e depois que recolhesse o cravo que tinha pera trazer, e toda a gente que com ele se queria ir pera Malaca, então lhe entregaria a fortaleza, e isto não podia ser senão vindo a moução, que era dai a oito meses. Pera a qual suspeita não faleceram alguns dos nossos, que da fortaleza vieram ver D. Garcia, como capitão novo, que lhe faziam esta suspeita mais firme; até que António de Brito, como quem entendia a natureza dos homens que andavam nestas visitações, segurou D. Garcia de suas suspeitas, pedindo-lhe que saísse em terra; e asi o fez indo jantar com ele. Mas D. Garcia, ou porque assi o aconselharam, ou porque queria descobrir com efeito a vontade de António de Brito, em acabando de comer, sobre-mesa, quis lhe mostrar as provisões que levava, pera lhe entregar a 520 fortaleza; ao que António de Brito lhe foi à mão, dizendo que fosse dormir e repousar, e depois entenderiam nisso. Passada aquela hora do repouso, sendo presente o feitor, alcaide-mor e oficiais da fortaleza, disse António de Brito a D. Garcia que apresentasse as provisões que trazia. As quais lidas, disse António de Brito que aquelas provisões do Governador levavam alguns pontos em que não obrigavam de todo a ele entregar a fortaleza, os quais logo apontou; mas que ele contudo a queria entregar, e seria a seu tempo, que era quando viesse a moução de Janeiro, porque não estava em razão, sendo ele capitão e não tendo acabado seu tempo que lhe el-Rei limitava pera poder estar na fortaleza, de capitão que era e podia mandar até sua partida, se fazer lascarim pera ser mandado. D. Garcia, porque dali a Janeiro havia oito meses, respondeu que ele não viera de Malaca pera estar esperando tanto de tempo, senão logo ser entregue da fortaleza, e começou de fazer protestos com requerimentos ao alcaide-mor, feitor e oficiais, que comprissem a provisão que apresentava, e lhe fizessem entregar a fortaleza. E porque eles não responderam ao seu

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requerimento conforme o que ele pedia, se tornou pera o seu junco; mas não acabou aqui o negócio, porque houve de parte a parte tantas paixões per homens que as traziam, que ficaram postos em bandos. E porque nosso costume é contar a guerra que os nossos teveram com os mouros, e não paixões e divisões que teveram em si, leixaremos as meudezas que se passaram entre eles. Basta que ambos se vieram a concertar, per um certo modo, até um tempo que António de Brito tomava pera acabar um junco seu, em que queria vir agasalhado; e feito o junco, entregaria a fortaleza, com a qual condição D. Garcia 258v 258v se foi pousar à fortaleza, e esteveram em grande amizade. Neste tempo que ambos estavam concordes, sem haver bu1iço de guerra da parte del-Rei de Tidore, vendo ele juntos dous capitães conformes e gente fresca que trazia D. Garcia, teveram ambos os capitães nova que, nas Ilhas dos Celebes (por os moradores delas assi serem chamados), havia ouro, e que indo lá homem que o soubesse negociar, que resgataria boa quantidade. E como estas ilhas estão dali até sessenta léguas, pouco mais, ou menos, pareceu bem a ambos que deviam lá mandar descobrir esta fama e trazer António de Brito tam boa nova a el-Rei. E pera esta ida elegeram, por ser homem pera isso, ao almoxarife da fortaleza, o qual partiu pera lá em ua fusta com alguns panos, mais a tentar e descobrir, que a resgatar, e por isso não levou outro navio, e também por fazer sua viagem primeiro que António de Brito se partisse. Partido este almoxarife em Junho, com fundamento que poderia tornar em Julho ou Agosto, a mais tardar, chegou a ua das ilhas onde foi mui 521 bem recebido. Mas como viram panos e outras cousas pera resgate do ouro, sentindo que esta era a causa da sua ida, fizeram-se em outra volta; porque, como tinha por nova que por razão do cravo tínhamos tomado as Ilhas de Maluco, e a guerra que fazíamos aos mesmos naturais da terra era por ele, tomaram outra determinação, e foi ver se podiam tomar a fusta, pera não vir recado dos nossos. E ua noite muitos deles vieram à fusta, que estava com um proiz em terra amarrada às árvores, por ali ser tam alcantilado, que não se podia lançar âncora; e tirando pela amarra, deram com a fusta em seco. No qual tempo, com a pancada que deu em terra, os nossos sentiram a sua obra, e a grã pressa remeteram às armas e artelharia, e assi os trataram, que lhe fizeram soltar a fusta e a tornaram pôr em nado, por ainda a maior parte dela estar na água; e dali se foram a outra ilha, onde os não consentiram, e menos em outras três ou quatro, onde os recebiam às frechadas, sem somente os consentirem tomar água pera beber, como gente que estava posta em ódio nosso, temerosa de irmos tomar a terra. Vendo o capitão que andar de ilha em ilha mais era buscar arroído que ouro, determinou de se tornar pera Ternate, a dar razão do estado em que aquela gente se punha contra eles; mas parece que ainda tinha outro novo trabalho pera passar; e foi este: Como as águas entre aquele grande número de ilhas são, com a mudança dos tempos, um redemoinho com os ventos e aguages, naquela travessa que quiseram passar foi a fusta arrebatada e levada a um mar mui largo, sem saberem onde eram, correndo sempre pera o nascimento do Sol. Finalmente, perdido o tento da paragem onde eram e correndo a Deus misericórdia com tormenta que os comia por ser mar desabrigado de 259 260 ilhas, indo sempre a popa por não ousarem nem poderem tomar outro rumo, segundo seu parecer, eles correram alguas trezentas léguas. E indo postos mais na misericórdia de Deus que na confiança de sua navegação, pera mais sua confusão, ua noite lhe saltou a agulha do leme fora das fêmeas. E como era de noite, não o poderam remedear, e esperaram até vir a menhã, com que ficaram consolados, por se acharem junto de ua ilha grande, mui fermosa, a seu parecer, em frescura de arvoredo.

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Consertado seu leme, cujo desconserto foi pera não se perderem escorrendo a esta ilha, na detença que fizeram em esperar a menhã, foram-se a terra, aos quais veo receber a gente dela, mostrando em muitos sinais terem tanto prazer como espanto em os ver. E verdadeiramente, segundo eles mostraram na segurança de se chegar a eles, parecia gente que não tinha recebido escândalo nem dano algum, porque com ua simplicidade se chegavam aos nossos, que desta sua simplicidade e segurança confiou um deles a ir em sua companhia a ver o senhor da terra. E posto que a sua língua não se entendia com alguns escravos que levavam das ilhas a Maluco vezinhas, per acenos entenderam deles haver muitas centenas de anos que ali estavam. Eram homens mais brancos que pretos, todos bem despostos, assi 522 homens como mulheres, de rostro alegre, bem assombrados, enxutos, sem mostra que padeciam infermidades, os homens de barbas compridas ao nosso modo, e o cabelo de todos corredio. O vestido era uas esteiras tecidas, mui macias e brandas, que lhe servia como a nós as camisas, e em cima outras compridas feitas em tranças mais grossas sem talho algum, somente como um pano solto que os cobria da cinta pera baixo. O senhor da terra, quando viu o nosso homem, folgou muito de o ver, e com esta facelidade e mansidão deles, todos houveram que aquela ilha era de gente que estava em ua simplicidade racional e sem algua malícia, receo ou cautela como tinham visto em as ilhas daquele Oriente, donde lhe parecia estarem na simpleza da primeira idade. Seu mantimento era uas raízes como inhames, legumes, cocos, figos como os da Índia; e em quatro meses que os nossos se ali deteveram, até vir a moução pera se tornar a Maluco, mostrando-lhe ferro, cobre, estanho e ouro, somente deste mostraram ter notícia, e acenavam com a mão haver este metal contra o Ponente da ilha, em ua serra mui alta. E porque tinham grandes paraus, e os nossos não lhe viam o uso do ferro, perguntando-lhe como os faziam, mostraram espinhas de peixes com que cortavam, e tais, que os nossos podiam usar deles pera aquele uso, como de ferro. Finalmente, como veo o tempo pera navegar, demarcada a ilha e posta na carta de marear per Gomes de Sequeira, que era o seu piloto, ficou com o nome 259v 260v dele. E partiram dali a vinte de Janeiro, dando a entender àquela simples gente que haviam de tornar, mostrando todos sentirem sua partida; e fazendo sua viagem, chegaram a Maluco, havendo oito meses que eram partidos, e acharam já sua fazenda vendida e posta em arrecadação, como se faz aos defuntos. E assi acharam António de Brito embarcado pera partir, com o qual nos convém irmos pera Malaca, e dali nos tornaremos à Índia a contar o que se passou naquelas partes, enquanto nos detevemos nestas, as mais orientais que até este tempo descobrimos, porque a este fim contamos esta.

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259v 259v 523 Capítulo VI. Como Pero Mascarenhas, vistos os trabalhos da guerra que fazia el-Rei de Bintão a Malaca, determinou de ir sobre ele; e o que pera isso ordenou, sem daquela vez haver efeito. Partido António de Brito de Maluco, veo ter à ilha de Banda; e havendo que aí estava, chegou Martim Correa, alcaide-mor de Maluco, que quási partiu logo trás ele com grande necessidade em que ficava a fortaleza. E vinha àquela Ilha de Banda com esperança de achar nela navios de Malaca pera o proverem do que ele ia buscar; porque, como António de Brito se partiu ainda mal avindo de D. Garcia, por terem maiores paixões à partida do que foram à chegada, como contámos, trouxe no seu junco tudo o que havia mister, e alguns homens que com ele se quiseram vir, contra vontade de D. Garcia. E como com esta sua partida falecia gente e outras cousas, de que a fortaleza tinha necessidade, mandou logo D. Garcia, em se ele partindo, a Martim Correa buscar o necessário. E foi sua viagem tam perigosa, com um temporal que passou, perdendo todalas velas, que somente com o traquete da proa, quási perdido, chegou a Banda. E a este tempo também chegou Manuel Falcão em um navio de Malaca com certos juncos, que iam fazer carga de maça e noz, do qual Martim Correa houve as mais das cousas que ia buscar, e mais foi-se com ele a Maluco no seu navio, por lhe ele, Martim Correa, fazer requerimento da parte de D. Garcia, que se fosse com aquela gente e navio, por a necessidade em que ficava a fortaleza. A qual viagem Manuel Falcão folgou de fazer, porque levava uns poucos de homiziados no seu navio, escondidos de Pero Mascarenhas, que o mandara de Malaca àquela Ilha de Banda. Os quais homiziados tinham morto a um Diogo Gago, que com eles andava por capitão de um navio 260 254 seu, na costa de Pegu, roubando navios de mouros; e fizeram ali travessuras que custou a fazenda cativeiro a alguns dos nosso, como adiante contaremos. E parecendo a um Gaspar Veloso, da sua companhia, que ganhava nisso, por se tornar à graça do Governador da Índia, polo crime do ofício em que andava, o matou mal, jazendo ele no regaço de ua escrava sua, que o estava catando. Mas a morte foi mais por paixões particulares que por outro fim, pois com sua morte não leixou de andar no ofício ele e os outros, que não nomeamos por sua honra. E por Pero Mascarenhas saber parte destas cousas, quisera 524 haver todos à mão; mas Manuel Falcão, que depois mostrou ser homem desta virtuosa companhia, se acolheu, de que Pero Mascarenhas ficou muito escandalizado. Partido Martim Correa pera Maluco, ficou em Banda António de Brito, e, como veo a moução, se partiu pera Malaca, onde achou Pero Mascarenhas já entregue da fortaleza que lhe entregou Jorge de Albuquerque, e ele era partido caminho da Índia. Da viagem do qual adiante faremos menção, porque, pois estamos em Malaca, convém dar razão do que Pero Mascarenhas fez sobre aquela guerra de Bintão, que tam atormentada a tinha, não somente os portugueses, mas a todolos moradores de Malaca, gentios e mouros, até os estrangeiros, que a ela vinham por razão de comércio, por ser ua cidade onde concorriam todalas cousas do Oriente e Ponente a comutar, trocar e vender por outras (como ja temos escrito nesta nossa história); e como com a guerra deste mouro, Rei de Bintão, não ousavam de ir a ela, polo dano que recebiam. Pero Mascarenhas, consultando sobre este negócio com as principais pessoas de Malaca, assentou que convinha, pera quietação daquela cidade, perseguir tanto aquele mouro, Rei de Bintão, até de todo o destruir, porque, enquanto vivesse, não podiam ter paz. E posto que sabia que Jorge de

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Albuquerque já fora sobre ele a Bintão, e depois mandara lá D. Garcia Hanriques, seu cunhado, e Martim Afonso de Sousa, pera lhe tolherem os mantimentos, por lhe fazerem entender que destas idas os seus desastres foram mais culpas dos capitães que casos de má fortuna, quis levar este mesmo caminho - mandar lá primeiro. E depois que o posessem em necessidade de mantimentos, como ele punha a Malaca, então ele em pessoa ir cercar a cidade onde el-Rei estava, e a combater, e não leixar este processo de guerra até lhe dar fim. Pera o qual negócio mandou Aires da Cunha, filho de Rui de Melo da Cunha, o do Algarve, como Capitão-mor do Mar, com um galeão e outros dous navios de remo, em que levaria até cento e vinte homens, com regimento que surgisse na barra de Bintão, e dali não se movesse até não lhe mandar recado, e defendesse 260v 254v a entrada e saída de todo navio, por pequeno que fosse. Partido Aires da Cunha, esteve no lugar que lhe foi mandado; mas sucedeu caso que não pôde ele sofrer o trabalho daquele lugar; porque, nos meses que ele ali esteve, é tanta a infermidade de febres, que é pior que peste. E vendo quanta gente lhe morria, per ua das velas de remo o mandou dizer a Pero Mascarenhas; e que se havia por bem que ali estevesse mais, que o provesse de gente em lugar da falecida. Ao que Pero Mascarenhas logo proveu, mandando outro galeão pequeno, capitão Jorge Mascarenhas, de Santarém, com até cinquenta homens de refresco; e, sendo ele tanto avante como o Estreito de Cingapura, achou Aires da Cunha, que havia três dias que estava ali surto, sem poder navegar, por não ter quem lhe mareasse o navio com a gente que trazia morta e inferma. 525 E porque a ambos pareceu bem tornar-se a Malaca, por não ir matar mais gente vieram-se, o que Pero Mascarenhas muito sentiu por a perda da muita gente, e houve por bem não irem lá nesta conjunção da corrupção dos ares. Ao qual nós ora leixaremos, por dar razão da viagem de Jorge de Albuquerque e do trabalho em que se viu junto de Cochi, e do que o Governador D. Hanrique sobre isto fez.

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260v 254v 525 Capítulo VII. Do que Jorge de Albuquerque, capitão que foi de Malaca, passou depois que dela partiu; e o Governador D. Hanrique sobre isso fez. Jorge de Albuquerque, depois que entregou a Pero Mascarenhas a fortaleza de Malaca, partiu a quatro dias de Setembro, de quinhentos e vinte cinco, e por não ter nau pera se vir, veo em um junco pequeno seu. E por serem pessoas que havia tempo que andavam naquelas partes e tinham recebido dele, Jorge de Albuquerque, boas obras e bom tratamento na conversação de sua pessoa, vieram-se com ele quorenta portugueses, de que os principais eram Duarte Coelho, que depois ele casou no reino com ua sua sobrinha, filha de Lopo de Albuquerque, seu irmão, António de Melo, Rui Lobo, Bastião Rodrigues Marosim, Francisco Bocarro, Gomes do Campo, Nicolau de Sá, António de Carvalho, Francisco Fernandes Leme, e outros que Nosso Senhor ordenou que viessem em sua companhia pera o livrar (como dizem) da boca do lobo, onde veo cair, como veremos; porque, passadas as Ilhas de Linga, onde esteve dez ou doze dias, e a Ilha dos Almeirões, que está fora da Linga contra a terra firme, donde partiu a dezanove de Outubro, foi dar vista 261 261 ao Cabo Comori, e daí chegaram à passagem da nossa fortaleza de Coulão. E o lobo que acharam, foram vinte cinco fustas de Calecute, de que era capitão o Arel de Porcá, o qual, pelo escândalo que recebeu de D. Hanrique, quando com o berço lhe quebraram a perna em o lugar Coulete, e depois por ele, D. Hanrique, o pedir a el-Rei de Calecute (como escrevemos), andava fazendo per aquela costa todo o mal que podia. Mas até então não tinha feito cousa notável; e se Jorge de Albuquerque não viera tam acompanhado, certo ele não podera escapar, segundo o apertou com as fustas. Ca ele tomou um posto, onde Jorge de Albuquerque não podia ir a ele, e dali tinha o seu junco por barreira, gastando nele quási a maior parte 526 de sua pólvora, porque a bateria começou do Sol saído até véspora, com o mar estar quási morto. Na qual bateria lhe mataram um negro somente, que era dele, Jorge de Albuquerque; e se os tiros das fustas foram grossos, como eram meúdos, e o junco não tivera suas arrombadas, que aquelas pessoas nobres ordenaram, ele fora metido no fundo. E estas pessoas, peró que não podiam obrar de espada e lança, com a artelharia e espingardas de que se serviam fizeram muito dano ao mouro, com morte e ferimento de muita gente, como depois souberam pelos da terra. E ao outro dia veo dar com ele Jorge Cabral, que ia já em socorro seu em ua galeota e cinco catures, que D. Hanrique mandava de Cochi, onde estava, o qual, quando chegou Jorge de Albuquerque, recebeu com toda honra e agasalho que ele merecia. E deste feito e perigo que ele passou, tomou D. Hanrique um azo pera fazer o que desejava, que era ua obra mui importante ao serviço del-Rei, por se fazer sem despesa sua, que era cercar Cochi, a qual obra ele já tinha começada no inverno per este modo: Acertaram malabares gentios del-Rei de Cochi furtar uas poucas de espingardas e dous berços de metal, os quais iam vender aos mouros; e ainda que o negócio era de pouca importância, quis D. Hanrique fundar sobre este furto e sobre outras travessuras, assi dos gentios em a nossa povoação, como dos portugueses na del-Rei de Cochi, a causa de seu requerimento. E foi-se um dia a el-Rei de Cochi, e lhe contou o que passava de ua povoação à outra, que por evitar escândalos e queixumes que daqui procediam, ele tinha cuidado ua cousa que lhe parecia mui proveitosa pera ele e pera el-Rei, seu Senhor, e entre eles se continuar aquela paz que tinham, a qual cousa muitas vezes se perturbava per gente, dela simples, sem saber o que fazia, e às vezes maliciosa, e cometiam

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tais cousas sem respeito ao dano que faziam; e por evitar estes males que podiam acontecer, cuidara que tais azos não se podiam melhor tirar, que cercando ele Cochi; 261v 261v porque, sendo cercado, nem portugueses iriam à sua povoação de noite a fazer travessuras, porque, como fosse noite, mandaria fechar as portas; nem dos seus malabares viriam à nossa povoação. E também desejava ele isto, porque mouros não viessem de Calecute pôr fogo às nossas casas, para queimar muita parte da povoação, como já muitas vezes acontecera, e se dezia que eles eram autores disso. Assi que, por evitar tantos azos de dano, ele devia querer ir assinar a parte por onde parecesse proveitoso fazer o muro da cerca, com o qual cessariam estes trabalhos de furtos de gente vil e pobre, e não dariam azo a maliciosos fazerem dano. El-Rei, com estas e outras palavras de D. Hanrique, ficou satisfeito, e pareceu-lhe cousa justa fazer-se aquela obra, e um dia foi ter a Cochi e andou com D. Hanrique assinando lugar per onde lhe parecia bem que fosse a cerca feita. 527 Tanto que D. Hanrique teve este aprazimento del-Rei de Cochi, ordenou a armada de Jorge Cabral que socorreu a Jorge de Albuquerque, que (como ora contámos) esteve em risco de ser metido no fundo. E mandou apontar todolos moradores de Cochi que fossem a esta armada, os quais se foram logo agravar a ele, dizendo que não era cousa justa leixar suas casas, mulheres e filhas pera os lascarins da armada atentarem nelas, como gente ociosa. Ao que D. Hanrique respondeu que eles tinham razão, mas que a gente de armas andava com elas às costas, aventurados a todolos perigos, e eles estavam repousados, tratando e enriquecendo; e quando vinham invernar, em lugar de acharem quem os agasalhasse, achavam quem os esfolava, vendendo-lhe as cousas por grandes preços; e que nesta ida de Calecute via os homens feridos pobres, e não tinha que lhe dar pera se manterem; e mais crueza lhe parecia mandá-los a pelejar, que a eles fartos e ricos e fora destas despesas. E porque ele queria mandar cercar aquela povoação, que era em grande proveito deles, que vissem qual destas queriam - ir na armada ou dar dinheiro para se ela cercar. E o que ele tinha del-Rei pera esta obra, daria à gente de armas em pagamento de seus soldos, e com isto iriam contentes, e el-Rei seria servido em tudo, e eles, moradores, ficariam com o sono mais repousado recolhidos dentro de bons muros, e não postos no campo sujeitos a todo perigo. Praticado o negócio em câmara, assentaram os moradores de Cochi que D. Hanrique tinha razão no que ordenava, e logo daí a três ou quatro dias trouxeram em começo de lançamento, que entre si lançaram pera esta obra, três mil pardaus, e o mais iriam dando, como se ela fosse fazendo. E com este dinheiro aplicado pera esta obra, de outro del-Rei pagou à gente de armas, com que fez os navios prestes, capitão Jorge Cabral, que acudiu a Jorge de Albuquerque (como ora vimos). 262 262 A qual ousadia do Arel de Porcá indinou muito a D. Hanrique, por ser feito quási à vista dele, pois era tam junto de Cochi, onde estava.

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262 262 528 Capítulo VIII. Do que D. Hanrique de Meneses fez o inverno que esteve em Cochi, onde Cide Alé, mensageiro de Melique-Aliaz, o veo vesitar; e o requerimento que lhe Lopo Vaz de Sampaio, capitão de Cochi, fez, vendo os aparatos da guerra com que ele queria partir de Cochi. Como D. Hanrique teve a vontade del-Rei de Cochi pera aquela obra de cercar aquela cidade pelo lugar per onde demarcaram, mandou cortar alguas palmeiras e derribar casas que eram empedimento, e fez os aliceces à maneira de elegimento, até se ajuntar pedra e cal pera poer mãos à obra. A qual não houve efeito, e tornou-se o dinheiro aos casados, por os comprazer; e sucedeu depois da morte dele, D. Hanrique, como se contrariaram outras que não apontamos, por não macular os autores disso. Além desta obra, que era muito emportante ao serviço del-Rei, também naquele inverno ordenou outras cousas, todas a fim de seu propósito, que era ir sobre a cidade Dio, como se depois soube, sem disso dar conta a alguém. E ainda por mais dessimulação, mandou armadas pera diversas partes, assi como Heitor da Silveira, com regimento que levava que esperasse seu recado até um certo tempo, como escrevemos. E despachou Jorge Cabral, como ora dissemos, e secretamente lhe mandou que a outro limitado tempo o fosse esperar a outra parte, depois que o ele espedisse de Cananor, até onde o havia de levar e estava de caminho. E a estes capitães dava entender que sua tenção era ir sobre Adem, por tirar suspeita de tanto aparato como fazia, de mantas, escadas, barcaças, pólvora grande soma, e outra muita cópia de munições. E em Goa mandou fazer ua grossa cadea pera atravessar o rio Dio, sem destas cousas dar conta a pessoa algua, temendo que se viesse a romper seu segredo. E mais tinha consigo Cide Alé, mensageiro de Melique-Aliaz, senhor de Dio, que per seu mandado era vindo a o visitar; porque, como este mouro era muito sagaz, tanto que ouviu o feito de Calecute, ficou assombrado, e todolos mouros da Índia, vendo a defensão dos nossos que estavam na fortaleza, e o tempo em que navegaram os outros, que foram em seu socorro, e como ele, Governador, lhe acudiu, e sua saída em terra contra toda a potência do Samori; e temeram muito as cousas de D. Hanrique, ajuntando esta às passadas que tinha feito em tam pouco tempo. E por esta causa, e quási em modo de espreitador do que ele fazia, o mandou vesitar ele, Melique-Aliaz, 262v 262v dando-lhe a prolfaça do ofício de Governador, mostrando que desejava assentar paz com ele, porque el-Rei de Cambaia, seu senhor, este desejo tinha por amor del-Rei de Portugal, e outras palavras simuladas das que ele costumava 529 dizer. E em sinal desta amizade que desejava ter com ele, lhe mandou um presente de muitas peças ricas, de que D. Hanrique lhe tomou somente esta: um assento forrado de madre de perla, de que os mouros usam pera se assentar, e este assento foi pera mandar a este reino a el-Rei, como mandou. E quando lhe enjeitou as outras peças, mandou trazer uns poucos de ferros de lanças, e mostrado-os a Cide Alé, disse-lhe: - Se me vós trouxéreis destas peças, eu as tomara de boa vontade, porque das tais sou eu grande amigo, por ajudar com elas aos servidores e amigos del-Rei, meu senhor, e castigar aqueles que o não forem. E porém, em retorno das que lhe não aceitou, lhe mandou dar outras; e quanto à reposta do recado que lhe trazia, o dilatou pera Cananor, dizendo que estava pera ir pera lá, e lá o despacharia, e isto per arteficío que visse ele os grandes aparatos, mais que pera lhe dar suspeita e assombrar,

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que espertar. E por outra parte fazia cousas que o não entendiam; porque, no maior fervor destes aparatos de guerra, mandou, per conselho de médicos, pôr botões de fogo em ua perna, e a causa era acudir-lhe àquele lugar um mau humor que lha inchava e empedia a não andar tam lestes como ele queria, naqueles apercebimentos. E fizeram-lhe crer os médicos que, com um par de botões de fogo que trouxesse abertos, purgaria aquele ruim humor que lhe ali acudia, e não teria tanta paixão no andar; mas eles obraram o que adiante veremos. Lopo Vaz de Sampaio, capitão de Cochi, três ou quatro dias ante que D. Hanrique partisse, vendo tanto aparato de guerra, sem saber o fundamento daquelas cousas, ora suspeitava em Adem, ora em Dio, e não podia achar mais notícia que a presunção das cousas. E um dia publicamente, quási em modo de requerimento, lhe disse: que Sua Senhoria ia fora da Índia com aquela armada, e que diziam ser Adem, e que daí havia de ir envernar a Ormuz; que lhe devia lembrar quam desemparada estava a costa do Malabar, na qual convinha naquele tempo andar de contino ua boa armada. E também, quanto à ida de Ormuz, lhe lembrava que el-Rei defendia que os Governadores não fossem lá; que lhe fazia estas lembranças por serviço del-Rei, e ser a isso obrigado. Ao que lhe D. Hanrique respondeu: que as lembranças eram mui boas, e o seu caminho não era mau, mas tal, de que ele esperava em Deus, e el-Rei, seu Senhor, serem servidos; e se o seu caminho não fosse tal qual ele esperava, que el-Rei o castigaria por isso. Quanto mais que, quando ele posesse os pés onde ele ia, aí lhe ficaria o conselho de mui bons fidalgos que consigo levava, com parecer e voto dos quais faria o que fosse serviço del-Rei.

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263 263 530 Capítulo IX. Como o Governador D. Hanrique partiu com ua armada de dezassete velas, caminho de Cananor. Provido D. Hanrique de Meneses do que lhe era necessário pera o fundamento que levava de ir combater a cidade Dio, pela maneira que escrevemos, daí a quatro dias que Lopo Vaz de Sampaio lhe fez estas lembranças que ora vimos, partiu com dezassete velas, porque as mais que ele esperava levar pera aquele feito eram as que tinha enviado às partes que dissemos, e alguas das que tinha Pero de Faria, que ele leixou na costa, quando se partiu a invernar a Cochi. E como ele queria também ir alimpando a costa, ia um pouco de vagar, levando ante si os bargantins que lhe fossem descobrindo quantas pontas, cotovelos e angras a terra fazia. E por alguns deles verem entrar uns poucos de paraus no Rio de Chale, que era duas léguas de Calecute, mandou sair em terra a D. Jorge de Meneses com quinhentos homens, o qual destruíu e queimou a povoação que estava bem dentro do rio, e assi os paraus que achou. Seguindo mais sua viagem per o mesmo modo, ante de chegar a Cananor seis léguas onde está um rio da povoação Maim, os catures que levava diante viram entrar uns poucos de paraus, e ainda, em modo de rebolaria, fizeram alguns sinais aos nossos que os tinham em pouco; e verdadeiramente, pelo que aqueceu, mais foram demónios que homens; porque um dos capitães dos nossos catures, chamado Pero Gomes, foi-se a D. Hanrique mui indinado, dizendo o que os paraus fizeram. E que lhe parecia ser aquilo em confiança de haver dentro no rio mais soma deles; que o rio era muito bom pera entrar nele; que mandava que fizessem? D. Hanrique, havendo por abatimento, ante a vista de sua armada, terem aqueles mouros ousadia de aparecer, quanto mais fazerem algazarras, quis entrar no rio; e não confiando a vista da entrada dele senão de si mesmo, mandou trazer um batel a bordo, e quando foi à barra do rio, achou não haver remédio pera poder entrar, nem menos lhe pareceu que per ele podiam ir os paraus que ele dizia. Do qual caso se indinou muito contra o capitão, e entre paixão e trabalho que levou, andando fragueiro naquela busca da foz do rio, quando veo à tarde curar a sua perna, achou-a mui assanhada, e uas nódoas negras que o mestre teve por mau sinal, e com ela curada se fez à vela caminho de Cananor, onde, ao tempo que chegou, lhe veo recado de D. Jorge Telo e Pero de Faria, que estavam sobre a barra do rio Bacanor, 531 e tinham encerrado um grande número de paraus, que passavam de cento, segundo tinham sabido, todos carregados de especearia pera Cambaia, pera que haviam mister mais gente; 263v 263v que lhe mandasse acudir com algua. Ao qual socorro ele mandou logo D. Jorge de Meneses com um galeão em que andava, e mais um navio com quatrocentos homens, e achou que ambos estes capitães tinham vinte bargantins e catures e ua galeota, e os mouros diziam serem obra de quatro mil entre os dos navios e da terra que estavam em sua defensão. Estes três capitães, consultado o modo que teriam pera pelejar com eles, ordenaram entrar pelo rio acima em os bargantins e navios de remos, e isto fizessem os primos; e Pero de Faria que ficasse com os outros navios na boca do rio em guarda, temendo que de fora, per aviso dos mouros, podia vir algua armada deles, de que podiam receber muito dano. Vinda a maré de ante-menhã, partiram os dous primos com a galeota, bargantins e catures; e como a maré ajudava o remo e a vontade os braços, ao modo de quem corre pário naval por

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chegar ao prémio da honra, com grandes gritas começaram ir pelo rio acima buscar os imigos. Estes, como tinham sabido per alguns negros da terra que se lançaram dos navios de Pero de Faria a nado, que estava ele tam pobre de gente que não ousava de os ir buscar, e não tinham ainda sabido da chegada de D. Jorge de Meneses, estavam mui fora de ouvirem aquelas grandes gritas, e mais lhe pareceu ardil que vontade de os ir cometer; porque, se o suspeitaram, empediram a entrada do rio com estâncias de artelharia na borda dele, como depois fizeram, quando Lopo Vaz de Sampaio os foi buscar, segundo adiante veremos. Porém quando acudiram com seus paraus armados e começaram a sentir as espingardas dos nossos, que os aguilhoavam de morte, avoavam em se tornar recolher a ua povoação ou (por melhor dizer) a ua guarida que pelo rio acima tinham, que era ua ponte que o atravessava, de cima da qual se podiam defender, ainda que o rio fosse coalhado de nossos bargantins. Mas primeiro que lá chegassem, uns aqui, outros ali, desatentados com temor, iam dar em seco, e juntamente alguns do nossos faziam outro tanto, com que de ua parte e da outra tudo era sangue e fogo, por estarem encalhados. D. Jorge de Meneses, como levava um batel que demandava pouca água, foi tanto polo rio acima até anteparar na ponte, e quási a bote de lança esteve com os mouros que estavam nela. Mas quando se viu só, e que ali fazia pouco, e abaixo ficava D. Jorge Telo com muitos catures dos mouros que o tinham cercado, tornou a ele. Os mouros, vendo que se tornava, cobraram coração, e vieram trás ele, na qual volta houve tanta detença, que vasava já a maré, e onde a terra fazia um cotovelo, veo ali encalhar com a maior parte dos nossos catures. 532 No qual tempo teveram os mouros espaço de ir buscar certas peças de artelharia que assestaram na ribanceira do rio, que ali era alcantilado, de que faziam muito dano aos nossos, matando e ferindo neles; e per maior mal, com um tiro 264 264 deram em um nosso bargantim, e por o fogo lhe dar onde trazia a pólvora, fez maravilhas, não somente em arder de todo, mas em matar alguns homens. E outros que andavam na água, não ousavam sair em terra, temendo o grande número dos imigos que os esperavam e acudiam como estorninhos sobre eles, que os faziam meter debaixo da água, por fugir às frechas. E muitos mouros de ousados se metiam dentro na água, e à força de braços os queriam afogar debaixo dela. Tanta ousadia dá um pequeno favor, quando algum desastre acontece, como os nossos naquele tempo ali teveram. D. Jorge de Meneses, quando se viu decepado sem poder ir atrás nem adiante, mandou saltar na água vinte homens do seu batel, com que ficou em nado, e meteu-se entre eles como um lião assanhado do que até ali estava padecendo, e com um falcão e um berço fez afastar os mouros, com que se acolheram a terra; e dando nos que estavam com as peças da artelharia, foi-lha tomar. Neste tempo acertou D. Jorge de ver um grande corpo de gente que vinha contra onde ele estava, entre a qual viu um sombreiro de pé alto, que cobria a cabeça de um homem a cavalo, per a qual insígnia conheceu ser pessoa nobre. O qual sombreiro é trajo na Índia, vindo da região China, e entre os chins não o pode trazer senão um homem fidalgo, por ser insígnia de nobreza, o que podemos chamar pálio de ua só mão, ao respeito dos que vemos levar quatro homens, quando recebem algum grã rei ou príncipe na entrada das cidades e nobres vilas de seu estado. A feição e tamanho deste redondo é ter sete e oito palmos em diâmetro, e mais ou menos, como cada um quer, com abas ao modo de esperavel. O qual é de uas caninhas mui meúdas, cobertas de tafetá ou lenço, segundo a pessoa tem o poder ou dinidade, com muitos lavores de ouro e louçainhas polos alparavazes, e tudo está armado sobre um pião, ao modo do esperavel que dissemos, e as canas jogam todas, fechando e abrindo pera o encolher e estender. E quando querem que faça aquela grande copa com que faz sombra, metem naquele pião ua haste de pau mui leve, de comprimento de quinze palmos, pouco mais ou menos, e então correm com um noete pelo pau acima, e até de todo se estender quando entesta no pião, e ali atravessam um pau na haste, que ali tem um furo, com que fecha e não cai pera baixo. E há homens que levam este sombreiro de tomar o Sol tam destros, que

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ainda que o senhor vá trotando no seu cavalo, não lhe há de tocar o sol em todo o corpo; e estes tais homens chamam na Índia boi. E ver na corte de um príncipe os senhores que o acompanham cobertos com estes sombreiros de pé, arvorados sobre suas cabeças, dá-lhe grande majestade, por quam fermosa cousa é quanta pompa mostram estas insígnias de honra. E como D. Jorge de Meneses entendeu que podia ser algum senhor o 533 que trazia aquele sombreiro, mandou per um canari 264v 264v saber quem era, e trouxe-lhe recado ser um capitão del-Rei de Narsinga, gentio, que vinha àquela terra arrecadar os rendimentos dela, por ser sua, e que trazia consigo vinte mil homens. D. Jorge, como soube isto, mandou-lhe dizer, porque consentia aqueles ladrões na sua terra, pois el-Rei de Narsinga era amigo del-Rei de Portugal, e entre eles havia paz? Ao que respondeu, que ele chegava de caminho naquele instante, mas que logo os mandaria castigar per seus capitães; e assi o fez, fazendo-os logo recolher com tanto império, como se foram seus escravos. Vendo D. Jorge a boa deligência que ele nisso pôs, confiado nele, saiu em terra, e acompanhado de alguns portugueses, assi como estavam o foram ver, e dar agradecimentos do que fizera. E esteveram um pouco falando, até que a maré veo, que se espediram dele, tornando-se a embarcar e recolher na armada, onde acharam que lhe faleciam quorenta homens, por serem mortos, e feridos eram muitos. E havido conselho do que deviam fazer, determinaram todolos três capitães de se não mover daquele rio, e o fazer a saber a D. Hanrique, pera mandar o que havia por bem que fizessem. E foi a tempo que não estava ele em estado pera já entender naquelas cousas, por causa da sua enfermidade, que o tinha posto no estremo.

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264v 264v 533 Capítulo X. Como o Governador D. Hanrique, crescendo o mal de sua enfermidade, entrou na fortaleza de Cananor, onde, primeiro que chegasse a hora da morte, proveu alguas cousas; e o que se fez depois que faleceu. Dom Hanrique, passado aquele dia em que o trabalho e paixão que levou em buscar a entrada do rio que dissemos causou assanhar a perna que trazia enferma, foi este mal tomando tanta posse, que descobertamente o cirurgião e médico o aconselharam que se passasse à fortaleza, porque estava em estado de cura, que não convinha estar no galeão. Mas ele tinha o espírito tam aceso naquela viagem que fazia, que entreteve os médicos quinze dias, sem querer mudar-se do galeão à fortaleza; e ainda padeceu tantos martírios em cautérios de fogo, como se a carne em que faziam aquela obra não fosse sua, e pasmavam os homens com ver a paciência que tinha nos martírios que lhe davam. Até que, vencido mais de rogos e amoestações que de sua vontade, consentiu ser levado à fortaleza, 534 tendo já neste tempo ua chaga tam grande como ua palma de mão. E como homem entregue à obrigação 265 265 de seu ofício mais que a sua vontade, espediu a Jorge Cabral, que se fosse andar contra aquela parte de Ceilão e Ilhas de Maldiva, sem obrigar ir a outra parte, como tinha com ele assentado, pera a obra que ele trazia no seu peito (como atrás dissemos). E assi mandou D. Afonso de Meneses, filho do Conde de Cantanhede, com alguns navios dos que ali tinha, que se fosse lançar sobre a barra de Calecute e não se movesse dali até o ele mandar; e, falecendo, se leixasse estar até vir outra pessoa que, per seu falecimento, governasse. E vendo que os seus dias eram poucos, por lhe não ficar cousa por fazer do serviço del-Rei, mandou chamar D. Simão de Meneses, seu primo, capitão da fortaleza, e a António de Miranda de Azevedo, e assi outros fidalgos, e disse-lhe, que ele se via em estado que não podia acudir às cousas do serviço del-Rei; que pedia a ele, D. Simão, que pera as cousas da terra ele tomasse o cuidado de as fazer, e pera isso lhe dava todolos seus poderes; e as cousas da armada que estava ali, entregava a ele, António de Miranda, com outras tais palavras. E quanto às cousas da governança da Índia, se Nosso Senhor o levasse, fariam o que el-Rei, seu Senhor, mandava. E porém, porque a pessoa que o sucederia per ventura não seria presente, ele tinha feito um papel que apareceria por sua morte, em que nomeava ua pessoa que tinha calidades e fidalguia pera poder governar, quando o outro não viesse. E ele jurava pela hora em que estava, que fazia isto por lhe parecer que assi convinha ao serviço del-Rei, e bem, paz e assossego de todos; que lhe pedia por mercê, polo que deviam à lealdade de suas fidalguias, que assi o fizessem. E este papel e nomeação não quis ali mostrar nem denunciar, por não dar matéria de escândalo entre pessoas que tinham opinião que podiam ser um daqueles, como foi depois de seu falecimento, segundo adiante veremos. O qual falecimento foi logo dai a dous dias, com todolos autos feitos de católico varão, a vinte três de Fevereiro do ano de quinhentos e vinte seis, em idade de trinta anos. Foi D. Hanrique de Meneses filho de D. Fernando de Meneses, de alcunha o Roxo. Era homem de grande e honrada presença, a quem com razão se podia chamar gentil-homem. Era católico, muito amigo da justiça, e trabalhava que se fizesse mui inteiramente pelos ministros dela. Limpo em seu ofício, muito cobiçoso de honra, e sem nenhua cobiça de fazenda, posto que andava na Índia, onde há grande matéria de tentações. E nele não podera com justiça ser executado a lei

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júlia de pecuniis repetundis, de que o Senado Romano muito usava, a qual foi constituída por reprimir a cobiça e avarícia dos magistrados, principalmente quando presediam nas províncias a que eram enviados. 265v 265v Naturalmente era inclinado à guerra de mouros, e bem a 535 fortunado nela, assi nas vezes que se achou em África, nos lugares do reino de Fez e Marrocos, como no que vimos na Índia esse pouco tempo que viveu. Muito amigo do serviço del-Rei e dos homens que ele via seguir esta sua natureza, e tinha grande ódio a homens revoltosos, que foi causa de alguns fidalgos se escandalizarem dele, sendo homem leve, conversável, e não instado nem imperioso. A maior tacha que teve foi um pouco desconfiado, que lhe deu matéria de alguns desgostos com fidalgos; e porém não que por isso esta desconfiança o trouxesse a estado de se vingar. Jaz o seu corpo na capela de Santiago, na igreja de Cananor, onde foi sepultado junto do Altar mor, na parte do Evangelho, ao qual podemos crer que Nosso Senhor daria sua glória, pois tantas vezes ofereceu sua vida, pugnando com infiéis e blasfemadores do seu nome. Foi casado com D. Guiomar da Cunha, filha de Hanrique de Figueiredo, de que houve estes filhos: D. Diogo, D. Simão, D. Antónia, que casou com D. António, filho segundo do Conde de Abrantes, e D. Catarina, que casou com António Dosem. Entre muitas cousas que aconteceram depois da morte de D. Hanrique, que lhe deram nome de ser homem amigo da justiça, foi o testemunho de dous fidalgos seus amigos, dos quais diremos seus nomes, por lhe pagar com a memória deste feito quanto mais honra nisto ganharam, que no que tinham feito contra mouros. A um chamavam Belchior de Brito, filho de Jorge de Brito, copeiro-mor del-Rei D. Manuel; e ao outro D. Vasco de Lima, filho de Duarte da Cunha. Este Belchior de Brito, ao tempo que D. Hanrique faleceu, estava preso em Cochi por seu mandado, por alguas travessuras que tinha feito, de soberbo e de grande opinião, parecendo-lhe pouco o estado da Índia pera ele, e tudo isto procedia de ser cavaleiro, como de feito ele o era. E alguas vezes que D. Hanrique passava junto de ua torre onde ele estava preso, como o sentia passar, a altas vozes dezia injúrias a D. Hanrique, que se fora outro mais apassionado, ele o mandara castigar muito bem. Morto D. Hanrique, Lopo Vaz de Sampaio em Cochi o mandou logo soltar, e ele se foi a Cananor, e a primeira cousa que fez, foi ir-se à igreja onde D. Hanrique jazia, e, feita sua oração a Deus, foi-se à sua sepultura, e assentado em giolhos e ditas alguas orações por sua alma, com muitas lágrimas no cruzeiro da capela começa em alta voz fazer um sermão das virtudes de D. Hanrique, tam ordenadamente, que um teólogo estudando pera pregar suas honras o não fizera melhor, em tanto que pôs quási toda a gente em lágrimas. E tudo era louvá-lo de justo e amador da justiça; e que quanto ao que tinha feito na sua prisão, fora como homem sem ódio ou paixão, somente como homem zelador da justiça, e que fora pouco o que fizera pera o que ele tinha merecido. Quási per o mesmo 266 266 modo, por D. Vasco de Lima ser travesso e brigoso, ao qual D. Hanrique queria grande bem, por ser muito bom cavaleiro, e principalmente polo que fez em Calecute, também o castigou, e ele, D. Vasco, 536 na própria igreja veo fazer outra tal protestação. E ainda acrescentou mais, por saber que alguns homens murmuravam dele, dizendo que, se houvesse homem que contra D. Hanrique dissesse o contrairo do que ele ali dezia, que se mataria com ele. E Heitor da Silveira também, depois dele falecido, em ua mesa em que comiam com ele muitos homens nobres, começou um de má língua de dizer mal de D. Hanrique, pondo-lhe por tacha que não era pera ser capitão, por ser tam cavaleiro, que sempre queria ser dos primeiros. E Heitor da

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Silveira, por este homem ser afamado de ruim língua, respondeu: - A maior tacha que eu soube de D. Hanrique foi não desterrar quantas más línguas há na Índia. E de lhe aborrecer ouvir mal, alevantou-se da mesa. Em ausência do qual, disse um dos que ali comiam: - Quem quer que disser mal de D. Hanrique, eu me matarei com ele. E com isto ficou a mesa quieta, e o outro julgado por quem era - solto na língua e atado nas mãos, e que sabia buscar boas abrigadas, quando havia tormenta de pelejar com os imigos; e o nome do qual calamos, por sua honra e pola nossa, cuja natureza é nesta nossa história não publicar defeitos de partes que não fazem a bem dela.

*** Compilado por RLJ a partir das Décadas da Ásia de João de Barros, CD-ROM da série OPHIR -

Biblioteca Virtual dos Descobrimentos Portugueses, da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998.

QUARTA DÉCADA

João Baptista Lavanha, aos que lerem esta Quarta Década

Sabendo el-Rei Nosso Senhor que deixara João de Barros imperfeita a Quarta Década da sua Ásia, querendo fazer mercê a Portugal, ao nome de João de Barros e a mim, me mandou que a reformasse e imprimisse; para que, renovando-se a memória de um tam celebre historiador com esta sua obra póstuma, per meio dela revivesse a fama dos feitos que os Portugueses com grande valor obraram naquela parte da Ásia, que com o tempo se ia escurecendo. Para este efeito me mandou entregar S.M. dez cadernos, que se acharam dos dez livros desta Década, rotos, faltos, escritos a pedaços de vária letra, e tam imperfeitos, como trabalho de que era aquele o primeiro pensamento, e em que só se pusera a primeira mão. E assi faltavam folhas, havia outras em branco, sobejavam cousas muitas vezes repetidas, estavam outras fora de seu lugar, dava-se larga relação de algυas, que não pertenciam a esta História, mui breve notícia de outras importantes, e nenhυa de sucessos notáveis, que autores em seus livros escreveram. Descuidos que não houvera nesta obra, se a João de Barros durara tanto a vida, que a pudera rever e acabar, como outras por ele prometidas, com que ficara o seu nome muito mais celebrado entre todas as nações, do que merecidamente é hoje polas três Décadas que deixou impressas. Polo que com mais trabalho e maior estudo reformei esta Quarta Década, que se de novo a compusera: porque (imitando quanto me foi possível o estilo de João de Barros) acrescentei, com aprovação de um ministro de S.M. a que se cometeu, capítulos enteiros, grandes pedaços em outros (que tudo vai notado com comas), cortei, antepus e pospus alguns e cláusulas enteiras, para melhor disposição do que neles se tratava, omiti o desnecessário e repetido, e ilustrei com notas as margens para maior notícia das cousas escritas per João de Barros e das em que autores dele diferem. E porque nenhυa cousa dá tam perfeito conhecimento das descrições das Províncias, como o desenho delas, das que nesta Quarta Década descreve João de Barros (em que excedeu a todos os geógrafos), ordenei três tábuas da Ilha de Jaua, dos Reinos de Guzarate e Bengala, segundo a mente do Autor e as melhores informações que destas regiões pude alcançar. Muitas outras cousas reformei de menos consideração, como foram alguns vocábulos, que se usavam em tempo de João de Barros, que o mesmo tempo tem desusado. Mas na Apologia que ele fez, em lugar de Prólogo, a qual achei entre outros papéis enteira e escrita de sua mão (que o não eram os dez cadernos) não mudei nem υa coma, por conservar intacto o que este excelente varão e honra de Portugal deixou acabado; nem inovei os nomes da arte militar e fortificação, por continuar com os mesmos nesta Quarta Década, de que ele usou nas três. As quais se se tornarem a imprimir, nelas se poderão pôr, como em lugar próprio, as notas e tábuas geográficas, que nesta se não puseram, por não ser seu.

Apologia de João de Barros em lugar de Prólogo Havendo cinquenta e tantos anos, que o descobrimento e conquista do Oriente se continuava, sem os obrigados per ofício de cronistas e per salário dele darem à memória tam gloriosos e ilustres feitos, como meus naturais naquelas partes tinham acabado e prosseguiam com tanto louvor seu, parecia-me que, se eu acudisse a este descuido, tomando cuidado de as pôr em escrito, poderia merecer à minha Pátria nome de zeloso da glória dela. Mas pois o tempo veo a tal estado, que aos obrigados a fazerem algua cousa, menos culpa se lhes dá quando a não fazem, que àqueles que a fazem sem ter a tal obrigação, necessário é que andemos com a mesma abusão do tempo, e que, em lugar do Prólogo desta quarta e última Década, façamos Apologia e defensão nossa para todas. Isto não por responder a alguns competidores, como se aqueixava Terêncio nos seus prólogos apologéticos, pois, louvado Deus, nesta parte de competir neste nosso trabalho, pacífica é a terra, mas para nos desculpar a quatro géneros de homens censores dele. E é cousa nova, porque toda obra pubricamente feita, sempre teve três géneros de juízes: ignorantes, doutores, maliciosos; peró ser acusado de parentes e amigos, este quarto género aconteceu somente a nós. Aos primeiros demos nós causa em parte, mas não em todo. Porque em a Primeira Década, e des-i na segunda, que υa após outra tirámos à luz com tenção de irmos emendendo nestas duas últimas o que fosse notado nas primeiras, vieram os ignorantes, e não se contentaram de emendar o sapato a que somente chegava o seu juízo, mas, como fez o sapateiro de Apeles, quiseram entender na cabeça. Os doutos (não falamos naqueles que o são em sólida doutrina, mas nos que seguem a mais baixa parte dela) tomaram o ofício de um médico, o qual quis condenar outra tábua de pintura, que um grande pintor, à imitação de Apeles, também punha suas obras à porta a púbrico juízo; porque não somente apontava na fisionomia do rosto, postura da pessoa e simetria dos membros - partes que lhe competiam pela profissão que tinha -, mas ainda condenou a pintura em outras fora do seu mester, por mostrar que em tudo sabia. A qual cousa não podendo sofrer o pintor, saiu donde estava ouvindo estes juízos, e disse ao médico: - As minhas obras julgam-se, porque se vêem, e as vossas não, porque as meteis debaixo da terra, onde as ninguém pode ver - motejando dele, por matar muitos enfermos com a sua errada cura. Os maliciosos, que é o terceiro género, nunca se prezam de dar na capa, todo o seu golpe é tirar ao rostro; ca não se contentando de apontar vícios da obra, condenam a pessoa em mais grave crime, dizendo que não somente merecemos ser taxado pelos erros da escritura, mas ainda devemos ao ofício que servimos todo o tempo que tomamos para estas nossas abusões (que assi lhe chamam eles); pois leixamos a obrigação e tomamos o alheo cuidado; ca, segundo a casa que servimos é υa roda viva, que não dá espaço pera cousa fora de si, não se pode borrar tanto papel senão cometendo roubo do tempo que devemos à causa, e já pode ser que daqui procederá não nos dar ela tanto de si e do seu, quanto tiveram dela aqueles a que nós sucedemos. Os parentes e os amigos, cuidando que fazem ofício piedoso, vêm a ser mais crueis que os outros, pois tocam na alma ao modo dos amigos de Job, por verem que o estou eu em sustância de fazenda, em comparação dos vezinhos e concorrentes no ofício; dizendo que sou melhor ama que madre, pois sei criar aos meus peitos e braços os negócios alheos e os próprios leixo sem criação; que seria melhor estudar no que o geral da gente estuda, e prudente faz - como com o favor do ofício que sirvo e indústria de minha pessoa poderei fazer de um dez pera manter dez filhos que tenho e ordenar-lhe vida, com que não fiquem por portas, que fazer livros e tratados, que a eles e a mim não tratam bem. Porque, como no tempo de agora, e principalmente neste Reino, aquele é havido por mais prudente e pera maiores negócios, que mais artifícios e manhas busca pera se aproveitar do que traz entre as mãos; este é o modo da vida que se deve seguir, pois dá todo o ser

dela em crédito, honra e fazenda. E quem se afastar desta geral estrada, além de perder o caminho, irá cair no mais fundo lugar que tem a penitência, quando se achar no fim da vida com as mãos vazias; e principalmente empregando tanto tempo e trabalho em escrever memórias alheas, por vaidade de ter algυa, com a qual causa damos matéria de riso e zombaria àqueles que professam ofícios públicos, como este nosso, ao qual somos obrigados, e não a mais. Ca, segundo amoesta S. Paulo, cada um é obrigado permanecer naquela administração pera que foi chamado, quase como que nos quer dar entender que entender em mais é abusão, cousa mui abominável ante Deus. Quanto mais que ainda pera conseguir esta nossa inclinação, que é desejar saber ou ser estimado por sabedor, os autores dos mesmos livros, per que nós estudamos, clamam que primeiro convém ter, e isto aconselha Aristóteles, dizendo: É necessário primeiro enriquecer, depois filosofar. Porque, como ele tinha experimentado, enquanto andou per casas de príncipes, ser género de cativeiro esperar suas esmolas, trabalhou pera enriquecer muito pera as não mendicar deles, e pera melhor poder estudar. E segundo seu estado, foi tam sobejamente rico, que de rostro a rostro o tachou disso um grande filósofo pársio, que o veo ver à Grécia por sua fama (segundo os Pársios escrevem em suas crónicas), ao qual ele respondeu, que não era rico por deleitação de ter riquezas, mas porque não queria que ignorantes príncipes fossem senhores dele per bens de Fortuna, pois ele era senhor dos mesmos príncipes per dotes de entendimento. Ca era cousa contra Natureza ser a ignorância senhora da ciência, e à pobreza cativa a liberdade do engenho na ocupação do necessário. E daqui disse Juvenal, que farto estava Horácio, quando em υa sátira disse: Ohe, e que se a Virgílio lhe falecera o necessário pera se manter, não pintara ele tão poeticamente a fúria infernal chamada Erínis. E de se haver por máxima de prudência entre os prudentes que mais convém ter pera saber, que saber pera ter, - trabalhou Seneca por adquirir tanta fazenda, que se escreve valer a sua sete contos e meio de ouro em nossa moeda. Pois se estes dous príncipes de toda a doutrina natural e moral - Aristóteles e Seneca foram tam ricos como cientes, pera que se deve abonar outra filosofia, senão a sua, que está fundada sobre ter - e venha donde vier? E tratando também o Poeta Menandro esta matéria, diz: «Epicarmo disse serem deuses os Ventos, o Sol, a Terra, a Água, o Fogo, as Estrelas; mas eu cuido serem deuses mais proveitosos a Prata e o Ouro; ca, se tiverdes estes em casa, pedi o que quiserdes, que tudo alcançareis - herdades, casas, servos, baixelas, amigos, juízes, testemunhas; até os mesmos deuses quem despender terá por ministros». Finalmente, com estas e outras amoestações, que nos fazem os amigos e parentes, assi andamos atormentado no espírito e assombrado do castigo de suas palavras, que não temos que responder, senão converter nossa consideração ao estado do Mundo, e ver quam cheo está de conselheiros e quam mingoado de remediadores de alheos trabalhos, ainda que o possam fazer; porque em dar palavras per conselho, todos querem ganhar honra de prudentes; e em remediar com adjutório de sua própria fazenda, poucos a soltam da mão. E pois que assi é - que todos querem bem dizer e poucos bem fazer, e ainda sobre isso condenar vidas e obras alheas, fazendo-se censores e juízes das cousas em que não tem jurdição, que é da tenção que cada um tem no que faz, a qual jurdição é de Deus, e esta tenção é a que dá nome à obra de boa ou má, (segundo diz Santo Ambrósio) - necessário é, pera nos salvar destes juízes e censores, prosseguir adiante com nossa defensão, e continuaremos nela com outra pintura de mais vivas figuras, que as duas passadas, a qual damos per resposta aos maliciosos, por ser do mesmo Apeles também em defensão de sua pessoa. Sendo ele acusado ante el-Rei Ptolomeu per Antipsonte, seu próprio discípulo, pintou υa táboa com estas figuras: um homem assentado com grande majestade e compridas orelhas, à maneira de como pintam el-Rei Midas, o qual homem dava a mão, que viesse a ele, a υa mulher chamada Calúnia, que é a falsa acusação, e logo junto dele, juiz, estavam duas mulheres, que eram a Ignorância e Suspeita; e a figura Calúnia, estava mui afeitada per mãos de duas moças, que tinha junto de si, chamadas Traição e Insídia, que espreita vidas alheas; a qual Calúnia estava mui furiosa e indinada, tendo na mão esquerda υa facha de fogo ardendo, e com a dereita tinha um mancebo

pelos cabelos, o qual com as mãos levantadas ao Céu pedia a Deus socorro; e diante da Calúnia ia υa mulher já mui velha, disforme em figura, e torpe e vil em hábito, que via muito, chamada Enveja; e um pouco afastada dela vinha υa mulher mui chorosa e coberta de negras e rotas vestiduras, que havia nome Penitência, a qual com a rostro virado para trás e com choro e vergonha olhava a Verdade, que vinha contra ela um pouco longe e de vagar. Com a qual pintura, em que Apeles representou todo o discurso de sua acusação, e as causas dela, e a verdade sabida, não somente foi julgado por inocente, mas ainda, pela avexação que recebeu, el-Rei lhe mandou dar cem talentos, que da nossa moeda poderão ser sessenta mil cruzados, e assi lhe mandou entregar o acusador por cativo. Nós, porque não somos acusados do aleive que era posto a Apeles, não esperamos a satisfação que lhe foi dada per el-Rei Ptolomeu, somente queríamos satisfazer aos maliciosos e caluniadores. Mas porque per ventura eles não ficarão satisfeitos com esta pintura de Apeles, em que ele pintou os afeitos dos maliciosos per figuras humanas, ao contrário neste papel pintaremos a figura de um animal, que tem os afeitos e condição deles; per ventura pola conformidade que tem, lhe será mais aceita que a de Apeles. Este animal a maior parte do seu instinto tem na ponta do nariz, e per faro quere rastejar e inquirir a verdade das cousas sem as ver, e latindo alta e apressadamente, assi afirma a mentira, como a verdade; de maneira que, muitas vezes, o senhor dele, enganado per seus latidos, chega mui cansado, cuidando que lhe tem encovado um coelho, e acha um lagarto. Tem mais per condição renger per enveja, ladrar per ódio, morder per vingança, e o que pior é, que ninguém lhe sabe em que parte há de assessegar e quietar seu espírito; porque, quando o quere fazer, anda redondo, até que se enrosca à maneira de cobra; e de eles não terem certa cabeceira, disseram os gregos aquele provérbio: Aos cães por demais é poer-lhe almofada por cabeceira. Estes cães (como S. Jerónimo chamava aos seus perseguidores), se lhe não contentar esta cabeceira que lhe fizemos pera assessegarem de seus ladridos, polos imitar tomem estes nossos, que lhe damos em resposta; dizendo que, quanto ao roubo do tempo, que eles dizem ser da obrigação do ofício, não a eles, mas ao próprio ofício pertencem os queixumes do tempo, se fosse verdade que lho roubássemos; mas pois ele os não faz, parece que lho não merecemos. E se no mesmo ofício não temos tanto ser como eles dizem que teveram aqueles a que nós sucedemos, não será porque ele tevesse neles mais do que tem em nós, mas porque eles teveram dele mais do que nós tevemos, e a causa fique pera outro lugar, porque aqui não o sofre o tempo ser manifesta. Porém respondendo ao que compete à nossa parte, louvado Deus, chea temos a nossa obrigação, e nunca por ela seremos citados com justiça; pois não somente guardamos os regimentos e leis que nos a mesma casa deu de como a havíamos de servir, e estendemos nosso juízo e poder a tanta parte, quanta ela quis que tivéssemos dela os dias feriais, que são seus, como fizeram aqueles a que nós sucedemos; mas ainda os festivais e noites, que são devidas ao repouso da humanidade, empregamos em a servir em obras do mesmo ser dela, de que eles nem outrem até ora lançou mão; porque as três partes em que consiste todo seu ser, estado e glória, ordenamos em outras tantas de escritura. A primeira (como no princípio dissemos) é esta, que trata da Milícia; a segunda a Geografia do conquistado e descoberto; e a terceira do Comércio, que é o fim das duas. Pois se tomarmos cuidado não somente de dar conta das cousas que tocam ao comércio da Índia e Guiné, como fizeram nossos antecessores; mas além desta parte (perdendo o sono) tomamos estoutro novo trabalho de escrever os comentários de sua glória e nome que tem acerca de tôdalas gentes, nos faz perder os méritos do próprio ofício; Deus, que julga as obras e as tenções de cada um, julgue as nossas, pois o juízo dos homens está mais pronto em julgar a outrem que a si mesmo. Porém contra aqueles que mal sentem deste nosso trabalho, isto podemos afirmar: que as obras cujo fim é algum bem comum, passada a murmuração, ficam elas vivas e a memória de seu autor, por mais dentadas que em vida lhe dêm. E se as materiais têm esta regra, que será naquelas per que (diz Túlio) passam as cousas e ficam as escrituras? Porque esta lei tem os bens do entendimento - não serem sujeitos a nenhum infortúnio, e os da Fortuna a muitos; da qual regra, que o tempo tem mostrado per todo o seu discurso, nos fica υa certa esperança (seja-nos lícito gloriar de

nossos trabalhos, e não atribuído à arrogância, posto que, como diz Valério Máximo, não há i tanta humildade, que não seja tocada de glória) que virá tempo em que seremos julgado por homem mais zeloso e diligente no cuidado do bem e glória da Pátria, que da própria pessoa. Pois pola Pátria, no tempo que os outros cá e lá andam a quem se carregará de mais fardos às costas dos despojos da Índia, nós tomamos cuidado de levantar a bandeira dos triunfos dela, que estes carregados leixaram jazer desemparada e esquecida com a ocupação e pressa que cada um em seu modo traz de salvar a prea de que lançou mão, por lhe mais importar o próprio interesse, que a glória comum da Pátria. A qual bandeira, mediante o adjutório divino, sem favor ou esforço de quem o podia dar, e nós o esperávamos, e sem temor da artelharia daqueles, que sempre encarou em nossa face, que muitas vezes se fez vermelha com motes e zombaria, que é um péssimo género de injúria, nós, cabeça baixa e paciente, com o peito per terra como leal vassalo, sem o temor de tanta língua, não descansámos até a ter arvorado à vista de todo Mundo nestas quatro Décadas, que é o discurso de cento e vinte anos de história, melhor recebida de estrangeiros que aprovada e agradecida dos naturais. E posto que já démos por testemunha o próprio ofício que servimos, não lhe ser em obrigação do tempo que gastamos nesta escritura, e querem saber qual é logo o tempo em que borramos tanto papel, como temos gastado nesta obra e em outras que já nos saíram da mão, por lhe tirar este escrúpulo do peito o queremos fazer, contando aquele caso que escreve Plínio aquecer a Fúrio Cresino Liberto: Este Cresino tinha junto de Roma υa pequena herdade em que lavrava e de que se mantinha, e, por lhe responder com mais novidade do que haviam seus vezinhos das grandes herdades que lavravam, movidos de enveja, foi per eles acusado, dizendo que per encantamentos das propriedades alheas roubava as novidades pera a sua. E como era lei das Doze Táboas que todo feiticeiro e venéfico morresse, quando veo o tempo que ele, Cresino, se havia de apresentar em juízo, a que era citado por este caso, levou consigo os bois, arados, enxadas e todo outro instrumento de sua lavoura, e υa filha baroíl, que o ajudava neste trabalho. Perguntado pelo juiz que desse razão de si acerca do que era acusado, disse: - Eu, Senhor, não posso trazer aqui os dias, as noites e o suor de meus trabalhos de todo o ano; somente trago os instrumentos deles, que são estes que aqui apresento, puídos e gastados de minhas mãos, com os quais eu encanto a minha propriedade e faço que me responda com fruito. Se meus vezinhos, que me acusam, fizessem outros tais encantamentos às suas propriedades, elas lhe responderiam como a minha faz a mim. Com a qual razão demonstrada à vista, vendo o juiz que a acusação contra Cresino procedia de enveja, o houve por absoluto dela. Se nós também houvéssemos de trazer aqui as vigílias da noite, o não dormir sesta, nem passear pela cidade, nem ir esparecer ao campo, nem andar em banquetes, nem jogar, caçar, pescar e lograr outros passatempos que leixamos de fazer por condição, fôssemos com estes instrumentos ante o juiz de Cresino, per ventura absolveria a nós e condenaria a quem nos acusa, polos achar compreendidos em algυa destas cousas que apontamos, usando-as eles mais sobejamente do que convém à qualidade e idade de suas pessoas; pois, segundo a lei diz, convém à República que cada um use bem de si e do seu. E se o juiz de Cresino não bastar pera nos absolver, por ter pouca autoridade, absolvam-nos estes príncipes com a muita que tiverem: Júlio César com os livros da Analogia da Língua Latina e um poema chamado Caminho, que compôs ambos fazendo dous caminhos de Itália pera França e Espanha, indo em andas; e absolva-nos Carlos Magno com υa Arte de Gramática, que compôs da língua alemã; e absolva-nos o Papa Pio com a Geografia que fez, desculpando-se por tratar daquela matéria e não de outra conforme a sua dignidade; e absolva-nos el-Rei D. Afonso de Castela com as suas Távoas dos movimentos dos Orbes celestes, chamados de seu nome Alfonsis, e com υa Geografia, que compôs, de toda a Espanha; e absolva-nos o Emperador Carlos Quinto com seu Comentário da Guerra de Alemanha e outras obras que ainda não saíram à luz, posto que a primeira vai entitulada em quem lhe serve de escritor e revedor delas, por o grande juízo que tem em a censura da composição da História. Pois se estes príncipes e outro grande número deles, que leixamos de nomear por não fazer comprido catálogo, os quais em majestade, potência, cuidados, negócios, ocupações e juízo diferem

do nosso sem comparação algυa, não perderam em compor as tais obras o tempo de sua obrigação, e se prezaram de o gastar em tinta e papel, por mostrarem que tanto com eles partira a Natureza dos bens do entendimento, quanto a Fortuna de suas prosperidades, e este exercício é a eles louvor de glória; em nós porque será vitupério de infâmia? Porque não somente estes príncipes em si mesmo aprovaram prevalecerem estes bens do engenho aos da Fortuna, mas ainda em outrem o aprovou e confirmou o Emperador Maximiliano, no que disse por Alberto Durero, que foi ora em nossos tempos um dos excelentes debuxadores de toda a Europa. O qual, vindo muitas vezes ante ele com algυas obras que lhe fazia, principalmente com um pórtico que nós temos, em que está toda a sua genealogia e feitos de guerra que fez em sua idade, o Emperador lhe fazia muita honra, de que sentiu ele que algυas pessoas ilustres, que eram presentes, motejavam disso, contra os quais ele disse: - Sabeis vós outros porque faço tanta honra a Alberto? Porque as partes que ele tem, por cujo respeito a merece, deu-lhas Deus e a Natureza, e de mim não tem algυa cousa; e vós outros as que tendes são minhas, ca não me custastes mais que assinar um pequeno papel para vos dar o ser que tendes. E os príncipes que fazem honra aos homens, em que Deus pôs algυa particular e extremada graça, honram a Deus na honra que lhe fazem, por ser obra sua; e quando honram àqueles que eles fizeram, ficam idólatras de seus próprios feitos, como Pois se um Emperador confessa que pode fazer duques, condes e dar grandes estados com assinar um pequeno papel, e não é poderoso pera fazer um Alberto pintor, quem tiver algum talento de Deus, ainda que não seja tal como o de Alberto, porque não dará à usura? Ca per ele será constituído na outra vida em maiores bens, como fiel servo (segundo o Senhor em seu Evangelho promete), quando as obras se ordenam em seu louvor e proveito comum. E o galardão que haverá nesta vida será que, se o autor delas for ante Maximiliano César, se lhe não fizer a honra de Alberto, ao menos responderá por ele àqueles que o desprezarem. E per esta maneira dá-se a Deus o de Deus e a César o seu, e os maliciosos ficarão confusos na maldade de seus argumentos. Quanto à resposta que ainda devemos aos parentes e amigos por as culpas que nos dão, peró que as suas grandes amoestações, com que nos quiseram castigar (seguindo nelas o intento do Mundo presente), pediam comprida resposta, pedimo-lhe que nos hajam por escuso dela, e eles por pagos com esta história que Aristóteles traz no primeiro livro de sua Política, pois, per exemplos, vou neste modo de responder a todos. O filósofo Tales Milésio era mui zombado dos outros filósofos, vendo que a filosofia natural, a que se ele dava, não era de muito ganho e proveito. Tales, por tirar este opróbrio e infâmia à filosofia, vendo pela astrologia que o ano vindouro não havia de haver novidade de azeite, esse pouco dinheiro que tinha deu em sinal de υa grande cópia dele, que comprou; e vinda a novidade, pola carestia dele vendeu o que tinha comprado por υa grande soma de dinheiro, o qual a mostrou àqueles que zombavam dele, dizendo: Que a filosofia natural não leixava de enriquecer aos que se davam a ela, senão porque eles enjeitavam as riquezas; e com esta demonstração animou muitos ao estudo dela e a seguirem a sua doutrina. Nós nesta nossa inclinação (ou como lhe cada um quiser chamar), posto que não sejamos Tales pera saber o que está por vir, pelo passado per nós, e que passa cada dia pelas mãos, também poderíamos comprar do azeite com que alumiasse a mim e a meus filhos, por não andarmos tanto às escuras do Mundo como andamos. Porém, como esta claridade de azeite tem um certo termo de luz, que é até à sombra da morte, e mais por ser de azeite leixa às vezes nódoas que duram eternamente, quando aparecer um tratado nosso intitulado As abusões do tempo, em que particularmente escrevemos as nossas abusões, de que nos taxam, e as que vimos usar ao mesmo tempo, então se verá se permaneceu cada um na vocação a que foi chamado, e se leixou a própria pola imprópria a seu estado, ofício e hábito. Porque, como com esta autoridade de S. Paulo nos quiseram arguir que leixávamos a obrigação de nosso ofício por este de escrever voluntário, a mesma autoridade havemos de tomar por tema contra aqueles que jazem nesta culpa, sem terem algum exercício proveitoso à República, ou se o tem, se leixam o mais polo menos. E também então se verá porque

imitamos antes a doutrina de Tales que o seu azeite, que é o voto de nossos parentes e amigos, cuja é esta resposta. E verdadeiramente Deus é testemunha que nenhυa destas quatro sortes de escândalo a que respondemos, obrou tanto em nós, que por ele recebêssemos mais trabalho que este de responder a todas; peró não me poder aqueixar de um certo género de pessoas que não falam bem nem mal, no juízo das quais nós tínhamos posto o prémio de nosso trabalho, aqui se perde toda a paciência, sem a poder soltar do ânimo pera fora; por este calar deles ser υa obra crua e péssima, e de maior dor e tormento, que se pode dar a um homem. E pois com calar e outras cousas, a que não ponho nome por reverência dos seus nomes, nos pagam nosso trabalho, este só prémio queremos dele ante aqueles que o aceitaram de boa vontade: saber que, tendo nós ante os olhos estes desenganos, pôde mais o amor da Pátria que o seu galardão. E porque nós não queríamos dar nem receber escândalo de alguém, nem menos ouvir queixumes de alguns que em nossa escritura demos muito louvor a uns e não tanto a outros, e que em υa parte fomos largo e em outra curto, e que escrevemos os bens que cada um fez, e não os males e roubos; e assi dizem outras palavras a que propriamente podemos chamar fastios de gente enferma de doença de ingratidão, pedimos por mercê a estes enfermos a que nosso trabalho não aprouve, que lhe apraza de nos perdoar o que até aqui tomámos por eles, cuidando de lhe ser aprazível, e nós os não enfastiaremos mais com outra escritura nossa. E não nos hajam per homem que não cumpre com sua palavra, pois no princípio desta escritura prometemos escrever as cousas que eles fizeram em Europa e África; porque, quando fiz tal promessa, parecia-me que podia achar em meus naturais aquela aceitação que Lucílio achava nos seus consentinos e tarentinos, pera os quais ele dizia somente escrever, e não pera estranhos. Mas pois meus naturais com suas palavras me desobrigam das minhas, não me podem obrigar pola lei da obrigação delas; pois a mesma lei quer que não haja obrigação onde não há aceitação. E porque nesta parte estou mais obrigado aos estranhos que a eles, por lhe serem meus trabalhos mais aceitos, pera os satisfazer no que esperam de mi, converto a minha pena a estes que me querem, escrevendo a Geografia de todo o Orbe descoberto e as gentes dele, imitando neste propósito a S. Paulo (se é lícito usar das grandes cousas pera exemplo das pequenas); o qual, vendo que os Hebreus, seus naturais, a quem ele primeiro que às outras gentes era obrigado denunciar o Evangelho, não o quiseram aceitar per ele, disse: Ecce convertimur ad gentes.

LIVRO I 1 1 11 Capítulo Primeiro. Como foi aberta a sucessão, de quem havia de suceder a D. Henrique de Meneses, e se achou que Pero Mascarenhas; e por ele estar ausente, sucedeu Lopo Vaz de Sampaio. Depois que o governador D. Henrique de Meneses foi sepultado na Capela de Santiago, da Igreja de Cananor, onde faleceu a 23 de Fevereiro do ano de 1526, como escrevemos no último capítulo da Terceira Década, abriu o secretário, Vicente Pegado, a segunda sucessão das três que levou à Índia o Conde Almirante (1) D. Vasco da Gama, quando foi por Viso-Rei daquele estado, e nela se achou nomeado Pero Mascarenhas, que estava em Malaca havia um ano por capitão daquela fortaleza. Ficaram mui confusos com esta nomeação os fidalgos presentes; porque Pero Mascarenhas não podia ser avisado senão em Maio, tempo 2 2 da moução em que se navega da Índia para aquelas partes, e delas não podia ele vir à Índia senão na outra moução do ano seguinte: largo prazo para ter a Índia o seu Governador ausente, quando estava de guerra com os reis de Calecute e Cambaia, e com novas certas que no Mar Roxo aprestava o Grão Turco Soleimão ua armada para deitar da Índia os Portugueses, pelo que convinha tomar breve resolução no modo do governo. Esta dependia de vários pareceres, porque votaram que se nomeassem regentes que governassem, 12 enquanto não viesse Pero Mascarenhas; a outros pareceu que se abrisse a terceira sucessão e que governasse quem nela viesse nomeado, jurando solenemente que, vindo Pero Mascarenhas, lhe entregaria o governo; e que ao mesmo se obrigassem com semelhante juramento Afonso Mexia, vedor da Fazenda, o licenciado João de Osouro, ouvidor geral, D. Simão de Meneses, capitão de Cananor, D. Vasco de Eça, D. Henrique de Eça, Rui Vaz Pereira, António de Miranda de Azevedo, D. Afonso de Meneses, D. António da Silveira, Manuel de Brito, António da Silva, Lopo de Mesquita e Diogo de Mesquita, seu irmão, Diogo da Silveira, Manuel de Macedo, D. Vasco de Lima, Martim Afonso de Melo Jusarte, D. Jorge de Meneses, D. Jorge de Castro, Francisco de Taíde, e outros fidalgos que estavam presentes. Contrariavam alguns este voto, e principalmente D. Vasco de Eça, dizendo que abrir-se a terceira sucessão, vivo o Governador nomeado pela segunda, era contra o serviço del-Rei e suas provisões, e grande inconveniente, sabendo-se tanto antemão quem havia de suceder ao Governador, que ainda não entrara no governo; e que o que o tivesse, o não quereria largar a Pero Mascarenhas, quando viesse de Malaca, de que resultariam grandes diferenças e inquietações. Mas não aprovando Afonso Mexia este acertado parecer de D. Vasco, acabou com todos os mais fidalgos que a terceira sucessão se abrisse; causa das discórdias que depois houve na Índia, que, a serem menos leais os corações portugueses, passaram a ua guerra civil, com que aquele Estado se perdera. Parece que lhe revelou o Espírito os futuros desassossegos ao Governador D. Henrique de Meneses; porque, dous dias antes que morresse, por não faltar em cousa algua ao serviço del-Rei, fazendo ua prática aos fidalgos 3 3 sobre as cousas que tocavam ao governo da Índia, lhes disse, que, porque poderia estar ausente a pessoa que lhe houvesse de suceder, ele deixava nomeada outra em um papel cerrado, a qual afirmava que tinha as qualidades necessárias para governar, enquanto o seu sucessor não viesse.

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Era este fidalgo Francisco de Sá, Capitão de Goa, a quem bastava a aprovação do Governador para ocupar merecidamente maiores cargos. Mas esta provisão, por respeitos particulares, não apareceu; que se fora vista e se fizera o que D. Henrique nela deixava ordenado, por ventura que se não arriscara o Estado da Índia, nem as partes principais e autores dos tratos cautelosos, que nesta nomeação houve, não foram depois acusados e castigados. Determinados pois os fidalgos que se abrisse a terceira sucessão, juraram todos como estava assentado que obedeceriam a Pero Mascarenhas, logo que viesse de Malaca, e não à pessoa que governasse pela terceira sucessão, a quem obrigariam que entregasse o governo da Índia a Pero Mascarenhas. 13 Feito de tudo um auto pelo secretário Vicente Pegado, em que todos assinaram, abriu ele a terceira sucessão, (2) na qual el-Rei nomeava a Lopo Vaz de Sampaio para governar a Índia por morte de Pero Mascarenhas.(3) Afonso Mexia, a quem por razão de seu ofício tocava o cargo destas sucessões, com os oficiais e pessoas que se acharam neste auto, se partiu para Cochi, onde Lopo Vaz estava por capitão; e chegados em breves dias àquela cidade, lhe entregaram o governo da Índia condicionalmente, para ele o entregar a Pero Mascarenhas quando viesse, e assi o jurou Lopo Vaz nos Evangelhos com toda a solenidade, de que se fez outro auto, que ele assinou com os fidalgos atrás nomeados, os quais com novo juramento retificaram o que juraram em Cananor. Entregue Lopo Vaz de Sampaio da governança, a primeira cousa que fez foi dar a capitania de Cochi a D. Vasco de Eça, filho de D. João de Eça, irmão de sua mulher, e despachou a Jorge Cabral (como D. Henrique tinha mandado) para as Ilhas da Maldiva às presas das naus dos Mouros, que, fugindo da costa da Índia com temor das nossas armadas, intentaram aquela nova navegação, para de Cambaia e do Estreito do Mar Roxo irem e virem a Bengala e a Samatra. Ficando estes capitães para Afonso Mexia os prover do necessário, e irem fazer suas viagens, 4 4 Lopo Vaz se partiu logo com ua frota de sete velas para ir correndo a costa e acabar de a alimpar dos ladrões que a infestavam. Foram os capitães desta armada D. Vasco de Lima, na galé bastarda em que ia o Governador, Manuel de Macedo, Henrique de Macedo, seu irmão, Diogo da Silveira, Manuel de Brito, Diogo de Mesquita, Lopo de Mesquita, seu irmão, e António da Silva de Meneses, que era vindo de sondar a barra de Dio, onde D. Henrique o mandou, com cuja morte feneceram todos os apercebimentos que ele aprestava para aquela empresa. Correndo Lopo Vaz de Sampaio a costa, tomou Cananor, e ali recebeu cartas de D. Jorge Telo e de Pedro de Faria (que estavam sobre a barra de Bacanor), com aviso que tinham dentro encerrada ua grossa armada do Samori, a qual os Mouros refaziam a muita pressa para navegar a Cambaia, ao que eles não poderiam resistir por ser grande o número dos navios e gente. Lopo Vaz, lidas as cartas e considerado o poder dos inimigos e o pouco que levava (que não passava de setecentos homens), despachou um catur mui ligeiro para Goa a chamar António da Silveira e Cristóvão de Sousa, que com os seus galeões se viessem para ele, e os esperava na barra 14 de Bacanor; e mandou a Manuel de Brito que se adiantasse, e com o seu galeão se fosse juntar com D. Jorge e Pedro de Faria, escrevendo-lhes que procurassem não saísse fora a armada inimiga, enquanto ele não chegava com a sua; e provendo-se de mais bastimentos e munições, partiu para Bacanor.

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Notas (1) Foram estas as primeiras sucessões que el-Rei D. João mandou à Índia; a de Pero Mascarenhas foi feito em Évora, a 10 de Fevereiro de 1524. (2) O alvará desta sucessão de Lopo Vaz foi feito em Évora a 26 de Fevereiro de 1524. (3) Fransisco de Andrade diz que a sucessão de Pero Mascarenhas se abriu em Cananor, donde viera de Cochi Lopo Vaz de Sampaio com o aviso da morte de D. Henrique; e que de Cananor se foram todos a Cochi, onde se abriu a sucessão de Lopo Vaz. Capítulo I e II da segunda Parte.

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4 4 14 Capítulo II. O Governador Lopo Vaz de Sampaio cometeu a armada do Samori, que estava no rio de Bacanor, e houve dos Mouros ua grande vitória. Avisado Cotiale, capitão-mor da armada malavar, da partida do Governador de Cananor, e que ia com tenção de pelejar com ele, não se atrevendo a sair do rio de Bacanor com temor dos três galeões que estavam sobre a barra, determinou de o esperar em terra, onde lhe pareceu que tinha a vitória certa, se nela quisessem cometer. Para o que 5 5 se apercebeu, retirando os seus navios quanto pôde pelo rio dentro, para lhe não poderem chegar os nossos; e de ua e de outra parte do rio mandou fazer grandes e fortes tranqueiras de madeira, terraplenadas, com que estreitou muito o canal, e nelas assentou muita artelharia, para que não passasse embarcação sem perigo certo de ser metida no fundo; e de tranqueira a tranqueira atravessaram viradores grossos cobertos de água, em que, encalhando as embarcações, entesando-os, sossobrassem. Lopo Vaz, chegando a Bancanor, depois que soube que os Mouros estavam bem fortificados e que seriam mais de dez mil, determinou de entrar o rio e pelejar com eles, posto que lho contrariaram os capitães, representando-lhe grandes dificuldades; as quais não o mudando de seu parecer, quis reconhecer per si mesmo a fortificação dos inimigos, não se confiando de outrem. E assi o dia seguinte ante menhã, por fazer bom luar, com três catures - ele em um e nos dous Paio Rodrigues de Araújo de Barros e Manuel de Brito, capitães mui esforçados, que foram de voto que pelejassem - entrou pelo rio dentro, e per ua chuva de pelouros da artelharia das tranqueiras que os Mouros, sentindo os catures, dispararam sobre eles, foi o Governador reconhecendo tudo, e sem dano algum voltou com igual perigo. E porque Paio Rodrigues cortara à entrada um dos viradores que das tranqueiras estavam atravessados, mandou Lopo Vaz cortar todos para desimpedir o caminho às nossas embarcações. E sabendo que naqueles dez ou doze mil homens que ali estavam para defender os paraus, 15 havia alguns cinco mil naturais da terra, e ela era del-Rei de Narsinga, que tinha paz e amizade com el-Rei de Portugal, mandou dizer a estes, que se espantava tomarem armas contra os Portugueses em defensão de seus inimigos; que ele lhes requeria da parte de ambos os Reis, e por a paz que tinham assentada, que se apartassem daquela gente; porque determinava de a ir castigar, e não queria ofendê-los a eles, pois os tinha por amigos. Ao que responderam que não estava em razão desempararem uns homens que se a eles acolhiam, e que muito mais ofenderiam a el-Rei, seu Senhor, em os desemparar, que em ofender a quem algum dano e mal lhes quisesse fazer. Estas e outras diligências fez Lopo Vaz de Sampaio primeiro que 6 6 cometesse aquele feito. O qual, posto segunda vez em conselho, foi mui contrariado, pondo-lhe muitos inconvenientes, um dos quais, e o mais importante, era ser aquela terra del-Rei de Narsinga. E posto que ele tivesse feito aquele comprimento com os seus naturais, como dezia, recebendo eles algum dano, ficavam os portugueses que estavam em Narsinga arriscados a lançar el-Rei mão per suas pessoas e fazendas; e nesta sua saída em terra não se ganhava mais que tomar uns poucos de paraus e de pimenta. E que não era serviço del-Rei por tam pouco interesse aventurar tanta nobreza de gente e a frol da Índia, que ali estava. Não se fundava este voto em covardia (que bem entendiam os que o davam que cousas maiores podia empreender o Governador e os capitães que o acompanhavam), senão enveja do

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valor de Lopo Vaz de Sampaio, cujos émulos eram muitos deles, presumindo, pela opinião que tinham de si, que puderam ser nomeados por el-Rei, como ele, para o governo da Índia; e querendo impedir a reputação que Lopo Vaz poderia ganhar naquela empresa, se lhe sucedesse bem, desprezavam a glória particular, que daquela vitória, como soldados, lhes podia caber. Lopo Vaz, como era valeroso e de grande ânimo, parecia-lhe fraqueza e menos-cabo da sua opinião, que com os Mouros queria acrescentar, não cometer aquele feito para que ali viera, e partir-se sem vingar as mortes e perdas que os Portugueses daqueles mouros recebiam. E como os que eram de voto que não pelejasse eram mais que os do contrário parecer, não se resolveu té a vinda de António da Silveira e Cristóvão de Sousa, que foi daí a dous dias; cujos pareceres, sendo conformes com o seu e seguidos quase de todos, que pela autoridade destes dous fidalgos se retrataram, teve Lopo Vaz por mui certa a vitória dos inimigos, e se determinou de sair logo em terra, o que ordenou desta maneira. Daqueles batéis grandes e mantas que D. Henrique tinha para cometer Dio, mandou concertar três com artelharia bem ordenada, e em cada um pôs cem homens, para que de ua chegada à terra lançarem nela trezentos; em bargantins iam outros trezentos soldados; e os capitães dos batéis que haviam de ir diante, eram Manuel de Brito e Paio Rodrigues de Araújo; o Governador os havia de seguir, rodeado de ua ilharga e da outra dos outros navios de remo, 16 nas quais embarcações iam té mil 7 7 homens portugueses, a-fora os canaris e malavares que remavam. Os Mouros dentro do rio, onde a terra fazia ua ponta, que ficava em lugar de baluarte para defender a passagem, tinham feito ua cerca de pedra e taipa, bem entulhada e rebatida, que daria pela barba a um homem, e em três estâncias dela puseram artelharia, que jogava através ua da outra; e distância de sete palmos entre o lugar onde os nossos poderiam desembarcar e as estacadas, tinham feito outra estacada, e de ua a outra estava atravessada ua viga ao lume de água, que não fosse vista, e por baixo um virador, para embaraçar e trabucar os nossos batéis, quando ali fossem ter. Sendo Lopo Vaz sabedor deste artifício, ordenou um catur mui pequeno que fosse diante e desse aviso aos dos batéis que haviam de ir na dianteira, que não desparassem a artelharia, e que ele poria o rostro a ua parte, como guia, para furtar a volta aos Mouros e desembarcar em outra parte não cuidada deles. Isto assi ordenado, cometeram os inimigos ao outro dia pela menhã, partindo Lopo Vaz com grande estrondo e grita de toda a gente, e com o remo tam teso, como quem ia ganhar algum pário; e permitiu Deus que não foram os perigos que passaram tam grandes como foram os medos e dificuldades que no conselho se puseram, principalmente quando chegaram ao baluarte; porque, ainda que ele descarregou sua artelharia, como as nossas embarcações eram guiadas pelo catur, passaram com muito menos perigo e foram demandar este baluarte per outro lado que não tinha través nem os embaraços referidos. Neste tempo despediu o Governador a Pero de Faria para queimar os paraus que estavam diante, e António da Silveira per um lado e o Governador per outro, e Manuel de Brito e Paio Rodrigues de Araújo diante às lançadas e espingardadas, dando Santiago nos Mouros, os fizeram retirar da guarda dos paraus, com que houve lugar para os queimar. Foi este feito tam pelejado de ua e outra parte, que dos nossos morreram quatro portugueses e foram feridos oitenta e cinco; e os paraus dos inimigos, que eram setenta e tantos, foram queimados e tomada toda a artelharia do baluarte e tranqueiras, que eram mais de oitenta peças, alguas de bronze. No lugar não quis Lopo Vaz que tocassem, por ser del-Rei de Narsinga, e assi o tinha mandado aos capitães. E posto que ele havia amoestado aos do 8 8

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lugar que se afastassem daquele perigo, os que nele entraram também levaram boa parte nos mortos e feridos; dos outros se não soube o número; mas segundo a cousa foi pelejada, devia ser grande; porém o de que se teve notícia foi serem mortos alguns homens nobres de Calecut, por os quais 17 na cidade houve grande pranto, o que o Samori muito sentiu, por ser esta notável perda sobre as outras que tinha recebido. A pessoa assinalada dos Portugueses, que nesta peleja correu maior risco, foi D. Jorge de Meneses, a quem se alagou o batel em que ia com toda a gente; e como ele não sabia nadar e ia armado, andou debaixo da água bebendo muita, té que lhe acudiram outros batéis e o salvaram.

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8 8 17 Capítulo III. Como Lopo Vaz de Sampaio chegou a Goa, e foi recebido nela por Governador da Índia, e das armadas que fez. Havida esta vitória em Bacanor, partiu o Governador Lopo Vaz de Sampaio para Goa; e entrando pelo Rio de Pangim, Francisco de Sá, capitão da cidade, per conselho dos oficiais da câmara, lhe mandou requerer que não passasse dali, porque o não havia de receber como Governador da Índia, pois o não era, por ser eleito por homens que para isso não tinham poder, e não por el-Rei, nem pelo seu Governador, e que Pero Mascarenhas era o Governador, e em sua ausência ele, Francisco de Sá, que fora nomeado por D. Henrique de Meneses, como atrás escrevemos; e que quisesse para os outros o dereito que quis para si. Porque morrendo o Conde Viso-Rei, deixou nomeado a ele, Lopo Vaz, por Governador da Índia, té vir a pessoa que el-Rei mandava que o sucedesse, o que se cumpriu; (1) e assi que agora guardasse a mesma lei e deixasse governar a ele. Deste requerimento fez Lopo Vaz pouca conta, e foi-se pelo rio acima, té chegar às portas da cidade, sem lhas quererem abrir. E depois de muitas altercações, consentiu Francisco de Sá no que a câmara quis, que já estava de outro parecer, intervindo nisso Cristóvão de Sousa; e assi foi Lopo Vaz de Sampaio recebido naquela cidade como Governador. 9 9 Começou logo a entender nos negócios do governo; e a primeira cousa que fez foi por ua nau da carreira de Malaca (que António da Silva de Meneses tinha com as roupas, que fingidamente D. Henrique mandou buscar a Dio), mandar recado a Pero Mascarenhas da sua sucessão no governo da Índia, a qual nova lhe era mandada per duas vias, como adiante se dirá. E porque Francisco de Sá, que estava por capitão em Goa, quando partiu de Portugal com o Conde Almirante, levava provisão para ir a Sunda fazer nela ua fortaleza, tirou-lhe Lopo Vaz a capitania de Goa, e deu-a a António 18 da Silveira de Meneses (que tinha desposado com D. Mécia, sua filha), o qual estava provido da capitania de Sofala, que deste Reino levou, mas não entrava ainda nela; e a Francisco de Sá mandou dar dous galeões, ua galé, ua galeota, ua caravela e um bargantim com quatrocentos homens e todos os bastimentos e munições necessárias pera a armada e fortaleza que ia fazer. E a D. Jorge de Meneses, que ficara provido da capitania de Maluco pelo Governador D. Henrique, despachou para ir entrar nela com dous navios e cem homens, e em sua companhia a Simão de Sousa Galvão, filho de Duarte Galvão, que havia de servir de Capitão-mor do Mar de Maluco. (2) Fez mais o Governador outra armada de catorze velas, de que ia por capitão-mor António de Miranda de Azevedo, para andar em guarda da costa da Índia e impedir as naus do Estreito de Meca levarem pimenta. E para guarda dos ladrões, que andavam em Coromandel, fez outra armada de nove velas, de que foi por capitão-mor Manuel da Gama, o qual com ela alimpou aquela costa de cossairos malabares que nela andavam, e cobrou toda a fazenda de ua nau nossa muito rica, que estes ladrões tomaram em Paleacate, com morte de oito portugueses. E assi deu três navios a Rui Vaz Pereira, com que fosse a Bengala andar às presas. (3) E por Lopo Vaz ter recado das diferenças e discórdias, que havia entre el-Rei de Ormuz e Raix Xarafo e o capitão Diogo de Melo, e ser chamado por el-Rei, com os mesmos queixumes que já tinha inviados a D. Henrique de Meneses, determinou de acudir a apaziguar aquelas revoltas antes que viessem a mais. Não havendo por inconveniente, tendo espalhado tantas armadas, deixar a Índia e ir a Ormuz, fazendo ele poucos dias

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atrás 10 10 requerimento a D. Henrique que lá não fosse, por el-Rei o defender aos Governadores, como no precedente Livro escrevemos. E assi, sendo vinte dias de Março, em que a moução era quási gastada para navegar àquelas partes de Ormuz, partiu mal acompanhado, e como não convinha à dignidade do seu cargo; porque levou pouco mais de trezentos soldados em cinco velas, que eram ua galé bastarda, em que ele foi, e por capitão dela D. Vasco de Lima, e três galeões, de que eram capitães D. Afonso de Meneses, Manuel de Macedo e Manuel de Brito, um bargantim para serviço das outras velas, de que era capitão João Ramires, que também era capitão da guarda do Governador.

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NOTAS (1) Década 3, liv. 9, cap. 2 (2) Este cargo de Capitão-Mor do Mar de Maluco não serviu Simão de Sousa, por ser pouca satisfação de seus serviços, e ficou em Malaca, e acompanhou Pero Mascarenhas na tomada de Bintão. (3) Sabendo Lopo Vaz que Jorge Cabral era partido para Malaca, mandou Martim Afonso de Melo Jusarte às Ilhas de Maldiva com ua armada de cinco fustas, e ua caravela, com a qual se pôs Martim Afonso de Melo em um dos canais daquelas ilhas, distribuindo as fustas pelos outros, e nele topou ua nau de Rumes, que ia de Tanaçarim para Meca, que levava trezentos soldados e muita artelharaia; pelejou com ela Martim Afonso, e depois de ua porfiada batalha, que durou todo o dia, a tomou com morte de todos os Rumes. Fernão Lopes de Castanheda, liv. 7, c. 3, e Diogo do Couto, Déc. 4, liv. 1, cap.6.

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10 10 19 Capítulo IV. Do que aconteceu a Lopo Vaz de Sampaio na viagem de Goa a Ormuz, e do que fez naquela cidade. Sendo a partida de Lopo Vaz de Sampaio fora de moução, passou muito trabalho com as calmarias; e por águas correrem muito para Ceilão, andou ali mais de oito dias sem os pilotos saberem onde estavam por navegarem per rumo de Leste a Oeste, em que se não conhece a diferença de altura de Norte a Sul; finalmente o negócio chegou a tanto, que por terem gastado a água, veo a gente a adoecer e morrer, e muitos constrangidos da necessidade bebiam água salgada, e para a adoçar lhe lançavam muito açúcar, com que mais se lhe incitava a sede. Com este trabalho chegou a Calaiate, que está na costa da Arábia, e é do reino de Ormuz, onde a gente que ia bem enferma tornou às suas forças com a água fresca. E por esta viagem, que Lopo Vaz fez per esta vila de Calaiate e pela de Mascate, tornaram elas à obediência del-Rei de Portugal, estando levantadas contra ele; e a causa do levantamento era ter Diogo de Melo, Capitão de Ormuz, preso a Raix Xarafo, guazil del-Rei de Ormuz, por paixões que procediam mais de particulares interesses de Diogo de Melo, que do serviço del-Rei; sobre as quais escreveram el-Rei de Ormuz e Raix Xarafo a D. Henrique de Meneses; e respondendo ele às suas cartas, escreveu 11 11 a Diogo de Melo, que tratasse bem a Raix Xarafo; e entre outras palavras lhe disse que lhe pedia se houvesse naqueles negócios temperadamente, e não desse ocasião que os seus trinta anos fossem a Ormuz a emendar os sessenta dele, Diogo de Melo. Destas palavras se sentiu Diogo de Melo, e receava muito que Dom Henrique fosse a Ormuz; e como o viu morto, escandalizado do que Raix Xarafo lhe poderia escrever, porque obrigou a D. Henrique escrever-lhe aquelas palavras, confiado no parentesco que tinha com o Governador Lopo Vaz, o mandou prender. E bem se viu proceder a prisão desta causa; porque, chegado Lopo Vaz de Sampaio a Ormuz aos três dias de Junho, em poucos, todas as diferenças e paixões se apaziguaram, ficando Raix Xarafo solto e restituído a seu guazilado; o qual, como prudente e sagaz que era, como soube que Diogo de Melo era parente de Lopo Vaz de Sampaio e favorecido dele, cessou de seus queixumes. Mas a fazenda del-Rei de Ormuz veo a pagar todas as paixões; porque Lopo Vaz contentou-se de arrecadar sessenta mil pardaus, que devia dos anos passados das páreas, e dez mil de ua nau de presa, que mandou vender. Deu esta venda matéria de murmurações, e muito mais a arrecadação da fazenda que ele trazia. Tomara esta nau no Cabo de Guardafu Francisco 20 de Mendoça (a quem o Governador levou na sua companhia a Ormuz, achando-o na aguada de Teive, quando por ali passou), capitão de um galeão da armada de Heitor da Silveira, (1) com a qual o mandou ao Estreito do Mar Roxo D. Henrique de Meneses, de cuja morte sendo ele sabedor em Mascate, e que governava Lopo Vaz de Sampaio, se veo a Ormuz, aonde chegou aos 26 de Junho, trazendo consigo a Zagazabo, embaixador do Preste João, e a D. Rodrigo de Lima, que na sua corte e reino estivera seis anos por embaixador del-Rei de Portugal.

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NOTAS (1) A viagem e sucessos desta armada de Heitor da Silveira escreveu João de Barros na Déc. 3, liv. 10, cap. 1.

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12 12 20 Capítulo V. Como Heitor da Silveira foi a Dio, e do que ali passou com Melique-Saca, e do que ordenou o Governador com as novas da armada dos Rumes. Depois que Lopo Vaz de Sampaio recebeu ao embaixador do Preste João com a honra que lhe era devida, e o mandou agasalhar e prover mui largamente do necessário, como fez tempo (o que foi no mês de Junho daquele ano de 1526), logo despediu a Heitor da Silveira para que se fosse diante dele lançar à ponta de Dio a esperar ali as naus que iam do Mar Roxo a Cambaia. Nesta paragem tomou ele três naus grossas, das quais as duas abalroaram Manuel de Macedo e Henrique de Macedo, ambos irmãos, a assi tomou também um zambuco; e por ele ser o primeiro da presa, despejado da fazenda, o meteu no fundo, e com as três naus se veo esperar o Governador a Chaul. E posto que destas naus muitos homens se aproveitaram bem, renderam mais de setenta mil pardaus para el-Rei e partes. E Heitor da Silveira não somente ganhou muito honra no modo de as tomar, mas mostrou muita limpeza de sua pessoa, na entrega delas aos oficiais del-Rei em Chaul. Cinco dias depois desta entrega, chegaram duas atalaias de Dio com cartas de Melique-Saca, capitão daquela cidade, filho do nomeado Melique-Iaz, que já era falecido; ua das cartas era para o governador e outra para Cristóvão de Sousa, capitão de Chaul, pedindo-lhe que mandasse a ele um homem de autoridade para falar com ele cousas que importavam muito ao serviço de el-Rei de Portugal; e que da sua parte lhe requeria que fosse mui em breve; e entretanto mandasse a outra carta ao Governador, para prover 21 no mesmo negócio em pronto, tanto que ele soubesse per a pessoa que lá mandasse a importância do caso, por não ser de qualidade para o escrever. Consultada a pressa deste mouro entre Cristóvão de Sousa e Heitor da Silveira, e com os capitães das naus que i estavam, assentaram que Heitor da Silveira se devia ver com Melique-Saca; porque não podia deixar de ser algum grande mistério, 13 13 e cousa mui importante ao serviço del-Rei de Portugal, pois aquele capitão a requeria com tanta instância e com protestos. Heitor da Silveira se partiu logo no galeão de Manuel de Macedo, levando mais dous bargantins; e, chegado a Dio, teve prática com Melique-Saca, o qual, por mostrar que o não mandara sem causa, começou de lhe contar um grande processo de histórias verdadeiras com artifício, para com elas encobrir suas mentiras. Foi a história dizer-lhe que ele mandara por fugir à ira del-Rei, seu senhor, que era tam cruel, que matara já a seu próprio irmão, a quem vinha o reino por legítima sucessão, e assi matara muitos homens notáveis, mais por lhes roubar suas fazendas, que por culpas alguas. E porque da corte lhe tinham escrito pessoas do conselho real que se guardassem de el-Rei, porque determinava de ir contra ele e tirar-lhe a vida e tomar-lhe a fazenda, que antes que viesse aquela hora, ele determinava de entregar a cidade de Dio ao Governador da Índia, e sair-se dela a povoar ua ilha junto da Ponta de Jaquete, que distava dali 35 léguas, por fugir da morte que lhe aquele tirano queria dar sem causa; e que a entrega da cidade faria ao Governador com tal condição, que ele houvesse a metade dos dereitos que rendesse aquela alfândega em sua vida. E porque isto não se podia fazer senão com o Governador presente, que lho devia mandar dizer, e que mandasse mais gente para se este negócio fazer sem alvoroço do povo da cidade. Heitor da Silveira, segundo viu a mostra que Melique-Saca dava da indignação que tinha contra el-Rei e das cruezas referidas que usava no reino, parecia-lhe que tinha a cidade de Dio nas

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mãos, e escreveu logo a Lopo Vaz de Sampaio per Manuel de Macedo, que enviou em um dos bargantins, que lhe mandasse mais gente e navios, porque Melique-Saca estava para lhe entregar a cidade; e não lhe quis dizer de ele, Governador, haver de estar presente, como Melique pedia, parecendo-lhe que ele per si só faria isto, e ganharia a honra daquele negócio. E por Lopo Vaz estar já em Chaul, da volta de Ormuz, mandou-lhe o galeão S. Rafael, de que ia por capitão Fernão Rodrigues Barba com duzentos homens, e Gonçalo Gomes de Azevedo em um navio com cinquenta. A tenção deste Melique-Saca em escrever a Cristóvão de Sousa e ao Governador, não foi mais que haver alguas 14 14 velas nossas com gente, para el-Rei Badur de Cambaia suspeitar que queria dar a cidade de Dio aos Portugueses, e tomando disto algum receio, assentar ele com Badur seus negócios à sua vontade. E assi se fez, porque Melique entreteve a Heitor da Silveira 22 mais de quarenta dias, no qual tempo el-Rei foi avisado que o Capitão-Mor do Mar estava na barra de Dio e o Governador em Chaul, e tinha prática com Melique, com a qual nova lhe concedeu el-Rei todos os seguros e mais cousas que lhe pediu, com que ficou satisfeito por então. E porque nestes tratos deu Melique a entender a Heitor da Silveira que convinha retirar-se ele um pouco para Chaul para sossegar o alvoroço do povo, causado de o verem ali surto tanto tempo, Heitor da Silveira, dando disto conta ao Governador, com ordem sua se foi para Chaul. E não quis Lopo Vaz que ele tornasse a Dio, entendendo ser tudo artifício de Melique; o qual, depois de Heitor da Silveira estar em Goa, teve poder para o fazer tornar lá com importunações; mas tudo foi em vão. E a causa e o que estas negociações custaram depois a Melique-Saca se dirá adiante, quando tratarmos da vida e feitos de Soltão Badur. (1) E porque pelos mouros que Heitor da Silveira tomou nas naus da presa que vinham de Meca, e per outros meios, soube Lopo Vaz que os Turcos tinham ua armada no Estreito do Mar Roxo, e esperavam de vir à Índia no tempo da primeira moução, mandou repairar a fortaleza de Chaul, levantando a torre de homenagem; e assi mandou a João de Gá em um bargantim a Adem, a saber nova dos Rumes, o qual pôs nisso tanta diligência, que tornou com recado certo, que estavam na Ilha de Camarão fazendo ua fortaleza. Com esta nova despediu logo o Governador um navio para Portugal, de que fez capitão Francisco de Mendoça, com cartas a el-Rei como se esperavam os Turcos, e o estado em que ficava a Índia e como ele a governava na ausência de Pero Mascarenhas; mas Francisco de Mendoça não veo a este reino antes que as naus do ano seguinte partissem de cá. Despachou também o navio do trato de Sofala, de que era capitão Nuno Vaz de Castelo Branco, e por ele escreveu ao capitão de Moçambique, que estivesse apercebido, como se os inimigos lá houvessem de ir; e por outro navio proveu Ormuz de munições com o mesmo aviso. Escreveu também a Goa e a Cochim, 15 15 que provessem alguas cousas, por as novas que tinha dos Rumes, mandando em alguas partes fazer navios, de que tinha necessidade. Ordenou que se repairasse a fortaleza de Cananor, refazendo de pedra e cal o que era de pedra e barro, e acrescentando-lhe mais dous baluartes com boa cava. 23 Acabando de prover estas cousas, se partiu para Cochim, e de caminho passou por Dabul, com tenção de lhe dar um castigo, pelo que nele se fizera na morte de Cristóvão de Brito, de que atrás dissemos. (2) Este castigo não determinava o Governador fazer tanto na povoação, quanto no tanadar, porque tínhamos naquele tempo paz com o Hidalcão, cujo a povoação era; porém o tanadar, confiado na sua inocência, por não ser ele o culpado, tanto que viu o Governador no porto, se veo deitar aos seus pés. Lopo Vaz lhe recebeu suas desculpas, sabendo que não era ele o que agasalhara os Turcos, e o tanadar lhe entregou ua nau que ali estava de Mouros de Meca carregada

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de especiaria e sândalos, e duas fustas com algua artelharia, por serem de Mouros nossos inimigos, e outra que ele tinha posta em um baluarte que fizera na entrada da barra, o qual se lhe mandou derribar. Com estas cousas feitas e pagas as páreas que devia, ficou o tanadar na graça de Lopo Vaz, o qual se partiu para Goa, e no caminho chegou a ele Tomé Pires em um catur, que lhe vinha pedir alvísseras, como eram chegadas a Cochi duas naus do reino, nas quais ia provisão del-Rei, per que havia por bem que, falecendo D. Henrique de Meneses, ficasse ele por Governador.

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NOTAS (1) Francisco de Andrade refere a este caso diferentemente, porque escreve que Lopo Vaz de Sampaio foi duas vezes a Ormuz: a primeira, de que tratou João de Barros no Capítulo passado; e da segunda não faz menção nenhum outro Autor, senão Francisco de Andrade, o qual diz que, tornando Lopo Vaz esta segunda vez de Ormuz em Agosto de 1528, passara de noite por defronte de Dio; que sabendo-o Melique-Saca, lhe mandara em ua fusta ua carta, pedindo-lhe que quisesse voltar a Dio para lhe fazer um grande serviço (que era a entrega daquela fortaleza) desejado e procurado de todos os Governadores passados, e que Lopo Vaz lhe mandara em seu favor Heitor da Silveira com ua boa armada, o qual, chegando a Dio, soubera que Melique-Saca era fugido para Jaquete. Caps. 3 e 39, da Parte 2.ª. (2) Na 3 Década, liv. 8, cap. 13.

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15 15 23 Capítulo VI. Das naus que partiram de Portugal para a Índia, em que foram as sucessões, per que Lopo Vaz de Sampaio havia de governar. Naquele ano de 1526 partiram deste reino para a Índia quatro naus (1) divididas em duas esquadras, por não estarem juntamente prestes; das duas primeiras, que partiram ao tempo ordinário, eram capitães Francisco de Anhaia (filho de Pero de Anhaia), que o ano dantes ia também à Índia, segundo atrás dissemos, (2) e se perdeu à saída da barra de Lisboa; e Tristão Vaz da Veiga (filho 16 16 de Diogo Vaz da Veiga) que na entrada de Ormuz, quando esteve cercado, passou os perigos que se referiram na Terceira Década. Das duas que partiram tarde, e fora da moução, a 16 de Maio, eram capitães António de Abreu, filho de 24 João Fernandes do Arco, da Ilha da Madeira, que invernou em Moçambique, e António Galvão, filho de Duarte Galvão, o qual fora de toda esperança passou à Índia. Os dous que primeiro partiram, chegaram a Cochim, onde estava Afonso Mexia, vedor geral da fazenda da Índia, a quem entregaram as duas vias das cartas del-Rei para o Governador, e para ele; nas quais vias mandava el-Rei novas sucessões da governança da Índia, falecendo alguns dos capitães, que el-Rei tinha nomeados nas outras que lá estavam. E porque a carta del-Rei para Afonso Mexia foi causa de muitas revoltas e desassossegos (que puderam chegar a muito, senão sucederam entre Portugueses, tão leais a seu Rei, que nas partes onde estão mais alongados dele, com mais sujeição e amor procuram seu serviço), porei aqui o traslado dela, para que se veja que o que Afonso Mexia fez, procedeu mais da sua vontade que da carta del-Rei; e pera exemplo aos posteriores, que quando mandarem à Índia sucessões da governança, seja de maneira que não se ponha em audiências e alegações de procuradores, como se pôs esta, e o que pior é, com artelharia cevada da ua parte e da outra. Carta del-Rei para Afonso Mexia. Afonso Mexia. Eu el-Rei, vos envio muito saudar. Per duas vias vos envio nesta armada, que Nosso Senhor leve a salvamento, dous sacos de cartas e despachos das cousas destas partes, que houve por meu serviço que ora fossem, e leva um dos maços Tristão Vaz da Veiga, e o outro Francisco da Anhaia. Tomai as cartas que vão para vós, e as do Capitão-mor lhe dai, e assi todas as outras às pessoas a que vão, e não fique nenhua que não seja dada; e aquelas que estiverem fora donde vós estiverdes, mandai-lhas dar, e vão a todo bom recado. E nesta armada me enviai um rol de como foram dadas aquelas que destes às pessoas onde vós estais, e o modo que tevestes em enviar as outras, que vão para as pessoas que estiverem fora; e tomai disto bom cuidado, porque o hei por muito meu serviço serem dadas 17 17 todas as ditas cartas. As provisões que vão das sucessões da capitania-mor tende naquela boa guarda e segredo que cumpre a meu serviço, como de vós confio. Escrita em Almeirim, a vinte de Março. Pero de Alcáçova Carneiro a fez, de mil e quinhentos e vinte seis. E das outras provisões que lá tendes não se há-de usar, e as tereis em boa guarda, e mais trareis quando embora vierdes.

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25 Afonso Mexia, tanto que viu esta cláusula derradeira que das provisões passadas não se havia de usar (a qual ia em ua das suas duas cartas, e na outra não) desejando de abrir a sucessão, que de novo mandava el-Rei, em caso que falecesse D. Henrique de Meneses, fez ajuntar na Sé de Cochi o capitão da fortaleza D. Vasco de Eça, João de Osouro, ouvidor geral, João Rabelo, feitor, Duarte Teixeira, tesoureiro, e outros oficiais da Fazenda e Justiça, e outras pessoas principais com os capitães das naus que do reino foram, aos quais noteficou como el-Rei per aqueles capitães que eram presentes, lhe escrevera ua carta sobre as sucessões dos Governadores da Índia, a qual carta era aquela que ele tinha na mão e ouviriam. Lida, lhes disse, que ele levava ali a sucessão de D. Henrique, que a queria abrir, visto como por aquela carta que lhe el-Rei escrevia, era sua vontade usar daquela provisão nova, e não das outras passadas. D. Vasco de Eça, como capitão de Cochi, começou a contrariar abrir-se nova sucessão, pois as outras sobre que el-Rei escrevia eram já abertas; e que se el-Rei o soubera, não provera com aquela que apresentava. A D. Vasco ajudaram com suas razões as outras pessoas que eram presentes. O que Afonso Mexia não quis conceder, e tomou por última conclusão que, se ele fazia mal, que a el-Rei havia de dar conta disso; e favorecendo sua tenção alguas pessoas que o queriam comprazer, e também pera verem novidades, condição natural dos homens, abriu-se a provisão per Fernão Nunes, escrivão da Fazenda, a qual ele leu em voz alta, cujas palavras eram estas: Provisão del-Rei da sucessão de D. Hanrique de Meneses Eu, el-Rei. Faço saber a todos os meus capitães e alcaides-mores das minhas fortalezas da Índia, capitães das naus, dos navios e armadas, que nas ditas partes andam, e feitores, escrivães das 18 18 minhas feitorias, capitães das naus e navios que vão para vir com carga pera estes reinos, fidalgos, cavaleiros, gente de armas, que nas ditas partes andam, e a todas quaisquer outras pessoas e oficiais da justiça e fazenda, a que este meu alvará for mostrado: Que pela muita confiança que tenho de Lopo Vaz de Sampaio, fidalgo de minha Casa, que nas cousas de que o encarregar me saberá bem servir, me apraz, que, sendo caso que faleça D. Hanrique de Meneses, que ora é meu Capitão-Mor e Governador das partes da Índia (que Nosso Senhor não mande) suceda e entre na capitania-mor e governança o dito Lopo Vaz de Sampaio, com aquele poder e jurdição e alçada que tinha dada ao dito D. Hanrique de Meneses, e me apraz que haja em cada um ano, enquanto me servir na dita capitania-mor e governança, dez mil cruzados; convém a saber: cinco mil em dinheiro, e os outros cinco mil em pimenta 26 comprada do seu dinheiro, ao partido do meu, tomando e nomeando seu risco naus e navios que nomear, que vieram para estes reinos segundo a ordenação dos partidos do meu. E entrando assi o dito Lopo Vaz na dita capitania-mor e governança da Índia, entrará na capitania-mor do mar, que ele tem, António de Miranda de Azevedo, com o ordenado que com ela tinha o dito Lopo Vaz de Sampaio; e no cargo que ele ao tal tempo tiver, proverá o dito Capitão-mor e Governador té eu prover. E não estando na Índia o dito Lopo Vaz ao tempo do falecimento de D. Hanrique, por ser vindo para estes reinos, ou sendo falecido ou falecendo depois de entrar e suceder na dita capitania-mor e governança, em qualquer destes casos entrará por Capitão-mor e Governador Pero Mascarenhas, que está por capitão de Malaca. E haverá o dito Pero Mascarenhas os ditos dez mil cruzados de seu ordenado de Capitão-mor e Governador, daquela maneira que os ordeno ao dito Lopo Vaz. E entrará Pero de Faria na capitania de Malaca, onde o dito Pero Mascarenhas está, e haverá o ordenado da capitania de Malaca. E estando ele por capitão em Goa, proverá o dito Capitão-mor na dita capitania a pessoa que lhe bem parecer, que pertence mais a meu serviço, té eu prover, e haverá o ordenado da dita capitania. E porém vo-lo notifico assi, e vos mando a todos em geral, e a cada um em especial, que vindo o dito caso a ser, se cumpra e guarde inteiramente este meu alvará, como nele é conteúdo; e a qualquer dos sobreditos que entrar na dita governança

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obedeçais, e que cumprais seus requerimentos e mandados, assi como o fazeis ao dito D. Hanrique, e como sois obrigados de fazer ao dito meu 19 19 Capitão-mor e Governador, e em todo o deixai usar do poder e juridição e alçada que ao dito D. Hanrique tinha dada per minha cata, sem dúvida nem embargo algum que a elo ponhais. E mando a meu vedor da Fazenda que em cada um ano, enquanto me servir na dita capitania-mor e governança, lhe mande pagar os ditos dez mil cruzados na maneira sobredita. Feito em Almeirim, a quatro dias de Abril, Jorge Rodrigues o fez, de mil e quinhentos e vinte seis. Estes dez mil cruzados que ordeno que hajam os sobreditos por ano, serão naquele modo e forma e maneira que os tenho dados a D. Hanrique; e o ordenado de António de Miranda de Azevedo, entrando na capitania-mor do Mar, serão dous mil cruzados por ano, convém a saber: mil cruzados em dinheiro e mil em pimenta, no modo sobredito de como há-de haver o dito D. Hanrique, posto que diga que há-de haver o ordenado de Lopo Vaz. Lida esta carta, foi feito um auto por Fernão Nunes, que a leu, o qual foi assinado pelos nomeados e pelas principais pessoas que eram presentes, 27 que Afonso Mexia recolheu para dar razão a el-Rei com que solenidade abrira aquela via. Feito isto, despachou logo a D. Henrique de Eça com a sucessão, que a levasse a Goa, cuidando ser Lopo Vaz já vindo: a assi escreveu ua carta à Câmara de Goa, per que lhe notificava se Lopo Vaz de Sampaio Governador per aquela nova provisão de Sua Alteza; e sendo-lhe notificada, quis Tomé Pires ganhar as alvísseras desta nova, e foi em um seu catur levá-la a Lopo Vaz de Sampaio, que achou vindo de Dabul, como atrás dissemos.

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NOTAS (1) As naus eram cinco, e o capitão da quinta nau foi Vicente Gil, filho de Duarte Tristão, armaador das naus. Francisco de Andrade, Parte 2, cap. 9, e Diogo do Couto, Liv. 1, cap. 9. (2) Na 3ª Década, liv. 10, cap. 1.

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20 20 27 Capítulo VII. Das justificações que Lopo Vaz de Sampaio fez em Cochi sobre o dereito de sua governança; e do conselho que teve sobre a vinda dos Rumes. Lopo Vaz de Sampaio, com a nova de sua sucessão, chegou a Goa, onde foi recebido com a festa que se costumava fazer aos novos Governadores; posto que a cidade estava dividida em dous bandos, não se praticando nela em outra cousa senão na justiça de Lopo Vaz e de Pero Mascarenhas: e o mesmo passava nas fortalezas, armadas e outros ajuntamentos, e cada um dava a sentença segundo o amor e ódio que o governava. Os afeiçoados à causa de Pero Mascarenhas (de quem já havia nova que era embarcado para vir a tomar posse do seu governo) estranhavam muito a Afonso Mexia abrir a sucessão de Lopo Vaz, sendo Pero Mascarenhas eleito, jurado, obedecido e chamado para Governador; e de tal maneira iam crescendo estas duas facções, que chegavam a revoltas e desafios. Era já tempo do despacho das naus que este ano haviam de vir ao reino com carga, pelo que Lopo Vaz partiu para Cochi, onde os moradores lhe fizeram muita festa; porém quem se nela mais assinalou foi Afonso Mexia, como autor da sucessão de Lopo Vaz, a qual tornou a confirmar com novo juramento seu, e de todos os que estavam em Cochi. Acrescentava a Afonso Mexia o gosto com que festejava ao Governador, o contentamento que tinha de ua nova provisão que lhe el-Rei mandou com as outras, per que o fez capitão de Cochi, além de vedor da Fazenda: porque persuadiram a el-Rei, que o capitão da fortaleza de Cochi sempre traria competência com o vedor da Fazenda sobre a jurdição; e que para o vedor servir bem seu cargo, que era de tanta importância, não podia ser senão sendo também capitão da cidade. 21 21 Lopo Vaz, sabendo os movimentos e alterações do povo, e que os mais deziam que com violência usurpara o cargo de Governador, com todos 28 se justificava; e pera maior satisfação sua mandou chamar Sebastião de Sousa, de Elvas, Francisco de Anhaia, António Galvão, Filipe de Castro e Tristão Vaz da Veiga, capitães das Naus da armada que havia de tornar pera Portugal, e lhes disse diante de António Rico (que aquele ano fora de Portugal à Índia por secretário) o que se praticava contra a sua sucessão por parte de Pero Mascarenhas, e porque não queria castigar os alvorotadores do povo, que ousadamente falavam contra ele, antes os desejava reduzir com brandura à paz e quietação; e eles como capitães que se iam para o reino, não estavam debaixo de sua jurdição, nem da de Pero Mascarenhas, e assi poderiam sem afeição dizer o que lhes parecesse, lhes pedia que como a fidalgos tam honrados, que tinham por obrigação falar verdade, lhe dissessem livremente o que sentiam da sua sucessão, e se entendiam que per virtude dela era Governador. E como Lopo Vaz de Sampaio lhes perguntou simplesmente o que lhes parecia, assi simplesmente responderam que não tinham dúvida ser ele legítimo Governador, e legítima e justa a sua sucessão; e assi o juraram, de que se fez auto pelo secretário, que aqueles capitães assinaram. A mesma pergunta fez Lopo Vaz de Sampaio a Fr. João de Haro, da Ordem de S. Domingos, homem letrado, que per mandado del-Rei de Portugal fora pregar à Índia, e tornava aquele ano para o reino, o qual afirmou ser ele verdadeiro Governador. E ao outro dia, que era da festa de Circuncisão do Nosso Senhor, na pregação que fez, o disse no púlpito, provando-o com muitas razões e alegações do Direito Divino e Humano, e que quem o encontrava, cometia pecado mortal e desobediência contra el-Rei; e que ele não afirmava aquela verdade por respeito algum, porque, como religioso, e que se ia para Portugal, não tinha necessidade do Governador, de quem não era tamanho amigo como de Pero Mascarenhas; e

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concluindo, requereu a Lopo Vaz, da parte de Deus, que castigasse gravissimamente a quem causasse alvorotos ou movesse dúvidas sobre o seu governo, e os degradasse. 22 22 Aprestadas já a este tempo as naus de viagem, partiram de Cochi a 10 de Janeiro, (1) e quando chegaram a salvamento a Portugal, tinha el-Rei 29 já mandado um navio, de que era capitão e piloto Pedreanes Francês, com cartas para apagar com suas provisões as revoltas que se presumia poderiam haver entre Lopo Vaz de Sampaio e Pero Mascarenhas, por causa das novas sucessões, que Francisco de Anhaia e Tristão Vaz da Veiga levavam; por el-Rei ter sabido per Francisco de Mendoça (como atrás dissemos) que D. Henrique era falecido, e Lopo Vaz governava em ausência de Pero Mascarenhas. Mas este Pedreanes se perdeu no mar, com que o negócio entre duas pessoas de tanta qualidade, cavalaria e serviços foi posto em diferenças. Lopo Vaz, depois que as naus partiram pera este reino, por as novas que tinha da armada dos Rumes, foi-lhe necessário tornar a Goa dar ordem às cousas do provimento da armada contra eles e repairar as fortalezas; pelo que, deixando recado a Afonso Mexia do que havia de fazer em Cochi, ele foi a Cananor, e fez ali outro tanto, encomendando as obras da fortaleza a D. Simão de Meneses, capitão dela. Chegado a Goa, teve logo conselho com os capitães e principais fidalgos sobre a vinda dos Rumes; e declarando-lhes que sua vontade e determinação era ir buscá-los ao próprio Estreito, antes que entrassem no Mar da Índia, e dando pera isso muitas razões, todas lhe foram desfeitas com outras. Porque deziam que era grande inconveniente tentar aquela jornada, visto como não tinha navios nem gente, e aventurava nela o Estado da Índia; e que segundo se dizia, a armada dos Rumes não estava certo vir aquele ano; porque, fazendo eles fortaleza na Ilha de Camarão, como faziam, sinal era estarem de vagar, e que primeiro queriam fazer o ninho em que se recolhessem, que vir à Índia, onde não tinham feito. E que pera o ano seguinte, por nova que se mandara a el-Rei per Francisco de Mendoça em as naus que viessem aquele ano, lhe mandaria Sua Alteza gente e munições; e que com a gente que viesse, e com os galeões e navios que ele, Governador, mandava fazer, já então estaria apercebido pera pelejar com os Rumes; e que, quando isso fosse, a peleja não havia de ser no Estreito, senão à ponta de Dio, porque quando ali chegam vêm já quebrantados do 23 23 golfão que passam, e com os aparelhos dos navios cortidos do Sol, e a artelharia abatida; e que, estando ele com a gente fresca e esperta, levemente haveria vitória, e que como quem tinha a acolheita longe, todos lhe ficariam na mão. E indo a Camarão, havia de chegar com a armada dividida e destroçada, de que tinha exemplo nos desastres e perdições que teveram Afonso de Albuquerque e Diogo Lopes de Sequeira, quando entraram aquele Estreito. Estas e outras razões foram representadas a Lopo Vaz de Sampaio, com que então desistiu de deu propósito, mudou o pensamento a outras cousas, como veremos. A gente, porém, não deixava de murmurar, dizendo que sua ida ao Estreito era fingida, e não mais para que mostrar à gente que tinha desejo daquele caminho, e que o seu intento era prover-se per aquele modo pera a vinda de Pero Mascarenhas, temendo que, como a gente o visse na Índia lhe haviam de obedecer como a Governador. 30 Outros eram doutra opinião, e deziam que verdadeiramente sua tenção era ir ao Estreito e fugir de Pero Mascarenhas, e levar a frol da gente consigo, e os navios; e que, quando não pelejasse com os Rumes, faria tanta presa, que viesse a gente contente dele. Estes e outros juízos lançava o vulgo, de que sempre se disse ser animal de muitas cabeças, assi dava cada um a interpretação segundo o amor ou o ódio que tinham a estes dous capitães, e ao que eles esperavam. De Goa mandou Lopo Vaz de Sampaio Manuel de Macedo em ua caravela a Ormuz com

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provisões para prender Raix Xarafo, e levá-lo a Goa; porque per cartas del-Rei de Ormuz e do capitão Diogo de Melo, (que mandaram per Fernão de Morais), o avisavam dos roubos e insultos que Raix Xarafo tinha cometido contra o povo, e lhe requeriam que o mandasse levar daquela fortaleza, porque, enquanto nela estivesse, não deixaria de intentar algua novidade, como já fizera em tempo do Governador Diogo Lopes de Sequeira.

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notas (1) Nestas naus embarcou o Governador a Zagazabo, embaixador de el- Rei da Abassia, que chegou a salvamento a Lisboa, donde foi a Coimbra dar sua embaixada a el-Rei D. João, que estava naquela cidade. Sua Alteza o mandou encontrar per Diogo Lopes de Sequeira, almotacer-mor e Governador que fora da Índia, e à entrada da cidade por o Marquês de Vila Real. El-Rei o recebeu com grandes demostrações de gosto da sua vinda, e Zagazabo lhe deu duas cartas de seu Rei, e lhe apresentou ua coroa de ouro e prata. E o P. Francisco Alvares, que vinha em companhia do embaixador (e escreveu ua larga relação desta viagem e das cousas daquela grande região) mostrou a Sua Alteza ua cruz de ouro com um pedaço do Santo Lenho da Cruz de Cristo, Nosso Salvador, e outras duas cartas que levava a seu cargo para o Papa Clemente VII, pelas quais aquele Rei mandava dar obediência a Sua Santidade, e pedir Patriarca da Igreja Romana, porque os passados foram da Grega. O ano seguinte partiu Zagazabo e Francisco Alvares para Roma, onde o Sumo Pontífice ouviu a embaixada daquele Rei com grande alegria sua e do sagrado Colégio dos Cardeais, engrandecendo com muitos louvores a obediência daquele novo e amado filho, ao qual concedeu com muitas graças, o que o Patriarca lhe pedia, com que o embaixador tornou a Portugal, e dele à Índia, onde, chegando, morreu. Diogo do Couto, Liv. 1, cap. 10.

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24 24 30 Capítulo VIII. Da armada que Selim, Rei dos Turcos, ordenou pera nela ir Raix Soleimão à Índia contra os Portugueses, e do sucesso dela. Havendo Raix Soleimão morto a Mir Hocém pela maneira que dissemos na precedente Década; (1) e vendo que o Soltão do Cairo, Cansor Algauri (2) (em cujo serviço mandava, sendo turco), fora desbaratado e morto por Selim, Rei dos Turcos, (3) posto que se temesse dele por o que tinha feito em Turquia, sendo cossairo, segundo atrás contamos; (4) querendo restituir-se em sua graça, lhe mandou um homem de que confiava ao Cairo com um grande presente, dando-lhe conta como fora enviado pelo Soltão à empresa da Índia, e o que tinha feito em Zeibid, 31 e quam leve cousa seria tomar aquele Estado da Arábia, e que ele era seu escravo, e ficava ali com cinco galés somente; que se mandasse que se fosse pera o Cairo, que logo o faria, e que, se também houvesse por seu serviço que prosseguisse a empresa da Índia, que o provesse de mais embarcações, munições e gente, porque com cinco galés com que ele ficava já mui desbaratadas, e tam mal provido de outras cousas, por o muito que havia que dera princípio àquela empresa, não se atrevia a dar boa conta de si, e mais andando os Portugueses tam poderosos como andavam. Selim, como viu e recebeu os presentes que lhe Raix Soleimão mandava, e como se metia debaxo de seu poder, determinou de logo o prover de novo pera entrar poderosamente na Índia, e a grande pressa mandou acabar vinte galés e cinco galeões, (5) que estavam começados no porto de Suez por ordem de Soltão, pera os mandar ao mesmo Raix Soleimão. Provida esta armada de gente e de todo o necessário, já em tempo de Soleimão, filho de Selim, que lhe sucedeu no Reino dos Turcos, (6) mandou ele por capitão dela a um Haidairin, charquês de nação, homem de muita idade e autoridade, que fora vedor da fazenda do Soltão, com ordem que despois que entregasse a armada a Raix Soleimão, ficasse com o mesmo cargo de vedor da Fazenda, sem Raix Soleimão 25 25 entender em mais que no que tocava à guerra e governo da gente. Chegado Haidairin à Ilha de Camarão, onde Raix Soleimão estava e tinha começada ua fortaleza, lhe entregou a armada; e sobre o governo e despesas dela houve entre Soleimão e Haidairin tantas diferenças que, sentindo Haidairin que a gente estava descontente e escandalizada de Soleimão, e que não haveria quem por ele tornasse, o matou às punhaladas dentro em ua galé. A causa por que Soleimão cobrou este ódio, era por não consentir que Haidairin limpamente pagasse o soldo que era devido à gente da armada a dinheiro, o qual ele queria recadar pera si, e pagar aos soldados em mantimentos, panos e outras cousas, que houvera do despojo das terras que ganhara em Arábia, que aos soldados não eram necessárias pera seus usos, como o dinheiro. Além disso, como aquela gente partira com tenção de ir à Índia e trazia sede das riquezas dela, de que já faziam conta, tomavam mal a detença que Soleimão fazia em conquistar terras naquela parte da Arábia, de que se ele pretendia fazer senhor; e que, por entreter a gente, 32 dilatava acabar a fortaleza que começava fazer na Ilha de Camarão per mandado do Turco, pera ser ua escala da navegação daquele Estreito do Mar Roxo, e defensão para os Portugueses não entrarem nele. A qual fazia tam de vagar que, quando Haidairin o matou, havia dous anos que chegara àquela ilha e tinha ganhado muitos lugares na terra firme. Mustafá, sobrinho de Soleimão, filho de ua sua irmã, como soube da morte de seu tio, e que

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tanto que Haidairin o matou, se fora à cidade de Zeibid tomar posse dela, e de quanta fazenda seu tio nela tinha, ajuntando-se com a mais gente de cavalo e de pé que pôde, o foi buscar, e houveram batalha, na qual fugindo Haidairin já meio desbaratado, e recolhendo-se pera a cidade, Mustafá o matou às lançadas. Com estas discórdias e mortes se desfez esta armada de Raix Soleimão; porque os capitães que não quiseram seguir as partes de Mustafá, se tornaram pera Suez, onde, varadas as embarcações, levaram novas ao Turco do sucesso daquela sua armada, que ele sentiu muito. Mustafá ficou com cinco galés; e tomada a cidade de Zeibid, começou pacificar a gente, assi a ordenada pera ir à Índia, como outra que estava posta em guarnição dos lugares 26 26 que seu tio ganhara, fazendo-lhes grandes pagamentos e muitas larguezas por os ter de sua mão. E vendo que antes de muito tempo lhe havia de ser pedida conta da morte de Haidairin, e que o Turco podia logo prover nisso, começou de se fazer prestes pera a Índia, lançando fama que queria fazer o que seu tio té então não tinha feito, com a ocupação que tivera em fazer a fortaleza em Camarão, e na conquista da terra firme; mas em seu peito não tinha tenção de ir em serviço do Turco, senão pôr-se em salvo, e evitar a indignação dele, e seguir a fortuna em serviço del-Rei de Cambaia, que tinha guerra connosco, porque sabia particularmente muitas cousas daquele reino e da fraqueza da gente dele, per informação de Coge Sofar, escravo de Raix Soleimão, seu tio, que ele cativou na costa de Apulha (como dissemos na Terceira Década), (7) o qual residiu em Dio algum tempo em hábito de mercador, pera fazer os negócios de Soleimão; polo que Mustafá o tornou a mandar com a mesma simulação de mercador, a intentar o ânimo del-Rei de Cambaia sobre a sua ida. Coge Sofar, chegado a Dio, foi ter com el-Rei Badur, de quem era conhecido por feitor de Raix Soleimão, por lhe ter dado muitos presentes da parte de seu amo, e dadas muitas esperanças de ele ir com ua grande armada pera lançar aos Portugueses da Índia, e fazer cousas grandes por seu serviço. E como era sagaz, deu conta a Soltão Badur como Soleimão era morto, com que todos seus aparatos e disenhos ficaram perdidos e frustrada a esperança de nos lançarem da Índia. Mas que dado caso que seu senhor fosse 33 morto per aquela traição, que se presumia ser ordenada pelo Turco, por o ódio que lhe tinha por se lançar com o Soltão do Cairo, e quis dissimular com ele pelo modo que teve em lhe mandar entregar a armada per Haidairin; todavia, pela vingança que Mustafá, seu sobrinho, tomou da sua morte, matando Haidairin, e toda a gente se someter ao seu mando e governo, Sua Alteza tinha certo poder-se aproveitar e servir dele. E assi que seu parecer era que ele, Senhor, lhe escrevesse que se viesse para seu serviço, prometendo-lhe de lhe fazer honra e mercê. Com estas e outras cousas assi teceu Coge Sofar o negócio, com idas e vindas, e cartas de ua e outra parte, que por as grandes promessas que lhe Soltão Badur deu de si, determinou Mustafá de se ir pera a Índia. 27 27 Enquanto isso se tratava, quis Mustafá tentar a fortuna, se poderia tomar a cidade de Adem, que tinha por vezinha; e dando suas razões coradas a este seu propósito, a fim de comprazer à gente, foi cercar a cidade com dez navios de remo e quarenta gelvas da terra, nas quais embarcações levou setecentos rumes, arábios e abexis. Combateu Adem per mar e per terra com grossa artelharia, em que havia quatro basiliscos, que derrubaram boa parte dos muros; mas os arábios se defenderam animosamente à custa das vidas de muitos, pela salvação de suas pessoas, mulheres e filhos; e o maior trabalho que no cerco padeceram foi a fome de que morreram mais que a ferro. Vendo Mustafá quam mal lhe havia sucedido aquela jornada, levantou o cerco (que durou cinco meses) por ser já tempo de moução de nossas armadas, que ordinariamente cada ano vinham àquelas partes; (8) e deixando na cidade de Zeibid por Governador a Xerife Ali, turco, que lhe servia de vedor, e na cidade de Batalfac, Escander Maus, charquês, e em Gizão outro seu criado,

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chamado Bagxi, partiu para a Índia com dous galeões, em que recolheu a flor da gente e as melhores peças de artelharia, com muitas munições. Chegando a Xael, que é na costa de Arábia, onde invernou, porque uns sete turcos dos mais principais que ele levava recusaram passar à Índia, sentindo que ele ia mais fugido do Turco, que em seu serviço, a cinco deles tirou os olhos, e aos dous cortou os braços pelos cotovelos, e em um batel os mandou lançar em terra. De Xael seguiu sua viagem pera Dio, onde fez o que adiante diremos. (9) E nisto parou a armada dos Rumes, tam receada na Índia; de 34 cujo sucesso chegaram as novas a Chaul na entrada de Setembro do ano de 1527 per alguas naus de Meca, que naquele porto entraram, de que Cristóvão de Sousa avisou logo a Lopo Vaz de Sampaio, que, aliviado deste cuidado, atendeu a outras cousas necessárias ao governo. Do sucesso desta armada teve depois aviso el-Rei D. João per via de Ormuz, que lho mandou Cristóvão de Mendoça, capitão daquela fortaleza, o qual, sabendo que os Rumes não passavam à Índia, determinou de avisar a el-Rei per terra, jornada té então não imaginada e havida por quase impossível (como agora ordinária e fácil), a qual à instância de Cristóvão de Mendoça fez António Tenreiro, 28 28 pelo muito conhecimento que tinha de línguas e daquelas regiões, por que havia passado em companhia de Baltasar Pessoa, embaixador de D. Duarte de Meneses, Governador da Índia, ao Xá Ismael. Partiu António Tenreiro de Ormuz para fazer este novo caminho em Setembro de 1528; e chegando a Bassorá, a tempo que eram já partidas as cáfilas para Alepo, com um mouro piloto do deserto atravessou em dromedários, com grandes perigos de ladrões e de feras que nele andam; o qual passado, em vinte e dous dias chegou ao lugar de Cocana, e dele em companhia de ua cáfila a Alepo, e dali a Tripoli de Sória, onde se embarcou para Chipre, e passando à Itália veio ter a Portugal, onde el-Rei D. João lhe fez mercê pelo trabalho de ua tam nova e incógnita jornada, da qual, e da primeira fez António Tenreiro ua larga e curiosa relação, que com nome de Itenerário imprimiu em Coimbra no ano de 1565, dedicado a el-Rei D. Sebastião.

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NOTAS (1) Liv. 1, cap. 3, onde João de Barros escreveu com particularidade a vida de Raix Soleimão. (2) Este Cansor Algauri, soltão do Egipto, eleito pelos Mamalucos no ano de 1505, foi pela traição de Caier Bei, seu governador de Alepo, vencido e morto junto da mesma cidade por Selim I, rei dos Turcos, no ano de 1516, per cuja morte elegeram os Mamalucos a Tumumbeio, de nação circasso, que no ano seguinte de 1517 foi vencido e morto do mesmo Selim, e nele se acabou o Reino dos Mamelucos em Egipto, que se transferiu aos Turcos. (3) Selim I, rei dos Turcos, filho de Baiazeto II (a quem sucedeu no reino no ano de 1512) e neto de Mahamat II, que tomou Constantinopla no ano de 1453 com morte do imperador Constantino Paleólogo, pelejou com Xá Ismael, rei dos Persas, de quem alcançou vitória, posto que com grande perda sua; e per morte dos dous reis do Egipto, Cansor Algauri e Tumumbeio, se apoderou do Egipto, Síria e Arábia, e morreu no ano de 1520. (4) No mesmo liv. 1, cap. 3. (5) A madeira, pregadura, enxárcea e todas as mais cousas necessárias para esta armada, foram levadas de Alexandria em barcas pelo Nilo acima té o Cairo, e dali com excessivas despesas em camelos té Suez, que são 24 léguas de terra deserta e sem água. (6) Soleimão, ou Solimão II, que sucedeu a seu pai Selim, tomou Rodes e quase toda Hungria, cujo Rei Luís foi dele vencido, e na batalha morto; entrou em Áustria, intentou tomar Viena, sua metrópole, da qual se retirou com perda, por acudir à sua defensão o Imperador Carlos V, Máximo. Apoderou-se de Assíria e Babilónia, tomou Moldávia, cometeu a empresa de Malta, e no cerco de Ziget morreu no ano de 566. (7) Liv. 1, cap. 3 (8) Diogo do Couto escreve no cap. 10, do liv. 6, que Mustafá se ajuntara com el-Rei de Xael, e ambos assediram Adem com mais de vinte mil homens, e a puseram em tamanho aperto, que a tomariam, senão chegara àquele porto ua armada nossa, de que era capitão- mor Heitor da Silveira, com temor da qual, e que poderia ir tomar Xael desapercebida, o se Rei e Mustafá levantaram o cerco. (9) Diferentemente escreve desta maneira Diogo do Couto (Déc. 4, liv. 3, cap. 6), porque diz que se armaram no porto de Suez setenta e seis velas per mandado de Soleimão, rei dos Turcos, das quais fez capitão geral a Soleimão (a que Couto erradamente chama Baxá e Governador do Cairo, não sendo este Soleimão, senão o capado, que no ano de 538 passou à Índia, e teve Dio cercada), e por seu Lugar-tenente a Escander-Can. Na sua companhia iam Mustafá Carami Elaracen, que depois foi Senhor de Baroche, Acem Lan, que no reino de Cambaia teve o título de Madre Maluco, e Coge Sofar, que naquele tempo era tesoureiro do Cairo, o qual levava sua mulher, filhos e genro. Com esta armada partiu Soleimão de Suez; na entrada do Verão de 1527 chegou a Camarão, onde fez ua fortaleza; e provida da gente e munições, se embarcou para passar à Índia; e por achar na boca do Estreito os levantes, voltou para dentro, e foi esperar a moução dos ponentes de Abril em Cobit Sarif, porto da Arábia, do reino de Zeibid, o qual tomou Soleimão e nomeu por Governador dele a Escander. Sucederam entre ambos diferenças, das quais resultou a morte de Soleimão dada per ordem de Escander, que ficou em Zeibid com título de Rei; os outros capitães se tornaram para Suez, e Mustafá, sobrinho de Soleimão, com os da sua valia, se passou a Xael, e dali a Dio.

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28 28 35 Capítulo IX. Como Pero Mascarenhas mandou Álvaro de Brito com alguas fustas à Ilha de Bintão, pera que lhe não entrassem mantimentos; da nova que teve da sua sucessão no governo da Índia; e da armada que fez para ir a Bintão. Depois que Aires da Cunha e Jorge Mascarenhas se vieram de Bintão por causa das enfermidades e mortes da gente (como atrás temos dito), (1) tornou Pero Mascarenhas a mandar lá ao mesmo efeito Álvaro de Brito com alguns navios para estorvar que naquele porto não entrassem mantimentos; e por a grande necessidade que ele tinha deles, mandou três navios à Jaua, de que eram capitães João Moreno, Francisco Lopes Bulhão e Gonçalo Álvares, e não foram à costa de Pão, donde Malaca às vezes se provia, porque estava de guerra com os Portugueses, por causa da morte de D. Sancho Henriques, (2) e do dano que por essa razão lhe fez Martim Afonso de Sousa.(3) Neste tempo Jorge Cabral, que partira de Cochi pera as 29 29 Ilhas de Maldiva, sendo já Lopo Vaz de Sampaio Governador, e trazia duas fustas, um catur e ua caravela (na qual ia um Rui Martins, cavaleiro da casa del-Rei, pera ficar ali por feitor), entregou os navios a Gomes de Souto-Maior, que ia em ua das fustas por sota capitão, e ele se foi na outra caminho de Malaca dar novas a Pero Mascarenhas da sua sucessão, pera ver se de alvísseras podia alcançar a capitania da Malaca. E como na felicidade acham os homens muitos amigos, trás ele foi Duarte Coelho com recado de Afonso Mexia, e daí a poucos dias António da Silva de Meneses, que lhe levava a carta da governança e os autos que sobre isso era feitos em Cochi. Com os quais chegado António da Silva a Malaca, o alcaide-mor, feitor e oficiais dela se foram à Igreja, e nela com sua solenidade deram juramento a Pero de Mascarenhas de seu cargo, segundo costume; e com grandes mostras de prazer o houveram todos por Governador, e logo proveu de capitão da fortaleza a Jorge Cabral por as qualidades de sua pessoa, e, por a boa nova que lhe levou; e fez secretário a Lançarote de Seixas, e ouvidor geral a Simão Caeiro. Mas Aires da Cunha, Capitão-mor do mar, se agravou do provimento da fortaleza em Jorge Cabral por alvísseras, e não nele por justiça, pela qual dezia pertencer-lhe por regimento del-Rei, de que o traslado estava na feitoria. Pero Mascarenhas, 36 porém, se resolveu que a provisão se entendia quando o capitão da fortaleza falecesse, do que Aires da Cunha ficou mui escandalizado. Duarte Coelho também houve seu quinhão das alvísseras, que foi ua viagem pera a China, que não houve efeito, senão a capitania-mor do mar da armada de Francisco de Sá, que ia pera a Sunda, que daí a poucos dias chegou da Índia, a qual capitania vagara por D. Jorge Telo de Meneses, que partiu de Cochi provido dela em companhia de Francisco de Sá em um galeão velho, em que levava todas as munições necessárias pera se fazer a fortaleza em Sunda; e no primeiro tempo rijo que lhe deu no golfão de Ceilão, abriu o galeão, e se foi ao fundo com mais de sessenta homens, e D. Jorge escapou em um batel com alguns quarenta, e se tornou à Índia. E posto que a moução de Setembro não era vinda pera Pero Mascarenhas se partiu pera a Índia, por não esperar a de Dezembro, e o inverno, que era mui tarde, quis em Agosto 30 30 ir esperar os levantes aos Ilhéus de Pulopuar; e estando surto neles, lhe deu um temporal tam rijo, que com os mastros quebrados do galeão em que ia, tornou arribar a Malaca, e por ua maré que se

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adiantou, um navio que ia carregado de drogas pera à Índia escapou do temporal, e passou à Índia, (4) onde deu nova como Pero Mascarenhas ia; e a causa de ele não partir na mesma maré, foi haver vista à saída do porto de navios que vinham de Banda com António de Brito, capitão que fora de Maluco, e tornou a entrar no porto por saber novas daquelas partes, de que havia meses que as não tinha: e esta breve detença que então fez foi causa de arribar e de tomar Bintão, quando o seu Rei tinha maiores esperanças de ocupar Malaca. Porque do tempo de Jorge de Albuquerque ficara mui desbaratada com as guerras e fomes que nela houve, com que muitos mercadores a deixaram, e foram habitar a outras partes, e os senhores que tinham escravos lhes deram liberdade por os não poderem manter. Sobre esta necessidade de fome e da guerra passada era já morta muita gente da que Pero Mascarenhas levou nas idas a Bintão, onde muitos acabaram de doença. Ia-se também Pero Mascarenhas à Índia a governar, e Francisco de Sá havia de ir fazer a fortaleza de Sunda, com que a cidade de Malaca ficava só, e em poder de Jorge Cabral, novo capitão sem cabedal para sustentar a fortaleza sem gente. Todas estas cousas eram manifestas a el-Rei de Bintão por Mouros de Malaca, que de tudo lhe davam aviso; e como todas eram em seu favor, determinou de se aproveitar da ocasião e vir tomar Malaca, pondo nisso todas suas forças, e de seus amigos. Para o que mandou requerer todos os seus parentes e aliados que o socorressem com gente quando fosse tempo, e com mantimentos por seu dinheiro, e que a Malaca os denegassem, porque per fome e ferro lhe queria fazer guerra, té ganhar o seu que tinha perdido. 37 A estes pensamentos atalhou Deus, Nosso Senhor, com o estorvo que deu à partida de Pero Mascarenhas; o qual, sabendo que não podia já partir pera a Índia menos que na fim de Dezembro ou entrada de Janeiro, e que deixava aquela cidade em perigo manifesto, se não destruísse a Bintão antes da sua partida, chamou a conselho todos aqueles capitães e fidalgos que ali estavam, e, manifestando-lhes o perigo de 31 31 Malaca, e que o remédio dele era a ruína de Bintão, lhes disse que ele determinava cometer aquela empresa, da qual tinha por certo tornar com vitória, porque isso entendia haver Deus estorvado a sua ida à Índia, e juntado naquela ocasião tantos fidalgos e capitães e valentes soldados. Aprovaram todos a determinação de Pero Mascarenhas, o qual, pera que o Rei de Bintão não se apercebesse mais do que estava fortalecido, usou desta cautela: Como era público que Francisco de Sá estava ordenado para ir a Sunda, e ele estava doente, deu Pero Mascarenhas cuidado a Duarte Coelho, que aprestasse as cousas da armada pera Bintão, com voz que as fazia pera a Sunda, por ele estar declarado que havia de ir com Francisco de Sá servir de Capitão-mor do Mar. Esta estratagema e ardil foi mui proveitoso, porque, enquanto Duarte Coelho apercebeu aquela armada, sempre os Mouros tiveram pera si ser pera a Sunda. Providas todas as cousas pera a jornada, embarcou-se Pero Mascarenhas em um galeão, de que era capitão Álvaro de Brito; e das outras velas, que eram vinte, em que entravam seis que haviam de ir a Sunda, eram capitães Aires da Cunha, Álvaro da Cunha, seu irmão, António da Silva, António de Brito, D. Jorge de Meneses, Francisco de Sá, Duarte Coelho, Simão de Sousa Galvão, Tristão Teixeira, João Rodrigues, Pereira Pássaro, Francisco de Vasconcelos, Jordão Jorge, Francisco Jorge, e Fernão Serrão, de Évora. Todos estes iam em navios portugueses; as outras embarcações eram lancharas da terra, e nelas iam por capitães Jorge de Alvarenga, Diogo de Ornelas, João Esteves, Vasco Lourenço, Fernão Pires e Gaspar Luís. Nesta frota iam té quatrocentos soldados portugueses, em que entravam muitos fidalgos, além dos capitães, e outra gente nobre. Os malaios da terra e vassalos da cidade seriam seiscentos, de que eram capitães dous mouros principais: Tuão Mafamede, e Sinaia Raxa. Com esta armada e gente partiu Pero Mascarenhas um Domingo, 23 dias de Outubro daquele ano de 1526.

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NOTAS (1) Déc. 3, liv. 10, cap. 6 (2) Da morte de D. Sancho, Déc. 3, liv. 8, cap.7. (3) Era Martim Afonso de Sousa filho de Manuel de Sousa, de quem trata João de Barros na 3ª Déc., liv. 10, cap. 2. (4) Este navio chegou à Índia no fim de Dezembro de 1526.

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32 32 38 Capítulo X. Como Pero Mascarenhas chegou ao porto da Ilha de Bintão e desbaratou ua armada del-Rei de Pão; e do conselho que teve por onde acometeria a entrada da cidade. Sendo todo o caminho de Malaca a Bintão cheio de ilhetas, restingas e baixos de muito perigo, chegou Pero Mascarenhas ao porto de Bintão com grande trabalho e risco; e surgindo, mandou sondar a barra de rio para ver se poderia subir per ele acima com os navios pequenos que levava. Foi Duarte Coelho a fazer esta sonda; e tornando, deu-lhe menos esperanças da subida dos navios das que ele levava de Malaca. Porque, despois que Jorge de Albuquerque voltou de Bintão, mandou el-Rei meter no rio mais estacas, e tão retorcidas, que não podiam entrar em aquele canal senão alguas pequenas lancharas; e porque levar a gente nelas té à ponte, que estava na cidade, onde Pero Mascarenhas se queria ver, era oferecer a gente à morte mui certa, assentou por conselho dos que ali foram com Jorge de Albuquerque de mandar arrancar as estacas e despejar o caminho; e assi se fez; para a qual obra nomeou a Fernão Serrão, que era capitão de um navio, por ser bom cavaleiro e homem industrioso, e deu-lhe cinquenta homens escolhidos e despachados pera aquele mester. Começando Fernão Serrão esta obra, foram tantos os tiros sobre ele de artelharia que estava assentada na terra, principalmente nos cotovelos dela, que, se não foram as grandes arrombadas que o navio levava, fora metido no fundo. Foi esta arrancada das estacas um trabalho tam grande, que bastava para matar os homens, quanto mais os pelouros da artelharia; porque, como as estacas foram ali metidas com força de maço e sobre elas cresceu a vasa, assi se uniu com os paus, que parecia terem criado raízes, tam firmes estavam; pelo que à força de cabrestantes se buliam e arrancavam, pondo os homens nisso tanto trabalho que cuspiam sangue. Sobre este trabalho lhe cresceu outro, que os meteu 33 33 em maior revolta, e foi a socorro que el-Rei de Pão, genro del-Rei de Bintão, lhe mandava, assi de gente como de mantimentos, em trinta lancharas, que faziam grande aparato e mostra ao mar; e posto que Pero Mascarenhas já tinha notícia desta armada que el-Rei de Bintão tinha mandado pedir, e não o sobressaltou a vista dela, toda via fez em todos grande alteração; de mais, de verem tamanha frota, recearam que, chegada ela ao porto, saísse de dentro do rio Laquesemena, e os metesse em maior trabalho. E assi antes que se chegasse mais, mandou Pero Mascarenhas a Duarte Coelho que lhe saísse com alguas velas ao encontro; porque Aires da Cunha, que era Capitão-mor do Mar, tinha enjeitado o cargo por as paixões passadas com Pero Mascarenhas sobre 39 a capitania de Malaca que lhe não deu. Porém quando viu a revolta que ia na vista daquelas lancharas, ele com seus irmãos Álvaro da Cunha, Francisco da Cunha e alguns parentes e amigos, que se lhe chegaram, se foi a Pero Mascarenhas, dizendo: - Senhor, que mandais que faça por serviço del-Rei, que para isso não negarei minha pessoa? Ao que Pero Mascarenhas respondeu: - Acudi, Senhor, ao encontro daqueles navios que vedes - o que Aires da Cunha logo fez, mandando Pero Mascarenhas alguns navios que o acompanhassem, e ficou daquela parte descansado, vendo que Aires da Cunha se oferecia e com ele iam seus irmãos e pessoas que do caso haviam de dar boa conta. Os Mouros, quando viram Duarte Coelho que saía da armada de Pero Mascarenhas, não fizeram dele conta, porque levava somente quatro ou cinco navios; mas quando apareceu Aires da

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Cunha, imaginando ser ardil de guerra acometerem-nos espalhados, e começaram a redemoinhar; e a maior parte deles, que a Duarte Coelho que ia diante já começavam a varejar com a artelharia, foram-se retirando pera ua ilha que ali estava perto com fundamento de salvar em terra; e assi o fizeram. Finalmente, a sua vinda parou em muitos deles serem tomados no mar, e muitos naquela ilha, e outros, deixando os navios, salvaram suas pessoas, a que ajudou ser perto da noite, por razão da qual Duarte Coelho e Aires da Cunha os deixaram de perseguir, e contentaram-se com lhe ficarem na mão mais de doze lancharas com quanta artelharia e mantimentos traziam. 34 34 Havida esta vitória, que Pero Mascarenhas tomou por certo sinal da outra que esperava da tomada da cidade, dobrou mais gente pera revezar com outra fresca o arrancar das estacas, que ainda com toda esta dobrada diligência durou o trabalho mais de doze dias, sendo já neste tempo o navio de Fernão Serrão tam esfuracado da artelharia e tam cheo de água, que era outro novo trabalho esgotá-lo, por que se não fosse ao fundo. Toda via ele acabou sua obra, e foi-se pôr muito perto da ponte, a qual, ordenada pera serventia e defensão da cidade, estava armada sobre grossos mastros de pau barbusano, que, por ser forte e rijo, lhe chamavam pau ferro. A cidade ficava situada à mão dereita da ponte, (1) apartada dela pouco mais de mil passos, toda cercada de madeira grossa, com estacada dobrada, e tam alta como um muro feito a dentes de serra, que ficavam sendo traveses uns dos outros, defendidos com muita artelharia. E pera defensão de ua praça que ficava entre a cidade e o rio, e servia para a embarcação, havia um baluarte terraplenado, e nele assentadas muitas peças de artelharia. 40 Na outra parte da ponte, assi da banda debaixo té a foz do rio, como acima dela, tudo era um espesso arvoredo de mangues, árvores que se criam na água salgada, sem haver outra serventia nem caminho, por tudo ser alagadiço, per que se não serviam. E com tudo no fim desta ponte (ainda que com este arvoredo de mangues abaxo e acima estava segura desta mão esquerda, fronteira à outra dereita, em que el-Rei tinha posta a maior defensão) estava feito outro baluarte daquela madeira forte com muita artelharia, e por capitão desta estância um mouro por nome Tuão Rajá, bom cavaleiro, com gente que ele escolheu à sua vontade. Da outra banda da cidade, que era a dereita, em que os Mouros outro-si tinham posta sua defensão, além dos capitães que estavam repartidos pelos lanços do muro que dissemos, ficava de fora Laquesemena, como capitão do mar, por ali ter suas lancharas, com que esperava pelejar, havendo disso necessidade. E assi o fez; porque, tanto que Fernão Serrão acabou sua obra, e com grande grita e prazer chegou à ponte, ficando de maré chea, como um baluarte sobre ela, acometeu Laquesemena o navio, e pelejando os Mouros animosamente com custo de muito sangue dos nossos, e derribando a Fernão Serrão quase por morto, 35 35 houveram de ficar senhores do navio. Mas a esta pressa acudiu Pero Mascarenhas em as mais pequenas embarcações que tinha, por causa da artelharia que estava nos cotovelos de terra das torceduras do rio, e fez tal estrago em os Mouros, que despejaram o navio, e Laquesemena se tornou a recolher. Aconteceu que neste recontro um escravo moço e cristão de um português que estava cativo, tendo tempo, escapou, e veo dar nova a Pero Mascarenhas do estado das cousas del-Rei, e como estava fortalecido; e per o mesmo modo também em português cativo, preso com ua grossa braga, ante manhã metido bem na vasa por chegar ao navio de Fernão Serrão, começou a bradar, e pelos nossos foi dali tirado e levado a Pero Mascarenhas, a quem contou tudo o que passava entre os Mouros. Vendo pois Pero Mascarenhas per sua própria pessoa a fortificação que os Mouros tinham posta naquela parte da mão dereita, onde a cidade estava, como em lugar de maior suspeita, por razão da praça e serventia; e considerando também a outra parte da ponte onde estava o baluarte e o

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grande arvoredo que havia ao longo do rio té ir dar nela; disto que reconheceu e notaram os que com ele foram, tirou o conselho do que havia de fazer, e foi mandar logo aquela noite ordenar na praia, na face do terreiro, que era serventia da cidade, um repairo de pipas cheas de terra, guarnecidos com alguns falcões e guardado com os malaios que vinham naquela armada, capitães Tuão Mafamede e Sinaia Rajá, com alguns portugueses que os governassem, aos quais ele descobriu os sinais que haviam de fazer, e aos que haviam de responder, porque sua tenção era acometer a entrada da cidade per outra parte, e dar a entender ao inimigo com aquela prevenção que por 41 ali a queria entrar; e a este fim mandou pôr naquela parte os malaios que, como gente menos fiel, não lhe serviam de mais de que mostra do que ele não queria fazer. E por onde determinava que fosse a entrada da cidade, menos suspeitosa a el-Rei e mais trabalhosa aos nossos, por a grande aspereza do caminho, era pela mão esquerda per entre os mangues, té ir dar no baluarte da ponte. Vinda a noite, deixando os navios grandes providos de gente e em os de remo leves embarcando outra, os repartiu em duas esquadras: 36 36 ua deixou ao meio do rio, para que se ajuntasse com os malaios, e a outra que fosse demandar o navio de Fernão Serrão, que correu risco de ser perdido por os Mouros lhe virem cortar as amarras, o que sentindo os nossos que vigiavam, lançaram outras guarnecidas com cadeas de ferro, que se não podiam cortar.

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NOTAS (1) O sítio da Ilha e cidade de Bintão descreve-o João de Barros na 3ª Déc., Liv. 5, cap. 4.

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36 36 41 Capítulo XI. Como Pero Mascarenhas cometeu e destruiu a cidade de Bintão, com morte de muitos mouros e fugida del-Rei. Dada esta ordem, saiu logo Pero Mascarenhas em terra abaixo da ponte espaço de ua légua, e com guias que levava diante começou a caminhar per entre os mangues, e acometeu um trabalho increível e um feito, que em outro capitão que não tivera o ânimo e valor de Pero Mascarenhas, se podia chamar temerário e inconsiderado, vista a pouca notícia que ele tinha daquele lugar, e as circunstâncias dele e do tempo; porque o tempo era de noite escura, o caminho entre árvores, cuja espessura fazia a noite mais escura; e ora pela vasa, ora per cima de grandes raízes que estas árvores criam do meio do tronco pera baxo, ordenadas de maneira que per cima delas se não pode andar em pé, e tudo tam intricado com elas, que pera de dia era este caminho em estremo trabalhoso, quanto mais pelo escuro da noite. Com estes trabalhos cansados e enlameados os nossos, chegaram ao baluarte da ponte, antes que a alva rompesse; e como os mouros da vigia da noite estavam cansados e descuidados de serem acometidos por aquele lugar, quase não sentiram os nossos, senão quando deram Santiago neles, e as trombetas fizeram sinal aos que estavam com Fernão Serrão, e com os Malaios na estância das pipas, e todos arremeteram com tam espantosa grita, que os Mouros não atinavam aonde haviam de acudir; e por ouvirem maior ruído de vozes na estância dos Malaios, por ser de maior número de gente, e haver 42 nela trombetas para enlearem mais os inimigos, acudiram eles ali primeiro que a outra parte; e como tinham esta por mais principal estância, 37 37 parecendo-lhes que por ela os havia de acometer Pero Mascarenhas, e estava nela Laquessemena, ajuntou-se ali a maior parte dos Mouros, mas não se sabiam determinar, porque ainda a luz do dia não dava muita claridade. Fernão Serrão, como lhe estava encomendado, com panelas de pólvora pôs o fogo a um baluarte pegado com a gente, de que os Mouros com temor se afastaram. Já a este tempo a parte que Pero Mascarenhas acometeu era entrada, e o primeiro que subiu por aquele baluarte foi Aires da Cunha com seus irmãos Álvaro da Cunha e Francisco da Cunha, e João Pacheco, aos quais os Mouros resistiram valerosamente; e Aires da Cunha logo aí houve o retorno do ferro com que matou o primeiro que se lhe defendeu, porque, quando subiu, lhe meteram um zarguncho por entre as pernas, de que despois trouxe muito tempo a ferida aberta, e manquejou. Por a mesma parte per onde Aires da Cunha entrou, foi aberto um postigo que fechava a ponte sobre si, ao qual acudiram muitos dos nossos, e entrando per ele, começaram encaminhar pela ponte adiante, até irem entrar na cidade, que já andava posta em grande revolta, atónitos e confusos os Mouros, sem saberem a que parte haviam de acudir. El-Rei ficou tam cortado, quando soube que a cidade era entrada, que, não ousando esperar a fúria da vitória, houve à mão um elefante, e sem esperar outra cousa, quis salvar sua pessoa, e meteu-se pelo mato ao interior da ilha; e pera mais trabalho seu, entendendo da gente que o acompanhava que alguns dos nossos o seguiam, com temor se desceu do elefante, e se embrenhou na espessura do mato, indo alguns portugueses no seu alcance té se embrenhar. E cuidando Pero Mascarenhas que o tinha nas suas casas, com o maior corpo da gente que o seguia, foi dereito a elas; e um dos capitães del-Rei, por nome Laxa Ràjá, que estava em guarda de outra parte principal da cidade, por lhe darem rebate que era entrada pela ponte, acudiu também às casas del-Rei, não

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sabendo que era fugido, e veo-se a encontrar nelas com Pero Mascarenhas, onde pelejaram os Mouros mui esforçadamente, enquanto não souberam que el-Rei era partido; mas depois que lhes chegou esta nova, não somente Laxa Ràjá, que primeiro o soube, já ferido de duas espingardas, mas todos os outros a quem melhor salvaria a vida, entregaram a cidade à vontade dos nossos vitoriosos.(1) 38 38 Antes que fosse metida a saco, três mercadores estrangeiros, que nela tinham muita fazenda, se vieram a Pero Mascarenhas, pedindo-lhe que deles houvesse compaixão, por não serem naturais da terra; o que ele concedeu 43 com condição, que lhe dessem os mantimentos que houvessem mester os dias que ali estivessem, como fizeram. Despois que a cidade foi saqueada, poseram-lhe o fogo. Houve nela grande despojo, em que entraram perto de trezentas peças de artelharia, das quais muitas foram nossas, havidas per os navios das armadas que este Rei trazia contra nós. O qual, vendo-se desbaratado, furtadamente se passou à terra firme de Malaca, a um lugar chamado Ujantana, onde daí a poucos dias com o trabalho do caminho e nojo da sua última perdição, acabou a vida; mas ficou-lhe um filho por nome Alaudim, que também seguiu esta guerra contra nós, como adiante diremos.(2) Acabado este feito, que foi o mais honrado de quantos naquelas partes se fizeram, porque Francisco de Sá havia de fazer sua viagem pera Sunda, Pero Mascarenhas o despediu dali, e ele se tornou para Malaca, com honra e triunfo de tam gloriosa vitória.!

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NOTAS (1) Havia na cidade para sua defensão mais de sete mil homens de peleja, dos quais morreram mais de quatrocentos, sem os muitos feridos, e se cativaram dous mil: e dos Portugueses morreram dous ou três. Diogo do Couto, liv. 2, cap. 3. (2) Antes que Pero Mascarenhas partisse de Bintão, veio ali ter o senhor que fora daquela ilha, a quem o Rei morto a tomou, e pediu a Pero Mascarenhas que lha restituísse, e ele lha deu com condição que ficasse vassalo de el-Rei de Portugal, e que não faria fortaleza naquela ilha nem traria armada no mar. Veio também el-Rei de Linga, grande amigo dos Portugueses, que vinha em seu socorro com dezoito lancharas, e foi mui bem recebido de Pero Mascarenhas. Diogo do Couto, liv. 2, cap. 3.

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38 38 43 Capítulo XII. Da descrição de Sunda e costumes de seus habitadores; e em que lugares da Índia há pimenta pera carregação. Antes que trataremos do sucesso da jornada de Francisco de Sá, é necessário contar a causa dela; e como esta depende da amizade e paz, que Henrique Leme, per ordem de Jorge de Albuquerque, capitão que foi de Malaca, assentou com el-Rei de Sunda, por razão da pimenta que há naquele reino; convém primeiro dar notícia da viagem de Henrique Leme, ainda que na costa dos anos tornemos um pouco atrás do tempo de que ao presente tratamos; e porque o reino de Sunda é um dos da Ilha de Jaua, será necessário preceder a tudo a descripção desta ilha e reino, pera se melhor entender o que sobre ele hemos de dizer. Da terra da Jaua fazemos duas ilhas, ua ante outra, cujo lançamento é de Ponente para Oriente, quase ambas em um paralelo, em altura de sete 44 té oito graus da parte da Linha Equinocial pera o Sul. No comprimento destas ilhas, segundo os 39 39 mareantes daquele Oriente se assentam em suas cartas, haverá distância pouco mais ou menos de cento e oitenta léguas, não sendo na verdade tantas, como mostraremos na nossa Geografia Universal. Os mesmos Jaus não fazem da Jaua duas ilhas, senão ua de todo aquele comprimento. E para o Ponente, onde ela vem avezinhar com a Ilha Samatra, fica entre ambas um canal de dez té doze léguas de largura, (1) pelo qual se navegava todo aquele Oriente com o Ocidente da Índia, antes que Malaca se fundasse, como já temos escrito. Esta Jaua assi como vai em comprimento, leva pelo meio ua corda de serranias mui altas, que serão da costa do mar da parte que tem a face ao Norte até o mais interior da terra vinte e cinco léguas, e delas para o Sul os mesmos naturais da terra não sabem o que vai, somente dizem ter notícia, que destas terras té o mar do Sul haverá outro tanto. Quase no terço do comprimento desta ilha, na parte ocidental, está Sunda, de que havemos de tratar, a qual parte da terra os seus naturais têm ser ilha apartada da Jaua per um rio pouco sabido dos nossos navegantes, a que eles chamam Chiamo ou Chenano, que corta do mar todo aquele terço de terra, de maneira que, quando aqueles naturais dão a demarcação da Jaua, dizem que a parte do Ponente confina com a Ilha de Sunda, e se aparta dela por este Rio Chiamo, e da parte do Oriente com a Ilha Bale, e que do Norte tem a Ilha Madura, e do Sul mar não descoberto, porque têm eles pera si que quem sai per estes canais contra aquele mar do Sul, esgarra com as grandes correntes, e não pode mais tornar, e por isso o não navegam ao modo que fazem os Mouros na costa da Cafraria té Sofala, que não passam o Cabo das Correntes, por as grandes que aquele mar tem. Os moradores de Sunda, em abonação da sua terra, gloriando-se ser melhor que a Jaua, dizem que Deus ordenou assi esta divisão entre estas duas terras per aquele rio Chiamo; e logo per ele mesmo o quis mostrar nas árvores que nascem ao longo dele, porque, tendo as raízes na sua margem, lançam as ramas e fruito para dentro de si, deixando o rio desassombrado deste arvoredo; a qual causa, sendo conforme à razão natural, eles a atribuem a mistério, por carecerem dos princípios da Filosofia, porque todas as cousas naturalmente são tam amigas de sua própria conservação e fogem tanto das que lhe podem ser prejudiciais, 40 40 que por fugirem aquelas árvores aos ventos que correm com grande ímpeto pela madre daquele rio, se inclinam a outra parte, como quem lhes foge, o que é cousa mui nota aos bons mareantes, que da inclinação das árvores que estão ao longo do mar, conhecem que vento cursa naquela costa o mais

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do ano. 45 E tornando à repartição que os naturais daquelas partes de Sunda fazem, eles a apartam per aquele rio Chiamo que dissemos, o qual, por não ser dos nossos navegantes mui sabido, fazem da Sunda e Jaua ua ilha; e deixando as cousas da Iaua para a nossa Geografia Universal, pois a Sunda nos trouxe a esta descripção de terras, falaremos um pouco dela.(2) Esta Ilha de Sunda é terra mais montuosa por dentro que a Jaua; tem seis portos de mar notáveis: Chiamo, que é o estremo da Ilha, Xacatara, por outro nome Caravão, Tangarão, Cheguide, Pondang e Bantão, (3) que são de grande tráfego, por razão do comércio que se aqui vem fazer, assi da Jaua, como de Malaca, e Samatra. A principal cidade que tem este reino se chama Daio, metida um pouco no sertão, a qual afirmam que, no tempo que foi àquela ilha Henrique Leme, tinha cinquenta mil vezinhos, e no reino haveria cem mil homens de peleja; agora por a guerra lhe fizeram os Mouros está tudo muito deminuído. A terra é em si mui grossa, há nela ouro baixo de sete quilates, tem carne e monteria de toda sorte, muitos mantimentos e tamarindos, que aos naturais servem de vinagre. A gente não é muito belicosa, mas dada às suas idolatrias, pera o que tem grande número de templos; querem mal aos Mouros, e muito maior agora, despois que os conquistou um Sangue de Pate de Dama. Podem aqui resgatar quatro e cinco mil pessoas por cativos, por ser muito povo e lícito, por lei sua, que o pai possa vender os filhos por qualquer leve necessidade. As mulheres têm por parecer, e as nobres são mui castas, o que não são as do povo; têm mosteiros de mulheres que guardam perpétua virgindade, por vaidade da honra mais que por devação. Os homens nobres, quando não podem casar suas filhas à sua vontade, contra a sua delas as metem nestes 46 mosteiros. As casadas, quando lhes morrem seus maridos, hão de morrer com eles por honra; e se temem a morte, então se metem naqueles mosteiros como religiosas. O reino se sucede 41 41 de pai a filho, e não o sobrinho de irmã ao tio, como usam os Malabares e outro gentio da Índia. Prezam-se de ter armas ricas, guarnecidas de outro e lavradas de tauxia, e assi douram os crises e ferros de lanças e toda outra arma de ferro. Muitas outras cousas pudéramos escrever desta terra (que deixamos para a nossa Geografia, por não fazer ao propósito desta história); e de todas as que ela produz, a de maior importância é a pimenta, de que se colhe cada ano mais de trinta mil quintais. E porque os Reis de Portugal, além da conquista daquelas partes do Oriente, para sustentação dela, têm o comércio das mercadorias que a estes reinos se trazem, parte fica sendo desta história da Índia, com a ocasião da pimenta da Sunda, tratar dela (como de especiaria mais principal) e dos lugares donde vem. Dizemos, portanto, que das partes que os Portugueses conquistaram na Índia, daquém e dalém do Ganges, em seis partes somente há pimenta que seja cousa notável para carregação de naus. Na terra do Malabar a há, muito neta; na parte ocidental da Ilha de Samatra, onde são os reinos de Pacém e Pedir; na costa de Malaca onde chamam Quedá, e na outra parte da mesma terra que tem o rosto para Levante, quási oposta a esta, e na terra da Jaua, por nome Sunda. A pimenta daqui e do Malabar é quase igual em peso, grossura e sabor, e nestas duas partes há maior quantidade que nas outras. E antes que entrássemos na Índia, todas as terras ocidentais do Mar Parseo para nós se proviam da que haviam do Malabar e de Quedá, Samatra, Sunda e Patane, todo aquele Oriente té a China. Mas antiguamente, quando os chins conquistaram a Índia (como já em outra parte escrevemos) no Malabar faziam suas carregações por dar saída a suas mercadorias que traziam do seu Oriente, por ser muito vezinho à Pérsia e Arábia, e per as quais províncias tinham saída para o nosso Ocidente, e ainda hoje o Cochi, onde nós fazemos a carga, ficou este nome que lhe os Chins puseram. Mas como com nossa entrada na Índia todo o comércio e navegação das especiarias se mudou, os Mouros, que nesse tempo eram senhores dele, o vieram a

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perder, por nós o defendermos com nossas armadas, com as quais eles atormentados, deixando a costa do Malavar, iam aos reinos de Pacém e Pedir, onde, além de pimenta, achavam 42 42 noz, maça e cravo, que pela via de Malaca ali vinha ter, e outras mercadorias daquele Oriente, e sua navegação era per entre as Ilhas de Maldiva, vindo abocar o Estreito de Meca, fugindo de nossas armadas. E alguns depois que os Portugueses foram senhores do reino de Pacém, posto que era comprida navegação, iam per fora da Ilha Samatra ao porto de Sunda, onde achavam mais cópia de pimenta, e assi de outras drogas, por ser todo aquele Oriente navegado pelos Jaus, de cujas mãos eles haviam tudo. 47 E porque a sustância de Malaca estava no trato daquele Oriente, por ser ua feira a que o de lá e de cá concorre, e por ódio nosso os Jaus fugiam dela e buscavam estoutras saídas, assi para a China como para Cambaia e Estreito de Meca; como Jorge de Albuquerque, capitão de Malaca, tinha muita notícia deste comércio da Sunda, determinou de o mandar tentar per Henrique Leme, seu cunhado, por ser senhor dele um rei gentio chamado Samião, com o qual já tinha comunicação da primeira vez que esteve em Malaca, em tempo de Afonso de Albuquerque.

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NOTAS (1) Este canal, que se chama o Boqueirão da Sunda, tem no mais largo vinte cinco léguas, e no mais estreito seis; e na saída dele da parte de Levante fica a Ilha Macar, que se afirma ter muito ouro. (2) A Ilha da Jaua é dividida em muitos reinos pelo marítimo setentrional dela; e dos que se tem notícia, começando da sua parte oriental, são: Paneruca, Ovalle, Agasai, Panião (cujo rei reside no sertão e tem superioridade sobre os Reinos referidos e outros), Berodão, Sodaio, Tubão, Cajoão, Japara (a cidade principal deste Reino se chama Cherinhamá, três léguas apartadas do mar; e à borda dele fica a de Japara) Damo, Margão e Hatarom. Nas serras desta Ilha vivem muitos senhores que se chamam gunos, gente selvagem e que come carne humana. Os seus primeiros povoadores foram Siames, que cerca do ano de 800, partindo de Sião em um junco para a Ilha de Macaçar, esgarraram com um temporal, e se perderam na Ilha de Bale, e na champana do Junco vieram ter à Jaua, até então não descoberta, a qual, por sua grossura e fertilidade, veio logo povoar Passará, filho del-Rei de Sião, e em um bom porto dela fundou a cidade Passarvão do seu nome, que foi a primeira povoação desta Ilha. São os Jaus soberbos, valentes e atreiçoados, tam vingativos, que por qualquer pequena ofensa (tendo eles pola maior de todas porem- lhes a mão na testa), se fazem amoucos para se satisfazerem dela; exercitam muito a navegação per aquele Arquipélago Oriental, e dizem que navegaram já pelo Oceano, até a Ilha de S. Lourenço. (3) A cidade de Bintão ou Banta, que fica no meio do Boqueirão de Sunda, está situada no meio de ua larga enseada; de ponta a ponta terá três léguas; é limpa, de seis té duas braças de fundo; sai dela um rio, que divide a cidade em duas, porque podem entrar juncos e galés. A um lado da cidade há ua fortaleza, cujo muro, que é de adobes, terá de largura sete palmos, e os seus baluartes são de madeira guarnecidos com boa artelharia.

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42 42 47 Capítulo XIII. Como Henrique Leme partiu de Malaca e assentou paz com el-Rei Samião de Sunda, e meteu o padrão onde se havia de fazer ua fortaleza; e da jornada de Francisco de Sá, da qual não resultou efeito. Jorge de Albuquerque, para o comércio que queria assentar com el-Rei de Sunda, mandou armar um navio o ano de 1522, de que foi por capitão Henrique Leme, bem acompanhado de gente, e com alguas cousas de presente para aquele Rei Samião. Chegado ao seu porto, (1) ele o recebeu com muito gasalhado; e como homem a que importava muito nossa amizade, assi para se ajudar de nós na guerra que tinha com os mouros, como por causa do comércio, assentou logo com Henrique Leme, que mandasse el-Rei de Portugal fazer ali ua fortaleza, e que lhe carregaria quantas naus quisesse de pimenta a troco de outras mercadorias que a terra houvesse mester. E que demais lhe aprazia dar 43 43 a el-Rei D. João III de Portugal, cada ano, desde o dia que começasse a fábrica da fortaleza, mil sacos de pimenta por boa amizade e paz que com ele folgava ter, os quais seriam dos costumados em sua terra, que era cada um de quarenta e cinco arráteis dos nossos, que montam trezentos e cinquenta e um quintais. De tudo o que se assentou entre el-Rei e Henrique Leme se fizeram duas escrituras a 21 de Agosto do dito ano de 1522: ua, que a el-Rei ficou na mão, e outra trouxe Henrique Leme, das quais por nossa parte foram testemunhas Fernão de Almeida, feitor da fazenda daquela viagem, Francisqueanes, escrivão do seu cargo, Manuel Mendes, Sebastião do Rego, 48 Francisco Dias, João Coutinho, Gil Barbosa e Tomé Pinto, que eram as principais pessoas do navio; e, por parte del-Rei, Mandari Tadão, tamungo sangue de Pate, e Bengar, xabandar da terra. As quais três pessoas, que eram as principais do reino, mandou el-Rei que fossem mostrar a Henrique Leme o lugar onde queria fazer a fortaleza, e assentasse i o padrão por firmeza do que tinham concertado. O padrão, com grande festa, assi dos Portugueses, como dos naturais da terra, se meteu na barra do rio à mão dereita da entrada dele, em um sítio da terra, a que eles chamam Calapa, lugar mais conveniente que a Henrique Leme pareceu para a fortaleza; o qual padrão era dos costumados que assentavam os Portugueses nas terras que descobriam, tomando posse delas, como atrás escrevemos. Deste auto também Henrique Leme tirou seu instrumento, assinado pelas testemunhas referidas, que el-Rei confirmou e assinou. Acabadas estas cousas, e dados seus presentes de parte a parte, Henrique Leme se partiu para Malaca, e de Jorge de Albuquerque foi bem recebido, o qual logo escreveu a el-Rei na primeira armada que daquelas partes veo, dando-lhe conta de como tinha feita aquela obra sem sua licença, por entender quanto importava a seu serviço, por bem de Malaca, ter ali aquela fortaleza. Aprovou el-Rei o que fizera Jorge de Albuquerque, e assi quando o Conde Almirante, Viso-Rei no ano de 1524, partiu deste reino para a Índia, levava em regimento fazer logo esta fortaleza, de que deu a capitania a Francisco de Sá, que foi com o mesmo conde. Mas como o Viso-Rei logo faleceu, D. Henrique de Meneses que lhe sucedeu preveo o Francisco de Sá da capitania de Goa, e não houve tempo para ele partir; e 44 44 como Lopo Vaz de Sampaio entrou no governo, tirou-lhe a capitania, assi para lhe dar saída a ir

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servir seu cargo, pois o de capitão de Goa não era seu, como por el-Rei de Portugal escrever a D. Henrique que mandasse fazer a fortaleza de Sunda; pelo que Lopo Vaz lhe mandou aprestar logo ua armada de seis velas, de que eram dous galeões, em um dos quais ia Francisco de Sá, e D. Jorge Telo de Meneses no outro, e Diogo de Sá em ua galé, António de Sá em ua galeota, e Francisco Mendes de Vasconcelos em ua caravela, e Duarte Coelho em um bargantim. Chegado Francisco de Sá a Malaca, foi a tempo que Pero Mascarenhas estava de caminho para Bintão; e, indo com ele, se achou naquela empresa, e dali o despediu para Sunda, como atrás dissemos. Partido Francisco de Sá de Bintão, deu-lhe um temporal com que Duarte Coelho acertou de ir primeiro ao porto de Calapa, e ali se lhe perdeu o bargantim da armada, o qual foi dar à costa, onde todos morreram a mãos dos Mouros que estavam em terra, os quais havia poucos dias que eram senhores dela, por tomarem a cidade àquele Rei gentio, que era amigo del-Rei de Portugal, e lhe dera lugar para a fortaleza. 49 O mouro que tomou a cidade era homem de baixa sorte, por nome Faletehan, natural da Ilha Samatra, do reino de Pacém. Este, em tempo de Jorge de Albuquerque, quando se tomou a cidade de Pacém ao tirano Geinal e se entregou ao Príncipe herdeiro, (2) se partiu dali em ua nau que ia pera o Estreito de Meca com especiaria, e lá se deixou estar dous ou três anos aprendendo as cousas da seita de Mafamede pera seu intento. Tornando a Pacém, achou nossa fortaleza feita, e nela por capitão D. André Henriques; e por terra não estar então a propósito para se semear a lei de Mafamede,por a vezinhança da fortaleza dos Portugueses, se passou em um navio à cidade de Japara, onde com o nome de caciz de Mafamede se meteu com o Rei, e com pregações o fez mouro, e com sua licença a muitos gentios. Ficou este Rei tam contente da nova lei que tomara, que, parecendo-lhe que nisso servia a Deus e gratificava a Faletehan o benefício que lhe fizera, lhe deu ua irmã sua por mulher; e ele, como sua tenção era converter muita gente à sua seita, pediu a el-Rei, seu cunhado, licença pera ir a Bintão, cidade de Sunda, a fazer esta obra, onde foi recebido de um homem 45 45 principal da terra, que se converteu, e lhe deu comodidade que fosse com a conversão adiante. Faletehan, como viu a cidade aparelhada pera prosseguir seus intentos, e que o Rei da terra estava metido pelo sertão, mandou pedir a el-Rei, seu cunhado, que lhe mandasse sua mulher e algua gente pera sua ajuda, o qual lhe mandou a mulher, e com ela dous mil homens pera o ajudarem no que lhe comprisse. Quando aquele homem principal que o agasalhou viu os dous mil jaus, fê-lo saber ao rei da terra; mas Faletehan se houve com tanta indústria, e assi trabalhou neste negócio, que ficou senhor da cidade e da terra; e assi, quando Francisco de Sá chegou ao porto de Sunda, estava este tirano Faletehan tam senhor, que lhe não consentiu fazer a fortaleza, antes lhe matou algua gente e o desbaratou, de maneira que, tomando conselho com os principais da sua armada, visto os inconvenientes e o pouco aviamento que tinham para prosseguir a guerra, se tornou pera Malaca. Donde despediu logo Francisco de Melo (3) em ua caravela com cartas para o Governador, avisando-o do sucesso da sua jornada, pedindo-lhe mais gente e armada para tornar a intentar a empresa. Francisco de Melo fazendo sua viagem, sobre a barra de Achém viu ua nau surta à carga, e com conselho dos companheiros a cometeu; e porque nela havia mais de trezentos achéns e quarenta rumes, não se atrevendo a abordá-la, se puseram à trinca, e com a artelharia a bateram, té que com um camelo que lhe tiraram ao longo da água, a abriram, e chea dela se foi ao fundo. Os Achéns e Rumes 50 se lançaram ao mar para se salvarem, mas escaparam poucos; porque os Portugueses, raivosos da perda da nau, que estava cheia de fazenda, os mataram quase todos, e seguindo sua viagem foram

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tarde tomar Cochi. Os quais ora deixamos, por ser necessário darmos conta do que é feito em Maluco, do tempo em que D. Garcia Henriques entrou por capitão, e assi continuaremos com a ordem que já dissemos que tínhamos em contar os feitos que se fizeram nestas partes de Malaca por diante.

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NOTAS (1) Este porto, segundo Diogo do Couto, é o de Bintão. (2) Década 3, liv. 5, cap. 5. (3) Diogo do Couto, cap. 1, do liv. 3.

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46 46 50 Capítulo XIV. Como D. Garcia foi entregue da fortaleza de Ternate, e por morte del-Rei Almançor tomou a cidade de Tidore, e a destruíu. Tendo António de Brito entregue a D. Garcia Henriques a fortaleza de Ternate, pela maneira que na Terceira Década dissemos, (1) vindo de moução, ele se partiu pera Malaca a 12 de Janeiro do ano de 1526, e foi surgir ao porto da Ilha de Bachão, e com a detença que i fez em consertar o seu junco, a 5 de Fevereiro foi ter a Banda, e daí partiu a 13 de Julho, e chegou a Jaua a 10 de Agosto, ao porto de Panaruca, onde achou João Moreno e Gonçalo Álvares, e alguns vinte juncos de Malaca, que vinham debaixo da bandeira de Gonçalo Álvares, per um alvará de Pero Mascarenhas, que ao tempo da sua partida ainda estava em Malaca, e uns contra os outros estavam postos em armas. António de Brito (a quem eles tomavam por capitão, e o não quis aceitar, enfadado dos sucessos de Maluco) atalhou a tudo, e os concertou que governassem às semanas, com juramento de estarem por este pacto; e ele se partiu, e foi à cidade de Tagação, cujos moradores, que estavam de guerra com os Portugueses, lhe haviam tomado um junco de cravo que ele tinha mandado diante a Malaca, e intentaram tomar o seu em que vinha; pelo que se partiu logo daquela cidade, tomando primeiro um junco que achou no porto carregado de mantimentos, e chegou a Malaca a tempo que Pero Mascarenhas dava à vela pera ir governar a Índia; e por esperar que entrasse no porto António de Brito, pera saber dele das cousas de Maluco, não partiu aquela maré, com que não pôde ir aquele ano à Índia, como atrás dissemos. D. Garcia Henriques ficava em Maluco com necessidade de gente, por a muita que António de Brito lhe levara, e assi de fazenda para comprar 51 mantimentos e pagar à gente, porque lhe foi forçado mandar Martim Correa, Capitão-mor do Mar, a Banda tomar alguns juncos dos que aí achasse de Malaca, o que podia por esta ilha ser da governança da sua capitania. E partindo Martim Correa em Fevereiro, achou ainda António de Brito naquela ilha muito de vagar, 47 47 fazendo cárrega de maça, mui pacífico, por ser conhecido na terra do tempo que aí invernara. Daí a poucos dias chegou de Malaca Manuel Falcão, que vinha com certos juncos per mandado de Pero Mascarenhas, e levava a Maluco o pagamento dos soldados, e com ele Fernão Baldaia que ia por escrivão da feitoria daquela fortaleza, os quais deram nova a Martim Correa, que por entre as ilhas viram passar ua nau da feição das nossas; e receando Martim Correa ser nau de Castela, requereu a António de Brito que lhe desse algua gente, e a Manuel Falcão que fosse com ele. Partiu Martim Correa de Banda a 8 de Maio, levando consigo Manuel Falcão, e um Gomes Aires, criado do Mestre de Santiago, e chegou a Maluco, onde achou duas cousas que o descontentaram: servir Manuel Lobo seu ofício sem seu consentimento, e andar Cachil Daroez muito descontente, porque D. Garcia tinha feitas pazes com el-Rei de Tidore, porque com a guerra era senhor e estimado, e com a paz receava que, por o não haverem mester, a Rainha mãe del-Rei, por ser filha del-Rei de Tidore, lhe ordenaria per algum modo a morte; e o mesmo receavam os Portugueses, que postos estes dous Reis em liga, todos se levantassem contra eles, assi os Ternate como os de Tidore; e que Cachil Daroez, por tornar à amizade del-Rei Almançor de Tidore e da Rainha de Ternate, sua filha, se ajuntaria com os Mouros destas duas ilhas, e seria também contra eles. Desta suspeita se viram logo sinais manifestos porque Cachil Daroez tratava concertos com el-Rei Almançor de Tidore, que lhe desse por mulher sua filha, o que D. Garcia estorvava, e Cachil

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o sentia muito; e enquanto andava descontente de D. Garcia, não puderam acabar com ele que tornasse a prosseguir a guerra. Neste meio tempo, veo a falecer el-Rei Almançor de Tidore, deixando muitos filhos, dos quais o maior se chamava Cachil Rade, e os outros eram Cachil Cheire, Cachil Daroez, Cachil Abuçasa, Cachil Rageale e Cachil Dúquo. (2) Este só era o herdeiro, por ser filho da Rainha Cachil Mir, e os outros de mancebas. O Cachil Dúquo era moço de dez anos, e tinha por seu governador um mandarim chamado Libernhame, que era como condestabre ou capitão da gente de guerra. Cachil Rade, que em idade se via maior e não rei nem governador, tinha desavenças com el-Rei Cachil Dúquo, 48 48 e queria mandar o Reino. D. Garcia, vendo-os desavindos, desejando de lhes mover guerra, mandou dizer a el-Rei, que lhe mandasse toda a artelharia que os de Tidore tomaram a ua fusta de Portugueses, que, pelas pazes que fizera com seu pai, estava assentado que lha restituíssem dentro de seis meses, e por 52 sua morte se acabava o tempo. Os Tidores se escusavam, dizendo que ainda não tinham dado sepultura a el-Rei, nem era levantado o novo Rei, nem os seis meses eram acabados; que lhes desse tempo pera acabarem um conselho em que estavam, que logo satisfariam a D. Garcia. Fernão Baldaia tornou lá, dizendo que naquela embarcação em que ele ia lhe mandassem logo a artelharia; e, não lha entregando, lhe apregoasse guerra, porque esta lhe vinha então melhor que a paz, de que estava arrependido. Enquanto este recado foi, como quem em seu peito tinha assentado o que havia de fazer, se fez prestes, e Cachil Daroez com a sua gente; e na mesma noite que tornou com a resposta Fernão Baldaia, foi D. Garcia à cidade de Tidore (que de Ternate não dista mais que ua pequena légua) e deu nela per ua parte, sendo encaminhado de Manuel Lobo que já lá estivera; e pela outra, que era mais defensável, entrou Martim Correa. Os Tidores, vendo-se acometidos tam de súbito, e entrada sua cidade, e sem Rei que os defendesse, puseram-se em fugida, deixando a cidade só entregue aos Portugueses; os quais, recolhida a artelharia puseram fogo à povoação, que por ser toda de madeira e coberta de ola, não tardou muito em se fazer em brasa; e assi a paz que se fez sem bom conselho, por outro não bom conselho de desfez. Com esta vitória se tornaram os nossos à fortaleza mui desacreditados entre as gentes daquelas ilhas, e em reputação de homens que não guardavam sua fé, e assi no Reino de Bachão, e em outros a que de antes iam, os não recolhiam, e defendiam todo comércio e comunicação.

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NOTAS (1) Livro 10, cap. 5. (2) Este chama Diogo do Couto Cachil Raxamira.

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49 49 52 Capítulo XV. Como D. Garcia soube que no porto da cidade de Camafo, del-Rei de Tidore, estava ua nau de Castela, e o que fez por a trazer à fortaleza de Ternate. Estando D. Garcia com mais repouso na fortaleza, depois que destruiu a cidade de Tidore, deram-lhe novas os Mouros de Ternate que nas costas da grande Ilha Batochina, onde chamam o Moro, viram passar duas naus da feição das nossas. E porque D. Garcia esperava por D. Jorge de Meneses, que vinha por capitão daquela fortaleza de Ternate (o qual partira de Malaca em Agosto, e escorrera de maneira que fora invernar nas Ilhas Papuas, que estão a Leste de Ternate), pareceu-lhe que seriam as naus suas. Também suspeitou que poderiam ser de Castelhanos, pelo que mandou lá Martim Correa em ua coracora, e com ele Diogo da Guerra, 53 língua, pera saber que naus eram. A nova que trouxe foi que, em Camafo, (1) cidade del-Rei de Tidore, inimigo dos Portugueses, estava ua nau de Castela; mas que viram mais duas que não puderam tomar terra por o vento lhes não servir. Havida esta nova, fez D. Garcia a armada prestes, e mandou por capitão-mor dela Manuel Falcão em um navio de Duarte de Resende, em outro ia Francisco de Castro, e em ua fusta Diogo da Rocha, e Cachil Daroez com a armada da terra. Chegados à nau, mandaram diante Francisco de Castro, que servia de ouvidor, com ua carta de D. Garcia pera o capitão da nau, e com oferecimentos, pedindo-lhe que viesse a Ternate; ao que ele respondeu com cortesia e boas palavras. E vindo todos à vela, e sendo tanto avante com ua ponta da Batochina, a tempo que se ajuntaram à vista com os nossos, sobreveo um chuveiro em conjunção, que a nau passou sem ser vista, e foi seu caminho dereito a Tidore, com pilotos que trazia da terra, onde se recolheu, e meteram a nau em ua calheta, por estarem mais seguros; porque bem entenderam os Castelhanos, com vista da nossa armada, que os não ia demandar com bom propósito, e disto se queixavam depois; mas D. Garcia se escusava que era armada 50 50 que sempre trazia na costa em guarda da terra. Daí a dez ou doze dias veo a D. Garcia um castelhano, e sobre a vinda e estada destes novos hóspedes houve grande referta, se veriam à fortaleza, e deixariam de comprar o cravo. Mas vendo D. Garcia que com eles não havia nenhua conclusão, e que o cravo era per eles posto em grande preço, depois de despedido este messageiro, com o parecer dos que com ele estavam, determinou de ir em pessoa ver se com boas palavras podia trazer consigo a gente desta nau castelhana. Era capitão dela um Martim Inhiguez de Carquizano, biscainho, por morte de Fr. Garcia Jofre de Loaisa, cavaleiro da Ordem do Hospital de S. João, capitão geral de ua armada que partira da Corunha o ano de 1525. (2) 54 Martim Inhiguez, como entendeu a tenção de D. Garcia, que era pelejar com os Castelhanos, se não viessem para ele à sua fortaleza, se fez prestes pera o que sucedesse. Dava-lhe ânimo saber o pouco poder e pouca gente que D. Garcia tinha, de que os da terra o informavam, como homens que dos Castelhanos esperavam mais proveito, assi por o maior preço que lhe davam pelo cravo e mais drogas, como por as grandes promessas que lhes faziam de os livrarem e vingarem dos Portugueses; e assi a primeira cousa que os Castelhanos fizeram foi entopir a calheta, que lhe não podessem tomar a nau, e fizeram de pedra e barro ua casa, e um baluarte da mesma matéria, em que puseram toda a sua artelharia.

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D. Garcia, vendo o estado em que se os Castelhanos punham, determinou de ir a eles, deixando Manuel Falcão por capitão da fortaleza, e ordenou sua armada, mandando que Diogo da Rocha, capitão da fusta, levasse ua bombarda grossa pera com ela poder entrar pela calheta, e Manuel Lobo em um batel grande com um camelo e sua manta, e Diogo Rodrigues de Azevedo em um calaluz com ua espera. Na armada de Cachil Daroez ia embarcado D. Garcia e Martim Correa, e toda a gente com determinação que D. Garcia em pessoa requeresse ao capitão castelhano que viesse à fortaleza, onde lhe seria feita toda a cortesia, e que não quisesse estar em terra de seus inimigos, que pareceria ser um deles; e quando não quisesse, per armas o obrigasse a vir. Não houve lugar de D. Garcia fazer este requerimento; porque os Castelhanos, como sentiram as nossas embarcações, e que se chegavam ao recife, que era a defensão da nau, dispararam a sua artelharia, 51 51 com que mataram logo um remeiro na fusta de Diogo da Rocha, e lhe quebraram a cana do leme, ferindo o que a levava, e assi se começaram a esbombardear uns aos outros; e porque a artelharia dos Portugueses fazia pouco dano aos Castelhanos e à sua nau, porque com o recife se não podia bem apontar, e da sua eram os nossos mui ofendidos, depois de durar o combate quási três horas, se afastou D. Garcia, e, per conselho de Martim Correa, foi dar em ua vila dos Mouros situada à borda da água; mas ela estava tam apercebida e defensável com ajuda dos Castelhanos, que primeiro que D. Garcia chegasse a pelejar, saindo Martim Correa em terra com alguns vinte cinco soldados, o feriram per duas vezes com virotões, e ua com um quadrelo que lhe deu em um ouvido, de que ficou quási morto, e per toda a sua vida surdo. E vendo D. Garcia o pouco que fazia, se tornou pera a fortaleza, onde, chegando, foi certificado que a nau dos Castelhanos ficara tam aberta, assi por a larga viagem que tinha feito, como da artelharia dos Portugueses, que se fora ao fundo; pelo que D. Garcia determinou não fazer mais guerra aos Castelhanos, porque bastava a do tempo, que os iria consumindo, e os faria vir à fortaleza, onde estava com desgosto, por lhe serem contrários todos os moradores dela, por o que eles perdiam no cravo que D. Garcia fazia para el-Rei; e porque era chegada a monção para Malaca, despediu os que 55 haviam de partir para lá, que foram Martim Correa, ainda enfermo a sua ferida, no junco de João Rodrigues, e Manuel Lobo em outro junco de D. Garcia, e Duarte de Resende em um navio pequeno que comprou, por nome S. Pantalião. Martim Correa (3) chegou a Malaca em tempo que os moradores de Lobu (porto da Ilha de Samatra, cujo Rei e vassalos corriam com amizade com o capitão de Malaca) tinham tomado havia poucos dias ua galé, e morto Álvaro de Brito, capitão della, e setenta homens que levava, a qual mandara Jorge Cabral, capitão de Malaca, a tomar satisfação da morte que sem causa deram os mesmos mouros a outros portugueses que em um navio foram tratar ao seu porto de Lobu; pelo que Jorge Cabral pediu a Martim Correa que quisesse ir vingar aquela afronta; e aceitando-o ele, com cento e vinte soldados, em alguas lancharas que se armaram, atravessou a outra costa de noite e foi demandar o porto de Lobu, e de madrugada 52 52 entraram pelo rio, e sem serem sentidos desembarcaram na cidade, a qual queimaram, e com morte de seus moradores satisfizeram largamente o dano que ali os nossos receberam e deixando tudo assolado, e tomada a galé que estava no rio, com toda a sua artelharia e outras embarcações, e pondo fogo às que estavam em estaleiro, se embarcaram para Malaca, onde com muita festa foram recebidos.

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NOTAS (1) Está Camafo na Maratoja, cujo sangue era vassalo del-Rei de Tidore. (2) Esta armada, mandou aprestar o Emperador Carlos V, para mandar às Ilhas de Maluco, depois que sem resolução se desfez ua Junta de juristas, astrónomos e mareantes, entre Elvas e Badajoz, no ano de 1524, sobre a posse e propriedade daquelas Ilhas. Era a armada de seis navios e um patuxe, da qual foi per capitão geral Fr. Garcia Jofre de Loaisa, cavaleiro da Ordem de S. João, natural da Ciudad Real. Das outras naus eram capitães João Sebastião del Cano (que voltou à Espanha por capitão da nau Vitória, que foi a primeira que deu ua enteira volta ao Mundo), Pedro de Vera, Dom Rodrigo da Cunha, D. Jorge Manrique, Francisco de Hozes, e Sant'Iago de Guevara. Partiu esta armada da Corunha em Julho de 1525, fez sua viagem pelo Estreito de Magalhães, a qual desembocou ao Mar do Sul no fim de Maio de 1526, e de toda ela só a nau capitaina chegou a Tidore o último de Dezembro do mesmo ano, com morte de muita gente, da qual foram os principais o Geral Frei Garcia Jofre de Loaisa, João Sebastião del Cano, e Toríbio Afonso de Salazar, que um tras outro sucedeu a Loaisa na capitania; e per morte de Salazar foi eleito Martim Inhiguez. António de Herrera na História das Índias, Déc. 3, liv. 7 e 9. Esta armada de Fr. Garcia de Loaisa aportou em ua ilha em altura de três graus aquem da Linha, a que puseram nome S. Mateus, na qual se viram sinais de ser já povoada per Portugueses havia oitenta e sete anos, segundo os letreiros abertos nos troncos das árvores: acharam nela laranjeiras e outras árvores de fruto, galinhas no mato e rastro de porcos. António Galvão nos descobrimentos das Antilhas e Índia. (3) Francisco de Andrade, cap. 35 da 2ª Parte, Diogo do Couto, cap. 4 do livro 3, e Fernão Lopes de Castanheda, cap. 63 do liv. 7.

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52 52 55 Capítulo XVI. Como D. Jorge de Meneses partiu de Malaca para Maluco a servir de capitão, e fez nova viagem pela Ilha de Bornéu; e das diferenças que teve com D. Garcia Henriques. As duas naus que os Mouros de Ternate viram que não podiam tomar terra e que D. Garcia suspeitava serem de Castelhanos, eram de D. Jorge de Meneses, ao qual por muitos e assinalados serviços que fizera na Índia (principalmente quando mataram Diogo Fernandes, de Beja, e ele cobriu o seu corpo, e na entrada da cava de Calecute, onde o aleijaram da mão dereita).(1) D. Henrique de Meneses o proveu da capitania de Maluco; e porque antes da sua partida faleceu D. Henrique, confirmou a provisão Lopo Vaz de Sampaio; e chegando D. Jorge a Malaca, 56 achou Pero Mascarenhas, que estava já com nome de Governador da Índia, o qual, pelas qualidades da pessoa de D. Jorge, lhe passou carta da confirmação da sua capitania, de melhor vontade. E querendo partir de Malaca a 22 de agosto do ano de 1526, com sessenta homens e dous navios que trazia da Índia, em um dos quais ia ele, e no outro Baltasar Raposo, que ia por feitor, porque havia dous caminhos para Maluco; um per via da Jaua e Banda, que é mais frequentado, mas mais comprido, e outro mais curto per via da Ilha de Borneu, que ainda não era descoberto, fez D. Jorge sua viagem per Borneu, por Pero Mascarenhas lho dar por regimento que fosse per aquele caminho para se saber, e se escusar à detença que se fazia em Banda, esperando por as monções. E por ser D. Jorge o primeiro português que per aquela parte navegou, diremos o discurso da sua viagem. (2) 53 53 Partido D. Jorge de Malaca com pilotos mouros, que tinham notícia daquela carreira, indo costeando, entrou pelo Estreito de Singapura, que é de largura de um tiro de berço, e tam baxo, que em muitas partes não tem de fundo seis braças, e muitas restingas que entram uas per outras. Aqui achou que a terra fazia uns cotovelos, de maneira que era necessário ter grande tento para se navegar. Chegando a ua ilha que chamam Pedra Branca, que é mui demandada dos pilotos daquelas partes, fez sua derrota à ilha que os da terra chamam Pulugaia, que quer dizer Ilha do Elefante, pela figura que mostra em seu aspecto. Daqui per outras muitas ilhas, de que aquele mar é muito sujo, chegou à de Borneu, ao porto da cidade, que está em cinco graus de altura da parte do Norte; e despois de mandar presentes a el-Rei, e el-Rei a ele, fez seu caminho per entre muitas ilhas e restingas, que estão na paragem de Borneu em sete graus, cousa mui perigosa e que se não pode navegar senão de dia, com um marinheiro na gávea vigiando os baxos, sem ter mais notícia deles que a que assinala a água onde branqueja, chegou à Ilha de São Miguel, que os da terra chamam Caguahão, e passou à Ilha Mindanau, e foi per entre ela e a Ilha Taguima, que é além deste canal, onde se D. Jorge já havia por salvo do perigo dele. E como aqui os ventos e as águas em Outubro e Fevereiro cursam muito contra Leste, e os pilotos não fossem muito certos, escorreram à Ilha do Moro, a que também chamam Batochina, ao longo da qual jazem as Ilhas de Maluco, fim da sua jornada, e andando pela parte do Norte para tomar esta Ilha do Moro, sem os ventos que vinham per cima dela lhe darem lugar, foi visto per aqueles que de suas naus deram as novas a D. Garcia. 57 Daí foi discorrendo té ir às ilhas de uns povos a que chamam Papuas, (3) a que muitos por esta ida de D. Jorge chamam Ilhas de D. Jorge, que estão a Leste das Ilhas de Maluco distância de duzentas léguas. Mas aquela onde ele invernou, que era de bom porto, se chama Versija, a qual está debaixo da Linha Equinocial. Vindo o tempo da monção, estas naus de D. Jorge se meteram sempre debaixo da Linha; porque por ela vinham a dar em Maluco, e chegaram a ua ilha que os da terra

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chamam Meunfu, e à outra a que chamam Bufu, que está mais a Leste, à qual puseram nome dos Grãos, por os muitos que nela acharam. Dali vieram por a parte do Sul da Batochina à cidade Ogane, 54 54 passaram entre ela e a Ilha da Garça, que é já do senhorio dos reis de Maluco; e indo assi ao longo da Batochina, vendo todas as ilhas do cravo, chegaram a Ternate, ao derradeiro dia de Maio de 1527. De maneira, que puseram de Malaca té Ternate oito meses e nove dias em distância de quinhentas léguas que há, indo per caminho dereito, e com estas voltas e rodeos andaram mais de mil, tam defícil e trabalhosa é aquela navegação. Tanto que D. Jorge chegou, foi entregue da fortaleza de Ternate e da terra, assi como estava de guerra, sem D. Garcia nisso ter dúvida nem diferença; mas não tardou muito que a não tivesse, por D. Garcia querer trazer de Maluco alguns oficiais da fortaleza, e não querer vir pela via de Borneu, como D. Jorge lhe notificara por parte de Pero Mascarenhas, para se saber e continuar aquela navegação; o que D. Garcia recusava por o muito que ganhava vindo per Banda (que era a carreira ordinária) onde pretendia carregar de noz e maça. E posto que D. Jorge, importunado e desobedecido de D. Garcia, lhe veo a conceder que viesse per Banda e deixasse a nova viagem de Borneu, não se satisfazia D. Garcia, porque sempre se havia de saber que não viera pelo caminho que Pero Mascarenhas, como Governador, mandava. (4) Não perderam esta ocasião os inquietos, que da discórdia destes 58 dous fidalgos pretendiam interesse, porque assi a semearam entre eles, que de alterações vieram a palavras injuriosas, e de palavras a obras, prendendo D. Jorge em ferros a D. Garcia; e depois de solto D.Garcia e serem ambos reconciliados, per meio de maus terceiros e falsos conselheiros, D. Garcia prendeu ao mesmo capitão D. Jorge de Meneses, por tam má maneira, e tam desonesto tratamento, como se fora um vil malfeitor, sendo D. Jorge um fidalgo de grandes qualidades e mui cavaleiro, que se estivera solto e com armas, o não houveram de prender. Sobre esta prisão, Simão de Vera, alcaide-mor da fortaleza, e os amigos de D. Jorge se retiraram aonde chamam a Terra-Alta, que é na mesma ilha, e mandaram dizer a D. Garcia que soltasse a D. Jorge, senão que convocariam os Tidores e os Castelhanos e o iriam tirar da prisão. Com esta determinação foi assentado que D. Jorge fosse solto debaxo destas condições: Que D. Jorge havia de dar a D. Garcia o navio de Pero Botelho, para sua embarcação, e havia de deixar 55 55 ir o mesmo Pero Botelho com quantos estavam no navio; e que havia de dar licença que todos os que eram de parte de D. Garcia se fossem com ele, sem lhes embargar suas fazendas, e que se haviam de romper todos os autos e devassas que eram tiradas, os quais capítulos haviam jurar solenemente D. Jorge e D. Garcia. E que depois de ido D. Garcia para Talangame com todos os que haviam de ir com ele, viria Simão de Vera e os outros da facção de D. Jorge, e o soltariam. D. Garcia mandou diante seu fato e os que o haviam de acompanhar; e primeiro que se partisse da fortaleza, fez encravar a artelharia, para que lhe não tirassem com ela. (5) Ido D. Garcia, entraram Simão de Vera e seus companheiros, e soltaram a D. Jorge com muito prazer deles, mas não de D. Jorge, que estava mui triste e sentido da ofensa que se lhe fizera, polo que mandou ao ouvidor que fizesse autos de tudo o que passara e pediu instrumentos de como no tempo que estivera preso se apoderaram os Castelhanos da Ilha de Maquiém, por não haver quem lha defendesse, no que el-Rei de Portugal recebera muita perda, por haver nela muito cravo, e mandou fazer um requerimento a Pero Botelho, que se fosse à fortaleza, porque tinha muita necessidade do seu navio, por causa da guerra dos Castelhanos; mas deste e de outros requerimentos não fez caso Pero Botelho nem D. Garcia, os quais se partiram para Malaca; e D. Jorge mandou fazer auto da 59 desobediência de D. Garcia, havendo-o por alevantado, e aos que com ele iam, e fez protestos como

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lhes dera licença per força, estando fora de sua liberdade e cargo, preso em ferros, havendo tanta necessidade daquela gente, por o estado em que a terra ficava. Com estes autos e instrumentos, e com cartas que D. Jorge escreveu ao capitão de Malaca, em que lhe dava relação dos sucessos de Maluco e lhe mandava pedir socorro de gente, mandou Vicente da Fonseca à pressa em um navio após D. Garcia, escrevendo também e requerendo da parte del-Rei e da sua a qualquer capitão que em Banda estivesse enviado de Malaca, que tomasse a D. Garcia o navio que levava contra seu mandado, e o prendesse. E enviou Gomes de Sequeira (6)buscar mantimentos às Ilhas de Mindanau, o qual, desgarrando com um temporal, descobriu muitas ilhas juntas em nove para dez graus da parte do Norte, que ele se chamaram as Ilhas de Gomes de Sequeira.

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NOTAS (1) Década 3, liv. 6, cap. 9 e liv. 9, cap 10. (2) Diz Diogo do Couto, Déc. 4, liv. 4, cap. 2, que o primeiro que intentou descobrir este caminho de Malaca a Maluco per Borneo, foi António de Abreu, no ano de 1523 per ordem de António de Brito, capitão de Maluco, o qual António de Abreu, depois de andar muitos dias perdido per entre aquelhas Ilhas, tornou arribar a Maluco, sem acabar a viagem. (3) Os Papuas, que em língua dos naturais quer dizer negros, porque o são eles como os Cafres, com cabelo revolto, de grandes e crespas grenhas, são magros, feios, rijos e aturadores do trabalho, e mui hábiles para toda a maldade e traição. Entre eles hã muitos surdos, e outros tam brancos e louros como Alemães, os quaes vêem mui pouco. Têm todas estas ilhas reis, e há nelas ouro, do qual não tiram os Papuas mais que o que hão mester para jóias. Diogo do Couto, cap. 3 do liv. 7. (4) Não querendo D. Garcia fazer sua viagem per Borneu, parecendo a D. Jorge ser necessário avisar ao capitão de Malaca das cousas sucedidas em Ternate, e que se fizesse a viagem per Borneu, para se descobrir com particularidade aquele novo caminho, mandou a este efeito em ua coracora Vasco Lourenço, Diogo Cão e Gonçalo Veloso, cavaleiros mui honrados, com ordem que em Borneu assentassem comércio com el-Rei, a quem enviou um presente. Entre as peças dele havia um pano de Rás, de figuras grandes, que representavam o casamento del-Rei Henrique VIII de Inglaterra com a Rainha Dona Catarina, sua mulher. Chegaram estes Portugueses a Borneu, onde acharam um junco, de que era capitão um Afonso Pires; falaram a el-Rei, de quem foram bem recebidos; e apresentando-lhe Vasco Lourenço as peças que lhe levava, abrindo- se o pano, vendo el-Rei ua cousa tam desacostumada, suspeitando que aquelas figuras eram encantadas, que lhe queriam meter em casa, para de noite o matarem, e lhe tomarem o Reino, mandou que logo lho tirassem dali, e os Portugueses se fossem do seu porto, que não queria na sua terra outro rei senão ele. E posto que Afonso Pires, que era seu conhecido, e alguns mouros procuraram tirar el-Rei daquela imaginação, dizendo-lhe o que aquelas figuras significaavam, não puderam. E assi Afonso Pires se tornou para Malaca, com quem foi Vasco Lourenço, e os seus companheiros voltaram na coracora para Maluco. Diogo do Couto, liv. 4, cap. 2 e 4; Francisco de Andrade, 2 Part., cap. 32, e Fernão Lopes de Castanheda, cap. 55 do liv. 7. (5) Destas diferenças entre D. Jorge e D. Garcia escrevem com particularidade Francisco de Andrade, nos caps. 31, 32, 33 e 34 da 2ª Part., Diogo do Couto, nos caps. 2, 3 e 4 do liv. 4, e Fernão Lopes de Castanheda, desde o cap. 54 até o cap. 62 do liv. 7. (6) Diogo do Couto, cap. 4 do liv. 4.

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56 56 59 Capítulo XVII. Da jornada de Vicente da Fonseca à Ilha de Banda, e sucessos delas, e da viagem de D. Garcia Henriques té Cochi. Tanta diligência pôs Vicente da Fonseca na viagem, que chegou a Banda primeiro que D. Garcia; e não achando ali navios nem capitão a que notificasse os autos e requerimentos de D. Jorge, receou que, chegando D. Garcia, o prendesse; mas nesta conjunção veo Gonçalo Gomes de Azevedo (filho do Almirante Lopo Vaz de Azevedo), que o favoreceu. A causa de Gonçalo Gomes vir naquele tempo foi que, sabendo Jorge Cabral, que estava por capitão em Malaca, per Martim Correa, como os Portugueses que estavam em Maluco tinham guerra com el-Rei de Tidore e com os Castelhanos, ordenou de lhe mandar socorro de gente honrada e limpa, e ua armada de cinco navios, da qual fez capitão-mor a Gonçalo Gomes de Azevedo; e os outros capitães eram Gaspar Correa, Jorge Fernandes, de Refoios, Manuel Botelho e Rui Figueira. (1) Passou Gonçalo Gomes per Bintão por mandado do mesmo Jorge Cabral, para também socorrer ao senhor daquela ilha, porque esperava ser cercado per Laquesemena, capitão-mor do Mar del-Rei de Campar, inimigo dos Portugueses. Deteve-se 60 em Bintão Gonçalo Gomes sete ou oito dias, esperando por Laquesemena; e vendo que não vinha, se fez à vela para Banda, onde chegou primeiro que D. Garcia, e achou a Vicente da Fonseca, o qual contou a Gonçalo Gomes tudo o que D. Garcia fizera a D. Jorge, requerendo-lhe em segredo que o prendesse e lhe tomasse o navio que per força trouxera contra os requerimentos de D. Jorge, que dele tinha muita necessidade, por ficar de guerra com os Mouros e com os Castelhanos. Gonçalo Gomes não deferiu à prisão, dizendo que o não podia fazer, mas que lhe tomaria o navio, quando fosse tempo. E por a terra não ser segura, nem a gente fiel, fez Gonçalo Gomes ua tranqueira onde se recolheu. 57 57 A este tempo chegou D. Garcia Henriques, e por se segurar fez outra tranqueira, e entretanto foi hóspede de Gonçalo Gomes na sua. Mas quando D. Garcia viu Vicente da Fonseca, que sabia ser amigo de D. Jorge de Meneses, suspeitou a causa da sua vinda e começou temer que Gonçalo Gomes o prendesse; e mais o temeu quando viu que Manuel Falcão, que ia em sua companhia, se passara para a tranqueira de Gonçalo Gomes de Azevedo, a quem também contou o que passara D. Garcia com D. Jorge, aconselhendo-lhe que prendesse D. Garcia e lhe tomasse o navio em que ia, sendo ele o mesmo que fez com D. Garcia que prendesse a D. Jorge. E como era homem noveleiro, e que não durava nas amizades mais que quanto a ele compria, lançou fama que Gonçalo Gomes havia de prender D. Garcia por o que fizera a D. Jorge; o que D. Garcia não creu, nem menos que lhe houvesse de tomar o navio, porque levava cravo para el-Rei. Gonçalo Gomes, quando aos 28 de Abril se houve de partir para Maluco, se foi despedir de D. Garcia, e embarcado nos batéis e alargado da terra, perpassando pelo navio em que D. Garcia havia de ir, lhe meteu dentro Rui Figueira com alguns portugueses, e não lhe achando velas, as mandou pedir a D. Garcia. que as tinha na sua tranqueira, desculpando-se de lhe tomar o navio, porque o fazia a requerimento de D. Jorge de Meneses, capitão de Maluco, de cuja jurdição era aquela terra; e por D. Garcia lhas não querer dar, lhe tomou um junco seu que lhe viera de Malaca, polo que D. Garcia mandou logo as velas e queixas a Gonçalo Gomes per Manuel Lobo, por quem avisou ao mestre e condestabre, e a outras pessoas do navio, que dessem à vela derradeiro de todos, e tomassem por davante, para assi ficarem na traseira; porque entre tanto iria ele com gente e cobraria o navio.

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O mestre, por comprir com o que D. Garcia lhe mandava, fez que se embaraçava ao dar da vela, de maneira, que já os outros navios todos navegavam, quando ele deu à vela e fez tomar o navio por davante. D. Garcia, que aguardava este tempo, acodiu logo com muita gente em paraus: e Rui Figueira, conhecendo a malícia, capeou a Gonçalo Gomes que tinha os olhos no embaraço do navio; e vendo que ia da terra para o navio e o capear de Rui Figueira, entendeu o que era, e mandou tirar 58 58 às bombardadas 61 a D. Garcia, o que também fez Manuel Falcão. E por Manuel Lobo ir na dianteira, matou-lhe de ua bombardada dous remeiros, e a ele quebrou ua perna, e D. Garcia desesperado de cobrar o navio se tornou, e Rui Figueira seguiu sua viagem após Gonçalo Gomes de Azevedo, que chegou a Ternate a 12 de Maio. D. Garcia carregou o seu junco que lhe viera de Malaca, e partiu para lá no mês de Julho daquele ano de 1528, e veo surgir no porto de Panaruca, que é na Jaua, onde esteve tomando mantimentos, e dali fez sua derrota a Malaca; e chegando a uas ilhas três léguas dela, mandou pedir seguro a Pero de Faria (que já então era capitão daquela fortaleza) que o não prendesse a ele, nem aos de sua companhia, o qual lho deu; mas desembarcando em terra, mandou-lhe embargar toda a fazenda, dizendo que lhe não dera seguro mais que para o não prender. (2) Estando D. Garcia em Malaca, e uns embaixadores del-Rei de Panaruca, que iam assentar paz e amizade com Pero de Faria, se levantou ua briga entre os criados destes embaixadores e os Malaios, à qual D. Garcia com sete ou oito portugueses da sua companhia acudiu e apazigou, e foi causa de Pero de Faria lhe mandar desembargar sua fazenda, dando fiança de certos mil cruzados para se dele quisesse D. Jorge de Meneses algua cousa. Não pararam aqui as aventuras que havia de passar a fazenda de D. Garcia; porque, vinda a monção para ir à Índia, partiram Jorge Cabral, que fora capitão de Malaca, e D. Garcia Henriques, cada um em seu junco, com outros fidalgos, no mês de Janeiro de 1529, e chegaram à barra de Cochi, e por ser já no fim de Março e ventarem os noroestes, Jorge Cabral entrou em Cochi, e D. Garcia o não quis seguir, dizendo que havia de passar a Goa, em que pesasse ao vento e ao mar. E por o vento ser contrário e o junco ir muito carregado, chegou a Baticalá com grande trabalho e perfia; e vendo que o vento havia de ser cada vez mais forte, por ser já entrada do Inverno, houve por bom conselho tornar-se a Cochi, e assi voltou com grande tormenta à barra onde surgiu, porque, per o junco ser grande e ir mui carregado, não pôde entrar no rio. E deixando D. Garcia com o junco surto sobre ua amarra, se foi ele a terra; e, crescendo o vento, o mar se fez tam grosso, que o junco 59 se foi ao fundo com muita água que lhe entrou, em que D. Garcia perdeu mais de cinquenta mil cruzados, que valia a fazenda que levava, sem lhe ficar mais dela que o vestido com que saiu em terra. Sobre esta desgraça o prendeu Nuno da Cunha por o que fizera em Maluco, e o mandou preso a Portugal o ano seguinte, e assi ficaram em vão todas as diligências que pôs por vir rico de bens tam frágiles e incertos, e a temerária promessa de poder mais que o mar e o vento. NOTAS (1) Esta Armada partiu de Malaca na entrada de Janeiro de 1528. (2) Fernão Lopes de Castanheda, caps. 82 e 108 do liv. 7, e Francisco de Andrade, cap. 37 da 2ª Part.

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59 59 62 Capítulo XVIII. Como os Castelhanos elegeram capitão per morte de Martim Inhiguez, e tomaram ua galeota aos Portugueses com morte de Fernão Baldaia, e mandaram pedir socorro à Nova Espanha, e os Portugueses destruíram a cidade de Camafo. Neste mesmo tempo houve diferenças entre os Castelhanos sobre a sucessão da capitania, porque faleceu Martim Inhiguez de Carquizano, seu capitão, e uns queriam que fosse capitão Fernando de Bustamante, que era contador da armada, e diziam que trazia a sucessão per regimento; outros queriam que fosse um Fernando de la Torre, que servia de alcaide-mor daquela casa forte de pedra e barro, que eles chamavam fortaleza; e como este tivesse mais votos que favoreciam seu partido, prendeu a Bustamante, e teve-o tanto tempo preso, té que per partido lhe obedeceu, e ficou por alcaide-mor, em lugar de Fernando de la Torre, e um chamado Montemaior por capitão do mar, e Afonso de los Rios, por escrivão. Vindo depois em Março de 1528 um junco de D. Jorge de fazer noz e maça para Ternate, encontrou ua nau (1) que partira da Nova Espanha, em que vinha por capitão um Álvaro de Saavedra, o qual, não sabendo a terra em que era aportado, vendo o navio de D. Jorge, perguntou onde estava; conhecendo os nossos serem Castelhanos, calaram-se, e foram dar nova daquela nau a D. Jorge de Meneses. Mandou ele logo a Simão de Vera, alcaide-mor da fortaleza, em ua fusta, e Fernão Baldaia, feitor, em um batel, que fossem requerer 60 60 ao capitão daquela nau que viesse à fortaleza. Mas neste tempo os Castelhanos de Tidore, sabendo como a nau era entrada, tiveram mais diligência, e fizeram com que a nau se metesse no porto de Geilolo; e posto que Simão de Vera fizesse seus requerimentos, a resposta que lhe deram os Castelhanos foram bombardadas; e como estava só e a pólvora que tinha era molhada e Fernão Baldaia não chegara à nau, tornou-se Simão de Vera para Ternate. A este tempo mandaram os moradores da Ilha de Moutel, que era 63 do senhorio del-Rei de Ternate, pedir socorro a D. Jorge por o muito dano que recebiam dos de Tidore, mui orgulhosos com ajuda dos Castelhanos e com a vinda da nau de Saavedra. E porque os Castelhanos começaram fazer navios de armada para irem destruir a Moutel, mandou lá D. Jorge a Fernão Baldaia em ua galeota com trinta e tantos portugueses, e com ele ia Cachil Daroez com gente da terra; e como eles não podiam passar a Moutel, senão à vista de Tidore, vendo os Castelhanos a galeota, com grande alvoroço se embarcaram em ua fusta que traziam prestes, da qual foi por capitão Afonso de los Rios, e com a armada da terra, em que iam muitos tidores, acometeram os nossos; e depois de duas horas de peleja foi entrada a galeota dos Portugueses, em que morreu Fernão Baldaia; o qual, por se restituir do erro passado, depois que, de ferido e cansado, não pôde pelejar em pé, em giolhos pelejou em quanto teve mãos; e depois que se não pôde valer delas, pelejava com a língua, animando e esforçando os seus. Com ele morreram outros, que depois custaram a vida a muitos castelhanos, os quais levaram a galeota com singular alegria e triunfo seu e dos Mouros de Tidore. Não havia mais que doze dias que passara esta desgraça, quando chegou Gonçalo Gomes de Azevedo, de Banda com cuja vinda os Portugueses ficaram mui contentes; e per o navio que ele tomara a D. Garcia mandou logo D. Jorge recado a Malaca per Simão de Vera per via de Bornéu, o qual se perdeu em as Ilhas de Mindanau. Os Castelhanos aprestaram também o navio de Saavedra para o mandarem com recado à Nova Espanha, e o carregaram com quarenta bares de cravo; e para crédito da galeota que tomaram aos Portugueses, levava Saavedra consigo Fernão Moreira, patrão

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da Ribeira, 61 61 Jácome Ribeiro, comitre, e um escrivão da fortaleza e alguns outros que foram cativos na galeota; e porque o piloto de Saavedra era morto, levou ele em seu lugar a Simão de Brito Patalim, que era prático na arte de navegar, ao qual, querendo D. Jorge castigar por culpas que tinha, se lançou com os Castelhanos, com outros dous Portugueses, como também se lançavam os Castelhanos com os Portugueses quando seus capitães os queriam castigar. Partiu Saavedra para a Nova Espanha a 14 de Junho, e, fazendo sua derrota, foi tomar a Ilha Hamei, cento e setenta léguas de Tidore, onde surgiu para se prover de água e lenha. Simão de Brito e Fernão Moreira, o patrão, arrependidos do que tinham feito, determinaram de queimar o navio, para que Saavedra não fosse pedir socorro; e não achando para isso comodidade, furtaram o batel da nau, e quatro escravos que o remassem, e tornaram-se com outros alguns da companhia caminho de Ternate. Álvaro de Saavedra, ficando sem batel com que se servisse, foi posto em condição de se tornar; porém cometeu a jornada té tomar uas ilhas em altura de dez graus da banda do Norte, as quais, por serem mui frescas e 64 cobertas de grande arvoredo, lhe pôs nome Beljardin. (2) Nelas se deteve alguns dias, em que lhe entraram os levantes, com que foi forçado arribar a Maluco, onde chegou já no fim de Outubro. (3) Simão de Brito, e os outros portugueses que fugiram no batel, foram de ilha em ilha sofrendo tanto trabalho e fome, que de cansados se deixaram ficar três deles em ua daquelas ilhas; os outros três seguiram avante té a Ilha de Guaimelim, que é do senhorio del-Rei de Tidore, onde, sendo conhecidos que eram portugueses, foram presos e levados a Fernando de la Torre, que, conhecendo que eram os que iam com Saavedra, tendo má suspeita deles, lhes deu tormento, e, confessando a verdade, os condenou à morte por traidores ao Emperador. Simão de Brito foi arrastado e degolado, Fernão Moreira enforcado, e o outro ficou cativo. Os castelhanos, vendo o mau sucesso da viagem do navio que tinham mandado à Nova Espanha a pedir socorro, e que D. Jorge se havia de querer satisfazer da perda da galeota, se aperceberam com cuidado. Porém Gonçalo Gomes de Azevedo, depois que chegou, não quis entender em mais que em sua fazenda, e em fazer cravo, sem em algua cousa querer ajudar a D. Jorge, que determinava ir destruir a cidade de Tidore, e assi sem fazer nada se partiu para Malaca, a 10 de Fevereiro de 1529. 62 62 No Novembro dantes chegou a Ternate D. Jorge de Castro, que de Malaca veo por via de Bornéu em um junco de Diogo Chainho, feitor que fora de Malaca, e em sua companhia Jorge de Brito em ua fusta, e, errando a viagem, veo ter ao longo da Ilha de Macáçar, e dela a Ternate, sem a fusta, que não apareceu mais. (4) E porque, mandando D. Jorge em busca dela a alguas ilhas do Moro a Gomes Aires em ua coracora, os de Tolo e Camafo o não quiseram agasalhar nem dar de comer, mas fizeram zombaria dele, tendo agasalhado e banqueteado aos Castelhanos havia poucos dias, vindo eles de queimar um lugar del-Rei de Ternate por nome Chiamo, e esta nova havia já chegado a D. Jorge per terra, quando tomou Gomes Aires, fez ele 65 prestes ua armada, de que mandou por capitão D. Jorge de Castro com té vinte cinco portugueses, e com eles Cachil Daroez com os navios da terra, os quais foram sobre a cidade de Camafo, que era del-Rei de Tidore, e a queimaram de todo, posto que a gente com medo fugiu e se pôs em salvo. Tornados a Ternate, foi D. Jorge de Castro per mandado de D. Jorge de Meneses a Tidore tratar pazes com Fernando de la Torre; mas ele e os Castelhanos que com ele estavam ficaram tam ufanos com o bom sucesso da galeota que tomaram, e da morte de Fernão Baldaia e de seus

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companheiros, e de outras vitórias que houveram de alguns do Maluco, que não quiseram vir a concerto com as condições que D. Jorge propunha a paz, e fizeram tréguas, o que ele guardou para seu tempo, como se dirá ao diante; porque deixadas agora as cousas do Maluco, daremos razão das que se passaram na Índia.

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NOTAS (1) Esta nau era a capitania de ua armada de três navios que Fernando Cortês mandou da Nova Espanha a Maluco em busca da armada de Fr. Garcia de Loaisa. Era capitão geral desta frota Álvaro de Saavedra, parente de Fernão Cortez, e dos outros dous navios Luís de Cárdenas, de Córdoba, e Pedro de Fuentes, de Xerez; iam nela cento e dez homens; levavam trinta peças de artelharia e muita vitualha; partiu do porto de Zivatlanejo véspora de Todos os Santos do ano de 1527. E desta armada só a nau de Álvaro de Saavedra chegou a Maluco, e foi a primeira que fez esta nova navegação, que pola conta dos pilotos foi de duas mil léguas. António de Herrera, História das Índias, Década 4, livs. 1 e 3. (2) Estas ilhas distam da Ilha Hamei quase duzentas e cinquenta léguas. Os naturais delas são brancos, de olhos pequenos, poucas barbas, como os Chins; não havia naquelas ilhas criação de aves, nem de gados; vestiam os seus habitadores uns panos feitos de ervas; não tinham ferro, e em lugar dele usavam instrumentos feitos de conchas de amêgas e ostras; pescavam em almadias de madeira de pinho; o seu pão eram cocos secos ao Sol, que na Índia chamam copra; não tinham uso do fogo, porque nunca o viram, senão depois que os Castelhanos lho ensinaram. António Galvão no livro que fez dos descobrimentos das Antilhas e Índia; e Diogo do Couto liv. 4, cap. 1. (3) Álvaro Saavedra, arribando a Tidore, fez varar a nau e dar-lhe querena, e consertada, tornou a sair de Tidore para Nova Espanha no ano seguinte de 1529. Fez seu caminho a Lesnordeste, chegou a uas ilhas que distavam de Tidore mil léguas, e outras tantas de Nova Espanha; dali correu a Nordeste, té se pôr em altura de 26 graus, onde morreu. Prosseguiram os Castelhanos sua viagem sempre com ventos contrários té ua Ilha dos Ladrões, em altura de 31 graus, mil e duzentas léguas de Maluco, de donde arribaram e chegaram a Geliolo no fim de Outubro do mesmo ano, com o navio comido de bruma, que entregaram a Fernão de la Torre. António de Herrera, História das Índias, Déc. 4, liv. 5, cap. 6. (4) Esta fusta diz Francsco de Andrade, no cap. 59 da 2ª Parte, que veo aportar a Banda.

LIVRO II 63 63 67 Capítulo Primeiro. Como Lopo Vaz de Sampaio, sabendo que vinha Pero Mascarenhas de Malaca, lhe mandou notificar que não viesse como Governador; e que, querendo entrar em Cochi, foi maltratado e ferido. No mês de Dezembro do ano de 1526, na segunda Oitava do Natal, chegou de Malaca um junco a Cochi, que deu nova que vinha Pero Mascarenhas; o que sabendo Lopo Vaz, teve logo conselho, em que se determinou que, se Pero Mascarenhas, como pessoa privada, quisesse sair em terra, o deixassem desembarcar livremente; mas que se como Governador o tentasse, lho não consintissem. Com esta resolução, 64 64 mandou logo um bargantim a Coulão com cartas a Henrique Figueira, capitão daquela fortaleza, e ao feitor e oficiais, e com o traslado da sua sucessão e ua relação do que foi acordado, para que, tanto que Pero Mascarenhas ali chegasse, lho amostrassem e lhe requeressem da parte del-Rei e da sua, que obedecesse a ele, Lopo Vaz, como a Governador; e fazendo-o assi, lhe abrissem as portas da fortaleza e dessem todo o necessário; e não querendo obedecer, o não deixassem entrar nela. Outra tal ordem como a de Coulão deu Lopo Vaz a Afonso Mexia, e logo se partiu para Goa. E por ter a gente contente lhe mandou pagar muitos soldos; mas a paga que em retorno lhe deram os mesmos que receberam os pagamentos, foi murmurarem dele e interpretarem sua tenção, dizendo que, se pagava, era por ter os homens contentes pera a vinda de Pero Mascarenhas, o qual haviam por Governador, e não a ele; e como a gente popular é vária e inconstante e amiga de novidades, como pessoas de baixo estado, que sempre o esperam melhorar com a mudança 68 dos tempos, todos aguardavam a vinda de Pero Mascarenhas, pera verem em que paravam suas cousas. Pero Mascarenhas, que, tomada e destruída a cidade de Bintão se partira pera Malaca, chegou a ela a salvamento; e provendo em muitas cousas daquela fortaleza, se partiu pera a Índia no fim de Dezembro com três galeões carregados de muita fazenda del-Rei, e ele de vitórias e triunfos. Chegando a Coulão, ali soube de Henrique Figueira (que como Governador o recebeu) como Lopo Vaz de Sampaio governava; e mostrando-lhe os papéis e requerimentos que lhe mandava fazer, lhe contou o que na Índia passara desde o tempo que o mandaram chamar a Malaca pera governar. Do que Pero Mascarenhas ficou mui anojado, e per conselho de Simão Caeiro, que ele, como Governador, fizera seu ouvidor geral, e de Lançarote de Seixas, a quem fizera secretário, se determinou ir a Cochi e usar de todo rigor com Afonso Mexia, por abrir a nova sucessão, pelo que se pôs a caminho, e ao derradeiro de Fevereiro do ano de 1527 chegou a Cochi. Antes de surgir na barra, Afonso Mexia, capitão da fortaleza, que sobre ele tinha espias, sabendo per elas que era chegado, lhe mandou notificar pelos juízes da cidade, e per Duarte Teixeira, tesoureiro, e 65 65 Manuel Lobato, escrivão da feitoria, a provisão da nova sucessão de Lopo Vaz de Sampaio, e a ordem que tinha sua pera não receber a ele Pero Mascarenhas, como Governador, e lhe requerer que obedecesse a Lopo Vaz, pois era Governador por aquela provisão. A isto respondeu Pero Mascarenhas com muita cólera, que aquela provisão não era assinada por el-Rei, e portanto a não reconhecia por sua; e que Afonso Mexia como seu inimigo a poderia fazer, e por essa causa lhe não havia de obedecer; e que os que com tal embaixada vinham mereciam ser castigados como homens que cometiam traição contra seu Rei, pois resistiam a quem el-Rei fizera Governador, e eles o

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aprovaram e chamaram; e per conselho de Simão Caeiro houve Pero Mascarenhas aos juízes por suspeitos dos ofícios, e lhes mandou que sob pena de perdimento das fazendas não saíssem de suas casas, como fossem na cidade; e feito auto da sua prisão, com esta resposta os mandou; e a Duarte Teixeira e a Manuel Lobato, como pessoas que mais insistiram no requerimento, mandou prender em ferros em um dos galeões. Sabendo isto Afonso Mexia, mandou requerer a Pero Mascarenhas que lhe soltasse os presos, que eram oficiais da Fazenda del-Rei, que se podia perder; e de novo lhe mandou notificar a provisão do Governador Lopo Vaz, e que se quisesse algua cousa dele, que fosse a Goa onde o acharia. Pero Mascarenhas lhe respondeu que ao outro dia (porque era já quási noute) lhe daria a resposta em terra. Afonso Mexia se temeu que Pero Mascarenhas desembarcasse de noite, e entrasse na cidade por não ser cercada, polo que a som de um sino que mandou repicar, ajuntou todo o povo; e posto que a mais da gente favorecia a parte de Pero Mascarenhas, e o desejavam ver no 69 seu cargo, porque tinham para si que per dereito a governança era sua, e que lha tiravam injustamente, todos porém acudiram a Afonso Mexia, postos em armas para fazerem o que lhes mandasse, o qual lhes ordenou que fossem vigiar a praia, para que nela não desembarcasse Pero Mascarenhas, o que eles fizeram, como se foram seus inimigos. No que se bem viu a lealdade dos Portugueses, que para servirem seu Rei não especulam se seus mandados, ou de seus Ministros, são justos ou injustos: mas quanto 66 as cousas são mais dificultosas e contra seus pareceres e vontades, ali negam as próprias por comprir com a de seu Rei e Senhor. Isto se manifestou mais nestes dous fidalgos competidores e nos nobres que os seguiam; porque cada um deles e seus favorecedores se pegavam às provisões del-Rei, querendo que se guardassem, sem contra elas excederem cousa algua, sendo só a diferença e dificuldade entre eles o entendimento das provisões e a interpretação da vontade de seu Príncipe, cuidando cada um que se abraçava com ela; e o que é mais de ponderar, sendo estes dous fidalgos tam animosos, estando em terras tam remotas, onde cada um achara muitos reis e muita gente daquelas províncias por si, se a cousa viera a rompimento. Vendo, pois Afonso Mexia que Pero Mascarenhas determinava desembarcar, tornou a mandar-lhe muitos recados e requerimentos que não desembarcasse, porque per armas lhe havia defender a desembarcação. Ao que Pero Mascarenhas respondeu, que não queria mais que entrar desarmado para ouvir missa em Santo António, confiado que, como fosse na cidade, tinha dentro muita gente da sua facção que lhe obedeceria; e assi se meteu em dous batéis com o seu ouvidor e meirinho com varas, e todos os seus desarmados e sem espadas, parecendo-lhe que Afonso Mexia não queria brigar com ele, vendo-o em terra desarmado; mas foi ao contrário, porque, chegando Pero Mascarenhas à praia, vendo Afonso Mexia que intentava desembarcar, lho defendeu às lançadas como a inimigo, fazendo aos que o acompanhavam (entre os quais andava ele armado sobre um cavalo acobertado) meter pela água, mandando-lhes que ferissem a Pero Mascarenhas e aos seus, e os matassem, se quisessem desembarcar, bradando Pero Mascarenhas que eram cristãos e leais a seu Rei e Senhor, e que não tinham armas nem queriam guerra, senão paz. Polo que, vendo o perigo em que estava, e que não podia desembarcar, e que os mesmos em que ele confiava o perseguiam, se recolheu bem escandalizado, e com duas lançadas em um braço, e Jorge Mascarenhas, seu parente, com ua chuçada, e outros muitos feridos, e todos os mais enxovalhados e escalavrados. Depois que Pero Mascarenhas se recolheu ao seu galeão, mandou fazer autos de Afonso Mexia e dos moradores de Cochi, a quem mandou apregoar por 67 67 levantados e traidores, mostrando eles naquele acto a maior lealdade e inteireza que podia ser; porque os que o mais feriam, por lho mandar seu capitão da parte del-Rei, eram os que o mais

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desejavam de recolher e obedecer. 70 Afonso Mexia mandou logo Aires da Cunha a Goa com cartas ao Governador sobre o que passara com Pero Mascarenhas, o qual também escreveu pelo mesmo a Lopo Vaz e a muitos fidalgos, pedindo-lhe que determinassem quem havia de ser Governador. Partido Aires da Cunha, mandou Afonso Mexia requerer a Pero Mascarenhas que lhe entregasse os galeões e fazenda del-Rei que trazia e, se quisesse ir a Goa, lhe daria ua caravela; e como ele se determinou de não prosseguir seu dereito per força, senão per justiça, entregou os galeões e a fazenda del-Rei, e se passou com a sua à caravela que lhe foi dada; e porque não era capaz de muita gente, foram-se muitos a terra, dos quais Afonso Mexia prendeu alguns e entre eles Jorge Mascarenhas, ferido da chuçada que lhe deram, e preso o mandou a Coulão. E porque Pero Mascarenhas era amigo de D. Simão de Meneses, foi-se a Cananor para esperar ali a resposta de Goa; mas D. Simão, tanto que soube que ele estava no porto, lhe mandou dizer que lhe pesava muito de o não poder servir como pediam as razões de amizade que com ele tinha; porque Lopo Vaz de Sampaio, a que todos obedeciam por Governador, lhe mandara que se ele, Pero Mascarenhas, chegasse àquela fortaleza como fidalgo tam honrado e de tanto merecimento como ele era, que o recolhesse com toda a honra e cortesia possível; mas que, se fosse com nome de Governador, que o não consentisse; e que ele, por o que compria à sua lealdade, não podia fazer outra cousa senão obedecer-lhe. Pero Mascarenhas lhe respondeu que não queria que quebrasse sua fé e lealdade, que o que dele queria era um catur em que fosse a Goa, mais raso que na caravela que lhe deixaria. D. Simão lhe mandou logo o catur, no qual se partiu para Goa, não levando consigo mais que Simão Caeiro e Lançarote de Sexas, e dous pagens que o servissem, esperando que Lopo Vaz se poria com ele em justiça, e, quando não quisesse, que os fidalgos que com ele estavam lho fariam fazer.

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68 68 71 Capítulo II. Como Lopo Vaz de Sampaio mandou prender a Pero Mascarenhas per António da Silveira, e preso em ferros foi levado a Cananor, e do que sobre sua prisão sucedeu. Lopo Vaz de Sampaio, quando soube per Aires da Cunha o que Afonso Mexia fizera a Pero Mascarenhas em Cochi, ficou descansado, parecendo-lhe que estava seguro na governança, e por a boa nova deu a Aires da Cunha a capitania de Coulão, que tirou a Henrique Figueira, porque agasalhara Pero Mascarenhas contra a ordem que se lhe mandou. E comunicando aquele caso com Heitor da Silveira e outros fidalgos, lhe persuadiram que lhe não compria entrar Pero Mascarenhas em Goa; porque, como a mais da gente estava descontente de se abrir a nova sucessão, e tinha para si que Pero Mascarenhas era o legítimo Governador, se levantariam com ele, se o lá vissem. Parecendo bem a Lopo Vaz este conselho, escreveu logo ao Capitão-mor do Mar per o mesmo Aires da Cunha que, porque compria ao serviço del-Rei não ir Pero Mascarenhas a Goa, procurasse de o encontrar no mar e lhe requeresse da sua parte que se fosse meter na fortaleza de Cananor, donde não sairia sem lho ele mandar; e que, não querendo obedecer, depois de lhe fazer todos os protestos e requerimentos necessários, o prendesse, e preso o entregasse a D. Simão de Meneses, de quem cobraria conhecimento como o recebia. Outra carta (1) escreveu Lopo Vaz a Pero Mascarenhas em resposta das queixas que lhe ele escreveu do mau tratamento que recebera em Cochi, em que Lopo Vaz lhe dava a ele toda a culpa do que lhe fora feito, pois não quisera obedecer a ordem que o vedor da Fazenda lhe mandara notificar, e por isso não tinha ele razão de o castigar, do que lhe pesava muito; e que, quanto a ver-se com ele e com os fidalgos que com ele estavam em Goa, todos eram de acordo que não era serviço del-Rei por desassessegos que podia haver, que seriam de grande estorvo ao apercebimento que se fazia para a vinda dos Rumes; e portanto lhe pedia da sua parte, e requeria da del-Rei, seu Senhor, 69 69 que ele se fosse à fortaleza de Cananor, como o Capitão-mor do Mar lhe diria, e daí mandasse requerer o que quisesse. Estas cartas deu Aires da Cunha ao Capitão-mor do Mar, o qual nunca pôde topar a Pero Mascarenhas; o que receando o Governador que poderia acontecer, per conselho de Heitor da Silveira, que era o fidalgo que ele mais 72 grangeava, assi por sua pessoa, como por ter muitos parentes, que esperava seguiriam sua parte, e com parecer de outros seus amigos, mandou por maior seguridade seu genro António da Silveira que fosse aguardar a Pero Mascarenhas à barra de Goa com ua galé e dous bargantins para o prender, e da mesma maneira a Simão de Melo, seu sobrinho, com outros tantos navios à barra de Goa-a-Velha. E como os bargantins de António da Silveira andavam por atalaias, vendo o catur de Pero Mascarenhas (que chegou à barra de Goa aos 16 de Março), foram a ele e o levaram a António da Silveira, o qual recebeu a Pero Mascarenhas com muita cortesia, e lhe disse que o Governador mandara que, indo ele ali, o não deixasse passar, e lhe tomasse a homenagem, e o levasse preso a Cananor por se escusarem inquietações. Ao que Pero Mascarenhas respondeu, que ele não havia de dar sua homenagem, antes lhe requeria que o deixasse ir a Goa para se ver com Lopo Vaz e requerer sua justiça. O que António da Silveira não consentiu, e o prendeu em ferros, que lhe mandou lançar pelo meirinho, pedindo-lhe perdão e desculpando-se por lhe ser assi mandado; e per Simão de Melo foi levado a Cananor e entregue a D. Simão de Meneses. Foram também presos com Pero Mascarenhas Simão Caeiro e Lançarote de Sexas, e levados a Goa, onde estiveram na cadeia carregados de ferros, como incitadores da revolta de Cochi e conselheiros de Pero Mascarenhas.

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Entretanto que António da Silveira era ido a encontrar Pero Mascarenhas, os da sua facção, vendo ajuntar tanta gente que se embarcava para o prender, em vozes altas se queixavam, e de noite o faziam em parte que o Governador ouvisse. Outros se foram queixar ao guardião de S. Francisco, que era homem letrado, castelhano de nação, pedindo-lhe estranhasse ao Governador o que usava contra Pero Mascarenhas. O guardião lhe respondeu que Lopo Vaz tinha a justiça por si, e que o provaria o dia seguinte na pregação. Assi o fez ao outro dia com muitas razões, depois de ler a provisão de Lopo Vaz, dizendo mais que, 70 70 além de lhe imporem falso testemunho, cometiam deslealdade a seu Rei, cousa tam desacostumada de Portugueses, cuja lealdade para seus Príncipes fora sempre maior que de todas outras nações. Sobre isto fez requerimentos ao Vigairo Geral, que houvesse por excomungados aos que o contrário diziam. Acabada a prática, Pero de Faria, capitão de Goa, lhe pediu a sucessão, e a beijou e pôs na cabeça, dizendo que a obedecia; e perguntando a todos que estavam presentes se faziam outro tanto, reponderam que si; e desta aprovação e do parecer do guardião mandou fazer um auto, e per ordem de Governador o foi assinar o ouvidor geral por os fidalgos que obedeciam à provisão. E por D. Vasco de Lima e Jorge de Lima não quererem assinar e se mostrarem parciais de Pero Mascarenhas, foram presos sobre suas homenagens. Com esta diligência, e com a prisão (que a ela se seguiu) de Pero 73 Mascarenhas, se houve Lopo Vaz por seguro, parecendo-lhe que se haviam quietado os bandos e desassessegos em que a gente de Goa andava. Mas não o deixaram estar muito tempo quieto; porque Cristóvão de Sousa, capitão de Chaul, sabendo como Lopo Vaz de Sampaio queria proceder com Pero Mascarenhas e que o mandava aguardar na barra de Goa para o prenderem, com parecer do feitor, alcaide-mor e oficiais de fortaleza, e dos fidalgos que com ele estavam, que eram muitos, escreveu ua carta (2) a Lopo Vaz (que lhe deram depois da prisão de Pero Mascarenhas), em que lhe dezia que, para se apagarem as dissensões que começavam a nascer sobre a preferência da sucessão do governo, compria pôr-se em justiça, por o perigo em que se punha o Estado da Índia, principalmente em tempo em que cada dia se esperavam os Rumes, para o que era necessário acrescentar o poder, e não diminuí-lo, dividindo-se a gente, que em si era pouca, cuja perdição estava certa; porque se grandes Impérios feitos e arraigados se perderam por serem divisos, que se podia esperar de um que então começava, e que tinha as raízes tam pouco profundas e o socorro em lugar tam remoto? E que o desenganava, que ele não havia de obedecer a quem se não pusesse em dereito. Era Cristóvão de Sousa um fidalgo de muita qualidade, em sua pessoa mui esforçado e mui humano, de gentil conversação e de condição alegre 71 71 e familiar com todos; e não somente na contínua mesa que dava, mas no socorro que do seu dinheiro fazia aos que o não tinham; pelo que em Chaul invernavam mais número de fidalgos que em nenhua outra parte da Índia; e como ele tinha tanta autoridade e tantos de seu bando, ficava muito de ventagem a parte a que ele se acostasse; e assi a sua carta fez muito abalo no Governador, quando a viu, entendendo per ela que não estava pacífico no cargo; e por conselho de seus amigos, a que em segredo mostrou aquela carta, escreveu a Cristóvão de Sousa, como Pero Mascarenhas estava preso com aprovação de todos os fidalgos e capitães da Índia, que a ele, Lopo Vaz, reconheciam por Governador; pelo que lhe pedia quisesse conformar-se com os mais e obedecê-lo, pois que não havia divisão nem se podia recear; e que lhe rogava quisesse escrever a Pero Mascarenhas que desistisse da pretensão do governo. Como Cristóvão de Sousa não pretendia mais que quietação, folgou de se conseguir tam pacificamente. Mas por parte de Pero Mascarenhas pesou-lhe muito ser com sua prisão, porque a

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não tinha por justa. Porém, considerando que dela resultava dano particular a ele e não ao público, e que, querendo-o emendar, era contra o bem comum, porque, vindo os Rumes, poderiam ganhar a Índia, achando-a dividida, de conselho dos que com ele estavam rescreveu (3) 74 a Lopo Vaz de Sampaio, dizendo-lhe que no que estava feito não havia necessidade de seu parecer; que sempre desejara ver quietação naqueles negócios, e assi estava contente de se acabarem tanto em paz; que ele o obedeceria como Governador que era, e escrevia a Pero Mascarenhas ua carta, que mandava aberta, para que a visse e mandasse, se quisesse. Nela lhe dizia, per muitas razões, que era serviço de Deus e del-Rei, e honra sua estar preso, e que tivesse muita paciência na prisão, como de homem tam valeroso e esforçado se esperava; porque Deus o ordenava para que a Índia se não perdesse com as sedições que começavam haver; que fora melhor serem ambos mortos, que haver competências tam perigosas; que se lembrasse que Lopo Vaz de Sampaio estava de posse de seu governo; e que, além de ser aprovada pelo juízo de muitos homens de são entendimento, dous frades letrados e pregadores per juramento afirmaram nos púlpitos que a justiça estava per ele; e que não tornar neste caso per sua honra, era maior honra, e não ser Governador 72 72 era merecer, ante el-Rei que lho galardoaria. Também escreveu a D. Simão de Meneses e a outros fidalgos sobre o mesmo. Não pesou a Pero Mascarenhas com aquela carta, porque por ela entendia que Cristóvão de Sousa não havia sua prisão por justa, senão por não haver cisma e divisão nos Portugueses; e assi não desconfiou de alcançar que se pusesse Lopo Vaz com ele em dereito, se D. Simão o soltasse, em que via já alguas mostras de o vir a fazer, além de lho prometer. Polo que se atreveu a mandar ao Governador um requerimento (4) por um público tabalião de Cananor, por que lhe pedia que se pusesse com ele em justiça, e lhe não tomasse seu ofício por força; protestando pelas perdas e danos e interesses, e que lhe soltasse Simão Caeiro e Lançarote de Sexas, que tinha presos sem culpa, para requererem sua justiça. Lido este requerimento, o Governador o rompeu com muita indignação, per que o tabelião se foi fugindo a Cananor sem esperar resposta. E porque, passando Lopo Vaz pela cadea, Simão Caeiro e o Sexas com grande clamor lhe requereram os mandasse soltar para requerer a justiça do Governador Pero Mascarenhas, os mandou carregar de maiores ferros, e mandou pregoar, sob pena de morte, que ninguém chamasse a Pero Mascarenhas Governador; o qual sabendo como Lopo Vaz de Sampaio rompera o requerimento e não dera resposta, pediu ao mesmo tabelião disso um instrumento; e deste sucesso se escandalizou tanto D. Simão, parecendo-lhe que Lopo tomava a governança por força, que em seu ânimo determinou de lhe desobedecer.

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NOTAS (1) A cópia desta carta escreve Diogo do Couto no cap. 6, do liv. 2. (2) A cópia desta carta escreve Diogo do Couto no cap. 7, do liv. 2. (3) As cópias destas duas cartas, que Cristóvão de Sousa escreveu a Lopo Vaz de Sampaio e a Pero Mascarenhas, escreveu Fernão Lopes de Castanheda no cap. 31, do liv. 7, e Diogo do Couto no cap. 7, do liv. 2. (4) A cópia deste requerimento escreve Diogo do Couto no cap. 7, do liv. 2.

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72 72 75 Capítulo III. Como Lopo Vaz de Sampaio mandou prender a Heitor da Silveira e outros fidalgos seus parentes e amigos, e a causa que houve para isso. Era tanta a autoridade de Cristóvão de Sousa e o respeito que todos lhe tinham, que, como ele não reprovou a prisão de Pero Mascarenhas, todas as dissensões e bandos que havia sobre a preferência dos Governadores cessaram, 73 73 e começou Lopo Vaz, como homem que já estava quieto, empregar-se todo no apercebimento para a vinda dos Rumes. Mas não tardou muito que lhe não sucedesse outro novo sobressalto. Porque Heitor da Silveira, que era um fidalgo mui principal por sua nobreza, pessoa e valor, que seguia as partes de Lopo Vaz, lhe veo a pedir a capitania de Goa para seu primo Diogo da Silveira, a qual tinha Pero de Faria, que estava provido de Malaca por el-Rei. Ao que o Governador respondeu, que na escolha de Pero de Faria estava ter a capitania de Goa, ou deixá-la, polo que ele não o podia obrigar ir a Malaca contra sua vontade, mas que lhe falaria nisso, e, querendo ir a Malaca, lhe daria a capitania de Goa. E dizendo que lhe falara, respondeu a Heitor da Silveira que Pero de Faria não queria ir a Malaca. Isto não creu Heitor da Silveira; mas pareceu-lhe que, por a necessidade que Lopo Vaz tinha de gente e de amigos, não queria alongar de si a Pero de Faria, que era seu grande amigo; e escandalizado da resposta, lhe pediu que, pois Pero de Faria não queria ir a Malaca, lhe desse aquela fortaleza para seu primo, pois como governador a podia dar, e ela cabia muito bem nos merecimentos de Diogo da Silveira; do que se escusou Lopo Vaz, dizendo que folgara de lha poder dar, mas que não podia, porque Jorge Cabral a servia por lha dar Pero Mascarenhas, sendo em Malaca jurado e obedecido por Governador, por o que Jorge Cabral a não quereria largar sem provisão de Pero Mascarenhas; e indo Diogo da Silveira sem ela, seria renovar sedições em Malaca, como havia na Índia, e que lhe pesava muito de lhe pedir cousas que não podia fazer com justiça, a qual ele, na governança em que estava, determinava guardar em tudo a todos. Heitor da Silveira lhe disse que folgava muito de lhe ver tam bons propósitos, bem diferentes do que as más línguas andavam publicando: que ele não queria guardar justiça a Pero Mascarenhas, a qual se não guardava, daria ocasião à gente de cuidar que tomava o governo por força; e assi, que visse bem o que fazia, porque ele sempre havia de ser em favor da justiça. E depois de haver entre ambos alguns debates, e Lopo Vaz soltar alguas 76 palavras com cólera, Heitor da Silveira se foi anojado; e comunicado com seus parentes e amigos o que passara com Lopo Vaz de Sampaio, como alguns deles lhe não tinham boa vontade, assentaram todos que 74 74 ele tinha usurpado o cargo ao Governador, e que era razão que se determinasse por justiça a quem pertencia, e que não era honra sua obedecerem a quem cometia força, tendo eles jurado outro Governador. Para isto convocaram outros fidalgos que tivessem sua opinião, de que foram estes os principais: D. Tristão de Noronha, D. Jorge de Castro, D. António da Silveira, D. Henrique de Eça, Jorge da Silveira, Francisco de Taíde, D. Francisco de Castro, Jorge de Melo, Diogo de Miranda, Aires Cabral, Simão Sodré, Martim Vaz Pacheco, Vasco da Cunha, Nuno Fernandes Freire e Simão Delgado, quadrilheiro-mor; e como viram estes fidalgos que os da câmara de Goa e muitos cidadãos eram de seu parecer, logo escreveram a Pero Mascarenhas por terra, dizendo que devia de trabalhar

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com D. Simão que o soltasse, e se viesse a Goa, e, sendo presente, requereriam ao Governador se pusesse com ele a dereito, e que não querendo, o desobedeceriam e dariam a obediência a ele, Pero Mascarenhas. A carta, sendo assinada por todos, que faziam número de duzentos e sessenta, cousa que Pero Mascarenhas não esperava, ele a mostrou a D. Simão de Meneses, e lhe deu tantas razões, que D. Simão lhe prometeu que o soltaria, se aqueles fidalgos perseverassem em seguir sua parte. Com esta promessa e carta tomou Pero Mascarenhas mais ânimo e começou a frequentar requerimentos com o Governador, té que lhe respondeu que lhos não mandasse mais, que não se havia de pôr em justiça com ele em cousa que não tinha dúvida. Havida esta resposta, Pero Mascarenhas a mandou a Heitor da Silveira, escrevendo-lhe que, pois Lopo Vaz se não queria pôr em justiça com ele, lhe pedia que ele e os da sua valia fizessem o que lhe tinham escrito e oferecido, o que se com brevidade não efeituassem, que, por o Verão se ir chegando, viriam as naus de Portugal, com que ficava Lopo Vaz de Sampaio com muito maior poder; porque os capitães e a mais gente delas não haviam de obedecer senão ao Governador que achassem de posse; e que estava certo que Lopo Vaz o mandaria preso nas mesmas naus ao reino, e assi ficariam frustradas todas as suas esperanças e os favores que lhe queriam fazer na sua pretensão. E porque o Governador Lopo Vaz fazia pouco caso dos requerimentos de Pero Mascarenhas, escreveu ele à câmara de Goa (1)os fizesse em seu nome a Lopo Vaz, 75 75 requerendo-lhe que se pusesse com ele em justiça; o que fazendo, e havendo por resposta ameaços, Heitor da Silveira e os fidalgos de sua facção fizeram outro por escrito, que mandaram ao governador por Manuel de Macedo com um escrivão, o qual acabando de o ler, Lopo 77 Vaz com grande ira mandou prender na cadeia entre os homens baxos a Manuel de Macedo, sendo homem fidalgo, e ao escrivão arrepelou e espancou. Ao escândalo que Heitor da Silveira e Diogo da Silveira tinham do Governador se ajuntou a violência de que usava, não sofrendo que lhe pedissem fizesse de si justiça, e se pusesse a dereito com Pero Mascarenhas. Polo que eles assentaram de o prender, e o fizeram aos oficiais da câmara, para lhe acudirem com armas quando comprisse. Isto se publicou logo; e como o Governador o soube, determinou de prender a Heitor da Silveira e aos fidalgos da sua valia, e assi ao dia seguinte mandou António da Silveira, seu genro, e Simão de Melo, seu sobrinho, e outros secretamente armados, que fossem tomar as ruas que iam a casa de Heitor da Silveira para deter os que lhe quisessem acudir; e a Pero de Faria, como capitão da cidade, que os fosse prender, e ele se pôs a cavalo na Rua Dereita para mandar gente em seu socorro, ou acudir ele em pessoa, se comprisse. Como rumor andava já pelo povo, que o Governador queria prender Heitor da Silveira, aquela manhã se foram os da liga a sua casa, e muita gente à sua porta; e chegando Pero de Faria a ela, Heitor da Silveira saiu à janela e, perguntando-lhe que queria, lhe disse Pero de Faria que o vinha prender, que lhe desse a homenagem; ao que Heitor da Silveira respondeu, que lha não queria dar, e que o fizera como mau fidalgo em aceitar aquela comissão. Sendo o Governador certificado disto, por recado de Pero de Faria, chegou à pressa, e da rua lhes disse que se dessem à prisão; eles responderam que não dariam, que era seu inimigo capital, por lhe dizerem que fizesse justiça de si. E vendo o Governador que se não queriam dar à prisão, apeando-se do cavalo, tomou ua lança e ua adarga, e com muita ira quis subir acima onde aqueles fidalgos estavam. Mas representando-se a Heitor da Silveira os grandes males que se seguiram daquela resistência, e lembrando-lhe o serviço del-Rei, movido mais da lealdade que lhe devia, que do ódio que tinha ao Governador, 76 76 se deu à prisão, e se deram os mais que com ele estavam; e Pero de Faria os levou à fortaleza, onde o Governador os foi esperar e lhes tomou as homenagens. E porque via que alguns daqueles

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fidalgos não tinham mais culpa que serem amigos de Heitor da Silveira, e por os ter por amigos, mandou-os para suas casas; somente a Heitor da Silveira, Diogo da Silveira, D. António da Silveira e D. Jorge de Castro, por serem os principais daquela opinião, deixou estar presos na fortaleza; e a Jorge de Melo e Aires Cabral, por homens soltos de língua e inquietos, mandou presos em ferros à fortaleza de Benasterim. E no fim de Agosto, querendo mandar a Heitor da Silveira e aos seus três companheiros a Cochi, eles requereram com grande instância e proclamaram que o Governador os mandava em tempo tam áspero e tempestuoso só para morrerem no mar, polo que deixou de os mandar, e os teve a bom recado, e assi dizem que o tinham eles sobre si.

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NOTAS (1) Estes protestos, e a resposta que a eles deu Lopo Vaz de Sampaio, se podem ver nos capítulos nove e dez do Segundo Livro da Década 4, de Diogo do Couto.

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76 76 78 Capítulo IV. Como Pero Mascarenhas foi solto e obedecido por Governador per alguns capitães. Sabendo Pero Mascarenhas da prisão de Heitor da Silveira e dos mais fidalgos da sua opinião, e do mau tratamento que fazia Lopo Vaz de Sampaio a quem lhe falava em pôr em juízo sua governança, requereu com grande instância a D. Simão de Meneses que o soltasse e o reconhecesse por legítimo Governador; o que não foi muito de acabar com ele, pelo escândalo que tinha da prisão daqueles fidalgos; e disse a Pero Mascarenhas que não tinha que era honra obedecer por violência a Lopo Vaz de Sampaio, e que a ele queria dar a obediência. E para que não parecesse que só por sua vontade soltava Pero Mascarenhas, e lhe obedecia pela de todos, o soltou e o levou à Igreja; e juntos os oficiais da Justiça e Fazenda, fidalgos e toda a mais gente, um tabalião em voz alta leu a sucessão de Pero Mascarenhas, que foi aberta ao tempo que D. Henrique de Meneses faleceu; e o auto que se fez da governança temporária a Lopo Vaz de Sampaio, enquanto 77 77 Pero Mascarenhas não vinha de Malaca; e a carta do vedor da Fazenda, porque o mandou chamar, e a sucessão de Lopo Vaz, com todos os autos da resistência, que se a Pero Mascarenhas fez em Cochi. Depois de lidos, disse Pero Mascarenhas que lhes mandara ler tudo aquilo para que vissem que, sendo ele eleito para Governador da Índia por el-Rei, aprovado por seus oficiais e capitães e chamado deles, fora sem razão despojado da governança, afrontado, ferido e preso em ferros como traidor, quando esperava mais favor de todos, vindo vitorioso com a destruição del-Rei de Bintão. E que para mais evidência de Lopo Vaz de Sampaio se levantar com a Índia, prendera aos fidalgos principais dela com tanto vigor, por lhe requererem se pusesse em justiça, e castigava todos os que tal lhe requeriam. Causando tamanha discórdia em tempo que o Estado da Índia estava tam arriscado com a vinda dos Rumes, que lhes pedia fizessem com Lopo Vaz que se pusesse com ele em juízo, ou lhe tirassem a obediência e a dessem a ele; e, não o fazendo, fez muitas protestações. Todos os que estavam presentes responderam que não havia que requerer nem que protestar, que eles a ua voz o reconheciam por Governador, e logo o juraram por tal com grande festa. Como esta nova se soube, muitos fidalgos e outras pessoas que lhe eram afeiçoadas se vieram para ele, assi de Cochi como de outras 79 capitanias, por terem por mui justificada a sua causa. Quando Lopo Vaz soube que Pero Mascarenhas era solto e obedecido de alguns por Governador, se teve por mal aconselhado em o haver fiado de outrem e tirado de Goa ou de Cochi. Polo que, receando-se que ele se viesse meter em Goa, mandou a Simão de Melo, seu sobrinho, que fosse guardar a barra de Goa-a-Velha com três navios, porque por ali lhe pareceu que viesse Pero Mascarenhas, ao qual mandava que prendesse e o levasse a Goa. Nesta conjunção, aportaram na barra de Goa em 16 de Agosto as duas naus (1)da invernada do ano passado, de que eram capitães António de Abreu e Vicente Gil, e em Setembro chegaram três naus de viagem da companhia de cinco que partiram de Portugal em Março daquele ano de 1527. Das duas que faltaram, iam por capitães Manuel de Lacerda e Aleixo de Abreu, que se perderam na Ilha de S. Lourenço, de cujo naufrágio e sucesso diremos adiante; e das três que chegaram a salvamento, 78 78

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eram capitães Cristóvão de Mendoça, irmão da Duqueza de Bragança, D. Joana de Mendoça, filhos de Diogo de Mendoça, alcaide-mor de Mourão, que ia provido da fortaleza de Ormuz na vagante de Diogo de Melo, Baltasar da Silva e Gaspar de Paiva; e nestas naus foram embarcados D. João de Eça, cunhado de Lopo Vaz de Sampaio, que levava a capitania de Cananor, e Francisco Pereira de Berredo a de Chaul. Aos quais capitães fez Lopo Vaz as mesmas perguntas sobre a justificação do seu governo que fizera aos capitães das naus do ano passado (como atrás dissemos) e eles lhe deram a mesma resposta que os outros, aprovando a sua posse. Pero Mascarenhas, como se viu favorecido, mandou a Chaul Francisco Mendes de Vasconcelos pedir a Cristóvão de Sousa da sua parte e da de D. Simão e dos oficiais da Câmara, que requeresse a Lopo Vaz se pusesse um justiça sobre a governança, porque não convinha ao serviço del-Rei haver dous Governadores, e que se não sucedesse a isso, que lhe tirasse a obediência; o mesmo mandaram requerer a Lopo Vaz, e escreveram aos fidalgos presos, oferecendo-lhes Pero Mascarenhas que poria a vida sobre sua soltura. Chegou Francisco Mendes a Goa e deu os requerimentos que levava ao secretário e as cartas aos fidalgos, e passou a Chaul, onde entregou os papéis que lhe deram em Cananor a Cristóvão de Sousa, pelos quais, constando-lhe dos muitos requerimentos que se fizeram a Lopo Vaz de Sampaio por parte de Pero Mascarenhas, e o que fez a quem lhos apresentou, e como Pero Mascarenhas estava obedecido em Cananor por D. Simão, e o fora já de todos os fidalgos e capitães da Índia, quando se abrira a sucessão, propôs tudo aos oficiais da fortaleza e aos muitos fidalgos que por sua causa invernaram em Chaul, os quais da prisão de Heitor da Silveira e seus companheiros estavam mui escandalizados; e de comum acordo se assentou que 80 Cristóvão de Sousa obedecesse a Pero Mascarenhas, enquanto Lopo Vaz se não quisesse pôr com ele a dereito; e que, quando se pusesse, daria a obediência a quem a justiça declarasse por legítimo Governador; e que isto se fizesse logo, antes que Lopo Vaz adquirisse mais forças ou sucedesse a vinda dos inimigos. O que Cristóvão de Sousa não recusou fazer por o perigo que podia correr 79 79 o Estado da Índia, havendo divisões; polo que escreveu a Lopo Vaz de Sampaio a razão por que dera a obediência a Pero Mascarenhas, e a condição com que o fizera. A esta carta não respondeu Lopo Vaz, e logo lhe quis tirar a capitania, de que Francisco Pereira de Berredo vinha provido do reino. Para o que ordenou ua armada, de que fez capitão-mor António da Silveira, e lhe mandou que fosse a Chaul e requeresse a Cristóvão de Sousa que lhe entregasse a ele a armada que lá estava, e a capitania a Francisco Pereira que com ele ia, por ser o tempo de Cristóvão de Sousa acabado. Cristóvão de Sousa, ressentido de Lopo Vaz, não respondeu à sua carta, não deixou desembarcar a António da Silveira; e ao que Lopo Vaz mandava, respondeu que o não havia de fazer, porque tinha mandado em contrário de Pero Mascarenhas, seu Governador; e feitos muitos requerimentos por António da Silveira e protestos por Francisco Pereira, se tornaram sem o efeito da jornada.

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NOTAS (1) Frota da Índia do ano de 1527.

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79 79 80 Capítulo V. Do que António de Miranda de Azevedo e Cristóvão de Sousa ordenaram para o Lopo Vaz de Sampaio e Pero Mascarenhas desistirem do governo, e se porem em dereito. Depois de partido António da Silveira de Goa para Chaul, vindo António de Miranda de Azevedo, capitão-mor do Mar da Índia, de Cochi para Goa, foi de caminho ter a Cananor, para saber o estado daquela fortaleza; e estando no mar, lhe mandou dizer Pero Mascarenhas por D. Simão de Meneses, como ele estava solto e obedecido por Governador pelo mesmo D. Simão e por Cristóvão de Sousa, capitão de Chaul, e pela mor parte dos fidalgos e soldados que na Índia andavam; que lhe requeria que lhe desse a ele também a obediência, pois Lopo Vaz de Sampaio, não queria que se pusesse em juízo a preferência da governança, e de seu absoluto poder a usurpava; e, vendo-se sem armada, veria a suceder no que era justiça. António de Miranda, considerando que a total ruína do Estado da 81 Índia 80 80 seria haver nela cisma de dous Governadores e divisão da gente portuguesa, que em si era pouca, e os inimigos naturais e estrangeiros sem número, respondeu a Pero Mascarenhas que o não podia obedecer como Governador, té se não ver com Lopo Vaz, e saber dele se se queria someter a juízo de árbitros; e que não o querendo ele outorgar, em tal caso obedeceria a ele, Pero Mascarenhas, de que lhe deu um escrito (1)de sua mão, em que lhe fazia preito e homenagem de assi o comprir. Chegando António de Miranda a Goa, sabendo Lopo Vaz como dera aquele escrito, lho estranhou com muita aspereza e ameaços, que faria outro capitão-mor do Mar, e ele se iria para Pero Mascarenhas; porém não ousou, por não acrescentar o escândalo e as dissensões que havia, e o mandou logo a Chaul para ajudar a António da Silveira, que fora pedir a armada a Cristóvão de Sousa, e depô-lo do cargo de capitão, e entregá-lo a Francisco Pereira. E quando chegou a Chaul, partia para Goa António da Silveira com a resposta que acima dissemos, a quem fez esperar té se ver com Cristóvão de Sousa, ao qual mandou dizer que compria a serviço del-Rei verem-se ambos. Cristóvão de Sousa lhe respondeu o mesmo que dissera a António da Silveira; e em seu nome e dos fidalgos que com ele invernaram, lhe mandou requerer que acudisse à força que se fazia a Pero Mascarenhas; e que, pois estava em sua mão, fizesse com Lopo Vaz que outorgasse o que tantos lhe pediam, e pacificasse a Índia; e sobre isto lhe mandou fazer tantas protestações, que lhe pareceu António de Miranda que convinha ir à fortaleza a ver-se com Cristóvão de Sousa, e assi o fez. E como estes dous fidalgos não procuravam outra cousa que o serviço del-Rei e a paz e união entre os Portugueses, determinaram-se em obrigar a Lopo Vaz que desistisse da governança té se julgar a quem pertencia. Polo que, depois de muitos discursos, assentaram que aquela causa se julgasse por juízes árbitros, e que estes fossem sete, um deles o mesmo António de Miranda, e os outros D. João de Eça, Francisco Pereira de Berredo, Baltasar da Silva, Gaspar de Paiva, Fr. João de Alvim, da Ordem de S. Francisco, e Fr. Luís da Vitória, da Ordem de S. Domingos. Assinalados os juízes (os quais ficaram em segredo entre 81 81 estes dous capitães com juramento té ser tempo de se declararem, para que os dous competidores o não soubessem), ordenaram uas capitulações (2)sobre segurança das pessoas de Cristóvão de Sousa quando fosse a Goa, e de seus parentes, amigos e criados, e de Lopo Vaz de Sampaio e de Pero Mascarenhas. Que o que deles ficasse julgado por Governador não desfaria o que o outro tivesse

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feito, nem entenderia na pessoa e fazenda do outro, nem de seus criados, parentes e amigos. E que tanto que Cristóvão de Sousa e 82 António de Miranda chegassem a Goa, Heitor da Silveira, D. Jorge de Castro e D. António da Silveira, e todos os mais que por causa de Pero Mascarenhas estivessem presos, seriam soltos; e que aquela causa se havia de determinar em Cochi, onde ambos os competidores se ajuntariam, como pessoas privadas, tendo desistido cada um do ofício de Governador, té se determinar por sentença qual deles o seria. E que Lopo Vaz iria desde Goa entregue a António de Miranda, e em Cananor se lhe entregaria Pero Mascarenhas; e querendo-o ele levar no seu galeão, se entregaria Lopo Vaz a Cristóvão de Sousa ou a D. Simão de Meneses, para o levarem no navio em que fossem. Estas e outras muitas seguranças e cautelas se capitularam, as quais ao outro dia juntos na Igreja mostraram e leram ao feitor, alcaide-mor da fortaleza, oficiais e fidalgos que invernaram nela, dando-lhe relação da causa por que as fizeram, e que vissem o que lhes pareciam, e o que se havia de acrescentar ou diminuir, requerendo-lhes que lhe ajudassem a pôr em efeito aquela obra; os quais todos a louvaram muito, e deram os agradecimentos a Cristóvão de Sousa e a António de Miranda, de que se fez auto público, que todos assinaram. Cristóvão de Sousa, deixando entregue a fortaleza a Álvaro Pinto, alcaide-mor dela, se partiu com António de Miranda e António da Silveira para Goa, onde chegados, dando conta António da Miranda ao Governador Lopo Vaz de Sampaio, diante do ouvidor geral e secretário, do assento que tinham tomado e das capitulações que tinham feitas, se anojou muito; porque, como ele era de ânimo senhoril e altivo, e estava de posse do governo, a seu parecer justamente, por provisões del-Rei, parecia-lhe que se lhe fazia violência e desacato, sem ele nisso intervir, fazerem 82 82 contratos e determinações sobre sua pessoa; polo que, com mostras de muita cólera, disse que não se queixava senão de si mesmo, pois se fiara dele, António de Miranda, depois que dera o escrito a Pero Mascarenhas; e que fizera mal de ordenar aquele concerto para escutar sedições e alvoroços, que por esse mesmo caminho se suscitaram maiores. António de Miranda que em estremo desejava a quietação comum e evitar perigos em que o Estado da Índia estava, que só dependia de abrandarem a dureza de Lopo Vaz, lhe descobriu, contra o juramento que fizera, quem eram os juízes que estavam nomeados, com o que Lopo Vaz se desanojou. E aconselhado de seus amigos, vendo que de necessidade já se não podia deixar de pôr em juízo, sem risco de perder a governança, pelos juramentos que estavam feitos de desobedecerem à parte que recusasse, disse a António de Miranda que consentia nas capitulações, com condição que os juízes não haviam de ser mais de sete, nem outros senão os que estavam nomeados, de que lhe pediu um assinado, que lhe deu; e que, ficando Pero Mascarenhas por Governador, não tirasse a Afonso Mexia nenhum dos ofícios que tinha, e o entregaria ao Governador que fosse de Portugal. Contente Cristóvão de Sousa de tudo, os fidalgos presos foram soltos, 83 e se fizeram juramentos de parte de Lopo Vaz e de Pero Mascarenhas; e tendo ambos desistido do governo, vieram a Cochi, e no mar estiveram estes dous competidores em arreféns té se dar sentença - Lopo Vaz entregue a António da Silveira, na nau S. Roque, e Pero Mascarenhas a Diogo da Silveira na nau Flor de la Mar.

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NOTAS (1) A cópia deste escrito referem Fernão Lopes de Castanheda no cap. 43, do liv. 7, e Diogo do Couto, no cap. 7 do liv. 3. (2) Estas capitulações escreve Fernão Lopes de Castanheda no cap. 44, do liv. 7.

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83 83 83 Capítulo VI. Das diferenças que houve sobre acrescentarem à causa de Lopo Vaz de Sampaio e Pero Mascarenhas mais juízes dos que foram nomeados a princípio; e como se deu a sentença em favor de Lopo Vaz. Não querendo Cristóvão de Sousa que Fr. João de Alvim fosse um dos juízes, e que em seu lugar se acrescentassem cinco, que eram, Lopo de Azevedo, que viera aquele ano de Portugal, António de Brito, que fora capitão de Maluco, Nuno Vaz de Castelo Branco, capitão que fora do navio do trato de Sofala, Tristão de Gá e Bastião Pires, Vigairo Geral da Índia, por quam suspeitos tinha os sete nomeados em favor de Lopo Vaz, arriscou com esta inovação o efeito do que estava assentado, e ficar o negócio em pior estado e perigo que antes. Porque Lopo Vaz, quando lho disse António de Miranda, não confiando dos juízes que se acrescentavam, se indinou muito contra ele, queixando-se que o trouxera enganado de Goa, e o fizera desistir do governo; e sobre isso lhe disse outras palavras ásperas, que António de Miranda prudentemente sofreu por os desejos que tinha de ver paz na Índia. Finalmente, depois de muitas altercações, que chegaram a termos de se querer averiguar aquela causa com as armas, Lopo Vaz veo a consentir nos juízes, e, reconciliado com António de Miranda, lhe pediu perdão das palavras que com ele passara. Ao seguinte dia, Cristóvão de Sousa e António de Miranda com o ouvidor geral e o secretário se foram ao Mosteiro de Santo António de religiosos de S. Francisco, e ali, diante dos mais dos fidalgos que estavam em Cochi, nomearam os onze juízes referidos. António de Miranda, que não estava seguro da satisfação que Lopo Vaz teria deles, polo aquietar, lhe pareceu 84 84 bem que se acrescentassem mais dous juízes, e que fossem Fr. João de Alvim e Brás da Silva de Azevedo; mas Cristóvão de Sousa, vendo a desigualdade que havia nos votos contra Pero Mascarenhas, sendo já a seu requerimento excluído por suspeito Fr. João, não queria consentir na nomeação 84 dos dous juízes; porém, cansado das novidades que cada dia naquele negócio recreciam, obrigado dos desejos da paz, que sempre procurou, sem dar parte a Pero Mascarenhas, que estava certo que não consentiria, deu o seu consentimento. Polo que, dizendo-se logo ua missa, foi dado juramento aos juízes, que bem e verdadeiramnte julgassem aquela causa; e recolhidos com o secretário, que serviu de escrivão do processo, apareceram ante eles D. Vasco de Eça, procurador de Lopo Vaz de Sampaio, e Simão Caeiro, procurador de Pero Mascarenhas, que com as procurações que mostraram de ambos, ofereceu cada um as razões de dereito de seus constituintes. Apresentou-se logo aos juízes um longo razoado (1) de Afonso Mexia, em que tratava os inconvenientes que na Índia se seguiriam de Pero Mascarenhas governar; e neles se conhecia ter tanto ódio contra Pero Mascarenhas, quanta amizade mostrava ter a Lopo Vaz. Outros apontamentos se ofereceram por parte de Pero de Faria, capitão de Goa, e outros pola do licenciado João de Osouro, ouvidor geral da Índia, em que requeriam o mesmo. Entrou também um procurador da Câmara de Cochi, que em nome da cidade requereu aos juízes da parte de Deus e el-Rei não julgassem a governança a Pero Mascarenhas, porque era seu inimigo capital, e como tal os tinha ameaçados; pelo que, sendo ele Governador, despovoariam a cidade, e se iriam para os Mouros, porque com nenhuas promessas e juramentos que fizesse se teriam por seguros. E assi, na noite antes daquele dia, em que os juízes entraram em despacho, todos os moradores de Cochi, por a ofensa e resistência que fizeram a Pero Mascarenhas, e por as ameaças que ele lhes fez de o castigar como traidores, se viesse a governar a Índia, andaram com suas mulheres e filhos pelas igrejas em

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procissão, descalços, com muitas lágrimas e devoção, pedindo a Deus inspirasse nos juízes que não julgassem a governança a Pero Mascarenhas. 85 85 Os juízes, ouvidas as partes, deram seus votos, e sendo os mais em favor de Lopo Vaz, se escreveu a sentença (2) por que julgaram Lopo Vaz de Sampaio governasse a Índia e Pero Mascarenhas se fosse para o Reino, para onde lhe seria dada embarcação, conforme a qualidade de sua pessoa; e quanto aos ordenados do ofício de Governador, ficasse reservado para el-Rei o determinar no Reino como lhe parecesse, e tudo o mais que cada ua das partes quisesse requerer. Esta sentença se deu aos 21 de Dezembro daquele ano de 1527; e assinada pelos juízes António de Miranda, D. João de Eça, 85 Brás da Silva e Tristão de Gá, se foram à nau onde estava Pero Mascarenhas, e entrados dentro, o secretário lha publicou, a qual Pero Mascarenhas, como magnânimo que era, ouviu com o rosto mui seguro, sem mostra de algua alteração, o que seus amigos não fizeram, que todos ficaram mui tristes. Depois foram os mesmos publicar a sentença a Lopo Vaz de Sampaio, que a ouviu com muito prazer; e dando muitas graças aos juízes, pediu outra vez perdão a António de Miranda do que passara com ele. Os de Cochi, que estavam solícitos se se daria a sentença ao contrário, fizeram muitas festas, o que aos da outra parte dava muita paixão, receando o tratamento que Lopo Vaz lhes faria, ficando na Índia. E por ele os assegurar desta suspeita, antes que desembarcasse, ao outro dia pela manhã em um catur correu toda a frota, pedindo a todos que se alegrassem com ele e cressem que tinham nele um grande amigo na Índia, e no Reino com Sua Alteza para lhe representar seus serviços; e que aos que foram da facção de Pero Mascarenhas tinha em mui boa conta, por prosseguirem com tanto o que lhes parecera que era justiça; que o mesmo esperava fizessem por ele quando comprisse, e que servissem com ele a el-Rei com aquele mesmo ânimo, e se fossem a descansar. Do que lhe todos deram as graças, e com ele foram a terra, acompanhando-o, onde foi recebido com muita festa e levado à Igreja debaxo de um pálio, e ali fez muitos comprimentos aos fidalgos que lhe foram contrários, com que se seguram para ficar na Índia. Neste tempo foram acabadas de carregar as naus que haviam de vir a Portugal, e se partiram, e em ua delas veo Pero Mascarenhas entregue a António de Brito, que vinha de capitão dela, e o fora de Maluco; e primeiro 86 86 que Pero Mascarenhas partisse, mandou citar ao Governador Lopo Vaz para ante el-Rei por o cível e crime que contra ele esperava alcançar, e lhe escreveu que ficavam castelhanos em Maluco, que socorresse a D. Jorge de Meneses com gente e munições para defensão daquela fortaleza. As naus chegaram em salvo a Portugal, e Pero Mascarenhas foi de el-Rei bem recebido, e lhe deu a capitania de Azamor, onde esteve alguns anos, e, vindo para Portugal, se perdeu no mar. (3)

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NOTAS (1) A cópia deste razoado escreve Fernão Lopes de Castanheda no cap. 49, do liv. 7. (2) Traslado da sentença: Vistos por os Juízes estes autos, e o que por eles se mostra, e vistos os nossos assinados, em que cada um declarou sua tenção, julgamos por nossa definitiva sentença que Lopo Vaz de Sampaio governe, e seja Governador nestas partes da Índia; e Pero Mascarenhas se vá embora para o Reino de Portugal, e lhe será dada embarcação segundo a qualidade de sua pessoa. E quanto aos ordenados dos sobreditos, fique para el-Rei Nosso Senhor o julgar como lhe bem parecer, e assi tudo o mais que cada um deles quiser requerer no Reino. Fernão Lopes de Castanheda, cap. 50, do liv. 7. (3) João de Barros escreveu as diferenças entre Lopo Vaz de Sampaio e Pero Mascarenhas com tanta brevidade em dous pequenos capítulos, que fica sendo a notícia delas diminuta, polo que pareceu dá-la inteira nos seis capítulos passados; porém menos dilatadamente do que as escreveram Fernão Lopes de Castanheda, no liv. 7, Diogo do Couto, nos livs. 2, 3 e princípio do 4, e Francisco de Andrade na 2ª Parte, desde o cap. 11, té o 28, onde se poderão ler com mais particularidades.

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86 86 86 Capítulo VII. De alguas armadas que Lopo Vaz despachou, e como socorreu a fortaleza de Ceilão, que estava cercada, mandando a ela Martim Afonso de Melo. Vendo-se Lopo Vaz de Sampaio fora das inquietações e discórdias em que andava com Pero Mascarenhas, e despachada a armada para o Reino, pareceu-lhe necessário ordenar outra para ele ir ao Estreito queimar as galés dos Rumes, que ali estavam, de cujas diferenças e poucas forças, e morte de Raix Soleimão ele já sabia, como atrás dissemos. E pondo em conselho este seu intento, lhe foi contrariado como da outra vez, e se assentou nele que não convinha ir o Governador fora da Índia, em tempo que el-Rei de Calecute tinha aprestados muitos paraus seus e feita armação com muitos cossários, com que podia fazer muito grande dano em ausência do Governador; e que para queimar as poucas galés dos Rumes, que estavam em Camarão, bastava mandar ua armada ao Estreito. Com esta resolução, aparelhou Lopo Vaz ua armada, que entregou a António de Miranda de Azevedo, capitão-mor do Mar da Índia, e despachou Pero de Faria para ir a Malaca servir de capitão daquela fortaleza (na vagante de Jorge Cabral, que tinha já acabado seu tempo), que partiu em Abril de 1528, e de que já começamos falar no primeiro Livro, discorrendo pelas costas de Malaca e Maluco; para onde ia, em companhia do mesmo Pero de Faria, Simão de Sousa Galvão, em ua galé, 87 87 de cuja jornada adiante diremos. E assi espediu a D. João de Eça para ir tomar posse da capitania da fortaleza de Cananor, de que do Reino viera provido, e para guardar a costa aquele verão, na qual andavam muitos paraus de Malabares. (1) Outra armada ordenou a Martim Afonso de Melo Jusarte para ir fazer a fortaleza de Sunda, que Francisco de Sá (como temos dito), por o mau sucesso que houve, não pudera fazer. E por o Governador e ele recearem que para aquela jornada não achariam gente que quisesse ir, por o que lá a Francisco de Sá acontecera, lançaram fama que a armada era para ir fazer presas na costa de Tanaçari e Pegu, por lá serem lançados alguns navios de Turcos e naus de Mouros, que por entre as Ilhas de Maldiva faziam viagem àquelas partes, fugindo de nossas armadas. Como esta nova se soube, se alvoroçou a gente com a esperança das 87 presas, parecendo-lhe que seria nesta ida Martim Afonso tam bem fortunado, como fora o ano passado na armada em que fora às Ilhas de Maldiva, onde se fez muito proveito. Na qual viagem abriu Martim Afonso nova navegação das Ilhas de Maldiva para Goa, fazendo-se na volta de Socotorá, e, depois de escorrer todos os baxos das ilhas, arribando sobre Goa. Aprestada a armada de oito velas grossas (2) e de alguns navios de remo, das quais foram capitães António Cardoso. Francisco Ferreira, Duarte Mendes de Vasconcelos, Francisco Velho, João Lobato, Manuel da Veiga, Manuel Vieira, João Coelho, Vasco Rabelo e Tomé Rodrigues, nela se embarcaram quatrocentos homens; e estando para partir, vieram novas ao Governador como Boenegobago Pandar, Rei da Cota em Ceilão, estava cercado de Patemarcar, capitão-mor del-Rei de Calecute, o qual pelos seus portos de mar lhe fazia muito dano em ódio dos nossos e em favor de Madune Pandar, irmão do mesmo Rei da Cota; polo que, sendo necessário socorrer aquele Rei, por ser vassalo del-Rei de Portugal, mandou o Governador a Martim Afonso, que logo partisse e passasse por Ceilão, e socorresse a el-Rei Boenegobago Pandar. Martim Afonso fez a viagem como se lhe ordenou, e chegou a Columbo, onde já não achou Patemarcar, que, tendo novas da nossa armada,

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88 88 se meteu pelos rios da ilha em partes que os nossos navios, por serem grandes, não podiam ir a eles, e o Madune Pandar levantou o cerco que tinha posto ao irmão. (3) Martim Afonso, por não perder sua moução, não se quis deter em Ceilão, e com muito proveito que fez de navios de Mouros que ali houve, partiu e foi ter a Calecare, onde se viu com o senhor da terra e assentou com ele o trato da pescaria de aljôfar, que se pesca naqueles baxos de Ceilão, a um preço certo, e com obrigação que pagaria cada ano três mil pardaus, com que o Governador da Índia mandasse dar guarda aos pescadores do aljôfar no tempo da pescaria, da qual então andava por capitão Diogo Rebelo com alguns navios. E porque os moradores de Care, lugar vezinho de Calecare, onde também se pesca o aljôfar, mataram a João Flores, capitão da guarda daquela pescaria, Martim Afonso passou lá e o destruiu, e dali se foi a Paleacate.

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NOTAS (1) Aprestou outra armada de seis catures e fustas, de que fez capitão Manuel da Silva, para guardar a costa de Goa té Chaul. E a João de Flores mandou com ua caravela, ua barcaça e três fustas arrecadar a renda da pescaria do aljôfar; a quem acometeram vinte paraus de mouros, não tendo João Flores consigo as fustas, e o mataram, e a todos os portugueses, e queimaram os navios. Francisco de Andrade, cap. 30, da 2ª Parte. (2) Esta armada era de onze velas de remo, das quais ua era galé e outra galeota. Diogo do Couto, cap. 3, do liv. 4. (3) Estes dous irmãos e outro, que se chamava Região Pandar, eram filhos de um irmão de Dramapracura Mabago, Rei de Ceilão, por cuja morte outro seu irmão, chamado Boenegabo Pandar, lhe matou três filhos, que lhe ficaram de pouca idade, e usurparam o Reino; e para o possuir sem contradição e ser absoluto senhor dele, determinou de matar a estoutros três sobrinhos e enteados seus, porque estava casado com a mulher de seu irmão, cujos filhos eles eram. Os moços, que já tinham idade para entenderem a intenção do tio, com ajuda de quem lhes maior bem queria que ele, o mataram, tomaram-lhe o Reino, e o dividiram entre si. Boenegobago Pandar, que era maior, ficou com o título de Rei da Cota, Madune Pandar com o Estado de Ceitavaca, e Região Pandar com o de Região. Gozaram estes três irmãos seus Estados em amizade alguns anos té a morte de Região Pandar, que el-Rei tomou o que ele possuía e Madune desejava, sobre que se começaram a desavir estes dous irmãos e a contender abertamente, pertendendo Madune de subir ao supremo domínio daquela Ilha, para o que intentava todos os meios para o conseguir. E esta era a causa da guerra entre eles, na qual se el-Rei ajudava dos Portugueses em sua defensão, e Madune dos Malavares para seus intentos. Diogo do Couto, Década 5, liv. 1, cap. 5.

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88 88 88 Capítulo VIII. Do que sucedeu a Martim Afonso té se perder na Ilha de Negamale, e como foi cativo. Deteve-se Martim Afonso alguns dias em Paleacate (onde estava por capitão Ambrósio do Rego), tomando roupas e outra fazenda, que lhe era necessária para a jornada que ia fazer; e ao tempo que naquele lugar se estava apercebendo, acertaram de vir de Cochi por terra alguns patamares, que são correos de pé, que em seu modo andam tanto como cá os nossos correos a cavalo, os quais deram novas da armada de Martim Afonso, que tanto que se ele partiu de Cochi, se publicou que ele ia fazer a fortaleza de Sunda, e não as presas de Tanaçari. E a causa por que se rompeu este segredo, foi que, estando Martim Afonso lendo entre si o regimento que levava, ficava-lhe nas costas dele ua cota que dizia: Regimento de Martim Afonso de Melo do que há-de fazer na jornada de Sunda, aonde agora vai; a qual cota lendo quem estava junto dele, 89 89 a divulgou, e assi se veo a publicar o lugar onde ia. Como o soube a gente da sua companhia e se achou enganada, se começou amotinar e fugir algua; porque, quanto foi o alvoroço com que partiram para as presas de Tanaçari, tanto foi o desgosto de os levarem a Sunda. Polo que compriu a Martim Afonso desfazer algua prata sua e buscar dinheiro emprestado com que fez alguas pagas aos soldados; porque, quando partira de Cochi com a nova de irem às presas, não lhe fora nada pago. E por mais os aquietar, lhes prometeu Martim Afonso, que de caminho iriam pela costa de Tanaçari e faria as presas que ali achassem. Com este propósito se partiu de Paleacate, tornando-se dali António Cardoso com ua galé por não servir para aquela navegação que havia de fazer; e por duas fustas fazerem muita água, se tornaram também com seus capitães para Cochi, os quais parece que quis Deus salvar dos perigos que os outros haviam de passar. Porque, fazendo eles sua viagem, na travessa daquele golfão e enseada de Bengala saltou com eles um temporal, que os espalhou de maneira que Martim Afonso se achou só com seu navio junto à ilha que chamam Nagamale, que é fronteira à cidade de Sodoé, que está 89 na terra firme, onde em um baxo se veo a perder, ficando a maior parte da gente salva. Vendo-se Martim Afonso no batel do navio em que se salvou com té cinquenta pessoas, e com a fortuna do tempo, que poderia perder os outros navios da sua armada, seguiu a vontade dos mais companheiros, e mandou remar contra a Ponta de Negamale, parecendo-lhe que, por ser parte que os navios geralmente vão demandar, quando navegam a Pegu, ali poderia achar algum remédio; porque, quando não fosse em os navios que esperavam de achar, seria na gentes da terra, por muito conhecimento que tinha de nós; mas quantas cousas acometia, nenhua lhe sucedia bem, porque tudo eram mudanças do tempo, que ora os lançava a ua parte, ora a outra, sem ousar de tomar terra, temendo serem ofendidos dos bárbaros da costa, por ser gente que não tinha comércio connosco. Finalmente, vencidos da fome e da sede, tanto que descobriram ua pequena povoação, lançaram-se ali duas pessoas aventuradas a morrer por dar vida a todas as outras, 90 90 os quais foram um fidalgo por nome Francisco da Cunha, filho de Rui de Melo da Cunha, do Algarve, e um António Fialho, que foram logo tomados e levados da vista dos nossos para o sertão

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por muitos daqueles bárbaros que se ajuntaram. Quando Martim Afonso viu o procedimento que eles tiveram com aqueles soldados (que não correram perigo da vida e passado algum tempo foram resgatados), converteu-se aos companheiros, e com as melhores palavras que pôde, os persuadiu tivessem paciência naqueles trabalhos, e os mudou de seu propósito, que era quererem antes morrer em terra cativos daquela bárbara gente, que andar mortos de fome e de sede, e ao cabo serem comidos dos pexes. Polo que, voltando ao baxo onde ficou o navio perdido, parecendo-lhe que o mar lançaria algua cousa dele, com que se pudessem reparar, nem ali nem a outra parte acharam senão maiores trabalhos e perigos, com os quais navegaram cinco ou seis dias com grande fome e sede, e ao cabo deles aportaram a ua ilheta, onde descubriram uas tartarugas, com cuja carne e ovos que cozeram em um capacete, se deu a vida a muitos enfermos, que comeram de uas favas peçonhetas que ali acharam, e os sãos se refrescaram. Passados três dias, partiram daquela ilheta, e, atravessando a costa, chegaram a ua praia, onde achando boa água e palmitos, com eles e com o que levavam das tartarugas estiveram outros três dias; ao cabo deles vieram dar com os nossos duas almadias de pescadores, os quais dizendo que os levariam ao porto de Chatigão, que é de Bengala mui frequentado dos Portugueses, os meteram em um rio de ua cidade chamada Chacuria, que era do 90 senhorio de Codavas-Can, vassalo del-Rei de Bengala; ao qual dando os pescadores novas daqueles portugueses que andavam perdidos, e que vinham desarmados, o Codavas-Can, que sabia serem os Portugueses homens esforçados e exercitados na guerra, determinou de ajudar-se deles em ua que tinha com um seu vezinho, e assi os mandou logo buscar com suas gentes, e os trouxe a si com promessas de os aviar para se tornarem à Índia, e de outras cousas que não cumpriu. 91 91 Porque, havida vitória de seu inimigo com ajuda daqueles portugueses, não lhes quis dar licença que se fossem, mas os reteve como cativos, dizendo-lhes que se resgatassem. O lugar onde este tirano os tinha era ua cidade sua que se chama Soré, situada ao longo de ua ribeira, que entra em um rio, o qual vai se meter no mar oito léguas da cidade. Aconteceu que, estando Martim Afonso naquele estado, vieram ter à barra daquele rio ua galeota e um bargantim da sua armada, de que eram capitães Duarte Mendes de Vasconcelos e João Coelho, aos quais ele logo mandou avisar como estavam ali, e que o Codavas-Can lhes pedia resgate por suas pessoas; que ajuntassem algua cousa do que traziam para os livrar daquele tirano; mas, como eles traziam pouco e o tirano pedia muito, vendo que não tinham outro remédio, determinaram Martim Afonso e seus companheiros de fugir, tendo concertado que duas almadias iriam de noute por o rio acima té um certo lugar que seria da cidade duas léguas, porque não podiam subir mais acima, e que ali os recolheriam, o que se não pôde fazer secretamente, que não fossem sentidos e tomados antes de chegar ao lugar em que esperavam as almadias, estando já todos embrenhados. E o que mais sentiu Martim Afonso foi degolarem os brâmanes diante de seus olhos a Gonçalo Vaz de Melo, seu sobrinho (mancebo mui gentilhomem, a que então começava a barba) em sacrifício a seus ídolos, porque lhes tinham feito voto que, deparando-lhes os Portugueses, lhe sacrificariam o mais fermoso deles; e posto que Martim Afonso prometeu pelo sobrinho grande resgate, não o pôde livrar da morte, que com grande constância cristã ele padeceu. Os que estavam nos navios, tanto que foram avisados do estado em que Martim Afonso ficava, partiram-se caminho da Índia a dar novas do sucesso daquela armada. Mais quis Deus prover a tribulação daqueles homens, porque daí a pouco tempo foram resgatados por três mil cruzados, que por eles deu um mercador mouro que havia nome Coge Sabadim. (1)

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NOTAS (1) Tudo isto faltava nos quadernos de João de Barros, que parece lhe tiraram a folha em que devia estar escrito. Diogo do Couto, cap. 10, do liv. 4, Francisco de Andrade, cap. 36, da 2. Part. e Fernão Lopes de Castanheda desde o cap. 75, té o cap. 79, do liv. 7.

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92 92 91 Capítulo IX. Como D. João de Eça desbaratou e prendeu a China Cutiale, capitão-mor del-Rei de Calecute, e do que mais lhe sucedeu. Dom João de Eça, que atrás dissemos que o Governador mandara com armada à costa de Calecute, pôs nisso tal diligência, que não saía navio dos lugares daquela costa que lhe escapasse; polo que naquele verão que nela andou, tomou cinquenta velas, as mais delas carregadas de pimenta de mouros de Calecut, no que teve muitas pelejas com eles, nas quais os Portugueses o fizeram sempre mui esforçadamente. E não saindo já navios daqueles portos com temor de D. João, com conselho dos capitães, que com ele iam, desembarcou em Mangalor, por ter novas que estavam ali recolhidos alguns paraus, os quais queimou, e abrasou o lugar; e sem receber algum dano se tornou a embarcar, e correndo a costa, encontrou com China Cutiale, capitão-mor da armada del-Rei de Calecute, que era de sessenta paraus. Era este mouro mui valente cavaleiro, e que sempre andava apercebido de grande número de velas e gente limpa; e desta vez que se topou e pelejou com D. João, posto que acometeu os nossos com muito ânimo, e durou um bom espaço no combate por ser o número dos mouros mui desigual, por derradeiro o parau em que vinha Cutiale foi encontrado dos nossos, e ele ferido de duas cutiladas pelo rostro e duas arcabuzadas em ua perna; e assi ferido, vendo que não tinha outro remédio para se salvar, se deitou ao mar por não vir a poder dos Portugueses; porém não pôde escapar que não fosse tomado, e a maior parte dos seus navios, com morte de mil e quinhentos mouros, e quási outros tantos cativos; dos nossos houve muitos feridos e vinte mortos. D. João, havida esta vitória, que foi mui grande, por ser já no fim do Verão se recolheu a Cananor, onde desarmou os navios, mandando a galé para Cochi, em que foi D. Simão de Meneses, que lhe entregou a fortaleza. O Governador que daquele feito levou muito gosto, por quam desmandados 93 93 andavam os Mouros daquela costa, escreveu a D. João as graças e lhe fez mercê da pessoa de China Cutiale, que curado e são de suas feridas, deu por seu resgate doze portugueses dos que estavam cativos em poder do Samori, e quinhentos cruzados em dinheiro, e jurou em sua lei e deu fiadores mouros ricos de Cananor, de mais não fazer guerra aos Portugueses, com que ficou livre.

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93 93 92 Capítulo X. Como António de Miranda, capitão-mor do Mar, partiu para o Estreito, e do que passou naquela viagem, té chegar ao porto da cidade de Adem. António de Miranda de Azevedo, capitão-mor do Mar, a quem Lopo Vaz de Sampaio entregou ua armada de vinte velas, com mais de mil homens para o Estreito do Mar Roxo, da qual eram os principais capitães António da Silva, filho de Tristão da Silva, Lopo de Mesquita, Henrique de Macedo, Fernão Rodrigues Barbosa, Rui Pereira, D. Jorge de Noronha, Francisco de Vasconcelos, Rui Gonçalves, capitão da ordenança. Partiu de Goa aos 25 de Janeiro do ano de 1528, e fazendo sua viagem, achou um galeão de Rumes, que ia carregado de madeira para fazer galés, e por ser veleiro não o poderam seguir senão alguns bargantins, os quais ele arredava de si com muita artelharia que levava té que, havendo dous dias que o seguiam, o perderam de vista por o tempo ser tanto, que não podiam sofrer vela. Chegando António de Miranda a Socotorá, deteve-se ali cinco dias para repairar alguns dos navios que levava, e partiu a cinco de Fevereiro; e quando chegou ao Cabo de Guardafu e costa de Arábia, repartiu as velas que trazia em três partes; ua deu a António da Silva, capitão do galeão Reis Magos, outra deu a Fernão Rodrigues Barbosa, capitão do galeão S. Rafael, e ele ficou no meio com quatro galeões e dous bargantins, porque não entrasse nem saísse navio do Estreito que lhes não viesse cair nas mãos. Porém no tempo que ali andaram, que foi todo Fevereiro, tiveram tantas sarrações, que passaram muitos navios sem serem vistos; mas todavia alguns caíram 94 94 na rede aos nossos bargantins, como foi ua nau que meteram no fundo por não querer amainar. E Henrique de Macedo, apartando-se com as sarrações ao mar, encontrou com um galeão de Turcos mui poderoso; e tanto que um houve vista do outro, trabalharam por se ajuntar, té que se aferraram, confiados os Turcos de virem bem providos de armas e de muitos artifícios de fogo, dos quais lançaram fogo ua lança ao nosso galeão, a qual se apegou na vela, que, sacudindo-se com as lufadas do vento, que acalmara, despediu de si com tanta força a mesma lança, que caiu no galeão dos Turcos; e não somente deixou ateado o fogo na vela do nosso galeão de maneira que a queimou toda e pôs em risco ao galeão de se queimar, mas ainda queimou os mesmos inventores do fogo. Porque, receando eles que os nossos abalroassem e entrassem no seu galeão, encheram a popa dele de pólvora; e esta lança que lançaram para os nossos por vir dar nela, lavrou de maneira que se queimou o seu galeão, e todos os Turcos, tirando sete ou oito que se lançaram ao mar. E a causa de o galeão de Henrique de Macedo não arder, estando ambos tam 93 travados, foi por chegar um bargantim dos nossos, e Diogo de Mesquita em o batel de seu navio, e às toas o desembaraçaram, livrando-o daquele perigo; e despois que o apartaram dele, tornaram sobre os Rumes, que andavam nadando, e às lançadas os mataram todos. A António da Silva coube-lhe em sorte tomar ua nau grande de Dio, e ua cotia com especiaria, e toda a gente dela morreu à espada. Rui Gonçalves, capitão da caravela Bicha, albaroou um bargantim e um zambuco. Fernão Rodrigues Barba tomou dous zambucos carregados de especiaria e arroz; os capitães dos bargantins tomaram outros dous. D. José de Noronha encontrou ua nau mui grossa com que andou dous dias às bombardadas, e por derradeiro ela se salvou com deixar a D. Jorge muita gentes ferida, e despois foi ele dar com um zambuco carregado de algodões, que por a sua galé os não poder recolher, cativou os mouros e pôs fogo ao zambuco. Finalmente cada um dos capitães teve suas aventuras, té que se ajuntaram com António de Miranda no porto da

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cidade de Caxém, que é na costa da Arábia, onde ele tinha dado regimento que se juntassem té 15 de Março. Daí expediu o feitor da armada 95 95 com um bargantim, e algua gente com as naus tomadas que o fossem aguardar a Mascate, porque queria dar ua vista à cidade de Adem, por lhe dizerem os Mouros que tomaram naquelas naus (que todos vinham de Judá) terem novas que os Rumes estavam sobre Adem, e quando não estivessem, queria chegar às portas do Estreito. Havendo quinze dias que António de Miranda estava com toda armada em Caxém, chegou ali um navio a que os Mouros chamam marruaz, de que afirmaram ao capitão-mor que ainda se esperavam por mais naus que haviam de vir ao Estreito. Esta mesma nova certeficaram alguns dos mouros cativos. Movido com esta nova, António de Miranda, havendo conselho com os seus capitães, determinou-se nele que era serviço del-Rei embocar o Estreito, e ao menos dar ua vista à cidade de Adem, quando outra cousa não fizessem, e favorecê-la com tam grossa armada contra os Rumes, por naquele tempo estar a cidade na nossa amizade, e que ali poderiam ter certa informação do lugar e estado em que estavam os Rumes. Partido António de Miranda com esta determinação caminho de Adem, deixou em Caxém a Rui Pereira com ua galé e ua galeota, por ser quadrilheiro-mor das presas, e ter por arrecadar o dinheiro de duas naus grossas de Mouros que ali se venderam; e deixou-lhe ordenado António de Miranda que, como fosse despachado, se fosse a via de Adem e aí o esperasse, o qual o compriu assi; e chegando primeiro que António de Miranda, achou no porto duas naus grossas com mercadoria, às quais não fez dano algum por honra dos de Adem, por lho assi ter mandado António de Miranda, e em sinal de paz salvou a cidade com sua artelharia, segundo seu costume. E como os Mouros por suas obras nunca se asseguram, mandaram logo os 94 governadores da cidade visitar o capitão com algum refresco, dizendo como aquela cidade estava prestes para o que lhe necessário fosse, por ser amiga de Portugueses, e el-Rei, seu senhor, lho ter assi mandado que o fizessem, vindo ali ter alguas naus nossas. Rui Pereira lhes respondeu com boas palavras, e deles soube como el-Rei estava fora da cidade, no sertão, para acudir a um seu vezinho que lhe entrava pelo reino; e as novas que dos Rumes lhe deram, foram haver pouco que estiveram ali, (1)e deles receberam dano por lhes defenderem a terra, 96 96 e que tinham ao presente novas que estavam em Camarão. Daí a dous dias, chegou António de Miranda com toda a armada, que pôs na cidade grande espanto, depois que ouviram a salva da artelharia que ele fez; e logo os mesmos mouros que vieram a Rui Pereira se foram ao galeão do capitão-mor com presentes e refresco da terra, oferecendo-lhe o que houvesse mester para aquela armada, por assi lho ter mandado el-Rei, seu senhor, quando dali partiu. E despois que António de Miranda lhes agradeceu sua visitação, esteve inquirindo deles novas dos Turcos, e assi do Estreito, para saber o fundamento que teria na mudança de sua armada; e por as cousas que soube deles, que concordavam com as que tinham dito a Rui Pereira, pôs em conselho o que se faria. E porque os mais eram de parecer que, antes que fosse sobre os Rumes, mandasse alguém que tomasse informação do que passava no Estreito, mandou a este negócio o piloto-mor da armada, contra o voto de muitos que quiseram por si fazer aquela jornada. Mas como António de Miranda receava que, mandando homem de maior sorte, podia atravessar-se em tomar algum navio, quis antes este, pois não ia a mais que a ver os tempos que cursavam dentro do Estreito, e haver à mão algua gelva para tomar língua, e que nisto se arriscava pouco. Porém como o piloto também desejava haver algua boa presa, tanto que entrou dentro do Estreito e lhe vieram à mão dous marruazes que andavam desarmados, tornou-se para Adem ser ir mais adiante, dizendo

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que cursavam já os tempos verdes e que o não pudera fazer. Alguns diziam que o temor o fez tornar; e por se ver glorioso com a presa que fez, parecendo-lhe que bastava saber de alguns mouros que tomou como os Rumes, estavam em Camarão, e que seriam té seiscentos homens de peleja e outra muita gente do mar, e ua armada tam grossa, que não era a nossa que estava em Adem para pelejar com ela. António de Miranda se viu envergonhado com um recado tam incerto, que não concordava com que os Mouros lhe tinham dito, e ficou anojado de confiar sua honra do piloto, e não de pessoas de mais qualidade que lhe pediam aquela jornada, e esteve quási determinado de entrar pelo Estreito; mas, faltando-lhe mantimentos, receou que à tornada os levantes o impedissem; polo que se resolveu de quebrar esta fúria em Zeila; posto que outros 97 97 lhe deziam que fosse em Xael, onde ele dezia que esperava de dar quando tornasse, por lhe ficar em caminho. Assentado de ir à cidade de Zeila, que é da parte de África na costa do Abexim, passou com toda a armada da outra parte, e achou a cidade despejada de todo; porque os moradores dela, como foram avisados da armada grossa que por ali andava, meteram logo sua fazenda pelo sertão, e estavam prestes, como a armada aparecesse, assegurarem também suas pessoas; polo que nesta ida de Zeila não se fez mais que pôr o fogo às suas casas palhaças; e querendo voltar para a costa de Arábia, surgindo no Cabo de Guardafu, saltou com a armada tal temporal que os fez acolher a Mascate, sem dar em Xael, como desejavam. Aqui esteve António de Miranda com sua armada, por ser um porto em que as armadas que os Portugueses trazem no Estreito de Meca vem invernar; e deixando ali a armada entregue a António da Silva de Meneses, se foi a Ormuz no seu galeão S. Dinis com outros dous que levou em sua companhia para arrecadar o dinheiro das naus das presas que ali tinha mandado para se venderem, e de cinco paraus de Malabares carregados de pimenta, que tomou vindo eles ter a Adem, quando aí estava, que também mandou vender a Ormuz com as outras naus.

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NOTAS (1) Estes Rumes eram os da companhia de Mustafá, sobrinho de Raix Soleimão.

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97 97 95 Capítulo XI. Como António de Miranda veo de Ormuz a Dio, e do que aconteceu nesse caminho a Lopo de Mesquita, a Diogo de Mesquita e a Henrique de Macedo, e como chegou a Chaul toda a armada. Tornando António de Miranda de Ormuz (onde era ido com Rui Pereira sobre o dinheiro das presas) a Mascate, daí partiu a 22 de Agosto daquele ano de 1528 para Cambaia, a esperar as naus que iam a Dio, aonde chegou e ancorou; e por tempo a ser ainda verde e o seu galeão não poder sofrer amarra, mandou levar âncora e deu sinal à armada que assi o fizesse, se disso tivesse necessidade, o que todos fizeram, senão António da Silva 98 98 e Henrique de Macedo com seus galeões, e outras duas velas. O capitão-mor, com o tempo que lhe deu, foi parar a Chaul, de maneira que as presas que se houveram de fazer sobre Dio não houveram por essa causa efeito. Correndo com o mesmo temporal Lopo de Mesquita com o seu galeão Samori, foi dar ua nau de mercadores que ia para Dio e andava com a mesma tormenta. Lopo de Mesquita a abalroou, e com alguns dos seus 96 entrou nela com assaz trabalho, por a nau trazer duzentos homens bem armados, que pelejaram mui valentemente; e posto que os Portugueses não eram mais que trinta, davam-lhe bem que fazer. E andando assi os nossos neste trabalho, lhes sobreveo um caso mui perigoso, por que se houveram de perder; porque as balroas com que o galeão estava abalroado com a nau, quebraram, e se apartaram ambos, ficando Lopo de Mesquita com os poucos que o seguiam dentro da nau entre aquele grande número de Mouros; e como se viram naquele estado de desesperação das vidas, querendo vendê-las caras àqueles inimigos, dobrando-lhe a necessidade as forças, os acometeram com tanto ímpeto e esforço, que mataram quási todos, posto que com grande força e resistência se defenderam, e outros, vendo-se feridos, se renderam. E cuidando Lopo de Mesquita e os que com ele entraram na nau que por ali se acabavam seus trabalhos, sobreveo-lhes outro de maior temor; porque a nau dos Turcos, quando esteve abalroada, dava com a tormenta tam grandes pancadas no galeão, que era mui forte, que ficou quási de todo aberta, e começou de se encher de água e ir-se ao fundo; o que vendo Lopo de Mesquita, ajuntou todo o dinheiro que na nau achou, e mandou a seu irmão Diogo de Mesquita que se metesse no batel com dezasseis homens, para que, não podendo a nau escapar, salvasse aquele dinheiro no galeão, onde recolhido mandasse pelos que ficavam na nau. Os do batel, perdendo logo de vista o galeão com o tempo, entendendo que a nau não poderia deixar de se ir ao fundo, não quiseram tornar a ela, receando que os que nela se quisessem meter no batel, que por ser pequeno se alagaria, e assi deram à vela, governado para Chaul, levando forçado a Diogo de Mesquita, que lhes não pôde resistir. E navegando foram encontrados da armada de Dio, que os tomou, e 99 cativos foram levados a el-Rei de Cambaia, que com grandes mimos e promessas os persuadiu que se fizessem mouros; e despois que com eles os não moveu de sua fortaleza cristã, vieram às ameaças e aos tormentos, que a nenhum deles mudaram. A Diogo de Mesquita mandou a el-Rei meter dentro em ua grossa bombarda cevada, o qual com ua constância de mártir lhe disse que tomara fora o tormento maior e mais durável para padecer mais e mostrar nele o gosto que o passava pela honra de Deus e por sua Fé santa. Admirado Soltão Badur daquele ânimo, o mandou

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tirar da bombarda, e foram todos metidos em ua áspera prisão, donde despois saíram com muita honra. (1) Lopo de Mesquita, que ficou na nau, fez tanta diligência, que se tomaram as águas principais que estorvavam o governo da nau, e nela com grande trabalho foi ter a Chaul, onde achou já o seu galeão, e António de Miranda com sua armada. Após Lopo de Mesquita veo Henrique de Macedo em seu galeão Samir grande, muito destroçado, com mastros e vergas quebradas, e roto 97 o costado por muitas partes; porque em ua calmaria que teve de fronte de Dio, o investiram alguas cinquenta fustas e três galeotas, que o chegaram a tal estado, que esteve quási de todo perdido, porque pelejou de pela manhã té à tarde; e foi tal a peleja, que lhe mataram a maior parte da gente, e a outra foi ferida, de maneira que lhe não ficaram sãos mais que seis ou sete homens; e por a necessidade em que esteve de gente, ua mulher servia de dar pólvora aos bombardeiros; e ele foi tam queimado do rostro, que não o conheciam. (2) E ali acabara, se António da Silva, capitão do galeão Reis Magos, lhe não acudira, qua acaso veo ouvindo o estrondo da artelharia com a viração, o qual o desapressou daquela afronta e pressa em que estava, e tam valentemente pelejou com as fustas, que matou o capitão delas, que era um filho de Xeque Gil, capitão das fustas de Baçaim, que os nossos mataram em Chaul em tempo de Diogo Lopes de Sequeira. E com a morte de seu capitão as fustas se puseram em fugida. (3) António de Miranda, com a chegada destes dous galeões que lhe faltavam da sua armada, 100 100 se deteve em Chaul alguns dias, repairando os navios do necessário; e também mandou vender a nau que tomou Lopo de Mesquita, e repartiu as presas, de que à parte del-Rei vieram cinquenta mil pardaus. E acabado isto, se partiu para Goa, onde chegou a 17 de Outubro, e achou o Governador, que invernara ali. NOTAS (1) Diogo do Couto, no cap. 9, do liv. 4, e Fernão Lopes de Castanheda, cap. 68 do liv. 7. (2) Esta batalha está pintada nas varandas da Igreja das Chagas de Goa, e cada ano se renova por memória de um feito tão assinalado. Diogo do Couto, cap. 9, do liv. 4. (3) O capitão destas fustas diz Diogo do Couto que era Alixá, e que o morto foi António da Silva de ua bombardada. E o mesmo escreve Fernão Lopes de Castanheda, no cap. 69, do liv. 7.

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100 100 97 Capítulo XII. Como o Governador Lopo Vaz de Sampaio partiu com ua grossa armada para Cochi, e pelejou com cento e trinta paraus de Malabares e os desbaratou. Tanto que António de Miranda chegou a Goa, determinou o Governador de ir a Cochi a dar às naus que esperava, e de caminho visitar a Cananor, que não estava muito fiel; porque do tempo em que houve as diferenças sobre a governança, ficaram os Mouros daquela costa do Malabar algum tanto levantados e inquietos, por verem que os nossos traziam mais tento nos negócios daquelas diferenças, que na guerra com eles. 98 Haviam os do rio de Chatuá (1)morto e cativado todos os Portugueses, que se salvaram nele de ua armada de treze navios de remo, que com tormenta se perderam naquela costa, a qual armada fez Afonso Mexia para impedir a saída de alguas naus que o Samori mandava a Meca carregadas de pimenta. Com esta desgraça e nossas discórdias andavam os Mouros mui soltos por toda aquela costa, e passavam à vista de Cananor, fazendo-lhes muitas sobranceiras, sem D. João de Eça, capitão dela, ousar de pelejar com eles, por não ter navios para isso. Publicavam também que os Rumes estavam em Camarão, e que traziam ua grossa armada, e que a nossa não entrara no Estreito, sabendo estarem ali os Rumes, e que o deixaram de fazer com temor deles. Tudo isso obrigou a Lopo Vaz ir em pessoa visitar a costa, despedindo diante Simão de Melo em um galeão e seis fustas, e ele o seguiu com ua armada de quatro velas grossas e sete paraus, porque estes por sua ligeireza são os que fazem a guerra, deixando António de Miranda por capitão de Goa. 101 101 Sendo tanto avante como a Monte de Eli, aquém de Cananor duas léguas, apareceram muitas velas ao longo da costa, as quais muitos julgaram ser palmeiras, por ir o galeão do Governador um pouco largo da costa e ser já tarde e o Sol ficar sobre o mar. Com esta pouca certeza se eram velas ou não, Lopo Vaz mandou governar ao porto de Cananor, que tomaram já quási noute; mas por o capitão de Cananor lhe dizer que aquele dia passaram por ali muitos paraus de Malabares, contra a mesma parte onde os nossos os viram, teve por certo serem navios; polo que o Governador, tanto que o soube, mandou espiar por um catur onde estavam e quantos eram, com determinação de os ir demandar; o que foi escusado, porque eles houveram vista da nossa armada; e como sabiam que a maior parte dela sempre são navios grandes, e não tão ligeiros como os seus, vieram demandar a armada para ver se podiam tomar algua vela. E ainda vendo ocasião que lhe dava o tempo, confiados em o número de seus paraus, que eram cento e trinta, determinaram de afrontar o Governador. Com esta confiança, e porque o tempo lhes deu para isso comodidade, por ser calmaria e não servir ao Governador mais que para os paraus que levava, ao outro dia com grande seguridade passaram pela armada do Governador, e lançaram-se por diante entre ele e a terra. O Governador, quando viu tamanha ousadia, posto que o número dos seus paraus era tanto menor que o dos Mouros, determinou de os acometer, e pôs em conselho o modo que teria nisso. A maior parte foi que não pelejassem, visto como se não podiam aproveitar dos navios grandes por razão da calmaria; porém ele com alguns que tomaram por afronta o que aqueles Mouros faziam, não a quis 99 dissimular; e determinado em pelejar com os paraus e fustas repartidos pelas pessoas de que confiava, acometeu o cardume dos cento e trinta que estavam juntos e os rompeu da maneira que os

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ginetes rompem a gente de pé, tornando logo a virar sobre eles, e cada vez que passavam lhes davam ua salva de pelouros de espingardaria e artelharia, e os Malabares com setas os seguiam. Neste modo de peleja, vendo eles quanto dano lhe os nossos faziam, e que as naus grandes se faziam, à vela para vir sobre eles, e que dos 102 102 seus paraus uns eram já metidos no fundo e tinham gente morta e muita ferida, e que com o Governador se ajuntaram mais três paraus de Cananor de refresco, começaram a se retirar. Lopo Vaz os seguiu um bom pedaço, indo tomando poucos e poucos dos que não podiam ir avante, cansados da continuação do remo; e os outros, a que o temor dava melhores braços para poderem continuar aquele trabalho, se puseram em salvo. Durou esta peleja pela manhã té horas de véspora, e foi um dos honrados feitos que pelos Portugueses se fizeram naquelas partes, por o número dos paraus ser tam desigual, dos quais lhe meteram os nossos no fundo dezoito e tomaram vinte e dous com cinquenta peças de artelharia. Morreram perto de oitocentos malabares, e foram muitos captivos. Os que escaparam foram-se a Calecute, donde eles vieram; e com os paraus que o Governador aqui houve, reformou ua armada de vinte velas por ter muita falta destas de remo; e recolhido aos galeões, foi caminho de Cochi, no qual achou alguns dos paraus que lhe fugiram, e outros que andavam pela costa, os quais tomou e destruiu.

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NOTAS (1) Fernão Lopes de Castanheda, cap. 88, do liv. 7, Diogo do Couto, liv. 5, cap. 3, Francisco de Andrade, cap. 39 da 2ª Parte.

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102 102 99 Capítulo XIII. Como o Governador Lopo Vaz de Sampaio partiu de Cochi com toda a sua armada e deu no lugar de Porcá, e o desbaratou e queimou, com morte de muitos. Desejava Lopo Vaz de dar algum castigo ao senhor de Porcá (a que o vulgo chama Arel de Porcá), porque, sendo confederado com os Portugueses e seguindo a sua bandeira em alguas empresas, se veo a inimizar com eles despois que D. Henrique de Meneses o despediu de si com a perna quebrada, como na Década Terceira temos dito. (1)E por as causas que outros mouros se atreviam a nós (que eram as referidas), se atrevia ele também; e como era homem poderoso e tinha muitos navios, 100 de cujas presas vivia, mandava com alguns correr a costa, e fazer muitos danos; e por isto ser cousa que para se evitar havia mester muita força, determinou Lopo Vaz de ir ele em pessoa sobre a cidade de Porcá; e assi, sendo tanto avante como Cochi, não se quis deter, e foi correndo a costa, 103 103 na qual queimou Simão de Melo, capitão-mor dos bargantins, doze paraus que estavam surtos, e saiu em Chatuá; e queimou catorze e destruiu o lugar; e mandando o Governador queimar quantas embarcações se encontravam, chegou a Cranganor, onde estava a nossa armada, a qual ordenou que o seguisse, por já não ser ali necessária, e queria dar a todos parte do contentamento que haviam de ter os que com ele se achassem na tomada e saco da cidade de Porcá, que esperava ser grande. Para esta empresa levava mil homens, os mais deles espingardeiros, com os quais deu no lugar ua manhã, não estando o Arel nele. Os Mouros, postos que estavam descuidados daquele caso, puseram-se em defensão, como quem defendia a vida, mulheres, filhos e fazenda; mas como os nossos levavam boa vontade, os meteram todos à espada, e os derribavam com a espingardaria, de maneira que os mortos impediam aos vivos desenvolverem-se tam bem como no princípio. Finalmente, foi tamanho o temor da morte nos que ficavam, que esquecidos dos filhos e das mulheres, se puseram em fugida. Entrada a cidade, se deu a saco, em que houve muito ouro, prata, pedraria e panos de algodão e muitos cativos, e entre eles a mulher do Arel (2) e outras pessoas nobres, e muita artelharia, assi da sua como da que tinham tomada aos Portugueses, e treze navios de remo muito bons. Recolhido este despojo, se pôs fogo à cidade, que toda ardeu, e alguns dos seus moradores que ficaram nela, e lhe deceparam as palmeiras, que é o principal mantimento daquela gente, com que se embarcou o Governador, sem morte de algum português, posto que alguns houve feridos. Partido de Porcá, chegou a Cochi a tempo que também chegavam duas naus de que eram capitães António de Saldanha e Garcia de Sá, que partiram aquele ano do reino com Nuno da Cunha, que vinha por Governador da Índia, de quem se apartaram e deram nova como vinha com muitas velas e grande poder de gente nobre; o que deu grande contentamento a todos, por a falta em que a Índia estava; e fizeram solenes procissões, dando graças a Deus por em tal tempo lhe sobrevir tal socorro. E porque Lopo Vaz de Sampaio desejava de entregar a Índia limpa dos cossairos que infestavam 101 aquela costa do Malabar, determinou de 104 104 ir a Cananor com tenção de esperar ali té que as naus da carga partissem para o reino, (3)a despachar alguas armadas para diferentes partes. Polo que mandou a António de Saldanha que

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ajuntasse gente em Cochi, e que com ela o fosse buscar, para se embarcarem em ua armada de bargantins e ua galé, que António de Miranda aí fez em espaço de dous meses que serviu de capitão, té que veo D. João de Eça; e esta armada se havia de ajuntar à outra que se fazia em Goa, para em um corpo irem à costa de Cambaia, e na do Malabar deixarem parte para defensão dela. Chegando o Governador a Cananor mandou logo a seu sobrinho Simão de Melo com certas velas sobre Marabia, lugar do Reino de Cananor e distante de Cananor perto de quatro léguas, onde Simão de Melo chegou em amanhecendo, e pelejou com os paraus que guardavam o porto, dos quais queimou doze, e os outros se salvaram à força de remo. E havida esta vitória no mar, saiu em terra, que lhe os Mouros quiseram defender; mas por fim da contenda que os nossos com eles tiveram, os desbarataram, e lhe destruíram e queimaram o lugar, e lhe cortaram muitas palmeiras. E feito isto em ua manhã, se tornou para o Governador, que logo o mandou com doze velas ao Monte de Eli a queimar uns paraus que ali andavam às presas. E fez outra armada de dez velas, que deu a António da Silva de Meneses, mandando-lhe que fosse correr a costa té Cochi, e da volta que viesse trocasse a armada com Simão de Melo, e ele fosse para cima, e Simão de Melo para baxo. E em todo este tempo, que ambos andavam correndo a costa, não toparam com os paraus que costumavam andar ao salto, porque o temor os fazia recolher para dentro dos rios; mas porém lá onde estavam os iam buscar estes dous capitães, saltando alguas vezes em terra, onde fizeram muito dano; e os paraus que Simão de Melo veo buscar ao Monte de Eli os queimou com morte de muitos Mouros.

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NOTAS (1) Liv. 9, cap. 5, na tomada de Coulete. (2) Diogo do Couto escreve no cap. 4, do liv. 5, que a mulher de Arel se nao pode sair da cidade quando lhe puseram foco, e foi queimada, e toda su familia. Fernão Lopes de Castanheda, no cap. 90, do liv. 7, diz que esta mulher do Arel (que Francisco de Andrade chama mãe), e ua irmã ficaram cativas, e foram depois resgatadas por muito dinheiro. E que o despojo desta cidade foi tam rico, que um Francisco Mendes de Braga tomou um caldeirão de cobre, cheio de pardaus de ouro, e muitos soldados houveram à sua parte dez, oito e cinco mil pardaus, e sendo o número dos Portugueses mais de mil, nenhum houve que deste saco lhe coubesse menos de cem pardaus. (3) Partiram na entrada de Janeiro de 1529. Eram as duas de António de Saldanha e Garcia de Sá, das quais foram por capitães Gonçalo de Sousa e Lopo Rabelo. Francisco de Andrade, cap. 41, da 2ª Parte.

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105 105 102 Capítulo XIV. Como el-Rei de Cambaia moveu guerra ao Nizamaluco, e o Governador Lopo Vaz de Sampaio pelejou com Alixá, capitão das fustas de Dio, e o desbaratou, e das armadas que fez. Neste tempo el-Rei de Cambaia moveu guerra ao Nizamaluco, senhor de Chaul, a qual lhe fazia tanto por mar como por terra, e não somente a ele, mas a todos os Portugueses que na sua terra, estavam. Para esta guerra trazia no mar oitenta fustas muito bem esquipadas de gente de guerra, e com muita artelharia, das quais era capitão-mor Alixá, que era um valente e valeroso mouro, (1) com a qual armada corria toda a costa. E receando Francisco Pereira de Berredo, capitão de Chaul, que estas fustas o cercassem por mar e el-Rei de Cambaia por terra, por ter tomadas as fortalezas de Caruela e Sangaçá, que eram do Nizamaluco, por a vezinhança que tinham de Chaul, fez de tudo por suas cartas relação ao Governador Lopo Vaz de Sampaio, pedindo-lhe que fosse com algua armada ou a mandasse contra aquela parte, para favorecer aquela fortaleza; e para aquelas fustas não se atreverem a andar tam soltamente fazendo dano, porque não entrava nem saía de Chaul vela que não fosse tomada. De todas as cousas avisou também o Nizamaluco por um embaixador seu ao Governador, pedindo-lhe o socorresse com alguns portugueses contra el-Rei de Cambaia. Lopo Vaz despachou logo o embaixador com cartas para Francisco Pereira, capitão de Chaul, ordenando-lhe que aprestasse a gente para aquele socorro, que lhe pedia o Nizamaluco. E com estes avisos se apercebeu para ir a Chaul, com fundamento de mandar dali o socorro ao Nizamaluco; e que não tendo a fortaleza necessidade dele, Governador, iria buscar as fustas onde quer que estivessem. E porque ele ordenava que António de Miranda, que então estava por capitão em Goa, ficasse na costa do Malabar para a guardar, por se haver de apartar tanto de Goa, indo a Chaul, antes que se partisse de Cananor, mandou a Goa o capitão de Cananor, e a Simão de Melo 106 106 a Chaul com nove bargantins mui bem artelhados e esquipados do necessário, os quais havia de entregar a António de Miranda, quando aí chegasse, para fazer corpo de grossa armada. E deixando isto assi ordenado, foi-se para Goa a esperar António de Saldanha com a gente que tinha mandado que fizesse em Cochi, e espedir António de Miranda com a sua armada para a costa, na qual levava duzentos homens, 103 todos de gente limpa, escolhida e exercitada na guerra. E vindo António de Saldanha a Goa, onde o Governador estava, acabou de se aprestar, e partiu para Chaul em Janeiro de 1529 com ua armada de quarenta velas, (2) e com ele ia toda a gente nobre que então andava na Índia, que seriam mais de mil homens portugueses, afora a gente da terra, assi de peleja como a do mar. E para boa ordem desta sua viagem, fez a Heitor da Silveira capitão dos navios de remo, a que mandou que todos seguissem e obedecessem naquela jornada, o qual, conforme ao regimento que levava, havia de ir ao longo da costa, por que lhe não ficasse cousa que não visse, onde as fustas se pudessem esconder; porque tinha por nova certa que chegaram té Dabul, que é abaxo de Chaul, trinta léguas contra Goa, e não sabiam se passariam mais para baxo. Mas elas, como traziam sua vigia e souberam da vinda do Governador, começaram de se ir recolhendo para os Ilhéus Queimados, duas léguas de Chaul. Lopo Vaz chegou a Chaul, onde se informou do capitão da fortaleza do estado da terra e do que el-Rei de Cambaia fazia por dentro do sertão. E sendo logo visitado da parte do Nizamaluco com muitos agradecimentos da sua vinda, e com um grande presente de vacas, carneiros, arroz e

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outros muitos refrescos, mandou logo aperceber oitenta portugueses para enviar de socorro ao Nizamaluco, e por capitão deles um valente cavaleiro chamado João de Avelar, a que encomendou o crédito e honra dos Portugueses; e com promessas de lhes fazer a todos muitas mercês, os entregou ao embaixador do Nizamaluco, que se partiu com eles, fazendo-lhe pelo caminho o gasto com muita largueza. E provendo-se o Governador de bastimentos, se deteve ali em Chaul alguns dias; nos quais, sendo o tempo tal que a ninguém dava lugar para poder sair do rio, vieram treze fustas dar ua mostra, como que não temiam aquela armada, a qual de longe 107 107 esbombardearam. E posto que o vento era contrário, quiseram Heitor da Silveira sair a elas, por não irem sem castigo aquela sobrançaria; mas Lopo Vaz o não consentiu, dizendo 104 que as deixassem cevar, para as acolher em melhor tempo. E porque sua tenção era destruir estas fustas e as ir buscar a Dio, e também dar ua vista à cidade, teve sobre isso conselho, e nele propôs que bem sabiam que el-Rei de Cambaia andava em guerra com Nizamaluco e com o Hidalcão e com outros príncipes, com que tinha assaz em que entender, e que Dio ao presente não tinha maior ajuda e socorro que aquela armada que por ali andava; que lhe parecia seria bom trabalhar por desbaratar estas velas, e que com a vitória delas, que esperava em Deus lhe daria, poderia logo ir à cidade de Dio, que por ventura estaria em tal estado, que a poderia tomar e segurar, por estar o socorro del-Rei de Cambaia ocupado nas guerras que tinha; e que, para se poder conseguir estas duas cousas, se deviam de ordenar os meios necessários naquele conselho, porque as cousas providas com prudência, ele as regulava a bom fim, posto que as mais vezes as da guerra não se conformavam com a tenção de quem as propunha em seu favor. Os mais que no conselho estavam foram de opinião que o Governador se não havia de sair de Chaul, pois sua vinda ali fora a chamado do capitão, por razão da guerra que aquelas fustas faziam, e por cerco que esperavam por terra; e que isto se assegurava com sua presença. Todavia, seguindo o Governador o parecer dos outros, principalmente de Heitor da Silveira, que desejava ganhar honra com as velas que trazia a seu cargo, por serem aquelas de que neste feito das fustas se mais haviam de servir, veo por derradeiro assentar no modo que teria nesta empresa, e determinou que ele se faria à vela com os navios grossos ao mar largo, e que Heitor da Silveira fosse ao longo da terra com os de remo. Assentado assi isto, partiu o Governador de Chaul dia de Entrudo, e a outro dia amanheceu sobre Bombaim, e houve vista das fustas do inimigo, que estavam junto de ua ponta, detrás da qual se poseram, tanto que descobriram Heitor da Silveira. O Governador, vendo que elas tomavam aquele posto, parecendo-lhe que o faziam porque, sucedendo-lhe mal, lhes ficava por remédio acolherem-se pelo rio de Bandorá acima, que está diante meia légua, mandou certos catures que fossem 108 108 cozer-se com terra, e que tomassem a boca daquele rio para lhe tomar a entrada desta retirada. O que foi grande ardil para os melhor acolher; porque, tanto que Heitor da Silveira se foi chegando às fustas, o capitão delas, vendo sua determinação, se fez à vela e remo, recolhendo-se contra a boca do rio, não ousando experimentar a fortuna em mar largo; mas Heitor da Silveira o começou a perseguir de maneira que, chegando ele ao rio de Bandorá, onde já achou o impedimento dos nossos navios, que lhe tinham tomada a entrada, antes que se podesse salvar pelo rio de Maim, aonde se os mouros quisessem acolher, foram cercados de muitos catures, e a poder de fogo e ferro foi destruída a primeira e principal fusta, e após esta começaram os nossos entrar pelas outras, em que houve um agradável espectáculo para ver de fora; porque por ua parte tudo eram fusis de fogo, assi da 105 artelharia como da espingardaria, por outra as nuvens de setas; e nas fustas, que já eram abalroadas, andava o ar coberto de ferros das espadas, terçados; finalmente tudo eram sinais de morte.

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À vista desta obra, chegou o Governador de largo e se deixou estar com o corpo da armada, animando com a presença os seus, como quem estava vendo ua fermosa montaria. A mortandade dos Mouros foi mui grande, assi dos que pereceram no mar, que andava tinto de sangue, como dos que varavam em terra por salvar as vidas, onde os nossos catures, por serem pequenos, lhes iam impedir a salvação. De todas as fustas, que eram oitenta, escaparam sete, em ua das quais se acolheu Alixá. (3) Das restantes, as trinta e três vieram a poder dos Portugueses, e as outras ficaram tam destroçadas, que não serviram mais que para o fogo que os nossos lhe poseram. O despojo desta vitória foi grande número de cativos e muita artelharia, de que algua fora nossa, que os Mouros tinham tomada em alguns navios. Achou-se grande quantidade de pólvora, pelouros e artifícios de fogo. Esta foi ua gloriosa vitória, porque os inimigos eram muitos e gente mui escolhida, e as velas muitas e mui providas de artelharia e munições, de que choviam pelouros e setas; e sendo grande o número dos Mouros que nesta batalha morreram, dos nossos nenhum morreu; alguns porém foram feridos, que logo guareceram. João de Avelar, que ia com o embaixador do Nizamaluco, se foi informado pelo caminho do sítio da fortaleza que 109 109 el-Rei de Cambaia tinha tomado e da guarnição que nela estava. Chegando perto dela, deixando seus companheiros em lugar seguro com a gente do Nizamaluco, se disfarçou em trajo de trabalhador, e guiado por um homem da terra, foi reconhecer a fortaleza. Estava ela assentada em um outeiro alto e tam íngreme, que só com pedras que deixassem cair do muro se poderia defender de um exército. João de Avelar, reconhecido o sítio, voltou aos Portugueses, e com eles e com mil homens do Nizamaluco foi demandar a fortaleza ante manhã com tanto silêncio, que não foram sentidos dos inimigos senão mui perto dela. Levavam os Mouros escadas, e aos espingardeiros portugueses mandou João de Avelar que tolhessem chegar os inimigos ao muro, a lançar pedras que nele tinham postas; e com esta ordem acometeram a fortaleza e a escalaram, não ousando os inimigos aparecer no muro, porque os nossos espingardeiros mataram os 106 que se nele descobrissem. O capitão João de Avelar foi o primeiro que subiu por ua escada, e após ele outros portugueses por outras; e posto que os inimigos se defenderam dentro com muito esforço, foram todos mortos, e dos nossos três somente, e feridos muitos. Tomada a fortaleza, João de Avelar a entregou ao capitão do Nizamaluco, o qual estava daí ua jornada; e sabendo deste bom sucesso, mandou chamar João de Avelar, a que fez muita honra, e deu ua cabaia e mil pardaus, e outros dous mil para repartir pelos Portugueses, com que os despediu, e os feridos mandou levar em andores té Chaul para serem curados à sua custa. (4)

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NOTAS (1) Alixá vinha nesta armada por tenente de Melique Alicer, Geral dela, filho de Camalmaluco, que neste tempo estava por capitão da cidade de Dio, sendo fugido dela para Jaquete Melique Sada, como se verá no cap. 6, do liv. 5, onde João de Barros o escreve, e esta guerra que el-Rei de Cambaia fez ao Nizamaluco. (2) Era esta armada de cinco galeões e duas galés, de que foram por capitães António de Saldanha, Garcia de Sá, António de Lemos, Lopo de Mesquita, Heitor da Silveira, Simão de Melo e Henrique de Macedo; e de quarenta e quatro navios de remo, de que iam por capitães Diogo Coelho, Gaspar Pais, Francisco Álvares, João Rodrigues, o Chatim, Pedrálvares de Mesquita, António Correa, Lourenço Botelho, Cristóvão Lourenço Carracão, o calafete de Chaul, Diogo Quaresma, de alcunha o Malu, Pero Barriga, António Colaço, Cristóvão Correa, Jorge Dias, António Fernandes e outros. Nas fustas, e catures, que pelejaram com os inimigos, que foram vinte e seis, se embarcaram quatrocentos homens escolhidos, em que havia muitos fidalgos, entre os quais foram D. Francisco de Castro, D. Heitor de Melo, Paio Rodrigues de Araújo, Manuel Rodrigues Coutinho, Cristóvão de Melo de Sampaio, sobrinho do Governador, António Correa, Francisco de Barros de Paiva, Luís de Paiva, Duarte Dinis, João de Melo, Garcia de Melo, seu irmão, Fernão de Faria, António da Bárbara, João da Siveira, Diogo da Silveira, Nuno Pereira, D. Afonso de Meneses, D. Pedro, seu irmão, Henrique de Vasconcelos, Manuel de Macedo, Gabriel de Brito, Fernão Rodrigues Barba, Garcia de Brito, Pero de Mesquita, Gomes de Azevedo, André Casco, Luís Coutinho, Duarte Coelho, Manuel de Carvalhal, Lançarote de Alpoém, e outros, cujos nomes se não sabem. Francisco de Andrade, cap. 42, da 2ª Parte e Diogo do Couto, cap. 5, do liv. 5. (3) O Geral Melique Alicer, como viu as nossas fustas envoltas com as suas, se meteu em ua esquipada, e se tornou à boca do rio, donde sem pelejar fugiu. Seu pai Camalmaluco, quando em Dio o soube, fez grandes demonstrações de sentimento pela desonra do filho, e o fez buscar com mucha diligência para o entregar a Soltão Badur, que o castigasse como merecia sua covardia. El-Rei se houve por satisfeito desta demonstração de Camalmaluco, e ele por sem culpa no erro do filho, e deu a capitania de Dio a Melique Tocão (irmão de Melique Saca, que estava em Jaquete), por lhe pedir Camalmaluco que o tirasse dela. Francisco de Andrade, caps. 43 e 55 da 2ª Parte. (4) Francisco de Andrade, cap. 41 da 2ª Parte.

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109 109 106 Capítulo XV. Como, havida a vitória das fustas, quisera o Governador ir a Dio, e lhe foi contrariado; e de alguas armadas que mandou a diversas partes. Havida a vitória das fustas de Dio, o Governador se recolheu com a armada das naus grossas à enseada de Bombaim, onde foi ter Heitor da Silveira cheo de glória e triunfo. Lopo Vaz o recebeu com muita festa, e com palavras de muitos louvores engrandeceu o que fizera, de que confessava 110 110 que lhe tinha muita enveja e armou cavaleiros a muitos fidalgos e a outros que o quiseram ser, por se acharem em feito tam honroso. E antes que dali se partisse, quis o Governador ter conselho com todos aqueles capitães sobre o que já em Chaul movera acerca da sua ida a Dio, persuadindo e facilitando então o negócio mais que antes que desbaratassem as fustas, porque a força daquela cidade toda consistia naquela armada, cuja perda não somente enfraquecia a Dio, mas ainda, por ser dano tam comum, havia de meter a todos em confusão e desmaio, e que nada se aventurava em dar ua vista à cidade para fazer o mais que a disposição dela desse; o que ali foi ao Governador mais contrariado que em Chaul. Deziam uns que não convinha a autoridade de um Governador da Índia emprender cousa que não acabasse, porque Dio era tal, que requeria mais força e mais gente da que ele tinha; que o deixasse para outro tempo, em que com poder igual à empresa a podesse acometer. 107 António de Saldanha e Garcia de Sá (que então haviam vindo do reino com Nuno da Cunha, a que na chegada à Índia se anticiparam com o tempo que os apartou dele) o contrariavam com mais força e liberdade, dizendo Garcia de Sá ao Governador que não roubasse a honra a Nuno da Cunha, ao qual el-Rei não mandava à Índia a outra cousa, senão a tomar Dio, polo que o deixasse a quem estava cometido. Vendo o Governador que não tinha por seu voto mais que a Heitor da Silveira, e que seu governo se ia já acabando com a vinda de Nuno da Cunha, que cada dia esperava, não ousou de ir contra os requerimentos que lhe faziam. Mas segundo despois se viu pelo sucesso, o parecer de Lopo Vaz de Sampaio era o melhor, porque se entendeu que se a Dio fora, se lhe entregara, e se escusara o sangue e a despesa que despois custou. O Governador pediu instrumento do que em Chaul e ali propusera para se desculpar ante el-Rei de se não tomar Dio, e mandou ao secretário que guardasse ua carta que o Nizamaluco lhe escrevera a Chaul, e dela lhe desse um traslado para o mesmo efeito, na qual dezia que, avisado el-Rei de Cambaia que ela ia armada para Dio, levantara os cercos que tinha postos às suas fortalezas para socorrer a Dio; e que Camalmaluco, sabendo o desbarato da sua armada, se fora da cidade; polo que lhe parecia que devia 111 tornar a Dio, pois estava em tempo de o poder tomar facilmente, para o que ele lhe daria todos os mantimentos e esquipações necessárias, pagas à sua custa, com que lhe desse Baçaim quando o tomasse, porque estava dentro das suas terras. (1) E porque no mesmo conselho se assentou que, para alimpar aquela costa dos saltos que os Mouros nela faziam, bastava que ficasse ali Heitor da Silveira com alguns navios de remo, o Governador o deixou com vinte bargantins e duas galeotas e trezentos homens, com regimento que guerreasse aquela costa da enseada de Cambaia por todo aquele Verão, e que no Inverno se

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recolhesse a Chaul. E o Governador se partiu para Goa a 20 de Março, (2) e como lá foi, despachou a D. Fernando de Eça, seu cunhado, para Ormuz, com três galeões carregados de mercadorias del-Rei, em um dos quais ia D. Fernando por capitão-mor, e dos outros foram capitães Lopo de Mesquita e António de Lemos, e lhes mandou que da vinda fossem fazer presas à ponta de Dio. Despachou também a Garcia de Sá, que do reino vinha provido por capitão de Malaca para suceder a Pero de Faria, a quem o Governador 108 mandou encarregar a liberdade de Martim Afonso de Melo Jusarte, que estava cativo em Bengala, para que à vinda o resgatasse. Garcia de Sá partiu em ua nau grande, e levava mais um junco, que se perdeu ao sair da barra, e com a nau chegou a salvamento a Malaca e lhe foi entregue a fortaleza por Pero de Faria, que se veo para a Índia em Novembro seguinte. Outra armada de seis bargantins e ua galé fez o Governador, em que iam cem homens, de que era capitão Cristóvão de Melo, seu sobrinho, com o qual foram muitos fidalgos e pessoas nobres, para se ir ajuntar com António de Miranda, que andava na costa do Malabar, a quam mandava Lopo Vaz que seu sobrinho obedecesse e andasse debaxo da sua bandeira. António de Miranda tinha desbaratado uns doze paraus, e como chegou a ele Cristóvão de Melo, tomaram ambos ua nau del-Rei de Calecute carregada de pimenta, que estava no Rio de Chale para ir a Meca, cuja presa deu muito trabalho, por estarem nela perto de oitocentos mouros, com muitas armas e artelharia. Despois toparam ao Monte Fermoso com ua armada del-Rei de Calecut[?e] de cinquenta velas, a qual desbarataram, tomando-lhe treze 112 112 paraus com sua artelharia, e lhe cativaram muita gente, além da que foi morta; e tornando a correr a costa, tomaram outros paraus da mesma armada, que haviam escapado da primeira. Com que, tendo a costa limpa, se recolheram a invernar Cristóvão de Melo em Goa, e António de Miranda, por mandado do Governador, em Cochi. NOTAS (1) Fernão Lopes de Castanheda, cap. 93, do liv. 7. Diogo do Couto, cap. 5, do liv. 5. Francisco de Andrade, cap. 44 da 2ª Parte. (2) Em Goa teve Lopo Vaz de Sampaio recado de Melique Saca (que estava em Jaquete) que fosse sobre Dio, e ele iria por mar ajuntar-se com o Governador, e por terra lhe levariam seus cunhados quinte mil de cavalo e cinquenta mil de pé, e que de Lopo Vaz não queria mais, senão que, tomado a cidade, fizesse a ele, Melique, capitão dela, como já fora, e fundasse nela fortaleza, com que o defendesse del-Rei de Cambaia, e daria ao Governador as rendas do mar, e ele ficaria com as da terra. Para confirmar e assinar o que se destes apontamentos resolvesse, trazia o mensageiro largos poderes. O Governador respondeu a Melique-Saca com esperanças de fazer o que lhe pedia e oferecia, mas que, por ser então inverno, se não podia concluir aquele negócio, o qual se tomaria resolução no verão seguinte. Francisco de Andrade, cap. 44 da 2ª Parte.

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112 112 108 Capítulo XVI. Como Heitor da Silveira assolou muitos lugares na costa de Cambaia, e pelejou com o capitão Alixá e lhe tomou a fortaleza em que estava; e da destruição que fez em Baçaim. Heitor da Silveira, com a armada que lhe o Governador deixou, começou a correr a costa de Cambaia na parte de Baçaim té chegar ao rio Nagotana, que é de Baçaim oito léguas contra Goa. Por este rio acima, pouco mais de duas léguas, está ua fortaleza que tem o nome do mesmo rio, na qual el-Rei de Cambaia tinha gente de guarnição, que faziam guerra a el-Rei de Chaul. Desejando Heitor da Silveira de entrar no rio, mandou primeiro ao piloto-mor da frota que fosse diante em um catur, e sondasse o rio; o qual tornando, lhe disse que ele não poderia chegar com os navios à fortaleza, porque era tam baxo, que escassamente poderia nadar um catur com gente. Vendo Heitor da Silveira que não podia fazer o que desejava, no 109 próprio lugar onde estava, que era junto de ua povoação, saiu em terra com a sua gente, e foi-se a ela e pôs-lhe o fogo, e não somente a este lugar, mas a outros cinco, sem achar neles gente algua; porque os Mouros, com temor, antes que ele chegasse os despejaram, como quem trazia os olhos em quantas voltas Heitor da Silveira dava, de maneira que tiveram tempo de se pôr em salvo, tam assombrados andavam do desbarato das fustas; porém sempre acharam gente que cativar, ainda que não quisessem pelejar nem defender-se. Afora este dano de lhe abrasarem suas casas, lhe faziam outro maior, que lhe queimaram sua novidades de que se sustentavam, para que a nova destas perdas incitasse ao capitão de Nagotana a vir pelejar com eles, e assi o fez; porque 113 113 vendo estas tam contínuas injúrias e danos, que com lágrimas lhe iam contar os Mouros que escapavam, determinou de pelejar com Heitor da Silveira e tomar vingança dele, e assi o veo buscar com muitos homens de pé e quinhentos de cavalos acobertados, e achou a Heitor da Silveira na derradeira povoação que queimara. Heitor da Silveira, vendo o grande número de gente que este capitão trazia, que para cada um dos nossos havia vinte, veo-se recolhendo pela ribeira abaxo o melhor que pôde às fustas; porém, quando veo ao embarcar, os Mouros de cavalo os quiseram impedir, escaramuçado com eles para os entreter, té que viesse a gente de pé, com a qual se poderiam melhor aproveitar dos nossos. Heitor da Silveira, que ficou na retraguarda, lhe fez rostro com a gente que estava por embarcar, e lhe derribou três de cavalo às espingardas. Neste tempo um soldado digno de fama, que se chamava Francisco Godinho, (1) vendo que os Mouros apupavam e assoberbavam aos que se embarcavam, com ua lança e ua rodela se afastou dos outros, e um mouro de cavalo, vendo-o só, remeteu a ele para o ferir com um zarguncho; o soldado o esperou, e chegando a ele, que alçou o braço para o ferir, meteu-lhe a lança por baxo dele e deu com o mouro morto no chão; e ainda não era caído, quando o soldado lhe tomou o zarguncho, e pondo-se a cavalo no do mouro, levou outro mouro de encontro, que ia para o ferir, e passou-o pelos peitos conquanto o laudel era forrado de malha; e tomando o soldado o cavalo do segundo mouro pela rédea, se foi com muito sossego para Heitor da Silveira, pedindo-lhe o armasse cavaleiro quando fosse tempo. Com este valeroso feito de Francisco Godinho, merecedor de um notável prémio, voltou Heitor da Silveira aos inimigos, e com ua grande surriada de espingarda os fez afastar, e os nossos se acabaram de embarcar mui a seu salvo. Embarcado Heitor da Silveira, se veo à boca do rio, e daí foi 110

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correndo a costa té o Rio de Baçaim, assi chamado por razão da fortaleza que está situada ao longo dele, duas léguas da sua boca e oito de Nagotana. E ua légua da barra em ua povoação pequena, entre ela e o rio, onde se fazia um teso de area, tinham os Mouros fabricado ua tranqueira de madeira entulhada, em que havia muita artelharia grossa e miúda, e era 114 114 o desembarcadouro de maneira que os que houvessem de desembarcar naquele posto, haviam de pôr as barrigas nas bocas das bombardas. Afora esta defensão da entrada do lugar, detrás dele estava Alixá (o capitão das fustas, que foi desbaratado pelo Governador) com três mil homens de pé e quinhentos de cavalo. Chegando Heitor da Silveira à boca deste rio, tornaram a ele certos bargantins, que mandou diante a descobrir o lugar e estado dele, e disseram-lhe que acharam dentro doze naus grandes, delas em terra postas em estaleiro, e delas no mar, e três taforeas que carregavam madeira, e assi lhe deram conta do baluarte e sítio da terra. E porque, segundo o que lhe a ele parecia, o caso requeria conselho, teve-o com os capitães dos catures no modo que teriam de acometer. Seu parecer era que queimassem as naus, posto que todas estivessem acima do baluarte; e porque convinha passar por ele, ordenou que toda a artelharia fosse abatida; porque, segundo os navios eram rasos e a artelharia dos inimigos estava assestada alta, por causa do sítio ser eminente sobre a praia, lhe parecia que em a passada deles pouco dano faria, se não houvesse mais detença que passar com o remo teso. E por os Mouros se descuidarem da passagem que ele havia de fazer, tomou certos canaris dos que i andavam servindo, e entregou duzentos a um capitão deles, chamado Malu, e mandou-lhe que cometessem sair em terra a ua ilharga do baluarte, para que os Mouros acudissem aí e se descuidassem do que ele havia de fazer em outra parte; e em ordenar isto gastou quási todo o dia. Quando veo a noute, pôs-se em caminho pelo rio acima, e a outro dia às nove horas chegou à tranqueira, que, disparando toda sua artelharia, no tempo da fumaça dela passou Heitor da Silveira com seus bargantins com menos perigo do que esperava; e não somente saiu em terra e entrou a tranqueira, onde estava a artelharia à força da espada matando aqueles que lha defendiam, mas começou de entrar no lugar. Alixá, como viu que os nossos em tam breve tempo eram dentro nele, saiu com toda sua gente a o socorrer. E posto que Heitor da Silveira não sabia que este capitão ali estava, e o ímpeto da força de tanta gente, súbito e não esperado, fosse cousa 115 115 mui temerosa, não perdeu o tento do que lhe convinha fazer; porque, cerrando-se todo em um esquadrão, por o não entrarem, dele começou a espingardaria a ferir os cavalos, que, como não eram acostumados ao tom dos tiros, assi de espanto deles, como dos pelouros 111 que levavam no corpo, fugiam com seus senhores, e com fúria davam na sua própria gente de pé e a atropelavam; e aproveitando-se os nossos da ocasião, arremeteram aos Mouros, e ferindo e matando neles, como em gente vencida, os puseram em fugida. Mas Heitor da Silveira não quis que seguissem o alcance por a terra ser coberta de palmares, em que os nossos corriam risco de serem desbaratados. E por reprimir o ímpeto da vitória e os recolher, mandou pôr fogo ao lugar, para que todos acudissem ao roubo dele. Porém o fogo levou a maior parte do despojo de Baçaim, porque, como foi posto primeiro em uas casas grandes, que serviam de almazém, e nelas havia pólvora e salitre e cousas em que o fogo lavra de improviso, assi ardeu todo o lugar, que em breve foi queimado, e não deu espaço a mais saco. Como Heitor da Silveira destruiu Baçaim, foi-se pelo rio acima onde estavam as naus, e por serem de mercadores de Ormuz, que eram vassalos del-Rei, e os termos como naturais, não lhes foi feito dano; mas trouxe as naus e as taforeas abaxo ao porto, e tomou as três taforeas que carregavam de madeira, e mandou a Cristóvão Correa em um catur a queimar outras três naus que estavam em um rio perto das Ilhas das Vacas, que carregavam de mantimentos e madeira para levar a Dio, e fazerem navios, por aquela comarca de Baçaim ser a

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mais fértil de mantimentos e de arvoredo de todo reino de Cambaia. Sabendo o Xeque da cidade de Taná, que pelo rio de Baçaim acima quatro léguas, o que Heitor da Silveira fizera e o que os Portugueses lhe podiam fazer, por ser aquela cidade povoada de gente que vive por trato de panos de seda, que se ali tecem, de que há muitos mil teares, temendo que, subindo Heitor da Silveira à sua cidade, ficaria destruída, mandou-lhe embaixadores, dizendo que queria ser vassalo e tributário del-Rei de Portugal, e que lhe queria dar de tributo 116 116 cada ano quatro mil pardaus por os deixar em paz e seguridade; e porque ao presente a terra, por esterelidades passadas e guerra que os Portugueses faziam pelo mar, estava Taná mui pobre porque não corriam as mercadorias como de antes, que daria aquele primeiro ano três mil pardaus, e logo mandava dous mil em começo de paga e arreféns, enquanto não assentavam as pazes e não pagavam o resto. Heitor da Silveira, porque não tinha gente para cometer tamanha cousa como era aquela cidade, assi em sítio como em grandeza, aceitou sem réplica o que lhe ofereciam, e com isso despediu os embaixadores, dizendo-lhes que ele ia para Chaul, por ter recado do Governador que o chamava, que lá podiam assentar com ele seus contratos. Idos os embaixadores, antes de ele partir, mandou diante as taforeas de madeira, e despachou as naus de Ormuz, mandando-lhes que fossem tomar carga a Chaul; e rogou-lhes que cada ua levasse ua jangada por popa daquela madeira, que estava cortada para carregar para fora, e ele levou a mais madeira por ser necessária para fazer navios. E em três dias que ali esteve, ficou o lugar de Baçaim tam destruído e abrazado, assi as casas como as hortas e pomares, que movia à piedade; e 112 foi lamentado dos Mouros porque a terra de Baçaim era toda um jardim mui deleitoso. Chegando a Chaul, foram lá ter os embaixadores de Taná a comprir o que prometeram, e mandou Heitor da Silveira quatro bargantins a correr a terra de Baçaim e impedir que os Mouros tornassem a reformar algua força, no qual tempo cativaram muitos, e destruíram a costa, de maneira que não somente não ousavam os Mouros navegar por ela, mas os que habitavam os portos do mar despejavam os lugares e se metiam pela terra dentro. E bem sentiam todos esta perda pola muita que recebiam nos dereitos das mercadorias, que não acudiam, nem os mercadores ousavam navegar, nem queriam aventurar suas fazendas. Lopo Vaz de Sampaio, como destas cousas era autor, por as mandar ele fazer, quando Heitor da Silveira o mandou avisar do que deixava feito, dava muitos louvores a Deus por em seu tempo lhe deixar acabar cousas de tanto seu serviço e del-Rei. E como os Mouros daquelas partes trazem os olhos nos feitos dos Governadores e no que lhe bem ou mal sucede na guerra, por verem que nestas em que 117 117 Lopo Vaz tinha posto mão sempre lhe sucedera bem, o Hidalcão, vezinho às terras de Goa, lhe mandou seus embaixadores, cometendo-lhe que queria ter perpétua paz com ele por desejar ter amizade com el-Rei de Portugal. O Governador, depois de lhe dar graças por sua visitação, e da vontade que mostrava acerca da paz, disse que era para firmeza dela lhe havia de dar três tanadeiras das que estavam nas terras firmes de Goa, quais ele nomeasse, e que com esta condição faria paz, porque sem elas el-Rei, seu Senhor, haveria que o não tinha servido. Espedidos estes embaixadores, porque a resposta do Hidalcão se deteve, não houve esta paz efeito em tempo de Lopo Vaz, por se acabar seu governo. Sendo dez dias de Maio, Bastião Ferreira, que Lopo Vaz de Sampaio tinha mandado a saber novas de Nuno da Cunha, chegou com cartas suas para Lopo Vaz, pelas quais ele soube que Nuno da Cunha invernara em Melinde, donde era já partido para Ormuz, e das vitórias que houvera naquela costa; e nas cartas lhe pedia que lhe tivesse as mais velas que pudesse juntas, porque, em chegando à Índia, esperava de as haver mester.

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E deixadas agora as cousas da Índia, daremos conta das de Maluco, de que sempre tratamos depois da Índia, ainda que acontecessem antes.

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NOTAS (1) Fernão Lopes de Castanheda, cap. 96 do liv. 7. Diogo do Couto, liv. 5, cap. 6. Francisco de Andrade, cap. 45, da 2ª Parte.

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117 117 113 Capítulo XVII. Do que sucedeu a Simão de Sousa Galvão, que ia por capitão de Maluco. Sabendo o Governador Lopo Vaz de Sampaio por Pero Mascarenhas, ao tempo de sua partida para o reino, e por outras pessoas, a necessidade de gente e munições que tinha a fortaleza de Maluco, querendo-a prover de capitão e tirar dela a D. Jorge, determinou mandar lá ua pessoa que tivesse as qualidades que convinha para o remédio daquela fortaleza e socorro do estado em que então estava; e porque todas concorriam em Simão de Sousa Galvão, filho de Duarte Galvão, o mandou em companhia de Pero de Faria, que ia servir de capitão de Malaca, (1) e lhe deu ua 118 118 galé, de que era capitão Jorge de Abreu, e a capitania-mor do Mar de Maluco levava a D. António de Castro, e a feitoria António de Abreu Caldeira, que todos eram homens nobres e escolhidos, como pedia a necessidade de Maluco. Na galé iam setenta soldados, e trinta lhe havia de dar Pero de Faria em Malaca. Fazendo ambos sua viagem, antes de chegarem ao golfão, lhes sobreveo ua tormenta, com que uns e outros se perderam de vista. Pero de Faria foi ter a Malaca, onde lhe entregou a fortaleza Jorge Cabral, e Simão de Sousa correu a tormenta árvore seca, e foi aportar à barra do Achém com os soldados que levava na galé, meios mortos dos grandes trabalhos que passaram no tormenta, sem saber onde estava. E depois que o soube, se quisera fazer à vela, se o tempo o deixara, porque não tinha aquele porto por seguro, por ser de gente inimiga dos Portugueses; parece que o espírito lhe revelava o que havia de ser. Porque, tanto que el-Rei soube que esta galé era chegada assi destroçada com a tormenta, mandou logo a ela ua espia, com nome de visitador, a saber que gente vinha nela, e com palavras dissimuladas oferecendo ao capitão o que houvesse mester e pedindo-lhe que entrasse para dentro, onde estaria mais seguro do tempo. Simão de Sousa lhe deu os devidos agradecimentos, e se escusou da entrada. Espedido este visitador, ao outro dia veo a ele ua embarcação da terra a lhe pedir da parte del-Rei que se fosse para dentro, e que para lhe revocarem a galé lhe mandava aquelas lancharas que atrás vinham, que não tardaram muito em aparecer, atulhadas de gente de guerra, de armas e de artifícios de fogo. As quais chegadas à galé, vendo os Mouros que Simão de Sousa não queria entrar, o acometeram por tantas partes, que a galé foi 114 entrada, travando-se ua grande peleja. Era um triste espectáculo, e caso que aos mesmos inimigos pudera lastimar, ver aqueles poucos homens tam maltratados dos trabalhos que passaram, e tam rodeados de inimigos; mas como todos eles eram esforçados, houveram-se de maneira, que mais pareciam leões que homens, e assi faziam façanhas increíveis; mas contra tantos inimigos pouco lhes aproveitava sua valentia, porque posto que faziam grande estrago nos que achavam diante, entravam outros de refresco em seu lugar. Fazendo os Portugueses maravilhas, durou a peleja tanto tempo, 119 119 que desesperados os Mouros de tomar a galé, como lhe era mandado por el-Rei, receando já as mortes que os nossos lhe davam, se apartaram, e assi desbaratados se foram apresentar a el-Rei, ficando dos Portugueses menos os dous terços dos que eram, entre mortos e feridos. Deste sucesso ficou el-Rei mui indinado contra os seus, porque, sendo tantos, lhe não

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levavam a galé; pelo que mandou logo ao seu capitão-mor do Mar que se fizesse, aquela noute prestes com toda a sua armada, que estava no porto, e pela manhã lhe fosse buscar a galé, com grandes ameaças de morte se lha não trouxesse. O capitão se foi pela manhã à galé (que lhe não deu o tempo lugar para se sair da barra) e os Mouros, que o dia de antes com os nossos pelejaram, receando de se chegar, por estarem já sangrados do ferro português, aconselharam ao seu capitão que tentasse se por manha podia tomar a galé, tendo por impossível havê-la de outro modo; e assi, tanto que chegou à galé que o podessem ouvir, mandou dizer à Simão de Sousa com muitas palavras que el-Rei queria ter paz e comércio com o capitão de Malaca e com ele, e para isso lhe mandava pedir quisesse ir para dentro. E porque alguns dos Portugueses estavam já tais que se não atreviam a pelejar, lhes pareceu que se deviam de concertar, e começaram de praticar nisso; o que, sentindo Simão de Sousa, estando à fala com os Mouros, respondeu que queria haver conselho com os seus; e por entender que alguns deles se queriam entregar, por o estado em que se viam, todos feridos e sem esperança de socorro, lhes fez ua fala, declarando-lhes com a brevidade que o tempo pedia; a falsidade e tenção daqueles mouros, persuadindo-os a morrerem antes com honra, confessando a Fé de Cristo, que entregarem-se àqueles inimigos dela, que com grande crueldade lhes haviam de tirar a vida, que esperavam alcançar deles. Responderam todos a ua voz, que o seguiriam e morreriam com ele. Os Mouros, desenganados, remeteram à galé com tanta braveza, que pareceu que do primeiro acometimento a levariam; mas os nossos, assi como eram poucos e estavam desfalecidos do sangue e das forças, lembrando-lhes que morreriam pola Fé de Cristo, e contra tam grandes inimigos dela, cobrando 115 novos espíritos, fizeram proezas quais 120 120 se contam nos livros fabulosos e que de homens que estavam naquele estado se não poderiam crer; de maneira que os Mouros se afastaram da galé, com morte e destruição de muitos, e com tenção de se recolherem, não sabendo que os nossos eram quási todos mortos, e os vivos tam feridos, que já não podiam pelejar. Neste tempo se deitou a nado um mouro dos forçados da galé, o qual descobriu ao capitão das lancharas o estado em que a galé estava, e que se não fosse, que, a pouco que perseverasse, os acabaria de consumir. O capitão-mor mandou este mouro a el-Rei, o qual a grande pressa proveu os seus com mais gente de refresco e mais pólvora. Com este socorro tomaram atrevimento de entrar na galé, onde já não havia quem a podesse defender, e começaram de novo a pelejar com esses poucos que nela estavam vivos, os quais, vendo que aquele era o último de suas vidas, por se venderem caras fizeram maravilhas, como se de novo vieram a peleja, té que pregaram as mãos com setas a D. António de Castro em a hástea de ua alabarda, que tinha nelas com que pelejava, e das muitas feridas que tinha esgotou todo o sangue, té que caiu morto. A Simão de Sousa Galvão deram com um zarguncho de aremesso com tanta força que, passando as couraças, lhe pregou o coração, e deste modo acabou Simão de Sousa Galvão, um dos quatro filhos (2) com que Duarte Galvão passou àquelas partes; e assi acabaram os mais que na galé havia, e alguns poucos que com vida ficaram (dos quais eram António Caldeira e Jorge de Abreu, tam feridos, que mais se podiam contar por mortos que por vivos), foram levados com a galé a el-Rei, como em triunfo de tamanha vitória, e o corpo de Simão de Sousa feito em pedaços lançaram ao mar. Aos feridos fez el-Rei muito gasalhado, e mandou curar por dissimular sua maldade, mostrando que lhe pesava muito da morte de Simão de Sousa e dos outros portugueses que ele mandava chamar para lhes fazer gasalhado e honra, como desejava fazer a todos, e lhes disse que, como eles fossem sãos, escolhessem entre si algum que fosse dizer da sua parte ao capitão de Malaca que mandasse por eles e pela galé e artelharia, e por o mais que lá tivessem e fora dos Portugueses, porque tudo daria de boa vontade. Porém a tenção deste Rei infiel era tomar o navio e gente que o capitão de Malaca 121

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121 mandasse, como fez, e se dirá adiante. E para mais enganar aos nossos, mandou-lhes dar muita boas pousadas e todo o necessário, com muita largueza, como mui amigo.

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NOTAS (1) Como se disse atrás no cap. 7. (2) Os outros três se chamavam Jorge, Manuel e Rui Galvão.

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121 121 116 Capítulo XVIII. Como D. Jorge de Meneses tomou a cidade de Tidore e assentou pazes com os castelhanos que nela estavam. Estando D. Jorge de Meneses, capitão de Maluco, em tréguas com Fernando de la Torre, capitão dos castelhanos que estavam em Tidore, vindo-se acabar e querendo-as renovar D. Jorge, não quis Fernando de la Torre por conselho do governador de Geilolo; e a causa era porque el-Rei de Tidore pretendia ser senhor de todo o Estado do Moro. E porque eles estavam prestes, mandaram logo sua armada, para que fosse tomar os lugares que lá tinha el-Rei de Ternate; e posto que Cachil Daroez tinha os lugares bem providos, mandou também sua armada em que iam alguns portugueses que foram desbaratados por Cachil Rade, governador de Tidore, que matou e feriu muitos deles e prendeu um capitão dos Mouros, que depois mandou matar. Os ternates e portugueses que escaparam, acolhendo-se em terra, avisaram a D. Jorge do seu desbarato, pedindo-lhe socorro, porque os de Tidore eram muitos, e com eles Fernando de la Torre e quarenta castelhanos que consigo tinha. D. Jorge que estava escandalizado de Fernando de la Torre de não querer com ele paz, pareceu-lhe que tinha boa ocasião de se vingar dele e del-Rei de Tidore, para o que disse a Cachil Daroez que era necessário destruírem aquelas armadas e juntarem para isso seu poder e dos amigos. Cachil Daroez mandou recado aos sangages e a el-Rei de Bachão, que acudissem com sua gente, o que logo fizeram. D. Jorge, não lhes manifestando seu intento, mandou armar cento e vinte portugueses, todos escolhidos. E como as armadas foram juntas, se apartou com os oficiais da fortaleza e com el-Rei de Bachão e Cachil Daroez, e lhes disse que bem sabiam as ofensas que tinham recebido dos Tidores, poderosos 122 122 e fortalecidos com a companhia dos Castelhanos e sua artelharia; e que para sua destruição nunca houvera melhor tempo nem mais desposto que o presente, por muitos andarem na guerra do Moro e ficar a ilha com poucos, e assi, sendo pouca a defensão, os poderiam destruir, com que ficariam em paz; porque el-Rei de Geilolo, sem ajuda del-Rei de Tidore e dos Castelhanos, não lhes podia fazer guerra. El-Rei de Bachão primeiro, e depois Cachil Daroez e os sangages e capitães dos Mouros, todos aprovaram o parecer de D. Jorge. Os portugueses, respeitando mais sua quietação e proveito da sua fazenda, deram muitas razões, dissuadindo aquela empresa; mas, replicando D. Jorge, consentiram nela, ainda que contra suas vontades. Entregue a fortaleza ao alcaide-mor Gomes Aires, pediu D. Jorge a el-Rei de Bachão e a Cachil Daroez que se embarcassem logo com sua gente, porque haviam de partir aquela noute, antes que se publicasse aonde iam, 117 porque queria tomar os inimigos descuidados. Embarcaram-se todos passadas alguas horas da noute. D. Jorge em um batel grande bem artelhado, e D. Jorge de Castro em um parau malabar. Ao outro dia, que era da festa dos Santos Apóstolos Simão e Judas, chegaram, rompendo a manhã, ao porto de Tidore, cuja cidade é grande, cercada de ua tranqueira de duas faces e fica afastada um pouco do mar. Como foram no porto, ordenou D. Jorge de Meneses que D. Jorge de Castro ficasse no parau em que ia com quinze portugueses e alguns ternates, para com um camelo que levava bater um baluarte que ali estava, e com ele com a outra gente havia de ir dar na cidade; e porque o caminho era por entre arvoredo, mandou diante descobrir a terra por Vasco Lourenço, que era mui esforçado cavaleiro, com doze portugueses, e nas suas costas Dinis Botelho com outros tantos, e ele abalou com toda a gente para a cidade, onde assi nos Mouros como nos Castelhanos,

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houve grande sobressalto e medo, porque el-Rei não tinha idade para pelejar; e Cachil Rade, seu governador, que era mui esforçado capitão, e experimentado na guerra, andava no Moro com a principal gente de Tidore. Fernando de la Torre mandou com presteza assentar alguns berços sobre o muro, e, postos nele os Castelhanos com suas espingardas, começaram a defender com elas e com a artelharia a tranqueira, animosamente. 123 123 D. Jorge, conhecendo o dano que poderia receber tardando, arremeteu com sua gente a um portal da tranqueira por onde os de dentro se serviam, e animando os seus, subiu ele dos primeiros pela tranqueira, e ajudou a subir a outros. Os Castelhanos e Tidores, vendo que os entravam, se puseram em defensa com valor; porém não puderam resistir à fúria com que foram acometidos dos Portugueses e Ternates; e assi desemparadas as tranqueiras, se retiraram os Castelhanos ao seu forte, quási todos feridos, dous mortos e quatro presos, e os Tidores à cidade, os quais seguiu D. Jorge té os lançar fora dela, matando e ferindo muitos, e da volta com eles se foi seu Rei, sem em toda esta peleja haver dos Portugueses mais que três feridos. Tomada a cidade, mandou D. Jorge de Meneses vir D. Jorge de Castro e os Portugueses que ficaram com ele, para que todos juntos saqueassem a cidade, a qual saqueada, a mandou queimar. Ficava por combater a torre dos Castelhanos; e primeiro que D. Jorge a cometesse, escreveu ua carta ao capitão Fernando de la Torre, na qual lhe rogava da sua parte, e requeria da do Emperador, que, considerando com prudência e sem paixão o estado em que estava e pouca defensão que tinha, se entregasse a ele, e não desse ocasião de se matarem uns cristãos com outros. A esta carta respondeu de palavra Fernando de la Torre, que 118 não se havia de entregar por mais segurança que lhe desse, mas que lhe entregaria a galeota que fora tomada a Fernão Baldaia com toda a sua artelharia, e a Ilha de Maquiém, e que não ajudaria mais aos reis de Tidore e Geilolo contra os Portugueses, nem lhes faria guerra. D. Jorge lhe replicou que não fora a Tidore por tam pouco, e pois assi queria, que seu fosse o dano. Partido o messageiro, D. Jorge foi após ele com sua gente, e diante alguas peças de artelharia e muitas panelas de pólvora e escadas. Temendo Fernando de la Torre tanto aparato, havendo seguro de D. Jorge, lhe saiu a falar com a gente que tinha; e apartado um pouco dela, e D. Jorge da sua, se falaram e assentaram que Fernando de la Torre se fosse para a cidade de Camafo com os Castelhanos que o quisessem seguir, e ali estariam sem fazer guerra aos Portugueses nem aos reis de Ternate e Bachão, seus amigos, contra os quais não ajudariam a el-Rei de Geilolo, e restituiriam a Ilha de Maquiém a el-Rei de Ternate, e que não fariam cravo 124 124 nem iriam a algua das ilhas em que o havia; e para sua embarcação lhes daria D. Jorge o bargantim que fora del-Rei de Geilolo, e três coracoras para o acompanharem té Camafo, e que D. Jorge lhes não faria mais guerra, nem aos reis de Tidore e Geilolo; e isto se guardaria té el-Rei de Portugal e o Emperador mandarem o contrário. E depois de cada um destes capitães dar conta aos seus, do que todos foram contentes, assentaram as referidas capitulações de pazes, que juraram de cumprir e guardar, e as assinaram com alguas pessoas principais. Dos Castelhanos que com Fernando de la Torre estavam, dezoito que disseram que queriam ficar com D. Jorge, Fernando de la Torre lhos entregou, e com os que lhe ficaram se tornou à sua torre, e ao outro dia partiu para Camafo. Donde, por persuasão dos Castelhanos que andavam em Geilolo, deixando Camafo, quebrando a promessa que fizera , se foi para eles. O que lhe D. Jorge mandou estranhar; ao que ele respondeu que forçado o fizera, porém que em o mais guardaria as capitulações; e assi o fez. (1) D. Jorge, antes de se partir para Ternate, fez paz com el-Rei de Tidore, com condição que ele pagaria de páreas a el-Rei de Portugal cada ano certos bahares de cravo, e que em Tidore

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haviam de estar alguns portugueses para ensinarem seus costumes aos Tidores, e não havia mais de ajudar aos Castelhanos, nem a Mouros contra os Portugueses. Estando ainda D. Jorge em Tidore, viu ao mar um junco que vinha de Banda e de Amboíno, em que vinham cinquenta mouros com mercadorias para levar cravo de Tidore, cuidando que estava em sua propriedade. Sabendo D. Jorge donde era, mandou a D. Jorge de Castro que o fosse tomar; e entendendo os Mouros da destruição de Tidore e a ida dos Castelhanos, não ousando de pelejar, se entregaram. Deste junco fez D. Jorge de Meneses mercê 119 em nome del-Rei de Portugal, a D. Jorge de Castro, porque havia de ficar em Tidore para cobrar o cravo del-Rei; e deixando com ele quarenta portugueses e Cachil Daroez com a armada, se partiu para Ternate, levando consigo duas galeotas dos Castelhanos, e a galeota que eles tomaram ao Baldaia, com sua artelharia com muita pólvora e munições; e satisfeito das ofensas passadas, entrou vitorioso em Ternate. (2) 125 125 Os castelhanos que a Ternate foram com D. Jorge de Meneses, se embarcaram com D. Jorge de Castro no Janeiro seguinte para a Índia.

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NOTAS (1) Fernão Lopes de Castanheda, cap. 6 do liv. 8. Diogo do Couto, liv. 6, cap. 11. Francisco de Andrade, cap. 59 da 2ª Parte. (2) Fernão Lopes de Castanheda, liv. 8, cap. 7. Francisco de Andrade, cap. 59 da 2ª Parte.

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125 125 119 Capítulo XIX. Da morte del-Rei Bohaat e prisão de seu irmão e sucessor Cachil Daialo; e da injúria que fez D. Jorge a Cachil Vaidua, parente del-Rei. Neste tempo que D. Jorge de Meneses destruiu a cidade de Tidore e lançou dela aos Castelhanos, faleceu na fortaleza el-Rei Bohaat, (1)não sem suspeita de peçonha, que diziam alguns lhe mandou dar Cachil Daroez, por entender que el-Rei lhe tinha ódio por ele aconselhar ao capitão que o tivesse como preso na fortaleza, onde havia muito tempo que estava, e de quem se também temia por tiranias e extorsões que fazia no governo. Pela morte del-Rei, que foi mui sentida de todos, porque era bom príncipe, foi levantado por rei um seu irmão mais moço, por nome Cachil Daialo, que também D. Jorge meteu na fortaleza. A Rainha como lhe não ficava outro filho, receando que na fortaleza lhe morresse este, como o outro, pediu com muita instância a D. Jorge lho deixasse ter consigo; mas D. Jorge não quis, temendo-se que, se os Ternates vissem el-Rei livre, se levantassem contra os Portugueses. O que também dizem que lhe aconselhava Cachil Daroez, que por estar el-Rei recolhido na fortaleza, tinha ele todo o mando do reino absolutamente; e estando fora dela e em sua liberdade, não havia de ser assi, por a Rainha lhe querer grande mal, que ela dissimulava, por saber que nele estava a liberdade del-Rei, seu filho. E por esta causa Cachil Daroez tinha grande ódio a toda pessoa que falava sobre a liberdade del-Rei, e muito maior a Cachil Vaiaco, de quem D. Jorge era muito amigo, polo que temia Daroez que D. Jorge fizesse governador a Vaiaco, e a ele 120 tirasse do cargo, por lhe não ter também boa vontade desde o tempo que D. Jorge tivera diferenças com D. Garcia Henriques. 126 126 Sendo por esta causa grandes inimigos Cachil Daroez e Cachil Vaiaco, (2)aconteceu que, vindo ua armada del-Rei de Geilolo dar vista à fortaleza, mandou D. Jorge contra ele Cachil Vaiaco com alguns portugueses, o qual se embarcou em ua coracora, em que Daroez soía andar, de que ele não foi sabedor. E tornando Vaiaco mui contente, por fazer recolher os Geilolos e tomar-lhe ua coracora, D. Jorge o festejou muito, e Cachil Daroez houve grande enveja do bom sucesso de seu inimigo; e quando soube que fora na sua coracora, tomou grande indinação, que descobriu o ódio que lhe tinha, e começou daí em diante de o vexar em tudo o que podia. Temendo-se Vaiaco dele, e não se atrevendo escapar com a vida, estando entre os Mouros, se acolheu à fortaleza. Cachil Daroez, determinando de o haver às mãos, o pediu a D. Jorge, dizendo que tinha feitos muitos desserviços a el-Rei Cachil Daialo, e que convinha castigá-lo, pelo que lho devia entregar, porque el-Rei de Portugal não havia de haver por bem que seus capitães amparassem e aconselhassem os que desserviam a el-Rei de Ternate. D. Jorge, como era amigo de Vaiaco e desejava sua salvação, pôs em conselho se o entregaria a Cachil Daroez; mas Vaiaco, receando que a determinação fosse que o entregassem, e que, entregando-o, Daroez o havia de matar desonradamente, e que o não pedia senão a esse fim, querendo antes matar-se a si que morrer por mandado de seu inimigo, subitamente se lançou de ua torre abaxo, do que logo morreu. Com este sucesso ficou Cachil Daroez vingado e D. Jorge mui triste, e ambos em grande ódio. Os Mouros, como viram Cachil Daroez descobertamente agravado, além do ódio que naturalmente tinham aos Portugueses, tinham-lho por respeito de Daroez, e em tudo o que lhes

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podiam anojar o faziam dissimuladamente, por o medo que tinham a D. Jorge, té verem a sua; e por lhe darem desgosto, lhe mataram ua porca da China que trazia em casa e estimava muito. E posto que se fez encobertamente, fazendo D. Jorge diligência, achou quem culpasse na morte da porca a Cachil Vaidua, tio del-Rei e caciz-mor, homem entre eles por o sangue e por a dinidade de grande autoridade, sem respeito da qual D. Jorge o mandou prender. Desta prisão houve tanto alvoroço na cidade, que 127 127 se não fora o muito medo que a D. Jorge tinham se levantaram. Cachil Daroez com os principais da cidade se foi à fortaleza, e pediu a D. Jorge mandasse soltar Cachil Vaidua, estranhando-lhe prender ua pessoa de tanta qualidade por ua cousa tam vil como era ua porca. D. Jorge, que era homem de poucos comprimentos, não curando de desculpas, lhes 121 disse que o não havia de soltar, senão pagando-lhe a estimação da sua porca anoveada. Trazendo-lhe penhores té se avaliar a porca, mandou D. Jorge a Pero Fernandes, seu criado, que os tomasse e soltasse ao Vaidua; e como homem baxo, que parece ser no nome e na obra, ao tempo que soltou Vaidua, lhe untou o rostro com ua posta de toucinho, que entre os Mouros é gravíssima injúria. O Vaidua, a quem aquela ofensa foi mais que a morte, com muitas lágrimas que lhe corriam pelo rostro, que ainda levava untado, se foi a Cachil Daroez, que com muitos mandarins ficara à porta, aos quais contou daquela afronta, e com mágoa dele choraram todos, e muito mais de o não poderem logo vingar; e entenderam que por mandado de D. Jorge se faria aquela ofensa, porque nem castigou o criado, nem se desculpou. E o desprezo da prisão feita a um homem de sangue real, a quem D. Jorge por mais grave delito houvera de tratar conforme a sua pessoa, lhes dava maior indício de ele o mandar. A indinação dos que viram aquela injúria foi maior quando os portugueses que ali estavam, em lugar de a estorvarem ou consolarem a Vaidua e Cachil Daroez, se riram muito, como de cousa de grande graça. Cachil Vaidua se foi de Ternate por todas aquelas ilhas, manifestando aos Mouros a injúria que lhe fora feita a ele e a toda a Nação, e à sua lei, pedindo-lhes que a vingassem, para que se começaram logo de aperceber. Dos excessos deste capitão sucedeu a tragédia que se verá depois, e que sempre soe acontecer quando os príncipes ou ministros seus tratam sem clemência e humanidade aos vencidos, fazendo-se senhores dos corpos e não das vontades. Porque nenhum presídio nem prisão há que mais faça ter os súbditos em obediência e alegre servidão, que o suave tratamento; e pelo contrário, por nenhum caminho se perdem e se arriscam mais os Estados, e vem à deminuição, que por aspereza e insolência dos senhores para os vassalos, mormente quando são de outra Nação, ou novamente 128 128 ganhados. Cachil Vaidua, como dissemos, se foi morar fora de Ternate, e não tornou à ilha, té que veo António Galvão por capitão, que dos Mouros e dos Portugueses foi igualmente amado por sua mansidão e cristandade.

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NOTAS (1) Diogo do Couto chama a este Rei Baiano, e a seu irmão Aialo. (2) Fernão Lopes de Castanheda, liv. 8, cap. 18. Francisco de Andrade, cap. 60 da 2ª Parte.

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128 128 122 Capítulo XX. Como D. Jorge mandou lançar a dous lebrés o regedor de Tabona, dos quais foi cruelmente morto, e mandou degolar a Cachil Daroez. A muita inquietação de D. Jorge, que não procurava paz e sossego para si nem para os seus, por as ofensas que a todos os vezinhos fazia, era causa de estarem os Portugueses muito pobres, como homens que não tinham comércio nem lhes pagavam soldo, polo que com necessidade tomavam aos Mouros os mantimentos que haviam mester por força, sem lhos pagarem. E queixando-se disto os Mouros, D. Jorge não lhes dava mais remédio que dizer-lhes que lhos dessem eles por vontade, e que os Portugueses lhos não tomariam por força. E indo com seus queixumes a Cachil Daroez, como a governador que era do reino, não soube mais que fazer para evitar brigas, que mandar-lhes que não vendessem mantimentos nem os tivessem em casa, para os Portugueses os não tomarem. Polo que, ficando eles em grande aperto, querendo prover a isso D. Jorge, mandou Gomes Aires, alcaide-mor, que com alguns portugueses que lhe deu, fosse pela ilha buscar mantimentos; os quais no primeiro lugar a que chegaram, que se chama Tabona, incitados da fome e da soberba, parecendo-lhes que a terra era sua, se metiam pelas casas dos Mouros sem respeito algum, e lhes tomavam os mantimentos que lhes achavam. Os Mouros, resistindo a esta força, como os Portugueses eram poucos, os trataram mal. Gomes Aires, que ficava detrás com outros poucos, cuidando o regedor da vila que era gente que vinha de socorro, acudiu ajudar os seus, e tomando os Portugueses entre si, os espancaram e feriram, e alguns tomaram as armas que levavam, e assi os fizeram tornar à fortaleza. Indinado D. Jorge por aquela afronta, mandou logo dizer a Cachil Daroez 129 129 que mandasse ir à fortaleza ao regedor da Tabona, e os principais que foram naquela ofensa, porque de outra maneira não o teria por amigo del-Rei de Portugal nem seu. Daroez, como tinha D. Jorge a el-Rei na fortaleza, fez o que lhe mandou requerer, e com o regedor de Tabona vieram dous homens principais, a que logo D. Jorge mandou cortar as mãos, e com elas cortadas os mandou levar a Tabona. Ao regedor mandou atar as mãos, e deitá-lo a dous cães de filhar mui feros, junto com a praia que estava coberta de gente, que saiu a ver tam nova justiça. Foi piedoso espectáculo ver arremeter os cães a ele, e começar a esfarrapar-lhe a carne às dentadas, mordendo-o cruelmente, e os gritos que ele dava com as dores. O regedor, 123 que era animoso, se foi chegando para o mar, cuidando que nele o largariam os cães; mas encarniçados nele o seguiram, e vendo-se ele em tamanho tormento, andando já nadando com os pés, que com as mãos não podia por as ter atadas, fez volta aos cães que o seguiam, e com muito esforço e acordo se começou a defender com os dentes, mordendo aos cães, assi como eles o mordiam, de que todos estavam atónitos; e andando com as carnes espedaçadas, aferrou um dos cães por ua orelha, e aferrado se meteu com ele debaxo de água, onde se afogou, deixando a todos com grande espanto e maior mágoa, chorando de verem morrer tam cruelmente um homem tam esforçado. (1) Dali por diante teve Cachil Daroez mortal ódio a D. Jorge e aos Portugueses, e desejava de os matar a todos e livrar a terra de seu jugo. E sendo informado D. Jorge que Cachil Daroez tinha assentado paz com Catabruno, governador de Geilolo, para Daroez matar os Portugueses e Catabruno os Castelhanos, e que nesta conjura entrava também Cachil Samarau, que era almirante do mar, e Cachil Boio, que era justiça-mor de Ternate, mandou chamar a todos três, e fazendo-lhes perguntas, confessarem que determinavam de livrar sua Pátria das opressões que lhe ele, D. Jorge, e

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os Portugueses faziam, com os lançar de suas terras ou matar a todos. Cachil Daroez,como principal naquele negócio, foi preso na fortaleza, o que fez grande alvoroço nos principais da cidade, quando souberam a causa. D. Jorge, aconselhando-se com os oficiais da fortaleza o que faria de Cachil Daroez, acordaram que devia ser degolado publicamente, porque tendo-o preso, poderia levantar-se a terra contra a fortaleza, com esperança de o livrar; e 130 130 vendo que era morto, se aquietariam. Aprovado este conselho, foi Cachil Daroez degolado em um cadafalso da maneira que em Espanha se degolam os grandes senhores, como autor daquela conjuração. A morte de um homem tam assinalado, governador daquele reino e filho de um rei dele, e de quem os Portugueses, assi dele como de seu pai, tinham recebido tantos benefícios, e a pena da morte, que em Maluco se não dá a homens fidalgos por os delitos que cometem, senão desterro; e a lembrança que, tomando eles aos Portugueses por hóspedes e amigos, se lhe tornaram senhores e contrários, e que chamavam traição quererem proclamar a sua liberdade; fez tanto espanto e indinação em todos, que a Rainha e os principais se foram da cidade para um lugar que chamam Turucó, que está ua légua de Ternate. Por causa desta morte principalmente, veo D. Jorge preso à Índia, e da Índia a Portugal, e de Portugal degradado para o Brasil, onde acabou a vida, como adiante diremos, quando tratarmos de Gonçalo Pereira, que lhe sucedeu na capitania. E deixando agora as cousas de Maluco, tornaremos a tratar as da Índia e de Nuno da Cunha, que a vinha governar.

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NOTAS (1) Fernão Lopes de Castanheda, liv. 8, cap. 20. Diogo do Couto, liv. 7, cap 7. Francisco de Andrade, cap. 60 da 2ª Parte.

LIVRO III 131 131 125 Capítulo Primeiro. Como el-Rei D. João mandou por Governador da Índia a Nuno da Cunha; e do que passou té chegar à Ilha de S. Lourenço. No ano de mil e quinhentos e vinte sete, pelas naus que então vieram da Índia, (1)soube el-Rei D. João em quanta necessidade ela ficava de gente e de outras cousas necessárias para a conservação e governo daquele Estado, e das diferenças que entre Lopo Vaz de Sampaio e Pero Mascarenhas se receavam haver, por o modo que se teve no abrir das sucessões; polo que lhe pareceu que convinha acudir a isso com mandar outro Governador. E porque em Nuno da Cunha, vedor de sua Fazenda, concorriam muitas 132 132 qualidades, assi de sua pessoa como de muita experiência do governo da Índia, por o tempo que nela andou com seu pai Tristão da Cunha, e por causa do ofício que tinha, determinou de o mandar no ano de 1528 por Governador daquelas partes. E por el-Rei àquele tempo estar na cidade de Coimbra e a armada havia de ser grande, em que esperava mandar muitos fidalgos e criados seus, para despachar seus requerimentos se passou a Almeirim, que está catorze léguas de Lisboa pelo Tejo acima, defronte da notável vila de Santarém. Nesta armada (2)mandou mais de dous mil e quinhentos homens de armas para ficar na Índia, afora a gente sobressalente do mar, e a que havia de marear as naus, que eram onze, cujos capitães eram ele, Nuno da Cunha, Simão da Cunha e Pero Vaz da Cunha, seus irmãos, António de Saldanha, 126 Garcia de Sá, filho de João Rodrigues de Sá de Meneses alcaide-mor do Porto e senhor das terras de Sever, D. Fernando de Eça (3)filho de D. Pedro de Eça, o velho, D. Fernando de Lima, filho de Duarte da Cunha, Bernardim da Silveira, filho do coudel-mor Francisco da Silveira, Senhor das Cerzedas, Francisco de Mendoça Guedes, filho de Pero Guedes, senhor de Murça, e Afonso Vaz Azambujo, piloto da Mina, capitão e piloto de um navio pequeno para serviço de toda a armada, assi para recados, como para as entradas dos portos, João de Freitas, capitão de ua nau biscainha, e Gaspar Moreira e Luís de Araújo, (4)capitães de duas caravelas carregadas com mantimentos para proverem as naus té a costa de Guiné, e para tornarem com as novas da sua viagem té passarem a Linha Equinocial, termo de que se poderia julgar que a armada ia bem navegada por partir de Lisboa tarde a 18 de Abril. Seguindo esta frota sua derrota, a 6 de Maio, antes de chegar às Ilhas do Cabo Verde, querendo a nau de João de Freitas salvar a de Simão da Cunha, embaraçou-se de maneira que deu ua por outra, com que a de João de Freitas começou de se ir ao fundo, por ser biscainha e velha, e não tam forte como a nau Castelo, de Simão da Cunha; e aprouve a Deus que em um dos navios dos mantimentos se salvou João de Freitas, que ia por feitor de Malaca, e onze homens com ele; e D. Fernando de Lima no esquife da sua nau recolheu poucos e poucos té cento e cinquenta homens, 133 133 com o qual socorro quási toda a gente se salvou. (5)Por causa deste desatre, com que se perderam muitos mantimentos, para animar a gente com nova provisão deles, mandou Nuno da Cunha governar à Ilha de Santiago, onde surgiu a 9 de Maio, e nela se deteve três dias, refazendo-se de muitas cousas que se perderam. Dali despediu ua das caravelas, e outra depois, que passou a Linha a 2 de Junho. E porque as naus não eram todas companheiras na vela e alguas com os ventos gerais, que começavam a refrescar não podiam manter companhia das outras, como té li fizeram, por os tempos serem bonanças, apartou-se Nuno da Cunha com seu irmão Simão da Cunha e com o navio

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de Afonso Vaz Azambujo, e às outras velas deu regimento do que haviam de fazer; e dando pela manhã toda a vela ao vento, quando veo a tarde tinha já perdido de vista as outras naus. Com bom tempo chegou em poucos dias às ilhas, que se chamam do nome de seu pai - Tristão da Cunha - por as ele descobrir quando foi à Índia (como já dissemos, (6)na qual paragem lhe deu um temporal com que se apartou dele Simão da Cunha, e ficou-lhe a companhia de Afonso Vaz. 127 Correndo com este tempo, veo a dar com ele António de Saldanha, e depois Pero Vaz da Cunha, e perdendo hoje um e amanhã outro, segundo cursava o vento, passou o Cabo de Boa Esperança, havendo vista dele o derradeiro de Julho, onde andou em calmarias, té que veo tempo que o levou ao rostro da Ilha S. Lourenço, e chegou a ela a 23 de Agosto; mas o vento lhe não serviu para poder tomar o Cabo de Santa Maria, onde quisera fazer aguada por ir tam falto de água, que em três naus que iam juntas - a sua, a de seu irmão Pero Vaz da Cunha e a de D. Fernando de Lima - não havia mais que sessenta pipas dela sendo as pessoas mil cento e quarenta e quatro. Com esta necessidade, aos 23 dias de Agosto tomou na mesma ilha da banda de Oeste o porto de Santiago, que está em altura de vinte e um graus da parte do Sul; e antes de entrar neste porto quási três léguas, foi dar em uns baxos em que se houvera de perder, e onde se tinham perdido Manuel de la Cerda e Aleixo de Abreu, como depois soube. Passado este perigo, entrou no porto de Santiago, que é ua baía, a qual logo na entrada é tam espaçosa, que podem entrar por ela muitas naus à vela; porém depois que entram para dentro da terra, vai-se fazendo ua maneira de seo, e no fim dele ua concha chea de muitos alfaques, assi alcantilados, que está a 134 134 popa da nau em oitenta braças e a proa em doze. Toda esta concha é cercada de ua terra alta e soberba, e somente em ua parte faz um escampado, por meio do qual corre um rio de água doce, o qual se faz de dous que vem de dentro da terra de partes diversas, e este ajuntamento é mui perto donde se ele mete no mar, e trás tanta água, que podem batéis grandes ir por ele acima um bom espaço. Surto Nuno da Cunha, porque aquela terra era mui povoada de negros de cabelo retorcido como os de Moçambique, começaram logo descer à ribeira muitos deles, trazendo carneiros, galinhas, grãos, lentilhas e outro mantimentos, que davam aos nossos a troco de pedaços de ferro e de outras cousas de pouco preço. Com este comércio e bom tratamento que lhes os nossos fizeram, ficaram tam contentes, que daí a dous dias trouxeram um português, o qual vinha tam deforme, com a grenha que trazia de cabelos e cortimento dos couros despidos, que era mui mais feo à vista que os próprios negros. O prazer deste homem foi tamanho, quando se viu dentro na nau, que estava diante de Nuno da Cunha com pasmado, sem lhe poder dar razão do que perguntava. Depois que entrou mais em si, contou como ali se perderam Manuel de la Cerda e Aleixo de Abreu, dando de noute em seco, e estiveram té o outro dia pela manhã, que se salvaram em jangadas com algua pouca fazenda, e que a gente de Manuel de la Cerda, segundo soubera dos negros, se meteram pela terra dentro; mas que lhe não sabiam dar razão onde pararam, porque os negros não costumavam sair das comarcas donde eram naturais; e que a gente de Aleixo de Abreu, segundo eles deziam, andava pela ilha; e a causa de ele ficar ali, fora porque, quando 128 Aleixo de Abreu (com quem ele vinha) determinou de ir por terra, com a gente que se salvara, buscar algum porto, donde com jangadas ou com algum outro modo se passasse a Moçambique, ele estava tam doente e manco, que não podia dar um passo; e que enquanto teve algua cousa sobre si, os negros entre que ficou lhe foram contrários, e não se fiavam dele; mas que depois que o viram despido e de todo nu como eles, e não tinham que cobiçar, ficaram seus amigos e o trataram mui bem, por ser gente pacífica e que vive a modo de comunidades, sem terem senhor a quem obedeçam.

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Estas e outras cousas dos costumes daqueles cafres contava este homem, o qual, segundo dezia, 135 135 era criado de D. António de Noronha, Conde de Linhares; e escapando de tantos trabalhos, veo a morrer daí a poucos dias em Mombaça de sua infirmidade, (7)onde morreu muita gente outra, como diante se verá.

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NOTAS (1) Destas naus vieram por capitães Tristão Vaz da Veiga e Francisco de Anhaia. (2) Frota da Índia do ano de 1528 (3) A este chama Diogo do Couto D. Francisco (4) Francisco de Andrade chama a este Luís Dória. (5) Entre os que pereceram, que foram cento e cinquenta pessoas, diz Diogo do Couto que foi um homem casado, que ia na nau com sua mulher e três filhas donzelas, que vendo a nau aberta, abraçando- se todos cinco, com lastimoso pranto se foram ao fundo. (6) No cap. 1, do liv. 1 da 2ª Década. (7) Escreve Diogo do Couto, que este homem viveu depois muitos anos casado em Goa, e foi nela meirinho.

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135 135 128 Capítulo II. Da perdição das duas naus de Manuel de Lacerda e Aleixo de Abreu; e do que aconteceu aos que delas de salvaram. As duas naus de que se salvou este português, que levaram a Nuno da Cunha, eram da companhia de cinco que partiram de Portugal no ano de 1527, da qual armada ia por capitão-mor Manuel de la Cerda, e das outras quatro naus foram os capitães Aleixo de Abreu, Cristóvão de Mendoça, Baltasar da Silva e Gaspar de Paiva. Estas três últimas chegaram a salvamento à Índia em Setembro (como se atrás se escreveu, (1) e as duas de Manuel de la Cerda e de Aleixo de Abreu se perderam na costa ocidental da Ilha de S. Lourenço, nos Baxos de Baía de Santiago (na qual estava Nuno da Cunha) onde saiu em terra toda a gente destas duas naus; e feitas uas tranqueiras, dentro delas se recolheram com as armas que escaparam do naufrágio, e outras cousas que, comutando por mantimentos (de que aquela parte da ilha não é mui abundante), com os naturais da terra, se foram sustentando miseravelmente, esperando que passasse algua nau, que com sinais que lhe fizessem os viesse tomar. Estiveram naquela baía um ano, no fim do qual chegou àquela paragem António de Saldanha na sua nau, que era da companhia da armada do 129 Governador Nuno da Cunha, a qual vista por esta gente perdida, como foi noute, fizeram grandes fogos em cruzes, para por eles mostrarem aos da nau que estavam ali portugueses perdidos. Vistos os fogos, mandou António de Saldanha tomar os traquetes, e puseram-se à trinca; e, como amanheceu foram na volta da terra, a que não ousavam chegar, por não ser sabida, esperando que dela viesse em algua almadia quem lhes dissesse que gente era aquela; e assi, afastando-se de noute da terra e voltando a ela 136 136 de dia, andou ali António de Saldanha oito dias, e ao cabo deles, dando-lhe um temporal rijo, desapareceu, continuando sua viagem. Os portugueses perdidos, vendo-se sem o remédio que esperavam da nau, se determinaram de passar à outra banda da ilha, onde poderiam achar algua embarcação da terra, em que passassem a Sofala ou a Moçambique, e divididos em duas esquadras, se meteram pelo sertão, onde desapareceram, ficando ali doente aquele homem que achou Nuno da Cunha, de quem soube o sucesso da perdição daquelas naus. (2) Por cartas de Nuno da Cunha teve el-Rei D. João notícia da perdição destas duas naus, e mandou buscar a gente delas no ano de 1530 com dous navios, de que eram capitães dous irmãos Duarte da Fonseca e Diogo da Fonseca. Chegaram ambos à Ilha de S. Lourenço: Duarte da Fonseca entrou em ua grande baía, onde se afogou com dez homens que levava no batel do seu navio; e Diogo da Fonseca, correndo a costa, surgiu em um porto, onde viu grandes fumos; e mandando o batel a terra a saber a cousa deles, acharam quatro portugueses que os faziam; três da nau de Manuel de la Cerda, um de Aleixo de Abreu; e um francês de ua nau francesa que ali fora parar, de três que os anos atrás passaram à Índia. Estes homens, recolhidos no navio, disseram que havia muitos vivos da sua companhia, mas que andavam tam espalhados pela terra dentro daquela ilha, que seria impossível achá-los; pelo que Diogo da Fonseca se foi com eles a Moçambique, levando o navio de seu irmão; e deixando ali um deles por fazem muita água, partiu para a Índia, em Abril de 1531. E na paragem de Socotorá se devia de perder com algum temporal, o que se depois soube por algua fazenda e arcas que foram dar à costa daquela ilha; e pelos papéis

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que nelas se acharam, se entendeu que eram deste navio de Diogo da Fonseca, e o sucesso de sua viagem. (3) Da gente destas mesmas naus de Manuel de la Cerda e Aleixo de Abreu devem de proceder os portugueses que uns holandeses acharam nesta Ilha de S. Lourenço, onde se perderam na ponta de Sta. Lúcia, vindo da Jaua em ua nau carregada de drogas; os quais, andando cortando madeira para fazer algua embarcação em que voltassem a Bantão, foram vistos da 130 gente da terra, a qual, parecendo-lhe que eram portugueses, 137 137 se vieram a eles com muito alvoroço, e, abraçando-os e falando português, lhe disseram que também eles eram netos de Portugueses (postos que o não pareciam nas cores e trajos) e com muita instância perguntavam se traziam consigo padres. E desenganados que não eram portugueses, senão holandeses, de que eles não tinham notícia, lhes contaram como em tempos passados ua nau tam grande como aquela sua ali se perdera, salvando-se a gente, e o capitão dela conquistara parte daquela ilha, de que se fizera senhor, e que os mais se casaram com as mulheres da terra, de que tiveram grande geração, da qual eles descendiam; e que assi como seus pais e avós desejaram sempre ter padres que os doutrinassem, assi eles viviam nos mesmos desejos. Feita a embarcação, voltaram estes holandeses para Bantão, onde relataram este sucesso aos companheiros e a Fr. Atanásio de Jesu, frade agostinho português, que estava cativo entre eles, acrescentando como notaram naquela gente erros intoleráveis na Fé por falta de doutrina, nos quais se pareciam mais àqueles bárbaros com que se criaram, que aos portugueses de que procediam. Fr. Atanásio avisou de todas estas cousas a D. Frei Aleixo de Meneses, arcebispo que então era de Goa e governava a Índia, e agora é arcebispo de Braga e Viso-Rei de Portugal, o qual com a vigilância e cuidado que costuma ter em semelhantes casos, e grande zelo na conversão das almas (como o mostrou na redução dos antigos cristãos de S. Tomé à Fé Católica e obediência da Santa Igreja Romana, da qual havia mais de mil anos que estavam apartados, em que este ilustríssimo arcebispo com perigos contínuos e incansáveis trabalhos imitou os prelados da primitiva Igreja) encomendou aos padres da Companhia de Jesu, que foram com D. Estêvão de Taíde à conquista de Monomotapa, de Moçambique, ou de outro algum porto vezinho, trabalhassem por alcançar mais clara notícia desta gente para a poder socorrer como a sua necessidade pede. (4)

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NOTAS (1) No cap. 4 do liv. 2. (2) Diogo do Couto, cap. 5, do liv. 3 e cap. 2 do liv. 5 da 4ª Década. (3) Francisco de Andrade, cap. 64 da 2ª Década. (4) Fr. António de Gouvea, ora Bispo de Sirene, no último capítulo do 3§ liv. da relação das guerras de Pérsia e transmigração dos Arménios.

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138 138 131 Capítulo III. Como a nau de Nuno da Cunha se perdeu com um vento travessão, salvando-se ele e sua gente; e do que lhe aconteceu té chegar à Ilha de Zanzibar. Nuno da Cunha, por se melhor informar do sítio e qualidades da terra, enquanto a gente do mar fazia sua aguada, deu licença a D. Pedro Lobo, a Luís Falcão e a Manuel Lobato e a alguas outras pessoas nobres, que com alguns soldados a bom recado fossem té a povoação dos negros, mas que não entrassem nela, somente vissem o que lhe parecia de sítio e disposição da terra, e levassem mostras de cravo, canela e de toda outra especiaria, ouro e prata para saber se entre os negros havia algua daquelas cousas, e se era deles estimada. Idos estes fidalgos, porque o tempo que lhe Nuno da Cunha limitou era mui estreito para o que haviam de fazer, tornaram logo à tarde mui contentes da disposição e fertilidade da terra, e assi de seus moradores, por ser gente pacífica, sem cautelas e sem aquela malícia própria dos negros de Guiné, e trouxeram dos mantimentos, que entre eles havia, a troco de alguas cousas que levaram; e quanto às mostras de ouro e prata e especiaria, não davam razão como gente que não sabia mais da terra que té onde chegava o termo da sua aldea. Havendo três dias que Nuno da Cunha ali estava provendo-se do necessário e esperando tempo para saírem daquela angra, sobreveo vento do mar, que ficava em travessão na costa; e como o porto era cheo de alfaques, assi descompassados em partes (como dissemos), começou a nau de Nuno da Cunha saluçar de maneira que trincou logo duas amarras; e vindo logo outras duas ou três novas, apenas foram lançadas ao mar, quando se fizeram em pedaços; a causa de durarem tam pouco, não foi tanto por razão dos saluços da nau, como por estarem recozidas da quentura e humidade dos paióis onde vinham, com a qual falta a nau foi levada a terra do ímpeto do mar, e a pôs em três braças, onde com três ou quatro pancadas abriu de todo, assentado-se no fundo da area, quando já 139 139 o vento não era tam rijo. E posto que a nau foi logo chea de água, ficou tam perto da terra, que nadando saíram muitos homens e chamaram todos os batéis que eram na aguada, que lhe viessem socorrer, sem as outras naus que estavam mais ao mar o poderem fazer. Porque na primeira estrupada de vento também elas tiveram assaz trabalho, principalmente a nau Sta. Catarina, de Pero Vaz da Cunha, que caçou um grande pedaço, e Deus milagrosamente a salvou para recolhimento de tanta gente, como ia com Nuno da Cunha, a qual, como viu a nau chea de água, 132 sem esperar que viessem os batéis que dissemos, começou de se lançar ao mar, havendo isto por menos perigo que estar nela. Ao que Nuno da Cunha acudiu, não o consentindo e consolando a todos, prometendo-lhes que salvaria primeiro as pessoas deles que a sua própria, como viessem os batéis, e assi o fez; porém porque, vindo eles sem pressa nem desordem, mandou passar toda a gente a terra, e algum fato que sobre a coberta se pôde salvar, deixando-se estar na nau té o outro dia às dez horas, que toda a gente desembarcou, a qual repartiu pelas duas naus que com ele eram naquele trabalho: à de seu irmão Pero Vaz, onde se ele recolheu, se ajuntaram setecentas pessoas, e à de D. Fernando de Lima, quinhentas. Terça-feira à noute que foram 3 de Setembro, mandou Nuno da Cunha pôr fogo à nau, a qual ardeu té a água defender o que estava de baxo dela, onde se perdeu muita fazenda del-Rei e de partes, e com a artelharia um basilisco de metal, que Nuno da Cunha muito sentiu, e as armas de que os homens tinham necessidade, por ser cousa que tam cedo se não podia reformar.

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Ao dia seguinte partiu dali com determinação de ir a Melinde a se prover de alguas cousas, e ver se por aquela costa aportara algua armada, ou se achava navio do trato de Sofala para baldear da gente que levava. Mas ainda a fortuna o quis neste tam curto caminho tentar, porque João de Lisboa, piloto-mor, o foi meter entre muitas ilhas, que eram as que comumente chamam do Cômoro, (1) dizendo ele serem novamente achadas. As quais passadas com assaz perigo, por razão das grandes correntes, foi meter a nau em uns baxos pegados na Ilha de Zanzibar, onde correu muito maior risco, não indo já com Nuno da Cunha a nau de D. Fernando de Lima, por se apartar da sua esteira nas correntes das 140 140 Ilhas do Cômoro. Nuno da Cunha, vendo a nau metida em um saco, donde não podia sair, e que o piloto não conhecia a terra nem havia pessoa na nau que soubesse onde estava, mandou a seu irmão Pero Vaz, que no batel com algua gente armada saísse em terra, e com todo o resguardo visse se podia achar algum povoado de que pudesse saber onde estavam. Partido Pero Vaz da Cunha, como aquela terra era a Ilha de Zanzibar, (2) a espaço de cinco léguas foi dar com a povoação, donde por ser de 133 um rei amigo dos Portugueses trouxe alguns zambucos e pilotos da terra, que levaram a nau à cidade. (3) El-Rei recebeu a Nuno da Cunha com grande prazer, mandando-o logo prover de muitos mantimentos com que deu a vida a todos por trazer já muita gente doente. E vendo Nuno da Cunha que estava em parte tam segura e abastada, ordenou, por lhe não morrer aquela gente enferma, deixar ali té duzentos homens, e por capitão deles Aleixo de Sousa Chichorro, e por feitor Manuel Machado, criado del-Rei, que sabia bem o modo da terra, e algua cousa da língua dela, porque, havendo estado em Moçambique quatro ou cinco anos, viera ali negociar alguas vezes. Deixou também Nuno da Cunha dinheiro e fazenda a este feitor, e ordem a Aleixo de Sousa, que, como a gente estivesse em disposição, se fosse com ela a Melinde em zambucos da terra, porque ali acharia recado seu do mais que havia de fazer. Partido Nuno da Cunha de Zanzibar, a 8 de Outubro, chegou a Melinde, onde achou D. Fernando de Lima com cento e sessenta pessoas doentes, e assi a Diogo Botelho Pereira, filho de João Gago, com um navio e ua caravela, ao qual o ano passado el-Rei mandara de Lisboa a correr aquela costa desde o Cabo de Boa Esperança té o das Correntes, e assi a Ilha de S. Lourenço, em busca de D. Luís de Meneses (4) e de João de Melo da Silva, os quais se perderam vindo da Índia, e havia presunção que podia andar naquelas paragens entre os Negros; e por os ventos lhe serem contrários, tinha Diogo Botelho arribado ali na Ilha de S. Lourenço, e estava esperando tempo.

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NOTAS (1) A principal e maior ilha destas, que se chama do Cômoro, jaz entre a Ilha de S. Lourenço e a terra firme da Etiópia, tem o meio dela onze graus e três quartos de altura austral, e dezasseis léguas de comprimento e oito na maior largura. E é povoada de Cafres gentios, e Mouros baços, que são os principais senhores dela; e os do Estreito de Meca e da costa de Melinde comerceam nesta ilha, na qual há muita criação de vacas, carneiros e cabras. É terra montuosa e de serras altas, entre as quais ua o é tanto, que passa a altura das nuvens, das quais os vales desta ilha, a fazem fresca e fértil. (2) A Ilha de Zanzibar é adjacente à Etiópia, tem de altura austral seis graus, e fica no meio das ilhas de Pemba e Monfia, e todas três mui arrimadas àquela costa, entre Mombaça e Quiloa. Sam todas três povoadas de Mouros baços e Cafres gentios. Resgatam-se nela âmbar, tartaruga, marfim, cera, milho e arroz, de que são muito abundantes. Fazem-se nelas muito cairo e bons panos de seda e algodão. Cada ilha destas tem rei e todos são vassalos del-Rei de Portugal. Frei João dos Santos, no seu livro da Etiópia Oriental. A Ilha de Zanzibar descobriu Rui Lourenço Ravasco, capitão de ua nau de viagem no ano de 1503, e fez tributário ao rei dela em cem miticais de ouro, e trinta carneiros cada ano, como escreve João de Barros, na Primeira Década, liv. 7, cap. 4. (3) Francisco de Andrade, no cap. 27 da 2ª Parte, e Diogo do Couto, no cap. 1 do liv. 6 da 4ª Década, e Castanheda, no cap. 86 do liv. 7, escrevem que mandou Nuno da Cunha descobrir a terra em um batel a Manuel Machado, seu capitão da guarda; e por os negros lhe defenderem a desembarcação, mandou a Pero Vaz da Cunha, seu irmão, com cinquenta soldados, que vistos dos Negros, despejada a povoação, fugiram para o mato; e para tomarem algum, ficaram em terra escondidos dous fidalgos irmãos - Diogo de Melo e Tristão ou João de Melo - filhos do Abade de Pombeiro, os quais tomaram um mouro, que por boa sorte era piloto daqueles canais, e deles tirou a nau e a levou ao porto da cidade de Zanzibar. (4) D. Luís de Meneses, vindo da Índia embarcado na nau Santa Catarina de Monte Sinai, em companhia do Governador D. Duarte de Meneses, seu irmão, apartou-se dele na Aguada de Saldanha; e porque nela deu ao Governador ua tormenta com que esteve perdido, e D. Luís não apareceu mais, teve-se presunção que com a mesma tormenta se perderia naquela paragem. Porém ele pairou e chegou à costa de Portugal, onde foi tomado por um cossairo francês, que deu a morte a todos os portugueses, e queimou a nau, porque se não viesse a saber. Depois, no ano de 1536, andando Diogo da Silveira, que aquele seu capitão era irmão do cossairo que tomara a nau de D. Luís de Meneses. Francisco de Andrade no cap. 67, da 1ª Parte.

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141 141 134 Capítulo IV. Do que Nuno da Cunha fez em Melinde. Depois que Nuno da Cunha foi visitado de el-Rei de Melinde e provido do necessário, houve conselho com os pilotos e gente do mar se passaria à Índia; e posto que a muitos pareceu que não podia, por ser já passada a monção, todavia determinou de pôr o peito ao mar e tentar o tempo; e porque não tinha consigo mais que D. Fernando, quis levar Diogo Botelho Pereira, por a necessidade que podia ter de seus navios em qualquer porto a que chegasse, pois ia fora de tempo, fazendo fundamento de, tanto que fosse na Índia, o tornar a enviar ao negócio a que ia, pois naquele tempo em nenhua cousa podia mais servir a el-Rei, que em ir com ele. E antes que Nuno da Cunha partisse daquele porto de Melinde, que foi a 14 de Outubro, mandou a Ormuz Duarte da Fonseca em um navio de Diogo Botelho, avisando de sua vinda a Cristóvão de Mendoça, capitão daquela fortaleza, e que poderia ser invernar em Melinde, onde deixou té cinquenta doentes, e por seu capitão Jordão de Freitas, em homem fidalgo da Ilha da Madeira, filho de João de Freitas, e com ele um feitor para provimento e despesa do que havia de fazer. Mas aquela partida que Nuno da Cunha dali fez, não foi mais que forçar o tempo e aventurar-se a muito perigo para passar à Índia. E quando viu que não podia surdir mais avante que um grau e meio da Linha Equinocial da parte do Norte, a 6 de Novembro arribou a Melinde, com determinação de invernar naquela costa, onde o melhor pudesse fazer. E do caminho mandou Diogo Botelho que fosse ao lugar do Jubo, que corta a Linha Equinocial, dezasseis léguas quási aquém da cidade de Brava, onde, segundo lhe disseram, estava um bargantim, em que andavam portugueses alevantados, que da Índia, no tempo das diferenças de Lopo Vaz de Sampaio e Pero Mascarenhas, partiram para andarem às presas por aquela costa de Melinde. Aos quais mandou seguro para que se viessem a ele para servir a el-Rei, e não querendo, que por força os obrigasse a vir. Diogo Botelho os não achou, e tornou a Melinde com um navio que dali partira havia quinze dias, de que era 142 142 capitão Bartolomeu Freire, que António da Silveira, capitão de Moçambique, mandava em busca do capitão Leonel de Taíde, que também, indo para a Índia arribou por causa do tempo; e este deu por nova que pelejara com ua nau francesa em saindo de Quíloa, de que era mestre um português de alcunha Brigas, o qual ia com pensamento de passar à Índia, que de feito foi, como adiante diremos. Nuno da Cunha, vendo que Melinde não era lugar para passar nele o Inverno, nem o poder manter, por ser lugar falto de mantimentos, teve conselho sobre o que fariam; e assentou-se que desse na cidade de Mombaça e a destruísse. E o que obrigou a Nuno da Cunha acometer este feito, foram 135 alguas palavras que soltou publicamente contra o Rei de Mombaça, dizendo, que folgara de ir devagar, e não tam depressa, por passar à Índia aquele ano, para o castigar; porque, quando passou por Zanzibar, o rei daquela ilha lhe fez queixume da má vezinhança que recebia del-Rei de Mombaça, fazendo-lhe muitos danos, somente por ele ser servidor del-Rei de Portugal. E por contentar a el-Rei de Zanzibar, e não mostrar fraqueza ao de Melinde, se determinou nesta empresa. (1)E posto que el-Rei de Melinde ofereceu a Nuno da Cunha oitocentos homens, ele os não quis aceitar, porque na detença de os ajuntar perdia tempo e dava a el-Rei de Mombaça que se apercebesse melhor; aceitou, porém cento e cinquenta homens, que tinham juntos dous mouros principais da terra - a um chamavam Sacoeja e ao outro Cid Bubac - para os levar por guias naquela viagem, e também porque de um deles tinha necessidade. Porque, quando assentou de tomar aquela cidade de Mombaça, logo com os fidalgos e capitães com que teve conselho se determinou que,

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dando-lhe Deus vitória e tomando a cidade, a desse a um mouro por nome Munho Mahamede, filho de Sacoeja, Rei de Melinde, que reinava no tempo de D. Vasco da Gama, Conde Almirante, que por ali passou, em remuneração do gasalhado que nele achou, e assi por outras cousas em que ele mostrava a lealdade que tinha com os Portugueses. E como as boas novas todos folgam de as dar, foi revelado a Munho Mahamede esta determinação; pelo que foi logo a Nuno da Cunha a lhe dar as graças do que ordenava dele por os serviços de seu pai, dizendo mais que ele, tendo mais respeito ao serviço 143 143 del-Rei de Portugal que à mercê e honra que lhe queria dar, lhe manifestava que ele era pouco aparentado, porque el-Rei seu pai o houvera em ua das suas escravas, de geração cafre, e que seu irmão Cid Bubac, e sobrinho del-Rei que então reinava, ainda que era mais moço, era do sangue dos reis de Quíloa; que a ele devia dar o reino de Mombaça, porque por sua pessoa e posse poderia ser mais obedecido; e que se a ele quisesse fazer algua mercê, fosse em lhe dar o ofício de Governador do reino, no qual cargo ele confiava que havia de merecer a el-Rei de Portugal a mercê que lhe fizesse. Nuno da Cunha espantado da pouca cobiça e menos ambição deste fidalgo mouro, sendo os afectos que trastornam os mais dos homes, e sua muita prudência, porque lhe pareceu digno de outro reino, o louvou muito, e deixou a determinação daquele negócio para quando fosse senhor da cidade. Este Mahamede foi com ele com sessenta homens em um zambuco, e assi Cid Bubac em outro zambuco com outros tantos homens. Dos nossos era a gente da nau de Pero Vaz da Cunha, e a de D.Fernando de Lima, e a 136 dos dous navios de Diogo Botelho Pereira, e a do navio de Lionel de Taíde, e a do bargantim de Bartolomeu Freire, e a que levava Jordão de Freitas em um zambuco da terra com parte da gente enferma que lhe ficara, por estar já convalecida, que por todos faziam oitocentos homens, com que partiu Nuno da Cunha de Melinde, a 14 de Novembro.

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NOTAS (1) Diogo do Couto, cap. 1 do liv. 6, e Castanheda, no cap. 85 do liv. 7, dizem, que o que obrigou a Nuno da Cunha ir sobre Mombaça, foi haver mandado recado a el-Rei dela, pedindo-lhe licença para ir invernar no seu porto; e el-Rei, parecendo-lhe que era invenção do Governador para lhe tomar a cidade, mandou-se escusar, de que se ressentiu Nuno da Cunha, e determinou de o castigar, como fez.

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143 143 136 Capítulo V. Como Nuno da Cunha foi sobre a cidade de Mombaça e a tomou. Nuno da Cunha chegado de fronte de Mombaça em ua ilheta que tem de fora a barra, ua sexta-feira ao meio dia, 17 de Novembro, veo ter com ele um mouro honrado em um zambuco bem acompanhado de gente, o qual era senhor de um lugar chamado Tondo, vezinho de Mombaça, e vinha-se oferecer a Nuno da Cunha para o acompanhar naquela empresa. E porque ele se escusou de o levar, dizendo que bastava a gente portuguesa que tinha, 144 144 e que se levava de Melinde a que ele via, era por serem ofendidos del-Rei de Mombaça, por causa de serem servidores del-Rei de Portugal; ao que respondeu este senhor do Tondo, que também por essas mesmas razões ele podia ir no conto dos outros; porque, vassalo del-Rei de Portugal ele o era no ânimo, mas que fora de tam humilde fortuna, que nunca os Portugueses de sua terra se quiseram servir; e se por razão de ofensas recebidas del-Rei de Mombaça, por desejar servir el-Rei de Portugal, admitia outros, ninguém as tinha recebido por esta causa mais que ele; e que não podia ser maior ofensa, que ir el-Rei de Mombaça sobre ele, e depois que viu que por armas o não podia vencer, assentara paz com ele, e estando seguro por as condições e juramento da paz, à traição o prendera, indo ele a sua casa visitá-lo, onde o teve muito tempo em prisão, té que povos Sopangas, por razão de parentesco e amizade que com ele tinham, fizeram por seu respeito guerra a el-Rei de Mombaça. e por condição de pazes que com ele assentaram, fora ele solto da prisão, e se tornara para seu senhorio; e por memória da injúria que el-Rei de Mombaça recebera, em o ter preso em ferros, ele trazia aquela cadea de prata, que lhe ele, Nuno da Cunha, via nos pés, a qual não havia de tirar té que prendesse a el-Rei de Mombaça em outra tal prisão como ele o tivera, e que por estas razões de 137 servidor del-Rei de Portugal, e como tal ofendido del-Rei de Mombaça, o podia levar consigo. Nuno da Cunha lho concedeu, vendo a dor e mágoa com que lhe contava esta sua ofensa. A cidade de Mombaça, como dissemos na Primeira Década, quando o (1)Viso-Rei D. Francisco de Almeida a destruiu, tinha um baluarte em ua das bocas do estreito, o qual neste tempo estava muito mais forte e melhor provido de artelharia, por el-Rei ter recolhido toda a que se pode haver de naus nossas que se perderam naquela paragem, de que eram capitães D. Fernando de Monroy e Francisco de Sousa Mancias, e assi de muitas munições, porque el-Rei de Mombaça era já avisado por mouros de Melinde como Nuno da Cunha ia sobre ele. A qual nova não somente o fez prover de toda defensão nesta entrada, onde ele tinha toda sua força, mas ainda da terra firme tinha metido da cidade cinco ou seis mil frecheiros dos negros, a que 145 145 eles chamam Cafres, gente solta e leve na maneira de seu pelejar, e ousada em cometer. Depois que Nuno da Cunha surgiu na barra deste rio, posto que trazia consigo mouros de Melinde, que sabiam mui bem a entrada, por não confiar deles tamanho negócio, mandou primeiro a Pero Vaz da Cunha, seu irmão em um batel grande, e Diogo Botelho Pereira no seu com os pilotos da armada, e alguns dos mouros, que entrassem pelo rio e fossem sondando té o surgidouro ante a cidade, onde esperava entrar com as naus por serem grandes, dando-lhe aviso que era o fundo para isso; e para não haver muita detença na tornada, logo de dentro lhe fizessem sinal para deferir as velas e entrar. O que eles fizeram com assaz perigo de suas pessoas, porque à entrada e à saída foram bem servidos de artelharia, que estava sobre o rio no baluarte que dissemos; mas aprouve a

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Deus que não receberam dano algum. Feito o sinal que Nuno da Cunha esperava, pôs-se em caminho dando às trombetas e a todo outro género de instrumentos, e de envolta com grandes gritas como que davam Santiago, cometendo os inimigos. Os navios iam nesta ordem: Jordão de Freitas ia diante em um zambuco, que logo recebeu do baluarte duas bombardadas, das quais ua levou a perna a um António Dias, natural do Crato, de que logo morreu. Atrás Jordão de Freitas seguia Leonel de Taíde em seu navio; e posto que as obras mortas lhe foram desfeitas com pelouros, não perigou alguém. A Diogo Botelho Pereira, que ia após ele, mataram-lhe o seu despenseiro e quebraram-lhe ua peça da sua artelharia. E no zambuco em que iam os Mouros, quebraram a mão dereita a Cid Bubac, sobrinho del-Rei de Melinde. E as naus em que iam Nuno da Cunha e D. Fernando de Lima, como faziam maior pontaria, e delas ao baluarte não havia mais distância que um tiro de pedra, 138 foram bem varejadas da artelharia; e se não acontecera quebrar um tiro da nau de Nuno da Cunha ua peça grossa do baluarte, que embaraçou os Mouros, com que se detiveram um pouco, enquanto as naus passaram, sempre houveram de receber maior dano, porque eles eram prestes e certos no tirar por indústria de dous renegados que com eles estavam. Finalmente não ficou algua das nossas velas sem nela haver lenha e sangue, que fez este baluarte. E porém a seu pesar Nuno da Cunha foi tomar 146 146 o pouso defronte da cidade, já quási Sol posto, em oito braças de fundo. E por o espaço do dia ser pequeno, não houve mais tempo, que enquanto tinha luz, meter-se ele logo em um esquife com alguas pessoas que para isso chamou, e andou rodeando a cidade para ver por que parte a podia cometer. Chegado a ua ponta, onde os Mouros tinham uns zambucos varados, que era por onde o Viso-Rei D. Francisco entrou, quando destruiu aquela cidade, achou ali por resguardo de ua porta do muro, que era baxo, feitos uns andaimos de madeira, com alguas defensões para que os nossos não fizessem por ali entrada. E porque Nuno da Cunha não ficou satisfeito de todo do que vira por ser já boca de noute, como saiu o luar, mandou D. Fernando de Lima no seu esquife, que lhe fosse ao redor da cidade ver o sítio dela, e visse se os Mouros faziam algua obra nos lugares que ele notou, na qual ida lhe feriram o seu mestre em ua mão com ua frecha ervada, e a outro homem com outra, e segundo a força da erva de que usam, foi ventura escaparem. E porque os Mouros, além de terem vigia no que os nossos faziam, sentiram a ida do batel, toda a noute lançavam setas perdidas sobre as naus, que parecia que choviam, tantas e tam contínuas eram. E o que fazia pontaria aos Mouros, era que das mesmas naus para terror tiravam à cidade e aos lugares onde viam luzir candeas, e com o fuzilar dos nossos tiros frechavam os Mouros melhor e mais dereito. Tornando D. Fernando, teve logo Nuno da Cunha conselho, e assentou-se nele o modo que se havia de ter para ante manhã saírem em terra, e aquele espaço da noute que ficava, uns o despenderam em consertar suas armas, outros em fazer confissões e testamentos e outros em foliar e cantar, mostrando o alvoroço que tinham para vir o dia. Em rompendo a manhã, estava já Nuno da Cunha posto em terra afastado um pouco do rostro da cidade, havendo ser aquele lugar a melhor parte por que a podia combater. (2)Seria a gente com que ele cometeu esta empresa quatrocentos e cinquenta homens, em que haveria sessenta espingardeiros; e desta gente, tanto que se viu em terra, apartou cento e cinquenta 139 homens fidalgos e nobres, e trinta espingardeiros, com os quais mandou a seu irmão Pero Vaz da Cunha diante, caminho do muro da cidade, que distaria daquele lugar mil passos, e Nuno da Cunha nas suas costas com o resto da gente o começou a seguir. 147 147

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Pero Vaz, como quem desejava ganhar a honra da dianteira que lhe fora dada, posto que topou alguns mouros fora das portas da cidade, que por entre uns valos e sepulturas dos seus, de que ali havia muitas, lhe frechassem a gente, não curou de se embaraçar com eles, senão ir avante té topar com o mouro, e ali deu Santiago, onde já os Mouros eram muitos e tinham feridos dos nossos alguns com frechas de erva. Os Mouros, quando sentiram a erva dos nossos, que lavrava mais de improviso, que eram as espingardeiras e lançadas com que logo ficavam estirados, encomendavam a vida aos pés, e afastavam-se do perigo o mais que podiam; e o que os fez retirar mais sem tento foi que, como esperavam por Nuno da Cunha, por serem avisados de Melinde que ia sobre eles, tinham posto suas mulheres e filhos e a melhor fazenda em salvo, entre o arvoredo da ilha, e somente ficou algua gente frecheira, com que trabalharam o que puderam por entreter os nossos. Mas quando os viram subir por cima dos muros como aves, largaram a cidade de maneira que Pero Vaz, por sinal que já era dentro, mandou em ua casa alta arvorar ua bandeira, para que a visse seu irmão, e assi a gente que ficava nas naus; os quais, tanto que houveram vista dela, logo responderam a este sinal de vitória com grandes gritas e tiros de artelharia para maior terror dos Mouros; e assi alvoroçou os nossos que estavam em terra, que, vendo Nuno da Cunha que os não podia ter, em chegando onde Pero Vaz o esperou, deu lugar a D. Fernando que com a gente da sua nau tomasse outra rua, e Pero Vaz seguisse a que levava, e ele caminhou dereito aos paços del-Rei, que estava no alto, onde todos se haviam de ajuntar, mandando também abrir as portas da ribeira à gente do mar, que entrasse na ordenança que ele tinha assentado. E posto que o Nosso Senhor aprouve que esta cidade se entrou tam levemente, e a quis dar aos nossos sem sangue aquele primeiro dia, não somente da erva, mas de alguns votos que os Mouros tinham feitos, que não se haviam de sair da cidade, correu algua gente nossa grande perigo, entre os quais foi D. Fernando de Lima com um mouro, homem mancebo, filho de Munho Mototo, parente del-Rei e seu regedor. Este mancebo era bem desposto, e andava de amores com ua sobrinha del-Rei; e o dia de antes que os nossos chegassem, quando a cidade se despejava, saindo-se esta donzela com outras mulheres, 148 148 acertou estar o seu 140 servidor em companhia de outros homens mancebos e nobres; e perpassando por eles, disse ela: - Que fraqueza é esta, cavaleiros de Mombaça, que consentis que nós outras, mulheres, sejamos assi lançadas de nossas casas e repouso, e nos vamos meter em poder dos Negros cafres? Estas palavras assi envergonharam o seu servidor, que, chegando-se a ela, em voz alta disse: - Pois que assi me afrontas em minha face, eu juro por o amor que te tenho, que antes de dous dias me chorem muitos que me querem bem; e tu, se mo quiseres, não me terás para me dar o galardão dele. Este ajuramento, com outros mancebos, fizeram voto de morrerem por glória de algum honrado feito, e cada um se ajuntou com parceiros de que se ajudasse; e o ardil que aquele mancebo teve, foi meter-se em ua casa, e acertou de ser onde ia D. Fernando de Lima; e quando as armas e companhia que levava conheceu ser pessoa notável, em D. Fernando passando pela porta, saiu de dentro como um leão que está esperando a presa para fazer assalto, e remeteu em dous pulos, e o levou nos braços, e o derribou no chão. D. Fernando, posto que era homem de boa estatura e forçoso, e mancebo, foi este sobressaltado de maneira que, no instante dele, não pôde mais fazer que abraçar-se bem com o mouro, por lhe atar as mãos, no qual tempo por parte de cada um acudiram muitos veladores, e ninguém naquele conflito o fez melhor que um criado do mesmo D. Fernando, com cuja ajuda o mouro foi morto, e assi o foram outros em outras partes, que com o mesmo propósito cometeram

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semelhantes casos para morrer. Finalmente, a cidade foi de todo despejada dos vivos, porque os mortos ficaram pelas ruas; e quis Deus que dos Portugueses, posto que foram mais de vinte e cinco feridos, não houve algum morto, nem que corresse perigo de morte, senão Luís Falcão, filho de João Falcão, e António da Fonseca, escrivão da fazenda del-Rei, por causa da erva. E quem vira a grandeza desta cidade, a multidão do povo dela, o agro sítio em que está situada, a estreiteza das ruas, que as mulheres às pedradas a podiam defender das janelas e dos terrados, e matar os nossos, parecer-lhe-á que milagrosamente Deus a quis dar nas nossas mãos e cegar aqueles mouros para a despejarem tam levemente.

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NOTAS (1) No cap. 7 do liv. 8. (2) Escreve Francisco de Andrade, que Nuno da Cunha desembarcou junto de ua mesquita, pouco abaixo da cidade, onde havia bom desembarcadouro, o qual lhe mostrou um mouro piloto, que viera com Jordão de Freitas. E Diogo do Couto diz que este mouro veo da cidade fugido a nado; e o mesmo diz Castanheda.

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149 149 141 Capítulo VI. Do que Nuno da Cunha fez, depois de tomar a cidade de Mombaça, com alguns mouros que tornaram a ela; e das novas que lhe vieram de Simão da Cunha e de outros capitães da sua armada. Tanto que Nuno da Cunha se viu em posse de Mombaça, mandou arvorar a bandeira da Cruz de Cristo na mais alta torre das casas del-Rei, que eram grandes e fortes, a modo de castelo, e daí deu licença aos capitães que fossem dar ua cevadura à gente de armas no esbulho da cidade, o qual de cousas ricas foi pequeno, por os Mouros terem o principal posto em salvo, somente de mantimentos estava abastada, que foi a vida a muitos, por a necessidade em que estavam deles, com a perdição da nau de Nuno da Cunha; e satisfeita a gente aquele dia, como a cidade era grande e derramada, ficou Nuno da Cunha recolhido naquelas casas del-Rei, pondo os capitães em suas estâncias em cada ua das bocas das ruas, que ali vinham dar, e assi nos lugares de suspeita por onde os Mouros podiam cometer. Quando veo ao outro dia, que era Domingo, mandou a D. Fernando de Lima (1)com até duzentos homens que fosse ao baluarte da entrada do rio a lhe trazer as peças de artelharia com que os Mouros lhe tiraram, as quais eles já tinham enterradas, de que alguas não apareceram; e entre elas e outras peças que se acharam na cidade assentadas em partes per onde aos Mouros parecia que os nossos haviam de entrar, que era per onde entrou o Viso-Rei D. Francisco de Almeida, seriam por todas vinte, de que a maior parte eram de metal, em que havia algua grossas, e com as armas reais de Portugal, por serem das naus perdidas que atrás dissemos. A tornada desta ida que D. Fernando fez, vindo per fora da cidade entre uns ervaçais e lugares encobertos de moutas, em que bem poderiam estar mil homens, lhe saiu um grande golpe de Mouros às frechadas; e como o lugar era para eles defensável, por serem mui leves no saltar, e os nossos vinham 150 150 muito armados e despeados do caminho, por a grande calma que fazia, frechavam-os a seu prazer, em que D. Fernando houve três frechadas, e seu irmão D. Rodrigo de Lima outra, e assi outros, que foram mais de vinte, de que logo ali ficou morto um João Ribeiro, criado do Cardeal Infante D. Afonso, e despois faleceram alguns de peçonha da erva que os Mouros ali usavam. 142 Ao repique desta revolta, Nuno da Cunha mandou seu irmão Pero Vaz; e posto que, ao tempo que ele chegou, D. Fernando era já dentro dos muros da cidade, andavam os Mouros tam ousados por aquele dano que tinham feito, que em vendo a Pero Vaz, o foram demandar sem temor, e lhe feriram logo muitos homens; mas como os nossos espingardeiros acudiram, respondendo às suas frechadas, começaram derribar alguns, com que os outros se puseram em salvo. Ao outro dia seguinte, pela ousadia do passado, chegaram-se tanto às casas onde Nuno da Cunha estava aposentado, que começaram de as frechar, como quem provocava aos nossos que saíssem a campo; mas custou-lhe este atrevimento sangue e vidas, e aos nossos que os fizeram retirar dous mortos, e ficar Pero Vaz da Cunha com ua perna atravessada de parte a parte, e ferido D. Simão, filho de D. Diogo de Lima, e outros homens de sorte. Por esta causa mandou Nuno da Cunha a Leonel de Taíde, com gente, queimar alguas casas pela ilha por a despejar dos Mouros, que cada dia vinham dar rebates, nos quais os nossos padeciam muito dano por o grande ervaçal e arvoredo, que assi de fora como de dentro da cidade havia, que peava muito os Portugueses e encobria os Mouros para mais a seu salvo os ferirem. Polo que Nuno da Cunha mandou decepar

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algum arvoredo que fazia estas encobertas, e não consentiu que a gente fosse fora da cidade. Os Mouros, como sentiam este receo dos nossos, com mais algum atrevimento, por a cidade ser grande, em magotes saltavam dentro, e iam a alguas casas a furtar mantimento e o que sabiam ficar escondido nelas; e em três ou quatro dias que isto continuaram, sempre iam deminuídos, ficando alguns mortos pelas ruas do ferro dos nossos. Neste tempo veo Aleixo de Sousa, (2)que Nuno da Cunha deixara com a gente doente em Zanzibar, ao qual mandara chamar, para que a gente sã se achasse na tomada daquela cidade, o que ele não pôde fazer antes por tempos 151 151 contrários que teve; contudo, ainda veo em conjunção que ganhou muita honra. Porque, saindo Nuno da Cunha a cortar uns laranjais onde se vinham meter os Mouros, e estando já com os machados aos pés deles, deram-lhe rebate que pela outra parte da cidade entravam muitos mouros a roubar, contra os quais ele mandou Aleixo de Sousa com algua gente da sua, e D. Rodrigo de Lima, que ia ainda ferido da frechada do dia atrás e Diogo Botelho, os quais mataram alguns mouros e feriram muitos, que lá foram morrer entre os seus, segundo se despois soube, por cuja causa houve grande pranto entre todos, principalmente por um deles, que era dos principais, o qual de propósito se veo oferecer à morte por fazer algua boa sorte, havendo que, se neste cometimento morresse, que salvava sua alma; e a sorte que fez 143 foi chegar-se tanto a Aleixo de Sousa, que lhe deu ua cutilada per um braço, e outra acima da sobrancelha, por o qual atrevimento ele ficou morto às estocadas aos pés de Aleixo de Sousa por sua mão, com ajuda de Luís Dória, que acudiu a esta revolta. A morte deste mouro causou tanta tristeza e terror entre os seus, que afroxaram aos nossos, sem mais vir à cidade, e principalmente por lhes Nuno da Cunha mandar queimar quantos barcos havia ao redor da ilha, por os quais eles da terra firme se passavam à ilha; e assi mandou vedar um passo, per que de maré vazia passava muita gente. Estando as cousas neste estado, soube Nuno da Cunha per um zambuco que veo de Moçambique com cartas de Simão da Cunha, seu irmão, como fora ali ter, a 9 de Setembro, e como despois vieram ter ao mesmo porto Francisco de Mendoça e D. Francisco de Eça, capitães de duas naus, e que o navio de que era capitão Afonso Vaz Azambujo se perdera em ua ilha, a que os mareantes chamam de João da Nova, que dista de Moçambique quarenta e seis léguas, na qual toda a gente se salvou, e, tirados alguns mantimentos do navio, se sustentaram com eles e com grajaus, rolas e codornizes, de que a ilha é muito chea, e tam mansas que as tomam à mão. Desta gente logo foi ua batelada para Moçambique, em que ia o piloto e mestre do navio; e Simão da Cunha, tanto que estes chegaram, mandou a Nicolau Jusarte, um fidalgo 152 152 mui prático na arte de navegar, que trouxesse a outra gente que lá estava havia cinquenta e dous dias, mantendo-se da maneira sobredita. E assi soube mais Nuno da Cunha que o galeão de Bernardim da Silveira per indícios entendiam ser perdido no parcel de Sofala, como de feito se perdeu, mas não se soube onde. Nuno da Cunha ficou algum tanto consolado com estas novas, presumindo que as naus de António de Saldanha e Garcia de Sá por eles terem mais experiência da navegação e levarem bons pilotos e oficiais, iriam per fora da Ilha de S. Lourenço à Índia, dos quais despois teve nova ser assi.

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NOTAS (1) Francisco de Andrade e Diogo do Couto e Castanheda dizem que era D. Rodrigo de Lima, irmão de D. Fernando, e que nesta entrada do baluarte foi ferido de ua frechada, de que morreu. E João de Barros diz no fim do cap. 7, que foi ferido na peleja da nau de Meca, de que morreu em Calaiate. (2) Diogo do Couto escreve que, quando Simão da Cunha chegou a Mombaça, vinha com ele Aleixo de Sousa.

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152 152 144 Capítulo VII. Como Nuno da Cunha mandou convidar certos senhores mouros, que mandassem gente para povoar Mombaça; e como o rei dela se fez vassalo del-Rei de Portugal com lhe pagar páreas. Vendo Nuno da Cunha como Mombaça era ua cidade mui grande, e pouca gente que tinha, e os rebates que os Mouros lhe davam a cada dia, e como os naturais da terra nos pés eram mais leves em cometer e fugir, e usavam da erva em suas frechas, com que faziam tanto dano, de mandar vir gente da terra, leve e solta, e costumada àquele seu modo de pelejar, para com os nossos fazerem mais efeito, lançando os Mouros de toda a ilha. Sobre isso escreveu a el-Rei de Melinde, o qual logo mandou um seu sobrinho, irmão do príncipe herdeiro, com muitos mouros honrados, e até quinhentos homens, que foi para eles ua nova de muito contentamento. Porque assi por razão de competência que tinham como por saberem que a cidade ficava ainda com muita fazenda, vinham mui alvoroçados para se vingarem e fazerem proveito. Nuno da Cunha os recebeu com muita festa e grande estrondo de trombetas e atabales, para entristecer aos moradores de Mombaça. E como a cidade estava despejada, foram-se estes novos hóspedes aposentar à sua vontade, e mui contentes por acharem esbulho, que para eles era boa fazenda, da qual mandaram logo corregados 153 153 os navios em que vieram. Da mesma maneira, e com a mesma boa vontade veo per recado de Nuno da Cunha el-Rei de Montangane, que é ua pequena terra vezinha a Mombaça, e mui vexada da vezinhança dela por a amizade que connosco tinha, com até duzentos homens, por ele ser mui fraco, e desbaratado por el-Rei de Mombaça. E por a mesma causa el-Rei da Ilha de Pemba, que é fronteira a Mombaça, por ser mui abastada de carnes e refresco da terra, mandou grandes presentes a Nuno da Cunha; e outro tanto fez el-Rei de Zanzibar, e todo o contorno de Mombaça, por todos estarem ofendidos del-Rei, como de um tirano poderoso, que os queria subjugar, e todos por esta causa se mostravam contentes da sua destruição, e nossos amigos. Com estes vezinhos costumados a pelejar, e aos ares da terra, em companhia dos Portugueses, quem lhes davam ânimo, os Mouros de Mombaça despejaram a ilha, passando-se à terra firme, defronte de um passo, que de maré vazia o podiam passar a vau, e não mais longe dele que distância de um tiro de bombarda, pelo qual, como era de noute, faziam entradas alguns deles a vir buscar a suas casas do que lhes ficara nelas e mantimentos, porque morriam de fome. A este lugar, que tinha forma de arraial, mandou Nuno da Cunha Leonel de Taíde e D. Francisco de Lima; e como os Mouros tinham boa vigia, foram sentidos e fizeram menos do que esperavam; todavia, de 145 caminho queimaram na ilha alguas casa à maneira de quintãs que estavam ermas. Nestas entradas que os Mouros faziam, mais com fome que com vontade de pelejar, vieram a desavergonhar-se tanto por entrarem na cidade, que saiu a isso Pero Vaz da Cunha; e posto que no campo ficaram estirados vinte e cinco mouros, foi Pero Vaz ferido de ua frecha, que lhe atravessou ua perna abaxo do giolho, e quis Deus que não perigou, somente morreu da erva um Figueiredo, criado de D. Luís da Silveira, conde da Sortelha. Nuno da Cunha, além da ordem de pelejar e saquear a cidade, que deu aos Mouros que vieram de Melinde e aos outros que dissemos, também lhes mandou que derribassem as casas e destruíssem tudo, porque sua tenção era não deixar cousa em pé, pois tanto dano recebia daquela terra. Quando el-Rei de Mombaça entendeu que Nuno da Cunha determinava invernar nela e que os Mouros, seus vezinhos

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154 154 derribavam as casas e cortavam seus palmares, que era parte de sua vida, por ser seu mantimento, mandou dizer a Nuno da Cunha que lhe pedia que folgasse antes de o haver por vassalo del-Rei de Portugal, que destruir-lhe aquela casa de sua vivenda e berço de seus filhos, e lhe desse licença e seguro para ua pessoa de qualidade, que ele mandaria a falar-lhe de pazes. E passados alguns recados, primeiro veo a Nuno da Cunha um mouro honrado, por nome Munho Mototo, que era parente del-Rei, e assentou com Nuno da Cunha que el-Rei se fazia vassalo del-Rei de Portugal, com tributo de mil e quinhentos miticais de ouro cada ano (vale cada mitical de ouro trezentos e sessenta reais) e logo pagaria três anos; e por resgate da cidade, por a não queimarem e destruírem, daria doze mil miticais, e ficaria obrigado servir a el-Rei de Portugal, e de não recolher turco nem inimigo de Portugueses em suas terras; tornando o mouro com este concerto, em sinal que el-Rei era contente, veo com mil e quinhentos miticais em prata e ouro, dizendo que o mais veria logo, por quanto se juntava por todos os moradores da cidade, pois todos participavam desta mercê e benefício. Neste tempo veo ali ter um André Coelho, que andava levantado em um bargantim, (1)com dezassete portugueses, que Nuno da Cunha recolheu, com lhe dar perdão da culpa do levantamento, visto como se ele viera oferecer ao serviço del-Rei. E despachou a Diogo Botelho Pereira para Portugal com recado a el-Rei do que passara em sua viagem, e o estado em que ficava, e como determinava ir invernar a Ormuz, o qual Diogo Botelho partiu a 27 de Dezembro de 1528, e chegou a Lisboa em Junho de 1529, de quem el-Rei soube as novas da Índia e da jornada de Nuno da Cunha.

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NOTAS (1) De outro levantado faz menção Francisco de Andrade no cap. 48, da 2ª Parte, o qual se chamava Pero Peixoto, que, indo Nuno da Cunha de Melinde para Mombaça, o achou com catorze portugueses em ua fusta recolhido em ua enseada daquela costa, e perdoadas, os levou consigo.

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155 155 146 Capítulo VIII. Do que fizeram os Mouros de Mombaça nos dias que se tratava a paz; e como Nuno da Cunha, ainda que dos Portugueses morriam muitos, se não quis ir da cidade, e a destruiu e queimou. Naqueles primeiros dias em que se tratava da paz, confiados os Mouros na prática dela, vinham à cidade com alguas cousas da terra firme a vender aos nossos, e conversavam os Mouros que de fora ali eram vindos; mas despois que Nuno da Cunha apertou com eles, que comprissem o que tinham prometido, apartaram-se da comunicação dos Portugueses; e passados alguns recados entre Nuno da Cunha e el-Rei sobre este caso, tomou a mandar-lhe ua correição por toda a ilha, derribando-lhes casas e queimando palmares; e porque eles acudiram logo a este dano, em recompensa dele houve Nuno da Cunha por bem de lhe abater o preço dos doze mil miticais em sete, de que logo el-Rei mandou quinhentos; e para pagarem este dinheiro, mandou alguns homens principais à cidade, que vissem as casas nobres que estavam em pé, para por seus donos fazerem o lançamento do que haviam de pagar; e acharam que estavam ainda por derribar mais de novecentas casas principais, lamentando com muitas lágrimas a ruína das outras. Mas com a comunicação que tiveram com os Mouros, por os quais souberam que a maior parte dos Portugueses estavam doentes, esfriaram do negócio a que vinham, fazendo conta que Nuno da Cunha por fugir o perigo da doença despejaria a cidade. E na verdade os nossos estavam em estado para eles terem esta esperança. Porque homens que de dia e de noute nunca deixavam as armas e dormiam pouco, e comiam somente os mantimentos da terra, que era arroz e milho; e sendo o lugar naqueles meses doentio aos naturais, quanto mais aos estrangeiros, e mais vindo já a maior parte deles doentes do mar, não podiam deixar de cair em grandes infermidades; e o que pior era, que só a natureza tinham por mezinha, carecendo dos remédios a que eram acostumados em tais tempos. 156 156 E assi morreram de doença mais de duzentas pessoas, de que os principais foram: Pero Vaz da Cunha, irmão de Nuno da Cunha, e o menor de seus irmãos, mancebo de grandes esperanças, muito esforçado, humano e ordenado de outras muitas virtudes; D. Pedro da Silva, filho de D. Filipe Lobo; Henrique Furtado de Mendoça, filho de Afonso Furtado; D. Rodrigo de Noronha, filho de D. Sancho; Gonçalo Pereira, Jorge Brandão, filho de Duarte Brandão; Álvaro Pestana, escrivão da Moeda de Lisboa, que por amizade que tinha com Nuno da Cunha se foi com ele à Índia; Gaspar Moreira, estribeiro pequeno que fora del-Rei, e um irmão seu e outros homens desta qualidade criados del-Rei; com as quais mortes, que assombraram a gente, foi 147 Nuno da Cunha por vezes requerido pelos fidalgos que com ele estavam, que a vida dele importava mais ao serviço del-Rei que a de todos; que lhe pediam que pusesse sua pessoa em lugar menos enfermo, e eles ficariam ali com a ordem que ele mandasse. Ao que Nuno da Cunha respondeu que Deus por eles lhe dera aquela cidade, que a não havia de desamparar; que apercebido estava para o que Deus dele dispusesse; e que conta daria ele a Deus e a el-Rei e à sua honra, pondo-se ele em salvo, deixando-os a eles no perigo? E assi com muito ânimo e constância esperou todos os sucessos do tempo. E porque os Mouros por aviso dos que vieram sobre as pazes que estavam na cidade sabiam destes requerimentos que se faziam a Nuno da Cunha, tinham esperança que o poderiam mover algum dia, e não tomavam conclusão. E para os espertar mandou Nuno da Cunha cometer a estância de Munho Mototo, que estava mais por todo passo da ilha para a terra firme. Ao que foi D. Fernando de Lima, que já era são das feridas que houvera, com duzentos homens, porque a mais

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gente toda andava enferma, e ficava em guarda da cidade. Porém, porque os Mouros foram avisados por um escravo da terra, não houve efeito esta sua ida; mas de outra vez que ele foi ter a outra parte contra a terra de Melinde, de que os Mouros estavam descuidados, deu em um lugar, onde matou muitos e trouxe alguns cativos. Chegado o fim de Janeiro de ano de 1529, veo ter a Mombaça um português por nome Pantalião Pinto, que veo da Índia em ua atalaia com mercadoria a Melinde, o qual deu relação a Nuno da Cunha das diferenças entre Lopo Vaz de Sampaio e Pero Mascarenhas. Após este veo Bastião Ferreira, alcaide-mor de Goa, 157 157 em um navio, que lhe deu nova como António de Saldanha e Garcia de Sá passaram ambos à Índia, pelos quais Lopo Vaz de Sampaio e Afonso Mexia, vedor da Fazenda, souberam da sua vinda, e com suspeita que podia invernar naquela costa, o mandavam a ele com cartas que lhe deu. Daí a poucos dias, veo de Ormuz ua caravela, de que era capitão um Pedralvares do Soveral, o qual mandava Cristóvão de Mendoça, capitão daquela cidade, a visitar Nuno da Cunha com refresco e cousas para doentes, que deu vida a muitos, que das febres andavam mui maltratados, sendo mortos quási no mesmo tempo de um desastre mais de vinte e cinco homens, em que entrava Leonel de Taíde, de ua frechada, e D. Rodrigo ficou ferido de outra, de que morreu despois em Calaiate. E o caso foi que, sendo Nuno da Cunha avisado que os Mouros esperavam naus de Cambaia, que com mercadorias vinham fazer resgate a Mombaça, por haver à mão ua nau que ali veo ter, mandou lá dous batéis grandes com espingardeiros: em um deles ia D. Rodrigo de Lima, e no outro Leonel de Taíde. Esta nau com temor deles e de um bargantim que foi diante, de que era capitão André Coelho, se meteu em um estreito, que causou a morte e estes dous fidalgos e aos que com eles iam. E assi aos do bargantim, por ser o estreito tam estreito, que os 148 Mouros das ribanceiras da terra os frechavam, principalmente de ua tranqueira que fizeram de pés de palmeiras, onde puseram certas peças de artelharia. E vendo os nossos que não podiam tirar dali a nau, nem menos ardia com fogo que duas vezes lhe puseram, a deixaram. (1) E indo já os batéis bem frechados, para maior desastre com a maré vazia ficou o bargantim atravessado, onde a gente pereceu às frechadas, escapando somente um remeiro do bargantim, que veo dar nova da desgraça. Passados estes trabalhos, teve Nuno da Cunha conselho sobre o que faria daquela cidade, por ter já dito que, dando-lhe Deus, a havia de entregar a Munho Mahamede, sobrinho del-Rei de Melinde, por gratificar os méritos de seu pai na lealdade que sempre tivera; e por as razões que com ele passou, que a entregasse antes a Cid Bubac, seu irmão. E porque este pedia a Nuno da Cunha cento e cinquenta homens portugueses, porque sem eles não se atrevia a defendê-la, 158 158 assentou Nuno da Cunha de a queimar antes, visto quanto dano lhe podia causar esta gente. Chegado o tempo da moução para poder partir, mandou repartir a cidade entre todos os Mouros, que eram vindos em ódio del-Rei dela, os quais, como estavam magoados dos seus moradores, para destruir tudo enchiam os vãos das casas de madeira e palha das outras casas da gente pobre, e punham-lhe o fogo de maneira que, com a força dele, caindo a maior parte da cidade, ficou toda feita cinza. Na entrada de Março, (2)porque o requeria já o tempo, mandou Nuno da Cunha a João de Freitas em um batel grande das naus com peças de artelharia ao passo da ilha a entreter os Mouros, que não passassem a ela, a dar nas costas dos nossos quando quisessem embarcar; e enquanto lá esteve João de Freitas, mandou meter muita lenha nas casas del-Rei onde ele pousava, e dar-lhe fogo, e assi por muitas outras da cidade, onde ainda não chegara, cujo ruído, fumaça e estrondo da ruína dos edifícios tinham ua semelhança do inferno. Nesta conjunção se embarcou Nuno da Cunha, para Melinde, sem contraste nem impedimento algum, com os portugueses que escaparam da guerra e das infermidades de Mombaça, e com a gente de Zanzibar, de Pemba e dos outros

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lugares, que ali eram vindos. Outros da mesma costa o vieram ver, dizendo que todos queriam ser vassalos del-Rei de Portugal; e o mesmo fizeram os moradores da cidade de Brava, os quais, tanto que Nuno da Cunha chegou a Melinde, lhe mandaram embaxadores de suas cabildas, 149 com setecentos e cinquenta miticais de ouro em pagamento de páreas de três anos, e que cada ano lhe pagariam duzentos e cinquenta, com mais outras obrigações, o que lhes Nuno da Cunha folgou de aceitar por razão de já serem destruídos do tempo que seu pai Tristão da Cunha por aquela cidade passou, de que Nuno da Cunha, que com ele ia, foi testemunha. (3)Aqui em Melinde veo ter seu irmão Simão da Cunha, que invernara em Moçambique. (4)

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NOTAS (1) Esta nau foi, entrada dos nossos com morte de muitos mouros, que a defenderam esforçadamente, na qual acharam muita fazenda, que com a pressa de a recolherem se descuidaram da maré que vasava, com que os batéis e bargantim ficaram em seco, sobre os quais acudiram tantos mouros, que às frechadas mataram todos do bargantim, que ficou mais perto da terra. Os batéis não receberam tanto dano por estarem mais afastados, e com a enchente da maré se saíram com alguns mortos e muitos feridos. Francisco de Andrade, 2ª Parte, cap. 48. (2) De 15 Março por diante começam nesta costa a ventar os ponentes, que é a monção para cair dela e navegar a Ormus. (3) Simão da Cunha, D. Francisco de Eça e Francisco de Mendoça, capitães de três naus da armada de Nuno da Cunha, que invernaram em Moçambique, partiram dali com a monção dos ponentes com quatrocentos homens menos que lhe morreram naquela cidade. E diz Diogo do Couto que chegaram em fim de Março a Mombaça, onde acharam a Nuno da Cunha de caminho para Ormuz. E o mesmo escreve Castanheda, liv. 7, cap. 101. (4) A destruição desta cidade, escreveu João de Barros no cap. 3, do liv. 1, da 2ª Década.

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159 159 149 Capítulo IX. Como Nuno da Cunha assentou de ir a Ormuz, e do que fez antes que partisse de Melinde; e do que ordenou em Calaiate e Mascate, té chegar a Ormuz. Em Melinde teve Nuno da Cunha conselho com os capitães, mestres e pilotos se faria sua viagem em dereitura à costa da Índia, por o tempo ainda parecer algum tanto verde; e foi assentado por todos que era cousa mui perigosa cometer aquela costa naquele tempo com tamanhas naus, que a mais segura viagem era ir invernar a Ormuz. Assentada assi a jornada, despediu dali Bastião Ferreira com cartas para Lopo Vaz de Sampaio e Afonso Mexia, em que lhe dava conta da sua partida para Ormuz, donde logo, como a monção viesse, se partiria, e que sua tenção era naquele mesmo ano ir a Dio; que lhes pedia que tivessem feito todos os aperbecimentos, assi de navios de remo como de munições e mantimentos, por se não deter nisso, quando fosse com outras cousas que importavam àquele negócio. Bastião Ferreira chegou a Goa em Maio com aquelas cartas, e Nuno da Cunha partiu de Melinde a 3 de Abril, deixando primeiro posta a terra em paz e presos dous homens que andavam levantados a roubar, com ordem que os enforcassem; porém eles se acolheram antes da sua partida para os Mouros. E a Luís de Andrade mandou em ua caravela, de que era capitão, a um lugar perto dali, que se chamava Jubo, em busca de um galeão de Rumes que viera ter àquele porto com tempo, o qual fez Luís de 150 Andrade dar à costa pelejando com ele, e lhe tomou muita pimenta que trazia de Jaua e levava para o Estreito, e lhe matou gente, não sem sangue da sua. Deixou também o Governador em Melinde Tristão Homem, filho de Pedro Homem, estribeiro-mor que fora del-Rei D. Manuel, com oitenta homens enfermos, e que, como viesse Setembro, se embarcasse com eles para à Índia, os quais defenderam a el-Rei de Melinde não ser destruído por el-Rei de Mombaça, que logo partido Nuno da Cunha, veo contra el-Rei de Melinde. E nesta sua defensão se acharam 160 160 entre os Portugueses com Tristão Homem estas pessoas principais: Jordão de Freitas, Duarte de Miranda, Bastião Monteiro, Bertolomeu Freire, feitor, e João de Matos. Partido Nuno da Cunha de Melinde, passou pela Ilha de Socotorá, onde fez sua aguada e deu provisões ao Xeque dali para a navegação de seus navios, por ele ser fiel amigo dos Portugueses. Passados três dias que se deteve naquela ilha, com bom tempo chegou a 10 dias de Maio a Calaiate, que é o primeiro lugar do reino de Ormuz na costa de Arábia, onde soube o desbarato das fustas que fez Lopo Vaz de Sampaio na enseada de Cambaia, que atrás escrevemos e achou Aires de Sousa de Magalhães, sobrinho de Lopo Vaz, que por seu mandado, como capitão-mor do Mar de Ormuz, andava com ua fusta e dous bargantins, guardando aquela costa infestada dos nautaques, que às vezes salteavam nela os navios que vinham da Índia. Estava também em Calaiate por feitor Gomes Ferreira criado do duque de Bragança, o qual tomava as fianças aos Mouros, que carregavam de cavalos para Goa. E porque o guazil e os Mouros da terra se vieram queixar a Nuno da Cunha que recebiam dela alguns agravos, mandou ele lançar pregão, que qualquer pessoa que tivesse recebido agravo algum de português, se viesse a ele, que o mandaria desagravar, como fez, mandando pagar a muitos cousas que tinham mal levadas, e aos que eram oficiais del-Rei suspendeu de seus ofícios, e os levou presos a Ormuz, o que fez grande espanto nos Mouros por não terem visto aquele castigo, no que deu esperança a todos, que à falta de justiça não haviam de receber mal e dano; e nisto se deteve três ou quatro dias.

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Ao mesmo lugar veo ter D. Fernando de Eça, que ia para Ormuz por capitão-mor dos navios que andam naquele trato para a Índia, os quais Nuno da Cunha levou consigo a Mascate, onde, chegando a 19 de Maio, foi logo visitado do guazil daquela vila, que se chamava Xeque Raxit, que era o que no tempo do levantamento de Ormuz ergueu bandeira por el-Rei de Portugal e livrou muitos dos nossos. E porque ele tinha morto Raix Delamixá, irmão de Raix Xarafo, pela maneira que atrás contamos, (1)desde então té a chegada de Nuno da Cunha trabalhava Xarafo por o haver em Ormuz e 151 vingar-se dele; e quando por suas manhas 161 161 não pôde, disse a el-Rei que este lhe devia mais de vinte mil xerafins, por não haver dado conta havia muito tempo; porque qualquer via que fosse o fizesse vir a Ormuz, o que não quis Xeque Raxit fazer, e se dispôs a padecer tudo o que lhe viesse, antes que ir lá; porque sabia que, indo, não havia de viver muitos dias. Disto e de outras cousas deu ele conta a Nuno da Cunha, dizendo que se vinha meter preso em suas mãos, e assi a seus filhos e fazenda. E que debaxo de seu amparo iria a Ormuz e daria sua conta, a qual ele sempre disse que queria dar, e não queria que a desse outrem por ele; mas porque queriam mais tirar-lhe a vida que tomar-lhe conta, havia deixado de ir a Ormuz; e que como Deus sabia sua inocência e não ser ele merecedor de morte, o provera com Sua Senhoria vir por ali para o livrar de seus inimigos e gratificar os serviços que tinha feitos a el-Rei de Portugal. Nuno da Cunha, por já estar informado da lealdade deste Xeque Raxit, o consolou e segurou de seus temores, prometendo-lhe de lhe guardar justiça e fazer mercê em nome del-Rei, seu Senhor, por os serviços que lhe fizera. E porque lhe pareceu melhor não ir a Ormuz com tantas naus grossas, entregou-as a D. Fernando de Lima com mil homens que nelas podiam ficar, que mais serviriam ali onde estavam para favor daquela costa; e ele se foi caminho de Ormuz com todos os fidalgos e capitães que não tinham cargo das naus que ficavam. Sua chegada foi mui festejada e celebrada, porque entrou com mais pompa na cidade do que té então entrara Governador, com sua guarda de alabardeiros diante, vestidos de sua libré, com trombetas, atabales e charamelas, no que deu muito contento a el-Rei e à gente da cidade. Os fidalgos que levava iam vestidos de várias sedas, e tam bem ornados de espadas, punhais, cadeas, pontas, e arreos de ouro, que parecia que iam mais para dar àqueles persas que para tomar deles, o que em tanta abundância eles não tinham visto. E como em chegando sucedeu caso, por que lhe foi necessário pôr em efeito alguas cousas mais prestes do que ele levava em regimento, convém fazermos um pequeno discurso das cousas que eram passadas em Ormuz depois do levantamento dele, e do estado em que estavam, para se melhor entender o que Nuno da Cunha fez.

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NOTAS (1) Déc. 3, livr. 7, cap. 6.

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162 162 152 Capítulo X. Do que era passado com Xarafo, guazil de Ormuz, e como foi preso por cartas del-Rei D. João, que Manuel de Macedo levou deste Reino; e do que Nuno da Cunha passou com el-Rei de Ormuz. Depois que Lopo Vaz de Sampaio deixou Ormuz a Raix Xarafo restituído no seu ofício de guazil e amigo com Diogo de Melo, capitão daquela fortaleza, como atrás dissemos, (1)cometeu Xarafo tais cousas na administração do seu guazilado, que por elas mandou Lopo Vaz a Ormuz a Manuel de Macedo com provisões para o prender e dar o guazilado a Raix Hamed. Manuel de Macedo chegou a Ormuz, prendeu Xarafo e o levou a Goa, onde o Governador, o mandou meter na torre de homenagem, e depois lhe deu a cidade por prisão. Mas Xarafo, usando de suas cautelosas manhas, se livrou de todas as culpas, e Lopo Vaz o tornou a mandar a Ormuz, confirmando-lhe de novo o cargo de guazil, em companhia de Cristóvão de Mendoça, que ia a servir de capitão daquela cidade na vagante de Diogo de Melo. Nesta viagem de maneira grangeou Xarafo a amizade de Cristóvão de Mendoça, que, chegando a Calaiate, usando de seus poderes em favor de Xarafo, mandou um recado a el-Rei de Ormuz ordenado por Xarafo, de que resultou o mesmo dia que Cristóvão de Mendoça chegou ao porto de Ormuz, matar el-Rei Hamed, guazil que o servia em ausência de Xarafo, sendo um homem de quem se ele havia por bem servido por sua lealdade e inteireza, e de quem todos os Portugueses recebiam mui boas obras. A causa desta morte dizem que foi Xarafo; porque foi o recado que à sua instância mandou Cristóvão de Mendoça a el-Rei, que para ele viver, lhe foi forçado matar a Hamed. Porém el-Rei, calando esta causa, dava por razão da morte de Hamed descortesias que lhe dissera, e que o quisera matar quando ouviu dizer que Raix Xarafo desembarcava, e que havia de servir de guazil. 163 163 Sabendo el-Rei D. João estas cousas que em Ormuz passavam e outras que contra Cristóvão de Mendoça e Xarafo se punham, encomendou a Nuno da Cunha, quando deste reino foi, que tirasse de todas devassa. E querendo-o ele fazer, havendo quatro dias que a Ormuz chegara, lhe deu um homem ua carta de Manuel de Macedo, dizendo que ficava em casa del-Rei e lhe manifestou de palavra o segredo que vinha na carta, que era ir prender ao paço del-Rei a Raix Xarafo, que lhe mandasse gente de socorro para o fazer. Da nova e vinda de Manuel de Macedo ficou sobressaltado Nuno da Cunha; e a grande pressa, por não acontecer algua desordem, entrou na fortaleza e 153 mandou a Cristóvão de Mendoça, capitão dela, que de sua parte fosse às casas del-Rei, e lhe chamasse Raix Xarafo, e que em toda maneira não viesse sem ele; e havendo algum impedimento por parte del-Rei, que secretamente lho avisasse, e para isso mandou com ele o secretário Simão Ferreira, e algua gente. Xarafo somente por palavra do secretário se foi com ele, sem nenhum assombramento, ficando Cristóvão de Mendoça e Manuel de Macedo falando com el-Rei. Esta novidade de Manuel de Macedo vir prender Raix Xarafo procedeu de ele o trazer preso de Ormuz à Índia, como atrás dissemos; (2)e parece que naquela viagem veo Xarafo contando a Manuel de Macedo e confessando culpas alheas, e não as suas. E quando Manuel de Macedo veo a Portugal o ano de 1528 com Pero Mascarenhas, porque ele se achara presente às diferenças que Pero Mascarenhas tivera com Lopo Vaz de Sampaio, chegando às Ilhas Terceiras, foi eleito para vir a el-Rei diante das naus com as novas de elas ali serem chegadas, por ainda a armada, que as havia de ir buscar, não ser lá, e para dar conta a el-Rei do estado das cousas da Índia, porque tinha ele muitas qualidades para isso, e saber bem as cousas daquelas partes, por haver andado muito tempo

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nelas. E além disso, tinha ua soltura em as contar, segundo ele queria; e com ser bom cavaleiro, não tinha no que dezia primor de segredo nem resguardo da honra alheia, de maneira que por ele ficou el-Rei cheo de cousas de Ormuz; e prometeu a Sua Alteza que lhe traria preso a Raix Xarafo, e dele poderia ter informação de todas as cousas que capitães cobiçosos tinham feito, 164 164 e lhe deu esperanças que por o mesmo Xarafo podia haver ua grande soma de dinheiro. Cheio das informações, mandou el-Rei a Manuel de Macedo em Setembro com grandes poderes, isento do Governador da Índia e do capitão de Ormuz, a fazer aquela obra, não parecendo a el-Rei que Nuno da Cunha neste tempo podia estar em Ormuz. Este favor que Manuel de Macedo levou del-Rei, como ele era homem solto e descoberto e não muito atentado, indo mui encarregado de não revelar o segredo da sua jornada, primeiro que partisse publicou ao que ia; e, chegado a Moçambique, soube como Nuno da Cunha ia caminho de Ormuz. Dali foi fazer sua aguada a Socotorá, e no cabo de Rossalgate, que é na costa de Arábia, deixou o navio escondido, e em ua terrada de terra se embarcou, e em um dia e ua noite chegou a Ormuz a 7 de Junho, e se meteu em casa de um criado seu, e daí saiu a outro dia pela cidade sem dar conta a Nuno da Cunha, e foi a casa del-Rei fazer o que acima dissemos. E posto que a muitos pareceu que o Governador o deveria castigar, por cometer aquele negócio sem lhe dar conta, deixou o castigo para el-Rei lho dar em Portugal, e somente lhe disse alguas palavras de repreensão. 154 Entrando Raix Xarafo na fortaleza, foi metido em ua torre (3)e entregue a Manuel de Macedo, e Nuno da Cunha foi visitar a el-Rei com sua guarda de alabardeiros e fidalgos, todos vestidos de festa. El-Rei também se pôs de festa em ua sala grande alcatifada de riquíssimas alcatifas, segundo o uso dos reis mouros da Pérsia, por esta ser a sua tapeçaria. E tanto que Nuno da Cunha chegou à porta, ele se levantou de ua cadeira lavrada de madre pérola, em que estava assentado, e o veo tomar à porta. Feitas suas cortesias, ambos mão por mão se foram assentar el-Rei em sua cadeira e Nuno da Cunha em outra que para ele estava posta junto de el-Rei. Por festa tinha el-Rei ua cabaia de beatilha mui delgada, por terem ser esta mais nobre veste para os reis que se fosse de brocado, e cingindo com um cinto de ouro e pedraria, e um terçado da mesma sorte mui rico, e os dedos cheos de anéis com ricas pedras; na cabeça tinha um carapução dos da divisa do Xá Ismael, com um penacho de penas dos pássaros 165 165 de Maluco, com muitas pérolas; os pulsos dos braços e dos pés, segundo seu uso, tinha cobertos de braceletes de ouro e pedraria, e os pés descalços sobre um coxim de veludo de Meca. Depois que ambos foram assentados, mandou Nuno da Cunha assentar em uns bancos, que para isso estavam ordenados, a Cristóvão de Mendoça, capitão da fortaleza, e a seu irmão Simão da Cunha, por capitão-mor do Mar, e assi outros fidalgos principais, segundo suas qualidades. Passadas as primeiras palavras de se verem um ao outro, Nuno da Cunha lhe deu as cartas, que levava del-Rei D. João, por que lhe notificava mandar Nuno da Cunha àquelas partes por Governador delas. E assi lhe deu outras, que levava Manuel de Macedo, em que lhe fazia a saber que, por comprir a seu serviço ao bem daquele reino de Ormuz, ele mandava vir a Portugal Raix Xarafo, seu guazil. E que, além de Nuno da Cunha, por bem de seu ofício, ser a isso obrigado, ele particularmente lhe encomendava as cousas dele, Rei de Ormuz, e que tratasse sua pessoa e o contentasse em tudo como a seu filho, porque teria disso muito prazer; e que com esta confiança ele, Mahamud Xá, o podia requerer a Nuno da Cunha, porque ele o faria assi por seu contentamento, bem, paz e assossego do Reino.

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NOTAS (1) Liv. 1, cap. 4. (2) Liv. 1, cap. 7. (3) A prisão de Raix Xarafo escreve mui particularmente Francisco de Andrade no cap. 50, da 2ª Parte.

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165 165 155 Capítulo XI. Do que Nuno da Cunha passou com el-Rei de Ormuz, e como pesadamente aceitou o que lhe deu, e o mandou entregar ao feitor del-Rei de Portugal. Lidas estas cartas del-Rei de Portugal pelo secretário Simão Ferreira, e interpretadas por Francisco Munhoz, língua, Nuno da Cunha pelos termos delas se começou oferecer a el-Rei a tudo o que fosse bem e serviço seu, e lhe pediu não tivesse pejo de lhe dizer se tinha recebido desprazer ou escândalo de algua pessoa, porque ele proveria nisso como el-Rei, seu Senhor, lhe mandava. E que, quanto à vinda de Raix Xarafo a Portugal, o não devia ter por estranho, nem lhe desse suspeita 166 166 algua que era em dano e ofensa dele, Mahamud Xá, antes era por ser bem e acrescentamento de seu Estado e assossego daquele reino, por ter el-Rei, seu Senhor, informado quam inquieto e tiranizado estava. Com estas palavras de esforço e consolação também lhe disse como tinha sabido que ele matara a Raix Hamed, seu guazil e governador daquele Reino, por autoridade de el-Rei de Portugal, seu Senhor; a qual morte, não sendo por via judicial, como costumavam fazer os príncipes e reis cristãos, se tem entre eles por cousas mui criminosa, a que são obrigados dar conta, não somente a Deus, mas ao Mundo e a algum Senhor, se o há na terra sobre eles. E por aquela morte ser mui pública e de que estava o Mundo esperando a punição dela, ele, como Governador da Índia, que provia em todos os bens e males dela, em pessoa del-Rei, seu Senhor, como ministro de sua justiça, havia a ele, Rei Mahamud Xá, por condenado por matador daquele Governador do Reino de Ormuz, que era del-Rei D. João, seu Senhor; que se ele tivesse alguas causas justas e manifestas, que as mostrasse, porque diante daqueles capitães e fidalgos, que eram presentes, ele proveria nisso como compria a bem da justiça e serviço del-Rei, polo que sem temor podia dizer o que quisesse. El-Rei lhe respondeu que, quanto às ofertas que lhe fazia por carta del-Rei, seu Senhor, ele as recebia como de seu Rei e Senhor; e que quanto à morte de Raix Hamede, ele o matara, porque o quisera matar a ele, e pois tivera tam justa causa, não lhe devia estranhar sua vida com morte de quem lha queria tirar, e mais sendo seu vassalo o oficial, cujo ofício era olhar por sua pessoa e não procurar sua morte, e por suas mãos. Nuno da Cunha, por o não afrontar muito, lhe disse que ele tinha sabido que, ao tempo que Raix Hamede fora morto, não tinha outra arma 156 mais que ua faca, que costuma todo homem trazer para cortar o bétele, (1)e que ele, Rei, estava armado e apercebido, como cousa que fora cuidada e não acidental. E que por quanto as mortes dos homens são para se sobre elas fazer todo exame, el-Rei não houvesse por mal proceder nisso com devassas e testemunhas, segundo as leis del-Rei, seu Senhor. Nuno da Cunha, posto que el-Rei dizia que ele fora autor desta morte, e que a não fizera constrangido por outrem, senão per sua própria vontade, 167 167 bem entendeu nele, posto que Xarafo estava preso, que temia dizer quem o movera a isso. Mudada a prática em outras cousas, querendo-se Nuno da Cunha despedir, mandou el-Rei trazer um cinto de ouro de pedraria, e um terçado e adaga da mesma sorte, e alguas peças de brocado e panos ricos de seda, e os deu a Nuno da Cunha, pedindo-lhe que tomasse aquela pouquidade por seu amor, por não perder o costume dos reis daquelas partes. E porque Nuno da

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Cunha se escusasse com boas palavras, ele se houve por injuriado disso, com que lhe conveo aceitar as peças; e a todos os fidalgos deu el-Rei as suas, segundo as qualidades das pessoas. Com isto se despediram dele e à porta achou Nuno da Cunha um fermoso cavalo, selado, e enfreado, e ornado ao uso dos Persas, que lhe também el-Rei mandou apresentar, o qual cavalo, e assi todas as outras peças, ele mandou entregar na feitoria e carregar em receita sobre o feitor, segundo o seu regimento, que era não tomar para si os presentes que lhe dessem.

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NOTAS (1) O bétele, a que os Malavares chamam betre, os Guzarates e Decanins pão, os Malaios ciri, e os Arábios tambul, é ua árvore que, arrimada a outras, trepa por elas como a era, cujas folhas são mais compridas e mais estreitas na ponta que as da larangeira. É o sumo destas folhas aromático, cordial, confortativo do estomago, resolutivo das ventosidades, restaurativo dos doentes que se bolem, e faz bom anélito. Usam das folhas do bétele todas as gentes orientais, com areca (que é um fruto semelhante à noz moscada) e pouca quantidade de cal feita de cascas de ostras, e os ricos lhe misturam cânfora de Bornéu e alguns calambaque e almíscar ou âmbar. Garcia de Orta, no livro dos Simples e drogas da Índia.

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167 167 157 Capítulo XII. Como Nuno da Cunha entendeu na devassa contra Raix Xarafo; e do que fez sobre a sua vinda a Portugal, e condenou a el-Rei de Ormuz por a morte de Raix Hamed. Feita aquela primeira visitação a el-Rei, começou Nuno da Cunha entender nas cousas do governo da terra. E porque Raix Xarafo se havia de vir para este Reino, quis logo entender na devassa que el-Rei mandava tirar a mandar por Manuel de Macedo, como mandou. E como com esta devassa também tirou a da morte de Raix Hamed, em que achou el-Rei o matar sem causa justa, somente induzido e por comprazer a outros que isso ordenaram, em modo de setença o condenou em pena de dinheiro té a mercê del-Rei de Portugal. A pena foi acrescentar-lhe que pagasse mais em cada um ano de páreas quarenta mil xerafins, além dos sessenta que pagava, e a taxação deste acrescentamento ia de cá do Reino por as informações que el-Rei tinha de quanto aquele Reino rendia 168 168 e que tudo o que sobejava das despesas ordinárias que el-Rei tinha, lhe roubavam seus guazis. Mas Nuno da Cunha, como prudente, por menos escândalo, quis dar a entender que o fazia por via de pena daquele excesso que el-Rei fizera. E isto té que el-Rei, seu Senhor, provesse nisso, visto como a pena daquele crime de morte por outra via se não podia executar na pessoa del-Rei de Ormuz; o que ele sofreu por mais não poder, e conhecendo que o excesso merecia muito castigo. O que dos Mouros foi mui louvado, vendo que entre Portugueses havia tanta justiça, que nem os reis ficavam sem pena dos crimes que cometiam contra seus vassalos. Além disto começou de entender nos agravos que eram feitos a Diogo de Melo de alguas sentenças em que o condenaram mal, sendo acusado por Xarafo, o qual, tanto que viu Diogo de Melo fora do cargo de capitão, entre outras cousas justas, demandava outras injustas, com que lhe tinham tomado muita fazenda. Quando os Mouros viram que Nuno da Cunha administrava justiça sem respeito de pessoas, e que logo dava à execução os danos e perdas que algum tinha recebido, ousadamente começou cada um requerer contra aqueles de que tinham recebido agravos. Com que Ormuz ficou tam acreditado, que por mar e por terra corriam as mercadorias mais seguramente, e os moradores houveram que podiam estar seguros de muitos roubos e ofensas que nos anos atrás recebiam, o que se viu logo no rendimento das alfândegas e outros dereitos da terra. El-Rei de Ormuz, quando viu tanta inteireza e prudência de Nuno da Cunha, assi na administração da justiça como no governo da terra, e que nele não havia cobiça, tomou ousadia de lhe requerer que lhe fizesse justiça 158 de Raix Xarafo, porque, rendendo seu Reino mais de trezentos mil xerafins, tirados os sessenta mil que pagava de páreas, e que às vezes se ficavam devendo de um ano para outro, tudo consumia em peitar a quem lhe sofria seus roubos; que o obrigasse a dar razão dos rendimentos do seu Reino. Ao que Nuno da Cunha respondeu que esta era ua das principais causas por que el-Rei, seu senhor, o mandava ir a Portugal, onde Sua Alteza lhe mandaria dar o castigo que merecesse; e que por Manuel de Macedo podia mandar as queixas que dele tinha, porque ele, Nuno da Cunha, não havia de entender em mais que 169 169 em tirar devassa das cousas daquela cidade e que pertenciam aos capitães e oficiais del-Rei, seu senhor, e castigar aqueles que o merecessem. E quanto às que pertenciam a ele, Rei Mahamud Xá, que também as podia requerer contra ele, porque entenderia nelas, somente as de Xarafo remetia a

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el-Rei, seu senhor. E porque Nuno da Cunha (como atrás dissemos), mandou ao guazil de Mascate, Xeque Raxit, que se viesse logo trás ele para negócio da sua conta, de que se el-Rei queixava dele e era chegado a Ormuz, deu Nuno da Cunha conta a el-Rei como fizera vir aquele homem, o qual estava ali para dar razão de si; que mandasse ajuntar os oficiais que lhe haviam de tomar conta, para logo o fazer pagar, se devesse. El-Rei mandou ao seu tesoureiro Coge Abrahemo, que estivesse à conta com ele; e vindo cada um com seus papéis, sendo presente o secretário Simão Ferreira, como testemunha e árbitro das dúvidas, quando houvesse, achou-se que Xeque Raxit tinha entregue tudo quanto recebera das rendas del-Rei, sem ficar devendo cousa algua, e houvesse sua quitação assinada por el-Rei nas costas de um auto que Nuno da Cunha desta conta mandou fazer. Vendo el-Rei que Nuno da Cunha dava logo à execução o que justamente lhe requeria, lhe fez queixumes do mesmo Coge Abrahemo, dizendo que fora tesoureiro de dous reis passados e tivera toda a fazenda e jóias del-Rei Torum Xá que mataram, de que não apareceu mais que um terçado e ua cinta e uns braceletes e ua adaga, sendo este rei rico de dinheiro e jóias, por ser muito aquiridor e conservador do que lhe caía na mão, e que nunca em tempo deste rei dera conta. Antes que Abrahemo fizesse algua cousa de si, Nuno da Cunha o mandou prender, somente por saber que, sendo filho de um homem muito pobre e de parentes pobres e baxos, depois que entrou na alfândega por escrivão e serviu de tesoureiro, tinha aquirido muita fazenda e feitas uas casas as mais sumptuosas e nobres da cidade. Coge Abrahemo, como se viu preso, começou por se contratar com el-Rei, dizendo que lhe requeria dar vinte mil xerafins; mas como Nuno da Cunha estava informado da grossura deste mouro, não consentiu nisso, 159 té que deu a el-Rei quarenta mil, com que el-Rei pagou dívidas que devia, e assi as páreas, e ele ficou sem ofício. 170 170 Também lhe pediu el-Rei que lhe mandasse entregar a renda da casa das Orracas, que poderia render dous ou três mil xerafins, a qual ele tinha dada contra sua vontade ao capitão da fortaleza, por estar já tanto em costume darem os reis esta renda aos capitães polos contentar, que faziam eles disto ua obrigação ordinária; a qual renda, depois que Nuno da Cunha se foi para a Índia, el-Rei tornou ao capitão mais por temor que por vontade. Pediu-lhe mais el-Rei que lhe tirasse o guarda-mor que lhe punham, português, porque recebia nisso grandes opressões e estava como cativo, de maneira que não tinha vida nem podia dar um passo, que logo não fosse molestado, ou havia de comprar a liberdade por muito, porque nunca cessavam os tais oficiais de tirar dele. Este ofício levava de Portugal Manuel de Albuquerque, filho de Lopo de Albuquerque, homem que no que depois fez (como no decurso desta história se verá) mostrou que por sua cavaleria e pessoa era para maiores cousas que para guarda-mor del-Rei de Ormuz. E como era homem virtuoso e bem costumado, e que sabia el-Rei era mancebo vicioso, e que entrando ele naquele cargo, para ter vida, lhe compria consentir usar ele de seus vícios, disse a Nuno da Cunha que ele não queria tal ofício; pelo que, havendo Nuno da Cunha respeito a muitas cousas, por então lhe pareceu escusado aquele ofício, e o satisfez a Manuel de Albuquerque. Requereu mais el-Rei a Nuno da Cunha que lhe mandasse entregar a Ilha de Baharém, na qual estava havia já seis ou sete anos um Raix Barbadim, sobrinho de Raix Xarafo, da qual ilha o mesmo Xarafo lhe tinha dado o guazilado, e ambos a comiam, sem dela haver rendimento, antes todos os anos lhe contavam muitas despesas de mantimento, de arroz que ia de Ormuz para manter a gente que lá estava, sendo certo que rendia cada ano quinze mil xerafins, assi por razão da pescaria do aljôfar que se nela fazia, como da grande novidade que nela havia de tâmaras, de que havia carregação para muitas partes. (1) E como isto era de Raix Xarafo, apertava el-Rei muito a Nuno da Cunha que lha mandasse entregar, o que para Manuel de Macedo era grande enfadamento, porque tinha prometido a el-Rei D. João que ele ordenaria com que Xarafo viesse de Ormuz com

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muita riqueza; polo que, 171 171 mandando Nuno da Cunha, quando prendeu Raix Xarafo, escrever-lhe a fazenda toda, Manuel de Macedo clamou que o não escandalizasse, porque compria levá-lo mimoso; e ao mesmo Xarafo fazia crer que, levando bem que peitar, tudo acabaria, de que já tinha experiência. E aconselhava a el-Rei de Ormuz que mandasse o seu terçado a el-Rei de Portugal, porque por ele lhe quitaria el-Rei os quarenta mil xerafis que Nuno da Cunha lhe acrescentara. O que Nuno da Cunha dissimulou por honesto modo, por não 160 infamar a Nação portuguesa mais do que estava infamada em Ormuz pelas cousas passadas. Mas Xarafo era tam sabedor, que deu pouco pelos conselhos que lhe dava Manuel de Macedo, e levou o que tinha, que era já bem pouco por as crestas que lhe davam a miúde; e a maior substância de sua fazenda era um pouco de património de palmares e terras em Baharém, que lhe grangeava seu sobrinho Raix Barbadim, que podiam render oito ou dez mil xerafis, e uas casas honradas em Ormuz, e tam pouco móvel como devia ter um homem que se vigiava, parecendo a Manuel de Macedo que trazia ele muitas cousas para este Reino. Polo que Nuno da Cunha, por alguns inconvenientes, mandou a Manuel de Macedo sair de Ormuz, e que viesse esperar a Raix Xarafo a Mascate. Ali se embarcaram ambos para este Reino; e porque ao tempo da partida se descobriram no navio alguas águas que se abriram com a carga das drogas que lhe meteram, e aos oficiais pareceu que não podia chegar a Portugal, mandou o Governador que fosse Manuel de Macedo à Índia e lá tomasse qualquer embarcação que quisesse; pelo que, chegado a Cochi, Afonso Mexia lhe deu outro navio, em que Manuel de Macedo trouxe a Xarafo a este Reino, onde ele esteve alguns anos, sem sua vinda trazer mais fruto que descobrir culpas alheas, as quais Nuno da Cunha, por devassa que em Ormuz tirou por apontamentos que o mesmo Manuel de Macedo levava, mandou mais, na verdade, do que Raix Xarafo podia dizer, por serem testemunhadas por os principais mires e pessoas notáveis que el-Rei de Ormuz teve. E no fim destes anos tornou Xarafo à Índia, como da Índia a Ormuz, quando a outra vez foi preso e serviu seu ofício, salvando-se por as leis da Índia, como todos os culpados se salvam quando fazem o que ele fazia; porque a natureza dos homens, 172 172 posto que mudem o clima, não mudam a inclinação, principalmente em casos de proveito.

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NOTAS (1) Esta Ilha de Baharém descreve João de Barros na 3ª Déc., liv. 6, cap. 4.

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172 172 160 Capítulo XIII. Como Belchior de Sousa Tavares foi a Baçorá; e do sítio daquela cidade e da Ilha de Gizaira. Estando Nuno da Cunha fazendo o que dissemos em Ormuz, chegou de Baçorá Belchior de Sousa Tavares, que o capitão Cristóvão de Mendoça tinha lá mandado com dous bargantins e quarenta homens de peleja, a requerimento de Alé Mogemez, rei daquela cidade, para o ajudar a defender de el-Rei de Gizaira, que lhe fazia guerra. E porque Belchior de Sousa foi o primeiro capitão que com mão armada entrou pelos dous rios Tígris e Eufrates, onde não entrou o poder dos Gregos e 161 Romanos com seus exércitos, quando contendiam com os reis da Babilónia e de Pérsia, não é fora do intento da nossa história escrevermos da jornada de Belchior de Sousa, em que assentou paz entre estes dous reis, e depois fez guerra ao de Baçorá, por não comprir com ele o que lhe prometeu. Tão temido era o nome português naquelas partes, que um capitão de dous bargantins com quarenta homens fez o que adiante veremos; e não na costa de Guiné entre Negros bárbaros, mas na mais celebrada terra de que as Escrituras fazem menção, que é nas correntes dos dous ilustres Rios Eufrates e Tígris, onde eles dão de beber aos povos babilónios e caldeus e onde hoje os Mouros tem sua célebre cidade de Bagadad, e as sepulturas de Ali (1)e de alguns filhos seus, que são a cabeça de sua seita. E para mais clareza do que hemos de dizer, será necessário tratar primeiro da situação de Baçorá. Dista da cidade quási trinta léguas da barra dos Rios Eufrates e Tígris, quando ambos juntos se metem no Mar Párseo, não ao longo da corrente deles, mas afastada ua légua no fim de um estreito feito à mão, que para serviço da mesma cidade se abriu, em que podem entrar navios de remo. (2)Esta povoação, segundo se diz, se fundou há poucos 173 173 anos, e ora a tem os Turcos mui forte com temor de nossas armadas. Ptolomeu, nas suas Táboas de Ásia, situa naquela parte de Babilónia ao longo das ribeiras daqueles dous rios duas povoações: a ua chama Thalatha e à outra Batracharta. (3)Seja qualquer que for, o que podemos afirmar é que esta, que está em pé, nestes tempos próximos a nós se fundou; e junto dela, metida mais no sertão espaço de oito léguas, está ua cidade despovoada, cujo circuito tem andadura de mais de um dia; e um turco natural do Cairo, que se tomou quando D. Fernando de Noronha houve vitória do capitão dos Turcos, que eram lançados em Baçorá, o qual hoje é meu cativo, homem prudente e de grande juízo e memória, me contou que o seu capitão se pusera a cavalo um dia, e ele em sua companhia, e foram ver esta antiguidade, como em romeria, por estar ali ua mesquita sumptuosa de Ali; e, para verem a grandeza da cidade, se subiram em ua torre, e que não podiam sair com a vista fora das casas; e jurava por sua lei que lhe parecia duas vezes maior que o Cairo, a qual 162 dizia que era toda despovoada, sem haver nela mais que um mouro na mesquita com três filhos e três filhas, que tinha cargo de duas alâmpadas que ardiam nela, sem naquela povoação, que não era cercada, haver outro morador. As casas eram térreas, de pedra e cal, as pedras mui grandes, todas engatadas com ferro e cobre, o que deziam ser por o tremor de terra que naquela parte muitas vezes havia; e os telhados (por ali chover raramente) eram eirados ladrilhados, e muitas das casas ricamente fabricadas e ladrilhadas com azulejos; e que contava aquele mouro que ali estava que àquela cidade chamavam Baçorá-a-Velha. Da grandeza desta cidade andam pela terra contos increíveis. Um geógrafo párseo escreve

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que esta Baçorá-a-Velha foi fundada em tempo de Ali, tio e genro de Mafamede, por um mouro chamado Atabad, filho de Garvan; e que no tempo de Bibal, filho de Abibardá, havia nela cento e vinte mil esteiros, que se derivavam dos Rios Eufrates e Tígris, por virem ambos ali concorrer. E que sendo tamanha se despovoara, porque a terra era muito salgada e não tinha água que beber, e lhe vinha de mui longe, e os poços que tinha era mui salobros; e por a terra ser mui calmosa no tempo do Verão, que não se podia sofrer o fervor do Sol, e no Inverno o rigor do frio, 174 174 por os ventos que vinham por aquelas campinas que matavam a gente, e por carecerem de lenha com que se aquentar. E que antigamente, quando aquela cidade prosperava, traziam a água por valas do Rio Eufrates, as quais despois se taparam com as cheas e águas do mar no tempo das marés, por que aquele sítio se veo todo salgar, e assi se despovoou; e que os moradores daquela cidade se passaram uns a Bagodad e outros a Baçorá-a-Nova. E porque Ptolomeu, afastado do Rio Eufrates quási naquela distância, situa ua cidade por nome Beththana, (4)já pode ser que fosse esta, que, sendo-o seria reedificada e povoada por Atabad. A Ilha de Gizaira fazem os dous famosos Rios Eufrates e Tígris. Nasce o Eufrates na Turcomânia e o Tígris em Adilbegião, (5)e fazendo 163 ambos aquele grão cerco a que os geógrafos chamam Mesopotâmia, que quer dizer terra entre dous rios, quando o Eufrates vem dar na província, a que Ptolomeu chama Babilónia, lança-se do Sul para o Norte, e faz um agudo cotovelo defronte da cidade Bagodad, por que passa o Tígris; e entre um e outro rio não fica mais espaço que sete léguas, as quais nas grandes crescentes deles todas se cobrem de água. Deste cotovelo volta Eufrates ao Sul, e, rompendo com grande ímpeto, se parte em dous braços: um se vai meter no Tígris e o outro, correndo com o mesmo curso, alaga toda a terra de Baçorá, té se juntar com outras águas suas e do Tígris em Corna, que é ua fortaleza que os Turcos fizeram no canto da terra deste ajuntamento. Daqui vão ambos os rios em um corpo té entrar no Mar Párseo por duas bocas que os Párseos chamam Murzique, e Ptolomeu e Plínio situam nela o lugar Teredon. (6)Nesta ilha vivem alguns pescadores, por ser toda coberta de canaviais e tam baxa, que estão quási sobre a barra deste rio quando vem do mar, e não a vem, nem se toma senão por pilotos que estão ali perto em outra ilha chamada Cargue. E porque o Eufrates, depois que a primeira vez se junta com o Tígris, ambos retalham toda aquela terra, a que é assi cercada e cortada dos rios, chamam os Persas Gizera, e os Árabes Leziras, vocábulo que entre muitos outros nos ficou deles do tempo que senhorearam Espanha. E a principal e maior delas, a que os naturais chamam Vacet, e nós Ilha de Gizaira, que é vezinha de Baçorá, 175 175 e a última que estes rios fazem, onde está a fortaleza de Corna, terá de circuito mais de quarenta léguas e toda chea de castelos, pola maior parte de madeira, em que cada um vive sobre si, e de dentro de suas abertas tem sua fazenda, onde ninguém lha vai devassar. Estas povoações, que todas estão pela terra dentro afastadas de água, mais são para se defenderem uns dos outros que dos estrangeiros, por eles serem tam belicosos, que em suas contendas têm que fazer toda a vida. O rei é pouco obedecido, e por isso quem mais pode tem mais justiça no que quer, e não há outra entre eles. É gente bem disposta e ligeira, não tem uso dos cavalos, somente el-Rei os tem para sua pessoa; polo que suas guerras são sempre a pé, suas armas principais são frechas, e assi havia naquela Ilha Gizaira quarenta mil frecheiros. Antiguamente obedeciam todos ao Senhor de Bagodad, mas depois que o Turco começou a contender como o Xá Ismael, um mouro poderoso que ali presidia, naquelas diferenças se intitulou por 164 rei sobre o qual o Xá Tamas quisera vir; e sabendo que toda a ilha era retalhada de esteiros, e que, cada vez queriam, seus moradores alagavam toda a terra, o deixou de fazer. Este mouro, que se levantou por rei, que era pai do que neste tempo vivia e contendia com o Senhor de Baçorá, tinha

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posto de sua mão a este Alé Mogemez naquele lugar, como feitor seu, para lhe recadar os direitos das cousas que por ali passavam; e ele, enquanto aquele senhor de Gizaira contendia com o Senhor de Bagodad, fez-se forte; e como era arábio da seita de Mahamede e inimigo dos da opinião de Ali, que são aqueles de Gizaira, levantando-lhe de todo a obediência, se intitulou rei, como este de Gizaira fez ao Senhor de Bagodad. E contudo, por obediência pagava este Alé Mogemez ao Rei de Gizaira passado certas páreas em sinal de sujeição e vassalagem. E a causa por que o de Gizaira lhe fazia agora guerra, era que, havendo anos que Alé Mogemez não queria pagar este tributo, além desta rebelião, lhe mandou matar um filho, andando à caça na terra firme da parte da Arábia, onde ele tinha tomado dous lugares a Alé Mogemez; polo que, por medo del-Rei de Gizaira, mandou Alé Mogemez pedir ajuda a Cristóvão de Mendoça. E porque os capitães de Ormuz têm muita necessidade da amizade do Senhor de Baçorá, e nela têm sempre um feitor que lhes 176 176 administra sua fazenda, e ordinariamente cada ano vão dali setecentos e oitocentos cavalos a Ormuz, e daí para o Índia, que dão muito rendimento a el-Rei de Portugal nos dereitos que pagam, favorecem muito as cousas daquele mouro. NOTAS (1) Ali foi filho de Abiltalef, com cujo conselho e ajuda promulgou Mafamede a sua maldita seita, e o casou com sua filha Fátima, e nomeou por sucessor no Reino e Califado, a qual dignidade usurpou como mais poderoso Abubéquer, outro conselheiro e companheiro de Mafamede. Foi Ali quinto califa e autor de outra nova seita, que professam os Persas. Teve por contrário a Moávia, com o qual pelejou com vária fortuna. E ultimamente por ordem de Moávia foi morto perto de Cufá, cidade da Arábia, entrando em ua mesquita no ano de 660. (2) Tem a tradição os vizinhos de Baçorá que lhes foi ali pregar a Fé e converter muitos o Evangelista S. João. O P. João de Lucena, na Vida do P. Francisco Xavier, liv. 1, cap. 13. (3) Ptolomeu, no liv. 5 da sua Geografia, cap. 20, põe Thalatha em 32 graus, e 10 min. de altura; e Batracharta em 32 graus, e 40 min. e Baçorá está em 31 graus. (4) Em altura de 32 graus e 52 min. no liv. 5, cap. 20 e na Táboa 4 de Asia. (5) O Rio Eufrates nasce naquela parte da Arménia Maior, que se chama Turcomânia, do Monte Paríades, do qual tem também seu nascimento do Rio Araxes. Este corre a Levante e entra no mar Cáspio, e o Eufrates faz seu curso por um espaço a Ponente, donde volta a Meiodia, atravessando o nomeado Monte Tauro, para se ajuntar com o Tigris. Antes de passar aquele célebre monte, se chamava antigamente Pixirato, e depois de passado, Omira, como escreve Plínio no cap. 24 do liv. 5. E no cap. 26 do liv. 6 diz que os Assírios lhe chamavam Armalchar, ou mais propriamente Naarmalcha, como lhe chama Am. Marcelino, que significa Rio Real, que é o mesmo que Basílio, nome que pela mesma causa lhe dá Ptolomeu na 4ª Táboa da Ásia, e por ela consta ser um braço do mesmo Eufrates, que rega a província e cidade de Babilónia, pela qual passa. O nome hebreu, que tem na Sagrada Escritura, é Pharath, que quer dizer Fortificativo; e Josefo no cap. 2 do liv. 1 das Antiguidades lhe chama Phora, e hoje os Arménios Frat, e os Turcos Murat. O Rio Tígris nasce em ua Província da Arménia maior, que Ptolomeu chama Gordone, e hoje Curdi; o seu nome antigo foi Sollax como afirma Plutarco o Moço no Tratado dos Rios. No seu nascimento, onde corre vagarosamente, se chamou Diglito, como escreve Plínio no cap. 27 do liv. 6. E quando se apressa, e correm com ímpeto suas águas, por razão dele lhe puseram os Medos o nome de Tígris, que entre eles quer dizer Seta; e por a mesma causa e significação tem na Sagrada Escritura o nome de Hide

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Kel, que é Siríaco. Diglath lhe chama Josefo, e os nomes modernos são vários, segundo as províncias por que passa, porque lhe chamam Hidecel, Derghele, Sir e Set. (6) Este lugar querem Mercator e Ortélio que seja Baçorá, em que se enganam, porque Teredon situa Ptolomeu no meio da ilha e Baçorá não está nela, senão trinta léguas das bocas do rio, e fica à mão direita da sua corrente, e não à esquerda, como estes autores a põem em suas Táboas Geográficas.

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176 176 164 Capítulo XIV. Como Belchior de Sousa foi recebido del-Rei de Baçorá, e foi com ele contra el-Rei de Gizaira. Ao tempo que Belchior de Sousa chegou a Baçorá, andava el-Rei no campo à caça, e em dous dias que ele tardou, deixou-se estar Belchior de Sousa no bargantim meia légua da cidade, sendo visitado do seu Governador com muito refresco e frutas de nossa Europa. Vindo el-Rei, mandou ao seu Governador e aos principais de sua casa que fossem acompanhar a Belchior de Sousa, e ele foi com parte de sua gente a mais luzida, sem armas; só dous homens levou armados com espadas de ambas as mãos, para dar mostra a el-Rei, o qual, por lhe fazer honra, o estava esperando em um terreiro grande ante suas casas, que seria de quarenta braças em quadra, com as costas em ua parede, assentado em um coxim de seda sobre ua alcatifa de ouro, e junto com ele estava outra de lã para Belchior de Sousa. De longo das paredes do pátio era tudo esteirado, em 165 que estavam assentados em cócaras mais de dous mil homens. No meio do terreiro andava um estribeiro del-Rei em cima de um fermoso cavalo, passeando; e dez ou doze homens a pé traziam outros tantos cavalos pela rédea, por esta ser a maior honra com que eles recebem os embaxadores, dando-lhes mostra dos cavalos de suas pessoas . Além destes, andavam outros homens a ua parte do terreiro esgrimindo com lanças de cana e cofos por estado; e tudo isto era ao som de uas doçainas ao seu modo, que aos nossos pareceram bem. Junto del-Rei estavam sete ou oito músicos, cantando por livros com vozes acordadas por arte, que foi aos nossos cousa nova; porque os Árabes da nossa Berberia não usam dela, o que parece estes de Baçorá aprenderam dos Persas. El-Rei assentado naquela almofada, com suas pernas cruzadas, tinha vestida ua camisa de 177 177 linho tinta de azul, e sobre ela ua algerevia de lã, e na cabeça ua grande e não mui delgada touca, sem mais outro arreo, mostrando-se mui árabe no trajo, de que se eles muito prezam. Entrando Belchior de Sousa, acompanhado do guazil, foi té onde el-Rei estava, o qual saiu fora da alcatifa, e o levou pela mão a assentar na que estava posta para ele. Passada a primeira prática de seus comprimentos, mandou el-Rei chegar para si os dous homens que Belchior de Sousa levava armados, e apalpou todas as armas, e chamando a um seu armeiro, lhe perguntou se lhe faria outras daquela maneira, porque lhe pareciam bem, e pediu a Belchior de Sousa que os mandasse jogar das espadas, o que eles fizeram mui bem, e el-Rei folgou muito de os ver. Despedido Belchior de Sousa del-Rei para ir a repousar, ao outro dia o mandou vir por o próprio guazil, e lhe deu conta de seus trabalhos e guerra, que havia dez anos que lhe el-Rei de Gizaira fazia; e que, quanto à morte de seu filho, de que se ele mais sentia, jurava em verdade que ele lho não mandara matar, e que a morte fora por desastre, e não por outra via; que na verdade era que ele mandara aquele seu capitão que trabalhasse de o cativar, para sobre seu resgate fazer algua paz. Belchior de Sousa, como trazia instrução do que havia de requerer a el-Rei de Baçorá, depois de o consolar em seus trabalhos e dizer que para lhe valer neles, o mandara o capitão de Ormuz, começou de o culpar em ter consigo Turcos inimigos dos Portugueses, e os recolher, sabendo que nos ofendia, e tinha fustas que iam ao Mar de Pérsia fazer alguas presas em os navios que levavam mantimentos e mercadorias a Ormuz. Ultimamente, desta prática e de outras cousas que lhe Belchior de Sousa propôs sobre amizades e boa vezinhança que connosco lhe compria ter Ormuz, de que tanto bem e proveito recebia, ele Alé Mogemez, prometeu, que em satisfação

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daquela ajuda que lhe vinha dar, lhe entregaria as fustas que tinha, que seriam sete, pois dezia descontentar-se o capitão de Ormuz de as ele ter. E que na sua 166 terra consentiria Rumes; que os que ao presente ali estavam, passada aquela necessidade, os despediria. Mas que o que dele, Belchior de Sousa, somente queria, era fazer com el-Rei de Gizaira fosse seu amigo, ou o ajudasse a cobrar duas fortalezas que lhe tinha tomadas na terra da Arábia, ao longo do Rio Eufrates. 178 178 Concertando que fossem contra el-Rei de Gizaira, se fez prestes o de Baçorá em espaço de quinze dias, e partiu com duzentas dalaças, que são uas barcas grandes, ladas e rasas, em que levou cinco mil homens de pé, seiscentos deles espingardeiros, e as sete fustas mui bem artelhadas, de que a menor levava sete bombardas, e nelas iam cinquenta rumes vestidos todos de vermelho, e outros tantos homens da terra, dos mais principais, nas quais ia el-Rei. Por terra, ao longo do rio, mandou um sobrinho seu com té três mil homens encavalgados em éguas (porque os cavalos vendem eles para Ormuz), dos quais os quatrocentos eram encobertados ao modo da Pérsia, armados com saias de malha, todos mui bem concertados, segundo seu uso. E porque ao longo do rio ventou noroeste, que sempre ali cursa, se det