De Mao a Xi: o Ressurgimento da China 9789898906809

Depois da “libertação de 1949” e sob a liderança de Mao Zedong, a China encerra o “século da humilhação nacional”. Mas o

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De Mao a Xi: o Ressurgimento da China
 9789898906809

Table of contents :
Lista de Abreviaturas e Acrónimos
Capítulo I – A História Como Presente
Um império celestial
As guerras do ópio
Sol nascente imperial
Capítulo II – Hasteemos a Bandeira Vermelha
Um saco de batatas
Na sombra do Comintern
Na mão do Grande Irmão
O Oriente é vermelho
Caos total debaixo dos céus, excelente
Capítulo III – Deng Atravessa o Rio
A sucessão do Sol Vermelho
Thermidor de Jiangxi
As mãos esquerda e direita
O grande irmão herege
A revanche dos duros
Capítulo IV – Um Novo Timoneiro
Eu tenho um sonho
Ser rico é glorioso
Caminhar pela Faixa e Rota
Capítulo V – A Ilusão Americana
Concorrentes, Rivais, Inimigos
O Globalizador-Chefe
Rollback de Trump
Capítulo VI – Tucídides Redux
Xi, o Revisionista
Os militares e os renegados
Um mar de problemas infinitos
Redesenhar a ordem asiática
A Comunidade Democrática e o Quad
Conclusão
Biografias de referência
Bo Xilai
Bo Yibo
Chen Boda
Chen Duxiu
Chen Yun
Chiang Kai-shek
Deng Xiaoping
Guo Boxiong
Hu Jintao
Hu Yaobang
Hua Guofeng
Imperador Kangxi
Imperador Qianlong
Imperador Xuantong (Pu Yi)
Jiang Qing
Jiang Zemin
Kang Sheng
Li Dazhao
Li Peng
Lin Biao
Liu Shaoqi
Oito Imortais
Peng Dehuai
Peng Zhen
Sun Yat-sen
Xi Jinping
Yuan Shikai
Zhao Ziyang
Zhou Enlai

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– © 2020, Vasco Rato e Alêtheia Editores • Todos os direitos de publicação em Portugal reservados por: Vasco Rato e ALÊTHEIA EDITORES • Zona Industrial da Ponte Seca, 2510-752 Gaeiras – Óbidos • Tel.: (+351) 21 093 97 48/49 • E-mail: [email protected] • www.aletheia.pt • Capa: Sylvie Lopes • Imagem de capa: Zachary Keimig – Unspalsh • Paginação: Sylvie Lopes • ISBN: 978-989-8906-80-9 • outubro de 2020

 

LISTA DE ABREVIATURAS E ACRÓNIMOS – AIIB – BANCO ASIÁTICO DE INVESTIMENTO EM INFRAESTRUTURA APEC – COOPERAÇÃO ECONÓMICA ÁSIAPACÍFICO ASEAN – Associação de Nações do Sudeste Asiático CMC – Comissão Militar Central Comintern – Internacional Comunista, Terceira Internacional ELP – Exército de Libertação Popular EUA – Estados Unidos da América GMD – Guomingdang, Partido Nacionalista Chinês CPEC – Corredor Económico China-Paquistão IFR – Iniciativa Faixa e Rota (BRI-Belt and Road Initiative) MIC2025 – Made in China 2025 MFN – Nação Mais Favorecida NATO – Organização do Tratado do Atlântico Norte OMC – Organização Mundial de Comércio ONU – Organização das Nações Unidas PCC – Partido Comunista Chinês PCUS – Partido Comunista da União Soviética PLD – Partido Liberal Democrata PNTR – Relações Comerciais Normais Permanentes RPC – República Popular da China RCEP – Parceria Económica Global Abrangente THAAD – Terminal de Defesa Aérea de Alta Altitude TTP – Parceria Trans-Pacífica  

INTRODUÇÃO   “I’ve read hundreds of books about China over the decades. I know the Chinese. I’ve made a lot of money with the Chinese. I understand the Chinese mind”. (Donald Trump, The Art of the Deal )

– Num discurso radiofónico transmitido pela BBC a 1 de outubro de 1939, Winston Churchill caracterizou a Rússia como “uma charada envolta em mistério, dentro de um enigma. Mas talvez haja uma chave. Essa chave é o interesse nacional russo”. Um dos primeiros políticos ocidentais a sublinhar os perigos do poderio soviético, Churchill constatava que o comportamento de Moscovo em busca do seu interesse nacional obedecia a uma lógica que nem sempre era convenientemente decifrada no Ocidente. Todavia, a história do país e a ideologia que movia a cúpula dirigente estruturavam os interesses nacionais prosseguidos pelo estado soviético. Nos nossos dias, a República Popular da China, tal como a União Soviética de outrora, também parece constituir um enigma para algumas democracias ocidentais. Não será excessivo afirmar que a política internacional atravessa um período de mutação vertiginosa que nos encaminha para um novíssimo ordenamento global. Centrada no Indo-Pacífico, a nova carta estratégica que se vislumbra num horizonte relativamente próximo substituirá o mundo organizado em torno do Atlântico erguido na sequência das viagens de descoberta que levaram Vasco da Gama às geografias asiáticas. Dir-se-á, portanto, que a época de domínio ocidental terminou. Não significa isto que a Europa e os Estados Unidos passarão a ser potências

periféricas, meros espetadores do desenrolar dos grandes acontecimentos. Mas as novas instituições, regras e fatores de legitimação internacional que emergirão em conformidade com a nova distribuição de poder deixarão de assentar, como até agora, na ordem liberal euroamericana criada a partir de 1945. Também não será excessivo afirmar que 2020 foi, para as autoridades comunistas chinesas, um annus horribilis que marca um ponto de viragem no modo como a República Popular da China se relaciona com o resto do mundo e na forma como o país é percecionado internacionalmente. Vários acontecimentos produziram uma tempestade perfeita que, na prática, nos obrigam a olhar para a China a partir de outro prisma. Desfez-se a convicção de que o país poderá emergir pacificamente como grande potência sem pôr em causa os alicerces fundamentais da ordem liberal vigente. Ruiu a ideia de que a inserção da República Popular numa economia globalizada encaminhará o país no sentido do pluralismo e da democratização. Prevalecentes ao longo das décadas que se seguiram ao desmoronamento da União Soviética e ao fim da Guerra Fria, tais fantasias deram lugar às realidades impostas pela agudização da conflitualidade entre as grandes potências. Nas primeiras semanas do surto Covid, generalizou-se a ideia de que nada seria como dantes, que, perante o cataclismo, jamais regressaríamos à normalidade dos tempos que precederam Wuhan. Tais afirmações eram hiperbólicas porque, a bem dizer, a crise apenas evidenciou fenómenos políticos que há anos se manifestam, acelerando-os e tornando-os mais transparentes. Este mundo de incessante competição geoestratégica não é uma originalidade dos nossos tempos, pois a lógica e as dinâmicas que acompanham a rivalidade entre as grandes potências moldam o comportamento dos estadistas desde que Tucídides se debruçou sobre a “ascensão de Atenas e o pavor que instilou em Esparta”. Verdadeiramente excecional

foi a ordem liberal construída e preservada sob a hegemonia americana, uma ordem que agora se apaga com o regresso das dinâmicas que há séculos pautam a política internacional. À medida que a pandemia alastra pelo mundo nos primeiros meses de 2020, Beijing oculta informações cruciais relativas ao vírus e manipula os dados entregues à Organização Mundial de Saúde (OMS). Indiferentes às consequências provocadas no resto do mundo, as autoridades chinesas geram o surto de acordo com critérios políticos e lançam uma campanha de desinformação que, entre outras torpezas, alega que o vírus teria tido origem em Itália ou nos Estados Unidos1. Mas o escândalo internacional irrompe aquando da morte de Li Wenliang, o médico do Hospital Central de Wuhan, recorre à internet para alertar o grande público para o perigo antes de sucumbir ao vírus em fevereiro de 2020. A corrida para descobrir o mapa genético do coronavírus começara semanas antes da morte de Li Wenliang. Em finais de dezembro de 2019, os médicos de Wuhan detetam pacientes cujos sintomas não reagem aos tratamentos usualmente ministrados em casos de gripe. A OMS será alertada para os casos misteriosos a 31 de dezembro e, a 1 de janeiro de 2020, solicita informações adicionais2. Dois dias depois, a China admite a existência de 44 casos de contágio, mas não relata nenhuma fatalidade. Ao longo de janeiro de 2020, a OMS elogia o governo chinês por ter “imediatamente” partilhado o mapa genético do vírus, acrescentando que o compromisso de Beijing com a transparência era “muito impressionante”3. A realidade era, porém, outra4. Vários laboratórios, tanto comerciais como governamentais, possuíam a sequência genética completa do vírus nos primeiros dias de janeiro, mas esses dados só seriam divulgados no dia 11 do mesmo mês, um atraso que dificulta a identificação de novos casos noutras regiões do

globo. Durante mais de uma semana, Beijing recusa partilhar o genoma do vírus com a OMS5. Entre o dia em que o genoma completo fora decodificado por um laboratório governamental, a 2 de janeiro, e o dia em que a OMS declara a emergência global, a 30 de janeiro, o surto ganha dimensão mundial. A 14 de janeiro, as autoridades de saúde chinesas caracterizam o novo surto como “o desafio mais grave desde a SARS em 2003” e, secretamente, ordenam a preparação do país para uma pandemia6. Não obstante esta declaração da emergência pública, as autoridades insistem que a probabilidade de transmissão entre humanos era reduzida e Xi Jinping apenas avisa o público do perigo a 20 de janeiro. Embora o Direto Internacional obrigue os países a relatar informações à OMS que possam ter impacto na saúde pública, a China demora, no mínimo, duas semanas a fornecer à organização os dados detalhados sobre pacientes e casos. Gauden Galea, o principal funcionário da OMS na China, testemunhava esta situação ao afirmar que “estamos atualmente num ponto em que nos entregam informação 15 minutos antes de ser transmitida na CCTV”, a televisão estatal chinesa7. Em 2020, os cidadãos ocidentais também descobrem os perigos associados à utilização das tecnologias de ponta chinesas. A controvérsia em volta da infraestrutura 5G comercializada pela Huawei, tal como a ilegalização do TikTok e do WeChat na América, são as faces mais visíveis de uma competição em volta da liderança científica e tecnológica que invariavelmente ressuscita memórias dos anos Sputnik. A imagem ocidental da China como “fábrica do mundo”, país importador de tecnologia avançada e incapaz de inovar, deu lugar à realidade de uma China em vias de consolidar a sua liderança em áreas tecnológicas cruciais para a nova economia, tais como a inteligência artificial (IA), a robótica e os automóveis autónomos. Subitamente, a liderança económica dos países ocidentais era posta em causa pelos saltos tecnológicos que ninguém

parecia ter antecipado. As tensões em volta da inovação científica e tecnológica eram inseparáveis dos receios quanto à relação comercial entre a China e o Ocidente, em geral, e os Estados Unidos, em particular. Popularizou-se a expressão “guerra comercial” e levantou-se o espetro do regresso às políticas protecionistas da década de 1930. Se a discussão dos últimos anos se fez em torno de deficits comerciais, da concorrência desleal, dos obstáculos no acesso ao mercado chinês e do uso indevido da propriedade intelectual, hoje a polémica gira em volta da reindustrialização do Ocidente e, por conseguinte, do desmantelamento das cadeias de fornecimento que geram tremendas vulnerabilidades. A crise do coronavírus expôs, de forma nítida, estas vulnerabilidades, particularmente no sector dos equipamentos médicos e dos fármacos. A fim de colmatar estas e outras vulnerabilidades, os Estados Unidos, o Japão, a Índia e a Coreia do Sul, nos meses mais recentes, anunciaram a intenção de promover políticas de repatriamento das suas empresas a operar na China e, assim, de desmontar as cadeias de fornecimento construídas ao longo de décadas de globalização. Não surpreende, pois, que Xi Jinping venha assumir a bandeira da globalização e do “comércio livre”, conceitos crescentemente sinónimos do status quo comercial que manifestamente beneficia a estratégia comercial da República Popular. Neste quadro de competição geoeconómica, restam poucas dúvidas de que o decoupling das economias americana e chinesa se encontra em franca e irreversível aceleração. É tentador concluir que estes assuntos espelham as obsessões de Donald Trump e, por conseguinte, tudo voltará à “normalidade” quando este abandonar a Casa Branca. Parece, aliás, que é justamente esta perspetiva que a União Europeia adotou nos tempos mais recentes8. A verdade, porém, é que Trump é uma consequência – e não a causa –

das mudanças verificadas na última década. Independentemente do destino pessoal e político do presidente americano, é hoje patente que a rivalidade sinoamericana se prolongará no tempo. Este endurecimento relativamente à China é, aliás, anterior à Administração Trump, pois iniciou-se com o “pivot” para a Ásia de Barack Obama. Por outras palavras, a rivalidade passou a ser um elemento estrutural da política mundial e, assim, qualquer presidente americano traçará uma política externa mais confrontacional face à China do que aquela que foi seguida nas décadas mais recentes. Neste quadro de polarização sino-americana, algo mudou na Europa. A opinião pública passou a ser mais hostil relativamente à China e, cada vez mais, os dirigentes europeus assumem posições de choque com Beijing, como ficou claro aquando da visita a Taiwan, em finais de agosto de 2020, de Milos Vystrcil, presidente do Senado da República Checa9. De igual modo, a recente cimeira bilateral UE-China, de setembro 2020, saldou-se por um aprofundamento das clivagens quanto aos valores, às liberdades em Hong Kong, às práticas comerciais e ao papel da República Popular na ordem internacional10. O agudizar da situação fez-se também sentir em Lisboa. A título exemplificativo, o embaixador dos Estados Unidos em Portugal, George Glass, em entrevista ao Expresso de 26 de setembro de 2020, tornava claro que se aproxima a hora de Portugal “escolher” entre os “aliados e os chineses”, acrescentando que “não se pode ter os dois”11. Parte da razão pela qual os públicos ocidentais começam a alterar as suas perceções da China deve-se à natureza autocrática do regime, que, se dúvidas restassem, se torna cristalina durante a crise do coronavírus. Se é verdade que, numa primeira fase, o confinamento chinês suscitou alguma admiração nas sociedades ocidentais, é igualmente verdade que rapidamente se percebeu que a “eficácia” do regime assentava na repressão generalizada que se tem vindo a

acentuar na “era Xi” e que se expressou através da adoção de uma nova lei de segurança nacional para Hong Kong, que efetivamente pôs fim ao princípio de “um país, dois sistemas” e liquidou as liberdades no território. Ao mesmo tempo, a vigilância social chinesa alargou-se para a esfera mais íntima do ser humano: a fé religiosa12. O assalto à fé evidencia-se na ilegalização do Falun Gong, na investida contra os muçulmanos de Xinjiang, e na crescente perseguição dos cristãos e dos budistas do Tibete. Publicado em 2017, um relatório da Freedom House alertava para o incremento da repressão religiosa depois de Xi Jinping ter assumido a liderança do Partido Comunista Chinês (PCC), em novembro de 201213. O relatório concluía que pelo menos 100 milhões de pessoas pertenciam a grupos religiosos que enfrentavam níveis “altos” ou “muito altos” de perseguição. Em abril de 2016, Xi sancionava a nova dureza do regime ao afirmar que “devemos, de forma resoluta, resguardar-nos contra infiltrações do exterior por meios religiosos”14. Desde então, a situação continuou a deteriorar-se, particularmente depois do início da campanha anti-religião lançada na Primavera de 2018, que se saldou pelo encarceramento de centenas de milhares de muçulmanos de Xinjiang em “campos de reeducação”, um eufemismo bem conhecido de outras épocas e geografias. A Santa Sé, por sua vez, capitula perante as autoridades de Beijing a 22 de setembro de 2018, quando as duas partes assinam um acordo de dois anos referente à nomeação dos bispos chineses. Segundo os termos do acordo, o governo chinês indicará os bispos a serem nomeados pelo Papa, embora este possa exercer o seu direito de veto. A Santa Sé argumenta que se tratou de um acordo imposto pela realidade que visava garantir a sobrevivência da Igreja na China. Para que a Igreja sobreviva, o Vaticano colocou na mão de Beijing o poder para governamentalizar e silenciar os fiéis ativos na Igreja clandestina. Em 23 de Setembro de 2018, um dia depois da

assinatura do acordo, a Igreja Católica na China promete permanecer leal ao Partido Comunista Chinês. Ficava claro que Bergoglio não era Karol Józef Wojtyła15. * Bibliotecas inteiras transbordam de livros, revistas e jornais que se propõem dissecar as múltiplas dimensões da história, política, sociedade e cultura chinesas. Mesmo assim, e não obstante a variedade e a inquestionável riqueza do conhecimento atualmente disponibilizado, abunda a produção académica, como, aliás, atestam as várias monografias recentemente editadas que visam lançar nova luz sobre inúmeros e díspares acontecimentos, entre os quais se destacam as Guerras do Ópio, o controverso papel desempenhado por Yuan Shikai durante a fase inicial do republicanismo, o impacto global do maoismo e as implicações da recém-inaugurada “era Xi Jinping”16. Quernos parecer que parte do interesse demonstrado por estes assuntos resulta do ressurgimento da República Popular da China (RPC) como grande potência e do papel que, previsivelmente, virá a desempenhar na cena mundial ao longo das próximas décadas17. Eis o tema deste livro. Dir-se-á que a experiência histórica de Zhōngguó (China) continua, de forma decisiva, a assombrar a política internacional contemporânea18. Nem sempre adequadamente interiorizadas no Ocidente, as lições da história chinesa referentes ao lugar apropriado do país na comunidade de estados iluminam as escolhas e os comportamentos políticos contemporâneos, razão pela qual o Partido Comunista Chinês (PCC) sanciona, hoje, o estudo e a divulgação da história “como uma forma de integrar o passado com um pensamento político enraizado no presente”19. A panóplia de preocupações, reivindicações, ressentimentos e ambições expressas pela elite comunista chinesa, fora, de forma mais transparente ou mais

dissimulada, profundamente moldada pelas narrativas sobre o notável papel desempenhado pelo país ao longo de séculos20. Presos a um entendimento que vê fenómenos e forças históricas impessoais como motores da mudança, resquícios de um “marxismo vulgar” inerente à alegada “cientificidade” do materialismo histórico, o PCC concebe a sua razão de ser como o instrumento incumbido de cumprir o destino chinês; isto é, de restituir a grandeza nacional bruscamente interrompida pelo “século da humilhação nacional”. Se é verdade que os comportamentos políticos chineses permanecerão amplamente incompreensíveis se não forem examinados pelo prisma do conhecimento histórico, é igualmente verdade que tais análises arriscam ser exercícios teleológicos, pois os acontecimentos tendem a ser vistos como pré-determinados. De qualquer forma, a célebre observação de George Santayana de que “os que não se conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo” continua a ser um conselho judicioso para analistas e políticos a braços com as complexidades do dia21. Infelizmente, e apesar destas sábias palavras, em muitos meios ocidentais o conhecimento histórico parece ter deixado de ser considerado como uma ferramenta analítica útil. À medida que os países do Ocidente se transfiguram em comunidades ahistóricas, efetivamente divorciadas do passado, os públicos democráticos deixam de compreender as motivações e ambições da China, do Irão, da Rússia e de outras potências cujo comportamento continua enraizado nas tragédias políticas que a história acaba sempre por impor. Somos quotidianamente expostos a uma infindável cacofonia de notícias (reais e fake), de factos, de opiniões, de comentários, a que se acrescentam os posts e tweets do cidadão anónimo ativo nas múltiplas redes sociais. Num mundo digitalizado de acesso fácil à informação, desfazemse os tradicionais filtros que nos permitiam dar sentido aos

acontecimentos, a distinguir o acessório do essencial, a superficialidade da espuma dos dias do evento genuinamente histórico. A comunicação social tradicional, que durante décadas assumiu essa filtragem, mergulhou em crise profunda porque, em parte, sucumbiu ao facilitismo da correção política, ao sensacionalismo, ao click bait e, em muitos casos, à politização. Este flagelo é evidenciado pelos caminhos seguidos por jornais de referência como o The New York Times e o The Washington Post, convertidos em veículos de cruzadas ideológicas e culturais. Não será este o lugar indicado para se fazer uma reflexão sobre o papel dos media nas sociedades ocidentais. Basta constatar que, ano após ano, os índices de desconfiança quanto à veracidade da comunicação social não deixam de aumentar. E, ano após ano, assiste-se à degradação da linguagem política, à tribalização ideológica e à erosão da civilidade e da convivência democráticas. Talvez mais preocupante, a universidade também se confronta com o esvaziamento da sua autoridade assente na ciência, na investigação e no saber especializado. No campo das Relações Internacionais, particularmente no mundo anglo-americano, afastou-se o conhecimento histórico da reflexão sobre a política mundial, substituído por abstrações conceptuais divorciadas dos acontecimentos dos nossos dias. Ao privilegiar a “inovação” teórica/conceptual desenraizada da contingência histórica, o estudo académico da política internacional tornou-se largamente irrelevante para o grande público e para os decisores políticos. Tornou-se especialmente inútil para entender as ações de estados que, abstraídos dos seus respetivos contextos histórico-culturais, passaram a ser simplesmente incompreensíveis. Hoje, na oferta de unidades de crédito das grandes universidades americanas, cadeiras de história militar desapareceram do currículo. Cadeiras de “Introdução à Civilização Ocidental” que, por muitos defeitos que lhes possamos apontar, permitiam a

transmissão de um conhecimento mínimo sobre a tradição ocidental, desapareceram porque, segundo os críticos, propagandeavam a história de “homens brancos”, racistas e genocidas. A crise da universidade e da comunicação social tradicional abriu caminho ao desnorte, frequentemente expresso pela opinião pública em termos de afirmações do tipo “já não compreendo nada do que se passa no mundo”. Ou, noutra versão do mesmo fenómeno, a política entre estados passou a ser apresentada como uma contenda entre o líder X do país Y e o líder A do país B, como se o conflito entre estados se reduzisse a uma luta entre o bem e o mal. Particularmente visível na informação televisiva, os acontecimentos passam a ser “culpa” do “ignorante” Trump, do “sanguinário” Putin, do “inconfiável” Xi ou do “insano” Erdoğan. De forma semelhante, as complexidades do Médio Oriente reduzem-se a um confronto entre os “carrascos” israelitas e as “vítimas” palestinianas, encarnações contemporâneas de David e Golias. De forte pendor idealista e moralizante, tais narrativas nada explicam e nada podem explicar a não ser as preferências de quem as constrói. Concomitantemente, fez escola a ideia de que “os outros são como nós”, que outros estados, outras nações, são, essencialmente, motivados pelas mesmas preocupações, ambições e aspirações dominantes nas sociedades ocidentais prósperas, laicizadas e pós-históricas. E também se generalizou a falta de empatia para com os outros; empatia, neste sentido da palavra, não significa concordar, desculpar ou a recusa em julgar. Muito menos se pode confundir com o hiper-relativismo cultural pós-moderno que tudo aceita. Empatia significa, muito simplesmente, uma capacidade de nos colocarmos no lugar do outro de forma a melhor entender as suas intenções, motivações e ações. Empatia permite construir um olhar mais desapaixonado e uma opinião fundamentada. Por exemplo, entender a União

Soviética jamais foi sinónimo de apoiar ou desculpabilizar Moscovo. Todavia, para se compreender a União Soviética, era, primeiro, necessário apreender a lógica do pensamento marxista-leninista, o contexto histórico-cultural da Rússia e as particularidades de personagens como Lenine, Estaline e Gorbachev. Permeada pela arrogância cultural de uma certa intelectualidade ocidental, esta ilusão de que os outros são como nós dispensa conhecimento específico. E explica a nossa incapacidade de definir uma resposta adequada ao surgimento da República Popular da China. A ideologia que orienta o Partido Comunista Chinês é uma preocupação central deste livro. Depois do colapso da União Soviética e do comunismo europeu, generalizou-se a ideia de que o marxismo-leninismo deixara de ser relevante para se compreender os regimes que continuavam a subscrever essa visão do mundo. Se a ideologia aparentava ter ainda algum significado na Coreia do Norte ou em Cuba, era menos claro que restasse algum vestígio de ideologia entre a casta que conduzia os destinos da República Popular da China. Parecia, mas nunca assim foi. Apesar das mutações, que, aliás, começam a ser introduzidas por Mao Zedong nos anos 1930, a ideologia desempenha um papel central na legitimação do regime e proporciona o prisma através do qual os dirigentes chineses continuam a interpretar o mundo. Dito de forma mais simples, compreender a China exige que compreendamos a ideologia subscrita pelo PCC. O regresso à ideologia é um dos elementos característicos da “era Xi Jinping”. Por isso mesmo, este livro debruça-se, com algum detalhe, sobre a ideologia, as mudanças que o PCC introduziu no marxismo-leninismo e a forma como o comunismo continua a interpretar o mundo visto de Beijing. Dir-se-á que a ascensão da China marca o ponto de viragem do século XX. Desde que, em 1978, Deng Xiaoping iniciou a célebre “reforma e abertura” ao mundo, essa longa marcha do país rumo à modernidade gerou resultados fenomenais. Todavia, apesar dos tremendos ganhos obtidos

na era pós-Mao, não deixa de ser precipitado concluir que o país tenha garantido para si um futuro de prosperidade sustentável e poderio internacional. Dito de forma diferente, o surgimento da China como grande potência mundial, por muito provável que seja, não está assegurado. As clivagens duradouras que atravessam a sociedade chinesa, e que no passado provocaram numerosos conflitos internos, permanecem submersa numa superfície de acalmia. Aos imprudentes, a história recorda que os “cisnes negros” fazem intrusões periódicas e indesejáveis e que a vida política frequentemente se faz por rutura22. Nada disto demove os crentes no progresso, nos futuros radiosos e nos admiráveis mundos novos, mesmo quando recordamos que depois das conquistas civilizacionais de Roma se seguiu e as trevas dos bárbaros. Lembremo-nos, pois, da advertência de Robert Burns quanto à futilidade dos “melhores planos dos homens” para que rejeitemos determinismos políticos23. Ao longo da sua história milenar, a China foi um império civilizacional de fronteiras surpreendentemente fluidas, particularmente nas margens norte e oeste24. Embora a identidade chinesa seja fundamentalmente fruto da pertença “civilizacional” e não do exclusivismo étnico, os Han, o maior das dezenas de grupos étnicos que constituem a nação chinesa, representam aproximadamente 92% da população. São, para todos os efeitos, coincidentes com a nação chinesa. Todavia, salienta-se que a população nãoHan atesta a natureza imperial da China histórica, de um império centrado na preservação da ordem, organizado de forma a impedir a instabilidade desencadeada pelo caos social e pela desagregação do poder político. A relevância desta observação reside em dois pontos distintos. Primeiro, não é rigoroso generalizar a partir das políticas recentes prosseguidas por Beijing que visam destruir a identidade cultural dos tibetanos e dos uigures, inclusivamente pela colonização interna inerente à migração em massa dos Han para estas regiões. Houve

períodos em que a diferença, a tolerância e a natureza multicultural da China era respeitada. A política de “hanização” levada a cabo por Xi Jinping no Tibete e em Xinjiang não é, por isso, uma inevitabilidade nem o espelho da “essência” da civilização chinesa. Segundo, a preocupação com a preservação da ordem política não é um exclusivo da sociedade chinesa. Outras sociedades também enfatizam a ordem política. Dito isto, não será excessivo sugerir que a China tem sido a mais consistente a fazê-lo, mesmo que nem sempre tenha sido a mais bem-sucedida. Eis uma das especificidades que explana por que motivo o estado chinês contemporâneo é concebido em moldes atípicos no Ocidente. Esta diferença manifesta-se com maior nitidez nos Estados Unidos (EUA), onde o estado é visto como potencialmente tirânico e onde se faz um esforço hercúleo para impedir que o leviatã possa obstar à busca da liberdade individual. Em contraste com a tradição ocidental, as recorrentes experiências chinesas com a desordem e as devastadoras consequências individuais e coletivas desencadeadas apontam para a importância de um estado forte e centralizado. No passado recente, o colapso da dinastia Qing iniciou um período repleto de desordem, de desagregação territorial, de tirania, de domínio dos senhores da guerra, de guerra civil, de intervenção estrangeira e de ocupação japonesa. As instituições republicanas pós-1912 e os procedimentos semidemocráticos da época fracassaram perante as ambições de Yuan Shikai, tornando-se obstáculos à harmonia social e à preservação da integridade do território nacional. Mais recentemente, a Grande Revolução Cultural Proletária gerou uma década de arbitrariedade e violência desenfreada que reconfirmou os perigos inerentes ao colapso da autoridade do estado25. A ênfase dada por Mao à revolução permanente e à ação das massas populares imunizou as elites comunistas contra processos políticos

gerados de baixo para cima, tornando a política num assunto a ser tratado exclusivamente pelas elites do PCC. Receios similares ressurgiram em 1989, quando os protestos estudantis de Tiananmen alastraram a outros setores da sociedade, incluindo à classe operária em cujo nome se construíam “os amanhãs que cantam”. Tendo recentemente superado o caos da Revolução Cultural, e temendo que os eventos ocorridos na União Soviética e na Europa do “socialismo real” viessem a contaminar a República Popular da China, a casta comunista concluía que a sua estratégia de sobrevivência teria de assentar na repressão do novel, embrionário movimento popular26. As décadas seguintes testemunharam uma “normalização” do regime e inauguraram a “ascensão pacífica” que, mais recentemente, deu lugar ao “Sonho Chinês” de Xi Jinping de “tornar a China novamente grande”. Tudo indica que Beijing superou o “século da humilhação nacional” e se prepara agora para desempenhar um papel preponderante na formação de uma nova ordem internacional pós-liberal. Numa era pós-moderna desorientada e desprovida de âncoras firmes, as nações modernas, à semelhança do trágico Gatsby, são “barcos contra a corrente, incessantemente puxados de volta ao passado”. Eis, aliás, a ilação que Xi Jinping retira da longuíssima experiência histórica chinesa. Este livro encontra a sua justificação no contributo que procura dar para uma discussão pública que se pretende pragmática e desapaixonada. Destina-se ao cidadão interessado por assuntos de política internacional e que procura decifrar o papel reservado à China no mundo contemporâneo. Independentemente do juízo que possamos fazer quanto à bondade (ou não) desse novo papel, é da maior importância debater, de forma descomplexada, uma realidade que acarretará consequências duradouras para o futuro dos portugueses. Esse debate, ainda na sua infância, deve ser feito sem cairmos nas generalidades e mitologias

que, não raras vezes, enviesam a discussão pública. Este livro não é uma história da China, pois existem muitas e de qualidade. Trata-se de um trabalho interpretativo sobre a ascensão da República Popular como grande potência e as consequências daí decorrentes. Analiticamente, o ensaio enquadra-se, genericamente, na tradição do pensamento “realista” das Relações Internacionais. Nas páginas que se seguem, são abordados alguns acontecimentos da política interna da RPC; outros são referidos de forma mais condensada e na medida do estritamente necessário para enquadrar a ascensão do país. O leitor que procura desenvolver conhecimentos mais específicos sobre as questões aqui levantadas deve consultar as notas de referência, onde encontrará sugestões de leitura adicional. Há, também, temas de grande interesse e atualidade que o ensaio omite porque nada acrescentam ao propósito fulcral do livro. Por exemplo, uma discussão sobre as relações da União Europeia com a República Popular, que certamente farão correr muita tinta nos próximos meses e anos, não é central para entender a ascensão da China. Em contrapartida, e por razões que parecem óbvias, a política externa dos Estados Unidos relativamente à China merece destaque. Similarmente, salienta-se a natureza complexa da rivalidade sino-americana na Ásia e, em particular, no Mar do Sul da China, a zona mais perigosa do globo. * Um livro nunca é um trabalho individual. Gostaria, pois, de agradecer à Zita Seabra, e à equipa da Alêtheia, por ter apostado na publicação deste trabalho. Uma versão preliminar foi apresentando no Instituto de Defesa Nacional, a cuja diretora, Helena Carreiras, agradeço. O Sérgio Vieira da Silva e o Jorge Gabriel deram sugestões que melhoraram o texto final. Estou-lhes grato.

* A minha maior dívida é para com as pessoas que me são mais próximas. Sabem quem são. Roubei-lhes muito tempo e, ainda assim, estiveram lá, sempre. 1. Ver, por exemplo, Ralph Peters, “China Lies, China Kills, China Wins”, Strategika, Issue 63, Hoover Institution, 23 de abril de 2020, acessível em: https://www.hoover.org/research/china-lies-china-kills-china-wins. Sobre a posição oficial chinesa, ver, “Reality Check of US Allegations Against China on Covid-19”, Xinhua, 10 de maio de 2020, disponível em: http://www.xinhuanet.com/english/2020-05/10/c_139044103.htm. 2 . Ver, World Health Organization, “Novel Coronavirus (2019-nCoV), Situation Report 1, 21 de janeiro de 2020, acessível em: https://www.who.int/docs/defaultsource/coronaviruse/situation-reports/20200121-sitrep-1-2019-ncov.pdf. 3 . As afirmações do Diretor-Geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, podem ser encontradas em, “Press briefing on WHO Mission to China and novel coronavirus outbreak, 29 de janeiro de 2020, consultado em: https://www.who.int/dg/speeches/detail/press-briefing-on-who-mission-to-chinaand-novel-coronavirus-outbreak. 4. Ver, “China delayed releasing coronavirus info, frustrating WHO”, Associated Press, 3 de junho de 2020, consultado em: https://apnews.com/article/3c061794970661042b18d5aeaaed9fae. 5 . Cf., Shawn Yuan, “Inside the Early Days of China’s Coronavirus Coverup”, Wired, 1 de março de 2020, disponível em: https://www.wired.com/story/insidethe-early-days-of-chinas-coronavirus-coverup/. 6 . Ver, “China didn’t warn public of likely pandemic for 6 key days”, Associated Press, 15 de abril de 2020, disponível em: https://apnews.com/article/68a9e1b91de4ffc166acd6012d82c2f9. 7 . Ver, “China atrasou partilha de mapa genético do vírus com a OMS”, Diário de Notícias, 2 de junho de 2020, acessível em: https://www.dnoticias.pt/2020/6/2/49184-china-atrasou-partilha-de-mapagenetico-do-virus-com-a-oms. 8 . Para uma discussão, ver, Kiliç Bugra Kanat, “Transatlantic Relations in the Age of Donald Trump”, Insight Turkey, Vol. 20, No. 3, Verão de 2018, pp. 77-88 e Jeremy Shapiro e Dina Pardijs, “The Transatlantic Meaning of Donald Trump: A US-EU Power Audit”, European Council on Foreign Relations, setembro de 2017, disponível em https://www.ecfr.eu/page/-/US_EU_POWER_AUDIT.pdf. 9 . Cf., Joyce Huang, “China, Czech Republic at Odds After Czech Officials Visit Taiwan”, VOA News, 5 de setembro de 2020, disponível em https://www.voanews.com/east-asia-pacific/china-czech-republic-odds-afterczech-officials-visit-taiwan. 10 . Ver a nota à imprensa do Conselho Europeu na cimeira de Junho de 2020, “EU-China Summit: Defending EU interests and values in a complex and vital partnership – Press release by President Michel and President von der Leyen”, Conselho Europeu, 22 de junho de 2020, acessível em:

https://www.consilium.europa.eu/pt/press/press-releases/2020/06/22/eu-chinasummit-defending-eu-interests-and-values-in-a-complex-and-vital-partnership/. Para as conclusões da “follow-up”, realizada a 14 de setembro de 2020, ver, “EU-China leaders’ meeting via video conference, 14 September 2020”, Conselho Europeu, 14 de setembro de 2020, disponível em: https://www.consilium.europa.eu/en/meetings/international-summit/2020/09/14/. 11 . Cf., Vítor Matos, “Portugal tem de escolher agora entre os aliados e os chineses”, Expresso, 26 de setembro de 2020, p. 14. No mesmo dia, Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros, responde às declarações de George Glass. Ver, “Santos Silva responde a embaixador dos EUA: “Quem toma as decisões é Portugal”, Público, 26 de setembro de 2020, disponível em: https://www.publico.pt/2020/09/26/politica/noticia/santos-silva-respondeembaixador-eua-toma-decisoes-portugal-1932962. 12 . Sobre a perseguição religiosa na China contemporânea, ver, inter alia, Gina Goh, “Religious Suppression in China: The legal underpinning and practical implications of China’s systematic repression of religion”, International Christian Concern, julho de 2020, disponível em: https://www.persecution.org/wpcontent/uploads/2020/07/071720_icc_china_report.pdf e United States Department of States, Office of International Religious Freedom, “2019 Report on International Religious Freedom: China (Includes Tibet, Xinjiang, Hong Kong, and Macau)”, 10 de junho 2020, consultado em: https://www.state.gov/wpcontent/uploads/2020/06/CHINA-INCLUDES-TIBET-XINJIANG-HONG-KONG-ANDMACAU-2019-INTERNATIONAL-RELIGIOUS-FREEDOM-REPORT.pdf. Ver, também, Ian Johnson. The Souls of China: The Return of Religion After Mao. Londres: Allen Lane, 2017. 13 . Cf., Sarah Cook, “The Battle for China’s Spirit: Religious Revival, Repression, and Resistance under Xi JInping”, Freedom House Special Report, fevereiro de 2017, disponível em: https://freedomhouse.org/sites/default/files/202002/FH_ChinasSprit2016_FULL_FINAL_140pages.pdf. 14 . Ver, “China’s Xi warns against religious infiltration from abroad”, Associated Press, 24 de abril de 2016, disponível em: https://apnews.com/article/0181dc9eb62b4c91ae76818b97c17eb0. 15 . Ver, Anna Carletti, “As Relações entre Santa Sé e a República Popular da China durante o Pontificado de João Paulo II”, Revista Conjuntura Austral, Vol. 2, No. 6, junho/julho de 2011, pp. 69-91, disponível em: https://www.seer.ufrgs.br/ConjunturaAustral/article/viewFile/20558/12056. 16 . Algumas das mais recentes contribuições incluem: Stephen R. Platt. Imperial Twilight: The Opium War and the End of China’s Last Golden Age. Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 2018; Patrick Fuliang Shan. Yuan Shikai: A Reappraisal. Vancouver: UBC Press, 2018; Elizabeth C. Economy. The Third Revolution: Xi Jinping and the New Chinese State. Nova Iorque: Oxford University Press, 2018; George Magnus. Red Flags: Why Xi’s China is in Jeopardy. New Haven: Yale University Press, 2018 e Julia Lovell. Maoism: A Global History. Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 2019. 17 . O mais completo trabalho sobre a política externa da República Popular da China é: John W. Carver. China’s Quest. The History of the Foreign Relations of the People’s Republic of China. Oxford: Oxford University Press, 2016. Sobre o papel da China no sistema internacional ao longo da Guerra Fria até aos nossos

dias, cf., Carlos Gaspar. O Regresso da Anarquia: Os Estados Unidos, a Rússia, a China e a Ordem Internacional. Lisboa: Alêtheia Editores, 2019. 18 . Cf., Sulmaan Wasif Khan. Haunted by Chaos: China’s Grand Strategy from Mao Zedong to Xi Jinping. Cambridge: Harvard University Press, 2018. 19 . Cf., Jean Chesneaux. China: The People’s Republic, 1949-1976. Nova Iorque: Random House, 1979, p. ix. 20 . Cf., por exemplo, Li Zhaojie, “Legacy of Modern Chinese History: Its Relevance to the Chinese Perspective of the Contemporary International Legal Order”, Singapore Journal of International and Comparative Law, 5, 2001, pp. 314-326, disponível em: https://cil.nus.edu.sg/wp-content/uploads/2018/07/lizhaojie-legacy-of-modern-chinese-history-its-relevance-to-the-chineseperspective-of-the-contemporary-international-legal-order.pdf. 21 . Ver, George Santayana. The Life of Reason: Introduction and Reason in Common Sense. Cambridge: MIT Press, 2011, p. 172. 22 . Cf., Nassim Nicholas Taleb. The Black Swan: The Impact of the Highly Improbable. Nova Iorque: Random House, 2007. 23 . Cf., John Wain (ed.). The Oxford Anthology of English Poetry: Blake to Heaney. Oxford: Oxford University Press, 1990, p. 22. 24 . Sobre o conceito de “estado civilizacional” e a sua aplicação à China, cf., Weiwei Zhang. The China Wave: Rise of a Civilizational State. Hackensack: World Century Publishing Corporation, 2012; Weiwei Zhang. The China Horizon: Glory and Dream of a Civilizational State. Hackensack: World Century Publishing Corporation, 2016 e Christopher Coker. The Rise of the Civilizational State. Cambridge: Polity Press, 2019. 25 . Sobre a Revolução Cultural, cf., inter alia, Roderick MacFarquhar and Michael Schoenhals. Mao’s Last Revolution. Cambridge: Harvard University Press, 2006 e Frank Dikotter. The Cultural Revolution: A People’s History, 1962-1976. Londres: Bloomsbury Publishing, 2016. 26 . Relativamente ao “contágio” europeu, cf., M. E. Sarotte, “China’s Fear of Contagion: Tiananmen Square and the Power of the European Example”, International Security, Vol. 37, No. 2, Outono de 2012, pp. 156-182.

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Capítulo I – A HISTÓRIA COMO PRESENTE   “The past is never dead. It’s not even past”. (William Faulkner, Requiem for a Nun)

  Referência incontornável para aclarar a especificidade do comportamento da casta comunista chinesa, o “século da humilhação nacional” ( ) denota o período tumultuoso decorrente entre a Primeira Guerra do Ópio, iniciada em 1839, e a vitória do Partido Comunista Chinês (PCC) sobre o seu rival nacionalista, o Guomindang (GMD), cuja retirada forçada para a Formosa, em 1949, põe termo à devastadora guerra civil que assolara o país durante duas décadas. No dia 1 de outubro de 1949, Mao Zedong, discursando do alto do Portão da Paz Celestial (Praça Tiananmen) de Beijing, solenemente proclama o estabelecimento da República Popular da China (RPC), assinalando formalmente o fim do “século da humilhação nacional”. Pouco antes dessa seminal cerimónia, o novo autocrata comunista explicava que o seu triunfo significava que a China finalmente se “levantara”, encerrando deste modo o período calamitoso marcado pela fraqueza nacional e pela irrelevância internacional27. A “libertação” ocorrida em 1949, o acontecimento que sustenta a atual narrativa oficial da República Popular, e que, não menos importante, que confere legitimidade ao PCC para realizar o “rejuvenescimento” do país, constituía, pois, o primeiro e necessário passo para viabilizar a reemergência da China como grande potência mundial28. Dir-se-á que Mao Zedong abriu caminho para a realização do “Sonho Chinês” do “grande rejuvenescimento da nação chinesa” que Xi Jinping se propõe cumprir. A grande estratégia que hoje orienta o comportamento internacional

da República Popular é, portanto, incompreensível na ausência de uma análise do impacto do “século da humilhação nacional” na Weltanschauung – na mundividência – das elites comunistas detentoras do poder em Beijing29. O prisma através do qual entendem a experiência histórica do país, e, em particular, o “século da humilhação nacional”, continua a moldar de forma decisiva a sua visão do mundo e das relações internacionais contemporâneas. Orientado pelo objetivo de tornar a RPC num estado moderno, desenvolvido e forte, o PCC, qua instituição, garante a linha de continuidade estratégica que une a “era Mao Zedong” e a “era Xi Jinping”. Reconhecendo esta mesma continuidade, Xi, aquando de uma visita à província de Hebei pouco tempo depois de conquistar a liderança do partido, afirma que a história revolucionária do país era o “melhor nutriente” para “garantir que a cor da China vermelha nunca mudará”30. Dito de outra forma, o futuro comunista da China é indissociável do seu passado. Componente nuclear da propaganda do Partido Comunista Chinês desde 1949 e da complexa narrativa legitimadora do regime, o “século da humilhação nacional” afigura-se como uma patente rutura com a história milenar do país. Durante séculos, Zhōngguó posicionou-se no centro do mundo, dominando “tudo debaixo dos céus”. No mundo hierarquizado imaginado pela corte imperial, a centralidade do país manifestava-se por meio de uma rede de relações tributárias com as unidades políticas circundantes31. Será justamente esse mundo sinocêntrico que se desmorona nos anos subsequentes às Guerras do Ópio, altura em que as potências estrangeiras relegam o Império do Meio para um lugar de dependência, subjugação e humilhação. Num sistema global de estados modernos que atuam em conformidade com as regras e dinâmicas definidas pela Paz de Vestefália, o destino da China, no período posterior às Guerras do Ópio, passa, em larga medida, a residir nas chancelarias estrangeiras.

Deveras traumático, este inesperado choque das elites imperiais com o mundo exterior à civilização chinesa abalou os alicerces da dinastia Qing. A sua manifesta incapacidade de antecipar e moldar o encontro com o mundo moderno dos séculos XVIII e XIX deixa marcas profundas na consciência nacional chinesa que, ainda hoje, não sararam. Todavia, contrariamente às conclusões sub-repticiamente promovidas pela narrativa do “século da humilhação nacional”, seria um equívoco sugerir que a China fora apenas uma vítima passiva da malvadez e da voracidade estrangeiras. Na realidade, a China foi também – ou, talvez, sobretudo – vitimizada pelas elites imperiais e republicanas que se recusaram a abraçar as novas realidades internacionais introduzidas pela modernidade. Não surpreende, pois, que a caminhada histórica do país ao longo do século XX seja fundamentalmente marcada pela busca da modernização, pela tentativa de encontrar um modelo de desenvolvimento político e socioeconómico passível de inserir a China num mundo moderno estruturado pelo capitalismo e o estado-nação. A menos que se modernizasse, a China jamais superaria o “século da humilhação nacional”.   Um império celestial   Embora não tenham sido os primeiros europeus a visitar Zhōngguó, os portugueses deixaram nesse país uma marca tão profunda quanto duradoura. Avanços no âmbito da tecnologia náutica ocorridos ao longo do século XV permitiram que Vasco da Gama chegasse à Índia por via marítima em maio de 1498, um feito que, na formulação de Shihan de Silva Jayasuriya, “transformou o Oceano Índico numa zona de contato cultural entre o Oriente e o

Ocidente”32. A leste de Calecute (Kozhikode), os marinheiros portugueses alcançaram a ilha nipónica de Tanegashima em 1543, sendo os primeiros europeus a estabelecer contacto com o Japão, onde introduziram armas de fogo, modernizaram o comércio a partir do porto de Nagasáqui e abriram caminho para as disruptivas missões de evangelização jesuíta. Balizado por estes dois acontecimentos, os portugueses, depois de consolidarem a sua presença no Oriente por meio de um sistema de entrepostos comerciais, avistam as terras dos Ming quando Jorge Álvares, partindo de Malaca, desembarca na ilha de Ling-Ting em 1513, o primeiro europeu a atingir a China por mar. Dois anos mais tarde, Rafael Perestrelo encontra o estuário do rio das Pérolas, um feito que dá início à longa presença comercial, militar e religiosa de Portugal na China33. Sob a administração de Lisboa a partir de 1557, Macau, o último posto imperial da Europa em terras asiáticas, será finalmente transferido para a soberania chinesa em 1999, meio século depois da “libertação” de 1949, e um portentoso símbolo do novo “século chinês” avidamente antecipado pelas autoridades comunistas de Beijing34. Marinheiros portugueses chegaram a Zhōngguó menos de um século depois de o Reino do Meio se ter isolado do mundo exterior. Nas primeiras décadas do século XV, o almirante Zheng He fez sete célebres viagens marítimas de descoberta e engajamento no “Oceano Ocidental”, atingindo as terras distantes do Sudeste Asiático, do Médio Oriente e de África. Sancionadas pelo Imperador Yongle, as viagens, a primeira das quais mobiliza 62 navios e 28,000 homens, chegam abruptamente ao fim por ordem do Imperador Xuande35. Como resultado dessa decisão, que ainda hoje permanece largamente insondável, o Império Celestial fechou-se sobre si próprio. Excetuando as pedras raras, os animais exóticos e os novos conhecimentos geográficos chegados à corte imperial, as viagens não

produziram benefícios duradouros. Nos nossos dias, particularmente desde a ascensão política de Xi Jinping, o regime comunista insiste em enaltecer Zheng He, elegendoo como símbolo da longa tradição nacional de exploração e descoberta, da “abertura” do país ao mundo e das suas intenções pacíficas36.A realidade histórica é, porém, consideravelmente menos benigna: o império era deveras ambíguo, quando não condescendente e xenófobo, em relação às longínquas terras bárbaras escudadas da salutar influência da civilização siníca. Com o fim das viagens oceânicas de Zheng He, Zhōngguó assume-se como um império continental e apenas regressa aos mares nos finais do século XX. A história moderna da China coincide essencialmente com o domínio da dinastia Qing, abrangendo o período entre 1644 e 1912, ano em que a república de Sun Yat-sen emerge dos escombros do estado imperial37. Originários da Manchúria, os Qing adquiriam uma identidade distinta quando Nurhaci, chefe do clã Aisin Gioro, une sob o seu comando as várias tribos jurchens, que passam a ser conhecidas como manchus. Unificados, derrotam ou absorvem os seus rivais à medida que, paulatinamente, marcham para o sul em direção às prósperas terras Ming38. Um ano antes de os guerreiros manchu se apoderarem da capital imperial, a crise da dinastia Ming acentua-se quando Chongzhen, o último Imperador Ming, se suicida no seguimento da captura de Beijing pelo exército rebelde comandado por Li Zicheng. Quando este investe contra o exército imperial Ming do general Wu Sangui, incumbido de guardar a passagem de Shanhai da Grande Muralha, Wu destranca os portões, permitindo assim a ofensiva final dos manchu contra Beijing39. Depois de três gerações de guerra aos Qing, os manchus, em 1644, estabelecem finalmente o seu domínio sobre Zhōngguó. Se é verdade que os imperadores da dinastia Qing são hoje lembrados por terem reinado durante o “século da

humilhação nacional” e presidido ao colapso de um império milenar, é igualmente verdade que a dinastia produziu dois governantes excecionais –, o Imperador Kangxi (no trono entre 1661 e 1722) e o Imperador Qianlong (no trono entre 1735 e 1796) – que supervisionaram verdadeiras “épocas douradas” de prosperidade material e expansão territorial. Aliás, até às primeiras décadas do século XVIII, a economia chinesa gerava aproximadamente um quarto do produto mundial, um feito que contribuía para a convicção de que tudo “debaixo dos céus” permanecia harmonioso40. Enquanto os Qing constroem um império multicultural orientado pelo confucionismo, Zhōngguó, próspera e autoconfiante, rodeia-se de colónias e estados tributários, tais como a Coreia e o Vietname, que, com maior ou menor relutância, aceitam a sua subordinação ao Imperador Celestial. Após a conquista e anexação de Taiwan, em 1683, a estabilidade prevalece na costa leste, onde, com a notável exceção do Japão, os demais estados litorais são incorporados na zona de influência chinesa através de relações tributárias. A prudência política dos Qing dissuadia geralmente o exercício direto do poder político sobre estas terras estrangeiras, razão pela qual os estados vassalos usualmente conduziam os seus assuntos com um grau substancial de autonomia. Neste sistema hierarquizado, o relacionamento sino-coreano era atípico justamente porque Beijing se envolve diretamente na política quotidiana da Coreia, efetivamente transformando-a numa colónia. Tratava-se de uma relação que, nos derradeiros anos do século XIX, provocará grandes dissabores a Beijing. Excluído deste espaço sinizado, ordenado e hierárquico, o mundo dos bárbaros, intocados pela civilização milenar de Zhōngguó, era, para a corte imperial, destituído de interesse porque nada poderia ensinar ou oferecer. Mesmo assim, e em notório contraste com o litoral, o perigo paira no flanco norte do império sob a forma de um poder irrequieto e crescentemente beligerante que se estende

desde a vastíssima planície europeia às infindáveis terras baldias da Sibéria41. A imensidade geográfica da Rússia, englobando intermináveis territórios repletos de variados recursos naturais, faz do império czarista um formidável perigo que não pode ser simplesmente ignorado. Determinada a impedir a eclosão de eventuais hostilidades, a corte chinesa recorre à diplomacia para garantir a manutenção do status quo nas fronteiras setentrionais. Mas a imensidão geográfica do império czarista também acarreta vulnerabilidades consideráveis para os moscovitas. Atendendo às dificuldades inerentes ao exercício pleno da soberania do Czar numa região escassamente povoada e de defesa difícil, Moscovo vê utilidade em acordar arranjos diplomáticos que pudessem diminuir o fardo da defesa territorial sem comprometer a sua futura expansão imperial. Neste quadro de vulnerabilidade estratégica mútua, o Czar Ivan V e o Imperador Kangxi celebram o Tratado de Nerchinsk de 1689, que demarca a fronteira ao longo do rio Amur e clarifica as condições para a condução do comércio transfronteiriço. A singularidade do Tratado, o primeiro selado entre a China e uma potência europeia, reside no facto de a corte chinesa nunca antes ter reconhecido um monarca estrangeiro que não se encontrasse vinculado ao Império Celestial por relações de tributo. Pela primeira vez, o Imperador vê-se obrigado a estabelecer relações de plena igualdade com uma potência bárbara. As realidades externas começavam, pois, a impor-se à corte celestial. Mais tarde, em 1727, os termos do Tratado de Nerchinsk são reforçados pelo Tratado de Kiakhta, através do qual as autoridades chinesas consentem em aprofundar o comércio transfronteiriço e aceitam a presença de 200 mercadores russos em Beijing a cada três anos. Notáveis conquistas diplomáticas, os tratados efetivamente impediram a eclosão da guerra entre os dois impérios até meados do século XIX, quando, impulsionado pela fraqueza dos Qing, o expansionismo russo investe contra terras chinesas há

muito cobiçadas. Pacificadas as relações com a Rússia por meio do Tratado de Nerchinsk, o Imperador Kangxi prossegue a expansão territorial para as vastas terras fronteiriças da Ásia Central para conter as incessantes rebeliões dos zunghar, face aos quais o império revela a sua extrema crueldade42. Na década de 1750, o Imperador Qianlong cimenta a integração do Tibete e da Mongólia no império e reafirma o controlo sobre a parte ocidental da Ásia Central43. Neste período, são conduzidas campanhas militares selváticas contra a Zungharia, um canato mongol que se estendia desde o coração da Mongólia até às fronteiras do Tibete. Após sete décadas de guerra implacável, o Imperador Qianlong, determinado a encontrar uma “solução final” para quebrar a resistência dos zunghar, emite uma “ordem de extermínio” destinada a suprimir a população44. Assassinatos em massa são sancionados e uma fronteira – o significado literal de Xinjiang – será, brutalmente, incorporada no império45. Guerras imperiais foram também prosseguidas mais a sul, onde, na década de 1760, o Imperador Qianlong perde 70,000 soldados numa tentativa fracassada de manter a Birmânia sob a tutela da Corte Celestial. No Vietname, o estado mais sinizado da vizinhança, a influência Qing diminui depois de Qianlong intervir na guerra civil do final da década de 1780 com o intuito de auxiliar Lê Chiêu Thông a recuperar o seu trono46. Embora os vietnamitas tenham voltado a pagar tributo depois desta debacle, que ceifa a vida de 200.000 soldados chineses, os Qing sofrem uma avultada perda de prestígio. Em resultado do discurso oficial do Partido Comunista Chinês, generalizou-se a impressão de que a China, ao longo da sua história, pautara as suas relações externas pela “harmonia”, jamais constituindo uma ameaça para os seus vizinhos. Aceitando acriticamente esta premissa, conclui-se que, em conformidade com esta mesma tradição histórica, o regresso da China à mesa das grandes potências

mundiais far-se-á por meio de um “surgimento pacífico”. Como é sobejamente sabido, a narrativa do “surgimento pacífico” tem sido incansavelmente promovida pelas autoridades comunistas. Acontece que a realidade não coincide com tal leitura benigna do passado. Antes da ruína das Guerras do Ópio, a China fora um império expansionista inteiramente confortável com o uso da força militar para impor e manter a sua hegemonia em terras conquistadas – hoje conhecidas como Tibete e Xinjiang – na periferia do heartland imperial dos Han.   As guerras do ópio   Em meados do século XVIII, aquando das duas desastrosas Guerras do Ópio que assolaram o Império do Meio, as “épocas douradas” dos imperadores Qianlong e Kangxi são memórias distantes num país relegado ao atraso. São várias as razões que explicam a estagnação chinesa. Desde logo, a inovação tecnológica impulsionada pelo capitalismo permitiu que as nações ocidentais se distanciassem, económica e militarmente, do Império do Meio. Mas o indubitável atraso tecnológico chinês não fora o único motivo dos fracassos verificados durante as Guerras do Ópio. A bem dizer, as raízes do declínio encontram-se, precisamente, nas guerras imperiais de expansão prosseguidas durante as décadas anteriores que, no início do século XIX, se manifesta na forma de uma “sobreextensão imperial”47. Em simultâneo, fruto da paralisia do aparelho administrativo, da indiferença e da corrupção generalizada das elites imperiais, a dinastia Qing tornara-se incapaz de delinear respostas inovadoras para superar as vulnerabilidades do país face às colossais capacidades das potências estrangeiras. Nesse sentido, a

ofensiva britânica de 1839, evidenciando a inaptidão da dinastia para se adaptar às novas realidades domésticas e internacionais, meramente acentua um rol de problemas há muito enfrentado pelos Qing. As origens imediatas das Guerras do Ópio remontam a 1757, ano em que o Imperador Qianlong, a braços com a expansão do comércio britânico de ópio para o norte do país, decreta que Cantão será o único porto aberto a navios comerciais ocidentais48. Embora sujeitos a restrições significativas, os navios europeus seriam autorizados a realizar trocas nesta cidade situada no estuário do rio das Pérolas. Longe de consubstanciar um regime de comércio livre, o “sistema Cantão” distinguia-se pelas suas inúmeras limitações: navios de guerra, armas de fogo e mulheres estrangeiras eram proibidas no interior do perímetro da cidade. Confinados às “fábricas estrangeiras” localizadas fora dos portões que davam acesso a Cantão, os mercadores podiam visitar o porto apenas entre outubro e março, durante a época comercial, e, antes, sendo-lhes exigido que atracassem antes em Huangpu, a sul de Cantão, depois de obterem uma licença comercial em Macau. A maioria destes homens de negócios representavam a Companhia das Índias Orientais, cujo comércio com a China era estimulado pela insaciável procura de chá, cujo consumo fora popularizado por Catarina de Bragança. No entanto, uma vez que os chineses recusavam comprar mercadorias europeias e exigiam prata como pronto pagamento pelo chá, Londres acumulava elevadíssimos deficits. Dada a necessidade de equilibrar a relação comercial e de inverter a balança de pagamentos, os homens de negócios britânicos concluíram que a inversão da situação passava pela abertura do mercado chinês ao ópio produzido, a baixo custo, na Índia. Fruto da sua crescente penetração comercial da Ásia, Londres, em 1793, incumbe George Macartney com a missão de encabeçar a primeira embaixada da Grã-

Bretanha ao Império do Meio com o propósito explícito de incrementar as relações diplomáticas e comerciais entre os dois impérios49. Todavia, a missão confiada a Macartney encalha devido a intransponíveis dificuldades de entendimento. Presumindo que os visitantes pretendem prestar-lhe homenagem, o Imperador Qianlong manifesta a sua estupefação quando o enviado britânico solicita o alívio das restrições comerciais em vigor e a autorização para que delegados comerciais do seu país passassem a residir em permanência em Beijing. Para a Corte Celestial, as ousadas, indecorosas solicitações dos bárbaros eram inaceitáveis, como aliás, atesta a carta dirigida pelo Imperador Qianlong ao rei George III. A missiva, na qual o Imperador se dirige ao rei britânico de forma extraordinariamente condescendente, expõe o profundíssimo fosso cultural que separa os dois monarcas. Justifica-se, por isso, a seguinte citação: “Você, ó rei, vive além dos limites de muitos mares. No entanto, impelido pelo seu humilde desejo de participar dos benefícios de nossa civilização, você enviou uma missão respeitosamente levando o seu memorial (...). Eu examinei o seu memorial: os termos mais sérios em que é expresso revelam uma humildade respeitosa da sua parte, o que é altamente louvável. Considerando que o seu Embaixador e seu vice percorreram um longo caminho com o seu memorial e homenagem, mostrei-lhes grande favor e permiti que fossem introduzidos na minha presença. Para manifestar a minha indulgência, recebi-os com um banquete e entregueilhes numerosos presentes (...). Quanto à sua solicitação de enviar um dos seus nacionais para ser credenciado junto da minha Corte Celestial e para controlar o comércio do seu país com a China, o pedido é contrário a todo o costume da minha dinastia e não pode ser equacionado. (...) o representante que propõe enviar à minha Corte não poderia ser colocado numa posição semelhante à dos funcionários europeus em Beijing que estão proibidos de deixar a China,

nem poderia, por outro lado, ter a liberdade de circulação e o privilégio de se corresponder com o seu próprio país; pelo que não ganharia nada com a sua residência no nosso meio”50. A missiva revela o elevado grau de desdém, autoconvencimento e autocomplacência que permeia a mundividência da elite imperial. Dir-se-á que, na ausência de um tão profundo desconhecimento do mundo exterior, dificilmente a China teria embarcado nas desastrosas Guerras do Ópio que originaram o “século da humilhação nacional”. Não se quer com isto dizer que a Grã-Bretanha deva ser ilibada de responsabilidade pelo conflito. Quer-se somente frisar que a versão chinesa que atribui responsabilidade exclusiva às potências estrangeiras, assim permitindo o discurso da vitimização, é historicamente insustentável. Londres, porém, não será dissuadida pelo insucesso de Macartney. Passados 22 anos, envia, em 1816, uma segunda embaixada, liderada por William Pitt (Lord Amherst), que, essencialmente devido às mesmas razões, termina igualmente em desastre. Chegado à corte imperial, em 29 de agosto de 1816, Lord Amherst invoca uma indisposição e abandona o Antigo Palácio de Verão imediatamente antes do início da audiência com o Imperador. Na realidade, o emissário britânico retira-se do palácio porque recusa prostrar-se perante o Imperador, um ato de reconhecimento simbólico da subordinação da GrãBretanha à dinastia celestial51. A importância do episódio reside na forma como cada império vê o seu lugar no mundo e a forma como concebem a condução apropriada das relações entre estados. Tratava-se de um abismo intransponível entre dois poderes convencidos da sua centralidade na política mundial. Quando Lord Amherst se desloca a Beijing, as relações entre as partes são, na melhor das hipóteses, ténues. A desconfiança chinesa relativamente às potências estrangeiras agravara-se quando a corte imperial barra o

dilúvio de ópio a entrar em Zhōngguó52. Com o objetivo de conter o influxo, o Imperador Yongzheng, em 1729, declara a proibição da sua venda e consumo. A proibição será reiterada em 1796 e, três anos depois, em 1799, o Imperador Jiaqing reforça a proibição e ilegaliza tanto a importação como o cultivo de ópio. A Companhia das Índias Orientais desafia abertamente a lei chinesa quando introduz no país quantias copiosas da droga,53 amplamente produzida e disponível a baixo custo na Índia. A quantidade de ópio exportado para a China triplica na década de 1820, e, em paralelo, o contrabando torna-se numa fonte significativa da receita da Companhia das Índias Orientais e da coroa britânica. Inversamente, o tesouro do Imperador esvazia-se54. Neste quadro de tensão aguda, os comerciantes britânicos clamam pelo alívio das restrições impostas pelo “sistema de Cantão”, exigências que se tornam mais insistentes após a decisão do parlamento de Westminster, tomada em agosto de 1833, de abolir o monopólio do comércio com a China detido pela Companhia das Índias Orientais. Confrontado com interesses comerciais britânicos crescentemente assertivos, o Imperador Daoguang (que, em 1820, sucedera ao seu pai) recusa suspender a proibição e, em 1838, envia Lin Zexu para Cantão com ordens expressas para pôr termo às atividades contrabandistas. Chegado a Cantão, em março de 1839, Lin prende os contrabandistas chineses associados aos mercadores estrangeiros, confisca os stocks da droga e decide bloquear o porto se os navios europeus não entregassem as suas cargas às autoridades55. A situação degrada-se quando Charles Elliot, o comissário comercial britânico residente em Cantão, organiza um bloqueio à cidade e aconselha os estrangeiros a abandonarem a localidade. Procurando firmar um acordo com os britânicos, Lin Zexu propõe substituir o ópio por quantidades iguais de chá a preço fixo. A oferta será recusada e, no seguimento do colapso das negociações,

tropas chinesas são enviadas para o enclave ocidental para confiscar e destruir os valiosos stocks de ópio. Sob a supervisão de Lin Zexu, “20,281 baús, avaliados entre dois e três milhões, foram destruídos com precauções extraordinárias entre 3 de maio e 23 de maio”56. Meses mais tarde, no início de setembro de 1839, navios britânicos e chineses confrontam-se nas águas da península de Kowloon e, em junho de 1840, a Marinha Real apreende Cantão, permitindo assim, através do rio das Pérolas, a entrada das suas forças no interior chinês. A inequívoca superioridade militar europeia é simbolizada pelos tecnologicamente sofisticados navios a vapor, tais como o Nemesis, cujo poder de fogo possibilita o bombardeamento das cidades costeiras, dilatando assim a profundidade estratégica a Grã-Bretanha. Xangai será ocupada no ano seguinte por forças britânicas que desembarcam em Tianjin. Derrotado, o Imperador Daoguang, em 29 de agosto de 1842, assina o Tratado de Nanjing que põe fim à Primeira Guerra do Ópio, cujos termos serão, um ano depois, reforçados com a celebração do Tratado complementar de Bogue57. Para além das reparações financeiras impostas por estes “tratados desiguais”, Beijing cede a Londres “em perpetuidade” Hong Kong e várias pequenas ilhas. Também abre Cantão e quatro portos adicionais – Xangai, Ningpo, Foochow e Amoy – a interesses estrangeiros. Quanto aos mercadores britânicos que abandonaram Cantão, é-lhes atribuída compensação pecuniária pelos prejuízos sofridos. Um ano depois, a Grã-Bretanha obtém o estatuto de nação mais favorecida e disposições de extraterritorialidade. Impulsionados pelos notáveis sucessos de Londres, os franceses, em 1843 e 1844, impõem tratados garantindo concessões virtualmente idênticas. Mas as concessões não serão atribuídas somente às potências europeias. Por meio do Tratado de Wanghsia, celebrado em julho de 1844 (e em vigor até 1943), os Estados Unidos são contemplados com concessões e privilégios praticamente idênticos àqueles que

foram extraídos pelos estados europeus. Ao acentuar a instabilidade no Império, a derrota militar da dinastia Qing às mãos das potências ocidentais detona a Rebelião Taiping58. Proclamando-se o irmão mais novo de Jesus Cristo, Hong Xiuquan, em 11 de janeiro de 1851, anuncia o estabelecimento de Taiping Tianguo, o “Reino Celestial de Grande Paz”. Portador de uma mensagem messiânica de salvação e de unidade cristã, Hong mobiliza um exército camponês para expulsar os manchus do poder e integrar a China num imaginado estado cristão universal59. A dimensão religiosa/ideológica do movimento popular funde-se com reivindicações sociais concretas relativas a impostos e à posse da terra, as principais fontes do descontentamento entre os camponeses revoltosos. A rebelião alastra velozmente pelo sul da China, mas será definitivamente suprimida em 1864, quando as forças imperiais ocupam Nanjing, a capital rebelde. A mais sangrenta guerra civil da história mundial salda-se pela perda de mais de 20 milhões de vidas60. Embora Taiping Tianguo tenha sido brutalmente suprimido, a rebelião, e as razões que mobilizaram o campesinato, marcará profundamente o pensamento e a praxis política de Mao Zedong e do movimento comunista chinês. Direcionados para as tarefas inerentes à mobilização dos vastos recursos requeridos para reprimir os revoltosos Taiping, os Qing abrem, inadvertidamente, uma janela para as potências ocidentais exigirem concessões adicionais. As tensões voltam a agravar-se em finais de fevereiro de 1856, altura em que o missionário francês Auguste Chapdelaine é preso, julgado e decapitado por pregar o cristianismo. O incidente provoca ultraje generalizado no Ocidente e leva Paris a aliar-se aos britânicos para reclamar a legalização imediata do comércio de ópio e outras concessões61. Neste clima de fricção incessante agudizada pela escalada de exigências, as autoridades chinesas, em 8 de outubro de 1856, inspecionam o Arrow, um navio de Hong Kong de

bandeira britânica, e detêm virtualmente toda a sua tripulação62. As autoridades imperiais alegavam que o registo britânico do Arrow havia expirado e, como consequência, afirmavam tratar-se de um navio chinês sujeito à jurisdição imperial63. O incidente ganha relevância porque os navios de bandeira britânica habilitavam os comerciantes chineses a negociar nos portos do país nos mesmos termos concedidos aos navios da marinha mercante britânica, um privilégio negado a navios de bandeira chinesa. Independentemente da razoabilidade dos argumentos chineses quanto à legalidade das suas ações, a verdade é que a crise diplomática se acelera vertiginosamente quando o cônsul britânico em Cantão, Harry Parkes, alega que, durante a detenção da tripulação do Arrow, a Union Jack fora insultada pelas autoridades imperiais. Convidado a pedir desculpas pela afronta à bandeira britânica, o Governador-Geral de Cantão, Ye Mingchen, a autoridade imperial responsabilizada pelo incidente, recusa. Perante esta resposta, o Governador e superintendente de comércio de Hong Kong, John Bowring, implora as autoridades navais do seu país a tomarem medidas retaliatórias. Pouco depois, anuindo ao pedido de Bowring, a Marinha Real bombardeia o complexo residencial de Ye Mingchen. Mas o assunto não seria encerrado uma vez que a arrogância e a imprudência do mandarim o levam a escalar a crise. Apela publicamente “a todos os militares e ao povo, famílias e outros, que devem unir-se com todos os meios ao vosso dispor para ajudar os soldados e a milícia a exterminar estes problemáticos vilões ingleses, matando-os sempre que os encontrarem, seja em terra ou nos seus navios”64. Entendendo os apelos de Ye como uma provocação inaceitável, Londres delibera avançar com retaliações militares suplementares. Sujeito a uma descomunal pressão na Câmara dos Comuns por parte dos Whigs de William Gladstone, que o acusa de

procurar fomentar a guerra, o Primeiro-Ministro Palmerston acaba por subscrever a resposta militar reclamada por John Bowring. Os confrontos que se seguem terminam com a captura dos fortes do rio das Pérolas que vigiam as entradas a Cantão e, posteriormente, a apreensão da própria cidade por forças britânicas e francesas. O desfecho final dos múltiplos confrontos será o Tratado de Tianjin, assinado a 26 de junho de 1858, prevendo o pagamento de reparações pela guerra, permitindo o estabelecimento de embaixadores estrangeiros em Beijing e abrindo dez portos adicionais ao comércio europeu. Acrescenta que estrangeiros passam a poder viajar para o interior chinês, garantindo, assim, a liberdade de circulação dos missionários cristãos e, finalmente, o comércio de ópio é legalizado65. Embora as concessões tenham sido significativas, o que parcialmente explica a razão pela qual o Imperador Qing não ratifica o tratado, os britânicos insistem no estacionamento de forças militares em Beijing, uma exigência considerada insultuosa e, por conseguinte, liminarmente rejeitada pelos chineses. Surge, assim, o casus belli que, na ótica ocidental, justifica o recomeço das hostilidades. No Verão de 1860, uma força mista anglo-francesa de 20.000 soldados desembarca no norte da China e, após ter derrotado as tropas imperais, dirige-se para Beijing. Determinados a vingarem as sevícias e o assassinato de 17 cidadãos britânicos e 7 franceses, por ordem do Imperador Xianfeng, as tropas europeias arrasam os Jardins de Brilho Perfeito, o Antigo Palácio de Verão (Yuanming Yuan)66. Residência principal dos Qing, o palácio, concluído em 1750, simbolizava o poder da dinastia e expressava tanto a grandeza da civilização chinesa, como as suas aspirações universalistas. A destruição de Yuanming Yuan evidencia, se dúvidas restassem, a incontestável supremacia militar do Ocidente e, como corolário, demonstra que Zhōngguó deixara de ser o centro de “tudo debaixo dos céus”. Tratavase, pois, de um presságio indiciando que o “mandato dos

céus” dos Qing, a fonte ancestral da legitimidade dos imperadores, fora revogado nas ruínas de Yuanming Yuan. Hoje, mais de um século volvido, os escombros de centenas de edifícios saqueados e queimados pelas tropas anglofrancesas são integralmente preservados a fim de recordar a agressão e humilhação sofrida às mãos dos soldados estrangeiros. Encerradas as hostilidades, os termos da Convenção de Beijing, de outubro de 1860, impõem à China a ratificação do Tratado de Tianjin, celebrado dois anos antes67. Ao ceder uma parte considerável da Península de Kowloon aos britânicos, a Convenção de Beijing consolida a presença europeia na região. Quanto à Rússia, o ambicionado Ussuri krai e uma fatia da Manchúria Exterior são transferidos para o Czar. Para Moscovo, que sistematicamente minara a autoridade e a soberania dos Qing através da assistência que prestava às rebeliões muçulmanas de Xinjiang, subjugadas apenas em 1878 no seguimento de uma onda de repressão implacável ainda hoje recordada na região, abria-se assim o caminho para futuras conquistas territoriais no Extremo Oriente. Também a França, autointitulando-se defensora da fé cristã, sai reforçada na medida em que assegura o retorno das propriedades das ordens religiosas e das organizações de caridade anteriormente confiscadas pelas autoridades chinesas68. No flanco sul do império, Paris apodera-se da Indochina e, em 1883, assume o controlo direto do estado vietnamita, até então um estado tributário de Beijing. Os Qing respondem a esta incursão europeia com o envio de tropas para o norte do Vietname, mas as forças navais francesas desembarcam em Taiwan e na costa de Fujian, onde destroem grande parte da frota naval imperial. Os franceses são repelidos e obrigados a retirarem-se para Hanói somente em 1885, quando tentam penetrar na província de Guangxi. Mas, com cada desastre a ser agravado por novos desastres, as elites chinesas, profundamente desalentadas pelos avanços ocidentais,

vêem-se obrigadas a deslocar as suas atenções para acontecimentos ainda mais inquietantes a decorrer nas ilhas nipónicas.   Sol nascente imperial   Cumprindo as instruções do Presidente Millard Fillmore, o Comodoro Matthew Perry atraca os seus black ships no Japão para “abrir” os portos do país ao comércio ocidental e pôr, assim, termo a dois séculos de autoisolamento nipónico69. Em 31 de março de 1854, Perry assina a Convenção de Kanagawa, que formaliza a abertura de um conjunto de portos japoneses ao comércio americano e prevê o estabelecimento de um consulado dos Estados Unidos em Shimoda. A “abertura” forçada pelo Comodoro Perry desencadeia uma verdadeira revolução no Japão, consubstanciada na queda do shogunato Tokugawa e na Restauração Meiji de 1868. Inicia-se um processo de industrialização acelerada, acompanhado pela modernização das forças armadas e a abolição dos samurai, que sofrem a sua derradeira derrota às mãos do novo exército imperial aquando da rebelião de 187770. Cientes das vulnerabilidades japonesas, as elites Meiji reconhecem que a inexorável redefinição da relação do país com o Ocidente obriga à renúncia do tradicionalismo e à concomitante modernização da sociedade e do estado. Procuram, a bem dizer, preparar o país para confrontar as potências europeias em plena igualdade. O êxito da abordagem rapidamente se torna evidente. Adotando táticas, métodos de treino e armamento ocidentais, o recém-criado Exército Imperial Japonês (e a Marinha Imperial japonesa, inspirada na Royal Navy britânica) obtém sucessos militares tão sensacionais quanto inesperados

durante a Primeira Guerra Sino-Japonesa de 1894/95 e a Guerra Russo-Japonesa de 1904/05. A medida do vertiginoso sucesso militar e político do Japão torna-se óbvia quando, em 1902, a “Terra do Sol Nascente” firma uma aliança com a principal potência europeia, o império onde o sol nunca se punha. Em contraste com as suas congéneres chinesas, as elites nipónicas abraçam um modelo de modernização de inspiração ocidental para assegurarem a emergência do Japão como grande potência mundial. A expansão imperial japonesa colide invariavelmente com a zona de influência chinesa na Coreia, que passa a ser palco de incessante conflitualidade sino-nipónica. Após a eclosão da Rebelião de Donghak, em 1894, China e Japão enviam tropas para a península com o objetivo de reforçar o rei Gojong71. No entanto, a superioridade da força expedicionária nipónica permite a Tóquio nomear um regente notoriamente pró-japonês. Em resposta a este revés político, Beijing reforça o seu contingente militar, mas, perante a inequívoca superioridade do moderníssimo exército nipónico, a manobra acaba por não surtir efeito e, em outubro, numa ousada jogada estratégica, as tropas japonesas atravessaram o rio Yalu para estabelecer a sua presença em território chinês. No seguimento de vários embates militares desastrosos, o Imperador Qing, destituído de alternativas, aceita os termos do Tratado de Shimonoseki, de 17de abril de 1895, que obriga a China a pagar indemnizações exorbitantes e a conceder quatro portos adicionais, incluindo o de Chongqing, aos japoneses. Adicionalmente, e ainda mais devastador para Beijing, os Qing reconhecem a “plena e completa independência” da Coreia, território que se torna num protetorado dos Meiji. A humilhação atinge o ao seu zénite com a cedência “em perpetuidade” da província chinesa de Taiwan a Tóquio, bem como as ilhas Pescadores e a Península de Liaodong, no sul da Manchúria, sendo que, em resultado da pressão dos estados ocidentais, a transferência destes dois territórios

seria posteriormente anulada72. A profundíssima humilhação provocada pela assinatura do Tratado de Shimonoseki supera as humilhações impostas pelas potências ocidentais aquando das Guerras do Ópio. Afinal de contas, a China acabara de ser redondamente derrotada por um wojen (inferior “povo anão”, um termo depreciativo usado pelos chineses para se referirem aos nipónicos)73. Igualmente preocupante, a expressiva derrota do Império do Meio ocorre na sequência de duas décadas de reformas de “auto-fortalecimento” iniciadas pelos Qing após os desaires das duas Guerras do Ópio74. Respondendo às múltiplas derrotas, o movimento reformista chinês de 1898 conclui pela necessidade de abraçar o conhecimento e a tecnologia ocidentais. Seria a única forma de evitar mais humilhações às mãos das grandes potências. Ironicamente, com o Japão em veloz ascensão geopolítica, era demasiado tarde para se adotar a estratégia Meiji. Daí que a pesada derrota sofrida na Primeira Guerra Sino-Japonesa abale tão profundamente a Corte Celestial e acabe por gerar duas consequências críticas para o posterior desenvolvimento político da China. Primeiro, impossibilita que o império se continue a definir como o centro do mundo; claramente, deixara de o ser. Segundo, o sucesso militar japonês encoraja a voracidade dos demais estados imperialistas, que, de imediato, procuram obter novos proveitos. A França, por exemplo, estabelece uma base militar na ilha de Hainan e os Estados Unidos, em 1900, anunciam a sua política de “Porta Aberta”. Neste quadro de intensificação dos antagonismos geopolíticos regionais, a China será reduzida a uma arena de rivalidades imperialistas. Irrompe, em fevereiro de 1904, o conflito entre a Rússia e o Japão em torno da Coreia e da Manchúria. Sob o comando do almirante Zinovy Rozhestvensky, a frota russa parte do Báltico e percorre 18.000 milhas náuticas até ao Extremo Oriente, apenas para, em 27/28 de maio de 1905, no Estreito de Tsushima,

colidir com uma força naval japonesa de menor dimensão. Decorridos dois dias de batalha, o almirante nipónico Tōgō Heihachirō prevalece. A estrondosa vitória suscita admiração em toda a Ásia porque, desde a Idade Média, nenhuma potência asiática triunfara militarmente sobre um estado europeu75. A guerra quebra o mito da invencibilidade ocidental e transforma o Império Japonês na potência liderante da região, que passa a ser fonte de inspiração para os incipientes movimentos anticoloniais asiáticos, para os quais a Batalha de Tsushima parecia indicar o início do declínio do Ocidente76. Neste novel quadro regional cada vez mais dominado pelo poderio nipónico, as guerras de expansão imperial conduzidas por Tóquio evidenciam a precariedade da segurança da China. Aliás, a Primeira Guerra Sino-Japonesa havia denunciado a fraqueza do Império Médio e a sua incapacidade para se adaptar à modernidade77. Humilhados às mãos do Japão, um antigo estado tributário cuja cultura era considerada “inferior” por ser “derivada” da chinesa, os Qing assistem a um cataclismo que desencadeia recriminações generalizadas e dúvidas quanto ao futuro do país e à capacidade de liderança das suas elites imperiais. Se os “tratados desiguais” impostos pelas potências europeias abalaram a confiança das elites Qing, é igualmente verdade que a submissão da China ao Japão quebra a longa complacência e corrói a paroquial mundivisão das elites sínicas. Com efeito, o desmoronamento do poder imperial será despoletado pelo levantamento dos trabalhadores ferroviários de Wuchang, que, por sua vez, desencadeia o motim militar de 10 de outubro de 1911. A manobra dos militares revoltosos prepara o terreno para a Revolução Xinhai, liderada pelo Novo Exército de Wu Zhaolin, fortemente influenciado pela Tongmenghui, a organização republicana fundada no Japão, em 1905, por Sun Yat-sen e Huang Xing. Inspirados pela modernização Meiji, Sun e

Huang integram o grupo de inúmeros opositores da dinastia Qing que buscam exílio nas ilhas japonesas. Sujeito às pressões das autoridades de Beijing, o Governo nipónico acaba por expulsar os dois revolucionários do país, razão pela qual Sun se encontra em Denver, no estado americano do Colorado, aquando da eclosão da Revolução Xinhai. Sun Yat-sen regressa prontamente ao seu país natal e, no dia de Ano Novo de 1912, proclama o estabelecimento da República da China, com Nanjing como capital. Incapaz de angariar apoios expressivos nas fileiras das forças armadas nacionais, que julga imprescindíveis para assegurar a sobrevivência da nova ordem política, Sun disponibiliza-se para ceder o cargo de Presidente provisório a Yuan Shikai, comandante do poderoso exército de Beiyang78. Bastava, para isso, que o general abraçasse o republicanismo. Em finais de janeiro de 1912, com o sul da China nas mãos do governo republicano sediado em Nanjing, dezenas de comandantes das tropas de Beiyang exigem que o Imperador Xuantong (Pu Yi), de seis anos de idade, dissolva o império e estabeleça a república. Perdido o apoio das forças armadas e esgotadas as alternativas, o Imperador abdica no dia 12 de fevereiro. Neste quadro, Sun Yat-sen cumpre a promessa de transferir o seu apoio para Yuan Shikai. Invocando os confrontos violentos a decorrer em Beijing, Yuan insiste na necessidade de assumir a presidência na sede imperial do governo e não em Nanjing, a capital de Sun Yat-sen. Simbolicamente, a transferência ordeira do poder para o novo governo em Beijing serve para efetivamente legitimar Yuan como sucessor do último Imperador. Dessa forma, enquanto o general amotinado se apodera do estado através daquilo que só se pode caracterizar como um pronunciamento militar, o executivo de Sun Yat-sen era relegado à condição de usurpador desprovido de legitimidade. À medida que Yuan Shikai consolida o seu poder pessoal, vê-se forçado a ceder amplos poderes aos

senhores da guerra que dominam várias regiões do país, transformando-as em feudos essencialmente independentes do governo central. Para sair deste impasse e precaver a plena desagregação do estado chinês, Yuan, em 1915 e 1916, visa instalar-se como imperador, uma manobra que lhe rende a inimizade duradoura de nacionalistas e comunistas. Em vésperas da Primeira Guerra Mundial, o grau de penetração política e comercial da China por parte das potências evidencia-se pela existência de 48 portos concedidos por tratado a interesses estrangeiros. A maioria destes encontra-se na posse da França e da Grã-Bretanha, mas a Alemanha, o Japão e os Estados Unidos também dispunham de concessões. Mesmo potências europeias menores, sem vínculos duradouros à China, como a Bélgica e Itália, marcavam presença em Tianjin e Beihai, enclaves que permitiam que os estrangeiros desenvolvessem os seus negócios e que vivessem de acordo com as regras de extraterritorialidade, sujeitos apenas à autoridade dos seus respetivos consulados e, portanto, imunes à soberania chinesa. Para efeitos de dissuasão, as autoridades imperiais eram mantidas à distância por navios de guerra estrangeiros que, ocasionalmente, bombardeavam as cidades costeiras. Todavia, a existência dos “tratados desiguais” não significava que benefícios consideráveis não chegassem a um número reduzido de cidadãos chineses; na realidade, os comerciantes locais prosperavam e algumas cidades, principalmente Xangai e Hong Kong, seriam modernizadas através da introdução de ideias e capital estrangeiro. Na Grande Guerra de 1914, a China republicana juntou-se aos aliados, contribuindo para o esforço de guerra através do envio de 100,000 trabalhadores para a frente ocidental europeia. Ao integrar a coligação vencedora da guerra a China, muito naturalmente, esperava que os arquitetos do acordo de paz reunidos em Paris fossem sensíveis aos

interesses vitais do país e atendessem às suas reivindicações. Não obstante as elevadas expetativas, a Conferência de Paz de Versalhes, de 1919, genericamente ignora as pretensões chinesas, até porque Londres força a transferência das concessões alemãs na China para o Japão, o parceiro estratégico da Grã-Bretanha no Extremo Oriente79. Previsivelmente, o desfecho de Versalhes dá azo a acusações de traição às mãos das democracias ocidentais. Protestos anti-japoneses liderados por intelectuais denunciam os “Catorze Pontos” de Woodrow Wilson, amplamente elogiados antes de Versalhes. Acusa-se Washington de, hipocritamente, quebrar as promessas wilsonianas de autodeterminação dos povos. Neste quadro de avolumado sentimento anti-estrangeiro, nasce o Movimento Quatro de Maio, saído do mais amplo movimento cívico Nova Cultura. Promove manifestações estudantis dirigidas contra o governo de Yuan Shikai, mas a sua atividade não se esgota na contestação de rua. Elites urbanas, incluindo os estudantes, abraçam e divulgam valores e ideias ocidentais inovadoras que rompem com a tradição nos costumes e com o marasmo reinante na ciência, tecnologia e política80. No que diz respeito à política, o Movimento Quatro de Maio populariza o anarquismo e, depois de 1917, o marxismo, vistos como instrumentos poderosos para transcender o endémico atraso da sociedade chinesa. Será, justamente, por via do Movimento Quatro de Maio que Mao Zedong faz um trajeto ideológico típico desta geração, levando-o do reformismo ao anarquismo e, finalmente, ao marxismo. Os anos posteriores à Grande Guerra trazem outra novidade. Nas décadas de 1920 e 1930, os Estados Unidos incrementam os seus laços financeiros e comerciais com o Extremo Oriente81. Vislumbrando novas oportunidades comerciais, Washington reafirma o princípio da “Porta Aberta” declarado em 1900. No entanto, a política americana seria profundamente abalada quando, em 18 de

setembro de 1931, perto da cidade chinesa de Mukden (Shenyang), uma explosão destrói uma seção da linha férrea detida por capitais nipónicos. Nacionalistas chineses foram responsabilizados pela sabotagem e o “incidente” será invocado para justificar eventos que terminariam com a impressionante conquista japonesa da Manchúria82. Pessimamente treinadas, mal equipadas e ineficazes em combate, as forças armadas chinesas limitaram-se a oferecer mera resistência simbólica ao invasor. Pouco depois, a 1 de março de 1932, as forças de ocupação estabelecem formalmente o estado de Manchukuo, nominalmente independente, mas, de facto, sob o controlo do exército japonês e entronizam Xuantong (Pu Yi), o último Imperador Qing, deposto pela república vinte anos antes. Procurando integrar o Manchukuo na economia imperial nipónica, investimentos massivos são canalizados por Tóquio para novas infraestruturas e para a extração de recursos naturais estratégicos83. A ofensiva japonesa na Manchúria não fora exclusivamente motivada por razões económicas. Tóquio temia que a província, governada pelo senhor da guerra Zhang Xueliang, fosse deveras vulnerável a uma invasão por parte da Rússia bolchevique84. Para impedir a expansão soviética, uma eventualidade que invariavelmente acarretaria a tomada do poder pelo PCC, os japoneses recorrem à ação militar85. As suspeitas de Tóquio quanto às intenções soviéticas não eram inteiramente descabidas porque, durante a década anterior, Moscovo tomara medidas árias para reafirmar o seu controlo sobre a Ásia Central. Por exemplo, reforça a sua tutela na Mongólia Exterior através da criação da República Popular da Mongólia, proclamada a 26 de novembro de 1924, que passa a ser um estado-satélite soviético governado pelos comunistas locais, o Partido Revolucionário Popular da Mongólia. Suprimidas as rebeliões nacionalistas que eclodiram por toda a Ásia Central, Moscovo passa então a promover a expansão comunista no

Extremo Oriente através do Comintern, abrindo no mundo colonial uma “segunda frente” da revolução mundial. Dado o fracasso dos esforços para fomentar a revolução proletária na Europa, Lenine exorta os bolcheviques a “voltarem o rosto para a Ásia” na expectativa de que “o Oriente nos ajude a conquistar o Ocidente”86. Para atingir esse fim, na China, a ajuda soviética passará a ser canalizada para o PCC e para o Guomindang. Eventualmente excessivos, os receios de Tóquio quanto às ambições e aos perigos colocados por Moscovo não eram inteiramente infundados. Depois de duas guerras destinadas a barrar o expansionismo russo na Coreia e na Manchúria, Tóquio olhava para Moscovo com trepidação. Similarmente, a União Soviética considerava que os objetivos geopolíticos do Japão e a sua voracidade imperial consubstanciam uma ameaça à sua segurança. As autoridades soviéticas estavam firmemente convictas de que, depois de colonizar a Coreia, Tóquio acolhia ambições relativamente aos territórios mongol e chinês. As suspeitas eram reforçadas pelo fato dos japoneses, durante a guerra civil russa, terem enviado milhares de tropas para a Sibéria, o maior contingente de combatentes estrangeiros a prestar apoio aos “brancos” contra os “vermelhos”87. Havia também uma razão ponderosa de teor ideológico que explicava o interesse dos bolcheviques russos pelo Japão. A teoria marxista sugeria que o Japão possuía um elevado potencial revolucionário em resultado da modernização acelerada promovida pelo estado Meiji. Com efeito, a transição para o capitalismo que varria a terra do Sol Nascente gerara uma classe operária industrial comparável com o proletariado europeu. Daí que o potencial revolucionário do Japão contrastasse marcadamente com os restantes países da região, onde o marxismo antecipava, na melhor das hipóteses, meras revoluções nacionais e anti-imperialistas. Seja como for, a invasão nipónica da Manchúria será interpretada como um ensaio geral para uma futura investida contra a China, que,

aliás, se concretiza em 1937, dois anos antes de Adolf Hitler lançar a sua blitzkrieg em terras polacas88. Paradoxalmente, será justamente essa agressão que permitirá à China emergir da Segunda Guerra Mundial como estado vitorioso, integrando o Conselho de Segurança das Nações Unidas e assumindo-se como uma das novas grandes potências mundiais. 27. A afirmação foi feita a 21 de setembro de 1949 durante o discurso de abertura de Mao Zedong aquando da Primeira Sessão Plenária da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês. Em declarações aos delegados da Conferência, Mao afirma que: “estamos todos convencidos de que o nosso trabalho ficará para a história da humanidade, demonstrando que o povo chinês, um quarto da humanidade, já se levantou. Os chineses sempre foram uma nação grande, corajosa e laboriosa; foi apenas nos tempos modernos que ficaram para trás. E isso deveu-se inteiramente à opressão e à exploração pelo imperialismo estrangeiro e pelos governos reacionários internos. Por mais de um século, os nossos antepassados nunca pararam de travar lutas inflexíveis contra os opressores nacionais e estrangeiros, incluindo a Revolução de 1911 liderada pelo Dr. Sun Yat-sen, nosso grande precursor na revolução chinesa. Os nossos antepassados ordenaram-nos que realizássemos a sua vontade não realizada. E agimos de acordo. Cerrámos as nossas fileiras e derrotámos opressores nacionais e estrangeiros por meio da Guerra Popular de Libertação e da grande revolução popular, e agora estamos a proclamar a fundação da República Popular da China. De agora em diante, a nossa nação pertencerá à comunidade das nações amantes da paz e da liberdade do mundo e trabalhará com coragem e diligência para promover a sua própria civilização e bem-estar e, ao mesmo tempo, promover a paz e a liberdade mundiais. A nossa não será mais uma nação sujeita a insultos e humilhações. Nós levantámo-nos”. Cf., Mao Tse-tung. “The Chinese People Have Stood Up”, Selected Works of Mao Tse-tung, Vol. 5. Beijing: Foreign Languages Press, 1977, p. 17. 28. Para uma interessante discussão sobre a “libertação” de 1949 e as suas consequências, ver, Frank Dikötter. The Tragedy of Liberation: A History of the Communist Revolution 1945-1957. Londres: Bloomsbury Publishing, 2013. 29. Cf., Howard W. French. Everything Under the Heavens: How the Past Helps Shape China’s Push for Global Presence. Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 2017. 30. Ver, “Xi urges CPC members to keep China red”, China Daily, 12 de julho de 2013, disponível em: http://www.chinadaily.com.cn/china/201307/12/content_16769833.htm. 31. Cf., por exemplo, John King Fairbank and S. Y. Têng, “On the Ch’ing Tributary System”. Harvard Journal of Asiatic Studies, Vol. 6, No. 2, junho de 1941, pp. 135-246, consultado em: https://pdfs.semanticscholar.org/57ec/010193f117d52f0ed428fd28b60db22bd80 b.pdf. 32. Cf., Shihan de Silva Jayasuriya. The Portuguese in the East: A Cultural History

of a Maritime Trading Empire. Londres: I.B. Tauris, 2017, p. 1. 33. Sobre a expansão imperial portuguesa, cf., inter alia, C. R. Boxer. The Portuguese Seaborne Empire, 1415-1825. Londres: Hutchison and Co., 1969 e A. R. Disney. A History of Portugal and the Portuguese Empire, Vol. 2. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. 34. Sobre a transição de Macau para a soberania chinesa, cf., Richard Louis Edmonds and Herbert S. Yee, “Macau: From Portuguese Autonomous Territory to Chinese Special Administrative Region”, The China Quarterly, No. 160, dezembro de 1999, pp. 801-817. 35. As viagens chegaram ao seu fim durante o mandato do Imperador Hongxi, no trono entre 1424 e 1425. Seu filho, o Imperador Xuande (no trono entre 1425 e 1435) permitiu que Zheng He fizesse uma viagem final. Aparentemente, Zheng morre durante esta sétima viagem e foi enterrado na costa da Índia. Cf., Edward L. Dreyer. Zheng He: China and the Oceans in the Early Ming, 14051433. Nova Iorque: Longman, 2006 36. Cf., Mure Dickie, “A less Admirable Admiral”, Financial Times, 30 de setembro de 2005, disponível em: https://www.ft.com/content/6622ddee-2fcc-11da-8b5100000e2511c8. 37. Interpretações da história moderna chinesa podem ser encontradas em, inter alia, Jonathan D. Spence. The Search for Modern China. Nova Iorque: W.W. Norton & Company, 1990; John King Fairbank and Merle Goldman. China: A New History (Second Enlarged Edition). Cambridge: Harvard University Press, 2006; Jonathan Fenby. The Penguin History of Modern China: The Fall and Rise of a Great Power, 1850 to the Present (Third Edition). Londres: Allen Lane, 2008 e Klaus Mühlhahn. Making China Modern: From the Great Qing to Xi Jinping. Cambridge: Harvard University Press, 2019; Muito interessante é Henry Kissinger. On China. Nova Iorque: The Penguin Press, 2011. 38. Cf., William T. Rowe and Timothy Brook. China’s Last Empire: The Great Qing. Cambridge: Harvard University Press, 2012. 39. Ver, Angela N. S. Hsi, “Wu San-kuei in 1644: A Reappraisal”, Journal of Asian Studies, Vol. 34, No. 2, 1975, pp. 443-453. 40. Para uma discussão, cf., Stephen N. Broadberry, Hanhui Guan e David D. Li, “China, Europe and the Great Divergence: A Study in Historical National Accounting, 980-1850”, CEPR Discussion Paper No. DP11972, abril de 2017, disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2957511. 41. Cf., Michael Khodarkovsky. Russia’s Steppe Frontier: The Making of a Colonial Empire, 1500-1800. Bloomington: Indiana University Press, 2004. 42. Para mais detalhes, cf., Fred W. Bergholz. The Partition of the Steppe: The Struggle of the Russians, Manchus, and the Zunghar Mongols for Empire in Central Asia, 1619-1758 – A Study in Power Politics. Nova Iorque: Peter Lang, 1993. 43 . Ver, Peter C. Perdue. China Marches West: The Qing Conquest of Central Eurasia. Cambridge: Harvard University Press, 2005. 44. Ibid., pp. 283-287. 45. Sobre a história de Xinjiang, cf., inter alia, Justin M. Jacobs. Xinjiang and the Modern Chinese State. Seattle: University of Washington Press, 2016; Nick Holdstock. China’s Forgotten People. Londres. I.B. Tauris, 2015; Gardner Bovingdon. The Uyghurs: Strangers in their Own Land. Nova Iorque: Columbia

University Press, 2010 e James Milward. Eurasian Crossroads: A History of Xinjiang. Nova Iorque: Columbia University Press, 2007. 46. Cf., Ben Kiernan. Viêt Nam: A History from the Earliest Times to the Present. Oxford: Oxford University Press, 2017, pp. 261-262. 47. Paul Kennedy, no seu The Rise and Fall of the Great Powers, escreve que “o triunfo de qualquer uma das grandes potências neste período, ou o colapso de outra, geralmente foi a consequência de combate prolongado por parte de suas forças armadas; mas também tem sido a consequência da utilização mais ou menos eficiente dos recursos económicos produtivos do estado em tempo de guerra e, mais no fundo, da forma como a economia desse estado vinha crescendo ou diminuindo, em relação às outras nações líderes, nas décadas anteriores ao conflito”. Paul Kennedy. The Rise and Fall of the Great Powers: Economic Change and Military Conflict from 1500 to 2000. Nova Iorque: Random House, 1987, p. xv. 48. Cf., Paul Arthur Van Dyke. The Canton Trade: Life and Enterprise on the China Coast, 1700–1845. Hong Kong: Hong Kong University Press, 2005 e Paul A. Van Dyke. Merchants of Canton and Macao: Politics and Strategies in EighteenthCentury Chinese Trade. Hong Kong: Hong Kong University Press, 2011, pp. 7-30. 49. Sobre a missão Macartney, ver, Mark Simner. The Lion and the Dragon: Britain’s Opium Wars with China, 1839-186. Stroud: Fonthill, 2019, pp. 30-33 e Immanuel C. Y. Hsü. The Rise of Modern China (3rd ed.). Oxford: Oxford University Press, 1983, pp. 155-163. 50. A carta do Imperador pode ser consultada, na íntegra, em: https://china.usc.edu/emperor-qianlong-letter-george-iii-1793. 51. Gao Hao argumenta, com inteira razão, que a missão, durante a viagem de quatro meses de regresso de Cantão a Beijing, teria um impacto tremendo nas perceções britânicas quanto à China, que, por sua vez, moldaram a opinião pública e das elites durante as Guerras do Ópio. Cf., Gao Hao, “The Amherst Embassy and British Discoveries in China”, History, Vol. 99, No. 337, outubro de 2014, pp. 568-587. 52. Cf., Chris Feige e Jeffrey A. Miron. “The opium wars, opium legalization and opium consumption in China”, Applied Economics Letters, Vol. 15, No. 12, 2008, p. 911-913, disponível em: https://dash.harvard.edu/bitstream/handle/1/11379703/miron-opium-wars.pdf? sequence=3. 53. Cf., John F. Richard, “The opium industry in British India”, The Indian Economic and Social History Review, Vol. 39, No. 2/3, 2002, pp 149-180. Sobre o surgimento da East India Company, cf., William Dalrymple. The Anarchy: The Relentless Rise of the East India Company. Londres. Bloomsbury Publishing, 2019. 54. Cf., Sarah Deming, “The Economic Importance of Indian Opium and Trade with China on Britain’s Economy, 1843–1890”, Whitman College, Economics Working Papers No. 25, Primavera de 2011, disponível em: http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download? doi=10.1.1.684.9923&rep=rep1&type=pdf. 55. Cf., Warren I. Cohen. East Asia at The Center: Four Thousand Years of Engagement With the World. Nova Iorque: Columbia University Press, 2000, pp. 249-252.

56. Cf., Joshua Rowntree. The Imperial Drug Trade. Londres: Methuen and Co., 1905, p. 54. 57. Para uma discussão, ver, Dong Wang, “The Discourse of Unequal Treaties in Modern China”, Pacific Affairs, Vol. 76, No. 3, Outono de 2003, pp. 399-425. 58. Sobre a Rebelião Taiping, ver, Jonathan D. Spence. God’s Chinese Son: The Taiping Heavenly Kingdom of Hong Xiuquan. Nova Iorque: Norton & Norton, 1996 e Stephen Platt. Autumn in the Heavenly Kingdom: China, the West and the Epic Story of the Taiping Civil War. Londres: Atlantic Books, 2013. 59. Para uma discussão da dimensão religiosa/ideológica do movimento Taiping, ver, Rudolf G. Wagner. Reenacting the Heavenly Vision: The Role of Religion in the Taiping Rebellion. Berkeley: Institute of East Asian Studies, 1982. 60. Nanjing seria capturada pelos Taiping no dia 19 de março de 1853 e recapturada pelo Exército Imperial a 19 de julho de 1864. Estimativas apontam para que, durante os combates pela cidade, 150,000 rebeldes tenham morrido. 61. Cf., Harry G. Gelber. Opium, Soldiers and Evangelicals. Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2004, pp. 173-174. 62. Cf., Y. J. Wong. Deadly Dreams: Opium and the Arrow War (1856-1860) in China. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2002. 63. Gelber descreve Ye Mingchen como um “homem, gordo, inteligente, malhumorado com gosto pela astrologia e uma reputação de crueldade, era especialmente duro em relação aos rebeldes e suas famílias, que executava logo que os apreendia. Houve tempos em que provavelmente decapitou 200 pessoas por dia”. Ver, Gelber, Opium, Soldiers and Evangelicals, p. 173. Sobre este episódio, cf., Robert Bickers. The Scramble for China: Foreign Devils in the Qing Empire, 1832-1914. Londres: Allen Lane, 2011, pp. 138-144 e Paul U. Unschuld. The Fall and Rise of China: Healing the Trauma of History. Londres: Reaktion Books, 2013, p. 55. 64. Cf., Mark Simner. The Lion and the Dragon, p. 153. 65. Cf., Robert Bickers, The Scramble for China, p. 148. 66. Cf., Paul U. Unschuld, The Fall and Rise of China, p. 58. 67. A Convenção de Beijing, de outubro de 1860, engloba os três tratados assinados entre os Qing e os governos britânico, francês e russo. 68. Warren J. Cohen, ao descrever a natureza destas missions religieuses, afirma que os franceses se “consideravam o braço militar do Vaticano”. Cf., Warren Cohen, East Asia at the Center, p. 266. 69. Cf., Peter Booth Wiley. Yankees in the Land of the Gods: Commodore Perry and the Opening of Japan. Nova Iorque: Penguin Books, 1991. 70. Originalmente publicado em 1940, o livro de Herbert Norman sobre os Meiji continua a ser uma excelente fonte de informação. E de clareza. Cf., Herbert Norman. Japan’s Emergence as a Modern State: Political and Economic Problems of the Meiji Period (60th Anniversary Edition), Vancouver: UBC Press, 2007. 71. Cf., Larisa Zabrovskaia, “Qing China’s Misguided Foreign Policy and the Struggle to Dominate Korea (According to Russian Archive), Korean Studies, Vol. 44, 2020, pp. 80-96. 72. Em abril de 1895, depois da derrota chinesa na Primeira Guerra SinoJaponesa, os termos do Tratado de Shimonoseki previam a entrega da Formosa e das Ilhas Pescadores (Penghu) ao Japão. Porém, notáveis locais declaram, unilateralmente, o estabelecimento da República da Formosa, com o

Governador-Geral Qing, Tang Jingsong, como primeiro – e único – Presidente. Todavia, a novel república era frágil e largamente destituída de apoio popular dentro e fora da Formosa. Também não conseguiu obter apoio diplomático de Beijing que, naquele momento, se empenhava em convencer os japoneses a abdicarem da Península de Liaotung, igualmente cedida ao Japão através do Tratado de Shimonoseki. Forças japonesas desembarcaram na costa norte da ilha, nas proximidades de Keelung, em finais de maio de 1895. Forças chinesas e milícias hakka resistiram durante cinco meses de guerrilha, mas, no dia 21 de outubro, a queda de Tainan para o invasor selou efetivamente o desfecho do conflito. 73. Cf., Chalmers Johnson, “How China and Japan See Each Other”, Foreign Affairs, Vol. 50, No. 4, julho de 1972, pp. 711-721. 74. Ver, Jonathan D. Spence, The Search for Modern China, 216-222. 75. Orlando Figes, na sua monumental história da Revolução Russa, observa que “(…) o Czar e os seus conselheiros tomaram a vitória como adquirida. Kuropatkin afirmara que necessitava de apenas dois soldados russos por cada três japoneses, tão superiores que eram em relação aos asiáticos. Cartazes governamentais caracterizavam os japoneses como pequeníssimos macacos, de olho de bico e pele amarela, em pânico, a fugir de um punho branco de um robusto soldado russo”. Cf., Orlando Figes. A People’s Tragedy: A History of the Russian Revolution. Nova Iorque: Viking, 1996, p. 168. 76. Cf., Pankaj Mishra. From the Ruins of Empire: The Revolt Against the West and the Remaking of Asia. Nova Iorque: Picador, 2012, p. 6. 77. Cf., Wei-Bin Zhang. Japan versus China in the Industrial Race. Nova Iorque: St. Martin’s Press, 1998. 78. Ver, Patrick Fuliang Shan. Yuan Shikai, pp. 144-164. 79. Cf., Margaret MacMillan. Paris 1919: Six Months That Changed the World. Nova Iorque: Random House, 2002, pp. 322-344. 80. Para uma discussão interessante, cf., Rana Mitter. A Bitter Revolution: China’s Struggle with the Modern World. Oxford: Oxford University Press, 2004. 81. Cf., John Pomfret. The Beautiful Country and the Middle Kingdom: America and China, 1776 to the Present. Nova Iorque: Henry Holt, 2016, pp. 150-203. 82. Cf., S. C. M. Paine. The Wars for Asia, 1911-1959. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2012, pp. 13-14. 83. Depois da Primeira Guerra Mundial, o Japão fez investimentos massivos nos caminhos de ferro chineses. Por exemplo, entre 1912 e 1920, 1,500 quilómetros de linha for a acrescentada à infraestrutura existente. Cerca de um-terço deste total fora construído na Manchúria e financiado largamente por capitais japoneses. Cf., S.C.M. Paine, The Wars for Asia, 1911-1959, pp. 14-34 e Wei-Bin Zhang. Japan versus China in the Industrial Race, p. 96. 84. Cf., por exemplo, Jacob Kovalio, “Japan’s Perception of Stalinist Foreign Policy in the Early 1930’s”, Journal of Contemporary History, Vol. 19, No. 2, abril de 1984, pp. 315-335. 85. Ver, S.C.M. Paine, The Wars for Asia, 1911-1959, pp. 22-25 e Peter Hopkirk. Setting the East Ablaze: Lenin’s Dream of an Empire in Asia. Nova Iorque: Kodansha International, 1984, pp. 37-51. 86. Ibid., p. 1. 87. Sob o comando do general Ōtani Kikuzō, o contingente militar japonês

chegou a contar com 70,000 homens. Cf., Leonard A. Humphreys. The Way of the Heavenly Sword: The Japanese Army in the 1920s. Stanford: Stanford University Press, 1996, p. 26. 88. Cf., Rana Mitter. China’s War with Japan, 1937-1945: The Struggle for Survival. Londres: Allen Lane, 2013.

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CAPÍTULO II – HASTEEMOS A BANDEIRA VERMELHA   “The point, as Marx saw it, is that dreams never come true.” (Hannah Arendt, Crises of the Republic)

  Se o nacionalismo é usualmente justaposto ao internacionalismo proletário, é igualmente verdade que a interação entre os dois fenómenos é consideravelmente mais complexa do que aquela visão maniqueísta sugere. O discurso nacionalista do Partido Comunista Chinês (PCC), do qual o “século da humilhação nacional” é um componente nuclear, encaixou -se sem dificuldade maior no léxico do marxismo-leninismo; isto é, o nacionalismo sínica e o internacionalismo proletário do PCC não eram somente complementares, como, até, se reforçavam mutuamente. Durante o período republicano, o anti-imperialismo militante partilhado por comunistas e nacionalistas do Guomindang (GMD), que aceitam a formulação de Lenine do imperialismo como o “último estágio” do capitalismo e aderem ao Comintern, leva os dois partidos a concluir que o imperialismo havia estendido a sua voracidade à China. Ambos, por conseguinte, concebem o “século da humilhação nacional” como um período de espoliação da riqueza nacional e de degradação da posição do país na cena internacional. Dir-se-á que as diferenças que separavam o GMD do PCC não residiam nas respetivas narrativas quanto ao passado recente do país. As diferenças fundamentais, política e ideologicamente relevantes, diziam respeito ao caminho a

prosseguir no futuro. Mais concretamente, os dois partidos preconizam projetos irreconciliáveis quanto à forma de superar as fraquezas do país. Eram, pois, duas propostas radicalmente divergentes quanto ao rumo da modernização. Para o Guomindang, impunha-se a inserção do país no sistema mundial capitalista e o estabelecimento de um poder estatal autoritário desenvolvimentista capaz de unificar a China e de cumprir a modernização nacional. Tratava-se, essencialmente, do mesmo modelo posto em prática por Chiang Kai-shek em Taiwan após a sua fuga para a ilha. Em contraste, na ótica de Mao, a proposta do GMD colocaria o país de novo à mercê das principais nações imperialistas. A conquista da independência nacional pressupunha uma rutura clara com o sistema capitalista mundial e o lançamento da construção socialista assente no internacionalismo proletário. Há, entre os rivais, um ponto importante de convergência: a modernização far-se-ia através de um estado autocrático e desenvolvimentista. Não se colocava uma terceira via democrática e liberal, pois o Guomindang, organização leninista, nunca representara esse caminho. A divergência entre os dois partidos prendiase com o tipo de modernização a fazer para que a China pudesse encerrar o “século de humilhação”. Impulsionado por uma incessante hostilidade dirigida às potências imperialistas que responsabiliza pelo “século da humilhação nacional”, Mao, depois da “libertação” de 1949, traça um caminho para a modernidade assente na “autossuficiência” gerada pela industrialização acelerada e pela coletivização da agricultura. Frequentemente expressa em termos xenófobos, a desconfiança relativamente às potências capitalistas molda o caminho desenvolvimentista delineado pelo PCC e serve para legitimar o monopólio do poder nas mãos dos comunistas. A fim de retirar o país de uma economia mundial dominada pelo capitalismo ocidental e ciente de que a modernização chinesa não prescindia de capital e dos conhecimentos externos, Mao vê

os laços estabelecidos com a União Soviética de Estaline como a condição sine qua non para consolidar o rumo escolhido pelo PCC. Reconhecia-se que a retirada do sistema capitalista mundial e a concomitante necessidade de recorrer ao apoio técnico e financeiro soviético era suscetível de gerar uma indesejada dependência relativamente a Moscovo. Este potencial risco era, todavia, minimizado pelos comunistas chineses porque, alegavam, a URSS não era uma potência europeia “normal”. No entender de Mao, a revolução de 1917 quebrara a lógica expansionista do império russo, substituindo-a pela lógica do internacionalismo proletário. É certo que essa retirada do novo estado bolchevique do sistema capitalista mundial acarretou custos elevados, até porque o imperialismo reagira à Revolução de Outubro de 1917 com o uso da força militar, ingerência semelhante à que a China fora sujeita após a proclamação da república. Esta história comum de violenta intromissão capitalista e de resistência anti-imperialista e o elo ideológico entre comunistas chineses e soviéticos, tornava altamente improvável uma eventual aliança entre o Kremlin e as potências imperialistas para derrubar a recém-criada República Popular da China (RPC) 89. Do ponto de vista dos novos mandarin vermelhos, os potenciais perigos associados ao incremento da dependência em relação a Moscovo eram passíveis de serem geridos e, certamente, eram consideravelmente menos graves do que a dependência chinesa relativamente aos estados capitalistas. Dito isto, convém realçar que nem todas as ansiedades foram inteiramente dissipadas. A arrogância e o paternalismo do Kremlin, decorrentes do estatuto da URSS como primeira pátria do socialismo, atormentam Mao e os líderes da RPC. Ainda assim, Mao dispunha-se a “inclinar-se para um lado” e a replicar o modelo soviético. Humildade para apreender com os “irmãos mais velhos” soviéticos e mais experientes com a construção socialista era o preço

exigido para desenvolver o país e resistir aos diktats de Washington, Tóquio, Londres e Paris90.   Um saco de batatas   Em 1949, sob a liderança férrea de Mao Zedong, o Partido Comunista Chinês conquista finalmente o poder num país explorado, brutalizado e empobrecido em função de décadas de estagnação socioeconómica, guerra civil e ocupação estrangeira. A devastação deixada pelas guerras ocorridas neste período, conjugada com o atraso estrutural do país, imprime urgência à obtenção da assistência externa indispensável ao lançamento da reconstrução nacional. Eis um motivo suficientemente ponderoso para induzir Mao a celebrar uma aliança estratégica com Estaline. A aliança suspende, temporariamente, a acrimónia e a suspeição mútua que permeava – mas que nunca se sobrepôs – as relações entre os dois titãs comunistas91. Desde a fundação do PCC, em 1921, que as “relações fraternas” entre os dois “partidos irmãos” eram enviesadas, em resultado das suscetibilidades chinesas, do chauvinismo russo, da interferência contínua de Moscovo, usualmente através do Comintern, nos assuntos internos do PCC e do apoio concedido ao Guomindang pelos soviéticos a partir do Verão de 1923. Havia, no entanto, outro lado da moeda. Mao devia, em parte, a sua ascensão à liderança do PCC a Estaline, que, ao longo das duas décadas que antecederam a “libertação” de 1949, consistentemente apoiou o rumo que o líder chinês imprimira ao PCC92. A acrimónia e o ressentimento eram reais, mas a admiração e deferência demonstrada a Estaline por Mao não eram menos reais. As origens longínquas do Partido Comunista Chinês remontam aos últimos tempos da dinastia Qing e aos

primeiros anos da nova república93. Atendendo aos acontecimentos decorridos nessas décadas, não será excessivo concluir que a “república que surgiu no lugar da dinastia era um mito; a China era uma mistura de estados em guerra e potências estrangeiras”94. A observação é fundamental para se entender a dimensão do fracasso global do projeto republicano e o feito extraordinário que representa a unificação da China sob a autoridade de Mao. Para todos os efeitos, a proclamação da República Popular da China inverte as tendências centrifugas que, durante o período republicano dominado pelo Guomindang, impulsionaram o país para o abismo da desintegração. A revolta de Wuchang, que despoleta o desmoronamento do império e a tomada do poder pelos bolcheviques russos, em 1917, convencem o jovem Mao Zedong que, na ausência de amplas alianças de classe, o proletariado chinês, mesmo que conseguisse adquirir o poder, dificilmente o conservaria num país rural, feudalizado e flagelado pelo desmembramento territorial. São estas condições objetivas que explicam a heterodoxia de Mao de atribuir ao campesinato o papel central na estratégia revolucionária do PCC. A excecionalidade da China residia, segundo Mao, precisamente no facto de “a escala de levantamentos e guerras camponesas na história chinesa não tem paralelo em nenhum outro lugar. As lutas de classe dos camponeses, as revoltas camponesas e as guerras camponesas constituíram a verdadeira força motriz do desenvolvimento histórico na sociedade feudal chinesa”95. A observação de Mao salienta a importância determinante dos movimentos camponeses que surgem com a Rebelião do Lótus Branco de 1796, uma revolta tributária que se alastra por toda a China central e, durante uma década, se transforma na primeira grande ameaça à ordem imperial. Posteriormente, nas décadas de 1850 e 1860, numerosas e devastadoras guerras civis varrem o país, a mais sangrenta das quais seria a Rebelião Taiping, que se prolonga entre

1851 e 1864. Compreensivelmente, Mao destaca a centralidade da guerra civil Taiping, caracterizando-a como um “movimento revolucionário de massas inacabado, dirigido principalmente contra os estrangeiros manchu”96. Dado o espírito rebelde, transformativo que permeia e impele os movimentos camponeses, o comunismo chinês preconizado por Mao, encapsulado no conceito de “guerra popular prolongada”, diverge do modelo marxista-leninista clássico que emergira de uma realidade europeia moldada pela industrialização e pela urbanização. A glorificação do campesinato como agente revolucionário feita por Mao Zedong depois do cataclismo do “Terror Branco” de 1927, que quase destrói o PCC, configura um corte com o pensamento marxista ortodoxo da época97. No seu O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, publicado em 1852, Karl Marx manifestara abertamente o seu desprezado pelo campesinato, descrevendo-o como “um saco de batatas” destituído de consciência de classe e de potencial revolucionário98. As numerosas rebeliões camponesas ocorridas na China deixaram uma marca duradoura, no entendimento de Mao (e só posteriormente do PCC) quanto às tarefas do partido e ao papel dos camponeses. As reivindicações sociopolíticas impulsionadoras dos movimentos camponeses, incluindo a redistribuição das terras, a condenação da corrupção moral e, em particular, o sentimento anti-estrangeiro enraizado no mundo rural, seriam cooptados pelos comunistas. Instalado no poder, o PCC, ao fundir o messianismo dos movimentos camponeses e o materialismo histórico marxista-leninista, procurará, através da luta das massas, “purificar” a sociedade chinesa por intermédio de um calvário revolucionário que desaguará na Grande Revolução Cultural Proletária. Ao procurar erguer a “sociedade nova”, o PCC reproduz o utopismo milenar camponês, subsequentemente expresso no léxico maoista em termos da “ação das massas” e da “pureza ideológica”99.

A heterodoxia ideológica de Mao só se instala na cúpula do PCC depois do encerramento do Movimento de Retificação de Yan’an, que decorre entre 1941 e 1945, altura em que Mao assiste ao triunfo das suas teses e se torna o líder inquestionável do partido. O triunfo da heterodoxia maoista deve-se, pelo menos parcialmente, à chegada tardia (e truncada) do pensamento marxista à China. Convém notar que o Manifesto Comunista de Karl Marx, traduzido por Chen Duxiu e Li Dazhao, seria impresso apenas em 1908, seis décadas depois de ser publicado na Europa100. Nos anos que antecederam a fundação do PCC, o estudo do marxismo era superficial, restringido a pequenos núcleos académicos nas principais cidades do país, que o difundem em publicações como a Nova Juventude, editada por Chen Duxiu. Dir-se-á que, em muitos aspetos críticos, o entendimento do marxismo subscrito pelos fundadores do PCC devia mais à história chinesa, e à experiência recente do Movimento Quatro de Maio do que aos rigores da dialética marxista e da análise de classe. Enraizado num contexto nacional concreto, o partido visava adaptar o marxismo às tarefas específicas colocadas pelas realidades chinesas. Mas essa mesma adaptação à realidade nacional obriga o partido a rever e, em alguns casos, a enjeitar fundamentos doutrinais do marxismo. Os acontecimentos que se desenrolam após a proclamação da república levantam questões teóricas complexas para o marxismo chinês na década de 1920. A burguesia nacional consegue estabelecer a república sob a orientação de Sun Yat-sen, mas o caos que se segue, e a usurpação do poder por Yuan Shikai, demonstra a fraqueza da minúscula classe operária num país rural e semifeudal. Com efeito, os eventos do pós-1912 também evidenciam a tremenda debilidade da burguesia nacional, incapaz, por si só, de concretizar a “revolução democrática e nacional” que, na perspetiva dos ideólogos marxistas, teria de anteceder a “revolução socialista”. Neste vazio, a ênfase dada por Mao

ao potencial revolucionário do campesinato nasce da necessidade ou, para recorrer à formulação maoista, da procura da verdade a partir dos factos. A China, muito simplesmente, não era a Rússia. A Grande Revolução de Outubro, por várias razões, dá um impulso colossal à difusão das ideias comunistas na China. A centralidade do acontecimento para o desenvolvimento do marxismo chinês seria destacada por Mao, em 1949, no artigo “Sobre a Ditadura Democrática Popular”. Debruçando-se sobre o impacto de 1917 nos meios marxistas chineses, Mao afirma que fora “através dos russos que os chineses encontraram o marxismo. Antes da Revolução de Outubro, os chineses não eram apenas ignorantes de Lenine e Estaline; nem conheciam Marx e Engels. As salvas da Revolução de Outubro trouxe-nos o marxismo-leninismo. A Revolução de Outubro ajudou os progressistas na China, assim como outros em todo o mundo, a adotar a perspetiva proletária do mundo como instrumento para estudar o destino de uma nação e para considerar novamente os seus próprios problemas”101. Mais do que um conhecimento do corpus teórico marxistaleninista, a tomada de poder pelos bolcheviques russos traz um conhecimento da organização leninista do partido e do caminho insurrecional para assaltar o poder. Atendendo a este desconhecimento generalizado dos fundamentos doutrinais, não surpreende que o embrionário movimento comunista chinês fosse mais do que recetivo à mão orientadora estendida pela Internacional Comunista (Comintern).   Na sombra do Comintern   Ao mesmo tempo que os bolcheviques conduzem uma luta

desesperada pela sobrevivência, face às resistências dos “russos brancos” e dos combatentes estrangeiros que os socorriam, os caminhos das revoluções russa e chinesa cruzam-se quando Lenine conclui que o destino da Revolução de Outubro estava intimamente ligado às vitórias anti-imperialistas no mundo colonial102. A viragem estratégica em direção ao mundo colonizado opera-se após o esmagamento dos movimentos operários na Alemanha, na Hungria e na Turquia. Por outras palavras, o fracasso da revolução proletária nas nações industrializadas do Ocidente, justamente nas sociedades onde Marx previa que a revolução triunfasse103, leva Lenine, em 1920, a instruir o Comintern, criado no ano anterior sob os auspícios dos bolcheviques russos, a abrir uma “segunda frente” contra o imperialismo no mundo colonial104. Desse modo, na Primavera de 1920, no momento em que decorriam os preparativos para o Congresso dos Povos do Oriente, realizado em Baku em setembro de 1920, dois agentes do Comintern, Grigory Voitinsky e Yang Mingzhai, chegam à China para fomentar a criação de um partido bolchevique local105. Assegurada a adesão chinesa aos preceitos ideológicos e organizacionais estabelecidos pelos “21 Pontos” do Comintern, Voitinsky, o Secretário do Departamento de Assuntos Orientais da Internacional Comunista, confia a Chen Duxiu, prestigiado intelectual da Universidade de Beijing e proeminente ativista do Movimento Quatro de Maio, a tarefa de estabelecer um “partido leninista de tipo novo”106. Dando seguimento às instruções do Comintern, Duxiu estabelece, em maio de 1920, um Comité Central provisório encarregado de preparar o lançamento do Partido Comunista Chinês. No dia 1 de julho de 1921, numa modesta escola para meninas localizada na concessão francesa de Xangai, doze homens, em representação de cinquenta e sete comunistas, reuniram-se para formar o Partido Comunista Chinês107. Perseguidos pela polícia, inteirada do encontro por agentes

infiltrados na organização, os delegados abandonam a escola e reúnem-se em vários locais. Encerram os trabalhos do Congresso fundador num barco turístico alugado no Lago Sul, em Jiaxing. Sob vigilância policial, Chen Duxiu e Li Dazhao, as personalidades dominantes do partido nos anos que seguem à fundação, vêem-se impossibilitados de marcar presença no conclave108. Todavia, Mao Zedong, na altura com 28 anos de idade, encontra-se entre os delegados ao I Congresso que selecionam (in absencia) Chen Duxiu como primeiro Secretário-Geral do autointitulado “partido militante e disciplinado do proletariado”, organizado para “exortar o proletariado a participar e ou liderar o movimento democrático burguês”109. Salienta-se que o PCC se recusa a exigir, por considerá-la prematura, a “revolução socialista”, procurando “liderar o movimento democrático burguês” até que amadurecessem as condições objetivas que permitissem a tomada revolucionária do poder. Sociedade semifeudal nos primórdios da modernização, a China teria, na ótica dos comunistas, de passar por uma “revolução democrática e nacional” antes de poder avançar rumo à “revolução socialista”. Apesar de se conformar com as orientações do Comintern, a retórica revolucionária do Partido Comunista Chinês não oculta as suas ambiguidades estratégicas. Espelhando a sua escassa preparação político-ideológica, os delegados ao I Congresso dividem-se quanto à prioridade imediata: construir um partido conspiratório dedicado à organização dos operários ou proceder à construção de um partido de massas habilitado a participar abertamente na vida da república. Acrescenta-se que, embora a minoria tivesse manifestado a sua oposição a qualquer aliança com o Guomindang de Sun Yat-sen, a maioria, instigada pelo delegado do Comintern, propõe, a fim de solidificar o “desenvolvimento do movimento antimilitarista e antiimperialista”, a “colaboração não-partidária” com os

nacionalistas110. A formulação constituía, em muitos aspetos, uma franca admissão da impotência política e estratégica do novíssimo partido. Aliás, estas e outras questões relacionadas com a teoria e a praxis do partido seriam resolvidas apenas com a ascensão de Mao à liderança do PCC no decorrer da Conferência de Zunyi, de janeiro de ١٩٣٥111. Paradoxalmente, as ambiguidades e contradições evidenciadas a partir do I Congresso não impedem o PCC de assumir um papel relevante na política chinesa porque a sorte intervém na pessoa de Estaline. A morte de Lenine, em janeiro de 1924, provoca a intensificação da luta pelo poder na recém-construída URSS, com Estaline a juntar-se a Grigory Zinoviev e a Lev Kamenev para bloquear as ambições de Lev Trotsky. Consumada a derrota deste último, Estaline alia-se a Nikolai Bukharin e à direita bolchevique para marginalizar os seus antigos aliados, Zinoviev e Kamenev. Uma das divergências que separa Estaline do chamado “grupo antipartido” de Zinoviev, Kamenev e Trotsky, que acabam por ser expulsos do partido em finais de 1927, incide sobre o papel do Comintern e a estratégia de alianças a seguir na China. Este debate, por sua vez, reflete duas visões distintas quanto ao papel da revolução mundial e a sua relação com o poder soviético. Adepto da “revolução permanente”, Trotsky mantém que a revolução russa será bem-sucedida se for escudada por revoluções operárias, que fortaleceriam o socialismo soviético. Insiste, portanto, que cabe ao PCC, a vanguarda da classe operária, liderar a revolução chinesa. Estaline, em contraste, mantém que a prioridade absoluta do movimento internacional comunista reside na preservação do poder bolchevique na URSS, na construção do “socialismo num só país” cercado por potências capitalistas hostis. Para isso, alianças de classe no estrangeiro são necessárias para enfraquecer o imperialismo e para, assim, resguardar a “pátria do socialismo”. Partindo desta leitura que ganha numerosos

adeptos no Comintern à medida que Estaline reforça a sua posição política, o déspota escolhe apoiar o PCC, mas também os nacionalistas do Guomindang, que lideraram a “revolução democrática e nacional”. Astuto, pragmático, calculista e destituído de escrúpulos, Estaline impõe a sua vontade e Moscovo encarrega o delegado do Comintern Maring (o holandês Hendricus Sneevliet, também conhecido como Ma Lin) de orientar o PCC e o GMD para a formação de uma Frente Unida capaz de consolidar a “revolução democrática e nacional” e antiimperialista que o Comintern entende estar a desenrolar-se no país112. Porque estavam por reunir as condições para fazer a revolução socialista, o PCC teria de se aliar ao nacionalista, burguês e anti-imperialista Guomindang. Ambos conduziriam a revolução “democrática e nacional” à sua fruição. Desprovido de recursos financeiros, contando com aproximadamente 200 membros inscritos, o SecretárioGeral Chen Duxiu anui, ante as instruções transmitidas por Maring, e, em 22 de agosto de 1922, numa sessão plenária especial do PCC, ratifica a orientação estratégia apresentada pelos senhores do Comintern113. A estratégia de cooperação entre nacionalistas e comunistas consubstanciada na Frente Unida visava derrubar o “imperialismo estrangeiro” e construir um estado chinês forte e unificado, pré-requisitos para realizar com êxito a “revolução democrática e nacional”. Não surpreende, pois, que, perante os pedidos do PCC de ajuda destinada à criação de uma força de combate capaz de desalojar a ala militar do Guomindang, o tirano georgiano argumente que as forças nacionalistas incorporam “pessoas capazes, que ainda dirigem e lideram o exército contra os imperialistas”114. A postura de Estaline era expectável porque, na altura, os soviéticos apoiam inequivocamente os militares do Guomindang e as suas instituições, incluindo a Academia Militar de Whampoa, onde cidadãos soviéticos instruem o corpo de oficiais do exército republicano. A

prudência de Estaline reflete o seu ceticismo em relação à capacidade do PCC de disputar o poder nacional, ao mesmo tempo que, denuncia o seu propósito de instrumentalizar o GMD para conter o expansionismo japonês na China. Se é verdade que o acordo frentista atendia aos interesses de Estaline, é igualmente verdade que a nova aliança coloca problemas monumentais aos dois partidos chineses. Da parte dos nacionalistas, suspeitava-se das verdadeiras intenções dos militantes do PCC. Estes, que não totalizam mais do que umas centenas, temiam, com inteira razão, serem engolidos pelos seus rivais. É certo que, de acordo com os termos da Primeira Frente Unida, os membros do PCC que optassem por aderir ao Guomindang ficariam isentos de jurar lealdade pessoal a Sun Yat-sen, até então uma condição prévia de adesão à organização. Ainda assim, o PCC mantinha que a aliança com o Guomindang, embora concebida como de natureza estritamente tática, era imperativa para combater os “senhores da guerra de tipo feudal”115. Realizada a “revolução democrática e nacional”, a aliança com o Guomindang tornar-se-ia supérflua porque o PCC conduziria a classe trabalhadora à “ditadura do proletariado aliado aos camponeses pobres contra a burguesia”116. Desnecessário será referir que o Guomindang não partilhava a leitura do PCC quanto ao futuro do país. Também o GMD atravessava uma fase de desorientação estratégica. Em 1919, após a dissolução do Partido Revolucionário, Sun Yat-sen imediatamente forma o Partido Popular Nacional (Guomindang). Embora inicialmente carecesse de seguidores e de um aparato militar robusto, tais limitações eram parcialmente compensadas pela imensa autoridade pessoal conquistada por Sun Yat-sen durante anos de exílio e de ativismo político. Imbuído com a autoridade política de Sun e orientado pelo delegado do Comintern, Grigory Voitinsky, o GMD adota uma estrutura organizacional leninista, reforçada por um juramento de lealdade pessoal a Sun Yat-sen. A coesão ideológica do

partido, por sua vez, repousava nos Três Princípios de Nacionalismo, Democracia e Subsistência, definidos por Sun Yat-sen117. Em março de 1923, dá-se um passo significativo para consolidar a influência do partido, quando a liderança soviética lhe atribui ajudas financeiras, assessores e formação militar118. Ao apostar nos nacionalistas, o Kremlin restringe a autonomia do PCC, vinculando-o às fortunas do Guomindang, crescentemente dividido entre as fações esquerda e direita, que se polarizam após a morte de seu fundador e líder, em março de 1925. A chefia do Guomindang passa então para Chiang Kai-shek, um delfim de Sun Yat-sen que recebera treino militar na URSS e que comandava a Academia Militar de Whampoa119. Pouco tempo depois, ficaria claro que Chiang estava longe de ser um compagnon de route, ou até um mero simpatizante, dos comunistas chineses. A Frente Unida alcança o seu apogeu em 1926/7, momento em que os comunistas se unem ao Exército Nacionalista de Chiang Kai-shek na Expedição do Norte, a ofensiva militar que visa esmagar os senhores da guerra que impedem a formação de um governo republicano coeso. O êxito da Expedição do Norte permite a tomada de posse, em abril de 1927, de um governo nacionalista em Nanjing, recémlibertada do senhor da guerra Sun Chuanfang120. Nesse mesmo mês, Chiang Kai-Shek, um dos soldados nacionalistas “capazes” que Estaline elogiara, desencadeia o “Terror Branco” contra os seus aliados da Frente Unida. Altos quadros do PCC são encarcerados; sendo muitos sumariamente executados durante o “massacre de Xangai”121. Mais tarde, por ocasião do 60º aniversário do PCC, a Sexta Sessão Plenária do XI Comité Central descreve a extensão desta devastação nos seguintes termos: “O número total de membros do Partido, que havia crescido para mais de 60,000, caiu para um pouco mais de 10,000”122. A imensidão do desastre sofrido às mãos de Chiang Kai-shek, que atormentará a cúpula do PCC durante

décadas, provoca duas consequências imediatas: em 12 de julho de 1927, Chen Duxiu será afastado do cargo de Secretário-Geral e, em paralelo, a liderança do partido mergulha numa fase conspirativa enquanto luta pela sobrevivência no interior do país, onde Mao Zedong conquista a liderança do PCC. Por sua vez, o Generalíssimo Chiang Kai-shek, depois de neutralizar a contestação da ala esquerda do Guomindang, redireciona o movimento nacionalista para prosseguir um combate sem quartel aos comunistas, que recorriam à luta armada nas montanhas da China rural.   Na mão do Grande Irmão   Em 1936, com o aproximar dos tambores da guerra mundial, o Governo de Chiang Kai-shek, a braços com os senhores da guerra e com os insurretos comunistas, via-se impedido de mobilizar recursos para conduzir a luta antijaponesa a bom porto. Convictos de que a luta armada de Chiang contra os guerrilheiros do PCC fragilizava a resistência aos japoneses, um grupo de generais nacionalistas, sob a liderança de Zhang Xueliang, protagoniza o bizarro “Incidente de Xi’na”. Em dezembro de 1936, com o intuito de pressionar Chiang a chegar a um acordo com o Exército Vermelho que pudesse reforçar o combate anti-nipónico, os revoltosos raptam e sequestram o generalíssimo123. Humilhado pelo levantamento e coagido pelos seus generais, Chiang Kai-shek cedeu às exigências de Zhang Xueliang e, nessas circunstâncias nada auspiciosas, consumou-se, pelo menos no papel, a Segunda Frente Unida. Forças nacionalistas esporadicamente colidiam com o Exército Imperial Japonês na Manchúria durante a

Campanha do Norte. Mas será o “Incidente da Ponte Marco Polo”, ocorrido a 7 de julho de 1937, que desencadeia a Segunda Guerra Sino-Japonesa. A complexa situação política decorrente da agressão nipónica, incluindo a “violação de Nanjing” e a ocupação da grande parte da China oriental124, impossibilitava a rejeição dos pedidos de “união” formal entre nacionalistas e comunistas, isto é, o rompimento da Segunda Frente Unida. Ao mesmo tempo, as memórias da fracassada Primeira Frente Unida, particularmente a recordação das matanças que acompanharam o “Terror Branco”, revelam-se intransponíveis. Não surpreende, pois, que Chiang continue a conter militarmente a guerrilha comunista e, enquanto Mao persiste em minar a influência do GMD de forma a consolidar o PCC nos campos. Dividida por estas e outras clivagens, a Segunda Frente Unida resiste apenas como parceria formal sem expressão operacional. Uma vez que as divergências separando os campos nacionalista e comunista não seriam ultrapassadas, a derrota do projeto imperial japonês em 1945, abre o caminho para mais uma ronda da interminável guerra civil chinesa. Durante a primeira semana de fevereiro de 1945, seis meses antes do cessar das hostilidades no Pacífico, o destino da China no pós-guerra fora decidido pelos “Três Grandes” – os Estados Unidos, o Reino Unido e a União Soviética – no resort de Ialta, na Crimeia125. Politicamente fortalecido pelas “realidades no terreno” ditadas pelo Exército Vermelho na Europa Oriental, Estaline apresenta a Franklin D. Roosevelt e a Winston Churchill as suas reivindicações relativas ao Extremo Oriente. As exigências do autocrata soviético não se compaginam com o silêncio anglo-americano porque Roosevelt necessita de convencer o seu homólogo soviético a entrar na guerra do Pacífico. Antevendo uma invasão prolongada, e sanguinária das ilhas nipónicas, os Estados Unidos procuram o destacamento dos exércitos de Estaline para a China e para a Coreia, de forma

a abrir uma segunda frente contra os japoneses. O ditador anui à solicitação de Roosevelt, mas extrai um preço elevado. Compromete-se a aceitar declarar a guerra a Tóquio três meses após a vitória na Europa; em contrapartida, o Primeiro-Ministro britânico e o Presidente americano aceitam repor o status quo ante que vigorava no Extremo Oriente antes da ascensão japonesa. Aceitam restaurar os “direitos” históricos “violados” pelo Japão em 1904, incluindo a devolução do sul da ilha Sacalina e das ilhas Curilas, territórios cedidos a Tóquio pelo império czarista na sequência da Guerra Russo-Japonesa. Adicionalmente, Port Arthur e Dairen, bem como as ferrovias leste e sul da Manchúria, seriam entregues aos soviéticos. Não menos crítico, Ialta previa a permanência da República Popular da Mongólia (Mongólia Exterior, uma parte da China até 1912) sob tutela moscovita, um estado-tampão visto como indispensável para garantir a segurança da União Soviética na Ásia Central. São ganhos geoestratégicos importantes, ainda mais porque são ratificados por Churchill e Roosevelt em Ialta. Estaline, depois de prometer pôr fim à assistência material e financeira prestada ao PCC, reconhece o governo do Guomindang e convence Chiang Kai-shek a assinar um “Tratado Sino-Soviético de Amizade e Aliança” que, no essencial, reproduz o acordo de Ialta. Indubitavelmente satisfeito com os impressionantes ganhos que obtém na frente diplomática, o tirano georgiano cultiva uma distância prudente relativamente ao PCC, persuadindo Mao a aceitar um entendimento político global com o Guomindang. Fá-lo porque não acredita na capacidade do Exército Vermelho de Mao de infligir uma derrota militar ao Guomindang e porque está determinado a evitar provocar a ira de Washington. No entanto, o acordo versando o Extremo Oriente firmado em Ialta acaba por se desfazer quando os Estados Unidos anunciam que reservam para si a exclusiva responsabilidade pela ocupação do Japão. Ao mesmo tempo

que os Estados Unidos intensificam as ajudas a Chiang Kaishek, Estaline, receoso de um “cerco americano”, não tem outra alternativa senão continuar a fornecer armas aos comunistas chineses. Não obstante os ajustes à sua estratégia para o Extremo Oriente ditados pela conjuntura, Estaline, na véspera do triunfo de Mao na guerra civil, aconselha a remoção do Exército Vermelho do rio Yangtzé e insiste na formação de um governo de coligação nacionalista-comunista. Até aos derradeiros momentos da guerra civil, o Kremlin, cético em relação à vitória comunista, visa condicionar a margem de manobra das partes chinesas e, assim, salvaguardar os interesses vitais do estado soviético, a prioridade das prioridades. A postura de Estaline na Europa de Leste sob ocupação dos tanques do Exército Vermelho confirmara que o seu compromisso com a revolução socialista e o internacionalismo proletário estava nitidamente subordinado à lógica da segurança e do interesse nacional do estado soviético. A revolução era, no dizer do déspota, “um meio de poder e não um objetivo em si”. Mas, em última análise, a política externa soviética pós-1945 será impulsionada pelo imperativo de demarcar esferas de influência e de evitar conflitos que possam comprometer interesses estratégicos moscovitas126. Uma coisa era clara: a metamorfose do frágil estado bolchevique do pré-guerra na assertiva grande potência do pós-guerra. Mas esta imensa expansão do poderio soviético também gera inseguranças que se agudizam à medida que as relações russoamericanas degeneram. Ora, esta insegurança estratégica de Estaline, decorrente do receio do cerco capitalista, leva-o a estabelecer relações preferenciais com Mao, de quem espera sacrifícios em prol do avanço da “construção socialista” soviética. Esta visão utilitária quanto aos partidos comunistas “fraternos”, patente nas mudanças de orientação estratégica do Comintern nas décadas de 1920 e 1930, bem como nos destinos trágicos dos comunistas

estrangeiros cujas opiniões colidiam com as de Estaline, vêm à tona nas relações mantidas com o Partido Comunista Chinês. As tensões entre os partidos soviético e chinês não emergem de imediato, até porque a dedicação de Mao ao marxismo-leninismo assentava na convicção de que a transformação revolucionária do estado e da sociedade chinesas restauraria o país à grandeza negada pelas potências imperialistas. Para atender aos objetivos domésticos da revolução preconizada por Mao, torna-se inevitável traçar uma orientação anti-imperialista em política externa. Restaurar a posição legítima da China no mundo exigiria que o novo governo da RPC desfizesse o legado do “século da humilhação nacional”; isto é, impunhase a reformulação das relações de Beijing com as potências ocidentais. As políticas interna e externa do PCC eram, pois, indivisíveis, reforçavam-se mutuamente. Acrescenta-se que, impulsionado pela rejeição do legado do “século da humilhação nacional”, o nacionalismo do PCC encaixava no léxico anti-imperialista dos partidos marxistas-leninistas do Comintern. A solidariedade interpartidária inerente à participação no movimento internacional comunista significa que Mao dispõe de aliados preparados para defender a revolução chinesa e inserir o país num sistema internacional não-capitalista que descarta as regras ocidentais de comportamento entre estados. Independentemente das desconsiderações pessoais provocadas pelo chauvinismo russo e pelas “más maneiras” de Estaline, Mao estava refém do entendimento do georgiano quanto ao internacionalismo proletário127. Há a tentação de enfatizar a inexorabilidade do cisma sinosoviético, iniciado em fevereiro de 1956 pelo “discurso secreto” de Nikita Khrushchev, entendendo-o como o resultado inevitável da busca de independência face a Moscovo. No entanto, o conflito entre os dois colossos comunistas não fora predeterminado. Um dos mais

conhecidos slogans chineses da década 1950 afirmava que a “URSS de hoje é a China de amanhã”. Resumia-se, assim, a essência das expectativas e ambições chinesas no período posterior à “libertação” de 1949. Independentemente das diferenças que obstaculizavam as relações entre os dois partidos marxistas-leninistas, Mao descreve os soviéticos como os “grandes irmãos” e diz-se se “pupilo” de Estaline, a quem reconhece o papel principal no movimento internacional comunista. Para o PCC, e tantos outros partidos comunistas, a URSS era o farol que iluminava a trajetória da modernização e do sentido geral do progresso e da história. Para os novos dirigentes da República Popular da China, Moscovo possuía capital e meios técnicos de cooperação para viabilizar a reconstrução e a industrialização do país. O país tinha muito a aprender com a experiência adquirida pelos camaradas soviéticos e a assistência de Moscovo era absolutamente essencial para construir o socialismo chinês e restaurar o status do país como grande potência mundial. As desavenças entre comunistas soviéticos e chineses são temperadas e os impulsos revolucionários de Mao e Estaline resfriados pela presença militar massiva dos Estados Unidos na Ásia depois da vitória aliada na guerra do Pacífico. Em face desta nova realidade geopolítica e dos acontecimentos surgidos no pós-1945 que apontam para uma notável degradação do relacionamento soviético-americano, os dois ditadores comunistas firmam, a 14 de fevereiro de 1950, o Tratado Sino-Soviético de Amizade, Aliança e Assistência Mútua128. A recém-criada República Popular sinaliza a importância da aliança com a deslocação de Mao Zedong a Moscovo, onde permanece entre dezembro de 1949 e fevereiro de 1950 para participar na fase final das negociações e na cerimónia de assinatura. Para Mao, a estadia em Moscovo não seria uma experiência aprazível. Tratava-se, aliás, da primeira de apenas duas vezes que o Grande Timoneiro se ausentaria de solo chinês.

É evidente que Mao via a aliança como um instrumento para retirar a RPC do sistema capitalista mundial e para impulsionar a integração do país no “campo socialista” sob a liderança soviética. Em Moscovo, pressiona os soviéticos e pede a Estaline um novo tratado, mas o líder soviético revela-se relutante. As razões de Estaline para manter o antigo tratado celebrado com o Guomindang são óbvias. Contudo, um novo arranjo poderia minar o entendimento de Ialta e assim, provocar a intervenção dos Estados Unidos na China, algo que desesperadamente pretende evitar. Menos razão para Estaline, depois de procrastinar durante quase duas semanas, ceder finalmente ao pedido de Mao. Mas o autocrata impõe numerosas condições à parte chinesa, incluindo uma zona de interesses exclusivos na Manchúria, e o direito (particularmente humilhante para a China) de movimentar tropas soviéticas através da Manchúria em tempo de guerra. Moscovo também conserva a sua base naval em Port Arthur (Lüshun) e adquire participações em várias empresas conjuntas, uma concessão que desagrada a Mao. Eis os chamados “frutos amargos” da aliança sinosoviética, a que o líder chinês se referiria mais tarde. Em contrapartida, a China obtém garantias de segurança, sendo colocada sob o “guarda-chuva nuclear” soviético. A ajuda económica passa pela criação de novas indústrias, incluindo a militar, com o auxílio dos cooperantes soviéticos que trabalham na República Popular na década de 1950 e dos estudantes chineses que se deslocam para os países socialistas. Mais importante ainda, a aliança sino-soviética legitima Mao, integrando-o no movimento revolucionário encabeçado por Moscovo. Embora tenha resistido apenas uma década, a aliança anuncia uma profunda alteração do equilíbrio regional de poder e acelera as dinâmicas da novel Guerra Fria. As implicações regionais da aliança tornam-se claras em 1950, na Coreia. A proclamação da República Popular da China ocorre num

quadro de intensificação de tensões leste-oeste. Na Ásia, o Japão, a grande potência da primeira metade do século, encontra-se sob ocupação e integralmente devastado pela guerra. Assente na proeminência japonesa, a ordem asiática em vigor antes de 1945 implodia, criando um vácuo de segurança na região. Na Índia e na Indonésia, as potências europeias rapidamente se revelam impotentes para travar a descolonização. A França regressa ao Vietname apenas para se envolver numa nova guerra com as forças comunistas de Ho Chi Minh. A Coreia, divida em dois estados, vê o norte da península, a parte mais industrializada do país, cair para os comunistas de Kim Il-sung, instalado no poder pelas autoridades de ocupação soviéticas. São, porém, os acontecimentos a decorrer na Europa Oriental e na Grécia que dão origem à Guerra Fria. Em resposta a esses episódios, em 12 de março de 1947, Harry Truman, dirigindo-se a uma sessão conjunta do Congresso, delineia a “doutrina de contenção” e explica que “a política dos Estados Unidos deve apoiar os povos livres que resistem à tentativa de subjugação por minorias armadas ou por pressão externa”129. Reproduzindo o universalismo de Truman, o ideólogo do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), Andrei Zhdanov, durante a reunião fundadora do Cominform, a 22 de setembro de 1947, anuncia a doutrina dos “dois campos”, postulando a inevitabilidade da guerra entre o polo “antidemocrático e imperialista” liderado pelos Estados Unidos e o bloco “democrático e anti-imperialista” encabeçado pela União Soviética130. Uma vez que o campo “democrático e anti-imperialista” abrangia os partidos operários e comunistas, e também reunia os movimentos de libertação do mundo colonial, o conceito tradicional marxista-leninista de “dois sistemas” dá lugar ao conceito de “dois campos irreconciliáveis”131. Eis a novidade das relações internacionais da fase inicial da Guerra Fria: um mundo dividido entre duas potências de vocação universalista que comandam campos mutuamente

antagónicos. A inimizade de Estaline e Mao em relação ao mundo capitalista gera incentivos para que os dois autocratas se aliem para equilibrar o poderio dos Estados Unidos. Beijing, logicamente, procura obter o apoio de Moscovo de forma a escudar-se das manobras de Washington, que visa isolar, política e economicamente, a República Popular. Quando Mao “se inclina para um lado”, fórmula utilizada para expressar a sua preferência pelo campo político tutelado por Moscovo, Estaline passa a contar com o maior país asiático como aliado, assim equilibrando a correlação de forças numa zona que assiste a um intenso buildup da presença militar americana132. Por último, e certamente não menos relevante, o apoio concedido pelo PCC à União Soviética e o reconhecimento do PCUS como líder indiscutível do movimento internacional comunista solidificam o prestígio e a liderança de Estaline do campo “democrático e antiimperialista”. A aliança sino-soviética assegurava, pois, os objetivos políticos imediatos dos dois tiranos.   O Oriente é vermelho   As origens longínquas da Revolução Cultural remontam às duas visões existentes no interior do PCC desde a fundação da República Popular ao modelo de construção socialista a seguir. As origens imediatas encontram-se no processo de “destalinização” iniciado no XX Congresso do PCUS, realizado em fevereiro de 1956133. Em 1953, Estaline morre e com ele desabada o monólito que era o comunismo internacional. É certo que a dissidência de Leon Trotsky e, em 1948, a heresia de Josip Broz Tito, provocaram tremores dentro do movimento internacional comunista. Mas eram

casos pontuais que Estaline, com a sua imensa autoridade e uso indiscriminado da violência, ultrapassara. Tudo muda no dia 25 de fevereiro de 1956. Proferido por Nikita Khrushchev no XX Congresso do PCUS, o “discurso secreto” – formalmente intitulado “Sobre o Culto da Personalidade e as suas Consequências” – dá início a uma duríssima condenação do culto da personalidade e dos demais pilares estruturantes do estalinismo. Khrushchev enfatiza a natureza subjetiva de Estaline – os erros, desvios e abusos de poder –, concluindo que a construção socialista carece de mudanças, mais ou menos profundas na nomenklaturae e a liberalização da sociedade soviética. Ao salientar esta natureza subjetiva do estalinismo, faz uma leitura difícil de conciliar com a “cientificidade” do materialismo histórico e, em última análise, com o marxismo-leninismo. O discurso secreto despoleta um terramoto no movimento internacional comunista ao qual o PCC, logicamente, não permanecerá incólume. O assalto impiedoso ao legado de Estaline, outrora líder incontestável que vencera a “guerra contra o fascismo” e grande obreiro da construção socialista, leva Mao a temer que “algum ‘Khrushchev chinês’ se levantasse no PCC e atirasse Mao, assim como Khrushchev atirara Estaline, para o poço da história e transformasse o comunismo na China em nada mais do que uma fórmula para o crescimento económico e a prosperidade”134. Politicamente astuto, o Grande Timoneiro não estava totalmente incorreto na sua leitura da conjuntura política. É verdade que Mao jamais poderia ser liminarmente afastado, pois o seu estatuto de fundador do PCC, vencedor da guerra civil e figura cimeira da República Popular não o permitiria. Mas, evidentemente, o seu poder era suscetível de ser esvaziado, transformandoo numa figura simbólica destituída de poder real. Disputas entre fações e purgas individuais eram endémicas ao PCC, mas o terror generalizado empregado por Estaline para dizimar as cúpulas do PCUS jamais seria replicado nas

fileiras do partido chinês. É certo que o terror generalizado, pela mão de Kang Sheng, um sicofanta de Mao, fora utilizado com grande eficácia nos anos da guerrilha. Porém, a institucionalização do PCC que ocorre depois do estabelecimento da RPC significa que, ao contrário de Estaline, Mao, apesar de ser um primus inter pares no PCC, não podia recorrer ao terror sistemático para sufocar vozes dissidentes no seio do partido e exterminar os seus rivais. Mao, em maio de 1956, optando por expor potenciais adversários suficientemente ousados para denunciarem os erros do PCC, ordena o início da Campanha das Cem Flores. Inspirado pelo poema “deixar desabrochar uma centena de flores, deixar florescer uma centena de escolas de pensamento”( , ), o Movimento das Cem Flores, reminiscente do “descongelamento” de Khrushchev, instiga intelectuais a encetarem a discussão sobre a cultura socialista. Oficialmente, o objetivo último da iniciativa era demonstrar a superioridade do socialismo face ao capitalismo e, assim, acelerar o desenvolvimento socialista. Em “Sobre a Justa Solução das Contradições no Seio do Povo”, publicado em finais de fevereiro de 1957, Mao apela à “crítica construtiva”135. Meses depois, renova o apelo à denúncia dos excessos do governo e do aparelho burocrático. Desta vez, as críticas não só se multiplicam, como extravasam os parâmetros da “crítica construtiva”. Por exemplo, surge no campus da Universidade de Beijing um “Muro da Democracia” que repudia abertamente a política do PCC e os privilégios injustificados da nomenklatura. A extensão e o alcance da contestação surpreendem Mao e a cúpula do PCC e, em julho de 1957, a “abertura” era subitamente terminada. Intelectuais que ousaram levantar a voz contra os atropelos do regime passam a ser reprimidos no âmbito do Movimento AntiDireitista, orientado por Deng Xiaoping, que segue a Campanha das Cem Flores136. O regime resistia ao apelo da liberalização, como voltaria a

fazer durante os eventos de Tiananmen, em 1989. As lições da Campanha das Cem Flores também explicam por que razão, durante a Revolução Cultural, esforços hercúleos foram empreendidos para garantir a adesão à linha partidária “correta”, delimitando os parâmetros aceitáveis do discurso ideológico em plena conformidade com os escritos teóricos de Mao, posteriormente codificados no Livro Vermelho. Por outro lado, acontecimentos verificados fora das fronteiras da China na segunda metade da década de 1950 encorajam Mao a resistir à desestabilização político-ideológica associada ao “revisionismo” soviético. A desmistificação de Estaline por Khrushchev, bem como a Revolta Húngara anticomunista de 1956, demonstraram até que ponto o edifício ideológico do PCC poderia ser desconstruído se o partido não estreitasse as suas fronteiras ideológicas137. Um exame crítico do passado recente levaria, invariavelmente, a um aumento da contestação dos pilares ideológicos fundamentais sobre os quais repousava a legitimidade e a autoridade do regime. Ora, em 1956, um desses pilares era o próprio Mao, o “libertador” e fundador do PCC e da República Popular. Se o imperialismo ameaçava o socialismo a partir do exterior, o revisionismo era o insidioso inimigo interno que espreitava nas sombras mais profundas do partido e do estado. Não era, pois, tempo de contemplação e recuo. Na realidade, para garantir que os inimigos do socialismo não conseguissem conquistar posições, impunha-se uma vertiginosa aceleração da construção socialista. Alternativamente conhecido como o Grande Salto Em Frente, o Segundo Plano Quinquenal, abrangendo os anos 1958-62, era uma aceleração da construção socialista. Preconizado por Mao, o Grande Salto Em Frente desencadearia um “avanço imprudente” para o comunismo. Assente na abundante mão de obra da imensa população chinesa, o “avanço imprudente” permitiria que a China, em menos de quinze anos, ultrapassasse o produto nacional da

Grã-Bretanha. O Grande Salto Em Frente resulta de um debate no interior do PCC sobre o ritmo da industrialização e da coletivização da terra que se arrastava desde os primeiros dias da RPC. Inspirado pela coletivização estalinista operada na década de 1930, Mao procura financiar a industrialização acelerada com o excedente extraído do sector agrícola, razão que o leva a propor a coletivização imediata dos campos (isto é, o estabelecimento das comunas populares). Em contraste com a utopia maoista, Liu Shaoqi, Zhou Enlai e Deng Xiaoping surgem como os principais defensores do planeamento industrial pragmático e de um ritmo mais suave de coletivização. De modo a resolver as diferenças decorrentes desse choque no seio da cúpula do PCC, realizase, entre 17 e 30 de agosto de 1958, em Beidaihe, a reunião ampliada do Comité Central, que aprova as orientações de Mao para estabelecer as comunas populares e os “fornos de quintal”. A primeira era apresentada com uma “política fundamental para orientar os camponeses a acelerar a construção socialista, para concluir a construção do socialismo antes do tempo e realizar a transição gradual para o comunismo”138. Quanto aos “fornos de quintal”, pretendia-se duplicar a produção de aço dentro de um ano. Acrescenta-se que as comunas populares estruturavam relações sociais de modo a torna-las mais igualitárias. Pouco depois, numa segunda reunião do Comité Central, realizada em Wuchang, em finais de novembro, Mao, apesar das crescentes evidências que apontavam para o insucesso do “avanço imprudente”, insiste em acelerar a “comunalização” da China rural. Analisando o contexto mais vasto do debate a decorrer dentro do PCC, a obstinação política e a imobilidade ideológica de Mao tornam-se compreensíveis. Note-se que, em 1957, Khrushchev conduzia uma luta política implacável contra o chamado “Grupo Antipartido” – Georgy Malenkov, Vyacheslav Molotov, Lazar Kaganovich e Dmitri Shepilov139.

Lembrando a proximidade e cumplicidade de Khrushchev com Estaline, o “Grupo Antipartido”, leais colaboradores de Estaline que haviam apoiado Krushchev durante a sucessão do autocrata georgiano, denuncia a hipocrisia do novo chefe, condena os excessos da “destalinização” e opõe-se à liberalização em curso. Em política externa, a “coexistência pacífica” vislumbrada por Khrushchev era entendida pelo grupo rebelde (e pelos chineses) como uma capitulação perante o campo capitalista, suscetível de gerar uma mudança da correlação de forças internacionais desfavorável aos estados socialistas e que, em última análise, enfraqueceria a União Soviética. Não era de todo seguro que Khrushchev viesse a sobreviver ao confronto com os seus adversários. Dado que o “Grupo Antipartido” reunia a maioria no Presidium, Khrushchev convoca uma reunião especial do Comité Central do PCUS, realizada em junho de 1957. Contando com o apoio do prestigiado Ministro da Defesa, Georgy Zhukov, Khrushchev assegura, por unanimidade dos votos, a expulsão do “Grupo Antipartido” e sobrevive como Primeiro Secretário. Procurando robustecer a sua legitimidade interna, convoca, para finais de janeiro e inícios de fevereiro de 1959, o XXI Congresso (Extraordinário) do PCUS. Antes de partir para o Congresso, Zhou Enlai será avisado que Khrushchev tenciona anunciar a política de “coexistência pacífica” e, como corolário, abandonar a doutrina dos “dois campos hostis”. A decisão provoca profundo desagrado em Beijing, mas não impede a assinatura de um programa bilateral de cooperação económica sino-soviética. Deveras inquieto quanto ao rumo dos acontecimentos a decorrer na URSS, Mao confronta-se com monumentais problemas económicos que, no essencial, apontam para o fracasso do Grande Salto Em Frente. As dificuldades económicas, por sua vez, minam a autoridade de Mao, como, aliás, se verifica no decorrer dos trabalhos do

Congresso Nacional do Povo, de abril de 1959. Sob intensa pressão política, Mao cede o cargo de Presidente da RPC a Liu Shaoqi, o número dois do partido que assim emerge como o sucessor natural de Mao. Eis o reconhecimento da fragilidade política do Grande Timoneiro. Num claro revés, outros dois defensores do pragmatismo económico saem reforçados do encontro: Zhou Enlai é confirmado como Primeiro-Ministro e Deng Xiaoping é nomeado SecretárioGeral do PCC. Embora politicamente debilitado em virtude destas mudanças que permitem aos seus rivais gerir o quotidiano do partido e do estado, o prestígio pessoal de Mao impede-o de ser integralmente afastado. Com efeito, o Grande Timoneiro preserva o seu cargo de Presidente do Comité Central, um modesto lugar que irá utilizar com astúcia e tremenda eficácia em batalhas futuras. A nova correlação de poder dentro do PCC é-lhe desfavorável, mas a fragilidade do equilíbrio estabelecido entre as fações pragmática e radical será, meses depois, testada em Lushan140. Na Conferência de Lushan, que se prologa durante os meses de julho e agosto de 1959, assiste-se a um inédito desafio à autoridade de Mao. Surge sob a capa da contestação aberta, embora limitada, as políticas falhadas do Grande Salto Em Frente. Temendo o elevado preço a ser pago por combater abertamente o Presidente, vários líderes do partido insatisfeitos com o rumo da economia refugiamse num prudente autoimposto silêncio que, esperam, permitir-lhes-á contornar o cabo das tormentas políticas. As exceções serão Chen Yun e Peng Dehuai, Ministro da Defesa e um dos dez marechais do Exército de Libertação Popular. Lutador comunista desde 1928, Peng torna-se célebre durante a Guerra da Coreia como comandante do Exército Popular Voluntário. Imbuído de uma autoridade política e pessoal enraizada nos seus feitos em prol do socialismo, Peng terá pensado estar imune a represálias quando escreve uma longa “Carta de Opinião” dirigida a Mao a tecer

críticas ao Grande Salto Em Frente. Recomendando o retardamento do “avanço imprudente”, a carta de Peng alerta que “algumas pessoas não têm comida e roupas suficientes (...), o desperdício de alimentos e materiais é generalizado (...), a qualidade da colheita do Outono é má, e o custo do cultivo é muito elevado”141. Denunciando o “fanatismo pequeno-burguês” que impulsiona o voluntarismo de Mao, o marechal exige o fim efetivo do Grande Salto Em Frente e o regresso às políticas prudentes e realistas. Ao longo de duas semanas, Mao ouve, pacientemente, as críticas de Peng e de alguns, poucos, dos seus aliados142. Depois, distribui a carta de Peng ao Comité Central. Em 23 de julho, Mao Zedong, Lin Biao, Peng Zhen, Bo Yibo e An Ziwen iniciam uma violentíssima ofensiva contra o marechal, caracterizando o confronto entre Mao e Peng como uma “luta de classes de vida e morte entre o proletariado e a burguesia que decorre há uma década”143. A equivalência estabelecida entre a burguesia e Peng Dehuai transforma-o num inimigo de classe, isto é, num inimigo objetivo do partido e do socialismo. Levando o ataque ainda mais longe, Mao dirige-se ao marechal para o acusar de organizar uma “camarilha militar” para derrubar o governo. De seguida, a fim de subverter a autoridade do Ministro da Defesa junto das forças armadas, Mao ameaça que, caso o complot seja bem-sucedido, “irá para o campo para levar os camponeses a derrubar o governo. Se vocês do Exército de Libertação não me seguirem, irei encontrar um Exército Vermelho e organizar outro Exército de Libertação. Mas acho que o Exército de Libertação seguirme-à”144. Mao acusa o marechal de liderar um ataque ao Presidente (e, por extensão, ao PCC) em nome de um “grupo antipartido”, uma designação que efetivamente coloca as críticas de Peng para além dos parâmetros da opinião tolerada. As investidas e as autocríticas prolongam-se durante duas

semanas, ao longo das quais Peng será denunciado como “burguês” e “oportunista de direita”. Em resultado do assalto político conduzido pelos maoistas, em 17 de agosto, Peng Dehuai é demitido como Ministro da Defesa, chefe do Estado Maior e purgado da poderosíssima Comissão Militar Central. Acusado de fomentar uma conspiração, é preso. Lin Biao, escolhido por Mao para suceder a Peng como Ministro da Defesa e primeiro Vice-Presidente da Comissão Militar Central, não perde tempo em robustecer o seu domínio sobre a instituição militar. Para balançar a impressionante acumulação de poder nas mãos de Lin Biao, Liu Shaoqi e Deng Xiaoping são encarregados de desfazer os danos económicos produzidos pelo Grande Salto Em Frente. Estão, assim, demarcados os campos políticos que se irão confrontar durante a Grande Revolução Cultural Proletária. Na frente externa, Nikita Khrushchev intensifica a sua investida contra Mao Zedong145. Usando a Conferência de Bucareste de junho de 1960, dos partidos operários e comunistas para atacar o rumo percorrido pelos dirigentes chineses, o soviético demonstra até que ponto o PCC estava dessincronizado com o sentimento geral existente no seio do movimento internacional comunista146. As posições chinesas são secundarizadas apenas pelo Partido do Trabalho da Albânia, de Enver Hoxha, enquanto nortecoreanos e norte-vietnamitas mantêm uma saudável equidistância relativamente ao PCUS e ao PCC147. Liderada por Peng Zhen, a delegação do PCC não consegue chegar a um acordo com os soviéticos, cada vez mais assertivos nas suas advertências quanto ao “perigoso aventureirismo” do Grande Salto Em Frente. Uma vez que Mao fora o principal arquiteto e defensor do Grande Salto em Frente, o ataque soviético atinge diretamente o Grande Timoneiro. Com o intuito de impedir um maior isolamento, os chineses subscrevem o comunicado final da Conferência, que basicamente reafirma os objetivos e a estratégia geral da reunião de Moscovo de 1957148. Trata-se, na verdade, de

uma repreensão explícita por parte do movimento internacional comunista das posições maoistas e um voto de confiança nas teses soviéticas. Procurando diminuir o impacto do comunicado de Bucareste, o PCC publica uma declaração escrita atacando Khrushchev pelo nome, a primeira vez que o faz149. Em resposta, a URSS retira os 1,390 cooperantes presentes na China150. Apesar da escalada das tensões, a rutura definitiva entre as duas partes não seria ainda consumada. Mas as divergências que separam as partes tornam a reconciliação cada vez mais inalcançável. Mao Zedong intui que pode explorar o conflito com o PCUS para benefício próprio, usando-o para limitar a margem de manobra dos seus opositores no interior do PCC. À medida que a relação com os soviéticos em volta das questões de política internacional se degrada e que, mais importante, o caminho aceitável da construção socialista se torna dogmático, os dirigentes chineses que se manifestam contra o radicalismo de Mao passam a ser estigmatizados como “revisionistas”. Dessa forma, divergências quanto às linhas mestras da política económica tornam-se sinónimas de heresias ideológicas quanto aos méritos do modelo da construção socialista chinesa vis-à-vis o modelo soviético. Colocada a questão nestes termos, o “revisionismo” deixa de ser um desvio ideológico; torna-se equivalente a tomar partido pelos soviéticos contra o PCC. Em resumo, as divergências políticas passam a ser testes contínuos de lealdade para com Mao Zedong e, mais criticamente, para com o PCC e a própria República Popular. Discordar de Mao passa a ser entendido como traição à pátria e ao socialismo. Ainda assim, dentro dessas enormes restrições, à medida que a economia evidenciava sinais inequívocos de deterioração existe espaço de manobra limitado para a fação reformista de Liu Shaoqi se afirmar. Ao mesmo tempo que observavam a retórica maoista de inabalável lealdade pessoal ao Grande Timoneiro, Liu Shaoqi

e Zhou Enlai procuraram reorientar a política económica. Consumada a queda política de Peng Dehuai, Zhou aproveita a oportunidade para proclamar os seus “Doze Artigos”, uma série de medidas de “descomunização”, incluindo a restauração de pequenas parcelas de terra para uso privado, mercados agrícolas rurais e o regresso a sistemas de salários abolidos nas comunas populares151. Apresentados ao Politburo para aprovação em 29 de outubro de 1960 e ratificados, três meses depois, no Nono Plenário do VIII Comité Central do PCC, os “Doze Artigos” procuram reverter as execráveis políticas agrícolas do Grande Salto Em Frente152. Um ano depois, os “Sessenta Artigos” consolidaram a redução do número de comunas populares153. Aproveitando a vulnerabilidade política de Mao, Liu Shaoqi, durante a Conferência dos Sete Mil Quadros, que se prolonga entre 11 de janeiro e 7 de fevereiro de 1962, repreende Mao. Com efeito, o relatório submetido por Liu à Conferência, no dia 27 de janeiro, reconhece que os problemas enfrentados na esfera económica eram fruto de escolhas políticas, das “deficiências e erros do nosso trabalho desde 1958”154. Durante a apresentação do relatório aos delegados, cuja leitura se prolonga durante três horas, Liu admite que “o povo tem inadequados alimentos, vestuário e outras necessidades. (...) a produção industrial também diminuiu, em pelo menos 40 por cento”155. Em jeito de conclusão, rejeita a fórmula de Mao de que os “erros são apenas um dedo, enquanto as realizações são nove dedos”, observando que “nalguns lugares por todo o país, pode dizer-se que as deficiências e os erros superam as realizações” e, portanto, propõe uma proporção de 7: 3, ou seja, o desastre económico era 30% culpa da natureza e 70% erro humano156. Mao era, obviamente, o visado. A maioria dos delegados à Conferência dos Sete Mil Quadros seria mais cuidadosa na sua apreciação de Mao. Por exemplo, Lin Biao, determinado a evitar confrontos

frontais com Mao, exime-o de culpas. A bem dizer, Lin Biao vai muito para além da desculpabilização, alegando que “se tivéssemos ouvido o Presidente Mao e aprendido com ele, teríamos feito menos desvios e hoje estaríamos a enfrentar menos dificuldades”157. Expectavelmente, Mao responde que “o camarada Lin Biao falou muito bem sobre a linha do partido e as políticas militares do partido”158 e, depois, ordena que o discurso seja publicado e disseminado às massas populares. Apesar da adulação de Lin Biao, Mao vêse acantonado politicamente e, na ausência de alternativa viável, submete-se a uma sessão de autocrítica e transfere a gestão quotidiana do país para Liu Shaoqi, Zhou Enlai, Deng Xiaoping e os pragmáticos. O “avanço imprudente” ditara o isolamento do Grande Timoneiro, que se retira na expetativa de viver melhores dias. Antecipando as divisões que surgem durante a Revolução Cultural, a cúpula do PCC divide-se, com Mao, Chen Boda e Ke Qingshi a expressarem confiança nos objetivos gerais do Grande Salto Em Frente. Do outro lado da barricada, Liu Shaoqi, Deng Xiaoping, Peng Zhen, Peng Dehuai, Deng Zihui, Li Fuchun, Zhang Wentian e Li Xiannian pretendem descartar as políticas que provocaram o cataclismo. Como sempre, Zhou Enlai, apesar de sinalizar o seu apoio à ala pragmática, mantém a equidistância relativamente aos dois grupos.   Caos total debaixo dos céus, excelente   A Grande Revolução Cultural Proletária, que alastra entre 1966 e 1976, constituindo “uma separação de águas, a década definitiva de meio século de domínio comunista na China”159, foi, sem dúvida, o maior cataclismo que abalou a República Popular. Essa tumultuosa década ainda hoje assombra o legado histórico-político do Partido Comunista

Chinês. Cinco anos após a morte de Mao, durante a Sexta Sessão Plenária do XI Comité Central do PCC, realizada em junho de 1981, o partido toma um passo crítico no sentido de enfrentar a complexa herança daquela década. O documento-chave saído da reunião – “Sobre Questões da História do Partido: Resolução sobre Certas Questões da História do Nosso Partido Desde a Fundação da República Popular da China” – examina os principais acontecimentos da época e declara, de forma cristalina, que a “revolução cultural, que durou de maio de 1966 a outubro de 1976, foi responsável pelos mais severos contratempos e pelas maiores perdas sofridas pelo Partido, pelo Estado e pelo Povo desde a fundação da República Popular. Foi iniciada e liderada pelo camarada Mao Zedong (...). A história da ‘revolução cultural’ provou que as principais teses do camarada Mao Zedong para iniciar essa revolução não se conformavam nem com o marxismo-leninismo nem com a realidade chinesa. Representam uma avaliação totalmente errónea das relações de classe predominantes e da situação política no Partido e no Estado”160. Apesar da dureza do julgamento oficial, um veredito desta natureza era incontornável uma vez que as reformas propostas em 1978 por Deng Xiaoping pressupunham a denúncia pública dos “erros” cometidos pelo PCC durante a Revolução Cultural. Com efeito, as novas elites dirigentes responsabilizam Mao Zedong pelos erros de percurso e descartam a utopia radical da fação maoista hostil à modernização económica preconizada pela cúpula congregada em volta de Deng Xiaoping. Para avançar com as reformas, era necessário virar a página do maoismo através da crítica ao culto da personalidade e à Revolução Cultural que o gera161. A sessão alargada do Politburo de maio de 1966, convocada para mobilizar apoios em volta da agenda de Mao, marca o início da ofensiva política do Grande Timoneiro contra os seus adversários que, nos anos

anteriores, o haviam marginalizado politicamente. A “Notificação de 16 de maio”, o principal documento saído do encontro, alerta para a nocividade do revisionismo que conquistara posições no partido, no estado, as forças armadas e na cultura, com o objetivo de estabelecer uma “ditadura da burguesia”. Sem rodeios, o texto declara que, no seio do partido, havia “muitos Khrushchev” que “levantam a bandeira vermelha para se oporem à bandeira vermelha”. Para expor e combater esses inimigos de classe, era necessário recorrer aos ensinamentos de Mao Zedong. Trata-se de mais um dos numerosos combates em que Mao visa impor a sua autoridade e, ao fazê-lo, conduz o partido e o país para uma luta de fações de consequências calamitosas. Chefiado por Lin Biao, o Exército de Libertação Popular será o primeiro campo de batalha entre as “duas linhas” políticas que se confrontam nos primeiros dias da Revolução Cultural. Reclamando ser o fiel interprete do pensamento de Mao, Lin define a missão das forças armadas em termos de luta ideológica e distribui milhões de exemplares do célebre Livro Vermelho que reúne a citações de Mao. Mas será no campo das artes que os primeiros confrontos do processo revolucionário se fazem sentir quando Wu Han, historiador e Vice-Presidente da câmara de Beijing, é criticado por, alegadamente, ter satirizado Mao e elogiado Peng Dehuai. Ao longo da Primavera de 1966, multiplicam-se as purgas dos responsáveis pela arte e pela literatura, entre os quais Peng Zhen, Lu Dingyi e, posteriormente, Zhou Yang. Sugeria-se que, por detrás destes, existia um “gang negro” na educação e na cúpula do PCC que teria de ser igualmente denunciado. Abria-se, assim, caminho para o afastamento dos quadros dirigentes que Mao considerava responsáveis pelos maiores pecados políticos e ideológicos. A Revolução Cultural estende-se, portanto, do campo cultural para as cúpulas do partido. Secundado por aliados importantes como Lin Biao, Jiang

Qing, Kang Sheng e Chen Boda, em maio de 1966 Mao atribui tarefas essenciais ao exército no campo da cultura e da educação. Com o intuito de criar um novo sistema educativo passível de eliminar as diferenças entre a cidade e o campo, entre trabalhadores e camponeses, Mao procura apoio junto da juventude, que mais tarde será a verdadeira vanguarda da Revolução Cultural. Era natural que assim fosse porque, formalmente, a Revolução Cultural pretendia revitalizar os valores revolucionários da geração pós-1949. Ao mesmo tempo, Mao encontra nos estudantes um grupo disponível para avançar com uma “revolução da superestrutura”, na máquina burocrática, de forma a transferir o poder para um sistema de base popular sob a sua tutela tutela. Com o PCC dominado pelos setores mais pragmáticos, Mao desencadeia um assalto contra o partido, o estado e as demais instituições. Em conformidade com as instruções de maio de 1966, a investida contra o sistema educativo torna-se prioritária. Assiste-se à profusão de grandes cartazes e jornais de parede nos principais campus de Beijing a denunciar professores e funcionários do PCC, acusados de elitismo e afastamento do povo. Encorajados pelas autoridades centrais, estudantes realizam reuniões em massa e, em junho, os exames para admissão nas universidades são suspensos e a reabertura das universidades adiada. Esta fase inicial da Revolução Cultural termina em agosto de 1966, com a realização de uma sessão plenária do Comité Central e o lançamento de um poster de Mao a apelar para se “bombardear o quartel-general”, isto é, um apelo à denúncia e à destituição de altos quadros. Em conformidade com os desejos de Mao, o Comité Central emite uma “decisão de 16 pontos”, traçando as linhas gerais para a Revolução Cultural, cujo objetivo imediato era recuperar o poder caído nas mãos das autoridades “burguesas”162. A luta seria conduzida nas fortalezas urbanas onde a burguesia detinha mais poder. Mais do que nunca, o

pensamento de Mao era o único guia para a ação. Temendo que a China enveredasse pelos caminhos da revolução soviética e receoso do seu poder pessoal, Mao lança o caos nas cidades chinesas. Estipula quatro objetivos: substituir a elite partidária por quadros fiéis ao seu pensamento, proceder com a “retificação” do PCC, fornecer à juventude uma experiência revolucionária e combater o elitismo no sistema educativo e no estado em geral. Para cumprir este leque de objetivos, impunha-se uma mobilização dos jovens urbanos, organizados em brigadas de Guardas Vermelhos, virtualmente imunes do controlo do PCC e do ELP. Formalmente, Mao lança a Revolução Cultural em agosto de 1966, e nos meses seguintes, os Guardas Vermelhos atacam os valores “tradicionais” e “burgueses”. É a luta contra os “Quatro Antigos” – ideias antigas, costumes antigos, cultura antiga e antigos hábitos de pensamento. Idosos e intelectuais sofrem abusos físicos e multiplicam-se as mortes. Dirigentes do PCC não escapam ao vendaval revolucionário, assistindo-se à crítica e à humilhação pública de prestigiados quadros. Entre meados de 1966 e o início de 1969, os Guardas Vermelhos comandam a Revolução Cultural com o beneplácito de Mao, que os recebe, juntamente com Lin Biao, em desfiles que congregam mais de um milhão de jovens em Beijing, todos a expressar a sua devoção inquestionável ao Grande Timoneiro. À medida que Mao recupera a sua autoridade política e ideológica, os principais líderes do Politburo, incluindo Liu Shaoqi e o SecretárioGeral do PCC, Deng Xiaoping, são destituídos dos seus cargos e expostos à humilhação. Em outubro de 1966, Liu e Deng fazem autocríticas públicas, que Mao rejeita como inadequadas. Está consumada a ascendência de Mao sobre os antigos revolucionários, muitos dos quais o acompanhavam desde a Longa Marcha. Em janeiro de 1967, os revolucionários começam a desmontar os comités provinciais do PCC, erguendo novos

órgãos de “poder popular” saneados dos apparatchiks partidários. A primeira dessas “tomadas de poder” ocorre em Xangai, onde rapidamente se instala o caos em volta das novas estruturas políticas. Cria-se uma “comuna” que será rapidamente substituída por um “comité revolucionário”. O caos provocado pelo derrube das antigas autoridades de Xangai induz vários líderes do PCC, em fevereiro de 1967, a pedir o fim da Revolução Cultural. Porém, essa “corrente adversa de fevereiro”, será celeremente derrotada à medida que Revolução Cultural entra numa novo espiral de radicalismo e de desordem. No Verão de 1967, as cidades são palco de violentos confrontos entre as várias fações dos Guardas Vermelhos, cada uma alegando ser a “verdadeira” intérprete do pensamento de Mao Zedong. Ao mesmo tempo que o processo revolucionário em curso devora os seus, o culto da personalidade de Mao assume proporções religiosas. Contudo, e como seria de esperar, a anarquia e o terror dos dias levam a uma queda astronómica de produção industrial, que em 1968 se salda em 12%. Alarmado, Mao, ainda em 1967, convoca o ELP de Lin Biao para intervir junto dos Guardas Vermelhos. Mas o efeito desse envolvimento político-militar gera tremendas divisões nas próprias fileiras militares, cujas estruturas de comando abalam. As tensões expressam-se de forma nítida no Verão, quando o general Chen Zaidao, comandante militar de Wuhan, prende Xie Fuzhi e Wang Li, dois proeminentes maoistas163.Com efeito, as autoridades militares de Wuhan tomaram partido pela fação revolucionária “conservadora”, violando assim a diretiva do Comité Central que exigia a promoção da unidade entre as forças revolucionárias. Tal desafio direto a Beijing, remanescente do período em que os senhores da guerra agiam independentemente das diretrizes centrais, leva à exoneração do general Chen e o incidente passa a ser caracterizado como “contrarrevolucionário”. Na realidade tratou-se da primeira

vez que os militares e uma parte significativa da sociedade se levantam contra a Revolução Cultural. Na sequência do incidente, e com o encorajamento de Jiang Qing, o assalto ao poder transfere-se para a instituição militar, onde os maoistas passam a investir contra os comandantes regionais e a trazer o vigor da bandeira vermelha para as fileiras do Exército de Libertação Popular. O “Incidente de Wuhan” representa, um ponto de viragem da Revolução Cultural. Diante da possível revolta generalizada entre os comandantes militares locais, Mao desesperadamente procura restabelecer a ordem. Neste quadro de deterioração da autoridade do estado, Mao decide, em 1968, reconstruir o PCC. Militares são enviados para assumirem a administração das escolas, das fábricas e das agências governamentais. Concomitantemente, o exército força milhões de Guardas Vermelhos urbanos radicalizados a deslocar-se para o interior do país para efetuarem trabalho manual junto dos camponeses. Eis o reconhecimento de que os Guardas Vermelhos eram incapazes de superar as suas diferenças faccionais e, como força revolucionária, se encontravam esgotados. A urgência de voltar a estabelecer a ordem seria acentuada pela invasão soviética da Checoslováquia, em agosto de 1968, que aumenta a insegurança chinesa. Regressa, assim, alguma normalidade com a abertura das escolas. Em outubro de 1968, reúne uma sessão plenária do Comité Central para convocar um congresso a fim de reconstruir o PCC. A questão de quem herda o poder político no pós-Revolução Cultural torna-se o assunto central da política chinesa. Imediatamente depois da reunião, a China pediu aos Estados Unidos que retomassem as negociações a nível de embaixadores em Varsóvia. Moscovo, agora orientada pela Doutrina Brezhnev, constituía um perigo porque há muito que acreditava que uma “ditadura burocrática militar” havia usurpado o poder dos “verdadeiros comunistas” chineses. Para aumentar a

preocupação de Beijing, a União Soviética, a partir de 1966, destaca uma força militar considerável ao longo da fronteira sino-soviética, antes desmilitarizada. Em abril de 1969, surge na sequência de dois sangrentos confrontos fronteiriços ocorridos em meados de março , realiza-se o congresso do PCC. O XIX Congresso do PCC toma um passo sem precedentes: a nova constituição do partido formalmente indica Lin Biao como sucessor de Mao. Os militares reforçam o seu poder sobre a sociedade, dominando o XIX Comité Central – mais de dois quintos dos seus membros ocupam cargos militares –, tal como os novos comités do partido estabelecidos em todo o país. A deriva revolucionária enfrenta resistência na pessoa do Primeiro-Ministro Zhou Enlai, que tenta conter o poder de Lin Biao. No entanto, este declara a lei marcial e purga os seus rivais. Vários líderes são afastados durante os anos de 1966 a 1968, incluindo Liu Shaoqi, que morre durante a vigência da lei marcial. A acumulação de poder por parte de Lin Biao leva Mao a desconfiar do seu sucessor, que parece pretender acelerar a sucessão. Começa, então com Zhou Enlai, a manobrar contra Lin. Mas a manobra de Mao não é unânime junto do grupo radical, pois Chen Boda decide juntar-se a Lin Biao. Assiste-se ao regresso a uma certa normalidade na sociedade, mas as tensões que dividem a cúpula do PCC são cada vez mais severas. O confronto político no topo do partido intensifica-se no Verão de 1970 quando, numa reunião do Comité Central, Chen Boda e Lin Biao provocam a ira de Mao, que, como aviso a Lin, purga Chen. Meses depois, Mao inicia uma crítica aos principais apoiantes de Lin nas forças militares, chamando-os à atenção em resultado da sua arrogância e indisponibilidade para acatar as autoridades civis. Durante a Primavera de 1971, Lin Liguo, filho de Lin Biao, equaciona um possível golpe contra Mao para salvaguardar a posição do pai. É nesta mesma conjuntura que Lin Biao se opõe à abertura aos Estados Unidos, consubstanciada pela visita de

Henry Kissinger a Beijing. Depois desta derrota, em setembro de 1971, Lin morre quando o seu avião se despenha na Mongólia. Oficialmente, trata-se de uma tentativa de fuga para a União Soviética na sequência do golpe de estado falhado. Supostamente comprometido com a tentativa de golpe, o alto comando militar de Lin será saneado nas semanas seguintes à sua morte. Zhou Enlai emerge como o maior beneficiário político da morte de Lin e, de 1971 até meados de 1973, tenta devolver a estabilidade ao país. Reabilita vários quadros caídos em desgraça nos anos anteriores e, gradualmente, a China começa a retomar a atividade económica. Mao permanece cauteloso à medida que vê a Revolução Cultural ser revertida. Em 1972, sofre um derrame e Zhou prepara Deng como sucessor. A recuperação dos quadros afastados durante a normalização económica leva o grupo maoista a organizarse contra Zhou e os seus colaboradores. A partir de meados de 1973, a correlação de forças políticas oscila entre o grupo reunido em volta de Jiang e os partidários de Zhou e Deng. Mao tenta, sem sucesso, manter o equilíbrio possível entre as fações, mas os radicais ganham vantagem entre meados de 1973 e meados de 1974, período em que iniciam uma campanha de crítica a Lin Biao e Confúcio para atacar Zhou Enlai. Entretanto, em julho de 1974, o declínio económico faz com que Mao se volte para Zhou e Deng. Quando Zhou é hospitalizado, em fase terminal de doença, Deng assume o poder, que exerce entre o Verão de 1974 e finais de Outono de 1975. Procura, com o apoio inequívoco de Zhou, implementar as reformas previstas pelas “Quatro Modernizações”. Para promover esse esforço, Deng continua a reabilitar as vítimas da Revolução Cultural. Mas os radicais finalmente convencem Mao de que as políticas seguidas por Deng acabarão por repudiar as conquistas da Revolução Cultural e o legado do próprio Mao. O velho Grande Timoneiro reage,

autorizando posters de parede críticos das políticas dengistas. Quando Zhou morre, em janeiro de 1976, Deng faz o elogio e, meses depois, com a anuência de Mao, é purgado. A razão imediata para a queda de Deng são as manifestações massivas em Beijing e outras cidades em homenagem à memória de Zhou, um claro desafio ao poder dos radicais. Segue-se a campanha para criticar o “desvio de direita” de Deng Xiaoping. Embora tenha sido oficialmente encerrada aquando do XI Congresso do PCC, em agosto de 1977, a Revolução Cultural conclui-se, de facto, com a morte de Mao e a purga do Grupo dos Quatro. 89. Eis parte da razão que leva os chineses a reagirem tão veementemente à política de “coexistência pacífica” de Nikita Khrushchev. Para Mao, tal apaziguamento dos “tigres de papel” levantava a possibilidade da USSR abandonar a RPC em caso de ofensiva imperialista. 90. A política de “inclinar-se para um lado” fora delineada por Mao num discurso proferido a 30 de junho de 1949, para comemorar o 28º aniversário do Partido Comunista Chinês. Na passagem relevante, Mao afirma: “Está-se a inclinar para um lado. Exatamente. Os quarenta anos de experiência de Sun Yat-sen e os vinte e oito anos de experiência do Partido Comunista ensinaram-nos a inclinar para um lado e estamos firmemente convencidos de que, para obter a vitória e consolidá-la, devemos apoiar-nos num lado. À luz das experiências acumuladas nestes quarenta e vinte e oito anos, todos os chineses, sem exceção, devem inclinar-se para o lado do imperialismo ou para o lado do socialismo. Ficar em cima do muro não serve, nem existe uma terceira via. Opomo-nos aos reacionários de Chiang Kai-shek que se inclinam para o lado do imperialismo e também nos opomos às ilusões sobre uma terceira via”. Cf., Mao Tse-tung. “On The People’s Democratic Dictatorship”, Selected Works of Mao Tse-tung, Vol. 4, p. 415. 91. Ver, Maurice Meisner. Mao Zedong: A Political and Intellectual Portrait. Cambridge: Polity Press, 2007, pp. 114-117. 92. Ver, Lee Feigon. Mao: A Reinterpretation. Chicago: Ivan R. Dee, 2002, pp. 7072. 93. Sobre as origens do Partido Comunista Chinês, cf., inter alia, Robert C. North. Moscow and Chinese Communists. Stanford: Stanford University Press, 1953; Jacques Guillermaz. A History of the Chinese Communist Party, 1921-1949. Londres: Methuen and Co., 1968; Lee Feigon. Chen Duxiu, Founder of the Chinese Communist Party. Princeton: Princeton University Press, 1983 e Ishikawa Yoshihiro. The Formation of the Chinese Communist Party. Nova Iorque: Columbia University Press, 2013. 94. Cf., Sulmaan Wasif Khan, Haunted by Chaos, p. 11 95. Cf., Mao Tse-tung. “The Chinese Revolution and the Chinese Communist Party”, Selected Works of Mao Tse-tung, Vol. 2. Beijing: Foreign Languages Press,

1965, p. 308. 96. Cf., Mao Tse-tung. “On Protracted War”, Selected Works of Mao Tse-tung, Vol. 2, p. 190. Mao caracteriza a rebelião Taiping como uma guerra revolucionária de camponeses contra o poder feudal e a opressão nacional da Dinastia Ching. Cf., Mao Tse-tung. “Bankruptcy of Idealist Conception of History”, Selected Works of Mao Tse-tung, Vol. 4, p. 459. 97. Sobre o “comunismo caponês” de Mao, cf., inter alia, Mary C. Wright, “The Chinese Peasant and Communism”, Pacific Affairs, Vol. 24, No. 3, setembro de 1951, pp. 256-265; Chalmers A. Johnson. Peasant Nationalism and Communist Power. Stanford: Stanford University Press, 1962; Richard Baum. Prelude to Revolution: Mao, the Party, and the Peasant Question. Nova Iorque: Columbia University Press, 1975 e Asish Kumar Roy, “Lenin, Mao and the Concept of Peasant Communism”, China Report, Vol. 14, No. 1, 1978, pp. 29-41. 98. Cf., Karl Marx and Frederick Engels. “The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte”, Selected Works, Vol. 1. Moscovo: Progress Publishers, 1977, p. 479. 99. Sobre este assunto, Mao afirmou que “por mais ativo que o grupo de liderança possa ser, a sua atividade resultará num esforço infrutífero por um punhado de pessoas, a menos que seja combinada com a atividade das massas”. Cf., Mao Tse-tung. “Some Questions Concerning Methods of Leadership”, Selected Works of Mao Tse-tung, vol. 3. Beijing: Foreign Languages Press, 1965, pp. 118. No mesmo texto (p. 119), acrescenta que, “em todo o trabalho prático do nosso Partido, toda liderança correta é necessariamente ‘das massas, para as massas’. Isto significa: agarrar nas ideias das massas (ideias dispersas e não sistematizadas) e concentrá-las (através do estudo transformálas em ideias concentradas e sistemáticas); depois vai-se para as massas e propaguem-se e expliquem-se essas ideias até que as massas as abracem como suas, se mantenham fiéis a elas e traduzam essas ideias em ação, e testem a correção dessas ideias na ação”. 100. Cf., Rebecca E. Karl. Mao Zedong and China in the Twentieth-Century World: A Concise History. Durham: Duke University Press, 2010, p. 14 e Ishikawa Yoshihiro, The Formation of the Chinese Communist Party, pp. 16-17. 101. Ver, Mao Tse-tung. “On The People’s Democratic Dictatorship”, Selected Works of Mao Tse-tung, Vol. 4, p. 413. 102. Para uma discussão do entendimento teórico de Lenine do novo contexto, cf., Fernando Claudín, The Communist Movement: From Comintern to Cominform, Part 1. New York: Monthly Review Press, 1975, pp. 46-102. 103. Ibid., pp. 247-260. 104. Cf., Kevin McDermott and Jeremy Agnew. The Comintern: A History of International Communism from Lenin to Stalin. Londres: Macmillan Press, 1996, pp. 160-161. 105. Cf., Stephen White, “Communism and the East: The Baku Congress, 1920”. Slavic Review. Vol. 33, no. 3, setembro de 1974, pp. 492-514. 106. Cf., Jonathan D. Spence, The Search for Modern China, pp. 320-325; Conrad Brandt. Stalin’s Failure in China. Cambridge: Harvard University Press, 1958, pp. 201-21 e Lee Feigon, Chen Duxiu, Founder of the Chinese Communist Party, pp. 164-165. 107. Cf., Jacques Guillermaz, A History of the Chinese Communist Party, p. 58. Existem algumas incongruências quanto ao número exato de delegados

presentes no Primeiro Congresso, bem como ao número de comunistas que representavam. Algumas fontes sugerem 12 delegados e 53 membros; outras sugerem 13 delegados. Cf., Jonathan D. Spence, The Search for Modern China, p. 323. Comentando a fundação do PCC, Guillermaz afirma que “o Primeiro Congresso do Partido Comunista Chinês ainda está envolto em brumas, que os historiadores oficiais parecem não querer dispersar. O aniversário de 1 de julho é celebrado todos os anos, mas nunca é acompanhado de quaisquer detalhes que esclareçam este importante acontecimento. Essa reticência é facilmente explicada. Pelo menos seis dos doze delegados que participaram deixariam o Partido, enquanto um futuro apóstata, Ch’en Tu-hsiu (Chen Duxiu), fora escolhido Secretário-Geral. Quanto a Mao Tse-tung, que na altura tinha 28 anos, o papel discreto que desempenhou era indigno do grande destino que o aguardava; a lenda nada tem a ganhar seguindo a história de perto” (Guillermaz, p. 57). 108. Chen Duxiu seria destituído da liderança do partido durante uma Conferência especial do partido, realizada a 7 de agosto de 1927, acusado de oportunismo e de ser responsável pelo colapso da Frente Unida. Cf., Lee Feigon, Chen Duxiu, Founder of the Chinese Communist Party, p. 191. Subsequentemente, Chen seria influenciado pelas posições de Leon Trotsky. Para a defesa feita por Chen das suas ações, ver o seu trabalho de 1929, “Appeal to All the Comrades of the Chinese Communist Party”, disponível em: https://www.marxist.com/chen-du-xiu-appeal-comrades-ccp.htm. 109. Robert C. North, Moscow and Chinese Communists, p. 58. 110. Ibid., p. 59. 111. Ibid., pp. 173-178. 112. Cf., Kevin McDermott and Jeremy Agnew, The Comintern, pp. 165-169. 113. Ver, Lee Feigon, Chen Duxiu, Founder of the Chinese Communist Party, pp. 169-170. 114. Cf., Odd Arne Westad, The Global Cold War. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 53. 115. Cf., Jonathan D. Spence, The Search for Modern China, p. 325. 116. Ver, Robert C. North, Moscow and Chinese Communists, p. 63 e Jonathan D. Spence, The Search for Modern China, p. 325. 117. Enunciadas pela primeira vez em 1905, as ideias seriam sistematizadas nas palestras de Sun sobre os “Três Princípios do Nacionalismo, Democracia e Subsistência”, proferidas em 1924. Sun rejeita o etnonacionalismo, concebendo um nacionalismo chinês congregando todos os grupos étnicos a fim de alcançar a independência do domínio imperialista. O conceito de democracia de Sun era aproximadamente equivalente ao constitucionalismo ocidental. Quanto ao socialismo, sugeria uma preocupação com o bem-estar social e uma sociedade mais justa. No entanto, tal não implicava necessariamente a nacionalização dos altos comandos da economia. Para uma discussão, cf., Audrey Wells. The Political Thought of Sun Yat-sen: Development and Impact. Nova Iorque: Palgrave, 2001, pp. 61-101. 118. Cf., Martin Wilbur e Julie Lien-ying How. Missionaries of Revolution: Soviet Advisers and Nationalist China, 1920-1927. Cambridge: Harvard University Press, 1992, p. 80. 119. Uma excelente e equilibrada biografia de Chiang Kai-shek é: Jay Taylor. The

Generalissimo: Chiang Kai-shek and the Struggle for Modern China. Cambridge: Harvard University Press, 2011. 120. Sobre a “década de Najing”, cf., Rebecca Nedostup and Liang Hong-Ming, “Begging the Sages of the PartyState: Citizenship and Government in Transition in Nationalist China, 1927-1937”, International Review of Social History, Vol. 46, No. S9, dezembro de 2001, pp. 185-207, disponível em: https://www.cambridge.org/core/services/aop-cambridgecore/content/view/024E4859AC3F2821AD50F106BBE47DF3/S002085900100037 2a.pdf/begging_the_sages_of_the_partystate_citizenship_and_government_in_tra nsition_in_nationalist_china_1927_1937.pdf. 121. Sobre este período, o estudo de Harold Isaacs, publicado em 1938, justifica atenção, particularmente o Capítulo 18, sobre o massacre de Xangai de 1927. Cf., Harold Isaacs. The Tragedy of the Chinese Revolution. Chicago: Haymarket Books, 2009 Jay Taylor, The Generalissimo, pp. 64-68. 122. Certamente inflacionados, os números proporcionam uma indicação do desastre que atingiu o PCC naquele momento. Cf., “On Questions of Party History – Resolution on Certain Questions in the History of Our Party Since the Founding of the People’s Republic of China (Adopted by the Sixth Plenary Session of the 11th Central Committee of the Communist Party of China on June 27, 1981”, Beijing Review, No. 27, 6 de julho de 1981, p. 10. 123. Zhang Xueliang, o instigador do complot, morre em 2001, depois de passar quase meio século em detenção domiciliária, primeiro na China continental e depois em Taiwan. Sobre o “Incidente Xi’an” e os acontecimentos que o precederam, cf., Aron Shai. Zhang Xueliang: The General Who Never Fought. Palgrave Macmillan, 2012, pp. 31-67 e Jay Taylor. The Generalissimo, pp. 124137. 124. Sobre a destruição japonesa da cidade e as consequências para a sua população, cf., Iris Chang. The Rape of Nanking: The Forgotten Holocaust of World War II. Nova Iorque: Basic Books, 1997. 125. A melhor discussão sobre a Conferência de Ialta encontra-se em S. M. Plokhy. Yalta: The Price of Peace. Nova Iorque: Viking Press, 2010. O destino da China foi traçado durante a Conferência do Cairo, mas seria definitivamente encerrado em Ialta. 126. Cf., Chen Jian. Mao’s China and the Cold War. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2001, p. 4. 127. Em de 4 de janeiro de 1923, numa adenda ao seu testamento político, Lenine escreve: “Estaline é muito rude e este defeito, que é inteiramente aceitável no nosso meio e nas relações entre nós comunistas, tornou-se intolerável no cargo de Secretário-Geral. Proponho, portanto, aos camaradas que encontrem uma forma de removê-lo deste cargo e designem alguém que se diferencie do camarada Estaline em todos os demais aspetos apenas por uma vantagem, a saber: que seja mais tolerante, mais leal, mais correto e mais atento aos camaradas, menos caprichoso, etc.”. Cf., Robert Service. Lenin: A Biography. Cambridge: Harvard University Press, 2000, p. 469. 128. Em Moscovo, em 16 de dezembro 1949, Estaline e Mao discutiram a assistência soviética e os termos do novo tratado. A transcrição dessa conversa, disponível no Arquivo do Presidente (Federação Russa), pode ser consultado em: “Conversation Between the Soviet Union’s Joseph Stalin and China’s Mao

Zedong, 1949”, disponível em: https://china.usc.edu/conversation-betweensoviet-unions-joseph-stalin-and-chinas-mao-zedong-1949. Sobre a aliança resultante do Tratado Sino-Soviético de Amizade, Aliança e Assistência Mútua de 1950, cf., Austin Jersild. The Sino-Soviet Alliance: An International History. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2014. 129. Cf., David McCullough. Truman. Nova Iorque: Simon and Schuster, 1992, p. 548. Para o desenvolvimento do conceito de “contenção”, ver, George Kennan (X), “The sources of Soviet conduct”, Foreign Affairs. Vol.26, No. 2, julho de 1947, pp. 566-582. Sobre a contribuição de George Kennan para a “doutrina de contenção”, cf., por exemplo, David Mayers. George Kennan and the Dilemmas of US Foreign Policy. Nova Iorque: Oxford University Press, 1988. 130. Para a transcrição do discurso de Zhdanov, cf., “Speech by Andrei Zhdanov (member of the Soviet Politburo) at the founding of the Cominform (a Communist International Organization) in September 1947”, consultado em: http://educ.jmu.edu/~vannorwc/assets/ghist%20102150/pages/readings/zhdanovspeech.html. 131. Cf., inter alia, Frederic S. Burin, “The Communist Doctrine of the Inevitability of War”, The American Political Science Review, Vol. 57, No. 2, junho de 1963, pp. 334-354 e Vojtech Mastny, “Stalin and the Militarization of the Cold War”, International Security, Vol. 9, No. 3, Inverno de 1984/1985, pp. 109-129. 132. Cf., Dieter Heinzig. The Soviet Union and Communist China, 1945-1950. Nova Iorque: Routledge, 2015, pp. 119-122. 133. Cf., Richard Lowenthal, World Communism, pp. 23-28 e William Taubman. Khrushchev: The Man and His Era. Nova Iorque: Simon and Schuster, 2017, pp. 270-275. 134. Cf., Gao Wenqian. Zhou Enlai: The Last Perfect Revolutionary. Nova Iorque: PublicAffairs, 2007, p. 90. 135. O conteúdo deste discurso seria posteriormente editado de forma a conformar com a campanha “anti-direitista” que segue à Campanha das Cem Flores. 136. Jonathan Spence caracteriza-a como uma disputa no interior do PCC sobre a melhor forma de enfrentar a dissidência. Ver, Johnathan D. Spence, The Search for Modern China, pp. 508-513. 137. Cf., Richard Lowenthal. World Communism: pp. 54-59. 138. Cf., Jonathan D. Spence, The Search for Modern China, p. 579. 139. Sobre este episódio, cf., Carl Linden. Khrushchev and the Soviet Leadership. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1966 e William Taubman, Khrushchev, pp. 310-324. 140. A Conferência de Lushan fora, na realidade, dois encontros: a Reunião Alargada do Politburo (2 de julho a 1 de agosto de 1959) e o Oitavo Plenário do VIII Comité Central (2 a 16 de agosto). Sobre os acontecimentos que conduziram à Conferência, cf., Franlin W. Houn. A Short History of Chinese Communism. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1973, pp. 232-246. 141. A carta encontra-se reproduzida em Christopher Howe e Kenneth R. Walker. Foundations of the Chinese Planned Economy: A Documentary Survey, 1953-65. Londres: Palgrave Macmillan, 1989, pp. 88-94. 142. Cf., Han Suyin. Eldest Son: Zhou Enlai and the Making of Modern China. Londres: Jonathan Cape, 1994, pp. 275-276.

143. Cf., Michael Dillon. Zhou Enlai: The Enigma Behind Chairman Mao. Londres: I.B. Tauris, 2020, p. 222. 144. O texto completo do discurso de Mao na Conferência de Lushan, proferido a 23 de julho de 1959, pode ser consultado em: https://www.marxists.org/reference/archive/mao/selected-works/volume8/mswv8_34.htm. 145. Sobre os acontecimentos anteriores à Conferência de Bucareste e os crescentes conflitos entre os comunistas chineses e Nikita Khrushchev, ver, Edward Crankshaw. The New Cold War: Moscow v. Pekin. Harmondsworth: Penguin Books, 1965, pp. 83-96. 146. Para mais detalhes sobre a Conferência de Bucareste, cf., Richard Lowenthal, World Communism, pp. 177-180. 147. Sobre a posição do partido albanês, cf., Enver Hoxha, “Real Unity is Achieved and Strengthened only on the basis of Marxist-Leninist Principles” August 27, 1960, disponível em: http://www.enverhoxha.net/librat_pdf/english/selectedWorksIII/1960/2.august-october.pdf. Ver, também, o discurso de Enver Hoxha na reunião preparatória de Moscovo, Enver Hoxha, “Reject the Revisionist Theses of the XX Congress of the Communist Party of the Soviet Union and the Anti-Marxist Stand of the Krushchev’s Group! Uphold Marxism-Leninism”, Speech Delivered by Enver Hoxha as Head of the Delegation of the Party of Labor of Albania Before the Meeting of 81 Communist and Workers Parties, Moscow, 16 November 1960, disponível em: https://www.marxists.org/reference/archive/hoxha/works/nov1960.htm. 148. Para o texto completo, cf., “Statement of 81 Communist and Workers Parties Meeting in Moscow”, em: https://www.marxists.org/history/international/comintern/sino-sovietsplit/other/1960statement.htm#2. 149. Cf., Danhui Li, “Open Struggles and a Temporary Truce, 1959-1961”, In Zhihua Shen (ed.). A Short History of Sino-Soviet Relations, 1917-1991. Singapura: Palgrave Macmillan, 2016, pp. 240-241 e Edward Crankshaw, The New Cold War, pp. 113-117. 150. Sobre as razões subjacentes à decisão soviética, cf., Alfred D. Low. The Sino-Soviet Dispute: An Analysis of the Polemics. Londres: Associated University Presses, 1976, pp. 118-121. 151. Ver, Byung-Joon Ahn, “The Political Economy of the People’s Commune in China: Changes and Continuities”, The Journal of Asian Studies, Vol. 34, No. 3, maio de 1975, pp. 631-658. 152. Cf., Jean Chesneaux. China: The People’s Republic, 1949-1976, pp. 106-107. Relativamente ao monumental custo humano do Grande Salto em Frente, Chang e Halliday afirmam: “Esta foi a maior fome do século XX – e de toda a história humana registada. Mao conscientemente matou de fome e por trabalhos forçados dezenas de milhões de pessoas ... Mao permitiu muitas mais mortes. Embora a carnificina não fosse seu propósito com o Salto, estava mais do que pronto para uma miríade de mortes e deu a entender aos seus mais próximos que não deveriam ficar muito chocados se acontecessem”. Cf., Jung Chang e John Halliday. Mao: The Unknown Story. Londres: Jonathan Cape, 2005, p. 457. Para um retrato devastador das atrocidades cometidas durante um período que Dikötter sustenta ter conduzido a mais de 45 milhões de mortes, cf., Frank

Dikötter. Mao’s Great Famine: The History of China’s Most Devastating Catastrophe, 1958-62. Londres: Bloomsbury Publishing, 2010, p. x. 153. Sobre as consequências políticas deste debate, cf., Marc Blecher. China: Politics, Economics and Society. Londres: Frances Pinter, 1986, pp. 76-80. 154. Cf., Michael Dillon. Zhou Enlai, p. 232. 155. Cf., Yang Jisheng. Tombstone: The Untold Story of Mao’s Great Famine. Londres: Allen Lane, 2012, p. 501. 156. Ibid., p. 502. 157. Ibid., p. 503. 158. Ibid. 159. Cf., Roderick MacFarquhar e Michael Schoenhals. Mao’s Last Revolution, p. 1. 160. Cf., “On Questions of Party History – Resolution on Certain Questions in the History of Our Party Since the Founding of the People’s Republic of China (Adopted by the Sixth Plenary Session of the 11th Central Committee of the Communist Party of China on June 27, 1981”, Beijing Review, No. 27, 6 de julho de 1981, pp. 20-21. 161. A este propósito, Robert J. Thompson, escreve que “as reavaliações dos cultos da personalidade de Estaline e Mao simbolizam reconsiderações fundamentais pelas elites sucessoras dos objetivos revolucionários e métodos identificados com esses líderes. As reconsiderações são fundamentais pelo domínio, real e simbólico, que essas duas lideranças exerceram nos seus sistemas políticos e pelo destaque das suas contribuições para a constituição e consolidação de seus respetivos regimes”, cf., Robert J. Thompson, “Reassessing personality cults: the cases of Stalin and Mao”, Studies in Comparative Communism, Vol. 21, No. 1, Primavera de 1988, pp. 99-128. 162. Cf., “Mao’s 16 Points on the Cultural Revolution”, emitido em 8 de agosto de 1966, disponível em https://alphahistory.com/chineserevolution/maozedongs-16-points-on-the-cultural-revolution-1966/. 163. Cf., Thomas W. Robinson, “The Wuhan Incident: Local Strife and Provincial Rebellion During the Cultural Revolution”, The China Quarterly, No.47, julho/setembro de 1971, pp. 413-438.



Capítulo III – DENG ATRAVESSA O RIO   “Growltiger was a Bravo Cat, who travelled on a barge/In fact he was the roughest cat that ever roamed at large”. (T.S. Elliot, Growltiger’s Last Stand)

  Talvez a mais famosa fotografia de Deng Xiaoping foi tirada num rodeo nas proximidades de Simonton, perto de Houston, Texas, após uma visita do líder chinês ao Johnson Space Center. Deng, com o seu tradicional “fato Mao”, coloca na cabeça um chapéu de cowboy branco que lhe acabara de ser oferecido por uma das participantes no rodeo164. Com este gesto, Deng, que se encontra nos Estados Unidos pouco depois de Jimmy Carter normalizar as relações entre os dois países, altera a perceção do público americano sobre a China. Humanizado pelo gesto, o poderoso líder chinês parece indicar a aceitabilidade da aproximação cultural e económica com o Ocidente. Aliás, a narrativa da abertura e “transição” da República Popular para o capitalismo deve muito a este gesto texano. Dez anos volvidos, a imagem de Deng não resistirá ao massacre de Tiananmen. Mas, em bom rigor, Deng era simultaneamente o homem do chapéu de cowboy e o homem que ordena o Exército de Libertação Popular a abrir fogo contra os manifestantes. A morte de Mao Zedong, em 9 de setembro de 1976, intensifica as lutas de fação a decorrer no interior do PCC165. Assiste-se entre, ١٩٧٦ e ١٩٧٨, uma feroz luta de sucessão que resultará na acessão de Deng Xiaoping ao poder166. Desde que ingressa nas fileiras do PCC em 1924, Deng fora sempre um guerreiro político ágil e resiliente, um

sobrevivente das disputas internas entre fações167. Será denunciado por cometer erros “oportunistas de direita” e purgado, pela primeira vez, em 1933. Reabilitado um ano depois, durante a Longa Marcha, cairá novamente em desgraça em 1966, uma das primeiras vítimas da Revolução Cultural. Acusado de ser o segundo “seguidor do capitalismo” devido à sua proximidade a Liu Shaoqi, Deng (e toda a sua família) foi enviado para trabalhar nos campos de Jiangxi. Zhou Enlai, manobrando para influenciar o desfecho da sucessão de Mao, recupera-o em 1973, nomeando-o Vice-Primeiro-Ministro. Contudo, em 1976, em resultado do “primeiro incidente de Tiananmen”, de 5 de abril de 1976, será novamente afastado de todos os cargos que desempenha no partido e no estado168. Será vindicado em março de 1977, altura em que o Comité Central endossa o seu “regresso ao trabalho”, abrindo assim caminho à sua plena ascensão à liderança do partido e do país. Longe de ser uma mera vítima dos seus rivais de partido, Deng era um veterano gladiador político, um manobrador hábil marcado pelas incessantes intrigas palacianas. Essas consideráveis qualidades políticas levaram Henry Kissinger a caracterizá-lo, talvez de forma não inteiramente lisonjeira, como “um homenzinho desagradável”169. Astutamente, Deng posicionara-se para a luta de sucessão algum tempo antes da morte do Grande Timoneiro, argumentando, em 1974, que a autossuficiência maoista não obrigava a China a fechar-se perante o resto do mundo, ou seja, que a autarcia delineada por Mao e seus seguidores não constituía o único caminho para alcançar o socialismo. Dado que uma política autárcica não era um requisito absoluto para viabilizar a construção socialista, algum grau de abertura ao mundo era aceitável para realizar a modernização do país. Embora sendo uma formulação deveras cautelosa, e os cuidados eram inteiramente compreensíveis no sufocante quadro de ortodoxia maoista prevalecente, a visão “liberal” de Deng seria ferozmente atacada em 1976, quando os

maoistas do Grupo dos Quatro iniciam a campanha “criticar Deng” (Pi Deng), reprovando-o por procurar “reverter o veredicto correto da Revolução Cultural”. Na perspetiva dos radicais, derrotar Deng era sinónimo de “repelir o vento desviador da direita” e de retomar o rumo genuíno da construção socialista170.   A sucessão do Sol Vermelho   Nos meses que antecederam a sua morte, Mao Zedong criticara severamente Deng Xiaoping, levando-o, em janeiro de 1976, a apresentar a demissão do cargo de VicePrimeiro-Ministro. Em abril do mesmo ano, sob ataque feroz dos maoistas, era removido de todos os cargos partidários, ao mesmo tempo que Mao “abriu o caminho para Hua liderar o país”171. A decisão de Mao de indicar Hua Guofeng como seu sucessor foi, de acordo com Ezra Vogel, ditada por não haver “escolha melhor de quem seria leal à reputação de Mao e poderia dar-se bem com radicais e altos funcionários”172. Personagem inofensiva, aceitável para a maioria dos militares e dos quadros do partido, Hua tinha duas desvantagens: não suscitava entusiasmo nem era objeto de lealdades políticas173. Era apenas o denominador comum dos grupos em confronto, quem menos ameaçava o poder dos vários rostos e fações agrupadas em torno da sua liderança. Incapaz de impedir a ressurreição partidária de Deng após a morte de Mao, Hua Guofeng junta-se aos dengistas para neutralizar o Grupo dos Quatro, os autoproclamados herdeiros do igualitarismo radical defendido por Mao174. Chefiados por Jiang Qing, a viúva de Mao execrada nas fileiras do partido, o Grupo dos Quatro engloba Wang Hongwen, Zhang Chunqiao e Yao Wenyuan. Alarmados com a reabilitação dos “seguidores do

capitalismo” expurgados durante a Revolução Cultural, procuram consolidar o poder de forma a evitar o regresso de Deng, uma eventualidade entendida como o golpe mortal para o projeto maoista iniciado em 1949 e intensificado com a Revolução Cultural. Mas o campo de manobra de Jiang Qing fora severamente circunscrito quando Mao escolhe o relativamente obscuro e politicamente irresoluto Hua Guofeng para o suceder. Fruto da sua inabalável lealdade à linha política traçada por Mao, Hua alcançara algum destaque e notoriedade durante a Revolução Cultural. Esperava-se que, no novo quadro, conservasse o legado do Grande Timoneiro. A ironia reside, precisamente, no fato de se tratar de uma tarefa impossível de cumprir após o desaparecimento de Mao, pois era justamente esse legado que era ferozmente combatido pelos quadros mais pragmáticos que, desde os anos de 1950, deixaram de estar sincronizados com as orientações político-ideológicas do Grande Timoneiro. Um mês depois do falecimento de Mao, a primeira fase da luta pelo poder chega a um fim abrupto quando, em 6 de outubro de 1976, os principais rostos do Grupo dos Quatro são presos durante as primeiras horas da madrugada numa manobra que, para todos os efeitos, não passa de um golpe executado por uma ala do partido que conta com o poder de fogo do Exército de Libertação Popular. Sob as ordens do marechal Ye Jianying, Ministro da Defesa e Vice-Presidente do Comité Central do PCC, os militares desempenham um papel determinante na queda do Grupo dos Quatro175. Indicando até que ponto o país se encontra exaurido depois de uma década de conflitualidade exacerbada, a detenção de Jiang Qing e dos seus aliados não desencadeia as manifestações de apoio popular esperadas pelos radicais. Particularmente revelador, não há mobilização em defesa do Grupo dos Quatro na província de Xangai, o epicentro do seu poder político, onde estimularam, durante a “Tempestade de Janeiro” de 1966, o fanatismo ultraesquerdista da “Comuna Popular de

Xangai”176. Logo de seguida, a heterogeneidade dos setores que se juntaram para eliminar o Grupo dos Quatro faz romper a coligação anti-radical, que efetivamente se desmorona quando Deng e a velha guarda do partido investem contra Hua Guofeng. Embora Hua tenha sancionado a prisão dos cabecilhas do Grupo dos Quatro, seus rivais pelo poder e pelo legado de Mao, a sua base de apoio no PCC era frágil. Socorre-se, principalmente, de quadros leais à indicação de Mao apontando Hua como seu sucessor. Porque lhe exigem que permaneça fiel ao património político-ideológico de Mao Zedong e para os apaziguar, Hua publica, em fevereiro de 1977, o artigo “Estude Bem os Documentos e Apreenda os Elos Principais”, descrevendo a doutrina dos “dois quaisquer” ( ). Reafirmando o compromisso com o maoismo, os “dois quaisquer” resumem-se no slogan “resolutamente defenderemos quaisquer decisões políticas adotadas pelo Presidente Mao e seguiremos sem reserva quaisquer instruções dadas pelo Presidente Mao”177. Esta reafirmação do sectarismo partidário, da adesão cega e da descontextualização dos “pensamentos” de Mao gera condições propícias para Deng Xiaoping tomar a ofensiva ideológica. Censura o dogmatismo dos “dois quaisquer”, caracterizando-os como não-marxistas, acrescentando que “para aplicarmos o que o camarada Mao Zedong disse num assunto em particular ou noutro, para aplicar o que ele disse num determinado local ou noutro, para aplicar o que ele disse num momento específico ou outro, ou aplicar o que ele disse numa condição específica ou outra – tudo isso certamente não funcionará! O camarada Mao Zedong disse em várias ocasiões que algumas das suas próprias declarações estavam erradas”178. Num segundo momento, Deng Xiaoping faz publicar o artigo “A Prática é o Único Critério para Julgar a Verdade”, apresentado como um entendimento “correto” e “abrangente” do pensamento de Mao Zedong. Nessa

ocasião, alega que “a única forma de avaliar a verdade é pela ampla experiência social do povo. (...) o marxismo deve ser continuamente reinterpretado à luz da experiência. (...) mas se a experiência revelar erros, mudanças devem ser feitas”179. Empregando esta mesma metodologia, Deng “aceitou a autoridade de Mao, ao mesmo tempo que afirmava que Hua Guofeng não era o único com autoridade para interpretar os pontos de vista de Mao”180. Por outro lado, enquanto postula que o pensamento de Mao Zedong era suficientemente robusto para interpretar o momento atual, conclui que o entendimento maoista de “luta de classes” e da “revolução permanente” deveriam ser descartados devido aos resultados desastrosos produzidos no passado recente. Formalmente exortando a relevância e atualidade do “Pensamento Mao Zedong”, as teses avançadas em “A Prática é o Único Critério para Julgar a Verdade” constituíam um ataque semi-velado à ortodoxia maoista, à herança da Revolução Cultural e à escolha de Hua Guofeng como sucessor do fundador da República Popular. Para além das diferenças ideológicas que separavam as fações, o confronto entre Deng e Hua refletia uma incontornável divisão geracional nas fileiras do PCC. Dir-se-á que, de forma geral, os partidários de Hua eram mais jovens, muitos dos quais eram antigos Guardas Vermelhos que durante a Revolução Cultural purgaram os militantes mais velhos que, após a morte de Mao, foram reabilitados por Deng. À medida que o espectro da Revolução Cultural retrocedia, “a maioria dos anciãos rejeita não apenas a visão utópica de Mao da sociedade igualitária subjacente ao Grande Salto em Frente e a luta interminável de classes da Revolução Cultural, mas também o modelo estalinista de controlo estatal da economia, a coletivização da agricultura e a ênfase colocada na indústria pesada desde os anos ١٩٥٠”181. Não deixa de ser irónico verificar que o dogmatismo ideológico de Mao – e o aventureirismo político

que produz – acaba por gerar o efeito bumerangue que o Grande Timoneiro procurara evitar: o pleno descrédito das suas ideias quanto à ação de massas e ao comunismo utópico. Consumado o afastamento de Hua, e ciente da necessidade de tranquilizar o sector maoista, Deng afirma que “não seria o Khrushchev da China”, acrescentando que as contribuições do primeiro líder da República Popular eram vitais e, portanto, o PCC “não deve lançar um ataque a Mao como o ataque de Khrushchev a Estaline”182. Apesar das garantias oferecidas aos setores mais radicais, estava aberto o caminho para o ressurgimento dos “seguidores do capitalismo” que Mao implacavelmente combatera até à morte. O Grande Timoneiro fora presciente quanto ao surgimento de um “Khrushchev chinês” que desmontasse o seu legado. Ironicamente, a sorte de Mao fora que Deng se assemelhava mais a Khrushchev do que a Gorbachev. Saído vitorioso da luta pelo poder, Deng Xiaoping firma a escolha histórica de “abrir” a China à economia mundial. A trajetória delineada por Deng para alcançar o desenvolvimento nacional não era, porém, inevitável. Vários caminhos alternativos poderiam, naquela conjuntura específica, ter sido traçados. Primeiro, embora altamente improvável, a elite partidária poderia ter optado pela democratização e pelo desenvolvimento capitalista, em linhas gerais, o caminho percorrido pelo Japão, por Taiwan e pela Coreia do Sul na fase pós-autoritária dadécada de 1980183. Este percurso teria exigido o impossível: o PCC teria de renunciar ao seu monopólio do poder. Segundo, a modernização do país poderia ser cumprida através da construção de chaebols num quadro de ditadura militar, como fizeram Park Chung Hee na Coreia do Sul e Suharto com a sua Nova Ordem indonésia184. Por estranho que possa parecer, o modelo de modernização autoritária dirigida pelas forças armadas não era implausível porque a preponderância do Exército de Libertação Popular dentro do partido, e a autoridade pessoal do marechal Ye Jianying,

poderia viabilizar tal solução. É verdade que o ELP é o braço armado do PCC – são forças armadas do partido e não do estado – e Mao sempre exortou o “partido a comandar a arma”, expressando assim a tradição de supremacia civil sobre os militares advogada pelo partido. Mas, dado o papel central do ELP durante a última fase da Revolução Cultural e para a queda do Grupo dos Quatro, a hipótese de uma ditadura militar não era impensável185. Por fim, e por mais improvável que fosse na medida em que pressupunha a restauração do poder nas mãos dos maoistas, abria-se outro caminho: o comunismo puritano, xenófobo, desencadeado pela lógica genocida dos Khmeres Vermelhos de Pol Pot, uma via derivada de uma certa lógica maoista186. Cada uma das três opções apresentava riscos e oportunidades. Mas o ponto essencial é outro: o “socialismo com características chinesas” de Deng Xiaoping não era um caminho prédeterminado. Não era a consequência inexorável de uma lógica única inerente ao comunismo chinês.   Thermidor de Jiangxi   O alcance do plano reformista proposto por Deng Xiaoping seria esclarecido durante o Terceiro Plenário do XI Comité Central do Partido Comunista Chinês de dezembro de 1978187. A cúpula dirigente que emerge desta histórica reunião revela até que ponto Deng, por esta altura, dominava o Comité Central, a pré-condição indispensável para reverter as políticas maoistas de autarcia nacional, planeamento central e comunas populares. Maioritariamente composta pelos homens que governaram durante a era de ouro do início dos anos 1950, que supervisionaram os sucessos económicos do PCC antes da imprudência do Grande Salto em Frente, os rostos mais

destacados da nova liderança também haviam presidido ao breve interlúdio entre a Conferência de Lushan e a Revolução Cultural. Não admira, pois, que a “abertura” de Deng invocasse os sucessos anteriores produzidos pela flexibilidade no âmbito da economia de planeamento central e pelo papel desempenhado pelos mercados rurais. Por isso mesmo, os anciãos do partido que acompanhavam Deng possuíam a autoridade histórica e a legitimidade política para prosseguir com o programa de reformas que fazia eco das orientações que defenderam no passado. Afinal, e sendo que a “prática é o único critério para julgar a verdade”, a história tinha demonstrado que as soluções então propostas por Deng Xiaoping e os seus aliados eram as mais corretas. Um dos motores da reforma encontra-se na vizinhança imediata. A geração de líderes que assume o poder no pósmaoismo está ciente das vulnerabilidades militares, económicas e tecnocientíficas da China. Eram fragilidades particularmente inquietantes para um país que partilhava uma longuíssima fronteira terrestre com uma superpotência em franca expansão política e ideológica. Convém notar que, no final da década de 1970, nada leva a concluir que a União Soviética era um estado à beira do desmoronamento. Moscovo aparentava estar no auge do seu poder e influência, com uma rede de clientes e aliados que congregava, inter alia, os países da Europa de Leste, Cuba, Angola, Etiópia, Nicarágua, Iémen do Sul e Afeganistão. A cúpula do PCC ignorando ao facto de soviéticos, taiwaneses, sul-coreanos e outros vizinhos terem superado a RPC em praticamente todos os indicadores de desenvolvimento188. À medida que esses países se distanciavam da China, o fracasso do regime sínica em definir saídas para a pobreza e o subdesenvolvimento mina a legitimidade do PCC como veículo para realizar a modernização. Mais de uma década antes da chegada do dengismo ao poder, a debilidade estratégica da China levara o Primeiro-

Ministro Zhou Enlai a apelar, na Conferência de Trabalho Científico e Tecnológico de Xangai, realizada em janeiro de 1963, à implementação das “Quatro Modernizações”: da agricultura, da indústria, da ciência/tecnologia e da defesa nacional189. A preocupação de Zhou com o atraso destes setores estratégicos explica o seu empenho na reabilitação de Deng Xiaoping, nomeando-o, em 1973, como seu VicePrimeiro-Ministro. Acrescenta-se que, na esfera da segurança nacional, a incontestável degradação do relacionamento sino-soviético decorrente dos confrontos fronteiriços de março de 1969 na ilha de Zhenbao e no rio Ussuri, constitui um forte incentivo para se proceder ao aprofundamento da reaproximação aos Estados Unidos, iniciada aquando da visita de Richard Nixon a Beijing. A morte de Mao Zedong torna claro que a preservação do status quo, personificado por Hua Guofeng, era inviável se a China pretendesse alcançar o desenvolvimento nacional e diminuir as suas vulnerabilidades estratégicas num quadro regional de mudança vertiginosa. No plano ideológico, ao subscrever um ambíguo “socialismo de mercado com características chinesas”, o Terceiro Plenário do XI Comité Central abandona o igualitarismo utópico e a linha de massas maoista. Durante a sua histórica “viagem ao sul” de 1992, Deng, numa admissão reveladora, afirma que “ao estudar o marxismoleninismo, precisamos de apreender a essência e aprender o que precisamos de saber. Tomos pesados são para um pequeno número de especialistas; como podem as massas lê-los? É formalista e impraticável exigir que todos leiam tais obras. Foi a partir do Manifesto Comunista e do ABC do Comunismo (sic) que aprendi os rudimentos do marxismo (...). O marxismo é a verdade irrefutável. A essência do marxismo é buscar a verdade aos fatos. É isso que devemos advogar, não a adoração de livros”190. As palavras de Deng indicavam que, no contexto chinês, a preservação do marxismo-leninismo não era incompatível

com a flexibilização da economia de comando, com a acomodação de um setor privado, com um setor não-estatal nem com o investimento estrangeiro. Perante a exigência destas tarefas, o dogmatismo maoista teria forçosamente de ser substituído por uma abordagem ideológica flexível, se bem que inequivocamente intransigente quanto ao papel do partido e à sua missão de ressuscitar a grandeza da China. Apesar de todas as adaptações teóricas introduzidas por Deng, o PCC pós-Mao enfatiza a sua continuidade ideológica. Desde 1921 que o PCC, ininterruptamente, mantinha o compromisso de construir uma China moderna, próspera e poderosa (rejuvenescida), liberta do legado do “século da humilhação nacional” e sob a orientação do partido único. Se “formalismos” contidos nos tomos constituíam entraves à concretização dessa missão histórica, seriam, muito simplesmente, descartados. A 30 de março de 1979, três meses depois do Terceiro Plenário do XI Comité Central, Deng Xiaoping,profere o discurso “Defenda os Quatro Princípios Cardeais”191, onde começa por afiançar que o PCC se libertara dos “efeitos da década de turbulência criada por Lin Biao e pelo Grupo dos Quatro e assegurava uma situação política marcada pela estabilidade e a unidade; esta situação é tanto um prérequisito como uma garantia da nossa modernização socialista”192. Esta nova fase do desenvolvimento socialista exigia a “reforma e a política de porta aberta” dentro dos parâmetros estipulados pelos Quatro Princípios Cardeais: o caminho para a sociedade socialista, a ditadura do proletariado, a liderança do Partido Comunista e, por fim, a relevância continua do marxismo-leninismo e do Pensamento de Mao Zedong. Em suma, o sucesso das “Quatro Modernizações” pressupunha a fidelidade aos Quatro Princípios Cardeais, concebidos como “o prérequisito básico para alcançar a modernização”193. As “Quatro Modernizações” constituem o programa geral de mudança proposto por Deng Xiaoping. A primeira

modernização – da agricultura – visava a mecanização da produção e a introdução do “sistema de responsabilidade”, que incumbia todas as famílias de produzirem bens agrícolas para venda no mercado aberto depois de uma parte da colheita ser vendida ao estado a preço fixo. A segunda modernização – da indústria – pretendia transitar da indústria pesada para a ligeira. Gestores passam a escolher os bens que produzem, mas esperava-se que as firmas fossem rentáveis. A terceira modernização – da ciência e à tecnologia – abria a China ao conhecimento e tecnologia do estrangeiro para colmatar o atraso nestas áreas. A quarta modernização – da defesa – enfatiza o desenvolvimento e a aquisição de armamentos modernos e reformas militares de forma a preparar as forças para o combate contemporâneo. As “Quatro Modernizações” iriam, no seu conjunto, impulsionar o crescimento chinês, mas também produziram problemas sociais e ambientais que, ainda hoje, não foram superados. Segundo Deng, a necessidade de defender esses princípios “continua porque alguns camaradas do Partido ainda não se libertaram da influência maligna da ideologia ultraesquerdista de Lin Biao e do Grupo dos Quatro”194. A conciliação das reformas de mercado com o controlo centralizado do partido feita por Deng fora sancionada pelo Terceiro Plenário nos seguintes termos: “a sessão plenária convoca todo o Partido, todo o exército e o povo de todas as nossas nacionalidades a trabalhar com um coração e uma mente, aperfeiçoar a estabilidade e a unidade políticas, mobilizar-se imediatamente para dar tudo de si, reunir a sua sabedoria e esforços para realizar a nova Longa Marcha para tornar a China um país socialista moderno e poderoso antes do final do século”195. A referência a uma “Longa Marcha”, hoje utilizada com frequência por Xi Jinping, evoca os valores da mítica Longa Marcha de Mao: sacrifício, resistência e um horizonte de luta prolongada. Mas sugeria, também, que a vitória era inevitável se os princípios

fundamentais fossem observados. Mais tarde, aquando de uma visita a Beijing de uma delegação oficial do Partido Comunista Romeno, as intenções de Deng ficam ainda mais claras quando confessa aos seus convidados que “o objetivo do socialismo é tornar o país rico e forte”196. Como é sabido, no mesmo Terceiro Plenário de dezembro de 1978, Deng Xiaoping argumenta que o desenvolvimento chinês não dispensa a introdução de mecanismos de mercado. O significado concreto e o alcance da declaração ficam por esclarecer cabalmente porque o “líder supremo” se abstém de apresentar ao Plenário um plano detalhado, estruturado para promover o crescimento económico. Dito de forma diferente, as reformas são iniciadas na ausência de um roteiro sistematizado, detalhado. A formulação “gato preto, gato branco”, essencialmente uma recapitulação do ditado de Mao “busca a verdade dos fatos”, expressa a abordagem pragmática de Deng; isto é, as reformas seriam consolidadas e expandidas quando bem-sucedidas e não porque eram sancionadas pelos tomos. Se se mostrassem ineficazes, seriam descartadas. A mudança, pelo menos nos primeiros momentos, seria necessariamente experimental e incremental. Excluía-se, assim, um big bang, um corte brusco com práticas anteriores. Pragmática, flexível e avaliada de acordo com critérios de eficácia, a agenda reformista da nova cúpula dirigente visa impor a racionalidade a uma economia de comando e ao mundo agrícola, sem, no entanto, descurar as inevitáveis perturbações sociais resultantes da “reforma e abertura”. Nesse sentido, os limites das reformas eram definidos pela capacidade da sociedade de as absorver, pois a conflitualidade social suscetível de levar à mudança de regime era inaceitável, era a linha vermelha do PCC. As mudanças introduzidas pela “abertura e reforma” incentivam os produtores locais a experimentar com mecanismos de mercado e, muito rapidamente, superaram os níveis de produção agrícola nas comunas populares. A

agricultura era o setor que, na realidade, mais carecia de reforma imediata porque, em 1978, o país que Deng pretende modernizar deixara de ser autossuficiente na produção de cereais, cujo output não havia ainda recuperado do cataclismo do Grande Salto em Frente. A fim de estimular a produção agrícola, o PCC adotou o “sistema de responsabilidade”; isto é, as famílias camponesas recebiam lotes de terra para uso privado. Em troca, o estado recebia uma quota de produção adquirida a preço fixo. Em resultado destas mudanças, a produção de cereais cresce de 305 milhões de toneladas em 1978 para uns impressionantes 407 milhões em 1984. Os preços pagos aos produtores da lavoura aumentaram entre 25% e 40% em 1979, provocando assim um ainda maior aumento de produção e o enriquecimento das famílias197. O reformismo dengista passa também pela introdução de Zonas Económicas Especiais (ZEE), enclaves industriais desenvolvidos para atrair empresas estrangeiras que beneficiam de um regime de incentivos especiais, incluindo uma carga tributária reduzida e uma estrutura regulatória consideravelmente mais flexível do que a existente no regime geral198. Quanto às empresas estatais nãocompetitivas, ineficientes na alocação do capital, eram sujeitas a processos de racionalização, um eufemismo de downsizing e flexibilização laboral. Caso não viessem a obter lucro, eram encerradas. Desta forma, o sector industrial estatal não será desmantelado por decreto: as firmas são gradualmente obrigadas a competir com companhias privadas e a obter lucros num novo ambiente competitivo. Algumas adaptaram-se às novas circunstâncias e ainda hoje prosperam como empresas que disputam mercados em várias partes do mundo; muitas encerraram as portas. Dado que o processo de reforma era severamente circunscrito por critérios político-ideológicos, talvez não houvesse alternativa à abordagem experimental e

incremental de Deng Xiaoping199. Com efeito, em finais de 1978, a margem de manobra do dengismo era limitada porque a autoridade de Deng no interior do PCC e junto da hierarquia do Exército de Libertação Popular não era ainda incontestável. Por outro lado, setores do partido comprometidos com o comunismo utópico de Mao, a face do PCC e do estado nas zonas rurais, continuavam a oferecer resistência às reformas. Similarmente, os quadros regionais mostravam-se relutantes em implementar reformas que invariavelmente acabariam por enfraquecer os seus feudos pessoais. Quanto ao ELP, Deng não era estranho aos meandros militares, pois participara na guerra civil e, no início dos anos 1930, servira em Guangxi como comissário político do Segundo Exército de Campo. Muito transformado desde a Revolução Cultural, altura em que a instituição militar se assume como corporação, o ELP desempenha um papel cada vez mais interventivo no interior do PCC200. Por mais poderoso que fosse naquela encruzilhada, Deng não podia excluir a possibilidade de vir a ser deposto por rivais em posições-chave no estado, nas forças armadas e no partido, determinados a reverter o ímpeto reformista. As desconfianças dos mais recalcitrantes sectores da nomenklatura forçam Deng a renovar as garantias quanto à continuação do monopólio do poder do PCC. Eis a linha vermelha impossível de atravessar. Mas as garantias eram destituídas de credibilidade a menos que os processos de reforma económica e reforma política fossem nitidamente destrinçados. A condição sine qua non para avançar com as reformas económicas era, portanto, a liminar exclusão de reformas políticas suscetíveis de ameaçar o monopólio do poder detido pelo PCC. Evidentemente, a “abertura” de Deng Xiaoping exigia algum grau de reforma administrativa, mas essas mudanças seriam executadas pela nomenklatura do partido e não contra os interesses instalados dos quadros

partidários. Deng, a bem dizer, propôs-se cooptar os quadros para o campo reformista, escolhendo não os confrontar com medidas que tentariam bloquear. E uma vez que não era de excluir que o PCC, num momento futuro, optasse por desfazer a “reforma e abertura”, os quadros concederam a Deng latitude suficiente para prosseguir com o reformismo enquanto a “abertura” não colidisse com o monopólio do poder. A margem de manobra de Deng estava, neste sentido, condicionada pelo desempenho económico resultante de mudanças desencadeadas dentro dos parâmetros políticos ditados pelos princípios ideológicos do PCC. Anos antes da ascensão de Mikhail Gorbachev à liderança do Partido Comunista da União Soviética, Deng Xiaoping estipula os limites fundamentais do modelo reformista chinês, definido uma década antes dos manifestantes de Tiananmen exigirem profundas “reformas políticas” que Deng simplesmente não podia (e, muito provavelmente, não queria) conceder.   As mãos esquerda e direita   Visando a reconciliação do partido e do país com o tumultuoso passado recente, o Quinto Plenário do XI Comité Central, reunido entre 23 e 29 de fevereiro de 1980, reabilita Liu Shaoqi, que morrera em 1969 em resultado de ferimentos infligidos por Guardas Vermelhos. A reabilitação de tão proeminente vítima da Revolução Cultural e notório adversário político de Mao representa nada menos do que a repreensão pública do Grande Timoneiro pela sua cumplicidade ativa com a devastação económica, a violêcia eas perseguições generalizadas da época201. Em resultado da longa associação política entre Liu e Deng, a reabilitação post mortem do primeiro também configura uma espécie de

validação política do segundo, atestando da “correção” das suas reformas. Estabelecia-se, assim, uma linhagem histórica entre as escolhas políticas de Deng e as linhas mestras traçadas por Liu Shaoqi e Zhou Enlai, o arquiteto das “Quatro Modernizações”. Nesse sentido, a reabilitação de Liu sinaliza a natureza e a legitimidade ideológica das reformas que a coligação denguista procura introduzir. Por isso mesmo, meses mais tarde, em outubro de 1980, um segundo sinal era dado pelo partido. Em contraste com a reabilitação de Liu, o PCC expulsa postumamente Kang Sheng, um dos dirigentes mais execrados que morrera em 1975, depois de pôr em marcha a campanha de 1976 para criticar o desvio de direita cujos alvos eram Zhou Enlai e Deng Xiaoping. Fora, porém, a sua atuação nos anos 1940, quando assume o papel de principal cérebro do terror dirigido contra o próprio partido durante o Movimento Retificativo, e o seu papel de enforcer da Campanha AntiDireitista de 1957, que levam Hu Yaobang, num discurso secreto proferido em 1978, a compará-lo a Félix Dzerzhinski e a Lavrenti Beria, os carrascos de Estaline. Meses depois da reabilitação de Liu Shaoqi, a Terceira Sessão do V Congresso Nacional do Povo reúne em Beijing, entre 30 de agosto e 10 de setembro de 1980, para finalizar a renovação de pessoal de topo iniciada durante o Quinto Plenário do XI Comité Central de fevereiro desse ano. Crescentemente seguro da coesão da sua base de apoio, Deng renuncia ao cargo de Vice-Primeiro-Ministro, assim forçando a “renúncia voluntária” de vários revolucionários da velha geração, incluindo Li Xiannian, Chen Yun, Xu Xiangqian e Wang Zhen202. A “renúncia voluntária” permitiu a Deng, mantendo o controlo da importantíssima Comissão Militar Central, colocar aliados no partido e no estado e, assim, “remover obstáculos reais e potenciais à reforma”203. A mais significativa destas alterações à nomenklatura fora a elevação de Hu Yaobang a Secretário-Geral do PCC, um protegido político de Deng e entusiasta do processo de

reforma. Uma das várias vítimas desta renovação foi, precisamente, Hua Guofeng. Praticamente destituído de poder, é substituído como Primeiro-Ministro por Zhao Ziyang. Descritos por Deng como as suas “mãos esquerda e direita”, Hu e Zhao são integrados no Comité Permanente do Politburo, o órgão máximo do Partido Comunista Chinês. Com uma base de apoio firmemente consolidada, Deng Xiaoping, ao longo dos anos 1980, conta com as suas “mãos esquerda e direita” para fazerem avançar a “reforma e abertura”204. A partir do seu cargo de Secretário-Geral do PCC, Hu Yaobang alarga a coligação de Deng, reunindo apoios junto dos quadros intermédios que se haviam destacado durante a Revolução Cultural. Alguns, ainda apegados ao igualitarismo maoista e à linha da luta de massas, foram cooptados; outros, os mais recalcitrantes, seriam afastados e substituídos por defensores da reforma. Por sua vez, o Primeiro-Ministro Zhao Ziyang assume a chefia do aparelho estatal encarregado de implementar as políticas reformistas e, posteriormente, substitui Hu Yaobang como Secretário-Geral do PCC. Gradualmente, Deng e seus aliados passam a dominar a máquina partidária. Não obstante, e quando a década de 1980 se aproxima do fim, os dois homens entram em conflito com a linha-dura que insiste em abandonar ou, no mínimo, atenuar a mudança. À medida que as reformas económicas se intensificam, ambos divergem do incrementalismo de Deng Xiaoping. Passam a advogar vastas reformas políticas de modo a garantir o sucesso do desenvolvimento nacional. Atendendo a estas dúvidas quanto ao monopólio do poder do PCC, particularmente evidentes no caso de Hua Yaobang, ambos acabam por partilhar o mesmo destino: Deng Xiaoping demite Hu no início de ١٩٨٧ e Zhao, acusado de ser excessivamente indulgente para com os estudantes acampados em Tiananmen, será afastado de todos os seus cargos em maio de ١٩٨٩, pouco antes da matança na principal praça de Beijing.

Esta crise na cúpula central do PCC remonta a meados dos anos 1980, altura em que o expressivo crescimento gerado pelas reformas dengistas provoca um aumento generalizado de preços, inflação e corrupção. A título exemplificativo, verifica-se que, no ano de 1985, a produção industrial cresce 20%, um surto de crescimento acompanhado pelas “explosões de inflação que aumentaram o custo das necessidades básicas em 30% nos primeiros meses de 1985, deprimindo os padrões de vida dos setores menos abastados da população urbana, especialmente os trabalhadores industriais e os funcionários públicos de nível inferior”205. O tsunami de investimento estrangeiro, a explosão de bens de consumo e um regime que sinaliza que “ser rico é glorioso” (a versão simplificada da exortação de Deng “deixem algumas pessoas ficarem ricas em primeiro lugar”) cria um ambiente de boom propício à corrupção desenfreada. Em resumo, “porque as reformas de mercado que provocaram o dinamismo económico da China não foram acompanhadas por uma estrutura de regulamentação ou por reformas políticas fundamentais do estado-partido, deram origem à corrupção desenfreada, a desigualdades sociais crescentes, a disparidades regionais e poluição ambiental generalizada”206. Um estado centralizado e burocrático gerador de uma teia kafkiana de regulamentos estimulou a corrupção oficial e, consequentemente, uma onda de descontentamento social. À medida que o debate se intensificava quanto à forma de abordar a insatisfação popular, profundas clivagens surgem nos escalões principais do PCC. É justamente neste contexto de agravamento da crise social que, em Beijing, se realiza o XIII Congresso do Partido Comunista Chinês, entre 25 de outubro e 1 de novembro de 1987. Muito naturalmente, o conclave reitera a “correção” da “reforma e abertura” denguista adotada durante o Terceiro Plenário do XI Comité Central de dezembro de 1978. Para além de validar a orientação traçada por Deng, o

Congresso volta a renovar a cúpula do PCC por meio de mais “demissões voluntárias” dos quadros mais idosos. Numa espécie de repetição da Terceira Sessão do Congresso Nacional Popular de 1980, destacados opositores do processo reformista – como Peng Chen, Chen Yun e Li Xiannian – afastam-se dos seus cargos. A renovação geracional também varre o Politburo: 9 dos seus 20 membros são removidos. Procurando dar o exemplo, Deng recusa todos os cargos formais no partido e no estado, mas mantém a presidência da poderosíssima Comissão Militar Central. Eleva Zhao Ziyang a primeiro Vice-Presidente da Comissão Militar Central, um revés político para os conservadores que, mesmo assim, conseguem manter Li Peng no Comité Permanente do Politburo. Praticamente relegado ao esquecimento, Hua Guofeng conserva o seu lugar no Comité Central, mas é privado do escassíssimo poder que ainda lhe resta. Uma década depois de iniciar a sua caminhada rumo à liderança do Partido Comunista Chinês, Deng Xiaoping emerge do XIII Congresso como o incontestável “líder supremo” da China. Mas o conclave é mais do que a consagração de Deng; salda-se pelas inovações ideológicas apresentadas no relatório principal do Congresso. Entregue pelo Secretário-Geral Zhao Ziyang, o documento formalmente “reiterou a política do partido de intensificar e expandir as reformas económicas e traçou caminhos para a reestruturação política”207. Na realidade, trata-se da última estogada no maoismo. Alegando que a China acabara de entrar no “estágio primário” da construção “através da prática, do socialismo com características chinesas”, Zhao declara que tal empreendimento “num grande, atrasado país oriental como a China é algo de novo na história do desenvolvimento do marxismo”208. Acrescenta que “não estamos na situação prevista pelos fundadores do marxismo, na qual o socialismo é construído com base num capitalismo altamente desenvolvido, nem estamos

exatamente na mesma situação que outros países socialistas. Não podemos, portanto, seguir cegamente o que os livros dizem, nem podemos imitar mecanicamente os exemplos de outros países”209. O verdadeiro alcance destas palavras era revelado dias antes da abertura do Congresso, quando, reunido com Arthur Dunkel, diretor-geral do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), Zhao confidencia que “apenas 30% da economia da China permanecerá sujeita ao planeamento central em dois ou três anos”210. A mensagem era clara: o caminho socialista da China divergia significativamente do “socialismo real” existente na URSS e da Europa Oriental. Para dar resposta aos desafios impostos pela construção de um “socialismo com características chinesas”, o partido era incumbido de racionalizar procedimentos burocráticos impeditivos do crescimento da economia nacional. As mudanças, por sua vez, deveriam ser cirúrgicas, de modo a tornar o estado chinês capaz de responder às exigências da reforma económica211. Zhao refere-se diretamente à questão da relação entre as reformas económicas e políticas, sugerindo que “a estrutura económica torna a reforma da estrutura política cada vez mais urgente. O processo de desenvolvimento de uma economia socialista de bens transacionáveis também deve envolver a construção de uma democracia socialista. Sem a reforma da estrutura política, a reforma da estrutura económica não pode ter sucesso final. O Comité Central do Partido acredita que é hora de colocar a reforma da estrutura política na agenda de todo o Partido”212. Ficava patente que a tarefa de desenvolver a “democracia socialista” não era sinónimo de desenvolver a democracia liberal, burguesa. Muito simplesmente, a reforma política era concebida como a reforma do estado, entendida como um veículo para maximizar a eficiência económica. Salienta-se, pois, que a reforma do aparelho burocrático-administrativo excluía uma mudança de regime213. A este propósito, sem deixar

margem para dúvidas, Zhao alertou que “não podemos interpretar a política de “reforma e abertura” como algo liberal burguês, para não nos desviarmos do caminho do socialismo. No estágio primário em que o país ainda está subdesenvolvido, a tendência no sentido da liberalização burguesa, que rejeita o sistema socialista em favor do capitalismo, persistirá por muito tempo”214. Curiosamente, depois de três décadas de maoismo, o PCC admitia que o terreno continuava fértil para uma ofensiva burguesa que tendencialmente culminaria na mudança de regime. Eufemisticamente caracterizado por Zhao como o “estágio primário” da construção socialista, o atraso da China gera um espectro de reivindicações populares com vista ao estabelecimento da democracia burguesa. A tese, à primeira vista, parecia impossível de reconciliar com a destruição da burguesia efetuado depois da “libertação” de 1949, depois de décadas de luta maoista contra os “inimigos de classe”. Na realidade não o é porque a burguesia a que Zhao se refere é, a bom rigor, uma nova burguesia surgida nos anos de “reforma e abertura”, e não a burguesia existente antes do estabelecimento da ditadura do proletariado aquando da proclamação da República Popular. O atraso chinês, o tal “estágio primário”, obriga, para recorrer a Marx, a uma acumulação primitiva do capital. Em paralelo com as reformas, verifica-se o aumento da deslocalização e das desigualdades sociais. A diminuição da repressão, por sua vez, abre espaço de uma nova classe que exige à emergência ter uma voz ativa na política nacional. Até que se pudesse garantir a consolidação plena do socialismo, a democracia liberal ocidental continuava, pois, a ser uma espécie de íman para estes novos setores e, por conseguinte, uma ameaça ao poder do PCC. Considerando que Zhao viria a ser uma das principais vítimas políticas dos “eventos de Tiananmen”, a formulação, delineada pouco mais de um ano antes do esmagamento dos protestos de 1989, contribui para legitimar o uso da

força contra os manifestantes. Não deixa de ser paradoxal constatar que Zhao efetivamente confirma os contornos da “teoria da modernização” que, pouco tempo depois, levará os presidentes americanos (particularmente Bill Clinton) a tentarem absorver a China como stakeholder responsável no mundo globalizado. Mas, ironicamente, quando Clinton chega à Sala Oval, no início de 1993, a possibilidade de democratizar o regime já havia passado porque, no seguimento dos “eventos de Tiananmen”, o PCC estenderia a filiação partidária aos novos grupos sociais e, dessa forma, as reuniões partidárias substituíam as ruas (e o estado) como arenas de articulação dos novos interesses. Recorrendo à terminologia de Samuel Huntington, as instituições (neste caso, o PCC) evitam a “decadência” da ordem vigente porque absorvem as novas exigências sociais. Talvez procurando mudanças institucionais no nível estadual, europeus e americanos ignoravam que a abertura das fileiras do PCC, a criação efetiva de um “partido de todo o povo”, era mais importante do que a mudança na esfera do estado, firmemente subordinado às diretivas do partido. Articulada uma década após o início da era Deng, a formulação teórica de Zhao visava tranquilizar os quadros quanto à continuidade do processo de reforma dentro dos parâmetros da construção socialista traçados pelo PCC. A garantia era fornecida nos seguintes termos: “A adesão aos Quatro Princípios Cardeais – isto é, manter o caminho socialista e sustentar a ditadura popular, a liderança do Partido e o Marxismo-Leninismo e o ‘Pensamento Mao Zedong’ – é a base subjacente a todos os nossos esforços para construir o país. A adesão ao princípio geral da ‘reforma e abertura’ tem sido um novo desenvolvimento da linha do nosso Partido desde a Terceira Sessão Plenária do XI Comité Central que acrescentou aos ‘Quatro Princípios Cardinais’ um novo conteúdo adequado ao nosso tempo”215. A fórmula volta a enfatizar a abordagem incremental de Deng Xiaoping e, ao mesmo tempo, exclui qualquer rutura

com os pilares ideológicos do PCC consubstanciados nos “Quatro Princípios Cardinais”. A continuidade do sistema era, pois, inquestionável. Não obstante, era possível ajustar o sistema socialista através da introdução de mecanismos de mercado de forma a torná-lo mais eficiente no campo económico. Expectativas ocidentais infundadas apontavam para a “evolução” da China em direção ao capitalismo e à democracia liberal. A realidade era outra: o “socialismo com características chinesas” continuava a ser socialismo comandado pelo partido único. E era lógico que assim fosse porque apenas o partido era capaz de orientar as reformas, preservar a estabilidade social e prosseguir o “socialismo”. A alternativa ao monopólio do poder do PCC era, na perspetiva da casta comunista, a restauração capitalista e a inevitável instabilidade social que conduziria à liquidação do regime e ao desmembramento do país. Se é verdade que o legado político-ideológico de Mao não fora abordado explicitamente no relatório de Zhao, é igualmente verdade que a formulação “Mao estava 70% certo e 30% errado”, o princípio que se generaliza e que se torna numa espécie de avaliação abreviada da dualidade da “era Mao Zedong”, genericamente aceite na cúpula do PCC. No essencial, a formulação mantinha que Mao estava “certo” ao unificar a China, ao estabelecer um estado centralizado, ao atribuir o papel de liderança ao CPP e ao ter, episodicamente, anuído à política económica da RPC orientada por Liu Shaoqi, Chen Yun, Zhou Enlai e Deng Xiaoping. Em contraste, os 30% “errados” resultaram da insistência dogmática na luta ideológica e nas suas consequências, principalmente o Grande Salto em Frente e a Revolução Cultural, períodos durante os quais a ideologia e a luta de classes foram privilegiadas em prejuízo de uma política económica pragmática. A avaliação 70/30 também reconcilia dois objetivos políticos essenciais. Primeiro, era necessária uma apreciação crítica do dogmatismo de Mao para legitimar as reformas de Deng. Naturalmente, os 70%

“certos” fornecem a cobertura político-ideológica necessária para o dengismo persistir no caminho do reformismo. Segundo, uma rejeição liminar de Mao subverteria a própria legitimidade do PCC e da RPC porque tanto o partido como o estado eram componentes nucleares do legado ideológico (e pessoal) de Mao Zedong. Procurando fazer a tortuosa quadratura do círculo, o grupo de Deng enaltece a contribuição de Mao para a fundação do estado, para garantir o papel de guia do partido, bem como para a gestão económica pragmática realizada em momentos específicos. Em contraste, tudo que estava associado às catástrofes políticas e económicas do Grande Salto em Frente e da Revolução Cultural, porventura a essência da heterodoxia de Mao, era reputado. Uma das mais importantes consequências da orientação traçada pelo XIII Congresso prende-se com a estratégia de Zhao Ziyang para desenvolver o litoral do país. Revelada no início de 1988, e recebida com profundo desagrado pela ala conservadora do partido, a estratégia postulava que as áreas costeiras, cujos motores económicos eram as ZEE, teriam de expandir o fabrico de manufaturados destinados à exportação. Devido à abundância de mão-de-obra barata resultante da deslocação de um exército de trabalhadores indiferenciados dos campos para as cidades, o objetivo era viável. As resistências sentem-se porque a estratégia implica a aquisição de matérias primas nos mercados internacionais e inviabiliza, assim, a “autossuficiência” maoista. Maior dependência face às commodities estrangeiras provoca apreensões quanto às vulnerabilidades inerentes às fileiras de produção globalizadas, até porque não era líquido que a economia mundial pudesse absorver a produção chinesa ou se medidas protecionistas seriam impostas aos produtos chineses. Esta tensão entre reformadores e conservadores nunca seria verdadeiramente superada e voltaria a manifestar-se

em 2012, quando irrompe o “caso Bo Xilai”. Após a supressão da Primavera de Beijing, a fação conservadora, cuja influência aumenta significativamente depois de 1989, passa a resistir à “reforma e abertura” e advoga a desaceleração do processo. No início de 1992, quando Deng Xiaoping faz a sua célebre “viagem ao sul”, a última, contribuição decisiva do “líder supremo” para a política chinesa, a agenda de reforma encontra-se bloqueada e o país em apuros económicos. Tendo conquistado o apoio inequívoco das forças armadas, Deng desafia os conservadores, exigindo que o partido aprofunde as reformas económicas. Impõe a substituição da “política no comando” por a “economia no comando”, a inversão do entendimento maoista (e dos conservadores) da primazia da luta política sobre a atividade económica216. A ofensiva contra os ideólogos conservadores agrupados em torno de Li Peng, que manobra insistentemente para neutralizar as reformas mais ousadas, é acompanhada por garantias de Deng ao partido, reiterando que “não há contradição fundamental entre o socialismo e a economia de mercado”217. Nada disto equivalia a dizer que se preparava a restauração capitalista, como usualmente se chegou a pensar no Ocidente. Para Deng, “mercados” eram “mercados socialistas” que, orientados pelo PCC, eram meros instrumentos para cumprir a “construção do socialismo” chinês. Ainda assim, a estabilidade exibida no XIII Congresso não se prolonga no tempo. Depois de substituir Hua Guofeng como Presidente do PCC em 1981, Hu Yaobang torna-se Secretário-Geral quando a presidência do partido é abolida no ano seguinte. Veterano da Longa Marcha, descrito como “um daqueles raros líderes de um partido leninista que havia defendido valores e procedimentos democráticos”, Hu seria cercado pela linha-dura, acusado de falta de vigor ideológico e de fomentar uma relação cooperante com o Japão218. Renuncia ao cargo em 15 de janeiro de 1987,

sendo substituído por Zhao Ziyang, que passa a acumular o cargo de Secretário-Geral (a chefia do partido) com o cargo de Primeiro-Ministro (a chefia do governo). Esta concentração de poder transforma Zhao no mais influente adepto das reformas dengistas, até porque tudo indicava que seria o sucessor do “líder supremo”. Mas era uma quimera. A caminhada será, bruscamente, abortada quando, dias antes de o Exército de Libertação Popular ter recebido ordem para a reprimir as manifestações de Tiananmen, os conservadores forçam Zhao a abandonar os seus cargos, remetendo-o para prisão domiciliaria até à sua morte, em janeiro de 2005. Com efeito, a queda de Zhao remonta a novembro de 1987, altura em que Li Peng, membro do Politburo e porta-voz dos setores conservadores, assume a liderança do governo e desafia a autoridade e as orientações liberais de Zhao. Consumado o afastamento deste, a ala reformista do PCC perde o seu rosto mais proeminente e Deng Xiaoping perde a última das suas “mãos esquerda e direita”.   O grande irmão herege   Trinta anos depois de Nikita Khrushchev ter visitado a República Popular, em setembro de 1959, Mikhail Gorbachev aterra em Beijing para quatro dias de conversações destinadas a repor a normalidade no relacionamento sino-soviético. A visita, que decorre em maio de 1989, seria tudo menos rotineira. Imediatamente antes da chegada de Gorbachev à cidade, 200 mil manifestantes congregaram-se na Praça de Tiananmen para expressarem o seu apoio ao líder soviético. Desobedeceram à ordem de evacuação do local, obrigando o cancelamento da cerimónia de boas-vindas laboriosamente preparada.

Terminada a visita, a cúpula do PCC, humilhada pelos acontecimentos, impõe a lei marcial e, na noite de 4 de junho, destaca tropas para a Praça Tiananmen para reprimirem os manifestantes. A Primavera de Pequim chegara, assim, a um abrupto e trágico fim219. Ainda hoje o processo de reforma soviético iniciado por Mikhail Gorbachev em meados da década de 1980 continua a ser da maior pertinência para a cúpula do PCC. Avaliando o resultado dessa experiência, Xi Jinping concluiu que “o Partido Comunista da União Soviética, que, no entanto, era um grande partido, foi dissolvido como um bando de pardais… Essa é a lição que retemos dos erros do passado”220. As palavras, semelhantes a outras subsequentemente proferidas, não deixam espaço para mal-entendidos: Xi jamais seria um Gorbachev chinês que presidiria à liquidação do PCC e do regime comunista. Seguindo os passos de Deng Xiaoping, o novo “líder central” invoca o destino do PCUS para frisar os limites aceitáveis da “reforma” num quadro geral de “socialismo com características chinesas”. Desde logo, Xi exclui qualquer processo de reforma política “liberal, burguesa” que possa desaguar em rutura com o status quo. As observações de Xi, no essencial, reiteram a posição de longa data assumida pelo PCC. Note-se que o seu antecessor, Hu Jintao, em setembro de 2004, pouco antes de substituir Jiang Zemin na presidência da Comissão Militar Central, também excluiu reformas suscetíveis de corroerem o monopólio do poder do PCC, afirmando, sem margem para ambiguidade, que a democracia liberal ocidental era um “beco sem saída” que jamais seria abraçada pela República Popular da China221. Mesmo assim, e apesar de todas as provas em sentido contrário, nos dias que antecederam a subida de Xi à liderança do PCC, os media ocidentais retratam-no como um reformador gorbacheviano disposto a democratizar a autocracia comunista. Por exemplo, John Simpson, o

veterano correspondente estrangeiro da BBC, comparou o XVIII Congresso do PCC, realizado em novembro de 2012, com a decisiva Conferência de junho de 1988 do Partido Comunista da União Soviética. Confessa-se surpreendido com os paralelismos que diz vislumbrar entre Xi e Gorbachev, acrescentando que “em 1998, no bloco soviético, a maioria dos intelectuais sentia-se divorciada dos processos formais da política marxista-leninista. E muito em breve o sistema antigo quebra devido à sua absoluta irrelevância para a vida das pessoas reais”222. Concluía que também a China estava “à beira de mudanças radicais”223. Simpson não estava destituído de razão ao sugerir que qualquer discussão séria sobre a China contemporânea deveria invariavelmente começar pelo reconhecimento de que a República Popular é uma autocracia comunista. Deveria, no entanto, ter focado o essencial: a casta não pretende abandonar os princípios fundamentais do leninismo, incluindo o “centralismo democrático” e o “papel de liderança”, de vanguarda, do partido. Independentemente do pragmatismo manifestado ao longo dos anos, a conservação do monopólio do poder do PCC é uma linha vermelha inegociável que não será atravessada pelo “líder principal”. Os relatos jornalísticos raramente se debruçam sobre o legado histórico e as especificidades ideológicas do PCC, como se estas fossem variáveis destituídas de relevância para o entendimento mais profundo da política chinesa contemporânea. Esta minimização do perfil ideológico do regime chinês não surpreende. Na primeira grande reportagem sobre Mao e o PCC produzida por um ocidental, o livro Red Star Over China de Edgar Snow, publicado em 1937, o repórter, por ingenuidade ou dissimulação, desvaloriza as convicções comunistas de Mao, retratando-o como um bem-intencionado reformador agrário224. Ao suavizar a natureza revolucionária do PCC, Snow descreve Mao como um idealista, porventura incompreendido, não

muito diferente dos socialistas europeus da época. Hoje generalizou-se outro mito: o de que a China é uma economia de mercado (ou capitalista de estado) a caminho da democratização. É certo que existem mecanismos de mercado na República Popular, mas a sua simples existência não faz da China uma economia de mercado. Mecanismos de mercado também vigoraram durante a “Nova Política” de Mao, a “Nova Política Económica” de Lenine, na Hungria do “comunismo de goulash”, sendo que no momento atual, vigoram no Vietname, no Laos e, até, se bem que de forma deveras limitada, na Cuba castrista e na Coreia do Norte de Kim Jong-un. Nem o PCC preside a uma economia de mercado (ou capitalista de estado) nem o PCC comanda um regime autoritário tradicional suscetível à liberalização gradual rumo à democratização, conforme teorizado pela ciência política convencional225. A casta que determina os destinos da República Popular continua a construir o socialismo sob a orientação de um partido marxistaleninista, impedindo escolhas que possam colidir com o dirigismo económico (por meios formais e informais) e com a forma como o PCC entende a sua ideologia e o futuro do país. Todavia, ao rejeitar a reforma política, o PCC gerou um bloqueio. Uma vez que a mudança gradual em direção ao liberalismo e ao pluralismo político deixou de ser possível, a mudança de regime só poderá ocorrer por colapso cataclísmico. Convém, a este propósito, recordar que, até à dissolução do poder soviético, praticamente todos os “sovietólogos” depreciavam os estudos que destacavam a centralidade da ideologia, principalmente quando expressos na linguagem do totalitarismo226. Ao mesmo tempo, na academia e nos media, “revisionistas” avançavam “teorias da convergência” para demonstrarem que o sistema soviético iria persistir porque seria capaz de se reformar e evoluir para um socialismo democrático227. Quando a realidade finalmente se impôs, descobriu-se que o quadro ideológico de referência

do regime era um elemento – de fato, “o elemento” – crucial para se compreender o comportamento soviético228. A desvalorização da ideologia continua depois do colapso da União Soviética, pois o triunfalismo que emerge após a conclusão da Guerra Fria fomenta narrativas, entre as quais o “fim da história” e o “momento unipolar”, que efetivamente negavam a centralidade da ideologia229. Numa ordem internacional assente em princípios ideológicos liberais, a crença na inevitabilidade histórica da democracia e nos mercados era mantida. Em relação à China, ilusões similares produziram escolhas políticas irrealistas, como o engajamento, a promoção da democracia e o fascínio pela tese da “emergência pacífica” da China. A menos que a ideologia seja colocada no centro da análise do comportamento chinês, o regime continuará a ser um enigma impenetrável e uma fonte infindável de expectativas frustradas. Todavia, em tempos mais recentes, voltou-se a valorizar o papel da ideologia na política externa, como demonstra o “discurso da China” de Mike Pompeo em outubro de 2019, proferido no Hudson Institute. O Secretário de Estado de Donald Trump afirmou que “já não é realista ignorar as diferenças fundamentais entre os nossos dois sistemas e o impacto desses dois sistemas, as diferenças nesses dois sistemas para a segurança nacional americana”, acrescentando que “finalmente estamos a perceber o grau da verdadeira hostilidade do Partido Comunista Chinês relativamente aos Estados Unidos e aos nossos valores”230. A perspetiva de Pompeo coincide com a visão de um número crescente republicanos e indicia o “novo normal” nas relações sino-americanas231. Mesmo assim, dir-se-á que os políticos americanos chegaram tarde à “estrada de Damasco”. De qualquer forma, a viragem ideológica americana coincide com a de Xi Jinping, o líder que, depois de Mao Zedong, mais importância atribui à ideologia232. Para se compreender o comunismo chinês pós-Deng, urge

considerar a leitura feita por Beijing do reformismo de Mikhail Gorbachev da segunda metade da década de 1980233. Constata-se, desde logo, que a leitura não corresponde à caracterização de Gorbachev dominante no Ocidente: um reformador corajoso cujo desmantelamento pacífico da URSS abriu caminho para o desanuviamento das tensões geopolíticas e para a breve experiência russa de democratização durante a presidência de Boris Ieltsin. Em contraste com este entendimento, “na China, Gorbachev é visto como um desastre – e uma história de advertência”234. Para os mandarins do PCC, os acontecimentos ocorridos na União Soviética, e nos estados europeus do “socialismo real”, demonstram os perigos inerentes à reforma política. À luz da turbulência vivida na China durante os últimos anos da dinastia Qing e no período republicano, a implosão do estado soviético e a concomitante desintegração do império russo/soviético constituíram um aviso quanto às ameaças que poderiam surgir caso o PCC optasse pela liberalização. As forças centrífugas desencadeadas pelo programa de democratização de Gorbachev levaram ao enfraquecimento do poder, até então incontestável, do PCUS. Incapaz de manter o seu domínio sobre as regiões, o centro assiste à implosão da URSS. Num país historicamente dotado de uma autoridade central fraca e ameaçado pelo desmembramento territorial, os comunistas chineses depreendiam que resultados semelhantes aos de Gorbachev se produziriam se o PCC enveredasse pelo reformismo seguido pelos soviéticos235. Impostas à sociedade a partir do estado, as reformas definidas por Gorbachev foram sequenciadas: a reestruturação económica (perestroika) precedeu a abertura política (glasnost). À medida que a perestroika evidenciava sinais inequívocos de fracasso, a glasnost era intensificada de modo a estimular as reformas económicas236. Frustrado pela insistente oposição à perestroika expressa no seio do PCUS, Gorbachev liberaliza para neutralizar os focos de

oposição partidária e, ainda mais desestabilizador, apela à mobilização extrapartidária. Chegado a uma encruzilhada que o obriga a acelerar o ritmo e a extensão da reforma económica ou a vê-la implodir, Gorbachev abre a esfera política à sociedade civil, permitindo que o debate político ultrapassasse os limites até então delineados pelo PCUS. Dada a contestação cada vez mais acentuada aos pilares ideológicos do sistema, particularmente após a nova campanha de “destalinização” de 1986, a glasnost abre uma janela para que grupos recém-constituídos da sociedade civil possam reivindicar o fim do monopólio do poder do PCUS. Comprometido o papel dirigente do partido, todo o edifício comunista ruiu num ápice. Também os partidos comunistas da Europa de Leste capitularam diante dos manifestantes que saíram às ruas em 1989. A escolha de não recorrer ao uso expressivo da força para conter a onda revolucionária encorajou a oposição a maximizar as suas reivindicações. Protestos transformaram-se em revoluções quando as reformas oferecidas às multidões pelos regimes deixaram de ser aceitáveis. Nada menos do que o derrube do regime passou a satisfazer a multidão. Neste quadro de maximização das exigências dos contestatários, os partidos marxistasleninistas, nas palavras de Xi, “dissolveram-se como um bando de pardais”237. Consumada a rendição política dos partidos comunistas, os regimes de “socialismo real” implodem. Reveladora é a sugestão de Xi de que os partidos comunistas europeus foram derrotados porque perderam a vontade de resistir, porque quebraram ideologicamente. Para evitar a erosão da autoconfiança que provoca a capitulação, o PCC terá, nesta ótica, de se dedicar ao combate ideológico e, não menos crucial, estar preparado para usar a violência contra as multidões. Politicamente pertinente, a observação de Xi é, por si só, todo um programa de reafirmação ideológica, de re-ideologização do PCC e da sociedade chinesa. Mas a observação é, em

termos históricos, um tanto enganadora, já que Gorbachev, ao contrário da maioria dos líderes comunistas europeus, tentou, particularmente após o Outono de 1990, montar o tigre e enquadrar as suas reformas dentro dos parâmetros traçados pela constituição federal. Foi justamente a intenção de Gorbachev de assinar um novo Tratado da União que despoleta o putsch de agosto de 1991, organizado pela linha-dura do PCUS. Importa, também, salientar que Gorbachev recorre à violência em várias ocasiões: na Geórgia em 1989, no Azerbaijão em 1990, e na Lituânia em 1991. Não autorizou, é certo, o uso da força para dispersar os manifestantes reunidos nas ruas de Moscovo em 1990 e no início de 1991, hesitação que permitia aos setores mais radicais, como Boris Ieltsin, entrarem em rutura com o PCUS. Mas a relutância de Gorbachev em recorrer à força era, como ficaria demonstrado no Verão de 1991, indissociável do problema da lealdade das forças armadas soviéticas. Recorrer à violência pressupunha, muito simplesmente, que os militares e as forças de segurança defenderiam o regime soviético. Ora, a prudência de Gorbachev revela-se presciente quando Boris Ieltsin mobiliza setores da polícia e das forças armadas para contrariarem os golpistas de agosto de 1991, denunciando assim as profundas divisões existentes nas fileiras militares. Contrariamente ao Exército de Libertação Popular, que são as forças armadas do PCC e que existem para defender o PCC, as forças armadas soviéticas obedeciam em larga medida ao modelo tradicional das instituições militares: a sua missão era defender o estado e o não regime. Para o PCC, a implicação era clara: manter o ELP firmemente sob a alçada da direção política do partido, uma convicção que se reforça quando o general Xu Qinxian se recusa a dar o seu consentimento ao uso da força em Tiananmen por considerar tratar-se de um problema político que deveria ser resolvido através da negociação238.

Seja como for, o momento-chave do processo reformista soviético ocorre no Outono de 1990, com a aprovação das reformas contempladas pelo Plano de 500 Dias, da autoria de Stanislav Shatalin239. Mikhail Gorbachev deixa de apoiar o controverso e ultraliberal Plano quando as tensões entre conservadores e reformadores dentro do PCUS se tornam impossíveis de conciliar. Contudo, a deserção dos conservadores da coligação gorbacheviana em protesto contra o projeto de Shatalin marca o momento de viragem porque isola irremediavelmente o líder soviético. O fracassado golpe de agosto de 1991 apenas evidencia o fosso entre a linha-dura golpista e os radicais reunidos em torno de Boris Ieltsin nas ruas de Moscovo. Ocupando o centrismo que visa manter o equilíbrio entre as fações, Gorbachev acaba por perder a sua capacidade de manobra quando o centro político se desfaz perante a crescente polarização dos campos em confronto. Gorbachev simplesmente fica sem chão político. A partir do momento em que a manobra golpista liquida a linha-dura, o PCUS é dissolvido e assiste-se à inexorável queda política de Gorbachev. O destino do partido soviético gera duas lições: a necessidade da vigilância ideológica e a necessidade de equilibrar as sensibilidades no seio do partido de forma a evitar a polarização de posições. Nada disto seria possível na ausência de uma cúpula férrea. Era precisamente este caminho trilhado pelos partidos comunistas europeus, culminando na perda do seu monopólio do poder, que a liderança chinesa decide evitar. Como poderia, então, o PCC escudar a esfera política das dinâmicas sociais altamente desestabilizadoras produzidas pela modernização? Cientes das tremendas repercussões geradas pelo reformismo soviético e do leste europeu, outros partidos comunistas enfrentavam o mesmo dilema. Reformar sem provocar o colapso do regime era o puzzle por resolver em Beijing, mas também em Havana, Hanói, Vienciana e Pyongyang. Quase dois séculos antes, Alexis de

Tocqueville, refletindo sobre a Revolução Francesa, identifica o seguinte paradoxo: “geralmente, o momento mais arriscado para um mau governo é aquele em que tenta emendar o caminho”, porque “nem sempre as revoluções eclodem quando as coisas correm de mal a pior”240. Em 1968, Samuel Huntington abordou o mesmo dilema no seu Political Order in Changing Societies241. Embora não tenha sido o primeiro politólogo a analisar a ordem política e a sua relação com a modernização, argumentava que a mudança, por si só, não gera instabilidade. É o ritmo dessa mudança, e as respostas institucionais desenvolvidas para responder à mobilização produzida pelas novas forças sociais, que faz a diferença. Dito de outra forma, a “decadência” política ocorre quando, durante um período longo, a mobilização social ultrapassa a adaptação institucional. Em contraste, quando as instituições dispõem de tempo suficiente para absorver as novas reivindicações da sociedade, o colapso do regime pode ser evitado porque as instituições dispõem de tempo para se reformarem e, assim, passarem a dar resposta às pressões da sociedade. Antes dos eventos que varreram os partidos comunistas europeus do poder no annus mirabilis de 1989, estas mesmas questões eram motivo de preocupação para a cúpula do PCC. Deng Xiaoping adianta uma resposta: tenta conter a mobilização popular por via do forte desempenho económico, ao mesmo tempo que procura assegurar a adaptação institucional e o robustecimento das capacidades do estado através das reformas ao aparelho burocráticoadministrativo242. Sob as lideranças de Jiang Zemin e Hu Jintao, o PCC dá continuidade à abordagem dengista. Aumenta consideravelmente o número de membros, abrindo as fileiras do partido a novos setores e grupos sociais que, esperava-se, passariam a articular os novos interesses sociais dentro das estruturas partidárias. Em certo sentido, a “política dos grupos de interesse” corporativista passa a ser articulada nas fileiras do PCC e

não nas ruas ou através da competição eleitoral, as duas formas mais comuns de participar politicamente em sociedades liberais243. Mais recentemente, na “era Xi Jinping”, o partido recorre ao controlo social por meio da vigilância em massa e do sistema de “crédito social”, enquanto reduz significativamente o pluralismo no interior do PCC244.   A revanche dos duros   A desintegração do comunismo na Europa de Leste e na União Soviética e, não menos crítico, os tremendos custos produzidos pelas lutas de fação no interior do PCC em décadas anteriores convergem para solidificar a ampla rejeição da “reforma política”. A morte de Hu Yaobang – em 15 de abril de 1989, uma semana após ter sofrido um ataque cardíaco durante uma reunião do Politburo – desencadeia as manifestações de Tiananmen. Quando a notícia do falecimento se torna pública, os estudantes de Beijing marcam uma homenagem a Hu para 17 de abril, que leva 4,000 pessoas a afluir à Praça Tiananmen. No dia seguinte, um grupo de mil estudantes recusa abandonar o local a menos que o Congresso Nacional do Povo receba a sua petição reclamando, inter alia, o aumento de recursos financeiros para estudantes e instrutores e o reforço de verbas para iniciativas educacionais. E mais importante, porque não eram exigências limitadas ao quotidiano estudantil, pedem a reavaliação do papel de Hu Yaobang nos acontecimentos que lhe valeram a ostracização partidária, a publicação dos salários dos principais funcionários do partido e do estado (e dos seus filhos), e garantias quanto à liberdade de imprensa e à liberdade de expressão. No dia em que se realiza o funeral de Hu, a 22

de abril, as autoridades voltam a tentar impedir a congregação dos contestatários na Praça Tiananmen. As diligências para dispersar os manifestantes revelam-se infrutíferas e milhares invadiram a praça. Nas ruas circundantes, mais de um milhão de pessoas testemunham as cerimónias fúnebres. Dois dias depois, numa clara escalada da crise, os estudantes iniciam o boicote às aulas. Protestos no período pós-Mao não eram inéditos, pois manifestações populares também ocorreram em 1976, 1978 e 1986. No entanto, em 1989, os contestatários acreditam ter em Zhao Ziyang, Secretário-Geral do PCC, um aliado sincronizado com a sua agenda reformista, um líder disposto a dialogar e transmitir as suas reinvidicações à cúpula do partido245. Todavia, em finais de abril, era claramente visível a exasperação da liderança com a contestação. Espelhando as opiniões do Primeiro-Ministro Li Peng e da ala dura do PCC (e, muito provavelmente, as de Deng Xiaoping), um editorial do Diário do Povo classifica o movimento como uma “conspiração planeada”, insinuando um conluio entre os estudantes e interesses estrangeiros que incentivam e sustentam os protestos246. Enquanto as autoridades aguardavam a chegada de Mikhail Gorbachev, os estudantes recusam acatar a ordem de desmobilização e transformam Tiananmen numa “cidade tenda” albergando dezenas de milhares de pessoas. Pouco depois, seguem-se as greves de fome e o cancelamento das cerimónias oficiais de boas-vindas a Gorbachev. Em resultado deste sucesso, os estudantes intensificaram a luta, mas, ao pedirem as demissões de Li Peng e de Deng Xiaoping, dão-lhe um carácter político que o regime não pode tolerar. É neste quadro que Li Peng aceita, finalmente, reunir com os líderes da greve de fome. Todavia, atendendo às diferenças temperamentais e geracionais, o abismo que separa as partes mantém-se intransponível247. Nos dias 17 e 18 de maio, um milhão de pessoas congrega-se em Tiananmen e nas ruas circundantes. Pouco antes do

amanhecer do dia 19 de maio, Zhao Ziyang visita os grevistas numa derradeira tentativa para os convencer a terminar os protestos. Perante o fracasso do encontro, Zhao abandona a praça em lágrimas. Li Peng, que acompanha Zhao, conversa, brevemente, com os manifestantes. Previsivelmente, não faz nenhum pedido e nada promete. Às primeiras horas do dia seguinte, Li Peng e o Presidente da RPC, Yang Shangkun, colocam o país sob lei marcial. No discurso televisivo anunciando a decisão, o Primeiro-Ministro afirma que os manifestantes pretendem “subverter organizacionalmente a liderança do PCC, derrubar o governo do povo eleito pelo Congresso Popular de acordo com a lei e negar totalmente a ditadura democrática do povo. Eles causam problemas em todo o lado, estabelecem laços secretos, instigam a criação de todos os tipos de organizações ilegais e forçam o partido, o povo e o governo a reconhecê-los”248. As duras palavras de Li Peng indiciam que a cúpula do PCC se prepara para quebrar o impasse e tomar medidas extremas. Nas primeiras horas de 4 de junho, as tropas isolam a Praça Tiananmen e ordenam a sua evacuação. À medida que os estudantes dispersam, os soldados desmontam as tendas e começam a demolir a “Estátua da Liberdade” que se tornara num símbolo mundialmente conhecido das aspirações estudantis. Logo depois, inicia-se a matança. Enquanto lutava para encontrar a melhor forma de conter a contestação, a liderança do PCC divide-se249. Recordando episódios passados, incluindo a generalizada e destrutiva luta de fações da Revolução Cultural, a unidade do PCC desfazia-se à medida que a contestação social se intensificava. Chegado a esta perigosíssima encruzilhada, Deng e aos seus aliados no Politburo optam por uma estratégia de sobrevivência assente no aprofundamento da repressão. O movimento de protesto não se restringia à capital; ações semelhantes foram organizadas em mais de

uma centena de cidades. A contestação era perigosa para o regime justamente porque não se limitava a estudantes; setores da classe trabalhadora urbana e, mais preocupante para as autoridades, militares fardados saíram às ruas para expressar o seu descontentamento. Uma vez que o custo de vida nas cidades ultrapassara os salários, os protestos sinalizam a insatisfação das classes populares com a gestão económica do partido. E precisamente porque os protestos não estavam confinados a um punhado de agitadores estudantis reunidos na Praça Tiananmen, o Politburo decidiu recorrer à supressão violenta do movimento democrático. Para impedir o tipo de momento revolucionário que minaria os regimes marxistas-leninistas da Europa Oriental e da União Soviética, o PCC aceita empregar níveis de violência que os partidos comunistas europeus recusaram contemplar. Tiananmen representa, para todos os efeitos, o traçar de uma linha vermelha por parte do Partido Comunista Chinês a delimitar as fronteiras do reformismo aceitável. Denúncias de corrupção, pedidos de reforma económica e burocrática-administrativa eram consentidos desde que não se transformassem num desafio aberto à autoridade política do partido. Mas o massacre de Tiananmen deixou claro que qualquer movimento que pretendesse pôr fim ao monopólio do poder do PCC enfrentaria repressão implacável. Hoje, trinta anos depois, os custos da dissidência continuam a ser extraordinários, como ilustra o caso de Liu Xiaobo, ativista dos direitos humanos e vencedor do Prémio Nobel da Paz de 2010250. Para além dos casos individuais, a intensificação da repressão coletiva no Tibete e em Xinjiang gerou um “novo normal” facilitado por tecnologias de vigilância em massa, pelos chamados “campos de reeducação” e pela colonização interna dessas províncias pelos Han. Duas semanas após o massacre de Tiananmen, entre os dias 19 e 21 de junho, o Politburo alargado reúne com o propósito de ratificar a decisão de Deng Xiaoping de

recorrer às forças armadas para suprimir os protestos. Anciãos influentes, referências históricas do partido como Bo Yibo, Chen Yun e Peng Zhen, foram convocados para sinalizar a unidade do partido e o seu apoio a Deng Xiaoping. A demonstração pública de lealdade era, também, uma forma de comprometer a liderança (e os líderes históricos aposentados) com o uso da força. Dois documentos balizaram a discussão: o discurso de Deng de 9 de junho perante os soldados do Exército de Libertação Popular que participaram no esmagamento das manifestações e, segundo, o relatório de Li Peng extremamente crítico do comportamento de Zhao Ziyang durante toda a crise251. A reunião do Politburo alargado caracteriza as manifestações como um “distúrbio” que se transformou num “motim contrarrevolucionário”252. Embora sugerisse que os manifestantes eram “mal orientados, mas não hostis ao regime”, a cúpula também avisa que foram incitados por “ideias de liberalização burguesa” e forças estrangeiras que “planeavam” derrubar o partido e o regime253. Hu e Zhao, as antigas “mãos esquerda e direita” de Deng caídos em desgraça, foram culpabilizados pelo “motim contrarrevolucionário”. Alguns anciões alegam que a parca vigilância ideológica que possibilitou os acontecimentos começara durante o consulado de Hu Yaobang, acrescentando que Zhao Ziyang, por sua vez, se revelara incapaz de inverter o desvio. Ao defender uma abordagem conciliatória, e ao opor-se à decisão de usar a força, permitiu que os eventos extravasassem os limites aceitáveis do protesto. Apesar da veemência das críticas, Zhao, na verdade, jamais defendera a concorrência política multipartidária ou a democracia liberal: meramente advogara uma maior flexibilização do regime de forma a refrescar a legitimidade do PCC: propôs maior liberdade de imprensa e o diálogo com os manifestantes para assegurar a descompressão geral. Zhao era, sem dúvida, um

reformador. Mas nunca fora um revolucionário pedindo o desmantelamento do sistema. Permaneceu leal ao partido e, ao contrário de Boris Ieltsin, não escalou um tanque em solidariedade com os manifestantes. Dir-se-á que o seu mais relevante desafio ao regime ocorreu antes da sua morte, em 2005. Confinado em prisão domiciliar, fez chegar ao Ocidente um manuscrito das suas memórias254. Alguns dias depois do encontro do Politburo, o partido reúne o Quinto Plenário do XIII Comité Central, ao qual se juntam, de novo, os notáveis do partido255. Neste encontro, Jiang Zemin, entretanto nomeado para suceder a Zhao como Secretário-Geral, solicita os conselhos da “velha geração de revolucionários” e desdobra-se em promessas para unificar o partido. Alega que Deng nunca procurou minar a disciplina ideológica do PCC. Recorda que “de 1979 a 1989, o camarada Xiaoping insistiu repetidamente na necessidade de expandir a educação e na luta para apoiar firmemente os Quatro Princípios Cardinais e opôs-se à liberalização burguesa”; mas acrescenta que “essas importantes visões do camarada Deng Xiaoping não foram completamente implementadas”256. Se os colaboradores próximos de Deng eram sacrificados para apaziguar a linhadura, o “líder supremo” era poupado porque os conservadores não reuniam condições para o destronar. Não obstante, Deng é impelido a ceder considerável terreno político aos seus adversários; afinal, os protestos eram o resultado das dinâmicas geradas pela sua política de “reforma e abertura”. Jiang Zemin conclui com uma exortação ao partido para dedicar maior atenção à defesa da ortodoxia ideológica, uma reversão da abertura ideológica dos anos anteriores que desaguara em Tiananmen257. A liderança do partido tirou, pois, uma ilação vital da crise de Tiananmen: a indispensabilidade de manter a ortodoxia ideológica e de recorrer à repressão em caso de necessidade última. A maioria dos quadros superiores

partilhava da visão de que o Partido Comunista Chinês estava cercado por inimigos estrangeiros aliados a grupos domésticos sob a influência de ideias importadas do Ocidente burguês. Perante a investida dos inimigos internos e externos, as divisões manifestas do seio do partido constituíam um claríssimo perigo para o monopólio do poder do PCC e, como corolário, para a sobrevivência da própria República Popular da China. Previsivelmente, a maioria dos quadros concluiu que, nessas condições, a reforma económica teria de ser subordinada às exigências políticas. Por isso, o PCC procura reforçar a sua hegemonia ideológica na sociedade através da recuperação da tradição e do nacionalismo. Através do reforço da disciplina ideológica e do controlo social, procura-se regressar à diretriz maoista da “política no comando”. Nos três anos seguintes, os conservadores mantêm a sua ofensiva, até que, em 1992, Deng lança a sua “viagem a sul”. Com 88 anos de idade, e firmemente apoiado pela hierarquia militar, desloca-se às Zonas Económicas Exclusivas a fim de relançar a reforma e substituir a “política no comando” pela “economia no comando”. Alerta Jiang Zemin e a linha-dura do PCC que “quem é contra a reforma deve deixar o cargo”258. Deng Xiaoping dispõe de autoridade suficiente para obrigar Jiang e a cúpula dirigente a retomar a liberalização económica, mas a questão da liberalização política estava definitivamente encerrada. Uma vez que as fronteiras aceitáveis de dissidência foram inequivocamente delineadas pelo PCC, e tendo demonstrado as terríveis consequências inerentes à ultrapassagem dessas mesmas fronteiras, o partido procura minimizar as fontes de descontentamento social e político. A sobrevivência e a persistência do regime exigem que o PCC absorva as mudanças e que evite a politização da sociedade. Em suma, o reformismo arquitetado por Gorbachev, que leva a luta política para o exterior das

muralhas do partido, passa a simbolizar tudo o que deve ser evitado pelos comunistas chineses. Talvez por esse motivo, com o passar do tempo, a opinião do PCC em relação ao líder soviético endurece. Por exemplo, em setembro de 2004, Hu Jintao denuncia Gorbachev como “um traidor ao socialismo e o principal culpado da transformação da Europa Oriental”, acrescentando que “por causa do pluralismo e da abertura que defendia, Gorbachev causou confusão entre o Partido Comunista Soviético e o povo da União Soviética. O Partido e a União desmoronaram sob o impacto da ‘ocidentalização’ e do ‘liberalismo burguês’ que ele implementou”259. O rigor histórico da leitura feita por Hu era altamente discutível, mas não deixava de exprimir as amplas ilações políticas apreendidas pela liderança do PCC antes e depois da Primavera de Beijing. Visto a partir do prisma do Partido Comunista Chinês, a dissolução da União Soviética, após a suspensão e subsequente ilegalização do PCUS nos dias e semanas que se seguiram à manobra golpista de agosto de 1991, demonstrara, de modo conclusivo, que a construção socialista, conforme definida pelo PCUS, fracassara. Longamente denunciado pelos “grandes irmãos” soviéticos, o caminho para o socialismo traçado pelo PCC emerge como o único vencedor da disputa histórica entre as duas organizações marxistas-leninistas. O fracasso do partido de Lenine em construir o socialismo na pátria da Revolução de Outubro constitui uma espécie de validação post facto de décadas de denúncias feitas pelo PCC quanto ao “capitulacionismo” e “revisionismo” soviéticos. A liquidação do PCUS põe fim à tutela de Moscovo sobre o movimento internacional comunista. Daí que a solidariedade concedida à URSS pelos “partidos fraternos” fosse, na maioria dos casos, diretamente transferida para o Partido Comunista Chinês. Considerando que, durante décadas, as elites chinesas insistiram em que o revisionismo soviético levaria à degradação e ao colapso final do socialismo, a resiliência

do comunismo chinês ia muito para além da mera desforra ideológica. Criticamente, a desintegração da União Soviética dissipou as preocupações de Beijing em relação às fronteiras militarizadas do norte e do oeste. É certo que as forças centrífugas que ameaçavam desfazer a integridade territorial do estado russo e as incertezas em torno do seu arsenal nuclear continuavam a apresentar desafios à segurança chinesa. Não obstante estas apreensões, a implosão da União Soviética ocorre no exato momento em que a República Popular se abre ao mundo e olha para além das suas fronteiras. À medida que o comércio externo e o acesso à energia necessária para sustentar o crescimento económico do país se tornam determinantes do interesse nacional, o eixo principal da segurança muda para as vastas zonas costeiras. Fronteiras seguras a norte e a oeste permitiam que Beijing mudasse o foco de segurança para o litoral do país, destacando recursos para reforçar o seu poderio naval. Uma consequência estratégica duradoura da “reforma e abertura” dengista, esta viragem para o mar está hoje na origem de vários focos de conflitualidade regional.

164. Cf., Adam Taylor, “How a 10-gallon hat helped heal relations beween China and America”, The Washington Post, 25 de setembro de 2015, disponível em: https://www.washingtonpost.com/news/worldviews/wp/2015/09/25/how-a-10gallon-hat-helped-heal-relations-between-china-and-america/. 165. Alguns dos trabalhos mais relevantes sobre o período que se seguiu à morte de Mao incluem, inter alia, Immanuel C. Y. Hsü. China Without Mao: The Search for a New Order (2nd ed.). Oxford: Oxford University Press, 1990; Lowell Dittmer. China under Reform. Boulder: Westview Press, 1994; Richard Baum. Burying Mao: Chinese Politics in the Age of Deng Xiaoping. Princeton: Princeton University Press, 1994 e Frederick C. Teiwes e Warren Sun. The End of the Maoist Era: Chinese Politics During the Twilight of the Cultural Revolution, 1972-1976. Nova Iorque: Routledge, 2007. 166. Várias biografias de Deng Xiaoping foram publicadas, entre as quais se destacam: Richard Evans. Deng Xiaoping and the Making of Modern China. Nova Iorque: Viking, 1993; Ezra F. Vogel. Deng Xiaoping and the Transformation of China. Cambridge: Harvard University Press, 2011; Alexander V. Pantsov and Steven I. Levine. Deng Xiaoping: A Revolutionary Life. Oxford: Oxford University Press, 2015 e Michael Dillon. Deng Xiaoping: The Man Who Made Modern China. Londres: I.B Tauris, 2015. 167. Várias datas da adesão de Deng ao PCC são avançadas. Ezra Vogel, na sua monumental biografia, escreve: “Deng foi trazido para o Comité Executivo da Liga da Juventude Comunista Chinesa na Europa. Na sua reunião de julho de 1924, de acordo com uma decisão do Partido Comunista Chinês, todos os membros desse Comité Executivo, incluindo Deng, tornaram-se automaticamente membros do Partido Comunista Chinês. Na época, todo o Partido Comunista Chinês, na China e na França, tinha menos de mil membros e Deng não tinha ainda vinte anos”. Deng, assim como Zhou Enlai e vários outros estudantes, posteriormente comunistas proeminentes, estudaram em França nessa época. Cf., Ezra F. Vogel, Deng Xiaoping and the Transformation of China, p. 22. 168. Provocado pela morte de Zhou Enlai, o Primeiro Incidente de Tiananmen ocorreu a 5 de abril de 1976, durante o Festival Qingming, o dia tradicional de luto chinês. Protestos ocorridos na Praça Tiananmen foram caracterizados pelo Grupo dos Quatro como encontros “contra-revolucionários” e suprimidos. Deng foi acusado de ser o mentor do incidente e, consequentemente, colocado em prisão domiciliária. Cf., Alexander V. Pantsov and Steven I. Levine. Deng Xiaoping, pp. 296-300. 169. Cf., Lucian W. Pye, “An Introductory Profile: Deng Xiaoping and China’s Political Culture”, The China Quarterly, Vol. 135, setembro de 1993, pp. 412-443 e Steven W. Mosher. Bully of Asia: Why China’s Dream is the New Threat to World Order. Washington DC: Regnery Publishing, 2017, p. 116. 170. O nome completo da campanha era “Criticar Deng e Combater a Tentativa dos Devisionistas de Direita de Reverter Vereditos”. Cf., Kwok-sing Li. A Glossary of Political Terms of the People’s Republic of China. Hong Kong: The Chinese University Press, 1995, pp. 310-313. Cf. também, Richard Baum, Burying Mao, pp. 40-41 e Frederick C. Teiwes e Warren Sun. The End of the Maoist Era, pp.

456-461. 171. Cf., Ezra F. Vogel, Deng Xiaoping and the Transformation of China, p. 170. Também, Dorothy Grouse Fontana. “Background to the Fall of Hua Guofeng”, Asian Survey, Vol. 22, No. 3, março de 1982, pp. 237-60. 172. Cf., Ezra F. Vogel, Deng Xiaoping and the Transformation of China, p. 170. 173. Para detalhes biográficos de Hua Guofeng, ver, Ting Wang. Chairman Hua: Leader of the Chinese Communists. Londres: C. Hurst and Company, 1980 e Robert Weatherley. Mao’s Forgotten Successor: The Political Career of Hua Guofeng. Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2010. 174. Cf., Immanuel C. Y. Hsü, China Without Mao, 16-19 e, também, Frederick C. Teiwes e Warren Sun. The End of the Maoist Era, pp. 536-594. 175. Cf., Alan P. L. Liu, “The ‘Gang of Four’ and the Chinese People’s Liberation Army”, Asian Survey, Vol. 19, No. 9, setembro de 1979, pp. 817-837. 176. Sobre a Revolução Cultural em Xangai, cf., Elizabeth J. Perry e Li Xun. Proletarian Power: Shanghai in the Cultural Revolution. Boulder: Westview Press, 1997. 177. A afirmação fora feita por Hua em outubro de 1976 e publicada a 7 de fevereiro de 1977 no Diário do Povo, na Bandeira Vermelha e no Diário do ELP. Cf., Kwok-sing Li, A Glossary of Political Terms of the People’s Republic of China, pp. 235-237. 178. Cf., Deng Xiaoping, “The ‘Two-Whatever Policy Does Not Accord With Marxism”, Peking Review, 24 de maio de 1977, disponível em: http://www.bjreview.com.cn/nation/txt/2009-05/26/content_197547.htm. e Alexander V. Pantsov, Deng Xiaoping, 325-328. 179. Ver, Ezra F. Vogel, Deng Xiaoping and the Transformation of China, P. 211. 180. Ibid., p. 195. 181. Cf., Merle Goldman and Roderick MacFarquhar, “Dynamic Economy, Declining Party-State”, In Merle Goldman and Roderick MacFarquhar (Eds.). The Paradox of China’s Post-Mao Reforms. Cambridge: Harvard University Press, 1999, pp. 4-5. 182. Cf., Ezra F. Vogel, Deng Xiaoping and the Transformation of China, p. 241. 183. Chiang Kai-shek fora sucedido, em 1975, por seu filho, Chiang Ching-kuo, hoje reconhecido como o arquiteto do “milagre económico” taiwanês de 1978/88. Antes da sua morte, em janeiro de 1988, Chiang Ching-kuo pôs termo a 38 anos de lei marcial imposta por seu pai. Este primeiro passo no sentido da reforma política foi seguido por uma extensão gradual das liberdades cívicas e políticas. A política democrática chegou à Formosa em 1996, com a realização de eleições presidenciais livres. O processo de transição da Coreia do Sul foi igualmente estendido no tempo. Escolhido como candidato do regime militar autoritário, Roh Tae-woo, confrontado com protestos em massa, prometeu, num discurso de 29 de junho de 1987, apoiar a elaboração de uma nova constituição garantindo eleições presidenciais diretas. Quando a votação foi realizada, em dezembro de 1987, Roh saiu vitorioso sobre uma oposição fragmentada. Inaugurado em fevereiro de 1988, o governo Roh desmontou as estruturas autoritárias do país e expandiu as liberdades cívicas e políticas. Em 1992, quando o mandato de Roh Tae-woo chega ao fim, Kim Young-sam era eleito presidente. Da vasta literatura sobre estas transições, cf., inter alia, Yangsun Chou e Andrew J. Nathan, “Democratizing Transition in Taiwan”, Asian Survey,

Vol. 27, No. 3, março de 1987, pp. 277-a299; Tun-jen Cheng, “Democratizing a Quasi-Leninist Regime in Taiwan,’ World Politics, Vol. 41, No. 4, julho de 1989, pp. 471-499; Masahiro Wakabayashi, “Democratization of the Taiwanese and Korean Political Regimes: A Comparative Study”, The Developing Economies, Vol. 35, No. 4, dezembro de 1997, pp. 422-439; Shelley Rigger. Politics in Taiwan: Voting for Democracy. Londres: Routledge, 1999; Larry Diamond e Byung-Kook Kim (eds.). Consolidating Democracy in South Korea. Boulder: Lynne Rienner, 2000 e Hahm Chaibong, “South Korea’s Miraculous Democracy”, Journal of Democracy, Vol. 19, No. 3, julho de 2008, pp. 128-142. 184. Sobre Park Chung Hee, cf., Byung-Kook Kim and Ezra F. Vogel (eds.). The Park Chung Hee Era: The Transformation of South Korea. Cambridge: Harvard University Press, 2011. Sobre os antecedentes da “era Park”, cf., Carter J. Eckert. Park Chung Hee and Modern Korea: The Roots of Militarism, 1866-1945. Cambridge: Harvard University Press, 2016. Sobre Suharto e a Nova Ordem, cf., Harold Crouch. Army and Politics in Indonesia. Ithaca: Cornell University Press, 1978 e Robert E. Elson. Suharto: A Political Biography. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. Sobre o custo humano dos anos Suharto, cf., Geoffrey B. Robinson. The Killing Season: A History of the Indonesian Massacres, 1965-66. Princeton: Princeton University Press, 2019. Dir-se-á que o caso do Chile pode também ser incluido neste grupo. Para duas perspectivas opostas sobre o Chile de Pinochet, cf., Carlos Huneeus. The Pinochet Regime, Boulder: Lynne Rienner, 2007 e Marcus Taylor. From Pinochet to the ‘Third Way’: Neoliberalism and Social Transformation in Chile. Londres: Pluto Press, 2006. 185 . Cf., Alan P. L. Liu, “The “Gang of Four” and the Chinese People’s Liberation Army”, Asian Survey, Vol. 19, No. 9, setembro de 1979, pp. 817-837 e Richard D. Nethercut, “Deng and the Gun: Party-Military Relations in the People’s Republic of China”, Asian Survey, Vol. 22, No. 8, agosto de 1982, pp. 691-704. Mao, num discurso de 1938, declarava que: “Todos os comunistas devem entender a verdade. ‘o poder político cresce a partir do cano de uma arma’. O nosso princípio é que o Partido comanda a arma, e a arma nunca deve comandar o Partido. No entanto, tendo armas, podemos criar organizações do Partido”. Cf., Mao Tse-tung. “Problems of War and Strategy”, Selected Works of Mao Tse-tung, Vol. 2, pp. 224-225. 186 . Sobre as relações entre a China e os Khmers Vermelhos, cf., Pao-min Chang, “Beijing versus Hanoi: the diplomacy over Kampuchea” Asian Survey, Vol. 23, No. 5, May 1983, pp. 598-618; Andrew Mertha. Brothers in Arms: Chinese Aid to the Khmer Rouge, 1975-1979. Ithaca Cornell University Press, 2014 e Wang Chenyi, “The Chinese Communist Party’s Relationship with the Khmer Rouge in the 1970s: An Ideological Victory and a Strategic Failure. Cold War International History Project (CWIHP) Working Paper #88, dezembro de 2018, disponível em: https://www.wilsoncenter.org/publication/the-chinesecommunist-partys-relationship-the-khmer-rouge-the-1970s-ideological-victory. Sobre os anos de poder de Pol Pot, cf., inter alia, Ben Kiernan. The Pol Pot Regime: Race, Power, and Genocide in Cambodia under the Khmer Rouge, 197579. New Haven: Yale University Press, 2008. Philip Short escreveu uma excelente biografia de Pol Pot. Ver, Philip Short. Pol Pot: Anatomy of a Nightmare. Nova Iorque: Henry Holt & Company, 2004. 187 . Cf., Tan Zongji, “The Third Plenum of the Eleventh Central Committee Is a

Major Turning Point in the History of the Party Since the Founding of the People’s Republic of China”, Chinese Law and Government, Vol. 28, No. 3, 1995, pp. 5-87; Richard Baum, Burying Mao, pp. 63-65 e Alexander V. Pantsov, Deng Xiaoping, pp. 341-343. 188 . Durante a “viagem ao sul” de 1992, Deng continuou a enfatizar a necessidade absoluta de ultrapassar os estados vizinhos. O líder supremo insistiu que “Guangdong está a tentar alcançar os ‘quatro pequenos dragões’ da Ásia em 20 anos, não apenas em termos de crescimento económico, mas também em termos da melhoria da ordem pública e da conduta social geral – ou seja, devemos superá-los em progresso material e ético. Só isso pode ser considerado construir um socialismo com características chinesas”. Cf., Deng Xiaoping, “Excepts from talks given in Wuchang, Shenzhen, Zhuhai and Shanghai”, January 18 – February 21, 1992, consulado em: https://cpcchina.chinadaily.com.cn/2010-10/26/content_13918381.htm. 189 . As “Quatro Modernizações” foram primeiro definidas por Zhou Enlai em 23 de setembro de 1954, durante o Primeiro Congresso Nacional do Povo. Cf., Kowksing Li, A Glossary of Political Terms of the People’s Republic of China, pp. 422423 e Immanuel C. Y. Hsü, The Rise of Modern China, pp. 833-835. 190 . Cf., Deng Xiaoping, “Excepts from talks given in Wuchang, Shenzhen, Zhuhai and Shanghai”, January 18 – February 21, 1992. 191 . Cf., Kowk-sing Li, A Glossary of Political Terms of the People’s Republic of China, pp. 438-439; Richard Baum, Burying Mao, pp. 79-81 e Alexander V. Pantsov, Deng Xiaoping, pp. 355-356. 192 . Cf., Deng Xiaoping, “Uphold the Four Cardinal Principles”, March 30, 1979, disponível em: https://cpcchina.chinadaily.com.cn/201010/15/content_13918193.htm 193 . Ibid. 194 . Ibid. 195 . Ver, “Communique of the Third Plenary Session of the 11th Central Committee of the Communist Party of China – Adopted on December 22, 1978, Peking Review, Vol. 21, No. 52, 29 de dezembro de 1978, p. 11. 196 . Cf., Fox Butterfield, “Mao and Deng: Competition for History’s Judgment”, The New York Times, 15 de November de 1987, disponível em: https://www.nytimes.com/1987/11/15/weekinreview/the-world-mao-and-dengcompetition-for-history-s-judgment.html. 197 . Cf., Susan L. Shirk, The Political Logic of Economic Reform in China. Berkeley: University of California Press, 1993, pp. 38-44. 198 . Cf., Clyde D. Stoltenberg, “China’s Special Economic Zones: Their Development and Prospects”, Asian Survey, Vol. 24, No. 6, junho de 1984, pp. 637–654. 199 . Cf., Immanuel C. Y. Hsü, China Without Mao, p. 168. 200 . Ver, June Teufel Dreyer, “Deng Xiaoping: The Soldier”, The China Quarterly, No. 135, setembro de 1993, pp. 536-550. 201 . Philip Short, na sua biografia de Mao Zedong, faz um julgamento contundente da responsabilidade do Presidente Mao na morte de Liu Shiaoqi: “O presidente não deu uma ordem direta para matar Liu, assim como não ordenou a morte de He Long ou Tao Zhu, ou de Peng Dehuai, que morreu vários anos depois num hospital prisional. Mas não moveu um dedo para evitá-las”. Ver,

Philip Short. Mao: A Life. Londres: Hodder and Stoughton, 1999, p. 585. 202 . Cf., Lowell Dittmer, “Patterns of Elite Strife and Succession in Chinese Politics”, The China Quarterly, No. 123, setembro de 1990, pp. 405-430. 203 . Cf., Michael Dillon, Deng Xiaoping, p. 258. 204 . Um documento crítico para se entender o papel de Hu é o seu Relatório ao XII Congresso do PCC, realizado em 1982, cf., Hu Yaobang, “Create a New Situation in all Fields of Socialist Modernization – Report to the 12th National Congress of the Communist Party of China, September 1, 1982, Beijing Review, Vol. 25, No. 37, 13 de Setembbro de 1982, pp. 11-40. 205 . Cf., Maurice Meisner. Mao’s China and After. A History of the People’s Republic, (3rd ed.). Nova Iorque: Free Press, 1999, pp. 484-485. 206 . Cf., John King Fairbank and Merle Goldman, China: A New History (Second Enlarged Edition), p. 410. 207 . Consultar o relatório na sua totalidade em, Zhao Ziyang, “Advance Along the Road of Socialism With Chinese Characteristics – Report Delivered at the 13th National Congress of the Communist Party of China on October 25, 1987”, Beijing Review, Vol. 30, No. 45, 9-15 de novembro de 1987, pp. i-xxvii. Ver, também, Lev P. Deliusin, “Reforms in China: Problems and Prospects”, Asian Survey, Vol. 28, No. 11, novembro de 1988, p. 1101-1106. 208 . Cf., Richard Baum, Burying Mao, 218-220. 209 . Cf., Zhao Ziyang, “Advance Along the Road of Socialism with Chinese Characteristics – Report Delivered at the 13th National Congress of the Communist Party of China on October 25, 1987”, p. iv. 210 . Ver, “Planning to Rule Only 30% of Economy”, Beijing Review, Vol. 30, No. 45, 9-15 de novembro de 1987, p.6. 211 . Ver, Richard Baum, Burying Mao, pp. 220-222. 212 . Cf., Zhao Ziyang, “Advance Along the Road of Socialism With Chinese Characteristics – Report Delivered at the 13th National Congress of the Communist Party of China on October 25, 1987”, p. xv. 213 . Sobre o problema da reforma administrative, cf., John P. Burns, “Reforming China’s Bureaucracy, 1979-82”, Asian Survey, Vol. 23, No. 6, junho de 1983, pp. 692-722. 214 . Cf., Zhao Ziyang, “Advance Along the Road of Socialism with Chinese Characteristics – Report Delivered at the 13th National Congress of the Communist Party of China on October 25, 1987”, p. vi. 215 . Ibido. 216 . Ver, Xing Li, “From ‘Politics in Command’ to ‘Economics in Command’: A Discourse Analysis of China’s Transformation”, Copenhagen Journal of Asian Studies, 18 August 2005, pp.65-87, disponível em: https://www.researchgate.net/publication/279680382_From_’Politics_in_Comman d’_to_’Economics_in_Command’_A_Discourse_Analysis_of_China’s_Transformatio n. Para mais detalhes sobre este assunto, ver, Stuart R. Schram, “Economics in Command? Ideology and Policy Since the Third Plenum, 1978-1984”, The China Quarterly, Vol. 99, setembro de 1984, pp. 417-461. 217 . A afirmação, feita em outubro de 1985, numa entrevista à revista Time, é reproduzida em: “There is no fundamental contradiction between socialism and a market economy”, China Daily, 21 de outubro de 2010, disponível em: http://www.chinadaily.com.cn/china/19thcpcnationalcongress/2010-

10/21/content_29714520.htm. 218 . Cf., Maurice Meisner, Mao’s China and After, pp. 483-484. 219 . Sobre a crise de Tiananmen, cf., inter alia, Lowell Dittmer, “The Tiananmen Massacre”, Problems of Communism, Vol. 38, No. 5, setembro/outubro de 1989, pp. 2-15; Andrew J. Nathan, “The Political Sociology of the Beijing Upheaval of 1989”, Problems of Communism, Vol. 38, No. 5, setembro/outubro de 1989, pp.16-29; Richard H. Yang (ed.). PLA and the Tiananmen Crisis. Kaohsiung: SCPS Papers, No. 1, outubro de 1989; Timothy Brook. Quelling the People: The Military Suppression of the Beijing Democracy Movement. Stanford: Stanford University Press, 1998; Andrew J. Nathan e Perry Link (eds.). The Tiananmen Papers. Londres: Little, Brown and Company, 2001; Louisa Lim. The People’s Republic of Amnesia: Tiananmen Revisited. Oxford Oxford University Press, 2001 e Philip Cunningham. Tiananmen Moon: Inside the Chinese Student Uprising of 1989. Landham: Rowman and Littlefield, 2009. 220 . Cf., François Bougon. Inside the Mind of Xi Jinping. Londres: C. Hurst and Co., 2018, p. 39. 221 . Cf., “China – What price reform?”, The Economist, 23 de setembro de 2004, consultado em: https://www.economist.com/asia/2004/09/23/what-pricereform. 222 . Cf., John Simpson, “New leader Xi Jinping opens door to reform in China”, The Guardian, 10 de agosto de 2013, disponível em: https://www.theguardian.com/world/2013/aug/10/china-xi-jinping-opens-doorreform. 223 . Ibid. 224 . Cf., Edgar Snow. Red Star over China: The Classic Account of the Birth of Chinese Communism (Revised Edition). Nova Iorque: Grove Press, 1968. 225 . Juan Linz definiu regimes autoritários como “sistemas políticos de pluralismo político limitado, não responsável, sem ideologia elaborada e orientadora, mas com mentalidades distintas, sem mobilização política extensa nem intensa, exceto em alguns pontos do seu desenvolvimento, e nos quais um líder ou, ocasionalmente, um pequeno grupo exerce poder dentro de limites formalmente mal definidos, mas na verdade bastante previsíveis”. Cf., Juan J. Linz, “An Authoritarian Regime: The Case of Spain”, in Erik Allardt and Stein Rokkan (eds.). Mass Politics: Studies in Political Sociology. Nova Iorque: Free Press, 1970, p. 255. 226 . Sobre o totalitarismo, cf., inter alia, Hannah Arendt. The Origins of Totalitarianism. Nova Iorque: Harcourt Brace, 1968; Carl J. Friedrich and Zbigniew K. Brzezinski. Totalitarian Dictatorship and Autocracy (2nd rev. ed.). Cambridge: Harvard University Press, 1965; Abbot Gleason. Totalitarianism: The Inner History of the Cold War. Nova Iorque: Oxford University Press, 1995 e Leonard Schapiro. Totalitarianism. Nova Iorque: Praeger, 1972. Para uma discussão interessante, cf., Matt Killingsworth. Civil Society in Communist Eastern Europe: Opposition and Dissent in Totalitarian Regimes. Colchester: ECPR Press, 2012. Um estudo estimulante que argumenta que o modelo totalitário pode ser aplicável à China pós-Mao, cf., Sujian Guo. Post-Mao China: From Totalitarianism to Authoritarianism. Westport: Praeger, 2000. 227 . Alguns dos melhores trabalhos “revisionistas” sobre as reformas de Gorbachev incluem: Stephen F. Cohen. Rethinking the Soviet Experience: Politics

and History Since 1917. Oxford: Oxford University Press, 1985; Timothy J. Colton. The Dilemma of Reform in the Soviet Union. Nova Iorque: Council on Foreign Relations, 1986 e Jerry F. Hough. Russia and the West: Gorbachev and the Politics of Reform. Nova Iorque: Simon and Schuster, 1988. 228 . Cf., por exemplo, Martin Malia, “From Under the Rubble, What?”, Problems of Communism, Vol. 41, No. 2, janeiro-abril de 1992, pp. 89-95 e Peter Rutland, “Sovietology: Notes for a Post-Mortem”, The National Interest, No. 31, Primavera de 1993, pp. 109-122. Para uma perspetiva oposta, cf., George Breslauer, “In Defense of Sovietology”, Post-Soviet Affairs, Vol. 8, No. 3, 1992, pp. 197-238. 229 . Cf., Francis Fukuyama, “The End of History?”, The National Interest, No.16, Verão de 1989, pp. 3-18. Para uma das muitas refutações a Fukuyama, cf., Robert Kagan. The Return of History and the End of Dreams. Nova Iorque: Knopf, 2008. Surpreendentemente, Charles Krauthammer, no seu influente “The Unipolar Moment” foi virtualmente silencioso sobre o papel da China no momento unipolar. Nesse artigo, Krauthammer explicita a sua visão nas seguintes palavras: “Hoje não faltam potências de segunda linha. Alemanha e Japão são dínamos económicos. A Grã-Bretanha e a França podem utilizar recursos diplomáticos e, em certa medida, militares. A União Soviética possui vários elementos de poder – militar, diplomático e político – mas todos estão em rápido declínio. Existe apenas uma potência de primeira linha e nenhuma perspectiva no futuro imediato de qualquer potência que se compare”. Cf., Charles Krauthammer, “The Unipolar Moment”, Foreign Affairs, Vol. 70, No. 1, Inverno de 1990/1991, p. 24. Num artigo publicado dez anos mais tarde, a China justifica a atenção de Krauthammer. Cf, Charles Krauthammer, “The Unipolar Moment Revisited”, The National Interest, No. 70, Inverno de 2002/03, pp. 5-17. 230 . Cf., “2019 Herman Kahn Award Remarks: US Secretary of State Mike Pompeo on the China Challenge”, proferido no Hudson Institute, 30 de outubro de 2019, disponível em: https://s3.amazonaws.com/media.hudson.org/Transcript_Secretary%20Mike%20P ompeo%20Hudson%20Award%20Remarks.pdf. 231 . Um bom exemplo é um livro recente de Newt Gingrich, antigo Speaker da Câmara dos Representantes. Cf., Newt Gingrich. Trump vs. China: Facing America’s Greatest Threat. Nova Iorque: Hachette Book Group, 2019. 232 . Ver, “Xi stresses ideological and political education in schools”, Xinhua, 18 de março de, 2019, disponível em: http://www.xinhuanet.com/english/201903/18/c_137905379.htm; Jamil Anderlini, “The return of Mao: a new threat to China’s politics”, Financial Times, 29 de setembro de 2016, disponível em: https://www.ft.com/content/63a5a9b2-85cd-11e6-8897-2359a58ac7a5 e Jie Lu, “Ideological and Political Education in China’s Higher Education”, East Asian Policy, Vol. 9, No. 2, 2017, pp. 78-91. 233 . A literatura especializada sobre Mikhail Gorbachev e o processo de reforma é, obviamente, volumosa. A biografia política definitiva de Gorbachev é William Taubman. Gorbachev: His Life and Times. Nova Iorque: W. W. Norton and Co., 2017. Sobre a experiência soviética que contextualiza as reformas de Gorbachev, ver, inter alia, Mikhail Geller e Aleksandr M. Nekrich. Utopia in Power: The History of the Soviet Union from 1917 to the Present. Nova Iorque: Summit Books, 1982; Moshe Lewin. The Gorbachev Phenomenon: A Historical Interpretation. Berkeley: University of California Press, 1988; Zbigniew

Brzezinski. The Grand Failure: The Birth and Death of Communism in the Twentieth Century. Nova Iorque: Charles Scribner’s Sons, 1989; Alec Nove. An Economic History of the USSR 1917-1991. Londres: Penguin Books, 1992; Martin Malia. The Soviet Tragedy: A History of Socialism in Russia, 1917-1991. Nova Iorque: The Free Press, 1994; John L. H. Keep. Last of the Empires: A History of the Soviet Union, 1945-1991. Oxford: Oxford University Press, 1995; Christopher Read. The Making and Breaking of the Soviet System: An Interpretation. Nova Iorque: Palgrave, 2001; Stephen Kotkin. Armageddon Averted: The Soviet Collapse, 1970-2000. Oxford: Oxford University Press, 2001 e Serhii Plokhy. The Last Empire: The Final Days of the Soviet Union. Nova Iorque: Basic Books, 2014. 234 . Cf., Matt Schiavenza, “Where is China’s Gorbachev?”, The Atlantic, August 14, 2013, disponível em: https://www.theatlantic.com/china/archive/2013/08/where-is-chinasgorbachev/278605/. 235 . Para uma comparação dos processos de reforma na URSS e na RPC, cf., Minxin Pei. From Reform to Revolution. The Demise of Communism in China and the Soviet Union. Cambridge: Harvard University Press, 1994. A reação soviética aos acontecimentos chineses é tratada em Alexander Lukin, “The Initial Soviet Reaction to the Events in China in and the Prospects for Sino-Soviet Relations”, The China Quarterly, Vol. 125 / No. 1, março de 1991, pp. 119-136. 236 . Cf., Chris Miller. The Struggle to Save the Soviet Economy: Mikhail Gorbachev and the Collapse of the USSR. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2016. 237 . Ver, François Bougon. Inside the Mind of Xi Jinping, p. 39. 238 . Cf., Andrew Jacobs e Chris Buckley, “Tales of Army Discord Show Tiananmen Square in a New Light”, The New York Times, 2 de junho de 2014, disponível em: https://www.nytimes.com/2014/06/03/world/asia/tiananmensquare-25-years-later-details-emerge-of-armys-chaos.html. 239 . Sobre este assunto, cf., Merton J. Peck and Thomas J. Richardson (eds.). What Is To Be Done? Proposals for the Soviet Transition to the Market. New Haven. Yale University Press, 1991. 240 . Cf., Alexis de Tocqueville. The Old Regime and the French Revolution. Nova Iorque: Anchor Books, 1955, pp. 176-177. 241 . Cf., Samuel P. Huntington. Political Order in Changing Societies. New Haven: Yale University Press, 1968. 242 . Para uma discussão, cf, Hongxing Yang and Dingxin Zhao, “Performance Legitimacy, State Autonomy and China’s Economic Miracle”, Journal of Contemporary China, Vol. 24, No. 91, 2005, pp, 64-82, disponível em: https://core.ac.uk/reader/87131480. 243 . Ver, por exemplo, Frederick C. Teiwes, “The Problematic Quest for Stability: Reflections on Succession, Institutionalization, Governability, and Legitimacy in Post-Deng China” In Hung-mao Tien e Yun-han Chu (eds.). China under Jiang Zemin. Boulder: Lynne Rienner, 2000 pp. 71-95; Zheng Yongnian, “Interest Representation and the Transformation of the Chinese Communist Party”, Copenhagen Journal of Asian Studies, Vol. 16, 2002, pp. 57-85; Zheng Yongnian. The Chinese Communist Party as Organizational Emperor: Culture, and Transformation. Nova Iorque: Routledge, 2010; Richard McGregor. The Party: The Secret World of China’s Communist

Rulers. Nova Iorque: HarperCollins, 2010 and Bruce J. Dickson. The Dictator’s Dilemma: The Chinese Communist Party’s Strategy fro Survival. Oxford: Oxford University Press, 2016. 244 . Para uma discussão geral, cf., Kai Strittmatter. We Have Been Harmonized: Life in China’s Surveillance State. Exeter: Old Street Publishing, 2019 e Xiao Qiang, “The Road to Digital Unfreedom: President Xi’s Surveillance State”, Journal of Democracy, Vol. 30, No. 1, janeiro de 2019, pp. 53-67. 245 . Jonathan Spence escreve: “Zhao, pela sua parte, pode ter visto as manifestações dos estudantes como uma potencial força política que poderia fortalecer a sua base no partido, permitindo-lhe afastar Li Peng e talvez até Deng Xiaoping (em 1978, Deng Xiaoping usara para benefício próprio os protestos da “Muralha da Democracia” para solidificar a sua posição contra Hua Guofeng). Cf., Jonathan D. Spence, The Search for Modern China, p. 740. Cf., também, Alfred L. Chan, “Power, Policy and Elite Politics under Zhao Ziyang”, The China Quarterly, Vo. 203, No. 3, setembro de 2010, pp. 708-718. 246 . Cf., “It is Necessary to Take a Clear-cut Stand Against Disturbances”, People’s Daily, 26 de April de 1989, disponível em: http://tsquare.tv/chronology/April26ed.html. 247 . Para consultar a transcrição da reunião de 18 de maio, cf., “Li Peng Holds Dialog With Students”, disponível em: http://tsquare.tv/chronology/May18mtg.html. 248 . Ver, “Li Peng Delivers Important Speech on Behalf of Party Central Committee and State Council”, disponível em: http://tsquare.tv/chronology/MartialLaw.html. No mesmo discurso, antes de chegar a esta conclusão, Li Peng argumentara que “o partido e o governo têm repetidamente afirmado que muitos jovens estudantes são bondosos, que subjetivamente não querem turbulências e têm fervor e espírito patriótico, desejando promover reformas, desenvolver a democracia e superar a corrupção (...). No entanto, o uso intencional de várias formas de manifestações, boicotes de aulas e até mesmo greves de fome para fazer petições prejudicou a estabilidade social e não será benéfica para resolver os problemas. Além disso, a situação desenvolveu-se independentemente dos desejos subjetivos dos jovens estudantes. Cada vez mais caminha numa direção que vai contra as suas intenções. No momento, tornou-se cada vez mais claro que as poucas pessoas que tentam criar turbulência querem alcançar, sob condições de turbulência, precisamente os objetivos políticos que não podiam alcançar através dos canais democráticos e legais normais; negar a liderança do PCC e negar o sistema socialista. Promoveram abertamente o slogan de negar a oposição à liberalização burguesa. O seu objetivo é obter liberdade absoluta para se oporem, inescrupulosamente, aos Quatro Princípios Cardeais. Espalham muitos rumores, atacando, caluniando e abusando dos principais líderes do partido e do estado. No momento, a ponta de lança está voltada para o camarada Deng Xiaoping, que tem feito contribuições tremendas à nossa causa de reforma e de abertura ao mundo exterior”. 249 . Cf., Andrew J. Nathan and Perry Link, The Tiananmen Papers, pp. 175-252. 250 . Encarcerado em resultado do seu papel nos protestos de Tiananmen, Liu seria sentenciado, em 2009, a onze anos de prisão pelo crime de subversão. Depois de solicitar e ver indeferida a autorização para viajar ao estrangeiro para

obter tratamentos médicos para o cancro em fase terminal, Liu morre a 13 de julho de 2017. Cf., Emile Kok-Kheng Yeoh, “Brave New World Meets Nineteen Eighty-four in a New Golden Age: On the Passing of Liu Xiaobo, Advent of Big Data, and Resurgence of China as World Power”, Contemporary Chinese Political Economy and Strategic Relations, Vol. 4, No. 2, julho/agosto de 2018, pp. 593764, disponível em: http://rpb115.nsysu.edu.tw/var/file/131/1131/img/2374/113040557.pdf. 251 . Cf., Deng Xiaoping, “June 9 Speech to Martial Law Units”, consultado em: http://www.tsquare.tv/chronology/Deng.html. Também, cf., Li Peng, “Full Text of Top-Secret Fourth Plenary Session Document: Li Peng’s Life-Taking Report Lays Blame on Zhao Ziyang”, Chinese Law & Government, 2005, Vol. 38, No. 3, 2005, pp. 69-84. Para uma discussão, ver, Andrew J. Nathan, “The New Tiananmen Papers”, Foreign Affairs, Vol. 98, No. 4, julho/agosto de 2019, pp. 80-91 e Ian Johnson, “China’s ‘Black Week-end”; The New York Review of Books, 27 de junho de 2019, pp. 34-37, disponível em: https://www.nybooks.com/articles/2019/06/27/tiananmen-chinas-black-weekend. 252 . Cf., Andrew J. Nathan and Perry Link, The Tiananmen Papers, pp. 431-437. 253 . Ibid., p. 440. 254 . Cf., Zhao Ziyang. Prisoner of the State. The Secret Journal of Chinese Premier Zhao Ziyang. Londres: Simon and Schuster, 2009. 255 . Cf., Andrew J. Nathan and Perry Link, The Tiananmen Papers, pp. 437-447 e, também, David L. Shambaugh, “The Fourth and Fifth Plenary Sessions of the 13th CCP Central Committee”, The China Quarterly, Vol. 120, No. 4, dezembro de 1989, pp. 852-862. 256 . Cf., Andrew J. Nathan, “The New Tiananmen Papers”, pp. 87-88. 257 . Ver, Bruce Gilley. Tiger on the Brink: Jiang Zemin and China’s New Elite. Berkeley University of California Press, 1998, 145-148. 258 . Cf., Hugh Peyman. China’s Change: The Greatest Show On Earth. Londres: World Scientific Publishing, 2018, p. 168 e Bruce Gilley, Tiger on the Brink, pp. 83-87. 259 . Cf., Jean-Pierre Cabestan. China Tomorrow: Democracy or Dictatorship?: Londres: Rowman & Littlefield Publishing Group, 2019, p. 28.

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Capítulo IV – UM NOVO TIMONEIRO   “Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro” (Friedrich Nietzsche, Para Além do Bem e do Mal)

  Assinalando o primeiro mandato quinquenal de Xi Jinping como Secretário-Geral do Partido Comunista Chinês, o XIX Congresso do PCC, realizado em outubro de 2017, dissipou quaisquer dúvidas remanescentes relativas ao poder de Xi Jinping no partido e no estado. Os delegados presentes neste conclave encarregar-se-iam de clarificar a realidade política quando votam, por unanimidade, consagrar na constituição do PCC o “Pensamento Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas para uma nova era” ( ). Meses mais tarde, a 11 de março de 2018, na sessão de abertura da Décima Terceira Sessão do Congresso Nacional do Povo, o “Pensamento Xi Jinping” será incorporado na Lei Fundamental da República Popular. Desde que o “Pensamento Mao Zedong” fora reconhecido como ideologia orientadora do PCC, em 1945, apenas Deng e Xi viram as suas ideias consagradas na constituição, embora Deng, em 1997, tenha sido postumamente honrado com a inclusão da sua “teoria”, menos significativa do que o “pensamento” atribuído a Mao e a Xi. Ainda que o legado ideológico do PCC englobe o marxismo-leninismo, o “Pensamento Mao Zedong”, a “Teoria Deng Xiaoping”, as “Três Representações” de Jiang Zemin e a “Perspetiva de Desenvolvimento Científico” de Hu Jintao, o “Pensamento Xi Jinping” difere na medida em que, tal como Mao e Deng, que iniciam novas eras, lhe é atribuído lugar de destaque na elaboração do conceito de “socialismo com características

chinesas” para a época em que vivemos260. Pilar estruturante do discurso do PCC, o conceito “socialismo com características chinesas” fora introduzido por Deng Xiaoping durante o XII Congresso do Partido, de 1982, quando o “líder supremo” afirma que a modernização do país exige a adaptação de novas ideias e práticas, algumas das quais estrangeiras, às realidades chinesas. Conceito fundamental para robustecer a legitimidade do regime, o “socialismo com características chinesas” visava reconciliar os objetivos gerais traçados pelo poder comunista com a introdução de mecanismos de mercado numa economia coletivizada e orientada pelo planeamento central. Para todos os efeitos, o “Pensamento de Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas para uma nova era”, que define os desafios das próximas décadas, preserva a continuidade político-ideológica entre Xi e a renovação do socialismo operada por Deng e os seus sucessores. Após a inclusão do “Pensamento de Xi Jinping” nas constituições do partido e do estado, seguiu-se uma ofensiva ideológica sem paralelo desde a Revolução Cultural, com o propósito de disseminar as contribuições teóricas de Xi261. Eis uma das particularidades da “era Xi”: nenhum líder no pós-maoismo manifestou o mesmo grau de preocupação com questões ideológicas ou monstrou tanto empenho na batalha das ideias. As diferenças que separam Xi dos seus antecessores não ficaram pela ênfase dada à ideologia. Mecanismos de liderança coletiva adotados pelo partido na era pós-Mao, que procuravam evitar as armadilhas que minaram o PCUS de Mikhail Gorbachev e os malefícios do culto da personalidade maoista, eram esvaziados e, como corolário, o poder concentrou-se nas mãos do novo homem-forte. É patente que, desde Mao, nenhum líder chinês acumulou tanto poder ou foi objeto de um culto da personalidade tão amplo. Após a matança de Tiananmen e a década de Li Peng como Primeiro-Ministro, os ciclos de liderança de Jiang

Zemin e Hu Jintao incutiram a estabilidade e a gestão tecnocrática. A liderança de Xi rompe com essa tradição. Os eventos de Tiananmen demonstraram que o domínio contínuo do PCC era inegociável, até porque o partido era o garante da integridade da RPC e o veículo da recuperação da antiga grandeza da China. Quando Xi assume as rédeas do poder, questionava-se até que ponto o PCC continuava, de ponto de vista substancial, a ser um partido comunista. Enquanto o papel de liderança do PCC (e o seu monopólio do poder) era inquestionável, era igualmente evidente que o seu legado ideológico fora objeto de revisão significativa nas décadas anteriores. Restava saber se essas mutações, no seu conjunto, não consubstanciavam uma abdicação da própria essência e natureza do partido. Dir-se-á que, no quadro da realidade chinesa, o corpus teórico de Marx nunca fora determinante, pois excluía a possibilidade de construir o socialismo num país “atrasado” como a China. Após a adoção do relatório de Zhao Ziyang, de novembro de 1987, durante o XIII Congresso, Marx tornou-se, em larga medida, uma referência histórica fundamentalmente desprovida de aplicabilidade concreta na China moderna. Não significa isto que o marxismo fora descartado tout court pelo PCC. Com efeito, os valores genéricos do marxismo estruturam, pelo menos formalmente, a denúncia feita pelo PCC da extrema desigualdade de rendimento associada ao desenvolvimento capitalista e a centralidade atribuída ao setor estatal na construção socialista. Mas era igualmente verdade que o Grande Salto. Em Frente revelara que o modelo assente no planeamento central, no fomento da industria pesada estatizada e na coletivização agrícola era inadequado às realidades do país. Se o marxismo assumia uma relevância difusa, histórica, já as noções leninistas referentes à organização partidária – os princípios do “centralismo democrático” – foram consistentemente respeitadas por Deng Xiaoping. Nem mesmo Hu Yaobang ou Zhao Ziyang sugeriram abandoná-los. Similarmente, era

conservada a conceção vanguardista do partido que justificava o monopólio do poder. Quanto ao modelo de liderança coletiva dos anos de Jiang Zemin e Hu Jintao, que será efetivamente descartado por Xi Jinping, havia revelado sinais claros de erosão muito antes do “caso Bo” cativar, em 2012, as atenções mundiais262.   Eu tenho um sonho   Em 2012, nos derradeiros meses do segundo e último mandato de Hu Jintao, o país era abalado pela espetacular – e muito publicitada – imolação política de Bo Xilai. Membro do Politburo, antigo Ministro do Comércio e Secretário do partido em Chongqing, Bo seria formalmente acusado de irregularidades criminais e implicado no assassinato do empresário britânico Neil Heywood, um crime alegadamente cometido pela sua mulher263. As acusações eram nada menos do que extraordinárias porque Bo Xilai, tal como Xi Jinping, era um “príncipe vermelho”, um filho privilegiado da velha guarda do regime. Seu pai, Bo Yibo, ingressara no PCC em abril de 1925, servira no Politburo de Mao e fora um dos “61 renegados” purgados durante a Revolução Cultural. Reabilitado por Deng, regressa ao Politburo e, mais tarde, emerge como um dos “Oito Imortais”, velhos revolucionários que durante décadas acompanham Mao e, depois da morte do déspota, se aliam a Deng. Atendendo à sua linhagem vermelha, a queda política do jovem Bo “foi tão significativa que foi amplamente descrita como um terramoto político de magnitude que rivaliza com a queda do herdeiro designado por Mao, Lin Biao, em 1971, ou com a repressão de 1989”264. Tratava-se, pois, de um “terramoto político” que extravasa o mundo insular, enclausurado da casta comunista.

A 28 de setembro de 2012, os órgãos de informação estatais divulgam a expulsão de Bo Xilai do PCC, acrescentando que enfrentaria acusações criminais de corrupção, abuso de poder, suborno e “relações impróprias” com mulheres. Escassas semanas depois, a 8 de novembro de 2012, o PCC abre o seu XVIII Congresso Nacional. A desgraça pública de Bo Xilai não seria uma ocorrência anormal durante a Revolução Cultural. Porém, a natureza pública da sua queda, para além de evidenciar a impiedade da luta pela sucessão de Hu Jintao, traz ao de cima as profundíssimas clivagens existentes no seio do PCC, que, para serem sanadas, exigem o linchamento político e a humilhação pública de um quadro comunista de renome nacional. Na realidade, mais do que o delito criminal, o pecado cardeal de Bo era de natureza política. Primeiro, desafiou o amplo consenso existente no PCC em relação ao modelo socialista de desenvolvimento do país. Segundo, ao conduzir a luta pela liderança fora de muros, desrespeitando assim as regras quanto ao tempo e ao modo da sucessão, o populismo de Bo colide frontalmente com o equilíbrio entre os respetivos papéis das elites e da opinião pública. Tratavase de um precedente que, a ser consentido, tornaria o partido vulnerável a pressões inaceitáveis decorrentes da opinião pública e da mobilização social. Político populista pertencente à tendência neo-normalista, Bo Xilai lidera, na sua província natal de Chongqing, lidera uma campanha anticorrupção extremamente bem-sucedida e granjeadora de grande adesão e recetividade públicas265. Designada como o “Modelo Chongqing”, a abordagem de Bo englobava três distintos, mas interligados, componentes: “cantar músicas vermelhas” (changhong), “esmagar a corrupção e os gangs criminosos” (dahei) e “políticas sociais distributivas” (minsheng)266. Este “Modelo Chongqing” era, por sua vez, definido em oposição ao “Modelo Guangdong”, introduzido por Deng Xiaoping e assente nos mecanismos de mercado. Críticas neo-maoístas ao “Modelo Guangdong”

salientavam a corrupção generalizada, as vastas desigualdades sociais, o materialismo grosseiro e os valores individualistas que se sobrepunham aos valores coletivos. Em contraste, o “Modelo Chongqing” enfatizava o desenvolvimento harmonioso da comunidade, o igualitarismo, a defesa dos valores socialistas e a mobilização revolucionária267. Em conformidade com esta visão, Bo reforça o papel do estado na economia de Chongqing de modo a viabilizar firmas estatais, tornando-as lucrativas. Concomitantemente, o seu governo provincial conduz um combate implacável à corrupção e promove o vigor ideológico por meio de changhong. O “modelo” preconizado por Bo Xilai configurava, portanto, o desafio da esquerda neo-maoísta do PCC às elites partidárias dominantes que persistiam na defesa do “Modelo Guangdong”268. Se é verdade que a queda de Bo fora provocada por uma colisão política em volta dos dois modelos de modernização socialista, é igualmente verdade que o choque fora muito mais do que isso. No final de outubro, duas semanas antes da abertura do XVIII Congresso Nacional do PCC, a imprensa internacional revela detalhes da fortuna imensa da família do Primeiro-Ministro Wen Jiabao, património acumulado por meios nada transparentes269. O momento da revelação de apenas mais um dos muitos exemplos da degradação moral da elite comunista não terá sido inocente. Embora prestes a abandonar a liderança do governo, Wen era, nessa altura, o porta-voz mais respeitado do sector reformista e nada o impedia de continuar a advogar o reformismo a partir de outros cargos. Com efeito, a publicação das alegações teve como objetivo comprometer a ala reformista e, dessa forma, atenuar os danos políticos causados à ala neo-maoísta pelo “caso Bo”. A queda de Wen Jiabao, antigo assistente de Zhao Ziyang e presente ao lado deste na Praça de Tiananmen na noite de 19 de maio de 1989, quando Zhao se reúne com os manifestantes pela última vez antes da

declaração da lei marcial, reequilibra as fações mas remove também mais um potencial crítico de Xi Jinping. Filho do veterano comunista Xi Zhongxun, Xi Jinping não era o nome óbvio para ascender ao principal cargo de liderança do PCC270. Antigo membro do Politburo e VicePrimeiro-Ministro do Conselho de Estado, Xi Zhongxun, preso em 1968, fora uma das inúmeras vítimas da Revolução Cultural. Um ano depois, em consequência do encarceramento do seu pai, Xi Jinping, com apenas quinze anos de idade, era enviado para “reeducação” em Shaanxi, uma zona rural do país. Ingressa na Liga da Juventude Comunista Chinesa em 1971 e, após várias tentativas fracassadas, será finalmente aceite nas fileiras do PCC em 1974. Durante o XV Congresso do partido, realizado em 1997, será o último dos membros suplentes eleitos para o Comité Central. Depois de várias promoções dentro das estruturas partidárias locais, é, nomeado, em 2007, Secretário do Comité Municipal de Xangai. Nesse mesmo ano, no XVII Congresso do PCC, emerge como um dos nove membros do Comité Permanente do Politburo, o núcleo duro da liderança do partido e, por extensão, do estado. A cooptação para o Politburo consagra-o como líder de dimensão nacional, responsável pelos dossiers de Macau e Hong Kong, bem como pela supervisão geral dos Jogos Olímpicos de Verão de 2008, concebidos como uma vitrina do poder chinês e da emergência internacional do país. Promovido a Vice-Presidente da República Popular, substitui Hu Jintao como Secretário-Geral do PCC aquando do XVIII Congresso Nacional, realizado em novembro de 2012. Instalado no pináculo do poder, Xi imediatamente desencadeia uma vastíssima campanha anticorrupção que resulta na expulsão de aproximadamente um milhão de membros do partido implicados em práticas ilegais271. No passado, o país assistira a outras campanhas de combate à corrupção, relativamente comuns ao longo da história da RPC272. Os enormes perigos resultantes da corrupção foram,

aliás, expressos publicamente no Relatório apresentado por Hu Jintao ao XVIII Congresso do PCC, onde afirma que “combater a corrupção e promover a integridade política é uma questão política importante e de grande preocupação para o povo, é um compromisso político inequívoco, e de longo prazo, do Partido. Se não conseguirmos lidar bem com a questão, pode ser fatal para o Partido e até causar o colapso do Partido e a queda do estado”273. No entanto, a publicidade dada à campanha de Xi – e o zelo que a impulsiona – sinaliza que a iniciativa visa alcançar dois objetivos essenciais274. Primeiro, e certamente não o menos relevante, servia um propósito instrumental óbvio: a remoção dos rivais de Xi de posições de poder no partido e no estado. Formalmente, a campanha visa expurgar “tigres e moscas” do Partido Comunista Chinês, isto é, os altos funcionários e empresários corruptos275. Porém, a investida contra a corrupção rapidamente se transforma num instrumento para expulsar os rivais políticos do recém-empossado Secretário-Geral. A investida de Xi contra as “práticas corruptas” não difere substancialmente das campanhas anteriores ostensivamente justificadas pela luta contra a corrupção, mas, na realidade, também utilizadas para remover opositores internos da liderança. Segundo, a campanha passou a ser um mecanismo para limpar a imagem pública e repor a autoridade do partido, até então tremendamente degradadas pelos escândalos ocorridos nos últimos anos da presidência de Hu Jintao. As quedas de Wen Jiabao e Bo Xilau do topo do establishment partidário concedem a Xi a oportunidade de redimir a reputação e o prestígio do partido, restaurando assim a “pureza” da organização e o elo de confiança com as massas populares. Ao mesmo tempo que Xi Jinping afasta os seus rivais, uma densa e tecnologicamente sofisticada teia de vigilância estende-se pela sociedade chinesa. Em paralelo, intensificase a repressão cultural e política quando Xi restringe a

liberdade de atuação dos media, obrigando editores e repórteres a submeter-se às diretrizes do Departamento Central de Propaganda. Huang Kunming, membro do Politburo responsável pelo departamento, justifica que “a reestruturação mostrou a necessidade de fortalecer a liderança geral do Partido nessas áreas, e foi boa para promover o sistema de governança ideológica e a prosperidade do setor”276. Nas universidades e nos think tanks do país, o conformismo ideológico era também imposto, estreitando consideravelmente os parâmetros do debate permitido pelas autoridades. Com efeito, Xi adapta o populismo neo-maoísta de Bo, colocando o vigor ideológico, as “canções vermelhas”, ao serviço do status quo e dos interesses representados pelo “Modelo Guangdong”. A cooptação política feita por Xi dos principais temas associados ao populismo de Bo – anticorrupção, rejuvenescimento ideológico e uma maior presença do estado na condução do desenvolvimento económico –, destinava-se a aumentar a legitimidade do “líder principal” que, através da síntese que faz das sensibilidades no interior do partido, passa a encarnar a unidade do PCC. Quando ascende à chefia do PCC, Xi enfatiza a centralidade das Três Confianças, a doutrina que, conjugada com os Quatro Abrangentes e o “Sonho Chinês”, passa a balizar os parâmetros aceitáveis do debate e da ação política. Introduzidas por Hu Jintao nas vésperas do XVIII Congresso Nacional do PCC, as Três Confianças exortam o partido e o povo a orientar-se pela “confiança na direção” do PCC, pela “confiança no fundamento teórico” do partido e pela “confiança no sistema” comunista criado em 1949277. Uma “quarta confiança”, na cultura chinesa, fora adicionada em dezembro de 2014. Com efeito, as “Quatro Confianças” apelam à autoconfiança nas instituições do partido e do estado e à mobilização popular em volta do regime e das suas instituições. A reafirmação das “Quatro Confianças” equivale a uma defesa acérrima do status quo e do legado

histórico-ideológico do partido face às críticas externas e internas que suscitam dúvidas quanto à legitimidade do poder do partido. As “Quatro Confianças”, por sua vez, sustentam os “Quatro Abrangentes”. Articulados por Xi em 2014, e virtualmente idênticos aos “Quatro Compreensivos” delineados na “Teoria de Deng Xiaoping”, os “Quatro Abrangentes” expressam a linha política geral do regime: construir uma sociedade moderadamente próspera, governar a nação de acordo com a lei, aprofundar o processo de reforma e governar o partido com disciplina férrea. Na “era Xi Jinping”, a legitimidade do partido assenta numa amálgama de elementos díspares, como sejam o nacionalismo histórico-civilizacional, o tradicionalismo confucionista, os valores fundamentais socialistas, o monopólio do poder do partido e o seu papel como guardião da República Popular da China. Um exemplo de como o partido se tem apropriado da história recente do país pode ser encontrado no discurso de Xi para comemorar o centenário do Movimento Quatro de Maio. Proferido em finais de abril de 2019, praticamente coincidindo com os 40 anos dos protestos de Tiananmen e numa altura em que os estudantes de Hong Kong se mobilizavam nas ruas, Xi caracteriza o movimento de 1919 como “patriótico” na medida em que servira os interesses do povo chinês. Não obstante, para evitar equivalências com Hong Kong ou com Tiananmen, disse claramente que “a juventude chinesa na nova era tem de seguir e obedecer ao partido”278. Por outras palavras, o patriotismo, na “era Xi”, é incarnado pelo PCC. Dissidentes que questionam as linhas mestras do partido são, logicamente, antipatrióticos e, por conseguinte, “uma desgraça ao olhos do país e aos olhos de todo o mundo”279. Este mix de fontes de legitimação encontra expressão no conceito mais amplo de “Sonho Chinês” ( ), resumido na “declaração de 38 caracteres” de Xi Jinping nos seguintes termos: “para realizar o Sonho Chinês, devemos seguir o

caminho chinês; para perceber o Sonho Chinês, precisamos de avançar o espírito chinês; para realizar o Sonho Chinês, devemos consolidar o poder chinês”280. Embora sucessor das formulações de “doutrina estratégica” definidas por lideranças anteriores – as Três Representações, o Desenvolvimento Científico e a Sociedade Harmoniosa –, o “Sonho Chinês” atualiza-as em conformidade com as exigências da era contemporânea. Dito de outra forma, o “Sonho Chinês” de Xi constitui uma linha de continuidade com as orientações ideológicas traçadas pelos seus antecessores, modernizando-as e, no processo, criando um “pensamento” para dar resposta às especificidades da “nova era”. A necessidade de atualizar a doutrina deve-se à necessidade de renovar – mas jamais abandonar – o marxismo-leninismo e o “socialismo com caraterísticas chinesas”. Em 29 de novembro de 2012, apenas duas semanas após a sua ascensão à presidência do partido, num discurso proferido durante uma visita à exposição “Caminho para o Rejuvenescimento” no Museu Nacional da China, Xi Jinping faz a primeira referência direta ao “Sonho Chinês”, afirmando que “o renascimento da nação chinesa é o maior sonho da nação chinesa na história moderna”281. Uma pista quanto à relevância do discurso era proporcionada pelo cenário, uma vez que o local e o tema da exposição transmitiam a importância simbólica do fuxing, noção que pode ser traduzida como “renascimento”, “recuperação” ou “rejuvenescimento”, o termo usualmente utilizado. O rejuvenescimento afigura-se como indispensável para conservar o monopólio do poder do PCC na medida em que abre o caminho para o incremento das oportunidades e da prosperidade da população. No seu primeiro discurso oficial, Xi declarou que os chineses “têm a oportunidade de ter sucesso na vida, de ver o seu sonho tornar-se realidade, de progredir e de se realizarem ao mesmo tempo que realizam o seu país e a sua terra natal”282. No entanto, em contraste

nítido com o “Sonho Americano”, assente no pressuposto de que a busca do interesse individual gera resultados coletivos desejáveis, a visão de Xi sugere que os empreendimentos coletivos, definidos e executados pelo PCC, produzem resultados individuais benéficos. Salienta-se que, para cumprir o “Sonho Chinês”, a população é chamada a fazer sacrifícios individuais em prol do bem comum, a razão porque, com alguma frequência, se invoca o espírito da “Longa Marcha”. Rejuvenescimento abrange duas dimensões distintas mas interligadas283. Primeiro, proclama a ascensão da China como país influente e poderoso na cena mundial e, como corolário, o fim dos vestígios do “século da humilhação nacional”. Segundo, invocando a robustez e o orgulho nacionais, abarca uma dimensão moral na forma da superação da decadência por meio da renovação espiritual. O rejuvenescimento nacional não se restringe, portanto, a uma celebração do crescimento económico, à prosperidade da população ou, mesmo, à assertividade do país alémfronteiras. Engloba e sintetiza todas estas dimensões, enquanto denota uma nova autoconfiança resultante do renascimento espiritual impulsionado pelo nacionalismo renovado. Significa isto que o nacionalismo tem, paulatinamente, vindo a complementar o desempenho económico como principal fonte de legitimidade do regime, uma tendência nitidamente acentuada após a crise financeira de 2008.   Ser rico é glorioso   Em 1949, abrindo o caminho ao socialismo, Mao Zedong começa a demolir a China feudal e tradicionalista, libertando-a das injustiças históricas perpetuadas pelo

Ocidente ao longo do “século da humilhação nacional” e estabelecendo o estado moderno chinês. Eis a “primeira revolução”. Deng Xiaoping conduz uma “segunda revolução”, colocando a República Popular no caminho do desenvolvimento, possível de percorrer porque Mao destruíra a velha ordem que bloqueara a modernização do país. Da mesma forma que o empreendimento de Deng teria sido impossível na ausência do contributo de Mao, o empreendimento de Xi era impossível sem a contribuição de Deng. De acordo com esta narrativa, a “era Xi” irá consumar a modernização da RPC e restituir-lhe a preponderância internacional. Eis uma tarefa histórica, incompatível com o aventureirismo utópico da Revolução Cultural e com a rotinização burocrática das eras Jiang Zemin e Hu Jintao. Herdeiro de uma civilização milenar, o Partido Comunista Chinês exorta o povo a realizar um empreendimento de proporções históricas, assente em “canções vermelhas” e em um novo vigor ideológico trazido por Xi. Generalizou-se o consenso de que a “era Hu Jintao” fora uma “década perdida” porque as reformas de que o país carecia para continuar a desenvolver-se foram proteladas. O problema residiu no facto de as fações do partido terem divergido quanto à natureza dessas mesmas reformas. Nas décadas seguintes ao lançamento da “reforma e abertura” de Deng, a China obteve elevadíssimas taxas de crescimento económico que, até 2011, se situavam, em média, nos 10% ao ano. Embora estes inéditos índices de crescimento se tenham retraído após a crise financeira de 2008, o país, em termos comparativos, continuou a registar a um crescimento invejável impulsionado por injeções massivas de liquidez. Embora os dados económicos chineses não sejam inteiramente confiáveis, não há forma de negar o impressionante desenvolvimento das últimas décadas. Em 1980, o PIB chinês representava apenas 7% do PIB americano; em 2015 situa-se em 61%284. Igualmente

impressionante, como salienta Peter Ferdinand, “em finais de junho de 2014, as reservas cambiais chinesas haviam aumentado para quase US$ 4 triliões; no final de 2001, antes de a China ingressar na OMC, situam-se nos US$ 212 bilhões”285. A economia chinesa ultrapassa a alemã em 2007 e, em 2009, a China passa a maior país exportador mundial. Um ano depois, em 2010, supera o Japão, tornando-se a segunda maior economia mundial. Em 2013, ultrapassa os Estados Unidos como maior nação comercial. Além disso, dados do Banco Mundial indicam que, em 2014, a China ultrapassara os EUA em termos de paridade do poder de compra (PPP). Embora os números sejam verdadeiramente extraordinários, desafios substanciais permanecem. Note-se, a título exemplificativo, que o PIB per capita chinês em 2018 situava-se nos US$ 9,770, em comparação com US$ 62,794 nos Estados Unidos e US$ 23,407 em Portugal286. Atendendo a este desfasamento, e mesmo presumindo a continuação das taxas históricas de crescimento chinês, serão necessárias décadas que Beijing se possa aproximar aos níveis americanos de PIB per capita. Independentemente dos ganhos obtidos pelo “socialismo com características chinesas”, o modelo de crescimento assente em exportações, adotado após a “abertura” de Deng em 1978, enfrenta sérias dificuldades quando Xi Jinping se torna o “líder principal”. Já em 2003, o PCC modifica a orientação de Deng ao abraçar o “conceito científico de desenvolvimento”, sinónimo de mudanças destinadas a assegurar o desenvolvimento sustentável da economia chinesa287. Reunido em outubro de 2007, o XVII Congresso Nacional do PCC dá seguimento a esta orientação, comprometendo o partido com a aceleração da “transformação do modo de desenvolvimento 288 económico” . Um ano depois, com a eclosão da crise financeira de 2008, a cúpula partidária conclui que o capitalismo entrara em declínio acelerado e, por conseguinte, a “renovação socialista” era o único caminho

passível de ser seguido pela China. Em termos práticos, o modelo de crescimento impulsionado pelas exportações precisava, como, aliás, defendiam os neo-maoístas, de ser acompanhado por políticas estruturais destinadas a atenuar as desigualdades sociais. Porém, como ficaria demonstrado pelo “caso Bo”, os interesses ligados às indústrias de exportação situadas no litoral e os intelectuais “liberais” resistiam à reorientação do desenvolvimento nos moldes prescritos pelo neo-maoísmo. É precisamente neste quadro que Xi emerge a sintetizar as posições da esquerda e da direita partidárias, ampliando o poder do estado na economia e na sociedade, promovendo uma economia assente na inovação e definindo, com a Iniciativa Faixa e Rota (IFR), uma estratégia para a afirmação internacional do país. País de rendimento médio alto, a República Popular terá agora de produzir bens e serviços de maior valor acrescentado, de subir nas cadeias de valor. De fábrica do mundo terá de passar a estar no mundo com as suas empresas, financiamentos e poderio militar. Convém reconhecer que os desafios da “era Xi Jinping”, resultantes da realização da transição para uma “sociedade moderadamente próspera”, não são inéditos nem exclusivos da China. A dimensão do problema enfrentado pelo PCC fora retratada pelo Banco Mundial, cujos dados confirmam a tarefa hercúlea confrontada por países que embarcaram neste tipo de empreendimento. Dos 101 países de rendimento médio existentes na década de 1960, apenas 13 fizeram a transição para uma economia de rendimento alto até 2008289. Para um regime cuja legitimidade estava amplamente assente em critérios de desempenho económico e de melhoria dos padrões de vida, os precedentes históricos eram, pois, deveras desanimadores. A questão agrava-se quando se recorda que, depois do massacre de Tiananmen, o PCC celebrou um contrato social com o povo chinês: em troca da aquiescência política da

sociedade, o partido prometia proporcionar a prosperidade individual e nacional. O célebre ditado de Deng de que “ser rico era glorioso” continha um pressuposto infrequentemente explicitado: o povo chinês devia deixar a política entregue ao Partido Comunista Chinês. Este “pacto” entre partido e população era passível de ser cumprido desde que o crescimento permanecesse constante. Dadas as incertezas e complexidades que acompanham a transição bem-sucedida de uma economia de rendimento médio para uma de rendimento alto (no léxico do regime, uma “sociedade moderadamente próspera”), a legitimidade do poder vigente não poderia continuar a repousar quase exclusivamente em critérios de performance. Mas a legitimidade do regime também não poderia dispensar esse mesmo desempenho, pois o projeto de modernização do PCC, desde 1949, comprometera o partido com o pleno desenvolvimento. Por outro lado, seria impossível restituir a grandeza e o status internacionais da China se o país não continuasse a desenvolver uma base de poderio material para sustentar os demais instrumentos de poder, o militar em particular. A solução residia, pois, na alteração do “mix de legitimidade” de forma a diminuir a centralidade do desempenho económico e, concomitantemente, passar a privilegiar as fontes políticoideológicas crescentemente invocadas no período pósTiananmen: a tradição civilizacional, a unidade nacional da RPC, a centralidade do ELP, a superação do “século da humilhação nacional” e, por último, o regresso às narrativas anti-japonesa e antiocidental. Quando o partido de vanguarda dá lugar a um “partido de todo o povo”, essas fontes de legitimidade são reforçadas. Preservar o desempenho económico e alcançar uma economia de alto rendimento exigia outra transição: a passagem de uma economia industrial liderada pela exportação de manufaturados de baixo valor para uma economia impulsionada pela inovação e por empresas

internacionalizadas altamente competitivas. Receando que a China ficasse indefinidamente atolada à “armadilha do rendimento médio”, o PCC adicionou a estratégia Made in China 2025 (MIC2025) ( 2025) à sua caixa de 290 ferramentas políticas . Inspirada na estratégia “Indústria 4.0” alemã, publicada em 2013, bem como na abordagem japonesa à inovação e ao desenvolvimento, a MIC2025 fora apresentada em maio de 2015 pelo Primeiro-Ministro Li Keqiang291. Destinada a modernizar e a aumentar a capacidade industrial do país, e entendida como uma estratégia global para uma década292, a proposta concentrava-se nos dez setores estratégicos em que a China procurava ser líder mundial, incluindo a aviação, a robótica, a inteligência artificial, os automóveis autónomos e a biofarmácia e outros setores que, previsivelmente, serão os motores da futura economia global293. Para assegurar a liderança mundial nestas áreas, a MIC2025 prevê a realização de investimentos massivos em pesquisa de ponta, bem como injeções de capital em firmas chinesas inovadoras capazes de competir nos mercados doméstico e global. O programa é largamente financiado pelo estado, cujo veículo mais conhecido é o Fundo Nacional de Investimento Integrado. Todavia, em 2015, “297 novos fundos dirigidos pelo governo foram criados com mais de RMB1,5 triliões em capital para financiamento do Made in China 2025”294. Atendendo à dimensão da aposta, vistos de Washington, os objetivos do programa são tudo menos benignos. Procurando dar voz a esta inquietação, o VicePresidente Mike Pence, num discurso proferido no Hudson Institute, em outubro de 2018, observa que “através do plano Made in China 2025, o Partido Comunista tem como objetivo controlar 90% das indústrias mais avançadas do mundo, incluindo a robótica, a biotecnologia e a inteligência artificial. Para conquistar os setores chave da economia do século XXI, Beijing instruiu os seus burocratas e empresas a obter propriedade intelectual americana – a base de nossa

liderança económica – por qualquer meio necessário”295. Se dúvidas restassem quanto à transferência de tecnologia de ponta americana para a China, e à presença de tecnológicas chinesas no mercado americano, as palavras de Pence não poderiam ser mais cristalinas. Expressam, com quase dois anos de antecedência, a decisão da Casa Branca, por muitos inesperada, de forçar a venda do Tiktok e de ilegalizar o WeChat. A estratégia chinesa para fomentar o crescimento de firmas internacionalmente competitivas replica, no essencial, a abordagem adotada nas últimas décadas pela Huawei e companhias similares296. A dimensão gigantesca do mercado interno oferece às empresas, altamente protegidas da concorrência internacional, oportunidades para crescerem até estarem suficientemente consolidadas e competitivas, isto é, até obterem dimensão para “saírem” em busca da conquista dos mercados externos. Com este fim no horizonte, o estado chinês cria um ambiente altamente vantajoso para a emergência deste tipo de firma, disponibilizando subsídios diretos e indiretos, financiamentos direcionados para companhias favorecidas pelo poder político, incentivos às empresas exportadoras, transferências forçadas de tecnologia estrangeira como preço de entrada no mercado sino e imunidade às empresas que se apoderam indevidamente da propriedade 297 intelectual . Para fazer a transição para uma nação desenvolvida, o país terá forçosamente de subir na cadeia de valor, competindo com países como a Alemanha, a Coreia do Sul e o Japão. Daí a vantagem de um mercado doméstico extremamente condicionado que permite o crescimento das empresas antes de se aventurarem para o estrangeiro. O desenvolvimento dos setores identificados pela MIC2025 garante, assim, um maior controlo sobre todas as cadeias de valor e também uma menor dependência relativamente aos mercados de exportação. Há, porém, um problema. Comparativamente pobre e

subdesenvolvido, o mercado interno está longe de poder absorver a produção e impulsionar o crescimento. Parte do problema reside nos elevadíssimos índices de aforro, normalmente um indicador da existência de uma pool de capital disponível para investimento. Acontece que, na China, as famílias recorrem à poupança porque o rudimentar – para não dizer inexistente – Estado Social obriga ao pagamento da educação e saúde e, obviamente, à canalização de poupança para a reforma. É certo que o estado poderia investir numa rede de proteção social, mas para isso seria obrigado a efetuar cortes significativos nos fundos destinados às infraestruturas e à inovação. Porque vários objetivos colidem, o equilíbrio não é fácil de preservar. A MIC2025 configura, em parte, uma resposta ao aumento da concorrência direta de países como o Vietname e o Camboja, cujas estruturas de custos começam a tornar-se altamente atrativas. Ao mesmo tempo, em resultado de ganhos de eficiência impulsionados pela inovação tecnológica, a concorrência oriunda dos EUA, da Europa e dos países asiáticos impede a China de manter o status quo. O vastíssimo exército de mão-de-obra barata perdeu competitividade e, só por si, é manifestamente incapaz de suster o crescimento com base nas exportações. Impossibilitada de reduzir substancialmente os custos de mão-de-obra ou de desvalorizar significativamente o valor do renminbi, Beijing tem de obter vantagens competitivas através da inovação e da definição e aceitação dos seus padrões técnicos. Cumprir a “sociedade moderadamente próspera”, descrita por Hu Jintao e reafirmada no “Sonho Chinês” de Xi Jinping, exige a subida nas cadeias de valor. Assim sendo, mesmo que a MIC2025 fique aquém de alguns objetivos, a promoção pelo estado chinês de políticas de inovação provocará um enorme aumento da concorrência em virtualmente todas as economias industrializadas. Dito de forma simples, a tendência aponta no sentido de uma

concorrência comercial cada vez mais acérrima com os países ocidentais. E a menos que a China desmantele o seu modelo de crescimento, tal como lhe é exigido pelos Estados Unidos, não há razão para pensar que o futuro não se encaminhar para incessantes guerras tecno-comerciais. O PCC reconhece que o surgimento da RPC como uma das principais potências mundiais exige que a economia do país venha, rapidamente, a ser um líder em inovação298. Dois setores tecnológicos – Inteligência Artificial (IA) e wireless de quinta geração (5G) – são pilares centrais da estratégia chinesapara fomentar a inovação, a competitividade e o crescimento. Uma nota de pesquisa recente produzida pela Corporação Financeira Internacional (IFC) do Banco Mundial concluía que “os Estados Unidos e a China lideram o investimento em IA, com a China a dominar o financiamento global de IA. As empresas chinesas de IA arrecadaram um total de US$ 31,7 bilhões no primeiro semestre de 2018, quase 75% do total global de US$ 43,5 bilhões. A China parece pronta para liderar o espaço da IA em vários setores, incluindo cuidados de saúde e automóveis autónomos. O progresso da China na IA é, em grande parte, o resultado de um apoio forte e direto dado pelo estado à tecnologia, à liderança de gigantes da indústria tech chinesa e uma comunidade robusta de capital de risco”299. À medida que se faz o upgrade para sistemas 5G, a IA torna-se indispensável para viabilizar as potencialidades da conectividade 5G em tempo real. Dir-se-á que as tecnologias de IA e 5G são as pedras basilares da nova economia mundial300. A vantagem substancial da China no campo da IA é uma consequência de vários fatores, e o facto de o país abrigar quase 20% da população mundial não é de somenos importância301. Significa isto que as firmas chinesas têm acesso praticamente ilimitado a uma quantidade gigantesca de dados que recolhem para tornar a IA mais precisa e, não menos importante, consideravelmente mais valiosa. O

gigantesco programa de “crédito social”, para além da sua componente de vigilância estatal, tem uma dimensão comercial. Virtualmente sem limites, dados são recolhidos sobre todos os aspetos da vida financeira e das preferências de consumo dos cidadãos, dados que são, aliás, partilhados como os serviços de vigilância do estado. Esta informação constitui um recurso inimaginável para aumentar a competitividade das empresas. A este propósito, Kai-Fu Lee observa que “a confiança nos dados cria um ciclo de autoperpetuação: produtos melhores levam a mais usuários, esses usuários levam a mais dados e esses dados levam a produtos ainda melhores e, portanto, mais usuários e dados”302. A China, por este motivo, tem vindo a celebrar acordos com vários governos para aceder a dados estrangeiros, de modo a tornar as suas bases de dados mais variadas em termos de perfil dos usuários e, portanto, mais confiáveis303. A competição em volta dos dados é outro motivo pelo qual as empresas chinesas de telecomunicações lutam por mercados. É também uma das razões que levou o governo de Trump a iniciar uma campanha internacional contra o crescente domínio da Huawei no mercado 5G e a razão invocada para afastar a TikTok do mercado americano304. A corrida à inovação para recolher os benefícios da nova economia reproduz essencialmente as dinâmicas ocorridas no período imediatamente posterior a 1945, quando, em consequência das vantagens obtidas através da internacionalização das suas empresas tecnologicamente avançadas e dos seus padrões técnicos, os Estados Unidos estabeleceram a sua hegemonia internacional305. Empresas que lideram o estabelecimento de padrões (standard setters) distanciam-se dos seus rivais e preservam vantagens competitivas que forçam os concorrentes a seguir sua liderança. Os primeiros líderes de setor são, previsivelmente, capazes de reter vantagens de mercado (quando não domínio) durante algum tempo. Convém frisar

que a tecnologia de telecomunicações tem emergido como um dos principais veículos para obter uma maior aceitação dos padrões técnicos chineses. Os principais fabricantes chineses de equipamentos de telecomunicações – Huawei, ZTE e China Mobile – investiram, ao longo das duas últimas décadas, enormes recursos no desenvolvimento tecnológico e, não menos relevante, atuam em organismos internacionais do setor, como a União Internacional de Telecomunicações, onde Beijing procura definir e controlar padrões, essenciais para a competitividade porque são posteriormente alavancados em negociações comerciais306. Não é de admirar que Beijing veja o setor das telecomunicações como crucial para o êxito da Made in China 2025. Concebendo estas como instrumentos que permitem uma maior penetração em países terceiros, não é mera coincidência que o governo chinês procure usar a Iniciativa Faixa e Rota para construir redes de telecomunicações em todo o mundo. Não admira, pois, que durante a cimeira da NATO de dezembro de 2019, comemorando os 70 anos da aliança, Donald Trump repita as já familiares preocupações com a segurança dos países europeus que pretendem contratar a Huawei para instalar a sua infraestrutura 5G307. Ao mesmo tempo, em Lisboa, Mike Pompeo alegava que a fonte da sua preocupação não era uma “empresa em particular”, mas o regime chinês e seu partido comunista308. Respondendo a Pompeo, a embaixada da China em Lisboa faz uma duríssima repreensão pública, sugerindo que o “manchar” da Huawei refletia a “mentalidade da Guerra Fria e os preconceitos ideológicos enraizados da parte americana”, acrescentando que a verdadeira intenção do governante americano era “nada mais do que suprimir a exploração legítima da empresa tecnológica chinesa sob o pretexto da segurança”309. Para os chineses, as palavras do Secretário de Estado mascaravam uma disputa comercial e consubstanciavam uma tentativa cristalina de dificultar

negócios legítimos. A postura da parte chinesa era, todavia, dissimulada porque, a bem dizer, a discussão não é reduzível a um mero conflito comercial. Trata-se, na realidade, de uma disputa em volta da liderança internacional geopolítica no século XXI. Refira-se que a IA se encontra, ainda na sua infância, aplicada a um número reduzido de negócios e de atividades relacionadas com a Internet. As antecipadas terceira e quarta vagas de desenvolvimento da Inteligência Artificial – perceção e IA autónoma – prometem ser mais disruptivas, até porque contêm maior potencial para transformar assuntos militares por meio da introdução de novos sistemas de armas e de novas formas de ciberguerra310. Algumas dessas armas de nova geração já existem, mas permanecem desconhecidas do público. Contudo, informações de fonte aberta permitem concluir que o desenvolvimento de sistemas de armas autónomas (AWS) progride a passo acelerado311. Tal armamento gera desafios monumentais no âmbito da segurança, que certamente se tornarão ainda mais complexos quando se concretizarem novas descobertas na computação quântica312. Dir-se-á, então, que a natureza dos conflitos militares futuros, e a forma como serão conduzidos, se encontra à beira de uma radical transformação que, e a guerra algorítmica conduzida por sistemas de armas autónomas passará a ser uma característica permanente do conflito internacional. Não se pretende aqui desenvolver tão complexo tema. Apenas se sugere que o objetivo final desta busca da inovação e liderança tecnológica não se reduz à vantagem comercial. Embora obviamente de importância crítica para Beijing, a competitividade económica não reproduz a lógica ocidental. Daí que os EUA tenham alargado o âmbito do seu entendimento da segurança nacional, que passou a incluir as novas tecnologias e a inovação.

  Caminhar pela Faixa e Rota   À primeira vista, parecia contraintuitivo que Xi Jinping selecionasse o Fórum Económico de Davos de ٢٠١٧ para proferir uma importantíssima declaração sobre o livre comércio e a globalização. Afinal, o líder do mais poderoso país comunista deslocava-se a um dos encontros mais paradigmáticos da “ordem liberal internacional” e do capitalismo corporate mundial. Não era apenas o simbolismo que parecia incongruente. Nas afirmações produzidas no discurso intitulado “Responsabilidade Conjunta dos Nossos Tempos, Promova o Crescimento Global”, o homem-forte do PCC afirma que “quer se goste ou não, a economia global é o grande oceano do qual não se pode escapar. Qualquer tentativa de cortar o fluxo de capital, tecnologias, produtos, indústrias e pessoas entre economias é canalizar as águas do oceano de volta para lagos e riachos isolados. Simplesmente não é possível. De fato, contraria a tendência histórica”313. Xi acrescenta que os países “grandes ou pequenos, fortes ou fracos, ricos ou pobres, são todos membros iguais da comunidade internacional. Como tal, têm o direito de participar na tomada de decisões, gozar de direitos e cumprir obrigações em bases iguais. Os mercados emergentes e os países em desenvolvimento merecem maior representação e voz (...). Devemos aderir ao multilateralismo para manter a autoridade e a eficácia das instituições multilaterais. Devemos honrar promessas e cumprir as regras. Não se deve selecionar ou manipular as regras como se achar melhor”314. Eis a teoria e a face do discurso diplomático. Para todos os efeitos, o “líder principal” argumentava que a globalização era imparável e, por conseguinte, qualquer estratégia de dissociação (decoupling) empreendida pelos EUA estava fadada ao fracasso. Na ótica de Xi, o sistema de

comércio internacional assente em regras multilaterais não deveria ser abandonado. Num certo sentido, a defesa da atual ordem comercial não surpreende porque, de forma geral, a República Popular, manipulando ou simplesmente ignorando as regras do comércio internacional traçadas pela OMC, tirou proveito do regime internacional de comércio. Um ano depois, em plena “guerra comercial” com o governo de Donald Trump, o ditador chinês repete a mensagem articulada em Davos. No início de abril de 2018, num discurso no Fórum Boao para a Ásia, Xi inaugura uma “nova fase de abertura”, assumindo compromissos para liberalizar a economia da China, “ampliando significativamente” o acesso ao mercado interno chinês, facilitando as restrições às firmas estrangeiras e reduzindo as tarifas de importação315. Com efeito, estas mesmíssimas promessas são repetidas, ano após ano, desde que a República Popular aderiu à OMC. Ao mesmo tempo que Xi se dizia empenhado em promover as “reformas”, o Gabinete do Representante Comercial dos Estados Unidos informa que a República Popular, desde que ingressou na OMC, violara sistematicamente os seus compromissos destinados a avançar no sentido de uma “política aberta, orientada pelo mercado”, em conformidade com os seus compromissos de adesão. Responsável pela fiscalização das regras de comércio internacional, o Representante Comercial americano apresenta um relatório ao Congresso, em janeiro de 2019, onde concluía que “a China aderiu à OMC, mas não interiorizou as normas de mercado aberto da comunidade da OMC. A China mantém a sua estrutura económica non-market a e sua abordagem mercantilista, liderada pelo estado, em detrimento dos seus parceiros comerciais. Ao mesmo tempo, a China usou os benefícios adquiridos com a adesão à OMC – incluindo a garantia de acesso aberto e não discriminatório aos mercados de outros membros da OMC – para se tornar o maior país comercial da OMC, enquanto resistia aos apelos

à maior liberalização do seu regime comercial porque alega ser um país em vias de desenvolvimento316. Neste brevíssimo parágrafo, o relatório capta a realidade fundamental que impulsiona a política comercial de Beijing e muitas das suas prioridades de política externa. E também atesta as razões que justificam a “guerra comercial” de Washington. Desde que iniciou o seu mandato, a Administração Trump tem expressado uma profunda insatisfação relativamente à OMC e, em meados de julho de 2019, em vésperas de mais uma ronda de negociações no âmbito da “guerra comercial”, o Presidente sentenciou que a organização estava “partida”317. Mais tarde, em janeiro de 2020, durante uma conferência de imprensa realizada na Casa Branca, declarou que a OMC “tem sido muito injusta relativamente aos Estados Unidos, há muitos, muitos anos. E, sem a OMC, a China não seria a China e a China não estaria onde está agora”318. Salienta que, em grande parte como consequência da adesão da RPC à OMC, em dezembro de 2001, Beijing quadruplicou o seu PIB quintiplicou as suas exportações319. Se a deslocação da indústria ocidental criou milhões de empregos na China, uma das consequências da adesão chinesa à OMC foi o consumo excessivo nos Estados Unidos e, como corolário, a diminuição da poupança nacional. Em resposta a Trump, o diretor-geral da OMC, Ricardo Azevedo, admitia que a organização “precisa de ser atualizada. Tem que ser mudada. Tem que ser reformada”320. Em 2002, Bill Clinton caracterizara a OMC nos seguintes termos: “não há substituto para a confiança e a credibilidade que a OMC empresta ao processo de expansão do comércio na base de regras. Não há substituto para o alívio temporário que a OMC oferece à economia nacional, especialmente contra o comércio desleal e os aumentos bruscos das importações. E não há substituto para a autoridade da OMC na resolução de disputas que exigem o respeito de todos os estados membros”321. Vinte anos

depois, quão remoto e naïf parece o juízo de Bill Clinton sobre os méritos da adesão chinesa. Embora “abertura” e “mercados” sejam conceitos centrais da narrativa traçada por Xi sobre a “comunidade de destino comum para a humanidade”, o entendimento do líder chinês quanto ao livre comércio e aos mercados abertos não coincide com as visões americana e europeia. Os decisores ocidentais pedem a abertura do mercado chinês e o cumprimento pleno das normas da OMC porque tendem a concluir que Deng Xiaoping converteu o país às conceções liberais do mercado e do livre comércio. Beijing, em contraste, entende a “abertura” e o “livre comércio” como elementos da integração da China numa economia global adaptada às necessidades do projeto desenvolvimentista chinês. Na nova fase que se enceta, Beijing mantém que as atuais regras reguladoras do comércio mundial e as instituições multilaterais que as encarnam terão de ser reformuladas de forma a dar resposta aos interesses vitais da China. O discurso de Xi em torno da “reforma” das instituições multilaterais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, assenta, precisamente, no pressuposto de que as instituições serão modificadas de modo a acomodar os interesses e as pretensões chinesas322. O mesmíssimo raciocínio leva Beijing a promover o Grupo dos 20, a Cooperação Económica Ásia-Pacífico (APEC) e o Fórum de Cooperação China-África. Nestas novas instituições, criadas em paralelo e, usualmente, não em oposição frontal às organizações multilaterais existentes, o governo chinês impõe novas regras, novos procedimentos, garante novas fidelidades e, por vezes, dependências e relacionamentos de natureza clientelar. A China está, portanto, a criar uma nova ordem paralela que pretende sobrepor às instituições existentes, que também são paulatinamente transformadas pela RPC de dentro para fora. Enquanto Washington insiste, erroneamente, que a “abertura” da China é fundamentalmente uma questão de

acesso ocidental ao mercado chinês, Beijing busca uma revolução silenciosa da ordem internacional, mudando gradualmente o sistema multilateral de acordo com os seus interesses vitais e cujo desfecho último será deixar essas organizações fundamentalmente irreconhecíveis. Esta lógica global da “comunidade de destino comum para a humanidade” preconizada por Xi manifesta-se através da Iniciativa Faixa e Rota, que “conecta o Sonho Chinês às aspirações do mundo inteiro em prol da paz e do desenvolvimento”323. Extremamente ambicioso, o projeto de Xi, lançado em 2013, afigura-se como o instrumento privilegiado de Beijing para concretizar a visão do “líder principal” no tocante à construção à “comunidade de destino comum”. A primeira menção da construção de um Cinturão Económico da Rota da Seda e de uma Rota Marítima da Seda do Século XXI foi feita por Xi Jinping nos últimos meses de 2013324. Afirmou que, por via terrestre, o Cinturão Económico da Rota da Seda pretendia conectar a fronteira ocidental chinesa à Ásia Central e, finalmente, à Europa. A Rota da Seda Marítima previa uma rede de portos e ferrovias a conectar o sul da China ao Sudeste Asiático e, finalmente, à África. Alternativamente designada como Uma Faixa, Uma Rota (OBOR) ou Iniciativa Faixa e Rota, a visão de Xi consubstancia um programa ambicioso de construção de infraestruturas para interligar as regiões fronteiriças chinesas menos desenvolvidas com os países vizinhos. É sabido que a Rota da Seda original, uma rede comercial desenvolvida em plena dinastia Han à medida que o comércio fluía para o oeste, estendeu-se desde as vastas terras da Ásia Central (passando pela Índia e Paquistão de hoje) até à Europa continental. Hoje, mapas chineses a ilustrar a Iniciativa Faixa e Rota traçam percursos imprecisos, confirmando que a iniciativa é definida à medida que corredores são adicionados (e, ocasionalmente, subtraídos) às novas geografias. Não é, portanto, um

projeto fechado. Em termos imediatos, a Iniciativa Faixa e Rota visa assegurar a conectividade por meio de infraestruturas físicas e digitais entre a China e o mundo exterior325. É, aliás, desta forma que a iniciativa é genericamente entendida no Ocidente, como uma espécie de Plano Marshall. Mas a conectividade contém uma ressalva crítica: o mundo adaptar-se-á às regras, padrões e prioridades de Beijing. A importância estratégica do projeto foi destacada durante o XIX Congresso do PCC, em outubro de 2017, altura em que o partido alterou a sua constituição para englobar a Iniciativa Faixa e Rota e a construção de “uma comunidade de destino comum”, a visão geopolítica que a sustenta326. A alteração constitucional visa sinalizar que estes objetivos estratégicos passaram a ser linhas mestras da política externa, que serão prosseguidos mesmo depois de Xi abandonar a liderança do país. No balanço provisório da iniciativa feito no discurso de Davos de 2017, Xi atestara que, nos três anos anteriores, “mais de 100 países e organizações internacionais deram respostas calorosas e apoio à IFR. Mais de 40 países e organizações internacionais assinaram acordos de cooperação com a China e aumentou o nosso círculo de amigos ao longo da Faixa e Rota. As empresas chinesas fizeram mais de US $50 bilhões em investimentos e lançaram vários projetos importantes nos países ao longo das rotas, estimulando o desenvolvimento económico desses países e criando muitos empregos locais. A Iniciativa Faixa e Rota teve origem na China, mas trouxe benefícios muito para além das suas fronteiras”327. A IFR, em suma, tornou-se no instrumento privilegiado para a disseminação da influência internacional da China, o que, aliás, explica os imensos recursos estatais que lhe foram alocados. Geralmente descrito pelos media ocidentais como um projeto de construção massiva de infraestruturas, a IFR é vista em Beijing como um instrumento para vincular países à China por meio da conectividade e, assim, obter, para

Beijing, vantagem geopolítica. Quando inicialmente apresentada, a IFR proporcionava uma resposta imediata ao “pivô” do governo Obama e à sua Parceria Trans-Pacífica. Porém, a discussão relativa às opções estratégicas da RPC, com incidência particular no Sudeste Asiático, antecedeu o “pivô” americano. Em finais de 2013, aquando da Conferência de Trabalho sobre Diplomacia Periférica, que contou com a participação de todos os membros do Comité Permanente do Politburo, indiciando a sua importância, Xi apelou ao fortalecimento das relações com os países circundantes porque estes detinham “valor estratégico extremamente significativo” para a China. Acrescentara que “a estabilidade na vizinhança da China é o objetivo principal da diplomacia periférica. Devemos incentivar e participar no processo de integração económica regional, acelerar o processo de construção de infraestrutura e conectividade. Precisamos de construir o Cinturão Económico da Rota da Seda e a Rota Marítima da Seda do século XXI, criando uma nova ordem económica regional”328. Dito de forma diferente, os recursos financeiros e económicos chineses são concebidos como uma ferramenta para manter a estabilidade regional e para afirmar a liderança de Beijing na vizinhança. Os instrumentos até podem ser o investimento e as infraestruturas, mas o objetivo da conetividade é de natureza geopolítica. Crescentemente assertiva, a nova política externa chinesa reforçou a suspeição de que a IFR era impulsionada por aspirações geoestratégicas de dimensão mundial. Essas dimensões geoestratégica e geoeconómica da IFR são claramente exemplificadas pelo Corredor Económico ChinaPaquistão (CPEC), que liga Kashgar, em Xinjiang, à cidade portuária paquistanesa de Gwadar, situada na costa de Makran, na orla do Mar Arábico329. O CPEC concebe Gwadar como ponto de transbordo e o corredor interior que liga à cidade de Kashgar permite que a China contorne o “ponto de estrangulamento” do Estreito de Malaca e as águas

contestadas do Mar do Sul da China. Descrito como o porto de águas mais profundas do mundo, Gwadar poderá, à medida que a Marinha do Exército de Libertação Popular estende a sua presença ao Oceano Índico, hospedar portaaviões e submarinos330. O projeto é, obviamente, estratégico para os paquistaneses, cujo Ministro das Relações Exteriores, Shah Mahmood Qureshi, o caracterizou como um “projeto transformacional e a sua conclusão é a principal prioridade do atual governo”331. A primeira fase do CPEC, enfatizando a infraestrutura física, principalmente energia e estradas (e, mais perturbador, um sistema de monitorização e vigilância para as cidades do país), deu lugar à segunda fase, assente em “zonas económicas exclusivas” vocacionadas para a modernização da agriculta, da indústria e para o desenvolvimento socioeconómico da população332. Mas o custo do projeto, espelhando a “armadilha da dívida” num país economicamente fragilizado, tem vindo a explodir: inicialmente orçamentado em US $46 bilhões, supera agora os US $62 bilhões. Do ponto de vista económico, Gwadar é vital para Xinjiang, província sem acesso ao mar, pois os custos de transporte para essa região podem ser substancialmente reduzidos por um corredor originário no litoral do Paquistão. Contudo, o motivo subjacente ao corredor é político. Acreditando que a pobreza e o subdesenvolvimento são a principal causa do separatismo na província, Beijing mantém que a conectividade entre Xinjiang e a grande Ásia Central neutralizará o movimento independentista, especificamente o Movimento Islâmico do Turquestão Oriental (ETIM)333. A preocupação com o desenvolvimento de Xinjiang não é recente, pois, a fim de mitigar as assimetrias regionais entre as províncias ocidentais e costeiras, Jiang Zemin, em 1999, lança a campanha popularmente conhecida como “vá para o oeste!”, um plano de promoção do crescimento assente em investimentos massivos em infraestrutura (rodovias, ferrovias, telecomunicações)334. Excluindo estas novas

infraestruturas físicas, os avolumados dinheiros alocados pelo governo central produziram parcos resultados, razão pela qual Beijing tem acentuado a repressão da população local nos últimos anos. Beijing tenta agora utilizar a IFR para integrar as suas províncias ocidentais na economia mundial, a mesma estratégia seguida nas regiões pobres da China que fazem fronteira com o Sudeste Asiático. Ultimamente, no Paquistão, o CPEC tem sido confrontado com obstáculos políticos semelhantes aqueles que a China enfrenta noutros países englobados pela IFR. Enquanto liderava a oposição, Imran Khan, eleito Primeiro-Ministro em 2018, criticara frequentemente o projeto negociado pelo governo da Liga Muçulmana do Paquistão (Nawaz), apontando a corrupção, os custos gigantescos, o uso de trabalhadores chineses em vez de mão-de-obra local e os riscos de uma dívida insustentável. Com efeito, a questão da “armadilha da dívida” preocupa a maioria dos observadores, e não apenas no Paquistão, porque, de forma geral, os países que assinaram a IFR já se encontram profundamente endividados e, portanto, aceitam condições predatórias impostas por Beijing. As autoridades chinesas negam praticar “diplomacia da armadilha da dívida”, mas a confiscação pelos chineses do porto de Hambantota, no Sri Lanka, sugere que o endividamento associado às iniciativas do Faixa e Rota será um instrumento para manter os parceiros submissos aos interesses de Beijing335. À medida que a China se vê envolvida nos conflitos internos paquistaneses, a opinião pública do país torna-se crescentemente crítica do regime de Beijing. Repreende o tratamento dos muçulmanos uigures e denuncia as pressões diplomáticas de Beijing para cancelar uma investigação ordenada por Islamabad ao tráfico de mais de ٦٠٠ noivas paquistanesas para a China336. Neste quadro, não surpreende que o partido Tehreek-e-Insaf de Imran Khan tenha pedido a revisão dos acordos do CPEC e reduzido as dotações orçamentais previstas para o cumprimento do

projeto. Acrescenta-se que a lógica das rivalidades geopolíticas dos estados da região arrasta a China para complexos problemas de segurança. Dado que Islamabad desconfia da aproximação de Nova Deli aos Estados Unidos e aos seus aliados do Indo-Pacífico, existem escassas possibilidades de o Paquistão se retirar da rede de dependências gerada pela sua parceria com Beijing. Contudo, a China está ciente de que o CPEC constitui um obstáculo à participação da Índia na IFR. Para o bem ou para o mal, o Paquistão encontra-se na órbita geoestratégica de Beijing, exemplificando o quanto a retórica de Xi de em matéria de “relações iguais” apoiadas em parcerias bilaterais pode reduzir significativamente a margem de manobra estratégica de um país. O valor estratégico da IFR depende da forma como os projetos se venham a articular para estruturar as cadeias de produção, com a China como hub central da inovação, do fabrico avançado e do estabelecimento de padrões técnicos337. Beijing espera que a IFR desempenhe um papel essencial na abertura dos novos mercados aos produtos chineses de alta qualidade que ainda hoje se deparam com dificuldade em penetrar nos exigentes mercados europeu e americano. As autoridades esperam ainda que novas cadeias de produção forcem os fabricantes chineses a subir nas cadeias de valor. Ao exportar os seus produtos e serviços, a RPC também exporta padrões chineses indispensáveis para que o país se torne no principal polo mundial de investigação científica e desenvolvimento tecnológico. As telecomunicações e a tecnologia ferroviária de alta velocidade exemplificam a forma como a IFR pode ser aproveitada para modernizar a indústria chinesa. A ligação ferroviária de alta velocidade Jacarta-Bandung revela como Beijing pretende usar a IFR para promover a sua tecnologia de ponta e a engenheiria, bem como os seus padrões técnicos. Rejeitada a proposta do Japão num concurso fortemente contestado, a Indonésia assinou o

contrato de construção com a China em outubro de 2015. Fê-lo, pelo menos formalmente, porque Beijing aceita financiar o projeto em troca do uso de “padrões chineses, tecnologia chinesa e equipamentos chineses”338. Não muito diferente de outros projetos envolvendo empresas chinesas, o acordo alimentou controvérsia e suspeitas generalizadas quanto à corrupção e práticas comerciais predatórias da China. É importante notar que a construção da linha JakartaBandung será deficitária. Todavia, em vez de se enfatizar a ausência da racionalidade económica do empreendimento, deve-se entender este tipo de projetos deficitários como investimentos a longo prazo em troca da adoção futura de tecnologia, conhecimento e padrões chineses. Visto assim, os benefícios económicos e políticos dos projetos IFR passam a ser mais do que óbvios. É nesse contexto que a decisão de Donald Trump de retaliar contra as práticas comerciais chinesas, a chamada “guerra comercial”, deve ser analisada. A bom rigor, “guerra comercial” é um termo impróprio para o aumento de tarifas alfandegárias num quadro de intensificação da rivalidade geopolítica sino-americana. O comércio foi totalmente politizado e, agora, é uma das muitas esferas em que essa luta geopolítica global se desenvolve. Em maio de 2019, com a “guerra comercial” a deflagrar, Xi Jinping visita a província de Jiangxi, onde o Exército Vermelho iniciou a sua mítica Longa Marcha. Reagindo à decisão de Washington de colocar a Huawei na sua lista negra comercial, Xi, invocando o espírito da luta de resistência, exorta os seus compatriotas a mobilizarem-se para “uma nova Longa Marcha, e temos de começar tudo de novo”339. Pouco depois, Xi desloca-se a uma instalação de mineração e processamento de terras raras, um sinal subtil de que a China poderia proibir a exportação de minérios essenciais para o fabrico de componentes eletrónicos e outros produtos de alta tecnologia340. Embora ainda hoje o negue, Beijing impôs uma proibição (nunca formalmente declarada)

à exportação de terras raras para o Japão após a colisão de navios destes dois países em Senkaku, em 2010341. Relatando a visita de Xi, a agência noticiosa Xinhua afirmava que “o bullying do lado dos EUA” fora a causa do fracasso das negociações comerciais, acrescentando que “a China se preparava totalmente para uma prolongada guerra comercial com os Estados Unidos, pois parece altamente possível que os atritos comerciais entre a China e os Estados Unidos estão longe de terminar. Todo o povo chinês está pronto para embarcar numa nova “Longa Marcha” com maior coragem e resiliência e nunca cederá ao bullying e assalto estrangeiros”342. A rivalidade estratégica com os Estados Unidos e os seus aliados deixara de ser negável. 260 . Sobre as “Três Representações” de Jiang Zemin, cf., Joseph Fewsmith, “Studying the Three Represents”, China Leadership Monitor, Hoover Institution, No. 8, Outono de 2003, pp. 1-11, disponível emt: https://www.hoover.org/sites/default/files/uploads/documents/clm8_jf.pdf. 261 . Ver, por examplo, Zheping Huang, “China’s most popular app is a propaganda tool teaching Xi Jinping Thought”, South China Morning Post, 24 de fevereiro de 2019, disponível em: https://www.scmp.com/tech/appssocial/article/2186037/chinas-most-popular-app-propaganda-tool-teaching-xijinping-thought e Sarah Cook, “The Chinese Communist Party’s Latest Propaganda Target: Young Minds”, Perspectives, Freedom House, 30 de abril de 2019, disponível em: https://freedomhouse.org/article/chinese-communistpartys-latest-propaganda-target-young-minds. 262 . Sobre o fim da liderança coletiva, a concentração de poder em Xi Jinping e as mudanças institucionais resultantes do fim da liderança coletiva, ver, inter alia, Sangkuk Lee, “An Institutional Analysis of Xi Jinping’s Centralization of Power”, Journal of Contemporary China, Vol. No. 26, No. 105, 2017, pp. 325-336 e Björn Alexander Düben, “Xi Jinping and the End of Chinese Exceptionalism”, Problems of Post-Communism, Vol. 67, No. 2, 2020, pp. 111-128. 263 . Sobre o “caso Bo”, ver, Yuezhi Zhao, “The Struggle for Socialism in China: The Bo Xilai Saga and Beyond”, Monthly Review, Vol. 64, No. 5, outubro de 2012, pp. 1-17 e Alice L. Miller, “The Bo Xilai Affair in Central Leadership Politics”, China Leadership Monitor, No. 38, Verão de 2012, 6 de agosto de 2012, consultado em:https://www.hoover.org/sites/default/files/uploads/documents/CLM38AM.pdf. Gu Kailai, a mulher de Bo, alegou ter sofrido um “colapso mental” depois de ter sido chantageada por Heywood, que também ameaçou seu filho. Aparentemente confessou o assassinato, talvez a razão por que o seu julgamento se prolongou apenas durante sete horas. O episódio permanece opaco, mas o timing dos acontecimentos foi fortuito para os rivais políticos de

Bo. Cf., Edward Wong and Andrew Jacobs, “Blackmail Cited as Motive in a Killing That Shook China”, The New York Times, 10 de agosto de 2012, consultado em: https://www.nytimes.com/2012/08/11/world/asia/blackmail-emerges-as-gu-kailaimotive-for-heywood-killing-in-china.html?pagewanted=1&hp. 264 . Cf., Yuezhi Zhao, “The Struggle for Socialism in China: The Bo Xilai Saga and Beyond”, p. 1. Ver, também, Joseph Fewsmith, “Bo Xilai and Reform: What Will Be the Impact of His Removal?”, China Leadership Monitor, Hoover Institution, No. 38, Verão de 2012, pp. 1-11, disponível em: https://www.hoover.org/sites/default/files/uploads/documents/CLM38JF.pdf. 265 . Sobre os neo-maoistas, ver, Kerry Brown and Simone Van Nieuwenhuizen. China and the New Maoists. London: Zed Books, 2016 e Jude D. Blanchette. China’s New Red Guards: The Return of Radicalism and the Rebirth of Mao Zedong. Oxford: Oxford University Press, 2019. 266 . Ver, Lin Chun, “China’s leaders are cracking down on Bo Xilai and his Chongqing model” The Guardian, 22 de abril de 2012, consultado em:https://www.theguardian.com/commentisfree/2012/apr/22/china-leaderscracking-down-chongqing-xilai. 267 . Para um argumento que postula que, mesmo após a queda de Bo, o “Modelo Chongqing” continuou a ter ressonância junto dos setores mais desfavorecidos da sociedade chinesa, ver, Lance P. Gore, “The Fall of Bo Xilai and the Seduction of the Chongqing Model”, East Asian Policy, Vol. 4, No. 2, abril/junho de 2012, pp. 53-61. 268 . Cf., Joseph Y. S. Cheng, “The ‘Chongqing Model?: What It Means to China Today”, Journal of Comparative Asian Development, Vol. 12, No. 3, dezembro de 2013, pp. 411-442. 269 . Ver, David Barboza, “Billions in Hidden Riches for Family of Chinese Leader”, The New York Times, 25 de outubro de 2012, disponível em: https://www.nytimes.com/2012/10/26/business/global/family-of-wen-jiabaoholds-a-hidden-fortune-in-china.html. 270 . Para detalhes biográficos, ver, Kerry Brown. CEO, China: The Rise of Xi Jinping. Londres: I.B. Tauris, 2016 e Evan Osnos, “Born Red: How Xi Jinping, an unremarkable provincial administrator, became China’s most authoritarian leader since Mao”, The New Yorker, 30 de março de 2015, consultado em: https://www.newyorker.com/magazine/2015/04/06/born-red?. 271 . Cf., “One million Chinese officials punished for corruption”, BBC News, 24 de outubro de 2016, consultado em: https://www.bbc.com/news/world-asiachina-37748241. 272 . Cf., Xiaobo Lü. Cadres and Corruption: The Organizational Involution of the Chinese Communist Party. Stanford: Stanford University Press, 2000. 273 . Para o texto completo, ver, “Report of Hu Jintao to the 18th CPC National Congress”, 12 de novembro de 2012, disponível em: http://www.china.org.cn/china/18th_cpc_congress/201211/16/content_27137540 _12.htm. 274 . Cf., Guilhem Fabre, “Xi Jinping’s Challenge: What is Behind China’s AntiCorruption Campaign?”, Journal of Self-Government and Management Economics, Vol. 5, No. 2, 2017, pp. 7-28; Andrew Wedeman, “Xi Jinping’s Tiger Hunt: Anticorruption campaign or factional Purge?”, Modern China Studies, Vol. 24, No. 2, 2017, pp. 35-94; Kerry Brown, “The AntiCorruption Struggle in Xi

Jinping’s China: An Alternative Political Narrative”, Asian Affairs, Vol. 49, No. 11, 2018, pp. 1-10; Macabe Keliher and Hsinchao Wu, “How to Discipline 90 Million People”, The Atlantic, 7 de abril de 2015, consultado em: https://www.theatlantic.com/international/archive/2015/04/xi-jinping-chinacorruption-political-culture/389787/ e Alexandra Fiol-Mahon, “Xi Jinping’s AntiCorruption Campaign: The Hidden Motives of a Modern –Day Mao”, Foreign Policy Research Institute, 17 de agosto de 2018, disponível em: https://www.fpri.org/article/2018/08/xi-jinpings-anticorruption-campaign-thehidden-motives-of-a-modern-day-mao/. 275 . Ver, Jon S.T. Quah, “Hunting The Corrupt ‘Tigers’ and ‘Flies’ in China: An Evaluation of Xi Jinping’s Anti Corruption Campaign (novembro de 2012 a março de 2015)”,Maryland Series in Contemporary Asian Studies, Occasional Papers, Carey School of Law, University of Maryland, 2015, pp. 1-98, disponível em: https://digitalcommons.law.umaryland.edu/cgi/viewcontent.cgi? referer=https://scholar.google.com/scholar? hl=ptPT&as_sdt=0%2C5&q=xi+anticorruption+one+million+members&btnG=& httpsredir=1&article=1224&context=mscas. 276 . Cf., “China Unveils Three State Administrations on Film, Press, Television,” Xinhua, 16 de abril de 2018, disponível em: http://www.xinhuanet.com/english/2018-04/16/c_137115379.htm. 277 . Cf., Hui Jin, “Research on the Development of Socialism with Chinese Characteristics from the Perspective of Four Self-Confidence”, Open Journal of Political Science, 10, 2020, pp. 41-49. 278 . Ver, Chris Buckley e Amy Qin, “Xi Praises a Student Protest in China. From 100 Years Ago”, The New York Times, 29 de abril de 2019, disponível em: https://www.nytimes.com/2019/04/29/world/asia/china-xi-jinping-speech-may-4protest.html. 279 . Ibid. 280 . Citado em Antonio Talia, “China’s National Dream Needs Chinese Power: the New Era in Xi’s Thought”, Italian Institute for International Political Studies, 6 de abril de 208, p. 3, consultado em: https://www.ispionline.it/sites/default/files/pubblicazioni/commentary_talia_06.04 .2018.pdf. 281 . Ver, Cary Huang, “Just what is Xi Jinping’s ‘Chinese dream’ and ‘Chinese renaissance’?”, South China Morning Post, 6 de fevereiro de 2013, disponível em: https://www.scmp.com/news/china/article/1143954/just-what-xi-jinpingschinese-dream-and-chinese-renaissance. 282 . Cf., François Bougon, Inside the Mind of Xi Jinping, p. 24. 283 . Zheng Wang descreve sucintamente o significado intuitivo do conceito no contexto chinês nos seguintes termos: “Embora os estrangeiros quase sempre falam da ‘ascensão’ da China, os chineses gostam de se referir às suas impressionantes realizações recentes e ao futuro desenvolvimento planeado como ‘rejuvenescimento’ (fuxing). O uso desta palavra sublinha um ponto essencial: os chineses vêem a sua fortuna como um retorno à grandeza e não uma ascensão do nada. Na verdade, o rejuvenescimento está profundamente enraizado na história chinesa e na experiência nacional, especialmente no que diz respeito ao chamado ‘século da humilhação nacional’. (...) Embora o significado do ‘Sonho Chinês’ seja prático e intuitivamente compreendido no

país, tem a infeliz consequência de permanecer opaco para não-chineses”. Ver, Zheng Wang, “Not Rising, but Rejuvenating: The ‘Chinese Dream’, The Diplomat, 5 de fevereiro de 2013, disponível em: https://thediplomat.com/2013/02/chinese-dream-draft. 284 . Para dados económicos comparativos da China e dos Estados Unidos, ver, “China’s Economic Rise: History, Trends, Challenges, and Implications for the United States”, CRS: Congressional Research Service, updated June 25, 2019, disponível em: https://fas.org/sgp/crs/row/RL33534.pdf. 285 . Cf., Peter Ferdinand, “Westward ho—the China dream and ‘one belt, one road’: Chinese foreign policy under Xi Jinping”, International Affairs, Vol. 92, No. 24, 2016, p. 941. 286 . Ver, World Bank Development Indicators data, disponível em: https://databank.worldbank.org/reports.aspx? source=2&series=NY.GDP.PCAP.CD&country=PRT,CHN,USA. 287 . Cf., Joseph Fewsmith, “Promoting the Scientific Development Concept”, China Leadership Monitor, Hoover Institution, No. 11, 30 de julho, Verão de 2004, pp. 1-10, disponível em: https://www.hoover.org/sites/default/files/uploads/documents/clm11_jf.pdf. 288 . Cf., “Full text of Hu Jintao’s report at 17th Party Congress”, Qiushi, 30 de setembro de 2011, consultado em: http://www.cscc.it/upload/doc/full_text_of_hu_jintaos_report_at_17th_party_congr ess___qiushi_journal.pd. Para uma comparação, ver, “Full text of Hu Jintao’s report at 18th Party Congress”, People’s Daily, 19 de novembro de 2012, disponível em: http://en.people.cn/90785/8024777.html. 289 . Cf., The World Bank and Development Research Center of the State Council, the People’s Republic of China, China 2030: Building a Modern, harmonious, and Creative Society. Washington DC, 2013, p. 12. 290 . Cf., Jost Wübbeke, Mirjam Meissner, Max J. Zenglein Jaqueline Ives e Björn Conrad, “Made in China 2025: The making of a high-tech superpower and consequences for industrial countries”, Mercator Institute for China Studies (MERICS), No. 2, dezembro de 2016, disponível em: https://www.merics.org/sites/default/files/201709/MPOC_No.2_MadeinChina2025.pdf. Também, “Strategic Plan of Made in China 2025 and Its Implementations” (with Ma H.), Analysing the Impacts of Industry 4.0 in Modern Business Environments. 2018, pp. 1-23. IGI Global, disponível em: https://www.researchgate.net/publication/326392969_Strategic_plan_of_Made_in _China_2025_and_its_implementation; Scott Kennedy, “Made in China 2025”, Critical Questions, Centre for Strategic and International Studies, 1 de junho de 2015, consultado em: https://www.csis.org/analysis/made-china-2025 e Mirjam Meisnner and Jost Wüebbeke, ‘China’s High-Tech Strategy Raises the Heat on Industrial Countries’ The Diplomat, 16 de dezembro de 2016, consultado em: https://thediplomat.com/2016/12/chinas-high-tech-strategy-raises-the-heat-onindustrial-countries/. 291 . Cf., “Made in China 2025” plan unveiled to boost manufacturing”, GB Times, 20 de maio de 2015, disponível em: https://gbtimes.com/made-china2025-plan-unveiled-boost-manufacturing. 292 . Anunciada em julho de 2010, a Estratégia de Alta Tecnologia 2020 para a Alemanha enfatiza a pesquisa e a inovação. A inovação é orientada para cinco

áreas prioritárias: clima/energia, saúde/nutrição, mobilidade, segurança e comunicações. O objetivo de Berlim é aumentar a digitalização e a interconetividade de produtos num período de dez a quinze anos, obtendo assim vantagens na manufaturação digital. A tecnologia de informação e a internetdas-coisas são de importância crítica porque, ao conectar as empresas alemãs às cadeias de produção globais, estas companhias tornar-se-ão mais competitivas. O Ministério Federal da Educação e Pesquisa atualizou a estratégia 2020. 293 . Cf., The State Council of the People’s Republic of China, “Made in China 2025 plan issued”, 19 de maio de 2015, disponível em: http://english.www.gov.cn/policies/latest_releases/2015/05/19/content_28147511 0703534.htm. Dez setores são prioritários a fim de desenvolver e modernizar a indústria chinesa: tecnologia de informação avançada, robótica e maquinaria automatizada, equipamento aeroespacial e aeronáutico, equipamento marítimo e transporte marítimo hi-tech, equipamento moderno de transporte ferroviário, veículos e equipamentos de novas energias, equipamento elétrico, equipamentos agrícolas, novos materiais, produtos médicos avançados e biofarmácia. A importância do último tornou-se evidente para todos durante a “crise Covid”. 294 . Cf., Nicholas R. Lardy. The State Strikes Back: The End of Economic Reform in China?. Washington: Peterson Institute for International Economics, 2019, p. 2. 295 . Ver, The White House, “Remarks by Vice President Pence on the Administration’s Policy Toward China”, The Hudson Institute, Washington, DC, 4 de outubro de 2018, disponível em: https://www.whitehouse.gov/briefingsstatements/remarks-vice-president-pence-administrations-policy-toward-china/. 296 . Para informação adicional sobre as principais empresas tecnológicas chinesas, ver, Rebecca A. Fannin. Tech Giants of China. Boston: Nicholas Brealey Publishing, 2019. Sobre a estratégia internacional da Huawei, ver, Brian Low, “Huawei Technologies Corporation: from local dominance to global challenge?”, Journal of Business and Industrial Marketing, Vol. 22 No. 2, 2007, pp. 138-144 e Sunny li Sun, “Internationalization Strategy of MNEs from Emerging Economies: The Case of Huawei”, Multinational Business Review, Vol. 17, No. 2, 2009, pp. 133-159, 2009, disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm? abstract_id=1528265. 297 . Cf., Nicholas R. Lardy, The State Strikes Back, pp. 99-117. Estas práticas estão exaustivamente documentadas no Relatório do Representante Comercial americano de março de 2018, resultante da investigação das injustas práticas comerciais, autorizadas pela Section 301. Ver, Office of the United States Trade Representative, Executive Office of the President, “Findings of the Investigation into China’s Acts, Policies, and Practices Related to Technology Transfer, Intellectual Property, and Innovation Under Section 301 of the Trade Act of 1974”, 22 de março de 2018, disponível em: https://ustr.gov/sites/default/files/Section%20301%20FINAL.PDF. 298 . Para uma discussão, ver, Elizabeth C. Economy, The Third Revolution, pp. 121-151. 299 . Ver, Xiaomin Mou, “Artificial Intelligence: Investment Trends and Selected Industry Uses”, International Finance Corporation, EM Compass, Note 71,

setembro de 2019, p. 2, consultado em: https://www.ifc.org/wps/wcm/connect/7898d957-69b5-4727-9226277e8ae28711/EMCompass-Note-71-AI-Investment-Trends.pdf? MOD=AJPERES&CVID=mR5Jvd6. 300 . Cf., por examplo, Adam Segal, “When China Rules the Web: Technology in Service of the State”, Foreign Affairs, Vol. 97, No. 5, setembro/outubro de 2018, pp. 10-18. 301 . Ver, Sarah Zhang, “China’s Artificial-Intelligence Boom”, The Atlantic, 16 de fevereiro de 2017, disponível em: http://paramita.co/wpcontent/uploads/2018/01/Chinas-Artificial-Intelligence-Boom_The-Atlantic.pdf. 302 . Cf., Kai-Fu Lee. AI Superpowers: China, Silicon Valley and the New World Order. Nova Iorque: Houghton Mifflin Harcourt, 2018 e Sophie-Charlotte Fischer, “Artificial Intelligence: China’s High-Tech Ambitions”, CSS Analyses in Security Policy, No. 220, fevereiro de 2018, disponível em: https://www.researchcollection.ethz.ch/bitstream/handle/20.500.11850/321542/CSSAnalyse220EN.pdf?sequence=1&isAllowed=y. 303 . Ver, por examplo, Amy Hawkins, “Beijing’s Big Brother Tech Needs African Faces, Foreign Policy, 24 de julho de 2018, disponível em: https://foreignpolicy.com/2018/07/24/beijings-big-brother-tech-needs-africanfaces/. 304 . O texto completo da “ordem executiva” presidencial pode ser consultado em The White House, “Executive Order on Addressing the Threat Posed by TikTok”, 6 de agosto de 2020, disponível em: https://www.whitehouse.gov/presidential-actions/executive-order-addressingthreat-posed-tiktok/. Sobre os eventuais efeitos negativos da ordem, cf., Keman Huang e Stuart Madnick, “The TikTok Ban Should Worry Every Company”, Harvard Business Review, 28 de agosto de 2020, disponível em: https://hbr.org/2020/08/the-tiktok-ban-should-worry-every-company. 305 . Para uma discussão, cf., Daniel Immerwahr. How to Hide an Empire: A Short History of the Greater United States. Londres: Bodley Head, 2019, pp. 298316. 306 . Ver, Samm Sacks and Manyi Li, “How Chinese Cybersecurity Standards Impact Doing Business In China,” CSIS Briefs, agosto de 2018, pp. 1-15, disponível em: https://csis-prod.s3.amazonaws.com/s3fspublic/publication/180802_Chinese_Cybersecurity.pdf? EqyEvuhZiedaLDFDQ.7pG4W1IGb8bUGF. 307 . Ver, George Parker, Helen Warrell e Nic Fildes, “Boris Johnson toughens stance on Huawei after Trump lobbying”, Financial Times, 4 de dezembro de 2019, consultado em: https://www.ft.com/content/b4bbd218-16a2-11ea-8d736303645ac406 e Sebastian Payne e Katrina Manson, “Donald Trump ‘apoplectic’ in call with Boris Johnson over Huawei”, Financial Times, 6 de fevereiro de 2020, disponível em: https://www.ft.com/content/a70f9506-48f1-11ea-aee29ddbdc86190d. Depois de alguma hesitação, a NATO introduziu a questão do 5G na sua agenda. A Declaração Final de Londres de dezembro de 2019 do Conselho do Atlântico Norte afirma: “Estamos a abordar a amplitude e a escala das novas tecnologias para manter a nossa vantagem tecnológica, enquanto preservamos os nossos valores e normas. Continuaremos a aumentar a resiliência das nossas sociedades, bem como da nossa infraestrutura crítica e da

nossa segurança energética. A NATO e os Aliados, de acordo com a respetiva autoridade, estão empenhados em garantir a segurança das nossas comunicações, incluindo o 5G, reconhecendo a necessidade de confiar em sistemas seguros e resilientes. Reconhecemos que a influência crescente da China e das suas políticas internacionais apresentam tanto oportunidades como desafios que precisamos de enfrentar juntos como uma Aliança”. Ver, London Declaration Issued by the Heads of State and Government participating in the meeting of the North Atlantic Council in London 3-4 December 2019, disponível em: https://www.nato.int/cps/en/natohq/official_texts_171584.htm. 308 . Cf., “Pompeo alerta Portugal contra Huawei. ‘Mentalidade da Guerra Fria’, diz embaixada da China”, Diário de Notícias, 6 de dezembro de 2019, consultado em: https://www.dn.pt/dinheiro/pompeo-alerta-portugal-contrahuawei-mentalidade-da-guerra-fria-diz-embaixada-da-china-11586440.html. 309 . Ver, “Chinese embassy in Portugal refutes Pompeo’s anti-China allegations”, Xinhua, 12 de maio de 2020, consultado em: http://www.xinhuanet.com/english/2019-12/06/c_138611653.htm. 310 . Para uma discussão sobre a Europa, cf., Meia Nouwens e Helena Legarda, “Emerging technology dominance: what China’s pursuit of advanced dual-use technologies means for the future of Europe’s economy and defense innovation”, The International Institute of Strategic Studies (IISS), dezembro de 2018, disponível em: https://www.merics.org/sites/default/files/201812/181218_Emerging_technology_dominance_MERICS_IISS.pdf. 311 . Ver, inter alia, Brad Smith e Carol Ann Browne. Tools and Weapons: The Promise and Peril of the Digital Age. Nova Iorque: Penguin Press, 2019; Paul Scharre. Army of None: Autonomous Weapons and the Future of War. Nova Iorque: W.W. Norton, 2018 e Pavel Sharikov, “Artificial intelligence, cyberattack, and nuclear weapons – A dangerous combination”, Bulletin of the Atomic Scientists, Vol. 74, No. 6, 2018, pp. 368-373. 312 . Cf., por exemplo, Katie Kline, Marco Salvo e Donyae Johnson, “How Artificial Intelligence and Quantum Computing are Evolving Cyber Warfare”, The Institute of World Politics, 27 de março de 2019, disponível em: https://www.iwp.edu/cyber-intelligence-initiative/2019/03/27/how-artificialintelligence-and-quantum-computing-are-evolving-cyber-warfare/. 313 . Ver, The State Council Information Office, The People’s Republic of China. “Full Text: Xi Jinping’s keynote speech at the World Economic Forum”, Davos, Switzerland, 17 de janeiro de 2017, disponível em: http://www.china.org.cn/node_7247529/content_40569136.htm. 314 . Ibid. 315 . Cf., Sarah Zheng, “Xi Jinping’s defence of globalisation and open markets: key takeaways from Chinese leader’s speech to Boao Forum”, South China Morning Post, 10 de abril de 2018, consultado em: https://www.scmp.com/news/china/economy/article/2141032/xi-jinpingsdefence-globalisation-and-open-markets-key-takeaways. 316 . Cf., Office of the United States Trade Representative, “2018 Report to Congress On China’s WTO Compliance”, fevereiro de 2019, p. 5, disponível em: https://ustr.gov/sites/default/files/2018-USTR-Report-to-Congress-on-China%27sWTO-Compliance.pdf. 317 . Ver, Jacob M. Schlesinger e Alex Leary, “Trump Denounces Both China and

WTO”, The Wall Street Journal, 26 de julho de 2019, disponível em: https://www.wsj.com/articles/trump-presses-wto-to-change-china-s-developingcountry-status-11564166423. 318 . Cf., “WTO has been very unfair to US for many years: Trump”, Business Standard, 23 de janeiro de 2000, consultado em: https://www.businessstandard.com/article/news-ani/wto-has-been-very-unfair-to-us-for-many-yearstrump-120012300078_1.html. 319 . Para uma discussão dos benefícios obtidos pela China aquando da sua adesão à OMC, ver, Stewart Paterson. China, Trade and Power: Why the West’s Economic Engagement Has Failed. Londres: London Publishing Partnership, 2018. 320 . Cf., Silvia Amaro, “A reform-or-die moment: Why world powers want to change the WTO”, CNBC, 7 de fevereiro de 2020, consultado em: https://www.cnbc.com/2020/02/07/world-powers-us-eu-china-are-grappling-toupdate-the-wto.html. 321 . Cf., The White House, “Remarks by the President at the World Economic Forum”, Davos, Switzerland, 29 de janeiro de 2000, consultado em: https://19972001.state.gov/travels/2000/000129clinton_wef.html. 322 . Ver, Gregory Chin, “Two-Way Socialization: China, the World Bank, and Hegemonic Weakening”, The Brown Journal of World Affairs, Vol. 19, No. 1, Outono/Inverno de 2012, pp. 211-230. 323 . Cf., “Spotlight: Chinese Dream connects aspirations of the whole world for peace, development”, Xinhua, 29 de novembro de 2017, disponível em: http://www.xinhuanet.com/english/2017-11/29/c_136788472.htm. 324 . O conceito do Cinturão Económico da Rota da Seda foi apresentado em setembro de 2013, num discurso proferido na Universidade de Nazarbayev, no Cazaquistão. Num discurso proferido no Parlamento indonésio em outubro de 2013, Xi propôs uma Rota da Seda Marítima para o Século XXI para promover a cooperação marítima, sugerindo também a criação do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB) para financiar a construção de infraestruturas, promover a interconectividade regional e a integração económica. Para o texto completo do discurso delineando a proposta apresentada no Cazaquistão, ver, Foreign Ministry of the People’s Republic of China, “President Xi Jinping Delivers Important Speech and Proposes to Build a Silk Road Economic Belt with Central Asian Countries”, 7 de setembro de 2013, consultado em: https://www.fmprc.gov.cn/mfa_eng/topics_665678/xjpfwzysiesgjtfhshzzfh_66568 6/t1076334.shtm. Para a proposta feita no Parlamento indonésio, ver, “Speech by Chinese President Xi Jinping to Indonesian Parliament”, Jakarta, Indonesia, 2 de outubro de 2013, disponível em: https://reconasiaproduction.s3.amazonaws.com/media/filer_public/88/fe/88fe8107-15d7-4b4c8a590feb13c213e1/speech_by_chinese_president_xi_jinping_to_indonesian_parliamen t.pdf. Um terceiro discurso, proferido no lançamento oficial do Belt and Road Forum, em 2017, também é relevante. Ver, President of the People’s Republic of China, “Work Together to Build the Silk Road Economic Belt and The 21st Century Maritime Silk Road”, Speech by H.E.

Xi Jinping at the Opening Ceremony of the Belt and Road Forum for International Cooperation, 14 de maio de 2017, disponível em: http://www.xinhuanet.com//english/2017-05/14/c_136282982.htm. 325 . Sobre a Iniciativa Faixa e Rota (Belt and Road Initiative – BRI), cf., inter alia, Peter Frankopan. The New Silk Roads: The Present and Future of the World. Londres: Bloomsbury Publishing, 2018; Bruno Maçães. Belt and Road: A Chinese World Order. Londres: Hurst & Company, 2018; Tom Miller. China’s Asian Dream: Empire Building along the New Silk Road. Londres: Zed Books, 2019; Jonathan Holslag. The Silk Road Trap: How China’s Trade Ambitions Challenge Europe. Cambridge: Polity Press, 2019 e Daniel Drache, A. T. Kingsmith e Duan Qi. One Road, Many Dreams: China’s Bold Plan to Remake the Global Economy. Londres: Bloomsbury Publishing, 2019. 326 . Ver, “19th Party Congress: Belt and Road in CCP charter shows China’s desire to take global leadership role”, The Straits Times, 24 de outubro de 2017, disponível em: https://www.straitstimes.com/asia/east-asia/19th-party-congressbelt-and-road-in-ccp-charter-shows-chinas-desire-to-take-global. 327 . Para o texto completo do discurso de Xi em Davos, ver, “Jointly Shoulder Responsibility of Our Times, Promote Global Growth”, Keynote Speech by H.E. Xi Jinping at the Opening Session Of the World Economic Forum Annual Meeting 2017, Davos, 17 January 2017, CGTN America, 17 de janeiro de 2017, consultado em: https://america.cgtn.com/2017/01/17/full-text-of-xi-jinpingkeynote-at-the-world-economic-forum 328 . Cf., Peter Cai, “Understanding China’s Belt and Road Initiative”, Lowy Institute for International Policy, março de 2017, p. 5, consultado em: https://www.lowyinstitute.org/publications/understanding-belt-and-roadinitiative. 329 . Sobre o projeto CPEC e as relações entre os dois estados, ver, por exemplo, Andrew Small. The China-Pakistan Axis: Asia’s New Geopolitics. Oxford: Oxford University Press 2015 e Siegfried O. Wolf. The China-Pakistan Economic Corridor of the Belt and Road Initiative: Concept, Context and Assessment. Cham: Springer Nature Switzerland, 2020. 330 . Uma perspetiva mais cautelosa sobre Gwadar pode ser encontrada em: Robert D. Kaplan. Monsoon: The Indian Ocean and the Future of American Power. Nova Iorque: Random House, 2010, pp. 67-94. 331 . Cf., “Completion of CPEC top priority of govt: Qureshi”, Daily Times, 25 de abril de 2020, disponível em: https://dailytimes.com.pk/601613/completion-ofcpec-top-priority-of-govt-qureshi-dailytimes/ 332 . Ver, Michael Kugelman, “Pakistan’s High-Stakes CPEC Reboot”, Foreign Policy, 19 de dezembro de 2019, disponível em: https://foreignpolicy.com/2019/12/19/pakistan-china-cpec-belt-road-initiative/. 333 . Sobre o Movimento Islâmico do Turquestão Oriental (ETIM), ver, inter alia, Chien-peng Chung, “China’s ‘War on Terror’: September 11 and Uighur Separatism”, Foreign Affairs, Vol. 81, No. 4, julho/agosto de 2002, pp. 8-12; John Z. Wang, “Eastern Turkistan Islamic Movement: A Case Study of a New Terrorist Organization in China”, International Journal of Offender Therapy and Comparative Criminology, Vol. 47, No. 5, outubro de 2003, pp. 568-584; Rohan Gunaratna e Kenneth George Pereire, “An Al-Qaeda Associate Group Operating in China?”, The China and Eurasia Forum Quarterly, Vol. 4, No. 2, maio de 2006,

pp. 55–61 e Michael Clarke, “China’s “War on Terror” in Xinjiang: Human Security and the Causes of Violent Uighur Separatism”, Terrorism and Political Violence, Vol. 20, No. 2, abril de 2008, pp. 271-301. 334 . Cf., Wuu Long Lin and Thomas P. Chen, “China’s widening economic disparities and its ‘Go West Program”, Journal of Contemporary China, Vol. 13, No. 41, 2004, pp. 663-686. 335 . Cf., Kinling Lo, Sri Lanka wants its ‘debt trap’ Hambantota port back. But will China listen?”; South China Morning Post, 7 de dezembro de 2019, consultado em: https://www.scmp.com/news/china/diplomacy/article/3040982/sri-lanka-wantsits-debt-trap-hambantota-port-back-will-china. Ver, também, Christian SaintÉtienne. Trump et Xi Jinping: les apprentissorciers. Paris: Editions de L’Observatoire, 2018, pp. 74-75. 336 . Cf., Ben Farmer, “Pakistan halts investigation into sale of 629 brides to China ‘because of financial ties to Beijing”, The Telegraph, 4 de dezembro de 2019, disponível em: https://www.telegraph.co.uk/news/2019/12/04/pakistanhalts-investigation-sale-629-brides-china-financial. 337 . Cf., Peter Cai, “Understanding China’s Belt and Road Initiative”, p. 13. 338 . Ibid., p. 11. 339 . Cf., Zhou Xin, “Xi Jinping calls for ‘new Long March’ in dramatic sign that China is preparing for protracted trade war”, South China Morning Post, 21 de maio de 2019, disponível em: https://www.scmp.com/economy/chinaeconomy/article/3011186/xi-jinping-calls-new-long-march-dramatic-sign-chinapreparing. 340 . Cf., James T. Areddy, “Xi Jinping Flexes China’s Trade Muscle With Visit to Rare-Earths Hub”, The Wall Street Journal, 21 de maio de 2019, consultado em: https://www.wsj.com/articles/xi-jinping-flexes-china-s-trade-muscle-with-visit-torare-earths-hub-11558442724 e Yang Kunyi, “Xi’s visit boosts China’s critical rare-earth sector”, Global Times, 20 de maio de 2019, disponível em: https://www.globaltimes.cn/content/1150779.shtml. 341 . Ver, Yuko Inoue, “China lifts rare earth export ban to Japan: trader”, Reuters, 29 de setembro de 2010, consultado em: https://www.reuters.com/article/us-japan-china-exportidUSTRE68S0BT20100929. 342 . Cf., “Commentary: China fights U.S. trade bullying with ‘Long March’ spirit”, Xinhua, 24 de maio de 2019, disponível em: http://www.xinhuanet.com/english/2019-05/24/c_138086295.htm.



Capítulo V – A ILUSÃO AMERICANA   “It isn’t that there’s no right and wrong here. There’s no right” (V.S. Naipaul, A Bend in the River)

  Donald Trump dinamitou o consenso bipartidário americano em política externa relativamente à China. Críticos da abordagem em vigor durante as três últimas décadas afirmam que as administrações de Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama “perderam a China”, tal como Harry Truman, no final da década de 1940, “perdera” o país para os comunistas de Mao Zedong. Mesmo as críticas mais moderadas sugerem que, no mínimo, o trio presidencial globalista esbanjou a oportunidade de retardar a ascensão da República Popular. Quando formulado em termos maximalistas, o argumento pouco esclarece porque, ao contrário da década de 1940, a política externa americana na era pós-Mao vê a sua margem de manobra reduzida quando Deng Xiaoping prossegue com a “reforma e abertura”. Washington não estava destituída de instrumentos para influenciar, talvez de forma decisiva, o rumo dos acontecimentos mundiais, mas a sua capacidade de moldar os destinos da China depois da morte de Mao vou-se reduzida porque as elites congregadas em volta de Deng aperceberam-se do beco sem saída em que se encontravam. A ideia de que foram os americanos a perder a China – e não os chineses a encontrar-se a si próprios – revela a ilusão americana de poder desmedido que permite moldar o mundo na ausência de constrangimentos significativos. Embora seja verdade que os EUA poderiam, através de um

outro mix de políticas, ter atrasado a vasta integração da República Popular nas cadeias de produção e nas cadeias de valor, a reemergência económica do país era incontornável. Partindo da premissa de que o engajamento modificaria a natureza do regime comunista, políticos americanos e europeus traçaram uma política que acelerou consideravelmente a ascensão da RPC. Essa opção desperdiçou a oportunidade de formular uma resposta que pudesse preparar adequadamente as nações ocidentais para enfrentarem os desafios colocados pela ascensão chinesa. A ilusão americana que leva Washington a considerar que tem uma capacidade praticamente ilimitada para moldar os acontecimentos chineses tem sistematicamente impulsionado o relacionamento sinoamericano. A convicção de que era possível transformar a China num país democrático foi a última, mas não a única, expressão dessa mesma ilusão. Debate-se, nos últimos tempos, se estamos a caminho de uma nova Guerra Fria entre a China e os Estados Unidos. A este propósito, Mike Pompeo afirmou recentemente que o conflito sino-americano era “ainda mais perigoso do que a competição com a União Soviética”343. Alguns sugerem que a analogia da Guerra Fria não deveria ser utilizada porque o grau de globalização – e a respetiva integração da China na economia mundial – não é comparável com o isolamento económico vivido pela União Soviética. Outros afirmam, e não inteiramente destituídos de razão, que a natureza da Guerra Fria residia na multidimensionalidade da competição e que se a URSS estava isolada da economia internacional, essa circunstância se devia à contenção feita pelos Estados Unidos. A discussão, por muito interessante que possa ser, provavelmente obscura mais do que revela. Desde logo porque a Guerra Fria tem muitos significados. Entre outras coisas, a Guerra Fria foi uma desenfreada competição em volta da ciência, tecnologia e sustentabilidade de modelos económicos alternativos. A

corrida ao espaço, Sputnik e o programa Iniciativa de Defesa Estratégica/”Guerra das Estrelas” de Ronald Reagan exemplificam essa competição. É certo que os soviéticos não canalizavam a inovação para o mercado dos bens de consumo, mas a inovação não deixava de ser colocada ao dispor do complexo industrial-militar que sempre absorveu grande parte dos recursos económicos de Moscovo. Note-se, também, que a ambição de ultrapassar a economia americana levou Nikita Khrushchev, no célebre “debate de cozinha” com Richard Nixon, a declarar que a União Soviética “enterraria” (economicamente) os Estados Unidos e o mundo capitalista. Houve competição económica – e foi perdida pelo “socialismo real”. De qualquer forma, se entendermos – Guerra Fria como uma a competição global, universalizada, abrangendo todas as dimensões do poderio nacional, estamos, de facto, perante uma nova Guerra Fria. Mas independentemente da forma como se escolhe caracterizar o momento atual, é absolutamente inegável que se entrou numa nova fase da política internacional ,caracterizada pela rivalidade sino-americana.   Concorrentes, Rivais, Inimigos   Estabelecida a nova república americana em finais do século XVIII, comerciantes e missionários dirigiram-se para Cathay em busca de negócios e almas344. Tal envolvimento com a China era, no essencial, um empreendimento individual porque o novo estado, ciente da advertência de George Washington quanto à necessidade de evitar “enredamentos estrangeiros”, concentrava-se em proteger a independência recentemente adquirida e as fronteiras instáveis do débil estado. Para além deste conselho prudente do primeiro Presidente, a necessidade de evitar

conflitos estrangeiros era ditada pela parca capacidade da nova nação de projetar poder militar para fora das suas fronteiras nacionais. Após as cataclísmicas Guerras do Ópio dos Qing, o envolvimento americano no Reino do Meio aumenta porque, com a cessação das hostilidades, os Estados Unidos e as potências europeias extraíram privilégios comerciais e concessões extraterritoriais. Imposto às autoridades imperiais, o Tratado de Wangxia, o primeiro acordo bilateral entre os Estados Unidos e a China imperial, assinado a 18 de maio de 1844, era “basicamente um resumo, com refinamentos significativos, dos dois tratados que os chineses haviam assinado com os britânicos”345. Era, também, um dos “tratados desiguais” impostos aos chineses pelo imperialismo durante o “século da humilhação nacional”. Durante meio século, a política americana na China será orientada pelo princípio da “Porta Aberta”, esboçado por John Hay, Secretário de Estado do Presidente William McKinley346. Em 6 de Setembro de 1899, na primeira de uma série de notas diplomáticas, Hay propunha-se estabelecer um “mercado aberto” a todos os comerciantes, independentemente da nacionalidade, presentes em solo chinês. Solicita às potências – Grã-Bretanha, França, Japão, Alemanha e Rússia – que seguissem políticas que beneficiassem os cidadãos chineses e que se abstivessem de estabelecer colónias. No entanto, a “Porta Aberta” parecia comprometida pela Rebelião dos Boxers, apoiada pela Imperatriz Dowager Cixi, que tem como alvo os interesses económicos e os missionários ocidentais347. Procurando articular uma resposta à eclosão da revolta dos Boxers, Hay, a 3 de julho de 1900, distribuiu outra nota às potências, pedindo respeito pela “integridade territorial e administrativa” da China; isto é, recomendava que as potências não invocassem a revolta como pretexto para “retalhar” a China em possessões coloniais. Ironicamente, a política da “Porta Aberta” expôs os limites inerentes à

política externa de Washington; especificamente, os parcos recursos militares disponíveis para salvaguardar os interesses vitais americanos na China. O apelo ao “acesso aberto” e ao “comércio livre” denota que os mercadores americanos poderiam prosseguir a obtenção de lucros, mas, implicitamente, incumbe ao Japão e as potências europeias suportarem os custos de “abrir” às portas da China. Em suma, da mesma forma que a RPC hoje depende da Marinha dos EUA para garantir que as rotas oceânicas – e os “pontos de estrangulamento” que lhes dão acesso – permaneçam desobstruídas, a política da “Porta Aberta” configurava uma estratégia de free-rider assente no sangue e tesouro de terceiros. Na alvorada do século XX assiste-se à emergência dos Estados Unidos como potência do Oceano Pacífico, uma potência asiática. Triunfantes na da guerra hispanoamericana de 1898, herdam os vestígios do império espanhol, incluindo as Filipinas, que, nas cinco décadas posteriores, se torna no principal entreposto americano no Extremo Oriente. Concomitante com esta viragem imperialista, Theodore Roosevelt preconiza a expansão do poderio naval do país, simbolizado pela viagem da Grande Frota Branca, entre dezembro 1907 e fevereiro 1909, consolidando assim o estatuto de grande potência asiática348. O período que segue à Primeira Guerra Mundial testemunha uma intensificação da presença americana na Ásia. Uma potência autoconfiante e em expressãono Oceano Pacífico, presente nas Filipinas, Guam e Havai, os Estados Unidos promovem, de forma ativa, os laços comerciais e de investimento com a China e o Extremo Oriente durante as décadas de 1920 e 1930. Concomitantemente, missionários de várias denominações, particularmente ativos na China desde o Segundo Grande Despertar (1790-1840), duplicam os esforços para consolidar o cristianismo na região. Washington procura defender os seus interesses no

Extremo Oriente através de uma política regional assente em três pilares. Primeiro, com a intenção de garantir o “acesso igual” a oportunidades comerciais na China, reitera o princípio da “Porta Aberta”. A reafirmação do princípio no pós-1918 consubstancia uma refutação inequívoca da política nipónica de esferas de interesse, mais tarde institucionalizada pela Esfera de Coprosperidade da Grande Ásia Oriental, e proporciona uma antevisão do choque imperial entre o Japão e os EUA durante a Segunda Guerra Mundial. Segundo, Washington sustenta que a integridade territorial da China era sacrossanta e, por extensão, denuncia a confiscação imperialista de território chinês, com o argumento de que colónias restringiam o livre comércio. Terceiro, os EUA comprometem-se a cooperar com as demais potências na busca de “interesses legítimos”, entendidos como o livre comércio e a atividade missionária livre. Tóquio, sem se deixar intimidar pelo princípio da “Porta Aberta”, ataca Xangai em 1932, a cidade que abriga as maiores e mais relevantes concessões internacionais formalizadas por tratado. Embora a agressão ameaçasse a integridade das concessões estrangeiras, o Secretário de Estado Henry Stimson, sem alternativas políticas credíveis, anuncia que a violação nipónica dos termos do Tratado dos Nove Poderes isentava os Estados Unidos de continuarem a observar as restrições ao poderio naval estabelecidos nesse acordo. Stimson abre, dessa forma, caminho para uma corrida aos armamentos navais no Pacífico que aumentará a insegurança japonesa e levará, por fim, o almirante de frota Isoroku Yamamoto a atacar Pearl Harbor em 1941. No entanto, o Relatório Lytton, enviado à Liga das Nações em outubro de 1932, era ratificado349. Designando o Japão como estado agressor, o relatório caracteriza o Manchukuo como um estado fantoche e apela ao retorno da Manchúria à soberania chinesa. Em resposta, a delegação japonesa abandona o Conselho da Liga. É certo que a China e o Japão

acabam por assinar uma trégua que visa estabilizar a situação, mas o domínio japonês da Manchúria expõe a impotência de Beijing num quadro geoestratégico degradado e crescentemente ameaçador. Mas a margem de manobra americana era escassa. As exigências colocadas pela Grande Depressão, precipitada pelo colapso do mercado acionista em 1929, e os interesses limitados do país no Manchukuo levam os EUA a excluir o uso da força contra o Japão. Mesmo um eventual regime de sanções económicas limitadas não reúne o apoio de um público desconfiado de emaranhados distantes. Face a estes constrangimentos, os Estados Unidos dão um passo diplomático sem precedentes: recorrem à Liga das Nações para fazer cumprir os termos do Pacto Briand-Kellogg, que ilegalizava a guerra entre estados350. Atendendo ao previsível fracasso da Liga em resolver o problema, o Secretário de Estado, em janeiro de 1932, esboça a “Doutrina Stimson”, estipulando que recusa reconhecer qualquer tratado ou acordo celebrado entre o Japão e a China que viole os direitos americanos estabelecidos por tratado. A retórica não corresponde à realidade dos factos verificados no terreno, pois os Estados Unidos ainda não são decisivos na geopolítica da região. A região sofre uma transformação vertiginosa em resultado da invasão nipónica da China em 1937 e a política americana muda de rumo. A expansão do império japonês leva Washington a estabelecer laços privilegiados com o Guomindang de Chiang Kai-shek, reforçados durante a guerra civil para impedir a tomada do poder pelo PCC. Mas os americanos também estenderiam a mão a Mao durante a fase final da guerra de resistência à ocupação japonesa. Contactos com o PCC seriam estabelecidos em Yan’an, em julho de 1944, pelo Grupo de Observação do Exército dos Estados Unidos (Missão Dixie), liderado pelo diplomata John S. Service e pelo coronel David D. Barrett. Virtualmente a única fonte de informação dos decisores americanos, os

relatórios elaborados por Service em Yan’an propuseram a colaboração dos EUA com as forças de Mao, descritas como um movimento cuja orientação ideológica se assemelhava mais ao socialismo europeu do que ao bolchevismo russo351. Esta avaliação da Missão Dixie seria posteriormente utilizada para acusar a Administração Truman de responsabilidade pela perda da China para Mao. Quando os japoneses se rendem na sequência dos bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki, o Exército Vermelho de Mao não se encontra em posse de nenhuma cidade importante, uma limitação mais do que compensada pela superior organização e elevado moral das forças comunistas e por ter sido poupado às batalhas devastadoras com os japoneses. Em contraste com o PCC, o Guomindang, sujeito a incessantes ataques japoneses durante anos, via a sua popularidade reduzida em resultado da corrupção e da ineficiência administrativa nas suas zonas. Nesta encruzilhada, em conformidade com os compromissos firmados pelas potências em Ialta, Mao e Chiang reúnem-se em Chongqing com o propósito de discutir a formação de um governo pós-guerra que pudesse garantir a “democracia”, o estabelecimento de um exército unificado e a “igualdade” entre partidos políticos352. As conversações saldam-se pelo Acordo Décimo Duplo, de 10 de outubro de 1945, através do qual o PCC reconhece a legitimidade do governo GMD, enquanto Chiang acolhe os comunistas como uma força de oposição legítima. Semanas depois, Truman incumbe o general George Marshall de persuadir Chiang e Mao a formarem um governo conjunto sob os auspícios da Missão Dixie. Marshall e Mao reúnem-se em Yan’an, mas décadas de suspeitas e desconfianças frustram os esforços para formar o governo de coligação353. Previsivelmente, o Acordo Décimo Duplo implode em 1946, quando as partes retomam a luta armada. Harry Truman, não totalmente convencido de que as relações com a China nacionalista eram de importância estratégica, mas

condicionado pelas exigências de política doméstica geradas pelo lobby pró-Guomindang, prolonga a ajuda financeira e militar concedida aos nacionalistas. Em 11 de março de 1947, os últimos elementos da Missão Dixie abandonam Yan’an, o fim simbólico da abertura ao PCC e da tentativa de forjar um acordo entre nacionalistas e comunistas. Pouco antes de o PCC declarar formalmente o estabelecimento da República Popular da China, o governo Truman, em agosto de 1949, divulga um Livro Branco da China354. Procurando minimizar o papel desempenhado por Washington nos assuntos da China após as primeiras alegações de ter “perdido” o país para o comunismo, o documento afirma que a política da Administração Truman fora ditada pelo princípio de que cabia apenas às forças chinesas determinarem o desfecho da guerra civil. A realidade era outra, mas o Livro Branco revela até que ponto a política chinesa da Administração se transformara num assunto de política doméstica. Por esta altura, as investigações do Un-American Activities Committee da Câmara dos Representantes chegavam ao seu auge. Com efeito, os excessos do Comité, simbolizados pelo bombástico Joseph McCarthy, levariam Truman a denunciálo como “a coisa mais ‘un-American’ da América”355. O Livro Branco também expôs a vulnerabilidade do governo de Truman ao “lobby da China”; isto é, aos apoiantes de Chiang Kai-shek no Congresso que garantiam que Washington, incapaz de impedir a tomada da China continental pelos comunistas, assumisse responsabilidades especiais em relação à defesa do governo Guomindang instalado em Taipei. Em resposta à proclamação da República Popular da China, os Estados Unidos e vários dos seus aliados impõem um embargo comercial ao novo regime. Mao, por sua vez, “inclina-se para um lado”, o eufemismo que expressa a sua preferência por uma aliança com a União Soviética. Em

resultado destas decisões, o relacionamento sino-americano fica suspenso durante as duas primeiras décadas da Guerra Fria. No entanto, a Guerra da Coreia, cujo início coincide com o incremento das tensões americano-soviéticas na Europa, marca uma mudança radical no equilíbrio de poder regional e nos respetivos papéis reservados aos Estados Unidos, à China e à União Soviética. Com o objetivo declarado de reunificar os dois estados coreanos sob a bandeira vermelha, a agressão de Pyongyang (25 de junho de 1950) leva os Estados Unidos a intervirem sob a forma de uma ação policial autorizada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas356. Na sequência dos sucessos militares norte-coreanos iniciais, o general Douglas MacArthur, comandante das forças conjuntas das Nações Unidas, realiza com êxito um desembarque anfíbio na retaguarda das linhas inimigas, em Inchon, em meados de setembro de 1950. Quando tropas aliadas empurram as forças de Kim Il-sung para a Coreia do Norte, “voluntários” chineses sob o comando de Peng Dehuai entram na guerra e forçam o recuo das forças da ONU para o sul. MacArthur sugere uma incursão em território chinês e levanta a eventualidade de recorrer às armas atómicas para interromper a investida do “Exército Popular Voluntário” chinês. As declarações imprudentes de MacArthur, consubstanciando um desafio à autoridade do Presidente Truman, provocam a sua demissão. A guerra da Coreia terminaria num impasse, formalizado pelo Acordo do Armistício Coreano de julho de 1953, congelando a fronteira ao longo da Zona Desmilitarizada (DMZ). A guerra da Coreia alterou profundamente a paisagem geopolítica regional. A União Soviética beneficiou com o desfecho da guerra porque as pressões sobre Estaline na Europa Oriental foram atenuadas quando os EUA transferem recursos da Europa Central para a Ásia. Quanto à China, as perdas sofridas durante a guerra acentuaram a sua

dependência económico-financeira face a Moscovo. Em contrapartida, Mao adquiriu um prestígio tremendo, pois não só evitou uma derrota às mãos dos americanos, como auxiliou, a grande custo, um “partido irmão”; vê, assim, o seu estatuto e gravitas florescerem no movimento internaciona comunista l. Sancionada por Mao e Estaline, a decisão de Kim Il-sung de invadir o Sul inviabiliza qualquer reconciliação entre a RPC e os Estados Unidos. Reagindo a esta nova realidade, Washington destaca a Sétima Frota americana para a costa chinesa para impedir Mao de atacar Taiwan e compromete-se com a sobrevivência futura do governo de Chiang Kai-shek357. Episódio decisivo da Guerra Fria, a Guerra da Coreia envenena o relacionamento sino-americano entre as décadas de 1950 e de 1970. A retoma do diálogo diplomático entre os dois países teria de aguardar a eleição de um Presidente republicano ferozmente anticomunista. Após a sua vitória de 1968, Richard Nixon, auxiliado por Henry Kissinger. Assistente do Presidente para os Assuntos de Segurança Nacional, define uma nova abordagem358. Razões geopolíticas obrigam os Estados Unidos e a República Popular a considerar uma reaproximação, vista pelos líderes dos dois países como uma oportunidade histórica para alterar a correlação de forças a nível internacional. Ciente da ameaça existencial constituída pelas armas nucleares soviéticas, Nixon pretende uma aliança com Beijing para cercar a União Soviética e, dessa forma, obrigar Moscovo a negociar a détente. Recordando uma conversa tida com os soviéticos sobre a limitação de armamentos, Nixon observara que “uma das principais razões do interesse de Brezhnev num tratado de não-uso pode ser a sua suspeita de que estávamos prestes a concluir um acordo militar com Beijing. Os soviéticos achavam que a renúncia ao uso de armas nucleares minaria muito da nossa utilidade para os chineses no caso de uma guerra sino-soviética”359.

A aproximação à China constituía, pois, um incentivo para que Moscovo negociasse a redução dos armamentos nucleares. Henry Kissinger, de forma mais assertiva, afirma que “não procuramos juntar-nos à China num confronto que provocasse a União Soviética. Mas concordamos com a necessidade de dissuadir as ambições geopolíticas de Moscovo”360. Preocupações imediatas, práticas, levam Nixon e Mao a convergir. Para Mao, uma década de elevada tensão sinosoviética incentiva-o a explorar o degelo nas relações com os Estados Unidos. Preocupações de segurança decorrentes dos confrontos na fronteira partilhada com a URSS e o temor de uma guerra sino-soviética generalizada,induzem Beijing a concluir que um entendimento com os EUA equilibraria os soviéticos. Realidades políticas domésticas também motivam o Grande Timoneiro. Embora a fação prósoviética do PCC tenha sido derrotada antes da Revolução Cultural, a paranoia de Mao convence-o de que os soviéticos não descartam um first strike nuclear ou uma invasão da China, receio aparentemente confirmado pela supressão da Primavera de Praga, em agosto de 1968, justificada pela invocação da nova Doutrina Brezhnev de soberania limitada361. Para Nixon, a “abertura” à China era um resultado lógico da promessa feita durante a campanha presidencial de 1968 para pôr termo à guerra no Vietname362. A normalização das relações com a China permitiria isolar Ho Chi Minh, a condição sine qua non para assegurar a “vietnamização” da guerra e a retirada das tropas americanas. A estratégia americana para abandonar a Indochina passava pela redefinição das relações bilaterais com Beijing. Sinalizando interesse em reconfigurar o relacionamento, Nixon diminui as restrições às viagens e ao comércio em vigor desde a Guerra da Coreia. Recorrendo aos bons ofícios do Presidente paquistanês, Yahya Khan, os americanos estabelecem um canal secreto com as autoridades

comunistas de Beijing, que o utilizam para manifestar interesse em reabrir discussões de alto nível com os Estados Unidos. Um sinal diplomático heterodoxo, mas inequívoco, foi emitido quando Mao confidencia a Edgar Snow, então na China a convite do Grande Timoneiro, a sua disposição de entrar em conversações diretas com Nixon363. Este responde à abertura, em 1971, eliminando as restrições ainda existentes à deslocação de cidadãos americanos à República Popular. A ronda seguinte deste jogo de sombras diplomáticas ocorre em abril de 1971, quando as equipas de ping-pong americana e chinesa se encontraram e, inesperadamente, confraternizam durante uma competição internacional realizada no Japão. A equipa americana era então convidada a disputar uma partida na China e, em abril de 1972, a chinesa retribuiu com uma visita aos Estados Unidos. À medida que aumentam os sinais incipientes de um degelo diplomático, Henry Kissinger, ainda em ١٩٧١, fez duas viagens secretas a Beijing a fim de planear a visita de Nixon ao país, a primeira das quais começa a 9 de julho. A sensibilidade histórica de Kissinger leva-o a concluir que “a visita de um emissário americano a Beijing estava prestes a desencadear uma revolução geopolítica; em Hanói o efeito seria traumático”364. Coincidindo com a segunda viagem de Kissinger, em 25 de outubro, as Nações Unidas encetam uma discussão sobre o estatuto da China na organização. Washington sustenta que a ONU deveria acomodar Beijing e Taipei, mas a Assembleia Geral decide-se pela passagem da Resolução 2758 que reconhece a RPC como “o único representante legítimo da China nas Nações Unidas”, atribuindo-lhe, assim, o lugar de membro permanente no Conselho de Segurança. Apesar do revés, os Estados Unidos não recorrem ao uso do veto. Taiwan, por sua vez, abandona a organização e inicia décadas de um isolamento internacional que ainda se mantém. Com efeito, os acontecimentos ocorridos nas Nações

Unidas abrem caminho à visita de Richard Nixon, realizada em fevereiro de 1972, para conversas com Mao Zedong e Zhou Enlai365. Esses encontros produzem o Comunicado de Xangai, que expressa o desejo das partes de normalizarem o relacionamento bilateral366. Não obstante o interesse em abrir um novo capítulo na relação bilateral, várias divergências continuam a separar os dois países. A mais significativa prendia-se com o estatuto de Taiwan porque, na verdade, os chineses recusam normalizar os laços bilaterais a menos que Washington rompa relações diplomáticas com Taipei. Para tranquilizar a liderança chinesa, o lado americano evita comentar a afirmação de Beijing de que o governo da RPC “é o único governo legal da China” e que “Taiwan é uma província da China”, a fórmula inserida pelo governo comunista no Comunicado de Xangai. Por sua vez, Richard Nixon reitera que a sua administração não apoia a independência da Formosa, acrescentando que “todos os chineses de ambos os lados do Estreito de Taiwan sustentam que existe apenas uma China e que Taiwan faz parte da China”367. Depois de apelarem a uma “solução pacífica” para o problema, e como gesto adicional de boa vontade, os EUA anunciam a intenção de remover as suas tropas estacionadas na Formosa; mas abstêm-se de estipular uma data concreta para a retirada. A questão de quem seria chamado a governar “uma China unida” era, desta forma, contornada. Com efeito, a política de Washington não difere significativamente da posição do governo Guomindang, pois Chiang Kai-shek sempre fora inflexível ao afirmar que liderava o legítimo governo de uma China indivisível. Estavam, assim, criadas as condições que permitiriam a Jimmy Carter, em 1979, encerrar a “normalização” sinoamericana. Ao longo da década seguinte, tensões periódicas no relacionamento diplomático entre os dois países seriam provocadas, quase exclusivamente, pela “questão de Taiwan”. A República Popular procura evitar qualquer

alteração ao princípio de “uma única China” e pressiona Washington a fazer um downgrade do seu compromisso da América com Taiwan. Por sua vez, os americanos recusam abandonar o governo da Formosa, algo que invariavelmente colocaria Taipei à mercê de Beijing. Não obstante as divergências quanto a Taiwan, as relações continuam a melhorar após a ascensão de Deng Xiaoping ao poder, até porque os decisores americanos convencem-se que a RPC entrara numa fase de liberalização do regime que encaminharia o país para o capitalismo e, porventura, para a democracia liberal. Esta ilusão americana quanto à democratização da China acentua-se com o fim da Guerra Fria. Confrontado com o desafio hercúleo de gerir a crise geopolítica suscitada pelo desmoronamento do comunismo europeu, o Presidente George H.W. Bush, ex-chefe do escritório de ligação em Beijing (efetivamente, Embaixador não oficial dos EUA na China), procura atenuar a volatilidade no relacionamento bilateral provocado pelo massacre de Tiananmen de 1989368. Dias depois da supressão das manifestações, Bush confessa que “não creio que devamos julgar todo o Exército de Libertação Popular por esse terrível incidente”369. Uma vez que o ELP estava sob o comando de Deng Xiaoping e da cúpula partidária e que era o “braço armado” do PCC, a declaração do Presidente, no mínimo, ofusca mais do que revela. Apesar dos esforços de Bush, a indignação doméstica gerada pelo massacre dos estudantes não poderia deixar de despoletar sanções punitivas. Bush, no entanto, rejeita um pacote amplo de sanções, anunciando apenas o cancelamento do diálogo militar bilateral, a suspensão de contatos militares e limitações à transferência de tecnologia370. Considerando que a resposta da Casa Branca era demasiado branda, os líderes do Congresso reclamam a imposição imediata de tarifas aduaneiras, a proibição de transferências de tecnologia e a cessação da cooperação

militar. A Câmara dos Representantes, em julho de 1989, alterando uma lei referente à autorização de ajuda externa, vota a proibição da venda de armas à China e outras medidas. A legislação, porém, continha uma ressalva importante: o Presidente poderia anular a aplicação de sanções específicas se invocasse “interesses de segurança nacional”. Pouco depois, no início de 1990, o Senado substitui a formulação “interesses de segurança nacional” pelo genérico “interesses nacionais”, uma alteração que acentuava a capacidade unilateral do Presidente de determinar a aplicação concreta das sanções371. Divergindo da posição assumida por Bush, o senador George Mitchell e a representante Nancy Pelosi redigem, em 1991, um projeto de lei que impede que o Presidente aprove a renovação anual do estatuto de nação mais favorecida (MFN) à China sem contemplar os direitos humanos. Este estatuto era importante para a China porque permitia que as exportações chinesas que entrassem no mercado americano não sofressem as altas penalizações previstas pela Lei Smoot-Hawley372. O projeto reúne apoio suficiente nas duas câmaras do Congresso para obter a passagem, mas será vetado por Bush. Ano após ano, até 2001, os lobbies na órbita do establishment de política externa e das grandes empresas atentos ao gigantesco mercado chinês, asseguram que iniciativas legislativas semelhantes morressem, silenciosamente, nos corredores do Congresso.   O Globalizador-Chefe   A resposta de George Bush ao massacre de Tiananmen insere a “questão chinesa” na corrida presidencial de 1992, com o democrata Bill Clinton a censurar Bush por “mimar

ditadores desde Bagdad a Beijing”373. Acusando o Presidente em exercício de timidez ao enfrentar os “carniceiros de Beijing”, Clinton promete que, caso fosse eleito, renovações futuras do status MFN da China seriam determinadas pela aceitação chinesa de padrões de direitos humanos. No entanto, logo depois da sua chegada à Casa Branca, Clinton efetivamente capitula perante os interesses dos big business. Estes alegam que a competitividade das empresas americanas no mercado chinês seria comprometida (e empregos americanos destruídos) se o linkage aos direitos humanos não fosse descartado. Embora Nancy Pelosi tenha manobrado para manter a questão viva, a Câmara dos Representantes valida a posição de Clinton em agosto de 1994. As administrações americanas subsequentes continuariam, pelo menos publicamente, a enfatizar os direitos humanos nas suas negociações com a China. Porém, na ausência de uma ligação entre comércio e direitos humanos, a retórica era simplesmente desprovida de qualquer substância. Porque a implosão da União Soviética remove os pressupostos subjacentes ao consenso bipartidário em política externa, Clinton vê-se forçado a definir um novo rumo estratégico, uma nova grande estratégia nacional. Concebendo os Estados Unidos como a “nação indispensável”, a Administração Clinton empenha-se em definir um consenso bipartidário assente na promoção dos mercados e da democracia. A preponderância americana – e a liderança internacional que dela resulta – será empregue para cumprir a missão principal do país, que, segundo o conselheiro de Segurança Nacional Anthony Lake, residia no alargamento da “comunidade de nações livres”, alargamento esse que tornariam os EUA “mais seguros, prósperos e influentes”374. Quanto à China e à Rússia, definidas pelo Presidente como os “nossos ex-adversários”, seriam absorvidas pelo “sistema internacional como nações abertas, prósperas e estáveis”375. Propondo um

engajamento contínuo, Clinton acrescentou: “qual é a melhor coisa a fazer para maximizar a oportunidade de a China seguir o rumo certo e de, por causa disso, tornar o mundo estará mais livre, mais pacífico e mais próspero no século XXI? Não acredito que possamos trazer mudanças para a China se isolarmos a China das forças da mudança”376. A Doutrina Clinton era de importância vital porque estrutura o consenso bipartidário em política externa no pós-Guerra Fria, particularmente coeso ao longo da década de 1990, deem torno da unipolaridade americana. A premissa fundamental do “consenso da China” postulava, como indicara Anthony Lake, que o engajamento destinado a integrar a República Popular na economia globalizada,gerava crescimento económico que, por sua vez, originava uma classe média cujos interesses diferenciados a levariam a exigir acrescida participação política. As pressões sociais junto do estado desencadeariam mudanças institucionais, pois o regime, para sobreviver, não teria outra alternativa senão acomodar as exigências e os interesses da nova classe média. O crescimento do pluralismo social, ou seja, uma sociedade chinesa cada vez mais complexa, estimularia reformas económicas e a democratização. Vistos a partir deste prisma, os interesses americanos na China (investimentos e o acesso a mercados) passam a ser entendidos como uma força para promover a democracia. A defesa de interesses e princípios coincidiam e, por isso, a defesa do interesse americano era um bem moral. Os europeus, naturalmente, partilhavam esta visão. A Doutrina Clinton postulava que a globalização, entendida principalmente em termos de liberalização dos mercados e de extensão do livre comércio, gerava mudanças socioeconómicas favoráveis à democratização377. E à medida que a expansão da globalização fomentava a democracia, a segurança nacional seria consolidada pela

“paz interdemocrática”378. Enraizada no pressuposto kantiano de que as democracias não fazem guerra entre si, a paz entre democracias era um meio para alcançar a segurança internacional, também desejável do ponto de vista normativo. A democratização e a globalização eram, pois, instrumentos para incrementar a segurança nacional dos Estados Unidos. Em suma, não havia contradição percetível entre a promoção da democracia e a satisfação dos interesses nacionais fundamentais da América e do Ocidente em geral. Ainda assim, Lake reconhecera que a promoção da democracia seria necessariamente restringida pelas limitações do poder de Washington, levando-o a admitir que regimes “não democráticos” seriam, por vezes, apoiados para promover os interesses nacionais dos EUA. O edifício teórico subjacente à Doutrina Clinton era frágil porque partia da premissa de que a globalização era um fenómeno benigno, uma causa da tolerância e do pluralismo e, portanto, geradora de um impulso democrático. Esta visão idealista repousava na crença deveras reducionista de que “quanto mais as pessoas souberem, mais opiniões terão; mais a democracia se espalha”379. Igualmente questionável era o conceito de que a absorção da China na ordem globalizada transformaria o país ao mesmo tempo que escudava os Estados Unidos da mudança. Para todos os efeitos, Clinton e Lake viam a mudança como unilinear e pareciam não antecipar a possibilidade de os Estados Unidos serem profundamente abalados pela globalização. Assente nestes pressupostos teóricos, a Administração Clinton estabelecia o padrão das relações sino-americanas que permanecerá inalterado até à eleição de Donald Trump. O momento decisivo do relacionamento, o início da chamada “Americhina”, ocorre em 2000, quando o Congresso autoriza “relações comerciais normais 380 permanentes” (PNTR) com a República Popular . PNTR representa um tremendo upgrade para a República Popular porque a Lei de Comércio de 1974 excluía a China e uma

série de nações comunistas do estatuto de MFN, a menos que cumprissem certas condições prévias. Em resultado da melhoria nas relações bilaterais, em 1980 a RPC recebe o estatuto de MFN, sujeito a renovação anual pelo Congresso. A concessão de “relações comerciais normais permanentes” opera, pois, uma viragem radical, uma vez que era acompanhada pelo compromisso do “acesso favorável” permanente ao mercado americano. Praticamente garantia também a entrada de Beijing na OMC. Mais importante, ao eliminar a incerteza inerente a uma revisão anual dos termos do comércio bilateral, o PNTR permite que empresas americanas e chinesas estabeleçam cadeias de fornecimento interligadas. Como resultado do aumento da confiança dos investidores, as duas economias tornaram-se cada vez mais entrelaçadas à medida que se avolumavam os fluxos de investimento e as trocas comerciais. Em maio de 2000, aquando da aprovação do PNTR pelo Congresso, Clinton resumia as esperadas consequências da medida: “entretanto, exportaremos mais do que nossos produtos. Com este acordo, também exportaremos um dos nossos valores mais queridos, a liberdade económica. A entrada da China na OMC e a normalização do comércio fortalecerão aqueles que lutam pelo meio ambiente, pelas normas de trabalho, pelos direitos humanos e pelo Estado de Direito. Para a China, esse acordo aumentará claramente os benefícios da cooperação e os custos do confronto”381. Bill Clinton errou estrondosamente em todas as suas previsões, mas, ainda assim, esta visão da República Popular não seria questionada durante duas décadas. Com a sua ascensão à OMC, em dezembro de 2001, a China reunia as condições necessárias para assegurar o seu crescimento e a sua adesão vertiginosa como grande potência. Clinton e Lake foram, pois, os arquitetos da doutrina e do consenso bipartidário que torna os EUA nos enablers do surgimento chinês. Durante a campanha para a Casa Branca de 2000, George

W. Bush rejeita a visão de Bill Clinton da China como um “parceiro estratégico”, alegando que os Estados Unidos e a República Popular eram “concorrentes estratégicos” e, para sublinhar a diferença, jura fazer “o que for preciso” para defender Taiwan382. Bush teve razão antes do tempo, mas as suas intenções não resistem à atrocidade da al-Qaeda de 11 de setembro de 2001. Com efeito, os ataques a Nova Iorque e Washington também fizeram esquecer que a primeira crise de política externa enfrentada por Bush envolveu a China. Três meses depois de iniciar o seu mandato, o novo Presidente, em abril de 2001, era confrontado com o “Incidente da Ilha Hainan”, desencadeado quando uma aeronave EP-3E da Marinha americana colide nos céus do Mar do Sul da China com um intercetor J-8 chinês, vitimando o piloto chinês 383. O avião americano é forçado a fazer uma aterragem de emergência em Hainan e os 23 tripulantes são prontamente presos pelas autoridades chinesas. Segue-se uma prolongada batalha diplomática, concluída apenas quando o embaixador Joseph Prueher entrega uma “carta de duas desculpas” ao Ministro das Relações Exteriores Tang Jiaxuan. A missiva afirma que Washington estava “muito arrependida” pela morte do piloto e “muito arrependida” pelo avião da Marinha não ter obtido “autorização” para aterrar em solo chinês384. Visivelmente satisfeita com o pedido de desculpas, Beijing liberta a tripulação. Embora os Estados Unidos mais tarde aleguem que a carta não consubstanciava um pedido de desculpas, que apenas expressava “arrependimento e tristeza”, a vitória de propaganda dos chineses era indesmentível385. Pouco depois, em junho, o Presidente revela que Washington não se opõe à realização dos Jogos Olímpicos em Beijing no Verão de 2008. O cataclismo desencadeado pela al-Qaeda em 11 de setembro de 2001 provoca uma viragem profunda na política externa dos EUA e, como não poderia deixar de ser,

nas relações sino-americanas. Imediatamente após os ataques, o Presidente Jiang Zemin expressa a “profunda simpatia” do seu país e reitera que o “governo chinês sempre condenou e se opôs a todo o tipo de violência terrorista”386. Para além desta expressão de solidariedade, a China endossa várias resoluções do Conselho de Segurança da ONU que autorizam o uso da força contra a al-Qaeda e o governo afegão dos taliban, como também exige que o Iraque desista de obstruir as inspeções de armas autorizadas pelo Conselho de Segurança. Previsivelmente, as tradicionais críticas americanas ao comportamento chinês, em particular às violações dos direitos humanos, diminuíram de forma significativa. No discurso do Estado da União, de janeiro de 2002, George Bush chega ao ponto de afirmar que “neste momento de oportunidade, um perigo comum apaga as antigas rivalidades. Os Estados Unidos estão a trabalhar com a Rússia, a China e a Índia como nunca fizemos antes para alcançar a paz e a prosperidade”387. Pouco depois, em 2003, Washington abandona o seu tradicional patrocínio de uma resolução anual do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas a censurar as violações dos direitos humanos na China. O foco estratégico da política externa americana no pós-11 de setembro – a “Guerra Contra o Terror” e as intervenções militares no Afeganistão e no Iraque que a acompanham – faculta à China espaço de manobra acrescido. Compromissos militares substanciais em vários países da Ásia Central, imprescindíveis à condução da guerra no Afeganistão, renovam os temores de Beijing quanto a um novo cerco estratégico. Ao mesmo tempo, à medida que se estabelece o “admirável mundo novo” da “cooperação antiterrorista” sino-americana, Washington concede aos chineses uma mão livre em Xianjing, onde o regime procura intensificar a repressão do movimento “terrorista” uigure388. Confiante no amplo apoio diplomático reunido para prosseguir a “guerra ao terror”, Bush mostra-se disposto a

acomodar a China em troca da “moderação” do país na cena internacional. Todavia, ao recorrer ao Conselho de Segurança para legitimar as suas ações militares, a estratégia diplomática de Bush coloca-o à mercê da Rússia e da China. Confiando que estes dois membros permanentes do Conselho de Segurança não iriam vetar decisões destinadas a conduzir a “guerra ao terrorismo”, Bush abre a porta para que Moscovo e Beijing se oponham à intervenção militar destinada a derrubar Saddam Hussein. Centrada no Grande Médio Oriente, a “Guerra Contra o Terror” distrai Washington das mudanças vertiginosas a decorrer na Ásia, permitindo, assim que Beijing reforce as suas posições na região, particularmente nos mares Sul da China e Leste da China. Em grande parte, o “pivô” para a Ásia deliberado por Barack Obama, e anunciado dez anos após o 11 de setembro, procura “reequilibrar” a correlação regional de poder a favor de Washington, um objetivo que, por si só, constitui uma admissão dos ganhos obtidos por Beijing389. Desenvolvido pela Secretária de Estado Hillary Clinton, num artigo publicado em outubro de 2011 na revista Foreign Policy, intitulado “America’s Pacific Century”, o “pivô” procura reorientar as prioridades estratégicas de Washington, centradas no Atlântico desde 1945390. A reorientação para o Pacífico era imprescindível porque, muito simplesmente, a ascensão da China transformara a Ásia no “principal motor da política mundial”391. Para que os EUA pudessem conservar a sua liderança na cena mundial, era imperativo investir no Pacífico da mesma forma como se promoveu o relacionamento transatlântico após a Segunda Guerra Mundial. Implicitamente, Clinton sugeria que os recursos gastos nas guerras do Iraque e do Afeganistão refletiam prioridades políticas erróneas e, portanto, Washington teria de voltar a concentrar-se no espaço ÁsiaPacífico. Entendido como uma reorientação de prioridades e recursos, o “pivô” afigurava-se como uma resposta ao desafio suscitado pela emergência da China. Para todos os

efeitos, o “pivô” sinaliza a recusa de Washington de assistir pacificamente ao estabelecimento de Beijing como líder regional”392. Mas a viragem para a Ásia era mais do que uma resposta à ascensão da China; era uma réplica ao dinamismo da região e à sua crescente relevância na política mundial393. Era também o regresso ao espaço natural do poderio americano. A América volta a centrar-se no Pacífico depois do desvio para a Europa e o Atlântico provocado pelo expansionismo soviético. Do ponto de vista comercial, o interesse nacional ditava que os Estados Unidos não se podiam ausentar da mais robusta região do mundo. Contudo, o “pivô” não era motivado exclusivamente pelo comércio, pelo investimento e pelo crescimento. Ao provocar uma série de mudanças na balança de poder regional, a ascensão da China passa a ameaçar a preponderância dos Estados Unidos no Pacífico e, num horizonte mais imediato, a ordem regional asiática mantida pelo poderio americano. Numa reunião de Ministros dos Negócios Estrangeiros da ASEAN, realizada a 23 de julho de 2010, Hillary Clinton expressa essas mesmas preocupações quando declara que os Estados Unidos tinham “um interesse nacional na liberdade de navegação, no acesso aberto aos bens marítimos da Ásia e no respeito pelo Direito Internacional no Mar do Sul da China”394. A estratégia do “pivô” exige o fortalecimento das parcerias asiáticas, particularmente com os aliados tradicionais, como sejam o Japão, a Coreia do Sul e a Austrália. Hillary Clinton argumenta que uma participação americana mais robusta na região será garantida por meio das instituições multilaterais existentes, como a ASEAN e a APEC. Mas o aumento do comércio e do investimento exigiria novas iniciativas, como a Parceria Trans-Pacífica (TPP), complementada por acordos de livre comércio com os aliados tradicionais. Centrada no Japão, a Parceria TransPacífica oferecia o acesso ao mercado dos EUA a um bloco

de doze países, muitos dos quais já tinham tratados bilaterais de comércio com a América. Apesar de ser visto como um caminho alternativo ao aprofundamento das relações comerciais com Beijing, o TPP não era, porém, uma simples zona de livre comércio. Previa-se que impulsionasse a criação de regras sobre “práticas anticoncorrenciais”, assim como o estabelecimento de uma entidade supranacional que pudesse zelar pela sua aplicação. Embora a integração da China não estivesse definitivamente excluída, tal eventualidade só seria possível se, em algum momento, o país se conformasse com as regras do TPP, o que obrigaria Beijing a abandonar as suas empresas estatais e a abrir os seus mercados. Na prática, obrigaria a República Popular a descartar o modelo do “socialismo com características chinesas”. Obama seria claríssimo quanto a este assunto quando afirma que “o TPP permite que os EUA – e não países como a China – escrevam as regras para o século XXI, o que é especialmente importante numa região tão dinâmica quanto a ÁsiaPacífico”395. Muito mais que do projeto de livre comércio, o TPP visava forçar mudanças na economia chinesa e, por extensão, no sistema político do país, ao mesmo tempo que privava a China dos mercados das nações aliadas e, retardando assim, a sua plena ascensão. É evidente que, Obama partilha a convicção de Bill Clinton de que a mudança política na China seria impulsionada pelo incremento do comércio e pela lógica inerente à interdependência. Mas, à luz da experiência com a OMC, entendia que era crucial retardar a conquista de mercados por Beijing, o que pressupunha novas regras multilaterais. Consciente da ameaça representada pelo projeto americano, Beijing rapidamente responde ao desafio colocado pelo TPP. Acelera a Parceria Económica Regional Abrangente da ASEAN (RCEP) e, em 2013, Xi Jinping anuncia a Iniciativa Faixa e Rota. Congregando as dez nações da ASEAN e a China, a Austrália, o Japão, a Coreia do Sul e a

Nova Zelândia, a RCEP seria lançada em novembro de 2012 com o intuito de estimular a liberalização das trocas comerciais entre os países-membros396. Embora não fosse entendida como uma área de livre comércio, a parceria, na ótica de Beijing, deveria fomentar a uniformização das regras comerciais e dos padrões técnicos (standards) associados às novas tecnologias. Atendendo ao peso colossal da economia da RPC, esses standards, previsivelmente, favoreciam as empresas chinesas. Ao propor uma área de comércio cujas regras e padrões técnicos eram substancialmente divergentes dos standards promovidos por Washington, a RCEP consubstanciava uma resposta direta e global ao TTP. Igualmente importante, representava uma tentativa chinesa de exercer maior domínio sobre os estados da ASEAN. Se é verdade que o objetivo primordial dos Estados Unidos era excluir a China do TPP, é igualmente verdade que o objetivo fundamental da China era excluir os Estados Unidos da Ásia. Embora o TPP fosse uma ferramenta geopolítica concebida para conter a China, o “pivô” de Obama não ignorava as demais questões de segurança regional397. Neste campo específico, os Estados Unidos pretendiam modernizar os tratados de defesa bilateral celebrados com a Austrália, o Japão e a Coreia do Sul. Ao mesmo tempo, antecipavam o desenvolvimento de novas alianças e parcerias com os estados emergentes da região. Uma presença militar robusta manter-se-ia através da projeção do poderio naval e do fornecimento de bens coletivos de segurança regional, como a liberdade de navegação. Ainda mais crítico, era a responsabilidade pela preservação da liberdade de navegação e a abertura permanente das rotas marítimas que recaáa sobre as forças navais americanas. Beijing, seria portanto pressionada a respeitar estes princípios nos mares Sul da China e Leste da China. O “pivô” significava que recursos militares adicionais, sobretudo navais, seriam transferidos para o Pacífico,

enquanto as bases militares existentes seriam ampliadas e modernizadas398. Aliados regionais como o Japão seriam incentivados a assumir responsabilidade acrescida pela sua segurança, modernizando capacidades militares de modo a garantir maior prontidão e, não menos relevante, a aliviar o fardo imposto ao tesouro americano. A fim de serenar a China, estas inovações seriam equilibradas com o aprimoramento do diálogo militar bilateral com a República Popular. Era esta a visão expressa pelo “pivô”; porém a realidade no terreno resultante das escolhas da Administração Obama seria outra.   Rollback de Trump   No dia 15 de junho de 2015, ao som de “Rockin’ in the Free World” de Neil Young, o bilionário nova-iorquino Donald Trump desce a principal escadaria rolante da Trump Tower para anunciar a sua entrada na corrida pela nomeação presidencial do Partido Republicano399. Dado que Trump era frequentemente apontado como eventual candidato, o anúncio não era inteiramente inesperado, se bem que a maioria dos observadores acreditasse tratar-se de mais um golpe de publicidade orquestrado por uma personalidade consagrada do show business. Com efeito, Trump fora durante décadas um elemento fixo no panorama do entretenimento americano, tornando-se numa vedeta televisiva como apresentador do “The Apprentice” ao longo de catorze temporadas400. Geralmente negligenciadas na época eram, porém, as vagas crenças políticas e as declarações públicas de Trump apontando o declínio industrial da América e a sua convicção de que o resto do “mundo se ri dos políticos americanos”. Essas crenças expressar-se-iam durante o

anúncio da candidatura, que se prolonga por mais de uma hora. Trump refere explicitamente a sua intenção de reverter o “declínio” do país de forma a “Tornar a América Novamente Grande”. Introduziu vários temas que posteriormente vieram a definir a sua candidatura: a imigração ilegal, as desigualdades nos acordos de livre comércio, a desindustrialização e a perda de postos de trabalho, o terrorismo, os preconceitos políticos dos media e a rejeição do elitismo cultural e do politicamente correto. Tratava-se, para todos os efeitos, de uma visão coincidente com as prioridades nacionais e internacionais que, nos anos 1990, definiram as campanhas de Pat Buchanan em busca da nomeação presidencial do Partido Republicano. Por muito controverso que fosse, Trump articulava uma perspetiva que durante duas décadas fizera a sua caminhada nas fileiras do partido e obtivera ressonância na sociedade. O discurso de lançamento da candidatura provoca uma tempestade de críticas, a maioria das quais sobre os comentários centrados na imigração mexicana. Trump afirmara que “quando o México nos envia o seu povo, não envia o seu melhor (...). Enviam pessoas que têm muitos problemas e trazem esses problemas com eles. Eles trazem drogas. Eles trazem crime. Eles são violadores. E alguns, suponho, são pessoas boas”401. A natureza das afirmações gerou a tempestade, mas as declarações mais significativas prendiam-se com a alegação de que os empregos bem remunerados dos trabalhadores americanos de colarinho azul estavam a ser deslocalizados para o México e para a China402. Curiosamente, Trump não culpabiliza a China pelo estado das coisas. Afirma que Beijing apenas prosseguia os seus legítimos interesses. A responsabilidade pela devastação da indústria americana e pela perda dos postos de trabalho residia diretamente no governo de Barack Obama, conivente com uma relação comercial desigual que remontava aos anos 1990. Não deixava de ser irónico constatar que 70 anos após a

abolição dos “tratados desiguais” impostos à China durante o “século da humilhação”, quem agora clamava contra tratados comerciais injustos eram os Estados Unidos. À medida que a longa e imprevisível campanha das primárias republicanas se desenrola, uma candidatura quixotesca transforma-se numa cruzada contra o status quo, doméstico e internacional. Trump permanece inflexível nos ataques às práticas comerciais chinesas e denuncia os danos provocados aos interesses americanos pelo comportamento predatório de Beijing. Rotula, reiteradamente, o país como o “campeão da manipulação de moeda” e promete que, caso seja eleito, no seu primeiro dia de trabalho na Sala Oval formalmente designará a China como manipulador da moeda403. Denuncia os obstáculos à entrada das empresas americanas no mercado chinês e as promessas incumpridas da China: as barreiras e práticas discriminatórias, as transferências forçadas de tecnologia, o roubo flagrante da propriedade intelectual, a ausência de reformas no setor estatal. Esta vasta litania de queixas leva o candidato a concluir que a melhor forma de manter uma saudável relação bilateral com a República Popular era exigir reciprocidade para as empresas americanas e a igualdade de condições no âmbito do comércio bilateral. Trump não seria o único a criticar o comportamento chinês. Há muito que Hillary Clinton denunciava o passado sombrio do país no campo dos direitos humanos e da igualdade de género. Mas, em contraste com Trump, as suas opiniões quanto às relações comerciais eram consideravelmente menos assertivas porque, sem dúvida, acreditava que o engajamento económico com Beijing continuava a ser a mais adequada opção de política externa. A antiga Secretária de Estado de Obama não estava preparada para abandonar a abordagem do establishment definida por Bill Clinton nos anos 1990. Não obstante as relutâncias, porventura compreensíveis, de Hillary Clinton, a realidade impunha-se à medida que a sua

campanha presidencial procura articular uma mensagem coerente que pudesse neutralizar as críticas de Trump ao establishment, encarnado em largamedida pela própria Clinton. No início de outubro de 2015, acabará por introduzir um volte-face e declarar publicamente a sua rejeição do TPP, sugerindo que o acordo não coincidia com o interesse nacional dos Estados Unidos404. Considerando que, na sua qualidade de ministra da Administração Obama, fora responsável pela arquitetura do “pivô” que englobava o TPP, Trump pôde, legitimamente, reclamar uma estrondosa vitória política a escassas semanas da ida às urnas. Dir-se-á que, em vários aspetos fundamentais, a assertividade de Trump face à China era a continuação lógica do “pivô para a Ásia” de Barack Obama. Embora este tenha prosseguido a contenção sem a assumir, Trump fora deveras transparente quanto à abordagem à RPC. Poucos dias depois de ser eleito, aceitou uma chamada telefónica de Tsai Ing-wen, Presidente de Taiwan, tratando-a simbolicamente como chefe de estado e não como líder de uma “província chinesa”405. Desde o rompimento das relações entre os EUA e a República da China (Formosa), em 1979, nenhum outro presidente americano (neste caso, um presidente eleito) falou diretamente com o mais alto responsável taiwanês. Embora as razões que levaram Trump a agir de maneira tão heterodoxa permaneçam obscuras, Beijing mal poderia ignorar o sinal porque, já durante a campanha, Trump questionara a política da “China única”. Entrevistado pela Fox News, Trump admitia não compreender a necessidade de manter tal política, a menos que fosse viável negociar outros assuntos, inclusive comerciais, com o governo chinês406. Mesmo que Trump estivesse apenas a maximizar a sua margem negocial, questionar publicamente a política da “China única” configurava uma rutura com a política externa americana dos cinquenta anos anteriores. Com efeito, a política da “China única” fora adotada por

Washington após a histórica reunião entre Richard Nixon e Mao Zedong, em fevereiro de 1972. Formalmente ela, reconhecia que o país era indivisível, mas não se pronunciava quanto à questão da legitimidade dos governos sediados em Beijing e Taipei. Ao consumar essa viragem política, a Administração Nixon, com o consentimento de Beijing, nunca deixou de manter uma relação privilegiada com Taipei. Ao longo de três décadas, os EUA preservaram a sua “ambiguidade estratégica” quanto à resposta a dar caso a RPC recorresse à força para reunificar o país407. Porque “testar” a determinação americana relativamente à defesa da Formosa acarretaria o risco de provocar uma guerra, os chineses aceitaram esse entendimento informal entre os dois governos. A correlação de forças era o que era e o status quo sustentava a paz no Estreito de Taiwan, garantida pela presença periódica da Marinha americana. Foi precisamente esse status quo que Trump, deliberadamente ou não, questionou ao atender a chamada telefónica de Tsai Ing-wen. Sinais adicionais de endurecimento político em relação a Beijing emergem quando Peter Navarro e Steve Bannon, dois críticos acérrimos da RPC, são indicados para cargos de destaque na Administração, com Bannon a integrar o núcleo duro dos conselheiros pessoais do Presidente408. As chefias dos departamentos do Estado e da Defesa são igualmente confiadas a homens cujas opiniões sobre a China não indicam qualquer descompressão futura. Por exemplo, o Secretário de Estado designado, Rex Tillerson, durante as audições da sua confirmação no Senado, sugere que a construção de ilhas artificiais no Mar do Sul da China era “semelhante à tomada da Crimeia pela Rússia”, acrescentando que “vamos, primeiro, ter de enviar um sinal claro à China para pôr termo à construção das ilhas e, segundo, também não será permitido o acesso a essas ilhas”409. Aparentemente indicando à possibilidade de um bloqueio naval a fim de impedir o controlo efetivo de Beijing

sobre as Ilhas Spratly, caracteriza a política da RPC como “extremamente preocupante”, acrescentando que, caso se consumasse o controlo, estar-se-ia perante uma ameaça potencial a “toda a economia global”. Apontando o dedo ao Presidente Obama, Tillerson afirma que o “fracasso de proporcionar uma resposta permite que continuem a forçar o envelope”, ou seja, Beijing não fora dissuadida410. Apesar da dureza destas palavras, Tillerson distancia-se de Trump quanto a uma questão essencial: expressa o seu apoio à Parceria Trans-Pacífica. Demonstrando uma preferência por relacionamentos bilaterais com os países do Pacífico, Trump caracteriza o TPP como um acordo comercial injusto e prejudicial para os interesses dos EUA. A título exemplificativo, num discurso de campanha, a 6 de junho de 2016, no Ohio, afirma que “a Parceria Trans-Pacífica é outro desastre impulsionado por interesses especiais que desejam violar o nosso país, apenas uma violação contínua do nosso país. É o que isso é. É uma palavra dura: é uma violação do nosso país”411. No seu terceiro dia de mandato, Trump abandona o TPP, declarando, a partir da Sala Oval, que a decisão era “um grande acontecimento para o trabalhador 412 americano” . Não obstante a decisão presidencial, a odisseia do TPP não termina aqui. Determinados a evitarem o colapso do projeto, os restantes países negoceiam novas disposições que, esperava-se, convenceriam Trump a regressar ao TPP. No início de abril de 2018, a ViceSecretária de Imprensa da Casa Branca, Lindsay Walters, admite que “o Presidente sempre disse que estaria aberto a um acordo substancialmente melhor, inclusive no seu discurso em Davos no início deste ano. Por isso, pediu ao Embaixador Lighthizer e ao diretor Kudlow que examinassem se um acordo melhor poderia, ou não, ser negociado”413. No dia 30 de dezembro de 2018, o Acordo Global e Progressivo para a Parceria Trans-Pacífica entra em vigor, mas a posição da Administração americana, menos

enfática do que no passado, permanecia inconclusiva. Trump tem sido decisivo na moldagem de um novo consenso bipartidário quanto à formidável ameaça que a China hoje representa. Embora a ortodoxia na política externa do pós-Guerra Fria tivesse postulado que o engajamento dos Estados Unidos com a China modificaria o comportamento internacional da RPC, o robustecimento do autoritarismo e a uma política externa cada vez mais assertiva por parte de Beijing levaram a opinião pública americana a aceitar uma nova orientação política. Embora esse novo “consenso bipartidário” ainda não se tenha solidificado, é geralmente aceite que o rumo prosseguido desde os anos 1990 fracassou. Kurt Campbell e Ely Ratner, dois altos responsáveis pela condução da política da Administração Obama na Ásia, descrevem a China como o “concorrente mais dinâmico e formidável da América na história moderna” e reconhecem que as premissas subjacentes à tradicional política dos EUA “começam a parecer cada vez mais ténues”414. Preservou-se o “consenso da China” até à eleição de Trump porque não era inteiramente evidente que a abordagem tivesse chegado a um beco sem saída. Dir-se-á que, até à ascensão de Xi Jinping à liderança do PCC, sinais apontavam para uma abertura incipiente do regime. Esses sinais não eram inequívocos porque as reformas eram usualmente contraditórias, e, obviamente, sujeitas à reversão. Muitos observadores também se deixaram iludir pela retórica da “ascensão pacífica”, sustentando que o incremento do poderio económico chinês não seria convertido em ativos militares suscetíveis de perturbar o equilíbrio de poder regional. As persistentes declarações de Beijing de que o país estava a traçar um “caminho pacífico” encaixavam na narrativa avançada por académicos e políticos ocidentais seduzidos pelas teorias do declínio americano. Trump desfaz o “consenso da China” do establishment político e quebra as expectativas benignas subjacentes ao

engajamento que pareciam “naturais” num mundo globalizado. Denunciando os parcos resultados do engajamento, o Secretário de Estado Mike Pompeo afirmou: “fizemos muito para acomodar a ascensão da China na esperança de que a China comunista se tornasse mais livre, mais orientada para o mercado e, finalmente, mais democrática. E fizemos isso durante muito tempo”415. O endurecimento das políticas interna e externa de Xi Jinping aparentemente demonstrara até que ponto a política dos EUA fora um equívoco. Não foram as violações dos direitos humanos nem convicções anticomunistas que levaram Trump a agir; foram as relações comerciais injustas, e a devastação industrial produzida nos Estados Unidos. Movidos pelo acesso ao vasto mercado chinês, as grandes empresas foram (e são) os principais defensores da política de engajamento. Para os políticos, os riscos de assumirem uma retórica mais robusta e posições mais afirmativas no Congresso diminuíram porque a opinião pública americana, mesmo antes da “crise Covid”, deixou de ver a China como uma potência benigna. Longe iam os tempos em que a opinião pública, beneficiária das importações chinesas baratas que impulsionavam o chamado “efeito Wal-Mart”, mantinha uma expetativa favorável da República Popular416. Um inquérito conduzido pela Pew Research, de agosto de 2019, revelava que as perceções negativas atingiam os 60%, o índice mais desfavorável desde que a Pew começou a incluir a questão nos seus inquéritos417. Os resultados indicam uma série de dados interessantes. Quando interrogados sobre qual o país que constituía a maior ameaça para os Estados Unidos, 24% dos inquiridos indicaram a China, o mesmo número que identificou a Rússia, enquanto a Coreia do Norte reunia 12% das respostas. Por fim, tanto democratas como republicanos viam a China de forma negativa, embora “a opinião republicana seja um pouco mais negativa: 70% dos republicanos e independentes que apoiam os republicanos

têm uma opinião desfavorável, em comparação com 59% dos democratas e independentes de tendência 418 democrata” . A “crise Covid” provocou um ainda maior endurecimento da opinião pública americana contra a China. Um segundo aspeto do “novo consenso da China” assenta na convicção de que o momento unipolar americano foi definitivamente substituído pela rivalidade entre grandes potências419, uma mudança salientada pela Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos da América de dezembro de 2017. O texto, o mais importante documento de segurança nacional, define a China como um “concorrente” e uma “potência revisionista”420, acrescentando que “a China e a Rússia desafiam o poder, a influência e os interesses americanos numa tentativa de minar a segurança e a prosperidade americanas. Estão determinadas em tornar as economias menos livres e menos justas, a aumentar as suas forças armadas e a controlar informações e dados para reprimir as suas sociedades e expandir a sua respetiva influência”421. A Estratégia de Segurança Nacional de Donald Trump ganha relevância ao sugerir que a ameaça chinesa representa um desafio abrangente, de amplo espetro, ao poderio americano. A partir do momento em que a Casa Branca define tal viragem, uma política que essencialmente reduz a rivalidade a deficits, balanças de pagamentos e barreiras alfandegárias começa a ser insustentável. No preciso momento em que Trump negoceia a pausa na “guerra comercial”, a “crise Covid” obriga-o a ir para além dos deficits e do comércio injusto. Rival global, a China requer uma resposta estratégica de espetro total. – 343 . Cf., “Pompeo: Chinese threat may be worse than a Cold War 2.0”, Politico, 8 de agosto de 2020, disponível em:

https://www.politico.com/news/2020/08/12/pompeo-chinese-threat-may-beworse-than-cold-war-communism-394350. 344 . Ver, John Pomfret. The Beautiful Country and the Middle Kingdom, pp. 128. 345 . Cf., Warren E. Cohen. America’s Response to China: A History of SinoAmerican Relations (6th ed.). Nova Iorque: Columbia University Press, 2019, p. 13. O texto complete do Tratado de Wangxia pode ser consultado em: https://china.usc.edu/treaty-wangxia-treaty-wang-hsia-may-18-1844. 346 . John Hay foi nomeado pelo Presidente William McKinley no dia 30 de setembro de 1898. No seguimento do assassinato de McKinley, no dia 1 de setembro de 1901, serviu o Presidente Theodore Roosevelt na mesma capacidade até à sua morte, em 1 de julho de 1905. 347 . Sobre este assunto, cf., inter alia, David J. Silbey. The Boxer Rebellion and the Great Game in China. Nova Iorque: Hill and Wang, 2012 e Jung Chang. Empress Dowager Cixi: The Concubine Who Launched Modern China. Londres: Jonathan Cape, 2013, pp. 256-279. 348 . Ver, Edmund Morris. Theodore Rex. Nova Iorque: Random House, 2002, pp. 492-495. 349 . Cf., Arthur K. Kuhn, “The Lytton Report on the Manchurian Crisis”, The American Journal of International Law, Vol. 27, No. 1, janeiro de 1933, pp. 96100. 350 . Os Estados Unidos, a Alemanha e a França assinaram o documento no dia 27 de agosto de 1928. O artigo I afirmava que “As Altas Partes Contratantes declaram solenemente em nome dos seus respetivos povos que condenam o recurso à guerra para solucionar controvérsias internacionais e renunciam-na como instrumento de política nacional nas relações recíprocas”. O Artigo II afirmava que “As Altas Partes Contratantes concordam que a solução de todas as disputas ou conflitos de qualquer natureza ou de qualquer origem que possam surgir jamais será procurada exceto por meios pacíficos”. Em caso de violação do Pacto, os estados “deveriam ser negados os benefícios proporcionados” pelo acordo. Como não havia mecanismo de aplicação, o Pacto não foi particularmente útil como meio de dissuasão. O texto completo pode ser consultado em: https://avalon.law.yale.edu/20th_century/kbpact.asp. 351 . Ver, Robert C. North, Moscow and Chinese Communists, 228-235. 352 . Para a versão de Mao sobre estas negotiações, ver, Mao Tse-tung, “On the Chungking Negotiations”, Selected Works of Mao Tse-tung, Vol. 4, pp. 53-63. Sobre as conversações, cf., Sergey Radchenko, “Lost Chance for Peace: The 1945 CCP-Kuomintang Peace Talks Revisited”, Journal of Cold War Studies, Vol. 19, No. 2, Primavera de 2017, pp. 84-114. 353 . Sobre a missão de George Marshall, ver, Danies Kurtz-Phelan. The China Mission: George C. Marshall’s Unfinished War, 1945-1947. Nova Iorque: W.W. Norton, 2018. 354 . Sobre a resposta de Harry Truman à acusação de que “perdera” a China, ver, Kevin Peraino. A Force So Swift: Mao, Truman and the Birth of Modern China, 1949. Nova Iorque: Crown, 2017. 355 . Cf., Gay Talese, “Truman Day Here: Talk, Walk, Talk”, The New York Times, 30 de abril de 1959, p. 17, consultado em: https://timesmachine.nytimes.com/timesmachine/1959/04/30/89188649.html.

356 . Sobre a Guerra da Coreia, ver, John Merrill. Korea: The Peninsular Origins of the War. Newark: University of Delaware Press, 1989 e Bruce Cummings. The Korean War: A History. Nova Iorque: Random House, 2010. 357 . Cf., Gao Wenqian. Zhou Enlai, p. 5. 358 . Cf., Chris Tudda. A Cold War Turning Point: Nixon and China, 1969–1972. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 2012. 359 . Ver, Richard Nixon. The Memoirs of Richard Nixon. Nova Iorque. Grosset & Dunlap, 1978, pp. 880-881. 360 . Cf., Henry Kissinger. White House Years. Boston: Little, Brown and Company, 1979, p. 764. 361 . Ver, Gao Wenqian. Zhou Enlai, p. 6. Sobre a Doutrina Brezhnev, cf., R. Judson Mitchell, “A New Brezhnev Doctrine: The Restructuring of International Relations”, World Politics, Vol. 30, No. 3, abril de 1978, pp. 366-390 e Matthew J. Ouimet. The Rise and Fall of the Brezhnev Doctrine in Soviet Foreign Policy. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2003. 362 . Richard Nixon levantou a possibilidade de retomar relações com a República Popular antes de conquistar a Casa Branca. Cf., Richard M. Nixon, “Asia After Viet Nam”, Foreign Affairs, Vol. 46, No. 1, outubro de 1967, pp. 111125. 363 . Cf., Gao Wenqian. Zhou Enlai, p. 11 and Richard Nixon, Memoirs, p. 547. 364 . Ver, Henry Kissinger, White House Years, p. 691. 365 . Ver, Margaret MacMillan, Nixon and Mao: The Week that Changed the World. Nova Iorque: Random House, 2007. 366 . O texto complete do Comunicado de Xangai pode ser consultado em: “Joint Communiqué of the United States of America and the People’s Republic of China (“Shanghai Communiqué”, February 28, 1972)”, http://afe.easia.columbia.edu/ps/china/shanghai_communique.pdf. 367 . Ibid. 368 . Cf., George Bush e Brent Scowcroft. A World Transformed. Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 1998, pp. 86-111. O conservadorismo político de George Bush e a sua aversão à mudança na China é demonstrado pela seguinte citação, reproduzida por um dos seus biógrafos, Jon Meacham: “A força da liberdade e da democracia é fantástica, é maravilhosa”, ditou Bush, “mas a mudança tem de ser ordeira em muitas situações. O ponto é que não podemos fomentar a revolução senão as coisas podem acabar pior”. Cf., Jon Meacham. Destiny and Power: The American Odyssey of George Herbert Walker Bush. Nova Iorque: Random House, 2015, p. 374. 369 . Cf., Jeff Jacoby, “Kissing and Coddling China’s Dictators”, Capitalism Magazine, 6 de junho de 2001, disponível em: https://www.capitalismmagazine.com/2001/07/kissing-and-coddling-chinasdictators/. 370 . Sobre o debate em torno das sanções após o massacre de Tiananmen, ver, David Skidmore e William Gates, “After Tiananmen: The Struggle over US Policy toward China in the Bush Administration”, Presidential Studies Quarterly, Vol. 27, No. 3, Verão de 1997, pp. 514-539. 371 . Pouco depois, Bush autorizou a venda de quarto aviões Boeing. Outras sanções, incluindo USTDA, mas não OPIC, foram abandonadas por Bill Clinton. Durante a “Guerra Contra o Terror”, George W. Bush permitiu a venda de

sensores e equipamentos destinados à polícia. Em suma, a retórica das sanções punitivas não era geralmente coincidente com a realidade da sua aplicação. 372 . Em 1980, a China obteve “non-discriminatory MFN status”, sujeito a revisão anual pelas autoridades americanas. Cf., Csilla Lakatos, “Back to the 1930s: Do US tariffs signal a shift to Smoot-Hawley-type Protectionism?”, Brookings Future Development, 26 de julho de 2018, disponível em: https://www.brookings.edu/blog/future-development/2018/07/26/back-to-the1930s-do-us-tariffs-signal-a-shift-to-smoot-hawley-type-protectionism/. 373 . Cf., James Kirchick, “Dems marching backward on foreign policy”, Politico, 26 de novembro de 2007, disponível em: https://www.politico.com/story/2007/11/dems-marching-backward-onforeignpolicy-007039. 374 . Anthony Lake, o primeiro Diretor do Conselho de Segurança Nacional (NSC) de Bill Clinton, articulou os pilares estruturantes da Doutrina Clinton num discurso proferido a 21 de setembro de 1991, na Johns Hopkins University. Ver, Anthony Lake, “From Containment to Enlargement”, 21 de setembro de 1993, disponível em: http://www.mtholyoke.edu/acad/intrel/lakedoc.html. Também sobre a Doutrina Clinton, cf., The White House, A National Security Strategy of Engagement and Enlargement, fevereiro de 1996, consultado em: https://www.hsdl.org/?view&did=444939. Para uma discusão destes assuntos, cf., Douglas Brinkley, “Democratic Enlargement: The Clinton Doctrine”, Foreign Policy, No. 106, Primavera de 1997, pp. 110-127 e J. Dumbrell, “Was There a Clinton Doctrine? President Clinton’s Foreign Policy Reconsidered”, Diplomacy & Statecraft, Vol. 13, No. 22, 2002, pp. 43-56. 375 . Cf., The White House, “Remarks by the President on Foreign Policy”, Grand Hyatt Hotel, San Francisco, CA, February 26, 1999, acessivel em: https://www.mtholyoke.edu/acad/intrel/clintfps.htm. 376 . Ibid. 377 . Expressando este ponto de vista, Bill Clinton, em 1997, afirmou: “O isolamento da China é impraticável, contraproducente e potencialmente perigoso. Medidas militares, políticas e económicas para fazer isso encontrariam escasso apoio entre os nossos aliados no mundo e, mais importante, até mesmo entre os próprios chineses que trabalham em prol de maior liberdade. O isolamento encorajaria os chineses a se tornarem hostis e a adotarem políticas em conflito com os nossos próprios interesses e valores. Dificultará, não facilitará, a cooperação no âmbito da proliferação de armas. Isso dificultaria, não ajudaria, os nossos esforços para promover a estabilidade na Ásia. Iria exacerbar, não melhorar, a situação dos dissidentes. Isso fecharia, não abriria, um dos mercados mais importantes do mundo. Isso tornaria a China menos, e não mais, propensa a seguir as regras de conduta internacional e a fazer parte de um consenso internacional emergente” Ver, The White House, “Remarks by the President in Address on China and the National Interest”, Voice of America, Washington, DC, 24 de outubro de 1997, consultado em at: https://19972001.state.gov/regions/eap/971024_clinton_china.html. 378 . Há uma literatura copiosa que explora a correlação robusta – mas que não deixa de ser apenas uma correlação – entre a democracia e a paz. Alguns dos trabalhos pioneiros incluem, inter alia, Michael Doyle, “Kant, Liberal Legacies and Foreign Affairs. Part 1”, Philosophy and Public Affairs, Vol. 12, No. 3, Verão

de 1983, pp. 205-235; Michael Doyle, “Liberalism and World Politics”, American Political Science Review, 80, 1986; Zeev Maoz e Bruce Russett, ‘Normative and Structural Causes of Democratic Peace, 1946-1986’, American Political Science Review, Vol. 87, No. 3 setembro de 1993, pp. 624-638; Raymond Cohen, “Pacific Unions: A Reappraisal of the Theory That Democracies Do Not Go to War with Each Other”, Review of International Studies, Vol. 20 No. 3, julho de 1994, pp. 207-223; Michael Doyle. Ways of War and Peace: Realism, Liberalism, and Socialism. Nova Iorque: W.W. Norton & Company, 1997; J.R. Oneal e J.L. Ray, “New Tests of the Democratic Peace: Controlling for Economic Interdependence, 1950-85,” Political Research Quarterly, Vol. 50, No. 4, dezembro de 1997, pp. 751-775; John M. Owen. Liberal Peace, Liberal War. Ithaca: Cornell University Press, 1997 e Stephen van Evera. Causes of War: Power and the Roots of Conflict. Ithaca: Cornell University Press, 199. Ver, em português, Vasco Rato, “Mas são mesmo mais pacíficas?”, Política Internacional, No. 18, Outono/Inverno de 1998, pp. 93-114. 379 . “Quanto mais as pessoas sabem, mais opiniões irão ter; quanto mais a democracia se dissemina – e tenha em mente que mais de metade do mundo agora vive sob governos da sua própria escolha – , mais pessoas acreditarão que deveriam ser donos do seu próprio destino”, afirmou Bill Clinton. Cf., The White House, “Remarks by the President at the World Economic Forum”, Davos, Switzerland, 29 de janeiro de 2000, disponível em: https://19972001.state.gov/travels/2000/000129clinton_wef.html. 380 . Cf., Niall Ferguson e Moritz Schularick, “Chimerica and the Global Asset Market Boom” International Finance, Vol. 10, No. 3, Inverno de 2007, pp. 215239. 381 . Ver, The White House, “Remarks by the President on the Passage of Permanent Normal Trade Relations with China”, The Rose Garden, 24 de maio de 2000, consultado em: https://19972001.state.gov/regions/eap/000524_clinton_china.html. 382 . Ver, Richard Baum, “From ‘Strategic Partners’ to ‘Strategic Competitors’: George W. Bush and the Politics of U.S. China Policy”, Journal of East Asian Studies, Vol. 1, No. 2, agosto de 2001, pp. 191-220. 383 . Sobre este incidente e as suas consequências, cf., Shirley A. Kan et. al., “China-U.S. Aircraft Collision Incident of April 2001: Assessments and Policy Implications”, CRS Report for Congress, Updated October 10, 2001, disponível em: https://fas.org/sgp/crs/row/RL30946.pdf. e Minnie Chan, “How a mid-air collision near Hainan 18 years ago spurred China’s military modernization”, South China Morning Post, 2 de abril de 2019, disponível em: https://www.scmp.com/news/china/diplomacy/article/3004383/how-mid-aircollision-near-hainan-18-years-ago-spurred-chinas. 384 . Para o conteúdo da carta, cf., “The letter that led to release of U.S. crew”, CNN.com, 11 de abril de 2001, consultado em: https://edition.cnn.com/2001/WORLD/asiapcf/east/04/11/prueher.letter.text/. 385 . Curiosamente, o Incidente da Ilha Hainan praticamente não é referido nas memórias de George W. Bush, pois o antigo president dedica-lhe menos de uma página de atenção. Cf., George W. Bush. Decision Points. Nova Iorque: Crown, 2010, p. 426. Sobre o mesmo assunto, ver, Condoleezza Rice. No Higher Honor: A Memoir of My Years in Washington. Nova Iorque: Crown, 2011, pp. 45-48.

386 . Ver, “Jiang Expresses Sympathy to Bush, Condemns Terrorists”, 11 de setembro de 2001, disponível em: http://bg.chineseembassy.org/eng/dtxw/t131603.htm. 387 . Ver, The White House, “President Delivers State of the Union Address”, consultado em: https://georgewbushwhitehouse.archives.gov/news/releaSes/2002/01/20020129-11.html. 388 . Sobre a “Guerra Contra o Terror” de Beijing em Xinjiang na sequência imediata do 11 de setembro, cf., Chien-peng Chung, “China’s “War on Terror”: September 11 and Uighur Separatism”, Foreign Affairs, Vol. 81, No. 4, julho/agosto de 2002, pp. 8-12. 389 . Ver, Kurt M. Campbell. The Pivot: The Future of American Statecraft in Asia. New York: Twelve, 2016. Campbell, Secretário de Estado Adjunto para a Ásia durante o primeiro mandato da Administração de Obama, foi, na prática, o principal arquiteto do “pivô” para a Ásia. 390 . Cf., Hillary Clinton, “America’s Pacific Century”, Foreign Policy, 11 de outubro de 2011, disponível em: https://foreignpolicy.com/2011/10/11/americaspacific-century/. 391 . Ibid. 392 . Ver, Jude Woodword. The US vs China: Asia’s New Cold War?. Manchester: Manchester University Press, 2017. 393 . Pouco depois, em janeiro de 2012, o Departamento de Defesa americano reproduzia a linguagem de Clinton num relatório onde se pode ler: “Os interesses económicos e de segurança dos EUA estão inextrincavelmente ligados aos desenvolvimentos no arco que se estende desde o Pacífico Ocidental e Leste Asiático até à região do Oceano Índico e Sul da Ásia, criando uma mistura de desafios e oportunidades em evolução permanente. Assim, embora as forças armadas dos EUA continuem a contribuir para a segurança global, iremos necessariamente reequilibrar em direção à região da Ásia-Pacífico. Os nossos relacionamentos com os aliados asiáticos e parceiros-chave são essenciais para a estabilidade e o crescimento futuro da região. Enfatizaremos as nossas alianças existentes, que fornecem uma base vital para a segurança da Ásia-Pacífico. Também expandiremos as nossas redes de cooperação com parceiros emergentes em toda a Ásia-Pacífico para garantir a capacidade coletiva e a capacidade de proteger interesses comuns”. Ver, Department of Defense, “Sustaining Global Leadership: Priorities for 21st Century Defense”, Washington, DC, janeiro de 2012, disponível em: https://archive.defense.gov/news/Defense_Strategic_Guidance.pdf. 394 . Cf., US Department of State, “Remarks at Press Availability”, Hanoi, Vietnam, 23 de julho de 2010, disponível em: https://20092017.state.gov/secretary/20092013clinton/rm/2010/07/145095.htm. 395 . Para as palavras de Obama, ver, The White House, “Statement by the President on the Signing of the Trans-Pacific Partnership”, 3 de fevereiro de 2016, disponível em: https://obamawhitehouse.archives.gov/the-pressoffice/2016/02/03/statement-president-signing-trans-pacific-partnership. 396 . Cf., por exemplo, Min Ye, China and Competing Cooperation in Asia-Pacific: TPP, RCEP, and the New Silk Road”, Asian Security, Vol. 11, No. 3, 2015, pp. 206224 e Shintaro Hamanaka, “TPP versus RCEP: Control of Membership and Agenda Setting” Journal of East Asian Economic Integration Vol. 18, No. 2, junho

de 2014, pp. 163-186. 397 . Para uma discussão do significado geopolítico do acordo comercial, cf., Michael J. Green e Matthew P. Goodman. “After TPP: The Geopolitics of Asia and the Pacific”, The Washington Quarterly, Vol. 38, No. 4, outubro de 2015, pp. 1934 e Jane Perlez, “U.S. Allies See Trans-Pacific Partnership as a Check on China”, The New York Times, 6 de outubro de 2015, disponível em: https://www.nytimes.com/2015/10/07/world/asia/trans-pacific-partnership-chinaaustralia.html. 398 . para uma análise crítica, ver, Bruce Klingner, “The Misssing Asia Pivot in Obama’s Defense Strategy”, The Heritage Foundation WebMemo, 6 de janeiro de 2012, consultado em: http://thf_media.s3.amazonaws.com/2012/pdf/wm3443.pdf. 399 . Cf., Michael Kruse, “The Escalator Ride That Changed America”, Politico, 14 de junho de 2019, consultado em: https://www.politico.com/magazine/story/2019/06/14/donald-trump-campaignannouncement-tower-escalator-oral-history-227148. 400 . Ver, Charlie Laderman e Brendan Simms. Donald Trump: The Making of a World View. Londres: I.B. Tauris, 2017, p. 3. 401 . Ver, Washington Post Staff, “Full text: Donald Trump announces a presidential bid”, Washington Post, 16 de junho de 2015, disponível em: https://www.washingtonpost.com/news/post-politics/wp/2015/06/16/full-textdonald-trump-announces-a-presidential-bid/. 402 . Ver, Justin R. Pierce e Peter K. Schott, “The Surprisingly Swift Decline of US Manufacturing Employment”, American Economic Review, Vol. 106, No. 7, 2016, pp. 1632–1662. 403 . Depois de ser investido, Trump continuou a designar a China como um manipulador da moeda. Ver, por exemplo, Steve Holland e David Lawder, “Exclusive: Trump calls Chinese ‘grand champions’ of currency manipulation”, Reuters, 24 de fevereiro de 2017, consultado em: http://www.reuters.com/article/us-usa-trump-china-currency-exclusiveidUSKBN1622PJ. Dois meses depois de assumir a presidência, numa entrevista concedida ao The Wall Street Journal, Trump aparentemente mudara de ideias e recusou reafirmar a designação perante os jornalistas. Cf., Gerard Baker, Carol E. Lee e Michael C. Bender, “Trump Says Dollar ‘Getting Too Strong,’ Won’t Label China a Currency Manipulator” The Wall Street Journal, 12 de abril de 2017, disponível em: https://www.wsj.com/articles/trump-says-dollar-getting-toostrong-wont-label-china-currency-manipulator-1492024312. 404 . Para uma exposição sobre a política interna do Partido Democrata subjacente à decisão, cf., Jonathan Allen e Amie Parnes. Shattered: Inside Hillary Clinton’s Doomed Campaign. Nova Iorque: Crown, 2017, pp. 86-87. Também, Anne Gearan e David Nakamura, “Hillary Clinton comes out against Obama’s Pacific trade deal”, The Washington Post, 7 de outubro de 2015, consultado em: https://www.washingtonpost.com/news/post-politics/wp/2015/10/07/hillaryclinton-comes-out-against-obamas-pacific-trade-deal/. 405 . Cf., Mark Landler e David E. Sanger, “Trump Speaks with Taiwan’s Leader, an Affront to China”, The New York Times, 2 de dezembro de 2016, disponível em: https://www.nytimes.com/2016/12/02/us/politics/trump-speaks-withtaiwans-leader-a-possible-affront-to-china.html.

406 . Cf., Mark Lander, “Trump Suggests Using Bedrock China Policy as Bargaining Chip”, The New York Times, 11 de dezembro de 2016, disponível em: https://www.nytimes.com/2016/12/11/us/politics/trump-taiwan-one-china.html? action=click&contentCollection=Asia%20Pacific&module=RelatedCoverage®i on=Marginalia&pgtype=article. Pouco tempo depois, na sequência de um telefonema com Xi Jinping, o Presidente Trump anuncia que, afinal, iria respeitar a política da “China única”. Ver, Mark Landler e Michael Forsythe, “Trump Tells Xi Jinping U.S. Will Honor ‘One China’ Policy”, The New York Times, 9 de fevereiro de 2017, consultado em: https://www.nytimes.com/2017/02/09/world/asia/donald-trump-china-xi-jinpingletter.html. 407 . Para uma discussão, cf., Jonathan Manthorpe. Forbidden Nation: A History of Taiwan. Nova Iorque: St. Martin’s Griffin, 2009, pp. 211-225. 408 . Antes de entrar para o staff da Casa Branca, era Navarro, uma figura controversa e conhecido crítico das práticas comerciais chinesas, detalhadas no seu livro Death by China. Foi nomeado diretor da White House National Trade Council em dezembro de 2016. Meses depois, em abril de 2017, passou a chefiar o National Trade Council, quando esse gabinete foi integrado no Office of Trade and Manufacturing Policy. Em setembro de 2017, este seria absorvido pelo National Economic Council, a entidade que proporciona aconselhamento económico ao presidente. Cf., Peter Navarro e Greg Autry. Death by China: Confronting the Dragon – A Global Call for Action. Upper Saddle River: Pearson Education, 2011. Sobre Steve Bannon, ver, Joshua Green. Devil’s Bargain: Steve Bannon, Donald Trump, and the Storming of the Presidency. Nova Iorque: Penguin Press, 2017 e Keith Koffler. Bannon: Always the Rebel. Washington: Regnery, 2017. 409 . Cf., David Brunnstrom e Matt Spetalnick, “Tillerson says China should be barred from South China Sea islands”, Reuters, 11 de janeiro de 2017, disponível em: https://www.reuters.com/article/us-congress-tillerson-chinaidUSKBN14V2KZ. 410 . Ibid. 411 . Ver, Adam Taylor, “A timeline of Trump’s complicated relationship with the TPP”, The Washington Post, 13 de abril de 2018, consultado em: https://www.washingtonpost.com/news/worldviews/wp/2018/04/13/a-timeline-oftrumps-complicated-relationship-with-the-tpp/. 412 . Cf., David Smith, “Trump withdraws from Trans-Pacific Partnership amid flurry of order”, The Guardian, 23 de janeiro de 2017, disponível em: https://www.theguardian.com/us-news/2017/jan/23/donald-trump-first-orderstrans-pacific-partnership-tpp. 413 .Ver, Alana Abramson, “White House Explains Trump’s Reversal on TPP”, Fortune, 12 de abril de 2018, consultado em: https://fortune.com/2018/04/12/whitehouse-explains-trumps-reversal-on-tpp/. 414 . Cf., Kurt M. Campbell and Ely Ratner, “The China Reckoning: How Beijing Defied American Expectations”, Foreign Affairs, Vol. 97, No. 2, março/abril de 2018, p. 70. Para uma perspetiva diferente, cf., Fareed Zakaria, “The New China Scare: Why America Shouldn’t Panic About Its Latest Challenger”, Vol. 99, No. 1, janeiro/ fevereiro de 2020, pp. 52-69. Para uma discussão interessante sobre este assuntos ver, James Curran, “How America’s Foreign Policy Establishment

Got China Wrong”, The National Interest, 17 de dezembro de 2018, disponível em: https://nationalinterest.org/feature/how-america’s-foreign-policyestablishment-got-china-wrong-39012?page=0%2C1. 415 . Ver, “2019 Herman Kahn Award Remarks: US Secretary of State Mike Pompeo on the China Challenge”, delivered at the Hudson Institute, 30 de outubro de 2019, disponível em: https://s3.amazonaws.com/media.hudson.org/Transcript_Secretary%20Mike%20P ompeo%20Hudson%20Award%20Remarks.pdf. 416 . Cf., Charles Fishman. The Wal-Mart Effect: How the World’s Most Powerful Company Really Works – And How It’s Transforming the American Economy. Nova Iorque: Penguin Press, 2006. 417 . A pesquisa de campo foi efetuada entre 13 de maio a 18 de junho de 2019, um período marcado pelo aumento das tensões comerciais entre os Estados Unidos e a China. Ver, Laura Silver, Kat Devlin e Christine Huang, “US Views of China Turn Sharply Negative Amid Trade Tensions”, Pew Research Center: Global Attitudes and Trends, consultado em: https://www.pewresearch.org/global/2019/08/13/u-s-views-of-china-turn-sharplynegative-amid-trade-tensions. 418 . Ibid. 419 . O Departamento de Defesa define atualmente um “global peer competitor” como “uma nação ou coligação rival com a motivação e as capacidades para contestar os interesses dos EUA à escala global”. Ver, Thomas S. Szayna, Daniel Byman, Steven C. Bankes, Derek Eaton, Seth G. Jones, Robert Mullins, Ian O. Lesser, e William Rosenau. The Emergence of Peer Competitors: A Framework for Analysis. Santa Monica: RAND Corporation, 2001, p. 8, nota de pé 1, consultado em: https://www.rand.org/pubs/monograph_reports/MR1346.html. Ver, também, José Manuel Félix Ribeiro. EUA versus China: confronto ou coexistência. Lisboa: Guerra e Paz, 2015 e Carlos Gaspar. O Regresso da Anarquia: Os Estados Unidos, a Rússia, a China e a Ordem Internacional. Lisboa: Alêtheia Editores, 2019. 420 . Para uma discussão, cf., Feng Huiyun, “Is China a Revisionist Power?”, The Chinese Journal of International Politics, Vol. 2, No. 3, Verão de 2009, pp. 313– 334. 421 . Cf., The White House, “National Security Strategy of the United States of America”, dezembro de 2017, p. 2, disponível em: https://www.whitehouse.gov/wp-content/uploads/2017/12/NSS-Final-12-18-20170905.pdf. Para uma discussão, cf., John M. Weaver, “The 2017 National Security Strategy of the United States”, Journal of Strategic Security, Vol. 11, No. 1, 2018, pp. 62-71.

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CAPÍTULO VI – TUCÍDIDES REDUX   “Standing in the grey world looking with sodden, molten eyes out into what irrevocably is –”. (Rainer Maria Rilke, Leaving)

  As grandes potências procuram maximizar o seu poder, dominar aliados e adquirir prestígio. Não há, historicamente, exceção a este padrão comportamental. A política internacional é, portanto, conflituosa, ditada por considerações de poder e a busca da segurança nacional. E porque não existe um poder comum que se possa sobrepor aos estados – isto é, não há um leviatã mundial –, o sistema internacional é anárquico, de natureza hobbesiana, onde, em última análise, cabe a cada estado garantir a sua segurança e soberania. Eis, pois, a essência das relações entre estados. Dirão os mais idealistas que, mesmo que tenha sido assim no passado, não é forçoso que assim seja no futuro. A observação é compreensível e comum num Ocidente pós-histórico que se refugia em abstrações e normativismos para escapar à realidade, e aos compromissos moralmente ambíguos que invariavelmente acompanham o exercício do poder. Porém, se forem descartas as ilusões quanto à lógica da política internacional, o comportamento da China (e dos Estados Unidos) torna-se tão transparente quanto previsível. Durante o XIX Congresso Nacional do PCC, que consagra a liderança indiscutível de Xi Jinping no partido e no estado, o autocrata afirma que a China “alcançou uma tremenda transformação: levantou-se, enriqueceu e está a fortalecerse”422. Recorrendo a esta fórmula, o homem forte chinês descreve, de forma sucinta, os objetivos fundamentais que

durante décadas pautaram o labor do PCC. Num livro recente, Elizabeth Economy observa que a trajetória do comunismo chinês desde a “libertação” de 1949 até aos nossos dias pode ser subdividida em três distintas, mas interligadas, “revoluções”423. Durante a “primeira revolução”, sob a liderança de Mao Zedong, assiste-se à “libertação” e à unificação de um país que se “levanta” de forma a encerrar o “século da humilhação nacional”. A “segunda revolução” consubstancia-se nas reformas empreendidas por Deng Xiaoping e pelos seus dois sucessores, Jiang Zemin e Hu Jintao. A “terceira revolução”, assente no sucesso das duas anteriores, permite consumar o “grande rejuvenescimento da nação chinesa” ( ), isto é, devolver ao país a sua grandeza “natural”. Esta “terceira revolução” engloba duas componentes distintas, mas complementares: uma economia moderna que proporcione o aumento do nível e qualidade de vida da população e que, concomitantemente, sustente a afirmação do poderio chinês na esfera internacional. Eis a missão histórica confiada a Xi Jinping. Se as “três revoluções” coincidem com vitórias significativas do PCC, essas mesmas “revoluções” são marcadas por erros e insuficiências – para não dizer derrotas – da casta comunista. Inequivocamente, a “revolução de Mao” revelou-se incapaz de concretizar o grande desafio nacional assumido pelo PCC: a modernização plena. Durante a “segunda revolução”, a de Deng Xiaoping, assiste-se a uma modernização parcial, mas a corrupção e a estagnação geraram profundos problemas de legitimação interna. No plano externo, a fraqueza relativa do país impunha uma política de dissimulação de capacidades e de ambições. A “terceira revolução”, a decorrer sob a liderança de Xi Jinping, ameaça provocar um efeito boomerang, como se pode constatar pelo endurecimento da política dos EUA. Parece, aliás, ser este o receio de uma parte da elite chinesa, a qual suspeita que Xi tenha avançado de forma

demasiado imprudente e, assim, comprometido o surgimento do país424. No XVI Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês, realizado em outubro de 2002, Jiang Zemin afirmara que a República Popular dispunha de duas décadas de “oportunidade estratégica”425, sendo a mais vital dessas oportunidades, justamente, a adesão do país à Organização Mundial do Comércio (OMC), concretizada em 11 de dezembro de 2001. Visto como o principal motor para garantir o crescimento durante a “segunda revolução”, a integração na OMC garantia o acesso praticamente ilimitado aos cobiçados mercados europeu e americano. Atendendo a que as empresas ocidentais acreditavam que a entrada da RPC na OMC diminuía o risco de investir no país, esperavase o fluxo de tecnologia e capitais ocidentais no seguimento da adesão. Concomitantemente, de forma a aumentar a confiança ocidental, Beijing delineia uma “política de boa vizinhança” enfatizando o seu apoio à ASEAN e a outras instituições regionais; O que procura, na verdade, é convencer as nações circundantes, e os Estados Unidos em particular, das suas intenções benignas e do seu “surgimento pacífico”426. Dito de outra forma, o comportamento da RPC seria compaginável com a ordem internacional que dizia não procurar derrubar. Era exatamente esse tipo de mensagem tranquilizadora que os formuladores da política externa em Washington e Bruxelas pretendiam ouvir.   Xi, o Revisionista   Em 2012, volvidos dez anos de idealismo inebriante que alastrou pela política ocidental nas décadas de 1990 e 2000, o mundo era irreconhecível. Nesse ano, Xi Jinping conquista

a chefia do partido e do estado. Determinada a retomar o seu papel central na política mundial, a China de Xi assumese como uma potência confiante e disponível para utilizar o seu recém-adquirido poderio económico e militar. Um sinal desta nova assertividade ocorre em maio de 2014, quando Xi declara que “cabe ao povo da Ásia dirigir os assuntos da Ásia, resolver os problemas da Ásia e defender a segurança da Ásia”427. Interpretada por alguns como uma “Doutrina Monroe Chinesa” destinada a excluir os Estados Unidos de uma futura arquitetura de segurança regional que Beijing antecipa dominar, a afirmação era, no mínimo, inequívoca quanto à intenção de do novo líder desempenhar o papel predominante naquela região428. A sua premissa de que o “povo da Ásia” dirige os assuntos regionais atribui uma opinião uniforme ao “povo da Ásia”. Não era uma declaração surpreendente na medida em que a China tende a diluir a distinção entre “interesses asiáticos” e os seus interesses paroquiais; usualmente considerando-os como sinónimos. Todavia, o Japão, a Coreia do Sul e outros estados vizinhos (para não mencionar Taiwan) não fazem essa equivalência. Recusam acolher uma ordem regional dominada pela RPC, que os deixaria vulneráveis à hegemonia de Beijing. Igualmente evidente, os Estados Unidos não se mostram minimamente disponíveis para serem afastados do palco asiático, onde consideram possuir interesses vitais. Vislumbram-se, pois, num horizonte não muito distante, confrontos entre a China e os EUA e os seus respetivos aliados regionais. Desde que ascendeu ao topo da política chinesa, Xi Jinping tem feito inúmeras referências à “comunidade de destino comum para a humanidade” ( ), também traduzido como “comunidade de futuro comum para a 429 humanidade” . A visão de Xi engloba temas privilegiados pela política externa chinesa desde 1954, quando Zhou Enlai delineia os “Cinco Princípios da Coexistência Pacífica”430. Mas o conceito “comunidade de destino comum

para a humanidade” não se resume a princípios de política externa ou a uma doutrina de grande estratégia nacional. Deve ser entendido como um paradigma alternativo das relações internacionais e, como tal, o desenho para uma arquitetura internacional pós-liberal. Dito de forma diferente, sob Xi Jinping, a RPC definitivamente emergiu como uma potência revisionista que desafia a ordem liberal construída no pós-1945. Essa tentativa de rever o status quo encontra-se hoje mais adiantada na vizinhança imediata da República Popular, ou seja, nos mares do Sul da China e do Leste da China. Embora o propósito revisionista sínico tenda a ser subestimado no Ocidente, onde as estratégias de engajamento continuam a dominar a política externa de vários governos, o projeto disruptivo de Xi é uma consequência lógica da “terceira revolução” chinesa. O conceito de “destino comum” assume um lugar de destaque no discurso da política externa da RPC antes da subida de Xi à chefia do PCC. Utilizada por Hu Jintao em 2007 para descrever as relações entre a República Popular e Taiwan, a expressão “comunidade de destino comum” restringia-se ao “destino comum” ostensivamente partilhado pela nação chinesa residente nos dois lados do Estreito431. Hu Jintao, em 2005, aproveita a ocasião de um discurso nas Nações Unidas para pedir um “mundo harmonioso” baseado em “relações amistosas e cooperação com todos os países com base nos Cinco Princípios da Coexistência Pacífica, temas que Xi mais tarde recupera432. A visão de Xi não representa, pois, qualquer descontinuidade com a política externa traçada pela RPC no passado recente. Reafirma, a bom rigor, a intenção de romper com os princípios essenciais da ordem internacional liberal denunciada consistentemente por Beijing ao longo das décadas, incluindo o “hegemonismo das superpotências” e as alianças de segurança criadas e mantidas pelos Estados Unidos na Ásia depois de 1945. Com isto não se pretende dizer que a postura de Xi seja

exatamente a mesma da dos seus antecessores, pois Xi inova num aspeto essencial: pretende “realinhar a governança global em pelo menos cinco dimensões principais: política, desenvolvimento (incluindo economia, sociedade e tecnologia), segurança, cultura e meio ambiente”433. Ao contrário dos seus antecessores, Xi não se limita a repetir as advertências tradicionais dos dirigentes chineses; articula uma visão global, uma alternativa global, à atual ordem liberal. Embora dissimulada através de um discurso orwelliano de sentido duplo e, aparentemente benigno, a “comunidade de destino comum para a humanidade” constitui, na realidade, um desafio global para os Estados Unidos e os seus aliados, tanto asiáticos como não-asiáticos434. Dias depois de fazer uma inesperada defesa da globalização e do livre comércio em Davos, Xi articula a nova abordagem revisionista das relações internacionais num discurso proferido a 18 de janeiro de 2017 nas Nações Unidas, em Genebra435. Perante os delegados, ele afirma que “a proposta da China é construir uma comunidade de futuro compartilhado para a humanidade e alcançar um desenvolvimento compartilhado em que todos saiam a ganhar”436. Afirmando a existência de uma “harmonia de interesses” entre a China e as demais nações, defende o estabelecimento de uma “ordem internacional justa e equitativa” enraizada na “igualdade soberana”437. Pretendese que o princípio operacional subjacente à interação entre unidades de igualdade soberana seja a “consulta” porque, “enquanto mantivemos a comunicação e nos tratavamos com sinceridade, a Armadilha de Tucídides pode ser evitada”438. Este mecanismo de “consulta”, por sua vez, estrutura as “parcerias internacionais” baseadas no “diálogo, no não-confronto” e na rejeição das alianças439. Declarava que, em contraste com o comportamento das grandes potências do passado e do presente, “a China é o primeiro país a fazer da construção de parcerias um

princípio que guia as relações entre estados”440. Beijing, vêse, portanto, como o centro de uma vasta rede global de parcerias abrangendo várias áreas de atuação. Porque as regras que governam esse novo sistema devem ser moldadas em conformidade com o princípio da igualdade entre estados soberanos, os países em desenvolvimento passam a ter uma voz ativa nas questões internacionais. Articulada esta visão de “igualdade soberana”, Xi, de forma dissimulada, conclui que “a China nunca buscará hegemonia, expansão ou esferas de influência”441. Ao substituir as atuais alianças pelas chamadas parcerias “win-win”, a China procura pôr termo ao “domínio de um ou vários países”, um eufemismo para descrever alianças institucionalizadas por tratados442. Em acentuado contraste com as alianças americanas de tratado, as parcerias chinesas ostensivamente permitem fomentar a cooperação independentemente de diferenças ideológicas, culturais e políticas. A título exemplificativo, a China mantém “parcerias estratégicas abrangentes” com a Austrália, o Irão, a União Europeia e uma panóplia de países e organizações, independentemente de afinidades ideológicas ou culturais. Na ausência de compromissos especificados por tratado, as parcerias são flexíveis e objeto de upgrade (ou downgrade) consoante o interesse nacional da China e o comportamento dos parceiros. Por exemplo, em 2019, no exato momento em que a União Europeia rotula a China de “rival sistémica”, Portugal transforma a sua “parceria estratégica” num “diálogo estratégico”443. A preferência chinesa por negociações bilaterais com os países da União Europeia permite semear a divisão e impedir a articulação de políticas comuns em toda a Europa. A flexibilidade é, de facto, uma fonte de tremenda alavancagem. Dito de forma mais simples, a preferência de Beijing por parcerias consubstancia uma abordagem de “dividir e reinar” com o intuito de obter vantagem máxima. Esta rejeição de alianças institucionalizadas traduz a

refutação chinesa da ordem pós-1945. No essencial, Xi descarta “qualquer contribuição dos Estados Unidos e dos seus aliados para manter a paz e aumentar a prosperidade global desde a Segunda Guerra Mundial. Em vez disso, atribui o êxito às Nações Unidas e à comunidade global. Como consequência, defende a resolução de crises por via do diálogo entre as partes diretamente envolvidas ou pela mediação das Nações Unidas, cujo Conselho de Segurança deve desempenhar o papel central na conservação da paz mundial”444. Se forem entendidas como uma afirmação de propósito diplomático, as palavras de Xi não oferecem reparo. Todavia, nem todas as crises são suscetíveis de ser resolvidas pelo mecanismo do diálogo. E também é uma evidência que, desde a sua criação, o Conselho de Segurança demonstrou escassa vocação para manter a paz, frequentemente devido a vetos ou ameaças de veto da RPC. Com efeito, ao enfatizar a legitimidade do Conselho de Segurança para resolver conflitos, Xi procura minar as alianças dos EUA, vistas por Beijing como um impedimento estrutural à sua ascensão. A longo prazo, a “comunidade de destino comum para a humanidade” implica um futuro em que as alianças dos Estados Unidos findam e os estados democráticos são forçados a lidar com a China bilateralmente. As fórmulas da cooperação “sem compromisso” e as “grandes potências devem tratar os pequenos países como iguais” são mantras, meros dispositivos retóricos que não correspondem à praxis chinesa. A ênfase colocada no princípio da igualdade entre os estados também não é congruente com as reivindicações feitas pela China no passado, alegando que a dimensão e o poderio do país lhe conferem uma voz coincidente com o seu poder. Caracterizadas por Beijing como instituições da Guerra Fria inadequadas às exigências das relações internacionais contemporâneas, as alianças colocam um desafio a outro nível445. Como destaca Liza Tobin, “a oposição de Beijing às

alianças de segurança dos EUA também se deve ao potencial coercivo representado pelas coligações de democracias”446. Alianças baseadas em valores comuns são um problema espinhoso para a China, porque o regime comunista não pode fomentar alianças assentes nos valores políticos do PCC. Em contraste, as alianças lideradas pelos Estados Unidos no Indo-Pacífico estão, pelo menos em parte, enraizadas em valores democráticos comuns. Beijing pode, no entanto, apelar a um “modelo de desenvolvimento chinês” enfatizando o crescimento, mas omisso em relação aos valores políticos. Por outras palavras, as parcerias não obrigam à adesão aos valores de Beijing, mas pressupõem que o modelo de desenvolvimento chinês seja passível de imitação. Todavia, se o sucesso do modelo resulta dos métodos de “liderança sábia” e “consultiva” do PCC, a linha de demarcação entre o êxito do modelo e os valores que o sustentam torna-se difícil de estabelecer. Os líderes chineses advogam a democracia “consultiva” não apenas nas relações entre estados; também a defendem dentro dos estados, argumentando que se trata de um modelo superior à democracia ocidental. Esse “leninismo consultivo”, no dizer de Steven Tsang, evidencia “um foco obsessivo em permanecer no poder; reforma contínua da governança, projetada para antecipar as reivindicações públicas em prol da democratização; esforços sustentados para aumentar a capacidade do partido para obter, responder e direcionar mudanças na opinião pública; pragmatismo na gestão económico-financeira; e a promoção do nacionalismo no lugar do comunismo”447. Embora o PCC detenha o monopólio do poder, o partido “consulta” os chamados “grupos não filiados” e outras “entidades representativas” no âmbito da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês. A “democracia” harmoniosa da China é apresentada como superior e mais eficiente do que o modelo burguês ocidental que articula, e procura resolver, conflitos de interesse por meio da

concorrência eleitoral, onde os interesses se organizam em partidos políticos. Ao desvalorizar a “democracia burguesa”, o governo chinês visa deslegitimar a competição eleitoral e, por extensão, minar a influência global de Washington e dos seus aliados democráticos. Para alargar a sua influência, Beijing recorre cada vez mais a instrumentos de soft power. A afirmação cultural no exterior, sobretudo por meio do Instituto Confúcio, passou a ser um componente essencial do rejuvenescimento nacional. Convém salientar que, na ótica de Xi, a “cultura” é sinónimo de “cultura socialista” e “valores socialistas fundamentais”, sendo estes uma condição prévia para alcançar um “grande país socialista moderno” até meados do século XXI448. Ao mesmo tempo, a “comunidade de destino comum para a humanidade” convive com a diversidade. Recorrendo a uma fórmula padrão, Xi, no discurso de Genebra, afirma que “não existe civilização superior ou inferior, as civilizações diferem apenas em identidade e localização. A diversidade das civilizações não deve ser uma fonte de conflito global; pelo contrário, deveria ser um motor para impulsionar o avanço das civilizações humanas. Qualquer civilização, com o seu apelo distinto e raiz próprias constitui um tesouro humano. Diversas civilizações devem apoiar-se para alcançar um progresso comum. Deveríamos fazer das trocas entre civilizações uma fonte de inspiração para o avanço da sociedade humana e um vínculo que mantém o mundo em paz”449. Percebe-se que a preocupação de Xi em enfatizar a convivência civilizacional seja evitar o fenómeno do “choque das civilizações” huntingtoniano que serviria para delimitar as fronteiras da influência chinesa. Curiosamente, a noção da igualdade cultural é minada não apenas pelas políticas concretas de assimilação e colonização cultural prosseguidas pelo PCC no Tibete e em Xinjiang, mas também pela afirmação de Xi de que “ao longo de vários milénios, a paz está no sangue de nós, chineses, e parte do

nosso ADN”450. Ao sugerir que, em contraste com outros países, a “essência” da identidade chinesa é a paz, Xi abraça um tipo de essencialismo cultural, atribuindo características opostas a outras nações, que aparentemente, têm a guerra programada no seu ADN. Previsivelmente, questões ambientais e de sustentabilidade permitem que Beijing mobilize a opinião pública internacional em seu favor. Embora a praxis ambiental do governo chinês não coincida com a sua retórica, a sua adesão, ainda que relutante ao Acordo de Paris e à Agenda 2030 das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável surtiu ganhos junto da opinião pública ocidental. Durante o XVIII Congresso do PCC, realizado em 2012, Hu Jintao eleva o “progresso ecológico” a um componente estrutural dos planos de desenvolvimento do país, traçando metas para reduzir a poluição e os danos ambientais causados pela industrialização do país 451. Por sua vez, o XIX Congresso Nacional do PCC consolida essa orientação por meio da “China Bela”, apresentada como uma meta de rejuvenescimento nacional para 2035452. Embora as iniciativas políticas não se traduzam necessariamente em mudanças práticas, o ambiente continuará a ser uma prioridade do PCC por duas razões. Primeira, a rápida modernização da China provocou uma devastação ambiental incalculável que precisa de ser gerida. Segunda, a aposta estratégica chinesa em tecnologias associadas à “energia limpa”, geradora de padrões internacionais, deixa o país posicionado para se tornar líder da economia verde. Para a RPC, o ambientalismo serve para promover os interesses comerciais em todo o mundo, ao mesmo tempo que se apresenta como um estado empenhado em resolver problemas universais. A agenda revisionista de Xi obrigou-o a frisar, em inúmeras ocasiões, que “o desenvolvimento da China não representa uma ameaça para nenhum país (...). Não importa o quanto a

China se desenvolva, nunca buscará hegemonia”453. No entanto, apesar da ênfase colocada publicamente nos conceitos de “consulta”, de relações “win-win” e “igualdade soberana”, jamais descartou o uso da força militar. Apesar de Xi garantir que a RPC é um estado benigno em ascensão, o documento “A Defesa Nacional da China na Nova Era”, tornado público em ٢٠١٩, antevê uma ordem mundial multipolar acompanhada por um sistema “reformado” de governança global454. Quer isto dizer que à medida que se expande para novas regiões do globo, a China pretende, incrementalmente, erguer uma nova arquitetura de segurança internacional. Debruçando-se sobre a segurança na Ásia-Pacífico, o documento afirma que os países da região estão “cada vez mais conscientes de que são membros de uma comunidade de destino compartilhado”455. Em resposta à estratégia de segurança nacional dos Washington, o documento chinês descreve a cooperação sino-russa como uma “parceria estratégica abrangente de coordenação para uma nova era”, acrescentando que a relação entre os dois estados é essencial para “manter a estabilidade estratégica global”456. A afirmação não é inteiramente inequívoca, mas sugere estar-se perante uma estratégia de equilíbrio que junta dois países contra os Estados Unidos. Partindo da constatação de que o êxito económico fora assegurado pelos seus antecessores, Xi afirma que a riqueza material obtida deve agora ser utilizada para tornar a China, novamente, grande. A inexorável marcha de Beijing para a conquista do status de grande potência tem, como é sabido, estimulado intenso debate sobre a probabilidade da guerra entre grandes potências. Um contributo particularmente influente surgiu com o trabalho de Graham Allison sobre a “Armadilha de Tucídides”, conceito delineado no seu livro Destined for War457. Allison testou empiricamente a observação de Tucídides, encontrada na Guerra do Peloponeso, de que “foi a ascensão de Atenas e o

pavor que instilou em Esparta que tornou a guerra inevitável”. A “Armadilha de Tucídides” sugere que a guerra é um desfecho provável quando uma potência em ascensão ameaça superar a potência dominante458. Allison confirma que 12 das 16 transformações desta natureza ao longo dos últimos 500 anos resultaram em guerra. Porém ela fora evitada em 4 dessas ocasiões, três das quais ocorreram no século XX, sendo que a atual rivalidade sino-americana é o caso mais recente do fenómeno459. Compreensivelmente, a de Armadilha Tucídides suscitou ampla discussão na China, fato abertamente reconhecido quando Xi Jinping faz referência ao debate durante a sua visita aos EUA em 2015. O Presidente chinês afirmou que “não existe a chamada ‘Armadilha de Tucídides’ no mundo. Mas, se os principais países repetidamente fizerem erros de cálculo estratégicos, poderão criar essas armadilhas para si mesmos”460. Para evitar a possibilidade de cair nessa autoinduzida armadilha, Xi propôs que as “relações de poder” sino-americanas fossem baseadas na cooperação mútua, no respeito e no diálogo. A bem dizer, os dados recolhidos por Allison sugerem que a guerra não é um resultado inevitável da competição pelo poder. Daí que aconselhe a hierarquização dos interesses vitais para se evitar a dispersão estratégica461. Mais importante ainda, recomenda uma compreensão mais profunda da política interna da China e dos seus interesses nacionais; em resumo, uma abordagem mais subtil que contemple as ambições estratégicas chinesas462. Aceitam a probabilidade de guerra não é sinónimo de admitir a inevitabilidade da guerra. No entanto, à luz das recentes posturas estratégicas americanas e chinesas, o perigo de um confronto militar não pode ser descartado. O comportamento dos dois estados baseia-se na maximização da segurança num sistema internacional crescentemente imprevisível. Neste quadro, o conceito do “dilema de segurança” é indispensável para esclarecer o

problema. Dilemas de segurança surgem porque ações dos estados que buscam reforçar a sua segurança exacerbam a insegurança de outros, provocando, assim, uma espiral de insegurança463. Como a segurança nacional é fundamentalmente determinada pelas capacidades do estado, o dilema da segurança não pode ser dissipado por intenções e profissões de boa-fé. É certo que o dilema de segurança pode ser atenuado por tratados, pelo Direito Internacional, por instituições Internacionais e por outros instrumentos de cooperação inter-estatal. Na medida em que moderam o dilema da segurança, esses instrumentos são valiosos. Ainda assim, porque os estados não renunciam ao seu direito inalienável à autodefesa quando todas as outras opções se esgotam, esses instrumentos cooperativos mitigam, mas não transcendem, o dilema da segurança. Este, na verdade jamais será transcendido. Assim, em ultima análise, a sobrevivência do estado depende da força militar, a razão pela qual os estados se preparam para a guerra como a última ratio. A crescente assertividade chinesa no Mar do Sul da China e no Mar do leste da China Oriental expressa a lógica política do dilema da segurança. Acontecimentos verificados nesses teatros são justificados por Beijing como uma forma de repor os “direitos históricos” e, portanto, inteiramente compatíveis com a retórica da harmonia, cooperação e relações “win-win”. Essas mesmas ações são evidentemente interpretadas de maneira diferente em Washington e nas capitais asiáticas. A postura da China nessas áreas alimenta suspeições de que o país esteja envolvido num processo de expansão territorial e na apropriação indevida dos recursos naturais reivindicados pelos estados vizinhos. As manobras da RPC, particularmente no Mar do Sul da China e nas águas em volta das ilhas Senkaku, são, pois, vistas como ofensivas e, consequentemente, a decisão dos Estados Unidos de se envolverem (ou não) nessas disputas abre ou fecha

oportunidades para conter a assertividade chinesa. A menos que Washington atue decisivamente para dissuadir a República Popular, terá um incentivo para continuar a escalar as tensões e, desse modo, intimidar os seus vizinhos. Os comportamentos de Beijing para com os países circundantes são, portanto, indissociáveis das escolhas americanas. Por outras palavras, o envolvimento regional americano configura um fator estrutural para restringir a ascensão da China. Não surpreende, pois, que a crescente tensão no Mar do Sul da China (e na Ásia em geral) seja, segundo os chineses, o resultado das estratégias de balanceamento americanas definidas com vista a prejudicar os interesses legítimos da RPC. O interesse generalizado suscitado por um debate académico em torno da “inevitabilidade” da guerra entre grandes potências ilustra a extensão da mudança verificada na opinião ocidental quanto às consequências da ascensão da China464. Em grande medida, o endurecimento da opinião pública face à RPC – e o concomitante consenso emergente em Washington relativo a Beijing – antecipa o abandono da estratégia de engajamento definida no início dos anos 1990. Eis mais um reflexo da convicção de que os esforços para cooptar a Républica Popular na ordem internacional fracassaram e, como corolário, foi igualmente desacreditada a ideia de que a globalização desencadearia dinâmicas sociais que invariavelmente conduziriam à democratização do regime comunista. Líderes políticos e públicos ocidentais estão, gradualmente, a concluir que a RPC constitui uma ameaça real à ordem liberal internacional. Atendendo a estas mudanças de perspetiva, a abordagem política ocidental dos últimos trinta anos deixou de ser sustentável. Em suma, os dois países caminham inexoravelmente para o confronto.  

Os militares e os renegados   No dia 25 de outubro de 2018, ostentando os seus melhores camuflados, Xi Jinping inspeciona o Comando de Teatro do Sul, sediado em Guangzhou. Embora não tenha sido a primeira visita do Presidente a instalações militares, a deslocação adquire uma importância simbólica porque o comando abrange o Mar do Sul da China, onde as tensões decorrentes da nova assertividade chinesa são claramente evidentes. A fim de sinalizar a determinação chinesa de fazer valer as suas reivindicações sobre essas águas, Xi alerta os oficiais do Exército de Libertação Popular para a “importância de se prepararem para o combate” e aprimorar as “capacidades para vencer a guerra”465. Não menos crítico, o “líder principal” instruiu os seus militares a realizarem “uma implementação completa do pensamento do partido de forma a construir um exército forte na nova era”466. O sinal não poderia ser mais cristalino. Xi impôs a sua autoridade pessoal ao Exército de Libertação Popular e, concomitantemente, exibe o poderio militar da China, seja por meio de exercícios de treino, da realização de desfiles massivos ou de visitas a instalações destinadas a destacar a modernização e a prontidão de forças467. Desde Mao, nenhum outro líder da República Popular foi tão longe na invocação do espírito marcial do país e na glorificação das forças armadas nacionais. Jiang Zemin e Hu Jintao subiram ao topo da hierarquia do partido sem possuírem uma base sólida de poder dentro do ELP. Eis a razão que os levou a consolidar a sua posição política atribuindo aos militares uma mistura de concessões, aumentos das dotações orçamentais e, mais importante, permitindo que a instituição se envolvesse em atividades económicas lucrativas que geraram um vasto complexo industrial-militar. Esta “compra” dos militares conduziu à

corrupção generalizada, incluindo a compra de patentes. Em resultado da década de liderança débil de Hu Jintao, raros foram os entraves colocados à expansão da autonomia da hierarquia militar. À medida que os militares desenvolviam interesses corporativos específicos, diminuía consideravelmente a capacidade do PCC de supervisionar o poder militar, ou, no dizer de Mao, de “controlar a arma”. Para reafirmar o predomínio civil sobre as forças armadas, Xi embarca numa profunda reforma militar. Chegado ao poder, imediatamente reestrutura a burocracia, um processo que se salda pelo saneamento de mais de cem generais considerados desleais ou envolvidos em casos de corrupção. Entre estes, o oficial graduado mais severamente sancionado foi Guo Boxiong, ex-general e Vice-Presidente da Comissão Militar Central468. Em julho de 2015, será expulso do PCC e, um ano depois, condenado a prisão perpétua, enquanto o estado confisca os seus bens469. Antes da desgraça de Guo, outro ex-membro do Politburo e da Comissão Militar Central, Xu Caihou, fora colocado sob investigação. As suspeitas relacionavam-se com práticas de corrupção na nomeação e promoção de oficiais graduados, responsabilidade profissional confiada a Xu no período entre setembro de 1999 e novembro de 2012470. Aberto em março de 2014, o inquérito não termina em acusação porque, um ano depois, em 15 de março de 2015, Xu morre de cancro. Estes e outros casos altamente publicitados pelas autoridades tornam claro que os oficiais que não anuíssem aos interesses de Xi Jinping seriam tratados de modo semelhante471. Xi manifestara a sua intenção de prosseguir com uma reforma profunda das forças armadas no início de 2014, altura em que assume a chefia do grupo de trabalho do PCC encarregado da reforma militar, o “Grupo Líder de Defesa Nacional e Reforma Militar da Comissão Militar Central”472. Dominando esta instituição, aprova largas mudanças organizacionais do ELP, incluindo a reorganização da

estrutura burocrática, a criação de um sistema de cinco comandos conjuntos de teatro, o estabelecimento da Força de Apoio Estratégico e a criação da Força de Apoio Logístico Conjunta473. Realiza-se, em meados de 2015, uma redução adicional de pessoal do ELP que se salda pelo afastamento de 300,000 não-combatentes. Pouco depois, durante o XIX Congresso do PCC, Xi reforça o seu domínio sobre as altas patentes por via da diminuição da Comissão Militar Central CMC) de onze para sete membros, a grande maioria dos quais lhe são pessoalmente leais. Em contraste com a prática anterior, a remodelada CMC exclui os chefes dos ramos, sinalizando assim que as agendas e interesses corporativos das forças armadas passariam a estar subordinados às considerações políticas do “líder principal”. Se dúvidas restassem quanto à supremacia civil sobre os militares, a nova CMC incluía o Secretário da Comissão de Inspeção Disciplinar, a entidade encarregada de investigar a corrupção no ELP. Este conjunto de alterações deixava transparecer que a hierarquia militar se encontrava firmemente sob a tutela da Comissão Militar Central, que, por sua vez, estava sob o domínio absoluto de Xi Jinping e dos seus aliados mais próximos474. Uma vez consolidado o seu poder pessoal sobre o ELP, Xi intensifica a construção da “marinha de águas azuis” e novos comandos regionais são encarregados de desenvolver capacidades modernas de combate aéreo, terrestre e naval. Embora os antecessores de Xi tenham aprovado o reforço massivo do orçamento militar a fim de modernizar as forças, a visão de longo prazo articulada durante o XIX Congresso do Partido, de outubro de 2017, previa que até 2035 (provavelmente 2049, o centenário da RPC) o país fosse dotado de “forças de classe mundial”; isto é, forças superiores às possuídas pelos Estados Unidos475. Para cumprir este objetivo nos anos mais próximos, o aumento de verbas destinado às forças armadas pode ser difícil de garantir se a economia chinesa pós-“crise Covid”,

sobrecarregada pela dívida, continuar a desacelerar. Se tal cenário se concretizar, Xi pode optar por ações ousadas para mobilizar apoio; isto é, o PCC poderá provocar confrontos militares em Taiwan ou no Mar do Sul da China, até porque as atuais capacidades militares da RPC tornam a ação militar na vizinhança tão atrativa quanto arriscada. Salienta-se que a principal bandeira política de Xi Jinping, o “Sonho Chinês”, engloba um “forte sonho militar”, conceito claramente expresso no documento “A Defesa Nacional da China numa Nova Era” de 2019476. Um dos aspetos mais interessantes do documento prende-se com um aviso enviado às autoridades de Taipei, que, na ótica de Beijing, caminham no sentido da independência unilateral à medida que o modelo “um país, dois sistemas” se desmorona em Hong Kong. O texto afirma que “as autoridades de Taiwan, lideradas pelo Partido Progressista Democrático (DPP), obstinadamente, aderem à ‘independência de Taiwan’ e recusam reconhecer o ‘Consenso de 1992”, que consagra o princípio da ‘China única’. Avançaram ainda mais no caminho do separatismo ao intensificarem os esforços para romper a ligação com o continente a favor da independência gradual, pressionando pela independência de jure, intensificando a hostilidade e o confronto, recorrendo à força da influência estrangeira. As forças separatistas da ‘independência de Taiwan’ e as suas ações continuam a ser a mais grave e iminente ameaça à paz e à estabilidade no Estreito de Taiwan, e a maior barreira a dificultar à reunificação pacífica do país. Forças separatistas externas favoráveis à ‘independência do Tibete’ e à criação do ‘Turquestão Oriental’ iniciam ações frequentes que ameaçam a segurança nacional e a estabilidade social da China”477. Alegando que “a luta contra os separatistas está a tornar-se mais aguda”, o documento conclui que “resolver a questão de Taiwan e alcançar a reunificação completa do país é do interesse fundamental da nação chinesa e essencial para a realização do

rejuvenescimento nacional”478. No seu habitual discurso televisivo de Ano Novo, em 2 de janeiro de 2019, marcando o quadragésimo aniversário da “declaração de 1979”, põe fim à política de “libertação” de Taiwan, apela ao cumprimento do “Consenso de 1992”, reafirma a rejeição absoluta da independência de Taiwan e destaca a atualidade da fórmula “um país, dois sistemas”479. Se Beijing enquadra a questão de Taiwan em termos de separatismo, equiparando a Formosa ao Tibete e a Xinjiang, é igualmente verdade que, durante os primeiros meses de 2020, se aprofunda o ceticismo dos taiwaneses quanto à viabilidade do modelo “um país, dois sistemas”480. Com efeito, o projeto de “rejuvenescimento nacional” de Xi para 2049 permanecerá incompleto a menos que seja alcançada a “reunificação” da “província renegada” com Beijing. Segundo as autoridades comunistas, o obstáculo fundamental à reunificação não reside na vontade dos taiwaneses, mas antes na “interferência estrangeira”; isto é, no apoio concedido pelos Estados Unidos às elites políticas de Taiwan. No entanto, enquanto aguarda a reunificação, Beijing constrói um arsenal maciço de mísseis capazes de atingirem a Formosa e as forças aeronavais do ELP exercem sobre a à ilha uma pressão implacável. Tais exercícios militares visam intimidar Taiwan ao mesmo tempo que, a nível internacional, a RPC faz uso da sua influência diplomática para deslegitimar e isolar Taipei. Em vários países, embaixadas de Taiwan foram fechadas em troca de ajuda económica e financeira. A China também conseguiu apoio para congelamentos e/ou atrasos na venda de armas a Taiwan durante as administrações de George W. Bush e Barack Obama e, não menos importante, fez lobby para que as vendas de caças F-16 e de navios Aegis fossem canceladas. Na ótica de Beijing, a defesa da soberania nacional justifica o eventual uso da força para consumar a “reunificação” do país. O entrave é que a unificação feita

nestes termos faria implodir o status quo formalizado na sequência da histórica reunião de fevereiro de 1972 entre Richard Nixon e Mao Zedong, altura em que Washington adota a “política da China única” e reconhece a indivisibilidade do território chinês. O “Consenso de 1992” congelou a disputa e solidificou o status quo da “China única”, ao mesmo tempo que Washington promovia o seu relacionamento privilegiado com Taiwan. Em junho de 1998, durante uma visita de nove dias à República Popular da China, Clinton declara: que “tive a oportunidade de reiterar a nossa política quanto a Taiwan, que é que não apoiamos a independência de Taiwan, ou duas Chinas, ou um-Taiwan uma-China. E não acreditamos que Taiwan deva ser membro de qualquer organização para a qual o estatuto de ‘estado’ seja um requisito”481. Esta política dos “três não” explicitamente congela um status quo que nem Beijing nem Taipei aceitariam sem reserva. Washington também preserva a “ambiguidade estratégica” em relação à resposta a dar-se caso o governo da RPC tentasse unificar o país através do uso da força482. Perante o risco de uma guerra caso viessem a “testar” a determinação dos EUA quanto ao estatuto da Formosa, os comunistas chineses conformam-se – para já – com a existência o status quo que sustenta a paz no Estreito de Taiwan, onde a presença regular da Marinha dos Estados Unidos continua, por enquanto, a dissuadir o aventureirismo chinês. Dir-se-á que a estratégia chinesa de impulsionar fricções entre Taiwan e o resto do mundo provocou um efeito boomerang em Taipei. Desde logo, o sucesso económico e político de Taiwan ao longo das últimas décadas refuta as previsões de Mao quanto à impossibilidade da existência de um capitalismo democrático em solo chinês. Taiwan continua a ser um irritante para Beijing justamente porque demonstra que há outro caminho possível para além do modelo de desenvolvimento seguido pelo PCC. Por sua vez,

com o passar do tempo, os taiwaneses tornam-se ainda mais determinados em preservar o seu sistema económico e a sua democracia. Ano após ano, torna-se mais difícil alegar que a democracia taiwanesa carece de legitimidade, particularmente quando Beijing anula as liberdades consagradas no estatuto especial atribuído a Hong Kong aquando do acordo de transferência de soberania – o modelo que, supostamente, seria estendido à Formosa no caso de uma eventual reunificação. A repressão ordenada por Xi em Hong Kong aumentou a perceção de vulnerabilidade em Taipei e acentuou o distanciamento entre os dois lados dos Estreitos. Contrariando a expectativa de Beijing, a interpenetração económica das últimas décadas forjada entre Taiwan e a RPC não aproximou os dois lados. Taiwan é hoje um elo importante nas cadeias de valor internacionais, assente na Foxconn e em outras gigantes tecnológicas, e a sua integração forçada na República Popular não pode ser concretizada a menos que Beijing esteja preparada para ser diplomaticamente isolada e sofrer uma enorme perturbação económica. Face às opções limitadas disponíveis, a liderança chinesa não abandona a sua retórica beligerante e a pressão militar. Com efeito, o Livro Branco da Defesa, de 2019, reitera que “não prometemos renunciar ao uso da força e reservamos a opção de tomar todas as medidas necessárias”483. Incapaz de concretizar a unificação, exceto pelo uso da força, Xi pode sucumbir à tentação de invadir a ilha se os Estados Unidos sinalizarem que se absteriam de auxiliar Taiwan. Evitar a guerra exige, pois, que os EUA mantenham uma postura estratégica robusta na região, particularmente no Mar do Sul da China e no Mar Leste da China, onde a assertividade chinesa, se não for firmemente combatida, levará Beijing a concluir que um ataque militar à Formosa não acarretará custos suportáveis. É neste quadro que, a 9 de agosto de 2020, o Ministro da Saúde, Alex Azar se desloca a Taipei, a primeira visita de um

Ministro americano desde a normalização de 1979484. Reagindo à presença de Azar, em Taiwan para, formalmente, analisar a resposta taiwanesa à pandemia, Beijing ordenou deu ordem para que os seus caças atravessassem a linha central do Estreito de Taiwan. Estava, assim, registado o seu desagrado relativamente aos esforços da Administração Trump no sentido de reforçar a sua parceria com a ilha. O Congresso aprovou vários projetos – por exemplo, a Lei de Viagens de Taiwan e a Lei de Autorização de Defesa Nacional – que visam auxiliar Taiwan a preservar a sua soberania. Todavia, independentemente destas ações, Taipei não pode excluir que esta ou outra Administração americana não venha a ser tentada a trocar a Formosa por um acordo global sinoamericano.   Um mar de problemas infinitos   Desde que Mao Zedong estabeleceu a República Popular, a política externa do país atribui um papel vital ao Sudeste Asiático485. Se é verdade que a Grande Muralha da China simboliza as recorrentes invasões terrestres vindas do Norte e do Oeste, é igualmente verdade que em meados do século XIX, com o início da Primeira Guerra do Ópio, a principal ameaça enfrentada pelos Qing era a penetração imperialista europeia e japonesa a partir do litoral. Depois de 1949, as autoridades comunistas temiam o cerco e a contenção dos EUA e dos seus aliados – Japão, Filipinas, Tailândia, Coreia do Sul, Taiwan e outros países do Sudeste Asiático. A casta comunista estava convencida, e com alguma razão, de que o cerco fora projetado para “manter a China subjugada” e, em última análise, para provocar a queda do regime. Décadas depois, o colapso do PCUS e o

posterior desmantelamento da União Soviética parecia finalmente validar a narrativa de “contenção” subscrita pelo PCC. Dado que, em resultado das reformas de 1978, a vasta costa chinesa passa a ser a porta de saída do país para a economia global, o PCC, no início dos anos 2000, proclama abertamente que a China era “um país marítimo”. Embora o legado histórico da China nos mares vizinhos fosse, no mínimo, ambíguo, a perceção de cerco permanecia, fruto do arco de poderio militar americano que se estende do Japão à Coreia do Sul e à Austrália. Com o intuito de furar o cerco, e reconhecendo que o Sudeste Asiático era o elo mais fraco do cordão geoestratégico erguido por Washington, Deng Xiaoping abandona o patrocínio da maioria das insurreições na região e opta por privilegiar o comércio e as relações estado a estado486. Mas também se mostra preparado para recorrer à guerra, como foi o caso em 1979, para punir os vietnamitas pelo derrube dos Khmeres Vermelhos, aliados cambojanos de Beijing487. Dotados de abundantes recursos naturais, os países do Sudeste Asiático eram facilmente acessíveis aos interesses comerciais chineses envolvidos na extração dos recursos necessários para sustentar a base industrial do país. Nos anos pós-Deng, o Sudeste Asiático continuou a ser um foco de interesse económico chinês, culminando na Iniciativa Faixa e Rota de Xi Jinping, que vê a região como uma extensão económica natural da República Popular. O comportamento de Beijing em relação aos vizinhos asiáticos indica que o status quo regional em que assenta a hegemonia americana deixou de ser aceitável. A ênfase de Xi Jinping no “rejuvenescimento nacional” e a postura estratégica assertiva da República Popular são desenvolvimentos críticos que contribuem para a formulação de estratégias de equilíbrio por parte dos estados vizinhos. Embora os países circundantes tenham aproveitado a oportunidade para aprofundar os laços

comerciais e de investimento com a RPC, não se mostram preparados para conceder-lhe um cheque em branco no que toca ao estabelecimento de uma ordem de segurança regional sinocêntrica. A presença dos EUA na Ásia continua, portanto, a ser requisitada pelos principais aliados regionais que enfatizam a urgência de reforçar os laços com Washington para combater o poderio chinês. Uma coisa é certa: a abordagem de “manter um perfil discreto” de Deng Xiaoping fora estrondosamente descartada por Xi Jinping. A afirmação da China como grande potência é claramente visível nas águas do Mar do Sul da China488. A importância que lhe é atribuída por Beijing expressa-se, de forma inequívoca, no Livro Branco da Defesa de 2019. Intitulado A Defesa Nacional da China na Nova Era489, o documento afirma que “a segurança interna da China ainda enfrenta ameaças. As disputas territoriais em terra ainda precisam de ser plenamente resolvidas. Ainda existem disputas quanto à soberania territorial de algumas ilhas e recifes, bem como a demarcação marítima. Países de fora da região realizam frequentes reconhecimentos próximos da China por via aérea e marítima e entram ilegalmente nas águas territoriais da China e nas águas e espaço aéreo adjacente às ilhas e recifes da China, assim subvertendo a segurança nacional da China”490. Para além destas questões, o mesmo documento enfatiza que “as ilhas do Mar do Sul da China e as ilhas Diaoyu são partes inalienáveis do território chinês. A China está comprometida em resolver disputas relacionadas por meio de negociações com os estados diretamente envolvidos com base do respeito pelos fatos históricos e pelo Direito Internacional. A China continua a trabalhar com os países da região para manter a paz e a estabilidade. Defende firmemente a liberdade de navegação e de sobrevoo de todos os países de acordo com a lei internacional e protege a segurança das linhas de comunicação marítimas (SLOC)”491. Por outras palavras, a narrativa oficial do governo chinês adianta que as

reivindicações de soberania na área visam apenas corrigir as injustiças históricas do “século da humilhação nacional”. Para isso, declara-se disponível para resolver as contendas “por meio de negociações com os estados diretamente envolvidos”, ou seja, excluindo os Estados Unidos de qualquer solução. A este propósito, Xi reconhecera que o “atraso da nação em assuntos militares tem uma influência profunda na segurança de uma nação. Costumo ler os anais da história moderna da China e sinto-me de coração partido pelas cenas trágicas e de termos sido vencidos por causa da nossa ineptidão”492. A leitura de Beijing quanto à centralidade estratégica da área reflete-se, naturalmente, na postura da administração americana. Por exemplo, a Estratégia de Segurança Nacional de 2017 caracteriza a República Popular como um “concorrente”, acrescentando que “a China e Rússia desafiam o poder, a influência e os interesses da América, tentam minar a segurança e a prosperidade americana. Estão determinados a tornar as economias menos livres e menos justas, a aumentar as suas forças armadas e a controlar informações e dados para reprimir as suas sociedades e expandir a sua influência”493. Esse entendimento estratégico do papel da China é reafirmado no Relatório Militar da China, anualmente submetido ao Congresso pelo Secretário de Defesa. O relatório de 2019 afirma que os chineses “durante as próximas décadas, estão focados em realizar uma China poderosa e próspera, equipada com um exército de ‘classe mundial’, assegurando o estatuto da China como grande potência com o objetivo de emergir como a potência preeminente na região do Indo-Pacífico”494. Adotando uma perspetiva idêntica, a Estratégia de Defesa Nacional de 2018 conclui que “a China é um concorrente estratégico que usa a sua economia predatória para intimidar os seus vizinhos ao mesmo tempo que militariza formações no Mar do Sul da China”495. Os eventos ocorridos neste mar, e o que

representam para os decisores sínicos e americanos, transformaram este canto do globo numa arena privilegiada da escalada da rivalidade entre as duas potências. Uma dimensão da conflitualidade no Mar do Sul da China prende-se com a disputa da posse de mais de cem ilhas, atóis, recifes, rochas, bancos e águas adjacentes que envolve seis estados – a RPC, a República da China (Taiwan), as Filipinas, a Malásia, o Vietname e o Brunei. A discórdia gira em torno de questões relacionadas com a soberania territorial, mas também em torno dos abundantes recursos económicos encontrados na zona, particularmente 496 quantidades significativas de peixe . Estima-se, por exemplo, que as reservas de petróleo e gás natural sejam vastas e a exploração preliminar indica que se trata de “uma das regiões produtoras de hidrocarbonetos mais prolíficas do mundo, rivalizando com a região do Golfo Pérsico ou qualquer outra região comparável”497. Igualmente crítico, um terço de todo o transporte marítimo mundial passa por estas aguas, pelo que o livre acesso desimpedido aos mercados e às commodities configura um interesse vital da China nestas águas. Historicamente, o Mar do Sul da China nunca fora palco das prioridades estratégicas chinesas498. No entanto, no início de 1980, o Ministério das Relações Exteriores da República Popular da China publicou um documento intitulado “Soberania Indiscutível da China sobre as Ilhas Xisha e Nansha”499. Tratava-se de uma declaração crucial da política externa da “era Deng” destinada a esclarecer ambiguidades relacionadas com reivindicações chinesas, legitimando as pretensões territoriais do país sobre os arquipélagos no Mar do Sul da China. Alegando uma presença histórica na região anterior à Era Comum, Beijing insiste que as Ilhas Xisha (Paracels) e Nansha (Spratly) “são território da China desde tempos antigos”500. Todavia, os factos não correspondem a esta narrativa. Antes da chegada das potências europeias, que demarcaram linhas

de soberania na região, as fronteiras eram fluidas e o Mar do Sul da China era uma zona de interação que dispensava linhas de soberania fixas. Na realidade, os Qing atribuíram ao almirante Li Zhun a tarefa de povoar as Paracels somente em 1902 e 1908, mas nenhuma presença permanente resultou desses esforços. Beijing não pode, pois, afirmar que os chineses habitaram em permanência as Ilhas Spratly e Paracels501. Estas reivindicações históricas são, aliás, questionadas pelos estados circundantes, que desenvolveram as suas próprias reivindicações históricas. Por exemplo, o Vietname assenta a sua reivindicação às Ilhas Spratly na declaração de soberania francesa de 13 de abril de 1930502. Em contrapartida, o Japão, um participante ativo nas disputas territoriais da região antes de 1945, renuncia a todas as reivindicações às Ilhas Spratly e Paracels quando, em setembro de 1951, assina o Tratado de San Francisco. A bom rigor, o interesse chinês pelo Mar do Sul da China surge em 1947, altura em que o governo nacionalista de Chiang Kai-shek produz o “Mapa de Localização das Ilhas do Mar da China Meridional”503. Elaborado para uso interno do governo chinês, o mapa da “linha dos nove traços” – também conhecido como o “mapa linha U” – seria mais tarde divulgado internacionalmente como o “Atlas das Áreas Administrativas da República da China”. As nove linhas englobavam as Ilhas Diaoyu (Senkaku), hoje também reivindicadas por Tóquio; o arquipélago Paracels (conhecido como Xisha na China e Hoang Sa no Vietname), atualmente também reivindicado por Hanói, bem como o Banco de Areia Scarborough (ilha de Huangyan) e o Banco de Areia Second Thomas (Renai), reivindicados por Manila e Beijing504. O significado exato da “linha dos nove traços” nunca fora cabalmente explicitado pelo governo nacionalista e, depois de 1949, a RPC continuou a utilizar o mapa, mas sem nunca esclarecer as razões subjacentes à decisão. Abrangendo

Taiwan, a “linha dos nove traços” aparentemente servia para demarcar a fronteira marítima da RPC e para reafirmar a “unidade” de Formosa com a China continental. Beijing, no entanto, absteve-se de exercer a sua autoproclamada soberania dentro da “linha dos nove traços” ou de reivindicar as águas505.

Não significa isto que a região era livre de conflitos territoriais antes da década de 1980. O Mar do Sul da China testemunhou vários confrontos em pequena escala entre a República Popular e os seus vizinhos mesmo antes de Deng Xiaoping chegar ao poder. Por exemplo, em 1955, a República Popular da China ocupa Woody Island (Paracels oriental) depois de, inexplicavelmente, o governo nacionalista de Taiwan a ter evacuado. Um ano depois, quando a administração colonial francesa se retira do oeste das Paracels, o estado sul-vietnamita assume a responsabilidade pela administração do arquipélago, ao mesmo tempo que Taiwan reocupava Itu Aba, a maior das Ilhas Spratly e ainda hoje sob administração de Taipei506. Em janeiro de 1974, um incidente, posteriormente conhecido como a Batalha das Paracels, irrompe quando uma frota marítima do Vietname do Sul recebeu ordem para remover tropas do Exército de Libertação Popular das ilhas Robert e Money. Perante o colapso iminente do regime de Nguyễn Văn Thiệu, a China sai vitoriosa do confronto e assume posições na Ilha Pattle e o controlo efetivo sobre todo o arquipélago das Paracels. Porque a retirada de Saigão fora feita sob coação, o estado sucessor, o Vietname unificado, continua a reivindicar a Ilha Pattle. Reagindo a estes eventos, outros estados da vizinhança procuram ocupar várias ilhas e outras formações do Mar do Sul da China. Vinte anos depois, em 1995, as Filipinas denunciam a ocupação do Recife Mischief pelo ELP; Beijing replica que a sua única instalação no recife, uma estrutura sobre palafitas de madeira, nada mais era do que um refúgio para os pescadores chineses que o utilizavam como abrigo de emergência. Esse abrigo temporário deu lugar a uma estrutura de betão, de múltiplos andares, que hoje abriga 50 fuzileiros navais da RPC. As Filipinas e a China também colidiram sobre o Banco de Areia Scarborough, cujas águas são ricas em recursos pesqueiros. Independentemente do mérito destas reivindicações históricas, em última instância

insondáveis, todos os estados procuram fundamentar a legitimidade das suas respetivas reivindicações na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS), em vigor desde 1994507. A relevância estratégica do Mar do Sul da China aumenta exponencialmente após a “reforma e abertura” de Deng Xiaoping. À medida que as infraestruturas industriais da RPC se concentravam no litoral em resultado do crescimento das exportações, o acesso a rotas marítimas internacionais seguras passa a ser um objetivo primordial. A rápida expansão económica da China também exigia energia, particularmente o petróleo oriundo do Oriente Médio que transita pelo Estreito de Malaca e pelo Mar do Sul da China antes de chegar aos portos chineses. Em suma, as “rotas marítimas de comunicação” (SLOC) no Sudeste Asiático tornaram-se críticas para a economia e a segurança do país. Embora o acesso irrestrito da RPC ao mar fosse indispensável, era a Marinha dos Estados Unidos, assistida pelos países que fazem fronteira com o Estreito de Malaca, que mantinha a segurança das SLOC que garantiam o acesso chinês aos mares. Para superar essa vulnerabilidade – o chamado “dilema de Malaca” – a China teria, obrigatoriamente, de se tornar numa potência marítima capaz de zelar pelos seus interesses vitais508. A internacionalização da economia chinesa torna incomportável uma defesa vocacionada para o interior e destituída de recursos navais que cumprissem as tarefas que agora se colocavam. A predileção de Deng Xiaoping por explanar objetivos políticos através de aforismos tradicionais é sobejamente conhecida. Um destes, resumido na “Estratégia de 24 Caracteres”, aconselhava os líderes do país a “observar com calma; garantir a nossa posição; lidar com os assuntos com calma; esconder as nossas capacidades e aguardar o nosso tempo; manter um perfil baixo; e nunca reivindicar a liderança”509. Inspirado por Sun Tzu, o conselho de Deng

encapsulava os princípios essenciais que acabariam por orientar o comportamento externo da RPC nas décadas posteriores ao massacre de Tiananmen. Explica, igualmente, por que motivo as reivindicações de soberania no Mar do Sul da China nunca foram definitivamente abandonadas nem ativamente prosseguidas. Até que um equilíbrio de poder favorável à China pudesse ser estabelecido, a afirmação de reivindicações territoriais na região exigia prudência e, não menos importante, dissimulação. Este “aguardar o nosso tempo” de Deng era uma abordagem pragmática, mas não era sinónima de passividade. Por isso, a estratégia de Beijing na década de 1990 passa pelo desenvolvimento de relações de cooperação com os estados vizinhos, uma forma de demonstrar que a “ascensão pacífica” do país acarretaria benefícios para toda a região. Adicionalmente, o governo chinês passa a invocar as disposições da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar para justificar as suas reivindicações no Mar do Sul da China, sinalizando assim que aceita as regras formalizadas pelo tratado. A viragem, porém, dá-se em 25 de fevereiro de 1992, quando o Comité Permanente do Congresso Nacional do Povo aprova a passagem da “Lei da República Popular da China no Mar Territorial e na Zona Contígua”. A nova lei afirma a soberania nacional sobre as Paracels, as Spratly, Macclesfield e outras ilhas, ilhotas, rochas, recifes e “baixios a descoberto” que permanecem submersos durante a maré alta510. O costume internacional e a UNCLOS definem “águas territoriais” como aquelas que se estendem por 12 milhas náuticas a partir da linha de base. No entanto, quando a China assina a UNCLOS, em 10 de dezembro de 1982 (ratificando-a em 15 de maio de 1996), apresenta uma série de declarações que efetivamente redefiniram os conceitos de “águas territoriais” e os direitos dos estados costeiros descritos na UNCLOS511. Para todos os efeitos, o resultado prático da “Lei da República Popular da China no Mar

Territorial e na Zona Contígua” foi formalizar a declaração da jurisdição soberana chinesa sobre uma ZEE de 200 milhas náuticas de largura e a sua plataforma continental”512. E como a República Popular igualmente reivindica as ilhas, recifes e outras formações como partes integrantes do seu território nacional, também acaba por reivindicar uma ZEE de 200 milhas náuticas a partir de cada uma dessas formações. O problema, claro, é que a abrangência do “traço das nove linhas” significa que os demais estados apenas poderão reivindicar ZEEs minúsculas, quase simbólicas. De acordo com os termos da “Lei da República Popular da China no Mar Territorial e na Zona Contígua”, Beijing passaria a ter direitos exclusivos à pesca e aos minerais num mar cujos recursos atualmente proporcionam rendimentos consideráveis aos países do litoral. A título exemplificativo, pescadores filipinos e vietnamitas são, com regularidade, presos e banidos das suas águas tradicionais de pesca porque, segundo Beijing, pesqueiros estrangeiros estão proibidos de praticar a sua atividade comercial em “águas chinesas”. Similarmente, a China impede a exploração de recursos nas Zonas Económicas Exclusivas reclamadas por países terceiros. Um dos países mais fustigados por estas práticas, o Vietname, sistematicamente assiste à violação da sua ZEE, com navios de pesquisa da guarda costeira chinesa a impedirem o acesso de Hanói aos seus recursos513. Em 2011 e 2012, navios científicos vietnamitas que mapeavam o fundo do oceano da sua ZEE foram assediados pelas forças navais chinesas. Reagindo às provocações de Beijing, a Assembleia Nacional do Vietname aprova, em 2012, uma “Lei Marítima” que reafirma as tradicionais reivindicações do país relativas às ilhas Paracels e Spratly. Em clara violação do direito consuetudinário marítimo e das disposições da UNCLOS, as autoridades de Beijing também redefinem o sentido de “passagem inofensiva” de

forma a tornar a “notificação prévia” praticamente obrigatória, uma disposição igualmente aplicada aos navios de guerra. A mudança significa que a ZEE reclamada pela China deixa de ser uma fronteira económica e passa a ser entendida como uma fronteira política, de soberania. Significa isto que, caso a República Popular tivesse o direito de impor a sua soberania sobre o Mar do Sul da China, os navios mercantes que atravessassem essas águas estariam sujeitos às leis, regulamentos, deveres ou qualquer outra restrição legal que Beijing considerasse adequado impor. Restrições desta natureza impossibilitariam a Marinha dos Estados Unidos de proteger as SLOC e de mantê-las abertas ao comércio internacional. Eis a razão pela qual Washington, Tóquio e outras capitais preocupadas com as ações de Beijing intensificaram as suas operações navais com vista a garantir a liberdade de navegação na região. As tensões acentuaram-se em 2009, com a aproximação do prazo estabelecido pela Comissão das Nações Unidas para os Limites da Plataforma Continental (CLCS) para solicitar alterações às plataformas continentais. Desconfiados das intenções hegemónicas da China, os estados circundantes optaram por maximizar as suas reivindicações. Mais significativamente, no início de março de 2009, o USNS Impeccable, no Mar do Sul da China para monitorizar a atividade submarina, foi, durante vários dias, recorrentemente assediado pela Marinha do ELP. Com efeito, os chineses quase provocaram uma colisão com o Impeccable, evitada apenas porque este consegue efetivar uma paragem de emergência. Washington considerou o incidente uma violação do Direito Internacional que prevê a “passagem inofensiva” pelas ZEE, enquanto o Ministério das Relações Exteriores chinês respondia que as queixas do Pentágono ”violam gravemente os fatos e confundem preto e branco e são totalmente inaceitáveis para a China”514. Embora não houvesse motivos legais para impedir a presença de navios militares estrangeiros na sua ZEE, a

China insistia que agira em conformidade com as disposições previstas pela UNCLOS515. Para os Estados Unidos e os seus aliados regionais, o pior ainda estava no horizonte. Em 2010, o Ministério da Defesa chinês proclama a “soberania incontestável” sobre praticamente a totalidade do Mar do Sul da China. Quando, em junho de 2012, a China apreende o Banco de Areia Scarborough, reclamado pelas Filipinas, a Casa Branca recusa dar uma resposta robusta. Um ano depois, em setembro de 2013, a draga Tianjing permanece ancorada durante três semanas nas águas em redor do recife Cuarteron, sem, todavia, iniciar qualquer trabalho de recuperação de terras. Barack Obama, eventualmente contemplando o estabelecimento de uma entente G-2, volta a não sinalizar a inaceitabilidade da construção adicional nas ilhas. Neste quadro, em dezembro de 2013, Beijing lança um ousado plano de construção de ilhas artificiais nessas águas516. A Tianjing dá então início ao depósito de sedimentos no Recife Johnson South, parte do arquipélago de Spratly e conquistado pela China ao Vietname do Sul em 1974. Meses depois, com um navio de guerra da Marinha da ELP a supervisionar as operações do Tianjing, o recife era dotado de um novíssimo porto e de onze hectares de “novas terras” recuperadas do mar. Três anos depois, sete recifes das Spratly foram transformados em ilhotas suscetíveis de ser, tal como o Recife Johnson South, militarizadas. Aliás, desde então, em vários locais do Mar do Sul da China, Beijing construiu instalações portuárias, instalou radares e sensores, assim como abrigos endurecidos para abrigar mísseis. Diversas infraestruturas militares, incluindo depósitos de munição, combustível e água, também foram instaladas. Após a recuperação maciça de terras, o Recife Mischief, o Recife Subi e o Recife Fiery Cross tornaram-se as maiores “ilhas” do Mar do Sul da China, cada uma possuindo uma pista de aterragem superior a três

quilómetros de comprimento, mais do que suficiente para acomodar aeronaves militares chinesas. Evidentemente, a construção das ilhas artificias visava mudar o status quo territorial em favor da República Popular. As duvidosas reivindicações históricas quanto ao Mar do Sul da China eram assim suplantadas pela força dos factos consumados, pelas realidades no terreno criadas pela posse efetiva dos territórios contestados. Em 2015, Ashton Carter, o Secretário da Defesa de Obama, exigia a “interrupção imediata e duradoura” da recuperação de terras, alertando para a “perspetiva de maior militarização e para o potencial dessas atividades para aumentar o risco de erro de cálculo ou de conflito entre os estados”517. As palavras de Ashton Carter, um caso nítido de “too little, too late” depois de anos de inação, não impediram que, nos dois últimos anos da Administração Obama, se verificasse um aumento vertiginoso de construção de ilhas artificiais por parte da China. Ao mesmo tempo que inicia o programa de construção das ilhas artificiais, a China vê-se envolvida numa disputa com as Filipinas que a Administração Obama simplesmente não podia ignorar. Em abril de 2014, numa deslocação a quatro países asiáticos, o Presidente americano reitera a intenção de “reequilibrar” o Pacífico, dizendo que “não achamos que a coerção e a intimidação sejam a maneira de gerir as disputas”518. Dias depois de reiterar as obrigações de tratado dos EUA de defenderem o Japão em caso de ataques às Ilhas Diaoyu, Barack Obama, em Manila, insinua que as reivindicações chinesas no Mar do Sul da China constituíam uma violação da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar519. Contudo, ainda convencido dos méritos do Direito Internacional, aconselha o Vietname e as Filipinas a procurarem resolver as suas contendas com a China por via dos tribunais internacionais. A verdade é que, no preciso momento em que o Tianjing era enviado para o Recife Johnson South as Filipinas já se

encontravam em litígio com Beijing. Com efeito, em 22 de janeiro de 2013, nos termos do anexo VII da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, a República das Filipinas iniciara formalmente um processo arbitral contra a RPC centrado na questão das formações marítimas e na ilegalidade das ações chinesas. O Tribunal Internacional de Arbitragem de Haia examina as alegações de Manila e, em julho de 2016, decide que as reivindicações da RPC eram destituídas de mérito520. A decisão esclarece que o Direito Internacional não impede o programa de construção chinês em áreas que se encontram sob seu controlo efetivo. Todavia, o tribunal constata que vários recifes recuperados pelos chineses se situam dentro dos limites da ZEE filipina. Nos argumentos submetidos ao Tribunal, a China afirmara que os programas de recuperação e construção eram indistinguíveis daqueles que foram levados avante desde os anos 1970 pelos estados do Sudeste Asiático, como o Vietname, a Malásia e as Filipinas. Quando a decisão foi tornada pública, o jornal Diário do Povo, porta-voz das posições do PCC, caracteriza o tribunal como “um lacaio de algumas forças externas”, acrescentando que a “sentença desconsidera os fatos básicos, pisa o Direito Internacional e as normas básicas que governam as relações internacionais, e danifica a soberania territorial da China e os seus direitos e interesses marítimos. O governo e o povo chinês opõem-se firmemente à decisão e, de forma alguma, a reconhecerão”521. Igualmente incisivo, mas recorrendo a uma linguagem diplomática mais suave, Xi Jinping retrucou que a “soberania territorial e os direitos marítimos” do seu país não seriam alterados pela decisão. Prudentemente, aditou que a China continuava “comprometida com a resolução de disputas” na região522. A reação da República Popular à decisão do tribunal de arbitragem confirmou várias suspeitas quanto ao seu comportamento no Mar do Sul da China e ao seu desdém

pelas regras internacionais. A construção das ilhas artificiais consubstancia uma demonstração de determinação estratégica nacional523. Igualmente crucial, a reação intransigente à decisão evidenciou a intenção da China de criar fatos no terreno que pudessem reforçar as suas reivindicações legais. O mais importante de tudo era que a rejeição da sentença do tribunal demonstrava até que ponto o governo de Beijing se inclinava para incumprir as regras internacionais, neste caso consagradas pela UNCLOS, se elas fossem inibidoras dos seus objetivos e interesses. A República Popular, em suma, adota uma postura revisionista porque a Administração Obama, no devido tempo, se recusara a sinalizar que os Estados Unidos não aceitariam a construção de ilhas ou outros faits accomplis nessas águas. Quando os governantes americanos, particularmente o Secretário de Defesa Ashton Carter, finalmente empregam uma linguagem mais dura, era demasiado tarde. A aversão de Obama ao uso da força, ilustrada pela debacle de 2012 em volta da “linha vermelha” traçada na Síria, neutraliza efetivamente qualquer valor dissuasor que um endurecimento de posições pudesse surtir. Se é excessivo dizer que os EUA “perderam” a China, não o é afirmar que Obama perdeu, em larga medida, o Mar do Sul da China. Nos anos mais recentes, em vez de depender exclusivamente da Marinha ELP para reforçar a sua jurisdição na área, Beijing tem recorrido a instrumentos administrativos e as agências governamentais civis524. O exemplo mais recente dessa metodologia ocorre em finais de abril de 2020, com as atenções mundiais concentradas na gestão da pandemia Covid-19. Dois novos distritos administrativos – Xisha (Paracels) e Nansha (Spratly) – foram criados pelo Ministério de Assuntos Civis. Segundo a novíssima determinação governamental, “o distrito de Xisha administrará as ilhas Xisha e Zhongsha e as suas águas circundantes, com o governo do distrito localizado na ilha de

Yongxing. Governando a ilha de Nansha e as suas águas, a administração do distrito de Nansha está sediado em Yongshu Jiao”525. O distrito de Nansha estará sediado no Recife Fiery Cross, reivindicado pelas Filipinas e pelo Vietname, agora dotado de uma estação de radar de alerta precoce e servindo como centro de comando e controlo para operações nas Ilhas Spratly. Note-se que, desde 2012, os arquipélagos estavam englobados sob o guarda-chuva administrativo de Sansha, uma “cidade” de 1,800 habitantes, que dispõe de uma área de dois milhões de quilómetros quadrados (mas apenas vinte quilómetros quadrados de área terrestre), abrangendo mais de duzentas formações no Mar do Sul da China. Os novos departamentos administrativos destinam-se a enfatizar que o esta zona geográfica, sob a soberania plena de Beijing, é parte integrante do território da RPC. Em simultâneo com a criação dos dois distritos, o Ministério de Recursos Naturais e o Ministério de Assuntos Civis, numa clara afirmação adicional de soberania, atribuíram nomes chineses às formações geográficas da área. Estes acontecimentos recentes fazem parte de um padrão pelo qual, furtivamente, a China faz uso das suas instituições domésticas, e da sua estrutura legal, para consolidar as suas reivindicações no Mar do Sul da China. Assim se vão criando fatos inalteráveis no terreno. Para todos os efeitos, a fortificação dos ilhéus e recifes permite que a República Popular anexe grandes extensões do Mar do Sul da China. Ao mesmo tempo, as forças armadas, em acelerada modernização, são equipadas com embarcações de superfície, aeronaves, submarinos, mísseis e meios de reconhecimento espacial. Através destes meios, as forças armadas projetam poder, coadjuvadas por uma milícia marítima (que o Pentágono designa como a Milícia Marítima das Forças Armadas Populares) que reúne 20,000 “pesqueiros”, maioritariamente tripulados por pessoas que receberam treino do Exército de Libertação Popular. A

operar dentro da “linha dos nove traços”, a milícia permite à RPC afirmar a sua presença estratégica no Mar do Sul da China e, não menos importante, intimidar os países vizinhos. Coincidente com esta projeção de poderio bélico, a China, em novembro de 2013, um mês antes do início da construção no Recife Johnson South, proclamou unilateralmente o estabelecimento de uma zona de identificação de defesa aérea sobre partes do Mar do Leste da China. Antecipa-se que, no curto prazo, fará o mesmo no Mar do Sul da China, onde instalações de radar “expandem significativamente os recursos de reconhecimento em tempo real (ISR) e as capacidades de bloqueamento (jamming) do ELP em grande parte do Mar do Sul da China, apresentando um desafio substancial às operações militares dos EUA nessa região”526. À medida que os dias de “aguardar o nosso tempo” dão lugar a uma assertividade palpável, o Mar do Sul da China emerge como a nova face do poderio chinês527. As chefias militares americanas têm insistentemente reiterado a sua profunda preocupação com os acontecimentos decorridos nesta parte do globo. Por exemplo, em 2015, no Fórum de Segurança de Aspen, o almirante Harry Harris, na época a chefiar o Comando do Pacífico, alertou para o fato de que a China “está a mudar o status quo regional através da construção agressiva de ilhas na ausência de esforços diplomáticos relevantes para a resolução de disputas ou arbitragem”, concluindo que “a China está a mudar os fatos no terreno, (…) essencialmente, a criar falsa soberania (…) através da construção de ilhas artificiais em cima de recifes de coral, rochas e bancos de areia”528. Harris também salientou que Beijing estava a “construir portos suficientemente profundos para receberem navios de guerra e a construir uma pista de 10,000 pés no Recife Fiery Cross… Estão a construir hangares de alta segurança em algumas das instalações para, a meu ver, abrigar aviões de caça táticos”529. Talvez ainda mais

importante, o uso das ilhas como postos de escuta alarga uma rede de vigilância que poderá ser operacionalizada com a “instalação de radares, recursos de guerra eletrónica e similares”530. Meses depois dos avisos públicos do almirante Harris, em setembro de 2015, durante a conferência de imprensa conjunta realizada no Rose Garden aquando da primeira visita de estado de Xi Jinping aos Estados Unidos, Barack Obama confessa que “transmiti ao Presidente Xi as nossas preocupações sobre a recuperação de terras, a construção e a militarização das áreas disputadas, o que dificulta aos países da região resolverem desentendimentos de forma pacífica”531. Em resposta às afirmações de Obama, Xi nega que a militarização estivesse em curso, alegando que “a atividade de construção relevante que a China está a realizar nas Ilhas Nansha (Ilhas Spratly) não tem como alvo ou afeta nenhum país e não há intenção de militarizar”532. Dado que o programa de construção já se encontrava em andamento, as palavras de Xi consubstanciavam uma flagrante negação dos fatos confirmados no terreno. A mesma ousadia verifica-se quando Xi alega, sem fundamento histórico, que “as ilhas do Mar do Sul da China são, desde os tempos antigos, território chinês (...). Temos o direito de defender a nossa própria soberania territorial e os direitos e interesses marítimos legítimos”533. O ponto de vista de Xi Jinping sobre o que constitui território soberano chinês não é certamente secundarizado pelos estados vizinhos nem pelas instituições internacionais. De qualquer forma, a conferência de imprensa do Rose Garden evidenciou a autoconfiança e a pura audácia do novo homem forte da RPC. Inversamente, expôs a impotência política de Barack Obama. Não por mero acaso, o Vice-Presidente Mike Pence retornaria a este episódio durante um discurso em outubro de 2018, observando que “o líder da China estava no Rose Garden na Casa Branca, em 2015, a afirmar que seu país não tinha, e cito, ‘nenhuma

intenção de militarizar’. Hoje, no Mar do Sul da China, Beijing coloca mísseis antiaéreos avançados num arquipélago repleto de bases militares construídas em ilhas artificiais”534. As reivindicações chinesas decorrentes da “linha dos nove traços” transformaram o enquadramento estratégico da Ásia marítima porque, conforme traçada, a demarcação substitui e efetivamente anula a maioria das ZEEs da região. Se as pretensões da RPC forem aceites, os recursos do Mar da Sul China pertencerão à República Popular. Pescadores de outras nações poderão operar nestas águas somente se tiverem a aprovação de Beijing. Da mesma forma, as águas onde se encontram as SLOC estarão sob jurisdição chinesa e, como tal, só poderão ser utilizadas por outros estados mediante a autorização prévia de Beijing. Igualmente grave, as marinhas estrangeiras, particularmente a americana e a japonesa, entrarão nas águas do Mar do Sul da China apenas com o consentimento da China. Em depoimento escrito enviado ao Congresso em maio de 2018, antes de substituir o almirante Harry Harris como chefe do Comando do Pacífico, o almirante Philip Davidson concluía que “a China agora é capaz de controlar o Mar do Sul da China em todos os cenários que não sejam de guerra com os Estados Unidos” e, para fazer frente à situação, recomendava que o país desenvolvessem armas avançadas e mantivessem uma forte presença na região535. No mesmo mês em que Davidson manifesta os seus anseios, o Departamento de Defesa americano revela que a RPC colocara mísseis anti-navio e terra-ar nas Ilhas Spratly, um sinal indesmentível da militarização do arquipélago. Meses depois, Mike Pence denuncia a agressão ocorrida quando uma “embarcação chinesa chegou a quarenta e cinco jardas do USNS Decatur, que realizava operações de liberdade de navegação no Mar do Sul da China”. Numa repetição do incidente Impeccable de 2009, o contratorpedeiro viu-se forçado a tomar medidas de

urgência “para evitar uma colisão”536. Acrescentou que, apesar desse “assédio imprudente, a Marinha dos Estados Unidos continuará a voar, a navegar e a operar sempre que o Direito Internacional o permita e que os nossos interesses nacionais o exijam. Não seremos intimidados e não recuaremos”537. Com efeito, a Administração Trump intensifica as operações de liberdade de navegação a menos de 20 quilómetros das ilhas e recifes reivindicados pela China. Essas ações, particularmente o recente reforço dos patrulhamentos de bombardeiro, constituem um desafio direto às reivindicações de soberania de Beijing. Eis um impasse que não pode ser prolongado indefinidamente.   Redesenhar a ordem asiática   Estimulada por conceções contrastantes quanto à natureza da ordem regional, a insistente competição estratégica sino-americana tem produzido confrontos regulares. À medida que a distribuição de poder crescentemente beneficia a RPC, a América procura ajustar a sua estratégia relativamente à China (e aos estados circundantes). Ao adotar o conceito de um “Indo-Pacífico livre e aberto”, a Administração Trump sinaliza uma mudança em relação à forma como a ordem regional fora anteriormente conceptualizada em Washington, Seul, Tóquio e outras capitais. Independentemente das divergências que separam as abordagens de Obama e de Trump, ambas convergem num ponto crítico: a Ásia passou a ser o principal teatro da competição das duas grandes potências. De forma definitiva, o foco estratégico americano migrou do Atlântico para o Pacífico (ou, na formulação mais abrangente de Trump, para o Indo-Pacífico)538. Essa mudança é, simplesmente irreversível.

Destinada a preservar a preponderância americana na região, a estratégia do Indo-Pacífico revelada pelo Presidente Donald Trump durante a Cimeira da APEC, realizada no Vietname, em novembro de 2017, traça os objetivos-chave da nova abordagem, incluindo a defesa do Estado de Direito, da liberdade de navegação, do fortalecimento das alianças e da promoção de um IndoPacífico “livre e aberto”539. Passadas poucas semanas, em dezembro de 2017, a Estratégia de Segurança Nacional da Casa Branca proclama que o poderio chinês teria de ser contrariado, pois procurava suplantar os Estados Unidos como principal potência do Indo-Pacífico. As linhas mestras da Estratégia de Segurança Nacional seriam reproduzidas no Relatório do Poderio Militar da China de 2019. Elaborado pelo Pentágono, o documento mantém que, no IndoPacífico, “a China apresenta-se a seguir uma estratégia de surgimento pacífico e identifica os Estados Unidos como o ator regional dominante que pretende conter a ascensão da China”. Em conformidade com o conceito do Indo-Pacífico introduzido na Estratégia de Segurança Nacional e na Estratégia de Defesa Nacional, o Relatório de Estratégia do Indo-Pacífico de junho de 2019, elaborado pelo Departamento de Defesa, esclarece cabalmente o significado de um “Indo-Pacífico livre e aberto”540. Estes documentos governamentais são unânimes na afirmação da centralidade do Indo-Pacífico para a estabilidade, a segurança e a prosperidade dos EUA. Todos veem nas motivações da China uma tentativa de reordenar a região por meio da rápida modernização das suas capacidades militares. Enraizado nestas premissas, o conceito “IndoPacífico livre e aberto” constitui, no essencial, uma reafirmação do compromisso de Washington para com a atual ordem regional e o sistema de alianças que o sustenta. A Estratégia de Defesa Nacional afirma que a vantagem militar americana em relação à China e à Rússia se encontra

em processo de “erosão”, a qual, a não ser estancada, provocará uma mudança no equilíbrio regional de poder que, por sua vez, consubstanciará um desafio à ordem livre e aberta subjacente à prosperidade e à segurança global dos Estados Unidos e dos seus aliados541. Quanto aos objetivos e métodos prosseguidos pela China, o documento do Pentágono sugere que o país “alavanca a modernização militar, operações de influência e economia predatória para coagir os países vizinhos a reordenar o Indo-Pacífico em seu proveito. Enquanto a China continua a sua ascensão económica e militar, afirmando o seu poderio através de uma estratégia de toda a nação de longo prazo, continuará a prosseguir um programa de modernização militar que procura a hegemonia regional no Indo-Pacífico no curto prazo e suplantar os Estados Unidos no futuro para alcançar a proeminência global”542. A referência feita pelo Pentágono à estratégia de “toda a nação” é de importância vital, pois indica que se trata de uma competição de espectro total (full-spectrum), que não se limita às dimensões militar e de segurança. Engloba, também, aspetos económicos, tecnológicos, culturais e ideológicos543. Apesar de não ser abertamente mencionada, a implicação é que a busca da hegemonia regional por parte de Beijing configura o passo preliminar para que a China venha a substituir os Estados Unidos como a mais poderosa potência mundial. A Estratégia de Defesa Nacional rotula a China como uma potência “revisionista”, acrescentando que “a República Popular da China (RPC), sob a liderança do Partido Comunista Chinês, corrói o sistema internacional por dentro, explorando-o em benefício e simultaneamente minando os valores e princípios da ordem baseada em regras”544. Segundo o documento, o Indo-Pacífico “é a região mais importante para o futuro da América. Abrangendo uma vasta extensão do globo, da costa oeste dos Estados Unidos às costas ocidentais da Índia, a região abriga o estado mais populoso do mundo, a democracia mais populosa e o maior

estado de maioria muçulmana, e inclui mais da metade da população da terra. Entre os dez maiores exércitos permanentes do mundo, sete encontram-se no IndoPacífico; e seis países da região possuem armas nucleares. Nove dos dez portos marítimos mais movimentados do mundo estão na região e 60% do comércio marítimo global transita pela Ásia, com cerca de um terço a passar pelo Mar do Sul da China”545. Reafirmando o compromisso americano com a manutenção da estabilidade nesta região, a Estratégia de Defesa Nacional acrescenta que o país “deve estar preparado para sustentar uma postura credível de combate avançado; garantir o fortalecimento de alianças e a construção de novas parcerias; e promover uma região cada vez mais conectada em rede”546. De forma semelhante, o Relatório de Estratégia do IndoPacífico salienta que a rede de aliados e parceiros americanos configura um multiplicador de forças para alcançar a paz, a dissuasão e a capacidade interoperável de combate na guerra547. Uma vez que a preservação da ordem assenta em regras internacionais, o mesmo relatório indica que os aliados dos Estados Unidos terão de ser inseridos numa arquitetura de segurança robusta. Salvo a eclosão de uma guerra entre as duas grandes potências, os Estados Unidos poderão salvaguardar a sua primazia militar no Indo-Pacífico no futuro próximo548. Enquanto essa primazia for conservada, a rivalidade sinoamericana dificilmente se traduzirá numa ordem regional bipolar. Se é verdade que a China se tornou o maior parceiro comercial dos países da região, é igualmente verdade que as relações comerciais não são sinónimas de dependência estratégica. Obviamente, a dependência pode surgir no futuro, mas, à exceção do Laos e do Camboja, essa dependência estratégica não se consumou. Dito isto, a participação de vários países na Parceria Económica Global Abrangente (RCEP), na Iniciativa Faixa e Rota e na ASEAN

tende a expô-los à alavancagem chinesa. De qualquer forma, dir-se-á que os países buscam segurança em Washington e comércio em Beijing. No entanto, a situação atual pode tornar-se insustentável e, nessa eventualidade, a tendência no sentido de uma maior polarização acentuará as estratégias de balanceamento. A formidável presença militar dos Estados Unidos na Ásia durante o pós-1945, assente nas bases situadas no Japão e na Coreia do Sul, também estruturou as relações da China com a vizinhança e a sua capacidade para projetar poder. Limitações ao exercício do poderio chinês tornaram-se excessivamente onerosas e, com Xi Jinping, são cada vez mais inaceitáveis. Em defesa da sua hegemonia regional, Washington, apoiada por aliados alarmados pela assertividade de Beijing, não permitirá que a RPC simplesmente estabeleça uma nova ordem de segurança. No seu Livro Branco de Defesa de 2019, A Defesa Nacional da China na Nova Era, Beijing faz a seguinte avaliação da correlação de forças regional: “à medida que o centro económico e estratégico mundial continua a mudar em direção à Ásia-Pacífico, a região torna-se num foco da competição entre os principais países, trazendo incertezas à segurança regional. Os EUA estão a fortalecer as suas alianças militares na Ásia-Pacífico e a reforçar as suas capacidades de intervenção militar, acrescentando complexidade à segurança regional. A implantação do sistema Terminal de Defesa Aérea de Alta Altitude (THAAD) na República da Coreia pelos EUA tem minado severamente o equilíbrio estratégico regional e os interesses estratégicos de segurança dos países da região. Na tentativa de contornar o mecanismo do pós-guerra, o Japão ajustou as suas políticas militares e de segurança, virando-se mais para o exterior nos seus empreendimentos militares. A Austrália continua a fortalecer sua aliança militar com os EUA e a seu envolvimento militar na Ásia-Pacífico, procurando um maior papel nos assuntos de segurança”549.

Este extrato do Livro Branco espelha de forma cristalina o pensamento estratégico do regime comunista. Com efeito, a RPC vê-se como alvo de uma coligação liderada pelos EUA que pretende conter o seu poderio e influência. Um desses instrumentos de dissuasão é, na ótica de Beijing, o sistema de defesa antimísseis THAAD, que os americanos instalaram na Coreia do Sul. A decisão, tomada em 2016 pelo Presidente Park Geun-hye, antes de ser demitido e preso em resultado de um escândalo financeiro, fora entendida pelos chineses como uma tentativa de minar a capacidade de dissuasão nuclear do país, para impedir a sua resposta a eventuais ataques first strike. A reação foi robusta e incluiu, primeiro, a démarche dos embaixadores dos EUA e da Coreia do Sul credenciados na China e, segundo, uma campanha pública conduzida pelos media estatais a denunciar a decisão550. Mais insidiosamente, embora sem oficializar a medida, a RPC agiu contra empresas coreanas a operar no mercado chinês, incluindo por meio do “escrutínio adicional” dirigido à Lotte, o conglomerado que “cedeu terrenos ao governo sul-coreano para a implantação do sistema”551. Visto de Beijing, esta e outras ações dos EUA e dos seus aliados são a verdadeira fonte de perturbação do equilíbrio regional. A ordem de segurança asiática continua a assentar em dois tratados bilaterais firmados com os Estados Unidos: o Tratado de Cooperação e Segurança Mútua de 1951 com o Japão (revisto em 19 de janeiro de 1960) e o Tratado de Defesa Mútua de outubro de 1953 celebrado entre americanos e sul-coreanos. O Artigo V do tratado com Tóquio afirma que “um ataque armado contra qualquer uma das partes nos territórios sob a administração do Japão constituiria um perigo à sua própria paz e segurança e declara que agiria para fazer frente ao perigo comum de acordo com os seus processos e disposições 552 constitucionais” . Similarmente, o Artigo III do tratado com Seul afirma que “cada parte reconhece que um ataque

armado na área do Pacífico a qualquer uma das partes em territórios agora sob o seu respetivo controlo administrativo, ou doravante reconhecido por uma das partes como legalmente submetido ao regime administrativo da outra, seria perigoso para a sua própria paz e segurança e declara que agiria para enfrentar o perigo comum de acordo com seus processos constitucionais”553. A credibilidade destas garantias de defesa mútua reside na presença de 28,500 soldados americanos na Coreia do Sul e de 50,000 no Japão. A dimensão do dispositivo, conjugado com os ativos dos aliados regionais, com a importantíssima base de Guam e com uma poderosa marinha de águas azuis, faz dos Estados Unidos um colosso militar na Ásia. Preocupado com os custos astronómicos inerentes à manutenção deste dispositivo, Donald Trump, cuja desconfiança em relação às alianças formais é sobejamente conhecida, solicitou aos aliados que suportassem uma fatia orçamental maior do custo de estacionar tropas americanas na Ásia. Pressionou os aliados regionais, particularmente o Japão e a Coreia do Sul, a fazerem contribuições adicionais (burden sharing) de forma a compensar os investimentos significativos feitos pela China na sua marinha azul e, não menos importante, no sistema de acesso de área/negação de área (A2/AD). Tóquio, que já assumia mais de 80% desses custos, nos últimos anos aumentou a sua contribuição, responsabilizando-se pelo pagamento de serviços públicos, conservação do parque residencial e uma série de despesas variadas554. Trump fez exigências semelhantes a Seul. No entanto, foi relatado que, para além dessa partilha de custos, Washington pretendia que parte da despesa da manutenção do seu “guarda-chuva nuclear” fosse assumido pelos sul-coreanos555. Não obstante as pretensões da Casa Branca, o problema reside na natureza do dissuasor nuclear: abrange uma vasta gama de sistemas de armas, incluindo mísseis balísticos intercontinentais, bombardeiros, submarinos nucleares, porta-aviões, sistemas

de comando e controlo, bem como sistemas de alerta precoce. Uma vez que muitas dessas armas e sistemas são parcial ou totalmente secretos, e a menos que os EUA estejam dispostos a abrir esses sistemas à inspeção dos aliados, não há como saber o seu custo exato, mesmo que fosse possível destrinçar o custo específico de estender o guarda-chuva nuclear aos aliados asiáticos dos restante encargos globais associados aos nukes americanos. Donald Trump introduziu um grau surpreendente de incerteza no equilíbrio regional quando propôs, em março de 2016, que o Japão e a República da Coreia deveriam considerar o desenvolvimento de armas nucleares autónomas556. Como é sabido, o Japão permanece vinculado aos seus três princípios não-nucleares: não construir, não possuir e não permitir armas nucleares em solo nipónico. Mais inquietante, a aquisição de armas nucleares pelo Japão ou pela Coreia do Sul certamente desencadearia uma espiral de insegurança cujo fim seria uma corrida às armas na região, provavelmente arrastando o Vietname e outras potências emergentes. Inerentemente perigosa porque ocorreria numa zona geoestratégica crítica, a lógica da nuclearização acabaria por impactar adversamente Washington. Ainda que a nuclearização fosse limitada aos dois aliados, aumentaria a probabilidade de o país vir a ser arrastado para um conflito nuclear e desvalorizaria a importância estratégica da presença das forças americanas no Pacífico. Procurando restaurar a previsibilidade da política dos EUA, o Secretário de Defesa Jim Mattis prudentemente reafirmou o “firme compromisso” dos Estados Unidos com os seus aliados regionais557. A declaração foi crucial porque as forças navais e aéreas chinesas têm aumentado as suas investidas na cadeia de ilhas japonesas. O Livro Branco de Defesa anual de Tóquio de 2019 observa que a “escalada unilateral” de atividades chinesas despoletou fortes preocupações de segurança e enfatiza a determinação de Xi

Jinping de transformar o ELP numa das principais forças de combate do mundo em meados do século XXI, bem como a intenção de Beijing se envolver em “tentativas unilaterais e coercivas de alterar o status quo com base nas suas próprias afirmações que são incompatíveis com a ordem internacional existente”558. De acordo com o mesmo Livro Branco nipónico, “desenvolvimentos militares chineses, e outros, juntamente com a falta de transparência em torno da sua política de defesa e poderio militar, representam uma séria preocupação de segurança para a região, incluindo o Japão, e para a comunidade internacional”559. Apesar de observar a devida correção diplomática, o relatório nota que a China demonstra interesse em iniciativas para evitar choques inesperados entre forças aéreas e marítimas. Muito previsivelmente, o Livro Branco do Japão recomenda o fortalecimento da aliança EUA-Japão. O destacamento dos mais recentes equipamentos militares, como os caças F-35B Lightning II, estacionados na Marine Corps Air Station Iwakuni, mostra o firme compromisso dos EUA com a aliança, a segurança do Japão e da região ÁsiaPacífico. Por outro lado, o sistema de defesa de mísseis balísticos do Japão, conjugado com o sistema Aegis Ashore, visa o upgrade das capacidades da defesa nacional nipónica. Existe, no entanto, uma questão estratégica, eventualmente a mais relevante de todas neste canto do globo, virtualmente impossível de gerir na ausência da cooperação ativa da China: o programa nuclear da Coreia do Norte. Considerando que a Coreia do Norte é comercial e financeiramente dependente da China – 85% do comércio exterior de Pyongyang faz-se com a RPC –, Beijing tem, muito naturalmente, uma influência considerável em Pyongyang. Kim Jong-un está largamente condicionado pelas escolhas de Beijing, embora seja duvidoso que Xi Jinping queira usar o seu capital político junto da família Kim para alterar o comportamento coreano. Uma vez que o

colapso abrupto e imprevisto do regime de Pyongyang provocaria consequências assoladoras para a segurança chinesa, incluindo fluxos maciços de refugiados, Beijing tem de ser deveras ponderada na forma como exerce a sua preponderância junto do clã Kim560. Os cenários resultantes do colapso da dinastia Kim, todos profundamente desestabilizadores, são, portanto, dissuasivos de uma maior assertividade chinesa, especialmente porque a unificação da península sob a tutela de Seul saldar-se-ia invariavelmente por uma alteração dos equilíbrios desfavorável para Beijing. À luz destas realidades, Washington parece ter concluído que Beijing jamais tomará medidas suscetíveis de resultarem no derrube da dinastia Kim, uma das razões que leva Trump a lançar a sua iniciativa coreana. Porque a China e os Estados Unidos divergem no entendimento quanto à ordem regional, a visão dos dois sobre o status quo na região também não pode coincidir. Sob a direção política de Donald Trump, os Estados Unidos foram além do “reequilíbrio” para articularem uma visão do Indo-Pacífico “livre e aberto”. Porém, erros políticos goraram alguns dos esforços de Washington. Significativamente, com Trump, o TPP e as relações multilaterais deram lugar a acordos comerciais bilaterais, ao mesmo tempo que os EUA exigem mais concessões dos seus aliados. Em contraste com a abordagem americana, a China procurou expandir e fortalecer as suas redes multilaterais por meio da Iniciativa Faixa e Rota, do apoio às conversações da Parceria Económica Global Abrangente e da criação do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB). Paradoxalmente, tudo isto leva a que alguns estados, receosos das ambições chinesas, procurem, de novo, aproximações a Washington. Dir-se-á que tem sido essa a dinâmica verificada nas capitais dos países do Quad. O diálogo Quadrilateral de Segurança que abrange os EUA, a Australia, o Japão e a Indía.

Ocupando rotas marítimas de comunicação entre o Médio Oriente e o Leste da Ásia, a Índia vê o Quad como um meio para reduzir a sua exposição a ameaças marítimas e à “linha de pérolas” chinesa561. Abrangendo os oceanos da Índia e do Pacífico, a Austrália investe na segurança das duas regiões e na redução da sua profunda dependência face à China. Porque acreditam que o nacionalismo chinês tem como alvo preferencial o Japão, as autoridades nipónicas são as mais entusiastas quanto às potencialidades do Quad. Mas para que o este seja estrategicamente relevante, o Indo-Pacífico terá de ser aceite como o novo princípio organizativo das políticas externas e de segurança da Austrália, da Índia, do Japão e dos EUA. A transição japonesa para a era pós-Abe será um teste crucial da resiliência do Quad562.   A Comunidade Democrática e o Quad   O Livro Branco de Defesa de Beijing de 2019 descreve as forças armadas chinesas como “uma força firme em prol da paz mundial, da estabilidade e da construção de uma comunidade de destino comum para a humanidade”563. Enfatizando as intenções benignas do país, este retrato visa tranquilizar os estados vizinhos que olham com inquietação para o crescimento do poder militar chinês. Todavia, perante a assertividade das autoridades chinesas, a insistência no “surgimento pacífico” carece de credibilidade. Atualmente, a República Popular não é a única grande potência que avança com um amplo plano geopolítico para a região, pois a estratégia para o Indo-Pacífico do governo Trump constitui um roteiro para resistir às pretensões hegemónicas chinesas. Curiosamente, o Relatório Indo-Pacífico, publicado em novembro de 2019 pelo Departamento de Estado,

afirma que a “visão dos EUA para o Indo-Pacífico não exclui nenhuma nação. Não pedimos que os países escolham entre um parceiro ou outro. Em vez disso, pedimos que mantenham os princípios fundamentais da ordem regional no momento em que esses princípios estão sob nova ameaça”564. A retórica inclusiva do documento não ofusca que a formulação obviamente exclui a República Popular, definida na Estratégia de Segurança Nacional como uma potência “revisionista” que não “defende os princípios fundamentais da ordem regional”. Por definição, uma potência revisionista não pode defender o status quo. Uma estratégia de equilíbrio contra a China exige que os Estados Unidos possam congregar os estados democráticos da região sob a sua liderança. Nas décadas mais recentes, tal empreendimento não se revelou isento de dificuldades e reveses. Há mais de uma década, uma experiência não inteiramente proveitosa com o “Quad”evidenciou a complexidade dos equilíbrios na região. O Quad surgiu a partir do Tsunami Core Group, criado para enfrentar os incalculáveis desafios impostos pelo terramoto e tsunami de 26 de dezembro de 2004, que ceifaram mais de 200,000 vidas. Com a chegada de Shinzō Abe ao topo da política japonesa, o Quad fora inserido como prioridade da agenda política regional. Quando contestou a liderança do Partido Liberal Democrata (PLD), Abe delineou uma política externa enraizada em valores pluralistas compartilhados e no aprofundamento de uma Comunidade de Democracias, um conceito que à época fazia caminho em várias capitais565. Assumindo o cargo de Primeiro-Ministro no Verão de 2006, Abe, no início de novembro do mesmo ano, anuncia que a sua política externa visava formar um “um arco de liberdade e prosperidade” na região566. Pouco depois, o Ministro das Relações Exteriores Tarō Asō, ao explicitar a nova abordagem, apelou à construção de um “Arco de Liberdade e Prosperidade” que abrangesse a Ásia Central, a Mongólia,

a Índia, o Sudeste Asiático e a Coreia do Sul. Tratar-se-ia de um instrumento vocacionado para promover valores universais e relações estreitas entre países com a mesma visão global567. A ousada iniciativa de Tóquio repousava numa convergência estratégica entre as quatro principais democracias da região e numa panóplia de estados autoritários receosos da ascensão da China e, por isso, dispostos a equilibrá-la. Para todos os efeitos, tratava-se de uma proposta estratégica desenhada para consumar o cerco político-ideológico à RPC. As democracias integrantes do Quad enfrentavam um desafio comum: como lidar adequadamente com a liderança económica da China na região e, ao mesmo tempo, resistir à sua assertividade geoestratégica? Quando Shinzō Abe pede um “diálogo estratégico quadrilateral” para defender a ordem “baseada em regras”, a sua proposta foi imediatamente interpretada por Beijing como uma estratégia projetada para conter o poderio chinês. Na época, por razões várias, a Austrália, a Índia e os Estados Unidos mostravam-se relutantes em adotar esse caminho. Mesmo assim, representantes dos quatro governos aceitam discutir a iniciativa em maio de 2007, à margem do Fórum Regional da ASEAN, realizado em Manila. Nunca formalmente concebido como uma aliança institucionalizada, o “Quadrilateral” alinhava estados preocupados com o desafio da China e dos seus respetivos interesses e valores. Para que não fossem vistos como provocadores da RPC, nenhum dos quatro sugeriu transformar o Quad numa aliança forma, o que, no entanto, não impediu que os oponentes da iniciativa a tivessem caracterizado como uma NATO embrionária. Meses depois, o Japão, a Austrália e Singapura aderem ao exercício naval Malabar, até então uma iniciativa bilateral Índia-EUA568. A RPC, de forma incisiva, protesta centra a inclusão de Tóquio. A verdade é que a falta de coesão e convergência estratégica entre as quatro nações impossibilitaria uma

aliança estruturada através de compromissos formalizados em tratado. A oposição ao Quad, incluindo críticos dentro dos quatro países, repousava em grande parte no pressuposto de que a República Popular simplesmente não era uma ameaça que justificasse uma estratégia de contenção. Para muitos destes críticos, a “ascensão pacífica” era considerada uma proposta “win-win” e, na pior das hipóteses, a China tornar-se-ia na potência economicamente preponderante da região, mas continuaria a prosseguir os seus interesses sem licitar uma resposta militar dos Estados Unidos. Fazendo caixa de ressonância da linha de Beijing, tais argumentos minimizavam as capacidades bélicas da China e aceitavam, prima facie, as declarações de intenção chinesas. Uma crítica mais séria mantinha que o verdadeiro perigo inerente ao estabelecimento do Quad seria a degradação da ordem de segurança regional porque, invariavelmente, Beijing interpretaria a iniciativa como um cerco e responderia com medidas que acabariam por gerar maior insegurança. Mesmo que o clima de segurança não fosse degradado em resultado do estabelecimento do Quad, a iniciativa poderia reforçar a linha-dura do PCC, que passaria a exigir uma política externa mais assertiva. Esta leitura pressupunha a existência de clivagens substanciais entre “pombas” e “falcões” na cúpula do PCC; na realidade, a clivagem residia no facto de os “falcões” procurarem acelerar a realização de objetivos por todos comungados. Como frequentemente acontece em sociedades pluralistas, o debate (que incidia sobre variadíssimos assuntos) acabaria por se resolver pelas vicissitudes da política interna de cada um dos quatro países. A discussão sobre o futuro do Quad fora efetivamente suspensa , em finais de 2007, a liderança de Shinzō Abe estremece porque, pela primeira vez em mais de cinco décadas, o Partido Liberal Democrata perde o controlo da câmara alta. Sitiado por vários escândalos de improbidade financeira que

envolviam os seus ministros e por um controverso debate em torno da revisão das regras da sucessão monárquica, Abe vê o seu espaço de manobra política encurtado e, em 12 de setembro de 2007, renuncia ao cargo de PrimeiroMinistro569. Apesar de assistir à redução da sua bancada parlamentar, o PLD comandava uma maioria na câmara baixa, garantindo, assim, que o vencedor da corrida à liderança partidária viesse a chefiar o governo. Yasuo Fukuda derrota Asō Tarō e torna-se Primeiro-Ministro em 25 de setembro de 2007. Porque não comunga das opiniões de Abe sobre a China, Fukuda passa a executar uma política de engajamento com Beijing. Quando o quási-pacifista Partido Democrata assume o executivo, na sequência da derrota do PLD de 2009, as discussões sobre o Quad foram abandonadas. O Primeiro-Ministro indiano Manmohan Singh não rejeitou cabalmente o Quad, mas, expressando as ambiguidades estratégicas de Nova Deli naquela conjuntura, também não abraçou a iniciativa. Durante a presidência de George W. Bush, a Índia aprofunda o seu relacionamento com os Estados Unidos e, por esse motivo, Nova Deli mostra-se disponível para fazer concessões relacionadas com a proposta. Era uma viragem inconcebível durante os anos de Guerra Fria, altura em que a Índia se coloca do lado da União Soviética, assinando um Tratado de Amizade e Cooperação com Moscovo. A China e a Índia envolveram-se numa breve guerra fronteiriça em 1962 e as questões em torno das reivindicações territoriais continuavam por resolver, como, aliás, demonstram os conflitos fronteiriços de junho de 2020 no vale do rio Galwan570. No entanto, a China mantinha relações amigáveis com Islamabad, razão pela qual Nova Deli não pretendia abdicar da influência detida em Beijing. Qualquer estratégia de contenção era, portanto, problemática, até porque os dois países pretendiam naquele momento ampliar a cooperação em fóruns como o BRIC e o G-20571. Singh fez a sua primeira

visita à China no início de janeiro de 2008, onde assina uma declaração conjunta destinada a promover uma “Parceria Estratégica e Cooperativa para a Paz e a Prosperidade”572. Depois de o governo australiano de Kevin Rudd se mostrar indisponível para o Quad, o Primeiro-Ministro indiano, durante a cimeira inaugural dos BRIC, realizada em julho de 2009 na cidade russa de Yekaterinburg, garante a Hu Jintao que “a China não é concorrente da Índia” e, acrescenta, “dará prioridade máxima às suas relações com a China”573. Ainda hoje apontada como o coveiro do Quad, a Austrália foi, por várias razões, o país que mais pressão sofreu por parte do governo chinês. A vulnerabilidade de Camberra era acentuada pela crescente dependência da sua economia relativamente ao investimento símico e pelo volume colossal de exportações, principalmente de recursos naturais e produtos agrícolas, para o mercado chinês574. Em 5 de fevereiro de 2008, apenas quatro meses após o Partido Trabalhista de Kevin Rudd ter vencido as eleições de novembro de 2007, o Ministro das Relações Exteriores Stephen Smith, durante uma conferência de imprensa conjunta com seu homologo chinês, Yang Jiechi, realizada em Camberra, declara que “uma das coisas que causou preocupação à China no ano passado foi uma reunião desse diálogo estratégico (...). Eu indiquei quando estava no Japão que a Austrália não estava a propor um diálogo dessa natureza”575. Com esta declaração, a Austrália, para todos os efeitos, abandona o Quad para iniciar o seu próprio “diálogo” com Beijing. Recentemente, o Primeiro-Ministro australiano responsável pelo volte-face, Kevin Rudd, num artigo tão revelador quanto auto-justificativo, esvaziou a relevância do Quad, afirmando que era tão limitada que “quando visitei Washington, em março de 2008, logo depois de esclarecermos que não continuaríamos a participação australiana no Quad, durante um dia inteiro de reuniões com o Presidente George W. Bush e os membros mais senior

do seu gabinete, a questão do Quad nunca foi levantada pelo lado americano”576. Claro que, depois de Camberra ter decidido abandonar o Quad, não havia razão para Washington se debruçar sobre um assunto encerrado. Mais intrigante é o entendimento de Rudd quanto aos interesses nacionais australianos quando escreve: “seria sensato transferir o futuro de nosso próprio relacionamento bilateral com a China para a evolução do relacionamento ChinaJapão, sobre a qual não poderíamos exercer influência ou controlo algum? A verdade desconfortável era que séculos de toxicidade mútua coloriram profundamente as lentes através das quais Beijing e Tóquio se olhavam. Para a Austrália, em 2007, começar a envolver-se em qualquer aliança militar emergente com o Japão contra a China, na ausência de uma reconciliação formal entre Tóquio e Beijing sobre os eventos da Segunda Guerra Mundial, seria incompatível com nossos interesses nacionais de longo prazo”577. Não deixa de ser curioso notar que Rudd julga que “séculos de toxicidade mútua”, a existirem, serão ultrapassados por uma reconciliação sobre acontecimentos ocorridos nos anos 1940. Seja como for, trata-se de uma confissão sincera de considerações de realismo político e, portanto, não há razão para não a aceitar como verdadeira578. Era também uma visão extremamente míope dos interesses estratégicos australianos. Passados dez anos, aquando da Cimeira da ASEAN de 2017, o Primeiro-Ministro australiano Malcolm Turnbull, Shinzō Abe, Narendra Modi e Donald Trump acordaram em retomar o diálogo quadrilateral. Muito mudara na década que se seguiu à primeira tentativa de erguer o Quad, particularmente no Mar do Sul da China. A assertividade de Xi Jinping e o uso da Iniciativa Faixa e Rota para consolidar posições em países vizinhos geraram apreensões quanto às ambições regionais de Beijing, acabando por impulsionar o renascimento do Quad. Mas os valores políticos comuns e o compromisso com a conservação de uma ordem regional

sob o assalto de Beijing revelaram-se igualmente decisivos. O principal fator que explana a reativação do Quad foi, porém, a mudança de orientação estratégica definida por Donald Trump. Aliás, uma das promessas contidas na Estratégia de Segurança Nacional da Administração Trump era, precisamente, “aumentar a cooperação quadrilateral com o Japão, a Austrália e a Índia”579. Esta decisão de voltar a engajar com a região ocorreu depois do Presidente americano retirar o seu país da Parceria Trans-Pacífica, um erro incalculável que suscitou dúvidas substanciais em relação ao compromisso de Washington para com a ordem regional580. Aproveitando o passo em falso de Trump, Xi Jinping desdobrou-se na promoção da China como o novo campeão global do comércio livre, ao mesmo tempo que surgiam indicações de que alguns aliados dos EUA, como o Presidente filipino Rodrigo Duterte, começavam a gravitar em direção a Beijing, pelo menos no tocante às questões de liderança económica. Outras razões explicam o interesse renovado no Quad. Primeiro, a deferência às sensibilidades chinesas que levaram ao abandono da proposta inicial simplesmente não surtiu uma alteração do comportamento regional da RPC. Segundo, abandonando a abordagem de Deng Xiaoping de “aguardar o nosso tempo”, Beijing põe fim à política de congelamento de disputas, isto é, de adiar a busca de “soluções finais”, se existisse a possibilidade de a procura de tais soluções suscitar novas tensões. A mudança era particularmente evidente no Mar do Sul da China, onde os chineses deixavam de ter qualquer receio de provocar conflitos. Terceiro, assistia-se a mudanças profundas na política interna dos quatro países, que os predispunha a trabalharem em conjunto para contrariar o poderio da China. Em suma, o Quad foi recuperado porque a assertividade chinesa transformou o ambiente de segurança regional e, por conseguinte, o quadro da política doméstica nas quatro democracias se alterou significativamente.

Neste novo quadro, o governo de coligação australiano, liderado pelos liberais de Malcolm Turnbull, e a coligação chefiada pelo PLD nipónico assumiam o ónus de recuperar o Quad. Mais tarde, no final de outubro de 2017, seria a Primeira-Ministra em exercício, Julie Bishop, a sinalizar que Camberra via como positivas as “discussões entre a Austrália, a Índia, o Japão e os EUA para fortalecer acordos de cooperação e maximizar as nossas oportunidades na região Indo-Pacífico, onde o Direito Internacional e ordem assente em regras é respeitada, para que os países possam continuar a prosperar”581. Da mesma forma, aquando da reeleição de Shinzō Abe, em 2017, o Ministro das Relações Exteriores Tarō Kōno afirma que Tóquio pretende que as democracias promovam o livre comércio e a cooperação de defesa no âmbito do Indo-Pacífico para impedir a construção de infraestrutura comercial e de segurança através da Iniciativa Faixa e Rota582. A iniciativa do Japão fora imediatamente saudada por Alice Wells, Secretária de Estado Assistente Interina dos EUA para os assuntos do sul asiático, comentando que “a quadrilateral discutida pelo Ministro das Relações Exteriores do Japão seria construída em cima da muito produtiva trilateral que temos com a Índia e o Japão (...) para reforçar esses valores na arquitetura global”583. Previsivelmente, Wells descarta a noção de que o Quad visa a contenção da China, mas reconhece que a parceria buscava soluções alternativas para fomentar infraestruturas e o desenvolvimento económico “que não incluam financiamento predatório ou dívida insustentável”, uma forma eufemística de caracterizar as práticas da República Popular em geral e da Iniciativa Faixa e Rota em particular584. Em resposta às novas realidades, a China procura atenuar as tensões estratégicas que permeiam as relações do país com a Índia e o Japão. Sinalizando o fim de um congelamento de sete anos no relacionamento bilateral, Abe visita Beijing em outubro de 2018585. A Índia, no

entanto, seguiu um caminho mais ambíguo com o intuito de maximizar a sua margem de manobra. Narendra Modi realizou uma cimeira bilateral com Xi Jinping em abril de 2018, indiciando um hedging motivado por dúvidas quanto à confiabilidade do governo Trump586. Recordando o abandono brusco de Rudd do Quad dez anos antes, Nova Deli também resistiu à inclusão da Austrália nos exercícios navais Malabar, realizados com os Estados Unidos e o Japão587. Todavia, durante a primeira metade de 2020, as hesitações da Índia dissiparam-se em particular, particularmente após os confrontos violentos na fronteira com a China. Um sinal revelador da acrimónia ocorre em 29 de junho, quando Nova Deli anuncia a ilegalização do TikTok588. Já antes, a 12 de maio, Narendra Modi anunciara, no âmbito geral do “Make in India”, um programa de €242 mil milhões para estabilizar a economia e, em parte, atrair novas empresas para o país. As medidas são reveladas na sequência de um programa iniciado em abril, o “Production Linked Incentive Scheme (PLI) for Large Scale Electronics Manufacturing”, dirigido a fabricantes de telefones móveis e de componentes eletrónicos, oferecendo-lhes incentivos financeiros para iniciarem ou aumentarem a capacidade de produção no país589. São medidas que têm como finalidade atrair firmas a produzirem que atualmente produem em território chinês, uma indicação de que Nova Deli está decidida a substituir a China nalgumas fileiras de produção. Independentemente das ambiguidades, dos avanços e dos recuos, a necessidade de consolidar a cooperação entre as democracias impôs-se à medida que a assertividade chinesa gerava novos focos de tensão. Esse incremento da cooperação quadrilateral reflete o quão profundamente o ambiente estratégico no Indo-Pacífico se transformara. As agendas domésticas e os interesses nacionais deixaram de impedir a cooperação reforçada entre os membros do Quad. É certo que todos os países receiam ser arrastados para eventuais conflitos entre Beijing e um dos outros

membros do Quad. As dificuldades não são intransponíveis mas, para serem plenamente ultrapassadas, exige-se uma liderança americana coerente. Para cada país, o relacionamento com Washington é o laço bilateral mais importante. Não obstante a importância vital do aliado americano, a China é o segundo mais crítico desses laços, superando a importância do relacionamento bilateral com as demais democracias. Em resultado desta realidade, surgirá, invariavelmente, a tentação de apaziguar Beijing de forma a evitar afirmar as sensibilidades chinesas. O perigo reside no facto desse eventual apaziguamento ser feito à custa dos interesses das demais democracias. Dado que, muito naturalmente, uma potência em franca expansão dotada de um projeto hegemónico visa impedir o condicionamento das suas ações, da sua liberdade de atuação estratégica, a reação da China ao Quad era inteiramente previsível. Em Washington, depois de alguma indefinição, o Quad começa a ser entendido como um instrumento para refrear a assertividade geopolítica da China; de facto, o Quad é “controverso porque é entendido como uma forma de conter a China”590. Na realidade, a necessidade sentida por Washington de agrupar aliados para balançar a República Popular tornou-se, nos últimos anos, pacífica entre Democratas e Republicanos, um elemento do “novo consenso” sobre a China. Chegados a este ponto, o dilema do Quad reside precisamente no papel reservado ao instrumento militar. Transformado num agrupamento militar com uma agenda explícita de contenção, o Quad muito provavelmente desencadearia a polarização da região. Na ausência dessa agenda militarizada, interesses divergentes e agendas domésticas antagónicas impedirão a “comunidade de democracias” de agir em uníssono. Eis o dilema que o tempo – e as escolhas chinesas – se encarregará de resolver.

422 . Cf., “Socialism with Chinese characteristics enters new era: Xi”, Xinhua 18 de outubro de 2017, consultado em: http://www.xinhuanet.com/english/201710/18/c_136688475.htm. 423 . Ver, Elizabeth C. Economy, The Third Revolution, pp. 1-12. 424 . Um porta-voz de Beijing, o coronel Zhou Bo, num artigo de opinião publicado no South China Morning Post, descreve o confronto com os Estados Unidos como “meros eventos contrários” ao “desenvolvimento pacífico” da China, acrescentando que “a mudança mais profunda que o mundo está a experimentar é a China ficar cada vez mais forte”. Cf., Zhou Bo, “Why China must beware a less confident US, politically divided and pessimistic about its future”, South China Morning Post, 27 de julho de 2020, disponível em: https://www.scmp.com/comment/opinion/article/3094566/why-china-mustbeware-less-confident-us-politically-divided-and. São poucas as vozes que abertamente criticam Xi. Uma exceção recente é o general Dai Xu, um proeminente “falcão” do ELP, que defende que a China faça uma avaliação das suas fraquezas em relação aos Estados Unidos. E recomenda que Beijing se comporte em conformidade, pois o confronto com Washington não lhe trouxe amigos. Acrescenta que nenhum país manifesta interesse em estabelecer com a China uma aliança anti-americana. Cf, Richard McGregor, “Beijing hard-liners kick against Xi Jinping’s wolf warrior diplomacy”, Nikkei Asian Review, 28 de julho de 2020, disponível em: https://asia.nikkei.com/Opinion/Beijing-hard-linerskick-against-Xi-Jinpings-wolf-warrior-diplomacy. 425 . Cf., “Full Text of Jiang Zemin’s Report at 16th Party Congress on November 8, 2002”, consultado em: https://www.fmprc.gov.cn/mfa_eng/topics_665678/3698_665962/t18872.shtml. Cf., também, Avery Goldstein. Rising to the Challenge: China’s Grand Strategy and International Security. Stanford: Stanford University Press, 2005, p. 203. 426 . Para uma discussão sobre o “surgimento pacífico” (também conhecido por “desenvolvimento pacífico”), cf., State Council White Paper, “China’s Peaceful Development Road”, People’s Daily, October 22, 2005, disponível em: http://en.people.cn/200512/22/eng20051222_230059.html. Também, Henry Kissinger, On China, pp. 499-513; Zheng Bijian, China’s ‘Peaceful Rise’ to GreatPower Status”, Foreign Affairs, Vol. 84, No. 5., setembro/outubro de 2005, pp. 18-24; Barry Buzan, “China in International Society: Is ‘Peaceful Rise’ Possible?”, The Chinese Journal of International Politics, Vol. 3, No. 1, Primavera de 2010, pp. 5-36 e Raquel Vaz-Pinto, “Peaceful rise and the limits of Chinese exceptionalism”, Revista Brasileira de Política Internacional, 57, 2014, pp. 210224, consultado em: http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v57nspe/0034-7329-rbpi-57spe-00210.pdf. 427 . Cf., David Lague e Benjamin Kang Lim, “Special Report: How China is replacing America as Asia’s military titan”, Reuters, 23 de abril de 2019, consultado em: https://www.reuters.com/article/us-china-army-xispecialreport/specialreport-how-china-is-replacing-america-as-asias-militarytitan-idUSKCN1RZ12L. 428 . Ver, por exemplo, Patrick Mendis, “Chinese behaviour in Asian seas driven by Monroe Doctrine of its own”, South China Morning Post, 26 de maio de 2014,

consultado em: https://www.scmp.com/comment/insightopinion/article/1519437/chinese-behaviour-asian-seas-driven-monroe-doctrineits-own. 429 . Sobre este assunto, sigo a perspetiva de Liza Tobin, “Xi’s Vision for Transforming Global Governance: A Strategic Challenge for Washington and its Allies”, Texas National Security Review, Vol. 2, No. 1, novembro de 2018, pp. 155-166, disponível em: https://2llqix3cnhb21kcxpr2u9o1k-wpengine.netdnassl.com/wp-content/uploads/2018/11/TNSR-Vol-2-Issue-1-Tobin.pdf . Ver, também, Nadège Rolland “China’s Vision for a New World Order” The National Bureau of Asian Research, NBR Special Report #83, janeiro de 2020, disponível em: https://www.nbr.org/wpcontent/uploads/pdfs/publications/sr83_chinasvision_jan2020.pdf. 430 . Cf., Ronald C. Keith. The Diplomacy of Zhou Enlai. Londres: Palgrave Macmillan, 1989, pp. 209-215. 431 . Ver, Jin Kai, “Can China Build a Community of Common Destiny?”, The Diplomat, 28 de novembro de 2013, consultado em: https://thediplomat.com/2013/11/can-china-build-a-community-of-commondestiny/. 432 . Hu afirmou: “Gostaria de reiterar aqui o que a China representa. Continuaremos a erguer bem alto a bandeira da paz, do desenvolvimento e da cooperação, a seguir inabalavelmente o caminho do desenvolvimento pacífico, a prosseguir firmemente a política externa independente de paz e a dedicar-nos ao desenvolvimento de relações amistosas e de cooperação com todos os países com base nos Cinco Princípios da Coexistência Pacífica. Sempre a integrar o nosso desenvolvimento com o progresso comum da humanidade, aproveitamos plenamente as oportunidades trazidas pela paz e pelo desenvolvimento mundiais para buscar o nosso próprio desenvolvimento, ao mesmo tempo que procuramos uma melhor promoção da paz mundial e do desenvolvimento comum através do nosso bem-sucedido desenvolvimento”. Cf., “Build Towards a Harmonious World of Lasting Peace and Common Prosperity”, Statement by H.E. Hu Jintao President of the People’s Republic of China At the United Nations Summit, New York, 15 de setembro de 2005, consultado em: https://www.un.org/webcast/summit2005/statements15/china050915eng.pdf. 433 . Cf., Liza Tobin, “Xi’s Vision for Transforming Global Governance”, p. 165. 434 . Cf., Lam Peng Er, “China, the United States, Alliances, and War: Avoiding the Thucydides Trap?”, Asian Affairs, Vol. 43, No. 2, 2016, pp 36-46. 435 . Para o texto completo do discurso, ver, “Work Together to Build a Community of Shared Future for Mankind” Speech By President Xi Jinping At the United Nations Office at Geneva, Geneva, 18 de janeiro de 2017, disponível em: http://iq.chineseembassy.org/eng/zygx/t1432869.htm. 436 . Ibid. 437 . Inspirado na “mão invisível” de Adam Smith, E.H. Carr, analisando um contexto histórico diferente, originou o termo “harmonia de interesses” para sugerir que as grandes potências invariavelmente afirmam que os seus interesses específicos coincidem com os interesses globais dos demais estados, da comunidade internacional. Cf., E.H. Carr. The Twenty Years’ Crisis, 1919-1939. Londres: Palgrave Macmillan, pp. 42-60. 438 . Ver, “Work Together to Build a Community of Shared Future for Mankind”

Speech By President Xi Jinping At the United Nations Office at Geneva. 439 . Ibid. 440 . Ibid. 441 . Ibid. 442 . Ibid. 443 . Ver, Luis Felipe, “Portuguese-Chinese relations rise on a political level with annual contacts”, Portugal iNews, 29 de abril de 2019, disponível em: https://portugalinews.eu/portuguese-chinese-relations-rise-on-a-political-levelwith-annual-contacts/. Sobre a decisão da União Europeia, ver, EU Commission, “EU-China – A Strategic Outlook”, 12 de março de 2019, consultado em: https://ec.europa.eu/commission/sites/beta-political/files/communication-euchina-a-strategic-outlook.pdf. 444 . Ver, Liza Tobin, “Xi’s Vision for Transforming Global Governance”, p. 159. 445 . Cf., Sun Xiaokun, “A Chinese Perspective on US Alliances”, Survival, Vol. 61, No. 6, novembro de 2019, pp. 69-76. 446 . Cf., Liza Tobin, “Xi’s Vision for Transforming Global Governance”, p. 159. 447 . Ver, Steven Tsang, “Consultative Leninism: China’s new political framework”, Journal of Contemporary China, Vol. 18, No. 62, novembro de 2009, p. 865 448 . Ver, “Xi Urges Efforts in Building China into a Great Modern Socialist Country”, Xinhua, 20 de março de 2018, consultado em: http://www.xinhuanet.com/english/2018-03/20/c_137052370.htm. 449 . Cf., “Work Together to Build a Community of Shared Future for Mankind” Speech By President Xi Jinping At the United Nations Office at Geneva. 450 . Ibid. 451 . Ver, Elizabeth C. Economy, The Third Revolution, pp. 152-185. 452 . Ver, “CPC incorporates ‘Beautiful China’ into two-stage development plan”, China Daily, 18 de outubro de 2017, consultado em: https://www.chinadaily.com.cn/china/2017-10/18/content_33404172.htm. 453 . Xi Jinping fez estas afirmações durante a comemoração dos 40 anos das reformas de mercado de Deng Xiaoping. Ver, Samuel Osborne, “China does not seek global domination, president Xi Jinping says in landmark speech”, The Independent, 18 de dezembro de 2018, consultado em: https://www.independent.co.uk/news/world/asia/china-xi-jinping-presidentspeech-beijing-economy-finance-global-domination-a8689231.html. 454 . Ver, “China’s National Defense in the New Era”, The State Council Information Office of the People’s Republic of China, julho de 2019, o texto está disponibilizado em: http://english.www.gov.cn/archive/whitepaper/201907/24/content_WS5d3941ddc 6d08408f502283d.html. 455 . Ibid. 456 . Ibid. 457 . Cf., Graham Allison. Destined for War: Can America and China Escape Thucydides’s Trap?. Nova Iorque: Houghton Mifflin Harcourt, 2017. Os 16 casos documentados no “Thucydides’s Trap Case File” do Belfer Center da Universidade de Harvard, consultados em: https://www.belfercenter.org/thucydides-trap/case-file. Numa recensão do livro de Allison, Lawrence Freedman escreve: “Se há lições a serem tiradas das

anteriores lutas pelo poder, talvez a mais relevante venha da Guerra Fria e é que, neste caso, o evitar de uma guerra quente teve algo a ver com armas nucleares. A questão nuclear também pode encorajar cautela entre a China e os Estados Unidos. Os outros exemplos vêm de épocas em que as questões da guerra e do poder eram vistas de forma diferente do que são hoje e as suas implicações não são convincentes. Tentar tirar lições de Portugal e da Espanha do século XV ou da Inglaterra e da República Holandesa do século XVII dificilmente será frutífero”. Cf., Lawrence Freedman, “Review of Graham Allison, Destined for War”, Prism, Vol. 7, No. 1, setembro de 2017, pp. 175-178, disponível em: https://cco.ndu.edu/Portals/96/Documents/prism/prism_7-1/15BR_Freedman.pdf?ver=2017-09-14-133601-573. 458 . Ver, Graham Allison, Destined for War, pp. 27-40. 459 . a Os quatro casos são (i) Portugal e Espanha na segunda metade do século XV, (ii) a Grã-Bretanha e os Estados Unidos na alvorada do século XX, (iii) os Estados Unidos e a União Soviética na segunda parte do século XX e (iv) o Reino Unido e a França/Alemanha no século XX. 460 . Ver, Pamir Gautam, “US, China and the Thucydides trap”, ChinaDaily.com, 15 de agosto de 2018, disponível em: http://www.chinadaily.com.cn/a/201808/15/WS5b7397bca310add14f385e37.htm . 461 . Ver, Graham Allison, Destined for War, p. 235. 462 .Para uma discussão estimulante, ver, Christopher Coker. The Improbable War: China, the United States and the Logic of Great Power Conflict. Londres: C. Hurst and Company, 2015. 463 . Resumidamente, o dilema de segurança ocorre quando as ações defensivas de um estado, destinadas a aumentar a sua própria segurança, são interpretadas como potencialmente ofensivas pelo segundo estado. Este toma então medidas para aumentar sua segurança, provocando insegurança no primeiro. Isso ocorre porque os estados são guiados por capacidades e não por intenções. Ver, John H. Herz, “Idealist Internationalism and the Security Dilemma”, World Politics, Vol. 2, No. 2, janeiro de 1950, pp. 157-180 e Robert Jervis, “Cooperation under the Security Dilemma”, World Politics, Vol. 30, No. 2, janeiro de 1978, pp. 167-214. 464 . Ver, Office of the Secretary of Defense, “Annual Report to Congress: Military and Security Developments Involving the People’s Republic of China, 2019, China Military Power Report” Ibid, p. 6. 465 . Ver, “Xi inspects PLA Southern Theater Command, stresses advancing commanding ability”, Xinhua, 26 de outubro de 2018, disponível em: http://www.xinhuanet.com/english/201810/26/c_137561097.html. 466 . Ibid. 467 . Ver, David Lague e Benjamin Kang Lim, “Special Report: How China is replacing America as Asia’s military titan”, Reuters, 23 de abril de 2019, consultado em: https://www.reuters.com/article/us-china-army-xispecialreport/specialreport-how-china-is-replacing-america-as-asias-militarytitan-idUSKCN1RZ12L. 468 . Cf., Ben Blanchard, “China jails former top military officer for life in graft case”, Reuters, 25 de julho de 2016, disponível em: https://www.reuters.com/article/us-china-corruption-military-idUSKCN10511X.

469 . Nas margens do XIX Congresso do PCC, Liu Shiyu, chefe da Comissão Reguladora de Valores Mobiliários da China, acusou Bo Xilai, Sun Zhengcai (antigo líder do partido em Chongqing e apontado a ocupar um lugar no Comité Permanente do Politburo), Zhou Yongkang, Ling Jihua, Xu Caihou e Guo Boxiong de “conspirar a fim de usurpar a liderança do partido e capturar o poder estatal”. Muito naturalmente, elogiou Xi Jinping por ter “salvo o Partido Comunista”. Cf., Wendy Wu and Choi Chi-yuk, “Coup plotters foiled: Xi Jinping fended off threat to ‘save Communist Party’, South China Morning Post, 19 de outubro de 2017, disponível em: https://www.scmp.com/news/china/policiespolitics/article/2116176/coup-plotters-foiled-xi-jinping-fended-threat-save. 470 . Bo Zhiyue, comentando este caso, escreveu: “Deng Xiaoping apenas promoveu um lote de 17 generais em 1988. Como Presidente da CMC, entre novembro de 1989 e setembro de 2004, Jiang Zemin promoveu um total de 79 generais. Como Presidente da CMC, entre setembro de 2004 e novembro de 2012, Hu Jintao promoveu um total de 45 generais. Mas Xu Caihou selecionou e recomendou 83 generais – mais 4 do que os promovidos por Jiang, mais 38 do que Hu e quase cinco vezes mais generais do que os promovidos por Deng”. Ver, Bo Zhiyue, “The Rise and Fall of Xu Caihou, China’s Corrupt General”, The Diplomat, 18 de março de 2015, disponível em: https://thediplomat.com/2015/03/the-rise-and-fall-of-xu-caihou-chinas-corruptgeneral/. 471 . Ver, Minnie Chan, “Communist Party ‘controls the gun,’ PLA top brass reminded”, South China Morning Post, 5 de novembro de 2014, disponível em: https://www.scmp.com/news/china/article/1632136/communist-party-controlsgun-pla-top-brass-reminded e, também, Li Jing, “President Xi Jinping lays down the law to Chinese Army in first ‘precept’ speech since Mao Zedong”, South China Morning Post, 4 de janeiro de 2016, consultado em: https://www.scmp.com/news/china/diplomacydefence/article/1898000/president-xi-jinping-lays-down-law-chinese-army-first. 472 . Ver, Zachary Keck, “China Creates New Military Reform Leading Group”, The Diplomat, 21 de março de 2014, disponível em: https://thediplomat.com/2014/03/china-creates-new-military-reform-leadinggroup/. 473 . Para uma discussion, cf., Manoj Joshi,“Xi Jinping and PLA Reform”, ORF Occasional Paper #88, Observer Research Foundation, New Delhi, fevereiro de 2106, pp. 1-38, disponível em: https://www.orfonline.org/wpcontent/uploads/2016/02/OP_88.pdf e, também, Joel Wuthnow e Phillip C. Saunders, “Chinese Military Reform in the Age of Xi Jinping: Drivers, Challenges, and Implications”, China Strategic Perspectives, No. 10, Center for the Study of Chinese Military Affairs Institute for National Strategic Studies, National Defense University, Washington, D.C., março de 2017, pp. 1-87, consultado em: https://apps.dtic.mil/dtic/tr/fulltext/u2/1030342.pdf. 474 . Para uma discussão, ver, Joel McFadden, Kim Fassler, e Justin Godby, “The New PLA Leadership: Xi Molds China’s Military to His Vision” In Phillip C. Saunders, Arthur S. Ding, Andrew Scobell, Andrew N.D. Yang, e Joel Wuthnow (eds.). Chairman Xi Remakes the PLA: Assessing Chinese Military Reforms. Washington, DC: National Defense University Press, 2019, p. 557-582. 475 . Ver, Lim Yan Liang, “19th Party Congress: China to have world-class

military by 2050”, The Straits Times, 18 de outubro de 2017, consultado em: https://www.straitstimes.com/asia/east-asia/19th-party-congress-china-to-haveworld-class-military-by-2050. 476 . Cf., Jeremy Page, “For Xi, a ‘China Dream? Of Military Power”, The Wall Street Journal, 13 de março de 2013, disponível em: https://www.wsj.com/articles/SB10001424127887324128504578348774040546 346. 477 . Ver, “China’s National Defense in the New Era”, n.p. 478 . Ibid. 479 . Cf., Richard C. Bush, “8 key things to notice from Xi Jinping’s New Year speech on Taiwan”, Brookings, 7 de janeiro de 2019, disponível em: https://www.brookings.edu/blog/order-from-chaos/2019/01/07/8-key-things-tonotice-from-xi-jinpings-new-year-speech-on-taiwan. 480 . Para mais detalhes, ver, Kerry Brown e Kalley Wu Tzu Hui. The Trouble with Taiwan: History, the United States and a Rising China. Londres: Zed Books, 2019. 481 . Cf., Shirley A. Kan, “China/Taiwan: Evolution of the ‘One China? Policy – Key Statements from Washington, Beijing, and Taipei”, CRS Report for Congress, Updated March 12, 2001, p. CRS-39, disponível em: https://digital.library.unt.edu/ark:/67531/metacrs9896/m1/1/high_res_d/RL30341 _2006Sep07.pdf. 482 . Ver, Warren I. Cohen, America’s Response to China, pp. 254-262. 483 . Ver, “China’s National Defense in the New Era”, n. p. 484 . Cf., Nick Aspinwall, “Taiwan and US Pledge Health Partnership, Possible Trade Agreement After Azar Visit”, The Diplomat, 14 de agosto de 2020, disponível em: https://thediplomat.com/2020/08/taiwan-and-us-pledge-healthpartnership-possible-trade-agreement-after-azar-visit/. 485 . Para uma discussão, ver, Ian Storey. Southeast Asia and the Rise of China: The Search for Security: New York: Routledge, 2011. 486 . Para algum background, ver, Golam W. Choudhury, “Post-Mao Policy in Asia”, Problems of Communism, Vol. 26, No. 4, julho/agosto de 1977, pp. 18-29. 487 . Cf., Xiaoming Zhang. Deng Xiaoping’s Long War: The Military Conflict between China and Vietnam, 1979-1991. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2015. 488 . Existe uma crescente literatura especializada a versar o Mar do Sul da China. Cf., inter alia, Sarah Raine e Chistian Le Mière. Regional Disorder: The South China Sea Disputes. Nova Iorque: Routledge, 2013; Robert D. Kaplan. Asia’s Cauldron: The South China Sea and the End of a Stable Pacific. Nova Iorque: Random House, 2014; Bill Hayton. The South China Sea: The Struggle for Power in Asia. New haven: Yale University Press, 2014; James Borton (ed.). Islands and Rocks in the South China Sea: Post-Hague Ruling. Xlibris Books, 2017; Humphrey Hawksley. Asian Waters: The Struggle over the South China Sea and the Strategy of Chinese Expansion. Nova Iorque: The Overlook Press, 2018 e Anders Corr (ed.). Great Powers, Grand Strategies: The New Game in the South China Sea. Annapolis: Naval Institute Press, 2018. 489 . Sobre o debate interno chinês sobre a estratégia a seguir no Mar do Sul da China, ver, Feng Zhang, “Chinese Thinking on the South China Sea and the Future of the Regional Order”, Political Science Quarterly, Vol. 132, No. 3, 2017, pp. 435-466.

490 . Ver, The State Council Information Office of the People’s Republic of China, “China’s National Defense in the New Era”, julho de 2019. O texto completo está disponível em: http://www.xinhuanet.com/english/2019-07/24/c_138253389.htm. 491 . Cf., “China’s National Defense in the New Era”, n. p. 492 . Citado em Joel Wuthnow e Phillip C. Saunders, “Chairman Xi Remakes the PLA”, In Phillip C. Saunders, Arthur S. Ding, Andrew Scobell, Andrew N.D. Yang, e Joel Wuthnow (eds.). Chairman Xi Remakes the PLA: Assessing Chinese Military Reforms. Washington, DC: National Defense University Press, 2019, p. 1. 493 . Ver, White House, National Security Strategy of the United States of America, p. 2. 494 . Ver, Office of the Secretary of Defense, “Annual Report to Congress: Military and Security Developments Involving the People’s Republic of China, 2019”, China Military Power Report”, p. 5. 495 . Cf., Department of Defense, “Summary of the 2018 National Defense Strategy of the United States of America”, Sharpening the American Military’s Competitive Edge”, janeiro de 2018, p. 1, disponível em: https://dod.defense.gov/Portals/1/Documents/pubs/2018-National-DefenseStrategy-Summary.pdf. Porque a totalidade da National Defense Strategy permanece em segredo de estado, o Departamento de Defesa apenas disponabiliza um sumário para consulta pública. 496 . Ver, Leszek Buszynski, The South China Sea: Oil, Maritime Claims, and U.S.-China Strategic Rivalry, The Washington Quarterly, Vol. 35, No. 2, 2012, pp. 139-156. 497 . Ver, Mu Ramkumar, M. Santosh, Manoj J. Mathew, David Menier, R. Nagarajan, Benjamin Sautter,“Hydrocarbon reserves of the South China Sea: Implications for regional energy security”, Energy Geoscience, Vol. 1, No. 1-2, julho de 2020, p 1, disponível em: https://reader.elsevier.com/reader/sd/pii/S2666759220300044? token=0722BE7FE658554D521EF13F14BE4627AF0BB25E6FF247B1CEF79A2F1F 03758608C68222BD67DCB95324819707180076 498 . Ver, Fu Ying e Wu Shicun, “South China Sea: How We Got to This Stage,” The National Interest, 23 de maio de 2016, disponível em: http://nationalinterest.org/print/feature/southchina-sea-how-we-got- stage16118. 499 . O documento está reproduzido em: “China’s Indisputable Sovereignty Over the Xisha and Nansha Islands”, Beijing Review, No. 7, fevereiro de 1980, pp. 1524. 500 . Ibid. 501 . Ver, Teh-Kuang Chan, “China’s Claim of Sovereignty over Spratly and Paracel Islands: A Historical and Legal Perspective”, Case Western Reserve Journal of International Law, Vol. 23, No. 3, 1991, pp. 399-420, consultado em: https://scholarlycommons.law.case.edu/cgi/viewcontent.cgi? referer=https%253A%252F%252Fscholar.google.pt%252Fscholar%253Fq%253D related%253AoAfXZjvrqVMJ%253Ascholar.google.com%252F&=&scioq=spratly+ island+historical&=&hl=ptPT&=&as_sdt=0%2C5&=&httpsredir=1&=&article=1644&=&context=jil&=&sei -redir=1#search=%22related%3AoAfXZjvrqVMJ%3Ascholar.google.com%2F%22. 502 . Cf., Bill Hayton. The South China Sea, pp. 53-54.

503 . Ver, “Statement on the South China Sea”, Ministry of Foreign Affairs, Republic of China (Taiwan), 7 de julho de 2015, consultado em: https://www.mofa.gov.tw/en/News_Content.aspx? n=0E7B91A8FBEC4A94&sms=220E98D761D34A9A&s=EDEBCA08C7F51C98. 504 . Para uma discussão, cf., Zhiguo Gao e Bing Bing Jia, “The Nine-Dash Line in the South China Sea: History, Status, and Implications,” American Journal of International Law, Vol. 107, No. 1, janeiro de 2013, pp. 98–124. 505 . Ibid. 506 . Ver, Steven Lee Myers, “Island or Rock? Taiwan Defends its Claim in the South China Sea”, The New York Times, 10 de maio de 2019, disponível em: https://www.nytimes.com/2018/05/20/world/asia/china-taiwan-island-southsea.html. 507 . Para uma discussão, ver, Lowell Bautista, “Thinking Outside the Box: the South China Sea Issue and the United Nations Convention on the Law of the Sea (Options, Limitations and Prospects)”, Philippine Law Journal, Vol. 81, No. 4, 2007, pp. 699-731, disponível em: https://ro.uow.edu.au/cgi/viewcontent.cgi? article=1779&context=lhapapers. 508 . Ver, Marc Lanteigne, “China’s Maritime Security and the “Malacca Dilemma”, Asian Security, Vol. 4, No. 2, 2008, pp. 143-161. 509 . Cf., Henry Kissinger, On China, pp. 438-439. 510 . Cf., Nien-Tsu Alfred Hu, “The Two Chinese Territorial Sea Laws: Their implications and comparisons”, Ocean & Coastal Management, Vol. 20, No. 1, 1993, pp. 89-96, 511 . Para uma discussão, ver, inter alia, Nalanda Roy. The South China Sea Disputes: Past, Present, and Future. Lanham: Lexington Books, 2016; Xavier Furtado, “International Law and the Dispute over the Spratly Islands: Whither UNCLOS?”, Contemporary Southeast Asia, Vol. 21, No. 3, dezembro de 1999, pp. 386-404; Sam Bateman, “UNCLOS and Its Limitations as the Foundation for a Regional Maritime Security Regime”, Korean Journal of Defense Analysis, Vol. 19, No. 3, Outono de 2007, 27-56 e David Rosenberg, “Governing the South China Sea: From Freedom of the Seas to Ocean Enclosure Movements”, Harvard Asia Quarterly, Vol. 12, No. 3 & 4, Inverno de 2010, pp. 4-12, disponível em: http://www.southchinasea.org/files/2013/02/Governing_The_South_China_Sea.pdf . 512 . Ver, Sébastien Colin, “China, the US, and the Law of the Sea”, China Perspectives, No 2016/2, pp. 57-62, disponível em: https://journals.openedition.org/chinaperspectives/6994?file=1. 513 . Cf., Ankit Panda, “Making Sense of China’s Latest Bid to Administer Sovereignty in the South China Sea”, The Diplomat, 21 de abril de 2020, consultado em: https://thediplomat.com/2020/04/making-sense-of-chinas-latestbid-to-administer-sovereignty-in-the-south-chinasea. 514 . Cf., Chris Buckley, “China says U.S. naval ship broke the law”, Reuters, 10 de março de 2009, disponível em: https://www.reuters.com/article/us-usachina/china-says-u-s-naval-ship-broke-the-law-idUSPEK9458120090310. 515 . Para uma discussão das complexidades legais da questão e das várias pretensões dos estados envolvidos, ver, Jonathan G. Odom, “The True ‘Lies’ of the Impeccable Incident: What Really Happened, Who Disregarded International Law, and Why Every Nation (Outside of China) Should be Concerned”, Michigan

State Journal of International Law, Vol. 18, No. 3, 2010, pp. 1-42, disponível em: https://jnslp.com/wp-content/uploads/2010/06/the-true-lies-of-the-impeccableincident-odom-msujil-may-2010.pdf 516 . Para uma dicussão, cf., Tara Davenport, “Island-Building in the South China Sea: Legality and Limits”, Asian Journal of International Law, Vol. 8, No. 1, janeiro de 2018, pp. 76-90. 517 . Ver, Ben Brumfield, “U.S. defense chief to China: End South China Sea expansion”, CNN, 30 de maio de 2015, consultado em: https://edition.cnn.com/2015/05/30/china/singapore-south-chinasea-ashcarter/index.html. 518 . Ver, The White House, “Remarks by President Obama and President Benigno Aquino III of the Philippines in Joint Press Conference”, Malacañang Palace, Manila, Philippines, 28 de abril de 2014, disponível em: https://obamawhitehouse.archives.gov/the-press-office/2014/04/28/remarkspresident-obama-and-president-benigno-aquino-iii-philippines-joi. 519 . Ver, Lowell B. Bautista, “The Legal Status of the Philippine Treaty Limits in International Law”, Agean Review of the Law of the Sea and Maritime Law, No. 1, 2010, pp. 111-139, consultado em: https://www.academia.edu/446908/The_Legal_Status_of_the_Philippine_Treaty_Li mits_In_International_Law. 520 . A sentença é de leitura indispensável. Não apenas porque as questões legais são exaustivamente tratadas, mas porque revela a fragilidade das reivindicações terrotoriais chinesas. A sentença pode ser encontrada em Judge Thomas A. Mensah et al., The South China Sea Arbitration Award, The Hague, 12 de julho de 2016,disponível em: https://pcacases.com/web/sendAttach/2086. 521 . Ver, “China’s determination to safeguard territorial sovereignty and maritime rights unwavering: People’s Daily”, People’s Daily Online, 13 de julho de 2016, disponível em: http://en.people.cn/n3/2016/0713/c900009085312.htm. 522 . Para a declaração oficial da RPC relativamente à sentença, ver, “Statement of the Ministry of Foreign Affairs of the People’s Republic of China on the Award of 12 July 2016 of the Arbitral Tribunal in the South China Sea Arbitration Established at the Request of the Republic of the Philippines, 12 de julho de 2016, disponível em: http://ae.chinaembassy.org/eng/xwdt/t1380341.htm. Para uma discusssão, cf., Tom Phillips, Oliver Holmes e Owen Bowcott, “Beijing rejects tribunal’s ruling in South China Sea case”, The Guardian, 6 de julho de 2016, consultado em: https://www.theguardian.com/world/2016/jul/12/philippines-wins-southchina-seacase-against-china. 523 . Ver, Feng Zhang, “Chinese Thinking on the South China Sea”, p. 445. 524 . Cf., Sarah Raine and Chistian Le Mière, Regional Disorder, pp. 78-82. 525 . Cf., “China’s Sansha City establishes Xisha, Nansha districts in major administrative move”, CGTN, 18 de abril de 2020, disponível em: https://news.cgtn.com/news/2020-04-18/China-s-Sansha-City-establishes-XishaNansha-districts-PN5hyJkgFy/index.html e Richard Javad Heydarian, “China lays ever larger claim to South China Sea”, Asia Times, 21 de abril de 2020, consultado em: https://asiatimes.com/2020/04/china-lays-ever-larger-claim-tosouthchina-sea.

526 . Ver, “Advance Policy Questions for Admiral Philip Davidson, USN Expected Nominee for Commander, U.S. Pacific Command”, n. d., p. 17, disponível em: https://www.armed-services.senate.gov/imo/media/doc/Davidson_APQs_04-1718.pdf. 527 . Cf., Dingding Chen and Jianwei Wang, “Lying low no more? China’s new thinking on the tao guang yang hui strategy”, China: An International Journal, Vol. 9, No. 2, 2011, pp. 195–216. 528 . Ver, Kevin Baron, “China’s New Islands Are Clearly Military, U.S. Pacific Chief Says”, Defense One, 24 de julho de 2015, consultado em: https://www.defenseone.com/threats/2015/07/chinas-new-islands-are-clearlymilitary/118591/. 529 . Ibid. 530 . Ibid. 531 . Ver, David Brunnstrom e Michael Martina, “Xi denies China turning artificial islands into military bases”, Reuters, 25 de setembro de 2015, disponível em: https://www.reuters.com/article/us-usa-china-pacific/xi-denies-china-turningartificial-islands-into-military-bases-idUSKCN0RP1ZH20150925. 532 . Ibid. 533 . Ibid. 534 . Ver, The White House, “Remarks by Vice President Pence on the Administration’s Policy Toward China”, The Hudson Institute, Washington, DC, 4 de outubro de 2018, disponível em: https://www.whitehouse.gov/briefingsstatements/remarks-vice-president-pence-administrations-policy-toward-china/. 535 . Cf., “Advance Policy Questions for Admiral Philip Davidson, USN Expected Nominee for Commander, U.S. Pacific Command”, p. 18, n. d., disponível em: https://www.armed-services.senate.gov/imo/media/doc/Davidson_APQs_04-1718.pdf. Ver, também, “Short of war, China already controls the South China Sea: US admiral”, Asia Times, 24 de abril de 2018, consultado em: https://asiatimes.com/2018/04/short-war-china-already-controls-south-chinaseaus-admiral. 536 . Ver, The White House, “Remarks by Vice President Pence on the Administration’s Policy Toward China”, The Hudson Institute, Washington, DC, 4 de outubro de 2018, disponível em: https://www.whitehouse.gov/briefingsstatements/remarks-vice-president-pence-administrations-policy-toward-china/. 537 . Ibid. 538 . Sobre o Indo-Pacific, cf., Timothy Doyle e Dennis Rumley (eds.). The Rise and Return of the Indo-Pacific. Oxford: Oxford University Press, 2019; Rory Medcalf. Indo-Pacific Empire: China, America and the Contest for the World’s Pivotal Region. Manchester: Manchester University Press, 2020; Richard Javand Heydarian. The Indo-Pacific: Trump, China, and the New Struggle for Global Mastery. Singapore: Palgrave Macmillan, 2020 e Oliver Turner e Inderjeet Parmar (eds.). The United States in the Indo-Pacific: Obama’s Legacy and the Trump Transition. Manchester: Manchester University Press, 2020. 539 . Cf., The White House, “Remarks by President Trump and President Quang of Vietnam in Joint Press Conference, Hanoi, Vietnam”, Presidential Palace, Hanoi, Vietnam, 11 de novembro de 2017, disponível em: https://www.whitehouse.gov/briefings-statements/remarks-president-trumppresident-quang-vietnam-joint-press-conference-hanoi-vietnam/ e The White

House, “Remarks by President Trump at APEC CEO Summit, Da Nang, Vietnam”, Ariyana Da Nang Exhibition Center, Da Nang, Vietnam, 10 de novembro de 2017, consultado em: https://www.whitehouse.gov/briefingsstatements/remarks-president-trump-apec-ceo-summit-da-nang-vietnam. 540 . Ver, The Department of Defense, “Indo-Pacific Strategy Report: Preparedness, Partnerships, and Promoting a Networked Region”, 1 de junho de 2019, disponível em: https://media.defense.gov/2019/Jul/01/2002152311/-1/-1/1/DEPARTMENT-OFDEFENSE-INDO-PACIFIC-STRATEGY-REPORT-2019.PDF. 541 . Ver, “Summary of the 2018 National Defense Strategy of the United States of America”, p. 1. 542 . Ibid., p. 2. 543 . Para um exemplo desta abordagem chinesa de “toda a nação”, ver, Qiao Liang and Wang Xiangsui. Unrestricted Warfare: China’s Master Plan to Destroy America. Dehradun: Natraj Publishers, 2007. 544 . Cf., “Summary of the 2018 National Defense Strategy of the United States of America”, p. 7. 545 . Ibid., p. 1. 546 . Ibid., p. 3. 547 . Ver, “Indo-Pacific Strategy Report: Preparedness, Partnerships, and Promoting a Networked Region”, p. 21. 548 . Cf., por exemplo, Paul Dibb e John Lee, “Why China Will Not Become the Dominant Power in Asia”, Security Challenges, Vol. 10, No. 3, 2014, pp. 1-22, consultado em: https://www.hudson.org/content/researchattachments/attachment/1437/sc10_3_ dibb_lee.pdf. 549 . Ver, “China’s National Defense in the New Era”, 550 . Para uma breve discussão da questão THAAD e das reações de Beijing, ver, Ethan Meick e Nargiza Salidjanova, “China’s Response to U.S.-South Korean Missile Defense System Deployment and its Implications”, Staff Research Report, US-China Economic and Security Review Commission, 26 de julho de 2017, disponível em:https://www.uscc.gov/sites/default/files/Research/Report_China’s%20Respons e%20to%20THAAD%20Deployment%20and%20its%20Implications.pdf. 551 . Cf., Ankit Panda, “China Hits Back at South Korea’s THAAD Deployment Following North Korea’s Latest ICBM Test”, The Diplomat, 8 de agosto de 2017, consultado em:https://thediplomat.com/2017/08/china-hits-back-at-southkoreas-thaad-deployment-following-north-koreas-latest-icbm-test/. 552 . Ver, Treaty of Mutual Cooperation and Security between the United States and Japan (January 19, 1960), disponível em: http://afe.easia.columbia.edu/ps/japan/mutual_cooperation_treaty.pdf. 553 . Cf., Mutual Defense Treaty Between the United States and the Republic of Korea, consultado em: https://avalon.law.yale.edu/20th_century/kor001.asp. 554 . Em 1966, os dois países assinaram o Acordo de Estatuto de Forças (Status of Forces Agreement), cujo Artigo V estabelece que os Estados Unidos arcarão com todos os custos da manutenção das tropas americanas, exceto aqueles assumidos especificamente pela Coreia do Sul. Para apurar essa contribuição, Acordos de Medidas Especiais (Special Measures Agreements – SMAs) têm sido

periodicamente renegociados desde 1991. No último, datado de fevereiro de 2019 e com a duração de um ano, Seul concordou em aumentar a sua contribuição para US $927 milhões, um aumento de US$ 70,3 milhões em relação ao acordo anterior. Donald Trump inicialmente pediu à Coreia do Sul que pagasse US$ 5 mil milhões. O Japão destina cerca de US$ 1,8 mil milhões às forças dos Estados Unidos, maioritariamente estacionadas em Okinawa. 555 . Ver, Hiroyuki Akita, “Trump demands Japan and South Korea pay for nuclear umbrella” Nikkei Asian Review, 4 de fevereiro de 2020, consultado em: https://asia.nikkei.com/Spotlight/Comment/Trump-demands-Japan-and-SouthKorea-pay-for-nuclear-umbrella. 556 . Cf., por exemplo, Demetri Sevastopulo, “Donald Trump open to Japan and South Korea having nuclear weapons”, Financial Times, 27 de março de 2016, disponível em: https://www.ft.com/content/c927017c-f398-11e5-9afedd2472ea263d and “Full Rush Transcript: Donald Trump, CNN Milwaukee Republican Presidential Town Hall, CNN”, 29 de março de 2016, consultado em: https://cnnpressroom.blogs.cnn.com/2016/03/29/full-rush-transcript-donaldtrump-cnn-milwaukee-republican-presidential-town-hall/. 557 . Ver, Michael R. Gordon e Choe Sang-Hun, “Jim Mattis, in South Korea, tries to reassure an ally”, The New York Times, 2 de fevereiro de 2017, disponível em: https://www.nytimes.com/2017/02/02/world/asia/james-mattis-us-koreathaad.html. 558 . Ver, Ministry of Defense, “Defense of Japan 2019”, p. 44, consultado em: https://www.mod.go.jp/e/publ/w_paper/pdf/2019/DOJ2019_Full.pdf. 559 . Ibid., p. 44. 560 . Cf., por exemplo, Thomas Plant, “China, North Korea and the Spread of Nuclear Weapons”, Survival, Vol. 55, No. 2, abril/maio de 2013, pp. 61-80. 561 . Sobre este tema, ver, Bertil Lintner. The Costliest Pearl: China’s Struggle for India’s Ocean. Londres: Hurst and Company, 2019 e Gurpreet S. Khurana, “China’s ‘String of Pearls’ in the Indian Ocean and its Security Implications”, Strategic Analysis, Vol. 32, No. 1, 2008, pp. 1-39. 562 . Ver, Michael J. Green e Nicholas Szechenyi, “Shinzō Abe’s Decision to Step Down”, CSIS Critical Questions, Center for Strategic and International Studies, 28 de agosto de 2020, disponível em: https://www.csis.org/analysis/shinzo-abesdecision-step-down. 563 . Ver, “China’s National Defense in the New Era”, n. p. 564 . Ver, Department of State, “A Free and Open Indo-Pacific: Advancing a Shared Vision”, 4 de novembro de 2019, p. 6, disponível em: https://www.state.gov/wp-content/uploads/2019/11/Free-and-Open-Indo-Pacific4Nov2019.pdf. 565 . Ver, “Toward a Community of Democracies Ministerial Conference”, Final Warsaw Declaration: Toward a Community of Democracies, Warsaw, Poland, 27 de junho de 2000, disponível em: https://archive.is/20130414143601/http://www.ccd21.org/articles/warsaw_declar ation.htm. Para uma discussão sobre a “Comunidade das Democracias”, cf., Ivo H. Daalder e James Lindsay, “Democracies of the World, Unite,” Public Policy Research, Vol. 14, No. 1, março/maio de 2007, pp. 47-58; John McCain, “An Enduring Peace Built on Freedom,” Foreign Affairs, Vol. 86, No. 6, novembro/dezembro de 2007, pp. 19-34 e Robert Kagan, “Case for a League of

Democracies,” Financial Times, 13 de maio de 2008, disponível em: https://www.ft.com/content/f62a02ce-20eb-11dd-a0e6-000077b07658. 566 . Ver, Yuichi Hosoya, “The Rise and Fall of Japan’s Grand Strategy: The ‘Arc of Freedom and Prosperity’ and the Future Asian Order”, Asia Pacific Review, Vol. 18, No. 1, 2011, pp. 13-24. Sobre a “Doutrina Abe”, ver, inter alia, Michal Kolmaš. National Identity and Japanese Revisionism: Abe Shinzō’s Vision of a Beautiful Japan and Its Limits. Londres: Routledge, 2019; Hugo Dobson, “Is Japan Really Back? The “Abe Doctrine” and Global Governance”, Journal of Contemporary Asia, Vol. 47, No. 2, 2017, pp. 199-224 e H. D. P. Envall, “The ‘Abe Doctrine’: Japan’s new regional realism”, International Relations of the AsiaPacific, Vol. 20, No. 1, janeiro de 2020, pp. 31–59. 567 . O conceito foi inicialmente articulado em novembro de 2006, num discurso de Tarō Asō, Ministro das Relações Exteriores. Cf., “Speech by Mr. Tarō Asō, Minister for Foreign Affairs on the Occasion of the Japan Institute of International Affairs Seminar “Arc of Freedom and Prosperity: Japan’s Expanding Diplomatic Horizons”, 30 de novembro de 2006, disponível em: https://www.mofa.go.jp/announce/fm/aso/speech0611.html. Um discurso posterior, com o intuito de clarificar o conceito, é “Address by H.E. Mr. Tarō Asō, Minister for Foreign Affairs on the Occasion of the 20th Anniversary of the Founding of the Japan Forum on International Relations, Inc. “Arc of Freedom and Prosperity”, 12 de março de 2007, disponível em: https://www.mofa.go.jp/policy/pillar/address0703.html. 568 . Sobre a relevância dos exercísios Malabar de 2007, cf., Gurpreet S. Khurana, “Joint Naval Exercises: A Post-Malabar-2007 Appraisal for India”, Institute of Peace and Conflict Studies, IPCS Issue Brief, No. 52, New Delhi, setembro de 2007, pp. 1-4, consultado em: https://www.files.ethz.ch/isn/44702/IPCS-IssueBrief-No52.pdf. 569 . Ver, Hiroko Nakata, “Abe announces he will resign”, The Japan Times, 13 de setembro de 2007, consultado em: https://www.japantimes.co.jp/news/2007/09/13/national/abe-announces-he-willresign/#.XrorHS2ZMxc. 570 . Ver, “Galwan Valley Fight: Beijing Gives Step by Step Account of IndiaChina Border Clash at Galwan Valley”, The Eurasian Times, 20 de junho 2020, disponível em: https://eurasiantimes.com/galwan-valley-what-does-beijing-sayabout-india-china-border-clash-at-galwan-valley/. 571 . Sobre algumas das limitações colocadas ao relacionamento sino-indiano, cf., Hu Shisheng and Peng Jing, “The Rise of China and India: Prospects of Partnership”, In Sudhir T. Devare, Swaran Singh e Reena Marwah (eds.). Emerging China: Prospects of Partnership in Asia. Nova Deli: Routledge India, 2012, pp. 348-374. 572 . Para o contexto das questões dominantes nas relações sino-indianas na altura da deslocação, ver, Jabin T. Jacob, “Manmohan Singh’s Visit to China: New Challenges Ahead”, China Report, Vol. 44, No. 1, 2008, pp. 63-70, disponível emt: https://www.researchgate.net/publication/234051740_Manmohan_Singh’s_Visit_t o_China_New_Challenges_Ahead. 573 . Ver, “Hu meets with Indian prime minister”, China Daily, June 16, 2009, disponível em: http://www.chinadaily.com.cn/world/2009recovery/2009-

06/16/content_8602161_2.htm. 574 . Grande parte do recente debate público australiano sobre a influência chinesa no país foi provocado pela publicação do livro de Clive Hamilton, detalhando a forma como “o Partido Comunista Chinês (PCC) está engajado numa campanha sistemática para infiltrar, influenciar e controlar as instituições mais importantes da Austrália” e cujo “objetivo final” é “quebrar a nossa aliança com os Estados Unidos e transformar este país num estado de tributo”. Ver, Clive Hamilton. Silent Invasion: China’s Influence in Australia. Londres: Hardie Grant Books, 2018, p. 1. 575 . Citado em Frank Ching, “Asian Arc doomed without Australia”, The Japan Times, 22 de fevereiro de 2008. Disponível em: https://www.japantimes.co.jp/opinion/2008/02/22/commentary/asian-arcdoomed-without-australia/#.XmoMyC2cYxc. 576 . Cf., Kevin Rudd, “The Convenient Rewriting of the History of the Quad”, Nikkei Asian Review, 26 de março de 2019, consultado em: https://asia.nikkei.com/Opinion/The-Convenient-Rewriting-of-the-History-of-theQuad. 577 . Ibid. 578 . Ibid. Isso não significa que o governo Rudd estivesse inteiramente despreocupado com o papel da China na Austrália. Como Rudd apontou algum tempo depois de abandonar o poder, no seu artigo “The Convenient Rewriting of the History of the Quad”, Camberra “também foi o primeiro governo nãoamericano no mundo a negar autorização à Huawei para vender seus produtos – no Australian National Broadband Network – por motivos de segurança nacional. E o nosso Livro Branco de Defesa de 2009 mencionava explicitamente o orçamento militar expansivo da China e suas inexplicáveis movimentações militares na região como razão para a Austrália redobrar a sua frota de submarinos e aumentar a sua frota de superfície em um terço”. 579 . Ver, “National Security Strategy of the United States of America”, p. 46. 580 . Em agosto de 2016, em visita a Washington, Lee Hsien Loong, PrimeiroMinistro de Singapura, assume frontalmente que a rejeição americana do TPP prejudicaria a sua credibilidade junto dos aliados regionais. Ver, Pearl Lee, “PM Lee Hsien Loong warns of harm to US’ standing if TPP isn’t ratified”, The Straits Times, 27 de outubro de 2016, disponível em: https://www.straitstimes.com/singapore/pm-lee-warns-of-harm-to-us-standing-iftpp-isnt-ratified. 581 . Ver, David Wroe, “Australia weighing closer democratic ties in region in rebuff to China”, The Sydney Morning Herald, 31 de outubro de 2017, disponível em: https://www.smh.com.au/politics/federal/australia-weighing-closerdemocratic-ties-in-region-in-rebuff-to-china-20171031-gzbzhq.html. 582 . Cf., Saki Hayashi and Yosuke Onchi, “Japan to propose dialogue with US, India and Australia”, Nikkei Asian Review, 26 de outubro de 2017, disponível em: https://asia.nikkei.com/Politics/Japan-to-propose-dialogue-with-US-India-andAustralia2. 583 . Ver, David Brunnstrom, “U.S. seeks meeting soon to revive Asia-Pacific ‘Quad’ security forum”, Reuters, 27 de outubro de 2017, consultado em: https://www.reuters.com/article/us-usa-asia-quad/u-s-seeks-meeting-soon-torevive-asia-pacific-quad-security-forum-idUSKBN1CW2O1.

584 . Ibid. 585 . Para uma abordagem geral, mas excelente, das relações sino-nipónicas, ver, Ezra F. Vogel. China and Japan: Facing History. Cambridge: Harvard University Press, 2019. 586 . Sobre o relacionamento Trump-Modi, cf., Varghese K. George. Open Embrace: India-US ties in the Age of Modi and Trump. Haryana: Viking, 2018. 587 . Cf., Suhasini Haidar e Dinakar Peri, “Not time yet for Australia’s inclusion in Malabar naval games”, The Hindu, 22 de janeiro de 2019, consultado em: https://www.thehindu.com/news/national/not-time-yet-for-australias-inclusion-inmalabar-naval-games/article26058080.ece. 588 . Cf., Maria Abi-Habib, “India Bans Nearly 60 Chinese Apps, Including TikTok and WeChat”, The New York Times, 29 de junho 2020, disponível em: https://www.nytimes.com/2020/06/29/world/asia/tik-tok-banned-india-china.html. 589 . Ver, “Electronics incentive schemes launched”, The Hindu, 2 de junho de 2020, disponível em: https://www.thehindu.com/business/electronics-incentiveschemes-launched/article31733734.ece. 590 . Ver, Huong Le Thu (ed.), “Quad 2.0: New Perspectives for the Revised Concept. Canberra: Australian Strategic Policy Institute, 2019, p. 2, disponível em: https://s3-ap-southeast-2.amazonaws.com/ad-aspi/201902/SI134%20Quad%202.0%20New%20perspectives_0.pdf? Ml2ECFvmUJTTFzK.RsBIsskCRRAqEmfP.



CONCLUSÃO   “Somos defensores da abolição da guerra, não queremos guerra; mas a guerra só pode ser abolida através da guerra e, para se livrar da arma, é necessário pegar na arma”. (Mao Zedong, Problemas Estratégicos da Guerra Revolucionária na China)

  A violência em massa e a destruição incalculável que marcam a história moderna chinesa teve origem de dentro e de fora das fronteiras do país. A avareza imperialista – europeia, russa, americana e japonesa – vitimou Zhōngguó, mas nem todos os problemas do país resultaram da exploração pelas potências estrangeiras. Senhores da guerra regionais dividiram o país, mergulhando-o em recorrentes e sangrentos conflitos. Vários governos, tanto imperiais como republicanos, perpetraram tremendas atrocidades ao tentarem conter rebeliões, travar guerras civis infindáveis ou, simplesmente, na condução de implacáveis lutas pelo poder. Não menos relevante, atribuise ao Partido Comunista Chinês a morte de dezenas de milhões de pessoas em resultado da fome provocada pelas desastrosas escolhas ideológicas do Grande Salto Em Frente e pelo caos desencadeado pela Revolução Cultural. Essas vagas de fome, terror e violência em massa só terminariam em meados da década de 1970, com a purga do Grupo dos Quatro e o regresso ao poder de Deng Xiaoping e dos Oito Eternos. Hoje, sob a tutela de Xi Jinping, a violência das épocas anteriores deu lugar à insidiosa vigilância em massa, ao genocídio cultural e ao internamento de mais de um

milhão de uigures591. A narrativa contemporânea do “século da humilhação nacional” chinesa ganha consistência quando o Guomindang, na década de 1920, após o falecimento de Sun Yat-sen, redefine os acontecimentos da Primeira Guerra do Ópio, que passam a ser caracterizados como uma “tragédia nacional” em vez de uma “disputa”. Doravante, a Primeira Guerra do Ópio seria entendida como o início do “século da humilhação nacional”, um período marcado pela guerra, pela ocupação, pela turbulência sociopolítica e pela ameaça permanente de desagregação territorial do estado chinês. As investidas imperialistas provocam a perda da autoconfiança das elites e a revolta doméstica em consequência da derrota militar às mãos do Ocidente e, mais tarde, do Japão. Estes cataclismos acabam por minar a legitimidade dos Qing, cada vez mais vistos como usurpadores estrangeiros que haviam perdido o “mandato dos céus”. Com efeito, o “século da humilhação nacional” expôs a fraqueza global da China perante as grandes potências e, como consequência, denunciava a vulnerabilidade do império num mundo em mudança vertiginosa. Inúmeros “tratados desiguais” obrigam a China a comprometer a sua soberania e integridade territorial, impondo ao Reino do Meio um estatuto impróprio da sua civilização e da sua grandeza nacional. O “século da humilhação nacional” tornou-se, assim, num sinónimo do fim da centralidade chinesa no mundo, o derrube de “tudo debaixo dos céus”. A intrusão brutal de um mundo bárbaro que desempenhara um papel mínimo, periférico, na mundivisão chinesa, devastou a autoimagem das elites imperiais. Pode-se, pois, dizer que, “a um nível fundamental, foi a incongruência entre a ordem mundial chinesa e a visão vestefaliana das potências ocidentais de soberania do estado e o choque dos impérios chinês e ocidentais que levaram a uma série de conflitos militares a partir da Primeira Guerra do Ópio”592.

Uma nova geração de reformadores e revolucionários, alguns dos quais posteriormente fundam o Partido Comunista Chinês, interroga-se sobre os insucessos do país num sistema internacional de estados competitivos e de capitalismo industrial. A dinastia Qing colapsa em 1912 e o estado centralizado dá lugar a governos nacionais fracos, minados pela insurreição comunista, pela ocupação japonesa e pelos feudos regionais comandados pelos senhores da guerra virtualmente independentes da autoridade de Beijing. A humilhação revelou-se profundamente traumática porque as elites concebiam a China como a nação indispensável da Ásia, um excecionalismo que hoje continua a influenciar o comportamento do país. Se entendermos a narrativa de “humilhação nacional”, entenderemos o significado de Mao Zedong restituir a “dignidade” ao país e de o unir sob um governo forte e centralizado que manteve a integridade do estado. Em suma, Mao coloca a China no caminho da modernidade sem sacrificar as fronteiras do império. É justamente esse feito que explica a relevância continuada de Mao e a indispensabilidade do seu legado para a narrativa de legitimação contemporânea do PCC. Mao não fora apenas um déspota; foi, também, o homem que voltou a unificar o país sob um regime suficientemente forte para travar os processos centrífugos e que traçou um novo rumo nacional. Proclamando a criação da República Popular, Mao anuncia que a China “se levantara”. A realidade não era bem assim porque, ao “inclinar-se para um lado”, a República Popular troca as iniquidades do imperialismo pela dependência em relação ao “grande irmão” soviético. O país de Mao ter-se-á “levantado”, mas era incapaz de caminhar sozinho e não alcançará a grandeza nacional que o tirano imaginara. Os desastres do Grande Salto Em Frente e da Revolução Cultural – no fundo, do maoismo – convencem o PCC a alterar a sua estratégia na sequência da morte do Grande

Timoneiro, em setembro de 1976. Após uma breve luta pelo poder, Deng Xiaoping e um grupo de antigos revolucionários, os Oito Imortais, consolidam o poder e, no Terceiro Plenário do XI Comité Central do Partido Comunista Chinês, reunido em dezembro de 1978, trilham o caminho que conduz ao milagre económico das últimas décadas do século XX. Deng prosseguia com a “reforma e abertura”, mas o massacre de Tiananmen de 1989, uma advertência para a elite do PCC, revela os limites da reforma política. Com a supressão da Primavera de Beijing, ficou demonstrado que a “reforma política” não contempla o abandono do monopólio do poder do PCC. Com efeito, o “socialismo com características chinesas” continuava a ser “socialismo” construído pela mão de uma liderança esclarecida de um partido leninista que, evidentemente, excluía qualquer tipo de transição conducente à democracia liberal. Neste quadro, o colapso do comunismo soviético não poderia deixar de ter um impacto profundo junto das elites chinesas, convencendo-as, de forma definitiva, que a “abertura política” terminaria num desastre semelhante. No Ocidente, o desmoronamento do comunismo europeu leva americanos e europeus a concluir, para parafrasear Marx, que a ideologia comunista teria sido lançada para o “caixote do lixo da história”. Apesar dos acontecimentos de Tiananmen, generalizou-se a convicção de que, tal como o PCUS, o PCC era uma relíquia histórica, um artefacto que, mais dia menos dia, seria abandonado por um país convertido ao capitalismo. Moldados por uma série de teorias da modernização e alguns pressupostos questionáveis sobre democratização, Washington e Bruxelas chegaram à conclusão de que o envolvimento com a China transformaria a RPC num stakeholder responsável e, ao mesmo tempo, desencadearia a mudança do regime. Bill Clinton, em particular, definiu um percurso estratégico que, ironicamente, garante a entrada da RPC na OMC e acelera a

ascensão do país. Defensores da globalização e do engajamento pareciam incapazes de compreender que Beijing não estava interessada em tornar-se numa boa cidadão global. Estava – e está – empenhada em substituir a ordem liberal do pós-1945. A ascensão de Xi Jinping ao poder estava destinada a gerar maiores tensões com os Estados Unidos porque o rejuvenescimento do “Sonho Chinês” colidia com o status quo mantido pelos americanos. A fim de obter e consolidar o seu poder, Xi, sob o disfarce das campanhas anticorrupção, expurga incontáveis adversários do partido, do estado e das forças armadas. Seguiu-se uma vaga de repressão político-ideológica visando limitar a liberdade de expressão, silenciar grupos religiosos e amordaçar as minorias étnicas, particularmente no Tibete e em Xinjiang. O pluralismo limitado anteriormente consentido pelo regime nas universidades, nos think tanks e na comunicação social dava lugar à estrita ortodoxia sob a supervisão do Departamento Central de Propaganda dirigido por Huang Kunming. A rigidez ideológica passou a ser o novo padrão e a China de Xi efetivamente metamorfoseou-se numa sociedade de vigilância pós-moderna monitorizada por câmaras, telefones celulares, aplicativos e outras tecnologias. Como corolário, implementa-se um sistema de “crédito social” para aferir a lealdade dos cidadãos ao partido e ao estado. Empossado de um novo vigor ideológico, o estado regressa em força à esfera económica, reforçando o seu controlo sobre todas as áreas da economia593. Não menos importante, o estado promove a criação de campeões nacionais que agora se tornam incontornáveis nas cadeias de fornecimento internacionais. À medida que conquistam terreno, empresas como a Huawei geram controvérsia política em todo o mundo. Xi Jinping, o novo Grande Timoneiro, determina as principais iniciativas da política externa da China; nenhuma

decisão estratégica é tomada sem o seu consentimento. À semelhança de Mao Zedong e de Deng Xiaoping, o novo homem forte do PCC, se resistir no poder, tornar-se-á num líder transformativo, levando a China a um admirável mundo novo e com o estatuto de grande potência. Sob a orientação de Xi, a RPC passou, sem dúvida, a ser uma potência autoconfiante e assertiva, guiada pelo “Sonho Chinês” de ressurgimento e afirmação nacional. Recorrendo a uma fórmula que se tornou sobejamente conhecida, Xi pretende “Tornar a China Novamente Grande”. Reclamando uma nova ordem global pós-liberal para realizar a sua “comunidade de destino comum para a humanidade”, Xi lança a Iniciativa da Faixa e Rota, um programa de trilhiões de dólares que suscita intensa suspeita no Ocidente quanto à sustentabilidade da dívida em vários países em vias de desenvolvimento. Teme-se que quando os países deixarem de reunir condições financeiras para saldar essa divida Beijing terá adquirido os ativos mais cobiçados. Eis a diplomacia da “armadilha da divída”. Mas as ambições de Beijing são ainda mais grandiosas. O relacionamento estratégico com a Rússia ameaça desfazer o equilíbrio internacional de poder e, na vizinhança imediata, a República Popular desafia o status quo nos mares do Sul da China e do Leste da China. Um período prolongado de confronto estratégico parece inevitável porque, em resposta, os americanos delinearam um plano alternativo de ordenamento regional, o “Indo-Pacífico livre e aberto”. A nível global, a disputa entre Washington e Beijing faz-se em torno do Direito Internacional, das normas internacionais e das instituições multilaterais, como a Organização Mundial do Comércio e a Organização Mundial da Saúde. E, claro, através da batalha da inovação e da liderança tecnológica. Estamos, literalmente, a testemunhar um conflito universal entre dois poderes que competem entre si para moldar dois futuros distintos e incompatíveis. Dir-se-á que, até certo ponto, esse futuro chegou com a

“crise Covid”. Perante a eclosão da pandemia mundial, a resposta do PCC não se revelou feliz: Wuhan veio a simbolizar a falta de transparência, a manipulação da opinião pública e a insensibilidade do governo central. Dirse-á que a gestão da crise pelas autoridades chinesas, incluindo as suas táticas de “diplomacia de Lobo Guerreiro”, se saldou pelo desastre594. Se, numa primeira fase, houve a tentação de admirar a capacidade de reação da China, uma reação só possível num quadro de autoritarismo político, já numa segunda fase se começou a duvidar das intenções benignas de Beijing. A sobranceria do estado chinês, as manipulações e as mentiras contribuíram para uma viragem na perceção do país em vários cantos do mundo. Não será excessivo afirmar que, talvez pela primeira vez, se abriu uma janela de desconfiança sobre os motivos, intenções e ambições chinesas. E, de uma forma cristalina, percebeu-se que a República Popular passou a constituir uma séria ameaça à segurança e ao bem-estar dos estados ocidentais. À luz da crise, muitas certezas foram descartadas. Mesmo antes do início da crise, as previsões de longo prazo sobre o crescimento do PIB chinês dependiam de variáveis que as autoridades chinesas não determinam. Apesar dos avanços significativos feitos pela RPC nas últimas décadas, os Estados Unidos continuam a contar com uma série de vantagens em relação à China: população mais jovem, superioridade tecnológica e empresas internacionais flexíveis. Se excluirmos ruturas na ordem económica e financeira internacional que possam ocorrer em consequência da crise atual, benefícios significativos também continuarão a ser acumulados pelo dólar, a principal moeda de referência mundial, um status que permite aos EUA importar capital e, portanto, compensarem baixos níveis de crescimento. Essas vantagens parecem destinadas a perdurar por algum tempo, principalmente porque existe uma preocupação generalizada com a opacidade do sistema financeiro chinês e dos níveis da sua

dívida. A mudança para as moedas digitais apoiadas pelos bancos centrais pode levantar numerosos problemas para a hegemonia do dólar, mas não substituirá no futuro próximo. Não se pretende sugerir que a hegemonia americana seja duradoura ou que os desafios à preponderância dos Estados Unidos não se intensifiquem nos próximos meses e anos. Tudo, aliás, indica que haverá cada vez mais contestação. Mesmo antes da crise atual, um número crescente de estados expressava vários graus de desconforto com a forma como a Administração Trump utiliza a moeda e o sistema SWIFT para viabilizar o uso extensivo de sanções. Ainda assim, os EUA, com os seus mercados de capitais e centenas de milhões de consumidores prósperos, continuam a ser um ímã para as empresas internacionais. A “crise Covid”, porém, já fez uma vítima: a globalização tal como a concebemos nos últimos quarenta anos. Previsivelmente, o confronto estratégico de Washington com Beijing implica algum grau de dissociação (decoupling) comercial e financeira. As preocupações expressas quanto às cadeias de fornecimento de da indústria farmacêutica, da saúde e de equipamentos médicos, questões que agora foram englobadas no conceito de segurança nacional americano, aumentarão a pressão para se proceder à renacionalização da produção em setores-chave. Essa tendência já é aparente no pedido de Tóquio para que as empresas japonesas iniciem o reshoring e no apoio estatal oferecido para compensar o custo da mudança595. Donald Trump também acredita que restringir o acesso dos chineses à tecnologia e ao mercado dos Estados Unidos diminuirá o poder de Beijing. Depois das habituais hesitações e ambiguidades, a União Europeia caminha no mesmo sentido596. O “acordo provisório” de janeiro de 2020 que suspendem a “guerra comercial” é exatamente isso: uma pausa. A dissociação económica intensificar-se-á,

independentemente de Donald Trump permanecer ou não na Sala Oval. A politização da atividade económica, que na China é a norma, começa a ser vista pelos americanos como a forma mais adequada de resistência597. Menos dependente das exportações do que no passado, a China será sempre afetada negativamente pelo retrocesso da globalização. Uma vez que a legitimidade do regime ainda assenta no desempenho económico, o PCC enfrentará a erosão do apoio popular, uma probabilidade que se transformará em certeza se a promessa de Xi de erguer uma “sociedade moderadamente próspera” for estendida para um horizonte distante. No plano teórico, o PCC pode atenuar os danos causados pela desaceleração económica598. Beijing, em última análise, pode recuar há Iniciativa Faixa e Rota e canalizar fundos para o seu sistema bancário e para os serviços sociais domésticos. Mas o mais provável é que Xi Jinping faça rufar os tambores do nacionalismo chinês. Convém apenas recordar que, desde os eventos de Tiananmen de 1989, o PCC tem vindo a recorrer ao nacionalismo para aumentar a sua legitimidade. A dissociação e a consequente desaceleração económica dariam a Beijing a oportunidade para reanimar um nacionalismo tóxico assente em animosidades históricas e para demonizar ainda mais o Japão e os Estados Unidos. Se tudo mais falhar, o partido recorrerá aos seus sofisticadíssimos mecanismos de repressão social e política, e à ortodoxia ideológica que hoje se impõe a todos os níveis da “superstrutura”. Seria certamente oneroso suprimir a totalidade dos desafios que se possam vir a colocar no futuro; mas, com os partidários de Xi no comando do PCC e do ELP, os instrumentos da repressão estão disponíveis. Contrariamente ao PCUS, o PCC não “se dissolverá como um bando de pardais”. Em jeito de conclusão: uma palavra sobre a democracia na conjuntura que atravessamos. O pluralismo democrático garante, a longo prazo, maiores probabilidades de resolver

tensões sociais e de gerir pacificamente mudanças institucionais. É verdade que, nos nossos conturbados dias, as democracias ocidentais enfrentam problemas domésticos árduos. É igualmente verdade que as nossas democracias carecem de mudanças a fim de garantir que os desafios do momento não se tornem nos coveiros das normas e das instituições liberais. Todavia, a quem subscreve a noção de que o mal-estar nas democracias começou no dia em que Donald Trump entrou na Sala Oval, será útil lembrar que a polarização nos Estados Unidos se acentuou anos antes do atual Presidente ocupar a Casa Branca. A sua eleição é uma consequência e não uma causa dessa mesma polarização. A tendência no sentido da tribalização política, impulsionada em grande parte pelos media e pelas redes sociais, apenas se intensificou com Trump. Na Europa, a mesma radicalização remonta aos anos 1990. Ainda assim não há razão para supor que as instituições políticas não possam superar esses desafios. Salvaguardando o surgimento dos tais “cisnes negros”, uma perspetiva histórica mais longa, e porventura mais serena, sugere que as instituições euroamericanas são suficientemente robustas para superar testes tão severos se abraçarem o impulso reformista. Mas há uma ressalva: a ascensão da República Popular é acompanhada por um modelo político autoritário alternativo num mundo em que a democracia tem sido a forma dominante de legitimação ideológica e política. O triunfo da revolução democrática no pós-1945 ocorre num mundo efetivamente criado pelos Estados Unidos e pelos seus aliados. Xi Jinping oferece agora uma visão alternativa de governança global à ordem liberal que esses aliados estabeleceram. O “socialismo com características chinesas” parece não ser de aplicação universal; afinal, é-nos dito que se trata de uma via especificamente chinesa. Ou assim parece. Dir-se-á que se um regime autoritário coeso, empregando a vigilância em massa, pode proporcionar prosperidade, então

a especificidade política do regime torna-se irrelevante. O autoritarismo chinês é chinês, mas também é autoritarismo. E o apelo do autoritarismo é tudo menos exclusivo da China. Ora esse despertar para a conclusão de que o autoritarismo funciona, que não é apenas a democracia que proporciona o bem-estar socioeconómico, reúne agora seguidores na Rússia, no Irão e na Turquia, mas também em Budapeste e em outras capitais ocidentais. Esse apelo à fuga da liberdade, esse “medo à liberdade” identificado por Erich Fromm, é, a longo prazo, certamente o problema mais insidioso. 591 . Cf., por exemplo, Lindsay Maizland, “China’s Repression of Uighurs in Xinjiang”, CFR Backgrounder, Council of Foreign Relations, 25 de novembro de 2019, disponível em: https://www.cfr.org/backgrounder/chinas-repressionuighurs-xinjiang e, também, a apresentação do Reuters Investigates, “Tracking China’s Muslim Gulag”, disponível em: https://www.reuters.com/investigates/special-report/muslims-camps-china/. 592 . Cf., Phil C. W. Chan, “China’s Approaches to International Law since the Opium War”, Leiden Journal of International Law, Vol. 27, No. 4, dezembro de 2014, p. 866. 593 . Ver, a este propósito, Dexter Roberts. The Myth of Chinese Capitalism: The Worker, The Factory, and the Future of the World. Nova Iorque: St. Martin’s Press, 2020. 594 . Ver, inter alia, Edward Lucas, “Wolf Warrior Diplomacy: The West Needs a Coordinated Response to China’s Overreach”, CEPA Common Crisis, 11 de maio de 2020, disponível em: https://www.cepa.org/wolf-warrior-diplomacy; Zhiqun Zhu, “Interpreting China’s Wolf-Warrior Diplomacy”, The Diplomat, 15 de maio de 2020, consultado em: https://thediplomat.com/2020/05/interpreting-chinaswolf-warrior-diplomacy/ e Dean Cheng, “Challenging China’s ‘Wolf Warrior’ Diplomats”, The Heritage Foundation Backgrounder, No. 3504, 6 de julho de 2020, disponível em: https://www.heritage.org/sites/default/files/202007/BG3504.pdf. 595 . Ver, Mercy Kuo, “Japan prods firms to leave China, affecting ties with Beijing and Washington”, The Japan Times, 8 de maio de 2020, disponível em: https://www.japantimes.co.jp/news/2020/05/08/national/politicsdiplomacy/tokyo-china-us-relations-business/#.Xrt_Yi2ZMxc. Para uma perspetiva chinesa reproduzida pela agência noticiosa do regime, a Global Times, cf., Liu Zhiqin, “Shifting production out of China would be a big mistake for US, Japanese companies”, Global Times, 13 de abril de 2020, consultado em: https://www.globaltimes.cn/content/1185500.shtml. Não são apenas as empresas japonesas que abandonam a China. Firmas sul-coreanas também consideram abandonar o país, cf., Rajesh Chandramouli, “Korean companies keen to move out of China to India”, The Times of India, 14 de abril de 2020,

disponível em: https://timesofindia.indiatimes.com/business/indiabusiness/korean-companies-keen-to-move-out-of-china-toindia/articleshow/75130387.cms. 596 . Ver, Thibault Larger e Giorgio Leali, “Brussels forges new weapons to shield EU market from China”, Politico, 16 de junho de 2020, disponível em: https://www.politico.eu/article/brussels-eu-china-weapons-shield-market/ e, também, European Commission, “Joint Communication to the European Parliament, the European Council and the Council: EU-China – a Strategic Outlook”, 12 de março de 2019, consultado em: https://ec.europa.eu/commission/sites/beta-political/files/communication-euchina-a-strategic-outlook.pdf. 597 . Por exemplo, Jack Detsch e Robbie Gramer, “The Coronavirus Could Upend Trump’s China Trade Deal”, Foreign Policy, 21 de abril de 2020, consultado em: https://foreignpolicy.com/2020/04/21/coronavirus-trump-china-trade-war/. 598 . Para uma leitura provocativa, eventualmente excessiva, da capacidade da República Popular para resistir a estes desafios, ver, Minxin Pei, “China’s Coming Upheavel: Competition, the Coronavirus, and the Weakness of Xi Jinping”, Foreign Affairs, Vol. 99, No. 3, maio/junho de 2020, pp. 82-55



BIOGRAFIAS DE REFERÊNCIA Bo Xilai Nasce em 1949, em Beijing. Filho de Bo Yibo, um dos Oito Imortais. Estuda na Universidade de Beijing entre 1978 e 1979. Em 1982, obtém um mestrado em jornalismo. Adere ao PCC em 1980 e faz carreira na província de Liaoning. Desempenha responsabilidades no partido e no estado e, em 1993, assume as funções de Presidente da Câmara de Dalian, capital de Liaoning. Em 2001, torna-se Governador de Liaoning. Foi membro do XVI Comité Central do PCC e Ministro do Comércio entre 2004 e 2007. Secretário do PCC do município de Chongqing entre 2007 e 2012. Em 2012, é afastado do Comité Central e do Politburo. Encontra-se em prisão perpétua.   Bo Yibo Nasce em 1908, na província de Shanxi. Adere ao PCC em abril de 1925. Na sequência do “Terror Branco” de 1927, entra na clandestinidade na província de Shanxi. Libertado da prisão, será, entre agosto de 1937 e outubro de 1942, comandante e comissário político durante a luta anti-japonesa. Depois da proclamação da República Popular, é nomeado primeiro secretário do PCC no norte da China e comissário político. Em 1957, é nomeado Vice-Primeiro-Ministro e diretor do Comité Económico do Estado. Perseguido durante a Revolução Cultural, regressa, pela mão de Deng Xiaoping, ao cargo de Vice-Primeiro-Ministro, em julho de 1979. Em maio de 1982, torna-se Conselheiro de Estado. Membro do Politburo, era um dos Oito Imortais. Morre em 2007.  

Chen Boda Nasce em 1904, na província de Fujian. Oriundo de uma família camponesa pobre, adere ao PCC em 1924. Entre 1927 e 1930, estuda na Universidade Sun Yat-sen, em Moscovo. É preso pelo Guomindang quando regressa à China. Chega a Yan’an em 1937 e, até 1941, desempenha o cargo de secretário político de Mao Zedong. Torna-se proeminente durante o Movimento de Retificação de 1942. Entre 1958 e 1970, chefia o Hongqi (Bandeira Vermelha), o órgão teórico do PCC. Um dos principais teóricos do partido, será decisivo na criação do culto da personalidade de Mao. Em 1966, torna-se chefe do Grupo da Revolução Cultural. Em 1970, no Segundo Plenário do IX Comité Central, apoia Lin Biao contra Zhang Chunqiao, uma manobra que leva Mao a descrevê-lo como “o principal criador do caos”. Dez anos depois, é acusado de ter pertencido aos grupos de Lin Biao e Jiang Qing. Julgado em 1981, é condenado a 18 anos de prisão, mas é libertado em 1988. Morre em 1989.   Chen Duxiu Nasce em 1879, na província de Anhui. Em 1902, parte para estudar em Tóquio. Regressa à China in 1903 e participa na fundação da revista oposicionista Guomin Riribao, em Xangai. Em 1906, regressa ao Japão para estudar na Universidade Waseda. Permanece menos de um ano em terras nipónicas, onde se recusa a aderir ao partido de Sun Yat-sen. Regressa à China em 1908. Proclamada a república, participa, em 1913, na revolução contra Yuan Shikai. Foge para Xangai e, um ano depois, exila-se no Japão. Regressa à China em 1915, onde funda a revista Qingnian, que posteriormente muda de nome para Xinqingnian (Nova Juventude), que conta com a colaboração de Mao Zedong. Em 1917, é

nomeado dean da Universidade de Beijing, onde reúne intelectuais cujo “novo pensamento” e “nova literatura” dominam o Movimento Quatro de Maio. É obrigado a demitir-se da universidade e preso entre junho e setembro de 1919. Prepara a fundação do PCC, que ocorre em julho de 1921. É eleito como primeiro Secretário-Geral do partido, cargo que desempenha ao longo de sete anos. Em 1927, é culpabilizado pelo Comintern pelo colapso da Primeira Frente Unida e afastado da liderança do PCC. Em novembro de 1929 é expulso do partido e aproxima-se das teses trotskistas. Preso em outubro de 1932, é julgado e, em 1933, condenado a 15 anos de cadeia pelo governo Nacionalista. É libertado em 1937, após a eclosão da Guerra Sino-Japonesa. Morre a 27 de maio de 1942.   Chen Yun Nasce em 1905, em Xangai. Ativista sindical em finais dos anos de 1920, participa na Longa Marcha. Regressa a Yan’an em 1937, depois de uma breve estadia em Moscovo. Apenas com o ensino primário completo, passa a ser um dos especialistas em economia do PCC. Depois de 1949, ocupa vários cargos no estado e no partido, incluindo VicePrimeiro-Ministro e Ministro da Indústria Pesada. Em 1957, é um dos poucos líderes partidários que critica o Grande Salto Em Frente e é afastado dos cargos. Regressa em 1961 para liderar o grupo responsável pela recuperação económica. Condenado por ser um “seguidor do capitalismo” durante a Revolução Cultural, é removido de todos os cargos menos o do Comité Central. Com o regresso de Deng Xiaoping ao poder, volta à cúpula. Adere à ala conservadora e ajuda a obstaculizar as reformas das décadas de 1980 e 1990. Membro do Comité Central entre 1931 e

1987, e do Politburo durante mais de 40 anos, reforma-se em 1987, mas continua a exercer uma forte influência na política económica. Morre em 1995.   Chiang Kai-shek Nasce em 1887, na província de Zhejiang. Frequenta a Academia Militar de Baoding, e, entre 1907 e 1911, estuda no Japão. Integra o Exército Japonês, altura em que se converte ao republicanismo. Regressa à China em 1911, e alistase nas fileiras do Exército da república para combater Yuan Shikai. Junta-se, em 1918, ao Guomindang. Em 1923, durante quatro meses, visita a a União Soviética para estudar as instituições do país e o Exército Vermelho. Regressa à China para assumir o comando da Academia Militar de Whampoa. Após a morte de Sun, em 1925, com o apoio dos militares de Whampoa, torna-se líder do Guomindang. Inicia a Expedição do Norte e, em 1927, entra em rutura com o PCC e lança o “Terror Branco”. Estabelece, em Nanjing, um novo governo Nacionalista. Converte-se, em 1930, ao cristianismo. Derrotado na guerra civil, foge para Taiwan. Homem-forte do regime da Formosa até à sua morte, em 1975.   Deng Xiaoping Nasce em 1904, na província de Sichuan. Em 1920, parte para a França, onde trabalha e estuda. É nesta altura que se afirma marxistaleninista e, em 1924, adere ao PCC. Em 1926, estuda na Universidade Sun Yat-sen, em Moscovo. Regressa à China em 1927. Alista-se no Exército Vermelho chinês durante a primeira guerra civil contra o Guomindang. Em 1934, durante a Longa Marcha, é Secretário-Geral do Comité Central do PCC. Nos anos de 1930 e 1940, participa na Guerra de Resistência

contra o Japão e na segunda guerra civil contra o Guomindang. É nomeado para vários cargos depois de 1949. Em 1957, torna-se Secretário-Geral do PCC e, com o então Presidente Liu Shaoqi, dirige a República Popular. Crítico do Grande Salto em Frente, Deng (e Liu), no início dos anos de 1960, conduzem o programa de reformas económicas. É purgado durante a Revolução Cultural, e enviado para Jiangxi para trabalhar no campo. Zhou Enlai reabilita-o em 1974, e atribui-lhe o cargo de primeiro Vice-PrimeiroMinistro. Depois da morte de Zhou, em janeiro de 1976, é purgado pelos maoístas. Em setembro de 1976, derrota o sucessor indicado por Mao, Hua Guofeng. Inicia a “reforma e abertura”, as “Quatro Modernizações” e abraça a “economia de mercado socialista”. Em junho de 1989, ordena o uso da força contra os manifestantes da Praça Tiananmen. Na Primavera de 1992, faz a sua “viagem ao sul”, por Cantão e Shenzhen, para relançar as reformas económicas paralisadas desde 1989. Morre a 19 de fevereiro de 1997.   Guo Boxiong Nasce em 1942, na província de Shanxi. Adere ao PCC em março de 1963. Alista-se no Exército de Libertação Popular em agosto de 1961. Formado pela Academia Militar do ELP, chega a general. Foi Chefe do Estado Maior do 19º Exército entre 1983 e 1985. Na segunda parte dos anos de 1990, é Vice-Comandante do Comando da Área de Beijing e Comandante da Área Militar de Lanzhou. Membro do Comité Central e da Comissão Militar Central do PCC em 1999. Em 2015 é expulso do PCC por corrupção.   Hu Jintao Nasce em 1942, na província de Anhui.

Adere ao PCC em abril de 1964. No mesmo ano, forma-se em engenharia pela Universidade Tsinghua. Na década de 1970, exerce cargos na província de Gansu e, mais tarde, no Tibete. Vive em Beijing nos anos 1990, tornando-se presidente da Escola Central do PCC. Exerce os cargos de Secretário-Geral do PCC, membro do Comité Permanente do Politburo, presidente da Comissão Militar Central e Presidente da República Popular. Em 2012, abandona a chefia do partido e do estado, substituído por Xi Jinping.   Hu Yaobang Nasce em novembro de 1915, na província de Hunan. Nascido numa família de camponeses pobres, junta-se aos comunistas aos 14 anos de idade. Adere ao PCC em 1933. Veterano da Longa Marcha, torna-se num dos colaboradores mais próximos de Deng Xiaoping. Comissário Político, sob o comando de Deng no Segundo Exército durante a guerra civil de 1947 a 1949. In 1952, segue Deng para Beijing, onde, entre 1952 e 1966, chefia a Liga da Juventude Comunista da China. Durante a Revolução Cultural é, juntamente com Deng, purgado. Reabilitado em 1977, torna-se diretor do departamento responsável pela organização do partido. Com Deng na liderança do país, torna-se chefe do departamento de propaganda e membro do Politburo. Em 1980, é nomeado Secretário-Geral do PCC. Em junho de 1981, substitui Hua Guofeng na presidência do PCC, cargo abolido no Congresso de 1982. Entre 1980 e 1987, é Secretário-Geral do PCC. Em 1987, sob pressão da ala conservadora, demitese. Permanece como membro do Comité Permanente do Politburo. Morre a 15 de abril de 1989. Hua Guofeng

Nasce

  em

1920

(ou

1921),

na

província de Shanxi. Em finais dos anos de 1930, junta-se à guerrilha anti-japonesa. Em 1949, integra as fileiras do Exército de Libertação Popular na província de Hunan. Em Xiangtan, distrito nativo de Mao Zedong, supervisiona vários projetos (incluindo um projeto de irrigação em Shaoshan, a aldeia natal de Mao). Chama a atenção de Mao. No início da década de 1970, é nomeado primeiro secretário do Comité Provincial do PCC em Hunan e Comissário Político da região militar de Cantão. Ingressa no Comité Central do Partido. Em 1971, é nomeado VicePrimeiro-Ministro da República Popular. Eleito para o Politburo em 1973, torna-se Ministro da Segurança Pública em 1975. Indicado por Mao como o seu sucessor oficial. Em outubro de 1976, um mês após a morte de Mao, ordena a prisão do Grupo dos Quatro. Perde o poder para Deng Xiaoping e seus aliados: Hu Yaobang substitui-o como Secretário-Geral do Partido, Zhao Ziyang sucedeu-o como PrimeiroMinistro, e Deng retirou-lhe a chefia da Comissão Militar Central do PCC. Manteve-se apenas como membro do Comité Central. Morre em agosto de 2008.   Imperador Kangxi Nasce em1654, em Beijing. Em fevereiro de 1661, aos seis anos de idade, torna-se imperador. Começa, de facto, a governar aos quinze anos. Em 1681, entra com o seu exército na cidade de Kunming, e assim salva a dinastia. Em 1683, incorpora Taiwan no império. Em 1689, assina o Tratado de Nerchinsk. Incorpora a Mongólia Exterior no império e, em 1720, o Tibete. Abre quatro portos, incluindo Cantão, aos navios estrangeiros. Reina durante um “período dourado” de 61 anos. Morre em 1722.

  Imperador Qianlong Nasce em 1711, em Beijing. Sobe ao trono em 18 de outubro de 1735, aos 24 anos. No seu reinado, a China atinge os seus limites territoriais. Entre 1755 e 1760, lidera sucessivas campanhas militares que levam à incorporação de Xinjiang no império. Derrota a revolta no Tibete, em 1752, e consolida o poder de Beijing no território. Em 1748, lança campanhas militares contra as tribos de Yunnan e, em 1769, contra as tribos da Birmânia. Ambas terminaram em fracasso. Em 1776, uma nova expedição esmaga os rebeldes de Yunnan. Em 1787, põe fim à rebelião de Taiwan. Em 1788 e 1789, sofre pesadas derrotas no Vietname. O elevadíssimo custo destas expedições esgota o tesouro. Em setembro de 1793, recebe a “missão Macartney”. Depois de ter reinado durante 60 anos, abdica em fevereiro de 1796. Morre em fevereiro de 1799.   Imperador Xuantong (Pu Yi) Nasce em 1906, em Beijing. Em novembro de 1908, com três anos de idade, torna-se imperador. Em 12 de fevereiro de 1912, abdica. Em 1924, deixa Beijing para viver na concessão japonesa de Tianjin. Entre 1934 e 1945, é imperador do estado fantoche do Manchukuo. Em agosto de 1945, é preso pelos soviéticos. Em 1950, regressa à China para ser julgado como criminoso de guerra. Em 1959, volta a viver em Beijing, como mecânico. Publica a autobiografia De Imperador a Cidadão. Morre em outubro de 1967.   Jiang Qing Nasce em 1914, na província de Shandong. Em 1929, junta-se a uma trupe de teatro. Em 1933, é presa por pertencer a uma organização comunista. Junta-se às forças comunistas em Yan’an

e passa a usar o nome Jiang Qing. Casa com Mao em 1939, mas a cúpula do partido obriga-a a abandonar a política durante os próximos 20 anos. Em 1963, torna-se impulsionadora do movimento de reforma cultural. Em 1966, junta-se aos Guardas Vermelhos e assume-se como uma das mais importantes líderes da Revolução Cultural. Chefia o Grupo dos Quatro que contesta o poder após a morte de Mao. Em 1976, é presa e, em 1977, expulsa do PCC. Em 1980 e 1981, é julgada por ser membro do Grupo dos Quatro e acusada de fomentar a agitação civil. Recusa confessar a sua culpa e recebe uma pena de morte suspensa, comutada para prisão perpétua em 1983. Suicida-se 14 de maio de 1991.   Jiang Zemin Nasce em 1926, na província de Jiangsu. Em 1943, participa em movimentos estudantis tutelados pelo PCC. Em 1946, ingressa no partido. Em 1947, forma-se no Departamento de Maquinaria Elétrica da Universidade Jiaotong de Xangai. Nas décadas de 1950 e 1960, ocupa uma série de cargos no setor industrial de Xangai, seguido por um ano de formação em Moscovo. Regressado da URSS, ocupa cargos de responsabilidade em Wuhan e Beijing, onde se torna Ministro da Indústria Eletrónica. Em meados da década de 1980, volta a Xangai como presidente da câmara da cidade e Secretário do Comité Municipal do PCC de Xangai. Membro do Comité Permanente do Politburo. Em 1989, é eleito Secretário-Geral do PCC e presidente do Comité Militar Central do PCC. Em 1993, é escolhido como Presidente da República Popular. Em 2002, abandona o cargo de SecretárioGeral. Renuncia ao cargo de presidente da Comissão Militar Central do PCC em setembro de 2004.

  Kang Sheng Nasce em 1898, na província de Shandong. Oriundo de uma família de proprietários, ingressa no PCC em 1925. Em 1927, participa na revolta dos trabalhadores de Xangai, mas escapa ao “Terror Banco” de Chiang Kai-shek. Em 1928, é escolhido para integrar o Comité Central e, em 1933, é enviado para Moscovo para estudar com o NKVD. Regressa a Yan’an em 1937, onde dirige, até 1946, o Departamento de Assuntos Sociais, a polícia política do Comité Central. Amigo íntimo de Jiang Qing, apresenta-a a Mao. Em Yan’an, como chefe da polícia política, desempenha um papel importante durante o Movimento de Retificação. Na década de 1950, é um apoiante das políticas maoistas e mentor do culto da personalidade de Mao. No início dos anos 1960, torna-se membro do Secretariado de Deng Xiaoping. Em julho de 1966, é “conselheiro” da Revolução Cultural. Eleito para o Comité Central e membro do Comité Permanente do Politburo. Morre em 1975. É expulso postumamente do PCC em 1980.   Li Dazhao Nasce em 1889, na província de Hebei. A partir de 1913, no Japão, estuda a filosofia marxista. Três anos depois, regressa à China e envolve-se com o Movimento da Nova Cultura. Em 1918, torna-se bibliotecário-chefe e professor de economia. Logo após a Revolução de Outubro de 1917, na Rússia, é um dos primeiros intelectuais a apoiar os bolcheviques. Escreve para a revista “Nova Juventude”, de Chen Duxiu. Em 1919, é um dos líderes do Movimento Quatro de Maio e estabelece o grupo dirigente comunista de Beijing. As suas obras influenciam Mao Zedong e Zhou Enlai. Em 1921, é um dos fundadores do PCC. Em nome do PCC, negoceia a

Primeira Frente Unida com Sun Yat-sen. Em 1924, é eleito para o Comité Executivo Central do Guomindang. Em 1927, aos 38 anos de idade, é capturado e executado por ordem do senhor da guerra Zhang Zuolin.   Li Peng Nasce em 1928, na província de Sichuan. Adere ao PCC em 1945. Estuda no Instituto Yan’an de Ciências Naturais e na União Soviética. Engenheiro de formação, inicia a sua carreira na Usina Hidrelétrica de Fengman quando regressa à China. Ocupa diversos cargos de gestão em outras usinas e de liderança no PCC. Durante a Revolução Cultural, ocupa cargos de liderança no partido e de gestão na Administração de Energia de Beijing. Em 1977, tornase Ministro da Indústria Elétrica. Membro do Comité Permanente do Politburo. Em março de 1988, é nomeado Primeiro-Ministro, cargo que ocupa durante 10 anos. Destaca-se por ser o porta-voz da ala mais dura do regime e é um dos dirigentes que exige o uso da força contra os manifestantes de Tiananmen. Morre a 22 de junho de 2019.   Lin Biao Nasce em 1907, na província de Hubei. Em 1925, adere à Liga da Juventude Comunista da China. Estuda na Academia Militar de Whampoa, onde conhece Zhou Enlai. No comando do Grupo do Primeiro Exército Vermelho, defende o soviete de Jiangxi contra Chiang Kai-shek. Em Yan’an, chefia a Universidade Operária-Camponesa do Exército Vermelho. É ferido em combate contra as tropas japonesas e recebe tratamento médico em Moscovo durante os anos de 1938 a 1942. Destaca-se na guerra civil de 1946 a 1949 pela sua habilidade estratégica. Responsável pela derrota dos exércitos

do Guomindang na Manchúria e por “libertar” Beijing e Tianjin. Em 1955, é nomeado marechal do Exército de Libertação Popular. Em 1958, torna-se vicepresidente do Comité Central. Após o Plenário de Lushan, em 1959, substitui Peng Dehuai como Ministro da Defesa. Em 1969, Mao designa-o como seu sucessor, mas rapidamente o abandona. É acusado de chefiar uma tentativa de golpe contra Mao. Aparentemente em fuga para a União Soviética, o seu avião despenha-se na Mongólia, em 1971.   Liu Shaoqi Nasce em 1898, na província de Hunan. Oriundo de uma família de camponeses ricos. Em 1921, ingressa no PCC e vai para Moscovo, onde estuda na Universidade Comunista dos Trabalhadores do Oriente. Em 1922, regressa à China para organizar o movimento operário. Em 1925, torna-se o primeiro presidente da Federação do Trabalho de Toda a China. Em 1927, é eleito para o Comité Central, onde permanece até 1968. Em 1931, é eleito membro do Politburo. Depois de 1949, serve na maioria dos órgãos do governo central. Em ١٩٥٩, substitui Mao como Presidente da República Popular. Em 1966, é um dos principais alvos da Revolução Cultural. Em outubro de 1966, faz a sua primeira ‘autocrítica’, rejeitada por Mao. Um mês depois, é acusado de ser o “líder supremo de um gangue negro”. Em janeiro de 1967, é rotulado como o “Khrushchev da China” e “o seguidor número 1 do capitalismo”. Em outubro de 1968, é oficialmente denunciado como “um renegado, traidor, lacaio do imperialismo, do revisionismo moderno e dos reacionários do Guomindang”. É afastado de todos os cargos e expulso do PCC. Morre na prisão de Kaifen em novembro de 1969 quando Mao lhe recusa

tratamento médico. Em 1980, é reabilitado.   Oito Imortais Deng Xiaoping, Chen Yun, Li Xiannian, Peng Zhen, Yang Shangkun, Bo Yibo, Wang Zhen, Song Renqiong.   Peng Dehuai Nasce em 1898, em Hunan. Alista-se no exército de Hunan e, durante a Expedição do Norte, assume o comando de um regimento. Em 1927, com a falência da Frente Unida, junta-se à guerrilha comunista. Em 1928, adere ao PCC. Em 1931, é nomeado para o Comité Central do soviete de Jiangxi. Participa na Longa Marcha. Em 1945, entra para o Comité Central e é eleito membro alternativo do Politburo. Declarada a República Popular, assume vários cargos governamentais. Em outubro de 1950, é nomeado Comandante do Exército Popular Voluntário, que vê ombate na Coreia. Em 1954, tornase ministro da Defesa, Vice-Primeiro-Ministro e vicepresidente Mo Conselho de Defesa Nacional, onde advoga a profissionalização da Marinha. Em 1955, recebe o bastão de marechal. Em setembro de 1959, é afastado de todos os cargos depois de criticar Mao. Purgado do PCC e preso, permanece no Politburo até 1965. Morre em novembro de 1974. Exonerado postumamente, em 1978.   Peng Zhen Nasce em 1902, na província de Shanxi. Oriundo de uma família de camponeses, frequenta o ensino médio. Na clandestinidade, ingressa na Liga da Juventude Comunista da China. Em 1923, torna-se membro do PCC. Em 1929, é preso e cumpre seis anos por organizar atividades subversivas. Lidera, no norte da China, a resistência à invasão japonesa e

junta-se a Mao Zedong em Yan’an. Em 1949, é nomeado o primeiro chefe do partido em Beijing e, dois anos depois, Presidente da Câmara da cidade. Com o Grande Salto Em Frente, alia-se a Deng Xiaoping contra Mao Zedong. Em 1966, é enviado para o campo, o primeiro alto dirigente a ser vitimizado pela Revolução Cultural. Em 1978, volta do exílio interno para colaborar com Deng Xiaoping. Em 1983, é nomeado presidente do Congresso Nacional do Povo. Reforma-se em 1988, mas permanece influente. Apoia os afastamentos de Hu Yaobang e de Zhao Ziyang, e a supressão das manifestações de Tiananmen. Morre em 1997.   Sun Yat-sen Nasce em 1866, na província de Guangdong. Oriundo de uma família de agricultores pobres. Em 1879, junta-se ao irmão em Honolulu, Havaí, onde estuda numa escola missionária britânica durante três anos e numa escola americana, Oahu College, durante um ano. Regressa à China em 1883. Aceita o cristianismo e é batizado por um missionário americano. Em 1886, matricula-se na Escola Médica do Hospital de Guangzhou. Muda-se para a Faculdade de Medicina Chinesa em Hong Kong, onde se forma em 1892. Em 1894, regressa ao Havaí, onde desempenha atividade política. Em 1895, planeia um levantamento em Guangzhou, que fracassa. Inicia um exílio de 16 anos no exterior. Em 1904, estabelece várias células revolucionárias na Europa. Em 1905, em Tóquio, torna-se líder de uma coligação revolucionária, a Liga Unida (Tongmenghui). Em 1907, é expulso do Japão. Em 1909 e 1910, faz oposição às autoridades imperiais na Europa e nos Estados Unidos. Em 1911, regressa à China e é eleito Primeiro presidente provisório da república. Em 12

de fevereiro de 1912, o imperador abdica; no dia seguinte, renuncia à presidência a favor de Yuan Shikai. Em setembro de 1912, Yuan nomeia-o diretorgeral do desenvolvimento ferroviário. Em fevereiro de 1923, declara-se generalíssimo. Em 1924, reorganiza o Partido Nacionalista (Guomindang) em moldes leninistas. Morre em 1925.   Xi Jinping Nasce em 1953, na província de Shanxi. Em 1971, torna-se membro da Liga da Juventude Comunista da China. Adere ao PCC em 1974. Ocupa cargos no Comité do PCC da cidade de Fuzhou. Em 1990, torna-se presidente da escola do partido de Fuzhou. Em 1999, é eleito Vice-Governador da província de Fujian e, um ano depois, Governador. Em 2002, assume altos cargos no governo e no partido na província de Zhejiang. Em 2007, é eleito membro do Comité Permanente do Politburo. Em 2008, é nomeado Vice-Presidente da República Popular da China. Em 2010, torna-se vice-presidente da Comissão Militar Central do PCC e vice-presidente da Comissão Militar Central da RPC. Em 2012, é escolhido como Secretário-Geral do PCC, membro do Comité Permanente do Politburo e presidente da Comissão Militar Central do PCC. Em 2013, é eleito Presidente da Comissão Militar Central da RPC e presidente da República Popular da china.   Yuan Shikai Nasce em 1859, na província de Henan. Inicia a carreira militar na brigada Qing do exército de Anhui, enviada para a Coreia em 1882 para evitar a invasão japonesa. Em 1885, é nomeado comissário chinês em Seul. Com a destruição da marinha e do exército da China pelo Japão na Guerra Sino-Japonesa de 1894-95, reorganiza o exército. Em 1900, a divisão

militar sob o seu comando é a única que sobrevive à Rebelião dos Boxers. Em 1901, inicia a modernização militar. Em 1912, é eleito Presidente da China republicana. Em 1913, enfrenta uma revolta e pôe o fim à democracia parlamentar na China. Declara-se imperador de uma nova dinastia. Em março de 1916, é forçado a abolir o novo império. Morre a 6 de junho de 1916.   Zhao Ziyang Nasce em 1919, na província de Henan. Filho de proprietários ricos, ingressa no PCC em 1938. Na década de 1950, envolve-se nas campanhas de reforma agrária na província de Guangdong. É perseguido durante a Revolução Cultural. Em 1973, é reabilitado por Zhou Enlai. Regressa da Mongólia Interior para assumir responsabilidades em Guangdong. Em 1973, é eleito membro do Comité Central. Em 1976, é transferido para Sichuan, a província natal de Deng, onde desenvolve o “sistema de responsabilidade” na agricultura. Em 1978, são aprovadas as reformas rurais de Deng Xiaoping, inspiradas pelo trabalho realizado por Zhao em Sichuan. Em 1980, é nomeado Primeiro-Ministro. Em 1989, é acusado de divisionismo. No Verão de 1989, é afastado do cargo e colocado em prisão domiciliar. Morre em 2005.   Zhou Enlai Nasce em 1898, na província de Jiangsu. Desempenha um papel importante no movimento estudantil. Em 1919, a sua participação em manifestações estudantis durante o Movimento Quatro de Maio leva-o à prisão. Libertado, junta-se a um grupo de jovens intelectuais que partem para a França como estudantes trabalhadores. Em 1922, adere ao PCC. Em França, conhece Deng Xiaoping. Na

Europa, cria vários células do PCC. Em 1924, regressa à China, e torna-se diretor do Departamento Político da Academia Militar de Whampoa, chefiada por Chiang Kai-shek. Em 1926-27, durante a Expedição do Norte, lidera o levantamento armado dos trabalhadores de Xangai, suprimido durante o “Terror Branco”. Abandona Xangai e junta-se a Mao em Jinggangshan. Em 1934-35, participa na Longa Marcha. Em Yan’an, torna-se responsável pelos contatos externos do PCC. Em 1949, é nomeado Primeiro-Ministro e Ministro das Relações Exteriores. Resiste ao radicalismo maoista do Grande Salto Em Frente e da Revolução Cultural. Elemento chave com normalização das relações com os Estados Unidos, que culmina na visita de 1972 de Richard Nixon. Morre de cancro em janeiro de 1976, depois de Mao lhe recusar tratamento médico.

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ÍNDICE LISTA DE ABREVIATURAS E ACRÓNIMOS 6 Capítulo I – A HISTÓRIA COMO PRESENTE 23 Um império celestial 27 As guerras do ópio 33 Sol nascente imperial 43 CAPÍTULO II – HASTEEMOS A BANDEIRA VERMELHA 52 Um saco de batatas 55 Na sombra do Comintern 61 Na mão do Grande Irmão 68 O Oriente é vermelho 77 Caos total debaixo dos céus, excelente 88 CAPÍTULO III – DENG ATRAVESSA O RIO 97 A sucessão do Sol Vermelho 100 Thermidor de Jiangxi 106 As mãos esquerda e direita 114 O grande irmão herege 126 A revanche dos duros 137 CAPÍTULO IV – UM NOVO TIMONEIRO 146 Eu tenho um sonho 150 Ser rico é glorioso 160 Caminhar pela Faixa e Rota 173 CAPÍTULO V – A ILUSÃO AMERICANA 187 Concorrentes, Rivais, Inimigos 189 O Globalizador-Chefe 203 Rollback de Trump 216 CAPÍTULO VI – TUCÍDIDES REDUX 226 Xi, o Revisionista 229 Os militares e os renegados 243 Um mar de problemas infinitos 251 Redesenhar a ordem asiática 272 A Comunidade Democrática e o Quad 283 CONCLUSÃO 297 BIOGRAFIAS DE REFERÊNCIA 308 Bo Xilai 308 Bo Yibo 308 Chen Boda 308 Chen Duxiu 309 Chen Yun 310 Chiang Kai-shek 310 Deng Xiaoping 311

Guo Boxiong 312 Hu Jintao 312 Hu Yaobang 312 Hua Guofeng 313 Imperador Kangxi 313 Imperador Qianlong 314 Imperador Xuantong (Pu Yi) 314 Jiang Qing 314 Jiang Zemin 315 Kang Sheng 315 Li Dazhao 316 Li Peng 316 Lin Biao 317 Liu Shaoqi 317 Oito Imortais 318 Peng Dehuai 318 Peng Zhen 319 Sun Yat-sen 319 Xi Jinping 320 Yuan Shikai 321 Zhao Ziyang 321 Zhou Enlai 321