Das cores do silêncio. Os significados da liberdade no Sudeste escravita - Brasil, século XIX

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Das cores do silêncio foi primeiro lugar do Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa no ano de 1993 e foi publicado pelo Arquivo Nacional em 1995, com uma segunda edição em 1998. O livro lançou novo olhar sobre a trama e o drama da Abolição e do Pós-Abolição, tendo por foco as aspirações de liberdade da última geração de africanos escravizados nas lavouras cafeeiras do Sudeste e de seus descendentes diretos. As fronteiras fluidas entre escravidão e liberdade, exa­ minadas quase ao microscópio no trabalho, iluminam um processo específico de racialização pelo avesso, associado às primeiras definições do cidadão brasi­ leiro como portador de direitos civis e políticos. Das cores do silêncio foi pioneiro em destacar o silêncio na documentação pública sobre as cores dos brasileiros livres afrodescendentes, prevalecente desde meados do século XIX. A nova edição vem acrescida de um posfácio, que busca refletir sobre a atualidade do livro para as discussões em curso hoje, no Brasil, sobre es­ quecimento, silêncio e memória da escravidão.

www.editora.unicamp.br

Das cores do silêncio

a Universidade Estadual de Campinas Reitor Marcelo Knobel Coordenadora Geral da Universidade Teresa Dib Zambon Atvars Fí

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Conselho Editorial Presidente Márcia Abreu

Moura Delfim Maciel - Euclides de Mesquita Neto Márcio Barreto ~ Marcos Stefani Maria Inês Petrucci Rosa - Osvaldo Novais de Oliveira Jr. Rodrigo Lanna Franco da Silveira - Vera Nisaka Solferini

Ana Carolina

de

Hebe Mattos

Das cores do silêncio OS SIGNIFICADOS DA LIBERDADE

NO SUDESTE ESCRAVISTA — BRASIL, SÉCULO XIX

EDIÇÃO REVISTA

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELO SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP DIRETORIA DE TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO

C2.79CI

Hebe Mattos, Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista (Brasil, século XIX) / Hebe Mattos. - 3a ed. rcv. - Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013.

1. Escravidão - Brasil, Sudeste - Séc. XIX. 2. Liberdade - Aspectos sociais. 3. Racismo - Brasil, Sudeste - Séc. XIX. I. Título. CDD3OI.4493O9815

323.44 301.45109815

ISBN 978-85-268-IO29-7

índices para catálogo sistemático: 1. Escravidão - Brasil, Sudeste - Séc. XIX 2. Liberdade - Aspectos sociais 3. Racismo - Brasil, Sudeste - Séc. XIX

301.449309815 323-44 301.45109815

Copyright © by Hebe Mattos Copyright © 2013 by Editora da Unicamp

1* edição, 1995 Arquivo Nacional 2a edição, 1995 Editora Nova Fronteira 2a reimpressão, 2020

As opiniões, hipóteses, conclusões e recomendações expressas neste material são de responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a visão da Editora da Unicamp. Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, dos detentores dos direitos.

Printed in Brazil. Foi feito o depósito legal.

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A Sérgio e André

Agradecimentos

Primeiro lugar no Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa 1993, uma pri­ meira edição deste livro foi publicada pelo Arquivo Nacional, em 1995. Nun­ ca é demais ressaltar o papel desta iniciativa para trazer a público toda uma geração de historiadores. Ainda antes de concorrer ao Prêmio, uma primeira versão deste texto foi defendida como tese de doutoramento em história na Universidade Federal Fluminense. Agradeço à minha orientadora, Maria Yedda Linhares — ami­ ga e eterna mestra —, e as diversas sugestões da banca examinadora da tese, formada pelos professores Ciro Cardoso, Angela de Castro Gomes, Stuart Schwartz e Gilberto Velho. Diversos colegas de ofício contribuíram para este livro com leituras e discussões das primeiras versões de suas partes, durante o longo desenvolvi­ mento da pesquisa. Correndo o risco de pecar por omissão, não posso deixar de citar, no antigo Laboratório de História Social das Américas da UFF, a importante contribuição de Sheila de Castro Faria, João Luís Fragoso, Ana Maria Lugão Rios, Manolo Florentino, Nancy Naro e Martha Abreu e, na linha de pesquisa sobre escravidão e trabalho livre da Unicamp, as proveito­ sas discussões com Robert Slenes, Sidney Chalhoub e Silvia Lara. Slenes e Chalhoub se associaram a mim no projeto de trazer a público esta terceira edição, o que me deixou imensamente feliz. Diversos alunos me auxiliaram no levantamento dos dados. Agradeço a todos, mas especialmente a Keila Grinberg, Robson Martins e Ana Tereza Pinto Lima, hoje meus colegas de ofício, sem os quais este livro não teria sido

Sumário

Apresentação...........................................................................................................

15

Introdução...............................................................................................................

27

PRIMEIRA PARTE

Uma experiência de liberdade 1 - Uma experiência de liberdade.................................................................... 39 2 - Um homem móvel......................................................................................... 49 3 - Laços de família.............................................................................................. 65 4 - A potência da propriedade......................................................................... 83 5 - A cor inexistente............................................................................................ 101 SEGUNDA PARTE

Sob 0 jugo do cativeiro 1 - Sob 0 jugo do cativeiro.................................................................................. 2 - Conflito e coesão na comunidade escrava.............................................. 3 - Uma relação perigosa................................................................................... 4 - Sobre o poder moral dos senhores..............................................................

115 131 157 177

TERCEIRA PARTE

O fantasma da desordem

1 - O fantasma da desordem............................................................................. 2 - Os terríveis paulistas.................................................................................... 3 - A generosidade dos senhores....................................................................... 4 - Expectativas sobre a liberdade.................................................................. 5 - A frustração senhorial..................................................................................

211 221 235 245 259

QUARTA PARTE

“Nós tudo hoje é cidadão”

1 ~ “Nós tudo hoje é cidadão”.......................................................................... 2 - Negro não há mais não? (I)....................................................................... 3 - Negro não há mais não? (II)..................................................................... 4 - Negro não há mais não? (III).................................................................... 5 - A outra história.............................................................................................

281 297 311 325 339

Conclusão.............................................................................................................. 359

Posfácio................................................................................................................... 365 Bibliografia...........................................................................................................

371

Gráficos

1 - Censo de 1872: população por cor e condição..................................................

69

2 - Inventários: lavradores segundo o estado civil.................................................

69

3 - Inventários: lavradores segundo o número de filhos........................................

70

4 - Campos: valor médio dos invent. segundo a idade do primeiro filho..........

73

5 - Baixada: valor médio dos invent. segundo a idade do primeiro filho...........

74

6 - Inventários: Campos (acesso à terra)................................................................

92

7 - Inventários: Baixada (acesso à terra).................................................................. 92 8 - Filhos adultos segundo o estado civil................................................................

96

9 - Filhos adultos (homens)....................................................................................

96

10 - Filhos adultos (mulheres)................................................................................

97

11 - Inventários: Campos (acesso ao escravo)......................................................... 102 12 - Inventários: Baixada (acesso ao escravo)......................................................... 103

13 - Processos: testemunhas livres segundo a profissão.......................................... 104

14 - Processos: testemunhas livres segundo a cor................................................... 105 15 - Ações de liberdade: número por período........................................................ 192

16 - Ações de liberdade: sentenças por período..................................................... 192 17 - Ações de liberdade: distribuição regional por período................................. 192 18 - Ações de liberdade: tipo de alegação por período........................................ 193

19 - Ações de liberdade: tipo de alegação por região (até 1831)........................... 193 20 - Ações de liberdade: tipo de alegação por região (1832-1850)........................ 193

21 - Ações de liberdade: alegações por região (1851-1870)..................................... 194 22 - Ações de liberdade: Sudeste............................................................................. 194

23 - Ações de liberdade: relações familiares nos libelos iniciais............................ 194 24 - Ações de liberdade: escravos segundo a origem............................................. 195

DAS CORES DO SILÊNCIO

25 - Ações de liberdade: escravos segundo o sexo.................................................. 195 26 - Freguesia de Cachoeiras do Muriaé: total dos registros civis (1891-1901)........................................................................................................... 299

27 - Freguesia de Cachoeiras do Muriaé: óbitos (1891-1901)................................ 301

28 - Freguesia de Cachoeiras do Muriaé: residentes em fazendas nos registros de óbitos..................................................................................................... 301 29 - Freguesia de Cachoeiras do Muriaé: profissões nos registros de óbitos.................................................................................................................... 302

30 - Freguesia de Cachoeiras do Muriaé: cor nos registros de óbitos (%)........... 305 31 - Freguesia de Cachoeiras do Muriaé: cor nos registros de nascimentos (%)....................................................................................................... 306 32 - Freguesia de Cachoeiras do Muriaé: profissão dos pais nos registros de nascimentos (1)......................................................................................................306

33 - Freguesia de Cachoeiras do Muriaé: profissão dos pais nos registros de nascimentos (2)..................................................................................................... 307 34 - Freguesia de Cachoeiras do Muriaé: crianças negras nos registros de nascimentos......................................................... 307 35 - Freguesia de Cachoeiras do Muriaé: crianças pardas nos registros de nascimentos.......................................................... 307 36 -Freguesia de Cachoeiras do Muriaé: pais lavradores nos registros de nascimentos (1)......................................................308

37 Freguesia de Cachoeiras do Muriaé: pais lavradores nos registros de nascimentos (2)......................

308

38 - Freguesia de São Gonçalo: população por cor............................................... 312 39 - Freguesia de São Gonçalo: profissões nos registros de óbitos....................... 313 40 - Freguesia de São Gonçalo: local de residência nos registros de óbitos.................................................................................................................... 314

41 - Freguesia de São Gonçalo: adultos em fazendas, por cor, nos registros de óbitos..................................................................................................... 314 42 - Freguesia de São Gonçalo: crianças negras nos registros de nascimentos............................................................................................................... 317 43 - Freguesia de São Gonçalo: crianças pardas nos registros de nascimentos............................................................................................................... 318 44 - Freguesia de São Gonçalo: filhos de lavradores nos registros de nascimentos (1).......................................................................................................... 318

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GRÁFICOS

45 - Freguesia de São Gonçalo: filhos de lavradores nos registros de nascimentos (2).......................................................................................................... 318 46 - Freguesia de São Gonçalo: profissão dos pais nos registros de nascimentos (1).......................................................................................................... 319

47 - Freguesia de São Gonçalo: profissão dos pais nos registros de nascimentos (2).......................................................................................................... 319 48 - Freguesia de São Gonçalo: óbitos de adultos por cor.................................... 322 49 - Freguesia de São Gonçalo: óbitos de crianças por cor................................... 322

50 - Freguesia de São Gonçalo: registros de nascimentos por cor........................ 323 51 - Freguesia de Santa Rita: população por cor (%)............................................. 329

52 - Freguesia de Santa Rita: população por condição e cor (%)......................... 330

53 - Freguesia de Santa Rita: registros de óbitos - profissões............................... 331

54 - Freguesia de Santa Rita: profissão dos pais nos registros de nascimentos... 331 55 - Freguesia de Santa Rita: crianças negras nos registros de nascimentos........ 332

56 - Freguesia de Santa Rita: crianças pardas nos registros de nascimentos....... 332 57 - Freguesia de Santa Rita: filhos de lavradores nos registros de nascimentos (1).......................................................................................................... 333 58 - Freguesia de Santa Rita: filhos de lavradores nos registros de nascimentos (2)......................................................................................................... 333

59 - Freguesia de Santa Rita: população por cor nos registros de óbitos.................................................................................................................... 334 60 - Freguesia de Santa Rita: população por cor nos registros de nascimentos............................................................................................................... 334

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Apresentação Robert Slenes

Inspirando-me na sinestesia do título, quero falar das cores do estrondo deste livro, tese de doutorado de 1993, publicado originalmente em 1995. Pois obra clássica é isto: um show de som e luz que define, com maestria, um certo ‘es­ tilo” — um modo de conceber e fazer as coisas — em oposição a outros, an­ teriores. Nos termos do historiador da ciência Thomas Kuhn, é aquele traba­ lho que contribui de forma enfática a estabelecer um novo “paradigma” teórico-metodológico dentro de um determinado campo de estudo1. Nas grandes interpretações a respeito da escravidão e do sistema escravista no Brasil, anteriores à de Mattos, os escravos, libertos e livres pobres pratica­ mente não têm voz nem vez. Os senhores e aplantation escravista dominam tudo. Nas obras de Gilberto Freyre (em especial, Casa grande e senzala, de 1933), o patriarcalismo ordena todas as linhas de solidariedade social em sen­ tido vertical, convergindo na moradia senhorial2. Nos trabalhos de Caio Prado Júnior (1942) e, depois, da Escola Paulista de Sociologia (décadas de 1960 e 1970), o peso do escravismo e da exploração senhorial leva os grupos subordinados à alienação ou à anomia, deixando-os incapacitados para qual­ quer ação política consequente3. N’O escravismo colonial, de Jacob Gorender (1985), um olímpico raciocínio senhorial, alheio a pressões vindas de baixo, é o que faz o sistema “girar”4. Em oposição a esses estudos, Mattos afirma, com base em resultados em­ píricos novos e convincentes, que livres pobres e escravos tinham, de fato, uma significativa autonomia de cultura e ação; portanto, há que levá-los em conta se o objetivo é explicar o movimento da história. Algumas colocações da au­ tora no capítulo 3 (“Laços de família”), chamando a atenção à importância, para esses grupos subordinados, de linhas de sociabilidade “horizontais”, podem ser lidas como o ponto de partida do livro. No mundo dos livres,

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a maneira culturalmente esperada de um migrante integrar-se numa nova área não era

pedindo emprego ou acolhida a um potentado local, mas travando relações duradouras com os que ali viviam, baseados em relações costumeiras. Do ponto de vista do homem livre, a solidariedade vertical [com um grande senhor] era, assim, herdada de relações horizontais anteriores, antes que escolhida.

Da mesma forma, “do ponto de vista de um escravo recém-comprado [...], os caminhos para conseguir [...] um espaço mínimo de sociabilidade passavam por integrar-se à comunidade já existente de cativos, antes que buscar uma difícil e improvável aproximação com seu senhor”. O resultado de tudo isso é que “a estrutura [da sociedade brasileira] quase ‘clânica’, como a chamou Oli­ veira Viana, ou patriarcal’, como preferia Gilberto Freyre, não pode ser enten­ dida [...] como uma mera extensão da família senhorial”5. Como o trecho citado deixa claro, Das cores do silêncio procura enfocar as relações sociais ao rés do chão. O leitor logo verá, no entanto, que o livro também empreende um voo de muito alcance, visando entender a sociedade que se estrutura a partir dessas relações miúdas numa região extensa, e o movimento dela ao longo de quase um século. De onde vem essa vontade de pensar grande a partir do pequeno ? Na introdução à primeira edição do livro, como nesta, Mattos nos dá a resposta, assinalando sua dívida para com a “micro-história” italiana, assim como descrita por um de seus expoentes, Giovanni Levi. É uma dívida contraída no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, onde ela se formou no mestra­ do e no doutorado. Na década de 1980, momento de grande expansão e profissionalização da pesquisa histórica no Brasil, a UFF era uma das mais importantes encruzilhadas de novos caminhos historiográficos, estrangeiros e brasileiros6. Na Europa e nos Estados Unidos, entre a década de 1950 e a de 1970, vozes vindas das “margens” — num mundo de movimentos anticoloniais, antirracistas, feministas e contra o capitalismo selvagem — contribuíram de forma decisiva para aproximar a história e a antropologia e transformá-las em disci­ plinas eminentemente “êmicas”, isto é, disciplinas convencidas de que não se podem fazer análises consequentes, especialmente de “estruturas” sociais, sem resgatar a visão de mundo e as “razões” dos diversos grupos envolvidos. A revolução de perspectiva se deu, na verdade, com relação especialmente a pessoas despossuídas, antes frequentemente vistas como portadoras de pato­ logias sociais, e gente colocada de escanteio por preconceitos étnicos, de sexo, ou de gênero.

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APRESENTAÇÃO

Algumas figuras-chave do início do século e seus intérpretes posteriores evocam a transformação. Penso em Antônio Gramsci, que incentivava seus correligionários italianos de esquerda a respeitar os camponeses do Sul sub­ desenvolvido como possíveis interlocutores e aliados da classe operária indus­ trial. Para ele, a vivência dos camponeses, peculiar às condições específicas de sua subordinação, lhes teria possibilitado interpretações da ideologia domi­ nante que, em muitos aspectos, minavam esta por dentro, mesmo quando pareciam espelhá-la7. Na década de 1950, Eric Hobsbawm apresenta a seus colegas, historiadores marxistas ligados (originalmente) ao Partido Comu­ nista na Inglaterra, entre eles E. P. Thompson, as idéias de Gramsci sobre a hegemonia cultural dos grupos dominantes e as possibilidades para uma práxis contra-hegemônica de gente a eles subordinada. Surpreendentemente, como Henrique Espada Lima chamou a atenção recentemente, Hobsbawm, em artigo de impacto numa revista italiana de 1960, também faz Gramsci (ou uma certa interpretação de Gramsci) chegar ao grupo de historiadores que posteriormente daria origem à micro-história, entre eles Cario Ginzburg8. Já no outro lado do Atlântico, a perspectiva de Gramsci tem um impacto notável na historiografia norte-americana sobre a escravidão, através do livro Roll, Jordan, Roll (1974), de Eugene Genovese, que aprendera a dar ouvidos aos subalternos (termo Gramsciano) em seu longo diálogo com militantes e pesquisadores negros9. Diálogo este que tem em sua base as obras de dois intelectuais afro-americanos, contemporâneos de Gramsci, W. E. B. Du Bois, dos Estados Unidos, e C. L. R. James, de Trinidad e Tobago10. A defesa desses autores-militantes da capacidade de o escravo e o negro livre raciocinarem e agirem “politicamen­ te” de forma consequente finalmente é acolhida e celebrada pela academia norte-americana em livros de impacto de John Blassingame (1972), Herbert Gutman (1976), Eric Foner (1988 [1a ed., 1983] e 1989) e outros, além de Ge­ novese. Gutman e Foner também foram influenciados pelos historiadores marxistas ingleses, especialmente E. P. Thompson. O livro deste sobre o “for­ mar-se” da classe operária inglesa (1987 [1963]) e seus artigos subsequentes a respeito das tensões e dos conflitos sociais no campo inglês do Setecentos (antes visto como área e época de paz social) tiveram grande impacto na Eu­ ropa e nos Estados Unidos11. Os ensaios de Thompson foram bem acolhidos pelos micro-historiadores italianos, que, aliás, mantiveram contatos estreitos com o círculo desse autor12. No que diz respeito à antropologia, pesquisadores da “escola de Manches­ ter” (Max Gluckman e outros), em parte como resultado de sua experiência

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DAS CORES DO SILÊNCIO

de pesquisa em Rhodésia do Norte (Zâmbia) sobre africanos deslocados de suas aldeias de origem para o trabalho na mineração e na indústria, como também por causa de seu diálogo com historiadores da época pré-moderna e moderna da Europa (Hobsbawm, em particular), começam a privilegiar o enfoque no conflito, não apenas no consenso13. J. Van Velsen, colega de Gluckman, propõe, em artigo seminal de 1967, que o pesquisador de campo se concentre em analisar as disputas em processos judiciais, para observar o conflito entre normas e, dessa forma, captar as razões de mudanças no tempo14. Na mesma época (1966), Cario Ginzburg, do grupo da micro-história, publi­ ca seu primeiro trabalho de fôlego sobre as razões e visões cosmológicas de camponeses, baseado em processos da Inquisição, e advoga uma aproximação da história com a antropologia15. Também no final dos anos 1960, Thompson aponta para as possibilidades de uma convergência entre as disciplinas — provavelmente, suspeito, pensando na antropologia de Manchester16. A antropologia norte-americana dá uma virada semelhante. Relevante aqui, para nossos propósitos, é o influente livro de Sidney Mintz e Richard Price, The Birth ofAfro-American Culture (1976)17, que insiste — numa interven­ ção crucial nos debates sobre a formação da cultura escrava nos Estados Uni­ dos — na necessidade de captar os diálogos e as negociações entre os diversos agentes sociais (especialmente dentro da senzala) no dia a dia de cada microlugar estudado, com sensibilidade para mudanças no tempo. O trabalho de Mintz e Price, que circulava em manuscrito desde 1973, já marca fortemente o livro de Gutman de 1976 sobre a família escrava, o qual — polemizando com a obra de Genovese — enfatiza a relativa autonomia da cultura cativa, forma­ da em oposição à cultura dos senhores ao longo das gerações e a partir de raízes africanas. De certa forma, a tensão entre as interpretações dos dois au­ tores lembra a vacilação de Gramsci, que ora atribuía mais autonomia cultural, ora menos, aos camponeses18. Importantes, também, são os trabalhos de “an­ tropologia simbólica” de Clifford Geertz. A “thick description”, proposta por Geertz (“descrição espessa” — metáfora inusitada, remetendo a sopa, malservida, pelo adjetivo “densa” na tradução brasileira), lembra o lema dos micro-historiadores: “Por que simplificar quando se pode tornar as coisas mais com­ plexas?”. “Por que se contentar com uma sopa rala, quando é possível preparar uma espessa?” — ou seja, fazer uma descrição que capte as sutilezas dos inter­ câmbios humanos (as razões das “piscadelas”), sem as quais é impossível tirar conclusões (e levantar voos teóricos) convincentes sobre as relações sociais19. As obras de todos esses autores circulavam e eram intensamente debatidas na UFF a partir do final da década de 1970. Entraram num ambiente intelectual

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APRESENTAÇÃO

sofisticado, fortemente influenciado pela escola dos Annales e por uma histo­ riografia marxista renovada, em que os docentes já insistiam na necessidade da pesquisa empírica em pequena escala, para poder pensar o movimento dos grandes sistemas socioeconômicos. O empenho dos professores da UFF (so­ bretudo de Maria Yedda Leite Linhares e Ciro Cardoso) e de seus orientandos em investigar a história da agricultura no Brasil e em mapear a vertente brasi­ leira do “modo de produção escravista-colonial” (entendido como conceito heurístico, não como “gabarito” a ser imposto no material empírico) resultou numa série de monografias locais Brasil afora. Entre elas estava a dissertação de mestrado de Mattos, publicada em 1987 como Ao sul da história1®. Era um dos primeiros trabalhos a demonstrar a ubiquidade das pequenas posses de cativos e a importância da produção escravista (realizada substancialmente por posses pequenas e medianas) para o mercado interno. Junto com outros estudos da época, mostrando que até bem entrado o século XIX uma minoria expressiva de unidades domésticas livres no Brasil detinha escravos (não pou­ cas delas, chefiadas por afrodescendentes), enterrava-se de vez a ideia de um escravismo apenas orientado para a exportação, que em todo momento colocava o homem livre pobre à margem da economia de mercado e quase sem chance para a ascensão social. O contexto político no Brasil dos anos 1980 também influenciou a recep­ ção na UFF das novas correntes externas. De um lado, o processo de redemocratização, com o renascimento dos movimentos operários e o surgimento de novos movimentos sociais, chamou a atenção à importância de estudar o “protagonismo” político das pessoas no âmbito local, para entender mudan­ ças mais amplas; de outro, a própria história da ditadura militar, que inter­ rompeu movimentos de renovação social e política no Brasil dos anos 1960, semelhantes àqueles que estimularam a bibliografia europeia e norte-ameri­ cana vista acima, sugeria que o historiador também tinha que dar atenção a processos políticos e “estruturas” maiores. Creio que foi nesse contexto aca­ dêmico e político que Mattos optou pela micro-história italiana, que insistia explicitamente na pesquisa em escala reduzida (seja, por exemplo, enfocando uma fazenda só, ou uma rede específica de negociantes de escravos ligando a África ao Brasil) como passo necessário para raciocinar sobre a história em escala maior. São raros, no entanto, os pesquisadores que têm imaginação e fôlego para realizar tal empreitada. E instrutivo ver o método que Mattos utiliza para che­ gar a seu objetivo. Consiste, normalmente, na aplicação de dois métodos distintos ao processamento da mesma fonte ou na pesquisa em duas ou mais

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fontes diferentes, que se complementam. Em ambos os casos, o contraponto entre os métodos e as fontes acaba “potencializando” cada um, aumentando muito o rendimento deles e permitindo o pulo entre escalas de análise. Nos dois primeiros capítulos do livro, por exemplo, a fonte principal da narrativa — processos de homicídio envolvendo réus escravos, apreciados pela Corte de Apelação no Rio de Janeiro — é abordada por Mattos de duas ma­ neiras. De um lado, ela faz uma densa análise de diversas “histórias” contadas por réus e testemunhas, que deixaria Ginzburg e Levi impressionados. De outro, ela sistematiza os dados sobre as testemunhas em toda a amostra de processos, para produzir um “recenseamento” (com dados sobre condição social, livre ou escrava, e sobre idade, estado civil e profissão) das pessoas mais próximas aos conflitos retratados naquela fonte — portanto, supõe-se, mais próximas à vivência e ao trabalho dos réus c das vítimas —, o que enriquece enormemente a análise qualitativa dos conflitos. Ainda nessa parte do livro, a autora estuda sistematicamente inventáriospost mortem de pequenos senho­ res de escravos em duas regiões fluminenses, e ações de liberdade processadas na Corte de Apelação, integrando esses resultados também à análise dos processos de homicídio. O resultado dessa “triangulação” de perspectivas é uma visão surpreendentemente viva e convincente do processo de formação de laços sociais horizontais (especialmente familiares) por parte de escravos e gente livre pobre, das estratégias de ascensão social dessas pessoas, das po­ líticas de domínio dos senhores e dos embates e das negociações entre estes e os grupos subalternos. Nos dois últimos capítulos do livro, Mattos faz uma triangulação semelhante, utilizando jornais locais no Vale do Paraíba, uma sé­ rie de artigos em jornal descrevendo em grande detalhe a organização do trabalho no pós-Abolição em diversos municípios do Rio de Janeiro, e dados locais do registro civil de nascimentos, entre outros materiais, para analisar as estratégias de senhores e (ex-) escravos no período da emancipação e nos anos 1890. Mais do que uma história do “contraponto” entre senhores e subalternos, no entanto, o livro é uma profunda reflexão sobre os significados — para estes últimos — da liberdade e da cor da pele, ao longo do século XIX. Mattos transforma em problema de pesquisa o quase silêncio sobre a cor das pessoas em sua amostra de processos (com réus cativos) na Corte de Apelação, nas últimas décadas do escravismo. (Acima de 90% das testemunhas livres nesses documentos têm a cor designada entre a Independência e 1845, comparados a algo em torno de 20% em 1856-1865 e 5% em 1866-1888.) Para ela, “a noção de ‘cor’, herdada do período colonial, não designava, preferencialmente, ma­

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APRESENTAÇÃO

tizes de pigmentação ou níveis diferentes de mestiçagem, mas buscava definir lugares sociais”, com “preto” e “negro”, quando usados para pessoa livre, assi­ nalando alguém socialmente próximo ao cativeiro, e “pardo” indicando alguém mais distanciado dessa condição. Desta perspectiva, a cor inexistente, antes de significar apenas [um processo cultural de] branqueamento, era um signo de cidadania na sociedade imperial, para a qual apenas a liberdade era precondição. Que este princípio se efetivasse nas práticas judiciárias, a partir de meados dos Oitocentos, para além de sua afirmação genérica na Constituição Imperial, reflete uma transformação social que dele se apropriava, tornando efetiva aquela disposição legal21.

Mattos percebe essa transformação, creio, como algo que acontece princi­ palmente devido a pressões vindas de baixo para cima. Trabalhos recentes de Sidney Chalhoub sobre a precariedade da liberdade no século XIX, especial­ mente no período do tráfico ilegal de escravos, mas não se limitando a essas décadas, reforçam essa ideia. Chalhoub chama a atenção à resistência popular, frequentemente bem-sucedida, aos esforços do governo de implantar reformas visando conhecer e fiscalizar melhor a população — reformas amiúde vistas pelo povo como estratégias para ampliar o recrutamento de homens para a Guarda Nacional e o Exército, ou até para (re) escravizar pessoas livres22. (A esse respeito, lembro meu espanto, anos atrás, ao encontrar, no final do rela­ tório sobre os resultados do recenseamento da cidade do Rio de Janeiro em 1906, a foto da pilha de cinzas à qual os formulários domiciliares haviam sido reduzidos — algo exigido, descobri depois, pelo próprio decreto que autori­ zara a contagem.) Enfim, mesmo que o rápido sumiço da cor nos processos judiciais também tenha refletido ordens vindas de cima — pode-se imaginar o conselheiro negro Antônio Rebouças agindo para eliminar a racialização da sociedade brasileira, ou os oponentes políticos dele procurando apenas esca­ moteá-la —, o desfecho muito provavelmente foi o resultado de um processo dialético, em que os cidadãos afrodescendentes desempenharam um protagonismo importante. De fato, a fina análise feita por Mattos de como as pessoas comuns utilizavam a cor em seu discurso (como também em fontes mais “frias”, como nos registros de batismo do final do século) leva à conclusão de que havia um forte anseio por parte dos pretos e pardos livres por um país sem distinções raciais. Junto a isso, percebe-se um processo de aproximação identitária entre os dois grupos, que não parece ter existido nas primeiras décadas do século XIX23.

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Ambos os fenômenos certamente têm a ver com a considerável piora da situação socioeconômica dos afrodescendentes livres no Sudeste entre c. 1830 e a Abolição, no bojo da enorme expansão do tráfico de escravos até meados do século e o concomitante crescimento da concentração de cativos nasp/zzwtations, que continuava até 1888. (Das cores do silêncio demonstra que o acesso de gente subalterna a escravos e a terras se torna cada vez mais difícil no de­ correr do século, algo também constatado por estudos posteriores24.) A dete­ rioração se aprofunda no século XX. Dentro desse contexto, como escrevi em outra ocasião a respeito do significado deste livro, “apesar (ou por causa) do visível declínio” da condição dos negros livres e libertos no Brasil no século XIX, os afrodescendentes “no período pós-Abolição, muitos ainda se lembran­ do de uma época em que sua situação no setor livre era mais favorável, pres­ sionavam ativamente pela criação de uma sociedade não racializada. Ao fazer isso, antecipavam, e até certo ponto influenciaram, a formulação de Freyre em 1933, porém com suas próprias metas em mente”25. Enfim, o livro de Mattos é profundamente antifreyriano. Retrata, não uma visão celebratória, de cima para baixo, de um país desde sempre com vocação (portuguesa na origem) pela igualdade e a convivência harmoniosa entre as raças, mas a reivindicação popular pela construção efetiva de tal país — ou melhor, pela realização plena da promessa encerrada na constituição de 1824 de uma cidadania sem distin­ ções raciais. Ao fazer isso, Das cores do silêncio não apenas tromba com a obra de Freyre, mas solapa suas bases, pois torna visíveis os tons de certas reticências em Casa grande esenzala. Como somos historiadores e temos memória viva (chamamos de “historiografia”), nossos paradigmas anteriores não caem num silêncio cinzento, como tende a acontecer em disciplinas que não têm consciência (reflexiva) de sua ciência. Ao contrário, eles até adquirem novos sons à luz das cintilações de seus sucessores. Parece-me que é o caso de um trecho em nota de rodapé, inserida por Freyre na edição de 1946 de Casa grande, quando ele é iluminado pelo estrondo do livro de Mattos ou, mais amplamente, da nova bibliografia sobre a escravidão. Reagindo ao debate travado entre os pesqui­ sadores norte-americanos Franklin Frazier e Melville Herskovits alguns anos antes, depois de suas respectivas visitas à Bahia — o primeiro argumentando que a família negra não dava continuidade a valores e práticas africanas, nem no Brasil nem nos Estados Unidos, o segundo insistindo que dava, sim, nos dois casos —, Freyre escreve: “Temos que reconhecer o fato de que desde os dias coloniais vêm se mantendo no Brasil, e condicionando sua formação, formas de organizações de famílias extrapatriarcais, extracatólicas [‘várias

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APRESENTAÇÃO

delas [...] o resultado de influência africana’], que o sociólogo não tem, entre­ tanto, o direito de confundir com prostituição ou promiscuidade”26. A citação é surpreendente, à primeira vista; mas um pouco de reflexão deixa claro que está de acordo com argumentos desenvolvidos no próprio texto de Casa Grande. Freyre sabia, no íntimo, que a família patriarcal não engolia tudo a seu redor; senão ele não poderia ter falado tão perceptivamente sobre a in­ fluência da mucama na formação do filho do senhor, algo sintetizado na frase “na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influên­ cia negra”27. O projeto nacionalista de Freyre (que contrastava a extrema violência dos linchamentos de afrodescendentes nos Estados Unidos, presen­ ciada por ele de perto em 1919 e no início dos anos 1920, com a experiência negra no Brasil)28 e também o classista (sintomaticamente, os movimentos operários em Pernambuco no final dos anos 1920 o incomodavam)29 levaram-no a carregar nas cores com relação à hegemonia dos senhores, silenciando-se quase a respeito da práxis contra-hegemônica dos subalternos. Mas ele sabia dessa práxis, ou pelo menos intuía sua existência.

Notas 1

Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 1975 [1962]. “Esti­

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lo” e “paradigma” não são tão distantes quanto poderíam parecer. Para Kuhn, a atividade artís­ tica em certos períodos — por exemplo, a pintura “realista” após a descoberta das leis de pers­ pectiva — pode se aproximar à “ciência”, se esta for definida como uma atividade cujos praticantes aceitam o mesmo “paradigma”, ou sistema de regras teórico-metodológicas para a produção de trabalhos e para a avaliação de resultados. Freyre, 1989-1990 [1a ed., 1933]. (Cito de forma abreviada os autores e as edições que estão na

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bibliografia deste livro.) Caio Prado Jr., Formação do Brasil contemporâneo. Colônia. 18a ed. São Paulo, Brasiliense, 1983

(1942). Escola Paulista: ver Florestan Fernandes, 1978 (1965), Fernando Henrique Cardoso, 1977 0902), Octávio lanni, 1978, Maria Sylvia de Carvalho Franco, 1974 (1969). Para uma

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síntese, ver Fernando Henrique Cardoso, “Classes sociais e história: considerações metodoló­ gicas”, 1973, in Autoritarismo e democratização. 2a ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975, pp. 104-15. Jacob Gorender, 0 escravismo colonial. 4a ed., revista e ampliada. São Paulo, Ática, 1985. Lembro

aqui, com “girar”, a crítica de Thompson ao marxismo estruturalista do tipo althusseriano: E.

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P. Thompson, A miséria da teoria, ou um planetário de erros — Uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro, Zahar, 1978. Ver p. 77 nesta edição. A crítica aqui é também a Caio Prado Jr., que interpretava a intensa

migração interna no período colonial como reflexo da impossibilidade de o homem livre pobre

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DAS CORES DO SILÊNCIO

se fixar na terra, em decorrência da sua marginalização econômica pelo sistema escravista. Importante para construir uma visão alternativa (a de que a migração resultava de possibilida­ des abertas em fronteiras econômicas, inclusive para a produção para o mercado) é o livro da

colega de pós-graduação de Mattos, Sheila de Castro Faria: A Colônia em movimento — For­ tuna, efamília no cotidiano colonial. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998, antes tese de douto­ 6

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rado na UFF. Acompanhei de perto a efervescência intelectual da UFF no início da década; fui professor no Curso de Pós-Graduação em História dessa universidade entre o segundo semestre de 1979 e o final de 1983. Sobre Gramsci, ver especialmcnte Kate Crehan, Gramsci, Culture andAnthropology. Berkeley, University of Califórnia Press, 2002. Hobsbawm, "Por lo studio delle classi subalterne”, Società 16 (1960). Ver Henrique Espada Lima,/f micro-história italiana — Escalas, indícios esingularidades. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2006, pp. 73-5, 174, 292. Gramsci também teve grande influência no grupo dos “Subaltern Studies” da índia (pouco conhecido no Brasil antes da década de 1990), como o nome dessa “escola” indica: ver Vinayak Chaturvcdi, “Introduction”, e David Arnold, “Gramsci and Peasant Subalternity in índia”, in Vinayak Chaturvedi {coorAfMappingSubaltern Studies and the Postcolonial. Londres, Verso, 2000, respectivamente, pp. vii-xix e 50-71. Genovese, Roll, Jordan, Roll — The World the Slaves Made. Nova York, Pantheon Books/ Random House, 1974. Apenas a primeira metade do livro foi traduzida para o português (Geno­ vese, 1988). Sobre os interlocutores de Genovese, ver August Meier e Elliot Rudwick, Black History and the Historical Profession, 1915-1980. Urbana, University of Illinois Press, 1986, pp. 258-65. W. E. B. Du Bois, Black Reconstruction — An Essay toward a History ofthe Part ivhich Black Folk Played in the Attempt to Reconstruct Democracy in América, 1860-1880. Nova York, Harcourt, Brace and Company, 1935; C. L. R. James, Osjacobinos negros — Toussaint 1’Ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo, Boitempo, 2000 [1938]. Muitos dos ensaios de Thompson não demoraram a tornar-se conhecidos no Brasil, através de uma edição em espanhol: Thompson (1979). Ver, mais recentemente, a coletânea: E. P. Thomp­ son, Costumes em comum — Estudos sobre a culturalpopular tradicional. São Paulo, Companhia das Letras, 1998 [1993]. Lima, A micro-história italiana, p. 174. Richard Brown, “Anthropology and Colonial Ruic: Godfrey Wilson and the Rhodes-Livingston Institute, Northern Rhodesia”, in Talai Asad (org.), Anthropology andthe ColonialEncounter. Londres, Irhaca Press, 1973, pp. 173-97; Eric Hobsbawm, Primitive Rebels — Studies in Archaic Forms of Social Movements in the Nineteenth and Twentieth Centuries. Nova York, Praeger, 1959, p. v. (O livro de Hobsbawm é uma ampliação de três palestras dadas na Univer­ sidade de Manchester em 1956, a convite de Gluckman.) J. Van Velsen, “A análise situacional e o método de estudo de caso detalhado” (1967), in Bela Feldman-Bianco (org.), Antropologia das sociedades contemporâneas — Métodos. São Paulo, Global, 1987, pp. 345-74. Cario Ginzburg, Os andarilhos do bem — Feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo, Companhia das Letras, 1988 [1966]. Ver os ensaios em Thompson (1979,1998 [1993]), publicados originalmente a partir do final

dos anos 1960; também, E. P. Thompson, “Folclore, antropologia e história social” (1977), Antonio Luigi Negro e Sérgio Silva (orgs.), As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Cam­ pinas, Editora da Unicamp, 2001, pp. 227-67.

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APRESENTAÇÃO

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Traduzido no Brasil a partir da 2a ed. norte-americana, de 1992: Sidney Mintz c Richard Price,

O nascimento da cultura afro-americana — Uma perspectiva antropológica. Rio de Janeiro, 18

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Palias, 2003. Kate Crehan, Gramsci', ver também Arnold, “Gramsci and Peasant Subaltcrnity”, in Chaturvedi (coord.), Mapping Subaltern Studies, p. 31. Clifford Geertz, “Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura”, in Geertz,

1978 (1973)O livro foi reeditado recentemente: Hebe Mattos, Ao Sul da história — Lavradores pobres na crise do trabalho escravo, 2a ed. (Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2009).

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Ver p. 105 (gráfico 14) nesta edição, pp. 106-7.

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Sidney Chalhoub, A força da escravidão — Ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São

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Paulo, Companhia das Letras, 2012, especialmente caps. 1 e 9. Mattos também trata das identidades de pretos e pardos no período colonial e início do século XIX em seu livro Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro, Zahar, 2000. Ver, especialmente, Zephyr L. Frank, Dutras World — Wealth andFamily in Nineteenth-Century Rio deJaneiro. Albuquerque, University of New México Press, 2004. Robert W. Slenes, “A ‘Great Arch’ Descending: Manumission Rates, Subaltern Social Mobility, and the Identities of Enslaved, Freeborn and Freed Blacks in Southeastern Brazil, 1791-1888”, in John Gledhill and Patience A. Schell (orgs.), New Approaches to Resistance in Brazil and México. Durham, Duke University Press, 2012, pp. 100-18. Freyre, Casa grande e senzala, edição crítica. Guillermo Giucci, Enrique Rodríguez Larreta e Edson Nery da Fonseca (coords.). São Paulo, ALLCAXX, 2002 [1933], p. 91, capítulo 1, n. 55. Freyre não menciona Herskovits, mas abona um artigo de René Ribeiro, que comenta o deba­ te entre Frazier e Herskovits e dá ganho de causa a este. A referência de Freyre a trabalhos de Frazier, a seguir, como se concordassem com Ribeiro, parece ser um lapso. Freyre, Casa grande e senzala, ed. crítica, p. 301. Com “todos”, Freyre quer dizer “todos os brasileiros”, mas nas frases seguintes (“Da escrava ou sinhama que nos embalou” etc.) percebe-se que sua perspectiva é senhorial e masculina. Ver Robert W. Slenes, “O horror, o horror: o contexto da formação de identidades mestiças no Rio de Janeiro dos anos 1920”. Apresentação ao livro de Tiago de Melo Gomes, Um espelho no palco — Identidades sociais e massificação da cultura no teatro de revista dos anos 1920. Campinas, Editora da Unicamp, 2005. Coleção Virías Histórias. Jeffrey Needell, “Identity, Race, Gender, and Modernity in the Origins of Gilberto Freyres CEuvre”. The American HistoricalReview, 100:1 (fev., 1995)» PP- 62-3; ver, também, a nostalgia de Freyre pelas relações entre senhor e escravo (no banguê) e seu repúdio daquelas entre patrão e empregado na usina, em Casa grande e senzala, ed. Crítica, p. 29.

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Introdução1

O Brasil conheceu mais de 300 anos de escravidão. Segundo o Recenseamento Geral de 1872 —16 anos antes da abolição definitiva do cativeiro — habitavam, nas três maiores províncias escravistas do então Império do Brasil, 819.798 escravos e 2.890.154 homens e mulheres livres. Destes, 41% eram descendentes de africanos. Na Bahia, quarta província em número de escravos (onde o impacto da escravidão era, sem dúvida, mais antigo), os descendentes de afri­ canos já somavam 68,53% da população livre2. À época da finalização desta pesquisa, entretanto, os significados da liberdade eram um tema quase ausen­ te da historiografia brasileira, para além da conhecida associação com a ideia de não trabalho. Talvez porque fosse então profunda a convicção no país de que, fora de uma restrita elite, a liberdade não tinha significado algum. O presente livro surgiu da suspeita de que exatamente o contrário era verdadeiro. Suspeita formada a partir de pesquisa anterior, que tomava como tema central os chamados “homens livres pobres”, do ponto de vista socioeconômico, na segunda metade do século XIX3. Não são eles, entretanto, os principais protagonistas desta história. Ela fala, em sua maior parte, de escra­ vos e libertos. Ao longo da pesquisa, explorar os significados da liberdade mostrou-se fundamental para compreender a experiência dos últimos africanos e seus descendentes escravizados no Brasil, bem como para explicar sua inter­ ferência no processo de abolição e nas novas relações sociais que então se en­ gendraram. Ao pensar a inserção de escravizados e libertos no processo abo­ licionista e no pós-Abolição, o livro abriu também novas perspectivas para entender a sociedade brasileira contemporânea, as quais vão abordadas no posfácio. Os significados da liberdade estão, ainda, no título do livro, por sugerirem uma segunda questão a motivar a realização da pesquisa: a influência das ações e motivações humanas na história, seus limites e condicionamentos. O texto

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foi escrito, concomitantemente, como crítica ao voluntarismo e ao sentido teleológico, quase natural, críticas que tendiam a polarizar as análises do pro­ cesso de abolição do cativeiro no país4. A discussão, implícita no texto, entre liberdade e determinação na história, procurou fugir das dicotomias que classicamente acompanham o tratamento do tema. Não se quis optar entre uma abordagem que privilegiava o reconhe­ cimento de agentes históricos, individuais ou coletivos, e suas motivações e responsabilidades racionais e conscientes, e outra que priorizava os fenômenos coletivos e as tendências de longo prazo, a limitarem e condicionarem a his­ tória humana5. Tentei pensar de forma integrada e relacionada a ambas as questões. Tarefa levada a cabo, procurando evitar esquematismos ou excessos de simplificações, inspirada na experiência italiana da micro-história. À época da primeira edição do livro, a citação abaixo, de Giovanni Levi, recém-publicado no Brasil, me pareceu exprimir o que eu tentara alcançar ao longo da pesquisa. [O trabalho da micro-história] tem sempre se centralizado na busca de uma descri­ ção mais realista do comportamento humano, empregando um modelo de ação e conflito do comportamento do homem no mundo que reconhece sua — relativa — liberdade além, mas não fora, das limitações dos sistemas prescritivos e opressivos. Assim, toda ação social é vista como resultado de uma constante negociação, mani­ pulação, escolhas e decisões do indivíduo, diante de uma realidade normativa que, embora difusa, não obstante oferece muitas possibilidades de interpretações e liberda­ des pessoais. A questão é, portanto, como definir as margens — por mais estreitas que possam ser — da liberdade garantida a um indivíduo pelas brechas dos sistemas nor­ mativos que o governam. Em outras palavras, uma investigação da extensão e da natu­ reza da vontade livre dentro da estrutura geral da sociedade humana. Neste tipo de investigação, o historiador não está simplesmente preocupado com a interpretação dos significados, mas antes em definir as ambiguidades do mundo simbólico, a pluralidade das possíveis interpretações desse mundo e a luta que ocorre em torno dos recursos simbólicos e também dos recursos materiais6.

A abordagem, de fato, mostrou-se frutífera em inúmeras pesquisas relativas a outras áreas escravistas das Américas. Para além das antigas dicotomias entre continuidade e ruptura, estratégias sociais e determinações estruturais, o fim da escravidão configurou, antes, um momento privilegiado para se discutirem as relações entre esses polos. Apesar das especificidades de cada processo de emancipação, as pesquisas convergem em perceber o fim da escravidão como um momento de profunda mudança dos referenciais culturais norteadores

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INTRODUÇÃO

das relações econômicas, da convivência social e das relações de poder nas áreas escravistas das Américas. Naquele contexto, libertos, ex-senhores, os demais homens e mulheres livres e o próprio Estado viram-se forçados a rever atitudes e estratégias. Apesar das diferenças de recursos econômicos, políticos ou cul­ turais, a abolição da escravidão desencadeou processos profundos de mudan­ ça social que nenhum dos atores logrou efetivamente controlar. Abordar o processo de abolição por essa perspectiva implicou, também, recolocar uma questão essencial à própria prática historiográfica: o problema das durações. O reconhecimento teórico da dimensão social do tempo e, portanto, da pluralidade das durações, ocupa há muito um lugar central numa teorização especificamente histórica. A abordagem clássica de Braudel7, em relação à duração, sobrepôs-se uma complexidade ainda maior, que evidencia, entre outras, as distinções entre o tempo do vivido (privado e cotidiano) e o tempo histórico tradicional, marcado por uma dimensão pública e política. Essa fragmentação analítica da temporalidade resultou, frequentemente, numa ênfase nas continuidades sobre as descontinuidades e na fragmentação analí­ tica sobre a síntese, enquanto abordagem histórica. Sem pretender aprofundar mais a questão, sem dúvida complexa, tentei, no livro, uma abordagem inte­ grada, na qual o tempo longo das estruturas culturais e socioeconômicas se encontra com a imprevisibilidade da política (em sentido amplo), ao se enfa­ tizar como problema o papel da experiência (e da liberdade) humana para o entendimento da dinâmica histórica e social. Até a década de 1990, a abolição da escravidão no Brasil foi muito mais estudada do ponto de vista econômico e político do que de uma perspectiva social ou cultural. Enquanto problema econômico, as abordagens tendiam a privilegiar a questão da substituição do trabalho nas áreas mais prósperas da cafeicultura paulista, principal região agroexportadora do país, e a substituição quase absoluta do escravo de origem africana pelo imigrante europeu. Apa­ rentemente substituído o escravo pelo imigrante no Oeste Paulista e, em parte, também na cidade de São Paulo, tendeu-se a generalizar a experiência paulista para o conjunto do país. Sintomaticamente, os mais detalhados estu­ dos que tratam do liberto após a emancipação, de um ponto de vista sociocultural, disponíveis quando da redação deste livro, diziam respeito a São Paulo, desde o clássico de Florestan Fernandes, publicado na década de 196o8. Evidentemente, entretanto, o caso paulista não podia ser considerado isoladamente para se pensar a inserção social do liberto após a emancipação. O vertiginoso crescimento, tanto da lavoura cafeeira paulista quanto da cidade

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de São Paulo após a abolição do cativeiro, demograficamente embasado na imigração europeia subvencionada pelo Estado brasileiro, subverteu muito rapidamente as relações de dependência entre ex-senhores e libertos. Permitiu, fundamentalmente, que aqueles pudessem muito mais facilmente ignorar as reivindicações colocadas por estes9. Além disso, apesar de contar com a terceira população escrava do país, o impacto demográfico da escravidão, es­ pecialmente no Oeste Paulista, não tem paralelo com o das antigas áreas escravistas do Nordeste ou com o das regiões vizinhas, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e em outras áreas da própria província de São Paulo. De fato, o papel estratégico da diferenciação do espaço social no mundo escravista brasileiro constituiu um dos elementos-chave que se buscou consi­ derar na pesquisa. As migrações da população livre, o tráfico transatlântico e a dinâmica do tráfico interno de cativos são elementos essenciais a uma com­ preensão histórica do processo abolicionista no Brasil, que recortes regionais excessivamente rígidos impedem de considerar. Por outro lado, se a diversida­ de regional da sociedade escravista brasileira no século XIX guarda elementos comuns, traz também especificidades fundamentais, passíveis de serem abordadas em conjunto apenas sob o risco da superficialidade. Buscando encontrar especialmente os últimos libertos e suas expectativas e atitudes em relação à liberdade, concentrei a pesquisa no mundo rural do Sudeste brasileiro, onde a escravidão, enquanto instituição, manteve até tar­ diamente sua vitalidade. Privilegiei, assim, de modo geral, as áreas produtoras de cana-de-açúcar e café historicamente polarizadas pelo porto do Rio de Ja­ neiro, chamadas pelos geógrafos de Sudeste Velho (Minas Gerais, o Sul de Minas e a Zona da Mata, o Vale do Paraíba, fluminense e paulista, a Baixada e o Norte Fluminense), que sofreram fortemente o impacto do recrudesci­ mento do tráfico transatlântico, na primeira metade dos Oitocentos, e que se mantiveram econômica e socialmente dependentes do braço escravo até princípios de 1888. Por outro lado, dentro desse recorte, nas duas últimas partes do livro, que focalizam o período pós-emancipação, tentei evitar não somente as áreas de acelerado crescimento econômico e forte fluxo imigra­ tório da Europa, mas também as que conheceram uma regressão econômica e demográfica rápida e acentuada após o fim do cativeiro. Em ambos os casos, os libertos tendiam a desaparecer, por recrudescimento ou involução do quadro demográfico. Nessas partes, portanto, não foram considerados nem o novo Oeste Paulista, nem o Vale do Paraíba ocidental e, para o tratamento de alguns temas, concentrei-me ainda mais especificamente no Norte Flumi­ nense, encarado como um laboratório das configurações sociais mais típicas

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INTRODUÇÃO

da região, no período, desde que ali confluíam a nova fronteira do café, no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, a tradicional agroindústria do açúcar campista e vastas áreas voltadas para a produção, em grande parte escravista, de gêneros de subsistência para o mercado interno. Utilizei-me largamente, entretanto, da historiografia sobre o período em relação à cidade do Rio de Janeiro, ao velho Vale do Paraíba, ao Oeste Paulista e à Bahia, buscando, sempre que possível, não só uma perspectiva comparativa, mas principalmente não perder de vista o caráter central da mobilidade espacial no período — seja no tráfico interno de cativos, seja nas repetidas migrações da população livre. Por outro lado, desde que os libertos deixam de ter um estatuto jurídico específico, nas antigas sociedades escravistas, torna-se bem mais difícil encon­ trá-los nas fontes de época. Essa é uma dificuldade geral nas pesquisas sobre a experiência histórica pós-emancipação nas Américas. No Brasil, entretanto, é especialmente acentuada, não apenas pela inexistência, desde a independência política, de práticas legais baseadas em distinções de cor e raça, mas também pela presença demograficamente expressiva, e mesmo majoritária, de negros e mestiços livres, antes da Abolição e pelo desaparecimento, que se faz notar desde meados do século XIX, da discriminação da cor de homens e mulheres livres nos registros históricos disponíveis. Processos cíveis e criminais, registros paroquiais de batismo, casamento e óbito, na maioria dos casos, não faziam menção à cor e, mesmo nos registros civis, instituídos em 1888, em muitos casos, ela se faz ausente. Se se transforma, entretanto, essa dificuldade em problema histórico, pode-se começar a avançar na questão. Pensar culturalmente o pós-emancipação é, antes de tudo, explorar os significados da liberdade, conforme escreveu Rebecca Scott10. O silêncio sobre a cor, que antecede o fim da escravidão, sem dúvida está relacionado a esses significados, assim como sua generalização sugere que, por trás dele, se encontra mais que uma ideologia de branqueamento, construída e imposta de cima para baixo. Assim, nas duas primeiras partes deste livro, a investigação se desenvolve no sentido de tentar entender as matrizes culturais em relação aos significados da liberdade — que emprestavam inteligibilidade às relações sociais no Brasil escravista — e, a partir delas, compreender as estratégias, identidades e expec­ tativas sociais, desenvolvidas pelos escravos e pelo conjunto da população livre em resposta às transformações socioeconômicas e à crescente perda de legiti­ midade da instituição escravista, na segunda metade do século XIX. Concentramo-nos, basicamente, na coleção de processos cíveis e criminais do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, cuja jurisdição, até 1872, englobava todo o

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Centro-Sul, reunido sob a rubrica “escravos” e “terras”, no Arquivo Nacional, selecionados a partir daquele contexto regional antes considerado, e nos in­ ventários de proprietários rurais com menos de quatro escravos, localizados nos cartórios de Campos (R.J), Silva Jardim (RJ — antiga Capivary) e no Ar­ quivo Nacional. De modo geral, observa-se que toda a documentação reunida agregava um conjunto extremamente rico de fragmentos de histórias de vida, filtradas pelo formato jurídico específico e pelas mediações dele decorrentes, de inventários, processos cíveis e processos criminais. Assim, em cada caso tentei considerar, primeiramente, as evidências culturais produzidas por esse olhar, padronizado pelo discurso jurídico, bem como suas ambiguidades e dilemas específicos ao processo de construção dc um direito e de um Estado de matriz liberal, numa sociedade escravista que percorre quase todo o século XIX. Por outro lado, enfatizei especialmente as possibilidades abertas à compreensão das relações sociais no período e de sua dinâmica específica, a partir da valorização desses fragmentos de histórias de vida como eixo central da análise. Não rejeitei, entretanto — nem poderia fazê-lo, ante a minha formação profissional —, as possibilidades abertas a seu tratamento serial e quantitativo. Nas duas últimas partes do livro, embasada nos referenciais socioeconômicos e culturais até então delineados, tento uma relcitura do processo histó­ rico específico à primeira década que se seguiu à abolição definitiva do cati­ veiro, nas antigas áreas escravistas do Sudeste. Procuro mostrar que, mesmo estritamente contextualizados, do ponto de vista cultural, econômico, políti­ co e social, a dimensão surpreendente da dinâmica histórica daqueles curtos anos e o comportamento e a inserção social dos libertos, em especial, são es­ senciais para a compreensão da reestruturação dos recursos e das relações de poder (e de sua legitimidade) no mundo rural do Sudeste, após o fim do cati­ veiro, como também para a forma específica em que se desenvolveu no país uma ideologia racial. Busco também reencontrar um outro final de século em que, pelo menos do ponto de vista das áreas analisadas e dos agentes sociais que nelas atuaram, tudo parecia possível e tudo parecia desmoronar. Assim, na terceira parte (“O fantasma da desordem”), procurei trabalhar com as expectativas senhoriais em relação à liberdade, no quadro restrito da iminência da extinção do cativeiro, que se anuncia a partir de 1887. Uma aná­ lise do Jornal do Commercio e de algumas folhas interioranas selecionadas, que tinha como objetivo inicial a perspectiva de discutir o impacto da liberdade em termos conjunturais (década de 1890), acabou me seduzindo, como fonte capaz de me introduzir nas expectativas, vividas pelos contemporâneos, de

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INTRODUÇÃO

lima transformação que era percebida como surpreendente e fundamental. Um mergulho naquela conjuntura de 1888, tentando resgatar as incertezas que o período trazia, passou a ser meu objetivo, e os jornais, especialmente as folhas locais, acabaram por mostrar-se uma ponte possível para esse intento. Devo defender-me de fundadas acusações de ingenuidade, ao lidar com a mídia interiorana. Os jornais de época, como os de hoje, refletem, na escolha e no tratamento das notícias, posicionamentos específicos e múltiplos, cons­ tróem versões nem sempre unívocas, de difícil tratamento metodológico. Escolhi trabalhar com algumas folhas que, apesar das muitas diferenças, tinham em comum o tipo de inserção que possuíam nas comunidades em que atuavam e as responsabilidades que assumiam perante o leitor que procuravam atingir. São todas folhas de tradição nas comunidades em que são publicadas, de larga aceitação pela “boa sociedade” local e de forte penetração nas elites agrárias. Dentro dessa unidade geral, consegui abarcar um leque bastante abrangen­ te de posicionamentos políticos. Trabalhei com um jornal republicano e com fortes ligações com um abolicionismo mais radical: O Monitor Campista (Campos-RJ); com outro, monárquico e sem ligações com os partidos cons­ titucionais, defensor de um abolicionismo mais moderado: 0 Monitor Sul-Mineiro (Campanha-MG); com um terceiro, conservador, que se colocava a favor da concessão de alforrias condicionais em massa para o encaminhamen­ to da questão servil, em 1888: Gazeta Sul-Mineira (São João dei Rey-MG); com o jornal conservador de Cantagalo-RJ {Correio de Cantagalo}, último baluarte de defesa da instituição escravista até maio de 1888, e seu rival local, o liberal O Voto Livre, abolicionista. Trabalhei, ainda, com o Jornal do Com­ mercio, especialmente com as Publicações a Pedido de fazendeiros fluminen­ ses e mineiros, após maio de 1888. O uso que faço do material reunido a partir dessas publicações mostra-se, entretanto, extremamente seletivo. Não tenho pretensões a uma análise do lugar por elas ocupado na mídia nacional ou interiorana. Procurei reter, apenas, um certo sentido de diálogo com a lavoura, que todas procuraram registrar, especialmente a partir de janeiro de 1888. Privilegiei, assim, as leituras de publicações a pedido de fazendeiros e lavradores, em muitos casos uma espé­ cie de “carta dos leitores”; outras correspondências de cunho particular sobre o tema, publicadas por decisão editorial das folhas analisadas; as atas das reu­ niões de lavradores, parcial ou integralmente publicadas, que buscavam equa­ cionar coletivamente os problemas colocados pelo iminente fim do cativeiro; e os artigos e editoriais que buscavam dirigir-se aos lavradores que ainda se

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utilizavam do trabalhador cativo, Com base nesse material, busquei resgatar fundamentalmente as expectativas senhoriais sobre o impacto da liberdade, os recursos e diagnósticos a que recorreram para formar essas expectativas, as estratégias que buscaram desenvolver para responder às transformações em curso e suas frustrações ante sua acelerada perda de influência política e as surpreendentes atitudes de seus ex-escravos, subitamente transformados em homens e mulheres livres. Na última parte (“Nós tudo hoje é cidadão”), sob o pano de fundo da primeira década republicana, concentro-me no Norte Fluminense, para reen­ contrar os ex-senhores e suas estratégias, os libertos e suas esperanças, os pobres nascidos livres e seus temores, tentando mapear seus conflitos — fundadores em inúmeros aspectos — em torno dos significados da liberdade recém-proclamada. Os jornais já arrolados informaram ainda aspectos do desenvolvimento dessa parte. Considerou-se também um conjunto de 6o processos crimes da comarca de Campos. O núcleo dessa quarta parte se constrói, entretanto, a partir da análise dos registros civis de nascimento e óbito, de três freguesias da área. Quanto a esses registros, antes de um tratamento demográfico, o que se revelou extremamente problemático diante dos níveis de sub-registro presu­ midos, tentou-se uma abordagem social. Além disso, como todas as demais fontes utilizadas, eles se tornaram fragmentos de histórias de vida extrema­ mente significativos para os resultados finais da pesquisa. O mundo rural, que emerge no Sudeste escravista da abolição definitiva do cativeiro, desapareceu, praticamente, há algumas décadas. Seu momento de constituição, na última década do século passado, guarda, entretanto, não apenas a gênese de relações sociais e étnicas mais abrangentes, profunda­ mente injustas e desiguais, com as quais ainda hoje convivemos, mas também esperanças cotidianas — que guardam, às vezes, uma surpreendente atuali­ dade — de superar essas injustiças e desigualdades.

Notas 1

A tese de doutorado na qual se baseia o presente livro foi defendida em 1993 e foi ganhadora

do Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa, 1993, tendo sido integralmente publicada pelo Ar­ quivo Nacional, em 1995. Uma segunda edição, com a introdução revista, foi publicada em 1998, A presente edição teve o texto da introdução mais uma vez revisto e recebeu um novo posfácio.

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INTRODUÇÃO

2 3

IBGE. Recenseamento Geral de 1872. Hebe Mattos, Ao Sul da história — Lavradores pobres na crise do trabalho escravo. Rio de Janei­

4

ro, FGV Editora, 2009 (1987). Ciro E S. Cardoso (org.), Escravidão e Abolição no Brasil: novas perspectivas, 1988.

5 6

Isaiah Berlin, Inevitabilidade histórica, 1981, pp. 75-132. Giovanni Levi, “Sobre a micro-história”, 1992, pp. 135-6.

7 8

Fernand Braudel, “La larga duración”, 1970, pp. 60-106. Florestan Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes, 1978.

9 10

G. Reid Andrew, “Black and white workers: São Paulo, Brazil, 1888-1928”, 1988, pp. 85-118. Rebecca Scott, “Exploring the Meaning of Freedom: Postemancipation Societies in Comparative Perspective”, in Rebeca J. Scott et al., lhe Abolition ofSlavery and the Afiermath of Emancipation in Brazil, 1988, pp. 1-22.

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PRIMEIRA PARTE

Uma experiência de liberdade

1

Uma experiência de liberdade

Domingos Vieira de Carvalho nasceu na Bahia, em finais do século XVII. Ali, na forma do Sagrado Concilio Tridentino, casou-se com Maria Cardosa, com quem teve dois filhos, que não sobreviveram à primeira infância. Viúvo, migrou para o Espírito Santo, onde se casou com Ana Gomes. Deste casamento nas­ ceram seis filhos legítimos, segundo o pai, falecidos quando redigiu seu testa­ mento, já em Campos dos Goitacases, capitania da Paraíba do Sul, em 1704. Nesse documento, Domingos não menciona o destino de Ana Gomes, mas informa que ele deixara o Espírito Santo e se mudara para a vila de São Salva­ dor dos Campos dos Goitacases, onde se casara com Maria Nunes. Com esta terceira esposa, Domingos teve mais quatro filhos. Em seu testamento, Do­ mingos afirma que uma escrava mulata, de nome Antônia e idade avançada, era seu único bem. Sua viúva, Maria Nunes, pede à Justiça atestado de pobreza para evitar a venda de Antônia para pagamento das dívidas do casal, no que é atendida. As coisas se complicam para ela, entretanto, quando um filho de Ana Gomes, nascido no Espírito Santo, tenta qualificar-se como herdeiro no testamento alegando, ainda, que Domingos era bígamo, pois, além dele, sua mãe também estaria viva. Alega também que, além da escrava, seu pai possuía uma espingarda e um sítio, com roças de mandioca, onde residia, bens que não haviam sido mencionados no testamento. A história de Domingos1 foi escolhida para abertura deste trabalho por ilustrar um ponto essencial da experiência de liberdade no período escravista, que deita raízes no próprio processo de formação de uma ordem social mer­ cantil e escravista na Colônia portuguesa: o recurso à mobilidade espacial. Não a mobilidade espacial do desbravador e do bandeirante, mas a que se fazia no coração da ordem social escravista já constituída, que incluía, em qualquer momento que for tomada, uma fronteira móvel e parcialmente ocupada.

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A representação da ordem social escravista, na Colônia ou no Império, sempre qualificou diferentemente os homens livres, diferenciando uma elite de “homens bons” e, posteriormente à emancipação política, de “cidadãos ativos”. A historiografia brasileira sobre o período tem, em diversas oportuni­ dades, tentado dar conta dessa camada intermediária, formada por homens livres pobres, e dos lugares que ocupavam na ordem social. Quase todos os trabalhos que tentaram tratar dos “homens livres pobres” na ordem escravista, entretanto, fizeram-no no contexto de estudos de caso, apesar das marcantes diferenças da ênfase dada à singularização dos contextos abordados2. E obviamente difícil fugir dessa limitação, pois os homens neces­ sariamente convivem e se relacionam em contextos específicos de tempo e espaço. As tentativas de generalização, entretanto, a partir desses estudos, tenderam a congelar momentos específicos de histórias de vida como catego­ rias estruturais, produzindo ora camponeses, ora homens socialmente anômicos e desenraizados. O que a história de Domingos ressalta é que um mesmo indivíduo podia ser as duas coisas, em épocas diferentes de sua história de vida, e que a mobilidade espacial é uma variável que não pode ser tomada, num mundo colonial em expansão, como indicador de ausência de padrões cultu­ rais norteadores das estratégias adotadas. A contraface da mobilidade também está presente na história de Domin­ gos: a tentativa de fixação. Na Bahia, no Espírito Santo e em Campos, Do­ mingos casa-se e tem filhos. A formação de uma família, sancionada pela Igreja Católica, implicava um certo tempo de permanência na área, convivên­ cia e aceitação por parte de outras famílias já existentes na região, formando um leque de relações que tendia a se ampliar, através do batismo dos filhos e das relações de parentesco ritual (compadrio) que gerava. A mobilidade em liberdade representava, assim, uma potencialidade de romper o desenraizamento e de reinserção social no restabelecimento da trama de relações pessoais e familiares. Esse papel central da família já o afirmara Kátia Mattoso, em relação à sociedade baiana do Oitocentos: “Em torno da família devem ser buscados os elementos para se compreender as complexas hierarquias sociais, pois a famí­ lia era o eixo a cuja volta giravam as relações sociais, com base nas quais as hierarquias se faziam ou desfaziam”3. A complementaridade entre família e mobilidade espacial é um aspecto menos considerado, mas que se sobressai nas pesquisas que privilegiam áreas rurais ainda em expansão. É o caso, por exemplo, da pesquisa de Alida Metcalf4 sobre Santana do Parnaíba, em São Paulo, no século XVIII. A autora mostra

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que a migração era uma opção permanente nas estratégias de sobrevivência das famílias da área, no que se refere às segundas gerações, à medida que a concentração econômica e social, decorrente da expansão da produção mercantil-escravista, estreitava as oportunidades na região. Especialmcnte os filhos homens das famílias de lavradores escravistas tendiam a deixar o município com alguns escravos e procurar estabelecer novos laços e lavouras em regiões vizinhas, enquanto as filhas mulheres tendiam a permanecer na região e ali se casarem, muitas vezes com recém-chegados. À filha mais velha cabia, em geral, o melhor casamento e a este genro, a herança do status social e econômico de seus sogros, utilizando o recurso do dote e da terça da herança. Também entre as famílias que a autora considera como camponesas, despossuídas de terra e escravos, e dependentes basicamente do trabalho familiar, muitas formadas por ex-escravos e seus descendentes, buscava-se a mobilidade como estratégia recorrente para resolver os problemas das segundas gerações. Em geral, dispersavam-se os filhos pelas regiões vizinhas, também em busca de novos laços que lhes garantissem o acesso costumeiro à terra, ou de outras formas de sobrevivência, nas vilas mais próximas, enquanto pelo menos uma filha ou um filho casado permanecia na situação dos pais. Pesquisa de Sheila Faria5 para o Norte Fluminense, no período colonial, encontrou o mesmo padrão. O recurso à mobilidade espacial era comum a “ricos” e “pobres”, mesmo considerando-se as expressivas diferenças que a posse de alguns escravos ou outros bens móveis podia representar nas oportunidades abertas de reinserção social. Era um recurso da liberdade, primeira e fundamental marca de seu exercício. Não só processos de empobrecimento, porém, produziam o homem móvel. A obtenção de alforrias também gerava continuamente novos livres, à procu­ ra de laços. A inserção social desses homens na sociedade colonial se fez, en­ tretanto, de maneira profundamente marcada por uma hierarquização racial, que separava, até mesmo na prática religiosa, pretos, brancos e pardos6. O que designavam, entretanto, esses qualificativos? Apesar de a literatura sobre o tema utilizar, em geral, o significante “pardo” de um modo restrito e pouco problematizado — como referência à pele mais clara (ou menos escura) do mestiço, como sinônimo ou como nuance de cor do mulato —, a coleção de processos cíveis e criminais com os quais tenho trabalhado me levou a questionar essa correspondência. Na qualificação dos réus e das testemunhas, nesses documentos, a cor era informação sempre presente até meados do sé­ culo XIX. Neles, todas as testemunhas nascidas livres foram qualificadas como

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brancas ou pardas. Deste modo, ao contrário do que usualmente se pensa, o termo me parece que não era utilizado (no período colonial e mesmo no sé­ culo XIX, pelo menos para as áreas em questão) apenas como referência à cor da pele mais clara do mestiço, para a qual se usava preferencialmente o significante “mulato”. A designação de “pardo” era usada, antes, como forma de registrar uma diferenciação social, variável conforme o caso, na condição mais geral de não branco. Assim, todo escravo descendente de homem livre (bran­ co) tornava-se pardo, bem como todo homem nascido livre que trouxesse a marca de sua ascendência africana — fosse mestiço ou não. Grande parte dos testamentos de “pardos” libertos, localizados no muni­ cípio de Campos, para o século XVIII, era de filhos de casais africanos7. No caso dos pardos nascidos livres, a maioria das testemunhas qualificadas como “pardas” nos processos analisados, torna-se mais difícil provar retrospectivamente que não se tratava necessariamente de mestiços, mas me parece pouco prová­ vel que, entre 755 testemunhas livres arroladas, nem um só negro nascido livre tivesse sido chamado a depor. Por outro lado, como a historiografia já tem assinalado8, os significantes “crioulo” e “preto” mostravam-se claramente reser­ vados aos escravos e aos forros recentes. A designação “crioulo” era exclusiva de escravos e forros nascidos no Brasil e o significante “preto”, até a primeira metade do século, referia-se preferencialmente aos africanos. A designação de “negro” era mais rara e, sem dúvida, guardava uma componente racial quando aparecia nos censos de época qualificando a população livre. Nos processos analisados, entretanto, só aparece uma testemunha “negra”, sem especificação de sua condição de liberto e, ao longo do documento, essa condição ficou evidenciada. Reforçava-se, desta maneira, a liberdade como atributo específico dos “brancos” e a escravidão, dos “negros”. Os “pardos”, fossem negros ou mestiços, tornavam-se, nesta forma de enunciação, necessariamente exceções controladas. A representação social, que separava homens bons e escravos dos “outros”, tendia, assim, a se superpor, pelo menos em termos ideais, a uma hierarquia racial que reservava aos pardos livres, fossem ou não efetivamente mestiços, essa inserção intermediária. Desta forma, o qualificativo “pardo” sintetizava, como nenhum outro, a conjunção entre classificação racial e social no mundo escravista. Para tornarem-se simplesmente “pardos”, os homens livres descen­ dentes de africanos dependiam de um reconhecimento social de sua condição de livres, construído com base nas relações pessoais e comunitárias que esta­ beleciam. Mesmo que a prática, por diversas vezes, não correspondesse à re­ presentação, a cor da pele tendia a ser por si só um primeiro signo de status e

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condição social para qualquer forasteiro. Limitava, assim, não só as possibili­ dades de mobilidade social, mas também de mobilidade espacial dos forros e de seus descendentes, que permaneciam ameaçados pela possibilidade de reescravização. Durante a maior parte do período colonial, portanto, a mais elementar decorrência da liberdade — a capacidade de mover-se — esteve violentamente restrita a grande parte dos libertos e de seus descendentes. Domingos era branco. Se a mobilidade espacial não estava proibida aos não brancos, libertos ou nascidos livres, dificilmente ela poderia ser exercida, em áreas tão distantes, sem contestação da liberdade, ainda no século XVII. Apesar disto, a mobilidade espacial se fazia preferencialmente entre áreas próximas, frequentemente mesmo freguesias vizinhas, o que a tornava restrita, mas não interditada aos não brancos livres, especialmente quando demograficamente deixavam de ser incomuns9. Ao falecer, em Campos, Domingos possuía ainda, além de uma família, uma escrava, uma espingarda e um sítio com roças de mandioca, onde morava. Se sua história ilustra a precariedade desses bens, ilustra também que a liberdade potencializava a propriedade. Domingos era considerado por seu filho “proprietário” de um sítio com roças de mandioca, sem que, entretanto, fosse considerado “proprietário” dos terrenos onde sua casa e roças se situavam. Está-se, assim, diante de uma relação de propriedade facultada apenas por relações pessoais e familiares na região, que lhe puderam garantir acesso estável ao terreno explorado. Uma das dimensões mais perenes dos significados da liberdade, construídos sob a escravidão, está ligada a essa noção de propriedade. Antes de tudo, porém, Domingos era senhor de uma escrava. Diversos estudos sobre o padrão de posse de escravos, em variadas regiões escravistas, têm confirmado que pequenos senhores, como Domingos, formavam a maio­ ria dos proprietários de cativos em quase todas as áreas tocadas pelas relações escravistas, no final do período colonial. Entre eles, inclusive, muitos ex-escra­ vos10. Depreende-se de sua história, mais que uma possibilidade socioeconômica, um padrão cultural para enfrentar o desenraizamento em condição de liberdade. Até meados do século XIX, a pulverização e a acessibilidade da proprieda­ de cativa atingiam limites quase sempre surpreendentes. Até a década de 1820, praticamente inexistem nos cartórios do Rio de Janeiro, onde tenho pesqui­ sado, seja em áreas cafeeiras, canavieiras ou de subsistência, inventários post mortem de produtores rurais que não registrassem a posse de trabalhadores cativos. Níveis mínimos de prosperidade, que justificassem a abertura de um inventário, apareciam, então, invariavelmente ligados à propriedade cativa.

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Antônio Felipe de Oliveira, arrendatário em Mangaratiba em 1832, que vivia com a família “mariscando cascas dbstras”, fazia-o com a ajuda de três escravas1 *. Em 1824, Manuel do Rosário e Maria dos Santos, pretos forros, casados, sem filhos, pescadores, eram senhores de Joaquina, de nação angola. No testamen­ to de Manuel, Joaquina aparece arrolada, juntamente com sua casa e sua canoa, como garantia para o cumprimento de seu testamento, que previa várias missas por sua alma e esmola aos pobres12. É impossível apreender os conteúdos de tensão, legitimidade e violência de que se revestiam as relações entre lavradores de roça e seus escravos que, muitas vezes, sem senzalas, dividiam pequenas casas de palha ou sapé. Mas sem dúvida ajudavam a legitimar a escravidão, enquanto instituição, ao mesmo tempo oferecendo perspectivas concretas e factíveis de sobrevivência a ex-es­ cravos, que lhes permitiam negar de maneira global a situação anterior13. Essa potência da propriedade escrava tendia, assim, a se sobrepor, em termos de representação da liberdade, às diferenças econômicas e sociais entre os homens livres que, recorrentemente, buscavam e frequentemente conseguiam tornar-se senhores de escravos. Essa representação da liberdade, enquanto perdurou o tráfico africano, tendeu não apenas a legitimar a propriedade es­ crava, até mesmo para muitos forros, como também a priorizar, nas represen­ tações sobre a liberdade, o ideal de não trabalho. De fato, todo homem livre o era enquanto proprietário de escravos ou rentista em potencial, mesmo que apenas uma minoria efetivamente o conseguisse. Com alguma regularidade, nos inventários que arrolavam mais de dois escravos adultos, encontrou-se uma correspondência exata entre o número de escravos adultos e o número de enxadas, evidenciando que a família livre se retirava, sempre que possível, de determinados tipos de trabalho. O simples aluguel desses cativos, quando adultos e jovens, já garantia uma fonte de renda, em muitos dos casos capaz de eximir a família livre do trabalho direto. Muito já foi escrito a respeito desse sentido desqualificador da escravidão sobre o trabalho, de maneira geral. Ser livre numa ordem escravista seria basi­ camente “não trabalhar” ou, mais especificamente, viver de rendas. A liberda­ de é pensada idealmente, portanto, como um atributo do homem branco e potencializadora do não trabalho. Domingos, branco e senhor de uma escra­ va, por mais pobre que fosse, era sem sombra de dúvidas um homem livre. Esse ideal de liberdade perpassa a qualificação dos homens livres na ordem escravista até, pelo menos, a primeira metade do século XIX. Na qualificação das testemunhas livres, nos processos cíveis e criminais que analisei para o período, a cor era informação sempre presente, associada a uma forma bastan­

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te específica de qualificação socioprofissional. Enquanto os escravos estavam associados a algum tipo de ‘serviço” (“serviço de roça”, “serviço de carpinteiro”), os homens livres “viviam de” alguma coisa. Em geral “de seus bens e lavouras” mas também “de seu jornal”, “de seu ofício de carpinteiro” ou simplesmente “de agências” De fato, está-se frequentemente diante de não brancos e de não proprietários. Mas, ao registrar-se com precisão a cor, toda vez que se interro­ gava um negro ou um pardo, tornava-se necessário especificar sua condição de livre ou liberto, como a se explicar a exceção. Do mesmo modo, a univer­ salização do “viver de” negava na forma o que frequentemente se estava a afirmar no conteúdo. Nos processos considerados, o homem livre “vive sobre si”, expressão sempre usada nas Ações de Liberdade14, identificando como livres aqueles que “vivem de seus bens e lavouras” e os que “vivem de seu jornal” e opondo-os aos cativos que, antes de tudo, “servem” a alguém. A contínua produção de homens livres despossuídos, na ordem escravista, coloca mais que problemas socioeconômicos relativos à sua possível funcio­ nalidade, em relação à ordem econômica e social. Sob esse ângulo, especial­ mente no que se refere à produção de alimentos, inclusive com o recurso eventual ao trabalho escravo, em muito se tem alterado a visão de extrema especialização que tradicionalmente se emprestava à ordem escravista15. Co­ loca, fundamentalmente, questões culturais quanto aos significados da liber­ dade nessa sociedade. Uma sociedade construída sobre a escravidão necessa­ riamente conferia significados específicos à noção de liberdade que orientava as ações daqueles indivíduos desenraizados e despossuídos que constantemen­ te produzia, inclusive por concessão ou compra de alforria. A liberdade era, a princípio, um atributo do “branco”, que potencializava a inserção social e a propriedade. Durante a segunda metade do século XIX, entretanto, essa representação da liberdade começa a ter as suas bases solapadas. O crescimento demográfico de negros e mestiços, livres ou libertos, já não permitia perceber os não brancos livres como exceções controladas. Em 1872, no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, à exceção do Vale do Paraíba fluminen­ se, negros e mestiços livres eram sempre superiores em número aos escravos e, frequentemente, à população branca recenseada16. Também o acesso ao escra­ vo já não se fazia com a mesma facilidade após a extinção do tráfico atlântico. Em meados do século XIX, começa a se reverter a pulverização da posse de cativos que caracterizara o final do período colonial, num contexto em que as áreas do Sudeste aqui consideradas drenavam para as maiores lavouras os ca­ tivos de pequenos senhores, das vilas e cidades e de outras regiões17. Neste contexto, redefinem-se os significados emprestados à noção de liberdade, que

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continuam, entretanto, a se construir em oposição à escravidão e referenciados estruturalmente ao padrão cultural anterior. A historiografia sobre a escravidão, especialmente quando relativa ao Cen­ tro-Sul, não tem, em geral, contemplado essa diferenciação. Toma-se o século XIX, no que se refere à questão (a liberdade), como uma simples continuida­ de do século anterior, que apenas o fim do cativeiro viria a quebrar. Em traba­ lho pioneiro e sempre citado, Maria Sylvia de Carvalho Franco enfatizou a dependência pessoal como elo básico de inserção dos “homens livres pobres” na ordem escravista18. Pode-se dizer que a própria expressão foi criada ou, pelo menos, teve seu uso generalizado, a partir de seu trabalho. Consolidou também uma abordagem genética, predominante nos estudos sobre São Paulo, no sé­ culo XVIII, em relação às origens das camadas assim constituídas, que os viam como produtos do impacto da ordem comercial e escravista sobre áreas antes isoladas da economia de mercado19. A aparente sobrevivência dos antigos padrões de reprodução social se faria, no novo contexto, sob o signo da mar­ ginalidade econômica e da anomia social expressa na fragilidade das interme­ diações culturais e sociais nas relações pessoais e no consequente recurso à violência para solução de situações de conflito, engendrando “o código do sertão . Se a dependência pessoal é, sem dúvida, um traço central da coesão social no Brasil escravista, o sentido de sobrevivência social mutilada e a consequente anomia social, daí decorrente, consolidariam outra abordagem interpretativa que, mesmo de pontos de vista teóricos diversos do da autora e de uma pers­ pectiva muito mais generalizante, tenderam a reiterar o caráter economica­ mente prescindível, socialmente marginai e culturalmente anômico dos cha­ mados homens livres pobres na ordem escravista, percebendo-os estrutural­ mente como um teleológico “exército de reserva”, lentamente formado ao longo de três séculos21. Demograficamente, entretanto, sempre me pareceram problemáticas essas interpretações, especialmente quando estendidas ao século XIX. Afinal, em 1872, em todo o Império contavam-se 4,2 milhões de negros e mestiços livres e 3,8 milhões de brancos contra apenas 1,5 milhão de escravos22. Tendo em vista o tamanho sabidamente reduzido da elite econômica ou política, desenha-se, assim, uma não sociedade, em que milhões de pessoas, entre livres e escravos, estariam em condições de desclassificação social, desajuste cultural e marginalidade econômica. Diversas pesquisas, entretanto, têm fornecido elementos para repensar a questão23. Também neste trabalho, busco encarar a questão de outro ponto de

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vista. Parece-me bem mais razoável supor que, na vigência da escravidão, as expectativas de liberdade, que se abriam aos nascidos livres despossuídos e ao sonho de liberdade dos escravizados, foram culturalmente construídas no interior da sociedade escravista e estiveram a ela integradas. Deste modo, “livres pobres” ou escravos (uma vez que socializados enquanto tais) agiam social­ mente a partir dos códigos culturais correntes naquela sociedade, mesmo que reinterpretados a partir de suas posições sociais específicas. Ou seja, conside­ ro-me diante de uma sociedade estruturalmente desigual e baseada na pro­ priedade de seres humanos, mas passível de ser compreendida e capaz de fornecer referenciais à ação de todos aqueles que a formavam e transformavam. É a partir dessa premissa que tento recuperar os significados da liberdade na vigência da escravidão, no contexto das transformações sociais que marcaram o Sudeste escravista no século XIX.

Notas 1

Cartório do Primeiro Ofício de Notas de Campos, maço 1. Testamento de Domingos Vieira

2

de Carvalho, 1704, localizado e gentilmente cedido pela professora Sheila Siqueira de Castro Faria, da linha de pesquisa em história agrária da UFF. Cf., entre outros, Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens livres na ordem escravocrata, 1974;

3 4 5

Alida C. Metcalf, Families ofPanters, Peasants and Slaves — Strategiesfor survival in Santana de Pamaíba, Brazil, 1720-1820, 1983; Laura de Mello e Souza, Desclassificados do ouro — A pobreza mineira no século XVIII, 1986; Hebe Mattos, Ao Sul da história — Lavradores pobres na crise do trabalho escravo, 2009 (1987). Kátia M. de Queirós Mattoso, Bahia, século XIX — Uma província no Império, 1992. Alida C. Metcalf, Families ofPanters, Peasants andSlaves,.. Sheila de Castro Faria, Casamento e escravidão nos séculos XVII, XVIII e XIX, 1992; Idem, A co­

6

lônia em movimento, fortuna efamília no cotidiano colonial, 1998. As irmandades religiosas no Brasil colonial frequentemente se organizavam por critérios raciais

e mesmo por etnias africanas; cf., entre outros, A. J. R. Russel Wood, Fidalgos efilantropo — A Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1550-1755,1981, cap. 6, pp. 89-110; Caio César Boschi, Os leigos e 0 poder — Irmandades leigas e política organizadora em Minas Gerais, 1983, cap. 4, pp. 140-76; João José Reis, A morte é umafesta — Ritosfúnebres e revolta popular no Brasil do sécu­

7

lo XIX, 1991, cap. 2, pp. 49-72. Sheila de Castro Faria, “Histórias esquecidas — Os andarilhos da sobrevivência”. Cap. II — A

colônia em movimento. Exame de qualificação. Curso de doutorado em história. Niterói, UFF, dez., 1992. 8 João José Reis, Rebelião escrava no Brasil — A história do levante dos males, 1855,1986. 9 Cf., neste sentido, Alida C. Metcalf, Families ofPanters, Peasants and Slaves..., cap. IV. 10 Cf., entre outros, Iraci Costa, “Algumas características dos proprietários de escravos em Vila

Rica”, Estudos Econômicos II (3): 151-57. São Paulo, IPE-USP, 1981; Stuart B. Schwartz, “Padrões de propriedade de escravos nas Américas: nova evidência para o Brasil”, Estudos Econômicos

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XIII, na 1,1983, pp. 259-87; Idem, “Peasants and slavery”, in Slaves, PeasantsandRebels — Recon­ sidering Brazilian Slavery, 1992; Hebe Maria Mattos de Castro, “A escravidão fora das grandes unidades exportadoras”, in Ciro F. S. Cardoso, (org.), Escravidão e abolição no Brasil — Novas

11

perspectivas, 1988, pp. 32-45. Documentação judiciária. Inventáriospost mortem, caixa 12.091, n3 268. Arquivo Nacional.

12

Cartório do Terceiro Ofício de Notas de Campos, 1824.

13

Quanto a este último aspecto, observação em sentido semelhante é feita por Kátia Mattoso, em

relação ao Recôncavo Baiano do século XIX. Cf. Kátia M. de Queirós Mattoso, Bahia, século

14

XIX..., p. 594. Neste sentido, ver também Sidney Chalhoub, Visões da liberdade ■— Uma história das últimas

15

décadas da escravidão na Corte, 1990. Cf., entre outros, Hebe Maria Mattos de Castro, “A escravidão fora das grandes unidades ex­

16

portadoras”, e Stuart B. Schwartz, Slaves, Peasants and Rebels... IBGE. Recenseamento Geral de 1872.

1

Cf., neste sentido, Ismènia de Lima Martins, “Problemas da extinção do tráfico africano da província do Rio de Janeiro”. Tese de doutorado. São Paulo, USP, 1973; Robert Slenes, “The Demography and EconomicsofBrazilian Slavery, 1850-1888”. Ph.D. Stanford University, 1976; Peter Eisenberg, Modernização sem mudança —A indústria açucareira em Pernambuco, 1840-1910,1977; Sheila de Castro Faria, “Terra e trabalho em Campos dos Goitacases, 1850-1920”. Dissertação de mestrado. Niterói, ICHF, UFF, 1986; Hebe Mattos, Uo Sul da história... 18 Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens livres na ordem escravocrata..., caps. 1 e 2.

19

Neste sentido, cf., entre outros, Alida C. Metcalf, Families ofPanters, Peasants and Slaves...-,

20 21 22 23

Elizabeth A. Kusnesof, Household Economy and Urban Development, 1765-1836,1986. Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens livres na ordem escravocrata... Lúcio Kowarick, Trabalho e vadiagem — A origem do trabalho livre no Brasil, 1987. IBGE. Recenseamento Geral de 1872. Ciro F. S. Cardoso (org.), Escravidão e abolição no Brasil —- Novas perspectivas, 1988.

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2

Um homem móvel

Quatro jornaleiros dormiam no engenho de Joaquim de Almeida, em São João Príncipe, na madrugada de 23 de outubro de 1878. As quatro horas da manhã, quando se levantavam para o trabalho, Januário Mina, preto forro de 50 anos, agrediu com facadas o “súdito português” Antônio José da Silva, tendo-se depois ferido na garganta. Socorreram a ambos seus companheiros de trabalho, Isidoro Crioulo, também forro, de 25 anos, nascido em São José do Bom Jardim, e Bento Alves Viana, de 12 anos, filho de João Alves Viana, lavrador “de roça” nas vizinhanças. Bento esclarece um pouco sobre a forma pela qual haviam sido recrutados: “Disse que vindo na véspera do dia que se deu o fato a casa do senhor Antônio Joaquim de Almeida procurar serviço e como chegasse tarde este disse-lhe que fizesse o trabalho de meio dia, então à noite foi ele respondente pousar no engenho junto com Isidoro, Januário e Antônio...”1. Isidoro, Januário e Antônio, sem casa e sem família, já conviviam há mais tempo naquelas terras, mas as testemunhas do processo pouco sabiam dizer de suas relações pessoais e de seu passado. Não interessa aqui investigar as motivações do crime. Januário refere-se a uma acusação de roubo que Antônio lhe teria feito, mas, no momento de sua prisão, por lavradores da vizinhança, encontrava-se ferido na garganta por seu próprio canivete, cantando e dan­ çando. Posteriormente, disse que tentara matar-se por encontrar-se “aborre­ cido da vida”. Na prisão, ao longo do processo, que se arrastou por três anos, várias vezes tentou suicidar-se, atacando simultaneamente seus companheiros de cela, que tentavam socorrê-lo. Foi, finalmente, após dois exames de sanidade, considerado louco e recolhido à “casa de alienados”, na capital da província. Deixo os exames de sanidade para os alienistas, mas a estranheza ante o comportamento de Januário merece um pouco mais de atenção. Tentemos acreditar nele. Do seu ponto de vista, a motivação de sua “loucura” era estar

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“aborrecido da vida”. Poderia ter vários motivos absolutamente desconhecidos para isso, ligados a seu passado, desconhecidos tanto para o pesquisador como para as pessoas que com ele então conviviam. Mas ele estava também nitida­ mente aborrecido com o seu presente e era isso que provocava estranheza. A suspeição sobre a possível loucura de Januário se faz inicialmente com base na impossibilidade, registrada no processo, de explicar racionalmente suas atitudes. Sem dúvida, não era socialmente esperado que jornaleiros em­ pregados numa fazenda, fosse qual fosse o seu passado, matassem sem motivo seus companheiros e tentassem suicidar-se, dançando e cantando, ou mesmo que os presos, acusados de assassinato, repetidamente atentassem contra si próprios, na prisão. Fora isso, seu comportamento parecia a juizes e advogados absolutamente “normal”. A todas as testemunhas se perguntava por uma pos­ sível rixa entre ofendido e ofensor, que pudesse tornar inteligível a agressão, o que todas diziam ignorar. Suspeitava-se da loucura de Januário, recorrendo-se aos pareceres médicos, porque ele não agia como se poderia socialmente pre­ ver ou esperar. E, no entanto, a situação de Januário era essencialmente diferente da de seus companheiros de jornada. Isidoro tinha 25 anos. Era um ex-escravo que exercitava plenamente o primeiro e único atributo que ganhara com a alforria: a capacidade de mover-se em busca de novos laços que lhe permitissem afirmar sua condição de livre, perante seu passado cativo. Bento tinha 12 anos e uma família, com uma roça. Antônio, apesar de o processo não esclarecer precisa­ mente sobre sua idade, era jovem, português e recém-chegado. Sem dúvida, tinha seus sonhos. Apenas para Januário, sem casa e sem família, aos 50 anos de idade, num país ainda estrangeiro, que não entendia seu canto ou sua dan­ ça, aquela situação deixava de revestir-se do caráter de transitoriedade, neces­ sário para que fosse percebida como uma dádiva da liberdade. Esse sentido transitório ou provisório da mobilidade espacial torna-se, assim, essencial para uma percepção culturalmente integrada dos recorrentes processos de desenraizamento dessa sociedade. Trabalhando com 65 processos da Corte de Apelação, envolvendo escravos, no século XIX, reuni 552 testemunhas livres. Entre essas pessoas, 63% viviam e trabalhavam fora das regiões em que nasceram. A configuração socioprofissional de homens e mulheres assim reunidos é também impressionantemente semelhante para todo o século XIX e para as mais diversas regiões. O maior subgrupo é formado por “lavradores”, entendi­ dos aqui, na acepção corrente na segunda metade do século XIX, como os que viviam preferencialmente da exploração de lavouras próprias, sejam simples

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roças de subsistência, em terra alheia, exploradas com trabalho familiar, sejam importantes lavouras escravistas. Na amostra, predomina a primeira possi­ bilidade. Eles são 42% das testemunhas arroladas. Sem maior significação em si mesmos, esses números sem dúvida ilustram o peso da mobilidade espacial e a predominância da produção agrícola independente, em bases familiar ou escravista, nas possibilidades abertas à garantia da sobrevivência para o conjunto de homens livres. Essas duas situações são, entretanto, aparentemente contraditórias. A produção agrícola, escravista ou familiar, implica, por definição, fortes víncu­ los econômicos e sociais, estabelecidos em nível local, pouco compatíveis com uma extrema mobilidade. E, de fato, os lavradores representam 60% das tes­ temunhas que viviam nas regiões em que nasceram e apenas 33% dos migran­ tes. A atividade agrícola, mesmo a simples roça de subsistência, pressupunha pelo menos uma família constituída e o acesso costumeiro à terra. Para ambas as condições, era necessário estabelecer laços na nova região, o que demandava um tempo razoável de socialização e a permanência na área. À exceção dos lavradores, entretanto, as demais ocupações socioprofissionais da amostra aparecem fortemente marcadas pela mobilidade. Setenta e um por cento (71%) dos negociantes, em geral proprietários de pequenas vendas de secos e molhados, frequentemente cenário dos crimes investigados, 73% dos que se dedicavam a ofícios especializados, nas vilas e fazendas, e 85% dos assa­ lariados agrícolas não haviam nascido nas localidades onde moravam. Coincidência? Afinal, a fonte analisada, além de reunir uma amostra pe­ quena, não é imediatamente representativa de nenhum universo mensurável. Apesar disso, esses números foram analisados em várias etapas, à medida que se ampliava a coleta de dados nos processos, e as tendências encontradas, Testemunhas arroladas segundo profissão e naturalidade Naturais

Migrantes

Não menciona

Total

Lavradores

89

114

28

231

Assalariados agrícolas

8

52

1

61

Ofício especializado

19

77

10

106

Negociantes

18

59

6

83

Outras

15

47

9

71

349

54

552

Total

149 2

Fonte: Corte de Apelação: escravos. Arquivo Nacional .

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apesar de uma óbvia variação dos números relativos, foram sempre reiteradas. Uma primeira versão deste texto, com as mesmas conclusões, foi escrita antes mesmo que se completasse a coleta de dados nos processos e, portanto, com apenas parte das testemunhas que ao final foram computadas. O que homogeneizava de tal forma os homens livres aqui reunidos? Não foi, como poderia parecer, seu envolvimento com a Justiça, pois os réus, em quase 100% dos casos, eram escravos. Foi, antes, parece-me, seu envolvimento pessoal cotidiano (num sentido horizontal) com escravos. Desse ponto de vista, as testemunhas aqui reunidas representam os grupos sociais menos fa­ vorecidos do mundo dos homens livres, com uma expressiva participação de forros e seus descendentes, permitindo uma aproximação privilegiada com a experiência da liberdade, como era percebida em contraponto e em relação com a experiência da escravidão. Desse ponto de vista, a mobilidade espacial se colocava claramente como uma resposta necessária ao desenraizamento, que buscava, entretanto, objetivos bastante específicos. Em qualquer caso, aparece fortemente marcada por um sentido de temporaneidade, que não chega a ser alterado pelas transformações específicas, iniciadas a partir de 1850. A tabela abaixo, que acrescenta à profis­ são informações sobre o estado civil das testemunhas arroladas, permite inte­ ressantes considerações nesse sentido, tomando-se o casamento como um indicador de que os que não viviam onde nasceram já estariam efetivamente fixados na nova região. Testemunhas arroladas segundo profissão e estado civil Lavradores

Ofícios especializados

Negociantes

Outras

agrícolas

Assalariados

casados/viúvos

163

3

51

46

39

solteiros

68

58

55

37

32

% casados/viúvos

71

5

48

55

55

Fonte: Corte de Apelação: escravos. Arquivo Nacional.

Configuram-se nesse quadro dois percursos possíveis, a partir da decisão de migração. Por um lado, mesmo em face da rigidez rural predominante nas áreas consideradas, os arraiais, as vilas e pequenas cidades possibilitavam a reinserção social para os que possuíam algum capital para montar pequenos negócios ou para os que dominavam ofícios especializados. Mais da metade dos que exerciam essas ocupações eram legalmente casados, mesmo que mi­

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grantes, em sua grande maioria. Tendo em vista a frequência de uniões con­ sensuais, especialmente nas camadas mais pobres da população livre, esses números são bastante significativos. Por outro lado, no circuito rural-rural, a mobilidade, associada ao assalariamento agrícola eventual, funcionava como uma ponte provisória até o estabelecimento de novos laços que permitissem reconstituir a situação anterior de lavrador independente, pressupondo ne­ cessariamente uma família legal ou informal. A amostra reunida registrou apenas um jornaleiro casado, contra 75% de lavradores nessa mesma condição. De todas as ocupações socioprofissionais dos homens livres, as de jorna­ leiros e camaradas, ou seja, as ligadas ao assalariamento agrícola não especia­ lizado, são as mais fortemente marcadas por esse sentido de transitoriedade. Essa caracterização não implica considerar que, em cada caso individual, essa situação seria superada, mas que o sentido social das ocupações só é atingido plenamente quando se percebe o caráter eventual ou transitório com que era encarada pelos que as realizavam. Eram essas as ocupações típicas do homem móvel e desenraizado: ou apresentavam caráter complementar à exploração de lavoura própria pela família ou não geravam laços sociais suficientemente fortes para garantir sua permanência na região. Fazendeiros e sitiantes não pareciam temer receber em suas terras, como assalariados temporários, homens absolutamente desconhecidos. Especial­ mente na segunda metade do século, quando o aumento do número de negros e mestiços livres j á começava a fazer com que acorda pele deixasse de ser uma marca necessária ou provável da condição cativa, por diversas vezes o assalaria­ mento temporário, em sítios ou fazendas de regiões relativamente distantes do local da fuga, serviu de esconderijo para escravos fugidos, que se passavam por livres. Desta forma, o recurso à mobilidade espacial tornava-se cada vez mais acessível a libertos e não brancos livres, solapando uma das bases do con­ trole social no mundo escravista: a cor da pele, como elemento de suspeição. Na segunda metade do século, as fugas “para dentro” se faziam possíveis não apenas em direção dos núcleos urbanos3, mas também no sentido rural-rural. Esse foi, por exemplo, o caso de Antônio Ferreira, escravo em Bananal, São Paulo, Vale do Paraíba, em 1864, que em suas várias fugas, que redundaram em dois processos criminais, conseguira até sobrenome4. Apesar de cearense, Antônio conhecia bem os caminhos de Minas e não tinha maiores dificulda­ des em conseguir trabalho, como jornaleiro ou camarada, nas fazendas da região. Quando foi preso pela segunda vez, em Vila Cristina, no sul de Minas, estava com outros camaradas livres, tomando café e “pausando” do serviço de roça em casa do “amo” João Belo.

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Os recém-chegados não passavam, entretanto, em nenhum caso, desper­ cebidos numa região. Deviam rapidamente criar laços ou novamente partir, pois chamavam a atenção e eram identificados como externos ao local. À chegada da escolta que viria prender Antônio Ferreira, acusado de dois assas­ sinatos durante a fuga, o subdelegado da freguesia rapidamente pôde identi­ ficar, na descrição dos procurados, os novos camaradas de João Belo, que se dispôs a facilitar o trabalho de captura. Felício, baiano, também escravo fugido, teve um pouco mais de sorte5. Vindo de Rio Claro, Rio de Janeiro, para o bairro de Buquira, na vizinha São João Príncipe, ali permaneceu por seis anos, trabalhando, sem domicílio certo, como jornaleiro e camarada, para sitiantes locais. Em 1861, sob o nome de Ezequiel, já era bastante conhecido no bairro e encontrava-se amasiado com uma mulher da região. Começava a estabelecer laços que, ao final, se perderam. Se não se tivesse envolvido ruma rixa de vizinhos, que resultou no processo analisado, talvez sua condição cativa jamais tivesse sido descoberta. Na segunda metade do século XIX, a proximidade desses homens livres com os escravos, mesmo de grandes fazendas, muitas vezes trabalhando lado a lado, exercia um duplo papel na socialização da forma como era apreendida essa vivência específica da liberdade. Reforçava, por um lado, seu sentido eventual e transitório para os homens livres como forma de afirmação de sua diferença do mundo dos cativos. Por outro, para os escravos, apresentava-se como alternativa em caso de fuga ou alforria, especialmente quando não pos­ suíam laços familiares ou de patronagem mais sólidos, no cativeiro, o que a generalização do tráfico interno tornava cada vez mais comum. Como já foi considerado, a categoria dos assalariados agrícolas não espe­ cializados é o único subgrupo socioprofissional, nos processos analisados, em que praticamente todos os arrolados (há apenas uma exceção) são solteiros ou viúvos (dois casos). Na verdade, raramente (a não ser quando moravam ainda com a família) tinham “casa” dormindo em locais improvisados, como Ezequiel, Felício e Januário, com seus companheiros. Apenas os que, como Bento, so­ mente complementavam a renda familiar haviam nascido nas freguesias em que trabalhavam. Na amostra, pude identificar basicamente três tipos de jor­ naleiros: o filho de família de lavradores de roça, que complementava a renda familiar (como Bento); jovens migrantes sempre recém-chegados à região (como Antônio e Isidoro), em muitos dos casos, como estes, forros ou portu­ gueses; e velhos ex-cativos, em geral africanos (como Januário). Apenas para os últimos essa ocupação não estava marcada por um caráter eventual e com­ plementar ou temporário.

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O chefe de família, lavrador de roça, que eventualmente se empregasse como jornaleiro ou camarada, jamais seria assim identificado profissionalmente. Nesses casos, prevalecia a situação de “lavrador”, mesmo que acompanhada da adjetivação “de roça”, mesmo que em terra alheia, mesmo que em área de plantation. Ser “lavrador” significava pelo menos ter uma casa, um cercado e uma roça, ou seja, uma “situação” consensualmente sua, que pelo costume podia alienar e deixar em herança. Isso os diferenciava não só dos escravos, mas também do homem móvel e desenraizado. Antônio Rodrigues Santiago (Itaguaí, 1878), 32 anos, viúvo, era (segundo seu depoimento) “morador no lugar da Massomba onde é lavrador”6. Não era proprietário de terras, mas possuía um escravo, de nome Domingos, de 25 anos, que “trabalhava nas roças de seu senhor” Isso não o impedia de “se achar empregado na casa de Manuel Francisco Ramos” Ricardo Francisco da Cunha, perguntado por sua profissão, também responde ser lavrador7. Viúvo e com 32 anos (Rio Claro, 1887), achava-se, porém, “a serviço de camarada”, ajudando os escravos na capina do cafezal, na fazenda onde ocorreu o crime que deu origem ao processo. Na autorrepresentação de ambos, eles são lavradores e acham-se empregados ou a serviço de camarada. A capacidade de mover-se para prover a subsistência traduzia-se na expres­ são “viver sobre si”, algo que a princípio estava vedado aos escravos. Nas Ações de Liberdade, esse era um argumento fundamental, do ponto de vista dos cativos e de seus curadores8. Mais factível nas vilas e cidades, mesmo em gran­ des fazendas os cativos conheciam de perto essa possibilidade e procuravam exercitá-la nas tentativas de fuga e em muitos casos de alforria. Mas essa capa­ cidade de mover-se referia-se a um sentido específico de liberdade. Significava, fundamentalmente, liberdade para escolher e estabelecer novos laços de amizade, família ou patronagem, que conferissem ao homem livre um status específico numa dada comunidade. Ser lavrador de roça significava que esses laços preexistiam e, mesmo que negro ou mestiço, jamais seria confundido ou tratado como um escravo. Antônio Dias, africano, com 70 anos, era um “lavrador”9. Vivia em sua situação com casa e roças, com sua filha Suzana, em Pati do Alferes, Vale do Paraíba fluminense, em 1885. Sua neta, filha de Suzana, era casada com Joaquim Francisco da Fraga, também “lavrador”, de 24 anos, que sabia ler e escrever. A primeira pergunta que fazem a Januário, o louco, em seu auto de quali­ ficação, é se era escravo ou forro. Também velho e africano, não se faz a mesma pergunta a Antônio Dias. Na verdade, sua situação de liberto e mesmo sua cor

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ou a dos outros membros de sua família só são presumidas pela discriminação de sua nacionalidade. O caráter essencialmente móvel do assalariamento agrícola, que se torna praticamente monopólio de migrantes recentes, quando não assume um ca­ ráter eventual, e a tendência ao enraizamento do lavrador de roça, que fez com que 71% dos que assim se qualificavam na amostra fossem legalmente casados ou viúvos, são duas faces da mesma moeda. Compõem uma atitude perante a liberdade, atitude que se referencia a arraigados padrões culturais que ainda guardavam atualização na segunda metade do século XIX. Lembremos de Domingos e do século XVII. Entre a extrema precariedade e transitoriedade dessa situação e a estabili­ dade dos lavradores abria-se, entretanto, nas fazendas e vilas do interior, um pequeno leque de ocupações, em que também predominavam os forros e migrantes, mas que exigiam maior especialização e abriam caminho para si­ tuações mais estáveis. No conjunto dos indivíduos com ofícios especializados desaparece o predo­ mínio absoluto dos solteiros, ao mesmo tempo em que se descobre uma diver­ sidade significativa, em relação tanto ao sexo quanto à idade. Esse conjunto reflete, entretanto, duas realidades distintas. Ofícios especializados segundo sexo, local e naturalidade Vilas

Fazendas

Homens

Mulheres

(Todos homens)

Naturais

20

6

3

Migrantes

33

7

36

Fonte: Corte de Apelação: escravos. Arquivo Nacional.

Num primeiro grupo, reúnem-se feitores, carpinteiros e pedreiros livres, no interior de sítios e fazendas. Ali chegavam, em sua maioria, jovens e desco­ nhecidos na região, com um perfil em tudo semelhante ao de camaradas e jornaleiros, como Benedito Alves da Silva e Marcolino José Pimenta, que tinham pouco mais de 20 anos, em 1864, e trabalhavam como feitores em uma fazenda de café, em Bananal, Vale do Paraíba paulista, recém-chegados de municípios vizinhos, Queluz e Rio Claro. Nessa mesma fazenda, trabalhava também um pedreiro português, de 23 anos. Eles teriam, entretanto, melhores chances que os outros camaradas de fixarem-se como agregados em terras da fazenda, a exemplo do carpinteiro e lavrador José Godoi Moreira, casado e com 50 anos

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de idade, natural de Taubaté e havia alguns anos ali radicado10. Para o jovem, migrante ou forro, apto ao trabalho de feitor ou capaz de exercer funções que exigiam um certo nível de especialização, mais fáceis eram as condições de acesso costumeiro à terra na condição de agregado. Os exemplos poderiam multiplicar-se. Mesmo que em sua maioria migrantes, os que exerciam ofícios especiali­ zados nas fazendas tendiam a estabelecer, com maior facilidade, na região de chegada, vínculos mais duradouros. O domínio de um ofício tornava-se, assim, um passaporte para o acesso à terra, na condição de agregado. Na totalidade dos casos, entretanto, a estabilidade dessa permanência estava ligada à possi­ bilidade mais fácil desse acesso. Especializadas ou não, na segunda metade do século XIX, as funções exer­ cidas por camaradas e jornaleiros nas fazendas, inclusive a de feitor, eram concomitantemente exercidas por escravos11. O sentido de transitoriedade (mobilidade) ou a situação de agregado (casa e roça próprias), além da ausên­ cia da coerção física, eram, assim, fundamentais para a afirmação da liberdade ante a realidade da escravidão. O carpinteiro português Florêncio da Silva Almada, viúvo, de 62 anos, empregado com casa e roçado em outra fazenda de café, onde trabalhava ao lado de dois carpinteiros escravos (Barra Mansa, 1878), esclarece em seu depoimento que sua casa ficava longe das senzalas, “longe como daqui à porteira’12. Alguns cativos, entretanto, conseguiam aproximar-se bastante dessa situa­ ção. A ampliação do espaço de autonomia escrava no contexto das grandes fazendas estava fortemente ligada à obtenção de casa e roça próprias, no inte­ rior das fazendas e, portanto, de uma aproximação desse modelo de exercício da liberdade. A intensa valorização cultural das roças dos escravos, no inte­ rior das fazendas de café, na segunda metade do século XIX, deve ser discuti­ da dentro desse contexto. Voltarei a esse ponto13. Dentro do quadro rural predominante na região analisada, os arraiais, vilas e cidades ofereciam ainda um quadro de relativa abertura para aqueles que dominavam ofícios especializados, conformando um grupo socioprofissional relativamente distinto do anterior. Especialmente para as mulheres sós, repre­ sentava uma opção muito mais viável que a permanência nas áreas rurais. Nem só de forras compunha-se o mundo das lavadeiras, quitandeiras e costureiras nas vilas do interior, mas também de migrantes rurais, viúvas ou solteiras, como Maria Laurinda, Feliciana Maria do Espírito Santo e Ana Joaquina da Conceição, lavadeiras em Campanha, Minas Gerais, em 1870, vindas de Resende, Pouso Alegre e Carmo da Escaramuça, respectivamente14.

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Perdidos todos os laços no mundo rural, pela viuvez, por abandono ou orfandade, a mulher também podia tornar-se migrante. Quando se observa o perfil das testemunhas com ocupações urbanas, é a presença feminina, mesmo que minoritária, mas pela primeira vez relevante, que fundamentalmente chama a atenção. Quando se leem os processos em que aparecem, é o seu trânsito fácil no mundo dos homens (a rua, o traba­ lho e a venda) que mais se destaca15. Nas últimas décadas da escravidão, alfaiates, carpinteiros, lavadeiras, quitandeiras, costureiras travavam complexas relações pessoais nas vilas do interior, envolvendo alguns escravos, mas principalmente libertos e livres, com larga predominância de forros e de seus descendentes. Estabeleciam, assim, verda­ deiras comunidades, abertas aos recém-chegados, mas capazes de oferecer alguma estabilidade a seus membros. Algumas das relações de Paula, filha de Tomé, e Vicência — ambas escra­ vas — e seu filho José, chegados a Resende, Rio de Janeiro, como escravos e aí alforriados em testamento, por seu senhor, exemplificam esse ponto16. No ano de 1860, a “parda” Paula morava em Resende, onde “vivia de costuras” e tra­ vava relações de amizade com Josefa Maria de Sousa, “parda”, de 34 anos, nascida em São Paulo, e Antônia Fortunata, também “parda”, de 30 anos, nas­ cida em Minas Gerais, ambas solteiras e “vivendo de costuras” Seu filho, “José Pardo”, “vivia do seu ofício de alfaiate”, com a “preta forra Escolástica, sua “caseira” (amásia)17, sem profissão. Eram vizinhos de Maria Bárbara Cândida do Nascimento, “parda”, viúva, natural da província de Minas, de 43 anos, que “vivia de quitandas”. José era ainda amigo do “crioulo” (forro) Severo, que “vivia de seu ofício de alfaiate”, de 21 anos, de Geraldo Antônio da Costa, “branco”, que “vivia de seu ofício de sapateiro”, e do “pardo” Manuel Franco­ lino, escravo e alfabetizado, que exercia o ofício de alfaiate em loja própria, com dois aprendizes, pagando jornal a seu senhor. Não se deve, entretanto, idealizar uma situação urbana, em que laços hori­ zontais substituiríam a tendência à verticalidade das relações rurais. A situa­ ção de lavrador de roça pressupunha fortes laços horizontais, especialmente familiares, antes que a de um bom “padrinho”, como procurarei demonstrar. Ao mesmo tempo, nas vilas do interior, um bom “padrinho” era, na maioria dos casos, um recurso de sobrevivência absolutamente necessário. Segundo o depoimento de Severo, Francolino aconselhara José, quando este se encon­ trava sob suspeita de ter cometido um assassinato: então eles lhe disseram que não fugisse que aquilo não era nada, e então Francolino dizia a José que

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fosse para a casa de José Dias Carneiro, ou do padre Manuel que o haviam de »1Q proteger . A diferença fundamental entre os dois casos está no papel culturalmente distinto que neles desempenhava a família nuclear, em sentido clássico. Viúvas, mães solteiras, forros e escravos solteiros encontravam, mais facilmente, nas vilas do interior, um lugar social. Em cada um desses casos, escravos, libertos e migrantes, muitos deles descendentes de ex-escravos, conviviam próximamente, criando laços que permitiam romper com o desenraizamento e com a tendência à mobilidade. Novamente Francolino ajuda-nos a esclarecer esse ponto. Perguntado se era amigo de José, assim responde: “Amigos verdadeiramente não são, porque amigos entendem-se aqueles que são criados juntos, comem juntos e dormem • - ”19 . juntos Sua curiosa definição de amizade soa bastante intrigante para o pesqui­ sador. Pode tornar-se inteligível, entretanto, quando tomada como referência à importância dos laços pessoais naquela sociedade e ao ônus que se pagava pela migração, forçada ou voluntária: a perda do convívio com os que juntos cresceram e se criaram, em última instância, com a “família”, num sentido amplo. Francolino estaria afirmando, assim, o sentido substitutivo que as relações comunitárias, estabelecidas nas vilas e cidades, apresentavam em re­ lação às situações de origem, que frequentemente haviam sido perdidas ou abandonadas. Essas relações tinham, entretanto, significados diferentes para livres e es­ cravos. Enquanto para os primeiros era condição para a sobrevivência em li­ berdade, para os segundos era, antes, uma tentativa de aproximar-se dessa experiência. O depoimento de Francolino, nesse sentido, também esclarece: “‘Dava-se’ (com José) [...] porque era o único rapaz da rua que por aqui havia com o qual podia fazer união e passearem juntos, o que não podia fazer nem com negros, e nem com brancos”20. Essa resposta poderia ser tomada como evidência do peso da estratificação racial na vila de Resende, em 1860, que separaria mesmo negros de pardos, entendidos como mulatos ou mestiços. Essa interpretação não explicaria, entretanto, suas relações de amizade com o “crioulo” Severo ou com o sapa­ teiro “branco” Geraldo Antônio da Costa. A chave para a compreensão dessa declaração de Francolino encontra-se, a meu ver, noutro ponto. Francolino, apesar de escravo, desfrutava de uma situação privilegiada, mesmo se comparada com os outros alfaiates livres ou

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libertos. Vivia com dois aprendizes, numa casa de seu senhor, na cidade, sus­ tentada com seu trabalho e onde funcionava sua loja. Era ele quem fre­ quentemente conseguia trabalho para os forros Severo ejosé. Esteja até havia sido, durante alguns meses, seu empregado. A seu senhor, que morava numa fazenda, só pagava o jornal, enquanto economizava para comprar sua alforria já acordada. Antes de ser vendido a esse proprietário, evitava encontrar-se com seus ex-senhores, ao se recolher para dormir, para não ser obrigado a pedir-lhes a bênção. Segundo um dos depoimentos, por esse motivo teria sido vendido. Não se misturar com os negros, nesse contexto, marcava esse desejo de dife­ renciar-se dos demais escravos. Como regra geral, nos processos analisados, “negro” e “escravo” eram utilizados como sinônimos, bem como a cor branca, até meados do século, aparecia frequentemente como definidora isolada do status social específico de uma condição de liberdade, que independia de qualquer outra relação social para ser reconhecida. A Francolino só restava aproximar-se do mundo da liberdade que dependia dessas outras relações sociais, em que poderia diferenciar-se dos demais escravos e reiterar sua liber­ dade de fato, até que ela se tornasse um direito. Na situação urbana, mais que no contexto rural, ao escravo tornava-se possível “viver sobre si”, ou seja, aproximar-se quase à indiferenciação do mundo dos livres, um mundo que era, então, predominantemente “pardo”. Mais uma vez, aqui, a experiência de liberdade com que conviviam servia de referencial, sempre contrastada com o modelo conhecido de cativeiro. Essa situação não pode ser tomada, entretanto, como generalizada entre os escravos urbanos. Francolino não pode ser tomado como um escravo “típico” das vilas do interior. Esperava-se do escravo, nas vilas, que tomasse a bênção a seu senhor e que lhe prestasse satisfações frequentes, coisas que Francolino não fazia, o que é constantemente lembrado pelas testemunhas. Outro escravo “urbano”, José Cabra, que, em 1847, no Serro, Minas Gerais, conseguia liberdade de movimentação suficiente para sustentar uma casa para sua amásia e frequentar batuques, à noite, com amigos livres, é acusado de roubo em uma casa de negócios e alega, ao se defender: “Onde estava ao tem­ po que aconteceu o crime? Respondeu que na noite que se diz aconteceu o roubo, estava na casa de seus senhores, para onde se recolheu às oito horas da noite, pois dorme fechado”21. Não se trata de saber se José Cabra dormia ou não verdadeiramente fecha­ do, o que de resto parece pouco provável, mas de perceber que, quando o es­ cravo, nas vilas e cidades, conseguia ampliar seu espaço de autonomia para além do trabalho nas ruas, o fazia claramente em direção a um determinado

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modelo de liberdade e em oposição a outro, igualmente bem estabelecido, de cativeiro. Era perfeitamente plausível aos jurados que José Cabra efetivamen­ te tivesse uma hora para se recolher e dormisse fechado em casa de seu senhor. No caso de Fortunato, marceneiro escravo em São Fidélis, em 1868, essa aproximação torna-se verdadeiramente exemplar. Fortunato morava num quarto alugado, com sua esposa, parteira e livre, com consentimento de seu senhor e, nessa condição, segundo seu depoimento, “dirige à sua vontade a sua casa, podendo dela sair e entrar quando bem lhe aprouver”22. Possuía, como Francolino, um trato com seu senhor, a quem pagava um jornal fixo, ao mesmo tempo em que juntava dinheiro para comprar sua alfor­ ria. Com esse intuito, além de seu trabalho de marceneiro, montava frequen­ temente uma venda, do outro lado do rio, em época de “festas e espetáculos”, e estava decidido a deixar São Fidélis para tentar a vida na cidade de Campos. Acusado de vender mercadorias roubadas, é absolvido, mesmo que o gosto de alguns fosse: “Vê-lo açoitado na cadeia ou subir a uma forca, porque é um negro muito malcriado e muito pimpão, e pensava saber que não devia andar todo engravatado porque era escravo”23. Nesse caso, a ampliação do espaço de autonomia no cativeiro chegara a incluir a possibilidade de migração voluntária, que aparece na decisão de Fortunato de trocar São Fidélis por Campos. Em todos os depoimentos, en­ tretanto, ressalta-se o contraste da situação de Fortunato com o modelo espe­ rado de “cativeiro” que informavam as testemunhas, associado a uma nem sempre velada crítica à liberalidade de seu senhor. Francolino era bastante respeitado e estimado na vila de Resende e tratara casamento com a irmã de José Pardo, a quem tentavam alforriar. A concubina de José Cabra era mãe da amásia de João Batista, ourives e livre. José Cabra tornara-se, nessa condição, padrinho do filho recém-nascido de João Batista. Fortunato era casado com uma mulher livre e bastante estimado “do outro lado do rio”. Todos dependiam, obviamente, da boa vontade de seus senhores. O rompimento com a transitoriedade da mobilidade e o alargamento do es­ paço de autonomia dos cativos eram na maioria dos casos tributários do esta­ belecimento de sólidas relações familiares e pessoais. Voltarei a esse ponto24. Por ora, cabe reafirmar as possibilidades abertas ao exercício da liberdade pela mobilidade espacial e o marcado sentido de temporariedade que trazia, bem como a crescente indiferenciação prática que se estabelecia entre negros e mestiços livres (“pardos”), brancos empobrecidos e mesmo alguns cativos que logravam ampliar seu espaço de autonomia dentro do cativeiro. Numa sociedade marcada pelas relações pessoais, estabelecer laços era essencial para

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a obtenção de um lugar, por mais obscuro que fosse, no mundo dos livres. Os reiterados processos de desenraizamento faziam, entretanto, parte estrutural desse mundo, e seus indivíduos possuíam recursos culturais suficientes — fossem forros, viúvas, órfãos ou jovens à procura de um destino — para con­ viver com essa realidade e se reinserir na ordem social sem que se tornassem socialmente anêmicos ou desclassificados. E os cativos, que buscavam aproxi­ mar-se da liberdade, sabiam disso.

Notas 1

Documentação judiciária. Corte de Apelação: Escravos. Processos criminais. Caixa 11.089,

2

n-1.636. Arquivo Nacional. Os subgrupos profissionais aqui utilizados foram extraídos diretamente do contato empírico

3 4

com as fontes, agrupados, entretanto, em função de alguns critérios. Consideram-se, assim, literalmente, “lavradores” e “negociantes”. “Jornaleiros”, “camaradas” e “trabalhadores de roça” foram agrupados como “assalariados agrícolas”. “Carpinteiros”, “sapateiros”, “alfaiates”, “ferreiros” “ourives”, “domadores”, “arrieiros” e outros assemelhados foram reunidos sob a rubrica “ofícios especializados”. No grupo “outros” estão considerados os que viviam “de agências”, sem maiores especificações, os que não mencionavam profissões, os feitores c administradores, médicos e funcionários públicos. Neste sentido, cf. Ademir Gebara, 0 mercado de trabalho livre no Brasil, 1871-1888,1986. Documentação judiciária. Corte de Apelação: Escravos. Processos criminais. Maço 151, na 519.

5

Arquivo Nacional; Documentação judiciária. Corte de Apelação: escravos. Processos criminais. Caixa 11.079, n“ 2-568. Arquivo Nacional. Documentação judiciária. Corte de Apelação: Escravos. Processos criminais. Caixa 11.110,

6

na 650. Arquivo Nacional. Documentação judiciária. Corte de Apelação: Escravos. Processos criminais. Caixa 11.105,

7

ne 847. Arquivo Nacional. Documentação judiciária. Corte de Apelação: Escravos. Processos criminais. Caixa 11.069,

12 13 14

n91.467. Arquivo Nacional. Cf., neste sentido, Sidney Chalhoub, Visões da liberdade — Uma história das últimas décadas da escravidão na Corte, 1990, cap. 2. Documentação judiciária. Corte de Apelação: Escravos. Caixa 11.016, n91.140. Arquivo Nacional. Documentação judiciária. Corte de Apelação: Terras. Maço 151, na 519. Arquivo Nacional. Nos processos analisados, encontram-se regiscrados escravos “pedreiros”, “carpinteiros”, “alfaia» «r » «r ■ „ tes, reitores e ferreiros. Documentação judiciária. Corte de Apelação: Terras. Caixa 12.003, n2 95. Arquivo Nacional. Ver Segunda Parte: “Sob o jugo do cativeiro”, especialmente cap. 2. Documentação judiciária. Corte de Apelação: Escravos. Maço 222, n2 2.161. Arquivo Nacional.

15

Cf., no mesmo sentido, entre outros, Maria Odila Leite da Silva Dias, Quotidiano epoder em

9 10 11

São Paulo no século XIX, 1984, e Donald Ramos, A mulher e a família em Vila Rica de Ouro Preto, 1754-1838, in Maria Luiza Marcílio (org.), História epopulação — Estudos sobre a Amé­ rica Latina, 1990.

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16

Documentação judiciária. Corte de Apelação: Escravos. Maço 139, n21.277. Arquivo Nacional.

17 18

CE Luiz Maria da Silva Pinto, Dicionário da língua brasileira, 1832. Documentação judiciária. Corte de Apelação: Escravos. Maço 139, n21.277. Arquivo Nacional.

19 20 21

Ibidem. Ibidem. Documentação judiciária. Corte de Apelação: Escravos. Processos criminais. Caixa 10.984, nc 2.321. Arquivo Nacional.

23 24

Documentação judiciária. Corte de Apelação: Escravos. Processos criminais. Caixa 3.700, nB 6.166. Arquivo Nacional. Ibidem. Ver Segunda Parte: “Sob o jugo do cativeiro”, especialmentc cap. 2.

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3

Laços de família

Desde Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre (1933), o modelo de família patriarcal marcou um lugar definitivo no imaginário acadêmico sobre o Brasil escravista. Mais recentemente, esse modelo tem sido contestado a partir de estudos de base demográfica que fazem, de modo geral, uma associação direta entre família extensa (entendida como morada comum de mais de uma gera­ ção da mesma família e seus agregados) e família patriarcal, em oposição à predominância de famílias nucleares, encontrada na análise de listas nomina­ tivas de diversos recenseamentos locais, especialmente em São Paulo, e das evidências em relação ao peso e à importância da família escrava1. O conceito de “família patriarcal” de Gilberto Freyre, entretanto, como bem assinalou Vainfas em trabalho recente2, abarca uma significação muito mais ampla do que o de “família extensa”, à maneira do grupo de Cambridge, estritamente associado à coabitação. Implica uma forma específica de organi­ zação do poder e das funções familiares dentro dos grupos de elite, além da presunção de que escravos e dependentes livres construiríam sua identidade familiar em relação à “casa grande” incapazes, eles próprios, de formar e re­ produzir culturalmente suas próprias famílias. Para a realidade do Centro-Sul, Oliveira Viana3, ao formular a noção de “clã”, já trabalhava em sentido semelhante. Para ele, a única solidariedade pos­ sível, na sociedade colonial, era a verticalmente construída a partir do “grande domínio rural”, que reuniría, em torno do chefe familiar, seus filhos e genros, dependentes livres e escravos. O elitismo explícito de Oliveira Viana expõe de forma mais clara as consequências lógicas dessas formulações — a elimina­ ção da família escrava ou de dependentes livres como possíveis objetos de es­ tudo —, absorvidas e dissolvidas no interior do “clã” ou da “família patriarcal”. Num e noutro, entretanto, o “clã” ou a “família patriarcal” são conceitos complexos, que ultrapassam em muito a coabitação, tendo em vista que a

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maioria dos escravos habitava as senzalas, bem como os dependentes livres, identificados como agregados, habitavam, em sua maioria, construções se­ paradas no interior das grandes propriedades. Além dessa maior abrangência, ambos os autores, muito claramente, reportam-se às suas próprias experiên­ cias socioculturais ao realizar suas interpretações da sociedade escravista. Falam de algo ainda bastante próximo, de solidariedades que sentem conhecer de perto e que buscam interpretar à luz das ciências sociais. Na verdade, do elitismo conservador de Oliveira Viana à democracia racial também conser­ vadora de Freyre e à engajada denúncia do racismo de seus críticos, na década de 1960, Florestan Fernandes4 à frente, resta um substrato comum na identi­ ficação quase empírica da absorção cultural de escravos e dependentes livres pela família senhorial. Essa absorção pôde ser lida como incapacidade eugênica por Oliveira Viana, como locus de miscigenação racial e cultural por Freyre, como massacre cultural dos mais eficientes para perpetuar a segregação social ou racial por Florestan. Não se discute, porém, sua efetividade e a falta de concretude de qualquer coisa que pudesse ser chamada de família entre os escravos ou entre a “plebe rural”. É razoável, entretanto, que os demógrafos se impressionem ao insisten­ temente encontrar a presença da família nuclear ou matrifocal nos núcleos residenciais, ao ver agregados rurais contados como fogos separados em recenseamentos rurais, ao constatar cada vez mais incisivamente a presença da família (nuclear) escrava. Esses complexos familiares dependentes já não eram, entretanto, previsíveis, nos modelos citados? Já se chegou mesmo a explicita­ mente perguntar se, além de simples arranjos biológicos ou residenciais, me­ receríam eles culturalmente o nome de “família”5. As respostas para as questões suscitadas pelas recentes pesquisas demográ­ ficas sobre a história da família livre ou escrava, diante do substrato comum dos mais heterogêneos modelos interpretativos anteriormente propostos, têm necessariamente que se debruçar sobre os significados culturais das associações familiares (e aqui o plural é imperativo) na sociedade escravista e em seu papel central no estabelecimento das hierarquias e relações sociais. Numa sociedade em que os processos de desenraizamento e as relações pessoais exerciam papéis estruturais, o acesso às relações familiares não pode ser tomado como um dado natural, nem a mobilidade, como indicador de anomia. Ambos os processos só encontram significação quando pensados em conjunto, como faces de uma mesma moeda. A contradição entre a intensa mobilidade espacial das testemunhas livres arroladas nos processos analisados e a universalização das relações familiares entre os que se consideravam lavra­

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dores, nesse mesmo conjunto de testemunhas, é apenas aparente. Como Domingos, no século XVII, um migrante, mesmo na situação de camarada ou jornaleiro, podia lograr reinserir-se socialmente, através do casamento ou de união consensual, numa família da nova região. Desse ponto de vista, a relação familiar tornava-se potencializadora de propriedade, mesmo que apenas de uma situação (lavouras e benfeitorias) em terra alheia e sem escravos. Busquei reencontrar esses lavradores de roça, que lograram tornar-se pro­ prietários, em seus inventários post mortem, no momento de sua morte e da partilha de seus poucos bens. Minha experiência anterior de pesquisa animava-me quanto às possibilidades abertas por essa forma de aproximação. Tornou-se necessário, entretanto, novamente refletir sobre o significado desses documentos. Filhos, roças, casas de sapé e mesmo escravos eram recursos profundamen­ te marcados pela precariedade. Os herdeiros de dona Maria do Rosário6 viram, ao longo dos 20 anos em que correu o inventário de sua mãe, lavradora de terras arrendadas em São João do Meriti, incendiarem-se as casas de palha existentes em sua situação, inclusive aquela em que moravam; viram perderem-se numa inundação suas roças de mandioca e falecerem três de seus escravos (entre eles um recém-nascido e sua mãe). Durante esse tempo, viveram todos, três irmãs casadas e dois irmãos menores, em condomínio, na situação her­ dada de seus pais. Os dois filhos mais novos, ao atingirem a maioridade, venderam os dois velhos escravos que lhes haviam cabido por herança, deixa­ ram a situação familiar para suas irmãs e seus cunhados e partiram definitiva­ mente da freguesia em que moravam. Dentro desse quadro de precariedade, a generalização dessa prática jurídi­ ca, mesmo em vista de sua obrigatoriedade legal, quando da existência de filhos menores, era necessariamente bastante limitada. Os inventários analisados, antes que uma categoria social, espelharam um momento de diversas histórias de vida. O lavrador de roça que chegou a legar alguns bens em herança para seus filhos não é mais que a contraface de outros que migraram, órfãos, sol­ teiros, viúvos ou abandonando a família, que não mais podiam sustentar. Foi esse momento que busquei encontrar na amostra de inventários reunidos. A ponta de um iceberg de base bastante ampliada. Fixar-se numa região significava estabelecer laços. O casamento ou mesmo a relação consensual com uma caseira significava estabelecer relações com uma família da região. Significava deixar de ser estrangeiro ou estranho à comuni­ dade. Empregar-se como camarada ou jornaleiro era colocar-se provisoriamen­ te sob a proteção de um sitiante ou fazendeiro, mas constituir família retirava

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o sentido de temporariedade daquela situação e abria as portas para o acesso à roça de subsistência. O casamento e a formação de uma família nuclear es­ tável, ou outras formas de associação dc caráter familiar (como o condomínio entre irmãos ou ex-escravos), tornavam-se, assim, precondição para a produção independente. Desse modo, do conjunto de despossuídos, em suas diferentes histórias de vida, que pressupunham, na maioria das vezes, migrações, enfrentamento de epidemias, pragas e “catástrofes” naturais — como incêndios, secas e enchentes —, os que conquistavam relações familiares estáveis e que venciam a difícil fase da primeira infância dos filhos é que chegavam a estabelecer re­ lações de continuidade com a posse da terra e relações de solidariedade hori­ zontal e vertical com a vizinhança, configurando-se, objetivamente, como lavradores, mesmo quando não contavam com a propriedade legal da terra ou com o recurso do trabalho escravo. A diferenciação inter-regional no interior das áreas analisadas apresenta-se, entretanto, expressamente relevante para a difusão dessa possibilidade e tam­ bém de sua influência sobre os padrões de posse de escravos vigentes. Grosso modo, do ponto de vista da convivência entre livres e escravos, podem-se definir três tipos de situações nas áreas analisadas. Com base nos dados do recenseamento geral de 1872, definem-se três desenhos demográficos dos quais se podem inferir algumas tendências gerais, associando-se o peso rela­ tivo da população livre com urna tendência a uma menor concentração da propriedade escrava e a uma maior incidência da lavoura de roça como estra­ tégia de sobrevivência para a população livre, conforme o gráfico 1. Essa possibilidade bem como a tendência à difusão da propriedade escrava mostram-se, assim, claramente maiores nas áreas produtoras de alimentos, como a Baixada Fluminense (Capivari) e o sul de Minas (Campanha) e, ainda, bastante expressivas nas áreas cafeeiras (São Fidélis) e açucareiras (Campos) do Norte Fluminense e na região cafeeira de Minas Gerais (Mar de Espanha). Na segunda metade do século, apenas no Vale do Paraíba fluminense (Canta­ galo, Vassouras) se encontra algo próximo da clássica imagem do mundo di­ vidido entre uma elite de brancos livres e uma enorme massa de negros escra­ vos. O peso relativo da população branca nas três áreas apresenta-se, entretanto, curiosamente semelhante (algo entre 30 e 40%). É a presença ex­ pressiva de uma população negra e mestiça livre que provoca a diferença dos desenhos demográficos considerados. Em todos os casos, entretanto, a análise dos inventários o comprova, a utilização da família como capital social para o acesso à lavoura de roça fazia-se presente.

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Gráfico i - Censo de 1872: população por cor e condição

O conjunto de inventários post mortem, levantados para Campos, bem como para Capivari e para o recôncavo da Guanabara, na Baixada Fluminense, apesar de parcamente representativo, em termos estatísticos, configura, como as testemunhas dos processos de escravos, uma impressionante identidade dos perfis apresentados. O único critério adotado na seleção desses inventários foi o número de escravos (sempre inferior a cinco) e a possibilidade de identifi­ cação, a partir da lista de bens, de uma situação rural (casa, lavouras e benfei­ torias). Em todos os casos, conforme os gráficos a seguir, apesar da expressiva incidência da propriedade escrava, especialmente para as primeiras décadas do século XIX, o casamento religioso e um elevado número de filhos mostra­ ram-se quase universais na amostra7. Gráfico 2 - Inventários: lavradores segundo o estado civil

Fonte: Inventários post mortem, c. 1820, c. 1850, c. 1870.

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Gráfico 3 - Inventários: lavradores segundo o n- de filhos

Fonte: Inventários post mortem, c. 1820, c. 1850, c. 1870.

Esses índices estão, obviamente, referidos apenas como amostra, não tendo qualquer significado em relação ao conjunto possível de lavradores de roça existentes à época, em qualquer região. São, entretanto, valiosos indicadores de que a família nuclear era precondição para a atividade agrícola indepen­ dente que não dispusesse de capital e que um elevado número de filhos era sempre desejável nas relações matrimoniais. A frequência significativa de se­ gundas núpcias, especialmente nos inventários de lavradores, bem como de filhos e filhas casadas, entre os herdeiros, muitos com o sobrenome “de tal”, permitem, ainda, considerar que o casamento legal fosse largamente predo­ minante entre lavradores “de roça”, que atingiam um nível mínimo de prospe­ ridade, representando mesmo um símbolo de status e estabilidade. Apenas para as áreas cafeeiras do Vale do Paraíba, não tive condições práticas de rea­ lizar o mesmo tipo de levantamento. O trabalho clássico de Stein8 e algumas teses recentes parece-me que reiteram a presunção de que, mesmo minoritários, os lavradores de roça também ali não eram incomuns e dependiam igualmen­ te do trabalho familiar. Na cidade de Campos, onde pude detalhar qualitativamente a análise, se, no conjunto de processos levantados, 85% dos inventariados eram casados ou viúvos, essa proporção aumenta ainda mais, quando se levam em conta apenas os inventários de mulheres. Em relação às mulheres, apenas cinco delas (10%) eram solteiras, todas com família consensual (filhos). Os inventários de mulheres solteiras, mesmo que de grupos abastados, não configuravam, em geral, uma unidade produtiva. Não possuem casas ou la­ vouras, mas apenas bens móveis e escravos. São semelhantes ao inventário de menores, que permaneciam sob a tutela de um pai ou uma mãe viúva. Nas

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partilhas, as mulheres solteiras e os filhos menores recebiam prioritariamente pagamentos em dinheiro ou bens móveis. As viúvas, como meeiras do casal, tendiam a manter o controle da situação agrícola, mas contavam, via de regra, com um segundo casamento ou o apoio de um filho ou genro privilegiado9. Aquelas cinco mulheres, provavelmente, apenas não abriram inventário quando da morte de seus companheiros. A maioria das mulheres amasiadas, mesmo com filhos, não se tornava herdeira legal ou coproprietária dos bens de seu amásio. João de Sousa Oliveira10, filho natural de Rita Maria do Espí­ rito Santo, desquitado pelas leis canônicas, com divisão formal de bens, de Ma­ ria Inácia das Dores, com quem não tivera filhos, viveu por longos anos mari­ talmente com Maria Bernarda, com quem teve nove filhos (de 2 a 22 anos de idade). Reconheceu-os e deixou-lhes todos os bens em testamento, um peque­ no sítio em terras próprias e um escravo, de 50 anos. Maria Bernarda apenas foi citada no testamento como mãe de seus filhos e nada recebeu. José Joaquim Caldas dAlvarenga11, na mesma situação, mas sem filhos, deixou seus bens em usufruto para sua amásia Francelina Pereira de Sousa, com quem vivia havia mais de dez anos. Após a morte desta, dois menores, seus afilhados, tornar-se-iam plenamente herdeiros. Evidenciando a recorrência das práticas de amasiamento, os filhos naturais não aparecem, na amostra, ligados a sinais claros de estigma social. O vigário da paróquia de São Gonçalo e várias mulheres casadas, cujos nomes vinham precedidos pelo título de “dona”, estavam entre os filhos nascidos da união consensual entre o português Antônio Luís Ferreira Pinto e Maria da Silva Leite, que viveram juntos e solteiros por mais de 30 anos, conforme o testa­ mento no inventário deste12. Entre os filhos e as filhas que o mesmo Antônio teve com suas quatro escravas, libertos pelo pai, vários eram casados. Entre todos os solteiros e as solteiras com filhos analisados, encontravam-se com frequência herdeiros maiores (especialmente mulheres) casados. Josefa Maria Francisca13 foi mãe solteira de Úrsula Maria da Conceição, casada à época do inventário da mãe. Casou-se, após o nascimento da filha, com Quintiliano Gomes dos Santos, deixando, ao falecer, dois escravos e uma pequena situação agrícola. Os filhos naturais, e mesmo as mães solteiras, não se viam na prática alijados do acesso à família legalmente constituída (casamento religioso) e do convívio social14. Do ponto de vista da herança de bens, apenas a ilegitimidade causava pe­ sados ônus. Maria Francisca dos Anjos15, viúva de Manuel Francisco Pires, que a abandonara havia mais de 30 anos, tenta beneficiar, no testamento, seu filho ilegítimo, que com ela residia. O irmão mais velho recorre e, filho legítimo,

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consegue o controle da pequena situação da mãe, pagando a terça ao irmão, em bens móveis. A importância das relações familiares reaparece, ainda, no papel estratégico desempenhado pelos cunhados e pelas segundas núpcias. Em sete casos ana­ lisados, as viúvas, ao abrirem os inventários de seus finados maridos, após um ou dois anos do falecimento, já apresentavam como inventariante seu novo consorte, em dois dos processos denominado “sucessor” e irmão do falecido16. Em mais cinco casos em que as mulheres são inventariadas, elas eram casadas em segundas núpcias, todas com os filhos mais novos ainda crianças, menos de sete anos, revelando a precocidade da viuvez e a precariedade até mesmo física das famílias, que tinham de ser repetidamente recriadas17. A própria difusão da prática de as mulheres não apresentarem sobrenomes, mas serem identificadas por sua relação de filha ou esposa, reforça a dependência femi­ nina nessa sociedade e as dificuldades que se apresentavam às solteiras e viúvas que não dispusessem de bens ou proteção. A difusão de fogos de mulheres sós, reiteradamente registrados pelas pesquisas demográficas, parece-me que responde por uma realidade essencialmente urbana e frequentemente asso­ ciada à migração, que se apresentava como a única opção para aquelas mulhe­ res que perdiam o respaldo familiar legal ou costumeiro, conforme capítulo anterior18. Como as viúvas jovens, os homens com filhos menores, sempre que possí­ vel, casavam-se de novo. José Pereira Barbosa teve seis filhos de dois casamen­ tos: Joaquim (11 anos) e Justino (9 anos) com Angélica de Tal, e Rita (7 anos), Quitéria (5 anos), Maria (4 anos) c Júlia (3 anos) com Ana Maria de Jesus — idades à época do inventário. A viuvez e o novo casamento não chegaram sequer a interromper o intervalo regular de nascimento dos filhos. São oito os lavra­ dores casados em segundas núpcias, inventariados em Campos, com histórias muito semelhantes à de José Barbosa19. Se o homem era sempre o “cabeça do casal”, por força da lei e da prática, também não podia viver sem seu corpo. Os poucos homens solteiros, proprietários de situações rurais com um ou dois escravos, que tiveram seus bens inventariados, viviam, sem dúvida, situações temporárias que a morte e o inventário acabaram por eternizar. Essa predominância de casamentos legais (religiosos) é, entretanto, uma clara distorção da amostra, em relação às práticas familiares da maioria dos lavradores de roça. No Brasil escravista, o casamento legitimava os filhos nas­ cidos enquanto eram solteiros os pais20, de modo que não se pode concluir desse dado que o casamento religioso necessariamente precedesse as uniões. Mas certamente sua predominância nos inventários indica que a união reli­

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giosa legitimava o consórcio de interesses que se firmava ao se ter acesso está­ vel à produção familiar. Aí, chega-se a um segundo ponto: os filhos como condição de prosperida­ de. Quanto mais filhos, mais braços. O acesso ao trabalho escravo ou à compra de um pedaço de terra foi, em inúmeros casos, função dessa condição. O cál­ culo econômico do lavrador de roça tornava-se, assim, informado por uma lógica quase chayanoviana1'. Despossuído de capital e dependente da mão de obra familiar, dependia de equilibrar o número de produtores e consumidores no interior de sua unidade doméstica, para poder aspirar à compra de um escravo ou de um pedaço de terra. Essa possibilidade não aparece tão claramente na amostra até 1850, em função das facilidades de acesso ao trabalho escravo, que quase universalizava essa propriedade, no conjunto de pessoas passíveis de se verem obrigadas à abertura de inventário. Mesmo assim, para cada escravo arrolado nos inventá­ rios reunidos, para as duas primeiras décadas do século, contabilizaram-se 1,78 filhos, e as famílias com mais de quatro filhos vivos reuniram, em média, uma fortuna cerca de um terço maior que as que possuíam prole menos numerosa, nas duas áreas consideradas, conforme os gráficos que se seguem. Gráfico 4 - Campos: valor médio dos invent. segundo a idade do primeiro filho

Fonte: Inventáriospost mortem. Campos-RJ.

A difusão do acesso à propriedade escrava, especialmente na primeira metade do século, nem sempre levava a assumir uma lógica empresarial em substituição ao cálculo chayanoviano. A dispersão precoce dos filhos tornava os cativos, frequentemente, e em pouco tempo, simples substitutos daqueles.

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Como o mais valioso dos bens familiares, sua venda, no momento da partilha, era quase inevitável, retomando o ciclo anterior. De qualquer maneira, com muito maior frequência, então, superava-se a dependência do trabalho familiar. Curiosamente, nesses casos, muitas vezes se transferia para a família escrava a mesma lógica cbayanoviana. Era comum comprar-se um casal de escravos africanos e contar com seus filhos, num futuro próximo. Sem senzalas, às vezes ambas as famílias dividiam a mesma casa de sapé e poucos cômodos. Apesar da predominância masculina (a maioria dos inventariados possuía apenas um único escravo, em geral africano), 80% das mulheres cativas arroladas nos inventários de Campos, no início do século, apresentavam relações familiares no minúsculo plantei (marido e/ou filhos)22. Gráfico 5 - Baixada: valor médio dos invent. segundo a idade do primeiro filho

Fonte: Inventários post morterm. Arq. Nacional, fórum de Silva Jardim-RJ.

Essa proximidade entre escravidão e relações familiares tornava cultural­ mente bastante complexas e específicas as relações desses senhores com seus escravos, bem como emprestava uma dimensão inusitada à autoridade paterna, enquanto condição de exploração do trabalho. Em Minas Novas, 1845, o menino Vicente, de 12 anos, testemunha do violento assassinato de seu padri­ nho por um grupo de escravos, ameaçado pelos assassinos, fugira apavorado, deixando cair um balaio de melancias. Quando chegava já praticamente à porta de sua casa, decidiu voltar, por temer entrar em casa e enfrentar o pai sem o balaio. Entre os assassinos — a lincharem o alferes Jerônimo — e seu pai, Vicente não teve dúvidas sobre o que lhe parecia mais ameaçador23.

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Deste modo, da mesma forma que a mobilidade espacial, a família nuclear e a rede de relações pessoais e familiares a ela ligada permanecem essenciais na experiência dos homens livres por todo o século passado, como já haviam sido no período colonial. Também para os escravos, a obtenção de maiores níveis de autonomia dentro do cativeiro parece ter dependido, em grande parte, das relações familiares e comunitárias que estabeleciam com outros escravos e homens livres da região. Mesmo para o estabelecimento de laços de solidariedade vertical mais permanentes, a formação de uma família ou o pertencimento a uma já exis­ tente era precondição, na medida em que as relações de solidariedade vertical culturalmente sólidas e não simplesmente táticas eram em geral estabelecidas entre famílias e não entre indivíduos. Segundo o menino Vicente, o alferes Jerônimo Soares de Souza fora assassinado em emboscada, por alguns escravos e agregados de sua tia, dona Maria Soares. Na única versão apresentada no processo como motivo do crime, ele foi considerado decisão dos próprios executores, liderados por três irmãos escravos e incentivados pela mãe, também cativa. A família não queria tornar-se propriedade da vítima. O alferes ques­ tionava judicialmente o testamento de seu tio, que deixara toda a família de cativos para a esposa, Maria Soares. Os escravos contaram, na emboscada, entretanto, com a ajuda de alguns homens livres e libertos, filhos de lavradores de roça, na vizinhança das terras de dona Maria. Não se pode deixar de pensar num provável envolvimento desta como mandante do crime, mas as descrições pormenorizadas que os réus fazem da emboscada e das comemorações, na senzala de sua mãe, do sucesso da empreitada, não deixam dúvidas de que os implicados tinham um envolvimento pessoal em sua motivação. O alferes Jerônimo Soares de Souza também tinha a sua gente. Considerado “um verdadeiro pai de toda aquela pobreza da beira do rio”, segundo um dos depoimentos, financiava e dirigia diretamente as obras de construção de uma igreja no povoado e era compadre de vários dos lavradores de roça a deporem no processo. Na verdade, os depoimentos sugerem uma divisão das testemunhas entre dependentes, livres ou escravos, do sobrinho ou da tia. Claramente travava-se uma luta por poder e influência, dentro da família Soares, que con­ trolava a região (referências a propriedades de outros membros da família são constantemente feitas no depoimento, especialmente no que diz respeito às descrições dos deslocamentos espaciais). Em nenhum caso, entretanto, os assassinos poderíam ser reduzidos à con­ dição de simples capangas de dona Maria, ou os demais depoimentos, a simples peças de encomenda da viúva do alferes. As relações de dependência, explíci­

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tas no processo, tinham um sentido mais profundo e não podem ser compa­ radas com os alinhamentos meramente táticos de um camarada ou jornaleiro, contratado para segurança ou capanga. No caso dos escravos, considerados os cabeças da emboscada, trata-se do envolvimento de uma família inteira, três irmãos e sua mãe, viúva do escravo Tomás de Tal. A família vivia toda junta, “na senzala de sua mãe”, onde se fi­ zeram as reuniões para planejar o crime, e mantinha estreitas relações com os lavradores de roça da vizinhança. Foram ajudados por dois rapazes brancos, primos em primeiro grau, Alexandre Manoel Pereira e Hipólito Manoel Pe­ reira, filhos de lavradores de roça na vizinhança, não se sabe se em terras de dona Maria. Participou também da emboscada, no lugar do “Buriti”, João Soares Pires — lavrador de roça e neto da escrava Marta Crioula —, com sua mãe, a preta forra Bonifácia Soares. O sobrenome Soares, o mesmo de dona Maria e Jerônimo, parece indicar a que família Bonifácia havia um dia per­ tencido, como escrava. Todos, escravos e livres, eram pessoas havia muito conhecidas na região, inclusive no povoado, e residiam no interior ou nas proximidades das terras de dona Maria. Enquanto se esforçavam para negar o crime, tiveram a ajuda dos depoi­ mentos de Maria Rosa da Conceição, parda, casada, de 42 anos, “que vivia de sua lavoura de roça” e em cuja casa haviam pernoitado no dia da emboscada. Ela nega, no inquérito, que lhes tivesse dado pousada. Também José da Costa Alecrim, “lavrador de roça”, pardo, casado, 22 anos, e seu sogro inicialmente afirmam que, chegando, de canoa, no dia do crime, à fazenda de dona Maria Soares, ali encontraram todos os escravos acusados, o que os impossibilitaria de ter cometido o crime. Tão evidente quanto os laços de solidariedade verti­ cal que ligavam, todos eles, a dona Maria, é a complexidade das relações co­ munitárias e familiares que envolviam também a todos. A solidez dos laços horizontais que estabeleciam tornava seus deveres de fidelidade para com sua protetora uma questão de princípio e de sobrevivência coletiva. A causa dela era também a deles. Muitos choraram, entretanto, a morte do alferes, que claramente se esfor­ çava por consolidar sua influência pessoal entre os lavradores da vizinhança, batizando filhos de lavradores de roça e empenhando-se pessoalmente na construção da capela. Justiniano da Costa e Sousa, pardo, casado, lavrador de roça e compadre do alferes, mandara seu filho, no dia do crime, levar melancias para o padrinho. No caminho, o menino acaba por presenciar a emboscada e o próprio crime. Seu depoimento levaria à prisão dos implicados. Outros la­ vradores de roça, sempre morando com a família e frequentando-se mutua­

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mente, alguns ainda trabalhando nas obras de construção da capela, depõem no processo, repetindo o que lhes contara o menino, ou mesmo, antes da prisão, alguns dos implicados. Ninguém, entretanto, em todo o processo, nem mesmo a viúva e a mãe do falecido, sequer sugere um possível envolvimento de dona Maria no acontecido. Nem todos os lavradores de roça de Minas Novas haviam nascido na região, mas todos, sem exceção, incluindo aí os escravos envolvidos, ali possuíam com­ plexas relações familiares e comunitárias, que acabavam por determinar tam­ bém suas relações de solidariedade vertical com os “grandes” da localidade. A maneira culturalmente esperada de um migrante integrar-se numa nova área não era pedindo emprego ou acolhida a um potentado local, mas travando relações duradouras com os que ali viviam, baseados em relações costumeiras. Do ponto de vista do homem livre, a solidariedade vertical era, assim, herda­ da de relações horizontais anteriores, antes que escolhida. De forma paralela, do ponto de vista de um escravo recém-comprado para o serviço de roça, os caminhos para conseguir no cativeiro um espaço mínimo de sociabilidade passavam por integrar-se à comunidade já existente de cativos, antes que buscar uma difícil e improvável aproximação com seu senhor. Florêncio, recém-chegado à fazenda de Esteves, em Paraíba do Sul, em 1866, morava na senzala de Generosa e Francisco, africanos, e seus três filhos. Pagava regu­ larmente à Generosa para que esta lavasse sua roupa e pretendia casar-se com a filha do casal24. Essa estrutura quase “clânica”, como a chamou Oliveira Viana, ou “patriar­ cal”, como preferia Gilberto Freyre, não pode ser entendida, entretanto, como uma mera extensão da família senhorial. Para os escravos envolvidos, depen­ dentes e despersonalizados por definição, surpreende exatamente o nível de autonomia e estabilidade familiar que conseguiam, extremamente próximo da experiência dos homens livres com os quais conviviam. Em Minas Novas, o estereótipo da escravidão é inclusive explicitamente utilizado em sua defesa. Segundo seu curador, eles não poderíam ter cometido o crime, pois naquele dia, como se espera de qualquer escravo, se encontravam na fazenda de sua senhora, ocupados no trabalho. Na versão inicialmente assumida por todos no processo, inclusive e principalmente pelos próprios irmãos cativos, já se acentua, ao contrário, sua aproximação com o estereótipo da liberdade. Teriam sido eles, autonomamente, que acionaram suas relações familiares e de vizi­ nhança para impedir que Jerônimo se tornasse seu senhor e ameaçasse, nessa condição, aquela autonomia e estabilidade.

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Para os homens livres, a família nuclear como unidade de produção e con­ sumo e a reciprocidade entre iguais eram a base econômica da sobrevivência. Economicamente, dependiam pouco de Jerônimo ou de dona Maria. À soli­ dariedade vertical cabia, fundamentalmente, o papel de sustentar as condições costumeiras que davam estabilidade a todo o sistema. Também Eduardo, escravo de Joaquim da Silva Braga em Vila Cristina, em 187o25, era casado e possuía roças de milho, negociando regularmente os fru­ tos de sua colheita com dona Rita Fausta, velha senhora moradora no povoa­ do, a quem, segundo a acusação, teria assassinado, roubando-lhe ainda 500 mil-réis, que guardava para comprar um escravo. Filho de um casal de africanos já falecidos, Eduardo teria se ausentado da casa de seus senhores, alegando que iria a um mutirão (do qual participavam majoritariamente roceiros livres), próximo à casa de dona Rita, onde não chegou a ser visto. Teria tido como cúmplice seu compadre Luís, também escravo, de um terceiro senhor. Luís, apesar de casado, andava fugido “desde a época das plantações de fumo” e sustentava-se, no sertão, com lavouras de cana e mandioca. A única evidência contra os dois são os depoimentos dos participantes do mutirão, que viram dois negros fugindo da casa de dona Fausta e seguiram seus rastros até a casa do senhor de Eduardo. Não foram, entretanto, propriamente reconhecidos e negaram o crime até o final do julgamento, em que foram condenados. Luís relata que voltara à Vila Cristina para apadrinhar-se com o comendador João Carneiro, pedindo-lhe que intercedesse em seu favor junto a seu senhor, pois estava “cansado de andar nas matas”. Provavelmente mentia, mas sabia que essa explicação era previsível e aceitável. Ambos tinham irmãos na fazenda do comendador e eram assíduos frequentadores de suas senzalas. Ali, segundo alguns escravos, teriam confessado o crime ao preto velho André, que, entre­ tanto, não confirmou essa versão, preferindo narrar em juízo um sonho no qual teria visto os verdadeiros culpados. Repete-se, assim, o quadro geral de Minas Novas26. Todos os senhores de escravos citados, que não depõem no processo, parecem ser parentes e herdei­ ros do pai do comendador. Com certeza são seus vizinhos. Sob sua influência, orbitava um número considerável de lavradores de roça que, no momento do crime, se encontravam no mutirão, entre eles um africano livre e um natural de Santa Catarina. Em sua maioria, eram casados e possuíam lavouras próprias. Dona Fausta e seu genro, presente no mutirão, também possuíam escravos. Eduardo, com suas roças de milho, seus negócios com dona Fausta, assíduo frequentador da venda do povoado e dos mutirões de lavradores livres, con­ seguia, em seu cativeiro, níveis de autonomia que muito o aproximavam da

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experiência de liberdade com a qual convivia. O assassinato e o roubo, se os cometeu, teriam sido motivados, segundo as testemunhas, pelo desejo de comprar sua alforria. A fuga de Luís também visara, por outros meios, a essa mesma liberdade, para a qual se julgavam ambos culturalmente equipados. A experiência de Eduardo, e de outros como ele, construíra-se, entretanto, sobre um quadro que a recorrente vigência do tráfico africano ou interno não tornava comum a qualquer cativo. Evidenciam-se no processo, no qual todos os escravos que depõem são naturais da região e conheceram seus pais, inten­ sas relações, no interior da comunidade dos cativos, de parentesco (além da mulher, escrava, os irmãos, na fazenda do comendador), compadrio (Eduardo e Luís) e mesmo hierárquicas (a provável visita e confissão ao preto velho André), que perpassavam os vários plantéis e integravam desigualmente os cativos na comunidade dos livres. De formas diferenciadas e com objetivos culturalmente distintos, eram as relações entre iguais que socializavam escra­ vos, livres pobres e senhores para uma convivência entre desiguais. Pode-se falar assim, como Blassingame27, numa comunidade escrava (formada por relações pessoais e familiares entre os cativos), mas também numa comunidade de lavradores de roça (integrada pelas práticas de reciprocidade entre a vizi­ nhança e por estreitas relações familiares e pessoais entre seus membros) e numa comunidade política, que controlava negócios e poder (o comendador e seus familiares). Essas esferas diferentes de socialização encontravam-se in­ tegradas por um mesmo código cultural que reforçava o lugar social de cada um e as formas legítimas ou possíveis (fuga) de transitar entre elas. Nesse quadro, a escravidão era praticamente a única relação social efetivamente institucionalizada. A estabilidade desse arranjo social não se construía apenas sobre a violência e a desigualdade de recursos, mas principalmente sobre o costume, que abria atalhos e previa recursos (sociais e culturais) para conviver com a realidade da violência e da desigualdade.

Notas 1

Cf., entre outros, Donald Ramos, “City and country: the family in Minas Gerais, 1804-1838”, Journal ofFamily History, 1978; Iraci dei Nero da Costa e Francisco Vidal Luna, “Vila Rica: nota sobre casamento de escravos, 1727-1826”, África, na 4, São Paulo, 1981, pp. 105-9; Eni de Mesquita Samara, “Os agregados: uma tipologia ao fim do período colonial, 1780-1830”,Estu­ dos Econômicos 11(3), São Paulo, 1981; idem, “Família e domicílios em sociedades escravistas”, in Maria Luiza Marcílio (org.), História epopulação — Estudos sobre a América Latina, 1990, pp. 175-85; Alida C. Metcalf, Families ofPanters, Peasants and Slaves — Strategiesfor survival

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in Santana de Parnaíba, Brazil, 1720-1820,1983; idem, “A família escrava no Brasil colonial: um estudo de caso em São Paulo”, in Maria Luiza Marcílio (org.), História epopulação...,

pp. 205-12; Elizabeth A. Kuznesof, Household Economy and Urban Development, 1765-1836, 1986; Iraci dei Nero da Costa e Horácio Gutierres, “Notas sobre casamentos de escravos em

São Paulo e no Paraná, 1830”, História: Questões e Debates., ano 5, n2 9,1984, pp. 313-21; Iraci dei Nero da Costa et al., “A família escrava em Lorena, 1801”, Estudos Econômicos 17(72), São Paulo, 1987, pp. 245-95. João Luis R. Fragoso c Manolo Florentino, “Marcelino, filho de Ino­ cência Crioula, neto de Joana Cabinda: estudo sobre famílias escravas em Paraíba do Sul,

1835-1972”, Estudos Econômicos 17(2), São Paulo, 1987, pp. 151-73; Robert W. Slenes, “Lares negros, olhares brancos: histórias da família escrava no século XIX”. Silvia Lara, (org.), Escra­ vidão. Revista Brasileira de História, vol. 8, nQ 16, São Paulo, mar.-ago., 1988; Stuart B. Schwartz,

Segredos internos — Engenhos e escravos na sociedade colonial, 1988, cap. 14; Hebe Maria Mattos de Castro, “Trabalho familiar e escravidão: um ensaio de interpretação a partir de inventários

post mortem', Estudos sobre a Escravidão II. Cadernos do ICHF, n2 23, Niterói, ago., 1990; Sheila de Castro Faria, “Escravidão e relações familiares no Rio de Janeiro”, Estudos sobre a Escravidão II. Cadernos do ICHF, n2 23, Niterói, ago., 1990; Francisco Luna e Wilson Cano, “Casamento de escravos em São Paulo: 1776-1804,1829”, in Maria Luiza Marcílio (org.), His­ tória epopulação..., pp. 226-37; Maria de Fátima Rodrigues das Neves, “Ampliando a família

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escrava: compadrio de escravos em São Paulo do século XIX”, in idem, op. cit.; Ana Maria Lugão Rios, Compadrio e casamento de escravos — Estratégias de vida e mudanças no tempo. Cabo Frio, 1795 a 1885. Relatório apresentado ao Centro de Estudos Afro-Asiáticos, jul., 1991; José Góes, “O cativeiro imperfeito”. Dissertação de mestrado. Niterói, UFF, 1992. Ronaldo Vainfas, Trópico dos pecados — Moral, sexualidade e Inquisição no Brasil., 1989, pp. 107-12. Oliveira Vianna, Populações meridionais do Brasil. Vol. 1, 1987. Florestan Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes, 1978. Jacob Gorender, A escravidão reabilitada, 1990, pp. 49-50. Documentação judiciária. Inventáriospost mortem, 1808. Arquivo Nacional. Foram utilizados 100 processos para Campos e 59 para a baixada fluminense. Stanley J. Stein, Vassouras — Um município brasileiro do café, 1850-1900,1990. Ana Teresa Pinto Lima e Virgínia Maria Ramos, “A situação da mulher na unidade produtiva rural pobre em Campos dos Goitacases, século XIX”. Relatório de iniciação científica. CNPq,

1989. Cartório do primeiro ofício de notas de Campos, 1874. 11 Cartório do terceiro ofício de notas de Campos, 1875. 12 Cartório do primeiro ofício de notas de Campos, 1875. 13 Cartório do primeiro ofício de notas de Campos, 1826. 14 Neste sentido, cf. também Kátia M. de Queirós Mattoso, Bahia, século XIX — Uma província no Império, 1992, p. 207. 15 Cartório do segundo ofício de notas de Campos, 1875. 16 Cf. cartório do terceiro ofício de notas de Campos, maço 146 (Domingos Ferreira de Souza, 1825); maço 128 (José Ribeiro da Fonseca, 1822); maço 428 (Luís Antônio Martins do Nasci­ mento, 1853); maço 474 (Manoel Ribeiro do Rozário, 1850); maço 476 (Manoel da Silva Ris­ cado, 1854). Cartório do primeiro ofício de notas de Campos, maço 90 (Antônio Martins do Amorim, 1820). Cartório do quarto ofício de notas de Campos, maço 193 (João Pessanha da Silva, 1875). 10

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Cf. cartório do primeiro ofício de noras de Campos: inventários, maço 298 (Bernardina Maria Francisca, 1854); maço 333 (Francisca Amália de Carvalho Pinto, 1874). Cartório do terceiro ofício de notas de Campos: inventários, maço 119 (AnaCoutinho, 1823); maço 125 (Rita Maria do Espírito Santo, 1824); maço 126 (Antônio Barreto de Alvarenga, 1825). Cf., também, neste sentido, entre outros, Donald Ramos, “A mulher e a família em Vila Rica de Ouro Preto, 1754-1838”, in Maria Luiza Marcílio (org.), História e População...-, Elizabeth Ann Kuznesof, “Ilegitimidade, raça e laços de família no Brasil do século XIX”, in idem, op. cit., pp. 164-74; Eni de Mesquita Samara, “Família e domicílios em sociedades escravistas”, in idem, op. cit., pp. 175-85; Maria Odila Leite da Silva Dias, Quotidiano epoder em São Paulo no século XIX, 1984. Cartório do primeiro ofício de notas de Campos, maço 108 (Antônio Alves dc Azevedo, 1826);

maço 333 (Francisco da Silva e Souza, 1872); maço 428 (Luís Antônio Martins do Nascimento, 1853). Cartório do terceiro ofício de notas de Campos, maço 126 (Antônio Barreto de Alva­ renga, 1825); mapa 115 (José Pereira Barbosa, 1822); maço 412 (Gabriel da Silva Correia, 1853); maço 443 (José Ribeiro de Oliveira, 1876); maço 443 (José Manhães de Azevedo, 1876). Elizabeth Ann Kuznesof, “Ilegitimidade, raça e laços de família no Brasil do século XIX...” A. V. Chayanov, La organización de la unidad econômica campesina, 1974. Oitenta e cinco mulheres escravas aparecem arroladas nos 150 inventários trabalhados para o município de Campos. Documentação judiciária. Corte de Apelação: escravos, processos criminais. Caixa 143, na 1.608. Arquivo Nacional. Documentação judiciária. Corte de Apelação: escravos. Caixa 11.959,n