Cultura política e leituras do passado. Historiografia e ensino de história
 9788520006955

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Martha Abreu, Rachel Soihet e Rebeca Gontijo (organizadoras)

Cultura política e leituras do passado Historiografia e ensino de história

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COPYRIGHT © Martha Abreu, Rachel Soihet e Rebeca Gontijo (orgs.)

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|o £ o r f y w o PROJETO GRÁFICO Evelyn Grumacb e João de Souza Leite

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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. C974

Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história'/ Martha Abreu, Rachel Soihet e Rebeca Gontijo (orgs.). - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

APRESENTAÇÃO

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PARTE I

Inclui bibliografia ISBN 978-85-200-0695-5

Política, história e memória

1. História - Estudo e ensino. 2 Ciência política - Estudo e ensino. 3. Política e cultura. 4. Cultura política. 5. Pesquisa histórica. I. Abreu, Martha. II. Soihet, Rachel, 1938- . III. Gontijo, Rebeca.

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AGRADECIMENTOS

CDD - 907 CDU - 930(072)

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presente do passado: as artes de Clio em tempos de memória Manoel Luiz Salgado Guimarães

Cultura política e cultura histórica no Estado Novo

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Angela de Castro Gomes Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.

PARTE II

O Antigo Regime e a colonização em questão

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Dos “Estados nacionais” ao “sentido da colonização”: história moderna e historiografia do Brasil colonial 67 Direitos desta edição adquiridos pela EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA Um selo da EDITORA RECORD LTDA. Rua Argentina 171 - 2 0 9 2 1 -3 8 0 - Rio de Janeiro, RJ - Tel.: 2 5 8 5 -2 0 0 0 PEDIDOS PELO REEM BO LSO POSTAL Caixa Postal 23.052 - Rio de Janeiro, RJ - 20922-970 Impresso no Brasil 07

Maria Fernanda Bicalho

Cultura política na dinâmica das redes imperiais portuguesas, séculos XVII e XVIII 89 Maria de Fátima Silva Gouvêa/Marilia Nogueira dos Santos

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Cultura política e cultura histórica no Estado Novo Angela de Castro Gomes*

‘ Angela de Castro Gomes é pesquisadora sénior do CPDOC/FGV e professora titular de História do Brasil da UFF. Este texto é uma versão revista e condensada do artigo “A cultura histórica do Estado Novo”, publicado em Projeto História, São Paulo, n. 16, fev. 1998.

Como a literatura que trata da chamada era Vargas já consagrou, o Estado Novo (1937-45) tem uma marca fundamental: a ambiguidade. Por isso, J) estão fadados ao fracasso todos os esforços analíticos que procurem re­ duzir suas dinâmicas políticas a esquematismos simplistas e/ou maniqueístas. Nesse sentido, vale lembrar que se está falando de um curto espaço de tempo — são apenas oito anos — que demarcou a instalação de um modelo de Estado autoritário, muito centralizado politicamente, e cujas margens de intervencionismo sobre a sociedade se ampliaram de forma até então inusitada no país. Além disso, os anos do Estado Novo assinala-^ ram um período de grande modernização económica e social, o que é evidenciado pelo avanço da industrialização e urbanização, pela crescen­ te racionalização do aparelho burocrático do Estado e pela implementação de políticas sociais que abarcaram, entre outras, as áreas da regulamenta­ ção das relações de trabalho, da saúde pública, da educação e também da cultura, em sentido mais amplo. Afirmar essa grande e profunda transfor­ mação, contudo, não significa ignorar a convivência do “moderno” com o “tradicional”. Tampouco implica minimizar a violência física e simbóli­ ca do aparelho de Estado, facilmente detectadas pela ação da polícia po­ lítica, da censura, da permanência de padrões clientelistas na organização da administração pública e, também, da participação no poder do Estado dos setores agrários, ainda que não com a mesma força e prestígio. Tendo como pano de fundo essa marca de ambiguidade, este texto se propõe destacar uma importante inovação no campo da intervenção esta­ tal ocorrida no período. Seu objetivo específico é recortar, dentre as várias A iniciativas de políticas públicas do Estado Novo, um conjunto de medidas voltado para o que se pode considerar uma política cultural e, nela, do 4 5

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que se chamou, na época, uma política voltada para “a recuperação do passado nacional brasileiro”. Trata-se, portanto, de uma dimensão espe­ cífica de política pública num duplo sentido. Em primeiro lugar, porque é 0 destinada aolcampo da culturajenvolvendo um esforço político explícito voltado à conformação e à divulgação de normas e valores que deviam ser apreendidos pela sociedade como próprios à “identidade nacional brasileira” que o Estado Novo queria fixar. Para tanto, a implementação de tal política articulou setores especializados de uma burocracia estatal (meios administrativos e recursos financeiros), com atores sociais relevantes da sociedade, com destaque para os! intelectuais! Em segundo lugar, porque essa política cultural é valiosa para se deli­ mitar um espaço específico de representação da nacionalidade, que tem na leitura e valorização do “passado” sua chave mestra.1Justamente por essa razão, o texto se propõe trabalhar com o conceito de “cultura histó­ rica”, tomado por Le Goff de Bernard Guenée, para caracterizar “a rela­ ção que uma sociedade mantém com seu passado”.2 Nossa hipótese é que tal conceito nos possibilita entender melhor o quê especificamente os ho­ mens consideram seu passado e que lugar (espaço e valor) lhe destinam em determinado momento. Nesse sentido, ele permite e mesmo exige a análise de um conjunto de iniciativas que abarca não só o conhecimento histórico em sentido mais estrito — quem são os historiadores, quais são as obras que, reconhecidamente, “narram” a história nacional e quais são seus eventos e personagens fundamentais — como o ultrapassa, abarcan­ do outras formas de expressão cultural que têm como referência o “pas­ sado”, como a|literatura e o .folclore] por exemplo A relação dos intelectuais com os setores da burocracia estatal estadorit> novista está, portanto, na base operacional de construção e divulgação dessa política cultural. Dessa forma, é bom deixar claro que o envolvimento í>°; desses intelectuais com o projeto político mais amplo do regime está sen­ do entendido de forma muito variada. Ficam afastadas, por premissa teó­ rica, as idéias de “manipulação” pelo Estado e de “alienação e traição” & dos intelectuais em função de ligações estabelecidas com as políticas go­ vernamentais. Assim, não se está aqui trabalhando com a chave simplista ^ l que interpreta a participação de intelectuais em políticas públicas como AJt* si*

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sinal de automática adesão às diretrizes ideológicas de um regime políti­ co, ou como prova de “cooptação”, entendendo-se por cooptação algo próximo a uma transação mercantil de caráter utilitário; A questão do envolvimento de intelectuais com regimes políticos — sobretudo autori­ tários, como no caso do Estado Novo — é algo bem mais complexo e instigante. Para se compreender essa dinâmica e o sentido da categoria cooptação, é relevante reconhecer o interesse e até a necessidade de um regime de estabelecer contatos com o meio intelectual. Do mesmo modo, é interessante e necessário, para os intelectuais, participar de um novo espaço político que a eles se abre, oferecendo tanto oportunidades de tipo financeiro como de prestígio sociocultural. Isto é, essa é uma relação de mão dupla cheia de possibilidades diferenciadas, sendo fundamental atentar para vários pontos, tais como: o “lugar” do aparelho de Estado que de­ manda a colaboração dos intelectuais; a política que está sendo imple­ mentada; e o tipo de participação solicitada. Nesses contatos, portanto, uma variada gama de aproximações, distanciamentos e negociações pode se estabelecer, fazendo com que intelectuais, mais ou menos simpáticos a um regime, possam ser cooptados, ou seja, possam negociar margens de liberdade, já que a aberta e radical oposição nunca é possível.

CULTURA POLÍTICA, CULTURA HISTÓRIA E POLÍTICAS CULTURAIS

A categoria cultura histórica mantém uma complexa relação, de um lado, com os esforços de construção de uma cultura política durante o Estado Novo; de outro, com o que pode ser delineado como o campo da histo­ riografia, nos anos 1930-40. No que se refere às relações com o conceito de cultura política, podese assinalar que uma das razões mais apontadas para sua retomada pela história é o fato de permitir explicações/interpretações sobre o comporta­ mento político de atores sociais, individuais e coletivos, privilegiando-se seu próprio ponto de vista: percepções, vivências, sensibilidades. Dentro desses parâmetros, a categoria cultura política vem sendo entendida como “um sistema de representações, complexo e heterogéneo”, mas capaz de

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permitir a compreensão dos sentidos que um determinado grupo (cujo tamanho pode variar) atribui a uma dada realidade social, em determina­

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do momento e lugar. Justamente por isso, a constituição de uma cultura política demanda tempo, sendo um conceito que integra o universo de fenômenos políticos de média e longa duração. Uma postulação que não exclui a existência de movimentos e de transformações em seu interior, mas que adverte para o fato de eles não serem nem rápidos, nem contingentes, nem arbitrários, havendo pontos mais resistentes e outros mais permeáveis. Dentro da mesma chave, os historiadores insistem na diversidade de culturas polí­ ticas existentes em qualquer sociedade. Competindo entre si, com­ plementando-se, entrando em rota de colisão, sua multiplicidade não impediria, contudo, a possibilidade de emergência de uma cultura políti­ ca dominante em certas conjunturas específicas. Além disso, o processo de constituição de culturas políticas, e esse é o ponto, incorporaria sem­ pre uma leitura do passado — histórico, mítico ou ambos —, que conota positiva ou negativamente períodos, personagens, eventos e textos re­ ferenciais. Essa leitura do passado também envolveria um “enredo” — uma narrativa — do próprio passado, podendo-se então conformar uma cul­ tura histórica articulada a uma cultura política. Estudar uma cultura política, sua formação e divulgação — quando, quem, através de que ins­ trumentos — seria igualmente entender “como” uma interpretação do passado (do presente e do futuro) foi produzida e consolidada através do tempo, integrando-se ao imaginário ou à memória coletiva de grupos so­ ciais, inclusive os nacionais. No que se refere às relaçõesjmtre culturajustórjca e historiografia, o aspecto mais evidente é o da amplitude do primeiro conceito, que vai além da historiografia definida como a história dos historiadores, de suas obras e disciplina. Tal constatação tem como desdobramento importante o fato de assinalar que os historiadores de ofício não detêm o monopólio ' do processo de constituição e propagação de uma cultura histórica, atuando interativamente com outros agentes que não são homens de seu métier. Há, por conseguinte, diferenças evidentes de amplitude e de natureza entre o que se pode considerar cultura histórica e o que se pode entender por 4 8

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conhecimento/saber histórico produzido em uma época, não havendo sincronia necessária entre os dois. E, do mesmo modo como as culturas políticas são plurais, pode-se pensar em mais de uma cultura histórica convivendo, disputando, enfim, estabelecendo vários tipos de interlocução entre si e com a produção historiográfica em determinado período. A construção de uma cultura política e de uma cultura histórica, por'! conseguinte, vincula-se fortemente à implementação de políticas públi­ cas, em particular sob regimes autoritários, que investem de maneira cons­ ciente e eficiente na busca de sua legitimidade, mobilizando valores, crenças e tradições da sociedade, com destaque para os que se referem a uma he­ rança e passado histórico comuns.3 Nesse sentido, este texto está sugerin­ do que, em certas conjunturas políticas — como no caso da do Estado Novo — , há um esforço evidente para se articular iniciativas estatais de política cultural com a conformação de uma^ cultura política nacional,'em que a leitura do passado ganha espaço priviJegià^õrmide o que sè~êstá chamando de cultura histórica é dimensão constitutiva e também estraté­ gica da cultura política. Com esse mesmo cenário de fundo, a questão do conhecimento/saber histórico tem que ser pensada em registro distinto. Isso porque sua característica e desenvolvimento articulam-se com outro conjunto complexo e diversificado de variáveis, a saber: a situação do campo intelectual inter­ nacional e nacional (debates, conceitos); a autonomia, sempre relativa, do campo intelectual em face do campo político; as características do regime político (se democrático ou autoritário); os constrangimentos da conjun­ tura política, em que se deve ponderar a política cultural que estiver (se estiver) sendo desenvolvida pelo Estado; e a força de atores, como os in­ telectuais, em termos de participação e/ou oposição políticas. Portanto, podemos considerar que, em certos períodos específicos, a presença e o impacto sociais da cultura histórica e do conhecimento histórico podem ser crescentes, mas também podem ocorrer disjunções, sempre explicá­ veis por razões próprias a cada conjuntura nacional específica. É o caso do Estado Novo no Brasil, quando não se verifica uma pro­ dução de textos históricos numericamente significativa, como várias aná­ lises historiográficas têm apontado. Mas, ao mesmo tempo, em função de 4 9

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um bem construído e executado projeto ideológico do regime, difunde-se amplamente uma cultura política, centrada em uma visão de “nosso pas­ sado e de nossa história”, que se apropria e lê o estoque de obras acumu­ lado, associando-o a outros materiais e dando-lhe novo sentido e força.4 Mas a complexidade da relação entre cultura histórica e historiografia não fica por aí, porque o que está sendo aqui compreendido como passí­ vel de ser designado como de interesse para o campo historiográfico ex­ cede a análise da trajetória de historiadores, de obras históricas e da própria disciplina (escolas, currículos). Ou seja, também se está considerando como objeto de conhecimento desse campo de estudo o tratamento que uma questão ou uma categoria vem recebendo da literatura, ao longo de um período, o que inclui tanto os balanços bibliográficos como o acompa­ nhamento da trajetória de um conceito. Além dessas dimensões, ainda se pode considerar outra, que envolve­ ria, grosso m odo e de forma certamente imprecisa, a análise de representa­ ções construídas por grupos sociais de dimensões variadas sobre “sua” própria história. Uma operação que situa problemáticas como a da memó­ ria coletiva, da identidade (da nação, de instituições, de famílias e de gru­ pos mesmo não formalmente organizados) e das políticas (governamentais ou não), visando a consolidação de um passado comum; visando o enqua­ dramento de uma memória de grupo, especialmente se for um grupo naci­ onal. O trabalho de investigar com o, quem e com que recursos de poder uma dada cultura histórica é conformada, é muito difícil, mas a tentativa pode ser útil, pois culturas históricas costumam marcar uma memória nacional, estando, freqúentemente, vinculadas a culturas políticas e a políticas cultu­ rais. Dessa forma, esse é um esforço de nítido interesse historiográfico, no sentido aqui explicitado. Assim, se a identidade de qualquer grupo social não se faz sem recurso a “seu” passado, e se esse processo é dinâmico, mas não arbitrário, torna-se matéria de particular valor para o historiador com­ preender as leituras de passado que as memórias coletivas empreendem, sobretudo se estão relacionadas a políticas governamentais explicitamente dirigidas ao enquadramento da memória nacional.5

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Por conseguinte, se os historiadores estão envolvidos, em graus muito variados, com tais construções memorialísticas, podendo, inclusive, não 5

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deter as principais posições no momento em que o processo se desenvol­ ve (o que pode ser até bem compreensível), são eles que, como profissio­ nais da história, se dedicam, a posteriori, a analisá-lo. Um trabalho que exige a compreensão de quem nele se envolveu mais diretamente; de quais foram os eventos selecionados por essa memória (com as hierarquias e as omissões); de com o e porqu e o foram e, finalmente, em que circunstâncias e com que objetivos tal projeto se desenvolveu. Voltando ao exemplo do Estado Novo, pode-se dizer que, se o conhecimento histórico produzido por historiadores aí não floresceu tanto, floresceu uma política cultural que consagrou uma cultura histórica pela apropriação não apenas de au­ tores e obras históricas, mas igualmente de um vasto conjunto de discur­ sos e práticas que falava sobre o “povo” e a “nação”. Essa cultura histórica iria marcar tanto a cultura política que o regime estava propondo para o país como igualmente a própria tradição acadêmica na área da história, por tempo nada desprezível. O fato de o Estado Novo não ser um perío­ do particularmente frutífero em termos de produção de obras históricas não o torna menos estratégico em termos da importância de uma cultura histórica que então foi produzida, o que, aliás, qualifica a relação assimé­ trica, mas fundamental, ocorrida entre ambas. Em busca de tocar nesse conjunto de questões, mas sem querer esgotálo, este texto acompanha algumas iniciativas da política cultural estadonovista de valorização do “passado nacional”/Tal “passado” tinha tanto o sentido de uma tradição que marcava a cultura popular como a forma de um discurso histórico datado, em que a figura do historiador e suas obras deviam ser recuperadas7o que se postulava, em sentido amplo, era uma grande harmonia entre essas duas vertentes do “passado nacional”, o que não excluía tensões e choques advindos de uma bricolage difícil. Contudo, o que também fica evidente, sendo o objetivo mais específico deste texto demonstrar, é a existência de um esforço que visava a alargar o “lugar” do conhecimento histórico no interior da própria cultura histó­ rica, e desta, no interior da cultura política proposta pelo Estado Novo. Esses intentos podem ser observados, por exemplo, quer através do esta­ belecimento de subsídios a instituições históricas e a eventos comemora­ tivos, quer através do apoio à publicação e à divulgação de textos definidos s 1

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como de interesse histórico. A principal fonte utilizada para essa pesquisa foi a revista de estudos brasileiros Cultura Política. Dirigida por Almir de Andrade e circulando mensalmente, entre 1941 e 1945, era uma publica­ ção do poderoso Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP. Nela, toda nossa atenção estará concentrada no material que compõe sua últi­ ma seção, intitulada “Brasil social, intelectual e artístico”.6

UM A POLlTICA CULTURAL DE RECUPERAÇÃO DO PASSADO NACIONAL

No editorial de Rosário Fusco apresentando a seção “Brasil social, inte­ lectual e artístico”, a promessa era a de que as páginas que se seguiriam refletiriam sempre o “espetáculo extraordinário de renascimento” das capacidades criadoras dos brasileiros em todas as esferas.7 Logo a seguir, em outro texto, a razão precípua desse fato é explicada nos seguintes termos: Hoje, podemos afirmar que existe uma política brasileira que é uma au­ têntica expressão do nosso espírito nacional. Nesse espírito social ajustaram-se as necessidades do nosso presente às conquistas do nosso passado, para formarem esta permissão tríplice da política, que nos concede agir, pensar e criar o Brasil [...]* Como fica claro, o cerne da reflexão que se encaminhava e sustentava estava contido na adequação entre “política” e “espírito da nacionalida­ de”, ou seja, conseguira-se finalmente delinear esse “espírito nacional”, o que possibilitava o encontro da harmonia social. Não só nesse como em inúmeros outros artigos fica claro que tal categoria não devia ser entendi­ da como uma “entidade metafísica” ou alguma forma de “sentimento es­ pontâneo transcendente”, desde sempre existente e pronto a revelar-se aos brasileiros. O “espírito da nacionalidade” era um construto, ao mesmo tempo buscado e criado por nossa intelectualidade. Tanto que o artigo citado se inicia com uma menção a Joaquim Nabuco e a um de seus escri­ tos à época da campanha abolicionista, diagnosticando justamente a falta5 52

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do que chamava “homogeneidade nacional” em nosso país. M oder­ namente, segundo a revista, esta “homogeneidade” recebia a designação de “espírito” ou “consciência” nacional. A dificuldade da produção dessa consciência no Brasil se devia, inclu­ sive, ao fato de a “nacionalidade” ter sido reduzida a um simples “grémio político”, mantido por “contrato de interesses”, concepção utilitária em “completa contradição com o conceito orgânico, racional e cristão” que herdamos de “nossos maiores”.9 Alcrítica ao liberalismo lé evidente, sen­ do a condução política empreendida por nossas elites a responsável pelo “atraso” vivenciado pelo país. Assim, essa concepção equivocada de nacio-' nalidade, que, bem entendido, se desviava de nossa “herança”, respondia pela impossibilidade de produção de uma “consciência coletiva” que pu­ desse orientar os rumos da política e, em o fazendo, desencadear suas potencialidades estimuladoras. O “espírito nacional” de um país podia muito bem ser encontrado/ criado — a idéia é sempre plena dessa ambiguidade — nos “costumes da tradição, da religião, da raça, da língua e da memória do passado” do povo. O acordo entre ordem política e social, o equilíbrio entre forças dirigen­ tes e dirigidas que o Estado Novo produzia, advinha fundamentalmente dessa adequação cultural profunda, causa e produto de sua legitimidade. Toda a política do pós-37 era uma reação ao “materialismo” anterior que, segundo os editoriais, romantizava o futuro, hipervalorizava o presente e condenava o passado.10 Havia, por parte de nossas elites políticas, um erro “original” no tratamento dos “tempos”, o que estava sendo sanado pelo Estado Novo. Ele enfrentava os problemas do presente sem idealizações do futuro, mas com a certeza de produzi-lo melhor exatamente porque não se negava a refletir sobre o passado, buscando-o como um “manancial de inspiração”. ! Espírito nacional e passado eram categorias independentes, devendo ser examinadas com extrema atenção. Em primeiro lugar, salta a idéia de que o Brasil era um país que condenava “seu passado” porque o temia. Não temer o passado, portanto, transformava-se numa espécie de primei­ ro mandamento para o Estado Novo. Isso se testemunhava nas falas do

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próprio presidente, que não perdia a oportunidade de atar passado e pre­ sente, mostrando que, “mesmo em plena vigência das lutas internas mais espetaculares” vividas no país, conseguíamos manter os princípios huma­ nos e cristãos da nacionalidade. Portanto, “o passado” aparece como uma espécie de fantasma a ser enfrentado; como condição para deixar de as­ sombrar e poluir o “espírito nacional”. As razões desse temor não são muito bem equacionadas, mas as indicações são tanto de que ele advinha de um real desconhecimento de nossas origens como de um sentimento de infe­ rioridade que precisavam ser definitivamente exorcizados. Em segundo lugar, “o passado” é postulado como um “manancial de inspiração”. Mas não se trata de acreditar em retorno nem em uma con­ cepção de passado (história) como “mestre” do presente e futuro. Essa concepção ficava comprometida pela assertiva anterior, que indicava uma tradição de deméritos bem maior que a de méritos. É claro que sempre se poderia argumentar que se aprende também com erros, com os maus exem­ plos, mas não seria esse propriamente o objetivo da política cultural do Estado Novo em seu esforço de “recuperação do passado”. A necessidade do passado, sua inscrição como “fonte” da nacionalidade e, por conse­ guinte, como bússola da política, advinha muito mais da orientação que os ideólogos do regime sustentavam de que não havia governos bons ou maus — não havia modelos universais — , e sim governos adequados ou não a uma realidade singular. Ajperspectiva historicista aí assumida impu­

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do”, de interpretar uma realidade social, mas não pela constatação sim­ ples de algo que existe — um destino, um tempo cíclico — , e sim por um tipo de aproximação — pelo uso de um método — que consiste em se “chegar ao real por trás”, a partir de seu “passado”. 0 presente não é as­ sim o começo do futuro, mas o último momento do passado, numa perspectiva evolucionista, mas não progressivista.12 Finalmente, em terceiro lugar, essa postulação de “passado” não é unitária. Se o “espírito nacio­ nal” está nos costumes, na raça, na língua e na memória, devendo todos ser recuperados e valorizados, há duas concepções de passado sendo pro­ postas e convivendo nesse discurso: a de um passado ligado à cultura popular e que, manifestando-se através de um conjunto de tradições, convi­ ve com o presente, sendo a-histórico e referido a uma idéia de tempo não datado; e a de um passado histórico, ligado a uma idéia de tempo linear, cronológico, datado e referido à memória de fatos e personagens únicos, existentes numa sucessão à qual é vedado conviver com o presente. Esses dois sentidos de passado e suas formas de relação com o presen­ te e o futuro convergem para uma visão de totalidade que emerge de for­ ma fundamental na organização da própria seção “Brasil social, intelectual e artístico”. Nela há espaços reservados para cada uma dessas dimensões: “folclore” ao lado de “história”; costumes regionais ao lado de páginas do passado nacional. Dessa forma, o esforço de “recuperação do passa­ do” não hierarquizava um desses sentidos em relação ao outro, mas os qualificava, estabelecendo operações específicas em cada caso. Tanto os “conteúdos” vinculados às tradições populares quanto à história do Bra­ sil precisavam ser trabalhados de forma adequada, sem preconceitos de inferioridade ou de superioridade ufanista, ambos prejudiciais ao “espíri­ to nacional”. O “lugar do passado” nessa construção discursiva é crucial e, nesse “passado”, o “lugar da história” é extremamente relevante, como a argumentação de Cultura Política pretende demonstrar.13

nha uma valorização do “passado”, única “realidade” capaz de preencher com respostas verossímeis tal exigência de “adequação”. Também fica evidente que essa demanda implicava uma leitura positiva do “passado”, o que igualmente não poderia resvalar para excessos idealizadores que a política “realista” do Estado Novo igualmente não comportava. A nova política do Brasil não inspira outra coisa senão a união da cultura com a vida. Realista, seus postulados se firmam em bases de uma seguran­ ça que, existindo no presente, vai afirmar seu ponto de apoio nos alicer­ ces do passado.11

0 PASSADO NACIONAL: SENTIDO E LUGAR DA HISTÓRIA

A operação intelectual não deixa dúvidas. Trata-se de buscar um “senti-

Nos artigos de Cultura Política, “interpretar” a nossa história era tarefa

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fundamental para nela se encontrar um “sentido” da nacionalidade, algo postulado como muito distante de idéias de utopia, fatalismo ou imobilismo presentes em regimes políticos anteriores. Esse “sentido” vai ser identifi­ cado no processo de centralização polídca que estaria presente na evolu­ ção social do Brasil. Iniciada com Tomé de Sousa, no século XVI, “nossa evolução” ganharia contornos contemporâneos com Getúlio Vargas e o Estado Novo. A “vocação” centralizadora que o estudo da história do Brasil demonstrava confirmava-se também em todas as experiências fracassadas de descentralização, quer fossem a das capitanias hereditárias, quer fos­ sem a do hiperfederalismo da designada República “Velha”. Nada surpreendente, considerando-se a proposta política estadonovista. O que torna essa leitura da “evolução histórica brasileira” mais in­ teressante é a forma como ela se associa a uma concepção de fazer história que ataca uma “outra”, considerada ainda persistente e resistente. Isso porque, para Cultura Política, aqueles que sempre defenderam a descen­ tralização política o fizeram esgrimindo o forte argumento da extensão geográfica do país, indicador tanto de sua grandeza quanto de suas difi­ culdades de alcançar integração e harmonia. Uma pequena citação pode ser pedagógica: Imbuídos das teorias sociológicas da época [...] eles [os partidários da descentralização] queriam [...] fazer tudo derivar dos chamados fatores internos [...]. Entretanto, nós sabemos [...], a geografia não é tudo, sendo, antes de mais nada, incapaz de fazer modificar a natureza do homem de uma determinada raça.14 Dessa forma, embora o djscursojEt revista procurasse construir uma his­ tória política do Brasil marcada basicamente pela continuidade da centra­ lização, própria do pensamento conservador que valoriza a autoridade, ele não excluía rupturas nesse processo, responsabilizando uma concep­ ção mais “espacial” de nossa história por tais desvios. Por conseguinte, o elemento de continuidade com a linha da tradiçâo/centralização, no caso da construção de um discurso histórico, não impedia a afirmação de uma ordenação mais temporal do que espacial dos acontecimentos, antes pelo 5 6

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contrário. Assim, o que os textos dos editoriais da revista parecem indicar é uma espécie de dupla operação. De um lado, reserva-se o “passado tra -\ dicional da cultura popular” para uma concepção espacial dos fatos de “nossa evolução social”, organizada por regiões geográficas, com seus costumes religiosos, alimentares, musicais. Portanto, não se tratava de expulsar ou minimizar essa percepção geográfica, tão marcante, mas sim de circunscrevê-la e/ou, principalmente, de abrir campo para outro tipo > de concepção. De outro lado, o “passado histórico brasileiro” precisava libertar-se desta preeminência “geográfica”, apontada como aquela que procurava derivar nossa evolução de fatores “naturais”, como se eles fos­ sem capazes de determinar completamente as características dos “homens de uma raça”, de um “povo”. Embora numa primeira leitura a linha de argumentação pareça indi­ car tão-somente uma atualização do debate entre duas vertentes datadas de fins do século X IX — a que defendia a determinação do meio/clima, e a que insistia na centralidade da questão “racial” — , o que ocorria não era tão simples. Em primeiro lugar, porque os argumentos “geográficos” continuavam coexistindo, de forma muito própria, com os “históricos”; em segundo lugar porque, quando se falava em “raça”, não mais se mobi­ lizavam os mesmos referenciais biológicos próprios ao pensamento de fins do século X IX e início do X X . A palavra “raça” era a mesma, mas, no novo contexto, estava sendo preenchida por conteúdos socioculturais e não tanto por conteúdos étnicos. Por essa razão, talvez, os dois sentidos do “passado” e do “tempo” — um eminentemente histórico e cronológi­ co e outro não datado e “vivo” no presente — constituíssem as faces de uma mesma totalidade, razão pela qual ela precisava ser montada com tanta eficiência e cuidado. Do ponto de vista que nos interessa destacar, se o presente permanece ancorado no passado como tradição, durante os anos do Estado Novo se faz um esforço consciente e avultado para redescobrir esse “passado his­ tórico” enquanto realidade fundamental para a compreensão da nação. Um passado que não podia, como a tradição, coexistir com o presente, mas que, exatamente por isso, era fonte de explicação para o novo.

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Provavelmente, não é casual que esse discurso esteja sendo emitido em articulação com uma série de iniciativas públicas, elencadas pela re­ vista como comprovação de sua tese de “recuperação do passado”. No ano de 1940, por exemplo, fora criado, em Petrópolis, o Museu Imperial, multiplicando-se pelo país as sedes do Instituto Histórico e Geográfico. Aliás, todos eles estavam na lista das 23 associações históricas subsidiadas pelo governo federal, das quais apenas três não eram entidades desse tipo: a Sociedade Capistrano de Abreu e o Instituto de Geografia e História Militar, ambos no Rio de Janeiro; e a Sociedade Paulista de Estudos His­ tóricos.15 . A proposta de recuperação do passado histórico passara a integrar também um verdadeiro calendário de comemorações de centenários de nascimento ou morte dos mais notáveis_ vultos e instituições da história do Brasil. Em 1937, o centenário de fundação do Colégio Pedro II; em ifc' 1938, o primeiro século do Arquivo Nacional e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, e a exposição, organizada pelo Serviço do Patri­ mónio Histórico e Artístico Nacional, devida ao centenário de falecimen­ p to de José Bonifácio de Andrada e Silva; em 1939, o centenário de nascimento do marechal Floriano Peixoto e os festejos do centenário de restauração do Reino de Portugal; em 1940, o centenário da Maioridade de D. Pedro II e do quarto centenário da fundação da Companhia de Je ­ sus; em 1941, os centenários de nascimento de Prudente de Morais e Campos Sales e o da coroação de D. Pedro II, para citar os mais impor­ tantes. Em torno desses eventos, a comunidade dos historiadores se mo­ bilizava, pois sua preparação envolvia a organização de exposições, congressos e publicações, algumas de grande porte. As comemorações cumpriam seu papel catalisador, contando com o sistemático comparecimento e apoio do Ministério da Educação e Saúde.16 Uma área de atuação do regime merece, contudo, um cuidado todo especial de Cultura Política nesse verdadeiro arrolamento de frentes de incentivo à recuperação do passado histórico brasileiro. Ela diz respeito ao apoio à produção de textos, abarcando tanto as publicações oficiais quanto aquelas resultantes da “cooperação privada”, em especial de algu­ mas editoras. Vale a pena fazer um acompanhamento da cobertura dada, 5 8

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por Cultura Política, a essas iniciativas, entendidas como a maior prova da atenção dispensada pelo regime à evolução cultural do país. Segundo a revista, a quantidade e a qualidade das obras publicadas espelhavam ca­ balmente a criatividade que se vivenciava nessa esfera da cultura nacio­ nal. Nesse sentido, já em seu primeiro número, Cultura Política abre uma subseção intitulada “Movimento bibliográfico”, cujo objetivo era realizar um levantamento, o mais preciso possível, de tudo o que se publicava no território nacional. Sob a responsabilidade de Antônio Simões dos Reis, do Instituto Nacional do Livro (INL) — outra obra do regime — , o que se desejava era que autores e editores enviassem seus trabalhos para a re­ vista, de forma que pudessem ser listados e divulgados.17 Essa subseção subsistiu até dezembro de 1943, abrindo subitens para classificar uma li­ teratura especialmente voltada para comentar as realizações do Estado nacional, para explicar o pensamento do presidente e também para divul­ gar o que se escrevia sobre o Brasil no exterior.18 Para se ter uma idéia do perfil do conteúdo temático da seção, vale obser­ var que ela enumera um acentuado conjunto de monografias de caráter histórico-corográfico e de memórias, e que há uma razoável concentração em certos assuntos históricos. Durante os três primeiros anos de publicação (19413), os temas mais recorrentes são: relações colónia-metrópole, missões reli­ giosas (jesuítas), ação bandeirante, questões de fronteiras e movimentos separatistas. A eles se seguem os livros que debatem o escravismo e a econo­ mia cafeeira. Como se pode deduzir desse perfil, a maioria das obras versa sobre o período colonial, havendo um número proporcionalmente pequeno de textos dedicados ao Império e, menor ainda, ao período republicano. Contudo, se esses dados conduzem à percepção de uma pequena atenção destinada, pela produção histórica e pela revista, ao período republicano, isso é neutralizado pela existência de outra seção: “Roteiro bibliográfico da República”. Diferentemente da anterior, ela não é uma seção sistemática, sendo muito mais uma espécie de pesquisa patrocinada pelo periódico “acerca da história da República, desde a sua génese, no final do Segundo Reinado, até os tempos atuais”.19 Entregue ao historiador Sílvio Peixoto, será publicada em quatro partes — outubro e novembro de 1943 e janeiro e junho de 1944 — , catalogando um total de 78 obras sobre o período republicano.

CULTURA

POLlTICA

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LEITURAS

DO

PASSADO

Duas outras subseções de Cultura Política se integram a esse esforço de demonstrar o que se tem publicado no Brasil, especialmente a partir de 1930, recortando a área dos estudos sobre a história do Brasil. Uma delas é “Literatura histórica”, que integra a parte de “Evolução intelectual” da revista. Publicada desde o primeiro número de março de 1941 sob a res­ ponsabilidade do historiador Hélio Viana, ela tem periodicidade regular até julho de 1942, quando toda a revista se altera. A outra subseção é “Movimento literário”, que integra a seção “Literatura” e terá publicação entre setembro de 1943 e maio de 1945. O primeiro espaço é inteiramente reservado às publicações na área de história, estando o responsável voltado para a divulgação de todos os “gê­

POLlTICA.

HISTÓRIA

E M EM Ó RIA

Abreu.21 Hélio Viana não dá seguimento a essas observações, até mesmo porque elas ocupam o último número em que a subseção aparece. Entre­ tanto, é interessante notar que ele está escrevendo exatamente quando as Faculdades de Filosofia começam a formar suas primeiras turmas de pro­ fessores de segundo grau e de pesquisadores de história. A partir de mea­ dos dos anos 1940, com a continuidade desse processo, sem dúvida quer o perfil do historiador, quer o da produção historiográfica se alteram de forma progressiva, sendo o momento que examinamos o de uma transi­ ção entre um modelo que datava ainda do século X IX e um novo modelo de escrita e de profissional da história, cujos contornos não eram muito nítidos e/ou consolidados.

tas ou pouco exploradas, o que demandava muitos recursos financeiros e também organizacionais. Daí a produção passar a ter um caráter cada vez mais fragmentado e circunscrito a períodos e questões bem específicos, não havendo mais trabalhos como os de Varnhagen e Capistrano de

Finalmente, é necessário examinar a subseção “Movimento literário”, cujo objetivo era resenhar romances, biografias, poesias, peças teatrais e ensaios históricos e literários. Portanto, um espaço que não se voltava, em especial, para a área de história e cuja marca foi o interesse por reedições de textos considerados fundamentais. No período em que é publicado, “Movimento literário” resenha um total de 19 livros por ele classificado como “estudos brasileiros de interesse histórico”. A questão é verificar que tipo de textos é aí destacado. De imediato, verifica-se que seis são biogra­ fias de vultos da história do Brasil22 e cinco são reedições de livros consi­ derados fundamentais para o conhecimento do Brasil. O cuidado na impressão dessas reedições é assinalado, e os elogios com que elas são saudadas indicam a importância atribuída a seu reaparecimento comercial. Mas o que pode ser retido de todo esse conjunto de subseções desti­ nadas a registrar a produção cultural do país, especialmente na área da história do Brasil, é a intenção de Cultura Política, isto é, o que desejava “provar” ao leitor. Para a revista, era inegável a fertilidade de nossa intelectualidade e a criatividade com que respondia a uma política cultu­ ral efetiva de apoio governamental. Essa resposta evidenciava que o pro­ dutor de bens simbólicos mobilizava-se com ânimo quando via garantidas as condições de seu trabalho. Tal transformação, Cultura Política afirma­ va, fazia com que o “passado” recuperado, valorizado e não mais temido fosse, finalmente, o fundamento da nacionalidade brasileira, que o Esta­ do Novo impulsionava em direção a um futuro alvissareiro.

eo

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neros”: crónicas; viagens; compêndios; ensaios; biografias; obras sobre geografia e etnografia do Brasil; traduções de livros de viajantes estran­ geiros; reedições de textos e documentos históricos. De forma geral, a li­ teratura histórica examinada ao longo desse um ano e meio em que a subseção é publicada compõe-se de uma produção recente, e em parte integrante de periódicos de instituições culturais da época. Para Hélio Viana, esse trabalho era a “prova irrefutável” do progresso que se instala­ va na área da investigação histórica, sendo igualmente um empreendimento que permitia um mapeamento das abordagens que vinham sendo dadas a certos acontecimentos e períodos de nossa história. Um aspecto interes­ sante era o reconhecimento da importância das biografias, romanceadas ou não, no interior dessa literatura histórica.20 Um último aspecto pode ser assinalado a partir dos comentários do articulista de “Literatura histórica”. Este diz respeito a uma certa trans­ formação no tipo de estudo elaborado pelos historiadores, que estariam francamente privilegiando monografias e ensaios e não mais realizando textos de síntese. A razão principal para tal tendência era a dificuldade da realização de pesquisas históricas que exigiam fontes documentais inédi­

r 1.1 I T U B A

p o l í t i c a

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P O L Í T I CA.

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HISTÓ RIA

E M t M Ó K IA

16. Ibidem , p. 355-7.

N otas

17. Apesar da descrição temática da seção variar a cada número, as bibliografias englo­ 1. Sobre o tema política cultural, ver Philippe Urfalino, “Uhistoire de la politique culturelle”, em Jcan-Pierre R ioux e Jean- François Sirinelli, Pour une histoire

culturelle, Paris, Seuil, 1997, p. 3 1 1 -2 4 . 2. Uma pequena mas substancial reflexão sobre a categoria de cultura histórica está em Jacques Le Goff, “História”, em História e memória, Campinas, Unicamp, 1990, p. 45-50. O texto de Bernard Guenée referido por ele é Histoire et culture historique

duns l'Occident medieval, Paris, Aubier, 1980. Naturalmente estaremos fazendo lei­ tura e uso muito livres dessa categoria neste texto. 3. Isso não quer dizer que tais regimes tenham secundarizado políticas fortemente coer­ citivas, como é o caso do exemplo do Estado Novo. Ou seja, o investimento estatal pode crescer nas duas dimensões, não havendo correlação necessária entre ambas. 4. Na resenha de meu livro História e historiadores: politica cultural no Estado N ovo, Rio de Janeiro, Ed. FGV, 1996, escrita para a revista Estudos Históricos, Rio de Ja ­ neiro, Ed. FGV, v. 10, n. 19, 199 7 , p. 141-4, Francisco Falcon observou, de forma precisa, esse aspecto, assinalando com o pode ser problemático o uso do conceito de cultura histórica. Apesar de concordar com as dificuldades por ele apontadas, con­ sidero-o útil para delimitar a questão que me preocupa no livro e, neste texto, eu o retomo, tentando explorar suas potencialidades. 5. O conceito de enquadramento da memória está sendo tomado de Michel Pollak, especialmente em seu texto “M em ória, esquecimento e silêncio”, Estudos Históri­

cos, Rio de Janeiro, Ed. dos Tribunais, v. 3, 1989, p. 3-15.

6 . O texto que se segue é uma versão alterada de parte do capítulo IV de meu livro anteriormente citado. 7. Editorial “Brasil social, intelectual e artístico”, Cultura Política, n. 1, mar. 1941, p. 227.

8 . “Influência política sobre a evolução social, intelectual e artística do Brasil”, Cultu­ ra Política, n. 1, mar. 1941, p. 2 2 8 -9 . 9. ldem , Cultura Política, n. 5, jul. 1941.

10. Ibidem. 11. ldem , Cultura Política, n. 2, abr. 194 1 , p. 237. 12. Karl Mannheim, “O pensamento conservador”, em José de Souza Martins (org.),

Introdução crítica à sociologia rural, São Paulo, Hucitec, 1981. 13. Le Goff, op. cit., p. 4 7 et seq. 14. “Influência política sobre a evolução social, intelectual e artística”, Cultura Política, n. 4 , jun. 1941, p. 213-5. 15. Hélio Viana, “A história do Brasil no quinquénio 1 9 3 7 -1 9 4 2 ”, Cultura Política, n. 21, nov. 1942, p. 360-2.

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bam livros sobre esportes; engenharia; direito e legislação; etnografia; sociologia; história geral e do Brasil; ciências económicas e finanças; ciências médicas; psicolo­ gia, ciências ocultas; antropologia; música; educação; militarismo; física e química; além de biografias, romances e literatura infantil. 18. “Movimento bibliográfico”, Cultura Política, n. 19, set. 1942, p. 232. A “Bibliogra­ fia estrangeira sobre o Brasil” foi organizada por Carlos Pedrosa. 19. Sílvio Peixoto, “Roteiro bibliográfico da República”, Cultura Política, n. 33, out. 1943, p. 245-60. ldem , n. 34, p. 2 6 4 -7 3 ; n. 36, p. 2 9 7 -3 0 3 ; e n. 4 1 ,p . 214-20. 20. Sobre as biografias, ver “Literatura histórica”, Cultura Política, n. 8 e 9, out. 1941. 21. Hélio Viana, “Literatura histórica”, Cultura Política, n. 17, jul. 1942. 22. Os vultos “históricos” objeto de biografias foram Gonçalves Dias; D. Pedro I; Ra­ poso Tavares; Matias de Albuquerque; Quintino Bocaiúva; Diogo Antonio Feijó; Machado de Assis e Alvares de Azevedo.

Dos “Estados nacionais” ao “sentido da colonização”: história moderna e historiografia do Brasil colonial Maria Fernanda Bicalho*

‘ Professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense; membro do Núcleo de Pesquisas em História Cultural (Nupehc).



M as há uma distância enorme entre os conselhos distribuídos a aprendi­ zes em certos momentos e duma maneira discursiva e fragmentada — há uma enorme distância entre essas indicações de trabalho e essa espécie de confiança humana de mestre-de-obras explicando aos seus leitores, que não são necessariamente “da sua especialidade”, o que para ele represen­ ta o seu trabalho, que fins lhe propõe e em que espírito o pratica: e tudo isto, não como pedante que dogmatiza, mas como homem que procura compreender-se na íntegra. Lucien Febvre, “Vers une autre histoire” (1 9 4 9 ), em Com bats pour l'histoire ; comentando a experiência e a obra de M arc Bloch.

ESTADOS NACIONAIS E MONARQUIAS COMPÓSITAS: A PROJEÇÃO DO PRESENTE SOBRE O PASSADO

Encontramos, em geral, nos livros didáticos, principalmente nos de ensino médio, conceitos como “nação”, “nacionalismo” ou “sentimento nacional” anaçronicamente utilizados para caracterizar processos ocorridos nos primórdios da época moderna. Exemplo comum dessa projeção do presen­ te sobre o passado é recorrente no tópico “formação dos Estados moder­ nos”, processo muitas vezes intitulado “formação dos Estados nacionais”, r - o Nesses casos, o sentimento^ a existência de instituições nacionais surgem precocemente, no momento da crise do feudalismo e no movimento de centralização do poder das monarquias europeias.1 Esse processo não taro vem seguido da constituição de uma “burocracia”, do reforço de um “exército nacional”, da criação de leis, taxas e procedimentos jurídicos

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em “âmbito nacional”, e da vivência de um sentimento de nacionalidade — experiências vistas como indissociáveis à centralidade do poder monár­ quico e à constituição dos Estados modernos. No entanto, estudos recentes vêm contradizendo essa ideia.2 Referindo-se aos trabalhos que têm revisto e relativizado a natureza do absolutis­ mo francês, o historiador catalão Xavier Gil Pujol afirma que o termo “centralização” foi empregado pela primeira vez em 1794, em plena épo­ ca do Terror, no seio da Revolução Francesa, convertendo-se, a partir de então, no objetivo político dos governos liberais do século X IX .3 Em artigo publicado em 1992, John Elliott afirma que a formação de Estados centralizados, absolutistas e “nacionais” era um tema caro à

Í

historiografia do século X IX , inserida numa conjuntura de fortalecimento dos Estados-nações e preocupada com a sua compreensão, projetando retroativamente suas origens para as nascentes monarquias em formação nos séculos X V e XVI. De acordo com essa perspectiva, os Estados-na­ ções que então se afirmavam na Europa oitocentista constituiriam a culminação lógica de um movimento linear e contínuo, cujas origens eram identificadas nos primórdios dos tempos modernos.4 Elliott nos chama a atenção para que difejentes momentos históricos implicam questionamentos distintos e perspectivas historiográficas específicas. E ele não é o único, nem foi o primeiro a nos fazer recordar essa lição fundamental de história. Em 1949, Lucien Febvre, um dos fundado­ res da Escola do Annales, já afirmava que a história não apresenta aos homens uma coleção de fatos isolados. Ela organiza esses fatos. Ela explica-os, e portanto, para os explicar, transfor­ ma-os em séries, a que não presta igual atenção. Porque, quer queira quer não, é em função das suas necessidades presentes que ela recolhe sistema­ ticamente, e em seguida classifica e agrupa os fatos passados. É em função da vida que ela interroga a morte.5

f ê ) O historiador é um sujeito de seu tempo, e as questões que apresenta ao seu objeto de estudo — e às fontes que escolhe analisar — não estão dissociadas da conjuntura política, social, económica e cultural na qual 7 o

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nos inserimos/O que temos vivenciado nas últimas décadas são movimen­ tos de explosão — ou de implosão — das antigas nacionalidades e a emer­ gência de outras identidades, locais, regionais, religiosas, étnicasTJSobre elas vem se pautando um profundo rearranjo da geografia, da política e do próprio conceito que tínhamos até então de Europa. Por outro lado, a Europa — e não só ela — tem presenciado, em termos económicos e po­ líticos, o desenvolvimento de organizações supranacionais, como a Co­ munidade Européia. Tais processos levam necessariamente a um exercício de reinterpretação histórica daquilo que há cerca de cinquenta anos — em plena Guerra Fria — era visto e sentido como dado e, quiçá, imutável.

SBNão é por acaso que nas últimas décadas novos objetos, novos méto­ dos, novas teorias, novas interpretações têm povoado — e provocado — os estudos históricos. E essas rupturas vêm incitando a construção de novos conceitos e a ressignificação de antigas noções. Um desses conceitos é o de “Estados compósitos” ou, como prefere Elliott, de “monarquias, compósitas”: formações políticas que incluíam diferentes reinos, regiões, povos e tradições sob a soberania de um governante. Essa era a experiên­ cia da monarquia hispânica dos Habsburgo, que reunia, sob a soberania de Castela, os reinos de Aragão, Leão, Catalunha, Navarra; mais tarde, Milão, Nápoles, Sicília, Países Baixos e, por último, Portugal. Outro exem­ plo pode ser depreendido da reunião do País de Gales, da Escócia e da Irlanda sob o domínio da Inglaterra. Algum grau de integração deveria ser atingido pelas monarquias compósitas se o soberano quisesse ter efetivo controle sobre o território anexado, seja por meio da guerra, seja por união dinástica. Certamente a força e a coerção desempenharam seu papel, mas tornava-se dispendioso manter um exército de ocupação no território anexado, além do risco de rebeliões locais ou provinciais. A reunião das cortes — espécie de assembléias compostas pelo rei e os representantes das três Ordens ou Estados constitutivos do reino6 — , assim como a nomeação de conselheiros “au­ tóctones” para os órgãos colegiados que aconselhavam o monarca eram formas de “ouvir as vozes” e os interesses dos súditos e das comunidades locais, além de aproveitar suas experiências na implementação de futuras políticas. 7 1

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No caso específico da União Ibérica (1580-1640), o historiador JeanFrédéric Schaub, superando as interpretações “nacionalistas”7 — algumas baseadas no discurso articulado pelo próprio movimento de Restauração portuguesa — , afirma não ser mais possível compreender a incorporação de Portugal à monarquia hispânica insistindo apenas no argumento da conquista territorial do mais fraco pelo mais forte. Sem descartar as dife­ rentes estratégias utilizadas por Filipe II para consumar seu intento a diplomacia, o reconhecimento de seus direitos à sucessão do trono portu­ guês, o domínio militar — , Schaub recupera a importância do acordo contratual entre o rei espanhol e os súditos portugueses reunidos em cor­ tes, no Convento de Tomar, em 1581, quando Filipe II se comprometeu a respeitar a imunidade jurisdicional da coroa lusa. A partir do que ficou estabelecido pelo p acto, ou contrato, entre o rei e o reino. No que diz respeito ao governo político, é criado um Conselho de Portu­ gal que tem de funcionar sempre junto do rei, onde quer que ele se encon­ tre. No caso de o rei ser levado a afastar-se do reino, o governo só poderia ser encarnado por um vice-rei de sangue real ou por uma junta de gover­ nadores portugueses [...]. Dos cargos e ofícios da Justiça e da Fazenda, excluem-se todos os estrangeiros, isto é, todas as pessoas não naturais de Portugal. [...] O comando militar das tropas e das frotas portuguesas tem necessariamente de caber a um natural de Portugal. A exclusão dos foras­ teiros aplica-se de igual modo no domínio do padroado eclesiástico [...] Os Estados do reino, reunidos em cortes, devem ser convocados pelo rei como única forma de representação legítima do reino. Em suma, o novo rei prometia não suprimir nenhuma função ou ofício do aparelho mo­ nárquico português no qual sucedia e garantia aos seus súditos a exclusivi­ dade total das futuras nomeações.8 Em geral, as tentativas de conquista, integração e subordinação à autori­ dade de um único monarca — estrangeiro ou não — levaram a uma gran­ de interdependência entre o rei e as elites locais, cuja lealdade foi, não raro, ganha e mantida por meio do clientelismo. Em contrapartida, estas mesmas elites — senhoriais e urbanas — podiam exercer maior pressão —sobre-a-Goroa e, simultaneamente, estender seu domínio social_e_econô7 2

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mico sobre a própria comunidade. Referindo-se a recentes estudos sobre a imposição do poder central na região do Languedoc, no sul da França, Pujol afirma que: As facções locais foram quase sempre decisivas no momento de determi­ nar o resultado final da intervenção real, já que as lealdades ao país [na acepção do termo na época] ou à Coroa dependeram muitas vezes dos pequenos conflitos e desordens dentro da esfera local e regional. Uma vez mais se constata que as relações não eram facilmente dicotômicas. Mes­ mo numa questão tão clara de ação estatal como os impostos, há que ver o Estado não só como um extrator de riqueza mas também como um dis­ tribuidor. [...] Durante as décadas centrais do século XVII, as incrementadas receitas fiscais da Coroa não saíram do país [do Languedoc] na sua totali­ dade, [...] e metade do total recolhido foi desembolsado dentro da pró­ pria região; esses fatos explicam o interesse dos dirigentes de Languedoc na manutenção da situação criada por Richelieu.9 O autor conclui que, por vezes, o fortalecimento do Estado se deveu me^ nos ao uso da força, a progressos institucionais ou a aperfeiçoamentos administrativos impostos de cima para baixo, do centro sobre as localida­ des, do que à resposta a solicitações das elites regionais e locais interessadas em usar os mecanismos instituídos pelo centro em benefício próprio. Nesse sentido, entre o poder central e o poder ou poderes locais havia uma densa rede de relações, interesses e pactuações. S? os Estados tidos tradicionalmente pela historiografia como centralizados dependiam, para o sucesso da intervenção real em_seus múltiplos territórios, da aquiescência e colaboração das elites locais, o que dizer das monarquias compósitas? Uma de suas grandes fragilidades era o absenteísmo régio, ou seja, a ausência física do rei nos diferentes reinos^incorporados à monarquia; o que levou, no entanto, a que as elites locais desfrutassem um maior grau de autogoverno que estava longe de desafiar seu status quo. Exemplo disso nos é dado pela análise de Schaub acerca do poderio sempre crescente, ao longo da União Ibérica, da casa dos Bragança. Embora os duques de Bragança tivessem renunciado a partici­ par diretamente dos assuntos portugueses durante o governo hispânico, 7 3

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ca filipina fizeram com que, iniciado o movimento de independência de

das cidades — todos aqueles que tinham meios de servir ao rei — espera-^ vam receber em retribuição dádivas e mercês, em títulos, cargos, proventos e acrescentamento de status. A identidade de homens e mulheres com a sua comunidade local — com a “pátria”, no sentido em que esse termo era

Castela, constituíssem a casa nobre que detinha as maiores credenciais para assumir a Coroa lusa no Portugal restaurado.10

entendido nos séculos XVI e XVII — não era incompatível com a extensão da lealdade a uma entidade mais ampla, um rei, uma monarquia ou um

A patronagem e a “economia de mercês” como estratégia de incorpo-

Estado, desde que as vantagens da união pudessem ser reconhecidas. - Segundo Elliott, se por um lado a Europa do século XVI era predomi­

exerciam um poder de verdadeira “corte na província”. A vastidão de seu património, sua dispersão territorial e a complexidade das redes clientelísticas que mantinham com figuras proeminentes na condução da políti­

ração das elites locais tinham também sua eficácia na formação das monar­ quias européias. Segundo a historiadora Fernanda Olival, “a liberalidade, o gesto de dar, era considerado, na cultura política do Antigo Regime, como virtude própria dos reis, quer em Portugal, quer no resto da Europa Oci­ dental. Assim a apresentavam inúmeros teólogos, homens de leis e trata­ distas políticos os mais diversos”.11 Afirma que o papel dos príncipes não era inovar, e sim garantir a ordem que, segundo muitos, era dada por Deus. Nesse sentido, seu comportamento deveria ser moldado por imitação da divindade, tornando-se o maior exemplo para os seus súditos. Seu perfil moral deveria se basear na virtude, na bondade, na liberalidade. A acu­

nantemente uma Europa de monarquias compósitas, coexistindo com uma miríade de unidades territoriais e iurisdicionais independentes, por outro, essa mesma constatação — ou interpretação — não nos deve levar a pensar que os Estados compósitos eram um meio caminho necessário, embora incompleto e insatisfatório, no lento e sempre contínuo processo de formação dos Estados unitários, em termos políticos e culturais. Essa linha inexorável e evolutiva de “formação dos Estados nacionais” traçada, desde o século XVI até o século X IX , deve — e tem sido — questionada e revista pela historiografia dos nossos dias.

mulação de proventos materiais era condenada, pois equivalia à avareza, um vício dos mais censurados. De acordo com a autora, “mais importan­ te do que a posse de muitos haveres, era saber governá-los e distribuí-los de modo a atrair a fidelidade dos súditos”.12 A seu ver, esse pecúlio de idéias, aliado a outros referentes greco-latinos e do cristia­ nismo, sob diferentes apropriações, marcou as relações políticas dos homens do Antigo Regime, em tempos ditos de capitalismo comercial. Os reis devi­ am ter grandes riquezas, [...] exatamente para poderem distribuir mais re­ cursos e manterem mais servidores. Quanto mais fossem estes últimos, e mais ricos, maiores poderiam ser os domínios e os meios dos príncipes.13 Em outras palavras, as monarquias compósitas foram constituídas sobre um

O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO: A PROJEÇÃO DO PASSADO SOBRE 0 PRESENTE

Também no que diz respeito ao Brasil colónia, ou, de forma mais geral, ao processo de colonização das Américas portuguesa e espanhola, os livros didáticos — e me refiro, sobretudo, aos do ensino médio — tardam a in­ corporar a revisão historiográfica, fruto de pesquisas que, nos últimos anos, têm sido desenvolvidas principalmente nos programas de pós-graduação das universidades brasileiras. Em regra o clássico ensaio de Caio Prado Júnior “O sentido da colonização”, publicado em 1942 no livro Form a­ ção d o Brasil contem porân eo, é o ponto de partida para a reprodução —

ta dose de flexibilidade e estabilidade. A nobreza sentia-se atraída pela cultura da corte. Tanto ela quanto os magistrados, mercadores e principais homens

mais do que a reflexão — dos manuais de história adotados em nossas escolas. Caio Prado era um historiador marxista e, como escreve José Roberto do Amaral Lapa, seu “livro parece superar as obras dos demais autores que também se utilizaram do marxismo para tentar decifrar a rea­ lidade brasileira, sempre com o objetivo de mudá-la”.14

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7 5

mútuo pacto entre a Coroa e as elites nobres e plebéias, provinciais e urbanas,j3 que conferia, mesmo às uniões mais arbitrárias e artificiais, uma cer­

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QUESTÃO

Apesar de todos os méritos, que não são poucos, o livro de Caio Pra­

Caio Prado foi o primeiro historiador a explicitar as ligações entre o pro­

do é tributário de uma perspectiva histórica — de um regime de histori­ cidade, para usar o conceito de Francois Hartofi15 — própria das décadas de 1940 ,5 0 e 60. Ao analisar a constituição do Estado e da nagão no Brasil e na América Latina, traça, por um lado, uma linha mestra de evolução e desenvolvimento; entendendo-a, por outro, como decorrência ou manifestação interna de processos estruturais — como o desenvolvimento do capitalismo — ocorridos externamente, nos centros dinâmicos da Europa Ocidental. Preocupado em compreender os fundamentos da nacio­

cesso de colonização e o desenvolvimento capitalista internacional. De acordo com Amaral Lapa, o autor

/

nalidade brasileira, Caio Prado afirma que: Todo povo tem na sua evolução, vista à distância, um certo “sentido”. Este se percebe não nos pormenores de sua história, mas no conjunto dos fatos e acontecimentos essenciais que a constituem num largo período de tem­ po. Quem observa aquele conjunto, desbastando-o do cipoal de inciden­ tes secundários que o acompanham sempre e o fazem muitas vezes confuso e incompreensível, não deixará de perceber que ele se forma de uma linha mestra e ininterrupta de acontecimentos que se sucedem em ordem rigo­ rosa, e dirigida sempre numa determinada orientação.16 O evolucionismo presente na argumentação de Caio Prado combina-se^ no entanto, com uma perspectiva dialética. A historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias afirma que o impasse da contradição entre o vir-a-ser da nacio­ nalidade e as relações sociais de dependência colonial levou Caio Prado a construir seu livro Formação do Brasil contemporâneo sobre dois eixos principais inter-relacionados numa relação permanente de oposição estru­ tural [...]: o eixo da dependência colonial, conduzindo à tese da anomia dos oprimidos e sua incapacidade de articulação política, foi elaborado nos capítulos “Sentido da colonização”, “Grande lavoura”, “Mineração”, “Organização social”, “Administração” e “Organização social e política”. Neles o historiador aprofundou as contradições do sistema produtivo en­ quanto pólo do sistema capitalista internacional. [...] outro eixo de elabo­ ração desta obra diz respeito à formação na nacionalidade brasileira, às relações de dependência interna, às dificuldades de vir a ser do inorgânico.17 7 6

insere o Brasil, sua descoberta e colonização, como parte do grande movi­ mento encetado pelo capital mercantil, graças às descobertas e avanços tecnológicos com que se aceleram e se mundializam as comunicações. Uma vasta empresa comercial, sem maiores preocupações em construir uma sociedade unitária e integrada. Empresa de exploração do que é encon­ trado e comercializável, que se estenderá à grande agricultura de exporta­ ção capaz de atender aos interesses europeus de consumo.18 Se o sentido comercial da colonização é desenvolvido por Caio Prado J únior, o livro de Fernando Novais Portugal e Brasil na crise d o antigo sistema colonial (1 7 7 7 -1808), publicado na década de 1970. formula um novo conceito: o de antigo sistema colonial, que relaciona a dependência da colónia à metrópole, a organização das atividades produtivas e das relações de produção coloniais, ao processo de acum u lação prim itiva d e capital na Europa, de acordo com as práticas mercantilistas então em voga.19A tese de Novais encontrou grande difusão — inclusive no ensino médio — no artigo “O Brasil nos quadros do antigo sistema colonial”, inserido na coletânea organizada por Carlos Guilherme Motta Brasil em Perspectiva. Nele se lê: Temos assim os dois elementos essenciais à compreensão do modo de orga­ nização e dos mecanismos de funcionamento do antigo sistema colonial: como instrução de expansão da economia mercantil européia, em face das condições desta nos fins da Idade Média e início da época moderna, toda atividade económica colonial se orientará segundo os interesses da bur­ guesia comercial da Europa; como resultado do esforço económico coor­ denado pelos novos Estados modernos, as colónias se constituem em instrumento de poder das respectivas metrópoles.20

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ca das Américas portuguesa e hispânica só poderia ser alcançada por meio

volução n o Brasil (1789 -1 8 0 1 ), de 1979, ao discutir o “processo de to­ mada de consciência no Brasil num momento crítico da história do antigo sistema colonial português”, ou seja, o de sua crise, afirma que “nesse uni­ verso de reflexos que é o mundo colonial do século XVIII há que observar, nos mecanismos de tomada de consciência — elaboração das nacionali­ dades — , aquelas construções mentais que em vários casos nortearam a ação emancipadora”.24 Portanto, para o historiador, o processo de tomada de consciência do “viver em colónias”, que se desdobrou nas chamadas

da lógica do capital, da formação dos Estados centralizados e absolutistas e

inconfidências e conjurações, já continha em si “manifestações naciona­

do desenvolvimento do capitalismo na Europa. Não é à toa que a his­

listas. sendo que o nacionalismo emergente no final do século XVIII no Brasil é, na base, anticolonialista. A consciência nacional começa a des-

E acrescenta: É nesse contexto, e só neste contexto, que se torna possível compreender o modo como se organizaram nas colónias as atividades produtivas e as suas implicações sobre os demais setores da vida social.21 Mais uma vez a chave de análise da organização económica, social e políti­

toriografia da década de 1970 cunhou igualmente o conceito de transição d o feudalism o vara o capitalism o ao se referir aos tempos modernos. Se por um lado essa visão praticamente negava aos atores engendrados na di­ nâmica do processo de colonização possibilidades múltiplas de escolha e de negociação de suas estratégias individuais e sociais, tornando-os mais obje­ tos do que sujeitos de uma “política colonial” — e, portanto, de seus desti­ nos históricos— , minimizava, igualmente, as diversidades e singularidades regionais e temporais do que se convencionou chamar de “Brasil colónia”.22 De acordo com Sílvia Hunold Lara, em artigo publicado em 2005: Mas foi sobretudo a ênfase nas análises macroestruturais, que marcaram os anos 1970, que acabou por cristalizar a imagem da “colónia” como um todo homogéneo. Nos debates marxistas dessa época, a expressão “Brasil colonial” passou praticamente a desconsiderar diversidades políticas, geo­ gráficas, populacionais, económicas e cronológicas. Privilegiando o deba­ te conceituai, muitos empreenderam análises nas quais eram referenciados lado a lado documentos dos séculos XVII e XIX ou que diziam respeito à Bahia, ao Rio de Janeiro ou ao Maranhão.23 Outro traço dessa historiografia consistiu na ênfase, para além da comple­ mentaridade, da oposição e, progressivamente, da contradição de interesses^ntre colónia e metrópole, entre colonizadores e colonos. Esta dualidade aprofunda-se no momento da crise do antigo sistema colonial,

pertar, e passa a não ser contida pelas estruturas do Estado dentro do qual emerge”.25 Mais uma vez o sentimento nacional é vislumbrado precocemente. Comentando a historiografia marxista brasileira da década de 1970, em geral, Sílvia Hunold Lara afirma que: Em muitos trabalhos, a idéia de uma “unidade nacional” ainda continuou a ser projetada para a “colónia”, construindo-se uma história que era do “Brasil” colonial, não dos domínios portugueses na América; que era da nação, não de sujeitos históricos múltiplos, desiguais e diferentes. Por isso, a oposição que separava radicalmente o arcaico-escravista colonial do moderno-capitalista-nacional continuou de certo modo a ser a base das reflexões históricas sobre o período colonial até bem pouco tempo atrás.26 Embora primasse pela interpretação da lógica do capital, das práticas mercantilistas e dos modos de produção, assim como do escravismo colonial, a historiografia marxista dos anos 1970 não deu maior aten­ ção à cultura política que informava a visão de mundo dos sujeitos históricos, e que poderia explicar, em seus próp rios term os, as relações económicas, sociais, políticas e culturais que conectaram as colón ias às m etróp o les.

em fins do século XVIII. Carlos Guilherme Mota, no livro Idéia de re7 8

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OS IMPÉRIOS COLONIAIS E A CULTURA POLÍTICA DA ÉPOCA MODERNA

Se o Estado-nação não deve ser visto como o resultado final de um pro­ cesso histórico iniciado na época moderna, seja qual for o lado do Atlân­ tico, torna-se necessário refletir sobre as estruturas mais amplas no seio das quais situamos nossas pesquisas especializadas. Em coletânea publicada em 2002, N egotiated empires. Center an d peripheries in the Am éricas, os autores utilizam os conceitos de centro e periferia para analisar o relacio­ namento entre os Estados europeus e seus territórios ultramarinos. Na introdução ao livro, os historiadores norte-americanos Jack Greene e Amy Turner discutem os estudos de Immanuel Wallerstein, The m odern tvorldsystem, publicado entre 1974 e 1989.27 Os conceitos de centro e periferia de Wallerstein têm sido usados, in­ clusive por historiadores brasileiros, para entender o sistema mundial co­ lonial e mercantilista. Em sua perspectiva, um núcleo europeu composto de Estados centrais, com máquinas estatais poderosas, integrava culturas nacionais e complexas economias, que crescentemente incorporaram e do­ minaram áreas periféricas com Estados fracos ou não existentes — eco­ nomias simples baseadas na mineração, na agricultura, em vários tipos de exploração de recursos, utilizando-se de trabalho compulsório. Nesse es­ quema, o centro sempre dominava a periferia, embora ele próprio não fosse necessariamente estável, uma vez que mecanismos estruturais da “economia-mundo” poderiam empurrar alguns Estados-centro para um status periférico ou semiperiférico. De acordo com Greene e Turner. apesar de Wallerstein ter desenvolvi­ do essas categorias para facilitar a análise do processo que teve suas origens na época moderna, e embora historiadores da América Latina utilizem dência — que emergiu nos anos de 1960 — para expljcar o subdesenvolvimento, essa conceituação específica do relacionamento centro-periferia não tem sido fulcral nos argumentos de uma nova historiografia produzi­ da nas Américas sobre o período colonial. O çsquema de Wallerstein con­ fere muito poder aos núcleos europeus, é exclusivamente focado na criação dos sistemas de comércio internacionais, apresentando uma visão bastan-

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te generalista para ser proficuamente aplicada à análise da história das múltiplas e complexas estruturas imperiais que emergiram tanto nas Amé­ ricas quanto em regiões da África e do Oriente ao longo da época moderna. Em um dos artigos que assina no mesmo livro, Greene critica o uso indiscriminado de um modelo coercitivo e centralizado de organização imperial, no qual poderosos Estados-nações exploravam colónias, cuja autoridade fluía de cima para baixo, do centro sobre as populações sujeitas nas distantes e distintas periferias. Assim como as monarquias compósitas, os impérios da época moderna podiam espelhar uma soberania fragmenta­ da, além de considerável autoridade poder ser mantida pelas ditas periferias. Em suma, a formação dos hoje chamados impérios coloniais pressupôs a construção de novos centros — ultramarinos — igualmente detentores de autoridade, por meio de complexos mecanismos de negociação.28 O que tem sido a linha de argumentação aqui desenvolvida é que novas questões, assim como um outro recorte metodológico — e, portanto, uma / diferente perspectiva historiográfica — , vêm se impondo na aurora deste |) / novo milénio. Em decorrência de um conjunto de transformações econô/ micas, políticas e culturais vividas nas últimas décadas, a estabilidade e a / coerência do Estado-nação, convencionalmente tomado como uma criação / da “modernidade” européia, não é mais tão evidente quanto há meio sécu/ lo. Aliás, muitas têm sido as críticas ao acentuado eurocentrismo implícito nessa visão. Em “Connected histories: notes towards a reconfiguration of early modern Eurasia”, o historiador indiano Sanjay Subramanyam denun­ cia a “ditadura”, “camisa-de-força” ou “imposição” do modelo da trajetó­ ria européia nos tempos modernos para análises de outras realidades, como a asiática. Ou seja, contrapõe-se a uma noção de modernidade que classifi­ ca e hierarquiza sociedades tão distintas e territórios tão distantes de acor­ do com um processo histórico que parte sempre da Europa.29 Pode-se dizer que, diante da “crise” do Estado-nação. os estudos his­ tóricos vêm tomando duas direções: (1) uns encontraram na micro-histó­ ria um “espaço” pertinente no interior do qual definem seus objetos; (2) outros extrapolaram as estruturas nacionais que lhes eram familiares, en­ contrando na flexibilidade das constantes negociações e dos diferentes pactos entre governantes e governados, entre elites reinóis e ultramarinas 8 1

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e entre senhores e escravos a chave de interpretação das múltiplas rela­ ções e conexões entre centro e localidades, dominantes e dominados. Se a história global adquiriu certa visibilidade como entidade analítica e peda­ gógica, resta-nos, no entanto, inventar uma série de instrumentos teóri­ cos e metodológicos pertinentes à sua elaboração. Um desses instrumentos seria o conceito de rede, que alguns historia­ dores têm elegido para analisar a dinâmica económica, política e social dos impérios ultramarinos ou coloniais da época moderna. Estes se cons­ tituíam por meio de múltiplas redes de relações — políticas, económicas, sociais, culturais — que conectavam os sujeitos históricos para além do território europeu, podendo comportar um ou vários centros económi­ cos10 — sendo constituídas pela multiplicidade e diversidade de laços en­ tre diferentes agentes históricos e regiões ultramarinas, o que, no conjunto, constitui um amplo inventário de experiências e singularidades. A força e a substância desses laços são suscetíveis de mudanças, e estas são capazes de alterar a própria rede ou relação de maneira fundamental, jpr João Fragoso e Maria de Fátima Silva Gouvêa vêm desenvolvendo estudos sobre redes imperiais que, entre fins do século XVII e início do XVIII, envolviam diferentes agentes do império português: casas aristocráticas do reino, magistrados, oficiais régios, negociantes e, inclusive, membros das elites coloniais residentes em diferentes regiões ultramari­ nas. Elas eram tecidas pela circulação, comunicação e troca entre esses homens — e mulheres — de mercadorias, informações, bens materiais e culturais, e eram adensadas por relações de parentesco e clientelísticas, aproximando e afastando diferentes grupos, em termos de alianças políti­ cas e interesses pecuniários. Os autores argumentam que

fio

este circuito de relações deu lugar a determinadas formas não só de acu­ mulação e circulação de informações, bem como de definição de estraté­ gias governativas, voltadas para o acrescentamento político e material dos interesses portugueses, [...] sejam os interesses individuais e de redes clientelares, sejam os corporativos da Coroa como um todo.31 Por fim, como o texto de Maria de Fátima Gouvêa e Marília Nogueira dos Santos publicado neste livro propõe, o estudo das redes em termos de 8

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sua importância, no que tange às sociabilidades culturais, políticas e eco­ nómicas vivenciadas no interior dos impérios ultramarinos da época moderna, descentraliza a análise em termos de movimento que parte exclu­ sivamente dos Estados metropolitanos, conferindo flexibilidade às rela­ ções imperiais, o que promove conexões intercoloniais.32 Outros caminhos vêm sendo trilhados por novos estudos que, por náo se calcarem em generalizações e formalizações dos processos sociais, par- > tem do pressuposto de que eles são eminentemente históricos, que têm uma historicidade, isto é, são datados e localizados no tempo e no espaço, não podendo ser bem compreendidos a não ser pela inclusão de uma dim ensão interna. São trabalhos produzidos nas últimas duas décadas — muitos deles dissertações de mestrado ou teses de doutorado — que partem das repre­ sentações, experiências e ações dos atores históricos, ou seja, da cultura política e dos padrões sociais de homens e mulheres que vivenciaram o pro­ cesso de colonização nos tempos modernos. Um exemplo dos mais signifi­ cativos dessas abordagens encontra-se nos trabalhos que, nos últimos vinte anos, vêm sendo desenvolvidos sobre “as práticas cotidianas, os costumes, enfrentamentos, resistências, acomodações e solidariedades, modos de ver, viver, pensar e agir dos escravos”. De acordo, mais uma vez, com Sílvia Lara: A partir da década de 1980, os estudos sobre a escravidão dos africanos e seus descendentes no Brasil passaram por transformações que redimensionaram a abordagem do tema. Questionando as amarras estruturais de paradigmas explicativos fixados na década de 1960, vários historiadores enfatizaram a necessidade de procurar outras perspectivas de análise. Ao criticar o enfoque estritamente macroeconômico e a ênfase no caráter vio­ lento e inexorável da escravidão, observaram que o resultado da maior parte da produção sobre o tema era uma história que, mesmo sem o dese­ jar, apoiava-se numa óptica senhorial que era, inevitavelmente, excludente. Recuperando movimentos e ambiguidades que antes poderiam parecer surpreendentes, valorizaram a experiência escrava, que passou a ser ana­ lisada com base em outros parâmetros. Assim, os valores e as ações dos escravos foram incorporados como elementos importantes para a com­ preensão da própria escravidão e de suas transformações.33 e 8 3

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A partir dessa inflexão teórico-metodológica creio que podemos, por meio de nossos estudos e pesquisas, contribuir para dar sentido não apenas a temas coloniais, mas também ao nosso sempre renovado ofício de historia­ dores. Afinal, como nos lembra François Hartog, comentando os ensina­ mentos de Lucien Febvre, explicar o mundo ao mundo, responder às questões que se apresentam aos homens de hoje, é decididamente a tarefa do historiador. Não se trata de fazer tábula rasa do passado, mas de com­ preender em que ele difere do presente, por que e em que ele é passado, num mundo que, se em todos os sentidos é comandado pelo presente, é, também e profundamente, diferente dos tempos atuais, quer em suas prá­ ticas, quer em suas representações.34

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designar a modalidade de consciência de si de uma comunidade humana. A seu ver, essa noção pode fornecer um instrumento de comparação de tipos de história d ife­ rentes no sentido de iluminar distintas formas de relacionamento com o tem po ou, em outras palavras, formas específicas de experiência do tempo. Cf. François H artog, “Ordres du temps, regimes d’historicité”, em Regimes d ’historicité. Présentisme et expériences du tem ps, Paris, Seuil, 2 0 0 3 , p. 19-20.

6 . Sobre as C ortes, cf. Pedro Cardim, C ortes e cultura política n o Portugal d o Antigo Regime, Lisboa, Edições Cosmos, 199 8 . 7. Cf., a esse respeito, o capítulo “M anifestos de Portugal. Reflexões acerca de um Estado moderno”, de Rodrigo Bentes M onteiro e Jorg e Miranda Leite, neste livro.

8 . Jean-Frédéric Schaub, Portugal na m onarquia hispânica (1580-1640), Lisboa, Livros Horizonte, 2 0 0 1 , p. 21. 9. Pujol, op. cit., p. 126-7. 10. Segundo Schaub, “o afastamento espetacular dos titulares da casa não deve, porém, alimentar ilusões. Uma leitura atenta da correspondência política trocada entre Lis­ boa, Vila Viçosa [“corte” dos duques de Bragança] e Madri revela a multiplicidade

Notas

de canais através dos quais os sucessivos duques exerceram a sua influência no seio dos grandes conselhos das polissinodias portuguesa e hispânica. [...] o duque de

1. Segundo o D icionário d e Política de N orberto Bobbio, “o termo nação, utilizado

Bragança teria sido, na viragem dos anos 2 0 , o patrono direto de quatro dos sete

para designar os mesmos contextos significativos a que hoje se aplica, isto é, aplica­

membros do Conselho de Portugal, e teria tecido, de forma indireta, laços fortes

do à França, à Alemanha, à Itália etc., faz seu aparecim ento no discurso político — na Europa — durante a Revolução Francesa”. Cf. N. Bobbio et al., D icionário de

Política, v. 2, Brasília/São Paulo, Ed. UnB/Imprensa O ficial do Estado de São Paulo, 2 0 0 4 , p. 796. 2. Recentes interpretações historiográficas problematizam tanto a extrem a centraliza­ ção quanto a unificação cultural ou a existência de um sentim ento nacional, inclu­ sive na França do século X V I. Cf. Emmanuel Le Roy Ladurie, O Estado m onárquico.

França 1460-1610, São Paulo, Companhia das Letras, 1994. 3. Xavier Gil Pujol, “Centralismo e localismo? Sobre as relações políticas e culturais entre capital e territórios nas monarquias européias dos séculos X V I e X V II”, Pené-

lope. Fazer e D esfazer a H istória, n. 6 , 1 9 9 1 , p. 123-4. 4 . John H. EUiott, “A Europe o f composite monarchies”, Past an d Present, n. 1 3 7 ,1 9 9 2 , p. 4 8 -7 1 .

com outros dois dos seus membros” (Schaub, op. cit., p. 64). 11. Fernanda Olival, As Ordens militares e o Estado m oderno. Honra, m ercê e venalidade

em Portugal (1641-1789), Lisboa, Estar Editora, 2 0 0 1 , p. 15.

12. Ibidem , p. 18. 13. Ibidem , p. 17. 14. José Roberto do Amaral Lapa, “Caio Prado. Formação do Brasil contem porâneo”, em Lourenço Dantas M ota (org.), Introdução a o Brasil. Um banquete n o trópico, São Paulo, Ed. Senac, 199 9 , p. 2 5 9 . 15. Cf. nota 5. 16. Caio Prado Júnior, “O sentido da colonização”, em Form ação do Brasil con tem p o­

râneo, 15a ed., São Paulo, Brasiliense, 197 7 , p. 19. 17. Maria Odila Leite da Silva Dias, “Impasses do inorgânico”, em M aria Ângela D ’Incao (org.), Ensaios sobre C aio Prado Jiinior, São Paulo, Brasiliense/Ed. Unesp/Secretaria de Estado da Cultura, 198 9 , p. 3 8 9 -9 0 . Analisando outro importante livro de Caio

5. Lucien Febvre, “Cam inhando para uma outra H istória”, em C om bates pela história

Prado Júnior, H istória económ ica d o Brasil, Rubem M. L. Rego afirma que a tese

II, Lisboa, Editorial Presença, 1 9 7 7 , p. 22 5 -6 . M ais recentemente, François Hartog

central do autor sobre o largo processo de transformação por que passa a form ação

cunha o conceito d e\regimes d e historicidade,\que pode ser entendido de duas for­

social brasileira, principalmente durante a segunda metade do século X IX e as pri­

mas: numa acepção restrita, com o uma sociedade trata o seu passado, e nele se vê;

meiras décadas do século X X , é a de que a integração na nova etapa de desenvolvi-

e numa acepção mais vasta, de acordo com a qual regimes d e historicidade serve para

mento do capitalism o internacional, a que denomina “ordem im p erialista", “se

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processou sem modificação substancial do caráter fundamental da economia do país”. Cf. Rubem M . L. Rego, Sentimento d o Brasil. C aio Prado Júnior. Continuidades e

mudanças no desenvolvimento da sociedade brasileira, Campinas, Ed. Unicamp, 2 00 0 .

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30. Cf., a esse respeito, A. J . R. Russell-Wood, “C entro e periferia no mundo luso-bra­ sileiro, 1 5 0 0 -1 8 0 8 ”, Revista Brasileira d e H istória, v. 18, n. 36, 1998, p. 202. 31. João Luís Ribeiro Fragoso e M aria de Fátima Silva Gouvêa, “Vitorino Magalhães Godinho et les réseaux impériaux” . Arquivos d o Centro Cultural Calouste Gul-

18. Lapa, op. cit., p. 263. 19. Fernando Novais, Portugal e Brasil na crise d o antigo sistem a colon ial (1777-1808),

benkian, v. 5 0 , 2 0 0 5 , p. 89. 32. Maria de Fátima Silva Gouvêa e M arília Nogueira dos Santos, “ Cultura política na

São Paulo, H ucitec, 197 9 , p. 62. 2 0 . ldem , “O Brasil nos quadros do antigo sistema colonial”, em Carlos Guilherme M ota

dinâmica das redes imperiais portuguesas”, publicado neste livro. Cf., também, Maria

(org.), Brasil em perspectiva, 10a ed., Rio de Janeiro/São Paulo, D ifel, 197 8 , p. 49.

de Fátima Silva Gouvêa, G. de A. Frazão e M arília Nogueira dos Santos, “Redes de

Esse artigo foi novamente publicado em Fernando Novais, Aproxim ações. Estudos

poder e conhecim ento na governação do império português, 1688-1735”, Topoi: revista de H istória, v. 5 , n. 8, jan.-jun. 2 0 0 4 , p. 9 6-137.

d e história e historiografia, São Paulo, Cosac Naify, 2 0 0 5 , p. 4 5 -6 0 . 2 1 . Ibidem , p. 57.

33. Lara, op. cit., p. 2 5 .

2 2 . Para uma magistral análise do conceito de região colonial afinada com a tese da

34. Hartog, op. cit., p. 14.

colonização de exploração nos quadros do antigo sistema colonial, cf. limar Rohloff de M attos, O tem po saquarem a, São Paulo, H ucitec, 1 9 8 7 , p. 2 4 -5 . 2 3 . Sílvia Hunold Lara, “Conectando historiografias: a escravidão africana e o Antigo Regime na América portuguesa”, em Maria Fernanda Baptista Bicalho e Vera L. A. Ferlini (orgs.), M odos de governar. Ideias e práticas políticas no im pério português. Séculos XVI a XIX, São Paulo, Alameda Editorial, 2 0 0 5 , p. 24. 2 4 . Carlos Guilherme M ota, ldéia de revolução no Brasil (1789-1801). Estudo das fo r­

m as d e pensam ento, Petrópolis, Vozes, 1 9 7 9 , p. 2 2 . 2 5 . Ibidem , p. 90. 2 6 . Lara, op. cit., p. 24. 2 7 . Immanuel Wallerstein, The modern world-system, 3 v., Nova York, Academic Press, 1 9 7 4 -8 9 . 28. J. Greene, “Transatlantic colonization and the redefinition o f empire in the early modern era. The British-American experience”, em C. Daniels e M. Kennedy (eds.), Negotiated

Empires. Centers an d Peripheries in the Américas, 1500-1820, Nova York/Londres, Routledge, 2 0 0 2 , p. 2 67-82. Certamente Greene desenvolve sua argumentação com base na experiência da América inglesa, cuja singularidade e diferença em relação à espanhola e à portuguesa têm que ser levadas em conta. Para uma análise cujo foco é o império português nos tempos modernos, cf. Jo ão Luís Ribeiro Fragoso, Maria Fernanda Baptista Bicalho e Maria de Fátima Silva Gouvêa, “Uma leitura do Brasil colonial: bases da materialidade e da governabilidade no Império”, Penélope: revista de História e de Ciências Sociais, n. 23, Lisboa, 200 0 , p. 6 7 -8 8 ; e J. L. R. Fragoso, M. F. B. Bicalho e M. de F. Silva Gouvêa (orgs.), O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa

(séculos XVI-XVHI), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001. 2 9 . Sanjay Subrahmanyam, “Connected histories: notes towards a reconfiguration o f early modern Eurasia”, em Victor Lieberman (ed.), Beyond Binary Histories. Re-imagining Eurasia to c. 1830, Michigan, University o f Michigan Press, 1999, p. 2 8 9 -3 1 6 .

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Cultura política na dinâmica das redes imperiais portuguesas, séculos XVII e XVIU* Maria de Fátima Silva Gouvêa** Marilia Nogueira dos Santos***

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‘ F.ste artigo faz parte de dois trabalhos de pesquisa mais amplos que contam com o apoio financeiro do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). ‘ ‘ Pesquisadora do CNPq e professora do Departamento de História e do Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). “ ‘ Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Flu­ minense (UFF).

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Nos últimos tempos tem se afirmado com grande evidência a importância do estudo das redes, em termos de sua relevância no que tange às sociabi­ lidades culturais, políticas e económicas vivenciadas no interior dos impérios ultramarinos da época moderna. O caso das redes imperiais portu­ guesas é um dos que têm atraído a maior parte da atenção dos historiado­ res dedicados ao estudo do período. A trajetória de vida de Antônio Coelho Guerreiro — militar, burocrata e mercador — oferece oportunidade pri­ vilegiada para se observar os elementos mais marcantes de uma cultura política característica do período em questão. Cultura política esta capaz de traduzir todo um modo de vida experimentado por diversos agentes sociais naquele contexto.

CULTURA POLÍTICA E REDES IMPERIAIS NO M UNDO PORTUGUÊS NA ÉPOCA MODERNA

A discussão acerca da relação estabelecida pelos historiadores entre cul­ tura e política ao longo das três últimas décadas tem apresentado, entre vários aspectos, uma característica em particular que merece destaque especial. Nela, o Estado e suas principais agências administrativas têm deixado de constituir o principal foco de atenção das análises empreendi­ das em termos da organização política e cultural das sociedades estudadas. A reflexão desencadeada por Michel Foucault, na década de 1970, pas­ sou a privilegiar uma compreensão do p od er enquanto estratégia, limi­ tando assim a idéia de que haveria um único ou principal centro de poder capaz de determinar ou coordenar as relações de poder travadas numa

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dada sociedade.1A idéia de micropoderes privilegiou a percepção do campo político como uma malha, constituída por poderes descontínuos e dis­ persos, não havendo um único agente capaz de determinar ou definir as formas possíveis de exercício do poder — ou dos poderes — no interior desse conjunto. Eliminou-se assim a dicotomia incontornável que se acre­ ditava opor de modo derradeiro e irremediável as duas partes do binómio dominador/dominado, opressor/oprimido. Desde então, poder passou a ser sempre percebido enquanto uma relação, um p od er relacional. Pode-se, assim, finalmente perceber que “o poder é mais complicado, muito mais denso e difuso que um conjunto de leis ou um aparelho de Estado”.2 Conclusão essa que incidiu numa profunda revisão nas formas como vinham sendo produzidos os estudos na área da história política a partir de então. O estudo do campo político — do Estado e de suas insti­ tuições — passou a ser encarado numa perspectiva muito mais ampla do que aquilo que se entendia como sendo, então, o poder.3 Em meio a esse processo, a discussão em torno do conceito de cultura política surgiu como uma rica e importante opção em termos do desenvolvimento de estudos na área da nova história política. Em termos gerais, tem sido sugerido que tal noção implica a identificação de uma espécie de código e/ou de um conjunto de referenciais constituídos e formalizados em um grupo social ou a partir de uma tradição política. A percepção de uma cultura política resulta, assim, numa “leitura comum do passado”, como também numa “projeção no futuro vivida em conjunto” por um determinado grupo

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vida em sociedade, de uma leitura coletiva em termos gerais tanto do pas­ sado quanto do futuro.6 Contribuem, portanto, para a formação de um “património” coletivo constituído por vocabulários, valores, símbolos, idéias políticas, atitudes e gestos, enfim, todo um complexo conjunto de elementos que ajudam a dar forma a um grupo social, uma sociedade ou mesmo uma temporalidade. Vale ainda lembrar que, em relação às sociedades do Antigo Regime, parte significativa da historiografia dedicada ao estudo do tema tem con­ siderado aspectos relativos a uma cultura política característica dessa temporalidade como um todo. Ou seja, uma cultura política d os tem p os m odernos , 7 pautada, fundamentalmente, na dinâmica das sociedades de corte, na pessoa do rei enquanto cabeça capaz de articular o corpo social como um todo, na mistura entre o pú blico e o privado, bem como uma indissociação entre o político, o económico e o social.8 Nesse sentido, grande destaque tem sido também dispensado, por parte de uma historiografia portuguesa especializada, à análise dos aspectos que mais de perto caracterizaram a cultura política portuguesa na ép o c a m o ­ derna. Destaca-se, especialmente, a percepção do hibridismo que havia caracterizado o processo de surgimento do cavaleiro-m ercador, persona­

social.4 Tal noção é entendida como estando intimamente vinculada à cultura

gem-chave a liderar o processo de expansão marítima portuguesa,9 bem como a cultura política das cortes e a adoção da prática letrada na socie­ dade de corte.10 As concepções corporativas da sociedade portuguesa bem como o processo de formação da nobreza e a dinâmica das redes clientelares em Portugal mereceram também grande destaque enquanto elemen­ tos fundadores de uma cultura política particular daquele tempo e lugar.11

global de uma sociedade — e, por que não dizer, de uma temporalidade — sem que por isso se confunda com a mesma, na medida em que seu campo de aderência e aplicação se restringe mais especificamente ao cam­ po do político.5 Tal estratégia de análise resulta numa maior ênfase na compreensão das motivações que incidiram para que determinado indiví­ duo — ou grupo de indivíduos — ou sociedade adotassem um comporta­ mento político e não outro. Historiadores têm concluído que culturas políticas têm se constituído em fator de agregação social, concorrendo de modo preponderante em favor da constituição de uma visão comum da

Outro aspecto que interessa aqui analisar é a importância da sociabi­ lidade propiciada pela dinâmica relacional das redes imperiais no interior do mundo português da época moderna. Vários têm sido os trabalhos dedicados ao estudo do império português, que nos últimos 15 anos12 vêm analisando a formação de redes imperiais — principalmente as redes mer­ cantis — , considerando-as espirais d e p od er que acabaram por viabilizar determinadas tramas e dinâmicas socioeconômicas, que deram vida e for­ ma à materialidade e à governabilidade portuguesa em seus domínios ul­ tramarinos.

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Vale destacar também a dificuldade em se definir mais precisamente a forma de qualificar o caráter dessas redes na época moderna portuguesa, tendo em vista ser impossível separar as esferas do político, do económi­ co e do social, como ficou dito.13 Os trabalhos mais recentes de João Fragoso têm demonstrado a forma como os grupos económicos que pro­ moveram a ocupação do recôncavo da Guanabara tiraram partido das posições ocupadas na administração portuguesa que ia se instalando na região, nos séculos XVI e X V II.14 A econ om ia d o bem com um se consti­ tuiu em mecanismo através do qual a conquista articulou o sistema de mercês ao acesso às prerrogativas dos cargos ocupados na câmara con­ celhia, constituindo caminho privilegiado de montagem da plantation escravista e da própria primeira elite senhorial no Rio de Janeiro.15 A análise das redes imperiais que agora será feita considera as relações estabelecidas entre determinados oficiais da Coroa e alguns governadores gerais e governadores de capitanias, que juntos estiveram à frente da ad­ ministração portuguesa no ultramar em fins do século XVII e início do XVIII. Formaram eles um grupo articulado em favor de determinadas estratégias políticas e mercantis, constituindo-se num grupo que atuava de modo privilegiado no campo da governação, mas que, através desta, agia em defesa dos interesses mais gerais de uma rede mais ampla, uma rede imperial. A circulação de oficiais régios através dos altos postos da administra­ ção portuguesa no ultramar no período acabou por constituir redes governativas que estiveram à frente da administração portuguesa ultra­ marina naquele período. Observa-se assim uma curiosa combinação en­ tre a natureza estruturada— forte — de relacionamentos que constituíram algumas dessas redes com o caráter circunstancial — frou xo — desses cir­ cuitos de relações.16 Essa complexa combinação de diferentes tipos de relacionamento social caracterizou o modo singular de ser da governação no complexo imperial português naquele período. Parte-se, portanto, de um ponto de observação que considera as espi­ rais de poder formadas por processos de recrutamento e remuneração de diversos tipos de indivíduos em termos dos serviços prestados à Coroa como tendo sido um importante, senão fundamental, elemento a dar for-

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ma a redes governativas. Tal estratégia possibilitou a constituição de uma dinâmica socioeconômica que pode ser entendida como uma dada eco n o­ m ia p olítica d e privilégios .17 Além disso, como já apontado, tem sido tam­ bém destacado a estruturação do campo económico via o político — com ênfase no parentesco, nas alianças matrimoniais, na amizade, na confian­ ça e no compadrio.18 O clientelism o surge assim nessas análises como um instrumento fundamental de luta política, capaz de desenhar e constituir hierarquias de poder naquele contexto. No âmbito da administração portuguesa, essa dinâmica social acabou por criar cadeias de nomeações de diversos oficiais régios, intermediadas pela Coroa e interligadas pelo fato de que uma dada nomeação abria es­ paço para a ocorrência de outras nomeações influenciadas pela primeira. Desse modo, os oficiais régios devem ser entendidos como produtores e transmissores de poderes e saberes, que deram forma e viabilizaram a governabilidade portuguesa através de seu complexo imperial — ou seja, os oficiais podem aqui ser entendidos enquanto “instrumentos de poder e conhecimento”.19 Esse foi o caso de um grupo de oficiais régios que ocuparam o cargo de governador-geral do Estado do Brasil, tendo antes ocupado cargos de governador no reino de Angola e na capitania do Rio de Janeiro, em fins do século X V II e início do XVIII.20 João de Lencastre foi governador de Angola (1688 e 1691), tendo posteriormente governado o Estado do Bra­ sil (1694-1702). Já Antônio Luis Gonçalves da Câmara Coutinho, prim o — por casamento — de Lencastre, ocupou os postos de governador da capitania de Pernambuco (1689-90), governador-geral do Estado do Bra­ sil (1690-4) e vice-rei da índia (1698-1702). Enquanto isso, Luís César de Meneses, cunhado de Lencastre, ocupou o posto de governador da capi­ tania do Rio de Janeiro (1690-3), de Angola (1697-1701) e do Estado do Brasil (1705-10). A correspondência emitida e recebida por esses indiví­ duos revela a importância das informações por eles produzida e comparti­ lhada, bem como dos elos políticos, sociais e mercantis que os entrelaçavam através de suas ações governativas em diferentes espaços do império por­ tuguês.21

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ANTÔNIO COELHO GUERREIRO: TRAJETÓRIA E SOCIABILIDADES CULTURAL. POLÍTICA E ECONÓMICA

Igreja Matriz do Redondo, 4 de julho de 1694: subiam ao altar para con­ trair matrimónio Antônio Coelho Guerreiro e D. Margarida Bernarda de Noronha.22 Quatro anos depois, em 1698, nascia e era batizada a filha única do casal, D. Maria Antónia Xavier de Noronha, tendo por padri­ nho Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho,23 almotacé-mor do reino e então vice-rei da índia.24 No entanto, para se entender melhor a escolha de padrinho tão importante, é preciso voltar ao ano de 1688. Corria o ano de 1688 quando aportou em Luanda João de Lencastre. Em sua companhia trazia Antônio Coelho Guerreiro, que por provisão régia de I o de abril do mesmo ano se transformava em secretário de go­ verno do reino de Angola. Uma vez investido na nova função, cabia a Coelho Guerreiro tarefas de importância significativa, reguladas pelo re­ gimento que então lhe foi dado.23 De volta de Angola, em 1692, passou pelo Estado do Brasil, ora governado por Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, primo de João de Lencastre, novamente seu compa­ nheiro de viagem. Seis anos depois, em 1698, Câmara Coutinho assumia o vice-reinado do Estado da índia, batizava a filha de Coelho Guerreiro e o tinha como secretário de governo. Segundo Virgínia Rau, a folha de serviços de Coelho Guerreiro “é brilhante e revela, simultaneamente, uma tripla actividade de burocrata, de guerreiro e construtor militar”.26 No entanto, a autora vai além da folha de serviços e chama atenção para o Coelho Guerreiro mercador, publi­ cando o seu Livro de rezão. Na mesma linha traçada pela historiadora por­ tuguesa segue o também historiador e também português Artur Teodoro de Mattos. Já Joseph Miller, africanista norte-americano, privilegia a face comercial do mesmo personagem, fazendo um belo estudo do mesmo Livro de rezão. Escolha talvez influenciada por Frédéric Mauro, que anos antes dedicara a Coelho Guerreiro um capítulo de seu livro Nova história e N ovo M undoP Dito isso, será também Antônio Coelho Guerreiro o protagonista dessa parte do artigo, de modo a se entender melhor a trajetória desenvolvida 9 6

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por tão interessante personagem, que de m ercador, passa a b u rocra ta, chegando, por fim, ao posto de primeiro govern ador das ilhas de Solor e Timor. Desse modo, pretende-se perceber a sua inserção em redes que, ao conjugarem poder, conhecimento e comércio, influenciaram de modo muito particular a governação portuguesa no ultramar de finais dos seis­ centos e início dos setecentos. Ou seja, pretende-se perceber com o entre redes e trajetórias o império português do ultramar se estabeleceu e se consolidou. D e S an tiago d e C a c ém a L u an d a

Pode-se dizer que desde muito jovem Antônio Coelho Guerreiro, nascido em Santiago de Cacém no Alentejo, esteve ligado ao ultramar português. Com 25 anos, isto é, em 1678, aportava em Pernambuco, onde permaneceu por cerca de quatro anos. Segundo Rau, Coelho Guerreiro rapidamente ascendeu de soldado a capitão de infantaria. Ao final de sua passagem pelo Nordeste da América portuguesa já se encontrava na posição de secretá­ rio de Estado da capitania de Pernambuco, nomeado interinamente pelo então governador Aires de Sousa de Castro. Como vem sendo mostrado pela historiografia especializada, o cam­ po de batalhas sempre fora um celeiro no qual os futuros encarregados da administração, seja ultramarina ou mesmo reinol, eram escolhidos. Bom exemplo disso foram as batalhas travadas quando da guerra de Restaura­ ção (1640-68), ocasião na qual estiveram vários governadores ultramari­ nos.28 Nesse sentido, pode-se dizer que a administração tanto do reino quanto do ultramar sempre esteve intimamente ligada à organização mi­ litar. Pode-se mesmo dizer que, antes de serem ministros del-Rei, eram todos militares a serviço do mesmo. Dito isso, Coelho Guerreiro parece não ter sido a exceção que confir­ mou a regra acima anunciada. Chegando a Pernambuco juntamente com o novo governador, Aires de Sousa de Castro, Coelho Guerreiro parece ter sabido muito bem auxiliá-lo com seus serviços militares. Sempre zelo­ so e dedicado, mas inteligente acima de tudo, participou ativamente da construção da fortaleza de Brum. No entanto, o que parece ter marcado 9 7

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mais fortemente sua folha de serviços em Pernambuco foi a investida pelo sertão dos Palmares. Após fracassadas investidas anos antes (1675 e 1677), ainda sob o governo de Pedro de Almeida, Palmares permanecia como um problema sem solução.29 Sendo assim, durante sua estada na capitania nordestina, por duas vezes investiu contra o famoso quilombo: a primei­ ra em 1679, na companhia de João de Freitas da Cunha, e a segunda, um ano depois.30 Cabe ressaltar que nenhuma das investidas derrotou defini­ tivamente o quilombo; no entanto, vivia-se a época da Guerra dos Bárba­ ros e a colonização do sertão nordestino surgia então como uma grande questão em face do pleno exercício da administração e da autoridade portuguesas na região.31 Por tamanho empenho é possível dizer que Coe­ lho Guerreiro deu importante contribuição para a boa avaliação acerca do governo de Aires de Sousa de Castro.32 Tendo em vista a já anunciada lógica de serviços que regia a maneira de ser da monarquia portuguesa, pode-se afirmar que tal empenho corro­ borou decisivamente a ascensão de Coelho Guerreiro. Mas não se pode esquecer outros fatores que também se mostram relevantes, como as pos­ síveis relações existentes entre Coelho Guerreiro e homens proeminentes na administração ultramarina. * * *

À época em que chegava a Pernambuco — 1678 — , partia rumo ao reino Pedro de Almeida, que estivera à frente do governo da capitania entre 1674 e 1678, e para isso muito se empenhara.33 Era Pedro de Almeida sogro de João de Lencastre, à época servindo nas frotas do Brasil, mas que posteriormente assumiria os governos de Angola e do Brasil, nesta ordem, bem como de Roque da Costa Barreto, que assumira o governo do Estado do Brasil no mesmo ano em que Coelho Guerreiro chegava a Pernambuco, e nele per­ maneceu pelos mesmos quatro anos em que aquele permaneceu naquela capitania. Vistas assim, de longe, superficialmente, poder-se-ia dizer que tais informações acima mencionadas em nada se relacionam com o persona­ gem principal dessa breve reflexão. Todavia, se se seguir a trajetória de An­ tônio Coelho Guerreiro pelo ultramar português tal impressão logo se desfaz. 9 8

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Partindo de Pernambuco em 1682 rumo ao reino, por pouco tempo lá permaneceu. Ao que tudo indica, a permanência em terras portuguesas na América lhe possibilitou o conhecimento de prática fundamental para a manutenção do império português: o tráfico negreiro. Como é sabido, desde a restauração pernambucana tal capitania estivera sempre ligada de maneira muito íntima à parte africana do complexo sul-atlântico portu­ guês, seja através das rotas do tráfico, seja através da “exportação” de técnicas de guerra, ou mesmo da circulação de homens.34 Assim, apenas dois anos depois da chegada a Portugal, Coelho Guerreiro partia para Angola em companhia de Luís Lobo da Silva,35 novo governador do reino africano. Segundo Rau, partia como praça de soldado, mas ao fim e ao cabo ocupara efetivamente o posto de secretário do reino. Veja mais uma vez como o militar e o administrativo, político se quiserem, se entrela­ çam. Mas estas não são as únicas esferas a se entrelaçarem. Coelho Guer­ reiro parece ter também entrelaçado de maneira muito inteligente as experiências acumuladas ao longo da sua estada na América, uma vez que já lá ocupara o cargo de secretário. O tempo de Luís Lobo da Silva no governo de Angola é tido pela histo­ riografia especializada como exemplar de uma situação muito particular vivida então: a participação ativa dos governadores no tráfico de escra­ vos.36 Segundo Roquinaldo Ferreira, entre 1683 e l6 8 7 , tempo em que esteve à frente da administração do reino, Lobo foi responsável por 25% de todo o tráfico.37 Somando-se a essa informação o fato de Luís Lobo se mostrar sempre muito receptivo aos pareceres de Coelho Guerreiro em matérias importantes, especialmente as relativas à fazenda real, pode-se começar a perceber o tipo de interesse nutrido por este no ultramar. Dando continuidade a sua trajetória, antes de voltar ao reino passou pelo Brasil. Em 20 de novembro de 1687, no entanto, já se encontrava em Lisboa, mas novamente por pouco tempo. Segundo Rau, nesse pouco tempo manteve-se ativo, “esperando pelo girar da roda da fortuna”.38 Não tardou muito para se ver novamente “afortunado”. Após apresentar can­ didatura na qual invocava os serviços prestados em Pernambuco, em I o de abril de 1688, dois anos somente depois de deixar Angola, voltava ao mesmo lugar, outra vez como secretário de governo, dessa vez de posse

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do primeiro regimento para tal cargo em Angola. Tal regimento, muito provavelmente, serviu de base para a redefinição do cargo em todo o im­ pério, como se verá mais adiante nesta reflexão. Em meados de abril partia para a África na companhia de João de Lencastre, amigo de infância do mesmo rei39 e, como já mencionado, genro do outrora governador de Pernambuco Pedro de Almeida, logo concunhado de Roque da Costa Barreto. Dito isso, deve-se olhar com mais cui­ dado para tais relações, bem como para as esferas que as mesmas conjugam. D e L u an d a a S alv ad or

Corria o ano de 1674 quando, em Lisboa, João de Lencastre desposava Maria Thereza de Portugal, filha de Pedro de Almeida. Em janeiro do mesmo ano e na mesma cidade, Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho se casava com Constança de Portugal, prima em primeiro grau de João de Lencastre. Era, portanto, por causa dessa união que ambos se diziam primos.40 Já casados e já ligados por parentesco, ambos deram continuidade às suas trajetórias. Lencastre assumiu em 1688 o governo de Angola e Câ­ mara Coutinho, em 1689, o de Pernambuco. Lencastre permaneceu em Angola por quatro anos, tendo, como já visto, Coelho Guerreiro como seu secretário. Uma vez no governo, Lencastre mostrou-se muito empenhado na liberação do consumo de aguardente — moeda de troca no tráfico, na região — e posteriormente do seu comércio. Parece ter tido em todos esses assuntos a ajuda sempre importante de Coelho Guerreiro, a ponto de Virgínia Rau atribuir a ele o sucesso das medidas tomadas por Lencastre em Angola.41 Enquanto isso, no Brasil, Câmara Coutinho também se saía muito bem governando Pernambuco. A boa administração da capitania lhe rendeu a promoção ao

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Brasil, ainda se encontrava nele. O ano de 1692 revela-se, portanto, de extrema relevância para o que até aqui se disse. Nesse ano, em Salvador, deu-se o encontro de João de Lencastre, Câmara Coutinho e Coelho Guerreiro, todos servindo ao rei no ultramar e com interesses comuns li­ gados ao tráfico de escravos. Lencastre e Coelho Guerreiro seguiram viagem para Portugal, enquanto Câmara Coutinho deu continuidade ao seu bom governo no Brasil. Nesse meio-tempo, o salitre foi descoberto, as naus da índia passaram a parar cada vez com mais frequência em Salvador,42 bem como veio do reino, em 1693, o pedido da opinião do almotacé-mor do reino acerca da libe­ ração do comércio da aguardente no reino de Angola. O então governa­ dor se mostrou favorável a tal liberação, como já era de se esperar, tendo em vista suas relações de parentesco. Chega-se enfim ao ano de 1694. Câmara Coutinho deixa o governo do Estado do Brasil muito bem avaliado, sendo sucedido por ninguém menos que Lencastre, que chegava também muito bem indicado, inclusi­ ve pelo próprio Câmara Coutinho. Em Lisboa, Coelho Guerreiro então se casava, após ter pleiteado junto ao rei recompensas pelos serviços pres­ tados em Pernambuco e em Angola.43 Não obstante ter deixado o posto, Câmara Coutinho parece ter permanecido na América, como mostram as referências que aparecem na documentação coeva.44 Corria então a ad­ ministração de Lencastre na Bahia, e as tratativas para a liberação do co­ mércio de aguardente continuavam, quando em 1695 esta se dá de fato. De Salvador ao Timor

governo-geral do Estado do Brasil, sediado na Bahia. Assim, após deixar Angola em viagem de volta ao reino, Lencastre aportou na Bahia, em 1692, trazendo consigo Coelho Guerreiro, que por aqui já passara pelo menos duas vezes: 1678-82 e 1686. À época, Câmara Coutinho, que dois anos antes assumira o governo-geral do Estado do

Não se sabe ao certo por onde andava Câmara Coutinho entre 1695 e 1698. O que se sabe é que em 1698 nasceu a única filha de Coelho Guer­ reiro, para a qual escolheu justamente o então novo vice-rei da índia como padrinho. No entanto, o almotacé-mor não se encontrava em Lisboa, posto que a batizou por procuração. O que se sabe é que no mesmo ano partiir para a índia com o intuito de cuidar dos interesses da Coroa e dos seus próprios. E para isso levou como secretário de governo ninguém menos que seu novo compadre, Antônio Coelho Guerreiro.

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Desde seu tempo na Bahia, Câmara Coutinho se mostrara interessado em questões relacionadas à índia, mais especificamente à junta de comér­ cio, que se intentava estabelecer com a ajuda de recursos vindos do Bra­ sil.45 Como já mencionado nesta reflexão, os navios da carreira da índia passaram a parar cada vez com mais frequência em Salvador, e aqui dei­ xar grande quantidade de tecidos, outra moeda essencial no tráfico.46 Chamada a atenção para a importância dos tecidos como influente moe­ da no tocante ao trato de escravos em Angola, começa a fazer sentido o empenho demonstrado tanto por Câmara Coutinho quanto por Coelho Guerreiro em agora assumir postos no Oriente. Nesse sentido, o ano de 1698 ganha importância crucial. Enquanto os dois personagens acima citados se encontravam no Orien­ te, Lencastre permanecia no Brasil e Luís César de Meneses, outro minis­ tro a estes ligado, assumia o governo de Angola. Desse modo, pode-se dizer que o circuito do tráfico ia, pouco a pouco, sendo muito bem articulado pela rede de ministros régios ultramarinos analisada. Não tardou muito, porém, para que Coelho Guerreiro desse mais um passo ascendente na hierarquia administrativa ultramarina. Em 1701, Câmara Coutinho “pela confiança que fazia de sua pessoa”, nomeou-o primeiro governador das ilhas de Timor e Solor. Percorrida a trajetória de Antônio Coelho Guerreiro no ultramar, en­ tende-se por que ele foi um belo exemplo do fluxo e refluxo hum ano ocor­ rido no movimentado mundo português da época moderna, como bem chamou a atenção o historiador britânico Russell-Wood.47 Assim, pode-se agora passar para a análise mais detalhada de alguns traços que destacam tal trajetória de modo muito particular, sobretudo o exercício do cargo de secretário de governo nas partes mais importantes do império português.

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indício dos cuidados que esse burocrata-mercador certamente teve em relação a seus interesses e afazeres, tanto na esfera da administração por­ tuguesa quanto de seus negócios mercantis ao longo de toda a sua vida. Talvez resida aí, justamente, um aspecto distintivo de sua trajetória admi­ nistrativa e económica, dimensões profundamente imbricadas num con­ texto que caracteriza profundamente o modo de ser da gestão imperial portuguesa na época. Visando a uma consideração mais apurada do modo como isso se con­ figurou, cabe, antes de mais nada, avaliar algumas das principais implica­ ções derivadas da ocupação do cargo de secretário de governo no último quartel do século XVII, bem como o modo como o mesmo favorecia o entrelaçamento dos interesses administrativos com aqueles que mobiliza­ vam diversos mercadores que circulavam pelos “mares portugueses”. Como já indicado, apesar de ter chegado a Pernambuco na condição de simples alferes, Guerreiro rapidamente foi alçado ao posto de secretá­ rio de governo da capitania no início da década de 1680. Esse cargo des­ conhecido pela historiografia era indubitavelmente de extraordinária importância para que a administração portuguesa então se organizasse de modo mais sistemático nas áreas sob sua jurisdição no período. O decreto que nomeou Antônio Guerreiro secretário de governo do reino de Angola, datado de 28 de fevereiro de 1688, baixou o regimento para o novo cargo, ocasião em que foram também criados os cargos de secretário de governo do Maranhão e do Rio de Janeiro.48 Este regimento tinha como base aquele anteriormente editado para o cargo de secretário do governo de Pernambuco, aprimorando-se nessa ocasião sua natureza mais particular, bem como confirmando com maior clareza sua centralidade no âmbito da organização e da ação governativa portuguesa nas áreas sob jurisdição do cargo em questão. A década de 1680 despontava como um momento importante no pro­ cesso de redefinição de estratégias mais efetivas de governo por parte

S e c r e tá r io d e g o v e r n o e m e r c a d o r

Antônio Coelho Guerreiro confeccionou ao longo de sua vida um livro de contabilidade de seus negócios — seu Livro de rezão — , documento que constitui um raro espécime de seu tipo, tendo sido um dos únicos a ter sobrevivido até os tempos de hoje. Isso se apresenta como um forte i o 2

da Coroa em relação ao ultramar. Várias foram as medidas editadas nesse sentido, fato bem exemplificado pela decisão explicitada na carta régia enviada ao secretário de governo do Estado do Brasil, Bernardo Vieira Ravasco, em 2 de abril de 1688, quando ficou determinado que esse ofi1o 3

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ciai deveria “fazer presente todas as [...] ordens [da Coroa] que houver na secretaria todas as vezes que vier novo governador”,49 a que foi tam­ bém atribuído o secretário de governo do reino de Angola pelo regimento

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quanto verdadeiros agentes ou “instrumentos de poder e conhecimento”51 da Coroa e dos grupos interessados no bom andamento da administração portuguesa em praças mercantis tão importantes como Angola, Rio de Janeiro, Maranhão e Pernambuco.

de 1688. Em termos gerais, alguns itens desse regimento demonstram com cla­ reza a centralidade governativa do cargo de secretário recém-criado. O elemento mais importante a concorrer para isso era o fato de que, a partir

Em termos mais particulares, determinava o capítulo 16 do regimen­ to que a secretaria de governo do reino de Angola teria um oficial respon­ sável por cuidar das causas dos m ocam os — ou seja, o direito dos africanos de recorrer ao governador de Angola caso achassem que haviam sido es­ cravizados de forma indevida. Esse era um elemento central na boa arti­ culação das várias visões de mundo ali presentes, mais particularmente em termos das noções de direito, tornando assim possível um cotidiano mais favorável ao pleno funcionamento do tráfico de escravos em Angola.

de então, ele se tornava responsável pela emissão de todos os diplomas govemativos nas áreas sob sua jurisdição. A emissão dos diplomas refe­ rentes à posse de todos cargos administrativos, das patentes reais e/ou militares, das provisões régias, dos feitos da Justiça, das cartas de sesmarias, de todas as homenagens,so bem como de todos os traslados de livros de registros, ficava a partir de então sob sua responsabilidade. Tal jurisdição delegava a esse oficial o poder de regular praticamente sozinho todo o ritmo da maioria das atividades mercantis geridas a partir das áreas sob sua responsabilidade. Isso porque era ele, e ninguém além dele, que tinha a responsabilidade de emitir todos os despachos de todas as embarcações, sumacas e patachos, que saíssem de sua área em direção aos portos de

Toda essa centralidade administrativa que passava a ser exercitada pelo novo secretário de governo o colocava numa posição privilegiada para atuar em favor de determinados interesses em detrimento de outros. Adi­ cione-se a isso o fato de que Guerreiro almejou, em grande medida, ocu­

Portugal, Brasil e Angola. Além disso, era o secretário que ficava a partir de então responsável pela melhor e maior organização do governo propriamente dito. Fator sine qua non para que alguma forma de continuidade administrativa pu­ desse ser viabilizada na gestão da área em questão. De acordo com o capí­ tulo 18 do citado regimento, esse oficial ficava responsável por organizar a casa do governo, bem como dar início à confecção dos “livros de regis­ tros” de toda a documentação que circulasse pela secretaria. Também acu­ mulava a responsabilidade pela organização e guarda da correspondência encaminhada à secretaria de governo, assim como a produção periódica de listas de todo o pessoal envolvido na governação da área. Tais listagens deveriam ser posteriormente copiadas e enviadas de tempos em tempos ao Conselho Ultramarino. O mais importante, entretanto, era a obriga­ ção daquele oficial em “fazer presente” aos novos governadores todas as ordens régias que porventura houvessem sido depositadas na secretaria de governo. Os secretários de governo, na verdade, eram instituídos en­

gestão de seus negócios. Na verdade, negócios e governabilidade estavam tão intrinsecamente imiscuídos que é praticamente impossível saber o que engendrava o que àquela altura.

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Ro­ drigues da Costa, traria inevitável perda e ruína do território. Para o conselheiro, vivia-se esse terceiro perigo, que deveria ser definitivamente afastado. Nesse sentido, afirma que a importância do Brasil era maior que a do reino naquele momento e, por isso, a necessidade de conserva­

Em relação ao perigo interno, algumas das principais causas seriam a desafeição e o ódio que os vassalos concebiam contra os dominantes,

ção do primeiro. Essa “razão de Estado” se apresentava então, no império português,

por causa das injúrias e violências com que eram tratados pelos gover­ nadores; a iniquidade com que eram julgadas suas causas pelos minis­ tros da Justiça; a dificuldade para recorrerem à corte; e o encargo dos tributos.

como um claro indicativo do surgimento de novas estratégias de governo

Quanto às questões da desafeição dos vassalos e da iniquidade dos julgamentos, Antônio Rodrigues da Costa mostra que os problemas po­ deriam ser evitados caso se ordenasse a governadores e ministros que pro­ curassem um bom regime com os vassalos, e que tivessem uma correta 1 4 6

no Setecentos, buscando-se uma maior racionalidade administrativa e uma preocupação crescente com um ordenamento político, económico e fiscal que trouxesse maiores vantagens para a Coroa e seus súditos. O Estado do Brasil tornou-se um dos principais palcos de implementação dessa nova “razão de Estado”, consubstanciando-se assim em espaço privilegiado para o surgimento de uma nova cultura política, que se distinguia da anterior justamente por expressar uma maior racionalização governativa. 1 4 7

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A CULTURA POLÍTICA M ODERNA E O ENSINO DA HISTÓRIA: A FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL

A discussão aqui apresentada pretende abrir horizontes para pensarmos a influência de teóricos como Maquiavel, Hobbes e Botero na criação do Estado nacional, trabalhada pela historiografia do século X IX . Nessa pers­ pectiva, percebia-se um Estado nacional já no século XVIII, e até mesmo para períodos anteriores, como característica do absolutismo real. Essa interpretação permeou os livros didáticos no século passado, e ainda se encontra presente nos dias de hoje, quando, ao nos depararmos com um capítulo sobre o fim do Setecentos, iremos provavelmente en­ contrar o título “Centralização absolutista e formação dos Estados nacio­ nais”, ou algo que o valha. Dessa forma, teóricos como Hobbes e Maquiavel consolidam uma determinada visão sobre o Estado nacional e o absolutis­ mo — as “razões do Estado” — , que é utilizada como expressão da reali­ dade e como se o processo fosse naturalmente determinado. Assim, o que se pretende, nessa forma de apresentação encontrada nos livros escolares, é mostrar a existência de um Estado nacional já no perío­ do moderno, como consequência direta de um processo de centralização monárquica em curso. Podemos comprovar essa hipótese até mesmo em livros atuais, como o H istória geral nova consciência, de Gilberto Cotrim, lançado em 2001, que no primeiro capítulo do volume destinado à oitava série, referente ao Antigo Regime, afirma que durante a Idade M o d e rn a (sécu lo s X V a X V I II ), o co rreu em grande parte da Europa um p ro cesso de fo rtale cim e n to dos gov ernos das m onarquias nacionais. Esse processo resultou n o cham ado absolutism o m onárquico [...].49

Dessa forma, simplifica-se e descaracteriza-se o processo histórico, e a questão da formação dos Estados nacionais torna-se completamente ana­ crónica, como ocorre no livro Viver a história, da sexta série, publicado em 2002, que, ao tratar da expansão ultramarina européia, destaca, em Portugal, um Estado estruturado na Baixa Idade Média e um impulso em

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Para embasar esse tipo de análise, consolidada pela historiografia novecentista e reproduzida pelos livros didáticos, ocorreu a apropriação das idéias de importantes teóricos da cultura política moderna, como já citamos anteriormente. Contudo, esta apropriação deixou de lado a preo­ cupação com o contexto em que os textos se inseriam e com a análise mais aprofundada da problemática em discussão. Thomas Hobbes foi, provavelmente, o autor que melhor serviu a esse propósito. Um dos principais teóricos do absolutismo, defensor do poder dos reis, Hobbes foi utilizado para justificar a formação dos Estados nacio­ nais no período moderno e para se destacar um poder real ilimitado, o que também reduz e descaracteriza as múltiplas relações políticas e sociais ocorridas na época analisada. Deixam-se de lado aspectos e conceitos fun­ damentais para se entender os impérios modernos, como a negociação, a liberalidade régia, os poderes locais, as relações centro-periferia, que es­ tão sendo trabalhados pela nova historiografia,51 mas que ainda não fo­ ram amplamente incorporados pelos livros de ensinos fundamental e médio. Não se pretende, com esta breve discussão, desqualificar ou descon­ siderar o conteúdo dos livros didáticos, mas propor uma reflexão a res­ peito do mesmo. Algumas revisões já foram iniciadas, e podemos constatar mudanças no que diz respeito ao modo como tem sido analisado o pro­ cesso de formação dos Estados nacionais e da organização política dos impérios modernos. Contudo, essas modificações ainda são embrionárias, e o que se busca é justamente ampliar o debate a respeito do assunto, no qual a participação dos docentes se torna primordial. Nessa perspectiva, a discussão do tema passa a ser ainda mais instigante e necessária para a compreensão da época moderna e das diferentes rela­ ções ocorridas no seio dessas sociedades. Para tanto, é fundamental que os docentes analisem os conceitos apresentados ou ressignificados, além de perceber práticas, instituições, serviços, redes e forças que uniram os impérios desse período, ou que, porventura, os fragmentaram, perceben­ do a cultura política moderna com um ponto de inflexão dentro desse processo.

favor da centralização política no século XIV.50 1 4 8

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14. Jo se A ntonio M aravall, E stad o m o d ern o y m en ta lid a d so cia l, Madri, Alianza, 1972,

p. 52S. 1. A noção de império surgiu especialmente em Charles Boxer, O im pério colonial

português (1415-1825), Lisboa, Edições 70, 1969.

15. G icv an n i Botero, D a razão d e E stad o, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação C ie n tífica, 1 9 9 2 [ I a ed. 1549],

2. A. J. R. Russell-Wood, Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia,

16. Luís R eis Torgal é professor catedrático da Universidade de Coimbra, coordenador

1550-1775, Brasília, Ed. UnB, 198 1 ; idem , Um mundo em m ovim ento: os portu­

cien tífico do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século X X da Universidade

gueses na África, Ásia e América (1415-1808), Lisboa, Difel, 1998.

de C o im bra e desenvolve seus principais trabalhos a partir das últimas décadas do

3. Serge Berstein, “A cultura política”, em Jean-François Sirinelli e Jean-Pierre Rioux (dirs.), Para uma história cultural, Lisboa, Editorial Estampa, 1998, p. 352. 4. G iacom o Sani, “Cultura política”, em Norberto Bobbio, N icola M atteutti e Gianfranco Pasquino, Dicionário de política, Brasília, Ed. UnB, 1995. 5. O conceito de Antigo Regime é fundamental para o nosso trabalho, e se refere a um

século X X . 17. Luís R eis Torgal, “Prefácio”, em Giovanni Botero, op. c it., p. IX . 18. B o tero , o p . cit., p. 16. 19. Ibid em , p. 5. 20. M ein eck e, o p . cit., p. 69.

período específico, que se delimita, para fins didáticos, do fim da Idade Média até

21. Skinner, o p . cit., p. 4 4 9 . Esse pensamento surgiu com o jesuíta espanhol, companheiro

a Revolução Francesa. A expressão teria surgido no final do século X V III, pela idéia

de sunro Inácio de Loiola, padre Pedro Ribadeneyra, no século XVI. Ribadeneyra era

dos revolucionários franceses de 1789. Antes de ser um conceito, Antigo Regime

defensor de uma “razão de Estado” cristã, considerada por ele como a verdadeira,

indicava aquilo a que os revolucionários se opunham, e rapidamente a expressão

segura e certa

transcendeu os limites da monarquia francesa, pois aquelas características condena­

fa lsa , en gan osa e incerta. Expôs suas principais idéias no Tratado d e la religión y virtudes

das não se encontravam apenas na França. Contudo, o que nos importa destacar são

q u e d e b e ten er el príncipe cristiano para g overnar y conservar sus Estados. Contra lo

algumas características presentes no que entendemos por Antigo Regime, em que “as leis eram consuetudinárias, os direitos eram consagrados pelo uso. Os poderes,

razão d e E sta d o ”, contra a de Maquiavel e dos políticos, considerada

q u e X ic o la s M aquiavelo y los Políticos d e este tiem p o en sen am , Madri, 1595. 22. Ib id e m , p. 2 6 8 . Entre os pensadores que compartilham esse ponto de vista, ambos

prerrogativas e privilégios sobrepunham-se e conflitavam entre si infindavelmente .

escrevendo ainda no século X V I, estão o humanista e diplomata Elyot, no Livro

Cf. William Doyle, O Antigo Regime, São Paulo, Ática, 199 1 , p. 26. Assim, pode­

c h a m a d o d o m agistrado, e Erasmo — um dos mais célebres humanistas do século

mos perceber a importância de se trabalhar com uma cultura política de Antigo Regime para compreendermos as complexas e singulares relações desencadeadas no seio dessa sociedade. Cf. Maria Fernanda Baptista Bicalho, “Conquista, mercês e poder local: a nobreza da terra na América portuguesa e a cultura política do Antigo Regime”, A lm anack Braziliense: revista eletrónica, n. 2, IEB/USP, nov. 2 0 0 5 , dispo­

X V I, defensor de uma reforma da Igreja e da sociedade baseada na mensagem cristã — , no P rín cipe cristão, em clara contraposição a O príncipe, de Maquiavel. 23. Ib id e m , p. 2 7 3 . 24. Thom as H obbes, Do c id a d ã o , São Paulo, M artin Claret, 2 0 0 4 , p. 158. 25. Ib id em , p. 159. 26. Id e m , L e v ia tã , São Paulo, M artin Claret, 2 0 0 5 , p. 168.

nível em www.almanack.usp.br.

6 . Quentin Skinner, As fundações do pensamento político m oderno, São Paulo, Com­

27. M einecke, o p . cit., p. 3. 28. António Manuel Hespanha e Ângela Barreto Xavier, “A representação da sociedade

panhia das Letras, 1996, p. 267. 7. Francesco Guicciardini, Máximas e reflexões, s.l., s.e., 153 0 .

8 . N icolau M aquiavel, O príncipe, São Paulo, Martin Claret, 2 0 0 2 . 9. Ibidem , p. 72. 10. Friedrich Meinecke, L a idea de la razón de Estado en la edad m oderna, Madri, Centros de Estúdios Constitucionales, 1983.

e do poder”, em Jo sé M attoso (dir.), H istória d e Portugal: o Antigo R egim e (16201 8 0 7 ), v. 4 , Lisboa, Editorial Estampa, 199 3 , p. 133. 29. Pedro Barbosa Homem, Discurso d e la jurídica y verdadeira razón d e Estado, Coimbra, 1 6 2 6 , a p u d Hespanha e Xavier, op. cit., p. 133. 30. A ntónio M anuel Hespanha e Ângela Barreto Xavier, “As redes clientelares”, em José M attoso (dir.), o p . cit., p. 3 8 6 .

11. M aquiavel, op. cit., p. 93.

31. M einecke, o p . cit., p. 2 7 e 4 2 3 .

12. Ibidem , p. 99

32. A idéia da criação da Academia Real de História surgiu por intermédio do teatino

13. Ibidem , p. 107.

Manuel Caetano de Sousa, que em suas viagens entrou em contato com a erudição 1 5 0

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francesa e italiana. O teatino já era membro da Academia Portuguesa, formada pelo

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ou ro: a p o b rez a m in eira n o sécu lo XVIII, Rio de Janeiro, Graal, 198 2 ; Luciano R a­

conde de Ericeira. Caetano de Sousa tinha o intuito de escrever a história eclesiás­

poso Figueiredo, R evoltas, fisca lid a d e e id en tid ad e c o lo n ia l na A m érica p o rtu g u esa:

tica de Portugal na língua latina. Com o frequentava a corte, e tinha acesso ao rei D.

Rio d e Ja n e iro , B ah ia e M inas G erais, 1 6 4 0 -1 6 7 1 , 3 v., tese de doutorado, FFCLCH/

Jo ão V, expôs o projeto, que foi aceito. A partir desse empreendimento foi sendo

USP, São Paulo, 1 9 9 6 ; Charles Ralph Boxer, A id a d e d e ou ro d o Brasil: dores d e cres­

constituída a Academia Real, incumbida de escrever a história portuguesa, e que

cim ento d e um a socied ad e co lon ial, São Paulo, Nova Fronteira, 2 0 0 0 ; Maria Verónica

pretendia reconstruir a memória da monarquia portuguesa. Essa instituição funcio­

Campos, G ov ern o d e m ineiros, 1 6 9 3 -1 7 3 7 , tese de doutorado, FFCLCH/USP, São

nava como um indicativo do renascimento científico e literário em Portugal, favo­ recendo assim a construção de uma nova “razão de Estado” em Portugal.

Paulo, 2 0 0 2 ; Oliveira Júnior, op. cit. 43. Donald Ramos, “Administração das Minas”, em Maria Beatriz Nizza da Silva (coord.),

33. Isabel Ferreira da M ota, A A cad em ia R eal da H istó ria : o s intelectuais, o p o d er cultu­

D icionário da história da colon ização portuguesa n o Brasil, Lisboa, Verbo, 1994, p. 18.

ral e o p o d er m o n á r q u ico n o sécu lo XVIII, Coimbra, Edições Minerva, 2 0 0 3 , p. 34.

44. Antônio Rodrigues da Costa foi presidente do Conselho Ultramarino e membro da

34. Nuno Gonçalo Freitas M onteiro, “A consolidação da dinastia de Bragança e o apo­

Academia Real de História, e quando faleceu foi substituído por Alexandre de

geu do Portugal barroco: centros de poder e trajetórias sociais (1 6 8 8 -1 7 5 0 )”, em José Tengarrinha (org.), H istória d e Portugal, São Paulo, Unesp, 2 0 0 1 , p. 2 21.

Gusmão nas duas instituições. 45. Consulta do Conselho Ultramarino a Sua M ajestade, no ano de 1732, feita pelo

35. Pedro Cardim, “A Casa Real e os órgãos centrais de governo no Portugal da segunda

conselheiro Antônio Rodrigues da Costa. Alguns dos autores que já trabalham com

metade dos Seiscentos”, T em po, Dossiê: Política e Administração no Mundo Luso-

o parecer são: Fernando A. Novais, P ortu gal e B rasil na crise d o Antigo S istem a

Brasileiro, v. 7 , n. 13, jul. 2 0 0 2 , p. 57. 36. Jaime Cortesão, A lexan dre d e G u sm ão e o Tratado d e M adrid, Lisboa, Livros Hori­

C olon ial (1 7 7 7 -1 8 0 8 ), São Paulo, H ucitec, 1 9 7 9 ; Evaldo Cabral de M ello, A fro n d a d os m a z o m b o s: n obres contra m ascastes, P ern am bu co, 1 6 6 6 -1 7 1 5 , São Paulo, Com ­ panhia das Letras, 1 9 9 5 ; Luciano Raposo Figueiredo, o p . c it.; M aria Fernanda

zonte, 1984. 37. Isabel Ferreira da M ota, o p . cit., p. 3 49. 38. D. Luís da Cunha, In stru ções p olítica s, Lisboa, Comissão Nacional para as Come­

Baptista Bicalho, A cid ad e e o im p ério : o R io d e Ja n e iro no sécu lo XVIII, Rio de J a ­

morações dos Descobrim entos Portugueses, 2 0 0 1 , p. 137-42. As Instruções p o líti­

da Costa em termos do que antes já havia dito Jaim e Cortesão sobre seu parecer, no

neiro, Civilização Brasileira, 2003/Todos estes autores falam de Antônio Rodrigues

cas a que estamos nos referindo foram feitas a pedido de M arco Antônio de Azevedo

livro sobre Alexandre de Gusmão. Cf. Jaim e Cortesão, A lexandre d e G u sm ão e o

Coutinho ao seu mestre e mentor, D. Luís da Cunha, quando o primeiro foi escolhi­

Tratado d e M adrid, Lisboa, Livros H orizonte, 1984.

do para secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, e este, receando despreparo,

46. Botero, op. cit., p. 20.

pediu a D. Luís uma instrução com conselhos políticos. As Instruções de D. Luís da

47. Consulta do Conselho Ultramarino a Sua M ajestade, no ano de 1732, feita pelo

Cunha nunca chegaram a M arco Antônio, mas mostravam o grande conhecimento

conselheiro Antônio Rodrigues da Costa, p. 4 8 0 .

sobre a economia e as finanças do império português que D. Luís possuía, além de

48. Ibidem , p. 4 8 0 -1 .

apresentar sua preocupação com a defesa dos interesses globais do império, não

49. Gilberto Cotrim , H istória geral n ov a co n sciên cia : era m od ern a e m undo c o n te m p o ­

desejando que os interesses da economia brasileira dele se desligassem, visto que a prosperidade económ ica do Brasil era essencial para o conjunto imperial.

râneo: 8J série, São Paulo, Saraiva, 2 0 0 1 , p. 12. 50. Cláudio Vicentino, Viver a história: ensino fu n d am en tal: 6a série, São Paulo, Scipione,

2002 , p. 128.

39. Ib id em , p. 144. 40. “Regimento ou instrução que trouxe o governador M artinho de Mendonça de Pina

51. Como referências importantes da nova historiografia, que tratam do tema em ques­

e de Proença”, R evista d o A rquivo P ú blico M in eiro, Belo H orizonte, 1 8 9 8 , ano 3,

tão, podemos citar: Xavier Gil Pujol, “Centralismo e localismo? Sobre as relações

p. 85-8.

políticas e culturais entre capital e territórios nas monarquias européias dos séculos

41. Paulo Cavalcante Oliveira Júnior, “Negócios de trapaça: caminhos e descaminhos

XVI e X V II”, P en élope: Fazer e D esfazer H istória, Lisboa, n. 6 , 199 1 ; Jack P. Greene,

na América portuguesa (1 7 0 0 -1 7 5 0 )”, v. 1, tese de doutorado, FFCLCH/USP, São

N e g o tia ted a u th o r itie s : essays in c o lo n ia l p o litic a l a n d c o n stitu c io n a l h is to ry , Charlottesvile, University of Virgínia Press, 1 9 9 4 ; Evaldo Cabral de M ello, o p . c it.;

Paulo, 2 0 0 2 , p. 12-3. 42. Sobre a história da mineração no Brasil, ver Laura de Mello e Souza, O pulência e

A. J. R. Russell-Wood, “Centros e periferias no mundo luso-brasileiro: 1 5 0 0 -1 8 0 8 ”,

m iséria das M inas G erais, São Paulo, Brasiliense, 198 1 ; idem , D esclassificados do

Revista B rasileira d e H istória, São Paulo, Anpuh/Humanitas Publicações, 1998, v.

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18, n. 3 6 ; João Luís Ribeiro, Maria Fernanda Baptista Bicalho e M aria de Fátima Silva Gouvêa (orgs.), O Antigo Regime n os tró p ico s: a d in âm ica im p erial portu gu esa (sécu los XW-XVIll), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2 0 0 1 ; M aria Fernanda Baptista Bicalho, A c id a d e e o im pério: o Rio d e Ja n e iro no sécu lo XVIII, R io de Ja ­ neiro, Civilização Brasileira, 2003. Vale ressaltar que essa historiografia aponta para uma nova cultura política no século XV III, a que nos referimos no artigo.

Murmurações e caridade. Distinção social e fama pública no império português: o caso das órfãs da Misericórdia* Luciana Mendes Gandelman**

‘ O presente capítulo é uma versão reduzida e editada de reflexões contidas no item 2 do capítulo 3 de minha tese de doutorado. Luciana Gandelman, M ulheres p ara um im p ério : ó rfã s e c a rid a d e n o s re c o lh im en to s fem in in o s d a S an ta C a sa d a M isericórdia (Salvador, R io d e Ja n e i­ ro e P orto — séc u lo XVIII), tese de doutorado em História, Unicamp, Campinas, 2005.

“ Pós-doutoranda na Cátedra Jaime Cortesão (USP).

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Por que pensar a história e por que ensinar história hoje? Como nos ensina a historiadora norte-americana Natalie Zemon Davis, ainda que a história não nos ofereça respostas fáceis para nossas questões do presente nem li­ ções muito claras sobre a experiência humana, o estudo do passado deve servir, antes de mais nada, como uma lição de esperança.1 Isso porque ele nos ensina que mudanças podem ocorrer e que as possibilidades na história são muitas. Mais do que isso, ele nos mostra que, “por mais impositiva que a sociedade possa ser, há sempre alternativas abertas para as pessoas faze­ rem sua história”.2 Podemos voltar ao passado e apresentá-lo às gerações seguintes, como uma forma, portanto, de exercitar essa possibilidade de pensarmos de modo diferente tanto o próprio passado como o presente. Gostaria de pensar as questões que serão tratadas neste capítulo a partir dessas lições de Natalie Davis. E é com esse espírito que desejo apresentar a discussão acerca da questão da distinção social no império português. Ava­ liada pela historiografia como uma sociedade estamental — que de fato o era — e, portanto, vista como uma sociedade de distinções sociais rígidas na qual os indivíduos nasciam desiguais e assim permaneciam perante a lei ao longo de suas vidas, as sociedades do Antigo Regime e suas conquistas ultramarinas estavam, entretanto, longe de serem estáticas. Neste capítulo procurarei justamente entender em que medida as distinções sociais nessas sociedades podiam ser variáveis e flexíveis, tanto pela sua própria natureza quanto pela ação — isolada ou coletiva — dos indivíduos. Proponho então, com esse intuito, que observemos o caso das instituições voltadas para o abrigo e educação de órfãs administradas pelas Santas Casas de Misericór­ dia do Porto, Rio de Janeiro e Salvador no século XVIII. ♦

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No ano de 1796, uma contenda acerca de uma licença de casamento na Bahia chegou aos tribunais régios de Lisboa.3 Como era costume, foi pe­ dido ao ouvidor-geral do civil4 que informasse sobre a questão. D. Paula Ignácia de Oliveira, junto com sua mãe, requeria a Sua Majestade licença para que pudesse se casar com Manuel Ignácio Lisboa, visto que seu pai, José Pinheiro de Queiroz, não queria permitir o enlace. O pai de D. Paula se dizia contrário ao casamento, alegando diferença de qualidade nas pes­ soas dos nubentes.5 Segundo José de Queiroz, o pretendente à mão de sua filha era “tido e havido” por mulato na ilha do Fayal, seu pai havia servi­ do como lacaio ao desembargador Francisco Antônio da Silveira, no Rio de Janeiro, e não tinha bens com que sustentar sua filha. Ele, por sua vez, alegava ser bacharel formado, mestre-de-campo6 condecorado e senhor de dois engenhos de cujos bens poderia dotar suas filhas com 50 mil cru­ zados cada uma. O ouvidor, cumprindo as diligências necessárias, reuniu os testemu­ nhos relativos à contenda. Segundo sua averiguação, o pretendente Ma­ nuel Ignácio Lisboa havia ficado com “nota de mulato” por intrigas feitas no tribunal da relação. Porém, de acordo com os testemunhos recolhidos, concluiu o ouvidor que a família do dito Manuel jamais tivera qualquer “nota de mulatice” entre os moradores da ilha do Fayal, que o pai deste nunca havia sido lacaio e sim criado grave,' servindo as filhas do dito desembargador no Rio de Janeiro, e que ele, pretendente, jamais havia exercido ofícios mecânicos,8 sendo capitão de navio e tendo negociações por meio das quais era plenamente capaz de dar sustento à pretendida esposa. O ouvidor esclareceu ainda que, segundo os testemunhos, José Pinheiro

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Interessam-nos, entretanto, outros pontos. Nessa conten-da podemos ver em ação, de forma muito clara, conhecidos preceitos de distinção so­ cial caros às sociedades do Antigo Regime, entre eles distinções de cor, “limpeza de sangue” e “de mãos” e prestígio social; além de reivindica­ ções de posição social e cálculos em torno da igualdade de qualidades entre pessoas que pretendiam se casar. Vemos ainda um elemento importante que nem sempre é considerado o bastante quando analisamos essas so­ ciedades e a forma como constituíam seus mecanismos de distinção e os usos que faziam dos mesmos — ou seja, o papel da chamada “voz pública”, ou “voz comum”, na constituição da “fama pública” e, por conseguinte, da distinção social. Se observarmos atentamente a querela apresentada à justiça régia, constataremos que esta se desenrolou em meio à utilização dos julgamentos coletivos, expressos por meio da fama e estima públicas dos indivíduos e de seus grupos familiares, que os tornavam “ridos e havi­ dos” por alguma coisa ou lhes atribuíam, por exemplo, “nota de mulatice” ou “nota de ser de nação”, como forma de avaliação das distinções sociais em jogo. Estaremos, portanto, num campo nem sempre explorado do que se poderia chamar da cultura política do Antigo Regime — ou seja, no debate acerca do papel da fama pública na constituição dos códigos e re­ ferentes, para utilizar os termos de Jean-François Sirinelli, que marcam os valores, as normas e as hierarquizações dessa sociedade.9 Acredito que os recolhimentos de órfãs administrados pelas Santas Casas de Misericórdia e seu processo de seleção das assistidas sejam um espaço privilegiado para observarmos o funcionamento desses mecanis­ mos de articulação da fama pública com a elaboração e a utilização das

de Sua Majestade. Além disso, era sabido que os dois engenhos que pos­ suía estavam arruinados e andavam em praça para cobrir suas volumosas dívidas. Por esses motivos, considerava o ouvidor que não havia desigual­ dade no casamento e a licença devia ser concedida. Infelizmente não sa­

distinções sociais em questão. Ao longo do século XVIII, as irmandades da Misericórdia administraram, por todo império português, um número crescente de instituições voltadas para o abrigo, a educação, a dotação e o casamento de meninas órfãs, conhecidos como “recolhimentos de órfãs”.10 Nas primeiras décadas do século XVIII, as cidades do Porto, Rio de Janeiro e Salvador passaram a contar com semelhantes instituições. Os recolhimentos de órfãs administrados pelas Misericórdias em várias cida­ des do império português pouco tinham a ver com os orfanatos como os

bemos o final da contenda e se a licença foi concedida ou não.

entendemos atualmente. Não se tratava de instituições abertas a todos os

de Queiroz, o pai querelante, posto que fosse bacharel formado em Coim­ bra, “não usara jamais de suas letras”, e que fora, sim, mestre-de-campo, mas sem soldados, e que por esse motivo havia recebido baixa por ordem

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indivíduos abaixo da idade adulta que haviam perdido a tutela paterna. Muito pelo contrário, os recolhimentos deveriam dar abrigo a um públi­ co bastante específico de meninas. Não que a sociedade do Antigo Regi­ me desconhecesse formas amplas e indistintas de auxílio. As Casas dos Expostos, por exemplo, recebiam indistintamente recém-nascidos e be­ bés de diferentes procedências, cores e condições. Entretanto, os diversos tipos de auxílio prestados pela irmandade distribuíam-se de forma dife­ renciada pelas populações das cidades. Como demonstra Isabel dos Guima­ rães Sá, nos casos em que o auxílio objetivava a reprodução ou manutenção dos estatutos sociais e os investimentos caritativos eram mais altos por indivíduo, certos critérios de discriminação eram geralmente acionados.11 Instituições que se utilizavam de critérios discriminatórios para acei­ tação de seus membros não eram, entretanto, uma exceção, e sim a regra nos domínios portugueses, fosse no reino ou no ultramar, durante o An­ tigo Regime.12 Das câmaras às irmandades leigas (como as Misericórdias), passando por corporações de ofício, ordens militares e ordens religiosas, todas essas instituições estabeleciam barreiras para a admissão de seus membros. O fator discriminatório pode ser inclusive considerado uma das funções mais importantes desempenhadas por semelhantes instituições ao colaborarem para dar forma ao espaço social e criar “fronteiras sociais”, como denominou Isabel dos Guimarães Sá, numa sociedade estamental organizada com base em noções de distinção, hierarquia e privilégio.13 Quando as Misericórdias em questão — Rio de Janeiro, Salvador e Porto — construíram e abriram seus recolhimentos na primeira metade do século XVIII, já havia, portanto, nos territórios sob jurisdição portu­ guesa, uma experiência institucionalizada de estabelecimento de barrei­ ras à aceitação de indivíduos. Delimitar o público que deveria ser assistido no recolhimento era parte de um processo de estabelecer relevantes fron­ teiras sociais. Por isso, tão importante quanto delimitar o grupo dos que podiam ser auxiliados era delimitar aquele que não podia ser aceito na instituição. Essa prerrogativa discriminatória era tão significativa que os estatutos do recolhimento do Porto, por exemplo, proibiam os chamados irmãos definidores — grupo tradicionalmente composto pelos irmãos mais antigos e prestigiados da irmandade — de dispensarem as candidatas a 1 6 o

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recolhidas das barreiras impostas pelos mesmos estatutos.14 As regentes do recolhimento também estavam proibidas de admitir novas reclusas, pois esta era considerada uma prerrogativa das mesas administradoras.15 Em 1765, D. Francisca Rege, viúva de um alferes, “muito pobre e onerada de três filhos”, como argumentava na petição que escreveu à mesa da Misericórdia da Bahia, pediu uma vaga no recolhimento para sua fi­ lha, de mesmo nome, então com 16 anos e correndo grande perigo em sua honra devido à suma pobreza a que se havia reduzido a família.16 Ao requerer um lugar para a filha, juntou um atestado de um religioso da Sé no qual constava que a candidata era “moça branca, legítima, cristã-ve­ lha, e vive em companhia de sua mãe no estado de donzela muito hones­ tamente [...]”. Na petição de D. Francisca Rege encontramos todos os elementos que estavam presentes na seleção de meninas assistidas pelas Misericórdias. As características exigidas das órfãs comungavam dos mecanismos e cate­ gorias de classificação e distinção que de resto operavam de modo mais amplo no Antigo Regime. Estes mecanismos de distinção sofreram um processo de transformação e consolidação ao longo do tempo e variaram de acordo com o contexto no qual as diversas Misericórdias estavam inseridas, havendo diferenças sensíveis entre aqueles empregados pelas irmandades do reino e do ultramar. Mesmo levando-se em consideração tais especificidades, podemos dizer que a distribuição dos dotes, em espe­ cial, e antes dela a administração de mercearias e do rol de visitadas for­ neceram para as Misericórdias uma primeira experiência do uso de categorias de discriminação no auxílio às mulheres e mais especificamente às órfãs e às donzelas. Os critérios de seleção tornaram-se aos poucos mais detalhados. Até o século XVI, possivelmente sob a influência do moralismo reformador que marcou esse século, predominou uma fórmula um tanto ampla de classi­ ficação das jovens assistidas, incluindo três requisitos “órfã-pobre-honrada”.17 A honra feminina, nesse caso, dizia respeito acima de tudo a sua honra sexual. Quando chegamos ao século XVIII, essa categorização evo­ luiu e passou a incluir outros elementos de distinção para incorporar um perfil mais detalhado das assistidas como “órfã-pobre-honrada-filha legí­ 1 6 1

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tima-cristã-velha-branca”. Isso significa que foi necessário aglutinar ao perfil idealizado de mulheres assistidas outros elementos que procuravam delimitar não simplesmente um grupo específico a ser assistido em face de recursos limitados, mas sim ajudar a delimitar fronteiras sociais im­ portantes para essas sociedades, que passaram a incluir julgamentos acer­ ca da legitimidade, da cor e da “limpeza de sangue” dos indivíduos. No caso da Misericórdia do Porto, o grande marco na organização dos critérios relativos à assistência feminina foi o legado deixado pelo bispo de Lamego, D. Manuel de Noronha, em 1564,18 que mais tarde seriam incorporados ao compromisso da irmandade e aos estatutos do recolhi­ m ento.'9 Nele foram feitas exigências quanto a naturalidade, filiação, pobreza, honra, idade e estatuto social. O elemento, entretanto, que mais chamou atenção foi, sem dúvida, o recrudescimento em relação às exi­ gências de “limpeza de sangue”, que ganhou clara importância nos sécu­ los XVII e XVIII. Na Bahia, embora tenha havido certa flexibilidade, causada principal­ mente pela sobreposição de normas ocorridas nesse caso, deu-se a conso­ lidação dos requisitos exigidos pelo instituidor do recolhimento, João de Mattos de Aguiar. Já nas primeiras décadas do século XVIII, consolida-se nos livros da irmandade o topos da jovem assistida pela irmandade como sendo “órfãs, pobres, honradas, brancas, cristãs-velhas”. O mesmo tipo de requisito pode ser encontrado nos estatutos elabo­ rados em 1744 para o recolhimento do Rio de Janeiro. As órfãs deveriam ter entre 9 e 11 anos ao serem admitidas; deveriam ser ao menos órfãs de pai, mas se daria preferência às que fossem de pai e mãe; filhas legítimas, cristãs-velhas, de bom procedimento e donzelas, preferindo-se as que fos­ sem mais desamparadas e as mais formosas “por razão do maior perigo que tem no século”.20 Havia ainda um outro parágrafo separado no qual se determinava que “em nenhum caso e com nenhum pretexto serão ad­ mitidas neste recolhimento moças pardas ou mulatas por se temer a desu­

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ções de dádiva estabelecidas, e esclareciam que, se alguma moça parda ou mulata fosse “admitida por empenhos”, ou seja, por obrigações particula­ res de alguma mesa, ficaria ao arbítrio da mesa seguinte expulsá-la do recolhimento.22 Notemos, portanto, que essa expulsão não era necessaria­ mente inevitável, o que mostra a força dos “empenhos” diante dos inter­ ditos, e as barreiras sociais que a própria irmandade buscava reforçar. Comparando-se as regras de admissão do recolhimento do Porto com as do Rio de Janeiro e da Bahia, podemos dizer que, embora comparti­ lhem, em alguns pontos, um universo comum de categorias, o estatuto da instituição reinol se distingue em alguns pontos dos estatutos dos casos ultramarinos. Isso significa que, na elaboração do público que deveria ser servido pelo recolhimento, algumas questões preocuparam ou foram mais centrais do que outras nas diferentes localidades do império português. Enquanto a grande preocupação no Porto parece ter sido barrar a presen­ ça dos cristãos-novos, na Bahia e no Rio de Janeiro o problema era regu­ lar e barrar o acesso de pardas e mulatas à assistência prestada pelo recolhimento e, conseqúentemente, reduzir o acesso desses grupos aos recursos e capitais materiais e simbólicos advindos da concessão de dotes e da realização do casamento sob os auspícios da Misericórdia.23 Entretanto, como vimos pelo exemplo que abre este artigo, a formu­ lação dessas categorias — órfã-pobre-honrada-filha legítima-cristã-velhabranca — era entrecortada por julgamentos coletivos baseados em estima social, relações de obrigação e de dádiva e negociações comunitárias. Compreender os mecanismos empregados no período para a produção das informações que constituíam as categorias em questão, e especialmente, observar esses mecanismos através do processo de admissão das meninas aos recolhimentos do Porto, Rio de Janeiro e Salvador, pode, pois, nos revelar muito acerca da forma como operavam as distinções sociais no período.

nião e discórdias que podem resultar de não haver igualdade nas pessoas”.21 Apesar da negativa veemente, os mesmos estatutos reconheciam a dificul­ dade de manter semelhante interdição na América portuguesa do século XVIII, em meio à mestiçagem, relações de parentesco e às inúmeras rela­

O processo de seleção das meninas era bastante parecido nos três re­ colhimentos estudados.24 Quando abria uma vaga no recolhimento, a ir­ mandade fixava um edital na igreja do recolhimento avisando à população local. O edital determinava uma data para que as candidatas entregassem suas petições. Uma vez de posse das mesmas, a irmandade dava início a

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um processo de averiguação das informações contidas. Os encarregados iam até as freguesias de origem das candidatas e faziam inquirições sobre as informações, elaborando sumário das testemunhas que deviam ser as de melhor “fé e crédito”25 e conhecimento sobre o assunto. A essas inqui­ rições deveriam se somar certidões dos juízes dos órfãos ou párocos das freguesias de onde as candidatas eram naturais, atestando as informações recolhidas. Terminado o período de inquirição, os irmãos informadores deviam levar as petições para a reunião da mesa, na qual esses documentos eram lidos e julgados. O processo todo deveria transcorrer mediante grande segredo e, quando fosse provido o lugar no recolhimento, as petições e inquirições deviam ser queimadas. Como podemos notar, esse sistema de admissão ao recolhimento baseava-se em uma rede de informações que deixava as órfãs sob um triplo escrutínio: primeiro, o das suas próprias comunidades de origem; segundo, o dos párocos, religiosos locais e juízes de órfãos, que deveriam fornecer as certidões; e terceiro, o dos irmãos da Misericórdia, tanto daqueles que elaboravam as inquirições quanto dos que posteriormente julgavam seus pedidos. Cada uma dessas etapas re­ presentava igualmente um ponto no qual as informações sobre as órfãs eram negociadas e formuladas. Esse processo de informação não era exclusivo do provimento de lu­ gares no recolhimento; as Misericórdias faziam uso desse mesmo modo de seleção em todos os tipos de auxílio nos quais a irmandade tinha que selecionar os que deviam ser auxiliados — isto é, nos auxílios discrimi­ natórios. De fato, a coleta de informação por meio da elaboração de in­ quirições e a utilização do testemunho e da opinião das comunidades como fonte de informações na Misericórdia não era uma novidade para essa sociedade de Antigo Regime, e sim uma forma de procedimento que fazia parte do estabelecimento de bases de julgamento em diversos assuntos e variadas situações. Como mostra Donald Ramos, a justiça, tanto a eclesiástica quanto a civil, tratava os julgamentos comunitários como fontes válidas para o es­ tabelecimento da verdade nos processos jurídicos.26 Diferentemente do que ocorre hoje, os testemunhos fornecidos à justiça baseavam-se não

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necessariamente em testemunho ocular de um determinado crime ou even­ to, mas sim no relato daquilo que era do conhecimento público, de “ou­ vir dizer” ou “fama pública”. O julgamento da comunidade se expressava como “voz pública”, “voz popular” ou “voz comum”, e essa emissão de uma opinião coletivamente compartilhada gerava uma “fama pública” ou algo que era “público e notório”, como Ramos encontrou expresso nos processos que analisou. Além da “fama pública”, que poderia ser positiva ou negativa, mas que geralmente era empregada de forma negativa, a “voz comum” dava origem, nos casos de transgressões variadas, à noção de “escândalo”, referente à publicidade dos eventos. A importância da “voz pública” era tamanha que o conhecimento e o escândalo públicos constituíam não só agravantes para os crimes como, em alguns casos, respondiam quase totalmente pela criminalidade do ato.27 O poder dos rumores públicos pode ser visto igualmente no compromis­ so de 1630 da temida “Confraria da Nobreza”, que determinava que as qualidades exigidas aos canditatos a irmão da confraria fossem tidas “sem fama ou rumor em contrário verdadeira ou falsa”.28 Isto é, bastava que houvesse fama em contrário, ainda que falsa, para a imagem do indivíduo ficar danificada perante a sociedade, pois os rumores públicos tinham uma legitimidade e existência própria e peculiar. Na América portuguesa, na cidade do Recife, os E statutos da província d e Santo Antônio do Brasil, de 1708, determinavam que o fato de haver fama por “mais remota e confusa” que fosse acerca dos requisitos exigidos inabilitava o candidato a pertencer à ordem e deveria mesmo ser cancelado o processo de inqui­ rição.29 Existia, como não poderia deixar de ser, uma complexa hierarquia de gradações acerca de quem estava autorizado a falar em nome desse julga­ mento coletivo. Essa hierarquia, ainda que sofresse alterações dependen­ tes do tipo e do objetivo do testemunho exigido, regulava-se com base em idade, gênero, cor e condição. Ou seja, ainda que a princípio todos pu­ dessem fazer uso desse recurso e pautar seu testemunho na voz comum, os mais velhos e mais experientes nessas sociedades, ainda largamente baseadas em tradições orais, tinham preferência em relação aos mais jo ­ vens, assim como os homens em relação às mulheres e os livres em rela-

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ção aos escravos.30 É dentro dessa hierarquia de credibilidade para repre­ sentar a voz pública que devemos pensar a preocupação dos irmãos da Misericórdia nas suas prescrições para a eleição das testemunhas de maior “fé e crédito” nas inquirições acerca das órfãs. Como mostra Donald Ramos, o estabelecimento da verdade e credibi­ lidade dos indivíduos através do julgamento e conhecimento comunitários fazia com que a definição de crime, pecado e fama fosse relativa e não

de dos julgamentos tornava-se ainda mais elástica e instável, possibilitan­

absoluta, e que o processo de produção desse conhecimento se configu­ rasse, em última instância, como uma busca mais por consenso que por verdade. Por trás dessa visão encontrava-se um sistema jurídico e políti­ co, para o qual a concórdia pública era mais importante do que a “verda­ de” e a justiça era pensada muito mais como um instrumento conciliatório. A paz e o consenso sociais eram, portanto, os princípios norteadores da justiça e dos julgamentos, e a fama pública dos indivíduos acerca de suas ações ou qualidades tinha tanta ou mais importância do que suas ações e qualidades em si. Os julgamentos comunitários e os processos de construção de conhe­ cimento baseados nesses julgamentos produziam, portanto, o que Chris

ções e acomodações. Nesse sentido, o papel dos recolhimentos foi o de

Wickham denominou uma “verdade acordada”.31 É por meio de verda­ des desta ordem que devemos entender as categorias de distinção em jogo nos requisitos exigidos no processo de admissão das meninas ao recolhi­ mento e, também, a própria função de semelhantes instituições. A imagem que se procurava criar para os recolhimentos como o abri­ go de órfãs honradas, cristãs-velhas, filhas legítimas e, especificamente nos recolhimentos ultramarinos, de brancas, correspondia à representação que esses homens de elite tinham das populações “meritórias” de suas locali­ dades e às fronteiras sociais que se queriam construir. Nessa sociedade de distinções fixas, porém maleáveis, como descreve Silvia Lara,32 e mantida por relações de dádiva de cunho assimétrico, essas categorias operavam entrecortadas pelas marcas das obrigações interpessoais, das solidarieda­ des comunitárias e dos julgamentos coletivos expressos pela voz pública. Nessa sociedade, que combinava movimentação populacional, dimensões

do inúmeras combinações em um sistema que se pretende rígido à pri­ meira vista, como podemos ver no caso narrado na abertura do capítulo, em que as distinções sociais entre os indivíduos em querela oscilavam de acordo com os testemunhos e os rearranjos da “fama pública”. Com tantos elementos em jogo, o momento das inquirições e da sele­ ção das órfãs a serem assistidas abria brecha para vários tipos de negocia­ oferecer a essas recolhidas a chancela de uma poderosa instituição que reivindicava para si os privilégios devidos àqueles que gozavam dos mais altos graus de “honra e estimação”. Ao mesmo tempo que os recolhimen­ tos buscavam ajudar a manter ou estabelecer certas fronteiras sociais, es­ tas mesmas fronteiras seriam povoadas por uma população “construída” pela própria instituição a partir desse emaranhado de relações e possibili­ dades que marcavam a constituição da fama pública e dos mecanismos de distinção social que esta alimentava.

Notas 1. Entrevista com N atalie Zem on Davis, em M aria Lúcia G arcia Pallares-Burke (entrevistadora), As muitas faces da história: nove entrevistas, São Paulo, Ed. Unesp,

2000, p. 86. 2. Ibidem, p. 85. 3. Instituto dos Arquivos Nacionais Torre do Tombo, Papéis do Brasil, avulsos, 3, do­ cumento 5. 4. Ouvidor-geral do civil: principal juiz da Coroa na relação. Ver A. J . R. Russell-Wood,

Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755, Brasília, Ed. UnB, 198 1 , p. 308. 5. Na expressão “diferença de qualidades”, “qualidades” se refere aos elementos de distinção social presentes em sociedades estamentais, como nobreza de nascimento, por exemplo, e, no caso das sociedades sob jurisdição portuguesa, “limpeza de san­

imperiais, sistemas de identidade baseados na localidade, relações de

gue” e “limpeza de mãos”.

obrigação e clientela e reputação expressa pela voz pública, a variabilida­

Oficial de regimento de infantaria. Ver Russell-Wood, op. cit., p. 3 08.

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7. “Criado grave”, nesse caso, refere-se a um criado respeitado, admitido ao serviço familiar privado, em oposição a “lacaio”.

8. Os chamados “ofícios mecânicos” eram todos os que requeriam trabalho manual, com o, por exemplo, os de carpinteiro, tanoeiro, pedreiro e entalhador. 9. Jean-François Sirinelli, ap u d Eliana R. de Freitas Dutra, “História e culturas políti­ cas: definições, usos e genealogias”, Varia H istória, n. 2 8 , dez. 2 0 0 2 , p. 24. A refe­ rência de Sirinelli é Jean-François Sirinelli, H istoire d es droites em Fratice, t. II, Paris,

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17. Ao longo do século X V I, intelectuais, tanto leigos quanto religiosos, mostrariam grande angústia com uma suposta decadência moral da cristandade. Na esteira des­ sas preocupações, a moralística humanista ibérica católica investiu na necessidade de reforma e educação dos indivíduos, buscando aproximar suas condutas das nor­ mas da Igreja e concedendo uma nova importância ao casamento, que na moralística medieval era claramente desvalorizado diante do estado clerical e celibatário. Sobre essa questão ver Pedro Serra, “A ca rta d e guia a o s ca sa d o s e a tradição m oralística sobre o casamento na península Ibérica (séculos X V I-X V II)”, em Pedro Serra (org.),

Gallimard, 1992, p. II-IV

10. As Santas Casas de Misericórdia eram irmandades leigas, restritas a homens de certa condição social, de direto patrocínio régio, que se dedicaram a administrar, entre outras instituições e obras de caridade, hospitais e recolhimentos de órfãs por todo o império português ao longo da época moderna.

11. Isabel dos Guimarães Sá, “As M isericórdias no império português, 1 5 0 0 -1 8 0 0 ”, em 5 0 0 a n os das M isericórdias p ortu g u esas: so lid a r ie d a d e d e g e r a ç ã o em g era ­ ç ã o , Lisboa, Comissão para as Com em orações dos 5 0 0 anos das M isericórdias,

C arta d e gu ia a o s c asad os d e D. F ern an do M anuel d e M elo, Braga/Coimbra, Ângelus Novus Editora, 199 6 ; e Ronaldo Vainfas, Trópico d o s p eca d o s : m oral, sex u a lid a d e e In qu isição n o Brasil, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997. 18. Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia do Porto, R eco m p ila çã o d a a d m i­ nistração d e legados 16 8 9 , p. 3 43. 19. O chamado “compromisso” era o conjunto de normas, geralmente organizado num texto único dividido em capítulos, que regia as irmandades leigas do período. Os compromissos podiam determinar desde o número e qualidades dos irmãos inte­

2 0 0 0 , p. 127. 12 . Para um histórico da discriminação nas instituições do Antigo Regime em Portugal e na colónia, ver Maria Luiza Tucci Carneiro, P recon ceito racial n o Brasil colón ia: o s cristãos-n ovos, São Paulo, Brasiliense, 1983. 13. Isabel dos Guimarães Sá, “Shaping social space in the centre and periphery o f the portuguese em pire: the exam ple o f the M isericórdias from sixteen th to the eighteenth cen tu ry”, P ortu g u ese S tu d ies, s .l., M odern H um anities Research Association, v. 1 3 ,1 9 9 7 , p. 2 1 0 -2 1 ; idem , “ Estatuto social e discriminação: formas de seleção de agentes e receptores de caridade nas M isericórdias portuguesas ao longo do Antigo Regime”, A ctas d o C o ló q u io In tern a cio n a l S aú de e d iscrim inação

grantes até os deveres de cada um e os procedimentos em determinados cerimoniais. Os “estatutos” reuniam, igualmente em um texto dividido em capítulos, as regras que deviam nortear o funcionamento e a administração dos recolhimentos de órfãs, delimitando desde o perfil das recolhidas até detalhes de sua educação e casam ento. 20. “Estatutos do Recolhimento das órfãs da Santa Casa da M isericórdia do Rio de Ja ­ neiro”, estatuto terceiro, parágrafo 1, p. 381, em Leila Mezan Algranti (org.), “Os estatutos do Recolhimento das órfãs da Santa Casa da M isericórdia do Rio de Ja ­ neiro”, C adern os Pagu: g ên ero, narrativas, m em órias, Campinas, N úcleo de Estu­ dos de Gênero, (8/9), 1997. O recolhimento do Rio de Janeiro tinha a peculiaridade de ter sido criado por uma doação em vida, e por isso dez vagas ficavam separadas

so c ia l, Braga, 2 0 0 2 , p. 3 0 3 -3 4 . 14. Segundo os estatutos do recolhimento do Porto, o definitório deveria ser composto por dez irmãos dos mais antigos da irmandade, sendo cinco nobres, dos quais três deveriam ter exercido os cargos de provedor, e dois escrivâos, e mais cinco irmãos oficiais de menor condição. Ver “Estatutos do recolhimento de Nossa Senhora da Esperança”, em J. A. Pinto Ferreira, O recolh im en to d e ó rfã s d e N ossa Senhora da E speran ça, Porto, Câmara Municipal do Porto, s.d., capítulo V I, “Dos definidores

para a eleição dos doadores. Entretanto, caso a nomeação dos fundadores fosse contrária à mesa, estes ficariam obrigados a nomear outra pessoa para o lugar. “ Es­ tatutos do Recolhimento das órfãs da Santa Casa da M isericórdia do Rio de Jan ei­ ro”, o p . cit., parte quarta, estatuto primeiro, parágrafo 3 , p. 392. 21. “Estatutos do Recolhim ento das órfãs da Santa Casa da M isericórdia do Rio de J a ­ neiro”, o p . cit., parte primeira, estatuto terceiro, parágrafo 2 , p. 381. 22. “Estatutos do Recolhimento das órfãs da Santa Casa da M isericórdia do R io de J a ­

ou irmãos da junta”, p. 133-4. 15. “ Estatutos do recolhimento de Nossa Senhora da Esperança”, o p . cit, cap. VIII, “Da obrigação da regente”, p. 136. 16. Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia da Bahia, “Registro de uma peti­ ção e despacho que fez à mesa desta Santa Casa D. Francisca Rege a respeito de impetrar um lugar que se acha vago do recolhimento para uma filha sua chamada D. M aria Francisca Rege”, em Livro I o d e registro 1 7 6 0 -1 7 7 6 , n. 86 , p. 93.

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neiro”, o p . cit., parte primeira, estatuto terceiro, parágrafo 2 , p. 3 8 1 . 23. Para uma discussão mais aprofundada acerca da especificidade de recolhim entos no reino e nas conquistas ultramarinas, ver Gandelman, o p . cit., cap. 3. 24. Os estatutos do recolhim ento do Porto contêm uma detalhada descrição de com o esse processo funcionava. “Estatutos do Recolhimento de órfãs de Nossa Senhora da Esperança", o p . cit., p. 129-173.

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25. “Estatutos do Recolhimento de órfãs de Nossa Senhora da Esperança”, o p . cit., p. 146. 26. Donald Ramos, “Gossip, scandal and popular culture in golden age Brazil", Jou rn al o f S o cia l H istory , Pittsburgh, Carnegie Mellon University, v. 3 , n. 4 , verão de 200 0 , p. 8 8 7 -9 1 2 . 27. Assim, as C onstituições prim eiras d o arcebispado da B ahia, publicadas em 1720, como exem plifica Ramos, apresentavam uma distinção entre certos atos considerados pecaminosos em si e outros, mais abundantes, passíveis de investigação apenas quando eram de domínio comum ou causavam escândalo público. 28. “Alvará de lei secretíssimo contra o puritanismo”, em C o le ç ã o d a legislação p o rtu ­ gu esa, compilada por Antonio Delgado da Silva, 1828, livro II (1 7 6 3 -9 0 ), p. 181-9, a p u d M aria Luiza Tucci Carneiro, P recon ceito racial n o Brasil c o ló n ia : o s cristãosn o v o s, São Paulo, Brasiliense, 1983, p. 102. 29. E statutos d a província d e Santo A ntônio d o Brasil, Lisboa, O fficina de Manoel & José Lopes Ferreira, 1709, cap. 1, parágrafo 1, p. 1, apu d Carneiro, op. cit., p. 207-8. 30. Ramos, o p . cit., p. 894.

Colónia de povoamento e colónia de exploração. Reflexões e questionamentos sobre um mito Mary Anne Junqueira*

31. Sobre “Verdades acordadas” ou “agreed truth”, ver Chris W ickham, “Gossip and resistance among the medieval peasantry”, Past an d presen t, 160, ago., 1998, p. 6 . 32. Silvia Hunold Lara, Fragm entos setecentistas: escravidão, cu ltu ra e p o d er na A m éri­ ca p ortu g u esa, Campinas, tese de livre-docência, IFCH/Unicamp, 2 0 0 4 , p. 91.

‘ Professora de História da América Independente nos cursos de História e Relações Interna­ cionais da Universidade de São Paulo (USP).

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Os historiadores concordam que muitas vezes navegamos entre algumas visões consolidadas e mitos da nossa história, dentro e fora da academia. Tal constatação nos leva a considerar a necessidade de o conhecimento estar permanentemente se refazendo, a fim de reavaliarmos o conheci­ mento sobre o nosso passado. Escolhi aqui refletir sobre a explicação ainda presente e sempre repetida entre nós, de que o Brasil e os demais países da América Latina foram colónias de exploração — o que explicaria o nosso “atraso e subdesenvolvimento” no presente; enquanto os Estados Unidos surgiram como potência económica e apresentam solidez nas suas instituições políticas devido a sua origem como colónia de povoamento. Tal formulação não estava — e não está — relacio­ nada ao entendimento do passado, o período colonial, ou sua vinculação com o presente; mas procurava constituir um diagnóstico para as mazelas do país. A partir da verificação da nossa condição — “economia estagnada, politica­ mente atrasados, subdesenvolvidos, dependentes” —, procurou-se o “mal” nas nossas origens, mais precisamente no período colonial. Nós, latino-ame­ ricanos, não teríamos alcançado o “nível de excelência” dos países “desen­ volvidos ou centrais”, fosse em termos económicos, políticos, institucionais, fosse nas dimensões próprias da cidadania. Não é preciso lembrar que os re­ médios propostos foram muitos e variados: revolução burguesa, revolução proletária, industrialização, substituição de importações, localização diferen­ te do Brasil na divisão internacional do trabalho. Note-se que apenas a circunstância de colonizados não se mostrava suficiente para determinar o nosso “atraso, subdesenvolvimento e depen­ dência”, devido ao fato de que no Novo Mundo despontou, no século XX, a maior potência económica e militar do planeta — os Estados Uni1 7 3

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doi da América. Assim, r io era o fato de estarmos plantados no Novo M indo, termos passado por dois séculos (Estados Unidos) ou três (Américr Latina) de colonizaçlo européia que explicaria o nosso “incómodo

cesso que se estendeu do períoco colonial até metade do século X IX , e no qual o território da região se multiplicou 11 vezes — foi eminentemente predatória. A devastação corria acelerada na segunda metade do século

atnso”, uma vez que a existência de uma potência económica nas Améri­

X IX , e grupos religiosos — c o n o os transcendentalistas, que viam a na­ tureza como expressão do divino — se preocupavam bastante, pois a na­ tureza do país desaparecia rapidamente. A partir das críticas e apreensões desse grupo e também de outro s ambientalistas criou-se nos Estados Uni­ dos o primeiro parque nacional, em 1872, com o nome de Yellowstone,2 onde a narureza primitiva deveria permanecer preservada.3 Voltando ao excerto, é claro no texto o pessimismo do autor em rela­ ção ao nosso presente e, conseq-uentemente, ao nosso futuro, pois a explo­ ração desmedida devastará o continente. Como escapar de tão determinado destino?

cas ,ogava por terra a explicação de que a condição mesma de colonizadot determinaria o nosso lugar no mundo como periferia. A título de exemplo, vejamos a explicação apresentada por um pro­ fessor universitário, publicada no caderno Fovest do jornal Folha de S. Paido, dirigido ao público que presta vestibulares: A conquista dos territórios do Novo Mundo pelas metrópoles européias deu origem a formas específicas de colonização. Os tipos principais foram as colónias de povoamtr.to e as de exploração. As de povoamento surgiram, basicamente, por cauta das perseguições religiosas ocorridas na Inglaterra durante o reinado de Carlos I (1625-1649). Grupos puritanos (calvinistas) fugiram em direção ao norte da América para construir um lar e viver em paz. Organizaram pequenas propriedades e trabalharam em grupos familia­ res. Sua produção era voltada para suas necessidades e, por isso, era diversificada. Já as colónias de exploração tinham de satisfazer as necessi­ dades de acumulação de capitais de suas respectivas metrópoles, o que as tornava alvo de uma ação essencialmente predatória. No caso do Brasil, essa característica se manifestou desde os momentos iniciais da colonização[...] Após buscar as causas do 'nosso atraso”, no passado colonial, o autor des­ taca as mazelas do presente: Entretanto, ao fim de três séculos de colonização, restavam florestas do litoral devastadas, terras exauridas, milhões de vidas consumidas como carvão e cidades como que varridas por uma tempestade. A ação predató­ ria do conquistador deitou fundas raízes na nossa formação. Hoje, como nação independente, até que ponto podemos afirmar que estamos livres dessa prática e da mentalidade que lhe corresponde?' Cem relação à devastação ambiental, podemos afirmar que a proposição do autor não procede. A conquista do Oeste nos Estados Unidos — pro­ 1 7 4

Os termos “colónia de exploração” e “colónia de povoamento” são ainda amplamente utilizados nos livros didáticos de história do Brasil e de história da América e repetidos nas apostilas de cursinhos preparatórios para os vestibulares, fazendo com que a explicação seja constantemente reforçada, sobretudo entre os adolescentes. No entanto, destacamos que nem sempre os manuais tratam da divisão entre Estados Unidos e Améri­ ca Latina como uma linha divisória fixa, como fez o autor que escreveu para a Folha de S. Paulo. Algumas vezes, a explicação vem marcada por um determinismo climático. Vejamos, por exemplo, o que diz o manual de história da América sobre a colonização no Novo Mundo. As variações climáticas principalmente vão dar origem a dois tipos de co­ lónia na costa americana. No Norte e no Centro as colónias de povoa­ mento e, no Sul, as colónias de exploração. As colónias de povoamento formaram-se com base na pequena e média propriedade agrícola e numa produção voltada apenas para o mercado interno [...] Nas colónias do Sul, colocou-se em prática a economia de plantation isto é, da grande pro­ priedade agrícola quase auto-suficiente, baseada no escravismo, na mono­ cultura e na produção voltada para o mercado externo [...] Era uma economia rotineira predatória e com tecnologia simples que esgotava a fertilidade da terra. Por isso são chamadas de colónia de exploração.4

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As questões climáticas são consideradas determinantes para o desenvolvi­ mento dos dois tipos de colonização: a de povoamento, em climas tempe­ rados, e a de exploração, nas regiões tropicais. O determinismo climático atravessa a interpretação de forma rígida, tanto quanto a dupla tipologia da colonização. O autor trata dos Estados Unidos, afirmando que as colónias do Nor­ deste eram diferentes das do Sul, onde predominava a escravidão. Essa perspectiva climática coloca o Sul dos Estados Unidos como colónia de exploração. Veremos adiante que, certamente, o autor do manual se ins­ pirou no famoso livro de Caio Prado Júnior, F orm ação d o Brasil contem ­ porâneo. Aliás, a influência de Prado Júnior nos livros didáticos parece-nos considerável, uma vez que, geralmente, os manuais tratam do tema explicitando o sentido da colonização, expressão amplamente utilizada pelo historiador e título do segundo capítulo do seu famoso livro. O manual não é diferente: Nas zonas temperadas da América do Norte e em algumas áreas da Amé­ rica do Sul, predominou a c o l o n i z a ç ã o d e p o v o a m e n t o , caracterizada por uma organização económico-social que conservava muita semelhança com suas origens européias. A c o l o n i z a ç ã o d e e x p l o r a ç ã o foi característica das zonas tropicais da América, nas quais predominou a grande agri­ cultura tropical escravista e monocultura produtora de açúcar, tabaco, algodão. Nesse modelo de colonização predominou também a socieda­ de rural, na qual o trabalho escravo foi sempre abundante, seja pela uti­ lização de nativos, seja pela importação dos negros africanos [grifos do autor].5

Os livros didáticos, nós sabemos, são um poderoso instrumento de di­ vulgação de variadas concepções sobre a história. Embora essas obras de referência sejam centrais para a veiculação dessas idéias, acredito que a análise particular dos manuais escolares não é suficiente para en­ tendermos a força com que determinadas visões consolidadas se apre­ sentam, pois os exemplos se repetem, e não apenas nos livros didáticos. Pode-se encontrar o binómio colónia de exploração e colónia de po­ T T f

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voamento sendo divulgado ainda na academia, apesar das críticas já realizadas aos modelos generalizantes, e também é possível notar o uso dessa dicotomia entre um público que estou chamando aqui de “cul­ to”, como jornalistas, economistas, advogados, muitos deles formado­ res de opinião.

SOBRE A S O R IG E N S D O T E R M O

Não é fácil rastrear as origens da dicotomia colónia de povoamento e coló­ nia de exploração no Brasil, mas é possível identificar os usos do termo em clássicos da historiografia brasileira. Um dos precursores é exatamente o já citado Form ação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Júnior, publica­ do em 1942. Não é meu objetivo analisar o autor ou entender o contexto no qual escreve. Sabemos que os “intérpretes do Brasil” — especialmente Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Hollanda e Gilberto Freyre — de­ senvolveram as suas análises a partir do país que surgiu após a revolução de 1930, ligados ao “sopro de radicalismo intelectual e análise social” que não havia sido, apesar de tudo, “abafado pelo Estado Novo”, como já disse Antonio Cândido.6 O que pretendo aqui é procurar entender o porquê da longa utilização e permanência dessa explicação. Como já identificamos, a proposição de Prado é atravessada por uma espécie de determinismo climático. Para ele, não era apenas a distinção entre a colonização ibérica e a colonização anglo-saxã que nutriu as socie­ dades de perspectivas e ritmos diferentes; segundo o autor, a chave para o entendimento das diferenças dos processos económicos estava no tipo de colonização que se desenvolveu nas zonas tropicais e nas temperadas das Américas. Dessa forma, Prado incluía a região de plantation do Sul dos Estados Unidos entre as colónias de terras tropicais, aproximando-as das de colonização ibérica. Para o autor, além de haver apenas dois tipos de colonização no Novo Mundo, marcadas por dois aspectos económicos distintos, também a Europa era pensada de forma homogénea e única. As análises baseadas nas estruturas económicas fizeram com que as diversi­ dades e conflitos próprios da conquista e colonização das Américas fos17 7

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sem obscurecidos. O Novo Mundo foi alvo de disputa entre Espanha, Portugal, Inglaterra, França e Holanda, culturas que certamente trouxe­ ram para cá formas diferenciadas de ver o mundo e considerar de manei­ ras distintas o estabelecimento de autoridades e poderes.7 No entanto, embora apresentasse a zona tropical sulista das colónias britânicas como colónia de exploração, o autor via a modernização acele­ rada, característica central dos Estados Unidos, tomar conta até mesmo dessa região escravocrata após a Independência do país, em 1776. [...] apesar da descoberta de Whitney, a saw-gin que é de 1792 e logo se

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das e periféricas”. Para ele, as “colónias de povoamento” privilegiaram o mercado interno em detrimento do externo, permitindo o surgimento de pequenos proprietários e outros grupos menos dependentes da metrópole.10 Celso Furtado continua nos dias de hoje influenciando economistas e políticos. Veja por exemplo o que escreveu, também no jornal Folha de S. Paulo, um economista sobre a X X V II Reunião do Conselho de Mercado Comum e Cúpula do Mercosul, que se realizou entre 15 e 17 de dezem­ bro de 2004, nas cidades de Belo Horizonte e Ouro Preto:

difundiu largamente por toda a região algodoeira dos Estados Unidos, o Brasil continuava a empregar o velho princípio do descaroçador de ori­

Os esforços de integração no século X X I entre os países em desenvolvi­

gem imemorial, a cbukra do Oriente...'

mento enfrentam a herança (esta sim maldita) das antigas colónias de ex­ ploração em contraste com as colónias de povoamento, nos termos que

Embora o Sul escravocrata dos Estados Unidos fosse considerado colónia de exploração, a modernização caminhava acelerada por aquela região anglo-saxônica, ao contrário do que aconecia no Brasil. Além disso, nessa

Celso Furtado usou na F o r m a ç ã o e c o n ó m i c a d o B ra sil. Trata-se de econo­ mias historicamente heterogéneas e desarticuladas entre si. Integrá-las é uma tarefa ainda mais difícil do que foi o mais de meio século de forma­ ção da União Européia a partir dos escombros da Segunda Guerra.11

perspectiva, a Guerra Civil de 1861-5 é considerada um marco na des­ truição do modelo de plantation, permitindo que a modernização, legado das colónias do Nordeste do país, se difundisse por todos os Estados Uni­ dos. O Brasil e os outros países da América Latina, por sua vez, não haviam ainda destruído seu legado colonial — a colónia de exploração — , como fizeram os norte-americanos. Se Caio Prado Júnior foi um dos precursores na utilização dos termos aqui estudados, penso que se deve aos desenvolvim entistas e aos dependentistas9 a sua ampla utilização, e também o reforço do tema, devido aos termos binários amplamente utilizados por esses analistas, tais como: “centro e periferia”, “desenvolvimento e subdesenvolvimento”, “arcaico e moderno”. Entre eles, merece destaque Celso Furtado e o seu não me­ nos influente F orm ação econ óm ica do Brasil, de 1959. Embora Furtado não se detenha no viés climático como Prado, também para ele havia dis­ tinções radicais entre as colonizações no Novo Mundo. Ressaltava a ca­ racterística de as colónias de Espanha e Portugal — apesar de na época

O analista vê com reservas a possibilidade de integração dos países do Mercosul, e seu pessimismo está centrado na nossa “maldita herança” colonial. Note-se que tal pressuposto faz com que o autor não tenha muitas esperanças com relação à integração, pois parte de uma idéia preconcebi­ da — o nosso “legado colonial”. Mas se Prado e Furtado, marcos fundadores de uma historiografia do Brasil no século X X , podem ser considerados os precursores de tal pers­ pectiva, sua origem está no século X IX , mais precisamente nos trabalhos do economista liberal francês Paul Leroy-Beaulieu (1834-1916), que in­ fluenciou consideravelmente franceses e estrangeiros. O autor escreveu no período em que se discutia a construção e legitimação dos impérios europeus e destacou-se com o seu D e la colonisation chez les peuples modernes, de 1882, no qual procurava entender as colonizações moder­ nas e os seus legados. Caio Prado remeteu-se ao especialista francês no corpo do seu texto:

mais integradas ao mercado europeu — se tornarem “subdesenvolvi­

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[...] Como se vê, as colónias tropicais tomaram um rumo inteiramente diverso do de suas irmãs da zona temperada. Enquanto nestas se consti­ tuirão colónias propriamente de povoamento (o nome ficou consagrado depois do trabalho clássico de Leroy-Beaulieu, De la colonisation chez les peuples modernes).'1 O objetivo de Caio Prado e Celso Furtado era entender o presente. No entanto, os dois autores partiram do passado, do período colonial. Ade­ mais, partiram da comparação para em seguida analisar mais detalhadamente o Brasil. A questão da comparação em história vem sendo já bastante analisada, e merece destaque aqui o fato de que esse método, em Prado e Furtado, estabelece uma hierarquia na qual os Estados Unidos são vistos como centro e dominantes e o Brasil, e os outros países da América Lati­ na, como periferia e dominados.13 Embora nossos dois autores, em seus trabalhos, tratem da questão colónia de povoamento e colónia de exploração de forma mais elaborada e matizada que o “senso comum”, eles pensaram a colonização do Novo Mundo dividida em duas partes completamente distintas e radicalmente separadas. Conforme essa perspectiva, enquanto as colónias inglesas da América, sobretudo as do Nordeste, haviam estabelecido um vínculo com a terra, desenvolvendo o mercado interno, na América Latina, espanhóis e portugueses, ávidos por metais preciosos e outras possibilidades da re­ gião, voltaram-se exclusivamente para a Europa.

SOBRE O S M O D E L O S G E N E R A U Z A N T E S

Sabe-se que tal explicação de base estrutural e económica, além de generalizante e reducionista, não resiste à menor investigação por parte dos estudiosos que se debruçam sobre os documentos da época, nem aos olhos do turista mais atento. Em primeiro lugar, vimos que, diferentemente das questões^eográfi cas colocadas por Caio Prado, o autor do excerto que utilizei da Folha de S. Paulo afirma que Estados Unidos — o país como um todo — foram

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uma colónia de povoamento. Essa é uma versão da história norte-ameri­ cana que circulou por aqui: a de que os Estados Unidos foram formados a partir da colonização dos peregrinos puritanos, os famosos pais peregri­ nos, deixando de lado as colónias sulistas que foram o modelo de coloni­ zação inglesa do período. Sabe-se hoje que as pequenas colónias formadas ao Nordeste do país por seitas radicais eram exceção e não a norma da colonização inglesa.14 Essa idéia encontra-se introjetada na cultura daquele país e se transformou, ao longo do tempo, numa verdadeira mitologia da nação.15 Devemos nos perguntar por qual motivo uma enorme extensão de terra do Novo Mundo — do Brasil, passando por inúmeras ilhas do Caribe (várias delas de colonização inglesa) e chegando à colónia de Maryland, onde hoje está localizada a capital do país, Washington, DC — foi coloni­ zada a partir do sistema de plantation. Pode-se sugerir que assim foi por­ que esse era o projeto mais viável e lucrativo para a colonização européia nas Américas. Os ingleses instalaram no Caribe e ao Sul da América do Norte o sistema que vinha sendo bem-sucedido entre espanhóis e portu­ gueses nos séculos XVI e XVII. As evidências são notórias também na cultura material que herda­ mos. Basta dar uma volta pela cidade de Cuzco, no Peru, caminhar pela praça das Armas e observar a catedral de três naves construída sobre o antigo Wajayapata, ponto de reuniões e decisões político-religiosas e militares incas. Impressiona também a Igreja de Santo Domingo, fincada sobre o Qoricancha, o templo do Sol incaico. Sabemos que no México não foi diferente: os espanhóis instalaram-se sobre as cidades políticoadministrativas e sobre os templos religiosos astecas. Tais aspectos mos­ tram claramente a intenção de domínio e a violência utilizada para subjugar os nativos. No entanto, também revelam que os espanhóis vie­ ram para ficar, estabelccer-se, apropriar-se do território que haviam “descoberto”. 16 E fato que os modelos generalizantes e simplistas foram já amplamen­ te criticados, todavia a questão que nos move a enfocar esse tema é me­ nos “desconstruir o mito”, mas, como já disse, procurar entender por qual motivo ele permanece entre nós e é tão recorrentemente repetido. TTTT

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Penso que a dicotomia colónia de povoamento e colónia de explora­ ção é muito consolidada como explicação para a nossa condição, uma vez que, de uma maneira ou de outra, está fortemente plantada no imaginário social brasileiro. Segundo Bronislaw Baczko, o imaginário social informa acerca da realidade, ao mesmo tempo que constitui um apelo à ação, um apelo a comportar-se de determinada ma­ neira. Esquema de interpretações, mas também de valorização, o disposi­ tivo imaginário suscita a adesão a um sistema de valores e intervém eficazmente nos processos da sua interiorização pelos indivíduos, mode­ lando os comportamentos, capturando as energias e, em caso de necessi­ dade, arrastando os indivíduos para uma ação com um .'7

Partindo das proposições desse autor, é possível sugerir que o nosso olhar sempre voltado para fora das nossas fronteiras, em direção aos países di­ tos desenvolvidos, faz parte do nosso imaginário, o qual carrega um siste­ ma de valores a partir do qual olhamos com admiração os países chamados centrais, nos caracterizando, por contraste, de forma deficiente, carente e incompleta com relação a um modelo difícil de alcançar.

O BRASIL E OS ESTADOS UNIDOS COMO REFERÊNCIA EXTERNA

Penso que as reflexões publicadas recentemente por autores que preten­ dem discutir a centralidade da Europa, tanto em termos económicos como na elaboração da sua autoridade quanto à construção do conhecimento, nos oferece subsídios para refletir sobre o tema e, mais precisamente, so­ bre o lugar em que nos colocamos com relação aos Estados Unidos. Parto da idéia de que as proposições mais claramente apresentadas por Caio Prado e Celso Furtado vieram “revestir de cientificidade” uma for­ ma que já tínhamos de pensar o Brasil com relação aos países mais ricos. Em outras palavras, são proposições que caíram sobre um imaginário no qual sobressaem as imagens positivas dos países considerados desenvolvi­ dos, ao mesmo tempo que a nossa própria imagem é subestimada. Se no 1 8 2

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século X IX e início do X X os brasileiros tinham a Europa, especialmente a França, como referência e modelo cultural,18 já na segunda metade do século X X o nosso olhar voltou-se para os Estados Unidos e o que aquele país representa em termos das dimensões da modernidade. Além disso, são evidentes o interesse e a admiração de determinados setores brasilei­ ros pelos Estados Unidos. Não preciso lembrar o quanto a cultura norteamericana encontrou ressonância entre os brasileiros; basta uma volta nos shoppings para identificarmos que a quase totalidade das lojas não mais utiliza a palavra liquidação, mas estampa em suas vitrines termos como “off ” ou “sale”, ou ainda como determinados setores da classe média se esforçam para comprar um automóvel off-road. Para intelectuais como Edward Said e Mary Louise Pratt, o discurso colonizador foi bastante competente, pois penetrou nas “sociedades do­ minadas”, emoldurando posições intelectuais, políticas e económicas, atravessando as várias dimensões da cultura e atingindo até mesmo as con­ cepções estéticas. Tal qual a economia, o conhecimento foi organizado em centros de poder, sendo que esse mesmo centro impôs sua autoridade, por meio dos mais variados tipos de discurso, colocando-se como o produtor exclusivo do saber. Dessa forma, o discurso colonizador é visto por esses autores como um instrumento eficiente do processo de colonização, uma vez que se encontra incorporado/introjetado pelas sociedades que passa­ ram pelos processos de domínio e ainda têm na Europa ou nos Estados Unidos a sua referência do que é ser moderno.19 Pratt mostra que as dis­ tinções binárias e as separações radicais devem ser revistas, uma vez que os encontros entre metropolitanos e locais se caracterizam por interações de ordens diversas, embora a metrópole marcasse sua centralidade com relação ao “resto do mundo”. Para a autora, o processo não deve ser en­ tendido como binário, mas sim compreendido através das trocas, apro­ priações e transculturações que se estabeleceram nas zonas colonizadas. Para o antropólogo Stuart Hall, interessa entender o lugar que o dis­ curso colonizador propõe para os vários países considerados atrasados e a relação que essas sociedades desenvolveram com o chamado centro. Note-se que em vários casos, quando o discurso da metrópole se refere ao Ocidente, muitas vezes o faz reduzindo este à Inglaterra, à França e 1 8 3

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aos Estados Unidos. Para Hall, não é possível estabelecer separações, pois a colonização está presente de forma indelével tanto na metrópole quan­ to nos países que foram colonizados, sendo assim histórias que se forma­ ram como transnacionais e transversais.20 Com relação à escrita da história, vale lembrar o que propõe Dispesh Chakrabarty. Para ele é necessário pensarmos sobre a “descolonização do conhecimento”, uma vez que partes do mundo com perspectivas históri­ cas diferentes, temporalidades diversas e concepções próprias do mundo não devem ser medidas pelo metro europeu, nem ser analisadas a partir do instrumental e das categorias europeus. Para o autor, o adjetivo mo­ derno — visto como universal e originariamente europeu, já que preten­ de reunir as noções de racionalismo, as várias concepções da ciência e os significados de progresso — não pode ser entendido como exclusividade européia, uma vez que foi construído com a participação do mundo con­ siderado não-ocidental. Segundo Chakrabarty, é necessário rever as nar­ rativas das histórias européias e o seu viés nacionalista, uma vez que as histórias foram construídas de forma transnacional — e estão profunda­ mente entrelaçadas — , embora tenham sido narradas como separadas e distintas.21 A partir da reflexão desses autores é possível sugerir que a formulação colónia de povoamento e colónia de exploração encontrou a ressonância que conhecemos devido ao fato de já nos colocarmos em determinada posição com relação ao centro desenvolvido, sendo que em muitos mo­ mentos essa relação se configurou — e se configura — como de subordina­ ção ou subalternidade, para utilizar um termo mais veiculado recentemente. Tal dicotomia encontrou um campo fértil, pois caiu sobre uma sociedade que em muitos momentos olhou para a Europa — e agora para os Esta­ dos Unidos — com admiração e como meta ou modelo a ser alcançado. Ademais, a dicotomia colónia de povoamento e colónia de explora­ ção sugere que reavaliemos a escrita da nossa história nacional, que ainda hoje, muitas vezes dentro da própria academia, vem repetindo o “lugar de destaque” do Brasil com relação aos outros países da América Latina22 e, por outro lado, indicando a nossa “posição subordinada” com relação aos Estados Unidos.

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Notas 1. Cf. Roberson Oliveira, “Economia colonial e ação predatória”, F olha d e S. Paulo, 18/7/2002.

2 . Ver Roderick Nash, W ilderr.ess a n d am erican m in d , New Haven/Londres, Yale University Press, 1967. 3. Ver Mary A. Junqueira, “A conquista do Oeste: do Atlântico ao Pacífico”, em E sta­ dos Unidos. A co n solid ação da n a çã o , São Paulo, C ontexto, 200 1 , p. 39-63. 4. Florival Cáceres, H istória da A m érica, São Paulo, M oderna, 1993, p. 77. 5. Francisco Teixeira, H istória da A m érica, São Paulo, Ática, 1991, p. 11.

6. Cf. Antonio Cândido, “O significado de R aízes d o Brasil", em Sérgio Buarque de Hollanda, Raízes do Brasil, Rio de Janeiro, José Olympio, 1983, p. X I. 7. Ver, por exemplo, o trabalho de Patrícia Seed, C erim ón ias d e p osse na con qu ista européia do N ovo M undo (149 2 -1 6 4 0 ), São Paulo, Ed. Unesp, 1997.

8. Conferir Caio Prado Júnior, F orm ação d o Brasil c o n te m p o râ n e o , 2 1 a ed., São Paulo, Brasiliense, 1989, p. 138. 9. Chamo de dependentistas o grupo que se reuniu em torno da Cepal (Comissão Eco­ nómica para a América Latir.a e o Caribe), fundada em 1948, uma das comissões regionais da ONU que tinha como objetivo pensar e propor políticas para o desen­ volvimento da América Latir.a, considerada como “região periférica” em relação ao “centro desenvolvido”. Ver Ricardo Bielschowsky, “Cinquenta anos de pensamento na Cepal — Uma resenha”, em C inquenta a n o s d e pen sam en to na C epal, Rio de Janeiro, Record, 2000, p. 14-68. 10. Ver Bernardo Ricúpero, “Ceiso Furtado e o pensamento social brasileiro”, Estudos A vançados, São Paulo, IEA/USP, v. 19, n. 5 3 , 200 5 . 11. Cf. Gesner Oliveira, “Cuzco, Ouro Preto e o mal da altura”, Folha d e S. Paulo, 11/ 12/2004. 12. Cf. Prado Júnior, op. cit., p. 30. 13. Ver Maria Ligia Prado, “ Repensando a história comparada da América Latina”, R e­ vista d e H istória, n. 152, I o semestre de 2 0 0 5 , p. 11-33. 14. Ver Jack P. Greene, Pursuits o f happiness. T he so cia l d ev elo p m en t o f early m odern British colon ies an d the form ation o f A m erican culture, Chapei Hill, The University of North Carolina Press, 19S8. 15. Sobre os puritanos e a ampla utilização de uma retórica religiosa na cultura norteamericana, ver Cecília Azevedo, “A santificação pelas obras: experiências do protes­ tantismo nos EUA”, T em po, Rio de Janeiro, Departamento de História, UFF, n. 11,

2001 , p. 111-29. 16. Ver Leandro Karnal, E stados Unidos. D a colón ia à in d ep en d ên cia, São Paulo, Con­ texto, 1998.

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17. Ver Bror.islaw Baczko, “Im açnação social”, em E n ciclopédia E in au d i, Lisboa, Im­ prensa Nacional Casa da M teda, 198 5 , p. 311-2. 18. Ver Dems Rolland, A crise do modelo francês. A Trança e a América Latina. Cultura,

política e identidade, Brasília. UnB, 2 0 0 5 . 19. Cf. Edward Said, O rientalism o. O O rien te c o m c invenção d o O cid en te, São Paulo, Companhia das Letras, 1994; idem , Im perialism o e cultura, São Paulo, Companhia das Letras, 1 9 9 0 ; e Mary Loaise Pratt, Im perial :yes. Travei w ritin g a n d transculturation , Londres/Nova York, Routledge, 1995. 20. Cf. Stuart Hall, “Quando foi o pós-colonial? Pensando no lim ite”, em Da diáspora.

Identidades e m ediações culturais, Belo Horizorre, Ed. U FM G , 2 0 0 3 , p. 101-28. 21. Dispesh Chakrabarty, Provinaializing E u rope: T ostcolonial thou ght a n d historical differen ce, Princeton, Princeton University Presa. 2000. 22. Sobre a visão construída no Erasil com relação aos outros países da América Latina, ver Rafael Baitz, Um continente em fo c o : a imagem fo to g rá fica d a A m érica Latina n as revistas sem an ais brasilevas (1 9 5 4 -1 9 6 4 ), ó.ío Paulo, Humanitas/FFLCH-USP, 2 0 0 3 . K itia Gerab Baggio, A “o u tra” A m érica. A América L a tin a n a visão d e intelec­ tuais brasileiros nas prim eiras décadas repu blicaras, tese de doutorado, FFLCH/USP, São Paulo, 1999, mimeo.

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Identidades em construção: indígenas, negros e mestiços

O intelectual como símbolo da brasilidade: o caso Capistrano de Abreu”' Rebeca Gontijo**

‘ Este texto foi elaborado a partir do capítulo “Morre o historiador da pátria: a construção de um símbolo da brasilidade”, do trabalho de Rebeca Gontijo, O v elh o v a q u c a n o : C a p istra n o d e A breu, d a h isto rio g ra fia a o h isto ria d o r, tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006. "B o lsista Prodoc da Capes no Programa de Pós-Graduação cm História Social da Universida­ de Federal do Rio de Janeiro; integrante do Núcleo de Pesquisas em História Cultural (Nupehc), da UFF; e do grupo Oficinas de História, da Uerj.

A noção de cultura histórica diz respeito a um complexo trabalho de apreensão da temporalidade. Por meio de um exercício marcado por lem­ branças e esquecimentos, constrói-se um conjunto de representações com­ partilhadas, capazes de atribuir significado positivo ou negativo a períodos, personagens, acontecimentos, obras, conformando narrativas sobre o pas­ sado, o presente e o futuro.1 , .... Parte significativa da problemática que envolve a cultura histórica parece estar relacionada ao culto £ determinados indivíduosj frequentemente recrutados no mundo das artes, das letras e da política^ Tais indivíduos são vistos, por exemplo, como símbolo de um grupo ou nacio­ nalidade, uma vez que suas ações e/ou suas obras são lidas como portado­ ras de valores e ideais considerados dignos de serem compartilhados e celebrados em dado momento*? Este capítulo focaliza o caso de um desses indivíduos, Capistrano de Abreu (1853-1927), notório erudito, prefaciador, tradutor e anotador, referência entre os estudiosos da história do Brasil no final do século XIX e início do X X , autor de Capítulos de história colonial (1907) e de varia­ dos estudos sobre a história dos séculos X V I e XVII, a geografia brasileira e as línguas indígenas. Mais especificamente, o texto recupera e analisa algumas das vozes que se manifestaram por ocasião da morte do historia­ dor, em agosto de 1927. Essa produção memorialística — composta, na maior parte, por discursos fúnebres (necrológios) — apresentou Capistrano como símbolo de uma nacionalidade cabocla e civilizada. A hipótese é a de que os discursos então difundidos correspondem a um tipo de investimento na construção de um símbolo duplo: da intelectua­ lidade e da nacionalidade, tendo contribuído, a seu modo, para a consoli3 1 1

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dação de uma espécie de mito intelectual,3 assim como para a constituição de uma memória sobre a escrita da história e os historiadores do Brasil. Tratase de um estudo sobre a história dessa memória produzida imediatamente após a morte de Capistrano, que, de acordo com um de seus biógrafos, foi “grande em vida” e “continuou grande depois de morto”.4 *

*

*

Em agosto de 1927, Capistrano de Abreu se encontrava adoentado. Um de seus amigos e discípulos, o etnógrafo Edgar Roquette-Pinto, foi visitálo e pouco depois escreveu: Venho da casa de Capistrano de Abreu, o querido mestre dos meus estu­ dos etnográficos. A doença prostrou o indomável sertanejo acaboclado. Já não se estira na rede, companheira fiel de tantos anos; ergue-se a custo sobre o cotovelo na posição que a dispnéia consente; geme baixinho, sem queixa nem revolta. É um ocaso meigo o daquele sábio cheio de bondade tolerante. N o quarto de pouca luz, atravancado de livros, os amigos, os discípulos cercam-no com a ânsia sincera de verificar uma melhora. E afi­ nal o Brasil que se debruça sobre o leito em que sofre um dos seus maiores filhos.5

Capistrano morreu no dia 13 de agosto daquele ano, aos 74 anos. Passou seus últimos anos de vida na casa da travessa Honorina, em Botafogo, Rio de Janeiro, onde vivia no porão em meio a livros e papéis empilhados. Em “carro fúnebre de indigente”, o corpo foi transportado por “estranho préstito” de sua casa até o cemitério local de São João Batista. - A morte de um indivíduo proeminente era ocasião oportuna para a construção de representações capazes de associá-lo a ideais coletivos. 0 nome de Capistrano de Abreu permitiu materializar idéias e valores considerados importantes e dignos de serem celebrados durante a Primeira República, quando se observa um “movimento geral de criação de heróis cívicos” e de elogio dos “grandes homens”, que, em grande parte, eram

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A capital federal havia presenciado grandes funerais: Machado de Assis, em 1908; Euclides da Cunha, em 1 9 0 9 ; Joaquim Nabuco, em 1910; o barão do Rio Branco, em 1912; Rui Barbosa, em 1923. Além desses, o traslado dos restos mortais dos imperadores Pedro II e Teresa Cristina, em 1921, causara enorme comoção. Foram longos cortejos organizados por rígida hierarquia, com a participação de autoridades e membros da elite, além de grande número de populares. Com a maior pompa, alguns funerais tiveram o status de festa nacional.7 De modo recorrente, os cor­ tejos transcorriam entre os locais da morte, do velório e do enterro. De acordo com João Felipe Gonçalves, que analisou os grandes funerais da Primeira RepúblicaEo veíório era de suma importância, devendo haver identidade entre o morto e o local onde ocorria, o que exigia cuidadosas escolhas por parte dos organizadores^Machado de Assis e Euclides da Cunha, por exemplo, foram velados na Academia Brasileira de Letras; o barão do Rio Branco, no Palácio do Itamaraty; Afonso Pena, no Palácio do Catete; Rui Barbosa, na Biblioteca Nacional. Todos os funerais eram caracterizados por luxuosa decoração, repleta de veludo negro, crepes, flores, altares, dosséis e guardas de honra. O objetivo era demonstrar a especificidade da vida e das obras do finado através das instituições com as quais ele se relacionara. Na ocasião dos funerais, espaços normalmente interditados à população serviam como uma espécie de palco para a performance pública das elites.8 r - O Além do impacto simbólico dos velórios, os funerais eram uma oca­ sião propícia para discursos, responsáveis pela dimensão mais cognitiva da cerimónia fúnebre. Através de pronunciamentos grandiloauentes e laudatórios, buscava-se a individualização e a imortalização do morto em meio a expressões retóricas de dor. No caso dos mortos ilustres anteriormente citados, é notável a associação de seus nomes à nação, o que permite con­ siderar seus funerais como verdadeiros “rituais cívicos”.9 Contrastando com tais eventos, cercados por toda pnmpa e c-irrnnstância, o velório no porão e o enterro de Capistrano de Ah rp n r harmm a atenção pela simplicidade, assim como pela diversidade do séquito. Se­ gundo Pandiá Calógeras,

recrutados no mundo da política e/ou das letras.6 3 1 2

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num movimento espontâneo de amor, todos os presentes às pobres e mes­ quinhas exéquias — grandes nomes nacionais; humildes índios a que ti­ nha servido e abrigado; respeitáveis senhoras por quem nutrira tanto afeto e que lhe retribuíam com tanta sinceridade, sem limite de idade, das avós de cabelos brancos às mocinhas que desabrochavam à vida; discípulos pranteando o Mestre; íntimos rememorando as expansões de sua intimi­ dade — todos quiseram levar os restos queridos ao cemitério com uma demonstração última, singela e augusta, de imarcescível saudade.10

'' J & ) Os relatos fazem questão de frisar que os membros da elite política e intelectual do país caminharam lado a lado com gente comum, sem hie-

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rarquia. Além da curiosa presença de dois índios, homens e mulheres anô-

"r / , iS>.nimos de diferentes faixas etárias transitaram entre o modesto lugar onde ym V

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viveu e morreu Capistrano e o local do enterro. Os discursos valorizam a espontaneidade das homenagens póstumas, marcadas pelo tom intimista, destacando a sinceridade do afeto demonstrado pelo morto e exaltando a humildade, presente tanto na vida como na morte do homenageado. 0 caixão foi conduzido a pé, carregado pelos amigos e admiradores que se revezaram, entre os quais Cândido Rondon, Rodolfo Garcia, Francisco Sá, Afonso Celso, Rodrigo Otávio, Paulo Prado, Miguel Arrojado Lisboa, Francisco de Assis Brasil, Graça Aranha, Miguel Couto, Assis Chateaubriand, entre outros, inclusive os dois índios. Durante o enterro, o historiador Rodolfo Garcia fez o elogio do morto em nome do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a mais importante instância de consagração dos estudos históricos do país, desde a primeira metade do século X IX , quando foi criado. O ponto alto do discurso foi a repetição das palavras emitidas pelo próprio Capistrano na ocasião da morte de outro historiador, o ilustre Francisco Adolfo de Varnhagen, em 1878. Até então, Varnhagen era considerado o pai da historiografia brasileira, autor da História geral do Brasil (1854-57), obra revisada por Capistrano e Garcia. Ao escrever o necrológio de Varnhagen, Capistrano lamentou: 3 1 4

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A pátria traja de luto pela morte de seu historiador. Morte irreparável, pois que a constância, o fervor e o desinteresse que o caracterizavam difi­ cilmente se hão de ver reunidos no mesmo indivíduo.12 Após a morte, Capistrano foi associado às mesmas características que ele valorizara em Varnhagen — a constância, o fervor e o desinteresse — , í -

Rodrigo Otávio Filho complementa lembrando que o préstito era com­ posto não apenas por gente excelsa, mas por “amigos sem renome ou gló­ ria, discípulos silenciosos, e dois índios tristes, índios que ele trouxera da selva e educara como filhos”. 11

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conforme lembrou Garcia em seu discurso fúnebre.13 Além do elogio proferido no enterro, alguns artigos foram publicados na imprensa da capital e do Ceará, terra natal de Capistrano. O historiador João Ribeiro, por exemplo, defendeu a decretação de luto nacional. Afirmou que o “sábio mestre” — um “homem despido de todas as vaidades e de todas as 6 preocupações de interesse material” — era o único que poderia ter escrito a história do Brasil com autoridade, lastimando que ele não o tenha feito, por não conseguir levar a cabo o que principiava. Também chamou a atenção para as “esquisitices e singularidades” de Capistrano, observando que “ninguém como ele parecia um índio que houvesse perfurado a civilização e subido à tona da nossa cultura, com arco-e-flecha, seminu e indomável”.14 Essa associação de Capistrano aos indígenas também aparece nas ob­ servações do jornalista Assis Chateaubriand, cujo olhar captou a presença de um índio tuxinim no velório e no enterro. Disse Chateaubriand: Ao sair do pobre porão de trapista intelectual onde morava, o enterro de Capistrano de Abreu, quando lhe tomou uma das alças do caixão, o índio tuxinim, que ele mandara buscar, para fixar-lhe a língua, do interior do Mato Grosso, eu tive como que a sensação de que nenhum de nós era tan­ to o expoente de qualquer cousa de eterno, na vida do grande indigenista, como aquele representante dos primeiros povoadores da terra brasileira. Luís (assim se chamava o tuxinim) ali estava, com a sua farda de soldado da brigada policial, os olhos vermelhos de chorar, levando o esquife de Capistrano de Abreu, ao lado de Francisco Sá, Paulo Prado, Arrojado Lis­ boa, Aguiar Moreira e tantos outros. A presença daquele índio no acom­ panhamento fúnebre do eminente historiador, cuja paciência beneditina reproduziu para a nossa história tantos idiomas dos nossos aborígines, em vésperas de desaparecerem, era como um pedaço da brasilidade.15

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Para o observador, o índio choroso no velório representava “qualquer coisa de eterno” na vida de Capistrano. Representava “um pedaço da brasilidade”, que o historiador-indigenista pudera atingir e, de certa forma, sal­ var, com seus estudos. Outro jornalista, Gonçalo Jorge, fez questão de lembrar o contraste entre o corpo de Capistrano, “desajeitado e exótico”, e seu “espírito lu­ minoso”. Afirmou: “No físico, ele era um sertanejo, um filho do adusto Nordeste, um homem feio, agreste, desagradável. N o espírito, que belo e alto clarão havia!” Também frisou que a decantada generosidade de Capistrano contrastava com sua irreverência, sarcasmo e ironia, lamen­ tando, como João Ribeiro, que ele não tenha legado uma grande obra ao Brasil, como era esperado.16 Já o escritor Coelho Neto apresentou Capistrano como “um estranho no meio e no tempo” por seu temperamento arredio, interpretado como uma “sobrevivência do ‘bárbaro’, latente no supercivilizado”. Para esse comentarista, Capistrano possuía uma “alma primordial” que o impelia para o estudo do passado. Concordando com João Ribeiro, afirma que o falecido sábio era um “selvagem, que o estudo tornou um dos expoentes máximos da nossa cultura”. 17 Além dos artigos que circularam pela imprensa, também ocorreram manifestações de pesar na Câmara dos Deputados e no Senado e, como era de praxe, as atas das sessões foram registradas nos anais e publicadas nos jornais.18 Por fim, seguiram-se as homenagens nas principais instâncias de

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Em outubro, durante a Sessão Magna comemorativa do 89° aniversá­ rio de fundação do instituto, o historiador Ramiz Galvão pronunciou al­ gumas palavras sobre o morto. Após uma pequena biografia, em que chamou a atenção para a presença dos livros como companheiros e mes­ tres de Capistrano e para sua trajetória profissional marcada pela passa­ gem por instituições como a Biblioteca Pública da Corte, o Colégio de Pedro II e o IHGB, o orador confirmou a imagem de um sábio que tinha a aparência de um “filho das selvas transplantado para o seio da civiliza­ ção”. Também reafirmou a visão de Capistrano como “uma alma boa e meiga” despida de vaidades.20 Os discursos produzidos logo após a morte de Capistrano parecem guiar-se pela mesma lógica da consagração em vida, ainda que haja o tom hiperbólico característico dos elogios fúnebres. Predominam as interpre­ tações que o apresentam como um homem bom, de alma generosa, leal aos amigos e avesso a futilidades, como é de se esperar dos necrológios. I Mas a imagem mais sugestiva que pode ser extraída dos necrológios de \ Capistrano diz respeito ao seu vínculo com dois universos distintos: o da |“barbárie” e o da “civilização”. Nas palavra"s'c!e'Coêíh(rNeto, foi como um surto atávico o aparecimento desse espírito singular em nos­ sas letras. O homem vinha da tribo ancestral trazendo a rede, em que sempre dormiu, e as flechas, das quais somente aproveitou as penas, aparando-as, para a escrita, e um pouco de curare, com que as ervou, dando-

consagração do mundo intelectual da época. Um mês após o funeral, foi ■— — 1 ■ 1— ............. feita homenagem na 6a Sessão Ordinária do IHGB, dirigida pelo presidente perpétuo, o conde Afonso Celso.19 João Pandiá Calógeras apresentou o necrológio daquele que considerava como um verdadeiro “tapuia transplan­ tado para o meio civilizado”. Suas qualidades como erudito e homem mo­ desto, dotado de uma alma “bondosa”, “pura”, “abnegada” e “heroica”,

Assim como a erudição de Capistrano (com destaque para seu poliglotismo) permitia associá-lo a um ideal de cultura e civilização, sua aparência, seus modos de vestir e falar eram aspectos que permitiam recuperar rnrarte-

avesso às vaidades e a todo pedantismo, ajudaram a tecer a imagem de um “beneditino das letras”, que era, ao mesmo tempo, “artista e pensador”. Ao lembrar o historiador morto, propôs um outro arranjo para a tradição historiográfica brasileira: desde então, a história de Capistrano se confun­ diria com a própria memória da escrita da história no Brasil.

rísticas atribuídas aos indígenas e sertanejos, o que sua origem interiorana ajudava a sustentar. A “rudeza”, a “feiura”, a “agressividade” e a “descon­ fiança” compunham uma figura de homem do interior bastante distinto do tipo urbano, cosmopolita, do dândi de modos afrancesados, que na época representava os ideais de progresso e civilidade. Mas, ao lado da

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lhes a ironia dicaz, a sátira mordente com que revidava a ataques dos que, de mui baixo, pretendiam feri-lo.21

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aparência e dos modos, que autorizavam referências ao mundo do interior e aos indígenas, o tipo de conhecimento desenvolvido por Capistrano permitia outro tipo de aproximação. Como observou Assis Chateaubriand em seu artigo póstumo, o grande mérito de Capistrano teria sido compreen­ der a brasilidade — propriedade distintiva do Brasil e do brasileiro —, traduzindo-a através de seus estudos sobre as línguas e costumes indíge­ nas e, também, sobre a história colonial.22 Em vida, Capistrano já era re­ conhecido como uma autoridade nesses assuntos. O termo “brasilidade” havia sido utilizado pelo conde Afonso Celso no livro Por que m e ufano do meu país (1900), servindo para indicar uma espécie de essência dos seres e das coisas do Brasil, capaz de inspirar o sentimento de amor à pátria.23 Nos anos 1920, o termo foi retomado pelas discussões sobre modernidade, modernismo e nacionalismo. Sinteticamen­ te, a reflexão sobre a brasilidade ocorreu em meio à demanda por inter­ pretações sobre o país e seus habitantes, num processo iniciado na primeira metade do Oitocentos, que se estendeu pelas primeiras décadas do século X X , quando a intelectualidade se auto-reconhecia como portadora da civilização e se afirmava detentora de uma missão social e política: expli­ car o país, apontando problemas, propondo soluções e elaborando projetos para o futuro. Capistrano de Abreu participou desse processo, dedicando-se ao estudo da formação da nacionalidade brasileira, tema que ocu­ pava muitos escritores e estudiosos. Procurava-se conhecer e dar sentido explicativo ao Brasil enfatizando seus aspectos selvagens e naturais, de modo a caracterizar uma nação em busca de civilização. Parte significativa dos escritos sobre a génese nacional dizia respeito aos indígenas e à constituição do território, temas marcantes na obra de Capistrano.24 Tal obra pode ser inserida ao lado de outras tantas produzi­ das em meio a um movimento de (re)descoberta do Brasil iniciado ainda no século X IX e que se prolongou até, pelo menos, os anos 1950, desper­ tando o interesse pelo interior do país, com suas vastas regiões e popula­ ções desconhecidas. Esse movimento de (re)descoberta, fundado na lógica da alteridade entre sertão e litoral, inspirou uma série de escritos sobre o interior, capaz de um plano de escrita da história do país, dedicado a re­ cuperar ou inventar peculiaridades geográficas, humanas e culturais. Os 3 1 8

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escritos sobre o sertão sustentaram a criação de uma consciência nacional a partir de uma definição do Brasil e dos brasileiros. Permitiram ultrapas:_sar o parâmetro ditado pelo passado colonial, que deixara marcas pro­ fundas no litoral, e, ao mesmo tempo, fundamentar a construção de um espaço — o sertão — e de um tipo, o homem do interior, como autenticamente brasileiros.25 Na época da morte de Capistrano, o tema da formação nacional ainda — estava em voga, prevalecendo fazia algunsjmos a visão de dois brasis: o do litoral e o do interior, sendo possível identificar duas vertentes de in- & terpretação sobre o sertão. Uma delas o situava como lugar do atraso, por oposição à_cidade, jocal do progresso e da modernidade, associado à ur­ banização, à máquina, à indústria. Ao mesmo tempo, observa-se a inter­ pretação do sertão como o espaço por excelência da brasilidade. enquanto a cidade era o lugar do cosmopolitismo, dos estrangeirismos. Assim, era no interior que se encontrava o “verdadeiro” Brasil.26 Quanto ao proble­ ma do tipo representativo da nacionalidade, o homem do interior encon­ trava-se na berlinda. Alguns o tomavam como exemplo do atraso e da ignorância. Outros o viam como portador da brasilidade, da “essência” da nacionalidade, precisando, contudo, ser libertado de seus “males”.27 O argumento, portanto, é de que durante a Primeira República foram elaboradas interpretações sobre o Brasil que consolidaram versões sobre sua formação e, ao mesmo tempo, conferiram autoridade a determinados intérpretes, por vezes transformados em exemplos da dedicação ao estudo da pátria ou em representantes do conhecimento, visto como marca de civilidade. A valorização de seus nomes e obras ajudou a sustentar tradi­ ções de estudo sobre o país, definindo temas e referenciais teóricos, justi­ ficando escolhas documentais, apoiando vertentes interpretativas.

JL—f> Considerando o movimento de “interiorização da civilização” — ex­ presso pelo binómio litoral/sertão — , iniciado no século X IX , e o da ascensão dos “homens de letras” no cenário nacional, ohserva-se que alguns intelectuais alcançaram o status de símbolos nacionais/jCapistrano pôde então ser visto como um intelectual que transitava entre dois mundos: o da civilização e o da barbárie. Assim, nos discursos post m ortem se verifi­ ca a associação entre o erudito — homem culto e civilizado — e o homem 3 1 9

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dò interior, caracterizado como inculto, rústico e/ou selvagem e identifi­ cado pelas figuras do caboclo, do sertanejo e até do indígena!2^ Observase a imagem recorrente de um “homem de letras”, cuja coragem, tenacidade e persistência permitiram desbravar o passado, abrindo caminho para outros descobridores. Tais discursos constituíram a imagem de Capistrano como símbolo de uma nacionalidade que se quer culta e civilizada e, ao mesmo tempo, próxima do sertão não civilizado, lugar onde, acreditavase, o Brasil seria mais autêntico e verdadeiro. Uma figura referencial para a intelectualidade dedicada ao estudo do Brasil, que podia então, através de seu exemplo, exorcizar as críticas que recebia devido aos seus referen­ ciais europeus, sobretudo franceses. Supostamente, Capistrano materiali­ zou — por seu comportamento, suas origens, interesses e estudos — um modelo de intelectual capaz de abarcar o sertão e a cidade, que, assim como o “pequeno mundo” dos intelectuais, era associada a um ideal de civilida­ de. Ao menos para os herdeiros da tradição de estudos sobre o Brasil, esse historiador “sertanejo” seria uma espécie de mediador entre os mundos da civilização e da barbárie, por possuir aquilo que então era esperado de um historiador: erudição, cultura geral, informações originais, “habilida­ de de investigação minuciosa, aliada ao método de comparação, dedução e exposição” e, talvez o principal — o “sentimento da terra e da gence” brasileiras.29 Essa oscilação entre a civilização e a barbárie pode ser lida como algo que faz parte de um longo processo, que se estende do século X IX até, pelo menos, a década de 1920, quando a historiografia se ocupa da cons­ trução de uma narrativa da história nacional fundada em um ideal de ci­ vilização e, ao mesmo tempo, com o registro das particularidades nacionais. Identificado como descendente de tribos ancestrais, Capistrano teria sido “salvo da barbárie” pela erudição, sendo transformado em paradigma do historiador, um narrador munido com “flechas” transformadas em instrumentos para a escrita; penas “envenenadas” com as quais deixou suas marcas no mundo das letras. Para Coelho Neto, “o livro o purificou da barbárie fazendo-lhe o nome atingir a glória”.30

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Em 1994, a revista Veja divulgou o resultado de uma pesquisa de opinião dirigida a um grupo de 15 intelectuais brasileiros “de porte”, com o obje­ tivo de determinar as “vinte obras mais representativas da cultura brasi­ leira, em todos os setores e em todas as épocas”. Entre os intelectuais consultados estavam os antropólogos Darcy Ribeiro e Roberto DaMatta, os historiadores Francisco Iglésias e José Murilo de Carvalho, o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, os críticos literários Alfredo Bosi, Wilson Martins e Fábio Lucas, os economistas Celso Furtado e Roberto Campos, os escritores João Ubaldo Ribeiro e Josué Montello, os poetas José Paulo Paes e Ferreira Gullar e o professor de literatura e ensaísta Luiz Costa Lima. A obra campeã de indicações foi o livro Os sertões (1905), de Euclides da Cunha, uma unanimidade entre os entrevistados. Em se­ gundo lugar, Casa-grande e senzala (1933), de Gilberto Freyre (14 votos), seguida por Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa (13 vo­ tos); M acunaím a (1928), de Mário de Andrade (11 votos); D om Casm ur­ ro (1899), de Machado de Assis (8 votos) e Raízes d o Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda (8 votos). Cabe ainda observar que, entre 22 livros lembrados, 11 eram romances, 8 eram obras de não-ficção e 3 eram livros de poesia. Como observou o jornalista Rinaldo Gama, o cânone eleito não era jovem, sendo que o livro mais novo da lista era F orm ação económ ica d o Brasil (1960), de Celso Furtado. Além disso, o Brasil repre­ sentado por tais obras era muito mais rural do que urbano.31 Regina Abreu analisou essa enquete e argumentou que seus resultados eram significativos como sintoma de algo maior: um complexo trabalho de cons­ trução memorialística, por meio do qual se consolidam autores e obras consi­ deradas importantes para uma dada sociedade, em determinado momento.32 Deixando de lado os critérios adotados na enquete e na escolha dos nomes que a responderam, é possível considerar que a lista da Veja contendo as “vinte obras mais representativas da cultura brasileira” constitui um exemplo do modo como uma dada sociedade expressa — por meio da opinião dos inte­ lectuais — aquilo que pensa que é, por meio da escolha de autores e obras supostamente capazes de compreender e explicar o Brasil. Capistrano de Abreu não foi incluído em tal lista. Trata-se de um histo­ riador reconhecido — não necessariamente lido — sobretudo por aqueles 3 2 1

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que se dedicam ao estudo da história colonial ou da historiografia brasilei­ ra. Seu nome parece ter sido pacificamente plantado na história da história no Brasil, pois não se observam disputas em torno de seu legado. Apesar de um relativo esquecimento, ainda hoje é celebrado, sobretudo em sua terra natal, o Ceará, onde recebeu sucessivas homenagens ao longo do século XX, por meio da atribuição de seu nome a ruas, praças e escolas, e da constru­ ção de monumentos, por exemplo. Também figura entre os nomes ilustres lembrados pelo governo federal, que na ocasião de seu sesquicentenário de nascimento — em 2003 — produziu um selo em sua homenagem. Além disso, seu livro Capítulos de história colonial (1907) foi reeditado pelo Se­ nado Federal, e seus principais escritos — incluindo sua correspondência

Freqiientemente lembrado como aquele que poderia ter escrito a “ver­ dadeira” história do Brasil, mas que não o fez, Capistrano tornou-se o historiador representativo de uma historiografia considerada moderna, mais preocupada em propor questões, refletir sobre processos e construir relações entre temas até então pouco ou nunca explorados, tais como as festas, a família e as práticas culturais. Historiografia vinculada a uma noção de verdade fundada na crítica da memória e da tradição.35 j ® Como foi dito ao longo do texto, a celebração de seu nome logo após sua morte parece estar vinculada, entre outras coisas, ao desejo de conci­ 3 2 2

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significativo no caso de um intelectual cuja produção foi marcada pelo estudo da história e, mais especificamente, da formação do Brasil. A con­ sagração de um historiador como símbolo não apenas de um grupo de historiadores, mas da nacionalidade, permite pensar que o elogio a seu nome não deixa de ser um elogio a uma certa historiografia ou a um de­ terminado modo de compreender o país e seu passado.

Notas 1. Jacques Le Goff, “História”, em H istória e m em ória, Campinas, Ed. Unicamp, 1990,

!

— foram publicados com apoio do Ministério da Educação e Cultura e do Instituto Nacional do Livro, ao longo das décadas de 1950 e 1970. Considerado um símbolo da brasilidade, Capistrano de Abreu foi vis­ to como o historiador sertanejo, por suas origens, atitudes e, também, por ter contribuído, a seu modo, para a compreensão da própria brasilidade. Supostamente tão importante quanto aquilo que produziu — seus estu­ dos sobre a história colonial, a geografia brasílica e as línguas indígenas — foi aquilo que planejou produzir. Entre seus projetos estava ir além da historiografia difundida pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do qual fazia parte, embora pretendesse separar-se dele “em tempo, se não morrer repentinamente”.33 Capistrano não morreu repentinamente nem deixou o IH G B, mas manteve com ele relações conflituosas, como pode ser percebido em sua correspondência e em pelo menos um de seus arti­ gos, em que critica duramente a instituição.34

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liar um ideal de civilização com a caracterização da nacionalidade através da identificação de suas particularidades. Isso parece ser especialmente !

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p. 47 -7 6 . 2. Ver o caso de Euclides da Cunha analisado por Regina Abreu, O enigma d e Os ser­ tões, Rio de Janeiro, Rocco/Funarte, 1 9 9 9 ; e ainda Nara Britto, Osu/aldo Cruz: a con stru ção d e um m ito d a ciên cia brasileira, Rio de Janeiro, Fiocruz, 1995. 3. Essa reflexão sobre a construção de um mito do campo intelectual se inspira nos trabalhos de Regina Abreu, o p . c it.; Britto, op. c it.; Raoul Girardet, Mitos e m ito lo ­ gias políticas, São Paulo, Companhia das Letras, 1 9 8 7 ; Pierre Bourdieu, “Campo de poder, campo intelectual e b a b itu s de classe”, em A econ om ia das trocas sim b ó ­ licas, trad. de Sérgio Miceli et a i , São Paulo, Perspectiva, 2003, p. 183-202, cole­ ção Estudos 2 0 ; e Nathalie H einich, L a g loire d e Van G ogh: essai d ’an thropologie d e 1’ad m iration , Paris, Les Editions de Minuit, 1991. 4. Rodrigo Otávio Filho, “A vida de Capistrano de Abreu. Aula inaugural do Curso Capistrano de Abreu”, 2/9/1953, R evista d o In stitu to H istórico e G eográfico Brasi­ leiro, Rio de Janeiro, v. 2 2 1 , out.-dez., 1953, p. 66 . 5. Edgar Roquette-Pinto, “Capistrano de Abreu”, B o letim d o Museu N acional, Rio de Janeiro, v. IV, n. 1, mar. 1 9 2 8 , p. 1.

6 . Jo ão Felipe Gonçalves defende a necessidade de analisar os rituais fúnebres da Pri­ meira República em conjunto, tomando cada caso como exemplo de um fenômeno mais amplo, o “movimento geral de criação de heróis”. O objetivo é compreender o sentido comum das várias manifestações de uma prática ritualística, supostamente caracterizada pelos seguintes elem entos comuns: a construção e a naturalização de hierarquias; o reforço da estrutura social; o desenvolvimento de um individualismo da distinção. João Felipe Gonçalves, “Enterrando Rui Barbosa: um estudo de caso

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da construção fúnebre de heróis nacionais na Primeira República”, E stu dos H istóri­ c o s — D ossiê H eróis N acion ais, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2 5 , 2 0 0 0 , p. 151 e 156-7.

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Coelho N eto, op. cit. Chateaubriand, o p . cit.

7. Com o exemplos de estudos de funerais de homens públicos, ver: Gonçalves, op.

O livro de Afonso Celso apresenta 11 motivos para a superioridade do Brasil, relacio­

cit.-, Regina Abreu, “Entre a nação e a alma: quando os mortos são comemorados”,

nados à natureza, ao povo e à história. Foi publicado por ocasião das com emorações

E stu dos H istóricos — D ossiê C o m em o ra çõ es, Rio de Janeiro, v. 7 , n. 14, 1 9 9 4 , p.

do IV Centenário do Descobrimento do Brasil, tornando-se um marco do gênero que,

2 0 5 -3 0 , disponível em www.cpdoc.fgv.br, p. 1-24. Ver também o texto de Luigi

posteriormente, ficou conhecido com o ufanista, caracterizado pela exaltação otim is­

Bonafé sobre os funerais de Joaquim Nabuco (1 9 1 0 ), neste livro.

8. Gonçalves, op. cit., p. 149.

ta das características naturais, culturais e históricas do Brasil. Ver Afonso Celso, Por qu e m e u fan o d o m eu país, Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1997 [ I a ed. 1900].

9. Ib id em , p. 151.

24. O tema da génese da nação é central na historiografia e na literatura européia e bra­

10. Jo ã o Pandiá Calógeras, [Necrológio de Capistrano de Abreu], Atas da 6 a Sessão

sileira do século X IX . Entre os mitos elaborados em meio à reflexão sobre a form a­

Ordinária do 1HGB, 13/9/1927, R evista d o IH G B , Rio de Janeiro, t. 101, v. 155,

ção da nacionalidade brasileira, dois se destacam: o da mistura das três ra ç a s

1928, p. 355.

formadoras da nacionalidade (brancos, índios e negros) e o de um passado ancestral

11. Otávio Filho, op. cit., p. 65.

representado pela figura idealizada do índio inserido em natureza idílica. Ver, por

12. Capistrano de Abreu, “Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen”, em E n saios

exemplo, M árcia Regina Capeiari N axara, C ien tificism o e sen sibilidade r o m â n tic a :

e estu dos: crítica e história, I a série, 2 a ed., Rio de Janeiro/Brasília, Civilização Bra-

em busca d e um sen tido ex p licativ o p a ra o Brasil, Brasília, UnB, 2 0 0 4 ; John M anuel

sileira/lNL, 1975, p. 81-91. Originalmente publicado no Jo r n a l d o C o m m ercio , 16

M onteiro, “As ‘raças’ indígenas no pensamento brasileiro”, em M arcos Chor M aio

a 20/12/1878.

e Ricardo Ventura Santos (orgs.), R a ça , ciên cia e s o cied a d e, Rio de Janeiro, Fiocruz,

13. O elogio fúnebre feito por Garcia é parcialmente citado por Pedro Gomes de M a­

1996, p. 1 5 -2 2 ; e Kaori K odana, “Uma missão para letrados e naturalistas: ‘Com o

tos, C apistran o de Abreu: vida e o b ra d o gran de historiad or, Fortaleza, A. Batista

se deve escrever a história do Brasil’”, limar Rohloff de M attos (org.), H istórias d o

Fontenele, 1953, p. 3 1 1 ; Raimundo de Menezes, C apistran o d e A breu: um h o m em qu e estu dou , São Paulo, Melhoramentos, 1956, p. 7 7 ; e José H onório Rodrigues, “Rodolfo Garcia”, em H istória e historiografia, Petrópolis, Vozes, 1970, p. 155. 14. Jo ão Ribeiro, “Retrato de Capistrano de Abreu”, em O bras — Crítica, v. VI: H isto­

en sin o d a história n o Brasil, Rio de Janeiro, Access, 199 8 , p. 9-65. 25 Sobre a invenção do sertão e do sertanejo, ver, por exemplo, Janaína Amado, “ R e­ gião, sertão, nação”, E stu dos H istóricos — D ossiê H istória e N atureza, Rio de J a ­ neiro, n. 8 , p. 1 4 5 -5 1 ; id em , “Construindo mitos: a conquista do Oeste no Brasil e

riadores, org. Múcio Leão, Rio de Janeiro, ABL, 196 1 , p. 93-4. Originalmente pu­

nos EUA”, em Janaína Amado e Sidney Valadares Pimentel (orgs.), P assando d o s li­

blicado no Jo r n a l d o Brasil, 14/8/1927.

m ites, Goiânia, UFG, p. 5 1 -7 8 , especialmente p. 6 3 -7 . Entre os escritores que ti­

15. Assis Chateaubriand, “Capistrano de Abreu”, O Jo r n a l, 14/8/1927.

nham o interior do país com o tema e que ajudaram a consolidar a chamada “literatura

16. Gonçalo Jorge, “Capistrano de Abreu”, Jo r n a l d o Brasil, 15/8/1927.

sertaneja” estavam Jo sé de Alencar, Fagundes Varela, Bernardo de G uim arães,

17. Henrique Coelho Neto, “Redimido”, Jo r n a l d o Brasil, 21/8/1927.

Franklin Távora, visconde de Taunay, Coelho N eto, Artur Azevedo, Catulo da Pai­

18. Ver O G lo b o , 13/8/27, 15/8/27 e 18/8/27; Jo r n a l d o C o m m ercio , 14/8/27 e 16/8/

xão Cearense, Cornélio Pires e Valdomiro Silveira. Ver Regina Abreu, O en ig m a d e

2 7 ; G azeta d e N otícias, 14/8/27 e 16/8/27; Jo r n a l d o Brasil, 14/8/27,15/8/27, 16/8/

Os sertões, o p . cit., p. 169 e 171. Antonio Cândido compreendeu o fenôm eno do

27, 19/8/27, 21/8/27 e 26/8/27; A M anhã, 16/8/27; O Jo r n a l, 28/8/27.

“regíonalismo” literário como “uma das principais vias de autodefinição da consciên­

19. A 6a Sessão Ordinária foi realizada no dia 13 de setembro de 1927. Suas atas foram

cia local”. O interesse pelo interior teria produzido uma verdadeira “aluvião serta­

publicadas na Revista d o IH G B , Rio de Janeiro, t. 101, v. 155, 1928, p. 3 4 2 -5 6 . O

neja”, caracterizada pelo autor com o “artificial” e “pretensiosa”, responsável por

necrológio escrito por Pandiá Calógeras encontra-se entre as páginas 3 4 4 e 3 5 5 .

“um sentimento subalterno e de fácil condescendência em relação ao próprio país,

20. A 7 a Sessão Magna comemorativa ocorreu no dia 21 de outubro de 1927 e foi pre­

a pretexto de amor à terra”. Teria sido “um meio de encarar com olhos europeus as

sidida por Washington Luís, presidente da República e presidente honorário do

nossas realidades mais típicas”. Cf. Antonio Cândido, “ Literatura e cultura de 1 9 0 0

IHGB. As atas foram publicadas na Revista d o IH G B , Rio de Janeiro, t. 101, v. 155,

a 1945 (panorama estrangeiro)”, em Literatura e so cied a d e: estu dos d e teo ria e h is­

192 8 , p. 4 1 8 -4 6 9 . O necrológio escrito por Ramiz Galvão encontra-se entre as

tória literária, São Paulo, Companhia Editora Nacional/Edusp, 196 5 , p. 1 2 9 -6 5 . A

páginas 4 6 0 e 4 65.

proposta aqui é compreender o interesse pelo interior em fins do século X IX e iní-

3 2 4

3 2 5

CULTURA

POLlTICA

E LEITURAS

DO

REPRESENTAÇÕES

PASSADO

DO I N T E L E C T U A L

E

DA

NAÇ Ã O

de 18/8/1901, em Capistrano de Abreu, C o rresp o n d ên cia , org. e prefácio José

lidades mais típicas”, mas com o parte de um complexo processo de invenção de .£c.

-áSãlsb-

indígenas e africanas.

POVO,

33. Nota biobibliográfica anexada à carta de Capistrano de Abreu a Guilherme Studart,

cio do X X não como algo “artificial”, fruto de um olhar estrangeiro sobre as “rea­ tradições brasileiras, distintas das tradições européias (notadamente a portuguesa),

DO

H onório Rodrigues, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira M EC, 1977, v. 1, p. 152. 34. Ver críticas aõ IH G B no artigo Capistrano de Abreu “Uma grande idéia”, em E nsaios e estu dos: crítica e história, 4 a série, Rio de Janeiro/Brasília, Civilização Brasileira/

26. Essas duas vertentes interpretativas podem ser mais bem compreendidas quando considerados os marcos cronológicos do movimento modernista paulista de 1922 e

INL, 1976, p. 9 0 . Originalmente publicado na G azeta d e N otícias em 17/4/1880.

1924. A visão negativa em relação ao interior prevalece na chamada primeira fase

Ver referências à criação do Clube Taques, em homenagem ao genealogista Pedro

do movimento, enquanto uma visão mais positiva pode ser localizada, sobretudo,

Taques — “uma sociedade com umas vinte pessoas”, escolhidas a dedo, que contri­

após 1924. Ver Eduardo Jard im de M oraes, “M odernism o revisitado”, Estudos

buiriam com trabalho e dinheiro para a cópia e publicação de documentos — , na

H istóricos — D ossiê M odern ism o, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2 , 1 9 8 8 , p. 220-38.

carta de Capistrano de Abreu a Antônio Joaquim de Macedo Soares, [1883], em C orrespon dên cia, o p . cit., v. 3, p. 2.

27. Por exem plo, o grupo Verde-Amarelo — que expressou de m odo paradigmático os ideais do movimento m odernista em São Paulo — valorizava o regionalismo e

35. Ricardo Benzaquen de Araújo, “Ronda noturna: narrativa, crítica e verdade em

defendia o sertanejo com o elem ento portador da nacionalidade. O Brasil au tên ti­

Capistrano de Abreu”, E studos H istóricos — D ossiê C am in hos d a H istoriografia,

c o seria o Brasil do interior. Inspirados em Afonso C elso, os “verde-amarelos”

Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, 1988, p. 28-54.

definiam a brasilidade com o um estado de espírito prom ovido pela intuição do sentim ento nacional. Em ambos os casos, a noção remete a algo que é natural (es­ pontâneo), passível de ser captado pela sensibilidade e não pelo intelecto. Ver M ônica Pimenta Velloso, “A brasilidade verde-amarela: nacionalism o e regiona­ lismo paulista”, E stu dos H istó rico s —- D ossiê Os a n o s v in te, Rio de Janeiro, v. 6, n. 11, 1 9 9 3 , p. 8 9 -1 1 2 . 28. Sobre as representações do homem brasileiro no fim do século X IX e início do X X , ver, por exemplo, M árcia Regina Capelari Naxara, E stran geiro em sua própria ter­ ra: represen tações d o b rasileiro: 187011920, São Paulo, Annablume, 1998. Ver, tam­ bém, o texto de Carolina Vianna neste livro.

t

29. Mário de Alencar, “Sobre um livro de Capistrano”, Jo r n a l d o C om m ercio, 25/10/1907. 30. Coelho N eto, op. cit. 31. Regina Abreu utilizou a enquete da Veja como mote para o primeiro capítulo do livro O en igm a d e Os sertõ es, o p . cit., p. 19-20. Ver revista Veja, 23/11/1994. Ou­ tras obras que figuram na lista são: M em órias póstu m as d e B rás C u bas, de Machado de Assis, único autor com dois títulos lembrados; O te m p o e o ven to, de Érico Veríssimo; F ogo m o rto , de Jo sé Lins do Rego; F o rm a çã o d a literatu ra brasileira, de Antonio Cândido; Os d o n o s d o p o d er, de Raymundo Faoro; Triste fim d e Policarpo Q uaresm a, de Lima Barreto; O aten eu , de Raul Pompéia; Ira cem a , de José de Alencar; G abriela, cravo e can ela, de Jorge Amado. São lembradas, também, obras de Gregório de M attos, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. 32. No caso, o objetivo da autora era compreender porque a obra O s sertões, de Euclides da Cunha foi considerada por muitos e durante muito tem po, com o o livro “núme­ ro um” dos chamados clássicos do pensamento social brasileiro. Ver Regina Abreu, op. cit.

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3 2 7

Ascensão social, participação política e abolicionismo popular na segunda metade do século XIX Andrea Marzano*

‘ Professora da Universidade Cândido Mendes.

‘"li MH v

Um dos mais instigantes desafios lançados pelas novas definições do con­ ceito de cultura política é a possibilidade de investigação das atividades políticas cotidianas dos homens e mulheres considerados comuns, bem como de suas variadas estratégias para assumir, em circunstâncias propí­ cias, o papel de protagonistas políticos.’ Como afirma Daniel Cefai', tal perspectiva permite romper “o princípio da irracionalidade dos cidadãos ordinários, tachados de incapacidade cívica ou reduzidos a efeito das es­ truturas de classe”.2 Esse tipo de reflexão reforça, evidentemente, o alar­ gamento do conceito de participação política, estendendo sua definição às atitudes e comportamentos afastados, à primeira vista, do terreno da política. Este texto pretende analisar as estratégias do ator Francisco Corrêa Vasques (1839-92) para alcançar a posição de protagonista político, cir­ culando em rodas boémias e interferindo, em meio a intelectuais de reno­ me, nos mais vibrantes debates de sua época. A trajetória de Vasques será apresentada, portanto, como exemplo dos caminhos possíveis e das difi­ culdades enfrentadas por personagens históricos que, com talento, sacri­ fício e um pouco de sorte, negaram o silêncio e a subalternidade a que pareciam destinados, encontrando formas de expressar suas idéias e atuar politicamente. Nascido no Rio de Janeiro, Vasques foi um dos atores mais queridos do público fluminense na segunda metade do século XIX. A despeito de reconhecerem seu sucesso profissional, historiadores e biógrafos enfatizam sua origem modesta, a filiação bastarda, a mestiçagem e a pouca instru­ ção formal.3 3 7 5

CULTURA

POLÍTICA

E LEITURAS

DO

PASSADO

Antes de sua ligação com Francisco Pinheiro de Campos, pai de Vasques, Bernardina, sua mãe, foi casada com Martinho Corrêa Vasques. Martinho era um homem relativamente rico, e quando faleceu, em 1835, deixou um património de quatro casas, dez escravos, objetos de prata, ouro, jóias, rou­ pas, móveis e dívidas a serem recebidas pela viúva e seus cinco filhos.4 Quatro anos após a viuvez de sua mãe, Vasques nasceria como fruto de uma união ilegítima. Ao mesmo tempo, Bernardina enfrentaria difi­ culdades financeiras, presumíveis a partir dos registros de venda e hipote­ ca de alguns dos bens que herdara do marido.5 Tais dificuldades ajudam a entender o realce dado pelos biógrafos à infância modesta de nosso pro­ tagonista.6 O estigma de um nascim ento ilegítim o, o empobrecimento da família, a rejeição de alguns irmãos e a mestiçagem indicam que sua traje­

PARTICIPAÇÃO

POLÍTICA

Nacional, cujo objetivo declarado era incentivar a atividade de dramatur­ gos brasileiros. Vasques permaneceria no Ginásio até 1867. Sua contratação, tanto em 1858 quanto em 1860, foi parte de uma estratégia para superar a crise da companhia, decorrente do sucesso da empresa do ator Florindo no Tea­ tro São Januário e do impacto do cabaré-teatro Alcazar, fundado por Joseph Arnaud. Suas cenas cómicas, encenadas no Ginásio a partir do fi­ nal de década de 1850, fizeram parte da mudança para um repertório mais ao gosto d o pú blico do que as comédias realistas de moldes franceses. Através da representação e da dramaturgia, Vasques continuou a tri­ lhar o difícil caminho da ascensão social, que, não limitada aos aspectos financeiros, representava, acima de tudo, a conquista da visibilidade, a

tória, não fosse o sucesso alcançado nos palcos, talvez não o diferenciasse muito de boa parte de seus contemporâneos. No entanto... Martinho, irmão de Vasques, era cómico da companhia de João Cae­

difícil concretização do direito de se expressar publicamente e participar dos grandes debates.

tano no Teatro São Pedro. Vasques se acostumou a circular desde menino nos bastidores da companhia, na qual estrearia aos 15 anos, após atuar nos espetáculos da Barraca do Teles, montada no campo de Santana du­

e um único ato, com forte presença musical, improvisação, relação direta

rante os festejos do Divino.7 Em 1858, Vasques ingressou no Ginásio Dramático, onde funcionava a companhia de Joaquim Heliodoro, que trouxe da França os princípios e o repertório da reforma realista do teatro. Para os realistas, o teatro era uma espécie de tribuna na qual eram defendidos os projetos de sociedade dos dramaturgos, visando à reforma dos costumes das platéias. Os adeptos da reforma, como José de Alencar e o jovem Machado de Assis, viam com maus olhos os espetáculos acusados de compactuar com o gosto do público, considerado ignorante e indisciplinado. Além das baixas com édias, os melodramas e dramalhões do repertório romântico de João Caetano também eram alvo de suas críticas, por abusarem das emoções fortes e dos enredos mirabolantes. No início de 1859, após um curto período de atividades em Pernam­ buco, Vasques empregou-se no Teatro das Variedades, dirigido por Furta­ do Coelho. Em meados de 1860, Furtado Coelho se transferiu para o Ginásio e fundou, com Vasques e outros atores, a Sociedade Dramática 3 7 6

Suas cenas cómicas eram, em geral, monólogos de linguagem simples com o público e valorização da expressão corporal.8 Vasques tendeu a negar, nessas cenas, o interesse pela política, mesmo que tal questão fosse crucial em algumas delas. Dona Rosa, personagem de uma cena cómica que tematiza o interesse e a curiosidade pública em torno do Alcazar, demonstra total ignorância em relação a assuntos políticos. Após descrever vivamente, inclusive com imitações, as atrações e os frequentadores do cabaré-teatro, afirma: Há dias ia eu pela rua do Cano fazer as minhas compras ao mercado e topo com um criançola, com o seu competente charuto de palmo e meio, e o malcriado encostou-se à parede para que eu passasse pelo meio da rua. Não pude deixar de dizer: — O menino não sabe o que é política? — Sei, minha velha — respondeu-me o desavergonhado. — E tanto sei que per­ tenço à Liga. — A Liga? — disse eu assustada, pensando que me tinha caído alguma das pernas. — Sim, à Liga, ao Partido Progressista; Viva a Constituição do Império — diz ele a correr, gritando-me de longe: — Oh, barata, larga os óculos.4

3 7 7

____________________________ ________ P A R T I C I P A Ç Ã O C U LTU R A

P O -L-j-TT-C-A— 6

P Q L l T I C- Ã------------------------------------------ ------------------

L E I TV * A S - D O P A S S A O O

Algumas vezes o desinteresse pela política é relacionado, de forma cómi­ ca, à descrença em relação aos políticos. Em Um bilhete! Um bilhete!, o personagem, entrando no teatro depois de muito esforço para conseguir

Vem por aí o francês Com algumas invenções, E me leva d’algibeira Boa soma de tostões.

um ingresso, afirma: Invejei hoje pela primeira vez o lugar de acendedor dos bicos da rampa, o que é de grande vantagem para estas ocasiões!... Ora, na época atual em que há tantos objetos feitos de borracha — casacos, sapatos, pratos, cons­ ciência, política etc. —, não se lembraram ainda de fazer de borracha uma coisa que em certas noites vê-se mesmo que não podia ser de outra manei­ ra. Os teatros.10

Vem por aí a inglesa, Essa peste, essa inimiga, Dizer-me: vem cá, Brasil, Eu stá muita tua amiga [sícj. A cena cómica A questão anglo-brasileira com en tada pelo senhor J o a ­ quim da C osta Brasil é uma adaptação da citada anteriormente. Queixando-se do mau comportamento dos criados e das frequentes bebedeiras

Em O senhor Joaqu im da C osta Brasil, que trata das relações entre o Bra­

da velha inglesa, que além de tudo está sempre insistindo em receber

sil, a Inglaterra e a França, e portanto de política internacional, o per­

dinheiro, o senhor Brasil refere-se a uma sucessão de acontecimentos

sonagem afirma categórico para o público: “Conversemos... mas sobre que

verídicos que então mobilizavam a imprensa e parte da população da

diabos havemos de palrar?... Sobre política? Nada, não me cheira, faz

corte: a Questão Christie, desencadeada em 1862 pelo naufrágio e pi­

sono.”11 Apesar da aparente rejeição à política, Vasques prossegue comen­

lhagem de um navio de carga inglês no Rio Grande do Sul e pela prisão

tando o processo de restauração da moeda colonial, em que a Inglaterra ocupava o papel de nova metrópole sobretudo através do controle da ati­ vidade exportadora.12 Apresentando seus inconvenientes e exploradores vizinhos — uma inglesa velha, feia, egoísta e com mania de casar e um francês alfaiate, sapateiro, pintor, maquinista, fogueteiro, bombeiro e lampista — , o senhor Brasil, filho de Portugal, constrói uma imagem al­ ternativa da Inglaterra e da França, geralmente associadas, naquele con­ texto, à civilização e ao progresso. M ostrando comicamente que os investimentos europeus nem sempre se concretizavam em melhorias para os habitantes da corte, e indicando ter consciência dos ganhos ingleses e franceses com a venda de produtos industrializados, o controle das ativi­

de dois oficiais britânicos no Rio de Janeiro, que estariam bêbados e provocando desordens nas ruas.13 Em O Brasil e o Paraguai, mais uma vez o personagem único é o se­ nhor Brasil, que, afirmando ser constantemente roubado por seus hóspe­ des, refere-se aos problemas político-militares da bacia Platina, incluindo alusões, através de trocadilhos, aos conflitos entre blancos e colorados no Uruguai, ao ditador argentino Manuel Rosas, às frequentes violações das fronteiras brasileiras e à aliança entre o Uruguai, a Argentina e o Brasil no combate às pretensões expansionistas do ditador paraguaio Solano López.1 Escrita e encenada no início da Guerra do Paraguai, a peça, dedicada aos Voluntários da Pátria em sua versão impressa, incentivava o alistamento

dades exportadoras brasileiras e os empréstimos, o personagem acaba

como prova de patriotismo. Nas três cenas cómicas em que se faz presente, o senhor Brasil mencio­

apresentando, em música, as ações desses países como ameaças à sobera­

na, através de trocadilhos, diversas províncias do Império e suas caracte-

nia e à economia nacional.

rísticas geográficas.15 Tais referências remetem ao esforço da elite dirigente para unificar um Império dividido entre cidadãos e não-cidadãos, cida3 7 9

CULTURA

POLÍTICA

E LEITURAS

DO

PASSADO

dãos ativos e não-ativos, a partir da imagem de um território indivisível e governado de forma centralizada. Entendido como um e único, o Impé­ rio, sob a direção de uma elite ilustrada, deveria conter a nação brasileira — a associação de todos os brasileiros — , apesar de sua frágil coesão, re­ sultante da manutenção do escravismo e da heterogeneidade da popula­ ção composta por brancos, mestiços, negros livres, escravos e índios. Se a nação não se apresentava como um corpo coeso, o território do Império ocupava o seu lugar, transformando-se sua indivisibilidade em um dogma político.16Ao mesmo tempo que nomes de províncias distantes eram citados em peças teatrais escritas na corte, as escolas públicas de instrução primária, que sofreram na época forte regulamentação estatal, difundiam os conhecimentos geográficos, fazendo com que um número crescente de cidadãos em formação tomassem pela nação o território em sua integri­ dade, indivisibilidade e ausência de comoções.17 A leitura atenta dessas cenas cómicas permite perceber que Vasques contribuiu, apesar da postura modesta, da comicidade e da negação da política, para a consolidação do Império e da elite senhorial, fortalecen­ do, nos palcos, o projeto político conservador/saquarema.18 Além de abor­ darem a relação do Brasil com outros países, tendo como pano de fundo a defesa da soberania nacional, as cenas apresentam o mesmo persona­ gem, de pais portugueses. O senhor Costa Brasil já podia, na década de 1860, apresentar-se como filho de Portugal sem maiores conflitos, daí resultando o nome metafórico de Joaquim. A questão nativista, que no final das primeiras décadas do século X IX caracterizava a metrópole por­ tuguesa como entrave a ser superado, vinha sendo substituída pelo pro­ blema da recunhagem da moeda colonial, que posicionava a Inglaterra como nova metrópole — com sua intervenção nos rumos do tráfico ne­ greiro intercontinental e na questão da mão-de-obra— , e portanto como alvo das críticas e debates.19 Em 1867, Vasques foi despedido do Teatro Ginásio. Após trabalhar por um breve período no Teatro São Pedro e depois em São Paulo, retornou à corte e fundou uma associação dramática, que estreou em março de 1868 no Teatro Provisório. Em maio do mesmo ano, a companhia instalou-se no Teatro Jardim de Flora, na rua da Ajuda, ganhando o nome de Fénix 3 8 0

PARTICIPAÇÃO

POLÍTICA

Dramática.20 Esse teatro, instalado no jardim do Hotel Brisson, foi um dos mais populares do Rio de Janeiro, especializado na encenação de operetas e cançonetas em português.21 Na Fénix Dramática foi encenado, a partir de novembro de 1868, Orfeu na roça, de autoria do próprio Vasques, que se tornou um dos maiores êxitos de bilheteria do século X IX , com mais de quatrocentas re­ presentações seguidas em duas sessões diárias, à tarde e à noite. O rfeu na roça era uma paródia da ópera-cômica Orfeu nos infernos, de Offenbach, que estava em cena no Alcazar e já atingira a incrível marca de 4 5 0 repre­ sentações. Pelo extraordinário sucesso que alcançou junto ao público, O rfeu na roça é um marco da ascensão dos gêneros ligeiros nos palcos fluminenses. Operetas, mágicas, burletas, vaudevilles, óperas-cômicas, cenas cómicas e revistas de ano ganharam, a partir dos anos 1860, cada vez mais espaço nas preferências das platéias e nas crónicas desiludidas da crítica ilustra­ da, que lamentava a afirmação de um tipo de espetáculo que, em vez de modificar os costumes do público, favorecendo a civilização da cidade e do Império, se voltava para o entretenimento. A contribuição de Vasques para a ascensão dos gêneros ligeiros não se limitaria à composição e à encenação de Orfeu na roça. Até o fim da vida, o artista faria grande sucesso em muitos personagens de peças ligeiras, com especial destaque para as revistas de ano. Entretanto, já na maturidade, Vasques encontraria outros espaços para defender suas idéias e projetos, sem nunca abandonar a profissão de ator. Para tanto, a identidade cons­ truída nos palcos seria seu primeiro e mais importante capital. Entre 1883 e 1884, Vasques foi responsável pela coluna “Scenas cómicas” da G azeta da Tarde, jornal abolicionista cujo redator-chefe era seu amigo José do Patrocínio. Já no segundo folhetim, o autor evidenciou o projeto de defesa do teatro brasileiro através da negação de que fosse um cronista, da afirmação de sua imagem de ator e da confissão de que contaria com a ajuda dos colegas de palco na confecção dos textos.22 O fato de Vasques negar ser um cronista, reforçando sua identida­ de de homem de teatro, parece uma defesa prévia contra os possíveis ataques de intelectuais ciosos da demarcação do seu território. Afinal, 3 8 1

C U LTU-KA-. P Q L l U C A

£.. L £ L I M A i . a O - P A S S A D O

PA R T I C I PA Ç Ã O - P O l l n

CA.

já na década de 1860 foi comum a depreciação de artistas que, como Vasques, embora não tivessem formação erudita e não fossem intelec­ tuais, se tornaram autores de peças teatrais de grande sucesso junto ao

As referências ao movimento popular abolicionista permitem relativizar a ênfase atribuída, sobretudo nos livros didáticos e bancos escolares, ao

público, sendo por isso apelidados pejorativamente de “carpinteiros teatrais”.23

escravidão no Brasil. Nesse sentido, a análise da trajetória de Vasques

Como fazia em seus textos teatrais, Vasques nega ter objetivos políti­ cos na atividade de cronista, embora comece a falar de política logo em

nistas não necessariamente parlamentares,27 que se somam, no esforço de

seguida. A respeito da inquietação de amigos diante da sua aparição na imprensa, esclarece: Não se assustem, portanto, os meus camaradas, eu de política nem o chei­ ro, primeiro porque nunca pude entender desta geringonça, e segundo, porque pertenço a um único partido — o público que frequenta os teatros — é a ele que devo tudo, é pois a ele que me entrego de corpo e alma.24 Através da negação, Vasques reconhece na crónica um espaço propício para a discussão de temas políticos. Por outro lado, marca sua diferença em relação aos demais cronistas, geralmente dotados de uma instrução mais refinada, mesmo que autodidata, e de ambições literárias e políti­ cas. Apresentando-se como um modesto homem dos palcos, Vasques garante um espaço para expressar suas idéias e se protege de possíveis críticas dos cronistas literatos ciosos de sua pretensa função social e dig­ nidade. Além de dedicar várias crónicas à campanha abolicionista, Vasques encontrou outras maneiras de contribuir para a causa. Aproveitando-se de sua popularidade, parava em lugares movimentados e iniciava peque­ nos discursos, com certo tem pero cómico, em favor da Abolição. Vasques também participou de espetáculos teatrais voltados para a propaganda abolicionista, como a matiné em benefício da compra de cartas de alforria

abolicionismo de cunho parlamentar e às pressões externas pelo fim da corrobora os vários estudos dedicados à propaganda e às ações abolicio­ visualizar a política em lugares e ações inesperados, aos trabalhos que se debruçam sobre a atuação dos próprios cativos para, através de ações cotidianas, encontrar brechas de liberdade, minando lentamente as bases de sustentação da escravidão.28 Após participar da campanha abolicionista, Vasques voltaria a dar sinais de sua atuação política em 30 de abril e I o de maio de 1892, quando publicou na imprensa cartas a Floriano Peixoto pedindo anistia para os desterrados de Cucuí. Floriano Peixoto fora eleito vice-presidente em 1891 ao lado de Deodoro da Fonseca, que concorrera à presidência em outra chapa. O governo Deodoro, marcado pela dura repressão às opo­ sições e pelo fechamento do Congresso, foi interrompido pela renúncia do presidente no final desse mesmo ano, quando o cargo foi assumido pelo vice. A posse foi questionada em um manifesto enviado a Floriano em abril de 1892. Liderados pelo contra-almirante Custódio de Mello, os signatá­ rios do documento alegavam que, de acordo com as disposições transitórias da Constituição, deveriam ser realizadas novas eleições para a presidên­ cia, já que Deodoro deixara o cargo antes de completar dois anos em exer­ cício. Como resultado da manifestação, foi decretado estado de sítio por 72 horas, seguindo-se a prisão de inúmeros civis e militares.29 Alguns dos prisioneiros políticos, entre eles Olavo Bilac, foram distribuídos em dife­ rentes fortalezas na capital da República. Outros, como José do Patrocí­

para duas escravas realizada no Polytheama Fluminense em janeiro de

nio, foram deportados para o Amazonas, em Tabatinga e Cucuí, o mais

1884.25 Espetáculos teatrais abolicionistas foram comuns na década de

avançado posto militar do país. Naquele conflituoso governo de Floriano Peixoto, foi com muita co­

1880, substituindo as conferências promovidas nos teatros pela Associa­ ção Central Emancipadora ao longo dos anos 1870 e atraindo um públi­ co bem mais diversificado.26 3 8 2

ragem que Vasques se apresentou ao presidente da República:

3 8 3

CULTURA

POLÍTICA

E

LEITURAS

DO

PASSADO

Chamo-me Francisco Corrêa Vasques; tenho 53 anos de idade; sou viúvo e moro à rua Evaristo da Veiga, n° 31. Não tenho política. Sou monarquista da gema, porém não conspiro contra as instituições nem o governo. Nunca votei; nem hoje, nem no tempo do Império. O juiz que devera dar-me o título de eleitor recusou-se a fazê-lo, dizendo que não me co­ nhecia. Isto contrariou-me um pouco porque eu queria votar no meu empresário, a ver se apanhava aumento de ordenado. Sou ator desde 1856. Dizem que faço rir na comédia, chorar no dra­ ma e que finjo de tenor nas operetas. Tenho escrito alguns trabalhos para o teatro e já fui folhetinista da Gazeta da Tarde. Fiz conferências sobre a escravidão e em quase todas as matinés que se realizaram nessa época eu recitei versos de pé quebrado, porém da minha lavra.30 O fato de Vasques ter se apresentado, mais uma vez, como um ator sem interesse pela política reforça a hipótese de que essa era uma estratégia que permitia a conquista de espaços de expressão nos grandes debates — políticos — nacionais. Mesmo que seus interesses imediatos fossem de­ fender um amigo e alimentar a própria notoriedade, Vasques optou por trilhar o caminho da participação política. Uma escolha arriscada, já que poderia lhe render desafetos e mesmo perseguições. Após a breve apresentação de si mesmo, Vasques critica a dura repres­ são sobre os supostos conspiradores, alegando que eles eram apenas re­ publicanos. Afirmando que a Proclamação da República também fora resultado de uma conspiração, o ator acaba por lembrar que ela poderia ter sido derrotada pelas forças imperiais. Entretanto, a imagem que cons­ trói do período imperial, através de trocadilhos muito característicos de seus textos teatrais, é bem menos violenta do que a situação por ele des­ crita naqueles tempos republicanos. Imagine, agora, V. Ex. o que seria se a conspiração de 14 de novembro de 1889 tivesse falhado. Onde estariam todos aqueles que concorreram para a queda do império? Banidos, desterrados ou...? Não! A grande alma do império brasileiro não guardava ódios nem vinganças: o perdão não se 3 8 4

PARTICIPAÇÃO

POLÍTICA

fazia esperar! Aquele que morreu fora de sua querida pátria, mirrado de saudades, amava por demais o Brasil e os brasileiros, para que a bandeira da paz — alva como a sua longa barba — não se estendesse sobre todos os culpados. Isto não é habeas corpus, nem pedido de anistia. Quem escreve estas linhas a V Ex. é um monarquista da gema, e deve até parecer original vir ele em defesa de republicanos. [...] Monarquista da gema! Deve ter parecido a V. Ex. esta frase um tanto chula, imprópria talvez, do assunto da minha carta. Engano, perfeito en­ gano! O que era o Império do Brasil? Um grande ovo, que, por obra e graça da Santa Cruz, tinha recebido o privilégio de nunca ficar choco. O choque, porém, que ele recebeu no dia 15 de novembro, por aque­ les que desejavam viver às claras, deu em resultado o estratagema e só fica a clara. Ora, aí está por que eu continuo a dizer a V. Ex. que sou monar­ quista da gema, e assim hei de continuar a gemer e a chorar neste vale de lágrimas. Os dias sucedem-se mas não se parecem.31 É digno de nota que Vasques afirme não estar pedindo h ab ea s corpu s para os desterrados de Cucuí. Esse pedido fora feito, pouco antes, por Rui Barbosa, sendo negado pelo Supremo Tribunal Federal. Publicada seis dias após a votação do pedido de habeas corpus no Supremo, a car­ ta de Vasques a Floriano talvez tivesse o sentido de divulgar o problema para os leitores menos interessados nos assuntos políticos e jurídicos, além de representar outra forma de pressão sobre o governo. Apresen­ tando-se como humilde artista saudoso da monarquia e avesso à políti­ ca, Vasques sublinhava os contrastes que o distinguiam, por exem plo, de Rui Barbosa, então senador da República e inimigo político de Floriano Peixoto. Em tom saudosista, o artista estabelece uma comparação entre o Im­ pério e a República, associando ao primeiro a alegria da Abolição e, à se­ gunda, a tristeza da repressão às oposições.

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Ontem, o dia 13 de maio de 1888 coberto de flores, festas, músicas, dan­ ças, por toda a parte. O povo, em toda a plenitude da sua satisfação! [...] Amanhã, o que será o 13 de maio de 1892? [...] A tristeza substituirá a alegria [...] a música só fará ouvir um lamento, um gemido, que será repetido em coro pelas crianças em nome da pátria saudosa dos seus filhos. [...] é necessário que estejamos todos reunidos no mesmo ponto para saudarmos o nascer do sol do dia 13 de maio! [...] Os desterrados fize­ ram parte desta legião heroica que levou o terror até ao fundo da última senzala. A Abolição não foi só a remissão dos cativos, foi mais alguma cousa, a princesa o pressentiu, e quando José do Patrocínio, o chefe de todos na grande batalha, se ajoelhou aos pés para agradecer-lhe em nome de uma raça oprimida, viu perfeitamente sobre a cabeça imperial o bar­ rete frígio: ela era no momento não Isabel a Redentora, porém sim Isa­ bel a Republicana.

No dia 7 de maio de 1892, Vasques repetiu a reivindicação de anistia em outra carta a Floriano Peixoto.33 Mais uma vez, suavizou as críticas com trocadilhos e outros recursos cómicos, chegando a comentar que foi criticado por se dirigir de forma irónica ao presidente da República. Se o uso de trocadilhos não escondia a firmeza de seus objetivos, certamente fazia com que suas declarações parecessem menos subversivas para as autoridades republicanas. Lembrando a imagem de frieza associada ao presidente e apostando que a vaidade o levaria a querer revertê-la, Vasques afirma que ninguém poderia ver o sofrimento das vítimas da repressão sem se comover.

Vamos, general, não deixe que a República devore os seus próprios filhos.32 Neste último trecho, Vasques sugere que os mais íntimos anseios republi­ canos foram concretizados, contraditoriamente, no período imperial. Suas afirmações remetem ao isabelismo, que reivindicava, nos momentos fi­

bora republicano de longa data, prestou homenagens à princesa Isabel e passou a apoiá-la após a assinatura da Lei Áurea, abandonando a causa da República até a Proclamação, da qual não participou.33

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um ato de bondade pessoal. Um de seus adeptos foi Patrocínio, que, em­



nais do Império, a defesa da princesa regente por associar a Abolição a

Dizem que V. Ex. é um homem frio, calmo, indiferente e que nesta causa marcha direito na estrada real da justiça sem sentir a mais leve emo­ ção. Não o creio. O soldado brasileiro que se bateu heroicamente, nos campos de batalha em defesa de sua mãe Pátria, não pode a sangue frio associar-se ao espetáculo doloroso, que já começou, do aniquilamento dos nossos irmãos. São brasileiros, são republicanos que sofrem, víti­ mas talvez de ódios e vinganças. A política é talvez o que exige de nós esta energia fatal, esta vontade de ferro,36 esta firmeza de rochedo; pois bem, é nisso que quero bater: água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Eu preferi falar-lhe graciosamente, com meiguice e na altura a que a sua educação e o seu caráter têm direito de exigir de todo cidadão. Seria este caminho errado? Não creio, e V. Ex. se leu a minha carta concordará de certo comigo.37

bases de sustentação das medidas repressivas do governo Floriano. No

Como costumava fazer ao justificar sua atuação nos palcos e na imprensa, Vasques recorre ao público para reforçar suas reivindicações e sua forma

discurso governista, a defesa dos verdadeiros ideais da República, amea­

de expressão.

As palavras de Vasques também confrontam, com sutileza, uma das

çados pela presença de interesses oligárquicos nas hostes republicanas, justificaria, em uma perspectiva salvacionista, a ultrapassagem dos limites legais e institucionais pelo chefe de governo. Em oposição a esse discurso legitimista, os legalistas, tendo à frente Rui Barbosa, defendiam a manu­ tenção da ordem constitucional e o federalismo.34 3 8 6

Dessa opinião é o público, que esgotou a edição da Cidade do Rio da tarde de 30 de abril e a do Jornal do Brasil de I o de maio. Modéstia à parte, eu não esperava tanto. Porém, qual seria o motivo de semelhante procura? O meu nome? Pouco vale. O mérito literário da carta? Nem pensar em tal. 3 8 7

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Foi porque o povo viu que eu falando com toda a cortesia, embora em tom humorístico, lhe dizia verdades. E porque o povo sentia como eu a saudade daqueles, que devendo estar reunidos conosco no mesmo ponto para saudarmos a aurora do dia 13, sofrem longe da família e de seus amigos a pena de desterro! É finalmente porque o povo, conhecendo a história do lugar deste desterro, já os considera perdidos. O povo sente que essa caravana do ta­ lento está condenada à pena última.38 Reconhecendo modestamente que as tiragens dos jornais não se esgota­ ram pelo mérito literário do seu texto, Vasques protege-se, uma vez mais, de possíveis críticas à interferência de um simples homem de teatro em assuntos que, além de sérios, envolviam duras críticas à política republi­ cana e eram, naquele contexto, passíveis de repressão. Por isso mesmo, Vasques não hesita em recorrer ao universo teatral para descrever a situa­ ção dos desterrados de Cucuí, comparados, na injustiça que sofriam, a Desdêmona, personagem de Shakespeare assassinada por Otelo em con­ sequência das intrigas do malévolo lago. Recorrendo a uma imagem religiosa que, associada à imperatriz Tere­ sa Cristina, valoriza a suposta bondade da família imperial, Vasques re­ força a idéia de que o governo republicano se caracterizava pela injustiça e insensibilidade. Oh! Foi ela [a República] que matou a 15 de novembro de 1889 uma pobre velha que, debulhada em lágrimas, pedia que a deixassem ficar, porque, vergada pela idade e pela moléstia, ia com certeza morrer sob o azorrague do inverno da Europa, saindo precipitadamente do Rio de Janeiro em pleno verão. [...] Santa e virtuosa senhora, advoga lá de cima a minha causa. Desterrada no céu pede a Deus por teus filhos, os desterrados da terra! Salve! Rainha, Mãe de Misericórdia!3* Antes de terminar a carta a Floriano Peixoto, Vasques reproduz um dis­ curso por ele proferido no dia 3 de maio de 1891, na inauguração de uma estátua em homenagem ao ator João Caetano, em que se dirigiu ao presi­ dente Deodoro da Fonseca, presente na cerimónia.

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Entre João Caetano dos Santos e Manoel Deodoro da Fonseca existem grandes pontos de contato, ambos filhos do povo, ambos militares, com­ bateram pela defesa da pátria, ofereceram-lhe o seu sangue e a sua vida no campo de batalha. Como ator João Caetano representou toda a sua vida diante de um povo que o aclamou rei da cena, e vós, representando o dra­ ma que tem por título 15 de novembro de 1889, fostes aclamado por este mesmo povo presidente da República. Pois bem, rasgai o véu da estátua e já que sois o farol que iluminou todo o caminho para reconstrução da pátria, emprestai-me um pouco dessa luz para reconstruir o teatro brasileiro. Nesse dia João Caetano vos abençoará do fundo da sepultura, e Francisco Corrêa Vasques bradará na praça pública: viva o primeiro presidente da Repúbli­ ca dos Estados Unidos do Brasil!40 Apontando semelhanças entre Deodoro da Fonseca e o ator João Caeta­ no, que era filho de um capitão de ordenanças e lutara na Guerra Cisplatina nos anos 1820, Vasques aproveita para solicitar apoio do governo para a atividade teatral. Tal pedido, corriqueiro ao longo do século X IX , ajuda a minimizar as diferenças entre o Império e a República, além de abrir a possibilidade de conciliação com o novo regime. A afirmação de que Deodoro fora aclamado pelo povo também deve ser problematizada. Camuflando a realidade de que a Proclamação da República fora um gol­ pe militar sem mobilização das massas, e omitindo que Deodoro fora eleito em pleito indireto marcado por rumores de intervenção militar para ga­ rantir sua vitória, Vasques encontra uma maneira de suavizar suas críticas ao novo regime. Ainda tentando conquistar a simpatia e afastar as desconfianças do governo, Vasques refere-se novamente, de forma elogiosa, a Floriano Pei­ xoto, reconhecendo inclusive a legitimidade de sua posse, que fora ques­ tionada pelos desterrados. A escada da legalidade lhe conduziu ao poder. O seu proceder correto de soldado como tem sido até hoje deve ter sentido o enorme peso da pena imposta aos desterrados que, se cometeram um desvario, não são por cer­ to réus de alta traição! Eles estremecem o nosso Brasil como verdadeiros patriotas.

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C U L T U R A

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O dia 13 de maio de 1888 foi o alicerce do edifício que hoje se chama República e os operários dessa obra, aqueles que mais trabalharam para isto estão privados longe do coração da pátria, de sentir o seu pulsar entu­ siástico neste grande dia! Vamos, general, ainda uma vez, um pouco de boa vontade e tudo se fará. O dia 13 de maio é a confraternização de todos os brasileiros; V Ex. não quererá que, no meio das festas que se preparam para este dia, se ouça um coro de lamentações! [...] A sentinela avançada que se colocou como V Ex. às portas do Tesouro Nacional, gritando alerta para que os salteadores sejam recebi­ dos à baioneta calada, deve igualmente ser o bom guarda dos desterrados para bradar à morte que já se avizinha — Passe ao largo! São meus irmãos! Vinde! Liberdade! Igualdade! Fraternidade!41 Nessa carta, o autor utiliza uma estratégia um pouco diferente da adotada na anterior. Não mais ressaltando o papel da família imperial na Aboli­ ção, Vasques apresenta o 13 de maio como alicerce da República, o que acaba provocando uma quase naturalização da mudança de regime. Nes­ se sentido, não é por mero acaso que Vasques escolhe a proximidade da­ quela data para a reivindicação da liberdade dos prisioneiros políticos da República. A referência ao lema da Revolução Francesa, por sua vez, de­ monstra sutilmente a opinião de que os princípios republicanos estavam sendo traídos pelo governo. Nota-se também, no trecho citado, a referência à política financeira do governo Floriano, que combateu a especulação desenfreada iniciada com a febre de emissões de papel-moeda no período em que Rui Barbosa ocupou o Ministério da Fazenda. A suspensão da emissão de moeda pelos bancos, a decretação de auxílios pecuniários à indústria, o combate à corrupção, o tabelamento de preços, o incentivo à imprensa, o reordenamento do sistema bancário e a recusa da intromissão dos credores in­ ternacionais na política interna lhe teriam garantido apoio significativo de parte das camadas médias do Rio de Janeiro.42 Apoio que Vasques tende a reforçar em sua argumentação favorável à anistia para os presos políticos de Cucuí.

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P A R T I CI PA ÇÃ O

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A sutileza de Vasques, expressa na lembrança de aspectos positivos do governo Floriano, não o impede de reafirmar sua predileção pela monar­ quia. Entretanto, ao fim da carta, através da idéia de que todos eram bra­ sileiros o artista aponta a anistia como um caminho para a conciliação entre monarquistas, republicanos oposicionistas e o governo da Repúbli­ ca. Em troca desse gesto apresentado como generoso, ele próprio, mo­ narquista e amigo de Patrocínio, prestaria fidelidade à bandeira da República. Até mesmo a alma do “grande brasileiro” D. Pedro II, falecido meses antes em Paris, abençoaria a conciliação, anunciando um novo tempo para a vida política brasileira.43 As cartas a Floriano, escritas e publicadas no final da vida de Vasques, talvez representem o ápice de sua participação política e ascensão social, que, como vimos, não deve ser entendida apenas em termos financeiros. Declarando-se avesso a temas políticos nos palcos e na imprensa, fazendo uso de trocadilhos e reforçando sua identidade de artista cómico, o ator criou para si uma imagem inofensiva e quase ingénua, estratégica para sua inserção em sérios debates que agitavam intelectuais e políticos ao longo de toda a segunda metade do século X IX . Em suas reivindicações na imprensa, marcadas pelo recurso aos senti­ mentos humanitários, pela valorização da amizade e até por representa­ ções de cunho religioso, Vasques apropriou-se da imagem negativa dos “carpinteiros teatrais”, construída décadas atrás para afastá-los dos gran­ des debates que agitavam os políticos e a intelectualidade, conseguindo, inversamente, garantir-lhes, como seu representante, um espaço de ex­ pressão. Ao mesmo tempo, como fizera na campanha abolicionista das ruas, Vasques buscou uma forma de ser entendido nas páginas dos jornais e de conquistar o apoio da gente com um da cidade. O acompanhamento de sua trajetória demonstra a necessidade e a urgência do alargamento do que se define como participação política. Por outro lado, permite visualizar a possibilidade de diferentes estratégias adotadas por aqueles que lutaram para assumir o papel de protagonistas políticos, em uma sociedade na qual a maioria da população parecia des­ tinada ao silêncio e à subalternidade.

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13. A Questão Christie, motivada por incidentes aparentemente irrelevantes, teria com o

Notas

pano de fundo a interferência inglesa nos rumos da escravidão no Brasil. 1. Entendo que os homens e mulheres considerados comuns formam um grupo amplo e heterogéneo, com graus muito diversos de participação política e visibilidade so­ cial. Compartilham, no entanto, o relativo afastamento dos mecanismos institucionais de participação política e as acusações frequentes de conformismo e alienação. Muitas

14. Francisco Corrêa Vasques, O Brasil e o Paraguai, Rio de Janeiro, Tipografia Popular de Azeredo Leite, 1865. 1 5 . 0 senhor Joaquim da Costa Brasil (1 8 6 0 ), A questão anglo-brasileira com entada pelo

senhor Joaquim da Costa Brasil (18 6 3 ) e O Brasil e o Paraguai (1865).

vezes, são encarados com o massa de m anobra para a concretização dos objetivos

16. Mattos, op. cit., p. 81.

dos setores dominantes da sociedade.

17. Ibidem , p. 2 5 0 .

2. Apud Eliana de Freitas D utra, “H istória e culturas políticas: definições, usos e genealogias”, Varia H istoria, n. 2 8 , dez. 2 0 0 2 , p. 20. 3. Ver, entre outros, Procópio Ferreira, O a tor Vasques: o hom em e a obra, São Pau­

18. A filiação conservadora de Vasques seria publicamente confirmada, mais tarde, em duas de suas crónicas, nas quais faria referências elogiosas ao visconde do Rio Bran­ co. Gazeta da Tarde, 8/11/1883; G azeta da Tarde, 6/3/1884.

lo, Oficina de Jo sé M arques, 1 9 3 9 ; Lothar Hessel e Georges Raeders, “Correia

19. Mattos, op. cit., p. 143.

Vasques”, em O teatro no Brasil so b D. Pedro II, Porto Alegre, Ed. U FG RS, 1986,

20. Algumas informações sobre essa companhia foram retiradas de José Galante de Sousa,

v. II, p. 96-9. 4. Arquivo N acional, Inventários, Provedoria, fundo 3 J, seção de guarda SD J, número

Nacional do Livro, 196 0 , p. 206. Procópio Ferreira, no entanto, apresenta dados

8 .9 9 2 , maço 4 7 0 , ano 1835.

O teatro no Brasil, Rio de Janeiro, M inistério da Educação e Cultura, Instituto dferentes. Vasques a teria fundado em 1868, já no Teatro Jardim de Flora, sob a

5. Arquivo Nacional, O fício de N otas, livro 2 4 8 , ofício 1, folha 5 0 , 28/5/1841, seção

denominação de Fénix Dramática. Ver Ferreira, op. cit., p. 103-4.

de filmes, rolo n° 0 3 1 .1 7 -7 9 ; livro 2 4 9 , ofício 1, folha 175, 18/6/1842, seção de

21. Brasil Gerson, História das ruas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Lacerda, 2 0 0 0 , p. 96.

filmes, rolo n° 0 3 1 .1 7 -7 9 ; livro 2 3 2 , ofício 3, folha 1 13v, 10/7/1860, seção de fil­

22. Gazeta da Tarde, 25/10/1883.

mes, rolo n° 0 1 0 .2 1 -7 9 .

23. S:bre os carpinteiros teatrais, ver Silvia Cristina Souza, As noites do Ginásio: teatro e

6 . O fato de não termos encontrado inventário de Bernardina sugere que seu património

tinsões culturais na Corte (1832-1868), Campinas, Ed. Unicamp, 2 0 0 2 , p. 2 2 5 -3 4 .

tenha se dissipado ao longo da vida. Também não encontram os inventário de Fran­

24. Gazeta da Tarde, 25/10/1883.

cisco Corrêa Vasques. Seria interessante analisar outros motivos que levaram os

25. Ver G azeta da Tarde, 17, 24, 25, 2 6 , 28 e 31/1/1884.

biógrafos a realçar a origem modesta de Vasques. N o caso da biografia escrita por Procópio Ferreira, já citada, essa talvez tenha sido uma maneira de reforçar a relação entre o teatro de Vasques e o universo popular. Relação que o biógrafo, também artista, pretendia aprofundar nos palcos e bastidores. 7. Sobre a festa do Divino, ver M artha Abreu, O im pério d o Divino: festas religiosas e

cultura popular no Rio de Janeiro (1830-1900), Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999.

8 . Várias dessas cenas cómicas foram publicadas em folhetos baratos atualmente dis­ poníveis na Biblioteca Nacional. 9. Francisco Corrêa Vasques, Dona Rosa assistindo no Alcazar a um espectacle extraordinaire

avec mlle. Risette, Rio de Janeiro, Tipografia Popular de Azeredo Leite, 1863, p. 9. 10. Idem, Um bilhete! Um bilhete!, Rio de Janeiro, Tipografia Popular de Azeredo Lei­ te, 1862, p. 7. 11. Idem , O senhor Joaqu im da Costa Brasil, Rio de Janeiro, Tipografia de J. J. da Ro­

26. Em palestra realizada na Casa de Rui Barbosa em 18 de maio de 2 0 0 5 , Eduardo Swa abordou a participação dos artistas de teatro no que denominou m ovim ento

P-pular abolicionista. A boémia artística e intelectual que circulava na rua do Ouvidor f-1 de fundamental importância para o quilombo do Leblon, mantido pela C onfe­ deração Abolicionista. 27. Ver, por exemplo, Eduardo Silva, As cam élias do Leblon e a abolição da escravatura:

im a investigação de história cultural, São Paulo, Com panhia das Letras, 2 0 0 3 ; Humberto Machado, Palavras e brados: a imprensa abolicionista no Rio d e Jan eiro

('.180-1888), tese de doutorado em História, USP, São Paulo; 1991, André Santos Pissanha, Da abolição da escravatura à abolição da miséria: a vida e as idéias de Atdré Rebouças, Rio de Janeiro, Q uartet, 2005. 28. E:sa perspectiva historiográfica rendeu muitos trabalhos publicados a partir do fiiui da década de 1980. Para citar um dos que tiveram grande repercussão na fase

cha, 1860, p. 4. 12. limar Rohloff de M attos, O tem po saquarem a: a form ação d o Estado im perial, Rio

poneira, mencione-se Eduardo Silva e Jo ã o José Reis, N egociação e con flito: resis-

téicia negra no Brasil escravista, São Paulo, Companhia das Letras, 1989.

de Janeiro, Access, 1994, p. 15-6.

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29. Sobre as críticas à posse e ao governo de Floriano Peixoto e a repressão às oposi­ ca no governo de Floriano Peixoto: uma análise do jornal O C o m b a te (1 8 9 2 )”, C adern os A EL, v. 9, n. 16-17, 200 2 .

j Itm;

ções, ver Ana Carolina Feracin Silva, “Entre a pena e a espada — literatura e políti­

30. C id ad e d o R io, 30/4/1892. A mesma carta foi publicada no J o r n a l d o Brasil, 1/05/

jc

partidários da monarquia o exercício de um proselitismo sem maiores consequências. Ver, nesse sentido, Lincoln de Abreu Penna, Por q u e so m o s flo r ia n is ta s i — ensaios sob re flo ria n ism o e ja c o b in ism o , Rio de Janeiro, E-papers, 2 0 0 2 , p. 16. 31. C id ad e d o R io, 30/4/1892. 32. C id ad e d o R io, 30/4/1892. Redentora, formada por libertos para defender o regime monárquico logo após a

i

Abolição da escravidão. A milícia seguia a tradição de grupos armados de libertos,