Ao analisar o panorama cultural da mais longa democracia do mundo - os Estados Unidos - Robert Hughes detecta sinais de
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Portuguese Pages [81] Year 1993
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desgaste americano Tradução: MARCOS~ANTARRITA
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Para' Elizabetn Sifton Copyright © 1993 by Robert Hughes
Todos os direitos reservados) inclusive os direitos de reprodução no todo ou em parte em qualquer forma Título original:
Culture of complaint The fraying of America Capa:
João Baptista da Costa Aguiar Preparação:
Katia Rossini Revisão:
Liege M. S. Marucci Luciola S. de Morais
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro , SP, Brasil)
Hughes, Robert Cultura da reclamação: o desgaste americano / Robert Hughes ; tradução Marcos Santarrita. - São Paulo: Companhia das Letras, 1993. ISBN
85-7164-344-X
1. Cultura -
Estados Unidos 2. Ética
93-2831
1.
Título .
CDD-306.0973
Índices para catálogo sistemático: 1. Estados Unidos: Cultura e sociedade: Sociologia 306 .0973
Todos os direitos desta edição reservados à EDlTORA SCHWARCZ LTDA.
Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523
SP
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SUMÁRIO
Introdução 11
1 Cultura e desintegração da comunidade política 13
2 Multi-Culti e seus descontentes 73
3 A moral em si: a ar te e a falácia terapêutica 125
Notas 163
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INTRODUÇÃO
Este livro nasce da série de conferências que fui convidado a fazer sob os auspícios da Oxford University Press e da Biblioteca Pública de Nova York, na Biblioteca, em janeiro de 1992. Já há vários anos as nebulosas questões a respeito de "correção política", "multiculturalismo", politização das artes e assim por diante vinham passando do mundo acadêmico, do mundo da arte e das revistas culturais para o jornalismo comercial americano, causando, em geral, mais calor e fumaça que luz. Achei que seria interessante e talvez útil examiná-las do ponto de vista de um escritor praticante, nem acadêmico nem cidadão americano, mas com um pé na história e outro nas artes visuais. Isso implicava atravessar vários campos minados sociais , e especular em áreas que não são minha especialidade, como a educação num país onde não fui criado, e a política num Estado onde não posso votar; não peço desculpas por isso. Após 22 anos nos Estados Unidos, grande parte do país ainda me parece muitíssimo exótico; sobretudo as relações singularmente exacerbadas entre cultura e moralidade, que foram, em grande parte, o tema das conferências e deste livro. Espero que o leitor não interprete isso como antiamericanismo, nem como indevida condescendência de um estrangeiro . Depois da Austrália, os Estados Unidos são o país que mais conheço e amo, e a esta altura minha ligação com ele é visceral. Uma conferência de uma hora é curta, 5 mil palavras no máximo . Ao concluir a série, senti-me insatisfeito por ter abordado uma variedade de assuntos sem poder alongar-me sobre eles. Logo depois, o texto das duas primeiras conferências foi condensado numa matéria de capa da edição de 3 de fevereiro da revista Time, "The fraying of America" [O desgaste da América]. (A terceira conferência foi publicada na íntegra pelo New York Review of Books; 11
mais uma vez, devo agradecer ao seu editor, Robert Silvers, e a meus editores na Time, Walter Isaacson e Christopher Potterfield, pelo -estímulo, entusiasmo e trabalho estafante para transformar a palavra falada em palavra escrita.) Tão grande foi a reação dos leitores aos artigos que decidi apresentar toda a minha argumentação, e o resultado é este livro. Escrito nos Estados Unidos, entre a primavera e o outono de 1992, contém muitas referências a fatos não abordados nas conferências originais, po r não terem ainda acontecido . O principal foi a vitória do Partido Democrata com Bill Clinton, numa eleição presidencial que acabou sendo, em não pequena medida, um referendo sobre muitas das questões em meu texto original. Minhas dívidas com outros, em conversas, são muitas e grandes. Não posso relacionar todas, mas tenho algumas particulares para com Arthur Schlesinger (cujo livro recente, The disuniting of America [A desunião da América], diz muita coisa que eu digo, mas o fez antes e melhor); com Gilbert T. Sewell, da Social Studies Review, por me fornecer um exemplar daquele documento singular, "The Portland baseline essays" [Os ensaios de base de Portland]; com Edward Said; e com Davied Rieff. E, como sempre, para com minha amada esposa, Victoria Hughes, e seu perfeito senso prático .
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CULTURA E DESINTEGRAÇÃO DA COMUNIDADE POLÍTICA
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Há pouco mais de cinqüenta anos, o poeta W . H . Auden realizou o que todos os escritores invejam: uma profecia que se concretizou . Está contida numa longa obra intitulada For the time being: a Christmas oratorio [Por enquanto: um oratório de Natal], onde Herodes discorre sobre a desagradável tarefa de massacrar os Inocentes. Não quer fazer isso, porque no fundo é um liberal. Mesmo assim, diz, se se deixar que a tal criança escape, Não é preciso ser profeta para prever as conseqüências (.. .] A Razão será substituída pela Revelação (.. .] O Conhecimento de.generará num tumulto de visões subjetivas - sensações no plexo solar causadas por subnutrição, imagens angelicais geradas por febre ou drogas, avisos em sonhos inspirados por um som de água caindo. Cosmologias inteiras serão criadas a partir de algum ressentimento pessoal esquecido, épicos int eiros escritos em linguagens privadas, borrões infantis julgados superiores às maiores obras-primas (...] O Idealismo será substituído pelo Materialismo [...] Desviado de sua válvula de escape normal, o patriotismo e o orgulho cívico ou familiar, o anseio das massas por um Ídolo visível para adorar será dirigido para canais totalmente insociáveis onde nenhuma educação pode alcançá-lo. Homenagens divinas serão prestadas a rasas depressões na terra, animais de estimação, moinhos de ven to em ruínas ou tumores malignos . A Justiça será substituída pela Piedade como virtude humana fundamental, e desaparecerá todo o medo da punição. Cada garoto de esqu ina se congratulará consigo mesmo: "Sou tão pecador que Deus em pessoa desceu para me salvar". Todo vigarista argumentará: "Gosto de cometer crimes. Deus gosta de perdoá-los . Na verdade o mundo está admiravelmente organizado". A Nova Aristocracia consistirá exclusivamente de eremitas, vagabundos e inválidos permanentes . O Dia1
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o que Herodes viu foi os Estados Unidos em fins da década de 80 e início da de 90. Uma comunidade obcecada por terapias e cheia de desconfiança em relação à política formal; cética em relação à autoridade e presa da superstição; sua linguagem política corroída pela falsa piedade e por eufemismos. Igual à Roma do fim, e diferente da república inicial, no longo alcance de seu império, na corrupção e verbosidade de seus senadores, na confiança em gansos sagrados (ancestrais emplumados de nossas pesquisas de opinião e psicanalistas) e na submissão a imperadores senis, deificados, controlados por esposas extravagantes. Uma cultura que substituiu os jogos de gladiadores, como meio de apaziguar a massa, por guerras hign tech na televisão que causam matanças imensas mas deixam os sátrapas mesopotâmios com todo poder sobre seus infelizes súditos. Ao contrário de Calígula, o imperador não nomeia seu cavalo cônsul; entrega-lhe o controle do meio ambiente ou nomeia-o para a Suprema Corte. Em sua maioria são as mulheres que protestam, pois devido à predominância das religiões de mistério os homens vão à luta, afirmando sua masculinidade com fungadas nas axilas uns dos outros e ouvindo poetas de terceira categoria esbravejarem sobre o sátiro úmido e peludo que vive dentro de cada um deles. Os que anseiam pela volta da sibila délfica têm Shirley MacLaine, e um guerreiro Cro-Magnon de 35 mil anos chamado Ramtha encarna-se numa dona de casa loira da costa Oeste, gerando milhões e milhões de dólares de culto em seminários, fitas e livros. Enquanto isso, os artistas hesitam entre uma expressividade em grande parte comodista e uma politização quase sempre impotente, e a disputa entre educação e TV - entre discussão e convicção através do espetáculo - foi ganha pela televisão, hoje um veículo mais aviltado do que nunca nos Estados Unidos. Mesmo suas artes populares, outrora maravilha e deleite do mundo, decaíram; houve uma época, ainda na memória de alguns de nós, em que a música popular americana transbordava de exaltação, de dor e humor, e atraía os adultos. Hoje, em vez da bruta intensidade do Muddy Waters ou da viril inventividade de Duke Ellington, temos Michael Jackson, e em vez de George Gershwin e Cole Porter somos arrastados
para baixo, para espetáculos a~alfabetos sobre gatos ou a queda de Saigon. A grande forma americana do rock-'n' -roll foi supertecnologizada e moida pelo triturador 'em p r esarial, até tornar-se 95 por cento sintética. Para os jovens, cada vez mais, a diversão institui padrões educacionais e cria "verdades" sobre o passado. Milhões de americanos, sobretudo jovens, imaginaram que a "verdade" sobre o assassinato de Kennedy está em JFK, o vívido filme mentiroso de Oliver Stone, com sua elevação paranóide de um desacreditado promotor de New Orleans à condição de herói político atacado por um establishment militar mau e onipresente, que assassinou Kennedy para nos manter no Vietnã. Quantos deles viram alguma coisa errada na freqüente afirmação de Stone de que estava criando um "contramito" para as descobertas da Comissão Warren, como se nosso conhecimento do passado equivalesse à propagação de mitos? O tratamento da história dado antes por Hollywood não tinha importância - aquela bobagem sobre Luís xv, ou o pieguismo sobre lord Nelson, ou o blá-blá-blá religioso sobre Jesus. Mas numa época de minisséries semificcionais e simulações, quando a diferença entre a TV e os fatos reais é cada vez mais indistinta - não por acidente, mas como política deliberada dos chefões dos meios de comunicação eletrônicos - esses exercícios encaixam-se num contexto sentimentalóide, ansioso, de suspensão da descrença, que a pseudohistória da velha Hollywood j amais teve. E depois, como as artes mostram ao cidadão sensível a diferença entre os bons artistas, os medíocres e as fraudes absolutas, e como sempre existe um número maior dos últimos que dos primeiros, também elas têm de ser politizadas; assim, remendamos sistemas críticos para mostrar que, embora saibamos o que queremos dizer por qualidade do meio ambiente, a idéia de "qualidade" na experiência estética pouco mais é que uma ficção paternalista destinada a dificultar a vida de artistas negros, mulheres e homossexuais, que devem de agora em diante ser julgados por sua etnicidade, gênero e estado de saúde, e não pelos méritos de sua obra. À medida que se difunde para a arte a reação lacrimosa contra a excelência, a idéia de discriminação estética é metida no mesmo saco com a de discriminação racial ou de gênero. Poucos se rebelam contra isso, ou notam que, em questões de arte, "elitismo" não significa injustiça social e nem mesmo inacessibilidade. O ego é hoje a vaca sagrada da cultura americana, a auto-estima é sacrossan- . ta, e assim nos esforçamos .p ar a transformar a educação num siste-
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mante Bruto, a Prostituta Tísica, o bandido bondoso para com a mãe, a jovem epiléptica que tem jeito com animais serão os heróis. e heroínas da Nova Tragédia, quando' o general, o estadista e o filósofo se tiverem tornado motivo de toda farsa e sátira.
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ma em que ninguém pode fracassar. No mesmo espírito, o tênis devia ser despido de suas nuances elitistas:é só nos livrarmos da rede. Como nossa recém-descoberta sensibilidade decreta que só a vítima pode ser o herói, também o homem branco americano começa a berrar pelo status de vítima. Daí o surgimento de terapias da moda que ensinam que todos somos vítimas de nossos pais: que, seja qual for a nossa loucura, venalidade ou franco banditismo, a culpa não é nossa, já que viemos de "famílias disfuncionais" e, como John Bradshaw, Melody Beattie e outros gurus dos programas em doze etapas se apressam a afirmar sem a menor evidência, que 96 por cento - das famílias americanas são disfuncionais. Fomos expostos a imperfeitos, ou nos deixaram carentes de amor, ou nos espancaram, ou talvez tenhamos sido submetidos às luxúrias de sátiro do papai; e se achamos que não, é só porque reprimimos a lembrança, e portanto temos mais urgente necessidade do recém-lançado livro do charlatão. O número de americanos que sofreram abusos quando crianças, e que portanto agora estão absolvidos de toda culpa por qualquer coisa que possam fazer, é mais ou menos igual ao número dos que, há uns poucos anos, tinham sido outrora Cleópatra ou Henrique VIII. Assim, o éter hoje está congestionado com exibições conf'essionais em que um desfile de cidadãos e seus modelos, de Latoya Jackson a Roseanne Barr, se levanta para denunciar os pecados de seus pais, reais ou imaginados. Não ter consciência de uma infância infeliz é prova cabal, aos olhos da Recuperação, de "negação" pois a suposição é que todos tiveram uma, e portanto trata-se de uma fonte de renda potencial. O culto da Criança Interior abusada tem um uso muito significativo nos Estados Unidos de hoje: diznos que o ressentimento pessoal transcende o discurso político, e que a curva de produção ascendente do narcisismo piegas não precisa cruzar com a espiral descendente da trivialidade cultural. Assim, a busca da Criança Interior acaba de tomar o poder no momento mesmo em que os americanos deviam estar se perguntando onde anda o seu Adulto Interior, e como esse maior abandonado acabou enterrado sob os detritos da psicologia pop e da capciosa satisfação a curto prazo. Imaginamos um Taiti dentro de nós mesmos, e procuramos seu habitante de antes da queda: cada um seu próprio Nobre Selvagem. Se a Criança Interior não nos liberar, o abraço da redenção o fará. Dizia-se que não há segundo ato nas vidas americanas. Isso foi antes de a TV começar a queimar as células de nossa memória.
A vida pública dos Estados Unidos hoje compõe-se em grande parte de segundos atos, e tornou-se uma paródia inconvincente da promessa original da América como um lugar onde qualquer um, aliviado dos fardos do Velho Mundo , poderia ter um novo início. Lembro-me de que tive alguns receios há quinze anos quando Char- . les Colson, um dos vilões menores de Washington na época de Watergate, anunciou nos portões do presídio de segurança mínima que tinha visto a luz de Cristo e renascera. Os americanos não iam engolir aquilo, certo? Mas engoliram. Até mesmo David Duke disse que tinha renascido do nazismo para a irmandade de Cristo - e milhares de pessoas acreditaram nele. Daqui a pouco a família de Robert Maxwell vai dizer a seus lesados banqueiros e ex-empregados que ele foi honesto no fim, e morreu de uma desastrada tentativa de autobatismo por imersão total. Com tantos picaretas fazendo fila para se lavar no sangue do Cordeiro, não admira que a pobre criatura esteja parecendo meio pálida. A generalizada alegação de vitimização derruba a cultura da terapêutica há muito acalentada nos Estados Unidos. O fato de alguém parecer forte só pode ocultar uma instável estrutura de negação, mas ser vulnerável é ser invencível. A lamentação dá poder mesmo que sej a apenas o poder de chantagem espiritual, de criar níveis antes despercebidos de culpa social. Basta proclamar-se inocente que sua cabeça rola. As mudanças produzidas por isso podem ser vistas em toda parte, e sua curiosa tendência é fazer convergirem a "direita" e a "esquerda". É só pensar na recente forma de discussão das questões sexuais, que cada vez mais giram em torno de vitimização. Os pró-vida tomam de empréstimo o jargão femirnista e chamam o aborto de "estupro cirúrgico" (não importa que , seja um ato inteiramente voluntário), .... _. --Enquanto isso, a nova ortodoxia feminista abandona a imagem da mulher independente, existencialmente responsável, em favor da mulher como vítima desamparada da opressão masculina - tratemna como igual perante a lei, e estarão agravando sua vitimização. Os conservadores se deliciam lançando seus argumentos nos mesmos termos de vitimologia, com a diferença de que, para eles, o que produz vítimas é o próprio feminismo, em conluio com o falo oportunista. Em Enemies of Eros [Inimigos de Eros] (1990), a escritora antifeminista Maggie Gallagher afirma que "o homem explora a mulher toda vez que usa o corpo dela para o prazer sexual sem que esteja disposto a aceitar todo o fardo da paternidade". Ela "pode consentir plenamente, conscientemente, entusiasticamente com sua
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exploração. Isso não modifica a natureza da transação". Quase exatamente a mesma opinião da feminista Andrea Dworkin - sexo entre homem e mulher é sempre estupro. "Durante a relação sexual, a mulher é, fisicamente", escreve essa extremista, "um espaço invadido, um território literal ocupado Iiteralmente; ocupado mesmo que não tenha havido resistência; mesmo que a mulher ocupada diga: 'Sim, por favor, sim, vamos logo, sim, mais,.,,1 Essas visões grotescamente ampliadas de ataque criminoso reduzem as mulheres a vítimas sem vontade própria, privadas do poder tanto de consentir quanto de negar, meras bonecas jogadas de um lado para outro aos ventos ideológicos do extremismo feminista. "Encarar o 'sim' como sinal de verdadeiro consentimento" , escreveu a professora da Faculdade de Direito de Harvard, Susan Estrich, "é enganoso". Tudo é estupro até prova em contrário. Dessas e outras formas criamos uma infantilizada cultura da lamentação, em que o Papaizão é sempre o culpado, e a ampliação de direitos prossegue sem a outra metade da cidadania - a ligação com deveres e obrigações. Ser infantil é uma forma regressiva de desafiar a tensão da cultura empresarial: Não me pise, eu sou vulnerável. A ênfase é no subjetivo: como nos sentimos em relação às coisas, em vez do que pensamos ou podemos saber. Os problemas desse voltar-se para dentro foram esboçados há muito tempo por Goethe, falando a Eckermann: "As épocas regressivas, e em processo de dissolução, são sempre subjetivas, ao passo que a tendência em todas as épocas progressivas é objetiva [...] Todo esforço realmente excelente sai de dentro para o mundo, como se vê nas grandes épocas que tiveram real progresso e aspiração, e que foram todas de natureza objetiva."
lamentar britânica - fo i o rompimento do status de vítima colonial e a criação de um Estado secular no qual os direitos óbvios seriam continuamente ampliados no interesse da igualdade. Sempre houve atrito entre os resquícios da ideologia puritana de uma hierarquia dos virtuosos, sob o imutável olho de Deus, e o conceito americano posterior, revolucionário, do século XVIII, de desenvolvimento secular e incessante em direção à igualdade de direitos inerentes ao homem, e não simplesmente concedidos pelo go verno. Esse atrito parece não ter fim; ainda o sentimos hoje. Foi previsto em 1835 por Alexis de Tocqueville, em Democracy in America [Democracia na América]: Os homens jamais estabelecerão uma igualdade com a qual se satisfaçam [... ] Quando a desigualdade de condição é a lei comum da sociedade, as mais acentuadas desigualdades não ferem o olho; quando tudo está quase no mesmo nível, as mais leves são visíveis o bastante para machucá-lo . Daí o desejo de igualdade tornar-se sempre mais insaciável à medida que a igualdade é mais completa.
Como percebeu Auden, o que essa cultura gosta é dos fetiches gêmeos da vitimização e da redenção. Os puritanos se consideravam, com razão, vítimas de perseguição, enviadas para criar um -E st a do teocrático cujas virtudes transcenderiam os males do Velho Mundo, e com isso redimiriam a queda do homem europeu. A sublime e radical experiência de democracia americana - e vale a pena lembrar que, embora tendamos a pensar nos Estados Unidos como perpetuamente novos, a queda dos despotismos tornou sua forma de governo mais antiga e contínua do que qualquer outra da Europa, mais' que a Revolução Francesa e muito mais que a democracia par-
Essa era a visão de um visitante do Velho Mundo, tão limitado . pelo sistema de classes que achava que a igualdade era a "lei comum" num país que ainda não saíra da condição de Estado escravagista. Não podemos nos imaginar partilhando de seu exaltado elitismo, mas Tocqueville tinha alguma razão. O temperamento básico dos Estados Unidos tende para um ideal de existência que provavelmente nunca poderá ser alcançado, mas que também jamais pode ser abandonado: direitos iguais para a variedade, para construirmos nossa vida como quisermos, escolhermos nossos parceiros de viagem. Es te sempre foi um país heterogêneo, e sua coesão, .sej a qual for, só pode basear-se no respeito mútuo . Jamais houve aqui um país onde todos se parecessem, falassem a mesma língua, adorassem os mesmos deuses e acreditassem nas mesmas coisas. Mesmo antes da chegada dos europeus, os índios americanos viviam constantemente na garganta uns dos outros. Os Estados Unidos são uma construção do espírito, não de uma raça ou classe herdada, ou de um território ancestral. Sei muito bem que tudo isso já foi dito, mas sua verdade óbvia é o motivo de os Estados Unidos sempre terem parecido maravilhosos a estrangeiros como eu . Isso não significa que tenham o monopólio da liberdade, ou mesmo que seus modelos de liberdade sejam exportáveis para todas as partes do mundo . Mas é um credo nascido da imigração, do acotovelamento de dezenas de tribos que se tor-
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. nam americanas na medida em que conseguem estabelecer 'com pr omissos umas com as outras. Essas negociações têm êxitos desiguais, . e muitas vezes fracassam : basta examinar a história das relações raciais' para ver isso. É demasiado simples dizer que os Estados Unidos são, ou foram algum dia, um cadinho. Mas também é demasiado simples dizer que nada de seu conteúdo na verdade se fundiu . Nenhuma metáfora única pode fazer justiça à complexidade de cruzamento e difusão culturais nos Estados Unidos . O mutualismo americano não tem escolha senão viver no reconhecimento da diferença. Mas é destruído quando essas diferenças são transformadas em baluartes culturais. Costumava-se usar uma metáfora morta -.. :. . . "balcanização" - para lembrar a divisão de um campo em seitas, grupos, pequenos nódulos de poder. Hoje, sobre o cadáver desmembrado da Iugoslávia, cujas "diferenças culturais" (ou, para falar claro, arcaicas sandices religiosas e raciais) foram liberadas pela morte do comunismo, vemos o que essa rançosa figura de estilo significou outrora e pode voltar a significar de novo . Um mundo hobbesiano: a guerra de todos contra todos, engalfinhados em luta sangrenta e ódio teocrático, a reductio ad insanitatem do suave e moderado multiculturalismo americano. Que governo imperial, que tirania dos Habsburgo ou indolente domínio dos apparatchiks moscovitas não seriam preferíveis a isso? Contra esse apavorante pano de fundo, tão distante da experiência americana desde a Guerra Civil, temos agora nossos conservadores prometendo uma "guerra cultural", enquanto radicais ignorantes discursam sobre "separatismo ". Eles não têm idéia de quais demônios estão invocando com sua frivolidade. Se soubessem, calariam a boca, envergonhados. Duzentos e sessenta milhões de pessoas compõem o mesmo país, mas isso não significa que sejam todas do mesmo tipo, com as mesmas crenças e costumes. Permanece o fato de que os Estados Unidos são uma obra coletiva da imaginação, cuja construção jamais termina, e, assim que se rompe esse senso de coletividade e respeito mútuo, começam a desfiar-se as possibilidades do americanismo. Se estão puídas hoje, é porque, nos últimos vinte anos, a política de ideologia enfraqueceu e em algumas áreas partiu o tradicional gênio americano para o consenso, para o progresso através de compromissos práticos destinados a satisfazer necessidades sociais reais. Durante toda a década de 80, isso aconteceu com deprimente regularidade em ambos os lados da política partidária americana . 22
Em vez de um terreno comum, temos demagogos bradando que só há um caminho para o americanismo virtuoso : paleoconservadores como Jesse Helms e Pat Robertson, que acham que o país tem uma ética única, neoconservadores que criam um espantalho exagerado chamado multiculturalismo - como se a própria cultura ocidental tivesse algum dia sido outra coisa que não multi, vivendo de seu ecletismo, seu poder de bem-sucedida imitação, sua capacidade de absorver formas e estímulos "estrangeiros" - e traficantes da correção política, que gostariam de ver o ressentimento elevado à santidade automática. Na sociedade, como na agricultura, a monocultura fu nciona de maneira medíocre. Exaure o solo . A riqueza racial dos Estados Unidos, tão impressionante para o estrangeiro, vem da diversidade de suas tribos. Sua capacidade de coesão, de um certo espírito de concordância sobre o que se deve fazer, vem da disposição dessas tribos de não transformar suas diferenças culturais em barreiras e trincheiras intransponíveis, não fetichizarsua "africanidade" ou italianitã, que as tornam distintas, às custas de sua americanidade, que lhes proporciona um vasto terreno comum. Ler os Estados Unidos é como contemplar um mosaico. Se olharmos o quadro geral, não veremos as partes - os ladrilhos distintos, cada qual de uma cor diferente. Se nos concentrarmos apenas nos ladrilhos, não veremos o quadro. Entramos num período de intolerância que se combina, como às vezes acontece nos Estados Unidos, com um gosto adocicado pelo eufemismo. Essa conjunção gera fatos que ultrapassam os mais desvairados sonhos da sátira - se a sátira ainda existisse no país; talvez o motivo de sua fraqueza seja que a realidade a superou . Ve- . jam, por exemplo, a batalha pelos direitos das vítimas recentemente travada no restaurante Betty's Oceanview Diner, em Berkeley, Califórnia, e descrita com certo grau de prazer turrão por Nat Rentoff no Village Voice . 2 . Ali, numa manhã de 1991, uma garçonete chamada Barbara, que depois se recusou a revelar seu sobrenome, viu um jornalista sentado sozinho e dando uma olhada num artigo sobre a Constituição, do próprio Nat Hentoff', numa revista. Só que a revista era a Playboy ; e por isso Bárbara Qualquer-Coisa se recusou a servir-lhe o desjejum, dizendo-se "apavorada e chocada", pois a simples visão de Playboy já era uma forma de estupro por procuração, assédio sexual em local de trabalho, uma ameaça à auto-estima das mulheres, e assim por diante. 23
Ela e a gerente solicitaram-lhe que fosse embora. E assim o infeliz escriba, que na verdade só queria comer um bolinho e tomar um café, não um confronto sobre direitos civis, bateu em retirada. Pouco depois um grupo de libertários civis da Bay Area fez uma sessão de leitura no Diner, com exemplares gratuitos dePlayboy fornecidos por um dos relações públicas de Hugh Hefner; depois veio uma contramanifestação de grupos feministas, cujos membros afirmavam que "a saúde da mulher é afetada pelo fato de Playboy estar num restaurante", e que isso "nada tinha a ver com a liberdade de expressão; tinha a ver com poder - poder dos homens brancos imporem seus padrões a todo mundo, por mais humilhante que isso fosse". Se a primeira lei da vida empresarial americana é que pau seco flutua, a regra correspondente do papo da liberação é que ar quente se expande. Como veremos, abundam ultimamente nos Estados Unidos as ocasiões em que alguém impede alguém de dizer alguma coisa e depois nega que isto seja uma questão de liberdade de expressão. O episódio do Betty's Diner foi cômico; outros acontecimentos são muito menos. Em outubro de 1992, o Village Voiee patrocinou uma noite de debates na Cooper Union, em Nova York, sobre o tema "Pode um liberal ser pró-vida?" Os principais oradores eram Nat Hentoff e o governador Robert Casey, da Pensilvânia, um democrata que tinha discordado da plataforma pró-escolha [das mulheres decidirem se devem ou não fazer um aborto] da Convenção Democrata em NovaYork três meses antes. Ora, havia sem dúvida motivos para contestar Casey - como' observou depois Nat Hentoff, há uma gritante incoerência entre sua carinhosa consideração pelos direitos do feto e seu apoio à pena de morte para adultos - , mas isto nem sequer chegou a ser ventilado. O que aconteceu, ao contrário, foi que uma gangue de manifestantes pró-aborto, alguns usando buttons que diziam FüDA-SE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO, tomou o salão e impediu qualquer orador de ser ouvido, de modo que o próprio debate foi abortado. Uma das manifestantes, uma hárpia de um obscuro grupo esquerdista, mais tarde vangloriou-se, em seu nome e no de seus camaradas, dessa vitória sobre a liberdade de expressão, numa carta ao Village Voiee: "Quando oitenta a cem ativistas anti-racistas e pró-escolha acabam com um fórum de um dos mais poderosos racistas e sexistas dos Estados Unidos, como nós e outros fizemos [... ] isso é uma vitória para todos os progressistas". Menos, claro, para os progressistas que não acreditam no coturno e na mordaça, e dão mais valor ao debate que às arengas dos camisas pardas. 24
Alguns impulsos nunca mudam, apenas caem na clandestini- . dade; há uma conexão direta por cabo entre Cooper Union 1992, Berkeley 1991 e Massachusetts 1670, e ela passa por fora da Constituição. Há cerca de dois anos, o líder da organização estudantil de Stanford, jovem e negro, queixava-se de que "não impomos tantas restrições à liberdade de expressão quanto devíamos" . Exatamente a opinião do deputado Jim Inhofe, republicano por Oklahoma, que mais ou menos na mesma época se levantou na Câmara para declarar seu apoio à emenda de George Bush à Constituição para proteger a bandeira, com as sonoras palavras: "Há um momento em que a liberdade de expressão não representa os melhores interesses deste país, e chegamos a este ponto". Paleoconservadores e terapeutas da livre expressão estão ambos no mesmo barco, e a única diferença é o que eles querem proibir. Essa atmosfera de lamúria e denúncia impôs um considerável fardo aos leitores e escritores, quanto à interpretação - e ao ensino - daquilo que se escreve. Assim como nossos ancestrais do século xv estavam obcecados com a criação de santos, e os do século XIX com a produção de heróis, de Cristóvão Colombo a George Washington, também nós estamos obcecados pelo reconhecimento, louvor e, quando necessário, fabricação de vítimas, cujo único traço comum é o fato de lhes ter sido negada a paridade com a Besta Loira da imaginação sentimental, o homem branco heterossexual de classe média. A gama de vítimas existentes há dez anos - negros, chicanos, índios, mulheres, homossexuais - hoj e foi ampliada para incluir toda variação do gago, do cego, do aleijado e do baixo, ou, para pôr a coisa na terminologia americana ,correta, os diferentemente , capacitados, os de visão diferente e os verticalmente contestados. Nunca antes na história humana houve tantos acrônimos em busca de identidade. É como se todo encontro humano fosse um grande ponto sensível, eriçado de oportunidades de involuntariamente distribuir, e receber, ofensas. Há trinta anos, um dos processos épicos na afirmação da dignidade humana começou a se desdobrar nos Estados Unidos: o movimento pelos direitos civis. Mas hoje, após mais de uma década de governo que fez o que pôde para ignorar as questões de raça, quando não tratou de anular as conquistas da década de 60, a reação americana habitual à desigualdade é rebatízá-la, na esperança de que assim ela desapareça. Isso, como observou George Orwell em Polities and the English language [A política e a língua inglesa], destrói a língua sem mudar a realidade nem mesmo um
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centímetro. A única proteção contra isso, argumentava, era ser concreto:
Orwell escreveu isso em 1946, e continua sendo verdade meio século depois; de fato, sempre será verdade. Certamente existem coisas piores na sociedade americana que a atual v~ga da linguagem politicamente correta, seja da esquerda ou da direita. Mas há poucas coisas mais absurdas e, no fim, autoderrotantes. Queremos criar uma espécie de Lourdes lingüística, onde o mal e o infortúnio são afastados por um mergulho nas águas do eufemismo. O inválido levanta-se de sua cadeira, ou sente-se melhor estando pregado nela, porque alguém no tempo do governo Carter decidiu que, para fins oficiais, ele era "fisicamente prejudicado"? O homossexual acredita que os outros o amem mais ou odeiem menos porque é chamado de 'ígay" - termo revivido da gíria criminal inglesa do século XVIII, que implicava prostituição ou viver de expedientes? O ganho líquido é que os arruaceiros que antes davam porrada nos homossexuais hoje dão porrada nos gays. Ou tomemos "homofóbico", o termo favorito de insulto PC [politicamente correto]. Hoje, entre vinte pessoas que o usam) dificilmente haverá uma que saiba o que significa. "Homofobia" é um termo clínico para uma perturbação patológica. Significa uma obsessão com o homossexualismo, causada pelo temor suprimido de que a própria pessoa seja homossexual. Hoje pode ser) e é, indiscriminadamente aplicada a qualquer um que demonstre a menor reserva em relação a este ou àquele amante do mesmo sexo, ou conteste (mesmo brandamente) qualquer reivindicação de direito especial (por mais extremo que seja) deles como grupo ou classe. Na década de 80, ouvimos escritores americanos serem acusados de "anti-semitismo",
quando eram gentios, ou de "odiarem a si mesmos", quando judeus, porque não seguiam à risca a linha política extremista do partido Likud em Israel e seus grupos de pressão em Washington. Sob tensão, pessoas iradas que não têm linguagem suficiente (ou cuja linguagem é apenas instrumento de um programa político) buscam a palavra mais emotiva que possam encontrar: "racista" é o exemplo quintessencial de hoje, uma palavra que, como' 'fascista" , sus cita tantos níveis de denúncia vaga que perdeu qualquer significado que já tenha possuído. Alguém pode ser chamado de "racista" por ter teorias malucas de superioridade baseadas na falta de melanina na pele humana; ou por afirmar a simples verdade de que o reverendo AI Sharpton enganou Nova Yark com o abuso inteiramente fabricado da adolescente negra Tawana Brawley por imaginários arruaceiros brancos; ou por ter dúvidas sobre a eficácia da assistência social; ou, em algumas mentes, apenas por ser branco. [i'Do mesmo modo como a linguagem se infla grotescamente no ataque, também murcha timidamente na aprovação, buscando palavras que não têm a mínima possibilidade de causar ofensa, por mais emocionais que sejam . Nós não fracassamos, mas apenas conseguimos pouco. Não somos viciados, mas abusamos de substâncias; não somos inválidos, mas diferentemente capacitados. E somos insinceros até a morte: devemos referir-nos a um cadáver, exortou o New England Journal of Medicine em 1988, como uma "~~s.o,a não-viva" . Por extensão, um cadáver gordo é uma pessoa não-viva de dimensões diferentes . J Se essas afetadas contorções de fato levassem as pessoas a tratarse umas às outras com mais civilidade e compreensão, podia haver um argumento em seu favor . Mas não fazem nada disso . Há setenta anos, no uso polido dos brancos, os negros eram chamados de colored people [pessoas de cor]. Depois tornaram-se negroes [negros]. Em seguida, blacks [pretos]. Hoje African-Americans [afroamericanos] ou persons of color [pessoas de cor] de novo. Mas para milhões de americanos brancos, desde a época de George Wallace até a de David Duke, eles continuaram sendo niggers [crioulos], e a mudança de nomes não alterou a realidade do racismo, não mais do que os anúncios rituais de Planos Qüinqüenais e Grandes Saltos Adiante transformaram em triunfos os desastres sociais do stalinismo e do maoísmo . A idéia de que se muda uma situação encontrando-se uma palavra mais nova e mais amável para ela vem ·do velho hábito americano do eufemismo, da circunlocução ~ da desesperada confusão em relação à etiqueta, produzida pelo receio de que
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Se simplificamos o nosso inglês, estamos livres das piores loucuras da ortodoxia. Não podemos falar nenhum dos dialetos necessários, e quando fizermos uma observação idiota, a idiotice dela será óbvia, até mesmo para nós. A linguagem política - e com variações isso se aplica a todos os partidos políticos, dos conservadores aos anarquistas destina-se a fazer mentiras parecerem verdades, e o assassinato respeitável, e a dar uma aparência de solidez a puro ar. Não se pode mudar tudo isso num momento, mas pode-se ao menos mudar os próprios hábitos.
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o real cause ofensa. E é um hábito singularmente americano. O apelo a uma linguagem politicamente correta, embora obtenha alguma resposta na Inglaterra, praticamente não tem ressonância na Europa. Na França, ninguém pensou em rebatizar O rei franco Pepino, o Breve, de Pepino, o Verticalmente Prejudicado, nem qualquer um dos anões de Velázquez dá mostra alguma de tornar-se, para os espa'. nhóis, las gentes pequenas. E nem se pode pensar no caos que resultaria se acadêmicos e burocratas decidissem acabar com os termos específicos dos gêneros nas línguas românicas, onde cada su bstantivo tem um gênero, enquanto, para piorar as coisas, o órgão genital do macho é muitas vezes feminino e sua contraparte na fêmea não raro masculina (la polla/el coiio). Nenhuma mudança de palavras vai reduzir o volume de intolerância nesta ou em qualquer outra sociedade. Mas aumenta o que a mente militar muito lucidamente chama de dano colateral num ambiente rico em alvos - ou sej a, o ferimento da linguagem inocente. Vejam o ataque lúmpen-feminista a todas as palavras que têm man [homem] como prefixo ou sufixo . Supõe-se que as palavras formadas com man sejam específicas de um gênero, e portanto ofensivas às mulheres : mankind [raça humana, humanidade], por exemplo, sugere que as mulheres não são humanas. Assim, em lugar de chairman [presidente de um conselho], temos a canhestra chairperson, ou simplesmente chair [cadeira], como se o infeliz detentor do cargo tivesse quatro pernas curvas e um encosto. Recentemente mandaram-me o Manual de Estilo do governo australiano para publicações oficiais, que proíbe, entre outras coisas, termos como sportsmanship [esportividade], workman [operário], statesmanlike [como um estadista] (cujos sinônimos sugeridos são' 'habilidoso, de tato" - o que talvez diga alguma coisa sobre a atual falta de statespersons [estadistas] entre os antípodas, já que em outubro de 1992 nosso primeiro-ministro, Paul Keating, denunciou vigorosamente o Senado australiano como um "refugo não representativo" e "um bando de bichas"). Até mesmo craftsmanship [habilidade artesanal] está proibido; sua melíflua alternativa é "aplicação de habilidade" . Mas que significa essa confusão em torno de man? Qualquer um que conheça a história de nossas línguas sabe que, no inglês e no anglo-saxão antigos, 9.. sufixo -m an era de gênero neutro; tinha, . e mantém, o mesmo significado de person hoje, referindo-se a todas as pessoas igualmente. Para indicar gênero, tinha de ser qualificado: um homem era chamado waepman, uma mulher wifrnan, Es-
O que é tão irritante nesse pitéu não é só o inglês medíocre (" deseje uma relação") ou a imprecisão burocrática ("entrando no setor empresarial ou dos meios de comunicação" - isso, vindo de alguém que deve estar ensinando comunicação!), nem mesmo o condescendente emprego do primeiro nome de uma estranha de haute en bas ("Cara Victoria' '). É o pedantismo anil da solteirona puritana, de lábios franzidos, encontrando pêlo em ovo. Muitos novos termos e usos, evidentemente, pareceram demasiado requintados ou desnecessários aos conservadores quando surgiram, e hoje tornaram-se indispensáveis-:Que missivista, agradecido pela cunhagem de Ms, que nos permite dirigir-nos formalmente às mulheres sem nos referirmos a seu status marital/voltaria de boa vontade à opção entre Mrs e Miss? Pode-se defender o "afroamericano", embora não pareça ter acentuadas vantagens sobre "preto", além da extensão, uma qualidade da língua que muitos americanos tomam erroneamente por dignidade. Provavelmente o termo "asiático-americano", por mais vago que seja,é melhor que "oriental", porque ao menos é decentemente neutro, sem a nuvem de imagens depreciativas que ainda cerca a palavra antiga: "oriental" sugere uma estrangeirice tão extrema que não pode ser assimilada, e suscita os fantasmas tipo Fu-Manchu da ficção racista do
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se uso neutro de -man dá-nos formas como chairman, fisherman [pescador], craftsman [artesão], significando apenas uma pessoa, de qualquer sexo, que exercia determinado ofício ou profissão. O antigo erro sexista que se supõe entronizado na palavra desde a época de Beowulf revela-se inexistente ." No entanto, proporciona amplas oportunidades para a exibição de mesquinha virtude r-c, como na seguinte censura de uma tal S. Scott Whitlow, acadêmica da Faculdade de Comunicação da Universidade do Kentucky, a Victoria Martin, aluna, que a passou adiante ao American Spectator: Cara Victoria, Em seu recente pedido de bolsa, membros do comitê de exame notaram o uso inapropriado da palavra chairrnan [... ] evidentemente, é sobretudo inadequado dirigir-se a uma mulher como chairman, a menos que ela tenha exigido especificamente uma linguagem tão restritiva [.. .] Em breve você estará entrando no setor empresarial ou dos meios de comunicação, quando iniciar sua carreira. Também aí vai descobrir que existem expectativas de que a mulher não seja tornada invisível pelo uso impensado da linguagem. Existem vários livros que eu teria prazer em recomendar. Por favor , me informe caso deseje uma relação .
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século XIX - ardis traiçoeiros, nuvens de ópio, olhos rasgados que brilham. "Americano nativo" para o índio americano , ou simples. mente índio, tem um som virtuoso - só que traz consigo a absurda implicação de que os brancos.cujos ancestrais estão no país há três, cinco ou mesmo todas treze gerações havidas desde 1776 de algum modo ainda são intrusos, e não "nativos" do país. Quando os brancos se sentirem suficientemente culpados para chamar-se de "europeu-americanos", estará na hora de jogar fora todo esse jargão de nervoso divisionismo; todos, pretos, amarelos, vermelhos e brancos, podem voltar a ser simples "americanos" de novo, que é o melhor que têm a fazer. De qualquer modo, palavras não são fatos, e a simples nornenc1atura não muda muito . Como observou Barbara Ehrenreich: Gosto de ser chamada de Ms. Também não quero que as pessoas digam man quando se referem a mim. Estou disposta a criar caso com essas coisas. Mas sei que, mesmo quando todas as mulheres forem Ms, ainda continuaremos ganhando 65 cents para cada dólar ganho por um homem. As minorias, seja qual for o nome que tiverem - pessoas de cor, ou algo assim - ainda suportarão um imenso fardo de pobreza, discriminação e perseguição racial. Elevação verbal não é a revolução."
Não apenas não é a revolução: tem sido um presente dos céus para a direita. Onde estariam George Will, P. J. O'Rourke, os editores do American Spectator e alguns colaboradores da New Criterion sem o inexaurível fluxo de blá-blá-blá PC que vem da esquerda acadêmica? Algum movimento radical deu algum dia a s.eus inimigos um conjunto tão delicioso de alvos para tiros fáceis? A sátira adora cair sobre costumes e modas, o que é o caso do papo r-c: etiqueta política, não política de verdade. Quando as águas do rc baixarem - como acabarão baixando, deixando a previsível escória de palavras mortas na praia social - isso se dará, emparte, porque os jovens se desinteressarão de toda a censura sobre propriedades verbais no campus. Os impulsos radicais da juventude sãoigenerosos, românticos e instintivos, e facilmente esfriados por uma atmosfera de correção afetada e obsessiva. O verdadeiro problema - do rc não é o "pós-marxismo", mas o pós -puritanismo . Seu peso repressivo não se abate sobre os conservadores do campus, que estão florescendo, deliciados com o fato de a turma do PC dar a um estudante bêbedo que grita "crioulo" ou "sapatão" na noite do campus a oportunidade de posar de mártir da repressão à liberdade de 30
expressão. Os estudantes a quem isso prejudica são aqueles que gostariam de encontrar uma forma de resolver suas insatisfações com a maneira pela qual os Estados Unidos têm andado e estão andando, mas agora descobrem que não podem falar tão livremente sobre isso, para não usar a' palavra errada e assim provocar surtos de queixa e pequenas explosões de desprezo dos que estão à sua esquerda. Num mundo acadêmico em que um administrador da Universidade da Califórnia em Santa Cruz pôde fazer campanha contra expressões do tipo a nip in the air [' 'uma cortada no ar"; mas nip também é um termo pejorativo para "japonês"] e a chink in one's armor [' 'uma brecha em nossa armadura"; chink também pode ser "chinês" em gíria depreciativa], alegando que essas palavras expressavam depreciação racial em outro contexto, qualquer coisa é possível; que tal abolir" árvore frutífera" por ser depreciativo aos homossexuais?> E o dilema deles torna-se pior em campus como o de Stanford, que criou códigos de discurso. Esses códigos em geral não são criados pelos estudantes, mas impostos pelos seus maiores acadêmicos do baby boom, membros de uma geração moralizadora e hipócrita tanto à direita quanto à esquerda. Como observou Nat Hentoff'," esses códigos, "todos tão imprecisos e vagos que o aluno pode violar um código sem saber que o fez", não são sempre impostos por exigência dos estudantes, pois na maioria das faculdades, é a administração que estabelece o código. Como houve insultos racistas , sexistas ou homofóbicos , notas anônimas ou pichações, a administração sente que devefazer alguma coisa . A maneira mais barata e rápida de demonstrar que está atenta é parecer suprimir o discurso racista, sexista, homofóbico.
Desta forma, o aluno pode ser punido pela lei acadêmica por ofensas verbais e quebras de etiqueta que não implicam nenhuma penalidade fora do campus, na lei real do país. Essa dissociação tem raízes numa fantasia utópica sobre a natureza e o papel das universidades: elas são, ou deviam ser, Arcádias. Mas na prática pode impedir a passagem do estudante da infância protegida para a maturidade capaz, que não é um estado arcádico. Como observou uma administradora (negra, mulher) de faculdade comunitária do Colorado, Gwen Thomas, durante uma discussão num seminário em Stanford:? Quanto a proporcionar um ambiente educacional não intimidante, nossos jovens têm de aprender a criar-se em campi universitários. Te-
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mos de ensinar-lhes a lidar com situações adversas. Ele têm de aprender a sobreviver a discursos ofensivos que achem dolorosos ou ferinos.
IV A direita americana fez uma festa com a Correção Política. Contudo, sua alegria é oca, e há alguma coisa de desagradável em seus volteios, sua pretensão de representar a "verdadeira" linguagem. Preferiríamos ficar na água a entrar no mesmo bote com a turma da Correção Política. Mas tampouco iríamos querer envergar blazers e topsiders no iate, com seus dois Buckleys de quatrocentos cavalos, alto-falantes Buchanan, bússolas Falwell & Robertson, sondas de profundidade Quayle e a quebrada bomba de porão, agora ancorado no Potomac, enquanto a tripulação discute sobre quem "realmente" perdeu a eleição de 1992. Por quê? Porque a direita está tão corroída pela ideologia defunta quanto a esquerda acadêmica. Propaganda, eufemismo e evasão são hoje tão constantemente usados pelos americanos que cruzam todas as linhas partidárias e divisões ideológicas. A arte de não responder à pergunta, de envolver realidades desagradáveis em abstração ou açúcar, tornou-se tão perfeitamente endêmica em Washington que não esperamos mais nada - a principal diferença prática é que os presidentes, congressistas, generais e executivos chefes contratam outros para escrever o material. A perda de realidade por causa de eufemismos e mentiras foi vinte vezes pior e mais influente nas declarações dos dois últimos presidentes e seus auxiliares do que entre os acadêmicos bien-pensants, embora não se encontrasse nenhuma reclamação a respeito em Commentary ou New Criterion, / Do mesmo modo como o jargão empresarial nos dava "retirada de : posições" para o crash da bolsa em 1987 e "reavaliação empresarial" para a demissão de um grande número de trabalhadores, também a Guerra do Golfo nos ensinou que arrasar um lugar com bombas era "reparar um alvo" ou "visitar um local", que bombardeá-lo repetidas vezes para ter certeza de que nem uma cobra ou -espinheir? sobreviveu era "revisitar um local". Os pruridos em relação a ammais e peixes também nos deram eufemismos afetados como "colheita" para matar, supostamente como no romance The deerharvester [literalmente, O colhedor de gamos], de Fenimore Cooper. O objetivo deles é sugerir que caçar é na verdade colher: as empresas de conservas preferem falar em "colheita" de atum, querendo dar a entender que seus previdentes executivos disseminaram sementes 32
de atum branco e xaréu e, quando estes ficam maduros, simplesmente os colhem. Contemplando a queda do comunismo, colunistas conservadores escreveram sobre um "mundo unipolar" - um exemplo refinadamente tolo da última palavra em pensamento imperialista, se acontece de a gente não ser americano - e George Bush anunciou que os Estados Unidos hoje presidiam "A Nova Ordem Mundial" . Esta expressão exaltante não significava nada. Bush deu sorte 'de o Muro de Berlim cair e o monolito soviético, com as escoras apodrecidas além de qualquer possibilidade de conserto durante os anos Brejney, desmoronar durante sua presidência. Sensatamente, ele não interveio, e deixou a liberação da Europa Oriental aos próprios europeus e russos . Mas atualmente não existe nenhuma "Nova Ordem Mundial" . Ao' contrário, temos uma intratável Nova Desordem Mundial, interligada com a Venda de Armas como Sempre, à medida que emergem todas as paixões nacionalistas e ódios religiosos congelados sob a capa de gelo imperial soviética desde 1945 - alguns, dentro da Rússia, desde 1917 - revigorados por sua siesta, impotentemente observados pelo resto da Europa e pelos raros americanos que se dão ao trabalho de procurar Sarajevo num atlas, e começam a matar. A direita tem sua própria forma de CP - Correção Patriótica, se quiserem - igualmente destinada a disfarçar verdades incômodas. Também ela tem um interesse inconfesso em manter os Estados Unidos divididos , uma estratégia cujas conseqüências podem ser piores para a comunidade nacional do que qualquer coisa de que se possa culpar a fraca e minguada esquerda americana. A polarização é viciante. É o crack da política - uma curta e intensa aceleração pela qual o sistema anseia sem parar, até começar a desmoronar. A exacerbada divisão entre "direita" e "esquerda'" nos Estados Unidos vem da perda de realidade. Não mais se enquadra na maneira como a maioria dos eleitores r.eage à política ou encara suas próprias necessidades. Na década de "60, a Nova Esquerda tentou rotular todo conservador de fascista. Na de 80, a Nova Direita chamou todo liberal de socialista - e o nome pegou. Em sua irrestrita hostilidade a tudo que descendia do New Deal, os reaganistas conseguiram associar toda intervenção do governo na vida econômica (menos o orçamento militar) a um alarmante marxismo. Depois, quando o verdadeiro marxismo desmoronou no fim da década de 80, sua morte foi apresentada como um revés arrasador para o liberalismo americano. Durante algum tempo, houve um hu33
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{ mor sombrio na visão de colunistas e editores conservadores que cantavam "Glória, glória, a União Soviética desabou por causa das ações perspicazes de Ronald Reagan", sem notar que os Estados Unidos entravam em deriva pelo mesmo motivo. Tudo isso era prestidigitação. Nos últimos quinze anos, os conservadores .american os tiveram um sucesso completo, quase sem oposição, em 'r otular como esquerdistas programas e desejos comuns que, numa sociedade política mais sadia, seriam encarados como politicamente neutros - uma extensão dos direitos implícitos na Constituição. "Sou a favor da 'política antipolítica' ", observou Václav HaveI, pouco depois de tornar-se presidente da Tchecoslováquia. "Ou seja, da política não como tecnologia do poder e manipulação do domínio cibernético sobre os seres humanos, ou como a arte do útil, mas como moralidade prática, serviço à verdade, essencialmente humana, e atenção humanamente medida aos seres humanos nossos irmãos. É [... ] uma visão, neste mundo, extremamente pouco prática e de difícil aplicação [...]" . Nos Estados Unidos de hoje, o inteligente liberal HaveI seria tão inelegível quanto o dono de escravos elitista Jefferson. Pois a idéia de "atenção humanamente medida" pelos interesses legítimos dos 'outros está se dissolvendo numa frenética busca de bodes expiatórios; a histeria em relação a feminismo) direitos dos gays e aborto inundou o discurso político com um rancor que tem poucos paralelos em outras democracias ocidentais. A vasta maioria dos homossexuais americanos não pertence a grupos militantes como Act Up ou Queer Nation; eles desprezam com razão 'as opiniões do cardeal O'Connor sobre a camisa-de-vênus - como fazemos muitos de nós, héteros - mas não perturbam a missa na catedral de Saint Patrick; simplesmente querem viver suas vidas sem ser perseguidos por sua natureza sexual. Contudo, na década de 80, seu pedido de ação do governo em relação à Aids não obteve nenhuma reação em Washington; Reagan não pronunciou esse monossílabo em público nem uma única vez, e de Bush só ouviram declarações vagas. Agora se tornaram tema de um baixo jogo de retórica, aviltados por políticos que esperam vencer apelando para preconceitos importunos. Assim, em 1992, fanáticos antigays da direita cristã no Colorado, agindo sob o nome de "Colorado em Defesa dos Valores da Família" ) conseguiram convencer seu eleitorado a revogar as leis de direitos civis existentes sobre os homossexuais. Desde então, no Colorado, os homossexuais não têm proteção contra discriminação em relação a empregos e mo34
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radias; aumentaram acentuadamente as ameaças e violências contra eles; e os esquiadores em Aspen, abrigados em suas parkas ecologicamente corretas, doe pele falsa, podem pensar que estão contribuindo para a prosperidade de um estado que hoje se encontra num ponto mais ou menos próximo 40 nível ético da política racial do Alabama na década de 50. O feminismo americano tem uma grande periferia repressiva, autocaricata e muitas vezes de uma trivialidade abissal, como a polícia do pensamento acadêmica que recentemente conseguiu fazer retirar uma reprodução da Maia desnuda, de Goya, de uma sala de aula na Universidade da Pensilvânia. Tem suas piradas puritanas como a escritora Andrea Dworkin, que encara todo sexo com homens, mesmo consentido, como uma forma politizada de estupro. Será que isso desvaloriza de algum modo o imenso desejo generalizado de milhares de americanas de reivindicar direito de igualdade com os homens, de livrar-se de importunações sexuais no local de trabalho, a conquistar os direitos reprodutivos de ser primeiro indivíduos, e depois mães? Contudo, para alguns fanáticos americanos, o feminismo é ativamente diabólico; Pat Robertson, um ex-candidato à Presidência que pode voltar a concorrer, atacou recentemente uma proposta de emenda sobre direitos iguais à Constituição do estado de Iowa como parte de uma "campanha feminista [.. .] um movimento socialista, antifamília, que encoraja as mulheres a deixar os maridos, matar os filhos , praticar bruxaria, destruir o capitalismo e tornar-se lésbicas" .8 Quando o discurso político desce a tais níveis, os fanáticos alistam-se na cruzada, mas as pessoas sensatas tendem a lavar as mãos. Havia pouco sentido, como demonstrou amplamente a eleição de 1992, em.tentar erguer uma plataforma partidária sobre os "valores familiares", quando o que preocupa de fato as pessoas são os empregos, ou em tentar vender uma campanha em favor de menos governo, que consistia em grande parte em passar a área sob controle estatal da sala de conselho empresarial para o colo do útero. Os estados tendem a parecer absurdos a seus próprios cidadãos quando tentam legislar dessa forma sobre a moralidade, sobretudo num país onde, como indicam as pesquisas de opinião, o clero é tido em mais baixa estima que os farmacêuticos. Eleitores "razoáveis" começam a desconfiar de que o papo sobre valores morais pode ser uma cortina de fumaça para a inexistência de uma política social prática. Mas é loucura política os "razoáveis" suporem que a elei35
ção de Clinton e Gore neutralize de algum modo as grandes conquistas feitas por grupos evangélicos no nível político local em 1992. Nos conselhos das escolas, nas câmaras de vereadores e nas assembléias estaduais, na verdade em todas as áreas da vida política americana fora da própria Washington, o fanatismo evangélico ganha força e vai continuar ganhando. Quando a economia americana se recuperar, talvez menor número de pessoas vote contra a política fiscal republicana e maior vote nas promessas morais de um Partido Republicano evangelizado. Os americanos inteligentes não têm motivos para complacência - a menos que queiram ver seus filhos compondo cantilenas sobre o Pecado de Sodoma e papagaiando as inanidades da "ciência criacionista", após a escola, daqui a alguns anos. A campanha fundamentalista para anular a separação constitucional entre Igreja e Estado, e disseminar a teocracia no país, tem de ser enfrentada agora por todos aqueles que se preocupam com a democracia nos Estados Unidos. Na década de 80, uma das características do panorama eleitoral era um afastamento público da política tradicional, do exercício racional ativo da cidadania. Essa tendência não é mais possível. Surgiu porque os americanos não confiavam em mais ninguém. Foi parte do cafard causado pelos anos 80. Na verdade, os partidos Republicano e Democrata vêm praticando desde 1968 duas formas de política conservadora, uma episodicamente liberal e outra agressivamente não-liberal. Ambos são partidos dos interesses da classe média alta: a última reforma tributária genuinamente progressista proposta por um presidente, por exemplo, foi a apresentada por Jimmy Carter em 1977 - e logo torpedeada pelos votos de um Congresso democrata. Todo o aparato de influência em Washington está ligado a grupos de pressão das grandes corporações, não a contribuições de pequenos grupos de cidadãos. Como mostrou eloqüentemente E. J. Dione, em seu recente livro Why Americans hate politics [Por que os americanos odeiam política] , não há bloco no Congresso ou no Senado que de fato represente as necessidades e opiniões das pessoas da enorme faixa central da vida americana na qual 'se confundem trabalhadores e classe média. No início da década de 70 , os democratas começaram a perder a confiança desse público ao se empenharem em políticas' 'liber tárias", concentrando-se cada vez mais simbolicamente nos direitos das minorias e dos pobres. Ouvindo o papo dos democratas na década de 70 e no início dos anos 80, um estrangeiro teria suposto que os Estados Unidos só tinham dois tipos de pessoas cujo destino 36
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político contava - as muito ricas e as dependentes da Previdência Social. Essa linha era um artifício de ideologia, feito de idéias de fins da década de 60. Os democratas rejeitaram seus líderes mais moderados e pragmáticos, como Henry "Scoop" Jackson, e apostaram seu futuro político na liberação cultural. Como os republicanos, em 1992, os democratas sob George McGovern tentaram fazer em 1972 uma campanha com base em valores morais - e perderam. Os trab alh ador es americanos desconfiaram dos "liberais de limusine" com sua fixação em meio ambiente, direitos femininos, direitos de aborto, integração nos transportes e ação afirmativa. Falar em racismo operário era simples demais - apenas mais uma forma de esquematizar de cima as pessoas reais, e os democratas mais jovens e mais ideologicamente liberais caíram sem parar nessa armadilha. Os trabalhadores americanos viam seus empregos e bairros ameaçados por políticas impostas de cima. E assim os republicanos puderam apresentar-se como os tribunos dos depreciados valores e símbolos do ignorado estrato intermediário, os eleitores operários que acreditavam nos Estados Uni-o dos, desconfiavam dos radicais ricos e odiavam os que queimavam a bandeira. Não se tornou imediatamente visível que os republicanos pouco estavam ligando para os interesses econômicos dessas pessoas. Quem podia prever que a política fiscal deles na década de 80 compraria uma expansão a curto prazo da economia americana ao custo de uma dívida de 4 trilhões de dólares, levando o país à recessão, ao doloroso desemprego e à aparentemente irreversível decomposição da infra-estrutura política? Pelo menos o Partido Republicano parecia ter uma política econômica, embora ela fracassasse . Foi apelidada de teoria do pinga-pinga: a receita rigidamente ideológica de que um passeio de graça para os ricos geraria dinheiro para as camadas médias e para os pobres. Os democratas não tinham nada a oferecer ao eleitorado. Não gostavam de tratar de detalhes práticos e empregos. Em vez disso, falavam sobretudo em direitos. Lançaram-se no quepareceu a milhões de eleitores americanos uma terra da fantasia onde todo pornógrafo se envolveria na toga .ieffersoniana da Primeira Emenda, e qualquer sugestão de que uma criança podia ter mais chance de felicidade e crescimento se fosse criada por dois pais que a amassem, a ela e um ao outro, podia ser desprezada por algum ideólogo da esquerda recém-saído de uma comuna em Vermont. Assim, nas palavras de Dione: O moralismo da esquerda cegou-a para as origens legítimas da cólera da classe média. A revolta da classe média contra um fardo de impostos
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cada vez mais pesado não foi uma manifestação de egoísmo , mas uma reação às dificuldades para manter um padrão de vida de classe média. A cólera com as crescentes taxas de crim inalidade não era uma forma encoberta de racismo, mas uma autêntica expressão de medo [... ] A impaciência com os programas de assistência social às vezes resultava de preconceito racial, mas também era uma exigência de que se fizesse com que certas regras básicas sobre o valor do trabalho fossem aplicadas a todos. Os que falavam em "valores tradicionais da família" não eram necessariamente fanáticos [... ]
ao contrário da maioria de seus colegas vigaristas nessa tramóia tenha ido para a cadeia por isso. O reaganismo fez mais para desamarrar o comércio americano de seus mourões tradicionais do que qualquer ideologia política na história do país. Essa orgia, que culminou no escândalo do Lincoln Savings and Loan, não foi no início contestada pelo público - sobretudo porque o governo manteve o público na ignorância do que acontecia. Por consentimento mútuo dos dois grupos rivais, a impalatável verdade de que os contribuintes teriam de arcar com várias centenas de bilhões de dólares para resgatar o sistema de poupança só foi anunciada pouco depois da eleição de 1988. De qualquer forma, os números eram t ã o astronômicos que transcendiam a capacidade de compreensão da maioria das pessoas. Os novos heróis do mundo dos negócios, os piratas empresariais e traficantes de moedas podres - Michael Milken, Ivan Boesky, . Kohlberg Kravis - explodiram o reiacionamento comercial tradicional entre investidor, empregado e cliente; os únicos interesses que contavam, na nova atmosfera de compra e destruição manipuladas de empresas, eram os dos investidores e seus agentes. Isso não era conservadorismo. Parecia mais jacobinismo - uma forma desenfreadamente abstrata de revolução fiscal por atos, em que toda empresa, qualquer que fosse sua base nas práticas e princípios anteriores, era levada à guilhotina do crédito. Como disse Michael Thomas:?
Havia uma brecha nos valores pela qual se podia fazer passar um caminhão, e os republicanos o passaram, com isso conseguindo um grande e útil bloco eleitoral de "democratas de Reagan". Mas essa realiança está se revelando instável, agora que os resultados de fato da campanha dos republicanos em favor de um incontido laissez faire estão aí: o maior déficit, o mais paralisante ônus de dívida com credores estrangeiros e a maior discrepância entre rendas alta e média que já afligiram o país . Os reaganistas falavam tranqüilizadoramente em um retorno aos valores tradicionais americanos, contratos morais e coisas semelhantes. Mostraram pouca noção de um contrato moral com os afro-americanos, porque o Partido Republicano tinha visto onde estavam os eleitores: nos bairros residenciais brancos, não nos centros negros das cidades. Daí o erro venenoso das presidências de Reagan e Bush: sua "estratégia sulista" de acomodação em relação ao que era mais racialmente divisivo nos Estados Unidos, sua relutância a tratar os negros como americanos. Qualquer unidade que propuseram não passava da capciosa unidade do nós-contra-eles. O famoso anúncio de William Horton, que afundou a campanha de Dukakis em 1988, foi apenas a ponta desse iceberg de fracasso moral. A "moralidade" do Partido Republicano girava em torno de sexo e honrar pai e mãe, e evitava com muito tato outros mandamentos, sobretudo o que se refere ao roubo. Assim, uma das figuras prototípicas da época foi Charles Keating, um comerciante de Cincinatti, de queixo pontudo, olhos penetrantes e aparentando a mais pura ética de ás das vendas. Keating co -fundou a Coalizão Nacional Contra a Pornografia, com a intenção de salvar os inocentes das garras do Demônio, e tornou-se um grande agitador em defesa dos "valores morais tradiCionais" no Meio-Oeste. Só depois se percebeu por que Keating tinha tanto interesse em preservar a inocência americana: roubou milhões de dólares de pessoas inocentes manipulando as poupanças do Lincoln Savings and Loan, embora -
A década de 80 trouxe a realização do soturno aforismo de Kenneth Galbraith sobre o afastamento dos Estados Unidos da lembrança das políticas do New Deal. Opulência privada, indigência pública. O papel tradicional da arquitetura pública numa democracia - de lembrar ao cidadão que ele ou ela é a razão do Estado, e não o contrário - foi eliminado do roteiro cultural. Os Estados Unidos pareciam não ter nenhum grande projeto de edifício ou obra pública a mostrar pela década de 80. Onde estavam aquelas estruturas que haviam comovido o coração social e estimulado sua consciên-
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. Nessas condições, o próprio tempo se divide em partes discretas . Uma empresa que lançou suas raízes no comércio e na comunidade durante um século pode ser desmontada por um artista da encampação em questão de semanas. Cada dia é inteiramente outro, a roda sujeita a interminável reinvenção . Não é preciso coerência, porque não há vantagem na coerência. A ação é tudo [...] O julgamento crítico é neutralizado pela celebridade, a censura desmorona diante do sucesso.
cia cívica das décadas de 1880 à de 1930 - os símbolos da América prometéica, a ponte do Brooklyn, o Golden Gate, o Empire State Building, ou, por falar nisso, a Assembléia Estadual da Lousiana de Huey Long? Em lugar nenhum - só uma sucessão de geométricas confecções pós-modernistas de Philip Johnson e seus jovens arquitetos preferidos, os Ralph Laurens defensores dos frontões da profissão: memoriais da espessura de fórmica à vaidade desse ou daquele pirata empresarial, trumperia dourada, propaganda visual para o império do Pato Donald. Turistas culturais iam a Nova York contemplar seus monumentos passados , como antes iam a Roma; mas agora viam apenas discotecas, galerias, tendências, a superfície brilhantemente turva da moda. Todas as partes do exoesqueleto público dos Estados Unidos viviam um tempo emprestado: rebites saltando da ponte de Williamsburg, concreto desprendendo-se de viadutos, ruas piores que as de Istambul, escolas caindo aos pedaços, aeroportos indigentes: De vez em quando, nas entranhas senis de Manhattan, uma adutora estourava, paralisando o metrô; ou em Chicago o rio encontrava um ponto fraco em seus túneis subterrâneos, e um conserto que poderia custar 25 mil dólares (se a burocracia o tivesse feito a tempo) de repente tornava-se uma inundação que interrompia a energia de todo o centro da cidade. Essas m.etáforas de decadência eram pungentes; tornavam vívido um difuso senso de enfropia em meio a chocantes desproporções de riqueza, um vazio no núcleo cultural, um recuo da responsabilidade pública.
v Enquanto isso, o senso de cidadania comum dissolvia-se em uma confusão de questões que possibilitam aos americanos tomar posições inegociáveis sobre assuntos menores, agora que não mais podem definir-se contra o Grande Assunto da Guerra Fria. Nas palavras de William Greider, "a maioria [dos cidadãos americanos] não consegue imaginar a possibilidade de estabelecer uma relação contínua com o poder - um sistema político que lhes possibilitasse participar dos processos governamentais e confiar em seus resultados" . O senso de possibilidade democrática foi "encolhido".lO O número de americanos que votaram nas eleições presidenciais caiu constantemente de um pico de 63 por cento em 1960 para apenas metade do eleitorado - 50,1 por cento em"1988. As eleições de 1992 registraram um modesto aumento: uma sensação de urgência em re40
lação a uma economia doente, e o apelo desviante de Ross Perot a pessoas que se sentiam cortadas da Política de Sempre, levaram 104 milhões de cidadãos, representando 55 por cento da população" habilitada a votar, às urnas. Embora encorajador, esse número dificilmente representou um súbito recrudescimento do empenho cívico após as duas últimas décadas de indiferença do eleitor; só devolveu o comparecimento ao seu nível de 1972. Uma tal apatia espanta os europeus e, devo acrescentar, os australianos. Por que tantos cidadãos da mais antiga democracia do mundo não votam quando podem, numa época em que a luta pela democracia na Europa e por todo o resto do mundo atingiu seu nível mais crucial e inspirador desde 1848? Em parte, trata-se de um problema administrativo - o desaparecimento da velha máquina partidária e do sistema distrital, cujo último vestígio foi Chicago sob o prefeito Daley. Quaisquer que fossem seus abusos, estes levavam as pessoas, rua-a-rua, casa-a-casa, às urnas eleitorais. Seus sistemas de patronato ajudavam a vincular o povo americano, sobretudo os trabalhadores e a baixa classe média, à crença de que, como cidadãos, tinham um papel a desempenhar na direção de seu país de baixo para cima, distrito por distrito. Tal sistema reforçava o senso de democracia participativa, Sem ele, os pobres deixaram de ir às urnas, pois passaram a acreditar que ninguém em Washington os representava ou podia representar. Quanto menos os pobres votam, mais o partido dos ricos se beneficia. Isso produziu uma espiral viciosa, e as técnicas eleitorais americanas foram reformuladas de modo a passarem ao largo do terço inferior da sociedade, exceto quando este podia ser seletivamente agitado por ameaças de desemprego ou apelos velados ao racismo da classe operária. Um dos grandes desafios que o governo Clinton enfrenta é o de devolver à democracia participativa os significados que ela em parte perdeu - ou sej a, o de atrair todos os americanos de volta ao processo político . O fato de Clinton ter sido eleito, em si, não é garantia disso; mas pelo menos há motivo de esperança. Hámuito terreno a reconquistar . Em fins da década de 70, o . cidadão americano começava a tornar-se um espectador passivo dos acontecimentos políticos, servidos em pequenas doses entre comerciais . A rede de televisão americana é em sua maior parte lixo destinado a produzir escassez de realidade, e estima-se que o americano médio veja sete ou oito horas dessa coisa por dia. Não admira que
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o ato de votar a cada quatro anos parecesse significar menos, e que menos pessoas fossem às urnas praticá-Io . Na primeira eleição livre após a morte de Franco, quase 80 por cento do eleitorado da Espanha votaram. Se 80 por cento dos eleitores americanos votassem, como faziam regularmente nos velhos tempos difíceis da política de palanque improvisado entre 1840 e 1910, isso seria uma revolução populista; significaria que os americanos de fato apreciam a democracia, em vez de ficarem parados emitindo .ru íd os patrióticos e exortando outros países a adotarem o regime democrático, países que não raro o valorizam mais através do voto que os próprios americanos. Mas foi apenas ruído patriótico o que se obteve de Washington na década de 80. E quem pode honestamente dizer que não está farto disso? A face pública da política dissolveu-se em" teatro: um drama banal de otimismo fabricado, fogos de artifício e balés de sósias de Elvis Presley na Estátua da Liberdade, guerrinhas cosméticas em Granada e no Panamá para simular as doçuras da vitória depois do gosto amargo do Vietnã. Na década de 80, como jamais antes nos Estados Unidos, vimos a arte de governar fundir-se com a administração de imagem. Coisas demais nessa república supostamente aberta foram feitas longe das vistas dos cidadãos. Ou foram apresentadas em termos que zombavam da inteligência pública por sua brevidade e simplicidade de desenho animado . Isso ficou conhecido como "Dei. xar Reagan ser Reagan" , e combinava perfeitamente com os ditames da TV. Assim, as próprias palavras que descreviam a nossa compreensão dos fatos mudaram: uma das baixas, entre dezenas de outras, foi "percepção", que antes sugeria o ato de ver as coisas com nitidez, mas na década de 80 passou a significar' 'noção" e finalmente "ilusão" ou "erro estúpido". A instalação pela Presidência de ofuscantes refletores teatrais diante das águas turvas tinha alguma coisa a ver com o antigo ideal americano de democracia aberta? O poder protegido da crx e os acontecimentos do caso Irã-Contras transformaram em piada a concepção de transparência governamental e responsabilidade cívica que inspirou Jefferson e Madison a combaterem a repressiva Lei de Sedição de J ohn Adams em 1798. A face pública da política, e sobretudo da Presidência, foi radicalmente revisada para adequar-se a um alcance de atenção pública abreviado pela TV. Quanto mais debate, e mais acirrado, mais pessoas votam. Por isso não se debateu: produziram-se unidades de som, memoráveis ícones de umas poucas sílabas. Não se aparecia: ofereciam-se oportunidades de fazerem-se fotos. Ninguém escrevia
seus próprios discursos; em vez disso, contratavam-se escribas para produzir uma prosa retórica vívida e vulgar, cuj a função era criar um personagem presidencial. Em certo sentido, o presidente era TV - o mais bem-sucedido- âncora do mundo. Ele esqueceu alguma coisa? Não importa: a TV está aí para ajudar a esquecer. Mentiu? Ora, deixa pra lá. Talvez tenha apenas esquecido. Ou "expressou-se mal". A telinha é a musa da passividade. Com sonambulística eficiência, Reagan reduziu a educação americana ao seu nível. Deixou seu país um pouco mais burro, em 1988, do que era em 1980, e muito mais tolerante com as mentiras, porque seu estilo de apresentação de imagem cortou o tecido conectivo de disputa entre as idéias e com isso promoveu a derrota do próprio pensamento. Quando se apresentou perante os convencionais republicanos desenfreadamente entusiásticos em Houston, em 1992, citou um trecho de Lincoln - "Não se pode fortalecer os fracos enfraquecendo os fortes" - que não tinha sido escrito por Lincoln. O autor era um clérigo da Pensilvânia chamado William Boetke,· que rabiscou isso uns 45 anos após a morte de Lincoln. Mas quem ia conferir? Para os fãs de Reagan, a idéia de que deve haver, ou talvez possa haver, alguma ligação necessária entre a citação e a fonte parecia impertinente frente à memória de sua Presidência. Essa não era uma estrutura de caráter presidencial que J efferson ou Lincoln pudessem imaginar - ou sentir por ela o menor respeito . Reformulada para a TV como nunca havia sido, a imagem presidencial saía da telinha e voltava direto para ela de novo: porque as redes a adoravam, e a imprensa - a maior parte, pelo menos - não ficava muito atrás, porque aqueles tropos, truques e abreviações eram dela própria, parte de uma inconsútil cultura do espetáculo. Política de celebridade para uma era de jornalismo de celebridades. O que começou com os Kennedy atingiu o clímax com os Reagan - a fixação na pessoa presidencial como um rei substituto, não mais o primus inter pares, o primeiro entre iguais, tão radicalmente previsto pelos fundadores da República. Mas onde estava o cidadão? De fora, como as platéias nos espetáculos. Bush não tinha o consolador poder histriânico de Reagan, e para sua infelicidade as contas acumuladas pela economia reaganista começaram a vencer durante sua Presidência. Em agosto de .1992, o Partido Republicano viu-se ficar seriamente para trás nas pesquisas de opinião, sem uma política econâmica plausível, incapaz de enfrentar o enorme e crescente déficit dos Estados Unidos. Pouca coisa de substancial podia prometer ao eleitorado de classe operária
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a classe média, preocupado com seus empregos e seus modestos investimentos diante de uma hiante inflação. Mesmo assim, o partido tinha de montar uma convenção em Houston que revertesse o sucesso da convenção democrata poucas semanas antes em Nova York. Em grande parte, os republicanos estavam nos mesmos apuros com o público votante em que o Partido Conservador, liderado por John Major, estivera nas eleições de 1992, na Grã-Bretanha. Recorreram à mesma estratégia de divisão, partindo para a jugular de medo e desconfiança, embora com um toque peculiarmente americano que revivia os espectros de intolerância direitista das décadas de 20 e 50 - e precisamente com a mesma Iinguagem. Clinton e Gore haviam-se apropriado do jargão de Recuperação e terapia de grupo para o tom de sua campanha; entraram de leve, dramatizando "preocupação" e "cura". Num momento de sen- . timentalismo particularmente arrepiante, Gore contou que seu filho fora atropelado por um carro, que ele olhara nos olhos do filho a pairar entre a vida e a morteeaquilo, irmãos democratas e cidadãos alienados lá fora, fora como olhar os Estados Unidos hoje. Do mesmo modo como se viam outrora as sombras oratórias de Demóstenes e Burke por trás dos discursos de Churchil1, viam-se as de Oprab. Winfrey e Robert Bly acima do pódio dos democratas no Madison Square Garden . Mas a branda repugnância provocada por essa imagística não foi nada em comparação à grossura retórica da convenção republicana. Em Houston, a "grande tenda" sob cuja ampla lona iriam reunirse todos os tipos e graus de pensamento conservador tornou-se o local de uma assembléia revivalista. A estratégia era buscar reflexos profundos com palavras-chave, apelar mais para o preconceito do que para a razão ou para o interesse pessoal. A plataforma do Partido Republicano não deixou nada no terreno médio ; foi apenas ansioso fanatismo bruto, destinado a separar os Estados Unidos em "nós" e "eles" . A chave para isso não era a política econômica, claro; nem mesmo a política internacional, embora muito se explorasse a ilusória vitória de Bush sobre Saddam Hussein, e houvesse as habituais alegações de que a queda do comunismo na Rússia, Alemanha, Tchecoslováquia, Hungria, Polônia e no Báltico tinha muito menos a ver com os russos, alemães, tchecos, húngaros, poloneses e bálticos do que com as ações de George Bush na Casa Branca. Não, o tom foi moral; foram os "valores familiares". Esta expressão era um clichê coercitivo antes do início da convenção repu-
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blicana, e no terceiro dia nem mesmo a pessoa mais bem casada podia ouvi-la sem estremecer. Pois se a direita americana tinha o monopólio das virtudes da família nuclear, e sabia como restaurá-las numa época de suposta decadência, como é que elas tinham ido para o brejo nos últimos doze anos de ininterrupto poder republicano? Melhor não perguntar. Havia uns Estados Unidos reais, um país autêntico, que detinha esses "valores familiares". Seus paladinos eram George Bush, Dan Quayle e a direita religiosa. Havia uns Es tados Unidos falsos, um país pervertido e cínico, que não os tinha. Seus agentes visíveis eram os liberais e seus amigos: homossexuais, feministas, malucos e excêntricos, Hollywood e os "meios de comunicação", o que significa todos os jornalistas, da imprensa impressa ou eletrônica, menos aquele ao qual o vice-presidente ou seus assessores davam entrevista no momento . (' 'Não me refiro a pessoas objetivas e responsáveis da imprensa como você, Bill, mas [... ]") Algumas dessas pessoas na verdade não existiam no mundo real: assim, Quayle pôde atacar uma personagem fictícia, Murpb.y Brown, por ter um bebê fora dos laços matrimoniais - mais ou menos co.mo um insatisfeito elizabetano poderia ter citado Doll Tearsheet, a prostituta em Henrique IV, como prova da decadência moral em Hampton Court. Reaise irreais, essas pessoas constituíam uma " elite cultural" ; cuja missão era desacreditar e destruir os "valores fami.liares" dos Estados Unidos reais . Para anunciar o combate, Patrick Buchanan, recente adversário republicano de Bush, foi chamado ao pódio. Ele fez um discurso tão áspero e divisivo que não ficaria deslocado no Reichstag em 1932. Não continha nada que Buchanan não houvesse dito cem vezes antes: a mesma pútrida mistura de pau nos gays, preconceito racial muito pouco velado, negra paranóia irlandesa e populismo autoritário continuou a borbulhar por baixo da superfície de homem comum. Duas décadas antes, John MitcheI, o procurador da República mais corrupto que os americanos já tiveram, chamou isso de "polarização positiva"; e Pat Buchanan, então um jovem. redator de discursos de Richard Nixon, enviou a seu presidente um memorando sobre os usos da política de dividir para dominar: "Se rasgarmos o país pela metade, podemos ficar com a metade maior'.'. Isso estava inteiramente dentro do espírito do herói da infância de Buchanan, Joe McCarthy. Para dividir uma comunidade, deve-se ter bodes expiatórios e obj etos de ódio - caricaturas humanas que dramatizam a diferença entre Eles e Nós. Se alguma parte de uma estratégia política pode girar, como gira agora, em torno do ato de
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inflamar o preconceito público contra homossexuais e negar-lhes certos direitos como classe ou grupo, então que seja; e tanto pior para as pessoas às quais Buchanan chamara antes de promotores de "satanismo e suicídio", "pervertidos", "destrutivos", um "proletariado pederasta" - todos aqueles ciciantes exércitos da noite lá fora, esgueirando-se para junto de seus filhos, e não apenas de adultos que consenteml O aliadozinho de Deus, o vírus da Aids, era "castigo divino" contra essas pessoas, do mesmo modo como, para o pregador fundamentalista da década de 20, a espiroqueta e o gonococo tinham sido lançados contra o devasso e o sedutor por um Deus ofendido. Nada havia mudado. ;
VI Mas também, por que iria mudar? Além dos meios enormemente mais eficientes de disseminação, os bancos de dados, fax, aparelhos para pesquisa de opinião instantânea e outros instrumentos de info-blitz, pouco de novo existe sobre essas efusões de intolerância patriótica e religiosa, ou sobre as senhas para anunciá-las. Nem foi uma completa surpresa o fato de o eleitorado americano, mais sábio do que muitas vezes supõem os sabichões, os ter rejeitado e votado, em vez disso, sobre questões mais concretas - sobretudo a deprimida economia. Esses movimentos, essas formas de retórica surgem nos Estados Unidos sempre que é iminente uma mudança profunda. Na década de 1890, os populistas buscaram enfrentar a confusa identidade de um país em radical fluxo de imigração com seu virulento anti-semitismo, .seu nativismo e seu fanatismo religioso. Os objetos de ódio eram os imigrantes recentes, judeus e católicos irlandeses, mais do que os "liberais" propriamente ditos. Precisamente porque os Estados Unidos são um país de imigrantes, são os chegados antes, agora enraizados, que sempre resistem à irrupção dos novos estrangeiros. Essa angústia encontrava-se em todos os níveis da cultura americana no fim do século, de alto a baixo, exatamente como hoje. Os irlandeses tinham Tammany Hall, os judeus ressentidos a ele se opunham; em 1902, um cortejo fúnebre judeu, passando por um bairro industrial irlandês de Nova York, foi apedrejado com peças de máquinas e cerca de duzentos participantes judeus foram derrubados a golpes de cassetete por policiais irlandeses. 11 Noventa anos depois, cenas idênticas de intolerância contra o "estran-
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geiro não assimilado", desta vez envolvendo judeus e negros, ocorreriam no Brooklyn. Na década de 20, mais uma vez, devido ao crescimento da grande indústria, o rápido aumento das cidades e um novo influxo de milhões de católicos e judeus europeus, os protestantes tradicionais cerraram fileira contra o "estrangeiro"; o WASP [White Anglo-Saxon Protestant, protestante branco anglo-saxônico] achou, nas palavras de Lipset e Raab, que" estava perdendo o controle da sociedade que -. seu pai tinha dominado e que ele esperava herdar como direito de nascença" .12 Esse impulso defensivo foi mais forte sobretudo entre os fundamentalistas cristãos no "coração do país", que se sentiram ameaçados pela crescente dominação da "cultura da cidade" e pela maneira como o relativismo e a ciência estavam afrouxando a aceitação americana da verdade bíblica revelada. O "julgamento do macaco", em que J. T. Scopes, um professor do Tennessee, foi acusado por expor a teoria da evolução de Darwin a seus alunos, foi só o sinal mais visível de uma reação nacional contra o pluralismo. A idéia de que muitas posições morais e intelectuais podem coexistir no quadro da democracia repugnava a esses monistas americanos, . que desejavam apenas uma ortodoxia, uma verdade revelada. Para eles, na década de 20 como na de 90, a discordância era ilegítima e o "mercado de idéias", inválido. O extremo disso foi resumido numa observação apócrifa, atribuída a um pregador batista, de que um homem só precisava de um livro em sua estante: pois se uma idéia estava na Bíblia, não se precisava mais buscá-la, e se não estava, é que era errada mesmo. A linha monista ("verdade única") vai exatamente contra a sábia prescrição de Thomas Jefferson: "Se houver alguém entre nós que deseje dissolver esta União ou mudar sua forma republicana, que se erga tranqüilo como um monumento da segurança com que o erro de opinião pode ser tolerado onde a razão tem liberdade para combatê-lo" . Hoje, os Estados Unidos não.estão recuando para a década de 20 ou para os anos de macartismo da de 50. Como esporos de fungos no solo, essas tendências repressivas estão sempre aí, sempre latentes, e capazes de frutificar da noite para o dia quando ocorrem as condições certas. Seu aparecimento é cíclico, e sua tenacidade esvazia o nosso otimismo sobre o progresso moral nos Estados Unidos do século xx. Mas os objetos nos quais elas se fixam podem mudar, já que esse tipo de reação ultraconservadora vive através da personificação de temores sociais do Outro; os efeitos de Joseph McCarthy sobre o moral social americano pouco tiveram a ver com o
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número de comunistas que ele de fato encontrou no governo, e sim com os meios que encontrou para romper a comunidade americana, projetando uma forma de pavor meio humana, meio demoníaca sobre a amorfa ansiedade de sua época. Havia agentes soviéticos nos Estados Unidos, embora agora pareça bastante certo que Alger Hiss não fosse UIU deles; parte dos meios de comunicação se tornara "mole com o comunismo" graças à tendência pró-soviética de alguns repórteres e editores; espiões roubaram segredos atômicos; e havia traidores em ação. Muitos liberais nos Estados Unidos fecharam os olhos para as atrozes realidades do governo de Stalin e Mao, do mesmo modo como seus equivalentes fizeram na França e na Itália, e continuariam a fazer por toda a década de 60 e mesmo pelos anos 70 adentro. Mas nada disso explica exatamente a intensidade da caça às bruxas macartista, seu poder apocalíptico sobre a imaginação americana. O sucesso de McCarthy estava em abrir as imensas reservas de monismo americano, a de há muito acumulada intolerância nativista com a diferença, e deixar que isso agisse sobre a questão especificamente ideológica de comunismo versus democracia liberal no momento mesmo em que os Estados Unidos iam à guerra contra um regime comunista, o da Coréia do Norte. O macartismo foi menos um movimento político do que uma Cruzada das Crianças, um acontecimento irracional, quase religioso. Deveu o sucesso inicial e o eventual colapso à vaguidão de seus alvos, sem corpos nem nomes. O macartismo, oportunista po r natureza, tinha um foco indistinto. Que americanos encarnavam as idéias inimigas? "O mais próximo que McCarthy chegou de identificar um grupo como esse inimigo nos Estados Unidos", observaram Lipset e Raab, "foi seu ataque à elite."l3 A elite - ou seja, os ricos, bem-educados, os mais inteligentes e melhores entre os WASP do leste - "tem vendido o país", declarou McCarthy, com seus " at os traiçoeiros". Lançar a culpa em uma elite, ou declarar que os inimigos constituem uma elite, é uma das mais velhas ferramentas do arsenal demagógico. As elites são esnobes, sem contato com o povo, arrogantes, cheias de segredos e simplesmente não-americanas. Melhor ainda, seus membros não precisam ser identificados. Em 1992, pouco depois de o vice-presidente alarmar os pombais com seu discurso sobre a "elite cultural", um entrevistador de TV pediu-lhe que identificasse alguns dos membros dessa elite. Ele recusou-se, acrescentando esquivamente que' 'todos nós sabemos quem são".
Com o fim do comunismo, a política de divisão precisa de outros grupos "de fora" ou "desviantes" para malhar, como os homossexuais. Também precisa de pessoas ou símbolos para idealizar. Daí as tentativas de reclamar a bandeira para "nós" , a direita americana sozinha; de fetichizá-la a ponto de torná-la não apenas um símbolo nacional, mas uma espécie de eucaristia, tão sacrossanta que tem de ter uma emenda constitucional (nada menos!) para protegê-la contra maus usos. Daí, também, a bizarra política e imagística do novo Corpo Sacrificado do conservadorismo americano, o feto. Quando a pessoa que sitia a clínica de aborto se declara' 'próvida", podemos ter certeza de que não se preocupa com a vida da adolescente grávida apavorada; o que está em causa não é tanto a sobrevivência do feto quanto a questão do grau de controle masculino sobre o corpo da mulher que esta sociedade vai conceder . Pois sem o direito de escolher o aborto ou a gravidez, a idéia de oportunidade igual para a mulher se acaba: o mecanismo involuntário do ovário e do útero sempre dificultará a busca por ela de diplomas, cargos, empregos e tempo livre. A crescente obsessão conservadora com a legislação contra a "escolha" , tentando empurrar uma grave decisão moral inerentemente pessoal para a esfera da lei pública, só pode revelar-se, no fim, uma tragédia para os interesses conservadores. Vai ser para eles o que a severa doutrina católica romana sobre anticoncepção foi para a Igrej a católica. A imagem do feto estabeleceu uma estranha presença na cultura popular americana, sem paralelos em qualquer outra parte do Ocidente. Fez um bizarro aparecimento nas cerimônias de encerramento dos Jogos Olímpicos de 1992 em Barcelona, saltitando no palco do estádio Montjuic, com uns dois metros e meio de altura, aparentemente feito de espuma de plástico, movido por um dançarino no seu interior. Aquele, anunciou o locutor, era "Whatizit" [Queéisso], emblema oficial dos Jogos Olímpicos de Atlantaem 1996. Mem"bras minúsculos, olhos saltados, corpo desproporcional, um vestígio de cauda em que os cinco círculos olímpicos se entrelaçavam timidamente como num jogo de argolas. O que Walt Disney fez com o pato, uma equipe de desenhistas americanos fizera com o feto. O fetiche da direita religiosa é agora uma mascote olímpica. Não admira que os catalães tenham ficado perplexos. Será que isso prenuncia uma onda de Fetus Chie para 1996? É improvável, mas haverá milhões de souvenirs Whatizit, como houve milhões de Cobis em Barcelona - fetos alfinetes de lapela, fetos "
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promovendo a Coca-Cola, fetos infláveis, fetos fofos forrados de plush sintético, pequenos pesos de papel fetais. É só fechar os olhos e ver um novo hotel projetado por Michael Graves, o frontão sustentado por cariátides fetais, todas com a forma de Whatizit. Essa perspectiva sugere a profundidade que a imagem do feto alcançou no estranho ensopado que é a consciência dos meios de comunicação americanos: um terço do país obcecado com o Não-Nascido e outro terço com sua Criança Interior . Será que os desenhistas se reuniram com um comitê do Atlanta 96 e decidiram fazer um logotipo dos Jogos na forma de um feto? Parece improvável. Os fetos não sugerem esportes. São, em geral, tão antiatléticos quanto pequenos paxás. Refestelados em seu fluido amniótico, não praticam o nado borboleta nem o crawl australiano; nem sequer coÍneçam a chutar - quanto mais saltar, correr extensos períodos, pedalar ou dar sinais de eficiência no tiro ao alvo - enquanto não são quase bebês. Não, Whatizit não é uma imagem conspícua; é um fantasma do Zeitgeist, um caso de transbordamento, ou precipitação, da sobrecarga de feto na cultura popular. Os semiólogos, se quiséssemos fantasiar a respeito, o chamariam de um significante flutuante. Não existiria sem os manifestantes brandindo seus bebês de plástico diante das clínicas de aborto no noticiário das seis; sem os dois Pats da direita fanática, Robertson e Buchanan, arengando sobre a inocência: Só nos Estados Unidos poderia um feto passar com tanta rapidez de símbolo de uma "guerra cultural" a logotipo de um acontecimento esportivo. Whatizit é um lembrete bonitinho de uma questão nem um pouco bonitinha. É por isso que' Whatizit vai. se tornar bastante importuno à medida que se aproximarem as Olimpíadas, e gratuitamente incômodo. Já me aborrece, e só o vi uma vez até agora - mas também, como excatólico, me irrito facilmente com essas coisas. No quadro relativamente simples e absolutista da educação católica na Austrália irlandesa de quarenta anos atrás, não havia a enorme ambigüidade a respeito do aborto que há hoje nos Estados Unidos; acreditava-se simplesmente que aborto era assassinato, impensável, tout court, sem discussão, ao passo que a ênfase estava na anticoncepção e no "direito à vida" do espermatozóide. Entupidos de rebelde testosterona, duzentos de nós, meninos, nos sentávamos na capela do internato ouvindo um padre expor a teologia moral disso. Aprendíamos que Deus tinha nos dado o impulso sexual por dois motivos. O primeiro era assegurar a propagação da espécie. O segundo era dar prazer, mantendo com isso os casamentos legítimos. Era errado evitar
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o primeiro objetivo de Deus para obter o segundo, sobretudo se não se era casado. Objetivos primários, objetivos secundários: esse árido sofisma, criado por teólogos celibatários, ajudou a expulsar incontáveis católicos da Igreja. A masturbação podia não nos deixar cegos, nem fazer um único fio de cabelo brotar, inexorável, da palma da mão - os jesuítas, em geral, estavam acima dessa grosseira tática de amedrontamento protestante. Mas todo esperma, sendo um ser humano potencial, era sagrado: parecendo mais um girino agora, mas capaz de tornar-se numa pessoa uma vez que atingisse um óvulo, e portanto devendo ser honrado e preservado juntamente com seus milhões de irmãos. Toda vez que nos masturbávamos, ocorria um massacre de futuros católicos tão pequenos que um milhão deles podiam dançar , ou pelo menos rabear, na cabeça de um alfinete. O verdadeiro problema da masturbação era que representava uma inversão da ordem cósmica - e a anticoncepção era ainda pior. A idéia de que uma pequena parte da ordem cósmica dependia de nossa vontade adolescente era um fardo pesado para nós, jovens soldados do exército de Cristo de Santo Inácio. Em alguns de nós, incluindo o praça Hughes, isso provocava uma espécie de culpa sufocante que levava ao ceticismo: se Deus estava tão ocupado contando espermas, e tão aparentemente despreocupado em impedir as fomes, epidemias e massacres do mundo, seria Ele digno de se adorar? Estaria Elemesmo ali? Do altar, não vinha resposta alguma. Alguma coisa desse fetichismo continua a assombrar o debate sobre o aborto - a ponto de o cardeal O'Connor, num discurso à convenção anual dos Cavaleiros de Colombo em Nova York, em agosto de 1992, sentir-se levado a propor que se erguesse um "túmulo da criança não-nascida" em todas as dioceses católicas dos Es-.: tados Unidos. Este, e não as Olimpíadas, devia ser o lugar certo para Whatizit. Devemos pôr o feto de três meses, ou mesmo .o embrião, esse pedaço insensível de tecido organizado ligado à parede do útero, acima dos interesses da mãe não por causa do que ele é, mas pelo que pode tornar-se. O objetivo primário das mulheres é ser mãe e assegurar a continuação da espécie; o secundário é ser uma pessoa auto-suficiente, com direitos sobre o que quer que seu corpo contenha; se os dois entram em conflito, o segundo deve perder. Esta é a lei férrea da abstração. Nenhuma pessoa decente sugere que o aborto não apresenta uma grave escolha moral, mas toda a questão é que essa escolha deve ser feita pela mãe, e não negada a ela pelo Estado. Ninguém - a não ser os que acreditam, sem prova algu-
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ma, que uma alma imortal realmente se implanta no embrião no momento da concepção, dotando-o assim de completa humanidadepode dizer em que ponto um embrião se torna um ser humano . A inocência dos fetos não está em dúvida. Mas é irrelevante: as alfaces também são inocentes. Os fetos não pecam porque não podem. Não podem porque, pelo menos até onde se pode detectar, não têm livre arbítrio e não lhes são apresentadas ocasiões de pecar. O útero não tem tentações . É como o Jardim do Éden, antes da serpente. Supostamente é por isso que os antiaborcionistas, com seu jargão PC de inocência e potencial, preferem o não-nascido ao nascido: no ato de nascer, caímos num mundo imperfeito, ao passo que o feto, como a distintamente não-nascida Criança Estrela cercada por um âmnio de luz no 2001 de Kubrick, é o emissário de um mundo perfeito - o estado uterino, o Útero com Vista, diante do que nossos caros confortos, dos sofás às piscinas com aquecimento, são apenas metáforas. Este pode ser um dos motivos pelos quais a oposição ao aborto se torna mais extrema à medida que as circunstâncias materiais dos Estados Unidos se tornam piores. Há apenas vinte anos, quando Philip Roth publicou Our gang, sua sátira maravilhosamente corrosiva contra Richard Nixon, ele imaginou o presidente preparando-se para concorrer ao cargo com os votos dos "embriões e fetos deste país" - que se lembrarão agradecidos daquele que lutou por eles, enquanto outros tratavam de problemas mais populares e da moda na época. Acho que se lembrarão de quem foi que se dedicou, em meio a uma guerra externa e a uma crise racial interna, a tornar este país um lugar adequado para os não-nascidos viverem com orgulho.
Quase não houve um crítico literário nos Estados Unidos que não atacasse Roth por exagerar, excedendo os limites permissíveis da sátira, e o resto. (A revista Time, entre outros, recusou-se até mesmo a criticá-lo.) Cabalar votos fetais! Quem já ouvira falar disso? Our gang foi a única sátira escrita por um americano moderno digna de comparar-se a A modest proposal de Swift. Mas, ao contrário da visão swiftiana de uma esfomeada Irlanda alimentada com a carne de seu excedente de bebês ("Um Americano muito bem informado me assegurou [...] que uma Criança saudável bem Amamentada é, com um ano de Idade, uma Comida muitíssimo deliciosa, nutritiva e integral"), a de Roth, de uma maneira geral, realizou-se. Há momentos nos Estados Unidos em que a realidade ultrapassa 52
os poderes da sátira, e a "questão do aborto" - ou pelo menos assim achávamos, vendo um orador atrás do outro a soltar vapor na convenção republicana de 1992 em Houston sobre os sagrados direitos dos não-nascidos e a necessidade de uma emenda constitucional proscrevendo o aborto, mesmo no caso de gravidez causada por estupro ou incesto - mostrou ser um desses.
VII Na década de 80 a esquerda americana era uma vela extinta na política nacional. Seus únicos vestígios de poder eram culturais. Ela voltou para o mosteiro - quer dizer, o mundo acadêmico - e também transbordou para o mundo da arte. O alvo principal do macartismo era a herança do liberalismo novaiorquino do tipo New Deal da década de 30. O alvo principal da campanha conservadora da década de 80, como observou Paul Berman, foi a "herança de abertura democrática e reforma social que data dos radicais anos 60" - incluindo a parte dessa herança, maluca ou sensata, que aflorou no campus.!" A forma média e intelectual do ataque é o atual frenesi a respeito das influências "radicais" , esquerdistas, no mundo acadêmico, destinado a advertir os americanos de que, embora tenha desmoronado na Europa e na Rússia, a ideologia do totalitarismo ainda sobrevive na China e em Cuba - e nas universidades americanas. Por esta leitura, um "novo macartismo", desta vez da esquerda, apoderou-se do campus e está detendo a liberdade de pensamento. A cultura, adverte Hilton Kramer em The New Criterion, está metida numa "encrenca profunda e terrível". O mundo acadêmico internalizou os bárbaros que a atacaram antes 'e "esse elemento bárbaro - tão hostil aos princípios fundamentais de nossa civilização [... ] hoje tem um imenso séquito em nossas principaisinstituições. J á transformou radicalmente o ensino das artes e humanidades em nossas faculdades e universidades". E nem todos os que pensam assim são neoconservadores - em 1991, um historiador não menos evidente que Eugene Genovese, escrevendo em The New Repubiic, afirmava que, "como alguém que viu seus professores demitidos du rante a era McCarthy, e que teve de lutar, como marxista prócomunista, pelo seu próprio direito de ensinar, receio que nossos colegas conservadores enfrentam hoje um novo macartismo, sob certos aspectos mais eficaz e perverso que o antigo". 53
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Outros (e mais jovens) acadêmicos negam fervorosamente a acusação de macartismo, qualificando-a de metáfora exagerada. E de fato há poucos sinais de uma repetição do que o senador do Wisconsin e seus comparsas realmente fizeram ao mundo acadêmico na década de 50, em geral através de pressão sobre administradores e corpos docentes que se viam como. liberais : as demissões de catedráticos em meados de carreira: às investigações do Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara sobre o conteúdo de bibliotecas e cursos, os juramentos de lealdade no campus, toda aquela atmosfera sórdida de perseguição, traição e paranóia. O número de acadêmicos demitidos pela polícia do pensamento esquerdista, em contraste, é zero. Tem havido brigas e estupidez. Tem havido acusações infundadas de racismo, como as lançadas contra o historiador Stephan Thernstrom em Harvard, que adotou a opinião - escandalosa para os fanáticos do PC - de que, ao estudar a história da escravidão americana, deve-se ler com atenção o testemunho histórico dos dois lados, incluindo o registro de como os donos de escravos e autores escravagistas defendiam a prática. Não há dúvida de que não faltam no campus fanáticos, autoritários e mistificadores que encaram o PC como uma astuta manobra carreirista ou como uma válvula para suas frustrações. Tampouco é fantasia da direita o fato de que quase todos os que ensinam humanidades numa universidade americana hoje vão ser (no mínimo) rotulados segundo atitudes PC e precisarão de uma robusta independência mental para resistir a elas. O processo é semelhante ao antigo processo religioso americano de isolar e humilhar. Também determinará quais professores serão contratados e quais não. E extrai força das simples dimensões do mundo acadêmico americano, a inflação de seus números, a noção de que a platéia acadêmica é praticamente uma audiência de massa mesmo, de modo que ninguém precisa pensar em leitores fora de suas fronteiras auto-referenciais e demasiadas vezes conformistas. Não há dúvida, o mundo acadêmico passou a gostar demais dos rótulos e etiquetas que substituem o pensamento e a opinião por um moralismo fácil - racista, sexista, homofóbico , progressista, reacionário. Os uniformes, na atual guerra de camundongos e rãs, podem parecer novos, mas a guerra em si não é tanto - ou assim somos lembrados por Auden, em "Under which lyre" [Sob qual lira]:
Ordena que o vaudeville pregue E todo discurso inaugural Seja uma polêmica. Que Ares cochile) que outra guerra Seja im ediatam ente declarada mais uma vez Entre os que seguem O precoce Hermes até o fim E os que sem hesitar obedecem O pomposo Apolo. Brutal como todas as Olimpiadas, Embora travada com sorrisos e nomes de batismo E menos dramática) Essa luta dialética entre Os deuses civis é igualmente má) E mais fanática. [But Zeus inscrutable decree Permits the will-to-disagree To be pandemic, Ordains that vaudeville shall preach And every commencement ·sp eech Be a polemic. Let Ares doze) that other war 1s instantly declared once more
'Twixt those who follo w Precocious Hermes ali the way And those who without qualms obey Pompous Apolo. Brutal like ali Olympic games, Though fought witn smiles and Christian names And less dramatic, This dialectic strife between The civil gods is just as mean, And more fanatic.]
Mas o inescrutável decreto de Zeus Permite que a vontade de discordar Seja pandêmica,
Contudo, pode-se muito bem encarar com ceticismo as costumeiras acusações conservadoras de que o mundo acadêmico americano foi tomado pela esquerda militante - por uma cabala de "visigodos de tweed", nas palavras de Dinesh d' Souza, autor do best-se/ler de 1991Illiberal education: the politics ofrace and sex in campus [Educação iliberal: a política de raça e sexo no campus]. Uma expressão pitoresca - mas que também faz pensar na compreensão D'souziana dos valores ocidentais cuja sobrevivência o preocupa. Se ele soubesse alguma coisa dos visigodos, também saberia que no século VI
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É sempre assim, somos tentados a supor. Se os marxistas estão, de fato, a ponto de se apoderar do mundo acadêmico na década de 90, parecem fazer um certo segredo a respeito - embora isso, claro, talvez se deva a seus maquiavélicos hábitos de dissimulação. Recentemente, quando o Instituto de Pesquisa de Educação Superior da DCLA fez uma pesquisa com 35 mil professores em 392 escolas, constatou que só 4,9 por cento se declaravam de "extrema esquerda", enquanto 17,8 por cento se classificavam como "conservadores" . Todo o resto descreveu-se corno "liberal" ou "mode- . rado". Mesmo 'em Berkeley, o locus classicus de radicalismo estudantil nas décadas de 60 e-70, só um em cada trinta membros do Departamento de Sociologia diz-se hoje marxista. Esses números devem ser tratados com certo grau de cautela: nem todas as faculdades americanas são tão tolerantes com professores de opiniões esquerdistas como as de elite ou as do sistema estadual da Califórnia, e uma extrema timidez política predomina nos
campi de faculdades comunitárias . Ainda há bons motivos para que um acadêmico, pressionado a responder a uma pesquisa, afirme ser mais centrista do que é. Apesar disso, dentro de certos limites, os resultados dessa pesquisa são provavelmente indicativos. Quando se ouve a acusação conservadora, muitas vezes repetida, de que o moderno campus americano está "politizado", vale a pena lembrar que ele sempre foi. A idéia de que, antes da década de 60, o mundo acadêmico era uma espécie de estado ideal de estudo objetivo, livre de contaminação por tendências e interesses políticos, é um mito: simplesmente, nos anos do pós-guerra as pressões políticas seguiram o rumo oposto, e começaram a usar o campus como fonte de informações para o FBl e base de recrutamento para a ClA. Se alguém concorda conosco sobre os objetivos e usos da cultura, nós o achamos objetivo; se não, o acusamos de politizar o debate. Na verdade, os programas políticos estão em toda parte, e a afirmação ritual dos conservadores americanos de que suas posições culturais ou eruditas são apolíticas é patentemente falsa. Há esquerdistas de todos os matizes nos departamentos de literatura e humanidades - mas por que não iria haver? As universidades devem expor seus alunos ao debate, e o debate autêntico deve incluir a esquerda, a direita e o centro, sobretudo em tempos tão conservadores quanto os atuais. A objeção correta à argumentação esquerdista nas universidades americanas não é a de que ela existe, pois deveexistir e prosperar livremente - é a de que grande parte dela é opaca, cheia de jargões e dedicada a questões marginais. Mas então, que dizer das figuras conservadoras que, em geral, ocupam as grandes cátedras subvencionadas das universidades americanas e dirigem os grandes institutos universitários de economia, administração e governo, da Escola de Comércio de Harvard para baixo? As grandes universidades americanas são grandes empresas, dispondo de imensos investimentos em ações e bens imóveis, ligadas ao governo por incontáveis canais consultivos . É inevitável que seus caminhos preferenciais passem por trilhas conservadoras. Sempre passaram. É absurdo dizer que isso é "apolítico". Grande parte do ensino tradicional nas escolas americanas, embora não necessariamente a máquina-de-envergar-pensamento que seus críticos dizem agora que foi, t em sido um tanto menos "desinteressada" do que parece. Um caso típico é o próprio curso básico de Civilização Ocidental. Como mostraram os historiadores Carol Gruber e William Summerscales, os cursos de Civilização Ocidental
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eles fizeram maravilhas para consolidar os restos demolidos da ordem romana na Espanha, que o código legal deles é encarado com razão como um dos verdadeiros monumentos da jurisprudência oci dental, e que ao instituírem o cristianismo como sua religião de Es tado embarcaram num grande e custoso programa de construção de igrejas. Dificilmente teriam feito mais se fossem chefiados por William Bennet e o cardeal ü'Connor. Na verdade, dificilmente houve uma época, desde a Revolução Russa, em que a direita americana não se inquietasse com os "catedráticos radicais" (na expressão de Roger Kimball) instalados nas universidades americanas , insistindo em como, no passado, as coisas eram melhores e menos ideológicas. É comum ler-se sobre a queda das academias na "politização", em comparação, digamos, com a década de 50. Mas também encontramos o famoso filósofo Sidney Hook, em Heresy [Heresia], defendendo a proibição do ensino comunista nas faculdades americanas, e afirmando que mil comunas j á estavam ensinando só nas escolas de Nova York: Mesmo que cada professor, numa estimativa por baixo, ensinasse apenas a cem estudantes durante um ano , isso significaria que todo ano cem mil estudantes, só na cidade de Nova York, estariam sujeitos a uma doutrinação educacionalmente perniciosa. Destes [.,.] centenas teriam sido influenciados por seus professores para entrar em organizações juvenis comunistas , das quais o movimento comunista extrai seus mais fanáticos seguidores.
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- um rápido exame dos "valores culturais" e do "pano de fundo" da civilização europ éia - na verdade entraram no currículo americano quando, e porque, os Estados Unidos entraram na Primeira Guerra Mundial. 15 O governo. americano queria que seus infantes de formação universitária soubessem por que estavam lutando, e imaginou-se um curso de "Questões de Guerra", ou de propaganda para isso. O objetivo era produzir o que um editorial na The History Teacher's Magazine da época chamou com felicidade de "baionetas pensantes" . Informaria ao jovem americano sobre a medonhez dos teutônicos. Depois do Armistício , esse curso evoluiu, na Universidade de Columbia, para "Civilização Contemporânea", o protótipo das modernas aulas de Civilização Ocidental - desta vez, com o objetivo de produzir alunos que se tornariam, nas palavras de um decano de Columbia, convictos dos valores democráticos após terem sido vacinados contra a nova ameaça dos bolchevistas, "o elemento destrutivo em nossa sociedade" . O problema de fato intratável da educação americana hoje não é seu conteúdo ideológico, mas o nível de preparo de seus alunos. Esse problema vem de muito atrás, das escolas secundárias, onde alunos "em desvantagem" - sobretudo negros - recebem uma educação básica chocantemente inferior à dos brancos . A má educação infligida anos antes do nível universitário assegurou, como constatou na década de 80 uma pesquisa da Avaliação Nacional do P rogresso Educacional, que, entre jovens de 21 a 25 anos, somente 60 por cento dos brancos, 40 por cento dos hispânicos e 25 por cento dos negros pudessem " encontr ar uma in for m açã o numa matéria d'e imprensa ou num almanaque"; só 45 por cento dos brancos, 20 por cento dos hispânicos e 8 por cento dos negros soubessem calcular corretamente o troco a receber após pagarem uma conta de restaurante; e só 25 por cento de brancos, 7 por cento de hispânicos e 3 por cento de negros entendessem o conteúdo de um horário de ônibus impresso. Nenhuma universidade pode resolver essa trágica situação, e só a mais radical melhoria da escola secundária pode combatê-la. Não é culpa dos estudantes. Na década de 80, estudantes negros americanos a caminho.da faculdade, embora ficando abaixo da média branca no teste de aptidão escolar SAT, na verdade elevaram sua média nacional em expressão e comunicação e matemática em 49 pontos - por uma amarga ironia, exatamente na época em que o governo Reagan cortava o volume de verbas federais para bolsas oferecidas aos pobres nas universidades. 58
As universidades, ao buscarem uma solução rápida para a angústia da educação desigual, podem complicar o problema. Será a resposta baixar as exigências de admissão como uma forma de "ação afirmativa"? Em fins da década de 80, o campus de Berkeley da Universidade da Califórnia decidiu que as proporções de novos estudantes admitidos - negros, hispânicos , asiáticos e brancos - deviam seguir mais ou menos a distribuição demográfica desses grupos na sociedade maior do norte da Califórnia. O problema era que, dos formados no secundário que buscaram um lugar em Berkeley, 30 por cento de asiáticos - sino e nipoamericanos - passaram, contra 15 por cento dos brancos, 6 por cento dos chicanos e só 4 por cento dos negros. Não havia mistério nisso: os garotos asiáticos se esforçavam muito e vinham, em geral, de f am ílias unidas que os sustentavam e os obrigavam a estudar. Assim, Berkeley simplesmente mudou seus padrões de admissão. Daí em diante os negros só precisavam conseguir 4 800 pontos em 8 mil para entrar, mas o patamar para os sino e nipo-americanos foi fixado em 7 mil. Naturalmente, quando essa notícia chegou à comunidade asiática, houve indignação e protesto. Apesar disso, continua latente no sistema universitário americano a idéia de que os estudantes negros ou de outra minoria podem de algum modo ser' 'fortalecidos" e levados a "entrar em campo" manipulando-se os padrões de admissão. Mas tudo o que a universidade pode razoavelmente esperar fazer, nessa área contestada, é ajudar os estudantes inteligentes em desvantagem a transpor mais facilmente obstáculos transpostos pelos inteligentes em vantagem. Uma política mais eqüitativa, como têm argumentado D'Souza e outros, seria relacionar a admissão preferencial na faculdade à pobreza do estudante, não à sua raça. As universidades são instituições de ensino superior, não (pelo menos não primariamente) de terapia social. Terão elas o direito de baixar seus padrões de admissão e níveis de ensino para que os estudantes em desvantagem possam acompanhar, em detrimento dos direitos educacionais de estudantes mais capazes? Se se acredita que as faculdades devem ser bases de formação de elites, por mais amplo que seja o acesso a elas, a resposta é não. Mas a principal corrente de opinião, entre professores que atingiram a maioridade nos anos 60 ou depois, é apaixonadamente, quase reflexamente, contra o elitismo. "A ideologia predominante", escreveu o educador Daniel J. Singal.!" "afirma que é muito melhor abrir mão da perspectiva de excelência do que correr '0 risco de ferir a auto-estima de um estudante. Em vez de tentar estimular as crianças a estabele59
cer altos padrões para si mesmas, os professores investem suas energias em assegurar que as de aprendizado vagaroso não venham a julgar-se fracassadas [. ..] muitas vezes se sente quase um preconceito contra os alunos inteligentes." Se as causas de desempenho medíocre entre os estudantes negros, em comparação com os asiáticos ou brancos estão demasiado atrás no sistema escolar para ser sanadas na porta da universidade, então baixar as qualificações para estudantes negros (ou quaisquer outros) é, nas palavras do historiador Eugene Genovese, "um enigma [.. .] Se, como deve ser óbvio, algumas pessoas, negras ou brancas, começam com menos vantagem cultural, menos preparação e menos talento que outras, a 'igualdade de oportunidades' só pode resultar na perpetuação dos níveis de desigualdade iniciais" . 17 O que sustenta essas tentativas de terapia social, na opinião de Genovese, é "a convicção igualitária radical de que todos são adequados e têm direito a uma educação universitária [...] Transformamos nossas faculdades de lugares de ensino superior em lugares para a formação técnica de rapazes e moças mal preparados que precisam de um diploma para arranjar um emprego numa sociedade ensandecida pela universidade" . Se os americanos não dessem uma ênfase tão irreal a diplomas universitários, esse problema talvez não desaparecesse, mas poderia pelo menos decrescer . Um diploma universitário não é necessário para a maioria dos serviços que as pessoas fazem no mundo, enquanto a alfabetização, a aritmética e a capacidade básica de interpretar informação o são absolutamente. (Ou pelo menos, devo talvez acrescentar, esta é a minha experiência; pois deixei a faculdade sem nenhum diploma.) O principal efeito do fetichismo americano em relação ao diploma foi fazer o trabalho qualificado pragmático parecer de segunda classe. Diminuiu os objetos da grande litania de Walt Whitman em "A song for occupations" [Canto para os ofícios]: Estranho e difícil esse paradoxo real ofereço, Objetos grosseiros e a alma invisível são a mesma coisa .. Construir casas, medir, serrar as tábuas, Ferrar, soprar vidro, fazer pregos, funilar, pôr telhado de zinco, telhado de ardásia, Fazer navios, construir docas, tratar peixe, deitar lajes nas calçadas, A bomba, a empilhadeira, o grande guindaste, o forno de carvão e de tijolos, Minas de carvão e tudo que há lá embaixo, as lâmpadas na
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escuridão, ecos, cantos, que meditações, que vastos pensamentos nativos (...] (Strange and hard that paradox true I give, Objects gross and the unseen soul are one. -House-butlding, measuring, sawing the boards, Blacksmithing, glass-blowing, nail-making, coopering, tin-roofing, shingle-dressing, Ship joining, âoclc-buiiding, fish-curing, flagging of sidewalks by flaggers, The pump, the pile-driver, the great derrick, the coal-kiln and brick-kiln, Coai-mines and ali that is down there, the lamps in the darkness, echoes, songs, what meâitations, what vast native thoughts.. .]
Além disso, adverte Singal, não se levou muito em conta uma crescente crise na outra ponta do espectro social; racial e educacional: os estudantes mais ricos, a maioria educados em escolas caras, que desde meados da década de 70 "vêm entrando na faculdade tão mal preparados que têm um desempenho muito abaixo do potencial, muitas vezes a ponto de incapacidade funcional". Em 1970, novos estudantes entraram nas principais faculdades (Columbia, Swarthmore, a Universidade de Chicago) com uma média em expressão e comunicação no SAT que ia de 670 a 695, num total de SOO. Em meados da década de SO, essas médias haviam caído para uma faixa de 620 a 640. Exatamente o mesmo padrão, com poucas áreas de exceção (sobretudo nas melhores universidades do Sul, onde os pontos subiram após a completa dessegregação), tem-se verificado em todos os Estados Unidos. Uma vez lá, a educação que eles recebem (quando os professores não estão lutando para leválos a níveis de leitura e compreensão que deviam ter alcançado no secundário) é rebaixada à sua baixa capacidade de ler textos, peneirar informação e analisar idéias. Assim, isso se torna uma pobre coda para o ensino intensivo que os estudantes recebiam antes, e para as expectativas tidas em relação a eles; ajustado.à limitada experiência de vida: e idéias dos estudantes como se isso fosse uma espécie de absoluto educacional (quando, claro, é a coisa que a verdadeira educação busca contestar e ampliar), sentimentalóide, com cursos superficiais de estudos sociais que inculcam apenas slogans e destinamse, até onde possível, a evitar difíceis questões de contexto histórico, 61
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com pouca análise e escrutínio crítico, mas muita atitude e sentimento. Os resultados totais dessa. emasculação vão aparecer na década de 90, e a onda de correção política - que trata de sentimentos, e é mais comum, parece, entre os professores do que entre os próprios alunos - é apenas um de seus sintomas premonitórios. Pois quando entrou na educação americana, a animosidade dos anos 60 contra o elitismo trouxe em sua esteira uma enorme e cínica tolerância para com a ignorância dos estudantes, racionalizada como respeito à "expressão pessoal" e "auto-estima". Em vez de "forçar" os garotos pedindo-lhes que lessem demais ou pensassem com demasiada concentração, o que podia fazer com que suas frágeis personalidades implodissem em contato com as exigências do nível universitário, as escolas reduziram as tarefas de leitura deles, assim diminuindo automaticamente seu domínio da linguagem. Sem formação em análise lógica, mal equipados para desenvolver e construir argumentações formais, desabituados de minerar textos em busca de jazidas de fatos, os alunos recaíram na única posição que podiam chamar de sua: o que sentiam das coisas. Quando sentimentos e atitudes são os principais referenciais da discussão, atacar qualquer posição é automaticamente insultar seu defensor ou até mes. mo agredir o que ele julga seus CCdireitos"; todo argume~tumtorna-se ad hominem, beirando a condição da perseguição, senão estupro mesmo. "Eu me sinto muito ameaçado por sua rejeição de minhas opiniões sobre [escolha um] falocentrismc /a Deusa Mãe/o Tratado de Viena/o Módulo de Elasticidade deYoung." É só rodar essa subjetivização do discurso por duas ou três gerações de alunos que se tornam professores, com as dioxinas dos anos 60 acumulando-se mais a cada vez, e teremos o entrópico pano de fundo de nossa cultura da reclamação.
VIII Em assuntos culturais, a velha divisão de direita e esquerda acabou se assemelhando mais a duas seitas puritanas, uma lamentosamente conservadora, a outra posando de revolucionária mas usando a lamentação acadêmica como maneira de fugir ao comprometimento no mundo real. A seita A toma de empréstimo as técnicas políticas de ataque republicanas para mostrar que, se a seita B vencer, o estudo de Platão, Ticiano e Milton será substituído por programas de doutrinação nas obras de obscuros autores do Terceiro Mun. 62
do e muralistas chicanos da Califórnia, e os pilares do Ocidente prontamente desmoronarão. Enquanto isso, a seita B está tão atolada no modo de reclamação que não pode armar uma defesa satisfatória, já que queimou a maioria de suas pontes para a cultura em geral (e nega, em seus momentos mais narcisistas, que o leitor comum inteligente ainda exista - embora o maior problema seja a escassez de escritores comuns inteligentes). Com algumas e destacadas exceções como Edward Saíd, Simon Schama ou Robert Darnton, relativamente poucas das pessoas que hoje escrevem história, biografia ou crítica cultural de primeira classe nos Estados Unidos têm uma cátedra, embora muitos escritores estejam ligados a universidades como hermas ou troféus decorativos nessas diversões terapêuticas conhecidas como cursosde Literatura de Criação ("Estou espantado", escreveu o dadaísta boxeador Arthur Cravan numa filípica contra as escolas de arte, em 1914, "de algum picareta não ter tido a idéia de abrir uma escola de literatura." Agora sabemos que não é assim.) Mas em geral a maior parte do contato do mundo acadêmico com o leitor comum inteligente parece ter murchado, porque a superespecialização e as déformations professionnelles do carreirismo acadêmico o estão matando . Nos departamentos de literatura e humanidades da moderna universidade americana, o lado da' especialização - em tópicos, em formas de pensamento e, acima de tudo, em linguagem - tornou-se tão tacanho, tão constipado pelas minúcias da teoria, tão estiolado pela pressão para descobrir temas de teses ainda não explorados, que não pode estender-se a um esquema mais amplo. A maior parte de seu discurso não tem esperança de alcançar uma audiência leiga. Ótimo, diz a defesa: quem espera que o trabalho de um cientista do MIT [Instituto Tecnológico de Massachusetts] seja lido, ou mesmo superficialmente compreendido, por leigos? As pessoas lá trabalham nos limites da matemática e da física quântica, em áreas tão rarefeitas que não mais de trinta outros especialistas, em todo o mundo.. podem entender seus comunicados; e daí? Não é o papel mesmo das universidades manter conhecimento "inútil", ou seja, áreas de pesquisa científica sem qualquer influência visível no modo como a maioria das pessoas vive, e incompreensíveis para todos, com exceção de um minúsculo punhado, na crença justificável de que podem acabar tornando-se muito "relevantes"? A ciência tem mil becos sem saída para cada trilha que se torna uma rodovia pública, e a pesquisa tem de explorar todos eles - ou morrer. 63
É verdade; mas o problema de se aplicar isso às humanidades é que a apreciação de arte e literatura não tem qualquer base científica; lidamos com a moeda inquantificável do sentimento, da intuição e (de vez em quando) do julgamento moral, e não há nenhuma "verdade" objetiva que a crítica possa reivindicar "cientificamente". O crítico Louis Menand observa que a instituição compulsória de crítica literária americana, a A.ssociação de Língua Moderna (MLA), foi fundada em 1883 por filólogos, "estudiosos cuja obra era científica e portanto podia ser avaliada 'objetivamente' ". Só em 1950 o MLA acrescentou a palavra "crítica" a seus estatutos; e só o fez porque a crítica se apresentava como cada vez mais baseada em teoria, e portanto como uma contribuição ao conhecimento, não apenas à soma de opinião . A obsessão com a teoria, combinada com a ausência de talento literário, cria a pavorosa prosa do crítico literário acadêmico. Ninguém quer voltar às velhas formas de beletrismo caturra, "humanístico", que dominavam antes da chegada da "Nova Crítica" há quarenta anos, mas o estado atual da literatura universitária sobre as artes fica entre o sonífero e o escândalo. Para justificar sua existência quando o modelo de educação superior americana era científico, os departamentos de literatura tiveram de sobreviver alegando que estavam na vanguarda de novas técnicas. Daí o surgimento de dialetos que não se relacionam com nada fora do mundo acadêmico; daí, também, a falta de ligação entre a critica acadêmica e os textos muito mais claros sobre temas afins na imprensa não acadêmica. .Como afirma Menand:
O status de quem pesquisa e publica é alto, e o de quem ensina de fato, desproporcionalmente baixo. Cada vez mais, exige-se que os alunos façam trabalho pesado de pesquisa para o próximo trabalho do professor . As universidades americanas mantêm, conservado em âmbar , o sistema medieval de aprendizado. Em parte, isto lhes foi imposto pela expansão do próprio mundo acadêmico. Quan-
do há tantos alunos que os professores não podem ensinar a todos, e as verbas são limitadas, a solução é usar "auxiliares de ensino", pagos a preços aviltantes; quando o professor vê seu dever acadêmico como sendo mais o de publicar do que o de ensinar, pode recorrer a um grupo de "auxiliares de pesquisa" - seus próprios alunos - para fazer o seu trabalho . Alguns encaram isso como um bom treinamento para o espírito dissidente e questionador. Outros, com pelo menos igual razão, vêem nisso uma forma de contrato de aprendizado, que conduz ao conformismo e ao oportunismo. Quando os estudantes da antiga Nova Esquerda do mundo acadêmico da década de 60 entraram nas universidades como professores, viram as eufóricas esperanças de sua juventude murchar após 1968, desmoronar sob a reação dos anos 70 e tornar-se simples arqueologia em 1980. Nenhuma daquelas belas promessas se cumpriu. A reação deles a esse trauma foi abandonar o marxismo clássico, com sua ênfase na luta econômica e de classes no mundo real, e abraçar as teorias mais difusas e paranóicas da escola de Frankfurt -:- Theodor Adorno, Herbert Marcuse. Para esses teóricos, toda vida humana era regida por mecanismos repressivos embutidos não na política explícita, mas na linguagem, na educação, na diversão - em toda estrutura de comunicação social. A isso juntou-se a crença do pós-estruturalismo francês, exemplificado por Michel Foucault e Jacques Derrida, em que o "sujeito" - o agente pensante individual, o "eu" de toda frase - era uma ilusão: só nos restava a linguagem, não a mentalidade: frustração com os generalizados sistemas de repressiva indecidibilidade inscritos por toda parte na cultura circundante, e nenhum meio de superá-los . Antes havia escritores, mas agora só havia o que Foucault chamava pejorativamente de "a função de autor". O intelectual, nessas condições, é tido como tão impotente contra o poder e o controle quanto um salmão num rio poluído, e a única diferença é que nós, ao contrário do peixe, sabemos que a água está envenenada. Assim, segundo a teoria, não temos o controle de nossa história e nunca o poderemos ter. Temos como verdade que a verdade é incognoscível; devemos desconfiar de todas as declarações, a não .ser do axioma de que todas as declarações são suspeitas. Seria difícil encontrar um beco sem saída pior - ou mais autoritário - do que esse . John Diggins, em The rise and fali of the American left [Ascensão e queda da esquerda americana], resume em poucas pa-
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[... ] a maior parte do mundo acadêmico é um imenso mar de conformismo , e toda vez que vem uma nova onda de teoria e metodologia, todos os peixes tentam nadar nessa direção. Há vinte anos, todo crítico de literatura falava do ego, sua autonomia e seu terrível isolamento . Hoje nem um único acadêmico respeitável quer ser apanhado nem perto da palavra, pois o "ego" agora é o "tema", e o tema, todos concordam vigorosamente, é uma construção contingente [.. .] O que deveria ser mais perturbador para todos é a absoluta previsibilidade da grande maioria da crítica acadêmica que consegue ser publicada. 18
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lavras: "Hoj e o desafio do intelectual não é o do iluminismo, de promover o conhecimento para fazer avançar a liberdade: o desafio hoje é espalhar a suspeita. A influência que o pós-estruturalismo francês goza na vida acadêmica americana [... ] responde a uma necessidade profunda, mesmo que sej a apenas a necessidade de racionalizar o fracasso". O intelectual que imagina que pode desafiar o status quo defendendo a inutilidade da linguagem começa com não um, mas três pontos contra si mesmo, e é por isso que o pósestruturalismo, embora tenha lotado as salas de seminários na última década e nos dado um monte de crítica cultural em grande parte ilegível, junto com um pouco de arte conceitual moralizante, teve tão pouco efeito na maneira como as pessoas em geral escrevem, pensam ou agem. É sobretudo um enclave de reclamação abstrata. Fora de seu perímetro, prosseguem a vida real, a linguagem real e a comunicação real. Em fins da década de 80, enquanto os acadêmicos americanos teorizavam ocamente que a linguagem e o sujeito pensante estavam mortos, o anseio de liberdade e cultura humanística demolia os próprios pilares da tirania européia. Claro, se os estudantes chineses tivessem lido Foucault, teriam sabido que a repressão está inscrita em todas as línguas, incluindo a deles, e com isso teriam se poupado da tarefa de enfrentar tanques na praça de Tiananmen. Mas terão Václav Havel e seus colegas dramaturgos, intelectuais e poetas libertado a Tchecoslováquia citando Derrida ou Lyotard sobre a inescrutabilidade dos textos? Certamente que não: fizeram isso pondo sua fé no poder de transformação do pensamento - metendo os ombros na imensa roda da palavra. O mundo está mudando de modo mais profundo, amplo e emocionante do que em qualquer momento desde 1917, talvez desde 1884, e a esquerda acadêmica americana continua se preocupando com a falocentria inscrita na maneira como Dickens retrata a pequena Nell. O escritor que cai nesse mundo deve sentir-se como Gulliver visitando a Academia Real de Lagado, com seus solenes "projetores" mourejando para extrair raios de sol de pepinos, construir casas a partir do telhado e restaurar o poder nutritivo do excremento humano, todos convencidos do valor de seu trabalho. Também me lembra a Austrália terra de causas biológicas perdidas: do mesmo modo como os rnacropodos de bolsa e os mamíferos ovíparos, cangurus, équidnas e ornitorrincos floresceram sem ser perturbados em seu' fragmento do continente-mãe Gondwana à deriva, milênios depois de serem extintos em todas as demais partes do globo, também os últimos derridanos, lyotardianos e baudrillardianos ainda andam a
saltitar e farej ar por aí no mundo acadêmico americano, anos depois de seus mentores intelectuais deixarem de interessar aos próprios franceses. E são essas pessoas que se queixam de colonialismo cultural! ' Em fins da década de 80, o editor das Presses Universitaires de France, Nicos Poularitzas, lutava para concluir uma dispendiosa série de livros sobre o marxismo na vida contemporânea, iniciada na década de 70: Marx-e-culinária, Marx-e-esporte, Marx-e-sexo, Marx e qualquer coisa que alguém quisesse mencionar. Mas era inacabável: muito tempo atrás, Poulantzas esgotara o estoque de autores franceses interessados em Marx. "Nossa única esperança são os Estados Unidos", confiou ele tristemente a um amigo, pouco antes de suicidar-se. O fato de a influência marxista tanto resistir na esquerda acadêmica americana - a ponto de ainda se poder encontrar um ou dois althusserianos - é uma prova do poder da nostalgia. Há e sempre houve motivos para os jovens estudarem Marx - a começar pelo fato de que o século xx é incompreensível sem um entendimento do imenso impacto que suas idéias" e a interpretação dessas idéias por outros, teve na política mundial. Apesar disso, o marxismo está morto; essa parte da história acabou. Sua carcaça continuará emitindo sons e odores, à medida que os fluidos escorrem e o gás se expande; europeus outrora comunistas continuarão a renascer,como ultranacionalistas, como o ex-apparatchik genocida Slobodan Milosevic, presidente da Sérvia. Muitos que satisfaziam seu gosto pelo poder burocrático dentro da estrutura imperial do comunismo continuarão a saciá-lo nas novas fontes de nacionalismo local. Essas pessoas, por mais indignas de respeito que sejam, são pelo menos mais realistas que os intelectuais que suspiram pela perdida promessa de Marx e Lenin. Pois a verdade é que o marxismo perdeu sua aposta principal logo na saída. Jogou toda a sua reivindicação à inevitabilidade histórica na idéia de que a humanidade se dividiria em linhas de classe, não de nacionalidade. Nisso, errou. Como os laços de nacionalidade eram tão mais fortes que os de classe, a Revolução só podia ser exportada de três formas: conquista direta por Moscou, como na Europa Oriental; reinvenção de estruturas antigas, xenófobas e autoritárias com um verniz marxista, como na China de Mao; e como uma útil forma de retórica, que dava legitimidade' 'internacionalista" a chefetes e caudillos, como na Romênia de Ceausescu, na Cuba de Castro, ou em qualquer um dos
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vários e efêmeros regimes africanos. Mas a promessa básica do marxismo, uma internationale de operários unidos como uma força transnacional, revelou-se uma quimera total. Meio século após a morte de Hitler, gangues neonazistas desfilam, fazem concertos de rock-ódio e queimam turcos adormecidos na Alemanha; até a neta de Mussolini está na política italiana. Ao passo que, quarenta anos após a morte de Stalin, não existe um crente comunista autêntico no poder, nem mesmo perto do poder, em parte alguma da Europa. O marxismo não oferece promessa alguma aos Estados Unidos. De 1917 para cá, fracassou após três quartos de século de testes em toda sociedade onde foi aplicado. Só produziu infelicidade, tirania e mediocridade. O fato de muitas vezes ter substituído sistemas também tiranos, medíocres e miseráveis não mitiga o seu fracasso . O historiador aprende a nunca dizer' 'nunca" , mas mesmo assim é muitíssimo improvável que grande número de pessoas, no futuro imaginável, se submeta à canga de uma ideologia política que supõe que a humanidade é capaz de discernir, julgar e controlar objetivamente tudo que existe em termos de um programa "racional", "científico", um modelo 'único propagado por planejamento central. O marxismo voltou-se contra o nacionalismo, espalhou-se adaptando-se a ele, e no fim foi derrubado por ele. Aí está a extraordinária ironia do atual debate americano sobre "multiculturalismo". A esquerda acadêmica professa ver nele as sementes de uma promessa radical: o marxismo passou pelas fogueiras de sua dissolução e renasce como um "herói de mil faces" - o multiculturalismo. Alimentar essa ficção é agir como se o conflito básico entre marxismo-leninismo e diversidade nacional jamais houvesse existido; como se houvesse algum resíduo de verdade nas hoje violentamente rejeitadas alegações de que o marxismo aumentava a consciência de um país sobre sua própria existência. Além disso, o que resta da esquerda gostaria de dar a diferenças internas comuns dentro de uma sociedade - de gênero, raça e padrão sexual- o caráter inflado de nacionalidade, como se elas não apenas encarnassem diferenças culturais, mas constituíssem na verdade "culturas" inteiras em si mesmas. "País estranho", * na verdade. Ao mesmo tempo, os conservadores americanos podem tomar essa fútil tentativa de recrutar o multiculturalismo para uma salvação de (*) No original, "Queer Nation", nome de um grupo de ativistas homossexuais americanos, que joga com a palavra queer, lite ralmente "estranho", "esquisito", mas, na gíria, "bicha". (N. T.)
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sistema pós-marxista como se isso representasse algum tipo de realidade. Não resta Marx algum para combater; por isso, arremetemos de lança e escudo contra a vaga Multi com sua cabeça de hidra. E os dois lados são encurralados por mútua obsessão, numa trincheira fora isso vazia de uma extinta Guerra Fria. Como poderia alguém autenticamente multiculturalista - alguém 'q u e se interessa por diferenças de cultura, aspiração e história entre sociedades ou grupos ---;- aliar-se a uma doutrina que buscava, em nome da "liberação" , aprisionar toda diferença humana dentro do mesmo modelo internacionalista, pseudocientífico? Além disso, pace os linhas-duras, não é preciso ser ideólogo para identificar opressão e injustiça, e querer fazer alguma coisa a respeito; muito antes do Manifesto comunista, homens e mulheres ardiam de indignação quando viam os fortes privando os fracos de "esperança, e vão continuar querendo corrigir as injustiças que os ricos infligem aos pobres muito depois- de desmoronar o último regime marxista. Contudo, a tentativa de salvar alguma essência conceitualmente "pura" das idéias de Marx diante de seus resultados no mundo real ainda prossegue, desanimada, nos Estados Unidos - porque os Estados Unidos, ao contrário da Rússia, China ou Cuba, jamais tiveram um governo marxista, nem nada semelhante, de modo que ás esperanças e fantasias milenárias do marxismo jamais tiveram oportunidade de ser testadas. Assim os radicais americanos sempre puderam divertir-se com as promessas ideais do marxismo, sem ter de viver coma desgraça de sua realização . Do mesmo modo como o cristianismo acabaria se o Messias voltasse, também é possível alguém manter algum tipo de fé marxista após o colapso do comunismo europeu, redefinindo-se como "pós-marxista" e concentrandose mais na linguagem do que nos atos . Daí, nas universidades, o que conta é a política cultural, não a política da distribuição de riqueza e de fatos reais na esfera social, como pobreza, consumo de drogas e aumento da criminalidade. A esquerda acadêmica está mais interessada em raça e gênero do que em aulas. E muito mais interessada em teorizar sobre gênero e raça do que em investigá-los de fato. Isso possibilita a seus sábios sentir que estão na vanguarda da mudança social, sem fazer o trabalho braçal fora do mundo acadêmico; a "esquerda tradicional" foi deixada bem para trás, sufocada com toda aquela coisa sem glamour e repetitiva dos operários. É melhor remexer por aí na cultura popular, mostrar como as estruturas são "inscritas" em algumas de suas formas e "questionadas", em outras - um processo insepará69
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vel, naturalmente, das protéicas energias do capitalismo, buscando reinventar seu ego repressivo todo dia através da cultura popular, a fim de' encontrar novas e melhores formas de nos transformar em dóceis consumidores. Inflação e desvalorização são incutidas nessa busca de pequenos objetos sobre os quais a teoria e a metateoria poderão construir suas grandes incrustações. de forma livre. O que importa é o volume de "produção de conhecimento", não sua qualidade. Assim, nas palavras de Gerald Graff, professor de inglês e de pedagogia em Chicago;"
Essa atitude transbordou para todas as áreas de crítica cultural e é de rigueur na maioria delas. Assim, como parte do programa de trabalho de palestras no Whitney Museum por pós-graduados e estudiosos da história da arte, em maio de 1992, sobre o tema geral "Feminilidade e masculinidade: a construção de gênero e a transgressão dos limites na arte e cultura americanas no século x x' , um doutorando da Universidade de Nova York chamado Christopher Davis propôs uma teoria sobre "A construção da masculinidade na comédia muda" . Mostrou várias cenas, incluindo uma de Douglas Fairbanks fingindo cavalgar um cavalo em Wild and Wolly, e outra de Harold Lloyd em Thefreshman, batendo os braços enquanto berra o hino de um time de rúgbi. Que fazem eles? Batem uma bronha, pois os corpos "se movem num movimento sacudido, repetitivo". Na verdade, "no filme de Lloyd, as imagens de masturbação são tão elaboradas que mesmo o texto escrito - as legendas - torna-se uma espécie de ejaculação textual, uma explícita explosão de palavras que reflete a emissão do garoto que se masturba" . E por que os rapazes na década de 20 iriam querer ver Ha~old Lloyd masturbando-se subliminarmente? Porque, enquanto antes "a masculinidade estava intimamente ligada à posse de uma propriedade", os que viviam num país industrializado, urbanizado, "não mais tinham um lugar assim para tornar-se homens [...] não tendo os meios d.e se desenvolver como homens , controlar o espaço de seu trabalho, muitos encontravam no cinema um lugar simulado em que a masculinidade [.. .] podia desabrochar". E onde, supõe-se, podiam tocar uma bronha sem chamar a atenção da mamãe .
Esse tipo de tolice, não apoiada por prova ou indício, uma colcha de retalhos de aperçus vagamente "radicais", é o que cada vez mais passa por análise cultural - o trabalho de Davis não foi de modo algum o mais idiota lido no Whitney nesse dia. Madonna é um alvo particular dessas bobagens . Tornou-se a primeira pinup do mundo acadêmico americano, revestida de teoria caolha, ora diáfana, ora opaca. Como observou Daniel Harris em The NationF' ela "foi projetada no papel estonteantemente implausível de porta-voz dos valores e interesses profissionais de instrutores universitários" . Há uma Madonna lacaniana, uma Madonna baudrillardiana, uma Madonna freudiana, uma Madonna foucaultiana - mais ou menos como, nos cultos católicos mediterrâneos, pode-se rezar à madona de Loreto, de Fátima ou de Lourdes. Se se é uma erudita feminista-marxista como Melanie Morton, pode-se mostrar que as melodias dela ' 'impedem o que chamaríamos em termos narrativos de um fechamento ideológico . Não há recapitulação que fixe o poder e estabeleça (ou reestabeleça) qualquer elemento como dominante". Assim, a bombshellloura explode a ordem estabelecida de poder. Solapa as "construções capitalistas" e "rejeita epistemas burgueses básicos" - uma proposta que sem dúvida seria novidade para meus patrões na Time/Warner, que recentemente pagaram a Madonna 60 milhões de dólares pelos direitos de sua obra. Bela rejeição. A verdade é menos radical: alguns acadêmicos querem uma pequena fatia do embalo de espetáculo proporcionado pela cultura de massa. Deslumbrados pelo seu brilho e blá-blá-blá, são mais fãzocas que rebeldes. A seqüência é previsível. Ice-T ou Sister Souljah fazem seus raps de morte aos branquelos e chamam a si mesmos de "revolucionários". Um executivo-chefe daTime/Warner, que distribuiu os apelos de Ice-T para que matemos tiras, depois defende os direitos da empresa a produzir essa coisa em termos plangentemente reminiscentes da Areopagitica de Milton. Após essas beatices, os eruditos entram em peso com trabalhos eruditos sobre a promessa revolucionária dos garotos de dezesseis anos das gangues de . bairro. E aí vêm os conservadores torcendo as mãos, como o falecido Allan Bloom, por causa do rap, do rock'n'roll e dos imerecidos êxtases dionisíacos do multi-culti de massa. Em algum ponto se perde o fato óbvio de que o rap e o hip-hop não são os agentes de um desej ado ou temido apocalipse, que constituem mais uma diversão da moda. E se perde porque um lado precisa do outro, para que cada um possa inflar seu programa político numa arrepiante bata-
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estreitos cânones de prova, evidência, consistência lógica e clareza de expressão têm de desaparecer. Insis tir neles impõe uma peia ao progresso. Na verdade, aplicar cânones severos de objetividade e evidência na publicação acadêmica hoje seria comparável à economia americana retornar ao padrão-ouro; o efeito seria o imediato colapso do sistema.
lha pela alma dos Estados Unidos. Acadêmico radical e conservador cultural acham-se agora atracados numa total e auto-sustentável folie à deu x, e a única pessoa a quem cada um detesta mais que ao outro é a ·que os manda maneirar. Esta é a última mutação da herança puritana americana. Se a esquerda americana quer se revitalizar, vai ter de reaprender o inglês claro, voltar ao mundo concreto e resistente, recuperar para si não apenas os princípios do iluminismo, mas a linguagem de Tom Paine e Orwell - e jamais vai fazer isso com seu atual entulho de teoria. A única coisa que mantém a ilusão de radicalismo no pós-estruturalismo e pós-marxismo acadêmicos é a oposição conservadora. A direita precisa de uma esquerda: se as muralhas da cultura ·.ocident al não estivessem sob sítio constante, que aconteceria com seus defensores? Secaria toda aquela grana deis copiosos cofres da família Scaife e da Olin Corporation, que corre para as causas dos cães de guarda neoconservadores . (O coro de conservadores que denunciam como parasitas "bem subsidiados acadêmicos de esquerda" , enquanto recebem seus próprios subsídios de várias fundações direitistas, é realmente uma das maravilhas da vida intelectual americana.) Quando o conservadorismo americano se vê diante da morte da ideologia marxista, a inimiga que a alimentava, lembramo-nos irresistivelmente da pergunta feita por Constantine Cavafy há oitenta anos: Que significa essa súbita inquietação e essa confusão? (Como os rostos deles ficaram sérios!) Por que ruas e praças se esvaziam com rapidez> e por que todos voltam para casa> tão absortos? Porque é noite e os 'bárbaros não vieram>' e chegaram alguns homens da fronteira e dizem que os bárbaros não mais existem. E agora que será de nós sem bárbaros? . Eles eram uma espécie de solução.
Os bárbaros favoritos, para todos os efeitos, são hoje chamados de "multiculturalistas".
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MULTI-CULTI E SEUS DESCONTENTES
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o obsessivo tema de nosso estéril confronto entre os dois PCs - o política e o patrioticamente correto - é canhestramente chamado de "multiculturalismo". Isso tornou-se um slogan com quase tantos significados quanto as bocas que o emitem. Muita lama tem sido remexida pela ligação do multiculturalismo com a correção política. Isso transformou o que devia ser um generoso reconhecimento de diversidade cultural num indigno programa simbólico, recheado de jargão lúmpen-radical. O resultado é a retórica do separatismo cultural. Mas o separatismo não é, como insistem alguns conservadores, o resultado inevitável do multiculturalismo. Os dois, na verdade, são opostos. O multiculturalismo afirma que pessoas com diferentes raízes podem coexistir, podem aprender a ler os bancos de imagens de outras, podem e devem olhar além das fronteiras de raça, língua, gênero e idade sem preconceito ou ilusão, e aprender a pensar no cenário de uma sociedade hibridizada. Sugere - muito modestamente - que algumas das coisas mais interessantes da história e da cultura acontecem na interface entre culturas. Quer estudar situações limítrofes, não apenas por serem fascinantes em si, mas porque sua compreensão pode trazer consigo um pouco de esperança para o mundo. O separatismo nega o valor, até mesmo a possibilidade, de um tal diálogo. Rejeita a troca. É multiculturalismo azedo, fermentado pelo desespero e pelo ressentimento, e (nos Estados Unidos, senão na Bósnia-Herzegovina ou no Oriente Médio) parece condenado ao fracasso. O uso das conseqüências culturais da diversidade americana como uma ferramenta para quebrar a comunidade americana apenas quebra' a própria ferramenta. 75
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As sete sílabas são desajeitadas, "multiculturalismo", mas se a palavra houvesse existido há trinta anos, quando me preparava para deixar a Austrália, eu a teria adotado de imediato. O expatriado abre mão de parte de sua cultura nativa - não podemos levar tudo conosco - em troca do que vai acumular em suas viagens. Aprender outras línguas, lidar com outros costumes e credos através da experiência direta com eles e com certo grau de humildade : isto é evidentemente bom, como não o é o provincianismo cultural. Um dos momentos mais desagradáveis de minha educação foi ter de me levantar e falar de improviso em latim, durante quatro minutos, diante de outros garotos e nosso professor jesuíta, sobre a famosa máxima de Horácio, Coelum non animam mutant qui trans mare currunt - "os que cruzam os mares mudam os céus acima deles, mas não suas almas". Ressenti-me disso, não apenas porque meu latim era medíocre, mas porque a idéia me pareceu errada expressão de um romano farisaico, indiferente ao resto do mundo. Hegemônico Horácio. Mas a maioria dos australianos estava do lado dele. O lema da Universidade de Sydney expressava satisfação com a viseira colonial: Sidere mens eaden mutato , outra versão do pensamento imperial de Horácio: "A mesma mente sob outros céus" . Nossa educação queria fazer de nós inglesinhos e inglesinhas, embora com sotaques anasalados. Não seríamos aceitos como tais pelos próprios ingleses: não estaríamos à altura. Nenhum poema escrito por um australiano ia chegar às antologias de poesia inglesa - nosso destino nacional era ler essas antologias, jamais contribuir para elas. Parecia-nos natural que nossa chefe de Estado, com poder constitucional para depor qualquer primeiro-ministro australiano democraticamente eleito, fosse uma jovem inglesa que vivia a 22 mil quilômetros de distância. Que australiano nativo estaria à altura dessa rainha? Nosso primeiro-ministro, Robert Menzies, o último dos verdadeiros imperialistas australianos, dizia que éramos "os homens da rainha", "britânicos até o tacão das botas" . Quando lhe perguntaram qual era seu sonho de felicidade ao deixar a política, respondeu sem hesitar: "Uma cabana forrada de livros em Kent". Naquele tempo tínhamos uma sociedade pequena, 95 por cento branca, anglo-irlandesa, em cujas escolas particulares se podia aprender latim, mas não italiano; grego antigo, mas não moderno. O que aprendíamos do mundo na escola vinha através da grande tradição (e uso a palavra sem ironia) das letras e da história ingle-
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sas . Ensinavam-nos um pouco de história da Austrália. Das grandes religiões do mundo, além do cristianismo - judaísmo, budismo, hinduísmo, Islã - éramos tão ignorantes quanto uma fila de gatos olhando um aparelho de TV; ou seríamos, se a Austrália tivesse televisão em 1955, o que, felizmente, não tinha. Jamais vi um judeu até entrar na universidade, e vocês 'podem imaginar a linha que os jesuítas adotavam em relação à Inquisição espanhola e às políticas de Fernando e Isabel. Eu não sabia nem o que era um episcopal. Só no fim da adolescência tive uma conversa com um aborígine australiano, e foi breve. Não havia estudantes aborígines, e muito menos professores, na Universidade de Sydney. Os colonizadores originais da Austrália - cuj os ancestrais tinham chegado lá a pé e remando, atravessando o cordão de ilhas que ficava entre "nosso" continente e a Ásia, por volta de 30 000 a .C. - eram completamente desconhecidos por nós, brancos urbanos, e a história e cultura deles ficavam num escaninho chamado "antropologia", ou seja, o estudo de exóticos com os quais nada tínhamos em comum, e cuja cultura nada tinha de valor para dar à nossa. Esse pensamento era nossa maneira subliminar de afastar a suspeita de que a nossa cultura nada tinha dado, a não ser infelicidade e morte, para a deles. Meu pai, que nasceu em 1895, era igual a todos os outros australianos de sua geração quando falava da Ásia. Via-a como uma ameaça - o que não surpreende, já que a Austrália tinha estado em guerra com o Japão de 1941 a 1945, e perdera muitos homens nas ilhas do Pacífico, na Nova Guiné, na Birmânia e em campos de concentração infernais como Changi. Só por um triz e à força das armas americanas havíamos escapado de ser co optados à força no que Tojo chamava Esfera de Co-Prosperidade Asiática Oriental. Essas experiências nacionais, misturadas com uma longa tradição de sinofobia - pois a racialmente exclúsiva Política da Austrália Branca era uma lei esquerdista, originalmente destinada a manter o trabalho coolie barato longe da Austrália - não predispunham nem mesmo australianos inteligentes, como meu pai, a uma apreciação. da caligrafia zen ou dos pontos mais sutis da cerimônia do . chá. Ele guardava uma bandeira japonesa capturada, numa cômoda (não na parede), e às vezes eu pegava aquele puído quadrado de algodão com o brilhante círculo vermelho e o buraco rasgado, que eu supunha de bala, e refletia que, não fosse pela graça de Deus, ela podia estar agora drapejando sobre o Royal Sydney Golf Club. (Os japoneses, na época, não jogavam golfe.)
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Quem fala em "Ásia" ou "asiáticos" hoje - mesmo quando externamos nossas vagas generalizações sobre cultura "européia"? Há apenas chineses, japoneses, indonésios, cambojanos, e mesmo dentro dessas categorias nacionais existem complexidades de identidade e herança inacessíveis para o estrangeiro distante. Mas meu pai pensava de modo ainda mais abstrato. Ele chamava-a de extremo Oriente, referindo-se ao Norte próximo, e nem pensaria em ir lá. Extremo Oriente em relação a quê? A leste do Éden: ou seja, da Inglaterra, um país no qual, ao morrer, ele passara menos de três de seus 56 anos, entre as incursões, num Sopwith Camel, sobre a França, a serviço de seu rei e Império, durante a Primeira Guerra. Hoje, se se perguntasse a um menino australiano de doze anos o que ele acha do "Oriente", ele talvez hesitasse: que é que o coroa quer dizer? A Nova Zelândia fica a leste; talvez esteja se referindo a ela, ou ao Peru, que fica mais a leste ainda. Assim, pode-se dizer que minha educação foi monocultural, na verdade classicamente colonial, no sentido de que se concentrou na história, literatura e valores da Europa Ocidental, em particular da Inglaterra, e não muito mais. Tinha muito pouca relação com os temas de educação na Austrália de hoje, que dão forte ênfase à história local, à cultura das minorias, e a uma compensadora visão não anglocêntrica de todas as questões sociais. O "multiculturalismo" é um padrão burocrático por lá há já quase vinte anos, e seus efeitos foram quase inteiramente bons. Reflete uma realidade que temos em comum com os ainda mais divetsos, embora culturalmente relutantes, Estados Unidos - e que, para pôr nos termos mais simples, é que a pessoa no ônibus ao lado da gente em Sydney tanto pode ser descendente de relativamente recém-chegados, um pequeno comerciante de Skopelos, um mecânico de Palermo, um cozinheiro de Saigon, um advogado de Hong Kong ou um sapateiro de algum shtetl na Lituânia, quanto o trineto de um inglês ou irlandês, degredado ou livre. A extensão de nossas raízes, que não é a mesma coisa que sua tenacidade, já não conta muito em meu país, por mais ataques passageiros de arrependimento que isso possa causar na maioria de australianos cujas famílias estão lá desde o início de sua história (branca). Na década de 70, a Austrália já deixara mesmo de ser um país "basicamente britânico", e não havia meio possível de convencer a filha de um migrante croata a respeito da ligação mística que ela devia sentir com o príncipe Charles ou a mãe dele - ou da utilidade permanente, para sua educação, da história dos Plantagenetas. É provável que jovens australianos lá embaixo, no
que os americanos ainda persistem em imaginar como uma espécie de Texas conduzido por outros meios no pé do globo, tenham uma imagem muito melhor do resto do mundo - incluindo o Norte próxim o - do qu e têm ou provavelmente terão seus equivalentes american os . Eles a receberam através da educação e, ultimamente, da televisão : o governo australiano patrocina não apenas uns poucos pr ogramas , mas todo um canal de rede, SBS, transmitindo sete dias por semana, que apresenta not ícias, documentários, filmes e comentários vindos de todo o mundo, em vinte idiomas, do árabe ao tagalog (com legendas em inglês) . Pode-se imaginar os uivos de indignação a respeito de "fragmentação cultural" que viriam dos mandarins do conservadorismo americano se Washington sequer pensasse em gastar dinheiro do contribuinte num tal plano nos Estados Un idos. Contudo, se a programação do SBS teve algum efeito sobre a comunidade australiana, foi provavelmente mais de consolidá-la por meio da tolerância e curiosidade mútuas do que de fragmentá-la em zonas de interesses próprios culturais. Na Austrália, que não é nenhuma Utopia, mas uma sociedade de imigrantes menos truculenta que esta, o multiculturalismo funciona em benefício social de todos, e o papo crítico dos conservadores sobre a criação de uma' 'torre de Babel cultural" e coisas assim é visto como alarmismo obsoleto de um tipo bastante inferior.
Então minha educação no início dos anos 50 foi enganosa? Reluto em pensar assim - mas teria de ser relutante, não é mesmo? Recentemente, dei com um livro de um de meus colegas estudantes da Universidade de Sydney, que na década de 50 era um emigré ainda relativamente cru, um "australiano novo": um judeu húngaro chamado Andrew Riemer, que chegou de Budapeste com os pais em 1946, sofreu as humilhações do exílio australiano (que incluiu ser metido numa classe para crianças intelectualmente retardadas porque seu inglês era ruim), e agora ensina literatura inglesa na Universidade de Sydney. Inside, outside [Por dentro, por fora] (1992) é uma memória carinhosa e perceptiva do que era ser criado entre as culturas anglo-australiana e migrantes de nosso país bruto, desajeitado e imaginativamente pobre, e a certa altura o autor põe o dedo num dos motivos pelos quais a educação anglocêntrica inicial que todos recebemos, afinal, não deixou de ter seu valor. Rie-
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"Estas", acrescenta Riemer com certa discrição, "são questões controvertidas para suscitarmos no atual clima de nacionalismo cultural." Contudo, não há dúvida de que tocam um ponto sensível em mim, embora (como expatriado) eu ache que Riemer vai longe demais quando acrescenta, falando do presente: "Nada no clima educacional e cultural contemporâneo [da Austrália] satisfaz aqueles poderosos anseios - românticos, idealistas, em busca de uma beleza que o indivíduo acha difícil reconhecer ou definir - que nossa filiação ao mundo britânico nos oferecia através de livros, de uma versão da história, e de modelos de comportamento que essasestruturas nos recomendavam ... " . Isso não mais se aplica à experiência, vivida pelos jovens australianos, de sua paisagem, que tende a ser entusiástica e informada - embora não deixe de ter suas ironias. (CONSERVE A NATUREZA AUSTRALIANA, dizia uma pichação em Sydney recentemente, e embaixo outra mão acrescentara: PONHA UM GAMBÁ EM CONSERVA.) E, sem dúvida, a "versão da história e os modelos de comportamento' que os australianos de minha idade e da
de Riemer encontravam na iconografia imperial britânica pode ser suplantada com fontes australianas - o problema é aceitar essas fontes, o que significa livrar-se da dupla peia da história colonial, tarefa que ocupa muitos escritores australianos além de mim mesmo. Um prelúdio necessário a isso será o corte dos últimos cordões políticos que ligam o governo australiano à Coroa britânica e o estabelecimento de uma República Australiana. O problema, porém, é que não devemos nos entregar nem ao Servilismo Cultural (a crença em que nada na cultura australiana vale a pena enquanto não for abonado no além-mar), nem à sua rude sucessora defensiva, a Arrogância Cultural, em que a gente marcha de um lado para outro ao som de Waltzin Matilda fingindo que nada fora da Austrália é "relevante" para os australianos. A atitude certa não é nem curvarse nem pavonear-se, mas adotar um porte naturalmente descontraído e ereto . Talvez isso se aplique aos muitos defensores do separatismo de grupo (negro, latino , índio, feminista, gay, o que queiram), cujo barulho enche os espaços dos Estados Unidos com uma retórica muitas vezes insegura de "orgulho" e "direitos". Quando eu era jovem, descobri que a leitura dos poetas ingleses dos séculos XVIII e XIX não tornava a Austrália invisível. Muito pelo contrário. Orientou-me para a leitura dos poetas australianos cujo projeto era descrever a natureza, a história e a experiência social australianas em imagens que fizessem sentido para os australianos - escritores como Kenneth Slessor (em Five bells) , Robert Fitzgerald (em The wind at your door), Judith Wright ou, vinte anos depois, Les Murray. É um truísmo, mas verdade assim mesmo, que o escritor deve estar aberto a toda literatura; que suas formas e sentimentos nacionais ou tribais não devem ser tidos como mutuamente exclusivos. A idéia de que o ex-colonial deve rejeitar a arte do ex-colonizador em favor da mudança política é absurdamente restritiva. E esse absurdo continua sendo verdade independentemente da forma de "colonização" a que se refira - econômica, sexual, racial. Podemos aprender com Picasso sem ser falocratas, com Rubens sem nos tornar cortesãos dos Habsburgo, com Kipling sem nos tornar imperialistas. O particular alimenta-se do geral, e palavras em voga como "anglocentrismo" ou "eurocentrismo" são artifícios desgraçadamente grosseiros para descrever os complexos e ecléticos processos pelos quais a imaginação individual e uma cultura comum se formam uma à outra, mutuamente, com muita realimentação e muitos cancelamentos, através da linguagem. De onde eu venho, "euro" é também o nome aborígine de um grande canguru.
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mer era um garoto de cidade, e no início da década de 50 a beleza dura e a peculiar delicadeza do interior australiano não entravam na experiência urbana australiana; as transformações de sensibilidade causadas pelo movimento ambientalista australiano, que agora são lugares-comuns por lá, mal tinham começado . ' 'Nada em nosso meio ambiente sugeria que a natureza pudesse ser uma fonte de maravilha ou consolação, quanto mais de transcendência." Os professores e mentores dele falharam-lhe por nem ao menos sugerir que a natureza australiana podia ser culturalmente inspiradora: "Para eles, era simplesmente um deserto, o pavoroso vazio deum mundo vazio" . A brecha que isso deixava e;I'a preenchida com poesia inglesa, sobretudo poesia da natureza:
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Claro, a experiência era de segunda mão, talvez quinquilharia [... ] mas as palavras de Tennyson representavam para nós uma experiência essencial que não podíamos alcançar de nenhum outro modo . A poesia dele, e a de Wordsworth, Keats e Shelley [.. .] proporcionavam uma fuga e uma consolação para a feiúra e mesquinhez do mundo no qual éramos obrigados a viver. Nem o mundo físico em que vivíamos, nem qualquer poesia por ele produzida, podia oferecer essa fuga e consolação [... ] A literatura da Inglaterra nos conduzia para o mundo da imaginação romântica, que servia a uma das necessidades essenciais da adolescência . Também satisfazia generosamente outras : um passado heróico ou nobre do qual podíamos participar, e estruturas éticas a oferecer modelos para fantasias, senão para a vida real. I
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Num importante ensaio publicado em 1977, e portanto anterior à maior parte do atual debate multiculturalista nos Estados Unidos, Les Murray descrevia como a influência da cultura aborígine e seus ciclos de canções entraram em sua obra, no momento em que essa cultura estava' 'implantando o conceito aborígine da sacralidade da terra e da região nativa da pessoa na mente de muitos australianos". O principal canal para isso foi a monumental compilação por T. G. H. Strehlow, Songs of central Australia [Cantos da Austrália central], publicada em 1970. Essa percepção do mito profundamente enraizado na paisagem não podia deixar de apresentar-se, mesmo construída (Da obra de um poeta de ascendência escocesa) sobre tradições poéticas inglesas, como uma alternativa para a percepção colonial da Austrália como um vazio campo de exotismo, estéril e enfadonho quando comparado à "plenitude" da Europa. Já na década de 70, havia uma corrente de culpa política na cultura (branca) australiana hostil a essas aspersões, acusando seus autores (brancos) de exploração, paternalismo e assim por diante. Mas, como argumentou Murray:
Assim, apesar da atual mania de depreciar o eurocentrismo, sei que tive sorte em receber a formação escolar que recebi. Ela foi ampla, "elitista" ao enfatizar o desempenho, e rigorosa - só a carga de trabalho, o número de livros que se esperava que lêssemos e absorvêssemos, j á pareceria cruel. a um moderno estudante americano. Não deixava "tempo para sentir o perfume das rosas", para usar aquela expressão favorita dos educadores liberais americanos (e que em geral se traduz corno ver TV). Isso não nos fez mal algum. Nós ou passávamos, ou fracassávamos e repetíamos o ano, e o boletim de notas ia para os pais, cujos sentimentos não eram poupados. Faziam-nos decorar coisas e dizê-las em voz alta, com o resultado
de que algumas ficavam. (Jamais concordei com a crença convencional de que decorar textos destrói a "criatividade" do aluno; na verdade enriquece-a, preenchendo os vãos da memória.) Às vezes nos queixávamos da disciplina, mas em geral sentíamos orgulho de pertencer à cavalaria jesuítica e não à infantaria dos Irmãos Cristãos. Alguns de nós eram esnobes, e alguns fanáticos em embrião, .mas assim é a adolescência. Em suma, esse currículo básico eurocentrista, unirreligioso, dava-nos um ponto a partir do qual podíamos depois nos ramificar. O crítico do eurocentrismo diria que tal currículo implantou uma tendenciosidade permanente. Pode ser, mas só podemos ver bem outras culturas quando, pelo conhecimento da nossa, chegamos a um ponto em que "abrangência" significa alguma coisa. De outro modo, ficamos com a simples pieguice indecisa. Se hoje reajo contra a idéia de uma cultura centralizada, irnperializada, se estou mais interessado na diferença do que em supostos filões principais - e se não estivesse, dificilmente teria escrito um alentado livro sobre Barcelona e o nacionalismo catalão- o impulso provavelmente começou porque o padre Wallace me fez ler Byron sobre o helenismo quando eu tinha quinze anos. Se posso me virar com algumas línguas românicas que nunca ouvi faladas na Austrália, é em parte porque o padre Fraser me ensinou Catulo e Ovídio, não evitando seu lado erótico e cético. Se posso ler visualmente uma das grandes igrejas barrocas do México, como Santo Domingo em Oaxaca, e refletir sobre o que a torna tão parecida e tão diferente de outras na Espanha ou na Itália, é em última análise porque aprendi um terreno comum de iconografia em criança, naquela capela escolar repleta de feios santos de gesso. E embora a preocupação dos jesuítas com os clássicos não me deixasse nenhum espaço para a história árabe, com certeza me preparou para mudar de idéia sobre o Islã quando mais tarde descobri quão pouco da herança escrita da Grécia e de Roma teria sobrevivido sem os estudiosos árabes. Por isso eu diria que o meio ambiente em que fui criado, embora altamente monocultural, não foi monolítico: proporcionou-me os instrumentos para reagir contra ele, o que fiz partindo, vivendo em outra parte e interessando-me pelo híbrido, o impuro, o senso de mistura eclética que está no âmago de grande parte da criação do século XX. Cultura e história estão repletas de fronteiras, mas elas são também, em certa medida, permeáveis. E os Estados Unidos são um de seus sítios clássicos: o lugar cheio de diversidade, histórias não acertadas, imagens superpostas umas às outras e gerando
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Vai ser uma tragédia se os processos normais de empréstimo e influência artísticos, pelos quais qualquer cultura dá parte de sua contribuição à conversação da humanidade, forem, no caso' dos aborígines, congelados pelo que na verdade são , manobras de uma batalha pelo poder político dentro da sociedade branca de nosso país, ou por uso tático de retórica do Terceiro Mundo (... ] O empréstimo artístico (... ] não deixa mais pobre aquele que empresta, e chama atenção para suas ri~ quezas, que só podem ser esgotadas por negligência ou por perda de confiança nelas; é isso o que faz com que se percam. O empréstimo é um ato de respeito que pode restaurar o respeito de quem empresta pelos seus bens, e ajuda a preservá-los. E ele próprio sempre está livre para usá-las."
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formas inesperadas . Peregrinos desembarcam num rochedo em 1620, ignorando por completo que os espanhóis tinham começado a construir Santa Fé dez anos antes; e por que uma corrente da história deveria receber marcada precedência sobre a outra nos livros didáticos? A história dos espanhóis na América do Norte não é só para os hispânicos. A história dos negros não é só para os negros . Nenhuma minoria ou grupo pode ser riscado da história americana, porque a própria natureza de sua narrativa envolve todos eles. Essa polifonia de vozes, esse constante fluxo de reivindicações de identidade, é uma das coisas que tornam os Estados Unidos Estados Unidos. É o motivo, repito, pelo qual os estrangeiros são gratos por estarem aqui. Então, quando ouço Pat Buchanan, outro simpático rapaz irlandês católico, arengando sobre o efeito provável da importação de "um milhão de zulus para a Carolina do Norte", e que não devemos abrir mão da essência única, cristã e européia da cultura americana para as hordas multiculturalistas não especificadas. .. bem, sinto um nó nas entranhas e arrepios. Nada poderia ser menos parecido com a minúscula e homogênea Austrália de minha infância que esta república gigantesca, fendida, hibridizante e multirracial, que todo ano recebe alguma coisa entre metade e dois terços da emigração mundial, legal ou ilegal. No ano 2000, menos de 60 por cento das pessoas que entrarão na força de trabalho americana serão brancos aqui nascidos. Pondo a defesa do multiculturalismo em termos de simples interesse próprio: embora as elites jamais vão desaparecer, já que a necessidade de criá-las está escrita em nosso tecido biológico - quer queiramos nos enganar sobre isso ou não - a composição dessas elites não é necessariamente estática. O futuro das elites americanas, numa economia glo balizada sem Guerra Fria, estará com aqueles que possam pensar e agir com graça e informação acima de linhas étnicas, culturais, lingüísticas. E o primeiro passo para tornar-se uma pessoa assim está em reconhecer que não somos uma grande família mundial, nem temos probabilidade de ser: que as diferenças entre raças, países, culturas e suas várias histórias são pelo menos tão profundas e duráveis quanto suas semelhanças; que essas diferenças não são divagações da norma européia, mas estruturas eminentemente dignas de ser conhecidas por si mesmas . No mundo futuro, quem não puder navegar através da diferença estará liqüidado. Assim, se multiculturalismo é aprender a ver através de fronteiras, sou inteiramente a favor. Os americanos têm uma verdadeira dificuldade para imaginar o resto do mundo. Não são os únicos 84
- a maioria das coisas é estranha para a maioria das pessoas mas, considerando-se a variedade de origens nacionais representadas em sua vasta sociedade, sua falta de curiosidade e sua tendência ao estereótipo ainda surpreendem o estrangeiro, mesmo (no meu caso) após vinte anos de residência nos Estados Unidos. Por exemplo: se americanos brancos ainda têm dificuldade para ver os negros, que dizer dos árabes? Como todo mundo, vi a Guerra do Golfo na televisão, li sobre ela na imprensa, e observei como aquele conflito le-:vou a um feio clímax o hábito há muito implantado nos Estados Unidos de hostil ignorância em relação ao mundo árabe, passado e presente. Raramente se obtinha dos meios de comunicação, e muito menos dos políticos, uma indicação de que as realidades da cultura islâmica (passadas e presentes) eram mais que uma história de fanatismo. Ao contrário, apareceu uma sucessão de sabichões para assegurar ao público que os árabes eram basicamente um bando de maníacos religiosos voláteis, fazedores de reféns, filhos do cerrado e das dunas, e todo o seu passado os predispunha contra o intercâmbio com Estados mais civilizados. O moderno fundamentalismo islâmico enchia a tela de bocas a berrar e braços agitados; do passado islâmico - quanto mais da moderna dissidência árabe da xenofobia e do militarismo fundamentalistas - ouvíamos muito menos. Era como se os americanos estivessem recebendo uma versão ampliada, atualizada, das opiniões sobre o Islã alimentadas no século XV. A mensagem básica dizia que os árabes eram não apenas incivilizados, mas incivilizdveis. À sua maneira perversa, isso representou uma vitória para os mulás e Saddam Hussein - aos olhos americanos, tudo no mundo árabe que contradizia as crueldades e manias escatológicas deles foi apagado, deixando-os em plena posse do campo. Mas tratar a cultura e a história islâmicas como mero prelúdio ao fanatismo de hoje não nos leva a parte alguma. É corno ler uma catedral gótica francesa em termos de cristãos modernos como Jimmy Swaggart ou Pat Robertson. Historicamente, o Islã Destruidor é um mito. Sem os estudiosos árabes, nossa matemática não existiria , e só uma-fração da herança intelectual grega teria . chegado até nós. Roma medieval era uma aldeia de catadores de Iixo, comparada com a medieval Bagdá. Sem a invasão árabe do Sul da Espanha, ou el-Andalus, no século VIII, que produziu a expansão mais a oeste do império islâmico governado pela dinastia abássida a partir de Bagdá, a cultura do Sul da Europa seria inimaginave1mente mais pobre. A Andaluzia hispano-árabe, entre os séculos XII e XV, foi
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uma brilhante civilização "multicultural", construída sobre as ruínas (e incorporando os motifs semiperdidos) de antigas colônias romanas, misturando formas ocidentais e médio-orientais, gloriosa em sua invenção lírica e tolerância adaptativa. Que arquitetura supera a do Alhambra em Granada, ou a Grande Mesquita de Córdoba? Mestizaje es grandeza: mistura é grandeza. O medo conservador da mistura é colorido de exagero paranóide. É só sugerir que a "história vinda de baixo" - uma expressão inventada pelo teólogo Dietrich Bonhoeffer, nos negros dias da Europa em 1942, para denotar uma possível história "dos que sofrem" - tem visivelmente, certa razão moral e educacional, e começa o coro. Basta pôr de lado Platão e pegar um exemplar de Rigoberta Menchu, que de repente lá está William Bennett, com su~s gr.andes botas negras, anunciando que está na hora de fechar nos jardins da Civilização Ocidental. "É um fato que o inimigo da justiça e da humanidade seja o homem ocidental", goza Dorothy Rabinowitz, editorialista de The Wall Street Journal. Que há de tão frágil na Civilização Ocidental? E, ao contrári~, que há de tão radical no multiculturalismo, que nos Estado~ 1.!~I dos significa uma melhor compreensão da arte, literatur~, h:stona e valores de culturas outras que não a dominante anglo-judia? Os escritores e acadêmicos não são as únicas pessoas a reconhecer que o multiculturalismo é a onda do futuro. Mas são provavelmente os únicos (além de seus oponentes conservadores, pois também aqui os extremos se tocam) que se convenceram de que ele representa uma ameaça para o capitalismo. Os próprios capitalistas sabem que não. A decisão de Ted Turner, há alguns anos, de banir a palavra "estrangeiro" do noticiário global da CNN foi um momento muito mais importante no esforço multicultural do que todos os trabalhos sobre Eu e o Outro já lidos nos jamborees da Associação de Linguagem Moderna. Pois, como observou o crítico David Rieff: Quanto mais se lêem publicações multiculturalistas acadêmicas e comerciais, quanto mais se comparam os discursos de exe~utivos.-chefes com os de conhecidos multiculturalistas acadêmicos, mais nos Impressionam as semelhanças no modo como eles vêem o mundo. Longe de estarem em implacável oposição intelectual entre si, os dois grupos vêem a mesma transformação racial e de gênero na composição demográfica do país da força de trabalho; os dois enfatizam a importância das mulheres ~ da necessidade de modificar o local de trabalho de modo a torná-lo mais acolhedor para elas; e os dois insistem em que não é mais possível falar nos Estados Unidos como uma entidade fixa, auaci d o pais. ' 3 tárquica, e poem o mun doo acima
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Infelizmente, não é preciso ouvir por muito tempo os argumentos do outro lado para sentir que, na maioria das mentes de seus oponentes, o multiculturalismo não significa exatamente uma genuína curiosidade sobre outras formas culturais. A primeira baixa decorrente disso é a própria idéia de Europa - pois como pode alguém' com o mais leve conhecimento do enorme, rico e contraditório alcance da literatura e pensamento europeus supor que ela forme uma sólida massa "eurocêntrica", "como se", nas palavras de Russell.Jacoby, "Adolf Hitler e Anne Frank representassem o mesmo mundo"? Ouvimos as pessoas invocando uma coisa a que chamam de cultura latino-americana (distinta da "repressiva" cultura dos anglos) sem perceber a grosseira generalização que a expressão implica. Não há nenhuma "literatura latino-americana" como tal, como não existe um lugar chamado "Ásia", com uma literatura comum que de algum modo junta o Ramayana, as obras de Confúcio e O livro-travesseiro de Sei Shonagon. Há apenas culturas de vários e distintos países latino-americanos, diversos em si mesmos, recorrendo a um acervo comum de imagens - o vasto reservatório de catolicismo romano, por exemplo - , mas modificado por suas próprias histórias políticas e raciais, diferentes sensos de nacionalidade e identidade e diferentes idiomas. Todos são produtos de uma longa, intensa e imprevisível hibridização entre três continentes, África, Europa e América - o processo que, cada vez mais, também se vê no centro da cultura "eurocêntrica". Por exemplo, é possível falar de uma única "língua portuguesa"? Em vez de uma língua portuguesa "pura", há várias, todas resultantes da colonização e mistura. Há a língua tronco do próprio Portugal, na qual Camões escreveu o épico Os lusíadas. Mas também há o português brasileiro, transformado por empréstimos africanos e índios que rompem com a gramática e o uso dos colonizadores. Há o português de Angola; o português de Moçambique, misturado com hindi; o português de Cabo Verde, criado' como idioma literário pelo poeta Jorge Barbosa; e o de Guiné-Bissau. Cada um é a base de uma literatura distinta, e referir-se, como tantos espanhóis e norte-americanos, a uma generalidade chamada "literatura latino-americana" é expressar uma abstração vazia. E o que é mais: muitos "radicais" parecem supor que, ao olhar outras culturas sob a rubrica de "multiculturalismo", deve-se olhar sobretudo suas versões de marxismo, "luta de libertação" e assim por diante. Mas não será isso apenas mais uma caricatura eurocêntrica, pedir que se admire em outros países e culturas as formas ideo-
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Na verdade, significa separatismo . Afirma que as instituições e estruturas mentais européias são inerentemente opressivas, ao contrário das não-eurocêntricas - uma idéia duvidosa, para dizer o mínimo. O sentimento de decepção e frustração com a política formal impregnou a cultura, grudou-se nela e inflamou-se. Fez muitas pessoas verem as artes como basicamente um campo de poder, já que têm tão pouco poder em outras partes. Assim, também elas se tornaram uma arena para lamentações sobre direitos . Esse processo distorceu seriamente as atuais idéias sobre a capacidade política das artes, exatamente no momento em que - de vido à onipresença dos meios de comunicação - elas alcançavam seu mais baixo ponto de eficácia política real. O estado de espírito ocasionado por tal situação é um rico composto para questões culturais fantasmagóricas, e um ambiente medíocre para se desenvolver idéias claras sobre as verdadeiras questões. . Um exemplo é o inconclusivo debate sobre "O Cânone", esse opressivo Big Bertha cuja boca aponta para as muralhas da Civilização Ocidental, visando o negro, o gay e a mulher. Dizem-nos que o Cânone é uma lista de livros de homens europeus mortos - Sha-
kespeare, Dante, Dostoiévski, Stendhal, John Donne e T. S. Eliot. .. vocês sabem, eles," a turma do pálido pênis patriarcal. Eu nem sequer sabia que havia um Cânone até muito depois de chegar aos States, e aí j á era tarde demais. Mortimer Adler era desconhecido na Austrália. Lá, nós não tínhamos uma prateleira de Grande Obras do Ocidente encadernadas em courvin. Tínhamos apenas um monte de prateleiras cheias de livros sem qualquer ordem determinada, que iam de Paraiso perdido ao Livro violeta de histórias de fadas de Andrew Long; de Shakespeare a nosso versejador nacional Banjo Patterson; de Anabasis, de Xenofonte a Kim, o livro da selva - o original, tão completamente diferente da versão grosseira e emasculada de Disney, que é o que a maioria das crianças tem hoje - e The hunting of the snark. Daí o fatal ecletismo de meus hábitos de leitura infantis. Ninguém me dissera que um tipo de livro eliminava outro. Os que se queixam do Cânone acham que ele cria leitores que jamais lerão outra coisa. Quem dera! O que não querem admitir, pelo menos publicamente, é que a maioria dos estudantes americanos não lê muito mesmo, e muitos deles , deixados à vontade, não leriam absolutamente nada. A retardada babá nacional, o aparelho de televisão, cuidou disso. Em 199~, a maioria das casas americanas (60 por cento, o mesmo que na Espanha) não comprou um único livro. Em breve, os americanos vão se lembrar do tempo em que as pessoas se sentavam em casa e liam livros sozinhas, discursivamente e às vezes até em voz alta umas para as outras, como de uma era desaparecida - como hoje encaramos as reuniões sociais em que as mulheres faziam alcolchoados na década de 1860. Nenhuma universidade americana pode supor que seus calouros sejam mais do que alfabetizados em um sentido técnico. Talvez jamais tenha podido. Mas hoje, certamente, não pode. É difícil exagerar a estreiteza de referência, a indiferença à leitura, o raso pedestrianismo cultural de muitos jovens, produtos da cultura da TV americana, mesmo os privilegiados. Nas universidades que cobram 22 mil dólares por ano para prosseguir na educação de Carmen ou Peter, os professores de belasartes ou humanidades estão muito ocupados deixando claro que o elitismo é a praga da cultura do Ocidente, e que é errado desenvolver muito senso crítico, senão a contrairão. As peculiares convulsões dos Estados Unidos em relação ao cânone literário acadêmico resultam menos de um apaixonado interesse pela literatura do que de idéias sobre o que é ou não terapêutico.
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lógicas que eles tomaram de empréstimo, recentemente, ao Ocidente? Se esse entusiasmo por reencenações do marxismo na África, Ásia e Oriente Médio não é eurocentrismo, então o que é? Quando esta. va na moda no Ocidente, o maoísmo era completamente mal entendido por seus fãzocas - não apenas porque não viam a horrenda tirania que era, mas porque o imaginavam novo, a maior de todas as ilusões . A história, civilização e pensamento da China são tão velhos e contínuos que sua versão de coletivismo oligárquico stalinista, criada por Mao Tsé-tung e imposta há menos de cinqüenta anos, não é mais que um minúsculo piscar nos seis milênios de história registrada chinesa. O marxismo não pode ser entendido a não ser como um reaparecimento, com a cara de Marx, do arcaico culto chinês do imutável deus-imperador que atingiu o apogeu sob os Qing em fins do século XVIII. Demasiadas vezes, o que posa de "multiculturalismo radical" só existe devido a uma ignorância de outras culturas tão profunda quanto a de um vendedor de automóveis da Costa Oeste americana recém-nomeado embaixador dos Estados Unidos nos cafundós do Judas na década de 60.
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Ora, isso, como observou recentemente a escritora Katha P ollit, empresta a grande parte do debate sobre o Cânone seu tom peculiarmente sufocante e fútil. A suposição subjacente a isso, afirma ela, é a de que os livros da lista são os únicos que vão ser lidos, e se se abandonar a lista não se lerá nenhum. Tornar-se didático é a ún ica chance de um livro; todos os lados tomam isso como certo. E portanto todos concordam em não falar em certas coisas [.. .] Por exemplo , que se você leu apenas 25, ou 50, ou cem livros, não vai entendê-los, por mais bem escolhidos que tenham sido. E que se você não tem uma vida de leitura independente - e muito poucos estudantes a têm não vai gostar dos livros da lista e os esquecerá assim que terminá-los.
A briga sobre o Cânone reflete a firme crença em que as obras de arte são ou devem ser terapêuticas. É só assimilar a República ou Fedo aos dezenove anos, que você será um tipo de pessoa; estude Jane Eyre ou Mrs Dalloway, ou a poesia de Aphra Behn, e será outra; leia Amiri Baraka ou A cor púrpura, ou as obras de Woyle Soyinka, e será uma terceira. Isso se dá, ou deveria dar-se, porque o autor, seja Platão ou Alice Walker, se torna um "papel modelo" para o leitor, cujos dons de imitação são despertados pelos dons imaginativos do escritor. Se você lê Evelyn Waugh antes de Franz Fanon, pode tornar-se um racista (se branco), ou (se negro) sofrer um ataque de dores devido a uma súbita descompressão da auto-estima. Pois no jogo literário de eliminação do papo canonístico, se você lê X, isso quer dizer que não lê Y. Em teoria, todos os bons liberais são a favor de que todos tenham o mais amplo acesso a todo texto "sério ... ". Na prática, nem sempre temos tanta certeza, porque os escritores na verdade querem mexer conosco, mudar nossa opinião sobre algum aspecto da vida, grande ou pequeno; e que fazemos com um escritor de indubitável talento, mesmo de gênio, cujas opiniões são, por quaisquer padrões razoáveis, repelentes? Que tal Céline, por exemplo, cujo poder de imaginação e venenoso anti-semitismo eram açulados por sua fúria contra a vida burguesa francesa, tão inextricavelmente entrelaçados que não se pode ter seu impiedoso talento sem seu ódio aos judeus? Ou, como perguntou Simone de Beauvoir no título de um ensaio, "Devemos queimar Sade?" - Sade, o republicano como antidemocrata absoluto, o escritor que imaginou seus irmãos seres humanos como meras vítimas, instrumentos passivos da soberana vontade de prazer n~m universo vedado, absolutista, onde "a cruel90
dade é um dos mais naturais sentimentos humano s, uma da s mais doces tendências do homem, um a das mais intensas que ele recebeu da natureza "? A literatura não é um belo cur so de tr at am ent o no rmalizad or cujo objetivo seja orientar-nos e esbofetear-nos para que nos tornemos cidadãos da república onde estamos lendo. Isso de vez em quando parece escapar aos intelectuais norteamericanos de ambos os campos. Quando Norman Podhoretz escr eveu que, " como transmissoras do cânone [... ] as humanidades têm tr adicionalmente instilado um senso do valor das tradições democráticas qu e herdamos", ficamos imaginando o que ele quer dizer com isso . P ara cada escritor que louvou as "tradições democráticas", há outro que temeu e desconfiou delas - a começar por Platão . Shakespear e, por exemplo, com seu desprezo pela ralé de instáveis princípios, tão vividamente evocada em Júlio César e no discurso de Coriolan o ao s plebeus: Bando vulgar de bestas, cujo bafo eu detesto Com o emanações de brejos pútridos, de cujo amor eu gosto tanto Quanto das mortas carcaças de homens insepultos Que corrompem o ar que respiro: eu vos expulso. [You comm on cry of curs, whose breath I hate As reck o 'th rotten fens, whose loves I prize As the dead carcasses of unburied men That do corrup t my air: I banish y ou.] J
Ou Dryden, para quem a queda de reis e as agitações igualitárias no século XVII na Inglaterra signi ficavam uma odiosa regressão ao "estado natural, onde todos têm direito a tudo " . Ou Baudelaire: "Todos nós temos o espírito republicano nas veias, corno temos a sífilis nos ossos: estamos democratizados e sifilizados... ' ,. Ou Nietzsche, ou Pound, ou Lawrence, ou Yeats ("Tudo que se cantou/ Tudo que se disse na Irlanda é mentira/ Gerada pelo contágio da ralé") - a lista dos que odiaram a democracia ocupa boa parte de qualquer cânone literário que se possa inventar. Incluiria também alguns daqueles escritores que os neoconservadores gostam de exibir como modelos de probidade crítica: Matth ew Arnold, por exemplo, que acreditava que as universidades devem pr eservar "o melhor do que se pensou e disse", mas como um antídoto aos valores contagiosos da democracia liberal. Ou T. S. Eliot - aquele do antigo Criterion - que confiava tanto na democracia quanto gostava de judeus, e assumiu o projeto de Matthew Arnold de reforçar a mística da monarquia contra a erosão por va91
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lores democráticos . Não foram de inspiração política a exaltação que ele fez do poeta cortesão Spenser, e sua hostilidade ao republicano e regicida Milton? Tanto Eliot quanto Leavis queriam riscar completamente Milton do Cânone, uma tarefa comparável a empurrar uma baleia encalhada de volta às ondas na maré baixa. Mas o Eliot que nos deram os neoconservadores foi muito editado: um Eliot com a flatulência monarquista reduzida (do mesmo modo como o lado brutal da vida na Inglaterra no século XVIII passou discretamente inexplorado nos catálogos de exposições do Stately Home Museum como Treasure houses of Great Britain, na década de 80). O antisemitismo desse Eliot também tende a ser deixado nos bastidores,' talvez porque esteja incomodamente próximo dos argumentos dos conservadores modernos em favor da integridade do Cânone: alguns intrusos diluem a real e boa integridade da .cultura ocidental, pois (ele escreveu em After strange gods [Em busca de estranhos deuses]): "O que mais importa ainda é a unidade de origem religiosa; e razões de raça e religião combinam-se para tornar indesejável qualquer número de judeus livre-pensadores ... " . É hábito dos neoconservadores alegar, quando atacam leituras , 'politizadas" de literatura, que eles próprios representam leituras apolíticas, uma visão de história, romance, teatro e poesia não contaminada por ideologia. "Desinteressada" é a palavra-chave. No entanto , a imensa república da literatura contém tudo - e seu oposto. Li muitos livros nos últimos 45 anos, desde que me tornei um leitor consciente e viciado mais ou menos aos nove anos de idade. Mas quando tento imaginar o número de livros que não li, e talvez devesse, e que agora provavelmente jamais o farei, sinto-me tonto e envergonhado. O primeiro problema de uni cânone rígido e exclusivista de Grande Literatura é que jamais pode ser completo: é sempre, em certo sentido, um artifício protético, uma muleta pedagógica cujas limitações se tornam mais claras quando retirada das peculiares exigências dos cursos universitários . O segundo é que, como um museu de belos quadros dirigido por curadores demasiado tímidos para ampliar a coleção, terminará fossilizando-se . O terceiro é que sua posição defensiva atrai hostilidade, transformando seu conteúdo em objeto de ressentimento e, assim, dificultando sua abordagem. O crítico Frederick Crews afirma que neoconservadores como Allan Bloom, William Bennet e Roger Kin1ball são' 'nostálgicos culturais" que
Crews tem toda a razão, e a idéia de que podemos estabelecer uma hierarquia de Valores Atemporais, e mantê-la contra as vicissitudes do presente (metáforas favoritas, de navegação: estrela polar, farol, âncora na maré etc .) é equivocada. Mas como se pode ver isso como um argumento para dispensar os clássicos? Para perceber por que a imutabilidade não funciona, temos de mergulhar no passado e também no limitante presente, escolhendo assim (com sorte e muito esforço) pelo menos tantas obras "canônicas", 'e internalizando-as tão profundamente quanto poderíamos, se acreditássemos na necessidade de um cânone severo . Se fizermos isso, veremos entre outras coisas - que a história da literatura é de contínua inclusão e subversão, que o gosto literário raramente permaneceu o mesmo por muito tempo, e que não há motivo para esperar que permaneça agora. Sobretudo agora, em vista do estado profundamente perturbado da cultura americana, das crises de identidade cultural que acompanham a dissolução do mundo binário, mantido durante quarenta anos pelas férreas mandíbulas esquerdista e direitista da Guerra Fria. As palavras-chaves devem ser "tanto/quanto" e "ou/ou" . . Os conservadores talvez não queiram que entremos nesse labirinto, mas algumas crenças lúmpen-radicais não nos farão atravessálo. Uma é a fantasia curativa da cultura - a idéia, mencionada acima, de que nos tornamos necessariamente o que lemos. Mas o que poderia ser mais idiotizante do que condenar um estudante a repetir o que seu professor julga culturalmente importante para sua raça, gênero ou classe, e ignorar o resto? Outra é a desconfiança em relação aos mortos, como no "homem branco europeu morto". Tenho como certo que alguns livros .são mais profundos, mais amplos e
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subscrevem implicitamente um modelo de educação de " transfusão" , pelo qual se considera o saber armazenado dos clássicos como uma espécie de plasma que pingará beneficamente em nossas veias, bastando apenas que fiquemos suficientemente passivos em sua presença. Minha idéia de ensino é inteiramente diversa. Quero debate acirrado , não reverência pelos grandes livros; consciência histórica e auto-reflexão, não supostos valores atemporais; e contínua expansão de nosso cânone nacional,para acompanhar um senso necessariamente fluido de quem "nós" somos e o que em última análise queremos [... ] um certo volume de agitação em torno do cânone não deve nos atrapalhar. Em minha opinião, não pode haver nenhum texto sacrossanto, nenhuma idéia inatamente civilizadora ou nenhum crítico literário inteiramente des ínteressado.:'
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plenos que outros, e mais necessários a uma compreensão de nossa cultura e de nós mesmos. B continuam assim muito depois de mortos seus autores. Os que papagueiam expressões do tipo "homem branco morto" podiam refletir que, em literatura, a morte é relativa: lord Rochester está tão morto quanto Safo, embora de modo algum tão moribundo quando Brett Baston Ellis ou Andrea Dworkin. Estatisticamente, a maioria dos autores está morta, mas alguns deles continuam a nos falar com um vigor e urgência moral com as quais poucos dos vivos conseguem rivalizar. E quanto mais lemos, mais escritores - vivos e mortos -:- descobrimos que fazem isso, motivo pelo qual o Cânone não é uma fortaleza, mas uma membrana permeável. De onde vem essa desconfiança frente aos mortos? Talvez seja um eco da década de 60, quando aquele esquálido cafetão Jerry Rubin exortC?u a juventude americana a não confiar em ninguém com mais de trinta anos; porém é mais provável que seja um aspecto da depreciação da memória cultural que impregna os Estados Unidos. A exortação de Ezra Pound, "RENOVE", paira sobre a cultura americana, incluindo os debates do Cânone. Mas é mal entendida. Pound jamais a pretendeu como um sinal para que o presente apague o passado. A frase o fascinou porque acreditava que fora escrita na banheira do imperador Ch'ing, e que era uma convocação a trazer a obra do passado, constantemente renovada, ao presente: o "a" é a própria tradição:
rey de Sydney, se os leitores procurarem obras de mulheres e negros sem preconceito e sem a sensação de que seaproximam nas pontas dos pés de um caso especial, nossa cultura comum cresce e regozijase. Aprendemos como outros tipos de consciência cultural podem ocupar o pódio das formas literárias. Mas como se pode conceber que isso seja motivo para não ler Ievguêni Oneguin, ou a Epistle to lord Burlington, de Pope?
A leitura é expansiva, não exclusiva. Se escritores caribenhos, africanos, árabes e indianos obtiverem mais atenção hoje, se o prêmio Booker for conquistado ·por Ben Okri da Nigéria ou Peter Ca-
A noção de qualidade, de estilo, de medida não é uma imposição que direciona a literatura a partir dos domínios de classe, raça ou gênero. Tem vida independente dos estereótipos de grupo. Todo escritor traz na mente um invisível tribunal de escritores mortos, cuja nomeação é um ato de imaginação e' não apenas uma resposta humilhada a uma idéia de autoridade. Esse tribunal reúne-se para julgar nosso trabalho. Intuímos dele os nossos padrões. Não há recurso de seu veredicto não mandatório. Nenhum de nossos truques - nem nossa fetichização do pessoal, nem nossas tentativas de passar o estético para o político, nem nossas exaustas ficções de vanguarda vai afastá-lo. Pelo menos se formos francos com nós mesmos. Se o tribunal não estivesse lá: cada primeiro rascunho seria um manuscrito final. Não se pode tapear a Mãe Cultura. A Odisséia não pode ter exatamente o mesmo significado para nós que tinha para um leitor de Alexandria no século I, ou outro da França no século XVII. Mas continua a significar, a irradiar na mente do leitor disposto e receptivo a vasta luz da possibilidade imaginativa. Não se pode contornar isso com a idéia de que só se deve ensinar aos estudantes o que é, na expressão corrente, "relevante para sua experiência": literatura cria experiência. Todos já lemos sobre, e alguns conheceram, estudantes e professores indignados querendo saber por que temos de nos preocupar com Homero, que é um homem branco morto e nada poderia dizer a uma ~ulher negra viva. Quando ouço essas coisas, penso em Omeros, de Derek Walcott. Ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1992, ele é negro e divide seu tempo entre Harvard e a ilha caribenha de Santa Lucia. Omeros é um acontecimento incomum, um longo poema narrativo de reflexão, ressumando de fina observação, povoado de personagens e escrito em forma épica. Desafia todas as convenções da lite-
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Tching [... ] [...] escreveu RENOVE-A em. sua banheira Dia a dia renove-a corte o mato, empilhe a lenha mantenha-a crescendo. [Tching ... .,. wrote MAKE IT NEW on his bathtub Day by day make it new cut underbrush, pile the logs keep it growing.]
ratura minimalista. Toma a estrutura homérica da viagem de Ulisses e funde-a com o acontecimento central da história negra no N ovo Mundo, o embarque de escravos do outro lado do Atlântico a que o poeta deve sua derradeira identidade. E a pergunta - que relevância Homero pode ter para mim? - é respondida logo no início, quando o narrador fala com uma moça grega, que sente saudades das ilhas do Egeu, como ele sente das' ilhas do Caribe. Ela tem numa prateleira um busto de Homero.
são na verdade reduções caricaturais do que pretendiam originalmente os grandes gestos revisionistas dos estudos feministas, subalternos ou negros, e a resistência antiimperialista. Para tais gestos, jamais se tratou de substituir um conjunto de autoridades e dogmas por outro, nem de substituir um centro por outro. Tratou-se sempre de abrir e participar de um filão central de esforço intelectual e cultural, e de mostrar o que sempre foi, embora indiscernivelmente, parte dele , como o trabalho das mulheres, ou dos negros [.. .] mas que tinha sido ou negado ou depreciado . 6
"O-meros", ela riu. «É assim que a gente o chama em grego [... ])) Senti a cabeça de espuma observando enquanto alisava um braço> frio como o mármore> depois os ombros na luz de inverno do estúdio no sótão. Eu disse: "Omeros", e O era a invocação da concha marinha> mer era ao mesmo tempo mãe e mar em nosso patuá antilhano) os> um osso cinzento> e a onda branca quando quebra
e espraia seu espumante colar numa praia de renda. Omeros era o estalar de folhas secas> e as ondas que ecoavam da boca da gruta quando a maré refluia. O nome permaneceu em minha boca [... ]
[«O-meros))> she laughed. "That's what we cal! him in Greek... )) I felt the foam head watching as I stroked an arm, as cold as its marble, then the shoulders in winter light in the studio attic. I said, "Omeros; ", and O was the conch-shell's invocation, mer was both mother and sea in our Antillean patois, os) a grey bone, and the white surf as it crashes and spreads its sibilant collar on a lace shore. Omeros was the crunch of dry leaves, and the washes that echoed from a cave-mouth when the tide was ebbed. The name stayed in my mouth... ] ,
.E devia mesmo, e muitos outros nomes, permanecer em nossa boca, sej a qual for nossa origem étnica ou país de nascimento. Não vão ser descartados por conversas moles a respeito de Homens Brancos Mortos versus escritores vivos politicamente üK. Nesse ponto, não posso fazer nada melhor do que citar Edward Saíd, cujos livros Orientalismo e Cultura e imperialismo são obras fundamentais de pensamento transcultural recente. "Esses clamorosos descartes e afirmações precipitadas", diz Saíd,
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É por isso que, como escritor, rejeito não apenas o argumento pós-estruturalista de que todo texto é indeterminado, mas também a renovada tentativa de julgar a literatura em termos de sua suposta virtude social. Através disso, entramos numa terra do nunca marxista, estranha, nostálgica, onde se exibem todos os mais retrógrados fantasmas da literatura como Instrumento de Utilidade Social. Assim, temos na nova Columbia history of the American novel que Harriet Beecher Stowe é melhor romancista que' Melville, por ser mulher e "socialmente construtiva", pois A cabana do pai Tomás ajudou a levantar os americanos contra a escravidão ... ao passo que o capitão do Pequod era um símbolo -laissez-faire do individualismo capitalista, com uma atitude condenável em relação às baleias. Com o mesmo argumento, pode-se dizer que um artista como William Groper-, que desenhou aquelas instigantes caricaturas de gordos capitalistas de cartola para New Masses há sessenta anos, talvez esteja um pouco acima de um artista como Edward Hopper, que ' pouco estava ligando para a comunidade e sempre pintou aquelas figuras em quartos vazios de tal modo que não se pode estar absolutamente certo se ele criticava a alienação ou afirmava as virtudes da solidão. Esses hábitos atrasados de julgar escritores em termos de sua suposta capacidade de aprimorar a consciência social podem representar desdita para o esnobe Proust e o depressivo Leopardi, para o caso clínico Henry James e o filho do privilégio burguês Montaigne. Mas são mais negativos ainda para estudantes que saem com a impressão de que a resposta correta a um texto é medi-lo com um grosseiro metro .de correção política e abrir fogo com um calhamaço de estereotipada moralização. "Cara, o professor Peach realmente desmascarou as crenças hierárquicas de Dante na semana passada, aqueles círculos e tudo mais, você devia ter visto." A política não deve impregnar tudo. Na verdade, uma das primeiras condições da liberdade é descobrir o limite além do qual a
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política não pode ir, e a literatura é um dos meios pelos quais os jovens (e velhos) o descobrem. Certas obras de arte têm um conteúdo político ostensivo; muitas trazem mensagens políticas subliminares, embutidas em sua estrutura. Mas é de uma ingenuidade atroz supor que essas mensagens esgotam o conteúdo da arte como arte, ou em última análise determinam o seu valor. Por que, então, está na moda julgar a arte em termos políticos? Provavelmente, ensinase isso porque é fácil de ensinar. Revive a ilusão de que as obras de arte transportam um significado social como os caminhões transportam carvão. Divide claramente a extensa república das letras em mocinhos e bandidos, e alivia o aluno do fardo da empatia imaginativa, das dificuldades da discriminação estética. Permite a esses eruditos, de orelhas delata, mente esquematizada e prosa de tapioca, dar bicadas em escritores mortos, por sua falta de concordância com modas atuais de "estudos de opressão" - e enganar-se a si mesmos e a seus igualmente nostálgicos colegas pensando que estão todos nas barricadas. Contudo, quando os mulás iranianos decretaram seufatwa contra um escritor vivo, Salman Rushdie, por "blasfêmia" contra o Islã, pondo. sua cabeça a prêmio por escrever livros que não lhes agradavam, o mundo acadêmico mal rompeu o seu silêncio. Os acadêmicos americanos não protestaram coletivamente contra essa obscenidade por dois motivos. Primeiro, temiam que seus próprios camo pi se tornassem alvos de terroristas islâmicos. Segundo, os mais politicamente corretos acharam que seria errado criticar um país muçulmano, fizesse ele o que fizesse. Em casa, nos Estados Unidos, essa gente sabia que era o máximo da impropriedade sexista referirse a uma jovem como "garota", em vez de "mulher". Lá fora, em Teerã, porém, era mais ou menos OK uma cabala de fanáticos teocratas repressivos insistir no chador, cortar mãos de ladrões e vazar olhos de criminosos diante das câmeras de TV, e assassinar romancistas como política oficial. Opressão é o que nós praticamos no Ocidente. O que eles fazem no Oriente Médio é "a cultura deles". Embora, evidentemente, não aprovemos tudo o que a ralé - perdão, as massas - do Irã fazem.ou dizem, temos de reconhecer que essa cultura é de fato deles, não nossa, e que as circunstâncias objetivas do racismo antiárabe nestes Estados Unidos eurocêntricos fariam um protesto do departamento de literatura parecer uma adoção dos valores dos republicanos, que têm usado os muitas vezes lamentáveis excessos do fundamentalismo islâmico, os quais devem ser vistos dentro de um contexto global de agressão ocidental aos povos do Terceiro Mundo, como um pretexto para... já deu para pegar o espírito. 98
v Foi na área da história que o PC obteve seus maiores sucessos. A leitura de história jamais é estática. Nós, historiadores, temos de revisar. Não há palavra final. E quem pode duvidar de que ainda há muita coisa a revisar na história da conquista européia das Américas do Norte e do Sul que herdamos? O esquema foi imperial: o avanço épico da Civilização contra a Barbárie - o conquistador traz a cruz e a espada, o pele vermelha encolhe-se diante da cavalaria e da estrada de ferro. Destino Manifesto. O mito do americano branco do século XIX. É inteiramente falsa a idéia de que todos os historiadores propagaram esse mito acriticamente: basta ler Parkman . ou Prescott para perceber isso. Mas, depois que penetrou fundo na c~ltu:a popular, o mito das histórias tornou-se uma poderosa justificação para o saque, o assassinato e a escravização de povos, e a destruição da natureza. Portanto agora, em reação a isso, vem a fabricação do mito oposto. O europeu, outrora herói da conquista das Américas, tornase agora o seu demônio; e as vítimas, que não podem ser trazidas de volta à vida, são canonizadas. De cada lado da linha divisória entre euro e nativo, os historiadores estão prontos com piche e folha de ouro, e em lugar dos velhos estereótipos maus temos um conjunto inteiramente novo de outros igualmente enganosos. Nossos antecessores fizeram um herói, quase um santo, de Cristóvão Colombo. Há monumentos dele desde Barcelona até as Antilhas (descobertas por ele, embora não se saiba exatamente em que ilh~ desembarcou de fato), e por toda a América do Norte, o continente em que nunca pôs os olhos. Para europeus e norte-americanos em 1892, ele era o Destino Manifesto de calções, cercado por montes de folclore beato, como a história de Washington Irving sobre o ovo ~~ Colombo ou a ficção de que a rainhaIsabel empenhou suas jóias, ja empenhadas muito antes para comprar canhões, a fim de financiar as viagens dele. Enquanto isso, um livro PC como The conquest of paradise [A conquista do paraíso], de Kirkpatrick Sale, o faz parecer mais com Hitler numa caravela, avaro e cheio de fantasias apocalípticas, desembarcando como um vírus em meio ao inocente povo do Novo Mundo. Esse novo estereótipo, um renascimento de idéias rousseauístas sobre o Nobre Selvagem, põe em ação um novo conjunto de dois pesos, duas medidas. Assim, os taino de Porto Rico tornam-se criaturas inocentes vivendo num estado de natureza sem classes, como 99
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hippies em Vermont quando Kirkpatrick Sale e eu éramos jovens, quando na verdade eles gostavam de ser carregados em liteiras por escravos. Se os povos das Américas, da Patagônia aos Grandes Lagos, não tivessem sido conquistados pelos europeus, não estariam ainda felizes? Não estamos nós muito pior do que eles? Bem, sim, até certo ponto. A chegada dos espanhóis às Américas foi uma catástrofe indizível para os povos da América do Sul e do Caribe, como o avanço imperial dos anglos através da América do Norte o foi para suas tribos nativas. Se aceitamos as cifras apresentadas por David Stannard em seu recente livro American holocaust: Columbus and the conquest of the New World [Holocausto americano: Colombo e a conquista do Novo Mundo], o massacre causado pela conquista espanhola no Peru e no Chile pode ter chegado a 95 por cento da população, talvez a 10 milhões de almas; e a perda total de população humana do hemisfério ocidental pode ter alcançado 100 milhões nos primeiros dois séculos após a chegada dos europeus. Se é verdade, esse seria o pior genocídio na história humana, superando de longe o de Hitler. Podemos dizer que Colombo tem culpa nisso?De um modo geral e simbólico, sim, pois ele conduziu a Europa à América. Em termos de culpa pessoal, não, pois ele não planejou esses gigantescos massacres por espada ou doença; ele não tinha, por exemplo, mais conhecimento da epidemiologia da gripe suína (provável causa da destruição do povo de Hispaniola dez anos depois de sua chegada) do que os próprios arawak. Apesar de tudo isso, ele continua sendo o maior de todos os exploradores do Atlântico. Seu único rival na história foi o capitão J ames Cook, um homem igualmente valente mas muito mais racional e humano, que acrescentou a maior parte dos oceanos Pacífico e Antártico ao horizonte europeu quase três séculos depois. Cook é meu herói; Colombo é o ex-herói da América branca. Cook parece mais próximo de nós porque era um inglês do Iluminismo, e nós ainda, em certa medida, falamos sua língua moral. Colombo está muito distante, porque veio de uma cultura escatológica, a da Espanha do século xv, cujas obsessões religiosas não partilhamos. Na época de Cook havia uma diferença, que seus próprios feitos expressam, entre descobrimento e conquista. Na época de Colombo não havia nenhuma. Que teria acontecido se os povos do Atlântico ocidental não tivessem sido conquistados por brutos escatológicos? A especulação, existencialmente, não tem sentido, porque a América foi invadida por esses seres imperfeitos e cruéis, que impuseram suas culturas,
espanhola e depois inglesa e francesa, sobre as existentes. Se Colombo não houvesse aberto a rota para o Caribe, outro - espanhol, português, italiano, inglês - o teria feito poucos anos depois, e os resultados para as sociedades e a ecologia das Américas teriam sido os mesmíssimos. Esperar que os maias, ou os modernos índios americanos, comemorem 1992 é irracional; como observou um aborígi-ne australiano na época de nosso bicentenário em 1988, é o mesmo que pedir aos judeus que comemorem o centenário de Hitler, que seria no ano seguinte, 1989. Mas a evidência histórica também mostra que os povos das Américas já vinham fazendo um servicinho muito bom há séculos, provavelmente milênios, em termos .de assassinato, tortura, materialismo, ecocídio, escravização e hegemonia sexista. Nós podemos nos preocupar com o destino da coruj a pintada, mas os primeiros homens a chegar à América pré-histórica não pareceram ter escrúpulo algum com a extinção de sua megafauna, o que efetuaram a curto prazo. A civilização dos maias, a maior a florescer na América Central antes de Colombo, atingiu seu ápice entre 250 e 900 d.C., ponto em que ocorreu um acontecimento intrigante chamado de Hiato Maia. Sua civilização 'desmoronou. Ninguém de fora a tinha conquistado. Contudo, recentes escavações e o lento trabalho de decifração de glifos, sobretudo no sítio de Dos Pilas, na Guatemala, indicam que o periodo clássico dos maias foi devastado por um contínuo estado de guerra entre governantes locais; iniciado por volta de 700 d.C., que 'devorou toda a economia e ecologia do império maia no século x. Os maias caíram por colapso ecológico de sua própria lavra, causado pela dedicação a guerras invencíveis que eram por sua vez sustentadas pelá obsessão com a ideologia - a ideologia do rei-deus transcendente, encarado por seus hilotas como a encarnação de todo o universo. A Meso-América pré-colombiana não 'era o Shangri-lá que os anticolombianos gostariam que fosse. Não se pode subir na pirâmide do Sol em Teotihuacan, perto da Cidade do México, e olhar a imensa perspectiva simétrica da avenida dos Mortos lá embaixo, abandonada no século VIII por razões que não sabemos, sem sentir que a sociedade que as construiu era um Estado-formigueiro teo'crático, cuja rigidez faria desmaiar Albert Speer. E tentem olhar as presas da Serpente Emplumada e falar da benigna qualidade de vida pastoral antes da chegada dos brancos. A cultura asteca era messiânica, invasora e imperialista; e assim o fora desde que os astecas desceram do norte, sob o comando de um governante carismático
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cujo nome se traduz como Beija-Flor-da-Esquerda, e massacraram ou escravizaram, o povo que habitava em torno do que é agora a Cidade do México. Suponho que os sobreviventes podiam se dar por felizes por não haver um Beija-Flor-da-Direita. Mas então não era brincadeira ser um dos incontáveis milhares que tinham o coração arrancado do peito pelos sacerdotes astecas de Tenochtitlan para que o sol se erguesse pela manhã. Os espanhóis queimaram quase todos os registros escritos de história asteca , com exceção de uns poucos , c ódices. Mas os astecas, quando conquistaram o México central, também destruíram todos os registros das sociedades anteriores, para que não houvesse história antes da deles. A necessidade democinhos e bandidos absolutos corre fundo em nós, mas transforma a história em propaganda e nega a humanidade dos mortos: seus pecados, suas virtudes, seus esforços, seus fracassos . Preservar a complexidade, e não aplastá-la sob o peso de uma moralização anacrônica, é parte da tarefa do historiador . Não faria mal lembrar o conselho do romancista brasileiro Jorge Amado, refletindo sobre o 500~ aniversário de Colombo e a conquista do Novo Mundo: para uns, escreveu, isso significa o épico do descobrimento, o encontro de dois mundos; para outros, a infâmia da conquista e do genocídio [.. .] De ve-se est abelecer e comparar aparências e diferenças , porque só assim, entendendo o que foi grande e será uma glória eterna, denunciando o que fo i miserável e será uma vergonha perpétua, só assim, refletindo e entendendo , podemos ao mesmo tempo comemorar o épico e condenar o massacre, nenhum dos quais anula o outro. Somos produtos dos dois - os povos mestiços da América."
Surpresas estalam, como arcos voltaicos, entre as interfaces da .cultura . É nessas interfaces que a história hoje busca a si mesma; serão elas os sítios históricos do futuro . Não se pode refazer o passado em nome de uma ação afirmativa. Mas pode-se descobrir narrativas que não foram escritas, histórias de pessoas e grupos que fo: ram distorcidas ou ignoradas, e renovar a história incluindo-as. E por isso que, nos últimos 25 anos, tão grande parte da vitalidade da história tem vindo da esquerda. Quando se lê o livro do historiador negro caribenho C. L . R. James, vê-se um pedaço do mundo romper seu silêncio tradicional - um silêncio não de sua própria escolha, mas que lhe foi imposto por escritores imperiais anteriores. Parte de minha própria educação como escritor, há vinte anos, foi a leitura de The making of the English working class [A forma-
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ção da classe operária inglesa] , de E . P . Thornpson, que me mostrou como a história pode ser construída de baixo para cima, reunindo e entendendo as experiências oficialmente ignoradas de trabalhadores cujas histórias, em mãos mais doutrinárias, podiam ter-se perdido em generalizações -sobre classe, em vez de trazidas à vida em toda a sua particularidade. A lista de livros inspirados pela obraprima de Thompson seria longa, e não tenho dúvida de que The fatal shore [Praia fatal] foi minha tentativa de aplicar essa lição à his tória submersa dos condenados australianos. O que achei inútil, em contraste, foi a abstrata teorização sobre prisão e poder em textos que se tornaram sagrados no mundo acadêmico do início da década de 80, como Vigiar e punir, de Michel Foucault. Em suas ruminações sobre a teoria do Panóptico de Jeremy Bentham, Foucault con- , seguiu fazer exatamente o que culpava o Estado por fazer na vida real: ignorar a experiência dos próprios prisioneiros, mal se dar ao trabalho de consultar as evidências a respeito, para não perturbar a auto-referencialidade autocrática, mecânica, .de suas próprias construções teóricas. Os admiradores americanos de Foucault não vêem como ele foi autoritário, enrustido. A história, acima de tudo, deve se interessar pela vida humana como foi vivida, na medida em que seja possível descobri-la através dos filtros do passado. Não é preciso ser marxista para apreciar a verdade da afirmação de Eric Hobsbawm, de que a realização mais amplamente reconhecida da história radical "foi conquistar um lugar para a história da gente comum, homens e mulheres comuns" . Nos Estados Unidos, esse trabalho inclui necessariamente as histórias dos negros e outras minorias, que tendem a decompor leituras nacionalistas complacentes do passado americano. Um dos destacados exemplos desse trabalho foi The black family in slavery and freedom 1750-1925 [A família negra na escravidão e em liberdade 1750-1925], do falecido Herbert Gutman (1928 -85) . Ele fazia parte de uma raça hoj e incomum, o historiador com a preocupação de levar sua obra ao grande público, mostrando as complexas realidades do "lado de baixo da história" em termos tão acessíveis a leitores não especializados quanto o fizeram as histórias de Grandes Homens, das elites . Seu Projeto de História Social Americana foi um ato de recuperação pública, daqueles que não interessam aos historiadores da Nova Esquerda hoje; não é suficientemente "teórico", é " p opulist a " demais. Pensamos também na obra de Eugene Genovese sobre a escravidão, ou na de Eric Foner sobre a Reconstrução, ou no soberbo livro de Leon Litwack sobre as experiências dos
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negros americanos após a emancipação, Been in the storm toa long [Há tempo demais sob a tempestade]. Ou, mais recentemente, a história de Nicholas Lemann sobre a grande migração de negros para Illinois, no norte, The promised land [A terra prometida]. A necessidade de tais estudos seria contestada por historiadores americanos duas gerações atrás. Hoje, parecem fundamentais. Pois, como observou Litwack em seu discurso presidencial à Organização de Historiadores Americanos em 1987: "Nenhum grupo de estudiosos esteve mais profundamente implicado na deseducação da juventude americana e fez mais para formar o pensamento de gerações de americanos sobre raça e negros do que os historiadores". Do mesmo modo, a história da fronteira j amais poderá ser igual àquela conhecida por nossos avós. A idéia deles, de uns Estados Unidos definidos pela experiência da fronteira, surgiu de um ensaio de imensa influência lido por Frederik J ackson Turner perante a Associação Histórica Americana em 1892: "O significado da fronteira na histórica americana". Nele, Turner afirmava que "a existência ,de uma área de terra devoluta, sua contínua recessão e o avanço da colonização americana para oeste explicam o desenvolvimento americano". Isto contradizia diretamente historiadores anteriores (de base puritana), que escreviam como se tudo nos Estados Unidos, e sobretudo os valores e critérios pelos quais os fatos são interpretados, e através dos quais tentamos responder à pergunta crucial "História de quem?", emanasse da Nova Inglaterra. Mas por mais de duas décadas o plano de Turner, que em essência é o do Destino Manifesto, a versão americana da história imperial inglesa, com os brancos avançando para um "sertão" sem dono (terra nullius, ou "terra de ninguém", como diziam os colonizadores do Pacífico no século XVIII), tem sido criticada, modificada e simplesmente rejeitada por historiadores mais recentes do Oeste. Ver isso como ,u m simplesdesbancamento do Oeste heróico - um ataque edipiano aos mitos da cultura popular, por escritores que não gostam do Oeste - está muito longe da verdade. Ao contrário, o objetivo é duplo: de um lado, descobrir o verdadeiro Oeste histórico sob o Oeste mí-. tico, e do outro, estudar a história do "Oeste mitico" como uma construção de imagens e estereótipos - como foram criados e promovidos, como vieram a domiriar a cultura popular. Os historiadores reconhecem hoje que qualquer esforço para descobrir as realidades históricas do Oeste deve começar com o multiculturalismo: ou seja, acima de tudo , reconhecendo-se que o Oeste não era uma terra nullius sobre a qual marcharam os brancos; que era uma are-
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na altamente explosiva em que várias culturas, o anglo-americano invasor e o índio e o espanhol j á residentes, se chocaram uns com os outros, jamais com resultados simples. Tampouco podem o d:ama e a complexidade do Oeste ser entendidos sem se ver como ainda são persistentes os valores, crenças e formas culturais dos' 'vencidos", apesar dos longos esforços dos' 'vencedores" anglos tanto para suprimi-los quanto para negar essa supressão com a idéia mais cômoda de que eles simplesmente sumiram. Exatamente o mesmo processo se deu na Austrália, com sua crença século XIX no "passamento do aborígine" , tão curiosamente de acordo com os tropos literários fin-de-siêcle de neblina, fantasmas e sugestiva vaguidão. É verdade que a revisão da história do Oeste pode embaraçar alguns mitos queridos. Só para dar um de muitos exemplos: arquetipicamente, o Oeste é o lugar onde o Governo Central é suspeito, a terra do homem independente se virando sozinho. Contudo, grande parte dele - estados como Arizona, por exemplo - depende~, nã? marginal nem ocasionalmente, mas sempre e totalmente, de dinheiro federal de Washington para sua existência econômica. Os estados do Sudoeste j amais poderiam ter sido colonizados em sua atual densidade humana sem a enorme inversão de fundos governamentais em projetos de engenharia hidráulica. Eles são menos o John Wayne que a Rainha Assistencial do desenvolvimento american? O que vemos na "nova" história, e na antes berrante e hoje decrescente resistência a ela, é uma revivescência do conflito sobre a propriedade, por uma raça ou classe, da literatura histórica, que perturbou o mundo acadêmico americano na década de 30 e de novo na de 50. Em sua excelente pesquisa The great multicultural debate [O grande debate multicultural], o historiador Gary B. Nash mostrou que, após a Primeira Guerra Mundial, os estudiosos judeus tiveram de lutar por um lugar na profissão histórica americana, considerada um feudo da casta WASP; e que a resistência à intrusão ainda era suficientemente forte no início da década de ,60 para Carl Bridenbaugh, presidente da Associação Histórica Americana, se queixar de que "muitos dos mais jovens praticantes de nosso ofício [... ] são produtos de baixa classe média ou de origem estrangeira, e suas emoções não raro atrapalham a reconstrução histórica". Mas com o tempo ficou claro, até mesmo para Bridenbaugh, que se os Estados Unidos queriam entender o significado de suas .im ígracões no século XIX - o maior impacto de diversos povos num único Esta-
do em toda a história registrada} com talvez 35 milhões de pessoas indo para a América do Norte em setenta anos - esses "produtos 105
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Exato, disse Clark; mas, "e as pessoas no campo, ou os pastores que o sr. Yeats achava, corretamente, que Guidobaldo não con-
sultara em questões de gosto e boas maneiras? Não poderiam eles ter tido uma civilização própria?" A idéia ia e vinha: talvez então, já passadas quatro das treze horas da série, fôssemos ouvir algum reconhecimento de que as classes inferiores tinham pelo menos feito alguma coisa para criar a riqueza material sobre a qual surgira a corte de Urbino - e a "civilização" em geral. Mas não; a realização deles fora a criação de outra obra de arte, a paisagem toscana, cuja função era inundar os espectadores, como Clark e nós, com "a impressão de ordem atemporal". Pode-se dizer com bastante segurança que provavelmente ninguém, no futuro previsível, irá discutir as relações entre trabalho e cultura em tais termos na televisão, ou talvez em nenhuma outra parte; e não vejo isso como uma grande perda. Em termos gerais, o que aconteceu na reescrita das histórias tem seu análogo nos departamentos de literatura americanos. Ali, a chegada da "Nova Crítica" foi recebida com horror pelo entrincheirado resto da velha guarda de "humanistas" - não iriam aquelas leituras detalhadas, frias, textuais, destruir a enobrecedora penumbra das obras de Shelley, Dryden, Shakespeare? Depois a nova guarda ficou velha, e viu na chegada do pós-estruturalismo francês a "politização" em grande escala dos estudos literários. E no entanto, toda vez, os extremos são recolhidos e absorvidos no centro. Foi o que aconteceu com a abrangência dos estudos históricos. Os historiadores acadêmicos se sentiram ameaçados, até mesmo ofendidos, com a idéia da "história de baixo". Um dos livros mais interessantes e vivazes que encontrei recentemente foi Journal of my life [Diário de minha vida], escrito por um vidraceiro francês do século XVIII chamado Jacques-Louis Ménétra, cujo manuscrito ficara enterrado durante dois séculos, até ser descoberto e publicado em 1986. Embora eu certamente não seja especialista na história social da Paris do século XVIII, senti quando o lia como se estivesse passando sobre um recife num barco de fundo de vidro, vendo coisas desconhecidas com uma clareza estereoscópica: a narrativa onívora, lasciva, imensamente reveladora que Ménétra faz de sua vida como "homem do povo" é um equivalente proletário das Confessions de Rousseau; ressuma igualmente de fantasia e faz-de-conta auto-engrandecedoras, mas, como observou Robert Darnton em sua Introdução, também isso "nos dá uma oportunidade de ver como se constituíam os sonhos do século XVIII". Cinqüenta anos atrás, poucos historiadores nos Estados Unidos teriam valorizado muito isso já que seu autor não fora uma figura importante nem influenciara grandes aconte-
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de [... ] origem estrangeira", palavra de código WASP para designar judeus, italianos e outros seres irracionais, talvez tivessem alguma luz a lançar sobre elas. Devido à pressão de conselhos escolares em cidades com grandes populações negras e hispânicas, os livros didáticos secundários na década de 60 foram um tanto revistos, no sentido de mostrarem os Estados Unidos como uma sociedade multirracial e multicultural. Mas a história monoculturalista é tenaz, e os conservadores adoram-na; por todos os anos 70 e 80, o mesmo tipo de pressão que os fundamentalistas aplicaram sobre os conselhos de educação estaduais para pôr a "ciência criacionista" - um oximoro, se é que já houve algum - nos livros didáticos de biologia continuou assegurando que o conflito de classe fosse mantido longe dos livros didáticos, e o conflito de raça reduzido ao mínimo possível. Como observa Nash, as pessoas sentem faltam dos temas que tudo abrangem, das categorias seguras, das grandes sínteses, das histórias dos Grandes Homens. Essas são as primeiras coisas que desaparecem quando as generalizações sobre a história são explodidas pela atenção detalhada a diferenças de gênero, etnia e classe. A história narrativa, pace alguns teóricos, ruminadores de números e cliômetras, não está morta de modo algum. Ainda tem enorme público, e talvez seja o único tipo de história que sempre será popular. Mas as narrativas estão mudando, e mesmo que quiséssemos, não podemos forçar-nos a voltar a um tempo em que tais mudanças ainda não haviam ocorrido. Lembro-me de que vi Kenneth Clark expli_ cando o Renascimento em Civilization, há vinte anos. Lá estava ele, com seu imperturbável tweed, contra um cenário de vinhedos perto de Urbino. Acabara de cita! versos de Yeats sobre Guidobaldo de Montefeltro, que quando fez Aquela escola-espelho de cortesias Sobre a ventosa colina de Urbino, Não convidou mensageiros para nenhum lado A fim de saber o que os pastores queriam. [when he made That mirror-school of courtesies Upon Urbino's windy hill Had sent no runners to and fI'O That he might learn the shepherd's will.]
cimentos. Lembro-me vividamente de que encontrei um texto semelhante nos arquivos da Mitchell Library em Sydney, o diário não lido nem transcrito de um condenado chamado Laurence Frayne, que se revelou uma j anela incomparável para as realidades do sistema de punição em Norfolk Island, por alguém que sobrevivera a elas todas; no pacote, um arquivista passado escrevera a lápis: "Diário de condenado - nada de interesse" . A reação inicial ao surgimento de estudos femininos, estudos negros, gays e de outras minorias, e , à sua posterior disseminação pelas categorias antes estabelecidas do estudo de história americana, foi a mesma: primeiro, a negação de que esses grupos precisassem de histórias próprias, depois uma sucessão de obras ousadas mostrando que precisavam e precisam, e depois uma gradual absorção delas até ocuparem seu lugar no currículo geral. Com vários Jeremias reclamando, no decorrer de todo o processo, que a tendência já tinha ido longe demais. Do mesmo modo, grandes mudanças ocorreram nas versões da história americana ensinadas às crianças nas escolas. Nenhum educador sério duvida de que elas eram necessárias, e ainda o são; no entanto, ainda é um choque ler o que se ensinava como história no passado. Eis um trecho de um livro didático da quinta séria sobre a escravidão: Atrás da casa grande há filas de pequenas cabanas. Nessas cabanas vivem as famílias dos escravos negros [...] Os negrinhos e negrinhas gostam que os meninos brancos vão brincar com eles [... ] Com o tempo; muita gente passou a achar que era errado ter escravos . Algumas das pessoas que tinham escravos ficaram furiosas com isso. Diziam que os negros estavam melhor como escravos na América do que como bárbaros selvagens na África. Talvez fosse verdade. A maioria dos escravos parecia feliz e satisfeita.
multiculturalismo informado, mas um separatismo de viseira desbragadamente polêmico. Esse separatismo, em geral, é o que os conservadores atacam como' 'multiculturalismo". E, o que é pior, os fornecedores dessa história separatista - baseada, como diz timidamente o Conselho de Regentes de Nova York, em "conhecimentos e técnicas não canônicos" e "fontes de conhecimento não dominantes", querendo dizer em sua maior parte lendas, boatos e fantasia _ pretendem assegurar que ela sej a ensinada não só nas universidades, onde pelo menos pode ser efetivamente debatida, mas, empurrada no currículo secundário também, onde não pode. Esse é o objeto de um bizarro documento chamado "Ensaios de base afro-americanos' de Portland", que jamais foi publicado em livro, mas que, em forma de xerox, está alterando os currículos dos sistemas escolares em todo o país. 8 Escrito por um obscuro 'grupo de estudiosos negros e candidatos a acadêmicos, esses ensaios sobre , história, estudos sociais, matemática, linguagem, artes e ciência pretendem ser um roteiro de história afrocentrista para jovens americanos negros. Têm merecido pouca atenção da grande imprensa. Mas são populares junto a burocratas como Thomas Sobol, o comissário da Educação do estado de Nova York - pessoas que têm medo de perder os eleitores negros ou que não suportam pseudo-eruditos como Leonard J effries. Suas implicações para a educação americana são grandes, e em sua maioria ruins. Portanto, precisamos saber o que eles dizem.
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colas na década de 50 . É inconcebível que uma coisa dessas entrasse num livro didático americano hoje. Os últimos dez anos trouxeram conquistas enormes em precisão, proporção e sensibilidade, conseguidas com muitas lutas, no modo como as minorias são mostradas nos livros didáticos; sejam asiáticas, nativas, negras ou hisp ânicas. Mas isso não basta para alguns extremistas, que consideram que só negros podem escrever a história da escravidão, só índios nativos a da América pré-européia, e assim por diante. Propõem não um
Pode-se resumir muito facilmente a crença afrocentrista. Diz que a história das relações culturais entre África e Europa é pura besteira - uma muleta para a ficção da supremacia branca européia. Os paleo-historiadores em geral concordam que a vida humana inteligente começou no Grande Vale Rift, na África. O afrocentrista vai mais adiante: o africano foi o pai cultural de todos nós . A cultura européia provém do Egito, e o Egito faz parte da África, ligado ao seu coração pela artéria do Nilo. A civilização egípcia começa na África sub-saariana, na Etiópia e no Sudão. Portanto, argumentou o patriarca da história afrocentrista, o falecido escritor senegalês xeque Anta Diop, tudo o que é egípcio é africano, parte da realização negra desaparecida: Imhotep, o gênio que inventou a pirâmide como forma monumental no terceiro
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Essa repugnante pastorale vem de um livro didático chamado Meu país, publicado pelo estado da Califórnia e usado em suas es-
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milênio a.C., era negro, como o eram Euclides e Cleópatra em Alexandria vinte dinastias depois.? Negros no Egito inventaram os hie. róglifos, as monumentais esculturas em pedra, o templo com colunas e o culto do rei-sol faraônico. O afrocentrista não diz isso como metáfora cultural de uma sociedade racialmente mista, destinada a chamar a atenção para um largo espectro de pigmentação de pele -que de fato existia, como sabemos, no antigo Egito. Ele quer dizer que os egípcios eram negros, de pele escura, membros compridos e cabelo encarapinhado: afirmação apoiada numa observação ambígua do historiador grego Heródoto que visitou o Egito, no século V a.C., e em nada mais do que isso. E assim o hábito de historiadores europeus e americanos de referir-se aos egípcios antigos como não-negros é uma conspiração racial para ocultar as realizações da África negra. ' Ora, é verdade, documentada extensamente por Martin Bernal em seu polêmico livro Black Athena [Atena negra], que escritores , p opulares e acadêmicos nos séculos XIX e XX procuraram retratar os egípcios como "mais brancos" do que podem ter sido - J ames Breasted, decano de estudos arqueológicos na Universidade de Chicago, afirmava na década de 30 que os egípcios eram "membros de pele escura da Grande Raça Branca", e Hollywood concordou. Cleópatra pode não ter sido tão negra quanto Bessie Smith, como dizem os afrocentristas, mas certamente não tinha a aparência da atual sra. Larry Fortensky. É igualmente verdade que eruditos dos séculos XIX e XX, ao tentarem desligar o Egito da África, estavam errados, e que seus esforços foram motivados por fanatismo. Geograficamente, o Egito faz parte da África; e poucos historiadores hoje parecem favorecer a hipótese, para salvar a pele, de que uma "raça dinástica" veio de fora da África para criar o Egito ptolomaico. Como observou Basil Davidson, a mistura racial egípcia foi certamente aumentada por migrações do Oriente Próximo, mas afirmar a partir disso que a vasta maioria dos habitantes do antigo Egito, não sendo "negra", não era portanto africana, é tão pouco sustentável quanto afirmar o mesmo a respeito dos bérberes e dos etíopes, que ninguém ainda propôs riscar da lista dos povos africanos. As velhas categorias raciais de "branco" e "negro" na verdade fazem pouco sentido neste ou talvez em qualquer outro contexto [... ] Fosse qual fosse sua pigmentação ou aparência física, os egípcios dos tempos faraônicos podem ser com segurança colocados na história africana. 10
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Brigar sobre a etnicidade dos egípcios - como se tivesse havido uma única constante étnica ao longo do Nilo .durante quatro milênios - não tem sentido, já que nenhum egípcio antigo daria os mesmos significados racial , político ou geográfico à palavra" África" que nós damos, e de qualquer modo a sociedade africana parece ter vindo pelo menos tanto dos povos mesopotâmicos e asiáticos a leste do Nilo quanto dos africanos a oeste e ao sul. A questão de os antigos egípcios terem sido negros não tem importância para a história egípcia ou africana - só interessa aos afro centristas americanos. Figuras negras aparecem na arte egípcia, mas são em geral identificadas com gente do sul. Para os outros, os artistas egípcios cujos afrescos proporcionam informações abundantes sobre as diferentes cores da antiga sociedade egípcia - reservavam uma' gama de marrons avermelhados, brancos cremosos e acres; não se viam. como negros, nem representavam suas figuras com traços negróides. Na certa teriam achado irracionalmente grosseiras as categorias americanas modernas de raça . Tinham um estado teocrático, mas sua composição étnica estava mais perto de um anúncio da Benetton. Quanto às opiniões de Heródoto sobre a negritude no Egito, deve-se aceitar isso com certo ceticismo. A obra de Heródoto está repleta de curiosidades e fábulas sobre características nacionais que não são, de fato, verdadeiras . Por exemplo, ele declara no livro 3 de sua História que os crânios dos egípcios eram mais densos que os dos persas, e afirmou ter verificado isso examinando os' esqueletos deixados no campo de batalha onde um exército persa tinha posto umexército egípcio em debandada: os crânios persas "são tão finos que o simples toque de um pedra os perfura, mas os dos egípcios [... ] são tão duros que dificilmente se pode quebrá-los". Explicou que isso se dava porque os persas usavam solidéus, enquanto os egípcios raspavam a cabeça desde a infância, "de modo que o osso do crânio é endurecido pela ação do sol - é por isso que dificilmente eles ficam calvos, sendo a calvície mais rara no Egito do que em qualquer outra parte" . Mas para os afrocentristas, o Egito negro não é uma hipótese histórica: é um artigo de fé, a chave de um sistema de crença medicinal. O xeque Diop pensava que Uma olhada ao Egito da Antiguidade é a melhor maneira de conceber e construir nosso futuro cultural [.. .] O Egito é a mãe distante das culturas e ciências ocidentais, [e] a maioria das idéias que chamamos es-
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trangeiras não passa muitas vezes de misturas [...] imagens das criações de nossos ancestrais africanos, como judaísmo, cristianismo, Islã, dialética [...] aritmética, geometria, engenharia mecânica, astronomia, romance, poesia, teatro, arquitetura e as artes.!'
Não fica claro o que Diop quis dizer, em detalhe, com a idéia de que o antigo Egito oferece o modelo da futura África, já que era um estado escravista dirigido por faraós absolutistas e seus sacerdotes. Fico confuso com sua referência à "dialética" africana; estariam os ancestrais de Hegel e Marx mesmo à solta entre as colunas de Tebas? Denunciando furiosamente o Cânone de papiro? Protestando contra a falta de escultores de esfinges gays e mulheres? Sobre isso, infelizmente, os hieróglifos calam. Diop gostaria que acreditássemos que nada pode ser importado na África, que nada é estrangeiro para ela, porque tudo já estava lá. No fundo, e independentemente do quanto suas idéias excitem alguns americanos negros, Diop foi um maluco; esse tipo de ingênuo difusionismo, em que idéias e formas culturais começam no ponto A, e depois irradiam-se para outras culturas, em que todos os fios retornam a uma única causa, ou centro, ou manipulador de títeres, não encontra muita simpatia entre os historiadores atuais, porque ignora o modo como idéias e formas semelhantes nascem espontaneamente em sociedades muito distantes. Como observou John Baines, professor de egiptologia em Oxford, quando resenhou os livros de Diop e Bernal no New York Times, "nem todos os que duvidam dos princípios do difusionismo são eurocentristas. Na verdade, o próprio difusionismo foi produto de uma era racista e colonialista, e serviu a uma ideologia de dominação [... ] para atacar a visão errônea de que os africanos não foram autônomos e inventivos, [os autores] sugerem que outras culturas não podem ter sido autônomas e inventivas". Mas o desvio de Diop é bastante claro. A África pode tomar qualquer coisa que queira da cultura e tecnologia euro-americanas sem perder sua essência africana, porque tudo o que existe já existia outrora na África. Ela está simplesmente retomando sua propriedade roubada. Pode-se chamar isso de teoria do culto da carga da história; relaciona-se com o mito da Era de Ouro, quando tudo era de todos e abundante. A religião do culto da carga está profundamente relacionada ao nacionalismo da Nova Guiné. Seus adeptos afirmam que numa certa época toda a "carga" (bens) do mundo pertencia aos novaguineanos. Depois veio a queda do homeJ?: vie112
ram os.colonizadores brancos e tomaram-na. Mas em breve virá um Messias e devolverá toda a carga, desde sardinhas em lata até motores de popa Yainaha, aos novaguineanos, aos quais ela pertence de direito. Isso anulará a angústia do colonialismo. Os cristãos têm um mito semelhante, de um Paraíso antes da Queda e da vinda do Milênio. Esses mitos têm uma utilidade social. Confortam os perseguidos e marginalizados - os primeiros cristãos, os novaguineanos colonizados e os negros nos Estados Unidos e na África, que sabem que seu passado distante foi riscado da história. E foi mesmo. Nisso os afrocentristas têm razão, embora todo estudioso respeitável da história negra tenha tratado disso também. O racismo dos historiadores tradicionais dos séculos XIX e XX, quando se trata das culturas da África, tem sido apavorante. A maioria deles recusou-se a acreditar que as sociedades africanas tivessem uma história que valesse a pena ser contada ou mesmo pesquisada. O catálogo de citações poderia prosseguir indefinidamente, e uma só servirá por todas - Arnold Toynbee, emA study of history [Um estudo . de História]: "Quando classificamos a humanidade pela cor, a única das raças primárias [...] que não deu uma única contribuição criativa a qualquer de nossas 21 civilizações foi a raça negra". Nenhuma pessoa negra - na verdade, nenhum historiador moderno de qualquer raça - pode ler essas mornas rejeições sem incredulidade e nojo. O problema é: como corrigir o registro? Só com mais conhecimento. Toynbee escrevia há mais de cinqüenta anos, mas nos últimos vinte deram-se imensos passos nos estudos africanos, tanto na África quanto na América negra. Mas a maré crescente de pesquisa, o surgimento de programas de Estudos Negros nas universidades americanas, e tudo o que acompanha a expansão há muito necessária desse campo parecem condenados a ser empesteados por movimentos como o afrocentrisrno, do mesmo modo como sempre há malucos matraqueando sobre discos voadores na periferia da arqueologia meso-americana. A segunda alegação do afrocentrismo, portanto, é que a cultura européia deve sua própria existência à África. A África colonizou a Europa benignamente, dividindo com ela seu conhecimento. Isso se deu através da influência egípcia na Grécia, mas nesse processo as conquistas pioneiras da África se perderam ou foram disfarçadas. Sulcar a literatura do afrocentrismo é entrar num mundo de alegações sobre inovação tecnológica tão absurdas que transcendern a sátira, como as feitas sobre a ciência russa na época de Stalin. Os egípcios, aliás africanos, inventaram a bateria úmida obser113
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. \ \Frando enguias elétricas no Nilo. O "erudito" afrocentrista Ivan van Sertima afirma que egípcios negros no fim do primeiro milênio a. C. - voavam em planadores; esta notícia se baseia não na descoberta de uma aeronave num túmulo egípcio, mas numa escultura votiva de madeira do deus Horus, um falcão, que um comerciante inglês de passagem tomou erroneamente, há algumas décadas, por um aerOm Odelo . Sertima também ensina que os tanzanianos, há 1500 anos, ( fundiam aço com tecnologia de semicondutores. Como o historiador afrocentrista J ohn Henrik Cláfke, ele acha que a América do Sul foi povoada por expedições vindai:'da África, cujos registros, naturalmente, se perderam; o indício disso são os lábios grossos na escultura olmeca. Do mesmo modo, os afrocentristas acham que o rosto da Grande Esfinge de Gizé era na verdade de um negro, e que os soldados de Napoleão receberam ordens para mutilá-lo com fogo de canhão a fim de ocultar o fato. Não há nada que prove essas histórias, mas também nada que as conteste - uma condição comum a tudo que não aconteceu. É a esse tipo de besteira que os membros do Con(selho de Regentes do Estado de Nova York se referem como "fontes \de conhecimento não dominantes' Por que os americanos demonstram tal credibilidade diante de pessoas com diplomas? John Henrik Clarke tem um doutorado e é encarado por muitos negros como, nas palavras de Henry Louis Gates JI., "o grande paterfarnilias do movimento afrocêntrico ". É também um maluco anti-semita, dado a denunciar o que chama de 'é a máfia educacional judia"; escrevinhou uma introdução a uma obra racista de pseudociência intitulada The Ieeman inheritance: prehistorie sourees of Western man 's racism, sexism and aggression [A herança do homem do gelo: fontes pré-históricas do racismo, sexismo e agressão do homem ocidental], cujo autor, Michael Bradley, afirma que os judeus são o pior povo da terra porque foram outrora os "mais puros e antigos Neanderthal-caucasóides " . Mal se pode acreditar que os judeus americanos, que estiveram na linha de frente da luta pelos direitos civis para os afro-americanos na década de 60, sejam agora alvos de ataques anti-semitas de uma nova geração de negros, levados por professores como Leonard Jeffries a acreditar na historicidade de textos de ódio como a durável falsificação tsarista, os "Protocolos dos sábios de Sião". Mas graças à ascensão dos pseudo-estudos afrocentristas, os negros são os únicos americanos entre os quais o anti-semitismo, em lenta desaparição em toda parte, está em ascensão. 12
'Essa nova efusão de racismo vem guarnecida com argumentos propondo que, como só os que estão no poder podem ser racistas, o racismo negro não o é de modo algum. E em cima disso oferece.s e aos jovens negros a promessa ilusória do sentimento da Volta-àÁfrica. Todos os grupos migrantes americanos extraem identidade cultural, e certo grau de força espiritual, do senso de suas raízes originais - na Sicília ou nas ilhas Jônicas, na Irlanda ou em Cuba, e na África. Ao sentirem saudades do útero, também sentimentalizam e estereotipam suas origens; isso, como qualquer estranho que tenha assistido a uma embalada beano [farra, festança] irlandesa em Boston pode atestar, é um poderoso instinto tribal. Mas deve-se reconhecer que a "África", a imaginada entidade de que gostam de falar os afrocentristas, é em grande parte uma construção desse tipo - um paraíso materno perdido. Os negros americanos, não menos que os brancos, pertencem à cultura americana e são por ela moldados, uma cultura para a qual muito contribuíram e na qual estão inextricavelmente entrelaçados suas imaginações e atos: só têm em comum com os negros africanos os genes e, no caso de Estados africanos que foram colônias inglesas, a língua inglesa. Imaginar que a experiência cultural de um negro americano se assemelha à de um cidadão de Zimbábue, ou U ganda, ou África do Sul, além do fato básico de que ambos sofreram os efeitos corrosivos e humilhantes do racismo branco, é pura fantasia. Jamais houve no passado, no sentido estrito, uma cultura panafricana: ao contrário, sempre houve muitas tribos, muitas línguas, muitas culturas, muitas religiões e cultos contraditórios, e muitos reis; e, não é preciso acrescentar, muitas guerras entre eles. Os horrores da África pós-colonial se devem em grande parte ao fato de que os novos governantes negros puderam enxertar modernas técnicas de opressão em antigos ódios tribais; as fronteiras das naçõesEstado africanas raramente correspondem a divisões tribais, de modo que as tribos dentro de um Estado vivem sempre na garganta umas das outras. Quinze anos atrás, já era claro que os mais -benignos legados do colonialismo britânico, como tribunais independentes e serviços públicos relativamente não-corruptos, foram as primeiras coisas a ser abandonadas pelas ex-colônias britânicas na África que se transformaram em ditaduras militares nacionalistas. Quem contestaria a sério que os ugandenses estavam melhor, econômica ou legalmente, sob lord Lugard na década de 10 do que estão hoje, depois de Idi Amim e seus sucessores? O Zaire, ex-Canga belga, é uma disto-
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pia falida cujo tirano, o presidente Mobutu, tem cerca de 6 bilhões de dólares na Suíça - a dívida nacional de seu país. As pessoas vêm morrendo de fome há centenas de anos na Etiópia, mas só depois que o ditador Mengistu tomou o poder foi o assassinato em massa, pela fome, de milhões de pessoas usado de fato ali 'para fins políticos. A conduta dos sátrapas coloniais franceses na Guiné foi bastante medonha, mas dificilmente pior que a corrupção de Seiko Touré, o Calígula .negr o que assumiu quando os franceses saíram e governou o país de meados da década de 60 a inícios da de 70. Além disso, pode ser que os Estados africanos que não tiveram registro significativo de colonização européia - a Libéria, que na verdade foi fundada por escravos americanos que voltaram para a África no século XIX, e a Etiópia - sej am os que se mostraram piores. A idéia de que os afro-americanos têm um lugar à espera deles numa "África" generalizada, em qualquer sentido que não metafórico, é mera demagogia cultural. Nem negros nem brancos podem "voltar para casa de novo", a não ser como turista; seu lar mútuo, com todos seus ideais, oportunidades, conflitos e males, são os Estados Unidos, e eles não têm outro.
VII Em parte alguma são as fraquezas e a natureza propagandística do afrocentrismo mais visíveis que em sua versão da história dos escravos. A escravidão é uma das mais antigas e piores instituições humanas. Seus legados permanecem nos Estados Unidos de hoje, no sofrimento e malefício social causado a seu povo negro, no racismo de seus brancos. Todos os tipos de racionalização e desculpa para esse Pecado Original da República americana encheram no passado o ensino da história americana. Como observou Arthur Schlesinger J r., entre outros, a história foi por muito tempo escrita por e para brancos, que usurparam as imagens da vida afro-americana e as devolveram como estereótipos distorcidos, consoladores para os preconceitos brancos e humilhantes para o autoconhecimento negro. Não se pode confiar que nenhuma história geral americana escrita por um branco até a década de 60 dê uma visão justa, investigatória, do que significaram a escravidão e seus resultados para os negros americanos - ou, igualmente, do que a conquista do' Oeste significou para os índios americanos. Historiadores americanos, ne116
gros e brancos, têm-se esforçado para corrigir isso. Mas não há mal tão grande que não possa ser exagerado; e este tornou-se o projeto de recentes afrocentristas, que desejam inventar uma espécie de história medicinal em que toda a culpa pela invenção e prática da escravidão negra é deposta na porta dos europeus. Isso é profundamente não-histórico, mas está se firmando na consciência popular através dos novos currículos. Houve três grandes revoltas de escravos na história humana. A primeira, chefiada pelo gladiador trácio Espártaco contra os romanos, ocorreu em 73 a.C. A terceira foi na década de 1790, quando o grande revolucionário negro Toussaint l'Ouverture e seu exército de escravos tomaram o controle de São Domingos dos' franceses, apenas para serem derrotados por Napoleão em 1908. Mas a segunda ficou a meio caminho entre essas duas, no meio do século IX d .C., e é menos documentada do que elas . Sabemos que os insurgentes eram negros; que os califas abássidas muçulmanos do Iraque os tinham trazido da África Oriental para trabalhar, aos milhares, nas salinas do delta do Tigre. Esses rebeldes repeliram os árabes durante quase dez anos. Como os quilombolas do Brasil séculos de pois, estabeleceram suas fortalezas nos pântanos. Pareciam inexpugnáveis, e na verdade só foram esmagados pelos muçulmanos em 883. Eram conhecidos como os Zanj, e legaram seu nome à ilha de Zanzibar, na África Oriental - que, não por coincidência, se tornaria e continuaria a ser o centro do mercado de escravos no mundo árabe até o último quartel do século XIX. A revolta dos Zanj 1100 anos atrás devia lembrar-nos da absoluta falsidade da linha de argumentação hoje em moda que tenta sugerir que a escravização de negros africanos foi invenção de brancos europeus. É verdade que a escravidão estava inscrita na base do mundo clássico; a Atenas de Péricles era um Estado escravagista, e também o era a Roma de Augusto . A maioria de seus escravos era de brancos caucásicos , e "na Antiguidade, a servidão nada tinha a ver com fisionomia" ou cor de pele" . 13 A palavra inglesa s/ave significava uma pessoa de origem eslava. No século XIII, tinha-se espalhado para outros povos caucásicos subjugados por exércitos da Ásia central: russos, georgianos, circassianos, albaneses, armênios; todos os quais encontravam compradores de Veneza à Sicília e Barcelona, e por todo o mundo muçulmano. Mas o comércio de escravo africano como tal, o tráfico negro, foi uma invenção muçulmana, desenvolvida por comerciantes árabes com a entusiástica colaboração de comerciantes negros africa117
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nos , institucionalizada com a mais implacável brutalidade séculos . antes de o homem branco aparecer rio continente africano, e continuando muito depois que o mercado de escravos na América do Norte fo i afinal esmagado. Historicamente, esse tráfico entre o Mediterrâneo e a África sub saariana começa com a própria civilização que os afrocentristas estão tão ansiosos para reclamar como negra - o antigo Egito. A escravidão africana já estava em pleno vigor muito antes disso: .mas no primeiro milênio a. C. o fara ó Ramsés II gabava-se de prover os templos com mais de 100 mil escravos, e na verdade é inconcebível que a monumental cultura do Egito pudesse ter surgido sem uma economia escrava. Durante os 2 mil anos seguintes, as economias básicas da África sub-saariana permaneceriam ligadas à captura, uso e venda de escravos. Esculturas da vida medieval mostram escravos amarrados e amordaçados para sacrifício, e os primeiros exploradores portugueses da África, por volta de 1480, encontraram um grande mercado de escravos estabelecido desde o Canga até Benim. Havia grandes fazendas de escravos no império mali nos séculos XIII e XIV, e todos os abusos e crueldades impostos a escravos no Sul dos Estados Unidos antebellum, incluindo a prática de gerar crianças para venda, eram praticados pelos governantes negros das cidades que os afrocentristas hoje exibem como exemplos saneadores de alta civilização, como Tombuctu e Songai. Naturalmente, isso é um problema para os afrocentristas, sobretudo no contexto das idéias muçulmanas negras que muitos deles esposam. Nada nos textos do Profeta proíbe a escravidão, razão pela qual ela se tornou. um comércio tão dominado pelos árabes. É necessária uma grande mentira para neutralizar essa incômoda verdade. Conseqüentemente, um dos best-sellers na comunidade negra americana hoje é uma publicação oficial do grupo conhecido como A Nação do Islã (cujo cabeça é o arquifanático Louis F arrakhan), intitulada The secret relationship between blacks and jews [A relação secreta entre negros e judeus], uma compilação de pseudohistória que pretende revelar o papel "desproporcional" desempenhado pelos judeus na criação da "escravidão e holocau.sto neg~~s". Suas alegações - como a ficção de que mercadores Judeus ,f~e qüentemente dominavam" o mercado de escravos para a Amenca e o Caribe - foram laboriosamente refutadas, ponto por ponto, numa resposta do historiador Harold Brackman, muitas_vezes u.sa~ do as próprias fontes mal usadas e mal citadas pela vers~o da hIStOria de Farrakhan. Contudo, essa resposta não conseguiu penetrar 118
na comunidade negra como The secret relationship penetrara, uma vez que é da natureza dos textos paranóides inocular os leitores ingênuos contra sua refutação; toda resposta torna-se parte da própria generalizada conspiração global.!" Nos "Ensaios de base" e em outros, temos uma negação pura e simples de que o Egito sequer tivesse escravos, o que seria novidade para Moisés, e muitos murmúrios de que a escravidão africana, bem .. . existiu, mas foi muito mais benigna que sua equivalente americana. Masnão há generalizações a fazer sobre isso ; às vezes os escravos africanos de africanos parecem ter sido aceitos quase como parte da família ou membros da tribo, embora com direitos muito reduzidos, e outras tratados pior que gado, espancados, estuprados e mortos a fome - também aqui, um padrão arquetípico que seria repetido por brancos donos de escravos no velho Sul. Como demonstrou Roland Oliver, o mais eminente dos eruditos africanos e editor geral da História da .África, de Cambridge, em oito volumes: tudo o que sabemos do tráfico de escravos e de sua expansão entre os séculos XVI e XIX confirma que ele não poderia ter existido sem a entusiástica cooperação de Estados tribais africanos, construídos com base no estoque de cativos gerados por suas guerras implacáveis .1 5 A imagem divulgada por ficções de história pop do tipo Raízes - escravistas brancos irrompendo com alfanges e mosquetes nas vidas assentadas de pacíficas aldeias africanas - está muito longe da verdade histórica. Ao longo de séculos, já havia um sistema de mercado , e seu abastecimento era controlado por africanos . E tampouco desapareceu com a abolição nos Estados Unidos . Em 1865, ano em que a Guerra Civil terminou com a derrota do Sul, Livingstone estava em Zanzibar; ele calculou que entre 80 e 100 mil escravos africanos haviam sido trazidos do interior acorrentados por escravistas árabes e africanos naquele ano, metidos em dhows e embarcados para a Pérsia e para os Estados árabes do Golfo . Ao contrário dos ingleses e americanos, nem os árabes nem os reis africanos no século XIX viam a menor razão humanitária para tomar medidas contra a escravidão. Os mercados de escravos que abasteciam os emirados árabes ainda operavam em Djíbouti na década de 50; e desde 1960 florescem na Mauritânia e no Sudão. Ainda há comunicados de escravidão no norte da Nigéria, Ruanda e Níger. Jean-Bedel Bokassa, imperador da República Centro-Africana, a quem Giscard d'Estaing, com sua fome de diamantes, abraçou ostentosamente como seu irmão negro na época da coroação em 1977, mantinha centenas de escravos, e de vez em quando preparava um 119 I
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bre história são manifestações de poder: a história só é escrita pelos vencedores, e a verdade é política e incognoscível, a menos que alguma vítima a conheça nos ossos. Esse sofisma é que permite aos autores dos "Ensaios de base afro-americanos de Portland" não apenas rechear o currículo com ficções sobre ciência egípcia, mas inserir o mais absurdo disparate sobre a ciência, equiparando-a a magia. Assim, ficamos sabendo que os egípcios negros, quando não estavam voando por aí em planadores, podiam prever o futuro com "tratados astropsicológicos". Podiam ver coisas que não estavam à vista, ou antes que acontecessem. Construíram as pirâmides por telecinese - é só se concentrar bastante, que a gente pode fazer um bloco de calcário de cem toneladas flutuar no ar. Pelo menos essa arqueologia à la Shirley Mac Laine resolve o incômodo problema do trabalho escravo egípcio, já que não queremos que esses egípcios negros tivessem eles próprios escravos . O ensaio em que ficamos sabendo disso tudo, e muito mais, é escrito por Hunter Havelin Adams IlI, que se descreve como "cientista pesquisador nos Laboratórios Nacionais Argonne, Chicago". Isso soa vagamente impressionante, mas na verdade, segundo a Argonne, o sr. Adams é um assistente de laboratório que tem como tarefa recolher amostras de ar, sem qualificações além de um diploma ginasial. Outro exercício remediador, desta vez de biografia.
massacre deles para sua diversão. Se, como certa vez observou H. Rap Brown, a violência é tão americana quanto a torta de maçã, a escravidão parece tão africana como o inhame. E, no entanto, a idéia da culpa exclusiva da Europa e da América continua a rondar as discussões sobre a escravidão. Alguns líderes africanos e mesmo líderes negros americanos, incluindo - um tanto surpreendentemente - o reverendo J esse J ackson, chegaram até a propor que os Estados Unidos e os países desenvolvidos da Europa, que lucraram com a escravidão, agora contribuíssem com uma espécie de dinheiro de sangue para os Estados africanos, como reparação oficial pelo dano social e econômico causado ao continente no passado com o tráfico de escravos, para ajudar esses Estados a montarem sua base econômica. A África moderna, afirmam, tem tanto direito quanto teve Israel às imensas subvenções que lhe têm sido pagas pelos Estados Unidos e outros países como expiação pelo assassinato de judeus europeus por Hitler. Curiosamente, nenhum deles sugere que os emirados árabes ou o Iraque entrem com sua parte, que, por todos os direitos, deveria ser grande, maior que a da Europa ou mesmo dos Estados Unidos, e que com a mesma facilidade seria levantada da receita do petróleo . Se Washington deve pagar em dinheiro pelos pecados de Simon Legree, parece simplesmente justo que Bagdá expie os dos califas abássidas. África, Islã e Europa, todos participaram da escravidão negra, impuseram-na, lucraram com suas misérias. Mas no fim só a Europa (aí incluindo a América do Norte) mostrou-se capaz de conceber sua abolição; só a imensa força moral e intelectual do Iluminismo, assestada sobre a hedionda opressão que representava a escravidão, pôde - irregularmente e com grande dificuldade - pôr fim ao tráfico. Que hoje tenhamos supostos historiadores dispostos a sofismar esse fato, me parece notável. Mas também, nessas alturas, nem a Navalha de Occam nem a idéia de que o ônus da prova recai sobre a pessoa que faz a acusação têm qualquer força. Pois aqui topamos de novo com uma lei fundamental da atitude PC em relação a estudos da opressão. O que quer que diga um historiador ou testemunha europeu branco e homem deve ser suspeito; as declarações de uma pessoa ou grupo oprimido merecem crédito instantâneo, mesmo sendo a mais simples afirmação. Ora, as alegações da vítima têm de ser ouvidas, porque podem lançar luz so bre a história. Mas têm de passar exatamente pelos mesmos testes que as de qualquer outro, ou o debate fracassa e a verdade sofre. A justificativa PC para isso é a idéia de que todas as declarações so-
A palavra "auto-estima" tornou-se uma das senhas obstrutivas da educação. Por que as crianças negras precisam de educação afrocentrista? Porque, dizem seus promotores, ela cria auto-estima. Elas vivem num mundo de meios de comunicação e instituições cujas imagens e valores são criados sobretudo por brancos. A tradição branca é denegrir os negros. Daí os negros precisarem de modelos que lhes mostrem que são diferentes, e que contam. Quer que seus filhos se amem? Então mude o currículo. Dê-lhes blá-blá-blá racista de que a inteligência está em-função da quantidade de melanina na pele, e que os africanos eram pessoas do sol, livres, abertas e cooperativas, enquanto os europeus eram pessoas do gelo, escondendo-se, pálidos, em cavernas. O papo a respeito da auto-estima nos chega embrulhado em sentimentos que, se manifestados por brancos, disparariam sinos de alarme de racismo. As crianças negras, lemos nos "Ensaios de base de
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VIII
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Portland", são impelidas por sua herança genética a " p rocessar informação de um modo diferente" das brancas - uma alegação que os supremacistas brancos, de seu lado da cerca, vêm fazendo desde antes da Guerra Civil. A verdade é que, para citar Albert Shanker, presidente da Federação Americana de Professores, "as crianças pobres, de minorias, cujo desempenho ainda fica atrás do dos garotos brancos , de classe média, merecem a melhor educação que possamos dar-lhes. Não vão recebê-la se substituirmos história por mito ou ciência por magia" . Partindo dessa mixórdia, os afrocentristas querem criar urna história separatista e impô-la a crianças ainda jovens demais para contestá-la. Fala-se mesmo em mudanças curriculares segundo as linhas do documento de Portland para crianças de três anos. Não é difícil ver por que essas alegações de história puramente compensatória se intensificam agora. São simbólicas . Fazem parte de urna reação de desespero, frustração e raiva contra doze anos de governo direitista, de políticas obstinadamente anti-reformistas de Reagan e Bush, de identificação republicana de racismo com populismo. Em 1989, cerca de 40 por cento de todas as crianças negras viviam abaixo do nível de pobreza, enquanto as esperanças de igualdade racial e maior oportunidade educacional para os afroamericanos pobres despertadas em meados da década de 60 estavam praticamente extintas. Mas isso apenas torna compreensíveis as alegações da pseudohistória afrocentrista. Não a justifica, nem a credencia corno conhecimento. O nacionalismo sempre precisa escorar-se em mitos; e quanto mais novo o nacionalismo, mais antigas suas' alegações. Foi assim que os nacionalistas culturais irlandeses - Yeats e seus amigos, na década de 1890 - conseguiram criar um passado mítico para a Irlanda, o crepúsculo celta repleto de heróis e reis desaparecidos, Cuchulain e Briann Boru. Assim é que o tartan, tecido de lã xadrez desconhecido na antiga Escócia, foi na verdade invenção de fabricantes de têxteis de fins do século XVIII e do século XIX. . Assim é que os catalães do século XIX, furiosamente ressentidos com a supressão de seu idioma e a perda de sua autonomia política para Madri após a conquista de Barcelona pelos Borbon em 1714, criaram todo um sistema de revivescência cultural baseado numa versão altamente seletiva, e mitologizada, de. seu passado medieval e de suas instituições desaparecidas. A invenção da tradição, corno mostraram em detalhe Eric Hobsbawm e outros.l'' foi uma das indústrias culturais da Europa do século XIX.
E do século xx também. E se perguntarem quais os objetivos desses esforços para.confundir história e mito, em todos os casos a resposta é a mesma. Auto-estima. Os alemães perderam auto-estima após o Tratado de Versalhes. Os italianos tinham baixa auto-estima na década de 20, e estavam compreensivelmente cansados de ser vistos corno um país de tocadores de realejo e fabricantes de gelato . A auto-estima irlandesa fora rebaixada por setecentos anos de colonização inglesa e preconceito religioso, pela perda dos direitos políticos dos católicos. Mas o desejo de auto-estima não justifica toda mentira, exagero e distorção 't er ap êuti ca de provas que se pode alegar para aliviá-lo. O separatismo que isso promove transforma o que devia ser um reconhecimento da diversidade cultural, do verdadeiro multiculturalismo, generoso e tolerante de ambos os lados, num pernicioso programa simbólico. O separatismo é o oposto da diversidade, e também pode fazer alianças espúrias. Quase trinta anos atrás, os Muçulmanos Negros de Ma1colm X e o Partido Nazista de George Lincoln Rockwell fizeram um comício conjunto no Madison Square Garden para dramatizar suas esperanças mútuas de cindir os Estados Unidos em zonas segregadas, uma para negros , outra para brancos. A idéia de que a cultura européia é opressiva, em si e por si, é uma falácia que só pode sobreviver entre fanáticos e ignorantes. A convicção moral e intelectual que inspirou Toussaint l'Ouverture a 'concentrar os ressentimentos dos escravos haitianos e os levou à liberdade veio de sua leitura de Rousseau e Mirabeau. Quando milhares de trabalhadores sem voto, sem propriedade, por toda a Inglaterra, se reuniram em grupos de leitura na década de 1820 para discutir idéias republicanas e descobrir o significado de Júlio César, de Shakespeare, eles buscavam unir-se tomando os sentidos de uma cultura dominante das mãos de tutores que não estavam à altura deles. Nos últimos duzentos anos, as vítimas de opressão sempre conseguiram encontrar uma visão transformadora e fortalecedora dentro da literatura e do pensamento da Europa. É um ato da mais barata condescendência supor que isso não pode ser mais assim, e que esse edifício imenso, complexo e multicelular, essa colméia que os reducionistas tomam por "monolito", não pode mais conter resposta alguma para as necessidades dos fracos, as aspirações dos despossuídos e as exigências dos que buscam autodefinição cultural. As idéias americanas de democracia liberal só podem alimentarse em suas fontes, que estão absolutamente dentro da tradição européia; e é muito mais importante que os jovens as conheçam antes .
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de passar a adquirir qualquer conhecimento que queiram sobre a antiga cultura do Dogon ou as instituições políticas dos iroqueses. O principal vem primeiro. O separatismo cultural dentro desta república é mais uma moda que uma proposta séria; não é provável que se sustente, mas se o fizesse seria uma tragédia educacional para aqueles a quem pretende ajudar, os pobres e os negros. Seria um gesto não de "fortalecimento", mas de emasculação . A auto-estima vem de fazer bem as coisas, e de descobrir o que nos une, além do que nos separa. A postura do politicamente correto, e sua culpada tolerância COIU picaretas do tipo Leonard J effries e o reverendo AI Sharpton, não servem mais de orientação para essas questões do que as opiniões de Simon Legree.
3 A MORALEM8f
A arte e a falácia terapêutica
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Em questões de artes visu ais, a "guerra cultural" americana começou oficialmente em 18 de maio de 1989, no plenário do Senado dos Estados Unidos em Washington, quando o senador Alfonse D' Amato (republicano de Nova York) rasgou a repr o dução de urna foto e jogou os pedaços no chão. A foto havia sido enviada pelo reverendo D·onald Wildmon, um ativista religioso cujo grupo de pressão, a Associação Familiar Americana, fora formado para combater a disseminação da pornografia, indecência e sentimento irr eligioso nos Estados Unidos. A especialidade de Wildmon é descobrir mensagens negativas, os tensivas e subliminares , nos meios de comunicação e nas artes, e depois estimular a pressão por meio de cartas sobre as empresas patrocinadoras. Antes ele já havia feito campanhas contra a adaptação para a TV, por David Wolper, do lacrimoso best-seller de Coleen McCullough, Pássaros feridos, contra o filme de Martin ScorceseA última tentação de Cristo, e contra videoclips de Madonna. Conseguiu f or çar a CBS a cortar uma seqüência de 3,5 . segundos num desenho animado de Ralph Bakshi em que se mostrava o rato Possante cheirando uma flor: o que o soez roedor na verdade estava cheirando, insistia Wildmori, era cocaína. 1 A imagem rasgada reproduzia uma foto de um artista, Andrés Serrano. Mostrava um crucifixo de plástico barato, desses vendidos por toda parte em lojas de artigos sacros e kitsch religioso, mergulhado num líquido âmbar coberto de bolhas. O título da obra de arte, Piss Christ [Cristo de mijo, ou Mije no Cristo], deixava claro o que era o líquido . E era do próprio artista. Piss Christ era sob todos os aspectos uma obra autógrafa. Se Serrano houvesse dado à sua grande e tecnicamente esplêndida foto Cibachrome um outro título - La catedral ahogada, tal-
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vez, ou mais prosaicamente, Immersion study (1) - não haveria como saber que era urina. Mas ele quis fazer uma declaração de princípios marcante, trepidante, sobre duas coisas: primeiro, a degradação da imagística religiosa de massa no kitsch (inescapável nos Estados Unidos, como sabe qualquer cristão consciente), e segundo, seu ressentimento contra a moralidade coercitiva de suas raízes hispano-católicas. Serrano é um ex-católico altamente conflituado e sua obra - sobretudo imagens como Piss Christ - trata desses conflitos. Nenhuma imagem deixa de ter sua história, e a de Serrano pertence a uma vertente bastante antiga na arte moderna - a blasfêmia anticlerical surrealista. Piss Christ tem vários ancestrais remotos, incluindo o famosolinfame quadro de Max Ernst da Virgem Maria batendo no Menino Jesus, e a foto desfocada, ancestral do moderno happening, de um poeta surrealista xingando um padre numa calçada de Paris na década de 20. Nem toda a obra de Serrano busca seus efeitos através da blasfêmia. Mas Piss Christ certamente o fez, e não há como contornar isso. Claro, após o fato, pode-se historicizar e fazer objeções à vontade. Pode-se observar que o crucifixo de plástico na verdade não era Cristo, mas uma representação de Cristo - mas esse sofisma magrittiano , ceei n 'est pas un Dieu, não cola. A imagem é forte demais. . Também se pode observar que os crucifixos .são produzidos comercialmente por todos os tipos de razões esdrúxulas, sem causar tempestades morais: assim, no mesmo mês em que os políticos começaram a dedicar suas atenções a Serrano, eu recebi um catálogo de encomendas postais de uma empresa de cutelaria, especializada em facas de caça e pesca, que anunciava uma pequena arma, digna em concepção, embora não em execução, dos Bórgia: um punhal oculto num crucifixo, made in Taiwan, e custando 15,99 dólares. Isso, podemos pensar, não deixa de ter seu aspecto blasfemo tam-' bérn. E na última Páscoa, o drugstore na região leste de Long Island o.nde moro vendia crucifixos de chocolate com uma imagem gr?Ss,:lfa de Jesus t~azendo impresso: "Comei isto em memória de MIm . Por que sena certo alguns americanos comerem a imagem de seu Salvador e transformá-la em fezes, enquanto outros america~os se contorcem à idéia de que outra imagem do mesmo Salvador fOI mergulhada em urina, parece um enigma próprio para intrigar um moderno Tocqueville. Mas não no coração da terra americana onde a indústria da religião é imune à crítica ou à dúvida.' , 128
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Contudo, nem o punhal-crucifixo nem o Jesus de chocolate tinham sido recompensados com dinheiro vindo do governo americano, o que ocorreria no caso do autor de Piss Christ, Pouco antes de Donald Wildmon mandar sua queixa ao senador D'Amato, Serrano ganhara um prêmio de 15 mil dólares do South-Eastern Center for Contemporary Art (SECCA), em Winstou-Salem. O SECCA recebera o dinheiro para esse prêmio - antes de seu júri decidir concedê-lo a Serrano - do National Endowment for the Arts (NEA). A verba fora concedida sem condições, e ninguém no NEA teve o menor papel na escolha de Serrano como vencedor. Apesar disso, Serrano acabara, indiretamente, com dinheiro do governo no bolso, uma situação que Wildmon, numa carta circular, declarou significar que "a parcialidade e intolerância com os cristãos, que têm dominado a televisão e o cinema na última década ou mais, agora tomaram conta dos museus de arte", e que isso pressagiava uma era de "perseguição física aos cristãos" - senão entregando-os aos leões do Coliseu como na Antiguidade romana, talvez lançando-os aos tubarões que circulam em imensas banheiras de urina no SeaWorld. Aproveitando a deixa de Wildmon, o senador D' Amato ergueu-se no Senado para denunciar o NEA. "Isto é um insulto, e os dólares de impostos de nosso povo não devem sustentar esse lixo, e não deveríamos emprestar-lhe dignidade." Leu então, para ficar registrada, uma carta assinada por duas dezenas de senadores (a maioria republicanos conservadores), protestando que a obra é "chocante, nojenta e completamente indigna de qualquer reconhecimento. Milhões de contribuintes estão justificadamente indignados [...] Há uma visível falha nos procedimentos usados para escolher a arte e os artistas que merecem o apoio do contribuinte [... ] Esta questão não envolve liberdade de expressão artística". Mas envolvia, sim; e a prova disso surgiu no escândalo que estourou a seguir sobre a obra do' fotógrafo Robert Mapplethorpe. Para mim, o interesse do caso Mapplethorpe está em sua crua exibição de valores americanos em colisão -mas não em muito mais. Apesar do entusiasmo de seus fãs, jamais consegui achá-lo um grande fotógrafo. Visitei seu estúdio em Nova York pela primeira vez em 1970; na época, seu trabalho consistia de colagens fetichistas, mas banais, de fotos de carne humana com o acréscimo de coisas como 'um suporte atlético de pele de leopardo ou um penso de gaze com uma mancha de pus. "Esse aí", disse a mim mesmo ao descer a escada quarenta minutos depois, "é um talento do qual não vamos ouvir falar muito. " Se alguém me dissesse então que Robert 129
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1vlapplethorpe ia ser tão famoso quanto Jackson Pollock dentro de vinte anos, e que o escândalo causado por sua obra iria ameaçar o equilíbrio de todo o relacionamento entre museus e governo nos Estados Unidos, eu diria que esse alguém estava louco. Eis o que vale o crítico como profeta. Vi muito da obra dele, embora não ele próprio, nos anos seg~i?-tes: as !mag~ns de sado-masoquismo grosseiras, brutais, do portfólio porno, as elegantes fotos superapresentadas de Lisa Lyons os gélidos nus masculinos em homenagem a Horst e ao barão Von Gloeden, as. flore~ ~e .Edward yYeston. Era a obra de um homem que conhecia a história dos fotografos, e para quem a câmara era um instrumento de citação. Como me observou muito depois Mike Weaver, editor ~~History ofphotography, de Oxford, a sair brevemente, a melhor" obra dele. é o grupo de nus formalistas, na verdade geométricos, baseado num gosto década de 90 por magia ritual do tipo expresso antes por outro grande fotógrafo gay, Fred Holland Day. O uso [por ele] do pentângulo em forma humana vem de seu suposto compromisso satânico com o perrtagrãm a invertido de Eliphas Lévi, mestre de Aleister Crowley [.. .] Jamais pós-modernista, nem mesmo modernista, foi um verdadeiro reacionário . Por isso, claro, ele é tão popular. Como Simeon Solomon e Beardsley antes, Mapplethorpe foi um simbolista de estilo maneirista.
No portfólio pornô, O chique maneiroso das imagens era lançado de volta ao imediatismo pela violência pornográfica do tema . Mas eu não acho que chique seja um valor, sentia-me em conflito com a cultura de citação gratuita que se apoderou da arte de Nova York, minhas idéias de felicidade sexual não coincidiam com as de Mapplethorpe, e por isso, quando ele me pediu que escrevesse uma introdução para o catálogo de sua exposição - a exposição que ia causar todo o problema - tive de dizer-lhe que, como o portfólio pornô era obviamente uma introdução ao seu trabalho e (eu achava na época) sua principal pretensão à originalidade, e como eu achava as imagens de humilhação sexual e tortura nele contidas (penetração anal com o punho, servidão brutal, e um homem urinando na boca -de ontro) demasiado repugnantes para escrever sobre elas com entusiasmo, era melhor ele procurar outra pessoa. O que ele fez. E encontrou várias, na verdade. Ora, a maioria de nós sabe, pelo' menos em resumo, o que aconteceu com a retrospectiva de Mapplethorpe em 1988-90, The per-
fect momento Foi exibida ~a Pensilvânia e em Boston sem o menor incidente, e no Whitney Museum de Nova York com cenas de entusiasmo dignas dos momentos mais triunfantes de seu mentor, Andy Warhol. Mas, quando ia ser mostrada na Corcoran Gallery eln Washington, a exposição sofreu um maciço ataque dos conservadores, com base em que a mostra fora em parte subvencionada por verba do National Endowment for Arts, e que o governo não tinha o direito de .gastar o dinheiro do contribuinte apoiando obras tão repugnantes à sensibilidade moral geral do público americano. Na verdade, a Corcoran não recebera nenhuma verba do NEA para montar a exposição de Robert Mapplethorpe, embora houvesse recebido para outros projetos antes . O dinheiro do NEA para Mapplethorpe fora para o Instituto de Arte Contemporânea da Universidade da Pensilvânia, que patrocinara a exibição em primeiro lugar. A soma era de 30 mil dólares, representando cerca de um sessenta avos de 1 por cento de um pêni de cobre para cada homem, mulher e criança dos Estados Unidos; mas, como Hilton Kramer e outros se deram ao trabalho de observar, era dinheiro público mesmo assim. Não houvera protesto algum, e muito menos "indignação pública", com a exposição antes de ser montada . em Washington. Apesar disso, aquele tribuno do povo, o senador lesse Helms, viu em Mapplethorpe uma oportunidade de ouro para despertar a consciência direitista sobre obscenidade e imundície, e quando os desdobramentos de sua ira começaram a se fazer sentir diante da Corcoran, a galeria cedeu e cancelou a mostra. Helms e outros conservadores, incluindo os senadores Alfonse D'Amato e Orrin Hatch, tentaram então empurrar uma emenda no Senado, impedindo o NEA de voltar a subvencionar esse mate": rial anti-social. A emenda de Helms propunha que nenhuma verba do governo deveria ser dada pelo NEA para "promover, disseminar ou produzir", em suas palavras exatas, 1) materiais obscenos ou indecentes, incluindo mas não limitando-se a descrições de sado-rnasoquisrno, hemo-erotismo, exploração de crianças, ou indivíduos empenhados em atos sexuais; 2) material que denigra os objetos ou crenças dos adeptos de uma determinada religião ou não-religião; ou, 3) material que denigra, humilhe ou insulte uma pessoa, grupo ou classe de cidadãos com base em raça, credo, sexo, deficiência, idade ou origem nacional.
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A característica mais óbvia e curiosa da emenda de Helms era que, se não viesse de um senador republicano notoriamente direitista, podia-se tomá-la - sobretudo nas duas últimas cláusulas - por algum regulamento sobre limitações ao discurso na universidade proposto pelos agitadores nominalmente esquerdistas da correção política. Era difícil saber o que Helms pretendia exatamente com' 'uma determinada religião ou não-religião", mas sem dúvida a cláusula 3 deixou claro que ele era contra o racismo , o sexismo, o deficientismo, o aparentismo e qualquer das outras ofensas contra a etiqueta social cuja proscrição pelo PC já causava tanta diversão e riso entre os neoconservadores. Assim, os extremos se tocam. A outra peculiaridade da emenda de Helms era ter uma redação de alcance tão genérico que se tornava praticamente sem sentido. Iria, como observei na semana seguinte na revista Time, criar uma paródia maluca de democracia cultural, em que todo cidadão se tornaria seu próprio Catão, o Censor. Para perder a subvenção ou (se exibida num museu sob os auspícios do NEA) ser retirada das vistas, bastava a uma obra de arte "ofender" alguém por praticamente qualquer motivo. A emenda era assim uma cristalização em lei da nossa Cultura da Reclamação. Tornaria o NEA refém de todo maluco , ideólogo e importuno religioso dos Estados Unidos . Uma verba para uma exposição de , digamos', marfins góticos podia ser retirada com base em que o material era ofensivo aos judeus (grande parte da arte medieval é anti-semita), aos muçulmanos (que tal aquelas cenas de falsos profetas cozinhando no inferno junto com 'M a om é?) , ou, por falar nisso, aos ateus, ofendidos pelo uso de dinheiro do governo para inserir algum tipo de propaganda religiosa, incluindo antigas esculturas em marfim, num museu. Alguma feminista stalinista podia queixar-se de que uma descrição do século XIII de um deus patriarcal, ou o sexismo implícito numa Eva subserviente ou tentadora, repugnava à sua "religião ou não-religião". Sob a emenda de Helms, até um adorador do fogo podia alegar que a presença de extintores no museu ofendia o seu deus. Helms e seus correligionários tiveram dificuldade para .n egar que a emenda tivesse algo a ver com censura. De onde teriam esses liberais tirado tal idéia? Censura: isso significava reprimir obras de arte (ou "a chamada 'arte' ", para usar a locução correta) que as pessoas faziam com o seu próprio tempo e dinheiro . Recusar dinheiro do governo para '''p r onl 0ver '' indecências não era censura. Decadentes como Mapplethorpe, e blasfemos como Serrano , podiam fazer o que quisessem com seu tempo e dinheiro. Mas que não vies-
sem farejando sorrateiros atrás daquele um 6 mil avos de pêni do contribuinte decente médio americano. (Em geral, o fato de que nem Serrano nem Mapplethorpe tinham pedido, nem diretamente recebido, qualquer dinheiro do NEA tendia a perder-se na retórica. Nenhuma das fotos de Mapplethorpe ou Serrano foi feita com apoio do NEA; mesmo assim, devido à bem-sucedida propaganda da direita política e religiosa, milhões de americanos ainda imaginam que o NEA foi correndo atrás dos dois, enfiando-lhes o dinheiro nos bolsos para ajudá-los a fazer o diabo.) Apesar disso, é preciso ser excessivamente ingênuo para achar que a censura não estava na raiz da polêmica . As tentativas de cortar a verba do governo para arte "ofensiva" eram apenas a ponta de um esforço geral, que cresce na direita, de reprimir toda arte "ofensiva", subsidiada ou não. A mais sábia análise desse problema foi oferecida, alguns meses depois , por um jesuíta: o reverendo Timothy Healy, presidente da Biblioteca Pública de Nova York. "O debate é sobre censura", declarou o padre Healy a uma .su bcomissão da Câmara sobre educação pós-secundária em novembro de 1989,2
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e qualquer tentativa de fingir que não se trata disso é enganosa. Em vista do prestígio do governo federal , da consagração que qualquer verba das dotações nacionais empresta, e da integridade artística e imparcialidade dos júris responsáveis pelas do tações , quaisquer cânones de condenação baseados no conteúdo são simplesmente uma restrição a priori. Contra o argumento de que o artista tem liberdade para escrever, pintar como queira sem subsídio federal, [nós] devemos insistir em que privar um artista desse subsídio devido ao conteúdo de sua obra é um claro e forte tipo de censura. O contra-argumento é na verdade umaevasiva que não leva em conta as realidades do mercado ar tístico, ou, de fato, os direitos do próprio artista [... ] O curso do debate mos tra uma definitiva confusão entre lei e mo ralidade [. ..] Uma vez que se confundem lei e moralidade, é fácil chegar a declarações como "tudo que é bom deve ser legislado". Essa premissa j á é bastante'ruim em si, [mas] a mistura do domínio da lei com o da moral é fatal [. ..] A lei pode tolerar males que a moralidade condena [.. .] Temos uma boa lei se ela for obedecida, se se pode impô-la, e se ela for tão prudentemente redigida que evite a maioria dos efeitos danosos que dela possam resultar. Se uma lei não faz nada disso, é uma má lei, independentemente da lógica ou moralidade por trás dela .
Embora nenhum dos argumentos ouvidos no plenário do Senado atingisse a clareza e sofisticação das palavras desse padre, a
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emenda de Heltns foi recusada, por 73 votos a quatro. O Senado decidiu que se deve deixar a definição. de pornografia aos tribunais. E para os tribunais ela foi. A exposição de Mapplethorpe seguiu para Cincinatti, onde os conservadores decidiram fazer dela um caso teste, denunciando o diretor do Centro de Artes Contemporâneas por obscenidade pública. Houve muita preocupação pessimista no mundo da arte sobre o que aconteceria quando o portfólio pornô fosse mostrado a um bando de, bem .. ., jecas do Meio-Oeste Porém, mais uma vez prevaleceu uma espécie de natural bom senso americano, talvez mais comum em Cincinatti do que no Soho. Em grande parte porque a acusação não conseguiu encontrar nenhum especialista digno de crédito para testemunhar contra a obra, o diretor foi absolvido e o circo Mapplethorpe foi em frente; o fotógrafo, morto a essa altura, era um herói cultural, ou um demônio cultural; mas, um ou outro, todo mundo, do Maine a Albuquerque, tinha ouvido falar dele, e o resultado econômico líquido das objurgações do senador Helms foi elevar o preço das fotos do portfólio pornô de cerca de 10 mil para algo em torno de 100 mil dólares. Mas a débâcle Mapplethorpe teve dois amplos resultados culturais. Primeiro , causou paranóia nas relações entre os museus americanos e as fontes de suas subvenções. Produziu uma atmosfera de dúvida, autocensura e desorientada cautela entre curadores e diretores de museus, quando se trata de obter verbas e enfrentar as exigências políticas dos grupos de pressão. E, segundo, assinalou o falecimento da estética americana, e revelou a bancarrota da cultura de terapia que passara a dominar o modo pelo qual tantos profissionais culturais do país podiam racionalizar as relações entre a arte e seu público. Para defender o que pretendo, vou ter de deixar Mapplethorpe, deixar nossofin-de-síecle, e retornar a um tempo muito anterior. Mas primeiro é preciso olhar os primeiros resultados, no contexto da atmosfera política altamente carregada - e, para a alta cultura, altamente tóxica - que envolve as relações entre o governo e as artes nos Estados Unidos de hoje.
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truir completamente o National .Errdowrnen r for the Arts, ou então
Em fins de 1991, estava claro que o programa dos conservadores americanos, dependendo de QI e background cultural, era ou des-
restringir seus benefícios a eventos puramente da "tendência dominante" . A última hipótese parecia mais provável, em vista das realidades' políticas: demasiados republicanos ricos têm interesse naquele prestígio que as boas obras culturais conferem a suas cidades - como apoio ao museu ou orquestra sinfônica locais - p~ra de~x~r que o NEA desapareça por completo. Apesar disso, era sintomático do pânico atual sobre a subvenção cultural do Estado o fato de P~t ~u chanan não tanto neoconservador como neolítico em suas opinioes culturais ter forçado George Bush a demitir o diretor do NEA, John Frohnmayer, a fim de apaziguar os ignorantes e anti-homossexuais da direita do Partido Republicano. Não é provável que os ataques da direita religiosa nesse campo diminuam agora que Bill Clinton substituiu George Bush. Na verdade, como Clintoné visto pelos carolas como um liberal demoníaco, e como o conservadorismo religioso perdeu tanto de sua base de poder em Washington, é muito mais provável que as pressões em favor da censura cultural aumentem: é o mais fácil de todos os botões a apertar, e a direita vem apertandoo há muito tempo para afrouxar agora. Os ataques ao NEA já se tornaram parte do pano de fundo padrão da política, exatamente como os ataques ao sistema de televisão pública. Fazem parte de uma escalada da guerra sobre questões culturais, e não vão acabar. Pois a década de 80 trouxe um crescente conflito sobre a "propriedade ideológica" da cultura popular nos Estados Unidos, uma questão em que o conteúdo das transmissões de TV está inelutavelmente implicado. Em vista da atual atmosfera de intolerância, dificilmente se pode esperar que a direita - sobretudo a direita religiosa, e os políticos que ou fazem parte dela ou temem seus votos - não vá entrar nisso de sola. Nenhuma área de nossa cultura institucional era mais vulnerável a isso que as transmissões de rádio e TV, um alvo favorito da política de ataque republicana . A independência obrigatória do Public Broadcasting Systern, sobretudo na programação de assuntos públicos (notícias e comentário político) jamais passou pela garganta conservadora. O PBS é 40 por cento financiado pelo governo através de "apropriações" anuais aprovadas pelo Congresso, e os es. forços para reduzir a subvenção e se possível acabar com ela têm sido uma característica do panorama político nos últimos vinte anos. Em 1971, o presidente Richard Nixon ficou furioso com a nomeação de dois "liberais", Sander Vanocur e Robert McNeil, co-
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mo âncoras de um programa do PBS em Washington; orientou sua equipe a providenciar para que' 'todas as verbas destinadas à transmissão pública sejam cortadas imediatamente". 3 Frustrada nisso, a equipe de Nixon decidiu, nas palavras de um memorando interno, que a melhor maneira de "fazer com que os comentaristas esquerdistas que estão nos solapando dei xem a televisão pública imediatamente, na verdade ontem, se possível", era entupir o conselho do órgão controlador, a Corporation for Public Broadcasting (CPB), com "oito lealistas para controlá-la, e demitir a atual equipe que concedeu as verbas". Em 1972, isto estava feito, e a inquisitividade e o alcance da programação a respeito de assuntos .públicos do PBS afundaram. O novo conselho aprovou a interrupção do financiamento à transmissão em rede de todas as notícias e análises políticas no sistema do PBS. As pressões políticas conservadoras sobre o PBS diminuíram após Watergate, durante a breve presidência de Gerald Ford; e foram relaxadas durante o governo Carter. Mas Reagan as trouxe de volta com força redobrada. Sobre a supressão do PBS, a posição ideológica de Reagan era exatamente a nlesma de Margaret Thatcher em relação à BBC. Em essência, ele o via como uma célula daninha de liberalismo, ocupada por descontentes e afins - uma imunda nódoa cinza-rosa na Manhã Americana, um estorvo para o governo. Por que não deveria o conteúdo da TV ser·inteiramente controlado pelas forças do mercado ? Um presidente que havia trabalhado durante anos como garoto propaganda da General Electric na TV não ia dar muita atenção a argumentos sobre a necessidade de programas "polêmicos". Em 1981, e novamente em 1982, Reagan tentou (mas não conseguiu) fazer com que o Congresso cancelasse toda verba federal para o PBS; aprendendo a lição, como Nixon antes, entupiu o conselho do PBS de conservadores como Richard Brookisher da National Review, e nomeou sua nova presidente Sonia Landau, que tinha dirigido um comitê de atuação política chamado "Mulheres com Reagan/Bush" na eleição de 1984. O resultado da intenção de Reagan, interpretada pelo conselho, foi lançar um novo arrepio . sobre a transmissão de atualidades e deixar o PBS nas mãos do patrocínio empresarial mais do que antes. Os subscritores empresariais em geral recusavam-se a assinar cheques para material de atualidades, preferindo programas confiáveis, não polêmicos, como Masterpiece Theater ou o inexaurível gênero de filmes sobre a natureza, papel de parede eletrônico para os que se preocupam com a ecologia, conhecidos dos céticos do ramo como "gennes trepando ao som 136
de Mozart" . Não havia como injetar muita "tendência" liberal nesses, já que a natureza, do ponto de vista conservador, tem um comportamento irrepreensivelmente competitivo. Embora a campanha conservadora pelo controle do PBS tenha uma longa história, ela recebeu um grande ímpeto recente com o exemplo do ataque de Margaret Thatcher à independência e subvenção da BBC, do dogma do mercado competitivo e da direita religiosa. Reformadores políticos e morais, que vão do reverendo Donald Wildmon ao redator de Commentary David Horowitz, cantam em coro que o PBS deve ser desativado, por ser uma burocracia róseo-liberalanti-Israel impregnada de intenções políticas radicais. Imagina-se quantos programas do PBS essa gente de fato viu; a dependência do PBS em relação ao patrocínio empresarial tornou-o tão apolítico ou cuidadosamente centrista que sua imagem como um antro de esquerdistas patrocinados pelo governo é uma piada, sobretudo se se compara.o conteúdo de sua programação como da BBC-2 ou o da televisão estatal australiana, espanhola ou francesa . A conservadora Heritage Foundation, em Washington, tem um "dedo-duro" em tempo integral chamado Laurence Jarvik, cujo trabalho é fornecer munição ideológica para a opinião de que a TV pública já não tem mais utilidade. Segundo a Heritage, não há TV digna dedicada à discussão cultural ou questões políticas que não possa ser co-patrocinada por empresas americanas, através de um crescente sistema por cabo, ou talvez algum análogo ao Canal-d da Grã-Bretanha, sem usar um centavo de dinheiro do governo. Qualquer pessoa que acredite nisso está: a) sonhando, b) ignorando ' as realidades do gosto empresarial quando fareja cautelosamente as propostas de co-patrocínio de programas, ou c) não admitindo suas próprias intenções . No caso da Heritage, parece ser uma combinação dos últimos dois pontos. A maneira viável de aliviar o PBS do oneroso destino de ser um campo de disputas políticas é financiá-lo não com verbas anuais do Congresso, mas com uma modesta taxa de licenciamento cobrada de todos os donos de aparelhos de TV - como na Grã-Bretanha. Ou mais "radicalmente", como propôs John Wickley na Columbia Journalism Review em 1986, poderia haver um imposto de 2 por cento sobre os 'lucros das empresas de transmissão comerciais - que gozam do uso das ondas aéreas públicas de graça. Isso, argumentou Wickley, poderia gerar 400 milhões de dólares por ano, uma soma que" acabaria com a necessidade de apropriações diretas, reduziria enormemente a necessidade'de co-patrocínio empresarial e proporcio137
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naria as verbas necessárias para um serviço de programas nacionais de primeira categoria". Na verdade, -algo muito semelhante a isso foi tentado na Inglaterra, e revelou-se um retumbante sucesso criativo - o Canal 4, um alvo particular de ataque dos conservadores ingleses. Embora o Canal 4 tenha sido descrito por Laurence J arvik, da Heritage, como' 'um canal comercial privado mantido pela venda de publicidade", não é nada disso. Não depende da renda de publicidade direta. Na verdade, é financiado por dinheiro sifonado de produtores comerciais nos canais privados. Mas é mais provável que as cataratas do Niágara mudem de lugar do que sejam adotados tais esquemas de financiamento da TV não comercial nos Estados Unidos - e por dois motivos . O primeiro é que os americanos, apesar de estarem entre os povos que pagam menos impostos na terra, são notoriamente resistentes ao axio ma de que não existe civilização sem taxação. O segundo é que os políticos querem reter o sistema de apropriações - ele permite o controle sobre o conteúdo das transmissões. Do mesmo modo como a extrema direita, no fim da década de 80, queria impor controles morais sobre a arte.
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fundações da América protestante, e não conforme o fácil espírito de ridicularizar os puritanos. Os homens e mulheres da Nova Inglaterra no século XVII não tinham muito tempo para as artes visuais . Pinturas e esculturas não passavam de armadilhas espirituais, que era melhor deixar para os católicos. A grande fonte de satisfação estética deles era o Verbo, o logos. Em seus sermões, já entrevemos as preocupações de um período posterior: a percepção da natureza como o sinal da presença de Deus no mundo, e a missão especial da natureza americana de ser esse sinal e servir como metáfora para a boa sociedade, nova mas duradoura, precária mas fértil. Eis como Samuel Sewall (1652-1730), pregando em Massachusetts em 1697, colocou os termos da aliança: Enquanto Plum Island mantiver fielmente o posto indicado , apesar de todas as palavras fanfarrãs e dos du ros golpes do oceano orgulhoso e valentão; enquanto todo salmão, ou esturjão, nadar nos rios de Merrimack [.. .] enquanto todo Gado for alimentado com o capi m qu e cresce nos prados, e que se curva humildemente diante de Turkey Hill; enquanto todas as livres e inofensivas Pombas encontrarem um carvalho branco na aldeia, para empoleirar-se, ou alimentar-se, ou construir um despreocupado ninho [...] enquanto a Natureza não envelhecer e caducar , mas lembrar-se constantemente de dar às filas de pés de milho ín di o sua educação, aos pares : - enquanto cristãos nascerem aqui; e, depois de conhecerem-se, forem daqui trasladados, para se tornarem partícipes dos Santos na Luz.
O senador Helms e seus aliados na direita fundamentalista religiosa saíram atrás de Mapplethorpe - e de Andreas Serrano também, e de outros - por dois motivos básicos. O primeiro foi oportunista: a necessidade de posarem corno defensores do Estilo Americano, agora que sua cruzada contra a Ameaça Vermelha ficou vazia e nula com o fim da Guerra Fria e o colapso geral do comunismo. Tendo perdido os bárbaros nos portões, saíram atrás da bicha no fundo do quintal. Mas o segundo é que sentiram que a arte deve ser moral e espiritualmente edificante, terapêutica, um pouco como a religião. Os americanos parecem sentir, em algum nível básico, que a principal justificação da arte é seu poder terapêutico. Essa é a base sobre a qual os museus dos Estados Unidos se têm apresentado ao público desde que foram criados, no século XIX - educação, benefício, .edifica ção espiritual, e não apenas prazer ou o registro da história cultural . Suas raízes . entrelaçam-se com o senso de identidade cultural dos Estados Unidos, desenvolvido entre cerca de 1830 e a Guerra Civil. Mas estendemse a um .solo anterior, o do puritanismo. Se quisermos entender o que aconteceu no fim da década de 80, temos de remontar às próprias
Palavras como as de Sewall ainda têm imensa ressonância entre nós. A percepção da natureza redentora, que iria impregnar a pintura americana do século XIX e atingir o auge em nosso tempo com o movimento ambientalista, estava aqui mesmo desde o princípio . Ainda não há arte nos Estados Unidos que possa rivalizar com as consolações espirituais da natureza, ou investir-se do poder moral da natureza. Quase todos os americanos antes de 1820 respiravam uma atmosfera estética bastante rarefeita. Não tinham nenhuma arte e arquitetura boa, e muito menos grande, para contemplar . Nós tendemos a esquecer, quando visitamos as salas de época dos museus americanos e admiramos os ótimos móveis neles expostos, que a atmosfera estética comum no início da República assemelhavase muito mais a Dogpatch. A maioria dos americanos não tinha visto nenhuma escultura monumental; poucas grandes igrejas, e nenhuma em escala européia de construção e artesanato; nenhum Coliseu ou Partenon; e nenhum museu ainda. Os monumentos públicos do elas-
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A esse estado de espírito acrescentou-se um componente muito importante: urna admiração geral, entre as ralas camadas de amantes da arte americanos, por John Ruskin, cuja obra começou a aparecer por aqui depois de 1845 . Ruskin jamais esteve nos Estados Unidos, ruas lançou um poderoso sortilégio sobre os valores artísticos do país: pode-se dizer que sua prosa caudalosa, flexível, irresistível permitiu a ligação entre (de um lado) o fértil terreno da oratória re-
ligiosa herdada dos puritanos, e (do outro) a maneira como os americanos de meados do século eram educados para pensar nas artes visuais e no papel que estas deviam desempenhar numa democracia. Para superar a resistência puritana à riqueza artificial e à ordenação sensual da visão, era preciso acentuar - na verdade exagerar barbaramente - o poder moralizador da arte. As reflexões pessoais . a respeito da emoção exaltada revestiam-se de termos religiosos: proveito, conversão, refinamento, unificação .4 Sobretudo quando muitos dos escritores eram eles próprios pastores. Em suas modestas excursões pela Europa, eles sentiam a arte esmagá-los com provas de que o homem fora feito à imagem de Deus, que a alma era imortal, e acima de tudo que a beleza criada pelo homem fazia parte da intenção divina inata de instrução moral. Quando Henry Ward Beecher, o maior orador religioso de sua época, foi à França ver as atrações culturais, falou em "conversão Instantânea", e não apenas em simples prazer ou edificação . Claro , era preciso escolher. Não gostávamos, por exemplo, de Brueghel e Tenniers, com todos aqueles camponeses se empanturrando e vomitando. Sentíamo-nos meio nervosos com as carnudas madonas de Ticiano. Muito da modelo, não o bastante da Virgem. Os verdadeiros artistas edificantes eram Fra Angelico, o bendito monge de Florença, e evidentemente Rafael. O desej o de trazer de volta, na memória, ícones espirituais com autoridade naturalmente condenava o visitante americano à decepção, parte das vezes-A irmã de Beecher, Harriet Beecher Stowe, autora deA cabana do pai Tomás, "decididamente correu" , segundo contou, pelo Louvre adentro em busca de quadros "que tomassem e possuíssem todo o meu ser. Mas a esses busquei em vão. A maioria dos homens ali pintara com olhos enxutos e corações frios, pouco pensando em heroísmo, fé, amor ou imortalidade" . O verdadeiro artista, prosseguiu, ia sem explicação direto ao coração; sua obra não era um gosto adquirido; não precisávamos aprender a lê-la. A idéia de que estava no poder das artes visuais mudar a dimensão moral da vida atingiu o auge entre a morte de Monroe e a de Lincoln. Nós a vemos em pleno florescimento nos editoriais semanais de The Crayon, principal revista de arte de Nova York na década de 1850. Era a voz da profissão do artista americano, e como tal tinha fortes opiniões sobre o caráter e a conduta do artista. Como o editor dizia sem rodeios em 1855: "O prazer da beleza depende e está na proporção da excelência moral do indivíduo. Cremos que a Arte é um poder edificante, que tem em si um espírito de
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sicismo americano, como o Capitólio Estadual de Jefferson em Virginia, eram ilhas num mar de construções muito mais humildes. Os americanos médios não viviam em boas casas de alicerces, varandas e talvez frontões, e muito menos em edifícios permanentes de pedra ou tijolo, mas em improvisadas estruturas de madeira que eram ancestrais das casas-reboque de hoje, só que muito mais mal contruídas . A beleza americana estava muito mais na natureza do que na cultura. Assim, o americano inteligente, se tinha uma oportunidade de visitar a Europa, podia ver seu gosto transformado, numa espécie de iluminação pentecostal, por um único monumento da Antiguidade, como foi o de Jefferson pela visão da Maison Carrée em Nimes, o templo romano que criou sua concepção de arquitetura pública. Uma hora com a Vênus de Medici em Florença ou com o Apollo Belvedere no Vaticano podia superar toda a experiência estética passada do filho cru da nova república. Sua própria experiência dotava a obra inglesa ou européia de estupenda autoridade. Hoje, com o turismo de massa e a reprodução em massa para amortecer antecipadamente o choque, é mais difícil para nós imaginar esse estado de espírito. Um americano que chegava à Europa não tinha nenhuma preparação, a não ser talvez por algumas gravuras imprecisas, para o que ia ver . Para o ianque culturalmente faminto, a chegada à Itália ou França parecia uma admissão no paraíso, um lugar a que se chega após uma iniciação pelo sofrimento, a purgatorial viagem através do Atlântico. Quatro semanas de vômitos, e então .. . Chartres. "Nós nem sonhamos", escreveu um novaiorquino em 1845, "com o novo sentido que se desenvolve diante da visão de uma obra-prima. É COlno se tivéssemos vivido sempre num mundo onde nossos olhos, ' apesar de abertos, só vissem um vazio, e então n~s levassem a outro, onde eles fossem saudados pela graça e a beleza. ~ ,
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moralidade". A primeira forma do artista americano corno herói cultural, portanto, é o pregador. Ele elevou a arte da condição de mero artesanato, pelo discurso moral. Deus era o artista supremo; eles imitavam Sua obra, o "Livro da Natureza". Dividiam a luz e acalmavam as águas - sobretudo se eram iluministas de Boston. Eram um contrapeso para o materialismo americano. : Para que servia a arte, perguntava o Crayon no que chamava de "esta época dura, angulosa e abjeta", a década de 1850? Ora, para mostrar o artista como "reformador, filantropo, pleno de esperança, reverência e amor" . E se ele escorregasse, teria urna longa queda, como Lúcifer. "Se o homem deve reverenciar a Arte" advertia outro editorial, "deve-se tomar um cuidado especial para que ela não seja apresentada em receptáculos sujos e indecorosos. Julgamos a religião pelo caráter de seu sacerdócio, e bem faríamos jul.gando a arte pelo caráter daqueles que a representam e encarnam." Quase se pode ouvir a sombra do falecido Robert Mapplethorpe ba,tendo suas asas' de couro de tanto rir. Mas essa proposta, podemos ter toda certeza, teria sido novidade para muitos artistas - quanto mais para os patronos - do Renascimento. Ninguém jamais negou que Sigismondo da Malatesta, o senhor de Rimini, tinha excelente gosto. Ele contratou o mais refinado dos arquitetos do Quattrocento, Leon Battista Alberti, para projetar um templo em memória de sua esposa, e depois mandou o escultor Agostino di Duccio decorá-lo, e chamou Piero della Francesca para pintá-lo. No entanto, Sigismondo era um homem de tal . grossura e rapacidade que foi conhecido em vida como II Lupo, o Lobo, e tão execrado após a morte que a Igreja católica fez dele '(por algum tempo) o único homem, além de Judas Iscariotes oficialmente relacionado como estando no Inferno - distinção ql~e ele conquistou amarrando um emissário papal, o bispo de Fano, de quinze anos de idade, no próprio roquete e sodomizando-o sob os aplau- : sos de seu exército na principal praça de Rimini. Não se espera que os curadores de grandes instituições culturais americanas se conduzam desse jeito. Sabemos, lá no fundo, que a idéia de que as pessoas são moralmente enobrecidas pelo contato com obras de arte é uma pia ficção. Alguns colecionadores são nobres, filantrópicos e educados; outros são chatos trapaceiros que ainda estariam pensando que Parmigianino era um tipo de queijo se não tivessem a turma da Christie's para esclarecê-los. Os museus têm sido mantidos por algumas das melhores e mais desinteressadas pes soas dos Estados Unidos, como Duncan Phillips ou Paul MeIIon; e 142
por algumas das piores, como o falecido Alfred Hammer. Simplesmente não há como generalizar sobre os efeitos morais da arte, porque parece que ela não tem nenhum. Se tivesse, as pessoas que estão constantemente em contato com ela, incluindo todos os curadores e críticos, seriam santos, e nós não o somos.
v Sob a influência do movimento romântico, o desejo de arte como religião mudou; foi aos poucos suplantado por um gosto pelo sublime romântico, ainda moralmente instrutivo, porém mais definido e secular. Os pintores do rio Hudson criaram suas imagens da natureza americana como a impressão digital divina; Frederick Church e Albert Bierstadt pintaram imensas paisagens que deram aos americanos todas as características da arte romântica - tamanho, virtuosismo, rendição ·ao prodígio e ao espetáculo - exceto uma: a angústia. O sertão americano, nas mãos deles, jamais nos faz sentir inseguros. É o Éden; é Deus como um deus americano, cujo evangelho é o Destino Manifesto. Não é o mundo de Turner ou Géricault, com suas sugestões de tragédia e morte. Não é o campo de experiência que certa literatura americana reivindicara - o senso do catastrófico de Melville, ou o auto-enclausuramento mórbido de Poe. É beato, público e de grande exaltação. Não admira que fosse tão popular junto ao crescente público de arte americano nas décadas de 1870 e 1880. Pois esse público esperava que a arte oferecesse alívio do lado escuro da vida. Não gostava nem da angústia nem do realismo românticos. Há uma estranha ausência na pintura americana dessa época, como o cachorro que não late à noite. É sua recusa em lidar de algum modo explícito com o imenso trauma social da Guerra Civil. A arte americana, tirando a ilustração, mal chega a mencionar a guerra. O senso de pie dade, horror fratricida e desperdício social que impregna a literatura da época, como Walt Whitrnan, e ainda aflora trinta anos depois em Red badge of courage [O emblema rubro da coragem], de Stephen Crane, só se pode ver em fotos de combate montadas, como as de Mathew Brady - jamais na pintura. Esse é um resultado curioso, sobretudo se se acredita, como eu, que o melhor filão da arte americana do século XIX não é tanto o nacionalista-romântico de Bierstadt e Church, mas a linha de visão viril, empírica, que vem de Audubon e passa por Eakins e Homer. 143
Na década de 1880, a função da arte como elevação quase religiosa começava a transformar-se numa forma mais secular a da arte como terapia, pessoal ou social. Isso afetou profundamente o caráter dessa forma cultural especial, o museu americano. A essa altura, em sua grande e crescente prosperidade, os Estados Unidos queriam museus. Mas seriam diferentes dos europeus. Não seriam, por exemplo, depósitos de pilhagem imperial, como o Museu Britânico ou o Louvre. (Na verdade, imensas quantidades de material foram tomadas dos índios nativos e das culturas ao sul do Rio Grande, mas a isso chamamos antropologia, não pilhagem.) Não seriam dirigidos pelo Estado, nem, a não ser excepcionalmente, por ele subvencionados. Porque a subvenção do Estado, numa democracia, significa impostos - e como um dos mitos fundadores dos Estados Unidos é a revolta contra os impostos, a Festa do Chá de Boston, a idéia de pagá-los para sustentar a cultura jamais pegou por aqui. Outros países vieram, com muitos e cansados gemidos, a aceitar o princípio de que não há civilização sem taxação. Não os Estados Unidos, onde o orçamento anual do National Endowment for the Arts ainda gira em torno de 1 por cento do 1,6 bilhão de dólares que o governo francês destinou a projetos culturais no ano fiscal de 1991, e menos do que nosso governo gasta com bandas militares. Aqui, os museus surgiriam da decisão voluntária dos ricos de c:iar zonas de transcendência dentro da sociedade; partilhariam a nqueza cultural com um público que não podia possuí-la. Pois, como observou o historiador Jackson Lears em seu excelente estudo da cultura americana no fim do século XIX, No place of grace [Lugar sem clemência], é inteiramente errôneo supor que os barões (e baronesas) ladrões que se azafamavam aplicando a imensa sucção d.e seu capital às reservas de arte da velha Europa fizessem isso por simples ganância. O investimento dificilmente figurava em seus cálculos - não estavam na década de 1980. Alguns deles, notadamente Charles Freer e Isabella Stewart Gardner, eram criaturas profundarnente neurastênicas, que buscavam a arte para curar seus males nervosos e achavam que ela podia fazer o mesmo para os menos afortunados. O museu público acalmaria o trabalhador - e a trabalhadora também. A grande arte do passado aliviaria os ressentime~t~s deles . William Jarnespôs o dedo nisso em 1903, depois de assistir à abertura ao público do museu particular de Isabella Stewart Gardner em Boston, o Fenway Court. Comparou-o a uma clínica. A visita a um lugar desse, escreveu, daria aos oprimidos e tí-
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midos americanos a oportunidade de esquecer-se de si mesmos, tornar-se de novo crianças, imersas em maravilhamento. Era simpática à criação do museu americano a idéia de que a arte acessível ao público ajudaria a desfazer o ressentimento social. Na Europa, pensava-se: bem, já temos todas essas pinturas, desenhos e esculturas, agora vamos fazer alguma coisa com eles: pô-los num museu. Nos Estados Unidos, pensava-se: não temos nada, do .território de identidade americana não vem arte alguma, por isso vamos adquirir arte objetivamente, torná-la parte do que queremos fazer com uma sociedade democrática. Vamos nos refinar junto com os outros. O museu europeu não era de modo algum indiferente à atenção do público, mas o museu americano estava muito mais ativamente preocupado com ele. A busca da obra-prima foi um veículo de reconciliação. Nenhum outro país tinha contrastes sociais mais agudos. De um lado, a natureza bruta, florescente, impiedosa, prometéica do capitalismo americano, com a possibilidade da guerra de classes sempre à espera nas laterais. Do outro, o passado idealizado - um passado não arnericano, mas agora vicariamente ao seu alcance, a Idade Média e o Renascimento que Bernard Berenson e J oseph Duveen vendiam aos ricos de Boston, Chicago, Nova York. Os dois estavam presos um ao outro, porque um oferecia alívio para as ansiedades do outro. Lucrando com o Dínamo, os americanos agora se voltavam para a Virgem; e, como Dorothy Parker escreveu no livro de visitas de San Simeon, após ver um DeUa Robbia acima da entrada da alcova de Marion Davies: Palavra de honra, eu vi a Virgem Em pé num santuário Acima da porta da puta privada Do maior filho da puta do mundo. [Upon my honor, I saw a Madonna Standing in a niche Above the door of the private whore Of the world's worst son. of a bitch.]
A busca, pelos Estados Unidos, de sinais de valor espiritual na arte não se restringiu ao Renascimento europeu. Abrangeu também o Japão e a China; .daí o poderoso efeito dos chamados bonzos de Boston, como William Bigelow e Ernest Fenollosa, cujos trabalhos de coleta no Japão, em busca de seu próprio satori, iriam dar a Boston sua coleção sem paralelo de arte japonesa na década de 1890, 145
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uma época em que os próprios japoneses se livravam dela sob as primeiras pressões da ocidentalização. E essa ênfase no terapêutico aumentou muito depois de 1920 , entre o Armory Show e a época em que o modernismo de fato começou a tornar-se a cultura institucional dos Estados Unidos. Se o gosto cultivado americano resistiu ao modernismo a princípio, foi também porque, em sua dissolução e aparente violência para com as normas pictóricas, ele não parecia suficientemente espiritual. Poderia cumprir a promessa herdada da arte, oferecer perspectivas de fuga transcendental do rude ambiente da modernidade industrial? . Podiam conciliar-se os antigos e os modernos? A resposta' do museu, desde o momento em que se fundou o Museu de Arte Moderna, foi "sim". O museu americano teve de equilibrar sua natureza sóbria com a afirmação básica da vanguarda modernista, de que a arte avança injetando doses de inaceitabilidade em seu próprio discurso, abrindo assim novas possibilidades de cultura. O resultado foi uma brilhante adaptação, inaudita na Europa. Os Estados Unidos produziram a idéia do vanguardismo terapêutico , e ' em seu nome construíram museus. Esses templos sustentavam-se em do is pilares. O primeiro era o esteticismo, ou arte pela arte, que decretava que todas as obras de arte devem ser lidas primeiro em termos de suas propriedades formais: isso libertava a obra de arte da censura puritana. O segundo era conhecido, o que se refere ao proveito social: embora a arte pela arte tivesse razão em excluí-las do quadro de julgamento moral, as obras de arte eram morais em si porque, quer o soubéssemos ou não a princípio, apontavam o caminho para verdades superiores, e por isso nos faziam bem. Podíamos ficar ofendidos a princípio, mas depois nos ajustaríamos, e a cultura continuaria avançando. O que nos traz de volta ao portfólio pornô de Robert Mapplethorpe, lá no museu.
Pois o que de fato espanta nas defesas, feitas pelo pessoal que escreve sobre arte, dessas cenas de tortura sexual é que eram todas expressas ou em termos de um esteticismo tão solipsista que chegava ao absurdo, ou de elaboradas e inconfirmáveis alegações de valor terapêutico. O primeiro esforço baseia-se numa disposição de separar forma e conteúdo, que é, muito simplesmente, delirante. Uma velha conhecida minha, já morta, contava que certa vez per-
correra a National Gallery em Londres corn um grupo, conduzido por Roger Fry, o crítico formalista inglês. Ele parou para analisar um t rí ptico de Orcagna, apresentando Deus Pai, terrível em sua ira, olhos chispando, barba esvoaçando, apontando implacavelmente para seu Filho sacrificado. "E agora", disse Fry, "devemos voltar nossa atenção para a massa dominante central." Hoje, setenta anos depois, vemos uma crítica como Janet Kardon, no catálogo de Mapplethorpe e eU1 seu depoimento no julgamento de Cincinatti, refletindo sobre uma foto do punho de um homem enfiado dentro do reto do parceiro, e outra de um dedo enfiado num pênis, fazer floreios sobre "a centralidade do antebraço", que ancora a composição, e que c c as cenas parecem destiladas da vida real", e que seu arranjo formal "purifica, e até mesmo elimina, os elementos prurientes" . Esse, eu diria, é o tipo de esteticismo exausto e literalmente desmoralizado que não veria nenhuma diferença básica entre um comício de Nuremberg e um espetáculo de Busby Berkeley, já que ambos, afinal, são exemplos de coreografia art-deco . Mas não é mais curioso que a opinião diametralmente oposta, apresentada por escritoras como Ingrid Sischy e Kay Larson - de que as imagens mais sexualmente extremas de Mapplethorpe são de certa forma didáticas: dionisíacas em si, têm o caráter de um espetáculo moral , rasgando os véus de pudicícia e ignorância, e com isso promovendo os direitos dos gays ao pôr-nos diante dos limites últimos do compor-: tamento sexual, além dos quais só a morte é possível. Esta, escreveu Kay Larson, é c ca última fronteira de autoliberação liberdade" . O sujeito com os órgãos genitais no tronco de açoite torna-se a versão moderninha do montanhista eduardiano, pendurado de um penhasco himalaio: abaixo dele o vácuo, em torno dele a corda, e acima o pico da experiência. Acho isso duvidoso, para dizer o mínimo. Se um museu mostrasse imagens dessas coisas acontecendo com mulheres que fizessem isso por vontade própria, masoquistas, viria um clamor de protesto do mundo artístico: sexismo, degradação, exploração, o diabo . O que é bom para um, também é, ou deveria ser, para outra. E de qualquer modo , como observou Rochelle Gurstein num excelente artigo em Tikkun,5 o caso Mapplethorpe revela "quantos árbitros culturais, como muitos teóricos políticos, estão presos na camisa de força de um modo de discurso que mesquinhamente concebe disputas sobre o que deve aparecer em público em termos de direitos individuais - neste caso o direito de autoexpressão do artista - em vez de termos que visem o interesse público na qualidade e caráter de nosso mundo moderno' . Eu defen-
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deria a exposição do portfólio pornô com base na Primeira Emenda, conquanto restrita a adultos advertidos. Mas nos enganamos se supomos que a Primeira Emenda exaure os termos do debate, ou se aceitamos a idéia de que todos os tabus sobre representação sexual foram feitos para ser quebrados, e que quebrá-los tem algo a ver com a importância da arte, hoje, em 1992. O fato de muitos de seus entusiastas acharem que só o levantar tais questões já "faz o jogo" da direita censória dá uma medida do grau de calor gerado pela polêmica sobre Mapplethorpe. Demorei-me no bafafá criado por parte da obra de um fotógrafo americano meio superestimado porque isso entra diretamente na questão da política na arte, e de como os museus americanos a tratam. Parece-me que não há absolutamente nenhum motivo para que um museu, seja qualfor, favoreça a arte ostensivamente política em relação à que não o é. A arte política de hoje é apenas uma coda para a idéia de que pintura e escultura podem provocar mudança social. Durante toda a história da vanguarda , essa esperança foi refutada pela experiência. Nenhuma obra de arte no século xx teve o mesmo impacto de A cabana do pai Tomás na maneira como os americanos pensavam sobre a escravidão, ou o Arquipélago Gulag nas ilusões sobre a verdadeira natureza do comunismo. A pintura política mais celebrada, largamente reproduzida e universalmente reconhecida do século xx é Guernica, de Picasso, e não mudou uma polegada do regime de Franco nem encurtou a vida dele um dia que fosse. O que de fato muda a opinião política são os fatos, argumentos, fotos de imprensa e a TV. A convenção dos catálogos da década de 90 é quedar-se em artistas ativistas que "abordam questões" de racismo, sexismo, AIDS, e assim por diante. Mas os méritos de um artista não estão em função de seu gênero, ideologia, preferência sexual, cor de pele ou estado de saúde, e abordar uma questão não é abordar o público. O americano médio não está olhando as virtuosas beldades feministas de J ohn Hartfield na parede do Whitney - ele tem uma Playmate pregada na divisória de sua bancada de trabalho, e nem todas as Barbaras Krugers do mundo vão fazer com que ele ou qualquer outro se emende. A arte política que temos nos Estados Unidos pósmodernistas é um longo exercício de converter os convertidos. Como observou Adam Gopnik em The New Yorker, ao criticar o Carnegie International em Pittsburgh, ela consiste basicamente em tomar uma idéia irretorquível, embora óbvia - "racismo é erro", ou "Nova
York não devia ter milhares de mendigos e lunáticos nas ruas" e codificá-la de maneira tão enviesada que quando o espectador a retraduz, sente o fulgor de estar incluído no que chamamos de "discurso" do mundo da arte." Mas o fato de uma obra de arte ser sobre a AIDS ou o fanatismo não lhe empresta mais mérito artístico do que se fosse sobre sereias e palmeiras. Seja como for, grande parte da nova arte ativista é tão malfeita que só o seu contexto - sua presença num museu - sugere' que tenha alguma intenção estética. Sei que essa objeção não agrada a muita gente: o simples pedir que uma obra de arte seja bem-feita é, para eles, um sinal de elitismo, e supõe-se que alguns críticos teorizariam que uma obra de arte malfeita é apenas uma metáfora de como se tornou vulgar o resto do mundo, agora que a ética do artesanato em grande parte desapareceu, de modo que a inépcia artística lançada no contexto do museu adquiriu uma espécie de função crítica. Mas isso não é o que pensamos quando olhamos o material na última Whitney Bienal: uma extensa e chata obra de documentação, parecendo um mural escolar de trabalho de grupo, intitulada Aids Timeline, por exemplo, ou uma obra de Jessica Diamond consistindo de um sinal de igual cancelado com um x, abaixo do qual estava escrito em má caligrafia "Totalmente desigual". Quem acha que esse lamentoso diagrama contribui com alguma coisa nova para nossa compreensão do privilégio nos Estados Unidos, apenas por conseguir espaço na parede de um museu, está sonhando. A Europa produziu nos últimos anos alguns artistas de real dignidade, complexidade e poder de imaginação, cuja obra se pode chamar de política - Anselm Kiefer, por exemplo, ou Christian Boltanski. Mas os traços duradouros da arte de vítima americana são a pose e a inépcia. Nas performances de Karen Finley e Holly Hughes, temos o extremo do que pode dar errado na arte-corno-política - a crença em que a simples expressividade basta; que eu me torno um artista exibindo a vocês minhas tripas quentes e desafiando-os a rejeitá-las. Não gosta de minhas tripas? Você e Jesse Helms, cara. As alegações desse material são infantis. Eu tenho exigências, tenho necessidades. Por que você não as satisfez? O "você" não permite diferenciação, e o farisaísmo do "eu" é profundamente anestésico. Ficaríamos satisfeitos com algum sinal de consciência da nuance que distingue a arte dos slogans. Essa tem sido a exigência mínima da boa arte política, e sobretudo da sátira, desde a época de Gillray, Goya e Géricault, passando pela de Picasso, John Heartfield e Diego Rivera. Mas hoje a ênfase e no meramente pessoal, no "expres-
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sivo". A sátira é suspeita como elitista. Daí o recuo da disciplina da arte, indicada pelo amor à estrutura, clareza, complexidade, nuance e ambição imaginativa; e o avanço das alegações de isenção. Eu .- sou uma vítima: como ousa você me impor seus padrões estéticos? Não vê que você tanto me prejudicou que só preciso exibir minhas feridas e chamá-las de arte? Em 1991, foi publicadoern zlrz in America uma jóia de entrevista com Karen Finley, na qual essa artista performática ex-católica declarava que a medida de sua opressão como mulher era que não tinha oportunidade, nenhuma mesmo, de tornar-se papa. E falavasério. Dificilmente se poderia encontrar um epítorne mais vívido da auto-absorção do artista como vítima. Eu próprio sou um ex-católico, e aidéia dessa injustiça tocou um ponto sensível em mim. Mas ruminando sobre o assunto, vim a ver que na verdade há um motivo para que Karen Finley seja inelegível para o Papado. O papa só é infalível parte do tempo, quando fala ex cathedra sobre questões de fé e moral. A artista performática radical, em seu estado integral de vítima, é infalível o tempo todo. E nenhuma instituição, nem mesmo uma tão antiga e astuta quanto a Igreja católica, pode suportar o grave peso da contínua infalibilidade em seu chefe. Este, mais ainda que a perspectiva de uma irlandesa coberta de chocolate, lamentando-se sobre opressão no Trono do Pescador, é o motivo pelo qual eu votaria contra ela, se fosse membro do Colégio de Cardeais, o que não é provável que venha a ser tampouco. As pressões do ativismo estão ocasionando uma tensão nos museus, como devem fazer, e são muito rapidamente internalizadas pelas equipes. Entram em jogo dois sistemas de preferência sobre arte, e produzem uma dupla censorialidade. Um exemplo dramático disso aconteceu em Washington em abril de 1991. O National Museum of American Art fez uma exposição intitulada O Oeste como América, uma imensa antologia de imagens destinada a rever a versão triunfalista da colonização branca dos Estados Unidos no século XIX. 7 Que nos dizem os pintores e escultores da época sobre o Destino Manifesto? A exposição começava com pinturas históricas dos Pais Peregrinos e acabava CaIU fotos de sequóias da Califórnia, com estradas abertas entre seus troncos. Era muito franca sobre a escolha de obras de arte como evidência de idéias e opiniões, e COlUO registros de acontecimentos, mais do que pelos seus méritos artísticos intrínsecos. Nada errado nisso, contanto que se deixe claro o que se está fazendo, e isto os curadores deixaram. Muitas vezes obras de arte menores, ou esteticamente des-
cartáveis, ou n1eSIUO repelentes, nos falam de crenças sociais. E, de qualquer modo, as "obras-primas" são escassasno terreno da pintura americana do século XIX. O que vimos, na maior parte, foram os sérios esforços de pequenos talentos provincianos cuja obra dificilmente seria digna de estudo, a não ser pela clareza com que expunha os temas de um país expansionista. A mostra partia para dysconstruir imagens, e também isso era bastante justo, já que se alguma coisa nessa cultura foi algum dia construída, trata-se do mito do Oeste americano. Julguei-a uma exposição interessante e estimulante, e o disse numa crítica. O que não gostei tanto foram dos catálogos e sobretudo das legendas, impregnadas de diatribes do finado marxismo e do lúmpen-ferninismo. Essas legendas eram uma grande característica dos museus russos. "Este ovo Fabergé, símbolo da frívola decadênciados Romanoff [... ]", e assim por diante. Desapareceram da Rússia, e migraram para cá. Aqui, pessoal, uma foto de um hurão. Olha, o pobre nativo americano! Estão vendo, é mostrado morrendo! E vejam a posição subserviente da índia, uma tentativa de projetar o falo centrismo do capitalismo primitivo nas raças conquistadas! E a flecha quebrada no chão, emblema de sua potência abatida, embora sem dúvida convencionalmente exagerada! Puxa, que grosseiro! Próximo slide! Uma das autoras do catálogo chegou mesmo a voltar sua atenção para as molduras dos quadros, afirrnando que "as molduras retilineares [... ] oferecem uma dramática demonstração do poder e controle brancos" . Um pouco disso vai longe, e O Oeste como América tem muito disso. Apesar disso, fiquei espantado CaIU a veemência da reação à exposição. Começando por Daniel Boorstin, o ex-bibliotecário do Congresso, toda uma malta de politiqueiros e colunistas de direita calçou as botas e se pôs a chutar. Não ocorreu a ningu ém que a história legendária do Oeste americano já vinha sofrendo ataques de historiadores sociais há anos, e o argumento da exposição do museu não era nem sem precedentes nem particularmente novo, a não ser pelo fato de que fora transferido para o campo da arte. Tampouco acharam eles correto que a versão J ohn Wayne da fronteira fosse sequer questionada. E evidentemente as legendas fizeram o jogo deles direitinho. O ataque foi comandado pelo senador Ted Stevens, do Alasca, um republicano dono de oleoduto, que tinha seus próprios motivos para não querer que o Smithsonian fizesse exposições sobre o que chamou de "história pervertida", que falasse de conquista, desenvolvimento e o destino dos índios. Acusou o diretor
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Será que só eu vejo alguma coisa meio tacanha e embrutecedora nisso? Evidentemente, não: as pressões políticas vêm se tornando nos últimos anos um triste estorvo para os museus americanos, e um tópico de obsessiva preocupação para seus funcionários. O torno tem uma garra direita, e uma esquerda, e entre as duas o museu é dolorosamente espremido e pode acabar, afinal, serido retorcido de tal modo que não terá forma útil. Essas pressões são muito mais
extremas nos Estados Unidos do que em qualquer país europeu que eu conheça. Resultam de uma soma de influência política, uma crença - comum tanto na direita como na esquerda -:- de que nenhuma esfera de cultura pública deve ficar isenta de pressão política, já que no fim tudo nela supostamente se reduz a política mesmo. Isso resulta tanto da própria crença do r-c, de que o que é pessoal é político, quanto da opinião conservadora de que qualquer pau para bater nos liberais é um bom pau, e não importa o que mais saia aplastado na briga. O museu americano j amais se destinou a ser uma arena para tais disputas, e por isso está se mostrando canhestro e mesmo inepto . para responder a elas. E sua resposta é complicada pelas pretensões da arte ativista de ser a vanguarda. Durante o último meio século, também tem sido óbvio que a idéia de vanguarda não corresponde a nenhuma realidade cultural nos EstadosUnidos. Seu mito, o do artista ou grupo inovador lutando contra um establishment entrincheirado, está morto. Por quê? Porque a arte nova forma nossa cultura oficial desde que se tem lembrança. Os Estados Unidos são viciados em progresso; amam o novo tão imparcialmente quanto amam o velho. Daí a idéia de uma vanguarda só poder sobreviver aqui como uma ficção sustentada por histórias hagiológicas de martírio cultural; o contexto dessas histórias agora passou de estilo para gênero e raça, mas a trama permanece em grande parte a mesma. Hoje, ninguém usa mais o termo "vanguarda" --: é uma não-palavra. Em vez dela, oSmarchands e curadores dizem cutting edge [literalmente, "fio de corte"; no caso, . "de ponta"] que ainda transmite a impressão fortemente positivista de coisa nova na onda, cortando a oposição reacionária, deixando para trás o que é velho, moldando alguma coisa, arremetendo em frente. Infelizmente, esse modelo foi surrado na década de 80 e não pode ser revivido. A idéia de bruxaria terapêutica espiritual através da arte afundou quando o Inundo da arte se tornou a indústria da arte, quando a ganância e o falso brilho da era Reagan começaram a cavalgar esse cutting edge, quando milhares de especuladores entraram no mercado e a mentalidade da moeda podre atingiu a arte contemporânea. À medida que o mundo da arte se enchia de gente hipócrita que, em outras circunstâncias, estaria vendendo pântano na Flórida ou falsos poços de petróleo no Texas, mais elevada se tornava a sua linguagem.. Todo pirata com um Salle na parede podia tagarelar como entendido sobre hiperrealismo e comodificação. Não se pode ter uma orgia como a dos ~nos 80 sem ressaca, e agora
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do Smithsonian de "ter um programa político", como se ele próprio não tivesse. Portanto, a mensagem foi bastante clara: nós voltaremos, entrem na linha senão cortamos suas verbas. Essa mensagem encheu os ouvidos das instituições americanas desde a confusão de Mapplethorpe. E assim a diretora do National Museum of American Art, Elizabeth Broun, recebeu muitas demonstrações de boa vontade dos críticos, museólogos profissionais e outros do ramo: O Oeste como América não foi uma exposição perfeita, teve defeitos de retórica, mas colocou questões sobre os usos e sentidos da arte americana, e parece, no todo, que valeu a pena fazê-la. E de qualquer modo, o inimigo de meu inimigo é meu amigo. . Mas nem bem emergia das trevas da censura direitista, a sra. Broun decidiu fazer algumas correçõezinhas ela própria. Um mês depois de encerrada a exposição do Oeste, o NMAA abriu outra, organizada por outro museu e enviada para Washington, contendo uma obra do famoso minimalista americano Sol LeWitt. Este artista é conhecido sobretudo por suas grades modulares, mas essa obra era anterior, da década de 60 - uma caixa dentro da qual se viam imagens, uma série de ampliações repetitivas de uma foto frontal de uma mulher nua. Num ataque de correção política, a sra. Broun decidiu que o sr. LeWitt estava fazendo o espectador se concentrar, de uma maneira pruriente e sexista, no matagal púbico da dona, e imediatamente baniu a obra da exposição. O curador que incluíra a obra de Le Witt imediatamente lançou uma campanha de imprensa, alegando censura; a obra foi reinstalada. A boa censura - não, chamemos de sensibilidade afirmativa baseada na intervenção - é terapêutica e redunda em vantagem para as mulheres e minorias. A má censura é o que o pessoal do pênis pá.lido faz com a gente. A aula termina aqui.
VII
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estamos com uma daquelas. A população do mundo da arte expandiu-se enormemente na década de 80, graças à superprodução de diplomas de belas-artes na de 70 e à súbita atração do mercado. Nenhuma base concebível de colecionadores era suficientemente larga para sustentá-los, nem mesmo nos sete gordos anos que terminaram com o colapso em 1990 do mercado de arte, quanto mais nos anos magros que supostamente temos pela frente. Como a decomposição da educação artística americana tem sido constante nas últimas três décadas, a maioria deles, como a maioria das pessoas que fazem cursos de literatura criativa, está mal preparada e não é provável que produza nada memorável. Não é culpa deles: o sistema de educação artística deixou-os na mão ao promover a teoria em vez da habilidade, a terapia em vez do aprendizado, as estratégias em vez do básico. Num mundo.de arte superpovoado, com um mercado deprimido, vamos ouvir cada vez mais falar que os artistas são discriminados - intermináveis queixas sobre racismo, sexismo, e assim por diante; quando o verdadeiro problema é que há artistas ·dem ais para a base sustentar. Existem provavelmente 200 mil artistas nos Estados Unidos, e, supondo-se que cada um deles realize quarenta obras por ano, isso significa 8 milhões de objetos, a maioria dos quais não tem um fiapo de chance de sobrevivência. Talvez o que precisemos seja umá ressurreição dos projetos da \VPA [Works Progress Administration] da década de 30, embora não haja a mais leve probabilidade disso. Mas certamente a maior parte dessas obras excedentes e desabrigadas não vai encontrar um lar no museu. A noção de perda de direitos entre os artistas levou a uma onda de ataques à idéia de," qualidade", como se ela fosse a inimiga da justiça. A esses, sobretudo, os museus sérios devem resistir. Já vimos o que eles fizeram aos estudos literários acadêmicos. Qualidade, diz esse raciocínio, é uma trama. Resulta de uma conspiração de homens brancos para marginalizar o trabalho de outras raças e culturas. Invocar sua presença em obras de arte é algo inerentemente repressivo . Grande parte da reclamação convencionalizada foi tecida em torno dessa tese. Tornou-se a Nova Ortodoxia e, em medida crescente, os críticos e historiadores de arte parecem incapazes de resistir a ela . Corno exemplo de uma possível miríade, vejam esse trecho de Eunice Lipton, no catálogo de uma mostra intitulada A EXPOSIçÃO DA DÊCADA, feita conjuntamente no Museu de Arte Hispânica Contemporânea, no Studio Museum no Harlem e no Novo Museu de Arte Contemporânea em Nova York, em 1990,. "Uma das
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formas mais poderosas de a história da arte produzir insiders e out-
siders", escreve ela, é através de sua idéia.de "gênios artísticos" [... ] Quase exigências pa-
ra esse artista-herói são suas tiradas apaixonadas, seu fervor estilo Velho Testamento, seus incontroláveis impulsos sexuais , sua cornpetitividade (exercida no palco do complexo de Édipo freudiano), e acima de tudo sua obstinada obsessão com o trabalho . Pensem só em Micheangel O ' Van Gogh, Rodin, Picasso, -Pollock . Poderiam esses artistas ter sido lésbicas, asiático-americanos, nativos americanos? O discurso branco treme ao contemplar um tal caos, tão poderosa é a ameaça que representa essa transgressão.
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Bem, acho que a resposta à primeira resposta de ms Lipton é: Não, esses artistas não podiam ter sido diferentes do que foram, porque, para começar, estão mortos. Nenhum esforço de imaginação - ou pelo menos nenhum que faça sentido - vai dar a Van Gogh uma mãe chinesa, nem transformar Rodin num cherokee: é tarde demais para eles sofrerem mudanças tão "transgressoras" , po r mais desejável que o projeto possa parecer a críticos corno ms Lipton, Pelo menos Michelangelo foi homossexual, se bem que não uma lésbica propriamente dita, embora eu ache que isso não afasta seus admiradores. Mas o notável nesse trecho, eu acho, é a maneira como estabelece uma caricatura do que ms Lipton chama de "discurso branco". Sua descrição da idéia do artista-herói da história da arte moderna é uma bobagem, uma grosseira efígie de papelão que nenhum historiador da arte usa e da qual nenhum crítico sério faria mais do que dar risad as . É uma ficção jornalística - e jornalismo inferior ainda por cima. O estereótipo do artista como uma espécie de demiurgo falocrata, criando maravilhas abstratas num vácuo so cial, continua tendo apelo para a cultura de massa, mas isso aí já é território de Judith Krantz, não história da arte. Quem quer que tenha um grão de sensatez sabe que para chegar a Michelangelo temos de contornar o filme feito sobre ele, A agonia e o êxtase, e não se começa por Sede de viver se se quer compreender alguma coisa sobre Van Gogh. E alguém já escreveu sobre Chardin em termos de seus' 'incontroláveis impulsos sexuais", ou de Piero della Francesca em termos de seu "fervor estilo Velho Testamento", ou das "tiradas ' apaixonadas" de Watteau? Na verdade, hoje parece que o pseudo-heroísmo e os arquejos históricos que críticos como Eunice Lipton deploram no tratamento de pessoas como Van Gogh ou Michelangelo, por mais repressi-
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vos e hegemônicos que sej am quando aplicados a brancos, são decididamente desejáveis para negros. Essa crítica de "reforço" hoje está cada vez mais na moda nos Estados Unidos. É ruim usar palavras como "gênio", a menos que se esteja falando do falecido JeanMichel Basquiat, o Chatterton negro da década de 80, que, durante uma pitoresca carreira de proxeneta, viciado e astro juvenil da arte, deixou uma leve marca na superfície cultural, transformando as convenções da pichação de parede nas de uma art brut, antes de matarse com uma overdose aos 27 anos. O primeiro estágio do destino de Basquiat, em meados da década de 80, foi ser entusiasticamente acolhido por uma indústria da arte tão trivializada pela moda e cega pelo dinheiro que não podia distinguir um rabiscador de um Leonardo . segundo estágio foi ser abandonado pelo mesmo público, quando a novidade de seu trabalho se desgastou. O terceiro foi uma tentativa de apoteose no Whitney Museum destinada a sanitizar sua vida curta e frenética e colocá-lo como uma espécie de figura de mártir para toda obra, inflável, com isso restaurando o valor em dólar de sua oeuvre numa época em que os preços da arte contemporânea americana estavam em queda livre. Durante esse solene exercício de Vitimologia Heróica, reviveu-se toda a hipérbole do artista como demiurgo. Um colaborador do catálogo proclamou que " Jean permanece envolto na silenciosa toga roxa da Imortalidade"; outro opinou que" ele está tão próximo de Goya quanto a pintura americana já conseguiu". Um terceiro, não querendo ficar para trás, exaltou o "punitivo regime de abuso contra si mesmo" (sie) de Basquiat, como parte das "disciplinas impostas pelo princípio de ascetismo às avessas em que ele tão decididamente se empenhou" . Essas disciplinas de ascetismo às avessas, estamos vendo, significam injetar droga em si mesmo até cair morto. O garoto morreu pelos nossos pecados. Através do vício, escreveu um quarto ensaísta do catálogo, Basquiat "parodiou e procurou curar uma cultura perturbada". Como se esse newspeak cultural não bastasse, temos a opinião do diretor do Whitney, David Ross: "A divisão racial e étnica conti-. nua sendo um problema central na vida americana, e duradouras suposições r acist as turvam seriamente a capacidade de muita gente compreender Basquiat" . Não se pode compreendê-lo, aparentemen- . te, e continuar achando-o trivial; daí, por sentimental implicação, se você não adora o trabalho de Basquiat, é porque você odeia os negros. É um.sinal de nossos tempos o fato de um grande museu de Nova York apelar para tal chantagem emccional.?
. Por trás dessa baboseira há um mal escondido anseio de segregação cultural. Isso corresponde a uma das mais corrosivas correntes na atual sociedade americana - corrosiva, quero dizer, para qualquer idéia de um terreno cívico comum - que é tratar as supostas necessidades culturais e educacionais de grupos (mulheres, negros, latinos, sino-americanos, gays, o que queiram) como se passassem por cima das necessidades de qualquer indivíduo e estivessem todas, automaticamente, em choque com os supostamente monolíticos desej os de uma classe dominante, alternadamente demoníaca e condescendente, de homens heterossexuais capitalistas. Cada vez mais, supõe-se que nosso alcance cultural é fixado e determinado para sempre pelo lugar onde fomos criados. Pode-se imaginar 6 grande desprezo com que um grande artista como Diego Rivera teria reagido a isso. Ele jamais pensou que não tinha "poder", e tampouco Frida Kahlo, embora Deus saiba que ela se encaixava em todas as categorias de outsider da atual litania de lamentação: uma latina bissexual que passou a maior parte da vida sofrendo severa dor física. Rivera provavelmente deu mais ao México, .em termos de autoconhecimento e orgulho cultural, do que qualquer artista na história do país, mas só pôde fazer isso porque absorvera e internalizara completamente a grande tradição da pintura de afrescos renascentista, que se combinou com sua absorção do modernismo francês, arte pré-colombiana e arte popular viva para produzir os tremendos resultados que vemos nas paredes do Palácio Nacional' na Cidade do México. Se você dissesse a Rivera que qualidade não tem importân- . cia, ele teria rido em sua cara. Ora, não se pode negar que, em algum momento na história da arte, houve reputações infladas e artistas injustamente ignorados . Isso acontece a curto prazo, mas a longo prazo as injustiças tendem a ser corrigidas . Há vinte anos, o sistema de arte americano era inteiramente falocrático. Hoje continua havendo um pouco de tendenciosidade institucional contra artistas mulheres, provavelmente .ainda menos do que existe contra escritoras ou editoras na indústria editorial americana. Contra negros há mais, porém isso está desaparecendo . Parte da ressaca dos anos 80, porém, é a vertigem que temos quando compreendemos quantos dos medalhões da época eram falsos. O frenesi de alimentação cultural exigiu muito de artistas que se desenvolvem lentamente, dos que valorizam certa reticênciaclássica e uma contabilidade precisa de sentimento acima da mera expressividade ou contestação. Também apresentou dificuldades pa-
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ra os que acreditam que a arte baseada nas tradições internas da pintura e escultura pode atingir valores simplesmente não acessíveis à arte baseada nos meios de comunicação de massa. Sob certos aspectos, essas pessoas hoje enfrentam barreiras de gosto e de práticas museológicas tão formidáveis quanto a crosta de preconceitos um século atrás. O atual mundo da arte americano paralisado em um engarrafamento. Seus curadores de museus ainda estão escravos do mercado; a suposta variedade do mercado é um mito uma vez que se apega ao sistema de estrelas da década de 80; suas' instituições marcham em marca-passo, impondo uma uniformidade de gosto que tem poucos paralelos na história da cultura americana. E agora, a groselha nesse rançoso sundae cultural é que os artistas têm de enfrentar a ernbotante pieguice gerada pelo rnulticulturalismo institucional ao estilo americano. Os que falam em multiculturalismo como um programa "radical" não vêem como podem revelar-se convencionalizantes, apaziguantes e inteiramente reconfortantes os seus efeitos para o gosto médio . Isso já é visível numa área: a da arte subvencionada pelo governo, na qual programas "multiculturais',' servem para tirar o sitiado National Endowment for the Arts do dilema de ter de fazer qualquer discriminação. Se os fariseus ladram por um fim ao apoio do governo à "grande" _ o que significa difícil e possivelmente polêmica - arte; se os moralistas berram pelo sangue de algum poeta ou performer cuja obra não combina com os "valores familiares" e pode provocar fúrias em algum clube de golfe de Tulsa - qual poderia ser o melhor refúgio senão o multiculturalismo compensatório? É só direcionar o já magro conta-gotas de dinheiro governamental para um material que ninguém possa contestar: "Trabalhos de agulha Hmong, cestaria de algas costeiras, dança nativa do sudoeste do Alasca, cestaria e talha índia americana, fabricação de canoa das ilhas do Pacífico e toque de banjo dos Apalaches", citando uma recente brochura editada pelo NEA, para mostrar como a relação do governo com bolsões de cultura local, de valor nostálgico, tornou-se simpática e carinhosa após o tsuris de Mapplethorpe e Serrano. Alguém i~á malhar o NEA . por subsidiar algum artesão de aldeia nos arredores de Seattle para que crie um "projeto comunitário", destinado a inculcar "autoestima" em escolares, mostrando-lhes como esculpir castores de cedro em estilo kwakiutl? Claro que não. Multiculturalismo e "diversidade cultural", na interpretação das agências de subvencionamento federais e de um número crescente de fundações privadas, têm nuances de pio ho bismo. Produzem pouca coisa que possa, em termos 158
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estéticos, contestar, refinar, criticar ou de alguma forma ampliar o pensamento do status quo. Destinam-se a apaziguar uma mentalidade populista que se satisfaz com a fácil tarefa de "apoiar a etnicidade e diferenças de gênero nas artes", em vez da difícil tarefa de buscar a verdadeira excelência. A maior parte da "arte" que resulta de tais programas é kitsch afirmativo, prolixo. As pessoas gostam dela pelas mesmíssimas razões por que gostam de cartões Hallmark com garças sumi-ê e versos New Age sobre elas. Simplesmente eles fazem com que elas se sintam ... bem. Não há dúvida de que se pode fazer um programa cultural para sentir-se bem com base em critérios sociológicos e estatísticos, apoiando-o com as beatices habituais sobre "dar força". Isso combina muito bem com a tradição evangélica da vida cultural americana - a idéia de que somos melhorados, edificados, transformados em melhores cidadãos pelo fato de produzirmos ou consumirmos arte. Mas a arte que isso promove pode ser, e muitas vezes é, bastante banal. O multiculturalismo cultural também pode transformar-se numa espécie de racismo ao contrário, como sabe agora qualquer artista homem; branco; que se tenha candidatado recentemente a uma bolsa no sul da Califórnia. Que acontece quando o dinheiro do governo para as artes e o multiculturalismo popular se cruzam? Chantagem moral, com um olho de verruma na burra oficial. Isso não teria importância se o governo desse montanhas de dinheiro para as artes, de modo que todos tivessem sua fatia. Mas, como se sabe muito bem, o governo não faz nada disso. A burra oficial americana não é grande. Parece mais um saquinho de sanduíche. O contribuinte americano entra com 0,68 dólar para apoio às artes todo ano, em comparação com 27 dólares na Alemanha e 32 na França. Na Holanda, nos últimos vinte anos, tentou-se a verba populista para todo inundo. O governo instituiu um fundo para comprar obras de artistas, quase sem consideração com a qualidade. O que importava era que estivessem vivos e fossem holandeses. Cerca de 8 mil artistas holandeses estão representados nessa coleção. Nenhum deles é exibido, e, como todos na Holanda, com exceção dos artistas, hoje admitem que cerca de 96 por cento das obras são lixo. Os artistas acham que é tudo lixo, menos suas obras. Os gastos com armazenamento, climatização e manutenção são hoje tão elevados que eles vão ter de se livrar do material. Mas não podem. Ninguém o quer. Não se pode dar de graça. Tentaram doá-lo a instituições públicas, como asilos de doidos e hospitais. Mas até os asilos de doidos insistiram em padrões - queriam escolher. De modo
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.; que tudo permanece lá, democrático, não hierárquico, não sexista, não vendável e, para grande pesar do governo holandês , só parcialmente biodegradável. Ora, há lições a tirar disso. A primeira é que se os asilos de doidos holandeses podem discriminar em relação à arte sem ser acusados de elitismo antidemocrático, também o podem os museus americanos . A tarefa da democracia no campo da arte é tornar o mundo . seguro para o elitismo. Não um elitismo baseado em raça, dinheiro ou posição social, mas em perícia e imaginação. A incorporação de alta perícia e intensa visão é a única coisa que torna a arte popular. Basicamente, é esse o motivo por que o Rijksmuseum vive cheio de gente, ao contrário dos porões repletos de arte corretiva em Amsterdam. Os maiores espetáculos populares nos Estados Unidos são elitistas até a alma: os jogos de rúgbi, beisebol, basquetebol, tênis profissional. Mas ninguém vai pagar para ver Hilton Kramer e eu disputarmos os oitocentos metros de nado livre em 35 minutos cravados, apesar de nossa privilegiada posição como homens brancos europeus não exatamente mortos. Como o esporte, a arte é uma área em que o elitismo pode exibir-se com um custo desprezível em dano social. A segunda lição é que se uma democracia participatória escrupulosa como a Holanda gasta 25 vezes por contribuinte a mais do que gastam os Estados Unidos com cultura, escolhendo arte em bases sociológicas em nome de um completo igualitarismo social, e acaba com um problema de como dispor de lixo, que garantia existe de que nos saiamos melhor aqui? Nenhuma, que eu veja. Está na natureza dos seres humanos discriminar. Fazemos escolhas e julgamentos todo dia. Essas escolhas fazem parte da experiência real. São .influ enciadas por outros, claro, mas não resultam fundamentalmente de uma reação passiva à autoridade. E sabemos que uma das experiências mais reais na vida cultural é a da desigualdade entre livros e apresentações musicais e pinturas e outras obras de arte. Algumas coisas nos parecem melhores que outras mais articuladas, mais radiantes de consciência. Podemos ter difi-: culdade para dizer por quê, mas a experiência permanece . O princípio do prazer é muitíssimo importante em arte, e os que gostariam de vê-lo rebaixado em favor do discurso ideológico me lembram os puritanos ingleses que se opunham à luta de ursos, não porque causasse sofrimento aos ursos, mas porque dava prazer aos espectadores. Por exemplo, meu hobby é marcenaria. Sou bom nisso - para um amador. Quer dizer, sei fazer uma gaveta que desliza, e armá-
rios de cozinha não bons o bastante para serem realmente bons, mas decentes. Adoro as ferramentas, o cheiro das aparas, o ritmo do trabalho . Sei que quando vejo um armário Hepplewhite num museu, ou uma casa de madeira em Sag Harbor, posso lê-los - imaginar sua construção, apreciar sua perícia ---'- melhor do que se jamais tivesse trabalhado com madeira. Mas sei também que as mãos mortas que fizeram a platibanda ou a varanda eram muito melhores que as minhas, e o verniz delas não tinha calombos. E quando vej o o nível de marcenaria numa estrutura japonesa como o grande templo de Horyuji, a precisão das complexas juntas, a compreensão do cipreste hinoki como substância viva, sei que não poderia fazer nada assim mesmo que tivesse minha vida inteira para dedicar a isso. As pessoas que sabem fazer coisas assim são uma elite; conquistaram o direito de sêlo. Isso me enche a mim, um açougueiro da madeira cujas juntas se encaixam em 89 ou 91 graus, de ressentimento? Absolutamente não. Mas de algo semelhante a reverência e prazer. Mutatis mutandi, o mesmo se aplica à literatura e às artes visuais. A gente aprende a discriminar. À luz, nem todos os gatos são pardos . Após algum tempo, pode-se ver, por exemplo, por que um desenho de Pater ou Lancret pode ser diferente de um com o mesmo terna de Watteau: menos tensão na linha, um certo remendo e macete, e assim por diante. Isso correspondeà experiência, do mesmo modo como nossa percepção e comparação da graça no trabalho de um profissional de basquetebol ou de tênis nasce da experiência. Essas diferenças de intensidade, sentido, graça não podem ser postas num pequeno catecismo ou livro de receitas. Só podem ser experimentadas e explicadas, e depois vistas em relação à história que inclui a história social. Se o museu oferece base para isso, está fazendo o seu trabalho. Se não - e uma das maneiras de não fazê-lo é deixar-se desviar por problemas de deslocada ideologia - então é provável que fracasse, independentemente do grau de passageira relevância que possa sentir. Do mesmo modo, os responsáveis pelos museus não servem apenas ao público, mas ao artista, quer a obra desse artista esteja ou não na coleção, por uma escrupulosa adesão a altos padrões artísticos e intelectuais. Essa disciplina não é quantificável, mas é, ou deve ser, desinteressada, e há duas maneiras certas de destruí-la. Uma é deixar o mercado de arte ditar seus valores ao museu . A outra é transformá-lo numa arena para batalhas que têm de ser travadas sim - mas na área da política. Só resistindo às duas pode o museu continuar com sua tarefa de nos ajudar a descobrir . uma civilização grande mas sempre em parte perdida: a nossa.
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NOTAS
1. CULTURA E DESINTEGRA çà O DA COMUNIDADE POLÍTICA (pp. 13-72) (1) Ver Cathy Young, " Victim hood is powerful : both feminists and antifeminists see advantages in keeping women down" [A condição de vítima é poderosa: feministas e an tifeministas vêem vantagem em manter as mulheres por baixo], Reason (out. 1992). (2) Nat Hentoff, "What r eal1y happened at Betty's Oceanview Diner" [O que realmente aconteceu no Betty's Oceanview Diner], Vil/age Voice, 7/1/92. (3) Ver Adam Redfield, carta ao New York Times, datada de 22/11/91. (4) Barbara Egrenreich, em Democratic Left (ju l./ago. de 1991); reimpresso em Paul Berman (ed.) , Debating P .C,) the controversy over college political correctness on campuses [O debate do r-c, a polêmica sobre correção política .universitá ria nos campi], (1992), p. 336. (5) Reportagem de William Henry lII, "Upside down in the grooves of Academe" [De cabeça para baixo nas trilhas do mundo acadêmico] , Time, 1/4/91. (6) Nat Hentoff, "'Speech Codes' on the campus and problems of free speech " ["Códigos de discurso" no campus e problemas de liberdade de expressão], Dissent (outono 1991), p . 546. (7) Idem, ibidem, p. 549. (8) Tom Wicker, "The democrats as the Devil's disciples" (Os democratas como discípulos do Diabo], The New York Times, 30/8/92. (9) Michael Thomas , "The money game" [O jogo do dinheiro], introdução ao catálogo Culture and commentary, an Eighties perspective [Cultura e comentário, uma perspectiva dos anos 80], H irshhorn Museum, 1990, p . 147. (lO) William Greider, Who will tell the people: the betrayal of American democracy [Quem vai contar ao povo: a traição da democracia americana] (1992), p. 25. (11) Seymour Martin Lipset & Earl Raab, The Politics of Unreason: Righi- Wing Extremism in America 1790-1970 [A política do irracional: extremismo direitista na América 1790-1970], p. 103. (12) Idem, ibidem, p. 114. (13) Idem, ibidem, p. 239. (14) Ver Berman (ed.), Introdução a Debating P.C. [Debatendo o rc] (1992).
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(15) Carol Gruber, Mars and Minerva: World War I and the uses of higher learning in America [Marte e Minerva : a Primeira Guerra Mundial e os usos do ensino superior na América]; William Summerscales, Affirmation and dissent: Columbia's response to the crisis of World War I [Afirmação e discordância: a resposta de Columbia à crise da Primeira Guerra Mundial]; ambos citados por Cyrus Veeser, numa carta a The New York Times, 23/6/91. (16) Daniel J . Singal, "The other crisis in American education" [A outra crise na educação americana], The Atlantic Monthly , (nov. 1991) , p. 67. (17) Eugene Genovese, "Heresy, yes - sensitivity, no" [Heresia, sim - sensibilidade, não], New Republic, 15/4/91. (18) Louis Menand, "Lost faculties" [Faculdades perdidas], New Republic, 9/7/91. (19) Gerald Graff, Litterature against itself [A literatura contra si mesma] (Chicago 1979), pp. 96-7. (20) Daniel Harris, "Make my rainy day" [Faça meu dia de chuva], The Nation, 8/6/92 .
(14) Ver Harold Brackman, Farrakhan's reign of historical error: the truth behind "the secret relationship between Blacks and Jews" [O reino de erro histórico de Farrakhan: a verdade por trás de tiA relação secreta entre negros e judeus"], Sirnon Wiesenthal Center Reports, 1992. (15) Ver Roland Oliver, The African experience [A experiência africana] (Londres, 1991), sobretudo - para uma discussão a respeito de africanos por africanos - o capítulo 10, "Masters and slaves" [Senhores e escravos], passim , (16) E. Hobsbawm (ed.) et al, The invention of tradition [A invenção da tradição] (Cambridge, 1983).
3 . A MORAL EM SI: A ARTE E A FALÁCIA TERAPÊUTICA (pp. 125-61)
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2 . MULTI-C ULTI E SEUS DESCONTENTES (pp. 73-124) (1) Andrew Riemer, Inside outside [Por dentro, por fora] (Sydney, 1992), p. 157. (2) Les Murray, "The human-hair thread" [O fio de cabelo humano], em Persistence in folly: selected prose writings [Persistência na loucura: prosa escolhida] (Sydney, 1984), p. 4. (3) David Rieff, Making sense of multiculturalism [Entendendo o rnulticulturalismo], ensaio inédito, 1992. (4) Katha Pollit, "Canon to the right of me .. ." [Cânone à minha direita...], The Nation , 23/9/91. (5) Frederick Crews, Introdução a The critics bear it away: American fiction and the Academy [Os crí tico s são testemunhas: a ficção americana e a academia] (Nova York, 1992), p. xv. (6) Edward Said , "The politics of knowledge" [A política do conhecimento], Raritan, (verão 1991). (7) Jorge Amado, "EI embeleso colonial", El Pais, 23/8/92. (8) Os "Afrícan-Arnerican baseline essays", reimpressos , podem ser obtidos com o superintendente Matthew Prophet, Portland Public Schools, 501 N. Dixon St., Portland, OR 97227. (9) Xeque Anta Diop, Civiiization OI' barbarism: an authentic anthropology [Civilização ou barbárie: uma antropologia autêntica] (Nova York, 1991). Originalmente publicado como Civilisation ou barbarie (Paris, 1981). (10) Basil Davidson, Africa in history [A África na história] (Londres, 1984); p. 38. . (11) Diop, Civilization OI' barbarism , "Introdução", p . 3. (12) Para um resumo e refutação por um destacado erudito negro, cio "novo anti-semitismo " nos círculos afrocentrist.as, ver Henry Louis Gates Jr., "Black demagogues and pseudo-scholars" [Demagogos e pseudo-eruditos negros], New York Times, 20/7/92. (13) David Brian Davis, Slavery and human progress [Escravidão e progresso humano] (Ithaca, 1984), p . 33.
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(1) Richard Bolton, introdução a Culture wars: documentsfrom the recent controversies in the arts [Guerras culturais: documentos de recentes polêmicas nas artes] (Nova York, 1992), p . 9. (2) Depoimento de Healey: idem , ibidem, pp . 130 ss. (3) John Wicklein, "The assault on public television" [O ataque à televisão pública], 'Columbia Journalism Review, (jan. -fev. 1986), pp . 27-9. O memorando de Nixon foi liberado em 1979 sob a Lei de Liberdade de Informação. (4) Sobre as origens evangélicas da apreciação de arte americana no século XIX, a discussão mais valiosa, à qual recorri bastante, é a de Neil Harrís, The artist in American society: the formative years, 1790--1860 [O artista na sociedade americana: os anos de formação, 1790-1860] (1966). (5) Rochelle Gurstein, "Misjudging Mapplethorpe: the art scene and the obscene" [Julgando mal Mapplethorpe: o cenário artístico e o obsceno], Tikkun (nov.dez . 1991) . (6) Adam Gopnik, "Empty frames" [Molduras vazias], New Yorker, 25/11/91. (7) Ver o catálogo The West as America: reinterpreting images of the frontier, 1820-1920 [O Oeste como América: rein terpretando imagens da fronteira, 1820-1920], de William Truettner (ed.), com ensaios de Nancy K. Anderson et al., Smithsonian Institute, 1991. (8) Ver Eunice Lipton, c 'Here today, gone tomorrow? Some plot for a dismantling" [Hoje aqui, amanhã se foi? Certa trama para uma desmontagem], no catálogo The decade show: frameworks of identity in the 1980s [A mostra da década: estruturas de identidade nos anos 80] (Nova York), 1990. . (9) Ver, passim , o catálogo Jean-Michel Basquiat, Whitney Museum (Nova York, 1992).
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