Corpos de passagem: ensaios sobre a subjetividade contemporânea
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Denise Bemuzzi

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existentes quando a precariedade dos elos sociais cria um exílio confortável, macio e perfumado, um templo no qual amigos e inimigos são dispensáveis. Por isso ela exige o afinamento da atenção para tudo o que acaricia, mas igualmente para tudo o que machuca. Estas razõesjã seriam suficientes para temer esta guerra, mas t1U{i,'Ll também para enfrentá-la. Elas formam, ainda, um bom motivo para N refletir sobre o sentido da amizade, definido, há muito, por Plutarco, ~ e, ju~to dela, sobre a importância dos obstáculos e dos inimigos, ~;ti. conSIderados necessários a djferentes guerreiros antigos. Não exata,ti I~ mente porque se desejava usufruir do prazer de vencê-los. Muitos foram os que chegaram a pensar que "quando se quer ter c~­ nheiros é preCISO aprender a transformar inimigos e obstáculos em mestres". ~ ~.......w Esta transformação era fruto de um aprendizado que na a tinha de mágico ou espetacular. Fazia parte do curso da vida. Como' ainda hoje faz parte da vida, de milhares de seres humanos, a luta pela dignidade. 'Ifansfonnar-se num ser digno lhes exige estraté-. gias e uma enorme discrição. Por isso é dificil perceber o volume de seus êxitos. São pessoas comuns, que em várias partes do mundo fazem algo semelhante aQ que François Jullien chamou de acumulação de potencial, quando se referiu aos estrategistas chineses 16 : provocam transformações de modo ordinário, discreto e imperceptível, tomam-se dimos todos os dias, m~ com tamanha naturalidade que ~amf!m sempre ter sido dignos. O impacto destas transformaç6eSTtorte, em4Jora elas expressem a mesma naturalidade e o mesmo frescor exalad de o I avena muitas coisas a aprender com antigos guerreiros e, . também, com os combatentes do cotidiano ordinário de nossos dias. Drnci! encontrá-los, dizem uns, não vivem por aqui, dizem outros. Talvez vivam por aqui sim, e bem próximos; pois, se um bom estrategista prima pela discrição, os melhores são aqueles que nãÇ(dei--..,..~. . . . xam traços. _

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16. TraiU de l'eJJicacit Paris: Grasset & Fasquelle. 1996. Trad. brasileira: Tratado da eficácia. São Paulo: 34 Letras, 1998.

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' SUTILEZAS E MISlRIA

É conhecída a idéia de que o mundo está dividido em duas partes desiguais: uma minoria de seres bem alimentados. protegidos e ricos, rodeada por uma. maioria de seres desamparados, mal nutridos e pobres. N'o primeiro grupo, o cultivo do corpo é demasiadamente presente e suas necessidades ocupam cada vez mais espaços no ar, na terra e nas águas. Porque são detentore. de n); L jestosos recursos, os seres do primeiro grupo são iguabnente pn) prietários de intolerâncias incalculáveis diante de qualquer amC~l,', L de desconforto. Mas, no segundo grupo, no lugar de haver um se 11· timento de ~demasia do eu", há a sua raridade. Com seus CODJOS anêmicos, os ~eráve1s escorregam diariamente "iumo a um fim de linha: para eles, o futuro é apenas uma ~-ªYm.e Q ,Çonfor.tonão p~e um luxo. Falta..lbes alimento, ar, água, terra e tempo de vida. Mas não é apenas para eles que falta sentido. Querendo distanciar-se dos miseráveis estão os remedia~s. Mediando e ao mesmo tempo remediando a esquizofrenia de habitar um meio de mundo ~usto, sem comunicação entre as partes, esta categoria acolhe homens que parecem pedras duras, envelhecidas e ásperas, mas também aqueles sinúlares a pedrinhas bambas, redondinhas e extremamente móveis. Homens fatigados, hesitantes, incertos ou por demais medianos. Eles se vestem, se alimentam e se instruem com dificuldade. Vivem .um cotidiano impiedoso, com raros momentos de lazer, muito trabalho (ou bastante esforço para conseguir um), pouca disponibilidade para cui121

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dar do corpo e da alma. Quanto menos estes seres conseguem atender a seus desejos, mais vulneráveis eles ficam diante das seduções da publicidade, que lhes promete justamente "um encontro consigo", "um carinho", a possibilidade, enfim "de ser" de "se sentir", de adquirir marcas e produtos que repet~m exaust;vamen~ te a disposição de fazer maravilhas u por cada um". Ao oferecer tais prazeres, com tanta desenvoltura e leveza, fica a impressão de que a publicidade das marcas e das empresas pode, melhor do que qualquer pessoa, nos tomar felizes. Como se elas fossem mais credíveis, justas e interessantes do que os seres humanos. Depois do estilo publicitário que reduzia todos os seres não pertencentes à empresa à insignificância e à orfandade emerge uma publicidade que ambiciona traçar vínculos, sem mediadores, entre os seres na empresa (e fora dela) com a marca anunciada "Você sonha", e a marca realiza. Não apenas uma conexão diret~ entre o "eu" mais íntimo de cada um e as marcas para todos, mas uma conexão que se pretende limpa. Não por acaso, a política tende a ser considerada o lugar do roubo e da sujeira enquanto a public~dade de c~ntenas de marcas é percebida com~ o espaço da ecolOgIa, dos maIS altos vaIares hu.manitários, distante de toda corrupção: p~r meio da publicidade, as empresas denunciam problemas sociaIS (a Benetton não foi a única a fazê .. lo), estimulam o respeito à natureza, tal como a Body Shop, entre outras fabricantes de produtos de beleza sustentadas pela voga do "natural" e u seguirl do ubio • Não por acaso, igualmente, deixou de ser u~: exceção o investimento de empresas na reciclagem do lixo, nas campanhas em prol da conservação do meio ambiente e em ma~ nifestaçóes favoráveis aos direitos das minorias. Não é estranho por.tanto, que muitos empresários - especialmente os ligados ao~ meIOS de comunicação e ·à publiCidade - façam mais sucesso do q~e. os políticos. Publicj~ade limpa e política suja. E mais: public:dade que pretende sér sutil. Quando isto ocorre, vaIores até entao caros à SOCiedade Ocidental, tais como os da liberdade democracia e cidadania, são definidos como conseqüênCia~ do consumo.

SUTlLEZAS E MIStRlA

Há anos a publicidade promete "a felicidade", anunciando que o sentido da vida pode ser saboreado individualmente, não apenas no ato da compra mas, principalmente, na fidelidade às marcas. Ser fiel nesse caso implica fazer parte Ilda marca", ser admitido como personagem importante dentro da história de cada empresa. Como se as marcas fossem uma espécie de família Utop", dentro da qual seria possível, enfim, Uestar garantido" e próximo de todos os seres ricos, belos e famosos, podendo usufruir de. experiências cobiçadas pelojet set internacional. Vista desse modo, uma marca se toma aquilo que muitas empresas já foram: o único lugar de sociabilidade possível, o mais rico instrumento de fantasia e, ainda, com pretensões de fomentar arte e sentido. Ocorre que, para muita gente, a vida deve frutificar sentido e, ainda, ela deve fazê-lo com gratuidade, sem esforço nem economia. Cedo ou tarde percebem que o sentido não é uma fruta nem uma semente, e que seu território não é uma propriedade a priori, muito menos um ornamento ou um segredo à espera de desvelamenta. Algo semelhante ocorre com a felicidade: ao se tornar uma idéia, há quem se esqueça de que elajá fora vivida, simplesmente, como um estado. Em épocas e sociedades nas quais a infelicidade não significava forçosamente o fracasso absoluto da vida, ser feliz não era considerado um dever. a imperativo da alegriafull time abafa a melodia expressa pelas experiências pouco contentes. Recentemente Bruckner chamou de "euforia perpetual" este udever de felicidade'· que substituiu a antiga tarefa de multiplicação da espécie prescrita aos humanos pela de ser felizl. Por conseguinte, sentir-se infeliz toma ares de uma anomalia, o tédio confunde-se com doença. aproximar-se de sentimentos tristes transfonna-se num risco de vida intolerável. Uma genealogia desse desejo de ser feliz de modo eufórico e absoluto se impõe aos historiadores. Uma antropologia da transformação dos afetos alegres eIE.. culto fascista pela felici~ade torna·se urgente, especialmente em sociedades nas uais as ex eriências ale s, na música e na dança, foram convocadas a trocar a sutileza pela ru eza. 1. PascaJ Bruckner. CEuphorieperpétuelJe: essai SUT te devoir de bonheur. Paris: Grasset etFasquelle,2000,p.14.

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Há qualquer coisa de rude no puritanismo de modo geral. E há algo de puritano na falta de sutileza, especialmente quando esta é entendida como complexidade de gestos, sentimentos e ritmos do corpo. Um gesto sem sutileza tem dificuldade de sugerir. Se chega a fazê-lo tem pudores em se ofertar como enigma. Um pudor diante do indecifrável à primeira vista pode desencadear uma fervorosa devoção diante de quem se coloca como intérprete do mundo. Prefere-se Édipo, enquanto a esfinge é esquecida nos museus. Devoção e pudor reunidos fortalecem, como já se sabe, a verve puritana. De todo modo, na partilha desigual do mundo entre ricos e pobres, a rudeza não foi pedir morada apenas a uma das partes. Pois seu lar está menos na miséria das populações famintas do que abundância internacional das palavras de ordem. U~a ordem não pode sugerir. Ela deve ir direto ao ponto, funcionar como um revólver apontado para o outro, ser um gesto sem ramificações. A ordem deve, portanto. ser limpa de todo arsenal de mesuras consideradas supérfluas. Um rev6lver é de um puritanis .. m~z: é quando a sutileza se co~fu~de_ com afetação, hesitação, erro fatal. Se uma melodia vira palavra de ordem, no lugar de cantar e dançar, o corpo atira, metralha, subjuga. Quando o consumo vira palavra de ordem, a compulsão substitui a fruição, e o objeto comprado perde a sua singularidade. Quando o cavalheirismo e a feminilidade se tornam palavras de ordem, a sutileza é a primeira a se esquivar, a se cobrir de vergonhas diante de suas sedutoras inflexões doravante consideradas patéticas. País a sutileza inclui zOQas de sombra, e estas não significam caos nem, necessariamente, (' s~o. O gesto sutil é em geral potente justamente porque sua força não se explicita de uma só vez, como se se tratasse do último ou "do melhor gesto. A sutileza não se· concilia bem com tais romantismos fatalistas, nem com a necessidade de aproximar o começo do fim. Ela também não se adapta ao fascínio pelas palavras (ou pelos gestos), que se impõem como definitivos. De fato, a sutileza não é um fast-food. O que não a impede de existir quando se come um hambúrguer ou quando se trabalha na cozinha de um fast-food ou na limpeza de suas latrinas. É apenas na aparência

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que a sutileza é frágil ou cliente exclusiva dos restaurantes de luxo. Gestos sutis são delkãdos e fortes, por isso eles se parecem com foI4mgas avermelhadas que andam por toda a parte, como bar~t~s ancestrais, uma sempre seguida da outra. Seres que parecem muteis nesse mundo de tantas usuras. 'Palavras sutis são paradoxais porque são breves, discretas e quase imperceptíveis mas. ao mesmo tempo, espessas: pro~g,m outras palavras, hist6rias, personagens e corpos. É que a sutileza, assim como a delicadeza é fértil; elas sem re gestam outras falas.e atas. São ortanto coletivas . icam passagen criam envelo es,) epidermes capazes de amaciar certos cantatas e iniCi~r ~ corpo para a~da junto a muitos outros. A delicadeza constltumte ge~to sutíl é iniciadora. . . O amor entre dois seres pode desencadear um Jogo de suulezas rizomático, capaz de esticar o tempo e modificar rapidamente a sua percepção. Se há um tempo de sutileza este não seria como aq uele de uma ordeiii", ligado a uma memória seq?encial qu~ s.e afurula numa única Unha. O tempo da sutileza sena, talvez, smnlar ao "instante propicio", ao "momento o ortuno" tal como se define o termo to i no apão (tempo) ou como se utilizava o termo kairos na GréCia antiga. Uma certa métis é necessária para expressar-se sutllmente. ( Assim, a sutileza é algo gue se aprende. Tal como a disciplina. Elas resultam" de exercícios, de atenção ao que se passa entre os coipos. E, por mais tautológico que possa parecer, a atenção se aprende COln atenção. Este aprendizado pode ser sedutoramen~e inéluído no cotidiano orrliºªIÍo de pobres e ricos, desde que haja estímulo para levar adiante tal atividade. Estímulo que não cai.do céu porque emerge na terra, das relações entre os sere~2.._e eXIge uma grande atenção sobre si. assim como um governo das emoções completamente sintonizado com as situações que se apresentam socialmente. nata-se, aqui, somente de um comportamento .,Eolido (por Vezes confundido com atitude reprimida) e que, na verdade, é fundamental para compreender que o outro não foi feito Pê1l ser tomado, invadido, submetido. ~ada além, para reto.n:~ Ortega em seu livro sobre uma política da amizade, d~ uma CIvilidade, um meio, entre outros, e~sencial,_ª~J~vit~~~~.~.~}~~~da~e

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