Copas do Mundo: comunicação e identidade cultural no país do futebol 9788575113196

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Copas do Mundo: comunicação e identidade cultural no  país do futebol
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Copas do Mundo: comunicação e identidade cultural no país do futebol

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Reitor Ricardo Vieiralves de Castro Vice-reitor Paulo Roberto Volpato Dias

EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Conselho Editorial Antonio Augusto Passos Videira Erick Felinto de Oliveira Flora Süssekind Italo Moriconi (presidente) Ivo Barbieri Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves

Copas do Mundo: comunicação e identidade cultural no país do futebol Organização Ronaldo Helal Alvaro do Cabo

Rio de Janeiro 2014

Copyright  2014, dos autores. Todos os direitos desta edição reservados à Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, ou de parte do mesmo, em quaisquer meios, sem autorização expressa da editora. EdUERJ Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524 – Maracanã CEP 20550-013 – Rio de Janeiro – RJ Tel./Fax: (21) 2334-0720 / 2334-0721 www.eduerj.uerj.br [email protected] Editor Executivo Assistentes Editoriais Coordenadora Administrativa Coordenador de Publicações Coordenadora de Produção Assistente de Produção Revisão Capa, Projeto e Diagramação

Italo Moriconi Eduardo Bianchi Rosane Lima Renato Casimiro Rosania Rolins Mauro Siqueira Andréa Ribeiro Fábio Flora Emilio Biscardi

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC

C781 Copas do Mundo: comunicação e identidade cultural no país do futebol / organização Ronaldo Helal, Alvaro do Cabo. – Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014. 314 p.

ISBN 978-85-7511-319-6

1. Copa do mundo (Futebol). 2. Futebol - Brasil. I. Helal, Ronaldo. II. Cabo, Alvaro do. CDU 796.332(81)

Os autores agradecem a Fausto Amaro pela colaboração competente e desinteressada dos primeiros originais deste livro.

Sumário

Copas do Mundo: o que elas nos ensinam sobre o Brasil........................................................................................7 Ronaldo Helal e Alvaro do Cabo Copas do Mundo e identidade nacional: um panorama teórico....................................................................................... 13 Alvaro do Cabo e Ronaldo Helal 1938: o nascimento mítico do futebol-arte brasileiro............................. 37 Camila Augusta Pereira e Hugo Lovisolo Vitória épica e tragédia nacional em 1950: um contraponto entre o Diário Carioca e veículos da imprensa uruguaia........................ 57 Alvaro do Cabo e Ronaldo Helal Do complexo de vira-latas à “nossa” Taça do Mundo............................. 85 José Carlos Marques Copa de 1962 – a consolidação da pátria de chuteiras.........................109 Márcio Guerra e Filipe Mostaro 1970 – pra frente, Brasil: preparo da caserna, coração de chumbo e mente brilhante...........................................................................139 Antonio Jorge Gonçalves Soares e Marco Antonio Santoro Salvador

1982: lágrimas de uma geração de ouro...................................................165 Leda Costa Copa de 1994: os múltiplos discursos autorizados sobre a seleção campeã menos amada da história..............................................195 Fausto Amaro 1998: o colapso da arrogância nacional....................................................225 Édison Gastaldo 2002: da Família Scolari ao topo do mundo – a contradição entre o local e o global no futebol contemporâneo................................251 Francisco Ângelo Brinati e João Paulo Vieira Teixeira Salve a seleção! Mídia, identidade nacional e Copa das Confederações 2013....................................................................275 Ronaldo Helal, Alvaro do Cabo e Carmelo Silva Sobre os autores...............................................................................................305

Copas do Mundo: o que elas nos ensinam sobre o Brasil

O dramaturgo e cronista esportivo Nelson Rodrigues alcunhou, certa vez, a seleção brasileira de futebol de a “pátria de chuteiras”. Em um período de forte centralização política e de formação e consolidação do Estado-nação – final dos anos 1950 e início dos anos 1960 –, a equação “seleção brasileira-pátria” parecia mesmo expressar a relação do brasileiro com a seleção nacional. A força desse epíteto, que junta futebol com pátria, aparecia com facilidade nas crônicas e reportagens sobre as atuações do Brasil em Copas do Mundo. Ainda que atualmente esse cognome tenha perdido muito de sua carga simbólica, ele aparece a cada quatro anos, em períodos de realização desses eventos. Faz tempo também que o Brasil é conhecido como o “país do futebol”. Na maioria das vezes, a alcunha tem um sentido positivo, significando que em nenhum lugar se ama e se joga esse esporte como aqui. Porém, algumas vezes, o “país do futebol” é visto como algo negativo, significando que este não seria um “país sério”, já que as leis e suas penas não seriam cumpridas, principalmente para os membros da elite política e econômica. Tanto a “pátria de chuteiras” como o “país do futebol” não são realidades naturais, mas “construções” exitosas com forte carga simbólica no país. E mais: são “construções” que reforçam a equação “futebol-pátria”.

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Mas como e por que esses epítetos surgiram e tiveram tanta repercussão na cultura e nos meios de comunicação no Brasil? A seleção não é a pátria. Sabemos disso. Porém, “fingimos” acreditar que ela assim seja durante as Copas do Mundo. É provável que o mundo todo “finja” acreditar que a Copa seja um “duelo entre nações”. Talvez aí resida o sucesso desse megaevento. Não obstante, queremos entender como o futebol ajudou na “construção” da identidade nacional brasileira. E, nesse sentido, nenhum período seria mais emblemático e singular de se estudar do que as Copas do Mundo. Neste livro, reunimos uma seleção de 15 pesquisadores do meio acadêmico para estudar nove Copas do Mundo e uma Copa das Confederações. A escolha das Copas – entre as 19 já disputadas – não foi fortuita, tendo obedecido aos seguintes critérios: a) classificação da seleção no torneio; e b) dimensão simbólica de seus resultados na imprensa e na sociedade brasileiras. Das Copas analisadas, em cinco o Brasil terminou campeão; em duas, a seleção terminou em segundo lugar; e as duas restantes foram escolhidas porque suspeitamos de que uma tenha inaugurado a “construção” da fundação simbólica desse esporte no país e a outra, colocado em xeque essa fundação. Todas essas Copas reunidas nos ajudam a entender melhor o país, seus dilemas e a formação do “nacional”. Os autores responsáveis pelos capítulos formam um “time” de pesquisadores que há muito tempo vem estudando o futebol como um meio para se entender a cultura brasileira. Mesmo sem saber o que cada um escreveu sobre as Copas, percebemos que os artigos possuem alguns fios condutores que os unem, dentre os quais destacamos: o artigo “Foot-ball mulato”, de Gilberto Freyre, escrito em 1938 no jornal Diário de Pernambuco; e um dito célebre de Nelson Rodrigues referente à Copa de 1950: o “complexo de vira-latas”. Se a cultura pode ser entendida como um “conjunto de textos”, conforme sentenciou o antropólogo Clifford Geertz ao

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estudar a briga de galos em Bali, o futebol, em tempos de Copa do Mundo, é um texto privilegiado para se entender o Brasil, suas questões e dilemas. Assim, o leitor encontrará aqui um capítulo introdutório, “Copas do Mundo e identidade nacional: um panorama teórico”, no qual apresentamos um panorama teórico acerca da relação Copas do Mundo e identidades nacionais, baseando-nos em algumas pesquisas sobre o tema, com o foco mais voltado para Brasil, Argentina e Uruguai. A seguir, em “1938: o nascimento mítico do futebol-arte brasileiro”, Camila Augusta Pereira e Hugo Lovisolo discutem a Copa do Mundo daquele ano, quando o país ficou em terceiro lugar e Gilberto Freyre escreveu no Diário de Pernambuco seu artigo “Foot-ball mulato”, que ficou famoso no meio acadêmico justamente por tentar alinhavar as singularidades de nosso suposto estilo de jogo. Para esses autores, “Foot-ball mulato” teria sido o primeiro texto de um intelectual em que se abordava uma identificação da forma e do estilo de futebol brasileiro com os traços culturais nacionais. Suas repercussões, junto com as crônicas do jornalista Mario Filho, deram origem à fundação simbólica do que entendemos hoje como “verdadeiro futebol brasileiro”. Em “Vitória épica e tragédia nacional em 1950: um contraponto entre o Diário Carioca e veículos da imprensa uruguaia”, tratamos da derrota da seleção na Copa do Mundo de 1950 e mostramos como a memória sobre a competição, estabelecida por permanências e “esquecimentos”, a partir de veículos de comunicação que narraram o torneio, aponta caminhos e questões que podem ser analisados comparativamente com outros jornais já estudados sobre a Copa realizada no Brasil. Em “Do complexo de vira-latas à ‘nossa’ Taça do Mundo”, José Carlos Marques, ao apresentar o significado da primeira Copa conquistada pelo país, remonta à derrota de 1950, ocasião em que se tornou célebre a referência ao “complexo de vira-latas”,

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expressão cunhada pelo dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues. A vitória nessa Copa teria sido celebrada de forma bastante ufanista, conforme a composição “A Taça do Mundo é nossa”, de Wagner Maugeri, Lauro Müller, Maugeri Sobrinho e Victor Dagô. De um pessimismo exacerbado, conforme indicava a expressão de Rodrigues, teríamos passado ao polo oposto, de um intenso ufanismo. A equação futebol-pátria se fazia mais presente do que nunca. Para tratar da segunda conquista mundial, Márcio Guerra e Filipe Mostaro, em “Copa de 1962 – a consolidação da pátria de chuteiras”, seguem o fio condutor a respeito da “sentença” de Nelson Rodrigues sobre o “complexo de vira-latas”. Após análise de material jornalístico, registram a consolidação das expressões “pátria de chuteiras” e “país do futebol” pela narrativa da mídia em 1962. O artigo de Freyre é retomado ao se discutir tanto a derrota em 1950 como o bicampeonato em 1962. Em “1970 – pra frente, Brasil: preparo da caserna, coração de chumbo e mente brilhante”, Antonio Jorge Gonçalves Soares e Marco Antonio Santoro Salvador, ao analisarem o tricampeonato e o período político do país à época, questionam-se sobre o que os teria unido (ambos os autores), além da repulsa que tinham pela ditadura, com aquela seleção vitoriosa e expressão da identidade do futebol e do Brasil. Ao mesmo tempo que analisam a carga simbólica da seleção de 1970, esmiúçam, por meio de material jornalístico, a escolha e a demissão do jornalista João Saldanha, comunista declarado, como técnico da seleção. A preparação física de ponta utilizada pela comissão técnica daquela seleção vai de encontro à imagem que fazemos dessa seleção como “gênios” da bola, que jogavam “por música”, como se o talento pudesse prescindir de treinamento. Em “1982: lágrimas de uma geração de ouro”, Leda Costa aborda uma das derrotas mais emblemáticas da história da seleção em Copas do Mundo. Ao compará-la com a de 1950, aponta

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uma diferença: “as lágrimas da derrota de 1950 se relacionavam à decepção e à suspeita de que o Brasil havia perdido uma oportunidade ímpar de provar ao mundo e a si mesmo que era capaz de grandes realizações e conquistas”. Já em 1982, teríamos chorado com a seleção, “lamentando um infortúnio que sobre ela se abateu” e que “condenava uma geração de ouro, talentosa e considerada merecedora das glórias do futebol”. Nessa derrota, ou logo após, debateu-se muito sobre o êxito de nosso “suposto estilo”. O artigo de Freyre, implícita ou explicitamente, estava mais vivo do que nunca. O debate a respeito do estilo vem à tona com o tetracampeonato, analisado por Fausto Amaro no texto “Copa de 1994: os múltiplos discursos autorizados sobre a seleção campeã menos amada da história”. Ao tratar dessa seleção, o autor utiliza material jornalístico e nos mostra como, na imprensa esportiva, ela teria tido a pior representação possível do suposto estilo de jogar brasileiro e, por isso, teria demandado “uma mudança no discurso e uma valorização do esforço e do jogo coletivo daquele grupo”, apesar de Romário ter sido considerado uma espécie de “bastião de brasilidade responsável pelo triunfo”. Também aqui, o artigo de Freyre, implícita ou explicitamente, foi a sombra que acompanhou os escritos, os debates e as reflexões. Em “1998: o colapso da arrogância nacional”, Édison Gastaldo se incumbiu de falar da derrota para a França na final dessa Copa, com base na análise de narrações esportivas de cinco emissoras de televisão. A derrota por 3 a 0 tinha sido – e segue sendo até hoje – a maior de todos os tempos (em termos de placar). Gastaldo nos mostra como os locutores trataram de consolar os telespectadores. Nesse “consolo”, a questão da “honra nacional” teria sido “a tônica de várias das falas, que garantiram unanimemente que esta em nada havia sido abalada, em termos como ‘respeito’, ‘brasilidade’ e ‘derrota honrosa’”. No discurso da imprensa, a “pátria de chuteiras” e o “país do futebol” se mantinham inabalados.

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Em “2002: da Família Scolari ao topo do mundo – a contradição entre o local e o global no futebol contemporâneo”, Francisco Ângelo Brinati e João Paulo Vieira Teixeira analisam o pentacampeonato e nos mostram como nessa Copa e nessa vitória, mesmo tendo os efeitos da globalização tão presentes, ainda foi possível ver traços de construção de identidade nacional ao se relacionar o time do técnico Luiz Felipe Scolari a “equipes historicamente vitoriosas do país, por meio de uma memória afetiva, ou a símbolos nacionais, como o conceito de futebol-arte”. Para os autores, a derrota em 1998 teria deflagrado uma das maiores crises do futebol brasileiro. A vitória da seleção em 2002 retomaria o discurso do futebol-arte, iniciado com Freyre em 1938. Finalmente, em “Salve a seleção! Mídia, identidade nacional e Copa das Confederações 2013”, Carmelo Silva e nós nos propomos a analisar as narrativas em torno da Copa das Confederações 2013 como um indicativo de questões que podem ser levantadas na Copa do Mundo de 2014. Questionamos se ainda seríamos o “país do futebol” e se a seleção ainda é vista como “a pátria de chuteiras”. Após uma descrição sobre a história da Copa das Confederações, dos preparativos para esse evento e para a Copa do Mundo no país, analisamos os significados possíveis das manifestações populares ocorridas durante sua realização e levantamos algumas questões relativas ao Mundial. Assim, este livro convida o leitor a ter um olhar mais atento para as Copas do Mundo. Não se trata apenas de uma competição futebolística. As Copas funcionam como metalinguagem. Ao falarmos da seleção, de suas conquistas e derrotas, estamos falando também do Brasil e de seus dilemas. Ronaldo Helal Alvaro do Cabo

Copas do Mundo e identidade nacional: um panorama teórico Alvaro do Cabo Ronaldo Helal

As Copas do Mundo de futebol, ao longo de sua história, têm contribuído para a formação e o reforço da identidade dos países, o que pode ser verificado a partir de análises sobre as narrativas da imprensa nas conjunturas históricas de cada Copa. Nosso objetivo, neste artigo, é apresentar um panorama teórico, baseando-nos em algumas pesquisas sobre o tema, com o foco mais voltado para Brasil, Argentina e Uruguai. Partimos do pressuposto de que as investigações sobre o discurso da imprensa esportiva em períodos de Copas do Mundo nos ajudam a entender melhor a relação entre imprensa e formação de identidades nacionais por meio do esporte. As investigações acerca do processo de construção da memória nos torneios mundiais de futebol, bem como das múltiplas representações geradas pela imprensa esportiva, a partir dos supostos “estilos de jogo” das seleções mais tradicionais, podem nos ajudar nas reflexões propostas. Segundo o historiador Jacques Le Goff (1984, p. 46), a memória, no mundo contemporâneo, tem uma relação direta com a identidade e passa por uma instrumentalização de poder. Nesse

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sentido, Le Goff sinaliza as disputas existentes entre os diversos atores sociais para transformarem-se em “senhores” da memória. As lembranças regularmente acionadas e os fatos “esquecidos” fazem parte de um embate dialético travado para a construção de uma memória coletiva em que os meios de comunicação têm papel crucial: Tornar-se senhor da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva (1984, p. 13).

Sergio Souto, ao trabalhar com a construção da memória do goleiro Barbosa pela imprensa brasileira após a final da Copa do Mundo de 1950, destaca o papel dos jornais como senhores da memória. A elaboração posterior da culpa do arqueiro, que supostamente teria falhado no segundo gol, passa por disputas específicas e reconfigurações ao longo dos anos pelos diversos atores que disputam essa posição de “senhores da memória”. Sobre esse papel, Souto escreve: Entre a dialética lembrar e esquecer, os jornais constituem-se como um dos senhores da memória da sociedade, aumentando seu campo de atuação e, sobretudo, seu poder. É preciso considerar ainda que o jornalista, ao selecionar fatos, relegar outros ao esquecimento, escolher a forma de sua narrativa, e ao definir o lugar na página a ser ocupado pelo texto, dirigindo um olhar subjetivo sobre o acontecimento, mantém como essencial nesse trabalho a dialética lembrar e esquecer. Aos relatos que devem ser perenizados, imortalizados pela prisão da palavra escrita, contrapõem-se outros que devem ser relegados ao esquecimento (2002, p. 3, grifos do autor).

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Em outro trabalho, o autor investiga o papel de três cronistas esportivos conhecidos nacionalmente (Fernando Calazans, Juca Kfouri e o ex-jogador Tostão) na manutenção de uma memória futebolística brasileira, durante a Copa do Mundo de 2002, focada na representação do estilo de jogo conhecido como futebol-arte. Esses cronistas e suas crônicas se oporiam a outra corrente, considerada mais pragmática, que naturalizaria as transformações da mercantilização do esporte oriundas das mudanças ocorridas pelo processo de globalização em detrimento dos valores “tradicionais”. Nesse embate, os processos de lembranças e esquecimentos possuem papel destacado. A partir da disputa no campo da imprensa esportiva de qual corrente seria responsável pela perpetuação da memória futura acerca da Copa do Mundo de 2002, Souto mostra as tensões existentes nos processos de elaboração e ressignificações da memória das Copas. Leda Costa (2008), ao analisar a trajetória das derrotas com os “vilões” da seleção brasileira em Copas do Mundo a partir da imprensa esportiva, revela que a construção da memória das principais partidas, sejam vitórias, derrotas ou, mais especificamente, os personagens envolvidos, passa por disputas no campo analisado. No entanto, ela ressalta que não se trata de uma via de mão única, como uma agulha da Teoria Hipodérmica,1 visto que os espectadores/leitores têm um papel fundamental na apropriação das ideias e nos processos de ressignificação ocorridos posteriormente. Não podemos concordar que existe uma aceitação tácita das “verdades” construídas pela imprensa pelo público envolvido.

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A Teoria Hipodérmica diz respeito à influência dos meios de comunicação em massa, que é exercida, sobretudo, por meio de propagandas dos regimes totalitários e que, segundo os estudiosos, seria imposta diretamente, sem nenhum filtro aos receptores. Para maiores informações, ver Wolf (1987).

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Trata-se de uma relação de troca em que a mediação da imprensa é muito importante, como salienta bem a autora: As narrativas da derrota e os perfis de vilão surgidos e divulgados pela imprensa são um interessante veículo que pode nos dar acesso ao que significa ser derrotado no Brasil, já que as interpretações lançadas sobre o mau desempenho da seleção são, muitas vezes, permeadas de um imaginário da derrota que ultrapassa o terreno futebolístico. Questões relativas à identidade nacional também surgem a partir das reações que se têm toda vez que o selecionado nacional não conquista a Taça do Mundo. Os vilões e as narrativas da derrota produzidas pela imprensa também são uma boa oportunidade para pensarmos o papel que os meios de comunicação desempenham na relação que estabelecemos com os esportes e, especificamente, com o mais popular do país. Afinal, tanto a vitória quanto a derrota podem ter seu efeito mais que redobrado dependendo do tipo de significado com os quais se reveste um jogo. E é extremamente relevante o papel da imprensa esportiva nesse processo de atribuição, produção e circulação de sentidos que gravitam no universo futebolístico (2008, pp. 9-10).

Se em algumas derrotas a carga simbólica é grande, nas grandes vitórias a relação de construção da memória e formação identitária também seria muito forte. Marco Santoro e Antonio Jorge Soares (2009) investigaram a imagem da seleção brasileira de 1970, que se tornou um dos principais símbolos da ideia de futebol-arte no país. Ao comparar os jornais de 1970 com periódicos de 1998 e 2002, que rememoram aquela seleção, os autores identificaram que um elemento fundamental para o bom rendimento da equipe, que teria sido a excelente preparação física, é praticamente ignorado nas reportagens que remetem à memória daquela Copa. Enquanto nas reportagens de 1970 são feitas muitas referências ao trabalho físico desenvolvido por especialistas, como o

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professor Lamartine Pereira da Costa (do Centro de Esportes da Marinha), responsável pelo programa de “altitude training” do Planejamento México,2 junto com membros da EsEFEx (Escola Superior de Educação Física do Exército), como Manuel Tubino, Cláudio Coutinho, Carlos Alberto Parreira, entre outros,3 nas matérias analisadas pelos autores em 1998 e 2002, a preparação física dos atletas raramente é mencionada, sendo o mérito atribuído quase exclusivamente à técnica apurada dos jogadores, à plasticidade das jogadas do chamado futebol-arte brasileiro. As narrativas atuais esquecem fatos centrais ocorridos durante a vitoriosa campanha da Copa de 70. Observaremos, a seguir, que essas matérias jornalísticas esquecem a preparação física do Planejamento México. Elas esquecem os êxitos ligados aos avanços científicos e tecnológicos no campo do esporte e rememoram aspectos que reforçam as características do que se acredita ser a essência do brasileiro. Essa figura explicita os argumentos perante as edições que a imprensa esportiva constrói em relação ao futebol-arte e que vão ao encontro do reforço identitário nacional. As memórias reeditadas ‘enquadram’ as memórias em relação às demandas do presente (p. 51).

O conceito desenvolvido por Michael Pollack (1989) de “enquadramento da memória” diz respeito à relação que existe entre a construção da memória e a manutenção de identidades. 2

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O Planejamento México é o nome dado à capacitação física dada à equipe brasileira antes da Copa de 1970. Foi coordenado pelo professor Lamartine, contou com diversos especialistas e foi fundamental para a preparação da equipe e a aclimatação na altitude. Talvez a conjuntura histórica do período militar possa ter contribuído para enfatizar os métodos da preparação da seleção e a importância dos oficiais envolvidos, mas o mérito da preparação física é inegável e tanto sua afirmação quanto seu esquecimento representam momentos de “enquadramento da memória”.

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No “jogo” das representações identitárias, o fio condutor acaba sendo pautado pelas necessidades de uma memória coletiva que reproduza os valores necessários ao fenômeno de identificação comum. O “esquecimento” do trabalho feito pela comissão técnica no que concerne à preparação dos atletas na Copa de 1970 não teria sido por acaso. Se a seleção de 1970 não tivesse vencido todas as partidas, feito gols considerados “maravilhosos” e conquistado o tricampeonato, um discurso exacerbado e, às vezes, excessivamente ufanista do futebol brasileiro como “mágico” e “único” não teria ressonância. Porém, essa seleção tornou-se emblemática tanto no Brasil quanto no exterior muito mais por seu caráter “dionisíaco”. O fato de os jogadores brasileiros terem sido aclamados, à época, como os melhores preparados fisicamente é mencionado raramente. Na Argentina, por exemplo, Ronaldo Helal (2007) e Helal e Hugo Lovisolo (2007), ao investigarem o olhar da imprensa local sobre o futebol brasileiro, identificaram que, apesar do recente acirramento da rivalidade entre as duas potências futebolísticas, a equipe de 1970 também é considerada um paradigma do futebol-arte, ou do “jogo bonito”, como regularmente o jornalismo esportivo argentino se refere ao futebol brasileiro. É importante ressaltar também que a seleção brasileira de 70 é tratada nos jornais argentinos como ‘a melhor seleção de todos os tempos’. Entre as capas históricas da revista El Gráfico, há uma com a foto desta seleção, com a seguinte legenda: ‘el inolvidable equipo de México 70’. E no jornal Olé, o que mais provoca a seleção brasileira, a equipe de 70 é tratada como ‘el equipo maravilha’ e ‘mejor equipo de todos los tiempos’ (Helal e Lovisolo, 2007, p. 171).

Além disso, os autores identificam que, na referida Copa, os jornais argentinos valorizavam o Brasil por ele ser um representante da escola sul-americana, além do Uruguai. Os argentinos,

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que não participaram do torneio por terem sido desclassificados nas eliminatórias pelos peruanos, aparentemente apoiavam as vitórias dos representantes do continente. Curiosamente, identificamos que no Uruguai o Brasil também foi visto como representante da escola sul-americana contra a europeia na final de 1970. Com a eliminação da seleção uruguaia pelo Brasil nas semifinais por 3 a 1, após um processo de acionamento da memória de 1950 no veículo analisado e reclamações sobre a alteração feita pela FIFA quanto ao local de realização da partida,4 o teor das reportagens era amplamente favorável aos brasileiros, conforme esta observação: É importante destacar que nem mesmo a indignação uruguaia quanto à mudança da localização da partida semifinal ou a visão externa de que a seleção de 1970 estaria vingando a derrota de 1950 fizeram com que os jornalistas do El País deixassem de enaltecer o futebol brasileiro elevando-o a um grandioso representante da escola sul-americana, forjando, assim, uma identidade futebolística comum (Helal e Cabo, 2009a, p. 110).

Ou seja, a seleção brasileira de 1970 tornou-se mitológica – um emblema do que seria o suposto futebol-arte – também fora do país, inclusive em nações que rivalizam conosco. No entanto, chamamos a atenção para o fato de que, ao rememorarmos aquele time, a imprensa deliberadamente “esquece” o trabalho técnico e 4

O artigo “Jornalismo esportivo e o acionamento da memória: o ‘Maracanazo’ 20 anos depois” analisou o discurso das reportagens do jornal El País durante a Copa de 1970, enfatizando o processo de acionamento da memória da final de 1950 na seleção das reportagens publicadas nos dias anteriores à disputa da semifinal. O jornal uruguaio reclamou bastante da mudança da partida, que a princípio seria disputada na Cidade do México, para Guadalajara, onde a delegação brasileira se encontrava. É emblemático que, segundo Helal, os jornais argentinos em 1970 também ressaltassem esse fato, enquanto no Brasil ele praticamente caiu no esquecimento.

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a exaustiva preparação física à qual os jogadores foram submetidos. Ao falarmos de “ciência” e de “preparação física”, estaríamos diminuindo o “talento” daquela seleção?5 E o que seria essa escola sul-americana repetida nos jornais argentinos e uruguaios? Como surgiria a representação dos estilos de jogo associados à localização geográfica e às supostas características dos povos ou de determinadas camadas sociais? As primeiras décadas do século XX foram fundamentais para o desenvolvimento do futebol na América do Sul e em toda a Europa, porém, no caso específico dos países do Rio da Prata e do Brasil, a representação dos estilos de jogo futebolísticos adquire conotações identitárias em conjunturas históricas específicas, perpetuando mitos e estereótipos que têm ressonância até os dias atuais. No caso do futebol argentino, por exemplo, Eduardo Archetti (2003) descreve a construção da imagem do futebol criollo apoiado nas gambetas6 e na técnica da improvisação lúdica dos filhos de imigrantes europeus, excluindo propositalmente os descendentes de ingleses. Essa tese teria sido difundida, em grande parte, a partir da década de 1920 pela revista El Gráfico e pelos cronistas Borocotó e Chantecler. O mito fundacional do futebol argentino propõe o suposto estilo criollo como técnico, lúdico e individual e o contrapõe a uma suposta forma de jogo britânica, que seria mais formal, coletiva e baseada na tática. Apesar de pequenas distinções,7 o discurso sobre o futebol criollo nessa conjuntura estende-se, em muitos momentos, aos 5

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Ver Helal (2003), que, ao comparar as biografias de Zico e Romário, identifica certa tendência, no Brasil, de celebrar o êxito, supostamente, sem a necessidade de trabalho e “esforço”. Modo como os argentinos se referem ao drible. Um exemplo está na oposição feita pelo cronista Chantecler na revista El Gráfico, segundo o qual os argentinos, mais rápidos e agressivos, jogariam com o coração, enquanto os uruguaios, mais calmos e românticos, jogariam com a cabeça (Archetti, 2003, p. 103).

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uruguaios, estabelecendo o mito da escola rio-platense que estará presente na imprensa uruguaia em 1930 e até em 1950, fortalecendo uma oposição a um suposto estilo de jogo “europeu”. Essa visão é reforçada pela heteroimagem da imprensa internacional, segundo Archetti, desde a primeira vitória olímpica uruguaia em Colombes (França, 1924) e a excursão do Boca Juniors um ano depois, e é consolidada após as finais de 1928 em Amsterdã e a primeira Copa do Mundo, em 1930, disputada entre os vizinhos do Prata: La victoria uruguaya en los Juegos Olímpicos de Paris en 1924 y la exitosa gira de Boca Juniors –un equipo de primera división– a través de varios países europeos en 1925, confirmaría la existencia de un fútbol ‘rioplatense’ diferente del fútbol europeo e inglés. Hasta 1925, año de la gira de Boca, los argentinos eran más ingleses que los uruguayos incluso en la percepción de los mismos jugadores uruguayos (El Gráfico, n. 190, 1923:4, y n. 205, 1923:15). Los europeos contribuyeron a este cambio a través de su propia definición del fútbol ‘rioplatense’ practicado tanto por argentinos como por uruguayos (2003, p. 95).

Em ambos os países platinos, a identificação com um estilo de jogo rio-platense, mais técnico, que utilizaria o drible ou a gambeta criolla, tem como símbolo de oposição o inglês, que, durante grande parte do século XIX e até a Primeira Guerra Mundial, exercia enorme influência econômica em toda a América do Sul, mais acentuadamente nos países do Prata. Todavia, apesar das referências a um futebol comum entre os vizinhos, a construção do que seria um estilo artístico argentino de se praticar o futebol está diretamente relacionada à exaltação de determinada camada social no âmbito específico do campo das masculinidades, conforme demonstra Archetti, e à prática nos bairros pobres e pequenos campos de várzea.

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O processo de diferenciação do jogo inglês, que serve como modelo de oposição para a definição de um estilo próprio, é atribuído aos filhos dos imigrantes, sobretudo espanhóis e italianos, que miticamente comungariam de valores “nacionais” argentinos, como a paisagem dos pampas, a alimentação à base das saborosas carnes, o ethos do gaúcho, conforme assinala o autor: El fútbol en la Argentina se considera opuesto a la disciplina escolar. El proceso de criollización implicó un viraje de la escuela a la calle y de lo británico a los nuevos híbridos, productos de la inmigración no británica. En este sentido, y contra los valores de coraje y fuerza de voluntad, los jugadores de fútbol argentino representan casi lo opuesto: fueron descritos como sensibles, artísticos y grandes improvisadores. En el ámbito internacional del fútbol en la década de 20, los jugadores argentinos representaban algo distinto para los europeos, como ya lo he explicado antes: la encarnación de la gambetta y el individualismo extremo. El estereotipo establecido del hombre moderno fue de esta manera desafiado por los híbridos argentinos (2003, p. 109).

No que concerne ao futebol uruguaio, identificamos que a construção de um estilo de jogo próprio também está diretamente ligada às décadas de 1920 e 1930, constituindo seu ápice na vitória da Copa de 1950, conhecida como “Maracanazo”. Rafael Bayce assinala que a construção de uma autoimagem “neomítica” de picardia criolla, além da capacidade natural de improvisação, reforçadas externamente pela imagem exógena da imprensa internacional, que colocava os uruguaios como superiores em virtude de suas conquistas olímpicas e do primeiro Mundial, em 1930, é desenvolvida e fortalecida pelos meios de comunicação: Es este uno de los tantos ejemplos de construcción de representaciones colectivas a partir de una mezcla de narrativas

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épicas periodistas impuestas como explicaciones diletantes en la opinión pública. La influencia de los mass-media no es nueva; siempre construyó el inconsciente colectivo y los estereotipos creando y combinando autoimágenes y heteroimágenes. Es un apasionante proceso de seguimiento discursivo y narrativo que el Uruguay se debe, tanto desde sus periodistas especializados como de sus científicos sociales (2003, p. 168).

O que distinguiria o futebol uruguaio do argentino dentro da decantada escola rio-platense seriam, segundo Bayce, as representações geradas pela garra “charrúa” e a mística do uniforme da seleção nacional, conhecido como “celeste”. A supervalorização desses elementos fica evidente nas reportagens e crônicas relativas tanto à Copa de 1930 quanto à de 1950,8 fato que corrobora estas observações: Si el estereotipo endogenerado de la ‘picardía’ nos diferenciaba como rioplatenses del resto del mundo en la autoimagen adoptada pela opinión pública desde la épica narrativa periodística, la garra ‘charrúa’ o ‘celeste’ (mientras que los charrúas eran los más famosos e indómitos aborígenes que habitaban el ahora Uruguay, el celeste es el color de la camiseta nacional y uno de los de la bandera) era nuestra ‘diferencia específica’ con los argentinos, más allá de la común picardía que nos distinguía del resto del mundo futbolístico. Esta fue otra autoimagen endogenerada que se exportó con éxito y que contribuyó a nuestro atraso técnico, táctico y de entrenamiento que tan caro costó reconocer y que no terminamos de superar, aunque también es cierto que contribuyó a lograr triunfos importantes en lo deportivo, no sólo futbolísticos (2003, pp. 168-9).

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Ver, a respeito, Cabo (2010, 2012) e Helal e Cabo (2009b).

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No futebol brasileiro, a idealização do futebol-arte, representação que permanece forte até os dias atuais quando nos referimos à seleção brasileira, tem seu embrião em um artigo de Gilberto Freyre, escrito para o jornal Diários Associados de Pernambuco durante a Copa do Mundo de 1938, na França. Seu artigo, “Foot-ball mulato”, atribui características dionisíacas ao estilo de jogo brasileiro, que estariam diretamente relacionadas aos elementos culturais de um povo miscigenado. Criatividade, espontaneidade, malemolência seriam atributos do futebol brasileiro, oriundos da mistura das raças que formariam a nação: Acaba de se definir um estylo brasileiro inconfundível de foot-ball; e esse estylo é mais uma expressão do nosso mulatismo ágil em assimilar, dominar, amollecer, em dansa, curvas ou em musicas technicas européias ou norte-americanas mais angulosas para o nosso gosto: sejam ellas de jogo ou de architectura (Diário de Pernambuco, 15 jun. 1938).

É fundamental destacar a conjuntura histórica brasileira do período varguista do Estado Novo e a importância do pensamento freyreano para a construção de uma nova visão do povo brasileiro. Desde a publicação da obra Casa-grande e senzala, em 1933, as discussões propostas por Freyre sobre a integração racial brasileira e o papel do negro na sociedade serão fundamentais para se estabelecer um novo horizonte nas formas de se pensar o Brasil. Segundo o historiador Denaldo Alchorne de Souza, os trabalhos de Gilberto Freyre possibilitaram uma visão original dos fundamentos do povo brasileiro. Neles, o negro, o índio e o colonizador português sempre tiveram fundamental importância numa sociedade ajustada às condições do meio tropical e da economia latifundiária. Sua mensagem, de um Brasil antirracista e democrático, representou um divisor de águas no processo cultu-

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ral brasileiro, influenciando a ideologia oficial do Estado Novo ao compor a figura da democracia racial (2008, p. 187).

Especificamente sobre o estilo de jogo brasileiro e a visão de Freyre, Bernardo Buarque de Hollanda demonstra a oposição estabelecida a partir do artigo escrito na Copa de 1938 e publicado posteriormente em Sociologia (1943): As observações sobre a Copa do Mundo de 1938 proporcionaram ao autor de Casa-grande e senzala a identificação de um estilo autêntico de se jogar futebol no país. Em notas de seu livro Sociologia (1943), Gilberto Freyre contrapõe o futebol-arte brasileiro ao futebol científico europeu. Ao amoldar o esporte bretão ao jeito típico de jogar do mulato, o brasileiro privilegiou a qualidade individual em detrimento da organização coletiva. A diferença baseada na habilidade e na surpresa seria a chave decifradora do sucesso brasileiro em partidas internacionais (2004, p. 62).

No imaginário esportivo, a influência freyreana também é profundamente marcante na obra do jornalista Mario Filho, O negro no futebol brasileiro. Além de serem amigos, Gilberto Freyre escreve o prefácio do comentado e atualmente polêmico livro. A importância de O negro no futebol brasileiro é notória em diversos trabalhos jornalísticos e acadêmicos, propagando, muitas vezes, uma mítica ascensão do negro na sociedade. Porém, a partir das críticas estabelecidas por Antonio Jorge Soares, a utilização da obra como fonte histórica fidedigna ensejou uma tensão no campo acadêmico dos estudos sobre o futebol no Brasil e possibilitou uma diversificação na busca de objetos e, sobretudo, fontes. Em A invenção do país do futebol: mídia, raça e idolatria, livro organizado por Helal, Soares e Lovisolo, o debate se mate-

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rializa com visões contrapostas. Soares critica aqueles aos quais chama de “novos narradores”, por terem sido pouco criteriosos ao lidar com a obra e interpretá-la como fonte fidedigna da história: Os cientistas sociais que utilizam a obra de Mario Filho a qualificam de verdadeira, objetiva e completa. Parecem anunciar que, de fato, pouco se teria a dizer sobre o período coberto pela obra em questão. Contudo, a utilização acrítica de dados e interpretações do NFB9 faz com que os ‘novos narradores’ acabem por incorporar o viés nacionalista que inspirou Mario Filho, embora desejem atacar a democracia racial e acentuar o racismo ou a segregação na sociedade brasileira. Deixam de considerar que o NFB e seu autor sofreram a influência dos anos 30 e 40, marcados sobretudo pela mentalidade nacionalista e pela esperança da conciliação racial (2001, p. 15).

Helal e Gordon contra-argumentam Soares, apesar de concordarem com algumas críticas apontadas: É fundamental, como faz Soares, perceber que a identidade nacional é uma construção que o discurso intelectual oficial ‘essencializa’. Porém, o fato de que essa identidade é ou pode ser uma invenção que tem o ‘Estado-nação’ por trás não suprime o fato que ela é ‘real’, depois que instaurada, que ela tem uma eficácia (2001, pp. 67-8).

Nesse sentido, o debate a respeito da clássica obra do jornalista gerou um crescimento em torno da temática e a possibilidade de estabelecer alguns pontos comuns necessários a uma pesquisa acadêmica no âmbito do futebol:

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Abreviação de O negro no futebol brasileiro.

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a. a busca de uma diversidade e maior zelo com a utilização de fontes, inclusive com a análise do livro O negro no futebol brasileiro; b. atenção com as representações coletivas geradas, sobretudo pelos meios de comunicação, e sua influência na sociedade independentemente de uma veracidade factual; c. importância de um enquadramento teórico mais aprofundado nas diferentes abordagens possíveis sobre o tema. Em interessante artigo sobre a cobertura midiática das Copas do Mundo de 1974 a 2002, Andrew Tudor aponta os problemas de uma construção acrítica de estereótipos esportivos futebolísticos associados à identidade nacional que são exacerbados nesses períodos: The stereotyping processes themselves exhibited both individual and collective dimension. Particular players were constructed (and, in changing circumstances, reconstructed) by reporters as bearing certain attributes, while teams were accorded distinctive stylistics traits presumed to derive from their histories and national character (2006, p. 223).10

Ricardo Pinto dos Santos, ao discutir as relações entre futebol, racismo e modernidade no Rio de Janeiro e em Buenos Aires no período de 1897 a 1924, argumenta que o fato de o futebol ter participantes de todas as classes sociais foi decisivo na “construção” da identidade nacional: “Para que uma identi10

Os próprios processos de estereotipização exibem, ao mesmo tempo, dimensões coletivas e individuais. Jogadores em particular são construídos (e, nas mudanças circunstanciais, reconstruídos) pelos repórteres como se possuíssem certos atributos, enquanto os times são presumidamente entendidos com traços estilísticos distintos que derivam de suas histórias e do caráter nacional (tradução nossa).

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dade nacional fosse gerada, era necessário um esporte que tivesse participantes de todas as camadas sociais. O futebol era esse esporte” (2012, p. 104). Muito já se especulou sobre as razões da popularidade desse esporte. Todavia, mais importante do que investigar a causa dessa popularidade tem sido observar como o futebol passou a ser utilizado para “construir” a “nação”, principalmente em períodos de Copas do Mundo. Pablo Alabarces, ao estudar o caso argentino em Fútbol y patria: el fútbol y las narrativas de la nación en la Argentina, mostra como esse esporte foi um forte operador de nacionalidade, construtor de narrativas eficazes para a ideia de uma identidade nacional específica que varia segundo a conjuntura histórica: En la historia de la invención de una identidad nacional argentina, como intentaré demonstrar, el fútbol funcionó a lo largo del siglo XX como un fuerte operador de nacionalidad, como constructor de narrativas nacionalistas pregnantes y eficaces, en general con un alto grado de coherencia con las narrativas estatales de cada período. Esta coherencia –esta relación– merece detenernos un momento. El fútbol no es una narrativa estatal hasta que arribemos, como veremos, a las etapas dictatoriales; se trata de prácticas paraestatales, en un universo de medios de comunicación de carácter eminentemente privado, que sin embargo tributan a una hegemonía construida principalmente por los aparatos estatales. En las dictaduras, la supresión de la autonomía de la sociedad civil –de su capacidad de producción discursiva por fuera de la palabra autoritaria– reduce esta distancia a cero (2008, p. 27, grifos do autor).

Alabarces pontua a relação das narrativas de nacionalidade do futebol com os períodos ditatoriais na Argentina. Essa relação sempre se evidenciou mais em períodos de Copas do Mundo, quando todos os envolvidos com o evento parecem “fingir” que

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acreditam que a seleção representa a nação ou, ainda, que a seleção é a nação. O autor deixa claro que o futebol não é a pátria, apesar das tentativas da imprensa de trabalhar com essa equação (futebol-pátria). Sua obra é basilar no que tange ao referencial teórico para analisar as relações entre o futebol e a construção de identidades nacionais, principalmente no âmbito argentino. É fundamental enfatizar também os conceitos desenvolvidos por Eric Hobsbawm e Terence Ranger (1997) sobre a “invenção das tradições” e por Benedict Anderson (2008), que aproxima a ideia de nação a uma “comunidade imaginada”. Hobsbawm assinala a importância das tradições inventadas para a organização dos Estados nacionais, no que concerne à legitimação das identidades nacionais, distinguindo duas espécies, invenções políticas e sociais da tradição, conforme os exemplos a seguir: O termo tradição inventada é utilizado num sentido amplo, mas nunca indefinido. Inclui tanto as ‘tradições’ realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar num período limitado e determinado no tempo – às vezes coisa de poucos anos apenas – e se estabeleceram com enorme rapidez. A transmissão radiofônica real realizada no Natal da Grã-Bretanha (instituída em 1932) é um exemplo do primeiro caso; como exemplo do segundo, podemos citar o aparecimento e evolução das práticas associadas à final do campeonato britânico de futebol (1997, p. 9).

É importante esclarecer que uma “tradição inventada” é um conceito que se distingue do “costume” nas sociedades “tradicionais” e que se caracteriza pela repetição e invariabilidade de um passado real ou forjado. No exemplo mencionado, a tradição radiofônica foi criada institucionalmente pelo governo inglês, configurando uma espécie política, enquanto as práticas presentes

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na final do campeonato britânico ocorreram a partir de manifestações sociais. Assim, as Copas do Mundo, desde sua primeira edição, são eventos potencialmente geradores de tradições inventadas políticas – os desfiles de inauguração, a construção de grandiosos estádios, a representação da nação por 22 atletas – e de tradições sociais – os estilos de jogo e suas supostas correlações com os povos, as potências tradicionais (países com camisa) e múltiplas possibilidades ao longo da história das Copas em um torneio cada vez mais espetacularizado. Essa relação específica de potencialização da identificação com a nação nos períodos de Copas do Mundo pode ser mediada pelo conceito de Anderson de comunidades imaginadas: Assim, dentro de um espírito antropológico, proponho a seguinte definição de nação: uma comunidade política imaginada – e imaginada como intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana. Ela é imaginada porque mesmo os membros da mais minúscula das nações jamais conhecerão, encontrarão ou sequer ouvirão falar da maioria de seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles (2008, p. 32).

No período das Copas, uma catarse coletiva parece atingir países como o Brasil, onde o futebol é representativo. Quantos slogans e músicas ufanistas com estrofes emblemáticas – “90 milhões em ação, pra frente, Brasil” – ocorrem tanto em períodos de ditadura militar quanto, mais recentemente, em pleno governo democrático exercido pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Vide o conhecido bordão cantado nos estádios e nas ruas: “Sou brasileiro com muito orgulho, com muito amor”. Mesmo com todo o processo de globalização e um possível esmaecimento da identificação com a seleção nas últimas Copas,

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segundo observa Helal (2010), no período dos torneios, essas comunidades imaginadas parecem ressurgir das cinzas, como Fênix. Na primeira metade do século XX, a formação recente dos Estados nacionais latino-americanos e a necessidade de instrumentos de identificação nacional podem ter influenciado de maneira mais forte a construção de estereótipos relativos ao jogo que transcendiam o domínio esportivo e marcavam a realização de grandiosos eventos. Enquanto no Uruguai as bases desportivas da identificação com a nação remontam às glórias da década de 1920, como assinalam Daniela Bouret e Gustavo Remedi (2009, pp. 294-5), a partir dos anos 1930, no Brasil e na Argentina principalmente, as práticas esportivas passaram a ser objeto de intensa propaganda política; o desenvolvimento dos meios de comunicação, por meio do crescimento das transmissões radiofônicas e da proliferação de jornais, possibilitou uma aproximação maior dos cidadãos com o esporte e a ideia de nação proposta por seus governantes. O historiador Maurício Drummond, ao comparar as práticas esportivas e a propaganda política nos regimes de Getúlio Vargas e Juan Domingos Perón, identifica a importância atribuída ao esporte na construção de um vínculo da população com a nação. Ambos se utilizaram bastante do rádio, de aparições em espetáculos esportivos e de órgãos públicos específicos, como o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), no Brasil, e a Secretaria de Imprensa e Difusão, na Argentina. Sobre a propagação de concepções identitárias para as massas, o autor assinala a importância da mídia: Dessa forma, se faz necessário indagar como estas concepções de identidade foram difundidas nas massas. Os meios de comunicação massivos desempenharam um papel fundamental. A imprensa, o rádio e o cinema permitiram que cidadãos das mais diversas regiões do país se identificassem através de uma vivência

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cotidiana de nação. E tanto o governo de Juan Perón como o de Getúlio Vargas tiveram uma grande preocupação com o controle dos meios de comunicação e com sua utilização efetiva como difusor da propaganda política do regime (2008, p. 53).

No estudo de Drummond, verificamos que tanto a mídia quanto as práticas esportivas são importantes elementos canalizadores de identidades nacionais. Considerações finais Com a influência dos meios de comunicação desde as primeiras décadas do século XX, e, destarte, as teorias apocalípticas do futebol como ópio popular, o futebol se consolidou em quase todo o mundo como importante elemento cultural. Assim, as Copas transformaram-se em megaeventos ritualísticos cujo espetáculo é assistido por cerca de um bilhão de pessoas, mobilizando recursos econômicos e políticos que afetam os “jogos” identitários mesmo em tempos de padronização cultural e questionamento dos Estados nacionais. Para Le Goff (1984), a relação entre memória coletiva, história e mídia é intensificada a partir da contemporaneidade, e podemos afirmar que as Copas do Mundo se caracterizam como eventos que influenciam diversas sociedades e se retroalimentam a partir de representações coletivas. A cada quatro anos, a metáfora de que o mundo para durante as Copas parece cada vez mais concreta, ainda mais em países nos quais a identificação coletiva nacional passa também pelo futebol, como Argentina, Brasil e Uruguai. A construção, pela mídia, de representações coletivas que se ocupam, sobretudo, com os propagados “estilos de jogo” de cada nação cria mitos que transcendem as gerações e se afirmam como verdades filosóficas absolutas que necessitam, cada vez mais, ser

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questionadas e refletidas, pois, no máximo, são simulacros de um discurso específico de uma época distante, mas que, como catequese dominical, são doutrinas que se espalham ao longo das Copas e pela memória coletiva, indiscriminadamente, por diversos órgãos da imprensa. Seria o futebol-arte uma consequência da garra charrúa que se mesclou com a viveza criolla e adotou o dribbling escocês, ou tudo é mera representação pavimentada nas memórias coletivas nacionais e debatida insanamente nas mesas-redondas televisivas e nos cadernos de esporte dos principais periódicos? Referências ALABARCES, P. Fútbol y patria: el fútbol y las narrativas de la nación en la Argentina. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2008. ANDERSON, B. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão dos nacionalismos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ARCHETTI, E. P. Masculinidades: fútbol, tango y pólo en la Argentina. Buenos Aires: Antropofagia, 2003. BAYCE, R. “Cultura, identidades, subjetividades y estereotipos: preguntas generales y apuntes específicos en el caso del fútbol uruguayo”. In ALABARCES, P. (org.). Futbologías: fútbol, identidad y violencia en América Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2003. BOURET, D. e REMEDI, G. El nacimiento de la sociedad de masas (1910-1930). Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 2009. CABO, A. Copas do Mundo de futebol – 1930 (Uruguai) e 1950 (Brasil). O olhar vitorioso – uma análise do discurso da imprensa uruguaia (dissertação). UERJ, 2010 ——. “A imprensa uruguaia e a conquista da Copa de 50”. In JUNIOR, M. A. F. e CAPRARO, A. M. (orgs.). Passe de letra: crônica esportiva e sociedade brasileira. Ponta Grossa: Vila Velha, 2012. COSTA, L. A trajetória da queda: as narrativas da derrota e os principais vilões da seleção brasileira (tese). UERJ, 2008. DRUMMOND, M. Nações em jogo: esporte e propaganda política em Vargas e Perón. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. FILHO, M. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.

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Origens e expansão do futebol O futebol em suas origens teve uma trajetória paradoxal em duas dimensões: uma das nações e outra das classes sociais. Surgiu na nação europeia talvez mais desenvolvida política e economicamente no século XIX – a Inglaterra – e rapidamente se expandiu para nações pouco desenvolvidas ou subdesenvolvidas – entre elas, destacou-se e destaca-se ainda hoje, em sua prática, tanto em termos de quantidade quanto de qualidade, o Brasil. Nasceu entre as elites inglesas, em instituições de ensino superior, e passou logo a ser praticado pelas classes populares, que, em muitos casos, não contavam com chuteiras nem bolas apropriadas e, muito menos, com locais adequados para sua execução. Assim, a trajetória do futebol se caracteriza por um duplo deslocamento: o da internacionalização e o da popularização. O senso comum atribui a introdução do futebol no Brasil a Charles Miller, brasileiro de nome inglês, filho de mãe negra e pai alemão, nascido na cidade de São Paulo. Embora estudos façam

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referência à prática do esporte anteriormente a Miller, quando padres já jogavam futebol nos colégios durante aulas de educação física, ou quando funcionários de fábricas inglesas trouxeram o esporte no final do século XIX para o país, numa espécie de esfera mitológica sobre o surgimento do futebol no Brasil, Charles Miller ainda é o nome de maior representatividade. A mistura racial de Miller parecia profetizar a miscigenação de raças e classes sociais que caracterizaria o futebol, suas organizações e seus praticantes; sua figura parece uma boa metáfora das contradições no desenvolvimento do futebol e de sua apropriação internacional e popular. No século XIX, na Inglaterra, que juntamente com a França era considerada “avançada” no processo civilizador, o esporte e o estilo de vida esportivo foram difundidos fortemente, de modo não intencional, sobre a base do exemplo a ser imitado, mas também intencional, quando a prática e o estilo esportivos eram disseminados mundo afora. No Brasil, sob a influência europeia, as primeiras décadas do século XX são apresentadas como promotoras da vida ativa da prática esportiva, englobadas por sentimentos nacionalistas crescentes em extensão e intensidade. Foram tempos de modernidade e modernização no transporte, na arquitetura, nas artes, nas comunicações, no campo do lazer, do comércio e da produção. As pedras para esse lançamento tinham sido assentadas, embora de modo desigual, por toda a nação nas últimas décadas do século XIX. Contudo, será ao longo do século XX que se processarão a penetração e o desenvolvimento do estilo de vida e da prática esportiva. Olimpismo, clubes e federações nacionais e internacionais terão papel de destaque nessa expansão, e o sistema educacional adotará a educação física como disciplina ou atividade obrigatória. Caberá ao jornalismo um papel de destaque na apresentação do esporte e do estilo de vida esportivo a ele associado, por meio de fotografias e textos, inicialmente, e, mais tarde, do rádio.

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A influência da cultura esportiva inglesa e de suas práticas, somada à forte presença dos modos de pensar e viver da cultura clássica grega, levou o Barão de Coubertin a empreender a criação das Olimpíadas e pôr em ação a obra cultural mundial que elas se tornaram, uma bela cadeia produtiva material e simbólica. O esporte era, e talvez ainda seja, uma frente civilizadora que cresceria nos clubes, nas escolas, nos sindicatos e na informalidade da prática popular. O extraordinário é que culturas bem diferentes aceitam as regras internacionais para as práticas esportivas. O esporte parece ter a propriedade de contradizer as variantes duras do relativismo cultural, ou seja, culturas bem diferenciadas aceitam sua prática, a não ser que proibições religiosas a impeçam, sobretudo no caso das mulheres. Em vários sentidos, o esporte foi um caminho de “globalização” (de organizações, regras e práticas), bem antes que essa palavra se tornasse de uso cotidiano. Nos anos 1930, os países da América Latina passam por golpes militares e a formação de governos autoritários. Ao mesmo tempo, cada esporte em particular tinha de formular suas regras, e, então, a diversidade das regras locais ou pactuadas antes de cada desafio passou a ser substituída pela universalidade das regras das federações internacionais. O futebol também se adequou a essa dinâmica. Ainda hoje é determinante nele a presença do clube, da federação estadual, da confederação nacional e internacional. Também o desenvolvimento de meios de transporte mais velozes foi um fator importante no desenvolvimento do esporte, no deslocamento dos atletas e do público. No caso do futebol, isso possibilitou a participação dos times além dos marcos locais ou estaduais, na direção do campeonato ou torneio nacional e dos transnacionais. A Copa de 1938 A Copa do Mundo de 1938 aconteceu na França e foi a última antes da Segunda Guerra Mundial, diante dos graves pro-

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blemas políticos e econômicos que assolavam o mundo. A França foi escolhida como sede em um congresso da FIFA, no dia em que terminavam as Olimpíadas na Alemanha. Após os Jogos de 1936, a Alemanha esperava também sediar a Copa do Mundo. O objetivo era fazer do evento esportivo uma propaganda pretensiosa da “raça ariana”, segundo pregava o regime de Adolf Hitler. Mas Jules Rimet, então presidente da FIFA, percebeu as vantagens de uma Copa em seu país. A Copa do Mundo da França foi de organização exemplar: a divulgação da tabela de jogos e do regulamento do torneio aconteceu com três meses de antecedência. O último grande evento esportivo antes da guerra ainda contou com a construção e a reforma de estádios especialmente para a ocasião, dando mais brilho ao evento. A Copa foi um grande sucesso de público, com o total de mais de 370 mil torcedores presentes nos jogos da França. Argentinos e uruguaios, em protesto, abandonaram a competição após a decisão de manter o torneio na Europa e ignorar o rodízio dos continentes, que levaria a Copa para a América após o torneio de 1934, na Itália. A Espanha enfrentava guerra civil e ficou de fora da competição. A Áustria, anexada pela Alemanha de Hitler, cedeu cinco jogadores à seleção alemã. Dessa forma, o número de equipes participantes da Copa de 1938 foi reduzido para 15, com eliminatórias entre os 36 inscritos para disputar o Mundial. Mesmo convidada, a Inglaterra tratava a Copa do Mundo como um evento de segunda categoria e se recusava solenemente a participar. Ao todo, eram 12 times europeus no torneio, que não contou com a participação de seleções africanas. Somente Brasil, Cuba, que chegou ao evento após a desistência do México, e as Índias Orientais Holandesas, que chegaram graças à desistência do Japão, permitiram que a Copa do Mundo não ficasse restrita ao continente europeu. Assim, essas últimas seleções tiveram sua primeira e única participação na maior competição do futebol

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mundial. As Índias Orientais Holandesas, mais tarde Indonésia, com a independência, saíram da competição após perderem para a Hungria por 6 a 0. A seleção de Cuba empatou com a Romênia, forçando o segundo jogo para o desempate, quando derrotou a seleção adversária, chegando à segunda fase. O escrete cubano foi eliminado na partida contra a Suécia, pelo placar de 8 a 0. O Brasil foi o único representante sul-americano no torneio. Após os conflitos entre cariocas e paulistas durante as duas primeiras Copas, em 1930 e 1934, o país levou para a competição de 1938 uma seleção “de verdade”, formada por jogadores de vários estados, ainda que a maioria fosse do eixo Rio-São Paulo. Com o fim da briga que atrapalhou a seleção na última Copa, a carioca Confederação Brasileira de Desportos (CBD) e a dissidente Federação Brasileira de Futebol resolveram se entender. Pela primeira vez, o Brasil formou um time unido e coeso para a disputa. Classificada automaticamente, a seleção brasileira foi o centro das atenções durante aquele Mundial. O time brasileiro encarou, ao todo, 15 dias de viagem de navio para chegar à França. Parte da despesa dos jogadores foi bancada pela “Campanha do Selo”, forma criada pela CBD para fazer a população contribuir para a viagem da seleção. O método fora copiado da Itália, que fez campanha similar em 1934. Com o slogan “Ajudar o scratch é dever de todo brasileiro”, a entidade colocou selos à venda para o torcedor comprar ao preço de 500 réis. A arrecadação final da campanha foi de 50 contos de réis, valor que hoje equivaleria a aproximadamente 100 mil reais.1 Pensan1

Para chegar ao valor alcançado, utilizamos o dólar como moeda de referência. A expressão conto de réis significava 1.000 mil-réis. Em 1938, 1 mil-réis valia 0,06 dólar. Logo, 50 contos de reis valiam 3.000 dólares. Levando em conta a inflação da moeda americana, essa quantia equivaleria a aproximadamente 50.000 dólares ou 100.000 reais em 2013. (Para a conversão de mil-réis em dólar no ano de 1938, utilizamos Holloway (1984, p. 268) e o site http://www.ocaixa.com.br/ bancodedados/dolaranualmedio.htm. Para calcular a inflação da moeda ameri-

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do ainda na campanha da seleção, a CBD nomeou Alzira Vargas, filha do presidente Getúlio Vargas, como madrinha da equipe que viajou para disputar a Copa do Mundo. Para treinar a seleção, a CBD manteve Ademar Pimenta, que já era o técnico durante o Campeonato Sul-Americano. Pimenta era apontado como trabalhador, bem-intencionado e sabia lidar com os jogadores. Também era “suscetível” a pressões para convocar atletas e recebia críticas por não se atualizar, desconhecendo as mudanças nas regras do futebol em 1937. Mas esses defeitos não foram levados em conta pela CBD, que depositou nele toda a confiança. Assim, Pimenta montou sua lista com 22 jogadores convocados: os goleiros Walter e Batatais; os zagueiros Nariz, Domingos da Guia, Machado e Jaú; os meio-campistas Martim, Zezé Procópio, Brandão, Argemiro e Affonsinho; e os atacantes Patesko, Perácio, Lopes, Leônidas da Silva, Hércules, Romeu, Tim, Luizinho, Roberto e Niginho. Leônidas, o Diamante Negro, artilheiro da competição com sete gols, foi o grande destaque da Copa e colocou a seleção brasileira pela primeira vez em uma semifinal. Diz a lenda que o jogador fez gol até descalço e inventou a jogada conhecida como “bicicleta”. A seleção brasileira foi recebida com festa pelos franceses, que acreditavam numa final entre Brasil e França. O país-sede dedicava atenção especial ao Brasil, já que ignorava a seleção italiana, e a Argentina havia abandonado a Copa. O jornal francês L’Auto, após acompanhar um treino da seleção brasileira, afirmara que “os brasileiros são perfeitos artistas com a bola nos pés. Dribles não são segredos para eles. Seus movimentos são ágeis e sua sutileza é notável. Um time formidável” (Almanaque Copas: de 1930 a 2006. Lance Publicações, 2010, p. 33). Porém, não foi desde o início que o Brasil ganhou o respeito na Europa, tendo chegado cana, utilizamos o portal Bureau of Labor Statistics do United States Department of Labor – http://www.bls.gov/data/inflation_calculator.htm.)

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à Copa com a seleção desacreditada. A Copa de 1938 projetou o futebol brasileiro para o mundo, mas, inicialmente, a equipe não era considerada páreo para a Polônia na estreia da competição, que antes da partida já se julgava vitoriosa. No dia 5 de junho, contra a Polônia, a equipe do técnico Ademar Pimenta mostrou que não havia viajado à França para passear e garantiu a vitória na prorrogação. A partida foi equilibrada e aconteceu sob forte chuva. Após estar vencendo por 3 a 1, o Brasil cedeu o empate e venceu por 6 a 5 na prorrogação. A seleção só entrou em campo novamente no dia 12, nas quartas de final, contra a vice-campeã Tchecoslováquia. O placar de 1 a 1 forçou novo jogo para o desempate, no dia 14 de junho, no qual os brasileiros saíram vencedores e classificados para a semifinal. Os jogos contra a equipe tcheca não são lembrados pelo futebol, e, sim, pela violência em campo: além de uma série de expulsões, o jogador Olderich Nejedly saiu com ossos fraturados. A partida da semifinal contra o time italiano, campeão da Copa de 1934, foi dominada pelo adversário. Com seu principal jogador lesionado, que, segundo o técnico Ademar Pimenta, não poderia entrar em campo e fora poupado, a seleção brasileira não contou também com o atacante Niginho, que, por contrato, não poderia atuar contra a Itália. O atacante tinha dupla nacionalidade e atuava na Lazio. Os torcedores brasileiros não ficaram satisfeitos com o técnico, que, após ver Leônidas marcar seis gols nos primeiros jogos, deixou-o no banco. A confiança após a vitória frente ao forte time tcheco fez o Brasil acreditar que poderia vencer a Itália, mas o desempenho da seleção em campo contribuiu para que a partida fosse cercada de polêmica. Durante uma paralisação do jogo, o atacante italiano Piola deu um pontapé em Domingos da Guia dentro da área brasileira. Irritado, o jogador brasileiro revidou, e o juiz, o suíço Hans Wüthrich, marcou pênalti. Meazza fez o gol que abriu a vantagem para a Itália. O Brasil acabou derrotado por 2 a 1.

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Desse modo, o Brasil foi desclassificado pela Itália, que também eliminou os anfitriões do torneio, que tanto desprezavam a Azurra. No dia 19 de junho, a seleção brasileira fez 4 a 2 nos suecos, com dois gols e bela apresentação de Leônidas, terminando o torneio na terceira colocação. A posição final do Brasil no Mundial da França fez com que o país se tornasse respeitado no mundo do futebol e a seleção começasse a se tornar uma potência no esporte. O jogador Leônidas da Silva (1913-2004) foi um menino pobre nascido no bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, que ajudaria a projetar o futebol como maior esporte no Brasil e a dar reconhecimento internacional ao país por seu futebol-arte. Com nome de guerreiro grego, o jogador ganhou notoriedade mundial durante a Copa da França por causa de seu poder de improvisação, que passaria a caracterizar o futebol brasileiro. Sua estreia na seleção nacional aconteceu em 1932, aos 19 anos. Durante a Copa de 1934, na Itália, Leônidas marcou apenas um gol na única partida disputada pela seleção brasileira, quando o escrete brasileiro foi eliminado na derrota para a Espanha. O jogador viveu sua época de ouro no Flamengo e na seleção brasileira, entre 1938 e 1940. Na Copa da França, ficou reconhecido como craque fora de série, o que motivou o técnico Ademar Pimenta a lhe dar a condição de capitão do Brasil. Começou a se destacar nas oitavas de final e seu auge foi no primeiro jogo contra a Tchecoslováquia, quando fez o único gol brasileiro. Atacante habilidoso e com um chute preciso, Leônidas impressionou os franceses com elasticidade raramente vista em jogadores de futebol. Durante a Copa, ganhou o apelido de “homem-borracha” após o gol de bicicleta, lance que o consagrou. Sua participação foi fundamental nos jogos mais difíceis para a seleção: a estreia contra a Polônia e a segunda partida contra a Tchecoslováquia. A atuação no Mundial daria a Leônidas o direito de disputar o lugar de figura mais popular no Brasil e ídolo no futebol, se houvesse um concurso. Seu sucesso era tão grande que ele foi con-

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vidado pela empresa Peixe, fabricante de goiabada, para participar de uma campanha publicitária. Já sabendo que sua popularidade poderia aumentar as vendas de qualquer produto, Leônidas da Silva foi o primeiro jogador a se tornar garoto-propaganda, intermediando o lançamento do chocolate Diamante Negro, apelido que lhe fora dado pela imprensa francesa durante o Mundial de 1938. Não foi divulgado o valor pago pelo anúncio do chocolate. Além do artilheiro, o jogador Domingos da Guia (19122000) chamou atenção no Mundial da França. Apelidado pelos uruguaios de Divino Mestre, a ascensão do zagueiro negro, que cometeu um pênalti na partida contra a Itália, deu-se juntamente com a do próprio futebol brasileiro, mais especificamente em 1938. Para os intelectuais da época, Domingos da Guia era mais um dos jogadores naquela seleção que tinha a capacidade de aliar características inatas dos negros com a prática do futebol. Ele também se tornou símbolo do futebol-arte e dos novos ideais da sociedade brasileira. Na Copa do Mundo de 1938, a seleção italiana chegou à competição com um time mais forte do que no Mundial anterior e seu favoritismo aumentou após a eliminação da anfitriã França, nas quartas de final. Conquistou o título na final contra a equipe da Hungria, em um estádio lotado, com mais de 55 mil espectadores. Outras seleções, como Brasil, Suécia e Hungria, tiveram atuações surpreendentes, mas a festa final seria mesmo da Azurra. Com a conquista do título, a seleção italiana se tornou a primeira equipe a conquistar um bicampeonato consecutivo na Copa do Mundo da FIFA, feito que se repetiria com o Brasil 28 anos depois. A conquista do Mundial pela equipe italiana ainda foi explorada pelo chefe de Estado fascista, Benito Mussolini, que ditava as regras na seleção e aproveitava as vitórias da equipe como se fossem suas. Após a vitória italiana sobre a seleção brasileira na semifinal, o jornal esportivo daquele país publicou a manchete “Inteligência branca italiana vence força bruta dos negros”

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(O Guia Curioso das Copas – Especial Superinteressante. Editora Abril, 13 abr. 2013). Em função da influência do ditador, os italianos foram muito vaiados durante os jogos. O jogador italiano Meazza, distante da política de Mussolini, saiu do Mundial consagrado como uma das principais figuras do time. O rádio Durante o Mundial da França, o Brasil vivia a era dourada do rádio, com direito a transmissões de boletins do torneio direto do país-sede. A Copa do Mundo de 1938 foi a primeira transmitida pelo rádio para o país, o que contribuiu para a crescente popularização do esporte e a construção de uma identidade nacional por meio do futebol. Não era novidade a transmissão de partidas de futebol de países latinos, já que cadeias de emissoras radiofônicas eram comuns desde o início dos anos 1930. Na Copa de 1938, a proeza foi a participação de uma emissora brasileira no evento que ocorria na Europa. O locutor Gagliano Neto era o único radialista da América do Sul atuando durante o Mundial diretamente dos estádios, por meio de emissoras de ondas curtas que chegavam ao Brasil com algumas interferências e chiados. A narração pausada e possante dos jogos consagrou Gagliano Neto, considerado ousado pela iniciativa de transmissão da Copa. O Brasil pôde acompanhar com emoção e riqueza de detalhes as imagens atribuídas ao pioneirismo do locutor. Fascinado, o país parou para ouvir as irradiações da Copa de 1938. Incrédulos, os brasileiros vibraram com a atuação da seleção e os sons vindos da França. Aqueles que não tinham rádio em casa se aglomeravam em pontos estratégicos nos quais alto-falantes espalhados pelas emissoras transmitiam os jogos, principalmente no Largo do Paissandu, em São Paulo, ou na Galeria Cruzeiro, no Rio de Janeiro. Mesmo aqueles que não eram fãs do

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esporte participavam do acontecimento, valorizando a campanha da seleção brasileira e afirmando a popularidade do esporte. Foot-ball mulato de 1938: o mítico estilo futebol-arte A apropriação brasileira do futebol foi rápida, e não como “fogo de palha”, conforme defendido por figuras importantes do panorama intelectual da época. Ao contrário, sua chama viveria no tempo de um combustível sólido e renovado a cada geração. O esporte parecia ser sustentável por natureza e sempre atraiu novos praticantes e espectadores. Os primeiros debates sobre o futebol no Brasil tinham um lado crítico ao exibicionismo e ao individualismo dos jogadores, e alguns denominariam de egocentrismo o modo local de jogar. Não tardou em aparecer o partido dos opositores a essas críticas. Muito rapidamente, foi sendo construído o ideal de um estilo brasileiro baseado na habilidade, na criatividade, na improvisação, no drible, enfim, em tudo aquilo que até hoje se admira e reivindica como estilo nacional. Elites e populares passaram a jogar com a bola no pé. Os populares, quase sempre trabalhadores não qualificados, passaram a reivindicar salários para poderem se dedicar ao esporte de forma integral. Nos anos 1920, viria ascender e crescer o debate entre amadorismo e profissionalismo. No final da década, o direito à profissão de futebolista tinha se tornado prática aceita. Os clubes tinham de incluir entre os objetivos da gestão o pagamento dos times, dos técnicos e do pessoal de apoio. Na história do Brasil, ocorreu um momento de indefinição da identidade nacional. Alguns acontecimentos, com os quais, possivelmente, essa identidade começou a ser formada, se destacam, como a Semana de Arte Moderna, em 1922, e o nacionalismo de Getúlio Vargas, em 1930. No entanto, novas formas de conceituar o país, com o ufanismo, puderam ser vistas em obras

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de importância histórica de escritores como Gilberto Freyre, com Casa-grande e senzala, e Sérgio Buarque de Hollanda, com Raízes do Brasil, que passaram a ver a mistura de raças no Brasil como um valor positivo, ao contrário de autores como Nina Rodrigues2 e Oliveira Viana.3 Estes últimos, pensadores na década de 1930, viam tal mistura de raças como algo negativo, que explicaria certo “atraso” do país. A obra de Freyre aponta a mestiçagem como fator integrador na história do Brasil, equilibrando antagonismos sociais e raciais; a diversidade seria motivo de orgulho nacional e de crença no país. A Copa do Mundo de 1938 surge para Gilberto Freyre como oportunidade para exemplificar aquilo que o escritor vinha afirmando até então. Ao escrever a crônica “Foot-ball mulato”, no jornal Diário de Pernambuco, em 17 de junho de 1938, dois dias antes da final da Copa do Mundo daquele ano, anuncia o surgimento de um estilo inconfundível de jogar o futebol brasileiro – principalmente com Leônidas da Silva. A forma de jogar brasileira parecia utilizar a dança mestiça e dionisíaca (em contraste com o estilo europeu apolíneo), metáfora na descrição da forma particular como o país praticava o esporte. A técnica refinada dos jogadores brasileiros encantava a Europa enquanto o Brasil se mobilizava em torno do rádio para acompanhar a Copa do Mundo. “Nosso estilo me parece contrastar com o dos europeus por um conjunto de qualidades de surpresa, de manha, de astúcia, de ligeireza e, ao mesmo tempo, de brilho de espontaneidade individual [...]”. Freyre afirma ainda que o futebol, como instituição brasileira, tornou possível a sublimação de elementos irracionais de nossa formação social e cultural (2003, p. 25). 2

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Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906): médico legista, psiquiatra, professor e antropólogo brasileiro. Francisco José de Oliveira Viana (1883-1951): professor, jurista, historiador e sociólogo brasileiro, imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL).

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“Foot-ball mulato” foi o primeiro texto de um intelectual em que se abordava uma identificação da forma e do estilo do brasileiro de jogar futebol com os traços culturais nacionais, principalmente aqueles herdados dos negros. A crônica ainda exaltava tal estilo em comparação ao dos ingleses, inventores do esporte. Logo nas primeiras linhas, Freyre fala sobre sua motivação em escrever o texto, quando um repórter o questionou sobre o que achava das admiráveis performances brasileiras nos campos de Estrasburgo e Bordeaux, na França. Dessa forma, vinte anos antes de conquistar o primeiro Mundial, a seleção brasileira apresentava seu estilo inconfundível para o mundo, aquele que mais tarde seria chamado de futebol-arte. Para Freyre, o futebol permitia a ascensão e a integração de negros e mulatos à sociedade brasileira – além de, entre eles, se ter criado um estilo próprio de jogar bola, o dionisíaco, o futebol-arte. O autor ainda fortaleceria a ideia de que o futebol da mistura de raças foi utilizado para minimizar as disparidades sociais da sociedade brasileira, ideia que relembraria e reafirmaria na segunda edição de seu livro Sobrados e mucambos, de 1951. As construções discursivas do Brasil como “país do futebol” e do estilo futebol-arte se dão repletas de significados, e essas ideias culturais foram fomentadas principalmente por cronistas esportivos de papel fundamental ao escrever sobre o futebol em jornais que circulavam nos espaços de sociabilidades, abordando questões identitárias e projetos para a nação brasileira. Tais cronistas identificavam que a paixão e o sofrimento do torcedor de futebol poderiam ter reflexos em outras esferas da vida social e, assim, passaram a difundir a ideia de que o brasileiro agia da mesma forma fora do campo de jogo. Logo, ao ganhar autoconfiança com as vitórias no esporte, também ficaria mais confiante para enfrentar outras atividades relativas ao convívio social. Não menos importante foi o desenvolvimento das tecnologias de comunicação, o que favoreceu a coordenação e, sobretudo,

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a formação de um jornalismo esportivo que, de forma crescente, ao longo do século XX, passou a informar e comentar eventos esportivos que ocorriam fora do espaço e tempo de praticantes e aficionados locais. Hoje, qualquer garoto que goste do futebol pode saber pela televisão ou pela internet qual é a formação do Barcelona e seguir sua trajetória esportiva, mas não era assim na primeira metade do século XX. O jornalismo foi importante não apenas pela informação (escrita, oral e das imagens), mas, especialmente, por formar amantes e amadores dos esportes, por despertar emoções positivas em relação a ele e ao conhecimento de suas regras, modalidades e estilos. Entre os cronistas esportivos, cabe destacar o papel desempenhado por Nelson Rodrigues – que criou a expressão “pátria de chuteiras” –, Mario Filho, Armando Nogueira e João Saldanha, nomes que ainda hoje figuram entre os principais autores e fundadores do jornalismo esportivo, além de colaborarem para a construção de uma identidade do “ser brasileiro” por meio do futebol. Em algumas das crônicas desses nomes, percebemos claramente a associação entre o povo brasileiro e a seleção nacional, o que nos leva a afirmar que a vitória de um seria a conquista do outro. O futebol funcionaria como um resgate da autoestima do brasileiro, acentuando o sentimento de união nacional. Portanto, e aqui vai o óbvio: o escrete realiza o brasileiro e o compensa de velhas humilhações jamais cicatrizadas. Não posso olhar sem uma compassiva ironia os que negam qualquer relação entre o escrete e a pátria [...]. Pois o escrete não é outra coisa senão a pátria (Rodrigues, 1999, pp. 151-2).

As crônicas desses autores tornaram-se documentos de valor histórico sobre a formação do povo brasileiro, permitindo a compreensão da origem de certos sentimentos nacionalistas e de

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modos sobre como pensar o Brasil ainda em formação, de ideias hoje já consolidadas a partir do contexto em que surgiram. Helal afirma ainda que “o país do futebol foi uma construção social realizada por jornalistas e intelectuais em um momento de consolidação do ‘Estado-nação’, acompanhada por formulações acadêmicas sobre a sociedade” (Helal, Lovisolo e Soares, 2011, p. 28). Dentro desse projeto nacionalista do Estado Novo,4 Mario Filho desempenhou importante papel ao utilizar o futebol como forma de consolidar a ideia de nação brasileira e de se entender a cultura do país. Com o livro O negro no futebol brasileiro, o autor narra a trajetória do início do futebol no Brasil, praticado exclusivamente pelas elites intelectuais e financeiras. Esse quadro só começou a sofrer mudanças com o jogador Friedenreich, filho de um alemão com uma negra, o primeiro herói esportivo e de identificação com o povo brasileiro. Dessa forma, de acordo com o livro, o futebol atingiu as camadas populares e a miscigenação acabou por colaborar na construção de um “estilo brasileiro” de jogar. Até então, pesquisadores que se arriscavam em estudar futebol e identidade buscavam no livro de Mario Filho suas fontes de análise. O texto do jornalista ainda hoje é emblemático na divulgação do esporte, na discussão sobre o racismo dentro do jogo, além de funcionar como um dos poucos registros históricos do período do surgimento do futebol.5

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“A identidade nacional tem no futebol a edificação de seus pilares, com forte participação do Estado desde a década de 1930, na era Vargas, principalmente durante o Estado Novo. Não foram economizados esforços do governo para transformar o futebol em um instrumento para a consolidação das ideias de um Brasil democrático [...]. O futebol deveria cumprir o papel de diluir as tensões e os conflitos étnicos e sociais no país” (Salvador e Soares, 2009, p. 21). Nesse sentido, ver o debate sobre a relevância ou não do livro de Mario Filho como fonte histórica em Helal, Lovisolo e Soares (2001).

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O esporte nascido no lugar de estudo das elites tinha se convertido em esporte de massas, e seus praticantes, oriundos de qualquer classe social, mas predominantemente das populares, tornavam-se profissionais quando conseguiam se sobressair nos processos de seleção. O amadorismo, derrotado no futebol organizado e reconhecido por clubes, federações e confederações, foi substituído pelo profissionalismo. A partir desse momento, o sonho do garoto popular de ser jogador de futebol tornou-se realidade para um pequeno percentual que conseguia a aliança da disposição, do talento e dos relacionamentos. O futebol passou a ser visto como um caminho legal, no duplo sentido da palavra no Brasil, além de valioso na ascensão social. Olheiros e peneiras de seleção se tornaram instituições do futebol brasileiro, embora não apenas dele. Os clubes criaram e desenvolveram suas escolinhas de futebol, que, hoje, mediante parceria, atuam em diferentes locais das cidades. No caso do Brasil miscigenado, os negros encontraram no futebol um lugar de crescente integração e reconhecimento. Para a história oficial do futebol, Pelé significa a consagração do processo de valorização, integração e reconhecimento do atleta negro no futebol brasileiro. Ao Vasco se atribui a iniciativa de incluir atletas negros, e, hoje, essa tradição lhe permite assumir-se como clube contra o racismo. O reconhecimento surtiria efeito em outros campos sociais, embora sem produzir uma mudança radical no lugar “secundário” ocupado pelos negros na sociedade brasileira. Formação e negócios do futebol no Brasil É lugar-comum encontrar a identidade brasileira no futebol, no samba e no carnaval. A alegria seria a virtude característica nas manifestações desses campos de atividades, que, hoje se reconhece, são passatempos ou entretenimentos culturais produtivos ou cadeias de produção.

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O futebol aparece como atividade que canaliza ou gera emoções significativas, referências identitárias, solidariedade, pertencimento, consumismo, conflitos e violência sob o ponto de vista coletivo. No plano individual, é uma máquina de sonhos e decepções. Mas, sobretudo, o esporte é um valioso passatempo, uma atividade antitédio privilegiada tanto para o praticante quanto para o espectador. O estilo do futebol deveria ser parte da identidade nacional, partilhando a alegria, a improvisação e a criatividade. O futebol dito de “força” teria sua expressão na prática de ingleses e europeus de modo geral. Por aqui, a aproximação maior, apesar das diferenças, seria com o futebol praticado no Rio de la Plata. Seria a seleção do Uruguai, formada por praticantes desse estilo próximo, porém não idêntico, a que provocaria a tremenda frustração da Copa de 1950. Em poucos anos (entre 1958 e 1970), o Brasil ganharia três Copas do Mundo e, anos depois, mais duas. O “pentacampeão” passaria a ser visto como “país do futebol” no mundo todo. Gilberto Freyre consagraria a atuação de 1938 no que denominou de “futebol mulato”, produto da miscigenação e da cultura brasileira. Essas conquistas, às quais se somaram outras, levaram a expandir o negócio do futebol. O desenvolvimento do futebol no Brasil, no plano da prática, evoluiu para a formação de atletas modelados pelo treino físico e tático, sob a base da disposição e do talento. Figuras como Pelé e Zico representariam o investimento no treinamento, na formação do atleta, e passariam a ser mais valorizadas do que o jogador apenas produto do talento, cujo exemplo paradigmático continuará a ser Garrincha. A Copa de 1970, vista desde o presente pela pesquisa histórica e social, se mostra como produto do planejamento, da aplicação dos conhecimentos científicos, enfim, como excelência do treino físico sob a base do talento dos escolhidos para formar, como se dizia antigamente, o escrete nacional canarinho.

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Até recentemente, a dedicação do jovem ao futebol levava a rejeitar ou a dificultar o tempo escolar. Parecia que o profissional do futebol deveria ser apenas isso e, após um desempenho glorioso, se dedicaria a viver do capital econômico e social acumulado no passado, coisa nem sempre fácil de realizar. Essa visão está mudando. A institucionalização da escola dentro dos clubes de futebol aparece como uma forma de conciliar a dedicação ao treino com o valor da educação formal no contexto mais geral do futebol como negócio, e não somente paixão. A gestão do futebol pelos clubes passou a sofrer pressões legais e sociais. A legislação atual acabou com instituições do passado que criavam uma “escravidão branca” dos atletas, e as demandas sociais aumentaram a responsabilidade social dos clubes. Uma das vertentes do negócio passou a ser a crescente exportação de jogadores e técnicos. Ao objetivo de jogar em times prestigiados de primeira divisão e na seleção nacional, agregou-se o desempenho em times do Velho Mundo, que seria uma etapa valorizada da carreira sob o ponto de vista econômico e do reconhecimento profissional. O cenário de descrédito em relação às instituições que controlam o futebol no Brasil, provocando o distanciamento de torcedores, o aumento da violência nos estádios e a saída dos jogadores para times fora do país, hoje se apresenta diferente de há alguns anos. Ainda que os clubes estejam endividados e que os campeonatos nacionais aconteçam inseridos em modelos de organizações deficitárias, observa-se um movimento inverso a partir de 2003, nos oito anos de governo Lula e mudança no cenário econômico brasileiro, com a valorização da moeda e o aumento da receita de alguns clubes por meio de parcerias financeiras. A ambição do jogador de atuar na Europa continua até hoje, apesar da igualdade, pelo momento crescente, dos retornos econômicos entre os times importantes brasileiros e europeus. O futebol profissional e espetacular cresceu como negócio. Esse processo sempre encontrou críticas, desde o entendimento

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de que o motivo do retorno financeiro estaria substituindo o da paixão ou amor pela camisa até o suposto esvaziamento do futebol nacional pela venda de jogadores que se destacam. As críticas sempre ganham intensidade nos momentos de crise dos clubes ou da própria seleção nacional. De fato, as críticas ao futebol como negócio estão sempre prontas para ser disparadas. Mario Filho já criticava, desde 1915, a falta de investimentos em estádios adequados, vestiários, medicina esportiva e em centros de formação e atendimento terapêutico para os atletas. Os jornalistas se tornaram uma usina de crítica à falta de investimento em instalações e à própria falta de manutenção dos gramados. Também foram e são críticos da gestão esportiva, do planejamento e da administração, até os dias de hoje. A televisão, aliada ao patrocínio e ao investimento publicitário, transformou o espetáculo esportivo e seus negócios no futebol. Hoje o esportista, de modo geral, e o jogador de futebol, em particular, tornaram-se “garotos-propaganda” e passaram a produzir uma parte considerável de recursos para os clubes, somados aos direitos da televisão. A renda gerada pela venda de ingressos, os direitos pagos pela televisão e a publicidade/patrocínio aparecem como os principais recursos dos clubes. O investimento no Brasil foi crescendo lentamente e talvez tenha se acelerado nas últimas décadas motivado pela realização de eventos esportivos significativos (Pan-Americano de 2007, Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016). Ao mesmo tempo, cresceram os investimentos privados e públicos em instalações esportivas. Reformas estruturais nos estádios, sistemas de controle e segurança, força policial crescente e especializada no controle das torcidas sinalizam os efeitos da complexidade no aumento da cadeia produtiva do futebol.

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Vitória épica e tragédia nacional em 1950: um contraponto entre o Diário Carioca e veículos da imprensa uruguaia Alvaro do Cabo Ronaldo Helal

O objetivo principal deste artigo é analisar a cobertura do periódico Diário Carioca sobre a Copa de 1950 estabelecendo um contraponto com os jornais uruguaios El País, El Dia, Accíon e La Plata.1 O Diário Carioca foi fundado em 1928 por José Eduardo Macedo de Soares, que havia sido presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) entre 1921 e 1922 e foi uma figura muito importante na esfera política entre as décadas de 1920 e 1950. Não era um jornal de grande circulação nem muito extenso, mas dedicava pelo menos uma página aos esportes, desde seu lançamento, e cobria as Copas do Mundo desde 1930. 1

A pesquisa fez parte da dissertação elaborada por Alvaro Cabo (2010) sob orientação de Ronaldo Helal, que, apesar de ser focada no discurso da imprensa uruguaia, teve um capítulo dedicado ao jornal Diário Carioca sobre os torneios mundiais de futebol de 1930 e 1950.

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Seus leitores eram, sobretudo, membros da elite política e intelectual carioca. O jornal ficou conhecido por modernizar o jornalismo na década de 1950, em virtude do lançamento de um manual de redação elaborado pelo redator e professor Pompeu de Souza e da adaptação da técnica americana do lead ao seu estilo jornalístico, menos formal, influenciado pelos modernistas e pelo escritor Graciliano Ramos. Alguns importantes intelectuais brasileiros escreveram nas páginas do Diário Carioca, como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda. Conhecidos jornalistas, como Carlos Lacerda, Zuenir Ventura e o cronista esportivo Armando Nogueira, também tiveram passagens pelo periódico, que circulou até dezembro de 1965 e foi o primeiro jornal diário de Brasília.2 Em 1950, o Diário Carioca passava por um momento de expansão e modernização por meio de um projeto coordenado pelos jornalistas e professores do recém-criado curso de Jornalismo da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Brasil, o catedrático Danton Jobim e seu assistente Pompeu de Souza. O periódico possuía duas publicações diárias e tinha como lema “Um jornal do Rio para todo o Brasil”. O espaço destinado ao esporte era, naquele momento, maior do que o dedicado a outras seções, influenciado, principalmente, pela realização do torneio mundial.3 2

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As informações sobre o Diário Carioca e José Eduardo Macedo Soares foram coletadas nos sites http://www.diariocarioca.com.br, http://www.lainsignia.org e no artigo “Diário Carioca – o primeiro degrau para a modernidade”, de Nilson Lage, Tales Farias e Sérgio Rodrigues, apresentado no Grupo de Trabalho de História do Jornalismo, no II Encontro Nacional da Rede Alfredo de Carvalho, realizado em Florianópolis (SC). Porém, poderíamos afirmar que a cobertura era mais comedida do que a de outros veículos utilizados como referência sobre a imprensa carioca em 1950, notadamente o Jornal dos Sports, de Mario Filho; O Globo, de Roberto Marinho; e o Correio da Manhã. Muitos autores já utilizaram essas fontes em trabalhos

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Um olhar carioca da Copa de 1950 e da derrota Após a estreia vitoriosa da seleção brasileira contra o México por 4 a 0 e o inesperado empate contra a Suíça em 2 a 2 na partida realizada no Pacaembu, em São Paulo, o jogo contra a Iugoslávia adquiriu uma conotação dramática. Comenta-se pouco que o Brasil poderia ter sido eliminado na primeira fase do torneio realizado no país e que, bem antes da vantagem contra os uruguaios na final, eram os iugoslavos que tinham o direito ao empate na decisão do grupo. No dia do confronto, as principais reportagens adotavam um tom cauteloso: Urge vencer Brasil e Iugoslávia colocarão em jogo essa tarde a permanência na disputa do Campeonato do Mundo. É o primeiro grande encontro do certame e deverá arrastar ao Estádio Municipal do Maracanã a maior assistência até hoje comprimida dentro de uma praça de esportes. Vão os brasileiros tentar a rehabilitação e os iuguslavos lutar para manter a posição de líder de ‘chave’. Será um choque dramático seja qual for o vencedor. Não há resultado que satisfaça a ambos! Só a vitória compensará o esforço dos dois esquadrões. Perdendo os brasileiros, encerra-se a festa do Campeonato que passará então a arrastar-se ante olhos maguados de um publico que tem no futebol a sua diversão maior. É necessária a vitória do Brasil (Diário Carioca, 1o jul. 1950, p. 7).

Em outra reportagem na mesma edição, a Iugoslávia é considerada favorita e duras críticas são feitas ao treinador Flávio Cosacadêmicos e teses, como Leda Costa (2010), Gisella de Moura (1998) e Alvaro do Cabo, que usou o Jornal dos Sports na elaboração de monografia de graduação em História (1996) e em artigo sobre o assunto (2007).

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ta, acusado, inclusive, de proteger alguns jogadores por critérios pessoais: Hoje no Municipal do Maracanã, o Brasil jogará a cartada decisiva deste 4o Campeonato Mundial de futebol. Ali, naquele monumental estádio inacabado, poderão ficar sepultadas as esperanças dos brasileiros, já que desta peleja sensacional sairá inapelavelmente o vencedor da série A. E confessemos francamente que as melhores possibilidades não estão ao lado dos brasileiros, bastando empate e a Iugoslávia estará classificada... É sabido que o Sr. Flávio Costa, deixa-se levar quase sempre pelo critério pessoal, preferindo elementos da sua simpatia pessoal em detrimento de outros que, embora ostentem melhor forma física e técnica, não sejam da sua ‘panelinha’ (Diário Carioca, 1o jul. 1950, p. 8).

Os relatos indicam que teria sido uma partida equilibrada e que a equipe brasileira estava muito motivada, além de contar com a inspiração de Zizinho, que marcou o segundo e providencial gol para o Brasil já na segunda etapa. Segue um trecho da reportagem sobre a partida, qualificada pelo jornal como “Batalha do Maracanã”: O triunfo de ontem apresentou-se como duplo sentido. Primeiro por permitir ao Brasil figurar como finalista do certame e segundo por ter reabilitado o futebol indígena ante ao público esportivo do país. Os ‘itches’ corresponderam com bastante fleugma durante o desenrolar de todo o prélio e somente cederam ante a evidência insofismável da superioridade técnica do quadro brasileiro (Diário Carioca, 2 jul. 1950, p. 9).4 4

É curiosa a referência do futebol brasileiro como “futebol indígena”, já que, geralmente, observamos o predomínio de outras denominações, como “futebol-arte”

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As goleadas posteriores sobre Suécia e Espanha e a inesperada derrota na final do Mundial fizeram essa partida, crucial na campanha brasileira, praticamente cair no “esquecimento”, não fazendo parte da memória de 1950. Em outra nota que se referia à partida, afirmou-se que “jogando mais com o coração do que com o cérebro, o selecionado brasileiro conquistou uma vitória que ficará na história esportiva brasileira em um feito poucas vezes registrado” (Diário Carioca, 4 jul. 1930, p. 8), fato que acabou não ocorrendo. A lembrança dessa partida está restrita a estudiosos e aficionados da seleção brasileira, não se constituindo em um marco nacional; ou, utilizando uma metáfora de um canal esportivo de TV fechada, a partida acabou não se transformando em um “jogo para sempre”. É importante destacar que, mesmo tendo realizado apenas uma partida, o selecionado uruguaio era considerado pelo jornal analisado o mais perigoso adversário da fase final, e, segundo a reportagem a seguir, a equipe era qualificada e não seria nenhuma surpresa se conquistasse o título: Estreando no campeonato – já que não participou das eliminatórias – o Uruguai classificou-se calmamente – destroçando a Bolívia. 8 a 0 foi o escore. Não há dúvida nenhuma que há muitos anos, talvez mesmo desde os saudosos tempos do tricampeonato, que o Uruguai não organizava um scratch como o de agora, vivo, leve, com um extraordinário senso de penetração e arremate, os nossos vizinhos orientais muito darão que fazer. E não será nenhuma surpresa se conseguirem levar novamente para Montevidéu a agora chamada Taça Jules Rimet (Diário Carioca, 4 jul. 1950, p. 8, grifos nossos). e “foot-ball mulato”; esta última pelo famoso texto de Gilberto Freyre, “Foot-ball mulato”, publicado no dia 17 de junho de 1938 no Diário de Pernambuco. Os “itches” no texto seriam uma alusão aos nomes típicos dos atletas iugoslavos.

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É importante observar que até então o Uruguai era considerado tricampeão não apenas nos periódicos de seu país, mas também em jornais brasileiros. Isso por causa do bicampeonato olímpico em 1924 e 1928 e pela conquista da primeira Copa do Mundo, em 1930. Ademais, a equipe uruguaia era vista como muito boa e candidata ao título, fato que também cai no “esquecimento” na maior parte das obras e reportagens que se referem ao Mundial de 1950. Em nota posterior, referente à chegada dos uruguaios em sua nova concentração, a manchete afirma: “Confiantes, os uruguaios tentarão repetir 24, 28 e 30. Já em São Paulo, no Canindé, o mesmo quadro que arrasou a Bolívia” (Diário Carioca, 5 jul. 1950, p. 8). A expectativa em torno do confronto entre Uruguai e Espanha na capital paulista era grande, conforme percebemos a partir de algumas reportagens que antecederam o jogo. O favoritismo pendia levemente para a equipe “celeste”. No domingo que inicia o quadrangular final, a partida é anunciada com alarde pelo periódico, que, novamente, reitera a condição de tricampeão mundial do Uruguai. Pode-se afirmar que, nessa época, o Uruguai possuía o que costumamos chamar, hoje, de “tradição” ou “camisa” para chegar como vitorioso à fase decisiva. Essas pequenas “tradições inventadas”5 não seriam perpetuadas mais facilmente por meio das vitórias? A “celeste olímpica” possuía uma aura de invencibilidade, independentemente de ter ou não uma boa equipe em 1950, e era, até aquele momento, considerada favorita ao título. Com a queda dos resultados do futebol uruguaio em nível internacional, esse status já não se materializa quando o país chega a uma Copa 5

Termo criado por Eric Hobsbawm e Terence Ranger para designar tradições específicas geradas política ou culturalmente para legitimar a existência de Estados nacionais.

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do Mundo, mas em 1950 as narrativas eram distintas das atuais, como observamos nesta passagem: Hoje no Pacaembu: a Fúria Espanhola contra a Celeste Olímpica. Os orientais, detentores três vezes do título mundial, irão enfrentar os espanhóis que surgem agora em fase de ascensão no cenário futebolístico internacional. Luta de gigantes. As duas equipes com jogadores entusiastas em suas fileiras, uns que dominam a técnica de jogo, dois goleiros que se identificam entre os melhores do mundo. No arco do Uruguai, o veterano Máspoli, desportista na acepção da palavra, na meta espanhola, Ramallete, que veio na reserva de Ezaguirre e que substituindo-o conseguiu ótimas performances e já está entre os melhores arqueiros que desfrutam a ‘Coupe du Monde’. No confronto das duas equipes a zaga uruguaia é superior, bem como a intermediária, mas a ofensiva espanhola comandada por Zarra é capaz de desbaratar as mais sólidas defesas. Dessa forma, a peleja no Pacaembu embora apresente certo favoritismo por parte dos uruguaios, deverá empolgar (Diário Carioca, 9 jul. 1950, p. 10).

O resultado da partida foi um empate em 2 a 2, no qual o lendário jogador e capitão da equipe, Obdulio Varela, teria empatado a partida aos 28 minutos do segundo tempo. Um detalhe importante é que o público presente no estádio, segundo o jornal, torcia pelos uruguaios. Enquanto isso, na capital federal, a Copa contagiava a cidade. O jornal anunciava festa veneziana, ou seja, desfiles de barco na Baía de Guanabara no sábado, dia 8, em homenagem às delegações presentes, organizada pela Capitania dos Portos e pela prefeitura. Além disso, filmes oficiais da primeira fase do torneio eram exibidos nas sessões Passatempo Capitólio Cinelândia, e os

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ingressos eram vendidos em vários pontos da cidade, como nos teatros Municipal e Carlos Gomes e nas lojas Dragão e Exposição, e não mais apenas na sede da CBD, na Rua da Alfândega. A vitória sobre os suecos por 7 a 1 teria embalado ainda mais a agitada cidade e nem as notícias cotidianas sobre a Guerra da Coreia ou a campanha presidencial chamavam tanto a atenção do jornal quanto a Copa. Na véspera da partida com a Espanha, o clima na cidade parecia ser de comoção. As repartições públicas funcionavam durante meio expediente e o assunto em todos os lugares era a partida contra a “Fúria”, como era, e ainda é, conhecida a seleção espanhola. Era como se houvesse uma celebração da “comunidade imaginada”, na acepção de Benedict Anderson (2008), já que, pelo menos na cidade do Rio de Janeiro, o clima parecia ser de feriado e confraternização. No dia da partida, identificamos, em outra seção do jornal dedicada à sociedade carioca e que raramente mencionava algo sobre o esporte, uma interessante crônica assinada por Jacinto Thormes, intitulada “Fúria de cada um”, que ilustrava a expectativa dos cidadãos. Selecionamos alguns trechos ímpares: Como fugir do assunto do dia? O casal Quadros faz sete anos de casados e é no estádio que eles vão comemorar. A minha cozinheira vai levar o filhinho de seis anos para que ‘não esqueça nunca mais’... O prefeito prometeu outro discurso de incentivo. E os espanhóis que no início do campeonato declararam que só tinham medo da Suécia? O Uruguai já mostrou que eles não são sopa. Que faremos nós? Se perdermos, Flávio Costa vai ter que abandonar a sua já iniciada campanha para vereador, se vencermos será o mais votado do mundo. Até a minha avó está com vontade de ir ao jogo... Muita gente dormiu na rua e amanheceu no campo. Aumentou grandemente, segundo informou o senhor Rosa da Farmácia Jacy, a venda

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de calmantes de ontem para hoje. A Associação Atlética do Senado Federal pede ao público que cante o hino nacional. Para facilitar o pedido, os jornais andam publicando a letra de ‘ouviram do Ipiranga’. O presidente Dutra ontem deu seu palpite (particular) Brasil 3 x 2 Espanha... Vamos Ademir, meu nego (Diário Carioca, 13 jul. 1950, p. 6).

O fato de encontrarmos, em um espaço dedicado à sociedade carioca, uma crônica inspirada no ambiente da partida pode nos ajudar a entender melhor o clima do jogo. As assertivas poderiam ser verdadeiras ou apenas devaneios do responsável pela coluna. De qualquer modo, no conjunto das reportagens e crônicas, a situação fática de que a partida constituía-se em um evento espetacular para os cariocas parece fazer sentido.6 Enquanto isso, a seleção espanhola, que estava hospedada no Hotel Paineiras, recebia o carinho da grande colônia espanhola, bem como o apoio em mensagens telegráficas assinadas, inclusive, pelo ditador Franco, segundo o jornal (Diário Carioca, 14 jul. 1950, n. 6.762, p. 7). Apesar de a partida ser lembrada pela goleada de 6 a 1 e pelo fato de a torcida ter cantado “touradas de Madri”, acenando lenços brancos, a notícia principal sobre o jogo diz respeito a uma balbúrdia que teria ocorrido na entrada do estádio e a alguns incidentes, que apontariam grande desorganização e foram inclusive, segundo o material analisado, trágicos. O jornal relatou assim os referidos acontecimentos: Confusão geral no Estádio Municipal. Um morto, três feridos e mais 261 vítimas. Entraram sem bilhete milhares de pessoas. 6

Outra novidade que emerge no noticiário da partida contra a Espanha, na própria capa, foi a confusão na venda de ingressos e a acusação de facilitação para cambistas. Brigas nos pontos de venda foram registradas e a polícia precisou intervir (Diário Carioca, 14 jul. 1950, n. 6.762).

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Desabou um pedaço do muro, sob a pressão do povo – quedas, pisadelas, agressões – entrava gente sem bilhetes ou com bilhetes revendidos. Impossível o controle por falta de disposição prévia de serviços (Diário Carioca, 14 jul. 1950, p. 1).

Em São Paulo, a segunda partida da seleção uruguaia, desta vez contra os suecos, também foi cercada por expectativas, sem mobilizar tanto a capital paulista, mas com bom público presente, mesmo sendo realizada durante a semana. O Uruguai venceu de virada nos minutos finais, após estar perdendo por 2 a 1; caso não conquistasse a vitória, o título pertenceria antecipadamente ao Brasil. Com a vitória uruguaia, o Brasil estava na final, necessitando apenas de um empate para se sagrar campeão. A finalíssima seria entre dois rivais sul-americanos. No material jornalístico analisado, o Brasil passou a ser o favorito, apesar da lembrança da tradição vitoriosa do Uruguai, por causa das conquistas em 1924, 1928 e 1930. Enfim, chega-se à véspera da partida final. No Diário Carioca, Macedo Soares assina, na coluna editorial da primeira página, o que seria uma ode à Copa do Brasil: “Manifestação patriótica”. Alguns trechos ufanistas, inspirados na empolgação do momento, merecem destaque: Espetáculo patriótico – O grande espetáculo do estádio anteontem provocou na multidão um choque emotivo que se transformou numa exaltação patriótica como há muito não víamos, acabrunhados na miséria e mesquinharias dos tempos presentes. A formidável massa popular disciplinou seus instintos, compreendeu a força moral que resultaria de apoio entusiástico aos seus paladinos e foi, durante toda a luta vitoriosa, um só cérebro e um só coração, sustentando a causa comum. Capacidade empreendedora – Contudo tais manifestações solenes requerem o local e a oportunidade para se produzirem. O nosso

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estádio multidão começa por ser ele mesmo um padrão de largueza de vistas do esforço no trabalho e da coragem dos brasileiros que o conceberam e o construíram. O tempo, na avareza com que mede as boas obras humanas, ditou a sorte da aventura. Entre o triunfo e a derrocada não haveria meio termo. O construtor do estádio triunfou. Meios de comunicação – De véspera, os campeões pediram através dos jornais e do rádio o apoio poderoso na compreensão da multidão dos compatriotas e espectadores. Unidade nacional – No caso brasileiro, a força da unidade é o milagre permanente que o envolve, não obstante a vastidão do território e a tenuidade da população que ainda hoje mal se condensa nas marcas do Tratado de Tordesilhas, algumas décadas anterior à descoberta – O Brasil é um só país, uma só tradição, uma só crença. Esse fenômeno viu-se repetido no empenho nacional pela vitória, anteontem no Estádio monumental. Sem dúvidas, o nosso destino poderá suscitar oportunidades dramáticas de manifestarmos a unidade espiritual da Nação (Diário Carioca, 15 jul. 1950, grifos nossos).

O momento parecia ser tão marcante, e as circunstâncias tão expressivas, que mesmo um jornal menos comprometido com a causa da Copa, que, pelo menos em tese, buscava a “neutralidade” e a “objetividade jornalística”, parecia estar encurralado pelas circunstâncias. Observando a argumentação de seu dono falando em espetáculo patriótico, em capacidade empreendedora de nosso povo, do papel dos meios de comunicação e ainda seu discurso da unidade nacional, deixamos apenas a declamada afirmação integracionista, que equaciona futebol com nação, como símbolo do artigo: “O Brasil é um só país, uma só tradição, uma só crença”. Vislumbrava-se, assim, a grande vitória, a apoteose triunfal.

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No dia do jogo, as reportagens expressavam otimismo, mas alguns sinais de precaução puderam ser identificados. Em uma nota, o confronto era visto como favorável, porém, “convém não subestimar o valor do adversário”. Em nova crônica da seção Sociedade, proclamada como “Logo mais ou nunca”, o “colunista social” da época termina peremptoriamente: Só que os uruguaios possuem a classe e o sangue que fizeram deles mais de uma vez campeões do mundo. Mesmo se as últimas partidas dos orientais não foram ótimas, vamos nos lembrar de que futebol é futebol e na hora de lutar eles são duros e capazes de qualquer milagre. Todos nós estaremos confiantes, embora tremendo um pouco. Esta tarde veremos (Diário Carioca, 16 jul. 1950, p. 6).

Observemos que, nessa citação, os estereótipos atribuídos aos uruguaios pelos brasileiros falam de “classe e sangue”. Em virtude das conquistas passadas do Uruguai, o favoritismo da seleção brasileira, que havia sido “criado” após as duas goleadas nas semifinais, é contrabalançado com a tradição vencedora da seleção uruguaia. Ao final, o Brasil teria experimentado aquela que é considerada a maior derrota de seu futebol e, possivelmente, de toda a história dos Mundiais.7 Notemos que, até o presente, o Brasil é o maior ganhador de todos os tempos, mas também é o único campeão do mundo que não venceu em casa. Nessa derrota, teríamos experimentado a frustração de um sonho. O que explicou o Diário Carioca após a partida? Quase nada. Sem culpados diretos, surgem críticas ao prefeito e seu alto-falante e elogios à postura uruguaia. Na capa do jornal, uma pequena foto da comemoração do goleiro Máspoli, Júlio, Perez e mais dois dirigentes. Na página esportiva, outra foto de toda a equipe com a frase que é pratica7

DaMatta (1982) chega a falar em maior tragédia da história do país.

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mente uma lápide para a equipe brasileira de 1950: “Estes são os verdadeiros campeões do mundo”.8 Ao lado, a manchete “Preparados para golear, o Brasil não soube conquistar o empate”. Na incredulidade, a breve exaltação: 48 horas transcorridas, ainda ninguém conseguiu explicar como o fato aconteceu. O Brasil perdeu o campeonato mundial quando tudo parecia preparado para a vitória. Resiste apenas enquanto o tempo não passa uma impressão amarga de alguma coisa que faltou aos brasileiros e que sobrou aos uruguaios. Decisão, Bravura, Espírito de luta e principalmente a capacidade de vencer (Diário Carioca, 18 jul. 1950, p. 8).

Muitas explicações vêm sendo elaboradas, discutidas, inventadas e questionadas desde 16 de julho de 1950, seja no meio jornalístico, acadêmico ou no senso comum. Chegaremos a uma resposta definitiva? Cremos que não. Muitas são as fontes, diversos os caminhos. Apresentamos aqui mais uma rota possível, que em muitos pontos se cruza com caminhos dos jornais “uruguaios” estudados na dissertação de Cabo (2010). Visões uruguaias do torneio e da vitória Em função da desistência de países importantes, como Argentina, Áustria e França, apenas 13 seleções apresentaram-se para disputar o IV Campeonato Mundial de Futebol, realizado no Brasil. Com a manutenção dos grupos sorteados anteriormente, coube ao Uruguai, cabeça de chave do grupo 8

Diz-se que, como um jornal da cidade colocou a foto da seleção brasileira com o título “Estes são os campões do mundo”, o capitão da seleção uruguaia, Obdulio Varela, teria mandado comprar várias edições do referido diário e forrado o vestiário do Maracanã, dando ordens para seus jogadores urinarem no jornal. Para um estudo criterioso sobre a derrota da seleção brasileira em 1950, ver Perdigão (1986).

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quatro, ter de enfrentar apenas um adversário, a equipe boliviana, derrotando-a pelo placar de 8 a 0 no Estádio Independência, em Belo Horizonte (MG), no dia 2 de julho de 1950. Sobre essa partida, verificamos em reportagem do jornal Acción, “La defensa ofreció claros pero la delantera deslumbró”, que, apesar do resultado, o jogo teria começado nervoso, e o capitão Obdulio Varela teria se destacado por sua postura e seu comando no meio-campo uruguaio: El comienzo de la lucha mostró una mejor disposición del conjunto del altiplano que explotaba bien fallas fundamentales en la defensa celeste que, víctima de un gran nerviosismo no encontraba la forma de armase. A medida que fueran transcurridos los minutos Obdulio Varela fue repuntando y, al cumplirse los diez minutos de juego, se había convertido y bien apuntalado por Tejera en el casi absoluto dominador del centro de la cancha (2 jul. 1950, p. 12).

Independentemente de sua participação na final do dia 16 de julho, é importante destacar que o capitão uruguaio Obdulio Varela era considerado um jogador fundamental em diversas reportagens dos jornais uruguaios, desde essa primeira partida. Com a goleada, o Uruguai assegurava a participação no quadrangular que definiria o campeão do torneio junto às equipes de Brasil, Suécia e Espanha.9 Com respeito à fase final, o jornal Acción publica uma reportagem otimista intitulada “La chance de los celestes resulta para muchos críticos considerable”: Cuatro equipos de diferentes modalidades, dirimirán la Copa del Mundo, en la serie final que empezará el sábado próximo. – En-

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A Copa do Mundo de 1950 foi o único torneio que teve como fórmula de disputa final um quadrangular, no qual a equipe com maior número de pontos ficava com o título, diferentemente do tradicional regulamento de semifinais e finais.

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tre ellos se halla un team totalmente amateur, como Suecia, un segundo europeo, como España, de modalidad personalísima y dos conjuntos latinoamericanos, Uruguay y Brasil. Aunque estos dos países han tenido una vieja vinculación y el fútbol brasileño haya sido uno de los más parecidos al rioplatense, las diferencias los han separado hoy mucho (4 jul. 1950, p. 12).

É interessante observar que a comparação feita entre os “conjuntos latino-americanos” tem como referência o futebol “rioplatense”, notoriamente Uruguai e Argentina, até então escolas mais vencedoras na América do Sul. Na mesma reportagem, a equipe uruguaia que disputava a competição é definida da seguinte forma: Uruguay ha traído un equipo vigoroso, donde la experiencia de algunos veteranos como Obdulio Varela y Tejera se suman con energía otros elementos más nuevos como Miguez, Ghiggia y el cerebral Schiaffino, autentico conductor del ataque (4 jul. 1950, p. 12).

Na fase final, conforme apontado anteriormente, enquanto a seleção brasileira encantava a torcida com goleadas no Maracanã sobre a Suécia e a Espanha, em São Paulo, a equipe uruguaia enfrentava dificuldades nos confrontos com os adversários europeus. Empatou com a Espanha no final da partida e virou o jogo contra Suécia nos últimos 15 minutos, resultado que deixou a equipe com chances de conquistar o título em caso de vitória sobre o Brasil. Apesar do reconhecido favoritismo brasileiro, oriundo das exibições diante dos europeus, os uruguaios estavam “vivos” na competição e foi possível identificar, em algumas reportagens, a esperança de conquistar o título mesmo com as dificuldades encontradas nas partidas em São Paulo. Sobre a campanha uruguaia, o jornal El Dia, por exemplo, publicou a seguinte reportagem:

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Si Uruguay se rehace, Brasil puede enfrentar a una sorpresa. Lucharan titánicamente contra los suecos. – La alegría del nuevo triunfo – Si los celestes repitieran los últimos 15 del jueves en un decurso mayor.... Ya sobre los últimos 15 minutos el conjunto uruguayo, en un accionar pujante y arrollador puso de manifiesto la posesión de dos elementos que fueron transmisores de la victoria: superioridad física y moral (15 jul. 1950, p. 12).

Para aqueles que acompanharam as partidas da fase final do torneio, principalmente para a torcida brasileira, a mencionada “surpresa” publicada na reportagem apareceria no dia 16 de julho de 1950, vestida de azul-celeste. No entanto, para muitos uruguaios, a vitória poderia acontecer graças a atributos físicos e morais que geralmente são miticamente enaltecidos na chamada garra “charrúa”, além da mística da camisa “celeste”. Na imprensa uruguaia, a expectativa era grande. Embora reconhecessem que o Brasil era o favorito, até por ter a vantagem do empate, os uruguaios acionaram sua memória vencedora – com as lembranças das façanhas dos títulos olímpicos de 1924 e 1928, e o triunfo na primeira Copa realizada no Uruguai, em 1930 – e alimentavam o sonho de, mais uma vez, ter a bandeira pátria hasteada no maior posto e celebrar uma conquista futebolística. Mas como as reportagens uruguaias descreveram os momentos anteriores à partida? A expectativa na concentração uruguaia, o assombro diante do estádio lotado e a festa ocorrida no Maracanã são importantes registros nos jornais analisados. Os jogadores uruguaios encontravam-se hospedados no Hotel Paissandu, fundado no ano de 1938, bem próximo à Praia do Flamengo, em uma rua com majestosas palmeiras imperiais centenárias, em um ambiente bucólico e tradicional no bairro do Flamengo. A crônica do chefe de esportes do jornal El Dia, Ulisses Badano, “Algarabia y bullicio precedieron la lucha en el Esta-

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dio Maracana”, descreve o ambiente entre os uruguaios, desde a concentração até a entrada em campo dos atletas: En realidad, el júbilo matutino reinante en la concentración del Hotel Paissandu, cómodo, alegre, ahora de feliz reminiscencia, hizo pensar en un posible eficaz desempeño, pero la labor desplegada en la cancha resultó superior a todo cálculo posible... Más inexplicable aún, para aquella muchedumbre agolpada ante el gigantesco estadio desde las primeras horas del día... Como habrá sido la aglomeración que la mayoría de los cronistas tuvieran dificultades inmensas para lograr nuestras ubicaciones! Mucho antes del mediodía, el espectáculo fue adquiriendo esta fisonomía tan característica a estas luchas –es decir, exclamaciones de toda índole, cohetes, bombas, globos cautivos, con letreros alusivos, cantos en fin, culminando todo al aparecer el equipo brasileño... También la irrupción de los ‘celestes’ dio lugar a recepción cordial (17 jul. 1950, p. 9).

O jornal Acción registrou, em crônica sobre a partida, fatos ocorridos ao redor e dentro do estádio no dia 16 de julho de 1950, antes de o juiz inglês, Mr. Reader, apitar seu início. O jogo parecia ser encarado como algo maior do que uma partida de futebol; era comparado a um espetáculo grandioso, mobilizando milhares, conforme identificamos neste trecho: Detalles del espectáculo A las nueve y treinta de la mañana numerosa policía debió extremar esfuerzos a fin de evitar que grandes avalanchas de espectadores llegaran a forzar las grandes puertas de acceso que al fin debiesen ser abiertas no sin antes ser necesario reforzar a la policía para que a si le fuera posible organizar las colas interminables de público.

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La música, la alegría, también los grandes alto parlantes que no cesan un minuto de funcionar distraen al público haciendo más rápido el correr del tiempo. Numerosas bandas de instrumento sonoros bajan hasta el campo de juego de un verde magnífico e en que se destacan las líneas rectas y blancas. Muy blancas de cal que marginan el campo y señalan las áreas y el centro del field con un gran círculo. A intervalos, allá en el espacio azul se elevan magníficos globos cautivos que muestran al público enormes carteles con inscripciones en los que se elogia al prefecto de Rio por la obra de estadio y también se refieren a los jugadores reclamándoles el esfuerzo necesario para vencer y otros aclamando ya la victoria. Los grandes planos de las instalaciones techadas ponen una nota original en la grande masa del público y una más allá de los últimos tramos del estadio se ven asomar severos, inmensos empapando su cumbre en el azul del espacio, los morros, entre otros el magnífico Tijuca. Mientras las bandas permanecen en el campo, el público guarda silencio y las escucha, pero no bien se retiran brota de la multitud un clamoreo inmenso que se eleva mezclando las voces humanas y las de extraños instrumentos de ruidos y explosiones cada vez más violentas que parecen conmover hasta las bases del inmenso estadio (16 jul. 1950, p. 12).

A quantidade de pessoas presentes no Maracanã naquela final e a intensa mobilização na cidade do Rio de Janeiro também foram ressaltadas pelo periódico El Plata: Todos los cálculos e previsiones posibles que se habían hecho sobre el sensacional match de brasileños y uruguayos por la final del Campeonato del Mundo, quedaron rebasadas por la

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realidad que marca una nota de contornos imprevisibles. Desde ayer se anticipaba que la jornada determinaba la caída de todos los records en materia de recaudación pública, porque bastó observar el movimiento de la ciudad y las largas ‘colas’ establecidas en los lugares que se pusieron en venta las localidades, para tener una idea de la enorme atracción despertada. Muchos de los aficionados que hoy estaban presentes en el Monumental Estadio del Maracaná, seguramente tienen muchas horas sin dormir, por cuanto de las ‘colas’ para adquirir las entradas se iniciaran anteayer de madrugada y hoy, a una hora inconcebible, ya era un mundo de gente el que se colocó frente a las puertas del Estadio, esperando pacientemente que se diera acceso (16 jul. 1950, p. 2).

A partir dessas descrições, podemos inferir o ambiente da partida segundo os uruguaios. As reportagens registravam, entre outras coisas: a) a pressão exercida pela multidão que tomou o Estádio Mario Filho depois de enfrentar enormes filas; b) o clima festivo com música e alegria entre os brasileiros; e c) a beleza do cenário de um campo de futebol com suas múltiplas cores emoldurado em um dia de céu azul celeste, sob os morros que circundavam o estádio. As reportagens posteriores à histórica vitória uruguaia eram relatos patrióticos e entusiasmados dos jornalistas uruguaios presentes no Estádio Mario Filho. Esses relatos exaltavam a tradição até então vencedora do futebol uruguaio e reproduziam estereótipos sobre o estilo de jogo dos celestes: raça, valentia e coração. Dentre eles, destacamos a crônica intitulada “El equipo compatriota ablandó primero al team rival y después conquistó al público”, pois verificamos o acionamento da memória das conquistas passadas e a exaltação do povo uruguaio em diversos trechos:

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Hemos demostrado que el fútbol uruguayo no tiene parangón en la Tierra. Hemos reeditado las mejores hazañas de nuestros mejores tiempos deportivos, y quizá no sea exagerado expresar que esta de hoy es superior a Colombes, a la de Amsterdam y a la de Montevideo, porque se ha ganado en tierra extraña, con un cuadro que venía jugando mal, en medio de un clima realmente asfixiante por el público y la crítica ensoberbecidos. Todo parecía estar en contra nuestra, pero para oponerse a tanto factor adverso y para neutralizarlos, quedaba la garra tradicional jamás desmentida de los uruguayos... Es que volvíamos a ser campeones del mundo porque los muchachos tienen lo que tenían aquellos formidables orientales del 24, del 28 y del 30: calidad, garra y corazón, tres condiciones que jamás les fallaron y que han sido la fianza de nuestros sensacionales triunfos (El País, 17 jul. 1950, p. 18). 

O enaltecimento da raça uruguaia e o sangue “charrúa” retornam miticamente em outra interessante passagem da referida crônica: Tenemos que convencernos que existe algo adentro del jugador celeste que los impele al triunfo en los instantes de las grandes definiciones, algo muy grande que nada tiene y a lo que llamamos corazón, clase, coraje, pero que no es sino la combinación de todas esas virtudes fundamentales, que bien pudiéramos compendiar diciendo que es la sangre charrúa, esa sangre que nos diferencia, para enaltecernos, de todos los demás deportistas del orbe (El País, 17 jul. 1950, p. 18).

A partir desses relatos, seria possível identificar uma tradição inventada, no modelo apresentado por Eric Hobsbawm e Terence Ranger (1997), de que os uruguaios, por causa de seu sangue “charrúa”, sua garra, coragem e valentia, teriam nascido

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para ser vitoriosos no futebol? O pequenino Uruguai seria então o “país do futebol”, e não o Brasil, nessa época? Em trecho da reportagem “Brasil después del goal, se puso a la defensiva y esto lo condenó”, do jornal El Dia, também identificamos representações semelhantes ao “caráter” do jogador uruguaio que, para os narradores, teriam sido fundamentais para alcançar vitória: La técnica de este partido ha sido la moral, la garra, el corazón de los uruguayos, que no retrocede nunca, que no sabe de derrotas y que con una limpidez y un juego honrado, ha obtenido nuevamente el éxito. La victoria obtenida radica, fundamentalmente, en dos cosas: en la capacidad anímica de sus jugadores y en el concepto del estilo de juego que había que realizar. Al final parecía que nuestros jugadores estaban agotados. Caían al suelo y les contaba levantarse, pero no había ningún jugador brasileño que fuera con la pelota sin tener sobre él dos jugadores uruguayos que defendían el tanteador y el partido (17 jul. 1950, p. 10).

Outra reportagem do mesmo jornal, cuja ênfase eram as comemorações dos uruguaios depois da vitória, com o título “Maravillosa manifestacion de Jubilo y emocion, la del pueblo”, acaba reproduzindo também as representações assinaladas, além de acionar, em algumas passagens, a memória vitoriosa das conquistas anteriores: Y fue así. Tenía que ser así. Triunfaron los mismos varones de la estirpe que izó triunfante la enseña en Colombes, en Amsterdam, en Montevideo. Triunfaron porque no hay en el mundo, otros jóvenes de mayor habilidad para desplegar la técnica del juego y afirmar la profundidad de su ciencia

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sobre una entereza que se sobrepone a todas las adversidades (17 jul. 1950, p. 9).

Na mesma página, em outra matéria, o chefe de esportes do jornal, Ulisses Badano, ao comentar a partida, atribui a vitória prioritariamente à “escola uruguaia” de futebol: “Los Uruguayos jugaron sin ‘tácticas’ pero impusieron nuestra gran escuela”. A exaltação da maneira de jogar futebol do uruguaio era de fato muito presente nas diversas crônicas e reportagens. É interessante assinalar que, até nas descrições das jogadas, observamos o acionamento de expressões como valentia e raça para justificar lances capitais da partida. No jornal El Plata, o relato do segundo gol marcado pelo ponteiro-direito Ghiggia é um exemplo disso: A los 34 minutos, lo uruguayos se colocaran en ganancia merced a una extraordinaria jugada del puntero derecho Ghiggia. Este atacó después de recibir la pelota de parte de Gambetta dando a Perez. El insider advirtió con toda claridad la situación favorable y devolvió la pelota al puntero que entró como una seta al área dejando atrás a Bigode y Juvenal para despedir en seguida un violento tiro cruzado que Barboza no pudo detener pese a que se estiró de forma extraordinaria. De esa forma los uruguayos se colocaran en ganancia en forma merecida por la pujanza y valentía con que actuaron en esta segunda etapa (16 jul. 1950, pp. 2-3, grifos nossos).

O jornal Acción ressaltaria também a garra uruguaia e o caráter épico e inesperado da vitória, em virtude de uma possível má preparação da equipe. Na crônica “Y salió a Relucir la Garra Celeste”, dificuldades também são ressaltadas: Poco más difícil nos resulta en estos momentos en que estamos viviendo la gloria de una victoria no esperada traducir a nuestros

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lectores la hazaña mediante la cual por la cuarta vez nos hacemos dueños del título de Campeones del Mundo. Se trata de una hazaña solo parangonable con la de 1924 ya que jamás un equipo nuestra fue tan pobremente organizada así como también integrada por elementos más carentes de la necesaria veteranía (16 jul. 1950, p. 12)

Assim, em todos os veículos analisados, é possível encontrarmos a propagação de estereótipos sobre o futebol uruguaio que muitas vezes até transcendem o âmbito esportivo. A raça “charrúa” e o coração valente pulsando no peito dos jogadores uruguaios são representações que buscavam explicar o sucesso do até então vitorioso futebol celeste, e até definir seu estilo, a maneira de o “oriental” jogar bola. Seria a raça “charrúa”, naquele momento, uma tradição inventada, uma construção similar a construções semelhantes nos vizinhos do atual Mercosul, como a “viveza criolla” argentina ou o futebol-arte brasileiro?10 Naquela conjuntura histórica, o estilo uruguaio era o reflexo metafórico e estereotipado do povo que é vencedor nesse esporte, pelo menos nas representações sociais criadas após a final de 1950 no discurso da imprensa uruguaia e com muitos exemplos também na mídia impressa brasileira, como o Diário Carioca. A exaltação da raça, da valentia e do coração do capitão Obdulio Varela, conhecido como “El Jefe Negro”, não é um exemplo diáfano desse discurso até hoje reproduzido? Alguns mitos e estereótipos continuam reproduzidos em obras de jornalistas uruguaios, como no livro de Franklin Morales, Maracaná – los laberintos del caracter, uma referência sobre o assunto que reitera muitas representações contidas nos jornais da 10

Sobre o assunto estilo de jogo brasileiro e argentino, é interessante consultar trabalhos desenvolvidos por Ronaldo Helal, Hugo Lovisolo, Simone Lahud Guedes, Pablo Alabarces e Eduardo Archetti. Ver, por exemplo, alguns artigos em Gastaldo e Guedes (2006).

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época e nos depoimentos dos jogadores, inclusive sobre Obdulio Varela. Segundo o autor, duas atitudes do capitão teriam influenciado o desfecho da partida ainda na primeira etapa. A primeira teria sido um desentendimento com o lateral Bigode ocorrido aos 28 minutos, o polêmico lance da suposta bofetada; a segunda, dois minutos depois, um bico dado na bola pelo “Jefe Negro” para longe, em jogada disputada por Schiaffino e Danilo. Nesse sentido, verificamos até os dias atuais, em reportagens que envolvem confrontos entre Brasil e Uruguai e livros sobre o assunto, o acionamento da memória de 1950 e representações do futebol uruguaio como uma escola de garra e vontade. A capacidade técnica dos uruguaios, muitas vezes, é colocada em segundo plano, como mais um “esquecimento” no campo da memória, conforme trabalha Michael Pollack (1989). Independentemente de concordarmos ou não com a supervalorização do fato esportivo analisado, ou com as construções sobre a derrota feitas posteriormente, é fundamental buscar compreender como os vitoriosos uruguaios enxergaram a derrota brasileira naquele momento. Chega a ser curioso, mas, de certa forma, compreensível, o enaltecimento feito pela imprensa local à equipe e ao comportamento da torcida brasileira. Vale destacar trechos de uma crônica do jornal Acción que exibia em letras garrafais “Dos grandes triunfadores: Uruguay y Brasil”: Un Gran vencedor moral... Brasil acaba de conquistar una espléndida victoria moral tan amplia, de tan extraordinarios relieves que ella ha debido reflejarse en prestigio de toda nuestra América, colocando a nuestros países a la cabeza de cuantos se dedican a la difusión de la cultura física. Su tarea abrumadora de dar debida organización al desarrollo del gran certamen ha superado cálculos posibles provocando asom-

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bro en cuantos tuvieran la suerte de llegar hasta el acogedor Rio de Janeiro... Enorme triunfo el de Brasil al mostrar la capacidad de su pueblo magnífico, el amor con que acoge e impulsa las actividades que han de señalar a sus jóvenes ciudadanos nuevos y más felices delirios en su vida.... Puede, pues anotarse la Confederación Brasileña y sobre todo el gran público del país hermano una victoria por lo menos tan resonante como la deportiva que tanto deseó (17 jul. 1950, p. 1).

O bom comportamento do público no estádio e dos jogadores em campo é um elemento presente nas reportagens uruguaias. O correspondente do jornal El País, na crônica “El Brasil aceptó con hidalguia el fracaso”, afirma: Repetimos que esta inefable sensación de alegría y de la victoria nos embarga por igual a nosotros. El clima que he vivido en las calles de esta magnífica ciudad es realmente halagador. Ya dijimos que al sabernos uruguayos la gente nos hace objeto de múltiples demonstraciones de afecto y amistad, no logrando con ello sino dar más una prueba de la hidalguía y caballerosidad que caracteriza la noble rasa lusitana (17 jul. 1950, p. 21).

Outro exemplo do reconhecimento uruguaio com relação à conduta brasileira ante o revés está na já mencionada reportagem “Brasil, después del gol se puso a la defensiva y esto lo condenó”, do periódico El Dia: Dignísimo el rival Brasil ha jugado con dignidad, pero ha caído ante uno mejor; ha sido un gallardo adversario y ocupa un segundo puesto en la tabla de posiciones con todo honor y rendimos pleitesía al público brasileño que todavía, en las tribunas está aplaudiendo a

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los uruguayos campeones del mundo; rendimos homenaje a este público brasileño que ha sabido cumplir con su deber, representando en estos instantes la cultura deportiva de América (17 jul. 1950, p. 10).

Foi bom para os brasileiros serem considerados campeões morais, civilizados, cavalheiros e bem-comportados? Até que ponto o público presente no estádio, a comunidade imaginária (torcida brasileira), ficou feliz com as representações geradas tanto na imprensa uruguaia quanto na brasileira? Até hoje não se buscam explicações, culpados e fatores que teriam gerado uma derrota em um jogo de futebol? Razões extrínsecas, culturais, atemporais em um jogo de “11 contra 11”. Certamente, a maneira como a imprensa uruguaia exaltava o Brasil foi mais importante para eles, para a afirmação da grandiosidade do feito, da façanha épica, da odisseia futebolística, do dia do “Maracanazo”. Considerações finais A descrição da cobertura do jornal Diário Carioca possibilita identificar um olhar sobre a primeira Copa realizada no Brasil e como ela possui semelhanças com visões da imprensa uruguaia. O respeito à tradição do futebol uruguaio, mesmo com o favoritismo brasileiro na segunda fase da competição, um reconhecimento tácito da importância das vitórias olímpicas em 1924 e 1928 como símbolos de títulos mundiais e a descrição do ambiente festivo na cidade do Rio de Janeiro são alguns dos pontos convergentes do material analisado. A memória sobre o torneio, estabelecida por permanências e “esquecimentos” a partir de veículos de comunicação que narraram a competição, aponta caminhos e questões que podem ser

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trabalhadas e analisadas comparativamente com outros jornais já estudados sobre a Copa realizada no Brasil. Na dissertação de Cabo (2010), essa análise descritiva serviu como contraponto aos veículos uruguaios analisados, mas pode ser utilizada como material para aprofundarmos o estudo sobre o papel da imprensa escrita nos eventos esportivos na primeira metade do século XX no país, mais especificamente na Copa do Mundo de 1950. Dessa forma, este artigo apresenta outra visão, a partir de um jornal carioca até o momento pouco estudado, que pode ajudar na investigação da relação entre imprensa, seleção brasileira, nação, memória e sua aproximação com veículos da imprensa uruguaia. Referências ANDERSON, B. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão dos nacionalismos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ARCHETTI, E. P. Masculinidades: fútbol, tango y pólo en la Argentina. Buenos Aires: Antropofagia, 2003. CABO, A. V. “Copa do Mundo de 1950: Brasil x Uruguai – uma análise comparada do discurso da imprensa”. In MELO, V. A. (org.). História comparada do esporte. Rio de Janeiro: Shape, 2007. ——. Copas do Mundo de futebol – 1930 (Uruguai) e 1950 (Brasil). O olhar vitorioso. Uma análise do discurso da imprensa uruguaia (dissertação). UERJ, 2010. COSTA, L. A trajetória da queda: as narrativas da derrota e os principais vilões da seleção brasileira (tese). UERJ, 2010. DaMATTA, R. O universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982. GASTALDO, E. L. e GUEDES, S. L. (orgs.). Nações em campo: Copa do Mundo e identidade nacional. Niterói: Intertexto, 2006. HELAL, R. e LOVISOLO, H. “Jornalismo e futebol: argentinos e brasileiros ou do ‘odiar amar’ e do ‘amar odiar’”. In MARQUES, J. C. (org.). Comunicação e esporte: diálogos possíveis. São Paulo: Artcolor, 2007.

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Sites  http://www.diariocarioca.com.br http://www.lainsignia.org

Do complexo de vira-latas à “nossa” Taça do Mundo José Carlos Marques

Algumas considerações sobre o futebol e o Brasil Uma parcela considerável de nossos jornalistas, atletas, dirigentes e demais atores da cena esportiva aprecia, por vezes, repetir o bordão segundo o qual o Brasil seria “o país do futebol”. Tal máxima advém, em grande medida, das conquistas que a seleção brasileira de futebol obteve em campos de todo o mundo, especialmente a partir de 1958, quando conquistou pela primeira vez uma Copa do Mundo nessa modalidade. Também na década de 1950 tornou-se célebre a referência ao “complexo de vira-latas”, expressão cunhada pelo dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues, em alusão à derrota brasileira no Mundial de 1950, disputado no próprio país. Neste artigo, colocaremos em perspectiva essas duas noções antagônicas – a da vitória e a da derrota –, as quais formam, há tempos, um movimento pendular que explica em boa medida o universo simbólico que envolve o futebol brasileiro em torno da invenção de uma série de tradições (para ficarmos por ora com um conceito caro ao historiador Eric Hobsbawm e sobre o qual

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discorreremos em detalhes mais à frente). Antes, porém, é importante verificar como o futebol inseriu-se e imbricou-se de modo tão vicinal na sociedade brasileira, algo para o qual a obra do antropólogo Roberto DaMatta traz contribuições decisivas. Para ele, no artigo “Esporte na sociedade: um ensaio sobre o futebol brasileiro”, “o futebol seria popular no Brasil porque permite expressar uma série de problemas nacionais, alternando percepção e elaboração intelectual com emoções e sentimentos concretamente sentidos e vividos” (1982, p. 40). Assim, a importância desse esporte em nosso país transcenderia a mera esfera do entretenimento, já que estaria incluída no meio da ordem social. Coube ao próprio Roberto DaMatta fazer a aproximação mais relevante entre futebol e cultura de massa, por meio de inúmeros estudos em que se pretende inaugurar um novo olhar sobre o país. Desde o aparecimento de seus “discursos fundadores”, o Brasil sempre procurou ser pensado a partir de sua alteridade, isto é, fo­mos vistos continuamente a partir dos olhos europeus (e, mais recentemente, norte-americanos). A doutrina hegeliana, que fazia da América Latina um simples espaço da natureza e da emoção (em oposição à Europa e, mais precisamente, à Alemanha – espaço da razão), impregnou-se desmesuradamente em nosso continente, fazendo com que fôssemos (e continuássemos sendo) falados pelo olhar eurocêntrico. O antídoto a esse pensamento, em nosso país, teria muito a ver com a presença que o futebol ocupa – e as operações que ele põe em funcionamento – no seio social: Se, de fato, carnaval, religiosidade e futebol são tão básicos no Brasil, tudo indica que, diferentemente de certos países da Europa e América do Norte, nossas fontes de identidade social não são instituições centrais da ordem social, como as leis, a Constituição, o sistema universitário, a ordem financeira etc., mas certas atividades que nos países centrais e dominantes são tomadas

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como fontes secundárias e liminares de criação de solidariedade e identidade social. Assim são a música, o relacionamento com os santos e espíritos, a hospitalidade, a amizade, a comensalidade e, naturalmente, o carnaval e o futebol, que permitem ao brasileiro entrar em contato com o permanente de seu mundo social (1982, p. 39).

Desse modo, vemos que, no Brasil, o mundo do futebol acaba contaminando outros discursos, por meio de expressões que passam a ser aproveitadas coloquialmente em outras situações. Roberto DaMatta lembra a expressão “ter jogo de cintura”, que circula livremente no âmbito do futebol e no da política. Mas existem inúmeras outras expressões que, originárias do mundo futebolístico, são incorporadas não só pelo mundo político, mas também pelo meio social, em sentido amplo. Hoje, não só o cronista esportivo conhece o código futebolístico. Qualquer homem comum, aficionado ou não ao futebol, tem uma relação ativa com esse código (utilizando-o fora ou no seu emprego), ou passiva (recebendo-o forçosamente através de mensagens publicitárias ou de outros canais). A penetração dessa linguagem especial tornou-se consequentemente um poderoso fator de enriquecimento do léxico da língua portuguesa (Fernández, 1974, p. 38).

Sob esse aspecto, a mobilização da torcida brasileira em torno dos jogos das Copas do Mundo atesta bem a aproximação entre futebol e cultura popular em nosso país. Em 1962, o Diário de Notícias, no Rio de Janeiro, referia-se assim aos dias de jogos da seleção brasileira: O que se diz... Que verdadeiramente o Brasil é o país do futebol e do carnaval. Que quem duvidar disso pode muito bem ter cer-

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teza agora com as transmissões da Copa do Mundo que o Rio, pelo menos, parou inteiramente para escutar o jogo. Que até nos bancos tinha rádio alto ouvindo o jogo e se podia muito bem entrar, ir lá dentro no cofre, e sair tranquilamente (2 jun. 1962, p. 7, Segunda Seção).

Para a imprensa brasileira, as conquistas brasileiras no futebol sempre foram alçadas à condição de temas importantes e merecedores de destaque, especialmente nos jornais de apelo mais popular. Quando a seleção brasileira conquistou a Copa do Chile, em 1962, a Última Hora, na segunda-feira (18 jun. 1962), um dia após a decisão contra a Tchecoslováquia, estampava as seguintes manchetes na primeira página: “‘Taça do Mundo’ é nossa mais 4 anos” – “Povo canta a vitória final nos 4 cantos do país: ‘Mesmo sem arroz e feijão, o Brasil é bicampeão!’”. Não tardaria, portanto, para que as seções esportivas ganhassem cada vez mais espaço nos jornais brasileiros da segunda metade do século XX, a ponto de se tornarem, pouco tempo depois, um dos alvos de maiores patrocínios dentro do jornal. Com o tricampeonato mundial de futebol conquistado pelo Brasil em 1970, os principais jornais do eixo Rio-São Paulo passaram a dedicar cada vez mais espaço à cobertura desse esporte por ocasião das Copas do Mundo seguintes, ainda mais em virtude dos investimentos maciços que passaram a envolver as transmissões televisivas dos jogos. Até lá, entretanto, um pequeno e tortuoso caminho precisou ser percorrido em torno da superação de um trauma: o da perda da Copa de 1950. O movimento pendular do Brasil e as Copas do Mundo Esse trauma começou a ser superado no dia 29 de junho de 1958, quando o Brasil conquistou, em gramados suecos, seu primeiro título de um Mundial de futebol. A seleção nacional

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disputava uma Copa do Mundo pela sexta vez e era a única agremiação a ter participado de todos os torneios organizados até então pela FIFA – entidade criada em 1904 para regulamentar a prática global do futebol. A vitória diante da anfitriã Suécia por 5 a 2 na finalíssima daquela Copa servia para redimir uma nação aquebrantada diante do insucesso ocorrido oito anos antes, quando o Brasil fora derrotado em seus próprios domínios diante do Uruguai, no Estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, na decisão da Copa do Mundo de 1950. Esse enredo, obviamente, já é de conhecimento da maioria dos leitores que acompanham minimamente as histórias do futebol brasileiro e mundial. Assim como também é de conhecimento do aficionado médio de esportes que o Brasil, na segunda década do século XXI, continua sendo o único país a ter participado de todas as 19 Copas já realizadas até hoje; e que em 2014 voltará a organizar um Mundial de futebol no país, 64 anos após a experiência levada a cabo no contexto internacional que sucedeu o fim da Segunda Guerra Mundial. Em 1950, enquanto as principais potências do planeta reorganizavam-se em torno de uma nova ordem ditada pelas consequências do conflito na Europa, o Brasil vivia novo período de funcionamento das instituições democráticas após o fim do Estado Novo e do governo do presidente Getúlio Vargas, em 1945. Nesse ambiente de renovação econômica e política, o país exultava a possibilidade de assumir a supremacia mundial do futebol com a conquista do torneio sobre o qual ele depositava tantas expectativas e para o qual ele tanto se preparara com a construção do já citado Maracanã, que durante muito tempo ostentou o título de “maior estádio do mundo”.1 A débâcle inesperada contra uma seleção uruguaia que chegara 1

A esse respeito, ver a obra de Gisella de Araújo Moura, O Rio corre para o Maracanã (1998).

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quase despercebida à fase final do certame deixou marcas profundas no imaginário nacional, compondo aquilo que a imprensa brasileira batizaria de “Maracanazo”, como sinônimo do maior revés esportivo já sofrido por uma equipe brasileira numa competição esportiva. Insistimos inicialmente no episódio da derrota brasileira no Mundial de 1950 porque se trata de um momento ímpar de nossa história futebolística, no qual se estabelece um dos polos extremos desse processo pendular que oscila entre a negação completa de nossa equipe e a sublimação heroica de nossos jogadores (este último polo terá início justamente no Mundial de 1958, como veremos mais adiante). Vejamos por ora o polo negativo desse movimento pendular iniciado em 1950 e que se caracteriza sempre pela atribuição coletiva de culpas àqueles atores sobre quem, injusta ou justamente, recai a responsabilidade da derrota. No triunfo uruguaio da Copa de 1950, por um processo silencioso engendrado pelos meios de comunicação e pela opinião pública, coube ao goleiro Barbosa e aos defensores Juvenal e Bigode o ônus do fiasco. Sobre Barbosa, entretanto, foram lançadas as farpas mais lancinantes já dedicadas a um futebolista brasileiro, a ponto de ele, anos antes de falecer, ter sacramentado em depoimento comovente o sentimento de injustiça que sobre ele pairou: “No Brasil, a maior pena que existe é de trinta anos, por homicídio. Eu já cumpri mais de quarenta anos de punição por um erro que não cometi”. Era com essas frases, em tom de lamento, que o arqueiro sintetizava sua história na seleção nacional, a despeito de o Brasil, ao longo desse período de cumprimento da “pena”, ter conquistado quatro Copas do Mundo enquanto Barbosa era vivo (o atleta viria a falecer em abril de 2000, pouco mais de dois anos antes do título brasileiro na Copa de 2002, disputada no Japão e na Coreia do Sul). O drama do goleiro ganhou tamanha dimensão que foi até transposto para as telas do cinema pelos diretores Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado, que em 1988 realizaram

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o curta-metragem Barbosa, inspirado no livro Anatomia de uma derrota, do crítico de cinema Paulo Perdigão. Aliás, o relato de Paulo Perdigão sobre a derrota do Brasil em 1950 mostra a importância do futebol em nossa realidade sociocultural. O futebol consegue ser, em nosso país, um es­porte que deixa marcas profundas no imaginário popular – tanto na espetacu­laridade da vitória (vide 1958 na Suécia e 1970 no México) como na dramaticidade da derrota, cujo maior exemplo é a final com o Uruguai, no Maracanã: A ânsia descontrolada e irracional cedeu lugar a seu reverso, e o impulso de criatividade sucumbiu ao impulso da destrutividade: ficou a angústia de sentir que a nação tinha morrido no gramado do Maracanã, e também uma desesperança quanto à efetivação de qualquer projeto coletivo. Parecia uma facticidade, contra a qual nada há a fazer – a versão tropical do niilismo nórdico, segundo a qual a vida é uma sucessão de obstáculos até chegar a morte, a derrota final (Perdigão, 2000, p. 29).

Nesse movimento pendular que vimos definindo neste texto, o polo negativo é inclemente com seu eleito. Como não é nossa intenção esgotar o assunto nestas linhas, propomos apenas um exercício mnemônico ao leitor, em busca dos “bodes expiatórios” que explicariam e justificariam sumariamente nossas derrotas em Copas do Mundo: em 1966, a confusão provocada pela comissão técnica e pela então Confederação Brasileira de Desportos (CBD); em 1974, o despreparo do técnico Zagallo; em 1978, o burocratismo militar sublimado pelo técnico Cláudio Coutinho; em 1982, o descuido de um passe do meio-campista Toninho Cerezo; em 1986, o pênalti desperdiçado pelo meia Zico diante da França; em 1990, a falta de brilho do técnico Sebastião Lazaroni e a falta de maleabilidade da “Era Dunga”; em 1998, a saúde cambaleante de Ronaldo Fenômeno e a crise no dia da decisão

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com a França; em 2006, o arrumar das meias do lateral-esquerdo Roberto Carlos, diante mais uma vez da França; em 2010, a teimosia do técnico Dunga e a truculência do meia Felipe Melo. A lista poderá ter a inclusão ou a exclusão de um ou outro nome, mas esses personagens aqui listados não conseguem se dissociar da pecha do fracasso e da derrota. Em meio a esse processo de atribuição de culpas, poucas vezes nos damos conta de que nós, brasileiros, estamos criando um mecanismo compensador ilusório. Como bem observou o jornalista Mario Filho na introdução de O negro no futebol brasileiro: “Quem perdeu em 50 foi o brasileiro. Mais o brasileiro que não jogou do que o que jogou”. E, ao acusar jogadores negros e mulatos (Barbosa, Juvenal e Bigode), o brasileiro acusava-se a si mesmo. A obra de Mario Filho buscava, assim, promover maior reflexão sobre um pensamento corrente à época, segundo o qual atletas não brancos teriam maior propensão à instabilidade emocional em momentos de decisão.2 Esse quadro tem uma guinada radical justamente quando o pêndulo de nossas participações em Copas atinge o polo oposto, o positivo, na Copa de 1958, na Suécia. Aqui, teria início a valorização da mestiçagem no escrete brasileiro, com a sublimação de uma equipe que, na decisão do torneio, havia entrado em campo com quatro jogadores negros e mulatos (Djalma Santos, Garrincha, Vavá e Pelé) – todos eles suplentes na estreia da seleção contra a Áustria, em 8 de junho, quando o meia Didi era o único negro do time. Dá-se início, assim, a um processo de inversão e de valorização étnica da mestiçagem nacional.3 Dá-se início, ainda, à cristalização do outro polo de nosso movimento pendular, 2

3

A respeito desses episódios, e a fim de se ter uma visão distinta, recomendamos a leitura do artigo de Antonio Jorge Soares, “História e invenção de tradições no futebol brasileiro” (em Helal, Soares e Lovisolo, 2001, pp. 13-50). Como atesta José Sergio Leite Lopes no artigo “Futebol mestiço”, em junho de 1998.

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polo esse que irá buscar a celebração da plasticidade e da habilidade futebolistas brasileiras, casos dos mesmos Garrincha e Pelé, em 1958; de Garrincha e Amarildo, em 1962; de Pelé, Jairzinho, Tostão, Gérson e Rivelino, em 1970; de Romário, em 1994; e de Ronaldo Fenômeno e Rivaldo em 2002, anos em que o Brasil sagra-se campeão mundial. A criação – e a superação – do complexo de vira-latas Após a derrota na Copa de 1950, o escritor, dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues (irmão do já citado Mario Filho) começa a configurar-se como uma das figuras mais emblemáticas da imprensa esportiva brasileira, por meio de uma escrita singular e “contaminada” por recursos complexos de composição linguística e poética (como quisemos demonstrar em Marques, 2012). Um desses recursos complexos é o que está condensado semanticamente no conceito do “complexo de vira-latas”, o qual é recorrente nas crônicas de Nelson e para o qual ele mesmo apresenta uma definição: “por ‘complexo de vira-latas’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isso em todos os setores e, sobretudo, no futebol” (1993, p. 52). A cada derrota da seleção brasileira, a cada insucesso flagrante, ou seja, a cada movimento pendular extremo que atingia o polo negativo, o fatalismo do fracasso acabava por se instalar no torcedor, fazendo o brasileiro sentir a “nostalgia eterna da rapadura”, para ficarmos em outra expressão rodrigueana. Para o cronista, a superação desse trauma seria possível justamente por meio do futebol, uma vez que o brasileiro possuía virtudes próprias que o distinguiriam do futebol europeu e que poderiam fazer com que nos sentíssemos um vencedor “nato e hereditário”, antecipando em várias décadas a lógica do phármakon, que conteria em si as sementes da cura e da destruição, aproveitado por José Miguel Wisnik (2008) no inspirador Veneno remédio: o futebol e o Brasil.

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Para Nelson Rodrigues, o complexo de vira-latas teria se fortalecido com o “Maracanazo” de 1950, o qual representava para ele – de maneira hiperbólica, naturalmente – nossa maior catástrofe nacional, nossa Hiroshima, na qual “cada um de nós pagou todos os seus pecados nas últimas 45 encarnações”. É o que explicaria o “servilismo colonial” do brasileiro, que “adora ignorar as próprias virtudes e exaltar as próprias deficiências, numa inversão do chamado ufanismo”. O polo negativo desse pêndulo manifestava-se de maneira turbulenta nas derrotas, como se o brasileiro fosse um Narciso “às avessas” e como se de nosso lábio pendesse “a baba elástica e bovina do subdesenvolvimento” a cada fiasco inesperado. Afinal de contas, como uma seleção que esteve presente em todas as Copas do Mundo – a única a cumprir essa primazia – pode deixar de ser a vitoriosa? A superação desse complexo, obviamente, explode no instante exato em que o pêndulo atinge o polo oposto, ou seja, na vitória definitiva, quando o ufanismo nacional brota de todas as entranhas do país. Em Nelson Rodrigues (1993), vemos continuamente a tentativa de ultrapassar os limites do “vira-latismo”, seja por meio da superlativação das conquistas, seja por meio da sublimação do patriotismo: Eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: – sou de um patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro bigodudo (p. 52). Ante as riquezas do mundo, cada um de nós é um retirante de Portinari, que lambe a sua rapadura ou coça a sua sarna. A humildade tem sentido para os césares industriais dos Estados Unidos. Já o pau-de-arara precisa, inversamente, de mania de grandeza (p. 111). O escrete não é outra coisa senão a pátria. Se não é pátria, que fazem as bandeiras, sim, as bandeiras, que pendem das janelas? E

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o hino? Por que tocam o hino diante do escrete perfilado? E ainda mais: – por que o escrete está vestido de verde e amarelo? (p. 152)

Mas havia motivos para júbilo diante da campanha do Brasil na Copa de 1958? Os resultados apontam que sim, especialmente as performances da equipe na semifinal e na final do torneio, quando repetiu o mesmo placar de 5 a 2, primeiro sobre a França, depois sobre a Suécia. Antes disso, na primeira fase, a equipe brasileira havia vencido a Áustria por 3 a 0, empatado em 0 a 0 com a Inglaterra e ganhado da então União Soviética por 2 a 0. Nas quartas de final, superou o País de Gales por 1 a 0. Ao todo, foram seis partidas, com cinco vitórias e um empate, totalizando 16 gols marcados e apenas 4 sofridos.4 Para uma seleção que chegara desacreditada para a disputa do torneio na Suécia (Assaf e Martins, 1998) e que, após a derrota em 1950, havia aposentado a cor branca de sua camisa e adotado o amarelo para disputar a Copa de 1954, o triunfo em campos europeus só poderia representar um processo de catarse coletiva e de superação do “vira-latismo” após a tragédia do “Maracanazo”. E, além da natural euforia protagonizada pelos meios de comunicação (como destacado no artigo “A pátria de chuteiras está desaparecendo?” de Soares et al., 2010), era necessário estampar também por meio da música a superioridade brazuca. Disso deu conta a composição “A Taça do Mundo é nossa”, de autoria de Wagner Maugeri, Lauro Müller, Maugeri Sobrinho e Victor Dagô: A Taça do Mundo é nossa Com brasileiro não há quem possa 4

As datas, fichas de jogos e demais informações técnicas sobre as partidas desse Mundial podem ser consultadas no sítio oficial da FIFA sobre o evento. Disponível em http://pt.fifa.com/worldcup/archive/edition=15/index.html. Acesso em 30 mar. 2013.

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Êh eta esquadrão de ouro É bom no samba, é bom no couro O brasileiro lá no estrangeiro Mostrou o futebol como é que é Ganhou a Taça do Mundo Sambando com a bola no pé Goool!

Com uma melodia simples e contagiante estruturada em apenas duas estrofes, a canção fora publicada depois da Copa e chamava a atenção para a superioridade brasileira (“Com brasileiro não há quem possa”) e para o ethos futebolístico da malemolência e da habilidade tupiniquins ilustrados nos versos “O brasileiro lá no estrangeiro/ Mostrou o futebol como é que é”, tudo isso por meio da dança e do ritmo: “Sambando com a bola no pé”.5 Independentemente do fortalecimento desse ethos, cabe verificar como o futebol, num país com forte concentração de riquezas, como é o Brasil, seria capaz de proporcionar aos menos favorecidos a experiência da vitória. Com regras aceitas e conhecidas por todos os seus intervenientes, o futebol permitiria a identificação com os símbolos do Estado nacional (bandeira, hino, cores, conforme pretendido por Nelson Rodrigues), apanágios da elite e dos militares, mas apropriados pelo povo (DaMatta, 1994, p. 17). Uma visão mais apocalíptica sobre a apropriação dos símbolos nacionais por meio do futebol é a formulada por Marilena Chauí (2000), em texto no qual ela denuncia que o “verdeamarelismo” teria sido elaborado no curso dos anos pela classe dominante brasileira, como imagem celebrativa de um “país essencialmente agrário”. A construção desse conceito coincidiria com 5

Observemos que esse mesmo ethos valorizado nacionalmente é problematizado e recebe outra perspectiva em Helal, Soares e Lovisolo (2001).

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o momento em que o “princípio da nacionalidade” era definido pela extensão do território e pela densidade demográfica. O uso da bandeira teria sido imposto pelo regime militar a partir de 1964, ao contrário do que se viu em 1958: Nas comemorações de 1958 e de 1970, a população saiu às ruas vestida de verde e amarelo ou carregando objetos verdes e amarelos. Ainda que, desde 1958, soubéssemos que ‘verde, amarelo, cor de anil/ são as cores do Brasil’, os que participaram da primeira festa levavam as cores nacionais, mas não levavam a bandeira nacional. A festa era popular. A bandeira brasileira fez sua aparição hegemônica nas festividades de 1970, quando a vitória foi identificada com a ação do Estado e se transformou em festa cívica (p. 32).

De todo modo, mesmo que descontada a questão do uso da bandeira nacional, temos o aflorar de um sentimento ufanista em torno do futebol a partir de 1958, denunciado pela canção “A Taça do Mundo é nossa”. O próprio Nelson Rodrigues atestaria que, graças ao futebol, o brasileiro pudera superar o “complexo de vira-latas”, tornando-se um “César com manto de arminho”. Antes, éramos subservientes às grandes potências: “O brasileiro se punha de cócoras diante do mundo. Isso aconteceu no curto período de 1500 a 1958” ( Jornal dos Sports, 4 jun. 1963), e isso ocorreu assim “no curto período de Cabral a Garrincha” ( Jornal dos Sports, 14 jun. 1963). Porém, “na taça Jules Rimet, o Brasil ergueu uma juba frenética, incandescente” (1994, p. 57). Criava-se ainda, no Mundial de 1958 da Suécia, uma série de tradições (algumas mais inventadas, outras menos) a respeito da supremacia do futebol brasileiro – tradições essas que ainda hoje permeiam o imaginário coletivo em torno de uma seleção que, para muitos, é a melhor que o Brasil já produziu numa Copa.

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A invenção das tradições Uma das questões importantes a serem destacadas na Copa de 1958 é o surgimento do videoteipe, o qual permitia aos torcedores brasileiros, pela primeira vez, assistir às partidas de futebol disputadas na Suécia. Detalhe: esses jogos eram vistos em salas de cinema, dois ou três dias após a data de realização, quando, então, eram, na maior parte dos casos, “ouvidos” pelo rádio e “lidos” nos jornais no dia seguinte. A presença de um suporte imagético para mediar esse consumo do fato esportivo provocará mudanças significativas na relação do esporte com os meios de comunicação – algo que transborda os limites deste texto. De todo modo, fiquemos aqui com as relações entre cultura de massa e esporte, cujas condições tecnológicas do início da primeira metade do século XIX, ao lado da organização ainda inédita de um novo espaço urbano, passaram a exigir uma automação das reações físicas e dos reflexos humanos. Essa nova ordem social, aliada ao progresso e aos avanços tecnológicos, demanda do ser humano um novo comportamento do corpo, uma nova postura, que passará, ca­da vez mais, a estar relacionada com seu desempenho físico: Na sua busca de novos traços de identidade e de solidariedade coletiva, de novas bases emocionais de coesão que substituíssem as comunidades e os laços de parentesco que cada um deixou ao emigrar, essas pessoas se veem atraídas, dragadas para a paixão futebolística que irmana estranhos, os faz comungarem ideais, objetivos e sonhos, consolida gigantescas famílias vestindo as mesmas cores (Sevcenko, 1994, p. 35).

Ao lado do surgimen­to da imprensa e da indústria cultural, vemos, no século XIX, o aparecimento de diversas modalidades esportivas: o esporte passa a representar um mecanismo de afir­

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mação dos valores capitalistas básicos, como o individualismo e o igualitarismo. Portan­to, não é por mero acaso que o esporte como domínio social e como “indústria” se tenha firmado dentro do contexto de sur­gimento da sociedade de massa. E não é por mero acaso também que diversas modalidades esportivas (notadamente o futebol, mas também o turfe, a luta livre, o boxe, o remo, o tênis e o atletismo) surgiram na Inglaterra, que consolidava o sistema liberal democrático no final do século XIX. Os ingleses aprenderam, assim, a projetar em seu lazer os valores do esporte, ligados ao combate com regras, à obediência a horários e regulamentos etc. Aqui, estamos diante do fenômeno da invenção das tradições do qual fala Eric Hobsbawm no texto “A produção em massa de tradições: Europa, 1870 a 1914”: As últimas três décadas do século XIX assinalam uma transformação decisiva na difusão de velhos esportes, na invenção de novos e na institucionalização da maioria, em escala nacional e até internacional. Em segundo lugar, tal institucionalização constituiu uma vitrina de exposição para o esporte [...] e também um mecanismo para ampliar as atividades até então confinadas à aristocracia e à burguesia endinheirada capaz de assimilar o estilo de vida aristocrático, de modo a abranger uma fatia cada vez maior de ‘classes médias’ (1984, p. 306).

A “invenção da tradição”, para Hobsbawm, teria a ver com os novos e velhos ambientes sociais radicalmente modificados com a Revolução Industrial, os quais passaram a exigir novos instrumentos que pudessem manter as identidades de grupos sociais há muito hierarquizados. As práticas simbólicas de manutenção ou de criação dessas identidades, por sua vez, buscavam incorporar valores por meio da apropriação de um passado histórico (que se manifestava pela repetição de ritos e rituais) ou pela incorporação de novas práticas e novos hábitos também de cunho ritualístico,

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agora ressignificados em função do novo espaço urbano e das novas formas de produção. Trata-se, portanto, de um processo quase mecânico (à semelhança da forma de produção industrial do novo mundo) baseado em três tipos de categorização das práticas socioculturais: 1) uma em que se estabelecem formas de admissão e de legitimação de novos grupos e comunidades; 2) uma em que se estabelecem e se legitimam hierarquias por meio de instituições e formas de poder; e 3) uma em que se buscam a socialização e a sistematização de novas normas de comportamento na urbe. O esporte vem atender, de maneira inesperada, à sublimação dos princípios dessa terceira categorização das tradições. No esporte praticado pela classe média, tínhamos a combinação de dois elementos da invenção da tradição – o político e o social. A primeira tentativa era formar uma elite dominante que se baseasse no modelo britânico de organização, de modo que este procurasse suplantar os outros modelos aristocrático-militares mais velhos do resto da Europa. Dependendo da situação, o esporte se associava a elementos conservadores e liberais nas classes médias e altas da Inglaterra. A segunda tentativa significava uma busca mais espontânea de se isolar as massas, especialmente por se dar maior ênfase ao amadorismo como critério do esporte de classe média alta. Mas a combinação dos elementos político e social tinha também o objetivo de desenvolver um novo e específico padrão burguês de lazer e estilo de vida, por meio de critérios flexíveis de admissão em grupos. Eric Hobsbawm aponta ainda dois fenômenos advindos da coesão de grupos distintos em torno do esporte: primeiro, temos a sedimentação de laços que uniam os habitantes do Estado nacional, independentemente das diferenças locais ou regionais, a partir de competições que evoluíram espontaneamente ou por meio de mecanismos comerciais – caso do Tour de France ou do Giro d’Italia (principais competições de ciclismo da Europa), ou das finais do campeonato inglês de futebol; em segundo lugar, ve-

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mos a criação de campeonatos esportivos internacionais complementando-se com os de âmbito nacional. Ambas as manifestações alcançariam sua expressão maior com as Olimpíadas de 1896, a primeira da Era Moderna desde os jogos olímpicos gregos da Antiguidade. Os campeonatos internacionais, desse modo, serviram, no início, para sublinhar a unidade das nações ou impérios. O nacionalismo tornou-se um substitutivo para a coesão social através de uma igreja nacional, de uma família real ou de outras tradições coesivas, ou autorrepresentações coletivas, uma nova religião secular, e que a classe que mais exigia tal modalidade de coesão era a classe média em expansão, ou antes, a ampla massa intermediária que tão notavelmente carecia de outras formas de coesão. A esta altura, novamente a invenção de tradições políticas coincide com a de sociais (1984, p. 311).

Diante desse processo de “invenção de tradições”, o futebol passa a ser um elemento potencialmente importante na transição entre uma civilização rural e uma civilização citadina. Nesse sentido, a particularidade desse jogo estaria no fato de ser praticado ao ar livre e sobre uma superfície de grama e terra, o que certamente viria a causar grande apelo numa sociedade cada vez mais “urbanizada e asfaltizada” das cidades, por causa do fluxo migratório para as metrópoles advindo da Revolução Industrial. O futebol, assim, ritualiza o mito do surgimento de um mundo agrário e rural cercado pelos muros da metrópole, como nos diz o professor de literatura Flávio Aguiar: Em seu rito, o futebol evoca presenças – terra, sol, vento – de uma originalidade arcaica e de uma história agropastoril, por entre rasgos urbanos: o concreto das arquibancadas, o poder das luzes e, ultimamente, o visgo dos placares eletrônicos. [...] No estádio, a dispersão de vozes cria uma paisagem animada pela necessária multiplicidade da presença coletiva. Essa pai-

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sagem é o oposto de uma natureza-morta. Os mídia modernos tentam espelhar – palidamente, quase sempre – essa multiplicidade da vida concentrada através da multiplicação de seus pontos de vista: narração, comentário, entrevista, observações detrás do gol, no caso do rádio; obtenção de imagens de diferentes ângulos, em câmara lenta, ‘replays’, no caso da televisão (1999, p. 162).

O que esse esforço de conceituação da invenção das tradições tem a ver com o Brasil da segunda metade do século XX e com a Copa de 1958? Tudo e mais um pouco. Inicialmente, cabe referir que a realidade sobre a qual se debruça Hobsbawm alude ao século XIX europeu, numa sociedade que precisou lidar às pressas com o adensamento populacional, o êxodo do campo e a concentração de massas de trabalhadores nos centros urbanos emergentes. No Brasil, um processo idêntico a esse tem lugar justamente a partir das décadas de 1930 e 1940, quando o governo do presidente Getúlio Vargas, a despeito de sua figura despótica e não democrática com a proclamação do Estado Novo em 1937 (marcado por excessiva centralização do poder), executa mudanças estruturais que provocarão processos migratórios e sociais semelhantes ao que se vira cerca de 150 anos antes em vários países do Hemisfério Norte. A Copa de 1950 no Brasil, desse modo, apenas legitimava um novo ator mundial que, no continente americano, engatinhava tímidos passos no sentido de se industrializar e de se fazer conhecer no cenário internacional por meio, inclusive, de sua produção cultural.6 Trata-se de um processo que será levado a cabo, de maneira mais programática, pelo governo do presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961), o qual se destacou pela adoção de um Plano de Metas ousado (crescer “cinquenta anos em

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A esse respeito, ver Ortiz (1985).

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cinco”), com a abertura da economia para o capital internacional e a implantação da indústria automobilística nacional.7 Poderíamos aqui analisar o próprio governo de Juscelino à luz das invenções de tradições – e elas não seriam poucas, a começar pela fundação de uma nova capital para o país, Brasília, no Planalto Central (até então, uma região com baixíssima densidade demográfica). Poderíamos igualmente evocar o livro do jornalista Joaquim Ferreira dos Santos, Feliz 1958! O ano que não devia terminar, em que o autor elenca as inúmeras conquistas sociais, políticas e culturais do Brasil, que culminaram num ano de êxitos em diversos setores da sociedade: além do desenvolvimento econômico e da chegada da produção de automóveis ao país, devemos destacar o surgimento da Bossa Nova, com o disco Chega de saudade, gravado por João Gilberto; o desenvolvimento do movimento do Cinema Novo – ao lado da produção da Companhia Vera Cruz e, depois, da Atlântida Cinematográfica; o surgimento do Teatro de Arena; e a modernização da imprensa brasileira, entre outras coisas. Todas essas evocações, entretanto, resvalam invariavelmente no primeiro título do futebol brasileiro na Copa da Suécia, igualmente narrado de forma épica no documentário O ano em que o mundo descobriu o Brasil, lançado em 2008 por José Carlos Asbeg. Notemos, portanto, que o ano de 1958, a par do triunfo da seleção brasileira na Copa, serviu para fundar uma identidade brasileira muito associada à noção de vitória e supremacia na vida e no futebol, incorporando-se nesses valores associados à ginga, à habilidade e à técnica do jogador brasileiro (não nos esqueçamos dos versos da já citada canção do título de 1958: “A Taça do Mundo é nossa/ Com brasileiro não há quem possa”). Nesse processo de invenção das tradições, várias narrativas ajudaram a compor esse amálgama que, nos anos 1950, potencializa nosso imaginário futebolístico.

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A esse respeito, ver Benevides (1976).

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Inicialmente, há o caso da substituição do uniforme da própria seleção brasileira. Após a malograda Copa de 1950, uma pressão popular, capitaneada pelo jornal carioca Correio da Manhã, pretendeu aposentar a camisa branca com punhos azuis, que fazia par com calções e meiões igualmente brancos. O próprio diário, com a anuência da CBD, lançou um concurso para se escolher o uniforme que o Brasil envergaria na Copa de 1954. O vencedor foi Aldyr Garcia Schlee, que criara o modelo cromático vigente até hoje: camisa amarela com punhos verdes, calções azuis com uma faixa vertical branca e meias brancas com riscas em verde e amarelo. A despeito da má campanha na Copa de 1954, a vitória na Copa seguinte catapultou o novo uniforme para o estrelato, estabelecendo ainda a criação da mística da camisa canarinho, capital simbólico evocado de tempos em tempos por atores de nosso futebol para louvar glórias passadas do escrete brasileiro. Ao lado da mística da camisa canarinho, é singular verificar ainda qual a narrativa que chegou até nós, por meio da imprensa e de relatos de jogadores, a respeito do uso da camisa azul pela seleção brasileira na decisão do Mundial de 1958. Como a Suécia também usava camisas amarelas (e como atuava em seus domínios), restou ao Brasil a tarefa de arranjar outro uniforme para a decisão. A delegação não havia atentado para esse detalhe e, na véspera da partida, precisou adquirir camisas azuis e costurar de forma improvisada o escudo da CBD no novo uniforme. Ao saber que não poderiam usar a camisa amarela, atletas brasileiros começaram a se desesperar. Foi quando o chefe da delegação, Paulo Machado de Carvalho, teria proferido algo como “o uniforme é igual ao manto de Nossa Senhora, que irá nos abençoar nesta decisão”.8

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Um vídeo sobre esse episódio foi apresentado pela TV Globo e conta com o depoimento do jogador Zagallo, presente naquela decisão contra a Suécia. Dis-

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Outra tradição deriva exatamente da celebração da vitória por 5 a 2 sobre a Suécia e a conquista daquele Mundial, quando coube ao capitão da seleção brasileira, o zagueiro Bellini, receber o troféu da competição, a chamada Taça Jules Rimet (que levava o nome do fundador da FIFA). Incentivado por alguns fotógrafos, que não conseguiam captar a cena com suas câmeras, o jogador ergueu a taça sobre sua cabeça, com as duas mãos levantadas para o alto. Terá sido ele o primeiro a efetuar tal gesto? Talvez nunca possamos saber ao certo. O que sabemos bem é que, a partir daquele instante, criava-se de maneira inaugural um gesto que seria mimetizado por milhares de atletas, em inúmeras competições em todo o planeta – algo que invadiu igualmente nosso imaginário esportivo por meio de relatos de ontem e de hoje, como podemos ver na entrevista que o jornalista Ruy Castro realizou em 2008 com o próprio Bellini para a revista Brasileiros.9 É a partir da Copa de 1958 que outro aforisma (ou tradição) é posto em marcha: o de que a seleção brasileira nunca perdeu uma partida com a presença dos jogadores Pelé e Garrincha em campo. De fato, os dois astros do futebol brasileiro atuaram juntos por quarenta partidas, entre 1958 e 1966, e obtiveram 35 vitórias e cinco empates (além dos títulos consecutivos das Copas de 1958 e 1962). A última invenção de tradição que gostaríamos de destacar aqui tem a ver com o próprio Pelé e seu epíteto de “rei do futebol”. O já citado Nelson Rodrigues, na crônica “A realeza de Pelé”, a respeito da partida América 3 x 5 Santos, pelo Torneio Rio-São Paulo de 1958, igualou Pelé a um rei, talvez de modo pioneiro, como podemos ver nos trechos a seguir:

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ponível em http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2010/06/camisa-azuldo-titulo-de-1958-foi-feita-no-improviso.html. Acesso em 31 mar. 2013. Disponível em http://www.revistabrasileiros.com.br/2008/07/29/ruy-castroentrevista-bellini-o-grande-capitao-de-58/. Acesso em 31 mar. 2013.

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Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter 17 anos, jamais. Pois bem: – verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo como uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racionalmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: – Ponham-no em qualquer rancho e sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor. O que nós chamamos de realeza é, acima de todo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: – a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: – ‘Quem é o maior meia do mundo?’. Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: – ‘Eu’. Insistiram: – ‘Qual é o maior ponta do mundo?’. E Pelé: – ‘Eu’. Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. [...] Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé (Manchete Esportiva, 8 mar. 1958, grifos meus).

Por obra ou não de Nelson Rodrigues, certo é que Pelé sagrou-se e consagrou-se no imaginário brasileiro e mundial como o “rei do futebol”, a partir de uma narrativa mítica que, em diversas frentes (na publicidade, no cinema, nos relatos jornalísticos e radiofônicos etc.), procurou enaltecer seu talento incomum e sua eficiência estupenda. O tratamento dado a Pelé a partir de 1958, tornando-o uma das maiores celebridades do século XX, tem muito a ver com a sedimentação de uma identidade vitoriosa e com a criação de novos valores em que a cultura brasileira poderia refletir-se, sentindo o orgulho de ser superior ao resto do mundo em alguma atividade humana.

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Como vimos até aqui, é justamente na Copa de 1958 que o Brasil inicia o sepultamento de seu complexo de vira-latas, por meio da “invenção” de tradições que se sobrepuseram em abismo a fim de retratar o novo país que iniciava seu processo inexorável de urbanização e adensamento populacional em torno dos grandes centros. Nesse sentido, o futebol vem operando esse mesmo processo desde os anos 1950, primeiro com a sensação indelével da derrota (na Copa de 1950) e, depois, com a euforia catártica da vitória (experiência vivida também de forma inaugural em 1958) – movimento pendular que pode explicar, até os dias de hoje, nossa relação com o mundo. Nosso ethos e nossa brasilidade parecem ter raízes profundas nesses dois campeonatos mundiais de futebol, e seus elementos hão de merecer novos olhares e novas leituras, além das preliminares reflexões que quisemos estabelecer ao longo destas páginas. Referências AGUIAR, F. “Notas sobre o futebol como situação dramática”. In BOSI, A. (org.). Cultura brasileira. São Paulo: Ática, 1999. ASSAF, R. e MARTINS, C. Mundo das Copas do Mundo. Rio de Janeiro: Irradiação Cultural, 1998. BENEVIDES, Maria V. O governo Kubitschek: desenvolvimento econômico e estabilidade política. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. CHAUÍ, M. “O verdeamarelismo”. Brasil – mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. DaMATTA, R. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. —— et al. Universo do futebol – esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982. ——. “Antropologia do óbvio”. Revista USP – Dossiê Futebol, São Paulo, jun.-ago. 1994, trimestral, n. 22. FERNÁNDEZ, M. Futebol – fenômeno linguístico. Rio de Janeiro: Documentário/PUC-Rio, 1974. HELAL, R.; SOARES, A. J. G.; LOVISOLO, H. (orgs.). A invenção do país do futebol: mídia, raça e idolatria. Rio de Janeiro: Mauad, 2001.

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Copa de 1962 – a consolidação da pátria de chuteiras Márcio Guerra Filipe Mostaro

A proximidade da Copa do Mundo de 2014 nos remete, inevitavelmente, aos anos 1950. Certamente, paira sobre nós, brasileiros, a dúvida cruel sobre qual será o resultado final dessa segunda chance de mostrarmos ao mundo que somos a “pátria de chuteiras” decantada por Nelson Rodrigues. Ou seremos, como ele mesmo batizou anteriormente, vítimas de um novo “complexo de vira-latas”? É interessante que essa sensação de insegurança venha nos mesmos moldes que antecederam nossa ascensão à condição de protagonistas do futebol mundial. Em quase todos os nossos títulos mundiais, nossa seleção saiu desacreditada, vítima de um complexo e, acima de tudo, com um sentimento de descrédito construído e identificado por Nelson Rodrigues na mídia esportiva do país. Por complexo de vira-latas entendemos a inferioridade em que o brasileiro se coloca voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos ‘os maiores’ é uma cínica inverdade. Em Wem-

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bley, por que perdemos? Porque diante do quadro inglês louro e sardento a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada vergonha de 50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos vantagem do empate. Pois bem: – e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples – porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos (1993, p. 52).

Os textos de Nelson Rodrigues refletem bem o que estamos vivendo agora. Vítimas de má campanha e frustração da seleção do ex-técnico Dunga na África do Sul, nos deparamos com a dúvida cruel sobre qual condição nos levará à disputa que se aproxima: seremos “vira-latas” ou “jogando como Brasil” ninguém nos vence? A seleção brasileira de 1962 foi a única que saiu do país como franca favorita e voltou com o título de campeã do mundo. Este artigo busca identificar como a expressão “pátria de chuteiras” é recorrente e nos leva a refletir sobre como ficou marcada na construção de uma forma de o brasileiro agir diante do confronto com outras seleções, com o agravante de ser, em 2014, novamente diante da torcida brasileira. Para isso, recorreremos à análise dos jornais de maior circulação nacional no país em 1962 para entender como o discurso alimentado pela imprensa entrou no clima de “já ganhou”. A expectativa e o favoritismo Durante os anos que sucederam a conquista da Copa do Mundo de 1958, o futebol brasileiro ampliou sua fama internacional. O título na Suécia teria demonstrado que “com brasileiro não há quem possa”. Pelé se tornou um fenômeno e, ainda com 21 anos, já tinha atingido a marca impressionante de quase 500

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gols na carreira.1 “Ninguém se preocupara em contar o total de seus gols, mas já marcara mais de quinhentos” (Castro, 1995, p. 243). Garrincha continuou colecionando lances fantásticos em sua carreira, ajudando o Botafogo a viver a melhor época de sua história, até então, e enaltecendo o chamado futebol-arte como algo inerente ao brasileiro. O futebol se consolidou como um produto tipo exportação de nosso país, como o café, por exemplo. Tanto que, em 1960, o governo uniu os dois, nomeando Pelé como garoto-propaganda do Instituto Brasileiro do Café no exterior. “Pelos serviços, receberia 50 mil cruzeiros, quantia considerada ‘simbólica’ pelo jogador, que disse ter assinado o contrato ‘pelo espírito de patriotismo’” (Guterman, 2009, p. 138). Os times excursionavam com frequência para o exterior e aproveitavam os quatro anos de glórias de nosso esporte mais popular. Com a aproximação da Copa do Mundo, o clima era de completa confiança da torcida e da imprensa brasileira em revalidarmos o título. A expectativa criada pela imprensa às vésperas da Copa do Mundo de 1962 nos leva a refletir sobre a importância do evento “Copa do Mundo” e do futebol para a sociedade brasileira, tema que ganhou força e tem sido objeto de vários trabalhos acadêmicos nos últimos anos. Segundo as ideias do sociólogo Gilberto Freyre, originadas durante a Copa de 1938 em seu texto “Foot-ball mulato”, o futebol representaria a identidade cultural nacional por meio da miscigenação, que seria o fator do sucesso de nossas equipes. Partindo desse pressuposto, baseamos nossa pesquisa nos trabalhos iniciados por DaMatta (1979), damos ênfase à obra de Helal, Soares e Lovisolo (2001) e destacamos, também, Guedes (1998, 2009) e Gastaldo (2001). 1

O 500o gol veio alguns meses depois da Copa do Mundo de 1962, no dia 5 de setembro, o primeiro dos dois que Pelé marcou contra o Botafogo de Ribeirão Preto na Vila Belmiro.

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Segundo Guedes (2009, p. 462), desde a Copa de 1938, a identidade nacional brasileira encontrou seu ritual máximo de congregação: as Copas do Mundo. Em poucas sociedades, uma competição esportiva específica assumiu as dimensões que o torneio assumiu em nosso país. Num ambiente esportivo-midiático, em que se negociam as identidades, o futebol tem sido objeto de apropriações ideológicas diversas, no sentido de compor uma “identidade nacional”, na qual desempenha um importante papel como princípio aglutinador do “povo brasileiro” em sua constituição como nação (Gastaldo, 2001, p. 125). DaMatta (apud Guedes, 2009, p. 461) aponta que a celebração máxima entre povo brasileiro e seleção brasileira de futebol é alcançada nas Copas do Mundo. O primeiro título, conquistado em 1958, demonstrou essa relação e a importância desse evento para a sociedade brasileira. A ideia, em 1962, era reeditarmos a conquista e conseguirmos de forma inconteste a reafirmação de melhor futebol do mundo. O desejo do povo brasileiro era que o sonho iniciado quatro anos atrás, que nos fez esquecer o complexo de vira-latas, não terminasse. Confiar na vitória da seleção era ter certeza de que éramos capazes. Depositamos na seleção muito mais do que uma simples vontade de vencer uma partida de futebol: fazemos dela um símbolo dos nossos desejos e temores. Por isso, as construções das vitórias e das derrotas da nossa seleção sejam tão reveladoras de sentimentos mais profundos, que não se esgotam em análises técnicas de partidas de futebol (Helal, 2001, p. 153).

Concordamos que a “Copa do Mundo é um excelente momento para se refletir sobre o significado do futebol no Brasil, já que, nessa época, as manifestações desse esporte tornam-se muito mais intensas e dramáticas” (Helal, 2001, p. 151). Esse evento atua diretamente no espaço urbano, provocando representações

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dentro da sociedade, as quais são observadas na mídia durante os Mundiais da FIFA e incorporam um conjunto de ideias, significados e valores socialmente compartilhados. É durante a Copa do Mundo da FIFA que o nacionalismo em torno da seleção se torna mais exacerbado. “É nítido que os brasileiros ficam mais unidos em torno de um ideal a cada quatro anos. [...] as Copas do Mundo de futebol nos despertam de nossa catarse coletiva, numa espécie de nacionalismo cíclico” (Helal, Soares e Lovisolo, 2011, p. 195). Renovar e recriar essa brasilidade de quatro anos atrás era fundamental para o discurso midiático da época. Conforme Guedes (2009) afirma, o crescimento de pertencimento à nação depende do desempenho do selecionado, e, com toda a idolatria em torno de Pelé e Garrincha, o desempenho era totalmente favorável ao discurso de otimismo. O desempenho do time não dava margem a dúvidas sobre sua capacidade: em 32 jogos depois da Copa de 1958, o Brasil ganhou 28, empatou 2 e perdeu apenas 2. O retrospecto em 1962, na véspera da Copa, era ainda melhor: 11 vitórias em 11 jogos (Guterman, 2009, p. 139).

Era a ordem também na imprensa. Em todos os jornais, o clima de desconfiança foi chutado para escanteio. Se compararmos com 1958, essa mudança de postura por parte da imprensa, ao noticiar a seleção como um time vitorioso, traz uma diminuição do número de matérias e entrevistas com técnicos e jornalistas estrangeiros sobre a real capacidade do selecionado de vencer uma competição de nível mundial. Na cobertura da Copa de 1958, 33,3% das reportagens (13 em um universo de 39) traziam entrevistas com técnicos, jogadores ou jornalistas estrangeiros. Já em 1962 são 6,6% (5 em um universo de 75). É como se a imprensa agora não precisasse tanto da opinião e

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legitimação dos estrangeiros sobre a capacidade do brasileiro no futebol (Bartholo et al., 2004, p. 347).

Esse discurso midiático funcionará como um “dispositivo ritual ampliado” (Augé apud Guedes, 2009) de toda a mobilização que o evento provoca no Brasil. A consolidação de um discurso Naqueles quatro anos, nunca o brasileiro teve tanto orgulho de pertencer à nação; os reflexos foram sentidos até no governo de Juscelino: “Já era presidente havia dois anos, mas toda a aura de euforia que no futuro se atribuiria a seu governo contaria a partir da epopeia na Suécia. Na verdade, seu governo começava ali” (Castro, 1995, p. 184). A conquista da reluzente Jules Rimet era um presente aos anos de desenvolvimento do país: “A vitória não poderia ter vindo em melhor hora, para coroar os ‘anos dourados’ do governo JK, identificado com o crescimento do país, com o estímulo à cultura popular, com o dinamismo da vida urbana e com a pujança industrial” (Guterman, 2009, p. 131). O clima de otimismo e confiança no Brasil aumentou com uma notícia que nada tinha a ver com o futebol. No dia 24 de maio, a capa do Jornal do Brasil trazia a manchete: “O pagador de promessas vence em Cannes”. A conquista da Palma de Ouro no renomado festival parecia confirmar que não éramos mais um vira-lata entre as nações. Portanto, o discurso era de manter o que tinha sido feito em 1958; nessa ótica, “a memória social resgata e controla o passado, com o objetivo de legitimar ações no presente e preparar as bases para uma possível perpetuação no futuro” (Salvador e Soares, 2009, p. 5). Na preparação do Brasil, podemos encontrar essa vontade de repetir o passado que deu certo. Paulo Machado de Carvalho, o “marechal da vitória” em 1962, organizou toda a preparação da seleção, como em 1958. O mesmo DC-8 da Panair,

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com o mesmo comandante (que teve de reaparecer com o mesmo cavanhaque), a mesma imagem de Nossa Senhora Aparecida e o mesmo terno marrom de Paulo Machado de Carvalho mostravam que, apesar do discurso de confiança, não era demais pedir uma forcinha extra ao sobrenatural. A superstição não era privilégio da direção da seleção. Na tribuna de imprensa depois da vitória inaugural, todos os jornalistas eram obrigados a trabalhar com a roupa daquele primeiro jogo. Quem mudasse uma peça sequer era impedido pelos companheiros de entrar. E olhe que ali estavam as maiores cabeças pensantes da crônica esportiva de todo o Brasil. Todas não acreditando em bruxas, mas concordando que ‘las hay’ (Alzugaray, 1986, p. 55).

O futebol vai acionar essa memória coletiva fazendo essa ponte entre passado e futuro, e a mídia será, em uma sociedade letrada como a nossa, a guardiã dessa memória (Salvador e Soares, 2009). Um grande exemplo dessa ponte é a manchete do Jornal do Brasil no dia da estreia brasileira na Copa: “Brasil estreia com time campeão do mundo” (31 mai. 1962, p. 1). O título da reportagem vem reforçar a vontade de fazer tudo igual a 1958. Entretanto, o texto da matéria afirma que Zózimo entrará na equipe, descaracterizando, assim, o time que realmente terminou o jogo contra a Suécia em 29 de junho no estádio Rassunda. Em outra reportagem do mesmo jornal, o título é mais claro e vai ao encontro de nossa argumentação: “Brasil trilha no Chile o mesmo caminho que o levou à vitória em 58” (30 mai. 1962, p. 12). Outro veículo que ajudou na consolidação desse discurso foi o rádio. Depois de 1958, as emissoras passaram a viajar junto com as excursões dos times e a transmitir para o Brasil os confrontos em terras europeias. Na Copa de 1962, nenhuma emissora queria ficar de fora da cobertura do bicampeonato mundial da seleção. Segundo Guterman (2009), a venda de rádios transis-

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tores aumentou 100% por causa da Copa. O radinho de pilha individual era uma febre na época, tal como os celulares hoje em dia. A corrida às lojas foi grande para acompanhar cada detalhe da seleção nas terras chilenas. Em função disso, o investimento das empresas de comunicação foi maior na última Copa do Mundo durante a Era de Ouro do rádio. O exemplo a seguir é da Rádio Bandeirantes: A empresa investira ainda mais nos recursos humanos. O locutor Silvio Luiz, repórter de campo da emissora nessa época, diz que estavam lá, além dos locutores Pedro Luís e Edson Leite, os comentaristas Mário Moraes e Mauro Pinheiro, ele e Ethel Rodrigues (repórteres), no primeiro time. Como locutores de segundo time, Braga Jr. e Darci Reis; no Plantão Esportivo, Alexandre Santos; e, como repórteres, Luís Maltoni e Atílio Ricoh (Soares, 1994, p. 50).

A Rádio Bandeirantes inovou em sua transmissão e ajudou o torcedor a imaginar a partida: A Rádio Bandeirantes construiu um painel luminoso na Praça da Sé, em São Paulo, ladeado por alto-falantes. Esse painel reproduzia um campo de futebol, com lâmpadas que cobriam toda a sua área, controladas segundo um sistema de interruptores. Os locutores que irradiariam os jogos receberam instruções para dar permanentemente a posição da bola no campo, no Chile. Em São Paulo, o operador acendia as lâmpadas de acordo com o movimento da bola. Esse arremedo de irradiação direta da imagem atraiu multidões de torcedores à Praça da Sé (Soares, 1994, p. 50).

O jornalista Barbosa Filho (2004) afirma que um transmissor de SSB possibilitou boletins e programas esportivos diários di-

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retamente do país-sede. Dessa forma, não seriam mais necessárias linhas e ligações demoradas para enviar notícias. As informações da seleção canarinho foram intensas e ajudaram a criar o clima de “já ganhou” em todo o território nacional. O rádio transmitiria a Copa numa cobertura diária da seleção, mais completa do que em 1954 e em 1958, e com mais experiência do que tinha sido feito em 1950. Concorrendo com esse veículo, estava a televisão, que exibia os videoteipes um dia após os jogos. Ver para crer no que tinha se ouvido no rádio um dia antes era prática comum aos brasileiros que tinham acesso à televisão, que já começava a dar sinais de sua força no Brasil. Nelson Rodrigues não gostou da interrupção no imaginário que o rádio provocava e criticou duramente os VTs, em sua coluna no jornal O Globo: E o patético é que, quinta-feira, o videoteipe de Brasil x Inglaterra nos dera uma versão deprimente do escrete. O povo não sabia como conciliar as duas coisas: – o delírio dos locutores e a exata veracidade da imagem. Após a batalha de ontem, eu vi tudo. A verdade está com a imaginação dos locutores. E repito: – a imaginação está sempre mais próxima das essências. Ao passo que o videoteipe é uma espécie de lambe-lambe do Passeio Público, que retira das pessoas toda a sua grandeza humana e esvazia os fatos de todo o seu patético. Disseram os locutores que o Brasil fizera, contra a Inglaterra, uma exibição deslumbrante. Pura imaginação e, por isso mesmo, altamente veraz. O videoteipe demonstrou o contrário. Azar da imagem (1993, p. 102).

Os dois veículos, juntamente com os jornais, ajudavam a criar o discurso. Concordamos com Cabo e Helal (Helal, Lovisolo e Soares, 2011, p. 95) e entendemos que é importante refletir sobre o papel da imprensa esportiva como formadora de cultura para que possamos observar como os jornais ratificam e constro-

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em mitologias e discursos identitários, apesar da objetividade jornalística, que se constitui um dos pilares da profissão. Remetendo-se mais uma vez ao passado para produzir o discurso do presente, no dia da estreia, o Jornal do Brasil fez uma reportagem mostrando o retrospecto dos últimos confrontos de nosso primeiro adversário: “México apanhou 5 vezes: empatou uma e é azar da Copa” (30 mai. 1962, Caderno B, p. 3) A reportagem enaltece que, das cinco vitórias brasileiras, duas foram em Copas: no Brasil, em 1950, por 4 a 0, e na Suíça, em 1954, por 5 a 0. Na mesma matéria, o jornal contabiliza todos os jogos do Brasil desde 16 de julho de 1906.2 Até aquele dia, tinham sido 256 jogos, com 156 vitórias, 59 derrotas e 41 empates; 644 gols foram marcados contra 325 sofridos, segundo os números contabilizados pela matéria assinada por Nonnato Masson. O resgate da memória realmente animava os torcedores nacionais. Ainda no Caderno B do mesmo jornal, uma crônica consolidava todo o discurso de otimismo e expectativa criado no país: É hoje, afinal, que nós teremos Pelé e todo o time do Brasil jogando para valer. A Copa do Mundo, que já estava insuportável, porque ninguém aguentava mais tanta expectativa, explodirá hoje e em todos os dias de jogo, com surpresas, gols, russos, frio, opiniões, apostas, tabelas e tudo mais que é de sua natureza. O time que se formou a distância, quase misterioso, no alto de muitas serras, torna-se nosso, de todos. É um bem cotidiano, e que, a partir desta tarde, poderá condenar-nos à nostalgia de uma outra tarde cinzenta, na qual brilhou, nas mãos levantadas de Bellini, o ouro de uma grande alegria, ou nos redimir, ainda uma vez, de nosso insuportável pessimismo. E Pelé, que nos libertou de tantas decepções e sofrimentos, nos escraviza hoje. A 2

Jogo contra os ingleses do sul da África, no campo do Clube Atlético Paulistano, em São Paulo. O Brasil perdeu por 6 a 0.

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torcida que o vaiou, as críticas que lhe fizeram estão definitivamente humilhadas pela esperança que 70 milhões de brasileiros depositam nele, no seu talento superior, que suportou as vaias com tranquilidade de quem acha que futebol é belo, e que tudo que o enfeia deve ser condenado (30 mai. 1962, p. 1).

O Brasil não jogou o que todos esperavam na estreia, mas venceu: 2 a 0, com gols de Pelé e Zagallo. O país inteiro parou para ver o jogo, inclusive o governo: “Futebol faz governo e povo parar” (Jornal do Brasil, 31 mai. 1962, p. 10). E o governo tinha motivos de sobra para dar importância à competição. O presidente João Goulart tinha assumido em 7 de setembro de 1961, depois de uma grande crise. Jânio Quadros foi eleito em outubro de 1960, sucedendo Juscelino, e em apenas sete meses conseguiu desagradar aos conservadores e aos esquerdistas. Em uma visita ao Brasil, Che Guevara, um dos líderes da Revolução Cubana, recebeu a medalha Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. Aliado ao clima de descontentamento, o discurso do governador da Guanabara, Carlos Lacerda, pelo rádio, denunciando uma tentativa de golpe de Quadros foi a gota d’água na crise política. No dia seguinte, Jânio renunciou culpando “forças terríveis” por sua saída do cargo. Imediatamente, uma luta por quem chegaria ao poder começou. O vice, João Goulart, deveria assumir, mas os militares o viam como uma porta aberta ao comunismo. Para ajudar no argumento, Jango estava na China no dia em que Quadros renunciou. A fórmula encontrada foi a mudança do regime presidencialista para parlamentarista, reduzindo o poder de Jango. O susto de Pelé O segundo adversário foi a Tchecoslováquia, e mais uma vez foram trazidas reportagens sobre o histórico do confronto contra o Brasil. Mas, dessa vez, o respeito ao adversário foi maior.

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Aos 26 minutos do primeiro tempo, Pelé mandou uma bomba na trave e teve uma distensão no músculo adutor da virilha direita, pelo excesso de jogos. O sucesso do time canarinho no mundo tinha aumentado o trabalho dos jogadores. Com os campeões da Jules Rimet em seu elenco, os times nacionais faziam verdadeiras excursões mambembes pela Europa; Pelé e Garrincha, durante os quatro anos, foram os que mais sofreram com tantos jogos. Numa excursão à Europa em 1959, o Santos jogou no dia 3 de junho contra o Feyenoord na Holanda; dia 5, contra o Internazionale na Itália; dia 6, contra o Fortuna na Alemanha; dia 7, contra o Nuremberg, também na Alemanha; dia 9, contra o Servette na Suíça. Cinco jogos em seis dias – com detalhe: ganhou todos. Enquanto tivesse Pelé para oferecer, o Santos jogaria quantas vezes o time aguentasse (Castro, 1995, p. 244).

O jogo terminou em 0 a 0, mas a derrota veio no exame feito pelo médico da seleção, Hilton Gosling: a lesão era séria e poderia tirar Pelé da Copa. Por mais que todos entendessem a gravidade da distensão de Pelé, o discurso foi de confiança em sua recuperação para as quartas de final: “Pelé fora da Copa até as quartas de final” (Jornal do Brasil, 3 jun. 1962, p. 18). Gosling foi chamado de pessimista ao prever o óbvio: Pelé estava fora da Copa. “A contusão é grave e se se confirmarem as previsões pessimistas do Dr. Hilton Gosling o Brasil terá que lutar sem ele até a partida final” (Jornal do Brasil, 3 jun. 1962, p. 18). Depois desse dia, foram constantes as notícias de possíveis voltas e melhoras de Pelé para cada desafio do Brasil no Chile. A conclusão dessa obsessão da imprensa por sua volta não é difícil de compreender: como revalidar o discurso sem nosso melhor jogador, nosso principal ídolo? Nos quatro anos anteriores, ele se tornou a maior marca de nosso futebol. Seríamos bons sem ele? A capa do Jornal do Brasil indicava o pensamento de vários brasileiros: “Pelé pa-

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rou, Brasil empatou” (3 jun. 1962, p. 1). Em outra reportagem, o jornal relata o sofrimento de Pelé: “Ele era deus e ídolo de uma Copa. Hoje, é um homem deitado. Um homem que sofre as dores de uma distensão e as dores de uma alma” (5 jun. 1962, p. 12). O último adversário da primeira fase foi a Espanha. A “Fúria” tinha algumas “contratações” de peso, como o argentino Di Stefano e o húngaro Puskas. No entanto, o argentino não jogou, frustrando o meia brasileiro Didi, que queria se vingar dele. Didi sempre afirmou que não teve sucesso no Real Madri por culpa exclusiva do argentino, conhecido como “dono do Real”. Mas as manchetes deram pouca importância à disputa individual de Didi. No dia da partida, a primeira das matérias indicava que Pelé voltaria no próximo jogo: “Pelé, melhor, pensa jogar no domingo” (Jornal do Brasil, 6 jun. 1962, p. 12). Dentro da reportagem, Pelé afirmava confiar no potencial do Brasil mesmo sem ele. Esse discurso ficou vivo até o fim do Mundial. Pelé, porém, não jogaria, e era preciso que se confiasse na seleção. Na mesma página, o Jornal do Brasil trazia uma matéria afirmando que, com o mesmo time que já deu provas que pode jogar sem Pelé, e com Amarildo com a responsabilidade de jogar tanto quanto Pelé, o Brasil enfrentará hoje, às 16 horas (hora de Brasília), a seleção da Espanha, numa partida em que o empate bastará para a classificação mas em que só a vitória poderá satisfazer (6 jun. 1962, p. 12).

Nelson Rodrigues, em sua coluna no jornal O Globo, aposta no substituto de Pelé e vê a contusão do camisa 10 do Santos como uma fatalidade: Todavia, eu lhes digo: – no presente Mundial, eis que a fatalidade passa a funcionar novamente como nos tempos de Edmundo Dantès. Aí está Amarildo, o ‘Possesso’. Ele não ia entrar em hipótese nenhuma. Com suicida teimosia, Aymoré Moreira, Nasci-

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mento e Paulo Machado de Carvalho estavam dispostos a deixar Amarildo eternamente na cerca. Não percebiam que o craque alvinegro é possesso e que o ataque precisava de possessos. E, súbito, a Fatalidade põe o dedo no escrete do Brasil. Pelé, o divino, sofre a distensão mágica. Não recebeu nem um leve, imponderável toque. E caiu. Caiu como e por quê? Ninguém sabe, mas eu sei: a Fatalidade de Pérez Escrich. O desespero está ventando por todo o país. Mas há uma possibilidade insuspeitada e genial: – a de que Amarildo desponte como um novo Pelé, e repito: – um Pelé branco, mas Pelé (5 jun. 1962, p. 11).

Um empate bastava para o Brasil se classificar, mas o clima era de tensão entre os jogadores. Como o Brasil jogaria sem Pelé? Pela primeira vez nos últimos quatro anos, desconfiava-se de nosso escrete. O clima piorou aos 35 minutos do primeiro tempo, quando, num chute despretensioso, Rodriguez acertou o canto do goleiro Gilmar, e o Brasil levou o primeiro gol na Copa. Com o placar, a seleção estaria eliminada da competição. O time voltou para o segundo tempo sem ameaçar muito o goleiro espanhol, até que, aos 21 minutos, o Brasil levou mais um susto. Enrique Collar, jogador espanhol, recebeu um lançamento na entrada da área e, ao ver a chegada de Nilton Santos, deu um leve toque, tirando o zagueiro brasileiro da jogada. Nilton derrubou o atacante e imediatamente levantou os braços, dando dois passos para fora da grande área. Os espanhóis já comemoravam a marcação do pênalti, mas não contavam com a péssima colocação do árbitro chileno Sergio Bustamante, que, ao ver Nilton parado fora da área, marcou apenas falta. Entrava em campo outro traço da identidade nacional: a malandragem. “Um dos campos em que a ‘malandragem’ é vista essencialmente como um valor no Brasil é justamente o campo de futebol, palco de ritualizações de diversos elementos da cultura brasileira” (Gastaldo, 2001, p. 34). Podemos afirmar que este é um dos episódios mais famosos da malandragem bra-

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sileira em campo. Nilton burla a lei, consegue ludibriar o árbitro para obter vantagem em um lance do jogo. Claro que as discussões sobre malandragem e sua origem no futebol e na sociedade brasileira são extensas e não nos cabe, neste artigo, aprofundá-las; entretanto, o ato de Nilton Santos ficou marcado na história das Copas do Mundo e engrandeceu ainda mais o discurso de brasilidade em torno da seleção. O lance fez o Brasil entrar no jogo e, seis minutos depois, Amarildo concretizava a “profecia” de Nelson Rodrigues empatando a partida. O desespero foi para o lado espanhol, que com o empate dava adeus ao Mundial, e o segundo gol do Brasil não demorou a sair. Nelson Rodrigues descreve, com sua forma peculiar, o gol que classificou o Brasil para a segunda fase da Copa: E o segundo gol, amigos, o segundo gol! Vamos ao lance. O Mané apanha a bola. E, entre parênteses, tem razão o poeta e psicanalista Hélio Pellegrino quando afirma que Garrincha é a maior sanidade mental do Brasil. Exato. O próprio Freud, se conhecesse o Mané, havia de reconhecer, com a humildade dos sábios: ‘– Rapaz, se todo mundo tivesse a tua sanidade, eu ia acabar apanhando papel na esquina!’. Ontem todo mundo estava emocionalmente em pandarecos. Menos o Mané. Pegava a bola e era o mesmo, sempre o mesmo, eternamente o mesmo, assim na terra como no céu. No segundo gol, Mané deu uns dez salames dionisíacos. Comeu com aquele apetite imortal toda a defesa inimiga. E comeu o juiz e comeu o bandeirinha. Tudo isso com uma saúde de passarinho, e insisto: – tudo isso com alegria, com bondade, com pureza. No fim, não havia mais ninguém para driblar, ninguém. E Mané, que no fogo mais infernal tudo vê e tudo sabe, passa para Amarildo. Mas não foi um passe qualquer. Nem a cabeça de São João Batista foi tão na bandeja como aquela bola de Garrincha. Estava

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lá Amarildo, o possesso Amarildo, o rútilo epiléptico. E então ele enfiou a sua cabeçada mortal. Aquilo era o Brasil (1993, p. 100).

A tensão antes da partida e durante sua realização chegou ao fim com a vitória; mais do que isso, o discurso de otimismo estava mais vivo do que nunca: agora, até sem Pelé nós éramos Brasil. Nossa força não estava apenas em um homem e, mesmo sem ele, o brasileiro deu um jeito de encontrar outro: “Mas, se a pátria precisa de um gênio, logo o encontra. Aí está a Copa do Mundo: – perdemos um Pelé e, no mesmo instante, apareceu outro Pelé. Feliz o povo que, na vaga de um gênio, põe outro gênio” (1993, p. 99). As reportagens do dia seguinte seguiram o mesmo tom da coluna de Nelson. No Jornal do Brasil, a manchete foi: “Vitória de 2 a 1 emocionou todo o país” (7 jun. 1962, p. 11). Uma legenda de foto mostrava que o discurso de relembrar 1958 para termos sucesso voltava com força: “Como em 1958, a cidade explodiu numa alegria desenfreada quando Amarildo marcou o gol da vitória”. O conteúdo da reportagem relatava a festa em todo o Rio de Janeiro e como a família de Amarildo acompanhou a partida. O atacante do Botafogo podia não ter o mesmo talento de Pelé, mas, durante os dias que disputou a Copa, foi tratado como um ídolo tal como o “rei”. A reportagem a seguir mostra que Pelé e Amarildo estavam no mesmo nível de assédio da imprensa e dos torcedores: Amarildo e Pelé, que saíram às escondidas da concentração, a fim de fugirem aos caçadores de autógrafos, foram descobertos e cercados pela multidão em Valparaíso, sendo ambos obrigados a concederem mais de cem autógrafos. Os dois estavam dentro da Kombi, à espera de Ronald Moreira e Aimoré, que estavam no banco retirando dinheiro para o pagamento do bicho, quando foram descobertos. Os torcedores chegaram a quebrar os vidros

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do carro na tentativa de falar com os jogadores (Jornal do Brasil, 8 jun. 1962, p. 11).

A manchete do Jornal do Brasil indicava a exaltação ao novo ídolo de nosso futebol: “Amarildo classifica o Brasil: 2 a 1. Emoção de duas vitórias faz chorar” (7 jun. 1962, p. 1). A reportagem transcrita a seguir demonstra que o otimismo, o civismo e o discurso de vitória voltaram: Findo o jogo, as Avenidas Rio Branco e Getúlio Vargas receberam uma chuva de papel picado, como nos dias de Ano Novo. Em toda a cidade, a alegria explodiu em muitas lágrimas e algumas crises nervosas. Centenas de pessoas sem camisa – como Puskas disse que faria se a Espanha ganhasse – desfilaram pelas ruas centrais, entoando canções físicas. O presidente da República enviou à delegação do Brasil no Campeonato Mundial de Futebol telegrama apresentando ‘a todos quanto colaboraram para o magnífico resultado as efusivas congratulações do povo brasileiro’. O primeiro-ministro também felicitou o selecionado ‘em nome do povo e do governo’ fazendo votos para a ‘continuação da vitoriosa jornada’ ( Jornal do Brasil, 7 jun. 1962, p. 1).

O próximo adversário era a Inglaterra. As reportagens sobre possíveis contratações dos craques brasileiros já apareciam nas posições principais dos jornais. Garrincha era assediado pela Roma, da Itália, que pretendia pagar 100 milhões de cruzeiros pelo camisa 7 da seleção. Amarildo também já estava sendo assediado, confirmando que nosso futebol era realmente um produto de exportação. A matéria do Jornal do Brasil de 10 de junho, dia do jogo contra a Inglaterra, mostrava como o discurso em torno da grandeza de nosso futebol fez os adversários se preocuparem, exclusivamente, em como vencer o escrete canarinho:

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Brasil preparou-se para a Copa e os outros a vencê-lo. Ao se classificar em primeiro lugar no grupo de Viña Del Mar, o Brasil, ainda que não tenha feito uma demonstração completa do poderio de seu futebol, deu provas de sua qualidade de campeão, superando adversários que, conforme demonstram os jogos, preparam-se quase exclusivamente para enfrentar os brasileiros, colocando a própria classificação em plano secundário (1962, p. 11).

As outras reportagens do pré-jogo indicavam a não participação de Pelé, mas, como sempre, diziam que um novo teste poderia liberá-lo para o próximo jogo. A reportagem tradicional sobre o retrospecto de vitórias do Brasil em cima do adversário não apareceu contra a Inglaterra. O respeito aos inventores do futebol foi evidente em todas as matérias. No jogo, Garrincha assumiu realmente a vaga de Pelé como maior estrela do time. Fez de tudo em campo, só não conseguiu segurar os dois cachorros que entraram no gramado durante o jogo. Um deles foi “adotado” pelo craque brasileiro e ganhou o nome de Bi. Em 10 de junho, o mundo saberia que um jogador de pernas tortas era capaz de ganhar sozinho uma Copa. Garrincha estava talvez no melhor dia de sua carreira. Jogou em todas as posições do ataque, deixou vários zagueiros no chão e, fato inédito em sua trajetória, até gol de cabeça ele marcou, abrindo o marcador aos 32 minutos do primeiro tempo (Guterman, 2009, p. 141).

O estilo nacional simbolizado por Garrincha Depois da vitória por 3 a 1 sobre a Inglaterra, a Copa passou a ter um dono. Garrincha fez uma exibição de gala contra os ingleses, e o discurso de melhor futebol do planeta ficou cada vez mais forte. A matéria a seguir, do Jornal do Brasil, demonstra

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o sentimento nacional e internacional em relação a Mané, a começar pelo título: “Garrincha agora não é só Mané: é fantástico, incrível, extraordinário”: Manuel Francisco dos Santos, que no Brasil é Garrincha (ou mais carinhosamente Mané), recebeu, desde o jogo contra a Inglaterra, um sem-número de adjetivos e novos apelidos, que perfazem a escala que sai do fantástico, para chegar ao sublime. A verdade é que Mané, o amigo dos passarinhos, o eterno ingênuo, é hoje um enigma terrível que os adversários teimam em decifrar. O jornal El Mercurio, em primeira página, dá uma fotografia de Mané com a seguinte legenda: ‘De que planeta viene?’. Esse mesmo jornal adverte o técnico chileno de que serão necessários três ou quatro jogadores para ficarem exclusivamente por conta de Garrincha [...] O comentarista do Daily Mirror, Manning, confessou que em seus trinta anos de futebol jamais viu algo semelhante a Garrincha, considerado, até agora, o maior jogador da Copa (12 jun. 1962, p. 11).

Mesmo com toda a confiança em Garrincha e cia., a obstinação pela escalação de Pelé ainda aparecia nos jornais: “Pelé pode jogar contra o Chile” (Jornal do Brasil, 12 jun. 1962, p. 1). E era reforçada no título da matéria: “Pelé treinou bem: esperanças são maiores” (p. 12). Entretanto, no dia do jogo, a notícia mudou: “Pelé não joga hoje: só estará bom para a final”. O jogo era contra os donos da casa: o Chile. O país conseguiu de forma inesperada a honra de sediar o Mundial. O defensor da candidatura era Carlos Dittborn Pinto, filho de diplomata chileno, nascido no Rio de Janeiro, e que assumiu em 1956 a presidência da Confederação Sul-Americana de Futebol. Entretanto, em maio de 1960, o país sofreu dois violentos terremotos, que causaram mais de 5 mil mortes e deixaram 25% da população desabrigada. Tudo indicava que a sede seria trocada, mas Dittborn

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persistiu e com a frase “Porque nada tenemos, lo haremos todo” convenceu a FIFA que o Chile deveria sediar o Mundial. Com todos esses fatores, conseguir realizar a Copa já era um orgulho para o povo do Chile; chegar à semifinal era o sonho que nenhum chileno havia imaginado (Gehringer, 2010). Mas, já que tinham chegado até ali, os chilenos se prepararam para uma guerra, e o Brasil também. “Brasil busca final em ambiente de guerra” (Jornal do Brasil, 13 jun. 1962, p. 12). O clima era tão tenso que a delegação brasileira chegou horas antes do jogo na capital e fez questão de comer a comida minuciosamente preparada pelo cozinheiro do Brasil. Havia uma desconfiança de possível sabotagem. “Diariamente, por sua própria conta, o sapateiro Aristides tem ido à cozinha de El Retiro (concentração do Brasil) para inspecionar o preparo das refeições dos jogadores” (Jornal do Brasil, 13 jun. 1962, p. 12). A reportagem relembrando o histórico de vitórias do Brasil frente aos chilenos não faltou e, dessa vez, em virtude do retrospecto favorável, era mais incisiva. “Um velho freguês” e “Apanharam até com juiz chileno” (Jornal do Brasil, 13 jun. 1962, p. 13) foram os títulos de maior destaque. O jogo foi realmente tenso, mas, de novo, brilhou a estrela de Garrincha. Mais de 70 mil chilenos viram Mané fazer os dois primeiros gols do Brasil no jogo. Toro diminuiu a contagem para os donos da casa. Logo na volta do segundo tempo, Vavá marcou. Aos 17 minutos, o juiz peruano Arturo Yamazaki marcou um pênalti para os chilenos. Sánchez cobrou bem e inflamou a torcida, que acreditava no empate. Mas aos 33 minutos Vavá sacramentou a vitória do Brasil. O título estava cada vez mais perto e o balé de Garrincha nos chilenos indicava que nosso futebol era realmente superior. Porém, Garrincha foi expulso de campo depois de dar um “pontapé de amizade”, segundo o próprio jogador, em Rojas. As manchetes no dia seguinte eram de alívio pela classificação e nervosismo para saber qual punição a FIFA daria a Mané. “Brasil derrota o Chile e o juiz. Garrincha incerto para a final” (Jornal do

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Brasil, 14 jun. 1962, p. 1). O jornal ainda destaca a atuação de Garrincha: Num jogo nervoso, com o juiz parcial e um público entusiasmado contra o Brasil, Manuel Garrincha conduziu, ontem à tarde, o time brasileiro até a um passo da conquista da Copa do Mundo: brilhante como sempre e muito versátil – fez gols de cabeça, chutou com a perna esquerda, jogou pelo centro –, Garrincha terminou sendo o homem triste do selecionado. – Eu dei o pontapé em Rojas, mas não para machucar – confessou, no vestiário. (14 jun. 1962, p. 1).

Nos bastidores, a atuação para liberar Garrincha para a decisão foi forte. “Governo insinua à FIFA que não puna Garrincha” (Jornal do Brasil, 14 jun. 1962, p. 11). Perder Pelé não estava nos planos; perder Garrincha agora seria terrível para a seleção. Coube até ao presidente João Goulart se posicionar: “Estamos certos de que a FIFA fará justiça à disciplina dos atletas brasileiros, assegurando para a disputa final a presença de todos os valores da nossa equipe, especialmente deste admirável Garrincha” (Jornal do Brasil, 14 jun. 1962, p. 11). A crise vivida no país era grande, e vencer a Copa era importante para o governo. A presença de Garrincha na final ultrapassava o lado técnico; era fundamental para o discurso de verdadeiro futebol nacional, já que Garrincha incorporava grandes requisitos desse discurso. Apesar de já ter sido um dos jogadores mais importantes do Brasil em 1958, Garrincha concretiza, em 1962, a ideia de ser um jogador fantástico e capaz de vencer um torneio sozinho. Os jornais reproduziram exatamente esse discurso: “Esta VII Copa do Mundo marcou o fim de vários craques internacionais, o obscurecimento de outros e a consagração definitiva de um dos maiores jogadores de todos os tempos: Manuel Francisco dos Santos, o simples, o injustiçado, o diabólico Garrincha”

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( Jornal do Brasil, 17 jun. 1962, p. 23). Mais do que isso, ele se tornaria símbolo do futebol-arte, sendo a síntese do futebol nacional. Bartholo e Soares (2011) descrevem, em “Garrincha como síntese do futebol brasileiro”, como a biografia do jogador, escrita por Ruy Castro, vai revalidar a história do atleta encarnando significados coletivos sobre o futebol brasileiro e o “ser brasileiro”. “Garrincha seria a tradução e a encarnação do jogo bonito (beautiful game)” (p. 55). A imagem de Mané se consolida após essa Copa do Mundo e ajuda muito na edificação do discurso de sermos realmente o país do futebol. Outros elementos de Garrincha ajudam na construção do jeito brasileiro de jogar futebol: “A estética do estilo de jogo de Garrincha pode ser lida como um alento a toda a nação brasileira. Nelson Rodrigues exalta a mestiçagem e o futebol-arte como elementos centrais da brasilidade, metonimizados em Garrincha” (p. 71). A imprensa internacional exalta o futebol-arte praticado por Garrincha, reafirmando o discurso: O futebol brasileiro – conclui Manning (jornalista do Daily Mirror) – tem muitos reis para um só trono. Manning mostrou-se surpreso, pois lhe disseram que Garrincha era meio burro, e agora ele não pode fazer uma ideia do que é ser inteligente para os brasileiros. Todos os comentaristas ingleses presentes a Sausalito foram unânimes em considerar o futebol de Garrincha ‘pura arte’ (Jornal do Brasil, 12 jun. 1962, p. 12).

Depois da partida contra o Chile, Nelson Rodrigues dedicou parte de sua coluna no jornal O Globo para falar de Mané: Garrincha! Desde o começo da crônica que eu queria falar no Mané. E estou-me perdendo em floreios como faria o já referido orador de gafieira. Garrincha foi a maior figura do jogo, a maior figura da Copa do Mundo e, vamos admitir a verdade última e

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exasperada: – a maior figura do futebol brasileiro desde Pedro Álvares Cabral. Quando eu dizia que Garrincha era varado de luz como um santo de vitral, os idiotas da objetividade torciam o nariz. Reconheço que faltava ao Mané, realmente, um toque, ou retoque, de martírio. Desde ontem, porém, o Mané é mártir oficial, mártir chapado, da cabeça aos sapatos. O lívido, o gelado Eichmann do apito o expulsou, com a hedionda conivência do bandeirinha Esteban Marino. É a santidade, amigos. A coisa foi tão indigna como o seria a expulsão de São Francisco de Assis. E ainda por cima apedrejaram o Mané, tiraram o seu tépido, o seu doce, o seu rútilo sangue. É santo, sim, sem efeito de retórica, sem arranjo literário, tão santo como um São Sebastião seminu e flechado (1993, p. 103).

Com tanta importância, Garrincha foi absolvido pela FIFA e poderia enfrentar os tchecos na decisão. No julgamento, o juiz peruano afirmou que não tinha visto o pontapé e que quem havia lhe informado fora o bandeirinha Esteban Marino. Marino poderia contar o que viu e deixar o melhor jogador da Copa de fora da final, mas ele simplesmente não foi mais visto no Chile. Para variar, os jornais trouxeram a dúvida se Pelé jogaria ou não a final. “Lançar ou não lançar Pelé, eis a questão” (Jornal do Brasil, 15 jun. 1962, p. 11). Pela última vez na Copa, a informação era de que o Dr. Gosling faria um teste antes do jogo e só assim se saberia se Pelé jogaria ou não. Quanto aos adversários, a lembrança da imprensa era em torno da decisão de 1934, que os tchecos perderam para os italianos, corroborando a ideia de que o passado favorável ao Brasil era sempre mais lembrado, ajudando no discurso que se pretendia pluralizar. Um dia antes da final, a manchete do Jornal do Brasil demonstrava a crise política que o país atravessava: “Tancredo fixa renúncia; San Tiago será premier” (16 jun. 1962, p. 1) Apesar disso, a fé inabalável de que tudo correria como em 1958 tomava

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conta do país. O Jornal do Brasil já indicava a festa de chegada dos jogadores: “Brasil enfrenta tchecos com recepção festiva já programada para amanhã” (17 jun. 1962, p. 1). O Brasil foi a campo com a mesma formação habitual e entrou para a história como a seleção campeã que usou o menor número de jogadores em um Mundial: 12 apenas. A ideia de repetir tudo o que vinha dando certo foi cumprida à risca. A final consumou a hegemonia canarinho. Vitória por 3 a 1 contra o bom time da Tchecoslováquia. Amarildo, Vavá e Zito marcaram. Uma grande festa começou no Chile, que torceu pelo Brasil na final. Oduvaldo Cozzi, o visionário que lançou o repórter de campo, em sua narração no final do jogo, afirmou: “Teeeeeeerminou! Teeeeeeeeeeeeeeeerminou! Teeeeeeerminou! Brasil bicampeão do mundo! Brasil bicampeão do mundo”. A emoção de um dos maiores narradores esportivos do Brasil já previa o fim de uma era. Claro que o seu “terminou” era sobre o jogo, mas, com o apito final do árbitro soviético Latychev, encerrava-se também uma era em Copas do Mundo. O Mundial do Chile já começava a apontar o que o futebol e a Copa do Mundo da FIFA se tonariam dentro de alguns anos. Em 1962, começavam a delinear-se os aspectos comerciais para a viabilização do Mundial. Os interesses não eram tão somente no evento. E empresários italianos e espanhóis andavam em busca de novos valores. A televisão mexicana havia comprado os direitos para transmissão de todos os jogos. A mentalidade dos jogadores começava a mudar; não jogavam somente pela camisa; o resultado financeiro era o objetivo de alguns. Contagiando a todos, os prêmios, o direito de arena e outros que tais davam os primeiros passos. Tudo começava a ser comercializado (Filho, 2004, p. 98).

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Terminava uma era nas Copas e se consolidava a expressão “pátria de chuteiras” de Nelson Rodrigues. “Não foi apenas a vitória do escrete. Foi sobretudo a vitória do homem genial do Brasil” (Rodrigues, 19 jun. 1962, p. 12). Os jornais exaltavam a supremacia de nosso futebol frente aos outros; inclusive a ausência de Pelé, tão sentida durante toda a Copa, se tornou mais um fator de orgulho de nosso esporte bretão e da consagração de Mané: Porém, mesmo sem Pelé, o Brasil chegou à final. Se isso foi uma prova de maturidade do futebol brasileiro, que se afirmou definitivamente como grande, foi, por outro lado, um agravante para o processo de esvaziamento por que passa Pelé e um ponto a mais no sistema de consagração a Garrincha (Jornal do Brasil, 17 jun. 1962, p. 23).

Na chegada ao Brasil, a continuação da festa teve desfile em Brasília, onde o presidente Jango recebeu a seleção. Desfile também no Rio de Janeiro, onde Carlos Lacerda recebeu os bicampeões mundiais. “O Brasil vence o jogo, e a vitória é narrada como mais um triunfo da nação. A vitória passa a ser símbolo de uma nação que busca reconhecimento e tem no futebol um instrumento para mostrar suas qualidades” (Bartholo et al., 2004, p. 346). Isso é reforçado por Salvador e Soares, que acreditam que “o sucesso do futebol serve como metonímia de um povo nascido da mistura de raças, simples e alegre, que pode lançar-se no mundo desenvolvido para mostrar as qualidades do Brasil” (2009, p. 21). O discurso de que quem ganhou foi o país ainda estava em voga, como afirmou Leonel Brizola ao Jornal do Brasil: “Uma vitória que aumenta o prestígio internacional do Brasil” (19 jun. 1962). No mesmo dia, o jornal relata como o Rio de Janeiro recebeu os campeões do mundo:

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Com uma explosão de alegria que durou várias horas – e que superou, em alguns pontos da Avenida Rio Branco, os momentos de maior entusiasmo já vividos pela cidade, até mesmo no carnaval –, o Rio recebeu ontem os bicampeões de futebol do mundo. Holofotes do Exército postados nos dois extremos – Praça Mauá e Praça Paris – iluminaram a maior e mais espontânea manifestação já prestada a alguém pelos cariocas (p. 1).

A expressão “pátria de chuteiras” estava realmente consolidada no discurso midiático: Ao soar o apito final, cada brasileiro presente sentiu-se fisicamente implicado no triunfo. Aliás, o bi foi um êxito pessoal de 75 milhões de sujeitos. Todos nós ‘ganhamos’, todos nós ‘chutamos’. E, depois do match, cada um de nós tinha as canelas materialmente esfoladas (Rodrigues, 1993, p. 108).

A ideia de uma nação que aguardava o grande momento para mostrar ao mundo todo o seu potencial apareceu com força depois do bicampeonato: Setenta e cinco milhões de brasileiros profetizaram o triunfo. Amigos, depois da vitória não me falem na Rússia, não me falem nos Estados Unidos. Eis a verdade: – a Rússia e os Estados Unidos começaram a ser o passado. Foi a vitória do escrete e mais: – foi a vitória do homem brasileiro, ele sim, o maior homem do mundo. Hoje o Brasil tem a potencialidade criadora de uma nação de napoleões (Rodrigues, O Globo, 18 jun. 1962, p. 11).

O discurso era que o mundo havia se rendido de uma vez por todas ao nosso talento no futebol, o que, com o bicampeonato, era incontestável. “O sentimento de afirmação da identidade

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pelo futebol brasileiro vinha sendo desenhado desde a década de 1930, mas sua consolidação ocorreu com a conquista do bicampeonato num curto espaço de quatro anos (1958-1962)” (Bartholo et al., 2004, p. 346). As reportagens e seus títulos na página 13 do Jornal do Brasil de 19 de junho de 1962 seguiram o tom: “Mundo aplaude o Brasil como rei do futebol”, “Presidente e jornais do Chile aplaudiram um campeão autêntico”, “Paris saudou a vitória do futebol e diz que o Brasil é invencível”, “Na imprensa de Londres, time do Brasil é deus e Amarildo, o seu profeta”. Em seu livro O jogo bruto das Copas, Teixeira Heizer também segue essa linha: “Mais uma vez, a Taça Jules Rimet era do Brasil, e Mauro a ergueu revelando ao mundo uma superioridade irrefutável do futebol brasileiro sobre o europeu” (2001, p. 142). Considerações finais Como vimos, é notória a comoção nacional que a disputa de uma Copa do Mundo causa em nosso país. Observamos, pela análise dos jornais de maior circulação nacional da época, que esse momento é bastante oportuno para desenvolver ideias e consolidar um discurso sobre a nação. Se em 1938 Getúlio Vargas se apropriou da seleção como identidade nacional, baseada nas ideias de Gilberto Freyre, em 1950 essa imensa euforia se transformou em decepção gigantesca depois da derrota para o Uruguai no Maracanã e colocou a identidade nacional construída nos anos 1930 em parafusos. Será que não seríamos capazes? Será que o Brasil tinha nascido para perder? Será que a miscigenação racial era a causa para nossas derrotas? Foram necessários oito anos e a vitória na Suécia para desfazer essa ideia e o brasileiro voltar a ter orgulho dele mesmo e de sua nação. A pátria de chuteiras foi instalada por intermédio de um negro, Pelé, e um descendente de índios, Garrincha. Quatro anos depois, percebemos a consolidação desse discurso e da expressão “pátria de chuteiras” pela narrativa

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da mídia na época. Vários fatores importantes foram identificados ao longo da pesquisa, os quais pontuaremos a seguir. Ter a mesma base do time campeão em 1958 foi um fator amplamente explorado pelo discurso da imprensa. Repetir o que tinha dado certo e manter nosso futebol campeão na última Copa era um dado que tornava, segundo a imprensa, nosso time mais apto a vencer a Copa no Chile. Além disso, buscou-se o tempo todo, no passado, fatores de sucesso que aumentariam a expectativa dos torcedores em torno de mais uma conquista. Esse otimismo era facilmente observado nas reportagens sobre a festa da população em torno dos jogos e depois da final. O sentimento de pátria de chuteiras era cada vez mais presente: comemorar e festejar o sucesso dos 11 brasileiros no Chile significava, para cada brasileiro, comemorar seu próprio êxito. O sonho de ser campeão do mundo em 1958 continuou e se revalidou em 1962; não era obra do acaso o Brasil ter sido campeão, éramos realmente bons, e isso caiu como uma luva para o discurso midiático. A lesão de Pelé, nossa maior estrela no Mundial, serviu para mostrar, por meio do discurso, que não vivíamos em função de um grande jogador, e que um Pelé nascia em qualquer lugar no país do futebol, destacando a atuação de Amarildo como substituto do “rei”. Além disso, as atuações fantásticas de Garrincha consolidaram de vez a ideia de futebol-arte, irreverente, preocupado com o drible, como algo tipicamente nacional. Pela segunda vez na história, uma seleção venceu seguidamente uma Copa do Mundo da FIFA. A Itália conseguiu essa proeza 1934 e 1938, e suspeitamos de que foi utilizada por Mussolini para exaltar a Nova Itália, renascida com o fascismo. No Brasil, percebemos que essa conquista serviu para consolidar nossa superioridade no futebol frente aos outros países, não só pela mídia nacional, mas também pela internacional, como vimos anteriormente. Essa conquista nos fez, pelo menos nos quatro anos entre as Copas, esquecer o complexo de vira-latas e deixou

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uma sensação de superioridade e um pensamento que, supostamente, nos acompanharia por todas as Copas seguintes: o Brasil nunca perde quando joga como Brasil. Essa atitude trouxe uma aura de que nosso futebol é realmente o melhor do mundo e de que somos o país do futebol, independentemente de qualquer outro fator. E isso será constantemente explorado pela imprensa nacional, principalmente durante as Copas do Mundo. Referências ALZUGARAY, D. O Brasil de todas as Copas. São Paulo: Três Ltda., 1986. BARTHOLO, T. L.; SALVADOR, M. A.; SOARES, A. J. G. “A imprensa e a memória do futebol brasileiro”. Revista Portuguesa de Ciências do Desporto, 2007, v. 7, n. 3, pp. 368-76. BARTHOLO, T. L. et al. “A pátria de chuteiras está desaparecendo?”. Anais do IX Congresso Brasileiro de História do Esporte, Lazer e Educação. Recife: UFPE, 2004, pp. 340-9. BARTHOLO, T. e SOARES, A. J. G. “Mané Garrincha como síntese da identidade do futebol brasileiro”. In HELAL, R.; LOVISOLO, H.; SOARES, A. J. G. (orgs.). Futebol, jornalismo e ciências sociais: interações. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011. CASTRO, R. Estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. DaMATTA, R. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. FILHO, B. Brasil em Copas do Mundo. São Paulo: Panorama, 2004. FREYRE, G. “Foot-ball mulato”. Diário de Pernambuco, Recife, 17 jun. 1938, p. 4. GASTALDO, É. “Um tempo para jogar: o ‘ser brasileiro’ na publicidade da Copa do Mundo de 1998”. Campos, 2001, v. 1, pp. 123-46. GEHRINGER, M. Almanaque dos Mundiais por Max Gehringer: os mais curiosos casos e histórias de 1930 a 2006. São Paulo: Globo, 2010. O GLOBO. Caderno de Esportes, 30 mai.-22 jun. 1962. GUEDES, S. L. O Brasil no campo de futebol: estudos antropológicos sobre os significados do futebol brasileiro. Niterói: EDUFF, 1998. ——. “Futebol e identidade nacional: reflexões sobre o Brasil”. In DEL PRIORE, M. e MELO, V. A. de (orgs.). História do esporte no Brasil – do Império aos dias atuais. São Paulo: Ed. UNESP, 2009, pp. 453-80.

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1970 – pra frente, Brasil: preparo da caserna, coração de chumbo e mente brilhante Antonio Jorge Gonçalves Soares Marco Antonio Santoro Salvador

A ditadura de 1964 e a seleção de 1970 sempre estiveram, de uma forma ou de outra, na cabeça dos autores deste texto, que nasceram no início dos anos 1960. Vivenciamos a Copa de 1970 como garotos, e poucas e nubladas imagens foram apreendidas em sincronia com o evento. Essa foi a primeira Copa que teve transmissão ao vivo em nossos televisores em preto e branco. Em caráter experimental, a Embratel transmitiu os jogos na TV em cores para alguns convidados dos militares no poder. Ainda lembramos que, depois do início da ampliação das vendas da TV em cores, luxo apenas das classes médias abastadas e altas, era vendida nos camelôs e em lojas uma película listrada em forma de arco-íris para ser colocada na frente do tubo de imagem da TV para dar uma bizarra sensação de ver em cores aquilo que era transmitido em preto e branco. O que sabemos dos heróis da Copa de 1970 e da seleção que se tornou a marca do futebol-arte foi fruto da rememoração produzida pelos programas esportivos e pelo Canal 100 de

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Carlos Niemayer. As imagens do Canal 100 eram transmitidas nas telas do cinema quando já tínhamos idade para frequentá-lo. Garrincha, que não jogou essa Copa, mas é um dos ícones disso que nomeamos de futebol-arte, também foi assistido com suas jogadas imortalizadas pelo Canal 100 em câmera lenta, aquilo que depois passamos a chamar de slowmotion. É verdade que, depois da Copa de 1970, tivemos a oportunidade de assistir a Gérson, Jairzinho, Pelé, Rivelino, Tostão durante algum tempo em seus respectivos clubes e alguns nas seleções de 1974 e 1978. Quanto à ditadura, tivemos também uma experiência de vivê-la e só tomar consciência desses anos de chumbo na adolescência, quando ingressávamos no ensino médio, no então chamado segundo grau. Com a anistia, passamos a entender parte do período que vivemos em nossa infância e adolescência. Nessa época do ensino secundário, foram obrigatórias as leituras do livro O que é isso, companheiro? de Fernando Gabeira, lançado em 1979, e Os carbonários, de Alfredo Sirkis, lançado em 1980. Esses não eram os livros obrigatórios da disciplina de literatura, mas se tornavam imprescindíveis para aqueles que se aproximavam do movimento estudantil, tentavam construir uma identidade de esquerda e esboçavam protesto sobre aquele período obscuro da história. Gabeira, naquele momento, tornou-se um herói dos jovens pelo relato de sua vida na clandestinidade e pelo espetacular sequestro do embaixador americano Charles Elbrick. Nada era mais emocionante para os estudantes secundários que se aproximavam do movimento estudantil ou participavam ativamente dele do que ver em Gabeira uma espécie de resposta ao inimigo número um da democracia brasileira: os Estados Unidos. É verdade que usávamos calça jeans, tênis All Star e alguns de nós andavam de skate ou surfavam ouvindo rock, mas aqueles que se pensavam de esquerda nutriam uma espécie de ódio pela maior potência econômica e militar do planeta. Cuba e a revolução iniciada em Sierra Maestra

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eram apreendidas e idealizadas pelos olhos de Fernando Moraes quando escreveu A ilha em 1976. Pudemos assistir a uma das principais peças que tematizava a ditadura, A resistência, de Maria Adelaide Amaral, escrita em 1975 e apresentada e dirigida por Cécil Thiré em 1979, no teatro Gláucio Gil (Rio de Janeiro). A peça abordava a interferência da ditadura, após o milagre econômico, na vida dos executivos, o medo da demissão em massa e as relações familiares no seio da classe média. Esse era um momento de muita sinergia cultural, de reorganização de cineclubes amadores e universitários, de debates na universidade, de polêmicas nos jornais, enfim, foi um período importante para descortinar um mundo velado e sussurrado em nossas infâncias. Essa breve rememoração autobiográfica dos autores tem por função demonstrar que parte de nossa geração, aquela que se interessou em entender a vida política no final dos anos 1970 e dela participar, tinha por sentimento ser órfão dos anos 1960. Naquele momento da adolescência, tentávamos estabelecer um elo com a geração heroica que enfrentou, arriscou e perdeu a vida em função das demandas de igualdade social da época. Podemos dizer que o sentimento de órfãos dos anos 1960 ainda permanece num pequeno grupo de nossa geração e alimenta o imaginário das novas gerações de adolescentes engajados hoje na política estudantil. A política tinha se tornado, a partir de 1964, um tema perigoso ou secundário nos lares de classe média que viam positivamente o governo militar. Assim, a memória sobre o final dos Anos de Chumbo auxilia a observar como parte de nossa geração começou a ser ressocializada com a vida política do país. Se política foi, por mais ou menos 15 anos, um tema proibido, o futebol sempre foi tema corrente e experiência não censurada. A seleção de 1970 sempre foi um assunto favorito em todos os espaços sociais. Nossa geração era encantada com o drible de Rivelino, chamado de elástico; com a imagem imortalizada em

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cartazes da bicicleta de Pelé com a camisa do Santos; com as imagens repetidas das comemorações de gol de Jairzinho, Rivelino e Pelé em 1970. Nossos olhos e memória foram educados a falar do bom futebol e avaliá-lo a partir daquela seleção. Todos os meninos que jogavam futebol de campo tentavam fazer longos lançamentos ao estilo Gérson, todos tentavam bicicletas em qualquer situação que a bola em jogo permitisse, ainda que a ação fosse antieconômica e desnecessária. Os dribles de Pelé e Rivelino eram marcas do bom jogador brasileiro ou craque. Bom jogador era aquele que tinha habilidade individual com a bola nos pés e deixava seus marcadores para trás ou caídos. Claro que, em nossa geração, os goleiros eram aqueles que não tinham habilidade; os defensores, em geral, os mais esforçados, brutos e, até certo ponto, desleais. Os bons jogadores, os craques, deviam ocupar as posições do meio-campo ou do ataque. No máximo, permitíamos um centroavante eficiente em marcar gols, mesmo que este fosse considerado um jogador de pouca virtuose com a bola nos pés. Embora esse tipo de jogador realizasse o objetivo do jogo, o craque (o virtuoso) era aquele que apresentava habilidade para lançar, driblar e encantar esteticamente nossos olhos. As imagens que víamos em câmera lenta no Canal 100 eram de dribles e gols fantásticos. Se, na política, tínhamos de participar do mundo e pensá-lo de forma crítica e, às vezes, dual (o mal e o bem, o capitalismo e o socialismo, os Estados Unidos e a União Soviética ou Cuba), no futebol nos educamos para ver a genialidade do brasileiro e a ginga de nosso inigualável futebol como um lugar de conversação e divergência que pouco saía dos limites do campo esportivo. No início dos anos 1980, quando ambos os autores deste texto ingressaram na universidade para cursar Educação Física, suas visões sobre o esporte sofreram transformações. Em meados dos anos 1980, a educação física e a educação passaram a ter como alvos a crítica ao capitalismo, a denúncia aos Anos de Chumbo, a

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arbitrariedade da política e das instituições e o papel de reprodução do status quo realizado pela escola e pelo esporte. O esporte, o futebol e a escola, a partir das leituras de um marxismo vulgar, da sociologia crítica do esporte e do clássico Os aparelhos ideológicos do Estado, de Althusser, passaram a ser vistos com instrumentos de alienação das massas. A desconfiança sobre os papéis desempenhados por essas instituições sociais no seio da sociedade brasileira formou nossas subjetividades a partir desse momento em nossas formações acadêmicas. O futebol passou a ser visto como o ópio do povo, e incorporamos a leitura de que a ditadura interferiu na vitória da seleção e a associou: a) à imagem ufanista do milagre econômico e propaganda do país que “vai pra frente”; b) à popularização da imagem do presidente General Médici ao lado dos jogadores vitoriosos em Brasília e a seus constantes palpites sobre futebol; e c) às potencialidades de um país que divulgou como propaganda de governo o bordão “Brasil: ame-o ou deixe-o”, ao mesmo tempo que aprendíamos, naquele período, que o governo de exceção perseguiu e prendeu os que eram contrários ao arbítrio dos governantes militares. Quanto à escola e à educação física, aprendemos que estes eram espaços de arena de luta a partir da pedagogia crítica. A escola e as aulas de educação física eram os lugares de formar consciências críticas para uma sociedade mais justa, que superasse o capitalismo. Claro que não sabíamos muito bem com quais ferramentas e conhecimentos poderíamos operar no cotidiano das aulas, além do discurso doutrinário de esquerda. Tentávamos nos apropriar desse discurso e, ao mesmo tempo, ensaiávamos possibilidades ou situações pedagógicas, às vezes forçadas, que transmitissem aos alunos a “visão crítica” da sociedade e do esporte. Enfim, lemos muito e participamos de congressos para pensar um esporte que se contrapusesse ao modelo de esporte produzido pelo capitalismo. Claro que, para nós, o esporte produzido nos regimes comunistas era diferente, mesmo sem muita reflexão a respeito.

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O que importava era pensar que o esporte e a vida nesses países eram melhores para todos, não apenas para alguns. O esporte na escola deveria, assim, denunciar seus usos ideológicos e, simultaneamente, apresentar possibilidades de uma prática que não fosse reprodutora do esporte espetáculo e de alto rendimento. Tudo isso era consciente, mas não deixávamos de torcer pelo Flamengo nem pelo Vasco, em nosso caso. Esse contexto ilustra como a seleção de 1970 e a vitória do futebol-arte podem apresentar, ao mesmo tempo, os sentimentos de pertencimento e orgulho para nossa geração e as lembranças dos Anos de Chumbo (Gil, 1994). O filme que melhor retratou esse sentimento foi o Pra frente, Brasil, de Roberto Farias, rodado em 1980, ganhador de vários prêmios, que problematizou a relação entre a ditadura, a resistência armada, os cidadãos comuns e o futebol. O longa apresenta como os cidadãos brasileiros, opositores ou não ao regime militar, sofreram com as arbitrariedades da repressão e, também, exibe imagens nas quais opositores ao regime ou aqueles que viviam na clandestinidade paravam em frente à TV na hora dos jogos. Retrata os acordos entre os empresários que financiavam os aparelhos clandestinos de tortura da ditadura e seus agentes militares, policiais e paramilitares que exerciam a violência física e psicológica contra aqueles sobre os quais pairava algum tipo de suspeita de envolvimento com a luta armada. O interessante desse filme é que ele tenta demonstrar a irracionalidade presente nessa guerra civil por ambos os lados. Futebol e ditadura, a partir da teoria crítica, tornaram-se motes para denunciar a famosa política do pão e circo ou seu correlato do ópio do povo. A relação entre futebol, governo e atores sociais, longe de encerrar uma explicação que coloque o esporte como instrumento do poder, apresenta uma série de contradições presentes na memória dos protagonistas que participaram daquele momento histórico. O jornalista Cid Benjamin relata, no documentário Memórias do chumbo – o futebol nos tempos do Condor

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(ESPN, 2012), que, quando estavam exiliados, uma das preocupações dos companheiros de luta era o uso político que a ditadura faria daquela vitória. Todavia, relata que, após o quarto gol de Carlos Alberto na final contra a Itália, mesmo aqueles que estavam mais distanciados do certame mundial voltaram seus olhares para a TV, levantaram e vibraram com a vitória brasileira. Essa é a ambiguidade que habita o futebol em nossas terras. Ao rememorarmos a seleção de 1970, perguntamos: o que nos une, além da repulsa que tínhamos e temos pela ditadura, àquela seleção vitoriosa e expressão da identidade do futebol e do Brasil? Saldanha e a ditadura É voz corrente que o jornalista João Saldanha, que atuou como treinador da seleção de 1970, tenha caído em função de seus vínculos com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) ou por não ter aceitado a interferência do presidente da República em sua seleção. Saldanha rememora num programa televisivo, Roda viva (1987), que, com a entrada do General Médici na presidência da República, sua permanência na seleção seria difícil, como o próprio Havelange lhe havia informado. Essa explicação se torna mais fácil em função de apenas reiterar a ideia do controle quase total que a ditadura brasileira, iniciada em 1964, teria exercido em vários setores e instituições. Se não podemos comprar esse tipo de narrativa que reduz a ação dos indivíduos à passividade e não capta as contradições e fraturas desse cenário histórico, também não podemos ignorar o papel que as táticas de espionagem, de infiltração, de denúncia e de repressão tiveram nas agências de controle do estado de exceção vivido por nossa sociedade.1 Como 1

Serviço Nacional de Informação (SNI); Departamento de Ordem Política e Social (DOPS); Destacamento de Operações de Informações (DOI); Centro de

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entender que Saldanha, jornalista, treinador de futebol e dono de uma história de vínculo com o PCB, tenha assumido a seleção brasileira para jogar as eliminatórias da Copa de 1970? Ao consultarmos a imprensa no período em tela, observamos que boa parte dela tinha a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) e a seleção de futebol como alvos de crítica após o fracasso na Copa de 1966 e as suspeitas de corrupção na gestão da CBD. A Copa de 1966 teria deixado a lição que o futebol no Brasil estava defasado em relação aos avanços do conhecimento científico e tático no campo do esporte. O hábil João Havelange, à frente da CBD, decidiu realizar uma jogada de mestre com a opinião pública em relação a quem seria o treinador da seleção. O cargo estava vago, e vários nomes foram aventados. Assim, Antônio Passos, cartola inexpressivo e fiel escudeiro de Havelange, convidou João Saldanha para assumir a seleção, e ele prontamente aceitou. Ter um jornalista respeitável e crítico, que tinha sido treinador vitorioso (1957-1958) no Botafogo no final dos anos 1950, servia para tentar imunizar a CBD das críticas que sofria sem trégua da imprensa. De certa forma, esse objetivo foi alcançado num primeiro momento, apesar da reclamação dos professores de educação física e dos técnicos diplomados pela escolha de um “leigo” para dirigir a seleção. Saldanha gozava de grande popularidade. A questão era: como trazer alguém identificado com o comunismo ou a esquerda para dirigir a seleção nacional naquele estado de exceção? Para responder a essa pergunta, temos de pensar que o campo do esporte se conformou a partir da ideologia de ser suprapolítico, e, portanto, suas finalidades educativas e os vínculos identitários que produz, supostamente, sempre estiveram acima dos interesses mesquinhos da “política ordinária”. Esse foi o discurso Operações de Defesa Interna (CODI). Estes eram órgãos de inteligência e repressão subordinados ao Exército e ao governo ditatorial.

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que balizou a estratégia de expansão da FIFA nos diferentes países e regiões do planeta, ignorando ou secundarizando o autoritarismo e as denúncias de violência presentes em diversos regimes políticos. Em outra mão, a CBD, como entidade privada, poderia escolher quem desejasse para o cargo de treinador principal da seleção brasileira, mas, como era sabido, a ditadura tinha criado um clima de tensão, e as entidades esportivas ou culturais, empresas privadas, jornais e universidades deveriam ter “bom senso” de não colocar em seus quadros os supostos inimigos do regime. Ao que parece, mesmo sem fontes seguras, a escolha de Saldanha combinava com a ideologia de que o esporte estava acima das questões políticas. O argumento era que sua experiência como treinador de futebol de sucesso, ainda que tivesse sido breve, e seu conhecimento sobre o esporte o habilitariam a dirigir aquela seleção que estava sob as constantes críticas da imprensa esportiva. Havelange, preocupado com sua carreira política na FIFA, teria jogado com a dupla possibilidade de sucesso, isto é, se Saldanha à frente da seleção conseguisse, nas eliminatórias, classificar o Brasil para a Copa de 1970, mostraria que estava certo ao escolher um treinador ou um homem que conhecia de futebol; se Saldanha tivesse algum percalço, teria um bom motivo para demitir o treinador e ganhar tempo para pensar em outros nomes. A historiografia indica que o projeto de Havelange era um projeto de poder no campo do futebol no Brasil e na FIFA (Smit, 2007). A saída de Saldanha, antes de embarcar para jogar a Copa, após uma trajetória vitoriosa nas eliminatórias, sempre estimulou debates e a suspeita de intervenção da ditadura no campo do esporte. O tema é controverso e pouco claro. Fala-se da intenção de Saldanha barrar Pelé, em função de supostos problemas de visão; do desejo do presidente da República, general Emilio Garrastazu Médici, em ver Dario na seleção; e das dificuldades de convivência entre Saldanha e comissão técnica, principalmente com o médico Lídio Toledo e o Capitão Bonetti, secretário do diretor

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da CBD, Antônio Passos. A revista Placar, publicada em 20 de março de 1970, anuncia os seguintes motivos para a queda de Saldanha: brigas com a comissão técnica, excessiva liberdade tática aos jogadores, falta de organização tática e interesses do governo sobre aquela seleção. O importante é que ainda pairam muitas dúvidas sobre sua saída da seleção. O próprio Saldanha relata, ao insistente pedido dos entrevistadores do programa Roda viva (1987), que, quando foi convidado para dirigir a seleção, teria sido avisado que a “ficha” dele era conhecida pela CBD. Saldanha diz também que denunciava a ditadura no exterior e que, enquanto esteve no comando da seleção, não admitia a infiltração de nenhum agente do governo. Apesar de não podermos afirmar o principal motivo da queda de Saldanha, não podemos desconsiderar suas idiossincrasias sobre o futebol e sua difícil personalidade, bem como minimizar as possibilidades de a ditadura ter tentado intervir nessa instituição privada. Lembremos que Havelange também era um homem suscetível a pressões, pois estava sob suspeição de desvio de dinheiro na CBD nas páginas da imprensa (Placar, 3 abr. 1970). Saldanha nunca admitiu nenhum tipo de interferência na escolha dos atletas, na escalação ou na participação de pessoas estranhas ao futebol. Após sua queda, a seleção partiu para o México tendo como segurança o major Guarani, sobre o qual pairava a desconfiança na época, e ainda hoje, de ser os olhos da ditadura no cotidiano da seleção (Placar, 15 mai. 1970; ESPN, 2012). Ele realizava uma espécie de blindagem à imprensa. Em matéria publicada pela Placar (15 mai. 1970), o próprio major Guarani se defende das acusações de ser agente do SNI para “fichar” os jornalistas. Ele afirmou que estava ali para dar segurança à seleção. Oficialmente, integrou a seleção com o cargo de secretário do chefe da delegação, e sua participação naquele espaço, segundo se defende, era justificada em virtude de suas credenciais: ser formado

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em Educação Física, ter sido nadador recordista e possuir patente militar, o que o habilitava para as funções exercidas. Não podemos afirmar a exata função do major Guarani na seleção, além do explícito papel de chefe da segurança da delegação e secretário. Todavia, alguns indícios sobre o controle da voz dos jogadores aparecem nas páginas da Placar (15 mai. 1970). Uma famosa reunião dos jogadores Pelé, Gérson e Carlos Alberto é tida como um marco no sentido de definir aquela que julgaram ser a melhor composição da equipe. A conversa teria transcorrido inicialmente no quarto de Pelé, depois resolveram falar com Zagallo de forma franca e amistosa. Nessa conversa, indicaram a Zagallo que a melhor composição da equipe teria sido a do jogo contra a Áustria, e o treinador teria ouvido atentamente as análises dos jogadores e concordado. Zagallo, como recém-chegado ao comando da seleção, teria dito que a conversa foi produtiva e apoiava o senso de responsabilidade dos três atletas, mas destacou que se reservaria ao direito de alterar a seleção quando não cumprisse o plano tático estabelecido. Essa conversa foi ampliada com os dirigentes da delegação e, posteriormente, os jogadores. Algumas falas descritas nessa reportagem podem ser consideradas indícios de controle da voz e autocensura dos jogadores ou simplesmente um mecanismo de blindagem da equipe em relação ao assédio da imprensa. A fala de Carlos Alberto talvez indique que a voz dos jogadores deveria ser medida em relação às questões internas da seleção ou aos eventos que aconteciam além das quatro linhas. Na reunião com todos, relata-se, na matéria, a seguinte fala de Carlos Alberto: Depois, pedimos aos jogadores mais jovens que parassem de dar entrevistas ou, quando dessem, tomassem cuidado com o que diziam e a quem diziam. A verdade é que alguns deles estavam se comprometendo ao falar coisas que não deviam.

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Acho que estamos muito perto do ambiente de 58. Ainda faltam umas coisinhas.

Gérson ouviu, e Pelé completou: Acho que nos provocaram demais no Brasil. Fomos muito criticados [...] Isso nos motivou bastante. Tem muita gente entre os jornalistas que só está querendo se promover. Não conhecem nada de futebol. Quando eu parar de jogar, vou ser comentarista de rádio ou televisão, só para mostrar que esses caras não entendem nada (Placar, 15 mai. 1970, p. 3).

Essas falas indicam, primeiro, que a preocupação com aquilo que era falado para a imprensa e os jornalistas poderia comprometer os próprios jogadores. A que tipo de problema ou comprometimento Carlos Alberto se refere? São problemas com a ditadura ou problemas que poderiam ser desagregadores no clima da seleção? Não podemos fazer essas inferências com os indícios que temos, mas, naquele contexto, a dúvida se justifica em função tanto do período político vivido quanto das tensões que aquela seleção passou com a troca do treinador e com relativos insucessos após a classificação nas eliminatórias. A fala de Pelé poderia ser vista como uma reedição da velha tensão entre a seleção nacional e a imprensa esportiva ou poderia ser uma resposta a parte da imprensa e, talvez, ao próprio Saldanha, que não o teria escalado num dos amistosos em virtude dos problemas de visão ou das fracas atuações que vinha tendo. Saldanha cansou de reiterar, anos depois, que nunca dissera que Pelé tinha problemas de visão e que apenas não o escalaria em alguns jogos amistosos para poupá-lo. Todavia, quando foi demitido da seleção, publicou em carta aberta (27 mar. 1970) uma série de queixas e reclamações; entre elas, comentava que Lídio Toledo lhe dissera que Pelé era míope e, por

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essa razão, vinha atuando mal nos jogos noturnos. Essa informação lhe foi dada sem nenhum diagnóstico formal. Ele afirmou que viveu problemas com a comissão técnica; o mais grave teria sido com o médico Lídio Toledo. Ele denuncia que o médico usava drogas e analgésicos pesados para que o jogador entrasse em campo, independentemente dos problemas colaterais que a medicação pudesse provocar. Ele chega a chamar Lídio de traidor por ter revelado à imprensa, antes dele, quais jogadores seriam cortados. Nessa mesma carta, Saldanha dirige-se a Jarbas Passarinho, ministro da Educação, para que interviesse no futebol no sentido de: dar dignidade aos jogadores brasileiros, que eram enganados por médicos inescrupulosos que os colocavam para atuar independentemente de suas condições físicas; conferir transparência aos gastos desnecessários operados pela CBD e acabar com a corrupção na entidade. Devemos lembrar que Saldanha herdou a comissão técnica de 1968 para atuar nas eliminatórias de 1969 (Chirol e Lídio Toledo) e, na temporada de classificação, teve o Capitão Bonetti, da EsEFEx (Escola de Educação Física do Exército), secretário de Antônio Passos, acompanhando a seleção. Com esse capitão, Saldanha teria tido o primeiro desentendimento que veio a público sobre a preparação física da equipe após o jogo do Brasil contra a Colômbia, em Bogotá, em agosto de 1969 (Veja, 25 mar. 1970, p. 39). Bonetti disse que, sobre esse desentendimento, nada falaria porque a imprensa iria contra ele e perguntou: “Adiantaria eu falar que ele não entende nada?” (Veja, 25 mar. 1970, p. 39). Essa densa matéria de Veja elenca uma série de razões para a demissão de Saldanha, dentre elas: o contrato que assinara para ser comentarista do grupo O Globo; sua falta de atenção e dedicação aos treinos; a perda de autoridade frente aos jogadores; e seu desequilíbrio, que o levou a procurar seu desafeto, Iustrich, então técnico do Flamengo, na concentração do clube, com revólver em punho. Teria ele também, nesses arroubos, barrado a

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entrada de Cláudio Coutinho no vestiário num jogo-treino com o Bangu. Jogo esse em que a seleção se apresentou muito mal. Após a queda, Saldanha não desaparece da imprensa. Na Placar (3 abr. 1970, pp. 6-7), ele comenta 14 pontos para revolucionar o futebol brasileiro, em entrevista que teve pessoalmente com o ministro Jarbas Passarinho. Agora, tinha assumido a bandeira para discutir as condições de trabalho do jogador brasileiro, a carga de jogos, a supervisão da formação de jogadores de base, o atendimento de profissionais especializados ao atleta de futebol (nutricionistas, médicos etc.) e a revisão do modelo jurídico do contrato do jogador de futebol previsto na Lei do Passe. Sobre a questão do passe, o jornalista Carlos Lacerda também escreve um artigo problematizando aquilo que chama de regime de escravidão no futebol. O que importa nessa descrição é percebermos que Saldanha, após ser demitido pela CBD, foi recebido pelo ministro Jarbas Passarinho para discutir as reformas no futebol brasileiro. Esse fato confunde um pouco mais a explicação sobre a saída de Saldanha e o papel da intervenção do governo nesse episódio. O material analisado sobre a saída de Saldanha sugere que o treinador pode ter tido problemas de relacionamento com a comissão técnica durante e após as eliminatórias, perda de autoridade com os jogadores, resultados não satisfatórios nos jogos-treinos e baixa capacidade de diálogo com os dirigentes da CBD e a comissão técnica. Saldanha era um empecilho para a CBD realizar seu escambo político e os comuns inchaços das delegações para os eventos esportivos. Assim, não temos segurança para afirmar que sua saída se deu em função de uma imposição da ditadura militar ou dos problemas que teve na condução das relações com os membros da comissão técnica, com o corpo dirigente da CBD e com os jogadores. Nilton Santos havia profetizado, assim que assumiu a seleção em 1969, que os jogadores não confiariam em alguém que viesse de fora do futebol. O que sabemos é que a crise da CBD, as denúncias de corrupção e os conflitos internos que vazavam pela

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imprensa levaram o ministro Jarbas Passarinho a ameaçar intervir na CBD via CND (Conselho Nacional de Desportos). O próprio Saldanha, dias após sua saída e durante boa parte de sua vida, afirmou que não entendia sua demissão naquele momento. Mas o que mudou com a saída de Saldanha e a entrada de Zagallo? Esquemas táticos e os arranjos pós-Saldanha Quando assumiu a seleção em 1969 para as eliminatórias da Copa de 1970, Saldanha montou uma equipe que tinha por base os times do Santos, do Botafogo, parte do Cruzeiro e jogadores de outras equipes. Tinha na cabeça que a Copa era uma competição curta que não permitia a construção do entrosamento da equipe e que a seleção devia ser montada com base no presente. Por isso, optou por trazer jogadores das equipes que apresentavam bom rendimento naquele momento. Seu esquema tático para as eliminatórias foi o 4-2-4. Um esquema altamente ofensivo que deu certo nas eliminatórias de 1969. O Brasil realizou seis jogos com vitória em todos, marcou 23 gols e levou apenas dois. Como sabemos, Saldanha foi demitido e Zagallo assumiu a seleção ainda em março de 1970. A imprensa divulgava que o esquema tático de Zagallo era defensivo em relação ao modelo de Saldanha. A Placar (3 abr. 1970, p. 8), em matéria intitulada “O esquema de Zagallo”, baseada em uma entrevista com o novo treinador, sintetiza no sublide quatro pontos que definem a filosofia de jogo a ser implantada pelo técnico: 1) temos de ficar plantados; 2) o adversário não pode jogar; 3) só vamos atacar na certa; e 4) a torcida sofrerá um pouco. Zagallo traria para a seleção o modelo tático da equipe do Botafogo, que dirigia. Gérson indica que o esquema de Saldanha era ofensivo; o de Zagallo, mais precavido (Salvador e Soares, 2009). Assim, a seleção saiu de um modelo ofensivo e de liberdade tática, conhecido como 4-2-4, para um modelo defensivo,

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nomeado de 4-3-3, ambos com variações táticas. Zagallo desejava adotar um esquema que se baseasse no contra-ataque e num rígido sistema de marcação. Por isso, teria indicado que a torcida não gostaria de ver o Brasil se apresentar da forma que ele estava planejando. Forma essa que contrariaria a imagem que o brasileiro tem de seu futebol. O modelo tático e a composição da equipe titular, como visto na seção anterior, tiveram a participação dos jogadores mais experientes (Gérson, Carlos Alberto e Pelé) em debates e conversas com Zagallo e outros membros da comissão técnica. Zagallo convocou seis jogadores diferentes na formação definitiva para a Copa de 1970 em relação à realizada por Saldanha. Desses, salvo Marco Antônio, que atuou como titular em algumas partidas, nenhum deles se tornou titular. Porém, devemos reconhecer que Zagallo, em acordo com os jogadores, realizou mudanças táticas fundamentais na forma de jogar da seleção. Portanto, duas coisas não podem ser esquecidas: a reunião de jogadores com qualidades técnicas excepcionais e boa performance naquele momento e o treinamento e planejamento para jogar em altitude. Sobre a qualidade técnica dos jogadores, não precisamos argumentar muito. Fomos convencidos quando crianças e jovens pelas imagens televisivas e pelos recortes do Canal 100, que antecedia as sessões de cinema, de que os jogadores daquela seleção eram magos com a bola. Realizamos, em outro contexto, uma entrevista com Gérson, que, ao rememorar aquela formação, parece descrevê-la de forma bem ponderada: Eu achava, do meio de campo para trás, uma boa seleção. Mas do meio de campo para a frente era excepcional. O meio de campo era habilidoso e a função da gente era cercar. Porque não sabíamos marcar, saíamos com a bola dominada e acompanhávamos o Tostão e o Pelé, com a genialidade e o condicionamento físico de cada um. O condicionamento físico do Piazza, Geraldo e Brito

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era fora do comum. Nós não podíamos correr com eles. Eles corriam três dias, além de saberem jogar. Eu, por exemplo, correria até a esquina e teria que parar. O Pelé tinha um marcador e um jogador adversário por perto e aí já sobrava um de nós. O Tostão, a mesma coisa, sobrando mais um. Um me marcava e o outro, o Rivelino, sobrando o Carlos Alberto e o Clodoaldo, mais livres para armarem as jogadas. Além das jogadas ensaiadas e dos esquemas táticos, tinha a capacidade técnica de cada um de criar as surpresas, que era específica dessa seleção, pela habilidade de cada um de nós (Salvador e Soares, 2009, pp. 114-5).

Gérson fala do condicionamento físico, da genialidade, da criatividade, da qualidade técnica dos jogadores em criar surpresas para o adversário e do treinamento tático. Consideramos que ele sintetiza e explica o sucesso daquela seleção, o qual deve ser complementado com o detalhamento do plano de treinamento. Comissão técnica, treinamento, altitude training A aplicação dos conhecimentos científicos da época no planejamento do treinamento físico para a adaptação em altitude foi fundamental. A qualidade técnica e tática da equipe só pôde ser viabilizada em função da base fornecida pelo planejamento. O planejamento de 1970 foi motivado a partir da desclassificação na Copa de 1966, na qual as análises indicaram que o treinamento físico e a rígida disciplina tática teriam sido as marcas das seleções bem classificadas no certame. Após a derrota de 1966, a CBD fez vários ensaios e cometeu erros até a definição da comissão técnica que classificou o Brasil nas eliminatórias. A seleção e a gestão da CBD viviam sob críticas de malversação de recursos, de falta de definição do modelo de escolha dos atletas e de organização. Isso, de certa forma, reiterava o discurso de atraso e falta de desenvol-

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vimento das instituições brasileiras, o que alimentava a cultura da corrupção, do improviso e da desorganização. O consenso de que a seleção deveria modernizar seus métodos na preparação da equipe para a Copa de 1970 estava presente entre os quadros dirigentes da CBD e em toda a imprensa. No entanto, a imprensa era aguerrida nas críticas sobre a gestão da entidade. Como já vimos, havia indefinição de quem seria o treinador nas eliminatórias, mas lembremos que o preparador físico Admildo Chirol já estava entre os quadros da comissão técnica desde 1968, por convite de Antônio Passos. Chirol havia se formado no melhor núcleo de treinamento esportivo do Brasil na época: a EsEFEx.2 Assim, quando João Saldanha aceitou o convite para ser treinador e de pronto montou a base de sua seleção nomeando seus jogadores, teve de herdar a comissão técnica de 1968, que já estava formada por Chirol e o médico Lídio Toledo, para as eliminatórias de 1969. Chirol relembra em 1998, na seção de cartas da revista Veja, que um artigo publicado nessa revista elogiava a preparação física da seleção de 1970, creditando o sucesso daquele modelo ao capitão Cláudio Coutinho e ao professor Carlos Alberto Parreira, mas o artigo teria omitido seu nome, que não só liderou aquela comissão, como foi o preparador físico responsável nas eliminatórias. Vejamos a carta: Futebol Na reportagem ‘Futebol na raça’ (7 jan.), o ex-medalhista olímpico Joe Dunbar faz uma análise elogiosa da preparação física da seleção de 70. Senti-me lisonjeado, mas ao mesmo tempo surpreso, por não ver meu nome sequer citado como integrante daquela equipe de preparadores físicos. Cumpre-me esclarecer que, durante as eliminatórias para a Copa de 70, 2

Sobre o papel da EsEFEx na estruturação do campo da educação física no Brasil, ver Ferreira Neto (1999).

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enfrentamos a Colômbia, em Bogotá, a 2.640 metros acima do nível do mar, e eu estava sozinho na preparação física da seleção. Conseguida a classificação, senti que haveria necessidade de ter auxiliares para a realização de um trabalho de altíssimo nível, pois as finais da Copa seriam disputadas na Cidade do México, a 2.240 metros acima do nível do mar, onde se poderia processar a deterioração da performance dos atletas caso não estivessem bem condicionados. Esforcei-me na época junto ao presidente João Havelange, da CBF, para que fossem admitidos os competentes professores Carlos Alberto Parreira e Cláudio Coutinho, de saudosa memória, que passaram a integrar a equipe de preparação chefiada por mim. Tivemos também a colaboração de um especialista em esportes na altitude, o professor Lamartine Pereira da Costa, cuja orientação foi muito importante para a confecção do plano de trabalho (Veja, 28 jan. 1998, seção “Cartas”).

Em 1968, a CBD, por indicação de seu preparador físico Admildo Chirol, solicitou o apoio para avaliação dos atletas da seleção. Na época, a EsEFEx era comandada pelo coronel Éric Tinoco Marques, que colocou todos os setores e a expertise da escola para realizar avaliações médicas, odontológicas e físicas dos atletas. O major Ângelo Azevedo Marzano, o capitão Benedito José Bonetti, o sargento Ismael Kurtz, o sargento Jorge Ferreira da Purificação, o sargento Eduardo Abdias Gurgel de Araújo, o capitão Cláudio Coutinho, o capitão Kleber Caldas Camerino, o subtenente Raul Carlesso, Chirol e Parreira realizaram uma avaliação funcional dos atletas com testes que nunca haviam sidos realizados no Brasil (Soeiro, 2003). Esse dado informa que Chirol estava, já naquele período, tentando desenhar uma preparação dos atletas a partir dos conhecimentos científicos disponíveis na época. Todavia, a seleção partiu para as eliminatórias com João Saldanha como técnico, que, no momento de sua convocação, era

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jornalista e ex-técnico de futebol sem diploma de Educação Física.3 A comissão técnica que partiu para realizar os seis jogos da eliminatória em 1969 era formada por Saldanha, pelos remanescentes da comissão anterior, Admildo Chirol e o médico Lídio Toledo. Essa comissão era chefiada por Antônio Passos, que tinha como secretário o capitão Benedito Bonetti. Esse último teria sido colocado na comissão por imposição de Havelange. As relações entre Saldanha e a comissão técnica, apesar da expressiva campanha nas eliminatórias, nunca foi tranquila. Após as eliminatórias, a formação da comissão técnica para a Copa passou a ser negociada por Admildo Chirol com os dirigentes da CBD e com Saldanha. Para integrá-la, foram convidados o capitão Cláudio Coutinho, o professor Parreira, o subtenente Carlesso e o capitão Kleber Camerino. Como a Copa seria realizada no México, em cidades com mais de 2.500 metros de altitude, Chirol também convidou um especialista em treinamento em altitude, o capitão Lamartine Pereira da Costa, do Centro de Esportes da Marinha. O capitão da EsEFEx, Cláudio Coutinho, trazia para a seleção o método Aerobics, que ficou conhecido no Brasil como Método Cooper. Coutinho, em 1969, teve a oportunidade de ser hóspede do professor K. Cooper, em Santo Antonio, no Texas, e de com ele estagiar no Laboratório Espacial do qual ele era diretor (Soeiro, 2003). O capitão-tenente Lamartine Pereira da Costa, quando foi convidado a prestar assessoria à comissão técnica sobre o planejamento de adaptação à altitude, já pertencia aos quadros da reserva da Marinha. Em 1959, Lamartine, como estudante da EsEFEx, acompanhou o trabalho do pentatlo militar que se preparava para os campeonatos internacionais, sagrando-se campeão em 1961. Nesse mesmo ano, passou a fazer parte da Sociedade Internacional de Biometeorologia e desenvolveu estudos sobre as 3

Naquele período, os professores de Educação Física e técnicos diplomados protestaram contra a escolha de um leigo para dirigir a seleção.

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influências dos ritmos biológicos e do clima no treinamento físico. Realizou intercâmbios internacionais por intermédio do Conselho Internacional dos Esportes Militares (CISM) e editou um de seus primeiros ensaios teóricos internacionais: Sports activities in tropical climates and experimental solution: the altitude training (CISM, 1966) (Salvador e Soares, 2009). Foi organizador de um estudo com 17 colaboradores que observaram in loco os aspectos relacionados à infraestrutura e ao funcionamento dos Jogos Olímpicos de 1968 e as nove modalidades esportivas durante o evento: XIX Olimpíada México 1968 – aspectos técnicos evolutivos (1969). O estudo destruía alguns mitos sobre a altitude e apresentava aspectos que influenciavam o desempenho esportivo nessas condições. Nesse texto, analisaram-se a influência dos fusos horários e o tipo de treinamento a ser empregado em cada etapa do ciclo de preparação, o uso da câmara de baixa pressão como suporte para a simulação dos efeitos da altitude em cada atleta individualmente, o padrão de alimentação, as condições climáticas do local, a umidade do ar e o horário ideal dos treinamentos físico, técnico e tático, além de outros detalhes que poderiam maximizar os resultados. Essas eram credenciais que habilitavam Lamartine a prestar assessoria à seleção que jogaria no México em 1970. Com a anuência de Chirol, um encontro foi marcado por Cláudio Coutinho entre Lamartine e João Saldanha no início de 1970. Nesse encontro, Lamartine relembra que a primeira provocação de Saldanha foi afirmar, com ironia, que a comissão técnica estava por demais inchada e ele não colocaria mais ninguém. Lamartine diz ter retrucado, também rispidamente, afirmando que não tinha qualquer interesse em fazer parte de nenhuma comissão, e Coutinho teria tentado apaziguar os ânimos. Depois disso, a conversa fluiu com Saldanha, que demonstrou ter muitos conhecimentos sobre os avanços no campo do treinamento, mas tinha a preocupação de que a introdução de inovações chocasse a cultura dos atletas, de modo que viesse a interferir no desempenho

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da equipe (Salvador e Soares, 2009). Como resultado, Saldanha acabou comprando a ideia, e um minucioso plano de treinamento e adaptação à altitude foi traçado. Mesmo depois de ter perdido o cargo, o planejamento foi mantido sob a direção de Zagallo. O desenho do planejamento foi seguido, e o Brasil se apresentou nos campos do México com excelente desempenho técnico – com lances geniais em que os brasileiros viam a marca do futebol-arte na TV em preto e branco – e com um desempenho físico que dava orgulho àquela comissão técnica, que inovara os métodos de treinamento a partir dos conhecimentos científicos da época. Vejamos as matérias publicadas durante a Copa que indicam as declarações de Chirol sobre a preparação física dos atletas: Para Admildo Chirol, o principal motivo do excelente estado físico dos jogadores brasileiros foi a estada de 21 dias em Guanajuato, porque aumentou em quase o dobro a taxa de glóbulos vermelhos do sangue, num período ideal para adaptação à altitude (Jornal do Brasil, 10 jun. 1970, 1o caderno).4 Para conseguir uma perfeição teórica, foi preciso combinar uma complicada mistura de métodos, experiências e ensinamentos. Chirol, por exemplo, consultou mais de cinquenta livros, aproveitou várias traduções de trabalhos alemães, suecos, ingleses e iugoslavos. A colaboração de Parreira foi mais acentuada nos trabalhos de resistência – baseados em métodos europeus. E o trabalho de velocidade – maior colaboração de Coutinho – foi tirado dos americanos. [...] segundo Admildo Chirol, já temos um título: somos campeões mundiais do preparo físico, o que foi comprovado por um órgão da Organização Mundial de Saúde [...] Para chegar a esta perfeição atlética, o Brasil seguiu o programa executado com todo o rigor científico. Para começar, esco4

Cf. Helal, Soares e Santoro (2004).

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lheu uma equipe excepcional de preparadores físicos, integrada por Admildo Chirol, o capitão Coutinho (o melhor conhecedor do assunto no Exército brasileiro, inclusive com o estágio no organismo que cuida da preparação dos cosmonautas norte-americanos) e Carlos Alberto Parreira, que conhece a fundo os métodos europeus (Jornal do Brasil, 11 jun. 1970, Caderno B, capa).

A primeira matéria indica o planejamento realizado a partir do altitude training e como Chirol reuniu a expertise dos preparadores físicos da EsEFEx e a do professor Parreira, recém-formado pela Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Como sabemos, o Brasil se sagrou campeão com essa mistura de seleção formada a partir de equipes que apresentavam sucesso, jogadores com qualidades técnicas excepcionais e preparação física que reuniu tudo que se sabia sobre treinamento físico e adaptação à altitude. Palavras finais de uma história ainda em aberto Podemos dizer que os elementos que temos e os documentos que selecionamos não facilitam muito a explicação sobre a interferência do governo militar na queda de João Saldanha. Temos muitas discursividades cristalizadas sobre a interferência direta da ditadura nessa queda, mas as revistas da época não apresentam indícios fortes sobre tal interferência. Saldanha e suas decisões no período também fornecem pistas que podem explicar, ainda que de forma parcial, sua queda. Devemos revisitar os periódicos da época para observar como e quais temas polêmicos eram tratados em algumas revistas no momento. Por outro lado, é plausível que um regime ditatorial tenha atenção em qualquer instituição, mesmo de caráter privado, que represente o Brasil para o povo e para o exterior. O interesse da ditadura no futebol, a imagem de um presidente popular e aman-

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te do esporte e a influência do poder na gestão das federações do futebol brasileiro na época já são conhecidos. Mas, sobre a influência do governo nos episódios da queda de Saldanha ou na escolha de Dario, devemos ter algum cuidado. Observemos que o governo tinha de se preocupar pouco com aquela seleção, na medida em que ela estava militarizada, com a presença maciça dos oficiais e preparadores físicos da EsEFEx. Claro que a presença destes se devia à expertise acumulada pela EsEFEx. É plausível que os militares responsáveis pela repressão e pelo controle da voz divergente tivessem na cabeça que aquela comissão técnica, habitada por tenentes e capitães, por si só, já exerceria o controle necessário sobre os jogadores e demais componentes da delegação. Quanto à figura do major Ipiranga Guarani, ainda pairam dúvidas de seu real papel naquela seleção. A Comissão da Verdade está abrindo os relatórios dos órgãos repressivos daquele período obscuro de nossa história. Talvez, possamos em breve ter indícios mais seguros sobre a ingerência dos aparelhos repressivos no futebol durante os Anos de Chumbo; mas também devemos investigar mais as mentes brilhantes que construíram, dentro e fora do campo, a vitória que se tornou de todos. Referências ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de Estado. São Paulo: Graal, 2012. ESPN. Memórias do chumbo – o futebol nos tempos do Condor. Roteiro e reportagem de Lúcio de Castro. ESPN Brasil, dez. 2012. FERREIRA NETO, A. A pedagogia no Exército e na escola: a educação física brasileira (1880-1950). Aracruz: FACHA, 1999. GABEIRA, F. O que é isso, companheiro? São Paulo: Companhia das Letras, 1979. GIL, G. “O drama do futebol-arte: o debate sobre a seleção nos anos 70”. Revista Brasileira de Ciências Sociais (ANPOCS), 1994, n. 25, pp. 100-9. GUTERMAN, M. O futebol explica o Brasil: o caso da Copa de 70 (dissertação). PUC-SP, 2006, 155 f.

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HELAL, R.; SOARES, A. J. G.; SANTORO, M. A. “Futebol, imprensa e memória”. Revista Fronteira (Unisinos), 2004, v. 6, pp. 61-78. MORAIS, F. A ilha. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976. SALVADOR, M. A. S. e SOARES, A. J. G. A memória da Copa de 70: esquecimentos e lembranças do futebol na construção da identidade nacional. Campinas: Autores Associados, 2009. SMIT, B. Invasão de campo: Adidas, Puma e os bastidores do esporte moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. SIRKIS, A. Os carbonários. Rio de Janeiro: Círculo do Livro, 1980. SOEIRO, R. S. P. A contribuição da Escola de Educação Física do Exército para o esporte nacional: 1933 a 2000 (dissertação). Universidade Castelo Branco, 2003. RODA VIVA. Entrevista com João Saldanha. TV Cultura, 1987. Disponível em http://tvcultura.cmais.com.br/rodaviva/joao-saldanha-1o-bloco. Acesso em 12 abr. 2013.

Coleções Jornal do Brasil (1970) Revista Placar (1970) Revista Veja (1969, 1970 e 1998)

1982: lágrimas de uma geração de ouro Leda Costa

1982 é o ano que marca a publicação do livro Universo do futebol, uma das mais importantes produções acadêmicas sobre futebol no Brasil. Organizado pelo antropólogo Roberto DaMatta, esse livro tem papel fundamental, em grande medida, porque consegue analisar esse esporte não como uma espécie de “ópio do povo”, mas, sim, como uma atividade importante para se compreender a própria sociedade. Em seu primeiro capítulo, para demonstrar que o futebol é capaz de dramatizar algumas questões da sociedade brasileira, Roberto DaMatta recorre ao exemplo da Copa de 1950, afirmando que a derrota para o Uruguai merece investigação, pois, além de fomentar a pergunta “‘como isso pode acontecer?’ [...] ela é talvez a maior tragédia da história contemporânea do Brasil. Porque implicou numa coletividade e trouxe uma visão solidária da perda de uma oportunidade histórica” (1982, p. 31). Certamente DaMatta escreveu essas palavras antes do dia 5 de julho de 1982. Como se disse, Universo do futebol foi publicado nesse ano, época de Copa do Mundo. E de uma Copa do Mundo que ocupa espaço privilegiado na memória nacional. A derrota para a Itália foi nossa segunda tragédia, a tragédia de Sarriá, como ficou

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conhecida. E, se em relação à Copa de 1950, DaMatta afirmou que ela ainda nos instigava a perguntar “como isso pode acontecer?”, o mesmo pode ser dito sobre 1982. Nas duas Copas, as tentativas de resposta dadas a essa pergunta encenam o embate entre as forças humanas e as forças do destino, o que, em parte, está associado ao fato de que ambas as derrotas se deram em contextos parecidos e viabilizavam um tipo de representação cercada de uma atmosfera trágica. Na configuração dessa atmosfera, a representação das emoções é fundamental e se faz traduzir na configuração de cenários carregados de lágrimas, que permeiam as narrativas das recepções dessas derrotas. Entretanto, é necessário tecer algumas distinções entre esses dois momentos. As lágrimas da derrota de 1950 se relacionavam à decepção e à suspeita de que o Brasil havia perdido uma oportunidade ímpar de provar ao mundo e a si mesmo que era capaz de grandes realizações e conquistas. As lágrimas representadas pela imprensa foram de um povo que sentia o peso da força de um destino que aparentemente lhe negava o sabor de uma conquista. Essa sensação foi muito bem expressa por José Lins do Rego, na crônica “A derrota”: “E, de repente, chegou-me a decepção maior, a ideia fixa que se grudou na minha cabeça, a ideia de que éramos mesmo um povo sem sorte, um povo sem as graças da alegria das vitórias [...]” (Jornal dos Sports, 18 jul. 1950). Grande parte da imprensa considerou que a derrota da seleção seria consequência da atuação de jogadores que não se mostraram dignos da missão que lhes fora dada. Como disse Mario Filho, poucos foram os jogadores brasileiros “que se mostraram à altura das circunstâncias” (Jornal dos Sports, 18 jul. 1850). Esses jogadores teriam entrado em campo movidos a soberba, deixando de lado a humildade e o empenho, necessários à vitória e ao próprio ritual futebolístico.1 Por assim serem vistos, longe de me1

Segundo Arno Vogel, a suposta atmosfera de “já ganhou” é interpretada no universo futebolístico como uma grave falta, pois equivaleria a uma subversão

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recerem algum tipo de compaixão, os atletas da seleção de 1950 se transformaram em alvo de culpabilizações que marcaram uma geração com o estigma de covarde. As lágrimas de 1982 tiveram significado diferente. Chorou-se com a seleção lamentando-se um infortúnio que sobre ela se abateu, infortúnio que condenava uma geração de ouro, talentosa e considerada merecedora das glórias do futebol. A recepção da eliminação da seleção brasileira da Copa do Mundo de 1982 é um dos raros exemplos, no Brasil, no qual a derrota não se converteu em uma fábrica de vilões, ou seja, indivíduos clara e incisivamente responsabilizados por algum decisivo fracasso em campo. Dor e surpresa marcam a recepção da participação da seleção de 1982, mas, ao contrário de Copas anteriores – especialmente a de 1950 –, outro sentimento foi anexado: a compaixão. A compaixão se fez presente e foi demonstrada em alguns importantes jornais e revistas do país. Para melhor compreendermos as lágrimas de uma geração de ouro, provocadas pela tragédia de Sarriá, é válido fazer um percurso pela recepção de algumas outras marcantes derrotas da seleção em Copas do Mundo, principalmente a de 1950, percurso este que terá como guia o questionamento “por que perdemos?”, tão presente no jornalismo esportivo sempre que a seleção não vence uma Copa e que em 1982 suscitou respostas que merecem nossa atenção. Hermenêutica da derrota Quando a seleção brasileira sofre alguma derrota importante em Copas do Mundo, é comum que no dia seguinte uma da “ordem do rito, transformando-o em uma formalidade confirmatória [...]. Os heróis foram proclamados e cultuados antes da batalha. Venceram sem ter demonstrado seu valor” (1982, p. 97).

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pergunta se repita em diversas páginas de jornal do país: por que perdemos? As respostas encontradas para dar conta dessa pergunta costumam primar pela repetição e por lugares-comuns, o que torna possível pensar as narrativas da derrota, produzidas por grande parte da mídia esportiva, como exemplos de produções que seguem o modelo das narrativas da redundância no sentido usado por Umberto Eco (1998). Esse tipo de produção é marcado pela previsibilidade e pela repetição de determinado esquema narrativo que é facilmente assimilável por públicos massivos. A pergunta “por que perdemos?” é o mote principal a partir do qual se traz à cena sempre os mesmos personagens e formas semelhantes de se explicar o fracasso em campo. Embora tenha havido algumas atualizações ao longo do tempo, é interessante notar que o referido questionamento é respondido de modo parecido pela imprensa: parte-se do princípio de que a seleção perdeu para si mesma; há uma investigação dos motivos que estariam por trás do fracasso em campo; busca-se a revelação de problemas internos, como brigas, excesso de confiança ou alguma postura considerada imprópria (indisciplina etc.); há uma procura pelos culpados da derrota – os vilões –, que, geralmente, são técnicos, zagueiros ou goleiros; há um esquadrinhamento dos problemas externos ao campo, geralmente relativos à organização do futebol nacional (critica-se a CBF, a escolha do técnico, o calendário desgastante dos campeonatos, a escolha dos adversários da seleção nos amistosos preparatórios etc.); costuma-se atribuir sentido moral às possíveis falhas dos jogadores e à atuação da seleção em conjunto (a partir da década de 1990, por exemplo, em virtude do contexto “mercadorizado” do futebol, tornou-se comum acusar os jogadores de serem mercenários); costuma-se atribuir um sentido pedagógico à derrota ao tomá-la como uma lição que deve ser aprendida para que, desse modo, se evitem erros futuros.

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Essa estrutura redundante caracteriza-se pela explicação da derrota a partir de aspectos relacionados a questões que ultrapassam – e muito – o âmbito relativo ao desempenho esportivo. Esse tipo de postura tem como consequência a pouca ênfase em análises de ordem prioritariamente tática e técnica e que, sobretudo, levem em conta a possibilidade de o adversário da seleção brasileira ter sido superior. Ao excluir o adversário, as especulações ganham espaço, assim como se tornam comuns interpretações feitas a partir de critérios judicativos de ordem moral. Em 1950, por exemplo, a seleção brasileira foi considerada covarde, mascarada e formada por atletas que teriam tremido diante do adversário. Esse tipo de pensamento se refletia no diagnóstico da derrota explicitado no Anuário Esportivo Brasileiro de 1950, que afirmava: “Os uruguaios venceram porque [...] têm pinta de campeões mundiais, não sofrem do complexo de inferioridade, não se atemorizam com torcidas, mesmo que sejam essas compostas de 200 mil pessoas” (apud Perdigão, 1986, p. 171). Há uma dupla articulação no universo futebolístico e esse aspecto fica evidenciado nos relatos derivados dos jogos. Os gols sofridos, um mau desempenho de jogadores ou um esquema tático pouco eficaz são dados concretos que podem justificar a derrota de um time. Contudo, as avaliações lançadas sobre esses dados são, em grande parte, alicerçadas em um terreno simbólico permeado de representações. Se assim não o fosse, as narrativas da derrota produzidas pela imprensa esportiva, sobretudo as da seleção brasileira, se restringiriam meramente a descrever de maneira objetiva as causas de um insucesso em campo. Porém, o que se vê é o contrário. As derrotas são narradas em relatos que distinguem e ordenam os eventos, articulando materiais simbólicos de natureza diversa. Por causa disso, a objetividade se vê comprometida, já que os acontecimentos não são apenas expostos, mas avaliados e julgados segundo critérios que, como dito, ultrapassam a esfera técnica do jogo. Muitas narrativas da derrota produzidas pela

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imprensa nos dão a impressão de que por trás dos lances de uma partida existe sempre um conjunto de razões de outra ordem, que estão escondidas e precisam ser reveladas. Recorro ao termo “hermenêutica da derrota” para fazer referência à busca pela interpretação dos sentidos ocultos – ou melhor, imaginadamente ocultos – de uma derrota, busca empreendida, principalmente, pela imprensa esportiva. Uma hermenêutica, no entanto, bastante devedora do resultado das partidas. Afinal, imaginemos, por exemplo, que o goleiro Barbosa tivesse sofrido aquele gol de Ghiggia, mas, faltando poucos minutos, Ademir, o nosso artilheiro Queixada, conseguisse empatar o jogo e, com isso, nos sagrássemos campeões mundiais.2 Que tipo de interpretação seria feita da atuação da seleção brasileira e, conse2

Não foi nada fácil organizar a Copa de 1950. Para começar, não foi possível contar com a participação da Argentina e da Alemanha, duas seleções importantíssimas na época. A Alemanha estava se recuperando da Segunda Guerra Mundial e, além disso, havia sido suspensa de torneios internacionais pela FIFA. A Argentina teve problemas internos sérios. Jogadores talentosos como Di Stefano foram contratados por times espanhóis e colombianos, e os jogadores que ficaram no país reivindicaram muito dinheiro para jogar a Copa e entraram em greve (Prado, 1998, p. 73), tornando impossível a montagem de um time. Mas outras seleções tradicionais também não vieram disputar o torneio. Hungria, Tchecoslováquia e Polônia, ainda sob efeito da Segunda Guerra, não aceitaram o convite da FIFA. Já a Itália, que na época era a bicampeã mundial, enviou seu selecionado extremamente desfalcado, por causa da tragédia ocorrida com o avião que transportava a equipe do Torino, base de sua seleção. Além disso, houve casos de desistência mesmo após as eliminatórias. A França, quase em cima da hora, desistiu de participar da competição. A Índia também, pois se negou a obedecer a proibição de se jogar descalço, imposta pela FIFA (Murray, 2000, p. 123). Restaram somente 13 equipes divididas em quatro grupos: 1) Brasil, Iugoslávia, Suíça e México; 2) Inglaterra, Espanha, Chile e Estados Unidos; 3) Itália, Suécia e Paraguai; e 4) Uruguai e Bolívia. Como se pode perceber, os grupos foram divididos de modo desproporcional, pois se manteve a divisão dos grupos feita antes das desistências. Quatro equipes iriam para a segunda fase e se enfrentariam, ganhando a taça quem obtivesse o maior número de pontos. Ao final da Copa, havia entre Brasil e Uruguai a diferença de apenas um ponto, o que dava ao Brasil o direito de empatar o jogo.

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quentemente, que tipo de história seria derivada da leitura dessa partida? Provavelmente, a história de 11 corajosos e talentosos jogadores responsáveis por terem levado o nome do Brasil às alturas. Certamente, o lance de Barbosa passaria quase despercebido, e o arqueiro do Brasil não teria sido convertido em um dos maiores – senão o maior – vilões da história do futebol brasileiro. Todavia, veio a derrota, que, naquelas circunstâncias, funcionou como uma poderosa lente que filtrou as interpretações do jogo. Uma lente cega para os acertos, a qual ampliou e engendrou erros. Em 1950, desconfiava-se que o excesso de favoritismo e o clima festivo na concentração da seleção teriam tido influência no mau desempenho dos jogadores em campo. Em reportagem publicada no jornal O Globo, Geraldo Romualdo da Silva fez a seguinte pergunta ao treinador Flávio Costa: “Você não acha que houve excesso de otimismo na véspera?” (17 jul. 1950). O mesmo questionamento foi direcionado ao lateral Bigode: “Esse clima extremado de otimismo não teria porventura influído na produção de vocês?” (17 jul. 1950). A insistência nessa desconfiança indicava que uma das interpretações possíveis daquele fracasso se relacionava ao clima de favoritismo que cercava a seleção brasileira e os jogadores, o que era reforçado por alguns acontecimentos que antecederam o dia 16 de julho de 1950, como a troca de concentração da seleção.3 O mesmo tipo de reação se viu após a eliminação da seleção na Copa da Alemanha, em 2006. Essa eliminação chegou a ser creditada à falta de concentração dos jogadores, que teriam se en3

Desde maio de 1950, a seleção brasileira estava concentrada na Casa dos Arcos, no Joá. Entretanto, na noite de 10 de julho de 1950, Flávio Costa decidiu trocar de concentração e levou os jogadores para São Januário. Naquele ano, o Rio estava agitado não apenas por causa da Copa, mas, também, das eleições. A proximidade da concentração permitiu a presença constante de jornalistas e até de políticos. Após a derrota, essa troca de concentração foi interpretada como prejudicial aos jogadores e como fator que contribuiu para o mau desempenho em campo.

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volvido pelo clima do “já ganhou”. Após o resultado negativo diante da França, a temporada de treinamentos realizada na cidade de Weggis, na Suíça, foi amplamente reprovada pela imprensa. O jornal O Globo comentou ironicamente: “Diariamente, os treinos foram acompanhados pela euforia de 5 mil torcedores. A privacidade do ambiente de trabalho foi trocada pela política da boa vizinhança” (2 jul. 2006). Na Folha de S. Paulo, também surgiram outras críticas relativas aos excessos, dessa vez, cometidos durante a concentração da seleção que antecedeu o jogo decisivo contra os franceses: “A concentração da seleção em Frankfurt lembrava, desde as primeiras horas de ontem, um baile de carnaval. Dezenas de torcedores se encontraram em frente ao hotel do time batendo bola, cantando, dançando e batucando” (2 jul. 2006, grifos meus). Já a Copa de 1998 é ótimo exemplo de como uma derrota da seleção pode se transformar em um romance policial, cheio de mistérios a serem elucidados por detetives-jornalistas. Naquele evento, a França, o adversário da seleção brasileira no jogo final, foi quase completamente ignorada nas análises da partida. O bom futebol apresentado pela seleção francesa – sobretudo por seu principal jogador, Zinedine Zidane – raramente foi citado como um possível motivo que ocasionou a derrota da seleção brasileira. Teorias conspiratórias – que viam no futebol mercadorizado um inimigo do futebol brasileiro – e as hipóteses em torno das causas do mal-estar sentido por Ronaldo, o Fenômeno, ocuparam o centro da recepção de nosso segundo vice-campeonato mundial. Falou-se bastante, mas pouco se analisou o jogo em si.4 4

Na noite que antecedeu o jogo Brasil x França, Ronaldo, o Fenômeno, sofreu uma convulsão cujas causas ainda são pouco conhecidas. O mistério em torno dos problemas ocorridos com aquele que era o principal jogador da seleção, antes da final da Copa de 1998, foi intensamente explorado pela imprensa, que, na época, não cansava de anunciar que traria a público a verdade dos fatos. A Folha de S. Paulo, por exemplo, fez uma longa reportagem, sugestivamente intitulada “A história secreta de Ronaldo”, na qual claramente se propunha a trazer a ver-

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Em meio a esses exercícios de investigação e fomentação de polêmicas, configura-se um cenário de desolação frente à derrota, que tem a torcida como protagonista. De modo geral, os torcedores, com sua alegria ou tristeza, constantemente estampam os principais periódicos esportivos do país, durante a cobertura da participação da seleção em uma Copa.5 Tamanho destaque dado a essa figura e a seu desempenho representa uma importante estratégia discursiva que abre caminho para a representação das emoções. A ênfase no caráter dramático dos lances de uma partida, em cenas lacrimosas, em depoimentos eivados de emotividade são ingredientes vitais às coberturas da participação da seleção nacional em Copas do Mundo. Em 1950, na primeira página do jornal O Globo do dia seguinte à derrota do Brasil para o Uruguai, constava a informação sobre a morte de torcedores que não teriam suportado a perda da Taça Jules Rimet de campeão mundial. A foto do sargento reformado da Marinha, João Soares da Silva, vinha abaixo da notícia “Morreu de emoção”. O periódico explicou que “a derrota da seleção foi um verdadeiro choque para os torcedores [...] registrou-se um caso doloroso: às 17:46 horas, no derradeiro minuto da peleja, falecia emocionado [...] João Soares da Silva, na sua residência” (17 jul. 1950).

5

dade ao conhecimento de todos: “O atacante Ronaldinho, 21, sofreu na tarde de domingo uma crise nervosa, e não um distúrbio neurológico como vinha sendo anunciado pela Confederação Brasileira de Futebol [...]” (16 jul. 1998). Algumas teorias conspiratórias chegaram a ser cogitadas, sobretudo, as que dizem respeito a uma possível interferência de patrocinadores no resultado final do jogo. A cobertura do futebol feita por algumas emissoras de TV também tem cada vez mais investido na participação de torcedores, seja por intermédio de perguntas e opiniões enviadas por e-mails e lidas durante as transmissões dos jogos, seja pelo envio de imagens de gols e outros lances da partida, captadas pelos próprios torcedores por meio de celulares e câmeras pessoais e exibidas nos principais programas esportivos.

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Paulo Perdigão sustentou em seu livro Anatomia de uma derrota que as possíveis mortes provocadas pela perda da Taça Jules Rimet não passaram de boatos que se espalharam como areia no deserto (1986, p. 43). De fato, a notícia relatada mais parece ter saído da imaginação fértil de um jornalista. O passamento do marinheiro João pode ter ocorrido, mas nada garante que tenha sido por causa da derrota da seleção. É possível notar a ação interpretativa dos fatos e uma narrativa que visava criar uma relação direta entre a derrota e esse falecimento. Nesse sentido, chama atenção a coincidência do horário em que o jogo terminara e que a vida do marinheiro chegava ao fim. Não seria exagero levantar a hipótese de que se tratava de uma matéria cujo narrador (jornalista) buscou deliberadamente criar a analogia entre aquelas duas mortes, a da seleção (simbólica) e a de João (concreta); e buscou, antes de tudo, chamar a atenção do público leitor, trazendo a seu conhecimento um fato que impressionava e amplificava os efeitos da derrota. Mas, independentemente de ser verdade ou não, essa notícia revela que as recepções das derrotas da seleção em Copas do Mundo são uma ótima demonstração do quanto “o culto ao superlativo” (Neveu, 2006, p. 121) se faz presente na imprensa esportiva. O farto uso de artifícios que dramatizam as narrativas da derrota – e vitória também – do selecionado nacional lhes confere “traços de uma narrativa pseudoliterária, na medida em que utiliza um enredo e cria uma trama que relaciona os personagens numa história. Mas não é uma narrativa literária qualquer: utiliza acima de tudo a verossimilhança” (Motta, 2002, p. 314). A possibilidade de criação é limitada, mas os mecanismos narrativos se assemelham aos usados em obras ficcionais, sobretudo àqueles familiares ao melodrama e ao folhetim, próprios para deixar o leitor com os nervos à flor da pele. Grande parte das recepções dos jogos é mediada pela dor (para expressar a derrota) ou pelo riso (para expressar a vitória), sentimentos que, como já afirmou Martín-Barbero, estão na base

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da concepção dicotômica de mundo típica do melodrama (2006, p. 168). Em 1990, por exemplo, a vitória sobre a Suécia foi noticiada como “Lambada brasileira” (Jornal dos Sports, 11 jun., p. 1) e nesse mesmo periódico foi dado destaque à comemoração da torcida nas ruas do Rio de Janeiro: “Zona Sul se enfeita toda, grita e comemora” (11 jun., p. 6). Clima festivo e eufórico, também, em 1986 na estreia do Brasil na Copa do Mundo: “Delírio da galera em todo o país. Brasil na cabeça” (O Dia, 2 ago., p. 1) e “Polônia caiu de quatro. Foi um passeio. Agora, Itália ou França” (Jornal dos Sports, 19 jun., p. 1); “Deus é brasileiro e ouviu os apelos de um outro tricampeão que acelerava lá de cima. Senna, o tetra é nosso” (O Dia, 18 jul. 1994).6 Em caso de derrota, recorre-se a cenas e palavras que são o polo oposto do modo como a imprensa costuma representar as vitórias da seleção.7 São frequentes as cenas de choro e desolação não apenas dos torcedores, mas de jogadores. Em 1974, o técnico Zagallo apareceu em close com as mãos na cabeça, em sinal de desespero, por causa da derrota da seleção para a Holanda (O Estado de S. Paulo, 4 jul., p. 1). Em 1998, Ronaldo, o Fenômeno, também com as mãos na cabeça, aparece chorando, sendo consolado pelo goleiro Dida após a derrota para a França 6

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Trata-se da capa do caderno O Dia na Copa. É bastante clara a tentativa de comover o leitor recorrendo à lembrança do ídolo Ayrton Senna, que morrera dois meses antes da final da Copa de 1994, em trágico acidente. É muito comum que se ponham lado a lado imagens contrastantes. De um lado, o riso do vitorioso e, de outro, a desolação do perdedor. Em 1950, o jornal O Globo mostrou a foto em que Augusto, o capitão da seleção brasileira, aparecia de cabeça baixa sendo consolado por Máspoli, goleiro da seleção uruguaia. Abaixo dela havia a seguinte legenda: “Contraste: o vitorioso Máspoli abraçando Augusto... O capitão da equipe brasileira, um dos valores no match de ontem, não esconde a sua tristeza...” (17 jul. 1950, p. 7). Já em 1990, por exemplo, o mesmo jornal estampou na primeira página de seu Caderno de Esportes duas imagens, uma ao lado da outra. Uma mostrava a comemoração do argentino Caniggia pelo gol feito na seleção brasileira; a outra, o close no rosto de um torcedor brasileiro chorando (25 jun.).

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(O Globo, 13 jul., p. 1). Com o mesmo gesto de aflição, aparecia Ronaldinho Gaúcho na primeira página do Caderno de Esportes da Folha de S. Paulo do dia seguinte à eliminação da Copa de 2006 (2 jul.). Nesse mesmo ano, a primeira página de O Globo mostrava o jogador Zé Roberto deitado no chão – com as mãos na cabeça –, aos prantos (2 jul.). Mas nunca houve uma Copa como a de 1982, no que diz respeito à representação da dor e das lágrimas dos torcedores, desolados com a tragédia de Sarriá. Porém, ao contrário de Copas anteriores, sobretudo a “tragédia de 1950”, as respostas dadas à pergunta “por que perdemos?” não tiveram como prioridade a caça aos culpados, nem a tentativa de desmerecer a seleção e seus jogadores. As lágrimas de 1982 foram representadas como derivadas de um sentimento de compaixão em relação a uma geração tomada como singular na história do futebol nacional. O dia 5 de julho de 1982 entrou para a história como o dia em que heróis sofreram uma queda, considerada por alguns algo difícil de explicar e, por muitos, injusta. E essa queda teve como palco o estádio Sarriá, que foi demolido em 1997, mas continua inteiro na memória de muitos brasileiros. As lágrimas da compaixão: a tragédia de Sarriá Telê Santana, técnico da seleção de 1982, foi o prefaciador do curioso livro Outras Copas, outros mundos, publicado em 1998. Trata-se de uma compilação de contos de ficção científica que têm as Copas do Mundo como assunto central. Chama atenção o uso do futebol como temática desse gênero ficcional, que, aliás, é raro no Brasil. Mas importa enfatizar um conto em especial, “Eu matei Paolo Rossi”, de Octavio Aragão. Nesse conto, o personagem Rômulo viaja no tempo com o objetivo de tirar a vida do jogador Paolo Rossi, a fim de evitar a derrota da seleção brasileira na Copa da Espanha, em 1982.

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Esse texto demonstra o quanto aquele Brasil x Itália entrou para o rol dos jogos que, mesmo após o apito final em campo, continuaram a ser jogados no imaginário de muitas pessoas. Como a lembrança de um trauma, o conto se inicia com a descrição do momento posterior à vitória da Itália e com o assombro de Rômulo diante do que via nas ruas: Não podia ser verdade. Era moralmente errado, uma nação inteira não comete suicídio. Mas era o que parecia pelo menos ali, no Largo do Machado, o povo do Rio havia morrido. Eu era o Charlton Heston vagando perdido no dia em que o Brasil parou com as serpentinas e os confetes esquecidos no asfalto pegando carona na brisa de uma tarde nublada (Aragão, 1998, p. 36, grifos meus).

Se a Copa de 1950 foi marcada pelo silêncio – o silêncio de 200 mil bocas, como afirmou Mario Filho –, a de 1982 foi marcada pela representação de lágrimas motivadas por uma derrota ocorrida em contexto de jogo um tanto dramático e, sobretudo, uma derrota sofrida por uma seleção que em campo demonstrava um futebol por muitos considerado um autêntico representante do futebol-arte. Perder para a Itália não fazia parte do horizonte de expectativas de torcedores e da imprensa. Não era uma simples questão de soberba, mas, sim, um sentimento que se justificava pelas ótimas apresentações da seleção brasileira. Ao contrário da Itália, a seleção brasileira jogava um futebol vistoso e estimulava o otimismo. No dia 5 de julho de 1982, pisou o gramado do estádio Sarriá uma “geração de ouro”, que reunia jogadores como Sócrates, Júnior, Falcão e Zico, vencedores em seus clubes e reconhecidos pela grande habilidade com a bola. Entrava em campo necessitando de um empate para se classificar para as semifinais e rumar para o esperado tetracampeonato. Entrava em campo tam-

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bém uma equipe que ostentava um ótimo desempenho contra os adversários, o que incluía a Argentina, a quem derrotou por 3 a 1. Já a Itália entrou em Sarriá um pouco desacreditada; afinal, antes de enfrentar o Brasil, havia realizado uma campanha bastante modesta, ao empatar todos os jogos da primeira fase. Isso sem mencionar os problemas enfrentados pelo futebol italiano, que, no início da década de 1980, foi abalado pelo escândalo que envolvia denúncias de manipulações de resultados feitas por um grupo de apostadores da loteria esportiva italiana. Dentre os envolvidos nesse escândalo, estava Paolo Rossi, que chegou a ficar dois anos proibido de jogar, sendo liberado em 1982, a tempo de disputar a Copa. Portanto, havia motivos para se acreditar que dificilmente o Brasil perderia o jogo, e mais difícil ainda era acreditar que sequer um empate a seleção seria capaz de conseguir.8 Nesse aspecto, as tragédias de 1950 e 1982 se irmanam: a derrota era uma hipótese remota, o que se fazia notar nas manchetes que antecederam os jogos decisivos. Em 1950, na véspera do jogo, o jornal O Mundo publicou a manchete “Estes são os campeões do mundo”, cercada com as fotos dos jogadores da seleção (apud Perdigão, 1986, p. 68). Em 1982, após a vitória sobre a Argentina, a Folha de S. Paulo publicou em primeira página a manchete, provocativa e com certo tom de arrogância, “Agora, a vez da Itália” (3 jul. 1982); mais adiante, no Caderno de Esportes, podia-se ler: “A seleção brasileira (agora precisando de apenas um empate com a Itália para 8

A Copa de 1982 teve 24 participantes, oito a mais do que a Copa de 1978. Esse número tornou necessária a divisão das 24 seleções em seis grupos com quatro equipes em cada. Os 12 países classificados (os primeiros e segundos lugares de cada grupo) formaram quatro grupos com três equipes, sendo que somente o vencedor de cada grupo teria o direito de disputar as semifinais. Na segunda fase, o Brasil ficou no grupo de Argentina e Itália. O Brasil venceu a Argentina por 3 a 1, enquanto os italianos venceram por 2 a 1. Para o Brasil terminar como primeiro do grupo, bastava empatar o jogo com os italianos.

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se classificar) provou ontem estar preparada para vencer todos os obstáculos que a separam do título desta Copa” (3 jul. 1982, p. 23, grifos meus). Na imprensa carioca, as manifestações de entusiasmo eram grandes, principalmente após o jogo Brasil x Nova Zelândia, vencido pela seleção canarinho por 4 a 0 e assim noticiado pelo jornal O Dia: “Em ritmo de treino. Brasil 4 x 0” (4 jun., grifos meus). Maior entusiasmo foi mostrado no dia do jogo Brasil x Argentina, considerado pelo jornal carioca a partida que seria “a mais quente da Copa do Mundo – confronto Zico Maradona desperta enorme interesse dos torcedores em todo o mundo” (2 jul.). O Brasil venceu os argentinos, e esse resultado foi representado com o uso de imagens das ruas tomadas de gente festejando como se fosse um carnaval; afinal, “Rio sambou tango. Brasil irresistível: 3 x 1. Adeus, Argentina” (3 jul. 1982). Até a crítica especializada não escapava ao entusiasmo. João Saldanha, na crônica “A festa bonita”, afirmava, independentemente de alguns erros na formação tática da seleção brasileira: “Estou feliz e satisfeito. O futebol-arte se impôs e creio que definitivamente [...] Agora, tudo é lucro. Já fizemos a festa mais bonita” (2002, p. 147). Saldanha passava a impressão de que nem mesmo uma derrota para a Itália conseguiria manchar o futebol apresentado até então, pois a seleção já haveria mostrado de modo definitivo a superioridade do estilo brasileiro de jogar, porque “nosso futebol é o melhor do mundo. Pois acho que é e não tenho a menor dúvida” (2002, p. 146). Tratava-se de uma seleção admirada. Como afirmou Ruy Carlos Osterman, em crônica publicada no jornal Zero Hora no dia do jogo entre Brasil e Itália, ninguém dispõe de recursos, ninguém tem jogadores, ninguém pode fazer com facilidade as coisas do futebol como a seleção brasileira. Faltam três jogos para o Brasil ser campeão. Não tenho mais dú-

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vida alguma depois de ver com atenção a todos os pretendentes: Brasil só pode perder para si mesmo. A diferença é muito grande (1992, p. 78, grifos meus).

Assim, é válido ressaltar que não foi apenas o desempenho em campo o fator responsável por tamanha expectativa e posterior decepção. Havia um aparato discursivo que colocava em circulação uma série de representações e significados que iam sendo anexados àquela seleção. Representações relacionadas ao futebol-arte, tão caro à imagem e à autoimagem do futebol brasileiro. A seleção de 1982 foi compreendida por muitos como aquela que traria de volta um futebol especial, pois, como disse Juca Kfouri na crônica “Uma seleção que homenageia o futebol”, Telê devolveu a magia que esquecemos como ideologia de jogo e deixou o resto a cargo dos jogadores. Deu certo. E digo que deu certo sem temor. Podemos até não conseguir o tetra [...] mas o mais importante foi conquistado. A beleza, a sutileza, o encantamento com que fizemos do futebol uma arte misteriosa para a maior parte do mundo. Nosso feitiço está de volta, irremediavelmente estabelecido [...] (Placar, 25 jun. 1982).

A atuação da seleção em campo, amplificada pela imprensa, fomentou uma atmosfera de forte otimismo e euforia. Em função de tamanha expectativa e do contexto do jogo, a derrota ganhou contornos de um evento excepcional e pouquíssimo provável de ocorrer. Porém, a derrota aconteceu, eliminando a seleção da Copa e fazendo nascer a tragédia de Sarriá. Se antes parecia que uma derrota não seria o suficiente para jogar terra abaixo o futebol apresentado pela seleção, após a perda do jogo para a Itália lidar com aquele resultado não foi tão simples assim. João Saldanha, que havia exaltado a excelência do futebol da seleção, não poupou críticas ao que ele denominou de “seleção oba-oba”, excessiva-

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mente deslumbrada com o assédio da imprensa e composta por “bons moços, bem-educados e tão comportados que só tivemos um pálido cartão amarelo” (2002, p. 191). Saldanha condenou, nesse comentário, a falta de preparo físico e, principalmente, a ausência de combatividade por parte dos jogadores, que não se preocuparam em acompanhar e marcar devidamente o adversário. No entanto, caso a seleção de 1982 se sagrasse campeã, é muito provável que Saldanha usasse essas mesmas características para corroborar uma opinião esboçada por ele mesmo, dias antes da derrota, quando afirmou que “o futebol brasileiro é o maior espetáculo da Terra” (Veja, 14 jul. 1982). Como se disse, é muito comum que a história do jogo seja fruto de uma interpretação mediada pelo placar final da partida. Quando esse resultado é a derrota, tudo parece estar torto e desarrumado, mesmo que antes tudo parecesse perfeito. Em parte, isso ocorre porque, como afirmou Roberto DaMatta, tanto o carnaval quanto a derrota têm o poder de colocar as coisas de cabeça para baixo, porque seu poder destruidor “amesquinha, achata, esquizofreniza. Ela obriga ao estudo e à atribuição de responsabilidade” (2006, p. 98). Entretanto, é interessante notar que, no caso da Copa de 1982, embora tenha havido manifestações de desagrado em relação ao desempenho da seleção na partida contra a Itália, esse tipo de voz pode ser considerado dissonante. Poucas foram as tentativas de culpabilizar jogadores e até o técnico Telê Santana conseguiu escapar do peso da responsabilidade da derrota.9 A denominação “tragédia” dada à derrota da seleção para a Itália na Copa de 1982 parece muito apropriada – mais do que em 1950 –, sobretudo se seguirmos mais de perto os sentidos atri9

Na seleção brasileira, técnicos são para-raios de vilania: Feola (1966), Zagallo (1974), Telê Santana (1986), Sebastião Lazaroni (1990), Carlos Alberto Parreira (2006) e Dunga (2010). Em nível clubístico, a alta rotatividade dos técnicos demonstra que a responsabilidade das derrotas também é frequentemente depositada neles.

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buídos pela Antiguidade grega à concepção do mundo trágico. A tragédia grega era marcada pela crença de que a ação dos indivíduos não era apenas derivada de uma decisão deliberada, mas, sim, mediada pela vontade dos deuses. Vontade cujas motivações fugiam ao conhecimento humano. A tragédia grega, como teatro e espetáculo, encenava um universo marcado por ambiguidades, conforme demonstra Jean Pierre Vernant: Nos trágicos, a ação humana não tem força em si bastante para deixar de lado o poder dos deuses, nem autonomia bastante para conceber-se plenamente fora deles. Sem a presença ou apoio deles, ela nada é; aborta ou produz frutos que não são aqueles a que visava [...] Na perspectiva trágica, portanto, agir tem um duplo caráter: de um lado, é deliberar consigo mesmo, pesar o pró e o contra, prever o melhor possível na ordem dos meios e dos fins, de outro, é contar com o desconhecido e incompreensível, aventurar em um terreno que nos é inacessível, entrar num jogo de forças sobrenaturais sobre as quais não sabemos se, colaborando conosco, preparam nosso sucesso ou nossa perda (Vernant e Nadal-Piquet, 1999, p. 21).

Algumas explicações da derrota dadas pela imprensa se voltaram para uma possível interferência do destino, considerada por muitos a única explicação plausível para uma derrota tão inesperada. Assim, não havia lugar para vilões, mas para heróis em queda. Os jogadores da seleção de 1982 foram percebidos como heróis que sofreram uma queda provocada pela ação do destino, percepção que se evidencia na crônica “A triste sina de um punhado de heróis”, escrita por Juca Kfouri: O jogo acabou. Não faz nem cinco minutos que o sonho do tetra se desvaneceu. Parece inacreditável.

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A tristeza é óbvia. O melhor futebol desta má Copa da Espanha não está sequer nas semifinais. A tristeza é amarga [...] E a tristeza, acreditem, é muito maior em função de pensar em homens tão compenetrados e honestos como Oscar – bravo, Júnior – um valente, Falcão – a sensibilidade, Zico – o obstinado, Sócrates – esta lindíssima figura com tanta garra, com tanta arte, com tanto merecimento. O Deus dos estádios é misterioso (9 jul. 1982, grifos meus).

Em virtude da interferência dos deuses, a cobrança pela responsabilidade dos indivíduos sobre os acontecimentos perde o sentido, já que a ação humana estaria sob influência da vontade divina. Por causa dessa limitação da ação humana, os heróis trágicos costumam despertar a compaixão do público. Grande parte da recepção da imprensa foi marcada pela compaixão demonstrada em relação a uma seleção formada por jogadores pertencentes à chamada “geração de ouro”, que sucumbia diante da Itália. Diferentemente da Copa de 1950, quando alguns jogadores – sobretudo Barbosa e Bigode –10 foram claramente responsabilizados pela derrota, os jogadores da seleção de 1982 foram alvo de compaixão. Esse aspecto se evidencia nas reportagens feitas pela Placar, uma das mais importantes revistas esportivas do país. A edição publicada posteriormente à derrota do Brasil para a Itália tinha em sua capa a manchete “Que pena, Brasil”, e ao longo de suas páginas o tom comiserativo ditou a história do jogo que eliminou a seleção canarinho da Copa da Espanha. A matéria principal se intitulava “A tragédia de Barcelona” e 10

Os jogadores Bigode e Barbosa se destacaram na verdadeira caça às bruxas, iniciada logo após o apito final de Mr. Reader: “Bigode, um jogador sempre eficiente, disputou uma partida sem qualificativo, fazendo asneiras a grande e deixando-se bater pelo admirável Ghiggia” (Diário do Povo, 18 jul. 1950); “nos dois lances decisivos se movimentou [Barbosa] sempre com atraso fatal” (Jornal dos Sports, 18 jul. 1950).

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nela o repórter Carlos Maranhão narrava, “com lágrimas nos olhos”, como ele mesmo confessava, os principais momentos da eliminação do Brasil. A derrota para os italianos, segundo a reportagem, significava “a derrota do futebol-espetáculo”; por isso, “milhões de jornalistas, técnicos e jogadores de todo o mundo lamentavam a queda da nossa seleção” (9 jul. 1982, p. 6, grifos meus). A revista questionou “por que perdemos?” (9 jul. 1982, p. 6). Todavia, a reposta àquele questionamento não se reduziu à tentativa de caçar culpados: Culpar Leandro, que perdeu o cruzamento de Cabrini no primeiro gol, logo aos 4 minutos? A Cerezo, que errou um passe bobo no segundo? A defesa inteira, que não pôde cortar a bola vinda na cobrança de escanteio no terceiro? A Serginho, que desperdiçou oportunidades preciosas até ser tardiamente substituído por Paulo Isidoro? Ou a Éder, meio impotente ante a corretíssima marcação individual de Oriali? Dentro desse raciocínio – encontrar responsáveis por um acidente, grave mas ainda assim acidente –, seria igualmente possível fazer do esplêndido e eterno Zoff, do magnífico Tardelli, do empolgante Cabrini ou do brilhante Paolo Rossi (autor dos três gols da Itália) carrascos da alma nacional (9 jul. 1982, grifos meus).

O autor do texto, o jornalista Carlos Magalhães, deixa claro que a derrota era um acidente cuja responsabilidade pouco importava. Nada mudaria o fato de que 5 de julho de 1982 entraria para a história como o dia em que “a melhor, mais criativa e mais corajosa seleção deste campeonato se viu batida por um azarão” (Placar, 9 jul. 1982). Dessa mesma opinião compartilharam outros comentaristas, como foi o caso de Marcio Guedes, que, na crônica “Futebol de sonho sucumbe à fria lógica”, concluiu que a derrota para a Itália havia sido injusta e que esse resultado não

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seria capaz de apagar todo o encanto deixado pelas atuações da seleção brasileira: Não merecíamos perder o jogo, o empate seria mais justo. Somos a melhor equipe do Mundial-82, mas sequer chegamos à semifinal. Assim mesmo, muito obrigado a Zico, Falcão, Sócrates, Éder, Oscar e Júnior por alguns minutos inesquecíveis em nossas vidas [...] (Placar, 9 jul. 1982).

Ao que parece, o resultado final da partida não foi fator determinante para as análises realizadas por parte da imprensa esportiva. Porém, esse tipo de postura estava longe de poder ser considerada uma unanimidade, pois importantes jornais da época levantaram vozes contrárias. O principal deles foi a Folha de S. Paulo, que, embora tenha exaltado o futebol da seleção brasileira – especialmente após a vitória sobre a Argentina, como já vimos –, não poupou críticas e esforços para demonstrar todos os erros que teriam provocado a eliminação do Brasil. No dia 6 de julho, a primeira página do jornal dizia: “Desastre. Três erros derrotaram a seleção de Telê Santana”. Esses “erros” foram elencados logo abaixo dessa manchete: A seleção brasileira chega hoje à noite no Rio de Janeiro, e desta vez não traz sequer o título de ‘campeã moral’. Foi eliminada da Copa da Espanha, ontem, em Barcelona, pela Itália, que ganhou por 3 a 2 porque cometeu três erros fundamentais: achar que se ganha uma partida antes de disputá-la; confundir jogar na defesa com covardia; acreditar que o talento individual pode superar a falta de esquema.

O teor acusativo continuou no caderno especial Folha na Copa, no qual novamente se fez referência ao fato de que a seleção

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sairia da Copa sem nenhum tipo de título, nem o concreto, nem o simbólico: “Desta vez, nem campeões morais”.11 “A seleção teve seu pior resultado desde 1966, desprezou um forte adversário e deu show de indisciplina tática” (Folha de S. Paulo, 6 jul. 1982, p. 21). Diante dessas avaliações negativas, poderíamos imaginar que ao longo da Copa a seleção italiana havia sido considerada um time a que o Brasil deveria temer. Mas, analisando algumas edições anteriores ao dia 5 de julho, pode-se perceber que a seleção italiana estava longe de ser considerada “um forte adversário”, como afirmou a reportagem mencionada. A publicação do dia 24 de junho assim resumia a classificação da Itália para a segunda fase da Copa: “Itália ganha vaga mostrando pouco” (Folha de S. Paulo, p. 34). Na Folha de S. Paulo do dia 4 de julho, por exemplo, há uma interessante matéria intitulada “Bearzot preparado para uma derrota”, na qual o técnico da seleção italiana dizia que “perder para a seleção brasileira não representa nenhuma vergonha. Todo o mundo sabe e conhece as possibilidades e excelência do futebol brasileiro” (1982, p. 26). Nessa mesma edição, há uma referência ao esquema tático italiano, que seria fundamentado na marcação individual, esquema considerado antiquado, já que “a marcação homem a homem está ultrapassada. E tem mais, se o técnico Bearzot, amanhã, resolver aplicá-lo contra o Brasil, estará arriscando-se a levar uma das maiores goleadas da Copa da Espanha” (Folha de S. Paulo, 4 jul. 1982, p. 25). Mas após a vitória da Itália essas opiniões se transformam radicalmente. A busca por culpabilizações foi grande, o que explica o fato de a palavra culpa pontuar a recepção da derrota da 11

A referência aos “campeões morais” diz respeito à Copa de 1978, em que a seleção brasileira não fora derrotada e somente perdera o título porque o time do Peru teria entregado o jogo para a Argentina, deixando-se golear por 6 a 0, resultado que classificava os argentinos e eliminava o Brasil.

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seleção brasileira nesse jornal: “Serginho não se julga culpado pela derrota”; “Pintinho diz que Telê é culpado”; “Leandro já faz a sua defesa” (6 jul. 1982, p. 22). Além disso, várias foram as contestações contra a atuação da seleção, vindas de vozes variadas, como Paulo Cesar Carpegiani e Garrincha,12 e de importantes comentaristas, como João Saldanha. Desse ciclo de acusações, até alguns jogadores de futebol participaram, especialmente os chamados “jogadores paulistas”, que não pouparam críticas à atuação de seus colegas: Os jogadores paulistas criticaram a atuação da seleção brasileira [...] Para Jorginho, do Palmeiras, ‘o excesso de otimismo foi a principal causa da derrota’. Marinho Chagas e Dario Pereira, do São Paulo, acharam que ‘faltou experiência ao time além de menosprezo ao adversário’. Já os cariocas Vitor e Adilio consideraram a eliminação do Brasil ‘uma injustiça’.

Contudo, deve-se destacar que, no tocante à imprensa do eixo Rio-São Paulo, esse tipo de interpretação acusativa pode ser considerado minoritário. O Estado de S. Paulo, por exemplo, no dia 6 de julho, publicou em sua primeira página “Brasil, fim de um sonho”, e abaixo dessa manchete vinha a imagem de um pai consolando o filho pequeno que chorava. Aliás, foi de um jornal de São Paulo que surgiu a imagem que se tornou emblemática da Copa de 1982. Trata-se da primeira página do Jornal da Tarde, edição que foi às bancas no dia seguinte à derrota da seleção brasileira para a Itália. A capa era composta unicamente pela imagem de um menino que aparentava segurar um soluço de choro. Abaixo dessa imagem vinha a inscrição “Barcelona, 5 de julho de 12

A Folha de S. Paulo publicou um depoimento do ex-jogador Garrincha dado a Sport Press: “Vi um Brasil muito embolado, onde o lateral-direito atuava pelo lado esquerdo [...] Então, era uma coisa horrível [...]” (6 jul. 1982).

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1982”. A capa, aparentemente simples, entrou para a história do jornalismo esportivo, e a fotografia tirada por Reginaldo Manete recebeu, no mesmo ano, o Prêmio Esso.13 Em 1982, poderíamos espremer os jornais que deles sairiam lágrimas. Como já dissemos, a representação das emoções – especialmente o riso e o choro – presente na cobertura da imprensa esportiva é recurso comum na produção de notícias esportivas. Por outro lado, há de se considerar alguns apontamentos feitos por Marcel Mauss, em seu clássico ensaio “A expressão obrigatória dos sentimentos”: “Não só o choro, mas toda uma série de expressões orais de sentimentos não são fenômenos exclusivamente psicológicos ou fisiológicos, mas sim fenômenos sociais, marcados por manifestações não espontâneas e da mais perfeita obrigação” (1979, p. 147). No Brasil, os estádios, assim como diversas situações relacionadas a uma partida de futebol, são percebidos como lugares em que as emoções são consideradas manifestações não apenas aceitáveis, mas até exigidas. A edição de 6 de julho de 1982 do periódico O Dia enunciava na primeira página que o “povão chorou”, manchete cercada de fotos de alguns torcedores, aos prantos, se abraçando e de outros sentados, ou mesmo caídos no chão, desalentados. Acima dessa inscrição, podia-se ler a chamativa frase “Mortos e feridos no jogo da emoção” (6 jul. 1982). Segundo o jornal, a derrota da seleção teria provocado fortes reações na torcida, algumas 13

Reginaldo, em entrevista, contou que no dia estava no estádio Sarriá e logo após a partida resolvera percorrer as arquibancadas, clicando sua máquina em todas as direções até que se deparara com um garoto que visivelmente choraria a qualquer momento. Aproximou-se em busca de um melhor ângulo com a certeza de que aquela era a foto de que precisava: “Fiquei à espera, aguardando o melhor momento. Ele tinha um olhar de orgulho ferido, sabe?”. Matéria publicada na Revista Football. Disponível em http://www.revistafootball.com.br/EDICOES_ ANTERIORES/primeira_edicao/barcelona_um_dia_no_sarria/.

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das quais violentas: “Carpinteiro criticou jogador e acabou levando cinco facadas” (O Dia, 6 jul. 1982). Além da violência física, muitos torcedores teriam passado mal com a derrota: “Dezenas de pessoas, mulheres em sua maioria, levadas aos hospitais de pronto-socorro com problemas cardíacos” (O Dia, 6 jul. 1982). Essas notícias vieram acompanhadas de fotografias de torcedores espalhados pelas ruas do Rio de Janeiro, sentados nas calçadas, abraçados e chorando. Esse choro que aparecia no rosto dos torcedores também era mencionado na descrição que se fazia da reação dos jogadores e do técnico Telê Santana: As lágrimas que corriam pelo rosto do zagueiro Luizinho quando soou o apito final do árbitro Klein no estádio Sarriá, em Barcelona, o choro sentido e franco do lateral Júnior nos vestiários da seleção brasileira e o ar de dor e desamparo estampado no rosto do técnico Telê Santana, depois da partida contra a Itália, no fatídico 5 de julho, traziam sobretudo a surpresa pela derrota. Essa mesma perplexidade sublinhava a reação da torcida que chorava nas arquibancadas de Sarriá e de milhões de brasileiros postados à frente de seus televisores: afinal, por que estávamos fora da Copa? (Veja, 14 jul. 1982, p. 52).

Esse choro foi substituído pelo riso, pela festa e pelas manifestações de apoio que marcaram o retorno da seleção ao Brasil. Na edição do dia 16 de julho de 1982, a revista Placar trazia em sua capa a manchete: “Enche o peito, Brasil: teu futebol é a nossa alegria!”. Essa edição se dedica basicamente à cobertura da chegada dos jogadores nos aeroportos do Rio de Janeiro, de São Paulo, Minas Gerais e Porto Alegre. Em todos esses aeroportos, destaca-se a quantidade de pessoas que esperava o desembarque dos atletas:

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Mais de duas mil pessoas esperando a seleção no Galeão, Rio de Janeiro. Mais de mil na Pampulha, Belo Horizonte. Outras tantas em Congonhas, São Paulo. Outras tantas no Salgado Filho, em Porto Alegre. Com raras exceções, mãos, olhos e bocas dos torcedores parecem em comunhão com aquele diminuto grupo de vinte e poucos homens que fez durante alguns dias uma festa chamada seleção brasileira.

A imagem da multidão receptiva também estampou as páginas da Folha de S. Paulo, que chamou a atenção para os protestos do público direcionados aos políticos Paulo Maluf, José Maria Marin, Sarim Curiati e Abdo Hadad,14 cujas presenças forçaram um esquema de segurança que impossibilitou que os torcedores se aproximassem dos jogadores: “Os torcedores foram contidos do lado de fora do salão de recepção das autoridades e, à chegada de Paulo Maluf, entoaram um coro: ‘queremos seleção, políticos não’” (Folha de S. Paulo, 8 jul. 1982). Já no Rio, o entusiasmo da população teve de ser contida pela polícia, preocupada, sobretudo, em proteger Zico, “um dos jogadores mais festejados no desembarque da seleção no Rio e teve que ser fortemente protegido pela polícia até conseguir deixar o aeroporto” (Folha de S. Paulo, 8 jul. 1982). Tanto a recepção da imprensa quanto a do público dão mostras de uma derrota ímpar na história da seleção brasileira, em função do contexto esportivo, já que poucos foram os que esperavam que a seleção perdesse o jogo para a Itália, equipe considerada um azarão da Copa, e do modo pelo qual a derrota foi narrada. Grande parte da imprensa narrou a perda do jogo para a Itália sob uma perspectiva que evitou desmerecer tudo que até então havia sido demonstrado pelos jogadores em campo. 14

Paulo Maluf, ex-governador de São Paulo; José Maria Marin, governador de São Paulo; Sarim Curiati, prefeito de São Paulo; Abdo Hadad, secretário de Esportes.

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A derrota para a Itália em 1982 é parte da memória nacional, o que se faz notar em recentes publicações datadas de 2012. A primeira delas é Sarriá 82. O que faltou ao futebol-arte?, de Gustavo Roman e Renato Zanata. Nesse livro, os autores fazem uma análise do percurso da seleção de 1982, desde sua formação até a disputa do jogo do dia 5 de julho. No capítulo final, propõem-se a explicar quais teriam sido as razões que levaram a seleção à derrota. Para elaborar essa resposta, analisaram 46 jogos da seleção, a fim de que não houvesse espaço “para ‘achismos’” (p. 115). Os autores concluem que a derrota para a Itália era derivada sobretudo do fato de o esquema tático da seleção e sua escalação terem sofrido algumas alterações no decorrer do torneio. Já o segundo livro é intitulado Brasil. O time que perdeu a Copa e conquistou o mundo e foi escrito por Paulo Roberto Falcão, um dos protagonistas da Copa de 1982. O ex-jogador fez uso de textos por ele escritos e publicados no jornal Folha da Tarde, na coluna “Falcão na Folha”. Chama atenção o prefaciador do livro: Paolo Rossi, o autor dos três gols da Itália. Paolo, com um tom confessional, termina seu breve prefácio demonstrando surpresa diante dos rumos tomados pelos acontecimentos em campo, no estádio Sarriá: “Com o sangue quente, não imaginávamos que aquele Itália-Brasil entraria para a lenda do futebol universal” (p. 7). Entre outras seções, o livro também é composto por depoimentos de todos os jogadores da seleção que participaram da Copa da Espanha, agrupados em capítulo intitulado “Por que perdemos?”. O que se buscou com esses depoimentos foi a opinião acerca dos motivos que levaram o Brasil à derrota. O livro se encerra com o capítulo “Minha resposta”, ou seja, a do próprio Falcão. Diferentemente de seus outros companheiros de seleção, que, de algum modo, tentaram explicar as causas da derrota, Falcão parte do pressuposto de que não teria havido derrota e de que, na verdade, “ganhamos. Ganhamos muito, tendo o privilégio de participar daquela seleção mágica, com um craque

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em cada posição, com entendimento perfeito de que o futebol deve ser jogado para frente com alegria, talento e com prazer” (p. 118). Nem o fato de não ter conquistado o título mundial abala essa certeza, pois “ganhamos um prêmio mais importante do que o título, que é o reconhecimento do mundo para o nosso jogo bonito, para a nossa arte [...]. Aquele Brasil foi um campeão de encantamento” (p. 118). Embora no próprio título do livro se diga “o time que perdeu a Copa”, Falcão se esforça para demonstrar o contrário. Porém, trata-se de um esforço um tanto desnecessário, visto que nada vai apagar o fato de a Itália ter vencido o Brasil no dia 5 de julho de 1982. Além disso, se esse jogo e aquela seleção permanecem em nossa memória, isso se deve, em grande medida, justamente ao fato de a Itália ter saído vencedora, e não o Brasil. A derrota auxiliou a imortalizar a seleção de 1982. Como já disse Nelson Rodrigues, “o que nós procuramos no futebol é o sofrimento. As partidas que ficam, que se tornam históricas, são as que mais doem na carne, na alma” (2002, p. 68). Mas, além desse aspecto, deve-se destacar que poucos são os jogadores e as seleções que sobrevivem a uma derrota do tamanho da ocorrida contra a Itália na Copa da Espanha. A seleção de 1982 sobreviveu, e aí reside sua força; a força da história de heróis cuja queda se deu no palco do Sarriá. Referências ARAGÃO, O. “Eu matei Paolo Rossi”. In BRANCO, M. S. Outras Copas, outros mundos. Brasília: Ano-Luz, 1998. BRANCO, M. S. Outras Copas, outros mundos. Brasília: Ano-Luz, 1998. BRETON, D. As paixões ordinárias. Antropologia das emoções. Petrópolis: Vozes, 2009. DaMATTA, R. A bola corre mais que os homens. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. —— et al. Universo do futebol. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982.

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Copa de 1994: os múltiplos discursos autorizados sobre a seleção campeã menos amada da história Fausto Amaro

O ano de 1994 não poderia ter sido melhor para os brasileiros, ao menos nos gramados norte-americanos. Após 24 anos, retornávamos a uma final de Copa do Mundo (desde 1978 não chegávamos nem às semifinais) e decidíamos contra a Itália não apenas um título, mas a hegemonia no futebol. Afinal, quem ganhasse se tornaria o primeiro tetracampeão mundial. Longe dos gramados, dois textos basilares para a compreensão sociológica do futebol brasileiro eram publicados: “Antropologia do óbvio”, escrito por Roberto DaMatta e publicado na Revista da USP; e “Estádios vazios, ausência de ídolos”,1 de autoria de Ronaldo Helal na Pesquisa de Campo.2 Ambos os textos trouxeram interessantes reflexões sobre esse esporte para as ciências humanas e sociais e contribuíram para a consolidação de um campo de pesquisa que se revelaria profícuo nos anos seguintes. 1

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Esse artigo é parte da tese defendida pelo autor no mesmo ano, na New York University, com o sugestivo título The Brazilian soccer crisis as a sociological problem. A revista Pesquisa de Campo era editada pelo Núcleo de Sociologia de Futebol da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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O artigo de DaMatta colaborou para o avanço do pensamento sociológico sobre o esporte no mundo moderno e, principalmente, no Brasil. À sua maneira ensaística, o autor propõe algumas reflexões importantes para a época. O esporte estaria ligado a uma ideia modernizadora da sociedade, em especial nos pontos em que disciplina as massas e exige o fair play; seria também, retomando a teorização clássica do antropólogo, uma dramatização da vida social brasileira. Helal, por sua vez, analisa a situação do futebol brasileiro nas décadas de 1980 e 1990. Ele fala em uma crise estrutural e simbólica que abatia o futebol nesse período e investiga sociologicamente suas razões e implicações. Para explicar a crise, Helal utiliza-se do dilema clássico brasileiro, a dualidade entre um código moderno e um amador (proposta por DaMatta em momento anterior). Neste artigo, meu foco estará justamente na junção do campo de jogo e do acadêmico, destacando os principais pontos de discussão levantados sobre a Copa do Mundo de 1994. O discurso da imprensa provém de oito enciclopédias e livros de Copas (vide referências), das edições do Jornal do Brasil (de 17 jun. a 20 jul. 1994) e de números comemorativos das revistas Veja e Placar. Simoni Guedes situa o jornalismo e a academia como produtores do que ela denomina de “discursos autorizados”3 sobre o futebol (estes se opõem ao discurso rebelde de jogadores como Romário e Edmundo). Em suas palavras: Poderíamos hoje classificar amplamente os textos produzidos sobre o futebol no Brasil em três grandes categorias: a primeira, re3

Em Bourdieu, entendemos essa autorização social da fala de outrem como uma das atribuições que deveriam ser incorporadas por uma ciência que se proponha a estudar o discurso: “Não falamos a qualquer um; qualquer um não ‘toma a palavra’ [...] A ciência do discurso deve levar em conta as condições de instauração da comunicação, porque as condições de recepção esperadas fazem parte das condições de produção” (1983, p. 161).

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cobrindo aqueles nítida e claramente com objetivos jornalísticos; a segunda, dos textos acadêmicos que respondem a problemas sociológicos; a terceira, esta mais complexa, em que o texto jornalístico é, também, de pleno direito, uma interpretação sociológica ou utiliza-se das técnicas desenvolvidas na história e nas ciências sociais para a construção de seus dados (2010-2011, p. 8).

Nesse jogo de poder discursivo, temos na figura do receptor das falas autorizadas da imprensa tanto aquele torcedor mais fanático por futebol (que conhece todas as regras, é apaixonado por seu clube, acompanha os jogos) quanto o “torcedor de Copa” (aquele cuja paixão por futebol reaparece a cada quatro anos e se confunde com seu amor pela nação). A mídia deve, assim, produzir uma fala que atenda a ambos os grupos de maneira satisfatória. São essas condições específicas de produção da narrativa que devemos sempre ter em mente quando analisamos um discurso, seja jornalístico ou acadêmico. Este fala primordialmente para seus pares, mas pode eventualmente ter seus resultados divulgados para um público mais amplo. Essas narrativas, oriundas de variados atores, pautam a mídia quadrienalmente e forjam uma história própria do futebol, cujo acionamento de memória é efetivado nos períodos rituais de Copa do Mundo (Guedes, 2002). Não se faz necessário enveredar, aqui nem nas linhas a seguir, por uma explicação do sucesso do futebol como metonímia da nação brasileira nem da Copa como festival de congraçamento entre nações imaginadas (cf. Anderson, 2008), acerca do que muito já foi dito e discutido em quase todas as pesquisas cuja temática sejam as Copas do Mundo (uma rápida olhada no conteúdo de alguns dos títulos que compõem a bibliografia deste artigo pode comprovar o que digo). Não me estenderei nessa apresentação, pois o protagonismo deve ser dado aos outros autores e artigos que trouxeram a vivacidade da imaginação sociológica para a Copa de 1994.

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Como os jornalistas narraram a Copa? Notas sobre o discurso da imprensa O baixo nível técnico dessa Copa foi mencionado em três das enciclopédias consultadas:4 Todas as Copas, editada pelo jornal Lance! (s. a.); O jogo bruto das Copas do Mundo, de Teixeira Heizer (1997); e O mundo das Copas, escrito por Lycio Vellozo Ribas (2010). As demais obras jornalísticas optaram por ressaltar que essa Copa havia sido superior tecnicamente à de 1990. O protagonismo coube a Romário, vice-artilheiro e eleito pela FIFA o craque da competição. Apelidado de “Baixinho”, por causa de sua estatura, foi alçado ao posto de herói5 da Copa. O técnico Parreira e seu coordenador técnico, Zagallo,6 recebiam inúmeras críticas da imprensa pelo desempenho abaixo do esperado nas eliminatórias e pelo estilo bastante defensivo que os dois imprimiram à seleção. Diante da Bolívia, em La Paz, o Brasil sofreu sua primeira derrota na história dessa fase da competição, que qualifica para a Copa. As derrotas, segundo a imprensa, adviriam desse não jogar o verdadeiro futebol brasileiro – ofensivo, baseado no toque de bola e na habilidade individual. O jornalista Teixeira Heizer define a equipe brasileira da época e seu técnico da seguinte maneira: Parreira havia descido aos rés do chão com aquele grupo de jogadores medíocres, mas valentes, que, paradoxalmente, chegou ao título, enquanto as poderosas seleções de 1950 e 1982, prati4

5

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Apesar de se tratar de livros ou enciclopédias, as obras consultadas para a elaboração desse tópico foram escritas por jornalistas, o que faz com que sejam, a meu ver, parte do “discurso” ou “narrativa” jornalística sobre os fatos. Sobre a temática do herói na cultura, sugiro as leituras de Campbell (1995), Propp (2010) e Brandão (1993). Zagallo esteve presente como jogador nas conquistas das Copas de 1958 e 1962 e como técnico na de 1970.

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cantes de um estilo inigualável, não o fizeram, numa relação de inexplicabilidade do futebol (1997, p. 297, grifos meus).

Nessas eliminatórias, a classificação só veio no último jogo, com uma vitória sobre o Uruguai, no Maracanã. A vitória foi creditada, em grande medida, à atuação destacada de Romário, autor dos dois gols, convocado especialmente para aquele jogo, já que antes estava sendo preterido em função de desentendimentos com a comissão técnica (ocorridos em amistoso contra a Alemanha em 1992).7 Essa falta de confiança na equipe brasileira por parte da imprensa pode se enquadrar em um fenômeno mais bem explicado por Bartholo, Soares e Santoro ao analisarem as Copas de 1958 e 1962: “Observamos também que a ideia de descrédito da seleção, antes do início das competições, parece ter se tornado um mote jornalístico para tratar desse tipo de evento” (2010, p. 19). Por outro lado, a seleção brasileira era apontada como favorita pelos técnicos entrevistados pela La Gazzeta dello Sport – “o Brasil recebeu 188 votos contra 155 dados à Alemanha e 152 à Itália” (Jornal do Brasil, 17 jun. 1994, p. 5). Verissimo pontua, em uma perspectiva talvez inédita, que “o importante é colocar a participação do Brasil na Copa numa correta perspectiva universal. Uma derrota do Brasil não é o fim do mundo, gente. O fim do mundo é o fim do mundo” (Jornal do Brasil, 20 jun. 1994, p. 11). Anteriormente aos primeiros jogos da Copa, as matérias aguardavam a recuperação de Romário, que sentia os efeitos de uma antiga lesão. Quando de sua volta aos treinos, o título da matéria é “Alegria no treino” (Jornal do Brasil, 19 jun. 1994, p. 10) – bastante evocativo da representação que era desenvolvida em torno do jogador. Igualmente enfocada é a aplicação tática 7

Esse clamor pela convocação de Romário viria a se repetir oito anos depois, na Copa de 2002. Dessa vez, a pressão foi sobre o técnico Luiz Felipe Scolari, que, diferentemente de Parreira, optou por não ceder à opinião pública e não convocou o atacante.

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e técnica dos brasileiros, seja na forma do esforço nos treinos e jogadas ensaiadas, seja na repetição de movimentos; vide o título da seguinte matéria de Gilmar Ferreira: “Se falta talento, sobra aplicação” (Jornal do Brasil, 19 jun. 1994, p. 11). Se o jornalismo esportivo nacional pregava a desconfiança, essa supostamente não seria a visão da imprensa internacional. O Jornal do Brasil destaca, antes da final contra a Itália, que “a seleção só faz encantar os torcedores estrangeiros” (16 jul. 1994, p. 1).8 No mesmo tom, a Veja exalta o favoritismo de que o Brasil gozava com a imprensa internacional, mas sinaliza nossas deficiências. O final do texto, como não poderia deixar de ser, é otimista e recorda um passado mais glorioso: É uma infinidade de ‘ses’, mas assim tem sido desde que a mágica camisa amarela perdeu jogadores de pura arte como foram Garrincha, Pelé, Tostão e Rivelino [...] A pátria de chuteiras torce para que Romário, Bebeto, o garoto Ronaldo e cia. façam dos russos na estreia os Joãos de 1994 (1994a, p. 16).

As controvérsias e as diferentes formas de enxergar um mesmo fato marcam muitas vezes o discurso jornalístico sobre essa Copa. Ao comentar a recusa de Romário em sentar ao lado de Muller e Bebeto no voo para os Estados Unidos, Veja e Placar adotaram formas bem distintas de narrar o mesmo episódio. Enquanto a primeira enfocou o caráter do jogador Romário, a segunda optou por fugir dessa polêmica e recontar o fato de maneira mais leve e cômica. Vejamos:

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Essa reputação de que gozávamos com os estrangeiros também se refletiu no Prêmio Entretenimento, concedido pelo jornal USA-Today, por meio de votação popular, ao time que desempenhou o futebol “mais alegre” da Copa – o Brasil (Duarte, 1998, p. 507).

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Encrenqueiro como sempre, [Romário] anunciou que não se sentaria entre Bebeto e Muller no avião fretado pela CBF, como estabelecera a comissão técnica (Veja, 1994a, p. 18, grifos meus). O lugar de Romário no avião estava marcado entre Bebeto e Muller, e ele fazia questão da janela. ‘O avião tem mais de cem janelas, Romário. Você só não pode viajar na poltrona do comandante porque daí o avião cai’, o artilheiro ouviu de um de seus mais bem-humorados companheiros (Placar, 1994, p. 10).

O discurso autorizado dos jornalistas também permite que esses profissionais fujam de um tom mais formal em sua escrita e adotem muitas vezes o linguajar popular e, consequentemente, incorporem as vestes do torcedor brasileiro. Heizer, por exemplo, em seu livro, que poderíamos esperar objetivo pelo teor “enciclopedístico”, tem um arroubo apaixonado de torcedor, ao exclamar: “Parabéns, Brasil, tetracampeão!” (1997, p. 450). Essa liberdade na linguagem é um dos muitos elementos distintivos entre o discurso do jornalismo esportivo e o acadêmico. Regressando à Copa, no primeiro jogo, vitória brasileira. Dois a zero sobre a Rússia e um gol de Romário. A Enciclopédia do Lance! descreve assim o jogo: “O pragmático futebol de resultados do técnico Parreira dava seu primeiro passo com sucesso nos campos da América do Norte” (s. a., p. 166). Após esse primeiro jogo, o título da matéria do Jornal do Brasil dizia de forma otimista: “Seleção brasileira estreia como campeã” (21 jun. 1994, p. 3), destacando o fato de o Brasil ter ganhado, ao contrário de outras seleções tidas como favoritas. No segundo jogo, nova vitória, dessa vez sobre os camaroneses, por três a zero. Ribas ressalta a “falta de criatividade do meio-campo” (2010, p. 339). Assim, mais uma vez o destaque ficou para a atuação do time, e não para a goleada: “Novamente, o que se viu durante quase todo o primeiro tempo foi um futebol

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chato, muito eficiente na marcação, mas com pouca criatividade” (Lance!, s. a., p. 167). O interessante nesse excerto é o adjetivo utilizado para descrever a qualidade do jogo: chato. Quais seriam os critérios para essa definição? Ora, foi um jogo de três gols marcados, o que comumente chamaríamos de goleada. Além disso, com um jogador de Camarões expulso, o campo ficou mais aberto para as jogadas. Fica a dúvida: o que seria não chato nesse caso? A manchete do Jornal do Brasil, por seu turno, destaca, no mesmo tom da matéria sobre o primeiro jogo: “O melhor da Copa” (25 jun. 1994, p. 1). Armando Nogueira9 comentava, com certo desalento: O Brasil não joga o futebol do meu encantamento. Dificilmente jogará. A concepção tática de Parreira só funciona quando a equipe contra-ataca. É opção dele. Está dando bons frutos. É o futebol de resultados. Entre a minha exigência um tanto romântica e o realismo incontornável de Parreira, sei que o Brasil inteiro, sedento de glória, fica com Parreira. Sejamos todos felizes, eternamente (Jornal do Brasil, 25 jun. 1994, p. 8, grifos meus).

As vaias foram a realidade do terceiro jogo – “Vaias para a seleção” (Jornal do Brasil, 29 jun. 1994, p. 6). Empate com os suecos, que o Brasil voltaria a enfrentar nas semifinais. Romário, justificando sua convocação, foi quem igualou o placar para o Brasil. Assim define o Lance! a primeira fase do Brasil na Copa: “A equipe, embora primeira colocada do grupo, não se livrou das 9

Armando Nogueira (1927-2010) foi jornalista e cronista esportivo de renome nacional, tendo trabalhado em diversos veículos, como Jornal do Brasil, Rádio CBN, Sportv, Rádio e TV Bandeirantes, dentre outros. Publicou inúmeros livros e possuía um estilo peculiar que marcou suas crônicas. Nessa Copa, seu tom foi de crítica a Zagallo e Parreira, que se apegariam demais às suas pranchetas e cerceariam as liberdades individuais de nossos jogadores, renegando o que ele chamava de “escola brasileira”.

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pressões e das críticas feitas pelo futebol feio” (s. a., p. 168). Além disso, ainda havia uma teoria da conspiração, tão comum nos jornais em época de Copa: “Uma misteriosa reunião do elenco, revelada pela revista Placar, alimentou rumores de que o Brasil poderia perder o jogo para ficar em segundo no grupo e evitar um confronto com os Estados Unidos” (Ribas, 2010, p. 339). Nesse jogo, a manchete do Caderno de Esportes do Jornal do Brasil foi mais dura, contrapondo-se às suas manchetes nos jogos anteriores: “Brasil cai na real. Empate com a Suécia revela as deficiências de um time preso às limitações do meio-campo” (29 jun. 1994, p. 1). Sérgio Noronha afirma peremptoriamente que “não fomos, nesta Copa, o Brasil brasileiro” (Jornal do Brasil, 30 jun., p. 7). Mais uma vez, percebemos o discurso jornalístico recaindo em essencializações simplificadoras. Afinal, quem é capaz de definir com total acuidade o que seria esse “Brasil brasileiro”? Classificado em primeiro, com o melhor aproveitamento do Mundial, o Brasil enfrentou os anfitriões norte-americanos nas oitavas de final do torneio. A ação foi a seguinte: em pleno quatro de julho, feriado da independência dos Estados Unidos, sob pressão da imprensa, preocupada com o resultado adverso no último jogo da fase de grupos, o placar nos foi favorável: um a zero. A capa do Caderno de Esportes do Jornal do Brasil foi: “Eu te amo! Romário ouviu de Bebeto o sentimento de todo brasileiro, mas criticou futebol ‘pobre’ do time” (3 jul. 1994, p. 1). O potencial “sobrenatural” dessa dupla faz-se presente também no livro de Geraldo Muzzi: “o Brasil venceu os Estados Unidos por 1 a 0. Bebeto marcou o único gol do jogo após receber um passe mágico de Romário” (2010, p. 138). Três a dois. Foi com esse placar apertado que o Brasil passou pela Holanda e avançou às semifinais contra a Suécia. Com gols de Romário, Bebeto e Branco, nessa ordem, o Brasil voltava a uma semifinal depois de 16 anos. Nesse jogo, a carência de habilidade no meio-campo brasileiro foi, mais uma vez, alvo de

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críticas: “Com Mauro Silva, Dunga e Mazinho, o meio-campo brasileiro marcava muito; com Zinho, criava nada” (Ribas, 2010, p. 351). Paulo Vinícius Coelho, ao comentar a igualdade sem gols ao fim do primeiro tempo, afirma: “Um 0 x 0 insosso, que reforçava a ideia que brasileiros e holandeses tinham de suas próprias equipes. O Brasil pensava de si próprio um time aquém da tradição” (2010, p. 127). O Jornal do Brasil destacou a presença de Branco no jogo, extremamente criticado pelos jornalistas, dentre eles Armando Nogueira, em colunas anteriores à partida: “Sua imagem ao deixar o campo, ofegante, como os torcedores, feliz, como qualquer brasileiro, e malandro como todo o time, foi a mais completa tradução da seleção de ontem. A seleção de Branco, que mostrou ter entrado para ficar” (10 jul. 1994, p. 1, grifos meus). Nesse trecho, nos deparamos com uma construção narrativa que enfatiza sobremaneira a malandragem, ao mesmo tempo que minimiza o esforço dos jogadores, ao igualá-lo ao dos torcedores. A próxima adversária, a Suécia, era a equipe que o Brasil mais havia derrotado até então em Copas do Mundo (quatro vezes). A semifinal, vencida por um a zero, teve o final apoteótico com o inesperado e talentoso gol de Romário: “A Suécia, até então, tinha permitido poucas cabeçadas dos adversários contra seu arco e não tomara nenhum gol de cabeça. A disciplina tática dos jogadores suecos foi vencida e o Rose Bowl foi tomado por um grande grito de ‘Olé’” (Lance!, s. a., p. 172). Percebe-se aqui o contraponto entre a picardia presente no grito e a rigidez disciplinar sueca. É sobre essa dicotomia que se assenta muitas vezes o discurso da imprensa esportiva brasileira nessa e em outras Copas. O Jornal do Brasil prefere acionar a memória dos torcedores para a reedição da final contra a Itália na Copa do México. O título da manchete do Caderno de Esportes do dia 14 de julho era “Como em 70” e o tom das reportagens era de extremo otimismo com a possibilidade de conquista do inédito tetra (destacando, inclusive, a intensa comemoração que tomou as ruas do Rio de Janeiro e

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de Niterói após a partida). A essa altura da competição, Muzzi (2010, p. 138) assevera que Romário já era alcunhado de “Salvador da Pátria” pelos torcedores brasileiros, apelido que carrega fortes tons nacionalistas e grande carga de responsabilidade. O atleta, por sua vez, imbuiu-se desse papel de herói e pretendia compartilhar a conquista com seus semelhantes: “Vou dedicar o tetra ao povo sofrido” (Jornal do Brasil, 13 jul. 1994, p. 11). No mesmo período, quando implantava o bem-sucedido Plano Real, o então ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso afirmara que “não era nenhum ‘salvador da pátria’” (Rocha, 1996, p. 13). A atitude de Romário de assumir publicamente suas qualidades destoa da falsa modéstia preponderante no ethos nacional e presente na fala de FHC. “Jogo do século”. É assim que a revista Placar (1994, p. 6) define a partida final. O Jornal do Brasil afirma que desse jogo “um novo rei surgirá”: ou Romário ou Roberto Baggio (15 jul. 1994, p. 1). Esse foco em duas personalidades, e não nas duas coletividades em disputa, seria característica de uma imprensa “à brasileira”: “Situamos o craque e o desempenho individual habilidoso no centro de nossas concepções” (Guedes, 2002, p. 9). Brasil e Itália, adversários históricos, já haviam se enfrentado na final da Copa de 1970, no México. Anos mais tarde, em 1982, foi a vez de a Itália ganhar do Brasil, por três a dois, e nos tirar das semifinais do torneio (no que ficou conhecido como tragédia do Sarriá).10 Em 1994, quem ganhasse seria o primeiro tetracampeão mundial e, mais uma vez, o Brasil saiu vencedor. A vitória foi difícil e saiu apenas nos pênaltis, pela primeira vez na história das Copas. Assaf e Martins não deixam de apontar, assim como todos os outros jornalistas, o futebol pragmático e defensivista adotado por Parreira e Zagallo, mas ressaltam um pon10

Sobre esse episódio, sugiro a (re)leitura do capítulo de Leda Costa sobre a Copa de 1982.

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to importante: nos primeiros dois anos à frente da seleção, Parreira utilizou-se de uma equipe com “futebol alegre e ofensivo”. Em defesa daquela seleção, pontua que as críticas soam injustas, uma vez que “foi assim que derrubamos 24 anos de frustrações, conquistando um título inédito para os outros 197 membros da FIFA” (1998, p. 229). Heizer, por sua vez, concede contornos heroicos à conquista: A nova verdade era cristalina: um time fraco, execrado pela torcida, dirigido por um técnico vilipendiado pela imprensa, armou-se para, nos limites de suas forças e de sua técnica simples, arrancar um resultado extraordinário, que jamais será esquecido pela torcida brasileira (1997, p. 303).

Uma análise não tão aprofundada das edições do Caderno de Esportes do Jornal do Brasil expôs que, durante essa Copa, o tema nacionalista não esteve muito presente, o que pode apontar o início de um declínio da pátria de chuteiras, que seria esmiuçado por Helal e Soares (2003) alguns anos depois. Falo em nacionalidade no sentido de uma associação de conquistas e fracassos na Copa a esferas que exacerbam o futebol e esbarram no sucesso ou na derrocada do próprio país. Podemos supor que isso se deva à falta de “brasilidade” da equipe formada por Parreira e Zagallo, que encontraria apenas em Romário seu legítimo representante. No entanto, isso são apenas especulações, cuja elucidação só pode provir de um cuidadoso estudo do discurso. Na Veja, como exceção à afirmação anterior, a conquista do Mundial redime o Brasil de problemas maiores em outras esferas tidas como mais “sérias” da sociedade: “Depois de tantas desgraças – a corrupção de Collor, o governo Itamar, a morte de Ayrton Senna –, o país levanta a cabeça e comemora ter, de novo, o melhor futebol do mundo” (1994b, p. 9). Serve também como explicação para um país em mutação, que se apresentava de ma-

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neira nova aos olhares nacionais e estrangeiros: “O futebol acaba de revelar uma imagem surpreendente do país. O Brasil tetracampeão do mundo é disciplinado, metódico, obediente, organizado, solidário e bem preparado – um país muito diferente daquela terra do jeitinho e da improvisação” (p. 13). Além de Romário, essa também foi a Copa de Dunga. A Copa de sua readmissão no rol dos heróis nacionais. Sua imagem de “jogador esforçado” legou-lhe uma ambígua posição na lembrança jornalística: “A Era Dunga [...] inspirada na mediocridade do voluntarioso médio brasileiro” (Heizer, 1997, p. 297). Em uma mesma frase, utilizam-se duas palavras de conotações adversas: mediocridade como valor negativo e voluntarioso como ponto a favor em seu estilo de jogo. O adjetivo voluntarioso é ainda desdobrado em matéria da Placar: “Falar em Dunga é falar em raça, determinação, valentia” (1994, p. 21). Em 26 de junho, o Jornal do Brasil estampou na capa do Caderno de Esportes: “Nasce uma era”. Em 16 de julho, no dia anterior à final, as palavras são as seguintes: “Quem diria que o símbolo de uma fase negativa do futebol brasileiro – a Era Dunga, nome dado ao futebol de pouca criatividade e muita limitação do time na Copa de 90 – estaria hoje entre os melhores da Copa de 94” (16 jul. 1994, p. 1). Os qualitativos presentes nos jogadores esforçados como Dunga são quase sempre dúbios e lamuriosos, diferentemente daqueles de nossos heróis “macunaímicos”,11 como Romário. Este é um problema caro à pesquisa acadêmica, como veremos no próximo tópico. De modo geral, o discurso jornalístico assemelha-se muito quando trata da Copa de 1994. Há certa concordância tácita 11

Ver DaMatta (1978) e sua análise do “malandro” Pedro Malasartes como uma vertente brasileira. Ver também Macunaíma, de Mário de Andrade (2008). Para uma discussão a respeito da “malandragem” na literatura brasileira, ver Candido (1970).

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entre os jornalistas sobre essa Copa quando é lançada a questão da essência do futebol brasileiro. Fala-se em uma seleção pragmática, com poucos recursos técnicos, mas com um ataque muito talentoso, formado por Romário e Bebeto. É esse discurso que, de forma às vezes mais outras menos acentuada, está presente no material investigado. O título do capítulo sobre essa Copa no livro de radialista Barbosa Filho (2004) resume bem o discurso comum na opinião pública: “Vencemos e não convencemos”. Filho carrega nos tons mitológicos ao se lembrar de 1970 e criar um marco totalizador em torno desse ano: “Até 1970 nosso futebol era mais bonito, mais técnico, mais individual, daí a presença de grandes jogadores [...] Depois de 1970 ficamos mais profissionais e criamos jogadores de outra estirpe e com a obrigatoriedade de defender, antes de atacar” (2004, pp. 231-2). Ao não dispor de um método ou de uma argumentação mais criteriosa, tais tipos de afirmação tendem ao descrédito em uma análise mais minuciosa. Esse consenso jornalístico, no entanto, não deve ser confundindo com narrativa uníssona. Vozes destoantes estão presentes. O próprio Barbosa Filho traça um retrato otimista daquela seleção, que não vi ser tão compartilhado por seus colegas de imprensa nos livros analisados: O time era muito bom, escalado pelo técnico Parreira. Tínhamos uma defesa sólida com Ricardo Rocha, Márcio Santos e como regra três o jogador Aldair, um meio de campo excelente com Raí, Mauro Silva, Dunga e Zinho e um ataque onde despontava a inteligência de Bebeto e o talento de Romário (2004, p. 226).

A reflexão acadêmica: quais temas foram abordados pelos pesquisadores? Para empreender a revisão bibliográfica a que me proponho nesse tópico, efetuei primeiro uma busca em algumas plataformas

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de armazenamento de artigos científicos, como Scielo, Redalyc, Univerciencia e Google Acadêmico, em março de 2013. Além disso, acessei os anais dos principais congressos nas áreas de História (Anpuh), Ciências Sociais (Anpocs)12 e Comunicação (Compós e Intercom). Nessa investigação preliminar, encontrei cerca de trinta trabalhos que dialogavam em algum nível com meu objeto: a Copa de 1994. Excluí muitos da análise por serem “genéricos” sobre as Copas e suas representações simbólicas. Os demais se encontram de alguma forma representados nas linhas que seguem. Reforço que priorizei os trabalhos disponíveis em portais de divulgação acadêmica, o que evidentemente deve ter deixado de fora monografias, dissertações e teses que não tiveram seus conteúdos publicados separadamente em formato de artigos científicos. A narrativa heroica e vilânica Começo abordando o artigo “A construção de narrativas de idolatria no futebol brasileiro”. Nele, Ronaldo Helal (2003a) analisa, pelo viés do mito do herói “à brasileira”, as narrativas das trajetórias de Zico e Romário.13 Helal parte dessa dualidade biográfica para fazer comparações maiores sobre o ethos nacional. Sua hipótese é que valorizaríamos mais o sucesso sem esforço. Em dado momento do artigo, ele trabalha a oposição entre duas seleções paradigmáticas por sua representatividade: uma do suposto Nesses congressos, predominaram artigos relativos às Copas anteriores a 1970. Verifiquei também certa carência de artigos sobre Copas do Mundo tanto na Anpocs como na Anpuh, o que talvez se deva à criação recente de seus Grupos de Trabalho de Esporte. Na primeira, o grupo surgiu em 2002 (inicialmente, “Esporte, Política e Cultura” e, posteriormente, “Esporte e Sociedade”), enquanto na segunda ele foi criado em 1995. 13 Em outro artigo, Helal (2003b) analisa exclusivamente a narrativa sobre o jogador Romário nessa Copa. Não utilizei esse artigo porque o corpus de análise e o fio argumentativo foram os mesmos, o que soaria redundante aqui. 12

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estilo brasileiro e outra daquilo que não é próprio de nosso futebol. Ambas as equipes foram campeãs mundiais: A seleção brasileira que conquistou o tricampeonato em 1970, por exemplo, é até hoje idealizada como uma equipe que não precisava treinar e tampouco necessitava de recomendações táticas, quando sabemos que, na verdade, a comissão técnica daquela seleção se utilizou de métodos de preparação física dos mais modernos da época. Já a seleção que conquistou o tetracampeonato em 1994 foi criticada por parte considerável da mídia justamente por se utilizar de uma ‘marcação forte’ e uma rígida disciplina tática (Helal, 2003a, p. 20).

O estudo do discurso, efetuado pelo sociólogo nesse artigo, nos revela como a trajetória de Romário descrita pelos jornais coincide com uma narrativa mais ou menos consolidada sobre os heróis nacionais e que parece mudar muito pouco entre um e outro grande atleta alçado a esse posto.14 Romário é um elemento reforçador de nossa suposta identidade futebolística, em um elenco reconhecido mais por sua disciplina tática e força do que por seus talentos individuais. Paradoxalmente, ele representou um momento de transição em um êxodo cada vez mais precoce de nossos craques para o futebol europeu, parte do processo de internacionalização, profissionalização e mercantilização desse esporte em nível mundial (Leite Lopes e Faguer, 1999, p. 177). Podemos enumerar alguns temas-chave levantados por Helal (2003a) em seu estudo sobre o jogador: origem pobre, malandragem, futebol-força x futebol-arte, dicotomia ordem (Dunga) 14

Na Copa de 2002, Ronaldo “Fenômeno”, que permanecera no banco de reservas durante toda a Copa de 1994, tem seu trajeto heroico tecido pela imprensa por meio de comparações frequentes com Romário e, em menor escala, com Pelé. Sobre isso, ver Helal (2002).

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e desordem (Romário). Esta última inclui ainda outra oposição, que se encerra no seguinte fato: “A construção da biografia de Romário é também pontuada por passagens que ‘glamourizam’ a malandragem, a irreverência, o deboche e o relaxamento (não gostar de treinar). É como se estivéssemos diante da vitória construída somente com talento e arte” (p. 30). Ainda que o foco de Fernando Bittencourt em seu artigo não seja a Copa de 1994, ele também faz um adendo sobre Romário: [...] não podemos nos furtar à conexão entre o sucesso da raça e a participação decisiva e/ou heroica de Romário, que guarda, aparentemente – talvez não só no imaginário popular –, características positivadas de nossas relações sociais, a saber, moreno, malandro, esperto etc. (2009, p. 182).

Em outro artigo, Helal e Soares reverberam uma contradição exposta nos jornais entre Romário e Dunga: Dunga era como se fosse uma antítese daquilo que os brasileiros idealizam como o futebol-arte. A conquista da Copa de 1994, em que o capitão da equipe, apesar de ter lhe proporcionado sua redenção no esporte, foi celebrada como a vitória da ‘malandragem’, simbolizada no futebol de Romário (Helal e Soares, 2003, p. 10).

Se até aqui se falou de vitórias e heróis, a pesquisadora Leda Costa traz um novo olhar para interpretarmos a Copa de 1994. Sobre o discurso da imprensa, Costa é contundente: “Embora se proponha neutra e crítica, valores como coragem, covardia, talento e falta de talento etc. serão acionados pela imprensa esportiva de acordo com o resultado do jogo” (2012, p. 1). A autora traça uma breve história das narrativas jornalísticas sobre as derrotas mais emblemáticas da seleção, tomando 1950 como a gênese desse discurso sobre a derrota. Daí ela propor o que denomina de

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“hermenêutica da derrota”. Ela afirma que a Copa de 1994 seguiu um caminho oposto ao que normalmente ocorreria, ou seja, foi inicialmente criticada para somente ao final ser ufanada: “Tanto nas eliminatórias quanto no início da Copa a seleção era desacreditada e muito questionada [...] Mas quando a seleção avançou na competição e se classificou para a final esse mesmo jornal [O Dia] dizia: ‘Domingo tem macarronada ao tetra’” (p. 18). Sobre Dunga e seu posto – ora de antagonista a Romário, ora de protagonista da conquista –, Costa aponta: Poucos vilões como Dunga, em 1990, conseguiram ser considerados a quase total negação do futebol brasileiro. Entretanto, esse mesmo Dunga, em 1994, será considerado um dos heróis do tetracampeonato mundial, jogador cujas virtudes foram evocadas em 2006 logo após a saída da seleção da Copa do Mundo daquele ano (2011, p. 7).15

Costa se utiliza, assim, do discurso sobre a vilania16 para desenvolver uma extensa argumentação sobre nossa tendência a sempre buscar culpados pela derrota e a contrapor nosso futebol (e, metonimicamente, nossa brasilidade) ao europeu. Por fim, questiona a validade de um mote frequentemente reiterado pelos jornalistas esportivos para criticar técnicos e jogadores: eles não estariam representando a essência do futebol brasileiro ou do futebol-arte. Leda mostra que, por ser socialmente construída, essa essência não pode ser naturalizada, já que é historicamente datada. Naturalizá-la é um equívoco que desencadeia outros mais, Em 2010, na Copa da África, Dunga voltaria a seu papel de vilão. Parreira, assim como Dunga um herói em 1994, também pereceu em uma Copa posterior, no caso, 2006 (Costa, 2011). 16 Essa questão, aliás, é melhor explorada por ela em sua tese em Literatura Comparada, A trajetória da queda: as narrativas da derrota e os principais vilões da seleção brasileira em Copas do Mundo, defendida na UERJ em 2008. 15

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como a própria busca de culpados nas derrotas e a exigência de que sempre joguemos esse ideal de futebol brasileiro. Outra autora que pesquisa as representações em torno do jogador Romário é a antropóloga Simoni Guedes (1995), optando pelo enfoque nas “dramatizações sobre a rebeldia” e tendo como corpus os jornais O Globo e Jornal do Brasil. Ela enfatiza a dimensão da “disciplina”, presente no episódio da expulsão de Romário da equipe que disputou grande parte das eliminatórias, opondo-a à arte inerente ao grande jogador, e ressalta a dicotomia entre o craque e o coletivo (p. 26). Nesse sentido, Romário seria um herói rebelde, menos “macunaímico” que agressivo (p. 30). Em resumo, “[...] é a relação entre esta exclusão por indisciplina e seu retorno tão bem-sucedido que redimensiona sua imagem, alçando-o, através do transe da Copa de 94, ao panteão mais nobre do futebol brasileiro” (p. 31, grifos da autora). Em outro artigo, Guedes (2010-2011) dedica apenas dois parágrafos para falar de Romário. Ela o considera exemplar do que qualifica como discursos rebeldes do futebol. O atacante artilheiro teria subvertido a lógica que coloca o jogador submisso apenas a jogar, e não a falar. Guedes utiliza o caso de Romário como paradigmático para algo maior: “Romário, na Copa do Mundo de 1994, não apenas jogou, mas falou o tempo todo e falou sobre o povo, identificando-se como alguém do povo [...] com esta reivindicação diz que o povo não precisa de porta-voz” (p. 9). Outro artigo da mesma autora (2009), com motivação parecida, contrapõe essa voz “popular” legitimada de Romário àquela de João Lyra Filho, acadêmico e dirigente esportivo na Copa de 1954. Ao contrário do primeiro, Lyra Filho adotava um discurso racialista e elitista que atribuía ao próprio povo a culpa das mazelas sociais. Retornando à obra de Helal, em texto escrito com Cesar Gordon, eles tratam da suposta crise no futebol brasileiro, do ponto de vista técnico e estrutural, nas últimas décadas do século XX.

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Segundo os autores, a conquista de 1994 não foi suficiente para retirar a palavra crise da “pauta na imprensa esportiva” (2002, p. 49). Essa crise estaria manifesta principalmente no discurso da imprensa, que não enxergaria mais o futebol como metonímia da nação (Helal, 2010, p. 37). Para sustentar seu argumento, Helal afirma que “a derrota na final para o Uruguai em 1950 e a conquista do tricampeonato em 1970 foram sentidas como derrota e vitória, respectivamente, de projetos de nação brasileira. Já as vitórias de 1994 e 2002 não transcenderam o terreno esportivo” (2010, p. 37).17 Para Gastaldo, esse esmaecimento da relação seleção-nação, verificado principalmente em 1998, poderia estar ligado ao título conquistado em 1994: “A vitória na Copa de 1994, após um longo período de 24 anos sem um título em Copas do Mundo, promoveu uma rearticulação de significados nesta relação entre a avaliação da seleção brasileira e a avaliação do povo brasileiro” (2003, p. 7).18 Uma afirmação de Soares, Helal e Santoro (2004) da qual tendo a discordar é a seguinte: “Parte expressiva da mídia não celebrou a conquista de 1994, justamente por não reconhecer no estilo daquela seleção o ‘verdadeiro’ estilo de jogo brasileiro” (2004, p. 68). Pela análise dos impressos, isso não pôde ser verificado. Ainda que parte da imprensa estivesse cética quanto ao estilo de jogo brasileiro, após a conquista, a alegria predominou sobre a descrença. Talvez nas crônicas de Armando Nogueira no Jornal do Brasil, com algum esforço, possamos falar em algo Esse argumento aparece pela primeira vez no texto “Pra frente, Brasil!” apresentado no Intercom Nacional 2008, juntamente com Alvaro do Cabo e Carmelo Silva. Não obstante, em trabalho anterior, escrito em coautoria com Santoro e Soares, Helal é menos peremptório nessa afirmação, ao pontuar que “as vitórias em 1994 e 2002 e a derrota em 1994 [o correto seria 1998] transcenderam pouco o universo esportivo” (2004, p. 71, grifos nossos). 18 Esse mesmo argumento está presente no artigo “A Família Scolari somos todos nós”, apresentado por Gastaldo no Intercom 2003. 17

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como uma “não celebração”, mas não podemos generalizar esse sentimento. É claro que não descarto a possibilidade de Helal estar se referindo a outros meios de massa (televisão e rádio) ou ainda rememorando a leitura que teve dos fatos à época, o que justifica sua opinião “apocalíptica” na frase supracitada. Podemos estar em discordância, porém, apenas quanto à semântica do verbo “celebrar”. Futebol e identidade nacional Durante seu período de pós-doutoramento na Argentina, Helal produziu um reconhecido trabalho sobre a narrativa midiática das alteridades e rivalidades entre Brasil e Argentina no universo esportivo. O sociólogo destaca o início de uma resposta da imprensa argentina às provocações dos jornais brasileiros para com Maradona em 1994, ao mesmo tempo que mantinha a usual admiração pelo estilo de jogo brasileiro (2006, p. 5). Os periódicos argentinos, assim como os brasileiros, ressaltavam a importância de Romário, alcunhado de “El Chapulín” pelos jornalistas portenhos, a despeito do esquema de Parreira. Penso que esse tipo de análise, de natureza comparativa, é extremamente oportuno, principalmente em um mundo globalizado como o nosso, em que muito se diz sobre identidades homogeneizadas e nacionalidades arrefecidas. Registro ainda a necessidade de mais estudos comparados com mídias (periódicos, TV, rádio, sites) de outras nações para um melhor entendimento da imagem do Brasil nessa Copa do Mundo. Será que a imprensa estrangeira elogiava tanto o selecionado nacional como diziam os jornais brasileiros? Afinal, qual era a imagem de nossa seleção aos olhos estrangeiros? Quais eram os atributos associados a Romário e Dunga? As mesmas questões acionadas na análise de periódicos nacionais podem vir à tona em estudos comparativos e várias outras podem surgir, como Helal bem demonstrou.

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Em artigo sobre o ato de torcer, e menos focado na Copa de 1994, o antropólogo Arlei Damo busca explicar a “magia”19 que cerca a seleção, contrapondo o clubismo ao nacionalismo, e se propõe a responder a seguinte questão: “Por que as pessoas acreditam que exista algo de mágico no espectro do futebol?” (2006, p. 74). Interessante salientar que o autor foca-se no polo receptor do espetáculo, isto é, a torcida, enquanto os outros artigos mencionados até aqui tiveram como escopo as representações do jogo e de seus protagonistas. Em relação especificamente a 1994, ele aponta o debate sobre a influência da conquista da Copa no campo político. Teria o tetracampeonato brasileiro, 24 anos após nossa última conquista, influenciado na eleição de FHC, o candidato da situação? Damo responde que talvez sim, talvez não: “Todavia, é preciso considerar também a hipótese de que Fernando Henrique teria sido eleito qualquer que tivesse sido a performance brasileira nos Estados Unidos” (p. 86). Na esteira de Roberto DaMatta e Gilberto Freyre, Everardo Rocha retoma, em dois artigos complementares (1995, 1996),20 a interpretação do Brasil por meio de suas dualidades complementares, como: “Indivíduo/pessoa, malandro/Caxias, carnaval/semana da pátria, jeitinho/regra ou casa/rua” (1995, p. 48, grifos do autor). Ele propõe também um diálogo entre essa teorização e a problematização sobre a “descoberta” do Brasil e a “fundação” norte-americana: “Descobridores são gramaticais com sociedades onde se combinam individualismo e holismo; os fundadores articulam-se com as sociedades individualistas” (p. 54, grifos do autor). A despeito disso, o que me interessou nesse artigo foi a explicação, Oportuno lembrar a frase de Parreira que estampa uma das matérias do Jornal do Brasil na Copa de 1994 e que diz o seguinte: “A magia no futebol acabou” (1o jul. 1994, p. 10). Será mesmo que poderemos um dia fazer tal afirmação peremptoriamente? 20 Agradeço essas indicações ao meu orientador, Ronaldo Helal. A revista Pesquisa de Campo, em que os artigos foram publicados na década de 1990, não disponibiliza seu acervo on-line. Logo, ele não é rastreável pelos mecanismos de busca que utilizei. 19

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na forma de indagações, que Rocha busca para o fato de preferirmos as Copas de 1958, 1962 e 1970, e até as de 1950 e 1982, em que fomos derrotados, do que a do tetracampeonato, em 1994. As representações tradicionais sobre o Brasil e sua seleção não se aplicariam a essa Copa, em que o pragmatismo e a dedicação estiveram mais presentes que a picardia e o talento nato de nossos jogadores. A organização sobrepujava um estilo de jogo tido como mais livre e menos metódico. Acerca disso, Rocha ressalta que tanto a imprensa especializada quanto o público em geral teriam preferido “ganhar a Copa de outra maneira ou, mais radicalmente, que ganhar com um futebol feio, esquemático, fechado, sem arte, baile ou categoria não valia a pena ou ainda que não havia sido uma vitória do verdadeiro futebol brasileiro” (1996, p. 11, grifos do autor). Em outro momento, ele se pergunta: “E o que é isto o que chamamos de verdadeiro futebol brasileiro ou, antes, podemos dizer, as verdades do Brasil através do futebol?” (1995, p. 56, grifos do autor). Indagação semelhante à de Costa, já citada neste artigo. Rocha destaca ainda que os técnicos raramente são lembrados no Brasil após as conquistas. Felipão, em 2002, veio a provar o contrário. No entanto, em relação ao próprio técnico de 1994, o cronista Luis Fernando Verissimo nos faz refletir sobre seu legado: “Parreira não pode esperar o reconhecimento instantâneo. Mas acho que oito anos lhe farão justiça” (Jornal do Brasil, 15 jul. 1994, p. 10). Uma abordagem sobre os Mundiais de Copa do Mundo e novos rumos de pesquisa Em “1994: a última Copa do Mundo narrada pelo ‘garotinho’ Osmar Santos”, Patrícia Rangel (2012)21 investiga a cober21

Uma resenha/resumo desse artigo, e de todos os outros presentes no livro, foi apresentada pela autora no trabalho O rádio e as Copas do Mundo – de 1938 a 2010, apresentado no Intercom Nacional 2012.

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tura radiofônica nessa Copa, destacando como principais fatos o uso inédito de aparelhos celulares na cobertura e a aposentadoria forçada, por motivos médicos, do narrador que dá título a seu artigo. Esse avanço representava, além de um ganho tecnológico, uma melhora na qualidade do áudio que era recebido pelos ouvintes. Rangel nos revela que foi graças a esse novo aparato técnico que a Rádio Globo pôde dar o furo de reportagem ao vivo sobre a fuga de Romário da concentração (p. 198). Ademais, no mesmo artigo, ela reafirma os mitos da imprensa de que “o Brasil, liderado pelos atacantes Romário e Bebeto e dirigido pela dupla Parreira-Zagallo, jogava um futebol pragmático” (p. 196). Mais uma abordagem possível, e bem distinta das que vimos até aqui, é o artigo de Carmel Rial (2007) sobre a publicidade na TV e em revistas durante a Copa do Mundo de 1994.22 Rial destaca que em períodos de Copa a publicidade enfoca temas ligados à identidade nacional e ao patriotismo, concedendo maior espaço aos negros e mulatos, tidos como legítimos representantes de nosso estilo de jogo. Em seguida, a autora analisa os comerciais da Rider e das cervejas Antarctica e Brahma. Nesse período, a propaganda ainda estaria impregnada por uma série de estereótipos na representação dos negros, associados a aspectos da natureza (o que poderia ser sintetizado pela equação: branco=intelecto; negro=corpo). Confirmando a potencialidade da temática publicidade e futebol, uma análise semelhante a essa de Rial foi posta em prática por Gastaldo (2002) na Copa de 1998. Outra fonte de análises que não foi explorada, pelo que averiguei, é o filme oficial daquela Copa: Two billion hearts ou, em português, Todos os corações do mundo. Dirigido pelo brasileiro Murillo Salles, o filme foi lançado em 1995. São aproximadamente 22

Na verdade, o período de análise excedeu esse intervalo. O período de coleta compreendeu as seguintes datas: março a setembro de 1994; maio a julho de 1995; maio a agosto de 1998; primeiro semestre de 2000.

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105 minutos de documentário, mesclando o desconhecimento inicial dos norte-americanos com a festa que ocorre dentro dos estádios e as especificidades da torcida de cada país. As nacionalidades e seus estereótipos se manifestam nas arquibancadas. As palavras do narrador renderiam um estudo à parte sobre seu discurso, que reforça as imagens clássicas do futebol, ligando-o à arte e à natureza – é claro que, sendo um filme oficial da Copa, era esperado que o folclore do esporte ocupasse papel de destaque. Fala-se, por exemplo, de um Maradona associado à leveza do vento e de sua “magia do pé esquerdo” e de uma Alemanha “sempre metódica”. Na derrota para a Bulgária, o narrador justifica a derrocada alemã dizendo que, “no futebol, é o coração que fala mais alto”. São imagens clássicas do futebol. Carecem igualmente de análise as injunções políticas presentes nessa Copa do Mundo. Além da volta da Alemanha unificada e da participação de países do antigo bloco soviético, tivemos alguns fatos profícuos de ser pesquisados, dentre eles: a passagem pela Alfândega brasileira, sem taxação, das bagagens trazidas pela delegação brasileira na volta da Copa (Ribas, 2010, p. 357; Heizer, 1997, p. 307); a suposta influência de João Havelange,23 desde 1974 no cargo de presidente da FIFA, na escolha da arbitragem da semifinal (Ribas, 2010, p. 353); as comparações e aproximações entre Romário e Maradona não exploradas em nenhum artigo analisado, porém verificadas em certas matérias do Jornal do Brasil. Então, por que não mais pesquisas que enfoquem a cobertura radiofônica?24 Ou, ainda, como teria sido a cobertura O Jornal do Brasil publicou algumas matérias sobre o polêmico dirigente no período da Copa. Em 16 de junho daquele ano, Havelange havia sido reeleito por aclamação para um período de mais quatro anos à frente do órgão máximo do futebol mundial. 24 Percebemos um aumento nas produções acadêmicas sobre o tema, inclusive em nível de graduação, com maior interesse dos alunos pela pesquisa empírica nas gravações radiofônicas e entrevistas com radialistas. Nesse sentido, a monografia 23

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pela televisão?25 Afinal, nessa Copa, a audiência acumulada nesse veículo chegou a 33 bilhões de pessoas (Veja, 1994b, p. 35); pela primeira vez, um grande canal americano (a rede ABC) transmitiu os jogos ao vivo; e a Rede Globo contou com quatro câmeras exclusivas (Veja, 1994a, pp. 56-7). Salvo erro na pesquisa bibliográfica deste autor que vos escreve, não há nenhum artigo que enfoque esse meio. Sobre os impressos e seu discurso recai a maior parte das atenções. É claro que devemos levar em conta as dificuldades de pesquisa que envolvem os meios audiovisuais, ainda mais na era pré-internet, quando o conteúdo era mais restrito ao público em geral. Isso, no entanto, não deve representar entrave para o jovem pesquisador, que deve encarar esses obstáculos como motivações a mais para iniciar sua pesquisa. Por que não investigar a cobertura televisiva na Copa de 1994? Fica aqui mais essa dica para os leitores. Pontos finais Alguns pontos devem, nesse momento, ser rememorados. Vimos ao longo deste artigo como a narrativa sobre a Copa de 1994 rendeu muitas publicações jornalísticas, na forma de livros e enciclopédias. Algo normal e esperado, pois Copas do Mundo atraem a curiosidade do leitor atemporalmente e, por isso, vendem. Por outro lado, a academia carece de maior variação nos objetos abordados dentro da grande temática fornecida por essa Copa. Além disso, encontrei uma concentração de autores da reRádio e Copa do Mundo através das décadas: análise da cobertura da rádio Guaíba dos Mundiais de 1982 e 2010 (2011), de Rodrigo Martins de Oliveira, defendida na Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 2011, serve de exemplo para o que digo. 25 A primeira Copa com cobertura radiofônica para o Brasil foi a de 1938, na França. Na televisão, somente em 1970, durante a Copa do México, tivemos cobertura ao vivo (cf. Helal e Amaro, 2013).

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gião Sudeste e, mesmo assim, em pequeno número, o que representa um viés específico de corpus de análise e, talvez, de corpo teórico. Parece-me, portanto, que, enquanto o discurso autorizado da imprensa esportiva carece de maior qualidade, ao discurso acadêmico faltam simplesmente variedade de repertório temático e ampliação no número de autores. No título deste artigo, falei em seleção campeã menos amada da história. Acredito que agora todos os leitores saibam o porquê dessa escolha. A imprensa esportiva foi impiedosa durante (vide a narrativa do Jornal do Brasil e das revistas investigadas) e após (vide os livros e enciclopédias) a Copa. Na letra impressa, aquela seleção era a pior representação possível do estilo de jogar brasileiro, à exceção de um ou outro jogador, mas mesmo assim conseguiu conquistar o título. Essa conquista demandou uma mudança no discurso e uma valorização do esforço e do jogo coletivo daquele grupo. Não obstante, coube a Romário uma considerável parcela do crédito da opinião pública. Ele era o bastião de brasilidade responsável pelo triunfo. Dito isso, entendemos o porquê de uma concentração de produções acadêmicas sobre a representação criada em torno de Romário. Ele foi, deveras, a grande figura midiática dessa Copa. Ademais, foram abordadas a hermenêutica da derrota, a questão da identidade nacional, a publicidade e a presença do rádio. A Copa de 1994 não é, assim, uma fonte já esgotada de pesquisa. Há muito a ser feito, ainda que um bom percurso já tenha sido trilhado pelos autores vistos aqui (Ronaldo Helal, Leda Costa, Simoni Guedes, Everardo Rocha e tantos outros). Referências ANDERSON, B. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ANDRADE, M. de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Agir, 2008.

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1998: o colapso da arrogância nacional Édison Gastaldo

A 16a Copa do Mundo de futebol, a Copa da França, decidida em 12 de julho de 1998, foi inesquecível para os brasileiros. De acordo com um sábio ditado, “quem bate, esquece; quem apanha, lembra”. E a seleção brasileira, apontada como a favorita absoluta ao título, teve motivos para se lembrar eternamente da França de Zinedine Zidane, que venceu por 3 a 0, a maior goleada já sofrida pelo Brasil na história das Copas do Mundo. Um triunfo histórico para a França, às vésperas da celebração de 14 de julho, e um fracasso cuja culpa os brasileiros até hoje discutem. A Copa de 1998 também foi a primeira sob a presidência de Joseph Blatter, eleito como sucessor de João Havelange no comando da FIFA poucos dias antes de seu início. Foi também a ocasião da primeira transmissão internacional em HDTV. No Brasil, cinco redes de TV transmitiram a competição (Globo, SBT, Band, Record e Manchete), fato que, até este momento, nunca mais se repetiu. Neste capítulo, destacarei esse jogo histórico, a partida final entre Brasil e França, analisando as narrações esportivas dessas cinco emissoras. Diversos aspectos tornam as transmissões desse

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jogo especialmente interessantes como objeto de análise. Em primeiro lugar, os jogos da seleção brasileira em Copas do Mundo representam um momento extremamente raro de audiência aos veículos de comunicação de massa no Brasil. Em tempos de segmentação de público, uma audiência de mais de 100 milhões de pessoas (94% dos televisores ligados, segundo o Ibope) a um mesmo evento é um fato cujas dimensões sociais não podem ser menosprezadas. Em segundo lugar, esse jogo decidiu a Copa do Mundo, e o Brasil começou o dia como o franco favorito, segundo o discurso da imprensa e da publicidade, tendo sido derrotado pela maior diferença de gols de todos os tempos, sendo a mudança na tônica do discurso durante o jogo um interessante fenômeno a estudar. Em terceiro lugar, minutos antes do jogo houve um problema envolvendo a escalação de Ronaldo, o principal jogador da seleção brasileira naquela competição, e a dança das diferentes versões nas transmissões ao vivo em cadeia nacional torna esse evento um caso particularmente notável. Tamanhas foram a ambiguidade e a contradição das versões na ocasião, que até hoje não há consenso sobre o que realmente aconteceu naquela tarde. Ou melhor: se há consenso, é o de que a história toda foi (e continua) mal contada. Naquela tarde de domingo, 12 de julho de 1998, entre locutores, comentaristas e um jogo de futebol, cuja definição é construída com palavras, situa-se este capítulo. Sobre a imprensa esportiva A chamada “imprensa esportiva” pode ser caracterizada pela interpretação jornalística dos fatos relativos ao campo das práticas esportivas. Originalmente uma atividade para ser praticada, o esporte tornou-se, com o surgimento e o crescimento da comunicação de massa, um espetáculo para ser assistido, visando a um consumo massificado. Essa incorporação do esporte pela indústria cultural gera um divórcio entre prática e consumo, já que não é necessário

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ter praticado um esporte para assisti-lo pela televisão e (numa espécie de “grau zero da competência esportiva”) emocionar-se com a ansiedade pelo resultado. A veiculação dos eventos esportivos gera um aumento no número de leigos, que necessitam compreender o que há para ser visto, criando, assim, uma demanda por comentaristas, que, com sua competência específica no assunto, traduzem os lances do jogo em termos técnicos e táticos, reforçando, pela oposição aos leigos, o primado do profissionalismo. Essa redução dos não iniciados ao papel de meros consumidores dos eventos esportivos possui um aspecto político importante, conforme ressalta Bourdieu: [...] não é apenas no domínio do esporte que os homens comuns são reduzidos ao papel de torcedores, limites caricaturais do militante, dedicados a uma participação imaginária que não é mais do que a compreensão ilusória da despossessão em benefício dos experts (1983b, p. 145).

A mediação do acesso ao esporte – e o consequente afastamento pessoal dos “torcedores” da prática esportiva em si – também é analisada por Umberto Eco (1984, pp. 220-6). Para ele, existem vários níveis de apropriação da atividade esportiva: o esporte em si, “jogado em primeira pessoa”, diferente de um esporte “elevado ao quadrado”, que é o espetáculo esportivo. O esporte tornado espetáculo engendra um esporte “elevado ao cubo”, que é o discurso sobre o esporte assistido, o discurso da imprensa esportiva. Eco ainda fala de um esporte elevado “à enésima potência”, que é o discurso sobre a imprensa esportiva, como no caso dos “comentaristas” das páginas esportivas dos jornais. De modo crescente, o metadiscurso mediatizado engendra a definição de realidade nos fatos do campo esportivo. Mesmo no próprio estádio de futebol, é bastante frequente que os torcedores que presenciam pessoalmente os fatos do jogo acompanhem os lances com um

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radinho de pilha colado ao ouvido, acrescentando à própria experiência a autoridade do discurso do locutor e dos comentaristas, definindo o que, afinal de contas, o espectador está vendo, ou seja, definindo a situação para a audiência. A transmissão de um jogo de futebol pela televisão mimetiza essa experiência de estar no estádio com um radinho de pilha ao ouvido. As diferentes câmeras acompanham as jogadas (ou outros lances) enquanto a voz em off do locutor define o que está acontecendo. É evidente que as duas experiências são diferentes. No estádio, o torcedor experimenta o compartilhar de um mesmo evento com milhares de outras pessoas, torna-se massa, dissolve-se na torcida de seu time, enquanto em sua casa, assistindo à televisão, tal fenômeno social praticamente não ocorre, salvo em circunstâncias muito especiais, como no momento de um gol. O ponto de vista também é diferente. Como ressalta Mauro Betti (1997, pp. 33-4), para a televisão, o jogo acontece somente onde está a bola. Na transmissão de TV, ninguém tem a visão global do espaço de jogo que o espectador presente ao estádio tem. No início das transmissões de jogos de futebol pela televisão, uma única câmera fixa acompanhava de longe as jogadas, assemelhando-se de alguma maneira (ao menos quanto ao ponto de vista fixo) à visão de um espectador presente ao estádio. Atualmente, dezenas de câmeras, fixas e móveis, espalhadas pelo campo salientam diversos aspectos do jogo, construindo-o como narrativa, como uma metarrepresentação do evento esportivo. As imagens que vão ao ar são escolhidas conforme uma codificação própria do veículo (por exemplo, replays de um gol sob diversos ângulos), construindo, somadas ao relato do locutor, uma versão do ocorrido em campo. Jornalismo e subjetividade: a narração esportiva Ao contrário do que ocorre no telejornalismo convencional, quando o apresentador lê o texto das notícias que passam no tele-

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prompter, com o olhar fixo na direção da lente, na narração de um jogo de futebol, o locutor fala o que está vendo no jogo. Sua imagem, quando aparece, é fora do tempo de jogo. A locução propriamente dita é sempre acompanhada pelas imagens do jogo. Mesmo recorrendo a codificações e jargões próprios dessa modalidade discursiva, a obrigatoriedade de falar em primeira mão, em tempo real, abre um grande espaço para a manifestação da subjetividade do locutor, que se coloca como sujeito em sua fala, relativizando os rígidos controles institucionais sobre o discurso jornalístico (como a obediência aos manuais de redação e estilo), que tentam, a todo custo, “esconder” a subjetividade do enunciador, proibindo que se usem determinados termos que explicitariam juízos de valor ou posições pessoais do jornalista, como ressalta Antônio Fausto Neto: “Segundo as regras [...], o jornalista é destituído de subjetividade, não porque não seja um ser pensante, não tenha desejo, mas porque não deve usar marcas linguísticas que deem conta dessas suas possibilidades” (1991, p. 40). Na transmissão de jogos de futebol, a maneira mais evidente de manifestar a subjetividade do locutor seria pela torcida pessoal deste por um dos times em campo. Em geral, o locutor evita demonstrar sua preferência por um time, a não ser quando a transmissão visa a um público específico. Por exemplo, em um jogo entre Cruzeiro e Flamengo transmitido por rádio apenas para Minas Gerais, não há problema algum no fato de o locutor “torcer” desbragadamente para o time mineiro (inclusive, todos os ouvintes que acompanharem a transmissão em Minas Gerais esperarão isso dele). Em uma transmissão para todo o território nacional, como frequentemente é o caso das transmissões de futebol na televisão, a “neutralidade” é a regra. Na Copa do Mundo, porém, todos os torcedores do país têm um mesmo time – a seleção brasileira –, e não há problema algum na parcialidade do locutor. O seguinte trecho, transcrito da narração de Paulo Stein, na Rede Manchete, a respeito do momento da entrada em campo

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das duas equipes, é particularmente ilustrativo dessa espécie de “parcialidade consentida”: Existem momentos que ficam gravados na vida da gente. Fica na sua lembrança, na sua memória, no seu coração. Imagina da gente, que é tão torcedor quanto você, que é tão emotivo quanto você, que é tão brasileiro quanto você, e que tem ainda a possibilidade de, além de estar no estádio para ver a final, poder falar e gritar ‘gol’ alto.

Juarez Soares, o “China”, comentarista do SBT, após a derrota, também evidencia a duplicidade de papel de jornalista e de torcedor, nos seguintes termos: [...] há uma tristeza que a torcida brasileira, eu compreendo, tá sofrendo e nós todos aqui, evidentemente, porque somos jornalistas, né, e ademais de jornalistas somos torcedores da seleção brasileira, há evidentemente a tristeza que a gente entende.

A subjetividade dos locutores e comentaristas fica evidenciada em alguns “atos falhos” cometidos por eles nas transmissões pesquisadas. Por esse termo, Freud (1970a, pp. 208-9) refere-se a lapsos de linguagem, esquecimentos ou perdas de objetos e outros pequenos “enganos” que ocorrem na vida cotidiana e “exprimem impulsos e intenções que devem ficar ocultos à própria consciência, ou emanam justamente dos desejos reprimidos” (1970b, p. 36). Utilizo aqui essa importante noção oriunda do campo da psicanálise, latissimo sensu, para evidenciar alguns desses “enganos”. Por exemplo, ao falar do apoio da imprensa e da torcida francesas à sua seleção, Juarez Soares referiu-se às manchetes dos jornais franceses: “Hoje todas as manchetes francesas diziam: ‘Allez, les bleus!’ – ‘À frente, brasileiros!’ – ‘À frente, franceses!’, perdão!”.

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Durante a entrega das medalhas de prata aos jogadores brasileiros pelo segundo lugar na competição, Luiz Alfredo, da Rede Record, também se “enganou”: “O primeiro-ministro da França está vendo os brasileiros recebendo a taça, recebendo a medalha de prata”. Esses curiosos exemplos demonstram a possibilidade de manifestação subjetiva do enunciador (em princípio, um “jornalista”) nas locuções ao vivo de jogos de futebol. Assim, livre das peias jornalísticas, o discurso do locutor de um jogo de futebol da seleção em uma Copa do Mundo torna-se uma fonte oral rara dentro do campo discursivo jornalístico, permitindo uma análise dos mecanismos de articulação de significado e, por conseguinte, de definição de realidade, não apenas dos fatos do jogo, mas de tudo o que de simbólico um jogo da seleção na Copa representa para a sociedade brasileira. A decisão da Copa do Mundo de 1998 Antecedentes: o surto de arrogância nacional No dia 12 de julho de 1998, bilhões de pessoas em todo o mundo se prepararam para assistir à partida final da Copa do Mundo, entre Brasil e França. O Brasil, então detentor do título, era considerado unanimemente pela imprensa brasileira o favorito, após vencer a seleção da Holanda nos pênaltis. À França eram atribuídas as vantagens de jogar “em casa” e o chamado “efeito Marselhesa”, uma vantagem psicológica, o brio despertado nos jogadores franceses (e o consequente temor provocado nos brasileiros) pela execução do famoso hino nacional francês por um estádio lotado de franceses. No que dependesse de futebol, o discurso jornalístico não deixava dúvidas: o Brasil era infinitamente superior, mesmo que a França tivesse feito uma campanha impecável. A campanha do Brasil, entretanto, havia sido irregular;

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a seleção sofrera uma derrota na primeira fase e tivera dificuldades para vencer adversários considerados fáceis, como a Escócia e a Dinamarca. Contra a Holanda, um dramático empate no tempo normal e na prorrogação levou a decisão para os pênaltis, quando duas defesas de Taffarel classificaram o Brasil para a final e tornaram possível a luta pela conquista de um título inédito: o pentacampeonato mundial de futebol. Se a imprensa mostrava-se crítica com relação ao time de Zagallo durante a competição, após o jogo com a Holanda o patriotismo mais desbragado invadiu os jornais, revistas e telejornais, contagiando as ruas. Um outdoor veiculado nesse período dizia “Está na hora dos [sic] franceses tomarem um banho”, tanto fazendo uma referência preconceituosa baseada no estereótipo acerca dos hábitos higiênicos dos franceses quanto aludindo à expressão “banho de bola”, significando uma derrota vexatória. Em outro, a chamada “O goleiro deles já está careca de medo” aludia à calvície do goleiro francês Fabien Barthez, considerada efeito do medo de enfrentar a seleção brasileira. Vários comentaristas esportivos aludiram à partida entre Brasil e Holanda como a “verdadeira” final da Copa, ou seja, o jogo entre os dois melhores times, já que as equipes da outra chave (França e Croácia) não representavam uma real possibilidade de vitória na competição. Do dia 7 de julho (dia do jogo com a Holanda) ao dia 12, esta foi a tônica do discurso midiático, jornalístico e publicitário. Nos termos do jargão esportivo, um clima de “já ganhou” tomou conta do país, versão dominante com relação à expectativa para o jogo final da Copa de 1998. A misteriosa escalação de Ronaldo Cerca de uma hora antes do início do jogo decisivo da Copa do Mundo, os locutores e comentaristas das diversas emissoras tiveram acesso à lista oficial da FIFA com os jogadores escalados para o jogo, titulares e reservas. Nessa lista, o nome de Ronaldo,

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centroavante titular da seleção brasileira, escolhido por duas vezes o melhor jogador do mundo, constava como reserva, tendo sido escalado Edmundo em seu lugar. A notícia surpreendeu a todos os jornalistas, e as versões mais disparatadas foram aventadas para explicar o fato. Pouco tempo depois, uma nova lista de escalação foi divulgada, com Ronaldo como titular, sem maiores comentários. A dança das versões nesse episódio demonstra de modo muito claro a construção de uma noção de realidade pelo discurso jornalístico. Quase ao mesmo tempo, dezenas de repórteres em campo tentavam obter qualquer razão para o que estava acontecendo, e cada emissora tinha sua explicação para a misteriosa troca de nomes. Galvão Bueno, da Rede Globo, creditava o episódio a um “terrível engano ou uma brincadeira de mau gosto”. O repórter de campo da Rede Bandeirantes aventava três versões que ele recolhera próximo à delegação do Brasil (que estava trancada nos vestiários, incomunicável): um misterioso remédio que Suzana Werner (então namorada de Ronaldo) teria dado ao jogador ao chegar ao estádio, o que poderia criar problemas no exame antidoping; um engano “puro e simples”; ou, ainda, a demora no resultado do exame pela junta médica que liberou o jogador antes de chegar ao estádio. Segundo Silvio Luiz, locutor do SBT, “deve ter sido a burrice de algum funcionário da FIFA”. O império da boataria chegou mesmo ao Brasil, onde um apresentador do SBT definiu a questão da escalação de Ronaldo em termos de “certeza”, insinuando até uma intencionalidade possível, uma espécie de golpe de efeito moral contra os adversários: “Já temos uma certeza: o que houve foi um erro do Zagallo no preenchimento da ficha. Se foi um erro pela emoção, tudo bem. Se foi um erro de cabeça pensada, foi um golpe maravilhoso”. O episódio e suas risíveis versões concorrentes (aliás, nenhuma foi confirmada) evidenciam uma característica do discurso jornalístico: nenhum fato pode ficar sem explicação, as causas dos eventos devem ser sempre conhecidas. Essa necessidade tornou-se

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mais imperiosa pelo fato de todas as emissoras estarem transmitindo o evento ao vivo e fez com que qualquer explicação cumprisse essa função, permitindo que boatos fossem veiculados à guisa de causa do fato. A propósito, o complexo episódio envolvendo a escalação de Ronaldo continua até hoje sem uma explicação convincente, apesar das várias reportagens e programas especiais sobre o assunto. Um ano após a Copa, em junho de 1999, a revista Placar publicou uma reportagem (anunciada na capa) sobre o tema, significativamente intitulada “A verdade”, título que demonstra tanto o poder/desejo de definição da realidade por parte do discurso jornalístico quanto a descrença no campo da recepção decorrente das (muitas) versões apresentadas como “a verdade” sobre o episódio. Galvão Bueno e a conspiração da arbitragem Resolvido (aparentemente) o problema da escalação de Ronaldo com a apresentação da segunda súmula, os locutores das diversas emissoras passaram a comentar as circunstâncias do jogo propriamente dito, como o público presente ao estádio, especulações sobre o resultado e o currículo dos árbitros, entre outros assuntos. Ao falar do trio de arbitragem, Galvão Bueno, o locutor da Rede Globo, declarou sua suspeita sobre a escalação do árbitro marroquino Said Belqola, em virtude dos “fatos” de ele (entre outros idiomas) falar francês e de sua família residir na França, insinuando que, se ele apitasse contra a França, seus filhos sofreriam represálias na escola. Tal temor o levaria a ser parcial, de modo a prejudicar a seleção brasileira. A suspeita de Galvão Bueno também recaiu sobre o auxiliar inglês Mark Warren, de maneira ainda mais confusa. Segundo o locutor, o simples fato de o auxiliar ser inglês já era motivo suficiente para a desconfiança, como manifestou no caso de uma bola dividida em uma cabeçada entre o jogador brasileiro Leonardo e um defensor francês. A bola saiu

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pela linha de fundo e foi interpretada como tiro de meta (Galvão Bueno achou que deveria ter sido escanteio): Não tô falando? Said Belqola, o árbitro, e esse inglês, Mark Warner (sic). Se esse inglês tiver, por exemplo, o mesmo sentimento que o locutor da TV inglesa que a gente andou vendo aqui no jogo Brasil e Holanda, ele parecia holandês desde nascença. O que gritava, o que esbravejava, o que torcia para a Holanda, no sentimento europeu. Vamos ver como é que as coisas acontecem daqui pra frente.

Alguns minutos depois, uma bola a meia altura foi dividida pelo lateral francês Lizarazu, com a cabeça, e pelo lateral brasileiro Cafu, com o pé. Mark Warren, ao lado do lance, interpretou a jogada como uma falta – jogo perigoso – por parte do brasileiro, dando vantagem ao jogador francês. Foi o suficiente para desencadear outra catilinária de Galvão Bueno: Esse bandeira inglês, Arnaldo, tá com toda a pinta de estar mal-intencionado. [...] Não tô gostando desse bandeira inglês, não. Dá toda a pinta de estar mal-intencionado, esse Mark Warner (sic), bandeira inglês. Duas intervenções dele muito claras: um escanteio que ele deu tiro de meta e essa bola agora em que ele forçou a barra, deu uma jogada perigosa que não existiu.

Alguns minutos depois desse lance, a televisão francesa mostrou imagens, em câmera lenta, em que o técnico brasileiro Zagallo gesticulava e gritava, mas sem áudio. Bueno dublou a fala do técnico: “Olha o Zagallo aí, o Zagallo tá falando com o bandeira, tá falando no bandeira, você viu ele ali, falando com todo apetite no bandeira inglês, Mark Warner (sic) é o nome dele!”.

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Na verdade, o nome dele é Warren (e não “Warner”) e nada na imagem apresentada indicava o que quer que fosse de alusão ao “bandeira” ou a qualquer outro tema; era simplesmente uma imagem em câmera lenta do técnico gesticulando e gritando. Como em outros momentos, foi mostrada a imagem do técnico francês, Aimé Jacquet. A imagem é a mesma, mas sua interpretação articula a ela um sentido que define uma versão de realidade à qual ela acaba se referindo. É oportuno comentar que nenhum dos demais locutores deu maior atenção ao lance entre Cafu e Lizarazu, nem ao anterior. Por exemplo, Silvio Luiz, do SBT, comentou a sequência da jogada, na qual o jogador francês, desequilibrado após a disputa da bola, caiu sobre a bandeirinha (flexível) de escanteio: “Tá vendo a vantagem da bandeirinha não ser de madeira? Senão o rapaz tinha se machucado [...]”. Outra comparação que contradiz a versão de Bueno acerca da interpretação da disposição da arbitragem para com a seleção brasileira é o comentário de Juarez Soares (SBT) sobre a atuação do mesmo Mark Warren em um impedimento duvidoso do ataque francês no segundo tempo: “Esse bandeira daqui é nosso! Pode ficar sossegado, porque ele é. Ôpa! Pode ficar sossegado!”. Na sequência do jogo, os gols da França mudaram a ênfase de Galvão Bueno sobre a conspiração da arbitragem, e ele não falou mais no assunto, até o fim do jogo. O jogo Um breve resumo do jogo decisivo da Copa de 1998 ajudará a situar o contexto discursivo dos locutores e comentaristas. A partida esteve equilibrada até os 27 minutos do primeiro tempo, quando, em uma cobrança de escanteio, o atacante francês Zidane fez 1 a 0 para a França. No final do primeiro tempo, aos 46 minutos, Zidane, em outra cobrança de escanteio, ampliou o

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marcador: 2 a 0. No segundo tempo, a seleção brasileira atacou o tempo todo, mas sem sucesso. No final do jogo, aos 47 minutos, um rápido contra-ataque resultou no terceiro gol da França, com Petit fazendo 3 a 0, completando o escore da partida. Até o primeiro gol da França, o discurso dos locutores aludia a um jogo equilibrado, com certa vantagem dos brasileiros, apesar de a França se mostrar mais consistente no ataque. É natural que a França venha para cima no começo do jogo. [...] Está ainda meio assustado o time brasileiro com o grito da torcida francesa, mas esse nervosismo no início é absolutamente normal, o Brasil joga na casa do adversário. [...] O negócio é botar pressão pra cima deles, fazer essa camisa amarela crescer, que aí eles sentem! (Galvão Bueno, Globo, 5 minutos do primeiro tempo) O Brasil tá começando a botar os nervos no lugar. Aquela euforia do time francês parece que baixou um pouco (Silvio Luiz, SBT, 15 minutos do primeiro tempo). Uma coisa a gente percebe: a seleção brasileira tem tranquilidade para tocar a bola (Paulo Stein, Manchete, 16 minutos do primeiro tempo). Vai bem a seleção, vamos tomando conta do jogo. [...] Cada vez vai se acertando mais a seleção brasileira (Luciano do Valle, Bandeirantes, 19 minutos do primeiro tempo).

Uma jogada perigosa do ataque brasileiro aos 20 minutos do primeiro tempo aumenta o otimismo do discurso dos locutores: Barthez falhou! O Bebeto ia pedindo o gol, porque a bola ia escapando da mão do Barthez em cima da linha! Esse goleiro está louquinho pra entregar essa Copa do Mundo! Escrevam aí o que

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eu estou dizendo: ele está louquinho pra entregar essa Copa do Mundo! (Galvão Bueno) Tá começando a abrir, esse francês, tá começando a abrir, esse goleiro francês! (Silvio Luiz) [Juarez Soares, na sequência:] O time da França é fraco. Se o Brasil tivesse um pouquinho mais de entrosamento e confiança, o Brasil já era pra ter feito o gol.

O primeiro gol da França, aos 27 minutos do primeiro tempo, começa a mudar o tom do discurso dos locutores e comentaristas com relação ao desempenho da seleção, em particular no aspecto da atribuição individual da “culpa” pelo gol ao jogador brasileiro Roberto Carlos, que cedeu um escanteio, quando teve a chance de jogar para a lateral. Da cobrança do escanteio, resultou o gol: A França faz o gol, a situação fica mais difícil, mas ainda tem um século de jogo ainda, e o Brasil quando joga atrás, é um time que cresce muito. Quando tá 0 a 0, fica naquele nhém-nhém-nhém. Tomou o gol, você vai ver que o Brasil vai crescer e vai pra cima da França. Uma besteira do Roberto Carlos, pra que fazer aquela besteira que ele fez lá no escanteio? (Juarez Soares) Copa do Mundo é coisa séria! Final de Copa do Mundo é coisa muito séria! Não é lugar de gracinha e de malabarismo! Na tentativa de malabarismo, em vez de lateral, pintou um escanteio, o que aconteceu? Cabeça de Zidane, bola no chão, gol da França (Galvão Bueno).

Aos 32 minutos, um violento choque entre o atacante Ronaldo e o goleiro Barthez (considerado acidental por quase todos os locutores) foi descrito como uma agressão torpe do goleiro francês pelo locutor Luiz Alfredo, da Rede Record:

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E ele não aliviou não, o Barthez, hein? Esse mascarado desse goleiro francês não aliviou, não. Olha depois como ele ainda dá uma empurrada no estômago do Ronaldinho. O encontro dos dois foi puramente casual (Paulo Stein).

No último minuto do primeiro tempo, o segundo gol da França, em circunstâncias quase idênticas às do primeiro, refreou o otimismo dos locutores: Está irreconhecível a seleção brasileira! (Luciano do Valle) Já vi essa seleção brasileira crescer em situações difíceis. Já vi essa seleção brasileira crescer pra cima da Itália perdendo por 2 a 0, virar jogos importantes. Agora, andar assim de cabeça baixa, sair de cabeça baixa desse jeito, não ter gente que vá buscar a bola dentro do gol, que pegue a bola, que traga pro meio, que grite, que diga: ‘Vamos lá, vamos fazer!’. Desse jeito, saindo de campo assim, dessa forma, a coisa fica muito complicada, porque é preciso é muita raça, é preciso é muita garra, é preciso é muita vontade para poder virar o jogo que se está perdendo de 2 a 0. Tocando bola daqui pra lá, dando bicicleta e fazendo graça não se vira jogo nenhum, e muito menos final de Copa do Mundo quando se está perdendo de 2 a 0 (Galvão Bueno).

No segundo tempo, o ataque constante do time brasileiro fez voltar o otimismo abalado pelo placar: É uma final de Copa, tudo é possível, são detalhes [...] O time da França está todo apertado, ali, todo apavorado, o Aimé Jacquet manda o time sair (Luciano do Valle, 1 minuto do segundo tempo).

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Eles tão realmente encurralados com a pressão do Brasil no segundo tempo (Silvio Luiz, 3 minutos do segundo tempo). Fico triste de não ver uma camisa em verde-amarelo se mexendo no estádio. Na hora em que o Brasil tá apertando, que tá indo pra cima. E o Roberto Carlos tá aí: ‘Vamo, vamo!’. Pedindo, pedindo garra, e só o torcedor francês que está se manifestando no estádio (Galvão Bueno, 25 minutos do segundo tempo). A torcida francesa sente que sua seleção está em apuros (Luciano do Valle, 25 minutos do segundo tempo).

À medida que o tempo vai passando e o tão esperado gol da seleção brasileira não acontece, a esperança começa a dar lugar à resignação, buscando salientar algum aspecto positivo possível naquelas circunstâncias: Mesmo que não consiga, o Brasil é valente, é o único a ser tetracampeão no final deste século, mas ainda busca o penta (Galvão Bueno, 35 minutos do segundo tempo). Pelo menos, viu, Ratinho, tem dois sorteios depois do jogo, um caminhão e uma casa no valor de 50 mil reais. (Luiz Alfredo, 40 minutos do segundo tempo). [Ratinho responde na sequência:] Pois é, viu, eu queria falar procê, eu ia falar: ‘Grande merda!’, mas eu não vou falar, né? O Djorkaeff tá desesperado, você vê, tá 2 a 0 e ainda tá desesperada a França, você vê o respeito que a França tem pelo Brasil. Estão desesperados, querendo que acabe o jogo (Luciano do Valle, 46 minutos do segundo tempo).

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[Com relação à mesma imagem em que Luciano do Valle viu o ‘desespero’ dos franceses, Luiz Alfredo comentou:] começam a se abraçar e a comemorar os jogadores franceses.

Quando o jogo terminou, alguns segundos após o terceiro gol da França, todos os locutores e comentaristas fizeram suas avaliações a respeito da partida e de suas consequências, procurando, de alguma maneira, consolar o telespectador, enquanto as imagens mostravam os jogadores brasileiros aos prantos, desolados, sentados no gramado, contrastando fortemente com a transbordante alegria dos jogadores e da torcida franceses. Palavras de consolo Milhões de torcedores em todo o Brasil ficaram decepcionados com o resultado do jogo, o que se deveu, em grande parte, à expectativa criada em torno dele pelo discurso da mídia: tanto na publicidade quanto na opinião dos especialistas, a imprensa esportiva, desde a suada vitória nos pênaltis sobre a Holanda, decidira que o jogo contra a França ia ser fácil. O comentarista da Rede Globo, Arnaldo César Coelho, chegou a falar em “goleada” do Brasil pouco antes de a notícia da ausência de Ronaldo tumultuar o discurso da imprensa. Frente à expectativa frustrada, enquanto a televisão francesa mostrava a festa de seus campeões, cada locutor ou comentarista tratava de, em longas falas, consolar a audiência de diversas maneiras. Uma estratégia de consolo muito adotada foi a de comparar a seleção com outras grandes seleções que não chegaram à final. Galvão Bueno nem esperou o jogo acabar: a 41 minutos do segundo tempo, já começou a deixar de narrar o jogo para “contar uma história”:

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É muito importante já ir contando aqui uma história. Que o importante, realmente, todo o mundo quer é vencer, é claro. Mas, numa Copa do Mundo, quantos ficaram pelo caminho. A Argentina que ficou, a Inglaterra que ficou já nas oitavas, a Espanha que sequer passou da primeira fase, a Inglaterra que ficou nas oitavas de final. Depois, nas quartas de final, nós tivemos a Argentina caindo pelo caminho, a Itália caindo pelo caminho nas quartas de final, a Holanda ficou na semifinal, e o Brasil chegou pra jogar essa final contra a França. No detalhe de dois gols sofridos em cobranças de escanteio. Isso não quer dizer que a seleção brasileira – é claro – jogou bem? Não, não jogou bem. Está ganhando o título? Não, é claro, não está ganhando. Mas isso não quer dizer que a seleção brasileira de repente passe de uma seleção de heróis pra uma seleção de covardes ou de fracos. Longe disso, isso não existe. [...] Ninguém vira de herói pra bandido de uma hora pra outra porque perdeu o jogo. Continua a minha opinião: foi valorosa, pode não ter sido brilhante, mas foi valorosa, teve méritos pra chegar à final e foi valente na final a seleção brasileira.

Em seguida, Galvão Bueno credita à seleção brasileira o resultado de uma bem-sucedida construção de audiência por parte da mídia. A seleção fez sua parte, jogou futebol e venceu vários jogos, mas o incêndio do país deve-se à definição de realidade perpetrada pela mídia, mais do que a uma campanha empolgante do time brasileiro: “Pode não ter sido fenomenal a campanha brasileira, mas como incendiou o país, como animou o torcedor, como fez a festa aqui na França, e o Brasil chega à grande final, os franceses estão esperando aí pra comemorar”. A sombra da outra derrota brasileira numa final de Copa do Mundo, em 1950, também se fez sentir, embora seja sumariamente negada pelo locutor da Rede Globo:

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É um esporte, se ganha, se perde. Tira 50, quando era um torneio, que chegamos ali com o Uruguai em chance de decidir, depois disso, o Brasil foi a cinco finais, ganhou quatro, conhece a derrota pela primeira vez numa final, e a derrota às vezes traz muito ensinamento. Façam festa, franceses, vocês merecem. Pra seleção brasileira, a gente teria que dizer: [pausa] Valeu, Brasil, valeu! [Entra em cena um VT previamente editado para veiculação em caso de derrota. As imagens mostram cenas das campanhas vitoriosas do Brasil em Copas do Mundo e, no final, cenas de um jogo de futebol de várzea.] Locução: Valeu, Brasil! A imagem que fica do nosso futebol é essa: afinal, somos os melhores do século. Seremos sempre o país do futebol. Bola pra frente! A Globo é mais Brasil!

Percebe-se no encadeamento da fala de Galvão Bueno o ponto de chegada previamente determinado, a deixa para a entrada do VT já editado. Com toda a certeza, se o Brasil tivesse vencido, outro VT já estaria pronto para ir ao ar, com outra deixa já anotada para o locutor. Quando a locução em off fala em “imagem que fica”, refere-se também à definição de realidade na impressão causada aos outros, os demais países do mundo, por nosso desempenho no campo de futebol. A incorporação metonímica do “povo brasileiro” a seus jogadores fica evidenciada no uso da primeira pessoa do plural, em flexões do verbo “ser”: “somos” e “seremos”. Luciano do Valle, em sua fala, deixa praticamente de lado o futebol e aponta o amadurecimento da torcida, metonímia do povo brasileiro, em evolução rumo ao que ele chama de “um novo Brasil”: A torcida brasileira num comportamento exemplar, mostrando que o brasileiro amadurece a cada dia que passa. É um novo Brasil. Em todas as reações, é um novo Brasil. Espero que no nosso

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país a gente tenha calma suficiente para entender, pra esfriar a cabeça, que ganhar sempre é impossível, e nessas derrotas muito honrosas, porque afinal de contas chegamos à final da Copa, aqui passaram 32 seleções e só duas chegaram à final e nessas duas estava o Brasil, entre as duas estava o Brasil. Então é isso que a gente tem que ter, cabeça fria, no lugar, porque o que vale é o gesto, a compreensão e o lado esportivo.

Nessa fala, percebe-se também o motivo da honra, que se assegura não ter sido perdida, além do apelo ao chamado espírito esportivo; recorre-se à racionalidade para manter uma atitude serena frente à derrota, quando se fala em compreensão, cabeça fria e no lugar. O apelo à racionalidade (nesse caso, uma espécie de antítese da paixão) e a definição assertiva de que a honra nacional não foi ameaçada, bem como o apelo ao espírito esportivo, também estão presentes na fala de Juarez Soares, comentarista do SBT, que procura desinvestir a seleção brasileira dos atributos simbólicos da nacionalidade, tratando-a apenas como um time de futebol, racionalizando, dessa maneira, a questão: O Brasil perdeu. Perder um jogo de futebol, uma Copa do Mundo, é motivo de tristeza para qualquer país, ainda mais o país nosso, que é o país do futebol. Mas não é motivo de catástrofe, de vida e morte. Eu sou daqueles que participa da ideia de que o Campeonato Mundial de Futebol e o futebol não é [sic] a pátria de chuteiras. É um campeonato, onde se ganha, se perde e se empata. O Brasil nesse campeonato perdeu duas partidas, empatou uma e ganhou as outras. [...] Se nós considerarmos que um vice-campeonato é honroso para qualquer seleção, o segundo lugar é uma posição digna para a seleção brasileira, por que não? Nós, brasileiros, é que não estamos acostumados com isso, mas eu acho que esta Copa mostrou que a gente precisa se acostumar de saber que chegar em segundo lugar sempre é um motivo de

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honra, evidentemente. [...] Essa mensagem, se me fosse permitido, nessa conversa, mais do que uma mensagem para a torcida brasileira, é dizer isso: não há nenhum motivo para desespero, não houve nenhum terremoto, né, a nossa nacionalidade, a nossa brasilidade não foi afetada em absolutamente nada. O Campeonato Mundial é um campeonato mundial de esporte, onde o Brasil chegou em segundo lugar e ponto final.

Luiz Alfredo, locutor da Rede Record, optou por fazer do elogio do adversário o mote de sua fala, em que relaciona diretamente o jogo de futebol à própria essência da nacionalidade (ao contrário da argumentação anterior): A França tem mais de mil anos de diferença em relação ao Brasil, nós somos um país jovem, nós precisamos construir muito o Brasil, na base da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Não só na Copa do Mundo, não só na Copa do Mundo, a gente tem capacidade pra isso. [...] Eles tiveram a humildade de aprender futebol com a gente, nós temos que ter a humildade de aprender com eles a sermos uma grande nação, e nós vamos ser.

Ao atribuir um significado para a derrota, o locutor não deixa de mostrar uma contradição entre o discurso consolador, de que ser segundo lugar também é bom, e outro, que acredito ser mais próximo do sentimento do locutor, de que perder é muito ruim. Aqui, a derrota é vista como um trauma, um ferimento (talvez na honra nacional), do qual o locutor espera que o futebol brasileiro se recupere: “O futebol brasileiro vai se recuperar desse vice-campeonato. [Breve pausa.] É uma conquista, de certa forma...”. Já Paulo Stein, da Rede Manchete, fez da exaltação dos aspectos educativos e morais do “mundo encantado” do esporte e de sua relação com a condição humana o centro de sua fala, lou-

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vando a integração das diferenças promovida pela Copa do Mundo, evitando falar do jogo recém-terminado e da seleção brasileira. Como se diz cotidianamente, “desconversou”: O esporte é um mundo encantado, que nos ensina a ganhar e nos ensina a perder. Que torna o homem mais compreensivo, que torna o homem mais ser humano, que torna o homem mais voltado pra dentro de si, mais voltado pro comportamento da humanidade. É o entrelaçamento de ideologias, de raças, de religiões, nós vimos mesmo, nesta Copa do Mundo, o confronto entre Estados Unidos e Irã, quem diria? Só o esporte é capaz disso. De colocar amistosamente, dentro do campo, dentro de uma quadra, antagonistas de religiões, de ideias, e encontrar nesse convívio uma imensa alegria.

Essa fala, fortemente carregada de conteúdo ideológico (como as demais, diga-se de passagem), busca consolar o telespectador ao demonstrar a trivialidade da recente derrota quando vista das alturas do mundo encantado do esporte, louvável e altruísta, que humaniza o próprio homem, sendo o convívio lúdico com o outro uma atividade que possibilita imensa alegria. Ora, nessa perspectiva, o que são meros 3 a 0? Enfim A leitura dos dados provenientes das locuções esportivas da partida de futebol considerada neste artigo aponta algumas direções a respeito das representações veiculadas pelos locutores em sua definição da realidade acerca dos fatos do jogo. Em primeiro lugar, a evidente parcialidade (assumida, inclusive) desse discurso, que o distancia dos cânones da chamada “neutralidade jornalística”. Essa parcialidade se manifesta no enfoque dado aos fatos do jogo: em caso de qualquer possibilidade de dúvida ou ambiguidade, o

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enunciador “vê” (e, na qualidade de locutor, “fala”/“define”) uma conspiração estrangeira contra o “nosso” time. O fato de os demais locutores nada dizerem sobre tais “conspirações” apenas confirma o caráter eminentemente subjetivo de tal definição da realidade. Em segundo lugar, a motivação e o favoritismo do Brasil para esse jogo foram construídos, em grande parte, pela mídia, visando (como de praxe) otimizar o índice de audiência, que reverte imediatamente em lucro para as emissoras. Assim, a expectativa inicial de uma vitória por goleada teve de ser manejada minuto após minuto, sob a forma de um otimismo que começou a tropeçar na confusão gerada pela notícia da não escalação de Ronaldo, seguida por seu desmentido, em uma dança de versões concorrentes e contraditórias que, ao chegar a hora do jogo, não permitia mais arroubos de ufanismo. Durante o jogo, o otimismo foi esfriando, e, articulados aos fatos do jogo, os discursos dos locutores foram passando da confiança e do otimismo absolutos até a reserva e a resignação, ao seu final. Cabe notar que, em nenhum momento, qualquer dos discursos resvalou para a acusação e a culpabilidade, a não ser, talvez, apontar o jogador considerado culpado em algum lance, mas jamais se criticou a seleção brasileira ou o técnico Zagallo (durante o jogo, é claro; posteriormente, a imprensa não poupou ninguém). Afinal, estavam todos comprometidos com as palavras ditas no jogo anterior, em que Zagallo fora incensado, e os jogadores, idolatrados. Consumada a vexatória derrota, a maior de todos os tempos, restou aos locutores transmitindo ao vivo a festa da vitória adversária o dever autoimpingido de “consolar” os telespectadores. Cabe aqui uma exposição dos principais argumentos empregados para esse “consolo”. A questão da “honra nacional” foi a tônica de várias falas, que garantiram unanimemente que esta em nada havia sido abalada, em termos como “respeito”, “brasilidade” e “derrota honrosa”. Esse argumento se articula com a relação frequentemente estabelecida entre a seleção brasileira e a nação

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brasileira, ou o “Brasil”, sendo esse time de futebol uma espécie de “metonímia” da nação, outro motivo frequente nas falas analisadas, que se referem a um projeto nacional em constante evolução – que o futebol brasileiro representa –, referido, por exemplo, quando se fala que “é um novo Brasil” ou em “aprender a sermos uma grande nação”. A dimensão passional da nacionalidade que o futebol representa, em outro argumento utilizado, deve ser negada, justamente separando-se o “nacional” do “mero jogo”. Nesse sentido, apela-se para a racionalidade como possibilidade de distanciamento do sofrimento, nega-se o envolvimento afetivo com o esporte, a paixão do jogo, quando se fala em “esfriar a cabeça”, “manter a cabeça no lugar” e “compreensão”. Igualmente, as negações da magia do jogo: afinal de contas, é apenas um jogo de futebol, “um campeonato de es-por-te”, com as sílabas bem separadas, para ficar bem claro. Outra linha de argumentação que complementa essa é o apelo ao espírito esportivo. De acordo com os ideais de nobreza desinteressada (como os ideais olímpicos do Barão de Coubertin), deve-se jogar lealmente, ser humilde na vitória e sereno na derrota, afinal de contas, “o importante é competir”. Esse apelo à nobreza dos ideais esportivos, manifesto por certo desinteresse, é apontado por Bourdieu como “uma dimensão fundamental do ethos das ‘elites’ que sempre se vangloriaram de desinteresse e se definem pela distância eletiva [...] em relação aos interesses materiais” (1983b, p. 139). Essa lógica olímpica consola, à medida que distancia o evento em questão, fonte de sofrimento, ao colocá-lo em perspectiva com coisas mais nobres, como a humanidade, ou o “entrelaçamento de raças, ideologias e religiões” promovido pelo esporte. Finalmente, o grande consolo: somos os melhores do século. Cabe ressaltar que a organização do futebol como o conhecemos hoje tem pouco mais de cem anos, e que a Copa do Mundo (torneio que permite provar essa arrogante afirmativa) só começou a ser disputada em 1930. Nessa perspectiva, ser o melhor do século equivale a ser o melhor

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de todos os tempos. Graças ao título mundial de 1994, fomos salvos da derradeira humilhação: ter sido superados no número de títulos mundiais. Um anúncio publicitário veiculado nos jornais na segunda-feira após a derrota afirmava, nesse sentido: “Tudo bem. Ninguém ainda é tetra”. Esse título foi, na verdade, o grande relativizador, o lastro derradeiro da frágil autoestima nacional manifesta nas locuções analisadas. A vitória de 1994 foi acionada como nosso grande princípio identificador. Na Copa de 2002, as cotas de publicidade demoraram a ser negociadas, faltando empresas dispostas a gastar em um empreendimento tão arriscado até poucos dias antes da competição. O slogan do principal patrocinador, humildemente, pedia fé aos torcedores: Bote fé na seleção. Referências BETTI, M. Violência em campo – dinheiro, mídia e transgressão às regras no futebol espetáculo. Ijuí: Ed. Unijuí, 1997. BOURDIEU, P. “A economia das trocas linguísticas”. In ORTIZ, R. Sociologia. São Paulo: Ática 1983a. ——. “É possível ser esportivo?”. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983b. ECO, U. “A falação esportiva”. Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. FAUSTO NETO, A. Mortes em derrapagem. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1991. FREUD, S. “A psicopatologia da vida cotidiana”. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1970a, v. VI. ——. “Cinco lições de psicanálise”. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1970b, v. XI.

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O debate acadêmico sobre identidade e esporte no Brasil tem no futebol um campo fértil para as análises das narrativas em torno de discursos nacionalistas e dramas sociais que são produzidos pelos meios sobre esse fenômeno. O enquadramento adotado pela mídia acaba por representar um momento vivenciado pela sociedade. É necessário ressaltar, desde logo, que os indivíduos podem reelaborar os sentidos das notícias passadas pelos meios de comunicação (dados os diferentes repertórios culturais que os receptores apresentam, distintos processos de decodificação das mensagens são acionados). Mas é igualmente certo que as visões de parcelas significativas da opinião pública em sociedades altamente midiatizadas – como a brasileira – são, em alguma medida, influenciadas pelos enquadramentos utilizados pelos veículos de comunicação ao tratarem de determinada questão. A comunicação, portanto, deixa de ser entendida como mero instrumento e passa a ser vista como ambiente de ação.

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Configura-se como a principal arena na qual se travam as discussões sobre os temas considerados relevantes – e acaba por ocupar, também, papel importante nos processos de construção de significados sobre a realidade. Enquanto geradora de discursos que trazem consigo determinadas representações do real (marcadas pela apresentação de enfoques específicos, dentre muitos outros possíveis), a mídia interfere nas relações sociais. Logo, as relações de identificação são, mesmo que parcialmente, influenciadas pelos veículos – principalmente de indivíduos ou grupos que dependam excessivamente das informações provenientes da comunicação de massa. O futebol é uma das manifestações culturais mais expressivas da sociedade brasileira. De acordo com Helal, “por meio desse esporte, experimentamos um sentido singular de totalidade, revestindo-se de uma universalidade capaz de mobilizar e gerar paixões em milhões de pessoas” (2011, p. 69). Um fenômeno no qual podemos buscar maior compreensão sobre quem somos e o que queremos ser. Entre os meios de comunicação, os jornais impressos ainda possuem um grande alcance entre os leitores e ajudam a plasmar realidades com o enfoque de suas coberturas. São fontes de pesquisadores de diferentes áreas para estudar o tema da construção nacional. Se os jornais ratificam e constroem mitologias e discursos identitários, apesar da objetividade jornalística – que se constitui num dos pilares da profissão –, a imprensa esportiva atua como formadora de cultura. A Copa do Mundo de 2002, a primeira disputada em dois países-sede (Coreia do Sul e Japão), alterou a cobertura dos jornais brasileiros por causa do fuso horário. No dia do jogo, os jornais não davam grande destaque à partida que iria acontecer. Como os jogos ocorriam pela manhã, no horário brasileiro, os jornais chegavam às bancas praticamente no mesmo momento em que a bola rolava. Dessa forma, não fazia sentido trazer

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matérias de como seria o jogo, uma vez que, quando o leitor estivesse com o jornal nas mãos, possivelmente a partida já teria acontecido. Por isso, optamos por dar mais destaque à edição que era publicada no dia seguinte ao jogo do Brasil, apesar de analisar o jornal do dia da final. Além disso, investigamos o contraste de uma seleção com a maioria dos atletas atuando no Brasil e “atletas globais”, como Ronaldo e Rivaldo. Dessa forma, os discursos que a mídia faz sobre um selecionado configuram uma construção de imagem pública que pode contribuir para a identificação ou não com a equipe brasileira. A oferta de determinados sentidos e modelos de interpretação é relacionada aos enquadramentos adotados pelos meios de comunicação e às suas práticas discursivas (que, por sua vez, impactam a percepção de realidade de determinados grupos ou indivíduos e influenciam neles os processos de construção de suas próprias identidades). Diante desses pressupostos, este artigo busca analisar, com base nas coberturas jornalísticas do jornal Folha de S. Paulo, como se construiu a imagem da seleção brasileira na Copa do Mundo de 2002. Japão e Coreia do Sul: dois Orientes, uma Copa O ano de 2002 ficou marcado na memória do torcedor brasileiro como o da conquista do pentacampeonato mundial de futebol. No entanto, outras preocupações tomavam conta das populações brasileira e mundial naquela ocasião. No país, ao mesmo tempo que entrava em vigor o novo Código Civil, o presidente Fernando Henrique Cardoso anunciava o fim do racionamento de energia. O candidato Luís Inácio Lula da Silva enxergava, pela primeira vez, a clara chance de se eleger presidente da República. Os adversários, José Serra e Anthony Garotinho, corriam por fora da disputa que viria a eleger o ex-metalúrgico. Enquanto o escri-

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tor Paulo Coelho tomava posse na Academia Brasileira de Letras, era também comemorado o centenário de nascimento do poeta Carlos Drummond de Andrade. No mundo, a preocupação com um conflito armado de grandes proporções aumentava, principalmente depois que o então presidente americano, George W. Bush, afirmou, durante o Fórum Econômico de Davos, que Irã, Iraque e Coreia do Norte formavam o Eixo do Mal. Enquanto isso, a Guerra do Afeganistão consumia milhões dos cofres americanos, sob a justificativa de encontrar armas nucleares e o terrorista Osama Bin Laden. Ao mesmo tempo que o Brasil descobria novas bacias de petróleo, a economia andava instável, com o dólar chegando a valer três vezes mais que o real. Na Europa, entrava em vigor o euro, moeda que já existia, mas só passou a circular em notas nos 12 principais países da União Europeia a partir de então. Com a economia mundial colocada em xeque, as atenções se voltavam para o Oriente, onde se vislumbravam uma estrutura econômica sólida, sistemas políticos aparentemente estáveis e um mercado consumidor crescente. O futebol não demorou a enxergar ali um campo fértil para a sua cada vez mais necessária expansão. No dia 31 de maio de 2002, França e Senegal entraram em campo para disputar o primeiro jogo de uma Copa do Mundo em território asiático. Mas aquela competição, na verdade, começou exatamente seis anos antes. Em 31 de maio de 1996, em Zurique, na Suíça, o Comitê Executivo da FIFA decidiu, por unanimidade, indicar Japão e Coreia do Sul para dividirem a responsabilidade por sediar o maior evento futebolístico do mundo. Desde a década de 1980, a FIFA já considerava a hipótese de levar para o Oriente a disputa de um Mundial de seleções. A capacidade de organizar grandes eventos já havia sido comprovada com as Olimpíadas de Seul, em 1988, além do Mundial de Clubes, que acontecia anualmente no Japão (mesmo que ainda

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sem a chancela da entidade máxima do futebol). A boa infraestrutura urbana, os estádios e o crescimento das ligas locais eram vistos com bons olhos, assim como a possibilidade de alcançar o mercado consumidor asiático, que representa mais da metade da população mundial. O exemplo da Eurocopa de 2000, sediada simultaneamente na Holanda e na Bélgica, parecia suficiente para comprovar a viabilidade de dividir a competição em dois países. No entanto, no caso dos vizinhos asiáticos, as diferenças históricas seculares causaram alguns desentendimentos. Após disputas políticas acirradas, sempre mediadas pela FIFA, ficou decidido que cada país teria dez cidades-sede. A abertura da competição seria realizada na Coreia do Sul, e a final aconteceria em solo japonês. A pequena distância entre as cidades-sede e a invejável estrutura viária facilitaram o deslocamento das delegações, além de jornalistas, turistas e autoridades. Possivelmente, o maior desafio para os organizadores da competição seria torná-la viável para o restante do planeta, uma vez que o fuso horário obrigaria torcedores europeus e sul-americanos a mudar de hábitos. A diferença entre o horário local da Copa e o da Europa era de oito horas; para a América do Sul, a distância era ainda maior, 12 horas. A decisão aconteceu às 20h de Yokohama, oito da manhã no Brasil. Mas a diferença do fuso não foi o único inconveniente. Normalmente disputada entre junho e julho, o torneio precisou ser antecipado em 15 dias para evitar a coincidência com o período chuvoso na Ásia. Por consequência, o calendário dos clubes precisou ser mais enxuto. Com a atual campeã França já classificada e os países-sede Japão e Coreia já garantidos, sobraram 29 vagas para o Mundial. Ao todo, 193 países disputaram as eliminatórias. Além dos anfitriões, a Ásia teria direito a mais duas vagas, além de uma possível terceira por meio da repescagem com uma equipe europeia.

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O Velho Continente seria representado por 13 países, enquanto a África, por apenas cinco. Três seleções vinham das Américas Central e do Norte e quatro, da América do Sul. O quinto colocado sul-americano ainda teria a oportunidade de disputar uma repescagem contra o campeão das eliminatórias da Oceania. O caminho que sempre pareceu fácil para os brasileiros, desta vez, teria obstáculos maiores do que o normal. O local versus o global: a nossa família é deles também Após a derrota para a França na final do Mundial de 1998, observamos um período de crise no universo da seleção brasileira, a começar pelo número de treinadores. Antes de Luiz Felipe Scolari, o Brasil acumulou fracassos dentro e fora de campo, com Vanderlei Luxemburgo, Émerson Leão e Candinho. Além disso, viu a gestão de Ricardo Teixeira na CBF criticada e investigada em duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), em 2000 e 2001.1 Luiz Felipe Scolari assume com a missão de levar o time ao Mundial. A equipe classificou-se para a Copa com seis derrotas em 18 jogos, em terceiro lugar nas eliminatórias sul-americanas. Felipão, com estilo criticado pela imprensa pelo apelo defensivo, mas reverenciado pela torcida por ser um estilo que conquistou títulos em clubes tradicionais brasileiros, enfrenta pressões pela convocação de Romário, mas acaba não cedendo. Não podemos esquecer que houve uma grande campanha para que o técnico Luiz Felipe Scolari convocasse Romário. O treinador resistiu a todas as pressões da imprensa esportiva, de artistas, de políticos, inclusive do ex-presidente da República, Fernando 1

A CPI do Futebol, no Senado, teve o relatório que condenou a gestão do presidente aprovado por unanimidade e o pedido de renúncia de Ricardo Teixeira. Já a CPI da CBF/Nike, na Câmara, terminou sem relatório final.

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Henrique Cardoso, que solicitavam a presença do herói da Copa de 94 (Helal e Soares, 2003, p. 7).

Na convocação para a Copa, dos 23 selecionados, Felipão escolhe 12 jogadores que atuam no Brasil (o que não acontecia desde a Copa de 1986). E leva Ronaldo e Rivaldo, envoltos em contusões recentes. As críticas aos jogadores escolhidos e ao estilo de jogo com três zagueiros, o que fazia com que o futebol brasileiro fugisse à sua origem de futebol-arte, levaram a equipe a firmar um pacto de união, o que ficou conhecido como “Família Scolari”. Uma vez que o termo ‘Família Scolari’ é empregado pelo comentarista Tostão (Folha de S. Paulo, 7 mai. 2002, p. D1) para descrever a seleção brasileira que, sob o comando de Luiz Felipe, iria disputar a Copa do Mundo de 2002, a extensão da categoria ‘membro da Família Scolari’ a ‘todos nós’ promove uma inclusão indiscriminada, incluindo todos aqueles que se considerarem ‘um dos nossos’ (Gastaldo, 2003, p. 1).

Mesmo sendo a seleção brasileira uma das representações de unidade nacional, de identificação com o país, e sendo a Copa do Mundo um torneio entre nações, aos poucos, essas identidades são fragmentadas. Tomando por base as interpretações de Stuart Hall (2001), poder-se-ia afirmar que a tendência da globalização da cultura em curso – que rapidamente teve nos esportes um veículo de encontro, de trocas, de apropriações entre os diferentes Estados-nações – estaria transformando ou desintegrando a identidade nacional sintetizada como narrativa homogênea na nossa ‘pátria de chuteiras’ (Helal e Soares, 2003, p. 3).

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Num ambiente em que as esferas culturais encontram-se dentro de um contexto de globalização,2 a seleção brasileira possui atletas que ultrapassam a identificação nacional. Os jogadores são exportados, cada dia mais novos, circulando, muitas vezes, por diversos países, o que favorece a aquisição de outras nacionalidades. Assim, Ronaldinho, por exemplo, é ao mesmo tempo um representante do futebol brasileiro, ídolo de brasileiros, mas também de italianos e agora também de espanhóis. Suas camisas e os produtos associados a ele são vendidos em todas as partes do mundo. A televisão transmite em tempo real um jogo do Real Madri para todos os continentes. Esse processo de desterritorialização do ídolo e do futebol, de redefinição de tempo e espaço, cria um novo processo de identificação e tradução das diferentes identidades culturais (Helal e Soares, 2003, p. 3).

Não só em questões clubísticas, mas também empresariais, como analisam Helal e Soares: Observemos que o futebol brasileiro ou, mais especificamente, o jogador brasileiro que veste a camisa nacional também representa clubes da Europa ou de diferentes partes do mundo, além de representar empresas multinacionais na forma de gerir o capital e a produção. Uma empresa como a Nike, por exemplo, está associada a diferentes seleções nacionais e leva o consumidor a uma 2

O conceito de globalização, dado por Giddens (2000), refere-se à intensificação das relações sociais em escala mundial e às conexões entre as diferentes regiões do globo, por meio das quais os acontecimentos locais sofrem a influência dos fatos que ocorrem a muitas milhas de distância e vice-versa. As consequências de nossos atos estão encadeadas de tal forma que o que fizemos agora repercute em espaços e tempos distantes. Isso diz respeito às interconexões que se dão entre as dimensões global, local e cotidiana.

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espécie de pluri-identificação, pois identifica-se com a seleção, com o jogador e com a empresa simultaneamente (2003, p. 3).

Ídolos como Ronaldinho são cada vez menos “nacionais”. “É como se o Ronaldinho fosse mais da Nike do que do Brasil. Os jogadores mais importantes estão cada vez mais associados ao ‘jet set’ internacional: vivem na Europa e fazem contratos milionários com multinacionais” (Helal e Soares, 2003, p. 17). Apesar de defender uma nação, os jogadores se tornam multifacetados, com diferentes lâminas de identificação. Não devemos perder de vista que ele é brasileiro, e isso é enfatizado pelos jornais, mas também que a imagem de Ronaldo está associada à Nike e a outras marcas nacionais e internacionais. Esse processo de ‘pluralização’ de identidades para além das fronteiras nacionais é que parece ser novo. Entretanto, a nação ainda é um forte símbolo e mote dessas matérias (Bartholo, Soares e Salvador, 2010, p. 14).

A relação de identificação e afetividade com a seleção brasileira de futebol e de pertencimento a ela depende, em parte, da construção da imagem da equipe pelos meios de comunicação e dos enquadramentos adotados pelas empresas de comunicação. Como fato cultural da maior importância na cultura brasileira contemporânea, o futebol tem sido apontado como um dos principais elementos geradores de identidade nacional no Brasil, o que pode ser inferido pelo epíteto, hoje tradicional, ‘o país do futebol’. Assim, o futebol jogado no Brasil é reinterpretado segundo os códigos da cultura brasileira, dotando-o de significados que ultrapassam as estritas linhas do campo de jogo (Gastaldo, 2003, p. 2).

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Foi com esse paradoxo de identificação da seleção com a maioria dos jogadores atuando em clubes brasileiros, algo que não acontecia havia 16 anos, e atletas globalizados, como Ronaldo, que o Brasil começou a campanha na Copa de 2002. A cobertura de um dos jornais de maior circulação no país, a Folha de S. Paulo, pode indicar essa relação de pertencimento do torcedor brasileiro à seleção de Scolari. Copa do Mundo de 2002: a queda de identificação ou a redenção do futebol brasileiro? Em praticamente todas as vezes que a mídia rememora a Copa do Mundo de 2002, o fato de o Brasil estar desacreditado e não ser visto como um dos favoritos para conquistar o título é tema central. No entanto, ao resgatar os textos do jornal Folha de S. Paulo, mais de dez anos depois, vemos que a trajetória daquele time como é contada hoje não reflete totalmente o panorama que vivíamos na ocasião. Na edição que seria publicada no primeiro dia dos jogos, três dias antes da estreia do Brasil, a visão do periódico paulistano era, no mínimo, otimista: “Se os resultados nos amistosos preparatórios servirem de parâmetro, a seleção brasileira é a principal favorita para o título. Ninguém teve números tão expressivos na temporada de testes que antecedeu a disputa da Copa-2002” (29 mai. 2013, p. D1). Com o título “Sim, o Brasil de Scolari é a melhor seleção do ano”, a matéria segue contando que o time de Felipão havia alternado adversários fortes e outros sem tradição, mas a equipe não perdia desde novembro do ano anterior. O texto ainda acrescentava que o time possuía um “ataque produtivo e uma defesa eficiente”. A matéria continua relatando que os outros grandes favoritos não apresentavam consistência nos resultados: “A Argentina

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ganhou fora de casa da decadente Alemanha, mas empacou diante do País de Gales” (29 mai. 2013, p. D1). Apesar das evidências para o otimismo, a análise termina com algum descrédito: Os resultados no ano, entretanto, não mudaram a percepção nas casas de apostas de Londres, um bom termômetro para medir as chances de nossa seleção. O Brasil continua apenas o quarto mais cotado ao título na opinião dos que pensam em futebol para ganhar dinheiro e, principalmente, não escolhem seus palpites pelo coração. Na frente, estão França, Argentina e Itália (29 mai. 2013, p. D1).

Na página seguinte, a Folha compara as estatísticas da preparação daquela equipe com as de outras seleções brasileiras antes das Copas. Os números mostram que tanto no percentual de aproveitamento quanto na média de gols marcados e sofridos os índices eram os melhores desde 1966 (29 mai. 2013, p. D1). É curioso que a memória afetiva do torcedor brasileiro seja de uma seleção que chegou ao torneio desacreditada e sem respaldo. As matérias antes do começo do Mundial mostram que não havia um ambiente externo totalmente favorável e, sim, muita desconfiança. No entanto, as páginas pesquisadas, sem nenhum tipo de ufanismo, relatam, baseadas em estatísticas, que as chances da quinta conquista brasileira não eram tão remotas assim. Do atacante Ronaldo, vem uma declaração que confirmaria isso: “A seleção brasileira está ótima, o clima é excelente. Acho que estamos com 90% de nossas condições” (29 mai. 2013, p. D2). As edições anteriores ao começo da disputa do Mundial ainda dão espaço ao congresso da FIFA que reelegeu o presidente Joseph Blatter, a notícias sobre as disputas políticas entre as Coreias do Sul e do Norte e ainda a algumas matérias que, sob o

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olhar atual, parecem, no mínimo, curiosas. Um exemplo é a nota que diz que um decreto do então presidente Fernando Henrique Cardoso autorizou a transmissão da competição para o sinal das antenas parabólicas. Inicialmente, essa transmissão estaria proibida, pois permitiria a pirataria. O tom pesado das críticas ficava por conta dos colunistas. Na coluna do ex-jogador Tostão, publicada no dia 30 de maio de 2002, os prognósticos são os piores possíveis. A constatação de que o atacante Ronaldo não tinha condições físicas ideais para jogar a Copa do Mundo parecia evidenciar-se nos treinamentos. Além disso, houve espaço para uma crítica à grandiosidade da concentração na cidade de Ulsan, que permitia pouca privacidade aos atletas, vítimas do assédio de fãs e da imprensa. O principal alvo das críticas é o próprio treinador. Um exemplo é quando se relata que o time iria estrear com a presença do meia Juninho Paulista, considerado uma surpresa. A escalação do jogador estaria contradizendo o fato de o treinador ser retranqueiro. Na oportunidade, o jornal aproveita para questionar o pragmatismo do treinador: “Em quase um ano, foram 18 jogos, 16 equipes diferentes e 57 convocados. Mas Luiz Felipe Scolari vai escalar o Brasil para a estreia na Copa com a mesma cara que escolheu para sua primeira partida com a seleção, em 1o de julho de 2001, contra o Uruguai” (30 mai. 2002, p. D1). No artigo “O declínio da ‘pátria de chuteiras’: futebol, imprensa e identidade nacional na Copa do Mundo de 2002”, Ronaldo Helal e Antonio Jorge Soares se utilizam da cobertura do Jornal do Brasil daquela competição para demonstrar que o epíteto “Brasil, o país do futebol” ganha força durante os Mundiais. No entanto, já naquela ocasião, ficava evidente que essa relação deixara de ser homogênea. E enxergar a seleção brasileira como representação perfeita da nação já não era a única forma que a mídia brasileira encontrava para relacionar nossa sociedade e o futebol.

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De uma forma geral, a cobertura da imprensa sobre a Copa do Mundo de 2002 concentrou-se primordialmente em matérias de cunho técnico, escritas para o público aficionado pelo esporte, não levando em consideração a legião de ‘torcedores de Copa do Mundo’. Questões relacionadas à identidade nacional apareceram timidamente na totalidade das matérias selecionadas, muitas delas encontravam-se subjacentes nas crônicas e reportagens que falavam do estilo de jogo da seleção. Entretanto, na medida em que a seleção foi obtendo êxito e foi se aproximando da conquista, a tendência a esse tipo de narrativa aumentou (Helal e Soares, 2003, p. 7).

Essa sensação é comprovada também na análise do que foi publicado na Folha de S. Paulo. São raras as oportunidades em que se faz relação entre a situação do país e o futebol apresentado pela seleção brasileira. Não há nas narrativas a valorização ao “tradicional jeitinho brasileiro”. Ao contrário, a malandragem do jogador brasileiro, nas ocasiões em que se manifesta, é condenada pelo jornal. Foi assim na edição do dia 4 de junho, posterior à primeira vitória do Brasil, na estreia contra a Turquia. Na ocasião, o Brasil saiu perdendo, mas virou o jogo a partir de um pênalti mal marcado. A manchete do jornal paulista decreta: “Beneficiado por falha do juiz, Brasil bate Turquia na estreia”. Ainda na chamada da primeira página, a crítica à conduta do árbitro e à própria conduta dos jogadores brasileiros é maior do que a exaltação ao triunfo brasileiro: Em sua primeira partida numa Copa, o inexperiente árbitro sul-coreano também não assinalou um pênalti a favor dos turcos, que tiveram dois jogadores expulsos. Seguindo a ordem de Luiz Felipe Scolari, os brasileiros fizeram muitas encenações – decisivas para o resultado. Aos 43 minutos, o técnico já pedia o en-

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cerramento da partida. Os jogadores admitiram que simularam situações. ‘Tem de usar a malandragem’, disse Luizão, que pôs a bola na marca do pênalti após ser atingido (4 jun. 2002, p. 1).

Como afirmam Helal e Soares, não se verifica a necessidade, por parte da imprensa, de relacionar a conduta dos jogadores em campo ao que seria um suposto estilo brasileiro de viver. Nesse sentido, em vez de fazer como em outras ocasiões, nas quais a malandragem é exaltada, a opção é questionar a conduta dos atletas e do treinador: As conquistas da seleção em 1994 e 2002 não foram dramatizadas como as ‘vitórias da nação brasileira’, tampouco a derrota na final contra a França em 1998 foi sentida como ‘a derrota do país’, bem diferente das dramatizações que ocorreram em torno da derrota na final da Copa de 1950 e da conquista do tricampeonato em 1970 (2003, p. 8).

No dia seguinte à vitória por 4 a 0 contra a China, a manchete da Folha lembra que a corrida presidencial começa a entrar em sua reta final: “Serra se isola em 2o; Lula tem 40%”. Logo abaixo: “Brasil goleia e tem a melhor campanha”. Apesar do título animador, a chamada mostra que a seleção enfrentou uma das equipes mais fracas do Mundial. Na cobertura do jogo, a manifestação positiva com um resultado expressivo fica ofuscada por uma análise sempre cuidadosa de que o resultado em si não seria suficiente para dizer que o time estava totalmente pronto para a conquista do título. As narrativas jornalísticas sobre o futebol no Brasil estão em processo de mudança. Notamos a permanência de narrativas ainda apegadas à afirmação da identidade nacional e outras que tentam, de certa forma, desmistificá-las. Não é por acaso que cada

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vez mais os jornais estão dando voz aos especialistas e estudiosos do futebol. No entanto, quanto mais a seleção se aproximava do jogo final, as narrativas de valorização do ‘estilo nacional de futebol’ e o acionamento da memória das grandes vitórias e ídolos do passado vão ganhando espaço (Helal e Soares, 2003, p. 14).

É exatamente esse o caminho tomado quando o Brasil vence a seleção da Costa Rica por 5 a 2. A Folha estampa em seu caderno especial a manchete “Parece Brasil”. Ao lado de uma grande foto dos jogadores festejando, há destaque para o fato de que o time tem a melhor campanha da competição, possui o recorde de gols e comete poucas faltas mesmo tendo uma defesa considerada “desconexa”. Os jornalistas buscam uma relação com a ideia de um futebol “tipicamente brasileiro”, que seria ofensivo por natureza. “Na Ásia, a equipe de Scolari aproxima-se da seleção brasileira que a história dos Mundiais consagrou para ficar cada vez mais distante de seu treinador” (14 jun. 2002, p. D1). As matérias até ficam envoltas nesse discurso, mas nota-se que ele não é suficiente para satisfazer seus redatores. Há claramente uma preocupação com a competitividade do time. Fica claro que não bastaria dar espetáculo, seria preciso vencer. Prova disso é que, ao mesmo tempo que se enaltece o recorde de gols marcados na primeira fase de uma Copa (11 no total), há muita relevância ao fato de que o time tem fragilidades defensivas, uma vez que permitiu que a Costa Rica finalizasse 19 vezes durante os noventa minutos. Classificado com sobras para as oitavas de final, o Brasil trocaria de sede ainda cercado de desconfiança, embora os números dessem motivos para o contrário. “A seleção deixa na Coreia a melhor campanha da primeira fase da Copa. No Japão, só levará a campo sua crise de identidade” (14 jun. 2002, p. D1). Essa crise a que o jornal se refere estaria totalmente centrada na figura do treinador:

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No Oriente, o patriarca da ‘Família Scolari’ parece estar de cabeça virada. O técnico da seleção brasileira, que passou a reta final da preparação para a Copa incensado por sua ‘coerência’, transformou-se, conforme o mais clássico jargão do futebol, em uma caixinha de surpresas. Em treinos, jogos ou entrevistas, Luiz Felipe Scolari faz na Ásia quase tudo diferente daquilo que pregou antes de sair do Brasil. Do jeito que as coisas andam, se pudesse chamar mais um atleta, seria bem possível que ele convocasse Romário (14 jun. 2002, p. D3).

Até aqui Felipão era apresentado apenas como um linha-dura, mas, aos poucos, começa a ter seu retrato modificado: A partir de hoje, no Japão, o treinador, que tem fama de ‘copeiro’, inicia a preparação do time para os mata-matas, a fase decisiva da Copa. Espera-se dele o velho ‘sargentão’ que levou times a títulos históricos com catimba, defensivismo e teimosia. Mas tudo pode mudar (14 jun. 2002, p. D3).

O jornal do dia 17 de junho de 2002, data do jogo entre Brasil e Bélgica pelas oitavas de final, trazia na capa: “Agora favorito, Brasil inicia nova fase”. A cobertura do jornal muda o tom, junto com a mudança da seleção para o Japão. O time brasileiro elimina os belgas com um 2 a 0 no placar, gols de Rivaldo e Ronaldo. O discurso adotado após o jogo centra-se no talento dos “erres” brasileiros. Diante de uma vitória difícil sobre a Bélgica, a Folha elege os “heróis” do país: “Dupla de erres leva Brasil para as quartas”. E ainda acrescenta que Ronaldo e Rivaldo “compensam fiasco tático de Scolari” (18 jun. 2002, p. D1). O sucesso do Brasil na fase final fica condicionado ao momento dos “erres”, de acordo com a cobertura desse dia – “Se Rivaldo e os dois Ronaldos estivessem do outro lado, provavelmente o placar teria sido 2 a 0 para a Bélgica” (18 jun. 2002, p. D3).

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Essa cobertura também ressalta os problemas da equipe, como nas manchetes de cada página: “Vazio entre a zaga e o ataque da seleção se torna gritante” (18 jun. 2002, p. D4), “Bombardeio faz Marcos aparecer pela primeira vez – com o trio Edmilson, Lúcio e Roque Júnior, defesa continua sem convencer” (18 jun. 2002, p. D5), “Bélgica diz ter mais conjunto e culpa o juiz” (18 jun. 2002, p. D6). Nas quartas de final, a Família Scolari teve pela frente a Inglaterra de David Beckham. Após um jogo difícil, o Brasil conquistou a vitória, de virada, com Rivaldo e um gol de falta de Ronaldinho Gaúcho. A Folha traz no caderno especial da Copa o título “Promete mais”, sobre a promessa de Felipão em levar a equipe até as semifinais. E, apesar de novamente os “erres” terem salvado o país, dessa vez o jornal credita a vitória ao treinador: “A classificação veio a la Scolari, bem ao estilo que o consagrou nos clubes que dirigiu, com direito a lágrimas, chutões ‘para o mato’, medalhinha de santa, catimba e discurso motivacional” (22 jun. 2002, p. D1). Um detalhe importante desse dia é a reportagem da página D3, “Solistas”. Ela atribui traços de outras seleções ao time de 2002: A seleção brasileira conta com um triunfo para conseguir o pentacampeonato: a imprevisibilidade de seus atacantes. Em uma Copa em que predomina a mesmice dos gols de cabeça, a seleção busca outros caminhos até a meta adversária. Um deles é o drible, fundamento em que o Brasil tem média superior a 20 por jogo. Ofensivo, o time igualou o feito da seleção brasileira da Copa de 1982 ao assinalar 15 gols em seus cinco primeiros jogos na competição. Rivaldo, que marcou um gol em todas as partidas do Brasil no Mundial, pode também igualar outra marca importante: a de Jairzinho, que, na Copa de 1970, marcou sete gols em seis jogos (22 jun. 2002).

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Há referência aqui a duas das seleções brasileiras que evocaram o conceito de futebol-arte. Uma mostra de que o discurso adotado pelo jornal já considera o Brasil de Scolari, da retranca e do jogo feio, uma equipe de talento, que joga como um “time brasileiro”. A coluna do ex-jogador Tostão, “Brasil perto do título”, coloca os jogadores de ataque do país entre os melhores da história: “Se o Brasil for campeão, os três serão merecidamente incluídos na lista dos grandes da história do futebol brasileiro e mundial” (22 jun. 2002, p. D3). Nas semifinais, o Brasil teve pela frente novamente a Turquia, adversária da primeira fase. Ronaldo, que era dúvida para a partida, fez o único gol do jogo. No dia seguinte, a Folha enalteceu o apelido do jogador na capa do caderno especial sobre a Copa: “Fenômeno”. Eis a chamada para o último jogo: “Prepare-se para a final dos séculos” (27 jun. 2002, p. D1). A narrativa sobre os problemas da equipe começa a ser substituída pelo discurso de “volta por cima”: “Artilheiro isolado, Ronaldo diz que pesadelo acabou” (27 jun. 2002, p. D4); “Zaga vai do inferno ao paraíso contra Turquia” (27 jun. 2002, p. D5). Novamente, a equipe de 2002 tem suas características relacionadas a uma equipe campeã, como em “Seleção deve usar azul, como em 58, na Suécia” (27 jun. 2002, p. D11), o que não aconteceu no dia 30 de junho, já que o time jogou com a camisa amarela. A final entre Brasil e Alemanha reuniu duas das mais tradicionais e vencedoras seleções de Copas do Mundo, as quais nunca tinham se enfrentado em Mundiais. A conquista colocaria os brasileiros com dois títulos acima dos rivais. A Folha trouxe, no dia da partida: “Brasil busca título e hegemonia” (30 jun. 2002, p. A1). A capa do jornal ainda ressalta os três “erres”, Ronaldo, Rivaldo e Ronaldinho, numa arte com o total dos gols deles no torneio. A todo momento, textos comparativos entre as duas equipes convocam para o jogo que

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“está sendo chamado de ‘a maior final da história’” (30 jun. 2002, p. A1). É interessante analisar que, mesmo antes do triunfo final, as reportagens colocam a equipe como uma espécie de redenção do futebol nacional: “Prestígio do nosso futebol foi recuperado” (30 jun. 2002, p. D12) foi o título de um artigo assinado pelo ex-técnico Carlos Alberto Parreira. Assim como o maior exemplo de recuperação da equipe, Ronaldo é destaque de uma página inteira, com o título “O dia de Ronaldo” (30 jun. 2002, p. D3), antecipando o sucesso do atacante diante dos alemães. A reportagem mostra um Ronaldo mais forte física e mentalmente, mais maduro, e em que a crise nervosa de antes da final de 1998 não voltaria a acontecer. A vitória por 2 a 0, com dois gols de Ronaldo, colocou-o em destaque nas páginas da Folha na edição de 1o de julho de 2002, a começar pela capa: “Pentacampeão – Ronaldo faz 2, supera trauma de 98 e iguala marca de Pelé” (p. A1). O caderno especial da Copa traz a manchete “Um beijo” e lista uma série de problemas enfrentados por Ronaldo – como a lesão no joelho e o trauma de 1998 – e pela seleção – fiasco nas eliminatórias –, além de saudar o “país do melhor futebol”. “A seleção que saiu do país desacreditada, após a maior crise de sua história, desembarca em Brasília com o quinto título mundial” (p. D1). Todas as qualidades de uma campanha vitoriosa – sete jogos, sete vitórias, Ronaldo artilheiro do Mundial com oito gols, um único gol sofrido na fase mata-mata, todos os jogos resolvidos no tempo normal, sem precisar de prorrogação – foram exaltadas no discurso do capitão Cafu: “Batemos todos os recordes que podíamos bater. É a melhor seleção de todos os tempos, isso que é importante” (p. D1). Com o título “Dia R”, a Folha volta a exaltar Ronaldo como o principal nome do Mundial:

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Um romance que narrasse a história do futebol brasileiro nos últimos quatro anos começaria e terminaria com a odisseia de Ronaldo, anjo caído de 98, herói em 2002. Após o fracasso de Ronaldo Nazário de Lima, 25, na Copa da França, seguiu-se a maior crise do time verde-amarelo. Mas a saga de Ronaldo é uma obra aberta. Ontem, ele escreveu apenas o último capítulo de um tomo. E foi um final feliz (p. D3).

Os outros jogadores do elenco também são lembrados em reportagens que tratam da dificuldade de Rivaldo em jogar a final, já que estava machucado, do improviso de Cafu ao levantar a taça “100% Jardim Irene” e da irreverência na comemoração dos atletas, ao som de samba e pagode. O desabafo dos atletas, antes desacreditados, foi destaque na página D18: “Time promove ‘vão ter de me engolir’ coletivo – seleção protesta com samba e retoma citação de Zagallo”. Como na fala do atacante reserva Luizão: “Calamos a boca de muita gente no Brasil que nunca acreditou em nós. Viemos desacreditados e conquistamos o penta porque nos fechamos”. Apesar de toda a festa pelo título, uma página do caderno especial foi destinada aos interesses políticos na seleção: “FHC pede, e CBF resolve mandar seleção a Brasília – Teixeira, alvo de duas CPIs, cogitava tirar capital do roteiro até telefonema do presidente” e “Para Teixeira, título foi resposta às CPIs” (Folha de S. Paulo, 1o jul. 2002, p. D22). Ao fim, o técnico Luiz Felipe Scolari é reverenciado como um comandante que mudou seu estilo, mais direcionado à defesa, durante o Mundial e se tornou peça importante na conquista: “O time pentacampeão será sempre lembrado como o Brasil do atacante Ronaldo ou do meia-atacante Rivaldo. Mas não são poucos os que no futuro recordarão a equipe como o Brasil de Felipão” (p. D11).

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Considerações finais As discussões em torno da importância do futebol na cultura brasileira passam, quase sempre, pelas Copas do Mundo. O esporte é um fator de identificação nacional, em que os torcedores se unem diante de um mesmo país, uma reunião de pessoas com características e identidades semelhantes que torcem por uma equipe que as representa. As narrativas das competições entre países acontecem em um ambiente midiatizado, no qual a construção discursiva de determinado meio de comunicação acaba por plasmar uma imagem de certo fato social ou objeto. E o Mundial de futebol ainda possui uma estrutura narrativa que reforça o nacionalismo. Vivemos diante de um processo, muito impulsionado pelas influências das culturas globais, de fragmentação das identidades nacionais, do surgimento de identidades híbridas. A Copa do Mundo de 2002, apesar de ser estudada como parte de uma hipótese de queda de identificação do país com a seleção brasileira, e mesmo sofrendo os efeitos da globalização, ainda guarda traços de construção de identidade nacional – ao relacionar o time de Felipão com equipes historicamente vitoriosas do país, por meio de uma memória afetiva, ou a símbolos nacionais, como o conceito de futebol-arte. O fato de disputar contra nações aglutina os semelhantes brasileiros em prol de um objetivo comum: ser o melhor do mundo. Em um Mundial em que o discurso da imprensa coloca a seleção como desacreditada graças a uma das maiores crises dentro e fora dos gramados que enfrentou desde a final da Copa de 1998, pouco se nota que, ao longo desse mesmo período, foi sendo formado um time vencedor, o que podemos constatar em reportagens que exaltavam a equipe, que estaria bem preparada. O discurso preferencial era pelo heroísmo de uma seleção que buscou a redenção do futebol centrada em seu personagem principal, o atacante Ronaldo, atleta mundial, até então com pouca identifi-

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cação com clubes brasileiros, mesmo numa convocação que deu preferência a jogadores que atuavam no país. O time de Luiz Felipe Scolari, antes muito defensivo e desacreditado, transforma-se, pela imprensa, num símbolo do futebol-arte, com atletas que entrariam para a história do futebol mundial como grandes talentos. Assim, as narrativas da Folha de S. Paulo em 2002, quando o Brasil já era o maior vencedor da história das Copas, passando de tetra a pentacampeão para o pentacampeonato, concentram-se na afirmação do “estilo nacional” exaltado pelos outros Mundiais. Referências BARTHOLO, T. L. et al. “A pátria de chuteiras está desaparecendo?”. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 2010, v. 32, pp. 9-23. BERGER, P. T. e LUCKMANN, T. A construção social da realidade. 12 ed. Petrópolis: Vozes, 1995. CAMPBELL, J. e MOYERS, B. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990. DaMATTA, R. (org.). Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982. FOLHA DE S. PAULO, mai. 2002. Disponível em http://acervo.folha.com.br/. ——, jun. 2002. Disponível em http://acervo.folha.com.br/. ——, jul. 2002. Disponível em http://acervo.folha.com.br/. GASTALDO, É. Pátria, chuteiras e propaganda: o brasileiro na publicidade da Copa do Mundo. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2002. ——. “A Família Scolari somos todos nós – questões de identidade brasileira na Copa de 2002”. Anais do XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom). Belo Horizonte: PUC, 2003. ——. “Copa do Mundo no Brasil: a dimensão histórica de um produto midiático”. Comunicação & Sociedade, São Bernardo do Campo, jan.-jun. 2004, n. 41, pp. 115-33. GIDDENS, A. O mundo na era da globalização. Lisboa: Presença, 2000. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. HELAL, R. “Mídia e idolatria: o caso Ronaldinho”. Motus Corporis, Rio de Janeiro (Universidade Gama Filho), 2002, v. 9, n. 2.

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—— e SOARES, A. J. G. “O declínio da pátria de chuteiras: futebol e identidade nacional na Copa do Mundo de 2002”. Anais da XII Reunião Anual da Associação de Pós-Graduação em Comunicação (Compós). Recife: UFPE, 2003. ——. “Mitos e verdades do futebol (que nos ajudam a entender quem somos)”. Insight Inteligência, Rio de Janeiro, 2011, v. 52, pp. 68-81. SOARES, Antonio Jorge G. “História e a invenção de tradições no futebol brasileiro”. In HELAL, R.; SOARES, A. J. G.; LOVISOLO, H. (orgs.). A invenção do país do futebol: mídia, raça e idolatria. Rio de Janeiro: Mauad, 2001.

Salve a seleção! Mídia, identidade nacional e Copa das Confederações 2013 Ronaldo Helal Alvaro do Cabo Carmelo Silva

Este artigo é, em grande medida, a continuação de uma investigação acadêmica iniciada pelos mesmos autores em 2008, no artigo “Pra frente, Brasil! Comunicação e identidade brasileira em Copas do Mundo”.1 À época, começamos a investigar a relação entre o futebol, principalmente a seleção brasileira em períodos de Copas do Mundo, e o sentimento de nação. Estávamos interessados em identificar elementos aglutinadores do “povo brasileiro”. Nesse exercício, concluímos que o futebol era mesmo um dos fatores identificados com os possíveis sentidos de “brasilidade”, sendo a seleção nacional motivo de orgulho e identificação para os brasileiros, principalmente em época de Copa do Mundo, resultando no que viemos a conceituar de “nacionalismo cíclico”. No entanto, questionamos: 1

O artigo foi publicado em Esporte e Sociedade, 2009, v. 5, pp. 1-21, e no livro Futebol, jornalismo e ciências sociais: interações (EdUERJ, 2011).

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a) Seríamos ainda o “país do futebol”? b) A seleção representaria, nos dias de hoje, a “pátria de chuteiras”, expressão cunhada por Nelson Rodrigues para explicar a relação entre identidade nacional e seleção brasileira? É especialmente nas Copas do Mundo que o epíteto “Brasil: país do futebol” ganha uma dimensão mais intensa. Porém, mesmo aqui as narrativas jornalísticas em torno da seleção já não tratam de forma homogênea o futebol como metonímia da nação. A derrota na final para o Uruguai em 1950 e a conquista do tricampeonato em 1970 foram sentidas como derrota e vitória de projetos de nação brasileira. Já as vitórias em 1994 e 2002 e a derrota na final para a França em 1998 não transcenderam o terreno esportivo e foram comemoradas e sofridas como vitórias e derrotas esportivas. Claro que a Copa do Mundo possui uma estrutura narrativa que estimula os nacionalismos. O encanto dessa competição encontra-se justamente no fato de acreditarmos que as nações estão representadas por 11 jogadores. O futebol não é a nação, mas a crença de que ele o é move as paixões durante um Mundial. Mas, ao compararmos a situação atual com a carga emocional de 1950 e 1970, especulamos sobre a possibilidade de estarmos assistindo a um declínio do interesse pelo futebol como emblema da nação. Este artigo, distanciado cronologicamente cinco anos do primeiro texto, está sendo escrito durante a Copa das Confederações 2013, portanto, um ano antes da abertura da Copa do Mundo no Brasil. Acreditamos que a análise da cobertura midiática e o apelo suscitado pelo evento – Copa do Mundo no país – até o momento podem contribuir para as reflexões sobre futebol e identidade nacional nestas primeiras décadas do século XXI. Na análise de 2008, concluímos que o futebol tinha sido, de fato, um elemento primordial na história recente do país, em sua transição de uma sociedade rural para uma moderna sociedade urbana. No entanto, seu papel já não seria o mesmo daqueles tempos e estaría-

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mos assistindo a um declínio do interesse pela seleção; o torcedor de Copa do Mundo ainda conservaria seu “nacionalismo quadrienal”, atrelado à seleção, mas a “pátria de chuteiras” teria perdido muito de sua carga simbólica. Questionamos como os brasileiros iriam se articular em torno desse simbolismo diante de dois eventos emblemáticos: como a Copa do Mundo de 2014, organizada no país, e as Olimpíadas de 2016, no Rio de Janeiro. E finalizamos com a questão: seremos testemunhas de um resgate simbólico de um nacionalismo exacerbado ou a espetacularização dos eventos nos moldes do capitalismo do século XXI diluirá a identificação nacional? 2013: após cinco anos Observamos que a mídia, ao falar sobre a Copa de 2014, focou principalmente nos preparativos estruturais, como a construção e reforma dos estádios reservados ao evento: Maracanã (Rio de Janeiro), Mané Garrincha (Brasília), Arena Corinthians (São Paulo), Castelão (Fortaleza), Mineirão (Belo Horizonte), Beira-Rio (Porto Alegre), Fonte Nova (Salvador), Arena Pernambuco (Recife), Arena Pantanal (Cuiabá), Arena Amazônia (Manaus), Arena das Dunas (Natal) e Arena da Baixada (Curitiba). Ou seja, a cobertura da seleção brasileira de futebol teria ficado em segundo plano até este momento, prejudicada, talvez, pela dificuldade de se montar um plantel, em virtude da classificação antecipada para a Copa do Mundo, e por crises internas na CBF, que, envolvida em escândalos de corrupção, culminou com a renúncia de seu presidente, Ricardo Teixeira, indiciado por lavagem de dinheiro, corrupção, crime contra o sistema financeiro e sonegação de impostos. Se fora dos gramados a CBF enfrentava problemas, dentro dos campos a situação também não era diferente, com o naufrágio do projeto montado por Ricardo Teixeira. O treinador Luis Antônio Venker, vulgo “Mano” Menezes, contratado por Teixeira

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em julho de 2010, ficara encarregado de montar uma equipe para a disputa da Copa do Mundo em 2014. Mano tentou empreender uma renovação, convocando jogadores mais novos. O fracasso nas únicas competições oficiais que disputou – a Copa América de 2011 (eliminado pelo Paraguai nas quartas de final) e as Olimpíadas de 2012 (vice-campeão, derrotado pelo México na final) – selou seu destino à frente da seleção. Nem mesmo as vitórias frente à Argentina nos amistosos intitulados “Clássico das Américas”,2 em 2011 e 2012, salvaram seu emprego. Para seu lugar, foi contratada a dupla de treinadores campeã do mundo Luiz Felipe Scolari (campeão em 2002) e Carlos Alberto Parreira (campeão em 1994). Este último foi efetivado como coordenador-técnico. O começo da trajetória da dupla não foi satisfatório: derrota para a Inglaterra na estreia, quatro empates (Itália, Rússia, Inglaterra e Chile) e duas vitórias, sobre a Bolívia e a França. Tais resultados não foram suficientes para animar a exigente e ao mesmo tempo distante plateia brasileira, então envolvida em suas disputas clubísticas de campeonatos regionais e Copa Libertadores da América.3 A questão colocada em 2008 segue presente em nossa análise atual. Afinal, como nós, brasileiros, iremos nos articular em torno da Copa do Mundo de 2014, organizada no país? Prefácio da Copa O primeiro indício “real” sobre o apelo que a Copa do Mundo poderia ter para o público interno foi a partida amistosa realizada no Maracanã, entre ex-jogadores brasileiros, na noite de 27 de abril de 2013. Na ocasião, não houve venda de ingres2

3

Nessas partidas entre Brasil e Argentina, só podiam atuar jogadores em atividade em seus respectivos países, vetando-se a convocação daqueles que atuavam no exterior. Os torneios regionais foram suspensos no período da Copa das Confederações, de 15 a 30 de junho de 2013.

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sos, sendo a carga de 30% da capacidade futura total do estádio (75 mil espectadores, segundo a FIFA) distribuída gratuitamente para operários envolvidos na construção, autoridades e personalidades do esporte. A importância do evento evidenciou-se com o fechamento de várias ruas e o isolamento praticamente total do bairro, além das presenças da presidente do país, do governador do estado do Rio de Janeiro e do prefeito da cidade. O segundo fato foi o anúncio da venda de ingressos para os jogos da Copa das Confederações, cujas vendas iniciaram-se em 21 de novembro de 2012, apenas por meio eletrônico, algo incomum para a aquisição de ingressos esportivos no Brasil. Houve demanda interna, fato também observado nas edições anteriores do torneio. O veículo eletrônico Portal da Copa apontava, em 7 de maio de 2013, mais de trinta dias antes do início da competição, os seguintes números: Quase 590 mil ingressos foram vendidos para a Copa das Confederações (7 mai. 2013, 10:49h). Este número representa 71,2% do estoque total de entradas. Cerca de 97% dos ingressos foram comprados por brasileiros Até esta terça-feira (7 mai.), foram vendidos 588.178 ingressos da Copa das Confederações FIFA 2013, ou 71,2% do estoque total de 826.628 entradas. O objetivo é superar com folga a estatística de 2005, quando os estádios alemães tiveram ocupação média de 83%. A partida com mais ingressos vendidos foi o jogo 2, no Rio de Janeiro, entre México e Itália, com 63.384 bilhetes. Em seguida, vem a final, com 60.744 entradas vendidas. Na sequência, está a abertura do torneio, com 57.854 ingressos adquiridos. Cerca de 97% dos ingressos foram comprados por brasileiros, uma porcentagem semelhante às das edições anteriores do torneio.4 4

Disponível em http://www.copa2014.gov.br/pt-br/noticia/quase-590-mil-ingressos-foram-vendidos-para-copa-das-confederacoes. Acesso em 22 mai. 2013.

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As vendas físicas dos ingressos em bilheteria ainda não tinham começado. A página da FIFA exibia a seguinte mensagem sobre o assunto: FIFA would like to remind fans that no physical tickets are available until the opening of ticket centers in the host cities scheduled for later in May, when the distribution of tickets will begin. Precise locations and opening dates of these ticket centers will be communicated at the end of April.5

Uma informação bastante aguardada e debatida foram os preços dos ingressos, que haviam sido fixados pouco antes do início das vendas eletrônicas e variavam de US$ 80 a US$ 220 (para estrangeiros) e R$ 76 a R$ 418 (para os residentes locais). Os seis pontos físicos de venda, entretanto, só começariam a operar em junho. Amostras da organização para a venda dos ingressos foram dadas nos episódios que visaram à aquisição de ingressos para o jogo amistoso de reinauguração do Maracanã, realizado no dia 2 de junho de 2013; e para o jogo-teste do Estádio Mané Garrincha, onde se enfrentaram as equipes de Santos e Flamengo, na rodada de abertura do Campeonato Brasileiro. As vendas eletrônicas já haviam tido problemas.6 Nas bilheterias do Rio de Janeiro e nas de Brasília, houve grande confusão, com intervenção policial, manifestações de 5

6

Disponível em http://www.fifa.com/confederationscup/organisation/media/ newsid=2052792/index.html. Acesso em 22 mai. 2013. Tradução nossa: “A FIFA gostaria de lembrar aos torcedores que nenhum ingresso físico estará disponível até a abertura dos centros de ingressos nas cidades anfitriãs, programada para o fim de maio, quando a distribuição começará. Os locais precisos e as datas de aberturas desses centros de vendas serão informados no final de abril”. Disponível em http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/esportes/futebol/noticia/2013/05/22/venda-para-brasil-x-inglaterra-tem-problema-no-primeirodia-84040.php. Acesso em 25 mai. 2013.

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clientes irritados e longas filas.7 Após várias horas na fila, os torcedores, ao chegarem à bilheteria, eram informados de que teriam de desembolsar no mínimo R$ 150 por meia-entrada, e não os esperados R$ 45, ou até R$ 90 pelo preço inteiro do ingresso mais barato. No sábado, mesmo os candidatos habilitados ao setor foram em vão: os idosos não seriam atendidos no sábado, devendo retornar no domingo. Isso irritou a muitos. Mesmo os deficientes e seus acompanhantes voltaram de mãos vazias, após descobrirem que suas respectivas entradas seriam franqueadas apenas no dia do jogo, no próprio Maracanã, bastando para tal comparecerem à bilheteria às onze horas da manhã, sendo que a partida seria realizada às dezesseis horas, uma espera, portanto, de no mínimo cinco horas. Os idosos descobriram, ao retornar no domingo, 26 de maio de 2013, que seus acompanhantes não poderiam ficar no mesmo setor que eles, devendo se acomodar no setor de R$ 300. Tais fatos violam o Estatuto do Torcedor e o Estatuto do Idoso, como relatado no Lancenet e no jornal Extra: De olho na carga extra de 10 mil ingressos, os torcedores chegaram bem cedo e formaram uma fila no local. Desde as 7h da manhã na sede do Tricolor, o engenheiro André Amaral só conseguiu ser atendido quase quatro horas depois.8 Ontem, ainda foi possível pagar menos do que isso de forma legal. Os ingressos mais caros, a R$ 300 (meia a R$ 150), seguem à venda no site www.futebolcard.com e na Gávea, em Laranjeiras, Engenhão, Caio Martins e General Severiano – os demais 7

8

Disponível em http://globoesporte.globo.com/futebol/times/fluminense/noticia/2013/05/procura-por-ingressos-para-brasil-x-inglaterra-forma-fila-em-laranjeiras.html; http://m.jb.com.br/fotos-e-videos/galeria/2013/05/25/amistosobrasil-e-inglaterra-tem-grande-procura-de-ingressos/. Acesso em 25 mai. 2013. Disponível em http://www.lancenet.com.br/minuto/Laranjeiras-fila-ingressosjogo-Brasil_0_925707446.html. Acesso em 25 mai. 2013.

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setores estão esgotados (a carga máxima é de 74 mil pessoas). No entanto, o sistema organizado pela CBF é falho e não respeita o Estatuto do Torcedor e o Código de Defesa do Consumidor. No sábado, por exemplo, as gratuidades dos idosos não estavam à disposição na sede do Fluminense, embora o site oficial da CBF informe que o serviço estaria à disposição a partir de 25 de maio (sábado). Um erro passível de processos da Justiça: – É uma violação do Estatuto do Idoso. Cabe um processo de dano moral do idoso que saiu de casa, foi à bilheteria e não pôde obter o ingresso – argumenta o presidente da Associação Nacional da Defesa ao Consumidor e Trabalhador (ANACONT), José Roberto Oliveira, que critica ainda a abertura de pontos físicos para a venda três dias depois do início na internet: – É um favorecimento irregular, prejudica o consumidor que não possui acesso à internet. E viola o Código de Defesa do Consumidor. As gratuidades de idosos e menores de 12 anos foram disponibilizadas nos guichês domingo (informação confirmada por um funcionário da Futebol Card nas Laranjeiras). O Jogo Extra não conseguiu contato com a empresa. Barrados da Copa do Mundo, os donos de cadeiras cativas podem retirar os ingressos para o amistoso a partir de amanhã no Maracanãzinho.9

Futebol e identidade nacional durante a Copa das Confederações 2013 Conforme levantado no artigo de 2008, as questões que constituem nosso ponto de partida são as seguintes: como defini-

9

Disponível em http://extra.globo.com/esporte/copa-confederacoes/cambistas-vendem-ingressos-para-amistoso-entre-brasil-inglaterra-ate-100-mais-caros-8518940. html. Acesso em 27 mai. 2013.

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ríamos, nos tempos atuais, a identidade cultural brasileira? Qual o papel do futebol nessa questão? Para começarmos a investigar o tema, torna-se importante retomar alguns conceitos. Stuart Hall argumenta que a identidade está profundamente envolvida no processo de representação, ou seja, qualquer mudança nos condicionantes da representação social dos indivíduos tem reflexo na identidade cultural daquele agrupamento. Mais do que isso, essas representações “quase sempre se apoiam nas tradições inventadas que ligam o passado e o presente, em mitos de origem que projetam o presente de volta ao passado, em narrativas de nação que conectam o indivíduo a eventos históricos nacionais mais amplos, mais importantes” (1998, p. 72). Nesse sentido, a concepção brasileira de eventos nacionais importantes para a construção da identidade nacional pode ser seguida historicamente. Não se identificam, por exemplo, fatores históricos capazes de reunir os brasileiros em torno de uma mesma e compartilhada consagração. Fatos importantes, mas distantes no tempo, como a Inconfidência Mineira, a Independência Nacional ou a Proclamação da República, perdem cada vez mais força no imaginário dos indivíduos, apesar de serem feriados cívicos nacionais. Hall diz que esse afrouxamento está intimamente associado ao encurtamento das distâncias geográficas, numa era globalizada, e ao consumismo; porém, em vez de destruir as identidades nacionais, essas novas condicionantes vão alterar sua forma e definir novos fatores de identificação. O futebol, como veremos adiante, é um desses “novos fatores de identificação”. O próprio país ainda está em busca de seu posicionamento, em constante mudança, tentando se encaixar de forma mais concreta na economia mundial globalizada. O Brasil enfrenta problemas de posicionamento no cenário internacional, como a maioria dos países periféricos, sendo um país que se destaca como uma potência no cenário latino-americano e, por que não dizer, no mundo, mas, ao mesmo tempo, mantém algumas práticas e costumes provincianos e um suposto

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“complexo de vira-latas”, que faz ver tudo que é nacional como de qualidade inferior, pior que o que vem de fora.10 Dessa forma, torna-se prática social e uma espécie de passatempo nacional falar mal do país e de suas instituições. Assim, atingimos certa ambiguidade, pois, apesar de exaltar algumas características próprias do Brasil – como a sensualidade, as belas praias, a cordialidade etc. –, criticamos ao mesmo tempo, interna e externamente, nossos produtos, nossas práticas, autoridades e instituições.11 Para um melhor entendimento de como chegamos a esse ponto atual e ambíguo da identidade cultural brasileira, é preciso retomar o que foi dito por alguns críticos que estudaram o assunto por meio de várias abordagens. Darcy Ribeiro, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Roberto DaMatta, Sérgio Buarque de Hollanda, entre outros, já identificaram a problemática de se entender o que é ser brasileiro ou como o brasileiro vê a si mesmo. Todos esses autores escrevem em épocas e situações distintas, mas o objeto de sua análise, o “Brasil e seu povo”, foi, em determinado momento, o que os unia. Tentaremos encontrar um elo em comum. Se pensarmos em termos de simbologia oficial, os símbolos da pátria são: o selo, a bandeira e o hino nacionais. Esses três são ilustres desconhecidos para a maioria da população brasileira. Os A expressão “complexo de vira-latas” foi alcunhada pelo dramaturgo e cronista esportivo Nelson Rodrigues, com a intenção de explicar as derrotas do Brasil nas Copas de 1950 e 1954. Lembremos que o antropólogo Darcy Ribeiro (1972) afirmou que o Brasil oscilava entre um “ufanismo tolo” e um “pessimismo exacerbado”. A derrota em 1950 e a conquista do tricampeonato em 1970 talvez tenham confirmado o dito de Ribeiro, em um momento em que o futebol se transformava em metonímia da nação. Verificamos, no entanto, que as conquistas em 1994 e 2002 e as derrotas em 1998 e 2006 não provocaram discursos que transcendessem o universo esportivo. Para uma análise sobre futebol e identidade nacional na Copa de 2002, ver Helal e Soares (2004). Ver também Helal (2010). 11 Curioso notar que os argentinos possuem sentimento ambíguo semelhante em relação a eles mesmos. Para uma análise sobre a relação entre brasileiros e argentinos por meio do futebol, ver Helal (2007). Para uma descrição do modo de ser dos argentinos, ver Carmo e Yanakiew (2005). 10

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próprios representantes da nação, como políticos e atletas, muitas vezes ficam visivelmente embaraçados ao ter de entoar o hino nacional por desconhecer a letra.12 Dentre todos esses fatores, a seleção brasileira em períodos de Copas do Mundo tende a ser um dos mais influentes elementos de aglutinação de interesses no Brasil. Os brasileiros ficariam mais unidos em torno de um ideal a cada quatro anos. Percebe-se nas ruas uma motivação diferente, as cores nacionais estão por toda parte, os indivíduos se unem para tarefas como pintar as ruas, enfeitar as casas, expor em todos os cantos seu amor pela pátria. Esses eventos são as Copas do Mundo de futebol e nos despertariam de nossa letargia, em uma espécie de “nacionalismo cíclico”. Breve história da Copa das Confederações da FIFA e da Copa no Brasil A Copa das Confederações é um evento recente no calendário esportivo. Foi instituída pela FIFA em 1997, seguindo o modelo preexistente da Copa do Rei Fahid (Arábia Saudita). A Copa do Rei Fahid foi realizada em 1992 e 1995, reunindo os quatro campeões continentais: Ásia, África, América do Sul e América do Norte/Central. A Argentina sagrou-se campeã em 1992. Na segunda edição, 1995, foi adicionada a participação do campeão da Europa, a Dinamarca (que veio a conquistar o título). Já sob os auspícios da FIFA, foram incluídos entre os classificados para a Copa o atual campeão da Copa do Mundo (caso do Brasil, em 1997) e da Oceania. O Brasil aparece como o maior vencedor do torneio, com quatro títulos: 1997, 2005, 2009 e 2013. Favoreceu-se do fato de ter participado de todas as edições do torneio, 12

No entanto, cabe registrar que, antes das partidas da seleção na Copa das Confederações, o hino foi muitas vezes entoado (até sem motivo e fora do momento “oficial”). Além disso, os jogadores pareciam estar cantando e ter aprendido a letra.

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desde 1997 (excetuando-se a Copa do Rei Fahid). Além de ser o recordista de títulos, tem o maior número de artilheiros: Romário (7 gols, 1997); Ronaldo (6 gols, 1999); Adriano (5 gols, 2005); e Luís Fabiano (5 gols, 2009). Apesar de tamanho êxito, o Brasil jamais havia tido a oportunidade de sediar o evento, que funcionaria, segundo a imprensa, como um “ensaio” para os países-sede das Copas do Mundo.13 O Brasil não se classificaria pelos demais critérios e só participa dessa edição por ser o país-sede. Os demais participantes foram: Japão (Ásia), Espanha (Mundial), México (América do Norte), Uruguai (América do Sul), Taiti (Oceania) e Itália (Europa). A candidatura brasileira para sediar a Copa do Mundo de 2014 aconteceu em 2007. Depois tivemos, ainda em 2007, a realização dos Jogos Pan-Americanos no Rio de Janeiro, o que foi visto por parte da imprensa como um primeiro teste para o Mundial 2014. O segundo teste, mais decisivo, teria sido a Copa das Confederações. Cabe lembrar que em 2007 o presidente da FIFA se disse impressionado com a candidatura brasileira e acreditava que a Copa teria grande impacto social e cultural para o país. Após os protestos durante a Copa das Confederações, tal opinião parece ter mudado, se considerarmos sua declaração de 17 de junho de 2013: Se isso acontecer outra vez em 2014, então talvez nós tenhamos que nos questionar se tomamos a decisão errada de entregar ao Brasil o direito de ser sede. Porém, isso não acontecerá. Eu estou confiante que o Brasil vai entregar uma grande Copa do Mundo. É o lugar certo para estar. Porém, eu vou discutir esse e outros assuntos com a presidente Dilma Rousseff em setembro.

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A Copa das Confederações parece ser vista pela FIFA e pela imprensa como um evento que testaria as instalações para a Copa do Mundo, além de outros pormenores, como compra de ingressos, participação e comportamento dos torcedores etc.

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As críticas aos gastos considerados “exorbitantes” com os estádios fazem parte de várias controvérsias em torno da realização do evento. Até então o estádio mais novo do Brasil, o Engenhão (RJ), tinha sido fechado por tempo indeterminado, em 26 de março de 2013, por ordem da prefeitura, por causa da descoberta de falhas estruturais que punham em risco a segurança dos frequentadores. As desavenças em torno da Copa começaram cedo e internamente, mesmo após o anúncio oficial da vitória da candidatura brasileira, em 30 de outubro de 2007. Desde o slogan “a Copa do Mundo é nossa”, numa óbvia e justa alusão à conquista brasileira em 1958 na Suécia, quando essa frase foi cantada nas comemorações do título. A primeira declaração oficial do então presidente da CBF, Ricardo Teixeira, serviu como um “puxão de orelha” público nos criadores do slogan: “A Copa do Mundo não tem dono, pertence a todos os brasileiros que quiserem trabalhar em prol do sucesso da competição”. Usando o discurso de nacionalismo e aglutinação em torno de um ideal, já defendido na recente realização dos Jogos Pan-Americanos, o presidente da entidade disse que “todos terão acesso ao comitê organizador”, o que não se observaria na prática, posteriormente. As controvérsias sobre a Copa continuaram em 2013. O jornal Folha de S. Paulo promoveu um debate entre dois ex-atletas sobre os legados da Copa para o país. Romário (ponto de vista negativo) e Ronaldo Fenômeno (otimista) defenderam suas posições. O deputado federal Romário enumera vários problemas: excesso de gastos (R$ 3,5 bilhões), falhas estruturais, remoções involuntárias de moradores, entre outros. Declara: “Não, o Brasil não aproveitará todo o potencial da Copa”. Já Ronaldo, embaixador da UNICEF e garoto-propaganda da Copa, diz que o momento econômico do país é bom, cita melhorias estruturais urbanas e geração de empregos e comenta, equivocadamente, que há “uma

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grande disputa entre os maiores países do mundo” para sediar a Copa (apenas o Brasil apresentou candidatura).14 Polêmicas à parte Antes mesmo do início da Copa das Confederações, importantes questões mobilizavam a imprensa nacional. O debate em torno da reabertura do Maracanã no amistoso Brasil 2 x 2 Inglaterra,15 outrora templo do futebol mundial, ganhou aos poucos contornos políticos. Juca Kfouri, José Trajano e Lúcio de Castro, da rede de canal fechado ESPN, condenaram veementemente a “pasteurização”16 do estádio e da forma de se torcer dentro dele. Em contrapartida, profissionais da Rede Globo e do Sportv, como Galvão Bueno, Ronaldo Fenômeno e Lédio Carmona,17 argumentam em favor dos supostos benefícios oriundos do conforto e da beleza arquitetônica do padrão FIFA para os remodelados estádios.18 Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/1224726-ronaldo-ja-elegado.shtml; http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/1224724-romario-copapara-ingles-ver.shtml. Acesso em 15 mai. 2013. 15 O resultado e a fraca atuação do selecionado brasileiro foram ironizados pelo jornal Meia Hora, que estampou a notícia de capa: “Só ganha no videogame”. Disponível em http://www.meiahora.ig.com.br/noticias/so-ganha-no-videogame_7598.html. Acesso em 12 jul. 2013. 16 O termo foi empregado por Kfouri na mesa esportiva Linha de passe do canal ESPN no dia 3 de junho de 2013. 17 Ver a opinião de Lédio Carmona sobre o Maracanã, em que ele, apesar de se colocar contra os gastos públicos abusivos e a ausência de populares no estádio, destaca a importância do conforto no novo Maracanã. Disponível em http:// sportv.globo.com/platb/jogos-que-eu-vi/2013/06/03/eu-e-o-novo-maracana/. Acesso em 11 jul. 2013. 18 Pode ser que ocorra uma tendência, ainda que inconsciente, no jornalismo, de valorizar a mercadoria quando se vende o produto e de buscar erros quando o produto é da concorrência. Essa é uma hipótese que merece ser testada em outro trabalho. 14

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Todavia, nessa discussão, a questão estética não nos parece primordial e se secundariza diante do campo da ética e da política. Independentemente de o futebol se configurar como uma paixão para muitos brasileiros, não podemos ser coniventes com malversação de verbas públicas e políticas governamentais de lazer excludentes. No que diz respeito ao montante de dinheiro público que vem sendo gasto desde 2000 com três reformas no estádio, independentemente das cifras, trata-se de um exemplo da falta de compromisso ético dos organizadores do evento e dos políticos envolvidos com a defesa da coletividade. Talvez, nessa cruzada inglória, a única exceção esteja sendo o deputado Romário,19 uma das poucas vozes que têm denunciado constantemente os exageros com as verbas destinadas à construção dos estádios e os contratos abusivos feitos com megacorporações para gestão das “arenas” multiuso.20 Com relação ao torcedor, seguindo-se um modelo britânico de isolamento das classes mais populares, ele se encontra cada vez mais elitizado, em uma tentativa de padronizá-lo; e isso se materializa nos altos preços cobrados durante a Copa das Confederações. Como ressaltaram Juca Kfouri, José Trajano, Mauro Cezar e Lúcio de Castro,21 a ausência das pessoas mais pobres em função Natural da favela de Jacarezinho, no Rio de Janeiro, o deputado Romário de Souza Faria está em seu primeiro mandato parlamentar. Foi eleito pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), em 2010, com 146.859 votos. É presidente da Comissão de Turismo e Desporto da Câmara dos Deputados. 20 Alguns exemplos estão em entrevistas concedidas pelo deputado, tais como: http://www.youtube.com/watch?v=BxoKfFqoPIs e http://www.youtube.com/ watch?v=s_OEcjAQPTs. Acesso em 11 jul. 2013. 21 Os autores citados defenderam esse ponto de vista em diversos programas televisivos do canal em que trabalham e também em seus blogs pessoais, como nos posts de Lúcio de Castro (disponível em http://www.espn.com.br/post/326086_ mataram-meu-maracana-podem-chamar-de-estadio-justo-verissimo) e Mauro Cezar (disponível em http://www.espn.com.br/post/334054_video-maracana19

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dos altos preços dos ingressos pode retirar uma parcela significativa de antigos frequentadores dos estádios. Outro ponto concerne à destruição de áreas tombadas pelo patrimônio público brasileiro, as quais estão sofrendo grande risco de serem totalmente destruídas, além de uma escola. O simbólico fim de uma escola municipal de referência que tem o nome do primeiro grande craque brasileiro, filho de uma negra com um imigrante alemão, Arthur Friedenreich, é emblemático de um movimento de descaso com a educação e os esportes amadores. Isso tudo ocorre em função de uma das cláusulas pétreas do padrão FIFA: grandes estacionamentos, pois os trens, ônibus e metrôs deverão ficar vazios e o palco tem de ser funcional. Para quem? Os abusos cometidos pelo comitê organizador do evento influenciaram as diversas manifestações populares difusas do mês de junho e julho, demonstrando que a “paixão nacional” não necessariamente é um fator letárgico para a população brasileira. Manifestações políticas e Copa das Confederações Pouco mais de uma semana antes do início da Copa das Confederações, começaram a ocorrer, em diversas capitais do país, manifestações nas ruas (organizadas via internet) contra o reajuste das tarifas de ônibus e metrô.22 Esses protestos, inicialmente liderados por um grupo que se denominava “Movimento Passe Livre”, ganharam proporções inesperadas e passaram a levantar bandeiras contra a corrupção, contra as obras superfaturadas da Copa e por melhorias nos sistemas de saúde e educação, entre outros pontos de menor destaque. O primeiro resultado concreto das manifesresumir-debate-a-modernidade-ou-nao-e-conveniencia-um-engenhao-foi-parao-lixo). Acesso em 11 jul. 2013. 22 Para um histórico dia a dia dos protestos, ver a edição do jornal O Globo de 30 de junho de 2013, p. 16.

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tações foi a revogação do aumento nas tarifas de ônibus, metrôs, trens e barcas no Rio de Janeiro e em São Paulo. O ápice dos protestos ocorreu no dia 20 de junho, cinco dias após o início do torneio, quando a população tomou conta das ruas em várias cidades e promoveu os maiores protestos da história recente do país.23 O que podemos extrair desse evento e qual sua correlação com a Copa das Confederações? A primeira coisa é a reflexão sobre uma suposta opinião culta que costuma sentenciar que o “futebol é o ópio do povo”, como se com isso se afirmasse que os brasileiros se deixam ser enganados por eventos futebolísticos. As manifestações bateram de frente com essa opinião. Acreditamos que, mesmo com todo o descontentamento em relação ao fantasma da inflação, à possibilidade de aprovação da PEC 37 – medida que retiraria do Ministério Público a atribuição de realizar investigações criminais –, às obras superfaturadas dos estádios para a Copa do Mundo e ao aumento das tarifas das passagens de ônibus, pode ser que as manifestações não tivessem ocorrido de maneira tão intensa e com tanta adesão. Talvez tenha sido justamente a Copa das Confederações o estímulo que faltava para que as pessoas fossem às ruas protestar. A visibilidade das manifestações ganharia, assim, o noticiário internacional. Ora, garantir à população sistemas de saúde e educação eficazes e combater a corrupção com punições exemplares são tarefas de todo governo, independentemente de Copas do Mundo e Jogos Olímpicos. O futebol alienaria o “povo” tanto quanto as novelas, os reality shows, o chope com os amigos e até o sexo. Em todas essas atividades, nós nos distraímos – ou seja, desviamos nossa atenção – e não nos preocupamos com questões políticas. Contudo, isso não significa necessariamente que estejamos narcotizados por elas. 23

Segundo O Globo de 30 de junho de 2013, no dia 20, uma quinta-feira, os protestos atingiram mais de 120 cidades e aproximadamente 1.400.000 pessoas foram às ruas.

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Tem sido uma constante e também soado como opinião erudita correlacionar os resultados da seleção brasileira em Copas do Mundo com as eleições presidenciais que ocorrem no mesmo ano. As evidências empíricas têm demonstrado repetidamente o equívoco dessa associação. Em 1998, o Brasil perdeu para a França por 3 a 0 na final, e o então presidente Fernando Henrique Cardoso se reelegeu ainda no primeiro turno, possivelmente embalado pelo sucesso, na época, do Plano Real. Em 2002, o Brasil conquistou o pentacampeonato, e Lula, candidato da oposição, elegeu-se presidente. Em 2006 e 2010, a seleção foi eliminada nas quartas de final e a situação seguiu no poder. Em nenhuma pesquisa sobre comportamento do eleitor, observamos a correlação do sucesso ou fracasso da seleção com os resultados das eleições presidenciais. Mas, talvez por inércia, muitos continuam acreditando nessa falácia. Observamos nas redes sociais, no período da Copa das Confederações, certa tendência a “demonizar” o futebol e a Copa do Mundo no Brasil.24 Os problemas brasileiros são muitos, mas não são culpa do futebol. Há que se destacar que a democracia se consolida no país e as manifestações sem bandeiras de partidos têm sido uma novidade na história recente do Brasil. O fato de elas estarem ocorrendo justamente no período da Copa das Confederações demonstra que o futebol não engana a população. Se a intenção de aumentar as passagens e de votar a PEC 37 – derrotada em votação – justo nesse período era uma aposta na suposta alienação das massas, o tiro saiu pela culatra. Momento mais propício para chamar a atenção nacional e internacional do que este, somente na Copa do Mundo e nos Jogos Olímpicos. 24

Um exemplo seria o vídeo No, I’m not going to the World Cup (Não, eu não vou à Copa do Mundo), da brasileira residente nos Estados Unidos Carla Douden, divulgado em 17 de junho de 2013, que teve grande repercussão e mais de três milhões de acessos. No vídeo, Carla enumera os muitos problemas sociais do país e os gastos com a Copa. Disponível em http://www.youtube.com/ watch?v=ZApBgNQgKPU. Acesso em 1o jul. 2013.

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A sociologia e outras disciplinas das ciências sociais não conseguem controlar as diversas variáveis que se apresentam a cada instante, o que torna muito difícil fazer um prognóstico do resultado final das manifestações. Pelo que temos visto até agora, elas resultaram em recuo no aumento das tarifas de ônibus, na derrota da PEC 37, na transformação da corrupção em crime hediondo, na prisão de um deputado condenado em 2010,25 em uma proposta de plebiscito vindo da presidência e outras questões. Talvez possamos considerar tudo isso o maior legado deixado pela Copa das Confederações. E mais: até os mais céticos terão de admitir que, pelo menos desta vez, o futebol contribuiu para a mobilização das massas em relação a questões políticas. Outra reflexão que nos chamou atenção recai na correlação entre as manifestações e o público da Copa das Confederações que foi feita pelo portal eletrônico Microsoft Network (esportes.msn.com): Desde o início da Copa das Confederações, as principais cidades do país, inclusive as que são sede do evento, estão sendo palco de grandes manifestações populares. Em apenas um dia, os protestos derrotaram a Copa das Confederações. Ao menos em número de pessoas. Segundo números oficiais, a quinta-feira teve nada menos que 1,25 milhão de pessoas pelas ruas em mais de 100 cidades espalhadas por todo o país. A quantidade é bem maior que a que seria necessária para encher todos os estádios do torneio. A onda de protestos que começou contra o aumento das tarifas do transporte público já questiona os

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O deputado Natan Donadon (PMDB/RO), condenado a 13 anos de prisão por corrupção, peculato e formação de quadrilha em 2010, foi o primeiro parlamentar em exercício a ser preso no Brasil desde 1988. Disponível em http://noticias. uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2013/06/28/pf-confirma-que-deputadodonadon-se-entregou.htm. Acesso em: 12 jul. 2013.

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gastos com a Copa do Mundo e, por consequência, a Copa das Confederações.26

Além das passeatas em diversas cidades brasileiras, houve protestos em muitas cidades estrangeiras: Coimbra, Berlim, Buenos Aires, Dublin, Lisboa, México, Nova York, Paris, Porto e Sidney.27 A repercussão levou até o criador do desenho animado The Simpsons a anunciar um episódio especial dedicado aos protestos brasileiros.28 As mensagens exibidas nos cartazes dos manifestantes deixam clara a relação com os eventos esportivos. Além da FIFA, do governo e dos políticos em geral, a Rede Globo de televisão foi alvo da crítica dos protestantes. Algumas frases pinçadas de fotografias publicadas na mídia: “FORA FIFA”, “Da Copa eu abro mão, quero dinheiro para a saúde e educação”, “Copa: o povo vai pra escanteio”, “Minha nação não calça chuteiras”, “Copa pra quem?”, “Queremos escolas e hospitais no padrão FIFA”, “Copa no Brasil custa mais caro que as edições passadas”, “Pedimos saúde e educação. Copa não!”, “Fora Globo!”, “Globo, você não me representa”, “O Maracanã é público e popular”, “O Maraca é nosso. Parem as remoções”, “Quando seu filho ficar doente, leve-o ao estádio”, “O Brasil está preparado para a Copa, só faltam ordem e progresso. Fora Dilma!”, “Ponham a tarifa na conta da FIFA”, “O professor merece um salário de deputado e o prestígio de um jogador de futebol”, “Abaixo a Rede Globo”, “O circo está custando o nosso pão”, “No education, no security, no public transport. Let’s organize a World Cup! GENIUS”, “Copa da FIFA: Disponível em http://esportes.br.msn.com/copa-confederacoes/noticias/ministério-público-pede-à-pm-que-não-use-canhão-sonoro-e-evite-acionar-bombasem-atos-no-maracanã-1. Acesso em 29 jun. 2013. 27 Disponível em http://folha2plano.com/manifestacoes-populares-no-brasil-repercutem-pelo-mundo/#. Acesso em 29 jun. 2013. 28 Disponível em http://www.anonymousbrasil.com/mundo/simpsons-dara-suacontribuicao-aos-brasileiros-em-episodio-especial/. Acesso em 29 jun. 2013. 26

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33 bilhões, salário: 678 reais”, “Don’t come to the World Cup”, “Unfair players: FIFA, Police, Cabral, Paes”, “Senhores governantes, cadê o respeito e o fair play?”.29 Também identificamos um viés nacionalista nos protestos, com a palavra “Brasil” sendo utilizada extensivamente e a exibição de símbolos pátrios, principalmente a bandeira brasileira e as cores, bem como trechos de canções nacionais: “Muda, Brasil”, “Acorda, Brasil!”, “Brasil, mostra a tua cara!”, “Support, Brazil”, “Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil”, “Verás que um filho teu não foge à luta”, “Nosso brado retumbante”, “Meu partido é meu país”, “O gigante acordou”.30 Como se percebe, o caráter difuso e apartidário, sem lideranças declaradas, levou à exacerbação do sentimento patriótico expresso pelos manifestantes. Eles tinham apenas dois pontos em comum: insatisfação e “brasilidade”. O fato de as passeatas e os protestos ocorrerem concomitantemente à Copa das Confederações parece ter antecipado o ressurgimento do citado “nacionalismo cíclico”, mas em sentido um pouco distinto, já que em torno de questões públicas do país e suas instituições, e não somente em torno da seleção brasileira. O que isso significa? Que já não somos mais o “país do futebol” e que a seleção não seria mais “a pátria de chuteiras”? É importante refletir mais em cima desses questionamentos que trazemos à tona, sob o risco de sermos tragados por um raciocínio simplista e com forte carga maniqueísta que observamos também nas redes sociais, do tipo “quem gosta de futebol é contra as Essa frase é alusiva ao comentário feito pelo presidente da FIFA, ao presenciar vaias uníssonas à presidente da República, no jogo de abertura da Copa das Confederações. Também foi vaiado. Disponível em http://noticias.br.msn.com/ fotos/veja-o-que-dizem-os-cartazes-dos-manifestantes#image=31. Acesso em 25 jun. 2013. 30 Disponível em http://postbox.br.msn.com/protestos.aspx?cityonwall=all. Acesso em 1o jul. 2013. 29

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manifestações”. A relação do brasileiro com a seleção mudou há décadas, por causa, principalmente, de fatores como a globalização, o êxodo de jogadores para o exterior e a melhor organização e valorização do Campeonato Brasileiro. A seleção ainda seria a “pátria de chuteiras”, mas não nos moldes como alcunhou o dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues no final dos anos 1950. O Brasil também mudou muito, com a implantação do regime democrático na década de 1980, maior organização da sociedade civil e certa liderança política e econômica na América do Sul. Como o “país do futebol” foi uma “construção” exitosa realizada por agentes do meio jornalístico e acadêmico, como Mario Filho e Gilberto Freyre, em um momento de consolidação do Estado-nação, podemos questionar se ainda seríamos vistos dessa forma ou se gostaríamos de ser vistos assim em um momento de transformações sociais e políticas na sociedade. A cobertura da seleção brasileira em blogs da mídia especializada durante o torneio31 A seleção brasileira chegou “desacreditada” à Copa das Confederações por causa da retrospectiva recente do técnico Luiz Felipe Scolari, que, apesar de ter assumido a seleção no final de 2012 com a expectativa de salvador da pátria e afirmando que “a vitória na Copa de 2014 em casa é uma obrigação”,32 não vinha conquistando vitórias contra seleções mais fortes.

Neste item, trabalhamos predominantemente com o discurso contido em blogs oficiais dos canais de TV fechada Sportv (http://sportv.globo.com/site/blogs/) e ESPN Brasil (http://www.espn.com.br/blogs), alimentados com mais regularidade por seus participantes. 32 Para maiores informações, ver http://esporte.ig.com.br/futebol/2012-11-29/ felipao-assume-a-selecao-e-diz-que-ganhar-a-copa-em-casa-e-obrigacao.html. Acesso em 11 jul. 2013. 31

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As dúvidas em relação à atuação de importantes jogadores, como Neymar, Daniel Alves e o próprio retorno do goleiro Júlio César, um dos mais criticados na eliminação da seleção na Copa do Mundo de 2010, eram frequentes. Somado a essas dúvidas, o pessimismo da torcida e de parte da imprensa devia-se ao fato de que a seleção estava em uma posição ruim no ranking da FIFA (antes do torneio, ocupava o 22o lugar) 33 e à participação de equipes mais experientes e bem preparadas, como a atual campeã mundial e europeia, Espanha, a tradicional Itália e o rival Uruguai,34 além dos mexicanos, que nos últimos anos vinham tendo uma retrospectiva favorável nos confrontos com o Brasil.35 A boa participação na primeira fase, com vitórias sobre Japão, México e Itália, e o desempenho do atacante Neymar, que marcou gols importantes em todos os jogos, geraram um discurso favorável à seleção de Felipão, apesar de ainda predominar um tom de desconfiança e de o foco do noticiário nacional estar mais voltado para a intensificação das manifestações ocorridas pelo país.36 Após a vitória no torneio, o Brasil passou a ocupar a nona posição. Disponível em http://pt.fifa.com/worldranking/rankingtable/index.html. Acesso em 15 jul. 2013. 34 A rivalidade entre Brasil e Uruguai é tratada de forma jocosa no post de Fred Soares (http://sportv.globo.com/bola-e-arte/platb/2013/06/11/de-lider-sindical-a-barraqueiro-na-praia-de-ipanema-a-historia-do-embaixador-da-selecaouruguaia-no-brasil/), que conta a história de Milton, um uruguaio radicado no Brasil, dono de uma barraquinha na praia de Ipanema. Acesso em 15 jul. 2013. 35 Um bom exemplo de opinião negativa anterior à Copa das Confederações pode ser encontrado no blog do jornalista do Sportv, André Rizek: http://sportv.globo.com/platb/andrerizek/2013/03/21/a-selecao-e-isso-ai-mesmo/. Acesso em 16 jul. 2013. 36 Mauro Cezar Pereira, da ESPN, aponta que a equipe evolui durante a primeira fase da competição, mas ele continua receoso com a equipe coletivamente. Disponível em http://www.espn.com.br/post/338304_mano-nao-recebeu-legadode-dunga-mas-deixou-time-encaminhado-para-felipao-e-cedo-para-euforia. Acesso em 27 jun. 2013. 33

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Após essa fase, gostaríamos de contrapor duas postagens com abordagens bem distintas. Ambas buscam associar o futebol e as manifestações políticas. O trecho a seguir, de Thiago Crespo, do canal Sportv, apresenta-se, de forma ingênua, com ares poéticos. Seu título é “A revolução e a bola”:37 O gigante acordou. Despertou sem pulo, assinou mais uma pintura. O gás (com) que ele jogou dentro de campo rebentou lágrimas nas arquibancadas… Mas o menino não é polícia: é ‘jogadô’. Primeiro, ele soltou a bomba… tiro de perna esquerda e mãos ao alto. Sem violência! Cheio de amor com a bola, repleto de paz consigo mesmo. Depois, o gigante driblou, dançou, desdenhou dos caminhos previsíveis do campo. Senhor da perfeita harmonia entre gestos e ginga, protestou contra o futebol arbitrário dos tempos modernos. Passou a pelota por debaixo das pernas enquanto passava ele, pelejador, pelo meio dos pobres diabos. Recobrou a genialidade, calculou o passe… livre, o jovem que embarcou de última hora trouxe novas cores à estação. Outono que nada, vivemos a primavera! E João Silva, mais brasileiro impossível, repetiu ao mundo, sem dizer nada, que as vozes do povo naquele momento gritavam por algo mais do que vinte. Gritavam por ele também: João Silva, Jô, camisa 21!

Em contrapartida, Lúcio de Castro escreve de forma mais crítica sobre os acontecimentos desse conturbado momento do torneio, em uma postagem intitulada “Explicações menosprezaram a história de lutas do brasileiro”:38 Disponível em http://sportv.globo.com/inquietude-cronica/platb/2013/06/20/arevolucao-e-a-bola/. Acesso em 16 jul. 2013. 38 Disponível em http://www.espn.com.br/post/337028_explicacoes-menosprezarama-historia-de-luta-do-brasileiro. Acesso em 24 jun. 2013. 37

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Dá pra imaginar o que passa na cabeça da presidenta a essa altura. Se arrependimento matasse... Ah, essa Copa... Ah, essas Olimpíadas... Dona de bela biografia de luta e resistência, tem mil pecados e responsabilidades nisso tudo, principalmente porque não soube dizer não a uma situação e a acordos que herdou. Até ter que engolir o aperto de mão com José Maria Marin. Se omitiu em tantas coisas... E a óbvia maldade risonha de Blatter rindo ao botar fogo na vaia do estádio. Quem muito se abaixa... Quem muito faz concessão. Nessa história toda, está ficando sozinha com o ônus. Lula, que depois de rasgar sua biografia perdeu o pudor em tudo, segue rindo e lucrando com a Copa, em suas viagens e palestras para empreiteiras. Fazendo lobby pra Ricardo Teixeira, Marin... Governadores, políticos, todos... Dilma ficou com o ônus. Pediu isso ao se omitir. Deixou Cabral rasgar a Constituição e passar por cima dela no Maracanã. A alma dos removidos pesa, os milhões consumidos em elefantes brancos enquanto o povo pena nos hospitais e escolas debilitadas, no transporte. A conta chegou.

O jogo contra o Uruguai parece ter sido um divisor de águas durante a trajetória da equipe no torneio, pois o discurso predominante na mídia especializada exalta a força de vontade e a união do grupo, além da possibilidade de disputar a final contra a Espanha no Maracanã. Porém, a postura supostamente arrogante do treinador após a difícil vitória também é destacada na ESPN por José Trajano, conforme se vê no post “Felipão confunde seleção com pátria e não admite críticas”.39 Esses exemplos ilustram bem a diferença que observamos no tom das narrativas entre os blogs dos canais televisivos Sportv e ESPN, tanto no que dizia respeito à Copa das Confederações e 39

Disponível em http://www.espn.com.br/post/339050_felipao-confunde-selecao-com-patria-e-nao-admite-criticas. Acesso em 1o jul. 2013.

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sua relação com as manifestações políticas quanto no que concernia ao desempenho da seleção brasileira. A partida final da Copa das Confederações adquire, no país, contornos identitários em meio a um curioso binômio – futebol x manifestações populares – que divide as opiniões. Para alguns, um retorno unilateral da associação do futebol como ópio do povo, em virtude dos abusos nos gastos públicos com os megaeventos; para outros, uma oportunidade de resgate simbólico da força da pátria de chuteiras. No meio do caminho, milhares de opiniões difusas e, muitas vezes, passionais. No que concerne à análise futebolística da partida, um aparente consenso pode ser identificado nas opiniões dos jornalistas especializados sobre a partida. Tanto os mais “apocalípticos” quanto os mais “integrados”, nos termos consagrados por Umberto Eco (1965), concordam que a seleção brasileira teria jogado bem, “massacrado” a temida “Fúria espanhola” e resgatado o ethos do futebol brasileiro e a esperança de uma boa campanha na Copa do Mundo de 2014. Inclusive, a discussão sobre jogar bonito x jogar de forma moderna e taticamente, como teria feito a nova Família Scolari, aparece em diversos posts.40 No campo, foi um desfecho com festa, emoção e um momentâneo resgate simbólico da machucada “pátria de chuteiras”; porém, as manifestações continuaram nas ruas, os questionamen-

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São exemplos de interessantes posts dos blogs analisados sobre a final, que, apesar de apresentarem lógica, discursivas e abordagens distintas convergem no ponto da boa atuação do Brasil: Lédio Carmona (Sportv) – disponível em http://sportv. globo.com/platb/jogos-que-eu-vi/2013/07/02/a-senha-da-vitoria/; Mauro Cezar Pereira (ESPN) – disponível em http://www.espn.com.br/post/339748_felipaomescla-o-velho-ao-novo-e-brasil-faz-o-que-se-pedia-joga-bem-so-nao-pode-seroutra-copa-das-ilusoes; e Paulo Calçade (ESPN) – disponível em http://www. espn.com.br/post/339775_os-450-minutos-que-mudaram-a-selecao. Acesso em 16 jul. 2013.

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tos ao comitê organizador e a esse novo “padrão FIFA” de torcida perduraram de forma incômoda nos debates cotidianos. Nesse sentido, como apontou João Máximo, antes de o torneio começar, em um post intitulado “Uma Copa que vale pouco ou quase nada”,41 qual é a real importância desse evento para o futebol brasileiro e para o próprio país neste momento? E nós acrescentamos: será que a vitória na Copa das Confederações influenciará uma retroalimentação do nacionalismo cíclico que emerge nos anos em que as Copas são realizadas, ou as recentes manifestações populares podem influenciar ainda mais uma diminuição da identificação do brasileiro com a seleção? Considerações finais Como já dissemos, o futebol foi um elemento primordial na história recente do país, em sua transição de uma sociedade rural para uma moderna sociedade urbana e industrial. Como vários estudiosos destacaram, o futebol, no Brasil, foi um mecanismo de integração social, de solidificação de uma identidade nacional, além de revelar certas características imaginadas da “alma brasileira” (Lever, 1983; DaMatta, 1982; Leite Lopes, 1994; e Helal, 1997). Foi por meio do futebol que os brasileiros puderam “somar Estado nacional e sociedade [...] e sentir a confiança na nossa capacidade como povo [...] que podia vencer como país moderno, que podia, também, cantar com orgulho seu hino e perder-se emocionado dentro do campo verde da bandeira nacional” (DaMatta, 1994, p. 17). Porém, se comparamos a situação atual com a forte carga emocional expressa na derrota na Copa de 1950 ou no tricampeonato em 1970, podemos especular, como fizeram Helal e Gordon (2002), sobre o fato de estarmos assistindo a um declínio do inte41

Disponível em http://www.espn.com.br/post/335339_uma-copa-que-vale-pouco-ou-quase-nada. Acesso em 16 jul. 2013.

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resse pela seleção, apesar das recentes conquistas. Como dito anteriormente, o torcedor esporádico (de Copa do Mundo) ainda conservaria seu “nacionalismo cíclico”, quadrienal, atrelado à seleção, mas a expressão “pátria de chuteiras”, cunhada pelo dramaturgo e escritor Nelson Rodrigues para exprimir a relação que se percebia entre identidade nacional brasileira e seleção de futebol, teria perdido muito de sua carga simbólica. Se a Copa das Confederações é tida como um “ensaio geral” para a Copa do Mundo, o que poderiam indicar a vitória da seleção e as manifestações populares? Se o futebol foi um dos fatores primordiais de integração nacional, sendo a seleção nacional motivo de orgulho e identificação para os brasileiros, principalmente em época de Copa do Mundo, qual seria seu papel no século XXI? Continuar resgatando sentimentos nacionalistas por meio das atuações da seleção ou estimulá-los despertando a população para a crítica política? Referências CABO, A. do. “Copa do Mundo de 1950: Brasil x Uruguai – uma análise comparada do discurso da imprensa”. In MELO, V. A. (org.). História comparada do Esporte. Rio de Janeiro: Shape, 2007. CARMO, M. e YANAKIEW, M. Argentinos, mitos, manias e milongas. São Paulo: Planeta, 2005. CUNHA, E. Os sertões. Companhia de Canudos. 5 ed. Rio de Janeiro: Nova Cultural, 2002. FIFA. Disponível em http://www.fifa.com. Acesso em 20 jun. 2008. DaMATTA, R. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro, Zahar, 1978. ——. Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982. ——. “Antropologia do óbvio: notas em torno do significado do futebol que incorporou a pelada”. Revista da USP, 1994. ECO, U. Apocalípticos e integrados. Barcelona: Lumen, 1965.

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Sobre os autores

Alvaro do Cabo Doutorando em História Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/UFRJ). Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGCOM/UERJ). Pós-graduado em Relações Internacionais pela Universidade Estácio de Sá (UNESA). Bacharel em História pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da IFCS/UFRJ, Francês (Nancy) e Direito. Professor universitário, atualmente leciona na Universidade Cândido Mendes (UCAM), nos cursos de Direito e História. Trabalhou na UERJ na graduação em Comunicação Social como professor substituto; na UNESA, na pós-graduação em História do Direito; e em escolas públicas e privadas, desde 1998. Pesquisador de esportes, com diversos artigos publicados, principalmente sobre a relação da mídia impressa com as Copas do Mundo. Membro do grupo de pesquisa Esporte e Cultura, da Faculdade de Comunicação Social da UERJ, e do Laboratório do SPORT (História do Esporte e Lazer) da UFRJ, credenciados pelo CNPQ. Antonio Jorge Gonçalves Soares Doutor em Educação Física. Realizou estágio de pós-doutorado na Universidade do Porto-FADE-UP. Professor e pesqui-

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sador da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FE/UFRJ). Atua como pesquisador e líder do Laboratório de Pesquisas em Educação do Corpo-CNPq (LABEC) e como pesquisador no Grupo de Estudos de Sistemas Educacionais-CNPq (GESED) e no grupo de pesquisa Esporte e Cultura, da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCS/UERJ). Bolsista do Programa Cientista do Nosso Estado (FAPERJ) e pesquisador PQ-CNPq. Coautor de Futebol, jornalismo e ciências sociais: interações (EdUERJ, 2011), A invenção do país do futebol: mídia, raça e idolatria (Mauad, 2001, 2007 [2 ed.]) e A memória da Copa de 1970: esquecimentos e lembranças do futebol na construção da identidade nacional (Autores Associados, 2009), entre outros trabalhos. Camila Augusta Pereira Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGCOM/UERJ). Graduada em Comunicação Social (habilitação em Publicidade e Propaganda) pela Universidade Estácio de Sá (UNESA, 2005). Pesquisadora do grupo Esporte e Cultura, da Faculdade de Comunicação Social (FCS) da UERJ, cadastrado no CNPq. Participa também da Pesquisa jovem e consumo midiático no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, coordenada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Tem experiência em pesquisa sobre idolatria, representação, identidade, publicidade, rádio e recepção em Copas do Mundo. Autora de diversos artigos relacionados a mídia e esporte. Carmelo Silva Publicitário. Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGCOM/UERJ). Membro do grupo de pes-

Sobre os autores

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quisa Esporte e Cultura, da Faculdade de Comunicação Social (FCS) da UERJ, cadastrado no CNPq. Autor de diversos artigos e capítulos de livros ligados a mídia e esporte. Édison Gastaldo Antropólogo. Professor do Departamento de Letras e Comunicação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (DLC/UFRRJ). Pesquisador do CNPq. Membro do grupo de pesquisa Esporte e Cultura, da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCS/UERJ). Autor de Pátria, chuteiras e propaganda: o brasileiro na publicidade da Copa do Mundo (AnnaBlume/Unisinos, 2002) e Publicidade e sociedade: uma perspectiva antropológica (Sulina, 2013). Coautor de Nações em campo: Copa do Mundo e identidade nacional (Intertexto, 2006), entre outros trabalhos. Fausto Amaro Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGCOM/ UERJ), com bolsa Capes, na linha Cultura de Massa, Cidade e Representação Social. Graduado em Comunicação (habilitação em Relações Públicas) pela mesma universidade. Pesquisador-membro do grupo Esporte e Cultura, da Faculdade de Comunicação Social (FCS) da UERJ, cadastrado no CNPq, e pesquisador-associado da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) e da Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia (Alcar). Já publicou diversos artigos e capítulos de livros ligados a mídia e esporte. Filipe Mostaro Mestrando em Comunicação e Cultura pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGCOM/UERJ). Graduado em Comunicação

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Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF, 2006). Especialista em Jornalismo Esportivo e Negócios do Esporte pelo Instituto de Gestão e Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (IGEC/FACHA, 2012). Integrante do grupo de pesquisa Esporte e Cultura, da Faculdade de Comunicação Social (FCS) da UERJ, e do grupo de pesquisa Comunicação e Esporte, da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom). Autor do livro Garrincha x Pelé: a influência da mídia na carreira de um jogador (Juizforana, 2012) e de vários artigos relacionados a esporte e mídia. Atua principalmente nos seguintes temas: rádio, TV, jornalismo esportivo, Copas do Mundo e identidade nacional. Francisco Ângelo Brinati Doutorando em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGCOM/UERJ). Professor de Práticas Jornalísticas na Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Mestre em Comunicação e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF, 2010) e graduado em Comunicação Social pela mesma instituição (2005). Foi editor da TV Integração/Juiz de Fora, emissora afiliada à Rede Globo de Televisão; professor do curso de Jornalismo da Faculdade Estácio de Sá/Juiz de Fora; e professor substituto de Rádio e TV na Faculdade de Comunicação Social da UFJF. Membro do grupo de pesquisa Esporte e Cultura, da Faculdade de Comunicação Social (FCS) da UERJ, e autor de diversos artigos e capítulos de livros ligados a mídia e esporte. Hugo Lovisolo Doutor em Antropologia Social, com pós-doutorado em Ciências dos Esportes pela Universidade do Porto e em Comunicação Esportiva pela Universidad de Buenos Aires. Colíder do grupo de pesquisa Esporte e Cultura, da Faculdade de Comuni-

Sobre os autores

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cação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCS/ UERJ), cadastrado no CNPq (http://www.comunicacaoeesporte. com). Autor de Vizinhos distantes: universidade e ciência na Argentina e no Brasil (EdUERJ, 2000). Coautor de Esporte de rendimento e esporte na escola (Autores Associados, 2009), Futebol, jornalismo e ciências sociais: interações (EdUERJ, 2011) e A invenção do país do futebol: mídia, raça e idolatria (Mauad, 2001, 2007 [2 ed.]), entre outros trabalhos. João Paulo Vieira Teixeira Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGCOM/UERJ). Graduado em Comunicação Social (habilitação em Jornalismo) pela Faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (Facom/UFJF, 2006). Tem experiência na área de jornalismo impresso diário. Atuou como produtor de reportagem do canal por assinatura Sportv. Integra o grupo de pesquisa Esporte e Cultura, da Faculdade de Comunicação Social (FCS) da UERJ. Autor de diversos artigos e capítulos de livros ligados a mídia e esporte. José Carlos Marques Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (FAAC/UNESP/Bauru) e integrante do Departamento de Ciências Humanas (DCHU) da mesma instituição. Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Licenciado em Letras (Português/Francês) pela USP. Autor do livro O futebol em Nelson Rodrigues (EDUC, 2012, 2 ed.) e de diversos artigos em que discute as relações entre comunicação e esporte. Líder do Grupo de Estudos em Comunicação Esportiva e Fute-

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bol (GECEF) e integrante do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS). Atua, ainda, como coordenador nacional da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) e editor da Iniciacom – Revista Brasileira de Iniciação Científica em Comunicação Social. Leda Costa Doutora em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), tendo defendido a tese A trajetória da queda: as narrativas da derrota e os principais vilões da seleção brasileira em Copas do Mundo. Pesquisadora vinculada ao Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte e Sociedade da Universidade Federal Fluminense (NEPESS/UFF). Editora-chefe da Revista Esporte e Sociedade (http://www.esportesociedade.com). Professora da Uniabeu Centro Universitário e bolsista de Pesquisa Proape (financiada pela instituição), desenvolve pesquisa sobre a história do futebol na Baixada Fluminense. Organiza o blog Caravana de boleiros (http://caravanadeboleiros.blogspot.com.br/), em que relata algumas visitas feitas a diversos estádios do Rio de Janeiro, seguindo um circuito futebolístico alternativo. Márcio Guerra Doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Mestre em Comunicação e Cultura e graduado em Comunicação Social pela mesma instituição. Especialista em Marketing pela Fundação Educacional Machado Sobrinho. Professor associado III da UFJF, onde atua na graduação e nos programas de pós-graduação em Comunicação Empresarial, Jornalismo Multiplataforma e Cinema, TV e Internet e no mestrado da Faculdade de Comunicação Social (Facom). Diretor da Produtora de Multimeios da Facom/UFJF e da Rádio Facom. Por quatro anos, foi coordenador do grupo Comunicação e Esporte,

Sobre os autores

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da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom). Coordena o grupo de pesquisa Comunicação e Esporte da UFJF. Autor de Rádio x TV: o jogo da narração. A imaginação entra em campo e seduz o torcedor (Juizforana, 2012) e Você, ouvinte, é a nossa meta: análise da narrativa radiofônica e sua influência no imaginário do torcedor (Etc. Editora Ltda., 2000), entre outros livros. Marco Antonio Santoro Salvador Doutor em Educação Física. Especialista em Docência Superior e Educação Física Escolar. Professor adjunto do Instituto Multidisciplinar de Formação Humana com Tecnologias da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IFHT/UERJ). Coordenador do Laboratório de Estudos da Aprendizagem Humana (LEAH) e do Seminário de Práticas Educativas EAD. Pesquisador da área de estudos da corporeidade e da história do esporte. Professor do Programa de Mestrado Profissional em Práticas de Educação Básica do Colégio Pedro II (MPPEB-CPII). Coautor de A memória da Copa de 1970: esquecimentos e lembranças do futebol na construção da identidade nacional (Autores Associados, 2009) e O fazer pedagógico: a avaliação como elemento deflagrador de novas ações (Fundação CECIERJ, 2006), entre outros trabalhos. Ronaldo Helal Professor do Departamento de Teoria da Comunicação (DTC) e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutor em Sociologia pela New York University. Pós-doutor em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires. Pesquisador do CNPq. Colíder do grupo de pesquisa Esporte e Cultura, da Faculdade de Comunicação Social (FCS) da UERJ, cadastrado no CNPq (http://www.comunicacaoeesporte.com). Coautor de Futebol, jornalismo e ciências sociais: interações (EdUERJ, 2011), A

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invenção do país do futebol: mídia, raça e idolatria (Mauad, 2001, 2007 [2 ed.]). Autor de Passes e impasses: futebol e cultura de massas no Brasil (Vozes, 1997), entre outros trabalhos.

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