Conversas com Filósofos Brasileiros [1 ed.] 8573261900, 9788573261905

Dezesseis importantes filósofos brasileiros - entre eles Miguel Reale, Benedito Nunes, José Arthur Giannotti, Ruy Fausto

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Conversas com Filósofos Brasileiros [1 ed.]
 8573261900, 9788573261905

Table of contents :
Índice
Apresentação (Marcos Nobre)
Miguel Reale
Henrique de Lima Vaz

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Marcos Nobre e José Mareio Rego

Conversas com Filósofos Brasileiros Miguel Reale Henrique de Lima Vaz Gerd Bornheim Benedito Nunes José Arthur Giannotti Oswaldo Porchat Ruv Fausto Leandro Konder

Bento Prado Jr. Guido Antônio de Almeida Raul Landim Filho Tércio Sampaio Ferraz Jr. Marilena Chaui Paulo Arantes Carlos Nelson Coutinho Balthazar Barbosa Filho

“ Alguns d o s m elhores p e n sa d o re s d o Bra­ sil, m a rx is ta s e e x -m a r x is ta s, católicos e a bju r a n te s . m u it o s deles a m i g o s e c x - a m ig o s de F e r n a n d o H e n r i q u e C a r d o s o , c o n t a m a h is­ tó r ia d a filosofia n o país e d ã o suas o p in iõ e s s o b re p o lítica , religião e a r t e . " Q u e m já c o n ­ v e r s o u c o m filó s o f o s, b r a s i le i ro s e m p a r t i ­ c u la r, i m a g in a os a rre p i o s q u e essa c a r i c a t u ­ ra de i n t r o d u ç ã o jo rnalístic a p r o v o c a r i a no s p e r s o n a g e n s d e s ta s C o itr e r s js . F ilósofos s ã o m u i t o c io sos d a s c o n d iç õ e s e m q u e fa la m . O s m ia s m a s d o m u n d o e da língu a c o m u m p o d e m c o n t a g i a r e e s t r o p ia r sua s idéias. N o c a s o bra sile iro , o zelo típico é a n i m a d o a in d a pelos efeitos de u m t r a u m a d e o rig em . O s p io n e iro s d a filosofia universi­ tá ria o b r i g a r a m - s e a d ife re n c ia r o q u e faziam d o d i le t a n t i s m o e d o ecletism o d a q u e le s que se p r o p u n h a m filó sofos n o Brasil. A n te s de inic iar a v e n t u r a s in te lec tu a is d e s t r a m b e l h a ­ d a s . devia-se f o r m a r , c o m disc ip lina m o n á s ­ tica, o e q u iv a le n te d o e s t u d io s o e u r o p e u de filosofia, c a p a z de e n t e n d e r a re lo jo a ria d o s clá ssic os d o p e n s a m e n to . Essa histó ria de su b s ti t u iç ã o de i m p o r t a ­ ções, vivida e ntre os an o s 5 0 e “ 0, de ce rto n ã o d á c o n t a d o p e r c u r s o de t o d o s os p e n s a d o re s d e s ta s C o iw e r s js . e ne m o p r o j e t o d a f ilo so­ fia u n iv e rs itá ria foi t ã o o r d e n a d o . P a d re s e idéias m edievais, a e scolástica, o t o m i s m o , p u s e ra m m u ito s de nossos p e r s o n a ­ gens na trilha d a filosofia; o m a r x i s m o e n c a n ­ t o u as a lm a s de o u t r o s ta n t o s . A c rítica s o ­ cial de e s q u e rd a viria a e n t r a n h a r a j u v e n t u ­ d e c a tó lic a e d e s a g u a r e m m o v i m e n t o s c o m o a A ç ã o P o p u l a r , c ujo m e n t o r era u m p a d refilósofo. C o m o n o Brasil os rios inte lec tua is s ã o de á g u a p o u c a , a A P deu t a n t o e m m u i ­ to s filó sofos d e s ta s C o n v ersa s c o m o e m q u a ­ d r o s d o a lt o t u c a n a t o . O c a t o l ic is m o e a re v o lu ç ã o p a r e c ia m i n ­ gre d ie n te s q u e d e s a n d a r i a m a receita d a filo­ sofia universitária. \ l a s a disciplina se firm ou, u m e s t r a n h o sucesso n a c i o n a l , q u e se d e veu à f o r m a ç ã o d e u m siste m a d e u n iv e rs id a d e s pú blic a s, a o rigor m e t o d o l ó g ic o (um i m p l a n ­ te a le a t ó r i o d o s m o d o s da u n iv e r s id a d e f r a n ­ cesa n o Brasil) e o u t r a s e stra té g ia s e a caso s.

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3 10 6 15

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Marcos Nobre e José Mareio Rego CONVERSAS COM FILÓSOFOS BRASILEIROS Miguel Reale

Bento Prado Jr.

Henrique de Lima Vaz

Guido A ntônio de Almeida

Gerd Bornheim

Raul Landim Filho

Benediro Nunes

T é rc io Sam paio Ferraz Jr.

Jo sé Arrhur Giannotti

M arilen a Chaui

O sw aldo Porchat

Paulo Arantes

Ruy Fausto

Carlos N elson C outinho

Leandro K onder

Balthazar Barbosa Filho

editoraM34

E D IT O R A 3 4

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Conversas com filósofos brasileiros ©

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A FO TO C O PIA Dfc Q U A LQ U ER FOLHA D ESTE LIV R O É ILEG A L, F. C O N FIG U RA UMA A PRO PRIA ÇÃ O INDEVIDA DO S DIRF.ITOS IN TELEC TU A IS E PA TRIM O N IA IS D O A U T O R .

C ap a, pro jeto gráfico e ed itoração eletrôn ica:

Bracher & Malta Produção Gráfica Im agem da capa:

Nuno Ramos,

M atacão ,

1996, granito, terra e cimento

Revisão:

Adrienne de Oliveira Firmo Cide Piquet Créditos das fotografias:

Sérgio Berezovsky/Abril Imagens (p. 15); Arquivo Marcos Nobre e José Mareio Rego (pp. 31, 47, 121, 229, 253, 400); Ricardo Arnt/Folha Imagem (p. 71); Matuiti Mayezo/Folha Imagem (p. 90); Claudia Guimarães/Folha Imagem (p. 147); Paulo Jares/Abril Imagens (p. 176); Cleo Velleda/Folha Imagem (p. 201); Malu de Souza/ Abril Imagens (p. 272); Juan Esteves/Folha Imagem (p. 301); Bei Pedrosa/Folha Imagem (p. 339); Marcelo Carnaval/Abril Imagens (p. 372)

V

Edição - 2 0 0 0

C atalo g ação na Fonte do D epartam ento N acio n al do Livro (Fu nd ação B iblioteca N acio n al, R J, Brasil) N o b r e , M a rc o s N 585c

C o n v e rsa s c o m filó so fo s b ra s ile iro s / M a r c o s N o b re e Jo s é M a re io R e g o — S ão P au lo: Ed. 3 4 . 2 0 0 0 . 4 3 2 p. IS B N 8 5 - 7 3 2 6 - 1 9 0 - 0 In clu i b ib lio g ra fia . 1. F iló so fo s - B ra sil * E n trev ista s. 2 . F ilo s o fia . 3 . F ilo s o fia - Escudo e e n sin o - B ra sil. I. R e g o , J o s é M a re io . II. T ítu lo . C D D - 109

CONVERSAS C O M FILÓSOFOS BRASILEIROS

A p re se n ta ç ã o ............................................................................................. A g ra d e cim e n to s........................................................................................

7 13

1. M i g u e l R e a l e ..........................................................................................................

15

2 . H e n r i q u e d e L i m a V a z .....................................................................................

29

3 . G e r d B o r n h e i m ......................................................................................................

45

4 . B e n e d i t o N u n e s ....................................................................................................

69

5 . J o s é A r t h u r G i a n n o t t i .................................................................................

91

6 . O s w a l d o P o r c h a t ..............................................................................................

119

7 . R u y F a u s t o ...............................................................................................................

145

8. L e a n d r o K o n d e r .................................................................................................

177

9 . B e n t o P r a d o J r ......................................................................................................

199

1 0 . G u i d o A n t ô n i o df . A l m e i d a ........................................................................

227

1 1 . R aul . L a n d i m F ii .h o ............................................................................................

251

1 2 . T é r c i o S a m p a i o F e r r a z J r .............................................................................

273

1 3 . M a r i i .e n a C h a u i ....................................................................................................

299

1 4 . P a u l o A r a n t e s .......................................................................................................

337

1 5 . C a r l o s N e l s o n C o u t i n h o ...........................................................................

373

16.

B a l t h a z a r B a r b o s a F i l h o ...........................................................................

401

índice O n o m á stic o .......................................................................................................

428

Inara A L ú cia S a n t a e l l a

APRESEN TAÇÃO M arcos Nobre

Quando se fala em filosofia, muitas vezes pode-se ouvir comentários como: “É assunto muitíssimo complicado. Coisa de especialistas”. Nesse caso, a filosofia passa por algo muito profundo, talvez até interessante, mas reservado a poucos. Ou­ tras vezes, o sentido da afirmação é outro: “Filosofia é elucubração sem nenhum sentido prático. Não serve para nada” . Nesse caso, a filosofia se parece mais com o apêndice no corpo humano: existe, mas não tem qualquer função, e, vez por outra, dá apendicite. Afirmações como essas têm algo de verdadeiro. Mostram que a filosofia é hoje quase que exclusivamente uma disciplina universitária. M ostram que a filosofia não resiste ao crivo da lógica da utilidade funcional. M as por que deveríamos nos deter aí? Por que não perguntar: a filosofia sempre foi uma especialidade ensinada ex­ clusivamente em universidades? E necessário que seja assim ou pode ser de outro modo? Ou ainda: por que medir tudo o que existe pelo padrão do “para que ser­ ve” ? Por que a utilidade funcional deve ser o critério para decidir sobre o valor ou desvalor de alguma coisa? Quando nos colocam os essas perguntas, não dá mais para voltar tranqüila­ mente ao senso comum e afastar a filosofia, seja como algo inatingível, seja como algo demasiado inútil. E talvez esteja aí o interesse da filosofia: ela é um estorvo, uma pedra no sapato. Nesse sentido, agarrarmo-nos ao senso comum é uma das maneiras de remover o incômodo. Porque, ao sermos chamados para dar razões para nossas opiniões, crenças e ações, cedo ou tarde iremos esbarrar também em problemas filosóficos, para os quais a história da filosofia apresenta uma série de formulações e de respostas. De modo que este livro de entrevistas pretende tam ­ bém, à sua maneira, colaborar para o exercício e o cultivo do estorvo. M as um livro de “Conversas com filósofos brasileiros" tem de pensar tam ­ bém o que significa fazer filosofia num país periférico, tem de pensar com o a filo­ sofia se instalou por aqui e qual o seu sentido para a cultura brasileira. Cada uma das entrevistas deste livro, cada reconstrução pelos entrevistados de seus respecti­ vos percursos intelectuais, é também uma resposta a essas perguntas. A dificuldade de apresentar um livro como este está justamente aí: como fazêlo sem tomar posição (implícita ou explicitamente) em relação a cada uma das en­ trevistas, em relação a cada um dos temas tratados? E, no entanto, tomar posição neste caso significaria abrir mão do principal objetivo deste livro: apresentar ao leitor depoimentos — revistos e autorizados pelos entrevistados — sobre temas clássicos e contemporâneos da filosofia, sobre processos de formação intelectual, sobre a vida cultural brasileira. Nesse sentido, o título “Conversas com filósofos brasileiros” indica já que não se trata de um livro de “entrevistas” no sentido de que haveria

A p resen tação

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um a efetiva discussão, um d ebate sobre os tem as em p au ta, em que o entrev istad o res b uscariam c o n fro n ta r, no d etalh e, os en tre v ista d o s com p ersp ectiv as d isco rd an tes. São, p o rta n to , d ep o im en to s. Vias são d ep o im en to s dirigidos. F.xemplo disso é a fo rm u laç ão de um a p a u ta básica de p erg u n ta s (no to ta l de dez) a p re sen ta d a a todos os en trev istad o s. N esse sentido, re to rn a de plen o d ireito a d ificu ld ad e acim a, a respeito da to m a d a de posição dos en tre v ista d o re s em relação aos en trev istad o s. E a resp o sta é: a to m a d a de p osição dos en tre v ista d o re s se deu antes d a realização d as en trev istas, q u a n d o da fo rm u laç ão das p erg u n tas. C a b e, e n tã o , ex p licitar os p ressu p o sto s dessa to m a d a de posição, o que serv irá, sim u ltan eam en te, p a ra a p re ­ se n tar este livro. E, espero, servirá ta m b ém p ara d e m o n stra r, senão n e u tra lid a d e, a o m enos im p a rcialid ad e no p ro ced im en to . C o m ecem o s, e n tã o , pela re p ro d u ç ã o da p a u ta básica de p e rg u n ta s que foi ap re sen ta d a a to d o s os entrevistados: 1. G oethe dividiu a vida de seu p ersonagem W ilhelm M eister em dois ro m a n ­ ces, O s anos de aprendizado e O s anos de peregrinação. N o p rim eiro , o foco está p o sto na fo rm ação d o indivíduo W ilhclm M eister, e n q u a n to o segundo desloca esse foco p ara os liam es desse in d iv íd u o com a sociedade. Seria esse um b o m m o te p ara que o(a) senhor(a) n os falasse de sua fo rm a çã o intelectual? 2. Seria possível falar de um a “ filosofia b ra sile ira ” ? C o m o o(a) sen h o r(a) vê as relações en tre a filosofia e a cu ltu ra brasileira? 3. Q ue conceito(s) de sua reflexão o(a) sen h o r(a) d estacaria co m o o(s) m ais rep resentativo(s) de sua p osição filosófica? P ediríam o s q ue o(a) sen h o r(a) n o s c o n ­ tasse co m o surgiu (ou surgiram ) em seu tra b a lh o e co m o o(s) vê hoje. 4. Em sua h istó ria , a filosofia m anteve um a relação estreita co m as ciências e o saber científico. T al relação p erm anece até hoje? C o m o ela se d á na atu alid ad e? 5. D esde H egel, n o século X IX , trava-se um d eb ate so b re o fim d a arte , sobre um possível desap arecim en to d o fenôm eno estético em nossa sociedade. C o m o o(a) senhor(a) se p osiciona em relação a esse debate? 6. É hoje co rre n te o d iag n ó stico de que a p o lítica tem um novo lu g ar. Segun­ d o esse d ia g n ó stic o , a política tal q u al a co n h ecíam o s era u m fen ô m en o essencial­ m ente nacio n al e, a tu alm en te , n ão seria m ais ev idente o p ressu p o sto de um E stad o N ac io n al co m o fonte e g a ra n te do D ireito e co m o d e te n to r d o m o n o p ó lio d o e x e r­ cício legítim o da violência. C o m o o(a) senhor(a) vê ta l diag n ó stico ? N a sua visão, a prim azia de que parecem d e sfru ta r as questõ es m o rais n o d eb ate pú b lico atu al tem relação com esse novo e sta tu to da po lítica em nossos dias? 7. C o m o o(a) senhor(a) c a racteriza ria a sua relação com a religião e a fé? 8. C o m o o(a) senhor(a) se situa em relação aos p ro b lem as de um a “ m u d an ça de p ara d ig m a” da filosofia, de um a filosofia “pós-m etafísica” calcada na linguagem ? 9. O (A ) senhor(a) utilizaria o co n ceito de “ u to p ia ” p a ra descrever sua visão d o fu tu ro da sociedade h u m a n a? Em que consistiria tal u to p ia? 10. N o ssa sociedade p ro d u z incessantem ente elem entos au to d estru tiv o s com o riscos am b ien tais globais, am eaças de desin teg ração social em larga escala e alie­ n ação c u ltu ra l em m assa. C o m o o(a) senhor(a) vê tais pro b lem as?

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M a rc o s N o b re

De saída, cabe explicitar que um primeiro sentido do estabelecimento dessa pauta básica foi o de permitir ao leitor uma melhor condição de comparação das respostas dos entrevistados, incluindo-se aí a possibilidade de percorrer o livro tam ­ bém na trilha de uma única dessas dez questões. Ressaltc-se, entretanto, que a apli­ cação de tal pauta básica vem sempre complementada por questionamentos espe­ cíficos a cada um dos entrevistados, muito embora uma ou outra entrevista, em razão da extensão das respostas à pauta básica, tenha contemplado relativamente pou­ cas questões específicas. Um outro sentido importante desse procedimento foi jus­ tamente o de testar a possibilidade da aplicação de um questionário homogêneo. Pois que se trata de um elemento importante para a avaliação mesma do que seja a filosofia no Brasil, isto é, como instrumento para investigar se há um conjunto de temas que podem ou não ser reconhecidos como um estoque comum de problemas, não obstante todas as diferenças entre os entrevistados. Em segundo lugar, cabe exam inar diretamente o sentido das dez questões propostas. Como primeira observação de caráter geral, pode-se dizer que as for­ mulações pretendiam também permitir ao entrevistado que mesclasse a exposição de suas próprias posições a esclarecimentos sobre a natureza dos problemas em pauta, de modo a aproxim ar o leitor do tema desenvolvido. Quanto à estruturação da pauta de questões, acredito ser possível distinguir três blocos de perguntas. O primeiro abrangeria as três primeiras perguntas, compreendendo diretamente os dados biográficos que se põem como marcos na form ação intelectual dos entrevis­ tados. Na lógica desse primeiro bloco, o percurso intelectual mescla-se necessaria­ mente à pergunta sobre o que seja fazer filosofia no Brasil e aos conceitos que apa­ recem como centrais para a reflexão própria de cada entrevistado. O segundo bloco compreenderia as questões 4 a 7. A tentativa aqui foi a de apontar para questões tradicionais da filosofia, questões que uma entrevista não pode colocar em toda a sua amplitude: não parece possível nem razoável pergun­ tar diretamente sobre a natureza da verdade, do belo e do bem. Sendo assim, a es­ tratégia (no caso das questões 4 a 6) foi a de dar a essas questões sublimes uma formulação que as ancorasse simultaneamente na atualidade e em traços distinti­ vos que as tornassem em alguma medida examináveis. Dessa forma, as questões 4 a 6 abrem, primeiramente, a possibilidade de um exame em perspectiva histórica dos temas da ciência, da arte e da política, da moral e do direito. Em seguida, per­ gunta-se pelo estatuto atual dessas temáticas. É marcante, portanto, a ênfase na formulação atual de problemas filosóficos tradicionais. Já no caso da pergunta 7, a solução foi diversa, pois sua formulação se deu em registro pessoal, o que permi­ te estabelecer correspondência novamente com o primeiro bloco de questões. Ain­ da assim, nada impediu que o entrevistado examinasse o problema em registro mais amplo do que o da sua relação pessoal com a religião e a fé. O terceiro e último bloco não disporia de uma unidade comparável à dos dois primeiros. A sua posição no conjunto, na verdade, tem o sentido de controlar as respostas às questões anteriores, permitindo ao entrevistado prolongá-las e pers­ pectivá-las. A pergunta 8 pede ao entrevistado que opine sobre a filosofia contem ­ porânea a partir de uma questão genérica sobre um momento marcante da refle­ xão filosófica no século X X , que é a chamada “virada lingüística”. A formulação

A p resentação

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permite uma especificação histórica, já que abre a possibilidade do confronto com a tradição metafísica. Nesse sentido, a pergunta remete ao segundo bloco de ques­ tões. A pergunta 9 pretende abrir ao entrevistado a possibilidade de desenvolver temas de filosofia da história. Nesse sentido, permite também remissões ao segun­ do bloco de questões, ao mesmo tempo em que prepara a última questão da pauta básica. Pois enfrentar o conceito de “ utopia” pressupõe um determinado diagnós­ tico de nossa sociedade, e vale a pena pedir do entrevistado uma especificação de tal problema. Com isso, a pergunta 10 pode significar também (potencialmente) uma transição para a teoria social, sem prejuízo de que o entrevistado tenha já analisa­ do toda a pauta básica de questões dessa perspectiva. Entretanto, a marcante ênfase na atualidade que caracteriza todo o conjunto de perguntas não tem apenas o objetivo de aproximar as formulações do leitor nãoespecialista e de tornar — na medida do possível — respondíveis as questões pro­ postas. Uma tal ênfase revela também um outro pressuposto importante da pauta de questões: os entrevistados são postos na condição de filósofos. M as por que se­ ria este um pressuposto problemático, já que se trata exatamente de "conversas com filósofos brasileiros” ? Porque um dos fulcros deste livro é justamente o de investi­ gar se há filósofos brasileiros (e em quê sentido), se há filosofia brasileira (e em quê sentido). O que, certamente, engata também com problemas clássicos da reflexão sobre o Brasil, sobre a cultura brasileira. Justifica-se um tal procedimento? Pode-se, no enquadramento das perguntas, pressupor resolvido um dos problemas mais delicados dessas entrevistas, proble­ ma que só poderia ser debatido e tratado pelos próprios entrevistados? A resposta a essas perguntas embaraçosas são novas perguntas: não é exatamente assim que procedemos quando qualificamos alguém como filósofo? Não é assim que procede­ mos quando refletimos sobre o Brasil? N ão pressupomos sempre um padrão (gre­ go, europeu, americano) a partir do qual nos m edim os ? Partir dessa idéia comum, entretanto, não significa, no caso das entrevistas deste livro, que se esteja de algu­ ma maneira impondo ao entrevistados qualquer conclusão , seja no sentido de que nos definimos sempre pela falta, pela carência em relação ao padrão pressuposto, seja, ao contrário, que a filosofia entre nós não tenha sequer estatuto problemático. Com isso, atingimos uma outra característica essencial desse conjunto de ques­ tões proposto aos entrevistados. Não obstante os pressupostos já explicitados, a pretensão é a de que as perguntas cumpram simultaneamente duas tarefas: que delimitem (com a clareza mínima requerida) os temas a ser abordados e que sejam suficientemente vagas para permitir não só a maior variedade possível de perspec­ tivas nas respostas, mas também — c principalmente — a maior variedade possível de interpretações das perguntas propostas. Pois as perguntas têm formulações que se pretendem deliberadamente vagas, de modo a fazer com que cada uma das res­ postas de cada uma das entrevistas seja já uma interpretação das perguntas pro­ postas. F. a idéia do “depoimento dirigido” apresentada acima significa aqui que os entrevistadores não têm nenhuma pretensão de intervir no sentido de “corrigir” as interpretações dadas às perguntas, no sentido de precisar ao entrevistado o que seria a “verdadeira intenção” da pergunta apresentada. Em termos de conteúdo, não existe uma tal intenção original.

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M a rco s N o b re

Concluída a análise da pauta básica, cabe passar agora ao exame de outro pressuposto da “tomada de posição” prévia por parte dos entrevistadores. Nesse sentido, surge imediatamente a necessidade de examinar os critérios para o estabe­ lecimento da lista de entrevistados. O primeiro critério de seleção foi de natureza geracional: havia que estabelecer a lista a partir de nomes nascidos por volta de 1940 e antes. Decisivo para o estabelecimento desse critério foi o fato de que a instala­ ção de cursos de pós-graduação, a massificação dos cursos de graduação e o cres­ cimento mais expressivo no número de publicações em filosofia deu-se fundamen­ talmente nas décadas de 1960 e 1970. Desse modo, era de crucial importância obter o depoimento daqueles que tomaram parte — direta ou indiretamente — nesse pro­ cesso que moldou o que hoje se costuma designar como filosofia no Brasil. O estabelecimento desse critério primeiro, entretanto, não foi suficiente para dele extrair uma lista de entrevistáveis que coubesse em um único volume. Com satisfação, constatam os que o número de filósofos selecionados com base nesse critério monta a algumas dezenas. M as a satisfação foi acompanhada do grave problema de ser necessário escolher dentre eles apenas dezesseis nomes. O que sig­ nifica desde logo: este volume só pode ser entendido como o primeiro de uma sé­ rie, mesmo mantendo o critério de tomar apenas aqueles filósofos que nasceram por volta de 1940 e antes. Diante dessa dificuldade, cabia proceder à escolha tendo por critério não apenas a relevância intelectual e o papel desempenhado nos diversos processos de institu­ cionalização da filosofia no Brasil, mas também um certo equilíbrio entre múlti­ plas variáveis, tais como regiões de origem e de atuação, ênfase em determinados aspectos e disciplinas da filosofia, presença no debate público, visões diversas so­ bre a natureza do trabalho filosófico (acadêmico ou não-acadêmico. especializado ou exotérico), reconhecimento pelos pares, compreensões diversas e divergentes sobre a natureza da filosofia. Foi com base nessa pretensão de equilíbrio relativo que foi estabelecida a lista, certamente muito incompleta, como já mencionado. De qual­ quer forma, para que o leitor não tivesse seus horizontes limitados à lista aqui estabelecida, em quase todas as entrevistas foi formulada a pergunta sobre quais seriam, na opinião do entrevistado, os filósofos brasileiros mais importantes. Por fim, cabe apresentar ao leitor os procedimentos adotados para a reali­ zação das entrevistas. A idéia original deste livro foi de José M árcio Rego, que já havia realizado (como economista que é) dois volumes de Conversas com econo­ mistas brasileiros , também publicados pela Editora 34. Vinculei-me a esse proje­ to de José M árcio em maio de 1999, e, a partir daí, foi estabelecida a lista de no­ mes e formulada a pauta básica de perguntas a ser submetida a todos os entrevis­ tados. A primeira entrevista foi realizada em fins de setembro de 1999 e a última em abril de 2 0 0 0 . O procedimento foi o de, a partir do roteiro da pauta básica, estabelecer uma pauta complementar específica para cada entrevistado, formulada a partir da lei­ tura de seus livros, artigos e entrevistas. Em média, a pauta de perguntas montava a quarenta questões — sendo cada uma delas apresentada ou descartada, depen­ dendo dos rumos que tomavam as entrevistas — , além das perguntas produzidas no próprio curso da conversa. Todas foram entrevistas gravadas. Realizado o tra-

A p resen taçâo

balho de transcrição e de edição, os textos passaram por uma primeira revisão na Editora 34 e foram encaminhados aos entrevistados para que suprimissem, modi­ ficassem ou alterassem as suas respostas. Os textos definitivos aqui apresentados são exatamente os resultantes dessas revisões feitas pelos entrevistados. As entrevistas aparecem neste livro por ordem de data de nascimento dos entrevistados, dos quais o leitor tem, ao final de cada entrevista, uma breve notí­ cia biográfica e uma lista das principais publicações. Acrescentamos também uma “ Bibliografia de referência” para cada entrevista, procurando indicar, prioritaria­ mente, traduções em língua portuguesa e edições disponíveis em livrarias e biblio­ tecas públicas.

Marcos Nobre é doutor cm Filosofia pela USP, professor de Filosofia da Unicamp e pesqui­ sador do Cebrap. É autor de /í dialética negativa de Theodor W. Adorno, ed. Iluminuras/Fapesp. Josc Mareio Rego é doutor eni Economia pela FGV/SP e doutor em Semiótica pela PUC/SP, professor da FGV/SP e da PUC/SP. É autor, entre outros, de Conversas com economistas brasilei­ ros I e II e Retórica na Econom ia , ed. 34.

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M a rco s N o b re

A G R A D EC IM EN TO S

Na feitura do livro, contamos com a cooperação de muitas pessoas. Antes de tudo, contamos com a assistência direta e cotidiana dos pesquisadores Fernando Costa M attos e M aurício Cardoso Keinert, que colaboraram no levantamento e seleção do material bibliográfico, na elaboração das pautas específicas de cada entrevista e na edição do material. Se há méritos neste livro, eles também cabem a esses dois pesquisadores. Minha colaboração intelectual com Ricardo R. Terra vem de longe e, também no caso deste livro, suas sugestões e críticas foram de decisiva importância. F.m específico, na preparação de três entrevistas, pudemos aprender muito com a livre troca de idéias com os professores Franklin Leopoldo e Silva, Ernani Chaves, Samuel Rodrigues Barbosa, Roberto Barros, Aldrin M oura de Figueiredo, Carlos Eduardo Batalha e Henry Burnett. Também a pesquisadora Inara Luiza M arim auxiliou na edição e na pesquisa de algumas das entrevistas. M as, no caso de Inara, devo mui­ to mais que um agradecimento; devo-lhe o livro, que, de minha parte, a ela dedico.

Marcos N obre

A viabilização deste trabalho só foi possível com a participação de um gran­ de número de pessoas e instituições, impossível aqui elencar todas. Ao menos re­ gistro o apoio logístico da FGV/SP e a ajuda financeira do Núcleo de Pesquisas e Publicações (NPP) da FGV, bem como a influência intelectual e o apoio de Luiz Carlos Bresser Pereira. Fernando Costa M attos e M aurício Keinert foram indis­ pensáveis. Agradeço por último o apoio constante da professora Lúcia Santaella, da Semiótica da PUC/SP, a quem, de minha parte, dedico o livro.

José Márcio Rego

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Miguel Reale: "O fato de a Filosofia tratar dos problemas universais não quer dizer que o filósofo não seja condicionado pelo seu modo de ser social e histórico, e, sobretudo, pela sua lín­ gua, que é o solo da cultura, que é o ponto de intersecção entre a natureza e a cultura. A língua é natureza e é cultura ao mesmo tempo. E cada idioma tem as suas peculiaridades, cada língua tem os seus valores ostensivos e outros ocultos".

M IGUEL REALE (1910)

Miguel Reale nasceu em 1910, em São Bento do Sapucaí (SP). Formou-se em Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco, onde obteve também o título de doutor em Direito e tornou-se catedrático de Filosofia do Direito. Criador do Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF) e fundador da Revista Brasileira de Filoso­ fia, foi secretário de Justiça de São Paulo (1 9 4 7 ; 1962-4) e reitor da Universidade de São Paulo. Supervisionou a comissão elaboradora e revisora do Código Civil Brasileiro, cujo projeto se encontra em tram itação no Congresso N acional. F. membro da Academia Brasileira de Letras e professor emérito da USP. F.sta entre­ vista foi realizada em outubro de 1999.

G oethe dividiu a vida de seu personagem Wilhelm Meister em dois romances. Os anos de aprendizado e Os anos de peregrinação. No pri­ meiro, o foco está posto na form ação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liantes desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que o senhor nos falas­ se de sua form ação intelectual? De certa maneira, a nossa formação intelectual tem duas valências, uma subjetiva e a outra intersubjetiva. Não há dúvida de que, em primeiro lugar, põe-se a formação do indivíduo como tal. Segundo os seus pressupostos genéticos e valorativos. C os­ tumo dizer que o homem está condicionado, até certo ponto, por determinadas di­ retrizes, uma de natureza biológica e outra de natureza ética ou espiritual. Assim como uma pessoa nasce dependendo de determinados antecedentes biológicos, tam­ bém já possui, inerente a sua mentalidade ou a sua sensibilidade, uma vocação para esta ou aquela função social. E o que eu chamo de valor polar. Assim como há DNA para controlar cada individualidade, cada indivíduo também é levado a certa vo­ cação, que pode ser desde para a sacralidade até para as funções empíricas normais. Eu acho que a lembrada distinção de Goethe corresponde no fundo a essa distin­ ção entre o indivíduo em si e o indivíduo para com os outros. Quando se fala, po­ rém, em peregrinação, esta palavra corresponde mais a uma situação local, euro­ péia, sobretudo alemã, que consistia num ideal que tinham os alemães, românti­ cos, sempre de conhecer a Itália, de fazer uma peregrinação autêntica, coisa que nós hoje podemos deixar entre parênteses. Enquanto não saímos de nós mesmos, ou seja, de nosso meio ambiente, não conseguimos formar uma opinião clara a respei­ to do mundo e da vida, de maneira que foi somente quando andei pelo mundo, par­ ticipando de congressos, de atividades políticas e assim por diante, que passei a ter uma dimensão melhor, não só de mim mesmo, mas do próprio país, do Brasil como tal. E nessa correspondência interna e exterior que existe uma relação fundante.

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O senhor nos diz então que a sua experiência em Roma, na década de 30, foi decisiva? E, minha presença em Roma foi decisiva, porquanto eu fui como exilado, exilado por motivos políticos, e lá pude ter contato com uma grande civilização, uma grande cultura e ao mesmo tempo passei a ter uma experiência diversa do próprio fascis­ mo, vendo que ele era uma coisa de longe e outra coisa de perto, tal como explico em minhas memórias. De maneira que é matéria à qual não vou fazer mais referên­ cia porque já pertence à memória, é matéria que já pertence ao memorialismo. Mas a influência de Roma foi grande, porquanto definiu claramente a minha orienta­ ção no sentido da Filosofia, quer da Filosofia em geral, quer da Filosofia do Direi­ to em particular. Até então, eu me preocupara mais com a problemática polírica e literária, ao passo que em Roma tive, digamos assim, uma experiência pessoal mais forte, no sentido de um esclarecimento a respeito dos problemas fundamentais que representam o quadro básico da Filosofia.

Algumas importantes referências da sua obra estão no pensamento de Kant e dos neokantianos, nas filosofias de Husserl e Max Scheler, bem com o na obra de N. Hartmann, que, salvo engano, serve de m odelo e contraponto à síntese filosófica pretendida pelo senhor. Em que circuns­ tâncias o senhor travou prim eiramente contato com as obras desses pensadores e com o os avalia hoje? F.u já tinha tido contato anterior com os neokantianos. Como se sabe, havia duas grandes linhas do neokantismo, uma da escola de M arburgo, impregnada mais por preocupações de natureza lógico-matemática, e outros da escola de Baden, que dava mais importância e relevo à problemática social e ética. O que me atraiu mais foi o neokantismo de Baden, sobretudo pela figura estupenda de Gustavo Radbruch que, pela primeira vez, me colocou perante a problemática da cultura, da cultura que ele ainda via como elemento intermédio entre a natureza e o espírito. A posição de Radbruch a respeito da cultura, com o, de resto, a dos componentes da escola de Baden, era a da sua caracterização como transição. Ele não examinava a proble­ mática cultural como esta veio a ser examinada mais tarde. Ele estabeleceu a cultu­ ra como elemento de mediação, repito, entre a natureza e o espírito, de certa ma­ neira retomando o problema deixado em suspenso por Fíegel, quando identificara a cultura com o próprio espírito objetivo. Hegel, porém, ao identificar cultura com espírito objetivo, fazia-o admitindo algo superior à cultura, que era o espírito absoluto, no qual ele incluía a arte, que é, convenhamos, um componente natural da cultura. De maneira que Fiegel deixou uma solução que era, no fundo, um grande problema. Era uma série de perguntas que emer­ giam da compreensão da cultura como espírito objetivo. Foi meditando sobre essa teoria que escrevi meu primeiro livro, mais significativo no plano filosófico, que é Fundamentos do Direito — o qual, na realidade, deveria ser “ fundamentos da cul­ tura”, porquanto a Filosofia do Direito não é uma filosofia especial. N ão existem filosofias especiais. A Filosofia do Direito é a filosofia mesma enquanto o pensador tem como objeto de estudo e de análise a experiência jurídica. De maneira que a Fi­ losofia do Direito de Hegel c um momento da sua experiência filosófica geral. Aliás,

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aquele que mais conseqüências teve, porque foi o que mais atraiu Karl M arx e do qual este partiu para toda a sua concepção materialista, do materialismo histórico. De maneira que houve muita importância na filosofia neokantiana, que cor­ responde a minha fase inicial, superada depois com o advento de outras correntes de pensamento, sobretudo através de Husserl. Kant é um ponto de partida perene e universal. Toda filosofia moderna é crítica na medida em que herda o criticismo kantiano de uma forma mais extensa ou não. Kant é um depositário de soluções e a todo instante podemos volver a ele para descobrir coisas novas. De início, a filo­ sofia da cultura foi para mim um ponto de partida para uma meditação maior, que iria redundar naquilo que chamo de “culturalism o” . Penso que em poucos países a meditação sobre a cultura atingiu profundidade tão extensa com o no Brasil. En­ quanto a cultura era, em geral, considerada de maneira complementar em relação à natureza, no Brasil essa temática teve outro desenvolvimento, com conseqüências às quais poderei fazer referência ao longo desta breve correspondência de idéias. M as o importante é que Husserl veio trazer um outro elemento ao binômio do conhecimento. Não poderia haver uma teoria da cultura enquanto o homem per­ manecesse voltado exclusivamente para a sua subjetividade; ou seja, enquanto fos­ se uma projeção da problemática cartesiana do cogito, porquanto a cultura é um transcender da cogitação subjetiva envolvendo imediatamente a pessoa do outro. E, por outro lado, Husserl vem mostrar que o conhecimento humano não é m ono­ córdico no sentido da subjetividade, porque a própria consciência é consciência de algo, de maneira que ele soube reviver o velho conceito medieval da intencionalidade. A consciência como intencionalidade leva à idéia do objeto: o eu e o outro, esse outro que pode ser uma coisa ou uma outra pessoa, um outro sujeito, compondo, por­ tanto, uma correlação muito complexa. Com a filosofia de Husserl, os neokantianos passaram a dar valor ao objeto e, por conseguinte, também foi possível que se pu­ sesse em realce a problemática do valor. E aí que começa a segunda fase do meu pensamento, em que supero pratica­ mente a filosofia neokantiana da cultura, do culturalismo de Baden, levando em consideração a problemática do valor. A teoria do valor é antiga, mas como uma teoria autônoma é um problema recente na história das idéias, é uma problemática praticamente do fim do século X IX e começo do século X X , quando na realidade a palavra “valor” passou a ser mais usada, porque antigamente ela estava um pouco misturada com a teoria do bem, da moralidade e assim por diante. O valor passou a ter um status filosófico autônomo e isso representou uma mudança de 180° no mundo da filosofia. E preciso, a meu ver, salientar que é a Axiologia que dá nova orientação à temática filosófica contemporânea. E me vi, então, em contato com grandes companheiros de Husserl, que eram M ax Scheler e Nicolai Hartmann. Ambos, porém, tratavam do valor com o um objeto ideal e esse é um problema so­ bre o qual eu queria chamar especial atenção. O valor é um objeto ideal? Há razão para permanecermos nesse platonismo? Será que o valor é algo que pode ser equi­ parado a um objeto matemático, ou a um objeto lógico? Foi nos meus livros, Filo­ sofia do Direito , em primeiro lugar, e Pluralismo e liberdade, em segundo lugar, que procurei mostrar que o valor tem um status próprio, que o valor não é um objeto ideal. E aqui, para chegar ao trato dessa matéria, volvi novamente a Kant, mas sob

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um ângulo diferente, que é o da distinção básica entre ser e dever ser, Sein e Sollen. E, por outro lado, da correlação, desse binômio, que é o Sein-Sollen. Então, é aí que começa a segunda fase do meu pensamento, que eu chamaria de fase axiológica, porquanto cheguei à conclusão — e este é um ponto básico de meu pensamento, e, se alguma contribuição trouxe à matéria, essa é uma delas — de que o valor não pertence ao mundo do Sein , do ser, mas pertence, ao contrário, ao mundo do de­ ver ser, do Sollen. Chegando à conclusão, por conseguinte, de que “o ser do valor é o seu dever ser” . Notem a importância desta frase, pois ela é fundamental: o ser do valor é o seu dever ser. O valor, na realidade, com o o belo ou o verdadeiro, não pode ser equiparado a uma figura geométrica, a uma circunferência, por exemplo, porque um círculo, um triângulo, um número são objetos ideais. E mesmo quando se esta­ belecem relações entre eles, temos o mundo da M atem ática, da Álgebra, o mundo da Lógica contemporânea, da nova I.ógica, paraconsistente ou não. O importante é que as relações lógicas são sempre relações de tipo ideal, desenvolvendo-se no plano do Sein, do ser. O valor, ao contrário, converte o objeto em objetivo, porque quando digo “é belo”, essa minha afirmação de beleza implica uma tomada de posição. Nin­ guém toma posição perante um triângulo ou um círculo. O valor, ao contrário, im­ plica a conversão do objeto em objetivo. E, por outro lado, enquanto no mundo da Lógica prevalece o quantitativo sobre o qualitativo, 110 mundo da Axiologia, ao contrário, é a qualidade o elemento dominante. É o qualitativo que distingue um valor de outro valor. O que permite uma gradação. Não há uma circunferência mais circunferência do que outra, mas existe mais beleza a respeito deste ou daquele dado da natureza ou do espírito. Então, o valor tem uma consistência diferente, o que me leva à seguinte conclusão: somente se pode falar numa Axiologia, no sentido pleno da palavra, quando se tem um conceito autônomo de valor. De outra manei­ ra, seremos obrigados a dizer que a Axiologia é uma parte da M etafísica, ou então que a Axiologia é uma parte da F.tica etc., ao passo que eu entendo que a Axiologia é uma parte autônoma da Filosofia. A Axiologia é uma das partes autônomas, ao lado da Lógica, ao lado da Ética. Interligada sempre, porque os problemas filosó­ ficos não são nunca isolados, desprendidos uns dos outros, mas sempre em cone­ xão necessária, em linha de complementaridade. F. essa compreensão autônoma e dinâmica do valor que está na base do meu "historicism o axiológico”, que se distingue do historicismo hegeliano em virtude de seu sentido axiológico, do qual decorre a aplicação da dialética de implicaçãopolaridade ou de complementaridade, exatamente em razão de ser a polaridade uma das características essenciais dos valores, que entre si se implicam, sem se reduzi­ rem uns aos outros. Esse modo de ver veio repercutir também no campo da Filosofia do Direito, levando-me a dizer que não é bastante afirmar, com o já haviam feito alguns auto­ res, que a experiência jurídica se compõe de fatos, de valores e normas. Porque esse é apenas o aspecto quantitativo do problema. O importante é mostrar que esses ele­ mentos se dialetizam, se implicam reciprocamente, e foi aí que começou a teoria tridimensional do Direito. A idéia de teoria tridimensional do Direito começa não quando se diz que há três fatores compondo a realidade jurídica, mas, sim, quando

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se analisam esses fatores e se descobre o nexo finalístico que existe entre eles. E então, é a dialeticidade de fato, valor e norma que está na raiz da teoria tridimensional do Direito. Como se vê, a indagação filosófica em meu espírito marcha pari passu com a indagação jurídica. E são dois os pontos de apoio do meu raciocínio: o do ho­ mem enquanto homem e o do Direito como experiência. Este, aliás, é o título de uma das minhas obras, O Direito com o experiência , que marca exatamente o mo­ mento culminante dessa segunda fase, que eu chamaria de axiológico-concreta. E, com isso, foi possível mostrar que havia certo engano por parte de Nicolai Hartmann, quando fazia uma identificação entre cultura e espírito objetivo, repetindo o mesmo engano de Hegel. A cultura é a manifestação do homem em relação à natureza, no instante em que ele torna a natureza diversa em razão dele mesmo: é essa intencionalidade da consciência que altera o natural para convertê-lo em algo que realiza a especifici­ dade humana. Daí o conceito de cultura que estabeleço como um património da espiritualidade, que a espécie humana vai acumulando para a realização de seus fins específicos. Em virtude da radicalidade da cultura, ultimamente eu tenho falado em a priori cultural. Mas é claro que, enquanto indagava acerca desse ponto de vista, sempre me surgiu o problema da ligação entre Axiologia e M etafísica. Se, de certa maneira, eu extraíra da M etafísica a Axiologia, que relação havia ainda entre elas? Como pen­ sar em M etafísica? F. é aí que surge o terceiro período do meu pensamento, que cor­ responde propriamente ao livro Experiência e cultura, que representa uma nova fase. Eu diria talvez que não são propriamente fases, mas momentos de algo que vai ama­ durecendo à medida que a experiência filosófica vai se adensando. É claro que isto importava em uma nova atitude filosófica no Brasil, diferen­ te da que vinha dominando, porquanto, infelizmente, o que prevalecia nas univer­ sidades era uma atitude quase que passiva diante dos textos, sem se envolver com o tratamento da matéria. Era uma interpretação dos grandes autores sem que hou­ vesse o arrojo do pensamento próprio, sem uma preocupação que emerge, não por vaidade pessoal, mas pelo próprio andamento, pelo próprio processar-se da pes­ quisa, no sentido de formular uma pergunta e tomar uma posição distinta, o que é próprio da imaginação criadora. Então, inegavelmente, na minha experiência pes­ soal há algo que representa uma tomada de posição perante o pensamento alheio, não sendo apenas um aperfeiçoamento hermenêutico. É claro que ninguém nega o mérito das universidades ao surgirem as faculdades de Filosofia, que aprimoraram o aprendizado filosófico, exigindo método, exigindo ida às fontes, a meditação direta dos autores, e não apenas o recebimento da informação através de terceiros. Essa a grande função das universidades, a de criar a metodologia científica do aprendiza­ do filosófico e o quadro das idéias universais. Porém, talvez se tenha exagerado de­ mais a preocupação de atenção ao texto, até o ponto de não se ir além dele, em di­ reção a uma “pergunta pessoal" que se insere no processo hermenêutico, no pro­ cesso de interpretação. O senhor identifica essa atitude, p or exemplo, com a produção do De­ partamento de Filosofia da USP?

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No Departamento de Filosofia da USP houve e há pensadores que procuraram e procuram ter uma atitude própria; porém nunca foi, digamos assim, um objetivo permanente. Eles deixaram algo de próprio ao fazerem interpretações, em seu tra­ balho hermenêutico, mas nunca houve a preocupação da revelação autônom a, so­ bretudo quando dominou a escola estruturalista, dificultando uma nova tomada de posição criadora. E nós podemos dizer em Filosofia o que Alberto Torres dizia em Política: toda revolução começa com uma tomada de posição em face dos proble­ mas. Quer dizer, o problematicismo da Filosofia está faltando um pouco na vivência universitária. Foi o que me levou a criar o Instituto Brasileiro de Filosofia, que pre­ tendia tornar a Filosofia aberta a todos, sem exigir diploma para ser filósofo. V oltando, porém , à exposição que eu estava fazendo, ao verificar que a Axiologia tem um status próprio, surgia a pergunta: e o absoluto, e aquilo que transcende a ligação intersubjetiva na teoria do conhecimento? Aquilo que se põe com o o incognoscível? A filosofia do absoluto de Hegel, a idéia com o universal concreto, isso não representa nada de fundamental para nós? As posições são as mais conhecidas, conforme a atitude que se tem. Hegel não admitia sequer que se pusesse em dúvida essa questão, dizendo que a pergunta sobre o conhecimento da M etafísica não tem sentido, porque a pergunta pelo conhecer já é conhecer. De maneira que a teoria do conhecimento não pode ser um pressuposto da Filo­ sofia, porque ela já é Filosofia de per si. M as o importante é que aí achei interes­ sante volver a uma posição que foi própria de certos momentos da Filosofia me­ dieval, volver à posição, por exemplo, de Nicolau de Cusa, quando ele fala de conjeturas. Há graus da verdade, ou melhor, há graus do verdadeiro. Exatam ente com o no caso do belo, em que os valores se hierarquizam, há graus do verdadei­ ro. Aliás, a Lógica contemporânea nos dá razão quando fala em “quase-verdade”. A Lógica paraconsistente é a Lógica da quase-verdade. Então, temos que en­ frentar esse problema, e me pareceu que devíamos colocar o problema em termos conjeturais. A palavra “conjetura” estava sendo muito usada no momento em que che­ guei a essa etapa da minha experiência pessoal da Filosofia, sobretudo através das obras de Karl Popper sobre Epistemologia. Porém, meditando sobre a posição de Popper, cheguei à seguinte conclusão: Popper tem, a respeito da conjetura, uma concepção um tanto imprecisa, porque ele inclui no plano conjetural também o que se revela provável. O ra, parece-me que o provável não é conjetural, porque já se insere no quantitativo. A meu ver, o conjetural se restringe ao plausível, ao proble­ mático, ao metafórico, àquela faixa na qual não se dá uma resposta afirmativa, mas se põe um “como se”, um ais ob, que demarca a problematicidade. M ais uma vez voltando a Kant, fui verificar que ele havia tratado do problema numa fase decisi­ va de sua evolução espiritual. Depois de ter publicado a Crítica da razão pura, Kant escreve pequenos estudos sobre a história. Nada mais conjetural do que a história, e ele o percebeu bem. Kant tem um trabalho dedicado à conjetura no qual declara que esta é uma forma de pensar com o, por exemplo, a de quem está numa ilha de­ serta cercada pela escuridão da noite e percebe que além dela existe alguma coisa, que não sabe o que é, mas existe alguma coisa que pressupõe como existente, so­ bre a qual se conjetura.

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Então, o que distingue a conjetura? A conjetura não é um devaneio, a conjetura não é um sonho, não é uma invenção. A conjetura é uma suposição com base no real. Kant mesmo declara que a conjetura é como um pássaro que voa o mais alto possível, mas ligado sempre à experiência. E algo de experienciável, pelo menos com o tentativa. É o que penso ter demonstrado em meu livro Verdade e conjetura , que vem completar Experiência e cultura, onde já aludo ao pensamen­ to conjetural. Também ocorreu aqui uma outra alteração na teoria do Direito, que foi a de mostrar com o, no campo da Ciência do Direito, opera também a conjetura. Há uma série de problemas jurídicos que só se resolvem conjeturalmente e que não podem ser resolvidos pela Lógica tradicional, pura ou dogmática. De maneira que o im­ portante é que o filósofo do Direito não se limite ao exame dos textos, por mais altos que sejam, ainda que se trate de texto constitucional, mas indague de seus pressupostos éticos. Tom ar uma posição não por querer tomar, mas porque o es­ tudo leva a isso. Leia-se, nesse sentido, Nova fase do Direito moderno, o qual, se­ gundo Antônio Braz Teixeira, devia chamar-se Direito e conjetura.

Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Com o o senhor vê as relações entre a filosofia e a cultura brasileira? Bom, estou convencido de que hoje em dia já se pode falar numa filosofia brasilei­ ra, tal o número de autores que tomaram posição própria perante os grandes pen­ sadores. E os portugueses foram além, fundando o Instituto de Filosofia Luso-Brasileira. Eles entendem que existe uma filosofia de língua portuguesa. O problema é muito delicado e diz respeito à existência ou não das chamadas filosofias nacionais. Eu estou convencido de que não há filosofia que não seja, até certo ponto, nacio­ nal. O fato de a Filosofia tratar dos problemas universais não quer dizer que o filó­ sofo não seja condicionado pelo seu modo de ser social c histórico, e, sobretudo, pela sua língua, que é o solo da cultura, que é o ponto de intersecção entre a natu­ reza e a cultura. A língua é natureza e é cultura ao mesmo tempo. E cada idioma tem as suas peculiaridades, cada língua tem os seus valores ostensivos e outros ocul­ tos. Há palavras alemãs que são intraduzíveis para o português, assim como até no próprio italiano, que é uma língua irmã, há palavras que não encontram uma tra­ dução rigorosa. Quer dizer, a nossa língua é uma condicionante do nosso ser pes­ soal e do nosso ser filosofante, da nossa própria capacidade de pensar e de filoso­ far. Há, hoje em dia, uma filosofia brasileira, mas não no sentido, evidentemente, de uma autarquia, o que seria uma tolice. Somos uma continuação do patrimônio do pensamento ocidental. Por mais que o Brasil possa progredir e os Estados Uni­ dos possam avançar na linha do tempo, a América será sempre idealmente uma projeção da Europa. Nós somos uma projeção do Ocidente. Nós falamos grego e falamos latim. E, com isso, tiramos desse patrimônio, que vem de milênios, um resultado para poder pensar, mesmo porque, toda vez que encontramos uma solução, essa solução põe logo em seguida um novo problema. O problematicismo é inerente à própria inda­ gação filosófica. E nesse sentido amplo que falo em filosofia brasileira. É fácil re­ conhecer que a filosofia alemã não é igual à filosofia francesa, não é igual à filoso-

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fia anglo-americana. Diferença de temas, predileções por assuntos, atitude na ma­ neira de colocá-los, tendência a responder num sentido ou em outro, tudo isso nas­ ce num cenário diferente para o pensador deste ou daquele outro país. Enquanto o Brasil se limitou passivamente a ser influenciado, não havia filosofia brasileira, havia apenas a história das influências recebidas. M as, desde o momento em que passa­ mos a perguntar: na maneira de ser influenciado, não existe algo de próprio?, co­ meçamos a tomar consciência daquilo que é nosso. Então se pode falar na filosofia brasileira, que significa a tomada de posição do brasileiro perante a Filosofia.

Quais são, em sua opinião, os filósofos brasileiros mais importantes? Temos, na Lógica — e a Lógica para mim é uma parte fundamental da Filosofia — , o Newton Carneiro Affonso da Costa, criador da Lógica paraconsistente, trazen­ do uma contribuição de repercussão universal. Tem os, no passado, alguns pensa­ dores que, por mais que tenham tido compreensão pouco original, apresentam algo de próprio. Lembro sobretudo o nome de Tobias Barreto, que nos apresentou uma intuição primordial da cultura, em função das conjunturas do Nordeste. Por que a cultura surgiu em seu espírito como o “antagônico da natureza” ? Porque o nor­ destino vive em função da natureza amarga e adversa, aquela natureza que, como dizia José Américo de Almeida, é para o Nordeste menos mãe do que madrasta. O nordestino sente a necessidade de superar a natureza e de dominá-la através da cultura. Então, para Tobias Barreto, a cultura é um meio, um modo de dominar e ajeitar a natureza para poder torná-la menos agressiva. Se Ortega diz que o homem é a sua própria condição, então essa condicionalidade geral não pode deixar de existir no mundo filosófico. Dentre os pensadores nacionais atuais, eu lembraria Antônio Paim, que tem dedicado muita atenção à problemática da cultura e também à his­ tória das idéias no Brasil. O seu livro sobre a história das idéias no Brasil veio sis­ tematizar a matéria e mudar o ângulo, alterar a orientação dos estudos. Aliás, uma das minhas preocupações maiores foi a de fazer com que os brasileiros tomassem consciência do que lhes é próprio, muito embora sempre no contexto do pensamento universal. Antes do Instituto Brasileiro de Filosofia e da atuação que este exerceu, estudava-se a Filosofia 110 Brasil partindo-se do pressuposto de que o brasileiro não produzira nada de próprio, sendo mero reprodutor do pensado alhures. E, depois, quando se queria avaliar o pensador, parece que se tomava a medida do certo e do errado conforme se estava perto ou distante de Kant, perto ou distante de São T o ­ más de Aquino, perto ou distante de Hegel, e assim por diante. Quer dizer, segun­ do parâmetros externos, sem uma avaliação íntima. O 1BF veio trazer nova linha metodológico-hermenêutica, e é a que vem sendo seguida pelos que pertencem ao Instituto Brasileiro de Filosofia e que, hoje em dia, felizmente, já está prevalecendo em várias universidades brasileiras. Penso que na Unicamp os senhores já seguem uma orientação aberta e não a de fidelidade exclusiva a determinadas diretrizes, em uma compreensão abstrata do fenômeno humano.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­ cias e o saber científico. Tal relação perm anece até hoje? Com o ela se dá na atualidade?

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Eu sempre tive a preocupação de colocar os problemas filosóficos levando em con­ ta o aspecto científico. E tive uma grande alegria quando, no evolver do meu pen­ samento, cheguei, por exemplo, à conclusão de que somente o princípio de com ­ plementaridade poderia servir de parâmetro para a problemática ética e jurídica. F. a minha alegria foi grande ao constatar que o princípio de complementaridade tam­ bém domina nas ciências físicas. Encontrar um princípio com o esse de complemen­ taridade, com o base de pesquisa e de referência, tanto para o pesquisador da física como para o das ciências humanas, foi um grande avanço, uma espécie de prova de verdade. Ou, pelo menos, prova de verossimilhança, dessa possibilidade de um novo princípio ser aplicado em um campo e em outro do conhecimento humano, no mundo da natureza e no mundo da cultura. Não digo que o filósofo deva sempre ter vocação científica, porque seria pre­ tender que todo filósofo tivesse o mesmo feitio. O meu feitio é de respeito à ciência e de uma preocupação sempre muito ativa no sentido, por exemplo, de correlacionar a Filosofia do Direito com a Ciência do Direito positivo, de não fazer uma Filoso­ fia do Direito abstrata, perdida na estratosfera, mas, ao contrário, de fazer uma Fi­ losofia do Direito que diga respeito à atividade do juiz, do advogado, daquele que toma parte no processo em defesa dos seus interesses. É uma atitude minha, como é de grande número de juristas atuais. M as não exageremos. O neopositivismo, por exemplo, considera que tudo aquilo que não tem vinculação com a ciência não tem sentido, é meaningless. Considero essa atitude exagerada. Compreendo, por exem ­ plo, um filósofo que seja puramente metafísico, que não dê importância absoluta­ mente à problemática científica, porque ele transcende esse aspecto da ciência para pôr os problemas apenas no plano do ser, da problemática do ser em si, e assim por diante. De maneira que não vejo razão alguma para optar por uma filosofia segundo modelos determinados e inflexíveis.

Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenôm eno estético em nossa socieda­ de. Com o o senhor se posiciona em relação a esse d ebate? Mas quem é que teria dito que a Estética está em risco de desaparecer? Atribui-se a Hegel essa afirmação? Eu a considero errônea. Hegel tinha antes temor de que isso pudesse acontecer. Porque uma das partes mais belas da filosofia de Hegel é exata­ mente a Estética. A sua Estética é, 110 fundo, a continuação daquilo que considero a concepção maior de Kant, a Crítica do juízo. Porque a Crítica do juízo de Kant tem um valor autônom o, é conjetural. F. Hegel partiu dessa visão estética para transformá-la em visão do absoluto, a arte é superada apenas pela visão do abso­ luto. De maneira que algo que é superado só pelo absoluto, é inferior, por assim dizer, diante da idéia do absoluto, mas é válido enquanto momento dos mais altos do espírito. De maneira que não creio que o belo desapareça. Pode haver uma maior 011 menor compreensão do belo, um sentido diferente do belo, podemos admitir até um belo horrível e outras deformações desse tipo. Eu prefiro manter a linha tradi­ cional. A beleza, para mim, é uma coisa, e a feiúra, outra. Eu poderia ser conside­ rado um conservador, mas prefiro conservar certos parâmetros e paradigmas que são com o que projeções do passado, momentos de uma continuidade histórica.

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É hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico , a política tal qual a conhecíam os era um fe­ nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado N acional com o fonte e garante do Direito e com o detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como o senhor vê tal diagnóstico? Na sua visão, a prim azia de que parecem desfrutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias? N ão creio que a política somente atualmente, somente hoje em dia, tenha uma po­ sição de primazia ou de excelência. Já os gregos tinham a noção fundamentai da vida política. A vida política foi coeva com a vida filosófica. Sócrates tinha, a seu modo, a sua política, assim como tinha a sua ética. O importante é dar à política a sua posição própria. A política sempre esteve presente no homem, porque o homem é um ser político por natureza, por ser um ser histórico. O homem é um ser histó­ rico, portanto traz sempre um problema a ser resolvido. E onde há problemas a serem resolvidos na sociedade, há uma política a ser realizada. A política de M aquiavel, por exemplo, foi um momento fundamental na história do homem, quando a polí­ tica deixou de ser parte da ética para passar a ser uma ciência autônoma, uma or­ dem de estudos dotada de significação própria. Assim como a Axiologia é dotada de significação própria, a política também é ordem de estudos de significação pró­ pria. Essa foi a grande novidade de M aquiavel, mais do que o maquiavelismo que, às vezes, é uma falsa atribuição a ele do que ele não disse e não pensou. De manei­ ra que a política está sempre vinculada à situação do homem. Diz-se que, neste momento, não há mais um Estado Nacional, porquanto pre­ valeceria a globalização. Parece-me ser essa a finalidade última da pergunta. A globa­ lização é um fenômeno, é um fato que está aí, resultante do progresso tecnológico, da informática, das telecomunicações, da cibernética, em suma. Mas isso não sig­ nifica que os Estados Nacionais tenham desaparecido, porquanto, por mais que se universalize, há sempre uma tomada de posição a respeito do que é próprio. M es­ mo porque o Estado tem múltiplas funções. F. uma tolice, no meu modo de enten­ der, afirmar que o Estado, em economia, deixou de ter um papel próprio para ser mero receptor de choques e conflitos de capitais estrangeiros ou externos. Não, o Estado tem sempre uma função de controle, de gerenciamento, quando mais não seja, de preservação do que é próprio. Temos visto a todo instante o Estado brasi­ leiro sendo obrigado a tomar posição perante crises de vários tipos, com o a asiáti­ ca, a russa e assim por diante. F. no momento de crise que a força do Estado apare­ ce, e o Estado Nacional subsistirá sempre, como subsistirá também a política lo­ cal, a municipal, a regional, conforme as circunstâncias e conjeturas. Porque isso é uma dimensão do homem. Dimensão universal, dimensão nacional, dimensão re­ gional, dimensão local, mas sempre a expressão de modo de ser da vida humana em determinadas conjunturas.

Com o o senhor caracterizaria a sua relação com a religião e a fé? Bom, esse é um problema íntimo, fundamentalmente. Já escrevi sobre o assunto, até um artigo que teve uma grande repercussão, escrito quando perdi minha espo­

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sa, em que tratei da problemática da morte. No meu modo de entender, a questão se põe da seguinte maneira: há muitos caminhos para a fé. Segundo a filosofia tra­ dicional, com o a escolástica, por exemplo, a razão em si mesma já é bastante para se chegar à fé, com a prova da existência de Deus, da imortalidade da alma e assim por diante. Eu entendo que a fé pode ser atingida por outras vias, com o, por exem ­ plo, a do amor. Em lugar de dizer “creio, logo existo”, posso dizer “creio, logo Deus é ”, ou então “amo, logo Deus é ” . São caminhos múltiplos, que não estão sujeitos a uma explicação racional, lógica, nem tampouco lógico-dialética. M as isso não quer dizer que esses problemas não existam. O incognoscível tem sido reconhecido sempre como algo de que se tem de falar, e até mesmo o silêncio tem alguma significação diante do incognoscível.

Com o o senhor se situa em relação aos problem as de uma “mudança de paradigm a” da filosofia, de uma filosofia “pós-m etafísica” calcada na linguagem? Não estou muito de acordo com aqueles que querem esvaziar a filosofia de seu con­ teúdo tradicional para nos atermos apenas aos aspectos lingüísticos. A redução da filosofia à teoria da linguagem é um empobrecimento da filosofia. E claro que a teoria da linguagem é importantíssima. Eu mesmo acabei de dizer que a língua é o ponto de contato entre a natureza e a cultura, é o ponto em que o natural se converte em cultural. É onde se encontra a raiz de tudo, com o, por exemplo, no momento em que o homem fala, o homem canta, e, cantando, surge o estético. Quer dizer, a fala, a linguagem está na raiz de tudo, tanto da beleza como da verdade. M as isso não quer dizer que devamos ficar adstritos ao conhecimento da linguagem e, bem mais do que isso, à teoria da argumentação, da comunicação. A comunicação é a pala­ vra de ordem contemporânea. Não há dúvida nenhuma de que nós estamos cada vez mais enriquecidos do poder de comunicar. Penso, porém, como Apel, que, à medida que cresce a comunicação, cresce a ética, a responsabilidade do que se co­ munica e da necessidade de saber ouvir antes de falar. De maneira que a teoria da linguagem é importantíssima, mas ela será só um dos tantos caminhos do filoso­ far. A beleza da filosofia está nisso, no seu pluralismo, na sua multiplicidade de posições e de respostas que produzem sempre novos problemas. O senhor utilizaria o conceito de “utopia ” para descrever sua visão do futuro da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia? N ão uso a palavra “ utopia”. Prefiro usar a palavra “horizonte”. “U topia” é uma palavra vazia de significado, mera abstração, em função do querer e da aspiração de cada um. Com o multiplicar-se da com unicação, forma-se um horizonte envol­ vente, o “grande envolvente” a que se referia Jaspers. Esse “grande envolvente”, que abrange tudo, é que permite que tudo tenha significado. As coisas não valem somente pelo que elas são, mas também pelo modo com o se situam aqui e agora, em determinado momento. Sendo o ser humano um ser histórico de natureza intersubjetiva, põe-se a idéia de horizonte com o o ponto ideal que devemos alcançar, e que recua à medida que o viajor avança. De maneira que nunca poderemos abran­ ger o horizonte, mas também sabemos que nada poderemos ser se não tivermos ho-

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rizonte. Essa dupla função da idéia de horizonte é a que me parece básica para uma compreensão existencial. De todas as formas existenciais a que mais me atrai é a jasperiana, exatamente por ter ele visto o horizonte como pontos de reflexão e de inspiração. Pensar que há algo que procuramos alcançar e que, quanto mais che­ gamos perto dele, mais ele se projeta para frente, significa a consciência infinita do indivíduo. O senhor acredita que há progresso na história? O progresso é uma idéia relativa. É claro que, se perguntarem se há progresso no plano da com unicação, a resposta é afirmativa. M as progresso é uma expressão aberta. O que nós podemos dizer é que o homem avança e vai conseguindo sempre novas soluções. Mas a ciência nos demonstra que, toda vez que ela atinge uma so­ lução, coloca no lugar dela um novo problema. Não importa que haja retrocesso. As vezes, voltar a certos pensadores, como, por exemplo, a Platão, significa um avanço imenso; voltar a Aristóteles pode signi­ ficar uma conquista. De maneira que o problema do espaço e do tempo tem que ser levado em conta. O tempo cultural não é igual ao tempo cronológico, ao tem­ po do relógio. Cada época vê Platão a seu modo. É possível que hoje estejamos vendo Platão melhor do que os gregos.

Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos com o riscos am bientais globais, am eaças de desintegração social emlarga escala e alienação cultural em massa. Com o o senhor vê tais pro­ blem asf Essa questão é mesmo uma questão de fecho, de conclusão, porque é o problema que atormenta a humanidade. Enquanto atingimos o máximo de expressão cien­ tífica, ao mesmo tempo nos vemos diante da máxima expressão de violência. A vio­ lência sempre existiu na história e sempre se procurou controlá-la, mas hoje pouco têm podido as leis, as regras jurídicas, de maneira que o mundo de hoje me ator­ menta. Eu sou um homem preocupado com o toda a gente. Vivo em perene preo­ cupação. Preocupação comigo, com os que me cercam , com o próxim o, sem saber com o é que vamos superar essa crise. Disseram que é um problema puramente econômico, mas não o creio. São pro­ blemas que transcendem o econômico e que revelam bem a fase de transição em que nós estamos. Eu não sou milenarista, mas o fato de estarmos terminando um milênio num mundo de preocupação infinita demonstra que algo há de obscuro em tudo isso. Acho que é difícil dar uma resposta a essa pergunta sobre o destino hu­ mano no momento atual. A única esperança é saber que ao longo da história tive­ mos momentos iguais e eles foram superados. Não tenho nenhuma perspectiva com relação ao fim próximo da violência. O importante é que o homem de boa fé acre­ dite em si mesmo e procure esparramar o exemplo da compreensão, porque a crise é fundamentalmente de ordem moral. E somente através da compreensão espiritual que poderemos vencer uma época trágica com o esta que estamos vivendo.

Quais seriam os instrumentos dessa reforma interior do hom em ?

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Através de um diálogo universal, que está sendo necessário. Ainda há pouco se fa­ lou do Estado, ora, o Estado também tem uma função cultural e ética, cooperando para o entendimento universal. Sobretudo quando verificamos que as Igrejas estão, às vezes, esquecidas da sua função fundamental, pensando no social apenas, quan­ do se esquecem de que o seu problema é o problema espiritual. E no mistério que talvez esteja a solução para a verdade. De maneira que esperamos que surjam inicia­ tivas de corporações, de grupos humanos, no sentido da “revolução m oral” neces­ sária. Porque não bastará o Estado, não bastará a Igreja. E um dever coletivo, de todos, para o esclarecimento da opinião pública. F., para isso, é preciso uma corre­ ção ética dos meios de comunicação. Tenho pavor da televisão, com a sua força modeladora da opinião pública, muitas vezes feita apenas com a preocupação do populismo, daquilo que tem repercussão imediata e fascinante. Tenho a impressão de que a responsabilidade dos meios de comunicação é muito, muito grande, imensa, e nós iremos chegar ao ponto de reclamar um controle. O termo poderá parecer um pouco forte, mas uma certa “polícia da com unicação” será necessária diante dos abusos enormes que se verificam. Essa idéia de que os próprios órgãos televisivos e de comunicação colocarão para si próprios os seus limites, parece-me otimista de­ mais. E necessário com binar a boa vontade dos comunicadores com a boa vontade do poder público. O senhor acabou de dizer que talvez o mistério seja o caminho para a verdade, e eu então perguntaria o seguinte. Com o o senhor escreve em Introdução à Filosofia, a M etafísica é a “parte primeira da Filosofia, em penhada em fundar o conhecim ento do universo e da vida”, sendo que a reflexão m etafísica tem um caráter conjetural (“A M etafísica, dizemos nós, é conjetural, e, mais ainda, uma conjetura inevitável”). Ainda em Introdução à Filosofia, o senhor atribui um caráter parado­ xal a o pensamento conjetural, pois este projeta algo “que emana indi­ retamente da experiência, mas que também obedece à vis atractiva de algo que a transcende”. O que confere consistência a esse paradoxo e com o ele se estrutura? Não creio que seja possível falar em consistência, porque a consistência é uma pa­ lavra de natureza rigorosamente positiva. Tenho a impressão de que as afirmações referidas se põem por si mesmas. Elas se justificam pelo simples aparecer, são res­ postas a perguntas que surgem a qualquer homem, mesmo aos mais infensos à M e­ tafísica. Mesmo aquele que se apega de corpo e alma ao que é científico, em um certo momento depara-se com o inexplicável, com o incognoscível, e não pode deixar de reconhecer que “algo há por trás da energia”, como dizia Einstein. Enquanto houver esse estado de espírito, haverá M etafísica, como conjetura e conjetura inevi­ tável, que não se confunde com paradoxo, no sentido de argumento contraditório.

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Principais publicações: 1940 1949 1953 1963 1968 1968 1977 1980 1983 1 9 87 1987 1988 1990

Fundamentos do Direito (São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972); Doutrina de Kant no Brasil (esg.); Filosofia do Direito (São Paulo: Saraiva); Pluralismo e liberdade (São Paulo: Saraiva); Teoria Tridimensional do Direito (São Paulo: Saraiva); O Direito com o experiência (São Paulo: Saraiva); Experiência e cultura (Barcelona/São Paulo: Grijalbo/Edusp); O homem e seus horizontes (São Paulo: Convívio); Verdade e conjetura (Rio de Janeiro: Nova Fronteira); Memórias, vol. 1: Destinos cruzados (São Paulo: Saraiva); Memórias, vol. 2: A balança e a espada (São Paulo: Saraiva); Introdução à Filosofia (São Paulo: Saraiva); Nova fase do Direito moderno (São Paulo: Saraiva).

Bibliografia de referência da entrevista: Apel, K .-O . Transformação da filosofia, Loyola. Barreto, T. Estudos alemães , Record. ___________ . Estudos de Direito, Record. Costa, N. A. C. da. Ensaio sobre os fundamentos da lógica, Hucitec/Edusp. ___________ . O conhecimento científico, Discurso Editorial. Descartes, R. Meditações, coleção Os Pensadores, Abril Cultural. Hartmann, N. Principes d ’une métaphysique de la connaissance, Paris: Aubier. Hegel, G. W. F. Ciência de la Lógica, Buenos Aires: Solar. ___________ . Estética, Lisboa: Guimarães. ___________ . Princípios da Filosofia do Direito, M artins Fontes. Husserl, E. Investigações lógicas, coleção Os Pensadores, Abril Cultural. ___________ . Meditações cartesianas, Porto: Res. Jaspers, K. Introdução ao pensamento filosófico, Cultrix. Kant, I. Crítica da razão pura, coleção Os Pensadores, Abril Cultural. ___________ . Crítica da razão prática, Lisboa: Edições 70. ___________ . Crítica da faculdade do juízo, Forense. M arx, K. Manuscritos econômico-políticos, Lisboa: Edições 70. Paim, A. História das idéias filosóficas no Brasil, Barcelona: G rijalbo. Popper, K. A lógica da pesquisa científica, Edusp. Radbruch, G. Filosofia do Direito, Coimbra: Arménio Amado. Scheler, M ax. Ética, Madri: Revista de Occidente.

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H EN RIQ U E DE LIMA VAZ (1921)

Henrique Cláudio de Lima Vaz nasceu em 1 9 2 1 , em Ouro Preto (M G ). Sa­ cerdote jesuíta, graduou-se em Teologia e obteve o título de doutor em Filosofia pela Universidade Gregoriana de Roma. Foi professor do Instituto Santo Inácio, em Nova Friburgo (R J), até 1 964, quando se retirou para Belo Horizonte (M G) e in­ gressou na Universidade Federal de M inas Gerais, da qual é professor titular apo­ sentado. É editor da revista Síntese. Esta entrevista foi realizada em outubro de 1999.

G oethe dividiu a vida de seu personagem W ilbelm M eister em dois romances, Os anos de aprendizado e Os anos de peregrinação. No pri­ meiro, o foco está posto na form ação do indivíduo Wilbelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que o senhor nos falas­ se de sua form ação intelectual? Também eu, como qualquer professor, passei por duas fases: a formação e a ativi­ dade docente. Minha formação obedeceu a um padrão tradicional. Estudei filoso­ fia de acordo com a sistematização aristotélico-tom ista, vigente naquela época nas faculdades eclesiásticas. Tendo entrado para a Companhia de Jesus em 1 9 3 8 , fui aluno da Faculdade de Filosofia dos jesuítas, então sediada em Nova Friburgo, Rio de Janeiro. A formação aristotélico-tomista foi de grande utilidade para mim. Le­ vou-me a um primeiro contato e a uma razoável familiaridade com os textos clássi­ cos, os latino-medievais, sobretudo Tom ás de Aquino, e os gregos, sobretudo Aris­ tóteles. Deu-me também uma visão orgânica da Filosofia, pois o nosso curso era organizado sistematicamente, compreendendo as disciplinas: lógica, teoria do co ­ nhecimento, filosofia da natureza, antropologia filosófica, teologia natural e ética. Em 1945, logo após o término da guerra, fui destinado a prosseguir os estu­ dos na Europa, na Universidade Gregoriana de Rom a. Ali recebi o licenciado em Teologia e iniciei o curso de doutourado em Filosofia. Tive a sorte de ter nesse curso excelentes mestres: F. Copleston, autor de uma conhecida História da Filosofia em 6 volumes, Johannes B. Lotz, professor de M etafísica e ex-discípulo de Heidegger, René Arnou, especialista em Plotino e na filosofia grega, e que foi meu diretor de tese. Minha tese de doutourado versou sobre a dialética e a intuição nos diálogos platônicos da maturidade. Foi escrita em latim, a língua que me era mais familiar entre as admitidas para a redação da tese. Permaneceu inédita, mesmo porque a sua publicação dificilmente encontraria editores no Brasil de 1954. Meus anos goetheanos de peregrinação começaram por volta de 1953. Um pequeno roteiro de peregrino: permaneci dez anos como professor em Nova Fri­ burgo, em seguida vim para Belo Horizonte, depois para o Rio de Janeiro e nova­

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mente Belo Horizonte. .Ylinha saída de Nova Friburgo, em 1 964, esteve ligada aos acontecimentos políticos daquele ano e aos contatos que então mantinha com a Juventude Universitária Católica [JUC] e, posteriormente, com a Ação Popular na sua primeira fase. Vim para Belo Horizonte, não só por ser a sede da província jesuítica à qual pertencia, mas também por encontrar aqui um ambiente favorável no Departamento de Filosofia da FAFICH [Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas| da UFM G, no qual fui acolhido pelo então diretor, professor Arthur Versiani Velloso. Homem independente e acima das conveniências políticas do momento, o professor Velloso recebeu-me não obstante as suspeitas que cercavam meu nome. De resto, durante os 22 anos de permanência na UFM G meu trabalho intelectual não sofreu nenhuma restrição e, ao contrário, recebeu todos os estímulos. As con ­ vocações que recebi durante os primeiros anos para comparecer ao Dops, à Polícia Federal ou ao Comando M ilitar em nada interferiram na minha tarefa de professor. Iniciei meu magistério na FAFICH dando cursos no campo da história da fi­ losofia e, mais tarde, ministrei as disciplinas antropologia filosófica e ética. Em 1970 meu trabalho intelectual recebeu um novo rumo. Naquele ano ocorria o segundo centenário do nascimento de Hegel. Nosso departamento comemorou essa data importante e essas com em ora­ ções levaram-me a uma aproxim ação maior com a filosofia hegeliana. Até então meu conhecimento de Hegel estivera condicionado à leitura de M arx nos tempos da JU C , tendo em vista a poderosa atração do marxismo sobre a juventude univer­ sitária da época. O encontro, ou reencontro, com Hegel em 1 9 7 0 fez-me perceber uma profunda afinidade das minhas preocupações filosóficas com alguns aspec­ tos do pensamento hegeliano. A partir de então dediquei-me, juntamente com um grupo de alunos e alguns professores, a um estudo sistemático e a uma leitura li­ near dos textos principais de Hegel. Esse estudo passou a fazer parte da área “Idealismo alem ão” no Curso de Pós-Graduação quando este foi instalado, em 1972. Percorremos a Fenomenologia do espírito , a Ciência da Lógica, a Enciclo­ pédia das ciências filosóficas e a Filosofia do Direito. O estudo dos textos hegelianos dilatou meus horizontes filosóficos, ainda circunscritos basicamente ao uni­ verso aristotélico-tom ista. Essa abertura se deu sobretudo na direção do método com uma melhor inteligência da Dialética, na direção dos problemas da história e da sociedade, particularmente do Estado moderno e sobretudo na direção do in­ tento hegeliano que mais me seduziu: a releitura da metafísica clássica nos qua­ dros da Ciência da Lógica. As vicissitudes da minha peregrinação (para ficar fiel à história de Wilhelm Meister) a partir da década de 70 foram tranqüilas. Meu problema com os órgãos de segurança estava resolvido com o babeas corpus que havia recebido do Superior Tribunal M ilitar em 1968. Em 1975 fui para o Rio, chamado a ensinar novamente na Faculdade de Filosofia dos jesuítas, que para ali se transferira. Continuei, no entanto, meu magistério na UFM G, vindo todo mês a Belo Horizonte para dar mi­ nhas aulas. Na U FM G permaneci até me aposentar, em 1987. Em 1 9 8 2 , a Facul­ dade dos jesuítas, também peregrinante, veio fixar-se em Belo Horizonte para inte­ grar-se ao Centro de Estudos Superiores (CES) do Instituto Santo Inácio. Assim voltei à minha cidade de adoção, pois sou, com muito orgulho, natural de Ouro Preto.

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Henrique de Lima Vaz: “A história tem seus desertos, assim como a geografia. Um dos de­ safios mais antigos das civilizações é ousar a travessia de desertos, seja geograficamente, seja his­ toricamente, desertos que muitas vezes o ser humano mesmo criou”.

Em artigo de 1963 (“La jeunesse chrétienne à l’heure des décisions”), o senhor escreveu: “E necessário inicialmente que o leitor europeu se deixe convencer: é verdadeiramente de uma hora decisiva que se trata. A fase pré-revolucionária parece já tocar seu fim na m aioria das na­ ções da América Latina e são agora as correntes revolucionárias irresis­ tíveis e profundas que levam esse continente imenso e essas populações que trazem a etiqueta de cristãs para destinos desconhecidos. Eis o que parece evidente e é preciso que os ocidentais da Europa e da América do Norte se decidam a olhar de frente essa realidade, pois é também sua própria sorte que está em jo g o ”. Como o senhor avalia hoje essa caracterização form ulada no calor da hora no início da década de 60? Trata-se, de fato, de uma avaliação influenciada pelo clima da época. Era uma hora de efervescência político-social, de polarizações e de engajamento, com o se dizia então. Esse clima fazia-se sentir particularmente na juventude universitária e dele participavam os militantes da JU C . Eu era relativamente jovem e minha visão esta­ va condicionada pela exacerbação ideológica que a todos envolvia, esquerda e di­ reita, e esse condicionamento refletia-se também na minha linguagem. Nossa aná­ lise, hoje devemos reconhecê-lo, estava ingenuamente equivocada no que diz res­ peito às forças em confronto. Isso ficou provado nos acontecimentos de 6 4 , e o radicalismo da reação militar mostrou que também a direita estava persuadida da iminência de uma revolução social conduzida pelos comunistas. E nesse contexto que deve ser entendido meu texto citado.

Na década de 1960, o senhor foi uma figura de referência para os mi­ litantes cristãos de esquerda, tendo elaborado um program a de refle­ xão que conta com textos capitais, com o “Cristianismo e consciência histórica ”, de 1961. Com o o senhor vê, boje, os rumos que tomaram as organizações católicas de esquerda após o golpe de 64? Depois da minha vinda para Belo Horizonte, em princípios de 1 9 6 4 , meu trabalho com a JU C cessou e não tive condições para acompanhar de perto os rumos segui­ dos pelas organizações católicas. Entre aquelas com as quais tivera um contato maior, a JU C deixou de existir em 1965 e o M ovimento de Educação de Base [MEB] aca­ bou integrado no Ministério da Educação. Os textos a que a pergunta se refere fo­ ram elaborados numa perspectiva de reflexão teórica de caráter geral e não se refe­ riam diretamente à situação brasileira. Eram roteiros de reflexão, não de ação, e a sua contribuição situou-se, portanto, no campo das idéias.

Num texto de 1984, o senhor afirm a ter tido alguma participação “tto que se poderia denom inar a pré-história da Teologia da Libertação e que vai dos fins da década de 50 até Medellín (1968) Em que medi da a Teologia da Libertação significou uma ruptura em relação ao pr gram a de reflexão que o senhor propôs? Com o o sen h ora avalia hChamo de pré-história da Teologia da Libertação o período de polarizai gica e engajamento político descrito até aqui e durante o qual as orga Igreja reunidas na Ação C atólica, sobretudo a JU C , passaram a partir %*•»'

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mente da atividade sócio-política e a definir-se em face das suas expressões ideoló­ gicas. Para essas organizações tratava-se, então, de uma atividade sob a responsa­ bilidade imediata do laicato, embora ligada estruturalmente à hierarquia eclesiás­ tica. Após 1964, no clima de repressão cada vez mais severa, esse tipo de atividade tornou-se inviável. Segundo uma análise que julgo plausível, uma das conseqüên­ cias da Conferência de Medellín. em 1968, foi a passagem de uma militância leiga relativamente independente, própria da Ação C atólica, e que era alvo fácil da re­ pressão política, para um tipo de atividade sob a tutela imediata da Igreja e sob sua responsabilidade, o que assegurava um espaço de segurança relativa ao trabalho que passou a denominar-se "pastoral” . Do ponto de vista da minha análise, a T e­ ologia da Libertação, que surge naqueles anos, veio oferecer a esse novo estilo de pastoral um horizonte teórico e, se assim se pode falar, um instrumento ideológico que se pretendia eficaz. Como o nome indica, teoria e ideologia permaneciam den­ tro do âmbito da reflexão eclesial: pretendiam ser uma teologia. Nesse sentido ela situava-se num plano distinto do que fora nossa reflexão pré-Medellín, que traba­ lhava com categorias filosóficas e, explicitamente, com análises sócio-econômicas. Na minha opinião, o problema inicial da Teologia da Libertação, e que permane­ ceu ao longo da sua história, formulava-se em termos de uma situação teórica am­ bígua: como fazer da teologia o instrumento de uma práxis social e, eventualmen­ te, política, cujo objeto exigia um tipo de análise econômica e sócio-política que a teologia, por definição, não pode fornecer? Foi a partir desse problema que, a meu ver, formaram-se diversas correntes dentro da Teologia da Libertação, tendo algu­ mas delas optado por uma chamada “análise m arxista” então vulgarizada na Amé­ rica Latina. Tratei desse tema num texto intitulado “Cristianismo e utopia”, pu­ blicado como “Anexo V ” no livro Escritos de Filosofia I (São Paulo, Loyola, 1986, pp. 2 9 1 -3 0 2 ). No fundo, foi essa situação teórica ambígua que me manteve afasta­ do da Teologia da Libertação.

O debate cristão das décadas de 1950 e í 960 nos parece m arcado por autores com o J. Maritain, Teilhard de Cbardin e E. Mounier. Com o o senhor caracterizaria as diferenças que separam a sua reflexão da de­ senvolvida por esses importantes autores? Jacques Maritain foi talvez o intelectual católico mais influente do seu tempo. O valor e importância do seu pensamento podem ser medidos pelo fato de que essa influência continua viva, como atestam os Institutos Jacques M aritain em vários países do mundo, inclusive no Brasil, fundado em São Paulo pelo saudoso Franco M ontoro. Foi um filósofo tomista rigoroso e, ao mesmo tempo, aberto a rodos os horizontes da cultura. Tive o privilégio de encontrar-me com ele cm Roma quando era em baixador da França junto ao Vaticano. Para nós, na década de 6 0, o aspecto discutível do pensamento político maritaineano era a idéia de uma nova sociedade vitalmente cristã, uma noiwelle chrétienté , mas que guardava vários traços de uma imagem até certo ponto idealizada da cristandade medieval. Diferente era nossa posição diante de Teilhard de Chardin. Do ano da sua morte, 1955, até mais ou menos 1965, à medida que eram publicadas as suas obras, Teilhard conheceu uma enorme audiência na França e em quase todos os países. Seu pensamento exercia

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uma grande atração por representar uma tentativa audaciosa de síntese que abrangia ciência — ele era um paleontólogo de profissão — , filosofia e religião. Esse pensa­ mento era caracterizado por um grande otimismo cósmico e histórico regido pela idéia de uma evolução universal, por uma visão de extraordinária amplitude e pelo lugar central que atribuía ao Cristianismo na história e no destino final da humani­ dade. Era, por outro lado, transmitido num estilo vibrante, de grande intensidade poética, que prendia e seduzia o leitor. Nossa geração leu avidamente Teilhard e eu mesmo li praticamente todas as suas obras. M as minha formação estritamente filosófica e os problemas de natureza especificamente filosófica que me ocupavam caracterizavam um estilo de pensamento diferente do pensamento teilhardiano. Creio que a presença de M ounier, cujos livros eram também leitura quase obrigatória, foi, antes de tudo, a presença de um modelo. Ele soube unir reflexão e ação sob a inspiração de uma doutrina ao mesmo tempo comunitária e personalista, e aqui residia, parece-me, o segredo da atração por ele exercida sobre a juventude univer­ sitária cristã. No ensaio “O Absoluto e a H istória”, que encerra o livro Ontologia e História, de 1968, a sua reflexão sobre o homem tem com o ponto de partida e eixo central a noção de consciência. J á na Antropologia filo­ sófica, de 1993, essa noção não parece ter uma importância tão gran­ de. O senhor diria que há a í alguma guinada conceituai relevante? Convém dizer inicialmente uma palavra sobre a origem do livro Ontologia e His­ tória. Sua publicação deve-se à iniciativa de alguns estudantes dominicanos que então trabalhavam na Livraria Duas Cidades. Reúne artigos publicados entre 19.53 e 1963. Como o título indica, alguns desses artigos tratavam de problemas de Ontologia ( I a parte), outros de problemas de filosofia da História (2a parte). O capítulo “ O Absoluto e a H istória” foi escrito ad h oc , como fecho do livro. Na época trabalhá­ vamos intensamente com a categoria de “consciência histórica”, que é o conceito central da segunda parte do livro. A ênfase na noção de “consciência” como prin­ cípio provinha também do confronto crítico com uma certa concepção marxista da chamada “consciência-reflexo” . De Ontologia e História a Antropologia filosófi­ ca há um bom caminho andado. Para mim o clima intelectual havia mudado e o diálogo com Hegel tornara-se prioritário. Na Antropologia filosófica a noção de consciência cede lugar à noção mais abrangente do Eu (em sentido fenomenológicodialético, não psicológico) enquanto momento mediador entre o que nos é dado como natureza e o que é por nós significado como forma. Em outras palavras, o Eu opera no ser humano a passagem dialética entre o que ele simplesmente é e a sua auto-expressào , ou seja, a significação com que ele se anuncia na sua identida­ de propriamente humana, na sua ipseidade, para falar como Ricoeur. O conceito de expressividade, cuja origem se deve a J . G. Herder e foi retomado por Hegel e recentemente posto em circulação por Charles Taylor, é o conceito propriamente fundacional da Antropologia filosófica (ver vol. 1, pp. 162-7). A idéia de consciên­ cia reaparece aqui com o uma das vertentes constitutivas da categoria do espírito (ibid ., pp. 2 1 1 -2 ), integrada na dialética mais ampla da auto-expressão do ser hu­ mano com o espírito.

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Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Com o o setthor vê as relações entre a filosofia e a cultura brasileira? Tratei desse tema em artigo intitulado “ O problema da filosofia no Brasil”, na re­ vista Síntese 30 (1 9 8 4 , pp. 11 -25). Inspiro-me ali num topos hegeliano conhecido. A filosofia não nasce por geração espontânea no seio de um mundo cultural. Uma cultura nacional não produz filosofia por decreto. O nascimento da filosofia obedece a condições culturais que foram justamente descritas por Hegel e que se traduzem por uma ruptura no mundo da cultura, até então relativamente homogêneo no que diz respeito às suas certezas fundamentais. O caso paradigmático é o do nascimento da filosofia na Grécia do século VI a.C ., amplamente estudado. A filosofia passou a ser uma prática cultural que vem caracterizando a história da cultura do Ocidente nesses 2 6 séculos que nos separam da sua origem. Nas sociedades ocidentais tradi­ cionais, a filosofia passou a ser uma forma privilegiada de expressão dos problemas da cultura, e foi assim que veio a tornar-se como que o centro da enciclopédia dos saberes superiores. Nos países periféricos como o Brasil a filosofia não podia de início articular-se organicamente com a cultura, que não comportava ainda esse tipo de ex­ pressão da sua vida, ainda em estágio pouco desenvolvido. Nessa espécie de pré-história, a filosofia entre nós era apenas um ornamento literário ou objeto de curiosida­ de de alguns intelectuais. Creio que essa situação começa a mudar, juntamente com as mudanças da própria sociedade brasileira, a partir da década de 20. Hoje a prá­ tica da filosofia parece integrada no exercício normal da nossa cultura superior, isso porque sociedade e cultura atingiram um nível de desenvolvimento e complexidade que oferece à reflexão filosófica um amplo campo temático. No artigo a que me refe­ ri, enumero três desses ternas que comportam e, mesmo, exigem um tratamento fi­ losófico. O primeiro é o tema da tecnociência, implicado no desenvolvimento cien­ tífico e tecnológico da sociedade. A reflexão filosófica sobre a ciência e a técnica sob o ponto de vista lógico-epistemológico, ético e político responde a uma exigência do estágio histórico da nossa sociedade. Em segundo lugar cito o tema da sociedade e do Estado, ou seja, os problemas da filosofia social e política que respondem, sem dúvida, a situações concretas vividas pela sociedade brasileira nessas últimas décadas e que oferecem um conteúdo real ao exercício da reflexão filosófica entre nós. Em terceiro lugar menciono os temas éticos propriamente ditos, ou seja, que dizem respei­ to a fins, valores, normas de conduta, em suma, a formas de agir especificamente éticas. Como é notório, as sociedades ocidentais vivem, nesse fim de século, uma ge­ neralizada crise ética que se traduz em formas anômicas de comportamento, num permissivismo sem limites de atitudes e condutas, denotando uma grave perda de refe­ rências éticas nos indivíduos e na sociedade como um todo. Esse tipo de crise recla­ ma o exercício de uma reflexão centrada sobre o problema dos valores e sobre a idéia de uma práxis correspondente a uma escala de valores racionalmente estabelecida. Essa a lição que nos ficou da crise de Atenas no século V a.C., e da iniciativa socrática ao fundar a Ética como ciência. Mutatis mutandis nossa situação tem muitas analo­ gias com a situação da Atenas de Sócrates, e a reflexão sobre os problemas éticos é, para os nossos filósofos, como o foi para Sócrates, um imperativo eminentemente ético. Podemos concluir que a filosofia no Brasil de hoje não é um bobby para intelec­ tuais. É uma forma importante e mesmo necessária de participação social e política.

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O senhor nos mostra que a filosofia não pode estar entre os bens de con­ sumo de massa, corriqueiros na nossa sociedade. No entanto, para o senhor, a posição da filosofia no interior da instituição universitária é paradoxal, pois a universidade está ela própria irremediavelmente vin­ culada à cultura de massa. Significa isso, na sua visão, que a filosofia em sentido pleno desapareceu ou está em vias de desaparecer? Tratei do problema da relação entre Filosofia e Universidade na conclusão de uma aula inaugural no IFAC, da Universidade Federal de Ouro Preto (ver “Cultura e Filosofia”, Escritos de Filosofia III , São Paulo, Loyola, 1997, pp. 8 1 -9 9 ), e na qual a pergunta se inspirou. Ali distingo dois aspectos da presença da Filosofia na Uni­ versidade: o aspecto institucional, que assegura a legitimidade social da prática da filosofia como fazendo parte da enciclopédia dos saberes superiores reconhecidos pela instituição universitária; e o aspecto crítico, que, de alguma maneira, confere à filosofia um lugar singular dentro da universidade, na medida em que ela se cons­ titui, pela sua própria natureza, como instância crítica na qual são — ou devem ser — permanentemente avaliados os fins e o desempenho da Universidade como ge­ radora de cultura. Essa atividade da filosofia, essencialmente o ato mesmo de filo­ sofar, não é regida pelos parâmetros de utilidade social imediata como o são os outros saberes universitários. Mas é nessa gratuidade do filosofar que reside sua significa­ ção, inclusive social. Com efeito, a cultura tem uma dimensão de livre criação que tem em si mesma sua razão de ser. Na Universidade, assim penso, essa dimensão está representada principalmente pela Filosofia — e pelas Artes.

Que conceito(s) da sua reflexão o senhor destacaria com o o(s) mais representativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que nos contasse com o ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e com o o(s) vê boje. Eis uma pergunta que dificilmente poderá ser respondida em poucas palavras. Ini­ cialmente devo dizer que não acredito numa filosofia, no fundo, de cunho empirista, que seja apenas um com entário, por mais sofisticado que seja, dos eventos de uma realidade sempre em mudança, sejam esses eventos de natureza político-social, cien­ tífica, ou mesmo eventos de alguma moda cultural. Ligo-me a uma tradição para a qual a filosofia eleva-se, como que por um movimento inato à sua natureza, sobre o transitório e o événementiel e procede à busca de princípios que são também fun­ damentos. Em outras palavras, só entendo a filosofia como “ fundacionista”, para usar um termo hoje em moda. Nesse sentido, os conceitos representativos da mi­ nha posição filosófica, ao longo da sua evolução, são conceitos “fundacionais”, se assim posso falar. Eis alguns: inicialmente o conceito de “ato de existir” (esse ) re­ cebido de Tom ás de Aquino e de alguns dos seus comentadores recentes (E. Gilson e outros), e que para mim é a pedra angular da M etafísica, à qual tenho voltado em textos recentes. Em seguida citarei o conceito fundamental da Antropologia fi­ losófica, ou seja, o “ato de existir” do ser humano enquanto capaz de significar-se a si mesmo ou do ser humano enquanto expressividade. A M etafísica e a Antropo­ logia filosófica abriram-me o caminho para a Ética, disciplina que tenho ensinado nos últimos anos. O conceito fundamental aqui, recebido de Platão e Aristóteles, é o conceito de Bem, que se apresenta com o conceito metafísico, sendo um conceito

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transcendental coextensivo com o ser, e como conceito antropológico, definindo como Fim a estrutura teleológica do ser humano como ser que se autodetermina para o Bem. F.sses dois conceitos fundamentais, antropológico (Eu com o expressi­ vidade) e ético (Bem), guiaram-me na redação dos dois textos, Antropologia filo­ sófica (2 vols.) e Introdução à Ética filosófica (2 vols.), que publiquei recentemen­ te. Penso que os conceitos que chamo “íundacionais”, presentes já desde o início no núcleo básico das idéias filosóficas nas quais fui form ado, foram sendo ex ­ plicitados e adquirindo uma estrutura formal mais definida ao longo do meu ma­ gistério e do trabalho da preparação dos meus cursos. Aqui está realmente o roteiro da form ação das minhas idéias filosóficas fundamentais.

Segundo sua opinião, a enorme e crescente produção bibliográfica no cam po da Ética surge com o contrapartida ao relativismo universal e ao hedonism o que não conhecem limites e que são “os padrões de ava­ liação do comportamento hoje dominantes e cujos efeitos devastado­ res na vida dos indivíduos e das sociedades nos surpreendem e inquie­ tam ”. Na sua visão, quais as causas que nos trouxeram a tal situação ? Segundo uma análise que me parece fundamentalmente correta, na raiz da situa­ ção acima descrita está o fenômeno, já entrevisto por Bergson, de um desequilíbrio ou descompasso entre o que chamamos a produção material da sociedade e seu universo simbólico. Temos de um lado o crescimento vertiginoso da tecnociência, e, na sua esteira, a produção incessante e exponencialmente crescente de objetos que passam a ocupar quase totalmente o mundo humano, tornando-o cada vez mais um mundo de artefatos. A essa invasão do artificial corresponde, nos indivíduos e na sociedade, o aparecimento de mecanismos sempre mais aperfeiçoados de utili­ zação. O útil erige-se em categoria primeira e quase exclusiva da prática social. O ra, o útil não pode, por definição, sendo condicionado pelo objeto por ele visado, de­ sejado ou possuído, presidir ao universo simbólico do ser humano onde estão pre­ sentes fins, normas e valores irredutíveis ao critério da simples utilidade. Negá-lo seria fazer do ser humano apenas o sujeito inquieto de desejos sem fim, aprisiona­ do à lógica do consumo e da satisfação e sem outra finalidade superior na sua exis­ tência. Regido pela categoria do útil, o universo simbólico no qual se exprimem nossas razões de viver seria apenas a versão ideológica do universo material dos objetos oferecidos ao consumo. F. essa a face mais visível do nosso mundo “glo­ balizado" e é para ela que se voltam as reflexões de filósofos, moralistas e de todas as pessoas lúcidas que se preocupam com o futuro da civilização. Essas reflexões são necessariamente de natureza ética e daí a atualidade onipresente da Ética.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­ cias e o saber científico. Tal relação perm anece até h oje ? Com o ela se dá na atualidade? A permanência dessa relação está atestada pela importância da filosofia das ciências no currículo das disciplinas filosóficas e pelo fato de que os mais conhecidos filó­ sofos da ciência se encontram entre os grandes nomes da filosofia contemporânea. A relação filosofia-ciência adquiriu nova feição com relação ao que fôra nos tem­

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pos pré-kantianos, quando o positivismo clássico evoluiu para a F.pistemologia, nos fins do século passado, desta procedendo o impulso que levou ao desenvolvimento da Lógica, da teoria dos fundamentos da M atem ática, em suma, de todo um es­ pectro de metaciências que mantêm estrita relação com a filosofia.

Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenôm eno estético em nossa socieda­ de. Com o o senhor se posiciona em relação a esse d ebate? Devo dizer inicialmente que a Estética e a Filosofia da Arte não entram no meu campo de estudos e interesses, mesmo porque não reconheço em mim quaisquer dotes ar­ tísticos. As Lições de Estética permaneceram fora da minha exploração sistemáti­ ca da obra de Hegel. No entanto creio ter fundamento a visão hegeliana sobre o destino da arte nas nossas sociedades. Há uma diferença radical entre o estatuto social da produção artística nas sociedades antigas e o que é, hoje, o mundo das artes. A arte antiga estava organicamente integrada a algumas das necessidades sociais básicas, a serviço, por exemplo, da religião, da política ou do prestígio social, como no mecenatismo. A arte moderna foi, de alguma maneira, cooptada pelos me­ canismos de produção e consumo da sociedade industrial e, portanto, posta a ser­ viço de necessidades subjetivas do consumidor individual. Esse não é um juízo sobre o conteúdo estético da obra de arte ontem e hoje, mas sobre a sua relação com a so­ ciedade. Só o futuro dirá qual será a situação da arte nas sociedades do século X X I.

É hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qu al a conhecíam os era um fenôm eno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evi­ dente o pressuposto de um Estado N acional com o fonte e garante do Direito e com o detentor do m onopólio do exercício legítimo da violên­ cia. Como o senhor vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que parecem desfrutar as questões morais no debate público atual tem re­ lação com esse novo estatuto da política em nossos dias? A pergunta refere-se a um problema que começou a delinear-se nas sociedades oci­ dentais a partir do século XV III. A paz universal e perpétua implica um Estado uni­ versal? Como é sabido, a dialética do Espírito objetivo em Hegel descreve o desen­ volvimento do Espírito na história, culminando no Estado Nacional pós-revolucionário sob a forma da monarquia constitucional. Daqui as reticências hegelianas com relação a um Estado universal. A história recente parece não dar razão a Hegel, no sentido de que vemos acumularem-se os fatores que apontam na direção de um Es­ tado mundial e que dizem respeito sobretudo à crescente interdependência entre as nações e ao correspondente enfraquecimento do perfil institucional das identida­ des nacionais. Como conseqüência, é natural que se multipliquem instâncias jurí­ dicas supranacionais, como vemos atualmente, e que a administração da justiça e o exercício legítimo da coação deixem de ser privilégio do poder nacional. Tanto mais que aspirações de conteúdo ético indiscutível, como as que se referem aos di­ reitos humanos, à justa distribuição dos recursos naturais, à participação eqüitativa nos benefícios do progresso e outras, postulam organismos supranacionais que

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velem sobre a eficaz satisfação dessas aspirações. Eis porque, segundo me parece, a discussão sobre os problemas políticos de uma possível comunidade mundial esta­ belecida juridicamente em analogia com os Estados nacionais dá primazia atual­ mente aos problemas ético-jurídicos. De qualquer maneira penso haver ainda um longo caminho a andar para chegarmos a um Estado mundial autentico, se ele um dia vier a realizar-se. Os ensaios presentes de união das nações, como na União Eu­ ropéia, dão ênfase aos laços econômicos. Será esse o melhor começo para se che­ gar a um Estado supranacional eticamente saudável? As avaliações sobre o relativamente longo pontificado de Jo ã o Paulo II

variam entre dois extremos. De um lado temos uma avaliação segun­ do a qual Jo ã o Paulo II teria salvado a Igreja de um processo destruti­ vo de dessacralização então em curso, repondo o sagrado tia devida distância exigida pela fé. De outro lado, uma avaliação oposta enten­ de que o pontificado de Jo ã o Paulo II representou um recuo nocivo dian­ te do movimento em ancipador que pretendia uma sólida e saudável união de fé e política. Qual a sua posição diante desses diagnósticos? Devo dizer, em primeiro lugar, que não disponho da soma de informações neces­ sária para uma avaliação objetiva, em termos históricos, dos 22 anos desse ponti­ ficado, avaliação, aliás, que deve levar em conta a personalidade excepcional de João Paulo II. Seja como for, creio que a dicotomia enunciada pela pergunta supõe uma visão simplista e, no fundo, equivocada. Comecemos pela pessoa de Jo ã o Paulo II, um homem que reúne a herança religiosa e cultural das suas origens operárias e a form ação de alto nível de um professor de Filosofia numa das mais respeitadas universidades polonesas. Como filósofo de filiação fenomenológica (escreveu tese sobre iVlax Scheler), João Paulo II possui uma vasta cultura filosófica de conteúdo moderno, além da cultura teológica da sua formação eclesiástica. Como papa, seu ensinamento e sua ação não podem ser encerrados no dilema simplista da pergun­ ta. Creio que um princípio mais acertado de análise levaria a considerar o pontifi­ cado de João Paulo II nas suas duas faces: a face voltada para a vida interna da Igreja e a face voltada para os problemas do mundo: ad intra e ad extra, como se dizia no latim escolástico. Pois bem: em nenhum desses campos consigo ver um retrocesso. No primeiro, o que Jo ão Paulo II fez foi retomar e dirigir firmemente o processo de atualização (aggiornamento) das estruturas e da vida da Igreja iniciado pelo C on­ cílio Vaticano II e que fora continuado por Paulo VI em meio a tendências desagregadoras que se manifestavam aqui e ali. Quem vive a vida interna da Igreja sabe que não houve retrocesso a não ser, evidentemente, do ponto de vista dos protago­ nistas daquelas tendências. Com relação à sua atividade ad extra , a presença de João Paulo II no mundo do nosso tempo é, indiscutivelmente, uma presença de extraor­ dinária significação. Nenhum outro papa, talvez, esteve tão presente em campos tão diversos da história do seu tempo quanto o atual pontífice, e provavelmente ne­ nhum dos grandes atores políticos contemporâneos alcançou uma visão tão uni­ versal, tão rica e tão realista do nosso mundo quanto esse papa itinerante que visi­ tou os cinco continentes. Por outro lado ele é, sem dúvida, o maior artífice do movimento atual do diálogo das religiões, movimento que tem não apenas uma

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significação religiosa, mas um alcance histórico de extraordinária importância. Em suma, Jo ão Paulo II é uma das maiores figuras do século X X , e assim, tenho certe­ za, o consagrará a história futura.

O senhor nos apresenta o conflito ético com o “fenôm eno constitutivo do ethos”. Constitutivo a ponto de podermos afirm ar que “somente uma personalidade ética excepcional é capaz de viver o conflito ético nas suas implicações mais radicais e tomar-se anunciadora de novos paradigmas éticos, com o foi o caso na vida e no ensinamento de Buda , de Sócrates e de Jesu s”. Podemos esperar o surgimento de uma nova personalidade ética com o a de Jesus? Ou nossa condição de “Antígonas” modernas veio para ficar? O fato de ser o ethos um fenômeno histórico-social inerente à própria estrutura do grupo humano, impõe-lhe essa condição própria de toda realidade histórica que é estar submetida à ação corrosiva do tempo. No caso do ethos essa ação se faz sen­ tir sobretudo na perda ou enfraquecimento da credibilidade e da eficácia da sua função normativa. Daqui a crise do ethos e o aparecimento do conflito ético, que não é um problema dos indivíduos tomados isoladamente, mas um estado espiri­ tual da sociedade. Viver esse conflito e atingir suas raízes é próprio dessas persona­ lidades éticas excepcionais, com o as que foram lembradas. Do ponto de vista da fé e mesmo talvez de uma análise histórico-cultural, o caso de Jesus é único. Não creio que uma nova personalidade ética como a de Jesus possa surgir. Ele é um ephápax , segundo a expressão grega usada pelo Novo Testamento, ou seja, “o que acontece uma só vez” . O que é possível depois de Jesus é a observância radical do novo ethos por ele proposto — o ethos evangélico — , o que permite o aparecimento de perso­ nalidades éticas que se aproximam daquele M odelo único: com o Francisco de As­ sis, no século XIII, e Teresa de Calcutá, em nosso tempo. Esses exemplos mostram que não é necessário que nos resignemos à condição de Antígonas modernas.

Com o o senhor descreveria a sua própria vivência do conflito ético? Com o ela surge na vida sacerdotal que o senhor abraçou? Nosso tempo, vamos repetir mais uma vez, é um tempo de crise ética generalizada e, por conseguinte, de agudos conflitos éticos. No conflito ético, a vivência individual é, de certa maneira, irrelevante. O que conta é a capacidade de descer até suas raízes, não puramente por uma análise teórica, mas por uma forma de experiência criadora que permite a proposição de um novo ethos , isto é, de um novo sistema de valores, normas e fins. Evidentemente, não é essa minha vivência dos conflitos éticos do nosso tempo. Posso dizer que esses conflitos éticos não se apresentaram a mim sob a forma de um questionamento da minha opção de vida com o sacerdote católico. Situo-me, aqui, ou procuro situar-me na linha da criação ética de Jesus — do seu Evangelho — , que para mim tem um valor permanente, e isso não somente em virtude da sua origem divina reconhecida pela fé mas também da sua eficácia histórica. M inha participação nos conflitos éticos da sociedade em que vivo assumiu duas formas: na linha da ação , com o foi o caso, por exemplo, da minha presença, aliás mo­ destíssima, na conflitiva situação brasileira pré-64; e na linha da reflexão , que prosse­

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gue até hoje no exercício do magistério e nas investigações com que me ocupo, sobretudo no campo da Ética, e que procuro traduzir e comunicar em artigos e livros.

Com o o senhor caracterizaria sua relação com a religião e a fé? Permito-me observar que não se trata propriamente de relação, pois a religião e a fé não são para mim algo extrínseco, com o qual me relacione. Nelas vivo e delas me ali­ mento espiritualmente. A pergunta tem em vista, naturalmente, a compatibilidade entre as minhas convicções religiosas e a minha profissão de filósofo e professor de filosofia. Posso afirmar que não experimentei conflitos interiores a esse respeito, pois desde o início guiei-me pela diretriz de Santo Agostinho, que conheci ainda estudante de filosofia e que João Paulo II repete na sua encíclica Fides et Ratio: “crê para enten­ deres e entende para creres”. Essa dialética agosriniana entre fé e razão assegurou para mim uma convivência fecunda entre a fé que professava e a razão que praticava. Meu trabalho filosófico mantém-se rigorosamente dentro das exigências metódicas e dou­ trinais da razão e todas as vezes em que atinge as fronteiras onde a razão se encontra com a fé essa linha divisória é explicitamente traçada. Convém ainda acrescentar que, não obstante um estereótipo corrente, a liberdade intelectual dentro da Companhia de Jesus é, atualmente, bastante grande. Um exemplo é a encíclica Fides et Ratio , que veio atender a questões com as quais me ocupava recentemente, por exemplo quanto às relações entre fé e metafísica e que, 110 entanto, sofreu restrições por parte de outros jesuítas, entre eles o padre Joseph M oingt, considerado o mais importante teólogo jesuíta francês atual. Essa temática guiou-me, de resto, na organização do meu livro Escritos de Filosofia I: problemas de fronteira ( I a ed., São Paulo, Loyola, 1986).

Com o o senhor se situa em relação aos problem as de uma “mudança de paradigm a ” da filosofia, de uma filosofia “pós-m etafisica” calcada na linguagem? A pergunta suporia uma discussão preliminar sobre o uso da noção de “paradigma” na historiografia filosófica, que evidentemente não cabe aqui. De qualquer manei­ ra, não vejo como as recentes filosofias da linguagem possam constituir um novo paradigma filosófico em substituição à M etafísica. Em primeiro lugar porque a própria M etafísica pode ser interpretada com o uma filosofia da linguagem, não 110 sentido óbvio de que tudo é linguagem, mas enquanto constitui uma forma especí­ fica de linguagem com seu código semântico próprio e as regras definidas do seu uso, e isso pelo menos desde Aristóteles. Seria necessário que se provasse que a lin­ guagem metafísica com o tal é destituída de sentido ou tneantngless. Na minha opi­ nião o positivismo lógico, que se propôs fornecer essa prova, não o conseguiu ape­ sar dos esforços de Carnap. Em segundo lugar porque à filosofia da linguagem como ersatz da M etafísica aplica-se o mesmo argumento de “retorsào" que Aristóteles empregou 110 Protrético contra os negadores da Filosofia: não se substitui a M e­ tafísica senão com outra M etafísica. A expressão "pós-m etafísica” tem pois, essa sim, todas as chances para ser uma expressão meaningless. De resto, é visível na filosofia contemporânea, mesmo entre os cultores da filosofia da linguagem, um reaparecimento de problemas de natureza metafísica que somente um pensamento metafísico que se reconheça com o tal pode equacionar corretamente.

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O senhor utilizaria o conceito de “utopia” para descrever a sua visão do futuro da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia? O conceito de utopia não pertence ao meu universo filosófico e, por isso mesmo, julgo-me dispensado de discorrer sobre o que seria minha visão utópica do futuro. Nesse ponto sigo a lição de Hegel: a filosofia trata do que é; o que será fica para os profetas. Reconheço que o conceito de utopia tem sido, na história intelectual e política do Ocidente, uma matriz fecunda de modelos ideais de sociedade que cum­ prem uma importante função histórica com o alimento dessa reserva de esperança sem a qual dificilmente a humanidade prosseguiria seu caminho rumo a um futuro que se espera melhor. Talvez possamos pensar a utopia em analogia com a “idéia reguladora” kantiana: necessária para orientar a marcha da história, mas inalcançável por definição. No contexto atual da mundialização, a situação da idéia de utopia parece problemática. De um lado ela continua alimentando o que se pode denominar a “reserva utópica”, provavelmente indispensável em meio às distorções de todo tipo que se observam nessas nossas sociedades em acelerado processo de mudança. De outro lado, a própria complexidade do corpo social e o número de problemas e desafios cuja face muda rapidamente tornam muito difícil a formula­ ção de utopias que conservem uma relação qualquer, seja ela negativa ou positiva, com as sociedades modernas extremamente complexas. Esse talvez seja um aspec­ to não devidamente considerado pela Teologia da Libertação ao propor aquela que considero sua utopia político-religiosa. O senhor vê no marxismo um desenvolvimento histórico concreto em que os elementos utópicos acabaram por sufocar a raiz humanista do pensamento de Marx. Essa é uma caracterização que pode ser aplica­ da a outros fenôm enos históricos? O preço a pagar pela pretensão de realizar utopias é necessariamente o Terror? Creio que as lições da história não deixam dúvidas a esse respeito. O ideal utópico, por definição — autodefinindo-se um "sem lugar” na história real — , deve neces­ sariamente abrir seu caminho pela violência sem normas, pois uma norma suporia uma certa aceitação da realidade existente. Assim, a utopia é historicamente a matriz do Terror, com o confirmam exemplos recentes e, de modo paradigmático, o caso do Camboja.

Há progresso na história? Num sentido linear ou simplesmente cronológico, o progresso na história é evidente. Tanto no sentido da cultura material quanto no da cultura simbólica. Há uma dis­ tância imensa, que os antropólogos, entre eles o nosso Darcy Ribeiro, tentam or­ denar em sucessivos estágios, entre nossos antepassados que iniciavam o caminho para a hominização biológica e a humanização cultural, e o homem da civilização científico-tecnológica. M as, por convenção historiográfica, a história propriamen­ te dita tem início com a invenção da escritura, há cerca de 3 .0 0 0 anos a.C. A partir desse evento inaugural da história a humanidade passa a dispor de um parâmetro privilegiado, primeiro instrumento da ciência histórica, para medir, através da me­ mória escrita das civilizações, seus avanços, estagnações e decadência, em suma o

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ritmo do seu progresso. Como quer que seja, participo da idéia-base do otimismo de Teilhard de Chardin de que, sem a consciência do progresso, há muito a huma­ nidade teria perdido suas razões e seus estímulos para viver, isto é, para sobrevi­ ver. Acrescento, com Hegel, que o conteúdo maior dessa consciência do progresso é a liberdade, no sentido de que, em face dos obstáculos que se levantam no curso da sua história, o ser humano experimenta a capacidade de responder ao desafio a partir de um amplo leque de alternativas em que ele afirma, em primeiro lugar, o senhorio de si mesmo (o livre é “em razão de si m esm o", diz Aristóteles) e, em se­ gundo lugar, sua transcendência sobre a natureza.

Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos co­ mo riscos am bientais globais, am eaças de desintegração social em lar­ ga escala e alienação cultural em massa. Como o senhor vê tais problemas ? Não tenho competência para avaliar os aspectos técnicos desses fenômenos, sobre­ tudo o complexo e desafiador problema das drogas, mas vejo-os com a inquieta­ ção profunda que deve tomar conta de toda pessoa consciente ao considerá-los nos seus efeitos mais visíveis e devastadores. Não devemos nos esquecer, por outro lado, que já a pré-história nos atesta a presença do ser humano como animal gratuita­ mente agressivo e depredador. A história tem seus desertos, assim com o a geogra­ fia. Um dos desafios mais antigos das civilizações é ousar a travessia de desertos, seja geograficamente, seja historicamente, desertos que muitas vezes o ser humano mesmo criou. Nossa civilização dispõe de todos os recursos, técnicos, políticos e éticos, e é capaz de formular estratégias que conjurem um triste destino de criado­ ra de desertos. Às sociedades e aos seus responsáveis cabe decidir.

No ensaio “Filosofia e Cultura: perspectiva histórica” o senhor afirm a: “Pensar a Liberdade ou unir dialeticam ente Liberdade e Razão, eis a única tarefa da filosofia”. O senhor poderia explicar essa afirm ação f Creio que essa afirmação pode ser explicada seja do ponto de vista histórico, seja do ponto de vista teórico. Historicamente, sabemos que toda a história da filosofia é atravessada por uma tensão profunda e de certo modo elementar entre a tendên­ cia a dar primazia à razão e a tendência oposta, que privilegiava a liberdade. Para simplificar diríamos que a tensão entre intelectualismo e voluntarismo constitui uma das chaves historiográficas clássicas para a classificação dos sistemas ao longo da história da filosofia. A descoberta grega da razão demonstrativa manifestou logo na atividade racional os dois predicados da necessidade e da universalidade, de sorte que toda a realidade ficasse a eles submetida numa nova forma de destino, um des­ tino luminoso. M as a esse novo destino, como ao antigo destino cego, a liberdade mostrou-se irredutível. Como encontrar um lugar para a liberdade no universo da razão? Eis o desafio maior e, de certo modo, a tarefa única da filosofia, pois tratase de um problema que tem repercussões imediatas e decisivas na antropologia fi­ losófica, na ética, na política, nas concepções, em suma, do universo, do ser huma­ no e de Deus. Para o Cristianism o, esse tornou-se, a partir sobretudo de Santo Agostinho, um problema fundamental para a reflexão teológica, pois a fé se apre­ senta como uma “geratriz de razão”, no dizer de E. Gilson: Crede ut intelligas. Ele

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encontrou uma solução genial em Santo Tom ás de Aquino, no qual nos inspiramos na nossa Antropologia filosófica, vol. 1. Pensar a liberdade foi, talvez, o leitmotiv maior do filosofar hegeliano, como procuramos mostrar no capítulo sobre a Ética de Hegel, na Introdução à Ética filosófica l (pp. 3 7 1 -4 0 0 ). Assim, penso estar ex­ plicada a afirmação citada na pergunta.

Principais publicações: 1968 1986 1991 1992 1993 1997 1999 2000

Ontologia e História (São Paulo: Duas Cidades); Escritos de Filosofia I: problem as de fronteira (São Paulo: Loyola); Antropologia filosófica l (São Paulo: I.oyola); Antropologia filosófica II (São Paulo: Loyola); Escritos de Filosofia II: Ética e cultura (São Paulo: Loyola); Escritos de Filosofia III: filosofia e cultura (São Paulo: Loyola); Escritos de Filosofia IV: introdução à Ética filosófica I (São Paulo: Loyola); Escritos de Filosofia V: introdução à Ética filosófica II (São Paulo: Loyola).

Bibliografia de referência da entrevista: Agostinho. Confissões, Vozes. Aquino, T . de. Suma teológica, Livraria Sulina. ___________ . O ente e a essência, Vozes. Aristóteles. Metafísica , M adri: Editorial Gredos. ___________ . Ética a N icômaco, coleção Os Pensadores, Abril Cultural. Bergson, H. Dos fuentes de la moral y de la religion, Madri: Tecnos. Carnap, R. Coleção Os Pensadores, Abril Cultural. Chardin, T . de. O fenôm eno humano, Cultrix. Gilson, E. e Boehner, Ph. História da filosofia cristã , Vozes. Hegel, G. W. F. Ciência de la Lógica, Buenos Aires: Solar. ___________ . Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio, Loyola. ___________ . Estética, Lisboa: Guimarães. ___________ . Fenomenologia do espírito, Vozes. ___________ . Princípios da Filosofia do Direito, M artins Fontes. Kant, 1. Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, Brasiliense. M aritain, J . A filosofia moral: exame histórico e crítico dos grandes sistemas, Agir. ___________ . Por um humanismo cristão, Paulus. M arx, K. O Capital, coleção Os Economistas, Abril Cultural. M ounier, E. Sombras de m edo sobre o século XX, Agir. Platão. A República, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. ___________ . Diálogos, coleção Os Pensadores, Abril Cultural. Ricoeur, P. Le Soi-Même com m e un autre. Paris: Seuil. Tavlor, Ch. Sources o f the self: the making o f m odem identity, Harvard University Press.

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GERD BO R N H EIM (1929)

Gerd Bornheim nasceu em 1929, em Caxias do Sul (RS). Graduou-se em Fi­ losofia na Universidade Federal do Rio Cirande do Sul, onde obteve também o títu­ lo de livre-docente em Filosofia. Professor cassado em 1 969, fixou-se no Rio de J a ­ neiro depois de temporada na Europa. É professor titular aposentado da Universi­ dade Federal do Rio de Janeiro. Esta entrevista foi realizada em janeiro de 2 0 0 0 .

G oethe dividiu a vida de seu personagem Wilhelm Meister em dois romances, Os anos de aprendizado e Os anos de peregrinação. No pri­ meiro, o foco está posto na form ação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que o senhor nos falas­ se de sua form ação intelectual? Eu sou gaúcho. Na época da universidade, reinava um tipo de filosofia que hoje está quase esquecida aqui no Brasil — o tomismo. Isso me deu uma base medieval e grega bastante sólida. Claro que para mim o tomismo está totalmente ultrapas­ sado, mas, com ele, tive a vantagem de ter uma espécie de form ação clássica, e a desvantagem de ter um tipo de ensino completamente alheio aos problemas con­ temporâneos. O senhor chegou a freqüentar seminário? Com o foi o seu contato com o tomismo? Não. Na verdade, a minha intenção primordial era fazer psiquiatria, e, antes disso, queria adquirir cultura. No entanto, a formação que se tinha na universidade era muito especializada: era necessário estudar línguas, inclusive o grego, um pouco de literatura, e, evidentemente, eu lia tudo o que podia. Queria complementar essa formação com uma consciência social — digamos assim — voltada para o pensa­ mento sociológico. M as os cursos de sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, não aconteciam todos os anos, devido a terem pouca procura. Então, descobri que havia uma cadeira de sociologia no curso de filoso­ fia, entrei na filosofia e fiquei. De fato, a liberdade de escolha é uma coisa muito peculiar ao indivíduo, a gente escolhe muito menos do que pensa, e as coisas vão acontecendo de um modo muito inusitado. Esse tipo de form ação clássica que tive em Porto Alegre tem lá as sua vanta­ gens, só que, em geral, a tendência é alienar um pouco o indivíduo. Talvez eu não tenha me alienado tanto, na medida em que li muita sociologia brasileira, os clás­ sicos como Gilberto Freyre, Oliveira Vianna etc. Naquela época, já havia muita coisa no Brasil. Aliás, foi justamente nessa época que, através de Gilberto Freyre, houve

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uma influência muito forte do pensamento sociológico americano, e isso, de certa maneira, foi definitivo no Brasil. M as eu não me queixo dessa formação.

Q uando o senhor foi pela primeira vez à Europa? Em 195 3 , fui pela primeira vez a Paris, onde estudei na Sorbonne como bolsista do governo francês. F. isso foi muito importante para mim, porque foi lá que comecei a descobrir o pensamento contemporâneo. De Paris fui para O xford fazer um cur­ so de quatro meses e, depois, fiquei ainda oito meses na Alemanha. Paris foi muito importante, porque foi lá que conheci e estudei com a nata do pensamento francês do início do século — com exceção de Sartre, que não dava aula. A Sorbonne era muito rica nessa época. Além disso, ter conhecido M erleau-Pontv valeu a pena. Eu assisti também ao último curso de Bachelard sobre a vida filosófica, uma coisa his­ tórica e fantástica, pois a sua experiência filosófica foi posta em aula. Estava tudo escrito, mas não sei o que aconteceu com esse texto. Na Alemanha, estudei com o meu amigo M ax M üller, que queria me levar para conhecer Heidegger. M as não cheguei a conhecê-lo, porque fui convidado para lecionar na Federal de Porto Alegre e não podia me dar ao luxo de perder essa oportunidade, pois estava precisando de dinheiro. Então voltei para o Brasil.

Com o foi a diferença entre o am biente cultural francês, de m eados da década de 1950, e o am biente no Rio Grande do Sul? Na França, tive dois professores muito bons: Jean Wahl e Jean Hyppolite. Tinha também [Martial| Guéroult, IJean] Piaget, enfim, muita gente. Vi tudo o que havia de melhor, sem ter preocupação com exame, provas e coisas do tipo — pois não queria fazer tese para ficar “murado” em hotéis baratos. Então fiquei assistindo a vários cursos. Wahl e Hyppolire estavam dando curso sobre Heidegger. No Brasil, Heidegger era transmitido sobretudo por um cônego argentino que, quando falava da “náusea” de Sartre e da “angústia” de Heidegger, virava a própria náusea, ta­ manho o nojo que tinha [risos]. E foi através de Jean Wahl e de Jean Hyppolite que conheci o Heidegger autêntico. Foi através deles que a questão ontológica em Heidegger começou a me preocupar e a se tornar uma das minhas maiores influên­ cias. Nessa época, ter entrado em contato com o pensamento contemporâneo foi uma revelação para mim, e causou uma abertura extraordinária em meu pensamento. E verdade que isso também me custou inimigos em Porto Alegre: a Congregação Mariana de Jesuítas caiu em peso em cima de mim. Mas toda essa aventura foi muito interessante.

Com o o senhor avalia a figura de Em ani Eiori no Rio Grande do Sul? Ele era um catedrático. Tive dois professores catedráticos: Fiori e Armando Câm a­ ra, que não é conhecido no Rio de Janeiro. Foi Câmara quem me convidou para dar aula. Era um homem venerando, uma belíssima figura e um grande orador. No entanto, eu preferia o Fiori, que tinha mais método de trabalho, e passei para a sua cadeira. Daí começaram as brigas filosóficas, porque Fiori era tomista. Para ame­ nizar de certa maneira o seu tomismo, começou a estudar Lavelle, um pensador ca ­ tólico muito estranho. Certa vez, eu lhe disse: “Desculpa, Fiori, mas em Paris Lavelle

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Gerd Bornheim: “Fala-se hoje em globalização, mas tem de se tomar cuidado com esse ter­ mo ao torná-lo sinônimo de neoliberalismo. A globalização já está presente em M arx, pois foi ele o primeiro a dizer que o capital é, por definição, internacional”.

não existe” . Fiori subiu pelas paredes quando percebeu que eu estava me tornando heideggeriano, com os temas da angústia e da náusea. E assim eu fui também me afastando dele. Acabamos brigando feio, e respondi às suas provocações fazendo a livre-docência. Mas Fiori era um homem de respeito e tinha um excelente nível. Na época, as coisas eram muito provincianas, a universidade era muito pro­ vinciana, e eu consegui romper com tudo isso. Tinha de se fazer muita política. Quando fui chefe de departamento, eu tinha três assistentes, um bispo e dois pa­ dres. Eram amigos meus, mas tinha de fazer esse tipo de jogo político. Quando perdi o meu lugar no departamento, lecionei literatura alemã por dois anos, e, quando voltei para a filosofia como livre-docente, aproveitei para dar cursos mais livres, que eram muito mais interessantes para mim. E foram um sucesso fantástico: eram “multidões” que vinham me ouvir.

O seu livro Introdução ao filosofar, publicado em 1969, originalmente tese de livre-docência defendida em 1961, pode ser considerado com o uma descrição do seu caminho para a filosofia? Pode, do ponto de vista existencial, porque, de fato, a grande carga da minha for­ mação cultural, de um modo geral, foi dada pelo romantismo alemão, com as idéias de experiência negativa, de nostalgia e do tema da distância. Essa formação do romantismo foi muito importante para mim. Foi a partir dela que a noção de ex ­ periência negativa começou a tom ar forma de sistema, e foi nessa época que com e­ cei a ler Hegel. N ão tinha um plano delimitado para escrever a tese, comecei a es­ crever e saiu assim. Publiquei exatamente como tinha escrito a prova. Em concur­ so, a gente fica meio tonto com a gente mesmo, mas a prova saiu perfeita do ponto de vista formal. Depois, só traduzi as notas para o português. F. o livro já está na nona edição, com um sucesso que me deixa espantado. Não sei nem mais se pensa­ ria o livro do mesmo jeito hoje.

Ao contrário do seu livro sobre Sartre, de 1971, esse seu livro Introdu­ ção ao filosofar não parece ter sido retom ado pelo senhor em nenhuma obra posterior. Isso procede? Isso é mais ou menos normal em mim. Tenho esse livro sobre Sartre, mas nunca fui sartreano, embora tenha uma admiração muito grande por ele. Foi um livro que fiz com paixão, achando Sartre uma maravilha. M as sempre gostei mais de Ileidegger, tanto que a crítica que faço a Sartre, na segunda parte do livro, é toda de inspiração heideggeriana. A excessiva hegemonia da dicotomia sujeito-objeto em Sartre é uma limitação muito grande, e eu aceito ainda hoje a crítica de Heidegger a essa questão. A dicotomia é uma exacerbação muito grande, há sujeito ou o b je­ to, e não há um terceiro termo possível. Essa exacerbação mereceu a crítica de Heidegger, embora eu não concorde inteiramente com essa crítica. M as Satre era vítima disso, era um cartesiano de fato, e sujeito e objeto eram os pilares do seu pensamento. Critico justamente isso. Muita gente pensa que sou sartreano, talvez pelo fato de nunca ter escrito um livro sobre Heidegger, mas apenas textos esparsos. Também me afastei um pouco de Heidegger. Em Dialética: teoria práxis, por exemplo, há um comentário bastante

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extenso a Heidegger, em que faço a seguinte crítica: eu o acuso pelo esquecimento do ente. Com o não-esquecimento do ser, ele acaba esquecendo-se do ente, quer dizer, ele desresponsabiliza demais o ente, a participação do homem na história, justamente porque ele é radicalmente contra a subjetividade, contra a interpreta­ ção moderna da subjetividade a partir de Descartes. Então, por esse cam inho, aca­ bei afastando-me de Heidegger. Mas confesso que agora estou lendo alguns de seus textos póstumos, que são fantásticos. Na ética, Sartre é fundamental, porque todo o seu pensamento é uma ética de ponta a ponta, em que a questão da liberdade é fundamental. Ele mostra o drama da liberdade no homem contemporâneo. Radicaliza muito bem a tese de Descartes e mostra a liberdade como uma síndrome negativa, uma coisa brutal e pesada, como se estivesse perguntando a si mesmo: com o é possível me libertar da liberdade? E Sartre tem o mérito de ter feito a crítica à hipocrisia, à mentira. F.le é um dos prin­ cipais responsáveis pelo descalabro da mentira. Acho que a mentira praticamente não existe mais. Com muito marxismo, muita psicanálise, tudo ficou muito trans­ parente, de modo que a mentira, hoje em dia, está desmoralizada [risosj. Sartre diz: "H á de surgir um dia em que todos os homens serão transparentes” . N ão se pode exagerar nessa transparência absoluta, mas, de qualquer maneira, ele tem razão. O processo de autoconhecimento do homem está chegando, está levando a huma­ nidade a esse limite extremo de transparência. Nesse particular, Sartre é fundamental: a denúncia da hipocrisia em todos os níveis.

O predom ínio do ensino tomista na faculdade foi um dos fatores que levaram o senhor a passar para a escola de teatro? N ão, na verdade isso foi um acidente. Sempre gostei muito de teatro e de música. Organizaram um curso de arte dramática em Porto Alegre, e convidaram Ruggero Jacobi para ser professor. Nós ficamos muito amigos. Ruggero, na parte prática, não era tão bom, mas era um teórico maravilhoso. Comecei a assistir a umas aulas suas à noite e depois saíamos para tomar uma cervejinha, comer uma macarronada, e fui gostando daquilo. F.le montou o Egmont de Goethe e Cacilda Becker levou Mana Stuart. Tudo foi feito concomitantemente: a escola e as montagens. Ruggero obrigou-me a fazer uma série de conferências sobre Goethe e Schiller, e, com isso, fiquei ligado também ao teatro. Logo comecei a escrever uns ensaios menores so­ bre teatro. Aí aconteceu uma fatalidade: Ruggero simplesmente desapareceu do Brasil sem se despedir de ninguém, sumiu. Então a coisa sobrou para mim, porque ele dava teoria do teatro. Fui obrigado a dar teoria do teatro e acabei diretor da escola. Isso foi um desvio muito interessante e muito bom para mim.

Em 1969, o senhor foi cassado... Fui cassado em novembro de 1969, e, a partir de então, não podia mais dar aula em universidade. Fiquei dois anos dando aula em um curso pré-vestibular. Aquele tempo foi terrível, havia policiamento militar nas ruas, e eu era chamado todos os meses para depor na Polícia Federal M ilitar de Porto Alegre — uma coisa humi­ lhante. Nessa época, a Universidade de Frankfurt tinha uma política interna de fazer intercâmbio com professores americanos, que já estava funcionando há alguns anos.

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Estenderam isso também para a América Latina, e, com o sei alemão, convidaramme para ir. Foi uma sorte incrível, independentemente da questão política. Fui pro­ fessor durante um semestre em Frankfurt. Até queriam que eu ficasse lá, oferece­ ram-me uma ótima bolsa, mas, naquele tempo, eu detestava a Alemanha. Achava Frankfurt e Freiburg horríveis. Aliás, só me reconciliei com a Alemanha há dez anos, quando fui convidado para ir a Berlim. Fiquei dois meses e me apaixonei pela cida­ de — que, do ponto de vista cultural, está muito superior a Paris. Terminado esse semestre em Frankfurt, em que dei um curso sobre Sartre a pedido deles, fui imedia­ tamente para Paris, onde fiquei quatro anos. N o com eço, dei aulas de alemão para sobreviver, e um amigo francês muito rico, dono de um jornal, convidou-me para organizar uma galeria de arte. F.u me “atirei” nesse projeto e fiz um acervo para a galeria. Isso foi muito interessante como experiência. Daí voltei para o Brasil, de­ vido à doença de meu pai. Fiquei três anos em Caxias do Sul cuidando de meu pai, que não podia trabalhar, e escrevi O idiota e o espírito objetivo.

Qual era a diferença entre o am biente de m eados da década de 1950 e o do com eço dos anos 1970 na França ? Toda aquela efervescência dos anos 1950 desapareceu, a Sorbonne ficou muito apática e o pós-modernismo não tinha ninguém com o Sartre e Merleau-Ponty, que tinham um nível muito elevado, uma seriedade muito grande. Ambos tinham um nível de produção, de energia e de pensamento extraordinário. Na Inglaterra, em O xford, assisti a aulas de filosofia política e literatura inglesa contemporânea. M as em filosofia os ingleses realmente não são bons, e a filosofia política era o estudo dos programas dos partidos, enfim, não se fazia filosofia [risos]. M as, no curso de literatura, eu assisti a uma palestra maravilhosa sobre Conrad, que era um tratado de sociologia. F. por meio da literatura que eles são bons para pensar a política. Quan­ do têm de fazer filosofia, não a fazem, ficam na linguagem, na política prática e efetiva, no empírico. M as quando fazem literatura, a crítica literária “voa” que é uma maravilha. Então aprendi muito e acabei interessando-me pela parte mais fi­ losófica. Então, esse desvio também foi muito interessante. Na Alemanha, era aquela coisa germânica de cidade pequena, concentradíssima nos estudos. Mas também havia coisas maravilhosas que não vejo mais na Europa. Havia um alemão, já falecido, chamado Hans Jantzen, que foi possivelmente o maior especialista do século X X em estilo gótico. Estava em Freiburg, onde deu o seu úl­ timo curso. O tema foi uma das grandes paixões da minha vida: a catedral gótica de Chartres. Ele dissecou o tema e isso foi uma das grandes experiências da minha vida, porque eu tinha paixão por essa catedral. Quando fui a Chartres, a primeira visão que tive da catedral foi um choque cultural muito grande. Eu estava dentro de um daqueles carros americanos, cheio de brasileiros, sentado atrás, junto à por­ ta. Quando o carro parou na catedral, nós estávamos discutindo alguma coisa, eu abri a porta, vi a catedral, e tive a sensação de estar sem pernas. Daí eu entendi su­ bitamente o que é, para nós brasileiros, não ter vivido a Idade Média. F. impossível para nós ter a experiência do gótico, mesmo por via indireta, pois é um dado cul­ tural. Isso foi uma experiência muito forte para uma pessoa como eu, que era da colônia alemã e, de repente, estava em Paris. E eu aproveitei esses anos, pois a mi-

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nha política era a de assistir aos cursos mais importantes e não abandonar o tea­ tro, os concertos, as boates etc. Eu pude refazer na Alemanha e, sobretudo, em Paris, aquilo que no Brasil não podia fazer. A minha preocupação de base era me educar com a experiência européia. Tive uma formação superficial, mas européia.

Em fins da década de 1970, o senhor volta para Caxias do Sul para cuidar do seu pai, durante três anos, e escreve O idiota c o espírito ob­ jetivo. Depois vem para o Rio de Janeiro. O que motivou essa mudança? A necessidade de trabalho. Se São Paulo tivesse antecipado um pouco mais o inte­ resse, eu teria ido para São Paulo. Não queria ficar em Porto Alegre, porque os meus inimigos estavam todos dentro da universidade. Eu tinha sido chefe de departamento e ficaria numa situação muito desagradável. Então eu tinha de trabalhar, e vim para o Rio.

Qual a diferença do am biente intelectual gaúcho em relação ao carioca? Eu fui muito bem recebido no Rio de Janeiro. É interessante porque eu sempre fa­ zia conferências em São Paulo. Nunca tinha recebido convite para fazer conferên­ cias no Rio. Eu dizia: “Que cidade estranha essa, que não convida a gente para fazer conferência, enquanto São Paulo faz numerosos convites”. E, de repente, estava dando aula para um ótimo público. E comecei com o pé direito. Evidentemente, quando acabou o período da ditadura, houve uma espécie de reação interna, uma espécie de reivindicação a favor de um espírito crítico mais acentuado. Então saímos daquelas trevas, o tomismo foi em bora, e houve uma es­ pécie de faxina geral a favor de um espírito mais ventilado, acentuando-se o espíri­ to crítico. Houve uma transformação muito forte na universidade. O aspecto reli­ gioso começou a se diluir, algumas universidades católicas perderam sua importância e deixaram de ser “católicas”.

Na década de 1960, três paradigm as teóricos m arcaram o am biente intelectual: estruturalismo, existencialismo e marxismo. Como o senhor avalia a evolução desses paradigm as até os dias de boje, e que balanço o senhor faria da sua relação com eles? Nunca fui muito fã do estruturalismo, que na filosofia foi representado por Guéroult. E aí é que está o problema, porque eu assisti a essa metodologia de Guéroult com muito respeito em seu curso sobre Descartes, “A ordem das razões”, na Sorbonne. Mas, no fundo, percebi a deficiência do método. Guéroult estudou na Alemanha, onde havia um hegeliano chamado Kuno Fischer que havia escrito uma história da filosofia moderna — eram dez volumes em tipo gótico. Comprei parte desses livros num sebo em Porto Alegre. Quando ouvi o curso de Guéroult sobre Descartes, eu disse: “Mas issoé Kuno Fischer” . Daí surgiu a minha crítica a ele, porque Guéroult, no fundo, reduzia Descartes, Espinosa e Fichte a um objeto. Ele não fazia filosofia, mas dissecava uma filosofia à maneira de um laboratório. Pensando bem, mesmo não querendo inferiorizá-lo, pode-se dizer que um homem como Guéroult nunca teve uma idéia, nunca foi um filósofo. Heidegger chama essa filosofia de Wissenschaft , a ciência filosófica. No fundo é isso: essa secura do estruturalismo não me

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agrada. F., pensando bem, a Poética do velho Aristóteles é um livro estruturalista, em que há apenas a descrição da estrutura. E como é a interpretação dele? É muito fraca. Eu tenho a impressão de que falta um rigor filosófico maior na Poética. Eu gostei demais do existencialismo. M as, logo de saída, fui para a questão ontológica, que me preocupava mais do que o existencialismo. E fui me aproximando mais lentamente do marxismo, através da dimensão política também. T anto é que sou meio marxista, meio hegeliano, heideggeriano e sartreano. Faço um jogo à minha maneira. A gente vai desenvolvendo certo espírito crítico, e eu não posso dizer hoje que sou heideggeriano, pois critico Heidegger. Mesmo M arx tem uma posição es­ pecial, pois ele é muito mais lido do que parece, e os problemas postos por ele es­ tão todos aí. Acho, inclusive, que M arx foi pioneiro em relação a certas dimensões do pensamento político contemporâneo. Fala-se hoje em globalização, mas tem de se tomar cuidado com esse termo ao torná-lo sinônimo de neoliberalismo. A glo­ balização já está presente em M arx, pois foi ele o primeiro a dizer que o capital é, por definição, internacional. Ele disse isso, se não me engano, baseado na experiência do patriarca dos Rothschild, que enviou cada um de seus cinco filhos para um cen­ tro financeiro do mundo. M arx fundou a Primeira Internacional, não a primeira nacional. Isso é muito importante e está esquecido, porque a esquerda ficou muito contagiada pelo espírito nacionalista, que é uma coisa toda cheia de contradições, que é de direita e de esquerda. O fascismo, pelo menos, era nacionalista. E o caso de Heidegger, que era um homem de esquerda no final dos anos 1920 e entrou no movimento nacional-socialista, não no nazismo. M as foi o velho M arx o primeiro a dizer que o capital é internacional, e que a internacionalização é uma fatalidade, uma questão de tempo. E ele estava certo, porque isso está se realizando. Só que hoje tudo está concentrado nesse tipo de capitalism o que está todo apoiado no mundo das finanças e tecnológico, como se fosse um espírito absoluto que conduz o capital. F. ninguém sabe onde isso tudo vai parar. M as a idéia de globalização é de M arx, foi ele quem entendeu realmente o problema e a necessidade do transnacionalismo. Com roda essa transform ação, pela primeira vez M arx está sendo considera­ do um filósofo. Essa é a grande vantagem, porque, no passado, tudo era muito dogmático e stalinista, tudo fazia parte de um catecismo político. Os comunistas eram pessoas meio estranhas, meio separadas, não se misturavam nunca e eram muito dogmáticos — uma coisa muito curiosa. De fato, davam-se a pequenas for­ mas de adultérios. M ário Pedrosa e M ário Schemberg, por exemplo, adoravam pintura abstrata — que, em geral, era considerada com o uma decadência burguesa pelos marxistas. De qualquer maneira, eles mantinham o dogmatismo. Eu adorava M ário Schemberg, mas uma vez tive uma briga com ele sobre a minha tese, pois ele ficou horrorizado com ela. Dizia que tinha excesso de liberdade, muita subjetivi­ dade, que só tinha sujeito e que não tinha objeto. O pessoal que saiu da Fundação Getúlio Vargas foi uma geração de tecnocratas muito violenta e despreocupada com a política, que esqueceu aquilo de que M arx falava tanto, ou seja, que a economia é política — esse é o meu modo de interpre­ tar a proposta. M as isso mostra também aquilo de que estava falando: que essa re­ dução de tudo é própria da época, porque aquilo que estava presente nos m arxis­

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tas clássicos, como M ário Schemberg c M ário Pedrosa, está presente hoje nos eco­ nomistas, ou seja, a questão do objetivismo. H oje, estamos em um tipo de cultura em que tudo é sujeito ou objeto. E o fantástico é outra coisa: há uma espécie de intercâmbio entre sujeito e objeto, que vai muito mais longe do que parece, pois esse problema dos nossos economistas e políticos no fundo expressa esse intercâm­ bio. Essa é uma experiência radicalmente nova na história do homem. A primeira análise sobre isso foi feita por Hegel na “Dialética do senhor e do escravo”: o es­ cravo é reduzido ã condição de objeto pelo senhor e depois essa relação se inverte, mas, com isso, o estatuto de subjetividade e de objetividade pela primeira vez entra em crise. E isso, evidentemente, vai ser fundamental para M arx. M as aí é que está: há uma inversão na situação, o sujeito passa a ser objeto, e o objeto passa a ser sujeito. Quer dizer que essa idéia do intercâmbio permite entender a frase de Sartre que diz: “H oje, a melhor situação para se entender o homem é a do sadom asoquismo” . Pensando bem, parece que ele tem razão, porque é a forma de sujeito e objeto anu­ larem-se. É o sujeito permeado de objetividade e vice-versa: um é sempre o objeto do outro, com patologia ou sem patologia. Heidegger, por exemplo, passa por cima desse problema. A relação com a máquina, por exemplo, também é assim. Eu acabei de escre­ ver um pequeno ensaio, “A educação pela máquina”, que saiu num livro em ho­ menagem a Carneiro Leão. Procuro mostrar nesse ensaio que o século X X caracteriza-se pelo conflito entre o homem e a máquina. M arx não percebeu esse proble­ ma, pois fez o elogio da máquina, e até chegou a dizer que o jovem operário tem de trabalhar, acostumar-se e assimilar a máquina, para produzir mais e aumentar o poder do corpo. Ele viu o problema do capitalismo, mas não viu esse conflito. E a máquina é fundamentalmente capitalista, está dentro do processo histórico. E no século X X que surge o conflito entre o homem e a máquina, que muito cedo foi percebido por Carlitos [Charles ChaplinJ, em Tempos modernos. Pode-se pensar em [Herbert] M arcuse, que, em 1964, escreveu o Homem unidimensional. Esse li­ vro, para mim, está totalmente superado, já que hoje não há mais o conflito com a máquina apresentado por ele. Não tem sentido dizer que o computador “maquiniza” o homem. Ao contrário, o computador é um instrumento de trabalho fantástico. Eu tenho de ’•etomar esse tema, mas é necessário pensar a máquina enquanto co r­ po, porque de certa maneira a relação que o homem tem com seu corpo é am bí­ gua: em certo sentido eu sou o meu corpo, mas, em outro sentido, eu tenho o meu corpo, ele se torna um objeto. Isso eu comecei a entender através de um pastor, personagem do expressionismo alemão, que, numa peça, fazia experiências com seu próprio corpo, reduzindo-o à condição de objeto. Foi a primeira vez que vi isso acontecer na literatura. Então o corpo é um objeto, e o outro também pode ser um objeto para mim. Essa relação vai muito longe. E essa é a ambigüidade invertida que o homem tem com a máquina, porque, num certo sentido, eu tenho a máqui­ na, que está à minha disposição, mas, em outro sentido, eu sou a máquina — in­ clusive se se pensar as próteses e coisas do gênero. De fato, há um intercâmbio en­ tre o homem e a máquina, e M arx tinha razão quando dizia, como se falasse den­ tro da tradição da Revolução Industrial, que de fato a máquina não se entende apenas mecanicamente, mas se entende biologicamente, ou seja, é um prolongamento do

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corpo do homem. E, por definição, ele dizia que tem de haver uma espécie de inti­ midade muito maior entre o homem e a máquina. Vlarcuse que me desculpe, mas nós temos de repensar esse medo que temos das máquinas. Isso não funciona mais. Pelo contrário, o homem está dominando a máquina. Claro que há sempre um perigo, como diz Heideggcr, com o futuro da medicina, por exemplo, mas é uma transformação. O que se quer? A doença do pas­ sado? A peste? Numa época em que o homem começa a controlar a doença, é ne­ cessário controlar o sistema imunológico, pois a AIDS está aí. Outra coisa é a lon­ gevidade. Eu não farei parte dessa geração longeva, mas o meu neto vai fazer parte com certeza, vai passar dos cem anos de idade. Essa transformação é fantástica. Como as pessoas podem ter medo disso? Temos de desmistificar isso tudo. Será uma vida muito superior, sem doenças e com tudo cada vez mais sob o controle do ho­ mem. O medo, a vergonha em relação à tecnologia, no fundo, é o medo em relação ao futuro, que é um buraco negro. Estou reconciliando-me com a máquina. Isso é muito interessante. O pessoal de vez em quando ri de mim, mas acho que essa questão tem de ser pensada e leva­ da a sério. A máquina, na Revolução Industrial, foi fundamental, e, com ela, o pro­ cesso de libertação do homem é extraordinário.

Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Com o o senhor vê as relações entre a filosofia e a cultura brasileira? Elas não estão muito boas, e resolvem-se muitas vezes em termos de ironia, como diria o meu amigo [Roberto] Schwarz. Gostaria que houvesse, de um lado, um maior intercâmbio com a política e as ciências sociais, e, de outro lado, com a crítica lite­ rária. M as não vejo isso no Brasil, porque a cultura filosófica é também meio rara entre nós. Mas há uma atividade filosófica muito intensa no Brasil. Amanhã, por exemplo, participarei da banca de uma tese muito bem -feita, acadêm ica, sobre Benedetto Croce. Isso é muito interessante, porque ressuscita o Croce e o “ põe em cima da mesa” . Acho muito boa essa cultura acadêmica entre nós, porque se não tivesse mestrado e doutorado, Croce estaria m orto. Então a tese é fundamental, porque trata desses autores esquecidos. Também é importante falar das traduções que estão sendo feitas, porque, 110 Brasil, tradução sempre foi um problema, e, de repente, surgiu uma tradução que já está em sua sétima edição — O ser e o nada de Sartre, publicada pela Vozes. Eu não entendo isso até hoje. O sucesso deve ser para encher prateleira. Acompanhei de perto essa tradução, dei muitas sugestões, e, até a quinta edição, ela foi revista e reexaminada, para ver se estava tudo certo. Quer dizer, há mais material à disposi­ ção. Estou aceitando até traduções como tese de mestrado para incentivar a parte de tradução, que sempre foi uma lacuna muito grande neste país. É curioso: as gran­ des editoras normalmente possuem estantes filosóficas, o que é uma novidade para mim, porque, antigamente, isso não existia. A atividade filosófica, entretanto, está bastante diversificada, e todas as orien­ tações estão mais ou menos representadas. Eu só implico um pouco com a filosofia analítica, nós não nos damos muito bem [risos]. Mas essa implicância está ligada àquele problema do objeto, é apenas uma outra versão: reduz-se tudo, a começar

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pela linguagem, a objeto. Com isso, não se vai muito longe, pois não é uma possi­ bilidade de criação do pensamento. N ão posso passar a minha vida inteira dando aula sobre Descartes. E hoje fazem isso: é Descartes, Espinosa e mais um ou outro que absorvem as preocupações dos analíticos. E eles fazem o que? Fazem ativida­ des policiadas. Há muito policialismo nessas filosofias da linguagem, e há uma o b ­ sessão excessiva pelo método. Uma coisa a que nunca dei importância foi o méto­ do. O método tem de ser inventado na hora, pois, dependendo do que se está pen­ sando, tem de se inventar uma metodologia. M as não é possível partir de um mé­ todo a priori, estabelecido como camisa de força, para prender tudo lá dentro. Aliás, isso é uma característica do século X X .

Com o o senhor vê o processo de instalação das faculdades de filosofia nas universidades federais ? Acho que têm o mesmo vício de base, o tomismo. Porque foram os padres que co ­ meçaram a dar aula. E os cursos funcionavam muitas vezes como uma espécie de prolongamento dos seminários, pois os professores eram fundamentalmente os mesmos. Isso felizmente acabou. Naquela época, o tomismo ortodoxo era de uma violência incrível, não havia alternativa nenhuma. Agora a situação se inverteu: vaise a um seminário e constata-se que tem muito padre que é marxista, hegeliano, heideggeriano — não são mais tomistas. Isso foi uma transformação muito violen­ ta que ocorreu no Brasil e que tem os seus méritos. Não creio que haja grandes fi­ lósofos no Brasil, mas temos uma atividade filosófica muito intensa. Pela prolife­ ração de teses, o nível geral está subindo, está cada vez melhor. A atividade filosó­ fica no Brasil já está intensa, embora isso não esteja acontecendo em relação aos pensadores, que estão faltando no país. M as a filosofia tem muito público hoje. Quem faz conferência como eu faço, percebe que em qualquer lugar do Brasil há público. Atualmente, fazer filosofia no Brasil é uma coisa muito gratificante.

Em seu artigo “Filosofia e realidade n acional”, o senhor m enciona o positivismo e o neotomismo com o duas correntes de grande im portân­ cia no cenário da filosofia brasileira, apontando aspectos positivos na primeira e negativos na última. Além dessa caracterização histórica do nascimento da filosofia, quais outras correntes o senhor apontaria como importantes no cenário da filosofia no Brasil? Com o o senhor avalia a atividade que é praticada nas faculdades de filosofia? M arx é importante, e sempre foi estudado com um espírito filosófico mais eleva­ do, com preocupações políticas e sociais. Infelizmente Hegel ainda é pouco estuda­ do, talvez por causa das traduções de seus textos. M arx tem muito mais público e gente empenhada em estudá-lo. Gostaria que isso acontecesse também com Hegel. Há [Henrique Cláudio de] Lima Vaz, há M arcos Müller, que está trabalhando se­ riamente. O estudo de Hegel está caminhando. Acho que todo o positivismo brasileiro deveria passar por uma revisão. Aqueles católicos, Jackson Figueiredo, aquela turma do começo do século vilipendiou o positivismo. Pensando bem, de uma certa perspectiva, é possível dizer que a lei dos três estados estava errada? Não, pois, do ponto de vista do pensar a realidade cientifi­

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camente, estava correta. £ Comte foi o primeiro a fazer a grande crítica sobre a con­ cepção metafísica do homem, porque pensou a função do engenheiro. Foi o primeiro que acabou com a idéia do animal racional e, ao mesmo tempo, fez uma ponte com essa idéia. O engenheiro é o indivíduo, o operário, que estudou física e matemá­ tica. A teoria e a prática estão ligadas. Ele fica dentro da tradição do animal racio­ nal, mas com uma revolução muito grande. Toda relação da vida contemplativa, do artesanato, digamos assim, pôde ser transformada não por causa de Comte, mas por causa da Revolução Industrial. Comte foi o primeiro que chamou a atenção para essas coisas todas, e tem de ser revalorizado, pensado corretam ente. Dessa forma, sou a favor de uma revisão sobre a importância do positivismo no Brasil.

Com o o senhor avalia, p or exemplo, a produção do Departamento de Filosofia da USP? Acho que ainda é a melhor do Brasil. A segunda eu diria que é da U ERJ. A USP tem muita gente boa, embora diversas pessoas tenham se aposentado. Há poucos dias, Scarlett M arton esteve aqui para participar de uma banca da qual eu era o presidente. Gostei muito de conversar com ela. Os Cadernos Nietzsche são uma preciosidade. A USP tem essas coisas e sabe compô-las muito bem.

Quais são, em sua opinião, os filósofos brasileiros mais importantes? Renato Janine Ribeiro é muito bom e muito sério. Acho também interessante o tra­ balho feito por M arilena Chaui, que é meio apressadinha, às vezes. O seu livro so­ bre Espinosa, que não li e não vou ler, é muito importante. E se o livro de índices e notas for bem-feito — não pude ainda ler com atenção — , então o seu livro deve ser muito bom, porque remete para toda a obra. Aqueles índices e aquelas biblio­ grafias têm de estar muito bem realizados. Fazer um livro desses sobre Espinosa no Brasil é muito bom. N ão posso esquecer Scarlett [Marton] também. Lima Vaz é um hegeliano que está em Belo Horizonte, e tem diversos livros sobre Hegel. Seus escritos são importantes porque dinamitam as bases da igreja. Aqui, no Rio, há diversas pessoas também: Carneiro Leão, que está se aposentan­ do, e uma geração nova que está comigo. Jovens que fazem tese sobre Espinosa — que está na moda. Há um rapaz chamado Ricardo Barbosa de quem eu gosto mui­ to. Tem uma tese sobre o jovem Lukács que é muito interessante. Ele acabou escre­ vendo um “ensaio sobre o ensaio”, e está nessa linha de pesquisa ainda hoje. E um rapaz bem sério, bem jovem, e bom escritor — o que é raro na filosofia brasileira, pois o pessoal ou não escreve muito bem, ou escreve bem, mas em alemão. Não posso esquecer-me de Roberto M achado também, que é muito bom. Eu dou muita importância a escrever bem, e isso é um trauma na minha vida. Sou um “alem ão”, e não sei até que ponto consegui recuperar o tempo perdido em relação à língua portuguesa. Normalmente, o meu estilo é mais elogiado em rela­ ção à clareza, então procuro ler padre Bernardes, Rubem Braga e Machado de Assis. Não me interessa o que eles dizem, interessa-me o modo com o eles escrevem. Leio com o lápis na mão para dominar a língua. Isso é um problema que não tem fim, porque a língua tem de ser criada, tem de ter um envolvimento criativo quando se vai escrever alguma coisa. Até certo ponto consigo fazer isso, mas é muito difícil.

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O senhor é um leitor dos escritos de Benedito Nunes? Ele é um grande amigo meu. A gente o esquece, porque está lá no Pará, e o Brasil é imenso. M as é um heideggeriano, como Carneiro Leão também o é. Quem intro­ duziu Heidegger no Brasil, como professor, fui eu — o Heidegger ontólogo. C ar­ neiro L.eão veio logo depois de mim, chegou a estudar com Heidegger, e só com e­ çou a publicar depois que eu já tinha aberto a boca. F. o Benedito “passeia” muito bem por esse assunto.

Que conceito(s) de sua reflexão o senhor destacaria como o(s) mais representativo(s) da sua produção filosófica? Pediríamos que nos contasse com o ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e com o o senhor o(s) vê boje. Um tema-chave para mim, e sobre o qual escrevi muito pouco, é o conceito de di­ ferença. Não a velha distinção de Aristóteles do ser diferente, mas, em última aná­ lise, a idéia da pluralidade e da multiplicidade. Foucault, por exemplo, é importan­ te para esse tema porque não fez exatamente aquilo que eu acuso Heidegger de ter feito: o esquecimento do ente. Lamento Foucault largar a base ontológica e ficar no ôntico, embora sempre nos planos das diferenças, nas margens da sociedade. Aquilo que no passado não era pensado, de repente começa a ser assimilado pelo pensamento, e isso é extremamente positivo. A diferença ontológica, ainda criticando Heidegger, é o cerne e a base do pensamento filosófico, porque é a única maneira de conciliar o pensamento ontológico com uma base não-metafísica, de que há muito se precisava para pensar o real que está aí. Ela é um alargamento muito grande da realidade. Do século passado para cá, a proliferação da ciência é uma coisa fantás­ tica. E incrível a liberdade metodológica da antropologia científica e a descoberta do outro. No meu livro O conceito de descobrimento, analiso esse tema da dife­ rença, da alteridade. F. um livro bem-bolado — embora eu não goste muito da sua parte final — , em que mostro a questão da alteridade como uma crítica essencial à metafísica tradicional da identidade, e como essa questão não é precipuamente fi­ losófica, ou seja, introduz-se por dentro da evolução do pensamento da cultura moderna. A busca da alteridade, o mapeamento da alteridade, é o cerne da ques­ tão do descobrimento.

Em seu livro Dialética: teoria práxis, de 1977, o senhor afirm a que “o problem a crucial da metafísica está no m odo com o ela recusa a finitude do fin ito”. Numa atitude pós-m etafísica com o a sua, com o então acei­ tar a finitude do finito? Na específica estrutura dela mesma, enquanto, por exemplo, um jorro de alteridade. O que eu quero indicar nesse livro é justamente a idéia da realidade em forma de jorro, que é algo heraclitiano, no sentido do cosmos como a modalidade de jorro. É a idéia de vem e vai, de alto e baixo, superior e inferior, que é um jorro — é uma harmonia que tem essa dimensão de jorro. Isso está presente em certos pensadores atuais e fascina-me muito: em Merleau-Pontv, por exemplo, que chegou a essa idéia do jorro. Com essa idéia, não se pode mais falar em sistema. Não é que não exista mais sistema — o que acaba por criar também uma análise — , pois ele ainda é for­

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te demais na sociedade, tudo é sistema na sociedade contemporânea. Então, tem de se procurar um outro caminho mais compatível com o não-sistematizável, se é que isso existe. De qualquer maneira, o caminho parece ser por aí: a questão da alteridade, da diferença, do jorro.

Em Introdução ao filosofar o senhor escreveu: “Quem se resolve, ou se sente condenado a fazer filosofia, assume, pelo simples fato dessa re­ solução, uma certa responsabilidade. Um compromisso que com o todo compromisso im põe determ inadas condições, as quais coincidem e ao mesmo tempo transcendem o que possa haver de arbitrário e redutível em uma existência individual”. No que consiste esse compromisso do filósofo? O senso de responsabilidade não é simplesmente algo de interior, mas remete, em primeiro lugar, à sociedade. E o sentir-se responsável dentro da sociedade na qual a gente vive — essa é a grande responsabilidade. Tem de haver, algo que para mim sempre foi meio deficiente, uma espécie de consciência política no sentido amplo da palavra, não no sentido estrito. F. o pertencer de fato à cultura. Esse com pro­ misso com a cultura não se revelava, por exemplo, no tomismo, que antigamente não tinha compromisso com nada, era uma teoria descompromissada e abstrata. A minha geração aprendeu: temos de ter compromisso com a cultura e participar dela. Sempre me sinto em déficit com a cultura brasileira, porque, quando toco nesse assunto, é sempre meio de passagem, de raspão, um artigo mais curto que escrevo. Mas eu não fui educado para isso, e é esse o problema todo. No entanto, tem a parte de participação mais efetiva na vida cultural do país. Isso eu faço bastante.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­ cias e o saber científico. Tal relação perm anece até hoje? Com o ela se dá na atualidade? Permanece, porque o conceito de ciência é de uma riqueza impressionante. Aquela revisão do positivismo, de que falei anteriormente, tem de passar por essa questão também. No fundo, a limitação do velho Comte foi ter entendido a ciência de modo muito unívoco. Hoje a ciência é um cabedal de conhecimentos de uma amplidão extraordinária, o reino das diferenças está hoje nas ciências. Todos os velhos es­ quemas desmoronam com muita facilidade, e isso tudo é de uma riqueza, de um enriquecimento impressionante. E muito difícil fazer ciência e filosofia. E tem a parte da arte e da literatura, que também é essencial, mas a gente tem de fazer um esforço para saber o que está acontecendo com o ramo da ciência, e isso varia muito. H oje, é a questão da ele­ trônica, e, querendo ou não, temos de estar conscientes disso. N ão é preciso se es­ pecializar, mas é necessária uma certa dose de inform ação, para saber a quantas se caminha, porque há uma cisão muito grande não só da filosofia com a ciência, mas da ciência consigo mesma, internamente. Hoje é impossível um físico saber sobre toda a física; ele sabe, se muito, apenas um capítulo. Quem faz filosofia está mais aberto à possibilidade de desrespeitar certos limites e cometer certas heresias. En­ tão, é necessário tom ar muito cuidado. Eu evito falar de ciência como escritor.

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Como é que se pode julgar Kant, por exemplo? Para mim, ele fez uma inter­ pretação do modo pelo qual funcionava, na época, a cabeça de Newron. F.le só ti­ nha uma ciência, que era a física matemática, ou seja, Galileu e Newron. Então aquele tipo de saber científico era o saber científico. M as não faz sentido ter uma atitude dessas, pois é uma limitação fantástica. Prefiro então deixar a ciência de lado.

Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenôm eno estético em nossa socieda­ de. Com o o senhor se posiciona em relação a esse d ebate? Isso simplesmente é um tema hegeliano. Fala-se muito em morte da arte, contra a morte da arte, mas isso é um falso problema. Porque Hegel tem toda a razão quan­ do põe essa questão, mas apenas para a arte do passado, a chamada arte da im ita­ ção, que é sempre teológica e político-religiosa. Essa arte morreu, não por causa de Hegel, mas a partir do Barroco. Depois do Barroco, não há mais arte religiosa, ela acabou de vez. Existe apenas por razões de econom ia privada e doméstica, mas mesmo isso é muito raro. O que existe hoje é, em primeiro lugar, a criatividade. E essa idéia está muito enraizada no século X X com as escolinhas de arte. Outro dia dei uma aula inaugural para uma escola de arte aqui do Rio, onde se discutia o seguinte problema: parte-se da idéia de que a criança tem originalidade e criatividade, então põe-se a criança sozinha, sem modelo na frente, com lápis e papel à vontade, e é uma festa. O ser humano é criativo, e isso já está na criança. Claro que isso é um exagero brutal, mas parte-se do pressuposto de que a criatividade pertence à condição humana. Na análise que fiz, procurei mostrar que o primeiro autor que chamou a atenção para esse fato foi M arx, para quem a criatividade, a invenção do novo, da novidade, pertence à condição humana. Porque no passado era Deus quem fazia a novidade, eram os gênios com o Da Vinci. Foi no século X V I que sur­ giu a palavra gênio na sua acepção moderna; quer dizer, só o gênio, por delegação especial de Deus, era criador. Isso caiu completamente, e a criatividade, hoje, per­ tence à cozinheira. Qualquer pessoa tem capacidade de criar. Isso ocorre também por causa da influência das diferenças, essa abertura da criação do novo. Como dizia M arx: "O homem tem de suprir suas necessidades, e, com isso, ele cria a novidade, ele faz o novo”. E isso não é um acidente para M arx, é um tema belíssimo que ele não chegou a explorar em sua totalidade. Tem um ensaio meu que é exatamente sobre o adjetivo "n o v o ” em M arx. De fato, esse é um ponto de partida completamente novo para uma antropologia. Procurei isso em Hegel, mas ele não fala em novo. Ele é, no entanto, o primeiro filósofo que fez referência à moda. Percebeu que a moda já estava presente na Revolução Industrial, e que sua força já estava perdendo estabilidade. Já em M arx, a idéia do novo é uma revolu­ ção, porque ela já está aí. A novidade é uma dimensão natural do homem, e não há nada de religioso nisso.

Nesse sentido, com o o senhor vê o trabalho de Walter Benjamitt? Em especial A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. Não gosto muito dos frankfurtianos, porque escreviam muito mal. A Dialética negativa, a Teoria estética... o que é aquilo? A gente tinha que fazer seminários para

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decifrar o que Adorno queria dizer realmente. Por que não escreveu direito? Ago­ ra, o seu livro sobre M ahler é bom, mas é aquela sinfonia: a primeira, a segunda, a terceira. Tem coisas em que às vezes os frankfurtianos acertam. E Benjamin tem aquele livro ilegível sobre a tragédia alemã. Ele tem umas coisas que eu não consi­ go “engolir” muito bem, a questão da aura, por exemplo. N ão dá para aceitar isso, porque essa noção tem ranço religioso. E essa crítica à máquina parece ser difícil de aceitar também, é deficiente e não tem sentido. Acho que as reproduções hoje são tão perfeitas, podem ser colocadas em qualquer casa. Deixa a gente viver com isso! Nós temos de ter em casa uma pequena pinacoteca em livro, porque é neces­ sário conhecer as obras. Acho que Benjamin tinha um pouco de medo, essa aura era uma espécie de nostalgia que não consigo entender muito bem.

Quais são os artistas plásticos brasileiros de que o senhor gosta? No Brasil, ponho em primeiro lugar Iberê Camargo. Ele queria que eu escrevesse sobre suas obras. M as era muito difícil, porque ele morava aqui, eu morava em Porto Alegre, e ficava difícil assentar as idéias. De Portinari eu não gosto muito. Ele tem coisas interessantes, mas era mau desenhista.

Segundo uma afirm ação do senhor, em Páginas de filosofia da arte, a missão da crítica consiste em tom ar visível o fundamento invisível da arte, em “pôr de manifesto os vasos comunicantes que fazem com que a arte contemporânea diga a verdade do homem de h o je”. O senhor poderia nos falar um pouco sobre esse papel da crítica? Seria possível m encionar alguns traços desse “homem de h oje” que a arte contem po­ rânea veicula? Esse processo é a superação da dicotomia sujeito e objeto, e é uma verdade que não diz mais respeito ao juízo de adequação, mas diz respeito ao desvelamento. Daí eu volto bastante para Heidegger. C) quadro é esse processo de desvelamento, e eu só consigo atingir esse desvelamento se me puser na raiz criativa do quadro. Dessa forma, tenho de desmontar o quadro, e é isso que me preocupa. N ão é seguir sem­ pre o que já está feito, o que está construído como objeto, mas desmontar para pegar essa raiz e tentar caminhar com ela. Claro que isso, radicalmente, é impossível, mas tenho de fazer esse esforço. Como é que me aproximo de um quadro? Não vejo o quadro como objeto, vejo com o uma linguagem, e escrevo com o se pudesse caminhar paralelamente em relação à linguagem do quadro. Então recrio o quadro na palavra. Claro que isso é impossível, mas procuro caminhar nesse sentido. Dessa forma, eu não faço crítica, porque a crítica sempre repousa no objeto, procuro fazer um outro tipo de abor­ dagem das artes plásticas.

Seria essa a diferença entre crítica de arte e estética filosófica? Eu diria que sim. A crítica de arte é sempre objetivante. Nunca fiz isso e não me interessa fazer. Escrevi um ensaio sobre Vasco Prado, um grande amigo meu, para a Folha de S. Paulo. Foi uma coisa linda — e é isso o que me interessa. Aliás, esse artigo assemelha-se muito com o livro que escrevi sobre Brecht. Tanto Vasco como

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Brecht são “ P C ” [Partido Comunista| inconform ad os. E a m aneira com o eles re­ solveram superar essa inconform idade foi através da pesquisa form al. É preciso saber co m o V asco , por m eio de suas esculturas, faz essa pesquisa form al, através de quais cam inhos exato s. E eu enum eraria várias form as: ele tinha, por exem plo, técnicas que usava para form alizar o seu trabalh o sem sair de um certo realism o social. M as, ab rin d o o seu tra b a lh o com um a certa d efo rm ação , há um senso de m onum en­ talidade, inclusive em suas ob ras pequenas, que B recht tam bém tem. Foi a partir disso que parti para o estudo de B recht, dessa questão da linguagem form al.

Em Páginas de filosofia da arte, o senhor se refere à “perplexidade em que se move o teatro atual e que deriva daquele fulcro fragmentário, obrigando o teatro a ‘escolher’ entre a diversão e o pedagógico, entre o psicológico e o social , entre o literário e o espetáculo absoluto”. Tendo em vista tal circunstância, com o o senhor vê a situação do teatro h oje? Em que medida seria possível falar na “necessária atualidade” de Brecht — para usar os setes termos — , levando-se em conta que um dos prin­ cipais pontos d o teatro brechtiano é o papel de despertar o espectador para uma tarefa que ele deve assumir, conduzindo assim à produção de m odificações sociais? A atualidade de B recht, em meu entender, prende-se essencialm ente a o caráter p ro ­ fundamente fragm entário de sua obra. Ele chegou a ter intolerância, porque o modelo da Mãe coragem era para ele uma coisa sagrada e inam ovível. Isso já não tem sen­ tido, não leva a nada e já acab ou . M as o que quero dizer é que essa fragm entação de Brecht o fo rça a se m odificar sem pre, tan to que no fim de sua vida, no tal “ tea­ tro d ialético ” , não se sabe m uito bem o que ele estava propond o — já estava b o ­ lando uma ou tra coisa. C onheci o Berliner Ensem ble há doze anos, um pouco a n ­ tes da queda do m uro de Berlim . Ele estava ficando m uito rígido, e H einer M üller m elhorou um pouco essa situ ação. T en h o a im pressão de que B recht, nos últim os anos, já estava se sentindo sufocad o com essa rigidez. Ele queria ir para a Suíça, sentia-se sufocad o em Berlim , não agüentava mais aquilo. M as tem toda essa ques­ tão p rática, que estava dentro de uin com prom isso partid ário, da organização de um trabalho. E sua situação era m uito delicada, já que nunca foi bem -visto na Rússia. Ele tinha que cam in h ar sobre ovos. T en h o a im pressão de que se ele não tivesse m orrido, teria ido para Z urique.

Pensando ainda no teatro atual, com o o senhor vê o quadro brasileiro, tanto em termos das encenações feitas com o das obras teóricas produ­ zidas? Que grupos teatrais o senhor destacaria com o mais relevantes? O s paulistas, pois São Paulo tem um “ la b o ra tó rio ” m uito grande. N o R io tam bém há coisas boas. O que é fan tástico no teatro brasileiro de h oje é que reflete mais ou menos com fidelidade a situação internacional. Então há um experim entalism o muito rico, com diversas linhas de fu ncionam ento que são de certo m odo m undiais. As preocupações de base são idênticas. T od os têm certas m atrizes que são fundam en­ tais: a palavra e o corp o — duas coisas que se com portam uma em relação à ou tra. Pensando bem , B recht já era assim , Antunes [Filho] é assim , Z é C elso jM artin ez

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C o rrê a |é assim e G erald T h o m as é assim . V ê-sc por aí a fantástica diversidade de posições. O que me encanta é justam ente isso, essa falta de m onotonia — já não dá mais para agüentar o teatro ch a to , aquelas fórm ulas pisadas e repisadas. E ntão a gente tem de ver o panoram a do teatro m ais a reja d o , mais criativo e com m ais téc­ nica, pois o teatro n ão pode ficar nas m ãos de am adores.

Com o o senhor avalia os escritos de Décio de Almeida Prado e Sábato M agaldi? São grandes am igos meus. A cho que fazem parte de um m om ento im portante da evolução do pensam ento sobre teatro no Brasil. Foi por m eio do Estadão e do T B C que o teatro com eçou a apresen tar uma m aior m aturidade profissional e produziu tam bém esse tipo de crítica profissional. Eles tiveram um papel m uito im portante d entro dessa evolução do te a tro brasileiro. O tra b a lh o de S áb ato sobre N elson Rodrigues foi im portantíssim o. N ã o sou um grande fã de N elson R odrigues, em ­ bora sua linguagem tenha sido fundam ental para o teatro brasileiro. M as quando vejo uma de suas peças, penso: “ Esse cara é um ‘c a to lic ã o ’ ” . Ele tinha de co lo ca r sentim ento de culpa na gente? A grande tarefa da cultura contem porânea, com M a rx, com Freud etc., foi errad icar o sentim ento de cu lpa, e N elson quer co lo ca r o sen ti­ m ento de culpa. É um catolicão! R ecordo-m e de um artigo de G ustavo C o rção sobre N elson R odrigues que dizia: “ Esse é um dos n o sso s” . Por m eio desse artigo é que com ecei a entender esse m ecanism o de culpa em N elson: ele tem o sentim ento do pecado e não vai além disso, cultua o pecado, que é a grande realidade para ele. N elson Rodrigues pode ser ateu e tudo o que ele quiser, mas essa realidade do pe­ cad o teológico é forte em sua ob ra. E n tão não tem m uito futuro, é um lim ite de sua ob ra, pois não consegue ultrapassar essa teologia do pecado. É uma coisa fantas­ m agórica de sua cab eça.

Em Páginas de filosofia da arte, o senhor afirm a: “Hoje, ponho-m e a imaginar um cinema outro, os albores de uma nova arte, que nem im a­ gino p or onde andarão. Fica a promessa: se tudo passa, o cinem a con­ segue colocar esse problem a m aior — o do próprio futuro da arte”. O senhor poderia nos falar um pouco sobre essa idéia de uma “nova arte” e sobre a sua relação com o cinema ? É um exag ero falar assim , mas diria o seguinte: h oje, as artes da representação es­ tão com pletam ente dissociadas. N o passado, sem pre tivem os uma unidade m uito grande. M as, com essa questão, voltam os novam ente à questão da m áquina, por­ que a m áquina no teatro grego, medieval e até no b arro co era fundam ental, pois tinha uma função teológica. Ela fazia repetir, por exem plo, os m ilagres de C risto. E o povo gostava do fabricante da m áquina, p orqu e, de repente, via-se São Pedro cam inhand o sobre a água sem afundar. Isso era sim plesm ente um truque. E n tão, até o b arro co , havia essa ju n çã o entre a palavra e a m áquina. Vi há pouco o Orfeu de M onteverdi. N o fim, há a cena de O rfeu e seu pai A p oio, que salva o filho e o conduz para o céu. E eles sobem ao céu can tan d o — uma cena belíssim a. Sobem e a m áquina é necessária para a suspensão. Dessa form a, a m áquina existia com uma força m uito grande. H oje, n ão há mais isso, quer dizer, houve uma dissociação muito

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grande. Tivem os a radionovela, passam os pela televisão, teatro e cinem a, e está tudo dissociado. F. lógico, por uma espécie de coerên cia interna, im aginar que isso vá se fundir de algum a m aneira, pois, no p assad o, sem pre houve essa fusão. E quem percebeu isso m uito bem foi B recht, que trab alh ou com P iscator e foi o prim eiro que ficou fascinad o pelo cinem a dentro do teatro. Ele viu um espetáculo em Paris, m ontagem de B arrau lt, que coloco u com o cen ário uma vela de navio. De repente, voa uma pom ba, o Espírito San to , que foi film ada e projetad a na vela. Isso, segun­ do B recht, foi a prim eira experiência de cinem a em teatro . Ele detestava Claudel, evidentem ente, mas ficou im pressionado com aquilo. B recht, co m o B arrau lt, tinha essa preocu pação em fazer a síntese. Ele gostava da m áquina porque ela ficava a p a ­ rente para o público. E legítim o im aginar que m ais cedo ou mais tarde vão ser fei­ tas coisas assim . N ão sei co m o vai ser, mas o norm al é que h aja essa síntese. Inclu­ sive uma síntese pela qual o esp ectad or pudesse participar mais diretam ente.

Nessa imagem, com o ficaria a m úsica ? Aí o problem a é com a literatura — com a literatura cod ificad a. Ela adquiriu uma espécie de solenidade nos últim os séculos que não tinh a, que nunca teve. O texto na G récia, por exem plo, era todo conhecido, com histórias conhecidas. N ão se podia m exer! O que está escrito na B íblia, por exem plo, está escrito, e é sacrilégio m exer n aquilo. F, isso foi substituído por uma g lorificação da língua, o que é m uito nega­ tivo. M as essa situação está se transform an do. Se você pega N elson R odrigues, por exem p lo, não há nada de solene em sua linguagem . E a m elhor coisa de seu teatro é a linguagem , aliás, o que todo m undo fala e está certo. M as ele não tem preten­ sões de alta literatu ra, tem apenas um lingu ajar cotid ian o m uito saudável e muito bonito. Q uer dizer, as coisas estão se transform ando. A tendência é a síntese, e quem m ais se aproxim ou disso foi C haplin. Chaplin tam bém teve uma capacidade de sín­ tese fan tástica, pois reabilitou a m ím ica, a pantom im a, coloco u texto quando pôde co lo car e procurou uma reflexão do cinem a dentro do cinem a, na sua própria téc­ nica. Já me ocorreu isso, mas nunca ouvi ninguém afirm ar. Aqueles film es mudos do início de sua carreira eram todos quebrad inhos, eram pulinhos. M esm o a m a­ neira co m o fez Tempos m odernos é assim , tudo em ped acinhos, e ele com eça a cam inhar assim , porque essa é a técnica do cinem a. E ntão ele inventa uma técnica de atu ação física que imita a técnica cinem atográfica. C arlitos foi um hom em de síntese, de associar todas as coisas.

Chaplin seria o Brecht do cinema... C laro , Brecht era m aníaco por cinem a e gostava m uito dos film es de C haplin. M as tenho a im pressão, em bora não saiba quando ocorrerá isso, de que surgirão ten ta­ tivas de síntese. H á um processo de fragm entação, e de d issociação, que é e x tra o r­ d inário, que vem já do século X V II. Será norm al que uma pessoa faça a síntese. As coisas estão m uito estruturadas. Nesse sentido, quero uma espontaneidade mais saudável. £ hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar.

Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíam os era um fe-

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ttômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado N acional com o fonte e garante do Direito e com o detentor do m onopólio do exercício legítimo da violência. Como o senhor vê tal diagnóstico? Na sua visão, a prim azia de que parecem desfrutaras questões m orais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos diasf T em o que o Estado hoje esteja passando por uma crise m uito forte, e há a necessi­ dade interna de transform ação. O problem a é saber com o pensar hoje uma sociedade sem o E stado. N o fundo, são certos tipos de organ ização que têm de ser reestru­ turados. C laro que não se deve confund ir E stado com governabilid ade, a gover­ nabilidade é um co n ceito m uito mais am plo, e o E stado m oderno m uitas vezes é confund ido com ela. A análise de Hegel sobre isso é fan tástica, mas é uma “ sin fo ­ n ia ” . E n tretan to , tan to no Manifesto comunista , q u an to no Capital, M a rx fala do Estado e o associa à violência. Já Hegel fala no “ terreno d iv in o” , na soberania di­ vina em última instância, quer dizer, cie elogia o Estado. E há uma ou tra im p lica­ ção nessa questão: o cap italism o. O E stado está por detrás do cap italism o, m an i­ pula o cap italism o, daí a violência. M as podem os pensar o E stado sem o cap italis­ mo? Isso é praticam ente im possível. Pode haver, no m áxim o, uma certa tran sfo r­ m ação interna. Sim plesm ente superar o E stado não é possível, porque daí vira uma esculham bação universal e absoluta. O curioso é que M a rx era m uito otim ista, dizia que só tinha de se estatizar duas coisas: o banco central e o tran sp orte, para g a ra n ­ tir a lo co m o ção do povo na R evolu ção . E isso tudo tem de durar o m ínim o na di­ tadura popular. T em de durar pouco tem po para se reestruturar tudo. Q uer dizer, M a rx parte da possibilidade de que se pode reestruturar tudo com o se fosse um jogo de xadrez, que se pode fazer um ou tro tipo de distribuição da riqueza. M as, hoje, já se sabe que as coisas não são bem assim , e que tudo é m ais com plicad o. E que o desvio do m arxism o feito por Stalin e Lênin, no fundo, foi uma necessidade h istó­ rica. O velho M a rx era m uito ingênuo, pois não é fazendo um castelo de cartas que se vai tran sform ar o capitalism o. Eu não vejo saída. E tem mais uma coisa: nós não tem os m ais grandes p olíti­ co s, com o não tem os grandes filósofos, co m o não tem os um novo Picasso ou um novo B recht. Isso é uma coisa m uito séria, tem os de to m ar m uito cuidado para não cair em uma situ ação m eio fascistóide. M as, até a m etade do século, na direita ou na esquerda — isso não interessa — , havia política e havia políticos que d om ina­ vam o m undo. H oje é tudo m uito ruim e tudo m uito fraco . E n tão, co m o é que fica a política? Q uem faz uma reform a? Tem de surgir um p o lítico forte. Por que não surge um P icasso novo? Isso é um p ro blem a, pois n ão posso fazer um clone de Picasso. M as eu a ch o que o m undo está precisando de política e de gente que saiba ter as rédeas na m ão. N ão estou faland o de ditadura de esquerda ou de direita. N o passado, tinha H itler, tinha Stalin, tinha C hurchill e R oosevelt. Esse era um grupo de gente que tinha as rédeas na m ão. Pode-se pensar em G etú lio, Perón, M ussolini, Fran co , Salazar, todo um nacion alism o de direita ou de esquerda. H avia a van ta­ gem de uma diretiva, de uma o rien tação. N ão tenho nostalgia dessa política, mas faltam política e p olíticos que saibam ter as rédeas na m ão. Isso está faltand o. Está tudo m uito óbvio, Fernando H enrique pensa com o se o capital fosse cam in hand o

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sozinho, não há p ro jeto para nada, não há necessidade. Assim não se pode gover­ nar, e ele não governa mesm o.

Com o o senhor caracterizaria a sua relação com a religião e a fé f Eu sou ateu conv icto. Isso não quer dizer que eu desrespeite a religião. Para m im , a questão de Deus é essencialm ente histórica; quer dizer, tudo o que a fé, a religião, Deus, a divindade, a política, no passado, fizeram para prejudicar o hom em faz parte de um princípio de alienação m uito violento. Isso foi danoso, e acho que a Igreja foi a m aior assassina da história, pois destruiu culturas inteiras com uma facilidade bru­ tal. F.ssa história do descobrim ento é um fenôm eno m uito am bíguo, porque a alteridade vem para cim a, e com o é que se “en g ole" a alteridade? Tem de m atar e acab ar com tudo. Eu espero que a fé e a religião desapareçam . Pela prim eira vez na h istó­ ria, o hom em está fazendo a experiên cia do ateísm o coletivo. N ós, no Brasil, ainda tem os religião, porque estam os num país subdesenvolvido, mas na França, na Alem a­ nha, tem pouquíssim a religião. Uma psicanalista da antiga A lem anha O riental es­ teve aqui há pouco tem po e eu lhe perguntei co m o , depois da queda do m uro, esta­ va a situação da religião. Ela falou que não há m ais. Às vezes surge um ou ou tro caso patológico. N esse sen tid o, a experiência da A lem anha O riental foi fantástica. Foram três gerações de experiências socialistas que desm oronaram , e, com isso, todos os ideais e todas as crenças desapareceram . Eles não voltaram para a religião, e esse fato é e xtrao rd in á rio . Esse tipo de experiên cia é im portan te, porque não se restrin­ ge só à classe cu lta, mais elevada, mas à classe popular tam bém . Se se pega toda uma sociedade, uma cidade co m o Berlim , ninguém mais pensa em voltar para a re­ ligião. Simplesmente acabou. E ntão, tem de se inventar uma religião m uito diferente. Se eu tivesse de escolher uma religião, sabe qual escolheria? A grega, porque é a m ais hum ana. O s deuses não têm nada a ver com o am or cristão e essas b o b a ­ gens. E sim plesm ente o pensam ento que pensa a si próprio. A poio é o deus do Sol, da cabeça e do pensam ento. T o d o s põem em prim eiro lugar o pensam ento na m i­ tologia e na filosofia, e deus sem pre é o pensador principal. E n tã o , acho m uito mais interessante a filosofia com o ciência. A ciência pode m odificar as estruturas sociais, ela é essencialm ente revolu cionária. Por isso é que a questão da m entira tam bém se torna im portante. T u d o se liga, tudo form a um co n ju n to , e trata-se de um proces­ so de libertação. Pode ser m eio ingênuo, mas há um processo de tran sform ação em curso, e o hom em tem medo disso, pois não é fácil aceitar essas coisas.

Como o senhor se situa em relação aos problem as de uma “mudança de paradigm a” da filosofia, de uma filosofia “pós-m etaftsica” calcada na linguagem? Tem de aparecer o filósofo. F.u não con cord o com o que fazem hoje com a lingua­ gem , na medida em que se cai numa o b jetiv ação generalizada. C o m o é que vai ser a filosofia? M as agora eu ach o que há uma espécie de crise. A coisa está indo num tom m enor, mas logo surge alguém. A gente está m uito acostu m ad o com a filo so­ fia m oderna, que dura do século X V I até hoje — é muita filosofia. E n tã o não dá para saber que tipo de pensam ento vai de fato ocu p ar a sociedade. Esse pensam en­ to terá de estar voltado para a tecn olog ia, para a com p u tação , eletrônica etc.

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O senhor utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do futuro da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia? U topia no sentido dos sonhos. C laro que a gente sem pre vai sonhar com uma socie­ dade ideal e coisas desse tipo. M as acho que a utopia se com plica no século X X — e isso não está no meu livro — , porque surge, de um lado, toda uma literatu ra antiutópica, com o O admirável mundo novo , de Aldous H uxley, que esvazia a idéia de utopia. E essa utopia tem uma linha que vem de T h o m a s V loo re, passa pela experiência socialista do século passado e chega ao esvaziam ento no século X X . Há tam bém uma nova utopia que deve ser pensada — e ninguém está pen­ sando isso — , que é a utopia cientificista, das histórias em quadrinhos. C o m o é essa utopia das histórias em quadrinhos? O s autores fazem que tip o de p ro jeção? Q ual é o im aginário (e utopia é im aginário) que está na base? Tem uma evolução? C a ­ m inha de que m aneira? Porque o nosso im aginário está hoje form ad o por essas histórias. E é essa a utopia de h o je, a tecnológica. Por exem plo: a fan tástica lo co ­ m oção das naves que fincam os céus e os universos. N ós estam os apenas no p rincí­ pio disso. M as aí eu gostaria de saber porque surge esse novo tipo de utopia ju sta­ m ente na história em quadrinhos? Por que surgiu nesse m eio? E tem futuro: o avião já é uma coisa an acrô n ica, o autom óvel é execrável, tem de se a cab ar com essas coisas. E n tão eu fico perplexo, pois a utopia acom panha o pensam ento m oderno. A cho que a intervenção que faço deve estar correta, porque não tem nada de P la­ tão , S. A gostinho, coisas antigas. F. a capacidade reflexiva do hom em , de auto-refletir, de criticar-se, que está presente na utopia. E aí voltam os para a questão da tran sp arência, pois a sociedade m oderna é transparente dem ais. C om o é que, de repente, o hom em se torn a tão transparente? Quem tentou fazer isso foi o velho Aristóteles, que queria colocar tudo em conceitos. Foi o único na G récia, na terra da filo so fia, a fazer isso. Para nós, h o je, isso é um h áb ito cotid ian o. C om m uito m arxism o, muita psicanálise, surgiram as técnicas da tran sp arência. E isso afeta a org an ização da sociedade. H á um esfacelam ento m ui­ to grande do Estado, para o qual ninguém está vendo a saída, e que tem de ser acom ­ panhado por uma exigência de reflexão m uito forte. M as a coisa está fervendo, essa transparência é uma das coisas mais im pressionantes que existem hoje em dia, e teria de ser analisada do ponto de vista sociológ ico para ver a sua relação com a utopia.

Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos com o riscos am bientais globais, am eaças de desintegração social em larga escala e alienação cultural em massa. Com o o senhor vê tais pro­ blemas? V ejo com o o horror, mas o cam inho é clássico: pedagogia. E através dessas experiên­ cias negativas que vam os poder construir um novo regime. N ão se pode apenas tapar os buracos. N o passado, tapavam -se os buracos, mas hoje em dia não dá mais para fazer isso, tem de se enfrentar os problem as. F. a questão ecológica está aí, é um tem a p o lítico. E xiste a parte tecn ológ ica, que é fundam ental, mas tem de se ver o processo de con scien tização que está havendo. Aqui no R io , por exem plo, é m uito forte. Em São Paulo tam bém deve ser, em qualquer cidade da Europa tam bém . O s bandidos podem ser m ais facilm ente d esm ascarados nessas questões. É com o esse

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problem a da P etrobrás, que ocorreu agora: esse tipo de problem a o co rre por pura negligência, e deve haver punição séria, pois não se pode com eter esses crim es. Nunca conseguiram despoluir essa Baía da G u an abara!

Nessa entrevista, o senhor levantou alguns temas sobre os quais tem trabalhado atualmente, com o a antropologia e a questão da alteridade, a máquina e o organismo, e mesmo a m oral da finitude. Com o o se­ nhor vê esses temas em sua produção futurai Eu sou m uito fragm ento. N ão planejo as coisas, tenho diversos livros na cabeça que estão por ser escritos, mas n ão tenho tem po, devido a ser sem pre convidado para me ocu par disso e daquilo — e não é possível recusar tudo, senão fico tran cado dentro de casa. Estou plan ejan d o um livro sobre antinom ias que pode ser m uito interessante. Parto do princípio de que o nosso m undo estaria povoado por an ti­ nom ias, co m o , por exem plo, a questão entre sujeito e o b je to — essa questão é uma antinom ia que se com p lica. O u então, uma ou tra questão an tin ôm ica, a linguagem de cálcu lo e a linguagem de cria çã o — uma antinom ia que tam bém se com plica. O u tra, ainda, é a antinom ia presente na relação entre sistema e fragm ento, pois hoje som os sistema e fragm ento ao m esm o tem po. D escobri que há umas dez antinom ias [risos]. Q u eria, en tão, fazer uma análise que passasse pela questão da linguagem , da org anização social, uma espécie de ensaio para analisar tipos de antinom ias — e não a lógica de antinom ias. Deve sair em breve uma reedição de Metafísica e finitude , em que acrescentei m ais dois ensaios. H á ainda m ais uma coletân ea de ensaios para sair. F.u quero tam bém reeditar a Dialética: teoria praxis, mas sem correção nenhum a, porque não dá tem po de fazer.

Principais publicações:

1969

O s filósofos pré-socráticos (São Paulo: C u ltrix, 1 9 8 5 ); Introdução ao filosofar: o pensamento filosófico em bases existenciais (Porto

1969

Alegre: G lo b o ); O sentido e a máscara (São Paulo: Perspectiva);

1967

1971 1973 1977 19 8 0

Sartre: metafísica e existencialismo (São Paulo: Perspectiva); Metafísica e finitude (São Paulo: Perspectiva, reedição no prelo); Dialética, teoria praxis: ensaio para uma crítica da fundamentação onto­ lógica da dialética (P orto Alegre: G lo b o ); O idiota e o espírito objetivo (P orto Alegre/ R io de Ja n e iro : Globo/Uapê, 19 9 8 );

1983 1993 1998 1998

Teatro: a cena dividida (P orto Alegre: I.& P M ); Rrecht: a estética do teatro (R io de Ja n e iro : G raal); Páginas de filosofia da arte (R io de Ja n e iro : Uapê); O conceito de descobrimento (R io de Ja n e iro : F.duerj).

G erd B orn heim

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B ib liografia de referência da entrevista: Aristóteles. Metafísica, M ad ri: E ditorial G redos. ____________. Poética, coleção O s Pensadores, Abril Cultural. C om te, A. Curso de filosofia positiva, coleção Os Pensadores, Abril Cultural. Fou cault, M . As palavras e as coisas, M artin s Fontes. Frevre, G . Casa grande e senzala , Jo sé O lym pio. H egel, G . W . F. Estética, Lisboa: G uim arães. ____________. Fenomenologia do espírito, Vozes. H eidegger, M . Ser e tempo, Vozes. ____________. Cbemins qui tnènent nulle part, Paris: G allim ard. ____________. C o leção O s Pensadores, Abril Cultural. K ant, I. Crítica da razão pura, coleção O s Pensadores, Abril Cultural. ____________. Crítica da faculdade do juízo, Forense. M a rx , K. O capital, coleção O s E conom istas, Abril C ultural. M a r x , K. e Engels, F. Manifesto do Partido Comunista, in Obras escolhidas, Alfa O m ega. M erleau -P onty, M . Fenomenologia da percepção, M artins Fontes. Sartre, J.-P . O ser e o nada, Vozes. ____________. Crítica de la razón dialética, Buenos Aires: Losada. ____________. Cahiers pour une morale, Paris: G allim ard. ____________. C oleção O s Pensadores, Abril Cultural.

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B E N E D IT O N U N ES (1 9 2 9)

Benedito N unes nasceu em 1 9 2 9 , em Belém (PA). F orm ad o em D ireito , foi ed itor da revista Norte. C riou o cu rso de F ilosofia da Universidade Federal do Pará, da qual é hoje professor em érito. Esta entrevista foi realizada em fevereiro de 2 0 0 0 .

Goethe dividiu a vida de seu personagem W ilbelm Meister em dois romances , O s anos de aprendizado e O s anos de peregrinação. N o pri­ meiro, o foco está posto na form ação do indivíduo Wilbelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que o senhor nos falas­ se de sua form ação intelectual? Sou um au tod id ata, talvez o últim o representante dessa espccie em e xtin çã o . Formei-me em direito, e passei a lecionar filosofia com 19 anos — desde cedo, já es­ crevia sobre questões filosóficas e literárias. H avia um suplem ento literário m uito bom aqui, que durou de 1 9 4 6 a 1 9 5 1 , ch am ad o Suplemento Literário da Folha do

Norte, que não só publicava m atérias locais, de escritores locais, com o publicava tam bém escritos de D rum m ond, de Cecília M eireles etc. C om o se filiava a um ser­ viço de d istribuição de m atérias jo rn alísticas, o Suplemento recebia sem analm ente um envelope com artigos de O tto M aria C arpeaux, Álvaro Lins etc. Publiquei muitos textos nesse suplem ento. O u tro dia eu contestei uma biografia m inha que dizia que eu era form ad o em filosofia. Sou form ado em D ireito. Eu tinha um tio que m orava em São Paulo, C arlos A lberto N unes, que era tradutor. Ele estava disposto a me receber em sua casa para eu estudar filosofia na USP. M eu estudo seria custeado por um outro tio, irm ão dele, que naquela época era banqu eiro. M as esse meu tio banqueiro faliu. F. o que eu ia fazer? E ntrar para m edicina? Para farm ácia? O d on to log ia? A cabei entrand o em direito, onde se ensinava bem teoria do conh ecim ento. T rab alh áv am os m uito o li­ vro de H artm ann: Metafísica do conhecimento. G rande parte desse livro era dado no curso de d ireito. Essa parte foi m uito boa, mas o resto eu ab om in ava, principal­ m ente a parte de legislação e de direito positivo. E isso foi bom porque, nessa ép o­ ca, com ecei a n am orar minha mulher — que era m inha colega — e, com o não g os­ tava do cu rso, tínham os m uito tem po e cond ições para nam o rar [risos|. Havia bons professores aqui, com boa form ação. T o d o s eram autodidatas. N ão tive um professor que tenha feito cu rso de pós-grad uação. C laro que todos tinham a fam osa tese. M esm o para o curso ginasial era exigida a defesa de uma tese. T inham de escrever com os próprios m eios, não havia bolsa, não havia orientad or. Editava-se a tese e apresentava-se a uma banca constitu ída por ou tros autod id atas.

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D eixa eu m ostrar um texto que fala da tese de Francisco V lendes, Raízes românti­ cas, escrita em 1 9 4 4 : “ N aquela época, exigia-se da parte dos que lecionavam no curso médio uma tese co m o d em onstração de sapiên cia, escrita sem orientad or ou b olsa, mas que por força das cirscun stâncias tinha de ser invenção do can d id ato , com as ob ras apontad as na bibliografia de sua exclusiva propriedade. A falta de bibliotecas locais atualizadas, o candidato era o dono real dos livros que citava. T inha de os possuir guardados em sua ca sa ” . Eu tive de com p rar os meus próprios livros, porque aqui não havia livros. H avia som ente o de Estevão Cruz — uma história da filosofia — e o de um senhor cham ad o L ars, que era esco lástico , editado pela M e ­ lhoram entos. D epois surgiu T eo b a ld o de M iran d a Santos. Q uand o com ecei a dar aula na Faculdade de Filoso fia, eu traduzia certos textos do francês, do inglês, e passava para os alunos — isso foi um ótim o exercício . C om ecei ensinando no gi­ násio, no tem po em que havia filosofia no ginasial, que era um pouco de p sicolo­ gia, de história da filosofia, um pouco de ética. O s alunos gostavam m uito quando eu falava sobre psicanálise — que era um novidade e despertava m uito interesse.

Com o se deu a decisão de seguir uma carreira acadêm ica em filosofia? B om , teve aquela história de entrar na filosofia, que gorou por causa do meu tio banqu eiro. D aí eu fiz uma espécie de autod id atism o sistem ático e m etódico [risoslI.ia Hegel durante m eses, toda a Fetiomenologia do espírito, a Filosofia da história etc., e ia anotando num caderno. Passava em seguida para H usserl, lia as Idéias para

uma filosofia fenom enológica, as Investigações lógicas. N a verdade, eu estou m ui­ to nesses cad erninhos que estão atrás de vocês, nesse arm ário. H á dezenas de pe­ quenos cadernos. Li sistem aticam ente tam bém Heidegger. Prim eiro li em espanhol, que foi a prim eira trad u ção de Heidegger, anterior à trad u ção fran cesa. A trad u ­ çã o francesa foi tard ia, com o tam bém a brasileira. Em relação a esta últim a, não gosto da trad u ção do term o Dasein por “ p resen ça” . E aquela história shakespeareana: um defeito põe tudo a perder. Escrevi um artig o, que não publiquei porque adm iro m uito a M árcia — a trad u tora — , em que há um trecho de H eidegger que diz: “Dasein não é presença. A presença é con ta das coisas e dos o b je to s ” . Alguns ainda separam “pre-sença” : “ sen ça” com o verbo ser. Esse etim ologism o é “ b ra b o ” .

Em sua Aula Inaugural do ano de 1999, na UFPA, o senhor diz que a partir da geração de 1870, uma parcela da intclligentsia paraense com ­ posta de médicos, advogados e professores, “a m aioria sem form ação acadêm ica especializada, realizou a conquista de sua identidade inte­ lectual à custa de afincado autodidatism o, que ainda se prolongou por muitos anos em um bom número de seus herdeiros, já quando partícipes do magistério universitário”. E o senhor lembra que “Jo sé Veríssimo foi o m elhor e mais competente autodidata dentre os expoentes paraenses das idéias novas”. Na sua visão, o que distingue a sua geração daque­ la de Jo s é Veríssimo e da imediatamente posterior? O autodidatism o da g eração de Jo sé V eríssim o tinha as suas enorm es falhas, mas fez com que ele se encam inhasse para a an trop olog ia, escrevendo trab alh os n o tá ­ veis. A m inha geração, em grande parte, foi alcançada pela preparação dos cursos

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Benedito Nunes: “ Enfim, fazer filosofia é descobrir um novo ângulo não só para analisar as doutrinas passadas, a própria História da filosofia, mas para colocar sob nova angulação o co n ­ creto, o real. a história, a sociedade etc. Quer dizer: fazer filosofia é pensar de novo aquilo que é com u m ".

de pós-grad uação. É isso que distingue a nova g eração: é beneficiada — e às vezes prejudicada — pelos cursos de pós-graduação. Digo prejudicada porque muitas vezes esses cursos levam a uma ro tin a, uma rotina m uitas vezes de escrita. E são raros os trab alh os que dão o prazer da leitura, pois, na sua m aioria, são uma espécie de relatórios aborrecidos. H á, 110 entanto, exceções notáveis. Certa vez recebi uma tese de Jo aq u im Brasil Fontes, de C am pinas, que queria que eu participasse de sua b an ­ ca de tese. O trab alh o era m uito honroso. C om ecei a ler, e foi um deslum bram en­ to, era um trab alh o m agnífico, um tra b a lh o de um helenista sobre Safo. Ele partia de Baudelaire, chegava a Safo e, depois, traduzia os seus fragm entos. São essas sur­ presas que com pensam . E n tã o , pode-se dizer que Jo a q u im tem uma fo rm ação re­ gular no velho estilo, e tem um com ponente hum anista m uito grande em sua fo r­ m ação. E é esse com ponente que, no cu rso de ciências hum anas, falece um pouco a cada dia, pois está faltand o o conh ecim ento de línguas. Até m esm o a leitura em voz alta de certos estudantes é penosa, é gaguejada. Isso é uma deficiência que a fo r­ m ação regular deixa. N ã o estou critican d o com isso os cursos de g rad u ação, estou critican d o essas deficiências que não são supridas. N a verdade, essas deficiências dependem de um esforço pessoal que recua até esse fundo de reserva que cham ei de autod id atism o. Se você não se em penha realm ente, se você não é um pouquinho ap aixo n ad o pelo que faz, n ão há je ito ...

O senhor vê então uma linha de continuidade entre a geração de Jo sé Veríssimo e a su a ? Sim . Fran cisco M endes era um au tod id ata, e era form ado em direito tam bém . Foi ele quem com eçou a me ensinar literatu ra. C laro que hoje o M E C não d eixaria que esse tipo de coisa acontecesse [risos]. Eu ensinei filosofia porqu e, naquele tem po, o M E C tinha um con cu rso feito nos estados ch am ad o Exam e de P roficiência, e era isso que dava a au torização para lecionar.

Também em sua Aula Inaugural de 1999, na UFPA, o senhor enfatizou a importância da existência de uma intelligentsia, que precedeu a cria­ ção da Universidade do Pará, “e que já form ara uma cultura erudita sem a qual a nossa Universidade não teria existido. E também verda­ deiro que, criados esses estabelecimentos de ensino superior, surgia em 1957 algo novo, a form ação universitária, que no Brasil foi uma tar­ dia floração da terceira década deste século, próspero no Sul e no Nor­ deste, entre 1934, data da fundação da Universidade de São Paulo, e 1946, data do aparecim ento da Universidade de Pernambuco. A do Distrito Federal, depois da Universidade do Brasil e da Bahia, a p a ­ recidas respectivamente em 1936 e 1946. É evidente que a cultura eru­ dita, já antes desenvolta, vai radicar-se na universidade como fonte institucionalmente forte em ensino superior de técnicas, artes, letras, ciên­ cias e filosofia”. O senhor considera que esse enraizamento da cultura erudita local também se verificou na fundação de outras universida­ des, ou seria essa uma peculiaridade daquela que viria a ser mais tar­ de a UFPA?

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Se nós adm itirm os o autodidatism o co m o geral, isso pode ter oco rrid o em outras universidades. .Vias não tenho base para afirm ar isso. C o n h eço a situ ação m uito peculiar daqui, não só porque tive c o n ta to com pessoas da g eração passada, com o tam bém devido à m inha própria experiência de autod id ata. N ão posso generalizar isso para toda parte, mas é possível que sim. D ado que a universidade surgiu tard ia­ mente entre nós, e dado que a produção intelectual, m esm o com grandes falhas, não cessou, essa form ação extra-universitária sem pre ocorreu. Isso nós vemos mais na literatura e menos na filosofia. M as a filo sofia, a meu ver, já exige uma espécie de ap ro p riação da trad ição antiga, quer dizer, sem P latão e A ristóteles não há filo­ sofia. O P latão da universidade é uma coisa singular. De qualquer m odo é uma co n trib u ição extra -u n iv ersitá ria , porque da universidade propriam ente dita não surgiu isso. Isso veio de fora. Certa vez, em São Paulo, o meu tio C arlo s A lberto disse-me que estava disposto a ceder os direitos autorais de Platão para quem q ui­ sesse assum i-los. porque a M elh o ra m en to s já havia pu blicad o os d iálogos mais com uns — os pequenos diálogos. Isso com eçou a ser publicado na época da ad m i­ n istração de Aluísio Chaves — são onze volum es no to tal. Agora estão tratan d o de reeditar, com eçando por A República. M as falta dinheiro à universidade, aliás, acho que falta vontade de fazer algum a coisa. O trab alh o do meu tio era m onum ental: ele escrevia à m ão, d atilografava e encadernava. F.u tenho todos os cad ernos. Precisava de uma disciplina m uito g ran ­ de para realizar isso. Antes ele traduziu a Odisséia e a Ilíada de H om ero, de que M ário Faustino gostava m uito. M eu tio foi um dos meus grandes fornecedores de livros. Q uase todo mês eu recebia um pacote de livros vindo de São Paulo, com rom ances, livros de filosofia. Por exem plo: a edição de 1921 que tenho de K an t, de Berlim , foi presente dele. A edição original de Schelling tam bém . À la recherche cin temps perdu , de Proust, na ed ição da G allim ard do tem po da G u erra, feita no C a ­ nadá em doze volum es, foi ele tam bém que me forneceu. M as ele era engraçad o, um pouco arcaizante. Ele sabia m uito a respeito de Platão, de Antiguidade em geral, mas não prezava literatura m oderna. Até os d ra­ m as que ele escrevia eram em versos. Eu não gostav a, e ele sabia disso. A m inha entrada no m odernism o foi para valer.

O senhor escreveu o “ Prefácio” à reunião dos poem as de M ax Martins, N ão para consolar. Esse “Prefácio” pode ser considerado também como

um documento de balanço geracional. O senhor afirm a que o grupo de intelectuais a que estava ligado teve com o uma de suas experiências decisivas a reunião em tom o do Suplem ento Literário da Folha do N orte, fundado e dirigido por Haroldo M aranhão, também ele um membro destacado desse círculo de intelectuais. Nas suas palavras: “o encarte dom inical da F olh a do N orte, que durou de 1946 a 1951, também direcionou a convivência intelectual que nos ligava. Por m eio do nosso atualizadíssimo mestre Francisco Paulo Mendes, ligava pessoas mais velhas ou apenas menos jovens do que nós. Por fim , criou-se um espí­ rito comum na maneira de sentir e de pensar o mundo real e a literatu­ ra”. No que consistia esse espírito comum?

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Esse espírito com um era o cu ltivo dos m esm os au tores, poetas e filósofos, m uitos dos quais M endes apontou para nós. Ele dizia: “ Leia Ju lien G reen, leia François M au riac, ou então leia R ain er M aria R ilk e ” , pelo qual ele era ap aixo n ad o. E ntão surgiu esse espírito com um que, com o todo espírito com um , era um p ou co fa ccio ­ so, pois nós cultivávam os esses autores e detestávam os ou tros. Esse grupo era fo r­ m ado por duas gerações diferentes: uma geração mais velha, da qual participavam Francisco Mendes, Rui Barata — que era poeta — , Paulo Plínio Abreu — que morreu cedo — ; e a outra geração, que era form ada por mim, M ário Faustino, M ax M artins, Cauby Cruz — que tam bém m orreu novo e era poeta. Essas duas alas se uniram em to rn o do professor M endes, numa mesa do C afé C entral — o qual desapareceu há m uito tem po. N aquela ép oca, havia ainda relações que se form avam em to rn o de m esas de café. O golpe de m isericórdia foi dado em 1 9 6 4 , porque todos esta ­ vam sob suspeita de ser com unistas. C laro que nós éram os m ais de esquerda do que de direita — óbvio! T ín h am o s as nossas sim patias, tínham os am igos com unistas, mas não pertencíam os a nenhum partid o, o que fazia parte desse espírito com um . Encontrei uma frase em um livro de U nam uno, que eu usava m uito naquela época, co rro b o ran d o as posições de M endes, que dizia: “ hom em de partid o, hom em p ar­ tid o ” . E, assim , esse grupo durou m uito. M endes, depois, continuou a debater idéias e exp o r seus pontos de vista na casa de um am igo mais velho, que não freqüentava o Café C en tral, M ach ad o C o elh o. Essa fase foi m uito im portante, porque daí c o ­ m eçam os a conh ecer certos autores, e eu com ecei a con h ecer certos filósofos com o Heidegger, Sartre, Paul Landsberg.

Com o esses autores chegaram ao senhor? Através de alguém, ou foi descoberta solitária? M u itos eu descobri sozinho, co m o U n am uno, por exem plo. Landsberg e Sartre foi M endes quem d escobriu. Ele era o elem ento catalisad or, dava inform ações e ju lg a­ va os poetas. Eu tentei ser poeta. Até essa fase, ach o que não havia brasileiro com fo rm ação literária que n ão tentasse ser. E o crítico Francisco Mendes matou o poeta Benedito Nunes... Ele agiu ce rto , viu que eu não era poeta. Q uand o eu apresentava meus poem as, percebia que ele não gostava m uito, em bora fosse sem pre m uito delicado. F. foi ele quem me encam inhou para o ensaio. O prim eiro ensaio que fiz, em que citava Paul Landsberg, cham ava-se A morte e o cotidiano em Ivan Illitch — ensaio que eu não publicaria hoje. Ivan é a personagem de T o lstó i. D ep ois, escrevi um ensaio sobre M ário Faustino, e um sobre Fernando Pessoa.

A leitura do “ Prefácio ” a N ão para con so lar indica que a sua geração não recebeu imediatamente o impacto modernista da Semana de 1922, nem da passagem de M ário de Andrade p or Belém em 1927, de m odo que a recepção da Semana viria já am algam ada à da cham ada gera­ ção de 1945. Mas o senhor afirm a que isso ttão pode ser computado simplesmente ao isolamento, aliás, bastante relativo. O que havia a mais, além do isolamento? A leitura do m encionado “Prefácio” suge­

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re-nos, parece, que saltara etapa da Semana foi, antes de tudo, um golpe de sorte para a sua geração. É assim mesmo? Como o senhor avalia esses dois momentos do modernismo brasileiro — o da Semana e o da gera­ ção de 1945? N ós perdem os a Sem ana, e essa perda foi m uito negativa, porque nós tínham os um fundo acad êm ico terrível, p arn asian o, ao qual ficam os grudados durante m uito tem po com a “A cadem ia dos N ov os” . E essa academ ia prosperou. Lem bro-m e bem que, antes de fundarm os a A cadem ia, H arold o M a ra n h ã o escreveu um artigo a ta ­ cand o a poesia m oderna. E a A cadem ia foi fundada para defender a boa lingua­ gem , os clássicos e, conseqüentem ente, o parn asianism o. E n tão, fez falta o con h e­ cim en to acerca da arte m oderna. Em 1 9 4 5 , M ário de Andrade m orria e nós está ­ vam os saindo da Academ ia. E bem verdade que entram os na academ ia m uito cedo, eu devia estar no terceiro an o ginasial — devia ter meus 14 ou 15 anos. Em um trab alh o que vou publicar sobre o professor M endes, vou co lo ca r um apêndice cham ad o “ C rôn ica de uma acad em ia” , m ostrand o com o as pessoas p ro ­ cediam , co m o falavam — enfim , vou falar sobre o ritual acadêm ico. Isso era m uito engraçad o, principalm ente pensando h oje, com a distância do tem po. Foi m uito im portante ter conh ecid o a Sem ana por interm édio da g eração de 1 9 4 5 . Essa geração fez uma forte crítica à Sem ana, talvez um pouco exagerada, mas, de qualquer modo, salutar. Houve um balanço, e nós ficam os com os melhores: lemos m uito D rum m ond e C ecília M eireles. M á rio Faustino, quando entrou em co n tato com tudo isso, assum iu-se co m o um poeta adulto. Salvo alguns poem as que publi­ cou em jo rn al, o d om ínio que ele tinha sobre a palavra era m uito grande. A princí­ pio, escrevia apenas crô n icas no estilo de Rubem Braga. Ele tinha uma prosa m ui­ to fina, m uito interessante, destinada para o leitor de jornal do bonde, do ônibus — eram m uito rápidas.

Nesse mesmo “Prefácio”, o senhor escreveu o seguinte: “dois fatos re­ levantes, em nossa vivência geracional, contribuíram para o desenvol­ vimento da poesia de Max ulteriormente à publicação de O estranho: a convivência intelectual com Robert Stock, e o im pacto do livro de Mário Faustino O hom em e sua h o ra ”. Qual foi a contribuição desses dois fatos para o seu desenvolvimento intelectual? A diferença de idade entre M ário e mim era de apenas um ano — eu era um ano m ais velho. N ós éram os m uito am igos, e ele me ensinava inglês. Ele era um tipo exu berante que falava m uito bem e m uito, mas não era um falastrão. N ós tín h a­ m os uma intim idade m uito grande. Ele tam bém foi cronista de cinem a, tinha c rô ­ nicas m uito boas. Na época, passou no cinem a daqui o Hamlet de Law rance O livier, e ele escreveu cinco ou seis crôn icas sobre esse film e. D epois, foi aos Estados U ni­ dos e com eçou a ler os poetas em inglês. Q uand o voltou dessa viagem , R o b ert Stock já estava por aqui. Stock foi o prim eiro beatnik. Era um m isto de ingenuidade com inteligência, e só pensava em literatura. Era um sujeito m uito generoso, que certa vez fez a seguinte proposta, que revela bem o seu grau de ingenuidade e de argúcia: “N ós podem os fazer alguma co isa, podem os ir para os EUA , nossas m ulheres trab alh am , e nós ficam os o dia

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inteiro len d o” [risos]. F. ele fazia isso realm ente. M orava num b airro m uito pobre — o b airro da M atin h a — , num casebre de ch ão de terra, e era conh ecid o com o o “ hom em da m atin h a ” . Ele era filho do dono de uma grande cadeia de frigoríficos, mas repudiou essa vida. V eio para cá atrás de um am igo que ia fundar uma c o lô ­ nia anarquista — eles eram “ anarquistas esp iritu alistas” — na Ilha do B ananal. D aí ele chegou ao Brasil e o cam arad a não veio. Ele, a m ulher e a filha pegaram não um ita no N o rte, m as um ita no Sul, e foram subindo pela co sta. C h egaram ao M a ­ ranhão, onde estava acon tecen d o uma eleição m uito disputada, e ele foi baleado, tendo de ficar hospitalizado por algum tem po. N aquela época, eu tinha uma revista literária cham ada Norte. Ele se interessou por essa revista e foi me p rocurar. Chegou aqui em 1 9 5 0 . T o d o sábad o ele ia me visitar, só não me visitava quando sua muiher lavava a sua única calça [risos]. M as tinha um dos mais gigantescos Webster’s que já vi, e uma arca com todos os poe­ m as de D rum m ond traduzidos para o inglês. Ele fez das traduções a sua o b ra , pois considerava a tradução com o um trabalho de recriação. Eu ainda tenho muitas notas do B ob . Ele se em penhava em dar à gente con h ecim ento de coisas com o sonetos de Shakespeare. Ele traduzia um por um, palavra por palavra, exp licand o as acepções de cada palavra. Algo notável. Ele era um grande filólogo e se m antinha dando aulas de inglês. Anos depois, eu o revi em N ova Y o rk . Já falava m uito mal o português, mas m antinha as m esm as posições anarquistas de antes: era co n tra o governo am e­ ricano, adotava um enorm e sím bolo da paz e fazia questão de m o rar num b airro negro, em Long Island. Ele trab alh ava co m o free-lancer em publicidade. Q u anto a M ário Faustino, posso dizer que era m uito crítico , e isso me sacudia m uito. Ele me deu uma dica que até hoje aceito e acato : a necessidade de escrever com clareza. Q u an d o eu m andava os artig os para o Jornal do Brasil, ele dizia: “ Ó tim o , ninguém escreve coisas tão im portantes. M as é m uito to rtu o so, é preciso to rn ar as idéias cla ra s ” . Ele se elogiava, rindo de si m esm o, em tom de ridículo. E difícil co n ciliar nele tantos ângulos co n trá rio s e op ostos. Ele criticava m uito ta m ­ bém. Um dia, pediu para o meu sogro, que era desem bargador aqui, uma carta de recom endação para ir aos Estados Unidos. M eu sogro pediu para ele escrever a carta. F.le fez a carta dizendo que tinha tais predicados, que conhecia isso e aq u ilo, e que “ sabe inglês com o a sua própria língua” [risos|. Nesse p o n to, M á rio com eçou a escap ar das influências do professor M endes, que tinha uma influência m uito b oa, mas fran cesa. M á rio tro u xe esses poetas de língua inglesa e deu sua con trib u ição para o grupo, porqu e, a partir disso, o p ro ­ fessor M endes passou a se interessar tam bém por esses poetas. M ário era m uito esfuziante, m uito rison ho, sabia dar gargalhadas. C erta vez, uns estudantes p ro cu raram -m e porque queriam fazer um recital dos poem as de M ário. M as o estilo que eles en con traram era o de um hom em to rtu o so , ensim es­ m ado, e eu disse: “ m as o M ário não é nada disso, vocês não podem recitar dessa m an eira” . Eu fiquei com os livros dele, que vieram do R io . A m ãe dele pediu que eu os dividisse com nossos am igos. Cham ei os am igos para escolherem o que quisessem . O que sobrou ficou com igo, inclusive a ob ra com pleta de Pound. E engraçad o, pois M ário não era poundiano do ponto de vista p o ético, era poundiano co m o crítico.

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O senhor colaborou com o Suplem ento D om inical do Jo rn a l do Brasil na década de 1950, que era então um ponto de referência nevrálgico para o debate cultural brasileiro. Com o o senhor avalia essa experiên­ cia ? Que diferença o senhor vê entre o Suplem ento D om inical e o Su­ plem ento L iterário de O E stado de S. Paulo, que seria, p or assim dizer, o seu “correspondente paulista” naquele período, e que era anim ado principalmente p or autores ligados à revista C lim a? Foi a p artir de 1 9 5 9 que com ecei a p u blicar em O Estado de S. Paulo, a con v ite de D écio de Almeida Prado. Por sinal, foi por aí que surgiu a iniciativa de um dos meus prim eiros livros. N essa época, A ntonio C ândido estava orientan d o a C o le­ ção Buriti. Foi por eu co la b o ra r com o Estado que ele me encom endou livros para essa coleção. \ la is do que ver d iferenças entre eles, eu tendo a ver diferenças entre esses dois suplem entos e os suplem entos atu ais, m esm o em relação àqueles que surgi­ ram logo depois. A distância é m uito grande, hoje em dia obriga-se a escrever ta n ­ tas páginas e ta n ta s linhas sob re “ fu la n o de t a l” . É q uase um a resen h a, uma recensão — com o dizem os portugueses. E n qu an to que, naquela ép o ca, o Jornal do Brasil, por exem p lo, publicava artig os enorm es, de dez, doze, até quinze pági­ nas. O Estado de S. Paulo tam bém , m as era m uito m ais n ortead o pelo D écio, que gostava de fazer edições tem áticas. C erta vez, fez uma ed ição sobre K a fk a , e pe­ diu para cada qual escrever sobre um aspecto da obra desse au tor — foi m uito interessante. H avia uma liberalidade na im prensa, que aceitava até m esm o m atérias que não eram encom endadas. Se eu tinha um escrito na gaveta, podia m andar para um desses jornais. O Jornal do Brasil publicava “ Poesia e exp eriên cia” , e outras seções, em páginas inteiras. Havia tam bém uma seção cham ada “ Livro de en sa io ” , que era uma página grande subdividida em pequenas seções, com o se fossem páginas de um livro. A intenção do jornal era que seus leitores recortassem essa página e fizessem um caderno. Um a vez escrevi um trab alh o que foi publicado em cin co páginas in­ teiras, sobre um assunto que hoje é inabsorvível: o pensam ento de Sócrates.

Com o o senhor se posicionou em relação à disputa entre cariocas e paulistas em tom o do concretismo, que teve com o um dos seus fóruns mais importantes exatam ente o Suplem ento D om in ical do J B ? Seria possível entendê-la como uma reedição das disputas entre cariocas e paulistas no primeiro modernismo brasileiro f Isso nunca me passou pela cab eça. Eu me dava com todos eles: com os C am pos e com Ferreira G u llar, que freqüentava a redação do JB, onde trabalh ava tam bém esse rapaz que publica m uitos rom ances hoje cham ad o Assis Brasil. O s paulistas estavam aliados com Gullar. A polêmica já foi a posteriori. D epois, esses m ovim entos deram a volta por cim a: hoje, a gente vê os concretistas escrevendo versos e G ullar escrevendo uma ótim a poesia, com o nesse seu últim o livro, Muitas vozes. São as m etam orfoses dos autores e dos m ovim entos. M as cessou o vanguardism o no país, cessou tam bém o revolu cionarism o, cessou a utopia, de tal form a que nós estam os m uito d esfalcados. Ainda não conseguiram substitutos.

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Na década de 1960, três paradigm as teóricos m arcaram o am biente intelectual: o estruturalismo, o existencialismo e o marxismo. Com o o senhor avalia a evolução desses paradigm as até os dias de hoje, e que balanço o senhor faria da sua relação com eles? A m inha relação mais profunda e constan te foi com a filosofia da existên cia, e isso se localizou sobretud o em H eidegger. N o e n ta n to , escrevi sobre L évi-Strauss, À margem do estruturalismo, quando estava ainda na França. N esse m om ento, I.éviStrauss ocupava o m esm o lugar que M erleau -P onty ocupara antes na França. N a verdade, foi pelo estruturalism o, con firm ad o pela ob ra de Fou cault, que entram os na questão da linguagem. O estruturalism o teve essa grande virtude: ch am ar a aten ­ ção para a linguagem , l.es mots et les choses é um livro fundam ental, em bo ra F ou ­ cau lt tendesse a d esvalorizá-lo, achand o que era circunstan cial. C erta vez, ele passou por Belém a cam in ho da Ilha de M a ra jó . Estava na casa de um am igo, M ach ad o C o elh o, e m andou me cham ar. N aquela época, eu gostava m uito de prom over conferências, e perguntei a Fou cault: “ O senhor faria uma c o n ­ ferência a q u i?” . Ele disse que faria e, na volta de M a ra jó , fez a con ferência. Ficou um a sem ana, mas a Universidade não pagou um to stã o a ele. A quilo foi em 1 9 7 0 , era um tem po duro. Para garantir a presença das pessoas aqui eu fazia listas — quem quisesse se inscrevia. D epois consegui uma boa q u an­ tidade de pessoas representativas, professores etc. Um dia, fui ch am ad o pelo dire­ to r dizendo que havia recebido um pedido do serviço de segurança para enviar a m inha lista. Eu disse para ele não enviar. N aquele tem po, havia o serviço de segu­ rança na Universidade que tinha co n e x ã o com o serviço secreto do E xército. Até Fou cault foi investigado. Beneficiei-m e m uito da obra de Lefèvre, da sua interpretação do m arxism o. N ão só da flexibilidade com que o lê, mas por um tópico a que ninguém ainda prestou aten ção: a m etafilo sofia, que é a retórica da filosofia. Essa m inha preocu pação de relacionar filosofia e poesia se aproveitou m uito dessas idéias de Lefèvre, não da parte da poética, mas da parte da retórica. H á uma diferença entre a poética e a retórica: na poética é preciso en trar nas m etáforas, nas figuras de linguagem ; já na parte da retórica é preciso reparar nos m eios de persuasão. Um a é atinente ao dis­ cu rso, e a o u tra é atinente às im agens faladas. Em determ inada época, devido à atividade na E scola de T e a tro , por acharem que eu não era “ vead o” , achavam que eu podia ser com unista. H ouve doze inqué­ ritos aqui. A própria Universidade era obrigada a ter uma com issão de inquérito. F. houve um outro inquérito que chegou à Segunda Seção. Eles usavam o seguinte ardil: eles cham avam as pessoas para ser testem unhas em processos já abertos.

No ensaio “Cultura e política: 1964-69”, Roberto Schwarz defende a idéia de que, no período m encionado no título do artigo, a direita de­ tinha o poder, mas a esquerda conseguiu a hegemonia cultural. O se­ nhor considera correto esse diagnóstico ? Com o o senhor avalia esse período da história brasileira ? Eu tenho uma idéia diferente. A cho que de 1 9 6 4 a 1 9 6 9 a esquerda foi d esb arata­ da. D etinha a hegem onia intelectual, mas sua atu a çã o foi anulada. Pelo m enos o

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grupo do C afé C entral acab ou . As ob ras que solicitavam mais aten ção , as de M en ­ des talvez, eram obras de esquerda, ob ras de cará ter insurrecional, literariam ente faland o. Nessa ép oca, até houve uma m elhora na prosa. M u itos rom ances foram escritos. M as a hegem onia era da d ireita, em bora as coisas fossem m uito m istura­ das no Brasil. Sartre dizia que todos os brasileiros pareciam ser de esquerda. N a verdade, brasileiro é bom de papo.

Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Com o o senhor vê as relações entre a filosofia e a cultura brasileira? Se pensarm os em uma filosofia com características brasileiras, com o uma con cep ­ çã o do m undo que só o Brasil proporciona por ser o Brasil, a minha resposta é não. A m enos que visem os filosofia no sentido lato: pensam ento social, h istórico e polí­ tico. Nesse sentido, O liveira V ianna e seu livro A evolução do povo brasileiro tem filosofia, Casa grande e senzala , de G ilb erto Freyre, tam bém . Adm ito o term o “ fi­ losofia b rasileira” com o filosofia feita no Brasil, mas a partir de uma reapropriação da trad ição filo sófica, da história da filosofia e das ob ras-fo n te. O u con tinu am os o d iálogo com P latão, A ristóteles, D escartes, K ant e H egel, ou não há filosofia. As cond ições da cultura brasileira, até certo m om en to, não foram propícias à filosofia nesse sentido. Q uer dizer, os autodidatas que nos precederam eram um tanto desavisados. C ito o m ais ilustre deles: Farias B rito , o qual li m uito. H á um peque­ no livro m eu, da Editora Agir, sobre ele. Farias B rito estudou m uito C om te, mas sem pre do ponto de vista da degenerescência da ép oca, das idéias que estim ulavam o censo de ordem , que estava sendo prejudicado. Nesse caso, o autodidatism o é infil­ trado com o uma espécie de ideologia conservadora. E n tão, acho que o esquerdism o me salvou.

Com o o senhor avalia o ensino de filosofia no Brasil h oje? O ensino de filosofia no Brasil, com o acontece em geral com todo ensino universi­ tário, está m uito prejudicado no sentido quantitativo que ele assum e. É uma espé­ cie de grande arm azém de horas-aula. C om isso, devido a essa carga h orária, falta m uitas vezes ao professor uma disponibilidade para enfrentar os textos com o alu­ no. Lê-se pouco. As vezes, aos estudantes falta o con h ecim ento de línguas estran ­ geiras, e tem os de traduzir. O u então recorrer a uma trad u ção. A coleção O s Pen­ sadores prestou, desse ponto de vista, uma grande aju d a, e são bons os trad u tores, gente qualificad a. O Husserl traduzido por |Zeljko] L oparic é m uito bom . A liás, é engraçad o: L oparic com eçou com filosofia analítica e hoje está heideggeriano — faz um trab alh o m uito rico sobre a ética heideggeriana. T o d o s os anos nós tem os um co ló q u io , que com eça na U nicam p e term ina na PUC de São Paulo. N a PUC é p atrocin ad o pelo D ep artam en to de Psicologia C línica.

Salvo m elhor juízo, a estética sempre foi entre nós um ramo da filoso­ fia bem menos explorado do que , por exemplo, a epistemologia, a moral ou a política. Essa situação m udoui M udou por portas transversas, porque a estética no Brasil sem pre foi praticada por vias transversas, por interm édio da crítica. F. a crítica literária e a crítica de arte que

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vêm conduzindo a estética. D iretam ente são poucas as tentativas consistentes. U lti­ m am ente nós tem os visto coisas interessantes, co m o essa série de F.valdo C outinh o — um autor interessantíssim o. F.le faz uma interpretação meio fenom enológica, meio existen cial, de tipo husserliana, mas escreve com grande clareza e precisão. N ão é só em estética, mas em ou tros d om ínios, filósofos que não tinham ne­ nhum a ap ro xim ação con o sco passam agora a interessar. O trab alh o de M arilena Chaui sobre Espinosa, os trab alh os de G iannotti sobre W ittgenstein...

O setthor vê um cruzamento desses trabalhos com suas preocupações? Sim , principalm ente a questão da linguagem em W ittgenstein. Prim eiro, aquele tra ­ tam ento rígido da linguagem , a linguagem com o lim ite do m undo em form ato de proposições que podem ser verdadeiras ou falsas. Indaga-se o que é linguagem, podese separar a linguagem de form as de vida. O que é a linguagem ? A cu ltu ra, a p ro­ núncia, a palavra. Ainda não tive tem po de ler o livro de M arilena Chaui, que é uma enorm idade.

Em A filosofia c o m ilênio, o senhor estabeleceu uma diferença de na­ tureza entre filósofo e professor de filosofia, afirm ando que “nem todo professor de filosofia foi filósofo, e, inversamente, nem todo filósofo foi professor de filosofia”. Tal afirm ação valeria para caracterizara dis­ tinção corrente entre fazer filosofia e fazer história da filosofia ? Sim , fazer história da filosofia é um cam in ho fácil, pois é só continu ar o que em grande parte já está feito. Fazer filosofia é igual a fazer boa filo sofia, é preciso es­ tar em uma perspectiva diferente, em uma perspectiva própria, em uma perspecti­ va inédita. Enfim , fazer filosofia é d escobrir um novo ângulo n ão só para analisar as doutrinas passadas, a própria história da filo sofia, mas para co lo car sob nova angu lação o co n creto , o real, a h istória, a sociedade etc. Q uer dizer: fazer filosofia é pensar de novo aquilo que é com um . C ostum o dizer que filo sofia, de certo m odo, correspond e a uma trivialidade. Porque se trata da mesma linguagem , a linguagem com um , com um distanciam ento que a gente exige na arte, isto é, um distanciam ento feito não para ficar a cavaleiro das coisas, mas que as co lo ca sob uma perspectiva diferente.

Há aquele dito de Heidegger: “O pensador diz o ser. O poeta nom eia o sagrado”, que surge em diversos momentos da sua obra. Seria esse dito a senha para a distinção entre filosofia e arte? É preciso pensar, porque H eidegger recua ao m ais “ p rim itivo” , quer dizer, recua ao sagrado e não fala em religioso. O sagrado seria o e xtra o rd in á rio , o supra-individual, aquilo que eu não posso dom inar, ou seja, nenhuma técnica e nenhum a ciên ­ cia são capazes de conh ecê-lo. Ele está sem pre fora de m im, está sem pre fora dos o u tro s, e, com isso, chegam os à idéia de terror e estrem ecim ento. Ju stam ente esse estrem ecim ento, na poesia, é subm etido ao ritm o e à form a. Pode haver o pensa­ m ento do sagrado. H eidegger fala no sagrad o, que não é o religioso, e, a o m esm o tem po, adm ite o dito nietzscheano da m orte de Deus. O sagrado é algo que se a fa s­ ta de Deus e dos deuses. F.m com p en sação , H eidegger tem uma n oção m uito enig­

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m ática (e no meu livro Crivo de papel há dois trab alh os a respeito) do últim o Deus. Ele diz que se nós podem os alcan çar uma últim a con cep ção do ser, e se essa c o n ­ cepção é um m odo de vida, en tão nós alcançarem os tam bém uma nova noção de Deus. E n tretanto, Heidegger diz tam bém que toda a filosofia é atéia. Heidegger não escrevia com o pensador, escrevia com o poeta. Ele pensa o ser e escreve o sagrado [risos].

Que conceito(s) de sua reflexão o senhor destacaria com o o(s) mais representativo(s) da sua produção filosófica? Pediríamos que nos con­ tasse com o ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e com o o senhor o(s) vê hoje. O tema m ais con stan te e mais presente em m inha reflexão filosófica é o da relação entre poesia e filosofia. Surgiu quando escrevi um artigo sobre Fernando Pessoa: “ Fernando Pessoa: poeta m etafísico ” . N esse te x to , eu dizia que ele “ tom ava liber­ dades” com a m etafísica, que ele devia m udar de m etafísica com o quem muda de gravata. Essa liberdade lúdica em relação à filosofia teve m uita im portância para a com preensão desse nexo entre a filosofia e a poesia, quer dizer, o fundo poético da filosofia. Esse nexo não pode sem pre ser pensado da m esm a m aneira, porque nem sem pre a filosofia e a poesia se relacionam da m esm a form a. Isso quer dizer que a fam osa passagem de A República de P latão , da expu lsão dos p oetas, não pode ser tom ada co m o uma imagem exem plar. P latão afeiçoava-se pelos poetas que eram possuídos, os poetas possessos. E ntão a relação entre filosofia e poesia não é even­ tual, ela é uma relação h istoricam ente forte, no sentido próprio da palavra. Porque m uito da filosofia se config u rou a p artir de uma reação co n tra a p oesia, co m o , m odernam ente, m uito da poesia se configu rou filosoficam ente. A poesia m oderna em grande parte é alim entada pela reflexão filosófica. E ntão essa é a principal tri­ lha que venho seguindo, com os estudos sobre Jo ã o C abral de M elo N eto , da fenom enologia, da form a das coisas e do m isticism o de C larice L ispector. E tenho pro­ cu rado tratar isso de uma m aneira mais geral, em tese, co m o 110 “ E nsaio sobre o pensam ento p o ético ” que está em Crivo de papel.

Escrevendo sobre a relação entre filosofia e literatura, o senhor alerta que “o primeiro risco a evitar é a busca de conceitos instrumentais na Filosofia para o exercício de uma pretensa Crítica Filosófica, que ten­ taria estudar a obra com o a ilustração de verdades gerais. No prim ei­ ro estudo que escrevi sobre Clarice Lispector, c a í na sedutora artnadiIha dessa Crítica redutora ”. E que redundou “em apresentar a ficção da romancista [em A p a ixã o segundo GH/ com o ilustração do pensa­ m ento sartreano”. O senhor poderia nos fa la r um pouco sobre essa evolução na leitura de Clarice Lispector? Entre o prim eiro livro, Leitura de Clarice Lispector , e o segundo, O drama da lin­ guagem , C larice soube que o segundo livro estava sendo escrito e perguntou a a l­ guém (que depois me con tou ): “ Será que ele ainda vai me con sid erar uma escritora e xisten cialista?” . E n tão tive cuidado de tom ar com o lim iar de toda reflexão a n ar­ rativa de C larice, a sua fo rm a, o seu desenvolvim ento, o em prego de certas figuras

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dc retórica — com o a rep etição, por exem plo — , enfim : estudar em prim eiro lugar a linguagem , isto é, a con fig u ração da narrativa. F. estudando essa con fig u ração, poderia chegar a uma ap reciação da filo sofia, a uma con cep ção de m undo. E n tão foi graças a essa m ediação da form a que eu consegui ultrapassar o p o n to de vista m uito sim plificado do meu prim eiro livro. Ela tinha razão em desconfiar. D epois de co n statar que não era mais considerada uma existen cialista, ela olhou para mim e disse, elogiand o-m e: “ V ocê não é um c rítico , você é uma ou tra coisa que não consigo d efinir” .

Com o evitar esse risco no caso de poetas em que a “musa filosófica” é particularmente presente, com o é o caso de Fernando Pessoa, referên­ cia constante de seu trabalho? D o ponto de vista do problem a que estam os tratan d o , esse é um aspecto mais p ar­ ticular a Fernando Pessoa. A sua atitude em relação à filosofia é a de um poeta no período da crise da m etafísica. N a verdade, o que Fernando Pessoa pensa é que a m etafísica pode se erigir em várias form as, que podem passar de umas para as outras, co m o m udam os de cam isa e de gravata. C om o a gente sabe que ele conviveu muito com filósofos, leu m uitos filósofos com o D escartes, K ant c até mesmo N ietzsche, aquilo traduz o peso que a filosofia teve. E n tão a m etafísica era encarada com o uma im possibilidade, do ponto de vista do con h ecim en to, m as, ao m esm o tem po, com o um pendor à poesia. E n tão, é impossível desvencilhar isso de Fernando Pessoa. Isso é fácil em [João] C ab ral, sem que, en tretan to , um fundo fenom cnológico d esapareça, pois esse fundo é sem pre m uito patente. A sua poesia é toda descritiva no sentido de descrever essências, fica no âm bito da fenom enologia. N o caso de Clarice Lispector, eu tinha tom ado somente a figura da náusea, a história da verdade, da m oral etc. A própria C larice Lispector devia ach ar isso tudo m uito estranho.

A noção de “niilism o”, surgida na linhagem de Nietzsche e Heidegger, é central na sua reflexão, o que p ode ser atestado pelo título de seu li­ vro N o tem po do niilism o e outros ensaios. O que é o “niilism o” que caracteriza o nosso tempo? A n oção mais expedita é a de N ietzsche: “ transvalorização de todos os valores e tc .” . Falta o topos. O individualism o m oderno prescindiu de Deus. O niilism o é p ara­ d o x al, pois nessa época em que não há o ser, mas apenas o ente, ele projeta a poe­ sia co m o uma exigência e uma necessidade. F., por ou tro lado, a arte ganha mais volum e em contraste com esse pessim ism o. E um dos parad oxos do nosso tem po. M as tam bém podem os perguntar: Hegel não declarou a m orte da arte? É quase um bruto contraste, não fosse Hegel o filósofo das contrad ições. A mesma doutrina que defende a idéia da arte com o produto do esp írito, defende a sua extin ção , o seu fim, o seu F.nde. Isso se deve à própria função da filo sofia, quer dizer, a filosofia que fo rja a idéia da arte e que vai desintegrar essa mesma idéia, absorvend o-a. Isso é da econom ia do sistema hegeliano: estabelece uma classificação das artes com o ta m ­ bém uma classificação que é ainda mais im portante, a das con cepções do m undo: a con cep ção sim bólica, a con cep ção clássica e a con cep ção ro m ân tica. C) ro m an ­ tism o caracteriza-se pelo prim ado da subjetividade — o eu. C om esse prim ado dá-

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se a con ceitu alização que, através da poesia, causa a m igração da arte para o seio da filosofia. É m uito bem engendrado. E isso não acontece apenas com a pintura e a escu ltura, que operam essa tran sição, m as com a poesia, no sentido que se dava à poesia na época. É cu rioso que o Ende da arte, o Verfallen, a sua decadência, não impede Hegel de traçar cam inhos para a arte na época em que vivia — uma época de decadência que, no en tan to , oferecia uma obra diante da qual Hegel se cala, que é o Fausta de Goethe. Então o rom ance é uma form a degenerescente, mas o rom ance é filo sofia. O hum or contrib u i para essa passagem , no en tan to , o hum or dá um Sterne. Para Hegel é essencial a m orte da arte, no próprio relacionam ento entre a filosofia e a arte.

Habitualmente, ao reunir ensaios em livro, o senhor não os faz prece­ der de uma introdução ou apresentação. A que se deve isso? Qual é o sentido do título Crivo de papel, de 1998, que enfeixa os seus escritos mais recentes? Crivo de papel não traz uma introd u ção por uma razão curial: porque perderam |risos|. Q uand o vi o livro, perguntei ao editor: “ E a in tro d u çã o ?” . Ele disse que o rapaz que organizou o livro havia esquecido de inclui-la.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­ cias e o saber científico. Tal relação perm anece até h oje? Com o ela se dá na atualidade? Esse nexo não pode ser pensado sem pre da mesma m aneira, porque as ciências e a filosofia têm m udado desde a Antiguidade. A teologia de que fala A ristóteles não é a mesma teologia de Santo A nselm o e de Santo T o m ás de A quino. Para D escartes, a física que se originou da m etafísica não é a mesma física de A ristóteles — a física cartesian a é m atem atizada. Entre as próprias ciências da época moderna varia o re­ lacion am ento, dependendo das diferenças de perspectiva: m atem atização e evolu­ ção. A soberania das ciências no século X I X firmou-se por intermédio do positivismo. Ela se torna problem ática com o aparecim en to das ciências hum anas, que introdu­ zem o ponto de vista da com preensão em face da exp licação causalista.

Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenôm eno estético em nossa socieda­ de. Com o o senhor se posiciona em relação a esse d ebate? A m orte da arte, a sua d issolução (Auflösen), a sua decadência ( Verfallen ) ou o seu fim ( F.nde), é tem atizada na Estética de Hegel com o a doutrina do ca rá ter passado da arte e a sua suprem a d estinação. E isso entra em co n flito com a n oção aí ex p o s­ ta de arte com o produto da atividade do espírito. Ao relacionar a arte com o absoluto, Hegel preparou-lhe a dissolução. A pergunta de Heidegger, "se arte é ainda um modo essencial e necessário de nossa atual existên cia” , resolve-se no m om ento do R o m an ­ tism o, com a predom inância da poesia. As ob ras de arte exprim em visões do m un­ do ( Darstellung ). O pensam ento e a reflexão ultrapassam as helas-artes. H avia tam bém em Hegel a posição relativa ao juízo estético, um prolonga­ m ento de sua crítica a Kant. A dm itindo que não havia arte sem visão do m undo.

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Hegel aceitava que havia sem pre um nexo de p articip ação, diferentem ente do que ocorre com o juízo estético, em que se aprecia por m eio de um ju lgam ento, ou seja, passa-se a ju lgar uma coisa que se recebe entre o conh ecim ento e o n ão-con hecim ento. Em K ant existe o p rático, o teórico e o estético. H egel não aceitava essa divisão, e, se n ão houvesse um a envolvência, não haveria a recepção da arte. E essa envolvência corresp o nd e à cap acid ad e da visão do m undo, produto do esp írito com um . Isso evoca, de certa m aneira, G ad am er, em Verdade e m étodo , quer dizer, se n ão se retom a a história da o b ra , a obra cai no terreno da a b stra çã o . E n tão , podese falar aqui, com o em W alter B en jam in, em uma verdade da o b ra, na sua fo rm a ­ çã o , na sua função de engendrar uma sociedade. Isso tudo o ju ízo estético perde. T e n h o a im pressão de que o problem a não m orre com o fato de H egel ter decretado a m orte da arte, com o a parte do espírito ab so lu to que tem de soço brar. A final, quem m ata é a filosofia. Esse problem a se aguça quando percebem os as li­ m itações da arte atu alm ente, e pela pergunta do que fundam enta a arte hoje. A arte não se apóia mais num a con cep ção de m undo, hoje é apenas uma atividade da in­ timidade dos museus — as pessoas já produzem para museus. Nesse sentido, o ponto de vista hegeliano é m uito rico. E há ainda a a ssociação que sobressai entre a arte e a tecn olog ia: a in stalação , por exem p lo, é algo tecn ológ ico na arte. A técnica c o r­ responde ju stam ente a esse poder de in stalação do co n ju n to . Só sobrou uma form a de representar, em bora Hegel não usasse essa palavra, mas Darstellung. M orreu uma espécie de arte, uma form a que não existe m ais, que é a cena do m undo. A arte não se faz m ais para o m undo, mas a partir do m undo, lim itada ao horizonte do museu.

No seu ensaio “Música, filosofia e literatura”, o senhor esboça uma imagem da arte futura nos seguintes termos: “Se, na época presente, pintura e escultura tendem a desaparecer em proveito do objeto plásti­ co, e a poesia propende a estabelecer um tipo de apreensão plástica, sonora e visual ao mesmo tempo (a unidade verbo-voco-visual dos concretistas): p o rq u e não se poderia legitimar uma música dram ática ou um dram a musical?”. Esta imagem da arte que se desenha seria então submetida cada vez mais a imperativos da técnica em vez de ser lugar de “eclosão da verdade”? Isso seria adm itir que a verdade não pode eclodir em uma óp era. N essa cita çã o eu me refiro a com o poder pensar uma a ssociação entre m úsica e dram a fora dos p a­ drões op erísticos do século X I X . O p ró p rio Schõn berg tentou fazer esse dram a musical cm Moses und Aaron. N ã o se pode suprim ir essa possibilidade do dram a m usical, ou da música que n ão está am arrada à trad ição do século X I X , o dram a realista, verista etc. P or que não eclode a verdade num tipo de dram a co m o aquele de Schõnberg e em Penderecki?

Qual é, na sua opinião, a diferença entre “crítica de arte” e “estética”? De acordo com m uitos, a crítica de arte deveria ser uma estética aplicad a, mas acho que não é assim . A crítica de arte pode ser mais do que a estética, no sentido

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de que envolve: a reiaçào de quem recebe a obra com a o b ra ; a relação de quem faz a prim eira leitura com a o b ra ; e toda a história, que acode a crítica de arte. A esté­ tica tende a eternizar os valores, enqu anto a crítica de arte segue o fluxo do dia-ad ia, do que está sendo produzido. £ , dadas as cond ições da arte atu al, ela tem sido exercida com m uita dificuldade. A não ser que se faça aquilo que certas pessoas aconselham , ou seja, que a crítica de arte crie os con ceitos da própria arte que está sendo estudada. E isso é o que vem acontecend o: cria-se às vezes adequadam ente, às vezes arbitrariam ente. Esse d om ínio é difícil de estabelecer, e isso me angustia m uito. C om o se legitim a a op inião sobre as ob ras de artes plásticas hoje? O s pa­ drões não mudaram tanto. É que a linguagem é um instrum ento, e a linguagem verbal tem suas m etáforas, suas p antom im as, e pode entrar no elem ento plástico de c o n ­ figuração num recorte diferente do trad icional. M as a poesia, no sentido am plo, que tem m udado m ais em sua con cep ção , é aquela que con tinu a sendo acessível. O senhor acredita que a noção de “catarse” é hoje ainda válida para apreender a experiência estética? E difícil pensar nisso depois de B recht. M as um autor pode, com o d istanciam ento, criar o im pacto. Se há im pacto, pode haver catarse. Uma orquestra sinfônica gera catarse , e pode, de certo m o d o , ser c a tá rtica . Eu assisti a uma ap resen tação da O rquestra de V iena na E stação Jú lio Prestes de São Paulo, e era, sem dúvida ne­ nhuma, um espetáculo catártico. M as não me lem bro de nenhum espetáculo de teatro em que isso tenha acon tecid o. N o cinem a, sim: os filmes de K u rosaw a, Bresson, Fellini.

Com o o senhor vê o atual panoram a da literatura no Brasil? Sem entusiasm o. F. co rreta , há bons glosadores, mas não se encontram m ais aq u e­ les que causavam estrem ecim ento e adesão. A ntigam ente, nós ficávam os esp eran­ do os livros de D rum m ond, pensando no que ele ia dizer, no que ele ia fazer. £ hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar.

Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíam os era um fe­ nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado N acional com o fonte e garante do Direito e com o detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como o senhor vê tal diagnóstico? Na sua visão, a prim azia de que parecem desfrutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias? A política era um fenôm eno n acional. Pode-se aceitá-la porque era, antes de tudo, um fenóm eno dependente do conh ecim ento histórico e das leis da história. Em pri­ m eiro plano, a revolu ção ou o progresso, robustecidos pelas tran sform ações h istó­ ricas, afetavam ou configu ravam os povos co n stitu íd o s em n ação . Só as nações ingressariam no ciclo histórico da revolução ou do progresso. O aperfeiçoam ento indefinido no futuro e o rom pim ento com o passado na conqu ista do novo. E stare­ m os sob o tirânico im pério da m udança. Adm ite-se uma razão universal uniform e atu and o do m esm o m odo em toda parte.

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É certo que K an t, em Idéia de uma história universal de um ponto de vista

cosm opolita , postula um prop ósito da natureza para o desenvolvim ento das dis­ posições hum anas. E procura con firm á-lo recorrend o à exp eriên cia, que não lhe oferece senão certos sinais co m o aceitação das liberdades civis e as vantagens do esclarecim ento. N ad a, pois, de superfície para e la b o ra r uma história universal, e sim para considerá-la com o possível. O ra , essa possibilidade, para K ant, é mais uma exigên cia da razão do que um atestad o de que a razão governa o m undo. Um a exigência prática d em andando o com prom isso da vontade autônom a para instituir os im perativos m orais, visando com isso a form a de universalidade ética. O hom em é o sujeito dessa universalidade, que só pode vingar quand o, ao agirm os, to m ar­ m os cada indivíduo e nós m esm os sem pre com o um fim , e jam ais com o um meio. Esse fim de um ser racion al, capaz de instituir im perativos m o rais, é a sua dignida­ de. R econ h ecer essa dignidade, e agir em conform id ad e com tal reconhecim ento, é estendê-la a cada hom em em sua hum anidade. O m aior problem a para a espécie hum ana, cu ja solução a natureza ob rig a, é a lcan çar uma sociedade civil que adm i­ nistre universalm ente o d ireito. C onseqüentem ente, a questão da unidade da espé­ cie é p rática, ética e p o lítica, e, não ob stan te, teórica.

Com o o senhor caracterizaria a sua relação com a religião e a fé? A religião im plica em p articip ação social ou coletiva, independentem ente do indi­ víduo. A fé im plica no convencim ento e na crença. E n tã o a religião precede o indi­ víduo, já está feita quando se nasce, entra-se nela. Ju stam en te a fc é uma postura de ad esão, uma crença: crer naquilo que se apresenta. O ra , a possibilidade oposta à crença é a descrença. A o m esm o tem po, ela é a a firm ação do indivíduo, da sua possibilidade. E n tão a substância das coisas que esperam os é a esperança, a exp ec­ tativa em relação ao futuro. Por isso, acho interessante a opinião de M arcelo G auchet acerca da op inião w eberiana do d esencantam ento do m undo. F.le aplica essa n o ­ çã o à religião. M o stra que, prim eiram ente, essa religião é de ad esão, de inerência etc. Q uand o o cristianism o traz a noção de fé, a firm e con v icção das coisas que não se vêem, nós estam os diante de uma religião que, ao m esm o tem po, m ostra a saída da religião. O cristian ism o é a religião co m o saída da religião, ele possui todas as possibilidades de ceticism o, de heresia. Eu sou de fam ília cató lica e tentei ser ca tó lico . C om ecei a me afastar quando, por volta dos anos 1 9 5 0 , o papa concedeu a C rã-O rd em de C risto ao F ran co . Isso foi de arrepiar. Passei tam bém pela fase ilum inista, em que via a religião com o o engano ao qual as pessoas se subm etem — ou seja, a religião é sem pre produto de um logro que é provocad o por alguém . Isso me ocorre revendo o passado, quando me lem bro da m inha tese sobre Papai N oel, que dizia o seguinte: assim co m o me enganaram durante m uito tem po dizendo que havia Papai N oel, do m esm o m odo a religião pode ser um grande engano — a noção de salvação etc. Eu ultrapassei essa tese iluminista. I loje, o cristianism o ainda é prolífico, goza de uma força inercial e continua produzindo essas pequenas religiões que vão surgindo — as religiões do cristianism o rentável, onde as pessoas aprendem a ganhar dinheiro. E stão se insur­ gindo na França contra a igreja de Edir M aced o. G ostaria de ouvir o que essas igrejas dizem , mas devem ser m uito ch atas. Seria interessante fazer um estudo de p sicolo­

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gia a respeito do cristianism o hoje. Tem um livro m uito interessante, publicado no C an ad á, sobre as razões do pentecostalism o no B rasil. Esse assunto me interessa m uito: a religião de m odo geral, o princípio do cristianism o etc. Até com ecei a es­ crever uns trab alh os novos a respeito disso.

Com o o senhor se situa em relação aos problem as de uma “mudança de paradigm a ” da filosofia, de uma filosofia “pós-m etafísica ” calcada na linguagem? F. preciso buscar esse decalque, porque a filosofia já está calcada na linguagem. F., co m o d em on stração desse decalque, nós tivem os a reviravolta que se verificou acentuadam ente em Heidegger, na segunda fase de seu pensam ento. E tam bém nos dois W ittgensteins, o do Tractatus logico-pbilosophicus e o das Investigações filo­

sóficas. Por ou tro lado, N ietzsche diz que o pensam ento, a filosofia, está à m ercc de um bando de m etáforas, de m etoním ias, de palavras sem elhantes e de repetições. Talvez daí venha o meu grande interesse pela relação entre filosofia e poesia. Em P latão isso é evidente, pois ele é um poeta antes de tudo. Apenas condenou os poetas com o im itadores. M esm o K ant, que parece o mais estranho a isso, foi considerado com o um “pensador de p en a” (Federdenker), que pensava escrevendo. Em H eideg­ ger, mais acintosam ente no Ser e tempo , é grande o uso de paronom ásias, de palavras sem elhantes usadas repetidam ente. E na segunda fase, a linguagem , o dizer, está em ligação direta com o ser. Há uma diferença entre a con cep ção de Ser e tempo e a con cep ção posterior. Isso quer dizer então que a linguagem não é um simples instru­ m ento, mas já é uma cam ada constitutiva do próprio pensamento. Essa função instru­ mental é criticada por Heidegger, que, por ou tro lado, critica tam bém a lingüística com o m eio de ap ro xim ação da linguagem . Ele critica a diferença entre significante e significado, e introduz a n oção de escuta: o escutar os texto s etc. F. há ainda o veio herm enêutico, a cond ição im anente da linguagem . P ortan to, essa reviravolta para a linguagem não foi um acidente con tem p orân eo, é um fato essencial e consum ado.

Segundo o senhor, em seu livro N o tem po do niilismo, Nietzsche anteviu a ascensão da linguagem “ao primeiro plano da reflexão filosófica”. Mas o “significado dessa transição não se esgota na ‘guinada lingüís­ tica’ de que fala Habermas, da filosofia da consciência, originariamente fenom enológica, para a filosofia da linguagem. (...) Terá bavido, sim, uma guinada, mas com o reviravolta irônica da destituição platônica da poesia: a literatura considerada com o filosofia e, inversamente, a filosofia tratada com o literatura”. A cham ada “guinada lingüística” seria, a seu ver, uma restauração da m etafísica? N ão seria uma restau ração, porque essa guinada lingüística acentua o que ch a m a ­ mos de finitude do hom em . N ão é só a lim itação do conhecim ento, não é só a m orte, m as a contingência de um pensam ento que nunca está acim a da con d ição hum ana. Este pensam ento que está ligado ao que se escreve, ao que se fala e, p o rtan to , à lin­ guagem . O ra , é essencial para a m etafísica o sentido da infinitude do pensam ento, não com o uma lim itação, mas com o a capacidade do pensam ento de sobrevoar por meio de conceitos.

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Com o o senhor avalia a obra de Jacqu es D errida? G osto de certos estudos de D errid a, m ais especificam ente do prim eiro D errid a, o au tor de Diferença e repetição. E xiste um pensam ento m uito denso nesse livro so ­ bre a diferença, mas, depois, sofre uma espécie de diluição, ele se autodilui. De m odo que não é um dos meus pensadores prediletos, mas isso não quer dizer que eu não o ache im portante. Um amigo m uito engraçado que tenho em Brasília, de tan to ouvir falar de D errida nos colégios, resolveu m udar a palavra: ele diz em português o “ D errid a” [risos].

O senhor utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do futuro da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia? Eu procuro reform ular a idéia de uma unidade da história, de ter um desenvolvi­ m ento histórico que não seja uma utopia. Para mim é m uito interessante o princí­ pio de responsabilidade, que faz justam ente a crítica à utopia. Porque essa é a era da abund ância, obtida às custas da destruição da natureza. E n tão eu pego a idéia de K ant, em Idéia de uma história universal do ponto de vista cosmopolita, em que o problem a da história se torna um problem a m aior. N ão usaria o con ceito de utopia porque essa n oção im plica em uma exp an ­ são ilim itada do hom em , em que o futuro sempre traria a possibilidade de um aper­ feiçoam ento indefinido. N ão só um ap erfeiçoam ento, m as, se nós acrescentarm os esse ponto de vista, a utopia seria a pletora de bens, a pletora de consu m o. Ao in­ vés de utopia, co lo co no futuro a afirm ação ética da qual fala K ant em Idéia de uma

história universal de um ponto de vista cosmopolita. K ant não tem a pretensão de fundar a história. M as o ponto de vista k an tian o, que critica a m etafísica, é o pon­ to de vista da finitude, ou seja, a com unidade do d ireito, o fato de não to m ar o hom em com o m eio, mas sempre com o fim. E ntão, aceitaria para o futuro não a uto­ pia, mas a m elhor vida feliz possível — a eudemonia. T em os de ter uma conversão da humanidade pela história. N ós podem os revolucionar a concep ção que o homem tem de si m esm o, não podem os revolu cionar a sua vida, de tal m odo que pudesse haver uma conversão.

Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos com o riscos am bientais globais, am eaças de desintegração social em larga escala e alienação cultural em massa. Com o o senhor vê tais pro­ blemas? Esses problem as podem ser focalizados por interm édio da grande hybris do hom em m oderno, que é a d om inação da natureza. H eidegger é o prim eiro pensador que favorece uma filosofia com acen to ecológ ico , justam ente na sua postulação da téc­ nica. N ão é um antim aquinism o à sem elhança daqueles ingleses do século X V III, que destruíam as m áquinas. E um absurdo d eixar a técnica de fo ra, pois é por m eio dela que pode vir a nossa salvação (Rettung). M as, além da técn ica, existem outros aspectos correlato s. Eu os enumerei uma vez: a devastação da terra, a m assificação, a perda de vínculos dos hom ens e a cham ada fuga dos deuses, uma outra fórm ula para a m orte de Deus.

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Principais publicações: 1966 19 6 8 1971 1979 1 986 1988 1989 1993 1998 1999

Introdução à Filosofia da Arte (São Paulo: A tica, 1 9 8 9 ); O dorso do tigre (São Paulo: Perspectiva); Jo ã o Cabral de Melo Neto (esg .); Oswald Canibal (São Paulo: Perspectiva); Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger {São Paulo: Ática); O tempo na narrativa (São Paulo: Á tica); O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector (São Paulo: Á tica); N o tempo do niilismo e outros ensaios (São Paulo: Á tica); Crivo de papel (São Paulo: Á tica); Hermenêutica e poesia: o pensamento poético (B elo H orizonte: Editora U F M G ).

Bibliografia de referência da entrevista: D errid a, J . Diferença e repetição, Perspectiva. Fou cault, M . As palavras e as coisas, M artin s Fontes. G ad am er, H . G. Verdade e método. V ozes. H artm an n , N. Principes d'une métaphysique de la connaissance, Paris: A ubier. Hegel, G . W . F. Estética, Lisboa: G uim arães. ____________. Fenomenologia do espírito, V ozes. Heidegger, M . Ser e tempo, V ozes. ____________. Chemins qui mènent nulle part , Paris: G allim ard. ____________. C oleção O s Pensadores, Abril Cultural. H usserl, E. Investigações lógicas, coleção O s Pensadores, Abril Cultural. ____________. Meditações cartesianas, Porto: Res. K ant, I. Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, Brasiliense. N ietzsche, F. C o leção O s Pensadores, Abril C ultural. P latão. A República, Lisboa: Fundação C alouste G ulbenkian. ____________. Diálogos, coleção O s Pensadores, Abril Cultural. W ittgenstein, L. Tractatus logico-philosopbicus, Edusp. ____________. Investigações filosóficas, coleção O s Pensadores, Abril Cultural.

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José Arthur G iannotti: “A idéia de construir visões imaginárias do que poderia ser nosso futuro me repugna. O que me interessa, acima de tudo, é verificar, dentro do espaço em que se trabalha, quais os vetores que ultrapassam o cotidian o” .

JO S É A R T H U R G IA N N O T T I (1 9 3 0 )

Jo sé A rthur G iannotti nasceu em 1 9 3 0 , em São C arlos (SP). G raduou-se em Filosofia pela Universidade de São P aulo, onde obteve tam bém os títulos de d ou­ to r e livre-docente em Filosofia. Professor cassado em 1 9 6 9 , foi um dos fundado­ res e é presidente do C entro B rasileiro de Análise e P lanejam ento (C ebrap) e p ro ­ fessor da Pontifícia Universidade C atólica de São Paulo. É professor em érito da USP. Esta entrevista foi realizada em abril de 2 0 0 0 .

G oetbe dividiu a vida do seu personagem W ilbelm Meister em dois romances, O s anos de aprendizado e O s anos de peregrinação. N o pri­ meiro, o foco está posto na form ação do indivíduo Wilbelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que o você nos falasse de sua fon nação intelectual? C om o sou meio disléxico, inverti essa relação: fiz primeiro a peregrinação, e só agora estou me form and o [risos]. Peregrinei de São C arlos para São Paulo; em São Paulo peregrinei da B iblioteca Infantil para a B iblioteca M á rio de A ndrade, e dela para a Faculdade de F iloso fia, Letras e C iências H u m anas, ainda na Praça da R epública e depois na M aria A n tônia — no início co m o aluno ouvinte em Letras C lássicas, de­ pois com o aluno regular de Filosofia. M eu prim eiro interesse era estética, mas a ca ­ bei me encantand o pela lógica; depois da lógica, me encantei pela história da filo­ sofia, no início, graças a G u éroult. Enfim , ao longo de vários anos eu fiz tudo que podia fazer exp loran d o o universo de São Paulo. Aos poucos, porém , as coisas fo ­ ram se sedim entando, e com eçou m inha fo rm ação. E m bora com eçasse pela lógica e pela epistem ologia, creio que acabei me form and o em m etafísica — do ser social, evidentem ente. No discurso de saudação à entrega do seu título de Professor Emérito da USP, Ricardo Terra fez a seguinte afirm ação a respeito de sua for­ m ação: “Não podem os nos esquecer de que o adolescente Jo sé Arthur Giannotti freqüentava os círculos de Oswald de Andrade e discutia filosofia no grupo de Vicente Ferreira da Silva. Ao tom ar-se aluno de Gilles-Gaston Granger no curso de filosofia, volta-se contra a anterior ausência de rigor na leitura dos textos, mas sem nunca abandonar seja os impulsos estéticos recebidos, seja o compromisso com a realidade brasileira”. Isso procede? Com o você vê essas influências do círculo de Oswald de Andrade, p or um lado, e de Vicente Ferreira da Silva, por outro, sobre sua form ação?

J o s é A rthu r G ian n otti

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C onheci Rudá de A ndrade, filho de O sw ald, quando tinha 17 anos. N ós estáva­ m os preparando o segundo C ongresso Infanto-Juvenil de E scritores — uma inven­ ção de Sérgio M illiet, que, dois anos antes, em 1 9 4 5 , incentivara o prim eiro congres­ so. Esta foi uma experiên cia im portante porque nos levava a refletir e discutir so­ bre o que estávam os lendo. C erto dia, R udá me convidou para ir à casa de seu pai e, lá chegand o, deparei com uma cena que me m arcou bastante: A ntonio Cândido sentado numa poltrona em baix o de um quadro de Picasso e rodeado por boa parte da intelectualidade paulista. Para mim uma form a de convivência a que não estava h ab itu ad o . C onvivência que sig n ificou , ad em ais, um a ruptura g rad ativa com a form ação pequeno-burguesa recebida em casa. Lem bro-m e de que minha mãe ficava m uito preocupada com o fato de freqüentar alguém que já tinha tido sete mulheres! Foi nesse co n tex to que O sw ald de Andrade me apresentou ao M od ernism o, am pliando meus horizontes. C om ecei a freqüentar sistem aticam ente a Biblioteca M u n icip al, co m o intu ito de exp lo rar seu acervo de livros de arte. N ós íam os à B ib lioteca, fuçávam os tudo o que podíam os, depois nos reuníam os nas p ro xim id a­ des do P aribar, encontrávam os a turm a e acab ávam os todos indo ao cinem a — foi isso que me deu uma boa form ação nessa arte. N o final da noite corria para pegar o último ônibus para a Aclim ação. C erto dia, Oswald me avisou que Vicente Ferreira da Silva estava organizand o, num a garagem que ele e seu irm ão tinham na rua General Jard im , sem inários sobre P latão. F,u passei a freqüentar essas reuniões e, po rtan to , a ler P latão. Foi en tão que me deparei, por volta dos 18 anos, com o li­ vro Paidéia, de Jaeger. Por conta própria, passei a ler a Ilíada, a Odisséia etc., sem ­ pre co n fron tan d o em seguida com o capítu lo correspondente desse livro. Foi uma aventura extrao rd in ária, que durou m ais de um ano. Ao m esm o tem po, com ecei, por recom end ação de uma b ib liotecária da B iblioteca In fantil, a freqüentar com o ouvinte o curso de L etras C lássicas na Faculdade de F iloso fia, ainda na Praça da R epública — lem bro-m e de um curso m aravilhoso que Fidelino de Figueiredo deu sobre [Alexandre| H erculano. E, além disso, eu estudava um latim nada instrum ental, aband onand o o grego, do que me arrependo até hoje. N os anos 5 0 , finalm ente, prestei vestibular para entrar regularm ente na F a ­ culdade de Filosofia. Q uand o fui ver o resultad o, porém , percebi que tinha sido reprovado — tinha tirad o zero em português. A princípio não cheguei a me espan­ tar, pois m inha nota em português costum ava ser dez ou zero. M as colegas meus já tinham percebido que havia erro de tran scrição da nota: na verdade eu tinha ti­ rado oito. Consegui então que m udassem a nota e entrei na Faculdade pela porta da com p licação. O início prefigurou o tipo de carreira que teria. C om o já disse, meu interesse inicial era pela estética, m as, quando deparei com aquele b aix in h o faland o francês, tudo mudou — a com eçar por ter de ap ren­ der francês e lógica sim ultaneam ente. O curso de lógica de [G illes-G aston] G ranger fascinou nossa turm a — eu sem pre estudo em turm a — c lhe pedim os mais dois anos de cursos com plem entares. Além disso, cheguei até a fazer, co m o m até­ ria optativa — naquele tem po as m atérias eram de fato op tativas, e não “ op tató ria s” — , um cu rso de “ A nálise I I I ” no cu rso de M a tem á tica . O que foi m uito engraçad o, porque ninguém nesse curso conseguia entender o que eu estava fa ­ zendo lá, ainda mais para cursar “ Análise III” sem ter feito “ Análise I ” e “ II ” . M as

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term inei o cu rso sob re teoria dos co n ju n to s, e, graças a F arah , nosso professor, consegui aco m p an h á-lo , já que ele procurava me dar exem plos e exercícios que eu pudesse com preender. D epois disso, me form ei. N a época eu não pensava m uito em com o iria ga­ nhar dinheiro. Q u and o G ranger foi para a F ran ça, recom endou meu nom e para substituí-lo, e assim entrei para o D epartam ento com o professor assistente, chegando a ter Bento [Prado Jr .] com o aluno, o que h o je m uito me honra. M as nessa função não era rem unerado, obrigando-m e a fazer bicos, quer dando aulas particulares, quer prestando serviços a um tio deputado, V icente B o tta , en tão eleito. C erto dia passou por m inha casa R od olfo Azzi com a idéia de prestarm os concu rso para as vagas de sociolog ia da ed u cação , que estavam disponíveis nas esco las norm ais. Prestei, passei e escolhi uma vaga na cidade de Ibitinga, onde tive p o rtan to meu pri­ meiro emprego fixo. [João] Cruz C osta apoiava a idéia, im aginando nos com issionar para a Faculdade o m ais depressa possível. N o en tan to , o novo governador, Jâ n io Q uad ros, proibiu qualquer tipo de com issionam ento, o que me obrigou a o p tar por perm anecer em Ibitinga. De ou tro m odo, con tin u aria gloriosam ente com o profes­ sor da Faculdade de F iloso fia, sem rem uneração e me virando para sobreviver. E interessante lem brar que, em 1 9 5 8 , quando devia voltar para o B rasil, depois da estadia na Fran ça, escrevi a Cruz C o sta , perguntando-lhe se então teria em prego, pois me era possível perm anecer na França. Por ca rta , recebi um sabão enorm e, já que era de praxe to m ar a p restação de serviços na Universidade com o uma honra. Term inei voltan do, no lugar de G ilda de M ello e Souza, que tirara licença. M as voltem os a Ibitinga, onde tive meu prim eiro em bate com a bu ro cracia. Fizem os uma coleta pelos fazendeiros da região e arm am os um núcleo de b ib liote­ ca. M e lem bro, até com bons livros de arte. M as o d iretor da escola se assustou porque naturalm ente eu tinha com prado um exem plar do Manifesto comunista. N ão foi por isso que ele foi substituído, só sei que pensaram em me co lo ca r no lugar dele, desde que prestasse hom enagem ao político local. Enfim , depois de um an o e m eio saí de Ibitinga vexado com a política local, com m uitos alunos reprovados pela ap licação de um padrão que lhes era incom preensível e até com os fu ncionários da esco la, que não entendiam meu m odo de op erar. M as tam bém fiz ótim os am igos, tive alunos excelentes, e passei o resto do tem po estudando K an t e alem ão com um fab ricante de queijos, mas ob rig and o -o a seguir os m anuais do Instituto G oethe. Em 1 9 5 5 , houve um co n cu rso para professor de filo so fia , e por m eio dele consegui voltar para São Paulo — para dar aulas no C olégio B rasílio M ach ad o — e assim voltar tam bém para a Faculdade de Filosofia. Logo em seguida, porém — em 1 9 5 6 — , consegui uma bolsa da Capes para ir à F ran ça, onde fui estudar com G ranger, em R ennes. Lá passei o prim eiro ano escolar, tive o im enso privilégio de conhecer [V ictor] G oldschm idt, e com ecei a praticar, na linha de [M artial] G uéroult, uma história da filosofia que me distinguia claram en te do núcleo dom inante da fi­ losofia francesa da época, m ergulhada no existen cialism o. M as isso não me im pe­ diu de, graças a L efo rt, p articip ar tam bém do grupo Socialisme et Barbarie — o que me im unizou co n tra qualqu er espécie de stalinism o. Foi nesse grupo que c o ­ nheci C astoriadis e ou tros. Ao m esm o tem po, continuei a seguir, na É cole N orm ale de Saint-C lou d , os cu rsos de G u éroult, e, na É cole N orm ale da rue D 'U lm , segui

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cursos de Vuillem in. Em Rennes e em Paris fiz um círculo de am igos, dos quais ainda conservo Claude Im bert. Tam b ém ia, sistem aticam ente, assistir aos cu rsos de M erleau-Ponty no C ollège de France — depois dos quais m uitas vezes íam os tod os, inclusive M erleau -P on ty , para o apartam en to de L efort, onde continu ávam os as discussões. \ le foram dadas, p o rtan to , grandes oportunidades. C reio que vivi na França uma situação única, pois não fui sim plesm ente, com o a m aioria dos bolsis­ tas, jog ad o sem rum o na massa de estudantes da Sorbon ne.

Nessa época você pensava em trabalhar Husserl? Já em São Paulo, antes de ir para a F ran ça, estava m uito interessado em H usserl, pois era uma form a de com bin ar as m inhas inquietações com a lógica fo rm al, as questões m etafísicas e a história da filosofia. Q uem me deu a trad u ção das Investi­ gações lógicas — meu alem ão na época era péssim o — foi Cruz C o sta, apesar de achar que eu estava traindo a linha de investigação positivista da história da filo ­ sofia brasileira que ele tinha iniciad o, e de dizer abertam en te que o seu verdadeiro discípulo era Ruy Fausto. M as cabe lem brar que Cruz C osta exerceu sobre mim uma influência profunda, me ensinando a desconfiar das elu cubrações m etafísicas e a co lo car o pé na realidade brasileira. D urante vários anos freqüentei sistem ati­ cam ente sua casa e sua b iblioteca. De qualquer m odo, quand o fui para a F ran ça, im aginava escrever uma tese de d ou torad o sobre a n oção de co n ceito na lógica form al. N um a discussão com G oid schm idt e G ranger, no en tan to , eles me disseram que eu estava querendo refa­ zer a obra de P latão na m odernidade e foi assim que mergulhei profundam ente em H usserl. N o en tan to , logo que saiu o livro de Suzanne Bachelard sobre a lógica de H usserl, descobri que meu problem a era bem m ais com plicad o do que im aginava. Era preciso lidar com a toda a lógica con tem p orân ea, o que escapava de m inha com petência. Por esse m otivo resolvi circunscrever mais ainda o meu tem a e pre­ parar um dou toram en to sobre Stu art M ill.

Com o você avalia hoje esse seu doutoram ento, Jo h n Stu art M ill: o psicologism o e a fu nd am entação da lógica? C om o um ensaio canhestro do que veio a ser Apresentação do mundo. A final, qual era o meu problem a naquele m om ento? G irava em to rn o da idéia de sign ificação: entender por que ela não podia seguir o esquema em pirista de L ocke, verificar com o ela funcionava no esquem a husserliano da intencionalidade — em bora eu já sou ­ besse que este esquem a ia en co n trar seus lim ites em M erleau -P onty e assim por diante. O u seja, estava tentand o desenhar o prim eiro esboço de com o a idéia de significação precisava ser posta em cheque. E o Tractatus [logico-philosophicus] é uma contrapartid a que não aparece nesse meu prim eiro tex to . Sob a influência de G ranger, não tinha uma visão clara do que era a revolução w ittgensteiniana a par­ tir dos anos 3 0 , e acabei lim itado a H usserl. Im aginem vocês que chegara a propor a G ranger o p ro jeto de fazer uma trad u ção e uma análise da Lógica de P ort R oy al, e ele me d esencorajou por consid erá-lo de pouco interesse. M as meu problem a era esse: com o a idéia de significação estava sendo questionada e o que isso acarretava numa revisão da história da filosofia.

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Quando você voltou da França, começou a participar do célebre “Se­ minário M arx”. Em artigo sobre ele, publicado na revista N ovos E stu­ dos, tt° 50, você salienta “a vocação científica do grupo, pois todos nós, sociólogos, economistas, historiadores e até mesmo filósofos, todos lía­ mos M arx com o objetivo explícito de entender o estágio em que se encontravam as relações sociais de produção capitalistas, para situar nelas as dificuldades do desenvolvimento econôm ico e social brasilei­ ro, com o intuito muito preciso de poder avaliar as políticas em cur­ so”. Tendo em vista esta perspectiva, com o você avalia a experiência do sem inário? Esse sem inário se tornou um m ito e, em função disso, foram esquecidas suas lim i­ tações e suas im precisões. O ra , tratava-se sim plesm ente de um grupo de estudos. Q uand o voltei da F ran ça, a gente costum ava ir aos sábados à casa do Fernando H enrique |Cardoso| e, com o eu m esm o já estava m uito interessado em ter uma vi­ são crítica do m arxism o — sem d eixar de ao m esm o tem po absorvê-lo — , propus que arm ássem os uma análise geral dos texto s m arxistas con tem porân eos. Ao que Fernando N ovais replicou, lem brando que até agora nenhum de nós tinha lido M arx direito. C ab ia ler o próprio M a rx e foi o que fizem os. Com ecei com a análise do prim eiro capítu lo d’0 capital e me lem bro que ela já foi m otivo de uma polêm ica com Bento, pois ele. co m o bom sartrean o , queria en con trar ali uma antropologia fundante. Eu criticava essa antropologia e puxava a interpretação para o plano da lógica. O sem inário era variado, som ando pontos de vista diferentes, cada um tra ­ zendo sua própria experiên cia. D epois do sem inário, jan távam os e discutíam os p o­ lítica brasileira.

Em artigo recente sobre Lebrun, p or ocasião de seu falecimento, você narra o seguinte episódio: “Se o golpe de 64 espalhou a droga pela universidade, 68 afetou as relações amorosas. Preocupado, na direção do Departamento de Filosofia, alertei meus colegas sobre o perigo de sermos acusados de corrupção de costumes, o que agravaria a pecha de subversivos. Lebrun se calou. (...) Naquela época, era comum assis­ tir às aulas uns dos outros tão logo corresse o boato de que um de nós iria desenvolver tema interessante e novo, e assim fom os a uma esplên­ dida aula de Lebrun, para ouvi-lo comentar um texto de Nietzsche sobre a necessidade de esgotar a transgressão até a última gota. Aprendi a lição”. Como era o seu diálogo com Lebrun, e qu al a importância dele para sua trajetória intelectual? Lebrun veio para o D ep artam ento co m o professor de lógica. E logo descobri que eu sabia m uito m ais lógica do que ele (risos]. M as descobri tam bém que ele co n h e­ cia a história da filosofia m elhor do que ninguém. Continuei com ele discutindo a especificidade dos sistem as filo sóficos, m antendo o interesse despertado na França pela influência de G oldschm idt e V uillem in. N o fundo, queria pensar nossa posi­ çã o de esquerda incorporand o um diálogo com uma filosofia cu jos m eandros eram m uito mais com plicad os do que se im aginava. N ão era possível aceitar a vulgata m arxista ainda em voga nem as novas interpretações do m arxism o, em particular

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o althusserianism o, cu jo form alism o recusava. M as tam bém devo lem brar a pre­ sença crítica de I.ebru n, que, no fundo, escreveu La patietice du concept tam bém para nos esp icaçar. E hoje ainda preciso con sid erar um d iálogo, que com eçara mas foi cortad o com meu afastam ento da universidade, com o jovem Rubens Rodrigues T o rres Filh o , meu prim eiro orientand o. Ele percebera que havia m uito mais coisa im portante no idealism o alem ão além de H egel, e resolvera estudar Fichte. C om isso punha em xeque certos pressupostos hegelianos com os quais eu trabalh ava e que podiam ser pensados de ou tra m aneira. M as to d o esse d iálog o foi por água a b a ix o . A ca ssa ç ã o teve, no D e p a r­ tam ento de Filoso fia, conseqüências m uito m ais profundas do que se im agina. F.la não se resumiu sim plesm ente a b otar dois ou três professores para fo ra ; in terrom ­ peu um processo de aju stam en to de idéias incrivelm ente im portan te. N a época, ainda envolvido com as m inhas obsessões pela lógica, estava estudando e trad u ­ zindo o Tractatus, adem ais com a doce ilusão de que traduzir dava d in h eiro, na esperança de fazer econ om ia e preparar-m e para a perda de em prego que já esta ­ va no horizonte.

Ainda com relação a Lebrun: que papel ele desempenhou nesse diálogo? Lebrun sem pre foi aquele que, ao to m ar conh ecim ento de um tem a que algum de nós estivesse trab alh an d o , o retom ava, ia até o limite e nos dizia “ não está d an d o” . Ele nos obrigava a repensar sem fim e a recom eçar do zero. E cla ro que cada um seguia seu próprio cam inho. Bento dava seus prim eiros passos em direção a Bergson, recriando a form a do ensaio, da qual eu d escon fiava; P orch at com eçava de novo, aband onand o A ristóteles para m ergulhar na lógica form al — variação dos com e­ ços que o levou ao ceticism o; os jovens, Rubens [Rodrigues T orres Filho], M arilena |Chaui] e tantos ou tros, criaram um novo pad rão dos estudos h istóricos em São Paulo. M as, para mim e para o B en to, tod o esse processo foi interrom pido quando veio a cassação. N a época, G ranger, m uito gentilm ente, me convidou para dar aulas em A ix -en -P rov en ce, mas logo F ern an d o H enriqu e me convenceu de que havia cond ições para criarm os um centro aqui m esm o. E havia a op osição de Lupe [C otrim ], m inha m ulher, que não im aginava ficar fo ra do país por m uito tem po e es­ crevendo poesia em português. De fa to , fom os aposentad os em m arço de 1 9 6 9 , em m aio o C ebrap (C entro B rasileiro de Análise e Planejam en to) foi fundado e em se­ tem bro chegou o prim eiro grant da F un dação Ford. £ com o você avalia essa experiência do Cebrap? Desde os ensinam entos de G ranger e o conselho a ele dado por Bachelard , eu tinha clara a idéia de que não se pode fazer epistem ologia sem se casar com uma ciência. Se, naquele m om en to, eu estava me casand o com a m atem ática e a lógica, agora eu p rocuraria me valer dos conh ecim entos que já tinha de sociologia e aprofun dá-los. Além disso, todos nós fizem os um cu rso de E statística com Elza B erqu ó — éram os eu, Paul Singer, Fernando Flenrique, O ctáv io Ianni e ou tros tom and o nota e fazen­ do exercícios. Um a tentativa de unificar nossa linguagem por m eio do aprendiza­ do de técnicas. M a s, nesse m om en to, a nova e grande experiên cia era o cham ad o “m esão” : não havia tex to no C ebrap que não fosse discutido por tod os nós, sen ta­

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dos em torno de uma m esa; discussão franca e freqüentem ente violenta, com xingamentos e tu do, mas logo depois estávam os todos juntos tom and o chope.

O que tom ava isso possível? C reio que o principal vínculo era a solidariedade política: tínham os consciência de que, se não aprofundássem os o espírito crítico , estaríam os perdidos. F. esse ap ro ­ fundam ento tinha dois ob jetiv o s: um deles era a d esm istificação dos chavões da esquerda; o outro, tom ar consciência do que estava realm ente acontecendo no Brasil. Rapidam ente percebem os que não estávam os sim plesmente diante de um golpe, que o novo regime tinha um alcance muito mais profundo na vida brasileira do que outras quarteladas, e que, p ortanto, precisávam os com preender o que mais tarde Fernando H enrique cham aria de novo m odelo político. N ós com eçam os en tão a trab alh ar dentro dessa perspectiva, cada um com seu estilo próprio. Sem dúvida Fernando Henrique era, nesse m om ento, o grande líder do Cebrap, fo rjand o novas idéias e desenvolvendo-as. Às vezes eu lhe recom endava que ap ro ­ fundasse m ais um novo co n ceito , com o aquele de “ anéis b u ro crá tico s” , que, em ­ bora m uito fru tífero, me parecia vago. M as ele me respondia que o m ais im portan ­ te então era jogar idéias no debate e ver o que acontecia com elas. De meu lado, preferia ficar parafusando com mais calm a meus p roblem as, m inhas obsessões. N a periferia do C ebrap, Fernand o N ovais buscava resum ir todos os seus e os nossos conhecim entos de história para desenhar o “ sistem a co lo n ia l” , o grande livro que ele acabou publicando. Além disso, no Cebrap se reuniam econom istas de São Paulo, da U nicam p, do R io , para discutir numa visão mais geral o que estava ocorrend o na econom ia brasileira. Assim, ficávam os m uito antenados com as enorm es tra n s­ form ações que o golpe m ilitar estava produzindo, percebendo ainda q u anto o pen­ sam ento de esquerda dom inante estava fora da realidade. Para nós estava a b so lu ­ tam ente cla ro , por exem plo, que o m ovim ento guerrilheiro ia “ dar com os burros n ’ág u a” — recom endávam os a nossos alunos que n ão entrassem nessa aventura m aluca, em bora nunca lhes faltand o nas horas decisivas. F.ra uma loucura com p le­ ta im aginar que a revolução viria do cam p o , quando este estava passando por um processo de tran sform ação capitalista.

Na orelha de seu livro O rigens da d ialética do trab alh o, Lebrun escre­ veu o seguinte: “É pena que o livro de Jo sé Arthur Giannotti, pronto há mais de um ano, somente seja entregue ao leitor brasileiro depois da publicação da última obra de Altbusser sobre Marx; é pena além do mais que o público francês só venha a conhecê-lo ainda mais tarde. De fato, é uma pena; pois se me pedirem para citar, dentre os livros recen­ temente dedicados a Marx, os dois que me parecem ao mesmo tempo mais inovadores e mais rigorosos, responderia: Altbusser e Giannotti”. Tendo em vista tal afirmação, como você avalia hoje essa sua obra? Que balanço você faria da polêm ica contra Altbusser, tom ada célebre em seu artigo “Contra Altbusser”? Em prim eiro lugar, há um problem a: o trab alh o intelectual brasileiro tende a ser m ovido pelas “grandes vagas” , com o dizia Cruz C o sta , que vinham , e que c o n ti­

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nuavam a vir, de fo ra. O que a gente tentava fazer, aqui em São Paulo — de m anei­ ra talvez um pouco cega, já que sem qualquer co n ta to com o R io de Ja n e iro ou o R io G rande do Sul, onde havia trab alh o intelectual de qualidade — , era realizar uma leitura rigorosa da obra de M a rx . De repente, porém , veio a vaga althusseriana e todo o m undo com eçou a pensar nos novos term os. E isso nos m ostrou com o era difícil o d iálogo no B rasil, pois nossos interlocutores eram de certo m odo ro u b a ­ dos pelas correntes que vinham de fora. M in h a intenção era progredir na investi­ gação que, form ulada em term os kan tianos, seria a seguinte: com o era possível uma dialética m arxista? A com panhava Fernando N ovais funcionando m uito bem e co m ­ pondo seu sistem a, Fernando H enrique jogand o com certos con ceitos e tendo su­ cesso na com preensão do que estava acontecen d o de novo, mas ao m esm o tem po percebia que faltava a todo esse esforço um a épura racion al. C o m o encontrá-la? De qualquer m odo, porém , o meu livro não teve, na ép o ca, nenhum a pene­ traçã o m ais profunda, ele foi engolido pelos eventos. Antes de 6 8 , até que se estava conseguind o d eitar algum as raízes na A m érica L atin a — lem bro-m e de m anter co n ta to regular com um grupo de Buenos Aires e o u tro do M é x ic o , com os quais dialogava. M as tudo isso foi por água ab aixo depois de 6 8 . Recentem ente, na França, uma exilada argentina que por lá ficou me disse: “ N os anos 6 0 você era um autor que precisava ser lid o ” . Lem brei-m e de que, nessa época, saíra um núm ero da re­ vista Pasado y Presente, do grupo da Universidade de C ó rd o b a , envolta numa fita em que se lia: “ M a rx , Sartre e G ia n n o tti” [risos]. Im aginem m inha surpresa, achei en graçad o, pois sem pre tive consciên cia de meu tam an h o, mas isso indica que o debate estava em curso. M as esse d iálogo se quebrou. M eu livro chegou a ser pu­ blicado na Espanha e na F ran ça, às vezes até hoje en con tro pessoas que se lem bram dele, nada m ais. D escobri que não ad ianta publicar livro na Europa se não se p ar­ ticip a intensam ente do debate que está havendo por lá. Se você vem de um país periférico, ou você se muda para lá e en tra no debate deles, ou precisa escrever um livro tão m onum ental que não possa passar despercebido. M inha op çã o , ao c o n ­ trário , foi con cen trar todo meu esforço no sentido de form ar um pú blico brasileiro no qual se possa ouvir os ecos daquilo que se faz. £ você sente hoje a form ação desse público? O que mudou da década

de 1960 para cá? N ão mudou nada. Sempre que vem uma grande vaga da E uropa ou dos Estados U nidos, som os levados a desconhecer o trab alh o de form iga que está sendo feito por aqui. Basta acom panhar as evoluções da última m oda, a escuderia haberm asiana, que trab alh a com o se isso aqui fosse terra arrasad a.

Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Com o você vê as re­ lações entre a filosofia e a cultura brasileira? Ju stam en te pelo que acabei de falar, não é possível. A filosofia brasileira sign ifica­ ria esse d ebate sendo feito: lan ço um livro, o ou tro o lê, o digere e rebate, e assim por diante. C om o nós con tinu am os na situ ação de ser interrom pidos pelas ondas cultu rais, a filosofia con tin u a sendo m ero epifenôm eno do pensam ento brasileiro. É bem verdade que se form ou hoje uma massa razoável de gente trab alh an d o com

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lllo so fla, mas não p ercebo a realização desse debate. P ercebo, ao co n trá rio , o enquistam ento do grupo do R io de Ja n e iro , o enqu istam ento do grupo de Porto A le­ gre, o definham ento do grupo de M inas G erais e o ensim esm am ento do grupo USPU nicam p. O que fazem os é trein ar, além de p rofessores, alguns intelectuais que, treinados em filosofia, passarão a ocupar um lugar no espaço público. O u seja, não é a própria filosofia que ocupa o espaço p ú blico, m as pessoas que, ao discutir as­ suntos diversos, os tem peram no m olho da filosofia e, assim , conseguem ter uma determ inada audiência.

Pessoas como... C om o M arilena C haui, Paulo A rantes, Bento Prado Jr . Eles são intelectuais que têm im portância não pela filosofia que fazem , mas por participar de um certo debate cu ltu ral e p o lítico . O cu rio so é que, qu an d o a gente ocu pa um lugar no esp aço pú blico, acab a atingindo ou tros públicos mais restritos. O fato , por exem p lo, de Trabalho e reflexão ter tido duas edições e uma venda de seis mil exem plares é algo extrao rd in ário . E tenh o certeza de que ele não teve esse sucesso por causa de suas teses filo sóficas, mas pelo fato de eu ser uma figura pública, aparecer no jo rn al. Pessoas que vêem no jornal com pram o livro, dão uma olhada nele e o guardam na estante. Isso não sedim enta n ad a, apenas fustiga curiosos.

Qual a avaliação que você faz do livro Um d ep artam ento francês de ultram ar, de Paulo Eduardo Arantes, particularmente no que diz res­

peito à caracterização dos seus escritos? C reio que Paulo, inegavelm ente um grande intelectual, possui uma con cep ção fo r­ mal e dedutivista do processo capitalista, e a sua intenção é me encaixar dentro desse esquem a. M inha função é gritar e dizer: “N ã o caibo no seu esqu em a” . De um m odo geral, o livro é m uito inteligente, m uito bem escrito , mas não é, nem pretende ser, um livro sobre história da filosofia no B rasil, já que não fala nada sobre os ou tros cen tro s filo sóficos. N o en tan to , na tentativa de nos tran sform ar em reflexos do m ovim ento do cap ital, retira de nossos texto s suas am bigüidades, o esforço de c a ­ m inhar nessa ou naquela d ireção, dialogando com a fenom enologia, com o existen­ cialism o, com a filosofia an a lítica , enfim a própria estru tu ração de um pensam en­ to que se quer ob ra. N isso, a despeito de n ão haver d iálogo, tam bém é preciso c o n ­ siderar o inim igo o cu lto , a produção do ISE B , ou os filósofos do existen cialism o teuto-gaú cho etc.

Ao falar desse diálogo surdo, você está pensando também no IBF (Ins­ tituto Brasileiro de Filosofia)? Com o você vê as diferenças entre a Fa­ culdade de Filosofia da USP e o IBF? N ã o , não estou pensando no IB F. E m bora a op osição entre direita e esquerda fosse m uito polarizad a, havia m uita conivência (de m em bros da classe dom inante?) en ­ tre os grupos mais jovens; os ressentim entos ainda não estavam solid ificad os. D a ­ das as nossas raízes francesas, nós desenvolvem os a tática de não nos envolver di­ retam ente em debates com as coisas brasileiras: seríam os d iferentes, faríam os o u ­ tro tipo de filo so fia, e esse o u tro tipo iria se esp alhand o co m o m ancha de óleo.

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P ortan to, passam os sim plesm ente a ignorar publicam ente o que eles faziam — não tan to por desprezo, mas por essa diferença de estilo, precisam ente para m arcar e consolid ar nosso m odo de ser. De vez em quando chegávam os a “ trocar uns tap as” , mas isso não produzia m aiores conseqüências em nenhum dos lados. Aliás, faland o de tapas, me lem bro de um episódio curioso. Q uand o ainda era estudante, uma vez, ao assistir a uma conferên cia de H aro ld o Barbuy, na B ib lio te­ ca M u nicip al, sobre H egel, na qual o tem a do sob erano (Fiirst) era tratad o com o se esse fosse o Fiihrer; a certa altu ra, gritei lá do b alcão: “ E m e n tira !” . A o sair um policial me pegou pelo braço e me levou até a saída, mas meus colegas, que esta­ vam na platéia, foram bloqueados por uma turm a da Faculdade de D ireito e alguns socos foram tro cad o s. N o dia seguinte saía em m anch ete: “T a p a s por cau sa de H egel” [risos]. O pobre do Ennes [Silveira M ello], ainda estudante secundário, teve seu prim eiro co n ta to com a filosofia m unicipal, com o dizia Cruz C osta. A gente tinha o gosto de dem olir alguns m itos. Além do B arbuy, me confrontei com Euríolo C an abrav a. Participei do III C ongresso B rasileiro de Filoso fia, do IB F. Q u an d o dei com o te x to do C an abrav a, uma tentativa de co n trap o r form alm ente à n oção de conseqüência uma ou tra, aquela de seqüência, percebi que era uma loucura to tal. O texto falava num processo de “ ta rsk iz a çã o ” . C onsultei o livro de T arsk i e logo m atei a charad a: seu sistem a de axiom as duplicava a d efinição axio m á tica de c o n ­ seqüência, em pregando variáveis diferentes. Achei tão inverossím il que consultei G ranger, que estava por aqui. N a m anhã do dia seguinte, fom os os dois para as “ A rcad as” . D epois da con ferên cia, pedi um quadro negro a M iguel R eale, que di­ rigia o congresso e a sessão, e com ecei a escrever o sistem a de T arsk i e o sistem a correspond ente de C an abrav a, indicando a d uplicação e apenas me contentand o em dizer em voz alta o que escrevia. C an abrav a não se agüentou e exclam ou : “ Está me acusando de p lá g io ?” — “ E sto u ” — e fui me sen tar, pedindo que o sistem a de T arsk i fosse reproduzido nos anais. M a rio C asan o va, que era professor na F acu l­ dade e trabalh ava no Estadão, interessou-se pelo assunto; fom os para a redação e pu blicam os, no dia seguinte, os dois “ sistem as” . Foi a única vez, creio eu, que um sistem a ax io m ático foi publicado num jo rn a l. Só sei que C an abrav a abandonou a lógica para se dedicar à estética.

Tendo em vista a conhecida polêm ica existente entre vocês, o que você teria a dizer sobre a obra e a trajetória intelectual de Ruy Fausto ? Em prim eiro lugar, quero desde logo salientar que Ruy Fausto foi meu aluno. P or­ tan to , se um de nós teve mais oportunidades de beber da água do ou tro , foi ele e não eu. Em segundo lugar, lem braria que, dispondo nós dois de instrum entos inte­ lectuais semelhantes e interesses próxim os, era natural que houvesse certa confluência em nossos resultados. M as exam in and o de perto os textos de Ruy Fausto, co n sta ­ to um abism o entre nós. T u d o se passaria com o se enqu anto ele pretende ex a m i­ nar a questão da identidade no plano da lógica funcional de prim eiro grau, eu pre­ ciso co lo ca r a questão no segundo grau. N o caso da co n trad ição , ele tom a a co n ­ trad ição real com o algo existen te, porque isso é admissível para a lógica d ialética, en qu an to não vejo com o possam existir duas lógicas, a d ialética e aquela da iden­ tidade. M as em outra o casião vou acertar as co n tas com ele.

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Em seu livro A universidade em ritm o de b arbárie, você afirm a: “Ape­ sar de todas as tendências que a emperram, a universidade ainda é o local do novo conhecimento, ou simplesmente do conhecimento, pois o garim po do saber antigo não valeria uma hora de pena se não apon ­ tasse para o diagnóstico das vicissitudes do presente e para os lances do futuro. Isto posto, ela é o espaço do diálogo intelectual, d o debate, da reflexão, da troca de idéias e de experiências, da divulgação e da conquista de um público interessado tanto no saber com o saber, quanto naquele que resulte em tecnologias capazes de m elhorar as condições de vida de cada ser hum ano”. Para você, a realização dessas tarefas depende de dois fatores: o respeito às nortnas de bom funcionamento desses processos e indivíduos engajados. Com isso, você define a idéia de um p oder acadêm ico que parece central na articulação de sua críti­ ca à universidade. Pensando nisso, como você avalia a universidade hoje e qual é, a seu ver, o futuro dessa instituição? Prim eiro, gostaria de me referir a um m al-entendido com relação à crítica que fiz à universidade. Eu sem pre disse que ela estava b u rocratizad a, sindicalizada, o que, p o rtan to , estava em perrando o diálogo acad êm ico. Eu nunca disse que a ciência e a tecnologia d eixariam de ser feitas na universidade — tanto é que 8 0 % da pesqui­ sa científica brasileira atual é feita nela. Segundo, não acred ito ser possível fazer pesquisa sem um corp o de intelectuais que con trole internam ente o flu xo de idéias e o debater universitário. P ortan to, em bora eu ache que a universidade privada seja essencial para o desenvolvim ento do ensino e da pesquisa no Brasil atualm ente, não creio que ela possa ser inteiram ente livre na sua investigação, pela sim ples razão de que não há dono de universidade ou fundação que vá delegar a esse corp o de inte­ lectuais o con trole dos trab alh os. T iro o chapéu para todo o tra b a lh o que a univer­ sidade privada está fazendo h oje, mas é necessário privilegiar a pesquisa na univer­ sidade p ú blica, desde que, ob viam ente, esta tam bém se renove. M as para isso é preciso d eixar de lado certas bobagens, com o achar que a universidade pública não pode e nem deve, em nenhum a hipótese, co la b o ra r com o cap ital. Ela tem de estar aberta às necessidades do país, d ialogar com a dem anda que vem de todos os luga­ res e, ao m esm o tem po, desenvolver uma crítica desse m odelo de sociedade em que estam os em barcando. Assum indo essa p osição, eu me indisponho com a universi­ dade privada na medida em que afirm o que ela dificilm ente vai fazer pesquisa no sentido am plo da palavra, me indisponho com a universidade con fession al na m e­ dida em que não acred ito num a universidade em que um cardeal possa interferir diretam ente no curso de filo sofia, e me indisponho ainda com o M inistério da Edu­ ca çã o , q uand o não dá a devida aten ção a esse potencial inventivo da universidade pública. A gora, com os novos fundos vindo das grandes em presas, tudo indica que haverá m uito mais recursos para a pesquisa, em bora não saiba ainda qual será o ap oio à pesquisa b ásica, fonte de idéias e fo rm ad ora de pesquisadores. V ejo , p o rtan to , uma situ ação m arcada pela tran sição, na qual o capitalism o selvagem impera nas universidades privadas, e a luta bu ro crática, nas universida­ des públicas. C om o d esatar esse nó, sinceram ente não o sei, pois só uma prática política repu blicana, isto é, de incentivo a instituições públicas e doce con trole das

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privadas, poderá ir descobrind o novas soluções. Até agora fiz o que pude, mas a tarefa é da nova geração. N o m om ento de minha velhice, prefiro me recolher e cuidar de meu jard im , finalizar o que tenho para escrever.

Que conceito(s) de sua reflexão você destacaria com o mais representativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que você nos contasse com o ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e com o o(s) vê hoje. N ão prego nenhum a posição filo sófica. Sou apenas um reator: eu reajo às m inhas paixões. Eu me apaixonei pela fenom enologia e tentei, por m eio do estudo de intencionalidades noem áticas, entender melhor o que era a Lebenswelt (o mundo da vida) de H usserl. Isso me predispôs a aten tar para os nexos do cap ital na vida cotid ian a. D epois me ap aixo nei por M a rx e quis ver com o essas intencionalidades podem ser con trad itó rias e ocu ltar ao m esm o tem po as atividades visadas individualm ente. Term inei me ap aixo n an d o por W ittgenstein na medida em que ele estoura a noção de p ro p osição e am plia a própria idéia de expressão. E assim por diante. A firm ar que possuo p o sição filo só fica seria falsear a perspectiva co rreta , pois o filó sofo brasileiro é sim plesm ente alguém que luta co n tra vagas, é um “ an tiv ag a” ou um “ an tiv o g a” . Nesse sentido, o traçad o da minha vida é aquele de um professor, que vê na boa fo rm ação de seus alunos uma form a de incentivar a resistência a pensa­ m entos que não têm raízes em nossa exp eriên cia cotid ian a. D aí essa m istura de investigação própria e de polêm ica. Estou sem pre pensando por m eio de alguém co n tra alguém .

Você abre o livro A p resentação do m undo: consid erações sobre o pen­ sam ento de W ittgenstein, de 1995, com o seguinte pensam ento: “Seria m al com preendido se não indicasse com o este novo texto se vincula a outros anteriores, notadamente T ra b a lh o e reflexão. Por certo tenta ser uma monografia sobre as aventuras filosóficas de Wittgenstein, mas a escolha dos temas e o próprio movimento do trabalho somente se justi­ ficam se o leitor tiver em mente que essa escavação de uma obra alheia dá continuidade à minha própria investigação, por mais modesta que pretenda ser”. Quais as rupturas e continuidades entre T ra b a lh o e re­ flexão, de 1983, e o livro de 1995? U m a vez, Bento me disse que sou um obsessivo que só pensa nas m esm as coisas. Isso é verdade. Cada vez m ais me convenço de que tenho um ou dois problem as em to rn o dos quais venho girando ao longo de m inha tra jetó ria . A sensação que tive ao term inar, recentem ente, meu novo livro sobre M a rx , cam inhou m uito nes­ sa d ireção: cada capítu lo é um livro no qual tento fechar uma idéia, mas acab o ten­ do de estou rar novam ente a idéia e recom eçar no capítu lo seguinte; e, quando fui escrever a con clu são , percebi que a con clu são precisava ser o livro to d o , e me vi sem solução. T en h o ganas de com eçar tudo de novo. M as o que me interessava no m arxism o? Sem pre me interessei m ais por M a rx do que pelo m arxism o. Andei atrás da idéia de com o é possível encontrar parâm etros de conduta que sejam ao m esm o tem po identitários e con trad itó rio s. Isso im plica pensar, de uma m aneira m uito cu id ad osa, a d istinção feita por M a r x , en passant,

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entre a história contem porânea das categorias, seu d esdobram ento form al, e a his­ tória do vir-a-ser: de um sistem a. De um lado, com o as categorias se repõem através de com p ortam en tos, particularm ente o processo de tra b a lh o , cu jos parâm etros são reafirmados e adaptados no fim do ciclo produtivo; de outro, com o a história vai cons­ truindo situações e instituições determ inadas — o dinheiro, o trab alh o livre etc. — que passam a ter novo sentido quando se integram num novo sistem a. E xiste nessa passagem uma invenção, uma liberdade, que não está configurada no m ero d eco r­ rer do tem po. M as isto abre uma cesura entre a regra e o processo efetivo de seguila, pois só assim a repetição da regra pode desenvolver sentidos que, se são roubados para que ela possa ser reposta, deixam rastro cu jo significado vai ser aproveitado num novo sistem a norm ativo. Isto não era possível com preender nem com os ins­ trum entos hegelianos, nem com os instrum entos m eram ente form ais. N ão foi à toa que passei quase dois anos estudando Skinner na tentativa de exam in ar co m o os com p ortam en tos se generalizam pela m ediação de estím ulos especiais, até chegar à conclusão de que a solução por ele proposta simplesmente é uma petição de princípio. M as aqui está a fonte que me permitiu entender o dinheiro com o um hieróglifo, no sentido que M a rx lhe em presta. N a mesma linha, precisava com preender com o as expressões das trocas se generalizam , estabelecem um cam po em que certas ações se tornam corretas e outras falsas do ponto de vista do sistem a econ ôm ico , d eixan ­ do sempre à margem elementos que fogem dele. Contradiriam tais elementos as iden­ tificações gerais do sistem a, isto é, suas leis, ou se poriam apenas com o seus m o ­ m entos antagônicos? N o prim eiro caso, haveria no próprio sistem a uma força in­ terna que o levaria à im plosão e à sua superação; no segundo caso , o futuro não estaria inscrito no passado, pois os elem entos antagôn icos não estariam vincula­ dos a uma força interna única responsável pela superação. N o esforço de enfrentar esses d esafios, W ittgenstein foi de toda valia. N ão visei sim plesm ente co lo ca r M a rx na nova m oda. V isto que m inha questão é sem ikantiana — co m o é possível enten ­ der, do ponto de vista das ações con cretas, sem o espírito ab so lu to, sentidos que são con trad itó rio s e que levam à reposição de certas identidades, em bora pondo outras que fogem desse processo de to talização — , eu precisava am pliar a n oção de expressão. O ra , se, em Trabalho e reflexão, eu já tinha elab orad o a n oção de esquem as op eratórios, W ittgenstein me perm itiu jo g ar essa n oção para o plano da linguagem , da expressão, e entender a relação de tro ca com o uma form a de pensa­ m ento, um juízo prático se exprim ind o no interm ediário dinheiro.

Você poderia então nos falar um pouco sobre o que era o conceito de “esquem a operatório” tio quadro de T ra b a lh o c reflexão? O que me interessava no esquem a op eratório era m ostrar que a reiteração de um com p ortam en to im plica uma relação de tran sform ação dos o b jeto s que estão sen­ do m anipulados e uma tran sform ação da relação de alteridade. Se você com eça a jo gar uma bola na parede, o fato de jogar a bola na parede im plica não pensar mais a bola e a parede co m o dois entes, e sim co m o um processo no qual certas d eterm i­ nações da bola e da parede se integram num esquem a de op eração . N o caso da relação de trab alh o , o ente se põe com o um produto, cu ja rein trod ução no sistema — já que o o b je to se transform a em m eio de produção — im plica neutralização da

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interferência no outro. Se, quando o cam ponês produz o trigo, uma parte desse trigo não for preservada para a próxim a colh eita, acab ou a produ ção de trigo. E preciso co lo ca r no nível da própria relação de op eração tan to as alterações nas d eterm ina­ ções dos o b jeto s m obilizados com o as alterações do ou tro , o qual precisa reconhe­ cer uma certa regra de propriedade — seja ela de p arentesco ou , com o n o cap italis­ m o, a regra de propriedade vigente no m ercado. A reiteração de um processo social, portanto, faz com que ele não seja tão-só processo sim plesm ente orientado para um fim — con form e a trad ição aristotélica e w eberiana — , mas um processo em cu jo interior se integra a finalidade de toda um a form a de sociabilidade. F. a reflexão, nesse sentido, se to rn a , ela m esm a, interna a esse processo — con clu são que não im plica cair na ilusão hegeliana de que esse m ovim ento de con stru ção e destruição das entidades pudesse chegar a uma espiritualização de todas elas. F. por isso a idéia da ilusão necessária se tornou central na investigação em que estou m etido atu al­ m ente, pois uma identidade co m o a de valor só se fecha na base de uma totalizaçã o im aginária, a despeito de constitu ir-se num êm bolo social. O ra , é nesse co n tex to que se torna fundam ental entender com o se podem se­ guir regras co n trad itó rias, e co m o , no ato de segui-las, os sentidos visados são tritu ­ rados. N ão me interessa apenas saber com o a ação tem conseqüências involuntárias, mas com o essas conseqüências são de certo m odo reintegradas num sistem a sincrônico de m anu tenção de relações sociais de produ ção, que nega a m aneira pela qual as pessoas se colocam nelas. Desse ponto de vista, há um ganho muito grande quando se passa de uma análise m eram ente lógica das relações de com p ortam en to para as relações efetivas do seguir a regra, levando-se em conta tanto o que se faz com o a maneira pela qual se criam , ao lado, processos de ordenação e de guarda das regras. Podem os en con trar ao m esm o tem po, no processo mais elem entar do m etabolism o do hom em com a natureza, relações de tran sform ação e relações de dever-ser: o que é e o que deve ser se am algam am em bora sejas aspectos diferentes do m esm o m o­ vim ento. A relação social, p o rtan to , deve ser pensada não co m o uma relação entre “eu ” e “tu ” , mas co m o uma relação entre, de um lado, “eu ” , “ tu ” , e, de o u tro , in­ term ediário sim bólico, o vigilante da norm a. Isto é algo que sem pre me fascinou.

Em T ra b a lh o e reflexão, você escreve: ”as propriedades de uma coisa não nascem propriamente de sua relação com outra, mas, com o elucida Marx, nela apenas se exercem (sich bctàtigen). De nossa parte, procu­ ramos mostrar que esse exercício é mais radical do que parece à pri­ meira vista, sendo responsável pelo m apeam ento das coisas, por um logos prático em que as coisas encontram os princípios de suas indivi­ duações”. O que é o conceito de ‘lo g o s prático” e com o se vincula ele ao novo quadro teórico de A presentação do m undo? A história dessa n oção de logos prático já foi indicada. Ela com eçou quando me encantei pela n o çã o de referências noem áticas no últim o Husserl — co m o , num a mesa posta, a faca se reporta ao garfo, o garfo se reporta à colher, e assim por diante, para form ar um sistem a cham ad o couvert. Se você vai a um restaurante, não pensa esp ecificam ente no garfo ou na colher, mas no sistem a do couvert — e, cla ro , na conta que vai pagar depois pelo couvert [risos]. O que me interessava era m ostrar

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com o essas relações são m antidas no sistem a de produ ção, co m o o seu equ ilíbrio é reposto. N o caso do restaurante, tudo bem : o sistem a é form ad o, você vai lá, paga por ele e, quando voltar, en co n tra-o novam ente da m esm a form a. M as e no caso do sistem a de produção? Q uem paga a conta? O ra , essa con ta tem de ser paga pe­ las próprias pessoas que colocam o g a rfo , a colher e a faca. Eu precisava, então — e por isso W ittgenstein foi tão im portante — , d escobrir co m o se podem articular as forças produtivas num sistem a de expressão. Se alguém produz arcos e flechas, por exem plo, e tem m uito mais arcos do que flechas, haverá arcos que não irão fun­ cion ar, pois é preciso haver uma p rop orção entre um arco e tantas flechas para que am bos possam cum prir suas funções — flechar um pássaro, flechar uma pessoa... N o caso do cap italism o, essa a rticu lação é feita graças ao fato de que cada um desses o b jeto s se exprim e sob a form a de valor: a articu lação do valor é uma expressão dessa articu lação das forças produtivas. Isso é algo que eu não conseguia entender antes de com preender com o determ inados o b jeto s são tran sform ad os em signos — co m o se pode pegar uma flecha e co lo cá -la numa encruzilhada, escreven­ do São Paulo na sua ponta, de tal m odo que eu possa com portar-m e de agora em diante de m aneira correta ou incorreta conform e eu queira ir ou não para São Pau­ lo. Enfim , con stru o uma bipolaridade, um pensam ento a partir do ato de exp o si­ çã o da flecha. M as é preciso n otar que transferi para o nível da expressão um c o ­ nhecim ento m uito mais elem entar: o con h ecim ento de que o sentido da flecha vai das plum as para a p onta da seta, e não o co n trá rio . O ra , a n oção m arxian a da com p osição orgânica do cap ital, que diz que as forças produtivas são expressas em term os de valor, refere-se, a meu ver, a esse processo pelo qual os o b jeto s passam a ser significativos, uns em relação aos o u tro s. N o nível da expressão cap italista: eles são avaliados co m o m om entos do tra b a lh o geral da sociedade para co n tin u a r a produzir. F. essa é uma questão que a lógica hegeliana não consegue exp licar, pois parte do pressuposto de que a expressividade se dá no nível do co n ceito , da rela­ çã o silogística da regra com seu caso. Desse m odo, é a atividade inscrita no silogis­ m o, com o expressão do A bsolu to, que resolve a articu lação da flecha e do arco. O ra, para poder pensar uma dialética m aterialista é preciso inverter esse m ovim ento de con stitu ição , exam in ar co m o a p ro p orção tecnológica se expressa em term os de valor, desde que cada fator de produção seja pensado com o m om en to da produ­ ção em geral. Esta foi a prim eira tarefa que deveria enfrentar. A segunda, exp licar com o o desenvolvim ento tecnológ ico altera esse proces­ so de medida e expressão das articu lações das forças produtivas em term os de va­ lor. Sem uma am p liação do con ceito de exp ressão, acab aria caindo na besteira de im aginar que existe, de um lado, uma lógica form al e, de ou tro , uma lógica da c o n ­ tradição, e de achar que esta última consiste em ver os objetos com o ao mesmo tempo iguais e con trad itó rio s. O ra , isso é uma piada, a piada intrínseca ao m arxism o vul­ gar, que confundiu o problem a com sua solução. E sta, para quem pensa nos seus term os, consiste em antep or à lógica form al uma lógica da co n tra d içã o e dizer: “ pronto, com o há duas lógicas, nós, os dialéticos, pensam os diferentem ente” . A con­ tece que é preciso legitim ar essa duplicidade. M as para mim existem sistem as fo r­ mais e lóg ica, o estudo de várias gram áticas. A despeito de todas as conqu istas so­ ciais que pôde trazer, o com unism o não foi apenas uma ilusão que se entranhou

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no século X X , foi tam bém uma m aneira de as pessoas se em burrecerem , óp io dos intelectuais, com o dizia R aym ond A ron, a perda da capacidade de distinguir p ro ­ blem as por m eio de um discurso esclerosad o. A firm ar a existên cia da con trad ição real não equivale a afirm ar a existên cia da luta e dos antagonism os, im plica ainda tran sform ar o real num logos, numa form a de expressão. E nqu anto isso não for explicado de um ponto de vista distante da especulação hegeliana sobre o A bsolu­ to , a crítica de M a rx à econom ia política e ao capital deixa de ter sentido, pois toda ela se ancora na idéia de que capital e trab alh o se contradizem .

Em A presentação do m undo, você atribui grande importância à distin­ ção wittgensteiniana entre “modos de representação” e “meios de apre­ sentação”. No que consiste esse par conceituai e qual a importância dele para a sua reflexão? C o m o disse, quando os o b jeto s se tran sform am em signos, o nível m ais elem entar das relações de vigilância da regra já está presente, necessitando apenas m udar o asp ecto, para exp o r seu caráter de dever ser. C onsid ero uma bobagem essa idéia de que existe todo um sistem a de com p ortam en tos e, depois, um déficit norm ativo. D éficit norm ativo em relação a quê? Se A se relaciona socialm ente com B, há uma regra e um terceiro cu id and o dessa regra. O d éficit n orm ativo aparece já aí, na própria relação . N esse ponto M a rx é genial, pois ele diz que, se tiverm os uma rela­ ção de tro ca entre A e B e as pessoas passarem a op erar efetivam ente por m eio do d inheiro, elas se reconhecem com o proprietários de algo que deve circu lar. Se vem um desgraçado, pega o dinheiro e o leva para casa, pronto: acabou-se esse tipo de relação de tro ca. O nde está o d éficit norm ativo? Está aí m esm o. O u seja, não exis­ te diferença essencial entre a relação e o con trole da norm a. N ão se precisa apelar para E stado, Deus ou A bsoluto para que os hom ens regulem suas n orm as, as o u ­ tras instituições vêm depois. T o d a norm a pú blica, pela sua sim ples reiteração , im ­ plica instituições que são guardiãs da n orm a, de sorte que é no nível da própria sociedade civil que se dá esse entranham en to entre efetividade e guarda da norm a. C om preender isso é fundam ental para com preender as outras instituições n orm a­ tivas, que se vão m ultiplicando a partir — vou ser bem m arxista aqui — da infraestrutura. B asta ler o segundo cap ítu lo d’O capital: as pessoas que tro cam não são apenas tro cad o ras, atuam co m o agentes que respeitam a relação de propriedade e assim por diante. A norm atividade está no nível m ais elem entar das relações sociais. P o rtan to , é preciso p arar com essa brincad eira de Faktizität und Geltung*, cu ja op osição se baseia numa análise m uito estreita do que significa a p roposição.

Mas qual a relação disso com a distinção entre “m odos de representa­ çã o ” e “meios de apresentação”? Para fazer com que este isqueiro chegue até um cig arro deste m aço, ten ho que se­ guir certas regras: vou pelo cam inho mais cu rto, não vou jogar o isqueiro lá do outro

* “ Facticidade e validade” , título do livro de Jürgen H aberm as, de 1 992, traduzido no Bra­ sil com o título

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Direito e democracia: entre facticidade e validade [N. dos Orgs.].

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lado para depois pegá-lo e trazê-lo ao cigarro. Isto é, há uma relação entre o isqueiro e o cigarro que pressupõe uma série de coisas: por exem p lo, que o isqueiro tenha uma certa identidade, que não seja feito de sorvete, que funcione etc. Se ele fosse de cera e derretesse quando aceso , não poderia sequer op erar dentro daquela rela­ ç ã o , seria impossível levá-lo ao cigarro pelo cam inho m ais cu rto. Em outras pala­ vras: há aí dois tipos de necessidade diferentes entre si. A o afigurar-m e o cam inho m ais cu rto entre o isqueiro e o cigarro articu lo um m odo de representação que diz respeito a uma faticidade possível. M as esta só vem a ser segundo suas regras, se forem pressupostas outras existên cias fixa s, outras necessidades para a efetuação desse jo go de linguagem , cu ja expressão diz respeito aos m eios pelos quais os o b je ­ tos e os fatos se apresentam com o objetos representados pelas regras do jogo. E genial esse duplo sistem a de necessidade, que retom a a d istinção m arxista entre história categorial e história do vir-a-ser. Desse m odo, há uma inter-relação entre Faktizität e Geltung operando no nível das próprias regras conform e sua m udança de aspecto.

Apesar da inspiração wittgensteiniana de A presentação do mundo, você afirm a neste livro que “é preciso tomar enormes distâncias do traba­ lho realizado p or Wittgenstein, e tentar mostrar que os erros dos m eta­ físicos, em que necessariamente cai o pensamento ao longo de seu per­ curso, podem servir de base para form as alienadas de sociabilidade”. Com o é possível se servir de Wittgenstein ao mesmo tempo em que o problem a que você se p õe exige uma tom ada de distância em relação a ele num ponto tão decisivo? W ittgenstein tem uma teoria m uito p articu lar da con trad ição . De acord o com ela, se digo “ isto é b elo ” c você diz “ isto é fe io ” , nós estam os entrand o em con trad ição — o que, para a lógica form al, não é o caso. C ab e então tentar entender o que esse filósofo está querendo dizer com “ co n tra d içã o ” , e o m esm o acontece com M a rx . M as quando o cálcu lo das proposições form aliza a co n trad ição , os problem as es­ senciais de seu sentido foram expu rgad os, pois as proposições foram tom adas uni­ cam ente sob o aspecto de com o podem se vincular por seus valores de verdade. Isso não explica com o a co n trad ição é usada. A questão é saber com o é possível operar com con ceito s, ou com representações, que aparecem co m o identidades, e, no ope­ rar, os objetivos vão sendo inteiram ente subvertidos — subvertidos não por um Deus que vem de fora, mas por um processo pelo qual ocorre uma espécie de alteração dos próprios o b jeto s. E todos nós som os enredados pelo m esm o processo. O u seja, o problem a da validade da regra im plica a in stitu cion alização do guardar a regra, o que por sua vez pode subverter o sentido da regra tal com o é apenas visada.

Em um artigo de 1990, “A sociabilidade travada”, você afirm a: “Creio que diante da encruzilhada entre socialism o e barbárie, os homens es­ colheram a barbárie, pois até mesmo aqueles que lutaram bravamente pelo socialism o e por um novo homem viram seus esforços se perderem pela desm edida da sociedade civil que terminaram criando. E se hoje os novos líderes tratam de introduzir relações mercantis em suas eco­ nomias, convém ficar à espera da form a de m ercado que terminarão

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por implementar. No entanto, se a contradição entre capital e traba­ lho se esfuma precisamente para permitir tremendos desequilíbrios da distribuição da riqueza social, ela deixa todos nós, assalariados ou não, diante da questão crucial de saber o que fazer com o próprio trabalho”. Esse travamento da sociabilidade persiste? Em que sentido podem os falar de uma “escolha” da barbárie pelos homens? N ós não escolhem os a barbárie; nós estam os metidos nela. O problem a é saber com o sair desse buraco. O que tento descrever é o fato de estarm os num m undo em que a con stru ção dos signos pelos quais pautam os nossa sociabilidade rouba os senti­ dos elem entares pelos quais com eçam os a agir. C o m o , além disso, esses sentidos estão sendo com pletam ente subvertidos por um capitalism o que, além de estabele­ cer as regras, aprendeu a guardá-las, e guardá-las ad hoc conform e seus próprios interesses, tam bém estam os m etidos na barbárie no sentido bom da palavra — isto é, não no sentido de um estado prim itivo sem regras, mas no de uma utilização da regra de acord o com determ inados interesses. Esses interesses não são apenas indi­ viduais ou em presariais; são interesses que dizem respeito ao sistema com o um todo, que afetam nossas próprias individualidades sociais. M eu problem a não é, pois, im aginar com o sair desse m undo fetichizad o, cu jo fetiche não é apenas aquele da m ercad oria, mas sobretud o do capital com o finalidade em si m esm o. C ab e-m e, em prim eiro lugar, ap ontar com o se articula um sistem a produtivo cu ja racionalidade é a irrazão de um crescim ento sem fim, sem eira nem beira. Em segundo lugar, minha tarefa é denunciar essa irracionalidade que se entranha do próprio processo de ra ­ cion alização do processo produtivo e perguntar quais as instituições políticas que vão ser capazes de pôr em xeque esse m esm o processo de racionalizar pela irra cio ­ nalidade vigente no plano do com p ortam en to dos próprios atores. C onsiderem o m ito do progresso: progresso para quem , para quê? De que vale o progresso sem fim do crescim ento econ ôm ico se abre o abism o entre os ricos e os pobres? M as que tipo de instituições políticas vão ser capazes de detectar esse fenôm eno e pro­ por rem édios para saná-lo? Isso sem querer à força suprim ir a co n trad ição , já que é por ela que a produção da riqueza não se esclerosa.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­ cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade? D iria que não fiz filosofia nem fiz ciência. L og o, não sou bom filósofo nem bom cientista. Sou apenas uma espécie de in terruptor de luz que, ao ver as ciências hu­ m anas cam inhand o autom aticam ente num a certa d ireção, vem e diz: "O lh a , cu i­ dado! Levem -se em con sid eração os constrangim en tos e os com prom issos que es­ tão sendo assum idos tacitam ente com o uso de tais co n c eito s” . N a filo sofia, não assum o esta ou aquela posição. Se estam os pensando de determ inada m aneira, pro­ cu ro calcu lar o preço que estam os pagando por pensar assim . O cam in ho que te­ nho perseguido é o cam inh o do cam aleão e do ch ato .

Certa vez você afirm ou: “para mim, ler Marx, e ao mesmo tempo apro­ fundar minha fam iliaridade com as ciências sociais, equivalia a obe-

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d ecera o conselho que G. Bachelard tinha dado a G.-G. Granger e este a mim: se pretende estudar epistemologia, case-se com uma ciência. Mas desde logo manifestei minhas tendências polígam as, pois eram todas as ciências sociais que pretendia abranger”. Pensando nessa afirm ação, com o você vê as ciências sociais no Brasil h oje? N ão sou um profissional da sociolog ia, leio a esm o o que me cai nas m ãos. D iante da avalanche das pu blicações, sem pre me pergunto: “ Será que vale a pena 1er tudo isso ?” — e fico angustiado com medo de perder coisas essenciais. P rocu ro n ão se­ guir m odas e d eixar que os textos se assentem . E xceçã o feita ã produção dos am i­ gos — pois tendo cada vez m ais a seguir a frase de M o lière: Nul a de l’esprit hors

nous et nos amis (Ninguém é dotado de espírito, à parte nós c nossos amigos). Pareceme que o que está sendo feito por aí im ita, de m odo em pobrecid o, o debate m un­ d ial, que tam bém não me entusiasm a. Provavelm ente por desconhecim ento. M as estam os sendo capazes de traduzir as nossas experiências, de traduzir a experiência de uma sociedade periférica tentando situar-se no con tex to do capitalism o mundial?

Com o você avalia a Teoria da Dependência, e com o você pensaria essa teoria no contexto da inserção atual do Brasil no mundo globalizado? C reio que a T e o ria da D ependência, a despeito das m últiplas form ulações que lhe foram dadas, representou um passo im portante no pensam ento da esquerda latino-am erican a. Pois viu-se que não se trata apenas de pensar a invasão im perialista, mas igualm ente de exam in ar co m o as estruturas sociais internas nacionais reagem a ela, isto é, se com prom etem e se repõem por m eio de políticas próprias. M as de­ pois que se instala sem co n testação a paz am ericana, o problem a do im perialism o desaparece da discussão, substituíd o pela questão da d em ocracia. O fato de um im portante teórico da dependência chegar à presidência da república não ajuda a m arginalizar o tem a da dependência? O que restou foi a con cep ção form al do sr. [R obert] Kurz, que deixa pouca margem para a política. O ra , me parece que, se o p róp rio cap ital n ão se repõe a não ser por m eio da in ten sifica çã o das p o líticas em presariais — o que é uma em presa m ultinacional senão uma fonte de políticas? — o âm bito das políticas públicas se am plia em vez de dim inuir. O capital de hoje está de olh o nas tax as de ju ro determ inadas pelo Federal Reserve. Estam os m ergu­ lhados na política, que tam bém se globaliza. M as política para quem? O seu livro T ra b a lh o e reflexão, de 1983, teve uma vendagem e uma repercussão bem m aiores do que A p resentação do m undo, de 1995. A que você atribui tal diferença de repercussão, e com o se posiciona em relação a isso ? Se foram vendidos por volta de seis mil exem plares de Trabalho e reflexão, creio que isso se deve ao fato de eu estar, na ép oca, m uito exp o sto pela m ídia. N os ú lti­ mos tem pos eu venho me tornand o um professor acantoad o — aqui em minha casa e numa institu ição, o C ebrap, que perdeu m uito a sua visibilidade. E eu creio que no Brasil os livros se expandem m uito m enos por sua qualidade do que pela e x p o ­ sição pública de seu autor.

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Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecim ento do fenôm eno estético em nossa socieda­ de. Com o você se posiciona em relação a esse debate? N ão sou m uito bom para falar de arte, que para mim tem m uito da experiência íntim a. M as a arte que, desde m uito ced o, m ais me faz refletir é a pintura — não à toa o meu filho virou pintor. T en h o a im pressão de que o que se faz hoje em arte tem m uito pouco a ver com o que se fazia até o m eio do século. A diferença essen­ cial está em que, até esse m om en to, os o b jeto s de arte tentavam construir um código que pudesse ser percebido não num único o b je to , m as num a ju stap osição de vários deles. Pensem os, por exem plo, em R o th k o : se vários quadros são observados, acabase por perceber um cód igo que os alinhava. D epois de D ucham p e Beuys, o código saiu da ob ra e se refugia na etiqueta ou na in d icação do crítico . A idéia de que se possa interagir com a ob ra de arte talvez nunca tenha sido tão verdadeira com o hoje, mas não se pode mais ficar sozinho no museu: vê-se o quadro por m eio de uma nova in form ação que não vem m ais por ele. N a últim a exp o sição que vi no museu W hitney, sobre a arte am ericana — uma retrospectiva m uito b oa, por sinal — , era im ­ possível acom p an h ar a parte m ais con tem p orân ea sem as instruções de um m o­ nitor. Este inform ava que tal fotografia apanha a jan ela de um trem a toda veloci­ dade, revelando en tão uma cena íntim a que se passava no seu interior, ou tra era um d epósito de arm as atôm icas sendo tratad as co m o se fossem ob jetos cotid ian os, e assim por diante. Só assim as fotos faziam sentido. Isto significa que foram reti­ rad as, da factura da o b ra de arte, a reflexão e a idéia de que sua repetição pudesse con stru ir seu próprio sentido. Agora este vem da m era ju staposição. D aí a d ificu l­ dade de o au tor ser identificado. A ntigam ente se dizia: “ isto é um V an G o g h ” , “ isto é um C ézanne”, “ isto é um Stravinsky” . M as às vezes já era difícil distinguir Braque de Picasso. T u d o indica, porém , que oco rre de fato aquela m orte das artes precon i­ zada por H egel, sua substituição pela filosofia. M as tam bém a filosofia não virou p lástica, isto é, de plástico?

E hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíam os era um fe­ nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado N acional com o fonte e garante do Direito e com o detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como você vê tal diagnóstico? Na sua visão, a prim azia de que parecem des­ frutaras questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias? Estou sublinhando que a regra social se exerce ju n to de processos de sua vigilân­ cia, o que im plica no nível do fato uma dim ensão norm ativa. A guarda da regra é uma atividade política que passou a encontrar seu fulcro no Estado N acional e agora o extravasa. L em bro ainda que a vigilância da regra im plica aten tar para as d istân­ cias entre o padrão pressuposto pela regra, a medida do que é feito por m eio dela, e o que de fato resulta desse m ovim ento. M a s essa vigilância m ensurante só ganha legitim idade se for exercida em nom e da m anu tenção do to d o , da nação na qual os grupos se reconhecem com o integrantes ou parcialm ente incluídos. D aí o m o n o­

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pólio da violência, que nada m ais é senão o ou tro aspecto da necessidade de se in­ tegrar numa identidade de que todos querem fazer parte, m esm o quand o parecem ser indiferentes a ela. iMas essa medida do E stado não sobrevive sem o exercício da medida da riqueza so cial, que ele pode c o n tro la r de fo ra, com m aior ou m enor sucesso, m as que extravasa seu d om ínio e seu territó rio , em bora não se exerça fora de qualquer d om ínio e de qualquer território. O fluxo do capital financeiro pode circular ad oidado pelo m undo afo ra , m as sem pre está entrand o e saindo das fro n ­ teiras fiscais postas pelos Estados nacionais. E cada E stado ou parte do E stado luta a partir de suas vantagens e desvantagens estratégicas. Parece-m e que o que mudou foi a natureza da guerra e da paz existen te entre os Estados, as empresas e assim por diante. É evidente porém que uma medida posta pelo E stado, que nunca fala na linguagem das classes, só pode ser exercida se c o lo ­ car a p roblem ática da justiça social, da validade da diferença dentro do todo, para encob ri-la ou para exercê-la, reforçan d o a medida antiga ou propondo novas. Em sum a, desde o início se tem um critério para distinguir entre defensores do status quo e defensores da m udança. Se desde o início o processo de n egociação da m edi­ da da riqueza social tam bém se co lo ca no plano de uma p o lítica, é preciso levar em con sid eração com o os agentes vão se reportar a essa d istinção entre m anter a regra e m udar a regra.

Isso distingue para você direita e esquerda ? E evidente. O critério é claro. Se o governo Fernando Henrique C ardoso, por exem ­ plo, term inar restaurando as regras trad icio nais da exclu são social no B rasil, será um governo de direita — seja lá com o vem pintad o, de verde e a m arelo, verm e­ lho, e assim por diante. Se, ao co n trá rio , for um governo que, ao longo dos seus dez anos de hegem onia no processo político brasileiro, consiga alterar essa medida, será um governo de esquerda. Este é um fato que se está con stru in d o. N ã o se tra ­ ta de algo que pode ser verificado neste ou naquele lance, nesta ou naquela estraté­ gia, mas no circu ito de seu todo. De certo m odo, a história é o tribu n a! de uma p o lítica, em bora o julgam ento feito esteja sem pre sendo refeito a partir da som bra que ele cria. Q u anto ao lugar da política, cabe lem brar o seguinte: se, já nas estruturas mais elem entares do com p ortam en to hum ano e do m etabolism o do hom em com a n atu ­ reza, podem os descobrir ao m esm o tem po aspectos de ser e aspectos de dever-ser, não é preciso cingir-se à idéia de que somente o Estado pode ser a Zusammenfassung, a comprehensio , a to talização do dever-ser de tudo o que acontece nas sociedades contem porâneas. Se o processo de produzir a riqueza social se exerce a partir de focos políticos em luta, a política tam bém passa a ser exercida em vários níveis. É bem verdade que um deles depende da intervenção de acion istas, o u tro , do b a ix o clero , ou tro ainda de cidad ãos, e assim por diante. M as me parece que a política de hoje nasce do cruzam ento de instituições e práticas de soberania relativa, de sorte que o grande desafio é assegurar um terreno de n eg ociação dessas instituições em luta. D aí a enorm e im portância do Estado regulador que coloca seu capital em função dessa regulação social. Por isso estam os assistindo a uma refu ndação do exercício da sob eran ia, ao m esm o tem po mais com partilhad a e mais insidiosa.

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Q u an to, por fim , ao revival das questões éticas, há nele, creio eu, um lado que me preocupa. G esta-se uma nova form a de política que não logra, todavia, enfren­ tar efetivam ente o problem a da exclu são. N ad a mais natural que as boas con sciên ­ cias apelem para a indignação m oral. M as a que isso serve? Ao vir a ser pública converte-se em arm a p o lítica, tão manipulável e m anipulada co m o qualquer outra. M ais ainda, a pregação m oral tende a negar a p o lítica, em particular aquela zona cinzenta em que op era, suponham os, meu representante. Eu o encarrego de acuar meu inim igo, em pu rro-o a agir con tra sua vontade m ais profunda. Espero tam bém que, quando se distribuem bens escassos, ele trate de privilegiar nossos am igos em prejuízo de meus adversários. Se essa distribuição fosse m eram ente técnica não se­ ria política. Suponham os um m édico que deva distribuir pacotes de rem édio c o n ­ tra a Aids, que haja m ais pacientes do que doses, e que, p o rtan to , ele deva selecio­ nar aqueles que têm m ais chances de m orrer e aqueles ou tros que têm mais ch a n ­ ces de viver. Até agora sua escolh a foi técnica. M a s, digam os, quando se defronta com dez pacientes com as m esm as chances de sobrevida e lhe restam apenas cinco doses, com o deve proceder? D aí em diante age p oliticam ente, não há com o evitar. T ran sferir a questão para o plano das boas intenções, im aginar que se deve agir levando em conta tão-só os estados de coisas considerados possíveis e d eixar na som ­ bra os m eios pelos quais m ontam os os quadros dessas possibilidades, no fundo, significa esquecer com o os sentidos são roubados. Isso é extrem am ente conserv a­ dor, pois reforça a ilusão de que a m era reform u lação ou refu ndação da ética pos­ sa dar solução a uma questão que é prática, uma questão que diz respeito a com o se opera a fim de que um sistem a de regras seja reposto. Isso é uma form a de ocu l­ tar co n flito s irresistíveis. Cada vez m ais sou antidedutivista e an tifu n d acion ista, porque não me interessa legitim ar esta ou aquela regra m oral, mas exam in ar com o devo ser e todos nós devem os ser para que sejam os dignos de uma regra m oral que se apresente com o um im perativo, seja lá qual for seu conteúdo.

Você enxerga isso na discussão atual sobre os direitos hum anos? Sim , desde que se m arque a diferença entre form u lar uma regra e segui-la. N ão vão pensar que eu n ão seja defensor intransigente dos direitos hum anos, mas ap e­ nas essa defesa significa m uito pouco diante da tarefa de m odificar certas estrutu­ ras sociais que os tornem efetivos. O desafio é saber que tip o de regra precisa ser m udada. A sim ples asp iração por um m undo m elhor não distingue a esquerda da d ireita, pois isso não c o lo ca um lim ite no ca rá te r relativo dessa o p o siçã o . Bill C lin ton está à esquerda do esp ectro p o lítico n o rte-a m erica n o . E daí? T am b ém G oeb bels n ão estava m ais à esquerda do que G õring? Por isso seria este m erece­ dor de algum aplauso?

Falando sobre a relação entre m oral e política numa entrevista para a revista R epública, você afirm ou: “parto do pressuposto de que existem regras morais se apresentando como imperativos categóricos. Elas se dão com o tais, vale dizer, no seu significado está incluído que constituem o lugar onde a procura do fundam ento estanca. Isso me basta, pois agimos de acordo com as regras tais como aparecem para nós, não como

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são para todos. Pergunto então o que as pessoas devem fazer para es­ tar preparadas para seguir regras morais. Ora, nesse quadro, ou quero a pessoa antes da regra ou a regra antes da pessoa. No primeiro caso, se tece uma m oral da intimidade, onde as regras vão se form ando e reflexionando conform e o respeito entre nós se firma. No segundo caso, a regra desde logo é form a de sociabilidade, colocando-se o problem a de com o pode valer para uma dada com unidade e a hum anidade em geral. Isso significa que a m oralidade moderna está travejada por três pontos de fuga: a intimidade, a eticidade e a am izade, já que esta últi­ ma configura um colchão de conivência entre as du as”. Com o pensar esta moral da perspectiva antifundacionista de que você nos falava? Esse meu aparente kantism o de pensar o juízo prático é, no fundo, m uito aristotélico, pois recorre à idéia de um ethos. Estou sublinhando que qualquer relação so ­ cial tem a co n trap artid a do guard ião da regra. T ra to en tão de perguntar: com o funciona essa relação de guarda e de representação da regra para os indivíduos nas várias esferas da sociabilidade? C o n stato en tão, com o já fez M cln ty re, que vive­ mos num m undo de poucas virtudes, ou m elhor, de virtudes con trad itó rias: e m b o ­ ra isso não nos im peça de agir m oralm ente. N ão são mais as virtudes trad icionais que ao fim e ao ca b o organizam nossas sociedades. E preciso, p o rtan to , en con trar, no nível m ais elem entar dos com p ortam en tos hu m anos, os pontos de fuga a partir dos quais as norm as se organizam , pois essas regras não deixam de existir ainda que para d om ínios restritos. Percebe-se en tão que num a relação de intim idade se quer m enos as regras, porque a existência do ou tro é o alvo m aior da vontade. M as esse ou tro não se dá com o um personagem , m as com o angústia, co m o fissura no m undo. N esse plan o, a regra parte do respeito pelo ou tro posto com o uma nãoessência. N a esfera pública, entretanto, querem os, antes de tudo, que as pessoas ajam de acord o com certas regras — pouco im portand o se são estas ou aquelas regras. A fu nd am entação não im porta, as pessoas sim plesm ente querem essas regras, e isto basta para instalar aí o d om ínio de uma m oralidade pública. M as há, por fim , o terceiro pólo, o acoch am bram ento da am izade, um colchão im portantíssim o na vida con tem p orân ea, pois cria uma zona cinzenta que atenua os rigores da intim idade e da m oral pública. Am izade, por conseguinte, m uito diferente da philia grega, pois esta exclui a relação com alguém nâo-virtu oso. Im aginem se fôssem os h o je em dia peneirar os nossos am igos som ente segundo o critério da virtude... C ertam ente te­ ríam os pouquíssim os am igos [risos]. N o en tan to , essa reflexão sobre a m oralidade pública ficou bloqu ead a, p o r­ que eu precisava entender com o as pessoas podem querer regras algum as delas c o n ­ trad itórias, isto é, cu jos efeitos negam certos parâm etros no início pressupostos — e não tinha ainda os instrum entos necessários para pensar essa situação. Agora creio que os tenho. Q uando nós elegem os p olíticos, não estam os m esm o pressupondo que eles devam , para poder nos representar satisfatoriam en te, suspender certos p arâ­ m etros m orais? Há um jogo entre a m oralidade e a política no qual a moral desenha um espaço em que os juízos políticos serão m orais ou im orais de acord o não tan to com sua eficácia em vista de um ob jetiv o d eterm inad o, mas sobretud o porque c o r ­ ro boram para d esenhar um tipo p o lítico a quem se perdoam certo s pecad ilhos.

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E n qu anto era vivo, T a n cred o N eves era consid erad o um grande m anipulador; de­ pois de sua m orte, do sacrifício de sua vida para assegurar a tran sição d em ocráti­ ca , converteu-se num grande estadista, e a m anipu lação, na m arca de sua astúcia. Segundo o nosso juízo de hoje, ele era um grande astucioso da política que conse­ guia organizar um esp aço de n egociação graças à sua habilidade e à sua caracterís­ tica de estadista. N ap oleão era um grande can alh a, mas depois de tudo o que fez para a E uropa, palm as para ele.

Você menciona três esferas: intimidade, m oralidade pública e am iza­ de. E há, entre elas, uma tendência de invasão de umas nas outras. É o caso, p or exemplo, de toda essa legislação que pretende regular a inti­ midade. Com o você pensa, então, a relação entre intimidade e m ora­ lidade pública, se uma tem o direito de in vadira outra? D ireito ela n ão tem ; ela sim plesm ente invade. M as eu não diria que se trata de uma invasão ilegítim a. Por exem plo: a partir do m om ento em que alguém resolve to r­ nar-se hom em público, ele se co lo ca num lugar em que suas ações íntim as devem ser visíveis e perm eáveis. Espero de meus representantes que, obviam ente, ajam de acord o com suas inclinações e interesses pessoais, m as que se conservem no plano da publicidade. Esta é uma con trad ição inevitável na vida do p olítico, que cada um vive a seu m odo. O representante tratan d o de d eixar na som bra suas inclinações, o eleitor fazendo de con ta que o eleito só age no interesse público e o adversário e x ­ plorando ao m áxim o essa con trad ição e com isso co la b o ra n d o para que se firme a fronteira entre o público e o privado. Se não quero vivê-la, não vou fazer p o lítica, se n ão desejo a invasão da m inha intim idade, fico em casa. Se alguém resolve ser presidente da R ep ú blica, é com o se ele d eclarasse: “ Estou abd ican d o da m inha in­ tim id ad e” . E toda sua fam ília entra nessa d ança, cad a um tratan d o de se defender co m o pode. N ote-se que essa fronteira do público e do privado resulta de uma luta e se fixa nos costum es. V eja-se co m o dona R uth C ard o so, por exem plo, tem c o n ­ seguido resguardar a sua intim idade a despeito da exp o sição do m arido.

Com o você caracterizaria a sua relação com a religião e a fé? Até os 17 anos ap roxim ad am ente, eu fui cristão . E me preocupava m uito com a questão da existência de Deus. Até quando me perguntei: “ Em que a existên cia de D eus vai m udar o meu com p ortam en to? Em n ad a” . E deixei de pensar no assunto. O que nunca me impediu de ter crises m ísticas — lem bro-m e de certa vez quand o, viajando pela Bourgogne com alguns colegas, passei por uma crise mística atéia muito profunda, sentindo nos poros e nos vinhos a a tra çã o da transcend ência. Será que sou um sujeito religioso? Talvez. M as diria que a m inha religiosidade é m uito m ais uma religiosidade da philia, da relação co m o o u tro , da solidariedade com a ale­ gria dele... Se um dia estiver no juízo final, sei o que responderei quando Deus me perguntar se eu tive fé: “ N ão im porta se tive fé ou n ã o ; o que im porta é que segui T eu s m andam entos m ais estritam en te do que se tivesse tido fé, pois desse m odo nenhum padrão m oral me foi im posto de fo ra, nenhum padrão que não tenha sido querido por mim m esm o” .

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Com o você se situa em relação aos problem as de uma “mudança de paradigm a” da filosofia, de uma filosofia “pós-m etafísica” calcada na linguagem? N ão acred ito nisso. O ra , n ão me venham com essa! Linguistic turni Isso mais pa­ rece uma tournure sofística! F.stou passando por uma experiência fascinante: vol­ tei a dar aulas no prim eiro ano da Faculdade de Filosofia. Isto me leva a reler di­ versos textos clássicos por sem ana. N a diversidade das filosofias, há uma tal per­ m anência de questões, de questões que m udam de asp ecto, que se tran sform am ... V ocês acreditam realm ente que a m etafísica term inou com Kant? M as cada vez mais estou convencid o de que as form as de fazer filosofia mudam m uito m enos porque o ser é dito de outra m aneira e m uito mais porque se desenvolve uma técnica de se pensar esse dizer.

C oloquem os então a pergunta de outra form a. Você afirm ou que, a partir da década de 60, verifica-se uma ausência de grandes pensado­ res na filosofia. Você vincularia isso a esse linguistic turn? N ão. A filosofia nos Estados Unidos não possui a im portância que possui na F ran ­ ça ou na A lem anha. A utores co m o Q u in e, Ravvls etc. interferem m enos, por exem ­ plo, do que o cin em a, que é uma m áquina de crítica poderosa do “ am erican vvay o f life” . C reio que a decadência, ou m elhor, o enervam ento do pensam ento filo só­ fico nos últim os tem pos se deve sobretudo ao m odo de produção dos textos filo só ­ ficos, que se dissem inou nas universidades e nos institutos de pesquisa: para cada

paper uma idéia, uma idéia em cada paper, já que im porta pu blicar, ocu par a sua p osição no m ercado de trab alh o e na b u ro cracia. Ser filósofo virou profissão assa­ lariad a, com tabela de preço no m ercado, o que é m uito esquisito.

Você utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do fu­ turo da sociedade hum ana? Em que consistiria tal utopia ? N ão há palavra de que desconfie m ais do que a palavra “ u to p ia” . Se o pensam ento é sem pre situado, dizer que se vai para um “ n ã o -tó p ico ” é falso. A idéia de co n s­ tru ir visões im aginárias do que poderia ser nosso futuro me repugna. O que me interessa, acim a de tudo, é verificar, den tro do esp aço em que se tra b a lh a , quais os vetores que ultrapassam o cotid ian o. Espero ser m oderno, n ão pretendo reeditar a epopéia de V asco da G am a, que, ao term inar o périplo da Á frica, foi levado a um lugar do qual divisou o universo em fu ncionam ento. T am b ém não pretendo ser m ineiro, pois, se a m áquina do m undo se desvelasse para m im , não seria capaz de passar ao largo. Se isso acontecesse gostaria de ser tritu rad o por suas engrenagens.

Nós podem os, todavia, pensar em alguns conceitos de filosofia da his­ tória com o o de progresso. Em que sentido, a seu ver, nós poderíam os falar em progresso? N essa m alh ação da idéia de progresso tam bém há um lado sacana. H oje entende­ m os m uito m ais a respeito do desenvolvim ento do universo do que há cinqüenta anos. N ão me parece possível negar todo progresso. Q ue hoje nós sejam os capazes de tran sform ar uma ciência m eram ente observante, a astro n om ia, em ciência e x ­

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perim ental, isto im plica progresso extrao rd in ário . Q ue possam os h oje cam inhar m uito rapidam ente para ter o desenho do genom a hum ano e, p o rtan to , d escobrir m istérios da vida; que cada vez m ais prevaleça nas relações hum anas a idéia de que a tolerância é um instrum ento sem o qual não se tem relação com o o u tro ; que se possa ter acesso a um museu im aginário, por m eio do qual as ob ras de arte estejam expostas em sua casa; que se possa recuperar, por m eio dos C D s, uma história da m úsica que dorm ia em partitu ras esquecidas; que se tenha uma arte co m o o cin e­ m a, que realiza o p ro jeto da “ arte to ta l” de form a m uito mais am pla do que a óp e­ ra podia im aginar; que — para pescar em ou tras águas — os meios de com u n ica­ ção coloquem os excluídos na nossa convivência cotid ian a, tudo isso representa para mim um progresso e xtra o rd in á rio . N o fundo sou um trem endo entusiasta do p ro­ gresso m oderno e agrad eço ao capitalism o por nos ter dado essa am plitude de h o ­ rizonte que leva, além do m ais, a discernir a profundidade da m iséria que ele m es­ mo produz.

Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos com o riscos am bientais globais, am eaças de desintegração social em larga escala e alien ação cultural em massa. Com o você vê tais p ro­ blemas? V ejo exatam ente com o uma série de conseqüências indesejáveis desse processo de rou­ b o do sentido das ações hum anas, e com o algo que nos co lo ca a questão do senti­ do de nosso futuro. A gora, o fato de nós serm os h oje capazes de pensar isso de uma m aneira g lobal, que inclui a hum anidade co m o um todo, me parece um ganho e x ­ trao rd in ário. Pela prim eira vez se tem uma idéia prática, e não utópica, da hum a­ nidade — o que é m uito estim ulante. H o je , quando com eça o declínio efetivo de m inha vida, vocês, novos filó sofo s, se defrontam com o desafio de conviver com a humanidade com o um todo, o desafio de construí-la por meio de instituições globais.

Em que projetos você está trabalhando atualmente? Que idéias você tem para projetos futuros? Um velhinho de 7 0 anos não tem p rojetos para o fu tu ro... Pensando bem , estou m entindo para vocês! Se estou trab alh an d o em três livros ao m esm o tem po, não cab e lam entar pela falta de p ro jeto s. Um a amiga m inha, D ulce A quino, professora de dança — por isso respeito seu d iagnóstico — , uma vez me disse que tenho um esquem a corp oral e tem poral de um m enino de 8 anos. N o ginásio, q uand o preci­ sava fazer “ordem un id a” , devia apertar um dedo da m ão para estar p ron to para distinguir esquerda e direita. O u seja, viver no tem po e no esp aço não foi propria­ m ente a m inha especialidade. A relação privilegiada que m antenho com o espaço é com a minha casa. Sem pre sonhei possuir um ninho de que me apropriasse inteira­ m ente, um lugar no qual me reconhecesse em cada ca n to . A data de m inha m orte, p o rtan to , não me preocupa, em bora conviva cotid ian am ente com a idéia e a sensa­ çã o de finitude, de eu m esm o con stitu ir uma ruga passageira no universo. \ la s não vivo em fu nção disso. C o n tin u o , pois, a tra b a lh a r em meus p rojetos. R ecentem ente, entreguei para a pu blicação os dois livros sobre M a r x , e agora só me falta conclu ir o livro sobre a

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moral e, mais tarde, voltar a Hegel, mas então pensado em sua relação com Schelling. Estou sem pre vivendo um p ro jeto. D epois de um tex to p ronto eu o largo, tenho dificuldade até m esm o de corrig ir uma prova tipográfica. Por isso, a hom enagem em vista das coisas feitas me constrange. E com o se me dissessem: “ A gora, com 7 0 anos, elevado a Professor Em érito da Faculdade de Filosofia, você está p ro n to” . Isso não me faz sentido. Estou dando aula no prim eiro ano com a mesma d isposição e com o m esm o prazer com que dei m inhas prim eiras aulas na Universidade de São Paulo. A única diferença é que, se correr um p ou co, me vem angina.

Com o você imagina que Jo s é Arthur Giannotti será visto, digamos, em 2040? Em prim eiro lugar, não sei se serei “ visto” em 2 0 4 0 . Vou ser fran co: reconheço que o trab alh o que fiz tem certo peso. M as tam bém con stato que a especificidade de meu trab alh o é diluída pela antropofagia da cultura que predom ina no Brasil. T o ­ dos ficam iguais para que todos sejam medianos. Provavelmente a sensação de minha diferença é apenas subjetiva. N essas cond ições, com a diluição de um parâm etro que tentam os dem arcar mas não conseguim os m anter, é provável que, em 2 0 4 0 , meu nom e não seja nem lem brado. Além do m ais, estou carregand o o peso da trad ição, da boa trad ição, creio eu. Sempre me identifiquei e fui identificado com o hom em da esquerda, mas que não pode acom panhá-la quando continua a negar a política, quando a pratica com o um mal necessário para preparar o advento de uma era em que fosse substituída pela ad m inistração racional das coisas. M as, enfim , vam os ver o que vai acontecer quando saírem esses meus dois próxim os livros sobre M a rx . Para mim não seria surpreendente se boa parte da esquerda sim plesm ente recorresse ao velho esquem a de ignorar o que a im portuna. E m bora alguns de meus am igos prezem meu tra b a ­ lho, não é raro ouvir que sou um ch a rla tã o que ocupa um espaço público porque sabe se virar na im prensa, porque tem am igo presidente, porque sabe m anipular instituições de apoio à pesquisa, porque enfim tem poder; em sum a, uma espécie de O restes Q uércia da cultura brasileira [risos]. O problem a to d o está cm que nós, intelectuais brasileiros, ou m antem os com a mídia uma relação am bígua, ou nos encastelam os em trab alh os técnicos. O desa­ fio reside, creio eu, na necessidade de inventar um novo m odo de produção das idéias. M as passar pela mídia im plica correr um grande perigo: substituir o co n ceito pelo deslize, nos últim os tem pos, pelo g racejo . O s jo rn ais foram invadidos pela graça sem g raça, pela e x ib içã o da finura do articu lista, m ais interessado em escrever um belo texto do que exp o r as am bigüidades de uma situação. Isso som ado à identifi­ cação da ética com a p o lítica, o que ninguém pratica mas os ou tros devem p rati­ car, leva a uma situ ação com o se estivéssem os voltando aos tem pos da Inquisição. O bviam ente com o farsa. F arsa, porém , que possui um conteú d o antid em ocrático, pois tende a negar precisam ente aquela zona cinzenta das ações hum anas onde a política se faz necessária.

Jo s é A rthu r G ian n otti

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Principais publicações: 1966 1975 1983

Origens da dialética do trabalho (P orto Alegre: L & P M , 1 9 8 5 ); Exercícios de Filosofia (Petrópolis/São P aulo: Vozes/CEBRA P); Trabalho e reflexão: ensaios para uma dialética da sociabilidade (São P au­ lo: B rasiliense);

1985 1986 1995 2000 2000

Filosofia miúda e demais aventuras (São Paulo: Brasiliense); Universidade em ritmo de barbárie (São Paulo: Brasiliense) Apresentação do mundo: considerações sobre o pensamento de Ludwig Wittgenstein (São Paulo: C om panhia das L etras); Marx: vida e obra (P orto Alegre: L S íP M ); Certa herança marxista (São Paulo: C om panhia das L etras).

Bibliografia de referência da entrevista: Althusser, L. A favor de Marx, Jo rg e Z a h a r Editores. A ristóteles. Metafísica, M ad ri: E ditorial G redos. ____________. Ética a N icôm aco, co leçã o O s Pensadores, Abril C ultural. ____________. Organon, Lisboa: G uim arães. G ranger, G . G . Por um conhecimento filosófico, Papirus. H aberm as, J . Direito e democracia, Tem p o B rasileiro. H egel, G . W . F. Ciência de la Lógica , Buenos A ires: Solar. H usserl, E. Investigações lógicas, co leção Os Pensadores, Abril C ultural. Ja eg er, W . Paidéia, M artin s Fontes. K ant, I. Crítica da razão pura, coleção O s Pensadores, Abril Cultural. ____________. Crítica da razão prática, L isboa: Edições 70. ____________. Crítica da faculdade do juízo, Forense U niversitária. M a rx , K. O capital, coleção O s E conom istas, Abril C ultural. ____________. Elementos fundam entals para la crítica de la economia política: bor­

rador 1857/1858, M éx ico : Siglo V eintiuno. W ittgenstein, L. Tractatus logico-philosophicus, Edusp. ____________. Investigações filosóficas, co leção O s Pensadores, Abril Cultural.

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O S W A L D O P O R C H A T (1 9 3 3 )

O sw aldo P orch at Pereira nasceu em 1 9 3 3 , em Santos (SP). G raduou-se em Letras C lássicas pela Universidade de São Paulo e em F ilosofia pela Universidade de Rennes (F ran ça), tendo ob tid o o títu lo de d ou tor em Filosofia pela USP. C riou o C entro de Lógica, Epistem ologia e H istória da Ciência (C L E ) da Universidade E s­ tadual de C am pinas e as revistas Manuscrito, Cadernos de Filosofia e História da

Ciência e Journal o f Non-Classical Logic. E professor ap osentad o da USP. Esta entrevista foi realizada em dezem bro de 1 9 9 9 . G oethe dividiu a vida de seu personagem Wilhelm M eister em dois romances, O s anos de aprendizado e O s anos de peregrinação. No pri­ meiro, o foco está posto na form ação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que você nos falasse de sua form ação intelectual? Q uand o eu estava no fim da minha ad olescência, no fim do colegial, m inha am b i­ ção era ser professor secundário de latim. Eu adorava a língua latina, tinha tido bons professores, e queria fazer isso para o resto da vida. E n tão entrei na Faculdade de Letras e fiz o curso de L etras C lássicas, onde aprendi tam bém o grego. Estudei lite­ ratura grega e latin a, filologia grega e latina, e assim por diante. A p aixão pelas lín­ guas clássicas era m uito forte, mas aconteceu que no últim o ano do curso de Le­ tras, com o eu podia fazer m atérias op tativas fora do cu rso, fiz um curso que o p ro ­ fessor Lívio T eix eira, do D epartam ento de Filosofia, ofereceu sobre Platão. N o m es­ m o ano, por coincid ência, no curso de literatura grega eu tinha aula sobre P latão, e no curso de didática geral tinha um cu rso sobre a edu cação em P latão. P ortan to, foi um an o p latôn ico: fiz o q u a rto an o de L etras estudando três d isciplinas que versavam sobre P latão. Eu já gostava de filosofia desde há m u ito, mas os meus conh ecim en tos eram m ais de filosofia tom ista e neotom ista: São T o m ás de A quino e M aritain . O p ro ­ fessor Lívio T eix eira me incentivou para que eu me dedicasse à filosofia grega, e fiquei então realm ente desejoso de tra b a lh a r em filosofia, mas eu já tinha ganhado uma bolsa de pós-graduação para a F ran ça, onde ia estudar filologia grega. F. com isso eu tinha resolvido d eixar a filosofia para mais tarde. A contece que o G ian n otti, que era meu am igo desde o coleg ial, estava em Paris, e em nossas correspond ências eu o inform ei que ia para Paris estudar filologia grega. Ele me respondeu sugerin­ do que eu não fosse para Paris, m as sim para R ennes, onde ele tinha estado um ano, porque em Rennes havia um curso de filosofia grega dado por V icto r G oldschm idt, e G illes-G aston G ranger estava lá tam bém .

O sw a ld o P orch at

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Q uand o cheguei a Paris, o G old schm id t, que era am igo do G ia n n o tti, nos convidou im ediatam ente para ja n ta r em sua casa. Eu disse en tão ao G oldschm idt que ia fazer o m estrado em filologia grega, mas que pretendia fazer um curso de filosofia quando voltasse ao Brasil. E ele me propôs a alteração de m inha bolsa, de bolsa de m estrado em filologia grega para bolsa de grad uação em filosofia. A cei­ tei, e em quinze dias ele conseguiu a m udança. Eu tive então uma bolsa para fazer filosofia em R ennes. Fiz o curso inteiro com o G ranger e o G old schm idt e, depois de term inar o cu rso, recebi uma carta do Je a n H yppolite — a qual me surpreendeu b astan te, já que ele era o diretor da Ecole N orm ale — , dizendo que eu havia sido aceito com o aluno estrangeiro da F.cole N orm ale, com direito a m orar na escola e utilizar os recursos da escola. É claro que aceitei, e descobri em seguida que tinha sido uma travessura do G ranger e do G oldschm idt. Fiquei en tão dois anos em P a­ ris, segui cu rsos de G old sch m id t e G ran g er, que estavam dando aulas na E cole N orm ale nessa época, segui os cursos de H yppolite, conheci Althusser — todos os meus colegas de filosofia estavam no grupo do Poitr Marx — , e no refeitório com ía­ mos na m esm a m esa. A o m esm o tem po, nesses dois anos em Paris com ecei a m i­ nha tese de d ou toram ento, cu jo títu lo inicial, A dialética em Artistóteles, era su­ gestão do G oldschm idt. M as foi só no B rasil, anos m ais tard e, que vim a term inála, sendo que a d ialética em A ristóteles cedeu lugar à ciência em A ristóteles. E m b o ­ ra o meu intuito inicial tivesse sido escrever um prim eiro cap ítu lo sobre a ciência e o resto da tese sobre a d ialética, esse cap ítu lo cresceu dem ais, ficou com mais de 2 0 0 páginas, o que me levou a m udar de idéia e fazer uma tese sobre a ciência com um últim o capítu lo sobre a dialética.

Com o foi o seu contato com Jean Hyppolite? O co n tato com H yppolite foi um co n ta to form al. Ele era o d iretor da esco la, e x tre ­ m am ente amável e sim pático, e estava dando um curso sobre a interpretação heideggeriana de Hegel. E m bora nem H eidegger nem H egel fossem o b je to do meu inte­ resse m aior, eu segui esse curso e acho que aprendi bastante coisa. L em bro-m e do H yppolite dizendo em aula que os textos heideggerianos sobre Hegel eram b astan ­ te difíceis, sobretudo porque era m uito difícil saber quem estava falando: se Hegel, se H eidegger, ou se Hegel na interpretação de Heidegger. N ó s, alunos, costu m áva­ mos brincar dizendo que as aulas de H yppolite eram m uito difíceis porque nunca sabíam os se era Hegel quem estava faland o, se era H eidegger quem estava fa la n ­ do, se era H yppolite quem estava faland o, c, assim por diante, todas as co m b in a ­ ções que se pode fazer! [risos] De qualquer m aneira, foi um curso extrem am ente proveitoso.

Você poderia periodizar um pouco m elhor essa fase de sua form ação? Eu com ecei a grad uação em filosofia em 1 9 5 7 . Fui dispensado das m atérias não filosóficas do cu rso, porque era form ad o em letras no B rasil, e isso me permitiu term inar o curso rapidam ente: em 1 9 6 0 já o tinha term inad o e com ecei, ainda na Fran ça, a trab alh ar na m inha tese de d ou toram ento. V oltei para o Brasil em 1961 e nesse m esm o ano com ecei a dar aulas no D ep artam ento de Filosofia da USP.

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Osw aldo Porchat: “ Essa perspectiva de adesão ao cocidiano, de valorização do huinano em contraposição ao filosófico, foi talvez o mote central de todas as minhas incursões no domínio filosófico. O ceticism o é para mim a valorização, contra os dogmas, do saber dos atos com uns” .

No ano seguinte à defesa do doutoramento, em m arço de 1968, você profere a aula inaugural do Departamento de Filosofia da USP, em que se afasta das posições estruturalistas de Guéroult e Goldscbmidt, que são facilmente reconhecíveis na redação de seu doutoramento, então recém-defendido. Essa virada foi vivamente descrita em seu texto “ Pre­ fácio a uma F ilosofia”, de 1975, nos seguintes termos: “Desesperando da filosofia e de seus problemas, renunciei a buscar-lhes soluções. A ba­ tido p or um profundo desencanto, o temor me possuiu de que os dis­ cursos da filosofia não mais fossem que prodigiosos e sublimes jogos de palavras. Um brinquedo dos filósofos com as palavras, do Logos com os filósofos. O feitiço que m e prendera se quebrava, desfazia-se uma antiga servidão. E tomei, então, o partido do silêncio”. A impressão que se tem é a d e que essa guinada existencial e teórica ocorreu num perío­ do muito curto. Foi mesmo assim? N ã o creio que tenha sido tão cu rto . Q u an d o com ecei a lecion ar na F ilo so fia, em 1 9 6 1 , eu era um estruturalista de carteirinha, e assim fiquei até 1 9 6 7 ,1 9 6 8 . Eu nunca quis ser h istoriad or da filosofia, m as, porque pesava sobre mim a herança estrutu­ ralista, eu entendia que a única m aneira de fazer filosofia corretam en te era fazer história da filosofia. P o rtan to , eu pretendia estar fazendo filo sofia, e não história da filosofia. N a perspectiva estruturalista de G uéroult e G oldschm idt, não cabia mais o enveredar por um cam inho filo sófico original; o im portante era conh ecer as es­ truturas do pensam ento filo só fico , e o con h ecim en to das estruturas não pode ser conseguido senão pelo estudo das ob ras dos filósofos e pela descoberta das lógicas internas que as estruturam . É fácil ver que essa visão da filosofia pode conduzir a um ceticism o. Porque você deixa de acred itar na possibilidade de constru ir uma filosofia original e fica preocupado unicam ente com o con h ecim ento das estrutu­ ras do pensam ento filo sófico, isto é, com fazer história da filosofia — co m o se não houvesse m ais con d ição de pensar filosoficam ente. N ão sei se G old schm idt tirava essas conseqüências da sua postura h istórico-filosófica, mas foram as que eu tirei. N um sentido m uito particu lar, sou estruturalista até h oje: penso que o m éto­ do estruturalista é o m elhor m étodo para uma primeira leitura de um pensador, para se d escobrir a lógica interna das razões, a estrutura da o b ra. T ra ta -se tão som ente de um instrum ento de tra b a lh o , um instrum ento para pensar. E n qu an to naquela época isso para mim era tudo, h oje é apenas uma etap a, porque depois disso vem o diálogo pessoal com o filó sofo : tendo-se aprendido (supostam ente) a sua filosofia, interage-se com ela, tom a-se p osição em relação a ela, end ossando-a — total ou parcialm ente — ou não a endossando. E nfim , não se está obrigad o a ser um histo­ riador. Pode-se ser um filósofo por conta própria, ainda que, é c la ro , buscando na história da filosofia um alim ento precioso, com o parte do desenvolvim ento e da exp o sição de seu próprio pensam ento. Com relação à idéia de que não valia a pena ten tar uma solução pessoal para os problem as filo sóficos, de que essa solu ção , além de não ser desejável do ponto de vista de uma sólida posição estruturalista, seria apenas uma solução a mais sem qualquer im portância m aior, eu com ecei a tirar essas prim eiras conclu sões céticas q uand o travei conh ecim en to com os texto s dos cético s gregos, sobre os quais dei

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um curso na USP em 1968, no qual p or sinal o Paulo A rantes foi meu aluno. A partir das m in has posições anteriores e d o m eu c o n ta to co m o ceticismo grego — de um a in te r p re ta ç ã o d o ceticism o grego q u e m ais ta rd e eu reconheceria c o m o incorreta — , eu n ã o via mais co m o filosofar, co m o p od er filosofar. Julguei que o p a rtid o do silêncio filosófico era a única solução que me era perm itida, deixei de acreditar na validade de q u a lq u e r pro jeto filosófico e passei a e s tu d ar lógica desesperadam ente. Fui fazer cu rso de lógica nos E stados Unidos, o n d e passei dois anos, 1969 e 1970, e estudei lógica, fu n d a m e n to s da m a tem ática, álgebra, teoria dos co n ju n to s etc. Eu julgava te r d escoberto então que a lógica nos brindava com toda s as qualidades que eu esperava, e que m uitos esperam , do discurso filosófico: a lógica é rigorosa, jus­ tifica plenam ente cada p ro p o siçã o que av ança, nos dá verdades. E m b o ra , é claro, essas verdades n ão sejam verdades sobre o m u n d o , mas sim verdades p u ram e n te form ais, o fato é que a lógica me dava o q u e eu qu eria da filosofia — ain d a que m e fazendo p a g a r o preço altíssimo de me alienar do m u n d o , pelo fato justam ente de n ã o ter n a d a a ver co m ele. Foi a p artir daí que um estudo mais a p r o f u n d a d o d o ceticismo grego me le­ vou a descobrir que a m inha prim eira visão sobre ele era historicam ente errôn ea, que na verdade o ceticismo ab ria perspectivas filosóficas, a o m esm o te m p o m a n ­ te ndo aquela m inha renúncia a to d o p en s a m e n to especulativo. C o m o passar dos an o s, eu fui en tão , progressivam ente, desco b rin d o m elh or o ceticismo, d es co b rin ­ d o m e lh o r u m a in te rp re taç ão que n ão é a c o m u m e n te vigente nos meios a c ad ê m i­ cos, e me tornei um cético. M as isso só veio a acontecer uns quinze an o s atrás. M a s antes disso há o “Prefácio a unta filosofia”, em que você defende

uma promoção filosófica da visão comum do mundo... É verdade, eu estava me esquecend o disso. D epois dessa m inha passagem pela ló­ gica e desse meu primeiro ceticismo, fui levado a refletir sobre a vida co m u m , o senso co m u m , o discurso c o m u m , e julguei que aquela alienação em relação a o m u n d o , a que eu parecia c o n d e n a d o , n ã o cabia. Julguei que era preciso viver ple n am e n te a vida, e a filosofia n ã o podia ser um a rejeição da vida; o divórcio esquizofrênico entre o filósofo e o h o m e m n ão tinha ca bim e nto. Rejeitar o m u n d o co m u m , rejeitar as vicissitudes e as contingências d o m u n d o c o m u m , rejeitar as paixões h u m a n a s em no m e d o p e n s a m e n to , era u m a p o stu ra inaceitável, e eu, algo q u ix o te sc am e n te, julguei que era preciso defender a vida c o n tra a filosofia, en tendida esta co m o um a gigantesca em presa de alienação do h o m e m em relação à vida co m u m . Eu queria rec u p erar a vida c o m u m , e achei en tã o q u e um a p ro m o ç ã o , n ã o cética, mas filosó­ fica, até m esm o metafísica, dessa vida c o m u m , era a m aneira de en fre n ta r os p r o ­ blemas filosóficos. O que vim a descobrir mais tarde é que o ceticismo fazia essa m esm a defesa da vida c o m u m , essa m esm a defesa d o h o m e m c o tidia no, dessa perspectiva da vida e d o m u n d o que os filósofos disseram ingênua. P o rta n to , n ã o era preciso fazer metafísica, n ão era preciso e n tra r em conflito com o ceticismo. Ao contrário: d es­ cobri no ceticismo a defesa da vida c o m u m co n tra o p en sam e n to especulativo. Fi­ quei m u ito im p ressionad o c o m u m a passagem de Sexto Empírico em que ele diz que, se nós co n d e n a m o s os dogm a s, em n e n h u m m o m e n to e n tre ta n to e n tra m o s em

O s w a ld o P o rc h a t

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conflito co m a vida co m u m . Ao contrário: nós som os os seus defensores; nós esta­ m os a o lado dela c o n tra o pensam e n to dogm ático.

Por que você decidiu se transferir da USP para a Unicamp em 1975? N aq u e le m o m e n to eu n ã o tinha ainda a d o t a d o u m a posição cética. Eu tinha sem ­ pre go sta d o m uito de filosofia da ciência, de epistemologia, de lógica, co m o já dis­ se, e na USP eu formei um p rojeto de criar um c e n tro dedicado aos estudos de te o ­ ria d o con hecim ento, epistemologia, lógica e filosofia da ciência. A b u rocracia da USP, n o e n ta n to , fez com que esse p ro jeto ficasse ex tre m a m e n te atra sad o : ele foi a p r o v a d o no D e p a rta m e n to , m a s depois se p a s sa r a m anos de trâm ites b u ro c rá ti­ cos até ele chegar a o C onselho Universitário. O c o rre u , nesse meio te m p o , que um am igo m eu, o R ogério Cerqueira Leite, qu e era algo co m o p ró-reito r da U nicam p, e que várias vezes me tinha convidado p ara ir traba lhar lá, disse que havia boas ch a n ­ ces de o projeto ser a p r o v a d o pela U nicam p, o nd e não havia u m C o nselho U niver­ sitário totalm ente e strutura do , onde quem m a n d av a realm ente era o reitor, Zeferino Vaz. E n tã o ele m arcou um a entrevista p a r a mim com o Z eferino , p e d in d o que eu levasse um p eq u e n o te x to sobre o meu projeto. Bem, a entrevista ocorreu, se n ã o me engano , n o dia 9 ou 10 de setem bro de 1975, e nesse projeto eu me p ro p u n h a a criar um C e n tro de Lógica, Epistemologia e H istória da Ciência na Unicamp, criar cursos de p ó s-g ra d u aç ão nessa área, fazer sem inários interdisciplinares, fazer colóquios e congressos, nacionais e internacio­ nais, e criar três revistas — um a de filosofia p ro p ria m e n te dita, um a de filosofia e história da ciência e um a de lógica. Para m in h a surpresa, o Zeferino Vaz se entusias­ m o u pelo projeto e m e p erg u n to u , nessa prim eira entrevista, q u a n to s professores eu pretendia levar p ara a U nicam p, para que a gente com eçasse n o mês seguinte — o que o b viam en te eu n ã o esperava. Eu citei en tã o alguns nom es de professores da USP — Luiz Henrique Lopes dos Santos, Carlos Alberto Ribeiro de M o u ra, A ndrea I.oparic, to d o s jovens d o u to r a n d o s — , e citei o n o m e de alguns professores argentinos, cujos currículos estavam com igo po rq u e eu tinha sido chefe de d e p a rta m e n to na USP e eles alm ejavam ter u m a vaga na universidade brasileira. D epois que eu dei os nom es, o Z eferino disse: “ E ntã o, vam os n o m e á -lo s” . Ao que respondi: “ M as os argentinos nem sabem que a U nicam p existe!” . E ele disse: “ E n tã o você vai à A rgentina e fala co m eles, po rq u e nós temos p ressa” . Acontece que eu não p o d ia ir à Argentina ime­ diatamente, e ocorreu uma coisa interessante de que pouca gente sabe: com o o Zeferino tinha problem as de d atas com relação a o o rç a m e n to e precisava n o m e a r os profes­ sores até o fim de setem bro, ele m e disse o seguinte: “ O lha, é m uito mais fácil para mim demitir d o que nomear. Para demitir, basta a m inha vontade. Para nomear, preciso ter verbas, ter o rç a m e n to , respeitar datas. E ntão vou n o m e a r t o d o m u n d o e, se eles n ã o pu d ere m vir, d e m ito ” [risos]. Assim ele fez, e quinze dias depois eu estava na Argentina convidan do os professores, que eram Carlos Alberto Lungarzo e o Ezequiel de O laso. Eles pediram três dias p ara pensar, a o final dos três dias disseram que aceitavam, e eu disse que eles já estavam nom eados. O fato é que dias depois nós d esem b a rc áv a m o s co m o p á ra -que dista s na U ni­ c am p. F om o s n o m e a d o s para o Instituto de Filosofia e Ciências H u m a n a s , para o D e p a rtam e n to de Ciências Sociais, pois não havia ainda um d e p a rta m e n to de filoso­

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C o n v e rsa s com Filósofos B rasileiros

fia — eu é que viria a criá-lo alguns an o s mais tarde. E o pessoal das ciências sociais, que não estava in fo rm a d o a respeito, assistiu es tupefato ao d esem b a rq u e de vários filósofos brasileiros e dois argentinos no D ep a rtam e n to ! Isso era o Zeferino! M a s eu consegui fazer o que tinha p ro m e tid o a ele, meu projeto se realizou plenam ente: nós fizemos trinta e cinco colóquios e congressos em sete anos, criam os as três re­ vistas — d a s quais duas, a Manuscrito e os Cadernos, con tin u am a existir — , e cria­ m os o curso de pós-g ra d u aç ão . Fiquei na U n icam p d u r a n te dez anos, e ao final d e ­ les voltei p ara a USP.

No final de “Prefácio a unta Filosofia”, há uma caracterização do que deveria ser o filósofo para você então: “Buscando o diálogo, o filóso­ fo construirá seu discurso com simplicidade. Não recorrerá a termos esdrúxulos nem a um jargão complicado. Ele tem uma enorme descon­ fiança dos que falam difícil em filosofia”. Chama a atenção, no en­ tanto, o fato de que, no mesmo ano da publicação desse texto (1975), você se transfere para a Unicamp e funda o Centro de Lógica e Epistemologia (CLE), que tinha um ambicioso programa nessas áreas, do qual você acaba de nos falar. O espírito de “Prefácio a uma Filoso­ fia ” é plenamente compatível com a aridez própria das questões ló­ gicas e epistemológicas? E claro que as questões lógicas envolvem um v o ca b u lá rio técnico. Nesse te x to eu estava p en s a n d o n ã o em lógica, p ro p ria m e n te, m as em filosofia. N o que se refere à lógica, seria en tã o o caso de falar em filosofia da lógica. A cho que na filosofia da ciência, na filosofia da lógica, na teoria d o c onhe cim en to em geral, em to d o e q u a l­ q u e r ra m o da filosofia — filosofia m oral, estética, metafísica — , é realm ente n e ­ cessário n ã o escrever em “ filosofês” , m as c o n s eg u ir ser claro u s a n d o os meios da língua vernácula e escrever de tal m o d o que um h o m e m de relativa in fo rm aç ão e, é claro, c o m um a certa base cultural possa com p re en d e r. C o n tin u o desconfiado até hoje d o s que falam difícil em filosofia. E xprim ir-se de m o d o difícil é na v e rd a ­ de deixar transparecer um a certa falta de rigor intelectual. C o n fo rm e a frase de Wittgenstein, o que n ão se pode dizer, n ão deve ser dito. Eu ac ho que o que n ã o se pode dizer com clareza não deve ser dito.

Como você avalia hoje a experiência do C LE ? Eu te n h o im pressão que o Cl.F. teve u m papel b astante im p o rta n te, graças aos c o ­ lóquios e congressos que organizou. V árias vezes eu te n ho sido gratificado, a o p a r ­ ticipar de reuniões de filosofia em diversos p o n to s d o Brasil, pela lem brança, que p u b lic am en te colegas de o u tra s universidades trazem à to n a , do significado que o CLE teve no c o n g ra ç a m e n to entre os profissionais de filosofia das diferentes u n i­ versidades brasileiras. Antes dele n ã o havia colóquios de filosofia. O s professores d o Rio n ã o conh eciam os de São Paulo; os de São Paulo n ã o conheciam os d o Rio G ra n d e do Sul; os d o Rio G ra n d e do Sul n ã o co nheciam os de M in a s Gerais; e as­ sim p o r diante. C o m o o CLE o rgan iz o u , em alguns anos, trin ta e cinco co lóquios e congressos, nós tivemos a possibilidade de convidar professores do país inteiro, fora uns setenta d o exterior. C o m isso, ele tornou-se um lugar de reun ião, de encontro.

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P or o u tr o lado, as revistas d o CI.R, que estão vivas até Hoje, ta m b é m m a rc a r a m p o n to s im p o rta n tes n o cenário brasileiro. Eu fiz q u estão, depois de a b a n d o n a r a direção d o CLE, de n ã o me imiscuir de m o d o algum na sua vida. Eu aceitei, e acei­ tarei sem pre convites p ara p articip ar deste ou daquele evento, m as achei que não cabia m eter-m e na vida interna d o C e n tro . A c o m p a n h o de longe, co m atenç ão, as suas atividades, e espero que ele prossiga p o r m u ito te m p o e c o ntinue realizando o nosso projeto, mas de fato estou d istanciado dele atualm ente.

Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Como você vê as re­ lações entre a filosofia e a cultura brasileira? Eu d isco rd o d o P aulo A rantes. A cho que ele é d e m a siad am en te generoso p a r a com os filósofos brasileiros. A m im m e parece que, ape sa r de ce rtam en te haver m uitos filósofos de excelente qualidade no Brasil, eles não tiveram ain d a condições pessoais e culturais p a r a e la b o ra r um a filosofia pró pria. H á alguns nom es, aqui e ali, dos quais se p ode dizer que têm um a co ntrib u içã o filosófica própria, pessoal, e que p r o ­ du zira m algum a coisa que é u m a filosofia brasileira em gestação. E eu acredito no porv ir da filosofia brasileira. T e n h o a im pressão de q u e os estudos filosóficos no Brasil neste m o m e n to são s u rpre end e ntem ente prom issores, as gerações novas, que estão a p a rece n d o ca d a vez mais, em diferentes lugares do país, estão p r o d u z in d o tra b a lh o s filosóficos sérios. A go ra, o que é preciso, e essa é um a tecla em que te­ n h o b atido ultim am ente, é libertar o ensino brasileiro de certa ênfase exa g erad a na história da filosofia, de certa o rien taçã o estruturalista radical. E irônico que eu diga isso, p o rq u e fui certam e n te um dos m aiores defensores dessa p o stu ra, m as há um m o m e n to e m que a gente envelhece, passa a ter mais juízo, e ad q u ire u m a perspec­ tiva mais lúcida sobre os erros da juventude, sobre os p ró p rio s erros e pecados. Q u a n to à segunda p arte da p ergu nta, os filósofos — vam o s usar esse term o para designar to d a s as pessoas que a m a m a filosofia, que se dedicam a ela, que t r a ­ balh am sobre assunto s filosóficos, e que, eventualm ente, p ro p õ e m idéias filosófi­ cas originais — , os filósofos brasileiros têm d e s em p e n h ad o ce rtam ente u m papel im p o rta n te. É claro que não precisam os exagerar, m a s eles têm tid o algum papel im p o rta n te, aqu i e ali, na vida cultural d o país.

Como você avalia as críticas que Paulo Arantes dirigiu a você no livro U m d e p a r ta m e n to francês de u ltram ar? O Paulo A rantes se dedica a um a es tra n h a tarefa. Ele foi um dos m elhores alunos que tivemos no D e p a rta m e n to , é um sujeito brilhante, tem conhe cim entos filosófi­ cos enorm es, é de um a inteligência p ro fu n d a . Enfim, ele tem tu d o que se p ode elo­ giar n u m intelectual. M a s tem u m a relação m u ito es tra n h a com a filosofia, po rq u e pretende, insistente e sinceram ente, n ão estar fazendo filosofia nos seus trabalho s. Eu c o n c o rd o com ele, acredito ta m b é m que ele n ã o está fazendo filosofia. O que ele faz é u m a e x tre m am en te inteligente inte rp re taç ão não-filosófica das filosofias. M a s é difícil situar essa interpretação. Afinal, que tipo de inte rp re taç ão é ela? N ã o é um a inte rpre taç ão sociológica; n ã o é u m a in te rpre taç ão antropológ ica. Talvez se pudesse dizer que é u m a form a m uito p articu la r de sociologia d o conhecim ento, m a s n ão creio que essa descrição caiba ao Paulo. O q u e ele p ro c u ra é explicar cada

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m anifestação d o p en s am e n to filosófico d e n tro do universo cultural, d e n tro da si­ tu a çã o histórica e econôm ica de cada época. Eu n ão te n h o n a d a co n tra essas t e n ta ­ tivas de se explicar a o b ra filosófica a p artir de um p o n to de vista não-filosófico, de um p o n to de vista científico. N ã o te n h o realm ente n a d a co n tra : é u m a coisa q ue se p od e fazer, e se for bem-feita é algo valioso. E m b o ra eu n un ca tenha conv e rsad o c o m o Paulo sobre essa questão, o p ro b lem a é que isso parece substituir a filosofia, que passa a ser a p e n as um objeto, e jam ais o p o n to central, jam ais o m o to r da ela­ b o ra ç ã o de seu pensam ento. N este sentido, o Paulo A rantes n ã o avança um p en s a­ m e n to filosófico original, ape sa r de ter tu d o p ara fazê-lo, e fazê-lo bem. N o caso particu lar d o capítu lo que ele me dedica em seu livro, que eu aliás tive o p o r tu n id a d e de c o m e n ta r no MASP, te nh o a im pressão — e eu diria isso, é claro, com algu m a m a ld ad e — de que o Paulo não sabe m u ito bem c o m o explicar p o r que eu digo o q u e estou dizendo. Ele acha que m in has idéias estão fora d o lu­ gar. Ju sta m e n te p o rq u e n ão vê, n aquilo que digo, um a resposta a alg um a necessi­ d a d e dita d a pelo e n to rn o cultural a p artir d o qual ele quer explicar as filosofias, isso o obriga a ver em tu d o o que digo algo estra n h o , que surge o nde n ã o tinha que ter surgido. O Paulo n ã o acredita na filosofia co m o u m a p ro p o sta q u e um p en s a­ d o r, crítico e culto, possa ainda alim entar, te n ta n d o resolver problem as. Ele vê na filosofia um a m anifestação, um a m anifestação q u e ele pro cu ra estudar, c o m p re e n ­ der, conhecer e explicar. Posso estar m u ito e n g a n a d o , mas não creio que o Paulo Arantes esteja disposto a se eng a ja r n u m diálogo filosófico co m alguém, isto é, a to m a r um a posição diante de alguém que to m e um a posição c o n trá ria, discutir etc. Ele n ão to m a posições em filosofia; ele é o crítico, o intérprete, o co nhe ce dor, mas n ã o o p raticante d a filosofia. Enfim, n ão creio que Paulo queira com prom eter-se co m um diálogo filosófico. Ele q u er explicar o que você diz.

As propostas que você apresentou nos últimos anos no sentido de uma reformulação do padrão pedagógico do Departamento de Filosofia da USP tiveram grande repercussão e provocaram ásperas polêmicas na imprensa. Qual foi o saldo, a seu ver, dessa discussão ? F.u n ão sei se p o d em o s dizer que já haja um saldo a ser avaliado. Vários estudantes que encontrei recentemente, aqui e ali, falaram -m e do seu interesse pelas coisas que eu disse, e m e disseram ta m b é m que é u m a p reo c u p a ç ã o de m uitos deles o q uerer e n c o n tra r um lugar para te r opiniões pessoais, p a r a com eç ar a exprim ir-se filosofi­ cam en te desde os anos escolares. A gora, a m inha posição n ã o deve ser mal inter­ pretada. Eu sei p erfeitam ente que, q u a n d o os estudantes co m eç arem a e x p o r suas idéias, eles vão ser ingênuos, vão ser às vezes inad eq u a d o s, vão às vezes dizer toli­ ces, vão exibir ignorância da p roblem ática filosófica, e assim p o r diante. M a s aí me parece que, q u a n d o eles entregarem seus textos e fo rm u larem suas posições, cabe ao professor responder-lhes dizendo, p o r exemplo: “ O lha, esta objeção que você está fazendo ao filósofo já foi feita, foi feita ainda em vida dele. F ulano de Tal fez essa objeção, que é a m esm a que você fez, po rém m e lh o r fo rm u lad a e bem mais desenvolvida. P o rta n to , você deve ler esse au to r, e ler ta m bém a resposta que aquele filósofo f o r m u l o u ” . C o m isto, o a lu n o a d q u irirá m ais elem entos p a r a p en s ar o m esm o as su n to e, in d e pende n tem en te de em seguida a b a n d o n a r ou refo rm u lar a

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objeção que havia feito, estará a p re n d e n d o a pensar. N ã o vejo mal n e n h u m n o fato de o a lu n o exp ressar suas p ró p ria s opiniões em sala de aula. N ó s devem os permitir-lhe que o faça, e que faça um tra b a lh o em que afirme, p o r exem plo, “ Platão disse um a bob ag e m q u a n d o disse que as form as ex iste m ” . N este caso, caberia dizer-lhe q u e m uita gente já disse a mesma coisa, e recom en dar-lhe que leia tal tex to, bem co m o a resposta d a d a p o r u m filósofo p latônico posterior. C o m isto o a lu n o to m a consciência de que p o d e co m eç ar a particip a r de um deb a te m ilenar c se sente in­ centivado a pensar. D o co n trá rio , acontece o que tem acontecido: um d e p a r ta m e n ­ to co m o o de filosofia da USP, que é de altíssimo nível — faço q u estão de enfatizar isto, p o rq u e hou ve q u e m achasse o c o n trá rio — , pro d u z excelentes historiadores da filosofia, mas n ão estim ula a p r o d u ç ã o de um p ensam e n to original. Produzir um p e n s a m e n to original significa estim ular os alunos a ter cora gem de assum ir p o si­ ções, a o m esm o te m p o m o stra n d o -lh es o q u a n t o essas posições teriam q u e ser m e ­ lh o rad a s para ad q u irir o status de opiniões filosóficas sérias.

Em 1991, você publicou um artigo, “Sobre o que aparece”, em que se afastava da posição de uma “promoção filosófica da visão com um do m u n d o ” que tinha caracterizado sua produção de 1975 até então, e passava a uma posição cética que você definiu como “neopirrônica”. Em “Sobre o que aparece”, você descreve esta nova guinada teórica nos seguintes termos: “E como se, na vã tentativa de opor um dique ao perigo cético, que vai levando de roldão todos os dogmatismos, se recorresse a uma forma extremada e confessadamente injustificável de dogma­ tismo, na pia esperança de brandir contra o ceticismo uma artna su­ prema e derradeira”. Seria esta nova guinada uma confirmação da previsão de Bento Prado Jr., feita em 1978 no artigo “Por que rir da filosofia?”, de que você acabaria voltando necessariamente a uma po­ sição cética? O Bento foi rea lm en te um b o m p ro fe ta n aquele m o m e n to ! T alvez ele me ten h a c o m p re e n d id o m e lh o r do qu e eu a m im mesmo! [risos] N essa m esm a passagem, p o rém , ele dizia que esse m o v im en to p e n d u la r d o m eu p en s am e n to me faria voltar a um a posição especulativa. E isso n ã o aconteceu, nem creio que vá acontecer.

Que conceito(s) de sua reflexão você destacaria como mais representativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que você nos contasse como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje. C o m o eu disse no prefácio a Vida comum e ceticismo, o m eu p ro b le m a sem pre foi o d o reconhecim ento da vida co tid iana, q u er dizer, o estar ju n to à vida cotidiana, valorizar essa vida c otidia na, valorizar as questões mais ban a is e triviais. Q u a n d o eu “ desisti” da filosofia, foi p o r ac h ar, p rim eiram ente, que n ã o conseguia resolver d e n tro dela os pro b lem as qu e ela se p r o p u n h a , e, p o r o u tr o lado, ta m b é m p o r ver nela u m em p re e n d im e n to de alienação. Q u a n d o fiz o que cham ei de “ p r o m o ç ã o filosófica da vida c o m u m ” , era u m a tentativa de salvar a vida c o m u m d e n tro a in ­ da de certos p a râ m e tro s definidos pela filosofia tradicional. F.u ia co n tra a filosofia tradicional, m as julgava que pod ia m a n te r um certo q u a d r o conceituai dessa m es­

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m a filosofia p a r a fazer c o n tra ela u m a p r o m o ç ã o filosófica da vida c o m u m . Já q u a n d o fui para o ceticismo, descobri que não era preciso m anter quadros conceituais p róprios à filosofia tradicional. Era possível ro m p e r de u m a vez com tod o s eles e ficar ao lado da vida co m u m . P o rta n to essa perspectiva de adesão ao co tidia no, de valorização do h u m a n o em co n tra p o siç ã o ao filosófico, foi talvez o m o te central de to d a s as m inhas incursões no d o m ínio filosófico. O ceticismo é p ara mim a va­ lorização, co n tra os d ogm a s, do saber dos atos com uns. O que é o neopirronismo? O neo p irro n ism o é um a expressão, talvez pedante, que inventei para designar m i­ n h a posição. E claro que o ceticismo grego pirrô nico é um a p o stu ra filosófica d a ­ ta d a , situ ad a num certo c o n te x to — o helenístico — , te n d o inclusive m u ito em c o m u m c o m o estoicismo, o epicurism o e as dem ais expressões do p e n s a m e n to de então. C o m o to d a filosofia, o ceticismo surge n u m a certa época, re sp o n d e n d o a problem as culturais dessa época, os quais podem ser estudados e explicados — com o eu disse há p ouco , n ã o te n h o n e n h u m a objeção a esse tipo de estudo. M a s é verda­ de, ta m b é m , que certas tram as fund am e n tais d o p e nsam e nto, das várias filosofias, p o d em ser preservadas ou reanializadas. N ó s tem os hoje um neo-aristotelism o, um n e o p la to n is m o , um n eo-e sto ic im o, um n eo-h e gelia nism o , um n e o k a n tis m o etc. E m b o ra m u ito d o que K ant, H egel, P latão e Aristóteles disseram esteja d a ta d o , co rre sp o n d a às perspectivas da época, m u ito ta m b ém pode ser utilizado a tu a lm e n ­ te, e utilizado de m aneira bastante profícua. O ra , o m esm o se pode dizer do ceti­ cismo: m uito do p irron ism o recende a helenismo, mas m u ito pode, m antendo-se um a certa coerência e m antendo-se um a certa fidelidade, ser repensado, rearticulado e reutilizado. O que m e tenho p r o p o sto a fazer c o m o p irronism o é o que, mutatis nmtandis , os p ensadores neo-hegelianos, n eom arx ista s ou n e o k a n tia n o s fizeram: trata-se de aggiornare u m a filosofia no m u n d o m o d e rn o , um a vez que to d a s as grandes filosofias do p assad o têm ainda m u ito a nos dizer. O ser ca p az de extrair delas isso qu e elas p odem nos dizer hoje é o que im p o rta fazer. Ao me c h a m a r de neopirrônico, q u e r o sim plesm ente realçar o fato de que o que p r o p o n h o é m o stra r c o m o certos traç o s im p o r ta n te s d o p irro n is m o grego p o d e m ser u tilizados p ara p ensar a d e q u a d a m e n te os p roblem as filosóficos d o m u n d o c o n tem p o rân e o .

Quais as diferenças e semelhanças entre o seu conceito de “o que apa­ rece” e o conceito kantiano de “fenôm eno”? Penso particularmente na afirmação de Kant: “Pois seria um disparate pensar em fenômeno sem que algo apareça nele”. Eu en te n d o que K a n t deu um a co n trib u içã o e x tre m am en te im p o rta n te p ara um a po stu ra cética. É claro que K ant quereria tu d o , m en os isso! M a s de fato ele a deu, porque pôs em xeque a metafísica clássica, pôs em xeque os dogm atism os ontológicos tradicionais e a epistemologia dog m ática tradicional. K ant m o stro u q u e é possível falar em verdade correspo ndencial, falar em realismo, falar em coisas n o espaço e n o tem po, sem que se esteja p re te n d e n d o lidar com as coisas em si mesmas. A idéia k a n tia n a de fenôm eno, que está, é claro, associada a to d a um a teoria da represen­ tação, perm itiu-nos c o m p re en d e r que se pode pensar em con h e cim en to científico,

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que se p o d e pensar em verdades em píricas, que se p ode p ensar em m a téria , tem po, espaço, substância, sem que essas noções estejam c o n ta m in a d a s p o r u m a especula­ ção metafísica à m aneira tradicional. F. evidente que em K ant essas noções to d a s se associam , to d o s o sabem , a o idealismo transc ende nta l, à perspectiva de um sujeito transcend ental. E é evidente que eu, c o m o cético, susp endo o juízo sobre essa base transcend ental. M a s o fato é que K an t a b riu um ca m in h o decisivo, a b a la n d o p r o ­ fu n d a m e n te os alicerces do p en s a m e n to especulativo clássico. N u m te x to que escrevi, intitulado “ V erdade, ceticismo e rea lism o” , utilizo a n o ç ã o k an tian a de realismo em pírico, n o sentido em que K ant diz que o idealismo transcend ental é um realismo empírico: é claro que as coisas, que são reais n o tem po e n o espaço, n ã o são as coisas em si; é claro que lidamos com o m u n d o d a represen­ tação, m as isso n ão nos impede de falar da realidade das coisas, de c h a m a r verd a­ deiras às proposições que descrevem essas coisas. Segundo meu argum ento nesse texto, há, de um lado, um realismo clássico, de tipo aristotélico-tomista, que fala das coisas, das verdades, da em piria, num registro realista, e há, de o u tr o lado, o realism o de K ant, que fala das m esm as coisas num registro idealista transcendental. A m bas as visões descrevem o m esm o m u n d o , que dizem real, m a s a palavra “ re a l” tem um sentido com p letam e n te diferente n u m a e n o u tra . O im portante, a meu ver, é que o p irro nism o p o d e en tã o perguntar-se: será que nós n ã o podem os, d eix an d o de lado a inte rpre taç ão filosófica última que K an t deu do fenôm eno o u que Aristóteles deu d o fenôm en o, ficar ape nas co m o fenôm eno? Isto é, vam os falar em realidade das coisas, vam os falar em verdade das coisas — o cético não tem razões para a b a n d o n a r o v ocabulário da verdade ou da realidade — , mas vam os a b a n d o n a r as inte rp re ta­ ções d errad e ira s que se possa m oferecer desses conceitos. N este sentido, o cético suspende o juízo sobre o idealismo transcendental, suspende o juízo sobre a metafísica clássica. M as ele saúda K ant c o m o aquele que foi capaz de m o stra r que se podia falar d o m u n d o da experiência, que se podia falar de conhecim ento, que se p o dia falar de ciência, que se podia falar d o espaço e d o te m p o , que se podia, enfim , salvar a lógi­ ca, a ciência, a epistemologia, sem p o r isso ter o filósofo de com p ro m eter-se com o pensam ento metafísico tradicional. Desse p o n to de vista, creio que K an t é certam ente u m dos filósofos que o neocético mais tem que ad m ira r, respeitar e reverenciar.

Da sua noção de “o que aparece” segue-se a idéia de que há “um uso descritivo, próprio ao discurso fenomênico, e um uso interpretativo, próprio ao discurso dogmático, por exemplo ao discurso dogmático dos filósofos”. Há descrição que não seja já uma interpretação? Essa pergunta é bastante interessante. T alvez eu só possa a ela responder da seguinte m aneira. O cético descreve o que lhe aparece, e n ão tem p o r que recusar que essa sua descrição, e s p o n tâ n e a , n a tu ra l, im e d ia ta, esteja p r o fu n d a m e n te p e r m e a d a e influenciada p o r p o stu ra s e p o n to s de vista tradicionais, que nos fazem usar a q u e ­ la linguagem , falar d aq uela m aneira e ver as coisas daq uela m aneira. N a d a disso precisa ser recusado ou neg a d o p o r ele. F.u digo o que me aparece com e s p o n tan e i­ d a d e e n a tu ra lid a d e : eu descrevo. M a s posso perfeitam e n te ac resc en ta r que me a p a rece ta m b é m q u e essa m in h a descriçã o está influenciada p o r ca racterísticas idiossincráticas da m inha época, da m in h a fo rm a çã o , da m in h a cu ltu ra, da civili­

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zação a q u e pertenço, da língua de q u e me sirvo etc. O que me aparece hoje não necessariam ente me apa rece rá a m a n h ã . S u p o n h a m o s que eu descreva algo que me aparece hoje, e que a m a n h ã você me a p o n te que essa m in h a descrição, que o c o n ­ ceito de que me servia era na verdade um resquício de m in h a fo rm a ç ã o filosófica, era um conceito que surgiu na história d o p e n s a m e n to de tal e tal m a n eira, em tal e tal é poca, e que p o r ta n to , pelo simples fato de servir-me “ e s p o n ta n e a m e n te ” des­ se conceito, eu estava de algum m o d o c o m p ro m e tid o com um a form a especulativa de p en s am e n to p o r mim c o n d e n ad a . O ra , se você me m o stra r isso de m a n eira a d e ­ q uada, não tenho razões p ara recusá-lo, e posso reconhecer que havia na m in ha des­ crição das coisas um d ogm atism o oculto que me escapava. Deverei então reform ular m inh a descrição, de tal m o d o a reconhecer que o que me aparecia d aq u e la form a agora me aparece desta o u tra forma. A linguagem descritiva do fenôm eno é um a linguagem em perm a n en te evolução. A autocrítica perm a n en te é u m a necessidade p a r a o cético: ele tem a to d o o te m p o , co m o o BLide Rtinner, que descobrir onde estão os andróides, isto é, os dogm a s, e m uitas vezes ele se percebe g o s ta n d o de um d o g m a sem se aperceber de que é um d o gm a . E q u a n d o ele se dá co n ta disso a r u p ­ tu ra se faz necessária e ele tem de refo rm u lar o seu m o d o de ver as coisas. E claro, p o r ta n to , q u e to d a descrição, nesse sentido, é interpretativa. N a m edida, porém , em que a descrição d o cético não q u er ser solidária de d o g m a tism o s, em que não qu er estar c o m p ro m e tid a c o m d o g m a tism o s, sem pre que ele se perceber c o m p r o ­ m etido terá de refo rm u lar o seu discurso. Se, porém , q u a n d o você fala em inte rpre taç ão, você está dizendo algo mais simples, se está apenas, c o m o m uitos filósofos da ciência — entre os quais P opper — , dizendo q u e n ã o há term os p u ram e n te observacionais, que a teoria está sem pre im p re g n a n d o a nossa linguagem , inclusive a descrição das coisas em píricas e c o ti­ dianas, então o cético pode c o n c o r d a r com isso e reconhecer que o que aparece está p e rm e a d o pelo discurso. Usando-se a palavra “ t e o r i a ” nesse sentido, de que o dis­ curso está im p re g n a n d o tu d o de teoria c n ã o p o d e m o s despir-nos d o discurso para fazer u m a descrição, é evidente que não há com o discordar, pois “ descrição em pírica sem d isc u rso ” é um a c o n tra d iç ã o lógica. Seria um a tarefa a b s o lu ta m e n te im p e n sá­ vel, na v erd ade a b s u rd a , se p arar o que é discurso d o que n ã o é discurso em nossa relação com o m u n d o . P o rta n to , desde que distinguidos os dois sentidos em que um a descrição pode estar “c o m p ro m e tid a ” , o cético deve reconhecer tranqüilam ente o ca rá te r interpretativo da descrição.

Os seus trabalhos têm como interlocutores importantes, entre outros, D. Hume, R. Rorty e E. Gellner, autores nos quais você encontra afini­ dades e diferenças para com a sua posição. Você diria que as intenções últimas desses filósofos seriam mais bem expressas por uma posição neopirrônica como a que você defende? C om ec em os por H u m e . H u m e pretendia-se cético, se disse um cético, e defendeu um a fo rm a de ceticismo m uito p articular, um ceticismo m entalista. Ele tinha ce rta­ m ente um conhecim ento histórico imperfeito sobre o pirronismo, a descrição que ele faz do pirro n ism o é caricatural. Por o u tr o lado, a p osição que ele atrib u i, ou m u i­ tas das posições qu e ele atribui a o ceticismo m itigado ou acadêm ico são de fato p o ­

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sições p ró x im a s ao pirronism o. D iferentem ente de Rorty e Gellner, ele é sem d ú v i­ da um filósofo cético, e é válido e im p o rta n te estu dar sua relação com o pirronismo. Q u a n to a Gellner, ele certam e n te n ã o era um filósofo cético, mas teve um a visão do p e n s a m e n to m o d e r n o e c o n te m p o r â n e o que em p a r te c o n c o r d a com a m inha. D evo a d m itir que essa visão me influenciou, no sentido de que explorei di­ reções que ele d esbra v ou — so b re tu d o q u a n t o a enx ergar u m a influência difusa do ceticismo no p en s am e n to m o d e rn o e c o n te m p o râ n e o . Desde a “ Prim eira m e d ita ­ ç ã o ” de Descartes, e desde H u m e , os m otivos céticos se to r n a r a m e x tre m am en te im p o rta n te s para a filosofia c o n te m p o r â n e a . Basta dizer q u e to d o s os prim eiros filósofos m o d e rn o s, que tin h a m sofrido a influência da crise p irrônica e da R enas­ cença, puseram -se co m o tarefa resp onde r ao ceticismo, fazendo da epistemologia o d o m ín io f u n d am e n tal do p en s a m e n to filosófico. A o m esm o te m p o , p o rém , eles p u se ra m sob suspensão de juízo a vida co m u m . C e rtam e n te n ã o são m uitos, na fi­ losofia m o d e rn a e c o n te m p o r â n e a , aqueles que valorizam filosoficamente a vida c o m u m . O s filósofos dela se a fa staram , co m o se o m u n d o c o m u m tivesse sido p o s ­ to entre parênteses: faz-se filosofia num espaço e x tra m u n d a n o . O m u n d o p erdeu o seu en c a n ta m e n to , o seu feitiço; n ã o se p ode mais falar na realidade d o m u n d o . N a visão de Gellner, se eu a interpretei co rreta m e n te, esse p ô r o m u n d o entre p a rê n te ­ ses, essa épokhé sobre o m u n d o , expressa uma influência difusa do ceticismo no p en s am e n to m o d e rn o ocidental. Afinal, ele entendia, co m o eu na época ta m b é m entendia, q u e o ceticismo era um desafio filosófico a o saber da vida co m u m . N o e n ta n to , eu mudei de opinião . Alguns a n o s mais ta rd e eu vim a descobrir que, m uito a o co n trá rio do que eu pensava, o ceticismo é u m a defesa da vida c o ­ m u m co n tra o “ pse udo-sa ber” filosófico. Se eu tinha estado de ac o rd o com Gellner, deixei de estar. C o n c o rd o que o ceticismo tem um a en o rm e influência n o p en s a­ m e n to filosófico c o n te m p o r â n e o , mas n ão pelos m otivos en xe rgado s p o r ele. Pois o cético n ão põe o m u n d o entre parênteses. N a verdade o ceticismo tem essa influên­ cia p o rq u e, c o m o conseqüência d u r a d o u r a da “ Prim eira m e d ita ç ã o ” cartesiana, e c o m o conseqüência da influência de H u m e . o p e n s a m e n to m o d e rn o , e s o b r e tu d o o c o n t e m p o r â n e o , deixou de crer no A bsoluto, deix ou de quere r f u n d a m e n ta r, dei­ x o u de a c redita r n u m a raz ão so b e ra n a ca p az de justificar to d o o discurso h u m a n o . As filosofias c o n te m p o râ n e a s , nos seus m ais v ariados representantes, n ã o são mais filosofias fundam e n tac io n istas, n ão são filosofias que persigam o velho ideal clás­ sico da verdade c o m o corresp o n d ê n cia . T u d o isso são coisas d o p a s s a d o p a r a o pen s a m e n to co n te m p o râ n e o . F.le busca novos ru m os, ru m o s q u e n ã o dep e n d em da aceitação de realidades absolutas, de valores absolutos, de co nhe cim entos a b s o lu ­ tos. O ra , nesse sentido eu ac ho que, e m b o ra não se tenha talvez m uita consciência disso, nós som o s céticos. O ceticismo foi pela prim eira vez na história da h u m a n i­ dade um a escola filosófica que pôs o A b solu to em xeque. Afinal, qual é o sentido fu ndam e ntal da crítica filosófica do ceticismo a o d ogm a tism o? E que nós n ã o te­ m os co m o justificar verdades absolutas, n ã o temos c o m o ter certezas absolutas, n ão tem os co m o dizer d as coisas, no nosso discurso, c o m o elas são. O discurso se t o r ­ na um in strum e nto, de um lado, p ara a d enú ncia d o d o g m a tism o , e, de o u tr o lado, para a defesa da vida co m u m . Nesse sentido, m uito particular, p o d em o s dizer que o m u n d o c o n te m p o r â n e o é cético. As p ro p o stas filosóficas d o nosso século, na sua

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g ran d e m aioria, são p ro p o stas que desb ra v am os ca m in h o s d o co tidia no , da vida, d o m u n d o , e que n ã o mais co m u n g a m de um a crença no p o d er divino, nu m a razão a b so lu ta , c o m o foi talvez o so n h o d o racionalism o clássico. P o rta n to , o sentido em q u e o m u n d o c o n t e m p o r â n e o é cético, para m im , é co m p le ta m e n te diferente do sentido em que o é p a ra Gellner. Passemos a R orty, finalmente. F.le me parece dem asiad o radical na sua pers­ pectiva p ara p o der dizer-se um cético. Se o ceticismo a b a n d o n a o p ensam e n to d o g ­ m ático e o critica, em n en h u m m o m e n to ele pretende ter p o d id o d em o n strar a fal­ sidade d o d o gm a tism o. O cético, na posição que to m a , é o brig ad o a co nsiderar es­ sas questões c o m o questões em aberto: justam ente po rq u e n ã o acredita que p o ssa ­ m os, pelo nosso discurso, estabelecer verdades decisivas, ele entende que não p o d e ­ m os d e m o n stra r a falsidade do discurso especulativo. Rorty ta m b é m acha que não po d em o s fazê-lo, m as valoriza de tal m aneira a contingência e a precariedade que ele vê, nas diferentes m anifestações filosóficas, instaurações de discursos novos, vo­ cabulários novos que se propõem. Tem-se a substituição de um vocabulário pelo outro, de um a m a nifesta çã o d o p e n s a m e n to p o r o u tr a , n o devir histórico. N ó s estam os m erg ulhado s nessa contingência, e nós p o d em o s, aqui e agora, subm etidos que es­ ta m o s à influência de nossa época, a d o ta r um a certa visão das coisas, ainda que a sab en d o precária e contingente co m o q u alq u er o u tra. Por um lado, R orty se a p r o ­ xima assim d o ceticismo, já que este, recon hecendo o p r im a d o da vida c o m u m , te n ­ de obviam ente a reconhecer a precariedade e a contingência de seu p ró p rio discu r­ so. Por o u tr o lado, o ceticismo n ão se pretende capaz de explicar as tran sform ações d o pensam e n to h u m a n o , não se pretende capaz de fornecer u m a matriz q u e perm ita entender esse devir ou essa precariedade, sendo por isso bem mais cauteloso que Rorty.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­ cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade? Essa relação, de fato bastante estreita a o longo do tem p o, to m o u diferentes d ire­ ções. E inegável que a ciência exerceu p r o fu n d o im pacto so b re a filosofia, e viceversa — a filosofia exerceu u m a e n o rm e influência no desenvolvim ento das teorias científicas. F.m concepções mais tradicionais, a filosofia é so b e ra n a, é prim eira, e cabe a ela dizer o lugar das ciências n o m u n d o , cabe a ela julgar o p e n s a m e n to científico. N u m e x tre m o o p o sto , há as tentativas cientificistas de fazer filosofia: a ciência, s o b r e tu d o a ciência da n ature za , é to m a d a c o m o p a d r ã o ou m odelo, e os problem as da filosofia são pensados n u m a linguagem científica, a partir de conceitos científicos, recusando-se valor e im portância a tu d o aquilo que n ão possa ser tra ta d o co m m é to dos suficientemente p ró x im o s a o m é to d o da ciência. São du as posições ex tre m as: a d a filosofia, q u e julga e avalia a ciência, d a n d o - lh e f u n d a m e n to s e p a râ m e tro s, e a da ciência, que se to rn a um a espécie de matriz à qual o pen sam e n to filosófico terá de reduzir-se. Essas duas posições extrem as me parecem inaceitáveis. E m b o ra n en h u m de nós possa q u ere r d a r um a definição de filosofia, eu te n ­ d o m u ito a c o n c o r d a r c o m Q uine, a u to r q u e estim o bastante, e c o m P opper, que estim o m eno s, mas qu e sob esse aspecto diz algo parecido. N ã o se deve, m esm o porque n ã o há razões para isso, tentar introduzir u m a solução de continuidade entre

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filosofia, ciência, senso co m u m etc. Essas divisões rígidas são m u ito p ou co rigorosas e ex tre m a m e n te sujeitas a desconfiança. O que há é um discurso dos h o m e n s sobre o m u n d o , e esse discurso pode n u m certo m o m e n to dizer-se discurso d o senso c o ­ m u m , num certo m o m e n to dizer-se discurso psicológico, científico, filosófico. M a s são os hom ens que estão p r o p o n d o idéias, que estão a lin h a n d o hipóteses, que estão descrevendo coisas. N ã o há p o r que a c h a r que distinções rígidas devam e possam ser m antid as; n ão há sequer p o r que procurá-las. Se eu te n ta r pensar no qu e distin­ gue a filosofia da ciência, cu diria que, q u a n d o o p en s a m e n to h u m a n o lida com questões que ele consegue delimitar de u m a maneira a d e q u ad a , tratando -as até certo p o n to d e n tro de um a esfera lim itada, sem precisar a ca d a m o m e n to recorrer a q u e s­ tões extern as, trata-se aí do que c o s tu m a m o s c h a m a r de ciência — é o caso da a n ­ tro p o lo g ia , da ec o n o m ia , da história, da física etc. Q u e r dizer, o discurso h u m a n o às vezes particulariza mais o seu objeto e tra b a lh a de u m a m aneira mais co n c e n ­ trad a . O u tr a s vezes ele se av entura a t r a t a r dos assuntos sob um prism a mais geral, sob u m prism a mais am p lo , e aí nós diríam os que ele é mais filosófico. Q u a n d o estu d am o s as relações entre linguagem e p e nsam e nto , entre p en s a m e n to e m u n d o , nos vem os diante de questões tã o am plas que n ã o p o d em ser reduzidas a um ca p í­ tulo da psicologia o u d a lingüística, p o r exem plo. Enfim, filosofia e ciência são n o ­ mes, nom es que p o d em ser aplicados, e de que eu ta m b é m me sirvo, q u a n d o es ta ­ m os apenas q u ere n d o le m b rar o m o d o e a área de a tu a ç ã o d o nosso p ensam en to. N ã o se tra ta , a meu ver, de distinções en tre c o m p a rtim e n to s estanques.

Conhecemos pelo menos uma conseqüência importante da agenda de investigação do texto “Sobre o que aparece”. Tal conseqüência é enun­ ciada nesse texto como: “O pirronismo parece-nos inteiramente com­ patível com a prática científica moderna e contemporânea”. Em res­ posta a uma crítica a esse artigo, você citou essa passagem, mas deci­ diu acrescentar a ela um itálico, um grifo, à expressão “prática”. Você poderia nos explicar como se dá essa compatibilidade do pirronismo com a ciência moderna e qual a importância da ênfase na “prática” científica ? R ealm ente essa passagem d o tex to, que é aliás m u ito cu rta , foi objeto de algu m a controvérsia. M a s o que eu quis dizer é na verdade algo simples. A idéia de que a ciência conhece a realidade das coisas é u m a idéia que foi deixada de lado p o r grande p arte das filosofias da ciência c o n tem p o rân e as . H á p ro p o stas falibilistas, há p r o ­ postas p ragm áticas, há p r o p o sta s convencionalistas, mas m u ito po ucos p e n s a d o ­ res — entre as exceções m e nciono p o r e x e m plo W illiam Boyd — fazem hoje a q u e ­ la c o n e x ão tradicional entre ciência e metafísica. A atitud e da m aioria dos filóso­ fos d a ciência c o n te m p o râ n e o s, e de m uitos cientistas que filosofam sobre as suas ciências particulares, é um a atitude de alguém que a b a n d o n o u com pletam ente a c o n ­ cepção tradicional e clássica de ciência. O ra , co m o lida o pirro n ism o com a ciên­ cia? Sexto Empírico c o n d e n o u a epistemé clássica e valorizou a tékhne, isto é, ele valorizou o m o d o h u m a n o de lidar co m as coisas, ta n to prática c o m o te o ric a m e n ­ te, e n q u a n to um lidar com as coisas que n ã o pretende ser d o m ín io delas pela r a ­ zão, desco berta da estru tu ra e da essência íntima das coisas pelo pen sam e n to , m as

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sim plesm ente interagir com o m u n d o que está em to r n o de nós, interagir de m a n ei­ ra a d o m in a r esse m u n d o p a ra os fins h u m a n o s, e a p ô r a n atu re za , d e n tro d o p o s­ sível, a serviço da vida e da sociedade h u m a n a . Eu te n h o a im pressão de que assu­ m ir hoje um a perspectiva, em relação à ciência, q u e a veja c o m o u m a atividade h u m a n a qu e lida instru m e n ta lm e n te co m as coisas, que p ro c u ra fazer com que o ho m e m possa assenhorear-se d o m u n d o , é um a atitude pirrônica. E ela me parece m u ito p ró x im a da atitude de bo a p arte dos que lidam com ciência hoje. É claro que há aí p roblem as com plex os, co m o , por exem plo, o d o realismo científico: o êxito m aravilhoso das ciências, em fazer previsões precisas, em conseguir d o m in a r o m u n d o , n ã o seria e x a ta m e n te um a p rova de sua verdade, de que ela conhece as coisas c o m o elas são? Um cético, obviam ente, n ã o te m c o m o c o n c o r d a r c o m essa posição. M a s até que p o n to n ã o se p oderia dizer, n u m sentido não-dogmático, que as ciências não se lim itam a c o nstruir hipóteses úteis ou um discurso ca paz de ser in stru m e n ta lm e n te eficaz; qu e elas de algum m o d o estão co nhecendo o m u n d o ? Q u a n d o eu digo, p o r exem plo, nu m a p roposiçã o em pírica banal, “ meus óculos estão em cim a da m e sa ” , estou descrevendo, em linguagem vulgar, co m o as coisas são neste m u n d o . Seria en tão possível dizer, neste sentido nâo -d o g m á tic o , que uma teoria científica é conhecimento d o m undo? Para um pirrônico, esta questão só pode ser tr a ta d a c o m o um a q uestão interna a o d o m ín io dos fenômenos. Isto é, até que p o n to esse m u n d o q u e nos aparece está sendo descrito de m a n eira a d e q u a ­ da p o r teorias científicas que fu n cio n a m bem? C o m o explicar o sucesso da ciên­ cia? Esse é um p rob lem a im p o rta n tíssim o para a filosofia d a ciência c o n t e m p o r â ­ nea. M a s eu, pessoalm ente, n ão me vejo capaz ain d a de to m a r um a posição mais firme sobre a questão. Eu diria apenas que, se o cético quiser p r o p o r u m a solução, ela tem de dar-se n u m registro não-especulativo, n ão -d o g m á tic o , não-metafísico.

Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda­ de. Como você se posiciona em relação a esse debate? Eu devo confessar a m inha e n o rm e ignorância dos p roblem as estéticos em geral e dos p roblem as de teoria da arte. Esta é u m a das m aiores lacunas em m in h a f o r m a ­ ção. M a s, e m b o ra me sinta incapaz de respond er a essa p erg u n ta , eu diria que n ão acredito no fim da arte, e ou saria afirm ar que um a p o stu ra cética d iante d o m u n d o parece favorecer a atitu d e estética. Afinal, a arte foi m uitas vezes m e n o sp re za d a na epistemologia tradicional, p o r q u e não seria um in stru m e n to a d e q u a d o de c o nheci­ m e n to das coisas. N a m ed ida, p orém , em que a n o çã o de con h e cim en to das coisas se revela um a n o çã o p roblem ática, c om plex a , ex tre m a m e n te discutível; na m edida em que se deve valorizar o q u e aparece, e a tentativa de lidar bem com ele, eu vejo aí um espaço a b e rto p ara um a valorização da atividade artística e da m anifestação artística. Pois ela n ã o é, e n q u a n to m anifestação do h o m e m , inferior à ciência, à fi­ losofia ou a q u a lq u e r o u tr a coisa. Aos olhos de um pirrônico, p o r ta n to , p reconcei­ tos epistemológicos co n tra a arte se to r n a m ridículos.

E hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe-

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ttômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como você vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que parecem des­ frutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias ? Q u a n t o aos E stados N acio nais, em p rim e iro lugar, n u m a ép oc a de in te rn a c io n a ­ lização o u, c o m o se diz, de g lo b a liz aç ão , é claro q u e os E stado s N a c io n a is são p o sto s em xeque. A gora, u m a coisa é o n ac io na lism o tradicional, fre qü ente m e nte d og m á tic o , m uitas vezes fascista, pelo q u al te n h o p r o fu n d a a n tip a tia , e o u tr a coi­ sa é o r e c o n h e c im e n to da vida e da im p o r tâ n c ia das nações e das etnias, q u e é fu n d a m e n ta l. Assim c o m o o fato de viverm os n u m a sociedade n ã o precisa levarnos ao desprezo das instituições familiares — as quais p erd e ra m m uito de sua im ­ p o rtâ n c ia — , não vejo p o r que o fenôm eno da inte rnacionalizaç ão, qu e é inevitá­ vel, deva levar à recusa das etnias ou a o desprezo pelas nações. Por o u tr o lado, os p r o b le m a s dessa in te r n a c io n a liz a ç ã o sã o e x t re m a m e n te c o m p le x o s e difíceis, e algu m as vezes parecem rep rese n tar perigos sérios p ara o bem -estar de c o m u n id a ­ des m enores, de nações p eque nas, de g ru p o s particulares. Existe o perigo, que é b as tan te g ran d e , de q u e certas nações desenvolvidas e p o d e ro sa s façam da g lo b a ­ lização um in stru m e n to de a firm a çã o de si p rópria s, de d o m ín io so bre nações m e ­ nos desenvolvidas. A gora, é claro que essas opiniões que estou d a n d o n ã o são opiniões filosófi­ cas, e sim opiniões de u m ser h u m a n o c o m u m que está sendo interrogado sobre esses assuntos. E digo isso porque não acredito que o filósofo tenha uma capacidade m aior do que o u tro s seres h u m a n o s p ara falar de política. A lguém p ode até m o stra r que estou e rrad o , que eu deveria refo rm u lar este p o n to de vista, e talvez algum dia eu o reform ule. M a s sinceram ente n ã o acredito q u e u m filósofo seja mais ca p a z de falar de política d o que um a n tro p ó lo g o , um econom ista, um m atem ático, o u m esm o um ser h u m a n o qu alq u er, desde que p o ssu id o r de um a certa cultu ra e de um a certa inform ação . Por este m otivo, faço q u es tão de realçar que isso que a c ab o de dizer não é um a posição filosófica, mas u m a posição m inha, e n q u a n to ser h u m a n o , so­ bre um as su n to que julgo fu ndam e ntal. Q u a n to à segunda p arte da q u estão, eu ta m b é m enxergo um a revivescência das questões m orais, b astante perceptível na juventude, que m e parece hoje, mais d o q u e em décadas passadas, ex tre m a m e n te p re o c u p a d a com elas. Inclusive é m u i­ to triste que alguns d e p a rta m e n to s de filosofia n ã o dêem cursos sobre m o ral, sobre p ro b lem as m orais. E essa juventude é levada o b viam ente a estender suas p re o c u ­ pações m orais ta m b é m p ara os grandes pro b lem as da tra n sfo rm a ç ã o ec on ôm ica e social de nossa época, o que m e parece aliás perfeitam ente legítimo. M e sm o nós, e n ã o apenas a juven tude, ao refletir sobre esses grand es p ro b lem as da globalização e da intern acio nalização, n ã o po d em o s, ainda q u e reconhecen do sua origem nas tra n sfo rm a ç õ e s econôm icas, deix ar de lado as q uestões m orais; n ã o po d em o s sim ­ plesmente a d o ta r a fria perspectiva de u m econom ista. E m b o ra o cético se posicione sem pre c o n tra os d o g m a tism o s m orais, ele em n e n h u m m o m e n to renuncia a um a perspectiva m oral sobre as coisas.

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Entre os aspectos que fazem parte da prática cotidiana do cético pirrônico, regulada pelos fenômenos, você aponta a conformação à tradi­ ção das instituições e aos costumes (“Sobre o que aparece”). Isso não implica um risco de favorecer o conservadorismo moral e, sobretudo, político? Em prim eiro lugar, devo esclarecer que a o m e n cio n a r a c o n fo rm a ç ã o aos costumes, nesse tex to, estou me referindo a um te x to de Sexto Empírico, ao cético tal co m o descrito p o r Sexto Empírico. M a s Sexto Empírico, infelizmente, deixou m u ito pouca coisa, ou quase n a d a , sobre política e m oral. Aliás, ele não é um g ra n d e filósofo. Ele é a p e n as um p e n s a d o r m e n o r, m as u m p en s ad o r m e n o r q u e se to r n o u rep re­ sentante, p ara nós, d o que penso ser u m a g ran d e filosofia. Q u a n d o ele diz qu e se­ guir o fenôm eno é seguir as instituições, é p o rq u e entende que seguir o fenô m eno é seguir a n atu re za , deixar-se levar p or ela, reconhecer o papel das paixões, seguir os ensin am en to s da cu ltu ra vigente, seguir as tradições e costumes. Esse assun to, do possível con serv ad o rism o d o cético pirrônico segund o Sexto Empírico, foi várias vezes levantado, p o r m uitos estudos. C o m o Sexto E m pírico n ã o deixou quase nada sobre isto, é difícil sa ber o que pensava e x a ta m e n te a respeito. M a s eu sou levado a p ensar na figura de Pirro, que era um g ran d e sacerdote em sua cidade, Elis. A religião grega n ão era, co m o o cristianism o, u m a religião de consciência, m as sim um a religião de cultos, um a religião externa. P o rta n to , p a r ti­ cip ar d o culto e fazer os sacrifícios devidos era o q u e im p o rta v a para os gregos, e n ã o a consciência d a pessoa. Se a pessoa estava ou n ã o a c red ita n d o , isto não tinha m uita im p ortância. N este sentido, seguir as instituições e os costum es devia signi­ ficar, para Pirro, sim plesm ente aceitar qu e há um a tr ad ição na cidade, que há um culto, q u e se for necessário ele p ró p rio p ode fazer o culto, e assim p o r diante. Ao m esm o te m p o ele diz tu d o o q u e pensa, a to d o te m p o , e to d o o m u n d o sabe o que ele pensa. Esta me parece ser um a form a de interpretar a questão, m as n ã o há co m o ter certeza de que era isso que Sexto E mpírico tinha em vista. Por ou tro lado, q u an d o ele fala em seguir as instituições, ta m b ém p o d em o s p ensar n o fato de que tod o s nós seguimos as instituições. O s nossos a r r o u b o s de infração d as n o rm as vigentes, pen ­ sa n d o bem — com exceção talvez de alguns revolucionários — , têm m u ito p o u co a ver com u m a o posição às instituições e aos costum es em geral. N a vida prática, as instituições e n o rm a s a que nos o p o m o s são p oucas se c o m p a r a d a s às instituições e costum es a que d a m o s nossa plena adesão. Agora, in d e p ende ntem en te de a posição de Sexto E m pírico ser ou n ã o c o n ­ servadora, o que im p o rta é que n ã o vejo razões p a r a o cético pirrôn ico ser co n s er­ vador. Ele sim plesm ente suspende o juízo sobre as c h a m a d a s verdades dogm áticas, e, assim c o m o n ã o tem um d o g m a metafísico, nem epistem ológico, n ão terá um d o g m a m o ral o u um d o g m a político. P o rta n to ele n ã o terá crenças ab so lu ta s em política. M a s isso significa que ele não participará da vida política? Eu n ã o vejo um a relação necessária entre um a coisa e outra. Ele pode, por exemplo, a partir dos valores qu e tem, en ten d e r que a situação social do Brasil é ab e rra n te e trágica, e en tender qu e há um certo p a rtid o que mal ou bem representa m elhor a d en úncia disso, e a te ntativa de m e lh o rar isso. E pode e n tra r p ara esse p artid o , d a r a sua ad e sã o a ele, ou até m esm o criar um novo partido . O que n ã o significa que ele tenha um d ogm a ,

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que ten ha certas verdades absolutas. F.le é sim plesm ente alguém que quer participar da vida de seu país, juntan do-se àqueles que têm valores em c o m u m com ele. Se eu íosse, p o r ta n t o , r e f o rm u la r a idéia de viver se g undo o fen ô m e n o , eu n ã o usaria fórm ulas ap a re n te m e n te con serv ad o ras — co m o as de Sexto Empírico de fato são, independentem ente da sua intenção. Eu falaria sim plesmente em integrar-se na vida social e em suas instituições, o que é u m a fórm ula neu tra , que deixa espaço p ara um a intervenção política, até m esm o p ara um a intervenção política a p a ix o n a d a . C o m o você caracterizaria a sua relação com a religião e a fé? C o m o qu em leu meus texto s sabe, eu tive u m a fo rm a ç ã o religiosa. N a verdade, fui religioso, no sentido tradicion al da expressão, até os quinze anos. Depois, receben­ d o a influência de u m am igo de m eu pai, eu me disse com unista, e, em b o ra sem saber nada de com unism o, fui com unista d uran te dois anos, sobretudo p orque os arg um en­ tos m orais qu e me e ra m ap re sen ta d o s p o r esse am igo de meu pai eram para mim m u ito im p o rta n tes, e eu não sabia reagir a eles. D epois eu tive um a conversão, em que me converti n ov am en te a o catolicismo, dessa vez p o r meio de u m a o p çã o c o n s­ ciente e n ã o p o r influência da família. A cho que m uito p ouca gente p od e dizer que foi católico até os quinze, co m u n ista até os dezessete, e se converteu ao catolicism o aos dezessete, m as esse foi meu itinerário! | risos| F.u me converti, e e n tã o m e tornei católico praticante, estudioso da filosofia tom ista, f re q ü e n ta d o r assíduo d o s cultos religiosos, m e m b r o da Ju v e n tu d e Universitária C atólica (JUC]. G u a r d o um a lem ­ b ranç a g ostosa de m uitas dessas coisas, m as ta m b é m uma lem b ran ça m enos g o sto ­ sa, mais d o lo ro sa, de o u tra s, co m o os im perativos m orais cristãos. Eu levava m u i­ to a sério a moral cristã, e essa m oral, obviam ente, entra em violento conflito co m os instintos mais n a tu ra is d o jovem. E eu vivi isso d o lo ro sa m e n te . D e q u a lq u e r m aneira, o fato é que tive um a experiência religiosa m uito intensa, que d u r o u mais ou m enos até os vinte e q u a t r o anos, q u a n d o eu já tinha, c o m o se diz, p erdido a fé. Eu n ã o te n h o , co m relação às religiões, aqu e la posição m a rc a d a de alguns intelectuais de esquerda, que vêem nela ape nas um ópio d o povo. Sem dúvida elas o são m uitas vezes, mas ao m esm o tem po, n u m a sociedade tã o aterro riz ad o ra co m o a nossa, elas representam , p a r a milhões de indivíduos, um fator de equilíbrio, de sossego. Já que a sociedade n ã o tem sido capaz, até ag o ra , de d a r n e n h u m a so lu­ ção aos trágicos p ro b lem as que afetam milhões e milhões de miseráveis n o m u n d o , nós tem os de reconhecer que a religião representa um arrim o , u m p o n to de apoio. M e sm o aqueles que n ã o crêem em n a d a , co m o é o m eu caso, e que percebem que essa influência religiosa é c o n ta m in a d a p o r atitudes irracionais, autoritárias, alienad o ras, têm de reconhecer que, se eles perdessem de repente esse p o n to de apoio, seriam p ro fu n d a m e n te infelizes. N este sentido, é c o m o se a religião fosse um a faca de dois gumes: salvo exceções, c o m o a T eologia da L ibertação brasileira, ela de um lado ajud a a m a n te r o status qtto, funciona co m o um obstá cu lo p ara as m u d a n ça s sociais; de o u tr o lado, rep resenta u m a solução im ediata, um fator de am en ização, p a r a a tragéd ia de milhões de pessoas.

Em “Prefácio a uma filosofia”, você escreveu: “Tantos anos passados após a perda da fé, percebo que aqueles valores ainda se me impõem

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com força tenaz e que a eles não renunciei. Continuo a ansiar pela Verdade, tenho a paixão da Humanidade, acredito firmemente na Rea­ lidade das coisas e nos eventos da experiência cotidiana e tenho uma consciência brutal da finitude de nossa razão. Reconhecendo a gênese dessa minha postura, nem por isso me sinto obrigado a abandoná-la. Nenhum argumento jamais encontrei que me persuadisse a fazê-lo”. Esses valores nascidos primariamente com a fé são importantes para você até hoje? São. M as farei um a p eq u e n a ressalva q u a n t o à expressão “ re a lid a d e ” : é claro que acredito na realidade das coisas, mas n ão no sentido metafísico de que talvez eu me servisse então. De q u a lq u e r m aneira, a m in h a iniciação à vivência de certos valores se fez através da religião. Esse foi um aspecto positivo: s o b r e tu d o na época em que eu fazia p arte da Ju v e n tu d e Universitária C atólica, havia um a insistência bastante grande na Justiça, e no reconhecimento da situação absu rd a m en te injusta d a maioria das pessoas de nossa sociedade; havia um a insistência b astante g ran d e n o a m o r ao p ró x im o , e n ten d id o n ã o co m o um a atitu d e con tem plativa, m as co m o quere r t r a ­ b a lh a r p ara m u d a r o status quo, p ara que a situaç ão deles m elhorasse. T u d o isso são coisas im p o rta n tes, que eram valorizadas na experiência religiosa que tive. E o tem a m o ral é um tem a que hoje me interessa especialm ente. Eu acredito que, ao suspender o juízo sobre os dogmatism os morais, o cético continua no m undo, e n ã o tem n e n h u m a razão p a r a a b a n d o n a r valores q u e antes cultuava. Ele p od e se p erg u n ta r, um a vez percebido o fato de que, em sua experiência moral d ogm á tic a, foi inculcado nele, p o r exem plo, o n ã o se c o n f o r m a r com a miséria, se há algum a razão, a p artir d o m o m e n to em que ele n ã o é mais um crente, p a r a a b a n d o n a r isso, p a r a m u d a r o seu íntimo, a sua personalidade. Essa p reo c u p açã o com os o u tro s é o b v ia m en te um a das manifestações natu ra is do estar h u m a n o n o m u n d o , q u e r d i­ zer, aqui e ali as p ró p ria s situações objetivas desenvolvem em alguns o desejo de tr a n sfo rm a ç ã o , de m u d a r, de a rre b e n ta r com o status quo. Por que eu precisaria de valores abso lutos, de verdades atem p o rais, de co nh e cim en to da realidade em si, p ara preserv ar aquela preocupação? Se ela está em mim , se fui fo rm a d o assim, se n ã o a associo mais a crenças dog m áticas, não há q u a lq u e r m otivo p ara eu querer livrar-me dela, querer despir-me dela.

Como você se situa em relação aos problemas de uma “mudança de paradigm a” da filosofia , de uma filosofia “pós-metafísica” calcada na linguagem? Realm ente, essa é u m a m u d a n ç a que se efetivou no m u n d o co n te m p o râ n e o . C o m o m uitos au to re s já disseram , a p reo c u p a ç ã o com o sujeito deu lugar a u m a p re o c u ­ p aç ão co m a linguagem. Sob certo aspecto, parece-m e saudável essa tr a n s f o r m a ­ ção, no sentido de a b a n d o n a r m o s certos d o g m a s — os d o g m a s d o sujeito — e de privilegiarmos algo que ocupa um lugar decisivo na p ró p ria co n stituição da espé­ cie h u m a n a , que é o fato de nos servirmos de um a linguagem. P o rta n to esse inte­ resse pela linguagem me parece algo bastante salutar. De o u tr o lado, há, co m o em to d a s as tran sfo rm aç õ es desse tipo, o perigo de se h ipo stasia r aquilo qu e se está tra b a lh a n d o , o perigo, em ou tras palavras, de fazer da linguagem um mito, de achar

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que os pro b lem as filosóficos são p ro b lem as lingüísticos. Alguns filósofos c o n t e m ­ p o rân e o s, infelizmente, e n v e red aram p o r essa trilha: eles fazem um a filosofia “ lingüisticista” e tr a b a lh a m , ou p rete n d em tr a b a lh a r , os p ro blem as filosóficos co m o se fossem m eros pro b lem as de linguagem. F. isso é evidentem ente um d og m a tism o , e um d o g m a tism o ex tre m a m e n te perigoso, p o rq u e leva a filosofia a a b a n d o n a r o m u n d o , as questões reais, os hom ens, as pessoas. Enfim, essa idolatria da lingua­ gem me parece e x tre m am en te c a stra d o ra em relação aos p ro b le m a s filosóficos t r a ­ dicionais. Se há algo de saudável na virada lingüística, que devem os sa u d ar, deve­ m os a o m e sm o te m p o ser ca uteloso s, e ser radicais na d e n ú n c ia d o radicalism o d og m á tic o da filosofia lingüística. Infelizmente, u m a p arte razoável da c h a m a d a filosofia analítica — palav ra p o r sinal e x tre m a m e n te vaga — deu à linguagem um a tal dim e nsã o, um a tal im p o rtâ n cia , que foi levada a a b a n d o n a r todas as p r e o c u p a ­ ções tradicionais da filosofia. M as, v o lta n d o à p o stu ra cética, o ceticismo em n en h u m m o m e n to representa um a b a n d o n o da pro b lem átic a filosófica. N u m te x to que escrevi recentem ente, “ O ceticismo pirrônico e os p ro b le m a s filosóficos” , p r o c u r o afa star u m a idéia errô nea a respeito d o s céticos: a idéia de que, se alguém assu m e um a posição cética, deve c o nsiderar to d a a filosofia u m a perda de te m p o , e ac h a r que os p ro b le m a s filosófi­ cos n ão têm mais significado. O r a , isto é u m a ab e rra ção . Em prim eiro lugar, p o r ­ que os pro b lem as filosóficos, na sua m a io ria, são pro b lem as d o ser h u m a n o , p r o ­ blemas da vida, e o fato de m uitas vezes os filósofos te rem d a d o soluções dogm áticas a eles não implica que n ã o lhes te n h a m d a d o um tr a ta m e n to p r o fu n d o , em m uitos p o n to s reutilizável. O s g randes filósofos c o n trib u íra m decisivamente p a r a o es tu ­ do da p ro blem átic a do ser h u m a n o , e re traduz ir a sua linguagem — p ara um regis­ tro fenom ênico, diria eu — é de f u n d am e n tal im po rtâ n cia . M a s re tradu z ir sua lin­ g uagem n ã o significa, de m o d o algum , to m a r a a titu d e quix o te sc a e ridícula de afirm a r que o que eles disseram n ã o tem im p o rtâ n cia — tal c o m o te nd eríam os, se co n d u z id o s p o r um a excessiva valorização da linguagem.

Como você vê o panorama filosófico atual? Penso, de início, numa passagem de “Prefácio a uma filosofia” em que você afirtna que “racionalismo e irracionalismo são apenas as duas faces de uma mesma moeda”. Eu creio q u e o racionalism o a qu e eu me referia aí perdeu a vez, no sentido p u r a ­ m ente em pírico da expressão: n ã o se faz mais racionalism o hoje, p ouca gente se av e n tu ra a q uerer ser racionalista no sentido tradicional e clássico d a expressão — o qu e é bom . T e n h o a im pressão, porém , de qu e n ã o é preciso, nem desejável, que se renuncie à razão. O irracionalism o é u m a tragédia filosófica e c ultural que tem, com grand e freqüência, lamentáveis conseqüências no p la n o prático, no p la n o da vida das nações, d o s povos e das pessoas. Por o u tr o lado, o e n d e u sa m e n to da r a ­ zão não tem mais sentid o no m u n d o c o n te m p o râ n e o . O ceticismo, a m eu ver, não representa em n e n h u m m o m e n to um a investida c o n tra a raz ão ; ele representa, e o é, um a investida c o n tra o en d e u sa m e n to da razão. M a s o cético nasceu d a filosofia ocidental, dela se alim enta, e sem pre se alim entou. Eu diria até que ele se pretende, algo im ode sta m ente, o herdeiro dessa filosofia, pois ele tem um a q u a lid ad e que é

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sem dúvida um a q u alid ade da filosofia ocidental: a q u alid ade de ter sem pre o dese­ jo de pensar com rigor e espírito crítico, de tr a ta r os seus p ro blem as com espírito crítico. O ra , isto é algo que o ceticismo leva às últim as conseqüências q u a n d o de­ nuncia justam ente a in a d e q u a ç ã o dos em p re en d im en to s filosóficos a esse projeto multissecular de p en s am e n to crítico. O ceticismo seria, neste sentido, u m a espécie de legatário da in ten ção p rim ordial da filosofia, um filho e herdeiro da filosofia — jamais u m a recusa desta. N ã o há n a d a mais c o n trá rio a o ceticismo d o qu e um a perspectiva irracionalista.

Como você avalia a obra de W ittgenstein? F.u li W ittgenstein c o m o to d o filósofo lê, isto é, com aten ç ão , interesse, a d m iraçã o e respeito. O Wittgenstein que mais me interessa, evidentem ente, d o p o n to de vista das posições filosóficas, é aquele que vê nas filosofias um desvio da linguagem em relação a suas funções prim ordiais, que vê os problem as filosóficos não c o m o p r o ­ blemas a serem resolvidos, mas co m o problem as a serem desfeitos. Esse W'ittgenstein das Investigações filosóficas m e é particularm ente sim pático. E m b o ra haja bons c o ­ nhecedores de W ittgenstein que têm salientado a c o n tin u id a d e de certos tem as fu n ­ d am en ta is n o Tractatus logico-pbilosophicns e nas Investigações , as soluções p r o ­ postas no Tractatus me parecem absolutam ente especulativas, en q u a n to o W ittgens­ tein das Investigações me parece, sob certos aspectos, bastante aproxim ável de uma p o stu ra cética. Apesar de ele ser m uito mais radical d o que os céticos fo ra m , e as­ sumir direções que um cético n ã o teria razões p ara assum ir, creio que ele represen­ ta um a das vozes im p o rta n tes, na filosofia do século X X , que fazem a d enúncia d o d o g m a tism o filosófico.

Você utilizaria o conceito de “utopia ” para descrever a sua visão do futuro da sociedade hum anai Em que consistiria tal utopia? Eu nunca senti n e n h u m a a tra ç ã o pelo p en sam e n to utópico , e n ão saberia descre­ ver o que seria um a sociedade ideal, um a sociedade desejável. M a s me parece que todas as co nstruções p ropostas p o r pensadores, qualq u er que seja a sua orientação, p ara descrever o que seria a realização dos fins da h u m a n id a d e , são sem pre e x tre ­ m a m en te especulativas, criticáveis e problem áticas. A riqueza d o ser h u m a n o e a imprevisibilidade da história nos fazem to ta lm e n te incapazes de dizer o que seria “ a ” boa situação , o que seria a m elho r situação, o que seria a situação ideal. Eu considero inútil, e até m esm o perigoso, te n ta r tr a n s f o r m a r a sociedade a p artir de um a idéia pré-fixada do que seja o fim desejado. E evidente que os seres hu m a n o s, ou pelo m eno s os seres h u m a n o s críticos e conscientes, têm um a consciência bas­ ta n te g ra n d e das coisas que são ruins, perversas, inaceitáveis, na sociedade de hoje, e nós q u ere m o s n a tu ra lm e n te m u d a r essas coisas, q u ere m o s transform á-las, q u e re ­ m os fazer as pessoas se en c am in h arem p ara o melhor. Acontece que esse m elhor vai sendo definido, p o r nós mesm os, aqui e ali, co n fo rm e as circunstâncias, c o n ­ form e as épocas. N ã o acredito que se possa delinear a sociedade ideal, e esse mito, a meu ver, deve ser a b a n d o n a d o .

Há progresso na história?

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É difícil dizer, mas me parece que um a sociedade, p o r exem plo, em que m ulheres e hom ens têm igualdade de direitos, é m u ito m e lh o r d o que u m a sociedade em que n ã o a têm. U m a sociedade em que o p ov o, de algum m o d o , participa das coisas do gov ern o me parece, de m o d o geral, m uito m e lh o r d o que u m a sociedade em que o pov o n ã o participa. E v erdade q u e essa p articip a çã o m uitas vezes é a d u lterad a ; é verdade qu e certos meios de c o m u n ica çã o influem de tal m aneira sobre a p o p u la ­ ção, que so m os levados a p e rg u n ta r se realm ente é o p o v o que está escolhendo os ca n d id a to s ou se são as em presas de televisão. D e q u a lq u e r m o d o , p o ré m , a p a r ti­ cipaç ão das pessoas na f o rm a ç ã o de seu gov ern o é algo positivo. Assim co m o a ex tensão d as p reocupações com o sem elhante, que é talvez um dos p o u co s aspec­ tos da globalização que p od em ser ditos de notável importância: o que acontece hoje na Bósnia, n o V ietnã, no D aguestão, é im p o rta n te p a r a m u ita gente, e n ã o apenas p a r a alguns intelectuais. T u d o isso é u m a van tag e m em relação a épocas em que as coisas n ã o e ra m assim , e p o r ta n t o p o d ería m o s falar em progresso. É claro que estou definindo esse progresso a p a r tir de certos valores m orais, e é claro que esses valores m o rais são nossos, são valores em que fom os fo rm a d o s e que endossam os. M a s n ã o vejo mal n e n h u m em as su m irm o s a nossa p a rtic u la rid a ­ de, a nossa contingência, e, ain d a que recon h ece n d o que esses valores, co m o o da m a io r igualdade, da m a io r justiça, da m e n o r miséria, da m e n o r desgraça, são valo ­ res em que fom os fo rm a d o s, dar-lhes a nossa adesão. Eu diria p o r ta n to , desse p o n ­ to de vista, que houve, sim, algum progresso. Inclusive te n h o m uita sim patia pela posição d o R orty co m relação a esse p o n to , pois ele tenta m o stra r justam ente que a consciência de nossa precariedade e de nossa contingência n ã o nos im pede, em n e n h u m m o m e n to , de lutar p o r aquilo em que acreditam os.

Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos co­ mo riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em lar­ ga escala e alienação cultural em massa. Como você vê tais problemas? Eu os vejo co m o trágicos, obviam ente, e c o m o conseqüências nefastas dessas tra n s ­ form ações globais p o r que passa a sociedade. A globalização é um fato inevitável, m as a n en h u m m o m e n to precisa ser to m a d a co m o u m valor a ser c ultu ado. T ra ta se de um fato que n ã o p o d em o s evitar, m as ele traz no seu bojo pro b lem as terríveis e seriíssimos. C) que se coloca p ara nós, c o m o desafio, é te n tar lidar com eles, te n ­ ta r minimizá-los, se possível eliminá-los, conscientes da dificuldade qu e há nisso. N ã o se tr a t a de aceitar a globalização c o m o um bem , nem de condená-la co m o um mal, mas de aceitar que ela está aí, que as tran sfo rm aç õ es tecnológicas e ec o n ô m i­ cas nos põem d iante de um fato c o n s u m a d o . T u d o q u e p o d em o s é t e n ta r tr a n s f o r ­ m a r as coisas para q u e as suas conseqüências ruins sejam fortem ente dim inuídas.

Paulo Arantes emprega, em U m d e p a r ta m e n to francês de u ltra m a r, o adjetivo “pré-modemo ” para caracterizar a sua atitude filosófica, tendo em vista tanto a fase da promoção filosófica da visão comum do m un­ do como a fase neopirrônica, em que você estaria navegando “a contracorrente do miolo cético do modernismo”. No entanto, a recusa da tradi­ ção filosófica moderna é algo que você expressamente assume, porconsi-

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derá-la fundada na “concepção mentalista do conhecimento” que ten­ de a afastar o pensamento reflexivo da vida real — tendência à qual mesmo os céticos modernos, como Hume, não escapariam. Como, então, você se posicionaria em relação a essa caracterização de “pré-modemo”? Se p r é-m o d ern o q u e r dizer grego antigo, não te n h o nad a co ntra! (risos] O m u n d o grego, e ta m b é m o m u n d o medieval, que sob certos aspectos copiou o grego, tinham u m a p o stu ra diante dos pro b lem as d o con h e cim en to — n ã o estou d izen do senão u m a trivialidade histórica — tota lm e n te diferente da p o stu ra m o d e rn a . A p o stura m o d e rn a , em Descartes, com eça com a valorização d o sujeito, co m a valorização d o p en s am e n to sobre a experiência d o m u n d o , co m a idolatria da razão. Eu ac ho que os gregos, m esm o Platão, eram m uito mais afeitos ao co tid ia no, às coisas que se passavam im ediatam ente, estando n u m a sintonia m u ito m a io r com o m u n d o do que o p e n s a m e n to m o d e rn o . Pois este último, m esm o q u a n d o se deb ru ç a sobre o m u n d o para pensá-lo, em geral o faz a p a rtir de um a razão id o la trad a , a p artir de u m a raz ão h ipo stasiad a, a p artir de um culto d o sujeito. O r a , eu ac ho que deve­ m os ter, nesse sentido, a coragem de dizer “ n ã o ” a o m ode rno. Isto é, não há p o r que colocar o sujeito em prim eiro lugar, n ã o há p o r que aceitar u m a filosofia que está enraizada em última análise no cogito. Uma das coisas mais im portantes, a meu ver, na co n sideraç ão d o cogito cartesiano, é que o sujeito se pergunta: “ C o m o p o s ­ so saber que este m u n d o existe?” ; “ C o m o posso saber q u e isso é um a v e rd a d e?” ; “ Eu não poderia estar e n g a n a d o p o r esta ou p o r aquela r a z ã o ? ” . E eu te n ho v o n ta ­ de de pergun tar: “ Eu qu em , cara pálida? !” [risos]. E claro que, se você adm ite que p ode haver p ensam e n to sem m u n d o , a p ergunta tem to d o sentido. M as, se você não tem razões p a r a a c redita r que haja p en s a m e n to sem m u n d o , a p erg u n ta n ã o quer dizer nada. O ra , essa hipóstase d o sujeito, d o p en sam e n to , da razão, é a co n trib u i­ ção genial de Descartes para a filosofia. M a s é a o m esm o tem po, a meu ver, a r a ­ zão para que um cético co m o eu desconfie de to d a filosofia que d aí se nutriu, que se nutriu da hipótese de u m a separação entre p en s a m e n to e m u n d o . O sujeito, p a r a o cético, é alguém c h a m a d o José, qu e tem carne, osso, dente, que briga com a n a m o ra d a etc. O sujeito é o ser h u m a n o q u a n d o nós ce n tram o s a atenção sob re ele. O que são as filosofias? As filosofias são sim plesm ente exercícios de p e n s a m e n to de seres h u m a n o s n o m u n d o . E preciso c o m e ç a r se m p re p o r aí, co m eç ar sem pre p o r essa rem issão ao h u m a n o vivido de ca d a dia. E n q u a n to a filo­ sofia ocidental se orgulha justam e n te de ter-se co nstitu íd o sobre a não-aceitação disso co m o p o n to de partid a p ara pensar, o cético grego é aquele q u e só tem isso p a r a pensar, e não acredita que se tenha o u tra coisa além disso. N este sentido, a m inh a p o stu ra é to ta lm e n te “ a n t im o d e r n a ” .

Para terminar, uma pergunta um pouco mais jocosa. Será que há tan­ ta diferença assim entre Tales caindo no poço porque olhava os astros e Pirro caindo no buraco e sendo abandonado lá por seus discípulos imperturbáveis? Isso sobre Pirro é intriga da oposição! |risos| F, claro que se sabe m u ito p o u c o so­ bre a vida de Pirro, há ape nas um as historietas so bre ele, de Diógenes Laércio. M a s já na an tiguidade alguns p ensadores céticos se qu eix av a m dessas historietas, diziam

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que tin h a m sido inventadas p o r opositores e que n ão eram verdadeiras. H á até quem sustente que Pirro se perm itia algum as vezes certas extravagân cias p ara c h a m a r a aten ç ão p a r a seus p o n to s de vista. Existe, p o r exem plo, a seguinte história. Q u a n ­ d o o am igo de Pirro, A n a x á g o ra s, estava se afo g a n d o , diante de to d a u m a c o m iti­ va, e com m uita gente q u e re n d o salvá-lo, Pirro teria afe tad o indiferença, no senti­ d o de que n ã o p o d em o s estar tota lm e n te seguros de nossas im pressões sensíveis, o u algo assim . Se ele de fato o fez, pode te r sido u m a brincadeira, e u m a b rinca dei­ ra sem conseqüências, p o rq u e os am igos c o rreram p ara salvar A n axá gora s. O filó­ sofo é levado às vezes a dizer certas coisas que p o d e m parecer m uito e x tra v a g a n ­ tes. L em bro-m e, p o r exem plo, de q u a n d o eu estava n u m coló q u io em C u ritib a e, na saída d o co lóqu io, toquei n u m assu n to que se tinha discutido — eu tinha te n ta ­ d o m o stra r, em m inha com u nica çã o, que é tota lm e n te ridícula a ca rica tura d o cé­ tico co m o aquele que n ão sabe, p o r exemplo, se essa mesa está aqui. Eu estava diante de u m a árvore, na rua, e n u m d e te rm in a d o m o m e n to fui levado, nesse c o n te x to , a dizer, a p o n ta n d o : “ H á um a árvore aqui! Eu n ã o posso recusar isto!” . F. um casal qu e passava ficou o lh a n d o de m aneira m u ito esp antada! [risos] Enfim, o fato é que aos o lhos d o senso c o m u m um a a firm a çã o filosófica p ode parecer um a coisa a b s o ­ luta m e n te ex travag ante.

Principais publicações: 1981 1993 1995 1999 2001

A Filosofia e a Visão C o m u m d o M u n d o (co-autor) (São Paulo: Brasiliense); Vida C o m u m e Ceticismo (São Paulo: Brasiliense); “ V erdade, ceticismo e re a lism o ” , Discurso, n° 25; “ D iscurso aos es tudantes de filosofia da USP sobre pesquisa em filosofia” , Dissenso, n° 2. A noção aristotélica de ciência ( d o u to ra d o defendido em 1967; no prelo).

Bibliografia de referência da entrevista: Descartes, R. Meditações, coleção O s Pensadores, Abril C ultural. Gellner, E. Relativism and tbe social sciences, C am b rid g e University Press. H u m e , D. Tratado de Ia naturaleza humana, M adri: Tecnos. _________. coleção O s Pensadores, Abril Cultural. K ant, I. Crítica da razão pura, coleção O s Pensadores. Abril Cultural. P opk in, R. A história do ceticismo de Erasmo a Spinoza , Francisco Alves. P opper, K. A lógica da pesquisa científica , Edusp. Q uine, W. V. Relatividade ontológica e outros ensaios, coleção O s Pensadores, Abril C ultural. R o rtv , R. A Filosofia e o espelho da natureza, R c lu m e -D u m a rá . Sexto Em pírico. Pirronean hypotyposes, H a r v a r d University Press (Loeb). W ittgenstein, I.. Tractatus logico-philosophicus, Edusp. ______________ . Investigações filosóficas, coleção O s Pensadores, Abril Cultural.

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RUY FAU STO (1935)

Ruy F austo nasceu em 1935, em São Paulo (SP). F orm ou-se em Filosofia e em Direito pela Universidade de São Paulo e obteve o título de d o u to r em Filosofia pela Universidade de Paris I. Foi um dos fundadores da revista Teoria e Prática. Foi p r o ­ fessor d o D e p a rta m e n to de Filosofia da USP até inícios de 19 6 9 , q u a n d o se exilou. É professor da Universidade de Paris VIII e professor em érito da USP. Esta e n tre ­ vista foi realizada em setem b ro de 1999.

Goethe dividiu a vida do seu personagem Wilbeltn Meister em dois ro­ mances, O s anos de aprendizado e O s anos de peregrinação. No primeiro, o foco está posto na formação do indivíduo Wilhelm Meister, enquan­ to o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que você nos falasse de sua for­ mação intelectual? M in h a fo rm a çã o intelectual é m uito c om plic ada , m uito suigeneris, em função, di­ gam os, de circunstâncias pessoais e de razões históricas: uma confusão, se ouso dizer, de vida pessoal co m história universal. H avia um p roblem a ligado a o fato de que a filosofia n o Brasil estava m u ito p o u c o desenvolvida, e foi preciso rea p re n d er na E u ro p a o que eu n ã o tinha ap re n d id o aqui. A m in h a fo rm a ç ã o é ta rd ia, sou um sujeito que se fo rm o u m u ito tarde, q u e tem um a longa história e um a longa f o rm a ­ ção, inclusive p o r co n ta de alguns fatores pessoais: a vida familiar um pouco c o m ­ plicada, m ãe m o rta m u ito cedo etc. Q u a n d o co m eçava a levantar a cabeça, fiquei d o en te na E uropa. O fato é que houve um longo p eríodo de caos n o p lano intelec­ tual, ligado a um a atividade política, ta m b é m caótica à sua m aneira. M a s de certo m o d o eu funcionava nessa área. De um a fo rm a m uito im a tu ra, m as funcionava, escrevia com mais facilidade... M as, no p lano p ro p ria m e n te teórico, o caos foi, di­ g am os, até os 38 a n o s mais o u menos.

Você consegue datar, então? O ano é 1973? Sim, em 1973 eu comecei a escrever textos que tin h a m pé e cabeça. E m b o ra a p a r ­ tir daí eu possa ter m u d a d o em alg um as coisas, especialm ente em algum as coisas políticas, há um a certa continuid ade. E a partir daí que eu me reconheço. F., q u a n ­ d o o sujeito se en c o n tra p o r volta dos 4 0 anos, com eça u m a longa co rrid a atrá s do tem po: tem que ler isso, tem que ler aquilo, tem que te rm in ar a o b ra de juventude co m c in q ü en ta a n o s ... Bem, essa é a m inha história. A graduação você fez quando? A g ra d u a ç ã o cm Filosofia eu fiz cedo, terminei em 1956. M a s foi u m a g r a d u a ç ã o

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m u ito ruim , po rq u e os franceses já tin h a m ido e m b o ra e não havia gente p ara substituí-los, de m o d o que eu peguei o “ olh o d o ciclon e” . E você fez Direito ao mesmo tem po? Fiz D ireito p o r razões familiares: a filosofia era desvalorizada e as famílias qu eri­ am que a gente tivesse u m a profissão decente. F.ntão fiz Direito, p o r pressão do meu pai, m as só levei a sério d u r a n te um a n o — o resto d o c urso fui fazendo sem m uito interesse, prestava alguns exam es de segunda época, os únicos acessíveis a q uem não freqüentava o curso, e terminei em seis anos. O meu irmão mais velho, que sofreu um im p acto mais antigo, fez ape nas Direito, e só foi fazer H istó ria mais tarde. Eu fui da geração de transição, que, e m b o ra e s tu d a n d o Filosofia, tinha um a profissão “ d ec ente” . Já nas gerações mais novas, m uitos to p a r a m fazer só Filosofia. E era interessante a c o m p araç ão : eu gostava m uito da faculdade de Filosofia, m a s a de direito era o u tra história, m u ito pior, m u ito tradicional. N a Filosofia, apesar da ausência dos franceses, as coisas funcionavam : havia o Lívio Teixeira, que p r e p a ­ rava cuid ad o sa m en te as aulas; o C ruz C osta, com as suas qualidades, e alguns mais (em p arte de o u tro s depa rtam e n to s). Vocês q u ere m um exe m plo d o con tra ste e n ­ tre as duas faculdades? V ou c o n ta r um a an edota: o Lívio Teixeira chega à sala de au la e diz: “ H o je eu n ão posso d a r aula po rq u e o n te m tive que ir ao dentista e n ão p reparei nada. E se eu não p r e p a ro a aula, n ão tem a u l a ” |risos]. Já na Faculdade de Direito, o professor que tivesse ido ao dentista e não tivesse p r e p a ra d o a aula, iria fazer um discurso sobre o direito, os alun os aplau d iria m no final, e coisas des­ se tipo. Era de um lado a falta de jeito do Lívio Teixeira, e de o u tr o a eloqüência brasileira do século XIX. N a Faculdade de Direito, a gente só consultav a apostilas, excepcionalm ente lia um livro — d o professor — , e q u a n d o apareciam alguns p r o ­ fessores que faziam a coisa mais seriam ente, eles eram consid erado s terríveis! O que o levou a querer estudar filosofia? Eu fiz o secundário no M ackenzie, que era m uito ruim . M a s nos últimos an o s a p a ­ receram alguns professores fo rm a d o s pela Faculdade de Filosofia, que co m e ç a ra m a m u d a r tu d o . Fui a lu n o d o D an te M o reira Leite, que n ão era filósofo, m as psicó­ logo, e ele me co n to u m uitas coisas. Ele nos falava um p o u co da pré-socrática, de filosofia grega e cristianismo, de filosofia da ilustração. M a s falava m uito mais e m e lh o r de um a ciência h u m a n a p ré-estruturalista: M a rg a re t M e a d , I.évy-Brühl, ta m b é m Freud e Jung. A cho que era o m elhor a lu n o dele. T a m b é m fui a luno do M a ssa u d Moisés, que era um m uito b o m professor de português, esforçadíssimo, q u e nos fazia escrever. Ele lia p a ra a classe os meus trab a lh o s de literatura brasilei­ ra. M as eu n ã o tin ha intenção de fazer letras. Depois apareceu a Emília Viotti, fa­ lando de R evo lução Francesa, N a p o le ã o , Zollverein \união ad u a n eira alemã] etc. Bem, m uito cedo e n tra a política pelo meio: família judia, a gente a c o m p a n h o u a guerra desde o com eço. A pesar de eu ter nascido em 1935 e de só ter q u a t r o anos em 39, lembro-me da declaração de guerra, ta m b ém da entrada dos alemães em Paris (meu pai n ã o disse um a palavra d u ra n te o alm oço inteiro), eu a c o m p a n h a v a tud o, discutia política. A certa altura, já tín h a m o s virado udenistas fpartidários da U nião D em ocrática N acional], depois socialistas, e no final d o colégio eu já tinha, co m o

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R uy F au sto : " M a s d ig a m o s q u e o m eu o b je to filosófico é a d ia lé tic a , e dela eu tiro a idéia d e crític a. E stá n o c e n tro d a m in h a reflex ã o a n o ç ã o de in te rv e rsà o , a d o m o v im e n to de u m a coisa q u e p assa n o seu c o n trá rio : é u m a c a te g o ria crític a essencial, inclusive n a p o lític a ” .

dizia o poeta I.uis A ra n h a , “ o livro bolchevique em espanhol deb a ix o d o travessei­ r o ” . () meu irm ão Boris, q u a tro anos mais velho, exercia m u ita influência. Teve um peso excessivo, que foi negativo, e m b o ra , p o r o u tr o lado, ten h a a ju d a d o a a brir cam inhos. \ l e u o u tr o irm ão, o que virou (grande) cientista, era a vítima: segundo a ideologia familiar, ele tinha “ cabeça d u r a ” ... Bom, o fato é que, me interessando p o r política e m a rx ism o , eu hesitava e n ­ tre filosofia e história, e acabei o p ta n d o p o r filosofia. M a s na facu ldade foi meio co m p licad o, p o rq u e o curso n ã o era b o m , a gente n ã o recebia u m a boa form ação, e ain d a havia um a certa am big ü id a d e nos meus interesses, que me fazia ser meio m arginal: diferentem ente de alguns dos meus colegas, c o m o o Bento P ra d o , eu n ão era filósofo desde os dezesseis; tin h a um interesse específico pela dialética, ia ler o Anti-Dühring, ia em busca do fundam ento da política.... D igam os que de certo m odo fiquei m a d u r o — m a d u ro m u ito à m inha m aneira — p ara a política m uito cedo, tinha a m ania de escrever artigos gauchistas, e bem o u mal adq u irira um a certa o r ­ g anização nesse terreno. Já o universo da filosofia era u m a espécie de caos, um a salada enorme: eu n ã o sabia bem para onde ir, havia, co m o disse, u m a série de razões pessoais: segundo filho, mãe m o rta q u a n d o eu ainda n ão tinha 4 anos, pai imigrante, fom os to d o s viver ju n to c o m m eus tios n u m a casa m u ito g rande, tu d o um pouco a gitado dem ais, e assim p o r diante.

E quais as influências que o marcaram na Faculdade de Filosofiaf Bem, o Lívio Teixeira era um b o m professor de história da filosofia, m as era meio pesado. E eu n ã o gostava dem ais da história da filosofia. N essa época eu tendia para um certo positivism o, e era m arxista. G ostav a de ler história da ciência. Já o C ruz C osta — me tra ta v a m u ito bem , eu sim patizava com ele— era u m perso n a g em in ­ teressante, m as n ã o se ap re n d ia m u ito c o m ele. A gora, os dois facilitavam m u ito as coisas p ara a gente, eram u m a espécie de a n tim a n d a r in s cujo único defeito era darnos responsabilidade demais. F ora eles, fui alu no d o A n to n io C â n d id o , d u r a n te seis meses, n u m curso de sociologia, que era interessante, mas in tro d u tó rio . T a m b é m fui a lu n o da Gilda de M ello e Souza, q u e fazia o que se ch a m a v a en tã o de estética sociológica, e foi algo que estudei co m interesse, m as ta m b é m só foram seis meses. Encontrei de nov o o D ante, que era um sujeito sim pático, m as a c h a m a d a psicolo­ gia diferencial n ã o só tin h a p o u c o a ver c o m filosofia (o que n ã o era grave), mas n ã o me interessava m uito.

E colegas ? Ah, n ão havia quase nad a: as classes e ra m m u ito am orfas. Elas tin h a m sem pre um ou dois “ g en io zin h o s” que p ro m e tia m um g ran d e futuro, e o resto era u m a massa am orfa. M a s, v o lta n d o aos professores, aí vieram os franceses: eu já n ã o era a lu ­ no, mas assistia às aulas deles. Q u a n d o ainda era aluno, apareceu o [Claude] Lefort, d a n d o aula no terceiro a n o de sociologia, e, c o m o ele era ex-trotskista, houve dis­ cussões m u ito interessantes. O Lefort n ã o me converteu — isto é, n ã o me “ desc o n v e r te u ” — nem me convenceu, m as foi um c o n t a to b o m . D epois ap a rece u o [Gilles-Gaston] G ranger. M a s a verdade é que a m inha ligação co m a filosofia es­ tava m uito verde, eu n ã o sabia m uito bem para o n d e ir, e levei m u ito te m p o para

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e n c o n tr a r um certo estilo, um c a m inho. Aliás, te n h o a im pressão de que c o n tin u o p r o cu ran d o ! | risos] \ l a s nessa época da faculdade nós viram os militantes trotskistas. N o s anos 50, T ro tsk y era c o n s id erad o um policial a serviço da G estapo , e ser trotskista sig­ nificava — de fato — e n tra r p ara u m a seita. E n tã o eu andei pelo m o v im en to t r o ­ tskista alguns anos. Fui “e n t r i s ta ” na Ju ve ntude C o m u n ista (não p o rq u e me tives­ se infiltrado, mas p o r q u e me co n v id a ra m a entrar) e isso quase me enlouqueceu. Para um m e nino de 19 anos, frágil, com pro b lem as familiares, aqueles coisas m a ­ lucas n ã o eram fáceis. H o u v e até alguém de fora d o meio universitário que m o rre u n u m acidente de autom óvel suspeito, o q u e significa que eu corria riscos. M as aí veio a bolsa e eu fui p ara a França, o nd e, q u a n d o com eçava a o r g a n i­ zar a m in h a vida, fiquei doente.

Em que ano? Fui p ara a F rança em n o v e m b ro de 1960. Antes disso, ensin ara n o interior, na rec é m -in au g u ra d a Faculdade de Rio C la ro (futuro campus da Unesp). T in h a c o m e ­ ç a d o a tr a b a lh a r na USP c o m o aju d an te d o C ruz C osta (sem g a n h a r nada), e d e ­ pois, indicado pelo D an te M o r e ir a Leite, dei aula n o M ackenzie, na escola em que eu tinha estudado. Isso foi difícil: ia d a r aula com um m e d o louco, organizava as aulas com dificuldade, mas fui fazendo. Depois me con v id aram para ensinar em Rio Claro, e eu passava de m enino que term inou os estudos a professor titular, g an h a n d o um m uito bom salário. Aliás, q u a n d o meu pai viu o que estava d a n d o aquela p r o ­ fissão m a ldita (na realidade ele nunca foi co n tra , m u ito pelo co n trá rio , mas tinha m e d o que eu passasse fome), ficou e n c an tad o , u sa n d o um a de suas expressões p r e ­ feridas (que, não sabia, devia ser corrente nos anos 20, p o rq u e a encontrei no M á rio de A ndrade): “ Isso é u m a m in a ! ” . Im aginem o velho: um p eq u e n o com ercia nte sempre p reo c u p a d o , tr a b a lh a n d o co m o um b u rro , viajando — ele era com erciante de café — , enfim um p eque no capitalista. De repente o filho, que escolhera um a profissão de pobre, e de q u em se dizia: “ Ele vai ser professor, mas depois de ser professor vai ser o q u ê ? ” , conseguia esse bom emprego! Bem, depois disso, eu fui p ara a França, e lá, em Rennes, encontrei o [Victor] G old sch m idt, o G ra n g er (estava lá ta m b é m o meu colega |O s w a ld o | Porchat). Fi­ quei m u ito a n im ad o . M a s o clima — no sentido geográfico — era m u ito ruim , eu tinha saído d aqui no verão p ara enc on trar o inverno úm ido da Bretanha, comia sem ­ pre no restauran te universitário, b a ra to , m as péssim o — e m b o ra tivesse um dinheirinho, queria gu ard á -lo p ara viajar, c o m o to d o estud ante no exterior. Só que tive azar: fui p a r a r n o hospital c o m um a infecção p u lm o n a r , e os médicos c o n s id e ra ­ ram a hipótese de que fosse câncer. Tive q u e fazer muita radioscopia, e acabei p a s­ sando q u a r e n ta dias n o hospital (m uito bem tr a ta d o , com as despesas pagas pela cidade de Rennes). Resisti com m uita força, até passar o perigo (q u a n d o ficou cla­ ro q ue tin h a um a infecção, aliás n ão m u ito bem identificada). M as depois que p a s­ sou o perigo, baqueei, e levei a n o s p ara me refazer. O golpe fora m uito forte para quem ain d a era m u ito frágil. D epois que tive alta, ninguém sabia dizer ex a ta m en te que d oença eu tivera. De m inha parte, fiquei entre a pleurice (no p rim eiro inverno tive até que voltar a o hospital p o rq u e o correra um d e rra m e na pleura), o m edo do

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câncer, e ta m b é m o m e d o da leucemia (no m o m e n to m esm o em que saí d o hospital c om eçou a c a m p a n h a co n tra as radioscopias, cuja periculosidade se descobriu). Depois disso, fui p a r a r na A lem an h a , p a r a e s tu d a r alem ão. Fiz um cu rso no Instituto G oethe, fui ficando mais a n im a d o , e depois voltei p ara o Brasil: vim p a ra o D e p a rta m e n to [de Filosofia da USP], e aí não foi fácil: havia co m p etiçã o , eu ti­ nha um p roblem a m u ito g ran d e c o m o G ian n o tti. N ã o sei se devo e n tra r aq u i em detalhes sobre essas histórias, m as foi um m o m e n to m uito difícil. A cho q u e ele tem u m estilo m uito violento, ele praticava o que hoje se cham a na França de harcèlement moral, a perseguição aos mais frágeis (com o assinala um livro recente sobre o a s ­ su n to , as vítimas são frágeis sob certos aspectos, m as em geral superiores m oral ou intelectualm ente, ou as duas coisas, ao s seus algozes). N a época nem o n o m e da coisa existia, as vítimas e ra m sem mais culpabilizadas e ta x a d a s de loucos, ressen­ tidos ou m asoquistas. H avia o m ito terrível — e falso — da sim etria entre o p e r ­ verso e a sua vítima (mito que ta m b é m a psicanálise alim entou). F.u acabei me sa­ fando , m as p o d eria te r sido destru íd o nessa brincadeira. — Aí veio o prim eiro gol­ pe [em 1964], e fui m e m e te n d o de n o v o em política, m as desta vez com m a io r dis­ tância (p orém os riscos, agora , e r a m m u ito maiores). Em 1968, atuei m u ito n o ní­ vel d a Faculdade, m as n ão me liguei a n e n h u m g ru p o oficialmente. Assim m esm o corri m u ito risco, m as poderia te r co rrid o mais. E n tã o aqu ela d o ença me teria sal­ vo a vida, p o rq u e, ape sa r de tu d o , passei a ser um p o u c o mais p ru d en te depois dela. E a experiência da revista T e o r ia e Prática? E verdade, houve essa experiência, que in ventam os, o R ob e rto [Schwarz], a Lourdes [Sola] — m in h a ex-m ulher — , o Sérgio Ferro, o J o ã o Q u a r tim [de M o r a e s | e mais alguns. Foi interessante: a gente participou daquela coisa to d a , m as era um univer­ so m u ito louco, que foi liquidado pelas brigas da esquerda, à direita b a s ta n d o d e ­ pois d a r o golpe de m isericórdia. N a Teoria e Prática, ac ho que o único que n ão estava ligado a n e n h u m g ru p o a r m a d o era eu, q u e tinh a m e d o e disse q u e não ia me ligar. Já eles, desviavam d inh e iro da revista p a r a a luta a r m a d a , o que era u m a besteira total. C o m e ç a r a m a se digladiar lá d en tro , e com isto praticam en te liqui­ d a r a m a revista. Q u a n d o a direita veio com o A to Institucional, ela deu apen as o tiro de m isericórdia (parece q u e h ouve até discurso c o n tra a revista na C â m a ra Federal). M a s a experiência foi, apesar de tu d o , interessante, e m b o ra m u ito ca n sa ­ tiva. Lá eu pude escrever algumas coisas polêmicas, e um prim eiro texto teórico sobre M a r x (texto que ficou nas p rovas do q u a r to n ú m e ro a b o r ta d o da revista).

Conto você avalia a interpretação que o Paulo Arantes fez do seu tra­ balho na década de 1960? Eu não me lem bro m uito bem, m as acho que n ão estava errado. Basicamente, o que aconteceu foi o seguinte: no m eu fio de reflexões sobre o m a rx ism o , eu m e p r e o ­ cupei sempre, desde os 18 anos, com p ro b lem as de f u n d am e n taç ão . Era a coisa da relação e ntre m o ral e política, d o f u n d a m e n to da a ç ã o (porque participar?) etc. Eu tin h a chegado a um esquem a em que o socialismo, e ta m b é m to d o s os valores, es­ ta v a m lá, m as n ã o e r a m o f u n d a m e n to , ficavam n o horizonte — resposta expressa em estilo meio husserliano. Era um b o m esqu em a, mais o u m enos c o rre to (banal

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se mal e lab o rad o , m as c o n te n d o virtualm ente coisa interessante). \ l a s , a o m esm o te m p o , eu tinha u m a tem ática erra d a , o u fo rm u la d a de m aneira m u ito tosca, em que o m a rx ism o aparecia c o m o sendo antifilosófico. (Ele o é de fato, mas n u m sen­ tido m uito mais com p licad o.) M a s a partir daí fui a b a n d o n a n d o essa p reo c u p açã o estéril de saber se o m a rx ism o é ou n ã o filosofia, e fui d esenvolvendo o u tr o esque­ ma. L endo Hegel, descobri qu e aquela história de horizonte poderia ser desenvol­ vida com mais rigor.

Você consegue datar ? Acho que o prim eiro texto em que o novo esquema aparece é um texto de 1973 que escrevi na Europa. C o m a repressão fora obrigado a sair d o país, indo prim eiro para o Uruguai, depois para o Chile. N o Chile, eu já tinha esse novo esquema, pois lembrome de u m a conferência de 1971 em que ele aparecia. H avia diferenças em relação a o artigo de 1968, que sairia no q u a r to n ú m e ro da Teoria e Prática. E m b o ra haja ta m b ém um a certa c o n tin u id a d e entre os dois m o m e n to s, nesse artigo a m o n ta g e m era mais a antiga, a do horizonte. T in h a algum a dialética, m as pouca. N o Chile, eu me lembro, o esquema dialético era bom. Aliás, freqüentemente, meu discurso falado era m elh or d o que o escrito. Porém a dialética apareceu na época em q u e dei um curso sobre a Fenonienologia |do Espirito]; de repente me dei co n ta de o n d e a d ia ­ lética se encaixava, e comecei a tra d u z ir a an tiga form a n u m a linguagem dialética. D o p o n to de vista político, c o n tin u a v a , nessa época, trotsk ista sim patizante, m as tinha m e afa sta d o um p o u c o da política, desde q u a n d o fôra p ara Rio Claro. N o fim dos anos 60 sofrêram os o im p a cto c u b a n o ; e m b o ra T ro tsk y continuasse sendo um a referência, o nosso m a rx ism o g a n h o u o u tra s características. E depois, já nos a n o s 70, tom ei mais distância ain d a d o tro tsk is m o , que ca d a vez mais eu achava sectário, m a s comecei a m e a p r o x im a r d o leninismo! — pior a e m en d a do que o soneto — acreditava que neste havia mais jogo de c in tu ra (o q u e d en tro da política m a rx ista era verdade). Se eu pegasse hoje os meus artigos políticos da é p o ­ ca, n ão sei se ain d a fariam sentido, m a s os artigos teóricos, mais técnicos, já c o m e ­ ça v am a a p re sen ta r um a posição coerente — mutatis mutandis — com o que p e n ­ so até hoje. P o rta n to posso dizer que comecei a fazer coisas válidas d o p o n to de vista teórico no final dos a n o s 60, já c o m mais de 35 anos. Antes disso, eu tinha um a imensa dificuldade p ara escrever: n ão saia nad a bom , a n ão ser ex cep cional­ m ente u m a resenha. Portanto a descoberta do Hegel foi um marco? Ah, sim! C o m o desde cedo o m eu negócio era a filosofia m a rxista, e o m eu interes­ se era o f u n d a m e n to ou o n ã o - f u n d a m e n to , Hegel era a referência necessária. E n ­ tão peguei a Lógica, naquela tr a d u ç ã o horrível d o Jankélévitch pai — co m o to d o m u n d o , eu era o b rig a d o a saber ler francês — , e m e p u n h a a lê-la nos sofás da bi­ blioteca da F aculdade de Direito. N ã o entend ia n a d a , mas fiquei enc antado ! Lera um livro d o C a io P rado Jr., A dialética do conhecimento, que é um a coisa m uito, m uito ruim , mas co m o me faltava to d a base, fiquei im p re ssiona d o c o m aquela his­ tória ab s u rd a de que a lógica de Hegel era u m a lógica psicológica! Enfim, o fato é que eu tinh a u m a verdadeira fascinação p o r Hegel aos 18 anos. Depois, q u a n d o eu

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voltei da França, comecei a fazer leituras da Fenomenologia c o m os a lunos e, a p e ­ sar de n ã o saber bem p a r a o n d e ir, as coisas foram se ju n ta n d o . Por um lado, isso foi ótim o, p orqu e adquiri um a problem ática p rópria, m as a o m esm o te m p o era meio esterilizante, po rq u e ficava g ru d a d o naq u ilo e me to rn av a presa fácil na c o m p e ti­ ção universitária. M a s aí veio o A to Institucional de fins de 1968, e tive de ir e m b o ra . Fui p ara o U ru g u a i, d o U ruguai queria ir p ara a França, mas fui p a r a o Chile, o nde virei professor da U niversidade C atólica — em preg o que o Ernani Fiori, pai da Otília Fiori A rantes, me a rra n jo u . A faculdade n ã o era b o a, m as foi um a experiência in ­ teressante.

Você ficou quanto tempo lái Fiquei de 1969 a 1971, dois an o s e meio — saí um a n o antes d o golpe. Lá tentei fazer um tra b a lh o b o m , repetindo o nosso tra b a lh o daq u i, de trazer os franceses. E consegui: foram a o Chile o Alain G rosrichard , a C laude Imbert, o [Gérard] Lebrun. Aí, aliás p o r insistência do L ebrun, resolvi voltar à França, e c o n tin u a r a tese que eu tinha c o m eç ad o no início dos an o s 60. Fui de navio, po rq u e tinha m u ito m edo de avião (ainda tenho, m as m enos; esse m e d o me levou aliás a conhecer m uitos lu­ gares na A mérica espanhola). N a França, n ã o tinha em prego nem bolsa, m a s co m o d isp u n h a de algum as reservas, fui ficando. M a s tinha de voltar a o Chile, o nd e era professor. Consegui p ro lo n g a r um p o u c o a estada, graças a algu m as centenas de dólares q u e tom ei em p re sta d o de m eu irm ã o biólogo que vive nos E stados Unidos. Aí veio o golpe no Chile. M u ito felizmente, a m inha volta ao Chile só estava p r o ­ g r a m a d a p ara uns cinco meses depois. Fiquei na França sem em prego, sem bolsa, sem nada. Acabei a r r a n ja n d o u m a coisinha em Paris VIII, que então era Vincennes, e fui fazendo carreira lá: comecei a escrever e publicar, passei m in h a prim eira tese (em Paris 1). A viagem à E u ro p a acelerou o final de um c a sa m en to que já estava te rm in an d o ; aos poucos, as coisas e n tra ra m nos eixos. H avia ainda alguns p ro b le­ mas, um resto de p roblem as de co m p etiçã o com alguns personagens que a p a re c e ­ r a m p o r lá, m as não vou e n tra r aq ui nesses detalhes. £ como você se inseriu no panorama do debate francês da década de 1970í Bem, o debate nosso co m os franceses se inicia com a história do Althusser, que no com eço dos an o s 60 com eçara a publicar os seus artigos — época em que, co m o disse, estava na França, o nd e estava ta m b é m o M ichael Lõwy (um dia ele o r g a n i­ zou até um a conversa de nós dois com Althusser). F. o althusserismo me serviu m uito bem co m o objeto da crítica: de um certo m o d o , avancei em m atéria de dialética, co m o m uitos de nós, fazendo críticas ao Althusser, cujo p en s am e n to , e m b o ra n o ­ to ria m en te erra d o , era bem articulado. E, co m o as críticas q u e se faziam n o r m a l­ m ente eram m uito ruins, ap arecia co m o u m desafio criticar direito. Essa foi a n o s ­ sa form ação: o discurso do enten d im en to , co n tra o q u al escrevíam os, nos prestou um serviço. O que sobrou d o althusserism o foi m u ito pouco; o fato é qu e, a meu ver, a m elhor crítica d o althusserism o foi a nossa, aqui no Brasil. Até o n d e eu c o ­ nheço, n ã o há país n e n h u m que tenha feito m e lh o r — algo de que os franceses n ão têm consciência.

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O “nosso” a í se refere a você e a quem m ais? Bem, teve m uita gente boa qu e contribuiu: filósofos, econ om istas etc. N ã o existe u m a unidade, mas houve to d o um m o vim ento co m u m . E, sem falsa m odéstia, ac ho q u e acertam os. M a s a o m esm o te m p o é preciso relativizar a im p o rtâ n cia disso: é um negócio lógico, n ã o sei se vai m uito longe. É m uito bom a gente ter um c a m p o lim itado de problem as, enfrentá-los e d a r soluções, m as não adian ta ac h a r que com ab strações objetivas etc. vai-se resolver p ro blem as substantivos. A o to p a r com o althu sserism o, que tem Espinosa e L acan no meio, nós e n fre n ta m o s um a form a com plicada de estruturalism o, o que foi im portante. O Paulo Arantes até fala, talvez e x a g e ra n d o um p o uco, que foi no m o m e n to da discussão com o Rancière q u e se inverteu a nossa relação com os franceses, a partir daí teríam os co m eç ad o a discu­ tir com eles, em vez de a p e n as dizer am ém . E, de fato, nisso a gente era mais forte. M as, voltando à França em 1972, q u a n d o cheguei lá, n ão tinha um a tese p r o n ­ ta. Fiquei ju n ta n d o papéis, tinha papéis p o r tod o s os lados, n ão fechava nad a , n ão sabia co m o ia fechar, a m in h a vida intelectual era um caos, m as já existia. De certo m o d o , n u n ca fiz tese: fiz trab a lhos, um m o n te de trab a lhos. Nessa ép oc a, c o n d e ­ n a d o a ficar na França por causa do golpe n o Chile, me d isp u n h a a tr a b a lh a r n u m hotel, o n d e estava h o sp e d a d o — em férias — o meu irm ão “ a m e r ic a n o ” , e ele dis­ se: “ Se você vai a r r a n ja r em p re g o aqu i, deixa eu ir e m b o r a ” . M a s nesse m o m e n to o meu am igo Michael Lów y, que estava em Paris VIII, m e in form o u q u e estavam oferecendo um d inh e iro filantrópico aos exilados chilenos, p o r um an o , em socio­ logia. “ Você q u er q u e eu p o n h a teu no m e aí no m e io ?” F.u disse: “ Põe a í ” . E entrei n u m esquem a desse tipo. Depois, consegui passar p ara a filosofia, os o u tr o s foram cada um para um lado. M ais tarde defendi m inha tese em Paris I. M a s só em 1988 eu passaria a tese grande, ta m b ém com o Desanti, e de novo em Paris I. M ais ta rd e fui qualificado e n o m e a d o maitre de conférences , em Paris V III1. Recentemente consegui ser qualificado para um cargo de professor “ A ” , coisa m u ito difícil, principalm ente p ara q u em nasceu no estrangeiro. Só que eu te nho de p restar concu rso, e sou malvisto no m eu D e p a rta m e n to de Paris VIII, p o rq u e, d e ­ pois de com eç ar a ser aceito pelo establishment, topei um a briga com o g auchism o, c o m o carrcirism o da direção d o D e p a rta m e n to , e fui dizendo o que pensava d a ­ quilo. M e indispus com um m onte de gente (detalhe, essa gente é em geral c o o p tad a pela direção). Bem, o fato é q u e agora devo prestar concurso, em ju n h o de 2 0 0 0 , e provavelm ente eles vão me c o r ta r a cabeça, e m b o ra eu seja o c a n d id a to natural. Desde o princípio, eu fui refratário a o g auchism o francês universitário, a essa coisa d o Nietzsche ícone, a essa história de filosofia a n tinorm aliza dora . T u d o isso é u m a ilusão. F. claro que há m uitos nietzscheanos inteligentes, que o Nietzsche não foi naz ista..., mas nunca tive afinidade com essa gente. Fiquei fazendo m eu tr a b a ­ lho: d a n d o m inhas aulas, estu d a n d o M a r x e Hegel, fazendo história da filosofia com os alunos, e a o m esm o te m p o p ensand o os meus problem as. Isso ta m b é m me dei­ x ou q u e im ad o no D e p a rta m e n to , po rqu e eu fiquei conhecido co m o historiador da filosofia — coisa que p o r sinal n ão sou — , e alguns deles consideram fazer história da filosofia um a coisa mais ou m enos suspeita... Eles são “ gente p ara a frente” , n ão fazem história da filosofia. A m inha situação se to rn o u quase insustentável lá d e n ­ tro, q u a n d o comecei a dizer o que pensava daquilo. Lá há um pessoal de 68 que entrou

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só porqu e era maoísta, gente que não tem n enhu m a com petência em filosofia. F. existe a demagogia de que isso é “ livre” , “específico” , “não no rm aliza d o ” . Entendem? Estou até p r e p a ra n d o um livrinho sobre isso tu d o , que só na pior das hipóteses será m ero acerto de contas, na m elhor, microssociologia crítica. V am os ver no que vai dar. H o u v e m anifestos co n tra mim p o r p arte d o secretário, cartões de semi-ameaça na saída das aulas, acabei sendo c a n d id a to (kamikaze) a diretor, e me envolvi ca d a vez mais nessa guerra, que é u m a guerra m u ito mais c o n tra o carreirism o do que co n tra q u alq u er ou tra coisa, m as m uitos trotskistas boico taram as m in has aulas p o r eu não ser considerado “ politicamente seguro” ... Enfim, aprendi um pouquinho! A prendi p rincipalm en te o g rau a g u d o de d ec o m p o sição de um a certa ex tre m a es­ q u erd a . Aliás, diga-se de passagem q u e a gente, aqui n o Brasil, com ete u m uitos e r ­ ros em 1968, mas n u n ca fizemos o que eles fizeram lá, co m o , p o r exem p lo, colocar ativistas na universidade, a c h a n d o que isso é positivo. A pesar de ter havido gente boa p o r lá (gente de qu em discordo, e qu e é objetivam ente responsável pelo que aconteceu — mas n ão subjetivamente — [François] Châtelct, |Gilles| Deleuze, [JeanFrançois] L yotard), o fato é q u e eles e n tra ra m nessa de criticar cegam ente a idéia de com petência, de ir sem mais c o n tra to d a sorte de establishment, d e ix a n d o e n ­ tr a r lá d e n tro to d o tipo de gente. Eu digo a vocês: aq u i eu tive de en fren ta r m uita co m p etiçã o, a barra era m u ito pesada, m u ito pesada m esm o, m as havia u m fio que ligava a certas exigências de nível. E n q u a n to lá, no m e lh o r d o s casos, o nível é in­ diferente p ara eles, e m uitas vezes q u e m te m b o m nível é suspeito, é ac u sa d o de “ p ro d u tiv is m o ” ... São m o vim entos de m ic robu ro c ra cia s locais a p o iad a s em gauchistas o u ex-gauchistas — com p r o lo n g a m e n to s internacionais — , m as que não têm n a d a ou têm p o u c o a ver c o m o capital, nem c o m a social-dem ocracia, nem estritam ente c o m o “ sta lin ism o ” (digo isso p o r q u e um a certa esquerda só conhece esses três fantasm as, a p artir d o que to d o s os “e r r o s ” p o d e m ser explicados, e fora d o que tu d o na esq u erd a seria u m a m aravilha); são m o vim entos de defesa de inte­ resses b uro crático-populistas, em n o m e de um a pseudo-luta co n tra a “ n o rm a liz a ­ ç ã o ” . Um o u tr o erro c o m u m e perigoso é s u p o r q u e essas coisas n ã o têm im p o r ­ tância. Elas são m uito mais im po rta n tes d o que se supõe. Espero desmistificar tu d o isso em d etalhe, em o u tr o lugar.

Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Como você vê as re­ lações entre a filosofia e a cultura brasileira? E com plicado! Eu ac ho que ela pra tic a m e n te não existia até os an o s 60: tínha m os as velhas gerações com alguns sujeitos inteligentes, m as era m u ito p o u co . Depois houve um form idável crescim ento: um país em que quase n ã o havia filósofos, tem hoje não sei q u a n to s filósofos capazes, n o sentido de profissionais da filosofia. Deve ter uns duzento s, trezentos, o qu e é u m salto incrível. E m u ito m enos d o que tem um país c o m o a França, o nde deve haver alguns milhares de professores de filoso­ fia com petentes, m as os m elhores d aq u i n ã o são piores do q u e os de lá, e isso é for­ midável. A gora, resta saber o que tal coisa significa p a r a o país, o que é um pouco difícil de julgar p ara quem está fora. Isso já representou algum papel, e p o d erá re­ p rese n tar mais no futu ro . M a s há uma distância entre a seriedade universitária e a p articip a çã o na vida do país; a particip a çã o n ã o se faz facilmente.

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C o n v e rsa s com F ilósofos B rasileiros

A cho que deveria haver um a dupla form ação. A gem e tem esse D e p a r t a m e n ­ to, excelente, e eu espero que ele dure, m esm o n ão te n do recursos e es ta n d o n u m a situação terrível — n ão sei há q u a n to s an o s n ão c o n tra ta ninguém . Q u e r dizer, a prim eira coisa a exigir desse governo é q u e g a r a n ta a universidade, que as univer­ sidades sérias existam: isso é um m ínim o. E n ão é pou ca coisa: u m a universidade cujos d e p a r ta m e n to s não são piores d o que um bom d e p a r ta m e n to europeu. M a s a meu ver deveria ser gara n tid a u m a d u p la fo rm a çã o , p o rq u e os filósofos a p r e n ­ dem a pensar, ler etc. etc., m as n ão têm u m objeto. Eles p o d em fazer história da filosofia, m as deveriam ter um objeto. A inda que q u eira m ser filósofos, precisam de um a o u tr a fo rm ação. O ideal seria filosofia e mais q u a lq u e r coisa: p o d e ser filo­ sofia e arte, filosofia e física etc. E, no e n tan to , atualm ente é impossível a gente fazer dois cursos na USP: você é o b rig ad o a fazer um cu rso fora. O s filósofos pensam muito m elhor do que os outros, mas sabem pouco; eles têm dificuldade para se mover em m atéria de história, p o r ex em plo . E isso vale p ara o professor, ta m b é m . Vem o pessoal de fora do D e p a rta m e n to de Filosofia, m u ito mais in fo rm ad o , e fica visí­ vel, c o n v e rsan d o co m eles, que é preciso cru z ar as du as coisas. Sem isso, torna-se difícil p articipa r da vida do país, da c u ltu ra do país; eles serão ape nas especialistas.

Cruzar também com a economia? O u com a ec o nom ia, ou co m a história, ou com a arte. D á p ara cruz ar com p r a ti­ ca m e n te tu d o ; não tem coisa que você n ã o cruze com filosofia. Parece q u e há hoje alguns projetos de d u p lo currículo; isto seria essencial, para a gente evitar o tipo de fo rm a çã o francesa, em que o sujeito é m u ito bom técnico cm filosofia, mas, q u a n ­ d o se mete a falar de o u tra s coisas, em geral o resultado n ão é b o m , pois n ã o se fo rm o u bem — salvo alguns casos isolados. Creio que o m odelo alem ã o , em que você tem de fazer du as form ações, é m elhor. E claro que aí depend e m u ito dos a lu ­ nos: n u m a tu rm a fraca, não se chega a lugar algum , p o rq u e n ã o se sabe nem filo­ sofia nem coisa alg um a; já p a r a os bons é e x tra o rd in á rio . Isto é um a espécie de co ndiçã o p a r a os filósofos n ã o virarem m eros técnicos d o p en sam e n to , gente que pensa co m o ninguém , que sabe ler co m o ninguém , m as que só faz isso. Eu fra n ca­ mente n ão tenho um entusiasm o excessivo com a história da filosofia; tem que entrar e sair dela. M as, enfim , trata-se de um a opção.

Que conceito(s) de sua reflexão você destacaria como mais represen­ tativo:(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que você nos contasse como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje. Bom, o m eu objeto é a dialética. T rabalh ei M a r x , Hegel, [T he odor W.] A d o rn o , e atualm ente , se tivesse te m p o , tra b a lh a ria mais a fu n d o a filosofia antiga — fiz um esforço para a p re n d e r um p o u co de grego. M a s digam os que o meu objeto filosó­ fico é a dialética, e dela eu tiro a idéia de crítica. Está no centro da m inha reflexão a n oção de interversão, a d o m o v im en to de u m a coisa que passa no seu c o ntrá rio: é um a categoria crítica essencial, inclusive na política. U ltim am e n te estou m u ito d o m in a d o pela idéia das ex tre m as e squerdas que se intervertem em ex tre m as direi­ tas. A d o rn o sabe disso. N o século X X , eu não vejo quem saiba além d o A dorno: [Walterj Benjamin n ã o sabia, [Georgl I.ukács ta m b é m n ã o sabia direito.

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Enfim, o m eu objeto é s o b retu d o a dialética, e isto implica um interesse grande p o r lógica, n o sentido da herança do idealismo alemão. T e n h o inclusive projetos para fazer coisas em lógica, p o rém estão sempre d ep e n d en d o de tr a b a lh a r m uito mais a lógica formal. Aliás, p ara desenvolver os m eus projetos vou te r que limitar os cursos, e neste sentido me aposentar é um a boa coisa2. Talvez a m inha degola na universidade tenha o papel de liberar tempo. Porque n ão dá para trabalhar d an d o aula o an o inteiro. Por o u tr o lado eu te n ho interesse ta m b é m p o r política — política n o sentido mais am plo, que ab ra n g e filosofia da história, filosofia política, ética etc. O su b títu ­ lo da m inha primeira série de livros — lógica e política — , e m b o ra só co rresp o n d a em parte a o que apresentei até aqui, dá con ta do meu projeto, no sentido de que eu funciono da lógica p ara a política, nesse ca m in h o e n c o n tr a n d o a história da filoso­ fia, ou a filosofia geral. A estética ficou um p o u co para trás, m as acho que ela é m u ito im p o rta n te. Eu tenho bastante interesse p o r arte, m as esse é um aspecto que de certo m o d o pus entre parênteses e tento ver o que dá p ara fazer. M e sm o p o rq u e, na m e ­ dida em que estudei m uito a trad ição d o m arxism o , preciso levar em conta a estéti­ ca, pois o m a rx ism o que deu certo no século X X é o m a rx ism o dos estetas, por r a ­ zões que a gente teria de estudar. Deu certo onde menos se poderia imaginar: enqu anto os fu ndadores n ão enten dia m n a d a disso, ou m uito p ouco, de repente sai um Benjamin, um A d o rn o , um Lukács.

A sua obra está inextrincavelmente ligada ao pensamento de Marx. É nesse contexto que você muitas vezes define o seu projeto teórico como um projeto de “reconstituição do sentido da dialética”. O que você entende por essa expressão e como ela se ligaria à idéia de uma lógica dialética, que está presente no subtítulo do seu livro Sobre o conceito de capital: idéia de u m a lógica dialética? Prim eiro observo: você falou em obra. N ã o te n ho o b r a (feita). Só “ o b r a ” , em devir. Bom, eu diria hoje que a lógica dialética é a p e n as um a p arte do qu e eu estava fazendo, u m pedaço. Essa reconstituição da dialética é apenas u m aspecto d o p r o ­ jeto que vai d a r nos tais q u a tro tom os. O terceiro já está praticam ente p ro n to , mas vou ter que c o stu ra r um p ouco, p o rq u e tem ta m b é m a série que eu comecei sobre a dialética m a rxista e a dialética hegeliana, que é a m esm a coisa de um o u tr o jeito; no final serão u m as du as mil páginas distribuídas n uns seis livros. Porém o meu projeto n ã o é só esse. Estou m uito interessado (ou ape n as ag o ra os assumi de um a m aneira direta) pelos problem as de filosofia política e de filosofia da história. Q u ero saber o que aconteceu do século XVIII até hoje, estou lendo tu d o o que posso ler da Revo lução Francesa p ara cá, m as com um interesse essencialmente político, e n ã o filosófico. O meu o b je to principal aí é a te oria social, é a história — saber o que quer dizer essa história. Vou levar adiante os dois projetos. O lado político estava m uito p eque no e eu preciso desenvolvê-lo melhor. Fiz esse livrinho de lógica e te o ­ ria da dialética, mas p ara d a r um salto tem m uito tr a b a lh o a fazer. Sc eu viver uns bons anos, quem sabe faço tu d o isso! M a s ag o ra estou mais co n c e n tra d o n o o u tro projeto, estou to m a n d o um b an h o de história. Acabei de fazer um a conferência sobre totalitarism o, e vai sair ta m b ém um texto, que para um filósofo que n ã o sabia nada de história talvez n ã o seja m uito mau.

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C o n v ersas com F ilósofos B rasileiros

E o Brasil no seu trabalho? O Brasil está longe, m u ito longe! Para chegar até o Brasil há m uita coisa pelo meio. T e n h o a im pressão de que n ão vou chegar lá. Eu estou m u ito v olta do p ara a histó ­ ria geral c o n te m p o r â n e a p ara os m o n stro s d o século X X , estou m uito interessado nessa coisa d o co m u n ism o , que sem pre me interessou, e ag o ra no nazismo. De um m o d o geral, q u e r o p en sar o sentido das form as sociais d o século. A cho que a es­ q u erd a vive n u m a c onfusã o total, n u m a v erdadeira salada. U m a p arte dela e m b a r ­ ca na c a n o a da direita, sendo o caso [Fernan do Flenriquej C a rd o s o bem típico: é um a coisa errad a fazer as alianças que fez. Espero que um a p arte desses que e n tra ­ ra m nessa c a n o a se te n h a d a d o co n ta d o q u e é isso. Eu, felizmente, n ã o entrei nes­ sa c a n o a de jeito n e n h u m , m e sm o p o rq u e con h e ço o h o m e m e sabia mais ou m e ­ nos a o n d e ia d ar essa sua Realpolitik. O o u tr o risco é da extrem a esqu erda, risco real de cair n u m regim e totalitário. Enfim, pensar as referências da esquerda é u r ­ gente, e essencial p ara to d o m u n d o , p ara que se possa fazer u m a crítica consistente d o neoliberalismo. Alguns fazem essa crítica, mas as referências de leitura — a q u i­ lo a partir de que se julga — m e sm o entre os melhores, n ão são a m eu ver, suficien­ tem ente criticadas. Eu penso nos meus amigos: o meu am igo | R o b e rto | Schvvarz, o meu am igo Paulo A rantes. São am igos que fazem coisas m u ito boas, m as em geral eles pen sam a p artir d o M a rx , de m an eira crítica sem d úv ida, mas n ã o suficiente­ m ente crítica. H á dois perigos: a direita g a n h a r e a esquerda (atual) g an har. São dois peri­ gos reais: se a esquerda g a n h a r tal co m o ela se e n c o n tra , n ã o sei o que p o de o c o r­ rer. Q u e r dizer, eu ac ho que tem que haver u m a g ran d e reflexão sobre o que é a esqu erda, senão a gente não sai dessa massa confusa de m a rx ism o , bolchevism o e alguns elem entos de stalinismo qu e serve c o m o evidência para a esquerda. A migos meus, co m o p ud e perceber n u m a conversa com o A rantes o u tr o dia, tendem a d i­ zer (ecleticamente) que a gente tira de uns e de o u tr o s (digo, em geral) as coisas que interessam p ara o Brasil. O ra , esta n ã o é a solução. Tem que se pensar claro e s a ­ ber bem o q u e a gente quer, senão isso ac a b a d a n d o n u m a espécie de lógica de ativista, q u a n d o a nossa função, a função d o intelectual, seria e x a ta m en te re p e n ­ sar. E ntão estou te n ta n d o repen sar a história d o socialismo, rep ensar criticam ente essa história, to m a r posição diante de pro b lem as do início d o século p ara refletir sobre o que se tem hoje. O que a gente vai fazer? Vai a p o ia r o alto c o m a n d o ale­ mão? Vai ser derrotista? Resolver tod a s essas questões é essencial.

Está falando da primeira guerra? Sim, da prim eira guerra. E essencial saber o que é tu d o isso. O “ renegado [Karl] K a u ts k y ” era renegado m esmo? O que era e x a ta m e n te o bolchevismo? E assim por diante. Eu fiz conferências no Rio de J a n eiro e em C uritiba e fiquei um p o u co as­ su stad o com o público: o do P aran á , p o r exem plo, parecia m u ito influenciado pe­ las coisas d o R o b e rt Kurz, que eu ac ho horríveis, desastrosas. T u d o bem: vam os trad u z ir e publicar o Kurz. M a s é u m a con fu sã o que se junta à con fu sã o geral, e o resultad o é péssimo. A esquerda tem grandes possibilidades neste país, tem gente m u ito boa, mas é preciso levar a sério (isto é, sentir um frio na espinha) q u a n d o entre os m e m b ro s da coligação de esquerda tem gente que fala bem da C hina e diz

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que o T ib et é p r o v o ca ção imperialista. C o m relação aos p ro b le m a s da E u ro p a , não se sabe nad a ; há um esquem a tism o total em relação a eles, inclusive p o r falta de inform ação . Este, aliás, é ta m b é m um fator: o que se lê nos jornais brasileiros n ão basta. Se o sujeito ler só a Folha, o Estado e o Jornal do Brasil, ele n ã o tem elem en­ tos suficientes. Enfim, acho que se teria de enfren ta r esses pro b lem as to d o s e n ão to m a r — co m o até os m elhores to m a m — esses livros clássicos co m o livros s a g ra ­ dos, co m o livros que n ã o se tocam .

Como você articula as duas vertentes do seu trabalho? São d u as coisas u m p o u co diferentes, e vastas demais. E videntem ente q u a n d o eu me po n h o a ler o nazismo e o stalinismo, ou o que for, não fico pensando em dialética, m as a dialética aparece de repente. T e n h o um m ode lo de p en s am e n to p ara a polí­ tica, que é m uito ca lcado na dialética. M as é curioso co m o ela foi tra ta d a na t r a d i­ çã o política: freqüentem ente se ataca a dialética, to d o o m u n d o a critica. H a n n a h A rendt, [EdouardJ Bernstein ta m b ém . A dialética é a culpada de tudo. H á um m a l­ e n ten d id o total. Acho que vou a c a b a r fazendo, se p ud er, u m a espécie de filosofia da história, um a teoria da história. N ã o sou historiador, e nem vou ser, m as estou t o m a n d o um b a n h o de história. N ã o sei tr a b a lh a r c o m arquivos, e acho q u e não é isso que g o s­ taria de fazer. T a m b é m não sou e x a ta m en te sociólogo. De fo rm a que o resultado vai a c a b a r sendo filosofia, ape sa r de a lógica n ão estar presente im ediatam ente. O tr a b a lh o de e lab o raç ão da dialética exigiria um a o u tr a vertente, um g r a n ­ de tra b a lh o sobre lógicos, sobre as diferentes correntes etc. V am os ver o q ue dá para fazer. Eu estou com 64 an o s m as em plena atividade,. Tentei até a p re n d e r russo, m as tive qu e p ara r, p o rq u e é m uito. Pelo m en os te n h o mais ou m enos claros os objetivos, e estou co n tente em te r d a d o essa virada, p o rq u e, e m b o ra a elab o raç ão lógica seja boa, estava sacrificando m u ito um aspecto pelo qual eu te n h o um g r a n ­ de interesse, e sobre o qual só ia ler na h o ra de folga. A dificuldade em en fren tar esses prob lem as de crítica política me a tra p alh a v a u m pouco as leituras: se você não se dispuser a fazer a crítica, se n ã o tiver algum as idéias críticas, você n ão vai reler M a rx , e m enos ainda I.ênin (que é outra coisa). M as é preciso ler. Ler um livro com o o Renegado Kautsky, p o r exemplo, que m ostra — sem q uerer — a ideologia de u m a sociedade totalitária nascente, a sociedade burocrática. É o que te nho feito: estou relendo o Lefort, que c onhe ço há m u ito tem po; relendo [Cornelius| Castoriadis. A H a n n a h A rend t estou em parte lendo, em p arte relendo — já que esses livros que falam de to talitarism o, em geral a gente n ã o tocava; e estou lendo historiadores, um a gente interessantíssima que se conhece p o uco, e cuja leitura é urgente. É claro qu e em relação a to d o s eles eu m a n te n h o u m a p ostura crítica, m as uso-a com m u i­ ta prudência, p o rq u e conh eço p o u co o terreno.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­ cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade? Para mim tal relação é estreita: eu e n tro e saio da filosofia, n u n ca sei se estou d e n ­ tro o u se estou fora, e ac h o que isto é essencial, pois se tivesse virado h istoriador,

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rcria perdido m uita coisa. Ao m esm o te m p o o que faço n ão é n un ca, d igam os, filo­ sofia “ p u r a ” . E m b o ra passe p o r aí, co m o n u m a espécie de dialética negativa, estou sem pre no limite, no limite da teoria social, no limite da história, no limite da p r ó ­ pria filosofia. A gora, u m a o u tr a coisa, na qual estou a tra s a d o m as que é essencial, mais essencial até q u e a estética, é a psicanálise. F. algo em que investi p o u co e que me faz falta, pois p ara pensar essas coisas todas, para e nfrenta r os pro b lem as do indivíduo, que são inevitáveis, é necessário tra b a lh a r com um certo n ú m e ro de c a ­ tegorias psicológicas o u psicanalíticas, senão o esquem a fica fro u x o demais. É algo qu e ainda vou fazer, se tiver tempo-1.

Você enunciou o ideal pedagógico do filósofo ligado a pelo menos uma ciência, em particular uma ciência humana. Agora a impressão que se tem é a de que você quer mais do que uma ciência humana, ou de que é necessário mais do que uma ciência... N ã o , aí a q u es tão é mais de ver quais as mais próxim as. E ce rtam ente n ã o é a eco­ nom ia. Eu me pus a fazer teoria d o Capital, m as isso tem p o u co a ver com e c o n o ­ mia. Em ec ono m ia inclusive eu estou a tra sa d o , até p o rq u e cansei um p o u c o de te n ­ ta r e s tu d a r ec o n o m ia , co m o se fosse a b s o lu ta m e n te f u n d am e n tal. Sem d úvida é im p o rta n te saber econom ia, mas hoje eu acho que há um p o u co de mitificação dela. Afinal, tem muita coisa além — ou aq uém — da econom ia que os filósofos poderiam aprender facilmente e que n ão aprendem , o que faz com que a econom ia acabe sendo urna barreira. Em geral a alternativa é filosofia ou econom ia: ou se pensa os direi­ tos d o ho m e m , a ética, a m oral etc. etc., o que n ão deixa de ser útil, o u se pensa o capital, o m ovim ento do capital etc. Já a política, a despeito de haver os politólogos, os cientistas políticos, fica em geral um p o u co a b a n d o n a d a . Q u a n d o o essencial, a meu ver, está justam ente na política: se quiserm os o b te r respostas para questões políticas, n ão é a filosofia que vai dar, nem a ec on om ia, mas a p róp ria política. E preciso repensar criticam ente a história política d o século X X .

Você considera que de fato o século X X foi breve ? I.i o livro d o H obsbavvn e gostei. A gora, se foi breve? C o m eça em 191 4 e term ina na queda d o m uro? Acho qu e aí o breve é mais um a q u e s tã o das referências t o ­ m a d a s pelo a u to r. O im p o rta n te , no século X X , são as novidades. H á pelo m e­ nos du as form as novas, m o n stru o sa s, qu e exigem um a teoria da história d iferen­ te, e que a o m esm o tem po, se n ã o for cinism o dizê-lo, são “ bo as p ara p e n s a r ” , na m edida em q u e coinpreendê-las é uni desafio que n ã o p ode ser resolvido com as teorias clássicas. C o m o pensar, p o r e x e m p lo , nazism o e, na falta de um te rm o m elhor, a sociedade b u rocrática? N ã o dá p ara fazê-lo a p artir d o Vlarx, c o m o se qu er fazer. F. claro que .Vlarx e o m a rx ism o são referências fu n d a m e n ta is p ara pensar o capitalism o, e m esm o o capitalism o de hoje, m as n ã o é possível dizer que o m arx ism o é agora mais verdadeiro do que era, co m o quer o meu am igo Schwarz. A inda que de fato o capitalism o tenha a d q u irid o mais un id a d e d o que tinha a n ­ tes, e que, neste sentido, o esqu em a d o M a r x apa reça co m o m u ito rico, é igual­ m ente certo que a p a rece ra m coisas que o M a rx n ã o conhecia (pior que isto, que ele conhecia co m o idéia, mas cuja possibilidade excluía). F.u penso até que seria

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im p o r ta n te reler a p arte política d o M a r x , coisa q u e nós aqu i não fizemos, c o n ­ c e n tra d o s qu e estáv a m o s na leitura d ’O capital: o m a rx ism o usp ia n o foi m uito p o u c o p o lítico, c isto é algo q u e te m de ser c o r r ig id o . D o s no sso s a m ig o s, o M ichael L òw y foi alguém qu e se d edicou a isso, m as ain d a há m u ito p o r fazer, e eu estou te n ta n d o av a n ç a r nesta direção, a despeito da massa de textos: se a leitu­ ra da p arte lógica é intensiva, a da p arte política é extensiva. M a s ac ho que seria o caso de pegar três ou q u a t r o meses de férias e te n ta r c o m p le ta r a leitura dos q u a r e n ta volum es d o M a r x em alem ão. E um a coisa que fica mais o u m e n o s evi­ dente q u a n d o se faz essa leitura é o q u a n t o m u d a a política d o m a rx ism o dos anos 1850 p ara o m a rx ism o dos a n o s 1880 e 90 — o velho Engels tem coisas m u ito boas. A pesar de haver um a o u o u tr a d erra p a g e m , o fato é que eles com eç am a p ensar de u m o u tr o jeito, e se esboça um n ovo esquem a em que apa rece a idcia de um a passagem pacífica p ara o caso de u m n ú m e ro m a io r de países. H á t a m ­ bém a idéia de um a g u erra em que as forças revolucionárias vão a c a b a r viran d o a m esa, e p o r ta n t o um a idéia ain d a v olta da co n tra a legalidade, m as de q u a lq u e r m a n e ira já se percebe u m n ovo estilo de p en s am e n to ; um esquem a que revaloriza o sufrágio universal, e no qu al a fam osa d ita d u r a d o p ro le ta ria d o é definida (por Engels) n ã o ape nas c o m o n asce n d o na república d em o crática , mas ta m b é m co m o t e n d o nesta sua form a política. (Lembre-se entre parênteses que o Lênin n ão c o n ­ seguiu ler esse te x to de Engels; o texto aparece e s ca m o tea d o e v iolentado no Esta­ do e a Revolução.) Enfim, e m b o ra o m a rx ism o possa ter to d o s os defeitos q u e a gente p ode im aginar, ele é notável e n q u a n to m o m e n to da história d o p e n s a m e n to e d a teoria social, e é c e rtam e n te um a te oria m u ito m enos a u to ritá r ia d o que os esquem as socialistas mais antigos; — algo que fica claro na série de livros de D r a ­ per c h a m a d a Karl Marx's theory o f revolution, que pouca gente lê mas é f u n d a ­ m ental. E n q u a n to a trad ição socialista era m uito ditatorial e violenta, o m a rx ism o é melhor: o p r ó p rio Manifesto já tem a a u to d e te rm in a ç ã o d o p ro le ta ria d o , e o úl­ tim o M a r x é bem razoável. Infelizmente, p o ré m , m e sm o as m u d a n ç a s n o p en s a­ m e n to m arx ista n ão consegu iram evitar que os bolchevistas pegassem a parte pior. M as, enfim , o fato é que passam a haver dois abism os diante d o m arxism o: cair no totalitarism o, que é o c a m in h o da extrem a esquerda, ou cair na política c o n ­ servadora, que é o ca m in h o de um a certa social-dem ocracia — posições represen­ ta d as respectivamente pelo bolchevism o e pelo pac to de ago sto de 1914 (em que são vo tados os créditos de guerra), du as catástrofes q u e passam a constitu ir co m o que os dois pecados originais d o socialismo d o século X X . A p artir de então, esta­ m os c a rre g a n d o um fard o nas costas, e e n q u a n to n ã o tira rm o s esse peso da cabeça n ã o conseguirem os avançar. P o rta n to é preciso e s tu d a r m u ito bem o bolchevismo e o stalinismo, p o r um lado, e a social-dem ocracia, p o r o u tro . E preciso saber que n ã o foram tod o s que a d e rira m a o pacto; saber q u e houve u m a revolução alem ã em 1918, quase desconhecida, e que foi a única revolução n u m país capitalista a v a n ­ çado; saber que havia um p a r tid o social-d em ocrata in de pende nte — um p artid o imenso — nos an o s 20, incluindo K autsky, Bernstein, Rosa L ux em b u rg o . Enfim, há aí duas feridas, e ac ho que tem de se p ô r o d ed o nelas: a ferida de um a certa social-dem ocracia que d e rra p a à direita, d a qual o caso C a rd o s o é à sua m a n eira representativo; e a ferida da ex tre m a esquerda que vira ex tre m a direita — nos dois

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casos, p o r ta n to , a esquerd a indo p a r a r na direita. Além desses dois c a m inho s, há o do socialismo dem o crático, que tem de ser definido, pensado.

Nesse contexto, como você avalia a idéia de uma democracia radical no interior do Estado democrático de direito? Eu acho que é p o r aí. M as a longo p razo nós tem os de pensar em enfrenta r o capi­ tal. N ã o creio que se tenha de e nfrenta r a m e rc adoria ou o fato de haver m ercado, incorrendo nessa espécie de “ fetichismo do fetichismo da m ercadoria” em que muitos caem p o r falta de c o m p re en sã o d o que é preciso fazer (e d o q u e significa o tema d o fetichismo).

Você está pensando a i nos “seus amigos”? Sim, em p arte os meus amigos. H á ta m b é m o u tros, que separo dos meus am igos. Por outro lado, não sou indulgente em relação à escorregada na canoa d o cardosismo, que para m im é um a coisa lamentável, um eng a n o terrível. O m ínim o que um su­ jeito de esquerda tem de saber é que você não p ode acreditar n u m a aliança com o A C M . n ã o p ode aceitar esquem as de c o r r u p ç ã o , n ã o pode aceitar que se tolere a c o m p ra de d e p u ta d o s p ara p o d er se reeleger etc. Senão está tu d o perdido! M as. v o lta n d o à q u estão da dem ocracia radical, eu ac ho que a gente tem que fazer um acerto de con tas com o capital, algum tipo de acerto de con tas com esse m o n stro que é o capital. A penas n ão sabem os ao certo, ainda, co m o fazê-lo. N ã o é estatiza n d o tudo, p ode haver algum sistema de cooperativas; e ta m b é m não é algo p ara a m a n h ã . M as, ain d a que o projeto de p a ra r o c a rro do capital seja um p o u c o utópico, é essencial pensar n u m a sociedade m uito mais dem ocrática , co m form as econôm icas variadas. É preciso a c ab a r com a idéia de fim d o E stado; é preciso a c a ­ b a r com a idéia de fim da p ro p rie d ad e privada; mas n ão co m a de que os meios de p r o d u ç ã o devem ser de algum m o d o socializados, contro lad o s. A gora, realm ente n ã o p odem os fazer n e n h u m a concessão em m atéria de dem ocracia, p o rq u e se a b r ir ­ m os m ã o da dem ocracia n ão dá para sab er o nde vam os p ara r. Afinal, qual é a li­ çã o do século? A lição do século é a seguinte: te n taram -se basicam ente d u as fo r­ m as ditas socialistas — a chinesa e a russa — , e o resultado, em am bas, foram duas coisas: genocídio e capitalism o de volta. Se quiserem te n ta r de novo algo assim, tentem: espero m o r re r antes! A inda que se alegue que eram países a tra sad o s, n ada nos leva a crer que a coisa aconteceu só p o rq u e eram países atrasados. Por o u tr o lado, é preciso so b re tu d o a c a b a r co m a idéia de que a história vai criar a solução. N ó s n ão vam os fazer co m o o senhor Kurz, que vai ficar e sp erando se n tad o o fim do capitalism o! M e c o n ta r a m até que ele a n d o u dizendo que o fim 10 capitalism o ia acontecer no Brasil, e que então ele viria para cá a c o m p a n h a r a c )isa de perto. E u m a coisa maluca! Ele pensa que é o rei persa que vai ver a bata11 a de Salamina! [risos] Eu n ão discuto a possibilidade de acontecerem catástrofes, cai organizado p o r Kretzmann, Kenny e P in b o r g e p ublicado p o r Cam brid ge, exprim e em H istória da Filosofia um pretenso “estilo” anglo-saxônico. O fio c o n d u t o r d o volum e é a lógica medieval. É através dela que são a b o r d a d a s as questões tradicionais da filosofia medieval. N e s­ se sentido, essa a b o r d a g e m c o n tra s ta com os tr a b a lh o s tradiciona is, c o m o , p o r exem plo, os da escola de E. Gilson. E bem verdade que os textos dos historiadores franceses c o n te m p o râ n e o s de filosofia medieval co m o De Libera e Biard se a p r o x i­ m a m mais d o estilo a nglo-sa xão d o que d o estilo tradicional. O s estudos anglo-saxões sobre Descartes e sobre K ant, m uito em voga a t u a l­ mente, c o n tra sta m ta m b é m com alguns estudos continen tais desses autores. O o b ­ jetivo da a b o r d a g e m anglo-saxônica é o de reconstruir a a r g u m e n ta ç ã o do texto av aliando a coerência e a validade das teses apresentadas. R a ra m e n te esses estudos

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são m e ra m e n te descritivos o u eru d ito s. As influências históricas, o c o n te x to de p r o d u ç ã o d o texto não são c onsiderado s co m o elem entos essenciais p a ra a c o m ­ preensão das teses do a u to r estu d ad o . Além disso, a reco nstrução da lógica argum entativa d o texto n ã o impede que sejam in tro d u z id o s instrum entos e categorias ex tern o s à teoria d o a u t o r e s tu d ad o . F.ssa reco n stru ção da lógica p erm ite u m a t o ­ m a d a de p osição d o h istoria dor (e do leitor), isto é, p erm ite u m a avaliação das te­ ses d o a u t o r e s tu d ad o . Um h is to ria d o r da filosofia an g lo -sa x ô n ic o p rete n d e ser ta m b é m um filósofo. G u éro u lt certam e n te se o p o ria a essa concepção. Ele distin­ guia claram e n te a função do histo ria d o r da filosofia da do filósofo. A prete n são do seu m é to d o , que é u m m é to d o de histo ria d o r da filosofia, seria a de reconstruir o sentido d o te x to pela análise da sua estru tu ra arg um e ntativa. T al co m o os h isto ria­ dores anglo-saxões, nem a eru dição histórica nem o co n te x to de p r o d u ç ã o do te x ­ to são relevantes para a com preensão da o b ra do a u to r estudado. Vias em G uéroult, a reco n stru ção da lógica arg u m e n tativ a deve ser im anente a o p ró p rio texto. P o r ­ ta n to , n e n h u m in stru m e n to conceituai estra n h o a o p ró p rio te x to e s tu d a d o p o de co n trib u ir p ara o seu esclarecimento, pois o m é tod o estrutural visa explicitar o sen­ tido de um a o b ra filosófica levando ape nas em co nsideraç ão os conceitos, as teses e a form a da a rg u m e n ta ç ã o im anente à p r ó p ria obra. Essas diferenças de a b o r d a g e m ou de “ estilo” são significativas, m as p a r e ­ cem d ep e n d er das concepções sobre a n atu re za da filosofia, que justificariam, em últim a análise, a validade desses “ estilos". U m a diferença de “ estilo” parece, as­ sim, ex p rim ir um a diferença de co n c ep ç ão filosófica. E a validade de u m a c o n ­ cepção só p ode ser legitim ada de um a m a n eira universal, já que ela te m um a p r e ­ ten são à universalidade. D o n d e, n ã o me parece ter sentido falar de filosofias regi­ onais (brasileira, francesa etc.) a m e n o s que seja p a r a situar a n ac ion a lida de d o a u t o r de um texto.

No livro em homenagem aos seus 60 anos. Verdade conhecimento e ação, os editores sublinharam, no prefácio, que “mais de uma geração de professores e pesquisadores em nossa área, inclusive os organizadores dessa justa homenagem, formou-se num ambiente acadêmico cuja ins­ tauração foi fruto de um lento e laborioso processo, que deve ser co­ nhecido caso se deseje prosseguir nessa direção. Dessa história, Guido Antônio de Almeida e Raul Landim Filho são personagens decisivos, e sua contribuição merece ser devidamente divulgada e celebrada”. Como você vê o processo de instalação do estudo acadêmico e da pesquisa em filosofia no Brasil? F oram os meus ex-alunos que escreveram isso e eles têm um a certa sim patia por mim . A m aioria dos meus alunos briga com igo e n ã o term ina, sob a m in h a o rien ­ tação, o m e strado ou o d o u to r a d o . O s alunos que o r g an iz aram esse livro resisti­ ram ao meu m au h u m o r e conseguiram chegar até a o fim dos seus estudos. São agora professores de filosofia. M as sobre a q u estão da institucionalização eu pergunto: c o m o é q u e se deve p ensar a e s tru tu ra de um cu rso de filosofia? C o m o um pro fes­ sor deve ensinar filosofia? H á um a polêm ica, que julgo estéril, entre fazer filosofia e fazer história da filosofia. Ela é um a polêmica estéril, e m b o ra seja real. G u éro u lt

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dizia que, e n q u a n to historiador, n ão fazia filosofia, m a s história da filosofia, co m o se fosse possível fazer história da filosofia sem fazer filosofia. U m am igo, professor de filosofia na F rança, c o n to u -m e que Searle na F.cole N a ti o n a l Supérieure, rue d ’Ulm, Paris, disse: “ Aristóteles nunca leu Aristóteles. Por que precisam os ler Aris­ tóteles?” . Cria-se, assim, um a polêmica, pois quem se dedicasse à história da filosofia, n ã o faria filosofia e q u em fizesse filosofia, desconheceria história da filosofia. D o m eu p o n to de vista, a m elhor m aneira de fazer filosofia é analisar as q u es­ tões filosóficas através de um m é to d o de análise histórico-conceitual. U m a q u es­ t ã o filosófica, geralm ente tem um “ en ra iza m en to h istó ric o ” , isto é, ela (ou algum a o u tr a q u e s tã o conexa a ela) foi tem atiza d a p o r um texto, clássico o u c o n t e m p o r â ­ neo. R econstruir a lógica arg u m e n tativ a do texto, que analisou a q u es tão c o m o objetivo de clarificar n ã o só a sua e s tru tu ra a rg u m e n tativ a, co m o ta m b é m a q u e s­ t ã o a b o r d a d a , é o prim eiro m o m e n to da análise que d e n o m in o de histórico -con­ ceitual. C o m o o objetivo principal é usar o tex to p ara elucidar a q u estão , é legíti­ m o explicitar, acrescentar, corrigir a lógica do p r ó p rio texto. Por isso m esm o, é le­ gítimo qu estio n a r, te m atiza r e avaliar a elucidação que o tex to deu à q u estão se­ g u n d o a sua e s tru tu ra original. M as, se isso é legítimo, a reco n stru ção da lógica a rg u m e n tativ a do te x to exige u m a nova clarificação da q u e s tã o que, de um lado deve levar em co nsideração as limitações da análise original e de o u tr o lado, deve form ular um novo q u a d r o conceituai te ndo em vista as limitações da análise inicial.

Você vê isso hoje instalado no Brasil? Pelo m e n os o g r u p o co m o q u al te n h o a finidade (B althazar B arbosa, G u id o de A lm eida, Luiz H e n riq u e [Lopes dos Santos] e o u tros) c o m p a rtilh a com igo dessa m aneira de fazer filosofia.

Para que um grupo como esse possa funcionar é preciso que haja algu­ mas condições materiais para a institucionalização da filosofia. Você participou da construção do curso de pós-graduação, da assessoria da CAPES etc. Como você vê esse processo de institucionalização da filo­ sofia no Brasil? Ao re to r n a r a o Brasil em 1977, o prim eiro g ru p o de filosofia do qual participei foi a SEAF [Sociedade de E studos e Atividades Filosóficas|. N a q u e la época, os grupo s nacionais de filosofia eram o Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF), a Sociedade de Filósofos C atólicos e finalmente a SEAF, fu ndad a p o r O lin to Pegoraro. A SEAF era naquele te m p o de d ita d u ra um espaço de liberdade p ara discussão e deba te filosó­ fico. D aí a sua im portâ ncia filosófica e política. T e r m in a d a a d ita d u r a , pen sam os em criar um g ru p o filosófico q u e tivesse co m o único critério de adm issã o a “ qu ali­ d a d e ” filosófica. Desse g ru p o faziam parte alguns professores d o C e n tro de Lógica e F.pistemologia (CLE) da U nica m p e alguns p ouco s professores d o Rio de Janeiro. N ã o seria relevante p ara a participação nesse g ru p o nem a "escola filosófica” nem o “ estilo” , m as tã o som ente a “ q u a lid a d e ” . A SEAF não preenchia nem queria p re ­ encher esse critério. De fato, é m uito difícil fo rm u lar objetivam ente o critério de qualidade; ele p ode ser usado p ara exprim ir preconceitos de “esco la” , de ideologia etc. Em c o n tra p a r tid a , havia no Brasil um centro de reconhecida qu alid ad e filosó-

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fica: o C e n tro de Lógica e de Epistem ologia (CLE) da U nicam p, f u n d ad o e dirigido p o r O. Porchat. Esse C e n tro nos servia de m odelo. Ele teve um a en o rm e influência no desenvolvim ento da filosofia n o Brasil. C o n t r a ta n d o professores com petentes (por exemplo, [José A rthur| G iannotti, [Gérard] Lebrun, Balthazar etc.) p ro m ovendo colóquios, p u b lic an d o revistas, cria n d o u m clima de debate e de discussão, P orchat co m o CLE deu um a co n trib u içã o decisiva p ara o desenvolvim ento da q u alid ade da filosofia n o Brasil. P ensávam os em fu n d ar um a instituição nacional de filosofia segundo o p a ­ d r ã o de qualid ad e do CLE. Foi f u n d a d a a A N P O F [Associação N acional de PósG ra d u a ç ã o em Filosofia]. Vias o critério de qu alid ad e apresenta diversas dificulda­ des. C o m o já assinalei, ele exige um a form ulação objetiva. F. possível en c o n trar essa form ulação? Em segundo lugar, a qualid ad e p o r definição é m inoritária. O ra , em toda instituição que pretende ser representativa o sábio e o m enos sábio têm o mesmo direito. U ma instituição em que a q u alidade é o critério básico, dificilmente poderá ser representativa de um a c o m u n id a d e nacional. As dificuldades p ara e n c o n tra r um critério objetivo de q u alid ad e e a questão da representatividade t o r n a r a m impossível criar u m a instituição de â m b ito n a c io ­ nal que satisfizesse a esses ideais. O ra , a alternativa foi, de um lado, fu n d ar associa­ ções temáticas, co m o a Sociedade K ant ou a Sociedade Filosófica de Estudos sobre o Século XVII, p o r o u tr o lado, criar pequenos grupos de pesquisa que tivessem um a h o m og e neid a de m etodológica, um a u nidade te m ática e um a exigência de q u a lid a ­ de. N esse co n tex to , no Rio f u n d am o s há te m p o s o g ru p o de pesquisa Seminário Filosofia da Linguagem (co o rd en a d o p or m im e pelo G u id o de Almeida), resp o n ­ sável pela publicação da revista Analytica. Esse g r u p o do Rio se associou a o u tr o g ru p o de pesquisa da UFRGS, co o rd e n a d o p o r Balthazar Barbosa. C abe, agora, aos “ sá b io s” da c o m u n id a d e avaliar a qualid ad e da p r o d u ç ã o de cada u m a dessas as­ sociações nacionais e desses g ru p o s de pesquisa.

Você é fundador da Associação Nacional de Estudos do Século XVII. Como você avalia essa Associação? Essas associações tem áticas, a o congregarem os especialistas de um a área, c o n tri­ buirão certam e n te p ara a m elhoria d o nível da filosofia no Brasil sem se c o m p r o ­ m eterem com o problem ático critério de qualidade. T o d o s os interessados, em p r in ­ cípio, p o d em p articipar de suas reuniões; as boas com unicações serão ouvidas com prazer, as de duv idosa q u alidade serão ouvidas com paciência.

Quais são, na sua opinião, os filósofos brasileiros mais importantes? Padre Vaz, Porchat, Vlarilena [Chaui], G iannotti, Balthazar, G uido e Luiz Henrique. C o m esses três últimos, te n ho grande afinidade m etodológica e filosófica. Vocês estão certam e n te surpresos pelo faro de n ão te r incluído pad re Vaz na lista dos professores com quem te n h o g ran d e afinidade filosófica. H á algum te m ­ po, nos seus magistrais artigos que a b o r d a m as relações entre razão, fé e religião, pad re Vaz tem p ro c u r a d o m o stra r que há um a irredutível incom patibilidade entre a razão m o d e rn a , ca racteriza da pela filosofia cartesiana (e que en c o n tra o seu a p o ­ geu na filosofia de Kant), e a conc epç ão cristã. O Logos cristão seria incompatível

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c o m o Lngns cartesiano. A raz ão m o d e rn a (cartesiana), razão o p e ra tó ria p o r exce­ lência, excluiria q u alq u er possibilidade de transcendência. As análises d o padre Vaz sã o sem pre p ro fu n d a s e q u a lq u e r refutação de suas teses exigiria um longo e sutil esforço de argum entação. M as sou obrigado a dizer de u m a m aneira simples e a b r u p ­ ta que custo a aceitar a co rreção dessa tese, ex p osta p o r mim aqui de um a m aneira bastante sim plória.

Por que você discorda dessa tese? C onfesso que te n ho certas dúvidas so bre essa tese, e m b o ra ela seja tã o bem a rg u ­ m e n tad a que chega a me parecer plausível. T ra ta -se de fato de analisar, segundo a expressão do padre Vaz, as tensões entre as razões da fé e as razões da razão. Descar­ tes teria iniciado um processo, que culm inou em K ant, de im a nentização lógica da Transcendência. Isso cm virtude da razão cartesiana ser uma razão operatória (lógica) que submete o real às suas exigências. Essa razão, em bo ra seja a de u m sujeito finito, pretende ser so b e ra n a justam ente por subm e te r o real às suas exigências o p e r a tó ­ rias. Em conseqüência, ela prescinde de q u a lq u e r relação com a T ranscendência. Essa descrição talvez se aplique a o racionalism o espinosista. M a s acho p r o ­ blem ático aplicá-la à razão prática k an tian a e a Descartes. T e n h o a im pressão de qu e Descartes m o stra nas suas o b ra s metafísicas que a raz ão finita n ã o é ca paz de justificar a verdade. Ela necessita da T ran scendência para se a u to validar. Sem a V eracidade Divina nen h u m con h e cim en to pode ser c on siderado justificadam ente verdadeiro. D onde, a razão finita, v olta da p ara si m esm a, é co n d e n a d a a o ceticis­ m o. M e s m o o m a te m á tic o ateu n ão será ca p az de justificar a verd a d e dos seus te o re m as sem a Veracidade Divina.

Q ual é a sua avaliação do último livro de Marilena Chaui, A nervura d o real? O livro da M arilen a alia a erudição, que caracteriza a historiografia co ntinen tal, a um a finesse argu m e n tativ a que a historiografia continental nem sem pre tem. C o m ­ parando-o com os livros recentemente publicados sobre Espinosa c om o os de M oreau e de M acherey, afirmo, sem hesitação, que o livro de M arilena é certam ente um dos melhores livros sobre Espinosa pu blicados nesse final de século. Aliás, os estudos espinosistas no Brasil são de excelente qu alid ad e t a n to d o p o n to de vista d o c o n h e ­ cim ento histórico q u a n to do p o n to de vista da análise filosófica. Além d o livro da M a rilen a , o de Lia Levy e o de M a rc os Gleizer c o m p ro v a m essa m inha afirm ação.

Como caracteriza a sua relação com Espinosa? N e n h u m a filosofia mais do q u e a de Espinosa merece o epíteto de sistema. O siste­ m a é d e m o n s tr a d o (e não a p e n as ex p o sto co m o a Exposição geométrica de Des­ cartes) segundo um m é to d o dedutivo. Ele contém um a o n tolo gia, um a teoria do co n h e c im e n to , u m a ética, u m a filosofia política etc. As questõ es filosóficas são a n a lis a d a s de um a m a n e ira p r im o ro sa , s e g u n d o um rigor a rg u m e n ta tiv o e um a precisão conceituai ra ra m e n te e n c o n tr a d o s em o u tro s textos. C o n s id e ra d o co m o u m cartesiano, Espinosa, no e n ta n to , subverte as intuições qu e fizeram de D escar­ tes o iniciador de um a nova m aneira de fazer filosofia. A p riorid ade da “ crítica”

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d o conh ecim ento sobre as o u tr a s questões filosóficas, que passam a dep e n d er do esclarecimento prévio dessa q u e s tã o inicial, é rejeitada. Sob esse aspecto, Espinosa é p o r excelência um an tica rtesiano o u, talvez, um pré-cartesiano. O b viam ente , não p o r n ã o ter co m p re e n d id o o alcance e a novidade rep rese n tad a pela filosofia c a rte­ siana, mas talvez p o r tê-la co m p re e n d id o perfeitam ente. C a d a dificuldade da filo­ sofia cartesiana é retom ada por Espinosa em sua filosofia e é solucionada a seu modo. De fato, Espinosa foi u m a lu no que n e n h u m mestre gostaria de ter.

Que conceito(s) de sua reflexão você destacaria como o(s) mais representativo(s) da sua produção filosófica? Pediríamos que você nos contas­ se como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje. O conceito de verdade e alguns conceitos a ele co ne ctad os c o m o o conceito de re­ presentação, de objetividade, de sujeito, de consciência de si, de objeto etc. são os que mais m a rc a r a m a m in ha pesquisa. O conceito de verdade é um caso exem plar. Ele n ão é um conceito filosófico, isto é, n ã o foi inven tad o p o r um a teoria filosófi­ ca. A parece na linguagem o rdinária , na co m u n ic a ç ã o d o dia a dia. C a b e a o filóso­ fo esclarecer o sentido desse conceito e os pressupostos envolvidos na afirm a çã o co tidiana e banal de q u e algo é v erdadeiro. O esclarecim ento pode se iniciar pela c o n s ta ta ç ã o de u m a trivialidade: dizer q u e algo é verdadeiro significa dizer que a realidade é assim e assim . Por exem plo, dizer que “ a neve é b r a n c a ” é verdadeiro significa dizer que a neve é branc a. Essa trivialidade p ode ser explicitada rec o rren ­ do-se a um a fo rm u laç ão mais sofisticada: a verdade consiste na a d e q u a ç ã o ou na co rrespondência d o que é dito (pensado/representado) com a realidade. Assim c o m ­ preendida, a verdade é um a relação entre dois term o s distintos: de um lado, algo é pensado, represe ntado o u enunciado; de o u tr o lado, algo é posto co m o real. O es­ clarecim ento inicial da n o çã o de verdade remete assim , desde o seu início, à n oção de representação (o que é pensado) ou à n oção lingüística do que é dito o u enunciado e à n o çã o de realidade visada (por u m sujeito), p o r ta n to , à n o çã o de o bjeto. R e p re­ se ntação (enunciado), sujeito e objeto estão, p o r ta n to , envolvidos na clarificação inicial do conceito de verdade. É, en tão , necessário esclarecer o significado desses term os. Se o sentido deles é elucidado, a q u estão central sobre a verdade, implícita na afirm a çã o banal de que algo é verdadeiro, passa a ter um significado preciso: c o m o e p o r que é possível ex p rim ir na linguagem ou no p en s a m e n to aquilo que oco rre na realidade? C o m o é possível saber que algo é verdadeiro? Essas questões triviais são tã o antigas q u a n t o é antigo o discurso filosófico. M as, a q u estão da verdade é um m o delo de pro b lem a filosófico, pois o filósofo n ão a inventa, m as p ro c u r a a p e n as esclarecer o que é e s p o n ta n e a m e n te afirm a d o . O esclarecim ento inicial rem eterá ce rtam ente à elucidação de no vos term os. M a s os sucessivos esclarecim entos perm item a b o r d a r , de u m a m aneira precisa, a q uestão sobre a prete n são in gênua e e spontâne a de que so m o s capazes de rep rese n tar ou de descrever c o rreta m e n te o real, isto é, de que so m os capazes de dizer a verdade. O qu e devem os su p o r ou aceitar c o m o c o rre to para justificar essa nossa p retensão à verdade? N ã o é necessário repetir que, se a q u estão da verdade foi o objeto de tantos anos de estudo, S. T om ás, Descartes, Espinosa, K ant e Wittgenstein, para citar apenas

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os clássicos, foram os autore s que mais freqüentei. G o m o já assinalei, segundo o m é to d o que denom inei de histórico-conceitual, o estudo da lógica arg u m e n tativ a de um te x to é o prim eiro m o m e n to da elucidação de um a q uestão filosófica. C a d a um desses autores p retendeu resp onder à questão: qual é o significado d o te rm o verdade? Por que é legítima a nossa pretensão de conhecim ento? A teoria de cada um deles pretende ser, ao m esm o tem p o, um esclarecim ento e um a justificação da crença de que p o d em o s saber que o que p ensam os ou dizemos é verdadeiro. É cla­ ro que to d o s esses esclarecimentos e justificações se desenvolvem no â m b ito de um sistema conceituai que delim ita o c a m p o do p ró p rio esclarecimento. T em atiz ar es­ ses p ressupostos, alte ra n d o -o s o u e sten d e n d o -o s, evidenciar os seus limites e os problem as que eles eng e n d ram é um a das ta refas d o m é to d o histórico-conceitual. M a s o que está sendo de fato q u e s tio n a d o é a legitim idade de nossa crença ingênua de que p o d em o s dizer que algo é verdadeiro. Vocês me perguntam sobre os meus trabalhos atuais. Dedico-me há alguns anos à crítica de K ant a Descartes. M in h a inte rpre taç ão atual das Meditações tem co m o fio c o ndu tor a célebre m etáfora cartesiana da árvore da ciência form ulada na “ C a r t a Prefácio” à edição francesa dos Princípios. A filosofia primeira cartesiana teria co m o objetivo justificar o saber h u m a n o , isto é, pro cu raria f u n d a r a metafísica, a m a te ­ mática, a física, a m oral e a medicina co m o ciências. Assim, a questão genérica sobre a verdade se d esd obra ria em q u a t r o questões distintas: (a) F. possível um a metafísi­ ca? (b) E possível a m atem ática? (c) F. possível a física? (d) E possível a moral ou um a ciência d o c o m p o sto de alm a e c orpo? Essas questões foram respo ndidas pela filosofia prim eira cartesiana. A p rova da existência d o sujeito pensante e, em se­ guida, a da existência de Deus perm item validar a metafísica. A p rova da existên­ cia de um Deus veraz legitima o valor objetivo das idéias claras e distintas, o que perm ite validar a m atem ática. A prova da existência dos c o rp o s funda a possibili­ dade da física co m o u m a ciência de objetos extensos de fato existentes. A prova da união da alm a com o c o rp o funda a possibilidade da ciência d o c o m p o s to de alm a e corpo. A d e m o n stra ç ã o de certos enunc ia dos existenciais g ara n te a legitim idade à pretensão da verdade, isto é, a possibilidade de um saber objetivo. A reflexão so b re a q u e s tã o da verd a d e co nheceu várias peripécias após as Meditações. Ela atinge o seu apogeu na Crítica de Kant. De Descartes, K ant herda a penas a p roblem átic a, mas o m é to d o e a filosofia prim eira cartesiana são postos em questão. Três aspectos da crítica kantiana a Descartes me interessaram particular­ mente. Estes três aspectos têm um a relação m ediata com a teoria cartesiana da ver­ dade: (a) criticando nos Paralogismos e na Refutação do idealismo a prova cartesiana da existência dos c o rp os, K ant põe em q u estão um a das teses centrais de Descartes: a tese da p rio rid a d e d o c onhe cim ento de si sobre o conh e cim en to d o m u n d o o b je­ tivo, o que to rn a problem ático o m é todo e a p ró p ria a f u n d aç ão do c onhe cim en to objetivo nas Meditações; (b) em Descartes, a existência efetiva d o sujeito pensante desem pen ha um papel fu ndam e ntal na refu tação do ceticismo e, p o r ta n to , na p r o ­ va de q ue é possível um c on he cim ento verdadeiro. K ant refuta essa tese de D escar­ tes m o s tra n d o que, se de um lado o eu penso desem penha um papel d eterm ina nte na prova da possibilidade d o conhecim ento objetivo, de o u tr o lado, ele é um a mera função formal de u nid ade e n ã o exprim e nem o con h e cim en to de si nem o conheci-

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m e n to de um sujeito v erdadeiram ente existente; (c) a prova ontológica cartesiana revela a e s tru tu ra das provas existenciais nas Meditações. Juízos existenciais são assimilados na sua estru tu ra form al a juízos atributivos. O juízo “ Deus existe” te­ ria a m esm a form a lógica do juízo “ Deus é existe n te” . Assim, fo rm a lm e n te a p r o ­ va da p roposiçã o Deus existe deve satisfazer às m esm as condições da prova da p r o ­ posição “ D eus é o n ip o te n te ” . A crítica k a n tia n a ao a r g u m e n to o ntológ ico põe jus­ tam ente em q u estão essa assim ilação dos juízos atribu tivos aos juízos existenciais. N o q u a d r o geral da análise da questão da verdade, esses são os p roblem as que me o c u p a m atualm ente.

Qual é para você a relevância, a importância e a contemporaneidade de Descartes? A cho que Descartes é u m filósofo co n te m p o r â n e o n ã o em ra z ã o das soluções a que chegou, m as dos p ro blem as que descobriu. Se d o p o n to de vista das soluções, a fi­ losofia pós-cartesiana é, m uitas vezes, an ticartesiana; do p o n to de vista das qu es­ tões levantadas p o r Descartes, ela é cartesiana.

Os seus textos sobre Descartes não abordam diretamente a problemá­ tica moral. Como você se posiciona em relação à moral provisória car­ tesiana? N e n h u m dos meus textos a b o rd a questões de filosofia moral. Nisso, Descartes é meu mestre, e m b o ra ele tenh a tido o pro jeto de escrever no fim de sua vida um tr a ta d o de moral. A m orte p rem atura impediu que realizasse o seu projeto. Sobre o tema, dei­ xou-nos apenas a sua “ moral provisória” e o seu im portante “T ra ta d o das Paixões” .

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­ cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade? F. fato que os filósofos m o d e rn o s. Descartes, I.eibniz, K ant tin h a m um p r o fu n d o conhecimento das questões científicas do seu tempo. Pessoalmente, interesso-me pelas relações da lógica c o n te m p o r â n e a com a filosofia. C o m o e xe m plo dessas relações entre lógica e filosofia, cito a q u estão da vali­ d a d e do “ arg u m e n to o n to ló g ic o ” . A tualm ente, em raz ão da crítica de K an t a D es­ cartes, te n h o m e ded ica d o a o estudo desse arg u m e n to . De u m a m aneira genérica, p o d em o s caracterizá-lo co m o um a r g u m e n to que pretende inferir das n o ta s c a ra c ­ terísticas de um conceito o fato de que esse conceito tem u m a instância, isto é, que ele n ã o pode ser vazio. H á , assim, um a prova a priori de existência. Descartes a d a p ­ tou a prova de S. Anselmo ao q u a d r o conceituai de sua filosofia. A versão cartesiana foi subm etida a duas críticas célebres: a crítica tom ásica e a crítica kantiana. A m bas se baseiam cm últim a análise na distinção entre juízos de existência e juízos a tri­ butivos. O a r g u m e n to ontoló gico tem c o m o conclu são um juízo de existência ne­ cessário, isto é, um juízo de existência que não p o de ser falso. O que já é p ro b le ­ m ático, pois juízos de existência h a b itu a lm e n te são juízos contingentes, não-necessários. A crítica tom ásica ao a r g u m e n to ontoló g ico baseia-se na distinção entre as noções de ente e de ser (esse) e na distinção entre o a to de ap re en d er um a essência

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através de um conceito e o a to de julgar que algo existe. Essas distinções justificariam a distinção lógica entre juízo atributivo e juízo existencial. A crítica de K ant consiste em m o stra r que juízos existenciais n ã o p odem ser juízos necessários. Para justificar essa afirm ação, K ant m ostra que a form a dos juízos existenciais é diferente da forma dos juízos atributivos. E essa afirmação é justificada pela célebre tese de que existência n ão é um p redicado. Assim, segund o K ant, um ateu deve aceitar co m o verdadeira a p r o p o siç ã o “ D eus é o n ip o te n te " , e m b o ra considere falsa a p ro p o siç ã o “ Deus existe’'. “ Deus é o n ipotente” correlaciona o conceito “ D eus” com o conceito “o n ip o ­ te n te ” . Se Deus é pensado , Deus é p e n s ad o co m o onipo te n te . M a s a proposição “ Deus existe” , n ão correlaciona conceitos, mas correlacion a um conceito com um objeto já dado que é suposto satisfazer o conceito. D on d e, a análise d o a r g u m e n to ontológico, em última instância, remete à análise da estrutura dos juízos existenciais. Q uais são as suposições que devem os fazer p ara co n siderar verdadeiras essas proposições: “ a mesa é b r a n c a ” c “ a mesa existe” ? Q ual a relação entre essas p r o ­ posições? T em sentido afirm a r que “ a mesa é b r a n c a ” , se a mesa n ão existe? As condições de verdade de um juízo a tributivo supõem a existência d o que é referido pelo term o-sujeito? A lógica medieval deu g ran d e ênfase à teoria da suposição, isto é, à teoria que determ inava as condições da referência de um term o n u m a p ro p o si­ ção atributiva. A lógica c o n te m p o r â n e a tem se dedicado lon gam ente a esse p ro b le ­ ma. A teoria das descrições de Russell, as reform ulações dessa teoria por Stravvson são um exem plo disso. Q uin e escreveu um magistral artigo “ Sobre o q u e h á ” , que, sem a b o r d a r a q uestão do a r g u m e n to ontológ ico, form ula critérios p ara determ i­ n a r quais são os compromissos ontológicos que um a teoria assume. F. bem v e r d a ­ de que a análise de Q uine e de algum as semânticas da lógica m o d e rn a parecem estar c o m p ro m e tid a s com duas teses: a tese que afirm a q u e (a) o conceito de existência é expresso pelo q u antifica d or existencial; e a tese que afirm a que (b) o o p e r a d o r exis­ tencial deve ser in te rp re tad o o b je ctualm ente (e não substitucionalm ente). Assim, afirm a r q u e “ x existe” significa afirm a r que um o bjeto a previam ente d a d o no d o ­ mínio é igual a .r. Significa, p o r ta n to , d em o n strar que há um .v que é a. Assim, podese falar sobre a existência de objetos, caso esses objetos sejam previam ente dados. Obviam ente, essa análise desqualifica a questão colocada pelo argum ento ontológico, pois, se o significado d o term o “ existência" é d a d o pelo o p e r a d o r existencial, não tem sentido falar de p rovas a priori ou de provas conceituais de existência. M as, a lógica c o n te m p o r â n e a não está c o m p ro m e tid a com a in te rp re taç ão objectual do o p e r a d o r existencial. Assim, a q u es tão sobre a validade d o a r g u m e n to o ntológico ain da n ã o en c o n tro u um a solução definitiva.

Na sua análise, então, o argumento ontológico na formulação de S. Anselmo continua de pé? C o n tin u a c o m o um p ro b le m a aberto. As críticas de S. T o m á s , as de K ant e as de alguns filósofos analíticos m o stra m as dificuldades dessa prova. M a s, to d a s essas refutações d epen dem d o q u a d r o conceituai em que são form uladas. Se a existência só pode ser conhecida pelo a to judicativo, a apreensão conceituai não pode ser um a raz ão suficiente p ara a p rova de existência de q u a lq u e r objeto. M a s, a existência só pode ser conhecida pelo a to judicativo? Se existência não é um p redicado , ta l­

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vez o a r g u m e n to ontoló gico n ã o seja válido. M as, existência não é um predicado? N ã o sei se é possível m o stra r a inconsistência do a r g u m e n to ontológico, m as ac ho que, se são aceitos certos pressupostos, é possível p ô r em q u es tão esse argum e nto . A dificuldade consistirá, então, em d em o n strar a correção desses pressupostos. Creio que a análise d o arg u m e n to ontológico depende ao m enos d o esclarecimento de duas questões prévias: (a) o significado do te rm o “ existência” ; (b) a relação entre juízos atribu tivos e juízos de existência.

Como você caracteriza a sua relação com a religião e a fé? Você está p e rg u n ta n d o a o sujeito em pírico o u a o professor de filosofia?

Estamos partindo do princípio de que são a mesma pessoa. [Risos] Estas questões deveriam ser dirigidas a o pad re Vaz. Ele tem escrito artigos magis­ trais sobre essa questão. Isso n ã o quer dizer que c onc ord e com tu d o o qu e ele es­ creveu. Já assinalei n u m a pergunta anterior as m inhas discordâncias. Registro agora du as obviedades. E m b o ra não creia que tenha sentido falar d u m a “ filosofia c ristã ” no sentido em que Gilson utilizou esse te rm o, o e n c o n tro da cultura grega co m o m u n d o cultural cristão influenciou decisivamente n ã o só a filosofia medieval, com o ta m b é m a filosofia m o d e rn a . N ã o creio que este ciclo de influência já ten h a se e n ­ cerrado, pois a experiência cristã coloca para o h om em questões de ordem ontológica e ética que têm que ser esclarecidas. Sem esses esclarecimentos, a experiência h u ­ m a n a se to rn a ria cega e talvez ab su rd a . A o u tra obviedad e qu e gostaria de regis­ tr a r é que a filosofia é o b ra da razão, exclusivam ente da razão. E se ho u v er um a op o siç ão entre as razões da ra z ã o e as razões da fé (não digo o po siç ão entre raz ão e fé, mas entre razões da razão e razões da fé), as razões da fé devem se reo rd en a r segu ndo as razões da razão.

Você já teve fé? Eis um a q u estão que a cultura c o n te m p o r â n e a considera co m o um a q uestão que concerne à vida p rivada e não à vida pública. M a s n ã o me fu rto a re spon de r a sua pergunta. Fui católico pratican te e convicto. N ã o sou mais. Q u a n d o cheguei a Louvain, os estudantes me diziam: “ aqui to d o m u n d o acredita na Igreja, m as ninguém acredita em D eu s” . F.u gostaria de p o d er afirm a r a o m enos a co n tra p o siç ã o dessa p roposiçã o (irônica) dos estudantes de Louvain. Em to d o caso, ao m e fazer essa p erg u n ta , rec o rd o -m e de um a frase de Dostoiévski: “ Se D eus n ã o existe, tu d o é p e r m itid o ” (cito essa frase de m em ória, n ã o sei se ela é textual). E se t u d o fosse p e r ­ mitido, te nho a im pressão que a experiência h u m a n a seria absurda. Essa afirm ação de Dostoiévski é c o rrobora d a por uma tese cartesiana: sem Deus n ão é possível justifi­ car o co n h e cim ento da verdade nem justificar a co rreção de q u a lq u e r ação. Essa tese foi criticada e colocada em questão pelos sucessores de Descartes. N ã o sei se ela é verdadeira. M a s a te nh o sempre presente, a o m enos, co m o um a hipótese plausível.

Como você se situa em relação aos problemas de “uma mudança de paradigma” da filosofia, de uma filosofia “pós-metafísica” calcada na linguagem?

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Nessa sua p ergunta estão envolvidos dois conceitos: o conceito de metafísica e o conceito de filosofia lingüística. O ra , os objetos da metafísica, ao m enos os da m e­ tafísica cartesiana, eram o sujeito pensante (alm a), Deus, e o m u n d o (os corpo s e x ­ tensos realm ente existentes). Esses objetos se tr a n s f o r m a m em idéias da razão pura que fazem parte da lógica da ilusão da Dialética Transcendental da Crítica da ra­ zão pura. É certo que n ão é mais possível fazer metafísica sem levar em co n sid era­ çã o as análises de K ant. É certo ta m b é m que a filosofia lingüística, que tem sua origem nos escritos de B. Russell, Frege e W ittgenstein, sendo pó s-k an tian a parece ser antim etafísica. As distinções d o Tractatus entre m o stra r e dizer, e ntre esclareci­ m ento e c on he cim ento atribuem ao discurso filosófico a p e n as a função d o esclare­ cim ento lógico da linguagem, o que reforça essa tendência antimetafísica. Sob esse aspecto, as Investigações filosóficas c o r r o b o ra m as teses d o Tractatus com o u tro s pressupostos e argu m ento s. A questão que pode ser colocada é se há u m a incompatibilidade lógico-filósofica entre análise conceituai e metafísica, se se entender p o r metafísica o conhecim ento de objetos reais não-empíricos. A filosofia crítica de K ant é incompatível com a m e ta ­ física racionalista; as teses de W ittgenstein parecem ser incompatíveis c o m q ualquer metafísica. N o e n tan to , os traba lhos de Straw son e D u m m e tt, dois eminentes filó­ sofos analíticos, m ostram que é possível reto m ar alguns problem as clássicos da m e ta ­ física, co m o o p roblem a da verdade, da individualidade, da id entidade pessoal, da causalidade, da liberdade, e analisá-los e esclarecê-los à luz do método analítico. Muitos outros filósofos considerados analíticos reto m aram questões metafísicas para elucidálas segundo os m é to dos lógico-lingüísticos. Penso, p o r exem plo, em G each e Anscom be. M a s perm anece ainda a questão: a tese de que a filosofia é análise conceituai e a tese de que a metafísica é um con hecim ento de objetos não-em píricos serão teses compatíveis? E claro que o discurso filosófico supõe um a análise conceituai. Resta saber se, além da análise conceituai, o discurso filosófico pode legitimamente pretender a um conhecim ento de objetos. Um a resposta a essa questão exigiria um estudo m in u ­ cioso dos textos de Straw son, D u m m e tt, G each etc. e das novas tendências o riund as da própria filosofia analítica, mas que põem em questão os seus principais postulados.

Em seu artigo “Rumos da filosofia analítica: a questão da representa­ ção e do objeto”, você procura mostrar que a filosofia analítica perma­ nece inevitavelmente presa a certas noções da filosofia clássica, como as de representação e objeto. A trajetória de Wittgenstein é apresenta­ da como um importante testemunho de tal situação, no sentido de que o segundo Wittgenstein conseguiria livrar-se de noções como essas, ao menos indicar o caminho para isso. A noção de semelhança de fam í­ lia, por exemplo, mencionada por você, teria a virtude de permitir “ex­ plicar a generalidade dos termos sem recorrer à noção de essência co­ mum: na rede, cada elemento é semelhante a pelo menos um objeto, mas nenhum elemento é necessariamente semelhante a todos”. Como você vê as relações do segundo Wittgenstein com a filosofia clássica? Você cita um a ntigo artig o meu. Nessa época eu tin h a o p ro jeto de refletir sobre alguns conceitos da filosofia clássica, c o m o os conceitos de verdade, representação,

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objeto etc. e de analisá-los d o p o n to de vista da filosofia lingüística. O conceito de represe n taç ão me serviu de m odelo , pois é um a n o çã o central d o cartesianism o e ta m b é m d a Crítica de Kant. M a s é ta m b é m um conceito central d o Tractatus em virtude da sua concepção da propo sição co m o “ figuração ” da realidade. N a s Inves­ tigações filosóficas, graças a o conceito de Semelhanças de Família, o conceito de r epresentação n ã o é mais utilizado. A crítica das Investigações consiste em m o stra r que o conceito de representação, m esm o se não está c o m p ro m e tid o co m um a a n á ­ lise m entalista do con h e cim en to (isto é, co m um a análise d o con h e cim en to a partir d o conceito de consciência), está c o m p ro m e tid o co m um a conc epç ão essencialista, seja ela lingüística (com o a co n c ep ç ão do Tractatus) ou n ã o (com o a con c epç ão cartesiana). Para d e m o n s tr a r a sua tese, Wittgenstein analisa até o p a rá g ra fo 130 (se não me falha a memória) a estrutura da proposição elementar: a função referencial dos term os singulares, a função dos term os gerais, isto é, a função dos predicados etc. A teoria clássica da predicação, co m o aquela ex posta p o r Aristóteles n o livro Sobre a interpretação retom ad a ta m b ém p o r S. T o m á s no seu c o m entá rio sobre esse livro de Aristóteles, explica a função dos term os gerais pela função do conceito, que representaria um a essência, um a q ü ididade, ab s tra ta . O en u n c ia d o “ Esta mesa é b ra n c a ” é, então explicado, de um a maneira simples: há um a com posição que atribui a um a coisa visada pelo te rm o sujeito um a p ro p rie d a d e (nesse caso u m a qüid id a d e acidental) significada pelo conceito predicado. M a s se os term os gerais n ão represen­ ta m essências, co m o se en gend ra e co m o se p ro d u z um term o geral? C o m o é legíti­ m o atrib u ir um p red icad o a um objeto, referido pelo conceito-sujeito, sem s u p o r que esse predicado, enqu a n to term o geral, representa um a essência abstrata? A noção de Semelhanças de Família respo nde a essa q u estão, o que perm ite explicar a p r e ­ dicação sem recorrer a um a concepção tradicional da função dos term o s gerais. As Investigações fazem um a interessante crítica a algum as das teses clássicas da filosofia. V isando a teoria d o Tractatus, elas envolvem na sua crítica m uitos te­ mas e muitas teses da filosofia clássica. As Investigações têm, sem dúvida, uma função terapêutica. D a célebre análise da linguagem p rivada p ode ser ex tra íd a u m a p o d e ­ rosa crítica à filosofia da consciência cartesiana. D a análise da n o çã o de Regra e de Uso de um a Regra p ode ta m b é m ser e x tra íd a u m a reavaliação da Analítica dos princípios da Crítica da razão pura. M a s as Investigações parecem co nfin a r o dis­ curso filosófico apenas em u m a função terapêutica, excluindo de sua natureza a p o s­ sibilidade de q u a lq u e r p retensão construtiva e sistemática. R epensar as Investiga­ ções a p artir de um p o n to de vista transcen dental poderia ser u m a tarefa interes­ sante p ara a filosofia analítica c o n te m p o râ n e a . Alguns já esb o ça ra m esse projeto, m as ele aind a não en c o n tro u u m a form ulaç ão convincente.

Como você avalia a Interpretação de Giannotti em seu livro A presenta­ ção do m undo: considerações sobre o pensamento de Ludwig Wittgenstein? A dm iro os texto s filosóficos de G ian n o tti pela sua pretensão, às vezes m u ito bem sucedida, de fazer filosofia e n ão apenas análise estrutural de texto. N o e n ta n to , G iannotti n ão é um cartesiano. O s seus textos n ão são claros. E onde n ão há clareza, a profundidade real da análise pode ser interpretada com o confusão conceituai. Podese reto rq u ir q u e K ant ta m b é m n ã o era cartesiano. C reio que a filosofia de K ant é o

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fio c o n d u r o r da inte rp re taç ão de Wittgenstein ap re sen ta d a nesse livro. A nalisando tem as da filosofia de W ittgenstein, G iannotti parece estar d ia lo g an d o com Kant. Sob esse aspecto, essa interpretação torna Wittgenstein um filósofo bem mais interes­ sante do que se ele fosse interpretado co m o um filósofo que ignora e, p o r isso mesmo, rom pe com a trad ição filosófica. O apêndice d o livro, sobre a form a d o juízo em K ant, que prolonga a apresentação rápida formulada no primeiro capítulo, é de difícil leitura, e m b o ra seja original e bastante pen etrante pelo que p u d e com preender.

Em nossa conversa, você nos disse que temos condições hoje de pensar com mais clareza os problemas metafísicos devido, por exemplo, aos novos instrumentos lógicos de que dispomos. Nesse sentido, há progresso na filosofia? N ã o há dúvida que p o d em o s falar de um a história da m atem ática, de u m a história da lógica no sentido de que as teorias (m atem áticas ou lógicas) co n te m p o râ n e a s são mais a bra ngen te s d o que as teorias anteriores e que p roblem as abertos ou co nside­ rad o s indecidíveis e n c o n tra m soluções nas teorias co n tem p o rân e as. H á , dessa m a ­ neira, um a história das ciências. M as será que p odem os falar de história da filosofia?

A filosofia não é nem uma monótona repetição de um passado sem presente nem c uma constante invenção de um presente sem passado. De um lado, de um a certa m a n eira, to d o s os filósofos clássicos são c o n te m p o r â n e o s, e m b o ra poucos c o n te m p o r â n e o s possam ser considerad os clássicos. Filósofos clássicos podem ser consid erado s c o n te m p o râ n e o s peio fato de po d erm o s utilizar as suas análises para esclarecer um a questão contem porânea. F.ssa afirm ação ainda se justificaria em razão de não p o d e rm o s ignorar um a análise clássica so bre um a q u estão , se quiserm os esclarecê-la, pois poderem os ser levados a coloca r chaves em po rtas a r ro m b a d a s. Por o u tr o lado, se devem os levar em consideração as análises clássicas e se p o d e ­ m o s e, se até m esm o devemos, in c o rp o ra r novos instrum entos conceituais a essas análises, é claro que nesse caso pode ser fo rm u lad o um n ovo esclarecimento para um a (antiga) questão. Além disso, antigas análises p odem n ão ser mais pertinentes te n d o em vista os novos instrum entos conceituais. F.m princípio, n e n h u m a análise clássica deve ser ig norad a p o r ser clássica nem, pela m esm a razão , n e n h u m a a n á li­ se clássica p o r ser clássica deve ser utilizada. O que significa então dizer que hoje nós podemos pensar com maior clareza? G ostaria de respon der a essa q u estão a p artir de um e xe m plo que m o stra c o m o e po r que julgo que u m a análise histórica contrib ui para o esclarecimento conceituai de um tema. T o m o c o m o p o n to de partid a a versão cartesiana d o a rg u m e n to ontológico. Ela tem o m érito de ser uma q u estão que foi longam ente analisada na história da filosofia e que parece n ão ter en c o n trad o até agora um a elucidação satisfatória. Para analisar o a r g u m e n to o ntológ ico cartesiano é legítimo, a o m enos inicialmente, se ab stra ir de suas críticas in spiradas quer na filosofia de S. T o m á s q u er nas análises de Kant. N essa etapa inicial, o m é to d o estrutural de análise de texto é valioso, pois ele permite a reco n stru ção im anente da prova segundo os pressupostos, os concei-

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tos e os arg u m e n to s d o p ró p rio texto. A reconstrução im anente do a r g u m e n to não elimina as dificuldades da p ro v a, ao co n trá rio , ela permite to r n a r explícitas essas dificuldades. Estas talvez pudessem , p o r hipótese, ser resolvidas n o c o n te x to do q u a d r o conceituai cartesiano. Nesse caso, o a r g u m e n to seria co n sid erad o plausí­ vel, sob a c o n d içã o da aceitação de seus pressupostos. M a s esses pressupostos p o ­ dem ser colocado s em q u estão de um p o n to de vista ex tern o a o sistema. S upondo q u e te n h am sido explicitados to d o s os pressupostos internos necessários à d e m o n s ­ tra ç ã o d o a rg u m e n to , questões externas a o sistema p o d eria m , e n tre ta n to , problem a tiz ar essa reco n stru ção im anente. Por exem p lo, su p o n h a m o s que Descartes ti­ vesse c o rreta m e n te d e d uz ido da idéia clara e distinta de D eus (segundo os pressu­ postos do sistema) a sua existência. N essa prova, Descartes teria aceitado sem tematizar (como parece afirm a r nas suas Respostas a Gassendi) que a existência é um a das perfeições de Deus, isto é, é um a trib u to ou um predicado. O ra , K a n t afirma que a existência não é um predicado. Esse p roblem a n ã o é u m a q u estão cartesiana, pois Descartes julgava evidente a tese de que a existência é um pred icad o. M as, a afirm a çã o k a n tia n a de um p o n to de vista e x te rn o põe um a dificuldade real para o sistema cartesiano. G o m o c o n t o r n a r ou re sponde r a essa dificuldade d o p o n to de vista cartesiano? Se for possível reconstruir a p ro va sem essa suposição (o que acho po u co provável), fica c o n to rn a d a a dificuldade. Nesse caso, a prova teria sido refor­ m u la d a de tal m aneira que ela responde à q uestão k an tian a . M as, se isso n ão for realm ente possível, fica explícito n ã o só q ue a p rova cartesiana depend e desse pres­ su p o sto , c o m o ta m b é m qu e ela n ã o seria válida ca so a existência n ã o fosse um predicado. M a s, a existência n ão é um predicado? Esse pro b lem a tem que ser es­ clarecido para um a correta avaliação das formulações d o a r g u m e n to ontológico que têm essa pressuposição. Uma resposta a essa q u estão poderia ser e la b o rad a a p a r ­ tir, p o r ex em plo , d o q u a d r o conceituai k a n tia n o . Q u ais seriam as razões kan tian a s que m o stra riam que a existência n ã o é um predicado? Q u ais os pressupostos do a r g u m e n to kan tian o ? O m esm o m é to d o de esclarecim ento que foi ap lica do a o a r ­ g um ento ontológico cartesiano deve agora ser aplicado ao a r g u m e n to k antian o, que pretende d e m o n s tr a r que a existência n ã o é um predicado. O b v iam en te , a análise não term ina co m a p r o b lem atiz aç ão d a rec o n stru ção k an tian a . Um recurso às se­ m â n tic a s das lógicas c o n t e m p o r â n e a s é e viden te m e nte útil. Em to d o caso, um a análise d o argum en to ontológico nos conduziu a reconstruir o argu m e nto cartesiano, a tem atizá-lo a p artir de ou tras perspectivas. Essa análise sobre esse pro b lem a d e ­ veria te rm in a r com a fo rm ulação de u m a nova p rova d o a rg u m e n to ontológ ico que n ã o esbarrasse nas dificuldades e n c o n tra d a s pelas antigas formulações.

Você utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do fu­ turo da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia? C o m o c i d a d ã o te n h o um a vaga visão dessa utopia: um a sociedade justa, igualitá­ ria, sem discrim inação de raça, credo etc. C o m o filósofo n ã o ten ho me dedicado a essas questões. P o rta n to , n ã o sei f o rm u lar em te rm o s precisos os c o n teú d o s e as condições de realização dessa sociedade utópica.

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Principais publicações: 1980 1992 1994 1997

1998

Filosofia da linguagem e lógica (co-autor) (São Paulo: Loyola); Evidência e verdade no sistema cartesiano (São Paulo: Loyola); “ Pode o Cogito ser po sto em q u e s tã o ? ” , revista Discurso, n° 24; “ Idealism o o u realismo na filosofia prim eira de Descartes. Análise da crí­ tica de K an t a Descartes no IV" P aralogism o da CRP [A]” , Analvtica, vol. 2, n° 2; “ D o eu penso ca rtesiano ao eu penso k a n t i a n o ” , Studia Kantiana , vol. 1, n" 1.

Bibliografia de referência da entrevista: A quino, T. de. Suma teológica, Livraria Sulina. Aristóteles. Metafísica, M adri: Editorial Gredos. ___________ . Categorias, Lisboa: G uim arães. C a rn a p , R. C oleção O s Pensadores, Abril C ultural. Descartes, R. Meditações, coleção O s Pensadores, Abril C ultural. ___________ . Princípios de filosofia, Lisboa: G uim arães. ___________ . Tratado das paixões, coleção O s P ensadores, Abril Cultural. ___________ . Regras para a direção do espírito, Lisboa: Edições 70. Espinosa, B. Ética, coleção O s P ensadores, Abril C ultural. ___________ . Tratado da correção do intelecto, coleção O s P ensadores, Abril C u l­ tural. G uéroult, M. Descartes selon I'ordre des raisons, Paris: Aubier. Gilson, E. Études sur le rôle de la pensée médiévale dans la formation du système cartesien. Paris: Vrin. K ant, I. Crítica da razão pura, coleção O s Pensadores, Abril C ultural. M a ré ch a l, J. Le point de départ de la métaphysique, Bruxelas: Ed. Universelle. M a r x , K. O Capital, coleção O s E conom istas, Abril C ultural. Q uine, W. V. Relatividade ontológica e outros ensaios, coleção O s Pensadores, Abril C ultural. Russell, B. C oleção O s Pensadores, Abril C ultural. W ittgenstein, L. Tractatus logico-philosophicus, Edusp. ___________ . Investigações filosóficas, coleção O s Pensadores, Abril Cultural.

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T é rc io S am p aio F erraz Jr.: “ P ara m im , a o c o n tr á rio , talvez a m a io r p a rte d o s d isc u rso s h u ­ m a n o s n ã o seja ra c io n a l. A ra c io n a lid a d e é ap e n a s u m a fo rm a possível, e n tre o u tra s , de e n fre n ta r a situ a ç ã o c o m u n ic a tiv a , de e n fre n ta r o jogo e n tre em isso r e re c e p to r, e n tre o r a d o r e o u v in te — u m jogo q u e é, n a v e rd a d e , um jo g o de p o d e r ” .

T É R C IO S A M P A IO F E R R A Z JR. (1941)

T ércio Sam p aio Ferraz Jr. nasceu em 1941, em São Paulo (SP). G ra d u o u -se em Direito e em Filosofia pela Universidade de São Paulo, te n d o o b tid o o título de d o u to r em Filosofia pela Universidade de M a in z (Alemanha) e o título de d o u to r e de livre-docente em Direito pela USP. Foi secretário executivo do M inistério da Justiça (1990-1991). É professor de Filosofia e T eoria Geral d o Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor titu lar da Faculdade de Direito da USP. Esta entrevista foi realizada em fevereiro de 2000.

Goetbe dividiu a vida de seu personagem W ilhelm Meister em dois romances, O s anos de ap re n d iz a d o e O s anos de peregrinação. No pri­ meiro, o foco está posto na fonnação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liatnes desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que o senhor nos falas­ se de sua fonnação intelectual? Creio qu e é um b o m m ote, sim. M in h a form a çã o intelectual tem um aspecto que alcança até a adolescência. C o m o m uitos filósofos pelo m u n d o , fui a lu n o de jesuí­ tas — no Colégio São Luís, aqui em São Paulo — , e de certa form a sofri essa in­ fluência jesuítica, pelo m enos em term os de disciplina, disciplina de estudos etc. Ao m esm o tem po , o correu um a coisa bastante peculiar: na m inha ciasse, desde os 11 an o s mais ou menos, fui colega de um g ru p o que era o núcleo do que viria a c h a ­ mar-se, anos mais tarde, T ra d iç ã o , Família e P ropriedade. N u n c a fui da TFP, mas a presença desse g r u p o na classe — cerca de q u a t r o alunos em um total de apenas doze — era algo significativo e que me m a rc o u, pois d u r a n te q u a tro , cinco anos nós m a n tiv e m o s c o n s ta n te s discussões, que e nv olviam religião, c o m p o r t a m e n to perante a sociedade, política, e assim p o r diante. T u d o isso fazia parte do nosso diaa-dia de adolescentes, e p o r ta n t o foi algo im p o rta n te nesse com eç o da m in h a p r e o ­ cu p a çã o com tem as de filosofia. N essa m esm a época, pelo m eno s d u r a n te uns q u a t r o anos, tive um colega, Francisco Simões, cujo nom e costum o sempre lembrar. Era um rapaz quieto, gostava de estudar e, desde os 12 anos, lia filosofia por conta própria. Para nós era um garoto estra nho, que com essa idade aparecia to d o s os dias com o jornal O Estado de S. Paulo d eb a ix o d o braç o, e que, n ão o b sta n te isso, foi assu m in d o aos pou cos um a posição política q u e dizia ser socialista. Isto com eço u a in c o m o d a r os padres, p o r ­ que o pessoal da TFP, evidentem ente, reclamava: " C o m o é possível um socialista aqui d e n tro ? ! ” . M a s ele ainda assim m a n tin h a a sua posição. E co m o eu gostava m uito dele, e co n versávam os b astante, isso ac ab o u sendo, digam os, o o u tr o lado do meu despertar p ara os assuntos filosóficos. O u seja, era de um lado a TFP, e, de

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o u tr o , alguém que se dizia socialista! Uma vez chegam os até a fazer u m a discussão sobre com patibilidade entre socialismo e cristianismo, ab erta p ara toda a classe, em que fiquei do lado dele, co n tra a tu r m a da TFP (que, aliás, ain d a não era co nh eci­ da p o r esta sigla!. Enfim, esses são alguns d ad o s iniciais de m inha form ação. Já q u a n d o entrei na Faculdade de D ireito da USP, em 1960, fiquei m uito im ­ pressionad o com o professor G offredo [da Silva Telles], nas suas aulas de “ I n tro ­ dução à Ciência do D ireito ” , e foi p o r influência dele q u e fui prestar vestibular para filosofia — que me pareceu e n tã o mais im p o rta n te que o direito. A pesar de passar ta m b é m na PUC, entrei na USP, me beneficiando na época de algo que hoje seria impossível: e m b o ra já fosse p roibido, na época, cu rsa r sim u ltaneam ente du as fa­ culdades na USP, n ã o havia c o m p u ta d o r , e p o r ta n t o o controle era impossível. N a Faculdade de Filosofia, fui colega de M arilen a C haui, M a ria Lúcia M o n ­ tes, Rubens R odrigues T orres, dentre ou tro s; Porchat, recém -chegado da França, foi meu professor; Bento P rado, que estava de saída para a França, me deu aula t a m ­ bém ; assim co m o J o ã o ] C ruz C osta, Lívio [Teixeira], L ebrun, D eb ru n , G iannotti e d o n a Gilda [de M ello e Souza] na área de estética. E n q u a n to isso, n o curso de direito, houve du as influências decisivas n o que diz respeito à filosofia: o p ró p rio professor G offredo, n o princípio d o curso, e mais tarde, o b via m ente, o professor M iguel Reale. Vivi o c o n fro n to das du as orientações, e senti essa diferença em te r­ mos de form ação — u m a diferença que posso resumir com a seguinte história. Q u a n ­ do eu e Celso Lafer estávam os no q u in to a n o da Faculdade de Direito, o professor M iguel Reale, tendo em vista o n osso interesse, con vid o u -n o s p ara assistir às suas au las na pós-g ra d u aç ão . N u m a certa altu ra, com entei com o Celso que os sem iná­ rios que o professor Miguel Reale pro m o v ia n à o tin h a m n a d a a ver co m o estudo de filosofia, e ele m e retru cou que eu estava sendo m u ito parcial. De fato, o estudo a que eu estava a c o stu m a d o na Faculdade de Filosofia era aquele o rie n ta d o pelo ân g u lo d o s es tru tu ralistas franceses, era e s tu d a r história da filosofia, e s tu d a r os sistemas filosóficos, com to d o o rigor possível, enqu a n to o estilo d o professor Miguel Reale era co m pletam ente aberto. O curso que ele estava d a n d o na época, p o r ex e m ­ plo, era sobre Vico, m as n ão havia aquela p reo c u p a ç ã o de rigor na in te rpre taç ão d o seu sistema filosófico; o que im porta va era pensar os p rob lem as que Vico levan­ tava. A princípio achei isso m uito e stra n h o , m as aos po u co s fui p erc ebendo que ele sim plesm ente estava fazendo um a coisa diferente — e p o r que não? M a s essas qu es­ tões ficaram mais no inconsciente. A verdade é que, term inad o o curso, surgiu para m im a possibilidade de ir para a A lem anha. C o m o q u a lq u e r b o m a lu n o da Faculdade de Filosofia, o meu so nho era e s tu d a r fora. M a s a concorrência era d u ra. Foi q u a n d o me o correu um a dessas sortes que às vezes a gente tem na vida. Eu tinha um a professora de inglês na C u l­ tu ra Inglesa, a sra. Livonius, c o m qu em eu conversava m uito a respeito de meus projetos — estava e s tudan do inglês e francês com o objetivo de conseguir bolsa para e s tu d a r filosofia n u m país de língua inglesa ou francesa — , e que era ca sa da com um médico teuto-brasileiro. E ela m e dizia que eu devia desistir de ir para a Ingla­ te rra, qu e ela conhecia bem p o r ser filha de ingleses, e m esm o para a França, p o r ­ que o ideal m esm o seria ir para a A lem anha. A o que eu respondia: “ Eu n ã o sei nada de a le m ã o ! ” . M a s ela n ão me dav a ouvidos. Por volta de ag osto de 1964 — q u a n ­

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d o estava me fo rm a n d o nas du as faculdades — , ela me disse que estava vindo para o Brasil um professor alem ão cujo sobrinho, q u e era um a espécie de filho p ara ele, era m uito am igo d o seu m arido. Ele iria ficar h o sp e d a d o na sua casa e ela queria apre senta r-m e a ele, q u e era ta m b é m , p o r coincidência, bastante am ig o d o profes­ sor Reale. E ntão, n u m a festa, em h o m enagem a o professor alem ão, a r r a n ja ra m um e n c o n tro entre m im , ele e o professor Reale, que, m uito c a m a ra d a , me fez alguns elogios. N o dia seguinte, esse h om em , que se ch a m a v a V on Rintelen, me en c o n tro u na casa da sra. Livonius e p e rguntou se eu n ão queria ir para a A lem anha. “ Eu ouvi dizer q u e você está q u e re n d o ir para a F rança, m as deixe a França p ara depois. Prim eiro vá e s tu d ar filosofia na A le m a n h a .” Eu disse que n ã o sabia n a d a de ale­ m ã o , ele respondeu: “ O alem ão o se n h o r ap re n d e na A le m a n h a ” ! E pediu que eu o procurasse cm m aio na A lem anha. D epois não nos falamos mais, ele foi e m bo ra , eu esqueci o assunto, n ão acreditava que fosse resultar em algum a coisa. M ais ou m enos em dezem bro, chegou um a c a rta da A lem anha: “ Bolsa de estudos co ncedi­ da pelo E stado da R enân ia-P a latin ad o etc. etc.” . Bem, aí fiquei desesperado. T in h a que a p re n d e r alem ã o até m aio e, q u a n d o fui tentar, o desespero a u m e n to u ainda mais, p o rq u e vi que era algo a b s o lu ta m e n ­ te impossível para três nieses e meio! [risos] Até que tentei, mas fui p ara a A lem a­ n h a sem sab er praticam ente nada . I.em bro-m e que cheguei lá no dia l ” de m aio, e o professor, que devia ter en tã o uns 68 anos, foi me receber com u m d o u to r a n d o seu, e, e m b o ra eu tivesse en saia d o algu m as frases p ara essa h o ra , c onve rsam os em espanhol. Foi assim que teve início a fase de m in h a fo rm a çã o alem ã, bastante dife­ rente daquela que eu tinha tido até e n tã o na M a ria A ntônia, de linha francesa.

Essa ida para a Alemanha interrompeu então uma série de artigos que o senhor vinha publicando em periódicos católicos. Como foi essa m ili­ tância católica? Bem, o fato de eu estar c u r s a n d o a Faculdade de Filosofia da USP n ão fez co m que eu perdesse a ligação que tinha com os jesuítas, a qual p e r d u r o u depois que saí do colégio — s o b r e tu d o com um p a d re (Ghislandi) que eles haviam n o m e a d o p ara cu id ar de um a entidad e que se ch a m a v a Instituto Sabóia de M e deiros — n o m e de um jesuíta da época — , e que era m u ito ligada a questões sociais da Igreja. Esse padre, já na época d o colégio, tinha c ria do um a espécie de aç ão social, à m o d a do Abbé Pierre, n u m a favela de São Paulo, seguindo o princípio de que os favelados deveriam to m a r consciência de sua situação e passar a fazer reivindicações p o r si m esm os, criar associações etc. E p o r meio disso foi que eu tive um prim eiro c o n t a ­ to com as ações sociais da Igreja. Q u a n d o já estava en tã o na faculdade, ele me c h a ­ m o u p ara tr a b a lh a r com ele naquela instituição, na qual havia um a revista c h a m a ­ da Carta aos Padres. C o m o eu gostava m uito de escrever, ele quis que eu fosse o redator-chefe da revista, coisa que aceitei. Lá escrevia sem n e n h u m a preo c u p açã o acadêmica: com o um jornalista, simplesmente “c h u p a v a ” idéias alheias, daqui e dali, e ia jog ando nos meus artigos. D u ra n te uns q u a tro anos fiquei fazendo isso.

E havia alguma relação dessa revista, ou desse instituto, com outros movimentos católicos?

T ércio S a m p aio F erraz Jr.

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N ã o , não havia. Era um a atividade dos jesuítas q u e não se vinculava a o u tra s o r ­ ganizações o u m ovim entos. A gora, é claro que, d a d a ta m b é m a m in ha inserção na Faculdade de Filosofia, nas discussões da época (1961, 1962, 1963) eu acabava a b ­ sorvendo as idéias da c h a m a d a esquerda católica, sob retu d o de T ristã o de Athayde, e as trazia p ara a Carta aos Padres. O que ac a b o u fazendo com que, em 1963, eu levasse u m a enorm e reprimenda jornalística, de alguém que na época era editorialista do Estadão p ara assu ntos religiosos, e que era ex tre m a m e n te conservador: saiu um editorial, e depois um artigo assinado p o r ele p ró p rio , em que a revista Carta aos Padres era ac u sa d a de f o m en tar idéias perigosas ju n to ao clero — o que me deixou muito contente. Mas, enfim, essa era toda a ligação que existia entre a revista e outros m ov im ento s católicos. O senhor já conhecia na época os escritos do padre Henrique Vaz? Eu conheci o padre Vaz q u a n d o estava no segundo a n o da Faculdade de Filosofia. Ele era um jesuíta já bastante conhecido. Eu havia sido a lu n o d o seu irm ã o , que hoje é bispo. Em 1962, eu e dois colegas, s a b en d o que ele estava em N o v a Friburgo, pedim os que nos recebesse. Ele aceitou. F om os e n tã o para lá, o nde fizemos com ele algo de parecido co m esta nossa conversa. E eu, ape nas a lu n o de segundo ano, fiquei impressionadíssimo ao ver as suas opiniões sobre m arxism o, revolução, o papel da violência na história etc. D epois desse dia, deixei de ter c o n ta to com ele, m as passei a ler as sid uam ente os seus escritos.

Com relação á Alemanha , sabe-se que o senhor esteve lá para três es­ tágios de pesquisa: 1965-68; 1970-71; 1972-73. Como o senhor ava­ lia esses diferentes momentos, e qual a relação que estabeleceria entre eles? O prim eiro foi de d o u to r a m e n to . Saí d o Brasil co m o objetivo de me fixar na filo­ sofia do direito, p o rq u e acreditava — e isso viria a revelar-se co rreto mais tard e — que a m in h a perspectiva de carreira acadêm ica era na faculdade de direito, e não na de filosofia. M a s o fato é que fui para a A lem anh a c a rre g a n d o c om igo aquela dup la influência: de um lado, da filosofia d o direito à Miguel Reale; de o u tr o , da fo rm a ç ã o es truturaiista na Faculdade de Filosofia da USP. Basta ver que a m inha tese, escrita na A lem an h a , conjugava as du as coisas: na escolha d o tem a — Emil Lask — , a influência d o professor Reale, que sem pre reconheceu esse a u t o r co m o um de seus precursores; na ela b o ra ç ã o d o tra b a lh o , o m é to d o rigoroso da M aria A ntônia — cheguei até a introdu zir a tese com um a m enção a G o ldsc hm idt (o te x ­ to “T e m p o lógico e te m p o histórico na in te rp re taç ão dos sistemas filosóficos” ). E isso ac a b o u d a n d o bons resultados, p o rq u e um dos m otivos pelos quais os alemães g o sta ra m da tese foi o fato de ela ser bem e s tru tu ra d a. Diria p o r ta n t o q u e esse pri­ m eiro p eríodo na A lem anha foi um p erío d o de ela b o ra ç ã o de tese, d u r a n te o qual conservei fortem ente m eus “ p ré-conceitos” . N ã o o b sta n te , me aconteceu ta m b ém um a coisa nova de considerável im p o r ­ tância. E n q u a n to estava lá, comecei a fre q ü en ta r as aulas de filosofia d o direito na U niversidade de M a in z, e o professor era alguém que iria m a rc a r to d a a m i­ n h a trajetória posterior: T h e o d o r Viehweg. Antes da A lem an h a , só tinha o uvido

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falar dele n u m a ocasião, p o u co antes de partir. Celso Lafer havia e n c o n tr a d o um livro dele. Tópica e jurisprudência, e me havia dito: “ O lhe, parece um livro inte­ ressante! E o a u t o r está nessa universidade p ara o n d e você está indo. Por que você n ã o tenta e n tra r em c o n ta to c o m ele?” . Essa era to d a a referência que eu tinh a de Viehvveg antes de partir. E meu c o n ta to co m ele, de fato, ac a b o u se to r n a n d o bem mais im p o rta n te d o que aquele que tinha com V on Rintelen, pois ele me apre sen­ tou um o u tr o m u n d o — um m u n d o que n ã o cheguei a a prove itar na tese, mas que ficou na m in h a cabeça dali em diante: foi dele que veio to d o o universo da retóri­ ca, da co m u n ic a ç ã o etc. E a conseqüência disso foi que, q u a n d o voltei a o Brasil, me esqueci ra p id a ­ mente de Emil Lask. Cheguei a me valer da tese feita lá para fazer aqui u m a segun­ da tese, para o d o u to r a m e n to em direito — que me perm itiu e n tra r p ara a Facul­ dade de D ireito c o m o assistente d o professor Reale — , mas o p eríodo de dois an o s em que fiquei aqui, antes de voltar p ara a A lem anh a, fez com que percebesse que a influência d o Viehweg tinha sido m uito m aior d o que im aginara a princípio. FIouve um a ocasião, em especial, que deixou isso b astante claro. F.u e o professor Reale v ínham os c a m in h a n d o juntos pelo L argo São Francisco e, na e n tra d a da F acu lda­ de, e n c o n tra m o s um o u tr o professor. O professor Reale o apresentou a m im — era o professor Lourival V ilanova — , e, p e rg u n ta n d o se eu n ã o queria assistir à aula d o seu curso de pós, que nesse dia ia ser dad a p o r esse professor, c o m en to u com ele: “ Esse aqui é meu assistente. Ele an dou estudan do lá na A lem anha, e voltou meio influenciado por esse negócio de retórica, V iehw eg...” . F.u fiquei meio c o n s tra n g i­ do, disse que n ã o era bem assim , e ele encerrou o assunto dizendo: “ Um grande mestre! Um g ran d e m e stre!” (referindo-se a Viehweg). F.m 197 0 , q u a n d o voltei p ara a A lem anha, fui direto a Viehvveg, c o m p r o p ó ­ sitos bastan te diversos daqueles de m inha prim eira ida, pois to d a a m inha relação co m o n eo k a n tis m o , cultu ralism o jurídico, tridim ensio nalism o, encontrava-se já bastante esmaecida. E t a n to essa segunda estada co m o a terceira caracterizaram -se pelo estudo a p r o f u n d a d o dos temas da retórica, semiótica, filosofia da linguagem etc. M a s foi na terceira que aconteceu um a coisa bastante im p o rta n te em m inha vida. Entre essas du as estadas eu já tinha escrito, ainda que sem m aiores preten­ sões, o artigo "A filosofia c o m o discurso a p o r é tic o ” , no diálogo com [Oswaldo] Porchat. E q u a n d o cheguei à A lem anha, nessa terceira vez, lem bro-m e de ter c o n ­ versado com meus colegas de lá, dizendo a eles: “ A cho que vou fazer um a coisa o usada. Vou tentar escrever sobre, e discutir, um p ro b lem a filosófico. N ã o q uero mais in te rp re ta r filóso fos” . “ F. d a í ? ” , re s p o n d e ra m eles, qu e não viam n a d a de a n o rm a l no que eu estava dizendo. Acontece que, ao ap re n d er filosofia com rigor e s tru tu ral, eu tinha sofrido ta m b é m aquela verdadeira ca straç ão na Faculdade de Filosofia (nada além da história da filosofia), e isso era algo que eles n ão co m p re en ­ diam . Eu dizia: “ T e n h o um a en o rm e vergonha de fazer isso, mas ao m esm o tem po te nho u m a e n o rm e v o n ta d e ! ” |risos]. E eles respondiam : “ Pois então faça! O m á ­ xim o que p ode acontecer é ficar ru im ! ” . De fato, eu arrisquei, e foi dessa aven tura que saíram dois livros: Direito , retórica e comunicação e Teoria da norma jurídica.

E Niklas Luhm antt? Como o senhor chegou a ele?

T érc io S am p aio Ferraz Jr.

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Foi ta m b ém nessa terceira vez, p o r indicação de um professor c h a m a d o Ballweg, que era na época assistente de Viehweg. Ele havia lido L u h m a n n e, c o n h e ce n d o os m eus interesses, me disse: " O lh e , esse a u t o r aqui é m uito interessante. F, meio difí­ cil, tem m uita psicanálise, m as ac ho que você vai g o s ta r ” [risos). O L u h m a n n es ta ­ va ape nas su rgindo nesse m o m e n to , q uase ninguém o conhecia, m as comecei a lêlo. E aí surgiu um g ran d e c o n f r o n to , p o r q u e o V iehw eg era c o n tra as idéias d o L u h m a n n ; ele era o h om em do p ro b lem a, e n q u a n to este era o h o m e m d o sistema! \ l a s a m b o s p ara mim eram geniais, e comecei a fazer u m esforço, talvez n ã o m u ito consciente a princípio, de juntá-los — qu e foi o q ue acabei fazendo em m eus t r a b a ­ lhos. Se ficou bom , n ão sei, m as o fato é que juntei, de um lado, Viehweg, um filó­ sofo p roblem átic o , e, de o u tro , L u h m a n n , um filósofo sistemático.

Como o senhor avalia os seus momentos de volta ao Brasil? Que dife­ renças o senhor percebia entre os ambientes intelectuais da Alemanha e do Brasil? Houve mudanças significativas no panorama cultural bra­ sileiro entre as suas idas e voltas? C om ecem o s pela prim eira ida, em 1965. A g ra n d e diferença que senti na A lem a­ n h a, depois de te r sido alu n o , aqui, ta n to da F aculdade de D ireito co m o da de Filo­ sofia, foi a existência física de um a c o m u n id a d e universitária: especialm ente p o r m o r a r no campus , conheci um m u n d o que en tã o n ã o havia aqui. A inda que h o u ­ vesse um a c o m u n id a d e acadêm ica na F aculdad e de Direito, era m uito mais um a c o m u n id a d e de farra, de sair à noite, de fazer política, do que u m a c o m u n id a d e de estudo. M e sm o na Filosofia, a gente se reunia mais p ara discutir política, questões d o Brasil etc. E n q u a n to na A lem anha as discussões g iravam em to r n o da pró p ria filosofia, d o s assunto s que estudávam os. Por o u tr o lado, se a princípio tinha um certo m edo d o que seria e studar filosofia na A lem anha, percebi que a m inha for­ m a ç ã o na M a ria A ntônia era excelente, e n a d a d o que encontrei por lá me assustou. A gora, a volta p ara o Brasil foi sem pre um te rro r, so b re tu d o na prim eira vez. D epois de te r concluído m inha tese, Viehweg me c o n vidou p a ra ficar lá co m o seu assistente, e, e m b o ra lisonjeado, recusei o convite, explicando-lhe que acreditava ter um a certa missão a cum prir no Brasil. E nq uanto lá eu n ão passaria de um assisten­ te entre ta n to s o u tro s, ou m esm o de um professor entre ta n to s ou tro s, n u m m u n d o em que a filosofia acadêm ica era algo perfeitam ente c o nsolida do , no Brasil poderia exercer um papel talvez mais im p o rta n te. N o e n tan to , o q ue encontrei aq u i foi algo terrível. Se, antes de ir, já havia con hecido a revolução de 64, tratava-se de um a revolução b randa, e n q u a n to na volta o que encontrei foi o Al-5. H ouve um episódio, inclusive, b astante marcante. Eu tinha ido à Faculdade de Filosofia rever os conheci­ dos, e n c o n tran d o alguns, conversando um p ouco, e, q u a n d o estava saindo, na esqui­ na da rua M a ria A ntônia com a Dr. Vilanova, encontrei o professor A nton io C â n d i­ do, com mais algum as pessoas, e c o m eç am o s a co nversar. De repente, passou um a tropa que entrou na Faculdade e começou a arrebentar tudo o que podia. O professor A n to n io C â n d id o fez m enção de ir atrás, e eu fui um dos que o im pediram , dizendo: “ Professor, a gente precisa d o senh or vivo !” — algo de que ele se lem bra até hoje. E nfim, esse episódio ilustra bem o que encontrei aq ui do p o n to de vista político. D o p o n to de vista intelectual, p o r o u tr o lado, o tr a b a lh o que passei a desen-

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volver aqui, co m p a ra d o à com unidade acadêmica de lá, foi absolutam ente frustrante. E m bora satisfeito com as aulas que dava co m o assistente do professor Reale, às vezes até o su bstituindo, percebi que aquela c o m u n id a d e acadêm ica me fazia falta. C o ­ meçava a esboçar-se e n tã o aq uilo que an o s mais tarde, q u a n d o por razões de so ­ brevivência cheguei a lecionar em nove faculdades a o m esm o tem po, viria to rn a rse mais nítido: aqui a tendência era eu to rn ar-m e “ mestre-escola universitário” , isto é, sim plesm ente d ar aula. O c o n t a to acadêm ico p ro p ria m e n te dito era pau p é rrim o . E, com o c o rrer d o te m p o , isso tu d o me desgastou a tal p o n to que n u m certo dia cheguei ao professor Reale e disse q u e queria vo lta r para a A lem anha. Consegui a bolsa da H u m b o ld t e, ape sa r de te r a p e n as dois a n o s de magistério na Faculdade, o professor Reale me concedeu a licença. Q u a n d o cheguei de volta à A lem anha, no e ntanto, em fins de 1970, o ambiente de lá havia m u d a d o ta m b ém . N o m eu prim eiro p e ríod o, de 1965 a 1968, tinha vi­ vido aquilo que c h a m o de a última fase idílica d o ensino universitário alem ão. E m ­ b o ra tenha tido a experiência de \ l a i o de 1968 lá, foi ape nas na segunda ida que p ude perceber as m u d a n ça s p ro fu n d a s p o r que a universidade havia passado: U ni­ versidade Livre de Berlim, p articipação d o s universitários na direção, professores acuados etc. F. q u a n d o voltei para o Brasil, depois dessa segunda vez, aconteceu algo parecido, p o rq u e 1968 ta m b é m tinha repercutido aqui, e as conseqüências ta m b ém tin h a m sido sentidas um p o u c o depois. M e sm o n u m a faculdade tradicional co m o a do Largo de São Francisco, estava h av e n d o u m a ree stru tu ra çã o radical da vida acadêm ica: os velhos catedráticos desap a re cen d o , livre-docentes e assistentes p o ­ d en d o d a r aula, os alunos te n d o o u tr a atitude, e assim p o r diante.

Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Como o senhor vê as relações entre a filosofia e a cultura brasileira? Comecei a conhecer esse tem a com o professor Reale, de qu em sem pre ouvi que não apenas era possível uma filosofia brasileira, co m o era necessário falar sobre isso, p o rq u e seria um sinal da m a tu rid a d e de um povo. De o u tr o lado, d u r a n te to d o o meu curso na M a ria A ntôn ia ouvi o inverso d o professor C ruz C o sta, q u e dava ri­ sada dessa história de filosofia brasileira, de filosofia do direito brasileira. Ele até ad m itia que pudesse haver u m a filosofia na literatura brasileira, m as n ã o um a filo­ sofia co m o tal. O fato é que vivi essa polêm ica, conhe ce n d o os dois lados, d u ra n te a m in ha época de faculdade. E evidente que, do p o n to de vista d o que aprendi na M a ria A ntônia, falar em filosofia n o Brasil é um ta n to atrevido, ao m enos p en s a n d o n aqu ela filosofia que nós e stu d áv a m o s fazendo leitura estrutural. H á cerca de dez anos, fui c o n v id a d o p a r a um sim pósio, na U niversidade La Sapienza, em R om a, sobre a o b ra de Pontes de M ir a n d a . H avia professores de direito civil, o u tr o s de direito ro m a n o , e eu esta­ va lá co m o rep resentante da filosofia d o direito, devendo analisar os aspectos filo­ sóficos dessa obra. Q u a n d o estava me p r e p a ra n d o para esse sim pósio, fui rastrear os textos d o Pontes de M ir a n d a , co m os olhos de um estruturalista, p ro c u r a n d o analisar o seu conceito de responsabilidade. E percebi que n ão batia nad a com nada! Evidentem ente, eu n ã o ia dizer isso co m to d a s as letras, pois era um sim pósio em h om e nage m a ele. M as procurei fazê-lo de form a suavizada.

T é rc io S a m p a io F e r ra z )r.

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Esse episódio foi im p o rta n te p o rq u e me m o stro u que, de fato, se nós form os pensar a q u estão d o p o n to de vista rigoroso da M a ria A ntô n ia , que ex a m in a v a a ordem das razões, falar em filosofia brasileira é algo que não pode ser levado a sério. P or o u tr o lado, n o e n ta n to , se e n c a ra rm o s o p roblem a co m o u tro s olhos, com os olhos do professor Reale p o r exem plo, d eix an d o de lado aquele rigor estrutural, po d em o s ler T o b ia s Barreto sem p rete n d er e n c o n tra r nele um K ant, ou ler Pontes de M ira n d a sem p retender e n c o n tra r nele um A ugusto C om te. A o rd e m das razões, neste caso, é um a o u tra o rd em , em que há um a e s p o n ta n e id a d e com que, bem ou mal, as pessoas reagem. P odem n ã o estar reagindo a o que acontece n o Brasil, e sim a o que está ac o ntecend o lá fora, mas é de q u a lq u e r form a um a reação. P o rta n to , não iria nem ao ex tre m o de desconsiderar p o r inteiro essas ob ras e dizer “ isso n ã o p r e s ta ” , nem a o ex tre m o de dizer “ existe aí u m a filosofia brasilei­ r a ” . Eu diria que existe u m a p r o d u ç ã o filosófica no Brasil que é boa, m as que não teve talvez a qualidade de p rod uzir pensadores de repercussão m undial. F.u me lem ­ bro de ter lido certa vez um artigo, na A lem anha, que com en ta v a a p r o d u ç ã o filo­ sófica a o red o r do m u n d o neste século. O articulista reconhecia haver um a filoso­ fia oriental, com um a série de características peculiares, falava da im pressionante p r o d u ç ã o européia, m ecionava a filosofia am erica n a co m o um a filosofia que e n ­ co n tro u um a form a p ró p ria de pensar, e, a o falar da América Latina, dizia que, em b o ra h ave ndo u m a p r o d u ç ã o acadêm ica consistente, não se havia fo rm a d o ali u m a form a p ró p ria de pensar. F, essa posição me parece m esm o a mais correta. Desenvolvemos u m a espécie de “ filosofia reflexa” .

Eram bastante tensas as relações entre o Instituto Brasileiro de Filoso­ fia, fundado e presidido por Miguel Reale, e o Departamento de Filo­ sofia da USP, dirigido por João Cruz Costa. Como o senhor vê essas diferenças ? Creio que em am b o s os lados há um distanciam ento de fenôm enos concretos com o, p o r exem plo, o p ró p rio fenôm eno jurídico. N o caso d o professor Miguel Reale, e m ­ bora ele seja evidentemente um pen sad o r integrado, na sua vida acadêm ica e na sua vida política, o forte de sua o b ra é u m a especulação que é m u ito mais um diálogo c o m a filosofia do direito européia. N o caso da M a r ia A n tônia, p o r o u tr o lado, tam bém não se desenvolveu um a reflexão cuja raiz estivesse na nossa cultura. Aquela interdição d o filosofar fez co m que ficassem e s tu d a n d o os sistemas dos o u tro s, sem sequer d ia lo gar com eles — justam ente o que P orc hat, num en orm e atrevim ento, ten tava q u e b r a r naquele nosso livro (A Filosofia e a visão comum do mundo). N a verdade, o q u e a gente com eçava a perceber é que havia p ro blem as que mereciam ser discutidos a p artir de uma experiência nossa. A gora, a q uestão é saber se alguém conseguiu fazer isso, se alguém conseguiu p rod uzir, nesse sentido, um a filosofia brasileira. E a m in h a im pressão é que isso ainda n ã o chegou a acontecer. T e n h o um am igo alem ão, W olf Paul, que sem pre me faz essa pergun ta. F.le vem com algum a freqüência a o Brasil e fica intrigado co m o fato de que nos c o n ­ gressos brasileiros só se discute Fiegel, K ant etc. e de que n u n c a haja u m a discus­ são sobre a filosofia brasileira. Q u a n d o escrevi o meu livro Introdução ao estudo do Direito, mostrei a ele, e o seu c o m e n tá rio foi: “ Perfeito p ara um a universidade

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alemã! M a s você q u er que os alunos a p r e n d a m isso n o Brasil?!” . Aí fiquei b ravo e respondi: “ Q uero, sim !” . F., em bora consciente das dificuldades, acho realm ente que é um livro p ara ser lido pelos alunos de prim eiro an o , p o rq u e esses ainda n ão têm os vícios da tradição, ainda são co m o um a página em branco. A gora, de q ualqu er m aneira, é um livro que emergiu do meu diálogo com as tendências que estudei na F.uropa, e n ão de um a p roblem ática g enu in am e n te brasileira.

Ainda que feitas todas essas ressalvas, o senhor diria que bá filósofos brasileiros? Quais seriam os mais importantes? Nesse sentido, do diálogo com o Prim eiro M u n d o , eu diria que há. N o sentido das raízes em um a problem ática brasileira genuína, não. A não ser, talvez, p o r Vicente Ferreira da Silva, que me parece o único a fazer algo que se a p ro x im a ria disso, p r o ­ c u ra n d o ir pelo lado d o carnavalesco existencial. M a s m esm o ele não chegou a consegui-lo. Agora, d o p o n to de vista do diálogo, da filosofia co m o reflexo dialogante, dentre os q ue conheço, m encionaria inicialmente, p en s an d o na filosofia do direito, o professor Miguel Reale, qu e é a figura mais significativa nessa área. N a área da filosofia em geral, creio q u e essa q u estão ad q uiriu d estaque para o pessoal da M a ria A ntônia a partir do atrevim ento de Porchat, que me parece uma figura m uito im portante. Creio que o u tr o que ta m b é m sem pre teve um a c o n trib u i­ ç ã o significativa é Bento [Prado [r.|, figurando co m o um a espécie de rebelde, d e n ­ tro daquele g ru p o dos anos 60, desde o princípio — diferentemente d o Porchat, que teve de passar p o r um processo de ru p tu ra . G iann otti, p o r o u tr o lado, merece sem dúvida menção. Ele me parece ser alguém que conseguiu aliar a disciplina e s tru tu ­ ral com o diálogo, pois o atrevim ento, no caso dele, é e x tre m am en te co ntro lad o . De um o u tr o ângulo, sem a disciplina d o G iannotti, há M arilena [C haui|, que, mais à Bento P ra d o , rom peu com os com prom isso s estruturalistas e com eçou a p r o d u ­ zir algum a coisa relevante em term os da filosofia co m o reflexo dialogante. E m b o ­ ra sem criar um a filosofia p ro p ria m e n te brasileira, naquele sentido de u m e n r a i­ za m e nto da reflexão em nossa experiência, ela conseguiu p en sar os p roblem as b r a ­ sileiros d e n tro do co n tex to desse diálogo. Se a gente pensar em o u tr o registro, creio que N e w to n da C osta, fazendo um diálogo com a matemática, é um nome importante, com considerável reconhecimento fora do Brasil. E claro que ele n ão produz um a lógica brasileira, mas pensa os p r o ­ blemas com g ran d e originalidade. Fora de São Paulo, p o r o u tro lado, m encionaria Ernildo Stein, que, influenciado mais pelos alemães que pelos franceses, dialoga com bastante seriedade. Cíosto t a m ­ bém das coisas escritas p o r Benedito N u n es, o u tr o d ia lo g ad o r sério. V am ireh Chacon, no c a m p o da filosofia d o direito, é u m a espécie de d e v o ra d o r que, ju n ta n d o m uitas coisas a o m esm o te m p o , acab a p r o d u z in d o algo de im portância. O artigo do senhor “A filosofia como discurso aporético”, de 1975, é também um debate com Porchat. Q ual foi, a seu ver, o saldo dessa dis­ cussão? P orchat me disse certa vez que o saldo da discussão, p ara ele, foi conseguir fazer algo que vinha p en s a n d o havia m uito te m p o — o que me dá m u ita satisfação, pois

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ele sempre foi, e continua a ser, meu professor. A relação professor-aluno é um pouco c o m o a relação pai-filho: p o r mais que se cresça e se vire am ig o, nunca se perde a co ndiçã o de aluno! Para m im , diria que o saldo desse tr a b a lh o , de ter colo ca d o no papel certas idéias, foi passar a te r um a p o io p ara fazer as coisas que vim a fazer depois, um a p o io no qual eu dizia a m im m esm o q u e vale a pena pensar os p ro b le ­ m as, p o r q u e eles n ã o se reduzem a o q u e o u tro s filósofos já disseram. A tese básica d o meu artigo é a de que é impossível, m esm o n u m diálogo co m os filósofos, você n ã o estar p en s a n d o p o r si mesmo. Por u m lado, n ão há escapatória, e, p o r ou tro , é algo que vale a pena, q u e é g ostoso — desde que feito com seriedade. Esse artigo foi p ublic ad o pela prim eira vez na A rgentina, para a Revista Latino-americana de Filosofia, c o m o u m a h o m e n ag e m a o Porchat. Q u a n d o ele me li­ gou para agradecer, e disse que ia re sp onde r — coisa que de fato fez — , isto me deixou e x tre m am en te lisonjeado. E m b o ra o nosso diálogo, infelizmente, n ã o tenha p rosp erado depois disso — talvez p o r term os c a m in h a d o cada um, inclusive o Bento, p ara um a área de interesse distinta — , houve de fato um saldo positivo.

Que conceito(s) de sua reflexão o senhor destacaria como o(s) mais representativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que o senhor nos contasse como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje. D o p o n to de vista da filosofia, o conceito mais im p o rta n te é o de a p o ria , ju sta m e n ­ te o conceito central desse artigo de que a c a b a m o s de falar. Pensar a filosofia co m o discurso apo rético é um m o d o de en fren ta r as questões filosóficas que serviu sem ­ pre p ara m e “ se g u ra r” q u a n d o eu tivesse de e n fren ta r os g randes te m as de filosofia d o direito, f u n cio n a n d o co m o u m a espécie de g u ard a -c h u v a a evitar u m c o m p r o ­ m etim ento total. D iante de um a p ergunta, p o r exem plo, co m o “ O que é a justiça?” , m antive sem pre um g rande p u d o r com relação à possibilidade de av e n tu rar-m e em respondê-la. F., se eventualm ente me aventurasse, seria dizendo: “ Isso é m uito mais um a ap o ria d o que um tem a sobre o q u al eu possa d a r uma palavra definitiva” . Eu n ã o me meteria nunca a escrever um sistema, e, nesse p o nto, a influência do Viehweg foi sem pre ta m b é m m u ito g ran d e , pois ele, co m o “ h o m e m d o p r o b le m a ” , criticava os que tentassem fazê-lo. Vista a filosofia co m o discurso aporético, os problem as filosóficos aparecem co m o becos sem saída que, n ão o b sta n te , fazem pensar. Por o u tr o lado, essa posição m e faz sentir um a trem en da angústia. Afinal, te­ n h o v o ntade de te n ta r essa o u tr a av e n tu ra , essa que seria talvez a av e n tu ra final. Será que n ã o posso me atrever? Será que n ã o posso finalm ente e nfrenta r o te m a? O que é a justiça, afinal de con tas? Faz já uns q u a tro , cinco anos que estou r u m i­ n a n d o isso na cabeça.

E três artigos! Sim, te n h o escrito ta m b ém . N estas férias, p o r exem plo, reescrevi um discurso que proferi na Academ ia Paulista de Letras, p o r ocasião de m in h a posse co m o ac a d ê ­ mico, e q u e falava sobre as relações entre o senso de justiça e o senso d a beleza. Utilizei I la n n a h A rendt, que escreve sobre o senso d o gosto, K ant etc., e procurei fazer um p aralelo co m o p ro b le m a jurídico d o senso de justiça. M as fiz isso sem

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consu ltar, de pro p ó sito , d iretam ente q u a lq u e r livro, valendo-m e a penas de im pres­ sões que me tin h a m ficado. E, n o correr d o texto, acabei d esem b o c an d o , um p o u ­ co à m an eira dela, no pro b lem a m esm o d a justiça: co m o fica a q u es tão do relativismo? H á ou n ão há, afinal de contas, algum critério da justiça universal? N a s últimas páginas d o tra b a lh o , creio que pela prim eira vez avancei um pouco. E m ­ bo ra já tivesse feito algo assim , n u m a certa insp iração heideggeriana, co m o p r o ­ blema da liberdade, o u tr o desses tem as cruciais da filosofia d o direito, desta vez creio ter ido um pouco mais longe. Basta dizer que, depois de escrever o texto, passeio a o meu assistente, Ari Sólon, pedindo-lhe que lesse, e o seu co m en tá rio foi: “Acho que o senho r ainda é m uito jovem p ara escrever essas coisas” ! [risos] O artigo do senhor “A filosofia como discurso aporético” encerra-se com considerações que traduziríamos do seguinte modo. O discurso filosó­ fico tem um momento necessariamente aporético, dado pelo seu início mesmo, injustificável do ponto de vista teórico e resultado de uma de­ cisão. Mas nem por isso o discurso filosófico deixa de ter um momento necessariamente construtivista ou sistematizador. Para dar conta des­ se momento sistematizador, o senhor lança mão da pragmática da co­ municação. Como distinguir, no entanto, essa posição do senhor de uma posição simplesmente hermenêutica? De fato, e m b o ra a inspiração seja diferente, isso lem bra um a posição hermenêutica. V ejam os en tã o a diferença. Apesar de eu reconhecer que a co n s tru ç ã o de um siste­ m a é possível, no com eço de tu d o há esse m o m e n to de decisão, e esse m o m e n to de decisão tem a ver com vontade, n ã o com pensam ento. Em filósofos co m o G adam er, e m esm o na fenom enologia em geral, oco rre u m a tentativa, se n ão de superar, ao m enos de d a r um a resposta mais positiva com relação a esse prim eiro m o m e nto. O s autore s que acabei estu d a n d o , co m o V iehw eg e os retóricos, têm um a atitude, perante a filosofia, com patível co m o seu instrum en tal. Q u e m tra b a lh a d e n tro da perspectiva retórica sabe que não pod e, e nem qu er, ultra passa r os limites da p r ó ­ pria retórica: há aí u m a certa sofística que n ão existe na linha herm enêutica. Por isso o diálogo com P orc h at foi tã o im p o rta n te naquele m om e n to : existe aí, no com eço de tu d o , algo de lúdico. E m b o ra eu ten h a me arriscado, recen tem en­ te, a escrever as tais páginas sobre a justiça, continuo tendo a sensação de estar dentro de um jogo, de estar fazendo um tra b a lh o lúdico — um tra b a lh o que n ão é, p o r ­ ta n to , herm enêutico. A gora, é claro que isso gera um a angústia que, no limite, é um a sensação de niilismo, e ta m b é m u m a sensação de frustra çã o com a im possibi­ lidade de d a r respostas num sentido mais a c ab a d o . Foi esse o p o n to central da dis­ cussão c o m Porchat: na sua resposta, ele disse que n ã o podia ser bem assim , que o tipo de decisão de q u e eu falava não servia p ro p ria m e n te c o m o decisão. M a s eu continuei a c h an d o , e lhe disse n u m a conversa que tivemos logo depois, que a deci­ são de filosofar, de pensar filosoficamente, é m esm o algo voluntário. £ central na obra do senhor a preocupação em circunscrever, antes de mais nada, um conceito situacional de racionalidade. Em Direito, re­ tórica c c om unicação (1973), o senhor o apresenta nos seguintes termos:

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“Uma concepção situacional da racionalidade significa que ela é cap­ tada dentro da situação comunicativa. O discurso racional é, assim, aquele cujos agentes, em princípio, não se distanciam do mundo cir­ cundante, mas se reconhecem nele”. No que essa concepção de racio­ nalidade se distingue da proposta por J. Habermas? Esse conceito de racionalidade situacional, em term os de com un icação, é construído p ara c h a m a r a aten ç ão p ara o tipo de jogo que a interação provoca. U m a primeira diferença em relação a H a b e rm a s está n o fato de que ele, b u sc an d o ou investigan­ d o algo de parecido, na com unicação, p rocura alguns pressupostos que possa univer­ salizar, apa rece ndo então, nestes pressupostos, um a racionalidade inerente à c o m u ­ nicação. E não é isso que estou dizendo. Estou dizendo que o discurso racional é um tipo de discurso, m a s nem to d o discurso h u m a n o é racional. Isso já é mais difí­ cil de dizer com relação a H a b e rm a s , pois p ara ele existe um p ressuposto que é inerente a q u a lq u e r discurso e qu e tem esse “g o s to ” de racionalidade. Para mim , a o c o n trá rio , talvez a m a io r p arte d o s discursos h u m a n o s n ã o seja racional. A racionalidade é apenas um a form a possível, entre ou tras, de enfrenta r a situação com unicativa, de e nfrenta r o jogo entre em issor e receptor, entre o r a d o r e ouvinte — um jogo que é, na verdade, um jogo de poder. Se existe aqui algum universal, seria essa relação de poder, que está longe de ser algo racional. Nesse jogo, o c o n ­ ceito n ã o a p o n ta p ara n en h u m fecham ento, e n ã o existe um princípio de razão su ­ ficiente ca p az de explicá-lo. T rata-se de um jogo de arg um en taçõ es em que as r a ­ zões são oferecidas na m edida em que u m dos interlocutores é acossado pela ne­ cessidade de responder, e o a c a b a m e n to racional d o discurso é f o rm a d o ape n as no m o m e n to em que o o u tr o interlocutor desiste de c o n tra -a rg u m e n ta r — seja po rq u e se satisfez provisoriam ente co m um d a d o a rg u m e n to , seja p o rq u e o o u tr o co nse­ guiu fazer com que ele ficasse quieto. E nesses termos, p o rtan to , que entendo a racio­ nalidade. C laro que é um conceito de racion alidade meio m a ro to frisos], p o rq u e n ão é bem a racion alidade no sentido que a cultura ocidental lhe dá — um sentido mais n obre — , e sim algo que lem bra mais a sofística. M as, se ex a m in a rm o s bem, isso é algo que ac aba a p a rece n d o até m esm o em filósofos co m o Aristóteles q u a n d o eles escrevem sob re retórica. Por mais que se c o s tu m e d im in u ir a im p o rtâ n c ia d o livro no c o n te x to de sua o b r a , na Retórica Aristóteles chega a esse pon to : e m b o ra ad m itin d o a presença de um p rob lem a éti­ co terrível, ele reconhece qu e a retórica funciona assim.

A retórica é uma espécie de adultério dos filósofos?! Sim, eu diria que sim. Um adultério gostoso! |risos| Foi o que percebi e assumi, rec on hece ndo que n ã o há escapatória. E Aristóteles, no fundo , ta m b é m percebeu, ta m b ém colocou o d e d o na ferida. Já P latão n ã o escreveu nad a ; ele sim plesm ente fez. E co m o fez! L em bro-m e de q u a n d o reli os q u a t r o capítulos iniciais d ’Á Repú­ blica, já depois de possuir essa consciência, e pensei com igo mesmo: “ Q u e coisa terrível! Sócrates trucidou T rasím aco! Isso n ão é razão! E p o d e r p u r o ! ” .

Uma das distinções fundamentais da reflexão do senhor é aquela entre “relato” e “com etim ento”. Como devemos entender esses termos?

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Essa distinção, evidentem ente, n ão foi criada por mim . Eu a tirei da Pragmática da comunicação humana , livro d o s psicólogos W a tzlaw ick, Beavin e Ja ck so n , que por sua vez se baseiam n o tra b a lh o de o u tro s psicólogos e psicanalistas. Creio que são dois conceitos de difícil explicação, pois percebo que em geral os alunos têm m uita dificuldade de assimilá-los e de lidar com eles. M a s a idéia básica para com preendêlos está na distinção, feita por esses psicólogos, entre dois m o d o s de com unicação: o m o d o verbal ou digital e o m o d o não-verbal o u analógico. E m bora ta n to o que c h a m o de c o m etim en to co m o o que c h a m o de relato possam ser expressos nesses dois m o d o s, n u m projeto inicial, no com eço da c om un ica çã o, o relato tende a a p a ­ recer n u m a form a verbal e o co m etim en to , nu m a form a n ão-verbal o u analógica. N este sentido, o c o m etim en to aparece, inicialm ente, co m o um a com u n ica çã o que em a n a d o indivíduo h u m a n o n o q u a d r o de um a certa passividade, sem que haja propriam ente uma ação. Q u a n d o alguém usa ou não usa bigode, p or exemplo, ainda que com certas intenções claram e n te d eterm in a d as (ficar mais bonito, tro c a r um a característica etc.), isso implica com unicar-se de um a form a passiva. O que c h a m o de relato, p o r o u tr o lado, é um a form a de c o m u n ica çã o qu e já no início se dá ver­ balm ente. Por exem plo: q u e m diz “ saia!” , além de c o m u n ic a r a o rd e m p ara um m o v im en to (relato), com un ica ta m b é m , pelo o lh a r, pelo tom de voz: este é o m o d o c o m o vejo você p era n te mim e a m im pera nte você (cometimento). D ad a en tã o essa distinção, no uso que faço dos conceitos, saindo já da chave dos três psicólogos e e n tra n d o um pouco na de L u h m a n n , o relato se reporta aos c o n teú d o s com unicativos, àq uilo que está sendo dito. Já o com etim en to , ind e p en ­ d en tem e n te d o que está sendo dito, é um m o m e n to de definição de q u e m é quem na com unicação. T e n d o p or base o m esm o pressuposto da q uestão da racionalidade d o co n hecim ento, aqu i reaparece toda a p ro blem átic a da d isputa, d o a rg u m e n to , d o p oder etc., com o u tr a roupagem . Q u a n d o nos co m u n ic a m o s, nós fazemos d u as coisas: de um lado, sim plesm ente falamos, dizemos alg um a coisa, e de o u tr o , sim ul­ ta n ea m en te, definim os posições. A distinção entre relato e c o m etim en to é p o r ta n ­ to um a distinção que me parece im p o rta n te, que se c o a d u n a bem com o que eu já dizia antes de conhecê-la, e que, além disso, me perm itiu fazer algo fundam ental: discutir a n o r m a de um ângu lo n ovo, de um ângulo que ninguém havia a d o ta d o . O s juristas q u e b ra v a m a cabeça sobre o que é a n o r m a , o n d e está a prescritividade, será que é na sanção? etc., e essa distinção me pareceu um a ótim a chave para resolver essa discussão toda: o sentido prescritivo da n o r m a e n q u a n to c o m u n ica çã o está no c om etim ento, a n o r m a é um a form a de definição de q uem é quem na relação.

Seguindo T. Viehweg, o senhor distingue entre uma abordagem “zetética” e outra “dogm ática”. Em Direito, retórica e com unica çã o, o se­ nhor escreveu que “a distinção estabelecida, por necessidade de análi­ se, entre questões ‘zetéticas’ e ‘dogmáticas’ mostra, na práxis do dis­ curso judicial, uma transição, poderíamos dizer, entre o ser e o dever ser”. Como se dá essa transição? O que separa e quais são os possíveis pontos de contato entre os dois tipos de abordagem? A distinção entre zetética e d ogm á tic a, entre zetein c dokein, foi pro p o sta p o r Vieh­ weg, n u m artigo pub lic ad o em inglês que ele n ão re to m o u posteriorm ente, e, desde

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que a conheci, julguei-a u m a fo rm a de a b o r d a g e m bastan te interessante e que valia a pena am p liar. Para tal, usei L u h m a n n , fazendo aquela m istura atrevida, já m e n ­ cio n ad a , entre um prob lem átic o e um sistemático. Eu tinha en tão , de um lado, o universo óbvio d aquilo a que ch a m a m o s d o u tr in a , ou ta m b é m d o gm á tic a jurídica, e que se define co m o um tipo de discurso que se vale de três elementos básicos: a lei, em sentido lato; as decisões de tribu nais — a jurisprudência; e os co m en tários — a herm enêutica jurídica p a r a criar condições de decidibilidade de conflitos. E, de o u tr o lado, tinha aquilo que na Faculdade de D ireito sem pre se ch a m o u de “ p er­ f u m a r ia ” jurídica: a filosofia d o direito, prim eira das perfum arias, a sociologia ju ­ rídica, a an tro p o lo g ia jurídica, a história d o direito, enfim , to d a s as ciências que n ão lidam c o m aqueles três elem entos co m o m esm o objetivo, m as visam antes a especular, p erg u n ta r. E o meu p roblem a era, antes de mais n a d a , explicar a dife­ rença entre os dois ca m pos, explicá-la n ã o assim vagam ente, m a s ca racterizando dois m o d o s distintos de pensar — algo que os textos de L u h m a n n m e a ju d a r a m a fazer, m o s tra n d o as peculiaridades p ró p ria s a cada um deles. U ma das peculiarida­ des da dog m ática, p o r exem plo, seria a inegabilidade dos p o n to s de p a r tid a co m o condição d o poder de decidir, e a melhor definição para isso estava no Viehweg (mais um exe m plo de co m o fui ca sa n d o os dois pensam entos): n o pensar d o gm ático, só se p ode q u es tio n a r n u m a direção, e n ã o na o u tra; há p o n to s que n ã o podem ser discutidos. N o zetético, p o n to s de p a rtid a sem pre são discutíveis, reflexivamente. A gora, é preciso ter em co n ta as c onseqüências disso: esse p o n to n ã o discuti­ do, co m o premissa d o pensar d og m á tic o , tem de ter algu m ca ráte r diferente, e isto me levou novam ente ao problem a da decisão, do voluntarismo. Por que ele não pode ser discutido? Por que é um p o stu la d o sobre o qual n ão se cogita reflexivamente? Por que há um consenso geral em to r n o dele que lhe g ara n te a inegabilidade co m o p o n to de partida? Estes seriam m otivos racionais p ara n ã o discuti-lo. M a s a v e rd a ­ de é que na d ogm ática a inegabilidade dos p on tos de p artid a é algo m u ito mais forte d o que um simples m otivo racional; a verdade é q u e não se permite a discussão a respeito deles, até p o rq u e eles n ão estão referidos nem a um a evidência, nem a um acordo, nem a uma postulação. O que há é um a aporia, uma dúvida radical, e p o rtan ­ to esses arg u m e n to s tradicionais d o discurso racional sim plesmente n ã o funcionam. C om o, p orém , do p o n to de vista prático, é preciso discorrer sobre isso, simplesmente se diz: “ está p ro ib id o discutir sobre esses p o n t o s ” . Isto é a dogm ática jurídica: criase um tipo de p ensar que tra b a lh a d e n tro de um a bitola estreita e que, p a r a decidir os p roblem as — pois to d o s os p ro b le m a s são decidíveis n o direito — , tem de e n ­ c o n tra r fórm ulas tangentes co m o a herm enêutica, q u e perm ite tangen ciar o senti­ do das palavras, in ventar o u tr o sentido, d a r im po rtância a um sentido que na ver­ dade n ã o tem a m ínim a im p ortância, e assim p o r diante. C o m o n ão se p o d e m u d a r o p o n to de partida, essas são saídas que esse tipo de p ensam ento acaba criando para solucionar os p roblem as, te nd o em vista a necessidade de decidir. Um a d v o g a d o n ã o p ode chegar p a r a o seu cliente e dizer: “ O lhe, talvez isso, talvez a q u ilo ” . Ele tem de d a r respostas e objetivar resultados — isso é tu d o o que im p o rta . N o p r ó p rio processo decisório, fica claro o ca rá te r am b íg u o da verdade. H o u v e o u n ã o houve cartel, n u m d ete rm in a d o caso? H o u v e acusação co m base em indícios. P or que indícios? P orque n ão há provas. N u n c a ninguém vai conseguir

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p ro v a r de fato que as partes se e n c o n tr a r a m — a não ser talvez num cartel de p o r ­ tugueses! [risos] O n d e está a verdade, então? Processualistas mais atirad o s dizem logo que esta verdade é processual, e n ã o a verdade d o s fatos. Isto é, enfim , o pen ­ sa m en to dogm ático. N o caso da “ p e r f u m a r ia ” (pensar zetético), o p ensam ento funciona de m anei­ ra completamente diferente, pois n ão há qualquer comprom isso com pontos de partida nem de chegada, n ão existe o interdito de questioná-los. Às vezes tenho juizes ou prom otores em meus cursos de pós-graduação e, antes de mais nada, já vou logo fazen­ do a advertência: “Vocês não me levem a mal, mas vou destruir tu d o aquilo que vocês têm co m o p o n to de p a r t i d a ” ! N o com eço eles ac h am e ngraçado, d ão risada, mas já aconteceu, algum as vezes, de um deles chegar até mim e dizer: “ Professor, n ão estou mais conseguindo julgar! Você destruiu to d o o meu universo de garantia, de sosse­ go, de tranqüilidade” ! F. tudo que eu havia feito fôra retirar o ponto de partida inegável, dizer que em geral é impossível decidir com certeza absoluta. F.ste é o o u tr o ângulo, o ângulo da zetética. Pode-se questionar, pode-se perg u n ta r o que se quiser perg u n ­ tar, e não existe a necessidade de to m a r decisões definitivas, não existe o c o m p r o ­ misso com resultados. Trata-se de um m o d o de pensar bem diferente daquele outro. Agora, um a vez estabelecidas as diferenças, coloca-se o problem a de co m o eles se e n c o n tra m . Eu diria que eles se e n c o n tr a m , na práxis, de um a m a n eira que é perversa p ara o pensar zetético. U ma vez, n u m congresso na PUC-RJ cujo tema era o p en sam e n to crítico n o direito, e em que se discutia a idéia de u m a d og m á tic a crí­ tica, desenvolvi meu p en s am e n to sobre a dogm ática e cheguei à conclusão de que n ã o existe dog m ática crítica, po rq u e q u a lq u e r pensam e n to crítico, no direito, a c a ­ ba abso rv id o pela d og m á tic a e n q u a n to tal. Anos depois desse congresso, fui dizer a m esm a coisa ao pessoal d o Rio G ra n d e d o Sul que fala em direito alternativo: isto é o u tr a coisa que ta m b ém n ã o existe. O que eles preten dem fazer é d ogm á tic a do m esm o jeito, m u d a d o s ape n as os p on tos de partida. Existe p o r ta n t o um c o n ta to entre as d u as fo rm as de pensar, já que na prática da decisão jurídica a zetética p ode aparecer para am p lia r um p o u co a reflexão, t r a ­ zer novos arg u m e n to s, mas ela ac aba send o d o g m a tiz ad a em função dos p o n to s de partida. D o o u tr o lado da m oeda, p orém , a zetética ta m b é m ac a b a se e nriq ue ce n­ do q u a n d o é capaz de entender o p en s am e n to d o gm ático — o que diz respeito à q u estão da inserção da filosofia do direito na vida. U ma vez, há cerca de dez anos, cheguei a c o b r a r isso d o professor Reale, p e rgu nta ndo-lhe p o r que ele não escrevia um a teoria geral do direito, e ele me respondeu que estava mais interessado nos p r o ­ blemas filosóficos. M as o que eu queria dizer-lhe é que há certos problem as da d o g ­ m ática jurídica que valeria a pen a te n ta r absorver d e n tro da zetética, talvez até m esm o para enriquecer a discussão. O professor Reale faz isso, m as o faz em p a re ­ ceres e artigos. F.le n un ca escreveu um livro de te oria geral d o direito, ressalvadas as incursões in tro d u tó ria s de seu Lições preliminares de Direito. Algumas pessoas que leram o meu livro Introdução ao estudo do Direito acham que fiz ali um a teoria geral d o direito, ain d a que c o m to d a u m a base filosófica, zetética. C e rtam e n te n ão o escrevi com essa intenção, mas com a intenção de es­ crever um a in tro d u ç ão ao estudo d o direito que n ã o fosse um a m era repetição das introdu ções que eu conhecia. Creio que de fato fiz algo diferente, pois n ão conhe-

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ço o u tr o tra b a lh o de in tro d u ç ã o , com esse título c v olta do p ara o estu d an te que se inicia no direito, que tenha a mesma estru tu ra . \ l a s penso que, para que ele p u d e s­ se ser co n sid erad o u m a teoria geral, m u ito s conceitos teriam de ser mais bem t r a ­ balhado s, ou tr a b a lh a d o s d e n tro de u m a visão mais conjug ada.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­ cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade? A m in h a fo rm a ç ã o filosófica co m eç o u c o m um diálogo fecundo com a ciência do direito, e m esm o com o u tra s ciências, c o m o a sociologia, a a n tro p o lo g ia e a h istó­ ria, m as sem pre focalizando p rio ritaria m ente o direito. T al situação p e rd u ro u e n ­ q u a n to perd u ro u a m inha atividade acadêmica p u ra , ou seja, até o com eço dos anos 80, q u a n d o fui ser chefe do D e p a rta m e n to Ju rídic o da FIESP sem en ten d e r nad a de advocacia. A partir dessa época, com eçou u m a lenta transfo rm aç ão da m inha relação com o direito, que se co m pletaria n o início dos anos 90. E m b o ra eu continuasse ligado à ciência d o direito e à filosofia, a vivência do direito co m o a d v o g a d o , co m o p r o ­ c u r a d o r da Fazenda, c o m o secretário executivo de ministério, te n do de lidar com os pro b lem as concretos do direito, me fez m u d a r bastante to d o o meu estilo d id á ­ tico. Sempre gostei de com eçar as aulas p r o p o n d o u m p roblem a a ser discutido, mas antes dessa m u d a n ç a os p roblem as q u e eu p r o p u n h a eram p roblem as estritam ente acadêmicos, e n q u a n to depois dela passaram a ser problem as mais concretos. Se antes eu com eçava um a aula p ro p o n d o , p o r exem plo, a q u estão “o que é a justiça?” , hoje en tro co m um p ro b le m a d o tipo: “ O n te m o S uprem o T rib u n al Federal decidiu que a p articipa çã o dos em p re g ad o s nos lucros tem de ser m u d a d a de tal e tal m a n e ir a ” , e a partir dele com eço um a discussão, digam os, sobre os direitos subjetivos. Perce­ bo hoje, p o r ta n to , que a m inha m a io r m o tiv aç ão é a pró p ria experiência profissio­ nal, a partir da qual vou p a r a a reflexão teórica e filosófica. O que devemos entender pela caracterização feita pelo senhor do “es­

tatuto tecnológico” do direito atual? F.sse é um conceito que eu p r ó p rio desenvolvi. A inda que me tenha valido, a o p re ­ enchê-lo, de um a série de im p o rta n te s influências, não o retirei de n en h u m au to r. A idéia que me levou à n o çã o de tecnologia foi a de explicar m elh or um tema a n ti­ go na teoria e na filosofia do direito — o tem a d o estatu to da ciência jurídica, que na trad ição sem pre foi vista c o m o ciência prática. A o co n s tru ir o conceito, joguei co m a distinção entre zetética e d ogm ática. Se existe, de um lado, um pensar epistê m ico que especula tu d o que se queira especular, há ta m b é m u m a atividade h u ­ m ana que, relacionada com isso, constrói no concreto soluções que são exigidas pela vida. E. nesse meio te rm o , há o p rob lem a da passagem , que me levou a o conceito de tecnologia e n q u a n to justam ente esse conceito interm ediário, que n ã o é técnica m as ta m b é m n ão é epistéme. A do g m á tic a se encaixa nisso, e ta m b é m o u tro s sa b e­ res se enc aixam , co m o a ec ono m ia e a medicina. L em bro-m e que, q u a n d o comecei a usar essa idéia, F ranco M o n to r o me disse que a tin h a a c h a d o interessante, m as m e p erg u n to u p o r que eu n ão usava simples­

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mente, co m o meu mestre Viehweg, o te rm o prudência, ju risprudência. Respondi que n ão era disso que estava falando, mas de tecnologia mesmo: estava dizendo que a ciência do direito, no passado u m a form a de prudência, hoje virou um a tecnologia — o que n ão quer dizer que ela sempre o tenha sido. Seguram ente os r o m an o s, por exem plo, n ã o faziam tecnologia nos seus julgam entos, e talvez no caso deles o c o n ­ ceito de prudência seja o a d e q u a d o . A quele saber d o qual falava Platão, sobre as n o rm as, era ta m b é m um saber de passagem — co m o o filósofo passa das verdades para a “ v e r d a d e ” aos ouvidos do p o v o — , mas estava longe de ser um a tecnologia. As c h a m a d as ciências práticas são um a criação m o d e rn a , respond em a um pro b le­ m a m o d e rn o . M as M o n to r o insistiu, dizendo que eu estava com isso d e g r a d a n d o a ciência d o direito. F. eu disse qu e estava m esm o, que a idéia era justam ente essa! |risos] Se se tom a co m o p a d r ã o um certo ideal de nobreza d o direito, é evidente que um a tal idéia o d egrada. P odem os até, se for esse o caso, la m en tar que isso tenha o corrido, m as n ão po dem o s negá-lo. A ciência d o direito se to rn o u de fato um a tec­ nologia, nesse sentido de que é um lagos que operacionaliza as elucubrações te ó ri­ cas, cria n d o condições de a técnica possibilitar decisões, o b te r resultados na dis­ cussão de conflitos etc.

Desde Hegel, no século XIX , trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda­ de. Conto o senborse posiciona em relação a esse debatei E m bora esse assunto fuja das m inhas preocupações, e eu n ã o tenha com ele g ran d e afinidade, te nh o alguns p ensam ento s sobre a questão. L em bro-m e de que, q u a n d o estava no colégio, a história da literatura era a p re sen ta d a de u m a m aneira um t a n ­ to peculiar, segundo a qual a p artir pelo m enos d o século XIX um elem ento im ­ p o r ta n te para se caracterizar a passagem de um perío d o para o u tr o era o esc â n d a ­ lo, que resultava da agressão o perada pelo novo estilo em relação ao antigo — com o, p o r exemplo, na representação do Ernani ou no aparecim ento dos q u ad ro s cubistas. De algum te m p o para cá, 110 e n tan to , te n h o a im pressão de que isso desapareceu. C o m o tu d o passou a valer na arte, n u n ca vai haver escândalo com o novo. O u se entende ou se está p o r fora — isto é tudo. D iante disso, eu me pergunto: será que o fim d o escândalo significa o fim da arte? Afinal, se não existe mais escândalo, tu d o aquilo que c o s tu m a m o s atrib uir à arte ou a o tra b a lh o artístico, c o m o a esp on tan e id ad e , o a to criador, o m u n d o p r ó ­ prio etc., se perde. E co m o se a pró p ria idéia da criação tivesse m o rrid o , po rq u e n ã o existe o novo. Se tu d o vale, nad a vale. Essa situação me parece perigosa, mas ao mesmo tem po desafiadora para a nossa cultura: será que há saída? Evidentemente, não dá p ara voltar atrás, recriar um am biente em que pudesse haver escândalo. Q u e fazer, então? Se pensamos nas experiências d o m u n d o da música posteriores a Schõnberg, p o r exem plo, c o m o o d o dec afon ism o, tem os a sensação de que a p artir daí tu d o passou a valer. O m á x im o que parece p oder haver, em term os de agressão, é a agressão ao ouvido, po rq u e se joga c o m sons que n ão têm nad a que ver sequer com harm o n ias físicas. O u tr o dia estava o u v in d o um a música em que se m is tu ra ­ vam coisas co m o apito, baru lh o de autom óvel, e assim p o r diante. C laro que há sem pre um choqu e, m as é diferente daquele sentido de escândalo de q u e eu falava.

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N o a n o retrasad o, em N o v a Y ork, fui à a p r e sen ta çã o de u m a o rq u e stra no M etropo litan. Eles com eçaram o program a com Stravinsky, passaram por um m oder­ n o da década de sessenta, e na últim a peça, cujo a u t o r n ã o me lem bro, o m aestro, entre o u tra s coisas, colocou a percussão no alto e atrá s da platéia, de tal m o d o que às vezes ele se virava e lá do alto vinha o som do instrumento. I.embro-me que muitas pessoas a b a n d o n a r a m o espetáculo no meio, m as n ã o senti de m o d o algum que isso fosse um escândalo — sim plesm ente n ã o haviam gostado. Parece-me p o r ta n t o que, sem a p im enta do escândalo, fica m uito difícil decidir. Se a arte m o rre u o u não, n ão posso responder. Só posso dizer que está n u m a situação b astante com plicada. M a s ao m esm o te m p o está posto, p a r a o ser h u m a n o , o desafio de voltar a ser criativo. £ hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar.

Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe­ nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como o senhor vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que parecem desfrutaras questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias? Vou c o m eç ar en fo c an d o o p ro b lem a a p a rtir de um o u tr o ângulo. A g ran d e m u ­ d an ç a p o r que passa a política n ã o diz respeito a um con tra ste d o tipo globalização versus E stado N ac io n al. Creio que seria mais fecundo, te n d o em vista aspectos éti­ cos e jurídicos da política, p ensar a q u estão da virtualizaçào d as relações, que é um fenôm eno ca d a vez mais presente na vida m od e rna . Desse p o n to de vista, p ro b le ­ m as co m o o d o E stado N ac io n al ou da glo balização surgem q u a n d o a vida e as relações h u m a n a s se to r n a m virtuais. N o p la n o d o direito isso vem co lo ca n d o d e ­ safios enorm es aos quais n ã o se têm ainda respostas. Em tese, existe p o r exem p lo a possibilidade de, p o r meio d o c o m p u ta d o r que se tem em casa, e n tra r n u m jogo de p ô q u e r de u m cassino no Caribe. N o e n ta n to , o jogo no Brasil é p roibido. C o m o disciplinar essa questão? H á co m o pro ib ir que se jo gue aqui desta m aneira? Pois na verdade você n ã o está jog a n d o p r o p ria m e n te aqui, e sim n o Caribe. Problem as assim são colocados pela realidade virtual. U m o u tr o exem plo, talvez o mais expressivo, é o do e-money, q ue é um a exas­ p eração b rutal da ec on om ia m o n e tária , levada a um p o n to que n unca se tinha im a ­ ginado. T rata-se de u m a e n o rm e tra n sfo rm a ç ã o . N o prefácio a o livro de um cole­ ga, Fábio N u sd e o , escrevi um ensaio irônico em que brinco que, se G oethe fosse vivo nos dias de hoje, diria que M efisto é responsável p o r esse dinheiro (o e-money), que é inc o m p arav e lm e n te pior d o que o que ele descrevia (papel-m oeda). A gora, n o c o n t e x to dessa tr a n s f o r m a ç ã o , d eve m os p e n s a r n ã o n o d e s a p a re c im e n to do E stado N acion al, pois n ã o creio que ele esteja desaparecendo, e sim na virtualização desse E stado, que faz c o m que toda s as suas p rop riedad es tradicionais, c o m o o m o ­ no p ó lio da violência, o exercício de c o ação, a adm in istra çã o , o controle, se to rn e m fenôm enos virtuais. N ó s p o d em o s perfeitam ente im aginar um a situação em que o sujeito está di­ rigindo seu c a rro , atravessa um sinal verm elho, é fo to gra fado e m u lta d o , e, q u a n ­

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d o chcga a sua casa, liga o c o m p u ta d o r e verifica que o valor da m ulta já foi d eb i­ ta d o de sua conta bancária. Isso ainda n ã o existe, m as seria factível hoje. E o único a to real qu e acontece aí é o sujeito g u ia n d o seu c a r ro pelas ruas da cidade. Fora isso, tod o o resto, que diz respeito a um a operação do Estado, está cm bytes: o Estado passa a ser constitu íd o mais de bytes qu e de áto m o s. Em te rm o s de aç ão política, isso tem um im p a cto gigantesco, s o b r e tu d o no sentido de que a q uilo que c o n c eb ía­ m os co m o política, e que se constituía de relações h u m a n a s reais, passa a consti­ tuir-se de um relacionam ento h u m a n o to ta lm e n te reduzido a bytes , em que os in­ divíduos viram n ú m e ro s e inscrições de m aneira m uito mais radical d o q u e na ve­ lha burocracia. O fazer político com eça a d epe nder m uito mais disso d o que do p a r la m e n ta r que profere um discurso no C ongresso, e isso faz com que o E stado esteja m u d a n d o radic alm en te de perfil — um a m u d a n ç a cuja d im ensão talvez só possam os sentir em uns dez, quinze anos. O ra , essa virtualização da política tem p o r conseqüência n ã o p r o p ria m e n te a prim azia d a s questões m orais, m as a p r im a ­ zia da notícia, e n q u a n to um a “ c o m m o d ity ” , 110 d eba te público. O senbor escreveu um artigo de título “A trivialização dos direitos hum anos”, em 1990 (N o vos E studos C e b ra p , 28), em que podemos ler: “Trivialização significa que os direitos do homem, ao manterem sua condição de núcleo básico da ordem jurídica, nem por isso deixam de ser objetos descartáveis de consumo, cuja permanência, não podendo mais assentar-se na natureza, no costume, na razão, na moral, passa a basear-se apenas na uniformidade da própria vida social, da vida so­ cial moderna, com sua imensa capacidade para a indiferença”. De 1990 para cá, o senbor considera que esse estado de coisas permanece? Quais são, na visão do senhor, as tendências atuais do debate sobre os direi­ tos humanos? Esse tra b a lh o , de 1990, na verdade se rep o rta a u m tra b a lh o an terio r, da década de 70, em que pela prim eira vez escrevi sobre o tem a. O seu c o n te x to inicial, p o r ­ ta n to , era o c o n te x to do regime militar, que já n ã o havia nessa segunda ocasião. A pesar disso, decidi reescrever o tr a b a lh o p ara um a série de conferências que eu e Celso Lafer havíam os o rg a n iz a d o em h o m e n ag e m a G offredo da Silva Telles e cujo tem a eram os direitos h u m a n o s. Um d os conferencistas que co n v id am o s foi o |G érardj L ebrun, e a sua conferência me instigou m uito, pois ele a b o r d o u o tem a de u m a m aneira que eu já vinha co gitando , e que me pareceu bastante razoável. Se nós p ensarm o s, p o r exem plo, no tr a ta m e n to que vem sendo d a d o aos direitos h u m a ­ nos nas últim as décadas, falando-se em segunda g eração, terceira, q u a r ta — e logo deve vir a quinta! — , tem-se a sensação — e foi esse o p o n to a b o r d a d o p o r ele — de que há u m a proliferação excessiva de direitos hu m a n o s. O qu e ac ab a te ndo u m a repercussão que é, a meu ver, u m a espécie de trivialização, n u m sentido se m elhan ­ te àquele em que discutim os há p o u co a q u es tão da arte: corre-se um en o rm e risco de tu d o virar direito h u m a n o fun d am e n tal e, o c o r r e n d o isto, n a d a mais ser direito h u m a n o fu n dam ental. A gora, de 1990 para cá nós tem os assistido, a o m enos no Brasil, a u m a cres­ cente conscientização em to r n o dos direitos h u m a n o s e da necessidade de defendê-

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los. T e n h o a sensação de ver hoje no Brasil algo similar ao que havia visto anos antes nos E stados Unidos, onde, fazendo um périplo p o r várias universidades, conheci alg um as sociedades de defesa dos direitos h u m a n o s e fiquei e n c a n ta d o com o que vi. Q u a n d o fui secretário executivo d o M inistério da Justiça, o que mais me p er­ tu r b o u foi a situação d o C onselho de Defesa dos Direitos H u m a n o s , cuja presidên­ cia o m inistro, p o r falta de te m p o , acabava delegando a mim . C he gava m d ia ria­ m en te à m in ha mesa, vindas d o Brasil inteiro, denúncias e mais denúncias, em re­ la ção às quais eu m e sentia im p o ten te , e a o m e sm o te m p o ap a re c ia m entidades am ericanas p ro te sta n d o co n tra a situação. Eu quis fazer algum a coisa, encam inhei diversas p ro p o stas a o m inistro, que era o B ern ardo C a bra l, mas logo ele acabou saindo, e ta m b é m eu acabei saindo. De q u a lq u e r m aneira, tive aí um a experiência que me perm ite a firm a r, c o m relação ao s direitos h u m a n o s n o Brasil, que a situ a­ çã o m elh oro u bastante nesses últimos dez anos. T e n d o em vista a q uestão p r o p o sta , p o r ta n to , eu diria que houve, n o caso do Brasil, m udanças positivas desde q u a n d o escrevi o artigo. C o m relação à trivialização, n o e n ta n to , diria que o p ro blem a co ntinua: o risco de que tu d o seja direito h u m a ­ no, e de que p o r ta n t o n ada seja direito h u m a n o , é m u ito grande. F. o que acaba o co rre n d o é que vêm à to n a a rg u m e n to s co m o a defesa da pena de m o rte , coisas com o: “ Vocês ficam fala ndo nos direitos h u m a n o s dos presos. M a s e os direitos h u m a n o s da v ítim a?” . Se tu d o vira direito h u m a n o , cai-se n u m a retórica que é pura balela, e o que conta é a luta pela sobrevivência, ca d a um se v irando c o m o pode.

Assistimos hoje a uma tensa concorrência entre dois fundamentos de legitimação últim a da ordem jurídica: os “direitos hum anos” e a “so­ berania popular”. Como o senhor vê essa concorrência? O conceito de soberania p o p u la r é um conceito co m plic ad o, p a r a dizer o mínimo. Bertrand De Jouvenel, a o discutir a q u e s tã o da so berania, chega a afirm a r que o conceito n ã o expressa nada. Segundo ele tenta m o stra r, o conceito de soberania, para ser levado a sério, tem que ser o conceito de soberania divina. E m b o ra eu n ã o chegue a ta n to , a p artir dessa sua reflexão pode-se perceber que se trata realm ente de um conceito que é m uito difícil de tr a b a lh a r , so b re tu d o p o rq u e envolve a neces­ sidade de determ in a r o que se entend e p o r povo. Q u a n d o d a sua utilização jurídi­ ca, p o r exem plo, o que se tem é ape nas u m a n o çã o ab s tra ta que não envolve d e ta ­ lhes, pois d o c o n trá rio perderia a sua operacio n a lid a d e. A gora, a b s tra ta ou n ão ab s tra ta , a idéia da so b e ra n ia, tal c o m o f o rm u la d a nas constituições, n o direito constitucional, sem pre jogou co m a n o çã o de direitos h u m a n o s co m o direitos re­ conhecidos, declarados, constituídos — sempre c o m o algo que está fora da so b e ­ rania, algo a que ela n ã o se subm ete. Até aí, n a d a de novo. N a medida, porém , em que se tem, n o plano dos direitos h um anos, aquele risco da sua b an alização, e, no p la n o da soberania, essa n o çã o de p ovo , que do p o n to de vista operacional, é c o m p letam e n te vazia, a chance de m a n ip u la çã o é en o rm e dos dois lados. T a n t o se p ode ab so rv e r direitos h u m a n o s na n o çã o de p o vo, co m o se pode fazer o inverso, ch e g a n d o a uin uso dos term os em que a regulação ética fica co m plicada. Agora, esta é um a análise zetética da q u estão, que levanta prob lem as sem solucioná-los. Eu apenas percebo que, do jeito que a coisa ficou, n en h u m dos

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dois conceitos me dá segurança. A n ão ser, é claro, q u e eu faça deles um uso m e ra ­ m ente retórico — com to d o o cinismo possível: se faço isso, te n h o consciência de estar fazendo-o. É algo que p o de perfeitam ente ser feito, ainda que com isto eu caia em to d a a angústia h u m a n a e em to d o o niilismo desse final de século.

Em seu artigo “Legitimidade na Constituição de 1988”, do ano de 1989, o senhor diagnostica algumas dificuldades na compatibilização de exi­ gências que seriam próprias de um Estado de Direito e de um Estado Social no Estado Democrático brasileiro, pois “a exigência do compro­ misso é um problema político nos seus meios e nos seus fins, enquanto a exigência de um quadro constitucional rigoroso é tipicamente um problema jurídico”. Nesse contexto, como o senhor vê os desenvolvi­ mentos ocorridos na década de 1990 do ponto de vista das reformas constitucionais operadas e da nova jurisprudência? Teriam elas pro­ duzido a “compatibilização” das duas perspectivas? Creio que ainda não . O d eba te que está a c o n te ce n d o atualm ente , sobre a lim itação do p o d er de editar m edidas provisórias, me parece ser um sintom a de que a coisa ainda n ã o está b em -a rran jad a , de que ain d a não conseguim os sair dessa situação. Lem bro-m e que escrevi um artigo, intitulado “ M e didas Provisórias P erm anentes?” , q u a n d o surgiu pela prim eira vez, aind a na época d o governo Sarney, o prob lem a da reedição. Nesse artigo, eu defendia reto ric am e n te a posição clássica de que a palav ra última deveria ser d o Congresso: o u este deveria estabelecer um limite para as reedições, ou, n ã o h av e n d o v o tação, as m edidas provisórias deveriam ser consi­ dera das rejeitadas. D epois disso, porém , eu passei a fazer p arte do gov ern o e, na qualid ad e de secretário executivo d o M inistério da Justiça, me vi c o n f r o n ta d o c o m essa mesma situação: F ernan do C ollor ree d itan d o m edidas provisórias, a op o siç ão p ressio n an ­ d o etc. E um dia fui levado à televisão p ara um deb a te virtual com Miguel Reale J u n io r — eu rep rese n tan d o o governo e ele, pelo PSDB, rep rese n tan d o a oposição. Ele, do lado de lá, pro testava co n tra o excesso de m edidas provisórias e de reedições das m esm as, e eu, do lado de cá, e m b o ra um p o u co receoso, disse que ele tinha p a r ­ ticipado d o processo constituinte m uito mais de perto d o que eu. Cheguei a lem ­ b rar, em plena televisão, que nós dois havíam os lu ta d o juntos, na faculdade, c o n ­ tra o decreto-lei, e acusei-o de a ju d a r a criar algo m u ito pior — a m edida p ro v isó ­ ria — , pois naquele pelo m enos as coisas funcionavam de m aneira mais clara, e n ão havia reedições co m alterações. Ele até adm itiu que se lem brava, m as insistiu que estava h av e n d o um abuso, ao que eu procurei re spond e r p o n d e r a n d o que n ão era bem assim. Nessa altu ra do debate, o jornalista vira para m im e diz: “ .Vias o se­ n h o r n ã o escreveu um artigo co n tra a reedição indiscrim inada das m edidas p rovisó­ ria s? ” . Fiquei e n tã o n u m a posição dificílima, e me saí com u m a resposta um ta n to cínica: eu disse que havia escrito o artigo e n q u a n to jurista, e que havia de fato defen­ d id o tal posição, m as argum entei que o jurista tem de se rende r à realidade jurisprudencial, e, co m o o S u p re m o havia aceitado, eu tinha m u d a d o m in h a posição. Alguns anos depois desse episódio, n u m congresso cujo tem a envolvia m edi­ das provisórias, lem bro-m e de ter feito a seguinte o bservação. P ensando nessa o p o ­

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sição entre E stado de D ireito e E stado Social, o C ongresso N ac io n al, e n q u a n to um dos poderes da R epública, é um p o d er cuja respon sa b ilid ade pública é diferente d aq uela q u e tem o P oder Executivo. Ela é um a responsabilidade m uito m ais difusa: q u a n d o se faz um a d e m a n d a a o Legislativo, esta d e m a n d a é dirigida ao C ongresso N ac io n al c o m o um to d o . Q u a n d o se faz u m a d e m a n d a ao Executivo, a o co ntrá rio, trata-se de um a d e m a n d a personalizada, seja na figura d o presidente da R ep ú b li­ ca, seja na figura deste ou daquele ministro de Estado. É nesse c ontexto que podem os en tender p o r que oco rre o que se ch a m a de ab u s o de m edidas provisórias p o r parte d o Executivo: ele é acossado pela o piniã o pública de u m a tal m aneira que n ã o pode d e m o ra r em d a r respostas, n ã o p ode ficar e s p eran d o pela p ró x im a legislatura sem fazer nada . Indepe ndente m ente de ser urgente ou relevante, que são os term os da C onstituição, ele ac ab a rec o rren d o às m edidas provisórias p o r co n ta dessa pressão. Em o u tra s palavras, p o d e m o s dizer que o E stado Social faz a o E stado de Direito certas d e m a n d a s e este responde co m m edidas provisórias. E n ão vejo saídas para isso no m o m e n to . P o rq u e a alternativa inversa, que seria a de limitar essa prática, parece m u ito com p licad a. Basta ver c o m o F ern a n d o H en riq u e C a rd o s o , que antes era da o posição e defendia esta última alternativa, ac ab o u sentido na pele aquela pressão, a p o n to de recorrer m u ito mais que seus antecessores à m edida provisória. O que esse caso d as m edidas provisórias m o stra , co m relação à q u es tão feita, é que essa o po siç ão entre E stado de D ireito e E stado Social co n tin u a presente. Pelo m enos no Brasil, fica claro que o E stado de D ireito tem pressupostos que n ão se c o a d u n a m com o E stado Social.

Ouve-se constantemente que a Constituição Brasileira de 1988 é “le­ tra m orta” no que diz respeito a vários dos direitos fundamentais nela inscritos. A partir desse caso, como pensar a relação entre a norma e sua eficácia? A m eu ver a n o çã o de eficácia tem , d o p o n t o de vista jurídico, dois sentidos: a c h a ­ m a d a eficácia técnica, que se refere às condições de aplicabilidade das n o rm a s do p o n to de vista do p r ó p rio o rd e n a m e n to jurídico, e a c h a m a d a eficácia social, que se refere às condições de aplicabilidade d o p o n to de vista da c o n d içã o social à qual a n o r m a se volta. Se se obriga a freqüência da criança à escola até os 14 anos de idade, m as n ã o se d ã o escolas o u condições m ínim as p ara que a família possa suste ntá-la, esta n o r m a é letra m o rta . Creio que é a este segundo tipo de eficácia que a p ergun ta se refere. N o rol dos direitos h u m a n o s, nós vem os coisas v erd a d e ira m e n ­ te hilárias em term os dessas ineficácias. Um exem plo típico é essa discussão em torno d o valor d o salário m ínim o. D a d a a form a co m o está definido o salário m ínim o na C o n stituiç ão — um valor suficiente p ara o in divíduo susten ta r a si m e sm o e a sua família — , é evidente que o salário m ínim o atual é um a garg a lh ad a . \ l a s o a r g u ­ m e n to de que n ã o seria possível um salário m ín im o de cem d ólares, p o rq u e iria a r re b e n ta r co m a Previdência, m uitas prefeituras iriam à falência etc., é um a r g u ­ m e n to sério q ue diz respeito à eficácia social da no rm a: não existem condições para que se faça isso. A partir disso, chegam os a um a interpretação um p ouco cínica da eficácia: para a n o r m a ter condições de sucesso, no a tingim e n to da eficácia social, estas c o n d i­

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ções p o d e m ter de dizer respeito à sua não-aplicação. Em o u tr a s palavras, existem n o rm a s que se to r n a m eficazes justam ente p o rq u e n ã o se realizam, e, caso se reali­ zassem, pro d u ziria m u m caos. L u h m a n n , que é ta m b ém um cínico, ilustrava essa situação com o ex e m p lo d o trânsito nas cidades grandes, c o m o Paris, N o v a Y ork, Berlim. E m b o ra exista um a série de vias em que o es tacionam ento, ain d a que p o r pou cos m inutos, é p roibid o, a verdade é que ninguém respeita essas n o rm as. E por q u e isso acontece? Por que as pessoas go sta m de desobedecer? Isto p od e até ser verdade em alguns casos, mas o que realm ente oco rre é que, se a polícia fosse c o lo ­ ca d a em to d a s as partes p ara fiscalizar o c u m p rim e n to dessas n o rm as, o trânsito para ria com pletam e nte. P o rta n to , conclui I.u h m a n n , esta é u m a n o r m a cujo suces­ so depen de de ela n ã o ser aplicada com rigor. E assim que eu responderia. Existem norm as que não p odem ser aplicadas com rigor p o rq u e , se o fossem, haveria um caos social. E é este o caso dos direitos h u ­ m anos. Q u a n d o o gov ern o esperneia, e diz que n ão é possível conceder um a u m e n ­ to m aior, não é p o rq u e o presidente n ã o queira concedê-lo, m as sim p o rq u e existe um fundo de verdade na sua posição. Q u a lq u e r g o verna n te, dem agogic am ente ou n ão , diria que a d o ra ria elevar o salário m ínim o p ara mil dólares, mas q u e não pode fazê-lo. O u seja, se se fosse obedecer à risca a C onstituição, estouraria tu d o , e aí n ã o haveria m ínim o nem “ n ã o - m ín im o ” . M a s o certo, então, seria tirar essa n o r ­ m a da Constituição? Talvez não. Talvez o m elh or seja deixar co m o está, po rq u e isto tem um a eficácia sim bólica im p o rta n te — babemus salarium minimutn. Essa resposta pode ser cínica, m as ela tem um a o u tra rep ercussão se p en s ar­ m os em to d o o rol dos direitos h u m a n o s em nossa Constituição: é impossível t r a ­ balhá-los sem fazer aquilo q u e os alem ães c h a m a m de sop esam en to. Um direito fu ndam e ntal só tem sentido na m edida em que é c o n tra p o s to a o u tr o — p o r e x e m ­ plo liberdade de im prensa e privacidade. H á que se conviver com isto, há que se aceitar que nen h u m direito fu ndam e ntal tem eficácia plena, que to d o s eles sofrem essas limitações que fazem da sua eficácia, até certo p o n to , u m a eficácia sim bólica — que nem por isto deixa de ser im p o rta n te. N ó s n ã o vam o s retirar a privacidade da C o n stituiç ão p a r a g a ra n tir a liberdade de im prensa, nem vice-versa. Isso é algo de que o intérprete tem que to m a r consciência p ara p o d er lidar com o p ro b lem a e to m a r decisões.

Como o senhor caracterizaria a sua relação com a religião e a fé? N o passado, na época d o colégio jesuíta, essa relação foi m uito intensa, n o sentido de aceitação. D epois passei p o r um a r u p tu ra , e n u nca mais tive q u a lq u e r relação co m a religião institucional — a não ser talvez um a relação ex terna, d o tipo sujeito-objeto: eu olho p ara as religiões. N o caso da fé, a coisa é diferente. Desde que me distanciei da religião, essa é um a q u e s tã o que nunca deixei de me colocar. N a form a da crença em algum a coisa, a fé é algo que n ão se sustenta, p en s a n d o até do p o n to de vista filosófico. H á m uito te m p o tenho sentido, talvez p ara d o x a lm e n te , q u e a fé tem a ver com a dúvida: ela subsiste apenas na m edid a em qu e nós temos dúvidas. O n d e a dúvida desaparece, a fé desaparece junto — daí ela estar sem pre ligada a do gm as. Penso p o r ta n to que, d o p o n to de vista pessoal, o que alim enta a fé é a m in h a p o stu ra de dúvida.

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Esses dias eu estava lendo u m livro de Vilem Flusser, que saiu recentem ente, intitulado A dúvida. Ele a b o r d a esse tem a de u m a m aneira que me pareceu m uito interessante. Segundo o seu raciocínio, sem pre que ocorre um a reflexividade — a arte se to r n a r o bjeto d a p ró p ria arte, p o r ex em plo , o u , no nosso caso, a fc se to r n a r obje to da p ró p ria fé — , oco rre um curto-circuito que elimina o sentido d o objeto. O u seja, a arte sobre a arte elimina a arte; a fé sobre a fé elimina a fé. F.u encaixaria isso no que estava dizendo: ou a fé m a n tém um sentido de dúvida ou ela é eliminada. E, neste sentido, eu diria que o meu relacionam ento com a fé é um relacionam ento co m a dúvida, o que perm ite inclusive o apa recim en to , em term o s de religiosidade, de u m a virtude que me parece im portante: a hu m ildad e, cujo vício co rresp o n d e n te é a soberba. Q u em tem dúvida, não tem condiçã o de ser soberbo. Deus existe? N ã o sei. M a s ta m b é m n ão ten ho força p ara dizer que n ã o existe. Isto seria en tão u m a espécie de agnosticism o? Talvez, m as n ã o estou p re o c u p a d o c o m o agnosticism o, e sim com a d úvida, que me provoca n a tu ra lm e n te essa sensação de hum ildade.

Como o senhor se situa em relação aos problemas de uma “mudança de paradigm a” da filosofia, de uma filosofia “pós-metafísica” calcada na linguagem? Creio que há aí du as coisas diferentes. Q u a n d o pensam os cm filosofia “ p ó s-m e­ tafísica” , estam os p en s a n d o na filosofia analítica. M as, q u a n d o pensam os em filo­ sofia c e n tra d a na linguagem , n ã o estam os necessariam ente p en s a n d o em filosofia “ pós-metafísica” — é o caso de Heidegger, p o r exemplo. De qu alq u er m odo, a p reo ­ c u p a ç ã o co m a linguagem c o m o núcleo d o pensar filosófico te m um a co n s e q u ê n ­ cia sim iliar a essas q u e co n d u z e m a fo rm ulaç õ es niilistas. Eu p o deria dizer algo parecido co m o que acabei de dizer em relação à fé: a linguagem to r n a d a o b je to de si m esm a p ode ac ab a r p o r esgotar-se e n q u a n to linguagem. Esta seria talvez um a form a de e n ten d e rm o s a frase de W ittgenstein: “ Sobre aquilo de que n ã o se pode falar, deve-se c a la r ” . Q u a n d o a linguagem se to rn a objeto de si m esm a, não se tem mais do que falar; só se pode ficar m u d o . Isso remete àquela m inha discussão com P o rc h at e a o q u e ele dizia: se a filo­ sofia se to r n o u sua pró p ria história, n ã o há mais o qu e dizer; só lhe resta a o pção d o silêncio. A gora, a q u estão é saber se tal situ ação implica que a metafísica a c a ­ bou. Se p en s arm o s desse ân gulo que c h a m o de prag m á tic o , eu diria que não, p o r ­ que, co m o escrevi na resposta a P o rc hat, se o m u tism o , t a n to o dele c o m o o de W ittgenstein, é na verdade um a fala, configura-se e n tã o u m a fala que n ão fala, e isto p o r sua vez nos leva inevitavelm ente à q u e s tã o d o n a d a , de tal m o d o que a metafísica, expulsa pela p o rta , reaparece e n t ra n d o pela janela. P o rta n to , salvo ta l­ vez os positivistas, que são de fato os únicos a fechar a fala d e n tro dela m esm a, eu diria que a filosofia da linguagem , na m edida em que se m a n te n h a reflexiva, n ão acaba com a metafísica.

A partir da década de 1960 e durante pelo menos as três décadas se­ guintes, houve enormes investimentos teóricos no sentido de uma refor­ mulação do direito nos termos da “virada lingüística”. Quais foram, na visão do senhor, os resultados dessa empreitada?

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Prim eiram ente, eu a p o n ta r ia , co m o um dos frutos disso, o reconhecim ento da im ­ portân c ia da lógica p ara o direito. A inda que n ã o seja um reconhecim ento que se dê na linguagem prática d o direito, o fato é que a lógica, no seu sentido c o n t e m p o ­ rân eo, vem g a n h a n d o um no vo e s ta tu to d e n tro do direito, to rn an d o -se o seu es tu ­ do algo im p o r ta n te na fo rm a ç ã o d os juristas. U ma o u tra co n seq üência é que se com eça a perceber, n o p la no da d ogm á tic a, u m a p re o c u p a ç ã o m a io r co m o fenó­ m eno da pró p ria língua — em autore s que não são filósofos d o direito e até m es­ m o no jargão usual. N este sentido, p o r ta n to , eu diria que m uita coisa m u dou. Q u a n t o à filosofia d o direito, p o r o u tr o lado, a g rande conseqüência desse processo, a m eu ver, é que n ã o há mais c o m o ficar indiferente à q u es tão da lingua­ gem. A inda que seja para negar ou reduzir im p ortâ ncia , q u a lq u e r filosofia d o di­ reito que n ão tom e hoje posição diante dela será desconsiderada. U m a terceira coisa a m e n c io n a r, p o r fim, com relação a isso, é o qu e vem o c o rre n d o no Brasil. C o m p a r a n d o c o m a A rgentina, por exem p lo, p o d em o s dizer que aqui, em bora esteja ocorrendo, esse desenvolvimento, e to d a a preocupação com a lógica e com a linguagem, foi sem pre m u ito mais lento e m enos intenso. O senhor utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do futuro da sociedade hum anai Em que consistiria tal utopia? H á cerca de oito anos, nu m a conversa com aquele am igo alem ã o que já mencionei, o professor W o lf Paul, ele me disse, e isto na época me im pressionou m uito, que na A lem anha se vivia um a espécie de m a ra s m o em te rm o s de utopias, p o rq u e todas elas já tin h a m sido satisfeitas. A gora, se identificarmos uto pia com aspirações, com sonhos que n ão se concretizam , creio qu e posso dizer, com relação a esta p e rg u n ­ ta, algo similar a o q u e disse com relação a o fim d o século, a o pro b lem a da arte, à q u estão da fé. O u seja, a utopia é algo que faz sentido n u m a sociedade em que o escâ n d alo funciona. N o caso da im p re n sa, p o r e x e m p lo , o escâ n d alo seria algo fu ndam e ntal. A p artir d o m o m e n to em que o escândalo se banaliza, a sociedade passa a ressentir-se de u m a sensação de m a ra sm o parecida com a que Paul descre­ via — não p o ré m no sentido de que as utopias tivessem sido realizadas, m as n o de que se perdeu a sensibilidade p ara o escândalo, nos diversos setores da sociedade. O n d e tu d o se trivializa, a utop ia perde seu sentido funcional. Assim, prefiro dizer que visualizo o fu tu ro da sociedade h u m a n a mais n u m a perspectiva niilista, de es­ peranças vazias, d o que utópica. O que, diga-se de passagem , n ão é um juízo de valor, m as de realidade.

Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos como riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em larga escala e alienação cultural em massa. Como o senhor vê tais pro­ blemas? P erm anecendo na m esm a temática, creio que essa form a de destruição pode ser vista co m o um a conseqüência ex a ce rb a d a d o ser h u m a n o to r n a d o o b je to de si mesmo. A percepção da vida h u m a n a c o m o realização, c o m o posição, c o m o criação, c o n ­ fere ao h o m e m um a sensação de ilimitado — tu d o é h u m a n o , tu d o é realizável. Isto gera, de um lado, um a u m e n to da potencialidade do h o m e m , mas de o u tr o lado

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gera a possibilidade de sua destruição. O que me parece, p o r ta n to , é que essa cir­ cunstância, q u a n d o levada a o ex tre m o , co n d u z a um a a u to d estru iç ão , na medida em que n ã o se consegue mais c o n tra sta r isso com o u tr a coisa, isto é, na m edid a em que há um a trivialização ta m b é m dessa possibilidade de o h o m e m fazer o q u e quer. O h o m e m to r n a d o o b je to de si m esm o é o h o m e m da técnica, é o h o m e m para o qual, co m o diz H a n n a h A rendt, tu d o é possível — desde a arte e a ciência até a política e a relação com o am biente. Assim, não h ave ndo limite, o risco de a u t o ­ destruição é total: agressão am bien tal, agressão à vida em geral etc.

Principais publicações: 1970 1973 1976 1977 1978 1978 1981 1988 2000

Die Zweidimensionalität des Rechts als Voraussetzung für den M ethoden­ dualismus von Emil Lask (M eisenheim -G lan: A nton H a in Verlag); Direito, retórica e comunicação (São Paulo: Saraiva, 1997); Conceito de sistema no Direito (São Paulo: Revista d o s T ribunais); A ciência do Direito (São Paulo: Atlas); Função social da dogmática jurídica (São Paulo: Revista dos Tribunais); Teoria da norma jurídica (Rio de Janeiro: Forense); A filosofia e a visão comum do mundo (co-autor) (São Paulo: Brasiliense); Introdução ao Estudo do Direito (São Paulo: Atlas). “ O Ju sto e o Belo: N o ta s sobre o D ireito e a Arte, o Senso de Justiça e o G o sto A rtístico” , Revista da P ó s-G ra d u a ç ã o da F aculdade de D ireito da USP, vol. 2, 2 0 0 0 .

Bibliografia de referência da entrevista: Arendt, H . Lições sobre a filosofia política de Kant, R e lu m e -D u m a rá . Aristóteles. Retórica, M a d ri: C e n tro de Estúdios Constitucionales. Flusser, V. A dúvida, R e lu m e -D u m a rá . G a d a m e r, H . G. Verdade e m étodo , Vozes. G o ldschm idt, V. A religião de Platão, Difel. H a b e rm a s , J. Teoria de la acción comunicativa, M a d ri: C a ted ra. Heidegger, M . Chemins qui ne mènent nulle part, Paris: G allim ard. Kelsen, H . Teoria pura do Direito, M a rtin s Fontes. L u h m a n n , N. Sociologia do Direito, T e m p o Brasileiro. ___________ . A nova teoria dos sistemas, E d itora d a U FR G S /G oethe Institut. P latão. A República, Lisboa: F u n d a ç ã o C alouste G ulbenkian. Viehweg, T. Tópica e jurisprudência, Im prensa N acional. W a tzlaw ick , P., Beavin, J. H . e Ja c k so n , D. D. Pragmática da comunicação huma­ na, Cultrix. W ittgenstein, L. Tractatus logico-philosophicus, Edusp.

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M A R IL E N A C H A U I (1941)

M a rilen a C haui nasceu em 1941, em São Paulo (SP). G ra d u o u -s e em Filoso­ fia pela Universidade de São Paulo, o nde obteve o grau de mestre em Filosofia, além dos títulos de d o u to r e livre-docente em Filosofia. F u n d a d o r a d o C e n tr o de E stu­ dos de C u ltu ra C o n te m p o r â n e a (CED EC ), foi ta m b é m secretária m unicipal de cul­ tu ra de São Paulo e presidente da Associação N ac io n al de P ó s-G rad u a çã o em Filo­ sofia. E professora titular da USP. Esta entrevista foi realizada em abril de 20 00.

Goethe dividiu a vida de seu personagem W ilhelm Meister em dois romances. O s anos de a p r e n d iza d o e O s an o s de peregrinação. No pri­ meiro, o foco está posto na formação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que você nos falasse de sua formação intelectual? Penso que sim, m as eu am pliaria a fo rm a ç ã o para além do a p re n d iza d o , fazendo-a incluir ta m b é m a peregrinação. Q u e r o dizer: a p ró p ria peregrinação tem sido for­ m a d o ra . O ap re n d iz a d o assinala a dependência e a p eregrinação assinala a a u t o ­ no m ia , po rém a fo rm a çã o inclui am bos. A inda que eu hoje freqüente os o u tro s de u m a m aneira m uito diversa daquela em que os freqüentava na juventude, q u a n d o o fazia p ara ap re n d er, e n ão para interpretar, criticar ou me p o r de ac o rd o , o fato é que se tra ta de u m a fo rm a çã o c o n tín u a , que prosseguiu m esm o depois de eu ter teses p ro n tas, tra b a lh o s escritos e assim p o r diante. Para respon der à p e rg u n ta fei­ ta, p o r ta n to , te n h o de levar em con ta um a longa form a çã o que a b ra n g e ta m b ém “ os an o s de p ere g rin a ç ã o ” . Eu co locaria o início desse trajeto na m inha infância em P in d o ra m a , até os 10 anos, perío d o em que, retrospectivam ente, percebo algum as coisas que foram m uito im p o rta n tes p ara o r u m o de m inh a fo rm ação. De um lado, a n atu ra lid a d e co m que m in h a família encarav a a ed uc aç ão pública laica (m inha m ãe é professora prim ária), fazendo-m e freq üentar o G r u p o Escolar, em que fui d espertad a p a r a o p atriotism o, e, de o u tr o , a ausência inicial de um a e d u c aç ão religiosa p r o p ria m e n ­ te dita, e m b o ra , de família católica, eu freqüentasse a Igreja. N a época de m inha prim eira c o m u n h ã o , p o r exem plo, um a tia me dissuadiu de fazer o catecism o, e ela própria me deu as aulas p rep a ra tó rias, de um a m aneira q u e fugia com p letam e n te ao s cânones mais o r to d o x o s. Só depois disso, ela me fez ler o Catecism o, pois eu teria que passar p o r um a prova, d izendo-m e p ara decorá-lo sem me p re o c u p a r com o que a quilo queria dizer. E ela tinha razão , pois me lem bro que a prim eira p e r­ g unta era: “ Q u e m é D eu s?” , e a resposta, “ U m Ser perfeitíssim o, c ria d o r do Céu e da T e r r a ” , o que era perfeitissim amente incompreensível p a r a os meus sete anos!

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(mas, se vocês viram o livro que a c ab o de escrever, a perg u n ta ficou, n ã o é m es­ mo?). Além da escola pública e d o patrio tism o , m inha fo rm ação, nessa época, se deu em g ran d e m edida através da leitura de M o n te ir o L o b ato , que fiz de p o n ta a p o n ta ; d o cinem a, pelo qual sem pre fui fascinada; das histórias em q u a d rin h o s, ou, c o m o se c h a m a v a m na época, os gibis; e dos c o n to s m aravilhosos que a im a g in a­ ção de m inha tia produzia. A p artir dos 10 anos, porém , p o r pro b lem as familiares, fui enviada p ara um colégio de freiras, na cidade vizinha, C a ta n d u v a , e, aí sim, tive um a f o rm a ç ã o reli­ giosa intensa. Pois foi som ente e n tã o que, pela prim eira vez, ouvi falar de um a coi­ sa terrível ch a m a d a pecado. M a s o primeiro resultado curioso da form ação religiosa foi a junção impossível que fiz de M o n te iro L o b a to (agora ta m b é m o L o b a to de “ U rupês" e de “ O escândalo d o petróleo e d o f e r ro ” ) e catolicismo! E evidente que na época eu n ã o o percebia, m as duas influências d ia m etra lm e n te o p o sta s se re u ­ n iram d e n tro da m in h a cabeça, d e ix a n d o co m o m arca, seja através da via católica, seja através da via L o b ato , u m a sensibilidade e n o rm e para as situações de injustiça — pessoais ou sociais — , c o m b in a d a com um c o m p o n e n te d o m a ra vilh oso (vindo d o p ró p rio L o b ato , dos rom anc es de cavalaria, das vidas de santos, d o cinema e do gibi), fazendo-m e te r um a conc epç ão heróica d o m u n d o e da ação h u m a n a . Esse heroísm o da ação individual a b n e g ad a , que traz a justiça p ara d e n tro do m u n d o , levou-me, n u m a certa altura, ao desejo de ser freira e tornar-m e missionária na África. Depois desse p eríodo no colégio de freiras (que d u ro u q u a t r o anos), nós nos m u d a m o s p ara São Paulo e eu voltei p ara a escola pública, in d o cu rsa r a q u a rta série ginasial no Colégio Presidente Roosevelt da R ua São Jo a q u im , o n d e eu c u r s a ­ ria os três an o s do Colegial Clássico. C o m o passam os a m o r a r n u m a p a r ta m e n to bastan te p eq u e n o , a biblioteca de meus pais, q ue até en tão preservavam n u m a sala à parte, à qual eu n ão podia ter acesso, ficou esp alh a d a pela casa. F. foi en tã o que pude ler três livros que sem pre me haviam c h a m a d o a atenção: A psicanálise ao

alcance de Todos; Do socialismo utópico ao socialismo científico; Filologia da lín­ gua portuguesa. N u m gesto de co ragem , me pus e n tã o a lê-los, nessa ordem . C o m o prim eiro, fiquei ab s o lu ta m en te d e slum b rada , tive a sensação de que a m inha vida passava a fazer sentido: ag o ra eu com p re en d ia p o r que fazia certas coisas, p o r que n ão fazia o u tras, p o r que a m a v a ou sentia repulsa p o r certas pessoas, p o r que ti­ n h a m edo disso e daqu ilo , p o r que sonhav a etc. Q u e m me conhece p ode im aginar o que eu, com um livrinho de “ psicanálise a o alcance de t o d o s ” na m ão, produzi em term os de conhecim ento psicanalítico! (Risos) M a s o mais im p o rta n te é que esse foi um p rim eiro instante em que me o co rreu o p e n s a m e n to de que talvez o que me tin h a m en sinado no colégio das freiras, isto é, o sentido e o peso d o p ecado e da cu lpa, eu n ão precisasse me confessar p ara um padre , que talvez eu pudesse, em vez de me confessar, ficar se ntad a e te n tar entender a m im m esma. Eu diria que Freud foi um d o s principais responsáveis p o r me con d u z ir a o d eslo ca m ento da culpa: o meu p ro b lem a não era com D eus, e sim c o m o superego. E isto já era um avanço enorm e. Foi en tã o que li Do socialismo utópico ao socialismo científico , e tu d o ficou ainda mais claro: “ M a s é evidente! M a s é óbvio! Eu esperava ser m issionária, ou ser co m o u m herói dos gibis, sair pelo m u n d o c o m b a te n d o a injustiça... tu d o isso é

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M a rile n a C h a u i: “ O m ito fu n d a d o r, fu n d o te o ló g ic o -p o lític o q u e su s te n ta o im a g in á rio s o ­ cial e p o lítico , se c o n s tró i co m a figura d o Brasil c o m o e feito de três o p e ra ç õ e s d iv in as sim u ltâ n e ­ as: o Brasil é o b ra d e D eus — a n a tu re z a p a ra d isía c a — , é p la n o de D eus — a h istó ria p ro v id e n c i­ al q u e asseg u ra q u e este é o país d o fu tu ro — e é v o n ta d e de D eus — p o r q u e m é in stitu íd o o Es­ ta d o e d e fin id o o g o v e rn a n te . S ag ra ç ã o da n a tu re z a , sa g ra ç ã o d a h istó ria e sa g ra ç ã o d o p o d e r são os p ilares de n o sso m ito fu n d a d o r ” .

socialismo utópico! N ã o vai resolver nada! Existe u m a ciência que realm ente e x ­ plica co m o a sociedade é e c o m o é possível, p o r meio de um a a ç ã o cientificam ente c o m p ro v a d a , tirar a injustiça do m u n d o ! ” . A leitura d o te x to de Engels teve p o r ­ ta n to , d o p o n to de vista do meu destino, u m im p a cto igual ao d ’A psicanálise ao alcance de todos: se este me ensinava c o m o eu p oderia en tender-m e a m im m esm a, aquele me ensinava co m o eu p o d eria agir para m u d a r a sociedade. Por fim, li o livro de filologia. E m b o r a n ão ten h a tid o o m esm o im pacto exis­ tencial, c o m o n o caso de F reud e Engels, foi um a grande desco berta saber de o n de as palavras tin h a m v indo e o que elas q u eria m dizer e isso d espertou um sen tim en­ to de e n c o n tro de m im m esm a, já que desde p eque na eu tin ha tido essa cu rio sid a­ de. L em b ro -m e que, ain d a cria n cin h a , eu ficava p r o n u n c ia n d o as p alavras e me p e r g u n ta n d o de o n d e elas v in ha m — “ n o ite ” , p o r exem plo, era um a palavra que m e asso m b rav a . O u en tão , um p o u c o mais ta rd e — com 6, 7 a n o s — , eu me in tri­ gava com alg u m as palav ras ab stra ta s. C erta vez cheguei a p erg u n ta r p a r a m inha mãe: “ M ã e , o que é a nação? Eu n ã o vejo a n aç ão , n ã o seguro a naç ão, n ã o to c o a nação! C a d ê a n a ç ã o ? ” . Ela me deu u m a explicação, dizendo que a n aç ão era o c o n j u n to dos brasileiros, tu d o a q u ilo q u e havia n o Brasil, a terra etc., m as esta explicação n ão me satisfez — a nação c o n tin uou sendo uma abstração incontrolável. Já n o livro de filologia, p o rém , tu d o co m eç o u a fazer sentido: p o r que n aç ão é n a ­ ção; p o r que noite é noite; p o r que bran c o é b ran c o etc. Foi u m milagre, u m desvend a m e n to d o m u n d o . O “ m u n d o em si” passou a fazer sentido p o rq u e as palavras p a s sa ra m a fazer sentido. N o Colegial Clássico comecei a te r au las de filosofia com o professor J o ã o V illalobos, que era e x tra o rd in á rio . Ele co m eç o u , no p rim eiro an o (para um a m e n in ad a de 15 anos), d a n d o lógica, e, no p rim eiro dia, sem m aiores explicações, fez u m a exposição sobre Parmênides! Vocês p odem im aginar o que era, p ara qu em tinha ap e nas 15 an o s e n ã o sabia de n a d a , u m cu rso de filosofia que com eça c o m Parmênides! D epois da sua prim eira aula, q u a n d o ele saiu da sala, foi aquele alvoroço: “ O que é isso? O que ele falou?” . M a s a m inh a reação não foi essa. Eu fiquei n u m co m p leto silêncio, incapaz de dizer q u a lq u e r coisa. Aí houve a se­ g u n d a aula e ele falou sobre Z e n ã o de Eléia. C on tinuei não en te n d e n d o n a d a , mas algo me pareceu fascinante na idéia de que o m o v im en to talvez fosse diferente d a ­ quilo a que c o s tu m a m o s c h a m a r m o v im ento, de que talvez a realidade n ã o se m o ­ vesse. O terceiro a u t o r que ele a p re sen to u foi G órgias, e, no meio da a r g u m e n ta ­ çã o de G órgias sobre o ser e o não-ser, percebi a o n d e o Villalobos e o G órgias es­ ta v am q u e re n d o chegar: estavam q u e re n d o fazer-nos pen sar sobre o pensam en to. F. até então eu não sabia que se p odia p ensar sobre o p e nsam e nto, nem que se p o ­ dia pensar e falar sobre a linguagem. Isto me deixou en c a n ta d a , fiquei rin do à toa — algo que as m in h a s colegas sim plesm en te n ã o conseg u ia m enten de r. Elas me diziam: " C o m o você pode estar contente? N ó s v am o s tirar zero na prova e você fica d a n d o risad a ?!” . E eu dizia a mim mesma: “ M a s elas n ã o estão percebendo o que ele está en s in an d o para a gente? Ele está en s in an d o que nós p o d em o s pensar o pensamento, que nós podem os falar sobre o falar, pensar a linguagem!” . N o segundo a n o , tivemos história d a filosofia e, n o terceiro, além de história da filosofia, u m a iniciação à psicanálise. Além d o curso de filosofia, preciso lem brar que foram deci­ sivos na m in h a fo rm a ç ã o o cu rso de história do Brasil, em que líamos os livros de

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Caio P ra d o Jr. (po n d o em crise o meu p atriotism o), o de português, q u a n d o desco­ bri C arlos D r u m m o n d , M a c h a d o e G u im a rã es (fazendo a desco berta da literatu ­ ra), o dc latim, co m a leitura de Cícero e Virgílio (chegando assim a o m u n d o clás­ sico). Escola pública de verdade. C o m esse ap re n d iza d o , acabei escolhendo fazer filosofia p o rq u e senti que ela, e n ã o mais a religião, me daria um a co m p re e n sã o racional e to talizada d o m u n d o . D u ra n te o ex a m e vestibular, na prova oral de filosofia, o professor Lívio Teixeira veio me e x a m in a r, p e rg u n ta n d o -m e, no final, p o r que eu tinha escolhido fazer filo­ sofia. R espo ndi q u e era p o rq u e eu tin ha m uitas d úvidas — dúvid as sobre o sentido d o m u n d o , o sentido das coisas, o sentido da m in h a vida; dúvidas sobre a verdade da religião; dúvidas sobre co m o a sociedade poderia ser mais justa — , e p o rq u e eu gostaria de resolver um p ro blem a que me a to rm e n ta v a desde m u ito cedo — o p r o ­ blema de u m a culpa originária, de um a culpa m a io r do que ser c u lp a d o disto ou d aq u ilo e o p roblem a de c o m o era possível que um Deus justo e m isericordioso me tivesse c ria d o para deixar que eu pecasse p ara depois me pun ir. E ele me p e r g u n ­ tou: “ A senho ra acha q u e a filosofia vai resolver toda s essas d ú v id a s? ” . Eu resp o n ­ di: “ Ah, vai! Lógico que vai!” (risos). E ele disse: “ A senhora está tã o engan ada! A senhora vai ver que as suas questões vão a u m e n ta r em n ú m e ro e que cada um a delas vai se to r n a r m uito mais com plicada d o que a senhora imagina! A senhora quer fazer filosofia assim m e sm o ? ” . Resposta imediata: “ Q u e r o , professor, p o rq u e te n h o cer­ teza de que a filosofia vai resolver os m eus p ro b le m a s!” . Ele sorriu benevolam ente e assim eu entrei p ara a F aculd ade de Filosofia. E o professor Lívio n ã o podia p re ­ ver que ele, afinal, seria responsável pelas respostas às m in h a s d ú v id a s q u a n d o m inistrou um cu rso sobre Espinosa... Q u a n to ao período da m inha graduação, p ara entendê-lo é preciso ter em conta que foi feito n u m D e p a rta m e n to de Filosofia a n te rio r à d ita d u r a e à reform a p r o ­ veniente d o p ro je to M E C -U S A ID , isto é, d o p ro je to de m a ssificação e de m era escolarização a que foi reduzida a universidade pública, destinada, doravante, a servir de tram polim para a ascensão social de um a classe média que serviu de suporte ideo­ lógico p ara os d ita dores e p a r a fornecer d iplom as p a r a currículos v olta dos p a r a a c o m p etiçã o no m e rc ado de trab a lh o . O D e p a rta m e n to que freqüentei era universi­ tá rio no sentido forte d o term o: p o u ca s disciplinas, p o u ca s h o ra-au la, aulas p r e p a ­ rada s p o r escrito e m inistradas com esm ero, m u ito te m p o p ara leituras e traba lh os, diversidade de perspectivas docentes e de investigação. E m b o ra nele com eçasse a prevalecer a técnica de leitura estrutural de textos e a inclinação p rep o n d e ra n te para a história da filosofia, das ciências e das artes, nele era igualm ente im p o rta n te a fo rm a çã o trazida pela epistem ologia, pela filosofia política, pela estética e pela li­ te ra tu ra , e ta m b é m vigorava um debate sobre a técnica de leitura estrutural, que privilegia o c o m e n tá rio co n tra a inte rp re taç ão e recusa a presença da história na tr a m a da pró p ria o b ra filosófica. F.ra ta m b é m um D e p a rta m e n to com pluralidade de perspectivas políticas, indo da posição liberal à trotskista, m as aten to aos riscos da ideologia, ainda que, co m o iria ob servar anos depois o P aulo A rantes, estivesse im p re g n a d o de espiritualism o francês. N o a n o em que terminei a g ra d u a ç ã o , foi criada a p ó s-g ra d u aç ão , que era m uito simples: um curso m agistral c o m a d u r a ç ã o de um a n o e a a p r e se n ta ç ã o de u m a tese de m e str a d o , a o c a b o de dois anos. O

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d o u to r a m e n to n ão fazia parte da p ó s-g ra d u aç ão e sim da carreira universitária, in­ cluindo, pro -fo rm a, a figura de um o rien tad o r, m as sendo, na realidade, já um tr a ­ b alh o independente e de m a tu rid a d e intelectual, sem praz o p ara a ap resentação. O m u n d o dos créditos, prazos, cursos obrigatórios e optativos, área e dom ín io conex o (enfim, to d o o besteirol que conhecem os), foi fruto da reform a ditatorial. Fazendo um b alanço desse p eríodo, creio que as m arcas mais p ro fu n d a s em m inh a f o rm a ­ ção foram: a técnica estrutural de leitura; a fenomenologia e o existencialismo com o co n te ú d o da filosofia; e o m a rx ism o , p o r mais p recário que fosse o meu m arxism o, c o m o chave p a r a decifrar a realidade brasileira. Era esse o m eu horizonte q u a n d o escolhi M e rle au-P onty p ara m eu m estrado.

Que problema teórico a levou a M erleau-Ponty? A relação entre filosofia e m a rx ism o , a p artir d ’As aventuras da dialética e de Si­ nais, que era o que eu conhecia de M erleau-P onty. Bento P ra d o , meu orien tad o r, me p ro p ô s o tem a (a crítica d o h u m a n ism o ) e u m roteiro de tra b a lh o que c o m e ç a ­ va e m Sens et Non sens e iria te rm in ar n ’As aventuras da dialética. N o e n ta n to , em vez de com eç ar p o r Sens et N on sens, comecei esse itinerário p e P O visível e o invi­ sível, me detive na prim eira n o ta de tra b a lh o das no ta s colocadas no fim do iivro, e acabei m u d a n d o meu p ercurso, co n c e n tra n d o -m e nas questões de fenom enologia e o n to logia e As aventuras da dialética sequer e n t r a r a m na dissertação. Se o trajeto inicialmente pla n eja d o era resultado da m in h a fo rm a ç ã o na g rad u a ç ã o , ain d a que a ju sta d o pelo Bento, as leituras novas que tive de fazer — A fenomenologia da percepção, A estrutura do comportamento — a c a b a ra m le vando-m e à crítica merle a u p o n ty a n a das filosofias da reflexão e d a r e p re se n ta ç ã o , d o e m p irism o e d o objetivismo cientificista, e determ inaram m inha relação com a filosofia daí em diante. T a n t o assim que foi co m essa perspectiva que eu participei do segundo g ru p o de leitura de O Capital (com R uy Fausto e R o b e rto Schwarz) e dei m inha c o n trib u i­ ção a o prim eiro n ú m e ro da revista Teoria e Prática escrevendo no ta s explicativas p ara um ensaio de G o rz sobre a Crítica da razão dialética, de Sartre. E como foi a decisão de estudar Espinosa no doutorado ? Depois d o m e strad o , tornei-m e professora d o D e p a rta m e n to de Filosofia (em ja­ neiro de 1967) e, seguindo a tr ad ição do D e p a rta m e n to , fui enviada à França para concluir m eu ap re n d iz a d o e a p r im o ra r m in h a form a çã o. P retendia c o n tin u a r es tu ­ d a n d o a relação entre a fenom enologia e o existencialism o, sendo a m inha idéia trabalhar com Eric Weil em Lille. M a s Giannotti chegou para mim e disse: “ Marilena, você tem u m a im aginação excessiva e é m u ito indisciplinada. Você precisa de dis­ ciplina, e p o r isso n ão pode con tinuar estud ando filosofia contem porânea. Você deve e s tu d ar um clássico” . Desde o cu rso d o professor Lívio, eu secretam ente desejava e s tu d ar Espinosa e n ão o fizera p o r achá-lo u m filósofo m uito acim a de m inh as for­ ças. M as, ago ra , concordei: “ E n tã o está bem. V ou es tu d ar E sp in o sa” . E fui p ara a F rança e s tu d a r Espinosa, com Victor G old schm idt, em C le rm o n t Ferrand. A m in h a idéia era e s tu d a r a ausência d o negativo na filosofia de Espinosa p o rq u e eu estava influenciada pela interpretação de Hegel feita p o r G érard Lebrun, meu professor na g rad u a ção e que dera nosso prim eiro curso de pós-grad uação com

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um a exp osição da negação da negação em Hegel, usa n d o o exe m plo de Espinosa c o m o o c o n t r a p o n to perfeito da posição hegeliana. E estava ta m b ém m uito inte­ ressada, graças a M erieau-P onty, na q u estão da ind eterm in a çã o e da contingência, que ta m b é m tinha c o m o c o n t r a p o n to a necessidade a bsoluta espinosana. Q u a n d o mostrei a G o ldsc h m id t meu projeto, p o rém , ele ficou um t a n to h o rro riz ad o , dizen­ do-m e que aq uilo era inviável, pois eu estaria te n ta n d o p r o c u r a r em Espinosa algo que n ão há, estaria te n ta n d o colocar p ara Espinosa questões que ele exclui de p r in ­ cípio. E eu lhe respondi que q ueria justam ente en ten d e r p o r q u e ele as exclui. Q u e ­ ria en ten d e r o q u e leva Espinosa a recusar a n egação e a contingência, quais os fu n d am e n to s dessa recusa. E videntem ente, G oldschm idt, e n q u a n to um h istoria dor da filosofia que tra b a lh a v a co m a n o çã o de responsabilidade filosófica, ou seja, de n ã o ir além d a q u ilo que o filósofo disse explicitam ente, escreveu e assinou, não g ostou d a m inha teimosia. F.le disse que me deix aria c o n tin u ar, mas q u e eu n ão chegaria a lugar n en h u m . Eu fiz en tão um a análise d o p rim eiro capítulo d a prim ei­ ra p arte dos Pensamentos metafísicos , e lhe mostrei. Dias depois, me disse que h a ­ via g o sta d o m uito, e reconheceu que, se me deixasse prosseguir na m in h a teimosia, talvez aparecesse algum resultado interessante. D epois disso, no en tan to , o co rre ra m os aco nte cim en to s franceses de 1968, a p a ra d a total da rotina acadêm ica, as b arrica das de Paris, o crescim ento político da co n testaçã o d e r r u b a n d o o PCF | P artido C o m u n ista Francês| e o PS |P a rtid o Socia­ lista], a greve geral, a exigência que De Gaulle renunciasse. Iniciava-se meu segun­ d o a n o na França e G o ld sc h m id t enviou-m e para Paris (ele me enviou p ara a Sorbonne, mas, evidentem ente, eu fui p ara Vincennes, o nde tu d o que havia de instigante na filosofia e na política estava acontecendo ), nu m m o m e n to em que, creio, com pleta-se o meu ciclo de form a çã o -a p re n d iz ad o p ropria m e nte, pois foi en tã o que li Lênin, T ro t s k y e \ l a o (e convivi c o m o g r u p o tro tsk ista de Rouge), descobri M a rc use e Reich e, p o r meio deles, os frankfurtianos. Era em Paris que eu ficava s a b en d o d o que se passava no Brasil, dos ac o ntecim en tos da rua M a ria A ntônia; e foi a Paris que, no início de 1969, co m eç aram a chegar os exilados, os professores cassados pelo AI-5, as notícias d o de s m a n te la m e n to d o D e p a rta m e n to de Filoso­ fia. F. resolvi an tec ip ar a m inha volta, inicialm ente prevista p ara 197 0 , e voltar em 1969 p ara a ju d a r a preservar o que restara do D e p a rta m e n to , que havia sido esfa­ celado e que, a d u ra s penas, a professora Gilda de M ello e Souza dirigia. U m a vez aqui, nas circunstâncias terríveis em que a esqu erda se enco n trav a , achei que eu tinha a o b rig aç ão política e m oral de fazer um tra b a lh o que tivesse algum sen tido para qu em vive no Brasil. C ontinuei a p r e p a ra r o d o u to r a d o , mas ab a n d o n ei o tema da negação e da contingência (ou m elhor, da afirm a çã o da c a u ­ sa de si e da necessidade absoluta) e passei a e studar os textos políticos de Espinosa e, neles, a superstição e a violência, trab a lh an d o um a o b ra de Espinosa que, na época, ninguém tra b a lh a v a — o Tratado teológico-politico. Q u a n d o eu ain d a estava nas an otaçõ es de leitura, p o rém , o professor Miguel Reale, à época reitor da USP, m a n ­ d o u avisar d o n a Gilda que o nosso D e p a rta m e n to corria sério risco de intervenção, pois não preenchíamos o n úm e ro de titulações estipulado legalmente. Tivemos então de apressar as coisas: a M a ria Sylvia |de C a rv a lh o Franco] ju ntou alguns ensaios em p r e p a ra ç ã o e fez a livre-docência, vários jovens professores, que iniciavam seus

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mestrados, ta m b ém os apressaram e os defenderam, e eu simplesmente passei a limpo m inh as a n o taç õ es e fiz o d o u to r a m e n to . Este o m otivo , p o r sinal, p o r que n unca publiquei o traba lho: n ã o o considero um a tese. M a s com isso, fizemos o D e p a rt a ­ m e n to sobreviver com independência. E foi nessa époc a que Gilda de M ello e S ou­ za (auxiliada p o r V ictor Knoll e A rm a n d o M o r a de Oliveira) criou a revista do D e p a rta m e n to , a Discurso. A volta a o Brasil, eu diria, m arca o com eço dos meus “ a n o s de pere g rin a çã o ” . N o início dos an o s 70, nós tín h a m o s n ã o a p e n as que g ara n tir a existência d o D e­ p a r ta m e n to , c o m o ain d a viver sob o te rro r de E stado e a esperança reduzida de que os grupo s revolucionários clandestinos pudessem, pelo m enos, sobreviver fisicamen­ te, um a vez que sua sobrevida política tin h a os dias co n tad o s. Saíamos de casa, em direção à Universidade, sem a m ínim a certeza de que vo lta ríam o s à noite. N ã o sa­ b íam os se no dia seguinte os alunos estariam lá, se os colegas estariam lá. H avia o D o p s [D e p a rta m e n to de O rd e m Política e Social] d e n tro das salas de aula, a p a r e ­ lhos de escuta na sala dos professores. De vez em q u a n d o , desaparecia um colega, e ninguém sabia se ele tinha se exilado, se estava preso sendo to r tu r a d o ou se tinha sido m o rto . Foi a época do m e d o em e s tad o p u ro (mais tarde, acabei escrevendo um p eq u e n o ensaio a respeito), e foi ta m b é m a época em que tentei m inha prim ei­ ra crítica da filosofia francesa, na qual fui form ada: dei a aula inaugural d o D e p a r­ ta m e n to de Filosofia, em 1971, com um a crítica d o e s trutura lism o e da Arqueolo­ gia do saber, de Foucault. Q u e m vive sob o te rro r de E stado n ã o pode ad m itir que a realidade são enunciados discursivos e q u e o p o d e r é um a rede de en unc ia d os dis­ cursivos, n ão é mesmo? Foi na altu ra de 1971-72 que me pareceu que n ã o bastava (com o eu fizera na au la inaugural) um a crítica d o q u e viria a ser conhecido, m u ito mais tarde, co m o nom e de linguistic turn, nem bastava estudar a política de Espinosa (como eu canhestra m e n te esboça ra n o d o u to r a m e n to ) , m as que era preciso d a r algum a c o n trib u i­ çã o p a r a co m p re e n d e rm o s o fenôm eno d o a u to rita rism o no Brasil. Resolvi, en tão, e s tu d ar o Integralismo, m o tiv ad a p o r um a entrevista que Miguel Reale tinh a d a d o na época, a firm a ndo “ nós chegam os ao p o d e r ” . M eus pais h aviam sido integralistas e em m inh a casa sem pre ouvi o nom e de Miguel Reale. N essa ocasião, com ecei a ju n ta r as coisas e quis en ten d e r m e lh o r q u em era o “ n ó s ” a qu e ele se referia. N u m primeiro m o m e n to, cheguei a perg u n ta r à m inh a m ãe o que ela achava que o profes­ sor Reale tinha qu erid o dizer co m aquela frase. E ela resp ondeu q u e ac h ava que ele tinha q u erid o dizer que os integralistas ag o ra estavam no governo. F.u fui en tã o em busca de tu d o o que estivesse a o meu alcance: consegui com am igos de meus pais quase tod o s os livros e d o c u m e n to s da A ção Integralista Brasileira, pesquisei d o ­ cum entos do PCB, li historiadores e sociólogos, e assim p o r diante. A partir do co n ta ­ to que tive c o m au to re s co m o T h o m p s o n e C h risto p h e r Hill, percebi que, em geral, os historiadores e sociólogos e s tu d av a m o Brasil a p artir do que falta no país, e n ão a partir d o que ele efetivam ente é. E pensei em fazer o inverso: em vez d o que nos falta (uma boa classe operária, u m a boa burguesia, u m b o m E stado liberal), buscar o que efetivamente somos. N o fundo, a idéia espinosana da afirm ação estava im plí­ cita nisso, pois eu queria entender a sociedade e a política brasileira n ão pelas ausên­ cias e privações, mas pelo que está realm ente presente e posto pela aç ão histórica.

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C o m o , no e n ta n to — isso é algo que ap enas hoje percebo com clareza — , eu nunca tivesse feito um a pesquisa em pírica, e n ã o soubesse fazê-lo, acabei fazendo análise de texto. L em bro-m e que o c o m en tá rio d o Bento |P ra d o Jr.], a o ler o meu tra b a lh o , foi: “Você analisou Plínio Salgado c o m o se estivesse analisan d o A ristó­ teles!” . E, de fato, há coisas no meu tex to que são m uito engraçadas. Eu queria, po r exemplo, m o stra r que a classe operária, no p eríodo em questão, estava em ação, se fo rm a n d o , e que p o r ta n to n ã o era um a classe a tra s a d a , rural, alienada, co m o a esquerda co stu m a v a vê-la. Para isso, eu peguei tu d o o que o professor Aziz Simão havia escrito sobre o a ssun to, mais algum as coisas d o C arlos Vesentini e do [Ed­ gar] De Decca, e ta m b ém alguns d ados de arquivos históricos, e fui escrevendo, certa de que estava fazendo análise co ncreta d o s fatos, sem me d a r con ta de que to d o esse material estava sendo p o sto p o r m im a serviço de um a análise de textos, no caso, dos textos integralistas. M in h a fo rm a çã o intelectual era tal que o m á x im o de realidade que eu conseguia alcançar era análise de texto! De to d o m o d o , acho que consegui d a r o m eu recado: não se pode c o m p re en d e r o Brasil pela falta, pela a u ­ sência ou pela privação. A qui, país de capitalism o periférico, tem ec onom ia c a p i­ talista, burguesia, p ro letariado, classe média, sociedade civil, Estado, ideologias a u ­ toritárias, luta de classes, história. Nesse período, participei da criação d o C E D E C — C e n tro de Estudos de C u l­ tu ra C o n te m p o r â n e a — , e comecei a tr a b a lh a r so bre a crítica da ideologia (o es tu ­ do sobre o Integralism o se inscreve nessa linha de reflexão). Nessa época, li a Cri­ tica da burocracia e o Maquiavel, de C lau d e I.efort, de q u em traduzi, p ara a revis­ ta Estudos, d o CEBRAP, o ensaio sobre a gênese das ideologias na sociedade m o ­ dern a. A leitura de Macbiavel: Le travail de 1'oeuvre foi decisiva p a r a meu t r a b a ­ lho em história da filosofia. Desde 1968, eu me deb atia entre a leitura estru tu ra l e a exigência m arxista de co m p re en d e r a relação entre o b ra e história, sem conseguir e n c o n tr a r um c a m in h o interpretativo. D ad a a ascendência c o m u m — Lefort e eu tivemos co m o p o n to de p a rtid a M erleau-P onty — eu estava pro p en sa a a d o ta r a inte rp re taç ão de M aquiav el p ro p o sta p o r ele p o r q u e me m ostrava co m o era possí­ vel fazer um a história da filosofia n ão-g u é ro u ltian a (ou o que M erleau-P onty c h a ­ m ava de história d o tácito e d o sube n ten d id o , que exige mais do que um c o m e n tá ­ rio e pede interpretação), o u seja, u m tipo de tra b a lh o em qu e a se p araç ão o b r a / gênese, escrita/história, tex to /c o n tex to é algo im pensável, já que o te x to é um a e x ­ pressão da p rópria história e um dos constituintes da história. T a m b é m nesse perí­ o d o comecei a ler T h o m p s o n e Hill, p o r ta n to , um m a rx ism o que n ão se o c u p a di­ reta m en te com a in fra-estrutura, mas com a a ç ã o social e política tal co m o c o n c e­ bida e c o m p re en d id a n o seu presente pelos seus sujeitos. E dessa época m in ha tese de livre-docência — a “ jo v e m ” Nervura do real — , primeira tentativa de fazer um a história da filosofia que n ão precisa seguir os câ n o n es estruturalistas, m esm o e so ­ bretu d o ao fazer análise de texto. T a m b é m d ata dessa época m inha c o lab o raç ão c o m A d a u to N ov aes, na F U N A R T E , de o nde nasceriam os sem inários sobre o n a ­ cional e o p o p u la r na cultura brasileira (nossa crítica a o PCB dos an o s 60), e, d e ­ pois, os cursos nacionais sobre tem as co n tem p o rân e o s. N o início dos anos 80 participei da f u n d aç ão do PT, q u a n d o , pela primeira vez, tive c o n ta to direto com os m o vim en tos sindicais e co m os m o vim en tos popu-

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lares. Eu diria que esses são v erda deiram ente os m eus “ anos de fo rm a ç ã o peregri­ n a ” cujo prim eiro resultado foi Cultura e democracia , cujos dois prim eiros ensaios haviam sido escritos c o m o c a pítulo final d o livrinho dos Prim eiros Passos, da Brasiliense, O que é ideologia ?, m as n ã o e n tra ra m ali p o rq u e C a io G ra co julgou que o livro ultrapassaria as páginas requeridas pela coleção. O título original d o livro, “ O discurso co m p ete n te e o u tra s falas” , foi m u d a d o pela Editora M o d e rn a , que o jul­ gou herm ético. O livro foi escrito antes e d u r a n te a f u n d aç ão d o PT, isto é, no pe­ río d o em que se discutia se seria necessário ou n ã o criar um p artid o de esquerda novo. Por isso m esm o, a g ran d e q u e s tã o d o m o m e n to era: " O que é um p artid o de esquerda que seja d e m o c r á tic o ? ” ou seja, o que é um p a rtid o de esquerda que não seja a re to m a d a dos p artidos co m u n ista s nem dos p artidos social-dem ocratas? Por isso o carro-chefe da discussão era o p ro b lem a da dem ocracia ta n to co m o form a interna da org an iz aç ão partid ária q u a n to co m o objetivo da aç ão política. D a d a a experiência d o tota litarism o e da social-dcmocracia e d a d a a a p r o p r ia ç ã o liberal da d em ocracia, reduzida a o regim e do E stado de direito, um nov o p a rtid o de es­ q u e rd a teria que p r o p o r um a nova idéia d o socialismo e u m a nova prática da d e ­ mocracia. Cultura e democracia se inscreve nessas discussões. Apesar do título d o livro (título que n ão é m eu e sim d o editor) e ape sa r de m in h a intensa p articipação nas discussões da F U N A R T E , a o vir p ara o PT eu não estava interessada na " c u l t u r a ” e sim na aç ão política nova, que p u n h a em xeque a divisão social entre com petentes (que sabem) e incompetentes (que executam). C om o é que eu fui p a r a r nas discussões dc cultura do PT? Q u a n d o , em 1982, o Lula ia ser c a n d id a to , foi necessário (com o em to d o p artid o de esquerda que se preze) redigir o p ro g ra m a de governo (aliás, foi p o r causa do PT que, d aí em diante, tod o s os p artidos se viram obrigados a ap re sen ta r p ro g ra m a s de governo) e, p a r a isso, as pessoas fo ram divididas em g ru p o s, co n fo rm e as suas áreas de inserção social e de aç ão política. A n to n io C â n d id o , Lclia A b ra m o , M a u ríc io Segai, R o b e rto Schwarz, entre o u tro s, foram en c arregados da discussão da cu ltura, e me co n v id a ra m para participar. N ó s fizemos várias discussões, m as elas n ã o resultavam num p ro g ra m a . C o m o eu havia a n o ta d o todas as discussões, assumi o com prom isso de passar a limpo o que discutíam os p ara ver se cheg ávam os a um p ro g ra m a . D epois de um a ro d a d a final de discussões, ficou p r o n to u m texto, que a L & P M publicou co m o brochura: “ P ro g ra m a de política cultural d o P T ” , c o m to d o s os nossos nom es. Isso nos d ei­ x ou em pânico, po rq u e aquilo eram reflexões em to r n o da q u es tão cultural, mas n ão um pro gram a. E nós acham os, então, que era necessário escrever um o u tro texto p ara explicar o sentido d o prim eiro. F. isso eu fiz sozinha. Foi a co n ta. A partir daí, tu d o o que se referisse à q uestão da cultura no PT vinha p a ra mim (eu qu e estava interessada realm ente n o m o v im en to social, no m o v im ento p o p u la r, na q u estão da dem ocracia, da ideologia...), seja para escrever, seja p ara fazer seminários, seja para d eb a te r os te m as referentes à cu ltu ra eru d ita e a p o p u la r. N ã o teve jeito... D a d a m in h a velha p reo c u p a ç ã o com a injustiça social, n ã o foi p o r acaso que a q uestão central, p ara mim , foi sem pre a q u es tão da violência, so b re tu d o po rq u e ela aparece tã o natu ra liz ad a que n ã o a percebem os co m o relação social instituída e cotidiana. Sempre me pareceu surpre en de nte que, n u m país co m o o Brasil, fale­ m os na violência co m o um acidente (“epidemia de violência” , “crise de violência” ),

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até que me dei conta qu e isso decorre de três operações ideológicas m u ito precisas: um a o p era ção de exclusão, q u e distingue um “ n ó s ” ou a n aç ão não-violenta por essência e um “ eles” , os agentes violentos, estra nhos à essência nacional; u m a o p e ­ ração sociológica, que define a violência co m o a n o m ia na passagem d o arcaico ao m o d e rn o , de sorte qu e são violentos os sujeitos que pertenceriam a um p assad o recente e n ã o conseguiram ad a pta r-se à m o dernidade; e u m a o pera ção jurídica, que localiza a violência nos crim es co n tra a p ro p rie d ad e (aí incluída a vida). Essa p e r­ cepção d o o c u ltam en to ideológico da violência real fez com que a violência se t o r ­ nasse u m a espécie de lente p o r meio da qual eu passei a ver o Brasil, orien to u m i­ nhas tentativas de crítica da ideologia, de pro p o stas no c a m p o d em ocrático socia­ lista, de p articip ação nas reuniões da SBPC, na f u n d aç ão do C E D E C e d o PT. A experiência na Secretaria M unicipal da C u ltu ra de São Paulo fez co m que essa len­ te adquirisse um alto grau de precisão. Pois foi o m o m e n to em que deixei de ser e spectadora da violência e passei a ser alguém que podia e devia intervir, com m e ­ didas práticas, em situações de violência as mais variadas — co n tra as crianças, as mulheres, os sem-teto, os negros, os índios, os m ovim entos populares, o meio a m ­ biente, etc — c a p ta n d o com m aior clareza as form as e os m ecanism os de exclusão social e política que estru tu ra m internam ente a sociedade brasileira. E pude ver (com estes olhos que a terra há de comer) a violência d o a p a r a to legal e adm in istrativ o, pois um gov erno de esquerda tem que fazer a descoberta dos limites à sua ação não a p artir da expressão manifesta da luta de classes e sim a p artir de suas expressões tácitas e secretas, p ostas nas leis e na burocracia. O s anos 70 e 80 tam bém foram um período de busca de caminhos para o ensino da filosofia, seja c o m m uitas experiências pedagógicas e de m u d a n ça s curriculares com que pudéssem os co nserv ar e tr a n sfo rm a r a tradição do D e p a rta m e n to de Fi­ losofia (so b re tu d o nos an o s 7 0, q u a n d o o tra b a lh o se realizava sob o tacão da di­ ta d u ra ), seja com a luta pela volta do ensino de filosofia ao segundo grau, seja t a m ­ bém co n tra a reform a d o ensino universitário e seus efeitos sobre o ensino da filo­ sofia na g r a d u a ç ã o e na p ó s-graduação. A publicação d o Convite à filosofia e da Introdução à história da filosofia assim co m o alguns pequeno s ensaios escritos no final de 70 e no início de 80, exprim em essas preocupações. D igam os que tenho tido um a “ peregrinação universitária" que, nos 70, lutou co n tra o projeto MF,CUSAID, a licenciatura curta e a massificação ( p o m p o sam en te c h a m a d a de “ d e m o ­ c ra tiz a ç ã o ” ), nos 80, lutou co n tra a “ universidade funcional e de re su lta d o s” , e, agora, luta co n tra o projeto BIRD e a “ universidade o p e ra c io n a l” .

Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”; Como você vê as re­ lações entre a filosofia e a cultura brasileira? C o m relação a essa q u estão, faço m inhas as palavras do professor Lívio Teixeira. Q u a n d o a revista Aut A ut fez um n ú m e ro ded icado a o tem a “ filosofia no Brasil” , p e rgun ta ra m -lhe sobre a existência de u m a filosofia brasileira. F. ele disse que p re ­ feria falar em “contribuições brasileiras à filosofia” . Esta d em a rc a ç ã o me parece m uito boa, me parece preferível a te n tar falar em filosofia brasileira. É claro que, se se tem em vista a p r o d u ç ã o dos últimos q u a re n ta anos, que constitui um a im ­ pressionante massa crítica de textos filosóficos, estam os perfeitam ente au to rizad o s

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a pensar nisso. M as a expressão me parece ruim, pois a grandeza da filosofia, q u an d o c o m p a r a d a às dem ais disciplinas, está na universalidade. M e sm o q u a n d o o univer­ sal filosófico é a b s tra to , é este o c a m p o da filosofia. T alvez p o ssa m o s falar em idiossincrasias nacionais — o em pirism o na Inglaterra; o idealismo na A lem anha; o intelectualism o na França — , m as o que se tem , na verdade, é um a pluralidade de respostas, historicam ente d eterm in a d as, e u m a p lu ralidade de arg u m e n to s, conceitualmente determ inados, p ara questões que são universais. F. p o r isso prefiro falar em “ contribuições brasileiras à filosofia” .

Você foi uma das fundadoras da SEAF lSociedade de Estudos e A tivi­ dades FilosóficasJ, em fins da década de 1970. O que significou essa experiência e o que, a seu ver, a distingue da ANPOF /Associação N a­ cional de Pós-Graduação em Filosofia], entidade que você preside hoje? A SEAF foi criada m u ito m enos co m o u m a associação acadêm ica d o que c o m o um m o v im en to social de resistência à d ita d u ra . A idéia básica era: o q ue nós, da filoso­ fia, p o d em o s e devem os fazer p ara d e m a r c a r nossa resistência? N a tu ra lm e n te , isso fazia com qu e os te m as e as publicações tivessem u m a n a tu re z a e m in en tem e n te prática, de intervenção prática: “ C o m o a ju d a r o pessoal que está sendo perseguido na P U C -R J?” ; “ C o m o fazer frente à [Universidade] G a m a F ilh o ?” ; “ C o m o g a r a n ­ tir o p atrim ônio da USP?” ; “ C o m o aju d ar a form ar um bom d e p a rta m e n to no M a to G ro s s o ? ” ; “ C o m o lu ta r para q u e a filosofia seja en sinada no segundo g r a u ? ” . A m arca f u n d am e n tal da SF.AF, p o r ta n to , é a sua d ata: ela c o rre sp o n d e u a um a ne­ cessidade política, percebida na época, de resistência à d ita d u ra. O critério de a d ­ m issão dos sócios, p o r exem plo, era sim plesm ente o ser c o n tra a dita d u ra: quem fosse c o n tra , podia entrar. Assim ficava nitid am e n te d e m a rc a d o quem nós éram os e q uem era o nosso o u tr o , e isto era algo de fun d am e n tal im po rtâ n cia se tivermos em vista os vários d e p a r ta m e n to s de filosofia e spalha dos pelo país, nos quais havia cúpulas fo rm a d as p o r gente diretam e n te ligada à d ita d u r a , a serviço da d ita d u ra. A q u a n tid a d e de alun os e de jovens professores que qu eriam fazer algo diferente, mas que n ã o tin h a m q u a lq u e r força institucional, era e n orm e , e a SEAF vinha ser­ vir-lhes de canal de expressão. A A N P O F , p o r o u tr o lado, é algo co m p le ta m e n te diferente. A p arte a política acadêmica, ela é um a associação que se p reoc upa fu ndam entalm en te co m a excelên­ cia acadêm ica e que está ligada n ã o ta n to à q u estão d o ensino, m as à pesquisa em filosofia. F., c o m p a r a d a à A N P O C S [Associação N a c io n a l de P ó s-G ra d u a ç ã o em Ciências Sociais] e à A N P U H [Associação N acional de P ós-G raduação em História], ela tem aind a a p eculiaridade de restringir-se às c o o rd e n açõ e s de p ó s-grad uação: n ã o são os a lu nos e os professores que se t o r n a m sócios da A N P O F , m as as p r ó p r i­ as c o o rd e n açõ e s — o que lhe dá um perfil b as tan te nítido. A pesar disso, po rém , a A N P O F vive hoje um sério problem a. C o m o as pós-graduações de filosofia cresceram no Brasil inteiro, e cresceram de m aneira m uito desigual, essa heterogeneidade, com o se p ô de perceber nas últimas reuniões, tem sido ca d a vez m a ior, de tal m a n eira que a A N P O F corre o risco de descaracterizar-se p o r causa disso. E m vez de constituir u m fó ru m ca p az de oferecer, de um lado, p a ra d ig m a s de tr a b a lh o , e, de o u tro , um espaço de intercâm bio , ela corre o risco de se to r n a r um a feira de variedades.

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Acredito que p o d em o s tr a n s f o r m a r a A N P O F para que tenha u m a atu a ç ã o mais efetiva junto às pós-graduações. Penso que valeria a pena considerá-la um fórum de discussão de políticas acadêm icas, definindo co m mais clareza a relação entre g r a d u a ç ã o e p ó s-g ra d u aç ão , o ferecendo critérios e auxílios p ara a im p lan ta çã o ou para o desenvolvim ento de cursos de p ó s-g ra d u aç ão , defe n d en d o a a u to n o m ia das pó s-g raduações n o diálogo co m as agências financiado ras de pesquisa, de m aneira a assegurar que as p ós-grad uações n ão se su b m e ta m às regras dessas agências no que respeita à p r o d u ç ã o filosófica p r o p ria m e n te dita (quero dizer: que as agências te n h am suas regras, n o rm a s e p razos p a r a financiam entos d as pesquisas, é mais do que certo e necessário, m as n ã o p o d em o s tr a n s f o r m a r as determ inações extrínsecas à pesquisa, vindas das agências, em critério intern o d o tr a b a lh o acadêm ico). Em sum a, penso que a A N P O F chegou a o m o m e n to em que p ode passar de fórum a c a ­ dêm ico a fó ru m de política acadêm ica.

Que coticeito(s) de sua reflexão você destacaria como mais representativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que você nos contasse como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje. Eu m e n c io n a ria os seguintes: disc urso c o m p e te n te ; c o n tra d is c u rs o ; consciência p o p u la r trágica; sociedade auto ritária ; cid ad a n ia cultural; o ntologia d o necessário; e a idéia de um m ito f u n d a d o r d o Brasil. Por que pensei nu m a consciência p o p u la r trágica? Q u a n d o participei dos m ovi­ m entos sociais, e q u a n d o deles fui p ara os m o v im en to s populares, eu m e dei con ta de um a coisa que na época foi a p a v o r a n te p ara mim . Q u a n d o você o p era com os conceitos de alienação e de consciência alienada, o poder da ideologia é de tal m o d o hegem ônico e ab ra n g e n te q u e n ão há brecha p ara a percepção da realidade, e, para que houvesse algum a p ercepção, seria necessário um processo de desalienação. Se to m a m o s, p o r o u tr o lado, o conceito de consciência possível, tra b a lh a m o s c o m o pressuposto de que há um a consciência histórica e m aterialm ente d eterm in a d a que, n ã o o b sta n te isso, é ca paz de perceber as linhas de força da sociedade e da história, e projetar-se para além da situação dada. O u seja, a idéia de alienação exige a presen­ ça de um agente externo que produza a desalienação, e n q u a n to a idéia de consciência possível tem co m o h orizon te a idéia de um m o v im en to de superação d o presente, graças à consciência social na história. O que a m in h a experiência nos m o v im e n ­ tos p opulares me m o stro u , p o rém , é q u e n ão se tem nem u m a coisa nem o u tra. E foi p ara m a rc a r a presença de algo d eterm in a d o , e n ão u m a ausência o u um a pri­ vação de algum a coisa, que formulei a n o çã o de consciência p o p u la r trágica. C o m essa n o ç ã o pretendi assinalar, no interior da percepção e d o saber das classes populares, a divisão realm ente existente entre a clara percepção que elas têm da explo ra çã o , da d o m in a ç ã o e da exclusão, e tu d o aquilo que elas in c o rp o ram da ideologia. N ã o se trata, p o rta n to , de u m a consciência alienada, pois é u m a consciên­ cia que n ã o apenas apre en d e claram e n te a realidade e co m o ta m b é m age de m a ­ neira realista a p a rtir dessa apreensão. N o e n ta n to , as classes p opu lares ta m b é m in terpretam sua percepção e sua prática, c é na inte rp re taç ão q u e prevalece a ideo­ logia d o m in a n te . O resultado a p a v o r a n te é mais ou m en os o seguinte: as classes pop u la re s possuem um claro saber de si, que se exprim e em suas ações, e, ao mes-

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m o te m p o , ign oram seu p ró p rio saber p o rq u e o in te rp re tam com os elementos fo r­ necidos pela classe d o m inante. O u seja, há u m a percepção, um saber e um a prática que vão além da situ ação d a d a e que são a crítica prática dessa m esm a situação, e há, sim ultaneam ente, um a inte rp re taç ão ideológica desse sab er e dessa prática que encobre e oculta dos p ró prios agentes o sentido d o seu co n he cim ento e da sua p r á ­ tica. Se c h a m o a isso de consciência trágica, estou c o n s ta ta n d o um a divisão inter­ na constitutiva do saber e da aç ão populares, divisão entre a apre en sã o da realida­ de e a ação, e a interpretação que a recobre. O ra , se pensarmos na análise que Vernant faz do herói trágico, em especial de Édipo, o que é esse herói trágico? É alguém que sabe q u a n d o ignora e que ignora q u a n d o sabe. E é nesse dilaceram ento interno entre a pre ensã o da realidade e interpretação en c o b rid o ra , nesse jogo de saber de si e ig­ norância de si que se constitui a consciência dos m o vim en tos populares, dos m ovi­ m entos sindicais, e de diversos o u tros m ovim entos sociais. D aí eu ter escolhido a e xpressão “ consciência p o p u la r trá g ic a ” . P or que falo em sociedade auto ritária ? N a tr ad ição de inte rp re taç ão d o Bra­ sil, existe, p o r razões variadas, a tendência de co nsid erar o a u to rita rism o co m o um fenô m eno político referente ao ap a relh o de Estado. Fala-se em regimes autoritários ou g overnos au to ritário s p ara significar o fato de que, p eriodicam ente, a classe d o ­ m in a n te brasileira, diante dos impasses econôm icos e dos perigos que vê na socie­ dade, in tro d u z a n o ç ã o de crise e institui pela força n u a um regime qu e dá um p e r ­ fil au to ritá rio a o Estado. O que eu comecei a perceber, no e n ta n to , so b re tu d o g r a ­ ças à experiência de ter particip a d o de m ov im ento s sociais e, depois, de um g over­ no petista, é que, na verdade, a e s tru tu ra da p rópria sociedade brasileira é a u t o r i­ tá ria, verticalizada, hierárquica, excludente, f u n d a d a em relações de m a n d o e o b e ­ diência distribuídas entre superiores e inferiores. O u seja, o a u to rita rism o n ão é um acidente político e sim a fo rm a de nossa existência social, m a rc a d a pela violência co m o prática co tid ia n a invisível. Vivemos n u m a sociedade que tr a n sfo rm a to da diferença social em desigualdade natu ra l, e to d a desigualdade social em diferença n a tu ra l. Q u e r o dizer: as diferenças sociais são tr a n s f o r m a d a s em desigualdades n atu ra is e as desigualdades sociais são tr a n s f o r m a d a s em diferenças natu ra is. A natura liz aç ão da desigualdade e da diferença so b rede term ina a divisão social das classes co m a divisão entre privilégio e carência, o privilégio detém o p o d e r social e político, a legalidade e o direito à repressão, e n q u a n to a carência se perpe tua p o r meio de relações de favor, tutela e clientela. D on d e a dificuldade imensa p ara fazer ap arecer o c a m p o d em o crático dos direitos. A sob red e term in a çã o da divisão social das classes pela p o la rizaç ão entre o privilégio e a carência se to r n a o b stá c u lo à dem ocracia se esta n ã o for reduzida ao regim e político, mas for to m a d a co m o fo r­ m a da existência social. De fato, ta n to o privilégio c o m o a carência são particu la­ res e específicos, n ão há co m o generalizá-los na direção do interesse c o m u m sem desfazê-los da p a r ticu la rid ad e que os define; e c o m o n ã o há passagem da p a r ti­ cularidade à generalidade do interesse, n ã o p ode haver o m o vim ento seguinte, qual seja, o da passagem da generalidade dos interesses à universalidade dos direitos. Se a dem ocracia for to m a d a co m o criação e g ara ntia de direitos, ela está b lo que ada pela estru tu ra da sociedade brasileira. O a u to rita rism o , p o r ta n to , n ã o é exceção, e sim a regra.

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F.ssas duas idéias, a da consciência p o p u la r trágica e a da sociedade autoritária, me levaram à de cidadan ia cultural. Hu tinha em mente, q u a n d o p ropu s essa expres­ são, o ala rg a m e n to dos conceitos de cid adania e cultura, te n d o em vista que, se eles não fossem alargados, a expressão “cidadania c u ltu r a l” não teria qu alq u er sentido. Para o a larg am e n to do conceito de cid adania, parti da idéia de que a d e m o ­ cracia n ão é a form a de um regime político, mas sim um a form a çã o social, e de que, neste sentido, a cid ad ania se constitui a partir da a u to -o rg an iza ção social contra poderes políticos. Pois é nesta luta, neste conflito contra poderes políticos, que emerge a afirm a çã o de um direito. A cid adania n ã o é a existência de um cid ad ã o definido pela lei, mas a ação de constituição d o cid a d ã o e de instituição co n tín u a de direi­ tos. E a cid adania cultural n a d a mais é, neste sentido, que to m a r o c a m p o dos di­ reitos referido à cultura. Q u a n t o ao ala rg a m e n to d o conceito de cultura, deveu-se ta n to às discussões no PT c o m o à experiência na Secretaria M unicipal de C ultura de São Paulo. N os dois casos, percebi ca d a vez mais nitid am e n te a identificação sem pre feita entre cultura e belas-artes (para não falar da identificação entre cultura e show musical...). O a larg am e n to do conceito de cultura, p r o p o sto pela cid ad a n ia cultural, consistiu em ap a n h á -lo em seu sentido a n tro p o ló g ico e filosófico de relação sim bólica (isto é, de relação com o ausente que cria o tem po, a linguagem, os utensílios e instru­ m entos, as idéias e os valores, ou seja, institui a relação com o possível e o necessá­ rio, o verdadeiro e o falso, o justo e o injusto, o belo e o feio, o bem e o mal), de tal m aneira que to d o s possam reconhecer-se co m o sujeitos culturais. A cidad ania cul­ tural foi pensada e praticada ta n to c o m o a recusa da divisão entre cultos e incul­ tos, q u a n to co m o o direito a fruir a cria çã o cultural e de p articipar dessa criação. N este sentido, p o d em o s dizer que o conceito de cidadan ia cultural politizou a n o ­ ç ã o de cultura e culturalizou a de cidadania.

Tomou-se lugar-comum o comentário a respeito do caráter monumental de A nervura d o real: im anência e liberdade em Espinosa, um volume de quase m il páginas, acrescido de mais quase trezentas páginas de notas, bibliografia e índices. E, no entanto, trata-se apenas do primei­ ro volume, intitulado Imanência. Pensando na articulação com o pró­ xim o volume, lembramos que já em D a realidade sem mistérios ao mis­ tério d o m u n d o você escreveu: “Engendrando-se no interior de uma crítica de discursos e de práticas que tom am impossível pensar e agir, a ontologia espinosana desvenda-se como um saber cuja questão é a do poder” (p. 97), pois, se “pensar é agir, pondo-se no movimento im a­ nente das idéias verdadeiras, pensar já é prática da liberdade” (p. 88). Com isso, você formulou a noção de “contradiscurso”, que é apresen­ tada em A n ervura d o real nos seguintes temios: “Se, contemporâneo do seu tempo, Espinosa encontra no conceito de causa de si ou de uma substância única absolutamente infinita, complexa e causa livre eficiente do universo o alicerce para a dimensão demonstrativa e positiva de seu discurso, ao mesmo tempo a experiência do presente solicita-lhe que encontre nesse mesmo discurso força argumentativa e polêmica que o

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faça erguer-se como contradiscurso para enfrentar o que, aqui e ago­ ra, tom aria impossível pensar e agir livremente” (pp. 93-4). Pergunta­ mos então: o que é essa noção de “contradiscurso” e qual será a im ­ portância dela no próximo volume de A n e rv u ra d o real, ainda por ser publicado? A idéia de c o n tra d isc u rso surgiu da confluência de d u as questões que, e m b o ra a r ­ ticuladas entre si, ap a rece ra m p ara m im em dois c o n tex to s diferentes. O prim eiro deles foi o da tentativa p ara entender a posição de Espinosa, p o r ta n to , n u m c o n ­ te x to de história da filosofia p r o p ria m e n te dita. E o o u tr o foi o da análise e crítica das ideologias, p o r ta n to , n u m c o n te x to diretam e n te político. N a trad ição interpretativa, Espinosa aparece ora co m o aquele que, m a n te n ­ do um a perspectiva renascentista de cu n h o neoplatônico, teria, segundo alguns, mal com preendido e, segundo outros, radicalizado as posições m odernas, particularm ente as de Descartes e H o b b es, o ra co m o aquele que r o m p e u ta n to co m a tr ad ição judaico-cristã com o c o m a perspectiva racionalista dos seus contem porâneos, ou ainda, n u m a terceira interpretação , c o m o alguém que, abso rv e n d o aqui e ali as idéias c o n ­ te m p o rân ea s necessárias à e lab o raç ão de seu p ensam ento, deu con tin u id a d e às ten­ dências da tradição e às da m odernidade então em curso. Em resumo, estam os diante de um renascentista a na crô nic o, de um místico panteísta, de um ca rtesiano judeum a r r a n o ou de um p recursor d o m aterialism o histórico? Um seguidor o u um p r e ­ cursor? Eu sentia, p o rém , ao ler Espinosa, qu e n ã o era possível vê-lo sob essas pers­ pectivas, que n ã o era possível pensar em sua filosofia nem c o m o radicalização da trad ição , nem co m o simples ru p tu ra , e m u ito m en os c o m o c o ntinu ida de. Foi então qu e me dei con ta de que ele n ã o co n tin u a , nem radicaliza, nem rom pe, m a s subver­ te o instituído sem, n o en tan to , que ele tivesse de se p ô r “ de f o r a ” , n u m a relação de ex terioridade c o m o instituído. Eu me p e rgun ta va então: “ O que é isso? O que é esse discurso que, à medida que se vai c o n s tru in d o , vai d e m o lin d o aquilo que o im possibilitaria?” . E reparei que se tratav a de u m c o ntra disc urso, ou seja, um dis­ curso que realiza, a o m esm o te m p o , a tarefa positiva de afirm a çã o de u m a nova filosofia, e a tarefa crítica de d em oliç ão de to d a a tr ad ição e d o p en s am e n to a ele co n tem p o rân e o ; um discurso, enfim, que, ao se afirm ar, nega. O contradiscurso não é um p onto de vista externo que avalia e julga outros pensamentos, mas é constitutivo inte rn am e n te d a co n s tru ç ã o de um p en s am e n to e de um discurso novos. D o n d e sua natureza subversiva. O o u tr o co n tex to , sim ultâneo a esse, foi o da análise e crítica das ideologias. D u ra n te m u ito te m p o , d isp ú n h a m o s de três referenciais p a r a a análise de ideolo­ gia: o senso co m u m , p a r a o qual to d o e q u alq u er c o n ju n to mais ou m e n o s sistem á­ tico de idéias se ch a m a ideologia; A lthusser, que p ro p u n h a a distinção entre ideo­ logia (o falso) e ciência (o verdadeiro); e os fra n k fu rtia n o s, que t o m a n d o a lógica material da sociedade capitalista m o stra v a m o ca rá te r ideológico da p ró p ria ciên­ cia (e das dem ais pro d u çõ e s culturais d o E sclarecimento ou d a razão instrum ental ou da sociedade a d m in istra d a ou da sociedade unidim ensional) e c o n tra p u n h a m ideologia e crítica. Seguindo esta última trilha, comecei a tr a b a lh a r sobre a ideolo­ gia c o m o um p en s a m e n to e u m discurso lacunares nos quais os silêncios são a c o n ­ dição da coerência. A o chegar nesse p o n to , li o ensaio de Lefort sobre a gênese das

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ideologias nas sociedades m o d e rn a s, e p u d e c o m p re en d e r que não so m ente os si­ lêncios e lacunas são constitutivos da ideologia, m a s que to d a tentativa p a r a fazer falar o silêncio ou preencher a lacuna a destrói p o rq u e a força a pensar e dizer o que não pode pensar nem dizer sob pena de autodestruir-se c o m o ideologia. A idéia de Lefort de que a ideologia é u m a lógica da ocu ltaç ão necessária da divisão social e é a recusa im aginária da divisão p o r meio de figuras da indivisão social, me levou a co m p re e n d e r que a crítica da ideologia n ã o é passagem d o discurso falso ao dis­ cu rso científico verdadeiro e sim d esm o n ta g em d o edifício im aginário que oculta a divisão social e a luta de classes. O ra , t a n to a c o m p re e n sã o de que a ideologia é um pe n s a m e n to e um discurso que n ã o p o d e pensar nem dizer tu d o , c o m o a de qu e a ideologia é um a prática histórica (p o rta n to , social e política) de e n c o b rim en to im a ­ ginário da divisão e luta de classes ta m b é m me fez c o m p re en d e r que os m o m e n to s altos de crítica da ideologia op era m co m o contradiscurso. E isso era patente na obra de E spinosa, pois ele obriga a teologia, a metafísica, a ética e a política instituídas a dizer tu d o até o fim, a u to destruin do-se , m as nesse processo vai sendo en g e n d ra ­ d o um p en s a m e n to nov o que pede um discurso novo. Foi a idéia de c o n tra d isc u rso que me levou à de discurso com petente. Q u a n ­ do traduzi o ensaio de Lefort sobre as ideologias, observei que ele distingue três m o ­ m entos e três form as na ideologia m o d e rn a : a ideologia burguesa, tal co m o a n a li­ sada p o r M a rx ; a ideologia totalitária, cuja análise é feita pelo p ró p rio Lefort; e a ideologia invisível, ou a ideologia da sociedade c o n te m p o r â n e a , em cuja análise Lefort c o m b in a elem entos vindos dos fra n k fu rtia n o s e suas p ró p ria s idéias sobre o tra b a lh o de o c u ita m e n to social realizado pelo discurso ideológico. Seu principal a r g u m e n to para diferenciar a ideologia burguesa e a ideologia invisível é: e n q u a n ­ to na ideologia b urguesa havia agentes sociais que e ra m os p o r ta d o r e s históricos das idéias — o pai, a família, o patrão... — , a ideologia invisível está com pletam ente difusa na sociedade e n ão há mais p o r ta d o r e s p ara ela, d o n d e sua invisibilidade. E m b o ra eu aceitasse a análise da invisibilidade, n ão pod ia aceitar a ausência de p o rta d o re s ideológicos. Parecia-me a b s tra ta um a análise que n ão retornasse à divi­ são social para nela encontrar a determinação da própria invisibilidade. Isso me levou a es tu d ar os au to re s que analisam as fo rm as c o n te m p o r â n e a s da divisão social do trab a lh o . T o m a n d o c o m o referência as análises d o taylorism o e do fordism o, p ri­ meiro, d o pós-fordism o e da ac u m u la ç ã o flexível d o capital, depois, e levando em c o n ta a tra n s f o r m a ç ã o da tecnologia e d a ciência, que se to r n a r a m , elas p rópria s, forças produtivas, e, p o r fim, te ndo com o horizonte as discussões brasileiras em torno da au to g estão e da a u to n o m ia dos tr a b a lh a d o re s (discussões candentes nos an o s 80), fui levada a perceber que o que estava acon te ce n d o na ap a rência d o processo social d o tr a b a lh o era a cisão entre direção e execução, instituída p rim eiro pelo taylorism o e pelo fordism o e, depois, pela tra n sfo rm a ç ã o tecnológica. O que a a p a ­ rência social indicava, p o r ta n to , era o o c u ita m e n to da ex p lo ra çã o econ ôm ica, da d o m in a ç ã o política, da exclusão social e da exclusão cultural sob a a ç ã o e sob os efeitos de um só e m esm o critério: o critério “ n a t u r a l ” da distinção entre os que sabem e p o r isso dirigem e os que n ão sabem e p o r isso executam . A divisão social aparecia, p o r ta n to , c o m o divisão “ n a t u r a l ” entre com petentes, que m a n d a m , e in­ com petentes, que obedecem . Para explicitar esse processo ideológico e seus efeitos

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sociais, políticos e culturais, desenvolvi a idéia de discurso com petente, que pode ser resu m ido assim: “ n ã o é q u alq u er um que p od e dizer a q u a lq u e r o u tr o q u alq u er coisa em q u a lq u e r lugar e em q u alq u er c irc u n stâ n cia” . Dizer, significando, eviden­ te m ente, fazer e pensar, ta n to q u a n to falar. Dessa m aneira, acreditei que a c o m ­ preensão d o que se passa na base material d o processo de p r o d u ç ã o (no caso, no processo de trabalh o) deixa mais compreensível a d im en são ideológica daquilo que os fra n kfurtia nos c h a m a m de sociedade a d m in istra d a e d aq u ilo que Lefort, a o e x ­ plicar a ideologia invisível, ch a m a de saber d o especialista. E, n o final d as contas, a noção de co n tra d isc u rso e de discurso co m pete nte p u d e r a m ser reu nidas q u a n d o estudei um tipo m u ito especial de greve o perá ria , conhecida co m o “greve d o zelo” . Nesse tipo de greve, os operários “esquecem ” to d o o saber efetivo que possuem e seguem rigorosa e estritam en te as o rdens de c o m a n ­ d o d eterm ina das pela direção da fábrica (isto é, vindas dos técnicos, a d m in is tra d o ­ res e gerentes) e o resultado é um p r o d u to defeituoso e imprestável. O que é a gre­ ve d o zelo? É um c o n tra p o d e r que se exerce no interior d o p o d er estabelecido: o p o d e r estabelecido diz q u e m é co m pete nte e qu em n ã o é; a greve d o zelo, seguindo à risca a ideologia da com petência, p rova que ela só se sustenta pelo q u e esconde, isto é, a com petência real dos trab a lh ad o re s. O p e r a , na p rática, co m o o c o n t r a ­ discurso, na teoria.

A propósito disso, gostaríamos de lembrar o seu artigo “O discurso com petente”, publicado no livro C u ltu ra e dem ocracia, em que você procura mostrar o entrelaçamento entre poder e conhecimento que tem por resultado a formação dos discursos competentes em nossa socieda­ de, os quais disfarçam a dominação social que lhes dá o caráter de ins­ tituídos. Nesse texto, a filosofia aparece, naturalmente, como “primei­ ro lugar em matéria de incompetência”, ou seja, como discurso que não se ajusta às regras de competência do discurso instituído, aparecendo ao contrário como instituinte. No entanto, se deslocarmos o foco da questão e pensarmos na filosofia como elemento de legitimação do dis­ curso na esfera pública, não haveria a í um problema? Como deve ser, na sua opinião, a relação entre o discurso filosófico e a mídia? O u sim ­ plesmente: como fazer com que esse par “discurso competente/contradiscurso” não se funda novamente num novo discurso? A diferença entre instituinte e instituído é p r o p o s ta p o r M e rle a u -P o n ty em dois contextos: na p ergunta sobre o que faz g ra n d e e clássica u m a o b ra de arte ou um a ob ra de pensam ento, e no enigma do m o m e n to imperceptível em que um m ovim ento revolucionário se tra n sfo rm a em regime político. O m o m e n to instituinte (na arte, no pensam ento, na política) é aquele em que, debruçando-se sobre o presente e sobre a experiência, o artista, o pen sad o r, o sujeito político in terroga e interpreta o sen­ tido desse presente e dessa experiência, decifrando-os n u m a chave nova que p e r­ m ite pensar o que ainda ou n u nca foi p en sad o , dizer o que n unca foi d ito e fazer o que nunca foi feito. A o b ra de a rte, de pen sam e n to , política nasce tr a n s f o r m a n d o a in terrogação em p e nsam e n to, arte, discurso ou aç ão política, e institui um c a m p o n o v o de pen sam e n to , discurso, prática. E a o b ra é g ran d e q u a n d o tem p o r si mes-

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m a a força p ara suscitar um a p osteridade, para d a r origem a um fu tu ro que a afir­ ma, nega e supera. T o d av ia, o m o m e n to instituinte possui ain d a um a o u tr a face necessária: p a r a usa rm o s um te rm o husserliano, a o b ra e a a ç ã o se sedim entam . T ornam -se parte da cultura e da história e, com o tal estão instituídas, co rren do agora o risco p e rm a n e n te de ser ape nas repetidas, reiteradas, tra n sfo rm a d a s em m odelos fixos de p en s a m e n to e de ação, p erd e n d o a força que as fez nascer. O instituído é o cristalizado, aquilo que repetim os co m o natural p o rq u e desconhecem os sua origem e seu sentido criador. A partir desse m o m e n to , surge o discurso do especialista (que sim plesm ente repete, sob a form a de n o rm as, o que antes havia sido descoberta e invenção), do político profissional (que tran sfo rm a em m od e lo de aç ão a quilo que havia sido invenção histórica), d o técnico (que instrum entaliza aquilo qu e nascera co m o busca de conhecim ento). M u ito s dos meu tra b a lh o s, desde aqueles sobre Espinosa até os de crítica da ideologia, se inspiraram nessas idéias de M erleau-P o nty. E o que se p ode observar é o seguinte. N o universo da " c o m p e tê n c ia ” , em q u e a palavra d o especialista é lei, q u alq u er fo rm a de p en s am e n to ou de discurso se arrisca a assum ir a fisionomia do discurso com p ete n te — o que ocorre, m uitas vezes, à revelia do p ró p rio a u to r, já que não se p o de c o n tro la r a recepção social e política d aq u ilo que se pensou ou se fez. Im perceptivelmente, aquilo que nasceu co m o in terrog ação, que fôra sugerido c o m o um ca m in h o possível que poderia ser p ercorrido, e que foi um longo t r a b a ­ lho do p en sam e n to , é a p r o p r ia d o co m o n o rm a , regra, receita eficaz e eficiente, so­ b re tu d o n u m a sociedade co m o a capitalista c o n te m p o r â n e a em que a in fo rm ação é um a f o rm a de p o d e r e de c o n s u m o , prec isan d o ser simples, veloz e facilmente descartável no m e rc ado da m o d a . O s c h a m a d o s meios de co m u n ic a ç ã o de massa n ã o apenas são a aç ão e o lugar p o r excelência do discurso com p ete n te — m uito m ais do que a escola — , c o m o ainda pro d u ze m a ilusão da d em o c ra tiz a ç ã o dos conhecim entos, da in fo rm aç ão e da co m u n ica çã o , d a n d o a im pressão de que tod o s têm acesso ao saber. .Vlais d o que q u a lq u e r o u tr a esfera da vida social, a mídia é o espaço mais d ireto e im ediato d a passagem d o instituinte a o instituído, de cristali­ za ção e fecham ento d o p ensam en to, da linguagem e da ação. Estam os no interior de um a engrenagem ex tre m a m e n te perversa, p o rq u e , ao m esm o te m p o em q u e a mídia é de fato, d o p o n to de vista da sociedade de m assa, o meio p ara que se a m ­ plie ao m á x im o o acesso às artes e às idéias, às discussões políticas e sociais — o que é fun d am e n tal p ara a dem ocracia — , sua e s tru tu ra técnica (o instrum ental de p r o d u ç ã o e transm issã o dos sons, im agens e textos) é fechada e lim itada, e as re­ gras d o m e rc ad o e d o p o d er im põem sua lógica à in fo rm aç ão , reiteram necessaria­ m ente a divisão social entre os que s u p o stam e n te sabem e m a n d a m e os que s u p o s­ ta m en te não sabem e obedecem. M as acontece que só tem o s um a alternativa: ou a recusa com pleta desse jogo (o que significa ficar em silêncio) ou e n tra r no jogo p ara pertu rb á-lo , complicá-lo, sugerindo aqui e ali que as coisas n ã o são e x a ta m en te co m o ap arecem ou c o m o são ap resentadas. Pode-se c o n to rn a r o risco de u m a nova “c o m p e tê n c ia ” se n ão h o u ­ ver intenção pedagógica e n o rm a tiv a , e sim de debate, discussão, crítica, e a in te n ­ ç ã o de suscitar desconfiança so b re aquilo que é infindavelm ente repetido, c o m o se a repetição produzisse verdades.

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Em artigo recente para o Caderno Mais! da F olha de S. P aulo (26/03/ 2000), você conclui que o m ito fundador do Brasil “opera com uma contradição insolúvel: o país-jardim é sem violência e, pela história providencialista, ruma certeiro para seu grande futuro; em contrapar­ tida, o país profético está mergulhado na injustiça, na violência e no inferno, à procura de seu próprio porvir, na batalha final em que ven­ cerá o A nticristo”. Q ual a natureza dessa contradição? Como ela se exprime em esferas como a da política, por exemplo? Eu cheguei a essa idéia d o m ito f u n d a d o r p o r ca m inhos, co m o diria Borges, que se bifurcam . T u d o co m eç o u q u a n d o , e s tu d a n d o Espinosa, eu estava tr a b a lh a n d o o Tratado teológico-político, cuja tese principal é que a liberdade de p en sam e n to e de expressão, além de n ã o ser perigosa p ara a segurança e a paz da república, é ainda a co nd içã o da segurança e da paz. Para explicitar essa idéia, Espinosa com eça pelo seu o p o sto , isto é, co m a origem d o d o m ín io político violento, e n c o n tra n d o -a no jogo passional d o m e d o e da esp erança diante da contingência dos aco ntecim ento s e d as ações h u m a n a s, pois do m e d o nasce a superstição, desta a religião e desta o p o d er teológico-político, que aspira, através da instituição eclesiástica e dos g o ver­ nantes p o r ela instituídos, exercer d o m ínio sobre co rp o s e espíritos. Tal situação é t a n to mais terrível q u a n t o mais a o p e ra ç ã o teológico-política se realiza sobre um tipo d ete rm in a d o de religião, a religião revelada, d epositada n u m texto c o n s id e ra ­ d o sa g ra d o e sujeito a interpretações. P orque a fonte da religiosidade é misteriosa e p o rq u e o te x to abre a d isp uta das interpretações e a luta p ara firm ar u m a o r t o d o ­ xia (da qual d epend em a instituição eclesiástica e a política), o pensam e n to e a e x ­ pressão livres se tr a n sfo rm a m em perigo e sobre eles abate-se a violência teológicopolítica, de tal m a n eira que, a o fim e a o c a b o , é a p retensão de d o m in a r c o m p le ta ­ mente os corpos (pela m oralidade repressiva) e os espíritos (pela o rtod oxia) que p e r­ mite disfarçar de religião os conflitos econôm icos, sociais e políticos. D o n d e a tese q u e será d e m o n s tr a d a de que a liberdade de p e n s a m e n to e de expressão são neces­ sárias à república. Para d e m o n s tr a r sua tese, Espinosa realiza três percursos: busca os elem entos que c o nstitue m u m a religião revelada, p ro p õ e um m é to d o p a r a inter­ p reta çã o d o d o c u m e n to de u m a religião revelada h istoricam ente d e te rm in a d a (a Bíblia) e apre senta os fu n d a m e n to s d o p o d er político, e xplica ndo p o r q u e a políti­ ca judaica foi um a teocracia (p o rta nto , nela a religião e a política eram inseparáveis) e p o r que a política dos cristãos n ã o p ode, senão p o r violência, ser im itação da teocracia hebraica. O ra , a definição da religião revelada hebraica o leva a um a longa análise da fo rm a a ssu m ida pela revelação, isto é, a profecia, e dos que receberam a revelação, os profetas. C o m p re e n d id a a natu reza teocrática da política hebraica, E spinosa p od e d e m o n s tr a r que o co n te ú d o das profecias é sem pre um só e o m es­ mo: a Lei hebraica; e q u e o p rofeta é um chefe político. F.m sum a, o o b je to da p r o ­ fecia é, inicialmente, a revelação da lei, que funda sim ultaneam ente a religião e o E stado, e, depois de instituídos o E stado e a religião, a r e m e m o ra ç ã o da necessida­ de d o cu m p rim e n to dessa lei. A profecia é um aconte cim en to político e o profeta, um líder político que funda ou conserva o Estado. M as essa tem ática sem pre m e deixou m uito intrigada. Por que Espinosa dá ta n ta im p o rtâ n c ia às profecias e aos p rofetas? Q u e se passa histo ric am en te nos

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Seiscentos que o leva a essas análises? Isto me levou a e stu dar o c o n ju n to dos m o ­ vim entos proféticos d o p eríodo , a p artir d o século XVI. P artindo de K o lakow ski e de seu e s tu d o sobre O s cristãos sem igreja, dos t ra b a lh o s de C h risto p h e r Hill sobre os radicais da revolução inglesa, dos historiadores políticos holandeses, e da o b ra de Scholem sobre Sabbatai Sevi, o messias judaico d o século XVII, concentrei-m e principalm ente naqueles m o vim en tos que tin h a m vinculação direta com a questão política (isto é, que se inspiravam nos profetas Daniel e Isaias e no Apocalipse de J o ã o para afirm ar a p ro x im id a d e do fim dos tem pos, q u a n d o a c o m u n id a d e dos justos instituiria a quin ta m o n a rq u ia ou o q u in to império d o m u n d o , ou o Reino de Mil Anos de felicidade, antes da Segunda Vinda d o Cristo para vencer o Anticristo e iniciar o Juízo Final). C om isso, acabei d e s em b o c an d o em estudos sobre o m es­ sianism o judaico e sobre o m ilenarism o cristão, d escobrindo as relações e os c o n ­ tato s havidos en tre o professor de Espinosa, M enasseh bem Israel (que era m e s­ siânico), e o p ad re Vieira, cujo m ilenarism o está ex p o s to na História do futuro: do

quinto império de Portugal. E o fato é que esse estudo, e m b o ra feito p ara eu c o m p re en d e r o significado da profecia em Espinosa, ac a b o u p o r servir de base p ara um a conferência n u m dos prim eiros cursos o rganiz ados p o r A d a u to N o v ae s na F U N A R T E , sobre “ O s senti­ dos das p a ix õ e s” . Eu preten dia, a princípio, d ad a s as circunstâncias d o Brasil, fa­ la r sobre o m edo, mas, p o r estar envolvida com a pesquisa sobre profecia, messia­ nism o e m ilenarism o, resolvi falar ta m b é m sobre a esperança, fazendo du as co n fe­ rências. Para isso, precisei ta m b é m e s tu d ar a co nc ep ç ão judaico-cristã d o te m p o e da história, o que me levou de A gostinho a J o a q u im de Fiori. Q u a n d o da publicação das conferências, decidi publicar ape nas a que fizera sobre o m ed o, pois a da esperança estava ainda m u ito crua e exigia m uita pesquisa que eu ain d a n ão p u d era fazer. E o te x to ficou na gaveta. M a s, em 1992, q u a n d o decidim os, lá na Secretaria de C ultura, realizar um conju n to de eventos (sobre 1492, 1792, 1822, 1922 e 1992), julguei que, co m o Secretária, tinha a o b rig aç ão de es­ crever algum a coisa sobre a conquista da América. Li os relatos de viagem e as cartas de C o lo m b o , bem co m o seu livro secreto sobre profecias, e qual n ã o foi meu es­ p a n to a o ver o A lm irante do M a r O c e an o afirm a r que sua em presa n ad a devia “ às m a tem áticas e aos m a p a s - m u n d i” p o rq u e tu d o devia a Daniel, Isaias e J o a q u im de Fiori! Evidentem ente, co m o C o lo m b o julgara haver e n c o n tr a d o o Paraíso T erres­ tre, fui ler o clássico de Sérgio B uarque, A Visão do Paraíso, o que me levou ao tr a b a lh o de M a ria Isaura Pereira de Q ueiroz sobre o messianism o no Brasil e ao de D ouglas M o n te iro , sobre o C o n te sta d o , e, é claro, à leitura de Os Sertões. Senti que tinha u m ca m in h o p ara , um dia, pensar sobre o Brasil. Em 1995, fui co n v id ad a p ara um sem inário, intitulado “ Brasil 2 0 0 0 ”, o r g a ­ nizado p o r Evelina D ag nino, na U nicam p, e resolvi falar, a despeito de ser um tema tã o batido, sobre o populism o, p r o c u r a n d o c o n tu d o tratá-lo co m o um a expressão d e term in a d a d o p o d er teológico-político. Decidi, en tão , r e to m a r m u ito d o que h a ­ via estud ado e trab a lh ad o , an o s antes, q u a n d o discutira cultura popular, particular­ mente um a idéia que eu desenvolvera desde aquele curso da F U N A R T E , isto é, que a religião mcssiânico-milenarista é a via de acesso das classe populares brasileiras à política, e algum as idéias que eu desenvolvera n u m co lóquio em T o ulouse sobre

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o Brasil e seus fan tasm as (particularm ente um a análise da sim bologia da bandeira brasileira, da letra d o H in o N a c io n a l e d o tríptico café-futebol-carnaval). O resul­ t a d o foi a articu la çã o en tre o p o p u lis m o co m o form a d o m in a n te da política e o m ilenarism o co m o sua expressão d o m in a d a . S o m ad a s e n tã o essas prim eiras idéias à explicação m aterial da história brasi­ leira — vinda de C aio P rado, F ern a n d o N ovais, Celso F u rta d o , Francisco de O li­ veira, entre o u tro s — , e ao c o n ju n to das inform ações fornecidas pelos a n t r o p ó l o ­ gos, críticos literários e rom ancistas, bem co m o à m inha p r ó p ria experiência po lí­ tica, eu tinha a im pressão de que se conseguisse articular tu d o isso e acrescentar as inform ações que colhera sobre a idéia de te m p o e de história no jud aísm o e no cris­ tianism o; sobre a teologia política analisada p o r Espinosa; sobre os grandes m o vi­ m e n to s p o p u la re s cristãos; so b re o p e río d o d o “ a c h a m e n t o ” d o Brasil; sobre o p opu lism o, o a u to rita rism o e a violência brasileiros, eu p od eria , talvez, e n c o n tra r u m a chave p ara m e a p r o x im a r d o que p o d em o s c h a m a r o g ran d e im aginário b r a ­ sileiro. Q u e r o dizer, p ara me acercar de algo que vai e volta, que é neg ado cotidian a m en te pela experiência social e, no e n ta n to , perm anece incólume, algo que rece­ be periodicam ente a crítica d o s artistas e da política de esqu erda, e ape sa r disso sempre retorna, algo que parece imune aos mais variados ataques e permanece com o u m a espécie de fu n d o imperecível. Foi e n tã o , c o m o que co nseguindo co m p le ta r o quebra-cabeças, que me dei co n ta de que eu n ão estava dia n te de um a ideologia, pois as ideologias a c o m p a n h a m sem pre o m o v im e n to da fo rm a ç ã o histórica, mas sim d iante de algo que indefinidam ente, interm inavelm ente se repete sob a m u d a n ­ ça histórica, política, ideológica: trata-se de um a mitologia. A ela dei o no m e de “ m ito f u n d a d o r d o Brasil", e foi ele o fio c o n d u t o r p a ra o livrinho p ublicado neste a n o da graça de 2 0 0 0 , Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. O mito f u n d a d o r , fundo teológico-político que sustenta o im aginário social e político, se constrói com a figura d o Brasil co m o efeito de três o perações divinas sim ultâneas: o Brasil é o b r a de Deus — a nature za paradisíaca — , é p la n o de Deus — a história providencial que assegura qu e este é o país d o futuro — e é v o ntade de Deus — p o r q u em é instituído o E stado e definido o g overnante. Sagração da n atu re za , sagração da história e sagração d o p o d er são os pilares de nosso mito fundador.

Em seu livro D a realidade sem mistérios ao mistério d o m u ndo, de 1981, há um ensaio dedicado a Espinosa, no qual podemos ler que a filoso­ fia espinosana é “a única filosofia na qual a liberdade do corpo, liber­ dade do espirito e a liberdade política são inseparáveis” (p. 97). Cor­ po, alma e política livres e inseparáveis não seria para você justamente uma súmula da filosofia de Merleau-Ponty? Em que sentido a obra de Merleau-Ponty orientou a sua leitura de Espinosa? Sem dúvida o “ única filosofia” é efeito de a r d o r de iniciante! C o m o eu disse, M erleau-P onty m a rc o u -m e p ara sem pre e reco nheço que m i­ nha in te rp re taç ão de E spinosa n ã o teria sido possível sem a perspectiva merleup o n ty a n a , pois foi dela que me veio a c o m p re en sã o d o s pro b lem as e limites das fi­ losofias da rep resentação — o n d e Espinosa não se situa — , a exigência filosófica

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de n ã o fazer da consciência de si reflexiva o berço d o m u n d o — e a filosofia espinosana não é filosofia d o cogito — , a r e to m a d a da dignidade ontológica d o c o r p o — e Espinosa a realiza recusando um a relação hierárquica entre c o rp o e m ente, criti­ c a n d o a trad ição na qual o prim eiro c o m a n d a a segunda na p a ix ã o e a segunda c o m a n d a o prim eiro na aç ão — , a concepção da liberdade n ã o co m o livre-arbítrio, m as co m o inte rpre taç ão da situação de fato p ara ultrapassá-la n u m sentido n ovo — o que p o d em o s ler nas prim eiras proposições da parte V da Ética , depois das partes anteriores criticarem o livre-arbítrio e a v o ntade livre e prepa ra re m o cam inho para a definição da liberdade co m o interiorização da causalidade do corpo e da mente e c o m o a p tid ã o de a m b o s p ara a pluralidade sim ultânea — , e, so b retu d o , a no ção de e s tru tu ra co m o co m p lex id ad e de ações e de o rden s de realidade diferenciadas internam en te — o que me auxiliou a co m p re en d e r a substância e seus infinitos a tri­ butos, em Espinosa. E a insistência de M erleau-P onty de q u e a origem não é algo passado e sim aquilo que, aqui e agora, se exprim e no o riginado foi u m a pista muita im p o rta n te para eu m e acercar da idéia espinosana de causalidade im anente. Essa presença de M erleau-P onty p od e parecer a b s u rd a , ta n to p o rq u e o filó­ sofo é um crítico de Espinosa (na prim eira no ta de tra b a lh o d ’0 visível e o invisí­ ve l — aquela que foi o fio c o n d u t o r de meu m e strad o — ele diz explicitam ente que a filosofia já n ão p o d e p en sar segundo o recorte D e u s-m u n d o -h o m e m , que era o de Espinosa), co m o ainda po rq u e sua filosofia trab a lh a com a contingência e a indete rm in a ç ã o o riginá ria s, situ an d o -se n o pólo o p o s to ao da necessidade a b s o lu ta espinosana. Se, por exem plo, n ad a me impede de dizer que a liberdade significa para Espinosa, co m o para M erleau-Ponty, um transcender-se na im anência, nem por isso posso identificá-los: p ara M e rle a u - P o n ty , a tran sc e n d ê n c ia rep o u sa na indeterm inação e na contingência e na maneira co m o ele pensa o ato criador; para Espinosa, a liberdade co m o a p tid ã o p ara o m últiplo sim ultâneo significa, negativam ente, a dem olição d o im aginário da transcendência e da contingência, feita na p arte I da Ética, que elabora, positivamente, uma ontologia do necessário co m o ação imanente d o ser ab so lu to em cujo interior se d e s d o b ra a causalidade necessária da aç ão dos m odos finitos e a liberdade h u m a n a. Da mesma m aneira, p o r exem plo, a c o m p re en ­ são crítica da metafísica, trazida p o r M e rle au -P onty , auxiliou-m e na co m p re en sã o da filosofia espinosan a em que a crítica da metafísica é sim ultânea à e lab o raç ão da ontologia. E, a o m esm o te m p o , a diferença entre os dois filósofos é p ro fu n d a : Es­ pinosa d e m o n stra que a metafísica judaico-cristã é inseparável das idéias de possí­ vel e de contingência, que ela é e la b o ra d a p ara d a r expressão filosófica a o im agi­ n ário do possível e da contingência, e n q u a n to que M e rle au -P onty critica a m etafí­ sica (so b re tu d o a m odern a) p o r suas pretensões de oferecer as leis necessárias da realidade em si, a p a rtir das representações. E ntre eles, intercalam-se as ob ras de Kant, Hegel e Husserl. O u seja, o horizonte de Espinosa é o infinito positivo ou atual; o de M erleau-P onty, a finitude. M as Espinosa é um clássico e M erleau-Ponty escreveu que um clássico é aquele que não cessa de nos d a r a pensar e de nos fazer pensar. Procuro interpretar Espinosa co m o aquele cuja o bra, ao interrogar a experiência de seu presente, nos oferece pistas e c a m inhos p ara in te rro g a rm o s o nosso. Ju stam e n te po rq u e suas indagações e res­ postas são diferentes das nossas é que ele nos dá a pensar e a escrever.

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N o prim eiro volum e de A nervura do real, preocupei-m e em d ete rm in a r as causas d a s m últiplas e c o n tra d itó ria s im agens de sua filosofia (ateísmo, fatalismo, p a n te ís m o , m o n is m o , m isticism o, m a teria lism o etc.), e x a m in a n d o a h istória da co n s tru ç ã o dessas im agens (q u a n d o , c o m o e q u e m construiu as im agens d o “espinosism o ” ?) para indicar o que a pró pria o b ra de Espinosa suscita essas imagens p ara um leitor judaico-cristâo; m as ta m b é m busquei c o n tra p o r às co nstruçõ es h istori­ cam en te d ete rm in a d a s a história d o fazer-se da o b r a espin osana ( q u an d o , co m o , p o r que, p ara que e p ara qu em , c o n tra que, a favor de que Espinosa escreve?). Esse percurso foi d e s v en d a n d o as o perações de constituição da metafísica (antiga e judaico-cristã) co m o justificação e afirm a çã o da contingência, seja, à m a n eira aristotélica, p a r a e n c o n tr a r u m a região que escapa d o te m p o e d o m o v im e n to , seja à m aneira judaico-cristã, para oferecer os fu n d a m e n to s p ara a T eologia da Criação co m o a to contingente da vo n ta d e divina. Interessou-m e este segun do caso, pois a ela b o ra ç ã o da metafísica do possível e d a contingência pela escolástica ta rd ia (dos séculos XVI e XVII) a faz constitutiva d o p en s a m e n to ocidental m o d e rn o (sem essa referência, n ã o há c o m o en ten d e r D escartes, Leibniz, K ant e Hegel) e é dele que Espinosa p arte co m seu co n tra d isc u rso até a ela b o ra ç ã o da o n tologia d o necessá­ rio, na Etica. Essa ela b o ra ç ã o na c o n tra -c o rren te d a história levou-me a o estudo do infinito atual, na m atem ática m ode rna , ao lugar e sentido da causalidade eficiente im anente e a o conceito de causa sui co m o ex pressão mais alta e a bso luta do p r in ­ cípio de raz ão e c o m o n ervura d o real. O segundo volum e tr a ta r á das co n s e q ü ê n ­ cias d a necessidade a bsoluta p ara os seres h u m a n o s , p o r ta n to , tr a ta r á das relações en tre c o r p o e m ente, das paixões e ações e da liberdade, pois co m o E spinosa escre­ ve, “ a necessidade n ã o tira e sim põe a lib e rd a d e ” . Para nós, que vivemos sob o im p a cto da ideologia p ó s-m o d e rn a da contingência, o fato de Espinosa situar-se na co n tra -c o rren te m e parece um c o n t r a p o n to instrutivo e instigante.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­ cias e o saber científico. Tal relação pertnanece até hoje? Como ela se dá na atualidade? O lh a n d o p a ra a história da filosofia, tem-se a im pressão de que a filosofia sempre tende a eleger um a ciência p ara d ig m ática p ara a definição da verdade e da certeza, aquela ciência em que a razão parece oferecer-se em sua plenitude (como a m a te m á ­ tica para Platão e para os m od ernos, p o r exemplo; as ciências da natureza p ara k a n ­ tianos, n eo k a n tia n o s e positivistas; a história, p ara os hegelianos; as ciências da lin­ guagem , p a r a os nossos c o n te m p o râ n e o s), de tal m an eira que n ão sa bem os se a concepção filosófica da verdade e da razão se exemplifica nu m a ciência ou, ao co n trá ­ rio, a ciência ex e m p la r leva à co nc epç ão filosófica da raz ão e da verdade. E claro que se poderia a rg u m e n tar que a crítica kantiana e a hegeliana de um a ciência exem ­ plar p ara a filosofia (p articularm ente a crítica da ex e m p la rid ad e m atem ática) faria su p o r a q u e b ra dessa relação, m as n ão creio que foi o que se passou. D igam os que, antes de K ant, a filosofia p o d ia ser escrita more geometrico, e que, depois de K ant, isso já não é possível. Porém, quem pode negar a referência à exem plaridade da física, na Crítica da razão pura, e a presença tá cita das ciências da vida c o m o pressu posto d a Crítica da faculdade de julgar ? F. verdade, ta m b é m , que, a p artir de Hegel, a fi­

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losofia n ã o p o de mais ser escrita more matematico nem co m o se fosse ciência da n atu re za , m as isso não é p o r que, justam ente, ela passa a ser escrita c o m o história? A posição de um a ciência exem plar, seja explicitam ente seja tacitam ente pode, e n tre ta n to , a c a rre ta r sérios p roblem as filosóficos, so b re tu d o q u a n d o são le vanta­ das as questões de fu n d a m e n ta ç ã o , seja da ciência, seja da filosofia. São questões co m o essas que, afinal, aparecem nas discussões da fenomenologia husserliana contra o psicologismo, o historicism o, o an tro p o lo g ism o e o n atu ra lism o co m o o b s tá c u ­ los à filosofia, co m o se a a b s o rç ã o de um p a ra d ig m a científico pela filosofia, ao d esem b o c ar n u m a ideologia cientificista, fosse um d o s elem entos d o qu e Husserl c h a m o u de crise da ciência euro péia, isto é, da incapacidade ou im possibilidade da filosofia fun d am e n tar-se a si m esm a, mas ta m b é m co m o obstácu lo s à c o m p re e n ­ são dos f u n d am e n to s d as p róp ria s ciências e s o b r e tu d o co m o perda d o sentido do conhecim ento filosófico e científico, ou a existência de um a filosofia e de um a ciência que n ão sabem de o n d e vieram nem p ara o nde vão. T a m b é m é interessante o bserv ar que, excluídos o ceticismo ab so lu to e o niilis­ m o, a ciência tem servido quase sem pre de a r g u m e n to p ara um ceticismo filosófico m itigado, isto é, a suposição de q u e a filosofia é incerta, incapaz de verdade, ju sta­ m ente p o r n ão conseguir c o n tin u id a d e e ac u m u la ç ã o progressiva de co n h e c im e n ­ tos c o m o as ciências. F. c urioso n o ta r que a teoria de Bachelard sobre os cortes epistemológicos, que se inscrevia n u m a linha em que a m u d a n ç a científica pressu ­ p u n h a e rep u n h a a c o n tin u id a d e, ac ab o u refo rç an d o o ceticismo filosófico m itiga­ d o e ab rin d o ca m in h o p a r a um ceticismo mais p r o fu n d o que foi, p a r a d o x a lm e n te reforçado q u a n d o os tra b a lh o s de K uhn e Foucault, p o r m otivos diferentes e com perspectivas diversas, busc aram q u e b r a r a imagem da con tin u id a d e científica. O u ain d a, se p ensarm os, p o r exem plo, na diferença que G ra n g er (na Filoso­ fia do estilo) estabelece entre o c a m p o científico e o filosófico (o prim eiro tr a b a ­ lharia com a determ in a çã o rigorosa d o conceito e o segundo c o m a in d eterm in ação flutuante da significação), a distinção entre a m b o s levaria a afirm a r que a filosofia tem seus objetos n o limiar da cientificidade, isto é, as significações são ou o que ain d a não se to r n o u conceito o u o resíduo não conceitualizado, deix ad o pela ciên­ cia. E isso explicaria co m o e p o r que a filosofia foi te ndo seu c a m p o dim in u íd o à m edida que a con stituição das várias ciências foi tr a n s f o r m a n d o em conceito a q u i­ lo que era a p e n as u m a significação. Sob esta perspectiva, a relação entre filosofia e ciência seria de rivalidade, tem a que foi long am ente tr a b a lh a d o p o r M erleau-P o nty t a n to à luz da cisão sujeito/objeto, idéia/fato (os prim eiro s ficando d o lado da filo­ sofia e os segundos d o lado da ciência) c o m o à luz das questões que H usserl e n ­ frentara (isto é, a necessidade de afastar o psicologism o e o historicism o p ara a ela­ b o ra ç ã o dos fu nd am e n tos da lógica, o n atu ra lism o e o an tro p o lo g ism o p a r a d e te r­ m in a r os f u n d am e n to s da filosofia e das p rópria s ciências). M as essa rivalidade, lembra o filósofo, é obsc u ra n tista p o rq u e n ão tem co m o h o rizonte a ciência e sim o cientificismo, o p e r a n d o com a oposição entre intelectualism o (como im agem da filosofia) e em pirism o (com o imagem da ciência), ig n o ra n d o a c o m u n ica çã o inces­ sante entre idéia e fato. Se to m a r m o s c o m o referência essa rivalidade, n o ta re m o s que ela a c a b o u p r o ­ duzin d o u m a curiosa solução de co m p ro m isso ou de guerra de fronteiras com um a

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trégua: pouco a pouco, a filosofia aparece co m o reflexão sobre a ciência, isto é, com o epistemologia. A filosofia, neste caso, n ã o seria nem um a ciência entre as outras, nem um a ciência diversa das o u tras, nem aquela que, im perialm ente, totalizaria as demais; ela estaria fora d o c a m p o das ciências e refletiria sobre o fazer científico, seja sobre suas condições de possibilidade, seja sobre seus resultados, seja sobre suas transfo rm aç ões, continuid ades, descontinuidades. A trégua p ro p õ e a exterioridade entre a filosofia e a ciência. M a s a rivalidade, a gu erra e a trégua entre filosofia e ciência n ão é um p u ro aco nte cim en to teórico, n ã o é um c a pítu lo de u m a história a b s tra ta das idéias. Ela tem a ver ta n to c o m a lógica interna d o tra b a lh o científico e filosófico q u a n t o com a m u d a n ç a do lugar da ciência no m o d o de p r o d u ç ã o c a p i­ talista, isto é, tem a ver com a m a terialidade d o saber. Até o com eço do século X X , as ciências e ra m considerad a s “ n o ta ç ã o d a rea lidade” , distinguiam-se em teóricas o u p u ras e aplicadas o u práticas e se distinguiam da técnica e m esm o da tecnologia (isto é, a tecnologia é a técnica q u a n d o esta p ressupõe, de um lado, c onhe cim ento científico e, de o u tro , um a ciência que exige a e lab o raç ão de in stru m e n to s de in­ vestigação). D igam os, de m aneira m u ito grosseira, q u e a divisão entre teoria e p r á ­ tica ainda fazia sentido nas ciências. O ra , o que o século X X in tro d u z é o apagam e n to dessa distinção, n ão só p o rq u e a ciência deixa de ser n o ta ç ã o d o real para considerar-se en c a rn a d a nas p rópria s coisas, u m a vez que estas são o objeto cientí­ fico e este é inteiram ente co n s tru íd o pelas operações científicas, m as ta m b é m p o r ­ que ciência e tecnologia já não p odem ser diferenciadas, u m a vez que o in stru m e n ­ to técnico n ã o é u m m e ro utensílio e sim um elem ento constitutivo da p ró p ria o p e ­ raç ão científica que p ro d u z efeitos sobre essa o p eração . Já n ã o p o d e m o s falar em ciência aplicada. A ciência n ão se aplica às coisas p o r meio de práticas d e te r m in a ­ das e p o r m eio de técnicas: ela constrói as p ró p ria s coisas e sua ação de co n s tru ç ão já é u m a intervenção que não visa ap enas d o m in a r a realidade n a tu ra l e social, mas p r o d u z ir essa realidade — os a u tô m a to s , de um lado, e o geno m a, de o u tr o , estão aí p a r a ilustrar o que estou d izen do (por favor, não estou fala nd o em term os heiddeggerianos da técnica co m o violência e invasão da bela e pacífica m o r a d a do ser!). Se, antes, ela se p u n h a a serviço da p r o d u ç ã o econôm ica, m as n ão parecia inteira­ m ente d e te rm in a d a p o r esta, ag o ra essa d eterm in a çã o é com pleta, e a expressão c u n h a d a p o r H o rk h e im e r, razão instrumental, g an h a pleno sentido, isto é, de um a racionalid ade que é, na verdade, racionalização p ara a regulação co n tín u a d o p r o ­ cesso econôm ico. N ã o é que sim plesm ente a ciência/tecnologia se ten h a to r n a d o (com o tu d o , aliás, no capitalism o) u m a m e rc ad o ria a serviço de o u tra s m e rc a d o ­ rias e um in stru m e n to de d o m in a ç ã o e violência. Ela se to r n o u m u ito mais d o que isso: to rn o u -se, prim e iro , força p ro d u tiv a e, depois, relação de p r o d u ç ã o . O u o sentido que M a rc u se d á à n o çã o de tecnologia c o m o form a de org an iz aç ão e p e r­ p e tu aç ão das relações sociais capitalistas ou da sociedade a d m in istra d a que opera c o m a equivalência e h ie ra rquia das funções. E isso que as pessoas percebem (m ui­ tas vezes sem co m p re en d e r p o r que), q u a n d o afirm a m que tem a riqueza e o p o d er qu em tem o m o n o p ó lio da in fo rm aç ão , isto é, ca p ac id a d e o p e ra tó ria m edida da eficácia dos resultados. E c o m o a m arca d o capitalism o c o n te m p o r â n e o é a frag­ m e n ta ç ã o o p eracional de to d a s esferas da vida e d a atividade sociais e sua re u n i­ ficação extrínseca p o r meio das organizações adm in istrativas, as ciências se frag­

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m e n tam , ta n to e x tern a co m o in ternam ente, e suscitam , dc um lado, a ideologia da com petência do especialista e, de o u tr o , as epistemologias das descontinuidades e ru p tu ra s, co m o se estas fossem p ro d u zid a s p o r um fenôm eno interno às p rópria s ciências. R eu n in d o en tão essas vertentes na sua configuração c o n te m p o râ n e a — a ciên­ cia co m o um discurso fra g m en tad o e desco n tín u o dc c o n s tru ç ão de seus p róprios objetos, a ciência c o m o ra z ã o in strum e n ta l e c o m o força p r o d u tiv a e relação de p r o d u ç ã o — , dispom o s, teoricam ente e m a terialm ente, de algum as pistas p ara nos acerca rm os da concepção pó s-m o d ern a de ciência co m o “ n a r r a ti v a ” a u t ô n o m a (à m aneira do ro m an c e e do con to), criticando to d a tentativa de apreensão d o fenô­ m eno científico/tecnológico em sua totalid ade ou aquilo q u e os p ó s-m o d ern o s c h a ­ m a m de “ m e ta n a r r a tiv a ” , julgada to talitária — de tal m o d o que devem os preser­ var a narrativa (cada ciência em seu fragm ento específico) e abolir a m e tan a rra tiv a, a b d ic a n d o assim de t o d a e q u a lq u e r reflexão a respeito das ciências c o m o um c a m ­ p o passível de c o m p re en sã o racional e histórica. U m a conseqüência da fra g m e n ta ­ ção operacional do c onhe cim en to é a m odificação que in trodu z no conceito de pes­ quisa: esta deixa de ser a investigação a respeito de um a q u es tão cujo sentido se procu ra, e passa a identificar-se com aquilo que a publicidade ch a m a desurvey, isto é, a localização de um pro b lem a p articula r que precisa de solução ta m b é m p a r ti­ cular. N este sentido, as ciências passam a o p era r c o m o estratégias locais p ara a so­ lução de p ro blem as locais, co m questões de curto p ra z o e desligadas da um a apreen­ são mais geral do p r ó p rio c a m p o científico em que está inserida a p ró p ria ciência particu la r que foi co n v o c ad a p ara a solução do p ro blem a. N ã o só as pesquisas se to r n a m ca d a vez mais m iúdas e irrelevantes d o p o n to de vista d o co nhecim ento, mas excluem interrogações sobre seu sentido e sua verdade. O pesq u isad o r deixa de ser um in vestigador p ara tornar-se um resolvedor de problem as, a fa sta n d o to d a indagação sobre a lógica interna do c onhe cim ento científico e a lógica de sua d e ­ te rm in a ç ã o histórica material.

Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda­ de. Como você se posiciona em relação a esse debatei Baudelaire afirm ou qu e a m o d e rn id a d e é a tensão entre o efêm ero e o eterno. Klee disse que a arte é a c a p tu r a d o essencial n o acidental. M e rle au -P o n ty juiga qu e a arte, e não a ciência contem p orânea, é a via de acesso ao m un do — é m uito instigante, na a b e rtu ra de O olho e o espírito , a diferença entre a ciência, que con stró i o m u n ­ do co m o o bjeto dom in ável, e a arte c o m o “ r u m in a ç ã o d o m u n d o ” , c o m o q uiasm a en tre o c o r p o d o artista e o c o r p o das coisas e a o b ra c o m o tr an sc en d ê n cia na im anência. M a s a sua p e rg u n ta parece ter c o m o p ressuposto o d eb a te Benjam in-A dorn o sobre o fim da a u ra , n ã o é? E ta m b é m o deba te entre v a n g u a r d a e c o n fo rm is­ m o, n ão é mesmo? N ó s sabem os que a m o d e rn id a d e afirm a, c o m a secularização das artes, a idéia da a u t o n o m ia da a rte (de q u e o n ascim en to da literatura p o d e ­ ria ser c o n s id e ra d o o caso exem plar), assim co m o afirm a a a u t o n o m ia da ciência. N o caso d a s artes, p o rém , o d e s e n c a n ta m e n to d o m u n d o , qu e as liberou da reli­

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gião e do E stado, n ã o im pediu que a sua d eterm in a çã o pelo m e rc ad o se desse mais r a p id a m en te d o que na ciência, de m aneira mais direta e im ediata, po rq u e elas não d isp u n h a m de u m a p ro te ç ã o c o m o a ciência possuía, isto é, a distinção entre ciên­ cia p u ra e ciência aplicada. Sem d úvida, a idéia de v a n g u a rd a p rete n d eu c o n t r a ­ por-se à c o n tín u a perda (ou n ã o con quista) da a u t o n o m ia das artes — n o caso do século X X , isso tran sp a rece u , p o r exem plo, nas inovações da form a da n arrativ a, na p in tu ra (seja na reflexão im pressionista sob re a cor e a luz, seja na expressionista c o m o reflexão sim bólica, seja na a b s tra ta c o m o reflexão sobre a fo rm a e o espaço), na música dodecafôn ica, na reflexão d o te a tro e d o cinem a, isto é, um te a tro e u m cinem a que in te rro g a ra m seu fazer-se e seu p ró p rio sentido, e em tu d o o que se p asso u na a r q u ite tu ra — , mas esb a rro u sem cessar nas form as da hete­ ro n o m ia , até d esaparecer nos dias de hoje. Se Benjamin ainda in terrogava o fen ô ­ m e n o da d e s a p a riç ã o da a u ra , os p ó s - m o d e r n o s c o m e m o r a m a d es ap a riç ão do a u t o r e d o artista. Eu gostaria de r e to m a r a q uestão da a u r a p o r um o u tr o prisma. A a u r a era a g ara n tia de q u e a o b ra de arte é única e rara. C o m o tal, co rresp o n d e a o que Krysto p h e Pomien ch a m a de sem ióforo, isto é, algo — um objeto, u m a pessoa, um lu­ gar — que é retirad o de seu uso co tid ia n o na vida, de sua instru m e n ta lid a d e e cir­ culação, e passa a ter um valor sim bólico — o espólio de guerra, o lugar santo, a relíquia religiosa, o an im al sagrado etc. U m sem ióforo não tem “ v a lo r” po rq u e tem significação. Para que se dê essa t r a n sf o r m a ç ã o de algo o u de alguém em sem ióforo é preciso que esse algo ou alguém estabeleça u m a ligação entre o visível e o invisí­ vel (no espaço e n o tem po), te n h a sentido social e esteja ex p o sto à visibilidade para perm itir u m a celebração coletiva. P oderíam os, n a tu ra lm e n te, s u p o r que, c o m o a d ­ vento d o capitalism o, os sem ióforos te n d em a desaparecer — pois que sem ióforos pod eria m surgir n u m a sociedade em que tu d o é m e rc ad oria , em que n a d a pode ser tira d o de circulação? O ra , existem três tipos diferentes de semióforos, cada qual d isp utando prestígio e p oder n u m a sociedade: semióforos religiosos (como relíquias, pessoas e lugares santos), sem ióforos políticos (com o o p a trim ô n io histórico-geográfico nacional, os museus, e a p ró p ria nação) e sem ióforos da riqueza ou d o p o ­ der econôm ico, que são exa ta m en te aqueles postos pelo capitalism o e entre os quais estão, em prim eiro lugar, as obras de arte. O capitalism o inventa a o bra de arte com o se m ióforo (donde a idéia de raridade, o ap a re c im e n to do m ecenato, o surgim ento das coleções privadas, o financiam ento de instituições artísticas e a instituição do m e rc ad o de arte). Desse p o n to de vista, a perd a da a u r a é o preço que a arte paga n ã o p ara dem ocratizar-se (com o desejava Benjamin), nem p a r a desfazer a barreira entre arte e vida (como queria a v ang ua rda dos anos 20-30 do século X X), m as para to rn ar-se sem ióforo n o m u n d o capitalista: para que a o b r a de arte seja co n sid era­ da única, ra ra , bela, sublime, valiosíssima, precisa ter sido p osta assim pelo m e rc a­ do, ain d a que o papel da van g u a rd a tivesse sido o da luta c o n tra essa h etero m o n ia e de afirm a çã o da arte co m o criação d o novo, c o n testaçã o do instituído, crítica e p rotesto estético e social. Se co n sid erarm o s as tensões e contradições da arte m o ­ d e rn a — o efêm ero e o eterno; o a u rá tico e a re p ro d u ç ã o técnica; a v a n g u a rd a e o co n fo rm ism o ; a revolução e a reação; o nacional e o internacional; o global e o etnocêntrico; o particu la r e o universal — , po d ería m o s acrescentar a ten são entre a

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pró p ria rep rodu tibilidad e e o sem ióforo, m as este co m o um a espécie de au ra b a s­ ta rd a , d e term in a d a a p e n as pela lógica d o m e rc ad o , pela posse de ob jetos de prestí­ gio co m en o rm e valor de troca. Se até certo m o m e n to , p o rém , essas eram tensões que se p u n h a m p ara as a r ­ tes sob a form a de questões, e que as artes viviam de fato c o m o tensões e c o n t r a d i­ ções, no interior das qu ais o artista realizava suas obras, o pó s-m o d ern ism o vem celebrar ape nas um dos term os de ca d a tensão, desfazendo suas contradições. C e­ lebra-se, hoje, o efêm ero (e n ã o sua ten são com eterno), o acidental (e n ã o sua ten­ são com o necessário), o particular (e n ão sua tensão com o universal), o se m ióforo (e não sua tensão social), o co n fo rm ism o (e não a tensão entre v an g u a rd a e instituí­ do), a superfície (em lugar de sua tensão c o m o invisível), a reação (e n ã o a exigên­ cia de criação), a ilusão (em vez de sua tensão c o m a revelação d o verdadeiro). C o m esses definidores da arte c o n te m p o r â n e a , esta passa a ser a p u ra região d o sim ula­ cro, em p ó rio de estilos, fashion , de que a fam osa Strada Novíssima dos arquitetos foi o manifesto ou a certidão de nascim ento. A meu ver, as formas mais em blemáticas da arte c o n te m p o r â n e a são a publicidade e o videoclipe, pois a m b o s oste n ta m os elementos fundam entais do fazer artístico de nossos dias: tecnologia em estado puro, determ inação direta pelo m ercado co m o m ercado de imagens, desaparição do tem po (frag m en ta d o em instantes velozes e fugazes), d esaparição d o espaço (frag m en ta­ d o em im agens efêmeras), repetição interminável e nauseante, culto narcísico, im ­ possibilidade da transcendência na im anência.

E hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico , a política tal qual a conhecíamos era um fe­ nômeno essencialmente nacional e, atualmente , não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como você vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que parecem des­ frutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias ? N ã o sou saudosista (o saudosism o é u m a forma disfarçada de conservadorism o que, env e rg o n h ad am en te , é conivente com o m odism o). M as gosto sem pre de lem b rar a m aneira co m o M oses Finley nos fala da invenção da política pelos gregos e r o ­ m anos, distinguindo-a dos despotism os antigos. A política foi inventada q u a n d o se fez a distinção entre o p o d er do despotés ou d o paterfamilias, isto é, o p o d er dom éstico ou privado, articu la d o à oikoenomia ou ao dominum (isto é, o governo da casa), o p oder religioso, o p oder militar e o p o d e r público p ro p ria m e n te dito. O u seja, q u a n d o houve aquilo que Lefort c o s tu m a c h a m a r de desin co rp o raçã o do poder, isto é, q u a n d o o p o d er político n ã o se identifica c o m o pai, o sacerdote e o capitão , q u a n d o é recusada a figura d o g o verna nte co m o figuração e au to ria da lei e d o saber, p ara que a divisão social possa exprim ir-se a distância da casa, do te m ­ plo e da caserna, p ara que haja o tra b a lh o social dos conflitos e das contradiçõ es no espaço visível da sociedade. F. o fim dessa invenção que estam os presenciando, com o retorno gigantesco do poder privado sobre o público e com a economia política co m o substituto das práticas sociais.

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De um m o d o geral, eu diria que a política d eixou de ser percebida c o m o lógi­ ca da ação e ex pressão (im aginária ou real) das divisões sociais o u d a luta de clas­ ses, deixou de ser p ra tic a d a c o m o c a m p o d o p o d e r e dos c o n tra p o d e r e s sociais, de ix a n d o de ser realizada c o m o c a m p o das p ráticas sociais articula das à n oção de go verno da sociedade p a r a reduzir-se à gestão ou adm in istra çã o do setor estatal, este e n ten d id o c o m o fisco, alguns serviços públicos e operações sobre a m oeda. O o c u lta m e n to das divisões sociais, que se m p re ca racterizou o m o d o de p ro d u ç ã o capitalista, se m o stra n o p r ó p rio vocabulário. Fala-se, hoje, em três setores: o setor público, que se define co m o um setor de planos m o n e tá rio s e de serviços estatais, o setor privad o, e um terceiro setor que pretend e co rre sp o n d e r ao qu e antigam ente se ch a m a v a de sociedade civil. F. a política está confin a d a a o prim eiro setor, su b o r ­ dinando-se ao segundo e te m e n d o o terceiro, te m o r qu e se tra d u z em práticas ati­ vas de despolitização da sociedade. Essa setorialização, típica da idéia de org an iz a­ ção administrativa e gerencial, enfatiza a figura curiosa do político profissional (subs­ tituto do a ntigo representante), m isto de lobista e de especialista co m pete nte em questões que deveriam ser de to d o m u n d o ou das classes sociais; e alim enta o e n ­ co lh im e n to d o espaço político e o ala rg a m e n to d o espaço p rivado , a p artir d o m o ­ m e n to em que a política e a esfera estatal se identificaram, e em que, s o b retu d o com o neoliberalismo, a a ç ão estatal se reduziu à gerência adm inistrativa de um “ se to r” , desapareceu a res publica, não só no sentido clássico de fixação e disputa pelos fundos públicos, m as ta m b é m n o sentido de articula çã o entre república e d em ocracia, isto é, um a fo rm a çã o social (e n ão um regim e governam ental) instituída pelas práticas sociais de criação e g ara n tia de direitos. Essa red u ç ão da política ao g o vern o co m o gestão ad m inistrativa, ao exp rim ir a fra g m en taç ão social e encolher o espaço p ú ­ blico, a m p lia n d o o p rivad o, é inseparável da idéia de m e rc ad o político e de m e rc a ­ do de imagem, isto é, da posição narcísica d o político profissional cuja imagem com o indivíduo p rivad o é vendida pela publicidade. F. é isso ta m b é m que ac a b a p o r c o ­ locar na o rd e m d o dia as questões m orais o u éticas, percebidas do p o n to de vista d o indivíduo c o m o á to m o na m u ltid ão solitária. N o caso d o Brasil, essa situação é especialm ente grave, p o rq u e o que se passou a p r o p o r c o m o espécie de su cedâneo da política foi a idéia da reform a ad m inistrativ a d o Estado: a política consiste em r efo rm ar ad m in istra tiv a m en te o Estado. Logo, n ã o há lugar n en h u m p a ra a políti­ ca e n q u a n to tal. É claro que ela co n tin u a acon te ce n d o , p o r q u e não co rresp o n d e a essa definição p obre, m as co n tin u a acon te ce n d o à m argem das decisões, que fica­ r a m a ca rgo d o “ s e to r” público. E, se tem os em vista a idéia da dem ocracia co m o o c a m p o dos co n tra p o d e re s criadores e asseguradores de direito, vem os que a p r o ­ posta de reform a d o E stado visa excluir to d a e q u a lq u e r prática d em ocrática — a qual passa a ser vista pelo E stado n ã o c o m o aqu ilo a que o E sta d o respond e, a q u i­ lo co m q u e o E stado dialoga e estabelece os seus co m p ro m isso s, m a s c o m o um o bstáculo, um perigo e u m a crise co n tín u a p ara esse projeto político — daí o dis­ c urso oficial p r o p o r “ parecerias” com o “ terceiro s e to r” e desqualificar tu d o o que, fora de seu controle direto, se passa na c h a m a d a sociedade civil: desqualificam-se as oposições, desqualificam -se os m o v im en to s sociais, desqualificam -se to d a s as práticas sociais e políticas a u tô n o m a s ou que corresponde m a interesses conflitantes das classes sociais. E as falas oficiais n ã o exprim em o que seria u m a espécie de m á

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vo n ta d e com relação à sociedade, nem de inc om p reensão co m relação à aç ão polí­ tica; elas e x p rim em u m a to m a d a de posição a respeito d o fec h am e n to da esfera política. P o rta n to , e isto m o stra o q u ã o grave é a situação, o processo de despolitização se to rn a ao m esm o te m p o um processo de destruição da dem ocracia. Se, te n d o essa situação em vista, p en sarm o s na q u es tão d o E stado N acional, creio que há duas coisas a considerar. Primeiro, devemos notar que a noção de Estado N acional faria sentido na m edida em que a esfera da política abarcasse toda a fo r­ m a çã o social. R ed uzido o Estado à gestão d o “ s e to r ” público, e concebida a socie­ dade c o m o um b loqueio a essa gestão, é preciso redefinir, no p ró p rio p la no in ter­ n o — an tes p o r ta n t o de pensar na q u estão internacional — , o que se entende por E stado N acional. Pois, a meu ver, o que está o c o rre n d o hoje, com a p au pe riza çã o da política e o d e s lo c a m e n to d o seu lugar, n ã o é o d e s a p a re c im e n to d o E sta d o N acion al. M u ito a o contrário: o E stado N acio n al deixou de ser objeto de disputa ou de p ro g ra m a (com o aconteceu entre 1830 e 1970), po rq u e as lealdades em rela­ ç ã o a ele estão g arantidas, a sua representação está perfeitam ente consolid ada. O que m u d a é a função dessa representação , que passa a ser m ero critério para aferir governos: se estes m e lh o ram ou pio ram a nação, se a elevam ao p a ta m a r de ou tras nações ou n ão , e assim p o r diante. O u seja, o E stado N ac io n al passa a ser, de um lado, o elem ento ideológico de legitim ação de governos, c, de o u tro , o metron de aferição do d e s em p e n h o g o v ernam ental. Isto explica p o r que, em to d a a discussão atual cm to r n o da sob erania nacional, o E stado N acio n al ac ab a sendo visto co m o um d a d o cultural, quase à m aneira romântica. Pois, com o desfazer-se dos elementos anteriores de identificação — políticos e de classe — , com a fragm entação do espaço (isto é, da idéia de território) e d o te m p o (isto é, de história), a referência p r o p ria ­ mente política ao E stado N ac io n al perdeu to d o e q u a lq u e r sentido. E n ã o é para nos surpreenderm o s: e n q u a n to o capital requereu enclaves territoriais co ntín u o s e sob e ra n o s, o E stado N ac io n al fazia sentido e era objeto de disputas. H oje, a a c u ­ m ulação e rep ro d u çã o d o capital n ão precisa dessa referência e a naçâo, exatam ente q u a n d o se consolidou co m o institucionalidade reconhecida, torna-se desnecessária. Desse m o d o , n ão p o d em o s dizer que o encolh im en to d o espaço político d e ­ corre do d esap arecim ento d o E stado N acio n al, m as sim o co n trá rio , ou seja, que o encolhim ento d o espaço político, so m a d o à internacionalização da econo m ia, é que ac arreto u a perda de sentido na idéia de E stado N ac io n al. O que não q u er dizer que ele desapareceu, o u que não possa readquirir sentido, m as a p e n as que, na c o n ­ ju n tu ra atual, ele deixou de ser um a referência política e ideológica e passou a ser apenas um a referência ideológica. Saiu há p o u co te m p o u m a coletânea de artigos, intitulada C ommemorations, que eu resolvi ler p o r causa d o título (afinal estam os nos “ 5 0 0 ” , n ã o é?). O mais interessante nesses artigos é a percepção de que sim plesm ente d esapareceram to ­ das as referências objetivas da m em ória: o capitalism o as destruiu u m a p o r uma. Restaram as que têm valor de m ercado turístico e as que são individuais ou familiares, ca d a família te n d o o seu p eq u e n o museu. C o m o n ã o existe mais um te m p o coleti­ vo, n ão existe mais um a m e m ória coletiva. O ra , um dos elem entos fundam entais na constituição da idéia de E sta d o N ac io n al era a m em ória coletiva, que preserva­ va u m a trad ição nacional c o n tín u a — o que p erm itia n ã o a p e n as m a rc a r o per-

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tencim ento de alguém à naç ão, co m o p ensar em term os de progresso, de futuro. H oje n ão há mais u m a dem a rc a ç ã o te m p o ral, e nem m esm o, com o m u n d o virtual, um a dem arcação espacial: as referências deixaram de ser o tem po e o espaço e passa­ ram a ser esta ou aqu ela trad ição familiar ou co m u n itá ria , este ou aquele lugar — ou seja, as unidades mínimas que resultaram da fragm entação d o tem po e do espaço. Sendo assim , p o d e m o s dizer que resta m a p e n a s três referenciais básicos: a família, c o m o g u ard iã da trad ição , a religião fund am e n talista , co m o tentativa d e ­ sesperada de recuperar a totalidade perdida, e, situado entre elas, o indivíduo, com o um á t o m o solitário em busca d o seu lugar. E é precisam ente este in divíduo que aparece co m o figura a que se dirige o m ark eting político, pois este o p era c o m e para a redução da política à condição de imagem e espetáculo da vida privada. O ra , n ad a mais n a tu ra l, nu m tal q u a d r o , que se passe das antigas questões políticas e sociais p a r a as questões morais: esse revival da ética se deve a o fato de terem desaparecido os antigos referenciais da aç ão e o u tr o s precisam ser form ulados, te n d o o indiví­ d u o co m o centro. A gora, o mais interessante é a m an eira co m o a ética está sendo pensada. De um lado, ela aparece co m o r e to rn o do velho m ago (senhor de sua arte) que vem corrigir os desastres de seu ap ren diz de feiticeiro: o caso da genética e d o genom a são exem plares desse súbito afã prudencial. O u seja, co m o fazer para que o c o n h e ­ cim ento científico-tecnológico n ã o caia nas m ão s errada s e não tenha u m m a u uso? M as, talvez, fosse necessário indagar: em que m ãos ele está? Q u e m financiou as pesquisas e p o r que? De o u tr o lado, a b a n d o n a m -se as reflexões milenares da filo­ sofia q u a n t o à ética e se to m a c o m o referência n orm ativa e reg u la d o ra a o rg a n iz a ­ ção adm inistrativa, que define u m a hierarquia de funções e responsabilidades, e que avalia e julga os seus m e m b ro s co n fo rm e o seu lugar nessa hierarquia e conform e eles c u m p ra m adeq uadam en te as suas funções e responsabilidades. E isto o que, hoje, se entende p o r ética: opera cio n a lid a d e funcional dos c o m p o rta m e n to s , graças ao fornecim ento de um c o n ju n to de n o r m a s e regras que g a r a n ta m , para ca d a indiví­ du o , d e n tro d o seu “ s e to r ” específico, u m a referência hierárquica, um a referência de função e um a referência de responsabilidade. Assim, fala-se em ética médica, ética d o dentista, ética da em presa, ética na política, ética das mulheres, ética dos jovens... enfim , q u a n ta s se qu eira m criar. F. u m a d eon to logia regional alucinada que perde o sentido d a ética p r o p ria m e n te dita. E, nesse p o n to , sejam os aristotélicos: se a política é jo g a d a fora, a ética vai ju n to . O fato de o indivídu o, m e rg u lh a d o na m u ltid ão solitária, precisar ag o ra de n o r m a s de c o n d u ta , o b te n d o -a s a partir do m odelo organ izacional, n ã o indica a p e n as que, p o r falta de referência política, se está b u sc a n d o a referência ética, m as ta m b é m que a p rópria referência ética se p e r­ deu. F. a idéia de práxis a u t ô n o m a que desapareceu, substituída pela de c o m p o r t a ­ m e n to e sistema de c o m p o rta m e n to s. A práx is cria a aç ão e o agente; o c o m p o r t a ­ m e n to assinala o g rau de a d a p ta ç ã o e funcio nalidade das o perações de u m indiví­ d u o em sua relação com o meio ou com o am biente.

Como você caracterizaria a sua relação com a religião e a fé? Ao falar da m inh a fo rm a çã o , frisei com algum a ênfase o papel da religião co m o explicação d o universo, co m o fonte de sentido p a r a o m u n d o e para a m in ha vida

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individual, p alm ilha da pela fé e pela culpa. N o e n ta n to , creio que fui de tal m a n e i­ ra “ v a c in a d a ” p o r Espinosa e p o r M a r x com o vírus da raz ão que, p o r m ais que eu possa co m p re e n d e r esse papel da religião na vida da alm a religiosa, isto n ão signi­ fica que eu tenha u m a relação afirm ativa co m a religião. N a verdade, te n h o com ela, para usar u m a expressão de M arcuse, a relação da tolerância passiva, pois n ão me vejo no direito de investir co n tra a consolação religiosa. N ã o é esta, aliás, que me enfurece e sim o poder teológico-político, a moral burguesa repressiva ou ascética que o pro testan tism o ofereceu ao capitalism o, o co n fo rm ism o e o conservado rism o católicos, o reacion arism o pentecostal, os fu nd am entalism os de to d a s as seitas e cores, que legitim am o que se passa na Irlanda, nos Bálcãs, no O riente M édio, a justificação religiosa d o sistema social de castas, as religiões afro-brasileiras que op era m c o m o c o m p en sa çã o espiritual p ara a violência e a discrim inação reais. D e q u a lq u e r m o d o , eu diria que te n h o u m a relação bifronte co m a religiosi­ dade. De um lado — p o r causa dos estudos que fiz a respeito d o m ilenarism o, do m essianism o, do p rofetism o — , passei a c o m p re en d e r a religião co m o via de aces­ so à política por p a r te das classes populares, co m o o lugar o n d e prim eiro se m a n i­ festa a esperança de justiça. E, neste sentido, con c o rd aria com a afirm ação de M a rx segundo a qual “ a religião é a enciclopédia e a lógica populares, o espírito de um m u n d o sem esp írito ” . De o u tr o lado, po rém , ta m b é m co n c o rd o com sua af ir m a ­ ção de que a religião é “ o ó p io d o p o v o ” , a p a z ig u a m e n to espiritual das c o n t r a d i­ ções sociais, da exploração e da d o m ir :ão. Fatalismo. N o seu fundo mais profundo, é o consolo p ara o m e d o p r o fu n d o nascido da percepção da contingência nas c o i­ sas h u m a n a s e de nossa finitude. Pascal fala d o p av o r c a u s a d o pelo silêncio dos espaços infinitos e que n ã o há medida entre o infinitam ente g rande e o infinitam ente p e qu e no, senão a medida so b ren a tu ral trazida p o r Jesus C risto e pela graça. K ierkegaard exp ôs a essência da fé em Temor e tremor. Parece-me significativo que ta n to Pascal c o m o K ierkegaard te n h a m su b lin h ad o o p a v o r e o te m o r que subjazem a o ato de fé, pois explicitam o vínculo p r o fu n d o entre a religião e o medo. Por mais bela e sublime que seja um a religião, jamais a b a n d o n a sua origem essencial n o m edo; ela pode transfigurá-lo e deslocá-lo, m as não pode suprimi-lo sem deixar de ser religião. E m ed o, sabem os, é um a p a ix ã o triste. T r a n s f o rm a d a em religião, a fé se to r n a um sistema de crenças que deve ser obedecido. Uma crença obedecida é sub m issão a u m saber, a um dizer e a um fazer anteriores a ca d a um de nós, que nos c o m a n d a m do exterior e que interiorizam os pela obediência. Precisamente p o r este vínculo com a obediência, a fé se apresenta co m o u m a disposição d o caráter para aceitar o que n ão pode ser com p reend ido nem pen sad o (por isso, n o cristianism o, é um a virtude po rq u e esta é definida co m o dis­ posição ad q u irid a pela von ta d e g u ia da pela reta razão, e esta é definida pelos c o n ­ teúdos da pró p ria fé). Isso é m u ito interessante q u a n d o se leva em consideraç ão o princípio pro testan te da “ liberdade d o c ris tã o ” , isto é, o direito de ca d a um de in­ te rp retar o texto sa g ra d o e de com unicar-se, espírito a espírito, com Deus, pois isso qu e aparece co m o liberdade (po rq ue inscrito na recusa da a u to rid a d e eclesiástica externa) n ão faz se não interiorizar a necessidade da obediência e torná-la desejável e desejada.

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Conto você se situa em relação aos problemas de uma “mudança de paradigma” da filosofia, de uma filosofia “pós-metafísica” calcada na linguagem? C om ec em os c o m o que, hoje, se entende p o r metafísica: a suposição de que o p e n ­ s a m en to p o d e alcançar as coisas tais co m o são si mesm as, q u e a linguagem p ode en u n c ia r as idéias verdadeiras nascidas desse p en s am e n to e qu e o a c o rd o entre o ser e o p en s a m e n to e deste com a linguagem constitui um sistema de relações uni­ versais e necessárias, isto é, a quilo que, no século XVII, se ch a m a v a o rd e m n a t u ­ ral, no final d o século X IX e início d o X X , se ch a m a v a processo e, nos m e ados do X X , se c h a m o u estru tu ra . Em su m a , a suposição de que a realidade n ã o faz senti­ d o sim plesm ente, m as tem sentid o e que este p o d e ser a lca n ça d o pelas operações da razão h u m a n a p o r q u e ela é p arte dessa realidade e to m a parte nessa realidade. A metafísica busca o fu ndo invisível do visível e con sidera q u e a realidade está p r o ­ m e tid a à inteligibilidade. E seu pressuposto é que a distinção alm a-co rp o , sujeitoobjeto, idéia-coisa, ho m e m -n a tu re z a , n atu reza-h istória n ão é obstá cu lo a o acesso à realidade m esm a p o r q u e essas distinções são a realidade, qu er c o m o um d a d o (a o rd em n atural), q u er co m o um feito (o processo), qu er c o m o cru z a m e n to d o d a d o e d o feito (a estrutura). Falar em pós-metafísica é dizer que essas suposições e pres­ suposições n ã o só d esap a re cera m , m as foram invalidadas (em seus f u n d a m e n to s e em suas pretensões de universalidade), seja pela experiência, seja pela história, seja pela pró p ria razão. E se se to m a a “virada lingüística” co m o causa, supõe-se, de um lado, que a linguagem tem um a função terapêutica p ara o p en s am e n to , e, de o u tro , que n ã o há n a d a de metafísico na pró p ria linguagem , que esta n ã o pretende dizer as coisas, mas ap e nas proferir a si m esm a e referir-se a si m esm a e n q u a n to d esem p e n h o ou p rag m ática, isto é, co m o o p e ra ç ã o ou o p era ciona lid a de regulada p o r regras con ve ncio nada s entre seus usuários. M a s s u p o n h o que a perg u n ta tenha um alvo mais preciso. C o m o está f o r m u ­ lada, pressupõe H a b e rm a s, n ã o é m esmo? P o rta n to , que a pós-metafísica é a q u e ­ bra d o privilégio da teoria sobre a prática (o logocentrism o) e da p retensão da filo­ sofia de decidir sobre a verdade da ciência; que ela é inseparável da passagem do p a ra d ig m a da filosofia da consciência p a r a a filosofia da linguagem (a relação e n ­ tre proposições e estado s de coisas substitui a relação sujeito-objeto; e a consciên­ cia transcenden tal co nstituinte se tra n sfo rm a em e strutura s gramaticais); que ela se inicia q u a n d o n ão há mais c a m in h o s p ara se p arar o em pírico e o transcendental (seja sob os efeitos da fenom enologia d o últim o H usserl, da an tro p o lo g ia de LéviStrauss, dos jogos de linguagem de W ittgenstein, dos m arxistas hegelianos p o n d o a to ta lida de social em suas determ inações concretas); e que ela repõe a necessidade de discutir sob o u tra perspectiva os tem as clássicos da filosofia (universalidade e p luralidade d a razão; relação entre filosofia e ciência; relação entre saber especi­ alizado e Esclarecimento; relação entre filosofia e literatura; estatu to da teoria e da prática; m éritos e limitações da virada lingüística). N e n h u m a das questões p ro p o sta s p o r H a b e r m a s sob o te rm o “ pós-m etafísi­ c a ” é irrelevante. Pelo contrário, estiveram e estão no cerne m esm o da filosofia. T a m ­ bém n ã o é irrelevante discutir o p r im a d o da teoria sobre a p rática nem os impasses da filosofia da consciência, nem o pro b lem a dos d up los em pírico-transcendentais

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(com o dizia F oucauit em As palavras e as coisas). M a s se eu quisesse c a r ic a tu ra r as respostas ditas pós-metafísicas, elas apareceriam assim: os metafísicos perguntavam “ p o r que há o ser em vez d o n a d a ? ” , os pós-metafísicos respondem q u e o ser são narrativ as bem feitas; os metafísicos perg u n ta v am “co m o é possível a v e rd a d e?” , os pós-metafísicos resp o n d e m que o falso (ou a falsificação, c o m o preferem, já que pensam operacionalm ente) é a via régia d o b o m con h e cim en to ou que o erro é um equívoco categorial; os metafísicos qu eria m saber c o m o a razão p ode estar circ un ­ d a d a pela irrazão e conviver co m ela co m o risco, já os pós-metafísicos c h a m a m a razão de loucura p o rq u e faz a perg u n ta indevida pelo fu n d a m e n to ; os metafísicos p e r g u n ta v a m “ q u al a causa da con tro v é rsia, se a raz ão é u n ive rsa l?” , e os pósmetafísicos resp o n d e m que é c o n v e rsan d o que a gente se entende. O u seja, assim co m o n o caso das artes, as tensões e c ontra diçõe s te n d eram a ser ap a g a d a s pela fixação de um dos term os em d etrim en to de o u tr o , me parece que o m esm o a c o n ­ tece aqui: já que a teoria é logocêntrica, fiquem os som ente com a prática e n ão com a tensão entre elas; já que a ciência é discurso bem-feito, fiquem os som ente c o m a narrativ a e não co m a tensão entre idéia e fato; já que a verdade é um a conven ção lingüística, fiquem os com jogos de linguagem locais ou regionais, d e ix a n d o de lado os pro b lem as d o sentido e da certeza. E assim p o r diante. M a s o que isso q u er d i­ zer? Q u e os te rm o s das questões são metafísicos e que se im agina estar fora da metafísica sim plesm ente p o rq u e se decidiu co n tra aqueles term os que a velha m e ta ­ física prezava. H á algum te m p o , ouvi u m a palestra em qu e o o r a d o r explicava a feliz desa­ parição da subjetividade e da objetividade e, em seu lugar, introdu zia a n o ç ã o de fluxos energéticos erran te s q u e se c o m b in a m fu g az m en te n u m jogo de forças e migram em direções variadas, em novos jogos e com binações errantes ou circulantes. Ao ouvir a palestra, em pensava: “ en g ra çad o , já ouvi esse tipo de descrição em a l­ g u m lugar; o n d e ? ” . E, de repente, me lembrei: “ claro, é assim que os econo m istas e b a nqu e iros falam das m oedas, do capital financeiro e da tal “ b o lh a ” que migra de país p ara país!” . Essa ca rica tura final é só p a r a sugerir que talvez a pós-metafísica n ão seja um aconte cim en to ca u sa d o pela atividade intelectual na república dos sábios e que, quem sabe?, haja mais entre o céu o a terra do que sonha a vã filosofia.

Você utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do fu­ turo da sociedade hum anai Em que consistiria tal utopia ? Bem, vocês viram o efeito de D o socialismo utópico no socialismo científico sobre mim ... [risos|. H á um a dúvida m uito g ran d e com relação à etimologia da palavra utopia: se ela vem de “ e u t o p o s ” (o b o m lugar) ou “ a t o p o s ” (lugar nenhum ). M a r x e F.ngels tr a b a lh a r a m com este segundo significado, mas nós p o d ería m o s p ensar a p artir d o prim eiro, desde que diferenciemos “ u to p ia da c id a d e ” e “ cidade u tó p ic a ” , e assim recuperar a dim ensão utópica da política. Q u e ro dizer: a “cidade u tó p ic a ” é a c o n s­ tru ç ã o m inuciosa e detalh a d a d o futuro no presente, um fu tu ro que n ão é um p o r ­ vir e sim um d a d o d o p ró p rio presente, o p e r a n d o co m o m odelo, regra e n o r m a de ação. E um a co n s tru ç ã o im aginária que p rep a ra desastres p o r q u e obscurece o p re ­ sente e o fu tu ro co m o aç ão histórica. E o lugar n enhu m . M a s a “ u to p ia da cid a­

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d e ” , a o co n trá rio , é a p e n as um a idéia regulad ora, u m ho rizo n te percebido nas li­ nh as de força d o presente, que suscita a crítica do presente e p rojeta a aç ão política n o te m p o , é um a a b e r tu ra tem poral. É o b o m lugar q u e co n stru ím o s à m edida que vam os a gindo, sem sa berm os e x a ta m e n te o nde ele está nem c o m o ele é. Pois estará o n d e o p u se rm o s e será c o m o o fizermos. A sociedade capitalista, o u ao m enos essa f o rm a da b arbá rie a q ue cheg am os, estimula e enfatiza a idéia de q u e o m e rc ad o capitalista é n ã o ape nas o fim da his­ tória, m as ta m b é m um destino. Isto p ro d u z , a meu ver, du as ilusões: o fatalism o d o destino e o volu n ta rism o da contingência. E a ten são entre essas duas ilusões faz com que se “ perca o p é ” na prática política. O ra , a perspectiva utópica me parece capaz, e n q u a n to u m a espécie de idéia regu ladora, de evitar essas ilusões. O u seja, em vez de ju lg a rm o s a e s p eran ç a u tó p ic a ilusória é ela que, aliada à análise da m a terialidad e histórica, nos previne das ilusões fatalistas e voluntaristas. E repõe a im po rtâ n cia da política co m o aç ão histórica (isto é, cria d o ra d o tem po), o p o n d o se à despolitização adm inistrativa.

Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos co­ mo riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em lar­ ga escala e alienação cidtural em massa. Como você vê tais problemas? N ó s sabem os que, de algu m a m a n eira, o racionalism o m o d e rn o ap o s to u toda s as suas fichas no papel e m a n c ip a d o r e libertador da ciência. N ã o se co n tav a , porém , co m a força d o m o d o de p r o d u ç ã o capitalista, co m a sua ca pac id a de de in c o rp o rar c o m o seus, to d o s os elem entos externos, a p o n to de n ã o deixar “ s o b r a s ” . E foi isso que ele fez com a ciência, que se to r n o u p ara ele um elem ento decisivo. O ra , tu d o isso qu e resulta em violência, desastre e barb á rie n ã o é u m a irracio nalidade d o sis­ tem a. E um equívoco im a g in a r que, periodicam ente, o sistema secreta, o u excreta, restos irracionais. O que está aí é a sua racionalidade, a rac ionalidade de um p r o ­ cesso av a ssa lad o r que se a p ro p r ia de tu d o e q u e devolve, na form a d a destruição, aq uilo qu e já p erdeu sua fu n çã o — n u m a lógica que é p o r t a n t o c o nstitutiva do p r ó p rio sistema. Q u a n d o eu faço a crítica da “ terceira v ia ” , p r o p o sta pela social-dem ocracia inglesa, eu o faço p o r q u e sua idéia-chave é a de h u m a n iza çã o d o capitalism o. Imagina-se que, se o capitalism o for h u m a n iz a d o e regulado por meio de n o rm a s, esses desastres todos não acontecerão. O u seja, imagina-se que há um a certa racionalidade que seria capaz de c o n tro la r o sistema em seus aspectos irracionais. A contece que, c o m o acabei de dizer, a d es tru içã o é perfeitam e n te racional, faz p arte d a r a c io ­ nalidad e d o sistema. F., p o r ta n t o , o que se tem aí é tã o -so m en te o estabelecim ento de um conflito entre d u a s racionalidad es antag ô n ic as — um conflito que, eviden­ temente, n ão pode ser resolvido no interior d o sistema. Por exemplo: a racionalidade do sistema im põe o desem prego es tru tu ra l, a idéia de que, finalmente, os seres h u ­ m a n o s n ã o são necessários p a ra a acum u la çã o d o capital e são p o r isso descartáveis. C o m o é que você p oderia im aginar u m a solução p ara isso n o interior d o p ró p rio sistema capitalista? De q u alq u er m o d o , creio q u e estam os de fato ch e g a n d o a p a ta m a re s de b a r ­ bárie social e de destruição que co m eç am a p o r em risco to d a s form as de vida do

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planeta. Impede-se a vida h u m a n a , p o r q u e som os descartáveis; impede-se um sa­ ber crítico, p o rq u e isso c o n tra ria a necessidade d o sistema; p o r meio d o s satélites, controla-se to d a in fo rm aç ão e to d a aç ão (e essa gente vem nos falar de tota litaris­ mo!); destrói-se a c a m a d a de o zônio, destroem -se as florestas, poluem-se os rios e oceanos, invade-se o espaço sideral com lixo astro n á u tic o ; anestesia-se a sociedade co m a televisão a c a b o e a internet... É verdade que o capitalism o é um gato com sete fôlegos e que, se essa situ ação se to r n a r irracional p ara o capital, m edidas se­ rã o to m a d a s para co rreç ão de rota. N ó s já estam os v endo isso: as questões sociais e ecológicas estão sendo d eb a tid a s e recebendo acertos nos países de capitalism o m e tro p o lita n o ou central. \ l a s qual é o p rocedim ento? T ra nsferir ou deslocar os pro b lem as p ara os países de capitalism o periférico. T a m b é m é verdade que p o d e ­ m os chegar a um p o n to de sa tu ra çã o em que m esm o essa solução se to rn e inviável. E, en tão , n ã o creio que tais p roblem as, de escala planetária, p ossam ser resolvidos nos q u a d ro s d o capitalismo. Se me p erm item , farei um a observação de estilo espinosano: u m a causa é um efeito necessário de o u tr a e p r o d u z efeitos necessários d e ­ correntes de sua própria natureza ou de sua pró p ria estrutura. Isso significa que n ão se p od e esp erar de u m a causa que p ro d u z efeitos destrutivos e dev a sta dore s que ela ta m b é m p r o d u z a efeitos co nstru tiv os e ren ova do re s — d erruba-se facilmente um tira n o p o rq u e não se d e rru b a m as causas da tira nia, diz F.spinosa. A lógica d o c a ­ pital é destrutiva. T u d o o que, n o capitalism o, pôde ser con stru íd o , o foi p o r lutas sociais, p o r c o n testaçã o e a ç ã o artística e cultural, p o r aç ão de c o n tra p o d e re s polí­ ticos e c ontra disc ursos ideológicos, c n ã o pelo d e s d o b ra m e n to interno d o pró p rio capital.

Principais publicações: 1978 1981

Ideologia e mobilização popular (co-autora) (Rio de Janeiro: Paz e Terra); Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas (São Paulo: M od e m a /C o rte z , 1989); O que é ideologiaf (São Paulo: Brasiliense);

1983 1984 1984 1985 1986 199 4

Da realidade sem mistérios ao mistério do mundo (São Paulo: Brasiliense) Seminários (São Paulo: Brasiliense); Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida (São Paulo: Brasiliense); Conformismo e resistência (São Paulo: Brasiliense); Introdução à História da Filosofia, vol. I: dos pré-socráticos a Aristóteles

1995 1995 1999

Espinosa: uma filosofia da liberdade (São Paulo: M o d e rn a ); Convite à filosofia (São Paulo: Atica); A nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa, vol. I (São Paulo:

2000

C o m p a n h ia das Letras); O mito fundador (F un dação Perseu A bram o).

(São Paulo: Brasiliense);

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Bibliografia de referência da entrevista: Benjamin, W . Obras escolhidas, Brasiliense. Descartes, R. Meditações, coleção O s P ensadores, Abril C ultural. Engels, F. D o socialismo utópico ao socialismo científico, Perspectiva. Espinosa, B. C oleção O s P ensadores, Abril C ultural. Foucault, M . Arqueologia do saber, Graal. ___________ . As palavras e as coisas, M a rtin s Fontes. H a b e rm a s , J. Pensamento pós-metafísico, T e m p o Brasileiro. H o rk h e im e r, M . e A d o rn o , T h. Dialética do Esclarecimento, Jorge Z a h a r Editores. H usserl, E. Investigações lógicas, coleção O s Pensadores, Abril Cultural. K ant, I. Crítica da razão pura, coleção O s Pensadores, Abril Cultural. ___________ . Crítica da razão prática, Lisboa: Edições 70. K ierkegaard, S. A. Temor e tremor, coleção O s P ensadores, Abril Cultural. Lefort, C. Maquiavel ou le travail de Voeuvre, Paris: G allim ard. ___________ . Eléments d'une critique de la burocratie, G enebra: Droz. ___________ . As formas da história, Brasiliense. Leibniz, G. W. Discurso de Metafísica, coleção O s Pensadores, Abril Cultural. M a rc u se, H. Ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional, Jorge Z a h a r Editores. M a r x , K. O capital, coleção O s E conom istas, Abril Cultural. M erleau-P onty, M . Coleção O s Pensadores, Abril Cultural. ___________ . Signos, M a rtin s Fontes. ___________ . Sens et non-sens, Paris: Nagel. ___________ . Visível e invisível, Perspectiva. ___________ . Fenomenologia da percepção, M a rtin s Fontes. ___________ . A estrutura do comportamento, Interlivros.

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PAU LO A R A N TES (1942)

Paulo E d u a r d o A rantes nasceu em 1942, em São Paulo (SP). G ra d u o u -s e em Filosofia pela U niversidade de São Paulo e obteve o título de d o u to r em Filosofia pela Universidade de Paris IV. É professor a p o s e n ta d o da USP e dirige a coleção Z e r o à E squerda (editora Vozes). F.sta entrevista foi realizada em abril de 2000.

Goethe dividiu a vida de seu personagem W ilbelm M eister em dois romances, O s an o s de a p re n d iza d o e O s anos de peregrinação. No pri­ meiro, o foco está posto na formação do indivíduo Wilbelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que você nos falasse de sua formação intelectual? Um b o m m ote, sem dúvida. Porém pela razão inversa. C o n v e n h a m o s que se trata de um sim pático d esp ro p ó sito c o m p a r a r o destino de um filho da Baixada Santista aos d esd o b ra m e n to s da vocação teatral de W ilhelm Meister. Aliás estou me lem­ b ra n d o ag o ra de um trecho d o c o m e n tá rio do Bento [Prado Jr.] ao “ Prefácio a um a filosofia” , do [O sw aldo] P orchat, este sim um em inente filho da Baixada. Em 1967 deu em A Tribuna, de Santos, an un c ia n d o o d o u to ra m e n to do Porchat: “ Um santista defende A ristóteles” . N o artig o cm q u estão, o Bento a certa altura c o m p a r a v a o dito “ Prefácio” a um R o m an c e de F o rm a ç ã o g o eth ea n o , che gand o a o requinte de c o m p a r a r o p ro saísm o da reconciliação de Wilhelm M eister c o m o curso do m u n ­ do, à reconversão d o filósofo santista à realidade depois dos seus A nos de A p re n ­ d iz ado e Viagem, tu d o isso sem deixar de ressaltar o p a r a d o x o de um a certa estctização da vida cotidiana da parte do H o m e m C o m u m , p o r definição avesso ao lado n o tu r n o da existência. T a n t o faz se o Bento estava p en s a n d o tu d o isso seriam ente ou não, possivelmente as d u as coisas, filosofando e se divertindo a o m esm o te m ­ po. O fato é que o trecho pro v o ca um a forte sensação de p aró d ia in v o luntária, e n ã o há n a d a mais brasileiro do que isso. E m b o ra vivam os n u m país to m a d o p o r um a ansiedade crônica com a sua fo rm a ç ã o nacional, sem pre a d iad a , in te rro m p i­ da etc., imaginar-se alguém p ro ta g o n ista de um Bildungsroman no Brasil é um a senhora en o rm id ad e. N o m odelo clássico, em G o eth e o u H egel, a rigor só há “ fo r­ m a ç ã o ” n o p ressuposto de u m a espécie de racio n alid ad e supe rior g o v e r n a n d o a m a rc h a das coisas, de sorte que a fo rm a ç ã o se com p leta pela conversão de um a espécie de loucura subjetiva a essa m a rc h a ascendente do m u n d o . O ra , no Brasil tal curva formativa deveria ser descendente. O u, p o r o u tra, segundo o m etro p atriar­ cal que nos p au tav a , seria o caso de se falar de um a v erdadeira deseducação. N ã o p o r acaso, foi isso o que R o b e rto [Schvvarz] viu nos anos de iniciação e viagem de um e n ge ndro da escravidão c o m o o nosso Brás C ub as.

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D ito isso, o que eu poderia dizer acerca dessa pergun ta? Q u e a m in h a f o rm a ­ ção, no sentido fro u x o d o te rm o , aconteceu nos an o s 60, na Faculdade de Filoso­ fia da USP. A M a ria A ntô n ia foi o prim eiro c o n ta to de fato que tive com vida in te­ lectual organ iz ad a e fu n cio n a n d o no país.

Como foi a sua militância na Juventude Universitária Católica IJUCj? E o seu contato com padre Vaz? Entrei form alm en te na JU C em 1962, q u a n d o comecei meu curso de Física na F a ­ cu ld ade de Filosofia da USP. H á alguns an o s m inh a família achava que eu an d a v a meio esquisito. A m eu favor só tinha o fato de qu e eu jogava futebol m u ito bem, na várzea e na praia. Im aginem alguém em Santos, no fim d o curso colegial, que n ã o tinha n a m o ra d a , não queria r o u b a r o c a rro d o pai, estudava o dia inteiro, era o prim eiro da classe e an d a v a com um as ro u p as estranh as. Enfim, co lo ca ra m -m e em te ra p ia em São Paulo. Isso foi no início de 1959. F.u fui e sim patizei co m o te ra p eu ta , P aulo G au dê ncio, que me c o o p to u da fo rm a mais sutil, co m o , g u a r d a ­ das as propo rções, Alceu A m o ro so Lima fez com O sw ald de A ndrade: bateu-lhe a carteira q u a n d o se ajoelhava d iante d o crucifixo. E ele me levou p ara a JU C. Eu ia periodicam ente a São Paulo p ara as sessões de terapia e gostava da conversa intelec­ tualizada. G au d ê n cio estim ulava m in h a s veleidades culturais. N a s férias de julho de 1959, Paulo G audêncio p e r g u n to u se eu n ã o queria passar u m a te m p o r a d a em Itanha ém c o m seu g ru p o de estudos. Cheguei lá e era um e n c o n tro da JU C. T rata ndo -se de um jovem de dezesseis anos, fragilizado, foi conversão im ediata, pois um tipo nessas condições adere a q ualq uer espírito sagrado que ap on te na sua frente. Podia ser o Partido C o m u n ista , o u q u alq u er o u tra coisa. N o meu caso foi a J U C e a Igreja, n u m m o m e n to em q u e d esp o n tav a nela u m a ala progressista, forte e n ão inteiram ente m entecapta, n u m m o m e n to especial do país. Logo depois de e n tra r na JU C, entrei na Física, politizei-me à esquerd a, sem preconceitos c o n tra o m a rx ism o , conheci o Brasil e entrei n o m o v im en to e s tu d a n ­ til n o m o m e n to mais es plend oro so da história nacional, antes de 1964. Foi nessa época que conheci p a d re Vaz. Ao m esm o te m p o , eu era a b astecid o literariam ente e en c o ra ja d o p o r A nto n io C â n d id o [de M ello e Souza] a seguir p o r esse ca m in h o de e m p e n h o político. Foi q u a n d o descobri que ele n ã o só conhecia co m o a dm irava o p a d re Lebret, fu n d a d o r d o m o v im ento E conom ia e H u m a n ism o . “ Você faz m uito bem, P a u lin h o ” — co stu m a v a me dizer A n to n io C â n d id o — “ Você sabe de u m a coisa? Eu ach o religião detestável, m as te nho m uita a d m ira ç ã o pela igreja, so b re ­ tu d o por esses padres de v a n g u a rd a que você fre q ü e n ta ” . Freqüentei o cu rso de Física d u r a n te um an o , larguei-o, e fui p ara o Rio de Ja n eiro , o n d e fiquei dois anos, p ara fazer militância política. Eu estava lá no dia do incêndio da U N E. A co m pan hei de perto a fun d aç ão da AP [Ação Popular] (ofi­ cializada n u m congresso em S alvador em janeiro de 1963). Eu a p e n as a c o m p a ­ nhei a evo lu ção inicial, já que eu n ã o p o d ia e n tra r pois era dirigente nacional da JU C. A AP foi um fenôm en o. Em m e n o r p r o p o r ç ã o p ode ser c o m p a r a d a aos p ri­ meiros passos do PT, ta m b é m com forte im p re g n açã o católica de esquerd a. Ela in c o rp o ra v a algum as coisas d o m a rx ism o , era anti-stalinista m as fazia frente c o m o PCB. N o praz o de um an o , a AP g a n h o u to d o o m o v im en to estudantil, inclusi-

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P aulo A ran tes: " E n tã o a idéia d e u to p ia , d e u m a saída possível, está se to r n a n d o socialm ente p ro ib itiv a. E o socialism o tam bém . A idéia clássica de socialism o tem de ser in teiram en te re p e n sa d a ” .

ve as uniões estaduais. De 1 9 6 2 a 196 4 só deu AP, desde a presidência de Aldo A rantes até a de [José] Serra.

Depois que você saiu da direção nacional da JVC, o que você fez? Saí depois do golpe e passei seis meses na E uropa. Voltei e abreviei tu d o , ou seja, fui direto p ara a Filosofia. Q u a n d o eu estava na militância estudantil, vinha se m ­ pre a São Paulo e de vez em q u a n d o me hospe dava na casa de A n tó n io C â n d id o . Ele e Gilda [de M ello e Souza] co s tu m a v a m me c o n t a r histórias d o D e p a rtam e n to : “ N o sso D e p a rta m e n to é m uito bom . Se você está decidido a voltar p a r a a filoso­ fia, vai ser m u ito b o m p ara você. H á jovens m u ito interessantes lá” . D aí falavam de Bento P ra d o , R uy Fau sto, G ianno tti. Eu estava certo de que voltaria p ara cá. C o m a M a ria A ntô n ia , descobri finalm ente a vida cultural brasileira real. N o Rio, foi um a festa efêmera, e m b o ra ten h a sido im p o rta n te e n q u a n to episódio político. Q u a n d o cheguei a São Paulo, foi um revelação. Em p o u co s meses, eu m e distanciei d o p eríodo no Rio, ac hava a quilo ridículo, v exa tó rio e m aluco. E n tã o a referência passou a ser to d o o paideuma da M a ria A ntônia. Foi a grand e revolução intelectual d a m in h a vida. D ou m u ito valor a isso ta m b é m p o r q u e foi nessa época que c o n h e ­ ci o Bento, além d o mais meu p rim e iro professor. N o p rim eiro dia de aula fomos to m a r chope; voltei p a r a casa às seis da m a n h ã , iniciado n u m a nova mitologia. N o Rio de Ja n eiro , eu visitava c o m freqüência p a d re V az em Friburgo, p o r ­ que ele era o e la b o r a d o r teórico d a AP, tinha lá a sua dialética d o recon hecim en to d as consciências. O s jesuítas tin h a m u m a bela biblioteca, e V az sem pre m e em p re s­ tava livros: As investigações, de Husserl, livros de lógica, os Manuscritos d o jovem M a rx . Ele n ão tinha preconceito nen h u m , dizia: “ Leia o jovem M a rx , m as leia t a m ­ bém Husserl, a fenomenologia e, sobretudo, lógica e m a tem ática” . Eu levava os livros p a r a o Rio e ficava lendo essas coisas m alucas. T a n t o é que q u a n d o fiz o vestibular d a M a ria A ntônia, eu já tin ha lido as Meditações cartesianas, e dei u m a de p e d a n ­ te. Bento estava me e x a m in a n d o n o oral e p erg u n to u o que eu já havia lido. Res­ p o n d i q u e conhecia a fenom enolo gia. E ele p e rg u n to u o qu e eu já tin h a lido de Husserl. Disse-lhe que havia lido as Meditações cartesianas. E ntão ele inquiriu: “Você p ode fazer um resu m o das Meditações}”. “ É m u ito c o m p le x o ” , disse a ele [risos].

Quando estudante de filosofia na rua Maria Antônia, você travou con­ tato com o “Seminário M arx”? N ão. Naquele m om ento, ninguém falava mais do “ Seminário M a r x ” . G iannotti dava as suas aulas e n ã o se referia a o “ S em in á rio ” . E eu n ã o tinha conversa de bar com ele. N o ssa conversa era estritam ente de alun o co m professor. A conversa de bar, o nde tu d o acontecia, era com Bento. O R uy não freqüentava bar, e n ão falaria do “ S em in á rio ” . E ntão, o que eu sabia vinha do Bento e um p o u c o do R o b e rto , pois, naquele m o m e n to , eu me dava mais com o Bento d o que c o m o R o b e rto . E o Bento só co ntav a o folclore do “ S em iná rio” . Eu n ã o tin h a p o r que me interessar, p esqui­ sar o “ Seminário M a r x ” , pois, além de tu d o , estava fazendo o meu curso direitinho. Foi em Paris qu e eu descobri o m u n d o , o Brasil e a Faculdade. R o b e rto c o m e ­ çou a o r d e n a r esse folclore. A n to n io C â n d id o tinha a c ab a d o de p ublicar a Dialética da malandragem , e p a r a R o b e rto foi um “ abre-te, S ésa m o” . Boa p arte d o M a ch a -

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d o [de Assis] d o R o b e rto saiu da co m p re en sã o daquele ensaio. Ele me explicou e n ­ tã o co m o é que to d a a ob ra de A nton io C â n d id o estava o rganizada. Foi nesse m o ­ m e n to q u e R o b e rto co m eço u a me c o n ta r a história d o g ru p o que lia O capital. Eu n ão fazia a m enor idéia, n ã o sabia co m o funcionava, que havia um ca ráte r interdisciplinar, qual era o objetivo etc. Roberto foi o primeiro a assinalar o caráter crucial da in tervenção de G iannotti. Só m uito mais ta rd e é que tratei de sistem atizar essa história. O “ Seminário M a r x ” era um g ru p o de am igos de esquerda insatisfeitos com o fato de n ão haver um curso regular e bem feito sobre M a rx . O s sociólogos, his­ toriado res, econom istas, que faziam parte d o g ru p o , precisavam de um M a r x bem d a d o p ara escreverem suas teses. Eles d isp u n h a m d o p r o g ra m a “ econom ia e socie­ d a d e ” , delineado p o r Florestan, para e studar “classes sociais” , “ relações de r a ç a ” etc., m as achavam -se desarm ad o s, e resolveram es tu d ar M a rx . M u ito s deles já o c o nh eciam , po rq u e tin h a m sido militantes. M a s eles não q u eria m o M a r x da Se­ g u n d a e da Terceira Internacional, q ueria m o dos textos. Eles n ão tin h a m a m e n o r n oção da existência d o Althusser, e, n o e n ta n to , estavam fazendo a m esm a coisa que Althusser começava a fazer na Europa. Enrão era para entender bem M a rx , fazer direito as suas teses e explicar o Brasil. C o m o se tratava de M a rx , co m o havia dialética e filosofia, e com o se imaginava qu e era preciso ler Hegel p ara ler O capital, foi necessário c h a m a r os filósofos. G iannotti, que era amigo das pessoas desse grupo (de F ernando H enrique (Cardoso], de O ctávio lanni, de F ern ando N ovais), chegou dizendo: “ p a r a entender a dialéti­ ca, vam os com eçar lendo o t e x to ” . Essa foi a revolução! O artigo fu ndam e n tal, que G ianno tti redigiu em nom e do g rupo , “ N o ta s m etodológicas sobre O capital" é um dos g randes textos (do g ru p o e) de G iannotti. Este e o ensaio “ C o n tra A lthusser” . Ele ainda n ã o tinha assimilado inteiram ente História e consciência de classe, de Lukács, n ão conhecia os frankfurtianos, e n ão sei se ele já conhecia Althusser (na época da sua tese, seguram ente já conhecia). G iannotti fez isso sozinho: ju ntou [Martial] G u éro u lt com a vigilância dos econom istas e sociólogos para ler o te x to de M a rx . E m o stro u que ali havia u m a coisa c h a m a d a abstração; a b s tra ç ã o real, um proces­ so diferente de fo rm a çã o de conceito, o u seja, m o stro u a dialética funcio nando . G ian n o tti saiu dali e o qu e fez? Ele se considerava ain d a co m o alguém que estava ju n ta n d o fenom enologia e lógica, antipsicologism o e dialética. N ã o era m a r ­ xism o. Para fazer u m a o n to logia do ser social ele escreveu o prim eiro livro dele, Origens da dialética do trabalho. Já o Bento era sartrean o. O m u n d o sa rtre an o t o r ­ nara-se senso c o m u m p ara ele: era socialista, existencialista e gostava de literatura. A partir de 1964, da noite para o dia, Sartre fica na gaveta e ele passa para Rousseau. Q u e r dizer: o “ Seminário M a r x ” , para o D e p a rta m e n to de Filosofia, n ã o signifi­ cou ab so lu ta m en te nada . O fato de G iannotti ter visto o pessoal discutindo O ca­ pita /, F ern a n d o N ovais elab o rar a sua tese sobre a crise do A ntigo Regime colonial, F ernan do H e nriqu e com eçar a estudar a relação entre capitalism o e escravidão, não a d ia n to u n ad a . P o rq ue ele era filósofo. O que eu q u ero dizer é o seguinte: o “ Seminário M a r x ” n ão teve n e n h u m a repercussão no D e p a rta m e n to de Filosofia, ta n to é que eu fiz o curso sem saber de nada.

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Como foi a sua volta da França? No capítulo “Ajuste intelectual”, do livro O fio da m e ada , você diz o seguinte: “Inexistente nos anos 60, as relações entre a filosofia universitária com a indústria da consciência em nosso país datam da década s e g u in te N a sua volta da França, você já teve essa impressão? N ã o , seria in correto dizer q u e tive. N a verdade, neste trecho, eu estava p ensando p rincipalm ente na coleção Os Pensadores, que com eçou a ser ed itada q u a n d o eu a in d a estava na França. O [José Américo M o tta ) Pessanha fez a coleção e arregi­ m entou p raticam ente to d o o D e p a rta m e n to de Filosofia da USP para traduzir, c o m ­ pilar e prefaciar os fascículos. Esta foi a prim eira manifestação pública da hegemonia d a filosofia uspiana. C u riosa m e nte, Pessanha era discípulo dileto e g ran d e a d m ir a ­ d o r de Á lvaro Vieira Pinto, que ele considerava um professor e x tra o rd in á rio . Ele veio p ara São Paulo e recorreu aos uspianos, ou seja, foi o rec onhecim ento tácito que tinha se f o rm a d o ali algo de im p o rta n te. Pessanha recorreu a esses professores p a r a realizar um e m p re e n d im e n to industrial, p o rém co m o g a ra n tia d o bom nível dos fascículos, das traduções, das antologias e assim p o r diante. Imagine o salto que foi d a d o co m essa coleção, p rin cip alm e n te em rela çã o a o acesso a trad u ç õ es de q ualid ad e , bem feitas e bem a n o ta d a s. O R u b in h o |R u b e n s R odrigues T orres Fi­ lho] “ in v e n to u ” um Nietzsche no Brasil, pela prim eira vez a o alcance de um p ú b li­ co que n ã o conhecia mais língua estrangeira, e a o alcance da massa de estud antes que os militares estavam co lo ca n d o nas universidades. F. o q ue se iria fazer com essa massa? Filosofia em grego não dava. Foi preciso colocar Platão e Aristóteles na Abril. E isto foi um a revolução. N essa época, o D e p a rta m e n to estava saind o d o g ueto através de M a rilen a | C h a u i) e G iannotti. G iannotti tinha a vantagem de ter a ju d a d o a m o n ta r o CEBRAP [ C entro Brasileiro de Análise e Planejam ento], n ã o era mais professor da USP e es­ tava se to r n a n d o u m a espécie de lider m eto dológico da oposição. Já M arilen a teve desde o início um a e n o rm e rep ercussão pública, bem m a io r q u e a de G iann otti. M a rilen a p o r assim dizer desfrutava de um dos handeaps favoráveis da nossa fo r­ m a ç ã o francesa. Ela a c o m p a n h o u a tra n s f o r m a ç ã o da filosofia francesa na época d o estrutu ralism o. Essa tr a n sf o r m a ç ã o co m eçou c o m Sartre e M erleau -P on ty, que n ã o eram p r o p ria m e n te scbolars, co m o G o ld sc h m id t e co m p a n h ia . E ram ta m b é m intelectuais públicos, dirigiam u m a revista, Temps Modernes, e falavam de vários asssuntos. Um filósofo francês depois d aquela tra n s f o r m a ç ã o era alguém do qual se esperava que falasse de cinem a, de p in tu ra , de psicanálise, e que além do mais havia sido politizado pela resistência à o c u p a ç ã o nazista e discutia com o m a rx is­ m o. Além disso, Sartre e M e rle a u -P o n ty fo ra m os p rim eiros filósofos a largar a referência epistemológica exclusiva. C o m isso, a filosofia francesa, que não era a nossa, a u m e n to u o leque de seus assuntos nos quais ela p od ia intervir com gran de repercussão, d a d a a característica cu ltural da França desde o Antigo Regime. Em São Paulo, estávamos de costas para esses assuntos. N ó s os considerávam os de baixo nível, a c h áv a m o s que e ra m ap elação literária e jornalística. Para nós, os filósofos eram os professores de filosofia, eram os epistemólogos, co m o [Gilles-Gaston] Granger, e os historiadores, co m o | Victor] G oldschm idt e G uéroult. A p o n to de Giannotti chegar ao ab su rd o de dizer: “ G oldschm idt é um filósofo mais rigoroso do que Sartre,

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que não passa de um m au jo rn a lista ” . N o e n ta n to , se o G iann otti n ã o tivesse dito isso, se nós fôssemos sa rtre an o s desde criancinha, n ã o haveria filosofia no Brasil hoje, haveria apenas “ Sartres” razoáveis co m o Bento, que tinha talento, e u m a m o n ­ ta n h a de cretinos im itan d o Sartre, e n q u a n to ele estivesse na berlinda. Q u a n d o ele saísse de m o d a , n ão restaria mais nada . E n tã o as m o d a s na França iam e vinham , m as o básico, que era justam ente a filosofia escolar francesa, ficava. A partir do início dos a n o s 70, M arilen a encerrou sua vida, digam os, escolar com o d o u to r a m e n to defendido, e saiu p ara a vida intelectual adulta. Pois seu bi­ lhete de ingresso foi justam en te aquele c a r d á p io de especialidades francesas. Já vi­ m os do q u e se c o m p u n h a : os dois eixos da filosofia universitária francesa — histó­ ria da filosofia e epistem olo gia à francesa, q u e r dizer, G u é ro u lt, G o ld sc h m id t e G ra n g er — reo rientado s recentem ente p o r um a espécie de segunda tr a n sf o r m a ç ã o da filosofia francesa, o estruturalism o. C o m os tópicos deste últim o — da lingüís­ tica às ciências h u m a n a s, p a s sa n d o pela psicanálise e a nova história — , M arilen a já se familiarizara de vez, desde o seu m e strad o sobre M e rle au-P onty, o prim eiro dos clássicos a en ten d e r a novid a d e de um Lévi-Strauss p ara os assuntos filosóficos tradicionais. Pois bem , M a rilen a n ã o só d o m in a v a esse rep e rtó rio franco -uspian o, corno se im p u n h a pelo talento c o m qu e sabia tira r proveito da técnica retórica da dissertação francesa, um a das especialidades da casa. Q u a n d o voltou da E uropa com o seu Espinosa p r o n to na m a la, pôs im ed ia tam en te em circulação essa nova rotina francesa, o resultad o foi explosivo. C o m a vida política b lo q u e ad a pela d ita d u ra , a vida cultural de op o siç ão foi se re c o m p o n d o a con ta-g o tas, prim eiro na form a de gru p o s de sem inários mais o u m enos privados e discretíssim os — de profissionais liberais à p ro cu ra de cultura geral, a universitários interessados em se atualizar, e a boa nova naquele m o m e n to era o circo francês das ciências h u m a n a s — , depois em conferências públicas isoladas, até d esagua r nos g randes com ícios da SBPC [Socie­ dad e Brasileira p ara o Progresso da Ciência]. N a tu r a lm e n te to d o m u n d o c o n v o c a ­ va M arilen a , que, p o r sua vez, não se sentia no direito de recusar — psicanalistas, sociólogos, historiadores, lingüistas etc. Quisesse ou não, p o rq u e, afinal, era assim que as coisas funcio navam na França, e aqui, além d o mais, to m a v a m u m a ine q u í­ voca feição oposicionista. M arilen a , à m edida que sua ascendência e audiência s u ­ biam aos céus, ia, assim , c o n firm a n d o o estereótipo im em orial e, depois, m era su ­ perstição acadêm ica, de que cabia a o “ filósofo” a últim a palavra sobre to das as questões relevantes. M a s não era isso m esm o o que estava acontecendo? C om muita disposição e cora gem , aliás: o que con firm ava o u tr a dim e n sã o mítica do p e rs o n a ­ gem, a filosofia c o m o resistência à tirania. C o m isso o prestígio d aqu ela coisa m o r ­ na e meio cinzenta q u e era o D e p a rta m e n to de Filosofia cresceu exponencialm ente. Seria injusto se não acrescentasse im ediatam ente qu e a nossa co tação em bolsa t a m ­ bém e x p lo d ir a g raç as a o t r a b a lh o d o G ia n n o tti ju n to a o a lto clero re u n id o no CEB RA P, o n d e ta m b é m , c o m o nos te m p o s d o “ S em inário M a r x ” , questões de m é to d o e f u n d a m e n ta ç ã o de Deus e sua época e ra m com ele m esm o, p o r ser filóso­ fo e estar seguindo a m esm a trilha francesa ce n trad a nas ciências h u m a n a s e, co m o M a rilen a , igualm ente na c o n tra m ã o , c o m o exigia o m a rx ism o transcendental que professávam os, e sua irra dia çã o se intensificava co n fo rm e se e x p a n d ia a influência política d o CEBRAP, que a p artir das eleições de 1974 passara a assessorar o MDB.

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N ã o sei se e x tra p o lo c o n tin u a n d o mais um p o u co com o fen ôm en o M arilena C haui?

Absolutamente. Pois en tão , em m e ado s dos an o s 70, u m a especialista em E spinosa, de fo rm a çã o uspiana e, p o r ta n to , francesa, to rn ara-se um intelectual público, e, logo, logo, t a n ­ to um polo de a tra ç ã o p a r a a mídia co m o u m a referência p ara a esquerda cultural que estava recom eçan do a se p ô r em m ovim ento . O u m elhor, artigo de fé para um a das m etades em que o Partido Intelectual a p artir daquele m o m e n to se dividiu, para sem pre — aliás, m uito, m uito antes da g u in a d a à direita da tuc an a g em (o último revestimento daquela ou tra metade, com a qual, aliás, sempre me identifiquei e nunca reneguei até o p o n to de n ão reto rn o de 1994). N o c a m p o filosófico que nos inte­ ressa, na o u tra m etade (aliás, hemisfério superior) brilhava a estrela do G iannotti. M a s co m a aju d a providencial da D ita d u ra , c o n tin u a ría m o s to d o s juntos, corno n u m a família, prim os pobres e prim os ricos. E óbvio q u e c o m a f u n d aç ão do PT a coisa com eçou a az edar até d e s a n d a r de vez. (Hoje n ã o sei mais, desgarrei-me faz tem po, mas, pelo que ouço , pelo m enos a família filosófica reagrupou-se em to rn o de seus m aiorais e respectivos clãs.) Seja co m o for, a c h o que n ão se p od e p erder de vista aquela bifurcação d o nosso c a m p in h o intelectual paulistano, que, de m e ta m o r­ fose em m e tam orfose e transfusões de p arte a p arte, co n tin u a v ig o rando até hoje, alim e n tan d o , nos m esm os term os, os a n á te m a s recíprocos, que re m o n ta m àquele p rim eiro e s tra n h a m e n to m ú tu o entre “ a t r a s a d o s ” e “ m o d e rn o s ” na inteligência de oposição. H oje nossas classificações to têm icas distinguem entre “ b á r b a r o s ” e “ci­ vilizados” , “ n acio nalistas” e “ c o s m o p o lita s” etc. Por exem plo, foi essa divisão que pesou q u a n d o mal inaugurada a N o va República principiou a autofagia gerencialista da U niversidade, no c a m p o adverso à suposta inércia corp o rativ a da “ o u t r a ” es­ q u e rd a , que se au to c o n d e n a v a p o r n ão c o n ta r em suas fileiras figuras d o prim eiro time, salvo, é claro, M arilena, que, no e n ta n to , era e n ão era vista co m o tal. Aqui a encrenca, pois ela era inequ iv o ca m e n te um a scholar (hoje o m a io r c urrículo da Faculdade, co m o se diz), porém , c o m fam a (ard u am e n te c onqu ista da) de “ p o p u ­ lista” , inclusive q u a n d o desancava o fam igerado “ n a c io n a l-p o p u la r ” . O u tr o m a r ­ co: M a rilen a presente e a tu a n te na f u n d aç ão d o C E D E C [C entro de E studos de Cultura C o ntem porânea] em m eados dos 70, que entendia se c o n tra p o r ao CEBRAP co ncentrando-se no a c o m p a n h a m e n to dos novos m ovim entos sociais e que p o r isso m e sm o ac h ava q u e a sua idéia de dem ocracia n ão era a m esm a que o star system do CEBRAP brandia co n tra o autoritarism o. E n ovam ente reen contram os M arilena na linha de frente do debate que afinal reinventou a idéia de dem ocracia n o âm b ito da esquerda brasileira. A cho que interessa recap itular co m o , o u tr a m o stra do fu n ­ c io n a m e n to a um te m p o descarrilado e p ro d u tiv o da cultura filosófica no Brasil. Q u a n d o voltei em 1973, encontrei nossa am iga em plena leitura do M aquiav el de ICIaude] Lefort, que era um am igo da casa, pois a n d a r a pelo D e p a rta m e n to pelos idos de cinq üenta em curtíssima te m p o ra d a . M a s o interesse de M a rilen a — que, àquela altu ra, já beirava o entu sia sm o — vinha é claro pelo lado M erleau-Ponty, que n u m a n o ta de r o d a p é célebre a n u n c ia ra a fu tu ra o b ra d o discípulo co m o um a revolução em m atéria de filosofia política. Pois foi esta última que M a rilen a (outra

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vez no exercício de suas funções filosóficas de fun d am e n taç ão ) com eçou a explicar (e rendeu-lhe um a apostila quilom étrica) aos seus colegas da política e da sociolo­ gia — e justam en te os serviços da filosofia franco-uspiana eram de fato requeridos, pois até a distinção lacaniana entre sim bólico e im aginário entra v a no esquem a de Lefort, qu e aliás recorria de m o d o meio eso p ian o a M aquiavel p ara investir co n tra o sistema soviético. N ã o deu ou tra: nascia ali a m o ld u ra filosófica de q u e carecia a noção de dem ocracia perseguida pelos novos “a to re s ” (Touraine, quem diria...) dos m ov im ento s sociais nascentes — coisa de que sequer suspeitava a obsessão a n ti­ c o m u n ista de Lefort. Q u a n to a M a rilen a , descob rira afinal o que fazer com seu Espinosa — possível heran ça althusseriana da fixação dos m arxistas franceses com Espinosa: entroncá-lo na tradição dem ocrática que rem ontava a Maquiavel. E nquan­ to d o o u tr o lado, o dos prim os ricos — no qual eu fazia m odesta figuração — , d e ­ m ocracia (por e n q u a n to filosofia, G iannotti só chegaria a o tem a an o s depois) às vezes era apenas sinônimo de an tiau to ritarism o , às vezes u m a d e m o n stra ç ã o indire­ ta de qu e o a p r o f u n d a m e n to da m o d e rn izaç ão eco nôm ica, m esm o nos m a rc o s ine­ lutáveis da dependência, podia dispensar a D ita d u ra — afinal o ram o rico da famí­ lia ain d a era fra n ca m ente m aterialista, e p o r ta n to dem ocracia era firula liberal. M a s n ã o foi ape nas nesse front q u e a nossa ex-rainha do baixo clero saiu na frente. T a m b é m foi pioneira na reconversão da curiosidade filosófica profissional p a r a o as su n to brasileiro. T ó p ic o a b e rto e en c errad o pelo p ró p rio C ru z C osta, que gostava m u ito de d epreciar o que ele m esm o fazia, sab en d o que p ara a jovem g u a r ­ da uspiana filosofar sobre o Brasil era u m c om pleto despropósito. A cho que de fato o dossiê foi rea berto pela tese d o C aio N a v a r r o de T o le d o so bre o ISF.B, n ão sei ao certo, m as n ã o se tra ta de d isputa da prim azia. O fato é qu e naquele m esm o a n o de 1973 me deparei c o m M arilen a lendo as o b ras com pletas de Plínio Salgado, na boa intenção de fazer u m a “ Crítica da razão a u t o ritá r ia ” , nem mais nem menos, na pes­ soa do próce r verdeam arelista. A n o vida d e é claro não estava no a ssunto, a resis­ tência à D ita d u ra d esencadeara um a e n x u r r a d a de estudos sobre o p en sam e n to a u ­ to ritá rio brasileiro. T a m p o u c o o que parecia arrevesado n o projeto n ã o se devia à falta de nobreza d o objeto, pois não há n ad a de tã o raso em nossa m atéria local de que n ão se possa d e s e n tra n h a r tema p ara reflexão de alcance geral, m as à notável discrepância dos gêneros. O u p o r o u tr a , a incongruência resultava de u m a certa im e om pree nsão do que estaria em jogo — ou en tão , p a r a ser mais ex a to , da c o m ­ preensão co rren te da experiência cultural brasileira, cuja distância em relação ao p a d r ã o euro p e u de vida intelectual socialmente coerente seria mais de g rau d o que ta m b ém de n aturaza. C o m o não é bem assim, um Plínio Salgado literal era promessa de c onfusão. Aqui a bifurcação d o Partido Intelectual m u d a de sinal, se o te rm o de c o m p a r a ç ã o for o a n terio r a pro p ó sito da querela em to r n o da q u estão d e m o c rá ti­ ca, q u a n d o dava p ara pressentir a deriva “c o n s tru tiv a ” dos prim os ricos e o alto preço intelectual a p a g a r pela longa m a rc h a através das instituições que se iniciaria em 1982, com as prim eiras ad m inistrações estaduais c o n q u ista d as pela esquerda. E que se deu o seguinte disp arate histórico: a esquerda viva que estava to m a n d o c o r p o naquele m o m e n to , e da qual nossa am iga era um a das m a d rin h as incontes­ táveis e que c u lm inaria nesse a c on te cim ento notável que foi a criação pela pró pria classe de um p artid o socialista dos tra b a lh a d o re s, essa m e sm a esquerda, pela sua

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ala intelectual mais a tu a n te e influente, nascia desligada, de caso pensado o u n ão — q u a n to a M arilen a , p o r certo de caso p en s ad o — , p ara n ão dizer ig n o ran d o , o m e lh o r da tr ad ição crítica brasileira, c o m o aliás já fora o caso, com a única exce­ çã o de C aio P rado Jr., da linhagem co m u n ista , à qual se c o n tra p u n h a frontalm ente aliás a nova esquerda. H oje dita do te m p o das cham inés pelos novos ricos que justam ente h e rd a ra m e m a lb a r a ta r a m aquela m esm a herança crítica brasileira de que estou falando. Esse desen c o n tro histórico ainda n ã o foi d evidam ente avaliado. De m in h a p arte ac ho que o R o b e rto [Schwarz] já deu um p rim eiro e e n o rm e passo o b se rv a n d o n o artigo sobre o “ Sem inário M a r x ” que até m e sm o (ou sob retu d o ) a ala dos prim o s ricos ac a b o u e n tre g a n d o a r a p a d u r a justam ente p o r u m “ déficit de neg a tiv id ad e” tal que só se explica — inclusive ou antes de mais n a d a o desastroso m a rx ism o industrializante deles — p o r n ã o terem sabido se deixar im p re g n ar pelo ím peto oposicionista d a crítica cultural e ensaística de M a c h a d o ao M o d e rn is m o , im pulso p r o p ria m e n te de c o n f r o n to sem resto c o m o m u n d o d o capital. Pois de m aneira ain d a mais d ra m á tic a — p o r q u e não era p a r a acontecer — foi isso que ocorreu com aquela estréia no esforço secular de reversão da tenuidade da experiên­ cia brasileira. N ã o adianta lem brar — ou m elhor adian ta sim, sentimos mais o d ram a — que A n to n io C â n d id o , Sérgio B uarq ue de H o la n d a , M á rio P edrosa etc. assina­ ram a ata de fund aç ão do Partido dos T ra b a lh a d o r e s , p o r m a io r que fossem a c o n ­ vicção e o e m p e n h o m ilitante, e ra m vida e o b r a paralelas. D ese n co n tro ab e n ç o a d o p o r nossa am iga M a rilen a , na c o n d içã o inquestionável de m e n to ra filosófica (últi­ ma ratio inapelável) d a então novíssima esquerda, c o n s a g r a n d o o divórcio com o m elhor d a in te rp re taç ão d o Brasil, não o b sta n te la n ça d o pela m esm a época na vala c o m u m da assim c h a m a d a “ ideologia da cultura brasileira” . N ã o que esta última n ã o fosse ideológica da cabeça aos pés, o p ro b le m a n o v am en te era o que sempre deu a p en sar a crítica digam os im anente desse m esm o material d uvidoso. M a s v o l­ tem os às reinações de M arilen a , e veja-se se n ão dá p ara sentir o dram a : é que p o r incrível qu e pareça, ela estava na direção certa, e tr a b a lh a n d o sozinha. O que a in ­ da é mais notável em t o d o esse episódio, é que p o r conta pró p ria — e vindo de onde veio, de um meio impermeável a esse tipo de q u estão, a filosofia franco-u spiana — ela p ercorreu to d a a ensaística brasileira de in te rpre taç ão das idiossincrasias naci­ onais, em princípio p ara en ten d e r o surto integralista, e se deu con ta de que se t r a ­ tava de um infindável ca tá logo de itens faltando no estoque: n ã o tín h a m o s bu rg u e­ sia o u a nossa n ão era co m o as outras; m u ito m enos classes su balternas m o d e rn a s e autônom as; a classe média era gelatinosa; a sociedade civil, am orfa; a luta de classes, inope ra nte; o E stado, h ip e rtrofiado; as ideologias, de segunda m ão; o capitalism o enfim , era o r a tardio, o r a diferente. Em sum a, o que n ã o faltava era desvio, n ão éra m o s o que deveríam os ser, e o que é r a m o s era o q u e nos separava d aq uilo com o qual não nos conform ávam os. N u m a palavra, pen sando com seus botões, Marilena a tin a ra com a dialética m esm a da experiência social brasileira, a rigor c o m a m a té ­ ria bru ta das incongruências que tal “ d ia lética” sistematizaria de mil e um a m a n e i­ ras. Sim plesmente avançaria o sinal, co n c lu indo m u d a n d o de m ão: a trad ição críti­ ca brasileira, nela incluído o diagnóstico a que me referi, n a d a mais fizera do que engolir o clichê co n serv ad o r d o Brasil e r r a d o e p o r ta n t o a ser a tu aliza d o segundo o p a d r ã o das m odernizações c o n s e rv a d o ra s de praxe. R ifado p o r ta n t o o inventá-

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rio das diferenças, n ã o nos faltava n a d a , tu d o p o r aqui estava n o seu devido lugar. C o m o n ã o há história do Mesmo , ap a g av a m -se to d a s as diferenças da “ história n a c io n a l” : da passagem da C o lô n ia à N a ç ã o até o te atro de s o m b ras que teria sido a fam igerada R evolução de 30, e p o r aí afora. C o m o so b ra talento em nossa perso ­ nagem, n ã o houve falha h u m a n a , m as técnica: culpa da filosofia.

E como você avalia a experiência da revista T e o r ia e Prática? Q u a n d o ela apareceu em 1967, eu era a lu n o de Ruy Fausto. Eu era um a lu n o ap li­ ca d o que m o rav a na fronteira da “ Boca d o L ix o ” , sem telefone, televisão nem p e n ­ sar, e com o dinheiro curto. Estudava em tem p o integral, o meu único c o n ta to com o m u n d o real era através d o Bento... V ejam só, voltei p ara a M a ria A ntônia, lar­ guei a militância política estudantil e resolvi me to r n a r um super “c h a to - b o y ” . Ris­ quei to d o o meu p assad o político espiritualista, e n q u a n to M a r x passava a ser a p e ­ nas u m a referência ep iste m ológ ic a, q u e interessava p a r a a lógica e p a r a a o n ­ tologia. Isso, via G ian n o tti. Via Bento, era um M a r x mais exó tico e interessante, era o M a r x de Sartre e M erleau -P onty . O que realm ente interessava era u m a boa tese, logicam ente consistente, sobre a dialética de M a rx . De m in h a p arte , n ã o h a ­ via n en h u m vínculo social c o m a b s o lu ta m e n te n a d a . E stávam o s de costas p a r a o país, e m b o ra fôssem os, do p o n to de vista teórico, politicam ente avançados. P o ­ dia-se ser especialista em O capital, con hecer to d a a história d o bolchevism o — c o m o R uy conhecia — , mas apenas c o m o p r e â m b u lo ou p rete x to p ara um a boa tese de filosofia. Q u a n d o eu estava n o últim o a n o da Faculdade, apareceu a Teo­ ria e Prática, em 1967. Foi q u a n d o me aproxim ei mais d o Ruy Fausto, que sem o saber se enc arre­ g ou da m in h a re e d u c a ç ã o política. Ele m e fez ler T ro ts k y , a biografia de Isaac D eutscher, sem falar no folclore do segundo “ Sem inário M a r x ” , d o qual u m a p a r ­ te foi fazer a Teoria e Prática. Foi aí que as coisas c o m e ç a ra m a se ju n ta r, q u a n d o a Faculdade se radicalizou e os estu dantes c o m eç aram a passar p ara a clandestini­ dade, p r e p a r a n d o a e n tra d a na luta a rm a d a . O ra , a m in h a perspectiva se inverteu: o farol passou a ser a Teoria e Prática, essa era a g ran d e revista e eu tin ha de es tu d ar d esespe ra dam e nte p ara a c o m p a n h a r aquilo, p o rq u e era ali que as coisas iriam acontecer. Bento co n tin u av a a ser a m i­ n h a reserva literária e filosofante, m as Ruy passou a ser a m in h a referência políti­ ca, ta n to é que, em d ete rm in a d o m o m e n to , eu comecei seriam ente a me considerar um trotskista im aginário. E o R uy me sa b atin av a, dizendo: “ Você está indo bem, já conhece B o rd iga” . Você foi para a França em 1969. Defendeu seu doutoramento sobre Hegel em 1973, que veio a ser publicado no Brasil em 1981 e que aca­ ba de ser publicado na França. Como você avalia esse seu doutoramento hoje? Já ouvi m uitos elogios a esse tra b a lh o , e estou c o m e ç a n d o a desconfiar que as pes­ soas ac h a m que é a única coisa boa que fiz. N u n c a se sabe. N o e n ta n to , seria um a injustiça desnecessária dizer que se tra ta de um tr a b a lh o escolar, q u a n d o na v e r d a ­ de se tra ta da tese p a d r ã o franco-brasileira que to d o o m u n d o fazia. Ela tem dois

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méritos: prim eiro, n ão está escrita inteiram ente em jargão hegeliano. O segundo m érito é que eu acho q u e a idéia da tese é boa.

Você tinha o M arx no horizonte? Era um M a rx muito precário, mas tinha. O p o nto de vista da tese é o do jovem M a rx , a in te rp re taç ão que ele faz da Fenomenologia do espírito, em que o conceito de tr a b a lh o é fu ndam e ntal. E tinha um p o u q u in h o d o jovem Hegel de Lukács. Essas era m as m in has únicas referências. V agam ente, m as m uito mal digerido c o m o um o u tr o horizonte, tin h a algum as coisas de G ia n n o tti, das Origens da dialética do trabalho. A perspectiva sobre Hegel, n a tu ra lm e n te, só poderia ser m arxista, e ela foi se a c en tu an d o , n o decorrer da reda ção, devido a o livro de [Gérard] L ebrun, La patience dti concept. N o limite era um a tese co n tra L ebrun, m as, a o m esm o te m ­ po, ela o assimila, pois o seu livro tin ha sido u m a revelação p ara mim . N a verdade, o que eu pensava era: “ co m o é q u e eu posso justificar o a c e rto in v o lu n tário do L e b ru n ?” . Eu fiz um a prim eira redação dos capítulos iniciais, apareceu o livro de L ebrun, interrom pi a tese e fiquei vários meses e s tu d a n d o L ebrun. É u m g ran d e li­ vro, e eu tinha de explicar p o r qu e esse livro é bom , m esm o es tan d o inteiram ente errado: a idéia de que Hegel não é um filósofo d o u trin á rio , essa é a sua idéia genial. Só que L ebrun centra isso na idéia de linguagem. C o m essa descoberta ele ac ab o u r e duz ind o Hegel e a dialética a um discurso, a um a façon de parler.

Durante dez anos você esteve empenhado num projeto sobre o “ABC da miséria alem ã”. Em que consistia esse projeto e o que o levou a interrompê-lo? Q u a n d o eu estava na França, escrevendo a m inha tese, percebi que eu ta m b ém , para variar, estava co rren d o p o r u m a pista inexistente. Estava term in an d o u m a boa tese, aliás fui p re p a ra d o na USP para fazer isso, e tinha d u a s escolhas na volta ao Brasil: p od ia c o n tin u a r fazendo a lição de casa, isto é, aquilo que os meus professores es­ p era v am que eu fizesse depois d o d o u to r a d o em Hegel. T eria de fazer u m a livredocência e x plica ndo a Lógica, de Hegel. Escolheria u m p ro blem a, tentaria explicálo e m o stra ria co m o da Lógica se passa p ara O capital — o p r o g ra m a d o “ S em iná­ rio M a r x ” , de G iannotti e de Ruy. F.m p arte eu até comecei a fazer isso, pois c h e­ guei ao Brasil e dei dois anos de curso sobre a Lógica. Essa escolha seria a mais fácil. P or inércia eu faria um tr a b a lh o bem feitinho sobre a Lógica, seria útil etc. A outra escolha, mais arriscada, exigia mais energia e mais coragem. A o mesmo te m p o que eu descobri o Brasil, com eçava a descobrir coisas sobre a história da A lem anha, que n ão po deriam en tra r na tese, pois seriam consideradas historicismo, e eu n ã o tinha ainda condições de ju n ta r tu d o isso. Q u a n d o descobri que o Brasil que eu estava e s tu d a n d o via R o b e rto fSchwarz] era u m a sociedade nacion al perifé­ rica, e que as sociedades nacionais periféricas, a p a r tir do século X IX , tendiam a se assem elhar, c o m o P ortugal, A lem anha, Rússia, Irla n d a, Itália, Á ustria etc., isso foi um a “ mina de o u r o ” . E o que pensei? A n to n io C â n d id o é interessante p ara dizer o m enos, R o b e rto idem. N ã o sab em e n ã o d ã o a m ínim a p ara K ant, Frege e c o m p a ­ nhia. Aí tem coisa, devo estar n o bon de errad o . São esses “c a r a s ” que co n tam . Para bem o u p a r a m al é a eles que se te m de referir p ara in te rp re tar um objeto histórico

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específico, que é o único sobre o qual nós p o d em o s falar: o Brasil. Pois só po d em o s falar d o m u n d o através d o Brasil, conso lidando -se ou se d e s m an c h an d o . Por o u tr o lado, se eu virasse um especialista em Hegel, que é um a u t o r “ q u e n ­ te ” , o que eu p oderia ser? N o m á x im o um bom professor de filosofia clássica ale­ mã. Eu iria me a p o s e n ta r d e ix a n d o papers úteis p ara as pessoas q u e viessem d e ­ pois — afinal o D e p a rta m e n to tinha sido feito p a ra fu n cio n a r dessa m aneira. Só qu e naquele m o m e n to já não m e interessava mais fazer só isso, eu tinha de passar p a r a o o u tr o lado. M a s, para isso, eu estava c o m p letam e n te d e s p re p a ra d o , n ã o só n o sentido escolar, estava m e n talm en te d es p re p arad o . Eu era um ó tim o a lu n o da Filosofia, o q u erid in h o de to d o o m u n d o , mas, ao m esm o tem po, considerava-m e um idiota com p leto, incapaz de dizer q u alq u er coisa interessante sobre q u alq u er assu nto q u e n ã o fosse Hegel, Nietzsche e cia. Poderia, é verdade, d a r um as aulas sobre Saussure, Lévi-Strauss, Freud e Lacan. M a s to d o o m u n d o podia e devia fa­ zer isso, esses tem as tin h a m v irado um assun to escolar e profissional. E eu a s p ira ­ va p o r um a vida intelectual m e n o s rotin eira, em que pudesse falar e escrever coisas que as pessoas do o u tr o lado, julgassem interessantes e, so b retu d o , que servissem p ara algum a coisa. N o e n ta n to , eu não pod ia passar p ara o o u tr o lado co m o se fosse fazer um a p ó s-g ra duaç ão em sociologia ou literatura. N ã o iria ficar estu d a n d o W e b er e D urkheim p ara , depois de vinte anos, escrever algu m a coisa sobre industrialização no Brasil. N e m era meu p r o p ó sito escrever sobre história política, econô m ica d o Bra­ sil. O meu p r o p ó sito era pensar a cu ltu ra brasileira de u m a m a n eira que n ã o fosse o trivial dos estudos literários. E quem escrevia dessa forma era o Roberto, n ão havia o u tro . R o b e rto era c o m p letam e n te a n ô m a lo , p o rq u e era fo rm a d o em sociologia, conhecia bem M a rx , conhecia os frank fu rtianos e tinha u m a co m pre ensã o anti-ideológica da literatura. F. pensei: o que posso fazer na m esm a direção? N ã o seria p o r meio de u m a g r a d u a ç ã o em sociologia ou em teoria literária. T in h a de fazer sozi­ nho. E fiz com leituras indiretam ente m o n ito ra d a s p o r R o b e rto , q u e passou a ser um a espécie de referência p erm a nente . Eu ap re n d ia co n v e rsa n d o com ele, e es tu ­ d a n d o o que ele estava escrevendo. Ao ler os textos de I.ukács (so b re tu d o os de filosofia clássica alem ã e Hegel), eu fiz u m a grand e descoberta, grand e p ara o t a m a n h o da m in ha ig norância, é cla­ ro: Lukács te n to u , m as n ão conseguiu, vincular filosofia clássica alem ã e d esenvol­ vim ento desigual e c o m b in a d o n u m país periférico. Ele afirm o u que um a coisa tem a ver com a o u tra , m as n ão d e m o n s tr o u com o. Se eu dem onstrasse, cu m p riria o p r o g ra m a m a rx ista , que era o da m inha fo rm a çã o uspian a, e teria u m a chave p ara c o m p re en d e r o vínculo entre vida m ental e processo social n as situações periféri­ cas, que, p o r sua vez — c o m o o R o b e rto estava p r o v a n d o — , revelam a natureza d o núcleo central. O a b a n d o n o desse p ro g ra m a [“ ABC da miséria a l e m ã ” ) foi estritam ente cir­ cunstancial. N ã o renego n a d a e n ão há mistério: sim plesm ente não acabei. Eu q u e ­ ria explicar c o m o funciona o discurso hegeliano e co m o funciona a dialética. T r a ­ tava-se de um a história da m o d e rn izaç ão através da intelligentsia, que p ro cu rav a m o stra r c o m o se dá a passagem d o ilum inism o p a r a a dialética, e co m o , já no ilum inism o, há dialética. Comecei com os franceses e depois passei p ara a A lem anha,

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ou seja, tratei de co m o os franceses são refra tados n a A lem anha, e de c o m o a d ia ­ lética ap areceu p ara d a r co n ta dessa refração, desse deslocam ento. E n tã o comecei co m um ensaio sobre a invenção hegeliana da dialética dos intelectuais na Ilustra­ çã o francesa, co m o isto era d e c a n ta d o n u m a espécie de “ Q u e stã o de M é t o d o ” e culm inav a no exorcism o do êxtase intelectual d u r a n te o T e r r o r jacobino. Eu p r o ­ c u ro m o stra r c o m o esse êxtase intelectual foi re fra ta d o na A lem anha, n u m a espé­ cie de lógica interna fantasm ag órica das idéias. D epois disso, eu trataria d o s italia­ nos e de G ram sci, passaria p a r a a Rússia (em bo ra o c a m in h o real fosse o inverso), m o s tra n d o co m o os franceses e os alemães foram lidos p o r lá. Para isso, eu teria de e s tu d ar to d o s os publicistas, a radicalização da intelligeittsia russa e, so b re tu d o , a figura d o intelectual nos grandes ro m an c es russos d o fim d o século X IX , em Dostoiévski e Tolstói. Sem falar n o u tra s periferias européias. Até sobre Portugal escre­ vi algum a coisa e engavetei. M a s to d o esse p ro g ra m a iria consum ir um a vida inteira. H avia, dessa m aneira, um p a n o r a m a m undial a ser estu d ad o . E, nesse siste­ ma de diferenças e continuidades, havia algum a coisa com o u m pensam ento dialético dessa m u ndialização da cultura e d o capital que era um a e x p a n sã o diferenciada, pois tratava-se d o centro e da periferia. Q ueria m o stra r que esse estudo era feito p o r um brasileiro, o u seja, q ue se tratav a d a perspectiva crítica da periferia sobre o m o vim ento das idéias q u a n d o se dá a ex p a n sã o d o capitalism o desde a hegem onia inglesa até o início d o século X X . Feito isso, o m eu foco passaria a ser o Brasil, e eu estava lendo sob re o Brasil, p a ra fazer a junção e, p o r ta n to , a c o m p a r a ç ã o sistem á­ tica. N u m d ete rm in a d o m o m e n to , em 1982, pela prim eira vez eu arrisquei d a r um curso sobre filosofia e cu ltu ra no Brasil, no p rim eiro a n o de filosofia. Em 1983, q u a n d o eu estava com o assunto razoavelmente a rr u m a d o em m inha cabeça, a Folha de S. Paulo m e pediu p a ra resenhar o livro de Ruy [Fausto], e eu pensei: “ Bom, agora eu vou e n t r a r ” . O b v iam en te eu n ã o resenhei o R uy, falei de um c a pítulo brasileiro d o m a rx ism o ocidental. Em 1984, comecei a e s tu d ar C ruz C osta. E, p a ra isso, h a ­ via u m a co n tin uidade: comecei p o r C ruz C osta, passei pelo D e p a rta m e n to de Filo­ sofia, e cheguei aos clássicos locais e a fo rm a ç ã o da filosofia p aulista na, ou seja, cheguei a Bento, G ian n o tti, P o rc h at e Ruy. Nesse m o m e n to , falei p ara o R oberto: “ Essa é a h o ra do vam os ver. Se eu largar os alemães, eu largo u m tr a b a lh o que está bem e n c am in h ad o . M as, ac ho que é ho ra de arriscar — q u em quiser que c o n ­ tinue essa tarefa — , e vou tr a t a r d o as su n to para o qual me preparei, que é o as­ su n to de m a tu rid a d e de to d o s nós — o Brasil” . Dessa form a, fiz u m a passagem que ac h o mais ou m enos coerente. F. o que me interessava era passar pelo filtro a idéia crítica de fo rm a çã o e o tra n sp la n te cultural responsável pela m in h a p ró p ria consti­ tuição m ental filosófico-uspiana. E larguei o “ ABC da miséria a le m ã ” . N ã o falta­ ra m os c o m en tá rio s sinceram ente desolados: “ Esse cara larga a lógica, vai p a r a a esquerda hegeliana, vai estudar filósofos menores, depois larga a história d a filosofia, vai fazer sociologia das idéias na A lem an h a , e depois passa p ara C ruz C o s ta ? ” .

Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Como você vê as re­ lações entre a filosofia e a cultura brasileira? Com eçarei pelo trivial: falar em filosofia brasileira é c o m o falar em filosofia fra n ­ cesa, alem ã, italiana etc., ou seja, a filosofia feita na França acab a g e ra n d o um a

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tr ad ição pelo fato de te r sido feita na França, e n ã o p o r ter vínculos atávicos ou so b ren a tu rais com algum espírito da terra ou coisa q u e o valha. Nesse sentido, a filosofia brasileira é o c o n ju n to de publicações brasileiras sobre um as su n to tr a d i­ cion alm ente classificado de filosófico pelos bibliotecários. Isso é a filosofia feita no Brasil, e ela não é distinta das dem ais p o r ser “ brasileira” . D ito isso, nem tu d o está dito. A filosofia brasileira não é brasileira, ela é im p o rta d a. Assim co m o a filosofia a m erica na n ã o é am ericana, é alem ã. A assim c h a m a d a filosofia analítica am erica­ na, a filosofia neopositivista am erica na, é a filosofia alem ã que, nos an o s 30, imi­ gro u para os EUA. M a s nem p o r isso a filosofia brasileira deixa de ser algum a coi­ sa que tem u m estilo p ró prio, e que este estilo respo nde p o r um a tr ad ição m uito p articula r de estu dos cujo e m b riã o se com p leto u nos anos 60 n o Brasil. Esse e m b rião diz respeito ao tran sp lan te de técnicas intelectuais francesas de lidar com filosofia q u e se realizou a p artir dos a n o s 30, isto é, a tr a n sp la n ta ç ã o da filosofia universitária francesa q u e d esem b a rc o u em São P aulo sem m aiores m e d i­ ações. T ra ta -se de professores q u e chegavam nas classes d o fu tu ro D e p a rta m e n to e co m eçavam a falar em francês co m o se estivessem em um liceu, ou em u m a facul­ d a d e de província francesa, an u n c ia n d o a to c o ntínuo: “ nesse semestre vam os estu­ d a r tal a s su n to ( n o rm a lm e n te a idéia disso ou d a q u ilo na filosofia de fulano ou beltrano), a bibliografia é essa, os tem as de tra b a lh o são esses, sem inário é assim, dissertaç ão se faz assim c n ã o existem mais cursos p a n o râ m ic o s , a p e n as m o n o ­ gráficos” . C o m isto, a colonização co m eço u a ser feita. F.ra um a colon ização ne­ cessária e a seu m o d o progressista que fazia com q u e as pessoas, se desvinculassem de to d a a tralh a ideológica qu e se im aginava ser filosofia nas faculdades de Direito o u nos círculos am a d o re s que filosofavam p o r co n ta pró p ria na cidade. As pessoas se isolavam, r o m p ia m com essa m e ntalidade municipal e passavam a se c o m p o rt a r co m o se fossem europeus. À prim eira vista, n a d a mais desfrutável, m as foi dessa alie n a ç ã o q u e afinal p r o v o u ser p r o d u tiv a que resultou o a s su n to q u e está nos o c u p a n d o agora. A filosofia brasileira é u m corpus q u e n ã o precisa se ap r e s e n ta r c o m o um c o n ju n to de ob ras “ originais” de filósofos brasileiros inspirados — isto é bobagem . T ra ta -se de um m o v im en to coletivo que se cristalizou no final dos a n o s 60, q u a n ­ d o as prim eiras teses “eu ro p é ias” foram concluídas. F. esse estilo acabo u sendo iden­ tificado c o m o ch a to , m o r n o e técnico, ou seja, filosofia paulistana, da USP. E a fi­ losofia feita n o Brasil em term os profissionais, e que p o r isso, é capaz de sustentar a c o m p a r a ç ã o c o m o similar estrangeiro. E isso f o rm o u (e form a) alunos, público, leitores escolados e um a g am a variada de publicações. C onstituiu-se um repertório de referências bibliográficas, de te m as a serem estu d ad o s, de m aneiras de se fazer teses, de se d a r aula e assim p o r diante. Esse repertório foi fundam ental, pois, a partir de um d ete rm in a d o m o m e n to , foi possível dizer que a filosofia n o Brasil fu n cio n a­ va, e que existia um a filosofia brasileira. M as isso não quer dizer que haja um a lógica brasileira diferente de um a lógica da O ceania. Dito isso, vam os para a segunda p arte da pergu nta: a da relação com a c u ltu ­ ra brasileira. E um a co n s ta ta ç ã o d o lo ro sa, mas a filosofia é um a espécie de prim o p o b r e na form a çã o d o sistema cultural brasileiro. É b o m frisar isso p o rq u e as pes­ soas do r a m o ficam m u ito e sto m a g ad as co m essa afirm ação , a c h a n d o que estão

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sendo m e nosp re za das, subestim adas, ta c h a d a s de irrelevantes etc. Q u a n d o n ã o se tr a ta disso, n ã o se tr a ta de u m a desqualificação profissional e intelectual. Estas pessoas são com petentes, até demais. Para entender essa circunstância, tem os de nos c o m p e n e tra r do seguinte: a cu ltu ra de um país periférico c o m o o Brasil está intei­ ra m e n te c e n tr a d a na idéia de que através de gêneros e fo rm a s inescapavelm ente européias — o rom an c e, a poesia, a p in tu ra , a a r q u ite tu ra etc. — , trata-se de e x ­ prim ir a verdade original de u m a experiência local. O u seja, só é relevante a form a que p ro m o v e essa reinterpre taç ão , que seja um in stru m e n to de d escoberta e reve­ lação d o país. T u d o se passa en tã o c o m o se estivéssemos c o n d e n a d o s a essa figura­ çã o da experiência, à necessidade de serm os ap re sen ta d o s incansavelm ente à nossa p ró p ria e desconhecida im agem , p o r isso m esm o u m a im agem inaca b ad a . E preci­ so en ten d e r que isso n ã o faria sentido em sociedades nacionais consolidadas co m o a Inglaterra o u a França. Nesses países não há n e n h u m a in segurança q u a n t o a q u i­ lo que se é, e q u a n t o a imagem que deve se p ro jetar e construir. É c o m o se a nossa inteligência local só funcionasse na m ed ida em q u e fosse e m p u rr a d a p o r esse im pe­ rativo de configuração. Daí o caráter central da literatura. T o d a s as form as que p o s­ sam to r n a r narrável essa experiência ainda c o m p letam e n te e m b rio n ária possuem u m a função e s tru tu ra n te . Isto faz com qu e o te o r de verd a d e dessa experiência em inentem en te literária seja p u x a d o p a r a cim a, desde que ela c u m p ra essa função, daí ta m b é m um a certa tendência sentim ental a o realism o m iú d o de simples fideli­ dade à cor local, que nos e m p u rr a de volta p a r a a m iopia localista. O ra , q u a lq u e r tipo de atividade que discrepe dessa intenção está es tru tu ra l­ m ente c o n d e n a d o a te r um papel su b o rd in a d o . A filosofia, n o nosso caso, padece d u p la m en te dessa restrição. N a prim eira p arte da resposta, nós tín h a m o s definido a filosofia co m o um a rotina intelectual q u e se cristalizou em u m a d e term in a d a ins­ tituição e n u m a circunstância histórica precisa. E o alargam en to e o a p r o fu n d am e n to dessa ro tin a intelectual que, c o m o m é to d o de e studo, form a aquilo que c h a m a m o s de cultu ra filosófica fu n cio n a n d o no Brasil, in d e p ende n tem en te dos talentos indi­ viduais. A existência desse lugar su b a lte rn o deve-se a o fato de que essa cu ltu ra fi­ losófica institucional, necessariam ente universitária e profissional, é p o r definição, senão incom patível, pelo m en os indiferente a esse projeto. Ela é in a d e q u a d a p o r ­ que a filosofia profissional, e n ão há ou tra sem retrocesso doutrinário e antim oderno, não é mais nem p o d e ser u m a filosofia figurativa, isto é, n ã o tem mais condições de descrever a experiência real co m o era sua a m b iç ã o na E ra Hegel, e de tra n sp o r essa experiência real p a r a o p la n o conceituai. O ra , n o Brasil a literatura fez isso de m a n eira supletiva d u r a n te mais de um século e, depois, foi deslocada e recolocada no seu devido lugar artístico. C o m o diz A n to nio C ând id o : era u m a literatura de in c o rp o ra ç ã o e passou a ser u m a literatura mais especializada, c u m p rin d o o seu destino estético, sem a b d ic a r no e n ta n to d aquela s o n d a g em incon torn ável da e x ­ periência local. C o m o te m p o e as nossas instituições universitárias, a literatu ra foi substitu í­ da pelas ciências sociais e pela ec onom ia política. A inte rp re taç ão d o país passou a ser feita pelo ensaio sociológico — científico e universitário. P o rta n to , a sociologia ta m b é m foi u m a figuração d o país. E c o m o a filosofia é es tru tu ra lm e n te incapaz de d a r co n ta desse projeto , tem de te r necessariam ente u m a vida m arg inal. Para

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p ro sp e ra r co m o um a especialidade acadêm ica seria, ela teve de se desvincular des­ se p ro jeto de figuração da experiência nacional. A filosofia m o d e rn a , a filosofia profissional, a b a n d o n o u , c o m o um a espécie de resquício d o u tr in á rio dogm ático, essa prete n são de ser um a espécie de figuração d o m u n d o n o sentido mais am plo. Por isso que, q u a n d o a filosofia profissional ap areceu em São Paulo e se alastrou p o r to d o o país, ela p rov ocou um certo escândalo. P orque parecia u m b a n d o de pessoas co m p le ta m e n te alheadas, de funcion ários medíocres, explicadores de te x ­ tos, assimiladores de textos, de costas para o país. F uncionários que n ão tin ham n a d a a dizer p o rq u e se recusavam a ta n to p o r escrúpulos intelectuais, ou seja, p o r ­ que n ão eram dem agogos, não eram d outrinários e porque achavam que n ão podiam d e s e n to rta r o país em nom e de cosm ovisões filosóficas. P o rta n to , a filosofia p r o ­ fissional necessariam ente teve de o c u p a r esse lugar secundário. Restaria explicar o seu crescente sucesso de público nos últimos vinte anos. M a s isso já é um a o u tra história e c o m o n a d a me foi p e rg u n ta d o a respeito... Suspeito que algo tem a ver c o m o tipo de a u to -a ju d a d e m a n d a d a pelo colapso da m odernização . O D e p a rta m e n to de Filosofia era m o v ido p o r dois impulsos, um consciente e o u tr o não. N o ssa im odesta consciência técnica nos co nfirm ava na seguinte certe­ za: “ som os os melhores, q u a lq u e r q u estão de m é to d o é con o sco m esm o — até os sociólogos recorrem a nós. Somos considerad os filósofos e a filosofia é o to p o d o to p o . S om os ta m b é m estudiosíssimos e a r tic u la d o s ” . Era a superstição acadêm ica de que o filósofo sabe de tu d o . Em função disso, to d o o m u n d o estudava pra b u r ­ ro. M a s eu acho que havia a inda um a o u tra m otivação inform ulada: a de que aquele enclave fazia p arte de um esforço coletivo de co n s tru ç ã o nacional, m esm o que nin­ guém falasse disso. E nem poderia, p o rq u e seria mal visto. N o e n ta n to , ac ho que essa convicção semiconsciente era um a espécie de energia social que e m p u rra v a o estudo. M as isso que estou c h a m a n d o de “ sistema cultural filosófico” , esse conjunto de obras, de p r o d u ç ã o de leitores, de cursos, de rotin a intelectual foi im p ulsiona do p o r esse ân im o co nstru tiv o. E q u a n d o se fo rm o u , e com eçou a se re p ro d u z ir de m aneira a m p lia d a, esse élait com eçou a definhar. E o que se passou a fazer? Segui­ mos to c a n d o o serviço bem feito, fazendo intercâm bio internacional, co la b o r a n d o co m eventos — que são p a u ta d o s por um sistema de efemérides da indústria cu ltu ­ ral — e p ro n to . Insisto que isto n ã o passava pela cabeça de ninguém. Imaginava-se qu e ao passar um semestre d e b u lh a n d o os Livros Analíticos de Aristóteles, algum a coisa no país e no m u n d o iria m u d a r. Agora não, é preciso fazer bem feito para g a n h a r um a bolsa, ir para os EIJA ou A lem an ha, voltar e publicar um livro, isto é, en tu rm ar-se na rotina m undial. E a diferença que ia ser feita q u a n d o esse sistema se com pletasse não veio, e pegou to d o m u n d o n o contra pé. E veio a ditadura... N ã o , a d ita d u r a n ã o afetou. Pelo co n trá rio , ela reta rd o u esse processo, p o rq u e o D e p a rta m e n to teve de se encolher, fechar-se em copas e e s tu d a r mais ainda. C u r io ­ sam ente, q u a n d o a d ita d u ra com eçou a f r o u x a r no fim dos an o s 70, deu-se o g r a n ­ de apogeu da filosofia brasileira. C om o refluxo da ditadura, imaginou-se que o país iria virar d o avesso, que iria r e a ta r com o que era antes de 1964, que o país iria voltar a ser inteligente, que iríam os d a r um salto e co m p le ta r a agenda de dois sé-

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culos de atraso. N a filosofia, imaginava-se isso a partir d o que era feito na SBPC, c o m os cursos que se m ultiplicavam na universidade, com a SEAF [Sociedade de E studos e Atividades Filosóficas] e a A N P O F |A ssociação N ac io n al de P ó s -G r a d u ­ aç ão em FilosofiaI, e com a volta da filosofia ao secundário. E ntão, de 1974 até 1984, houve u m auge que escam oteou o fato de a filosofia já estar ro d a n d o em falso, m a s ninguém sabia disso. O país estava a v a n ç a n d o , havia fo rd ism o periférico, dos sindicatos d o ABC] estava saindo um p a rtid o dos t r a b a lh a d o re s e o P M D B havia se renovado. E, graças aos militares, com a m ultiplicação das universidades federais, havia cursos de filosofia no Brasil inteiro. E n tã o a expectativa em relação a o país q u e viria depois d o fim da d ita d u r a , e o fato de a filosofia estar co m p a ssa d a com isso, era enorm e. T a n t o é que nós a c h áv a m o s que o p ro b lem a era a d e m o c r a tiz a ­ ção d o p o d e r universitário, e que já havia o co rrid o u m a espécie de c o n ta m in a ç ã o de classes, u m a pro letariza çã o da universidade. M a s não , sim plesm ente a classe m éd ia havia sido reb a ix ad a e tinha a u m e n ta d o m esm o na falta de um m o to r fo r­ m ativo, a filosofia, que em princípio n ã o podia a te n d e r aos im perativos da figura­ ção d a experiência nacional, n o e n ta n to prosp erou. E qual foi o critério desse flores­ cimento? Fazer teses inteligentes sobre assuntos clássicos. M a s quem fazia essas teses inteligentes, tecnicam ente com p eten tes, n ã o tinha m uita perspectiva a n ã o ser a de c o n tin u a r indefinidam ente fazendo teses com petentes. Até e n tã o havia a perspecti­ va de que essa com petência iria se espraiar, esse era o projeto da Faculdade. L em ­ b rem o -n o s de A n tô nio C â n d id o divergindo de C ruz C osta, em nom e de um a espé­ cie de convicção ilum inista acerca do f u n cio n a m en to da inteligência. Q u a n d o C ruz Costa, na m elhor trad ição da filosofia pré-crítica, dizia: “ o que im porta é um a orien­ tação filosófica que dê um rum o, e, que nesse rum o, p onha feijão na panela do p o v o ” , A n tonio C â n d id o replicava de d u a s m aneiras, u m a tradicio nal e o u tra iluminista. A tradicional era a seguinte: “ temos de ter um bom curso de filosofia po rq u e q u a n d o um brasileiro p u d er d a r um a c o n trib u iç ã o original sobre os te m as universais da fi­ losofia, nós terem os d a d o u m passo gigantesco ru m o à civilização que caracteriza o co n c erto das n a ç õ e s” . H avia o o u tr o lado, o lado iluminista, que estava na o ri­ gem daquele im pulso d o qual falei anteriorm ente. E n tão dizia o seguinte, nos anos 40: “ C ruz Costa, você se enganou. N ós temos de tra ta r dos temas universais. E estou certo de que um a boa tese sobre Fichte p ro d u z o seguinte efeito: to rn a a inteligên­ cia daquele que fez a tese e daqueles que p odem decifrá-la incompatível co m a iní­ qua desigualdade social brasileira” . P o rta n to quem ap rende a pensar decifrando u m clássico (e a filosofia dessa m a n eira é sem pre progressista), lendo P latão ou Fichte, vai m u d a r o país. Foi essa energia, essa im aginação de que qu em estuda bem estará c o la b o r a n d o patrio tica m e n te p a ra redu zir o grau de iniqü idade local, que e m p u r ­ rou a filosofia na Faculdade.

Que conceito(s) de sua reflexão você destacaria como o(s) mais represen­ tativo^) da sua produção filosófica? Pediríamos que você nos contas­ se como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje. Bom, c o m o se diz em assembléia, essa p r o p o sta está prejudicada. N ã o tenho refle­ x ã o filosófica p róp ria e original e, p o r ta n to , não posso ter conceitos q u e orientem essa reflexão. N ã o é coqueterie, não estou fazendo ch a rm e a o dizer que nunca fiz

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filosofia. N ã o posso nem dizer que p retendi fazer filosofia p o rq u e, q u a n d o entrei na Faculdade, a prim eira coisa que me disseram foi: “ Você n ã o vai ser filósofo. Isso não existe. Filosofia n ã o tem c o n te ú d o e n ã o é m atéria transmissível. Esqueça isso. Você será um técnico em bibliografia filosófica” . Q u e m alim entava essa pretensão de ser filósofo era o pessoal da linha T o b ia s B arreto e M iguel Reale ou Vicente Ferreira da Silva, entre o u tra s sum idades.

Em Sentim ento da dialética, comentando a perspectiva globalizante que a idéia de dialética assume em Roberto Scbwarz, você afirma: “Roberto não só ia anotando o alcance m undial de nossas esquisitices nacionais como ia construindo uma plataforma de observação a partir da qual objetava esta mesma ordem universal. O que reconhecerá em ato no pensamento literário de Machado. Estava assim lançada a base de uma Ideologiekritik original. O mesmo chão histórico que barateava o pen­ samento e dim inuía as chances de reflexão — pois aqui se desmancha­ va o nexo entre idéias e pressuposto social, o que lhes roubava a dim en­ são cognitiva — , devolvia a faculdade crítica com a outra mão , fazen­ do nossa anomalia expor a fratura constitutiva da normalidade mo­ derna”. Quais os alcances de uma tal Ideologiekritik, e como você vê este conceito bojei Eu não sei se explico bem esse term o Ideologiekritik, acho até que renunciei a d e ­ fini-lo no texto. Vou explicar um p o u q u in h o p ara dizer o que há de original no R o b e rto e o que eu tinh a na cabeça q u a n d o estava redigindo esse trecho. A crítica da ideologia aparece q u a n d o os clássicos d o m a rx ism o reinventam a palavra “ ideo­ logia” e usam a idéia de “crítica", advind a d o século XVIII, d o Iluminismo. E bom n ã o esquecer a palavra “crític a ” está presente no subtítu lo d ’ü capital: “ Crítica da ec onom ia po lítica” . P o rta n to n ão se trata de d o u tr in a , m as de Crítica. C o m Kant, a Crítica passou a o c u p a r o lugar da T eoria , corno ele m o stra na Crítica do juízo — e é o m ote da g ra n d e tese de L ebrun, Kant e o fim da metafísica. Q u a n d o em prego o term o, estou pensando sobretu do na formulação dos frankfurtianos. Para eles, o te rm o ideologia n ã o é mais pejorativo, a p o n to de c o n s ta t a ­ rem que a o rd e m capitalista regrediu ta n to que nem mais ideologia produz. A ideo­ logia sem pre tem um fu n d a m e n to de verdade. Ela n ã o é inteiram ente falsa, nem é inteiram ente v erdadeira, não é um m ero engod o. A idéia de ideologia co m o u m a m a n ip u la çã o de m assa, em que se ludibria os indivíduos, é u m a idéia ilum inista — é denúncia da superstição. A no vidad e d o m aterialism o de M a r x é q u e ele ro m p e co m essa tradição ilum inista, co m a “ história d o e r r o ” , com a idéia de que a difu ­ são das luzes dissipará as trevas. E p o r si extrai da filosofia clássica alem ã a idéia substantiva de “ a p a r ê n c ia ” , que se co nverterá na idéia m aterialista de “ aparência social necessária” . A simples crítica raciocinante (como q ueriam os iluministas) não faz com que essa ap a rên cia se dissolva n o ar. Q u a n d o se fala em ideologia, pensa-se em racionalização. E não se tra ta a p e ­ nas disso. R epito que a m atriz da idéia de crítica da ideologia é o idealismo alem ão, até po rq u e ele m esm o é a transpo siçã o (não deliberada, é claro) d o f u n cio n a m en to real desse processo social de p r o d u ç ã o da ilusão. O prim eiro a se d a r con ta desse

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nov o â m b ito material da Crítica foi Hegel. A fonte de M a rx , a idéia dc crítica da ideologia, é a idéia de reflexão tal co m o ela aparece na Fenomenologia do espírito , de Hegel. O que faz a consciência, segundo Hegel? Ela se ilude ta m b é m , ela é um a fábrica de ideologias. Vias ela se distingue pela seguinte peculiaridade: a reflexão. Essa reflexão vai reaparecer em M a rx , só que de maneira a um tem po fantasmagórica e real, objetiva. É o capital que se refere a si m esmo, o fetiche d o fetiche. Ele funciona c o m o se fosse um a consciência: valoriza-se a si m esm o, refere-se a si m esm o, mede as suas q u a n tid a d e s etc. Em Hegel, a consciência, a o m esm o te m p o em que é uma fábrica de ideologias, é a crítica dessas ideologias, p o r q u e ela se corrige a si m esma. Ela é a sua pró pria m edida. N a fo rm u laç ão d o Hegel: “ ela é o seu p ró p rio co n c e ito ” . Ela afirm a um a verdade sobre si que até e n tã o desconhecia, e, ao e x p o r essa verdade, ela a c o m p a ­ ra com a sua experiência dessa m esm a verdade e, desse juízo passad o sobre si m es­ m a emerge algo co m o um sentim ento d r a m á tic o de seu descom passo, de sua divi­ são. N eg a çã o interna que p ro c u ra resolver p o r u m a nova o p e ra ç ã o crítica c o m a n ­ d a d a pelo seu p ró p rio p a d r ã o de m edida. P o rta n to a ideologia e a falsa consciência n ã o são inteiram ente falsas, há um m o m e n to de verdade qu e é inconsciente e o b s ­ curecido, p o r q u e há u m a relação de p o d e r e de d o m in a ç ã o na ideologia, o im pulso d o au to -e n g a n o , da racionalização etc. De sorte que o conceito de Ideologia p o r assim dizer confia n u m a verdade substantiva que existe, e é expresso p o r idéias, que p o r sua vez são em inentem ente práticas. Por isso a idéia que está e m b u tid a na ideo­ logia é a que K ant tin h a em m ente, que é sem pre idéia da raz ão , e necessariam ente prática, pois tem a ver c o m sua realização ou não no m un do. O que é c h a m a d o de ideologia burguesa, que vai d o cristianism o já to ta lm e n ­ te secularizado e racion alizado (no sentido w eberiano ) até a arte, p as san d o pelo direito n atu ra l e pela filosofia, é um a espécie de repositório de verdades da h u m a ­ n ida d e em seu progresso ru m o à em an c ip aç ão . E n tã o justiça, liberdade, igualdade, fraternidade, universalidade, beleza são idéias verdadeiras. Só são falsas na m e d i­ da em que na o rd e m burguesa se ap re sen ta m co m o já realizadas. Eoi o jovem M a rx qu em com eçou a dizer isso: “ a crítica da ideologia nad a mais é do que o b rig ar o m u n d o a confessar aquilo que ele já é, n ã o estou ac resc enta ndo n a d a ” , ou seja, na h o ra em que o m u n d o se confessa, ele se corrige. E a revolução é essa confissão, em que ele reencontra a sua verdade, expressa na inconsciência da ideologia. A ideolo­ gia, p o r ta n to , transcende a realidade, está p ara além da realidade. A realidade está aquém , e a ideologia é falsa po rq u e é um a promessa n ão cum prida. A crítica da ideo­ logia é um a o p e ra ç ã o lógico-social, crítico-revolucionária — co m o dizia o jovem M a r x — , q u e perm ite que essa verdade se reencon tre consigo mesma. O u seja, no m o m e n to em que aparece, implica necessariam ente em um a tr a n sf o r m a ç ã o social. H á , dessa form a, u m a falsa universalidade que, c o n f r o n ta d a co m a sua realização defeituosa, p o r assim dizer se regenera coincidindo afinal consigo mesma. O que é isso? U m a pressuposição m u ito forte que implica n u m a conc epç ão otim ista da his­ tória. T rata-se em sum a de um a filosofia da história. E a c onfiguraç ão derradeira dessa m ola secreta da crítica da ideologia, sua incessante co rreção interna, é a fa­ m o sa co n tra d iç ã o entre forças produtivas e relações sociais de p ro d u çã o . A rev o ­ lução é essa reviravolta, tal qual u m a experiência da consciência, no sentido hegelia-

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no. De m o d o que há um sistema de universais que constitui o a rc a b o u ç o da civili­ zação liberal burguesa clássica, do século XIX até a g rande crise entre 1914 e 1939, no interior do qual a crítica da ideologia funciona justam ente co m o o im pu lso de realização d o ideário burguês. Por isso que, nessa vertente originária d o m a teria­ lismo, o capital e a burguesia são progressistas p o r definição, liberalismo e socia­ lismo se implicam m u tua m e nte. Nesse sentido, a crítica da ideologia funciona co m o um a negação d eterm in a d a, no sentido hegeliano. N o caso de Hegel, p o r se tr a ta r de um a filosofia especulativa, essa identidade d o c o n te ú d o consigo m esm o já está assegurad a, vai haver necessariam ente um happy end. Por isso, q u a n d o com eça a tenomeiiologid do espírito, nós já sabemos que tu d o vai d a r certo, assistimos à co n s­ ciência se e d u c a n d o através de sucessivas crises m ovidas pela crítica im anente de seus castelos ideológicos, co m o nessa to a d a o negativo das p erdas se converte em positivo, a consciência vai se enriq u e ce n d o à m edida que é desenganad a. Mutatis mutandis, com o capital é o m e sm o e nredo. F.le permite te cn ic am en ­ te superar pela prim eira vez a escassez, e, p o r ta n to , perm ite à h u m a n id a d e e n c o n ­ trar-se consigo m esm a e enc errar a sua pré-história. A sua pré-história é a história dessas ilusões, a história de prom essas e m an c ip ató ria s de justiça, liberdade, igual­ dad e etc. M a s um a em a n c ip a ç ã o p o r e n q u a n to a p e n as negativa, que os sociólogos c h a m a rã o de m o dernização. E ningu ém p ode dizer que é co n tra tais prom essas, até m esm o em relação à prom essa da p ro p rie d ad e , pois é no socialismo q u e a p r o p rie ­ dad e vai se realizar co m o tal. Dessa form a, há um processo m o vido a ilusão, m as que traz consigo o germ e d a sua satisfação interna. A crítica, assim, é u m a c o m p a ­ ração consigo m esm o, co m o se o ideal burguês clássico fosse c o n s tan tem e n te p o s­ to à prova e se saísse bem sem pre d a n d o um passo adiante. O ra , n o caso de M a c h a d o de Assis, R o b e rto Schw arz n ã o pensou mais nesses term os, q u er dizer, nos term os de um a boa superação. O que ele descobriu? Q u e a idiossincrasia, a originalidade e a genialidade de M a c h a d o p erm itiram pela prim eira vez verificar que a crítica da civilização burguesa, o que os clássicos c h a m a ra m de crítica da ideologia, estava f u n cio n a n d o de m aneira diferente. Para R oberto , a r a ­ zão pela qual a Ideoloiogiekritik fu ncio nara até en tã o co erentem ente na E uropa liberal, m as n ão n o Brasil n ã o estava n o fato de qu e a experiência periférica da coexistência sistêmica de capitalism o e escravidão falseava a p ró p ria vigência dos p adrõ es civilizatórios da idade liberal burguesa. O que ele está dizendo é o seguin­ te (e é isso que te n to dizer no texto citad o p o r vocês): nós tem os a possibilidade, através de M a c h a d o , de en ten d e r o que está ac o ntecen do na F.uropa. E o que es ta ­ va ac o ntecendo na E u ro p a , na época de M a c h a d o , era a d e rro c a d a da civilização liberal burguesa. Para R o b e rto , os dois term os da crítica da ideologia, o universal e a sua realização particular, c o m o que se relativizam e reba ixam m u tu a m e n te. Dessa form a, não era p o rq u e éram o s a tra sad os, coloniais, escravistas etc., que e stro p iáv a m o s a universalidade d o p ro g ra m a liberal burguês. F. p o rq u e ele já esta­ va c o n ta m in a d o desde a raiz, isto é, a nossa experiência d em o n stra v a o form alism o da civilização liberal capitalista, m o stra v a que ela podia conviver com n ão im p o r ­ ta qual tipo de b a rb a rid a d e , c o m o a escravidão p o r exem plo. O ca ráte r form al, ou seja, a equivalência generalizada e a ab s tra ç ã o , fez co m que essa civilização p udes­ se conviver c o m to d o s os tipos de “ retrocessos” que, na verdade, nos to rn a v a m seus

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c o n te m p o râ n e o s. De m o d o que o m o to r da crítica clássica d a ideologia já estava c o m eç an d o a falhar e foi, p o u co ad iante, d e s m o ro n a r com o nazism o, ou seja, com a crise term inal da civilização burguesa, que com eço u a m a d r u g a r com o im pe ria­ lismo. Dessa form a, M a c h a d o , em seus p ró p rio s term os, estava re fra ta n d o a ex p e­ riência im perialista d o d e s m o ro n a m e n to da civilização liberal. A n o r m a universal burguesa foi d esm ora liz ada pela sua p articularização local, que ela no e n ta n to ao m esm o te m p o desqualificava. Isto aparece q u a n d o as d u a s coisas se ju n ta m e c u lm in a m na com éd ia ideoló­ gica de M a c h a d o , que é a relativização recíproca desses dois lados. Isso n ã o estava n o s clássicos, e apareceu pela prim eira vez co m os fra n k fu rtia n o s, isto é, com o colapso da civilização burguesa q u a n d o ca íram os dois lados: a n o r m a ideológica geral e o im pulso de elevar a realidade a o seu p ró p rio p a d r ã o im anente. C o n sta que H o rk h e im e r teria dito que falar em N egação D ete rm in ad a o u Ideologiekritik diante da r u p tu ra histórica represen tada pelo III Reich parecia-lhe u m a indecência. E ntão a crítica progressista da ideologia burguesa caiu p o r te rra, o que M a c h a d o anteviu e foi tira n d o p o r aqui as consequências. C o m o artista, ele era radicalm ente crítico em relação ao capitalism o, m as já não podia mais ser linearm ente progressista. Se o fosse seria mais um Silvio R om ero. D a í a invenção satírica d o “ h u m a n itis m o ” , u m a salada grotesca da fraseologia burguesa mais av a n ça d a p a r a s a cram e n ta r b a r ­ barid ades cá e lá. E nesse sentido que a crítica da ideologia foi ren ovad a. Por isso o sexto sentido d o R o b e rto foi lá e acertou, até hoje fico im pressionado.

Também em seu livro Sentim ento d a dialética, você afirmou: “Uma vez exposta a raiz social da volubilidade narrativa , a alternância prática de patrocínio oligárquico e negócios burgueses, estava montado o es­ quema histórico de que carecia o crítico, a forma objetiva exigida pelo programa dialético traçado por Antonio Cândido nos termos em que vimos Roberto Schwarz interpretá-lo. Repetindo: isso quanto a primeira acepção de dialética consagrada pela tradição materialista que m an­ da procurar na configuração artística a estrutura social sedimentada. Q uanto à segunda acepção que estamos dando à palavra, a reversi­ bilidade caprichosa de nortna e infração, acabamos de verificar que ela vinha fazer justiça à sensação de dualidade que o Brasil incessantemente disperta”. Seria essa um boa apresentação do conceito de dialética de que você se utiliza? Tal conceito guarda afinidade com a noção de “dialética negativa” de Adorno? É u m a boa ilustração, m as n ão g u ard a afinidade co m A dorno. Uso, de vez em q u a n ­ do, o te rm o “ dialética n eg a tiv a” para le m b rar que o esquem a evolutivo progressis­ ta, o que se entende p o r dialética no m a rx ism o clássico, n ã o funciona no Brasil. Isto é, L ukács n ã o funciona. E x p lic an d o o R o b e rto , n u m d e te r m in a d o m o m e n to do Sentimento da dialética, rele m b ro p o r q u e o M a c h a d o n ão é realista no sentido lukácsiano. C o m o eu n ã o tinha o u tr o te rm o , acabei u sa n d o “ dialética n eg a tiv a” . R ob e rto m ostra com o essa alternância d a n o rm a burguesa e infração da n o rm a b u r ­ guesa, mas so b re tu d o a repetição desse m ecanism o, n ã o leva a lugar nen h u m . P o r ­ que a form a m achadian a de e n q u a d r a r esteticamente a experiência brasileira já havia

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revelado que n ã o haveria esse passo adiante. E, na sociedade brasileira, essa “ su­ p e r a ç ã o ” d o passado colonial escravista deveria m a rc h a r na direção de u m a socie­ d ad e de classes à européia — o p ressuposto d o g ran d e realismo. O que ac ab o u não o c o rre n d o e M a c h a d o intuiu de saída. De sorte que o g ran d e realism o seria falso no Brasil. N a passagem de laiá Garcia para Memórias póstumas de Brás Cubas, (sempre segundo R o berto) há um c a m in h o represe ntado p o r Esteia, a p ersonagem que recusa a d es m oralização inerente à sociedade senhorial — “a taça d o favor já estava t r a n s b o r d a n d o ” . Esteia seria o e m b riã o da n arrativa realista burguesa e u r o ­ péia. C o m o ela escapa de um arran jo da m atriarca Valéria e vai ser professora, seria possível im aginar que o p ró x im o rom anc e de M a c h a d o seria p ro p ria m e n te realis­ ta, em que há classes configuradas e a possibilidade de carreira social fora do p a t r o ­ nato. Segundo R o b e rto ele deve ter pensado: “ isto, n o Brasil, é falso, essa estrutura patriarcal vai se m e ta m o rfo se a r e r e p r o d u z ir ” . A tr a m a realista, que é a imagem mais enfática d aq u ilo que os clássicos na E uropa, de Hegel a Lukács, c h a m a ra m de dialética entre indivíduo e sociedade — esse d ra m a dialético de oposições, a hélice q u e e m p u r r a o r o m a n c e — , n ã o iria ac o n te ce r no Brasil. N a bela ex p re ssã o de Roberto: “ essa hélice e m p u rra em direção ao n a d a ” . Nesse sentido, a dialética clás­ sica fez com que o p en s am e n to progressista brasileiro, em um a certa época, desde­ nhasse M a c h a d o e fosse p r o c u r a r Lima Barreto — o que é u m eng a n o total. E n tã o eu uso “ dialética n eg a tiv a” para caracterizar um a alternância, um ce r­ to girar em falso e n t r a n h a d o na lógica da sociedade brasileira. C o m isso, eu estou a b u s a n d o um p o u co da m aneira pela qual Hegel descrevia o caráter inconclusivo da idéia de reflexão nos clássicos alemães, so b re tu d o em Eichte e Kant. Nestes, a im aginação balança de um lugar p ara o o u tr o e n ão pro d u z n en h u m resultado, não avança. N o caso de M a c h a d o , foi isso o que eu quis dizer. Se eu quisesse ter c o m ­ plicado a m inha vida, poderia ter d ito que n ã o tin h a n ad a a ver co m a dialética negativa de A d o rn o , q u e n ão é p ro p ria m e n te alternância indefinida que n ão se re­ solve. Só que essa alternância inconclusiva no M a c h a d o tem u m efeito mim ético ex e m p la r, e essa é a d e m o n s tr a ç ã o de R o berto. M a c h a d o usa recursos n ão realis­ tas, vai ao Setecentos inglês e aos m oralistas franceses do século XVII p ara ob te r um a represen tação “ realista" da m atéria brasileira que lhe interessava r e tra ta r es­ tru tu ralm en te . Por o u tr o lado — e é aí que eu p oderia te r c o m p lic ad o a m inha vida — , eu pod eria dizer: n o fundo, não há dialética.

Em sua história , a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­ cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje ? Como ela se dá na atualidade? Isso é p ergu nta p a d r ã o p ara dois terços das pessoas que se o c u p a m c o m filosofia. Bom, co m o n ã o sou filósofo, e c o m o n ão te nho me o c u p a d o m uito dessas questões sobre a relação entre filosofia e ciência, vou sair pela tangente. V ou d a r u m a resposta p ragm ática. Voltarei ao meu realejo uspiano, para, depois, falar da atualidade. Uma das grandes revelações da “ form ação" dos franceses na USP foi a dissocia­ çã o entre filosofia e ciência. A m editação filosófica sobre a ciência e a epistemologia passou a ter um ca rá te r inteiram ente subsidiário e nada decisivo, e m b o ra para uso dom éstico, ocupasse um lugar no currículo quase tão central q u a n to a história da

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filosofia. Em princípio, a epistem ologia n ã o teria mais n a d a a dizer p ara um cien­ tista. Isso faria p arte da m odéstia, e da futura tim idez uspiana, n o sentido de que nad a d o que se pudesse falar de m a tem ática e de física, de Aristóteles até a teoria q u ân tica , teria algum interesse p a ra qu em faz ciência. A relação intrínseca da filosofia c o m a ciência é, p ara nós, um p ro b lem a es­ sencialm ente histórico. H o u v e um m o m e n to em que elas e ra m indicerníveis, dos gregos até Descartes e Leibniz. Esses dois foram os últim os que eram cientistas e filósofos indistintam ente, no sentido original do te rm o. C o m K ant, isso de s a p a re ­ ceu. O prim eiro a dizer isso de m aneira n ã o tem atiza d a explicitam ente, dentre os franceses que che garam aqui, foi IJeanJ M a u g ü é. E q u e m disse de m a n eira sistem á­ tica foi L ebrun. Ele m o stro u que, com K ant, a nossa relação cong ênita co m a ciên­ cia desaparece, isto é, a filosofia passa a n ã o ter mais nad a a dizer p ara qu em faz ciência. T a n t o é que é possível fazer u m a p ro va em pírica e sociológica elementar: q u a n d o alguém das ciências ex a ta s ou biológicas c h a m a algum filósofo p ara falar, n ã o q u e r ouvir n a d a sobre biologia, D arw in ou Einstein, q u e r o uvir filosofia, q u er saber quem foi Platão, Aristóteles, Freud etc. O s cientistas conhecem seu métier, q u ere m m e sm o é cu ltu ra geral. E L ebrun m o stro u um a coisa que é daquelas que a b re m a cabeça das pessoas que c o m eç am a fazer o curso de filosofia: p o r que K ant se to r n o u obscuro? Ele não era o bscuro. N a fase pré-crítica ele escrevia m u ito bem, até parecia um filósofo francês, de tão claro que era. Isso p o r q u e n ão havia ainda divisão entre filosofia e ciência. A rigor q u em cuida de filosofia a partir de K ant, n ã o pode e n q u a n to filósofo saber positivam ente de nada: aliás esse n a d a é o seu assun to real, co m o sabia q u alq u er ro m â n tic o alem ão. Q u a n d o a filosofia, para K ant, deixa de a n u n c ia r o saber, torn a-se possível a reflexão, n ão só p ro p ria m e n te epistemológica (originalm ente. T eoria d o C onhe ci­ m ento), co m o sobre a epistem ologia e sobre ela m esm a — co m a história d a filoso­ fia. P orque ela se separa da ciência e passa a refletir sobre as suas p rópria s c a te g o ­ rias, os conceitos puros d o Entendimento e por aí afora. Portanto, com o dizia Lebrun, K a n t torna-se c o m p lic ad o e ilegível, p o r q u e já n ã o estava mais c o m u n ic a n d o um saber positivo. O ra , qu em faz epistem ologia tem de ad m itir que está cu ltivando um gênero filosófico reflexivo, de teo r histórico e sem n e n h u m a pertinência p a r a quem p ro d u z ciência. Q u a n d o m uito, é possível refletir so bre a p rática da ciência co m o u m a prática social. M a s daí já n ã o é mais o filósofo que faz isso. Dessa form a, o filósofo já n ã o tem mais n ad a a dizer p a ra o m a tem ático, p a ra o biólogo, que estão “ se lix a n d o ” p a r a ele. T o rn a n d o - s e um a disciplina universitária entre o u tras, a fi­ losofia além d o mais ocupa-se m esm o é dela m esm a — a idéia de crítica k an tian a — , às volas com os conceitos p u ro s da razão , c o m o K ant a definiu. E isso vai de K a n t a H u sserl, p as san d o p o r Frege e Wittgenstein. Q u a n d o essa triste e q u a çã o se inverte, tem os H a bermas. Ele com eça a im agi­ n ar alg um as ciências especiais, que são mais do que ciências. D á c o m o exem plo Freud, Piaget e outros. Essas ciências têm um m o m e n to reflexivo em que, no inte­ rior d a sua pró p ria p r o d u ç ã o conceituai, refletem sobre isso co m o se mim etizassem a filosofia. Nesse m o m e n to talvez o filósofo ten h a alg u m a coisa a dizer. M a s isto é conversa fiada, n ã o dá p ara acreditar. A ciência co m o fen ô m e n o social é um bruta assunto. M a s essa filosofia profissional que co nhecem o s n ã o tem n a d a a ver com

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isso. T alvez a T eoria Crítica dos frakfurtianos, enten d id a n u m sentido m u ito a m ­ plo, tivesse algo a dizer. M a s n ã o é filosofia, nem sabem os mais se ain d a existe. D aí haver alg u m a coisa a se dizer sobre o fu n cio n a m e n to c o n te m p o r â n e o da ciência, e, principalm ente, sobre seu ca ráte r de tecno-ciência, isto é, m o stra r o m o m e n to em q u e ela virou fator de p ro d u ç ã o . M a s a p artir daí, o quê? Fazer epistem ologia de u m fato r de p ro d u ç ã o ? É brincadeira! Dizer que há u m a relação dialógica na p r o ­ d u ç ã o da ciência, e r e q u e n ta r Pierce, T h o m a s K uh n e co m p a n h ia ? Q u e a c o m u n i­ d a d e científica está m u d a n d o de para d ig m a? O ra , essa c o m u n id a d e vai o lh a r e di­ zer: “ Ah? T á b o m ” . A gora, se e x a m in a rm o s o f u n c io n a m e n to da tecno-ciência, a coisa m u d a de figura, pois o debate passa a ser político. Q u a n d o nosso p atrim ô n io genético é c o ta d o em bolsa, é preciso ver que tipo de ciência se está fazendo.

Desde Hegel, no século XIX , trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda­ de. Como você se posiciona em relação a esse debate ? Hegel n u n ca falou q u e a arte havia a c a b a d o , s o b r e tu d o p o r q u e foi c o n te m p o r â n e o d o apo g e u da arte na A lem anha. Ele sim plesm ente disse o q u e seria a arte do fu tu ­ ro: que a arte n ão teria mais n a d a a ver co m o ab so lu to , isto é, que a arte n ã o fun­ cio naria mais do m esm o jeito qu e fu n cion ou na sociedade medieval o u na so cied a­ de antiga. A sua expressão p a r a isto é: “ O s joelhos, diante de um a o b ra de arte, n ã o se d o b r a m m a is ” . D aí o ca r á te r farsesco d as e n x a q u ec as estéticas de M m e. V erdurin. T ra ta -se d o processo de dcssacralizaçâo da arte co m o instituição. Mas, a o m esm o te m p o , essa dessacralizaçâo da arte im plicou em sua au to n o m iz a ç ã o , ela passou a ser um objeto entre o u tro s, passou a ser consumível. Beethoven foi o p ri­ meiro a pensar n u m público mais ou m e n o s a n ô n im o c o m o fu tu ro m e rc ado , a p e ­ sar de seus p a tro c in a d o re s aristocráticos. N o m o m e n to em que isto o correu, a arte foi se to r n a n d o ca d a vez mais o seu p r ó p rio assu nto, na m aneira hegeliana de e n ­ te nder o fenôm eno. É p o r isso que Hegel c h a m o u a arte r o m ân tica de dissolução da arte, o u seja, que havia nela um predom ínio do arranjo formai sobre a experiência enfática da qual, a princípio, a arte tinha sido o veículo privilegiado. P o rta n to a arte, para ele, iria p ro sp erar, m as n ã o mais c o m o o princípio cristalizador da ex periên­ cia fundam ental da verdade. O problem a era esse: ela não teria mais n a d a a ver com a verdade. M a s deix em os de lado essas altas p arag ens especulativas. A cho que seria bem mais interessante precisar o foco e esca p ar das generalidades filosofantes rec o rren ­ d o à p r a ta da casa, p o r exem plo, p ara c o n tin u a r m o s em família, o d eba te entre a Otília |A ra n te s| e o R o b e rto |S ch\varz|, d o c u m e n ta d o em dois artigos, sobre a d i­ m e n são estética d a a r q u ite tu ra m o d e rn a . (Mutatis mutandis , o m esm o desen contro entre de novo o R o b e rto e Iná C a m a rg o C osta sobre o juízo estético no te atro de­ pois de Brecht.) E isso tem a ver com a segunda p arte da p ergunta, com o d e s a p a ­ recim ento ou não do fen ôm en o estético na sociedade c o n te m p o râ n e a . N o caso da a r q u ite tu ra c o n te m p o r â n e a , q u er dizer depois dos m o d e rn o s, O tília é categórica: desapareceu. E é disso que se trata. N o c o m e n tá rio que R o b e rto fez d o tra b a lh o dela, disse mais ou m enos o seguinte: “ C o n c o rd o inteiram ente co m a sua análise da dissolução d o m o v im e n to m o d e rn o arq u itetô n ic o , m as, u m a vez esg o tad o esse

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m o v im en to , que p o r su a vez havia in c o rp o r a d o o av a n ço da v a n g u a rd a artística — s o b r e tu d o a constru tiv a — , q u a lq u e r que seja o diagnóstico, ele deixou um acervo atrá s de si” . Era isso m esm o que Otília estava discutindo, o que significa dizer que a a r q u ite tu r a m o d e rn a brasileira representa um dos m aiores p a trim ô n io s a r q u i­ tetônicos a céu a b e rto que se conhece. “ E n tã o o que a gente faz co m isso?” , p e r ­ g unto u Roberto. C om essa pergunta, ele queria dizer que m esm o que com o tendência histórica e estética o m o v im en to arq u itetô n ic o m o d e rn o n ã o tivesse mais futuro, as o b ras de q u a lq u e r m o d o ficaram. E mais, co n tin u a v a a c h a n d o que tal acervo, brasileiro e internacional, era ain d a um a senha p a r a u m a o r d e m social superio r — c o m o queria o p r o g ra m a m o d e rn o . E o que se faz c o m essas obras, d o p o n to de vista da sua substância artística? São o b ra s belas, bem realizadas — em sum a, são ob ra s de arte. R o b e rto dizia ain d a que, q u a n t o ao m o v im en to m o d e rn o , ele usava a distinção a d o r n ia n a entre ideologia e sua realização, o u seja, q u e a ideologia só é falsa q u a n d o ela se apresenta co m o realizada, não em si mesma. O ra , segundo Otília n ã o se poderia sem mais, so b re tu d o em a r q u ite tu ra , dissociar “ p r o je t o ” e realiza­ ção. “ M a s o p r o b le m a ” — insistia o R o b e rto — “ é que essas o b ras que restaram c o m o relíquia d o m o v im en to m o d e rn o carregam e preservam um a espécie de se­ mente crítica, que acende a im aginação u tóp ic a das pessoas, e, p o r isso, são e c o n ­ tin u a m belas. O e sgo tam ento do m o vim en to m o d e rn o n ão an u lo u esse efeito. Você |O tília | detecto u um a tendência histórica, mais u m a ironia objetiva p o r assim d i­ zer clássica. Sendo o m o vim ento m o d e rn o , em princípio, d e c la ra d am e n te anti-sis­ têmico, ele ac ab o u se con v e rten d o in teiram ente no seu co n trá rio afirm ativo, inte­ grou-se e to rn ou-se funcional, c o m o você d em o n stra. Q u a n d o o capitalism o m u ­ d o u , ele m o rre u . Posso até c o n c o r d a r co m isso, m as diria que você identificou u m a tendência, analisou sua reversão e depois d eixou as ob ras de lado. E, a o deixar as o b r a s de lado, você abdicou de decifrar na beleza da o bra de arte, que é o edifício arq u itetô n ic o m o d e rn o , a prom essa de um a em a n c ip a ç ã o futura. Você deix ou de decifrar o curso d o m u n d o através da o b ra de arte. F. essas o b ras, m a lo gradas ou n ã o , são necessariam ente a cifra d o nosso t e m p o ” . E mais: “ Você conclui, p o r ta n to , que na a r q u ite tu ra , pelo m enos depois da falência d o m o v im en to m o d e rn o , a idéia de experiência estética seria n o m ínim o um equívoco. Q u e m im agina estar ex p e rim e n ta n d o u m a espécie de ap o g e u , ou de intensidade estética relevante, diante de um edifício m o d e rn o , ou n ão , está en g a­ n a n d o a si m esm o. E essa a sua c o n c lu s ã o ? ” . Resposta: “ E isso m e s m o ” . O ra , n ão se p ode avaliar o interesse da resposta — e essa conversa c o n tin u a — sem levar em co n ta que se tr a ta em prim eiro lugar de a r q u ite tu ra , o u m elhor, de a r q u ite tu ra de­ pois da g ra n d e r u p tu ra p ro d u zid a pelos m o d e rn o s n u m a q u a d r a histórica crucial. O que O tília estava d izend o era que, d o p o n to de vista estrito da a r q u ite tu ra , o m o v im en to m o d e rn o , q u a n d o ap areceu , elim inou a possibilidade de se co nsid e­ r a r um a o b ra a rq u itetô n ic a co m o um a o b r a de arte, c o m o um a o b ra de arte a u t ô ­ n o m a to m a d a em si mesma. Ele apareceu justam ente p a r a c o n tra ria r a inclusão da a r q u ite tu ra n o sistema das belas artes. C o m isto, a bela o b ra arq uitetônic a não era m ais u m a o b ra de arte, q u a n d o m u ito um sintom a (no sentido freudiano), co m o os estilos históricos do revivalismo burguês d o século X IX. N o que diz respeito às obras arqu itetônicas anteriores, até m e sm o o te m p lo grego, a idéia de que se tra ta de u m a

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o b ra de arte é um a ilusão retrospectiva, algo c o m o o an a crô n ic o juízo de gosto na origem dos museus imaginários da vida, que reúne n u m m esm o âm bito estctico tu d o aquilo q u e tin h a funções sociais n u m a o u tra sociedade, d o religioso a o político. O p e n d o r van g u a rd ista d o m o v im en to m o d e rn o foi m o stra r q u e a rq u ite tu r a n ã o era escultura ou coisa qu e o valha, p o r mais que u m construtivista prolongasse o gesto de M o n d r ia n , m as tinha que ser transgressivam ente funcional e é p o r isso que h a ­ via a esperança de qu e essa r e o rd en a ção d o espaço pudesse alterar a o r d e m social. E se se tratav a de um a o b ra de arte, era justam ente na intenção v a ngua rdista de elim inar a distância estética entre arte e realidade. C o m o o p rojeto m a lo g ro u , a r euniã o m useológica das sobras, p o r mais edificantes que sejam e nos falem a o c o ­ ração, representaria um retrocesso nos te rm o s m esm os dos m o d e rn o s que p r o je ta ­ vam pensando em ac ab a r com tudo isso. Seria algo tão incongruente com o um museu d o Socialismo. A g u ard em o s o p r ó x im o capítulo. Se me expliquei bem , n ã o se trata de um Fia Flu a m a lu c a d o d o tipo ain d a existe x n ã o existe mais algo que se c o n ­ vencionou c h a m a r experiência estética genuína. Até p o rq u e , seja d ito de passagem, na sua d im ensão a n trop oló gica elem entar, de princípio e s tru tu ra n te d o processo de individu ação através d o a u t o d ista n c ia m e n to pela imagem, pela faculd ade ficcion alizante etc., a c o n fig u ra ç ã o estética d a relação com o m u n d o é p r o p ria m e n te imperecível, salvo na situação in u m a n a e te rm inal de u m a a b s o rç ã o integral pela inconsciência de um ser m e rg u lh ad o na positividade do im ediato. \ l a s obviam ente n ã o é disso que se tr a ta , assim co m o ta m b é m n ã o está em discussão a centralidade d o tra b a lh o na troca m etabólica da sociedade c o m a n atu re za q u a n d o se discute a crise da sociedade d o tra b a lh o assalariado, a b s tra to e historicam ente d eterm in a d o . C o m o nos tem pos de Hegel, ninguém está dizendo que a Arte ac ab o u , m as sim ples­ mente que a alta voltagem de um a prim eira audição de S chônberg o u leitura de um trecho in a c a b a d o de Kafka n ã o se repetirá mais com a intensidade e a verdade de q uem se defro n ta c o m um lim iar histórico.

É hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe­ nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como você vê tal diagnóstico? N a sua visão, a primazia de que parecem des­ frutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias f C o m o professor de filosofia — e co m o estou send o entrevistado nesta condição, preciso m a n er a ficção — n ão teria ab s o lu ta m en te n a d a a dizer, e nem poderia, pois os assu ntos n ão se en tro n c am . E no e n ta n to nossos coleguinhas a n d a m o p in a n d o m u ito sobre isso. M a s o qu e seria um diagnóstico filosófico “p ro fissional” sobre u m a era pós-nacional? Diria que é p o n to a meu favor essa brincadeira de m au gos­ to que consiste em dizer que, com a globalização, estam os nos a p ro x im a n d o da “ paz p e r p é tu a ” kantiana. Por aí vocês vêem c o m o a filosofia tornou-se, na sua sobrevida, urna m á q u in a b isonha de disparates. L em brem-se d o Husserl q u e às vésperas do apocalipse nazista estava dizendo que era hora de ressuscitar o vigor d a razão te ó ­

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rica — que só a te oria pu ra p oderia recolocar a E u ro p a em seu trilho r u m o à idéia transcen dental de hu m a n id ad e . Bom, im aginar que a essa altu ra d o c a m p e o n a to , q u a n d o dois terços da h u m a n id a d e vivem com m enos de um d ó la r p o r dia, es ta ­ mos nos a p r o x im a n d o d a “p az p e r p é tu a ” de K ant, já é um prim eiro disparate. O segun do d es p ro p ó sito filosófico é o de im aginar que a idéia c osm opolita k a n tia n a estaria prestes a se realizar. Q u e, co m u m a sociedade civil m undial, serem os todos cid ad ã o s d o m u n d o ( Weltbiirger). M a s ag o ra o p o n to é a favor da velha filosofia, pois K ant n ã o era idiota. A idéia de Weltbiirger de K a n t n ã o tem n a d a a ver com a idéia de E sta d o m undial. Aliás, p a r a ele, a idéia de E stado m und ial era o império, a pior das tiranias, o c o n trá rio da república. Im aginar-se, dessa form a, c o s m o p o li­ ta k a n tia n o , fazendo p arte de um a sociedade civil m u n d ia l é sim plesm ente se a jo e­ lh a r diante da tira nia que virá na fo rm a de um im pério, que aliás é um o u tr o no m e convencional p ara a espúria re to m a d a da hegem onia am erica n a, entenda-se: o p o ­ der eco n ô m ic o de em issão d o d inhe iro m und ial lastreado pelo p o d er das arm as. Weltbiirger, p ara K ant, era sim plesm ente p o d er apelar para a o pin iã o pública, p ara além do seu status particular. E essa op in iã o pública, para ele, era erudita e m u n ­ dial, correspond ia-se em latim. P o rta n to ser um c id a d ã o d o m u n d o é ser m e m b ro de um a república m un d ia l das letras, em qu e to da s as pessoas, in d e pendentem en te da cond içã o social, co rresp o n d e m -se e a r g u m e n ta m entre si n u m a língua universal — o latim. O s filósofos de hoje estão c o n trib u in d o p ara o d eb a te c o n te m p o r â n e o c o m essas eno rm id ades. F. o bvio qu e a febre ética de hoje é um p obre sucedâneo d o e m p e n h o político b loque ado. Im plic an do um p o u c o mais c o m os nossos coleguinhas, n ã o sei co m o os filósofos ain d a n ã o p ro m o v e r a m u m revival d o estoicismo ro m a n o , algo co m o u m a etiqueta metafísica p a r a se a g u a r d a r em casa o fim d o m u n d o . T o d o o refluxo de 1968 converteu-se nessa g ran d e m aré ética. Está aí o últim o F ou cau lt que n ã o me deixa m e ntir, p ara n ã o falar na ética discursiva dos piedosos professores ale­ mães. E to m e ética disso e daquilo. (O o u tr o en c osto é a estética: basta u m c o n c er­ to da Filarm ônica de Berlim, p a r a a tu r m a d o esteticam ente c o rre to sentir a p r e ­ sença d o a b s o lu to e atravessar a cra colândia pisa n d o em nuvens.) F. m ais “ socieda­ de civil” a to r to e a direito. Q u e m diria, antes te atro de u m a guerra de posições, a sociedade civil hoje passa p o r espaço da liberdade, onde se “ vive na v e rd a d e ” , co m o se dizia no leste E uropeu. Ativistas sociais, socialites, próceres d o big bttsiness sus­ piram em uníssono p o r mais autenticidade, co m o nos bons tem pos do jargão existen­ cialista. Só que o existencialism o ag o ra é de m ercado. A ética é um fator de p r o d u ­ ção, as em presas co nsideram o lucro u m acidente opera cio n a l, sua vo cação é to d a cultura e cidadania. E p o r aí vamos. O curioso é que neste m u n d o esvaziado da guerra social de antig am en te , é um deus nos ac uda to d a vez que c id ad ã o s n ão -p ro p rietá rios e politicamente articulados se ap ro x im am demais d o poder de Estado e d o Banco C entral, que c o n tin u a m o nd e sem pre estiveram. Está claro ta m b é m que essa g r a n ­ de querm esse h u m a n itá ria — que às vezes ex plode em surtos de histeria coletiva, pois há u m a clara tendência à d epressão g era da pela im potência flagrante das ini­ ciativas éticas individuais p ara a cala m id a d e coletiva em que se converteu o c a p ita ­ lismo hoje — se deve m uito à percepção (não inteiramente equivocada) de que nu m a sociedade c o n e ctad a ho rizo n talm e n te em rede a q u e s tã o social se resum e à divisão

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entre os que estão “ d e n t r o ” e os que estão “ f o r a ” , e sua resolução é um p roblem a de “ in se rç ão ” ou q u a lq u e r o u tra co m p en sa çã o , sim bólica de preferência. M e p a r e ­ ce um a q u es tão de te m p o identificar as novas fo rm a s de e x p lo ra ç ã o e a n ta g o n is m o sob a superfície ética da “ e x c lu sã o ” . Q u a n d o se com eça a falar dem ais em ética e seus derivados e p atroc inado re s, está-se dizendo o u tr a coisa, na verdade um decre­ to sem apelação: a ec on om ia de m e rc ad o veio p ara ficar e estam os conversados. T a m b é m me parece claro que ta m a n h o frenesi ético de nossas elites e sua cli­ entela (e nelas incluo contra-elites à esquerda), p ara não falar em desfaçatez, algo tem a ver com o d esm anche nacional em curso, que aliás n ão é fatalidade e c o n ô m i­ ca natu ra l mas fruto de decisões de c o m a n d o político e d o m in a ç ã o social num es­ paço m undial que nunca esteve tã o hierarquizado e polarizado. C o n tra p ro v a ? C ontento-m e co m um te rm o de c o m p a r a ç ã o histórico. C o n s id e ra n d o nossa p r o b le m á ­ tica passagem de C olôn ia à N a ç ã o , C a io P ra d o Jr. co stu m a v a dizer que nos faltava o essencial, o “ nexo m o r a l” , q u e entend ia co m o vínculo social, c o m o u m c o n ju n to a g lutina nte de forças para além do laço m e ra m en te econôm ico d o c o n t r a to m e r­ cantil. Pois era essa miséria “ m o r a l” , pró p ria de um a colônia de e x p lo ra çã o , m ero em p re e n d im e n to com ercial — é ra m o s um vasto e m p ó rio regido pelo mais cru e n to cálculo econ ôm ico , o d o lucro auferido c o m o tr a b a lh o escravo e o “ tr a to dos vi­ ventes” — que nos inviabilizava com o sociedade. C o m o ultrapassar o m ercado ru m o à nação? Esse o d r a m a . Inclusive d o p en s a m e n to progressista ulterior, que aliás com plicou-se ain d a mais ao inverter o raciocínio — até hoje: a idéia “ m o r a l” de sociedade foi rifada p o rq u e algo co m o um a ec o n o m ia nacional foi p ara o ralo. O u seja, n ã o há n aç ão sem m e rc ado interno e toca a p r o c u r a r pelo em ovo, em a r r a n ­ car um nexo societário não-m ercantil da form a-m ercadoria! M e rc a d o n ão fo rm a nação. A p rova está aí: hoje, c om m uito o tim ism o , som os ape nas um m e rc ad o , o ra emergente, ora submergente. C o m o se eclipsou o “ nexo m o ral” d e m an d a d o por Caio P rado, ju n to com a atual reconversão colonial-m ercantil veio o au to -e n g a n o ético que estam o s vendo.

Como você caracterizaria a sua relação com a religião e a fé? Foi um a relação pretérita, de adolescente. A tualm en te, p ara m im , é ap enas um fe­ n ô m e n o sociológico. N ã o te m o m e n o r significado pessoal.

Como você se situa em relação aos problemas de uma “mudança de paradigm a ” da filosofia, de unta filosofia “pós-metafísica” calcada na linguagem? Se eu ain d a desse aula, com eçaria pelo seguinte esclarecimento: essa conversa de m udança ou crise de paradigm a a três p or dois com eçou com o senhor T h o m a s Kuhn, p ara d a r con ta d o que estava acon te ce n d o com a m u d a n ç a de h um ores da epistem ologia am ericana. Em m e ados dos an o s 60, antes do d esem b a rq u e da ideologia francesa, chegou aos ouv idos am erica n os a notícia de que as verdades científicas são históricas, in d e pendentem en te da sua verificação em pírica, e d ep e n d ia m de um consenso entre aqueles que estavam envolvidos no debate. E redescobriram coisas que os alem ães estav am fala n d o desde o historicism o d o século XIX . Entre o u tra s coisas que a ciência fazia p arte de um sistema c h a m a d o cultura, b analid ade da qual

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os a n tro p ó lo g o s há um bom te m p o sabiam ex tra ir consequências interessantes. A idéia de p ara d ig m a com eçou c o m isso, com a idéia de historicização do núcleo d u ro e positivo d o p en sam e n to científico. O interessante é q u e houve antes, na virada de século filosófico, um “giro lingüístico” e ndóg e no, um a tr ad ição interna que se iniciou c o m Frege — que não po r acaso vinha da m a te m á tic a — , desviando-se da filosofia da consciência — p r e ­ d o m in a n te na A lem an h a até a fenom en ologia — , e migrou p ara a Inglaterra, na recepção de um Bertrand Russell. D epois vieram os austríacos, W ittgenstein e as­ sim p o r diante. Isso foi u m a q u e s tã o interna, a tr a n sf o r m a ç ã o da filosofia profissi­ onal, até e n tã o ce n trad a na idéia de represe ntaç ão , q u e passou com a rm a s e b a g a ­ gens da consciência p a r a a linguagem. M a s c o n tin u o u sendo filosofia profissional e, p o r ta n to , n ã o m u d o u nada em relação à linhagem m o d e rn a , que vinha de Kant. O fam oso “giro lingüístico” n ã o m u d o u nada . Simplesmente a filosofia universitá­ ria livrou-se da ganga psicologizante e passou para a análise lógica d o conhecimento. A virada que nos im p o rta , a c onve rsão ao p a ra d ig m a c om u nica cional, o nde sobressai a d im ensão p ragm á tic a da linguagem , é da m etade deste século. De q u a l­ q u e r m aneira, esse giro co m eç o u a ap arecer q u a n d o o élan “ d esenv olvim en tista” geral (algo co m o u m a convergência m ode rn izan te d o s vários ca m in h o s nacionais), no centro, com o Welfare State , e na periferia, co m a in dustrialização, com eçou a im plodir e a d es acreditar a n o çã o “ p rogre ssista” de progresso. D epois isso foi b a ­ nalizado pelos p ó s-m o d e rn o s c o m o o “ declínio das grandes n a r r a tiv a s ” , na v e rd a ­ de ape nas um a estilização de fatos reais, nad a que se assemelhasse a um a r u p tu ra na H istó ria d o Ser. N esse m o m e n to , ficou mais ou m enos claro que a n o ç ã o de p r o ­ gresso supunha continuidade, e que progresso com continuidade supunha um a matriz q u e lhe é coextensiva, c h a m a d a te m p o e consciência. E n tão as filosofias da c o n s­ ciência e da te m p o ra lid a d e c o m e ç a ra m a cair em desgraça, c o m o ta m b é m as deci­ sões que envolviam te m p o e consciência, c o m o a idéia de sentido e en g a ja m en to da filosofia existencialista. C o m o essa para fe rná lia com eçasse a periclitar, a panacéia da linguagem passou p a r a o prim eiro plano. De início através d o e s trutura lism o linguístico, qu e foi a p r o p r ia d o prim e ira m e n te pelos a n tro p ó lo g o s e, só depois, p e ­ los filósofos. Q u a n d o os filósofos “ a r r o m b a r a m ” essa p o rta ab e rta c d esco briram a A mérica, p ara a a n tro p o lo g ia já era u m a evidência o fato de as sociedades vive­ rem m e rg u lh a d a s em sistemas sim bólicos, evidência, que ao se generalizar, se e x ­ prim e hoje na convicção de q u e até a ec onom ia se to r n o u cultural. P o rta n to , ta n to a idéia de progresso, q u a n to a idéia neopositivista de objetividade co m o teste últi­ m o de realidade, foram para o brejo, pois só há significações socialmente construídas. (G randes novidades... E co m o rola tinta.) Só que, nesse m o m e n to , as idéias h e rd a d a s de ob jetividade, de progresso, de consciência e de te m p o ra lid a d e estavam d e s m o ro n a n d o , p o r q u e a sociedade do capita lism o o rg a n iz a d o ta m b é m estava. O crescim ento com pleno em p re g o fora deslegitim ado, o m o to r m aterial d a an tiga consciência; o sujeito forte da socieda­ de liberal burguesa, ta m b ém tinha se eclipsado. V ieram os pós-estruturalistas f ra n ­ ceses e o b v ia m en te fizeram a festa. D errida tem pelo m enos faro, p o r q u e a Desc o n s t r u ç ã o n a d a m a is é d o q u e a s ú m u l a d o s fa to s m u it o p o u c o m e tafísico s estilizados pelo co lap so dessa g eo cultura progressista de legitim ação d o ca pitalis­

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m o , co m o R o b e rto foi o p rim eiro a lem brar certa vez, em 1994, n u m breve e n ­ saio de prim eira intitu la d o “ Fim de s é cu lo ” . N a o u tr a p o n ta , um sociólogo fra n ­ cês, Luc Boltanski, ta m b é m foi o prim eito a n o ta r que, p e n s a n d o bem, os rizom as de Deleuze são u m a a b re v ia tu ra “ ideológica” da Sociedade em Rede. C o n v e n h a ­ mos: esses ideólogos franceses no f u n d o e ra m excelentes sism eografos, p o r é m inidôneos c o m o to d a apologia indireta, c o m o diria o velho Lukács, c o m perd ã o da má lem brança. M a s a estilização destes fatos ta m b ém p rod uziu incongruências. Por e xe m p lo o nosso am igo H a b e rm a s , um dos teóricos dessa m u d a n ç a de p a r a ­ digm a. Ele ac h o u que o finado p a ra d ig m a da consciência tin h a um p r o lo n g a m e n ­ to, a sociedade d o tra b a lh o , e seu co rresp o n d e n te pa ra d ig m a , o da p ro d u ç ã o . P o r ­ ta n to , p ara c o n tin u a r m o d e rn iz a n d o a m o d e rn id a d e , H a b e r m a s a firm o u q u e se­ ria necessário repensá-la p o r meio do p a ra d ig m a da c o m u n ic a ç ã o , coisa de que os p ó s - m o d e r n o s v in h a m fala n d o fazia tem po. Ele fo rm u lo u isso n o início dos an o s 80, e os es truturalistas franceses estavam d izend o isso há vinte anos. Assim, o p ob re H a b e rm a s escreveu to d o o Discurso filosófico da modernidade , co m c a ­ pítulos sobre D errida, F oucau lt etc. p a r a dizer a m esm a coisa. Q u a l era a briga de F o u c a u lt c o m a e s q u e rd a francesa m a rx ista ? Era “ tc h a u t r a b a l h o ” . E a de D errida ta m b é m . Entre o u tra s razões, era p or isso que eles estavam flerta n do com o “g a u c h is m o ” cu ltural e a n tip ro d u tiv ista de 1968. E claro qu e eu estou b rin c a n ­ do, p o rq u e o b v ia m en te há um ab ism o entre F o ucault e H a b e rm a s. M a s estão t o ­ do s no m esm o barco. E ntão a polêmica co m o p ó s-estrutura lism o francês, n o Dis­ curso, n ã o ex p rim e esse c o n f r o n to inapelável que o debate a respeito p ro c u ra d a r a entender. Prova disso: to d o s se e n c o n tr a r a m , estão a b r a ç a d o s — com suas dife­ renças de prax e — , nos F.UA. O n d e e n c o n tr a m o s p r a g m a tism o local (revitalizado pelo p ó s-estrutura lism o francês), o nde está a esquerda cultural am erican a, e a ver­ são am erica na da última teoria crítica — H a b e rm a s. E stão to d o s a b r a ç a d o s no m esm o para dig m a. Seria interessante deix ar um p o u c o de lado essa conversa to d a sobre m u d a n ç a de p a ra d ig m a e p r o c u r a r entender o es g o tam en to histórico real de que ela de fato é a p e n as a sin to m ática desconversa.

Você utilizaria o conceito de “ utopia ” para descrever a sua visão do futuro da sociedade humana f Em que consistiria tal utopia ? A inda sou de pinião que u topia é u m a palavra para abrev iar socialismo. A p e r g u n ­ ta, assim, é: “ o q ue se pode c o nsid erar socialismo hoje?” — e já é difícil m a n te r até a palavra “ socialism o” na m edid a em que o socialismo real a enx o v a lh o u . F.ntão é necessário im aginar um a sociedade pós-capitalista que n ã o seja apenas utópica no sentido de u m a idéia m oral regu ladora. Isso eu deixo p ara as O N G s fazerem [ri­ sos], P or o u tr o lado — e a encrenca é essa — , é necessário im a gin a r u m a sociedade pós-capitalista, e ver se e co m o as coisas vão de fato nessa direção. O que M a rx queria dizer com utopia? E xatam e n te o c o n trá rio d o que estou p r o c u r a n d o indicar agora. U topista, p ara M a r x , era o pessoal que p ro cu rav a se o rg an iz ar à m argem da sociedade de m e rc ad o em con stituição, isto é, era a reação defensiva do c a m ­ pesinato se p roletarizando. Essa gente b ru ta lm e n te despossuída im aginava p o der reconstituir um a espécie de ec on om ia natu ra l à m arg em da nova sociedade d o c a ­ pital, o rg anizand o-se p o r e xe m plo na form a de cooperativas. O que M a r x dizia?

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“ V ã o m o rre r n a beira da estrada. Eles têm de m e rg u lh ar na g ran d e c orrente histó­ rica que p o r meio de u m a reviravolta épica vai d a r n o socialismo. V ão sofrer, mas, n o fim, vai d a r tu d o c e r to ” . Esse era o socialismo “ científico” , m o v im en to social p o r assim dizer g a r a n tid o p o r um a m ola p r o p u lso ra nad a “ científica” c h a m a d a n egação da negação. M a s im aginem dizer isso em 1848: era o h o r ro r d o s horrores. A nova sociedade era uma coisa sinistra, a miséria um coisa inacreditável, e, n o fundo, M a r x estava dizendo: “ seus bisnetos, d a q u i a cem anos, estarão no Welfare State euro peu. Padeçam o inferno, m as n ã o tentem se o rganizar fora desse tr o ç o ” . Ele tin h a razão, a pro letarização engoliu to d o o m u n d o . O ra , o dram a atual, nesse jogo de utopia e socialismo, é que essa ladainha senti­ m ental da exclusão é falsa. N u n c a to d o o m u n d o esteve tã o incluído co m o hoje em dia. É certo que estam os ferrados, e isso é ou tra coisa — pois viram os lixo descartável d es tin a d o a o a te rro sanitário social. O s descartados n ã o estão excluídos. São des­ c a rta d o s p o rq u e estão a b s o lu ta m e n te incluídos. Esse é o d r a m a dessa nova etapa. E ntão a idéia de utopia, de u m a saída possível, está se t o m a n d o socialm ente proibitiva. E o socialismo ta m b ém . A idéia clássica de socialismo tem de ser intei­ ram ente repensada. O q u e significava socialismo? A verossimilhança política e sen­ tim ental do socialismo significava que quem era socialista representava algum a coisa de novo. O socialismo era uma tendência real e visível. E era possível a p o n t a r esta tendência c o m o algo que já s u p la n ta v a o q u e estava aí, e q u e era m elhor. E isto passava t a n to pela vida pessoal q u a n to pela organiz aç ão p ro dutiva. M e s m o sendo m o d e rn a e capitalista, a sociedade liberal-burguesa se apre sen ta v a assim m esm o c o m o um a ord em tradicional, a cuja co n stante inovação pro d u tiv a corresp o n d ia um a espécie de bolor cultural, de m ofo m oral, sem falar é claro na opressão e c o n ô ­ mica de sempre. De q u a lq u e r m o d o era um m u n d o n o qual se sufocava e os socia­ listas v inha m trazer o ar fresco da história, que tin h a m a seu favor. H oje o negócio m u d o u , e q u e m fala em socialismo parece ter ficado p a r a trás. N ã o se p ode a p o n t a r um obstá cu lo material ou m oral q u e o m e rc ado n ão se e n c a r ­ regue de supe ra r. A idéia de que havia um a sociedade p ós-burguesa a o alcance da m ã o , u m a espécie de pro m essa em b u tid a na antiga o rd e m , que se cam in h a v a em direção a ela, saiu de cena. A p rova mais e x tra o rd in á r ia dessa rec uperaçã o p e r m a ­ nente é o m o v im en to de em a n c ip a ç ã o das mulheres, talvez a m a io r revolução des­ de o neolítico. E o q u e m u d o u ? N a d a . A o m esm o te m p o em q u e houve u m a revo­ lução, a sociedade de m e rc ad o in c o rp o ro u essa revolução. Isso significa que a idéia de limite a ser tran sp o s to cm direção ao socialismo desapareceu rep en tin am en te do horizonte. Se a na lisarm o s o ciclo das g ran d e s revoluções anti-sistêmicas deste sé­ culo, de 1917 a 1949 (Revolução Chinesa), não seria d isp a ra ta d o afirm a r que o c apitalism o enc alac ra do estava p o r um fio, e que o m u n d o d o tra b a lh o tinha inclu­ sive o progresso técnico em seu poder, p o r ta n to em condições de desbloquear aquele fim de linha civilizacional. F.ra vesossímel a possibilidade real de se enc errar a préhistória da h u m a n id ad e . H oje, não. O u n ovam ente, ainda não. A esse pro p ó sito , gostaria de falar u m p o u co d o livro de Paul Singer, Utopia militante, p ublicado pela coleção Z e r o à E squerda. O que está fora de cogitação, no seu breviário? Paul Singer m o stra que n ã o p o d em o s mais pensar se gu ndo a ló­ gica binária c a m p o co n tra ca m p o , isto é, o socialismo não mais virá pela expropri-

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aç ão de um a classe p o r o u tra qu e, o rg an iz ad a em Estado, socializará os meios de p r o d u ç ã o . Isto está fora de cogitação , vide o exem plo da U n ião Soviética. O socia­ lismo, diz ele, tem de o correr p o r meio de algo co m o um a adesão v o lun tá ria, a t r a ­ vés de “ im p la n te s” socialistas, o que ele ch a m a de ilhas de ec o nom ia solidária d e n ­ tro de u m a ec o n o m ia de m e rc ad o capitalista dom in a n te . F.ntão vão se cria n d o es­ sas p eq ue nas ilhas de sociabilidade n ã o inteiram ente o rganiz ad a s pelo n exo m e r­ cantil. Essas ilhas, no e ntanto, precisam ter algum tipo de relação com o “ e x te rio r” , precisam vender os seus p r o d u to s no m ercado. Paul Singer com eça a fazer revisões ex tra o rd in árias. O q u e são esses im plantes socialistas p a ra ele? O sufrágio univer­ sal é um implante socialista. C o m o assim? O ra , socialismo e dem ocracia, para Singer, são sin ônim os. O sufrágio universal foi “ a r r a n c a d o ” pelos de baixo. O E stado de Direito ta m b é m é um implante socialista, ta m b ém foi a rra n c a d o pelos despossuídos, pois o E stado liberal sem pre foi oligárquico. O direito de associação sindical t a m ­ bém é um im plante socialista. O Welfare State ta m b é m , e assim p o r diante. C o m o Paul Singer n ão é d a d o a especulações teóricas, o que ac ho que ele está dizendo é: a realização d o socialismo n ã o está mais garan tida p o r um a dialética imanente. N ã o há mais um a reviravolta p ro d u z id a pelo p ró p rio sistema, m as esses im plantes que te n d em a se a la stra r p o r ad e sã o v olu n tá ria e d everão d e m o n s tr a r a sua sup e rio ri­ d a d e m aterial e m oral sobre o c o n ju n to da sociedade. Seria possível, n o e n ta n to , relem b rar a Paul Singer que isto ta m b é m a c o n te ­ ceu na passagem do A ntigo Regime p a ra o capitalism o, pois ta m b é m nessa época se poderia falar em im plantes capitalistas. Esses im plantes p assaram a d eso rg a n i­ zar e a reorg anizar os m e rc ad os locais — a interconectá-los — , passaram a fin an ­ ciar a p ro d u ç ã o , e só venceram a p a ra d a p o rq u e esse nov o a r r a n jo da vida e c o n ô ­ mica revelou-se produtivo. M a r x viu isso m uito bem: a passagem foi irresistível p o r ­ que desenvolveu de m an eira exponencial as forças p ro d u tiv a s da sociedade. E ntão é preciso p e rg u n ta r a Paul Singer: “ O que você faz com esse problem a? Você está rac io cin a n d o p o r analogia, e, co n fo rm e esse raciocínio, tais im plantes deveriam a r ­ re b a ta r to d a a sociedade p o r adesão voluntária? O n d e a superiorid ade das novas forças p r o d u tiv a s ? ” . Ele diria: “ E verdade, m as nós tem os de p ensar que, d o p o n to de vista d o desenvolvimento das forças p ro dutivas e da o rganização capitalista c o n ­ form e a esse desenvolvim ento, o capitalism o é um desastre n o que diz respeito, p o r ex em plo , a coisas fu n d am e n tais p ara a vida civilizada c o m o a saúde, a edu c aç ão , a ecologia etc. E p o r aí que se deve c o m e ç a r ” . O ra , a saúde é um a ca la m id a d e — a grand e m aioria das popu laçõ es vai m o rre r p o rq u e n ã o p ode p ag a r os custos ca p i­ talistas da m edicina — e algu m a coisa tem de ser feita. O m esm o raciocínio serve para a educação. Dessa m an eira, é possível im aginar que nesses d o m ínio s pode-se q u e b r a r c o m a idéia de um horizonte intransponível. Essa “ utopia m ilita n te” para Paul Singer é a im agin ação dessa o rd em pós-capitalista que pode ser antevista ao vivo com tais ilhas. F. essas ilhas utópicas podem ser entendidas no seu sentido antigo. E p o r isso que, atu alm en te , Paul Singer tornou-se ta m b é m e ru d ito em história do socialismo co o p e ra tiv o d ito utópico. T rata-se de u m a a p o s ta , pode d a r tu d o e r r a ­ do, mas é um ca m in h o , entre o u tro s ain d a p o r descobrir, d e n tro e fora d o m u n d o d o tra b a lh o , que a b s o lu ta m e n te n ã o a c a b o u , n unca se tra b a lh o u ta n to e tã o mal em em presas p o dres em troca de dinheiro.

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A o u tra discussão a respeito d o livro de Paul Singer é sobre a q u estão do Es­ ta d o , e p o r ta n t o do crédito. As coop erativas precisam de crédito. Já se disse ao Paul Singer: “ E necessário pensar m acro, p o rq u e quem co n tro la o crédito em u m a ec o ­ no m ia capitalista c o n tro la t u d o ” , c o m o vem dizendo e a r g u m e n ta n d o F ern an d o H a d d a d , no qual me inspiro e espero ter e n ten d id o bem. N ã o é à toa que b ancos e E stado estão sem pre juntos. E o c ontrole do crédito é político. N u m certo sentido, n ão seria um despropósito dizer que os bancos deveriam estar fora do m ercado, pois dinheiro n ã o é m ercadoria, c o m o tra b a lh o e terra ta m b é m n ã o são. E n tã o o p r o ­ blem a d o crédito nesses im plantes utópicos pós-capitalistas repõe to d o o p rob lem a clássico de u m a sociedade de classes antag ô n ic as em que a ec o n o m ia é de c o m a n ­ d o político. Até a era liberal foi um ciclo histórico de capitalism o politizado até a m edula. C o m o crédito, o F.stado en tra na e q u a çã o , o u seja, a d isputa entre as clas­ ses pelo crédito passa pelo c o n f r o n to co m o Estado. O dinheiro é um artefato p o ­ lítico e o cu rso da m oe da é um a peça fun d am e n tal da d o m in a ç ã o social. C â m b io e juros são in stru m e n to s políticos, n ã o decisões de m e rc ad o — só aquele p a ra n ó ico d o G usta v o F ranco achava que b a n a n a e c â m b io e ra m a m e sm a coisa. N a d a mais político d o que a briga pelo c ontrole do c â m b io e d o dinheiro. O ra , co m isto, é p o s ­ sível v oltar ao conflito m acro, de m o d o q u e volta a luta política, volta a luta pelo c on trole d o Estado. Se se chegar a o p ro b lem a do dinh eiro c d o crédito, chega-se ao c o ra ç ã o d o sistema, e o b viam ente os atuais d o n o s d o m u n d o n ão vão deixar b a r a ­ to, só m o rto s la rga rã o o osso. P o rta n to , o E stado será sem pre essencial. Ele só está send o d e s m a n c h a d o e deslegitim ado p ara os de baixo. Para os de cima, ele nunca foi tã o o rganiz ado, tão eficiente, tã o d inâ m ic o e tã o associado às finanças, que, p o r sua vez, estão associa­ das à tecnologia de p o n ta . Se se for ao crédito e a esse E stado que está f u n cio n a n d o bem aqui no Brasil, vai-se ao co ra ç ã o d o sistema, sem o ô nus das categorias tr a d i­ cionais d o socialismo. E passa a ser necessário saber q u em se beneficia disso, quais são as classes sociais, p ara saber com q u e m se aliar e o que se vai dizer e fazer em função dessa relação entre p o d er e dinheiro. Por isso que é preciso u m a nova te o ­ ria das classes. Dissociar E stado e m e rc ado e dizer que estam os indo em direção a u m a sociedade civil global é reles engan ação.

Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos co­ mo riscos ambientais globais , ameaças de desintegração social em lar­ ga escala e alienação cultural em massa. Como você vê tais problemas? “ N o ssa soc ied a d e” de quem ? Por que n ã o dizer de u m a vez que o capitalism o, e n ão a “ nossa so ciedad e", que n u n ca foi nossa, tornou-se mais um a vez u m a a m e a ­ ça à sobrevivência da espécie n o planeta (os energ úm enos e o u tr o s deslu m b rad o s falam em Renascim ento), e que to d a vez que “ nossa sociedade” se vê a m ea ça d a a esse p o n to insano de in segurança, responde com o fascismo? T o m a d a ao pé da le­ tra, a gracinha sociológica c h a m a d a Sociedade G lobal de Risco é isso aí.

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Principais publicações: 1981 1992

Hegel: a ordem do tempo (São Paulo: Brasiliense); Um ponto cego no projeto moderno de Jürgen Habermas (co-autor) (São

1992

Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira (Rio de J a n e i­

Paulo: Brasiliense); ro: Paz e T erra); 1994 1996 1996 1997 1997

Um departamento francês de Ultramar (Rio de Janeiro: Paz e Terra); Ressentimento da dialética (Rio de Janeiro: Paz e Terra); O fio da meada (Rio de Janeiro: Paz e Terra); Sentido da formação. Três estudos sobre Antonio Cândido, Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa (co-autor) (Rio de Janeiro: Paz e Terra); Diccionario de bolso do Almanaque Philosophico Zero à Esquerda (Petrópolis: Vozes).

Bibliografia de referência da entrevista: A d o rn o , T h. Dialética negativa, M adri: T aurus. Althusser, L. A favor de M arx, Jorge Z a h a r Editores. A rantes, O . B. F. O lugar da arquitetura depois dos modernos, Fapesp/Edusp. C â n d id o de M ello e Souza, A. Formação da literatura brasileira, Itatiaia. ___________ . “ Dialética da m a la n d r a g e m ” , Revista do Instituto de Estudos Brasi­ leiros, n° 8, 1970. G o ld sc hm id t, V. A religião de Platão, Difel. G uéroult, M . Descartes selon l ’ordre des raisons, Paris: Aubier. Hegel, G. W. F. Fenomenologia do espírito, Vozes. ___________ . Ciencia de la Lógica, Buenos Aires: Solar. H o rk h e im e r, M . e A d o rn o , T h . Dialética do Esclarecimento, Jorge Z a h a r Editores. H o rk h e im c r, M . “ T eoria tradicional e teoria crítica” , coleção O s Pensadores, Abril Cultural. H a b e rm a s, J. O discurso filosófico da modernidade, M a rtin s Fontes. ___________ . Teoria de la acción comunicativa, M a d ri: C atedra. Husserl, F.. Investigações lógicas, coleção O s P ensadores, Abril C ultural. Kuhn, T h . A estrutura das revoluções científicas, Pespectiva. L ebrun, G. La patiente du concept, Paris: G allim ard. ___________ . Kant e o fim da metafísica, M a rtin s Fontes. Lukács, G. História e consciência de classe, Elfos. ___________ . El joven Hegel, Barcelona: Grijalbo. M a r x , K. O capital, coleção O s E conom istas, Abril Cultural. ___________ . Manuscritos econômicos-políticos, Lisboa: Edições 70. Schw arz, R. Ao vencedor as batatas, D uas Cidades/K ditora 34. ___________ . Um mestre na periferia do capitalismo, D uas C idades/E ditora 34. Singer, P. A utopia militante, Vozes.

P a u lo A ranres

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C a rlo s N elso n C o u tin h o : “ V ejo um fe n ô m e n o m u ito in te re ssa n te — n eg ativ o , m as in te re s­ sa n te — o c o rre n d o n o B rasil, q u e é o d o e sv a z ia m e n to da d im e n sã o p o lítica da so c ied ad e civil. F. esse esv a z ia m e n to real se tra d u z iu m u ito c la ra m e n te ta m b é m n u m e s v a z ia m e n to c o n c e itu a i” .

C A R L O S N E L S O N C O U T I N H O (1943)

C arlos N elson C o u tin h o nasceu em 1943, em Salvador (BA). Form ou-se em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia e, em 1964, m udou -se p ara o Rio de Ja neiro em razão d a repressão política. Perm aneceu na E u ro p a entre 1975 e fins de 1978. Em 1986, to rno u-se professor titular da Faculdade de Serviço Social da U ni­ versidade Federal d o Rio de Ja neiro, função que o cu p a até hoje. É o e ditor brasilei­ ro dos Cadernos do Cárcere, de A n tonio G ramsci. Esta entrevista foi realizada em o u tu b r o de 1999.

Goetbe dividiu a vida de seu personagem W ilbelm M eister em dois romances, O s anos de a p re n d iza d o e O s anos de peregrinação. No pri­ meiro, o foco está posto na formação do indivíduo Wilbelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que você nos falasse de sua formação intelectual? N ã o me recordo bem se G oethe distinguiu assim tã o claram ente um período de for­ m a ç ã o individual e o u tr o d as relações d o indivíduo com a sociedade. Acho que já na fo rm a ç ã o d o indivíduo a sociedade está presente, q u er dizer, os indivíduos são p r o d u to da sociedade, e n ã o o co n trá rio . Feita essa observação , digam os, m e to ­ dológica, en ten d o que você está interessado em saber da m in h a fo rm a ç ã o intelec­ tual. Bom, c um a form a çã o meio bizarra, vou te n ta r relem brar algum as coisas dela. Para a m inha form a çã o intelectual, a prim eira coisa f u n d am e n tal, de que eu me lem bro bem , foi te r d esco b e rto aos 13 ou 14 anos, na biblioteca d o meu pai, O manifesto comunista e Do socialismo utópico ao socialismo científico. M eu pai era poeta, com alguns livros publicados. N ã o era um g rande po eta, m as tinha algum talento. Era d e p u t a d o udenista, m as n ã o era um a pessoa co n se rv a d o ra , era um a pessoa progressista, m as que, p o r injunções baianas, era ligado à U D N . E tinha na sua estante O manifesto comunista e D o socialismo utópico ao socialismo científico. A leitura desses livros foi um deslu m b ram e n to para mim . A cho que qu em lê o Mani­ festo aos 14 an o s e n ã o tem um a sensação de descobrir o m u n d o , esse cara n ã o vai m u ito longe. E realm ente um livro fantástico. Foi um m a rc o no q u e eu c h a m a ria de "m in h a fo rm a çã o intelectual". I.i o Manifesto rapida m ente, é um livro pequeno, e, a partir de então, eu já era com unista. Consolidei esse com u nism o lendo D o socia­ lismo utópico ao socialismo científico, ta m b é m um a b r o ch u ra m u ito interessante, u m a p arte d o Anti-Dübring de Engels. E tomei algum as decisões. U m a delas foi a de fazer política, um pouco p orque meu pai fazia e um pouco pelo avesso dele, porque eu ia fazer pela esquerda e ele fazia pela U D N , mas eu tomei claram ente essa decisão. E ntão, um aspecto interessante da m inha atividade intelectual, da m inha o p ­

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çã o p o r ser intelectual, um a pessoa que tra b a lh a c o m idéias, é o fato dessa ativ id a­ de estar estreitam ente articulad a à m in h a o p çã o política. N u n c a consegui distin­ guir entre ser co m u n ista e ser intelectual. N ã o entrei no Partido C o m u n ista imedi­ atam ente, até p o rq u e eu estava ain d a n o ginásio, no final do ginásio p ara o colegial, m as já me considerava co m u n ista , já via o m u n d o assim. Li m u ito , e m inha f o r m a ­ ç ã o intelectual foi essencialmente a de a u to d id a ta ; n ã o tive n e n h u m mestre, qu er dizer, n e n h u m a pessoa mais velha que ten h a me o rie n ta d o nas m inhas leituras. Li meio caoticam ente. Tive um professor no terceiro a n o colegial, P aulo Farias, que aliás se exilou em 1964 e n unca mais volto u ao Brasil e q u e é hoje professor na Inglaterra, especialista em m u ç u lm a n o s negros. P aulo Farias era professor de H is ­ tória, m a rx ista, ta m b é m d o P artido, e me deu algu m as boas indicações, entre elas u m a pela qual eu lhe sou etern am e n te g ra to , a de G ramsci. Foi o P aulo Farias a prim eira pessoa que me falou de G ramsci. N a époc a, eu vinha a o Rio de Ja n eiro — eu devia te r uns 17 anos, en tã o — e com p rei u m a edição arg e n tin a de G ram sci, El

materialismo histórico y la filosofia de Croce. Você vinha m uito ao Rio de Janeiro nessa época? A p artir d os 16 anos, eu vinha u m a o u du as vezes p o r an o . Aos 18 anos, mais o u menos, fiquei am igo de L eandro Konder. Foi q u a n d o publiquei, irresponsavelm ente, na revista da Faculdade de Direito da Bahia, um artigo c h a m a d o “ Problemática atual da dia lética” , que é indiscutivelmente um besteirol, m as u m besteirol eng ra çad o , p o r q u e eu citava G ram sci, citava Lukács, e um am igo c o m u m deu essa revista ao L eandro. O L ea n d ro me escreveu um a gentil ca rta, aliás — ele lem bra sem pre disso — , u m a carta m u ito o r to d o x a , “ você está lendo autores meio h e terodoxo s, cuidado e tal, você está co m desvios um p o u co idealistas” . M a s a partir daí nós ficamos m uito am igos e seg uram ente essa foi o u tr a coisa m uito im p o rta n te em m in h a form a çã o intelectual.

O Lukács chegou como para você? L ukács eu descobri na Faculdade de D ireito da Bahia. N a biblioteca da Faculdade de Direito, havia um a revista com um a resenha sobre o recente lançam ento na França de Histoire et conscience de classe. Aí an otei na m in h a listinha, vim a o Rio — em 1961, se n ã o m e e n g a n o — , e ju n to com o G ram sci, com prei ta m b é m Histoire et conscience de classe, qu e foi um livro que ta m b é m fez m u ito a m inha cabeça, e m ­ b o ra eu hoje ache que n ã o é o m elhor te x to d o L ukács, que é u m texto p ro b le m á ­ tico, m as certam e n te foi um livro que fez m u ito a m in h a cabeça. E n tã o , vejam bem , foi essa m inha atividade intelectual-política qu e m e levou a o p ta r p o r fazer Direito. Por quê? P orque a Faculdade de D ireito era, na Bahia, a faculdade o n d e se fazia política. Basta dizer, p o r exem plo, que, dos 4 5 0 a lunos que a F acu ld ade tin ha e n tã o , a base d o P a rtido C o m u n ista tin h a cerca de cin qüenta pessoas, ou seja, mais de 1 0% da escola. E eu entrei na base d o P a rtido tão logo entrei na Faculdade. Isso p ara n ão falar na JU C [Juventude U niversitária C a tó li­ ca), que devia ter os seus o u tro s cinqü enta, e nos gru p o s de direita, que ta m b ém estav am mais o u m en os o rg aniz ados na Faculdade. E n tão, entrei em D ireito p ara fazer política, m as m eu interesse teórico central, nesse m o m e n to , já era ce rtam en te

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Filosofia. M a s eu n ão term inei o curso, p o rq u e, 110 segundo an o , q u a n d o com eçou a ficar c h a to , aquele negócio de D ireito Processual Penal etc., eu desisti. Eu já esta­ va fazendo Filosofia em regime de disciplinas isoladas, ac ho que se c h a m a assim , e aí term inei Filosofia, me graduei em Filosofia. M a s eu n ão aprendi n a d a na F aculdade de Filosofia da Bahia. A prendi talvez um p o u q u in h o com o professor de H istória da Filosofia, A u to de C a stro , que era um m arxista k a n tia n o — na época n ã o entendi bem co m o isso era possível, mas depois li | Karl 1 V orlánd e r, M a x Adler etc. e soube que era possível. A u to era kelseniano e, a o m esm o te m p o , m arxista. M a s era u m a pessoa que tinha um a certa in form ação de História da Filosofia. Ele dava História da Filosofia, chegava em Kant e a c ab o u , depois de K ant nada . M a s, até K ant, ele tinha um a boa inform ação . Fui a lu n o ta m b é m do pad re Pinheiro, que é vivo até hoje, já n ã o é mais padre, m as era pad re na época, dav a aula de batina e era tom ista radical. Eu me lem bro que um dia — eu era g a ro to , estava e n tra n d o na faculdade, devia ter uns 18, 19 anos — ele disse a seguinte b arb aridade, co m grande ênfase: “ n enhum pen sad or disse que a c o n ­ tr ad ição é um fato objetivo. A c o n tra d iç ã o é sem pre um erro lógico e tc .” . Eu disse: “ mas, professor, o Hegel disse isso” . “ N ã o , não disse.” N o dia seguinte, levei o li­ vro d o Hegel e m ostrei a ele. E n tã o, n ã o apre ndi n a d a ali. F.u diria que, pelo c o n ­ trário , se tivesse a p r e n d id o , teria sido d esin fo rm a d o . N a verdade, eu tinha p o u ­ quíssim os professores. O p a d re Pinheiro era professor de toda s as disciplinas, p r a ­ ticam ente: de I n tro d u ç ã o à Filosofia, de Lógica, de T eoria d o C o n h e cim en to e de Metafísica. T inha um o u tr o professor de Ética e Estética que jamais deu um a aula. F.le passou trinta anos na universidade e n ão deu n en h u m a aula com princípio, meio e fim. M o r re u , c o itado. Era um a pessoa m uito simpática. E ntão, a m inha form ação, co m o eu disse antes, é um a form ação extrem am ente pessoal. E, claro, acho que to d o a u to d id a ta tem limites. E claro que o trein am e n to sistemático que a universidade dá — u m a boa universidade — aju d a bastante. Eu li m uito p o r m inha conta, descobrindo assim meio casualmente os autores. R e to m a n ­ d o, en tão, eu entrei na Faculdade de D ireito e no Partido C o m u n ista no início de 1961. N o P a rtido sei q u a n d o entrei, m a s não sei direito q u a n d o saí. Em to r n o de 1981, 1982, me afastei d o P artido. C on c lu í Filosofia, m as n ã o me licenciei, sou ap e nas bacharel, p o r q u e no últim o a n o eu vim p a r a o Rio de Janeiro . Vim p ara o Rio m u ito em função d o golpe de 1964. O A u to de C a stro tinh a me c h a m a d o p ara ser assistente dele. Ele era catedrático, e o ca te d rá tic o na época convidava alguém p ara ser assistente. Eu estava até c o m essa idéia na cabeça, mas o golpe foi um a coisa m u ito com plic ad a , eu respondi processo e passei praticam ente to d o o a n o de 64 no Rio, evitando a prisão. Isso, por o u tro lado, consolidou muito m inha am izade co m o Leandro, ta m b é m com outros intelectuais cariocas, e eu decidi vir para o Rio, m o ra r n o Rio. Fiz isso cm 1965. Consegui nesse a n o transferência d o meu emprego. Eu era funcionário do Tribunal de Contas. M eu pai era então conselheiro d o Tribunal de C o n ta s e me a r r a n jo u esse em prego. N a época, não havia con curso . T rabalhei nesse em prego na Bahia alguns anos e consegui essa coisa boa que foi vir para o Rio, transferido p a r a o T rib u n a l de C o n ta s do Rio de Janeiro . H á até um episódio interessante sobre isso. V ou a o T rib u n a l de C o n ta s d o Rio, me ap re sen to a o J o ã o Lira Filho, um jurista am igo d o meu pai. Aí me ap resento lá, botei um paletozinho,

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gravata. “ Dr. Jo ã o , vim aqui me ap re sen ta r para tr a b a lh a r . ” “ M e u filho, vá p ara casa. Se eu precisar de vocc um dia, eu o c h a m o . ” O u seja, passei três ou q u a tro an o s esp e ra n d o que ele me cham asse... Com ecei e n tã o a t r a b a lh a r em trad u ç ão . Ainda q u a n d o m orava na Bahia, traduzi, aos 22 anos, Gramsci, o volume Concepção dialética da história, o livro tem esse título no Brasil — aliás, estou fazendo agora u m a n ova edição crítica de G ramsci. T ra d u z i m uito, mais de setenta livros. E d e ­ morei m u ito p ara reconhecer que era tr a d u to r, p o rq u e sem pre achava que estava fazendo um bico. Em d a d o m o m e n to , percebi que o volum e de m in has trad uções era um a coisa certam e n te significativa. E eu diria que essas trad u ç õ es nem sempre f o ra m tra d u ç õ e s p u r a m e n te profissionais. H á m u ita s que se g u ra m en te são. M e m a n d a v a m o livro, e eu traduzia. M as há um b o m n ú m e ro delas que são ta m b ém um tra b a lh o de edição: sugestão m in ha ao editor, textos prefaciados, apresentados. Um o u tr o elem ento im p o r ta n te a registrar, nesse perío do, é o fato de eu n ão ter feito p ó s-graduação. N ã o fiz p ó s-g ra d u aç ão d u r a n te m u ito tem po. N ã o só p o r ­ que p ó s-g ra d u aç ão p raticam en te n ã o existia na época. Além disso, não tinha co m o m eta e n tra r na Universidade, até p o r q u e era o p eríodo da d ita d u ra , eu era (e sou) m arxista, um m arxista explícito até, po rq u e meus livros indicavam claram ente essa condição: Literatura e humanismo, de 1967, tem co m o su btítulo “ E nsaio de críti­ ca m a rx is ta ” . E ta m b é m não me interessei m u ito p o r e n tra r na universidade. N o início dos a n o s 80, fiz um d o u to r a d o no luperj, em Ciência Política. M a s n ã o defendi tese, p o r q u e no final d o d o u to r a d o — eu estava p r e p a ra n d o u m a tese sobre G ram sci — , abriu um con c u rso p a r a professor titular na Universidade Fede­ ral d o Rio de Janeiro , no qual eu consegui me inscrever com n o tó rio saber, que me foi d a d o pela Universidade. Eu en tã o usei a tese p ara fazer o co n c u rso e, com isso, ganhei ta m b é m o título de livre-docente, p o rq u e o con c u rso p a r a titular é eq uiva­ lente ao de livre-docente. Além de g a n h a r um em preg o, ganhei um título. De m o d o que m in h a carreira acadêm ica é, digam os, meio to rta , p o rq u e eu entrei p o r cima, co m n o tó rio saber. D epois de q u a t r o a n o s d a n d o aulas n u m a faculdade privada, no Bennet, entrei na UFRJ em 1986. São, p o r ta n to , dezessete anos na universida­ de. F. só me aposentarei na com pulsória.

Voltando para a década de 1960. A impressão que se tem é que o am ­ biente intelectual paulista era muito diferente do ambiente intelectual carioca. A impressão que se tem pensando em casos como o da editora e da revista Civilização Brasileira, é a de que, ao contrário do que ocorria em São Paulo, o debate intelectual no Rio de Janeiro era de um modo geral menos restrito, menos universitário, menos homogêneo do ponto de vista dos seus participantes. Sem dúvida.

Em que medida isso foi importante para que você não tenha se decidi­ do a seguir essa carreira acadêmica no sentido clássico da palavra? Em que medida isso poderia explicar, por exemplo, as diferentes interpre­ tações, os diferentes usos de Lukács, o que você fez e o que foi feito em São Paulo?

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É um a observação ex tre m a m e n te pertinente essa sua. A cho que o p en s a m e n to so­ cial e a cu ltu ra estética do Rio de Ja neiro eram na época c o m p letam e n te diferentes dos de São Paulo. Q u e r dizer, nós n ão tín h a m o s um a prática acadêm ica m u ito fo r­ te nessa época. L ea ndro K onder n ão era da universidade, eu n ã o era d a universida­ de, Ferreira G ullar n ã o era da universidade. O p ró p rio José G uilherm e .Vlerquior ta m b ém n ão era da universidade nesse tem po . É possível que isso tenha p ro v o ca d o diferentes m odos de en tender Lukács. O nosso m o d o era um m o d o v o lta d o mais para a ação política, co m o eu tinha dito antes. N ó s três, G ullar, eu e L eandro, é r a ­ m os claram ente intelectuais políticos. A gente ten tava evidentem ente n ão reduzir o tra b a lh o intelectual ap e nas a o uso político im ediato, mas havia um a clara in te n ­ çã o de influenciar, de m a rc ar posição, de abrir debates. O m a rx ism o paulista é bem diferente: tem um viés acadêm ico m u ito forte, no bom e no m a u sentido. Eu acho, p o r exemplo, que não é casual que o m arxism o paulista tenha d a d o um a figura com o F ern an d o H e nrique C a rd o s o , \ l a r x é u sad o ac ad em icam en te, m as q u a n d o se t o ­ m a m decisões políticas, essas n a d a têm a ver co m o m a rx ism o . N ã o digo isso, evi­ dentemente, de todos os marxistas paulistas. Considero R oberto Schwarz certamente o mais lúcido crítico literário brasileiro. G o sto m uito do traba lho filosófico do Paulo Arantes. A cho que a fase m arxista do G iannotti é e xtre m am ente rica. M a s diria que há diferenças, você observou bem, m uito interessantes entre Rio e São Paulo. N ã o me parece casual, p o r exem plo, o fato de G ram sci ter um peso bem m e n o r em São Paulo d o q u e tem n o Rio. Talvez o único desses m arxistas p aulistas q u e se interes­ sou p o r Gramsci foi o Paulo A rantes, q u e aliás escreveu um belo ensaio sobre ele, q u e está no livro Ressentimento da dialética. M as, p ara os o u tro s uspianos, talvez co m exceção d o [Octávio] Ianni, G ram sci é um p e n s a d o r que passou batido. C o n ­ tu d o , esse lado, digam os, acadêm ico tem ta m b é m um aspecto positivo, m as sem es­ quecer que ser au todidata tem ta m bém suas vantagens. Gramsci não tinha nem curso superio r, e n tro u p ara fazer Lingüística e desistiu no meio p o rq u e a política n ão deixou. E é Gramsci. M a s acho que um certo treinamento sistemático, evidentemente, aju d a o desenvolvim ento intelectual. U ma boa academ ia, um a boa universidade, co m o é o caso da USP, ajuda seguram ente nesse sentido.

!s!a Bahia, em fins dos anos 1950 e começo dos 1960, havia um clima de grande efervescência cultural. Como foi essa experiência para você? N a virada d o s anos 50 p ara os an o s 60, houve de fato na Bahia, o n de eu estava no período, um a floração cultural ex trem am en te significativa, um período em que você tem o surgim e n to de G lau b e r R ocha, de J o ã o U bald o Ribeiro, de C a e ta n o , Gil etc. É um a coisa m uito ligada à Universidade da Bahia. É um a coisa curiosa, isso. H o u ­ ve um reitor, um reitor au to ritá rio , que passou d écadas co m o reitor, Edgar Santos. Fizemos greve co n tra ele, a c h áv a m o s q u e ele era um reacio nário etc. e tal. M a s foi um reitor que deu m uita im p o rtâ n cia às escolas de arte: abriu um a escola de te a ­ tro, um a escola de música, u m a escola de dan ç a, levou pessoas de fora para lá, o Luiz C arlos Maciel, o Koellreuter. Isso criou um am biente, eu diria, m uito p r o p í­ cio a um a floração cultural, que foi m u ito im p o rta n te nesse período. E o u tra figu­ ra m uito m a rc an te nessa época na Bahia foi Lina Bo Bardi. D o n a Lina foi p ara a Bahia para o rg anizar o M useu de Arte C o n te m p o r â n e a e o M useu de Arte P opular

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da Bahia, e agitou m u ito o meio cultural baiano. Ela foi seguram ente u m a das o u ­ tras pessoas que m e falou de G ram sci, além d o P aulo Farias, q u e foi certam e n te o p rim eiro a me falar dele. Ela dizia que a Bahia era a expressão real d o nacionalp opu la r. N ã o é bem assim, m a s a presença dela foi u m a coisa im p o rta n te na m i­ n h a geração. E n otem que os q u e viemos p ara o Rio, e não fom os p oucos — N o ên io Spínola, m in h a irmã Sônia C o u tin h o , e ta n to s o u tr o s — , e n c o n tr a m o s aqui um cli­ m a cultural m uito parecido com o clima cultural da Bahia. G lau b e r ta m b é m veio p ara o Rio. E acho q u e n e n h u m de nós veio para o Rio e e n tro u na universidade. Penso em G lauber, em C a e ta n o , que foi m eu colega em Filosofia. C a e ta n o não te r­ m in o u o curso, coisa da qual ele se a r rep e n d e até hoje. N ó s fom os colegas, ele era um a n o mais a tra s a d o qu e eu, e m b o ra seja um a n o mais velho. Foi q u a n d o fiquei am igo dele. C a e ta n o era crítico de cinem a nessa época e fazia crítica p a r a u m a re­ vista c h a m a d a Afirmação , o n d e eu ta m b é m escrevia. Aliás, lá escrevi um artigo grotesco, c h a m a d o “ Irracionalism o: metafísica em p â n i c o ” . O título é engraçad o, m as o artigo é m uito ruim . O C a e ta n o , eu dizia, escrevia crítica de cinema e, de vez em q u a n d o , dizia assim , “ gente, eu fiz u m a m ú sic a ” , era um a coisa m u ito en g ra ç a ­ da [cantarolai, “o sa m b a vai crescer q u a n d o o p o v o co m p re e n d e r que é o d o n o da jo g a d a...” . E n tã o , eu sem pre digo: convivi com um gênio e n ã o me dei co nta. M e consola pensar que, na época, ele talvez ain d a n ã o fosse um gênio...

Quando você vai para a Itália na década de 1970, essa sua experiên­ cia italiana não foi de certo modo um “elevar ao conceito” esse tipo de vínculo orgânico entre cultura e política que você estava perseguindo? Em d a d o m o m e n to , ficou impossível a m in ha situação no Brasil. Eu m udei de casa, o Exército me p ro c u ro u na velha casa, p ro c u ra v a m in h a m u lh e r no tra b a lh o , e eu tom ei a decisão de sair d o Brasil. Escolhi ir para a Itália e x a ta m e n te p o rq u e m eu g rande m o d e lo era o Partido C o m u n ista Italiano. Para m uitos, o g ran d e m odelo era o PCUS, Partido C o m u n ista da U nião Soviética, e a p r ó p ria U nião Soviética. P ara mim , era o Partido C om u nista Italiano. Para mim , a g rande d o r n ão foi a queda d o m u ro de Berlim o u o fim da URSS, m as o fim d o Partid o C o m u n ista Italiano.

Quando exatamente você foi para a Itália? E m m a rç o de 1976. M in h a decisão tem en tã o m uito a ver com meu a m o r pelo PCI. Além do fato de que o italian o é se g u ra m en te a língua estra ng eira q u e d o m in o m elhor, e ta m b é m pela m in h a ligação c o m G ramsci. G ram sci foi um a u t o r que fi­ cou um pouco latente na minha preocupação intelectual durante alguns anos, q u a n d o m e meti a fazer crítica literária. D u ra n te alguns an o s , Lukács to m o u o lugar de G ram sci, g a n h o u , digam os, um a d im ensão m a io r na m inha atividade intelectual, m as G ram sci sem pre esteve presente nela, desde o início. H oje em dia mais ainda, já que n ã o faço o u tr a coisa senão p r e p a ra r u m a edição crítica dos Cadernos do cárcere, que deve estar c o m e ç a n d o a ser pub licad a em n o v e m b ro deste a n o [ 1 9 9 9 J. Eu fui p ara a Itália sem em prego. Depois trabalhei muito, até profissionalmente d u ra n te algum te m p o , n o PCB no exílio, mas, no início, eu n ã o tinha em prego , meu pai m a n d a v a dinheiro, e eu pensei em a prove itar o te m p o na Itália p ara fazer um a p ó s-g raduação . Q ual não foi m in h a surpresa ao descobrir que na Itália n ã o existia

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pós-graduação! Agora tem, o c h a m a d o "d o tto ra to di ricerca” . Assisti a algumas aulas na Universidade de Bologna, o n d e fiquei, mas n ão fiz n enh um curso formal. Depois, em Paris, já no último a n o que passei na E u ro p a , ta m b é m pensei em fazer um d o u t o ­ rado, mas aí as condições no Brasil permitiram a m inha volta e eu terminei não fazendo o d o u to r a d o sobre Lukács, em que eu seria orientad o pelo meu am igo Michael Lõwy.

Você volta em 1980? Voltei no final de 1978. P orque n o dia 1° de ja neiro de 1979 ac abava o Al-5. C h e ­ guei à Bahia, me lem bro bem , em 23 de dez em b ro de 1978. Fiquei en tã o um a n o e meio na Itália, uns três meses em P ortugal, e um a n o em Paris. Fiz m uita política no exterior. Lá, além de r ed a to r da Voz Operária , tornei-m e assessor da C om issão Executiva d o PCB, o n d e tive c o m o colega o Aloysio N u n es Ferreira, hoje Secretá­ rio Geral da Presidência da República. A cho que ele finalm ente conseguiu ser Se­ cretário Geral [risos]. M a s foi um m o m e n to m u ito im portante na m inha form ação, a m inha ida para a Itália. Lem bro-m e de que cheguei na Itália, liguei a televisão e o Enrico Berlinguer, en tã o secretário d o PCI, dava um a entrevista e dizia o seguinte: “ Eu me sinto mais p ro teg id o no g u ard a -c h u v a da O ta n , p a r a fazer o socialismo que eu q uero, d o que no Pacto de V a rsó v ia ” . Eu pensei: “ M a s esse cara é um traid o r, isso é um a b s u rd o c o m p le t o ” . M a s, progressivam ente, me tornei e u ro c o m u n ista , a p artir de m inha experiência c o m o PCI. F.u ain d a tinh a uns preconceitos m arxistas-leninistas fortes q u a n d o fui p ara a Itália. N u n c a fui stalinista, inclusive p o rq u e eu tive a sorte de ter e n tra d o no PC q u a t r o anos depois da denúncia dos crimes de Stalin. N u n c a fui próU nião Soviética, sem pre tive um a forte d úvida em relação ao socialismo que lá era co n s tru íd o , m as ain d a tinha m eus preconceitos. Dizer que a O ta n é m e lh o r que o Pacto de V arsóvia foi algo que me cho c o u p ro fu n d a m en te. N ã o o b sta n te isso, acho que ap re n d i m u ito nessa m inha estada na Itália. A democracia como valor univer­ sal n ão teria sido escrito se n ã o fosse esse meu perío d o italiano.

A própria expressão “democracia como valor universal” é de Berlinguer, como você mesmo escreve... Sim. N o septuagésimo aniversário da Revolução Bolchevique, Berlinguer vai a M o s ­ cou e faz um discurso d u ro , em que diz que a dem ocracia é um valor histórico uni­ versal irrenunciável. Eu gostei d a expressão e usei um p o u co co m o slogan. Eu diria q u e o p eríodo que passei na Itália foi o meu d o u to r a d o . A prendi m uito, foi m uito im p o rta n te para mim .

Na Itália, você sobrevivia de traduções? Fazia trad uções p ara o Brasil e meu pai me m a n d a v a algum dinheiro. Já no perío ­ d o de Paris, eu recebi alg um a coisa do PCB.

Voltando ainda uma vez para a década de 1960. Três paradigmas te­ óricos marcaram o ambiente intelectual do período, a saber o estruturalismo, o existencialismo e o marxismo. Como você avalia esses para­ digmas boje, como é que você se relacionou com eles?

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N o fim dos a n o s 50 e início dos an o s 60, certam e n te dois para d ig m as fortes eram o existencialism o e o m arxism o. E isso é m uito cu rio so, p o rq u e um a u t o r que me influenciou m u ito nesse p eríodo foi Sartre. Eu li a Crítica da razão dialética, achei um livro genial — e é um livro genial, ce rtam en te — , e escrevi m eu prim eiro artigo que eu diria sério — ain d a infanto-juvenil, mas sério, no sentido de que era mais tr a b a lh a d o , menos m a lu co — , que é precisam ente um ensaio so bre Sartre. O título original é “ A trajetória de Sartre do existencialism o à d ia lética” ; é um ensaio m u i­ to sim pático a Sartre, que eu reproduzi no meu p rim e iro livro, Literatura e hu­ manismo , n u m a versão b astante m odificada. É um artigo interessante, que eu q u e ­ ria publicar na revista do Partido C o m u n ista , que era a Estudos Sociais. M a ndei o artigo, passou um a n o em discussão. T e r m in a ra m p u b lic an d o , m as sob a rubrica “ Problemas em d eb a te” . De qualquer maneira, publicaram, e eu diria que é um artigo bastante h e te ro d o x o em relação a o m a rxism o-lenin ism o da época. É um a defesa de Sartre. Eu digo claram ente, p o r exem plo, que n ã o existe um a dialética da n a t u ­ reza, que Sartre estava certo a o dizer que n ã o existia dialética da n atureza. O a r ti­ go usa m uito G ram sci e Lukács, co lo cad os assim co m o parceiros de Sartre nu m a c o m u m batalh a p o r um m a rx ism o renovado. E ntão, diria que a m in h a relação com o existencialism o, co m Sartre em especial, foi boa. N u n c a vi n o existencialism o francês um inim igo a c om b ate r. A o co n trá rio do estruturalism o, que realm ente se to rn o u , em d a d o m o m e n to , a m in ha besta fera. O estru tu ra lism o é mais tardio, eu diria. A influência d o e s trutura lism o se dá no final dos anos 60, no início dos an o s 70, e foi u m a o n d a no Brasil. Acho que m eu livro O estruturalismo e a miséria da razão é um livro estreito, em alguns casos sou m u ito d u ro na crítica d o e s tru tu ra ­ lismo, particu la rm en te de alguns autores, m as ac ho que foi justa a idéia de que era preciso c o m b a te r o estruturalism o. Em d a d o m o m e n to , com o esvaziam ento cu ltu ­ ral p ro v o c a d o so b re tu d o pelo AI-5, e com o esvaziam ento da universidade, o es­ tru tu ra lism o o c u p o u um lugar q u e antes era não só d o m a rx ism o , m as ta m b é m do marxismo. O cu p o u de que maneira? C o m tod a aquela retórica de antiideologia, antih u m a n ism o , anti-historicism o etc. E ntão, na verdade, ele serviu para desviar pes­ soas de um a análise crítica, dialética e racionalista d o real. Acho assim que meu livro tinha sentido. F. m uito curioso, p o r exem plo, que, antes do meu livro, te n h a saído um artigo d o C a rp e a u x , um belo artigo c h a m a d o “ O E strutu ralism o é o ópio dos intelectuais” . É um artigo panfletário, co m o o é to d a a p ro d u çã o final d o C a rp e aux , t o d a ela panfletária, b rilha ntem e nte panfletária. É u m artigo que q u e r dizer e x a ta ­ m ente isso: “ O lha, os caras estão virando estruturalistas para p o d er sair da luta p o ­ lítica” . O O tto tinha m uita sensibilidade, acho, p ara esse tipo de coisa. Aliás, é t a m ­ bém curioso que o prim eiro longo artigo p ublic ad o no Brasil sobre Gram sci seja d o O tto M a ria C a rp e a u x , p u b lic ad o em 1966 na Revista Civilização Brasileira. E ntão, o e s trutura lism o é bem diferente do existencialismo. N ã o aprendi com o es­ truturalismo. Aprendi com Sarire, com os existencialistas franceses, que estudei mais, porque Heidegger n ão conheço bem; não conhecia na época e continuo sem conhecer. Aprendi com eles, n ã o via neles, digam os, inim igos ideológicos; eram apenas dife­ rentes. O estruturalism o, não. A lthusser me irritou p articularm ente, p o rq u e é uma leitura de M a r x que é o ex a to o p o sto de tu d o aquilo que eu ac h o que deve ser.

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Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Como você vê as re­ lações entre a filosofia e a cultura brasileira? Acho que não, e isto, pelo m enos, em dois sentidos. Prim eiro, ac ho que n ã o existe um a “ filosofia n a c io n a l” . Isso o Á lvaro Vieira Pin to te ntou fazer na época d o ISEB [Instituto Superior de E studos Brasileiros). F. o p a d re Vaz, na m esm a época, fez um artigo m u ito bo nito dizendo e x a ta m e n te q u e isso n ão existe. Aristóteles nasceu na Grécia, mas dificilmente você p od e dizer que Aristóteles era um “ filósofo nacional g r e g o ” , sim plesm ente. A filosofia tem um a dim e n sã o universal indiscutível. C laro que há um co n d ic io n a m e n to histórico nacional da filosofia: Descartes n ã o poderia ser alem ão, é francês. M a s n ã o gosto dessa expressão “ filosofia b rasileira” . Em segu ndo lugar, ac ho q u e n ã o houve ainda no Brasil — não sei se vai haver um dia — a criação de u m a filosofia realm ente original, q u er dizer, um a c o rren te de p e n ­ sa m en to o u u m filósofo que possa ser c o m p a r a d o , p o r exem plo, claro, cum grano salis, com um K ant, um Hegel, um M a rx . A m aioria d o s filósofos brasileiros tem o seu a u t o r estrangeiro que é trazido p a ra o Brasil, eu diria até ab rasileirado, coloca do d e n tro das condições d o Brasil. O Paulo A ran tes tem o Hegel, G ian n o tti teve o M a rx , hoje tem o W ittgenstein, M arilena Chaui tem o Espinosa, o M a rc o s N o b re tem o A dorno, e, vam os lá, Carlos N elson C o u tin h o tem o G ramsci. M e parece que n ã o existe ainda — eu n ão sei se essa é a o p in iã o de vocês — u m a filosofia p ró p ria , que p erm ita dizer: “ A quele cara tem um p en s a m e n to pró p rio , estabeleceu um a c orren te n o v a ” . Talvez isso exista na Lógica, com o Nevvton da C osta. M a s Lógica, p ara m im , é um g ra n d e mistério.

E Miguel Reale? A verdade é que eu n u nca li o Reale. Se li, foi algum a coisa de Direito, e esqueci. M a s eu n ão creio que se possa dizer que Reale tem um p e n s a m e n to filosófico p r ó ­ prio, co m o não o tin h a m nem Farias Brito, nem T o b ia s Barreto. Pode até ser que alguém te n h a , m as n ã o me parece que ten h a e s ta tu ra universal. N e n h u m a u t o r brasileiro en tra ria n u m a história da filosofia, a n ã o ser c o m o literatura secundária. M a s é possível pensar em temas filosóficos pelo menos, como o tema da dialética, por exemplo. Pode-se dizer que há trabalho nesse campo. Sim, há tra b a lh o nesse ca m p o . O que eu estou dizendo é que há, em to d o s os te rre ­ nos d o p e n s a m e n to filosófico e sobre um grande n ú m e ro de autore s da história da filosofia, im p o rta n tes contribuiçõ es brasileiras a o desenvolvim ento de conceitos e da reflexão sobre esses autores. Seguram ente, os dois livros de G ian n o tti sobre o m a rx ism o , Origens da dialética do trabalho e Trabalho e reflexão , são livros im ­ portan tes, de nível internacional. O que eu estou dizendo é que n ã o há, digam os, um a m a tu r a ç ã o que perm ita o surgim e nto de um filósofo que tenha um p en s am e n ­ to, um sistema próprio.

Por quê? E um a bo a pergu nta. Por várias razões. Prim eiro, po rq u e a trad ição filosófica do país é baixa. A Filosofia se t o r n o u um a coisa séria n o Brasil q u a n d o se criou o “ d e ­ p a r ta m e n to francês de u l t r a m a r ” , co m o diria o m eu am igo Paulo A rantes. Até en-

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tão, não era sério. Eu disse a vocês que tive um professor que afirm o u enfaticam ente que n e n h u m p en s ad o r tinha dito que a c o n tra d iç ã o era objetiva, mas que n ão p a s ­ sava de um erro lógico. E n tã o , acho que faltava realm ente um caldo de cultura necessário. Este, aliás, é um p roblem a geral da cu ltu ra brasileira, não se refere só à filosofia. M a s eu diria que, n o caso da literatura, p o r ex em plo , o co rreu a c o n s tru ­ ção de u m a literatura brasileira — A ntonio C â n d id o , aliás, m o stro u isso m u ito bem — , que é mais sólida e está co n so lid a d a há mais te m p o que a filosofia. Talvez a g o ­ ra se esteja c ria n d o realm ente u m a o rganiz aç ão da cu ltu ra — p ara usar um te rm o gram sciano — que vai permitir, espero eu, que a filosofia tenha um desenvolvimento m aior. M a s, ce rtam ente, nós tem os hoje u m a p r o d u ç ã o filosófica e x tre m am en te im p o rta n te. E diria que se trata de um a p r o d u ç ã o de nível internacional, sem dú v i­ da n enhu m a.

Que conceito(s) de sua reflexão você destacaria como o(s) mais representativo(s) de sua posição filosófica ? Pediríamos que você nos contasse como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje. Eu seria um p o u co sim plista e diria o seguinte: ac ho que o conceito que mais me m a rc o u , que mais m a rc o u m inha p r o d u ç ã o teórica, foi o conceito de totalidade. Eu me lem bro de que, q u a n d o li aqu e la célebre frase d o I.ukács, “ o m a rx ism o se dis­ tingue da ciência burguesa n ã o pela p redom in ância dos fatos econôm icos, mas pelo princípio da to ta lid a d e ” , aquilo foi p ara m im um a ilum inação. E, nesse sentido, e m b o ra eu esteja d a n d o aqu i u m a entrevista p ara um livro sobre filósofos, eu n u n ­ ca me considerei fiiósofo. Eu n unca m e considerei filósofo até p o r q u e nunca me preocupei m u ito com essa divisão d ep a rtam e n ta l do saber. “ Eu estou escrevendo sobre o quê? Isso aqui é sociologia da literatura, é teoria política?” E ac h o que isso tu d o está ligado à m in h a co nd içã o de m arxista. O que M a r x era? O que G ram sci era? Gramsci era um teórico da política, era um folclorista (já que escrevia sobre folclore)? Sinto-me sem pre desconfortável q u a n d o escrevem “ C arlos N elso n C outinho , cientista p olítico” . Isso realm ente eu n ão sou. A d oro política, faço política, penso sobre política, mas ciência política p a r a m im é um a coisa meio am ericana, esse negócio de fazer survey sobre voto, sobre eleição, sistema p a r tid á r io — e n ão é isso o que eu faço. Talvez eu pudesse m e identificar co m o um a pessoa que faz Filosofia política. M a s, co m o disse a vocês, sou a b s o lu ta m en te ignorante em Lógi­ ca, que é um terreno fu ndam e n tal na Filosofia. E ntã o , diria q u e o conceito de t o t a ­ lidade foi um conceito que eu n ã o desenvolvi, m as que foi, digam os, m eu n orte m etodológico. Diria que dois conceitos, em duas fases diferentes da m in h a p r o d u ç ã o inte­ lectual, m e m a rc a r a m ce rtam en te m uito. O prim eiro foi o conceito de razão , que tem claram ente a sua origem em Lukács, e que corresponde ao meu período lukácsiano, firm em ente, fanaticam ente lukácsiano.

Qual é esse seu período autenticamente lukácsiano? É o p erío d o que m arca ta n to Literatura e humanismo q u a n to O estruturalismo e a miséria da razão, so b re tu d o até O estruturalismo e a miséria da razão. Diria que, so b re tu d o nesse período, a categoria da ra z ã o foi m u ito im p o rta n te p ara mim . H á

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um a coisa inteligente naquele livro — vou me elogiar um p o u c o — , ou seja, a des­ coberta de que existe não só um a “ destruição da r a z ã o ” , o irracionalism o ab e rto , que Lukács havia ex p o s to no seu injustam ente desqualificado livro — um livro que tem m uita coisa b o a, ain d a q u e haja m o m e n to s insuportáveis, co m o aquele epílo­ go que é um a coisa de guerra fria, mas há m o m e n to s m u ito interessantes — , mas ta m b é m um a “ miséria da r a z ã o ” , o em p o b re c im e n to da raz ão em n o m e do racionalisnio formal. Este é um m o m e n to — talvez na época eu n ã o reconhecesse isso — fra n k fu rtia n o da m in ha p ro d u ç ã o . Li m u ito os fra n k fu rtia n o s, eles sem pre me fascinaram m uito — Dialética do iluminismo foi um livro que ta m b é m me m a rc ou — , mas sem pre t o m a n d o m inhas distâncias. Para os frankfurtiano s, o inimigo fu n ­ dam en ta l n ão era ta n to o irracionalism o clássico, mas essa raz ão em pobrecida, essa razão eclipsada — um livro que me m a rc o u m uito ta m b é m foi Eclipse da razão, do H o rk h e im e r, que é urna crítica e x a ta m en te a essa ra z ã o que perde a sua d im ensão objetiva e se torna m eram ente razão instrumental. N a época, eu não reconhecia isso. Para mim , era p u ro Lukács. M as, ce rtam ente, essa leitura dos fra n k fu rtia n o s me aju d o u a pensar um po uco essa q u estão dos dois m o d o s de c o m b a te r a razão d ia ­ lética, ou a b a n d o n a n d o - a o u m iserabilizando-a. O segundo m o m e n to é o d o meu reencon tro com G ram sci, em m e ad os dos an o s 70, depois de um período em que G ram sci ficou, digam os, meio sonolento; trata-se do m o m e n to em que m in h a p reo c u p a ç ã o teórica m a io r passou a ser a p o ­ lítica, a reflexão sobre o e s ta tu to o ntológico da política, para usar um a expressão meio pedante. Isso é m u ito m a rc a d o no meu livro sobre G ram sci, cuja prim eira edição é de 1981 — ac ab o u de sair um a nova edição, com várias alterações em relação à primeira. Já nessa prim eira edição é clara a m inha p ro p o sta de enten der a teoria política de Gramsci à luz das categorias ontológicas do último Lukács. Além disso, um tem a im p o rta n te da m inha p r o d u ç ã o foi seguram ente a q uestão da d e ­ mocracia. A democracia como valor universal é um a expressão disso, ain d a que eu já viesse traba lh an d o sobre esse tema antes. Acho que esse artigo, publicado em 1979, teve um a im p o rtâ n cia m uito g ran d e no debate cultural e político daquele m o m e n ­ to. N ã o ta n to pelas suas q u alidades intrínsecas — ac ho que é um artigo que d esen­ volve p ouco alguns conceitos, é s o b retu d o um artigo de c o m b ate — , mas penso que pus o d e d o num tema que realm ente era um tem a quente, q u er dizer, eu puxei um a discussão. Eu tive a sorte de ser a pessoa que desencadeou um processo de discus­ são que, até hoje, ac h o que m arca o p en s am e n to da esquerda brasileira. N inguém pode mais dizer “ eu n ã o sei qu e a dem ocracia tem um papel im p o r ta n te ” . M a s, sin­ ceram ente, eu n ão acho que tenha c ria do n enh um conceito im p o rta n te, quem sou eu... Acho que trabalhei alguns conceitos, joguei algum as idéias tia praça.

Você voltou a Gramsci. O que você achou do livro O s 45 cavaleiros hún g aro s, de Oliveiros Ferreira? N ã o gostei. O Oliveiros realmente conhece bem Gramsci, leu bastante Gramsci. M as ele começa afastando de sua interpretação qualquer con otaç ão “escatológica”, com o ele diz, ou seja, o Gram sci revolucionário. N o e n ta n to , Gramsci foi um m arxista e um revolucionário. Disso resulta um Gramsci sociologicam ente d u rk h eim ian o , na primeira parte do livro, e um Gramsci clausew itziano na política, na segunda. Acho

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que é um livro que n ã o ajud a a en ten d e r G ramsci. M a s n ã o deixa de ser curioso, até m esm o sintom ático, que u m p e n s a d o r c o m o o Oliveiros Ferreira, um liberal co n serv ad o r, ten h a se in teressado p o r G ramsci. Já existe hoje, eu diria, um a r a z o ­ ável literatura sobre G ram sci no Brasil, de qualid ad e entre média e boa. A cho que o livro d o Oliveiros é um livro certam e n te de alto nível, m as que p ro p õ e um a leitu­ ra equivoca da. E G ram sci se presta m u ito a esse tipo de coisa, p o rq u e deixou um a o b ra fragm entária, sistemática na sua articulação categorial, mas form alm ente frag­ m e n tária , o que perm ite leituras que, n o Brasil, p o r ex em plo , vão do PSTll ao PPS. O E d m u n d o Fernandes Dias, da U nicam p, p o r exem plo, que está no PSTU, tem uma leitura de Gram sci que privilegia o m o m e n to antiinstitucionalista, conselhista. O PPS faz u m a leitura, co m o fazem hoje os pós-com u nistas na Itália, de um Gramsci quase liberal. A posição de M a ssim o D ’Alema é a de dizer que, em Americanismo e fordismo, G ram sci defende o liberismo, o que é u m a leitura a b s o lu ta m e n te eq u i­ vocada e instrumental. I.eitura, aliás, que levou a que F ernand o H enriq ue desse um a entrevista à Veja, n ã o sei se vocês viram , em que ele cita Gram sci sete vezes, diz en ­ d o inclusive que to d o s os progressistas hoje são gram scianos. P or quê? P orqu e ele leu, um a sem ana antes, o artigo de D ’Alema, que tinha saíd o em O Estado de S. Paulo, e repetiu literalm ente o que o D ’Alema disse sem citá-lo. Q u e r dizer, além d o mais é um plagiário.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­ cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje ? Como ela se dá na atualidade? Eu m e pergunto: será que a filosofia estabeleceu sem pre na sua história essa rela­ ção com o saber científico? Creio que, em d a d o m o m e n to , n ã o havia um a distin­ çã o entre ciência e filosofia. Um p en s ad o r c o m o Aristóteles, que é indiscutivelm en­ te um filósofo, é alguém que escrevia sobre as partes dos anim ais, sobre física, s o ­ bre os m eteoros, sobre a alm a h u m a n a ; p o r ta n to , você p o de dizer que Aristóteles era a o m esm o te m p o um psicólogo, um sociólogo, um politólogo. A in dependentização d a ciência da filosofia me parece, n o caso das ciências naturais, um a coisa que n ã o só o correu, m as foi m u ito positiva. C e rtam e n te , o m o v im en to q u e leva a Galileu é ta m b ém um m ovim ento filosófico, quer dizer, a filosofia a c o m p a n h o u esse processo pelo qual a ciência se to rn a v a independente. N o caso das ciências sociais, acho que é diferente. A cho que o nascim ento das cham adas ciências sociais está muito ligado a o colapso d o princípio da to ta lida de na filosofia. Estou rep e tin d o o q u e o Lukács disse, m as me parece um a coisa verdadeira. N in g u ém pergunta: “ R ousseau é o quê? É um filósofo? O u é u m teórico da política?“ . Q u e r dizer, até certo m o ­ m e n to , e n q u a n to a burguesia foi um a classe progressista, o p en sam e n to , já que ti­ nha o princípio da to ta lid a d e co m o base, impedia de dizer “ fulano é isso” , “ M o n ­ tesquieu é sociólogo, n ã o é filósofo” etc. A p artir d o eclipse d o princípio da to ta li­ dad e — com a dissolução da filosofia hegeliana, p ara falar mais claram ente — , su r­ gem as tais ciências sociais particulares, que tentam dividir o social, fatiá-lo, e, co m o diz m uito bem Lukács, essencialmente desistoricizá-lo. O que falta, assim , às ciên­ cias sociais particulares é não só o princípio da totalid ade, m as ta m b é m a idéia da historicidade dos fatos sociais. E ntão, eu diria que a relação da filosofia c o m essas

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ciências sociais particulares — filosofia enten d id a co m o teoria social global, co m o ontologia d o ser social — é u m a relação p roblem ática. N ã o partilho d o negativismo c o m p leto d o Lukács de dizer: “ n ão , isso aí não tem n a d a a ver c o m o m a rx ism o , a sociologia é ideologia b u rg u e s a ” . A cho que n ã o é só isso. M as é certam e n te um a reflexão insuficiente sobre o social. A cho qu e a filosofia, L ukács dizia assim , tem o direito de exercer u m a crítica ontológica das ciências. Penso que isso seja correto, isto é, m o strar que um a descoberta de W eber, por exemplo, para ter valor heurístico, servir efetivam ente à co m p re e n sã o do real, tem que ser subm e tida a um tr a t a m e n ­ to ontoló gico, ou seja, tem de ser relacionada com a to talidade, historicizada. O s “ três tipos puros da dom in a çã o legítima” é u m a bela idéia. W eber criou ali três tipos ideais, c o m o ele ch a m a , que n ã o c o rresp o n d e m e x a ta m en te ao real, mas que são indicativos para se en ten d e r form as de legitim idade. M a s ele fez isso de u m a m a ­ neira p u ra m e n te form alista. Acho que tem os a o b rigação, nós m arxistas, de historicizar essa categoria. M a s essa posição parece se aproxim ar muito do programa de “Teoria

tradicional e teoria crítica”, de Horkbeimer... Sem dúvida. Seguram ente é o te x to dos fra n k fu rtia n o s que, e m b o ra talvez não seja o mais brilhante, é certam e n te o que mais me a g ra d a, é aquele com o qual mais me identifico. A cho que o g ran de limite da Escola de F ra n k fu rt foi conceber o m a rx is­ m o sem classe op erária. É u m a coisa co m plicada. Deu no que deu c o m o R o bert K urz e sua crítica radical do capitalism o. M a s co m o é que se sai dele? M a s enten d o a situação dos frankfurtiano s. A o p çã o ali era dura: ou aderir à U nião Soviética ou ficar co m um m a rx ism o meio etéreo, academicista. M a s cabe le m b rar qu e G ram sci redigia os Cadernos na m esm a época.

Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda­ de. Como você se posiciona em relação a esse debatei A cho essa te oria d o fim da arte um a teoria pro b lem átic a, m as ac ho que ela é m o ­ m e n to de um a das coisas mais brilhantes de Hegel, qu e é a tentativa de ju n ta r sis­ tem a e história. De pensar as categorias teóricas, os fenôm enos teóricos, à luz da sua historicidade. Lukács tem u m a bela obse rva çã o, n o capítulo da Ontologia so­ bre Hegel, em que ele diz qu e Hegel tem u m a o n to logia v erdadeira, qu e é u m a o n ­ tologia b aseada no ser, no m o v im en to d o ser, e tem um a onto lo g ia falsa, iogicista, um a tentativa de en c ad e ar os fenôm enos a p artir de u m a lógica que n ã o diz respei­ to à lógica d o real, m as a um a lógica d o p en sam e n to . A cho que, no caso da teoria d o fim da arte, isso é m uito claro. A lógica d o sistema exigia que Hegel dissesse que o nosso te m p o é o te m p o da filosofia, d o conceito, e n ã o mais da rep resentação e da intuição. Q u e r dizer, para ele a arte r o m â n tic a é um a arte já em processo de dis­ solução. M a s, in d e pende ntem ente desse logicismo da te oria d o fim da arte, acho que Hegel colocou um p roblem a im p o rta n te: há épocas históricas q u e são mais ou m enos favoráveis a o desenvolvim ento da arte. A quela idéia brilhante d o M a r x de qu e a Ilíada e a Odisséia só p o d ia m surgir na Grécia clássica, q u e C a m õ e s n ã o fez um a epopéia, V oltaire não fez um a epopéia. Por quê? P orque cada época histórica

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tem um a ex pressão artística. F. há épocas históricas desfavoráveis, pelo g ra u de ali­ e n a çã o e de desintegração social, ao desenvolvim ento da arte. V o lta n d o à perg u n ta , ac h o que n ã o foi bem isso o que Hegel quis dizer, e m ­ bora eu ache que ele disse ta m bém isso. Imagine um a pessoa do século X X V, olhando p a r a o século X X . (Para o século X IX , isso n ão vale. Hegel já era m o r to q u a n d o h ouv e u m a m aravilhosa floração d o r o m an c e, ta n to francês q u a n to russo, houve um a m aravilhosa flora çã o da p in tu ra , c o m o im pressionism o.) Será q u e u m a pes­ soa d o século X X V , p en s a n d o o século X X , ac hará que foi u m p eríodo de g rande floração artística, m a lg ra d o T h o m a s M a n n , m a lg ra d o K afka? N a p in tu ra , algum p in to r ficará d o século X X ? N a música eru d ita, algum g rande c o m p o sito r ficará? São perguntas que vale a pena fazer. N esse sentido, acho que Hegel b o to u o d edo n u m a q u estão sobre a qual devem os pensar.

Nas suas reflexões sobre estética e sobre a atividade artística em geral, você sempre se valeu do conceito de nacional-popular, enfatizando a importância da arte conseguirão mesmo tempo criar uma imagem al­ ternativa do Brasil e aproximar essa imagem do povo. Como é que você vê essa questão hoje? N ã o sei se sem pre usei essa categoria d o n ac io n a l-p o p u la r c o m ta n ta ênfase q u a n ­ to em alguns textos mais recentes. A cho que eu tra b a lh a v a mais com o conceito de “ re a lism o ” de Lukács. M as sem pre co m a idéia d o n a c io n a l-p o p u lar na so m b ra, pelo menos. O n a c io n a l-p o p u lar é u m conceito, eu diria, m u ito mal tr a b a lh a d o . O n a c io n a l-p o p u lar n ã o é nem n acionalism o, nem p opulism o. O que G ram sci quer dizer co m esse conceito é que a g ran d e arte, ou seja, a g rand e cu ltu ra, g an h a um a dim ensão nacional q u a n d o integra o p o v o na nação. E é u m a categoria q u e surge em G ram sci em função da crítica a o tipo de cultura e de intelectualidade existentes na Itália. S egundo G ra m sc i, u m a das g ran d e s trag é dias italian as foi o fato de a intelectualidade, p o r ser ligada a o P a p a d o , ser c o s m o p o lita, o u seja, n ã o ter um vínculo orgânico c o m o povo, co m a n aç ão italiana. F. eu gosto dessa categoria p o r ­ que ac ho que ela nos perm ite ta m b é m p e n s a r o caso brasileiro. A cho que há g r a n ­ de semelhança entre a form a çã o da intelectualidade italiana e a brasileira. T a m b é m no Brasil os intelectuais fo ra m m u ito ligados ao p o d er e m u ito p o u co aten tos ao fato de qu e n ã o se faz g ran d e arte se n ão se integra à arte ta m b é m u m a reflexão sobre o povo . Penso assim ser m u ito im p o rta n te p a r a nós esse conceito de nac io ­ nal-p o p u lar, que eu utilizo m u ito num te x to meu c h a m a d o Cultura e sociedade no Brasil, em que te n to p ensar — claram e n te à luz de G ram sci — a form a çã o dos p r o ­ blemas da intelectualidade brasileira e da cultura brasileira. Lá eu falo na presença entre n ó s de um a cu ltu ra intimista, o rn a m e n ta l, n ão ligada aos prob lem as p o p u la ­ res, e te n to indicar c o m o alternativa a ela essa idéia de um a c u ltu r a n ac iona l-po pular — que, p a r a m im , é evidentem ente g ran d e c u ltu ra , é M a c h a d o de Assis, Lima Barreto, G raciliano R a m o s, D r u m m o n d de A nd rade.

Glauber Rocha... T a m b é m , ta m b é m . A cho que G lau b e r chegou a usar essa idéia de n a c io n a l-p o p u ­ lar em algum m o m e n to da sua p r o d u ç ã o . A cho que o prim eiro p erío d o de G lauber

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é claram ente n acion al-popu lar: Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe, Antônio das Mortes. A sua segunda fase talvez seja “ in te rn a c io n a l-n ã o -p o p u la r” [risos]. A cho que ele se perdeu, infelizmente.

É hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe­ nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como você vê tal diagnóstico ? Na sua visão, a primazia de que parecem des­ frutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias? G ram sci fazia um a distinção, que me parece m uito interessante, entre a p equena e a g rande política. E ele explicava assim: a pequen a política é a política d o co rre­ d o r, da picuinha, d o a c o rd o p a rla m e n ta r, política d o dia-a-dia. E a g ra n d e política é a política que discute m u d a n ç a o u conservação de e strutura s globais. Eu diria que a hegem onia do neoliberalism o — e, no p la n o cultural, a hegem onia d o c h a m a d o p ó s-m o d e rn o — é um p ou co a te ntativa de m a ta r a g rand e política, de tr a n sfo rm a r a política na p u ra p eq u e n a política. N ã o se discutem mais grandes alternativas so ­ ciais, se essa o rd em social deve ser sup erada ou não. Discute-se se se paga ou n ã o a dívida a o FM I, se se privatiza ou n ão tal coisa, q u e a c o rd o tem que ser feito n o P ar­ lam ento, qual a troca de favores com d ep u ta d o s p ara que eles votem a reeleição presidencial etc. Enfim, diria que isso é um a p rova d o recuo da hegem onia da es­ q u erd a e d o av a n ço indiscutível hoje d o c h a m a d o p en sam e n to único, d o neolibe­ ralismo. E n ã o terem os condições de reverter essa hegem onia se n ão v o lta rm os a fazer g ra n d e política. Nesse sentido, ac ho que a g ran d e tarefa da esquerda é a de politizar tu d o , n o sentido positivo dessa palavra, ou seja, de relacionar to d a s as grandes questões qu e são colocadas no m u n d o de hoje co m as estruturas, de a p o n ­ ta r para o universal, para o nível ético-político, para usar outra expressão de Gramsci. D ito isso, ac h o q u e faz parte desse mito d o p e n s a m e n to único a idéia d o fim d o E stado N acion al. T ra ta -se de um processo, evidentem ente, é possível fazer um prognó stico de que isso talvez aconteça daqui a duze n to s anos. M a s ac ho que, p o r e n q u a n to , os E stados N acio n ais ainda têm peso na definição da política, em alguns casos mais que em ou tros. C e rtam e nte , n ã o é possível hoje fazer política nacional italiana sem levar em co n ta o fato de que a Itália faz parte da C o m u n id a d e E u ro ­ péia. A cho que na E u ro p a está se cria ndo um E stado su p ran a cio n a l, m a s com ca­ racterísticas de E stado N acional em relação a o u tro s Estados extra-europeus. Hegel se m p re dizia: ca d a E sta d o é u m in divíduo em relação a o o u tr o . S eguram e nte a E u ro p a está se co n stitu in d o c o m o um E stado diferente d o E stado am ericano, do E stado japonês, d o E stado brasileiro. P artic ularm e nte no caso do Brasil, essa idéia d o fim d o Estado N acional é um a idéia m uito perversa, p o r q u e p arte d o princípio de que tem os de e n t r a r na globalização sem um m ín im o de in stru m e ntos para g a ­ ran tir a soberania nacional, p ara g a ra n tir os interesses p opulares. N ã o sou favorá­ vel a essa idéia de que os E stados N ac io n ais desapareceram . A cho que há um m o ­ vim ento d o g rande capital financeiro para que os Estados N acio n ais percam essa

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capacidade de incidência soberana sobre seus territórios. M a s certam ente isso é um a coisa que nós, da esquerda, devem os c o m b a te r. É algo q u e faz p arte d o arsenal político e ideológico d o p en s am e n to neoliberal.

Você se consideraria um intelectual orgânico do PT? Como é que você avaliaria essa sua tarefa de discutir grandes questões, de colocar pro­ blemas de transformação em sentido global, no âmbito da política ins­ titucional? Eu sem pre brinco dizendo que, q u a n d o eu era d o PC, eu tin h a um ca sa m e n to monogâm ico. M in h a relação com o PT é u m c a sa m en to a b e rto [risos]. T e n h o um vín­ culo certam ente orgânico com o partido, sou militante d o PT desde 1989. A cho que, o bje tiv a m en te, algum as das m in h a s idéias, alguns dos m eus textos, p ro v o c a ra m debates internos no partid o . Eu me lem bro de que, q u a n d o entrei no PT, fui convi­ d a d o p o r todas as correntes p ara e x p o r m eus p o n to s de vista. Tive discussões engraçadíssim as, sendo o ra ac u sa d o de esquerdista, o ra de direitista. M a s ac ho que houve u m a tro ca forte, em alg um m o m e n to , entre m im co m o intelectual d o PT e o PT em geral. N ã o me parece casual que hoje eu n ã o sinta mais essa troca. N ã o é um p roblem a só meu, é um p roblem a geral do PT. A cho q u e o P T está p assan d o po r um perío d o seguram ente m u ito com plicado. O fio da n av a lh a entre fazer p olí­ tica co n cretam ente e m anter-se fiel às p ro p o sta s estratégicas é m uito estreito. Q ue intelectual te m hoje im p o rtâ n c ia orgânic a na fo rm u la ç ã o das p ro p o sta s d o PT? Talvez nenhum . E talvez nem m esm o os intelectuais do PT co m o um todo. Para mim, é u m a coisa m uito clara que, p a r a o bem e p ara o mal, m inhas idéias tin h a m im ­ pac to no P a rtido C o m u n ista . D igo “ p a r a o bem ou p ara o m a l” p o rq u e às vezes você e x p u n h a determ in a d as idéias e o P artido o c o m b a tia du ra m e n te , até botava você p ara fora, mas, de certo m o d o , diria q u e até isso era p ro v a de que eles respei­ ta v a m os intelectuais. Até o fato de ex pulsar era sinal de que, p ara os PCs, o inte­ lectual tin h a um peso. Eu n ã o vejo isso no PT. A cho que o PT tr a b a lh a com seus intelectuais u m p ouco co m o figuras de d estaque na sociedade. E o caso d o Antonio C â n d id o , p o r exem plo. É ó tim o que o A nto nio C â n d id o assine alg u m a coisa pelo PT. M a s que im portâ ncia , que influência têm as idéias de A n to n io C â n d id o no partido ? A cho que, infelizmente, m u ito pouca. O PT, p ara dizer co m clareza, valoriza p o u c o o tr a b a lh o dos intelectuais que estão filiados a o partido. Recente­ mente, Lula c h a m o u A n to n io C â n d id o p ara o rg an iz ar um am p lo sem inário sobre socialismo. Pode ser o início de u m a autocrítica.

Várias vezes você externou a opinião de que a existência de intelectuais, no sentido pleno da expressão, dependia de uma sociedade civil forte, dinâmica. Nesse contexto, como é que você vê o papel do intelectual hoje? V o u me lim itar p articula rm ente a o Brasil. Vejo um fenôm eno m uito interessante — negativo, m a s interessante — o c o rre n d o n o Brasil, que é o d o esvaziam ento da dim ensão política da sociedade civil. F. esse esvaziam ento real se traduziu m uito cla­ ram ente ta m b ém n u m esvaziamento conceituai. Gramsci tem um segundo m o m e nto de chegada no Brasil. F.le chega em m e ado s dos a n o s 60, n ã o é m u ito lido, não tem

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m uita influência. Em m eados dos an o s 70, G ram sci volta e tem en tã o u m a enorm e influência. Nesse m esm o m om ento, começa a surgir n o Brasil — certamente em g ran ­ de p arte p o r influência de G ram sci — o uso generalizado da n o çã o de sociedade civil. Sociedade civil, notem bem, sempre entendida co m o um a coisa boa em c o n tra ­ posição a um E stado ruim , o q u e naquele m o m e n to tinha sentido. Por quê? Porque to d o s os segm entos o rg an iz ad o s na sociedade civil, inclusive os p atro n a is, estavam se c o n t r a p o n d o naquele m o m e n to co ncreto à perm anência da d ita d u ra. Ademais “ sociedade civil” tinha um a c o n o ta ç ã o e n g ra çad a , era o co n trá rio de “ m ilita r” . A p artir daí, ac h o que se criou u m a falsa leitura de G ramsci, um a falsa leitura do c o n ­ ceito, q u e te rm in o u servindo a o neoliberalism o. Q u e r dizer, tu d o o que vem da sociedade civil é b o m , tu d o que vem do E stado é ruim. O ra , a U D R é sociedade civil, a K lu-Klux-Klan é sociedade civil! E ntão, despolitizou-se o conceito de socie­ dade civil, qu e passou a ser o reino das O N G s , da solidariedade, do setorialismo: a O N G que tra ta de criança e adolescente, a O N G que trata de baleia. E isso veio reforçar, c o m o eu já tinh a tido antes, o fim da g ran d e política. Acho que essa despolitização, no sentido forte, da sociedade civil brasileira com plica m uito a ação dos intelectuais, po rq u e nos desvincula ex atam ente dos aparelhos de hegemonia aos quais estáva m o s ligados. Tem algo a ver ta m b ém com o que eu falei antes a respei­ to d o PT. O PT, em g ran d e m edida, está fazendo peq uena política, discutin do se e n tra ou n ã o no g o v ern o G aro tin h o ... M a s a grande política também se faz com o poder... Sim, n ão só se faz com o p o d er, c o m o estou a b s o lu ta m en te convencido de que a tarefa f u n d am e n tal de um p artid o político e, c o m o tal, d o PT, é a de to m a r o p o ­ der, é chegar ao poder. A gora, chegar a o p o d er p a r a quê? A penas p a r a governar? M eu g ran d e m e d o é o de qu e a esquerda chegue ao p oder e, no esforço da g o ver­ nabilidade, ape nas governe a o rd em existente. Q u e interesse tem um p artid o que se pretende revolucionário, ainda que conceba a revolução através de reform as, que se pro p õ e a m u d a r a e s tru tu ra social do Brasil, que interesse tem esse p artid o em participar de um g overno que faça a gestão d o existente, mais ou menos co m o César M aia o faria, ou c o m o M arcelo Allencar geriu?

A sua concepção de democracia atribui um valor emancipatório a su­ jeitos coletivos como partidos de massa, sindicatos, associações profis­ sionais, comitê de empresa e bairro etc. Como conciliar essa posição com a tendência crescente à burocratização e ao esvaziamento dessas organizações? Dito de outra maneira, essas organizações já não se tor­ naram rotineiras, no sentido conservador da expressão? M e lembrei aq ui, claro, do Michels. N in g u ém leu aquele livro do Michels, O s par­ tidos políticos, e n ã o to m o u um certo susto. Michels é elitista, reacionário , conser­ v ad or, m as é um caso de ciência social p articula r que temos que ler. Eu n ão c o n ­ c o r d o co m a idéia da lei de ferro da oligarquia de Michels, ou seja, a idéia de que n ão tem jeito: q u a lq u e r o rgan ização, m esm o qu e surja vo lun ta riam e n te , de baixo p ara cim a, term ina se b u ro c ra tiz a n d o , se olig arquizando. M a s esse é um risco real, que se ac entua e se to r n a quase inevitável em m o m e n to s de esvaziam ento da dimen-

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são política da sociedade civil. Q u a n d o se tem u m a sociedade civil m o bilizad a, ati­ va, participativa, esses riscos são menores. N o m o m e n to , é indiscutível que há um a crise da f o rm a sindicato, e n ã o só no Brasil, é u m a crise m undial. Por quê? P o rq ue m u d o u a fo rm a de ser da classe tr a b a lh a d o r a . N ã o só d im in u i o percentual d o o p e ra ria d o fabril na p o p u la ç ã o e c on om ic am ente ativa, co m o se criam form as m ú l­ tiplas, b as tan te diferenciadas de tra b a lh o . Um sujeito que tr a b a lh a em casa, com c o m p u ta d o r , ainda q u e gere mais-valia p ara alguém, não se sente identificado com u m t r a b a lh a d o r de m a ca cã o na linha de m o n ta g e m de um a fábrica de autom óveis. E ntão , é preciso repe nsar isso. A form a sindicato talvez te n h a que ser d rastica m en ­ te m odificada. A meu ver, os sindicatos não p odem , p o r exem plo, rep rese ntar a p e ­ nas os interesses dos tr a b a lh a d o re s em pregad os. O s sindicatos têm que e n c o n tra r u m a m aneira de represe ntar ta m b é m os interesses dos d esem pregados e dos nãoem pregados, dos que n ão têm acesso a organizações formais. Eu a c h o que to d a s essas questões devem ser levadas em co n ta q u a n d o a gente pensa esse processo de b u ro cratiza ção que ce rtam ente ocorreu. Sou inteiram ente solidário c o m a idéia de q ue os a vanços necessários p ara su­ pera r a o r d e m capitalista têm que ser realizados com a p r o f u n d a m e n to da d e m o ­ cracia. Se algum a coisa eu m udasse naquele meu en saio de vinte anos atrás, “A d e ­ m ocracia co m o valor universal” , acho que m u d a ria o título p a r a “ A d e m o c ra tiz a ­ ção c o m o valor un iversal” . Por quê? P o rq u e aquele título p ode d a r a falsa im pres­ são de que nós d efendem os a f o rm a institucional concreta que a dem ocracia assu­ me em ca d a m o m e n to concreto , o u, mais p recisam ente, a f o rm a que o processo de dem o cratiza ção assum e em ca d a m o m e n to concreto. T em os um c o m p ro m isso com o processo de d em ocratização, de socialização d o poder, e n ão necessariamente com a institucionalidade que a expressa em d a d o m o m e n to concreto. A cho que a de­ mocracia, p ara corresponder efetivamente a um a sociedade não-capitalista, para c o r­ re sp onde r a um a sociedade que pretende su pe ra r o a n ta g o n is m o de classe, tem que ser u m a dem ocracia m u ito mais p articipativa d o que a atual. T em q u e envolver a particip ação de sujeitos coletivos m u ito mais nu m e ro so s e a m p lo s q u e os atuais. E isso tem que ter u m a expressão institucional. T o rn o u -se óbvio que n ã o há socialis­ m o sem dem ocracia. Isso hoje nem o PSTU nega. M a s n ã o está tã o claro p ara a esquerd a que, sem socialismo, ta m b é m n ã o há dem ocracia, q u e r dizer, a d e m o c r a ­ cia plena, enten d id a c o m o a m p la participação, c o m o socialização do poder. N ã o é casual que nosso querido Rousseau tenha dito o seguinte: ninguém deve ser tã o pobre que seja o b rig ad o a se vender — ou seja, a se to r n a r tr a b a lh a d o r assalariado — , isso é incompatível com a dem ocracia. O que R o usseau n os p ro p õ e n o Contrato social é sim ilar ao c o m u n ism o , é u m a sociedade que te m gov erno m as n ã o tem Es­ ta d o , n ã o tem um a instituição desligada da sociedade, n ão tem diferenças de clas­ se. O gov erno é o com issário do povo, aliás u m a bela palavra, que os bolcheviques usaram n o início da Revolução. E ntão, ac ho que essa plena dem ocracia rousseauniana só é possível com o c o m u n ism o , tal c o m o M a r x o concebeu. D ito isso, insis­ to em que é preciso d a r à dem o crac ia form as institucionais. A dem ocracia n ã o é apenas a participação, a dem ocracia ta m b é m se expressa em form as institucionais. E, notem bem , a form a é real. A d em ocracia que aí está é form al, m as a form a é real, q u er dizer, a fo rm a n ão é u m a a b stra çã o , a form a é um m o m e n to da realida­

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de, é u m a d eterm in a çã o reflexiva do co n te ú d o , p ara usar u m a expressão de Hegel. F.ntão, é claro que a dem ocracia tem qu e ter form a. M a s form as que se a p r o f u n ­ d a m , que se ren ovam . O valor universal n ão é esta específica form a de d e m o c r a ­ cia, m as sim o processo de d e m o cratiza ção , que se expressa na socialização d a p a r ­ ticipação política e na socialização d o poder.

Como você caracterizaria a sua relação com a religião e a fé? M in h a família n ã o é um a família particu la rm en te religiosa. M eu pai era ateu. D i­ zia ser agnóstico, m as era ateu. E m inha m ãe é um a kardecista m u ito p o u c o o r t o ­ d o x a , eu diria. Q u a n d o eu tin ha 12 ou 13 anos, eu estud ava, co n tra o parecer do m eu pai, n u m colégio de irm ãos m aristas. H oje vejo claram e n te que, p a r a c h a te ar meu pai, eu fiquei meio catolicão. C o m u n g a v a , confessava. Isso coincidiu ta m b é m co m o m o m e n to em que eu li o M anifesto , q u a n d o percebi qu e era mais fácil me a firm a r c o n tra meu pai co m o co m u n ista d o que co m o católico. E ntão, a b a n d o n ei o catolicism o e a religião em geral. L ukács tem um a expressão m u ito boa. Ele fala em “ca recim ento religioso” , algo que expressa u m a necessidade de transcendên cia diante d o fato de n ão se e n ­ c o n tra r sentido real na vida efetiva, na vida im anente. Eu, sinceram ente, sou desti­ tuído de ca recim ento religioso. E n te ndo que as pessoas o te n h am . M a r x dá à reli­ gião um tr a ta m e n to que é c o rre to no essencial — a religião é um a form a de aliena­ çã o — , mas, nessa form a de alienação, passam às vezes exigências que são exigên­ cias reais, exigências básicas. As pessoas só le m bram que M a r x disse que a religião é o óp io d o p ovo. M a s, na m esm a frase, ele diz que “ a religião é o grito da criatura o p r im id a ” — ou algo sem elhante — e en tão , vírgula, “é o ópio do p o v o ” . Eu ac ho que se m anifesta na religião u m a d e m a n d a de justiça m u ito forte, algo que deve­ m os, nós m arxistas, não-religiosos, levar em co n ta co m o alg u m a coisa m u ito p o si­ tiva para a tra n sfo rm a ç ã o d o m u n d o .

Como você se situa em relação aos problemas de uma “mudança de paradigm a” da filosofia, de uma filosofia “pós-metafísica” calcada na linguagem? C o m o m arxista, evidentem ente acho que a filosofia, em princípio, não pode ser cal­ ca d a na linguagem, n ã o p ode p artir da linguagem, tem que p artir d o tra b a lh o , das interações que o tr a b a lh o p rovo ca e das form as superiores de atividade h u m a n a , c om o , p o r exem plo, a práxis. H a b e rm a s c h a m o u a aten ç ão para a distinção entre agir instrum ental e agir co m un ica tiv o, entre tra b a lh o e interação, m as eu ac ho que isso já está em M a r x , está no m a rx ism o , e sem o dualism o pro b lem átic o de H a ­ bermas. C e rtam e n te , q u a n d o M a r x fala em força p ro d u tiv a , está fala ndo em agir instrum ental; q u a n d o fala em relações de p r o d u ç ã o , que é o m o d o pelo qual os h o ­ mens se articulam entre si para desenvolver as forças p ro d u tiv a s e d o m in a r a n a t u ­ reza, está falando em interação. M a s a idéia de que é preciso substituir o p a ra d ig ­ m a d o tra b a lh o ou da p ro d u ç ã o pelo p ara d ig m a da linguagem ou da co m u n ica çã o me parece um a idéia equ iv ocada. Eu diria o seguinte: os h o m e n s falam po rq u e tr a ­ b a lh a ra m , p o rq u e precisaram c o la b o r a r no p rocesso de trab a lh o . E n tã o , n ã o me parece que, o ntolo gica m ente, a linguagem deva ser co locada antes d o tra b a lh o . A

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form a básica de ser d o ho m e m , a form a pela qual o h o m e m se faz ho m e m , é no processo de tr a b a lh o , é no seu m etab o lism o com a n ature za , q u a n d o surge o agir teleológico, que só existe no ser social. I.ukács tem u m a categoria m uito interes­ sante, que é a categoria da prioridade ontológica. Ele diz o seguinte: um a coisa pode existir sem que a o u tra exista, o ser p ode existir sem a consciência; mas a consciên­ cia n ão p ode existir sem o ser. Dizer que o ser tem prio rid ad e ontológica sobre a consciência n ã o significa dizer que há prio rid ad e lógica ou axiológica, n ã o q u er d i­ zer que o ser é m elhor que a consciência, n ã o q u er dizer que o tr a b a lh o é m elhor do que a linguagem. C o m isso, Lukács q u e r dizer que, o n tologicam ente, a p rio ri­ da d e é d o tra b a lh o , da aç ão teleológica q u e interfere na aç ão causal e modifica a ação causal. Nesse sentido, n ã o partilh o dessa inversão de pa ra d ig m a , e m b o ra re­ conheça a im p o rtâ n cia , insisto nisso, de es tu d ar m e lh o r e tr a b a lh a r m e lh o r a lin­ guagem . Um te m a, aliás, que n ã o foi m u ito desenvolvido pelo m a rx ism o , ao m e­ nos pelo m a rx ism o clássico. Você utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do fu ­

turo da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia? C o m o eu disse antes a vocês, o se g undo livro sério que li na m inha vida foi D o socialismo utópico ao socialismo científico. E n tã o, nós m arx istas, em geral, não d a m o s à palavra “ u t o p ia ” u m sentido positivo. D a m o s à p alavra “ u t o p i a ” o sen­ tid o de u m a coisa generosa, m as inexeqüível, irrealizável. N esse sentido, n ã o me identifico co m a palavra “ u to p i a ” , não sou b lochiano. M a s que p rojeto te n h o de sociedade? A cho qu e alg u m a coisa disso já ficou mais ou m e n o s clara nas m inhas colocações anteriores. C o n tin u o co m u n ista , fazendo evidentem ente u m a distinção entre o c o m u n ism o c o m o p ro jeto e o c h a m a d o c o m u n ism o histórico, que com eça c o m a revolução bolchevique de 1917, universaliza-se co m a cria çã o da Terceira In ternacional e co m a cria çã o em cada país de u m a seção — brasileira, italiana, japonesa — da T erceira In ternac iona l, e leva à con so lid a ção d o desp o tism o stalinista. C o m esse c o m u n ism o , n e n h u m de nós é m a lu co de se identificar mais, e m ­ b o r a eu te n h a u m a id e ntifica çã o m u ito forte c o m a re v o lu ç ã o bolc h ev iq u e de 1917. M a s ac h o que u m a coisa é o p rojeto tr a n s f o r m a d o r q u e aquela revolução desencadeo u, o u tr a coisa são as form as co n cretas q u e o E stado soviético assum iu, s o b retu d o a p artir d o final dos an o s 20, q u a n d o Stalin rom p e co m B ukharin e com a N E P [N ova Política E conôm ica] e estabelece a política d a indu strialização a c e­ lerada e da coletivizaçâo forçada. A p a r tir daí, instaura-se realm ente u m d e s p o ­ tismo. Eu n ã o hesitaria em utilizar o te rm o “ to ta litá r io ” , e m b o ra ele tenha o ri­ gens n ão m u ito puras, na p olitologia am erica na. M a s eu usaria o te rm o “ to ta litá ­ r i o ” no sentido de que o E sta d o absorveu a sociedade civil, utilizou os o rg an is­ m os da sociedade civil c o m o in stru m e n to da a t u a ç ã o d o E sta d o -p a rtid o . E ntão, eu diria q u e esse c o m u n ism o histórico é u m a coisa que, felizmente p a r a nós c o ­ m unistas, desapa re ceu d o h o rizonte. N ã o considero a C h in a u m país c o m unista . A ch o que o c o m u n is m o é o p ro jeto de u m a n o v a sociedade, de um a sociedade igualitária, p articipativa e p r o fu n d a m e n te dem o crática . D iria que u m a coisa — en tre m u itas o u tr a s — que devem os ce rtam e n te rever no m a rx is m o é a te oria d o fim d o E stado, se ela for enten d id a c o m o o fim d o gov ern o , c o m o o d esap a re ci­

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m e n to de q u a lq u e r tipo de governo. Essa teoria está m u ito presente em L.ênin, que insiste em que o E stado se extingue a o longo da fase da d ita d u ra d o p roletariado. Acho que essa idéia de que o E stado vai se extingu ir levou a que n ã o se discutisse qual é a form a d o E stado no socialismo. Para q u e discutir as form as d o E stado se ele vai d esaparecer? E ntão, ac ho que a idéia d o d esap a re cim en to d o E stado deve ser enten d id a a p e n as c o m o um a idéia reg u la d o ra , no sen tido k a n tia n o , c o m o o e m p e n h o p ara que haja cada vez m enos E stado, mas sem que ele d esapareça c o m ­ pletam ente. H oje, q u a n d o dizem os que so m o s co m u n ista s, que lu ta m o s pelo c o ­ m u n ism o , ac ho que devem os ta m b é m definir claram e n te o seguinte: qual vai ser a form a política d o com u n ism o ? Para m im , a fo rm a política é o E stado de direi­ to, com alta p articipa çã o p o p u la r, com institutos de dem ocracia de base corrig in ­ d o as deform ações da representação. M a s seguram ente é um E stado de D ireito que tem instituições g a ra n tid a s p o r um a C o nstituição, n a tu ra lm e n te reform ável. Você pod eria me pergun tar: mas o c o m u n ism o será o fim do m e rc ado, a estatização de to d o s os meios de p ro d u ç ã o ? Eu diria que não. Estou convencido hoje de que algo de m e rc ad o p o d erá existir d epois d o desap a re cim en to d o capitalism o — afinal, o m e rc a d o é um a fo rm a de interação que antecedeu o capitalism o. U ma coisa é a generalização d a s relações m ercantis, o u tr a coisa é a existência de elem entos de m e rc ad o s u b o r d in a d o s a um c ontrole social. N ã o estou p r o p o n d o um a ec onom ia social de m e rc ad o , não sou social-dem ocrata alem ão. M a s penso um socialismo em que há m e rc ad o , c em qu e p od e haver um p luralism o de form as de p r o p rie d a ­ de. Pode-se ter p r o p rie d ad e s realm ente estatais — em alguns casos, isso é neces­ sário — , pode-se te r p ro p rie d ad e s c o operativas, e pode-se até ter p ro p rie d a d e p ri­ v a d a , em algu ns setores. O b o te co d a esq u in a n ã o precisa ser e s ta tiz a d o , táxi ta m p o u c o , um a p equ e na em presa p o d e c o n tin u a r p r o p rie d a d e privada. O que você acha da teoria da derivação do Estado? D o derivacionism o? N ã o é um a teoria que ten h a me a tra íd o m uito. A cho que o E stado tem um a a u to n o m ia relativa m u ito g rande, e é um pouco difícil nós definir­ m os tod o s os m o vim ento s d o E stado a p artir da lógica d o capital. F.u até diria o seguinte: freqüentem ente há m ov im en to s do E stado que são co n trá rio s à lógica do capital. Por quê? P orque o E stado n ão é um in stru m e n to na m ã o da classe d o m i­ nante. O E stado capitalista n ã o é mais — se é q u e algum a vez o foi — o com itê executivo da burguesia. H á um a definição de P oulantzas que me parece m uito boa: o E stado é a c o n d e n sa ção material de u m a correlação de forças entre classes e fra­ ções de classes, com hegem onia de um a delas. Eu diria que é u m a definição tã o boa que ac ho que vale ta m b é m p a r a o E stado socialista que im agino. E n q u a n to no Es­ ta d o capitalista há co rrelação de forças com a hegem onia seja do capital financei­ ro, c o m o agora, seja do capital industrial, c o m o há algum te m p o atrá s, o E stado socialista é urna correlação de forças em que há hegem onia das classes tr a b a lh a d o ­ ras. C laro que há vários m o vim ento s d o E stado que são es tru tu ra lm e n te dedutíveis da lógica d o capital. O E stado passou a intervir na ec o n o m ia em grand e p arte p o r ­ que a lógica da a c u m u la çã o o exigiu. O s franceses até cria ra m — os soviéticos t a m ­ bém, mas os franceses com mais sofisticação — a teoria do capitalism o m onopolista de Estado. Q ue, em d a d o m o m e n to , me fascinou um p o u co pelo seu rigo r lógico: o

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E stado intervém p o rq u e está c a in d o a ta x a de lucro, o E stado intervém co m ativi­ dades não-lucrativas para repassar mais-valia para o capital etc. A cho que isso explica coisas, m as n ã o ac ho que explique o f u n cio n a m en to global d o Estado. O Estado tem sua lógica p ró p ria e essa lógica n ã o está ligada à lógica d o capital apenas, mas sim ã lógica d a luta de classes. Se se quiser deduzir de algum lugar a aç ão d o E sta­ d o , esse lugar é a luta de classes, que é u m fen ô m e n o fun d am e n tal na explicação d o social. Sou inteiram ente c o n tra a idéia da d esap a riç ão da luta de classes, o u a idéia de q u e a luta de classes se to r n o u um conflito entre o u tro s. M e lem bro do W effort, d a n d o entrevista antes de ir p a ra os E stados U nidos, dizendo assim: “ O conflito c a p ita l-trab alh o n ão é mais o conflito central, é um conflito entre o u t r o s ” . N ã o , acho que é o conflito central. N ã o é o único conflito, n ã o posso explicar tu d o a partir dele. N ã o p osso explicar a Nona de Beethoven só a partir d o conflito de classe. M a s seguram ente vou ter que usar o conflito de classe p ara entender a Nona de Beethoven: o c o n te x to histórico concreto, o que a visão d o m u n d o da burguesia revolucionária representava naquela época, de que m o d o essa visão do m u n d o pôde se ex pressar m a teria lm e nte nos m aravilho sos sons daquela sinfonia.

Mas essa concepção de Estado que você está defendendo é também uma crítica aos limites da concepção que M arx tinha do Estado... Limites históricos. Escrevi um tra b a lh o , c h a m a d o “A dualid ad e de p o d e r e s” , que agora está no livro Marxismo e política, em que tento m ostrar isso. A cho que, quan d o M a r x escreveu O manifesto comunista, d eparou-se c o m um tipo de E stado que era realm ente m uito restrito, n o sentido de que n ã o era permeável à m aioria e s m ag a­ d o ra d a sociedade. O n d e havia Estados absolutistas, isso era óbvio. M as, m esm o o n d e havia E stados liberais ou semiliberais, co m o na Inglaterra e na F rança, havia vo to censitário. Eu brin co sem pre que o p a r la m e n to era o soviete da burguesia, r ep rese n tan d o só os p roprie tá rios. E só vai haver sufrágio universal no século XX . E n tã o , o E stad o era restrito, efetivam ente. A cho que a idéia de M a r x de que o Es­ ta d o usa apenas a coerção, de que to d o E stado é u m a d ita d u ra — isso n ã o está no Manifesto, m as está um p o u co depois — , de que o E stado é um com itê executivo da burguesia, essa idéia co rresp o n d e mais o u m enos àquele m o m e n to histórico. E digo “ mais ou m e n o s ” porque, três anos depois do Manifesto, no Dezoito Brumário, M a r x já vai ter um a o u tr a teoria, bem mais am pla, de Estado, em que o E stado tem a u to n o m ia relativa em relação à burguesia. O E stado b o n ap a rtista não é um c o m i­ tê executivo da burguesia. O que eu acho é que o E stado m u d o u , a nature za do E stado capitalista m u d o u , mas sem deix ar de ser capitalista. Eu não gosto d a q u e ­ les m arxistas que dizem: “ A n ature za , a essência d o capitalism o n ão m u d o u ” . Eu não sou platônico. C o m o se houvesse o m u n d o das idéias puras, das essências, que não m u d a nunca. A cho que, q u a n d o m u d a m as aparências, algu m a coisa da essên­ cia m u d o u ta m b ém . Eu diria assim: o E stado capitalista, em últim a instância, re­ presenta os interesses d o capital, assegura a divisão da sociedade em classes, asse­ gu ra a p ro p rie d a d e privada. M a s o m o v im e n to c o n c re to d o E sta d o tem que ser explicado a p a rtir do fato de que ele se am p lio u , de que a sociedade civil, ou seja, a au to-organização da sociedade, inclusive das classes subalternas, tem influência clara nas relações de poder, já que a sociedade civil é um m o m e n to d o Estado. E o Esta­

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d o não representa mais ape nas os interesses das classes d om ina n te s. Se é u m E sta­ d o que busca a legitimação, se é um E stado lib eral-dem ocrático, ele tem evidente­ mente de levar em co n ta d e m a n d a s que prov êm de setores que não são os das clas­ ses dom ina nte s. E a c h o que essa am plia çã o d a co n c ep ç ão m arx ista d o E stado é a g ran d e co n trib u içã o de Gramsci à teoria política.

Você diria que o marxismo e o movim ento operário demoraram para compreender essa mudança do Estado f A cho q u e sim. S o bre tud o p o rq u e, em d a d o m o m e n to , to rn o u -se hegem ônico, no interior d o m o v im en to , o m a rx ism o soviético. E Lênin d eparo u-se co m um E stado que era restritíssim o. O czarism o podia ser claram e n te pen sad o co m as categorias d o Manifesto. F.ngels, p o u co antes de m orre r, escreveu um te x to brilhante, que é o “ p refác io ” a um a nova edição da Luta de classes na França, em que ele claram ente a p o n ta p a r a um a o u tra co n c ep ç ão de E stado. Ele diz ali q u e o E stado é fru to de um c o n tra to entre o príncipe e o povo e a p o n ta p ara um o u tr o tipo de revolução. D esgraçadam en te, m o rre u logo depois. M a s, na Segunda Internacional, havia in ­ dicações n o sentido de que a teoria d o E stado iria ser revista. C la ro que Bernstein queria rever tu d o , queria jogar fora tudo. N ã o é o caso. M a s ac ho que há em Rosa, em Kautsky, m ovim entos nessa direção. O bolchevismo, a p artir da vitória da revo­ lução russa, foi a p re se n ta d o c o m o “ o ” m a rx ism o d o nosso tem po . Lênin virou o “ M a rx d o nosso t e m p o ” , e criou-se essa coisa a b s u rd a que é o marxismo-leninismo. Você pega um livro co m o O Estado e a Revolução , que é um a boa tese de mestrado, p o rq u e Lênin reuniu toda s as citações sobre E stado em M a r x e Engels, e você não en c o n tra essa d o “ p refác io” de Engels. Q u a n d o M a rx , o velho M a r x , diz em d a d o m o m e n to que, o n d e n ão ho uver um a bu rocracia forte, é possível conceber que u m a vitória eleitoral leve ao socialismo através do parla m en to , Lênin retruca: m as é p o r ­ que na época não havia burocracia, m as ag o ra já há, en tã o n ã o pode ser assim, tem que ser na p o r ra d a , na violência etc. E ntão, o p a ra d ig m a de te oria d o E stado e da revolução de Lênin — e eu digo com sinceridade, estava correto para a Rússia, ta n to que ele to m o u o poder; se a p rova da existência d o pu d im era com ê-lo, ele com eu o pu d im — generalizou-se p a r a situações em qu e evidentem ente o E stado já não era m ais c o m o aque le E sta d o russo, nem m e sm o c o m o o e u r o p e u da é p o c a do

Manifesto. Prov ocativ am ente, c o s tu m o dizer que a essência d o m é to d o de M a r x é o revi­ sionismo. O que é o m é to d o de M a rx ? E a fidelidade ao m o v im en to d o real. O que é o real? U san d o a expressão d o Lukács, é o jo rra r incessante d o novo. E ntã o, se não renovo m inhas categorias, se não as reviso para pensar o real em constante devir, sou infiel ao m a rx ism o . Seria a b s u rd o im aginar que o m u n d o é igualzinho ao que o M a rx viu. H á um a o u tra frase boa d o Lukács no m esm o sentido: p o d em o s a b a n ­ d o n a r afirm ações co ncretas de M a r x , n o limite, todas, e serm os o r to d o x a m e n te m arxistas, se form os fiéis a o m é tod o. Isso é a b s u rd o , to d a s é impossível, Lukács disse isso provo cativ am ente. M as, realm ente, há várias coisas que M a r x disse que não co rre sp o n d e m mais ao real. Para enten der o capitalism o de hoje, você tem que passar necessariam ente pelo Capital de M a rx . M a s, se ficar só no Capital, n ão é possível en ten d e r o capitalism o de hoje.

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Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos co­ mo riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em lar­ ga escala e alienação cultural em massa. Como você vê tais problemas ? C o m o um velho m a rxista, vejo-os c o m o resultados d o capitalism o. A g o ra , M a r x n ã o viu u m a coisa — entre as m uitas que ele n ã o viu — , que é a possibilidade real e co nc reta de que as forças p ro d u tiv a s se to rn e m forças destrutivas, que é a g rande q u estão q u e os ecologistas co locaram . H á em M a rx , e so b re tu d o nos bolcheviques, em Lênin, T ro tsk y e nos o u tros, até em G ram sci, a idéia d o p ro d u tiv ism o , d o p e r ­ m an en te desenvolvim ento das forças produtivas. C o m o se isso fosse possível, c o m o se a n atu re za fosse inesgotável. H oje nós sabem os que não é. E ntão, esse é o u tro p o n to em que tem os de repensar o co m u n ism o . Por q u e n ã o pensar um co m u n is­ m o c o m crescim ento zero? A cho q u e isso é u m a possibilidade real. Se a h u m a n id a ­ de hoje distribuir bem o que p ro d u z , vai haver o suficiente p a r a to dos. Será que é preciso que to d o m u n d o ten h a três carros, q u a tro geladeiras, cinco televisões?

Cinco filhos ? Sim, crescim ento zero inclusive p opulacional. M a r x n ão afirm ou isso, m as deixou mais o u m enos implícita a idéia de qu e c o m u n ism o seria o d e s la n c h a m e n to radical do desenvolvim ento das forças pro d u tiv a s, n ã o haveria mais n e n h u m a barreira a esse desenvolvim ento. M a s há u m a barreira que é colo ca d a pelo limite ecológico.

Você diria que a alternativa “socialismo ou barbárie” se coloca hoje ainda? N ó s e s tam o s na b arb á rie . A b a r b á rie n ã o deve ser e n te n d id a co m o co lap so dos préd ios na cidade, co m o m a re m o to s, m a s co m o um processo p e rm a n en te de desa­ gregação social, de decadência, de degenerescência, que é o que estamos vendo. Q uem n ã o está a c o m p a n h a n d o o que está a c o n te ce n d o com a África? A África é a b a r b á ­ rie, n o sentido de que 4 0 % das crianças nascem com Aids, há guerras civis p e r m a ­ nentes, desagregação d o E stado, f o rm a ç ã o de cleptocracias, de poderes a b s o lu ta ­ m ente co rru p to s. Por que isso aconteceu? A África se organizava trib alm ente, co m form as evidentem ente pré-capitalistas, pré-feudais. C hegou lá o colonialism o, num m o m e n to em q u e m a té ria -p rim a b a r a ta interessava ao capitalism o , d e s a r ru m o u aq u ilo tu d o , criou aqueles países que n ão existem, que não têm n a d a a ver com a história das etnias, e, de repente, a África n ã o interessa mais, n ã o tem condições de participar da ciranda financeira, e largaram para lá. A cho que isso é barbárie. C o m o são barb árie, no m u n d o desenvolvido, as form as de violência crescente nas g r a n ­ des cidades, a intensificação da alienação, a pasteurização, o e m b ru tecim en to cul­ tural etc. E stam os dian te da “ banaliz aç ào d o m a l” , que dissimula a barbárie.

No que você mudou? De algumas coisas você já falou, de algumas m u­ danças nas suas concepções, e você destacou a importância do método de M arx conto um revisionismo. No que você m udou realmente? É difícil p ara nós m esm os avaliar e x a ta m e n te aquilo em que m u d a m o s. N ã o gosto m u ito de reler m in has coisas. F reqüentem ente, eu ac hava que era bo m , vou ler e n ã o gosto. S eguram ente eu mudei a m in h a conc epç ão de política cultural. Fui mui-

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to influenciado p o r u m te x to de Lukács que se ch a m a v a assim: “ Franz Kafka ou T h o m a s M a n n ? ” . Então, eu tinha sempre um a preocupação: “ Fulano ou Beltrano?” , “ Visconti o u Fellini?” , “ G raciliano R a m o s ou Clarice L ispector?” . N o te m p o em que eu fazia crítica literária, isso era terrível. Essa é um a coisa em que eu mudei. H oje p enso que é preciso se abrir, no te rren o da cultura, p a r a a plu ralid ad e das manifestações culturais. Isso n ã o significa, evidentem ente, que a gente perca a ca­ pacidade de exercer um a crítica ideológica d aquilo que nos parece equ iv ocado, ou que leva a posições q u e n ão são corretas. A cho que isso, inclusive, vale p ara a arte. Acho que há manifestações artísticas que expressam visões d o m u n d o equivocadas. \ l a s p o r que não Kafka e T h o m a s M a n n ? M ud e i ta m b é m claram e n te em m in h a avaliação de Lênin. Lênin, p ara mim , era seguramente o terceiro clássico do m arxism o. O que Lênin dizia valia tanto, tinha ta n ta justeza, q u a n to o que diziam M a r x e Engels. N ã o é essa a m inha posição hoje. Lênin é um revolucionário notável, indiscutivelmente, e um pensador brilhante. Acho que Lênin tem reflexões im portantes sobre vários temas. O conceito de via prussiana, p o r exem plo, q u e ele criou p ara p ensar a m o d e rn izaç ão da Rússia, é um conceito que m e parece ex tre m a m e n te o p e ra tó rio para p ensar um caso c o m o o do Brasil. Acho que a te oria d o im perialism o, e m b o ra ten h a sido fo rm u lad a de um a m aneira que n ã o co rrespon deu inteiram ente à realidade — “ capitalism o em p u tr e f a ç ã o ” etc. — , teve o m érito de c h a m a r a atenç ão p ara fenôm enos de ac u m u la ç ã o in te rn acio ­ nal d o capital, p ara um a nova etapa d o capitalism o, na qual estam os ain d a hoje. M as ac ho que Lênin é a n a c rô n ic o na sua teoria do E stado e da revolução, na m edi­ da em que ele generalizou, c o m o categorias m arx istas válidas em to d a s as c o n d i­ ções históricas concretas, algum as coisas válidas apenas p ara a realidade russa, algo que Rosa L u x e m b u rg o , na época, já tinha visto. H oje, n ã o m e considero mais um leninista. Sou seguram ente um a pessoa que sim patiza com a ob ra de Lênin, mas que ta m b é m to m a distância em relação a ela. M udei ta m b é m na m in h a avaliação de vários o u tro s autore s m arx istas que eu tra ta v a um p o u c o rap id a m en te, c o m o o “ r e n e g a d o ” Kautsky, o “ revisionista” Bernstein, o u m esm o essa po lonesa sim pática que é Rosa L ux em b u rg o . O u seja, passei a valorizar mais o pluralism o da reflexão n o interior d o m arxism o. Nesse sentido, n ã o ac h o que exista um “g r a m sc ism o ” . Gram sci ta m b é m diz coisas com qu e n ão co n c o rd o . N o s textos sobre “ a m erica n ism o e f o rd is m o ” , p o r exem plo, Gram sci fez u m a avaliação justíssima a respeito d o capitalism o n u m a de suas n o ­ vas etapas, mas ele tem um a avaliação dos processos de racion alização do t r a b a ­ lho que é no m ín im o p ro blem ática. N ã o é casual que n ã o haja em Gramsci o c o n ­ ceito de tra b a lh o alienado. Essa categoria m a rx ia n a não aparece em G ram sci, ele valoriza p ositivam ente a rac ionalização d o tr a b a lh o , acha que o socialismo deve usá-la ta m b ém . Lênin ta m b é m pensava assim. F. isso é a expressão, a meu ver, de um c o m u n ism o produtivista, de um c o m u n ism o de países que ain d a têm que fazer um longo percurso de desenvolvim ento material p ara p o d e r efetivam ente im p la n ­ tar ou desenvolver o c o m unism o.

Você participa ativamente do site “Gramsci e o Brasil”, que tem por objetivo divulgara obra de Gramsci, bem como reflexões em tom o dela ,

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por meio da internet. Como você avalia os resultados dessa iniciativa? Como você vê hoje novos meios de comunicação e organização como a internet? A cho que o nosso site é u m a p rova de que se p o de usar bem a internet. C o m o to d o m eio de com u nicação , ac ho que, até certo p o n to , ela é n eutra ideologicamente. N ã o sou a d o rn ia n o , no sentido de en ten d e r que o meio em si é problem ático. N ã o vejo p ro b lem a n e n h u m em ouvir a Nona Sinfonia no rádio. A ch o q u e a internet pode ser u m a coisa bem ou mal usada. O problem a é a p ropriedade privada e m onopolista dos meios de com unica çã o . Felizmente, pelo m enos p o r e n q u a n to , a internet n ão tem esse p rob lem a. T a n t o que estam os lá com o nosso site. N ã o p o d ería m o s fazer u m p ro g ra m a n o h o r á r io nobre da T V G lo b o sobre G ram sci, m as p o d e m o s p e n ­ d u r a r o site na internet. É p ou co, m as é algo. E é um sucesso, o nosso site. Recebe, em m édia, de três a q u a t r o mil visitas p o r mês, tem de sete a dez mil páginas a b e r­ tas p o r mês. N ã o te m um dia que alguém n ã o ab ra . Q u a tr o mil pessoas se inscre­ veram p ara receber o boletim que a gente m a n d a , de dois em dois meses. A cho que é u m a prova, esse site , de c o m o se p o d e usar bem a internet. E, se vocês n ã o se in­ c o m o d a r e m , lá vai a p r o p a g a n d a : o endereço é .

Principais publicações: 1967 1972 198 0 1981

Literatura e humanismo (Rio de Janeiro: Paz e Terra); O estruturalismo e a miséria da razão (Rio de Janeiro: Paz e Terra); A democracia como valor universal (Salam andra: 1984); Gramsci: um estudo sobre o seu pensamento político (Rio de Ja n eiro : D P & A , 1999);

1985

Dualidade de poderes: Estado, revolução e democracia na teoria marxista (São Paulo: Brasiliense);

199 0 1992 1996 2000

Cultura e sociedade no Brasil (Belo H orizo n te : O ficina d o Livro); Democracia e socialismo (São Paulo: Cortez); Marxismo e política (São Paulo: Cortez); Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo (São Paulo: Cortez).

Bibliografia de referência da entrevista: Bloch. The principie ofhope, C a m b rid g e, M1T Press. Engels, F. D o socialismo utópico ao socialismo científico, Pespectiva. ___________ . Luta de classes na França, Obras escolhidas de Marx e Engels, Alfa O m ega. G ram sci, A. Concepção dialética da história, Civilização Brasileira. ___________ . Cadernos do cárcere, Civilização Brasileira. H a b e rm a s , J. Técnica e ciência como ideologia, Lisboa: Edições 70. ___________ . Teoria de la acción comunicativa, M adri: C a tedra. Hegel, G. W. F. Fenomenologia do espírito, Vozes.

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___________ . Ciência de Ia Lógica, Buenos Aires, Solar. H o b s b a w n , E. (org.). História do marxismo , Paz e T erra. H o rk h e im e r, M . e A d o rn o , T h. Dialética do esclarecimento, Jorge Z a h a r Editores. H o rk h e im e r, M . “ T eoria tradicional e te oria crítica” , coleção O s Pensadores, Abril C ultural. ___________ . Eclipse da razão. L ab o r Editorial. Kurz, R. ( ) colapso da modernização, Paz e T erra. Lênin, V. I. O Estado e a revolução, Obras escolhidas, Avante!. Lukács, G. História e consciência de classe, Elfos. ___________ . Realismo crítico hoje, C o o r d e n a d a . ___________ . A falsa e verdadeira ontologia de Hegel, Livraria Editora Ciências H u ­ m anas. ___________. Os princípios ontológicos fundamentais de Marx, Livraria Editora Ciên­ cias H u m an a s. ___________ . Introdução a uma estética marxista, Civilização Brasileira. ___________ . Marxismo e teoria da literatura, Civilização Brasileira. M a rx , K. O capital, coleção O s E conom istas, Abril Cultural. M a rx , K. e Engels, F. Manifesto comunista, Paz e T erra. Michels, R. Os partidos políticos, Senzala. R ousseau, J.-J. D o Contrato Social, coleção O s P ensadores, Abril C ultural. Sartre, J.-P. Crítica de la razón dialéctica, Buenos Aires: Losada.

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B a lth a z a r B arb o sa F ilho: “ A filosofia n o B rasil, p o r e n q u a n to , está a u sen te e m u ito d is ta n ­ te d o d e b a te p ú b lic o . Isso se deve em p a rte ta m b é m à e s p a n to sa ig n o râ n c ia na q u a l se faz o d e b a te p ú b lico ho je n o B rasil".

B A L T H A Z A R BARBOSA F IL H O (1943)

B althazar B arbosa Filho nasceu em 1943, em Porto Alegre (RS). G ra d u o u -se em D ireito na U niversidade Federal d o Rio G ra n d e do Sul e obteve o g rau de mes­ tre e o título de d o u t o r em Filosofia pela Universidade Católica de Louvain (Bél­ gica). Foi professor d a Universidade de São Paulo e da U niversidade Estadual de C a m p in a s. E professor do D e p a rta m e n to de Filosofia da UFRGS. Esta entrevista foi realizada em fevereiro de 2000.

Goetbe dividiu a vida de seu personagem W ilbelm Meister em dois romances, O s an o s de ap re n d iz a d o e O s anos de peregrinação. N o pri­ meiro, o foco está posto na formação do indivíduo, enquanto o segun­ do desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria este um bom mote para que o senhor nos falasse de sua fortnação intelectual? U m a das razões que me levaram para a Faculdade de Direito foi o fato de eu p e r­ tencer a um a família de juristas — o meu pai era jurista. M as, ao m esm o tem po , sempre tive um interesse p o r filosofia, desde o meu curso de segundo grau. C o m o tive um a forte formação religiosa, católica, interessava-me m uito p o r algumas facetas d a teologia, em especial d o es tu d o de S. T o m á s de A q uino — lem bro-m e que, nes­ s a época, M a rc o s M ü lle r e eu fizemos um sem inário sobre a Suma de S. T om ás. Fui levando, então, paralelam ente a Faculdade de Direito e a Faculdade de Filosofia. T erminei o curso de D ireito no final de 1965, mas não term inei o curso de filosofia. Tive a oportunidade, naquela ocasião, de ir p ara a Universidade de Louvain e já havia o p ta d o — lá p o r volta dos meus vinte anos de idade — p o r fazer apenas filosofia. Procurei um local em que pudesse ter um a form a çã o mais a d e q u a d a do que aquela que pod eria ter aqui em P o rto Alegre.

Como foi o seu curso de graduação em filosofia em Porto Alegre? O curso de g ra d u a ç ã o do Rio G ra n d e do Sul refletia a fo rm a çã o d o m in a n te de fi­ losofia no Brasil, que com eçou a existir a partir do final d o século passado. Esse cu rso co n tav a m ajo ritaria m en te com pessoas que po d eria m estar no direito e com pessoas provenientes da área religiosa, c o m o padres. H avia, no e n ta n to , algum as exceções que foram m u ito im portantes: fui a lu n o d o professor E rnani M a ria Fiori, que naquele te m p o já com eçava a se destacar co m o um p e n s a d o r independente; fui ta m b é m a lu n o do professor G erd Bornheim, que naquele te m p o voltava de um p e ­ ríodo na A lem anha e nos apresentou Hegel; e, por último, fui aluno de Ernildo Stein, que foi quem me apresentou H eidegger pela prim eira vez. A fo rm a çã o f u n d a m e n ­ tal que se tinha p o r aqui era essencialmente de proveniência medieval, em p a r tic u ­

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lar S. T o m á s de A quino. O meu es tu d o sistemático em filosofia com eçou com S. T om ás, depois, nos cursos da faculdade, comecei tam bém a me interessar por l.eibniz.

Qual a sna avaliação de E m ani Fiorif É a mais positiva possível. É a mais positiva p o rq u e ele foi um h o m e m cuja p aix ão pela filosofia conseguiu despertar m uito interesse não só entre estudantes que faziam filosofia, mas ta m b é m no meio cultural do Rio Cirande do Sul. G raças a o seu e m ­ p en h o , a filosofia passou a ser co n sid erad a co m o um a atividade que u m a menina ou u m rap a z poderia d e s em p e n h ar h o n r a d a m e n te , e n ã o ape nas co m o um bico. O professor Fiori foi o prim eiro filósofo profissional g aú c h o de regime de dedicação exclusiva à filosofia. Além disso, fez um tra b a lh o rigoroso em filosofia.

Como foi a sua experiência na Universidade de Louvain? Saí de P o rto Alegre com um p ro jeto m egalóm ano: um estudo d o conceito de su b s­ tância em S. T o m á s de A q u ino, Leibniz e Hegel — o que revelava o g ra u de inge­ nuid a d e e de deficiência de fo rm a ç ã o que eu possuía naquele m o m e n to . Fui para L ouvain, u m a boa fac u ld ad e q u e se destac av a p rin c ip a lm e n te na áre a de fenom enologia, em que havia sólidos pesquisadores, e que ta m b é m com eçava a se des­ ta ca r na área de filosofia da linguagem. Em raz ão do meu interesse p o r Leibniz, fatalm ente fui ler o livro de Bertrand Russell sobre esse au to r. Esse livro d esper­ tou-m e r a p id a m en te p ara a filosofia analítica: Russell, Frege e, so b retu d o , o pri­ meiro W ittgenstein d o Tractatus logico-philosophicus. A b an d o n e i os estudos que até então havia feito, inclusive o projeto m egalóm ano, e passei a co ncentrar os meus estudos basicam ente na o n tolog ia desenvolvida p o r Frege, Russell e Wittgenstein. D isso resultou a m in h a dissertação de m e strad o sobre a n o çã o de fo rm a lógica no Tractatus de W ittgenstein, em 1970. A pós a dissertação, continuei os estudos nes­ sa direção, mas, dessa vez, mais interessado pelo segundo W ittgenstein, em espe­ cial pelas Investigações filosóficas e os tem as que aí gravitavam . N a q u e la ocasião, isso significava essencialmente estudar textos em inglês, pois p raticam ente não havia estudos nessa área em língua alemã e m e n o s ain d a em língua francesa. Assim, fui p ara Leeds, na Inglaterra, tr a b a lh a r co m o professor Peter G each — um ó tim o fi­ lósofo. D epois, em 1971, passei um semestre em H eidelberg com o professor T ug en d h a t, que, naquele tem po, iniciava-se na filosofia analítica. Ele dava cursos so­ bre filosofia da linguagem , m as gaguejava em lógica. Era um desastre, p o rq u e in ú ­ meras vezes com eçava a d e m o n s tr a r u m te o re m a, n ã o sabia levar adiante , e rec o r­ ria invariavelm ente a Frau [Andréa | Loparic, que fazia as c o n tin h as p ara ele. M a s, de meus a n o s de L ouvain, g u a r d o co m o m a rc an te meu c o n ta to c o m o profe ssor Jean L adriere. N ã o e nc ontrei, depois, n e n h u m filósofo c o m ta m a n h a acuidade, p ro fu n d id a d e e p en e traç ão . D evo ain d a dizer que ta m p o u c o encontrei, depois, ser h u m a n o mais íntegro e com pleto.

O senhor poderia falar um pouco acerca de seu doutoramento sobre Wittgenstein, defendido na Universidade de Louvain e até hoje inédito? Por um desses equívocos históricos gigantescos, os neopositivistas de Viena filiaramse erro n e a m e n te ao Tractatus, e fizeram dele a sua referência fu n d am e n tal. Isso era

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p a r a d o x a l, p o rq u e o Tractatus é um livro de um a selvageria especulativa rara e os ncopositivistas eram absolutam ente antimetafísicos — com o ta m b ém possuíam uma veemência igualmente rara (risos). N o e ntanto , achavam que W ittgenstein era o seu p recursor. Por o u tr a s razões ta m b é m , o neopositivism o foi um desastre — o que não retira os vários m éritos fu n dam entais que teve — , e o projeto inconsistente que eles fo rm u laram foi p o u c o a p ou co sen do a b a n d o n a d o . N o caso de Wittgenstein, o a b a n d o n o foi feito p o r ele p ró p rio . Ele decidiu corrigir “ os graves e r r o s ” de filo­ sofia que havia co m etid o no Tractatus, o metafísico em especial. D u ra n te um vas­ to p eríodo de tem p o, passou a escrever algo que cu lm inou nas Investigações filo­ sóficas. Em prim eiro lugar, o que me fascinou nesse livro foi que, à prim eira vista, ele n ão tem antecedentes na história da filosofia. Fiquei desconfiado com isso, p o r ­ q u e não acredito em gerações esp o n tân e as a p artir d o nada. Em segun do lugar, in­ teressavam -m e ta m b é m os p o n to s exatos em que Wittgenstein p ro cu rav a evidenci­ a r quais eram os erros com etidos pelo Tractatus. E ele tinha a seguinte idéia (que n ã o era tota lm e n te extravagante): se a metafísica, na acepção clássica da palavra — a teoria d o ser enqu a n to ser — , é possível, então a sua boa form a é a do Tractatus. A gora, já que n ão deu certo, há algu m a coisa de e r r a d o com ela. As Investigações filosóficas, em parte, são um tra b a lh o dessa n atu re za , ou seja, refazem m inu c iosa­ mente os m ecanism os que nos levam aos desvarios metafísicos. Para isso, W ittgens­ tein utiliza um a das suas noções centrais, que é a de significação. F.ntão o meu t r a ­ b alho foi sobre a n o çã o de significação nas Investigações filosóficas. N a q u e la o c a ­ sião, em 1972, c o m o a bibliografia so b re W ittgenstein era ain d a m u ito escassa, m esm o em língua inglesa, esse meu tra b a lh o tinha algum interesse. Ele deveria ter sido p u blicado n u m a coleção dirigida pelo professor Paul Ricoeur, que estava na banca d o m eu d o u to r a d o . M a s, em 1974, um filósofo c h a m a d o Peter H a c k e r p u ­ blicou um livro m agistral sobre W ittgenstein, e tu d o aquilo que tinha de interes­ sante na m inha tese ele disse de m aneira m uito melhor, com mais precisão, com mais clareza e c o m mais pro fu n d id a d e.

Em seu artigo sobre o positivismo de Wittgenstein, o senhor escreveu: “Do T r a c t a tu s ao empiricismo lógico há, é certo, um abismo, mas o abismo é estreito, e o salto pareceu possível e inevitável. E esse salto que Wittgenstein arriscou, por volta de 1930, e cujo fracasso terminou por levá-lo à total transfiguração de seu pensamento. Ele deixou de respon­ der diferentemente às mesmas perguntas, e passou a interrogar diferen­ temente a lógica, a linguagem e o m undo”. Como seria essa continua­ ção esboçada pelo final do artigo, quer dizer, como o senhor vê o cha­ mado segundo Wittgenstein das Investigações? O período de 1929 a o qual me refiro é o p erío do no qual W ittgenstein esteve mais p ró x im o d o positivismo. E nesse período que ele a b a n d o n a as teses fun dam entais do Tractatus , e a ac u sa ção mais co n stan te que faz a si m esm o, depois do a b a n d o ­ no, é a seguinte: no Tractatus , ele preserva certas idéias a b s o lu ta m en te pré-concebidas a respeito de d eterm in a d o s pon tos. U ma vez aceitas essas idéias, o resto se­ guia im placavelmente. F. essas idéias preconcebidas, segun do W ittgenstein, dizem respeito ao fu n cio n a m e n to da linguagem , p o r conseguinte, ao f u n cio n a m en to do

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p ensam ento. Segundo ele, a filosofia privilegia um a única m aneira de pensar, em que nós p o d em o s determ ina r a dim ensão do verdadeiro e d o falso. M as, p a r a Witrgenstein, n ã o é a p e n as assim que nós pensam os, pois nos p ensam os de m aneiras regradas. O nosso p en sam e n to é m uito mais v aria d o d o que é o p en s a m e n to privi­ legiado pela filosofia. Desse privilégio, cuja fonte ele atribui talvez injustam ente a S. A gostinho, decorre um a con cep ção p latônica da lógica, a lógica transcendente às atividades h u m a n as. W ittgenstein en tã o navega entre dois rochedos: de u m lado, o rochedo do p la ton ism o, ou seja, s u p o r que a lógica é algo a b s o lu ta m e n te ex terno às atividades h u m a n as; de o u tr o lado, o rochedo do relativismo — que ele tem de evitar igualm ente — , o u seja, que as leis lógicas nad a mais são d o que expressões dos m odos psicológicos segundo os quais agimos, significamos e falamos. Essas são as du as coisas que ele p retende evitar n as Investigações filosóficas. E convém insis­ tir: é im p o r ta n te n o ta r que o p ro jeto original de W ittgenstein era, a o longo das Investigações, escrever u m livro sobre os fu n d a m e n to s da m a tem ática e um livro sobre os f u n d a m e n to s dos conceitos psicológicos. F. expressivo o fato de ele ter t r a ­ b a lh a d o co m o p arte de um m e sm o livro o d o m ín io do p u ra m e n te form al da m a te ­ m ática ju n to com o d o m ín io d o intencional, das em oções e dos sentimentos. Ele diz: “Esse m esm o tipo de cartografia conceituai que faço dos c h a m a d o s conceitos psicológicos deve ser feito c o m os conceitos m a te m á tic o s ” . Isso reflete aquela difí­ cil navegação que ele pretendia com as Investigações, depois d o d o g m a tism o do Tractatus. Já há cinco volumes p u blicados referentes a esse projeto, m as ain d a é u m a m assa m a ltr a b a lh a d a de que não se sabe m u ito bem o que p ode sair. Q u a n to ao sucesso o u êxito disso, Wittgenstein foi um b o m profeta a respeito da sua p r ó ­ pria progenitura. F.le diz, sob a form a fragm entária que é característica sua, que o único legado que ele deixa é um certo jargão. O q u e realm ente é v erd ade [risos]: “ jogos de linguagem ” , “ formas de vida” etc. E m bora eu acredite que ele tenha muito m ais coisas p ara deixar. M a s aí é o u tr a história. O senhor passou sete anos fora do pais (1966 a 1973). Nesse período entre a sua saída e a sua volta , o que mudou no Brasil? O que mais me c h a m o u a aten ç ão, pelo m enos n o início, foi o seguinte: naquele te m p o não existia Instituto de Filosofia, Instituto de Política, m as a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. E na Faculdade havia m atem áticos, físicos, quím icos, literatos, filósofos etc. C o m o golpe de 64, um a das faculdades que mais sofreu com os expu rgo s foi a da Universidade Federal d o Rio G ra n d e d o Sul (UFRGS). N a área de filosofia a d ev astação foi com pleta. O s bons professores de filosofia que tín h a ­ m os em P o rto Alegre foram todos, sem exceção, ex p u rg a d o s nesse período. O D e ­ p a r ta m e n to de Filosofia foi o c u p a d o e n tã o pelo que havia de pior, desde que fosse de direita. Isso foi um p eríodo esquecido d o D e p a rta m e n to de Filosofia d a q u i do Rio G ra n d e d o Sul. C o m a USP n ão aconteceu o mesmo. Ela teve um a capacidade de resistência inercial que nós n ão tín h a m o s. A p esar das cassações, a USP resistiu, conseguiu m a n te r um bom g ru p o de professores e desem p e n h o u um papel m uito im p o rta n te na preservação de um b o m tra b a lh o de filosofia. Bom, o que m u d o u essencialmente neste período? Foi nesse perío d o q u e os traç o s bacharelescos e eclesiásticos da filosofia d esa p a re c e ra m definitivam ente.

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T al vez isso seja um exagero, m a s esses traços to r n a r a m -s e to ta lm e n te marginais. A filosofia to rn o u -se m uito mais profissional e os laços en tre o direito e a filoso­ fia d e ix a r a m de ser significativos. A o m e s m o t e m p o , h o u v e u m a b ru ta l ideologização d o tra b a lh o filosófico, que teve um a im p o rtâ n cia m u ito g rande. Isso foi f u n d am e n tal co m o d e m o n s tr a ç ã o de resistência, p rincipalm e nte p o r p arte d a q u e ­ les que ficaram d e n tro da U niversidade e tin h a m de resistir. N a USP, trab a lh av a se com o m a rx ism o , lia-se m u ito Da contradição d o M a o -T sé -T u n g e coisas des­ se tipo. Q u a n d o cheguei, em 1973, alguém (que eu n ão vou dizer qu em é) p e r­ gu n to u : “ Você fez d o u to r a d o sobre o q u e ? ” . Eu respondi: “ Sobre W ittg e n stein ” , c a pessoa disse: “W ittgenstein é neopositivista, en tão é fascista” . Era difícil... Vias era essa a atm o sfera de resistência da época, s o b r e tu d o p o r p arte da U niversidade de São Paulo, p o r p arte da U niversidade d o Rio de Ja n eiro , de M in a s G erais e daqui. O s tem as d o m in a n te s e ra m aqueles que grav itav am em volta d o m a rx is ­ mo. Isso serviu para definir bem o público que freqüentava a Filosofia, m esm o que n ã o profissionalm ente, de a n tro p ó lo g o s, de sociólogos, cujas referências eram es­ sencialm ente m arxistas.

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depois da volta ao Brasilf

Terminei o meu d o u to r a d o , voltei p ara o Brasil, e tive um m o m e n to brevíssim o na U niversidade de São Paulo. N aque le m o m e n to , |O s w a ld o l P orchat, ju n to co m um g r u p o da USP, teve a o p o r tu n id a d e de f u n d a r o C e n tro de Lógica e Epistcmologia (CLE) e o D e p a rta m e n to de Filosofia da U nicam p. N ã o conhecia nem P orchat, nem IJosé Arthur] Giannotti e nem Bento [Prado Jr.] — naquela época, a Santíssima T rin ­ dade da filosofia de São Paulo. F om os em b a n d o p a r a C a m p in a s, e essa ex periên­ cia foi e x tra o rd in á ria sob to d o s os p o n to s de vista. É ram os um b a n d o de metecos, o nde n ão havia n en h u m aborígene, m as m uitos estrangeiros. Lem bro-m e de Michel D ebrun, G érard Lebrun, Andreas Raggio, Ezequiel De Olazo, E duardo Robossi, p r o ­ fessores que faziam p a r te d o c o r p o regular. C laro que nem tod o s ficaram m uito te m p o , m as pelo m enos d u ra n te dois an o s um desses ficava p o r lá. O que form ava um D e p a rta m e n to co m m uitos interesses e, além disso, com um grau de rigor no tr a b a lh o m u ito bom . C o m isso, aprendia-se m uito. M e sm os os brasileiros, os p ri­ meiros a aparecer, ta m b é m tin h a m um v aria do interesse filosófico que ia desde a fenom enologia, c o m C arlos A lberto [Ribeiro de M o u r a ] , até Frege, co m Luiz H e n ­ rique [Lopes dos Santos], p a s sa n d o p o r Hegel, com M a rc o s Müller, e assim p o r diante. M a s o projeto restringia-se à lógica e à filosofia da ciência. Julgava-se que o ensino de lógica era a b s o lu ta m e n te f u n d am e n tal p a r a a fo rm a ç ã o de qualq u er estu d an te de filosofia, e um dos aspectos mais im p o rta n tes da cultura c o n t e m p o r â ­ nea era, afinal de co ntas, a ciência — pelo m enos foi isso que aconteceu a p artir do p eríod o m o d e rn o . F.ntão, cabia e studar esse aspecto de um a m aneira mais a p r o f u n ­ da d a . C laro qu e a filosofia da ciência, naquela época, dedicava-se essencialmente aos neopositivistas, aos positivistas lógicos d o g r u p o de Viena. N o e n ta n to , no D e p a rta m e n to , os clássicos históricos d o c onhe cim ento, m esm o os da ciência clás­ sica, nunca foram negligenciados, com o Descartes, H um e, Husserl e assim p or diante. M a s, de fato, havia u m a tônica forte no neopositivismo.

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A idéia do CLE era selecionar também estudantes que não tinham for­ mação em filosofia e levá-los a uma pós-graduação em filosofia. Qual é a sua avaliação dessa experiência? Apesar de tu d o , é boa. Por um lado, m uitos erros foram com etidos, s o b r e tu d o o excesso de ênfase d a d a nos cursos a autore s m enores em d etrim en to dos grandes clássicos da filosofia. Isso foi m u ito desvantajoso. Por o u tr o lado, vejo co m o v a n ­ ta joso que, naquele tem po, os ó rgãos de fin anciam ento, p rincipalm en te a CAPES, eram e x tre m am en te generosos. Ju stam e n te p o r nós n ão term os um a g r a d u a ç ã o c p o r n ão exigirm os um a fo rm a çã o prévia em filosofia, eles nos d a v a m a possibili­ dad e de te r um semestre de a d a p ta ç ã o p a r a os alunos. F azíam os um pré-ex am e de seleção, e, depois, havia o tal semestre com três disciplinas o b rig ató ria s invariantes — “ In tro d u ç ã o à I.ógica” , m inistrada pela A n dré a |l.o p a ric |, “ I n tro d u ç ã o à H is­ tória da Filosofia” , m inistrada p o r Carlos Alberto, e " I n tro d u ç ã o à Epistem ologia” , m in istrada p o r mim . Era esse semestre qu e, de fato, fazia a seleção dos alunos. Ao final do semestre, nos reuníam os e con siderávam os o seguinte: um aluno podia não ser m u ito ta lentoso p a r a lógica, mas, em c o m p en sa çã o , podia te r um ó tim o talento especulativo. O u vice-versa: um a lu n o c o m um talento formal aguçadíssim o, mas que n ã o sabia filosofia. T ín h a m o s de p r o c u r a r pesar essa seleção da m aneira mais sensata possível. Isso foi um dos p o n to s mais positivos do D e p a rta m e n to . O p o n to mais negativo foi esse desequilíbrio entre os autore s c o n te m p o r â n e o s e os autores clássicos. Q u eria salientar ainda um últim o p o n to , o mais im p o rta n te nessa ex periên­ cia d o C e n tr o de Lógica, cujo m érito principal pertence a Porchat: a atm o sfera de deb a te e de discussão qu e se instalou ali. Antes, q u alq u er discussão de idéias filo­ sóficas, q u a lq u e r discordância ou crítica veemente a um a tese, ex posição ou a r g u ­ m ento, era to m a d a co m o um a agressão pessoal, e im ediatam en te a pessoa criticada se p unha em legítima defesa. Isso fazia com que a discussão degenerasse rapidamente. A U nicam p, naquela ocasião, conseguiu criar — o qu e felizmente depois se esp a­ lhou — a trad ição da discussão feroz, acesa, m as que, no e n ta n to , perm anecia e x ­ clusivam ente no te rren o das teses e das idéias, e n ã o n o te rren o pessoal. Isso foi a co n trib u içã o mais im p o rta n te da Unicamp.

Queria insistir exatamente nesse ponto. Chama a atenção em sua res­ posta o fato de Porchat ter inaugurado os colóquios. Antes disso, se se comparar o que era o centro de Porto Alegre, o centro paulista etc., como estava a situação? Criou-se com esses colóquios uma certa integração nacional? Criou-se. H avia, antes disso, o Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF) d o professor Miguel Reale, que realizava sem pre um g ran d e congresso nacional e, às vezes, c o n ­ gressos internacionais, interam ericanos etc. Esses congressos tin h a m um a e s tru tu ­ ra formal: um a grande conferência seguida de comunicações. M as n ão havia no Brasil a tr ad ição d o p eq u e n o c olóquio tem ático, em que um n ú m e ro reduzido de pessoas fossem co n v id ad a s p ara falar, p ara se e x p o r e discutir. Isso n ã o era um costum e nem em P o rto Alegre, nem em São Paulo, nem no Rio de Ja n eiro e nem em M inas Gerais. O s trab a lh o s que eram feitos nessas cidades e ram isolados. São P aulo tinha

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um trabalho em filosofia bem mais desenvolvido do que aquele que era feito no resto d o país, m as tra b a lh a v a de m aneira m u ito autista, ig n o ra n d o o que se fazia fora de seu estado. N ã o havia, p o r ta n to , um a in tegração nacional n o c a m p o da filosofia. Pouco a p o uco, os colóquios de P orchat foram r e u n in d o e p o n d o em c o n t a to as pessoas qu e tra b a lh a v a m nos diferentes centros. Foi através disso que essas pessoas passaram a se conhecer m elhor, saber d o s tra b a lh o s dos o u tro s e a discutir com bastante intensidade. O senhor participou também da assessoria da CAPES e da estruturação de cursos de pós-graduação. Como o senhor avalia esse processo de instalação da pós-graduação em filosofia no Brasilf Sempre vejo essas coisas de um a maneira superficial, porque n ão conheço as minúcias e os detalhes da história da instalação da p ó s-g ra d u aç ão no Brasil. Em to d o caso, a m in h a im pressão é a seguinte: de to d a s as atividades gov ern a m en ta is na área de ed ucação , a im plem e nta ção da p ó s-g ra d u aç ão foi a que deu m elho r resultado. E m ­ b o ra te n h a m o s u m a p ó s-g ra d u aç ão m u ito nova, o progresso que h ouve na q u a n t i­ dad e e, so b retu d o , na qualid ad e dos tra b a lh o s depois da im p lem e n ta ção foi colos­ sal. N ã o só isso: se a gente ex a m in a r o início e o atual estágio da p ó s-g ra d u aç ão em filosofia no Brasil, há um progresso fora do co m u m . É verdade que n ã o se tem ain d a um volum e de publicações expressivas, e padecem os da m aldição de escre­ ver em português. M a s a q ualidade média no Brasil não é inferior à qualidade média dos escritos filosóficos na F rança, na Inglaterra, na A lem anha e nos E stados U ni­ dos. C laro que eles têm um volum e de massa crítica infinitam ente m a io r d o que a nossa. Por terem mais história, p r o d u ze m um a q u a n tid a d e de textos que é in c o m ­ parável co m a nossa p ro d u çã o . M a s houve um progresso e x tra o rd in á rio , e a trib u o isso em g ran d e p arte à invenção e à instalação da p ó s-g ra d u aç ão aqu i no Brasil. O que receio é que essa situação agora , p o r várias causas, possa ser p rejudicada e se perder. H á , nesse m o m e n to , u m projeto de extinguir o m e strad o , visto co m m uita sim patia pelo M inistério da Ciência e da T ecnologia, pelo C N P q e pela CAPES com os mais variados argum e ntos. N a m inha opinião, o único a r g u m e n to real, n ã o e x ­ presso, é p o u p a r dinheiro, ou seja, o sujeito passa para o d o u to r a d o direto e fica m enos te m p o recebendo o d inheiro q u e lhe é d estinado pelo E stado. Isso é de um a ra ra estupidez, po rq u e centro s co m o a USP, as federais d o Rio, de M in a s e d o Rio G rande d o Sul recebem fatalm ente estudantes que vêm com formações as mais diver­ sas. As vezes um estu d an te é m u ito prom issor, m as é m u ito ig norante. Visivelmen­ te ele n ã o p o de ir p ara o d o u to r a d o direto, tem de te r um a p r e p a ra ç ã o prévia. Em grand e p arte é o m e stra d o que faz isso, pois é um a p r e p a ra ç ã o imprescindível p ara o d o u to r a d o . F.m alguns casos não , m as, pelo que eu saiba, esses casos ain d a são m inoritários. Receio q u e isso vá prejudicar a p ó s-g ra d u aç ão , ou seja, a única e x p e ­ riência estatal conhecida nos últimos an o s que deu excelentes resultados. C laro que está na ho ra de ajustar, fazer um a revisão geral, “ a p e r ta r p a r a fu s o s ” e fazer a d a p ­ tações. M a s alterações fundam entais são m uito arriscadas, n ã o sou favorável a elas.

O que significou, na sua opinião, a experiência da Sociedade de Estu­ dos e Atividades Filosóficas (SEAF) ?

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Foi um a experiência im p o rta n te, p o rq u e a SF.AF, pela prim eira vez, expressou a realidade, isto é, que havia um g ru p o de pessoas tr a b a lh a n d o em filosofia 110 Brasil e n ã o a p e n as localm ente. Por um lado, foi a prim eira tentativa de constituição de um a c o m u n id a d e n acional de pessoas interessadas em filosofia. Foi o e m b rião do que é hoje a A ssociação N ac io n al de P ó s-G rad u a çã o em Filosofia (A N PO F). Por o u tr o lado, nasceu d u r a n te a d ita d u r a militar e teve u m a co lo ra çã o política e ideo­ lógica abso lu ta m en te n atu ra l, o que ac arreto u divisões internas, atritos etc. M as em razão dos fatores extern os, da d ita d u ra , d u vido q u e ela pudesse te r sido de o u tro m o do.

Como foi criada a ANPOF e como o senhor a vê hoje? A A N P O F foi criada em p arte pela divisão interna da SEAF e em p arte devido à indução dos orgãos de financiam ento (C N P q e CAPES), que queriam interlocutores privilegiados e, a o m esm o te m p o , representativos. Privilegiados n o seguinte senti­ do: a p ó s-g ra d u a ç ã o n ã o teve um su rto exclusivo, ela proliferou disciplinadam ente na nossa área, mas, em o u tra s áreas, de m aneira incontrolável. Em q u a lq u e r luga­ rejo d o Brasil, hoje, pode-se fazer m e strad o em pedagogia o u em artes. E n q u an to , n o co m eç o d a d éc ad a de 80, a p ó s - g ra d u a ç ã o da filosofia tin h a doze cursos de m e strad o e apenas três de d o u to r a d o — a USP, a U nicam p e a Federal d o Rio — , havia 42 cursos de m e strad o em pedagogia. Por o u tr o lado, havia um a g rande dissensão d e n tro da SEAF. P or definição, os g ru pos q u e realizam em q u a lq u e r setor d o c o n he cim ento os tra b a lh o s mais q u a ­ lificados são m inoria. Isso gerou d en tro da SEAF um a tensão, p o rq u e os grupos m ajoritários, que realizavam um tra b a lh o m enos b o m — p ara dizer o m ínim o — , pas saram a te r a heg em on ia da instituição. Isso teve co m o conseqü ência o fato de os critérios de integração à SEAF ficarem ca d a vez mais frou xos, e os g ru p o s que faziam um tr a b a lh o de m e lh o r q u alidade se rebelavam , ou pelo m enos n ã o g o sta ­ vam do c o m p o r t a m e n to da m a ioria da SEAF. E n tã o havia briga d e n tro da Socie­ dade. Além disso, a SEAF n ão representava ape nas a p ó s-g ra d u aç ão , m as ta m b é m to d a s as graduações. C o m o CAPES e C N P q , n aquela ocasião, estavam investindo essencialmente na p ó s-g ra d u aç ão , ind uziram a criação da A N P O F . C o m o é que eu a avalio hoje? A p ó s-g ra d u a ç ã o no Brasil cresceu m u ito e com grande rapidez (em bora seja relativamente nova). Isso foi inevitável porque, na época da criação da A N P O F , para q u alq u er d e p a r ta m e n to de filosofia te r dinheiro, era necessário ter u m a p ó s-g ra d u a ç ã o . A CAPES e o C N P q só p u n h a m d in he iro no m e strad o e n o d o u to r a d o . Isso im e d ia tam en te estim ulou a criação, u m p o u co sel­ vagem, de m e strad o s e d o u to r a d o s , e m uitos d e p a rta m e n to s n ã o eram qualificados p a r a esse tipo de trab a lh o . Além disso, há um p ro b le m a federativo que n ã o parece ser solúvel a c u rto prazo: sanar o desequilíbrio que há entre N o rte e N ordeste de um lado, e Sul e Sudeste de o u tro . A co m pan hei esse p ro b le m a em p articula r na P araíba. O M inistério da Edu cação e o C N P q resolveram fazer o seguinte: p a r a haver u m a p ó s-g ra d u aç ão decente n o N o rd e ste , eles c o n c e n tra ra m investim entos maciços na Paraíba p a r a a fo rm a ç ã o de mestres e d o u to re s no Rio, São Paulo, M in a s, P o rto Alegre ou no e x ­ terior. O resultado disso foi o seguinte: os que se saíram melhor vieram para o Sudeste

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e ficaram. Enfim, é assim qu e as coisas se passam . M as, m esm o assim , as pós-graduações perm aneceram e cresceram. Isso acabou p or introduzir procedim entos pouco seletivos na A N P O F . Por exem plo, os C ongressos da A N P O F se realizam a cada dois anos e há um a com issão que seleciona os tra b a lh o s q u e serão apresentado s. Isso cria pro b lem as da seguinte ordem : recusa-se um tra b a lh o de pó s-g ra d u aç ão da USP p o rq u e não é co n sid erad o suficientemente e l a b o r a d o para ser apresencado no Congresso. A o m e sm o te m p o , pode-se aceitar um tra b a lh o de um professor m uito pior d o que o prim eiro, que n ã o pode ser recusado p a r a n ão criar u m a atm osfera belicosa. H á , en tão , essa dificuldade de coexistência d e n tro da A N P O F de níveis de pós-graduações m uito disp a ra ta d o s, q u e reflete as divisões nacionais. N o e n ta n to , a A N P O F exerce um tr a b a lh o m u ito im p o r ta n te , pois as pósg rad u a çõ es de m e lh o r q u alidade ac aba m ta m b é m e s tim u lan d o as de pior q u a lid a ­ de a m e lh o rar, e, em relação a co m o estava o Brasil, houve um a m e lh o ra perceptí­ vel e im p o rta n te. Pouco a p o u c o as coisas te ndem a m elh orar. Avalio-a, p o r ta n to , de m aneira bem positiva. C laro que há ta m b é m , co m o em q u a lq u e r área, o p r o b le ­ ma das avaliações. N in g u ém gosta de ser mal avaliado e ocorrem brigas e dissensões. M as, d eva garinh o, as coisas estão indo. A credito que a A N P O F faça um bom tra b a lh o . As suas reuniões a cada dois a n o s reúnem um a q u a n t id a d e im ensa de estudantes, professores e curiosos, o que perm ite que a gente tenha u m a idéia do que se faz em filosofia hoje no Brasil, e quais são as suas direções dom inantes (mesmo que circunstanciais). O senhor é conhecido nos círculos filosóficos como um arguto leitor de textos alheios, que sempre se modificam após suas sugestões e comen­ tários. No entanto, o senhor publica relativamente pouco. A que se deve isso? C laro que há um a p arte psicológica, um a inibição para a escrita. F. essa inibição possivelmente vem de fumos literários que tive na adolescência. “ C o m e ti” sonetos, “ c o m e ti” c o n to s etc. N u n c a fiz um a investigação sistemática com auxílio de um te ra p eu ta p ara saber de o nde vem essa m inha inibição com a escrita. E ntão, vam os deixar de lado essa parte, já que a ignoro. A ou tra p arte dessa inibição vem d o seguinte: é im p o rta n te que se publique m uito no Brasil, so b re tu d o em filosofia, p ara se criar u m a trad ição que ain d a não temos. É necessária um a m u d a n ç a até m esm o de v o cab ulário, pois se a gente vai, p o r exem p lo, trad u z ir um te x to clássico alem ão, existem dificuldades que nos le­ vam a ter de inventar palavras, devido a o fato de o portu g u ês não possuir palavras co rresp o n d e n tes às palavras de língua alemã. E ntão , essas publicações são im p o r ­ tantes p a ra estabelecer um a c o m u n id a d e que possa d eb a te r um te x to escrito em p ortuguês, qu e possa saber o que uns e o u tr o s pensam e q u e ta m b ém possa fixar um vocabulário co m u m de filosofia no Brasil. N o e n ta n to , nos últimos anos, há um excesso de publicações — e estou fala n d o em relação a o ce nário t a n to nacional q u a n t o inte rnacional. N ã o sou in teiram en te desfavorável a algun s incêndios de “ bibliotecas de A le x a n d ria ” . C laro que isso é um a brincadeira, m as é necessário pensar esse estím ulo desv airad o à publicação. A form a pela qual está sendo exe cu­ ta d o esse processo no m u n d o inteiro, e mais recentemente no Brasil, deve sofrer um

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p r o ce d im en to q u alq u er de seletividade, de tal m aneira que as pessoas n ã o sejam julgadas pela q u a n tid a d e d aquilo que publicam , m a s pela q ualid ad e d o que pu bli­ cam. Esse problem a prejudica, p o r exemplo, os m estrados e d o u torados, pois q u a n to m aio r for o n ú m e ro de teses defendidas na p ó s-g ra d u aç ão , m aior é o n ú m e ro de bolsas que o p r o g ra m a recebe. Isso tem um resultado: as pós-graduações se t o r n a m ca d a vez mais com placentes. M e s m o q u a n d o u m a pessoa vai ser avaliada para um p rojeto de pesquisa no C N P q , con ta o n ú m e ro de artigos publicados. Q u a n d o es­ tava na CAPES, junto co m o professor R icardo T erra, achávam os que o fato de uma pessoa ter m uitos artigos pub licad os n ã o queria dizer nad a , pois poderia ser tu d o u m a po rcaria. Um sujeito p ode ter escrito apenas dois artigos, m a s artigos que são fora d o c o m u m . Essa é a racionalização d a m inha incapacidade de escrita. Escrevo m uito, mas, de fato, te n h o dificuldade em publicar. Publico as únicas coisas que têm algum interesse q u a n t o à q u alidade, e te n h o u m a certa rebeldia à q u a n tid a d e de publicações. Espero, esse an o , ter finalmente alg u m a coisa de interessante p ara publicar sobre a q u estão d o tem po.

Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Como o senhor vê as relações entre a filosofia e a cultura brasileiraf A expressão “ filosofia brasileira” é realm ente a m bígu a e tem dois significados di­ ferentes: o prim eiro é inocente, trata-se da filosofia que se pratica no Brasil; o se­ gu n d o já n ã o é inocente, pois trata-se de u m a filosofia que possui teses, conceitos e arg u m e n to s q u e são específicos a o Brasil, assim co m o haveria u m a filosofia p e r u a ­ na e, eventualm ente, u m a filosofia gaúcha |risos). C o m isso, a filosofia brasileira deveria ser dividida em filosofia paulista, g aú cha, goiana etc. O tr a b a lh o de filosofia feito n o Brasil, o único tr a b a lh o que m e parece possí­ vel, é aquele cuja m atriz é ocidental, e cujas raízes fund am e n tais são os gregos, o direito r o m a n o e o cristianismo. Por o u tr o lado, se se co n sid erar que existe um es­ tilo de filosofia que se faz em um país, torna-se perfeitamente legítimo falar em uma filosofia alem ã p o r o posição a um a filosofia inglesa, a um a filosofia francesa etc. C ertos países privilegiam tem as em d etrim en to de o u tr o s que são privilegiados p o r o u tro s países. Por exemplo: o idealismo n ão é um tema exclusivamente alem ão, mas p re d o m in a n te m e n te alem ão, assim co m o o em pirism o é um tem a p re d o m in a n te ­ m ente inglês e o racionalism o é u m a característica da filosofia na França. Nessa ac epção d o fazer filosofia, penso que o Brasil ainda n ã o possui um estilo p ró p rio , mas, talvez, comece lentam ente a esboçá-lo e com ece a in tro duzir u m a certa form a argum entativa do m inan te de filosofia. N ã o se pode esquecer que a filosofia no Brasil, talvez p o r sua proveniência jurídica, ac e n tu o u m uito a retórica. Se se ler os textos de filosofia d o c o m eç o d o século X X , percebe-se c o m o e ra m retóricos e p o u co argum entativos. Penso que progressivamente a idéia de a rgum e ntaç ão tornou-se um p o n to im p o rta n te na filosofia do Brasil, assim c o m o o fato de co n siderar q u e um a idéia clara n ã o é necessariam ente um a idéia trivial e que um a idéia o bscura n ão é necessariam ente um a idéia p ro fu n d a . Nesse sentido, talvez seja perm itid o pensar em algo que possa vir a se c h a m a r filosofia brasileira. A segunda parte da p ergunta é mais difícil e espinhosa. A p ergunta n ão deve­ ria ser sobre “ as relações entre a filosofia e a cu ltu ra b rasileira” , m as sobre “ as

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relações entre a filosofia e ” — o que? — “ cultura brasileira c o n t e m p o r â n e a ? ” — o que isso q u er dizer? U m a coisa é certa: a m a io r parte d aqu ilo que se faz em filoso­ fia no Brasil é esotérica, faz-se em d eterm in a d o s grupos. As vezes me ocorre dizer que nós estam os n u m a situação cultural sem elhante àquela dos monges medievais que preservavam m a nuscritos cuja utilidade e cuja relação co m a cultura eles não sabiam qual poderia vir a ser. A gente em p arte faz isso com a filosofia, ou seja, a gente preserva um certo p atrim ônio cultural sem saber se um dia ele será novam ente ap reciad o, nov am en te utilizado etc. C laro que isso é um p o u co e x a g erad o , m as a filosofia n o Brasil, p o r e n q u a n to , está ausente e m u ito distante d o d e b a te público. Isso se deve em p arte ta m b é m à espan tosa ignorância na qual se faz o d eb a te pú b li­ co hoje no Brasil. As duas pessoas com fo rm ação filosófica que intervieram no debate público no Brasil foram G iannotti e M arilen a |C h a u i|. F. o resultad o disso é o se­ guinte: se G ian n o tti utiliza a sua fo rm a ç ã o filosófica p ara a exposição de alguns a rg u m e n to s sobre a situação política do país, torna-se incompreensível, p o rq u e o público n ã o tem um a fo rm a çã o m ínim a que perm ita c o m p re en d e r alusões daquela natureza. E possível fazer a c o m p a r a ç ã o com o d e b a te público estabelecido na Ale­ m a nh a: H a b e rm a s escreve no Die Zeit com g ran d e g rau de sofisticação intelectual e filosófica, e é co m p re e n d id o e refu tad o p o r o u tr a s pessoas q u e não são necessari­ am en te especialistas em filosofia. Já aqu i, no Brasil, o d istan c iam e nto é de tal o r ­ d em q u e esse tipo de deb a te não é possível tal c o m o ele acontece na F rança, na A lem an ha e na Inglaterra. Isso é um p o n to . O o u tr o p o n to é o seguinte: a filosofia internacion alm ente perdeu a posição única que ela o c u p o u na cultura ocidental até o final da Segunda G u erra M u ndia l. O s dois últim os filósofos de repercussão fo ­ ram Jean-Paul Sartre e Bertrand Russell. Sartre ap arecia na televisão, to d o m u n d o queria saber q u a n ta s m ulheres tinha tido Russell nos últimos meses, e o que Sartre an d a v a fazendo no Boulevard Saint Michel. Esse tipo de relação entre o filósofo e a cultura desapareceu talvez definitivamente. Houve um distanciamento grande entre a filosofia e a cu ltu ra. Em p a r te ta m b é m pelo e x tra o r d i n á r io a b a s ta r d a m e n to e com placência da cultura e da sociedade no Brasil. N ã o sei qu ais são as causas que levaram à aceitação de q u a lq u e r p orcaria co m o se fosse u m a expressão cultural. E a considerar, p o r e x e m p lo , que C a e ta n o Veloso é um g ran d e poeta. Se C a e ta n o Veloso passa a ser co n sid erad o um g ran d e poeta é p o rq u e algu m a coisa está p r o ­ fun d am e n te doente na nossa cultura.

A sua produção se caracteriza por ter como referência textos clássicos da filosofia. Nesse sentido, ela poderia ser colocada sob a rubrica “his­ tória da filosofia”. O senhor vê oposição entre fazer história da filoso­ fia e fazer filosofia? D epende de co m o se en tendem essas d u as coisas. Faria a seguinte brincadeira: a filosofia sem a história da filosofia é cega, e a história da filosofia sem a filosofia é vazia. H o u v e no Brasil um a m u d a n ça , talvez ainda em a n d a m e n to , na m an eira de co n siderar a história da filosofia. H ou v e um p erío d o em que a história da filosofia tinha co m o uma espécie de prescrição m etodológica reproduzir de m aneira siste­ mática o p en s am e n to de um a u to r, e p o n to final. U ma caricatura disso consistiria 110 seguinte: o que a história d a filosofia deve fazer é r e p ro d u zir aquilo q u e o a u t o r

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disse e a c ab o u . U m a o u tra m aneira igualm ente ca ricatural da história da filosofia encontra-se com m uita freqüência na história da filosofia p ra tic a d a pelos ingleses analíticos. Consiste em pensar q u e “ os g rand es p e n s a d o r e s ” , alguns colegas mais antigos de C am b rid g e e de O x fo r d , tinham até algum as idéias bastantes legais. M a s nós, hoje, sab em o s m u ito mais graças à lógica fregeana. Lem os esses autore s p ara a fa sta r o g ran d e n u m e ro de bobagens que escrevem e e n c o n tra r p o rv e n tu ra alg u ­ m a idéia interessante. Esses dois equívocos, em relação à história da filosofia, es­ tã o po uco a p o u c o sendo evitados n o Brasil, em que se com eça a ter um cu id ad o crescente em perceber que os pensadores clássicos n ão pensavam necessariam ente co m o nós fom os h ab itu ad o s a pensar. Isso tem a seguinte vantagem: reconhecer um pen s a m e n to alheio facilita reconhecer as nossas p ró p ria s o pções e decisões f u n d a ­ mentais. F unciona, m uitas vezes, co m o um contraste: se um a pessoa reconhece um a tese alternativa, torna-se possível a ela reconhecer que a sua tese tem alternativas, e, p o r ta n to , isso faz com que ela c o m p re e n d a m elhor os seus p ró p rio s argum e ntos. Isso é um a v antagem que está sendo larg am ente dissem inada. G o sto m uito da frase de um filósofo medieval — se não me engano , S. Boaventura. N aq u e le te m p o , cultivavam-se m u ito os gregos, so b re tu d o P latã o e A ris­ tóteles, e os co m e n ta d o re s medievais n ão se privavam de localizar erros nesses dois filósofos. Esse filósofo medieval recebeu um a crítica que dizia o q u ã o ridículo era um filósofo m enor c o m o ele o u sa r criticar Aristóteles. Ele deu u m a resposta sim ­ ples: “ realm ente sou um an ã o, m as um a n ã o em o m b ro s de gigante. E n tão vejo mais d o q u e o gigante v ê ” . Isso perm itiu um g ran d e respeito ao p e n s a m e n to dos clássi­ cos, mas, ao m esm o tem p o, a consciência de que esse respeito não é um a subserviên­ cia, isto é, respeito n ã o significa aceitação de arg u m e n to s de au to rid ad e. M as in­ sisto na frase inicial: julgar que se possa fazer filosofia ig n o ra n d o a história da filo­ sofia é cegueira, d o m esm o m o d o que fazer história da filosofia sem um esforço de pen s a m e n to filosófico é vacuidade com pleta. N ã o sei qu em disse: " ig n o ra r a histó­ ria da filosofia é co ndenar-se a repeti-la” . E n tã o vam o s g a n h a r te m po.

Quais são os filósofos brasileiros mais importantes ? O conceito de im p o rtâ n cia varia segun do diferentes critérios. U ma coisa é ser im ­ p o rta n te p ara um p ro p ó sito , o u tra coisa é ser im p o rta n te p a r a u m o u tr o p ro p ó s i­ to. U m a faca p o d e ser im p o rta n te p o rq u e é ótim a p ara c o r ta r d e te rm in a d a coisa, e o u tr a faca p o de ser igualmente im p o rta n te p o r ter pertencido a N a p o le ã o . São cri­ térios to ta lm e n te distintos de im p ortâ ncia . Q u e r o destacar, em p rim eiro lugar, o seguinte: o papel que a Universidade de São Paulo teve, em relação a o resto do país, na co n s tru ç ã o de um a filosofia profissional. C ruz C osta, Lívio Teixeira e, so b r e tu ­ do, a trin d a d e f o rm a d a p o r G ian n o tti, P o rc h at e Bento tiveram um a g ran d e im p o r ­ tância — diria até que são os prim eiros profissionais de filosofia no Brasil. Em se­ g u n d o lugar, penso em P orchat e a sua invenção d o C e n tro de Lógica no D e p a r t a ­ m e n to de Filosofia da U nicam p. Ele inventou o deba te filosófico no Brasil, a dis­ cussão acesa q u e n ã o é vista em term os pessoais. D evo destac ar ta m b é m o tr a b a ­ lho único feito n o Brasil por G u id o de Almeida e Raul Landim : a única escola de filosofia que há neste país — um a coisa realm ente e x tra o rd in á r ia q u e os dois c o n ­ seguiram fazer. F. e n te n d e n d o p o r escola n ã o algo q u e tem um a un id a d e dou trin á -

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ria, mas algo que tem u m a e x tra o rd in á r ia convergência de interesses tem áticos e um certo estilo argu m e n tativ o . Isso perm ite, p o r exem plo, identificar, p o r meio da p ergun ta de alguém em plenário, se essa pessoa foi aluna do G uido ou de Raul. Eles têm um a escola m uito im p o rta n te, e fo ra m capazes de fo rm a r um g ru p o de alunos que, hoje, são d o s mais p rom issores professores de filosofia d o país. P or razões co m pletam e nte diferentes, destaco ta m b é m o tra b a lh o da professora M arilen a , que teve um a im po rtâ n cia m uito grande. Por razões similares à im p o rtâ n cia d o t r a b a ­ lho do professor G ian notti. T a n t o M arilena, q u a n t o G ian n o tti, foram os que mais d iretam ente se e m p e n h a ra m em ap re sen ta r a filosofia n u m debate sócio-políticocultural do país. É bem verdade que nem sempre com m uito sucesso, mas isso p o u ­ co im porta. O s dois foram os que mais e x p u s eram a filosofia ao deb a te público. Além disso, há ta m b é m os tra b a lh o s de tra d u ç ã o , que, e m b o ra te n h am sido feitos n u m a q u a n tid a d e m u ito peq u e n a, tiveram um a g rande im p o rtâ n cia p ara a f o r m a ­ çã o e desenvolvim ento da filosofia n o Brasil. Penso na coleção O s P ensadores, c P orchat foi um dos principais inccntivadores dela. N ã o se p o de esquecer ta m b é m do pad re H en riq u e C láu d io de Lima Vaz, que teve um lugar destacadíssim o na história da filosofia nacional. C o m sua erudição e x tra o rd in á ria , teve sem pre clara, n ã o o b sta n te ser jesuíta, a consciência da dife­ rença entre a filosofia e as suas convicções religiosas. Padre Vaz, pela vastidão de sua cu ltu ra, introduziu no debate c o n te m p o r â n e o filósofos q ue eram p o u co c o n h e ­ cidos o u invariavelm ente negligenciados, c o m o p o r exe m plo Hegel na d écad a de 60. E n q u a n to G iann otti fazia o seu d o u to r a d o sobre S tuart Mill e a tradição da USP estava essencialmente voltada para o pensam e n to francês, devido a C ru z C osta e Lívio Teixeira, pad re Vaz tinha um espectro de interesse m uito mais am p lo d o que em q u a lq u e r o u tr o local da filosofia n o Brasil. Isso foi im p o rta n te p o rq u e abriu o c a m p o de interesse filosófico p ara além d aq uilo que era feito, sem prejuízo da n o ­ tável q u alidade de clareza e p en e traç ão dos a rg u m e n to s de p ad re Vaz, um excelen­ te filósofo. T a m b é m merece d estaque so b esse aspecto o professor G erd Bornheim. Foi graças a ele q u e aqui n o Rio G ra n d e d o Sul e no Brasil com eçou-se a falar em Heidegger. O prim eiro curso que fiz com o professo r G erd, isso deve te r sido em 1960, era um sem inário sobre O que é a metafísica. H eidegger era u m ninguém , um desconhecido aqui, em São Paulo e n o Rio de Janeiro. G erd Bornheim foi um dos prim eiros a pub licar sobre H eidegger e to d a a trad ição existencialista, Sartre e M erleau-P onty. Foi graças a ele que esses pensadores passaram a ad q u irir a im p o r ­ tância que vieram a ter na d éc ad a de 60 no Brasil.

Que conceito(s) de sua reflexão o senhor destacaria como o(s) mais representativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que o senhor nos contasse como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje. E mais ou m enos inevitável q u e eu me refira aos meus interesses atuais. M a s vou p r o c u r a r refazer a gênese desses interesses, que talvez desconheço. Q u a n d o lecio­ nava epistem ologia na U nicam p, preferencialmente tr ab a lh av a com epistemologia das ciências h u m a n as. O b rig a to ria m e n te en tão , em razão desse c o m p ro m isso co m a docência, passei a e x a m in a r o debate clássico d o século X IX entre as ciências do

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espírito e as ciências natu rais, um debate que com eçou na A lem anha. Sempre d ei­ x o u -m e fascinado e in teressado a tese segu ndo a qual o m o d o de c o m p re en sã o dos fenôm enos h u m a n o s é irredutível, ou pelo m e n o s diferente d o m o d o de c o m p re e n ­ são dos fen ôm eno s naturais. Isso era um a convicção provavelm ente infantil que eu tinha, provavelm ente de origem religiosa. Q u a n d o eu era religioso, acreditava no p ec ad o e na responsabilização. P o rta n to , era o b rig ad o a a c redita r na liberdade — n ã o se p ode ser responsável se não se é livre. \ l a s se se aceita essa tese simples, ou seja, a possibilidade de que os ato s h u m a n o s sejam livres e q u e pelo m eno s algu­ mas coisas da realidade são resultad os de ações livres, en tã o se terá algum a dificul­ d a d e em sustenta r que o m ecanism o de explicação desse tipo de aconte cim en to da realidade seja simétrico, o u idêntico, ao m ecanism o de co m p re en sã o dos acon teci­ m e n to s naturais. Isto foi um tem a que sem pre me fascinou e, co m o já disse, q u a n ­ d o fui a I.ouvain eu tinha aquele projeto m eg alóm ano — aliás, co m o convém q u an d o se tem vinte a n o s — de e s tu d ar S. T o m á s, Leibniz e Hegel. E o que me fascina até hoje em Leibniz é a idéia segun do a qual tu d o aquilo que acontece, o fato de es ta r­ m os aqui, p o r exem plo, está desde sem pre escrito na essência individual de cada um. Q u a n d o D eus fez o m u n d o , sabe-se lá q u a n d o , esse fato já estava previsto. Se é assim, en tã o m aktub. M a s Leibniz diz que n ão , e em vários textos desenvolve a r ­ gu m e n to s de ex tre m a finura p a ra m o stra r que n ã o existe n e n h u m a inco m patib ili­ d a d e entre tu d o aquilo que em um ser qu alq u er, inclusive nos seres h u m a n o s, está rigorosam ente d ete rm in a d o e alguns atos ab s o lu ta m en te livres, n ão o b sta n te serem tã o d eterm in a d o s q u a n t o qu aisq u er o u tr a s coisas. N o e n ta n to , nunca achei a solu ­ çã o leibniziana satisfatória. As vezes, em filosofia, acha-se intuitivam ente um a r ­ g u m e n to insatisfatório, m as não se consegue localizar o nd e é qu e ele d errap a . Em filosofia a gente aprende, co m o ta m b é m em q u alq u er o u tr o setor da cultura, inicial­ m ente com um mal-estar com u m a afirm a çã o , para depois p r o c u r a r saber de o n de provém esse m al-estar e localizar o n d e está o erro , ou a d erra p a g e m q u e o induziu. Eu tinha en tã o , t a n to pela fo rm a ç ã o religiosa q u a n to pelo interesse p o r Leibniz e p o r Hegel, u m a p reo c u p a ç ã o central com a n o çã o de liberdade e com a família de noções que g ravitam em to r n o dela. Em razão d o m eu co n stan te interesse p o r S. T o m á s de A q u ino, passei t a m ­ bém a me interessar p o r Aristóteles. E esse filósofo tem u m te x to a b s o lu ta m e n te genial que é o capítulo IX d o Tratado da interpretação. C o s tu m o apresentá-lo da seguinte m aneira: parece que há u m a r g u m e n to nesse c a pítulo de um jovem lógico — os eruditos dizem que, se ele n ã o foi a lu n o de Aristóteles, foi quase c o n t e m p o ­ râne o dele — q u e to m a frases de Aristóteles e m o stra que são inconsistentes entre si. M a s essas n ã o são frases q uaisqu er, são frases da Lógica de Aristóteles. A res­ posta de Aristóteles é a seguinte: “ fui eu qu e inventei essa brincadeira, en tã o vou m o stra r qu e esse jovem n ão a entendeu d ir e ito ’'. Aristóteles dá assim um lição de lógica c de metafísica a esse jovem. M a s a idéia de Aristóteles consiste em que, cm prim eiro lugar, n ã o há c o m o com patibilizar, ao c o n trá rio do que Leibniz p re te n ­ de, o d eterm in ism o dos ac o ntecim entos co m a liberdade dos agentes; diz que essa co m p atibiliz aç ão é impossível. E, em seg undo lugar, que essa incom patibilização em nad a afeta a validade dos princípios lógicos. A m inha idéia, então, é a seguinte: Aristóteles só pode fazer isso com os princípios lógicos se ele os tem poralizar. Pode-

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se, p o r exem plo, fo rm ular o princípio de n ão-c o n tra d iç ão à m aneira de Parmènides, “ o ser é, o n ã o ser n ã o é ” , mas n ão é assim que Aristóteles o form ula. F.le o f o rm u ­ la intro d u z in d o curiosa m e n te a n o çã o de aspecto, que vai ser trad u z id a p o r p r o ­ p riedade, e a n o çã o de tem po: “ o m esm o n ão p ode ser e n ão ser ao m esm o te m p o sob o m esm o as p e c to ” . Isso acontece do m esm o m o d o com o princípio d o “ tercei­ ro e x c lu íd o ” e d o m esm o m o d o com o princípio de identidade. E n tã o passei a me interessar fortem ente pela n o çã o de te m p o , s o b r e tu d o pela relação q u e a n o çã o de te m p o tem com a n o çã o de ação. E penso ter e n c o n tr a d o em Aristóteles dois c o n ­ ceitos de tem po: um conceito perfeitam ente a d e q u a d o à esfera dos acontecim entos d eterm in a d o s, que se poderia c h a m a r de acontecim entos m e ra m en te físicos, e uma n o çã o de te m p o irredutível a essa prim eira e que é específica dos co m p o rta m e n to s hu m a n o s. Aristóteles se apercebeu dessa distinção. Esses te m as que mais me inte­ ressam são p u ra m e n te especulativos ou teóricos, m as ta m b é m possuem relevância prática. Isso é u m a convicção m inha: se as ações h u m a n a s são estritam ente d eter­ m ina das, en tã o certas práticas e d o u trin a s ético-políticas to rn am -se ininteligíveis.

Da pequena parte publicada de sua produção, parece constante a per­ gunta pelas relações entre teoria e práxis, pelas relações entre a pergunta pela verdade e a pergunta pelo fundam ento da ação, enfim, pelos lia­ mes e distâncias entre saber e fazer. Em seu artigo “Saber, fazer e tem­ po: uma nota sobre Aristóteles”, publicado no volume em homenagem aos sessenta anos de Guido Antonio de Almeida e Raul Landim Filho, o senhor aponta o te m p o (e os diferentes sentidos de tempo) como ele­ mento essencial a distinguir ação e conhecimento. Estaria a í a raiz das dificuldades de relacionamento entre ciência e ética no mundo moderno ? A p ergunta é de um a am plitu d e que intim ida, n ão saberia responder. Eu contra perguntaria da seguinte maneira: quais dificuldades, em particular, você tem em vista q u a n d o fala das dificuldades de relação entre ética e ciência? P orque existem várias dificuldades de v ariado s tipos...

Estou pensando particulannente na origem da sua última resposta, que era justamente a escola histórica alemã. Essa tentativa de distinguir rigidamente os domínios da natureza e da cultura, para que a lógica de um domínio não invada a lógica do outro domínio, com todos os problemas que essa distinção acarreta. Q u e r o fazer, prim eiro, um a o bservação bem ingênua e lateral a esse respeito. T e ­ n ho u m a im pressão m uito esquisita acerca da ciência c o n te m p o râ n e a , m uito excên­ trica. Essa excentricidade baseia-se no seguinte: na história da cultura h u m a n a nunca se teve t a m a n h o senso de historicidade, isto é, u m senso segundo o qual as coisas variam m uito c fortem ente segu ndo o tem po. Por exemplo: d u r a n te um bom p a r de milênios, boa parte da h u m a nidad e acreditava que o sol girava em to rn o da Terra. O ra , as pessoas n ã o eram necessariamente menos inteligentes do que os as trô n o m o s dos séculos XVI e XVII, e n ã o eram ta m b é m n ecessariam ente m enos descuidadas em suas observações. Nesses dois séculos, passa-se acreditar no oposto. Em q ualquer setor d o c o n h e cim en to h u m a n o , verificam-se fenôm enos aná lo g o s a esse tipo de

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questão: d u r a n te certo te m p o algo é t o m a d o p o r verdadeiro, e, depois, aquilo que era to m a d o c o m o verdadeiro passa a ser to m a d o c o m o falso. Tem -se aí a te ntaç ão do relativismo, isto é, n unca se te m a possibilidade de d eterm in a r que algo é verd a­ deiro, mas som ente a possibilidade de to m a r algo co m o verdadeiro, co rren d o o risco de a m a n h ã isso ser to ta lm e n te falso. E ntão, p o r um lado, a ciência c o n te m p o râ n e a desenvolveu fortem ente esse senso da sua p ró p ria historicidade; p o r o u tr o lado, a ciência m ode rna parece esquecer esse sentido da sua própria historicidade e se ap re­ senta com a explicação última acerca da realidade. A maioria dos filósofos da ciência, n ã o dos cientistas, considera que a ciência c o n te m p o r â n e a é u m a espécie de es tá ­ gio final d o p en s a m e n to científico, c o m o se pensava que a filosofia seria esse e s tá ­ gio final. Isso é u m a mistificação com p leta d o c o n h e cim en to científico, que n ão co rresp o n d e à atividade científica. As c h a m a d a s ciências h u m a n a s ta m b é m foram vítimas, o u p r o d u to ra s , de um o u tr o tipo de mistificação, a saber: apresentarem -se nas suas esferas de a t u a ç ã o com o m esm o grau de “e x a tid ã o ” e “ ce rtez a” que se en c ontra no d o m ín io das ciências naturais. A ec o nom ia , por exem plo, é u m a fra u ­ de, n ã o no sentido m oral, m as no sentido cultural. O s econom istas possuem uma respeitabilidade social fora d o co m u m , n ã o há um a c onte cim ento que o c o rra para o qual um economista n ão é c h a m a d o a o pina r e, ta n to qu an to eu saiba, nunca foram capazes de acertar um a única previsão. De o n de vem esse incrível prestígio social dos econom istas senão d o fato de eles se a u to -a p re sen tarem c o m o cientistas? Eles dizem: “ nós sabem os, conhecem os os m e ca n ism o s” , ou seja, em ciência isso q u er dizer que conhecem as leis que d ete rm in a m que tais coisas ac o nte ce rã o assim e não de u m a o u tr a m aneira alternativa. Essa hegem onia cultural que a ciência passou a assum ir, hegem onia essa que era até e n tã o o c u p a d a pela religião, é incompatível com a ética se, prim eiro, o senso de historicidade d o p en s am e n to d esem b o c ar n u m relativismo e, segundo, se a perd a d o senso de historicidade d o con h e cim en to d e ­ se m boca r n u m a espécie de determ inism o a b s o lu to d o c o m p o rta m e n to h u m a n o , no a f a s ta m e n to co m p leto d a responsabilização. A gora, isso não é u m p ro b le m a da ciência p ro p ria m e n te dita, mas mais um problem a dos filósofos da ciência. O s cien­ tistas, pelo co n trá rio , estão fortem ente interessados em p ro blem as éticos.

Nas linhas finais de seu artigo “Sur une critique de la raison ju rid iq u e”, podemos ler: “devo acrescentar que existem ainda em Kant questões muito importantes que continuam a aguardar uma resposta definiti­ va. Mas, como já se disse, tenho por vezes o sentimento de que as mais importantes ainda não foram formuladas”. Quais seriam essas questões? Uma delas é a seguinte: K ant distingue claramente, ou pretende distinguir claramente, raz ão teórica e razão prática. A o m esm o te m p o , insiste p ro fu n d a m e n te na u nidade da razão, d izen do que n ã o são d u a s razões, mas que são dois m odos de utilização de u m a única razão. Ao lado disso, ele afirm a ta m b é m que os resultad os o b tidos através da raz ão teórica são de um certo tipo, e os resultados o b tid o s m edian te o uso prático da raz ão são de um o u tr o tipo c o m p letam e n te diferente. O uso da r a ­ zão teórica perm anece n o d o m ín io fenom enal, n o d o m ín io do estrito determ inis­ m o, e o uso prático da razão vai além d o d o m ín io fenom enal, vai p ara o tran sc en ­ dente, p o rq u e a existência de D eus e a im o rta lid a de da alm a passam a ser postula-

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dos racionais da raz ão prática. Essas teses k a n tia n a s a respeito da u nidad e da r a ­ zão, d o uso teórico e d o uso p rático da razão , p erm a nec em obscuras até hoje. Essa dificuldade ta m b é m vem de um p en s am e n to bem mais antigo , de Aristóteles por exem p lo, q u a n d o ele trata d o que ch a m a de silogismo prático, p o r con tra ste e c o m ­ p a ra ç ã o com o silogismo teórico. Esse é um p ro b lem a q u e K a n t herda e n ã o é ca­ paz de f o rm u lar de m aneira to ta lm e n te persuasiva. H á ain d a u m a segunda d ificuldade, esta de n a tu re z a pessoal. Refere-se ao conceito de natureza de K ant e o conceito de n atureza dos clássicos. Penso que K ant aceita em parte a tese h u m e a n a segu ndo a qual n ão se pode deduzir n e n h u m a p r o ­ p osiç ão n o rm a tiv a de proposiçõ es descritivas, ou seja, que o real é m o ra lm e n te neutro. C laro que essa concepção é co m p le ta m e n te incom patível c o m a co ncepção medieval. L em b ro -m e de um ex e m p lo de H u m e p r e o c u p a d o em m o s tra r q u e de proposições descritivas n ão se p odem deduzir proposições norm ativas, p o r ta n to , que n ão se p odem justificar as segundas pelas primeiras. Ele diz o seguinte: “ por qu e você faz tal coisa? P orqu e sou cristão e é um m a n d a m e n to divino q u e tal coisa deva ser feita. M a s p o r que você acata o m a n d a m e n to d iv in o ?” . O r a essa é um a perg u n ta provavelm ente ininteligível p ara um p e n s a d o r medieval. O conceito de natu re za , em K ant, é m u ito p r ó x im o do conceito h u m e a n o de natureza. E isso ta l­ vez seja um dos elementos de co m preensão da separação que K ant term ina por fazer entre raz ão teórica e ra z ã o prática. Essa separação , não o b sta n te as reiteradas afir­ mações da u nida de, n ão é a b s o lu ta m e n te com preensível. Essa é um a das perguntas que gostaria de ver a d e q u a d a m e n te fo rm u lad a s e respondidas.

Nesse mesmo artigo, “Sur une critique de la raison ju rid iq u e ”, o senhor afirtna o seguinte: “o pensamento crítico pretende-se uma ciência do ser verdadeiro”. Isso não significa im putar a Kant uma ontologia que o criticismo teria superado? T o d o o m u n d o aceita o critério aristotélico da verdade e n ão p ro p ria m e n te a d o u ­ trina aristotélica da verdade. Q u a n d o digo que as coisas são de um certo jeito, e as coisas são d o jeito que digo que elas são, en tã o estou dizendo a verdade. Q u a n d o digo que as coisas são de um ce rto jeito, e as coisas não são d o jeito que digo, e n ­ tã o estou d izendo o falso. O s filósofos medievais, em especial S. T o m á s de A quino, intro d u z ira m a idéia de a d e q u a ç ã o e de co n c o rd ân cia. Surgiu en tã o a d o u tr in a da ad e q u aç ão : u m a p ro p o siçã o é v erdadeira se ela c o rresp o n d e a o real, se ela é a d e ­ q u a d a a o m u n d o etc. K ant form ula um a crítica a essa concepção da d o u tr in a da ad e q u a ç ã o e diz: “ V am o s co nsiderar que o p en s am e n to é verdadeiro q u a n d o ele co rresp o n d e àquilo sobre o q u e está p e n s a n d o ” . C o m o é que se determ in a qu e ele corresponde? N ã o se tem n enhum p onto externo ao próprio pensamento que se possa o c u p a r p a r a d ete rm in a r essa correspondência. Aliás, é preciso lem brar que K ant é o único filósofo p r o p ria m e n te ateu, e m ­ bora fosse extrem am ente religioso. T a n to a fundam entação d o conhecimento q u an to a fundam entação da m oral prescindem da dem o nstração da existência de Deus. K ant é o prim eiro p en s ad o r do O cidente que foi ca paz de um a em p re ita d a desse tipo, pois tod o s os seus predecessores p ro c u r a r a m justificar o conh e cim en to h u m a n o e a realidade da aç ão h u m a n a m ediante algum recurso transcendente.

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M as, fechado esse parêntese, o que faz K ant repetir Descartes? M o s tra que n ão tem os n en h u m critério ex te rn o ao p r ó p rio p en s am e n to a o qual nós possam os recorrer p ara saber se o p en s am e n to é verdadeiro. Se o p e n s a m e n to é verdadeiro, e se n ós som os capazes de reconhecê-lo co m o verdadeiro, então é m ediante certas pro p rie d ad e s que nós reconhecem os n o p r ó p rio pensam ento. O único acesso que tem os à realidade é através d o p en s a m e n to da realidade. O que faz Descartes? In­ tr o d u z o critério da d úvida e diz o seguinte: “ Um p en s a m e n to é dubirável se exis­ tem razões p a r a to m á -lo co m o falso. C o n tu d o , se eu p ro v ar qu e existe um p ensa­ m ento, o u um conju n to de pensam entos, que n ão seja passível de dúvida, então não p osso to m á -lo co m o falso e, p o r definição, eu o to m o necessariam ente p o r v e rd a ­ d e i r o ” . Isso n ão é m u ito diferente, do p o n to de vista de estratégia, d o p ro ce d im en ­ to k a n tia n o que consiste em dizer o seguinte: se eu d e m o n stro que um pensam e n to é universal e necessário, en tã o eu te nh o tu d o aquilo que é razoável esp erar para considerá-lo co m o verdadeiro. P o rta n to , n ã o preciso recorrer a n e n h u m a p r o p rie ­ d ad e externa a o p ensam ento , senão a um a característica im anente a ele próprio. É som ente nesse sentido que se p ode dizer q u e o pro ce d im en to criticista k a n tia n o é um a ciência do ser verdadeiro, desde que o ser verdadeiro seja to m a d o nessa acepção. G osta ria ainda de fazer mais um parêntese: em razão das causas psicanalíticas das m inhas dificuldades em publicar meus textos, que carid o sam en te deixam o s sob silêncio, nunca corrijo os meus artigos. E ntão surpreende-m e que eu ten h a es­ crito isso, pelo m enos n ã o me lem bro de te r escrito.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­ cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade? V am os considerar um segm ento de te m p o um p o u c o m aior d o que a atualidade. T o d o s os grandes pensadores d o século X X estiveram d iretam ente envolvidos com o desenvolvimento do conhecimento científico, em particular com o desenvolvimento de alguns setores desse conhecim ento. Afinal, com as ciências naturais, nós tivemos nesse século d u as realizações espantosas d o p e n s a m e n to científico: p o r um lado, a relatividade e, p o r o u tr o lado, a física de partículas — a mecânica q uântica . A pri­ meira parece nos obrigar a alterar concepções tão fundam entais q u a n to as de espaço e tem po, e a segunda parece ta m b ém nos obrigar a alterar concepções m uito originá­ rias, co m o a de causalidade, p o r exem plo. M e x er com espaço e te m p o e m exer com a causalidade é m uita coisa. H á ta m b é m , n o final d o século X IX e com eço do X X , o dom ínio das ciências formais. K ant escreveu que no essencial a lógica estava a c a b a ­ d a, m as depois Frege inventa a teoria da quantificação. Ao m esm o te m p o , os m a ­ temáticos resolvem fazer a teoria dos conjuntos, que, segundo a expressão de Flilbert, é o paraíso: “ N in g u é m vai nos ex p u lsa r d o p ara íso c a n t o r i a n o ” . O que tem de paradisíaco no paraíso cantoriano? T u d o aquilo que a matemática até então conhecia p ode ser e x pre ssado pela te oria c a n to ria n a . Essa te oria unifica tu d o , pois não se conseguia unificar a álgebra c o m o cálculo e co m a teoria de núm eros. A teoria c a n to ria n a põe tu d o isso no seu devido lugar. Bom, se ela é ca p az de fazer coisas que n e n h u m a dessas ou tras teorias foi ca p az de fazer, ela é o paraíso. M as, co m o to d o o m u n d o sabe, no paraíso há um a serpente. A serpente d o paraíso c a n to r ia n o

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é a seguinte: a teoria cios con ju n to s é p ara d o x al. O s m atem áticos ficaram m uito aborrecid os, pois e n tra ra m n o paraíso e n ão conseguiram m a ta r a serpente |risos]. Esses três desenvolvim entos foram m uito im p o rta n tes para o desenvolvim en­ to do p ensam en to. M e sm o um filósofo co m o Hcidegger, que ap a re n ta ser distante dos desenvolvim entos form ais — da m a tem ática e da lógica — , m o stra um forte interesse pelo desenvolvim ento da lógica fregeana em alguns de seus escritos inédi­ tos (que ag o ra estão sendo publicados). Ele dava cursos inteiros sobre esse tema. Russell nem se fala, e m b o ra eu n ão o considere da m esm a estatura dc H eidegger e Wirtgenstein. Este último passou a sua vida inteira, ta n to no Tractatus q u a n to nas Investigações filosóficas , c h a m a n d o a atenção para a mistificação d o conh e cim en ­ to científico que acontece no nosso tem po. N o Tractatus a idéia era bastante clara: só a ciência é ca p az de nos fazer co m p re en d e r tais e tais coisas. M as, p a ra as coisas realm ente im po rta n tes, a ciência é inútil. Já nas Investigações ele executa um a o p e ­ raç ão co m parável às das ciências físicas e formais. O seu projeto original era escre­ ver, na segunda parte das Investigações filosóficas , sobre o fun cio n a m en to da m a ­ tem ática, coisa que nunca executou. O p roblem a geral do nosso século foi. pelo m eno s até recentem ente, co m o descrevi. Ao m esm o te m p o , no e n ta n to , é visível que a filosofia recua de m aneira defensiva em relação à ciência. H o je em dia, é m u ito difícil um filósofo ter alg um a audiência ao refutar, m ed iante arg u m e n to s filosóficos, a rg u m e n to s científicos. O ô nus da prova nunca é do cientista, é sempre do filósofo. Isso significa que, do p o n to de vista social e da credibilidade, o c a m p o retórico está c o m p letam e n te alterado. E o cientista quem o c u p a o ce n tro desse c a m p o e tem a presunção da verdade. E, do p o n to de vista cultural, essa situação é p ro fu n d a m e n te em p o b re ce d o ra , pois a filo­ sofia tem de se defender e tornar-se respeitável peran te a ciência, nem sem pre com resultados favoráveis. Hoje, nos Estados Unidos, existe u m a coisa c h a m a d a neurofilosofia, p a tro c i­ nad a pelo casal C h u rc h la n d , cuja em presa mais bem -sucedida é a neurociência. Eu fui c o n te m p o r â n e o de um o u tr o em p re en d im en to , o da inteligência artificial. Esse em p re e n d im e n to com eçou co m o projeto de tr a d u ç ã o a u to m á tic a , derivou p ara a inteligência artificial e, agora, estuda a neurociência. A tradução autom ática começou em 1960, p atro c in ad a pelos g overnos n o rte-am erica no e russo, e queria en c o n trar p ro g ra m a s de c o m p u ta ç ã o que fizessem a tr a d u ç ã o a u to m á tic a de um a língua para o u tra. Rios de d inhe iro fo ram investidos, m uitos pesquisadores p as saram mais de dez anos tr a b a lh a n d o , e o desastre foi com pleto. Depois disso, ninguém mais falou em tr a d u ç ã o au to m á tic a , to d o o m u n d o a b a n d o n o u a ideia de traduz ir G uim arães Rosa p ara o russo, ou Shakespeare p ara o chinês, com um p ro g ra m a de c o m p u ta ­ d o r |risos|. C om eçou-se en tã o a consid erar o projeto da inteligência artificial: que um c o m p u ta d o r , ou seja. um a m á q u in a incrivelmente lim itada, que usa um frag­ m e n to lógico minúsculo e que faz um a p orcariazinha de cálculo, pudesse o p e r a r da mesm a m a n eira que o e n te n d im e n to h u m a n o . Parua-se e n tã o da seguinte c o n s ­ tatação: ora, já que pod em os sim ular esse c o m p o rta m e n to , q uem sabe nós p o ssa­ m os sim ular ta m b ém tod o s os c o m p o rta m e n to s h u m a n o s inteligentes. Foram rios de dinheiro, m uitos pesquisadores envolvidos, e, até agora, nad a . E ntão, o projeto atual é a neurociência, isto é, e n c o n tr a r a base neurológica dos c h a m a d o s coinpor-

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ta m en to s inteligentes. Q u e isso seja um p ro b le m a de pesquisa notável, de biologia, de n e u rob iologia etc., n ã o há dúvida. O p ro b le m a são os resultados filosóficos que são retirados a t a b a lh o a d a m e n te disso. Essa neurofilosofia é o besteirol c o n t e m p o ­ râneo c o m o qual nós tem os de conviver na relação entre filosofia e ciência hoje.

Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda­ de. Como o senhor se posiciona em relação a esse debate? De fato sou u m a m a d o r em relação à arte, n u m d u p lo sentido: prim eiro no sentido etim ológico da palav ra — eu go sto de arte; m as ta m b é m no sentido co rriq u eiro da palavra — n ão sou um estudioso de estética. Leio de um a maneira amadorística livros sobre sociologia, história e filosofia da arte. C u rio sa m e nte, n ão ac ho qu e essa seja a p ergunta mais im p o rta n te que um filósofo deve f o rm u lar hoje, a saber: a p erg u n ­ ta sobre o fim da arte. G o sto m u ito de um a u t o r n o rte -a m e ric a n o c h a m a d o A rth u r D a n to , que passou a vida inteira q u e re n d o ser artista, não obteve sucesso e ac a b o u to rn a n d o -se filósofo. A gora, c o m setenta e p o u c o s anos, é crítico de artes plásti­ cas. A p erg u n ta de D a n to que me fascina é: quais sãos os critérios p a r a se distin­ guir algum a coisa que é um a o b ra de arre de o u tra coisa que n ão é u m a ob ra de arte indepen dentem en te, ou m elhor, antes de nos p e rg u n ta rm o s se é u m a boa ou m á o bra de arte? Por exemplo: um c u r a d o r de m useu pega a lata de sopa C a m pb ell’s de Andv W a r h o l e a c o m p ra p o r não sei q u a n t o p ara o museu. Pode-se ir ao supe r­ m e rc ado e en c o n trar um a latinha igual àquela. Por que a lata d o W arhol é um a obra de arte e a d o s u p e rm e rcad o n ã o é? D o m esm o m o d o , pode-se c o m p a r a r o vaso sa n itá rio de D u c h a m p e um ban h e iro público, que n ã o é u m a o b ra de arte. Esta é u m a perg u n ta filosoficamente fascinante, e, d o p o u c o que co nheço, a m elhor res­ posta é a d o p ró p rio D a n to , que consiste em dizer o seguinte: é impossível dissociar o conceito de o b ra de arte das intenções h u m a n a s. “ Ser u m a o b ra de a r t e ” não é um p redicado que a coisa tenha nela m esm a, in d e pend entem ente d a relação que ela tenha com os seres h u m a n o s. Pelo co n trá rio , ela d epende das intenções daqueles que as fazem, isto é, dos artistas.

Qual é a diferença entre filosofia e literatura? A cho que a filosofia ain d a preserva o seu ideal grego a o p r o c u r a r c o m p re en d e r o ser e n q u a n to ser, a qu ilo que existe na m edid a em que existe. O essencial da litera­ tu ra n ã o é a c o m p re en sã o direta d aqu ilo que existe na m edida em que existe, mas talvez o c o ntrá rio: ela p ro cu ra co m p re e n d e r aquilo que existe m e diante com p reensões alternativas, e p o r meio da co n s tru ç ão dessas alternativas. A literatura é um in stru m e n to insubstituível de co m p re e n sã o da realidade justam ente p o r n ão p r o ­ c u ra r entendê-la diretam ente, mas co m o um a alternativa dentre o u tr a s igualm ente possíveis. U san d o um vo cab u lá rio leibniziano, eu diria que a literatura é um e x e r­ cício p e rm a n en te de co n s tru ç ã o de m u n d o s possíveis. Nesse sentido, ela é in sub s­ tituível p ara a filosofia. A segunda resposta que eu d aria p a r a distinguir filosofia de literatura t a m ­ bém é igualm ente clássica: desde Aristóteles a gente sabe que n ã o se p ode descre­ ver e dizer um indivíduo na sua individualidade. S. T o m á s vai dizer que o indiví­

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d u o é inefável. Isso não tem n a d a de místico, é um a tese que se segue apenas conceitualm ente: um indivíduo, e n q u a n to indivíduo, nunca pod erá ser expressado a d e­ q u a d a m e n te em palavras, ta n to em term os conceituais q u a n t o filosóficos. Eu p en ­ so que a literatura é justam ente um in stru m e nto que nós temos de ap re sen ta r um a situação individual na sua individualidade. Penso, p o r exem p lo, que um rom ance, u m a tragédia, são os únicos in strum e nto s h u m a n o s capazes de ap re sen ta r o indiví­ d u o co m o tal. Isto é um a diferença fu n d am e n tal entre a filosofia e a literatura.

É hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe­ nômeno essencialmente nacional, e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como o senhor vê tal diagnóstico ? Na sua visão, a primazia de que parecem desfrutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias ? U m a coisa é respon der a essa pergunta em princípio, o u tra coisa é respondê-la le­ v an d o em co n sideraç ão a situação con creta na qual a p erg u n ta é pertinente. Pri­ meiro: ninguém recusaria a idéia de u m tribunal internacional realm ente neu tro. Segundo: ninguém recusaria a idéia de um a força internacional ca paz de d im in uir conflitos, desde qu e essa força internacional fosse realm ente neutra. Dessa m a n ei­ ra, nem o caso do tribunal nem o caso militar p o d eria m expressar interesses e predileções de d eterm in a d o s g rupos, sejam étnicos, econôm icos, ou o q ue for. O r a , do p o n to de vista teórico, a idéia de F .sta d o -\'a çã o está em crise, e é necessário que os intelectuais se p o n h a m a p en s ar nas alternativas possíveis a essa idéia. N o e n tan to , esta crise d o E sta d o -N a ção está a c o m p a n h a d a p o r u m a crise moral: n ão existe mais nen h u m c o n ju n to de regras de c o m p o rta m e n to , n e n h u m c o n ju n to de prescrições de c o n d u ta que seja universalm ente aceito. Pelo c o n trá rio , as pessoas ac h a m que não existe tal conjunto, que ele não p ode existir e que é ótim o que n ão exista. Dei­ xem eu c o n ta r um a história: nesse m o m e n to , na CPI d o mais fam oso hospital de P orto Alegre, está se av e riguando o caso de u m a senhora de 88 anos que tem um c o n ju n to de deficiências cardio-respiratórias. Ela teve um a esquem ia cerebral p r o ­ f u nda que atingiu o seu tron co, foi levada à UTI e está ligada a aparelho s. Depois de um d eterm in ado tem po, pouco a p o u c o foram restabelecidas as suas funções n o r ­ mais, particu la rm en te as respiratórias. Estabelecido um certo p a ta m a r de fun cio ­ n a m e n to respiratório, ela foi colocada n u m q u arto . N o dia seguinte, im e d ia ta m e n ­ te ela teve um a p a ra d a c a rd io-respira tória, e voltou a ser ligada ao s aparelhos. O cardiologista en tão p erg unta para a filha dessa mulher: “ V am os tr a ta r agora da ressu rreição?” . A filha diz: “ C o m o assim ?” . E o médico: “ Q u eria saber, no caso de ela sofrer um n o v o episódio de p a ra d a ca rdio-respira tório, nós a rea n im am o s ou n ã o ? ” . A perg u n ta é simples: um a pessoa ligada a ap a relh o s tem a perd a de sua c a p ac ida de de consciência; se essa pessoa tem um a p a ra d a cardio -respiratória, ela deve o u n ão ser reanim ada? V am os voltar então à q u estão d o fim d o E sta d o -N a ção . A parentem ente n ão existe resposta, n ã o se aceita esse tipo de questão. Algumas pessoas ac h am que n ão

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há o que fazer. Já o u tra s pessoas acham que em circunstância n e n h u m a , nesse caso, pode-se om itir socorro. A cho qu e a reflexão política c o n te m p o râ n e a , ain d a que n ã o possa ser c o n fu n d id a co m u m a análise ética, n ão pode ser dela separad a. Isso de um p o n to de vista ab s tra to . D e um p o n to de vista conc reto, histórico, eu ignoro c o m o essas coisas se passam , e m b o ra u m a p arte da im prensa considere q u e a c o n s­ tituição dessas instituições transnacionais responde, na verdade, aos interesses norteam erica no s e da C o m u n id a d e E uropéia. N o e n ta n to , antes de p en s arm o s em E sta­ d o tran sn a cio n al, devem os p ensar no E stado N acio n al. Um país que jamais c o n h e ­ ceu o apogeu pode e n tra r nu m a sociedade sem E sta d o -N a ç ã o , sem jam ais te r sido um E sta d o -N a ção ?

Em seu artigo “Sur une critique de la raison ju rid iq u e”, o senhor escre­ veu: “todos os deveres, enquanto tais, reduzem-se aos deveres éticos. Isto quer dizer que os imperativos juridico-politicos são formalmente h ip o ­ téticos. Se nós supomos sua condição (quer dizer, a lei moral) como dada, então sua justificação é puramente analítica". Se interpreto bem, isto quer dizer que o “solipsismo” da prática kantiana não pode fu n ­ dar o intersubjetivismo necessário do direito e da política. Como pen­ sar então as relações entre direito e moral? Uma moral fundada intersubjetivamente não poderia então estabelecer os laços com as exigên­ cias próprias do direito e da política? N ã o te n h o c o n d iç ã o se quer de esb o ç a r u m a respo sta a essa p e r g u n ta , m as vou em p re g ar o m esm o ardil que já em preguei an terio rm en te, o da co n tra p e rg u n ta . O que significa pensar u m a m oral fundada intersubjetivam ente? P odem os p ensar que um a m oral só é f u n d a d a intersubjetivam ente se to d o s os agentes concernidos p o r essa m oral estiverem de ac o rd o com as regras que a determ inam . Nesse sentido, por exem p lo, um a m oral mafiosa é um a m o ral intersubjetivam ente fu n d ad a . A p a re n ­ tem ente to d o s os m e m b ro s d a família estão de a c o r d o com as regras. A gora, isso parece ser um a conseqüência indesejável p a r a um a m o ral intersubjetivam ente fu n ­ d a d a , p o rq u e as suas regras n ã o apenas têm de ser em piricam ente aceitas pelos in ­ divíduos concernidos, co m o têm de ser racionais e necessariam ente reconhecidas. Isso significa que a sua f u n d a m e n ta ç ã o em nad a depen de d o seu reconhecim en to intersubjetivo, pois ela p ode ser p rocedural. F.u aceitaria, de m aneira arb itrá ria , a co n c ep ç ão de m oral de H a b e rm a s , se ele m e apresentasse um te o re m a segundo o qual a decisão procedural excluísse o resto.

Q ual é boje a implicação moral da idéia de felicidade? W ittgenstein m o ra v a no m esm o prédio em que m o rav a Russell. Ele tinha 19 an o s e Russell tinha quarenta e tantos. Certa vez Wittgenstein foi. p o r volta da meia-noite, à casa de Russell, e este lhe p ergu ntou: “ N o que você está p en san d o , Wittgenstein? N a lógica, ou em seus p ec ad o s ?” . W ittgenstein respondeu: “ N o s d ois" [risos]. M a s o q u e eu q u ero c o n ta r sobre a felicidade é o seguinte: certo dia, Russell p erg u n to u a Wittgenstein: "V ocê q u er ser perfeito?” . Ele respondeu: “ C la r o " . C o m o se fosse óbvio para q u a lq u e r ser h u m a n o asp ira r à perfeição! A n o çã o de felicidade m o d e r ­ na tem um c o n teú d o relativamente preciso, que n ã o tem mais n a d a a ver com o c o n ­

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te úd o p e n s ad o pelos antigos. T e n h o a im pressão dc que a cu ltu ra c o n te m p o r â n e a é ex tre m a m e n te platônica, p o r mais que isso possa parecer co n tra d itó rio . Platão, co n tra Aristóteles, afirm ava um dualism o irredutível do ser hu m a n o : som os c o m ­ po stos de du as coisas e a nossa m elhor p a r te é aqu ilo que veio depois a ser c h a m a ­ do de alm a. D evemos usar o c o rp o d en tro de limites bem precisos, devem os ter u m a disciplina do c o r p o etc., s u b o r d in a n d o to d a s as suas atividades e desejos às ativi­ dades e desejos superiores da alm a. O que é im p o rta n te em Platão n ão é essa s u ­ b o rd in a ç ã o , mas a s e p araç ão de du as atividades, de dois d o m ínios com p letam e n te in dependentes. A cho que a cultu ra c o n te m p o râ n e a é platônica no sentido de t a m ­ bém possuir d o m ínios c o m p letam e n te diferentes de atividades. De um lado, o d o ­ mínio de atividades dc um d e te rm in a d o tipo, e, de o u tr o lado, o d o m ín io de ativi­ dades de um o u tr o tipo c o m p letam e n te diferente, que, em Platão, seriam conside­ radas c o m o atividades inferiores, atividades corporais. E difícil, p o r exem plo, di­ zer de m a n eira m in im am en te persuasiva que é m e lh o r escutar Bach d o que escutar “ rock p a u le ir a ” . A resposta cultural é: “ C a d a um na su a ". Para a cultura c o n te m ­ p o râ n e a , não há n e n h u m a raz ão objetiva para se afirm ar que Bach é m e lh o r do que “ rock p a u le ir a ” , pois c a d a um escolhe a p arte q u e ac h a mais a d e q u a d a p a r a si mesmo. A cultura c o n te m p o r â n e a é platônica p o r q u e não junta mais as coisas. A felicidade na cultura c o n te m p o râ n e a não é mais co m o os antigos a to m a v am : co m o a realização perfeita daq u ilo de que o ser h u m a n o é capaz. A felicidade, hoje, é socialm ente apre sen ta d a co m o co n su m o . Ser feliz é p o d er fazer coisas, em p a r tic u ­ lar ir a Vliami um a vez p o r a n o p ara c o m p r a r quinqu ilh arias. H á um a moça em São Paulo, m u ito m in h a am iga, que leva adolescentes da alta burguesia paulistana p ara fazer um curso de inglês em C a m b rid g e e de francês na França. A primeira coisa q u e os adolescentes fazem q u a n d o ch egam a Paris é p e rg u n ta r o n de fica o M c D o n a ld ’s e o nde p odem c o m p ra r blusões de m arca. Isso exprim e n o que consis­ te a as piração à felicidade dos brasileiros da nossa classe social, n ã o a dos brasilei­ ros em geral. Dos brasileiros em geral, a felicidade consiste nas coisas mais f u n d a ­ m entais, c o m o co m er, do rm ir, tra b a lh o , saúde, e d u c aç ão etc.

Como o senhor caracterizaria a sua relação com a religião e a fé? N u m a palavra: te n h o respeito pela religião antiga tal co m o ela se expressava até os a n o s 1950. F. te nho respeito pela fé, desde que n ão seja supersticiosa. N ã o sou re­ ligioso e n ã o te nho fé. M a s q u e r o fazer essa restrição pela seguinte razão: o cristia­ nism o teve um a função cultural fu ndam e ntal no O cidente. Eu tive u m a form a çã o católica, estudei em colégio cató lico e lem b ro-m e d a f o rm a ç ã o q u e os jesuítas e dom inicanos tinham naquela época. A religião hoje se expressa essencialmente a t ra ­ vés d o padre M arcelo, esse tipo de X u x a católico que n ão se diferencia, no essencial, d o bispo Edir M a c e d o . O s seus pro ce d im en to s são do m e sm o m o d o execráveis. Q u a n t o à fé, lançaria essa m esm a reserva. As religiões atu a lm e n te apresentam -se essencialmente c o m o m e rc ad oria , e a d im ensão especulativa das grand es religiões da palavra, das religiões m onoreístas — o islamismo e o cristianism o — , p erde ra m justam ente aquilo que as distinguia: a relação com a palavra, com a justificação, co m a a r g u m e n ta ç ã o , com a exegese etc.

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Como o senhor se situa em relação aos problemas de uma “mudança de paradigma” da filosofia, de uma filosofia “pós-metafísica” calcada na linguagem? É necessário que a gente se en ten d a q u a n to à expressão “ pós-m etafísica” . M e ta fí­ sica, na sua acepção mais precisa, significa aquilo que K ant eliminou na “ tarefa trans­ c e n d e n ta l” , isto é, algo que co m o ciência específica é impossível. Dessa form a, a filosofia k an tian a é essencialmente pós-metafísica. M a s há dois problem as aqui: pri­ m eiro, resta saber se os a rg u m e n to s k a n tian o s são p rob antes; segundo, se o fato de não fazerm os mais ciência metafísica dep ende de p rovas que nos foram ap re se n ta ­ das e pelas qu ais fom os persuadidos, ou se depende de o u tro s fatores extra-argum entativos, extra-racionais, o u seja, fatores c o n tra tu ais, culturais etc. A nossa cul­ tu ra to d a é antim etafísica, n ã o é só a filosofia que é pós-metafísica. Essa é u m a prim eira obse rva çã o que devem os fazer. A segun da o b se rv a çã o diz respeito a o fato de a filosofia, n ã o o b s ta n te ser m a joritaria m ente pós-metafísica, c o n tin u a r p r atican d o tem as metafísicos e se inte­ ressar fortemente p o r tem as metafísicos com o, p or exem plo, a liberdade — um tema que é d o m in a n te em vastos setores da investigação filosófica. N ã o é à toa que há um ressurgim ento m uito grand e das c h a m a d a s teologias racionais. A terceira o bse rv a çã o qu e faço diz respeito a u m a filosofia cujo p o n to central é a linguagem. A linguagem só tem interesse p ara a filosofia na m edida cm que: 1) nós to m a m o s a linguagem c o m o e x p re ssão do p e n s a m e n to , c o m o e x p re ssão da razão; 2) ap e nas a to m a m o s naqueles aspectos que são expressão do p en s am e n to e do h u m a n o ; 3) nós a consideram os u m a expressão de mais fácil acesso à c o m p re e n ­ são do que o p ró p rio p e nsam e nto, do que a p rópria razão, isto é, que há ca ra c te ­ rísticas d a linguagem que não são expressão d o p e n s a m e n to , ou que são específi­ cas à língua. E studar a fonética, a sintaxe, a lingüística, n ã o tem n e n h u m a relevân­ cia filosófica. A cho que o m aior filósofo da linguagem foi Aristóteles, ou Platão (isso depend e m u ito das preferências), e aqu ilo que no nosso século passou a ser c h a m a ­ d o de filosofia da linguagem , no que havia de filosoficamente fecundo, n ão tinha n e n h u m laço necessário co m a linguagem. E, n aquilo em que havia necessariam en­ te um laço com a linguagem, era filosoficamente escasso. Recorrer ao O E D (Oxford English Dictionary) p a r a resolver pro b lem as de filosofia é um d o s piores p ro ce d i­ m entos que eu já vi. Por o u tr o lado, d o p o n to de vista m etodológico, o recurso à linguagem é, co m o q u a lq u e r o u tr o , bem utilizado, de g ran d e valia.

Como o senhor vê hoje a filosofia analítica? C o m certeza já tem missa de sétimo dia, quiçá missa de um a n o [risosl- D epende d o que a gente entende p o r filosofia analítica, já qu e ela é um saco de vários gatos. Um dos gatos, um dos progenitores dessa prole, foi o neopositivism o lógico — um a peça de m useu im p o rta n te, pois ap re n d e m o s m u ito com os erros alheios. N o caso d o neopositivism o, sucedeu-se a filosofia da linguagem o rd in ária , que é um a filo­ sofia m u ito ord inária. N o s anos 4 0 , W ittgenstein disse u m a frase de e xtrem a cruel­ dade: “ A filosofia da linguagem o rd in ária n ã o é filosofia, q u a n d o é filosofia é m á filosofia” . T a m b é m a filosofia da linguagem ord in ária n ã o pro d u ziu n e n h u m re­ sultado filosoficamente expressivo, n ã o pro d u ziu nen h u m esclarecim ento im por-

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tanre, sequer um a refo rm u laç ão de questões filosóficas. O grande legado da filoso­ fia analítica à filosofia c o n te m p o râ n e a foi o restabelecim ento da clareza, da d istin­ ção e da a rg u m e n ta ç ã o em filosofia. \ l a s isso n ão é particular à filosofia analítica. Se se c o m p a r a P latão a Aristóteles, P latão foi um dos clássicos da literatura grega, um dos pro sad o res que a Grécia jam ais pro d u ziu n ovam ente, e n q u a n to Aristóteles escreve m u ito mal. M a s são dois estilos de d em o n stra ç ã o c o m p letam e n te diferen­ tes, e não há razão a priori de privilegiar um em relação ao ou tro . H á , no e ntanto , u m a diferença essencial que me faz preferir o estilo aristotélico ao estilo platônico: a diferença é que se pode ensinar o estilo aristotélico, e n q u a n to que o estilo p la tô ­ nico depende de talento. Poesia sem talento é um desastre, já a prosa sem talento n ã o é tã o desastrosa assim. Pode-se descrever, m e sm o sem talento, o estado dessa sala, mas fazer poesia do estado dessa sala requer um talento e x tra o rd in á rio . En­ tão, o legado da filosofia analítica é esse (e não defendo que seja o melhor): é mais fácil ensinar filosofia m ediante os recursos da clareza, da distinção e da a r g u m e n ­ tação, d o qu e ensinar a filosofia sob o m o d o alusivo, em que o m odelo f u n d a m e n ­ tal é a poesia, a alusão. A gora, q u a n d o a poesia filosófica e a alusão filosófica se e n c o n tra m , saem o b ra s a b s o lu ta m e n te ex tra o rd in árias. M a s é de c h o r a r q u a n d o a gente lê alguns textos em que um sujeito quer fazer poesia filosófica e n ã o sai d a ­ quelas b analidades assustadoras. Espero que se reservem lugares p ara os grandes p ro sad o res da filosofia. O senhor utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do futuro da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia? V ou r esp o n d e r essa p ergunta em du as etapas: a prim eira e ta p a diz respeito a o que eu gostaria que fosse a sociedade h u m a n a . Nesse caso, eu m e lim itaria a um c o n ­ junto de lugares-com uns atrozes. E ntão, passem os à segunda etapa. De um lado, c o rrem o s o risco de perder alguns valores universalm ente respeitados e f u n d a m e n ­ tais: liberdade, igualdade, fra tern id a d e etc. De o u tr o lado, se preservássem os as id entid ades culturais, isto é, se a diversidade de m anifestações h u m a n a s n ã o se apagasse, n ão haveria M c D o n a ld ’s p o r to d a parte. C o s tu m o dizer que só conheço três coisas que são realm ente universais: a m atem ática, a C oca-C ola e o jeans. N a verdade, essas questões são desejos utópicos, p o rq u e, e m b o ra n ão seja um a pessoa qualificada p ara justificar as percepções que te nho dos en c a m in h a m e n to s da socie­ d ad e e da cultura c o n te m p o r â n e a , o meu sentim ento acerca disso é mais pessimista do que otim ista. Penso que os valores universais não serão preservados, pelo m e­ nos num praz o que eu possa perceber — ou que meus filhos possam perceber. A homogeneização cultural, a banalização cultural, parecem-m e tam bém um fenômeno irreversível. Essas du as perdas são ab s o lu ta m en te lastimáveis. E n tã o eu te nho um a utop ia positiva e u m a desconfiança negativa.

Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos co­ mo riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em larga escala e alienação cultural em massa. Como o senhor vê tais problemas? N ã o te n h o um a o p in iã o pró p ria e clara acerca desses problem as. Vejo, de um lado, u m a ideologia pseudo-científica d izen do que nós, seres h u m a n o s, e a ciência em

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p articu lar, sem pre en c o n tra re m o s as soluções para os p roblem as que criam os. Isso é um a afirm a çã o c o m p letam e n te in fu n d ad a e não verdadeira. Se fosse verdadeira, já teríam os algu m a prova de que isso seja plausível ou aceitável. Por conseguinte, é perfeitam ente possível que de fato estejam os c ria n d o p roblem as p ara os quais as gerações futuras n ão te rã o respostas a d e q u ad a s e n ã o d isp o rão de recursos a d e q u a ­ dos p ara resolvê-los. Se é provável? N ã o sei. De o u tr o lado, to d a s essas c a la m id a ­ des que são provenientes das ações h u m a n a s, as calam idad es ecológicas, parecem ap re sen ta r de m aneira bem simples o seguinte p ro blem a de filosofia, q u e me parece aceitável, e que nasce da seguinte suposição: nem nós, nem os nossos filhos seremos afetados diretamente e de m aneira irreversível p or essas calam idades ecológicas, mas as gerações d o futuro, que ain d a n ão existem, serão afetadas. A q u es tão filosófica interessante é: em prim eiro lugar, co m o é que os interesses de seres que n ã o existem devem d ete rm in a r a c o n d u ta de seres qu e existem? Em se g undo lugar, sobre que f u n d am e n to s nós atrib u ím o s direitos a seres inexistentes? N ã o estou dizendo que n ão se deve fazer, mas quero entender o porquê de fazermos isso, por que nós achamos que devemos fazer isso? C o m o é que seres inexistentes p o d em ser sujeitos de direito?

Quais são os seus projetos atuais e futuros? D epois de a m a n h ã , vou para Paris. H á dois anos e meio ab riu um a vaga de profes­ sor titular aq ui no D e p a rta m e n to de Filosofia. A posentou-se o pro fessor Ernildo Stein e, co m o sou o professor mais velho, há um a pressão am istosa dos mais jo­ vens p ara que eu faça o concurso. Esse processo exige a ap re sen ta çã o de u m a tese, en tã o eu preciso de seis meses p ara te rm in a r alg um a coisa que tenha pelo m enos co m eço e meio — pois o que escrevi até ag o ra só tem com eço, n ã o tem nem m e s­ m o meio. P retendo, nesses seis meses, escrever, te rm in a r e alin h av a r n o ta s sob a f o rm a de um livro sobre a n o çã o de te m p o e ação. T e n h o c o m o p o n to de partid a a te m p o raliz aç ão dos princípios lógicos de Aristóteles e u m a análise d o que ach o ser o mais perfeito co m en tá rio , feito p o r Boécio, do cap ítulo IX d o Tratado da inter­ pretação. Ele tem dois co m en tá rio s, sendo que um deles é genial. Depois, vou e x a ­ m in a r o que significa o conceito a g o stinia no e boeciano de eternidade. T erm inarei mais ou m enos na direção em qu e se en c o n tra a tônica da tese, isto é, a distinção de dois m o d o s diferentes da te m poralida de: o m o d o prim itivo da te m p o ralid a d e, a te m p o ra lid a d e h u m a n a ou da a ç ã o h u m a n a , e a te m p o ra lid a d e física.

Vai ter primazia da prática? N ã o há prim azia de n a d a sobre n a d a [risos]. Vai te r prim azia d o conceito prático de te m p o sobre o conceito físico. T e n h o ain d a dois projetos a longo prazo: um li­ vro que comecei a fazer sobre algum as estru tu ra s de a r g u m e n to em filosofia. Vejo u m a certa hom ologia entre a m aneira c o m o Aristóteles “ d e m o n s tr a ” o princípio de n ã o -c o n tra d iç ão e o princípio d o terceiro excluído no livro IV da Metafísica ; a m aneira c o m o Descartes d e m o n stra que a pro p o siçã o “ eu sou, eu e x isto ” é neces­ sariam ente verdadeira q u a n d o a penso ou a afirmo; e a “ D ed u ç ão tr a n sc e n d e n ta l” , so b retu d o , a necessária aplicabilidade das categorias aos objetos da experiência em Kant. A idéia é a seguinte: n ã o existe d e d u ç ã o estrita em n e n h u m dos casos, e nem p o d e haver. Descartes e Aristóteles dizem isso expressam ente.

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C o n v ersas com F ilósofos B rasileiros

O u tr a coisa que prete n d o fazer é um artigo sobre a c o m p a r a ç ã o entre a filo­ sofia prática de Aristóteles e a filosofia prática de Kant. O artigo se c h a m a “ Uma defesa aristotélica de K an t" . T em um título d eliberadam ente p ro v o c a d o r para d i­ zer que a filosofia prática de K ant não é algo para se jogar fora.

Principais publicações: 1982 1999

“ Sobre o positivismo de W ittge nstein” , Manuscrito, vol. 5, ti" 1; "S aber, fazer e tem po: um a n o ta sobre A ristóteles” , in Edgar da R. M a r ­ ques et. al. (orgs.i, Verdade , conhecimento e ação: ensaios em homenagem a Guido Antônio de Almeida e Raul Landim Filho (São Paulo: I.oyola).

Bibliografia de referência da entrevista: A q uino, T. de. Suma teológica, Livraria Sulina. Aristóteles. Metafísica , M a d ri: Editorial Gredos. ___________ . Categorias, Lisboa: G uim arães. C a rn a p , R. Coleção O s Pensadores, Abril C ultural. D escartes, R. Meditações, coleção O s Pensadores, Abril C ultural. D a n to , A. After the end o f art, Princeton: Princeton University. Frege, G. “ Sobre a justificação científica de um a c o n c eito g ra fia” , coleção O s Pen­ sadores, Abril C ultural. H a b e rm a s, J. Consciência moral e agir comunicativo, T e m p o Brasileiro. H ilbert, I. Principles o f mathematical logic, N e w York: Interscience Publishers. K ant, I. Crítica da razão pura , coleção O s Pensadores, Abril C ultural. Leibniz, G. W. C oleção O s Pensadores, Abril Cultural. Russell, B. Coleção O s Pensadores, Abril Cultural. W'ittgenstein, L. Tractatus logico-philosophicus, Edusp. ___________ . Investigações filosóficas, coleção O s P ensadores, Abril C ultural.

B a lth a za r B arbosa Filho

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ÍN D IC E O N O M Á S T I C O

A bram o, Lélia, 308 A dler, M ax , 375 A d orno, T h eo d o r W ., 60, 156, 162-3, 173, 1 9 6 ,2 3 9 , 3 2 5 ,3 5 8 - 9 ,3 8 1 A lm eida P rad o , Décio de, 62, A lm eida, G uid o A n tônio de. 2 2 7 ,2 3 4 , 2 5 8 -6 0 ,4 1 2 -3 , 4 15 A lm eida, Jo sé A m érico de, 22 A lthusser, l.ouis, 97, 120, 152, 2 2 5 ,3 1 4 , 3 4 1 ,3 8 0 A m oroso Lim a, Alceu (T ristão de A thayde), 27 6 , 338 A nax ág o ras, 144 A n d rad e, M á rio de, “4-5, 149 A ndrade, O sw ald de, 91-2, 338 A ndrade, R u d á de, 92 A nscom be, G ertrude E lisabeth, 267 A rantes, A ldo, 2 5 4 -5 , 340 A rantes, O tília Fiori, 152, 361-2 A rantes, Paulo E d u ard o , 99, 123, 126-7, 142, 150, 153, 157, 186, 1 9 9 -2 0 0 ,2 0 2 -4 , 2 0 7 - 8 ,2 1 4 - 6 ,2 2 5 ,3 0 3 , 3 3 7 ,3 7 7 ,3 8 1 , A rendt, H an n ah , 158. 282, 298 A rida, Pérsio, 2 17 A ristóteles, 2 6 , 2 9 , 36, 4 1, 43, 52, 57, 66, 7 3 , 79, 83, 96, 120, 129-30, 173, 187, 2 1 5 , 22 3 , 23 0 , 24 6, 255, 2 59, 26 8 , 28 4 , 307, 337, 3 4 2 ,3 5 3 , 36 0 , 381, 384, 4 1 2 ,4 1 4 -5 ,4 1 7 , 420, 423-6 A m o u , René, 29 A ron, R ay m o n d , 106 Bachelard, G asto n , 4 6, 96, 109, 323 B achelard, S uzanne, 94 B acon, Francis, 226 B akhtin, M ik h ail, 180

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B arata, Rui, 74 B arbosa Filho, B althazar, 234, 2 3 7 , 2 5 9 -6 0 ,4 0 1 B arbosa, R icardo, 56 B arbuy, H aro ld o , 100 B arreto. T obias, 22, 280, 355, 381 B audelaire, C harles, 72, 325 B eauvoir, Sim one de, 196 Benjam in, C ésar, 183 B enjamin, W alter, 59-60, 84, 155-6, 162, 180-1, 185-6, 188, 190, 195-6, 325-6 Bergson, H enri, 37, 96, 206, 2 0 8 - 1 0 ,2 1 4 ,2 1 8 ,2 2 4 Berlinguer, Enrico, 379 Bernstein, E douard, 158, 160, 3 9 5 , 397 B erquó, Elza, 96 Biard, François-A uguste. 257 Bobbio, N o rb e rto , 196 Boécio, A. M . T. Severino, 426 B onaparte. N ap o leäo , 114, 1 4 6 ,4 1 2 B ornheim , G erd, 45, 186, 4 0 1 , 413 Bovd, W illiam , 134 Bradley, 257 Braga, Rubem , 56, 7 5 B raque, G eorges, 110 Brasil Fontes, Jo a q u im , 72 Braz T eixeira, A ntonio, 21 Brecht, B ertold, 60-1, 63-4, 84, 361 B ricm ont, Jean, 218-9 B uarque de H o lan d a, Sergio, 3 1 9 ,3 4 6 C acciola, M aria Lúcia, 166 C am ões, Luis de, 385 C an ah rav a, Kuriolo, 100 C a ndido, A ntonio, 77, 92, 148, 188-9, 1 9 1 ,2 0 4 ,2 1 1 , 2 1 5 , 2 7 8 ,3 0 8 , 338, 340-1, 346, 348, 352, 354, 358, 382, 388

C ard o so , Fernando Flenrique, 64, 95-8, 111, 157, 160, 168, 171, 1 8 3 ,2 0 5 -6 ,2 9 4 , 3 4 1 ,3 7 7 , 384 C a rn a p , Rudolf, 4 1, 256 C arneiro Leão, F.. 53, 56-7, 186 C arpeaux, O tto M aria, 69, 380 C arvalho F ranco, M aria Sylvia de, 305 C ass, M a rk Ju lian , 217 C astoriadis, C ornelius, 93, 158, 162 C erqueira l.eite, Rogcrio, 124 C hacon, V am ireh, 281 C hardin, T eilhard de, 33-4, 43 C hâtelet, F rancois, 154 C haui, M arilena, 56, 80, 96, 99, 1 8 6 ,2 0 4 , 207, 260-1, 2 7 4 ,2 8 1 , 299, 3 0 4 ,3 4 2 -6 . 3 8 1 ,4 1 1 ,4 1 3 C icero, 303 C lastres, Pierre, 200 C olom bo, C ristóvão, 319 C om te, A ugusto, 56, 79, 280 C ondorcet, m arquês de, 166 C opleston, Frederick, 29 C o rção . G ustavo, 62, 254 C osta, N ew ton da, 2 2 ,2 8 1 ,3 8 1 C o u tin h o . C arlos N elson, 179-80, 184-5, 193, 196, 373, 381-2 C roce, B enedetto, 5 4, 220 C ruz C osta, Jo ã o , 93-4, 97, 100, 146, 148-9, 202-3, 2 0 7 ,2 1 1 ,2 2 8 , 274, 2798 0 ,3 4 5 , 350, 3 5 4 ,4 1 2 -3 D agnino, Kvelina, 319 De D ecca, E dgar, 307 De Jouvenel, B ertrand, 202 De Libera, A lain, 257 D ebrun, M ichel, 274, 405 Deleuze, Gilles, 154, 213, 216, 2 1 8 ,2 2 2 . 2 2 4 -5 ,3 6 7 D errida, Jacques, 88, 202, 222, 366-7

M a rc o s N o b re e José M a re io R ego

D escartes, Rene, 4 9, 51, 55. 79, 82-3, 1 3 2 ,2 4 3 , 166, 2 14, 2 4 6 ,2 5 1 -2 , 2 5 7 , 2614 ,2 6 6 , 2 7 0 ,3 1 4 , 3 2 2 ,3 6 0 , 3 8 1 ,4 0 5 ,4 1 8 ,4 2 6 D ewey, Jo h n , 222 D ostoiévski, 26 6 , 350 D rap er, 169 D ru m m o n d de A ndrade, C arlos, 6 9 , 75-6, 85, 162, 166, 2 0 0 ,2 1 0 - 1 ,3 0 3 ,3 8 6 D uch am p , M arcel, 110, 420 D um m ett. M ichael. 267 D urk h eim , F.mile, 349 Einstein, A lbert, 27, 218, 360 Engels, Friedrich, 160, 170, 1 8 5 ,2 4 8 , 3 0 2 , 333, 373, 39 5 , 3 97 E spinosa, B aruch, 51, 55-6, 80, 153, 186, 2 5 1 ,2 5 7 , 2 6 1 - 2 ,3 0 3 ,-6 ,3 1 3 - 5 ,3 1 7 22, 3 3 1 ,3 3 5 , 343-5, 381 E austino, M ário , 73-6 F austo, Ruy 94, 100, 145, 2 0 3 -4 , 34 0 , 347-8, 350 Fernandes, F lorestan, 205, 341 F erreira da Silva, Vicente, 912, 281, 355 Ferreira G u llar, José R ibam ar, 7 7 , 182-3, 3 77 Ferro, Sérgio, 150 Fichte, Jo h a n n G ottlieb, 51, 96, 3 5 4 , 359 Fink, Eugen, 2 30, 2 3 3 , 239 Finley, M oses, 327 Fiori, E rnani M a ria, 4 6, 48, 152, 2 2 8 ,4 0 1 -2 Fiori, Jo a q u im de, 319 Fiori, Jo sé Luís, 220 Fischer, K uno, 51 Flusser, V'ilem, 296 Foucault, Paul M ichel, 57, 78, 21 5 , 2 2 2 , 2 2 5 ,2 3 2 ,3 0 6 . 32 3 , 3 3 3 , 364, 367 F ourier, C harles, 193-4 Freud, Sigm und, 62, 146, 172, 181, 185, 194, 3 0 0 ,3 0 2 , 34 9 , 3 60 Freyre, G ilb erto , 45, 79 F u rtad o , Celso, 320 G adam er, H ans G eorg, 84, 283 Galileu G alilei. 59, 384 G assendi, Pierre, 270 G each, Peter, 2 6 7 , 402 G ellner, E rnest, 131-3

G ian n o tti, José A rthur, 80, 91, 97-8, 117, 119-20, 150, 167, 172-4, 1 8 6 ,2 0 2 5 ,2 0 7 ,2 1 7 , 222-3, 225, 235, 2 4 8 , 260, 268 -9 , 274, 2 8 1 ,3 0 4 , 340-5, 347-8, 350, 377, 3 8 1 ,4 0 5 ,4 1 1 - 3 G ilson, Etienne, 36, 4 3, 251, 25 7 , 266 Gleizer, M arcos, 261 G oldschm idt, V ictor, 93-5, 119-20, 122, 149, 203, 276, 304-5, 342-3 G om es de Souza, Luiz A lberto, 255 G o o d m an , N elson, 219 G órgias, 302 G orz, A ndré, 304 G ram sci, A ntonio, 179-80, 196, 350, 373-4, 376-8, 380-9, 395-8 G ranger, G illes-G aston, 91-4, 96, 100, 109, 119-20, 1489, 203, 2 0 7 ,2 1 0 - 1 ,2 1 6 -8 , 323, 342-3 Guedes, Arm ênio, 179, 182,185 G u ero u lt, M a rtia l, 46, 5 1, 91, 93, 122, 2 02-3, 251-2, 2 5 8 ,3 4 1 -3 G uim arães Rosa, João, 3 0 3 ,4 1 9 H aberm as, Jü rg en , 3 0 3 , 419 H ack er, Peter, 403 H alevi. Eli, 172 H a rtm a n n , N icolai, 16-9, 69 H egel, G. W . F riedrich, 8, 16, 19-20, 2 2 -3 , 3 0, 34-5, 38, 42-4, 48, 53, 5 5 -6 , 59, 64, 70, 79, 82-4, 96, 100, 110, 117, 120, 129, 135, 151, 153, 155, 162, 164, 167, 172, 174-5, 189-90, 196, 2 0 3 ,2 0 7 ,2 1 4 - 5 ,2 1 9 , 23 0 . 2 4 0 , 2 4 2 , 2 5 7 , 2 8 0 , 28 9 , 304 -5 , 3 2 1 , 325 -6 , 32 8 , 3 3 7 , 3 4 1 , 347 -9 , 352, 3 5 6 -7 , 3 5 9 -6 2 , 364, 3 7 5 .3 8 1 , 3 8 5 - 7 ,3 9 1 , 4 0 1 -2 , 4 0 5 , 4 1 3 -4 , 420 H eidegger, M a rtin , 29, 4 6 , 4 8 -9 ,5 1 -4 , 60, 70, 7 4 ,7 8 , 80-3, 87, 89, 120, 204, 2 1 4 .2 1 9 , 222, 2 2 5 , 228, 2 3 0 - 1 ,2 4 6 ,2 9 6 ,3 8 0 , 401, 4 1 3 ,4 1 9 H eller, Agnes, 187

C o n v ersas com F ilósofos B rasileiros

H erder, Jo h a n n n G o ttfried , 34 H ilbert, I., 418 H ill, C h risto p h er, 306-7, 319 H irzm an, Leon, 184 H itler, A dolf, 6 4, 169 H obbes, T hom as, 314 H o b sb aw n , Eric, 159 H om ero, 73, 162 H ork h eim er, M ax, 2 3 9 , 324, 35 8 . 3 8 3 , 385 H um e, D avid, 131-2, 143, 2 2 4 - 5 ,2 1 4 , 4 0 5 ,4 1 7 H usserl, F'dm und, 16-7, 70, 79, 94, 102, 104, 167, 2 2 5 ,2 2 8 , 2 3 0 - 1 ,3 2 1 ,3 2 3 , 33 2 , 340, 360, 363, 405 H uxley, A ldous, 66 H yppolite, Je an , 4 6, 120 Ianni, O ctávio, 96, 341, 377 Im bert, C laude, 94, 152, 221 Jaco b i, R uggero, 49 Jaeger, W erner, 92 Jam es, W illiam , 222 Jam eson, Frcdric R., 192 Janine R ibeiro, R enato, 56 Jankélévitch, V ladim ir, 151 Jaspers, K arl, 25 Jo ã o Paulo II (K arol W oytila), 39-41 Ju n g , C arl G ustav, 146 K afka, Franz, 77, 181, 363, 386, 397 K autsky, K arl, 157-8, 160, 395* 397 K ierkegaard, Soren Aabye, 2 2 0 ,2 2 3 ,3 3 1 Knoll, V ictor, 306 K olakow ski, Leszek, 319 K onder, L.eandro, 177, 180, 374-5, 377 Koseileck, R einhart, 188 Kruschev, N ik ita, 178-9 K uhn, T hom as, 323, 3 6 1 , 365 K urz, R obert, 109, 157, 1612, 385 La R ochefoucauld, Francois, 166 L acan, Jacques, 153, 2 1 9 . 349 I.adrière, Jean, 2 55-7 Lafer, C elso, 2 7 4 , 2 7 7 , 291 L andim Filho, R aul, 230-1, 23 4 , 237, 2 5 1 ,2 5 8 ,4 1 2 - 3 , 415 L andsberg, Paul, 74 I.ask, Emil, 276-7

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Lauer, Q u en tin , 230 Lebrun. G erard . 95-7. 152, 202-6, 2 0 9 .2 1 4 .2 1 6 , 220. 22 6 , 2 60, 27 4 . 2 9 1 ,3 0 4 . 348, 35 5 . 360, 363-4, 405 L efort, C laude, 93-4, 148, 158. 1 6 2 ,2 0 3 , 307, 3146 . 32 7 , 3 4 4 , 345 Leibniz, G. W .. 22 3 . 246, 264, 32 2 , 36 0 , 4 0 2 ,4 1 4 Lenin, V ladim ir L. 64. 158, 160. 30 5 . 39 3 . 3 95-7 Lévi-Strauss, C laude, 78, 167, 2 0 5 . 2 0 9 , 33 2 , 343, 349 Levy, Lia, 261 l.évv-Brúhl, L u d e n , 146 Lima B arreto, A fonso I lenriques de, 359, 386 Lispector, C larice, 81-2, 397 Locke, Jo h n , 94, 188 L oparic, A ndrea. 124 L oparic, Z eljk o , 79, 217, 235 Lopes dos Santos, L. H enrique, 1 2 4 ,2 1 0 ,2 1 8 , 223, 2 5 9 -6 0 , 405 Lotz, Jo h an n es B., 29 Löw y, M ichael, 152-3, 160, 195, 379 L uhm ann, N iklas. 277-8, 2856, 295 L ukács, G eorg, 56, 155-6, 179-80, 183, 185, 190, 194, 196, 3 41, 348-9, 3589, 3 6 7, 574 , 3 7 6 -80, 3826. 39 2 . 3 9 5 , 3 9 7 l.u x em b u rg o , R osa, 160, 395, 397 L yotard, Jean-F rançois, 154 M a ch ad o de Assis, Jo aquim M aria, 5 6 , 162, 166, 303, 340, 346, 355, 357-9, 386 M a ch ad o , R o b erto , 56 M acherey, Pierre, 261 M aciel, l.uiz C arlo s, 377 M ag ald i, S ábato, 62 M a n n . T h o m as, 38 6 , 396 M an sio n , Suzanne, 255 M ao-T sé-T ung, 171, 181, 3 05, 405 M aquiavel, N icolo, 24, 306-7, 344-5 M a ran h ã o , H aro ld o , 73, 75 M arcuse, H erb ert, 53-4, 166, 193, 194, 2 0 4 , 305, 324, 331

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M arechal, Joseph, 232, 254-6 M aritain. Jacques. 32-3. 119. 255 M artin s, C arlos Estevam . 181 M artin s, M ax, 73-5 M a rto n . Scarlett, 56 M a rx , K arl, 17, 3 0, 42, 52-3. 5 5, 59. 6 2, 64, 95, 9~-8, 102-4, 106-8, 116, 118, 120. 150, 153, 155-60. 165, 167-8, 171, 173-4, 181-2, 185, 187, 189-92. 195, 197, 204, 218. 248-9, 2 5 2 , 254. 3 1 5 . 3 3 1 .3 3 6 , 3 4 0 -1 ,3 4 3 , 346-9, 355-6, 367-9, 377, 380-2, 385, 3 9 0 -1 ,3 9 4 , 396-9 M a rx , W erner, 230 M a u riac, François, 74 M cC loskev, D onald, 217 M cIntyre, A nthony, 113 M ead, M arg aret, 146 M ello e Souza, Gilda de, 93, 148, 203-4, 2 7 4 , 305-6, 340 M enasseh bem Israel, 319 M endes, Francisco Paulo, 70-4 M erleau-P onty, M aurice, 46, 5 0 ,5 7 , 78, 94, 1 7 1 ,2 0 8 , 213, 215, 218, 304-5 , 307, 316-7, 320, 3 2 3 -5 ,3 2 8 , 342-4, 347, 413 M erq u io r, José G uilherm e, 179, 1 8 1 ,3 7 7 M ichels, R obert, 389 M illiet, Sérgio. 92 M olière, 109 M o n teiro , D ouglas, 319 M onres, M aria L úcia, 274 M ontesquieu, 384 M onteverdi, C laudio, 62 M oore, T hom as, 66 M oreira Leite, D ante, 146, 149 M o ren o , Arley R ., 216-7 V lotta Pessanha, José Am érico, 342 M ounier, E m m anuel, 33-4, 227, 255 M üller, H einer, 61 M üller, M arcos, 55, 401, 405 N ew to n . Isaac, 59 N icolau de C usa, 20 N ovaes, A dauto, 307, 319 N ovais, F ernando, 95, 97-8, 2 0 5 , 320, 341

N unes, Benedito. 5 7, 69, 74, 281 N unes, C arlos A lberto. 69 O laso. Ezequiel de, 124 O liveira V ianna. Francisco José de, 4 5, 79 O liveira, A rm ando M ora de. 306 O liveira, Francisco de, 320 O liveiros l-erreira. 383-4 O rtega Y G asset, José. 22 Padre L ehret, 338 l’aim , A ntonio, 22 Parm enides, 302, 415 Pascal. Blaise, 1 9 9 -2 0 0 .2 1 4 , 2 5 7 , 331 P aulo VI, 39 P edrosa, M ário , 52-3, 346 P egoraro. O linto, 235, 257, 259 P ereira de Q ueiroz, M . Isaura, 319 Pessoa, F ernando, 74, 81-2. 21 1

Piaget, Jean. 4 6, 360 Pierce, C harles S., 361 Pierre, A bbé, 275 P irro, 137, 143-4 Piscator, Erw in, 63 Platão, 26. 36, 4 4 , 66 , 73, 79, 8 1 ,8 9 , 92, 94. 119, 128-9, 143, 206, 2 1 3 , 2 8 4 , 289, 2 9 8 , 322, 342, 354, 360, 3 7 1 ,4 1 2 ,4 2 3 , 425-7 Plorino, 29 Pom ien, K rystophe, 326 Pontes de M iran d a, Francisco C avalcanti, 279-80 P opper, K arl, 20, 131, 133, 217 P orchat Pereira, O sw aldo, 9 6, 119, 149, 202, 206, 2 1 9 , 2 3 7 ,2 6 0 ,2 7 4 ,2 7 7 , 280 -3 , 296. 337, 350, 4057 ,4 1 2 -3 P rado Jr., Bento, 93, 95-6, 99, 1 0 i, 128, 148, 199, 202, 2 0 7 ,2 1 3 ,2 1 8 , 2 7 4 ,2 8 1 -2 , 3 0 4 ,3 0 7 , 3 3 7 , 3 4 0 -1 ,3 4 3 , 3 4 7 ,3 5 0 , 4 0 5 ,4 1 2 P rado Jr., C aio, 151, 204, 303, 3 2 0 , 346, 365 Prado, V asco, 60-1 P rotágoras, 217 Proust, M arcel, 73

M a r c o s N o b r e e J o s é M a r e io R e g o

Q u artim de M o raes, João, 150 Q uine, W illard. I 15. 1.53, 199, 265 R ad b ru ch , G ustavo, 16 R am os. G racilian o . 3 8 6 . .59” Ranciere, Jacq u es. 15.5 Raw ls, Jo h n . 115 Reale Ju n io r, M iguel, 293 Reale. M iguel, 15, 100, 274-7, 2 ‘ 9 - 8 1 .2 8 7 , 305-6, .555, .581 .4 0 6 R ibeiro de M o u ra , C arlos A lberto. 1 2 4 ,4 0 5 R ibeiro. D arcv, 42, 2.55 Ricoeur, Paul, 34, 211, 225, 40.5 Rodrigues T o rres Filho, R ubens, 56, 9 6 ,2 0 4 , 207, 21 0 , 27 4 , 342 R ohden, V alério, 235 R om ero, Silvio, 358 R ortv, R ichard, 131-3, 142, 2 1 7 , 221-3 Rothschild, M eyer Amschel, 52 R oiianct, Sérgio Paulo, 189 R ousseau, Jean-Jacqucs, 202, 208 -9 , 21 4 , 220, .541, .584, 390 Russell, B ertrand, 22 3, 257, 265, 2 6 7 , 3 6 6 ,4 0 2 ,4 1 1 , 419, 422 S abbatai Sevi, 319 Safo, 72 Salazar, A n tó n io de O liveira, 64 Salgado, Plínio, 307, 345 Sam paio Ferraz Jr., T ércio, 273 Santo A gostinho, 4 1 , 4 3, 66, 3 1 9 . 4 04 Santo A nselm o. S3, 264-5 S antos, José H enrique, 228, 235 São Boa ven tu ra, 412 São Francisco de Assis, 40 São T o m ás de A quino, 22, 29, 36, 44, 83, 1 1 9 ,4 0 1 -2 , 4 14, 416 Sartre, Jean -P au l, 4 6 , 48-50, 5.5-4, 74, 79, 98, 179-80, 194, 196, 1 9 9 -2 0 0 ,2 0 4 -6 , 2 0 8 ,2 1 0 ,2 1 6 , 2 2 0 ,3 0 4 , 341-3, 38 0 , 4 1 1 .4 1 3 Scheler, M a x , 1 6 -7 ,3 9

Schelling, Friedrich W ilhelm . 73. 1 17 Schernberg, M ário, 52-3 Schiller. Friedrich. 49 Scholem , G erschom , 5 19 Schönberg, A rnold, 84. 2S9, .563 S chopenhauer, A rth u r, 166, 223 Schw arz. R oberto, 54, 150, 157, 159, 186, 199, 2 0 8 ,2 1 0 ,2 1 5 ,3 0 4 , 308. 337, 346, .548, 3 5 5 , 357-8, 361, 377 Sexto F-mpirico, 123, 134, 137-8 S hakespeare, W illiam , 76, 1 7 1 ,4 ) 8 Silva Teiles, G offredo d a, 274, 291 Simões, Francisco, 273 Singer, Paul, 96, 199, 205, 368-70 Skinner, Burrhus Frederick, 103 Sócrates, 2 4 , 35, 4 0, 77, 214, 284 Sokal, Alan, 218-9 Sola, Lourdes, 150 Souza, H erb ert de (Betinho), 2 4 4 . 255 Stalin, Josef, 6 4 , 170-1, 178, 379. 392 S tarobinski, Je an , 209 Stein, E rnildo, 2 8 1 , 401, 426 Sterne, L aurence, 83 Stock, R obert, 75 S travinsky, Igor, 110 S traw son, Peter Frederick, 2 6 5 , 267, 290 S tuart Mill, Jo h n , 94, 168, 413 T ales de M ileto, 14.5 T arski, Alfred, 100 T aylor, C harles, .54 T eixeira, Livio, 119, 146, 148, 2 0 2 , 207, 274, 303-4, 309, 412-3 T erra. R icardo, 9 1 . 410 T h o m p so n , F. P., 306-7 T olstoi, Leon, 74 T o rres, A lberto, 20 T ragtcm herg, M aurício, 199 T ro tsk y , Leon, 149, 151, 171, .505, 347, .596 T u g en d h at, E rnst, 2.51-2, 248, 402

C o n v e rsa s com F ilósofos B rasileiros

I'n a m u n o , M iguel de, 74 Vaz, I lenriquc C láudio de Lima (padre), 2 9. 55-6, 2 2 8 . 230-2, 2 3 8 ,2 4 5 ,2 5 1 2. 254-5, 257, 260. 266. 276, .5.58, .540, 381. 413 V az, Z eferino, 124-5 V eríssim o. José, 7(), 72 V ernant, Jean-Pierre, 312 V ersiani Velloso, A rthur, 30, 228 V esentini, C arlos, 30 7 Vico, G iam battista, 274 Viehvveg, T h eo d o r, 276-8, 282 -3 , 285-6, 289 Vieira Pinto, Á lvaro, , 180-2, 228, 252, 342, 381 V ilanova, L ourival, 277 V ieira, padre A ntônio, 319 V illalobos, Jo ã o , 302 V iotti, Emilia, 146 Virgílio, 30.5 V oltaire, 200, 385 V orländer, K., 2 4 9 , 375 V uillem in, Jean-C laude, 94-5, 2 1 0 ,2 1 6 , 224 W ahl, Jean, 46 W eber, M ax, 349, 385 W eil, Eric, 304 W erneck V ianna, Luiz, 184 W ittgenstein, L udw ig, 80, 87, 89, 102-3, 105, 107, 118, 125, 141, 143-4, 167, 173, 2 1 0 ,2 1 2 - 1 4 ,2 1 6 ,2 1 7 , 219-26. 2 3 2 , 2 4 8 , 250, 2 5 5 -6 ,2 6 2 , 267-9, 271, 296, 298, 332, 360, 366, 3 8 1 ,4 0 2 - 5 ,4 1 9 ,4 2 2 ,4 2 5 , 427 Z en âo de Eléia, 302

431

F.STF 1 IVRÍ) KOI COMPOSTO EM S a BON PELA B ra ch fk & M

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em n o v e m b r o de

2000.

A d itad u ra dos militares contribuiu de manei­

ra perversa para completar o arcabouço insti­ tucional da filosofia: expulsou seus estudan­ tes maiores para a Europa, que lá completa­ ram sua formação, e criou a pós-graduação. Mas de que falam essas pessoas que em geral se obstinaram em virar as costas de sua filosofia para o mundo, que se formaram e formam especialistas e profissionais do pen­ samento universitário? Elas nem sempre se­ guiram seu voto de silêncio. Desde cedo, no final dos 50, inseminaram de modo episódi­ co as ciências sociais, a política, o debate da democracia. A filosofia migrou para o Brasil. Mas ela teria soraque nacional, seria capaz de diálo­ go organizado com a cultura brasileira? Nes­ tas Conversas, muitos espezinham a idéia de filosofia nacional, para outros a filosofia não tem nada a dizer, outros a esconjuram. Um se reduz a combatente do consumo conspícuo de modas intelectuais importadas. Mas o que se defende? O que fica? Os depoimentos deste livro sugerem que fica para trás a idéia de que um estudioso na­ cional de filosofia não possa ser mais que um monge copista de um conhecimento sem mui­ to sentido evidente, mas que deve ser preser­ vado. Melhor, os debates mais ou menos in­ voluntários destas Conversas mostram que o pensamento filosófico daqui é poroso. Que o debate político pode fazer com que o mundo vibre as cordas do universo paralelo da filo­ sofia, e que ela reflita, nos termos da sua m ú­ sica distante, algo da vida nesta periferia do inundo. Resta, porém, a grande questão, sem­ pre reposta neste livro, sobre o que ainda é possível na política nacional: ela subsiste ain­ da pelos cantos, mas sob risco crescente de sufocação pelo poder da finança nnindializada, do poder norte-americano e pelas teias jurídicas que os legitimam — o Império.

Vinícius Torres Freire

A filosofia é hoje quase que exclusivamente uma disciplina universitária, não resistindo ao crivo da lógica da utilidade funcio­ nal. M as por que deveríamos nos deter aí? Por que não perguntar: é necessário que seja assim ou pode ser de outro m odo? Por que a utilidade funcional deve ser o critério para decidir sobre o valor ou desvalor de alguma coisa? Q u a n d o nos colocamos essas perguntas, não podem os mais voltar tranqüilam ente ao senso com um e afastar a filosofia, seja com o algo inatingível, seja com o algo demasiado inútil. E talvez esteja aí o interesse da filosofia: ela é um estorvo, uma pedra no sapa­ to. Nesse sentido, agarrarmo-nos ao senso comum é uma das manei­ ras de remover o incômodo. Porque, ao sermos cham ados para dar razões para nossas opiniões, crenças e ações, cedo ou tarde iremos esbarrar tam bém em problemas filosóficos, para os quais a histó­ ria da filosofia apresenta uma série de formulações e de respostas. Além disso, um livro como este tem de pensar tam bém o que significa fazer filosofia num país periférico, tem de pensar como a filosofia se instalou por aqui e qual o seu sentido para a cultura brasileira. Cada uma das entrevistas deste livro, cada reconstrução pelos entrevistados de seus respectivos percursos intelectuais, é uma resposta a essas perguntas.