Contos de Thunder - A biografia
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D G ivu lo lg bo a ç Li ão vr os Por Luiz Thunderbird

Com Mauro Beting e Leandro Iamin

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Copyright da presente edição © 2020 by Editora Globo s.a. Copyright © 2019 by Luiz Thunderbird Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida — em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. — nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados sem a expressa autorização da editora.

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Todos os esforços foram feitos para reconhecer os direitos autoreais e de imagem das fotografias presentes nesta obra. A editora agradece qualquer informação relativa à autoria, titularidade e/ou outros dados que estejam incompletos nesta edição e se compromete a incluí-los nas futuras reimpressões. Texto fixado conforme as regras do acordo ortográfico da língua portuguesa (Decreto Legislativo no 54, de 1995). Editor responsável: Guilherme Samora Editora assistente: Fernanda Belo Preparação: Ariadne Martins Revisão: Adriana Moreira Pedro Projeto gráfico e diagramação: Douglas Kenji Watanabe Ilustrações: iStock Capa: Guilherme Francini Fotos de capa e quarta capa: Cauê Moreno

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Thunderbird, Luiz, Contos de Thunder : a biografia / Luiz Thunderbird, Mauro Beting, Leandro Iamin. – 1. ed. – Rio de Janeiro : Globo Livros, 2020.

isbn 978-85-250-6586-5

1. Thunderbird, Luiz. 2. Apresentadores (Teatro, televisão etc.) – Biografia – Brasil. i. Beting, Mauro. ii. Iamin, Leandro. iii. Título. 20-63494

CDD: 791.45028092 CDU: 929:791.4:654.19

Meri Gleice Rodrigues de Souza – Bibliotecária CRB-7/6439

1ª edição – abril/2020

Editora Globo s.a. Rua Marquês de Pombal, 25 Rio de Janeiro, rj — 20230-240 www.globolivros.com.br

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D G ivu lo lg bo a ç Li ão vr os Para a minha família incrível. E para a minha turma, que é rebelde e distinta.

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Sumário

Há hora certa para tudo (até para uma biografia), Leandro Iamin 9 Raios, trovões e relâmpagos, Mauro Beting 12

1. As primeiras notas no Cambuci 15 2. O abc do rock 25 3. Universitário, jovem e inconsequente 47 4. On the road 67 5. Um consultório e três bandas 77 6. Ex-dentista, roqueiro e publicitário 93 7. Te vejo na mtv 109 8. As primeiras surpresas, mancadas e alucinadas — e mais alguns sustos 123 9. Thunder descobre a América, a Globo descobre o Thunder 137 10. Globo, global, globinho 155 11. Thunder e a globelesma 161 12. É fantástico! É TV Zona! 169 13. A geladeira ampla, frost free, muito confortável 183 14. Contos de Thunder 191 15. O fundo do poço 201 16. Aterrissagem 209 17. Perdido na tarde, perdido na noite, perdido na selva 217 18. De novo na mtv ou Corra, Thunder! Corra! 235 19. Sabotagem, eu quero que você se… top top top uh! 247

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D G ivu lo lg bo a ç Li ão vr os 20. Rock ‘n’ roll 257 21. Voltas, revoltas e reviravoltas 271 22. Sei lá, mil bandas 283 23. Discos, cinema, pedaladas, coração despedaçado e a volta pra casa 297 24. A volta para os clipes 317 25. Comemorações 335 26. O fim é o começo do reinício 345 27. O sonho da Cultura 355 28. Ponto e vírgula 365 Agradecimentos 389

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HÁ HORA CERTA PARA TUDO (ATÉ PARA UMA BIOGRAFIA)

O primeiro aperto de mão que dei em Luiz Thunderbird foi em 2013. Um aspecto curioso de conhecer um sujeito como o Thunderbird daquele ano — famoso, célebre, mas depois do que podemos considerar o auge de sua carreira – foi notar que, embora o carisma iconoclasta dele estivesse intacto na cabeça, aquele corpo na sua frente não parecia envelopado, blindado, separado. Geralmente, nos casos menos bacanas, as estrelas quando estão na sua frente mais parecem não estar, talvez por culpa da maquiagem ou de alguma energia própria dos artistas. Os olhares mal se cruzam, sempre sem foco. Não foi assim na noite em que nos encontramos pela primeira vez. Depois de encerrada a biografia — este livro que você tem em mãos —, pude compreender melhor o motivo de, naquele primeiro encontro, Thunder ter me dirigido um olhar normal, de carteiro, de vendedor de apólices, de pessoa disposta ao comum, em pé de igualdade, sem mistificações ou carimbos imaginários e distintos no rg. Luiz Thunderbird, do rock e da loucura, é prosaico no “muito prazer”. Quando falo em “auge da carreira” estou evidentemente assumindo um modelo de observação da vida alheia (e da nossa também) baseado em uma quantificação bem discutível de números e — sobretudo — cifras: a audiência, que gera uma exposição atroz; e o dinheiro, que abre tantas portas. Para Thunder, um carro com dois aceleradores e nenhum pedal de freio. O bom coração era o muro lá na frente. Esse Thunderbird, da borbulhante mtv e da transição poderosa para uma tv Globo faminta, tão quisto e bem pago, um dos rostos mais descolados e manjados do Brasil, eu não conheci, só o acompanhava pela tela. No entanto conheci, durante a produção deste material, pessoas que o amam e testemunharam sua fase indócil e picante, que ajuda, vá lá, a gente a CONTOS DE THUNDER   9

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ter histórias que rendem manchetes e um bom livro, mas que não são sempre tão legais de vivenciar. Da solidão de uma estrela, o público pouco sabe. O Thunderbird tomou pancadas e sofreu decepções. Quem pega uma biografia para ler não espera um personagem perfeito, à prova de falhas, e eu te garanto a mais transparente narração de momentos que na tv não dariam ibope. Ler a vida de alguém é também emular e experimentar o exercício da amizade, e nosso esforço aqui envolve a realização desse sentimento, ensaia uma aproximação em primeira pessoa. Diante deste biografado, é particularmente desafiador: sentir-se amigo de Luiz Thunderbird a partir de um livro só será possível se conseguirmos captar com exatidão sua espirituosidade e seu senso de humor peculiar — daí a importância de ele mesmo se sentar em frente ao notebook e digitar suas histórias. Thunder pensa rápido, fala rápido, imita vozes, ri fácil, usa a memória mais para lembrar detalhes acessórios de histórias importantes que propriamente de seus desfechos. Um gênio destrambelhado com sotaque e dicção característicos, munido, depois de tempestades severas e dias quentes de sol até demais, de uma perene simplicidade nos olhos e no trato que desdizem até a lógica. E a certeza dessa simplicidade eu tive depois de ter entrevistado a nona ou décima pessoa, um amigo ou parente do Thunderbird, para este livro. Todas essas vozes o descreveram com a mesma tinta. Sintetizaram nosso personagem com as mesmas características principais, sem que houvesse qualquer distinção substancial entre o relato de uma irmã, um patrão, um parceiro de banda ou uma companheira de trabalho. Isso não é pouco, e seria bastante aceitável que estivéssemos diante de um Thunderbird de perfis contrastantes de acordo com o ângulo de visão de cada depoente. Que nada: há uma coerência na essência generosa e carinhosa, astuta e desafiadora, idealista e teimosa do Thunder, que não só sustenta como dá forma a uma ideia jornalística de exatidão pautada na ciência de que, ora, se tantos depoimentos cruzados parecem dizer o mesmo sobre a mesma pessoa, devem ser verdade. É verdade que Luiz Thunderbird chegou, hoje, a um momento da vida no qual fazer a própria biografia vale a pena. Tem a hora certa para tudo. Tirar uma onda, fazer odontologia, escolher o rock, tocar a fama, escolher a fortuna, errar pra cacete, perder batalhas, esperar, retomar, redescobrir sabores, se apaixonar por isso, essa, aquilo e aquilo outro (Thunder se apaixona com frequência por várias coisas!) até te convencer de ficar apaixonado também. Enfim, há o momento certo até para uma biografia, e costuma ser quando podemos falar de 10  Lui z

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nosso passado sem afetação, sem disfarces nem tentativas pífias de jogar detalhes pra debaixo do tapete. Rir de si, sorrir para os traumas, lidar com as páginas que deveriam ter outro final, mas precisam ser contadas como foram — e algumas histórias que Thunderbird viveu e aqui estão, de tão surreais que são, precisavam mesmo do depoimento de outras testemunhas. Estão aqui, pois. O Thunderbird que eu aperto a mão para depois abraçar.

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Leandro Iamin, cujos textos para esta biografia estão sinalizados com a fita cassete; outubro de 2019

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RAIOS, TROVÕES E RELÂMPAGOS

— Rapaz, você tem uma luz aqui. Isso é música. E ainda vai te fazer muito feliz! O rapaz era Luiz Fernando Duarte. Quem disse isso apontando para a testa do pós-adolescente foi o homem de Olho d’Água Grande: Hermeto Pascoal. Ele viu algo que aquele calouro de odontologia ainda não queria enxergar. A vida não seria tratar de cáries e canais. Seria um barato tocar música. Ouvir música. Apresentar música. Consumir música. Abrir e fechar outros canais. Cannabis. Caraca! A visão de Luiz estava sendo aberta quando, na primeira de uma longa lista de drogas ilícitas que experimentou, os olhos não se fecharam. bum! A maconha que antes ele desaconselhava abriu portas, janelas, telhados, muros, casas, horizontes da percepção. Vidrou. Viveu. Sobreviveu. bum! As músicas ganharam novas percepções. As capas saíram dos lps. Os amigos, da moita. Do mato viveu novas ervas numa nova era. O que era para cortar o barato de um amigo, virou alimento e combustível para trocar o motor do consultório pelas ruas do abc. Dos bares e do Baldão para os palcos do inferno e os porões internos. mtv. tv Globo. TV Zona. Uma zorra. Crente nos Devotos, descrente de alguns colegas, acreditando nos amigos, montando bandas. Credo! Via-crúcis que a família abraçou quando o barco virou. Ao pó retornou e perdeu o que tinha e o que nem tinha, delirando num pesadelo. Inaugurou uma televisão e desligou os transmissores dela. Foi a cara global da juventude do tetra até chafurdar numa treta fantástica sem volta. Jogou a carreira platinada no nariz e aspirou o que nem tinha desejado. 12  Lui z

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Esta não é a obra do dentista que virou roqueiro que virou vj que virou tudo. Aqui, o Thunderbird vai abrir a história sujeita a tempestades e potestades, pancadas, porradas e tormentas em um ponto isolado de trovões duplos, raios triplos e relâmpagos múltiplos de um cara qualquer que fez o que qualquer um queria fazer. Não é um tratado de odontologia, um retrato do abc, um álbum de rock brasileiro, um best of da tv nacional, um manual de cultura pop. É a vida de alguém que queria ser como você. De uma pessoa que quase perdeu tudo. Mas que se reencontrou porque nunca se perdeu por se achar mais que era. Também por isso marcou uma era. Um tempo bom que, quem sabe, volte. Porque ele está aí. Aqui. Livro aberto. Cheio de energia. Faiscando. Iluminando. Fazendo tremer as estruturas. Mauro Beting, cujos textos para esta biografia estão no início de cada capítulo; setembro de 2019

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Quatro dias depois de o nosso herói chegar ao mundo, o cosmonauta Yuri Gagarin foi dar uma voltinha pelos céus. Para a alegria do bisavô comunista daquele futuro dentista, quem primeiro viu que a Terra era azul vinha do bloco soviético. O menino que adoraria aviões e viagens com a mente pelos ares entrando em órbita, já chegou ao mundo anunciando que ele era muito pequeno para as pretensões siderais. A infância de Thunderbird foi a de uma criança comum, que adorava Beatles, Rolling Stones, Roberto Carlos, Tia Márcia do Zás-Trás, cafezinho de astronauta, televisão, Monareta e São Paulo FC. Só temia o maligno dr. Kopp.

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AS PRIMEIRAS NOTAS NO CAMBUCI

Foi no dia 8 de abril de 1961 que cheguei a este mundo. Àquela hora, madrugada outonal em São Paulo, devia fazer um friozinho adorável. Deve ser por isso que gosto tanto do frio. Também adoro o mês de abril. Aprendi a reconhecê-lo como um mês de felicidade e recompensa, ganhando presentes desde sempre. Alguns inesquecíveis! Meu primeiro violão foi um desses presentes marcantes. Eu tinha seis anos e meu pai tomou a iniciativa de facilitar minhas experiências com o mundo da música. Um Di Giorgio Estudante Classic que guardo até hoje. Outros presentes também ficaram na memória, como um kit de bombeiros que, assim que desembrulhado, ficou de canto. Não nasci pra combater o fogo, muito pelo contrário. Não vou ceder à tentação fácil de dizer que sou piromaníaco — se é que você está me entendendo. Não são muitas as lembranças da infância, faz bastante tempo, mas algumas ainda estão comigo. Como quando meu pai nos levou ao Porto de Santos pra ver os navios da Marinha brasileira. Me lembro do meu avô, Alvaro Candeias Duarte, pai do meu pai, também Alvaro, que também deu o nome para o meu irmão mais velho, Alvaro Duarte Neto, que chamamos de Netinho até hoje. “Tiro ao Álvaro”, do Adoniran Barbosa e Oswaldo Molles, não tem nada a ver com a escolha do nome. Mas é uma grande canção da minha terra. Voltando ao passeio, lembro que visitamos o porta-aviões Minas Gerais, uns navios menores e um submarino, acho que o único que havia na frota nacional. Me recordo da primeira claustrofobia. Aquela nave é coisa pra loucos! Meu avô paterno era um cara espirituoso, mas já avançava na idade. Ele costumava me levar até a varanda do seu apartamento e me mostrar como se CONTOS DE THUNDER   15

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atirava com espingarda de chumbo. Sim, amigos, lá de cima ele mirava numa árvore frutífera e acertava em cheio. Que loucura! Esse predinho na rua Siqueira Campos abrigava boa parte da minha família do lado do meu pai. No primeiro andar, morávamos eu, meu irmão, minha mãe, Mirian, meu pai, Álvaro, e minha avó Maria, mãe da minha mãe, uma figura adorável, a melhor vó do mundo! Sei que todas as avós são adoráveis, a sua também deve ser, mas a minha era realmente a melhor vó do mundo. Ela era desquitada do meu avô Celso, uma figura ausente, que morava no interior de São Paulo. No segundo andar, moravam meu tio Juju (Joubert), tia Gessy e minha prima Matilde. No terceiro, minha avó Chiquita, meu avô Alvaro, minhas tias Filhinha (Maria Antonieta) e Iracema. Uma grande família. De ascendência indígena, Iracema foi adotada pelos meus avós paternos quando criança, e era torcedora do São Paulo Futebol Clube. Aliás, todos da família do meu pai. Mas ela não conseguia ver os jogos pela tv, dizia que preferia ouvir as narrações pelo radinho de pilha. Eu adorava a Iracema e acho que isso foi determinante pra me tornar são-paulino! Ninguém ligava muito pra futebol, mas ela era fanática pelo Gigante do Morumbi.

Uma nota, maestro

As aulas de violão eram muito chatas. Violão clássico é trabalhoso e eu tinha apenas seis anos. Depois de um ano, pedi pra ter aulas de piano com a filha do seu Osmar, cantor de ópera que morava no térreo. O piano foi mais fácil para me desenvolver. Comecei com o livro infantil Ciranda, cirandinha, com o qual toda criança começa a aprender a tocar piano. Minha música preferida era “Dança do índio branco”. Eu pensava no compositor imaginando um índio dançando com uma música dessas. Completamente sem noção! A música estava sempre presente no meu dia a dia. Meu pai comprou uma espetacular rádio-vitrola de “alta fidelidade”, expressão da época que dava status ao equipamento. Ela parecia pedir para tocar discos de Tommy Dorsey e Glenn Miller, e mais lps de Bossa Rio, Som 3, Roberto Carlos, além da coleção de música clássica lançada pela Abril Cultural com peças de RimskyKorsakov, Felix Mendelssohn, Giuseppe Verdi e Johannes Brahms. Este último seria citado por um dos meus ídolos num futuro próximo: Rick Wakeman. Quando ouvi seu álbum mais bem-sucedido, Journey to the Centre of the Earth, 16  Lui z

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reconheci o velho Brahms ali no meio da parafernália progressiva. Mas o rock progressivo me pegaria anos mais tarde. Na infância, eu pirava nos festivais de música transmitidos pela tv com Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Os Mutantes, a “Disparada” de Vandré na voz de Jair Rodrigues… Eu adorava assisti-los, pedia pra minha mãe me acordar pra ver essas feras ao vivo. O programa Jovem Guarda, apresentado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa, também fazia sucesso lá em casa.

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Um pai músico e musical. Que sempre ouviu mais jazz e blues, diferente do que o filho Luiz se habituaria a experimentar na vida adulta. Mas é impossível não considerar uma herança sonora, e também comportamental, na vida de quem, com o pai, aprendeu a tratar disco melhor que gente, como lembra a irmã de Thunder, Adriana: “Meu irmão sempre tratou lps como joias. Se eu for parar pra pensar na lembrança de infância que tenho dele, sempre estará ligada à música, e o que ele e nosso pai mais tinham de assunto em comum era música, discos, shows”. E ciúme dos discos, o Thunder tinha? “Eu ouvia seus discos escondido, e guardava igualzinho ele deixava. Quando estudava no Objetivo, o Luiz tinha mesada para almoçar, mas deixava de comer só para comprar um lp. Isso dá uma dimensão da importância daquilo em sua vida.”

A primeira vez que fui ao cinema foi com o Neto, meu irmão, no Cine Lins, na avenida Lins de Vasconcelos, ali entre o Cambuci e o Ipiranga. Fomos assistir Help!, dos Beatles. Essa banda não foi feita apenas para toda a humanidade, ela foi formada especialmente para mim, que desde criança curto o som deles! Tenho fases de beatlemania obsessiva, a ponto de montar uma banda pra tocar o repertório deles. Mas isso foi nos anos 2000. A gente chega lá. A vizinhança era repleta de amigos. Tinha o seu Elói, que morava no mesmo andar do “nosso” prédio e trabalhava na fábrica de refrigerantes Antarctica. Ele conseguia uns ingressos promocionais pra gente ir ao Circo Orlando Orfei ou à apresentação dos ginastas dinamarqueses no Parque Ibirapuera. Feliz a cidade onde a família se reunia para ver ginastas da Dinamarca! O filho do seu Elói, o Paulinho, tinha a minha idade e foi meu primeiro melhor amigo. CONTOS DE THUNDER   17

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Família — Papai, mamãe, vovô

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Iniciei meus estudos no Colégio Nossa Senhora da Glória, dos irmãos maristas. Foi ali que entrei na bandinha de fanfarra, relegado a uma percussão insípida. Lastimava sempre o fato de banda de fanfarra não ter violão nem piano. Depois entendi o porquê disso, claro! Mas uma criança sempre tem certeza de que pode tudo. Lembro da alfaiataria do seu Martoni, na rua Independência, que fazia os ternos para o meu pai. Curioso que fiquei amigo do filho dele, Antonio Martoni, há poucos anos, em virtude das transmissões de rúgbi na espn. Ele é ex-jogador do esporte e atualmente comentarista. Assisti uma vez a uma partida de rúgbi na espn e fiquei impressionado com a dinâmica do jogo, com o respeito entre os jogadores, o juiz, as regras. Passei a acompanhar os campeonatos pela tv. O Martoni acabou me convidando pra assistir a uma partida no Ibirapuera. Foi uma surpresa e uma coincidência muito legal quando ele revelou que nossos pais se conheciam desde os anos 1960. O Ari Aguiar, locutor da espn, grande amigo e parceiro, foi algumas vezes ao Thunder Radio Show — podcast que apresento na Central 3 — pra falar de ciclismo, e o convidei pra falar de rúgbi também. Tinha um grupo de jovens que ensaiava com a banda numa casa em frente ao prédio, e aos sábados era muito bom ouvir o som que vazava dali. Eu já pensava que devia ser legal pacas ter uma banda de rock. Meu pai tocava baixo acústico e isso me encantava. Ali perto de casa, a banda dele se reunia à noite para os ensaios. Lembro que eu sempre ia e ficava vidrado naquilo tudo, naqueles instrumentos todos e na interação entre os músicos. Em 1967, minha mãe e eu fomos ao show da banda do meu pai em que gravaram seu único disco, ao vivo, no auditório da Gazeta. Eles abriram o show da Elis Regina. Lembro bem desse dia, minha mãe estava grávida da minha irmã Adriana. De novo, eu era o filho presente nas ocasiões musicais do meu pai. Auditório lotado, Elis já era uma estrela, fiquei ali ao lado da minha mãe assistindo ao espetáculo. Tenho esse disco entre minhas grandes raridades. Nesse mesmo ano, meu avô Alvaro faleceu. Ele não chegou a ouvir o disco do meu pai nem a conhecer a Adriana. Meu avô era uma figura ímpar. O pai dele também! Juntos, fizeram algumas edições de O Homem do Povo, jornal comunista de 1931, cujos redatores-fundadores eram Oswald de Andrade e Patrícia Galvão, a Pagu. Meu bisavô, Antônio Candeias Duarte, assinava como 18  Lui z

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Hélio Negro, e meu avô, como Alvaro Candeias Duarte. Meu bisavô era um anarquista no começo do século xx e se apaixonou pelos ideais comunistas. Foi um dos fundadores do primeiro Partido Comunista do Brasil. Preso algumas vezes também. O jornal teve oito edições e foi instrumento de provocação e discussão sobre a sociedade da Era da Máquina. Quando meu irmão, Alvaro Duarte Neto, nasceu, não colocaram em seu nome o “Candeias” do meu avô, por receio de perseguição política. Lembro da noite em que a tia Filhinha anunciou que se casaria com Bergson Conte, cineasta e desenhista, cujo primeiro filme foi uma animação para um comercial de veneno pra ratos que passava na tv. Era um desenho bem ruim, mas faria sucesso nos dias de hoje (visionário?). Eu e meu pai subimos de elevador até o apartamento da minha avó Chiquita, onde tudo foi explicado para a família. Havia uma tensão no ar. Criança, não consegui entender por que todos estavam nervosos. Hoje, compreendo que tudo aconteceu muito rápido naquele ano.

Valvulados

A tv brasileira dava seus passos em direção ao lugar de destaque na sala da família nacional. Quando nasci, já possuíamos uma tv Invictus valvulada com um tubo gigantesco, daqueles em que se dava uns tapas pra melhorar a recepção. O primeiro programa infantil, Zás-Trás, com a Tia Márcia e o Titio Molina, foi pioneiro no gênero “creche eletrônica”. Depois, viriam a Tia Giovanna na Tupi, nos anos 1970, a Xuxa, a Angélica, a Mara Maravilha nos anos 1980, a Eliana, todas bem distantes do visual e do approach da boa e velha Tia Márcia. No bom sentido, claro! Silvio Santos, Chacrinha, Hebe Camargo, o programa da Jovem Guarda… Lembro das cartas que os telespectadores enviavam, e o Erasmo Carlos soterrado nelas pra sortear algum prêmio. Uns 25 anos depois, eu faria o mesmo no CEP MTV. As séries de tv norte-americanas já dominavam a audiência. Eram chamadas de “enlatados”, já que vinham de fora em grandes rolos: Perdidos no espaço, com o dr. Zachary Smith, o vilão, e seu bordão “Nada tema, com Smith não há problema”; Terra de gigantes, com Alexander Fitzhugh, o vilão. National Kid, com os Incas Venusianos, vilões também. Os vilões eram bizarros, mas bem dublados. Se reassisto a algum episódio dessas séries, não consigo abrir mão CONTOS DE THUNDER   19

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daqueles dubladores. Eles eram muito bons! A Hebe Camargo levou um dos atores de Terra de gigantes ao seu programa, Don Marshall, que fazia o papel de copiloto da nave, Dan Erickson. O cara era o máximo! Me recordo bem do burburinho em torno da chegada do homem à Lua, em 1969. Mas o que me marcou mesmo foi o “cafezinho de astronauta”, uma ideia bizarra de fazer comprimidos de açúcar e café, alegando aos consumidores que o produto era o café matinal dos astronautas… Um pequeno passo para a publicidade, um grande salto para a humanidade em direção ao consumismo febril.

Pra frente, Brasil

A Copa do Mundo no México, em junho de 1970, me marcou bastante. O prédio enfeitado com bandeiras, todos indo pro nosso apê pra assistir aos jogos. Família, vizinhos e os rojões. Muitos rojões! Os adesivos nos carros com a inscrição “Brasil, ame-o ou deixe-o”, mensagem do governo da ditadura militar. Na época, eu, muito criança, com nem dez anos de idade, não me ligava nisso. A turma cantava “Pra frente Brasil” e aquela papagaiada toda. Eu nem podia imaginar o momento difícil pelo qual o país passava. Hoje, imagino meu bisavô Antonio e meu avô Duarte naquele cenário. Provavelmente estavam torcendo pela União Soviética. Ficou na memória o jogo Brasil e Inglaterra (1 × 0), o segundo da primeira fase. E, claro, a final contra a Itália: 4 × 1, fora o show. Minha tia Filhinha acertou o resultado no bolão! Tive sorte não só por ter torcido pelo melhor Brasil de todos os tempos, mas por ter assistido e poder me recordar da primeira Copa transmitida ao vivo. Até 1966 era só pelo rádio. Pelé já era rei, assim como Wilson Simonal era a maior estrela da música brasileira. Nossas férias de verão eram sempre em Frutal, Minas Gerais, a pouco mais de quinhentos quilômetros de São Paulo, onde a família da minha mãe morava. Lá estavam minha terceira avó — na verdade, tia-avó —, a vó Ida, o vô Lincoln (de quem herdei uma flauta transversal de ébano de sistema francês de chaves), minhas tias Therezinha, Luzia, Giselda e Aparecida. Nosso vizinho mais ilustre era o pintor Alfredo Volpi, que morava por ali. Nos anos 1970, meu pai adquiriu um dos seus quadros (com as bandeirinhas), que guardo até hoje. 20  Lui z

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Os carros do meu pai

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Mas o lance do meu pai era com automóveis. Ele teve vários Simca, um Aero Willys 62 e uma Vemaguet, que ficou com ele por uma semana. Meu pai não suportou o motor dois tempos, que impregnava tudo e todos de cheiro de óleo, fora o barulho de máquina de fazer pipoca. Flavio Gomes, grande amigo e colecionador de dkws, curte exatamente esse cheiro. Confesso que eu também! A oficina do João, numa travessa da avenida Lins de Vasconcelos, era meu lugar preferido nos fins de semana. Os carros exigiam manutenção constante, e passei vários sábados naquela oficina. O avanço veio em 1969, quando meu pai comprou um Chrysler Regente do mesmo ano. Carrão que nos levou muitas vezes pra Frutal. Éramos sócios do clube Sociedade Hispano Brasileiro, onde tentei dar minhas primeiras braçadas, e não consegui. Nadar não é muito comigo. Só fui aprender em 1980, numa escola em São Bernardo do Campo, com um professor holandês bem legal. Nadar é pro Ricardo Prado, Cesar Cielo. Nem quando comecei a treinar sério, em 1998, com Marcos Paulo Reis me orientando, consegui me desenvolver na piscina. Mas com ele aprendi a correr, e corri muito. Muitos quilômetros, que fique claro! Depois de vários anos correndo, fazendo provas da Corpore, meias maratonas e uma única maratona em Nova York, em 2001, resolvi começar a pedalar. Depois eu conto mais.

“I want to ride my bike”*

Por falar em pedalar, voltando a 1969, a primeira bicicleta a gente não esquece. No meu caso, no Natal, eu e meu irmão ganhamos nossas biciletas monarcas, minha prima Matilde ganhou sua berlineta Caloi dobrável, e saímos pedalando no mesmo dia. A minha foi uma Monareta azul. Morram de inveja! Subi nela e, pra me tirar dali, tinham que me dar bronca. Levou um tempo até entender como funcionam os freios e tal. No primeiro dia, tomei um tombo, rasguei feio a coxa direita, numas borboletas de plástico que prendiam a roda, coisa impensável nos dias de hoje. No dia seguinte, já estava pedalando de novo.

* Trecho da música “Bicycle Race”, do Queen. CONTOS DE THUNDER   21

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Aquela bike me acompanhou até se desmanchar. Foram muitas aventuras em cima dela. Eu pedalava na rua Oliveira Lima, mas não me arriscava na Independência. O bairro do Cambuci era residencial, no entanto havia o Hospital do Exército, a Motorit e a fábrica de lustres Lastri. O filho dos Lastri estudava no Nossa Senhora da Glória e era sócio do Clube Esperia. Ele foi o primeiro mauricinho que conheci. A família tinha uma Kombi vermelha pra nos levar pra escola e pro clube, mas essa fase não durou muito. Nunca me enturmei com aquela ganguezinha abastada. Eu queria mesmo era tocar violão, piano, pedalar cada vez mais rápido, brincar com o Paulinho, a Marlene, a Matilde, a Emery, filha do zelador do prédio. Montávamos uma cabaninha e ficávamos lá descobrindo nossas diferenças. Tudo muito inocentemente. Tempos maravilhosos, inocentes. Mas, depois da Copa, embora amasse aquela vida e o Cambuci, foi o momento do “deixe-o”. Mudamos pra Rudge Ramos, bairro de São Bernardo do Campo. Foi um auê na família do meu pai, que considerou absurda a aventura de se mudar para o “interior” do estado, um ultraje. Tinha que pegar a rodovia Anchieta pra chegar em casa, portanto, estávamos nos afastando demais, na opinião deles. Mas era o único jeito dos meus pais atingirem o sonho da família brasileira de adquirir a casa própria. E lá fomos nós, morar num bairro sem luz elétrica nas ruas nem asfalto, onde as pessoas falavam com sotaque e, ao mesmo tempo, onde eu podia pedalar com minha Monareta à vontade. Foi o que fiz e o que me aproximou dos vizinhos da minha idade. Também foi em Rudge Ramos que iniciei minha carreira de goleiro, com latas no lugar das traves. Foi na Rua A, onde morávamos. Mas surgiria um problema sério no caminho. Tudo mudou muito! Inclusive a vida de grandes goleiros, então meninos como eu, como Taffarel, Zetti, Ronaldo, entre outros. O futebol brasileiro perderia um goleiro de seleção: os primeiros sintomas de um problema na região da panturrilha da minha perna esquerda surgiram nessa época. A princípio, nada traumático. Mas depois minha perna foi ficando inchada e eu não conseguia mais esticá-la. Mas esse é um tópico setentista de minha história. Quando mencionarei a entrada em cena de nosso primeiro grande vilão da medicina. E vocês sabem como curto uma vilania. Em breve, vocês conhecerão o maléfico dr. Kopp. Vocês não perdem por esperar.

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A mudança para Rudge Ramos nos anos de chumbo mudou sua vida e escola. Filho de professora, tinha que driblar o bullying — a jato. Na velocidade supersônica do Concorde, que um dia ele tentou ver passar no pátio escolar. Não viu e nem ouviu. Mas passou a ouvir cada vez mais os supersons do mundo do rock, do jazz e da MPB. Depois de ficar meses de cama por erro médico, quando pôde voltar a andar, o novo endereço escolar era na capital. No colégio Objetivo, na avenida Paulista, conheceu novos amores e sons que passaram como o Concorde. Rápidos. Mas deixando marcas por muito tempo. Como os primeiros tragos.

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O ABC DO ROCK

A década de 1970 chegou com tudo, e teve de tudo um pouco. Por vezes, um pouco além do que eu esperava. Reparei que o início de cada década me reservou grandes novidades, mudanças de rumo, surpresas. Foi assim em 1970, quando nos mudamos para Rudge Ramos, bairro de São Bernardo do Campo, cidade do abc Paulista. Berço da indústria automobilística, da metalurgia, dos movimentos sindicais que lutariam pela democracia nos anos seguintes. Mas ainda era muito cedo para eu entender o que se passava no Brasil. Eu não tinha nem dez anos. Os anos de chumbo ainda pesavam sobre os ombros e lombos da nação. A coisa iria piorar no continente. Em breve, Chile, Argentina e Uruguai se alinhariam aos Estados Unidos no combate à “ameaça comunista”. Fui entender melhor a Operação Condor depois que assisti ao documentário de Lúcio de Castro, Memórias do chumbo, que fala sobre o futebol na ditadura. Lúcio de Castro é genial, né? Quando chegamos à rua Rosa Rosalém Daré (ainda chamada rua A), número 23, não havia luz na rua nem asfalto. Estávamos cercados de terrenos baldios, que foram rapidamente explorados com a ajuda da minha bicicleta, criando pequenas trilhas no meio do mato que futuramente abrigaria a Rudcar, concessionária da Volkswagen. Quando chegamos, o bairro estava em expansão. Tinha a Universidade Metodista, a padaria Yta Brasil, a Chouppana — casa de chope onde meu pai passou a fazer seu happy hour —, dois cinemas de bairro (um virou supermercado; o outro, igreja), o mercadão municipal, que está lá até hoje, o campo Meninos Futebol Clube, que virou uma simpática pracinha nipônica, a Companhia Telefônica da Borda do Campo, com cabines pra CONTOS DE THUNDER   25

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interurbano da velha ctbc, a biblioteca em frente à igreja matriz, onde eu matava minhas aulas de catecismo, os barzinhos da avenida Dr. Rudge Ramos… Num futuro próximo, o bairro inauguraria uma unidade do Grupo Sérgio de rodízio de pizzas, ícone gastronômico dos anos 1980. Esse empreendimento fez algum sucesso, mas foi passageiro. As pizzas eram horríveis, mas quem estava lá pra saborear? O lance era quebrar os próprios recordes de fatias consumidas. Passados alguns anos, o lugar tornou-se uma unidade promissora do Habib’s, esse sim sucesso até hoje — não por acaso, negócio de um ex-gerente do Grupo Sérgio. Dica gastronômica: meu quitute preferido do Habib’s é a esfiha de espinafre com queijo cremily. Nada árabe, portanto. Comida árabe mesmo meu pai comprava num lugar ali no final da rua Vergueiro. Essa casa de especialidades árabes existe até hoje, ao lado de um posto de gasolina. Quando passo por ali, tenho vontade de entrar e me acabar nas iguarias. Gosto das cozinhas árabe, portuguesa, brasileira, francesa, mas se tivesse que escolher apenas uma, seria a italiana, sem nenhuma dúvida!

Susto

O ano de 1970 ainda daria um susto na família. Já estávamos instalados na nova casa, própria e financiada por vinte anos, e meu pai trabalhava numa revista médica chamada Ars Curandi. Progredia na vida, quando aconteceu o acidente. Ele voltava do escritório e encontraria os amigos no Hotel Binder, no centro de São Bernardo. A via Anchieta tinha uma marginal sem iluminação e, em frente à empresa Mazzaferro, havia um monte de terra, bem no meio da via. Meu pai, dirigindo, não conseguiu enxergar, por causa dos faróis dos carros no sentido contrário, e acertou em cheio o tal morro. Foi grave! Demorou bastante tempo pra se recuperar. Mas, graças à sua reputação de trabalhador, foi convidado pra trabalhar na Glaxo Wellcome, laboratório farmacêutico de propriedade da família real inglesa. Fez carreira ali, chegou a conhecer o príncipe Charles numa de suas visitas ao laboratório, e nos levava lá aos sábados, para brincarmos no campo de futebol e de golfe. Lembro de alguns colegas dele e do seu Claive Vidiz, o presidente da firma, que colecionava uísque escocês. Seu Claive participou do Programa do Jô como o maior colecionador dessa bebida no mundo, e vendeu sua coleção — de 3391 garrafas! — pra uma empresa escocesa. Lembro bem dele, sempre breaco nas festas. Ele tinha uma secretária, 26  Lui z

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Telma, que nos deu uma cadelinha pequinês de presente. Seu nome era Candy, e ela ficou com a gente durante muitos anos. Depois dela vieram Lelo, o vira-lata albino, e Dolly, a pastora-alemã. Os dois últimos tiveram aquele destino comum dos cachorros de família da época: foram para uma “fazenda”, onde correriam livres e felizes com os outros cachorros de lá. Sei… Na Wellcome também tinha o seu Alvaro Valente, espanhol e melhor amigo do meu pai, que chamava as crianças de “mexerica”. Ele era uma grande figura, sempre bem-humorado, dos que ficaram próximos até a morte do meu pai, em 2001. Tinha o seu Maurício, que era vizinho da Elis Regina. Ele morava no Brooklin e a gente ia à casa dele aos domingos. Os filhos falavam orgulhosos que a Elis morava “ali, na casa ao lado”. Eu tinha aquele disco da Elis que tem “Amor até o fim” do Gilberto Gil, “Dois pra lá, dois pra cá”, do João Bosco e Aldir Blanc. Que álbum lindo! Daí ficava imaginando a Elis tomando uísque com guaraná, pra desespero do seu Claive Vidiz. Tinha o misterioso senhor Taibo, argentino que jogava golfe e me deu uma bolinha que guardei por muito tempo. Golfe é um esporte de elite. No Brasil, da elite mais sofisticada. A bolinha passou a ser um pequeno troféu. Inútil, obviamente!

Volta às aulas

Com a mudança de endereço, meus estudos foram transferidos pra São João Clímaco, onde minha mãe era professora. Foi um tanto traumática essa mudança de ares. O Nossa Senhora da Glória era um colégio de classe média alta, gigante. A E.M. São João Clímaco ficava no bairro do mesmo nome, ao lado da favela de Heliópolis. Eu curtia o lugar, mas foi difícil fazer amigos. Minha professora, Nilce Salgado, era um saleiro: brava, cabelão, me colocou na penúltima fileira da sala. A escola era dirigida pelo João Bebum, agraciado pelo apelido graças ao seu passatempo predileto, o álcool. Dos coleguinhas lembro muito pouco. Acho que a lembrança mais contundente foi de um trabalho pra Semana da Aviação que fiz com a ajuda do meu pai. Montei uma série de aviões da Revell, mostrando a evolução da aviação desde o 14-Bis até os caças supersônicos. Santos Dumont não imaginava que seu projeto seria usado nas guerras? Não foi minha intenção dar essa perspectiva. O lance ficou realmente espetacular e o trabalho foi escolhido como o melhor de todas as escolas municipais. Ficou exposto na recém-inaugurada CONTOS DE THUNDER   27

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praça Roosevelt, no centro da capital, por meses. O prefeito era Paulo Maluf, veja bem! “Obra do Maluf!” Filho de professora é o alvo preferido pra um bem-sucedido bullying. Não existia esse termo, mas essa opressão existe antes da escola. O inevitável confronto com Ben-Hur, um dos colegas de classe, aconteceu de forma inesperada. Eu era considerado o boy, filho da professora, que chegava de carro à escola. De uma hora pra outra, no recreio, como chamávamos na época, Ben-Hur veio pra cima de mim. Mas eu era melhor de briga. O primeiro golpe, rapidamente desviado com minha agilidade ninja, fez com que o menino acertasse uma janela em vez da minha cara. Azar o dele! Depois ficamos amigos (mas não durou muito). Em 1971, minha mãe se transferiu pra E.M. Jardim Maria Estela, e lá fui eu desbravar mais um território, ser provocado, fazer novos amigos, lidar com uma nova professora. Sim, dona Naduy também era brava. Mas foi com ela que finalmente me alfabetizei. Sério, só na quarta série do primário consegui lidar com o alfabeto inteiro. Mas foi nesse ano que montei meu primeiro trabalho musical. Os estudos de violão prosseguiam nos conservatórios Chopin (muito chato!) e André da Silva Gomes (muito divertido!). Eu passava do piano pro violão e vice-versa a cada ano. Havia um colega na escola que também tocava violão e fizemos uma dupla, que se apresentou algumas vezes no miniauditório que dava pro pátio do recreio. Depois da última experiência escolar, receber aplausos e aprovação foi fundamental pra minha autoestima.

Concorde

O avião supersônico francês Concorde voaria por São Paulo pela primeira vez. Toda a escola foi dispensada da aula pra vermos aquela maravilha no céu. Bons tempos! Ele pousou em Viracopos, então o único aeroporto internacional no estado, em Campinas. Claro que não vimos nem ouvimos nada. Ele passou bem longe do Jardim Maria Estela, mas a desculpa que nos deram era de que o tempo estava encoberto. Aham! Seria ainda mais frustrante para um pequeno adolescente quando disseram que o cometa Halley passaria pela Terra, em 1986. Mas ninguém o viu. Disseram, e eu cantei! Compus uma marchinha de Carnaval pro evento astronômico. Isso foi com os Neocínicos, minha banda de 1986. Depois eu conto mais sobre isso. 28  Lui z

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Me formei no primário sem muito esforço. E chegou o momento de sair de perto da minha mãe. Nunca foi uma vantagem, é bom que se diga. “Filho da professora” é sempre visado pelos colegas e pelos outros professores. Nenhuma saudade de dona Naduy! Finalmente, em 1972, entrei no Colégio Estadual Lauro Gomes de Almeida, o Celga, em Rudge Ramos. Tudo outra vez — escola nova, colegas novos, rotina nova… Mas até que a quinta série foi tranquilo. A professora Maria Alice dava aulas de gramática e francês. Ela se orgulhava da sua casa, que tinha cinco banheiros. Imaginem as piadas que se sucederam depois dessa revelação. Ela tinha um sotaque português, era exigente, mas sempre justa. Eu realmente aprendi as regras das duas línguas com ela. Pena que, quando estava na sétima série, o francês foi substituído pelo inglês. Não custava nada ter continuado com os dois idiomas até o fim. Mas me dei bem em ambas as matérias. O professor Valdrighi ministrava geografia, porém só sabia falar de hidrelétricas! O professor Benedicto Simões nos ensinava ciências. Ele devia ter uns setenta anos. Lembro de aulas sobre pressão osmótica, mas especialmente de quando ele nos deu dois alertas. O primeiro era de que deveríamos mastigar bem o pão, pois a ptialina da saliva era a enzima que pré-digeria o amido. Outra dica, que hoje me parece um tanto sem noção, foi afirmar que as bebidas destiladas deveriam ser ingeridas sempre com gelo no copo, pois assim seriam metabolizadas no duodeno, “sem que isso prejudique a mucosa estomacal”, explicava com a voz rouca, os olhinhos turvos tentando um brilho e tufos gigantescos de pelos saindo dos ouvidos. Grande professor Benedicto Simões. Fazíamos questão de ressaltar a grafia e o chamávamos de “Benedíquito”. Tinha a professora Guilhermina, que ministrava aula de música. Ela tocava violino, mas ninguém parecia interessado na matéria, embora ela também não se esforçasse pra fazer da aula algo interessante. Por mim, que já me interessava, tudo bem, mas ela não conseguia convencer a classe de que a música era importante e estávamos perdendo a oportunidade de conhecer essa arte. Putz! Lembrei da professora de artes industriais, fiz alguns trabalhos horríveis com ela. Uma carteira de couro, muito sofrível, e um clássico educacional dos anos 1970, e um maldito porta-retratos ridículo, também em couro. Que vergonha! Por que diabos um professor ensinaria os alunos a fazer um porta-retratos de couro?! CONTOS DE THUNDER   29

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Tive um momento de inspiração quando entrei numa de fazer maquetes de prédios. Separava placas de eucatex (“obra do Maluf!”), ripas, serrava buracos pras janelas, montava pequenos edifícios, pintava. Acho que fiz uns dois predinhos. Coisa de uma semana de trabalho árduo e detalhista. Ficaram bonitos. Foi um momento em que disse pra mim mesmo: — Arquitetura, por que não? O detalhe é que não tinha onde guardar os modelos, então ateei fogo neles. Lembram do kit de bombeiro que ganhei na infância? Pois é, na hora nem me veio à lembrança. Bronca forte da minha mãe e da minha avó Maria, uma doideira. Meu pai nem ficou sabendo, ainda bem!

O primeiro vj

Eu tocava meu violão em casa e começava a conhecer o rock. Meu primo Nelsinho levava uns discos loucos pra gente ouvir. Ele me apresentou aquela escalação de craques: Pink Floyd, Led Zeppelin e Emerson, Lake & Palmer (ou elp). Na televisão, eu ficava ligado em qualquer atração musical. Lembro do quadro do Big Boy – professor de geografia, que nas horas vagas trabalhava como divulgador musical, dono de um enorme acervo de discos – no Jornal Hoje, da tv Globo, na hora do almoço. E o primeiro programa de “quase” videoclipes da tv: Sábado Som, apresentado na mesma emissora por Nelson Motta, o primeiro vj do Brasil. Disse isso a ele uma vez, na padaria Real, que ficava ao lado da mtv. Não pude deixar de notar que ele se sentiu orgulhoso de ouvir tal declaração de um vj da mtv. Depois que a Globo tirou Sábado Som do ar, a tv Bandeirantes veio com Concerto de Rock, pelo qual conheci Sparks, Billy Preston, Eagles. Minha sede por música estava só começando. Na educação física, a gente só tinha aula de handebol. Eu até curtia, mas na rua queria mesmo era jogar futebol, empinar pipas e andar de bicicleta. Futebol eu jogava no gol. Aos onze anos eu já tinha pés enormes pra idade, portanto, pouca habilidade com eles. As pipas eram fascinantes pra mim e o maior desafio era subi-las o mais alto possível. Quando alguém da turminha recolhia a pipa e ela estava úmida, era como um troféu. Mas a bicicleta era meu passatempo atlético preferido. Organizava corridas no fim de semana e era um dos melhores. Marcão, vizinho que morava a duas casas da minha, era meu maior adversário. Perdi algumas vezes pra ele, poucas. 30  Lui z

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Ter uma bicicleta exige manutenção. Sei disso faz tempo, por isso tenho o maior cuidado com minha bicicleta. Freios, cabos, câmbio, pneus, selim, tudo importante! Uso até capacete e luvas! Mas naqueles tempos eu era um tanto confiante de que nada de ruim aconteceria comigo. Os cabos de freio sempre se rompiam por desgaste. Chegou um momento em que o freio dianteiro já estava fora de uso. Numa Monareta, tudo o que eu precisava era do freio traseiro. Mas qualquer cabo acaba arrebentando. Lembro como se fosse hoje, saí pro rolê e notei que o cabo estava por um fio. Mesmo assim, imprudente, fui dar uma volta pelo bairro. Morava numa descida bem íngreme e, na volta, desci minha rua pra chegar em casa. Já no fim do declive, quando acionei o freio, o cabo arrebentou. Em segundos, avaliei as opções: cruzar a avenida lá embaixo e me esborrachar no muro, colocar o pé no aro dianteiro e travar a roda e quebrar o pé, me atirar da bicicleta e fazer um rolamento à la Bruce Lee ou saltar e tentar correr o suficiente pra não cair. Claro que optei pela última alternativa. Foi um desastre! Rolei no asfalto, a bicicleta comigo, até parar no meio da rua. Mãos esfoladas? Um pouco. Cotovelos? Intactos! Joelhos? Pareciam dois vulcões expelindo sangue. Cambaleei até minha casa, arrastando a bike toda retorcida. Consegui abrir a porta e me sentei no sofá — acho que foi a maior dor que senti em toda a minha vida. O problema de ralar os joelhos é que tem que lavar e desinfetar e, na época, colocar mercurocromo — sofrimento que as novas gerações não têm a menor ideia do que seja. Talvez a maior evolução dos últimos dez anos na humanidade tenha sido a pomada que não arde pra esse tipo de ferimento. Sofri tanto que passei duas semanas sem pedalar. Colocar calças compridas, nem pensar! Dormir era impossível. Eu acabava desmaiando de sono. Achei mesmo que iria morrer de dor. Você só tem uma certeza quando anda regularmente de bicicleta: de que em algum momento vai cair, se machucar, vai doer e você vai ter que lidar com isso. Sofri várias quedas, mas nada grave, a pior foi aquela do primeiro dia, e depois esse episódio em que fiquei sem freio, mas depois virei um bom ciclista. Tínhamos outros passatempos também. Meu pai comprou uma mesa de bilhar, o que fez com que todos os vizinhos se tornassem meus amigos e a casa ficasse lotada de moleques todas as tardes. Depois de tanto treinar, fiquei até bom nisso. Eu e meu irmão ganhamos um autorama, modelo da Estrela, pista oval, com dois carrinhos com a carroceria do Puma, o carro esporte mais CONTOS DE THUNDER   31

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cobiçado do Brasil de então, e que fez muito sucesso lá em casa. Um vizinho também tinha um autorama e a gente juntava as pistas e fazia circuitos que ocupavam a sala toda. Nessa época meu pai me ensinou a jogar xadrez. Percebi que estava aprendendo quando comecei a ganhar dele. Até ganhei o livro do Mequinho, famoso enxadrista brasileiro. Representei minha escola nas Olimpíadas Estudantis de xadrez, e foi assim que ganhei minhas primeiras medalhas, fui o campeão do colégio e fiquei em terceiro lugar entre as escolas do abc nessas tais olimpíadas.

O maléfico dr. Kopp

Do final de 1972 até meados de 1973 foi um período de muito sofrimento. Na escola ia tudo bem, mas com minha perna esquerda, tudo mal. Eu saía pra pedalar com meu vizinho Alvaro Codevilla Goffi, um menino uruguaio que tinha uma bike de competição. Eu não saía de cima daquela Monareta pra nada. Depois de um tempo, eu já tinha removido os para-lamas, a garupa, tinha colocado pneus-balão, pintado a bicicleta de verde bianchi (sim, verde bianchi!), feito de tudo. Mas de um dia pro outro, minha panturrilha ficou inchada e dolorida depois que eu voltei pra casa, e meus pais começaram a ficar preocupados. Não demorou pra minha mãe me levar ao Hospital do Servidor Público Estadual, ao lado do Ibirapuera. Foi então que surgiu o maléfico dr. Kopp. Depois de várias consultas, juntas médicas, exames de contraste com infiltração, punções horríveis, meses imobilizado com gesso na cama, o tal dr. Kopp tomou a decisão de fazer uma biópsia exploratória. “Já que eu não sei o que o paciente tem, vou descobrir, fuçar, abrir, cortar e quem sabe entro pra história da medicina”, um típico raciocínio koppiano. Todos ficamos assustados com aquilo, e minha mãe me levou num centro espírita. Lá, a senhora que me atendeu disse que a cirurgia seria inútil. Que eu fizesse uns banhos de luz infravermelha e tudo ficaria bem. Não sei quanto aos banhos de luz, mas eu deveria mesmo ter ficado na minha. Tudo se resolveria sem muitos problemas. Mas a natureza científica familiar optou pelo dr. Maléfico. A primeira “experiência” foi imobilizar minha perna para que eu não pudesse andar de forma alguma. Foi colocado gesso na perna inteira, menos no calcanhar, portanto, era impossível que eu ficasse em pé. O gesso descia e machucava muito. Mais ou menos como se me acorrentassem e dissessem 32  Lui z

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“Não se mexa por alguns meses”. Um pré-adolescente de onze anos vai ter dificuldade de lidar com isso, mas tudo pela medicina! Não deu em nada e mandaram a faca em mim. Lembro com detalhes da cirurgia, pois o dr. Kopp escolheu uma anestesia raquidiana. Eu fiquei acordado, ouvindo o bate-papo informal entre ele e seus blue caps! O barulho dos instrumentos, a claridade do centro cirúrgico, tudo foi horrível. A conversa girou em torno da loteria esportiva, derivando várias piadas que, pra mim, não faziam sentido. Estávamos numa mesa de cirurgia! Me lembro que o dr. Kopp pediu que a sutura tivesse exatos treze pontos, o número de jogos da loteria esportiva semanal. Não deu outra, nunca descobriram o que havia de errado comigo, os pontos abriram — eram necessários pelo menos trinta pontos naquela incisão gigantesca —, o corte infeccionou, o dr. Kopp se esquivou de fazer o pós-operatório e sumiu nas trevas. Monstro maligno, irresponsável, inconsequente. Nos dias de hoje teria sido processado, condenado e cassado pelo Conselho de Medicina. Maldito!

Back from hell

Apesar da ausência em boa parte das aulas no Celga em decorrência do misterioso caso da perna, consegui passar de ano. Mas, a partir disso, os atestados pra dispensa das aulas de educação física foram recorrentes até a faculdade. No Celga, todas as classes se reuniam no pátio da escola pra hastear a bandeira nacional e cantar os quatro hinos: o Nacional, o da Proclamação da República, o da Independência e o da Bandeira. Decorei as letras, mas curtia mesmo o da República — musicalmente falando. Certa vez naquele ano, após esse ritual cívico, fomos todos levados pro anfiteatro para um pronunciamento da diretora, dona Terezinha. Ela nos comunicou que o teto do anfiteatro estava ruindo e teríamos que nos transferir pra uma escola no bairro Nova Petrópolis, bem distante de Rudge Ramos. Durante os últimos seis meses de 1974, o colégio se reunia às sete da manhã no campo Meninos Futebol Clube, bem próximo da minha casa, pra pegar uma fileira de ônibus que a prefeitura disponibilizou pra nos levar e depois trazer de volta. Era divertido no começo, mas aquela mobilização toda não ajudava muito na hora de voltar à tarde pra casa. Um dia, eu e uns colegas resolvemos voltar a pé. Sabe aventura de moleque tipo Conta comigo, o filme baseado no conto do Stephen King? Foi divertido, CONTOS DE THUNDER   33

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voltamos pela via Anchieta, alguns quilômetros de caminhada. E adivinha: Nenhum sinal de problemas com minha perna. Teria sido a tal cirurgia que me ajudou? Não, claro que não! Minha mãe só me contou a verdade vinte anos depois: o dr. Kopp não havia conseguido descobrir absolutamente nada sobre o que tive. Na época do Orkut, pensei em criar a comunidade “Vítimas do maléfico dr. Kopp”. Good cop, bad kopp!

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Merci Discos A velha rádio-vitrola do meu pai deu sinais de cansaço e ganhei um toca-discos Garrard, um amplificador Gradiente Lab-75 e um par de caixas Polyvox. A partir de então, a mesada pro recreio era economizada para toda sexta-feira ir à Merci Discos e comprar um long-play. Minha coleção aumentava a cada semana e mergulhei no rock progressivo. Yes, Gentle Giant, King Crimson, Genesis, Jethro Tull, Focus, elp, Triumvirat, Renaissance, Rick Wakeman. Claro que o rock nacional também fazia a minha cabeça. Os Mutantes, O Terço, Casa das Máquinas, Joelho de Porco, Rita Lee & Tutti Frutti (os backing vocals da Lucinha Turnbull, o baixo do Lee Marcucci, a guitarra do Luiz Carlini…). A música nordestina chegava com tudo: Belchior, Ednardo, Alceu Valença. Tinha Walter Franco, Caetano Veloso — minha prima Verinha, filha do tio Nelson, me apresentou seus álbuns Qualquer coisa e Joia —, Gilberto Gil, Gal Costa. Em 1975, na oitava série, já tinha uma turma estabilizada na escola. Valter Ceccato Rossi era meu melhor amigo e são-paulino. Mas a turma era grande. Nos reuníamos na casa do Humberto, palmeirense, pra campeonatos de futebol de botão. Valter me vendeu alguns times que fazia com lentes de relógio de pulso: os baianos Galícia e Itabuna, o America, do Rio, e Coritiba. Claro que tinha um time do São Paulo, mas o privilégio de ter esse era do irmão mais velho do Humberto, o Celso, que era como um mentor da turma. Ele estudava violoncelo e possuía todos os discos que eu tinha, só que os importados, muito caros. Eu tinha o Think as a Brick do Jethro Tull, mas do selo nacional. O dele era inglês, com a capa reproduzindo um jornal com várias páginas e as letras. O Flavio, irmão do Valter, tinha a coleção completa dos Beatles importada. E um exemplar da ópera rock Tommy, do The Who. Mas não ficava por aí. Ele tinha várias versões desse disco. A de estúdio, a gravada pro filme com Elton John 34  Lui z

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e Tina Turner, a versão com orquestra e coral, com a Filarmônica de Londres. Muito status, sem dúvida. Enquanto isso, meus estudos de violão estavam nas mãos da professora Elisabete, e eram muito agradáveis. Ela dava aulas particulares na casa dela e eu fazia de violão popular, que era o que eu queria aprender mesmo. Participava também de um coral com todos os alunos, umas 25 vozes. Os ensaios eram sensacionais e nos apresentávamos no final do ano no auditório da faculdade Metodista. Boas lembranças!

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As melhores cabeças

Panturrilha boa, dr. Kopp ruim: estava tudo bem, até que enfim, mas o destino sempre me jogava pra longe. Meu irmão havia se formado no ginásio e cursava o colegial no Objetivo, na avenida Paulista. E lá fui eu, em 1976, pro mesmo colégio. Ele me contava que os colegas eram legais, tinha aulas em vários formatos e ele arranjou uma amiga, Andrea Drunk, que gravava os lps em fita cassete pra mim. Devo muito a ela! Andrea soube que eu gostava de rock e se dispunha a gravar alguns discos que eu ainda não tinha. Kraftwerk, Genesis, Robin Trower, Yes — ela gravou Yessongs, álbum ao vivo da banda e Relayer, depois que Patrick Moraz assumiu os teclados no lugar de Rick Wakeman, que absurdo! Precisei abandonar meus amigos do Rudge Ramos, mas no Objetivo a vida ficou muito louca. Imaginem que cheguei de um colégio estadual, em que era obrigatório o uso de uniforme, cantávamos os hinos nacionais, qualquer atividade fora do currículo era proibida, entre outras chatices. No Objetivo, a aventura começava no táxi Corcel amarelo-ovo Standard 73 do Português, que por um preço módico levava eu, meu irmão, nossas vizinhas Maria Inês e a Márcia até a avenida Paulista, número 900, onde se localizava a principal unidade do Objetivo, no prédio da Fundação Cásper Líbero, a Gazeta. O tal Português morava em Rudge Ramos e trabalhava em São Paulo, portanto, era vantagem pra ele nos levar até lá às seis da manhã, éramos um dos primeiros alunos a chegar à escola. Era tudo novidade e quando cheguei pro primeiro dia de aula, sem uniforme, notei que minha classe, 1o M-7, tinha um ar de liberdade inacreditável. A gente se sentava onde quisesse, todos os alunos da minha classe tinham nome que começava com “L”, os professores mudavam de sala em sala, no intervalo alguns fumavam cigarro! Minha classe era de CONTOS DE THUNDER   35

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ciências biológicas, já que eu e meu irmão estávamos prometidos à medicina. Ainda no primeiro ano de colégio, mudei minha intenção pra odontologia. Meu pai tinha um amigo dentista gente fina, e a lembrança que tinha de medicina era do dr. Satânico, então não foi difícil tomar essa decisão. De cara, formamos uma turminha. Eu era apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no bolso e vindo do interior. Sim, porque São Bernardo era considerado interior de São Paulo! Carioca (apelido por motivos geográficos), Letícia, Ligia, os quatro alocados na mesma região da classe, éramos os mais próximos no primeiro ano. O Carioca era torcedor do Fluminense e gostava de rock. Nos tornamos bons amigos. Falando no Rio, nas férias do final daquele ano fui pra lá com minha avó, primeira vez que voei num Electra da Varig. Minha avó Maria sempre me levava pra Frutal, e dessa vez fomos pra casa da prima Assunta, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Ao nos encontrarmos ali, Carioca me disse que voltaria a morar lá. Foi também no Rio que descobri o teatro. O marido da Assunta me levou a uma peça, uma comédia cheia de palavrões, que pra um adolescente, em tempos de censura, era o máximo.

1976

Foi um ano marcante — o dos meus quinze anos. Meu tio Nelson havia se separado da tia Vera e estava casado de novo. Tio Nelson era o mais legal de todos. Dirigia um Maverick azul V6, com tala larga e um explosivo toca-fitas tdk no console. Passava horas ouvindo minhas fitas naquele Maverick, descarregando a bateria do carro. Naquele ano, Rick Wakeman veio ao Brasil. Fiquei desesperado pra ir ao show, mas o ingresso era caro e eu era menor de idade. O show seria no Ginásio da Portuguesa, bem longe do abc Paulista. Eu tinha todos os discos dele, sabia as letras de cor, até me interessei por Jules Verne graças ao ex-tecladista do Yes, que usava uma capa cheia de lantejoulas e uma dezena de teclados no palco. Lembro que ele já havia sofrido dois ataques cardíacos e adorava futebol. Saiu uma foto dele na revista Pop jogando futebol no Rio de Janeiro. Certo dia, meu tio Nelson chegou com dois ingressos do show. Sim, amiguinhos! Meu tio Nelson sacou minha euforia e me levou ao show no Ginásio da Portuguesa, no Canindé. A euforia foi gigantesca. Eu e meu tio naquele ginásio, Rick Wakeman com sua banda, a Orquestra Sinfônica de São Paulo, 36  Lui z

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regida por Isaac Karabtchevsky, uau! Nem lembro quantos pontos ganhei com os colegas do Objetivo na segunda-feira seguinte, quando contei que tinha ido. Foi aí que ganhei o primeiro olhar de Martinha…

Martinha

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Ela formava um trio com Leonora e Cristina. As três garotas mais lindas da classe, talvez do colégio todo, quem sabe do universo de um adolescente de quinze anos. Leonora era filha de russos, eu acho. Fatal, dominadora, cheia de personalidade. Cristina era o retrato de Rita Lee, sardas, americanoide, espirituosa, cheia de humor. Mas Martinha… linda, carinhosa, afetuosa, simpatissíssima, perfeita. Meu primeiro amor colegial. Que nunca se concretizou, óbvio! Explicando melhor: a esmagadora maioria dos meus colegas vinha de família muito rica. Era uma escola de gente muito bem de vida. Nunca fui nenhum Alain Delon, pelo contrário. Meus apelidos iam de Garibaldo, aquele passáro amarelo desengolçado de Vila Sésamo (obrigado, Leonora!), a Stan, de Stan Laurel, de O Gordo e o Magro. Eu sabia que não tinha a menor chance com Martinha. Mas sabe como são os adolescentes, nutrem um amor platônico por anos. Em seis meses de aula, o 1o M-7 se tornou a classe mais selvagem do colégio. O pessoal era mesmo da pesada. A famosa e temida Turma do Barão integrava a sala. O mais temido era Canadá, um cara magro, hiperativo, que no primeiro ano venceu um torneio de boxe amador, tipo uma Forja de Campeões. Quem viu a luta relatou que Canadá parecia um mosquito perto do oponente, mas destroçou o sujeito em um assalto. Graças a Deus, Canadá tinha simpatia por mim. Portanto, a Turma do Barão nunca mexeria comigo. Lembro de uma professora substituta que chegou às lágrimas graças às provocações de Samy, um descendente de árabes muito folgado. Havia na classe dois chineses — naquela época, eles vinham ao Brasil pra estudar medicina. Eram disciplinados e inteligentes. Sempre ficavam em primeiro lugar nos vestibulares. Todos! Graças ao seriado Kung Fu, estrelado por David Carradine, todo chinês era shaolin por definição. Samy, que era capoeirista, não perdeu a oportunidade de chamar um deles pra briga. Portanto, aconteceu ali, no meio da aula, um confronto digno de ufc, ao vivo, entre cadeiras e alunos estupefatos. Já eu poderia, no máximo, ser o dj do espetáculo. Ainda bem que Samy, os chineses, todos eram muito amigáveis comigo. Portanto, estava no lugar certo: a pior classe do colégio! CONTOS DE THUNDER   37

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No ano seguinte, 1977, o 2o M-7 foi transferido para as entranhas do prédio da Gazeta. A separação só aumentou o grau de selvageria. No intervalo, pude notar alguns colegas fumando algo diferente de um cigarro convencional. Nem fazia ideia do que se tratava, essa modalidade viria até mim só na faculdade. Mas havia um ritual naquela sala de aula: todos os alunos que chegavam davam uns chutes na parede que dava pra lateral do edifício. Em poucos meses, derrubamos a parede! Sim, pode imaginar uns tijolos, reboco, caindo do quarto andar do Edifício Gazeta? Pois aconteceu! Meu irmão foi comigo ao show da banda Genesis, no Ginásio do Ibirapuera, nesse mesmo ano. Foi a primeira vez que vi raio laser na vida. Que espetáculo! Peter Gabriel havia deixado a banda e o ex-baterista Phil Collins tinha assumido os vocais. Nem por isso foi decepcionante. Logo antes do início do show encontrei a Cristina. — Oi, você por aqui? — ela me perguntou, com seu sorriso maroto. — Claro, adoro Genesis! — Que legal! Bem, vou pro meu lugar. — Cadê a Martinha? — perguntei, tentando controlar a ansiedade. — Acho que está do outro lado do ginásio… — Cristina respondeu, seguido de um sorriso malicioso. — Ah, claro! A gente se vê na escola. Poxa vida! Eu ali, no show do Genesis, e a Martinha do outro lado do Ibirapuera! Quem liga pro Phil Collins? “I know what I like, and I like what I know”, ele cantava, enquanto eu desejava que ele olhasse pra Martinha e dedicasse aquela música pra ela em meu nome.

Trago à primeira vista

Martinha sempre dava um jeito de ser mandada pra fora da aula pra poder fumar um cigarro. Depois que eu saquei isso, usei da mesma artimanha. Foi a primeira vez que um professor me expulsou da sala, mas foi por uma causa justa. Talvez tivesse dado bandeira, pois forcei a barra logo depois de ela ter saído dali. Lá fora, quando cheguei no corredor, estava Martinha acendendo um cigarro. — Opa! Você também? — É, tava de saco cheio! 38  Lui z

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— Quer um cigarro? Você fuma? — Poxa, obrigado. Claro que eu fumo! — Nunca tinha experimentado! Ela imediatamente sacou que eu não sabia o que estava fazendo e me ensinou a tragar. A imagem de Martinha puxando a fumaça e me ensinando que eu deveria respirar pela boca pra tragar… Aquela boca… Foi um trago à primeira vista! Que tragada! Que delícia! Obrigado, querida. O que me deixou mais encantado em Martinha foi que ela não me julgou nem tirou uma com a minha cara. Simplesmente me ensinou a fumar. Fiquei tonto com a fumaça e com a atenção dela. Ainda meio grogue, apelei pros meus trunfos culturais. — Você curte rock, né? A Cristina me falou que você estava no show do Genesis. — Sim, eu soube que você estava lá. — Obrigado, Cristina! — Eu tenho uma coleção de discos de rock progressivo. A gente podia emprestar uns discos um pro outro, né? — propus meio com o coração na mão, pois meus discos eram meu tesouro particular. Só emprestaria pra ela. — Boa! Vou te emprestar o Tarkus, do Emerson, Lake & Palmer. Conhece? Não só conhecia como tinha o disco e sabia as músicas de cor. Mas não podia perder a oportunidade de prolongar o papo e retribuir a gentileza. — Ah, esse eu não conheço. Te trago o disco do Renaissance. Conhece? — Não… é legal? — Acho que tem a sua cara! A capa do álbum tinha a foto da vocalista, Annie Haslam, que lembrava um pouco a Martinha… Que tiro certeiro, hein? — Amanhã te trago o Tarkus. — Amanhã te trago meu coração! (Mentira, respondi que traria o tal disco). Trouxe o vinil do Renaissance, trocamos os lps, fiquei tenso de levar aquele objeto quebrável nos ônibus até São Bernardo. Explico. Saía do Objetivo, pegava um ônibus na avenida Brigadeiro Luís Antônio, descia na avenida Dom Pedro I, no Ipiranga, e pegava outro pra Rudge Ramos. Uma viagem de mais de uma hora. Naquela época, os ônibus eram demasiadamente selvagens. Eu curtia a viagem, ia refletindo muito sobre as coisas — o que voltei a fazer em 1998, quando comecei a correr no Ibirapuera. Não tem atividade física mais introspectiva que a corrida. É você, seus batimentos cardíacos, a respiração ritmada, a passada perfeita, a cabeça a mil. CONTOS DE THUNDER   39

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No busão era parecido. Batimentos cardíacos acelerados por causa do motorista, a passada perfeita pelo corredor lotado, me espremendo entre os passageiros, a respiração ritmada ao som imaginário de “Are You Ready Eddy?” do disco que a Martinha tinha me emprestado, a cabeça a mil na Martinha. Are you ready, Luiz Fernando? Nunca! Quando chegava em casa, ia direto pro violão. Tocar umas músicas, tentar tirar outras, aprender alguma novidade com a revista VIGU — Violão & Guitarra. Foi com ela que aprendi a tocar e cantar “Long Distance Runaround”, do Yes. Era legal pensar que voltaria pro colégio no dia seguinte, não via como sacrifício. Ficava até tarde ouvindo meus discos nos fones de ouvido Agena, dormia, acordava, ia pra escola, encontrava os colegas, zoava um pouco.

O primeiro porre

Um desses colegas do Objetivo, Leonel, um ano mais velho — ter um ano a mais era muita coisa pra gente —, engravidou a namorada e resolveu que iria se casar. Foi um burburinho total. Leonel era de Taubaté e havia um subgrupo dos interioranos formado por Sabiá, ou Luiz Gustavo, que era de Araras; Luís Carlos, o Caipira, de São João da Boa Vista; o Gordo, Luiz Fernando, como eu, de Bauru, ou alguma cidade do oeste paulista; Rondó, que era irmão do primeiro guitarrista do Itamar Assumpção; e eu, do abc. Pois o tal subgrupo resolveu fazer uma despedida de solteiro pro Leonel. Em determinada manhã, a turma dos interioranos matou aula após o intervalo. Fomos num barzinho ali ao lado, no prédio da Jovem Pan, na esquina da Paulista com a alameda Joaquim Eugênio de Lima. Sabe aquele do Cinema Gemini, que fechou em 2010? Foi ali que assisti a Tubarão, estupefato e, no final, a plateia aplaudiu quando o tubarão explodiu. Imagine um pequeno grupo de jovens, com sotaque caipira, chegando naquele bar e pedindo caipirinhas de vodka. Foi uma festinha inesquecível. Ingeri álcool pela primeira vez na vida. Fiquei balão com apenas um copo. Nem tinha dinheiro pra beber mais. Bebadozinhos, nos despedimos e voltei de busão pra casa, breaco. Foi estranho. Não sei se curti muito a onda do álcool. Na verdade, tive certeza de que não era a minha onda. Tanto que só voltei a beber na faculdade, no Camelão, bar em frente da Metodista, muito em função da pressão dos colegas pra fazer parte da turma, em 1979. 40  Lui z

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O grupo do interior era o que levava com mais seriedade os estudos e a obrigação de entrar na faculdade direto, sem precisar fazer mais um ano de cursinho. Ao contrário de todo o restante do 2o M-7. Para mim, ainda chegaria o momento de cursar o 3o ano do colégio pela manhã e o cursinho no período da tarde. Mas isso foi em 1978. A música continuava forte, me ajudando nas horas difíceis. Não só o rock. Depois do Festival Abertura, da Globo, conheci alguns artistas que seriam importantes pra mim. Walter Franco, Jorge Mautner, Clementina de Jesus, Hermeto Pascoal me impressionaram muito. O mago Hermeto eu cheguei a conhecer, e ele profetizaria meu futuro. Mas eu conto isso mais pra frente. O ano de 1977 foi passando e percebi que com aquela turma mais louquinha eu me divertia muito, mas não conseguiria entrar na faculdade nunca. Eu teria que tomar medidas drásticas. No ano seguinte, fomos transferidos para a unidade da Cincinato Braga, e ali a coisa ficou bem séria: ou eu entrava na faculdade direto ou teria que encarar um ano de cursinho, mas isso não era nem uma opção. Sabiá foi o primeiro a tomar uma atitude sensata. Pediu transferência pra outra sala. Leonel fez o contrário, largou os estudos. Eu já imaginava as dificuldades de se casar tão cedo. Mesmo assim, antes disso, a gente se divertiu algumas vezes, como quando fomos ao jogo da seleção brasileira contra a seleção paulista no Morumbi. Casa lotada, mais de 100 mil pessoas assistiram ao embate. Era uma época em que o futebol moderno começava a dar as caras no Brasil. Seu precursor foi Cláudio Coutinho, oriundo do Flamengo. Ele tinha umas teorias loucas como o “ponto futuro” e o “overlapping”, que não convenciam ninguém. E era uma seleção meio carioca demais para o nosso gosto. Criou-se uma rivalidade absurda, e o Morumbi inteiro torceu contra a seleção canarinho. O jogo terminou empatado em 1 × 1. Claro que, um ano depois, durante a Copa de 1978, eu torci muito pro Brasil. Aquele jogo com a Argentina que terminou empatado e em patadas contra os hermanos, aquela marmelada da Argentina com o Peru na partida seguinte (quando tudo foi arranjado para eles ganharem a Copa), tudo aquilo me deixou muito contrariado. Aquele Mundial ficou manchado pela ditadura militar argentina. E ninguém me tira da cabeça que as cartas estavam marcadas. Aliás, em Copas do Mundo, eu me transformo, viro um torcedor doente. Ultimamente até que tenho me comportado melhor, porque os sucessivos vexames de 2006, 2010, 2014 e 2018 funcionaram como uma vacina. CONTOS DE THUNDER   41

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Aliás, nunca esquecerei o dia do 7 × 1, em 2014. Estava assistindo ao jogo na Central 3, onde gravo o Thunder Radio Show (falarei sobre ele mais pra frente aqui), com a turma de lá reunida. E eu entraria no ar logo após o jogo do Brasil. Bem, veio o 7 × 1, e esse é o único programa de que não me lembro de nada. Foi absolutamente horrível. Conversando recentemente com o Leandro Iamin, o fundador da Central 3 e que apresenta o Thunder Radio Show comigo, ele me disse que nunca teve coragem de assistir a esse podcast do fatídico dia de novo. Nem eu! Mas de volta a 1977, os Sex Pistols lançavam Never Mind the Bollocks, e a nossa turma de caipiras ia ao Morumbi pra ver qualquer jogo. O Leonel era corintiano roxo e decidiu que iríamos ver o time dele jogar contra um time que eu achava que fosse o Bangu, mas até hoje não sei qual era. Lá fui eu, são-paulino, no meio da arquibancada lotada de corintianos, assistir à derrota deles pros cariocas. E sabe da melhor? Foi tranquilo tirar um sarro no meio deles. Bons tempos, quando o futebol tinha bom humor e as torcidas se misturavam. E não é só isso. Era barato ir ao jogo de futebol.

1978

O terceiro ano do colegial foi muito atribulado. Mudamos todos pra Cincinato Braga, onde hoje funciona uma academia de ginástica. Pedi transferência pro 3o M-36. Acho que a turma do 1o M-7 ficou chateada com isso. Não encontrei mais o pessoal, bye-bye Martinha. O Português do táxi desapareceu, diziam que ele havia sido preso pelo Dops, mas isso nunca ficou muito claro. Ficou desaparecido por umas três semanas. Mas o Álvaro, colega de ginásio do meu irmão, entrou no Objetivo e a irmã mais nova dele também. Ele tinha um Chevette novinho, do ano, com toca-fitas, e passava em casa pra nos dar uma carona. Os dois foram obrigados a ouvir muito rock progressivo naquele ano. Quando eu voltava pra casa, depois da uma da tarde, usava um ônibus fretado da Mitur. Mas isso foi por pouco tempo. Comecei a fazer o colégio de manhã e ficava pro cursinho à tarde. Com a mudança de turma, conheci outros alunos. Cibele, Carmem, André Guedes Cassioli, Fabio das Neves, que chamávamos de “O Abominável Fabio das Neves”. Cibele era toda sedutora e achei que ia rolar alguma coisa pro meu lado. Ela morava no Jardim Europa, filha de um famoso veterinário. Ficamos amigos e comecei a ir à casa dela aos domingos. 42  Lui z

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Ela queria companhia pra ir à missa. Que constrangimento! Na hora da hóstia eu me recusava a participar. — Você não vai tomar a hóstia de novo? — ela me perguntava com voz angelical. — Não, já tomei ontem em Rudge Ramos. — Era a minha desculpa recorrente. Acontece que minha avó Maria, católica e muito religiosa, havia me matriculado no curso de catecismo quando eu tinha uns onze anos. Nunca fui às aulas e acabei sendo impedido de fazer a primeira comunhão. Nunca tomei hóstia na vida. E não seria ali, naquela igreja de grã-fino, que eu ia entrar nessa. Nem pela Cibele, muito obrigado. Rapidamente percebi que seríamos apenas bons amigos. Mas havia Carmem, morena lindíssima, uma versão interiorana da Martinha. Ela era de Andradina e morava com parentes no edifício financiado pelo Banco Nacional da Habitação (bnh) da Vila Madalena. Nossa amizade foi se fortalecendo, assim como as minhas aspirações de pedi-la em casamento. Simples assim. Em 1978, fomos juntos ao Festival Interno do Colégio Objetivo (Fico), no Ginásio do Ibirapuera. Foi muito louco, nós dois ali. Depois fiquei sabendo que a banda Metrô (“E no balanço das horas tudo pode mudar…”, lembram?) fez uma de suas primeiras aparições nele, ainda como estudantes. De repente, houve um tumulto e Carmem sofreu um desmaio. Carreguei a donzela nos braços até a enfermaria, me sentindo um herói. Pensei “Agora vai!”. Não foi, e no balanço das horas nada mudou no nosso status de relacionamento. Tive que me contentar com mais um romance platônico. Anos mais tarde, já cursando odontologia na Metodista, recebi uma carta (isso ainda existia) dela me convidando pro seu casamento. Queria que eu fosse o padrinho. A vida tem dessas crueldades. Por ficar no cursinho à tarde, acabei conhecendo, como já mencionei, o André Guedes Cassioli, que iria prestar vestibular pra medicina. Ele morava em Santo André e me dava carona de volta pra casa no seu Fusca cor de abóbora. Grande sujeito, foi dos poucos que continuei a encontrar depois que entrei na faculdade. Aliás, fizemos algumas viagens juntos pra prestar vestibulares, como na puc de Campinas. Fomos no Fusca e ficamos hospedados num hotelzinho fuleiríssimo perto da rodoviária. Não passei na puc, nem ele. Lembro que o tema da redação era sobre a Igreja e minhas convicções falaram tão alto no meu texto que seria impossível me aprovarem naquela universidade. CONTOS DE THUNDER   43

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Eu gostava muito de alguns professores do Objetivo. Constantino, de citologia, era cheio de mnemotécnicas. Tinha uma versão de “Madalena”, conhecida na voz de Elis Regina, em que ele mudava a letra pra explicar a matéria assim: “O plasmalema, o meu estudo percebeu, que não há transporte ativo sem ajuda de atp ê ê ê ê…”. Inacreditável, né? Tinha o Clésio, professor de genética. Esse era completamente louco. Explicava as divisões celulares com a voz do narrador do desenho animado Jambo e Ruivão. Aquilo cativava a todos. Diziam que ele havia sido expulso da faculdade de medicina em que dava aula porque resolveu dar um trote nos calouros se fingindo de cadáver numa aula de anatomia. Folclore? Tive aulas de história com Heródoto Barbeiro, que depois ficaria conhecido como um dos melhores apresentadores do programa Roda Viva, na tv Cultura. Ele era sensacional. Melhor aula de Revolução Francesa de todos os tempos. O professor Teixeira dava aula de literatura, mas ele ia muito além dos tópicos específicos de vestibular. Foi ele quem despertou em mim o fascínio pelos simbolistas e modernistas. Nunca esqueci o dia em que ele começou a recitar Cruz e Sousa na sala grande, chamada de vaticano, com microfone na mão, um olhar vidrado no infinito. Grande Teixeira! Comecei a ampliar meus horizontes musicais. Conheci Frank Zappa graças a uma das amigas do Objetivo. Foi um passo pra me jogar mais para o jazz e a música instrumental, os artistas do selo Pablo Records, como Miles Davis, Mahavishnu Orchestra do John McLaughlin. Aliás, em 1978, aconteceu o primeiro São Paulo-Montreux Jazz Festival. Assisti a todas as apresentações na tv Cultura. E fui assistir ao vivo no último dia, quando se apresentaram a Mahavishnu Orchestra e uma banda que mudaria minha vida, no que diz respeito à música: Grupo Um. Fui ao show da tarde, sozinho. Começou com uma banda de pífanos espetacular, depois entrou a banda do John McLaughlin, que seria o auge do dia. Na sequência, entrou o Grupo Um, com uns moleques da minha idade mandando brasa, acompanhando Marcio Montarroyos num trompete cheio de efeitos. Aquilo foi hipnótico. Zé Eduardo Nazario, baterista, e seu irmão mais novo, Lelo Nazario, alucinando no piano acústico. Eles começaram a tocar e não pararam mais. A plateia foi esvaziada pro show da noite e tive que ir embora pra São Bernardo. Cheguei em casa e coloquei na tv Cultura. Eles ainda estavam tocando sem parar e foram tirados do palco com a energia desligada de propósito. Lembro que houve confusão e sopapos. Eu nem imaginava que vinte anos depois ficaria amigo de Dom Ivo Barreto, o engenheiro de som que

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comandava a mesa de som desse festival. Dom Ivo conta que Claude Nobs, idealizador do festival de Montreux, estava presente nas duas edições, em 1978 e 1980. Grande Dom Ivo, do estúdio Áudio Patrulha, dirigido por Tico Terpins, do Joelho de Porco, e depois do estúdio A Voz do Brasil, onde eu viria a gravar meus discos com os Devotos de Nossa Senhora Aparecida nos anos 2000.

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Vestibular Inscrições pra Fuvest, Metodista e Santo Amaro feitas e várias alternativas na Unesp, Santos e Bragança Paulista, onde meu irmão já cursava odontologia. Nem lembro quantos exames vestibulares eu fiz. Foi um verão intenso o de 1978 para 1979, mas eu estava bem preparado. O Objetivo é aquela escola que te prepara pro vestibular, é bem específico. Eu tinha feito um curso de inglês intensivo que foi determinante pra ser aprovado em algumas dessas faculdades. A espera pelas listas de aprovação era muito desesperadora, não passar no vestibular seria um terror. Foi um longo e tenebroso verão. Mas tudo iria ficar bem (ou quase), na Universidade Metodista de Ensino Superior no curso de quatro anos de odontologia. E a música? Sempre tentando me avisar que talvez esse não fosse o melhor caminho.

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Nos tempos frenéticos da brilhantina e da discothèque no final dos anos 1970, cursinho para odonto era o beabá do rebelde pós-punk e pré-pó do ABC Paulista. Ele queria mesmo era montar sua Harley como se fosse o Easy Rider de Rudge Ramos, refazendo os caminhos de Anchieta antes de encher o Baldão. O bicho entrou na faculdade, foi dar aula de violão, namorou, conheceu a Vanguarda Paulista da música e a PM do final da ditadura, experimentou o free jazz e deu de cara com o que ele não queria ver nem vestido de seda ou pintado de erva. Baseado nas novas experiências, o calouro virou veterano, abrindo as portas da percepção e do consultório ao doutor Luiz Fernando Duarte.

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UNIVERSITÁRIO, JOVEM E INCONSEQUENTE

Chegou 1979. Os vestibulares tinham me tirado do planeta Terra. Na escola eu não fui preparado para o mundo, e sim para passar no vestibular. Minha vida era esperar os resultados e me preparar pra um ano de cursinho, caso não conseguisse entrar na faculdade. Começaram a sair as listas de aprovados e não eram nada animadoras. Ninguém falava nada em casa. Eles foram muito legais comigo, aguardando que eu mesmo contasse meus resultados a cada divulgação das famigeradas listas. usp passou longe, eu já esperava por isso. O número de vagas por candidato era absurdo. Mas, na verdade, eu só queria comprar uma Harley-Davidson 125cc e sair pelas estradas, com meu violão nas costas, tipo Easy Rider. Seria difícil, pois aquele modelo de moto era realmente um desastre! Motor quatro tempos, fraco, moto grande e pesada, uma porcaria. Mas era linda, e isso é o que contava! Mas chegou o momento das segundas e terceiras listas de aprovados. E a pressão diminuiu. Fui chamado pela Unisantos. Fiquei muito empolgado com a possibilidade de ir morar na praia, numa república de estudantes à beira-mar. Mas a alegria não duraria muito. Fui aprovado em seguida na Universidade de Santo Amaro. Seria mais perto de casa, mas mesmo assim conseguia ver a possibilidade de morar numa república de estudantes à beira dos trilhos do trem, sei lá. Nada disso, fui aprovado na Metodista, que ficava a dois quarteirões da minha casa. Caramba! Meu irmão já cursava odontologia em Bragança Paulista. Morava lá, ia pra casa nos fins de semana. Que sorte a dele! Aliás, foi em Bragança que aprendi a dirigir. Sou de uma geração que considerava aprender a fumar e a dirigir um rito de passagem. Sempre fumei e dirigi muito bem, inclusive as duas coisas ao mesmo tempo. CONTOS DE THUNDER   47

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Quando meu pai descobriu que eu fumava — dentro do banheiro e escondido —, tentou amenizar a situação num almoço de domingo. Acabamos de comer e, depois do cafezinho, ele me ofereceu um cigarro. Congelei! Neguei, obviamente, e todos deram risadinhas à mesa. Ele falou que não via problema no fato de eu estar fumando (século xx, né?), e que eu não precisava fumar escondido no banheiro. Nunca consegui fumar cigarro na frente do meu pai. Nunca! Eu já tirava o Fusca branco da minha mãe da garagem, mas era o máximo permitido. Num fim de semana em que fomos pra Bragança visitar meu irmão, meu pai me levou até o Aeroclube da cidade. Ele tinha uma Caravan 76 linda, quatro marchas, quatro cilindros (mais econômica). Tinha um piloto da Esquadrilha da Fumaça fazendo manobras no céu nesse dia. Lembro dos rasantes do velho avião da Segunda Guerra Mundial. Impressionante! Mais impressionante foi quando meu pai parou o carro e pediu que eu assumisse a direção. Que momento eletrizante! Foi ali, portanto, que aprendi a acelerar, frear, mudar de marcha controlando a embreagem, usar os espelhos retrovisores, ter noção espacial do automóvel. Fui muito bem nessa primeira aula. Depois dessa, tirava o Fusca da garagem e escapava pra dar uma volta de uns dois quilômetros pela marginal da via Anchieta. Escondido, claro! Era um Fusca com motor 1600, bem forte para aquele besouro. Puro prazer! Na verdade, é uma tradição familiar dirigir bem. Meu irmão, minha irmã, todos puxamos ao meu pai. Minha mãe, por outro lado, tinha habilidade zero! Ela fazia coisas bem perigosas, como voltar do trabalho pela Anchieta com o freio de mão puxado. Nesse dia, quando ela estacionou o pobre Fusca na frente de casa, as lonas de freio traseiras estavam quase em chamas, soltando fumaça. Estava um fumaceiro, que ela nem sequer percebeu. Ela tinha medo de usar todas as marchas do carro, que eram quatro. Imagine nós dois na Anchieta, a setenta por hora, em segunda marcha… Imaginou? Agora, pense na seguinte situação: — Mãe! Rápido, pisa na embreagem! — Por quê? — Rápido, é uma emergência! Ao pisar na embreagem, meti a mão no câmbio e engatei a terceira marcha. Ela ficou muito brava comigo; o Fusca, por sua vez, agradeceu muito. Vocês nem imaginam o quanto aquele câmbio ainda teve que aturar até ela arriscar uma quarta marcha.

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Calouro

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E lá estava eu, com os resultados das aprovações, que, para os meus pais, era uma universidade melhor que a outra. Metodista, então! Fui aprovado na terceira ou quarta lista, e quando cheguei à faculdade os trotes já haviam acontecido. Os veteranos apenas cortaram meu cabelo, pintaram meu rosto, aquela coisa mais básica, e me deram as boas-vindas. Mas eu não ia desperdiçar a chance de ir pro semáforo e ganhar uns trocados. Foi o que fiz, com a ajuda de amigos que se fizeram de veteranos. Ganhamos uma grana e fomos beber cerveja no Camelão, bar meio árabe em frente à Metodista. No primeiro dia de aula, descobri que a Cibele, não a católica, uma outra amiga que estudou comigo no Objetivo, também tinha sido aprovada e seríamos colegas de novo. A gente assistia às aulas no vaticano do Objetivo juntos. Uma amiga dela, a Suzana, depois de uns dez anos descobri que era irmã do Pedrão, roadie dos Devotos de Nossa Senhora Aparecida.

Estudando anatomia

Depois de alguns dias de faculdade conheci a Priscila e a Alessandra. A Priscila era da Igreja metodista, a Alessandra frequentava a Seara Bendita, templo espírita da corrente de Chico Xavier. Eu era o fugitivo da Igreja católica. Mas ficamos amigos rapidamente. Alessandra se aproximou mais, tanto que começamos a namorar. Eu acompanhava sempre a Alê até o ponto de ônibus e, um dia, ela me tascou um beijo na boca. Não dá pra negar que isso mexeu comigo. No dia seguinte, já andávamos de mãos dadas pelo campus. Caminhamos rapidamente para a intimidade. Isso me proporcionou experiência no assunto. Já havia me iniciado nas práticas carnais, porém sem nenhuma noção do que fazer, como fazer e em que momento fazer. Claro que isso ocupou muito da nossa agenda, se é que você me entende! Acontece que Alê também arranhava um violão. Isso foi bem importante pra gente passar muitas tardes juntos. Tocando, arriscando umas composições, e estudando anatomia quando era necessário. CONTOS DE THUNDER   49

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Filosofia

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A odontologia exige muito estudo, principalmente no primeiro ano, quando temos a noção geral dessa ciência. Eu estava gostando de aprender, mas as aulas de filosofia com o professor Maraskin me fascinavam. Eu e mais uns cinco alunos, no máximo! Lembro que, no final do ano, ele percebeu que seria inútil fazer uma avaliação e propôs um trabalho pra encerrar o ano letivo. — Façam alguma coisa pra exercitar a filosofia! A Cibele conhecia a irmã da Lucélia Santos, e o grupo de teatro dela havia encenado Eles não usam black tie, de Gianfrancesco Guarnieri. Ela pediu para eles encenarem um trecho da peça e nós faríamos intervenções. Foi uma festa! Cibele declamou um texto supercabeça. Eu parti pra comédia rasgada, óbvio! Maraskin curtiu e nos deu uma boa nota.

Religião

No ano de 1979 eu finalmente tirei minha carta de motorista. Frequentei a autoescola Modelo, em Rudge Ramos. Eu já sabia dirigir, mas tinha uns macetes pra algumas etapas do exame, como um adesivo no vidro traseiro pra servir de guia na baliza. Na ladeira, apesar de eu dominar a embreagem do Fusca, era exigido que se usasse o freio de mão. Passei com o pé nas costas! Minhas idas à casa de Alê ficaram mais frequentes. Minha mãe sempre emprestava o carro pra eu levá-la pro bairro do Aeroporto, onde ela morava com a família. Curioso que o pai da Alê era comissário de bordo, seu Valdir. Ele fazia voos internacionais pela Varig. E a casa dele era bem embaixo da pista de Congonhas, então o barulho lá era infernal e constante. A família da Alê era muito legal. As irmãs e a mãe eram um doce de pessoa. Mas seu Valdir era bem agressivo, com péssimo humor. Acho que demorou mais de um ano até conseguir dobrá-lo. Ele ficou muito mais agradável, socialmente falando, depois que fez rinoplastia, fundamental pra dar sorrisos esporádicos por aí. Eram todos seguidores do espiritismo de Chico Xavier, lembro que tinha um dia da semana que não comiam carne e frequentavam a Seara Bendita, ali no bairro do Campo Belo. Cheguei a comparecer a algumas poucas reuniões. A dificuldade de levar qualquer religião a sério me acompanha até hoje. Sempre tem alguma coisa que me afasta dos cultos religiosos. 50  Lui z

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Cheguei a ir a um culto na Igreja metodista, em São Paulo, a convite da Priscila. A família dela era da Igreja. Lembro da boa recepção que tive na primeira vez em que estive lá. Tudo num alto-astral, muitas músicas… — Vem com Josué lutar em Jericó… — Aprendi essa de cara! Fui outras vezes, sempre muito feliz, e achei que, talvez, ali fosse um bom lugar pra aprimorar meu lado espiritual. Mas, num determinado dia, alguém me disse que eu seria muito bem-vindo, porém minha namorada, não — afinal, ela era espírita! Isso me deixou bem contrariado. Nunca mais voltei.

Primeiro trampo

No Carnaval de 1979 eu tive meu primeiro trabalho realmente remunerado. Já havia dado aulas de violão pra uns poucos alunos, ganhando o suficiente pra comprar meus cigarros e sair pra tomar umas batidas no Butantã, no famoso Rei das Batidas. Lembro de um aluno em especial que não tinha nenhuma noção de ritmo ou afinação. Após três aulas, procurei ser muito cuidadoso ao explicar que não poderia mais ser seu professor. Nem Paulinho Nogueira faria aquele rapaz conseguir tocar “Parabéns pra você”. Falei que eu não era capacitado para ensiná-lo. Recomendei que tentasse um conservatório ou algo assim. Muitos anos mais tarde, descobri que ele se tornou dono de uma das maiores lojas de instrumentos da rua Teodoro Sampaio, em Pinheiros, a meca das lojas especializadas. “Se eu não posso tocar, venderei!” Sucesso, viu! Mas meu primeiro trabalho foi no Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), como fiscal de arrecadação de direitos autorais durante o Carnaval. Foram três dias intensos. Na sexta-feira fui escalado pro Clube dos Aeroviários, em frente ao Aeroporto de Congonhas. Baile popular, banda tocando, eu com um gravadorzinho e uma caderneta, anotando o nome das músicas que eram executadas. No dia seguinte, eu faria a matinê lá de novo. Olha, a “criançada” era da pesada! No mesmo dia, fiz o baile na casa alemã de chope Bierhale, em Moema. Não poderia ter sido mais chato. Um grupo tocando, uns poucos senhores e senhoras e algumas secretárias fazendo hora extra com seus patrões. Baixo astral! Mas no dia seguinte, domingo, fui ao Clube Atlético Ypiranga. Cheguei ao salão uma hora antes do início do baile, e a banda que tocaria na noite era Placa Luminosa. Uma das melhores da época, fazia shows CONTOS DE THUNDER   51

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de rock. Foi a banda que revelou Jessé, que, no ano seguinte, estouraria com “Porto Solidão”, no Festival mpb-Shell, da Globo. Os caras me receberam no camarim, me ofereceram o pequeno banquete que foi disponibilizado pra eles, me levaram pro palco e foi ali que vi o primeiro minimoog de perto. Fiquei hipnotizado com aquele instrumento que eu conhecia graças ao Rick Wakeman. O pessoal percebeu meu assombro, me levou até perto do teclado, pegou um fone de ouvido e mandou um “Divirta-se!”. Porra! Que demais! Brinquei com o minimoog até perto de começar o baile. Eu teria que ficar na plateia, com o tal gravador, preenchendo a lista das músicas por escrito. Os caras foram tão gente fina que me passaram por escrito o setlist da noite, me colocaram no palco e liberaram as bebidas. Que noite! Eles estavam muito felizes, mas eu estava ainda mais! Só me preocupei em trocar as fitas e me divertir, vendo a banda tocando de perto. “Um dia”, pensei, “vou ter uma banda pra chamar de minha!”. No fim do baile, eu já estava alcoolizado, feliz e íntimo da banda. Meu primeiro trabalho sério foi sensacional. E ligado à música. A vida me dando os toques e eu não prestando muita atenção.

Odontos grevistas

Ainda em 1979 me aproximei de uma nova onda musical brasileira. Foi batizada de Vanguarda Paulista. Lembram que naquele ano o Arrigo Barnabé foi vencedor de um Festival transmitido pela tv Cultura? Um ano depois, ele preparava seu primeiro disco, Clara Crocodilo (1980), Itamar Assumpção já articulava sua estreia com a banda Isca de Polícia, o Grupo Rumo logo lançaria seus dois primeiros discos, Rumo (1981) e Rumo aos antigos (1981), nos quais eles reinterpretavam sambas antigos maravilhosos, o Premeditando o Breque iria marcar território e dividir as atenções com a banda Língua de Trapo, no terreno da música bem-humorada. O teatro Lira Paulistana se tornaria um oásis na cidade de São Paulo com esses artistas vanguardistas, bandas punk e pós-punk. Foi nesse ano ainda que descobri que havia uma oposição ao governo se organizando ali em São Bernardo do Campo. As assembleias realizadas no estádio Baetão, no bairro Baeta Neves, começavam a chamar a atenção do Brasil. Durante a greve dos metalúrgicos, tinha um posto de arrecadação de mantimentos no campus. Não que a cúpula da Metodista apoiasse a greve, mas os estudantes de comunicação eram engajados e, obviamente, me aproximei dessa 52  Lui z

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turma, mesmo vestido de branco. Sim, éramos pressionados a vestir roupas brancas desde o primeiro ano de odontologia. No começo, aceitei a regra numa boa. Meus pais ficavam orgulhosos de me ver vestido de doutor. Com o tempo, ficou evidente que era uma forma de destacar os alunos da odonto dos demais — exatamente o que eu não queria! Aconteceu uma greve dos estudantes universitários e a Metodista aderiu a esse dia de greve. A faculdade de odontologia nem tomou conhecimento. Eu e a Alê estávamos lá e, pra assombro de todos, saímos numa foto publicada pelo jornal Diário do Grande ABC, vestidos de branco, junto aos grevistas. Certamente isso nos marcou como os outsiders junto ao dr. Ivon, diretor da odonto. Tal fama iria pesar nas futuras avaliações do meu desempenho junto aos professores. Minha vida acadêmica começou bem. Não era fácil entrar na faculdade de odontologia, mas era muito difícil arcar com as despesas decorrentes da empreitada. A lista de materiais, livros e instrumentos era babilônica. Sério, coisa de um automóvel popular zero a cada começo de ano. O lugar mais barato era a Dental Tanaka: a gente chegava com as listas e eles arregalavam voluptuosamente seus olhinhos orientais, a caixa registradora tilintando a todo vapor. Final de ano, passei em todas as matérias, chegou aquele momento das férias. Alê foi pra Piçarras, Santa Catarina, onde a família tinha uma casa de praia. A gente se via todos os dias, então essa separação foi terrível. Não demorou pro convite pra passar uma semana com eles por lá chegar. Muito divertido, muito sol, muito sexo, visita aos avós dela em Brusque, no mesmo estado. Fiquei impressionado com o sotaque, as maneiras, o estilo de vida germânico do povo de lá. Muito anos depois, faria muitos shows com os Devotos de Nossa Senhora Aparecida na cidade. É que a Claudia Bia tinha um jornal alternativo de rock, o Contracorrente, e nos levou nem sei quantas vezes pra Brusque.

O primeiro baseado

O ano de 1980 seria muito diferente. Meu segundo ano na odonto, minha primeira droga ilegal, maconha. No ano do verão da Abertura Política, do topless nas praias cariocas, da tanga de crochê do Gabeira, que voltava depois da anistia política, essa era a droga dos marginais, dos bandidos. A que mais CONTOS DE THUNDER   53

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assombrava a família brasileira. E eu tinha mesmo a imagem dela como uma coisa maligna e perigosa. Calma que eu chego lá. A amizade com a turma da Igreja metodista se manteve e soube que o Jorge, um ano mais jovem que eu, tinha se envolvido com drogas. Fiquei preocupado e me ofereci pra conversar com ele e explicar o perigo das drogas. Eu não tinha nenhuma experiência no assunto, mas achei que um bom papo resolveria o problema. Marquei com o Jorge na casa dele, na Vila Santa Catarina, e lá fui eu, o Dom Quixote salvador da pátria, o paladino da família do bem. — Jorge, você está usando drogas? — Eu fumo maconha! — Mas, Jorge, isso é perigoso. — Não, pelo contrário, é muito bom. — Jorge, você não sabe o que diz! — Luiz, você já fumou? — Claro que não! — Então, proponho que você fume comigo e depois me diga se a maconha é esse monstro todo. — Por você, eu topo! Marcamos o dia para que eu provasse que aquela era a substância mais deplorável e indesejável que o ser humano já havia descoberto. No dia marcado, passei na casa de Jorge e fomos eu, ele e a namorada dele no Fusca da minha mãe até uma rua do bairro. Jorge mostrou grande destreza manual ao confeccionar o cigarrinho de artista. Cigarrinho não, Jorge enrolou uma bomba! Tacamos fogo no dito-cujo e baforadas pra cá, baforadas pra lá, em poucos minutos, eu estava sob os efeitos da Cannabis sativa. Eu não havia percebido os efeitos até o momento em que Jorge, já de faróis baixos, revelou que estávamos na frente da casa de um conhecido juiz de direito. Uau! Bateu aquele apavoro, saí dirigindo pra longe dali. Mais calmo, carro parado na frente da casa dele, o som no rádio, uma sensação maravilhosa invadiu minha mente. Definitivamente, estava viajando na erva. Claro que Jorge não perdeu a oportunidade de me questionar sobre os tais efeitos malignos propagados pela opinião pública. Tive que admitir que me sentia muito bem, curtindo a onda. Obrigado, Jorge! 54  Lui z

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Quando jovem, tinha uma tendência a me jogar nas novidades. E essa era uma novidade e tanto. De repente, todos os meus discos fizeram mais sentido, aquela capa do álbum In the Court of the Crimson King, do King Crimson, as fotos do estúdio Hipgnosis nas capas do Pink Floyd… passava horas ouvindo Ummagumma, queimando um fininho no banheiro de casa. Na verdade, não eram horas. Quando chegava na segunda música do disco, eu percebia que estava completamente chapado, desligava o gravador, tirava os fones de ouvido, saía pro silêncio da madrugada em casa e ficava viajando na cama. A maconha pode ser muito desmotivadora pra algumas pessoas, digo, para cumprir horários, ser metódico, atentar para os detalhes mais técnicos, tudo que se exige de um dentista. Apesar disso, eu levava o curso de odontologia numa boa. As aulas de fisiologia faziam todo o sentido. As de farmacologia eram interessantíssimas. Meu pai, que trabalhava na indústria farmacêutica, tinha vários livros científicos sobre o tema. Eu lia aqueles compêndios com muita curiosidade. Quais eram os efeitos e as qualidades da Cannabis sativa? E da noz-moscada? Sim, a noz-moscada, quando consumida em quantidades elevadas, provocava reações alucinógenas. Curioso! O uso me aproximou mais do Jorge e da turma dele da Vila Santa Catarina. E o Jorge tinha um baixo Giannini novinho. Eu havia comprado um violão de doze cordas da Del Vecchio e uma câmara de eco da Staner. Tudo o que um músico amador fumeta precisava era um instrumento de cordas e uma câmara de eco. A resolução criativa do ano foi montar uma banda. — Mas qual seria um bom nome pra banda? — perguntou Carlito, o mais chapado sempre. — Cannabis Sativa, óbvio! — Eu realmente estava apaixonado pela erva. — Genial! — falou um Jorge Faróis Baixos. — Booooooaaaaa… — responderam Carlito, Cheech e Chong, numa só voz. A banda não durou nem duas semanas. Nos encontramos algumas vezes e, numa dessas ocasiões, saímos pra fumar uma bomba. Naquela época, as viaturas da Polícia Militar faziam rondas pelos bairros. Tinha as baratinhas (Fuscas com dois pms), os camburões (Veraneios pretas e vermelhas) e a Rota (Veraneios cinza-chumbo, os mais temidos). Saímos da Vila Santa Catarina e fomos na direção de uma travessa da rua Joaquim Nabuco, ali perto. Paramos em frente a uma mansão, à noite, e tacamos fogo na tal bomba. Carlito havia levado um vidro de éter e, enquanto dava umas tragadas, inalava um lenço embebido no éter. Grande ideia, né? Já estávamos CONTOS DE THUNDER   55

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tomados pela erva quando surgiram dois camburões e uma viatura da Rota. Nos cercaram e deram voz de prisão. Imagino que os moradores da rua ficaram com medo daqueles três jovens, parados ali, naquela hora da noite, uma atitude bem suspeita. Mas pra tamanho contingente, devia ser alguém bem importante. O susto foi enorme, eu e Jorge ficamos apenas paralisados. Carlito, por sua vez, se desesperou e derrubou o vidro de éter no banco do Fusca. Estava armada uma tremenda confusão. Teve todo o ritual com o pm bom e o pm mau. Fomos interrogados, separados, confrontaram nossas narrativas e perceberam que não passávamos de três jovens fumando unzinho. Nos colocaram no bagageiro, chiqueirinho como diziam, e fomos levados pra casa do Jorge. O comandante ainda me perguntou se eu preferia deixar o carro ali, abandonado, ou que um dos seus subalternos o levasse com a gente. O “passeio” foi aterrorizante! Nós três trancados ali atrás, eu observando o pm dirigindo o carro, imaginando pra onde estávamos indo, o que aconteceria a seguir, pavor absoluto. Lembrando que eram tempos de ditadura, os militares tinham o poder nas mãos, eu já conhecia histórias de desaparecimentos, espancamentos, abusos de toda espécie. Mas não aconteceu nada disso. Fomos levados até o pai mais próximo e humilhados perante a vizinhança. Eu fui o último a sair do chiqueirinho, certamente descrito como o mentor daquele desvio de conduta dos três amigos. Nem me dei ao trabalho de me explicar. Esperava que Jorge e Carlito fizessem isso, cada um pra sua família. Não foi o que aconteceu. E eu nem liguei. Só queria sair dali, ir pra casa e me afastar daqueles familiares apressados em me condenar. E da Rota, óbvio. O comandante me disse para eu ir pra casa, e que eu não repetisse o erro de novo, que aquela era uma segunda chance, e pra eu aproveitar essa chance pra me dedicar aos estudos, à família e à propriedade. Cheguei em casa, o Fusca da minha mãe cheirando a éter, deixei os vidros abertos e fui dormir. Ao acordar, fui dar uma geral no carro e achei uma trouxinha de maconha embaixo do banco. Carlito, provavelmente, dispensou o flagrante que carregava ali mesmo, sem pensar que eu poderia ser acusado de posse de drogas. Mancada feia! Nunca mais encontrei com ninguém daquela turma. As pessoas, né, porque a maconha não tinha culpa de nada! Essa continuou comigo por muito tempo. Grande companheira! A relação com essa parceira ainda iria azedar. Mas ainda era cedo para as primeiras brigas paranoicas. Não demorou pros meus pais descobrirem que eu estava fumando maconha. 56  Lui z

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Eu tinha um esconderijo atrás da pia do banheiro. Guardava ali minha “muca”. Certo dia, chego em casa, ansioso pra enrolar unzinho e meu pai está me esperando acordado, muito contrariado. Minha irmã havia ganhado um poodle branco minúsculo, que chamamos de Chester. Filho de satã, Chester sempre foi dedo-duro. Quando chegava em casa, de madrugada, ele esperava eu pisar no último degrau pra fazer um escândalo e acordar todo mundo. Chester, o monstro! Acontece que Chester descobriu a trouxinha de maconha no esconderijo e foi diretamente ao quarto do meu pai com ela na boca. Maldito! Meu pai me passou aquele sermão. Disse que aquilo era perigoso, coisa de bandido, que fazia mal pra minha saúde. Eu tentei argumentar, usando os livros de farmacologia que ele tinha na biblioteca. Inútil! Ele ordenou que nunca mais acontecesse, senão a ira dele cairia sobre minha cabeça. Depois de um tempo, fui pegar graxa de sapato no guarda-roupa dele e descobri que ele não havia jogado a droga fora. Estava lá, guardada. Não tive dúvidas, fui tirando pequenas quantidades e substituindo por temperos. Fiz isso até o momento em que percebi que estava fumando orégano com cheiro-verde. O ano de 1980 me deu de presente a segunda edição do São Paulo-Montreux Jazz Festival. Dessa vez, fomos eu e minha namorada todos os dias. O ritual era deixar o carro no estacionamento, fumar um baseado enrolado na palha, entrar doidão e assistir aos shows. Vi apresentações espetaculares de músicos como Dexter Gordon, Mary Lou Williams, Toots Thielemans, Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Mingus Dynasty, tantos shows bacanas que me deixaram nas nuvens. O último show do festival foi com Peter Tosh. E foi avassalador! Banda completa, entra o senhor Tosh e o Palácio das Convenções do Anhembi vem abaixo. Peter acende um baseado gigantesco, desencadeando uma série de imitações na plateia. Claro que eu havia guardado uma ponta na meia e taquei fogo nela. Catarse absoluta! Saímos de lá pensando que, um dia, a maconha seria liberada no Brasil. Talvez depois da abertura política? Passaram-se 40 anos e o Uruguai nos deixou pra trás. Nem fumo mais, porém tenho certeza de que o tráfico causa mais danos que qualquer consumo.

Homens de vida fácil O ano letivo avançava e eu tinha que me arrastar pra aulas, era sempre o último a chegar na sala. Mas alguns professores eram muito bons e isso foi primordial CONTOS DE THUNDER   57

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pra que eu continuasse no curso, apesar de refletir vez ou outra se estava fazendo a coisa certa. Eu estava cada vez mais próximo da turma de comunicações. Tinha um professor de histologia, ciência que estuda os tecidos, muito legal. A matéria era bacana e ele nos fazia entender a importância daquele estudo. Tinha um pigarro memorável, típico de um personagem de um filme de Werner Herzog. O professor Douglas, de fisiologia, chileno, também sabia cativar os alunos. Nunca esqueci o princípio da caixa-preta na fisiologia dos sistemas. Foi tranquilo passar de ano, portanto, merecia umas boas férias. Minha família tinha viajado pra Minas Gerais pra visitar os parentes de Frutal, Uberaba e Uberlândia. Minha mãe havia deixado o Fusca branco em casa. Num telefonema, sugeri que me encontrasse com eles em Frutal. E lá fui eu, sozinho, num carro sem rádio, dirigindo por umas nove horas, conversando sozinho a oitenta quilômetros por hora nas rodovias. Chegando a Frutal, revi os parentes, meus pais, e no dia seguinte meus pais foram pra Uberaba. Eu fiquei mais um dia com Ney José, meu primo mais louco e artistão da família. Ney José tocava violão, ganhava todos os festivais de música da cidade, usava calças Lee americanas, fumava maconha, o maior doido da cidade, todas as gatinhas de lá cobiçavam meu primo ídolo. Ele passou muitos anos estudando engenharia em Ribeirão Preto, mas nunca concluiu o curso. Eu já havia combinado de me encontrar com Luiz Gustavo, o Sabiá, que tentava entrar na faculdade de medicina desde os tempos de Objetivo. Dois dias em Frutal e me mandei pra Araras, cidade da família do Sabiá. Ele tinha esse apelido por causa de uma mecha loira no topete. Antes de entrar no Fusca, Ney José me vendeu uma pequena quantidade da melhor maconha do mundo. Fumamos ouvindo Gary Numan, de uma fita que ele tinha acabado de receber de Nova York. Aquele som, aquele fumo, me tiraram do planeta. Não por acaso, o maior sucesso dele se chama “Cars”. Peguei o fusquinha e fui pra estrada. Não tinha rádio no carro, mas a música ficou na minha cabeça por horas. Passei por Ribeirão Preto e me perdi nos arredores da cidade por uma hora até achar a rodovia pra Araras. Consegui chegar à casa do Sabiá bem tarde da noite. Dormimos e, no dia seguinte, fui conhecer a cidade. Só lembro do minizoológico no centro. À noite, fomos num bailinho no município de Leme, ali perto. Estava tudo certo até os caras da cidade descobrirem que o Sabiá era de Araras. Parece que havia uma rixa entre as cidades. Saímos correndo dali. A ideia era viajarmos pra Santos, onde a família dele tinha um apartamento. Assim fizemos e, depois de uns dias fumando erva, resolvemos 58  Lui z

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explorar o litoral norte de São Paulo. Naquela época, a estrada era bem ruim, algumas praias eram de difícil acesso. Mas nada que um fusquinha não fosse capaz de enfrentar. Saímos bem cedo de Santos e fomos parando em todas as praias, até chegar a São Sebastião. Algumas eram praticamente desertas, como Toque-Toque Pequeno. Em São Sebastião, ficamos numa pensão de quinta categoria, nada complicado pra dois jovens aventureiros sem muito dinheiro no bolso. Numa das noites na cidade, resolvemos conhecer uma “casa de tolerância” local. Nunca transei com prostitutas, sou um romântico desde sempre. Entramos na boate, as garotas dançando ao som de Donna Summer, uma delas me chamou a atenção. Ela percebeu o meu olhar e veio falar comigo. — Quer dançar comigo? — me perguntou, com um olhar insinuante. — Não sou de dançar, prefiro ouvir a música — respondi, ingênuo pacas! — Quer beber alguma coisa? — Putz! Tô meio duro! — Aquela sinceridade… — Ah, entendi. — Você gosta de trabalhar aqui? Você podia tentar alguma coisa num outro lugar, sei lá, você é simpática, desinibida, já pensou em ser secretária? — Querido, eu adoro trabalhar aqui. Vou dançar, tchau! Quem dançou fui eu. Só faltou pegar um microfone e cantar “Eu vou tirar você desse lugar./ Eu vou levar você pra ficar comigo./ E não interessa o que os outros vão pensar…”. Odair José já havia emplacado esse sucesso. Uma noite de insucessos na boate, só nos restou voltar pra pensão e pegar o carro no dia seguinte, de volta pra Santos. Eu estava mesmo era com saudade da minha namorada, novamente de férias no Sul.

Primeiro estágio

O terceiro ano da faculdade começou em 1981, com as gigantescas listas de materiais e instrumentos. Dessa vez seria ainda maior, pois começariam as aulas práticas na clínica da faculdade. Dentística operatória, cirurgia, periodontia, endodontia, prótese, semiologia, tudo muito importante, muito específico, mas muito difícil para desenvolver habilidade, especialmente com um paciente CONTOS DE THUNDER   59

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de verdade na sua frente. Na teoria, era só estudar; na prática, era bem diferente. Eu era o número 43 na lista de chamada, e cada aluno tinha uma cadeira na clínica da faculdade. Os primeiros passos causaram espanto nos pacientes e na turma também. Anestesia é coisa séria. E os bloqueios na mandíbula exigiam uma manobra muito específica. Lembro de olhar para a cadeira bem próxima à minha e um colega, que não direi o nome, estava tentando aplicar esse bloqueio. Ele tinha se esquecido de fazer um importante desvio na rota da agulha, que acabou atravessando a bochecha do paciente, saindo pra fora. Eu vi aquilo e fiquei petrificado. O paciente estranhou que algo estava molhando o seu pescoço. O professor-assistente estava perto e também viu a cena grotesca. Na hora, todos disfarçaram, o professor assumiu o lugar do coleguinha e o paciente nem percebeu o absurdo. Claro que o evento marcou o restante do convívio do protagonista na sala de aula. Só de pensar naquilo me dá arrepios! Odontologia é conhecimento e prática. Com o tempo, você passa a dominar os instrumentos, materiais e diagnósticos. Me inscrevi num estágio remunerado num programa estadual e fui aprovado. Eu e a Alê fomos trabalhar numa clínica em Santo Amaro, que pagava um salário mínimo por quatro horas de trabalho noturno. Chegamos a tal clínica e pensei que seria um assistente, mas nada disso. O proprietário nos pôs pra trabalhar mesmo. Os pacientes deram sorte, pois não me lembro de nenhum acidente ou barbeiragem da nossa parte. Mas que aquilo era errado, isso era. Os pacientes não sabiam que éramos estudantes. Foram três meses nessa clínica. Uma paciente me deu trabalho. Ela, aparentemente, se apaixonou por mim e ficava dando mole o tempo todo. Constrangedor! — Você gosta de cinema? — ela me perguntava, com a boca cheia de algodão. — Sim, vou sempre com minha namorada, que está no consultório ao lado. — Ah, que menina de sorte! — Sim. Por favor, abra a boca, cuspa ali! Ali! Ali… no cuspidor! Certa vez, chegou um paciente com pulpite aguda. É uma dor absurda. A evolução da pulpite começa com sensibilidade moderada. O sujeito toma um analgésico. O quadro piora, ele percebe que se colocar gelo a dor passa. Depois de um tempo, não tem gelo que resolva. Uma dor aguda, pulsátil, terrível. A compressão do nervo dentário ocorre porque o sangue arterial invade a câmara pulpar do dente e estrangula o nervo. Um horror! Quando o paciente resolve ir ao dentista, a coisa já está incontrolável. Pois bem, o cara chegou uivando, 60  Lui z

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coloquei-o na cadeira, pedi calma e prometi que resolveria o problema imediatamente. Basta abrir o dente, o sangue escoa, a compressão do nervo cessa e a dor desaparece. Muito simples. Mas, pro paciente, você vira Deus. Ganhei muitos pontos naquela ocasião. O dono da clínica ficou sabendo e me chamou para dar os parabéns. Achei estranho, pois imaginava que ele soubesse que esse procedimento é corriqueiro e fácil de diagnosticar. Depois fiquei sabendo que, apesar das roupas brancas, ele não era dentista praticante, quiçá diplomado. Quanta picaretagem! Trabalhei em outras clínicas até me formar. A maioria era clínica popular. Uma, em São Caetano, foi especialmente horrível. Me indicaram esse lugar e eu fui conversar com o dono. Tinha uns três consultórios com equipamentos rudimentares. Normal, era uma clínica popular. Acertamos as condições de pagamento e voltei no dia seguinte pra trabalhar. — Esse será seu consultório. — O.k., onde está a estufa? — Não temos. Usamos germekil. — Germekil não esteriliza o instrumental. — Não se preocupe com isso, se precisar, tem estufa no outro consultório. Já achei estranho essa coisa de não esterilizar o instrumental. — Onde estão os tubetes de anestésicos? As agulhas descartáveis? — A gente reutiliza os tubetes que não foram utilizados por inteiro. Quanto às agulhas, te fornecemos uma por dia. — Mas não tem como usar uma agulha em vários pacientes. É perigoso! Tem hiv, hepatite… — É, quanto ao hiv tome cuidado com você, traga sua luva. Não se preocupe com a hepatite. — Não trabalho nessas condições! — Então, compre as agulhas você mesmo! Saí, comprei as agulhas, as luvas, atendi cinco pacientes naquela tarde e nunca mais voltei àquele hospício. Era uma prática comum nos anos 1980 entre os donos de clínicas populares. Tudo errado! Nem todas as clínicas estavam nesse nível. E quando achava uma com condições de trabalho, a remuneração era ínfima. Antes de me formar, já sabia que a odontologia tinha dois caminhos: o certo e o errado. Se você quisesse ficar rico, o caminho mais rápido era o errado. Tipo montar um Habib’s de dentista, fast-food mesmo. Bem desmotivador. CONTOS DE THUNDER   61

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No quarto e último ano da faculdade, eu não via motivo pra desistir de me formar. Isso já havia me passado pela cabeça algumas vezes, mas eu sou perseverante. Eu haveria de terminar o curso e pegar meu diploma. O ano de 1982 passou rápido, os momentos de descanso eram no apê do Marcelo, Eli, Argemiro e Mauro. Todos da odonto, Marcelo e Eli da minha classe. Ia pra lá, fumava um, saíamos pra beber. O Camelão era só depois das aulas, pra se encher de cerveja, mas nunca fui grande fã de bebidas alcoólicas. A vida estava meio besta. Meu namoro estava chato pacas, a gente se via, mas não tinha mais aquela chama. Além deles, eu tinha um colega de classe, Luiz Fernando Rondó, vindo do interior, super gente fina. Eu sempre tive a impressão de que ele havia estudado comigo no Objetivo. Permaneci com essa dúvida. Ele ficou sabendo que eu curtia a onda da Vanguarda Paulista, chegou pra mim e disse que seu irmão mais velho tocava guitarra com o Itamar. — Vamos num show no Teatro Bandeirantes? — Poxa, claro que vamos! Chegamos naquela de conseguir um par de ingressos com o irmão guitarrista. Rolou e entramos no teatro, na Brigadeiro Luís Antonio. Tocaram Grupo Rumo, Premê, Prosopopéia (Itamar) e, fechando a noite, entrou o Arrigo Barnabé e a banda Sabor de Veneno. Foi espetacular! A banda começou a tocar um dos temas seriais do Arrigo e ele foi embrulhando os músicos no palco com jornal. Sim, jornal! Eu fiquei sem saber o que estava acontecendo. Mas achei o máximo! Muitos anos mais tarde, Arrigo me explicou, na gravação do Thunderview, programa que apresentei na internet entre 2008 e 2010, que aquilo foi um protesto porque ele não teve tempo pra ensaiar com a banda. Que protesto maravilhoso! Arrigo, você é o máximo!

Uma luz aqui

Em 1982 aconteceu a Copa na Espanha. Aquele timaço espetacular do Telê Santana com Zico, Sócrates, Falcão e Cerezo dando show a cada jogo. Mas aquele jogo contra a Itália foi terrível. Lembro do Luciano do Valle narrando pela Globo, afirmando que ainda daria tempo de empatar e nos classificarmos. Não, Luciano, não dava mais tempo. Foi 3 × 2 para eles. E não havia mais tempo pra desistir da odonto. Já tinham ido quatro anos de faculdade. 62  Lui z

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Carlos Roque era amigo da Cibele. Ela nos apresentou e nos tornamos bons amigos. Roque era poeta, amigo do Jorge Mautner, do Roberto Piva, do Paulinho, um genial artista plástico que reunia toda essa turma em seu apê, na Vila Mariana. Eu era o jovem que colou nessa banca. Passei a ir a todos os shows do Mautner, ler seus livros, ouvir seus discos, seguir o artista onde ele estivesse se apresentando. As reuniões no apê do Paulinho eram fantásticas. Gente bacana envolvida nas artes em geral. A vida passou a ser dividida entre ir pra faculdade e encontrar essa turma sensacional. Certo dia, Carlos Roque disse que iria entrevistar Hermeto Pascoal pra revista Planeta, e perguntou se eu queria ir junto. Topei na hora! Já tinha assistido a vários shows do mago: no festival de jazz, no Teatro Cultura Artística… tinha também alguns de seus discos. Que oportunidade poder conhecer o monstro! Marcada a entrevista, fomos eu, Roque e alguns convidados. Fiquei só admirando o Hermeto fazendo sua magia. No final, eu me aproximei e ele mandou: “Rapaz, você tem uma luz aqui [apontando pra minha testa]. Isso é música. E ainda vai te fazer muito feliz!”. Caramba, Hermeto! Aquilo ficou na minha cabeça pra sempre. Teve um show do Mautner na fei, em São Bernardo do Campo, e lá fomos nós! Assistimos ao show e de lá resolvemos ir jantar. No carro estavam Jorge Mautner, Nelson Jacobina, Roque e eu dirigindo. Ofereci um baseado, que Mautner achou mais prudente fumar depois do jantar, na casa de alguém. Fomos ao Spazio Pirandello, na rua Augusta. Tinha uma mesa no porão reservada pra ele. Roberto Piva doidão, alucinando, Mautner falando de tai chi chuan, Roque rindo de tudo, eu me sentindo parte da turma. No máximo, mascote daqueles veteranos geniais. No show do Mautner na Metodista, tinha uns quatro estudantes de odonto na plateia. Já havíamos formado praticamente um fã-clube dele. Havia um grupo fora da curva na turma mais nova de odontologia. Dessa turma, tinha o Fernando, que propôs apresentarmos uma música no festival da faculdade. Era meu último ano, 1982, eu estava mergulhado no free jazz, nos discos do Grupo Um, na Vanguarda Paulista, no jazz rock e nos artistas do selo Pablo Records e ecm Records. Eu disse que topava, desde que não fosse nenhuma musiqueta pra ganhar o festival ou fazer a plateia cantar junto. E foi por aí. A gente ensaiou um dia uma música do Fernando e, na hora da apresentação, ele ao violão, eu num vibrafone e piano, fizemos a apresentação mais estapafúrdia, arrancando vaias colossais dos universitários. Quase CONTOS DE THUNDER   63

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deu tempo de bancar o Caetano e bradar: “Essa é a juventude que quer mudar o Brasil? Vocês não entenderam nada!”. Mas cortaram nossos microfones e saímos gargalhando do palco. “Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha. Avacalha e se esculhamba!”, dizia o Bandido da Luz Vermelha no filme do Rogério Sganzerla.

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Festa estranha com gente esquisita A festa de formatura estava se aproximando e sugeri uma casa noturna muito louca pra gente comemorar. Pauliceia Desvairada, do Nelson Motta, tinha planejamento visual de José Roberto Aguilar e o dj residente era o Júlio Barroso. Tinha também uma parede de tvs passando filmes do Bruce Lee, Kid Creole & The Coconuts a todo volume, que lugar bacana! Já estavam todos na festa, saí com o Roque pra fumar unzinho na avenida Faria Lima. Voltamos, passamos pelo bar e encontramos o Aguilar em pessoa, sozinho, bebendo alguma coisa. Sempre simpático, nos cumprimentou, dessa vez com um ar intrigado. — Rrrrroque, tudo bem? — Aguilar, esse é meu amigo Luiz. — Prrrazerrr, Luiz. — O que você tá fazendo aqui, Aguilar? — Venho aqui semprrre, mas hoje tem um pessoal estrrrranho, né? — Ah, são meus colegas dentistas, é nossa festa de formatura. — Hum… currrrrioso… Mas você também é dentista? — perguntou o Aguilar. — Sim, me formei há pouco. — Você não tem nada a verrrr com essa gente estrrrranha… Mais uma vez, alguém me dando aquela dica, chamando minha atenção pra distância colossal entre mim e a profissão que havia escolhido. Obrigado, Aguilar! De qualquer forma, estava eu ali, aos 21 anos, formado em odontologia, sendo chamado de doutor, pronto pro mercado de trabalho. Foi muito bom ter concluído o curso. Fiz cinquenta por cento por mim e cinquenta por cento pelos meus pais.

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Pé na estrada, mochila nas costas, fluxo de consciência viajando sem destino. Diploma na parede do consultório de dentista, canudo na mão, um ano sabático para viajar na viagem. Depois de se achar se perdendo nos beatniks, se embriagar na contracultura, se enxergar no cineclube da faculdade e se entorpecer plantando erva, um mergulho de cabeça em Águas Claras e um banho nas liras paulistanas de Itamar Assumpção. Alma lavada, um 1984 torcendo pelas Diretas Já e conhecendo o Nordeste sem roteiro e se reconhecendo para olhar no espelhinho do dentista na volta a São Paulo e se perguntar: “É isso que eu quero na minha vida? Cuidar dos dentes do país dos banguelas?”.

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ON THE ROAD

Com o diploma na mão, em 1983, fui atrás de trabalho. Mas aconteceu muita coisa ao mesmo tempo. Claro que eu estava feliz e ansioso pra trabalhar, ganhar meu dinheiro, movimentar minha vida. Uma colega que tinha se formado um ano antes na Metodista engravidou e ofereceu seu consultório para que eu trabalhasse no sistema de arrendamento. Ficava em São Caetano do Sul, o C do abc Paulista, mas muito próximo de Rudge Ramos, perto da Faculdade Mauá de Engenharia. Era uma oportunidade muito boa de começar minha carreira e criar clientela. Todas as instalações estavam ali, novas, eu usaria meu instrumental, comprado durante o período universitário. Estava bastante seguro e, no caso de um quadro mais complexo, poderia contar com meu irmão, que já tinha seu consultório em São Bernardo do Campo. Meus pais foram, de novo, muito legais comigo. Deram todo o apoio e um presente espetacular: meu primeiro carro. Um Passat Ts 1978, usado, mas espetacular! Depois, descobri que o carro tinha vários problemas. Comprado na Rudcar, concessionária localizada quase em frente à nossa casa, tinha garantia de um ano. Os automóveis daquela geração apresentavam muita ferrugem, esse viria a ser o problema principal. Mas o modelo que ganhei veio com uma direção esportiva, bem pequena, que me trouxe um problema seríssimo. Depois eu conto essa aventura. No último ano de faculdade, havia me aproximado mais da turma da comunicação. Especialmente de uma república que havia entre o campus e a minha casa. O lugar era chamado de “Fazendinha”, apesar de a única tentativa agrária ter sido a plantação e o cultivo de três pés de maconha. As madrugadas que passei ali, fumando, falando de música e poesia, de teatro e cinema, foram primordiais pro meu futuro. Nana, Oswaldo, Julio, Beto, CONTOS DE THUNDER   67

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Magda e Gilberto eram os residentes, mas havia uma tropa que ficava por lá. Nana era linda, doce, inteligentíssima, e sabia que eu tinha uma queda por ela, certamente. Em 2002, quando pensei pela primeira vez em escrever este livro, seria a Nana que faria as entrevistas para ilustrar essa biografia. Nunca fomos adiante. Em nada! Magda era, na época, namorada do Guilherme. Mas era tipo a mãe de todos, estudava psicologia e fazia parte da luta estudantil. Me explicou tudo sobre a Convergência Socialista e a Libelu (Liberdade e Luta), inclusive a musiquinha que tirava sarro dessa turma: — Me bate, me chuta, sou Liberdade e Luta! Magda estava na puc quando o coronel Erasmo Dias invadiu o Tuca, o teatro de lá, e desceu o cacete nos estudantes, em 1977. Guardo boas lembranças dela, sempre me dando conselhos, dicas e me contando suas aventuras de resistência à ditadura militar. Um dos frequentadores da Fazendinha era Joe, um estudante de teologia. Depois de um tempo, Magda e Joe começaram a namorar, se casaram e tiveram filhos. Um deles trabalhou comigo na mtv, em 2011. Que barato! Guilherme era o presidente da república da Fazendinha. Um líder, um conciliador, uma figura sensacional que estudava psicologia, mas iria se embrenhar pelos caminhos do teatro em breve. Nos tornamos grandes amigos! Em 1984, mesmo já fora da faculdade, montamos o Cineclube da Metodista. Era uma aventura ir até a Boca do Lixo, alugar os filmes em 16 mm e projetar no anfiteatro da faculdade. Inauguramos nosso ciclo com O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla. Tenho adoração pela obra dele, tanto que passamos esse filme umas três vezes. Eu ficava com um megafone anunciando e chamando os alunos no intervalo entre as aulas. Esse cineclube durou só uns poucos meses, porque nossa curadoria era muito cult. Cineastas como Luiz Sergio Person — pai da minha futura colega de mtv, a Marina —, Rogério Sganzerla e Julio Bressane não eram muito populares. Oswaldo era o poeta da turma, escrevia muito bem, vinha de Capão Bonito e tinha uma espiritualidade gigante. Depois de formado, tornou-se assessor de imprensa do emblemático Projeto sp, na Barra Funda, de Arnaldo Waligora, onde assisti aos shows mais legais da época, como Stray Cats, Devo, Tom Tom Club, Guana Batz, The Meteors, sempre regado aos docinhos lisérgicos produzidos na usp. Depois, nos anos 1990, Oswaldo enveredou pelo santo-daime, se mudou pra vila Céu do Mapiá, onde foi até prefeito. Grande figura! 68  Lui z

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Julio, também conhecido como Huguinho, era gigantesco e ameaçador. Mas, no fundo, era um santista tranquilão. Lembro de um show do Guilherme Arantes no auditório da faculdade que esgotaram os ingressos. Tinha uma multidão do lado de fora tentando invadir, e o Julio segurou a turba sozinho. O gigante gentil! Formou-se jornalista e atuou nas grandes emissoras de tv. Beto foi meu primeiro amigo recifense. O cara era o retrato falado (espiritualmente falando) do Caetano Veloso. Quando viajei pro Nordeste, no ano seguinte, nos encontramos pela última vez. Fico pensando se o Beto acompanhou o nascimento do Manguebeat. Talvez tenha se assustado com toda aquela cena genial. Gilberto Grekorin era daqueles estudantes que não estudavam mas faziam arte. Poeta, apaixonado pelos concretistas, formou comigo e com o Oswaldo um manifesto cultural do Modernismo ao Concretismo. Apavoramos o campus da Metodista durante uma semana. Gilberto acabou me emprestando uma de suas poesias pra uma música dos Devotos de Nossa Senhora Aparecida, em 1988. A música se chamava “Brains” e dizia “Pedras, mineiros/ Símbolos inteiros/ Destruição!/ Livre evaporação!”. George Germano havia cursado alguns anos de jornalismo e também frequentava a Fazendinha. Muito tímido, muito louco, foi o primeiro amigo que conhecia a música norte-americana dos anos 1970. Ele me apresentou Patti Smith e me mostrou que a música simples era genial. Enquanto eu ouvia Meredith Monk, George me mostrava Sex Pistols. Anos mais tarde, ficaria ainda mais próximo. Ele me carregou pro rock ‘n’ roll, dividindo essa responsabilidade com Danny Hotten. Com o tempo, faria parte de várias formações dos Devotos de Nossa Senhora Aparecida. Ele, Stiff e Joel faziam parte de uma subturma chamada de Neocínicos. Em 1985, depois do fim da minha primeira banda, Aerozów, montei os Neocínicos, que durou cerca de um ano. Chego lá daqui a algumas páginas. Lembro que plantamos dois pés de maconha no terreno atrás da Fazendinha. Um deles era macho, o outro, fêmea. A tal fêmea foi raptada quando atingiu um metro e oitenta de altura. Depois descobrimos que tinham sido Stiff e Joel. Imagine a seguinte cena: dois jovens desenterram um pé de maconha, saem por Rudge Ramos com aquela pequena árvore no ombro, escondem a vítima no apê do Stiff, tudo na molecagem. Houve uma séria investigação durante um tempo, até que descobrimos quem foram os sequestradores. Claro que não deu em nada. Nem pros meliantes! CONTOS DE THUNDER   69

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A primeira quase morte

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Stiff e Joel protagonizaram a primeira vez que quase morri. Certo dia, resolvemos ir para Paranapiacaba fazer uma trilha. Pegamos o trem, chegamos à cidadela, descemos a serra até o famoso Poço das Moças. Fumamos uma bomba e pow! Tive uma hipoglicemia gravíssima. Não conseguia dar dois passos. Acontece que Stiff praticava alpinismo havia algum tempo e não pensou duas vezes: me colocou nas costas e subiu a montanha toda me carregando tal qual um bebê. Valeu, Stiff! Se tivesse ficado por lá, certamente não estaria aqui, escrevendo estas memórias. Lembro que pegamos o trem e fomos direto pra casa da avó do Stiff. Ela fez um jantar à base de refogado de carne moída e legumes. Eu comi muito! Stiff, depois de um tempo, foi cuidar da bombonière da mãe dele no mercado municipal de Rudge Ramos. Sempre passava por lá pra trocar uma ideia com ele. E o Joel foi o responsável pela minha aproximação com a turma da Vila Alpina. Mas depois eu conto essa história!

A primeira noiva

Minha frequência no campus me afastou do que restava do meu relacionamento com a Alê. Ao mesmo tempo, me aproximou da turminha descolada que cursava prótese à noite. Eu saía do consultório e passava na Metodista, antes de ir pra Fazendinha. Foi assim que conheci Inez, que acabara de entrar no curso. Nos apaixonamos rapidamente. Nos víamos todos os dias, nos divertíamos muito juntos. De família muito católica, Inez tinha uma mãe adorável, que fazia um delicioso cozido de carne e legumes. Se você tem fome e precisa de uma comida confortável e saudável, escolha cozido. Fica a dica (desculpem os vegetarianos). A gente dava uns pegas, fumava um e chegava tarde da noite, depois das aulas da Inez, e sempre havia o tal cozido da mãe dela nos esperando. Tinha uma tia dela que era leitora compulsiva da revista Veja. Foi assim que conheci os textos de Roberto Pompeu de Toledo. Muitos anos mais tarde, iria trabalhar com o filho dele, Danielzinho Slowly Pompeu, no meu programa mais louco da mtv, Contos de Thunder. No consultório, tinha uma clientela razoável, formada principalmente por alunos da Metodista. Tudo ia bem; depois de uns dois meses de namoro, fiquei noivo da Inez, compramos alianças e tudo. Minha rotina era acordar, ir pro consultório, trabalhar até as seis da tarde, passar na faculdade, ficar com a Inez, 70  Lui z

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levá-la pra casa e voltar pra Rudge Ramos, onde, invariavelmente, parava na Fazendinha pro último baseado do dia. Rotina, rotina…

Pé na estrada

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Em pouco mais de um ano, a vida ficou besta. Eu havia mergulhado nos lançamentos da lp&m, que me trouxe os escritores beatniks: Allen Ginsberg, William Burroughs, Lawrence Ferlinghetti, Neal Cassady e Jack Kerouac. A contracultura sempre me fascinou. No inverno de 1984, Guilherme revelou que faria uma viagem pelo Nordeste brasileiro. — Quer ir também? — Poxa, tem o consultório, a Inez, sei lá… Eu havia me aventurado pelo Festival de Águas Claras no ano anterior e foi uma empreitada e tanto. Fomos eu e Inez, e demos carona pro meu amigo fotógrafo zen-budista Tanaka. Passamos na casa do meu padrinho, tio Joubert, em Bauru, pra tomar um café. A viagem foi bacana até chegar às fronteiras do evento. Uma fila absurda pra entrar com o carro, Inez querendo ir ao banheiro, eu sem uma alternativa, Tanaka mantendo a calma. Ficamos todos numa barraca imensa, eu e Inez num compartimento só nosso. No primeiro dia teve Raul (ele entrou e despencou do palco!), Moraes Moreira, foi tudo lindo até o momento em que perdi meus óculos e não achava o caminho de volta pra barraca. Depois de muito procurar, achei os óculos e a barraca. Inez ficou muito contrariada com as instalações precárias e reclamava muito. Mas conseguimos algumas horas de sono na superbarraca. Acordei com meu braço pra fora, com o som de motocicletas rodando à nossa volta. Levantei uma fresta e vislumbrei uns hells angels tupiniquins fazendo seu ritual de apavoramento. Inez enlouqueceu e resolvemos partir imediatamente. Foi tenso! Por causa disso, achei que ela não suportaria a onda on the road. E, como já disse, a vida estava besta demais e tomei a decisão de tirar um ou dois meses sabáticos pra analisar minhas perspectivas. E lá fomos nós, Guilherme e eu, pra Maceió, nossa primeira parada. Num ônibus lotado, paramos depois de 24 horas de viagem numa cidadezinha na fronteira entre Minas e Bahia. Tinha uma agência dos Correios e um posto com uma lanchonete bem horrível. CONTOS DE THUNDER   71

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Chegamos a Maceió e ficamos hospedados na casa de um amigo do Guilherme que havia estudado na Metodista. Ele tinha uma prima, Ana Maria Jatobá, que pessoa legal! Ficamos amigos imediatamente. Sobrevivendo com muito pouco dinheiro, tínhamos umas cartas na manga. No caso, não eram cartas, mas calcinhas pintadas à mão, feitas pela cunhada do Guilherme. Isso bancou no máximo umas doses do drinque que inventei na cidade: suco de graviola com vodca. Ficamos duas semanas em Maceió, mas tínhamos planos de ir para Recife. — Vamos pra lá quando? Não aguento mais importunar por aqui — disse, com toda minha sinceridade. — Vamos amanhã? — falou Gui, sendo o diplomata de sempre. — Tô meio duro pra passagem… — comentei, antevendo uma solução óbvia. — Vamos de carona, vai ser bacana! Fomos pra estrada e ficamos algum tempo com o polegar em riste. De repente, parou um carro e nos convidou pra entrar. Era um médico que iria na direção que queríamos, mas iria parar exatamente na divisa entre Alagoas e Pernambuco. Claro que aceitamos. Imagine dois jovens meio hippies numa rodovia pedindo carona: você pararia pra dividir a viagem? Foi muita sorte! Como combinado, o tal médico nos deixou num vilarejo minúsculo na fronteira. Descemos num posto de gasolina, tomamos água e ficamos na beira da estrada esperando o próximo gente fina. As horas passavam e nada de conseguirmos carona. Em determinado momento, percebi uns meninos se aproximando com estilingues na mão. Já estava me preparando para sofrer um ataque quando eles começaram a acertar passarinhos. O bizarro é que eles acertavam os passarinhos, pegavam os pobrezinhos na mão e abriam os bichinhos vivos na unha e nos dentes. Eu e o Gui assistimos boquiabertos à demonstração, e os meninos rindo da gente. Pra mim, era um recado: — Sumam daqui, seus hippies imundos! Percebi que boa parte do vilarejo tinha parado pra nos observar já havia algum tempo. No desespero, fui pro posto de gasolina. O primeiro carro que parou tinha a placa de São Bernardo do Campo. Nem dei chance de argumentação: — Olá, tudo bem? Estamos sitiados aqui há horas. Somos de São Bernardo também. Precisamos sair daqui, estamos com medo! Pelo amor de Deus, nos tire daqui! E fui entrando no carro. O sujeito nem teve tempo de dizer que não era da nossa cidade. Cedeu aos nossos olhares desesperados e seguimos viagem.

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A poucos quilômetros dali, ele parou num posto da Polícia Rodoviária e pediu pro vigilante revistar nossas bagagens. Em vez de drogas ou armas, acharam a sacola de calcinhas pintadas à mão. Ninguém conteve as gargalhadas. O nosso salvador pediu um milhão de desculpas pela desconfiança e nos levou pro Recife. Ainda pedimos uma dica de onde ficar e ele nos conduziu até a Casa do Estudante de Engenharia do Recife. Nos receberam muito bem, um quarto só pra gente. Os estudantes só queriam saber das Olimpíadas em Los Angeles. A gente queria entender Recife, a cidade toda, e começamos pela Universidade Federal de Pernambuco. Beto havia se transferido pra lá e fomos ao encontro dele. Paulo Freire, Joaquim Nabuco, entre outros, haviam estudado lá. Pensei que o Beto estaria empolgadíssimo com isso, mas ele pareceu deprimido. Foi estranho ver o nosso Caetano numa bad vibe. Dali, fomos a um teatro, não lembro o nome, pra assistir ao show do Itamar Assumpção. Chegamos durante a passagem de som. Depois de a banda se acertar no palco, cheguei no Itamar e mandei… — E aí, Itamar! Tudo bem? — Tudo. — Legal conseguir ver um show seu por aqui. Te acompanho desde 1978, naquele festival da Cultura. Ele não respondeu, só ficou me olhando. — Daqui vocês vão pra onde? — São Paulo. — Poxa, que legal. Posso ir com vocês? — Claro… — começou — … que não! Primeiro fiquei decepcionado, depois percebi que estava numa onda muito hippie. Que ideia foi aquela de pedir carona pro ídolo? Que vergonha! A praia de Boa Viagem foi a coisa mais bonita que já tinha visto. Estamos falando do começo dos anos 1980, portanto, não havia tubarões partindo surfistas ao meio. Mas a grande aventura foi em Olinda. Se havia um lugar onde poderíamos desovar nossas calcinhas, seria ali! Chegamos primeiramente no Maconhão, uma série de barzinhos de madeira, com vitrolinhas, vinis a escolher, jovens felizes e o famoso retetéu, um drinque que misturava um monte de bebidas e transportava a vítima pro espaço. Depois de umas doses, fomos aonde os expositores vendiam seus produtos típicos. Comida, rendas, objetos em couro, instrumentos musicais e nós, com as calcinhas. Alguém nos emprestou uma toalha e dispusemos nosso “material” na calçada. Passaram-se horas até CONTOS DE THUNDER   73

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que um marinheiro francês apareceu, acompanhado por três garotas locais. Ele comprou doze calcinhas. Foi uma festa! Descemos até o Maconhão e começamos a maratona retetelesca. Ao amanhecer, me encontrei no forte, ali bem próximo, acompanhado de uma recifense linda, canhão carregado, uma manhã de amor. Inesquecível. Só voltaria ao Recife pra inaugurar a mtv local, no começo dos anos 1990. Lembro bem, teve show do Lulu Santos num ginásio, Lulu ainda muito simpático, tudo muito animado. Ah, mtv, obrigado por ter sido tão legal comigo. Nosso estoque de produtos íntimos femininos estava no fim, o dinheiro também. A solução óbvia era seguir em frente. — E agora, Gui? — Conhece Salvador? — Não, mas não conheço ninguém lá. — Lembra da Débora? Débora era uma garota gigante, estilo Crumb,* que estudou na Metodista na minha época. Muito bonita e alta! Acho que o Gui já tinha tido um lance com ela. Ele garantiu que, se conseguíssemos chegar a Salvador, tudo estaria bem. O dinheiro das calcinhas mais uma reserva prudente que eu tinha guardado pra emergências médicas foram o suficiente pra nos levar pra Bahia. E foi assim mesmo. Débora nos recebeu na rodoviária e nos levou pra casa de um arquiteto que havia restaurado um casarão pra usar de moradia. Fomos tão bem tratados em Salvador que a cidade me faz bem até hoje. Chego a Salvador e só acontece coisa legal. Na total vagabundagem, a rotina era ir pra praia Vermelha, passar o dia por ali. Na ida, a gente parava numa barraquinha de acarajé, a baiana da vez nos dava um exemplar pra cada um sem recheio, de graça. Na volta, a mesma coisa. Depois de um tempo, as baianas da barraquinha caprichavam no recheio de camarõezinhos. Lembro de uma delas que me chamava de gringo com um sorriso maravilhoso. Nunca precisei pagar nada em Salvador. Gentileza gera gentileza? Simpatia gera simpatia! Conheci o Pelourinho, que me pareceu, já na época, bastante turístico. Lembro de uma garota se aproximar e, em vez de perguntar meu nome, avançou nas minhas partes pudendas, num convite ao amor equatorial. Quente! Só que não rolou. * Referência ao quadrinista americano Robert Crumb, conhecido por desenhar mulheres grandes. 74  Lui z

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A gente nessa viagem, e a Vanguarda Paulista nos seguindo. Arrigo Barnabé estava por lá e faria um show num circo à beira-mar. Claro que fomos. Dessa vez, ouvimos o show de fora. Eu já sabia tudo sobre o movimento e isso me rendeu certo status entre os soteropolitanos. Estávamos sem maconha, mas Débora nos indicou um lugar pra comprar um pouco da erva local, servida em belotes, que é a erva em estado natural, não prensada, muito rara na época, pois a maconha consumida em São Paulo vinha do Paraguai, superprensada. Fomos até uma pensão próxima à praça Castro Alves, que ficava pendurada na encosta. Entramos no local e descemos muitos degraus. Lá embaixo, fomos até o fim do corredor, pois o quarto do traficante era o último. Um quarto de uns 2 × 3 metros, com uma janelinha de trinta centímetros. Experimentamos o bagulho e ele sugeriu que eu desse uma olhada pela janelinha. Só se via o mar, lindo, azul; o céu, o vento que soprava, tudo muito bonito. O fumo era bom, mas fiquei imaginando acordar todo dia e olhar por aquela janelinha. Subimos e, quando chegamos à praça, eu já estava completamente doido. Que viagem! Depois de mais de uma semana, comendo acarajé, morando na casa do arquiteto, a vida ficou besta. Guilherme voltaria pra Maceió, pois Ana Maria havia se mostrado interessada num segundo round com ele. Resolvi voltar pra São Paulo, a fim de decidir o que fazer da minha vida. Gui e Ana Maria começaram a namorar e ela se mudou pra São Paulo. Ana Maria Jatobá, inesquecível, que saudade! Eu cheguei em casa pra descobrir que eu podia fazer um novo vestibular pra história ou dar um jeito na minha carreira de cirurgião-dentista. A tentação de fazer vestibular pra história era grande, mas veio o peso de tentar algo sério com a profissão que deu tanto trabalho pra me formar.

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Rock in Rio, 1985. Três anos depois da explosão do rock no Brasil, e um pouco antes da implosão do Adrenalina quando Raul Seixas não atendeu ao grito de “toca Raul”. Do pó viemos, e ao pó voltou depois do consultório on the rock ‘n’ roll, com anestesia e rádio-vitrola para os pacientes. Virando o Baldão ao avesso nas noites, enfim virando um roqueiro, e de três bandas: Aerozów, Neocínicos e os Devotos, que nasceram na Semana Santa de 1986. Em 1987, estrearam no Faustão, depois dos Demônios da Garoa, os Devotos do ABC, que também tocavam no Madame Satã. Deus e o diabo na terra do Tanjal, o primeiro comercial de TV, antes da primeira gravação no estúdio do Joelho de Porco. O motorzinho de dentista parecia anestesiado.

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UM CONSULTÓRIO E TRÊS BANDAS

Voltei da viagem ao Nordeste em 1984 com duas possibilidades à vista: mudar o rumo em direção à música ou me jogar na odontologia de vez. E então aconteceu que a dona do consultório em que eu trabalhava resolveu vender seus equipamentos, e eu resolvi comprá-los. Assim nasceu o consultório de Luiz Fernando Duarte, cirurgião-dentista. Achei uma sala bacana no centro de São Bernardo do Campo e em um mês estava tudo pronto pra iniciar minha caminhada. Claro que fiquei animado com as possibilidades. O lugar era bom, tinha um bar bem próximo que servia uns bolinhos de carne deliciosos e onde rolava o happy hour. Minha clientela aumentou, meu relacionamento retomou fôlego, minha família estava feliz com a minha decisão. O futuro seria bastante estável, confortável, exemplar. Foi assim por um tempo. Eu tinha uma secretária, Érica, que fazia a parte dela. Decorei a sala com pôsteres de filmes, levei meu toca-discos Garrard, minhas caixas Polyvox e meus melhores discos. Fazia parte do atendimento escolher um bom álbum pra atender os pacientes, e fugir do muzak habitual de sala de espera de consultório. Mas desde 1982 o rock brasileiro vinha acontecendo, e eu fiquei muito empolgado com isso. George, aquele amigo que eu encontrava na Fazendinha, trabalhava numa agência de publicidade bem perto do meu consultório. Começamos a nos ver regularmente. Ele trabalhava com o Hulk, desenhista, e Danny Hotten, que havia estudado comigo no Celga. George e Hulk só falavam em montar uma banda de rockabilly, e assim nasceu a Kães Vadius. Havia uma casa noturna bem grande, recém-inaugurada em Rudge Ramos, chamada Adrenalina. O Ira! se apresentou lá, fui ao show, e sonhei que seria CONTOS DE THUNDER   77

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muito legal ter uma banda de rock. Nesse meio-tempo, a Cibele tinha indicado um paciente pra mim, um chileno que estava temporariamente no Brasil desovando uma carga de cocaína que havia trazido da Bolívia. Muito discreto, deixou aberta a possibilidade de pagar o tratamento com o produto tipo exportação. Na época, achei a ideia interessante. Além disso, o tal chileno trabalhava com a namorada na Adrenalina. Além de ótimo pó, tinha entrada e bebidas liberadas na casa noturna. Foi uma onda forte! Minha relação com a cocaína começou por acaso, numa noite na antiga república estudantil, a Fazendinha. Numa determinada noite, apareceu um sujeito com alguma quantidade da droga. Ofereceu a todos, eu experimentei e achei uma interessantíssima novidade. Mas o acesso à cocaína era muito restrito. Eu não conhecia lugares para comprar pó. Nada que um grande fã não consiga resolver com o tempo. Fui a inúmeros shows, sempre animado pelo melhor pó da América Latina. Curti a parada! Mas não durou muito tempo. Nem o pó, nem a Adrenalina. Depois de vários shows bacanas, os donos da casa resolveram agendar o Raul Seixas. Raul já era um deus do rock, especialmente no abc Paulista. Claro que eu não iria perder aquilo por nada. Chegou o grande dia, e fui até lá pra ver o ídolo. Já passava das nove da noite, e o Alfredo, grande colecionador de discos que trabalhava na bilheteria, garantiu que Raul não havia chegado. Saí pra arrumar algum estimulante. Voltei às onze, e o Raul não tinha ido nem passar o som. Saí de novo, pra reforçar o estimulante. À uma da manhã dei outra passada, e nada de Raul. Achei estranho, mas fui dar um rolê pra estimular o estimulante. Passei de novo às duas, três, quatro da manhã. Raul não deu as caras. Na minha última rodada por Rudge Ramos pra terminar minha dose de estimulante, os donos da Adrenalina entenderam que o rei não iria aparecer. Um dos sócios foi ao microfone, no palco, e anunciou: — Boa noite, queria dizer pra vocês que aquele filho da puta do Raul não vem! Não deu tempo nem de anunciar que ele devolveria o dinheiro dos ingressos. A turba começou a destruir o lugar. Detonaram a Adrenalina, os carros que estavam no estacionamento, e deixaram um rastro de devastação pelo caminho. Minha teoria é de que o tal sujeito podia ter anunciado o cancelamento do show, mas chamar o Raul de “filho da puta”, jamais! Foi o fim da Adrenalina! Por outro lado, foi o começo da minha primeira banda de rock. 78  Lui z

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Aerozów

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No dia seguinte, me encontrei com Danny Hotten, na época conhecido por ser um guitarrista excepcional, e resolvemos montar o Aerozów. Danny pediu emprestada uma guitarra Giannini Sg, eu pedi emprestado um baixo Phelpa, com escala de guitarra. Ele era horrível, branco com um arco-íris, mas o pior era que estava tão empenado que a corda mais grave (mi) pulava pra fora do braço. Usávamos um amplificador Bag Giannini pra ligar o baixo, a guitarra e o único microfone. Se tudo isso era complicado, nosso “baterista”, Marcos Veia, usava um repique ridículo apoiado numa caixa de cerveja e um chimbal tosco. De longe, era o pior músico do trio. Mesmo assim, os primeiros ensaios, no quintal atrás de casa, atraíram a vizinhança.

Rock do ABC

Meu destino estava traçado. Haveria de ter uma banda pra chamar de minha. Desde então, nunca mais parei de tocar, montei dezenas de bandas, a música tinha tomado conta de mim. Danny Hotten era um sujeito muito inteligente, meio esquisito, mas sabia muito de rock, tinha um humor ácido e ideias incríveis, tocava guitarra muito bem, desenhava pacas. O nome da banda veio da cabeça dele, chamar o Veia foi ideia dele, me arrastar pro rock foi ideia dele. Passamos a nos ver com muita frequência: ele chegava em casa de manhã, esperava eu acordar e ficava conversando com a minha mãe, tomando cafezinhos e fumando Marlboros. Eu dava bom-dia, trocava umas palavras e ia pro consultório. À noite, depois de ver a Inez na faculdade, encontrava com o Danny e fazíamos planos. Seríamos a primeira banda de psychobilly do Brasil. A gente cultuava Chuck Berry e The Cramps. Nossos amigos dos Kães Vadius estavam mais adiantados em tudo. Ensaiavam na casa do George Germano, guitarrista e compositor — que depois, na Devotos, se tornou George Johnson —, tinham um baterista excelente, Denis Animal, um baixista gente fina, Paulo Bidê Pow e um vocalista endiabrado, Hulk. George morava em Rudge Ramos. Nos fins de semana, eu ia assistir aos ensaios deles. Depois da minha volta da viagem, meu relacionamento com Inez ficou um pouco abalado. Eu via a situação e me dava certa angústia quanto ao futuro. CONTOS DE THUNDER   79

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Dentista. Noivo de uma técnica em prótese dentária. Casado. Filhos. Marasmo. Por outro lado, via alguma perspectiva de mudar o rumo. O contato com o rock do abc me fez acreditar que era possível.

O fim do Aerozów

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Lourdes Dall’Anese, uma figura bárbara, filha de uma das famílias mais abastadas e influentes de São Caetano do Sul, montou um jornal em Rudge Ramos chamado Rocker. Imediatamente, George, Danny e Hulk foram trabalhar nesse jornal alternativo. Foi ali que conheci a turma dos Garotos Podres, inclusive Kimura, o punk mais autêntico do Brasil. Ficamos amigos, ele virou meu paciente, ouvíamos o álbum Crucificados pelo sistema, da banda Ratos de Porão, durante as sessões odontológicas. A coisa ia tão bem no Rocker que Lourdes resolveu ampliar o jornal e transformá-lo também numa gravadora independente. Foi assim que os Garotos Podres fizeram seu primeiro disco, Mais podres do que nunca. Nos tornamos amigos e passei a acompanhar os shows da banda. Mauro e Sukata não conseguiam afinar seus instrumentos, e eu me sentia parte da turma, cuidando vez por outra desse detalhe. O lançamento do disco foi no Carbono 14, melhor e mais emblemático centro cultural alternativo da época, no Bixiga. Antes do show, numa sala de cinema, passaram o documentário Punk Can Take It (1979) com a banda U.K. Subs. Garotos Podres entrou, arrebentou, os carecas dominaram a cena, eu fiquei de canto. George arriscou um pogo e foi derrubado e pisoteado, quebrando a mão. Tudo muito intenso, violento e divertido. O próximo passo nessa escalada seria o disco dos Kães Vadius. No último ensaio da Aerozów, o clima estava ruim. Danny estava sempre muito louco, louco demais. Resolvemos encerrar por ali. Disse ao Danny e ao Veia que iria comprar um saxofone e propor aos Kães que eu participasse da banda. Passados poucos dias, George me liga contando que entrariam finalmente em estúdio, num contrato com a gravadora independente Ataque Frontal. A gravadora era do Redson, da banda Cólera, e do Renato Martins, que viria a ser meu empresário por pouquíssimo tempo na Globo, em 1994. O André Christovam iria produzir e (pasmem!) o Veia tinha entrado na banda pra tocar sax. Nem falei nada pro George sobre o Veia, apenas que o Aerozów tinha acabado. 80  Lui z

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Rock in Trindade

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Não apenas minha primeira banda foi pro espaço como meu relacionamento com Inez terminou. Não estávamos bem desde a minha volta da viagem ao Nordeste. O rock ‘n’ roll nos afastou ainda mais, e decidimos romper o noivado. Havíamos falado de ir à primeira edição do Rock in Rio, em janeiro de 1985, mas quando soube que ela iria de qualquer maneira, virei em direção oposta. Decidi ir com os amigos da Fazendinha pra Trindade que, naquela época, era uma praia quase deserta. E lá fomos nós! Passamos em São José dos Campos, compramos meio quilo de maconha e fomos primeiro pra São Luiz do Paraitinga. Eu tinha o disco da Grupo Paranga e já tinha visto alguns shows deles. Eles eram da cidade, então, me senti em casa. À noite, bebemos várias doses de luizense, a cachaça local, e acampamos embaixo da ponte. Hippies! No dia seguinte, encaramos a “Deus me livre”, ribanceira que dava acesso a Trindade. Um lugar lindo, com uma minúscula comunidade de pescadores, nós numa barraca, prontos pra desvendar as praias dali. No primeiro dia, a primeira surpresa. Estava voltando para nosso acampamento, vindo do bar local, quando dou de cara com Ná Ozzetti. Fiquei paralisado, encarando-a tipo fã/ stalker. Acho que ela ficou assustada comigo, tanto que apressou o passo na direção oposta. À noite, na solidão da praia, sem luz elétrica, fui até o carro e liguei o rádio. Passeando no dial, achei uma transmissão ao vivo do Rock in Rio. Era Lulu Santos cantando “De leve”. Pensei na Inez, na Ná Ozzetti, fumei uma bomba, tomei um gole de luizense e decidi que montaria uma nova banda assim que voltasse pra casa.

Neocínicos

Encontrei o amigo Joel, aquele que tinha raptado o pé de maconha da Fazendinha, e ele me falou de uma turma bacana na Vila Alpina. Eles estavam montando uma rádio livre, a Radionisius. Eu já andava muito por São Caetano e dar um pulo na Vila Alpina era fácil, ainda mais passando pela Vila Califórnia, melhor boca de fumo e de pó daquela região. A rotina mudou um pouco, pois agora eu saía do consultório e ia pra Vila Alpina. Eu havia tentado reformar meu Passat Ts, que apresentou diversos pontos de ferrugem. Claro que não consegui e tive que vender meu primeiro automóvel por uma ninharia. Sem carro, ia CONTOS DE THUNDER   81

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a pé pra Vila Alpina pra encontrar a turma. Sempre à noite, voltava também a pé, chegando na alta madrugada. Acordar de manhã ficou difícil, e o consultório passou a funcionar apenas seis horas por dia. Não poderia dar certo! Ao mesmo tempo, a turma da Radionisius era incrível. Em menos de uma semana, montei a minha segunda banda, chamada Neocínicos. A gente ensaiava na casa da Vânia Vera, ex-esposa do Jimmy, o líder da rádio. Eu tocava uma guitarra que meu paciente, amigo e músico Tico Bonfá me emprestou. Era uma Giannini Sg preta muito legal. Conheci Tico Bonfá ainda na Metodista, quando ele participava dos festivais com boas composições. Era acompanhado pela banda Ponta Cristal, com músicos ótimos, incluindo Paulo França, que depois foi tocar com Caetano Veloso e Maria Bethânia. Foi nessa mesma época que conheci Ney Abbud e Ricardo Feltrin, este, pianista, que se tornou grande amigo. Até namorou minha irmã! Somos grandes amigos até hoje. Os Neocínicos caminhavam pra um lado bem cabeçudo. Eu musicava poemas do Paulo Leminski, entrei numas de compor umas letras baseadas na poesia mais livre, com elementos pops, emulando um Caetano Veloso roqueiro. As minhas bandas preferidas nessa época eram Smack, uma das tantas em que tocava o Edgard Scandurra, Thomas Pappon, o Pamps, e Sandra Coutinho. Tinha a banda Fellini, ainda do Pappon e do Cadão Volpato. As Mercenárias, da Sandra Coutinho, também fazia muito a minha cabeça. Minhas composições jorravam com extrema facilidade. Rapidamente, tínhamos um repertório legal pra ensaiar. E os ensaios eram regulares, nos fins de semana. Estava solteiro, e a frequência na casa da Vânia despertou uma paixão muito grande entre nós. Ela tinha se separado do Jimmy havia um ano. Aconteceu gradativamente, assim como nossa aproximação. Mas ao mesmo tempo que estávamos felizes com o romance, o Jimmy ficou aparentemente chateado com isso. Fiquei mal com a situação, pois constava que não havia nada entre eles. Quando percebi o clima estranho, perguntei a todos o que estava acontecendo e as respostas foram unânimes: “Tá tudo bem!”. Inclusive do Jimmy. Não estava. Ele se afastou da banda. Teve uma vez, depois de algum tempo, que ele foi no Casagrande Bar. Embora não bebesse, naquele dia estava sob o efeito do álcool. Estávamos no boteco embaixo do Casagrande quando eclodiu uma briga. Era o Jimmy dando uma surra olímpica em dois carecas do abc. Apartados, percebi que ele estava bem mal com tudo aquilo. Não com a surra que ele havia impingido nos carecas, mas com a situação que estávamos vivendo. Com o tempo, a banda foi se desmanchando. Não 82  Lui z

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era a mesma coisa. Já era 1986, havíamos feito alguns poucos shows, mas o desânimo tomava conta de mim.

Devotos de Nossa Senhora Aparecida

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Foi nesse momento crítico que o George me procurou e me disse que eu tinha que voltar pro rock. Que o Neocínicos era muito cabeça. — Tô meio perdido com esse lance da música. Não sei o que fazer, George. — Aparece no Baldão que você retoma sua estrada no bom e velho rock ‘n’ roll. — Veja bem, Varsóvia lançou um disco, Garotos Podres lançou um disco, Kães Vadius lançaram um disco. Eu tenho que, no mínimo, ter a perspectiva de um dia lançar um disco. — Nesse feriado a turma toda vai estar no Baldão. Te espero por lá!

A volta pro rock

O George é tipo meu guardião, sempre foi, sempre será! Com o tempo, ele se aproximou muito mais e fizemos muita coisa bacana juntos. O feriado em questão era a Sexta-feira Santa de 1986. Lá fui eu pra São Caetano, me encontrar com o George, o Danny, o Hulk, a turma toda. O Baldão Bar tinha esse nome por causa da bebida oficial da turma. A receita era simples: pega-se um balde, despeja-se uma garrafa de pinga e três refrigerantes pequenos, mistura-se e pronto! Um horror! Mas era o que tínhamos na época. Quando a grana da cerveja acabava, sempre tinha a reserva pra levantar um baldão. Quando cheguei, Danny Hotten veio até mim com um sujeito meio estranho, muito sério, que já havia visto dirigindo um Simca Chambord vermelho. Seu nome era Diez, e depois de feitas as apresentações, ele mandou: — Eu trabalho na Villares, corro de automóvel, mas quero entrar numa banda. — Vamos fazer isso, Luiz! — disse o Danny. — Vamos! Estou precisando de algo super-rock! — respondi. — Precisamos de um nome… CONTOS DE THUNDER   83

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Do nada, surge Denis Animal, baterista dos Kães, e manda com sua voz rouca e risada de Muttley… — Porra! Hoje é Sexta-feira Santa. Que tal Devotos de Nossa Senhora Aparecida? A gente não pensou duas vezes! Obrigado, Denis! Tudo que uma banda precisa é de três caras querendo um pouco de barulho e um bom nome. Estávamos prontos!

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Circuito do rock

Baldão Bar veio na sequência de outro ponto de encontro dos roqueiros do abc Paulista, a Galeteria. Não suporto a ideia de consumir carne de frango e seus derivados; nuggets, só os musicais! Mas a Galeteria, localizada na avenida Goiás, em frente à Concha Acústica de São Caetano do Sul, aglutinou nossos primeiros planos de ocupar o espaço musical da região. Quando surgiu o Baldão Bar foi um alívio pra mim. Adriano, o proprietário gente fina, acolheu os roqueiros com cerveja, baldes, mesas de sinuca e som ambiente. Aquilo virou um club house de rock. Ali se reuniam todas as facções do rock: rockabillies, punks, carecas, heavies, hard rockers, tudo em harmonia, impressionante! Enquanto isso, meu consultório dentário seguia funcionando apenas seis horas por dia. Em 1986, eu trabalhava já pensando no fim da jornada — em encontrar o pessoal da banda, ou ir a um show ou passar no Baldão Bar. Meu relacionamento com a Vânia ia bem, a gente se divertia muito, gostava de música, tudo ia na direção das artes. O primeiro show foi no lançamento da candidatura de um vereador do pt. Foi no Lions Club, na avenida Brigadeiro Luís Antônio, em São Paulo. Vânia era secretária do presidente da cut, Jair Meneguelli, e assisti ao crescimento do partido bem de perto. Anos mais tarde, o aniversário de Jair foi no Espaço Retrô, melhor clube de rock em sua época. Os Devotos tocaram na festa, com a presença de Lula, entre outros capas pretas do pt. Era chegada a hora de estrearmos no circuito do rock paulistano. Eu tinha um mapa desse circuito: Madame Satã, Ácido Plástico, Zoster, Rose Bom Bom, Espaço Mambembe. O Ácido Plástico ficava ao lado do Carandiru, instalado numa antiga igreja. Sim, uma igreja transformada em clube de rock. Era 84  Lui z

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perfeito para o lançamento dos Devotos de Nossa Senhora Aparecida. A banda estava ensaiando regularmente, já sem Danny Hotten. Ele não conseguia se segurar mais; em seu lugar entrou o Nivaldo. Na bateria, Bráulio; no teclado, Diez; eu no baixo. O repertório era bem limitado. Apesar disso, gravamos uma fita demo, que tratei de levar para as casas noturnas. Gravamos essa demo num estúdio na Vila Mariana, sem nenhuma experiência, produtor, nada! Tenho um exemplar até hoje.

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O primeiro programa na TV

Pro show no Ácido Plástico, a casa contratou um assessor de imprensa, que nos levou ao programa Perdidos na Noite, apresentado por Fausto Silva na tv Bandeirantes. Tocamos logo depois dos Demônios da Garoa. Aquela noite foi surreal. Faustão nos chama ao palco e manda: — Esses são os Devotos de Nossa Senhora — ele disse, esquecendo do “Aparecida”. — Vocês estão lançando um disco, né? — Não, a gente lançou uma fita demo — explicou Diez, gaguejando. — Porra! Mas vocês têm contrato com uma gravadora, né? — N-não… — falou Diez, suando. — Caceta, que cara de pau! Vocês estão ao vivo para todo o Brasil. Vamos ver no que dá! — desafiou um Faustão meio contrariado. Deu merda, claro! A gente tocou uma música engraçadinha chamada “Dízimo”. Entre a primeira e a segunda estrofe, tinha um solinho de teclado, que o Diez errou feio. Foi um vexame, mas acho que pensaram que era proposital. Faustão agradeceu, a plateia riu, aplaudiu, e eu voei pra fora do palco, constrangido. O tal assessor disse que estava tudo bem, que todos adoraram e “esse é o cheque pela apresentação”. O quê? Cheque? A gente havia ganhado cachê por aquilo? Ele confirmou, mas o cheque era pra ele, afinal se não fosse por ele, a gente nem estaria ali. Canalha!

Shows Fizemos uma apresentação secreta no Madame Satã uma semana antes da estreia oficial no Ácido Plástico. Foi bem legal, mal conseguia acreditar que CONTOS DE THUNDER   85

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estava tocando naquele lugar. Eu tinha dado um tecão no camarim e a noite foi bem divertida. Na semana seguinte, veio a estreia de verdade. Eu tinha separado um disco de canto gregoriano pra abrir o show. Montamos o palco como se fosse um altar, Diez entrou com roupa de padre, uma palhaçada. Eu só queria tocar! Minutos antes do show, avistei o Pappon, que na época escrevia pra revista Bizz, da Abril, a mais influente no meio, lançada em 1985, e Sandra Coutinho na plateia. Isso me deixou muito nervoso. No final, fizemos nosso show, saímos dali fortalecidos por termos conseguido ocupar um espaço de rock em São Paulo. Na outra semana, já tinha show de novo no Madame Satã. Eram quatro bandas: Crime, Civil, Não Religião e nós. O clima estava bacana e o Renato Martins, da Ataque Frontal, iria assistir aos shows pra contratar uma das bandas. A gente seria a terceira banda a se apresentar, mas o Tatola, vocalista do Não Religião, pediu pra tocar antes. — Sem problemas, mano! Eu estava numa ótima vibe coletiva, todos estavam, ou quase todos. Não vi problema, deixamos. — Valeu, Thunder! — ele agradeceu, mas rindo. Não entendi a razão de tocarem antes, mas… Estava tudo correndo bem, até o momento em que, na última música, o baixista deles derrubou cerveja no amplificador de baixo. Resultado: queimou o cabeçote. Fizemos o show, mas foi bem problemático. Claro que todos foram nos dizer que foi sabotagem. Se foi ou não, resultou na contratação deles. Histórias do rock alternativo nacional. Eu acho que eles tinham muito mais a ver com a gravadora, pareciam punks, e o catálogo da Ataque era mesmo por aí. Mas ficou essa intriga no ar. Lamentável! Enquanto isso, a turma do Baldão estava sempre unida, somando forças. Organizávamos shows pras nossas bandas tocarem, muitas que frequentavam nosso pequeno clube. Kães Vadius, Garotos Podres, Mentecaptos Eróticos, AI-5, K-Billy’s, Joe Limão e Os Phanta Uva, Estado Maior, Kriptonitas, Paquidermes, 64 e Seus Efeitos Colaterais, Olho Seco e alguns visitantes bem-vindos, como Juízo Final, Soviet American Republic (S.A.R.), A Grande Trepada (do Rio), e Cólera. Em 1987, eu também fazia a documentação fotográfica de uma escola no centro de São Bernardo do Campo, organizada pelo Partido Verde. Tinha uma 86  Lui z

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série de atividades com menores de rua, com a turma da Fazendinha. Foi um momento muito legal, mas teve um desenlace trágico. A gente ia algumas vezes por semana pra lá e, um dia, chegamos à escola e recebemos a notícia de que havia ocorrido uma chacina na madrugada anterior, em que todos os alunos em situação de risco haviam sido assassinados. Não acompanhei o inquérito, mas o que se dizia era que foi uma chacina pra eliminar os jovens que incomodavam a vizinhança. Foi muito triste tudo aquilo. Minhas fotos acabaram sendo usadas pra documentar reportagens do Brasil todo. Pouco tempo depois, o Partido Verde já estava organizando um festival pra “salvar” a represa Billings. Como eu tinha banda e conhecia muitas outras, me colocaram como curador do tal festival. Na nossa inocência, acreditamos no idealismo e nos jogamos na organização. Comecei a convidar as bandas de que eu gostava na época: Kid Vinil & os Heróis do Brasil, DeFalla, Mercenárias, Juízo Final, Ratos de Porão, Intervenção, Black Future, Hai-Kai Music, todas as bandas do Baldão Bar. Tudo muito divertido. Teve festinha de lançamento numa galeria de arte nos Jardins, regada a vodca. Levemente embriagado, cheguei a flertar com a Rosália das Mercenárias, que loucura! No dia do festival, no Pavilhão Vera Cruz, a coisa ficou estranha. Só tinha punk do abc. As bandas subiam ao palco, anunciadas pela Lucélia Santos e Claudia Wonder. O som estava muito ruim, pois a acústica do lugar era imprópria. Lembro que a Ratos de Porão entrou e os punks jogavam sanduíches de mortadela na cara do João Gordo. Ele pegava os restos do chão, enfiava na boca e cuspia de volta. Edu K, da DeFalla, de saia de couro, tudo muito louco. Fracasso de bilheteria, sucesso de line-up. Mas havia sido estabelecido um cachê simbólico pra todas as bandas. Na hora de pagar, o sujeito do Partido Verde disse que não ia pagar ninguém. Fiquei ensandecido com isso. Todos ficaram putos da vida, mas quem resolveu foi o Kid Vinil, que anunciou pro tal sujeito que o tecladista que tocava com ele era filho de um desembargador. Ao saber disso, o cara mudou de ideia na hora e pagou todas as bandas. Grande Kid Vinil, o maior herói do Brasil!

Trio de devotos Foi depois do show do Partido Verde. O Diez resolveu que queria fazer um som mais dark, tipo The Sisters of Mercy. Eu disse que nunca faria aquilo, e ele CONTOS DE THUNDER   87

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resolveu sair da banda e formou a Cândida Rosa. Os Devotos passaram a ser um trio: eu no vocal e baixo, Marco Polo Pan na guitarra e Claudio Baqueta na bateria, é claro. O Claudio foi o primeiro baterista dos Devotos, tinha estudado com o professor Zé Carlos, um dos mestres da Fundação das Artes de São Caetano. O Pan era, de longe, o melhor guitarrista do abc. Um monstro mesmo! Estudava na Fundação das Artes e sempre foi espetacular. Tempos depois foi tocar com o Bocato. Recebi o convite pra tocar com a banda Mr-8 na noite de encerramento da casa noturna Khadafi, de propriedade do maior investigador particular do Brasil. Um lugar maluco, o show ainda mais. Mr-8 tocou, nós entramos na sequência. Sem o Diez, não tínhamos repertório pro show. Tocamos umas duas músicas nossas e fizemos uma série de temas de improviso. Pode ser que todos estivessem muito loucos, mas a gente arrebentou. Foi um momento em que eu podia ter desistido de tudo aquilo, mas, graças ao Claudio e ao Pan, fiquei muito empolgado e acreditei que a gente podia fazer muito mais.

Devotos do Punk

Mas o segundo show dessa formação nova foi uma grande aventura. Alguns carecas do abc frequentavam o Baldão, entre eles, um dos líderes da turma, um sujeito muito grande chamado Krânio. Na verdade, havia dois Krânios carecas: um que era segurança do Madame Satã e esse que era do abc. Acontece que o Krânio organizou um festival de bandas, o Dezembro Oi. Como os Devotos já haviam tocado em alguns programas de tv, como o do Paulo Lima, Visual Esportivo Surf Report, e do Leopoldo Rey, além de ter tocado na 97 fm — naquela época ainda existia uma rádio rock de origem no abc —, o Krânio achou que seria bom ter uma banda “famosa” no evento. — Aí, Luizão! A gente vai fazer um festival de punk — falou Krânio, com seu vozeirão. — Ah, que legal. Boa sorte! — comentei, intimidado. — A gente quer os Devotos pra abrir o festival. — Humm… mas nosso som não é exatamente punk, né? — Não faz mal. Vocês vão lá, tocam quatro músicas e caem fora — argumentou, com firmeza. 88  Lui z

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— Será? Acho que não tem muito a ver… — repliquei, tentando escapar da parada. — Vai ser bom pra gente! A Valéria vai acertar tudo com você! — falou e já foi saindo, sem esperar minha opinião. Valéria era figura importante no métier careca. E ela foi muito legal com a gente, garantindo que sairíamos vivos do evento. Em 1989, chegamos a namorar por um tempo. Depois eu conto mais sobre esse período. No dia do show, que aconteceu na Vila Carioca, chegamos os três bem preocupados com aquilo tudo. Passamos o som, e até aí tudo bem. Na hora de abrir o festival, lá foi o Krânio nos anunciar: — Aí, seguinte! A gente vai começar o festival. Eu chamei uma banda pra abrir que tem um som nada a ver com a gente. Vamos respeitar os caras! Se alguém tentar encher o saco deles, eu quebro na porrada! Com vocês… Os Devotos do Luizão! A melhor e mais respeitosa apresentação de uma banda na história da música! Entramos de fininho, tocamos a primeira música e acho que ouvi uns aplausos educados. Tocamos mais três e saímos aliviados. Mal deu tempo de tirar os instrumentos do palco e estourou um quebra-pau gigantesco. Parece que tudo rolou nos conformes depois disso. Fomos escoltados pela Valéria até a rua e nos mandamos dali. Outro show louco foi na Freguesia do Ó. As bandas eram Fogo Cruzado, Mr-8, Lobotomia, num festival em um lugar novo. Muito tempo depois, descobri que era a área do Mingau, baixista gente finíssima e que hoje toca no Ultraje a Rigor. No Mr-8 tinha a Alê Briganti, que depois viria trabalhar comigo na mtv. Nesse dia, ela me emprestou seu baixo Fender Precision com escala de guitarra. Que som! Eu havia conhecido o Pé de Milho, amigo dos caras da banda Juízo Final. Ele trabalhava na tv Cultura e foi nossa ponte pra nos apresentarmos nos programas da emissora. A amizade com ele e os caras do Juízo foi bem fortalecida nessa época.

Odontologia nas galáxias As coisas iam bem com a banda, e bem mal com o consultório dentário. Eu não aguentava mais ir pra lá, atender os pacientes, levar essa vida antagônica. CONTOS DE THUNDER   89

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Era muito chato mesmo. Estava chegando a hora de tomar uma decisão quanto a isso. Até porque nem dinheiro direito eu recebia. A verdade é que eu tinha um coração muito mole e não cobrava o preço justo da clientela. Amigos eram meus pacientes e eu não cobrava deles. Outros não tinham grana. Eu não pagava para trabalhar, mas ganhava menos do que merecia. Conseguimos um show no Rose Bom Bom, numa festa da revista Trip, do Paulo Lima. Fomos lá e tocamos bem, todo mundo curtiu. A cada show bem-sucedido, aumentava minha vontade de mandar a odontologia pro espaço. Um pequeno passo pra um roqueiro, um grande salto para fora da odontologia.

O primeiro comercial

Tinha uma garota que frequentava o Baldão e conhecia uma produtora de elenco da tvc. Essa era a produtora do Dodi Taterka, o maior diretor de filmes publicitários do Brasil. Ela perguntou ao George se ele conhecia alguém pra fazer um teste. George falou de mim, e ela me deu o endereço. Lá fui eu fazer um teste. Por incrível que pareça, fui aprovado! O produto era um suco de tangerina em lata, o Tanjal. Foi filmado no Pavilhão Vera Cruz. Quando cheguei, não fazia ideia do que iria fazer no filme. De cara, reconheci o Xavier, baixista da banda Metrô, e a Valéria Sândalo, que fazia umas performances comendo repolho no Madame Satã. Sim, amiguinhos, essa era uma performance orgânica! Eu seria o vocalista de uma tal banda, cantando uma musiquinha: — Tangerina pra comer é tangerina. Tangerina pra beber é Tanjal. Êooo, êooo, Tanjal… Eu achei legal e tal, ganhei um cachê bacana. Mas não fazia a menor ideia do quanto aquela tarde mudaria o rumo da minha vida. Depois de uns dias, me pediram pra gravar o áudio da bela canção em um estúdio em Higienópolis. Era o Áudio Patrulha do Tico Terpins e Zé Rodrix, da Joelho de Porco. Quando cheguei, fui levado pro estúdio e me dei conta de que estava na mesma sala que os dois! A minha banda de rock brasileira preferida! Foi muito impactante. E foi ali, naquele momento, que tomei coragem para desistir da odontologia. A vida seria louca dali pra frente. Mais louca, certamente! Aerozów? Neocínicos? Ou Devotos de Nossa Senhora Aparecida? Devotos, sem dúvida! Até hoje. E a “culpa” é toda do Tico Terpins. Muito obrigado, meu ídolo. 90  Lui z

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Deu para ler, ver e sentir o tamanho da importância do guardião George na vida de Luiz Thunderbird. São muitas histórias para contar, com cicatrizes na memória e na pele, como as tatuagens de Thunder, feitas pelo George: “Gosto das tattoos do Luiz. Elas estavam à frente do que se fazia comercialmente na época. Gostei demais de fazê-las. Para ele acho que foi um ato de fé, uma ruptura de conceitos e preconceitos”. Foi George quem, por exemplo, guardou o baixo Rickenbacker de Thunderbird quando, mais à frente vocês entenderão, não era mais possível que ele cuidasse sozinho de seus bens materiais. “Na verdade, foi o violão, as roupas, os livros, os discos, os móveis… Quando eu precisei me mudar, a dona Mirian veio buscar, mas sim, guardei muita coisa para ele.” Segura tutela de quem deu ao amigo, por exemplo, o posto de padrinho de seu próprio filho. Thunderbird se diz um padrinho relapso, mas isso não parece incomodar George. “Acho que posso dizer que sempre cuidamos e defendemos um ao outro. Quando duas pessoas compartilham vivências e situações limítrofes, zelar pela integridade física, mental e espiritual uns dos outros se torna vital. Sou guardião e testemunha da integridade, do caráter e da honradez desse cara sensacional, amigo e irmão. Guardo um tesouro de risos, sons e bons momentos. Sou grato pela amizade desse cara que, mesmo no olho da insanidade, sempre manteve os princípios acima das personalidades e nunca negou suas origens, onde os homens são homens e as ovelhas tremem.”

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Motorzinho de dentista pendurado, tempo para montar estúdio com bandeirinhas de Volpi no forro?! Tapando e criando buracos com anfetaminas, álcool e maconha. Ganhando grana escrevendo e atuando em publicidade. Adulto-propaganda das pastilhas Valda, do Playcenter e do Big Mac. Banda na TV Cultura tocando em Boca Livre e fabricando o som na floresta do Tadeu. Divã do dr. Oduvaldo para entender as encruzilhadas e curar as dores da era de incertezas até a Abril querer uma MTV pra chamar de sua. E de vocalista do Devotos para VJ. MTV? VJ? PQP!

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EX-DENTISTA, ROQUEIRO E PUBLICITÁRIO

A decisão de fechar o consultório me trouxe alguns problemas em 1987. Antes de tudo: o que fazer com a clientela? Mas também tinha a declaração a fazer à família de que o doutor Luiz Fernando estava pendurando as chuteiras odontológicas. Foi mais difícil explicar aos meus pais que comunicar aos pacientes. Eu era um cirurgião-dentista. Mas acabara mesmo de descobrir que não era. Simples assim. Não queria mais ser dentista. Não queria me imaginar me aposentando como dentista. Não ia envelhecer chato, ranzinza e frustrado. Ia fazer o que queria. Foi um período muito dinâmico. O rock brasileiro estava decolando com todas as turbinas, o Brasil vivia um falso renascimento econômico com o ministro da Fazenda Dilson Funaro, meu pai tinha se afastado da indústria farmacêutica e acabou montando uma agência de publicidade. Usei as divisórias do consultório para montar um estúdio no quarto dos fundos de casa. Tinha meu amplificador, Claudio Baqueta trouxe sua bateria, Marco Polo Pan trazia seu amplificador de guitarra e minha família convivia com meus avanços na música bem de perto. A montagem do estúdio foi épica. Usei placas de gesso eucatex (“obra de Maluf”, como dizia a propaganda política do próprio dono da empresa, em 1986), as divisórias duplas do consultório e coloquei um quadro do Alfredo Volpi na forração. Uns 25 anos depois, o Antonio Peticov viu esse quadro, e ficou enlouquecido com o fato: — Thunder, isso é um Volpi da fase “bandeirinhas”! — Sim, tô sabendo. Eu acho bonito. CONTOS DE THUNDER   93

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— Thunder, pelo amor de Deus, isso vale uma nota preta! — Putz! Você nem imagina pelo que esse quadro já passou… — Eu compro de você agora! — Calma, Antônio, vamos tomar um café…

Madame Malu

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Essa formação dos Devotos fez um show histórico no Centro Cultural São Paulo. Magaly Prado criou um projeto chamado Radioatividade, que organizava uns shows ao ar livre, no jardim do ccsp. Num desses festivais, tocamos com a banda Darwin, do Tonho Penhasco. Mas o Claudio se esqueceu de levar o banquinho. Não teve dúvida: usou uma cadeira reclinável tipo diretoria e fizemos um baita show, que só foi interrompido pela queda de um holofote gigante quase em cima da plateia. Lembro de o Tonho elogiar muito a gente. Tonho Penhasco, que eu venerava nos shows do Arrigo Barnabé! No Madame Satã, aconteciam os Boletins Samizdat, encontro de duas a três bandas por noite, organizados pelo Magoo. Isso foi muito importante pras bandas se conhecerem e ocuparem o palco da casa mais importante daquela época. Lembro de um show especial em que estávamos no palco e, de repente, vi um rosto conhecido. Era Malu Mader, dançando ao som dos Devotos de Nossa Senhora Aparecida. Depois do show, uma breve passada no camarim para recarregar a euforia, e então fui dar uma volta pela casa pra ver se conseguia bater um papo com a musa. Não consegui. Depois percebi que tinha ficado mais de uma hora carregando as baterias, e ela já tinha ido embora. Malditas baterias!

Overdose

Foi um período de muita loucura mesmo. Me joguei no rock e nas drogas. O grande lance era comprar caixas de inibex ou hipofagin, comercializados como inibidores de apetite. Engolia uns quatro comprimidos de uma vez, com muita cerveja, e ia pro espaço. Nem dá pra calcular quantas caixas desses medicamentos consumi nessa época. Passava dias acordado, imagina: anfetaminas, álcool e maconha. A receita perfeita pra uma overdose. E foi assim que tive minha única overdose nesta vida de doidão. Depois de uma semana ingerindo essa combinação 94  Lui z

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absurda, cheguei em casa e desmaiei na cama. Acordei com um médico olhando pra mim e dizendo pra minha mãe que ficaria tudo bem. Claro que não ia ser tão fácil, mas o susto foi grande e resolvi que, dali em diante, iria “apenas” fumar um bom baseado. Decisão tomada, resolvi me abastecer com meio quilo de um ótimo fumo que comprei em São Caetano. Devido ao volume da encomenda, o traficante marcou comigo num lugarejo tétrico perto da estação de trem. Lembro até hoje dos momentos tensos esperando o carregamento chegar. Vários profissionais do comércio varejeiro de drogas estavam ali. Uma muvuca absurda! Quando chegou a encomenda, o chefão pegou meu dinheiro, jogou a carga no meu colo e me mandou sumir dali. Saí correndo e fui pra casa, sem pensar na dificuldade de esconder tamanha quantidade de fumo. No dia seguinte, minha casa cheirava ao estúdio do Bob Marley. Eu tinha certeza de que ouvi minha mãe falando com meu pai que preferia que eu fumasse maconha em casa que nas ruas. Mas a música do Ira! nunca saía da minha cabeça: — Nas ruas é que me sinto bem — Nasi mandava forte. — Nas ruas é que me sinto bem — Edgard respondia. — Ponho meu capote e está tudo bem! Nasi, seu terrorista! Esse meio quilo de maconha teve o mesmo efeito daquela mesa de bilhar da infância. Fiz muitos amigos de Rudge Ramos na mureta da Rudcar, a agência Volkswagen ao lado de casa, pra gente mandar brasa. Eu chegava na turminha, denominada “Hanky-Panky”, e dizia: — Quem quer fumar uma bomba?! — Boa, Tanjal! A gangue feliz me adotou como o “artista” do bairro.

Publicidade

Rapidamente, minhas reservas financeiras se esgotaram. Meu pai sugeriu que eu trabalhasse com ele na agência. Topei na hora. Fiz um curso de redação publicitária na espm com Ricardo Ramos, um monstro da publicidade brasileira. Ele, além de filho de Graciliano Ramos, já havia trabalhado nas maiores agências do Brasil. Slogans como “Coca-Cola, isso é que é!” foram criados por ele. O curso foi espetacular e me empolguei com a coisa toda. Foi um ano trabalhando na jdp Publicidade. Os clientes eram muito específicos, tecnológicos. Percebi que não era tão legal assim. CONTOS DE THUNDER   95

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Enquanto isso, Marco Polo Pan foi tocar com o Bocato. Mas nem precisei correr atrás de um novo guitarrista, pois Betinho Morais, frequentador do Baldão, se jogou na banda. Betinho era um dos caras mais legais e bem-humorados do rock. Nos tornamos grandes amigos. Ele estudava muito e tinha uma boa guitarra, um amplificador e, principalmente, vontade. Começamos a ensaiar em casa às nove horas da manhã, com uma regularidade impensável. À tarde, ia pra agência; à noite, pro Baldão.

Num pão com gergelim

E aquele comercial que eu havia feito com o Dodi rendeu outro convite. Era um filme pra lançar o Big Mac, o emblemático sanduíche do McDonald’s. Topei na hora! Dessa vez, não seria o protagonista, pelo contrário. Eu estaria numa arquibancada com mais umas cem pessoas, tipo torcida de basquete. Entre essa galera estavam vários amigos e celebridades, pelo menos pra mim. Estavam lá o Próspero Albanese Neto, vocalista da Joelho de Porco; Antonio Pinto, filho do Ziraldo, que na época tinha uma banda chamada Os Peixes e hoje é compositor de trilhas de cinema de Hollywood; Marcio Werneck, irmão do Theo, da banda Fábrica Fagus; o Xavier, que fez comigo o comercial do Tanjal. Na nossa frente, ficaram umas cheerleaders, entre elas, Daniela Barbieri, que viria a ser vj comigo anos mais tarde na mtv. Dodi, muito simpático, sempre tinha ideias bem loucas. A gente chegou pra gravar no dia e o cenário gigantesco estava todo pintado de preto, num galpão enorme na Vila Olímpia. Filmamos, sim, cinema mesmo! O dia todo e, no dia seguinte, quando voltamos pra terminar o filme comercial, o cenário todo estava pintado de branco! — Muito bem, pessoal, vamos filmar tudo de novo — avisou Dodi, com um charuto na boca e um sorriso largo. — Não gostei do que fizemos ontem. Vamos nos divertir um pouco! Um gênio! E posso afirmar que foram três dias maravilhosos, filmando, trocando ideias, alucinando, se esbaldando no mundo mágico do cinema publicitário. O resultado final do filme ficou espetacular. A música, composta e gravada no estúdio do Tico Terpins (sempre o Tico!), tomou conta do Brasil: 96  Lui z

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— Dois hambúrguers, alface, queijo, molho especial, cebola, picles, num pão com gergelim… É Big Mac! Depois, em 1992, tivemos que refazer o áudio com a nomenclatura correta: “dois hambúrgueres”, com a letra “e” no final, que havíamos comido junto com o molho especial. O mais impressionante foi que eu estava no meio daquelas cem pessoas, mas foi dado um close no meu topete voador que me projetou muito. Até quando eu parava pra abastecer o carro, o frentista perguntava: — Você não é aquele cara do Big Mac? — Sim, sou eu mesmo! Claro que meu novo apelido no bairro passou a ser “Big Mac”.

Bandas de garagem e Boca Livre

Foi nessa época que o Claudio foi cuidar da vida dele, e o Betinho sugeriu que chamássemos o João Louco pra bateria. Topei na hora! Grande batera, sem dúvida. Passamos a ensaiar no porão da casa dele. De quebra, chamei Claudio Beethoven pra tocar trombone e a segunda guitarra. Foi naquele “estúdio” que gravamos um documentário pra tv Cultura chamado Bandas de garagem (1989), que incluía algumas bandas emergentes na época e o Thaíde explicando o que eram as tretas entre os grupos de hip-hop, com um sorriso malicioso: — Em rápidas palavras, em palavras rápidas, a tretas era brigas! O disco Hip-hop — Cultura de rua acabava de ser lançado na AeroAnta, em 1988. Foi um marco para o hip-hop nacional, com uma coletânea que incluía Thaíde e dj Hum, produzidos pelo Nasi e Andre Jung do Ira!; a banda O Credo, produzido pelo Akira S; e as bandas Código 13 e mc Jack, produzidas pelo Dudu Marote, da banda Tarsila. O documentário encerrava com uma pergunta do repórter pro Edgard Scandurra, do Ira!: — O que você diria pro pessoal que está começando agora [na música]? — Estudem, meus filhos! [risos] Estudem! — respondeu, com aquele seu humor mod. Bem, Edgard, eu tinha estudado pacas e não deu em nada. O negócio era meter a mão no baixo e tentar fazer da minha banda algo que me deixasse orgulhoso. CONTOS DE THUNDER   97

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Os insistentes ensaios renderam bastante. Nessa época, Kid Vinil tinha um programa na tv Cultura, o Boca Livre, que apresentava bandas ao vivo tocando no Teatro Franco Zampari. Nos apresentamos algumas vezes ali. Lembro de estar lado a lado com bandas como a Nau, que lançou a Vange Leonel, Plebe Rude, Cólera, Gueto, entre tantas. Numa apresentação especial, estávamos lá, eu, Betinho, João Louco e Claudio Beethoven, que usou uma embalagem de margarina como surdina no trombone. A gente tocava direitinho e causava algum espanto. Kid sempre foi muito legal com a gente, dando espaço pros Devotos e outras bandas novas.

Não fique aí parado, encostado, enfurnado, feito um bundão

A vida até que estava boa, fiz outros filmes publicitários: Pastilhas Valda — horrível! (O filme, não as pastilhas.) Em seguida, veio o comercial do Playcenter. De novo, eu seria o protagonista, mas rolou um problema. Sempre tive medo de altura, e me pedir pra andar de montanha-russa era o mesmo que pedir pra pular de um precipício. Claro que chegou o momento de filmar no tal brinquedo e o diretor insistiu muito para que eu topasse. Mas me recusei até a filmar naquele ridículo barco viking. Ainda bem, porque durante a filmagem daquela cena os figurantes vomitaram uns em cima dos outros. Que beleza! Veio a vingança do diretor na cena do carrinho que mergulhava na água. Como me neguei a fazer essa cena também, ele teve a ideia de me colocar em frente a uma tv, assistindo ao carrinho descendo até a água. O carrinho descia, caía na água e eu, do outro lado da tela, numa sala, levava uma balde de água na cara. Ele fez questão de repetir essa cena umas cinco vezes. A cada tomada ele ria muito. Maldito!

No divã

Não posso deixar de mencionar que, depois daquela overdose de hipofagin, meus pais me deram um ultimato: eu teria que procurar ajuda profissional de um psicólogo. Meu primo Nelsinho, formado na área, indicou o dr. Oduvaldo pra iniciar sessões semanais de psicanálise. E lá fui eu, na esperança de abandonar minha compulsão pelas drogas. Dr. Oduvaldo era uma cara muito legal. Aqueles cinquenta minutos eram os melhores da minha semana. Falávamos de 98  Lui z

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tudo, mas o pouco que eu conhecia de psicanálise indicava que caminhávamos muito lentamente, e em direção alguma! Eu contava meus avanços na música, o trabalho enfadonho na agência de publicidade, meu relacionamento (a essa altura) muito conflitante com a Vânia, minhas ambições de gravar um disco, nada mais profundo que isso. Eu, obviamente, utilizei-me de subterfúgios rasos pra justificar o fato de, antes de começar as sessões, dar um volumoso teco no banheiro. Essa ladainha durou um ano, até que dr. Oduvaldo veio com a seguinte declaração: — Muito bem, Luiz Fernando! Acho que esta será nossa última sessão. — Como assim, Oduvaldo, por quê? — Você está ótimo, melhorou cem por cento e não necessita mais de terapia. — Ele atestou, com um sorriso largo embaixo do bigode. — Oduvaldo, como assim? O que será de mim sem essas sessões psicanalíticas? — Calma, vai ficar tudo bem. Eu fui o único caso, que eu conheço, de alta em psicanálise. Valeu, Oduvaldo!

Fins e começos

Logo depois da minha alta, meu relacionamento com a Vânia acabou. Depois, surgiu uma aproximação com a Valéria, aquela que cuidou dos Devotos no festival punk uns anos antes. A gente começou a namorar, mas não durou muito tempo. Ela era muito legal, bonita, saudável, me deu a maior força pra segurar a onda sem drogas. Até me matriculei numa academia nesse período. Lembro que era um galpão mal refrigerado e o professor era contra alongamentos. — Isso é perda de tempo! — Mas eu tô me sentindo meio preso, travado. — Alongamento é coisa de maricas, moleque! Foi tudo muito quase saudável meu relacionamento com a Val, mas faltava um lance mais íntimo mesmo. Ela queria ir com calma, eu tinha toda a pressa do mundo. Somos amigos até hoje. Agora ela mora em Barcelona, na Espanha, e tem um comércio de bicicletas. A gente se fala de vez em quando. Foi no fim de 1989 que conheci a Walkiria, recém-formada na Metodista, que morava num apê bem perto da minha casa. Ela era linda, independente, inteligente, fotógrafa e trabalhava na Editora Azul. A gente se conheceu e se apaixonou muito rapidamente, foi intenso. Ela acompanhou meus três anos CONTOS DE THUNDER   99

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seguintes. Começamos lindamente, terminamos dramaticamente. Mas os primeiros tempos foram sensacionais. Ela fotografou os Devotos, me ajudou a montar meu aquário e, em pouco tempo, eu tinha quatro aquários no meu quarto. Como eu conseguia dormir com o barulho das bombas de água? A gente curtia muito tomar lsd feito pelos estudantes da usp.

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Girando Não seria a primeira vez que eu teria de lidar com mudanças na formação dos Devotos. João Louco saiu da banda, Claudio — que brigava o tempo todo com o Betinho por um solo de guitarra — também. Ficamos eu e o Betinho a ver navios. Ao mesmo tempo, George, fundador dos Kães, havia se desentendido com sua banda. Foi automático: Betinho foi pros Kães, George entrou nos Devotos. Nós dois, muito amigos do Danny Hotten, resolvemos dar mais uma chance pro gênio. Nos vimos ali, os três caras mais loucos do rock do abc Paulista sem baterista. Nada impediria que fôssemos em frente. Danny veio com a solução: um cara que morava em Rudge Ramos muito gente fina, que não sabia tocar bateria, mas estava disposto a aprender e entrar na banda. Zeca, que devido ao seu potencial em se machucar o tempo todo, foi apelidado Zeca Cortisona.

lsd

Nessa época, os Devotos estavam estabelecidos como banda de rock alternativo no cenário de São Paulo. Já havíamos tocado em todas as casas da cidade e em algumas do interior do estado. A nossa preferida já era o Espaço Retrô. Roberto, o gerente, conseguiu tomar conta da cena roqueira paulistana. Fizemos muitos shows ali. Eu e o Danny fazíamos as filipetas (flyers) das festas e convidávamos as bandas. Éramos parte de um clube de rock mesmo. Teve Sexo Explícito, banda do John Ulhoa do Pato Fu, Juízo Final, Intervenção, Kães Vadius, Kriptonitas, K-billies, Rockterapia — do professor Eddy Teddy —, Faces & Fases, DeFalla, todo mundo queria tocar no Retrô. Músicos internacionais que se apresentavam, geralmente no Projeto sp, saíam dos seus shows direto pro Retrô. Houve ocasião de, num domingo qualquer, eu ligar pro Roberto… 100  Lui z

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— Esse domingo tá muito chato. Vamos praí pra um show surpresa. — Pode vir, vai ser legal! E era! Sempre tinha público, às vezes, a casa lotava. Foi uma fase em que o consumo de lsd era muito popular. As doses, de cor preta, eram prensadas em fita plástica. Eu até fiz um adesivo imitando esses ácidos e colei no braço do meu contrabaixo. Sônia Maia, jornalista da revista Bizz, muito parceira e amiga, iria se casar e a festa seria no Retrô. A data foi escolhida numa noite de eclipse lunar. Os irmãos Max e Igor Cavalera moravam a um quarteirão do Retrô e montaram uma banda especial pra ocasião com João Gordo. Jota Dingão e Seus Dingo Lindos subiram no minipalco do Retrô e arrepiaram com clássicos do punk rock. A maioria dos presentes estava tomada pelo lsd.

Pau pra toda obra

O final dos anos 1980 foi muito bom, as coisas aconteciam rapidamente. Não faltava energia, ideias, atitudes. Eu chegava pro Danny e propunha um show, a gente fazia o material de divulgação, distribuía, organizava tudo, chegava lá, tocava, era um grande barato. Com a chegada do Zeca na banda, uma turma inteira veio junto. Lembro de um show na Concha Acústica de São Caetano do Sul, estávamos muito ensaiados e à vontade no palco. Danny fez umas sobrancelhas postiças e usamos chapéus de lustre pintados de vermelho. Nós estávamos na fase Devotos, pois havíamos assistido ao show da banda Devo, norte-americana de Akron, Ohio, no Projeto sp. Devo sempre fez a minha cabeça. Quando lançaram aquele clipe com a versão de “Satisfaction”, dos Rolling Stones, mergulhei no som deles.

“Sempre alerta!”

Tinha um amigo, fã da banda, Wander, que se aproximou da gente e assumiu o papel de produtor/agente. Ele era incansável. Fazia souvenir, organizava os shows, marcava entrevistas. Ele fazia parte de um grupo de escoteiros e teve a ideia de nos chamar pra tocar no Jamboree Mundial, um encontro global de escoteiros. Claro que a gente topou na hora! Foi surreal tocar para escoteiros, CONTOS DE THUNDER   101

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lobinhos e bandeirantes. Imaginem nosso repertório entoado por um grupo tão voluntarioso: — Agora vocês! — eu mandava no microfone. — Paaaaaau no seu cu! — os meninos cantavam. Era o refrão de um de nossos hits. Eu olhava aquela cena, tentando segurar a gargalhada. Que loucura! Os escoteiros cantavam conosco aquelas músicas doentias com todo o fervor. Eu estava bastante insatisfeito com o trabalho na agência de publicidade do pai. Não via nenhuma perspectiva de chegar a algum lugar, mesmo sendo filho de um dos sócios. A filha do sócio do meu pai, seu Alcides, também aparecia por lá. Sendo a amiga de uma das irmãs do Lobão, ela nos apresentou. Ficamos amigos, ela ia aos shows, até pensei em me aproximar mais, mas quando olhava pra ela, eu via o Lobão. Muito parecidos! Sem chance! Foi quando o Marcão me chamou pra trabalhar na Afinal Propaganda. Ele era da turma do Zeca e era diretor de arte dessa agência. Estavam atrás de um redator. A agência ficava em Santo André, próximo da minha casa, e eu estaria livre pra criar campanhas mais populares. Foi um período curto, porém muito divertido. Acho que a campanha mais significativa que fizemos foi lançar a Pizza Hut no abc.

Show da virada

E 1989 reservava uma oportunidade e tanto pra mim. O Grupo Abril já tinha planos de montar a mtv no Brasil. Eles vinham de uma experiência muito interessante, a Abril Vídeo, que produziu uma faixa especial de programação na tv Gazeta, no começo dos anos 1980. A Olhar Eletrônico, produtora independente de Fernando Meirelles, cuidava desse programa. Foi ali que surgiu o personagem Ernesto Varela, de Marcelo Tas, no programa Crig-rá, entre outras novidades na tv brasileira. Mônica Teixeira era uma repórter investigativa que realizava um trabalho muito interessante na área do jornalismo. Depois disso, boa parte dessa turma ficou na tv Gazeta, fazendo o programa TV Mix. Dali saíram Astrid Fontenelle, Alê Primo — repórter-abelha, que era repórter-cinematográfico e repórter ao mesmo tempo, numa época muito difícil de fazer isso pelo tamanho das câmeras —, Serginho Groisman, que apresentava o TV Mix IV, Hugo Prata, Rogério Gallo, que viria a ser o diretor do núcleo musical da 102  Lui z

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mtv. Teve o programa Radar, bem antes, em 1984, que trazia Alê Primo e Tadeu Jungle. Uma turma da pesada! Mas aqui cabe um parágrafo especial sobre Tadeu Jungle! Ele fez Fábrica do Som, na tv Cultura, programa com bandas, transmitido direto do Sesc Pompeia. Participou do TV Mix e, em 1989, apresentou o programa TV da Tribo, na Bandeirantes. Inclusive o piloto tinha a participação do Hugo Prata, que depois foi dirigir o Rá-Tim-Bum e Castelo Rá-Tim-Bum, na tv Cultura. Foi o Wander, nosso “agente”, que fez contato com a produção do programa pra incluir uma apresentação nossa. Fiquei meio inseguro, pois a gente teria que tocar ao lado de uns artistas muito grandes. Topei do mesmo jeito. Na semana da apresentação, o Danny foi internado pela família pra se tratar do alcoolismo. A gente ficou muito revoltado com isso, fomos visitá-lo no hospital. Não gostamos da ideia de uma internação compulsória porque isso raramente resolve a questão. Mais tarde, eu teria muito mais conhecimento sobre o tema. Não havia o que fazer, afinal a família possuía a tutela do Danny. A gente tinha aquele compromisso e resolvemos encarar a parada de qualquer jeito. Dia da participação, não fazia ideia de que estava sendo observado pelo Victor Civita Neto, o Titti, filho de Roberto Civita, que estava pra implantar a mtv no Brasil, e pelo Rogério Gallo, que fazia a direção musical do TV da Tribo. A turma de Rudge Ramos lotou um caminhão de mudança e invadiu o Dama Xoc, casa noturna gigante em Pinheiros, onde era gravado o programa. Nesse dia se apresentariam Djavan, Amigos Invisíveis, banda do primeiro disco solo do Edgard Scandurra, e nós. A gente atacou de “Abaixaí”, música que falava da paixão sexual de um namorado por sua garota. A letra era bem explícita, a música bem psychobilly. Foi um sucesso. A plateia enlouqueceu. Tadeu Jungle também. Ele mandou: — Esses são os Devotos de Nossa Senhora. — Sempre se esqueciam do “Aparecida”. Depois dessa explosiva performance, recebi o telefonema de Rogério Gallo. Ele disse que ouviu a banda no programa e queria falar a respeito. Claro que fiquei empolgado. Era tudo que a gente precisava naquele momento. Tinha uma gravadora que estava lançando bandas novas, a rca, pelo selo Plug, e aquele era nosso alvo. A primeira reunião foi numa cobertura da rua Lisboa, residência de Filipe Fratino. Estavam nos aguardando Rogério, Filipe e Paulinho Fratino, que depois se tornou editor na mtv. Havia uma impressionante garrafa de cinco litros de Chivas pra nos receber (pelo menos parecia uma garrafa de vários litros). Estávamos eu, George, Zeca e Danny, de volta da internação. Foi CONTOS DE THUNDER   103

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surreal estarmos ali, com aqueles caras descolados, finalmente ouvindo que seríamos cuidadosamente lançados no mercado fonográfico. Saímos de lá muito empolgados e felizes, fazendo planos, sonhando com o primeiro disco dos Devotos. Eu estava com 28 anos, e havia prometido a mim mesmo que, se não conseguisse algo até os trinta, voltaria pra odontologia. Na mesma semana, Rogério me chamou pra outra conversa. Nesse dia, ele me disse que precisávamos de outro baterista; Zeca não tinha habilidade alguma e seria crucial conseguirmos um bom instrumentista. Foi um golpe terrível no moral da banda. Zeca estava num processo de Pete Best!* Eu me encontrei com o George e o Danny pra falar sobre o Zeca. Decidimos que ele teria que estudar intensivamente, senão estaria fora. Eu falei com o Zeca, fui à casa dele, expliquei a situação. Ele se comprometeu a arrumar um professor e se aplicar na bateria. Pedi um tempo pro Rogério, justificando que Zeca era um sujeito espetacular, muito amigo nosso, que tinha vontade e força pra encarar o desafio. Cheguei a procurar cursos pra ele e indicar algumas opções. Mas o Zeca não levou a sério. No final do ano, o programa TV da Tribo fez um especial chamado “Retrospectribo”, e nele fomos eleitos a banda revelação do ano. Eu estava ali, na frente da televisão, assistindo ao programa, e o Tadeu Jungle declarando efusivamente que nós éramos a melhor coisa que o rock tinha apresentado no ano de 1989. Agora, a gente tinha que chegar a algum lugar, a gente tinha que levar aquilo a sério, a gente tinha que tomar jeito! Tocamos no encerramento da São Silvestre, na escadaria do prédio da Gazeta. Wander, mais uma vez, descolou essa pra gente. Tinha uma multidão na avenida Paulista. Ainda não era o Réveillon de milhões de um futuro próximo, mas tinha muita gente para ver o final da tradicional corrida que acontece até hoje em São Paulo. Nós entraríamos depois da banda punk Inocentes, do Clemente. Antes do show, nos encontramos no Retrô, sempre tinha uma camaradagem e tal. Mas o Zeca não levou os pratos, nem banquinho nem pedal de bumbo, nada! E soubemos disso no minuto em que ele chegou, em cima da hora! Subimos no palco e mandamos brasa, mas a seção rítmica ficou seriamente comprometida pela bateria limitada, sem os instrumentos adequados. Mesmo assim, voltamos felizes pra São Bernardo, todos espremidos no Fusca * Pete Best foi o primeiro baterista dos Beatles, demitido um pouco antes da gravação do single de estreia da banda. 104  Lui z

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detonado da minha mãe que ficava comigo quando fazia shows. Danny, Zeca, George, a namorada dele, Marcele, nossos instrumentos, passamos o Ano-Novo dentro daquele Fusca na via Anchieta. Eu tive certeza de que alguma coisa teria que acontecer. O momento de decisão chegou com um festival de novas bandas no Centro Cultural São Paulo, na Sala Adoniran Barbosa. Eram os “ensaios abertos”: cinco dias de apresentações com várias bandas. Nós estávamos lá e, no dia da nossa apresentação, Zeca foi um desastre. Não só errou as viradas de bateria, como perdeu o andamento das músicas. Foi horrível. Pra consumar o fato, quem fechou o festival foram Os Cascavelletes, a banda do Flávio Basso (que ainda não era o Júpiter Maçã). Eles entraram no palco e deram um show absurdamente fantástico. Não só tocaram bem, mas o Flávio parecia o Mick Jagger no palco. Aquilo, para mim, foi determinante pra tomar uma decisão: ou a gente aprendia a tocar direito, ou seria o fim da banda. Todos foram unânimes em admitir que o Zeca não dava conta do recado, e quem teve que dizer isso pra ele fui eu. Foi muito difícil pra mim, e pra ele também. Estávamos, de novo, atrás de um baterista, e o Danny encontrou um moleque de dezesseis anos pra assumir o lugar do Zeca. O nome dele era (por nós batizado) Andrés Speed González. Teríamos novamente a banda completa, mas claro que o Danny não segurou a onda e meteu o pé na jaca de novo. Nessa, fomos eu, George e Andrés para a primeira apresentação na tv daquela formação, no programa do Serginho Groisman, o TV Mix IV, na Gazeta. Já no elevador, a primeira psicodelia! Nós três saindo do elevador, com nossos equipamentos na mão, entram Pepeu Gomes e Moraes Moreira. Eu disse apenas: — Músico sofre, né, Moraes? — O Pepeu só riu baixinho. — Já fiz muito disso, meu filho! — Moraes respondeu, dando aquela força. — Vai ser sempre assim? — Puxei assunto. — Força, moleque! — A essa altura, o Pepeu estava gargalhando, o Moraes, sério. Eu e George olhamos pro Andrés como quem diz “calma, vai ficar tudo bem”. Os três prontos pro programa, tocamos uma música e o Serginho, muito gentil, nos elogiou. Mas sua primeira observação foi sobre a estranheza do grupo. O nome da banda, meu topete gigante, o George coberto de tatuagens (isso era raro naquela época) e o Andrés, que parecia um gnomozinho da Disneylândia. — Ei, garoto, seus pais sabem que você está tocando com esses dois aí? — falou Serginho, rindo. CONTOS DE THUNDER   105

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— Sa-sabe… — disse Andrés, tremendo um pouco. Ele era filho de músico, seu pai fazia parte do trio Dólar de Prata, e ele tinha apoio total dos pais. Tocava muito bem, era um pequeno demônio das baquetas. Embora destoasse da gente, no quesito drogas, ele sabia que eu e o George usávamos umas coisinhas, e nunca manifestou qualquer julgamento quanto a isso. Fiz mais um filme publicitário e foi muito bom, pois haveria um cachê pra me manter durante algum tempo. Filmamos em janeiro ou fevereiro de 1990, mas o cheque seria compensado no meio do ano. Era sempre assim, tinha um prazo pra receber os cachês. Mas Fernando Collor era o presidente eleito, e Zélia Cardoso de Mello sua ministra da Fazenda. Foi quando o governo teve a ideia de “meter a mão na poupança” do Brasil. Foi, digamos, um assalto à economia popular, em março de 1990. De uma hora pra outra, tudo que estava nas contas bancárias na categoria de poupança deixou de ser considerado dinheiro. Recebi o cheque com o dinheiro antigo e, portanto, inútil. Foi um rolo absurdo, o Jornal Nacional tentou explicar, não conseguiu. Nesse cenário, todas as bandas que aguardavam alguma possibilidade de assinar um contrato com gravadora ficaram a ver navios. Skowa, Black Future e nós. Aquela senhora maligna nos prostrou. E não estou falando de nenhuma droga, amiguinhos. Estou falando de dona Zélia. Um horror. Enquanto isso, Rogério Gallo tinha nos colocado em contato com um produtor musical, portanto, eu estava esperançoso de que algo acontecesse. E aconteceu!

mtv! vj?

Em junho de 1990, acho, Rogério me convidou para o lançamento do projeto da mtv no Brasil. Foi, na verdade, uma festa para convidados especiais, publicitários, artistas, jornalistas. Fui e achei muito legal, pensei que seria ótimo pra minha banda e para toda a cena da época ter um canal de música no Brasil. O que eu não sabia era que o Titti já havia decidido que eu seria vj da mtv. Eles tinham ido àquele show meu no Espaço Retrô, mas nem fiquei sabendo. Aquela apresentação no TV da Tribo também pesou na decisão dele. Começaram os testes para selecionar os primeiros vjs, que foram realizados na AeroAnta. O Rogério pediu pra Gabriela, sua secretária, me ligar chamando para eu ir lá fazer o teste, mas eu não queria saber desse teste, queria era gravar um disco 106  Lui z

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com a minha banda. Não fui, mesmo porque eu achava que nunca seria escolhido em meio a centenas de pessoas que faziam fila pro teste. Não acreditava em mim. Não falo inglês e não sou nem um pouco bonitinho, né. Tinha certeza de que minha chance era de menos que zero. Mas outros testes aconteceram. A Gabriela insistia em me ligar pedindo que eu fosse até lá. Até que um dia ela me disse que o Rogério Gallo queria falar comigo sobre os Devotos. Dessa vez topei ir, mas a tal reunião era um golpe. Foi num galpão na rua Coropés, perto da AeroAnta. Chegando lá, a Gabriela me pediu pra entrar num estúdio, ir até a frente da câmera e gravar um vídeo falando da minha banda. Pensei, “Claro, um depoimento pra eles colocarem no ar sobre os Devotos”. Nada disso, aquilo havia sido um teste simbólico pra me contratar. Terminei o tal vídeo, e me levaram pra uma sala. Lá estavam Rogério, Titti e Roger Karman, vice-presidente da Editora Abril. Ele olhou pra mim e disse: — Thunderbird, né? Prefiro os antigos… — disse, com um sorriso simpático. — Eu sou de 1961! — falei, devolvendo a gentileza. — Assine aqui, você foi aprovado e será vj da mtv. Eu fiquei ali, sem entender o que estava acontecendo, olhando pros três sujeitos na minha frente. Pensei quinze segundos e lembrei do Little Richard no filme Chuck Berry — Hail! Hail! Rock ‘n’ roll dizendo: — Onde eu assino mesmo? Minha vida mudou, e muito, naquele dia!

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A família Dó-Ré-Mi de VJs invadiu os anos 1990 colloridos pelas contas bloqueadas pela Zélia. Chivas, Old Eight e coca para varar as noites baqueadas editando e criando muitos programas e ainda poucos problemas no busão da MTV. Modo “mudo você, não mudo o mundo” ligado no Lado B da emissora que tinha em Thunderbird a sua cara mais alternativa. Outubro de 1990 no ar para virar sucesso nos verões da década que começava com Rock in Rio na tela, LSD na bagagem e a mídia interligada nas ondas do UHF e nas novas caras do pop nacional. A turma que tocava música e tacava clipe.

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TE VEJO NA MTV

Assim que assinei o contrato com a primeira emissora musical de televisão do país, coisa muito rápida, saí da sala do sr. Karman e dei de cara com Rodrigo Leão e Gastão Moreira. Eles também foram aprovados, mas fizeram os testes e superaram os concorrentes. A amizade foi imediata. Todo mundo muito feliz com aquilo tudo. A minha rotina iria mudar bastante, pois o trabalho começaria imediatamente. A mtv Brasil estava instalada num galpão da rua Coropés, em Pinheiros. Tinha também uma unidade móvel: um ônibus em que a magia das edições acontecia, habitado por Eduardo Xocante, que só saía dali pra comer alguma coisa no Chivas, a lanchonete mais próxima. Ele parecia o Mick Jagger, só que muito mais simpático. Com o tempo, ficamos bastante amigos e eu passaria horas naquele ônibus assistindo às edições das chamadas, às promos, aos clipes, enfim, a tudo que era feito ali dentro. Odete e Chester, que eu já conhecia, eram seus assistentes constantes. Explico: “Odete” era o apelido para Old Eight, uísque de quinta categoria; e “Chester”, a boa cocaína da época. Isso ajudava a virar as noites naquele galpão. Quando não estava na fitoteca, assistindo às duas centenas de clipes do nosso cardápio, estava com o Xocante, viajando nas edições. Acho que vi todos os clipes da casa. Todos. Pedi permissão pro Titti pra ir à fitoteca, ele deixou e eu vivia imerso naquilo. Eu dormia (quando dormia) lá dentro. Não queria ir mais pra casa, só queria aprender e entender como funcionava uma emissora de tv. Eu realmente me apaixonei pela mtv. Foi uma fissura, como tantas outras. Mas, no quesito trampo, nada foi parecido com a relação que tive com ela. A Maria Paula e a Daniela Barbieri também foram da primeira geração de vjs. Formamos o primeiro clube de vjs do Brasil. Começamos a nos ver CONTOS DE THUNDER   109

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todos os dias, trabalhando, ensaiando, nos divertindo, indo a shows, inclusive nos fins de semana. Nos dias seguintes, estaríamos nos preparando para a estreia da mtv. Faltava mais uma vj pra completar o sexteto mágico, e seria a vez da Cuca Lazzarotto chegar do Japão pra assumir a última vaga e fechar o time. Também tinha a Astrid Fontenelle, que já era conhecida pelo TV Mix, na tv Gazeta, e Mulher 90, na Rede Manchete. O Zeca Camargo, jornalista da Folha de S.Paulo, que faria o MTV no Ar; Lorena Calabria, que faria o Cine MTV, e Renata Netto, que seria repórter da emissora. Nos bastidores, havia o Rogério Gallo, diretor do núcleo musical; Fernando Patah, do departamento comercial; o Titti, diretor de produção e programação com Yone Sassa; Deborah Cohen e Carol Maluf do Talent and Artist Relations (tar), ou simplesmente Relações Artísticas. Tinha também a Mari Stockler e a Cris Camargo no departamento de Figurinos; Lea van Steen do departamento de Promos — eu já tinha trabalhado com o irmão da Lea, Ricardo, quando ele dirigiu um comercial de jeans, feito no Rose Bom Bom, em 1989, e tinha como figurante Alan Terpins, filho do Tico Terpins, que viria a ser meu grande amigo e parceiro em 2001. Ele passou a cuidar do estúdio A Voz do Brasil depois que o Tico faleceu. Ali, gravei três discos dos Devotos, meu programa de rádio entre 2002 e 2006, e tivemos muitas outras parcerias, uma delas foi correr juntos na Maratona de Nova York. Back to 1990… Chegava perto do dia de estreia e vieram os jornalistas nos entrevistar. Todo mundo queria saber da mtv e quem eram aquelas caras novas que apresentariam os videoclipes. Numa dessas entrevistas, para o Nelson de Sá, da Folha de S.Paulo, a mtv foi capa da Ilustrada. Mas aconteceu algo que, na hora, julguei corriqueiro, só que causou certo alvoroço. Nelson me entrevistou e, depois que terminamos, ele perguntou se eu fumava maconha. Respondi que sim, claro. Aquilo pra mim não teve a menor importância, mas todos ficaram com medo de a manchete ser “Recém-contratado da mtv é maconheiro” ou algo assim. Fiquei tranquilo, mesmo porque Nelson me passou a impressão de que dava seus tapinhas. Outros tempos! Fizemos algumas semanas de treinamento com câmera num estúdio que não tinha ar-condicionado. O calor era absurdo em virtude da iluminação pra tv. A gente estava sempre suando e a maquiagem trabalhava com quilos de pó compacto. Quem sofria mesmo eram as producers, que ficavam nos dirigindo o tempo todo. Lembro que Ana Carmen passou mal e desmaiou no estúdio. Isso 110  Lui z

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duraria algum tempo até o ano seguinte, quando a Abril comprou o prédio da antiga tv Tupi, na avenida Alfonso Bovero número 52, no Sumaré.

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Dentro do forno ninguém fica calmo. Trabalhar numa estufa cheia de corpos jovens e quentes sem se irritar é missão para poucos. Ana Carmen, desmaios à parte, conseguiu isso naquela mtv sem garbo nem elegância. “Era muito quente. Além disso, o mobiliário era velho, cada um de um jeito, uns com pernas bambas, tudo misturado. Infernal. Ficava lá dentro oito, dez horas, tinha muita luz, o estúdio ia esquentando e a resistência diminuindo, a gente ficando tonto. Mais de uma vez, desmaiei mesmo.” E para os leitores de hoje, imaginar uma mtv sem ar-condicionado nem janela não era o maior dos problemas: “É difícil imaginar o mundo hoje sem computador né? Era uma época pré-internet. Não tinha esse jeito de pesquisar. Era uma garimpagem, com livros e revistas encomendadas, enciclopédias estrangeiras, o que desse”. Ana Carmen, que tinha 27 anos na época, foi uma das que pagaram seus pecados naqueles tempos de mtv Forno. Mas não foram todos. Thunderbird ainda reservava algumas provações. “Às vezes ele sumia. Eu devo ter sido bem chata com ele nessas vezes, mas nunca tivemos nada pessoal. Era chato nas vezes em que eu tinha que ir até a padaria e dizer a ele para subir, que a equipe estava lá esperando ele, mas era meu trabalho, sem drama, nada de mais também.” Ninguém ficava bravo com ele por muito tempo. “Thunder sempre foi muito espontâneo. Quebrava a solenidade com muita habilidade, inclusive nessas vezes da padaria.”

Mudo você

Era vida loka o tempo todo. Xocante e eu éramos inseparáveis. Adorava passar as madrugadas vendo as edições. Eu quase nem ia pra casa, mesmo porque ainda morava em São Bernardo do Campo. Quando não estava com a Mari Stockler ou a Cris Camargo atrás de figurinos — íamos ao brechó Universo em Desfile, que CONTOS DE THUNDER   111

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pertencia à Rosália Munhoz, da banda Mercenárias —, ficava fuçando na fitoteca, fazendo reuniões no apê do Titti ou indo a shows com todos os vjs, fomos inclusive no show do The Wailers no Projeto sp. A gente também ia à casa do Gastão pra se divertir, fumar um baseado ou qualquer coisa desse tipo. Gravamos uma abertura com todos os vjs ao som de “Groove Is in the Heart”, do Deee-Lite com a famosa frase “Te vejo na mtv”, fizemos os pilotos e então começamos a gravar nossos programas. E eram muitos! Eu apresentava o Lado B, o Ponto Zero, o Top 10 EUA, o Rock Blocks e vários voice overs para a programação da madrugada. Lado B apresentava os clipes das bandas mais alternativas, que, pra mim, eram as mais legais. O Ponto Zero trazia as estreias dos clipes mais importantes, Top 10 EUA a parada norte-americana, o Rock Blocks apresentava os clipes em blocos temáticos. Mas meu carro-chefe era mesmo o Lado B. Na chamada, criada pela Lea van Steen, tinha um locutor que falava: — Mudo você, não mudo o mundo! Adorava essa chamada e adorava o programa. Era o que tinha a minha cara e o meu jeito. Eu era do mundo underground. Era o único da mtv assim. Não era fácil arrumar conteúdo para o programa. Digamos que tivessem cem clipes na casa, no máximo trinta eram lado B. Era complicado manter a linha e a coerência toda semana. Mas todo mundo se divertia, eu mais ainda. Aprendi a me soltar no ar fazendo o Lado B. Eu divagava fazendo as “cabeças”, as chamadas dos clipes. Tinha vezes que eu saía andando pelo cenário, ficava de costas para a câmera, falando e andando. Uma loucura de metalinguagem. O Lado B também era ótimo para oxigenar a cena no rock brasileiro menos, digamos, comercial. Era uma plataforma de lançamentos de clipes. A gente levava artistas e até diretores de vídeos ao programa. Abria espaço na base da guerrilha cultural mesmo. Era muito importante. Numa época sem redes sociais e YouTube, era o canal de acesso para um novo mundo. O Gastão apresentava o Fúria Metal, ele era fã de heavy metal, então gostou da ideia de ser o porta-voz dessa turma. O Rodrigo Leão tinha o Yo! MTV Raps, que só podia ser apresentado por ele. Rodrigo me mostrou grupos de rap incríveis, devo o pouco que sei sobre o assunto a ele. De La Soul, Brand Nubian e A Tribe Called Quest foram alguns desses presentes do meu amigo. Maria Paula apresentava o Dance MTV e o Top 10 Europa, a Daniela Barbieri apresentava o Clássicos MTV, a Astrid era responsável pelo Disk MTV, Zeca pelo MTV News, Lorena pelo Cine MTV, a Cuca apresentava o Non Stop. 112  Lui z

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Família Dó-Ré-Mi

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Mais que um time de vjs, éramos uma família. A Família Dó-Ré-Mi da tv brasileira. Fazíamos tudo juntos, até terapia em grupo! Antes da estreia, fizemos duas sessões com o psicanalista Jacob Pinheiro Goldberg. Fomos os seis vjs, juntos, ao consultório do eminente psicoterapeuta das estrelas. Foi bárbaro! O melhor momento foi o do psicodrama. Na minha vez, ele olhou pra mim e disse: — Thunderbird, você vai anunciar um videoclipe como se fosse na rádio dos anos 1950. Entrei imediatamente no personagem: — E atenção, o Repórter Esso informa em edição extraordinária: estreia o novo clipe de Michael Jackson que irá causar furor entre os jovens! — falei com a voz do tal repórter. Depois de um tempo, fiz várias sessões com o Jacob. Isso durou até o dia em que ele sugeriu que eu substituísse a cocaína pelo rapé. Achei a ideia bizarra e nunca mais voltei. Também fizemos aulas de canto e dicção com a professora Nancy Miranda. Ela se orgulhava de conhecer o Luciano Pavarotti. Dava suas aulas numa casa na alameda Lorena, acompanhava a gente ao piano, uma figura sensacional. Eu sempre encontrava o Jairzinho e sua irmã, Luciana, os filhos de Jair Rodrigues, depois da minha aula. Eram crianças adoráveis! Nancy já tinha dado aulas pra figuras famosas como Paulo Maluf, Eduardo Suplicy, o próprio Supla, Roger Moreira, Nasi, Raul Cortez, Claudia Raia, Carla Camurati, Wanderléa. As aulas eram deliciosas, ela sabia que eu tinha uma banda, então dividia a atividade entre dicção e aulas de canto. Quando entrei na Manchete, em 1997, voltei a fazer aulas com ela. Eu saía dali revigorado, animado, renovado. Recebemos ajuda internacional também. Jon Klein veio da Inglaterra pra dar sua contribuição nas edições da mtv. Ele foi o diretor do primeiro videoclipe produzido pela emissora. “Garota de Ipanema”, interpretada por Marina Lima, era moderno, sensual, elegante, inusitado. Alex Coletti e Ivano Leoncavallo vieram da mtv americana. Lembro que fomos com eles à AeroAnta e os caras se divertiram muito. Alex Coletti merece uma menção especial. Antes de tudo, era um sujeito muito simpático, bem-humorado, inteligentíssimo. Tocava guitarra, inclusive deu uma canja com os Devotos dnsa no Espaço Retrô. Nos tornamos bons amigos e nos reencontramos em Los Angeles durante o Video CONTOS DE THUNDER   113

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Music Awards, o vma, de 1992. Mas o mais louco foi que, em 1990, perto do final do ano, ele me mandou uma fita vhs com o piloto de um formato novo, que ele havia desenvolvido e achava que seria muito interessante. Era o Acústico MTV! Esse piloto foi com Stevie Ray Vaughan e Joe Satriani. Os dois ali, com violões, um apresentador doidão, e era isso! Foi um pouco antes da morte do Stevie Ray Vaughan, em um acidente de helicóptero, em agosto de 1990. Esse formato viria a ser o maior sucesso da emissora, salvou a vida de muitas bandas internacionais e brasileiras, e veio da cabeça hiperventilada de Alex Coletti. Depois, ele produziu vários vmas, Super Bowl, um cara genial, que nos dava dicas da maneira mais amável do mundo.

Indo pelos ares

Estava chegando o dia 20 de outubro de 1990, data da inauguração oficial da mtv Brasil. Todos nervosos, eu adorando o clima e a adrenalina. Um dia antes, fomos todos pro Rio de Janeiro, a bordo de um avião Electra da Varig. Lembro que naquela época era permitido fumar no avião e tomava-se uísque. Estávamos todos no mesmo voo, e Deborah Cohen morbidamente observou que aquela foi uma péssima ideia, pois, se a aeronave caísse, não haveria como estrear a emissora, afinal estaríamos todos mortos… Deborah era bem esquisita.

O nascimento

Rodrigo Leão ofereceu hospedagem pra mim e pro Gastão na casa dos pais dele. Eu já era bastante amigo do Rodrigo e conhecer a família dele foi muito confortante. Foram todos muito gentis. Tomamos café da manhã juntos, muito alto-astral, uma família adorável. Eu estava no melhor humor possível. Nem me ocorreu o fato de que a mtv deveria ter nos colocado num hotel. Foi melhor assim! Rodrigo tinha ideias loucas e veio com a coisa dos “Irmãos Calango”. Ele, Gastão e eu e faríamos a abertura da solenidade pros presentes na Fundição Progresso. Sugeri charutos tal qual os Irmãos Marx. Chegando ao local fomos recebidos com a alarmante notícia de que o show de abertura apresentava dificuldades. Lobão faria a apresentação com Ivo Meirelles e parte 114  Lui z

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da bateria da Mangueira. Acontece que Lobão tinha passado a noite no morro e não apareceu pra passagem de som. Nem pro show! Isso foi muito estressante pros organizadores da festa. Ivo deu conta do recado, subimos nós três ao palco e decretamos o nascimento da mtv Brasil. Estávamos todos felizes, eufóricos, entrou a Cuca apresentando o clipe da Marina, tudo deu certo e respiramos aliviados. Foi um sucesso absoluto!

em festa

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mtv

Voltamos pra São Paulo e retomamos as gravações. Tudo ia muito bem, exceto pelo fato de que o paulistano não tinha antena uhf em casa e não existia ainda tv por assinatura. Uma campanha maciça foi feita pra resolver essa questão. O canal 32 uhf iria fazer parte do cotidiano das pessoas. Ouvi vários relatos de adaptações de antena com um cabide de arame em formato de ômega. Dava certo! Os amigos me ligavam, minha família ficou muito feliz, Walkiria também, todo mundo contente com aquilo tudo. Tinha salário, plano de saúde, tíquete-refeição, entrada livre em shows e espetáculos, assédio da imprensa… Eu via que a maior mudança na minha vida era que, agora, a imprensa que me procurava, em vez das minhas peregrinações pra divulgar a banda. Aliás, com a intensidade de trabalho, os Devotos ficaram um pouco abandonados nesse período. Andrés, nosso baterista, imaginou que a banda ficaria pelo caminho e abandonou a mim e ao George. Mas Xocante me levou à casa do Nasi, no Butantã. Nos tornamos grandes amigos, chapas mesmo! Eu saía da mtv e ia pra casa do Nasi. Ele gostava de rock, cinema, rap, tinha uma energia gigantesca e um fornecedor de cocaína excelente, o Boy. A primeira contribuição do Nasi foi indicar um novo baterista pros Devotos. Assim chegou Victor Leite, de cara aprovado, admirado e integrado à banda. Victor já havia tocado no Ira!, no Ultraje, no Maria Angélica Não Mora Mais Aqui — do Fernando Naporano — e também com o Marcelo Nova, com seu trio Muzak. Acontece que o Muzak tinha gravado seu disco e as coisas não iam bem. Victor foi um sopro de vitalidade nos Devotos. Grande figura, grande amigo. Não demorou pro Nasi se oferecer pra produzir uma fita demo pra gente. Gravamos num estúdio de um amigo dele a música “Gibi, Ramones e Motörhead”, que viria a ser nosso primeiro videoclipe. Mas isso merece um capítulo à parte, pois foi uma epopeia. CONTOS DE THUNDER   115

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A imprensa falava bem da gente, parecia que todo mundo deixava a mtv ligada em casa o dia todo. Fui convidado pra ir ao programa Jô Onze Meia, do Jô Soares, no sbt. Fiquei feliz com o convite e ele me tratou muito bem, a gente riu bastante o tempo todo, foi um grande barato. O pessoal do Tupi Não Dá; Zé Carratu; Carlos Barmak, coautor de “Sonífera ilha”, dos Titãs; Claudia Liz, a modelo mais linda e descolada do momento; Ciro Cozzolino; Carlos Delfino, Vera Barros, irmã do Xocante; Marta Oliveira, namorada do Andre Jung, baterista do Ira! — era um grupo de artes fantástico. E o Xoc, sempre ele, me levou lá pra conhecer essa turma. Eles deixavam a mtv ligada o tempo todo no ateliê. Foi lá que conheci o Gigante Brazil, um dos maiores bateristas deste país. Eu já o admirava dos tempos em que tocava com o Itamar Assumpção, mas agora ele estava com a banda da Marisa Monte. Ficamos amigos desde então. Alguns artistas foram à mtv pra gravar depoimentos e entrevistas. Lembro de o Frejat chegar por lá, ir direto até mim e dizer que conhecia a minha banda, que curtia, e para fazermos um som juntos um dia. (Isso realmente aconteceu, no lançamento do primeiro disco dos Devotos no Rio, quando ele apareceu no backstage do Circo Voador com sua guitarra e disse que ia subir no palco com a gente.) Frejat sempre foi um grande parceiro! Outro que pintou por lá foi Jimmy Cliff. Até convidei ele pra queimar um fumo, o que pareceu irritar muito o cantor, acho que ele nem fumava maconha, sei lá… Certa vez, estava pronto pra gravar um Lado B e vi o Charles Gavin no corredor. Não tive dúvida, arrastei o baterista dos Titãs pro estúdio e essa foi minha primeira entrevista na mtv. Depois, descobri que ele só estava lá pra encontrar a namorada, Cris Lobo, que era do jornalismo. Em resumo: era uma festa. Quando não era, nós fazíamos uma. No ar ou fora. A mtv foi um grande parque de diversões para nós. Os patrões falavam: “Vão lá, crianças! Divirtam-se!”. E aprontamos muito. Eu mandei bala mesmo. Liguei o turbo e saí metralhando geral.

Boas festas

Tenho que falar da festa de fim de ano da mtv de 1990. Eu já estava bastante à vontade pra alucinar descontroladamente. Lembro que fomos todos a uma churrascaria em Pinheiros para celebrar a inauguração bem-sucedida da 116  Lui z

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emissora e estava lá o presidente da mtv norte-americana. Um cara muito simpático, gordinho, bonachão, que veio acompanhar o nosso desenvolvimento. Nesse dia, eu estava carregado de uma generosa porção de ótimo pó. Quando entrei no banheiro para um tecão, o Titti veio na sequência. Eu estava felizão, como sempre, mas o Titti me disse que aquele gringo havia feito alguma piada em inglês nos depreciando. Eu disse: — Que babaca! — Vai lá, Thunder! Faz alguma coisa — ele atiçou, com um sorriso italiano no rosto, se é que vocês me entendem… — Deixa comigo! — respondi. Satã encarnado. Cheguei à mesa, fui até o tal sujeito, propus um brinde e um batismo. Ele só ria sem entender o que estava acontecendo. Na hora do brinde, em vez de beber meu chope, virei o copo inteiro na cabeça dele. O gringo, pra surpresa de muitos, caiu na gargalhada, Titti se mijou de rir, mas todo o restante ficou esperando eu ser sumariamente demitido ali mesmo, entre as picanhas e maminhas, com a cabeça servida como tira-gosto. Sim, me arrisquei um pouco, mas tenho certeza de que ganhei a admiração daquele gringo! Não bastasse essa aventura, a mtv organizou a tal festa de fim de ano da firma na AeroAnta. A banda do Ricardo Corte Real, que trabalhava na publicidade da mtv, abriria a noite. Um ótimo grupo de blues, por sinal. Mas eu estava ensaiando com os Devotos e o Marcelo Machado, diretor de programação da mtv que depois fez parte da O2 Filmes do Fernando Meirelles, ficou de passar no estúdio e nos levar pra AeroAnta. Dá pra sacar por essas e outras como eram as coisas na mtv naquela época. Acontece que a gente havia recebido uns ácidos vindos de Londres pelo correio. Quando o Marcelo chegou, estávamos tomados pelo lsd, e continuamos ingerindo pequenas lascas até a hora do show. Quando subimos ao palco, mandamos brasa! Em determinado momento, convidei Fatima Ali, a diretora da mtv Brasil, pra cantar uma música com a gente, e ela não teve dúvida: subiu e cantou “Pau no seu cu” conosco. Eu olhava pro George, tão doido quanto eu, e rachava de rir, imaginando que, depois daquilo, a demissão seria automática. Justa causa. Foi uma noite histórica. Ao contrário dos prognósticos, ao saber que George era tatuador premiado na Convenção Internacional de Tatuagens, Fatima pediu para que ele a tatuasse pela primeira vez na vida. Que período! Quanta gente louca, bacana, talentosa, feliz, unida no mesmo ideal: fazer da mtv algo inesquecível pro público. E pra gente também. CONTOS DE THUNDER   117

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Rock in Rio 1991

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A mtv se preparava pra nos levar ao festival carioca em janeiro de 1991. Estávamos muito animados com isso. As rádios passaram a assistir a mtv e se renderam aos sucessos por nós apresentados. Clipes do Faith No More, Deee-Lite, Guns N’ Roses, Billy Idol e inxs fizeram com que a programação das rádios e do festival também escalasse esses artistas. Mas a gente não havia se preparado pro assédio do público carioca. Diferentemente de São Paulo, a mtv era transmitida em canal aberto no Rio. O sucesso dos vjs por lá era muito maior que em São Paulo. Foi divertido. E perigoso, claro! Dessa vez, eu e o Rodrigo ficamos hospedados no Othon, em Copacabana. Um hotel cinco estrelas, com todo o conforto. As primeiras saídas pra rua nos deram a dimensão que a mtv tinha na cidade. A emissora entrava no ar somente do meio-dia até o começo da madrugada. Mas, como era um canal aberto, a audiência era grande. As pessoas nos reconheciam na rua e nos felicitavam o tempo todo. A gente estava bem ansioso pela primeira noite no festival. Eu havia levado poucas doses de lsd e, à noite, já estava no Maracanã tal qual Jimi Hendrix em Woodstock. Estávamos em turma, vjs e alguns artistas também. Lembro do Paulo Ricardo, do rpm, e sua namorada, Luciana Vendramini, estarem conosco. Em certo momento, senti que alguém estava tentando roubar minha carteira. Eu só me virei e dei de cara com um jovem. Não me abalei: — Oi, essa carteira é minha! — falei, com um sorriso no rosto. — Thunder, caracas! Sou muito seu fã! — respondeu o jovem sorridente e sincero. — Posso ficar com ela? — Aê, foi mal. — ele me deu um abraço e saiu andando. Eu fiquei uns dez minutos rindo da situação. No dia seguinte, Deborah Cohen nos levou até um baile funk em Belford Roxo, eu acho. Era uma matinê. Eu tinha muita curiosidade de ir a um baile desses, desde que havia lido o livro do Hermano Vianna, O mundo funk carioca, alguns anos antes. Chegamos eu, Rodrigo, Rogério, Titti, Deborah e mais alguns que nem me lembro. Ficamos num camarote vendo a agitação dos jovens. Achei aquilo muito louco, pois eram duas turmas gigantes que dançavam e, num determinado momento, se enfrentavam. Daí entravam uns seguranças com uns porretes e distribuíam pancada, abrindo um corredor entre as duas 118  Lui z

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partes. Claro que eu queria ir até ali pra ver tudo de perto. O segurança me levou até o palco, onde se apresentaria Ademir, um dos artistas cariocas desse gênero. No backstage, um dos organizadores insistiu pra que eu subisse no palco e dissesse algumas palavras. Digamos que senti que não havia escolha e peguei o microfone, eles abaixaram o som e: — E aí, pessoal? — Nunca usaria a palavra “galera”. — Tudo bem com vocês?! — Urros da plateia. — Queria perguntar… por que vocês brigam tanto? — Achei que seria morto a socos e pontapés. Fui retirado às pressas do palco, sem antes levar um esporro do organizador que havia me chamado pra falar, que me repreendeu por “tentar provocar tumulto no baile”. Não entendi nada! Depois disso, Deborah percebeu que a barra era mesmo pesada e nos arrancou de lá. Mas decidi ficar pra ver o show do Ademir, muito simpático e tal. Todos já estavam na van, quando o Rodrigo desceu, correu até mim, me agarrou e me tirou dali. Obrigado Rodrigo, mais uma vez, eu estava louco! Segunda noite de shows, eu imaginando se tivesse ficado naquele baile e as possíveis consequências. Tudo mais calmo. As apresentações foram bem legais. De volta ao hotel, estávamos eu, Rodrigo e dois dirigentes da mtv (não vou citar nomes, creio que não se sentiriam muito felizes com os fatos que tenho a relatar…). Dividi uma dose de lsd em quatro e distribuí entre nós. A certa altura, estávamos todos loucos, viajando, conversando muito, nos divertindo pacas. Então, alguém teve a ideia de ir atrás de uns papelotes de cocaína. Eu havia conhecido o Ademir, da primeira geração do funk carioca, na noite anterior, e lembrei que ele me passou seu endereço, era ali perto. Decidimos ir até seu apê pra ver se ele podia nos ajudar a conseguir pó. O curioso foi que estávamos esperando o elevador e, quando a porta se abriu, rolou uma troca inusitada: — Boa noite! — disse um senhor dentro do elevador. — Boa noite! — falou sua esposa, ainda ali dentro. — Boa noite! — respondi. — Boa noite! — Rodrigo, psicodélico. — Boa noite! — o diretor que havia tomado lsd pela primeira vez. — Enfim, boa noite pra todos! — o outro diretor respondeu, meio enfezado, determinado a buscar de vez o pó. Entramos no elevador e caímos na gargalhada até chegar ao lobby. Acreditem, mas saímos na madrugada carioca até o tal apê. Chegando lá, o Ademir CONTOS DE THUNDER   119

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nos atendeu de cueca, nos ajudou na empreitada, voltamos pro hotel e terminamos a aventura na calçada da avenida, em frente à famosa boate Help. Gringos entravam, gringos saíam, nós observávamos aquele movimento numa espécie de viagem de terror. Mas passou no mesmo dia. No Rio teve ainda um almoço no restaurante Antiquarius, o lugar mais sofisticado e caro em que eu já tinha entrado na vida. O bacalhau era maravilhoso, mas o melhor foi que a mtv pagou a conta. Que bacalhau! Que conta! Foi tudo uma aventura maravilhosa e emocionante. Mas a mtv faria mudanças radicais no ano de 1991. Muitas delas boas; outras, nem tanto.

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“São Paulo by Day” do Joelho de Porco na vitrola, São Paulo de madrugada na mudança de Rudge Ramos para a capital da MTV. Hora de uma câmera na mão e várias ideias pra gravar cabeças de programa fora do estúdio, de órbita e do normal. Descendo o rio Tietê a 121 minutos por programa, mudança da firma pro prédio da velha Tupi no Sumaré, audiência e prestígios consolidados entre jovens de todas as idades. Capas de revista e de super-heróis. Papos com Jô e Poppovic. A MTV entra até na televisão dos outros. Rita Lee reina como rainha da emissora que manda na mídia e nos bons e maus modos das pessoas de bem (ou não) e das famílias de bens. Tudo se vê na MTV. Quase tudo Thunder experimenta.

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AS PRIMEIRAS SURPRESAS, MANCADAS E ALUCINADAS — E MAIS ALGUNS SUSTOS

O ano de 1991 começou bem. O Rock in Rio nos mostrou ainda em janeiro que a mtv era forte, menos de seis meses depois de ter entrado no ar. Nossa popularidade aumentava, assim como meu círculo de amizades. Tinha chegado a hora de mudar pra São Paulo. Não fazia sentido eu e a Walkiria continuarmos morando em Rudge Ramos, ambos trabalhando na Zona Oeste da capital. Começamos a procurar um lugar mais próximo do trabalho, e quem achou o apê foi a Walkiria, na rua Cerro Corá, na Lapa. Era bem legal, com uma vista linda, bem confortável pra nós dois. A mudança foi no esquema “deem uma força aí, amigos”. A gente começou a comprar móveis, decorar o apartamento, os aquários foram com a gente, o amor e a esperança também. Eu já estava inquieto com o trabalho. Queria fazer algo diferente, gravar fora do estúdio, sem o fundo eletrônico de chroma-key, aquela técnica de efeito visual em que gravamos num fundo azul ou verde sobre o qual depois se projeta qualquer coisa na tela. Cheguei pro Titti e disse: — Queria gravar um programa fora do estúdio, na rua, em lugares estranhos… — O.k., acho legal — ele respondeu, na maior simpatia. — Opa! Que bom! Mas eu também queria um programa com duas horas de duração. — Sem problema! Vamos nessa! — confirmou Titti, com um sorriso. — Sim, mas eu queria fazer a programação dos clipes! — Hum… vj escolhendo os clipes? Isso nunca foi feito na mtv… Combinado! — concordou, rindo. — Só mais uma coisa… Eu quero gravar de madrugada! — Nesse momento, achei que a gente fosse começar uma briga. CONTOS DE THUNDER   123

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— Manda brasa, Thunder! — disse Titti, na maior sintonia, adorando o desafio. Assim nasceu o 121 Minutos, uma aventura a cada episódio, com duas horas de videoclipes que eu escolhia. No piloto, que foi ao ar no mesmo dia em que foi gravado, aconteceu de tudo. Aliás, quase acontece um acidente que teria interrompido minha carreira da maneira mais terrível. A gente formou uma equipe com Hugo Prata pra dirigir, Daniel Benevides como assistente, Samuel Kobayashi, o Koba, o câmera mais experiente da casa, um operador de microfone e um motorista. Era sexta-feira, e o local escolhido foi o rio Tietê. Dentro dele, pra ser mais específico. Agora, imaginem a cena: duas da manhã, chovendo, um bote no meio do Tietê com um bombeiro, o câmera e eu. Eu estava adorando aquilo, o clima, o lugar, lembrando de Clara Crocodilo, opereta de estreia de um dos meus grandes ídolos, Arrigo Barnabé. No disco, o personagem central cai no rio Tietê e se transforma num monstro vingador dos office boys. Lembro que o Koba estava bem temeroso de entrar no rio, mas eu e o bombeiro estávamos à vontade. A impressão que tive foi de que o Hugo só queria ir pra casa, o Benevides estava preocupado com o texto, o Thiago Vassão ria de tudo. Embarcamos no pequeno, ligamos os equipamentos, o bombeiro ligou o motorzinho e lá fomos nós, em direção à margem oposta do rio. Parecia que estávamos num imenso pote de gelatina pútrida, o barquinho lutando contra a correnteza. E eu anunciando o começo do programa assim: — Estamos aqui no rio Tietê… Navegando! Não é o máximo?! É… Eu estou, porque você está aí, no conforto do seu lar. E eu aqui no meio deste rio podre! Detritos humanos! É, meu amigo. Isso aqui é fruto da nossa industrialização! Fizemos umas gravações, voltamos pra junto dos humanos e saímos de novo pra outra sequência de tomadas. Numa dessas vezes, estávamos lá no meio do rio quando o motor pifou. O bote, como era de esperar, começou a girar ao sabor da correnteza, o bombeiro tentando fazer o motor funcionar, o Koba histérico, eu saboreando a coisa toda: — Nós vamos todos morrer! — Koba gritou pro infinito. — Tá gravando? Vou tentar fazer mais um bloco! — gritei pro Koba. — Não consigo, a gente vai morrer afogado! — ele respondeu, desesperado. — Então liga essa merda e vamos morrer como heróis! — Eu, imitando o capitão de Aguirre, a cólera dos deuses, filme do Werner Herzog. O bote à deriva, rodando, bateu na coluna da ponte, e nesse momento tive a certeza de que seríamos notícia no Aqui Agora do Gil Gomes, jornalístico popularesco do sbt. Koba estava em frangalhos, eu estava puto que o sujeito

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não ligava a câmera, o bombeiro não falava nada. Com muito esforço, o tal bombeiro remou até a margem e desembarcamos pros braços de Hugo Prata, que exclamou: — Pra mim chega dessa merda! — literalmente, se é que vocês me entendem… E saiu com seu carro direto pro restaurante America da avenida Nove de Julho. Terminamos as cenas ali, no matagal, Benevides nos ajudando, meio sem saber como acalmar o Koba. Quando estávamos mais calmos, o chefe dos bombeiros ainda sacaneou: — Ainda bem que vocês não caíram no rio. Nunca tentaríamos tirar vocês de lá, nem haveria como fazer isso (com um sorriso maroto no rosto). Nunca mais trabalhei com o Koba! Saímos dali direto pro galpão da Coropés pra editar o programa. Já era manhã quando terminamos. Thiago me ensinou a lidar com a “geração de caracteres”, as legendas do programa. Me diverti muito, o programa foi ao ar no sábado à meia-noite. Dali pra frente, Daniel Benevides passou a me dirigir no 121 Minutos. A gente gravou programas em lugares muito loucos! Fizemos duas edições no Porto de Santos. E não tínhamos o menor juízo. Numa dessas, havia um navio russo e pedimos pra nos deixar gravar dentro dele. Isso só foi possível porque dei um maço de Marlboro pra um dos marinheiros! Acabamos filmando no porão do navio, tipo quatro da manhã. Outra locação maluca foi na Usina Hidroelétrica Henry Borden, em Cubatão. Nós entramos dentro da usina. Sabe aqueles dutos enormes que descem do alto da Serra do Mar? A usina funciona o tempo todo e fomos até a parte interna dela, nos subterrâneos das instalações. As imagens espetaculares, o barulho insuportável, eu e mais alguns completamente doidos. Como a gente conseguiu fazer aquilo, não sei. Mas ficou bárbaro! O Daniel gostava dos mesmos clipes que eu, então a gente curtia aquilo tudo de escolher as músicas, ir a lugares estranhos, gravar de madrugada. Foi um período de parceria muito legal. O programa fazia sucesso, apesar do horário de exibição. Desde a vinheta de abertura, que era demais. Fazíamos coisas inusitadas. E até as mais simples saíam do esquema. Uma vez, colocamos uma lâmpada na minha frente, refletindo a luz dos carros. Ficou bárbaro. O legal é que não tínhamos exatamente uma pauta, um roteiro. Saíamos filmando o que vinha na cabeça. Quase que “ao vivo”. Também por isso funcionava essa piração. Nego Lima era o produtor do programa. Ele descolava as locações malucas pra gente. CONTOS DE THUNDER   125

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Ajustando a sintonia

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Aconteceu a primeira demissão entre os vjs. Daniela Barbieri cometeu um erro, gravou um comercial de cerveja ou algo assim. Nosso contrato proibia qualquer associação com bebidas alcoólicas ou cigarros. Foi uma tristeza! A gente era meio que irmãos, todos nós. Ficamos todos tristes com essa primeira separação. Viriam outras, em breve. Mas sempre vinha uma novidade! Chegou o momento de nos mudarmos pro prédio da antiga tv Tupi, no bairro do Sumaré, onde foi feita a primeira transmissão de tv no Brasil, em setembro de 1950. O prédio foi todo reformado e novos equipamentos foram instalados. Novos estúdios, dessa vez com ar-condicionado. Tinha o robô que colocava as fitas pra rodar automaticamente no oitavo andar, tinha o restaurante no nono, aquilo era tudo muito legal. Nessa época, a Rita Lee estava conosco, com o programa TVLeezão. Ela tinha um andar só pra ela e queimava tanto fumo que o prédio todo cheirava a maconha. O programa era sensacional. Tinha a colaboração do Antonio Bivar, do Paulo von Poser e era dirigido pelo Adriano Goldman (que hoje faz a direção de fotografia da série The Crown, da Netflix). Nos tornamos bons amigos e passávamos muito tempo nos segurando um ao outro pra não passar do limite. Nunca teríamos uma overdose juntos! Cabe mencionar que o programa da Rita estava acima do orçamento, todos comentavam sobre isso como sendo um problema. Mas era, inegavelmente, uma atração espetacular. Vários episódios foram gravados, sempre com a diva usando seus personagens malucos. Era um dos meus programas preferidos, ao lado do Buzz, feito na Inglaterra, também interessantíssimo. Mas Rita Lee e Antonio Bivar haviam preparado um especial envolvendo todos os vjs, numa ficção muito doida. Li o roteiro e achei sensacional. Tinha uma trama em que a rainha má queria raptar a Maria Paula e eu seria o herói que salvaria a vj das garras da maléfica rainha. Achei que tinha um lance ali, meio que uma provocação. Mas nem deu tempo de produzir esse episódio. Certo dia, chego à mtv e reparo que havia carros de bombeiro na porta, todos os funcionários na frente do prédio, alguns na célebre padaria Real, ali do lado, na esquina, tentando entender o que estava acontecendo. Roger Karman estava ali também e achei que o chefe supremo poderia me dizer a razão daquilo tudo. — O que houve, Roger? — Pegou fogo no estúdio da Rita Lee… — Ele me parecia muito tranquilo. 126  Lui z

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— Caramba! Mas tinha alguém lá? — perguntei, meio desesperado. — Não, foi muita sorte nossa. Em todos os sentidos… — falou, enigmático. O que pareceu foi que o tal incêndio acabou dando um fim naquela despesa indesejável. Terminava ali a participação de Rita Lee, a rainha boa, na mtv. Só fui reencontrá-la em 2000, no Tempo MTV, programa que festejava os dez anos da emissora.

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Ajustando o foco Passado algum tempo, começou a circular um boato de que um vj seria demitido. Nos corredores, no balcão da Real, só se falava nisso. Eu tinha certeza de que seria eu! Todos os outros vjs eram muito bons, tinha que ser eu mesmo. Não fui. O escolhido foi Rodrigo Leão, meu grande amigo, parceiro, confidente, o cara mais inteligente da turma. Disseram que esse foi um dos motivos. Ele era “inteligente demais” e passava isso pro público. Mas eu acho que na verdade ele incomodava alguns diretores, confrontando suas opiniões. Foi mais um baque difícil de superar. O fato é que eu continuava ali, contrariando as expectativas de alguns. A imprensa era muito influente e me dava muito destaque. Acho que, talvez, isso podia incomodar algumas pessoas. Eu não estava nem aí! Queria era tocar com minha banda, fazer meus programas, usar minhas drogas, ir a shows, conhecer pessoas bacanas, cuidar da minha vida. Nesse último quesito, as coisas não iam tão bem. As drogas estavam começando a pesar bastante. Não falo só de orçamento, apesar de isso também ter sido um fator que me prejudicou. Lembro de quando o Titti foi com a Susana, sua esposa, ao meu apê. Uma hora, ele me chamou de lado e disse: — Thunder, você precisa se instalar melhor. — Muito cuidadoso. — Que nada, eu não preciso mais que isso. Comprei uns ácidos maravilhosos! — Thunder, pega leve. — Meio preocupado. — Tô tranquilo… — Autoengano tomando conta. A Susana não falava nada, mas deve ter dado algum toque pra Walkiria. Ela gostava de mim, a gente se conheceu quando ela formava dupla com a Cris Camargo no departamento de figurinos da mtv. Passou a acompanhar as gravações do 121 Minutos, cuidava de mim. Comecei a receber uns toques dos amigos. Mesmo aqueles que usavam drogas comigo tentavam me dizer que eu CONTOS DE THUNDER   127

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estava passando dos limites. Claro que sempre tinha quem fizesse o oposto. É sempre assim.

O primeiro clipe (quase) perdido

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A Soninha trabalhava na redação e ainda não era vj. Ela estava pra se formar na usp e precisava de um trabalho de conclusão de curso de cinema. Chegou pra mim e propôs fazer um videoclipe pros Devotos. Eu achei a ideia ótima. A proposta era filmar em 16 mm com a equipe dela, elenco entre amigos, em dois dias. Ela precisaria de cem dólares pra comprar o filme. Tudo certo, a banda topou, e escolhemos a música “Gibi, Ramones e Motörhead”, que havíamos gravado no estúdio do amigo do Nasi, produzido por ele. Filmamos a primeira parte na casa dos pais da Soninha. Estavam lá, além da banda e do nosso roadie, o Renê, os convidados Peninha, produtor musical, Pedrão (lembram dele?) e as duas filhas da Soninha, as “Mariahs”. Um breve parêntesis para explicar as tais “Mariahs”. A Soninha estava dirigindo um programa meu em que eu apresentaria um clipe da Mariah Carey. Ela era formada em inglês e referência pra gente na hora de alguma dúvida em relação às pronúncias. Quando li o nome “Mariah” com o “h” no final, tive certeza que se pronunciaria “Maraia”, mas a Soninha insistiu que seria “Maria”. Gravei o programa conforme a indicação dela. Mais tarde, descobrimos que era mesmo “Maraia” e, na primeira oportunidade, falei disso no ar. — Com vocês, Mariah! — e fiquei repetindo várias vezes o nome da cantora. As filhas da Soninha assistiram a isso e passaram a me chamar de Mariah. E eu retribuí, chamando as duas de Mariahs. Uma piada interna que nos acompanha até hoje. Quando entrevistei a Soninha no Thunder Radio Show, em 2014, perguntei como estavam as Maraiahs. A gente ri muito disso até hoje. Voltando ao clipe, no dia seguinte fomos gravar no antigo prédio da Light, empresa que fornecia energia elétrica pra cidade de São Paulo. Hoje lá é o Shopping Light, ao lado do viaduto do Chá. Aquele prédio gigantesco, numa sala enorme, Soninha pôs três camas de solteiro, como se fosse o quarto onde a banda dormia. Gravamos, e eu dei a ideia de o Eduardo Xocante editar o tal clipe. Foi uma epopeia! Marquei com o Xoc de ir a uma produtora no bairro do Bixiga, tradicional de São Paulo. Manhã de sol, tudo lindo, cheguei, mostrei as imagens, a fita de áudio, colocamos pra rodar, assistimos algumas vezes, e 128  Lui z

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o Xoc deu pausa pra me mostrar seu carro novo. Um Chevrolet Kadett zero quilômetro. — Comprei um presentinho — disse o Xoc, rindo maroto. — Sério? O quê? — Eu já pensando que seria uma carga de pó boliviano tipo escama de peixe. — Um carro novo! — Posso ver? — Vamos lá fora… Deixamos a tal fita pausada e fomos dar uma olhada no carrão do Xoc. Acontece que o sujeito do estúdio de áudio fez a matriz em fita vhs, a pior escolha possível! Quando voltamos, o tempo em que a fita ficou em pausa fez com que nunca mais conseguíssemos sincronia com as imagens. A fita esticou com a pressão. Xocante não conseguia me dizer a verdade. Me enrolou por mais de um ano até conseguir me contar que a fita estava arruinada. Isso virou um bordão. Todo dia, no CEP MTV, programa que apresentei a partir de 1992, eu fazia menção ao clipe suspenso. Um dia, finalmente, Soninha tomou a iniciativa de terminar o clipe com uma cópia do áudio que eu tinha em fita cassete. Hoje em dia, alguns produtores usam esse recurso de passar o som em fita cassete, nossa popular K-7, pra ter uma sonoridade específica, e a gente fez isso em 1992, porque era o único jeito de terminar o tal clipe. A Soninha editou com seu namorado, o “Alemão” (um japonês proto-hipster talentosíssimo), ficou lindo. O clipe é muito legal e é o meu preferido dos Devotos até hoje. Está lá no YouTube.

Pegando pesado

Meu programa, meu primeiro programa na mtv, o Lado B, ganhou um estúdio bacana. Benevides dirigia esse programa também. Acho que a gente estava muito junto o tempo todo, e não era fácil me acompanhar. Ele tentava, mas reconheço que era quase impossível. Eu tinha minha banda, ele tinha a dele. A gente metia o pé na jaca juntos, no entanto ele era o diretor, sabe como é, tinha que ter mais responsabilidade e tal. Eu estava trabalhando bastante, mas me drogando muito, as coisas estavam ficando complicadas. Lembro de uma reunião de pauta numa mesinha da Real, quando ele começou a falar comigo, eu simplesmente desmaiei de sono. CONTOS DE THUNDER   129

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Eu não estava dando conta de fazer tudo. Eram o Lado B, 121 Minutos, Top 10 EUA, Ponto Zero, Rock Blocks, sem falar de outros programas que surgiam como boas ideias e não davam em nada. Eu tinha a banda, minha namorada, as drogas, os amigos sanguessugas! O consumo era diário e descontrolado. Atingi um ponto que não conseguia mais chegar no horário. Isso incomodava a todos, claro. Depois de uns meses nessa loucura, o Marcelo Machado me livrou do Top 10 EUA, mas eu ainda estava dando problema no Lado B, por causa dos meus atrasos, então o programa era gravado de madrugada, pois eu era o último a gravar. O Daniel não tinha a menor paciência comigo, hoje eu entendo, mas, na época, isso me parecia injusto. Ele sempre me acompanhava nas paradas, bebia bastante, tinha esse perfil roqueiro típico do underground, adorava o Nick Cave, que estava no Brasil, e acompanhava alguns amigos na heroína. Na minha cabeça, ele não podia ser o cara que me condenaria pelas minhas estripulias. Isso deixou muitas mágoas entre nós. Aconteceu uma ou duas vezes de eu não aparecer pra gravar o Lado B, e nesses dias fui substituído pelo Fabio Massari. Além de ser muito gente boa, ele sabia tudo de rock alternativo, tinha um programa na 89 fm e trabalhava com a Yone Sassa na programação. O apelido “Reverendo” foi dado por mim, depois que ele me presenteou com um cd do Reverend Horton Heat, psychobilly da pesada! Ele se revelou um bom vj e, com o tempo, o Lado B passou a ser apresentado por ele. Acho que todos ganhamos com isso. Eu não aguentava mais o Daniel, ele também não queria mais trabalhar comigo, e fez-se um arranjo pra resolver as coisas. Claro que fiquei chateado com aquilo, mas pelo menos o programa seria apresentado por um cara legal, conhecedor da matéria. Massari continuou como vj durante vários anos, e sempre muito bem! Quando saiu da mtv, foi pra Islândia e escreveu um compêndio sobre o rock daquele país. Genial! Acho que grande parte desse desentendimento com o Daniel foi alimentado pela famosa “rádio corredor” da mtv. O pessoal da equipe técnica chegava pra mim e dizia: — Esse cara tá armando contra você. — Mas por qual motivo? — Ele vai puxar seu tapete, fica esperto. Isso aconteceu naquela época e voltou a acontecer nos anos 2000. Depois eu lavo essa roupa suja, imunda! A fofoca é uma doença. Destrói relações e não serve pra nada, a não ser pra provocar desentendimentos entre as pessoas. Os

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fofoqueiros mais canalhas se aproveitam de um clima complicado pra alimentar boatos e desentendimentos. Malditos! Mesmo anos depois, quando voltei, no fim de 2000, pra apresentar o Tempo MTV, a coisa ainda estava estranha entre mim e o Daniel. Eu já estava limpo, responsável, pronto pras obrigações, no entanto ele continuava aguardando alguma oportunidade pra me desqualificar. Ele até tentou, mas consegui provar que era só implicância da parte dele. Nossa amizade nunca mais foi a mesma. Superei aquilo tudo. Ele, não. (Poucos sabem, mas foi nessa época que surgiu o bordão “Ele não!”, que ficou famoso tantos anos depois, na oposição à candidatura do Bolsonaro nas eleições de 2019.) (Não, claro que não! Estou brincando de novo!) Voltamos a nos encontrar depois, quando fomos trabalhar com a Soninha no programa RG, na tv Cultura. Clima bem frio entre nós. Depois, quando ele foi assessor parlamentar da vereadora Soninha, nos encontramos no gabinete e… clima polar. Um dia a gente tem que se encontrar e resolver tudo isso.

Protagonista

Uma observação, pra mim, fundamental: nunca experimentei heroína. Nunca. Tinha um amigo, artista plástico, grande figura, que era o cara da heroína em São Paulo. Eu tinha curiosidade de conhecer essa droga, mas o destino não permitiu. Diversas vezes pedi pra usar e, em todas, ele não tinha. Quando ele estava com a droga, eu não estava a fim. Nunca houve a junção da fome com a vontade de comer e um prato cheio na minha frente. Acho que teria sido o meu fim. Certeza!

Além da mtv

Eu era sempre convidado pra ir a programas em outras emissoras. Alguns são inesquecíveis. Fui ao Programa de Vídeos, do Gugu. Eu estava preparado pra zoar o barraco e foi o que fiz. Pra minha surpresa, tanto Gugu quanto seu diretor, Homero Salles, adoraram o Thunder doidão. Não decepcionei, claro! A produtora do programa, Rose, ficou enlouquecida. O tempo iria resolver isso CONTOS DE THUNDER   131

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quando, em 1997, fui trabalhar na Rede Manchete, ela como produtora e o Homero como diretor. Na sequência, graças ao sucesso da minha aparição, fui ao programa Passa ou Repassa, também do Gugu, em 1993. Eram duas duplas: Kid Vinil e a atriz Nicole Puzzi contra a atriz Monique Evans e eu. Aí foi uma loucura sem limites! Aquelas provas todas, a Monique linda, tirando a maior onda comigo. Teve o momento das tortas na cara, o Gugu ao centro, Kid de um lado, eu do outro. Kid, espertalhão, apertava o botão pra responder antes do tempo e acertava as perguntas. Primeira torta na minha cara. Na quarta vez que me senti trapaceado, pedi um instante pros dois e mandei uma torta na cara do Kid, quando era a vez de ele me dar a tortada. Espirrou chantilly no paletó do Gugu e ele deu vários pontos a mais pro Kid. Teríamos ganhado a competição se não fosse essa minha atitude punk. Ganhamos 3 mil dinheiros da época em prêmios da Tamakavy, famosa loja de utensílios do Silvio Santos. Os piores prêmios da história da televisão brasileira! Mas a tarde foi muito divertida! Fui ao programa da Elke Maravilha. Adoro e sempre irei adorar a Elke! Ela, muito simpática no sofá, me entrevistando, tudo indo bem, até o momento em que ela sugeriu que eu desse o telefone da minha empresária pra shows. Antes de ir ao programa, eu tinha passado no banco, ali na mtv, e tirado todo o meu salário em dinheiro. Usava umas calças enormes da Drop Dead, e o dinheiro estava nos dois bolsos. Quando tentei tirar o cartão dela do bolso, aquele monte de dinheiro saltou pra fora, no meio do palco. A plateia enlouqueceu e eu arranquei o restante do outro bolso, joguei tudo pra cima e gritei: — Quem quer dinheiro?! Má oe! Deu um trabalhão segurar as donas de casa da plateia e recolher todas aquelas notas. Elke gargalhava junto comigo. Fui várias vezes ao programa da Silvia Poppovic, na Bandeirantes. Ela me olhava como quem via um extraterrestre. Eu curtia estar naquele ambiente careta, pronto pra mandar alguma bomba ao vivo. Numa dessas vezes, tive a sorte de estar ao lado de Paulinho da Viola. Que sujeito bacana! Mas houve um constrangimento. Silvia se virou pra gente e mandou: — Como é ser diferente? Estranho? Paulinho, um lorde, tergiversou elegantemente. Eu fui um pouco mais incisivo: — Ah, sei lá, eu não acho o Paulinho estranho ou diferente — respondi, e olha que eu ainda estava controlado. 132  Lui z

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— Mas, Thunder, como você lida com o fato de não ser galã? — ela rebateu, irônica. — Eu lido bem com minha aparência, na verdade, não vejo problemas em estar fora do espectro da beleza. É tipo, sei lá, como alguém muito acima do peso. Tem que saber lidar. — Rebati Silvia, que estava acima do peso na época. Silêncio. Depois dessa, achei que ela nunca mais permitiria que eu fosse convidado, mas fui e aprontei mais uma. Foi no fim de ano, último programa antes das festas, eu ao lado da Christiane Tricerri, atriz que eu conhecia do Teatro do Ornitorrinco, eu com meu taco de beisebol (inseparável, na época), ela com uma camisinha de vênus na mão. Fizemos uma bela demonstração de como utilizar a coisa. — Thunder, posso pegar no seu taco? — Ele é todo seu! — Prestem atenção todos. É assim, com calma e com carinho. Silvia estava quase em coma, pois, além de nós, estavam presentes o governador do estado de São Paulo Luiz Antônio Fleury Filho, sua esposa e sua filha. A gente só estava abordando o tema da aids de forma corriqueira, e ao mesmo tempo tentando chamar atenção para o fato de que não havia mais espaço pra esse tabu. Silvia ficou putíssima da vida. Teve o dia em que fui ao Rio pra gravar o programa da Leda Nagle. Era muito fã dela desde quando apresentava o Jornal Hoje, na Globo, e nessa segunda vez que fui convidado, estava acordado havia uns três dias. Estava indo tudo bem, até o momento em que desliguei e a atriz Patricya Travassos me despertou muito discretamente: — Thunder… — ela sussurrou. — Oi… O que houve? — Eu devia estar sonhando com o Asdrúbal Trouxe o Trombone, sei lá. — Tá rolando uma série de perguntas e acho que você é o próximo… — Patricya, fada madrinha. — Ah, obrigado e… desculpe — sussurrei pra ela. Ela riu baixinho e apertou minha mão, tipo “calma, tá tudo bem”. Te amo pra sempre, Patricya! Uma vez, fui a dois programas diferentes no mesmo dia. O primeiro foi o infantil da Eliana, no sbt. Tudo muito legal e, no final, ela me convidou pra cantar a música “dos dedinhos” com ela. Acho que exagerei na hora dos dedos CONTOS DE THUNDER   133

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médios. Minha empresária me repreendeu, claro. Na sequência, fomos ao programa da Claudia Matarazzo. Não sei o que houve, mas eu olhava pra ela e o nome que me vinha à mente era o da socialite Maria Pia Matarazzo. Durante a entrevista, chamei a Claudia de Maria três vezes: — Sim, dona Maria, lancei um clipe da minha banda… — Ela fez uma cara de espanto. — Queria dizer que é um prazer estar aqui no seu programa, dona Maria… — Percebi uma careta. — Olha, dona Maria, eu também acho que… — Claudia enfezadíssima! Na quarta vez que a chamei de dona Maria, ela agradeceu minha presença, chamou o intervalo e saiu sem se despedir do público nem de mim. Só fui descobrir a mancada depois, quando perguntei o porquê de ela ter saído de repente, tão apressada. — Você confundiu o nome dela, Thunder! — disse minha empresária, meio brava. Queria aproveitar a oportunidade e pedir desculpas por ter confundido os nomes. Desculpe, dona Maria. Foi sem querer. Na segunda vez que fui ao programa do Jô Soares, no sbt, levei os Devotos pra tocar comigo. George e Victor ficaram animados em conhecer o Jô — e o Bira, claro. Na hora da entrevista, entramos no palco, cumprimentamos o Jô e, na hora de nos sentar, havia uma poltrona pra mim e um sofá pros dois. Eu não tive dúvida, dei um golpe sutil de judô no George e arremessei ele pra poltrona. O Jô sacou na hora e não perdeu tempo: — Eu estou aqui com o… — começou Jô, rindo. — … George. — respondeu, paralisado. — Ah, que interessante. Me fala um pouco de você, George… — Jô rindo, a plateia gargalhando, eu e o Victor quase molhando o sofá de tanto rir. Foi bizarro, pois George é bem calmo, tímido, taciturno. Jô surfou muito na nossa onda nesse dia. Eu realmente me divertia nessas ocasiões. A vida estava assim, deliciosamente descontrolada.

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O teen spirit do Nirvana encarnou nas pistas e paradas no lugar do groove do Deee-Lite datado do mundinho clubber. O rock goleava, e o roqueiro da MTV era o número um da casa. Thunderbird deixou o estúdio para cobrir a Eco-92 e descobrir a América. E também os gêneros e gênios do Brasil. Respeitado no fundão no rock, Racionais na rampa de acesso, raps enrolados na salada da música em que ele fazia a mistura fina e as melhores iguarias. Thunder tatuado na Califórnia na TV era novidade. O pó pra dar com pau, não. Correio sentimental no cep era o DNA da MTV. Ele mandava prender e soltava a voz. Thunder era a cara da TV no meio desse povo todo. Thunder era para se ver na Globo. Thunder a ver.

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THUNDER DESCOBRE A AMÉRICA, A GLOBO DESCOBRE O THUNDER

O ano de 1992 me trouxe alguns presentes. Eu fui cobrir a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, conhecida como Eco-92, no Rio de Janeiro com a Fernanda Telles, que me dirigiu nessa empreitada com pulso firme e personalidade. Fernanda foi a primeira diretora que me deu uma bronca merecida. Eu estava mesmo me tornando um monstro incontrolável. Sobre essa minha fama, lembro de quando participei do programa Provocações da tv Cultura, em 2013, apresentado pelo genial Antônio Abujamra. Nunca saberei se foi apenas uma performance dele, mas que experiência! — Oi, seu Antônio. Tudo bem com o senhor? — Olá… Você que vai gravar comigo? — Sim, tô aqui, emocionado! — Ah… Que horror! — Ele solta uma gargalhada sonora. Nos sentamos nas poltronas do cenário e ele começou a reclamar da luz. — Fulano! Essa luz está insuportável! — Seu Abujamra, quer que diminua a luz? — perguntou o iluminador, solícito. — Porra! Estou cego com essa luz! Tira essa luz! O iluminador diminuiu a luz. — Tá bom assim, seu Abujamra? — Está uma merda! Tira mais! Menos luz no cenário… — E agora, seu Abu? Tá bom pro senhor? — Está horrível! Tira essa luz, pelo amor de Deus! CONTOS DE THUNDER   137

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Quase penumbra no estúdio… — E agora? — Tira essa porra dessa luz, já pedi! Nenhuma luz na gente… — Agora, sim! Está ótimo, obrigado! — ele diz, com um sorriso no rosto. — Mas, seu Abu, desse jeito ninguém vai ver nada na tv. — Então, põe luz na gente, porra! Gargalhadas no estúdio. A entrevista começou e, num determinado momento, ele mandou: — Thunderbird, você era conhecido como o Orson Welles da mtv. Era isso mesmo? Fiquei desconcertado, sem acreditar. Tinha essa lenda de que eu era incontrolável, que fazia tudo o que eu queria, quando eu queria e se eu quisesse. Imediatamente, lembrei da Fernanda firmemente me falando: — Thunder, vamos gravar! Agora! E eu gravava. Fernanda me deu um golpe durante a Eco-92. Tínhamos gravado o dia todo e, antes de ir pros nossos quartos, ela mandou: — Ai, Thunder, já pensou se a gente tivesse um helicóptero pra fazer umas cenas aéreas? Pensei comigo que seria um horror, pois tenho medo de uma coisa que voa e não tem asas. — Ah, seria espetacular, né? — respondi, disfarçando a fobia. — Que bom que você gostou da ideia! Temos um helicóptero fretado pra amanhã. Te encontro às sete horas no café da manhã. Beijo! — E seguiu pro quarto dela, sem nem olhar pra trás. Fiquei paralisado no elevador. Como ela conseguiu alugar um helicóptero com o orçamento da mtv? Fernanda era assim, milagreira. No dia seguinte, realizamos as primeiras imagens aéreas da mtv, sobrevoando o Rio de Janeiro. Lembro que era um daqueles helicópteros cuja cabine era uma bolha de vidro. Foi horripilante! Pra terminar as gravações, o comandante propôs dar uma volta em torno do Cristo Redentor. Mas ele não deu uma “volta”, ele deu um “cavalo de pau” em torno da estátua. Surtei e ameacei o digníssimo, com toda a educação e cortesia que aquele momento pedia: — Desce essa merda, senão eu arrebento a sua cara, seu filho da puta! Fernanda ria solto, faceira, se divertindo.

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Novas caras

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Chegaram alguns vjs pra integrar a equipe. Vieram Otaviano Costa, Chris Couto, Edgard Piccoli, Felipe Barcellos, pra apresentar o Yo! MTV Raps, e Rita Monteiro, pra comandar o Reggae MTV. Felipe era carioca, e acho que isso foi determinante pra que não se firmasse como apresentador do Yo!. O rap brasileiro era essencialmente paulistano. Lembro da gente no show do Public Enemy. Teve um momento em que saquei uns caras, aparentemente, cobrando alguma coisa dele. Esse show, aliás, foi sensacional. Conheci Flavor Fav e Chuck D no camarim. Subi ao palco, tentei ligar pro Thaíde, que não estava lá. Se não me engano, os Racionais mc’s marcaram presença nesse show. O Xis, na época conhecido como Chocolate, também estava presente. A melhor lembrança da noite foi o Flavor Fav, que estava tomando guaraná. A cada intervalo entre as músicas ele dava um gole numa garrafa de dois litros e gritava: — Guaranááá… Dizem que ele levou vários litros pra Nova York. Teve um momento tenso na mtv, ainda sem explicação, quando encontrei os Racionais mc’s. Eles iriam participar do Yo! e estavam sentados na escadaria interna do prédio. Eu estava descendo a escada, dei de cara com eles, cumprimentei todos com um “Opa! Tudo bem?”, mas ninguém respondeu. Ninguém nem se mexeu. Tive que literalmente passar por cima deles na escada. Foi estranho. Muito anos depois, encontrei o Kleber, mais conhecido como kl Jay, numa fila pra um espetáculo musical circense. Ele foi de uma simpatia inesperada. Depois, o Kleber foi algumas vezes ao meu podcast, o Thunder Radio Show, e numa dessas vezes eu lembrei desse episódio. Ele não. Alguns anos depois, em 1994, convidei os Racionais pra ir ao TV Zona, meu programa na Globo. Mas a pessoa que fez o convite me falou que eles não iriam a um programa global e com um apresentador branco. Na época, fiquei bem chateado com isso, hoje entendo essa postura que eles assumiram. No Video Music Brasil (vmb) de 2012 encontrei o Mano Brown. Ele foi muito simpático, me deu um abraço, convidou pra ficar no camarim deles, disse que eu era bem-vindo à família Racionais. Tanto tempo imaginando que eles me odiavam e não era nada disso! Hoje, sou amigo do Kleber, a gente se encontra, combina jantares, fala de automóveis, séries da Netflix, somos bons amigos. CONTOS DE THUNDER   139

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Quando o Felipe foi demitido, a decisão da mtv era de acabar com o Yo!. Eu argumentei que, apesar de não ter audiência, era importante manter o programa no ar. A direção disse que se eu quisesse, podia apresentar o programa norte-americano, sem legendas, às três da manhã de quarta-feira. E assim foi, por mais de um ano! Eu abria o programa com algum convidado, geralmente grupos de São Paulo e o programa norte-americano seguia. Acho que umas quatro pessoas assistiam ao programa. Em 2012, o dj Nuts me disse que ele era uma dessas quatro pessoas, e que até gravava os programas. Lembro que Rogério Gallo chamou alguns vjs pra assistir ao teste do Otaviano Costa. Ele foi muito bem. Até improvisou um beatbox. Eu vi ali um vj. E ele foi aprovado. Chegou muito jovem, acho que devia ter uns dezessete anos, ainda nem tinha carta de motorista. Eu dava carona pra ele até o hotel em que ele morava, na alameda Joaquim Eugênio de Lima, nos Jardins. Nos tornamos bons amigos e, quando ele completou a maioridade, posso estar delirando, mas ele não ganhou um carro. Ganhou uma concessionária Honda na avenida Sumaré. Que figura!

Ao pó voltaremos

Chris Couto, gentileza em pessoa, era das que me davam conselhos. — Thunder, você está exagerando no pó! — dizia, na maior simpatia. — Chris, está sob controle. — A negação falando alto. — Eu quero que você saiba que eu discordo. — Parecia uma mãe carinhosa. Ela veio pra apresentar o Cine MTV. Adorável! Edgard veio da tv Shop Tour e da 89 fm. Boa-praça, ficou na emissora por muitos anos. Quando retornei, no final de 1999, ele chegou pra mim e disse: — Thunder, como você lida com o fato de que nunca mais vai poder fumar um baseado, unzinho pelo menos? — É só por hoje, Edgard! — Eu estava no programa de doze passos. Rita Monteiro era uma pessoa maravilhosa. Muito alto-astral, lindíssima, sempre acreditei que ela seria um sucesso. Mas a mtv, não. Ficou com a gente por um ano. Havia uma crítica por parte de alguém ligado à produção do programa. Com alguém te detonando nos bastidores, era quase impossível continuar na emissora. Isso aconteceu comigo em 2000. Alguém tentou minar minha imagem pra diretoria. Em 2001, aconteceu de novo com outra pessoa. 140  Lui z

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Alguns não curtiram a minha volta mesmo! Tinha muita gente legal na mtv, mas gente ruim também. A tal rádio corredor já estava no ar por ali. Quando se espalhava um boato, uma opinião negativa sobre alguém, os radialistas de corredor alimentavam essa onda. Uma coisa deplorável!

Cobrindo a América

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Chegou a época do vma (Video Music Awards), premiação da mtv norte-americana, e decidiram que iríamos participar. Em virtude da minha popularidade, fui escolhido pra ir a esse evento. A Cuca e o Gastão também foram “premiados”. Zeca Camargo iria pra fazer umas reportagens da premiação. Foi em Los Angeles, em 1992, uma viagem incrível. No voo de ida, encontramos Emerson Fittipaldi, e imaginei que ele estava indo pra alguma coisa ligada ao automobilismo. Se foi, não sei, mas encontramos o bicampeão mundial de F1 no show do vma. Quando chegamos, percebi que eu estaria ali a passeio. Cheguei pro Titti e questionei isso. Ele imediatamente resolveu a questão: — Vamos fazer um programa seu aqui! — O mesmo sorriso maroto de sempre. — Mas, Titti, a gente não tem equipe! — Eu ajeito isso! Ele descolou um cameraman e um operador de áudio. Eles eram muito altos, e apelidamos os dois de Torres Gêmeas. — Mas o que a gente vai gravar? — Thunder descobre a América, claro! — Caramba! Vamos mesmo? — Amanhã cedo começamos. Prepare-se! Fiquei empolgadíssimo. Nem sabia como seria, mas tinha certeza de que seria especial. E foi! O programa se resumia a minhas aventuras e descobertas sobre os Estados Unidos. Lugares emblemáticos de Los Angeles e minha estupefação diante do american way of life. Gravamos em Venice Beach, onde havia barraquinhas de sementes de maconha do mundo todo, alugamos um Mustang conversível, fui à Tower Records e comprei uns cinquenta cds, fomos à loja da Harley-Davidson, onde quase fundi o motor de uma supermoto zerada, e a um supermercado, onde uma americana me perguntou: CONTOS DE THUNDER   141

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— Você não tem vergonha do presidente da República do Brasil? — disse em português, com sotaque. — Muita vergonha, minha senhora! Era Fernando Collor de Mello, meses antes de renunciar para não sofrer o impeachment. Mas Los Angeles não tinha muito do que se orgulhar também. Desde 1965, a revolta no bairro de Watts trazia à lembrança problemas raciais sérios. Ali, em 1991, Rodney King havia sido espancado por policiais e as imagens gravadas em vídeo rodaram o mundo. O julgamento desses policiais violentos e racistas aconteceu no dia 29 de abril de 1992, e a absolvição deles causou tumultos e revolta generalizada na parte sul de Los Angeles. A polícia não foi capaz de conter a população, e saques e incêndios tomaram conta daquela cidade. Quando subimos uma colina cheia de mansões multimilionárias pra gravar um dos cinco episódios do Thunder descobre a América, vimos lá de cima quarteirões inteiros queimados. Fiquei imaginando aqueles multimilionários, de cima de suas mansões, comentando os fatos: — Querida, mais champanhe? — Ah, sim, obrigada. — Olha, tem mais um quarteirão queimando. — Os incêndios estão se aproximando daqui. — Calma, nosso helicóptero está de prontidão. — Sim, mas e se nossa mansão também pegar fogo? — Nós temos seguro. No outro dia fui até uma megadrugstore comprar qualquer coisa, pasta de dente, desodorante, sei lá. Rolou um clima tenso entre uma senhora e a caixa da loja. Os conflitos entre a comunidade coreana e a afro-americana também fizeram parte da história daquela época na cidade. Los Angeles é muito louca, sempre foi, acho que sempre será. Fomos também a uma sex shop que tinha artigos absurdos, como uma camisinha para bacanais, pra vestir na cabeça e se disfarçar; camisinhas Enormex (sim, amiguinhos, Enormex…) para bem-dotados; para, digamos, maldotados (small pecker condoms); e camisinhas para o nariz (?!). Mas o ponto alto foi a Sunset Strip Tattoo, na Sunset Boulevard, onde fiz a primeira tatuagem transmitida na televisão brasileira. Ali, vários ídolos do rock haviam se tatuado. Tinha foto do Axl Rose, do Brian Setzer, do Lenny Kravitz, do baterista do Mötley Crüe, mas, principalmente, do guitarrista Johnny

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Winter. Johnny Winter! Até então, só o George havia me tatuado. Era mesmo um pacto de fidelidade. Mas quando o Titti sugeriu o Sunset Strip, não imaginava que gravaríamos o processo de tatuagem. Ali, na hora, não resisti e topei. Acho que o George não ficou muito chateado com o fato. Nunca comentou nada a respeito. Ainda gravamos na Guitar Center, onde comprei meu baixolão Martin. O Titti me emprestou a grana pra comprar. Esse programa foi um dos maiores presentes que já recebi. Titti foi muito generoso, bancando tudo isso pra me deixar feliz. Durante o período dessa viagem, não usei nenhuma droga. Nada! No dia anterior à premiação, aconteceram cenas inusitadas. Eu estava com o Gastão no backstage, tomando café. Estávamos numa mesinha, trocando uma ideia, quando notamos dois sujeitos ao nosso lado. Quando a gente viu que eram Brian May e Roger Taylor, do Queen, ficamos em silêncio. Era o mínimo que podíamos fazer naquele momento. Deixamos os monstros falarem, tentando entender o que eles diziam. Tinha muita gente famosa ali. Eddie Murphy, Mike Myers, Dana Carvey, Cindy Crawford, Ice-T. Uma hora o Gastão estava entrevistando o Ice-T e o rapper estava acompanhado pela namorada, lindíssima. Zeca ficou meio contrariado com a iniciativa do Gastão, afinal entrevistas eram só com ele. Eu me ocupei de entreter a garota do Ice-T com meu humor woodyalliano, falando inglês, imitando Carmen Miranda de calças. Depois de um tempo, percebi que Ice estava prestando mais atenção nas nossas risadas que nas perguntas do Gasta. Acho que corri o risco de tomar uma lendária surra de um dos caras mais legais do rap norte-americano. A gente encontrou o Anthony Kiedis e o Flea do Red Hot Chili Peppers. Quando souberam que a gente era da mtv Brasil, eles só queriam saber se a gente tinha maconha. Nos disseram que eram loucos pra vir pra cá e perguntaram se a gente topava queimar um baseado ali com eles. Umas figuras! Aconteceu um pequeno incidente nesse dia, mas de grandes consequências. Estávamos todos esperando a chegada de Kurt Cobain com sua esposa, Courtney Love, e a filha recém-nascida, Frances. Toda a imprensa internacional estava ali, aguardando a chegada deles, no auge do Nirvana. Momentos antes, uma “produtora” da nossa mtv me pediu uma coca-cola. Educadamente, peguei a garrafinha pra ela, abri o refrigerante, que escapou da minha mão e se espatifou no chão. Um caquinho da garrafa atingiu a perna dela. Ela fez tamanho escândalo que todo mundo foi ver se era um atentado terrorista, enquanto o casal grunge e sua filhinha passavam despercebidos por todos. CONTOS DE THUNDER   143

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— Minha perna! Minha perna! — gritava a produtora. — Calma, foi só um cortinho. Alguém tem um band-aid? — falei, tentando acalmar a situação. — Vou perder a perna! Vou morrer de hemorragia! — gritou, histérica. — Alguém tem um cotonete? — perguntei, tentando dar a dimensão exata do ferimento. — Acho que vou desmaiar! — Pessoal, olha o Kurt Cobain passando… — tentei avisar, lembrando por que estávamos ali. — Morrerei… Não, não morreu. No caso, a produtora, claro. Na noite da premiação, estávamos todos animados, a produtora arrumou um band-aid, fomos pro show. Teve tanta coisa legal que é difícil lembrar de tudo e de todos. A espetacular apresentação do Nirvana foi marcante. Kurt ameaçou tocar uma outra música, “Rape Me”, que não estava combinada com a organização, Krist Novoselic arremessou seu baixo pro alto e foi atingido no rosto, Dave Grohl chamou Axl Rose pro pau. Tudo ali, no palco do vma. Eddie Vedder estava no palco com o Pearl Jam bastante alcoolizado, mas mandando brasa. Def Leppard, com Rick Allen já recuperado da amputação do braço esquerdo pouco antes do primeiro Rock in Rio, tocando bateria pra caramba! Num dos intervalos, eu e Gastão saímos pra fumar um cigarro e demos de cara com Emerson Fittipaldi. Ficamos ali, trocando uma ideia até que ele interrompeu: — Thunder, vamos prosseguir com esse papo daqui a pouco… — Emerson, educadíssimo. — Claro, campeão! — É que vai começar o show de uma banda quente! — Sério? Qual banda? — Red Hot Chili Peppers! — Os olhinhos dele brilhando. Eu quase tive uma síncope! O bicampeão mundial de Fórmula 1 era fã do rhcp! A noite teve a conhecida série de premiações, shows, tudo apresentado por Mike Myers e Dana Carvey, que tinham acabado de lançar Wayne’s World (Quanto mais idiota melhor, naquela série de traduções idiotas dos filmes no Brasil), uma comédia sobre dois comparsas apaixonados pelo rock ‘n’ roll. Dana e Mike eram sucesso nos Estados Unidos, graças às suas performances no 144  Lui z

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Saturday Night Live. Mas Mike Myers viria a produzir e estrelar a série de longas-metragens encarnando Austin Powers, um gênio! Depois da premiação, a esperada festa do vma. Todas aquelas celebridades ali, eu e Gastão na fila da tequila. Um baixinho tentou furá-la. Não deixei barato: expliquei que havia uma fila ali. O tal baixinho folgado era do grupo Marky Mark and The Funky Bunch. Hoje ele é mais conhecido como Mark Wahlberg, ator e produtor de filmes e séries de Los Angeles. Foda-se! Foi pro fim da fila! Essa viagem foi mesmo um prêmio pra mim! O programa Thunder descobre a América ficou sensacional.

Na tela da tv, no meio desse povo

No ano seguinte, em 1993, a Rede Globo estreou a TV Colosso. Esse programa infantil, povoado de bonecos de cachorros, mostrava uma emissora de televisão com todos os personagens típicos. Tinha a produtora Priscila, o faz-tudo Gilmar, o apresentador de telejornal e um vj. O tal cãozinho vj era o Thunderdog. Rita, que era maquiadora na mtv, já havia me adiantado que estavam preparando uma “homenagem” pra mim num programa. Mas nunca imaginei que fosse na Globo, tampouco um personagem fictício ressaltando o fato de ser um vj roqueiro que apresentava videoclipes e até dizia “Se é que você me entende”. Quando estreou o programa, foi um sucesso imediato. Eu adorei o Thunderdog, só que isso provocou um ciúme por parte da mtv. — Thunder, se você quiser, a gente tira isso do ar amanhã! — Titti, firme, na certeza de que eu estava na mesma vibe. — Imagina! Eu achei sensacional o personagem! Ele é legal, e o programa também! — respondi, felizão. — Mas, Thunder, eles não te pagaram nada por isso! Era um bom argumento, mas meu lado infantil gritou na minha orelha. — Tudo bem, o Thunderdog é legal… Realmente, não me pagaram nada por aquilo, nem me consultaram. A alegação de ser uma homenagem parecia isentar qualquer possibilidade de remuneração. Nem liguei pra isso. O Luiz Ferré, criador e diretor da atração, fez um trabalho espetacular com o programa. Depois, em 1994, até gravei uma música pro Thunderdog, que entrou na trilha sonora do programa, a divertida “Thunderdog Boogie”. Em 1995, participei do longa-metragem Super CONTOS DE THUNDER   145

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Colosso, dirigido pelo próprio Ferré, estrelado pela Camila Pitanga e pela Luana Piovani. Foi um barato! Curti muito essa parada. Talvez esse tenha sido o primeiro namorico da Globo comigo. Talvez ali eles já estivessem de olho em mim. Quem pode responder isso é o Boninho, que me chamou pra conversar no final de 1993.

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CEP MTV Mas, antes disso, em 1992, a mtv me deu um outro presentão! Esse presente foi o CEP MTV. O programa tinha um cenário muito legal, e nele eu respondia a cartas da audiência, com pedidos de clipes. Era o que dava para fazer na época de interatividade, antes da internet, e-mail, redes sociais. Pela primeira vez a gente falava com o nosso público. E foi demais. Começou assim, dirigido pela Susana Jeha, estabelecendo uma relação mais íntima com os fãs. Foi um sucesso imediato. Susana me dirigiu por um bom tempo. Mas minha inquietude fez com que eu desse um passo adiante. Fizemos a primeira promoção de marketing (sem a participação do marketing da emissora), com a ajuda do Andre Jung, baterista do Ira!. Ele representava as baterias Pearl no Brasil. E bolamos uma promoção em que o espectador escrevia uma carta e, se fosse sorteado, ganharia uma bateria Pearl completa. — Baterias Pearl, surdo é a mãe! — eu repetia a todo instante. Isso durou um bom tempo. Na semana antes do sorteio, levamos alguns bateristas como convidados. Victor Leite, que tocava comigo nos Devotos; Andre Jung; Duda Neves, que tocou com Arrigo Barnabé e Paulo Zinner, da banda Golpe de Estado, que na época tocava com a Rita Lee. Anos mais tarde, em 2002, o Zinner entrou pros Devotos e toca comigo até hoje. As coisas aconteciam muito caoticamente. Certa noite, estávamos na casa do Nasi mandando brasa. A gente fazia muita coisa errada por lá, se é que vocês me entendem… Estavam lá o Andre, o Jorge Pinchevsky, violinista argentino espetacular que passava uma temporada por aqui, e Gigante Brazil, que estava tocando com a Marisa Monte. Depois de muito calibrados, sugeri que eles aparecessem na mtv no dia seguinte, pra gente invadir o cenário do CEP. E eles foram! Claro que não havia avisado ninguém da produção nem da equipe técnica. Quando eles chegaram, eu os empurrei pra dentro do programa, sem microfone, na raça, e foi o máximo. Foi assim que começaram as interações 146  Lui z

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musicais no programa. Andre levou um berimbau, Gigante levou um bongô, Jorge levou seu violino. Eles tocaram Bolero de Ravel e todo mundo pirou nessa cena. Eu toquei castanholas! Daí pra frente, muitos convidados participaram do programa. Eu pude cantar “Orgasmo total” com Arrigo Barnabé, com ele dando no meio da música o nosso endereço, literalmente, o cep da mtv para o telespectador mandar sua cartinha. Que momento! Também toquei bongô com Jorge Ben, toquei baixolão com a Sandra de Sá, levei os Raimundos pela primeira vez na mtv, quando eles não tinham explodido ainda. Foi demais. Eu os apresentei como representantes de um certo estilo “pornográfico do interior do Sergipe”. Teve um grupo de dança flamenca que lotou o estúdio sapateando, Zé Carratu ensinou como produzir tintas pra pintar um quadro, Guto Lacaz levou sua série de “Coincidências Industriais”, Manu Chao fez um som. Foi ali que conheci Karima, bailarina de dança do ventre. Foi assim que nos apaixonamos. Ela curou minhas feridas do rompimento com a Walkiria meses antes e ficamos juntos por cinco anos. Ela se apresentando dançando, eu com um turbante, deitado no set, e pontuando coisas da beleza dela e da dança e sempre dizendo “no bom sentido”, claro. Mesmo se não fosse. Teve um momento em que falei “para quê ler cartas?” de tão inebriado “no bom sentido” que estava com a performance da Karima. Depois que Susana deixou a direção, a Joana Mazzucchelli assumiu o CEP. Ela foi primordial pra me manter em pé durante um longo período. Com uma paciência absurda, Joana me dirigia, me acalmava, me aconselhava, me carregava no colo. Ela tinha um lance bacana de me deixar à vontade e de topar qualquer loucura. Ela sempre colocava os discos Todos os Olhos e Estudando o Samba do Tom Zé de fundo musical do programa. O Tom gravou uma chamada pra mtv muito simpática: “Você está vendo a mtv e está fazendo muito bem ao fazer isso”. Teve um desses programas que os break dancers do Thaíde mandaram brasa e o Marcelinho, num giro tipo helicóptero, destruiu o globo terrestre que ficava no centro do cenário. Joana levou bronca da chefia, mas a gente achou sensacional e ela cuidou de colocar o tal giro em câmara lenta. O programa com o Jorge Ben — ele ainda não havia mudado pra Ben Jor — foi especial. O CEP tinha trinta minutos de duração, mas nesse dia a situação foi tão legal que o programa teve uma hora e meia. Nós derrubamos a grade de programação da mtv! Mais uma bronca na Joana que festejamos muito. O programa ia ao ar na hora do almoço e era reprisado à noite. Era o maior sucesso da mtv, e nós CONTOS DE THUNDER   147

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nos divertíamos muito com ele. Até hoje eu encontro pessoas que me dizem que escreveram cartas pro programa. Mais legal ainda é quando algumas dizem que eu li suas cartas no ar. Clara Averbuck, a escritora, foi uma dessas pessoas. Outros eram ainda mais caras de pau, como os Raimundos, que já chegaram arregaçando no primeiro som. Ou Gabriel O Pensador. Ele me mandou não só uma carta, mas também uma fita cassete. Gostei muito. No ar, mostrei a fita e perguntei se ele teria coragem de ir ao programa. Ele foi. E participou. E falou da cena carioca do hip-hop. E já falava da violência urbana na Cidade Maravilhosa. Isso em 1992. Parece que foi ontem. E continua sendo agora. E pelo visto amanhã também.

cep

correto, lugar incerto

Ao mesmo tempo que o CEP MTV era um sucesso além da emissora, eu estava muito comprometido com meu uso avassalador de drogas. Um certo sujeito tinha me ensinado a fazer o freebase, que muita gente acha que é um baseado de maconha com cocaína enfiada dentro, mas não é nada disso. “Freebase” vem de “base livre”, ou seja, você transforma a cocaína em pó em uma placa pra fumar. O efeito é mais rápido e intenso. Ronnie Wood descreve bem esse processo em sua autobiografia, e relata que chegou a ficar quatro dias trancado fumando essa coisa. Nesse aspecto, posso me comparar ao grande guitarrista dos Rolling Stones. A sensação é tão boa e intensa que você não consegue parar de usar. Isso tomava muito do meu tempo e da minha disposição — e do meu dinheiro. É caro demais fumar essa porcaria! Depois de alguns dias ininterruptos de uso, o desmaio é a única coisa que te faz parar. Nem lembro quantas vezes isso aconteceu comigo. Era mesmo assustador. Comecei a chegar ainda mais atrasado para as gravações e a me empenhar menos com a banda. Menos com a vida. Estava difícil. Nessa época, surgiu um boato espalhado pela assessoria de imprensa da mtv. Ela começou a soltar notícias para os formadores de opinião dizendo que eu seria internado pela emissora para me tratar. Paulo Lima, diretor da revista Trip, me ligou para conversar: — Me falaram que você vai ser compulsoriamente internado pela mtv. — Mas como assim? — Falaram que você tá incontrolável, tá muito louco, que você vai ser suspenso pra ser internado. 148  Lui z

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Alguém da emissora tomou a decisão de falar para todo mundo que eu ia ser internado. O Titti, antes de sair de férias, falou para mim: — Thunder, você não tá legal. Tá difícil de trabalhar contigo. — Que isso?! Tô legal. — Eu pago tudo, eu te interno, eu pago essa parada para você. Ele quis me levar na melhor clínica do Brasil. — Não quero! — Bom, tudo bem, eu tô saindo de férias. A minha negação era do tamanho da minha vontade de usar de novo, portanto, recusei a proposta. Foi o Titti sair de férias pro seu irmão, Giancarlo, o Gianca, me chamar e dizer que eu estava de castigo. Ficaria um mês fora do ar. Sem salário. Foi nesse período que aproveitei pra gravar o primeiro disco dos Devotos. Mayrton Bahia, produtor da Legião Urbana, tinha fundado sua gravadora, a Radical Records. Já havíamos nos acertado pra assinar com a Radical e entraríamos em estúdio assim que houvesse uma chance. A chance seria justamente essa suspensão da mtv. Em um mês, George, Victor e eu gravamos o nosso primeiro disco. Era pra ser um susto da mtv em mim, só que o disco abafou o impacto e eu continuei na loucura. Chegou num ponto que nem a Joana me segurava mais e seu assistente, Cacá Marcondes, passou a me dirigir no Rock Blocks. Ele dividia as tarefas no CEP e me dirigia no Yo! MTV também. Teve fases em que ele ficou com a tarefa de ligar pro meu apartamento pra saber se eu ainda estava vivo. Pelo menos é essa fábula que se dizia pelos corredores. A situação estava mesmo fora de controle. Eu não me envolvia mais com os projetos. Estava no automático. Num determinado dia, Daniel Pompeu de Toledo, o Danielzinho, ligou pra dizer que estavam me procurando. Mas não era o Cacá. Era o Boninho, da Rede Globo. Filho do homem, o Boni. Achei que era uma piada ou algo assim. Liguei pro Rio. A proposta que chegou era pra que eu fizesse a transmissão do festival Hollywood Rock pela Globo, em janeiro de 1994. Eu gostei da ideia, a mtv, não. Argumentei que seria bom pra todos ter um vj da mtv na cobertura da Globo. Mas eles foram firmes em me negar a possibilidade. Maria Paula foi a primeira vj a se transferir pra lá, em 1992, mas pra trabalhar num programa que não rolou, Radical Chic, e só daria certo depois com o Casseta & Planeta. Para fazer humor, não música. CONTOS DE THUNDER   149

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Quando tive de dizer pro Boninho que a mtv havia me proibido de fazer o festival, ele propôs que eu fosse de vez pra Globo. Eu faria o festival, depois um quadro no Fantástico nas noites de domingo, e eles me dariam um programa musical com bandas ao vivo, nas tardes de sábado. Fiquei assombrado diante da possibilidade! Algumas pessoas vieram falar comigo sobre isso. Astrid disse que não era uma boa ideia, amigos me desaconselhavam a transferência. Titti insistiu para que eu ficasse, dizendo que em 1994 haveria a Copa do Mundo nos Estados Unidos e eu iria pra lá pra um programa especial. Contei pro Nasi, e ele: — É claro que você vai, mano, vai, lógico. É a Globo! Eu não queria sair da mtv, mas os argumentos eram fortes pra isso. Ao mesmo tempo, não aguentava mais o ritmo da vida em São Paulo. A gota d’água foi a nomeação de Zeca Camargo para o posto do Titti. Eu não tinha intimidade ou amizade com Zeca, mas foi com ele que precisei tratar do assunto. — Zeca, eu tenho uma proposta da Globo. — Thunder, acho péssima essa proposta, mas fique à vontade. — Eu quero ficar, mas eles me ofereceram mais do que o festival. Eles vão me dar um quadro no Fantástico. — Nossa, Thunder! Você vai pro Fantástico? — falou rindo, como se fosse uma coisa horrível. — Por favor né, velho, sério, você vai se submeter a isso? Sim. Exatamente onde ele trabalharia a partir de 1996, permanecendo durante dezesseis anos no programa, como repórter e depois como apresentador global. — Sim, Zeca. Vou fazer o Hollywood Rock, o Fantástico… — Como já disse, faça o que você quiser. Ficou claro pra mim que ele não me queria na mtv. Nem falei da proposta do programa musical. Minha decisão foi tomada ali, na frente dele, depois da maneira como ele lidou com a situação. Então falei pro Titti que havia conversado com o Zeca, que a conversa tinha sido horrível, que não senti nenhuma segurança quanto ao meu futuro na mtv, mas acho que ele não estava mais a fim de lidar com a emissora. Titti se desligaria da mtv em pouco tempo. Para piorar, no dia seguinte a revista Bizz, da Abril, foi a minha casa me entrevistar. Eu estava descontroladamente drogado, emputecido e me senti traído pela mtv. Dei uma entrevista tipo ofendendo o Zeca. Ele também foi ouvido e disse: 150  Lui z

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— Olha, o Thunder, sabe, ele falou que tinha essa proposta da Globo, a gente não queria mais ele mesmo e a gente mandou ele para casa. Me mandaram?! Então eu fui demitido?!

Fuga geográfica

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Até pensei que uma mudança geográfica seria boa pra mim, pois me afastaria dos amigos que usavam droga comigo, estaria num outro ambiente e conseguiria controlar minha vida. A mudança pro Rio seria uma fuga estratégica. Achei que isso daria um jeito na minha vida. Deixaria tudo em São Paulo, inclusive meus traficantes preferidos. Era melhor sair. E mais gente me dando o toque: — Vai pra Rede Globo, caralho! Você não vai? Você tem que ir. — Eu vou, velho! E fui.

Expulso de casa

A despedida da mtv foi muito triste. Foi o primeiro Verão MTV com a tal casa na praia. Fui até lá, gravei um quadro qualquer, conheci o Cazé, que tinha sido contratado naquela semana, e fui embora. Muito triste. A decisão de ir para a Globo havia sido tomada depois da discussão com o Zeca Camargo. Mas foi muito difícil, pois adorava a mtv. A relação profissional entre Cazé e Thunderbird é curiosa. A trívia para qualquer nerd: eles já estiveram juntos na mtv? A resposta é não. “Eu era poeta no Rio de Janeiro, tinha um projeto num hospital psiquiátrico e minha vibe era mais lírica. Quando cheguei na mtv, tímido, aquilo me assustou, todas aquelas coisas. E fiquei bem triste quando soube que logo que eu cheguei, ele ia sair. Durante o tempo de estudos para entrar na mtv, ele era a minha inspiração, ficava maravilhado com aquele jeito dele, diverso de tudo que havia na televisão. Ele era uma quebra de paradigma.” Para o consolo do telespectador, a dupla se encontrou em ocasiões especiais, como no Verão mtv. “Teve essa gravação na casa da praia, que ele ia participar, CONTOS DE THUNDER   151

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estávamos na varanda e ele chegou com uma picape, um carro imenso, quase passou por cima da gente, rasgando tudo com a picape. Foi engraçado. Nem sei como resisti àquele momento, era um ídolo meu, e estava tão de passagem, não teria oportunidade de conhecê-lo melhor.” É também curiosa a similaridade dos caminhos de ambos — mtv, Globo, mtv. “Puta desencontro, encontros ao contrário, como é o destino. Era um cara com quem sempre quis trabalhar junto. Recentemente nos encontramos pra ver um pôr do sol na praça, e conversamos sobre a vida, um dos momentos especiais e simples vividos com ele no lugar de trabalhos que não fizemos.”

E todos diziam que eu era “a cara da mtv”… Uma cara prognata, talvez. Um cara que saía triste de casa.

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É tetra, Brasil, na Copa dos Estados Unidos. Foi treta e foi tétrico o ano global. Traidor do movimento para muitos, VJ fora do oceano, linguiça no moedor de carnes. Hollywood Rock mais para Hollywood que para rock, entrou ao vivo dizendo que nunca amaria para sempre Whitney Houston. Elevador com Francisco Cuoco, esporro do Tim Maia, e pau naquele lugar no CD que ele dava para todo mundo.

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GLOBO, GLOBAL, GLOBINHO

Em janeiro, segunda semana de 1994, eu já tinha acertado com a Globo. Dois dias antes de ir pro Rio de Janeiro, me liga o departamento jurídico da mtv falando: — Olha, você vai ser processado, viu? — Por quê? — Então, veja bem… Você ainda tem contrato com a mtv. — Como assim? Não fui mandado embora? — Lembrei da entrevista oficial dos chefes da casa para a revista Bizz. — Não. Você não assinou nada. Então, você vai ser processado pela mtv se não assinar antes de entrar na Globo. — Velho, imagina! Você tá louco?! Liga pro Titti, ele sabe! — Não, não vou ligar pro Titti. Eu vou ligar para os advogados da Abril e a gente vai te colocar em maus lençóis, você dá um jeito de assinar isso aqui, senão você vai ser processado. Achei aquilo de uma afronta, de uma sacanagem, fiquei magoado, decepcionado. Eu tinha certeza de que o Titti não tinha nada a ver com isso.

Plim-plim

Demos um jeito. Me encontrei com o tal funcionário e assinei a demissão, mesmo depois da declaração pública do suposto chefe. Eu estava livre da mtv. Hora de começar minha carreira global. A primeira reunião com a Globo, no Rio, foi com um diretor gigante e o CONTOS DE THUNDER   155

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Boninho. Eu ainda não havia me encontrado com ele, mas rolou uma simpatia imediata, e não apenas por ele torcer pelo São Paulo, que aliás tinha acabado de conquistar o bicampeonato mundial, um mês antes. Eu esperava um sujeito cheio de protocolos, sofisticadão, esnobe, perigoso, sei lá… Não foi nada disso. O Boninho se mostrou um puta gente fina, simplão, falando a real o tempo todo. Lembro que o tal diretor disse que eu estava lá só por causa do Boninho, mas que era melhor eu tomar cuidado, pois ele havia construído e destruído o Sérgio Mallandro, que deixou a emissora naquele 1993, depois de três anos de casa, vindo do sbt. Eu ri, o Boninho também, o diretor gargalhou. O primeiro passo foi assinar o tal contrato, estabelecer minhas atribuições, acertar meu salário. Só estava interessado no que faria ali. Nem liguei pra quanto eu ganharia, mas só para registro: era quatro vezes mais do que eu recebia na mtv. Mas não foi o salário que me fez trocar de canal, assim como não tinha sido a grana que me levou à televisão em 1990. Ou qualquer outra decisão que tomei na vida. Foi um barato de fazer o que quero. De criar e viver coisas novas. — Cadê o contrato? Onde eu assino? — Foi assim na mtv, foi do mesmo jeito na Globo. Lembro que nesse dia entrei no elevador, e o Francisco Cuoco estava ali, olhando pra mim. O cara da novela Pecado capital! Cumprimentei-o, perplexo, e ele me manda: — Oi! Tudo bem? — Sinceramente, não sei… — respondi, com a minha honestidade típica. Eu estava de olho na porta, louco pra sair pra rua e respirar fundo. Ele riu, sacando meu apavoro. Reuniões no bairro do Jardim Botânico, agendamento de entrevistas com a imprensa, gravação do Vídeo Show na praia, minha hospedagem num hotel em Copacabana, tudo muito rápido, muito louco. Eu continuaria morando em São Paulo, pegando a ponte aérea pra gravar até a estreia do programa musical, pelo menos. As matérias nos jornais de todo o país repercutiram muito, claro. Eu sabia o que queria. Ou achava que sabia, como disse pra Folha, na edição de 23 de janeiro: “Se meus programas não me agradarem [na Globo], não hesito em abandoná-los. Não quero sofrer como a Maria Paula, que virou bode expiatório de um péssimo programa, o Radical Chic, e acabou ficando com a fama de ruim. Vou cuidar, e muito, da minha carreira”. Na verdade, a proposta do Radical Chic era bem legal. Não sei o que deu errado, se foi o horário ou o clima de revista em quadrinhos. Quando entrevistei 156  Lui z

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a Laerte no Thunder Radio Show, ela disse que não gostava de fazer o programa. Na época, Laerte era um dos redatores. Lembro de ter dado uma declaração sobre como era estar trabalhando e vivendo no Rio. Eu, obviamente, disse que estava animado, que a cidade era linda, que as pessoas me tratavam muito bem, que eu estava me adaptando à rotina na Globo, que estava me sentindo em casa. Tim Maia foi o primeiro a responder, logo depois. — O Thunderbird deve estar louco! Como assim? O Rio está uma merda! Que porra está passando pela cabeça dele? Tim deve ter ficado bem chateado com a minha ida pra Globo. Ele era persona non grata na emissora, desde o dia em que se desentendeu numa apresentação de um programa musical nos anos 1980. Eu já havia me encontrado com ele e foi muito bacana, aquela simpatia absoluta. Mas não foi só ele, muita gente ficou puta da vida com a minha transferência pra Globo. Lembro de um amigo vj que declarou que “Eu devia estar me sentindo em casa”. Passei a ser um alvo de metralhadoras. Patrulhado. Eu era o novo “traidor do movimento”. Mas pra mim não tinha movimento algum, só queria mesmo fazer o programa musical da melhor maneira possível.

A estreia

Chegou o dia de estreia, na transmissão do Hollywood Rock. A coisa toda era gigantesca. Audiência absurda, falando do que eu gostava, ao lado de Maurício Kubrusly. Eu o conhecia de muitos anos, mas como fã. Ele tinha revolucionado a Rádio Excelsior com uma programação impecável, em que uma música só voltava a tocar depois de três meses. Tinha o programa Rock Sandwich, com Kid Vinil e Leopoldo Rey. Era a rádio que os roqueiros ouviam na época. Eu nem sabia disso, mas quem transformou essa rádio em rádio rock foi o Boninho. Eu estava bem nervoso com a magnitude da transmissão do festival. Nunca tinha sentido o peso da responsabilidade de falar pra mais da metade da audiência entre todas as tvs ligadas no Brasil. Como não podia fazer nada a esse respeito, fui eu mesmo! Lembro que o show do Aerosmith foi espetacular e da apresentação do Skank, pela primeira vez num evento tão grande. Eles mandaram bem. Fui ao camarim da Fernanda Abreu, supersimpática, e que fez um show muito bom também. Mas o que marcou foi que Jorge, desta vez Ben Jor, CONTOS DE THUNDER   157

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incendiou a plateia. Na sequência viria a cantora Whitney Houston. Eu tinha minhas reservas em relação a ela. Sabe aquelas cantoras com vozeirão, românticas, melosas? Eu estava na vibe do rock ‘n’ roll. Acontece que a diva começou a atrasar sua entrada e eu acabava entrando no ar pra enrolar um pouco até que a mulher decidisse fazer seu trabalho. Depois de uma hora de espera ou quase isso, soltei o louco e declarei: — É, Maurício, acho que a senhora Houston ficou apavorada com o show do Jorge… Imitei a mulher cantando, fiz o diabo ao vivo e em cores. Quando ela finalmente entrou no palco, eu só revirei os olhos e anunciei. Tenho certeza de que conquistei vários haters naquela noite. E até hoje não curto o som dela. Meu disco tinha acabado de ficar pronto, e Mayrton Bahia me levou algumas cópias durante o festival. Distribuí pra algumas pessoas: o Boninho, a equipe de transmissão, uns diretores globais e uma jovenzinha que estava muito empolgada com a minha presença. Acontece que essa jovem era neta do Roberto Marinho. No dia seguinte, o comentário era que se a menina ouvisse o disco com a família, meu contrato estaria em risco. — Thunder, você é louco? Você deu um disco cujo sucesso é a música “Pau no seu cu” pra neta do homem… Não deu chabu. Pelo contrário, acho que ganhei vários pontos por ali pela audácia. Acabado o festival, o Boninho propôs fazer um day after da festa. Fomos pros destroços do festival e gravamos várias cenas daquilo tudo. Foi um tremendo sucesso, eu estava muito feliz. Estar na Globo era fazer parte de um universo muito diferente do que eu estava acostumado na mtv. Tudo era grandioso, estratosférico, gigantesco. Os amigos me perguntavam: — E aí? E a Globo? Como é ser global? — Eu me sinto um globinho!

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Folião chapado no Carnaval, topete para entrevistar o presidente topetudo, saia justa com Parreira e Zagallo, sem calcinha na Sapucaí, pisão no pé da Gal, Garibaldo desmascarado, Karam e bocas torcidas, trigêmeas da Playboy, médico e monstro, orelha puxada pelo slogan. Um desfile na festa que não tinha hora para acabar. Mas que começava a terminar.

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THUNDER E A GLOBELESMA

Eu tinha apresentado o Hollywood Rock no começo de 1994 e estava me ambientando ao ritmo global quando encontrei Aloysio Legey no corredor da Globo. Um dos papas, rabinos, sultões da emissora. Ele se apresentou e veio com uma novidade: — Gosto muito do seu trabalho, sou seu fã. Quero fazer um lance com você! — Poxa, obrigado. — Te vi na transmissão do Hollywood Rock e quero você na transmissão do Carnaval! — Mas, veja bem, eu no Carnaval? Tem certeza? Eu sou do rock! — Por isso mesmo! Isso vai ser espetacular! Você é um cara muito louco! — Mas… tem uma grana nisso? — Claro, Thunder! E vai ser incrível! Topa? — Pagando bem, que mal tem? De quantos caraminguás estamos falando? — Alguns milhares de dólares. — Opa! Onde eu assino?

Fiquei feliz com o elogio. Me senti valorizado por um dos diretores fodões capas pretas da Globo. Na verdade, ali só vi uma oportunidade de conhecer o camarote da Globo, assistir ao desfile pela primeira vez na Marquês de Sapucaí, ganhar um troco, tudo bacana. Sempre gostei dos desfiles de Carnaval. Lembro de um em especial, em São Paulo, ainda na avenida Tiradentes, acho que em 1989. Fomos eu, Walkiria, minha namorada, George, que tocava comigo nos Devotos e Marcele, sua namorada na época. Estávamos todos num clima CONTOS DE THUNDER   161

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bacana, autênticos psiconautas. O desfile no Rio era algo muito maior e muito mais espetacular. Havia, portanto, um interesse meu em ver aquilo de perto. Liguei pro Boninho, meu chefe imediato: — Alô, Boninho! Tudo bem? Chefe, aconteceu uma coisa muito louca. Sabe o Aloysio Legey? Ele me encontrou, me abraçou, disse que era meu fã e me convidou pra trabalhar no Carnaval! — PORRAAA! Não me pareceu um “Porra, que legal”, muito pelo contrário. Seguiu-se um silêncio desconcertante. — Boninho, tudo bem? Você tá aí? Ele se acalmou e respondeu: — Olha, Thunder, tenho a impressão de que não vai ser uma coisa boa pra você, ele pode te colocar numa situação ruim, sei lá… — Ah, não acredito nisso, velho. Por que alguém ia querer fazer algo ruim pra mim? Boninho reagiu com mais um silêncio, e então me deixou à vontade pra decidir se iria em frente com aquilo. Eu estava acostumado com a estrutura da mtv. Todo mundo se conhecia, eu podia entrar na sala do Titti a qualquer hora pra gente conversar, falar do clipe novo do Soup Dragons, ter ideias loucas pra um programa novo. Na Globo tinha umas divisões entre núcleos, mas eu não sabia disso. Havia o núcleo do Walter Lacet, em que o Boninho emplacava seus projetos, e eu tinha sido levado pra Globo por ele. Aloysio Legey comandava outro núcleo de produção. Acho que rolou um ciúme, sei lá. Eu só tinha medo mesmo do Boni, no caso, pai do meu chefe. O líder supremo. Mas, àquela altura, estava tudo tão bem, tudo tão favorável, que eu me sentia numa Disneylândia, numa ilha da fantasia. Eu queria era trabalhar, me divertir, explorar o território daquele parque de diversões. A Globo não é a mtv. Tudo ali é muito sério, muito grande! Lá fui eu dividir as entrevistas do camarote da Globo com o Guilherme Karam. Eu era muito fã dele, desde a TV Pirata, e me senti honrado de estar ao seu lado. Aconteceram coisas loucas naquele camarote. Primeiro, foi a chegada do presidente da República Itamar Franco, acompanhado de uma garota muito bonita, que rendeu aquela foto de baixo pra cima, expondo suas partes pudendas. Lilian Ramos era o nome dela, muito bonita, sem dúvida! A rádio camarote 162  Lui z

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não demorou a veicular que era uma estratégia de marketing do staff do mandatário, com o objetivo de obliterar as suspeitas de que ele tivesse outras inclinações, digamos. O fato é que ele não ficou muito tempo por ali. Saiu meia hora depois da tal foto. E, no final da jornada, quase pela manhã, a tal garota estava do lado de fora do camarote, acompanhada por um grupo de fardados do Exército. Ela ficou, ele saiu. Enfim, achei aquilo estranho, mas eu tinha coisas mais importantes pra resolver e lidar. Por exemplo, meu encontro com Parreira e Zagallo. Explico: eu tinha feito, em 1993, ao longo do ano todo, principalmente durante as eliminatórias da Copa do Mundo, repetidas críticas à seleção brasileira. Sempre fui fã do Telê Santana. Aquela seleção de 1982 foi sensacional, e ele tinha conduzido o meu São Paulo ao bicampeonato mundial, que aconteceu em 1992 e 1993. O último técnico da Copa de 1990, Sebastião Lazaroni, foi um fiasco. Quando anunciaram a dupla Parreira-Zagallo, em 1991, fiquei muito contrariado. Naquela noite, devo ter incomodado especialmente o Zagallo, pois senti isso nos olhos dele. Sei lá, fico imaginando os netos dele, chegando na escola e dizendo que o Thunder da mtv tinha zoado o avô deles de novo. Não sei, não tenho como saber. Acho improvável que o Velho Lobo assistisse ao CEP MTV. Entram os dois, Parreira me vê com seus olhos de faróis baixos e muda de direção. Zagallo, ao me ver, arregala os olhinhos, enrubesce as bochechas e vem na minha direção. De duas, uma: ou ele avançaria no meu pescoço com intenções violentas ou sofreria um ataque cardíaco no trajeto. Parreira, um cavalheiro, segurou o Zagallo pelo ombro e conduziu o mestre para longe do embate. Teria sido épico e terrível. Eu nunca reagiria, certamente. Obrigado, Parreira. Mas não pela conquista daquele torneio mundial em 1994. Explico melhor adiante. Calma, amiguinhos! Alguns momentos foram muito aprazíveis naquele Carnaval global. Entrevistar o casal de atores Nicette Bruno e Paulo Goulart foi um deles. Só faltou eles me colocarem no colo e me embalarem. Uns lindos! Zé de Abreu sendo hipnotizado pela Maria Bethânia, que desfilou num carro alegórico da Mangueira. Stênio Garcia e a esposa sambavam na maior animação. As trigêmeas que foram capa da Playboy também estavam lá. Eu havia dado uma entrevista pra mesma edição. Foi meio bizarro, na verdade. Uma delas se aproximou e disse: — Thunder, nós quatro saímos na mesma revista! — Ah, verdade! Vocês esgotaram a edição, parabéns! CONTOS DE THUNDER   163

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— Nós quatro, né… — É… — concordei. Teve um silêncio seguido de risadinhas. Não negarei que me ocorreram imagens e enredos, desculpem. Marilise, Renata e Lílian, um beijo pra vocês, coleguinhas de edição esgotada. Também teve momentos desconcertantes, claro! Um deles foi com Marco Nanini. Tinha tudo pra ser uma entrevista bacana, mas começamos mal. Eu sempre achei que era ele quem fazia o personagem Garibaldo em Vila Sésamo. Lembram, na Globo, no início dos anos 1970? Tinha a Sonia Braga, o Armando Bógus, a Aracy Balabanian… E, pra mim, criança, tinha o Nanini. Feitas as apresentações, ainda fora do ar, falei que era um grande fã dele e que, quando menino, adorava o Garibaldo, que meu apelido no colégio era Garibaldo, também um pássaro, como Thunderbird e tal… — Eu não era o Garibaldo! — Ah, que coisa… O Garibaldo era tão legal… — Não era eu! Fiquei assim, meio sem graça, mas fomos pra entrevista. — Cara, assisti às novelas O primeiro amor, Carinhoso, Pecado capital, você sempre foi incrível! — Obrigado. Notei um tom de seriedade desconfortável ali. Acho que ele ficou chateado com o lance do Garibaldo. Depois das perguntas de praxe, do tipo “Curte Carnaval?”, perguntei o que ele estava fazendo naquele momento no mundo das artes cênicas. — Estou produzindo uma peça, dirigindo o Ney Latorraca, em O médico e o monstro. Piada pronta perfeita, não pensei duas vezes: — E ele faz qual? O médico ou o monstro? — Os dois, né, Thunder! Silêncio. Me veio a imagem de um filme de faroeste, típico de faroeste spaghetti. Sergio Leone no ponto eletrônico, eu sendo Lee Van Cleef e o Nanini como Clint Eastwood, obviamente. Musiquinha de Ennio Morricone ao fundo, os dois se encarando. Quer dizer, eu dei o passe pra ele fazer aquele golaço e tal, mas ele chutou a bola na minha cara, no meio dela. A imagem que me vem é meu nariz sangrando, ensopando minha camisa. Terminei a entrevista na hora, dizendo:

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— Sim, claro! Mesmo personagem porque o médico vira o monstro… — Fingi uma risada. — A gente já volta. Carnaval na Globo é Globelesma! Fazia tempo que eu usava a expressão “belesma”. Era só uma brincadeira, claro. Achei que seria o momento ideal. Não foi. Legey me chamou e disse que isso iria repercutir. Argumentei que era pra descontrair depois da tensão com o Nanini, mas ele tinha razão. No dia seguinte, José Simão usou isso na sua coluna na Folha. Exatamente como eu disse, “carnaval na globo é globelesma”. Eu ri muito daquilo, se bem que o Simão podia ter me dado o crédito pela piada.

“Vem nessa pra gente brincar”

O desfile da Mangueira de 1994, cujo tema era sobre os Doces Bárbaros, foi um desastre. Tinha chovido muito e isso prejudicou o desenvolvimento da escola. Sempre tive a maior simpatia pela Estação Primeira, sou amigo do Ivo Meirelles, na época vice-presidente da escola, torci pelo desfile. Ivo já tinha me convidado pra sair na bateria com eles. Um ano antes, eu tinha desfilado pela Vai-Vai em São Paulo, e o tema era sensacional. Acompanhei os Doces Bárbaros, um dream team: Caetano, Gal, Gil e Bethânia. Sou fã de todos e acompanho a carreira deles desde a Tropicália. Vieram me avisar que eu entrevistaria Gilberto Gil. Claro que era um momento delicado, não achei que seria a melhor hora pra essa entrevista. Mas eu cumpria ordens, vamos lá! Chega o Gil, me olha meio torto e manda: — E aí, Thunder? Veio azarar o samba? — Poxa, não vim aqui pra isso não, velho! Eu gosto de samba e conheço alguma coisa do assunto, procure saber! (A famosa expressão “procure saber”, tenho certeza, veio daí! Haha) Não teve entrevista alguma. Ele estava muito chateado, eu também fiquei triste por ele ter me estigmatizado de roqueiro radical. Não que eu não fosse, mas tenho certeza de que um dia ele vai procurar saber. Caetano Veloso sempre foi muito gentil comigo. Nos shows que fui, depois, no camarim, nas entrevistas que ele me concedeu. Caetano é foda! Pra terminar aquela noite estranha, eu já tinha sido dispensado (já passava das quatro da manhã) e então fui até o banheiro pra, digamos, dar um CONTOS DE THUNDER   165

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superteco. Sim, cheirei umas três carreiras autoestrada. Quando alguém grita lá dentro: — Thunder! Thunder, cadê você? A Gal Costa está te esperando pra última entrevista da noite. Foi um baita susto! Somado a isso, o efeito da droga veio num patamar altíssimo. Corri pro local da entrevista, muito animado pela oportunidade, bufando bastante. Gal estava sentada num sofá, elegantíssima, sorriso aberto, naquela simpatia toda. Me aproximei e na hora dos dois beijinhos cariocas… pam! Pisei no pé dela. — Aiiii… — ela, sopranino. — Desculpe, Gal. Poxa, te adoro! Acho que esqueci que era uma entrevista, porque eu comecei a falar sem parar (doidão!) e ela só sorria, ria, gargalhava. Ela disse pouca coisa, pois eu parecia um trator caterpillar. Que vergonha! — Gal, você é fa-tal! Eu adoro as guitarras do Lanny Gordin nesse dis* co. Seu timbre de voz é único! Sabe o disco Índia? Ouço sempre! Você foi a melhor dos Doces no desfile. Sabe, eu sou amigo do Ivo Meirelles, e ele me convidou pra desfilar. O Gil falou que eu vim aqui pra azarar o samba, mas não é verdade, eu adoro samba. Você gosta de samba, né? Tenho certeza que sim! Só eu falava… Ela gargalhava, educadamente. Uma diva! E eu tagarelando como o doutor Enéas da política, mas por mais de quinze segundos. Um locutor de jóquei-clube no ácido. Quando ela conseguiu terminar algum raciocínio, falei: — Poxa, Gal! Que emoção! Sou muito seu fã, te adoro! Levantei, dei um beijo, tchau e… Pisei no pé dela de novo! — Aiii… — ela, dessa vez supersopranino. — Desculpa, Gal. De novo! Pensei que ela nunca mais iria querer se aproximar de mim. Eu teria pedido restrição judicial. Fiquei com isso na cabeça por dezoito anos, até que, no vmb 2012, vieram me avisar: — Thunder, você vai entrevistar a Gal Costa. Fiquei apavorado! Ela sabia que a entrevista era comigo? Ela estava

* Fa-Tal — Gal a todo vapor, de 1971. 166  Lui z

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calçando coturnos? Ela se lembraria daquela ocasião na Marquês de Sapucaí? Aguarde as cenas dos próximos capítulos.

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O.k., convenhamos, quando a droga faz você passar embaraço na frente de Gal Costa, o sinal é grave. Nosso herói estava perdendo a batalha contra a criptonita dos nossos artistas, e quem testemunhou ainda hoje tem medo. É o caso da Adriana, sua irmã: “Esse fantasma nunca irá embora. Hoje até é mais tranquilo, mas cem por cento tranquilo nunca será. Quando ele fica muito sumido, distante, a gente se preocupa, sim”. Conviver com isso é contar, com algum tom de divertimento típico daquilo que já está bem guardado na jaula no passado, este tipo de história: “Teve uma vez em que ele usou ácido, chegou em casa enxergando a vovó andar de moto no teto, e me chamou para ajudar. Ele estava vendo todos os monstros andando pelo quarto, apavorado. Meu pai ficou perguntando onde estava o Luiz, onde estava o Luiz, e eu tentando esconder. Liguei o chuveiro, tranquei ele no banheiro e disse que ele estava tomando banho. Liguei para o George e pedi socorro. O George veio até nossa casa e cuidou do Thunder até passar aquela viagem, enquanto eu mentia para meu pai lá embaixo”. E o Rio de Janeiro, tem culpa no cartório, Adriana? “Nós, família, nunca fomos ao Rio de Janeiro. A ida ao Rio foi horrível para meu irmão. Ali, longe de todo mundo, ele se afundou e não teve a gente para ajudar, e de certa forma ele também afastou a gente para ter liberdade.”

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O cara escolhido para rejuvenescer um programa de que ele não gostava. Acredite se puder. Ninguém acreditou, nem ele. Botava fé era no programa de auditório com todos os sons do Brasil e vários palcos. Uma zona na TV. Mas a zona era toda dele. Com ele. Xuxa virou a cara. Disneylândia virou cracolândia. O sonho de ir pelos ares mal começou mal. Em vez de trocar figurinhas carimbadas com os figurões, a viagem fez perder o almoço com quem pagava seu jantar. O último apagou a luz. Ou atendeu ao telefone.

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É FANTÁSTICO! É TV ZONA!

Depois do Carnaval de 1994, era chegada a hora de estrear no Fantástico. Era a atração da família brasileira nas noites de domingo desde agosto de 1973, criada pelo Boni. Até a letra do tema musical era assinada por ele. Eu não era um fã do programa, chamado de “O show da vida” já nos primeiros anos. Achava o formato antigo, superado, careta. E acredito mesmo que eles queriam rejuvenescer a atração me colocando ali. A proposta era simples: um quadro em que eu apresentaria umas histórias bizarras, como se fossem possíveis. Acho que o nome era “Acredite se puder”. Não lembro e nem quero lembrar. Tinha uns textos engraçadinhos, eu ficava ali, num cenário, tentando contar as tais historinhas. No piloto já me senti desconfortável. Tentei explicar pro diretor que não estava gostando daquilo, mas ele não entendeu. Cheguei pro meu mentor e falei que não estava à vontade com aquilo. — Boninho, não me leve a mal, mas não estou curtindo a parada… — Mas do que você não está gostando? — Sei lá, acho meio besta o quadro. Tentei fazer o que me pediram, mas não consegui me sentir à vontade. — Calma, vai ficar tudo bem. Eu mesmo vou te dirigir. Fiquei menos intranquilo. Imaginei que o Boninho iria mudar tudo, mas ele continuou na mesma linha. Depois de algumas semanas, eu falei de novo com ele. — Mano, esse quadro é muito chato. Você gosta? Fala a verdade. — Thunder, você tem que fazer o Fantástico. Disso depende a aprovação do seu programa musical, entende? CONTOS DE THUNDER   169

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— O.k., vamos adiante. Faço qualquer coisa pra gente emplacar o programa musical. Passadas mais umas duas semanas, ele achou melhor abandonar aquilo e minha participação seria apresentar um videoclipe especial a cada edição do programa. Achei, me perdoe, fantástico. Seria mesmo um vj na Globo. Excelente! O primeiro clipe foi do Milton Nascimento. Ele estava lançando o disco Angelus, e seria a première mundial do videoclipe. Mas o quadro não deu certo. Videoclipe era com a mtv. E não era o que a Globo queria de mim. O Fantástico ficou para trás, um alívio. E, futuramente, que ironia, quem faria tudo isso e muito mais seria o Zeca Camargo… Em 2010, nós dois nos encontramos, conversamos e nos abraçamos. Vida que segue, Zeca. Esse é o verdadeiro show da vida.

O meu programa

Ao mesmo tempo, foi revelado que eu teria o tal programa musical, o TV Zona. Seria muito especial. Um grande investimento, aí sim, fantástico: o show teria dois palcos, equipamentos, tudo perfeito pros artistas se apresentarem ao vivo, sem playback, uma raridade na Globo. O programa seria gravado no lendário Teatro Fênix, no bairro do Jardim Botânico, bem próximo do escritório montado pra produzir o programa. O nome TV Zona já havia sido mencionado na mtv pra batizar o programa da Rita Lee, mas a Globo era dona do registro e guardou pra mim. Quanta honra! O Teatro Fênix era incrível. Ali gravavam Chico Anysio, Faustão, Xuxa e… eu! Tinha o emblemático Camarim 100, com dois andares, sendo o segundo privativo para a “estrela” do programa. No andar de baixo, uma sequência de araras com as roupas dos figurinos, a parte de maquiagem e uma exuberante cascata de frutas. Tinha camarim pros convidados também. O cenário do TV Zona era espetacular, assinado pelo Mauro Monteiro. Havia três arquibancadas de plateia! Um viaduto inspirado num da avenida Presidente Vargas, no Rio, uma escadaria, tudo impressionante. A concepção era reproduzir um terreno baldio do Greenwich Village, em Nova York. Tinha hidrantes, latas de lixo, umas latas de cerveja gigantes. No primeiro dia, quando conheci aquilo tudo, a luz era pra ser meio noturna, num clima underground, mas o Boninho mandou mudar: — Porra! Cadê a luz? Quero luz aqui! Muita luz! 170  Lui z

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E assim foi feito. Eu havia sugerido alguns nomes pra dirigir o programa, como a Joana Mazzucchelli, o Hugo Prata, todos da mtv. Mas o Boninho se decidiu pelo Rogério Gallo. Ou seja, um profissional que já estivera comigo. Achei bacana ser ele, que estava desde o começo da mtv. Poucos anos antes tínhamos ganhado um prêmio com um filme publicitário em Cannes. Depois que ele deixou a direção do núcleo musical da mtv, nos aproximamos ainda mais. Eu estava finalmente me sentindo no meu ambiente. Em casa, uma bem ampla, linda, espetacular. O TV Zona era um sonho pra mim — pra qualquer apresentador, diria: bandas tocando de verdade pra um público gigantesco da Globo. Havia uma hierarquia ali. Rogério respondia ao Boninho, que respondia ao Walter Lacet, que respondia ao Boni, que respondia a Deus. Eu respondia a todos ao mesmo tempo. E tinha o diretor de tv, que fazia os cortes de imagens, mas não lembro o nome dele. O pessoal se referia a ele como Bozó, o famoso personagem de Chico Anysio que usava o crachá da firma pra onde fosse, dizendo a frase: “Eu sou o Bozó, eu trabalho na Globo!”. Não sei se isso é verdade, mas era a história que se contava por ali. Achei pitoresco! Walter Lacet vinha com umas ideias loucas, tipo quando sugeriu uma eleição da melhor banda pela plateia. Todos receberiam bolinhas azuis e vermelhas. Se gostassem da banda, atirariam bolinhas azuis em mim; se não gostassem, atirariam as vermelhas. Rimos um pouco da proposta, mas, quando ele saiu da sala, gargalhamos muito. Imagina a cena da plateia jogando as bolinhas, e eu tentando desviar delas, a produção fazendo a contagem. Isso rendeu várias piadas naquela semana. Mandaram uma figurinista para o programa que, segundo ela mesma, havia trabalhado com a Xuxa. Ela foi ao hotel me encontrar. Estávamos eu e a Karima quando ela chegou, bem falante, dando detalhes muito íntimos da Rainha dos Baixinhos. Achei aquilo muito inconveniente e constrangedor. Fiquei de bode na hora com aquela senhora e pedi outra opção. Veio uma garota sensacional, sósia da Bruna Lombardi, deu tudo certo!

O mundo dá voltas Depois de assinar o contrato, percebi que eu precisaria de um empresário pra cuidar dos meus interesses. Procurei o Renato Martins, dono da gravadora CONTOS DE THUNDER   171

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Ataque Frontal, aquele que preteriu os Devotos pra assinar com aquela outra banda. Ele devia ter me dado uma chance em 1986, mas eu que dei essa oportunidade para ele em 1994. Pra ele perder os cabelos de vez, no caso! Começamos bem, fechamos uns eventos, ganhamos uma grana. Tudo caminhava pra normalidade, afinal Renato era muito sério, muito correto, a pessoa ideal pra me acompanhar. Mas ele tinha que me acompanhar bem de perto.

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Quando eu furei com o Boni O chefe supremo da Rede Globo e da televisão brasileira marcou um almoço no Rio para a gente enfim se conhecer. Na famosa churrascaria Porcão, onde as celebridades se encontravam pra sair na revista Caras. A ideia de encontrar Boni não me aborrecia, mas o protocolo de enfrentar essas ocasiões formais me incomodava. Tenho a certeza de que a autossabotagem tomou conta de mim naquele dia, quando soube pelo Boninho que a decisão de me contratar foi do próprio Boni. O Renato me ligou pela manhã naquele sábado, dizendo que já estava indo pro aeroporto em São Paulo; eu disse que iria pegar a ponte aérea mais tarde. Depois ele me ligou dizendo que já estava no Rio; eu disse que sairia em instantes de casa para Congonhas. Mais tarde, ele ligou da churrascaria, já muito ansioso; eu disse que estava saindo. Me ligou após o almoço; falei que eu estava atrasado. Me ligou horas mais tarde, furioso, ressaltando que eu tinha furado com o homem mais poderoso da Rede Globo. Eu só desliguei o telefone e segui mergulhando em mais uma carreira. Eu furei com o Boni. Sem dar satisfação alguma. Eu sabia que tinha de me levantar da cama, me arrumar, pegar um táxi, ir pro aeroporto em São Paulo, pousar no Santos Dumont, pegar outro táxi ali pertinho pra churrascaria, conhecer o Boni, bater papo com o pai do meu chefe imediato, mas eu não conseguia me levantar nem pra atender ao telefonema do meu empresário. Fiquei ali, paralisado, tentando entender o que me fez paralisar. A droga, o medo, a vontade de sumir do mundo. Foi horrível! Tínhamos um programa piloto pra gravar e convidaram a Fernanda Abreu pra ocasião. Tudo corria bem, até a hora que o Boninho me chamou e disse que eu precisava falar “Fernanda Abreu no TV Zona!” durante a canção. Era uma 172  Lui z

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coisa do Chacrinha, que o Faustão fazia às vezes. Mas eu sou músico, sei que isso incomoda o artista. E muito. Tentei explicar isso, mas ele estava irredutível. Pedia a todo momento que eu falasse durante a música. Depois da terceira vez que fiz isso, Fernanda pediu que a banda parasse. — Eu estou ouvindo um barulho… — ela disse, elegante, dando o toque de que estava incomodada. — Ah, desculpe, fui eu falando… — expliquei, completamente envergonhado. — Ah… entendi… — disse, visivelmente contrariada. Voltei a argumentar que era chato fazer isso, mas insistiram que eu continuasse do mesmo jeito. Tentei negociar, dizendo que faria a intervenção em algum momento que achasse conveniente. Foi uma batalha! Então, chegou o dia da estreia. A primeira convidada, lembro bem, era Elba Ramalho. Eu tinha uns redatores, Tom Leão entre eles. Tom Leão era do rock, conhecia o rock alternativo dos anos 1980, fiquei feliz de tê-lo comigo. Mas uma das sugestões de pergunta foi: “Elba, você se considera perua ou utilitário?”. Nem doidão eu conseguiria fazer essa pergunta pra ela. Me limitei a enaltecê-la e a dançar com ela. Foi muito divertido, a Elba estava num ótimo astral. A proposta do programa era ter algumas atrações consagradas e levar até duas novidades, pelo menos pro público da Globo. Foi assim que Chico Science & Nação Zumbi estrearam na Globo. Raimundos, outros que eu também havia apresentado pela primeira vez na tv, no CEP MTV, também foram ao novo programa. Eu estava feliz com os caras ali e perguntei ao Rodolfo, então vocalista do grupo: — Vocês não têm medo de dizerem que são uns vendidos por estarem aqui? — A gente toca em qualquer lugar que tenha mulher bonita e cerveja de graça! Isso rendeu um memorando do Boni, dizendo que esse tipo de diálogo nunca mais deveria acontecer. Pelo menos foi o que me disseram, eu nunca vi o tal memorando. Teve Barão Vermelho e, de novo, Frejat foi parceiro. Elogiou o fato de existir um programa musical em que as bandas podiam tocar ao vivo, de verdade. Os Paralamas do Sucesso pareciam ter tomado lsd pela primeira vez. Brincalhões, ao me cumprimentarem nos bastidores, só faltou me jogarem pro alto e me obrigarem a pagar cem flexões, tipo batismo de exército. Teve Tinoco, da dupla Tonico & Tinoco, que causou comoção, pois o Tonico havia falecido apenas alguns dias antes. Little Quail and The Mad Birds, do CONTOS DE THUNDER   173

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amiguinho Gabriel Thomaz, hoje capitão da banda Autoramas. Rodrigo Leão, meu irmão vj, foi com sua banda, Professor Antena; Nasi levou Os Irmãos do Blues, artistas com trabalhos mais alternativos que tocaram ao lado de Roberta Miranda, por exemplo. Eu achava legal ter esses novos artistas ao lado de figurões consagrados. Até os Devotos de Nossa Senhora Aparecida tocaram. Escolhi a música “1954”, só mudei um verso pornográfico da segunda estrofe e ficou tudo bem.

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Diferente no mesmo

Esse caldeirão eclético era divertido. Não gostava de sertanejo, mas adorava música. Era a nossa proposta, como expliquei ao jornal O Globo, dias antes da estreia: “Já programei a Alcione no CEP MTV. Acho boa ideia comparar Tonico & Tinoco com Chitãozinho e Xororó, por exemplo”. Foi também o tom da chamada da Globo para o programa. Aquelas faladas pelo Dirceu Rabelo, um craque. Foi uma honra, grande emoção ter um programa meu na grade global. Mas sempre as chamadas pareciam ter o mesmo texto. Imutável. Sabe aquelas da Tela Quente? Meio assim: “Uma turma da pesada apronta mil confusões numa perseguição implacável na busca de um grande amor!”. O filme pode ser Cidadão Kane ou Tainá 2 que o texto é igual. O da TV Zona não fugiu do padrão global: “É pagode. É pop. É funk. É rock ‘n’ roll. Thunderbird detonando geral no novo point musical: TV Zona! Neste sábado, três da tarde!”.

Pelos ares

A estreia do programa foi bem caótica, menos de uma semana depois da conquista do tetra do Brasil, nos Estados Unidos, contra a Itália. Eu já estava instalado no hotel Atlântico Copa, numa suíte bem confortável. Mas estava sozinho: minha namorada continuou em São Paulo. Eu estava aguardando o programa entrar no ar e, quando começou, notei que havia algo errado no som. Fiquei desesperado e liguei pro Rogério Gallo. Não consegui falar com ele. Liguei pro Boninho e ele parecia não ter notado nada de estranho. Depois, descobriu-se que, na edição, um dos canais de áudio estava normal e o outro canal era do 174  Lui z

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som ambiente, dos microfones abertos. Nunca imaginei que na Globo pudesse acontecer um erro dessa magnitude. Apesar de já estar morando no Rio, eu não tinha acesso à ilha de edição, portanto não conseguiria fazer o editor perceber o tamanho da merda que ele tinha feito naquela tarde de sábado, com 28 pontos de ibope. Lulu Santos, Paralamas, Fafá de Belém, Moraes Moreira, Cidade Negra, Mastruz com Leite, Só Preto Sem Preconceito, Tribo de Jah e os Devotos fizeram parte da salada inicial.

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Pelé e Xuxa

Eu tinha tomado a decisão de me mudar pro Rio. A ponte aérea era muito chata. Pegar um avião e trabalhar por horas no mesmo dia é algo que nunca curti. Numa dessas viagens, estava atrasado, o avião na pista esperando por mim, saí correndo com mochila, mala e meu baixolão no seu case pesado. De repente, tropecei e fui pro chão. Um sujeito veio me ajudar, me levantou, pegou o case do baixo e disse: — Eu já passei por isso. Vamos que estão nos esperando, entende? Era o Pelé, praticamente me pegando no colo, me levando pro avião. Que figura simpática! Se estava resolvida a questão do avião e aeroporto, precisava resolver agora o que fazer no Rio nas horas em que não estava trabalhando. Estava bem chato ficar no hotel e resolvi ir até o Teatro Fênix. Xuxa estava gravando seu programa naquele dia. Comprei um cata-vento, um girassol e levei a letra de uma música que eu tinha feito especialmente pra Rainha dos Baixinhos. Sim, eu compus uma canção para a Xuxa! Cheguei ao teatro, entrei, fui pra plateia e fiquei por ali, aguardando o final das gravações pra presentear minha colega de trabalho. Mas, de repente, aconteceu uma interrupção. Lembro de a Marlene Mattos — a toda-poderosa empresária dela — entrar no palco, sussurrar algo no ouvido da Xuxa e as duas saírem, deixando todo mundo ali. Passado algum tempo, percebi que o intervalo seria maior que um cafezinho. Queria ir embora, mas fui até o Camarim 100, o mesmo que eu usava para o meu programa a cada quinze dias, pra entregar os presentes a ela. Tinha dois seguranças na porta do camarim. Pedi pra avisarem a Xuxa que eu estava lá pra entregar uns mimos. Depois de um tempo, um dos seguranças voltou. — Dona Xuxa disse que não quer falar com o senhor, não! CONTOS DE THUNDER   175

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— Mas você explicou que eu só quero dar um beijo e entregar esses presentes? — Expliquei sim, seu Thunder, mas ela disse que era pra não deixar você se aproximar. Acho que ela não quer falar com o senhor! O girassol murchou na hora, o cata-vento parecia paralisado, a letra da música já não fazia sentido. Voltei pro hotel chateado, sem entender o porquê daquela recusa em me receber. Isso me incomodou por algum tempo. Até o dia em que me encontrei com o Boninho e ele me explicou, daquele jeito dele, rindo muito. — Você é maluco, Thunder? — Não, eu só queria mostrar a letra da música pra ela… — Acho que ela pensou que você foi lá cobrar a bronca da microcâmera — comentou, rindo. — Qual microcâmera? — Aquela que você usa no seu programa! — O que tem a microcâmera? Bem, parece que houve um problema com aquele aparato. Boninho reivindicou a tal microcâmera, usada na época apenas na Fórmula 1, pra que eu a tivesse ao alcance das mãos, fazendo as imagens à minha volta, pra serem usadas na edição do TV Zona. Consta que Marlene Mattos e Xuxa também queriam usar o gadget. Houve uma batalha pelo direito de usar esse recurso e a emissora deu preferência ao meu programa. Marlene, inconformada, comprou uma microcâmera pra estrear a novidade antes da gente. Isso tudo aconteceu nos bastidores da Globo, e eu nem fazia ideia dessa treta. O mais provável era que Marlene e Xuxa naquele dia, ao me verem ali, pensaram que o doidão tinha ido cobrar a bronca. E não era nada disso. Nunca seria, pois a tal microcâmera nem era um lance tão espetacular assim para gerar tanto ciúme. E não seria eu quem iria confrontar a Xuxa por isso. Azar da Rainha dos Baixinhos! A música que fiz pra ela era espetacular. Teria sido seu maior sucesso!

Gato e rato

O TV Zona ia ao ar nas tardes de sábado, às três, naquela metade de 1994. Isso causou incômodo no sbt. Silvio Santos mudou o horário do show do Serginho Groisman, o Programa Livre, para o mesmo horário. Depois de um tempo, que 176  Lui z

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não foi muito, a Globo mudou meu horário pra domingo. Lembro do Galvão Bueno narrando as corridas e fazendo as chamadas… — Daqui a pouco tem TV Zona, com o Thunderbird. Ele é muito louco! Silvio Santos não pensou duas vezes, mudou de novo o horário Programa Livre. Encontrei um dia o Serginho no aeroporto e rimos muito dessa obsessão do patrão dele. Serginho sempre foi um cara legal.

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“And I swear that I don’t have a gun”* No comecinho de abril de 1994, pouco mais de três meses antes de meu programar ir ao ar, entrei no avião, peguei o jornal (antes de a internet mudar tudo) e descobri que Kurt Cobain havia se matado no dia anterior. “Como assim ele deu um tiro na cabeça? Eu tava lá com ele em 1992, eu o vi com o Nirvana em Los Angeles…” Fiquei mal e pensando que sempre acontece um lance assim, e na merda que eu tava vivendo… Que o próximo podia ser eu. Eu estava me enchendo de drogas e de algum tédio. Ainda bem que tinha bons amigos para tentar me tirar dessa. Logo depois do suicídio do Kurt teve uma festinha preparada para o meu aniversário, em 8 de abril. Todos cuidaram de mim. Alice, esposa do Frejat, preparou uma reunião entre amigos para comemorar meus 33 anos. Frejat estava gravando um disco tributo a Roberto Carlos e demorou para chegar. Alta madrugada, chegou o amigão e a festinha tomou proporções atômicas, se é que você me entende. Apesar do meu isolamento no Rio, sempre tinha alguém cuidando de mim. Se não fosse minha namorada, era meu empresário, Wanderson Clayton Eller, tio da Cássia Eller, e que já havia empresariado a cantora. Meu ex-empresário Renato Martins havia desistido de trabalhar comigo após o malfadado almoço com o Boni. Mas eu e Wanderson gostávamos muito de nos divertir. A loucura estava sempre ali. O ponto de equilíbrio nesse quesito foi a atriz Andrea Beltrão, então namorada do Rogério Gallo. Ela me acalmava, dava uma força, deu muitos conselhos, acho que se preocupava mesmo comigo. Só que pisei na bola com ela também. Sem querer, mas deixei minhas impressões apimentadas, meses depois. Eu tinha um — abre aspas — policial — fecha aspas — meu amigo.

* Trecho de “Come as You Are”, do Nirvana. CONTOS DE THUNDER   177

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Ele — aspas abertas — me ajudava — fecha aspas — com umas coisinhas (abre e fecha aspas). Meu amigo “policial” falou: — Cara, agora que você tá na Globo, se quiser comprar umas armas… — O quê, velho? Que arma? Você tá louco? Eu não quero. — Você precisa de uma coisa pra sua defesa pessoal. — Não, não quero isso. — Meu, tem uma novidade aqui, você vai ver que é seguro, não mata ninguém e é legal e vai ser bom pra você. Spray de pimenta… Eu comprei a merda do spray de pimenta! Era um chaveiro, e passei a andar com ele pra cima e pra baixo. Uma vez fui ao apartamento da Andrea Beltrão, fui ao banheiro, e pra lavar as mãos tirei meus anéis e as coisas do bolso, pus tudo na pia. Esqueci tudo lá, inclusive o maldito sprayzinho de pimenta. A noite passou agradável, tudo certo. Fui embora pro hotel. Eu já estava longe, a Andrea foi ao banheiro e falou “Rogério, o que que é isso aqui?”, e espirrou o negócio. O Rogério teve que acudi-la. A Andrea passou mal. Não foi minha intenção, ela não devia saber o que era. Foi mal. E seria pior. Logo depois combinamos de ir a um restaurante japonês. Passei no apartamento deles, saímos em dois carros: eles no do Rogério e eu no meu. Mas eu estava acelerado. Comecei a fazer barbaridades no trânsito, tipo fechar o carro deles e tentar jogá-los em cima de um poste. Dar cavalo de pau. Então olhei no retrovisor e eles tinham sumido. Depois disso eu ligava pro Rogério, ele não atendia. Desculpe, Andrea. Eu não estava enxergando muito bem. E não estava vendo muitas pessoas. A solidão no Rio era implacável. E não foi só o Kurt Cobain no começo de abril que deu o maior bode. O Dener, promessa de craque do Vasco, revelado pela Portuguesa, morreu semanas depois, na madrugada de 19 de abril, num acidente de carro na Lagoa. Eu soube da tragédia indo pro Teatro Fênix. Não teve gravação naquele dia. Duas semanas depois, gravamos uma edição do TV Zona numa sexta-feira. No sábado, saímos pra jantar eu, Karima, Rogério e Andrea. Na manhã seguinte, Karima me acorda pra dar a notícia do acidente de Ayrton Senna em Ímola, na Itália. Fiquei ali, paralisado, vendo as imagens, Karima ao meu lado. Foi uma comoção mundial. Eu gostava mesmo do Nelson Piquet, mais atrevido, mas não tinha como não ficar arrasado com o destino de Ayrton. A primeira semana de maio de 1994 foi de luto. Quando o corpo do piloto chegou a São 178  Lui z

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Paulo, houve o cortejo pela cidade até o cemitério do Morumbi, com a narração do William Bonner. O Brasil chorava, eu chorava no Rio e meu pai em São Paulo. Ele gravava todas as corridas de F1. Eu assistia sempre, desde Emerson Fittipaldi e José Carlos Pace, os primeiros grandes pilotos brasileiros. Assisto até hoje, na verdade. Estava vendo sozinho em casa o velório do Senna. Eu e o mundo caindo no choro. E o que me vinha era a imagem do meu pai. Como ele estaria sensibilizado pra caralho vendo o grande ídolo dele morto. E eu, naquela solidão, assistindo àquela tristeza e comoção mundiais, e falando pra mim: — Meu, você é um merda! Olha o que você tá fazendo da sua vida! Não posso jogar tudo fora! Ali foi uma puta reflexão: — Você tá se drogando que nem um filho da puta, sendo imprudente com a sua carreira. Você tá tratando mal as pessoas que estão à sua volta. Você tá se fodendo e não tá nem aí! Faz alguma coisa, caralho! E eu chorando. Foi uma semana horrível. Foram sucessivas semanas estranhas e de recaídas entre abril e maio de 1994.

Plim-plim

As gravações do TV Zona avançavam. Já tínhamos material para doze programas. Eu achando que a coisa tinha engrenado. Todo mundo que ia ao programa elogiava. Eu já tinha me livrado do Fantástico. Estava fazendo o que queria. Até o dia em que percebi que ninguém me ligou pra falar “Ó, gravação, horário, figurino…”. Ninguém me ligava. Deu um clique, aí liguei lá na produção pra saber a que horas seria, como é que ia ser, quem eram os artistas convidados. Atendeu uma senhora: — Bom dia, quero falar com o Boninho, por favor. — Não tem nenhum Boninho aqui não, moço. — O Rogério está aí? — Tem ninguém aqui não, eu estou limpando as salas e desocupando o escritório. — Olha, chama alguém da produção, por favor. — Não tem ninguém da produção aqui, me falaram que o programa acabou. CONTOS DE THUNDER   179

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— Como assim? Tenho gravação na semana que vem. — Tem não, moço. O programa acabou! — Quem é a senhora? — Sou a faxineira.

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Sem programa, só lenço, sem documento, crachá só até dezembro de 1994. O cheque de pagamento era descontado ao lado do dealer. Pintou a Pepsi no ar, trazendo um dirigível sem destino com Regina Casé. Mas era só uma lufada de verão. Hindenburg consumido em segundos. O jeito era voltar pra banda. Chafurdar no estúdio em vez de ser defenestrado pelas drogas. Mas nem os santos da casa faziam milagres. Ele estava só. Precisava de novos ares e nomes. Como Honesto Geisel.

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A GELADEIRA AMPLA, FROST FREE, MUITO CONFORTÁVEL

Depois da conversa com a faxineira da Globo que me “demitiu”, procurei meus diretores do TV Zona. Liguei pro Boninho e expliquei a confusão. Foi quando ele me pediu pra ir a seu outro escritório. Chegando lá, estavam seu braço direito (nunca lembro o nome dele…) e Rogério Gallo. — Boninho, o que está acontecendo? — Thunder, a gente tem um problema. — Um problema de comunicação, né? Rogério, você sabe o que está acontecendo? — Não, vim aqui pra isso. — Ele também parecia não saber de nada. — A Federação Paulista de Futebol encostou na gente com um caminhão de dinheiro para a transmissão do Paulistão. Perdemos nosso horário — falou Boninho, na maior calma! — Mas, cara, e como fica o TV Zona? — Eu estava bem nervoso. — Música não dá ibope, Thunder. A gente foi até onde dava. — Rogério, fala alguma coisa! — pedi, perdendo a crença no ser humano. — Eu não estava sabendo de nada… — Que merda! — falei, puto da vida. Bem, aparentemente, ninguém sabia de nada. Posso imaginar que todos ficaram temerosos em me dar notícia, da forma como eu poderia reagir. Não que eu fosse violento, mas talvez fizesse alguma besteira. — Bom, tudo bem, tá, vou digerir isso, tchau. Apesar do desentendimento, o Boninho lembra dessa época com muito carinho: “O programa foi construído e criado para ele. Eu me CONTOS DE THUNDER   183

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diverti muito, adorava as bandas novas e a edição radical”. E reflete: “Talvez o projeto fosse muito ousado para a época, daí a decisão de parar antes do planejado”.

Sendo o mesmo Thunder de sempre

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Fui para o hotel e passei uma semana assim, mergulhado. Não querendo aceitar, não querendo pensar na situação. Porra! Era o programa dos sonhos! Eu levava doze atrações musicais pra tocar ao vivo em dois palcos pela primeira vez na televisão! Isso era uma conquista da música na tv. Inédito! E na Rede Globo! Eu não podia perder esse espaço. Era uma coisa muito louca, muito revolucionária! A gente fazia isso no CEP MTV com microfone de lapela. Na Globo, eu tinha três plateias, dois palcos, todos os melhores equipamentos do mundo, as bandas mais famosas e artistas musicais do Brasil, e os caras simplesmente “Não, o futebol chegou aqui e não vai dar mais, música não dá audiência”? Foram doze programas gravados. Sete foram ao ar. Fomos pelos ares em menos de três meses. Foi horrível. Fiquei bem mal. Me joguei de vez no colo da cocaína. Os amigos me ligavam, eu não atendia; os traficantes me ligavam, eu corria pra atender a porta. Minha família ficou preocupada, meus melhores amigos também. Depois de umas duas semanas, liguei pro Boninho e ele me disse que estava pensando em me colocar no Vídeo Show. Pensei que não seria nada mal. Eu curtia o programa, naquela época apresentado pelo Miguel Falabella. Passados alguns dias, entrei em contato novamente e a nova ideia era me colocar para falar dos lançamentos fonográficos da gravadora Som Livre nas madrugadas. — Ah, não, não quero fazer isso, Boninho! Ia contra tudo que eu tinha feito na mtv, a cena independente. Boninho então sentenciou: — Então você vai ter que esperar e ver o que acontece pra você… Isso já era fim de ano, e o contrato encerrava em dezembro. Nem lembro direito o que eu fiz naquele período. Tipo David Bowie nos anos 1970, um enorme lapso de tempo, sem registro. Eu só me recordo de ir mensalmente à sede da Globo em São Paulo, na praça Marechal Deodoro, pegar meu cheque e depositar no banco. Continuei recebendo direitinho meu salário todo mês. Mas eu torrava de cara. 184  Lui z

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Eu tinha um Opala preto. Meu traficante estava com um Diplomata, um carro muito melhor que o meu. Teve uma vez em que fui ao banco com ele e o filhinho dele. Uma, não. Umas duas ou três vezes. Pegava um pouco pra mim e deixava todo o restante pra ele. O menino perguntou ao pai: — Pai, por que toda vez o senhor tira tanto dinheiro do tio Thunder? Cortou meu coração. Eu tinha dó de mim mesmo. Até meu dealer ficou mal, constrangido. A criança deu um toque para este adulto com comportamento infantil. Era mais murro na minha cara. Eu sacava isso. Mas bastava chegar em casa e esse toque do menino era esquecido. Eu chegava no meu canto e consumia a droga vendida pelo pai dele. Eu praticamente não tinha mais nada nem ninguém. A responsabilidade era toda minha. Eu havia feito tudo aquilo comigo. Fui eu mesmo na Globo, e talvez tenha me dado mal por isso. Mas pelo menos me estrepei fazendo tudo pela minha cabeça. Ou sem a menor noção do que se passava por ela.

Dirigível ingovernável

No final de 1994, surgiu uma luz para alguém perdido na carreira e se perdendo na vida. Fui convidado a participar da campanha publicitária da Pepsi. A ideia era um comercial televisivo comigo e com a Regina Casé, em que seríamos grandes amigos, conversando por rádio. Ela na praia, eu dentro de um dirigível. Tudo meio surreal, depois daquele encontro estranho no camarote da Globo, no Carnaval. As filmagens foram assustadoras. Nunca tinha visto um dirigível de perto na vida. A imagem mais marcante que eu tinha desse veículo era a do Hindenburg pegando fogo na década de 1930, aquela tragédia. Pra entrar naquilo, mentalizei o Led Zeppelin e liguei o “foda-se” no talo. Não conheço muita gente que tenha feito passeios em dirigíveis, sobrevoando a cidade do Rio de Janeiro. Aquela nave tinha uma cabine do tamanho de um Fusca. Tinha o piloto, eu, a diretora e seu cinegrafista. A certa altura, comecei a sentir choques elétricos no corpo. A diretora me tranquilizou, explicando que aquilo era pura adrenalina. Pensando bem, foi uma grande aventura. No fim, correu tudo bem. Faustão apresentou a contagem regressiva de Ano-Novo, e logo depois o primeiro filme comercial do ano foi o da Pepsi. CONTOS DE THUNDER   185

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Um estrondoso sucesso, um cachê razoável, um alento pras minhas despesas, que eram bem altas. Aonde quer que eu fosse, as pessoas diziam que me viram lá em cima no dirigível. O veículo sobrevoou várias capitais brasileiras e as pessoas pensavam que eu estava lá dentro o tempo todo. Lembro de ir a uma boca e o patrão me abraçar e dizer pra toda a comunidade que eu tinha passado por ali ontem. — Serve o rapaz direito, não chuta o cliente. — Ah, obrigado… — respondi, constrangido. — Vamos ali no meu barraco pra tomar uma cerveja! — Ah, poxa, não posso, tenho contrato de exclusividade com a Pepsi. — Fiquei apavorado. — Moleque, vai na venda comprar uma Pepsi pro Thunder! — Ah, quanta consideração… — Me conformei. Até porque amava Coca-Cola, não Pepsi. E por dois anos eu tive de beber Pepsi, porque senão, seria processado. Tudo tem seu preço.

Back to the band

Passei a fazer uns shows com os Devotos, tinha tempo de sobra pra isso. Mas não eram muitas apresentações. George e Victor já não tinham muita paciência pros meus atrasos. A banda até tinha emplacado uma música numa novela da Rede Manchete, mas não foi o suficiente para me estimular. A coisa estava ficando pesada. Muita droga, poucos amigos, muitos sanguessugas. Meu namoro estava complicado. Minha relação com a família era inexistente. Eu morava em hotéis. Morei em muitos por toda a São Paulo. Ainda aguardava um telefonema da Globo pra fazer o Hollywood Rock de 1995. Aguardei até o dia de o festival começar, no início do ano. Não recebi nenhum telefonema. Nada. Nem rock, muito menos Carnaval. Depois do festival, liguei pro Boninho. Perguntei se tinha algum projeto pra mim. Ele foi bem sincero e direto: — Não tem nada, Thunder. A gente se fala, abraço. Nessas horas eu sempre tinha a banda pra me agarrar. Eu havia desocupado meu apartamento e deixei alguns móveis, objetos, livros, discos, todos os meus 186  Lui z

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pertences na casa do George. Ele cuidou de tudo pra mim, inclusive do meu primeiro violão, que meu pai me deu em 1967. A gente tentava ensaiar, mas eu não conseguia me concentrar na música. Victor estava doente. Tinha sido diagnosticado com hiv positivo. Fizemos uns shows, inclusive um em Sorocaba, com os Raimundos. Eles tinham alcançado o sucesso, então abrimos a noite. Nessas horas tudo ficava bem. Recebi depois um telefonema do George dizendo que ele e o Victor estavam saindo da banda. Aquilo me pegou pesadamente. A banda entrava em recesso. Meus amigos Devotos não me aguentavam mais. Nada dava certo pra mim. Foi esmagador! Sem programa e sem perspectiva na tv. Sem banda no palco. Aquela geladeira da Globo estava ficando vazia, gelada, e eu estava ficando desesperado. Isso durou um tempo, nem lembro quanto. Foi em 1995. Mas pareceu durar uma década inteira.

Honesto Geisel

Os Devotos estavam fora de combate e encontrei meu velho amigo Joe Limão. Joe era da turma do Baldão Bar. Já tinha tocado com ele num projeto chamado Joe Limão e Os Phanta Uva. A gente decidiu montar uma banda. Ele chamou o Marcão, baterista da banda punk Hino Mortal, eu chamei o Claudio Beethoven, que tocou comigo nos Devotos. Ernesto Geisel, o presidente que governou o país sob a ditadura entre 1974 e 1979, havia falecido e tive a ideia do nome da banda: Honesto Geisel. A gente fazia músicas com sotaque alemão, guitarras pesadas, tendendo ao punkabilly. Ensaiamos algumas vezes e marquei uma entrevista no programa do Jô Soares, ainda no sbt. Foi tudo muito engraçado, tem os vídeos no YouTube. Essa foi a banda que fez uma única apresentação na tv e acabou em seguida. Parecida com os meus projetos, que não se sustentavam e viravam pó rapidamente. Estava cada vez mais perdido e só. Precisava me animar. Um dia, entre tantos em que me vi sem nenhuma perspectiva, pensei na única pessoa que sempre me deu os melhores toques. Liguei aos prantos pro Titti Civita. Susana CONTOS DE THUNDER   187

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atendeu, eu não conseguia falar direito, só queria desabafar, estava descontrolado mesmo. Marcamos de eu ir à casa deles pra conversar. Fui, eles me receberam, mas foi o Titti quem ficou me ouvindo. Falei do meu desencanto, da minha decepção, da banda que tinha se separado, da minha situação. Ele ouviu, jantamos, eu agradeci e fui embora. Alguma coisa iria acontecer. E aconteceu!

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1995 parado e lesado, até que 1996 retomou a romaria dos Devotos. Nova formação. E novas intervenções dos amigos. Natal enfurnado no quarto. Nada de presente para quem se comportou mal. Mas a MTV não se importa com a capivara. Quer terror. Terrir. Ela o quer de volta para apresentar os contos das criptas e dos decrépitos. Troma! Trash! Toma que a MTV é sua de novo, Thunder! Zé do Caixão. Ivan Cardoso. Uma nova tomada. Até puxarem o fio da tomada. Raios triplos e trovões tropicais para 1997.

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O ano de 1996 foi o da retomada dos Devotos. Eu estava em casa, esperando que alguma coisa acontecesse depois de um 1995 de ansiedade e angústia, quando recebi a visita inesperada de Marco Polo Pan. A conversa girou em torno do aniversário de dez anos da banda. Ele insistiu que eu deveria voltar a tocar com eles, numa nova formação, com novo repertório — era tudo que eu precisava pra me mexer e retornar para a música. Isso sempre foi importante pra mim. Pan, tremendo guitarrista, estava tocando na banda do Bocato e no trabalho solo da Vania Abreu, irmã da Daniela Mercury. Acho que ele também sentia falta do rock ‘n’ roll. A gente precisava de um baterista, e o único nome que vinha à minha cabeça era o do Gigante Brazil. Acompanhei o Giga ao lado do Itamar Assumpção, da Gang 90 & Absurdettes. Encontrava com ele na Vila Madalena, fazendo jam sessions. O Pan achou a ideia ótima, mas acho que ele não acreditou que o Giga toparia entrar na banda. A primeira coisa que fiz no dia seguinte foi procurar por ele. Eu tinha certeza de que se ele topasse fazer parte dos Devotos a coisa iria crescer e se expandir. Consegui seu telefone, combinei de encontrá-lo num bar da Vila. Ele ouviu meu convite, sorriu e disse: — Vamos nessa, menino rock ‘n’ roll! Voltei pra casa tão feliz que nem pensei em drogas ou qualquer outra coisa. Só queria compor novas músicas pro primeiro ensaio. Passei uma semana dedicado a isso. Liguei pro Pan e falei que o Gigante Brazil seria o nosso batera, que precisávamos ensaiar, fazer um repertório com algumas músicas antigas e arranjar as novas composições que eu já estava esboçando. CONTOS DE THUNDER   191

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O primeiro ensaio foi num estúdio no Jardim Paulistano dos irmãos gêmeos Rubens e Gilberto Nardo, que fizeram parte da banda de Rita Lee nos discos Fruto proibido (1975) e Entradas e bandeiras (1976). O clima foi ótimo! Pan estava bastante afiado com sua Fender Stratocaster. Gigante parecia um monstro na sua bateria. O entrosamento foi imediato. Só assim pra superar a ausência do George e do Victor. Eu soube que os dois tinham entrado na Kães Vadius. O rock, suas voltas, revoltas e reviravoltas!

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Intervenções

Mas os amigos continuavam preocupados comigo. Alguns simplesmente se afastaram. Acho que não conseguiam estabelecer uma relação de amizade com alguém que estava se matando todos os dias. Karima, ao contrário, sempre acreditava que alguma coisa iria acontecer e eu iria me recuperar. Isso aconteceu, mas ainda tinha muito o que cavar naquele fundo de poço. Lembro de uma intervenção na casa da Taciana Barros. Estavam ela, Suba, Xocante e Karima. Xocante foi o mais enfático. — Thunder, você precisa parar com essa merda de freebase. Isso vai te matar! — Calma, Xoc, tá tudo bem… Claro que não estava! Minha família já tinha desistido de qualquer conversa. Eu sentia a preocupação deles, mas não conseguia deixar aquilo longe de mim. O ano definitivamente acabou na noite de Natal, especial do Roberto, perus e tenders, a família reunida na sala e eu de volta ao meu velho quarto. Trancado. Sem conseguir parar de me drogar. Sem conseguir abrir a porta, tampouco confraternizar com eles.

Toma que o filho é seu

De repente, recebi um telefonema da mtv. Marcaram uma reunião com o Gianca Civita e o Andre Vaisman. A tal meeting aconteceu no nono andar entre nós três. Eles tinham um projeto pra mim. Titti Civita e Vaisman haviam conhecido Lloyd Kaufman na Feira Mundial de Televisão, em Los Angeles. Eles compraram dez filmes da Troma, 192  Lui z

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produtora de Kaufman de filmes trash. O lema deles nunca deixou dúvidas: “Se um filme é ruim, ele é Troma!”. Eles queriam que eu apresentasse essas obras na mtv. Ficou claro que isso era ideia do Titti, não deles. Acho que, por eles, eu teria ficado longe da emissora pra sempre. Pelo menos foi essa a impressão. A reunião seguinte foi tão secreta que nem foi no prédio da mtv. Zico Goes me ligou e marcamos um encontro no estacionamento da igreja do Sumaré, ali pertinho… Achei aquilo muito estranho! Imaginei eu no meu carro, esperando outro veículo encostar ao lado e dizer a senha secreta. Parecia aqueles filmes de espionagem na Alemanha Oriental. Foi quase isso. Chega um carro com Zico e Andre dentro, estacionam ao meu lado, abrem o vidro e me convidam a mudar de viatura. — Vamos no Piola. — Zico, animado e, como sempre, muito simpático. — Não é nenhum pico gay, né? — É uma pizzaria! Eu estava absolutamente calado, me sentindo um refugiado da Berlim Oriental, entrando num Trabant,* pra ser contrabandeado para o outro lado do muro. Instalados na pizzaria, Zico tomou conta da conversa. Me explicou o que seria o programa mais louco da minha carreira na televisão. Andre só intervinha pra pontuar a necessidade de manter tudo em segredo. Eu seria dirigido pelo Danielzinho Pompeu de Toledo e pelo Carlinhos “Doideira”, filho do Chaminé da banda Bixo da Seda, do rock gaúcho. Achei a ideia muito boa, tanto o programa quanto ao fato de ser dirigido pelo Dani e o Carlinhos. — A propósito, você não vai trabalhar no prédio da mtv — falou Andre, deixando claro que tinha mesmo um clima Stasi, a temível polícia secreta da Alemanha soviética. Na verdade, não me lembro de ir muito à mtv, a não ser nas poucas vezes em que gravamos no estúdio com o chroma-key. Mas fui ao vmb 1996. Fiquei lá, assistindo à premiação do Video Music Brasil com o pessoal d’O Rappa. Eles concorriam na categoria rap, mas eu não sabia. Até me perguntaram quem eu achava que mereceria esse prêmio e respondi: * Automóvel símbolo da Alemanha Oriental, projetado para motorizar a antiga República Democrática Alemã, fabricado entre 1957 e 1991. Foi apelidado de Trabi e conhecido como “carro de papelão” devido ao material de baixo custo utilizado e à baixa potência de seu motor. Após a queda do muro, o Trabant foi utilizado por milhares de alemães do lado oriental para migrar para o Oeste, episódio conhecido como “a fuga dos Trabi”, tendo sido a maioria dos veículos abandonada após a travessia. Hoje, ele é item de colecionador. CONTOS DE THUNDER   193

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— Thaíde! O pessoal do Rappa me vaiou feio. Mas, em minha defesa, disse que eu nem sabia que eles estavam nessa disputa. A inadequação me fez sair dali antes do fim. A assessoria de imprensa da mtv até tinha me falado que depois eu daria algumas entrevistas sobre meu retorno. Não senti nenhuma vontade de falar sobre o assunto. Estava tudo bem estranho.

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Uma solteirona e três bebês

Enquanto isso, os Devotos ensaiavam semanalmente. Tive a ideia de ser um frontman com mais liberdade e ficar com um violão e vocais. Convidei um amigo, Mario do Amaral, neto da Tarsila do Amaral, para fazer os baixos. Ele era roadie, mas tinha essa vontade de tocar numa banda. Achei que daria certo. Fizemos uns poucos shows com essa formação, mas não deu em nada. Eu sentia falta de tocar contrabaixo. O Gigante e o Pan também argumentaram que o trio seria mais eficiente. Começamos a trabalhar com uma ex-namorada do Pan, a Biba, que marcava os shows pra gente. Figura adorável, cuidava de nós como se fôssemos filhos dela. E acho que éramos mesmo. Os três loucões só queriam saber de tocar, se divertir, curtir o show. O restante ficava com a Biba. Teve um show em Curitiba que foi um desastre. Uma turma da cidade organizou uma festa e nos convidou pra tocar. Aconteceu de tudo, fui roubado por lá, o contratante não nos pagou, foi horrível. Um picareta típico, que deve fazer isso até hoje. Gente assim conseguia se esquivar dos compromissos acertados. Lembro que o Gigante queria dar uma surra nele, mas consegui convencê-lo a não fazer nada. A Biba ainda não estava com a gente, senão esse canalha acabaria na cadeia. Biba era muito forte nesse sentido.

“Você não vai ver a hora de terminar!”

Essa era uma das chamadas para Contos de Thunder. Eu dizendo que o telespectador iria “celebrar” o final de cada episódio. Era o espírito do programa. Politicamente incorreto. Sexualmente incorreto. Ecologicamente incorreto. Escatologicamente correto. Infantilmente certíssimo. Perfeito para a maturidade 194  Lui z

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adolescente de qualquer idade. Era a nossa intenção. Não tínhamos pretensão de nada. Apenas de fazer o nosso pior. Chegou o dia da primeira gravação e eu ainda não sabia o que seria o programa que descrevi acima. Danielzinho juntou uma equipe da pesada pra rodarmos na casa abandonada de um amigo no Pacaembu. Era uma mansão enorme, com poucos móveis, todos meio destruídos. Tinha uma piscina que parecia uma panela de sopa de feijão. Dava até pra ver uns baconzinhos boiando. O primeiro episódio era com o filme mais emblemático da Troma, The Toxic Avenger, de 1984. O filme é espetacularmente malfeito, o roteiro é um abuso de terror urbano, a trama é muito próxima do clássico Clara Crocodilo do Arrigo Barnabé. Max Fivelinha, na época ainda maquiador da mtv, fez uma caracterização em mim no estilo do protagonista do filme. Eu usava o chroma-key pra interagir com a película, fazendo os comentários das cenas estapafúrdias. Era muito divertido, sem dúvida. Tosco. Maravilhosamente tosco. Até na trilha sonora nós enfiávamos a mão. Numa cena de violência em um restaurante mexicano, sonorizamos com “Misirlou”, do Dick Dale. Ficou muito melhor. Até porque, com a “qualidade” que exalava dos filmes da Troma, qualquer mexida não conseguiria piorar o que já era pavorosamente péssimo. Era tudo ótimo de ruim. Tinha sempre uns personagens comigo: Palhares e Arroto, com cabeças de gorila; Galo Roger, com uma irritante voz esganiçada e cabeça de galinha; prima Loreta, interpretada pela Dani Gaúcha. Dani usava um biquíni de oncinha, tinha uma máscara de porca, sua personagem tinha vindo me visitar. Quando fui trabalhar na Rede Manchete, em 1997, chamei a Dani pra ser minha assistente de palco. Somos amigos até hoje, nos falamos sempre, mesmo depois que ela se casou e foi morar na França. Mas os nossos personagens se transformaram também em personas non gratas. Um dia recebemos um pedido da direção para que tirássemos eles do ar. Foi assim que Galo Roger foi sacrificado ao vivo, com golpe de controle remoto! Não queiram saber mais detalhes. Mas não se preocupem: nenhum animal foi molestado durante as filmagens. Fazíamos também uns anúncios muito loucos de produtos absurdos. Tinha a propaganda do “Eliminator”, que era uma bolsa de água que o cliente supostamente engolia pra comer à vontade. Depois era só vomitar a bolsa com toda a comida dentro dela. Quem fazia essa propaganda era a Joana Ceccato, que era a locutora de todas as promos e vinhetas da mtv. A gente voltou a trabalhar junto em 2003, no estúdio A Voz do Brasil, fazendo o programa Tapa na Orelha CONTOS DE THUNDER   195

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por vários anos. Ela tinha uma banda, Biônica, que rodava o circuito alternativo de rock. Essa é outra pessoa que conheci naquela época e com que ainda mantenho contato. Tinha a propaganda de “Folhas secas”, que não passava de um monte de folhas de árvore para esmagar, com o mesmo efeito dos plásticos-bolha, indicado para pessoas estressadas. “Fart-o-matic”, um aparelho para coletar gases intestinais para o abastecimento de isqueiros. Acho que esse nem a gente teve coragem de pôr no programa! Danielzinho surrupiou umas imagens de câmera de segurança do prédio onde morava com os pais. Ele teve a manha de pegar uma sequência com o seu Roberto Pompeu de Toledo, pai dele e o maior colunista da revista Veja, e dublar frases bem comprometedoras. Ninguém tinha limites em Contos de Thunder. Recebemos a visita de um jornalista de O Estado de S. Paulo para acompanhar um dia de gravações. Ele esteve lá, conversou com a gente, viu o cenário, entendeu qual era a proposta do programa. Eu tinha sido da Globo, onde tudo era reluzente, as produções eram faraônicas, o elenco renomado, para entrar no submundo dos trash movies. Acho que esse contraste foi fundamental pra afastar qualquer imagem global que restasse em mim. Outro jornal, Folha de S.Paulo, não entendeu nada. Ao contrário do jornalista do Estadão, o autor da crítica não conseguiu enxergar o que viria a ser uma febre na tv brasileira. Pra ele, tudo era horrível, tosco, sem sentido. “Um atentado contra a inteligência do espectador.” Chegou a comparar minhas interações com os personagens dos filmes da Troma com o desenho Beavis and Butt-Head. Pra ele isso era uma ofensa! Pra nós, foi o maior elogio. Era isso que queríamos. Mais nada. Zoávamos tudo, incluindo a própria mtv. Eu mesmo. Uma vez pedi uma pizza por telefone no meio do programa. No diálogo imaginário com o cara da pizzaria, falei que eu não estava mais no dirigível da Pepsi. E que “não sabia por que eu tinha saído da Globo”. O que tivesse de problema, a gente resolvia — ou tentava — ali. Na hora, no ar. Depois de algum tempo, a Rede Bandeirantes colocou o diretor e ator José Mojica Marins, o Zé do Caixão, durante as tardes pra abordar esse tema. Marcos Mion apresentaria o programa Piores Clipes do Mundo, em 2000, no mesmo formato de Contos de Thunder, alcançando sua melhor audiência na mtv. Portanto, o nosso programa estava no caminho certo. Claro que espantava os mais conservadores, mas até a chamada já induzia ao estranhamento: — Ele está de volta… — Uma voz soturna anunciava uma novidade. — Num horário mofado… — O programa ia ao ar sábado às onze da noite. 196  Lui z

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— Em péssima companhia! — Eu aparecia com o disfarce de Toxic Avenger.

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Quem fala sobre Contos de Thunder é Zico Goes. “O programa surgiu da ideia de brincar com filmes trash. A gente encontrou um cara em uma feira em Miami. Ele tinha um acervo e vendia baratinho. A gente não sabia exatamente o que queria, mas tropeçamos nisso, os filmes eram mesmo trash, valia o risco, e o acordo foi feito assim. Foi algo diferente de tudo que já tinha sido feito.” Joana Ceccato também estava na jogada. “Eu seria a garota-propaganda do Eliminator, um produto que prometia emagrecimento rápido, através de uma bolsa coletora de alimentos que era facilmente retirada do estômago após as refeições. Talvez um presságio do que seria a cirurgia bariátrica. Era só uma caipirona que trabalhava no departamento de promo, mas me chamaram para este personagem numa vinheta do programa. A vinheta foi um sucesso e fui convidada para um programa comemorativo da série.” Zico, como todos que fizeram parte daquilo, define Contos de Thunder: “Era uma loucura”.

Pouco depois da estreia, pude conhecer Ivan Cardoso, cineasta mestre do gênero terrir, um dos caras mais loucos e bacanas do cinema nacional. O encontro foi no cenário do programa, e ele sacou tudo na hora. Até me deu uma camisa do Botafogo, que foi campeão brasileiro em cima do Santos, a poucos metros dali, no estádio do Pacaembu, em dezembro de 1995. A sequência dos filmes da Troma ia progressivamente ficando mais radical. Uma das obras se passava numa ilha com um torturador sadomasoquista. Quando estávamos terminando a série, eu já pensava numa sequência com cineastas brasileiros. O primeiro que procurei foi Petter Baiestorf, da Canibal Filmes. Cineasta no estilo gore, terror com muito sangue e violência, instalado na cidade catarinense de Palmitos, Petter mandou uma fita com o experimental O monstro legume do espaço, de 1995. Fiquei fascinado com as possibilidades. Claro que incluiria também algum filme do Ivan Cardoso, amigo, grande figura, que tinha seus longas-metragens e possuía uns curtas fantásticos na gaveta. Havia ainda um cineasta de Brasília, acho que era bombeiro, mas nunca consegui chegar perto de ter uma conversa com ele. Ao contrário de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, com quem consegui marcar uma reunião em seu escritório, no bairro do Sacomã, em São Paulo. CONTOS DE THUNDER   197

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Cheguei na hora marcada e fui atendido por sua jovem secretária. Ele estava atrasado, mas ela me deixou esperar na sala do diretor. Depois de um tempo, reparei que havia uma estante repleta de produtos da Amway. Fiquei ali, pensando no significado daquilo… Seria um projeto cinematográfico do mestre do terror? Seria a Amway um artifício para arrecadar fundos para seu novo filme sem patrocínio? Com a minha cabeça a mil, seu José entra na sala, me cumprimenta e senta do outro lado da mesa. Eu estava emocionado de estar ali, frente a frente com aquele que me aterrorizou desde a infância com seus filmes maravilhosos. Tem um relato do Ivan Cardoso que me disse que Mojica foi convidado e homenageado no Festival Internacional de Cinema Fantástico do Porto, o Fantasporto, em Portugal. Depois da exibição de um de seus filmes, um sujeito perguntou a ele como conseguia fazer aquelas cenas com tarântulas e pessoas enterradas vivas. Ele respondeu que os atores faziam testes antes de serem aprovados. Parte desses testes consistia em comprovar que o elenco conseguiria lidar com as tais aranhas passeando pelo corpo. E havia o temido teste de ser literalmente enterrado vivo por algum tempo, para saber se o ator conseguiria lidar com aquilo. Fiquei imaginando tudo isso. Expliquei pra ele o lance de Contos de Thunder, que ele nunca tinha assistido, e disse que pretendia fazer uma série com cineastas brasileiros. Seus olhinhos se emocionaram, ele sorria com seu cigarro paraguaio 120mm na boca. Topou, claro, sem deixar dúvida de que isso teria um preço em moeda corrente. Saí de lá empolgadíssimo com as possibilidades. Mas não durou muito tempo. Um dia Gastão Moreira me ligou dizendo que iria entrevistar Johnnie Johnson, o pianista que fez Chuck Berry ser o que ele é. Eu era tão fã de Johnnie Johnson que, nos meus shows, na hora de qualquer solo, eu dizia ao microfone: — Johnnie Johnson… — tal qual no filme Hail! Hail! Rock ‘n’ roll, sobre o Chuck Berry, produzido pelo Keith Richards. A entrevista seria feita por Rodrigo P-Funk, mas eu poderia ir junto pra conhecer o mestre. Levei meu cd pra ele autografar. Fiquei ali, admirando cada palavra sua. Foi um dia muito especial. Mas não ia ficar só nisso. Quando voltamos pra mtv, alguém disse que Andre Vaisman queria falar comigo. Fui até a sala dele, empolgado pra contar sobre as conversas que tive com todos os cineastas pra nova temporada de Contos de Thunder. Nem deu tempo. Vaisman foi direto ao assunto: — Thunder, não vamos renovar o seu contrato. Você está dispensado, obrigado.

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Vários takes no estúdio com os Devotos, vários tragos e troços no corpo com os demônios. Coluna em revista. Reportagem de campo até no gramado do Paulistão de 1997. Muquifos para morar até voltar pro cafofo dos pais. A vida tentando voltar ao normal anormal. Mas ainda vida. João Gordo dando a letra e botando ordem na casa muito desgraçada. Marcelo D2 abaixando a poeira. Hora de levantar e dar a volta por cima. Até a queda de boca no poço sem fundo e nas piores bocas e veias abertas. A fossa mais negra. O silêncio dos culpados. A luz branca chamando. Não olhe pra ela! Mas havia uma luz no fim da Vila. Serena.

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O FUNDO DO POÇO

Eu não conseguia acreditar que haviam cancelado a segunda temporada de Contos de Thunder. Fiquei bem chateado com a decisão. Apesar do meu uso massivo de drogas, as gravações corriam bem. Eu tinha me esforçado muito pra não pisar na bola, não faltar ou chegar atrasado. E os planos (que depois percebi que eram só meus) de continuar com o programa pra mim eram meio óbvios. Mesmo depois da dispensa, eu ainda acreditava que podia haver alguma chance de isso acontecer. Ligava pra casa do Vaisman, deixava recados, sem retorno. Com o tempo, passei a gravar mensagens com a fala do personagem de Bela Lugosi na secretária eletrônica dele. No filme Ed Wood, de 1994, Ed Wood (Johnny Depp) busca resgatar da decadência e da dependência química Bela Lugosi (Martin Landau). E Lugosi faz um discurso genial, dizendo que a indústria tinha o desprezado, que em Hollywood era assim, eles te abocanham, “sugam seu sangue e cospem fora o bagaço”. Separei esse trecho e gravei na secretária do Vaisman. Fico o imaginando chegando em casa e verificando suas mensagens… Não muito depois, o Fernando Costa Netto me chamou pra escrever uma coluna na Venice Mag, uma publicação mensal dirigida ao público surfista e skatista que frequentava o bar de mesmo nome. Essa coluna e os Devotos passaram a ser a minha ocupação. No mesmo ano, Fernando passou a ser o editor-chefe do jornal Notícias Populares e me chamou pra que eu fosse repórter especial. Fiz algumas reportagens interessantes. Cobri a final do Campeonato Paulista de 1997. Fui nas concentrações do Corinthians, onde entrevistei o Marcelinho Carioca, e também nas do Palmeiras. Depois, fiz CONTOS DE THUNDER   201

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uma viagem até um presídio, onde entrevistei o Pixote, do grupo Pavilhão 9, que estava cumprindo pena ali. Na volta, eu e o fotógrafo vimos o primeiro apagão na cidade de São Paulo, chegando pela rodovia. Essas coisas aconteciam e era tudo muito legal, mas o que eu queria era tentar esquecer aquele lance da mtv. Os melhores momentos dessa fase foram durante os shows com os Devotos. Pan e Gigante eram muito divertidos e os shows sempre me animavam muito. Estava mesmo ligado nessas apresentações. Era pó nos shows, freebase ao chegar em casa. A saúde ia mal, claro. Mas eu arrancava forças pra fazer boas performances, de qualquer forma. O último show antes da rendição foi bem marcante. Tocamos com a banda The Krents, do Luiz, filho do Eddy Teddy, o rei do rockabilly brasileiro com sua banda Coke Luxe. Eddy deu uma canja com a gente, foi uma noite especial no Café Piu Piu, no bairro do Bixiga, em São Paulo. Eu tinha voltado pra casa dos meus pais, não tinha mais dinheiro pra morar em hotéis. Não dá pra esquecer a temporada que passei num hotel perto da praça da República. Era um local meio decadente, mas eu morava na suíte nupcial. O mais bizarro era que a Karima chegava dos seus shows, no começo da madrugada, muitas vezes ainda em seus trajes árabes de dançarina do ventre. Eu era tratado como celebridade por ali, uma pessoa nacionalmente conhecida, que saía pouco do quarto, recebia comida por entrega, e tinha a namorada odalisca que, às vezes, fazia sua coreografia às quatro da manhã pra mim.

Barato caro

Quando a grana estava curta (e nessa época na maioria das vezes estava), eu apelava pra subterfúgios pouco elegantes. Para fazer uma quantidade razoável de freebase, são necessárias cinco gramas de boa cocaína, e isso sempre custou muito caro. Na falta de pó, o mercado oferecia uma alternativa muito mais barata: o crack. O freebase dos menos favorecidos esteve no meu cachimbo várias vezes. É horrível. Muito frustrante também, pois dá uma onda parecida, mas te derruba muito mais. O uso contínuo te deixa cada vez mais compulsivo por mais uma dose. Induz à paranoia. Te faz passar por circunstâncias bem perigosas na hora de adquirir a parada. Àquela altura, eu já não podia me dar ao luxo de exigir qualquer 202  Lui z

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coisa. Isso contribuiu pro meu desgaste físico e mental. Brigava com a Karima, brigava com os aproveitadores/facilitadores que usavam comigo, brigava comigo mesmo… Um inferno! Quando a gente começa a receber conselhos de pessoas radicais, a coisa está feia. João Gordo me intimou numa festa na loja Super Bacana, na Vila Madalena. Fui convidado para a inauguração pela Ana Natividade. Num determinado momento, o João me chamou de lado e disse: — Aí, mano! Eu gosto de você! — João, mais punk que nunca. — Valeu, João! Eu também gosto de você, cara. — Se eu souber que você tá usando essa merda, vou te encher de porrada! Eu nem neguei, nem disse nada, mas naquela noite fiquei pensando que o Gordo estava preocupado comigo. O João Gordo! Noutra ocasião, estava entrando no Dance Club B.A.S.E., na Bela Vista, reduto da música eletrônica, e local de farto uso de ecstasy. O Marcelo D2 chegou junto: — Thunder, tudo bem? — Fala, D2! Tudo certo! — Tem certeza? Você não parece nada bem! — Ah, tô no embalo, sempre! — Seguinte, meu irmão, dá um tempo. Pega leve! — falou, transparecendo sincera preocupação. Quando eu fazia um show ou era contratado pra algum evento, era costume pegar uma carga e ir pra um motel com a Karima. Foram inúmeros motéis. Alguns clássicos do circuito paulistano, impregnados com a fumaça das minhas alquimias. Karima era muito paciente comigo. Mas houve ocasiões em que nem ela aguentou a maratona de autodestruição a que eu me atirava. A gente acabava brigando e saía de lá num clima ruim. Então, eu a deixava em casa e saía pra me afundar um pouco mais. Fabricar freebase demanda tempo e equipamentos. Uma mochila inteira de bugigangas me acompanhava. Numa tarde, depois de uma sessão dupla de terra arrasada, fui parado numa blitz pela polícia. Acho que eles estavam fazendo um cerco numa boca, sei lá. O policial me parou, mandou que eu encostasse. Fiquei apavorado, pois a mochila estava no banco do passageiro, carregada de apetrechos comprometedores. A minha sorte foi que a chefe da operação tinha namorado uma grande amiga dos tempos de faculdade. Ela me viu, chegou no policial, olhou pra mim, piscou e disse: CONTOS DE THUNDER   203

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— Ô, débil mental! — falou pro colega, não pra mim. — Você vai parar logo o Thunderbird? Você tá louco? Deixa o cara ir pra casa! Outra piscadinha, acenou pra que eu fosse embora. Eu tinha comprado um Opala Diplomata, que já tinha sido o carro no Brasil. Ele foi roubado. Usei o dinheiro do seguro pra comprar um Monza, que virou um Santana, que acabou num Galaxie 500, ano 1971. Aquele carro, preto, todo filmado, com rodas de tala larga, era a verdadeira isca de polícia. Mas nunca fui parado no Galaxão! Ele era mesmo assustador! Na boca, incomodava os comerciantes, pois chamava uma atenção absurda. Mas, ao contrário do que se esperava, os passeios naquela barca nunca me trouxeram problemas. Eu adorava aquele carro e teria ficado com ele até hoje. Eu chegava com o Galaxão, todo zoado de dias me entorpecendo, entrava em casa, já na depressão, e a Amora ficava comigo na sala até amanhecer. Permitam-me apresentar a sheepdog mais legal do planeta: Amora! Mas, embora tivesse a Amora para me animar pela casa, eu já tinha me convencido de que morreria de overdose. Ponto-final. Não via a menor chance de sair dessa. A menor.

Não dá mais

O futuro era incerto e eu não conseguia enxergar uma alternativa. Isso foi se arrastando até o dia em que o Nasi saiu da internação de um mês, em 1997, e me ligou: — Então, saí hoje de uma clínica de reabilitação. — Ah, que bom! Você estava mesmo precisando. — É… Mas eu acho que talvez seja o seu caso. — Hum… talvez. — Que bom que você pensa assim, pois já falei com sua família e você vai conhecer esse lugar incrível no próximo sábado. Abraço. Fiquei ali, imóvel. Com o telefone na mão, sem saber o que fazer. Minha irmã ligou na sequência, anunciando que estava tudo certo. Ela iria comigo conhecer a Vila Serena, em Interlagos. Saí pra caminhar e tentar achar uma desculpa pra não ir a esse lugar. No caminho, passei no bar de um amigo, pedi uma coca-cola e reparei num cartaz que dizia “na — se você não consegue parar sozinho, nós podemos ajudar”. 204  Lui z

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A caminho da Vila Serena

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Pensei que um lugar onde se usasse drogas anonimamente seria muito legal. Na verdade, eu estava tão fora do planeta que nem percebi que era um grupo de autoajuda pra parar de usar drogas. Perguntei ao meu amigo se ele conhecia esse lugar. Ele não só conhecia como frequentava havia algum tempo. Se ofereceu pra ir lá comigo. Agradeci e falei que um dia, talvez, eu quisesse saber como era. Sábado minha irmã passou em casa e fomos conhecer a tal Vila Serena. A sede ficava à beira da represa de Guarapiranga. Muito bonita. Parecia um lugar bacana. Mas a primeira coisa que aconteceu foi que todos me reconheceram e fizeram uma algazarra por eu estar ali. Fiquei apavorado, numa profunda negação, imaginando que todos acabariam sabendo que eu usava drogas e a notícia ia correr. Como se o planeta não soubesse que eu era usuário contumaz de substâncias. Esse foi o único argumento que usei pra rejeitar a internação. A primeira coisa que fiz depois que saí de lá foi ir a uma boca e comprar uma carga com meu pagamento da Venice. Fiquei dois dias usando. Sem dormir. No fim da maratona, tocou a campainha. Alguém disse por trás da porta que meu amigo estava lá me esperando pra ir ao lugar que eu havia combinado com ele. Eu estava tão desesperado que vesti uma roupa e saí dali. Lembro como se fosse hoje, nós dois num ônibus lotado, chovendo, muito frio, as pessoas me olhando tentando entender se me conheciam da tv. Eu certamente estava em péssimas condições, pois ninguém chegou perto de mim. Chegamos no tal lugar, eu entrei, me receberam com saudações de boas-vindas, e fiquei ali, escutando. Pouco a pouco, os presentes na reunião se apresentavam e diziam há quantos dias, meses e anos que estavam limpos, sem usar drogas. Na minha mente perturbada, cheguei a pensar que era apenas uma conspiração da minha família pra me convencer de que aquilo era possível. Havia como eu me recuperar daquela perdição. Saí de lá bem desconfiado. No dia seguinte, meu amigo passou em casa de novo. Depois de uma noite de sono, resolvi voltar lá e conferir se era tudo real mesmo. Pra minha surpresa, as pessoas estavam lá de novo, felizes, me abraçando, dizendo que estavam mais um dia sem usar drogas. Foi assim que percebi que também estava sem usar e sem nenhuma vontade de comprar nada. Durou dois dias. Então eu tive uma vontade incontrolável de usar de novo. CONTOS DE THUNDER   205

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Fiquei desesperado e liguei pra minha irmã. Pedi pra me levarem o quanto antes pra Vila Serena. No dia seguinte, ela estava lá, pronta pra missão. Ainda recebi o telefonema do Luiz, me dizendo que o seu pai, o grande Eddy Teddy, havia falecido naquele dia, 19 de junho de 1997, com apenas 46 anos, vítima de derrame cerebral. Tudo era um sinal pra mim. Entrei no carro e fomos eu, minha irmã e meu pai pra Interlagos. Eu tinha que tentar a internação, não aguentava mais ser usuário. A decisão, enfim, estava tomada por mim. Isso foi imprescindível pra que eu conseguisse, a partir dali, ficar limpo. Claro que eu estava com medo daquilo tudo. Medo do que me aguardava na clínica, de como as pessoas me receberiam, de ter que pagar uma pequena fortuna pelo tratamento, de não resistir e sair antes de ter alcançado a sobriedade. Eu sabia disso tudo e ao mesmo tempo não sabia de nada. No carro, minha irmã dirigindo, e eu pedindo pra parar a cada loja de conveniência pelo caminho. Primeiro pra comprar cigarros, depois isqueiro, então, chocolates, depois balas, refrigerantes, mais chocolates, enfim, eu queria adiar a internação de qualquer jeito. Medo! “Foi assim que aconteceu. Entramos no carro para interná-lo, eu dirigindo. O Luiz foi me fazendo parar em todos os postos para comprar coisas. Chegamos ao local só de noite, após o horário da internação. Liguei para o Nasi, pedi ajuda, e ele me orientou a não voltar pra casa. O Thunder fez aquilo para atrasar, de propósito, e tinha certeza de que mandariam ele de volta. Mas conseguimos fazer com que a internação acontecesse mesmo fora do horário.” Resiliência era o sobrenome da Adriana, irmã das horas boas, muito mais irmã nas horas difíceis. “Eu vivi o envolvimento de meu irmão com as drogas desde o princípio. Por sermos muito ligados, e eu mais nova, ele sempre foi protetor comigo. Quando ele se envolveu com drogas, isso se inverteu, e eu tomei conta dele. Eu escondia as coisas dos nossos pais, dava os toques para ele quando não estava bem, essas coisas. Quando ficou muito mal de verdade, tive o contato do Nasi, que foi fundamental para todos nós.” E o Nasi lembra daquele momento também: “Como em toda internação, foi difícil. Como eu havia saído da clínica e estava muito bem, isso serviu de exemplo pra ele de que era

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possível, embora ele tenha ido mais fundo que eu. Lembro que eu, como ex-internado, em alta, frequentando grupos anônimos, tinha acesso livre à clínica por estar limpo. Estive lá em alguns momentos de crise dele. Por mais que a amizade sempre tivesse sido sincera, foi ali que viramos realmente amigos. Na parceria, na cumplicidade como aliados de uma vida sem drogas.” Adriana recorda também a importância do que tinha à mão — um telefone: “Podíamos ligar todo dia, e visitar aos finais de semana, e fiz isso sem falta. Não via como não estar com ele naquele momento. Fui eu também quem explicou aos nossos pais a real situação e o motivo detalhado do tratamento. Uma vez com ele na clínica, nosso limite, nossa questão, era mostrar apoio sem interferir demais”.

Chegamos depois do horário marcado, ou seja, eu ainda corria o risco de ter que voltar no outro dia. Mas alguma coisa fez com que a direção aceitasse meu ingresso. Uma série de trâmites burocráticos foram resolvidos, fui revistado minuciosamente por uma enfermeira. Sim, uma enfermeira me revistou, para caso eu estivesse escondendo alguma coisa. Depois, fui recebido pelos internos, já de noite, e minha irmã e meu pai se foram. Olhei ao redor e percebi que não tinha mais volta. Eu estava lá e teria que encarar o tratamento da melhor forma possível. Jantei com os colegas, todos muito curiosos sobre mim, então assumi o personagem do Thunderbird, fiz um showzinho e me senti mais tranquilo com a situação. Hora de dormir. Me deram alguns remedinhos pra me embalar e fui pro quarto, que era dividido com mais três pessoas. Desliguei rapidamente. Dormi bem, acordei na Disneylândia.

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A Vila Serena, nas margens do Guarapiranga, foi seu lar por mais de um mês para limpar anos de dependência química, física, mental, espiritual, de tudo, de todos. Novos amigos, nova rotina — ou uma rotina pela primeira vez. Amigos anônimos que ajudaram e que não têm nome para tanto apoio. Para limpar tudo, aprender uma nova vida. Para sair dali e driblar as tentações dos velhos amigos e riscos.

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ATERRISSAGEM

Na manhã seguinte à minha chegada à clínica, acordei disposto e muito bem-humorado. Uma das primeiras mudanças na minha rotina seria a obediência aos horários. Se tem uma coisa que não existe na vida de um praticante do suicídio químico gradual, é disciplina! Todos os internos acordavam no mesmo horário e se preparavam para descer juntos para a área de exercícios matinais. “Eles devem estar brincando comigo”, pensei. Exercícios nunca estiveram no meu cardápio, mas se era pra ajudar a me livrar da loucura, eu topava! Vesti meu roupão branco, escovei os dentes e desci pra tal atividade. Todos me olharam estranho, inclusive os funcionários da clínica. Depois entendi a razão do espanto. Eu estava lá para mudar meus hábitos, para socializar com as pessoas, obedecer a uma agenda bem rígida, abandonar o personagem Thunderbird e ser apenas o Luiz Fernando. Portanto, não cabia no roteiro vestir um roupão pra iniciar o dia. Aqui não tem cerimônia, Greta Garbo! Claro que me explicaram isso com muito cuidado, mas a ficha ainda demoraria pra cair. Cada interno recebia uma tarefa na semana. Hospitalidade, jardinagem, organização das mesas das refeições, arrumação da sala de palestras, coordenação da turma. A tal “hospitalidade” era receber, apresentar as acomodações e orientar os recém-chegados. Cada interno tinha uma orientadora, que acompanharia o desenvolvimento no processo de recuperação. No primeiro dia, a Ana se apresentou como minha mentora no processo. Ela era alcoólatra em recuperação havia alguns anos e trabalhava na clínica como monitora e orientadora. Muito simpática, disse que me conhecia da mtv, mas que, quando me assistia, tinha dificuldade de me entender. Disse que quando eu começava a falar, a sala toda rodava e ela ficava tonta. Fiquei na dúvida se levava aquela CONTOS DE THUNDER   209

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observação como crítica ou elogio. Depois, entendi que ela estava sempre alta na madrugada quando via meus programas e que os drinks influenciavam muito na percepção que ela tinha das minhas estripulias. Autoridade sempre foi um problema pra mim, mas ela ainda não sabia disso. O começo do nosso relacionamento foi um tanto difícil, obviamente. Mas, depois de uma semana, entendi que ela estava do meu lado, pra me ajudar, sinalizando e apontando a direção certa, além de me monitorar também, claro. Eu já tinha interagido com algumas pessoas na semana anterior, quando fui conhecer o lugar. Todos me receberam muito bem, me ajudaram a me ambientar, foi muito bacana. A gente seguia uma programação diária muito rígida de atividades. Os tais exercícios (que eram, na verdade, uns alongamentos) pela manhã, seguidos do café. Palestras até o almoço, o estudo da literatura dos doze passos à tarde, alguma atividade coletiva de reflexão e troca de experiências até a hora do jantar, o período reservado para atender aos telefonemas da família e da namorada — muito controlado —, noite livre para socialização com jogos e conversas em grupo até o horário de dormir. Fui me adaptando aos poucos. Lembro que acompanhei os jogos de tênis pela tv Manchete, narrados pelo grande Rui Viotti, quando Gustavo Kuerten conquistou seu primeiro Grand Slam, em Roland Garros. Prometi a mim mesmo que, se eu algum dia começasse a praticar algum esporte, seria o tênis! Isso viria a acontecer de verdade no futuro. Esse foi um dos assuntos preferidos entre os internos. Havia uma mesa de pingue-pongue na qual nos divertíamos todos os dias. E um tabuleiro de xadrez, em que travei confrontos com outro interno que tinha muito em comum comigo: a mesma idade, a formação em odontologia, ele curtia rock e havia se estragado com a dependência química, como eu. Outro detalhe que fez toda a diferença foi o violão da Vila Serena. Naquele violão, alguns bons anos antes, Raul Seixas passava as tardes tocando e encantando a todos, no período em que esteve internado ali. As notícias corriam, claro. Fiquei sabendo que Renato Russo havia ficado na unidade carioca da Vila, assim como alguns globais que não quebraram seus anonimatos, portanto irei preservar essa privacidade. A Vila Serena realmente era muito séria e cuidadosa com seus pacientes. Se alguém quisesse ajuda, encontraria ali, e nos grupos anônimos de autoajuda. O tempo todo, deixavam sempre claro que os doze passos fariam parte da minha recuperação por muito tempo. — Pra sempre? — perguntei. 210  Lui z

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— Pra sempre é tempo demais. Pense só por hoje! — alguém me respondeu. Fazia todo o sentido. Pensar que nunca mais eu poderia usar qualquer substância que alterasse meu humor era quase desesperador. Dizer que naquele dia eu não iria usar nada era muito mais fácil. E assim, a cada dia, eu ficaria longe daquilo. E foi assim mesmo! Por muitos anos!

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Pra sempre? Aos domingos, os familiares e cônjuges podiam visitar os internos. Esse foi meu primeiro contato com pessoas de fora da clínica, num fim de semana, quando minha família foi até lá. A Karima também foi. Estávamos em junho e a casa fez uma festa junina. Foi quando encontrei o artista André Peticov, que eu havia conhecido em 1991. Ele era mesmo da pesada, como eu. A gente se viu, se cumprimentou, ele me deu os parabéns por eu ter me rendido. André passaria a ser um dos meus grandes amigos e companheiros de recuperação. Somos amigos até hoje. Na festa, estava tudo muito bem, fiquei feliz de encontrar minha namorada, minha família, achei que estava praticamente curado. Na segunda-feira, a Ana, minha orientadora, fez a reunião semanal individual comigo. — Como você está se sentindo, Luiz Fernando? — perguntou, maternal como sempre. — Estou ótimo! Acho que superei meu problema com as drogas! — Aham… — Ela anotou algumas coisas na minha ficha. — Bom, está evidente que você ainda nem chegou aqui. — Respondeu, muito séria. — Como assim? Estou aqui há uma semana! — Calma, daqui a uns dias você chega — concluiu, com um sorriso enigmático. Realmente, eu havia aterrissado, mas estava longe do desembarque. Isso me deixou um pouco irritado. Situação parecida com quando estamos no terminal de cargas e a bagagem não aparece.

Calma, vai ficar tudo bem

Uma vez por semana, um grupo de ex-residentes se encontrava à noite na Vila Serena para o pós-tratamento. Era uma turma muito legal. Eles chegavam e me encontravam tocando violão, cantando músicas com os amigos internados. CONTOS DE THUNDER   211

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Já conhecia o André, que me apresentou o Rui, o Ivan, o Cesar, o Robertinho e o Otávio. Otávio era tipo o oráculo da turma, o orientador daquela pequena confraria. Antes mesmo de receber alta, eu já frequentava aquele grupo, todos muito sérios, companheiros de recuperação. Meus pais também começaram a frequentar um grupo de familiares na Vila. Os dois se entregaram ao tratamento de codependência com muita seriedade. Achei isso muito legal da parte deles. Quando um dependente químico passa pela doença, as pessoas mais próximas sofrem muito. O adicto usa as drogas, mas todo mundo sofre junto. Portanto, a recuperação acontece com o indivíduo e com seus familiares também. Conheci pessoas que frequentavam grupos anônimos de codependentes, tratando de si, enquanto o dependente químico estava em processo de recaída. O assunto é muito complexo e recomendo a leitura dos livros sobre os doze passos para entender melhor o que acontece. Alguns ex-residentes voltavam pra dar depoimentos aos internos. Numa dessas visitas, um sujeito que estava havia algum tempo limpo me disse que eu nunca mais poderia tocar numa banda de rock nem trabalhar na tv. Que aqueles ambientes não permitiriam que eu ficasse limpo das drogas, que eu não conseguiria segurar a barra. Fiquei bem preocupado com isso e levei o assunto pro tal grupo do Otávio. Me tranquilizaram, alertando que eu poderia vir a encontrar pessoas em recuperação que me diriam coisas que nem sempre seriam verdades absolutas. Ninguém é professor nessa matéria. Mesmo com muitos anos na programação, não significa que a pessoa esteja bem ou com a sobriedade garantida. A recuperação é diária, constante, a cada dia. De novo, só por hoje! Uma coisa eu já tinha decidido. A vida fora da clínica continuava, e levaria um tempo pra que entendesse que eu estava em recuperação, mas o mundo, não. Eu tinha um problema com drogas; o mundo, não. Depois de umas duas semanas de internação, recebi um telefonema da Biba, nossa empresária, dizendo que tinha uma data pra um show, e eu expliquei que não poderia fazê-lo porque estava internado. Depois ela me retornou dizendo que o Gigante, nosso baterista, tinha ficado muito chateado com o fato de eu não poder fazer o tal show, e que ele estava saindo da banda. Fiquei muito mal com aquilo. De novo, eu estava num propósito, mas o mundo, não. Havia uma data pré-agendada de uma apresentação no Programa H, do Luciano Huck, na Band. Mas, pelas minhas contas, eu ainda teria duas semanas 212  Lui z

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pra me preparar e ensaiar depois que recebesse alta da Vila. O Pan, nosso guitarrista, disse que iria comigo e a gente daria um jeito. Essa apresentação foi ao ar livre, num palco montado em Campos de Jordão. E foi bem estranho. Mas depois eu conto.

Minha bio

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Chegou o momento de fazer um inventário da minha vida pra compartilhar com o meu padrinho, Francisco Chagas. A Ana que escolheu esse padrinho pra mim. Ele tinha muito em comum comigo e ela achou que nos entenderíamos bem. Escrevi esse inventário, marcamos uma tarde para que eu lesse o texto pra ele. Lembro que fazia um frio absurdo e a clínica era na beira da represa de Guarapiranga, portanto, o vento era um fator que dificultava mais nossa tarefa. Depois de algumas horas, terminada minha narrativa, fomos até a churrasqueira da clínica e queimamos os papéis em que havia escrito minha história. Foi mesmo um ritual. Antes de me despedir, perguntei ao meu padrinho sobre os livros que tinha em casa, meus preferidos, dos autores beatniks. Ele me disse pra relê-los, pois teria outra perspectiva sobre aquilo tudo. Faltava uma semana pros clássicos 28 dias de internação. Já assistiram àquele filme com a Sandra Bullock, 28 dias? Pois é, eu aguardava ansiosamente pelo dia em que receberia alta. Na segunda-feira da última semana de internação, a Ana disse que eu teria que ficar por mais uma semana. Segundo ela, eu não estava pronto pra sair dali. Isso seria um problema sério, pois o custo diário de internação era muito alto e eu já havia feito um empréstimo no banco pra bancar esses custos. Mas ela foi irredutível. Meus pais aceitaram o fato melhor que eu, pediram mais um empréstimo e fiquei mais uma semana. Aquilo passou a me atormentar muito, pois ao sair de lá já teria uma dívida gigantesca. Tudo iria se resolver como num milagre, mas eu não poderia saber. Porém, não era só essa questão financeira que me incomodava. A perspectiva de voltar para Rudge Ramos, encontrar os velhos companheiros de farra, passar perto dos lugares onde pegava droga, tudo me deixava bem nervoso. Uma vez, já internado, tive uma terrível dor de dente. Só assim tive permissão de sair da clínica, direto pro consultório de um colega, sempre acompanhado de uma enfermeira. Foram ao todo três saídas, todas estranhas, visto que eu estava realmente afastado da cidade, do movimento. Esse foi um grande motivo CONTOS DE THUNDER   213

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de preocupação para mim quando recebi alta. Fiquei com medo de enfrentar o mundo de novo. Ao sair da clínica, iria todos os dias ao na e toda semana ao grupo de pós-tratamento na Vila.

Alta

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Veio, enfim, o dia de receber alta da Vila. Era outro ritual: num círculo no jardim da casa, estavam meus pais, minha namorada, a Ana, o André Peticov e o Francisco Chagas, meu padrinho no na, grande figura. Depois de todos falarem alguma coisa sobre o assunto, recebi uma chave simbólica da Vila Serena, que me daria acesso sempre que quisesse. Terminada a cerimônia, nos despedimos, entrei no carro do meu pai e fomos pra casa, em Rudge Ramos. Os primeiros dias foram bem estranhos, mas fui às reuniões de na todos os dias. O grupo de São Bernardo me recebeu muito bem, todos que estavam naquele primeiro dia em que conheci o grupo disseram que estavam torcendo por mim e aguardando meu retorno depois da internação. Uma semana depois, eu e o Pan fomos pra Campos de Jordão pra tal apresentação no Programa H. Nossa apresentação foi de puro improviso, Pan sempre muito paciente comigo. Na semana seguinte, Nasi (sempre ele) me apresentou o próximo baterista dos Devotos, Flipi Basei. A única certeza que eu tinha àquela altura era que se eu fizesse tudo certo, conforme o programa dos doze passos sugeria, ficaria tudo bem. Eu só tinha que ter muita calma.

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Limpinho e cheirosinho e zerinho em folha pra voltar pra uma TV nem tudo isso… Mas com chance de ficar milionário aos domingos. Com piscinas de bolinhas, apresentadores sub-15 e sub-80, Pato Fu, pagode, o domingão do Thunder sujeito a chuvas e secas. E cortes de cena e dos dedos no ventilador. Ele o liga e não joga só dejetos nele. Banda na rua, mais uma temporada, novos personagens. Corpo malhado e corrida pelas ruas. NA na veia. Um exemplo da hora H para brilhar no Luciano Huck. Qualquer televisão ele faz. Nem todos os programas são liberados para maiores. Mas tem sempre um CEP que ele sabe de cor.

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PERDIDO NA TARDE, PERDIDO NA NOITE, PERDIDO NA SELVA

A sincronia que aconteceu quando saí da clínica em 1997 foi impressionante. Depois de duas semanas, recebi o recado, por alguém da mtv, acho que o diretor Cacá Marcondes, que eu estava sendo procurado para um projeto de tv. Passaram o telefone da minha casa e marcaram uma reunião pra discutir a proposta. Essa reunião foi num prédio na avenida Juscelino Kubitschek, na cobertura, pra ser mais preciso. Fui efusivamente recebido por Homero Salles, que havia dirigido o Gugu Liberato no sbt. Lembram das minhas participações no Programa de Vídeo e Passa ou Repassa? Então, foi o Homero quem os dirigira. Ele tinha ficado bem impressionado com a minha performance e lembrou dessas participações em que me diverti tanto. Depois de várias risadas, ele me disse que estava envolvido num projeto gigantesco que ocuparia as tardes de domingo da Rede Manchete. Entre os apresentadores, estaria J. Silvestre, o primeiro superapresentador da tv brasileira, que esteve à frente dos programas Esta é Sua Vida e O Céu é o Limite nos anos 1950. O cara era uma lenda. Então, a ideia era que tivessem três faixas de público diferentes no domingo. A primeira, infantil; a segunda, para os jovens; a terceira, para a família em geral. Na verdade, acho que isso foi o embrião da Rede tv! Foi nesse projeto que Amilcare Dallevo e Marcelo de Carvalho Fragali, sócios do Teletv, se colocaram como produtores e, posteriormente, donos de uma emissora de televisão. Homero me explicou que queria me colocar na faixa jovem, dada a minha interação com o público na mtv e na Rede Globo. Achei a ideia de ocupar todo domingo com um programa um tanto ambiciosa, mas ele devia saber o que CONTOS DE THUNDER   217

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estava fazendo. Foi assim que me chamaram para o Domingo Milionário, um programa para toda família brasileira. Saí dali pensando nas possibilidades, na perspectiva de fazer um programa ainda mais popular do que eu havia feito na Globo… E por que não? Era um novo desafio, sem dúvida! O próximo passo seria entender a coisa toda, pensar numa proposta salarial, me preparar pra ocupar um lugar na mídia, levando em consideração que não poderia me pôr em risco. Mas, em primeiro lugar, acima de tudo: a sobriedade. Nem preciso dizer que as reuniões diárias no na reforçavam esse aspecto. Os encontros semanais na Vila, com aquele grupo firmeza, me deixavam mais convicto da primeira necessidade: ficar limpo, permanecer alerta! Ir ao na passou a ser agradável, encontrar os amigos que fiz ali, ouvir sobre as desgraças e posteriores conquistas de cada um. Aos poucos, eles passaram a ser os meus amigos mais próximos. Eu queria levar a mensagem de que era possível ficar limpo, livrar-se do vício das drogas, tentar ajudar quem estivesse na situação desesperadora em que eu me encontrava pouco mais de um mês antes. Me precipitei em várias ocasiões, claro. Houve momentos em que me expus demais. Muitas vezes, o interesse da mídia é de falar das loucuras, e eu queria falar da recuperação, do tratamento. Mas me joguei no programa de doze passos. Enquanto isso, eu tinha que remontar a banda. Nasi me apresentou o Flipi, bom baterista. E tinha que ser mesmo, porque depois de Victor Leite e Gigante Brazil, eu não poderia tocar com qualquer batedor de tambores. Começamos a ensaiar num estúdio em Rudge Ramos, eu, Pan e Flipi. Flipi estava duro e vinha de ônibus ou de carona com seu pai até a minha casa, entrávamos no Galaxão e íamos pra lá. Os estúdios de ensaio dessa época eram, na grande maioria, muito ruins. A gente fazia milagres contornando os problemas com o equipamento. Em pouco tempo, estávamos prontos pra gravar uma nova demo. Chamei o Nasi pra produzir com a gente. Lembro que gravamos três faixas, uma era uma releitura de “John” da banda Os Mulheres Negras, a outra era uma versão rockabilly de “My Bonnie”, que os Beatles gravaram com o Tony Sheridan no começo da carreira, um clássico maravilhoso que os Devotos já tocavam bastante. A terceira era um blues psychofreak nosso com o sugestivo nome de “Estupenda gulosa”. Gravamos a tal demo, mas não terminamos as gravações de vozes de “John”. Eu queria fazer os backing vocals de resposta, mas Nasi achava que não era necessário e ficou por isso 218  Lui z

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mesmo. Tenho o cd dessa demo até hoje, e a versão de “My Bonnie” ficou realmente espetacular!

Animador de tudo

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Para ir na direção oposta ao que estava acostumado, eu aceitava qualquer convite de festas e programas de tv. Lembro de uma dessas festas, numa mansão no Morumbi, organizada pelo Luciano Huck. Vesti meu terno novo e apareci com o Pan. Luciano me recebeu, me deu um abraço, me felicitou pela sobriedade, não entendi como ele estava sabendo de tudo. Foi tão estranho que não fiquei muito tempo ali. A inadequação ao ambiente e a empolgação com as nossas gravações me tiraram de lá rapidinho. Depois, quebrei meu anonimato indo ao Programa H, que ele apresentava na Band, pra falar de dependência química. Levei o John Burns, um dos fundadores da Vila Serena, comigo, afinal ele era o especialista. John era uma grande figura, ex-capelão da Marinha inglesa, veio para o Brasil e, não sei como, conheceu o aa, se especializou no assunto e montou a Vila. Quando Eric Clapton vinha ao Brasil, a primeira coisa que ele providenciava era um encontro com o John. Clapton já estava limpo havia um bom tempo. Mas quebrar o seu anonimato na tv era perigoso. Numa recaída, você poderia comprometer a imagem dos doze passos. Mas, na minha cabeça, como todos sabiam que eu era doidão, era melhor que soubessem que eu estava sóbrio e feliz com isso. Tanto estava que, um dia, no intervalo de reunião no grupo do Sumaré, encontrei meu antigo traficante e amigo, ou vice-versa. Ele chegou pra mim: — E aí, mano, tudo bem? — Poxa, cara, agora está tudo bem. Eu conheci o na e estou limpo há dois meses. — Ah, conheço o na. O pessoal sempre acaba me procurando uma hora ou outra. — Bem, eu estou bem tranquilo. Espero que a gente se veja mais socialmente. — Sim, mas seria bom você me pagar o que deve. — Eu estou te devendo alguma coisa? — Sim, a última vez que te servi você falou que pagaria depois… — Putz, desculpe. Quanto é? Te pago, claro. CONTOS DE THUNDER   219

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— É bastante. — Vou sacar essa grana e te ligo pra gente se encontrar, o.k.? — Claro, você tem crédito na firma. Você sabe que eu gosto muito de você. — Sim, deixa comigo. Te ligo amanhã. No dia seguinte, no grupo da Vila, tomei uma sova de todos. — Como você fica falando com traficante? — Mas ele era meu amigo… — Não, ele era seu inimigo! — Não, ele até me regulava quando eu queria exagerar. — Ele queria manter o cliente vivo. — Não acho isso. — Não importa. Você não vai se encontrar com ele de novo. Liga e pede o número da conta e deposita. — Poxa, mas não acho que eu esteja em perigo desse jeito. — Não discute com a gente. Quer ficar limpo? — Claro que sim. — Então, não se expõe ao perigo. Nem discuti mais. Fiz conforme me falaram na Vila. Se o objetivo era me apavorar, conseguiram. Paulo Lima ficou sabendo da minha internação e me chamou para uma conversa na sua casa e propôs uma entrevista grande na revista Trip. Eu já havia passado pela revista nas “Páginas Negras”, tinha participado da Trip College, achei que seria legal falar com os leitores de novo. No fim das contas, a entrevista girou muito mais em torno dos horrores da adicção que das alegrias da recuperação. Paulo fazia parte da direção editorial do Programa H, do Huck. Acho que foi assim que o apresentador ficou sabendo de tudo, antes mesmo de eu ter saído da clínica. Seria assim na maioria das entrevistas que concedi nesse período. Até a produção do Fausto Silva me chamou para o seu programa. O assunto foi abordado da mesma forma. Naqueles tempos, o uso de drogas era um tabu muito maior. Só vi boa intenção nisso tudo.

Virou Manchete Vieram as primeiras reuniões sobre o programa que Homero Salles me convidou para apresentar e as negociações de contrato. Pela primeira vez, contratei 220  Lui z

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um bom advogado, doutor Marcelo, pra me ajudar nisso. Um cara sério, mas com um passado muito louco. Ele vendia sanduíches na praia pra ajudar nos custeios dos estudos da faculdade de direito e me disse que conhecia o Fernando Costa Netto, editor do Notícias Populares e ex-revista Trip e Venice Mag, dos tempos do surf no litoral norte paulista. Fui ao escritório dele, conversamos e acertamos tudo. Acompanhei de perto essas negociações, era tudo novidade pra mim. Na mtv, eu assinei e pronto. Na Globo, nem li o contrato. Achei que era hora de ter uma assistência profissional nessa área. Chegamos a um acordo com os contratantes e eu estava pronto pra começar. A novidade era que eu dividiria o programa com um cantor romântico popular chamado Marcelo Augusto. Eu já tinha ouvido falar dele, mas no âmbito musical popular mesmo. Lançado pelo Gugu, Marcelo devia ter o aval do Homero, claro. A ideia de juntar um jovem careta a um roqueiro maluco não era das mais esperadas, mas tive a impressão de que daria certo quando nos conhecemos na sede da Rede Manchete, ele foi muito simpático. Estreamos em 19 de outubro de 1997. Na faixa infantil, tinha a dupla de crianças Isabella Veiga, com dez anos na época, e Luiz Bacci, que tinha treze anos e, hoje, apresenta um desses programas policiais ao estilo Datena, na Record. Eu e o Marcelo fazíamos o Perdidos na Tarde e depois entrava J. Silvestre acompanhado por Nana Gouvêa, sua assistente de palco, finalizando o Domingo Milionário. Era a época do “0900” — o Teletv realizava sorteios e vendas por meio desse prefixo de telefone, tendo o custo de três reais a ligação —, e o Perdidos na Tarde fazia merchandisings dessa modalidade de sorteio durante o programa. A gente sorteava um jipe Suzuki branco conversível, e uma das garotas-propaganda da Suzuki era a Ellen Roche, jovenzinha, sempre acompanhada pela mãe muito de perto. Ainda tinha o prêmio máximo de 1 milhão de reais em barras de ouro! O máximo! Havia todo um departamento pra cuidar do programa. Mas não era pra menos: um show de variedades necessitava de uma equipe grande. Destaco a Rose, produtora que cuidou de mim nas duas aparições no Gugu anos antes, que confessou ser contra a minha contratação. Claro, imagino o trabalhão que dei naquela época! Ela veria que dessa vez as coisas estavam bem diferentes. Outro produtor era Alan Rapp, que depois veio a ser diretor do Pânico. Tinha o Marcão, que bolava as brincadeiras loucas e produzia as matérias que gravávamos em externas. Homero era o capitão, que comandava o programa ligado em CONTOS DE THUNDER   221

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pelo menos quatro telas: uma transmitindo o Ratinho Show na Record; uma o Domingo Legal, do Gugu, no sbt; outra o Domingão do Faustão na Globo e outra com a tela do minuto a minuto de audiência do Ibope. Tudo girava em torno da audiência imediata, uma loucura! A televisão se rendia de vez aos índices de audiência. Mais aos índices que à audiência, infelizmente. Eu e o Marcelo tínhamos, cada um, duas assistentes de palco. As do Marcelo eram patricinhas, mocinhas fofas, frequentadoras de shopping center. As minhas eram loucas, vestidas como eletropunks, agressivas, frequentadoras de clubes de rock. Juliana e Daniela fizeram uma dupla sensacional. Além de grandes parceiras, se tornaram minhas aliadas durante todo o período que o programa foi ao ar. A Dani já havia trabalhado comigo na mtv no Contos de Thunder, em 1996, fazendo a personagem da prima Loreta, e se tornou minha amiga desde então. Quando o Homero me pediu indicações pra assistentes de palco, ela foi a primeira pessoa que me veio à cabeça. As meninas do Marcelo entravam lindas, floridas, com trajes de veraneio. As minhas entravam de maca (isso aconteceu mesmo!), com olheiras, mal-encaradas, vestidas em trajes de couro preto. Eu achava aquilo ótimo! Juliana me atualizava sobre as novidades musicais, ela me apresentou vários álbuns de música eletrônica. Lembro de ter ido com a Ju a uma loja de discos e lá ela me recomendou a banda Cake, que adoro até hoje, graças a ela. A coincidência viria um ano depois, quando nasceram as gêmeas da minha irmã, batizadas de Julia e Daniela.

Tudo pela audiência

A estreia foi bem-sucedida, o programa ficou no ar do meio-dia às seis da tarde. O Marcelo e eu apresentávamos a partir das duas da tarde, durante duas horas. Conseguimos bater o Faustão e o Gugu, um absurdo! Isso, pra todos, era muito além da expectativa. O problema era brigar com os dois e com o Ratinho, na Record, todos os domingos. A luta era feroz! Mas essa obsessão era do Homero. Eu só queria, de vez em quando, levar uma banda legal no meio daquela fuzarca. Sugeri a banda Os Ostras, que tinha o Clayton Martin na bateria e fazia uma surf music bacana. Eles foram. Depois, sugeri e pressionei pelo Pato Fu. Eles estavam em ascendência e eram meus amigos. Tínhamos morado no mesmo hotel no Rio, o Atlântico Copa, e ficamos próximos. Eles haviam lançado 222  Lui z

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o disco Tem mas acabou, em 1996, e estavam preparando o disco seguinte, Televisão de cachorro. — Homero, vamos trazer o Pato Fu? — Quem, Thunder? — Pato Fu, uma banda muito legal. — Nunca ouvi falar. Não vai rolar, não é popular. — Homero, o Pato Fu é evidência na mtv. Eles são bárbaros! — Tá bom… A gente dá um jeito! Chegou o dia de eles se apresentarem no programa, eu estava felizão de tê-los ali e ansioso pra que todos ouvissem, mesmo que em playback, os meus amigos. Começou o programa e vieram as atrações bizarras de costume: a piscininha com as garotas em microbiquínis lutando com algum ator de novela, o sujeito que fazia bolinhas de sabão com palitos de dente nas costas etc. E nada de Pato Fu. Chegou uma hora que fui até o Homero e disse: — Cara, cadê o Pato Fu? — Thunder, as meninas estão lutando no gel com aquele ator e estamos em segundo lugar [na audiência, medida a cada minuto]. — Tá, mas que horas entra o Pato Fu? — Se depender do Ibope, eles nem entram. — Homero, se eles não entrarem eu vou embora agora! — Porra, Thunder… Marcão! Chama o Fu aí… Eles entraram. O ibope caiu. E o Homero ficava apontando os números na tela pra mim. Realmente, os quadros com as meninas na piscina de bolinhas ou lutando no gel faziam muito sucesso. Tinha momentos em que era possível até ver os piercings nas partes pudendas delas, tudo muito de acordo com “um programa para a família brasileira”. Mesmo assim, eles tentavam me agradar de alguma forma. Pensavam em quadros e reportagens que achavam que eu iria curtir. — Thunder, semana que vem vai ter um lance que você vai adorar! — disse Marcão, empolgado. — Piercing ao vivo! Eu soube que você já fez isso na mtv, né? — Fiz uma tatuagem. Você não acha meio estranho isso na tarde de domingo? — Nada! Vai ser um estouro! Foi mesmo. E teve aquele lance de pendurar a pessoa por meio de ganchos presos na pele e tal. Tudo pelo ibope! Depois, veio a Convenção Internacional CONTOS DE THUNDER   223

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de Tatuagens. Então, sugeri fazermos uma reportagem sobre o tema. Fomos pra lá e encontrei o George. Ele ainda seria convidado para voltar pros Devotos. — George, tudo bem? Faz uma tatuagem em mim agora? — Agora? Mas você escolheu o desenho? — Não… Faz um desenho livre de um baixo Rickenbacker no meu antebraço. — O.k., vamos lá! E foi assim que fiz minha segunda tatuagem na tv. Uma vez, o Marcão pediu que eu fizesse uma matéria com a “rainha do sadomasoquismo do Brasil”. Argumentei que eu não curtia essas coisas, achava meio besta, não saberia o que dizer, e ele respondeu que as pessoas não precisavam saber disso. Que merda! Nessa época eu estava morando provisoriamente num apart-hotel na Vila Madalena. Foi uma tentativa de voltar ao normal, sair da casa dos meus pais. Um dia encontrei no saguão do hotel uma grande atriz e lembrei de uma história que o Ivan Cardoso havia me relatado a respeito dela e do marido, que era outro craque das artes: — Porra, Thunder… eu tinha uma namoradinha linda e descobri que o [um grande artista que terá sua identidade preservada em nome da família brasileira…] estava comendo a menina. — Caramba! — Não tive dúvidas, segui os dois até um motel e liguei pra casa dele! — Pra quê? — Pra pedir providências, caralho! — Pra quem? — Pra esposa dele, né? — Poxa, e como foi? — Liguei e a [grande atriz que também será preservada nestas linhas, apesar do marido, que saiu delas…] atendeu. Eu disse “Dona Fulana, eu tenho uma namorada linda, sou apaixonado por ela, e seu marido está neste instante num motel com ela. Isso não está certo. O que a senhora vai fazer a respeito?”. — Você é louco! — Fiquei perplexo com o relato. — Eu era. Era louco por aquela gatinha… O Ivan é dos meus cineastas prediletos. Toda a turma dele, na verdade. Julio Bressane e Rogério Sganzerla, todos gênios! 224  Lui z

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O vermelho proibido

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Voltando ao apart-hotel, no meu quarto tinha um ventilador de teto. Acordei de manhã, pronto pra tomar um café e ir pra Manchete pra fazer o Perdidos na Tarde ao vivo, a partir das duas da tarde. Me espreguicei, me esticando em direção ao teto, e estraçalhei os dedos naquela merda de ventilador! Meus dedos sangravam, todos, pingava sangue no chão, cena de filme daqueles meus diretores maravilhosos de Contos de Thunder. Fiquei desesperado. Naquele dia, usei uns 25 Band-Aids nas duas mãos. Foi engraçado quando cheguei ao estúdio, Homero achou aquilo ótimo! Havia uma figurinista carioca que tentava adivinhar as roupas que eu gostava de usar. Não acertava uma! Tive que tomar a frente e pedir uns panos para a Drop Dead e para a Cavalera. O pessoal da Drop Dead mandou, entre outras peças, um pulôver vermelho lindo. Quando eu o vi, fiquei bem feliz. A tal figurinista entrou em pânico: — Nunca você vai usar isso no ar. Não se usa vermelho na tv. — Do que você tá falando? — Se você entrar de vermelho, o Marcelo Augusto vai entrar de quê? Cinta-liga? Fiquei imaginando a cena por um instante e respondi: — Tudo bem, eu levo pra casa e uso no dia a dia. — Você não vai usar isso! Vou devolver! — Se acalma, mulher! Já disse que vou ficar com a peça pra mim. O pessoal da Drop Dead é meu amigo. Não faz esse papelão! Eu levo pra mim. Naquela mesma tarde, o pulôver simplesmente sumiu. — Ei, cadê o pulôver vermelho? — perguntei à figurinista. — Não sei, você não estava com ele? — Não, todas as roupas ficaram aqui, com você, no camarim. — Ah, vou procurar… mas acho que sumiu. Achei aquilo de uma patifaria gigantesca. Nem falei nada pro Homero, nem pros meus amigos da Drop. Ela deve ter enfiado o pulôver no cérebro pra preencher aquele espaço vazio. Em outros tempos eu nem ligaria, mas eu estava bem sensível naquele período. Chegou o fim de ano e fizemos um programa especial, gravado numa casa de condomínio, como se estivéssemos nos divertindo com a retrospectiva. Ali percebi que eu era mesmo um peixe fora da água. Pra mim era só trabalho! Eu fazia o que me pediam e pagava as contas no final do mês. CONTOS DE THUNDER   225

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O despertar

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Com tudo à flor da pele, com frequência eu ligava pra algum amigo do na pra me acalmar. Às vezes, eu chamava algum companheiro do na pra ficar na plateia do programa. Só de ter alguém ali com o mesmo propósito já me deixava mais tranquilo. Para algumas das brincadeiras valendo grana, eu indicava os amigos que estivessem lá para participar. O Mauricinho foi um deles, o Flipi também, e ele até ganhou um dinheiro. Eu fazia o programa ao vivo e saía de lá direto pra uma reunião, eu estava todos os dias no na. Eu estava parado a mil, se é que isso é possível! Acho que o dia mais marcante do Perdidos na Tarde foi quando o Tim Maia morreu. Estávamos no ar naquele domingo e pediram pra que eu desse a notícia. Foi em 15 de março de 1998. Fiquei imensamente entristecido naquele dia. Saí de lá arrasado, chorei muito lembrando do Tim. Fiquei pensando se eu não deveria tê-lo procurado pra falar sobre recuperação. Eu só vivia isso: sobriedade o tempo todo. Demorei anos pra entender que eu tinha que cuidar de mim e deixar as pessoas viverem do jeito que elas tivessem escolhido. O primeiro grande amigo a se aproximar de mim depois da recuperação foi o George. Ele também estava propenso a dar um tempo com as loucuras. Chamei-o de volta pros Devotos na hora. Claro que ele aceitou. Isso foi muito legal! O Pan foi tocar de novo com a Vania Abreu e o George assumiu a guitarra. A gente tocou num evento do na na represa Billings, e rolou aquele momento de convidarem para o ingresso na irmandade. O Flipi se fingiu de morto, o George levantou a mão, e desde então ele tá limpo. Fiquei muito feliz com isso.

Projeto verão, projeto atleta

Comecei a frequentar uma academia. O Projeto Acqua ficava no Itaim Bibi e minha nova empresária, Lu Barbosa, tinha conseguido uma franquia. Passei a me exercitar diariamente. Eu já estava tentando aprender a jogar tênis. Tinha um professor muito legal, a cara do Romário, que me ensinou os fundamentos do tênis. Comecei a jogar quase todos os dias, cheguei a ficar tardes inteiras na quadra. No Acqua conheci o Tonhão, personal trainer da Claudia Raia, do Edson Celulari, do Luiz Fernando Guimarães, entre outros atores da Globo. Tonhão chegou pra mim um dia e disse que ia me dar aula. Tentei argumentar 226  Lui z

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que estava ali só pra me mexer um pouco. Não teve discussão, ele ficava comigo me corrigindo, fazendo a sequência de exercícios, conversávamos muito, grande figura. Nunca me cobrou nada por isso. Me contava histórias de quando ganhou o prêmio de homem mais forte do mundo, na África do Sul. Ele me acompanhou até o fechamento da academia, em 1999. Eu tinha um afilhado do na, o Renato, que começou a ir comigo também. Tonhão não teve dúvida! Dava aulas pra ele também, e por causa do seu biotipo, e a gente o apelidou de “Ossos”. Eu fumava e comia, comia e fumava. Em poucos meses, engordei uns trinta quilos. Aquilo começou a me incomodar muito. Certo dia, o Emerson, que conheci na Vila Serena, me encontrou e sugeriu que fôssemos ao Parque Ibirapuera pra dar uma corridinha na pista de jogging. Topei. Depois de um quilômetro e pouco, parei, tossindo muito, quase tive um piripaque. E foi ali, naquela curva da pista do Ibira, que parei de fumar. Joguei o maço de Marlboro no lixo e parei. Foi quando comecei a correr, a princípio de forma errada, o que me custou uma lesão por falta de alongamento. Já existia uma série de corridas organizadas pela Corpore, e me inscrevi na prova de oito quilômetros. No dia da competição, eu já tinha desenvolvido um encurtamento dos isquiotibiais, músculo da parte posterior da coxa. Depois de uns três quilômetros, a dor começou, mas resolvi terminar a prova. Foram cinco quilômetros de muita dor, e finalizei andando. Dali pra frente, minha nova obsessão passou a ser a corrida de rua. Eu fazia natação no Acqua e conheci um professor muito legal lá, o Marcos Paulo Reis. Ele dava aula de triatlo e me convidou pra treinar com sua turma na usp. Eu queria correr direito, e ele me prometeu que em dois anos eu estaria correndo uma maratona. Isso era algo quase impossível para um cara que nunca havia praticado esportes na vida. Nada como fazer a coisa certa pra derrubar estatísticas. Marcos Paulo e sua equipe fizeram um milagre comigo. Em 2001, eu já podia me chamar de maratonista! Mas depois eu conto essa parada.

Adeus, Manchete

O programa Perdidos na Tarde chegava ao fim. Na verdade, a Rede Manchete estava no fim. Tomaram a decisão de diminuir a amplitude de atuação na grade de programação e dispensaram todos os apresentadores — a dupla infantil, o J. CONTOS DE THUNDER   227

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Silvestre e sua assistente, Nana Gouvêa, eu e o Marcelo. Homero Salles e sua equipe também foram demitidos. Pro lugar dessa turma toda, eles chamaram o Sérgio Mallandro e o Otávio Mesquita. Depois eu soube, por um produtor dessa nova fase, que foi um desastre completo. A audiência despencou, a situação ficou ainda mais séria pro lado de Jaquito Bloch, o herdeiro do império de Adolpho Bloch. Até hoje não entendi direito essa coisa toda. Parecia que a Manchete caminhava voluntariamente para o precipício. Por outro lado, o projeto Domingo Milionário serviu para que os sócios Amilcare Dallevo e Marcelo Fragali percebessem que era possível comprar a Manchete e transformá-la em algo que funcionasse. E, assim, a emissora nem chegou a completar o ano de 1999, Amilcare e Marcelo a adquiriram e a transformaram em Rede tv!. Eles tinham muito dinheiro pra isso, acumularam fortunas com o Tele 900, antes de ter sido considerado irregular pela Justiça. O Amilcare tinha até uma coleção de supercarros e helicópteros. No Carnaval de 1998, eles tinham um camarote inteiro. Convidaram a todos pra passar os dias no Rio, tudo pago por eles. Fiquei num hotel cinco estrelas por todos os dias daquela festa de Momo. Teve a noite da loucura, muita bebida. E eu caretão! E, no dia seguinte, a noite da família, com a presença de todas as esposas. Nesse dia, a Nana Gouvêa desfilou, em trajes mínimos, em cima de um carro alegórico. Ao passar pela nossa frente, dançando num pole dance, gritamos pelo seu nome, ela sorrindo marota para nós. Boas lembranças. Eu tinha contrato com eles até o fim do ano. Então, fiquei aguardando alguma ideia pra continuar o trabalho e cumprir com minha parte no acordo. Enquanto isso, eu queria tocar com os Devotos, correr, ir às reuniões e viver a vida. Tudo bem careta mesmo! Mas só recentemente soube que tudo que rolou limpo entre 1997 e 98 poderia ter desandado.

Desviando da bala

Entrevistado pelo João Gordo, em 2016, em seu programa do YouTube Panelaço, soube que o Homero Salles e a Manchete haviam tido a ideia de fazer com o Gordo e comigo o Perdidos na Tarde, antes de terem acertado com o Marcelo Augusto. Ofereceram ao João um salário dez vezes maior do que recebia na mtv. Ele disse que não aceitou, porque já estava “se matando” com as drogas 228  Lui z

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com a boa grana que recebia, imagine se fosse ganhar uma fortuna e mais uma participação pelas vendas no Tele 900? E naquela época eu tinha acabado de sair da rehab. Se o João fizesse comigo o programa na Manchete, ou eu o levaria para o lado bom da força, ou ele me levaria pro inferno sem escalas. Pensando bem: ainda bem que não rolou. Foi melhor ter o Marcelo Augusto ao meu lado. Alívio back to the future que celebrei com o João ao final do seu programa no YouTube. Quando fui beber o chazinho de frutas que ele me serviu com o muffin vegano que preparou na sua cozinha, brindei: — Saúde! — Quando parei para pensar na palavra que eu tinha acabado de proferir e no que estávamos fazendo — comendo veganices saudáveis e bebendo chá —, e no que fazíamos antes, o que consumíamos nos anos 1980 e 90, não me segurei e repeti: — Saúde… quem diria… — Então caímos na risada com a produção, entre tahines e uvas-passas. Insisti com o João. — Sério, cara. Volta trinta anos! — Ia ter uísque no copo, pó, uns ácidos espalhados na mesa… Uns cogumelos, uns cracks… E nós tudo doido aqui. — Ele não se aguenta e ri de novo. — Quando que a gente iria imaginar que estaríamos trinta anos no futuro fazendo coisas de hippie… Muffin de maçã com banana?! E seguimos rindo da realidade irreal. — Nunca esqueci tudo que você fez por mim, João. Obrigado, meu velho. Escapamos das estatísticas. — Sim, amigo. Somos sobreviventes, Thunder. Eu, você e o Nasi. Sobrevivemos, João. É possível, amiguinhos.

Sóbrio e louco

Era muito confortável acordar, tomar café da manhã, ir pra quadra, jogar tênis por umas três horas, almoçar perto do apart-hotel onde morava, ir à reunião de na à tarde, e ficar até a noite com a turma de na. Eu almoçava todos os dias no restaurante America da alameda Santos, a ponto de fazerem uma reportagem a meu respeito no jornalzinho do restaurante. Lembro de ter encontrado o Frejat lá uma vez e comentado com ele que estava “só no bufê de saladas” pra manter o peso. Ele riu e mandou “25 quilos de salada, né?”. CONTOS DE THUNDER   229

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Nessa época, comecei a namorar a Rose, que foi a produtora do Perdidos na Tarde. Mas foi um lance meio estranho, não tínhamos nada em comum. A gente saía, se pegava, falava do fim da Manchete, mas não passava muito disso. Ela era uma pessoa incrível, mas eu estava completamente sóbrio — e completamente louco. Chegou um momento em que entrei em crise, certamente pela falta de perspectiva. A banda estava estagnada, fazia poucos shows. Flipi sugeriu que a gente chamasse um conhecido dele pra tocar guitarra, Gustavo X. Ele tinha feito algum sucesso com sua banda em Porto Alegre, chamada Justa Causa, que estava em hiatos, e ele veio morar em São Paulo. Nos encontramos num estúdio na Vila Mariana, tocamos algumas músicas e nos tornamos um trio mais pro punk rock. O ano de 1999 foi assim, arrastado, inquieto, meio chato. Eu saía com os amigos pra correr de kart. Muitas vezes, eu, André Peticov, Rui e Renato íamos pra um kartódromo pra gastar energia e dinheiro. A gente estava ficando bom nisso. Teve até uma vez em que levei o John Ulhoa e a Fernanda Takai, do Pato Fu, comigo pra andar de kart, ela ficou em primeiro e o John em segundo lugar. Chegaram como se fossem estreantes na pista e nos deram uma surra! Minha vida estava tão besta que senti necessidade de fazer alguma coisa fora da minha zona de conforto. Um amigo do na era paraquedista e fazia saltos em Boituva e sempre me falava disso. Na verdade, eram dois amigos e eles se organizaram pra dar aulas. Fui numa dessas aulas e fiquei apavorado com a ideia de me jogar de um avião. Tenho um medo incontrolável de altura, então essa possibilidade de saltar começou a me instigar e me assombrar ao mesmo tempo. Sonhei com isso. Veio a proposta de fazer uma reportagem pra documentar o salto. Desisti. Mas não passou nem uma semana e tomei a decisão de ir em frente. A vida estava muito besta. Eu faria um salto duplo, ou seja, o Jacaré seria o cara que acionaria o paraquedas. Foi realmente um exercício de muita confiança em outro ser humano. Subimos eu, Jacaré e Roberto, outro amigo que costumava saltar. O prefixo do avião era K-YL, ou seja, “caiu”. Aquela aeronave subiu lentamente, em círculos, até 12 mil pés. Eu estava sem óculos, pois corria o risco de perdê-los na queda. Tudo que eu via eram as janelas do avião balançando com o vento. No meio da subida, Roberto confidenciou que era melhor saltar do que arriscar um pouso naquela sucata. Àquela altura, não havia retorno. Chegamos à altitude programada, Jacaré abriu a porta do avião e o Roberto saiu e ficou pendurado do lado de fora, gritando: — Vocês primeiro! Travei e fiquei olhando o Roberto do lado de fora do avião, as nuvens abaixo da gente.

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Tive tempo de perguntar se estava tudo certo, se o Jacaré tinha certeza de que estávamos conectados um ao outro. — Eu vou contar até cinco e a gente salta, o.k.? — O.k., vamos lá! — Um, dois, três… — E ele me empurrou pra fora. Rodopiamos bastante, foi uma saída bem ruim, mas depois de uns segundos Jacaré estabilizou nossa queda. Foram 45 segundos de queda livre, eu sem conseguir respirar, tampouco entender o que estava acontecendo. De repente, o paraquedas abriu, e foi aquele tranco. Jacaré não perdeu a oportunidade: — Ufa, que bom que abriu… Nem respondi, estava petrificado de medo. Depois foi uma descida tranquila. Uma hora, ele gritou: — Luizão, segura o leme! — Não, obrigado. — Por favor, preciso da sua ajuda. Segura o leme! Ele me passou os comandos, eu segurei aquilo imaginando que alguma coisa muito errada estava acontecendo, mas na sequência ele falou: — Agora está na sua mão, pilota aí! E foi o que fiz por alguns minutos. Foi realmente alucinante. Ele retomou os controles e pousamos suavemente. Eu ainda estava em choque, parado no solo quando, bem na minha frente, surgiu o Cacá Marcondes. O mesmo Cacá Marcondes que me dirigiu no CEP MTV em 1993. Nos abraçamos, eu não conseguia dizer nada. Eu estava tão feliz de estar vivo que fiquei rindo por uns quinze minutos. Esse salto foi muito emblemático. A última vez que tinha estado com o Cacá eu me encontrava em queda livre com as drogas. E depois de uma queda livre daquelas, me deparar com ele, foi muito louco. Nos encontrarmos ali, naquele momento, foi a maior das coincidências. Eu poderia pensar que aquilo teria algum significado, alguma premonição, mas eu só consegui tirar o sorriso do rosto depois de uma hora no solo, não conseguia pensar em mais nada. Coincidência ou não, as coisas aconteceram só pra reforçar essa ideia de que foi tudo obra do destino. Cacá, queda, sobrevivência, mtv… Cacá Marcondes, antes de ser o cara que abriu as portas do céu para Thunder testar a gravidade em frenesi, foi o cara que desafiou as portas fechadas do pior momento de nosso herói. “Eu era o encarregado CONTOS DE THUNDER   231

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de ir a casa dele nas vezes em que sumia. Estava desandando muito, passava até dois dias sem dar sinal nenhum. Sua casa era perto da mtv, eu ia andando, perguntava ao porteiro, que me garantia que o Thunder estava lá, mas não atendia. Batia na porta, ameaçava chamar o chaveiro, e em uma das vezes chamei mesmo, mas ele abriu a porta antes de o cara chegar. Tinha medo de um dia chegar e ter dado alguma cagada.” Nada melhor que ser o Cacá a testemunhar Thunder de paraquedas, portanto! “Foi um dia emocionante pra mim também. Ele estava há um tempo careta, e eu saltava fazia uns três meses apenas. Ele tava bonzão, correndo, fortão, fiquei feliz pra caralho quando vi. Depois do salto, ele estava em um êxtase tão louco, foi como se tivesse tomado uma droga mesmo. Não esqueço da emoção dele. Os outros caras que estavam junto comentaram: ‘Pô, que saudade de quando saltar de paraquedas emocionava a gente assim também’, foi demais.” Simbolizou? “Muito. O Thunder tinha uma coluna numa revista e escreveu nela que eu simbolizava um monte de gente, que nos passos do na você precisa pedir desculpas para pessoas, e ele me escolheu para simbolizar as pessoas do trabalho e tal. Eu só fiquei feliz de vê-lo bem.”

Pouco tempo depois, recebi um telefonema do Zico Goes para uma festa da mtv. Fui, encontrei velhos conhecidos, me diverti e, no fim, Zico me falou: — Thunder, a mtv vai completar dez anos ano que vem. — Nossa, parece que foi ontem que tudo isso começou, né? — É, mas isso merece uma comemoração especial. Passa na mtv que eu quero falar com você. — Tá bom, passo sim. Na semana seguinte, fui até lá. Passei na Real, revi os amigos, subi até o quinto andar, olhei pra todos e entrei na sala do Zico. Depois de um papo bacana, ele me convidou pra voltar à emissora no ano seguinte pra fazer um programa comemorativo dos dez anos da mtv. Achei sensacional e topei na hora. Seria o meu segundo retorno ao lugar que tinha mudado a minha vida. Eu estava muito feliz com essa nova oportunidade.

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Avó… Tio… Pai doente no hospital. 1999 pra acabar com tudo. Devotos só por fé. Padre? Só na TV. Run, Thunder, Run! Meia maratona, maratona inteira. Mente mais sã na correria, no Narcóticos Anônimos, nas reuniões na Vila. Tempo de contar os dez anos da MTV em 2000, e de propósito mostrar ao mundo que estava no propósito, mesmo com propostas indecentes. VMB, verão na praia, Guga no auge, bug do milênio bugado, de nenhum salário a 14o no ano, a bolha da internet. Mas ela brilha e explode rápido.

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DE NOVO NA MTV OU CORRA, THUNDER! CORRA!

O ano de 1999 foi muito complicado pra mim. Eu estava desempregado. Os Devotos caminhavam lentamente no cenário underground. Meu pai foi diagnosticado com câncer. Depois de vinte dias desse diagnóstico, meu tio Juju, irmão do meu pai, faleceu, no interior de São Paulo. A gente não via o tio Juju havia muitos anos e fiquei sabendo que meu pai lhe ajudava, mandando dinheiro vez por outra. Uma semana depois do meu tio, foi a vez da minha avó paterna, vó Chiquita. Ela chegou a visitar meu pai no hospital, mas adoeceu e dias depois morreu de pneumonia. Eu e meu irmão estávamos no hospital em que estava internada quando recebemos a notícia de que ela não havia resistido. Meu pai passaria 1999 entre internações e home care. Dias após sua internação no hospital Albert Einstein, eu estava arrasado. Perdido. E saindo do hospital, dei de cara com o padre Marcelo Rossi. Ele tinha um quadro no meu programa na Manchete, o Domingo Milionário. Quando o vi, fui direto em sua direção: — Padre Marcelo… — Ia pedir uma palavra de consolo, sei lá. — Deus te abençoe, meu filho! — falou, sem nem olhar pra minha cara, parecia um robô. Ele seguiu em frente e eu fiquei ali, pensando em quantas bênçãos ele havia me concedido no ar, durante o programa. Eu só precisava de atenção. Um abraço, sei lá. Ele realmente podia estar lá por algum motivo urgente, mas naquela hora eu precisava de alguém pra me dizer que ia ficar tudo bem. Como diria Kurt Vonnegut, é assim mesmo.

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Run, Thunder! Run!

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Eu tentava descontar todas as frustrações pessoais e profissionais na corrida. Havia parado de fumar e fiz todos os meus amigos pararem também. Participei de várias corridas de rua em São Paulo. Corri a meia maratona do Rio, a volta de 105 quilômetros em Ilhabela, a volta de 150 quilômetros em Florianópolis (essas últimas, com uma equipe de jornalistas muito legais, entre eles, um futuro colega de mtv, Edu Elias). Treinava com o Marcos Paulo Reis quatro vezes por semana. Aos sábados, fazia os treinos longos na usp de doze, quinze e dezoito quilômetros. A corrida foi minha terapia por muitos anos. Quando se está treinando, a mente desliga. No final dos treinos mais longos, eu só pensava em ir pra casa, exausto. Isso me ajudou muito. Não pensava em outra coisa. Recebi um convite pra ir à mtv, no programa do João Gordo, Gordo Pop Show. Foi muito bacana, ele foi muito simpático, me elogiou no ar e em particular. Disse que eu tinha que voltar pra lá, que aquilo estava muito chato e que a emissora precisava da minha volta. Agradeci, mas não via essa possibilidade. Parecia muito distante a chance de isso acontecer.

Quem fez história na mtv

Em outubro de 1999, encontrei com o Zico Goes, diretor da casa, e ele me chamou de volta. Eu estava limpo, responsável, pontual, sedento por um programa bacana que me trouxesse de volta pra tv. Em dezembro daquele ano complicado, já tinha assinado o contrato e estávamos preparando a estreia do Tempo MTV. Eu seria dirigido pelo Daniel Benevides, com quem tinha trabalhado até 1993. Fiquei feliz com isso, pois seria a oportunidade de voltarmos em parceria, agora, em condições de fazer um grande trabalho. Sua assistente, Keka Reis, hoje autora de livros infantojuvenis, era quem cuidava do programa. Começamos a gravar ainda em dezembro, pra estrear na primeira semana de 2000. Keka era muito legal, tinha ideias ótimas, o cenário do programa era muito louco, com uma nave espacial com a qual eu fazia as viagens no tempo pra contar a história dos dez anos da mtv. Essa nave parecia um hambúrguer motorizado. Era minúscula, precisava entrar nela encolhido. Keka, na verdade, foi a primeira diretora do programa. A gente se reunia na padaria Real, do lado 236  Lui z

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da mtv, com o Benevides e ela vinha com uns quadros muito loucos. Ela ficou comigo até ser transferida pro Rio pra dirigir a Chris Nicklas no Central MTV. Foi nesse programa que eu pude rever muita gente que fez história na mtv. Lembro de alguns personagens legais que entrevistei. Marcelo D2 foi um deles. O Planet Hemp foi uma das bandas rapidamente adotadas pela emissora. Eles tinham acabado de lançar A invasão do sagaz Homem Fumaça, um disco excelente. Jorge du Peixe da Nação Zumbi também foi ao Tempo MTV, assim como o Supla (que sempre esteve presente na emissora). Chorão também esteve comigo, recordando a ascensão do Charlie Brown Jr. Conheci o Chorão durante um show com os Devotos dnsa na Baixada Santista. Ele veio trocar uma ideia depois do show e passamos um tempão falando de música e outras coisas — se é que você me entende… Ficamos mais amigos nessa época. Quando saí da clínica, em 1997, fiz um show de aniversário da rádio Brasil 2000 fm (a grande rádio roqueira e alternativa paulistana da época) numa casa noturna em São Paulo, e o Charlie Brown Jr. tocou no evento também. Eles haviam lançado o primeiro disco, Transpiração contínua prolongada, e estavam em evidência. Entre o show dos Devotos e o do cbj, nos encontramos e ele veio me dar um abraço, me felicitou por ter conseguido me livrar da cocaína. Perguntou como eu consegui, confidenciou que gostaria de ter uma chance de tentar e tal. Achei aquilo muito bacana. Não senti muita convicção nessa intenção de parar com o pó, mas percebi muita sinceridade no abraço dele. Algumas pessoas realmente ficaram felizes de eu ter conseguido superar a overdose iminente. Depois de alguns anos, apresentei o Acústico MTV — Charlie Brown Jr. A banda estava bem animada, mas todos tomaram o maior cuidado de não mostrar nada pra mim, nesse sentido. Quando ele se casou, em Santos, fui à igreja, depois à festa de casamento, no Guarujá. Fiquei na mesa da família do Marcão, grande figura, grande guitarrista. Champignon também se tornou um amigo. Luiz Duarte, como eu, sempre dizíamos que éramos irmãos de baixo e de família Duarte. Um baixista excepcional, grande figura, sempre encontrava com ele. Deu canja com os Devotos, nos encontramos na casa dele, acompanhei o projeto “Revolucionários”, depois a banda com o Peu e o Junior Lima. Quando ele assumiu os vocais do Charlie Brown, encontrei com ele na Real. Trocamos uma ideia sobre isso, ele me pareceu feliz de estar de volta. A morte do Chorão e a do Champignon, ambas em 2013, me atingiram furiosamente. Fiquei muito triste, muito mesmo. Eram meus amigos, todos sempre muito queridos. CONTOS DE THUNDER   237

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“Eu sou terrível”

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Tempo MTV foi um programa muito legal. Eu sempre dizia que no período anterior eu havia “hibernado”. O que não deixava de ser uma verdade. Quando me falaram que a Rita Lee topou participar do Tempo MTV, eu quase fiquei nervoso. Quase. Teria ficado histérico, se não me lembrasse de como nos conhecemos em 1990, durante as gravações do TVLeezão, o genial programa dela na emissora. A Rita sempre foi incrível comigo, portanto, não havia motivos pra ficar apreensivo. Chegaram Rita Lee e Roberto de Carvalho, puro amor em dupla, e foram maravilhosos. Lembramos o programa mais legal que a mtv Brasil já havia feito (o dela), recordamos algumas histórias de bastidores — em off, lembrei o último episódio do TVLeezão que nunca foi gravado, rimos muito daquilo —, o Acústico MTV, cujo baterista era Paulo Zinner. Ele viria a tocar comigo, dois anos depois. Ele é baterista dos Devotos dnsa até hoje. Também em 2000, Rita e Roberto haviam acabado de lançar o álbum 3001 e fariam o show de lançamento em São Paulo. Roberto, sem mais nem menos, sugeriu que eu fosse convidado. Aceitei, claro. Mas a conversa evoluiu para que eu cantasse uma música com eles. Aí, sim, fiquei histérico! Como assim? Eu cantando com a Rita? Terminamos a gravação, nos despedimos, o produtor pegou meu número de celular, disse que me ligaria pra acertar os detalhes. Passados alguns dias, o cara me ligou mesmo pra confirmar tudo. Fiquei completamente louco! Rita sugeriu que fizéssemos um sucesso de Roberto Carlos, “Eu sou terrível”. Agradeci a escolha e passei os dias seguintes decorando a letra. No dia do show, entendi a magnitude da Rita. Pra começar pela banda, com o maior baixista do rock ‘n’ roll nacional, Lee Marcucci, e todos os outros músicos incríveis que acompanhavam a rainha do rock. O Beto já estava na banda e fazia duelos com o Roberto, os tecladistas eram incríveis; a banda, gigante. Tinha um camarim pra mim e outro pra Zélia Duncan, que também cantaria uma música com ela. Passamos o som, senti certa dificuldade, pois todos usavam earphones, um recurso que elimina os retornos de voz e amplificadores no palco. O cenário era do Gringo Cardia e apresentava uns alto-falantes gigantescos no palco. Antes do show, faltando minutos pra entrar no palco, Rita reuniu toda a banda, eu e a Zélia também, pra um ritual de concentração. Admito que isso me deixou mais calmo. Tanto que na hora que entrei pra cantar estava muito à vontade. Mas tão à vontade que, durante o solo do Roberto de Carvalho, peguei 238  Lui z

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a Rita no colo e fiquei rodando e dançando com ela! Foi espetacular, obrigado Rita! Esse foi um momento muito especial pra mim. Inesquecível. Passado algum tempo, recebi outro telefonema do produtor da Rita. Haveria um show na praça da Paz, no Parque Ibirapuera, e a Rita pediu pra que eu fosse de novo. — Claro que sim! Que orgulho! Estarei lá! — Mas, por favor, não faz malabarismo com ela dessa vez. — Ah, tudo bem, desculpe. Na passagem de som, pedi desculpas a ela pela empolgação da última vez e garanti que ficaria tranquilinho no palco… Ela disse que muito pelo contrário, que a dancinha e o passeio no colo foram sensacionais, e que a gente repetisse tudo. Com uma plateia de dezenas de milhares de pessoas, nossa performance arrancou aplausos efusivos da massa. Que barato! No camarim, contei pra ela que meu pai havia conhecido o pai dela, dentista. Meu pai era propagandista farmacêutico nos anos 1960 e eles se viam sempre. Ela perguntou do meu pai, que já estava muito mal no Albert Einstein, me abraçou e foi muito bonito receber esse carinho dela. Sabe aqueles momentos especiais que a gente guarda pra sempre? Esse foi um deles.

Meu pai

Meu pai estava muito debilitado no hospital e minha mãe ficava com ele lá. Meu irmão passou a tomar as decisões familiares. Ele que cuidou da burocracia para o sepultamento da minha avó. Lembro que passei no hospital e levei meu pai ao cemitério. Ele já estava muito mal, mas fez questão de ir. O nível de estresse era muito alto. Eu acho que a família adoeceu junto. Meu pai sempre foi o pilar da família. Estávamos todos muito abalados e sensíveis. Aluguei uma casa no bairro do Planalto Paulista e me mudei pra lá. Minha irmã tinha as gêmeas Julia e Daniela, mas o casamento não estava nada bem. Ela conheceu o Fabio e eles se apaixonaram. Ainda bem, porque ele salvou a vida da minha irmã e das meninas também. Foi muito tensa a separação da minha irmã. Mas eles conseguiram superar aquilo tudo. Lembro de ter discutido com meu irmão, ter ficado preocupado com a minha irmã, mas eu tinha que lidar com isso e com a minha sobriedade. Eu tinha CONTOS DE THUNDER   239

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que me manter limpo, sóbrio, responsável, fazer o meu trabalho, dentro do possível esquecer tantos problemas pessoais, desviar de alguns oponentes na própria mtv. Alguns ali tentaram me queimar. Um diretor armou uma reunião e combinou um horário. — Vamos nos encontrar na Real, falar sobre algumas ideias sobre o programa? — Vamos, claro! — Pode ser na segunda, tipo umas dez horas, por aí? — Sim, ótimo! Nesse dia, cheguei 10h15, não achei que a pontualidade daquele cara iria se manifestar pela primeira vez na vida. Cheguei pra tal reunião, falamos do programa e fui ao estúdio pra gravar. No dia seguinte, Zico me chamou para uma reunião. Reunião no nono andar é sempre coisa séria. Quando cheguei, ele estava muito sério mesmo. Disse que o “antigo Thunder” não tinha mais vez ali. Que meus atrasos não seriam tolerados. Argumentei que nunca mais havia me atrasado pra uma gravação. Daí ele entregou o tal diretor, dizendo que ele havia marcado uma reunião importante comigo e eu havia me atrasado. Eu podia ter explicado exatamente como a coisa toda tinha acontecido, que não se tratava de reunião importante (nada foi relevante naquela conversa), que a tal “reunião” nem foi na mtv, que o tal diretor nunca foi um exemplo de pontualidade, aliás, ninguém na mtv era exatamente pontual. Eu sempre chegava muito antes em todas as ocasiões em que tinha algo pra fazer por lá (isso, claro, desde que havia voltado da recuperação). Mas preferi deixar quieto, engolir a calúnia e aguentar a pressão. Foi assim durante toda essa fase na mtv. Algumas pessoas sempre me testando, desconfiadas, prontas para apontar um deslize meu.

No propósito

Eu estava sempre acompanhado de alguém ligado à recuperação. As reuniões do na ficaram mais esparsas nessa época, mas as da Vila eram semanais e imperdíveis, e toda vez eu levava alguém que estivesse limpo comigo. Nos shows, algumas gravações, o Renato era quem mais estava presente. Ele e o Emerson foram grandes amigos, chegaram a ficar no hospital com meu pai algumas vezes. A turma do na também estava sempre presente. Álvaro, Mauricinho, Renato Sintomas, Cassiano, Fernanda. Ela tinha se internado na Vila e nos 240  Lui z

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aproximamos muito. Chegamos a viajar juntos, tudo no mesmo propósito: se manter limpo! Eu ia às convenções da irmandade, me envolvia nas reuniões, era bem legal. Mais que isso, era necessário! Em 2000, também tive a honra de fazer um programa especial sobre os Beatles. Foi a primeira e única vez que pudemos fazer isso. Era o lançamento da coletânea 1 da banda e a mtv teve o aval pra utilizar as imagens. Alessandro Mello, o Lema, diretor musical, cuidou muito bem de tudo e fizemos um superespecial. Ele sabia tudo dos fab four, e eu estava prestes a montar uma banda tributo aos Beatles. Ele me deu uma coleção de cds com todas as entrevistas deles. Essa oportunidade foi única e especial. As pessoas estavam preocupadas com o bug do milênio, mas a gente estava saboreando aquele momento de poder falar de uma das maiores bandas do século. Chegando outubro de 2000, gravamos um vídeo promocional dos dez anos da mtv. Eram os vjs cantando uma música engraçada. Foi dirigido pelo Luiz Ferré, da TV Colosso, da Globo. Todos de branco, eu ao piano, Marina Person deitada sobre ele, Kid Vinil, Fabio Massari, Marcos Mion, Didi Wagner, João Gordo, uma turma legal pacas. Foi nesse dia que o Edgard Piccoli me perguntou se eu conseguiria ficar sem fumar um baseado para o resto da vida. Achei aquilo estranho, pois parecia incomodar mais a ele do que a mim. Respondi apenas que era “só por hoje”. Não dava para explicar o conceito no meio daquela balbúrdia. Mesmo porque ele não pareceu interessado em entender. Era importante pra mim, não necessariamente pros outros. Para não ser um martírio, o lance era não usar nada naquele dia. No dia seguinte, não usar de novo e assim a coisa acontecia. Muito simples, na verdade. Para isso, meus novos hábitos eram importantíssimos. Eu havia parado de fumar cigarro, corria sempre, dormia cedo, evitava baladas, nos shows eu tocava e ia pra casa. Cazé tinha ido pra Rede Globo. Em 1999, ele apresentava o VJ por um Dia, programa que fazia testes para vj entre os inscritos da audiência. Até hoje não sei quem teve essa ideia genial. Mas, no Verão MTV de 1998, Cazé fez essa brincadeira na praia. Foi um sucesso e, em 1999, aquela brincadeira virou um programa. Todo mundo queria ser vj. Não só o público, alguns funcionários da mtv também queriam. Muitos faziam testes, mas a maioria foi reprovada. Alguns até conseguiram, caso do André Vasco, que era estagiário, aproveitou a ausência de um vj e entrou no ar. Acabou ficando e se tornou apresentador na mtv e depois em outras emissoras. Quando o Cazé se transferiu pra Globo, CONTOS DE THUNDER   241

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alguém teria que ficar no seu lugar. Zico e Cris Lobo pediram que eu fizesse um piloto. Outros candidatos de peso, como André Abujamra e Caco Galhardo, também fizeram testes. Mas fui bem e assumi o comando do programa. Eu apresentava e Levy, que havia vencido na edição do programa do ano anterior, passou a ser repórter da atração. Max Fivelinha era um dos jurados fixos. Eu era dirigido pelo Fepa Soares e a gente se entendia muito bem. Essa fórmula fez tanto sucesso que continuei a utilizá-la nas edições de verão e nas ações off-air, a partir de 2003. Sempre tinha um jurado convidado, e um dos mais loucos foi o Bozo doidão que tinha virado pastor. Foi um ano bem agitado! Levy era uma figura sensacional! Conquistou a todos, se destacou muito, inclusive apresentando Levy e os Jogos Olímpicos, em 2000. Todos os vjs participaram dessas olimpíadas e, para surpresa geral, me dei bem nas provas de atletismo e tênis, claro! A gente gravou em academias e no Parque Ibirapuera. Eu treinava muito, então, dei verdadeiras surras nas provas em que participei. No Verão 2000, dividi o quarto com o Levy. Ninguém entendia nada, porque eu terminava as gravações e saía pra correr na praia. Eu ficava mais de uma hora treinando. Cheguei a ser motivo de piada entre os sedentários. Zé Antonio Algodoal, um dos diretores da emissora, passou a me chamar de vj Forrest Gump. Mas o Levy sempre me incentivava. Ele não usava nenhuma droga, pelo contrário. Então, nos demos muito bem. Curioso que fomos dispensados da função de vj no mesmo dia, um depois do outro, em 2002 — eu ainda continuaria na emissora de música, mas em outros programas. Eu fazia tudo o que me pediam, inclusive reportagens malucas. Talvez a mais louca foi comigo e o Ronaldo Paixão. Ele era produtor do programa da Soninha, mas foi meu produtor nessa matéria pro Jornal da MTV. A pauta era ir à academia de luta livre do Trovão, famoso no mundo do telecatch. Eu fiquei meio temeroso de como aquilo se desenrolaria e já fui bolando uma estratégia. Eu lutaria com o Trovão, mas meu personagem seria “O Satânico Dr. Thunder” e seu fiel assistente, “Tosco”. Reminiscências de Contos de Thunder, certamente! Ronaldo topou ser o tal assistente e foi sensacional. Ele aprendeu a “apanhar” sem dor, a dar saltos e tudo. Eu não precisei disso, pois durante a luta eu chamava o Tosco, que tomava uns sopapos do Trovão, enquanto eu sorrateiramente invadia o ringue com uma seringa gigante. Tapa pra lá, salto pra cá, entrei, apliquei uma dose cavalar fictícia no pescoço do Trovão e ganhei a luta. Os Devotos estavam ensaiando, mas eu queria gravar algo com a nova formação. Gravamos uma demo no estúdio do Kuaker. A princípio, faríamos uma 242  Lui z

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versão que um conhecido tinha feito da “Surfin’ usa”, dos Beach Boys. Um dia antes de gravar, o sujeito disse que não queria mais que a gente gravasse, justificando que era a melhor coisa que ele tinha feito e queria guardar pra ele. Depois de explicar que havíamos ensaiado, arranjado e iríamos pro estúdio no dia seguinte, passei-lhe uma descompostura, fui pra casa e compus “Motoboy”, inspirado no clássico do Kid Vinil “Eu sou boy”, da banda Magazine. Essa demo foi a única coisa que fiz em 2000 com a banda. Fizemos uns shows em bueiros undergrounds de São Paulo, mas meus companheiros não ajudavam em nada no quesito sobriedade. Portanto, eu evitava muita proximidade. Isso só mudou no final de 2001, quando veio uma proposta de gravar um disco por uma gravadora. Mas isso não impediu de montar uma banda com o Lema e o Kiko Costato, também produtor da mtv. Vôngole durou uns meses, Kiko era o “baterista Tsé-tsé”, pois dormia durante as músicas. Lema tocava uma guitarra medíocre, portanto, era só para divertir mesmo. Ana Manini, que passou a dirigir o Tempo MTV quando a Keka foi pro Rio, também tinha uma banda: Madruga Fucked Up, com ela, Kiko, Ieié — irmão do Cacá Marcondes — e Ronaldo. Fizemos uns shows juntos com os Devotos dnsa. Era divertido, principalmente porque a Joana Ceccato, lindíssima, ia aos shows e ficava me provocando, jogando a calcinha na minha cara, literalmente! Joana, sua linda! Te amo pra sempre.

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No Video Music Brasil de 2000, eu entrei com a Astrid pra fazer um link com o Gustavo Kuerten direto de Nova York, na melhor temporada da carreira do tenista. Guga estava no auge e eu sempre fui fã dele. Já havia declarado meu apreço em algumas colunas da revista Venice Mag, que entreguei pessoalmente na casa dele, em Florianópolis. Também teve uma das edições do Verão MTV, em Floripa, em que rolou um festival de música e eu estava no palco assistindo ao show do Lulu Santos. Guga chegou, me deu um abraço e entrou no palco para cantar “Como uma onda”. Fiquei esperando ele pegar o Lulu no colo e rodar, mas não rolou. Lulu não é Rita Lee, Guga não é Thunder. No geral, acho que consegui superar as barreiras que apareceram em 2000, e o ano de 2001 prometia um avanço. No final do ano, André Mantovani, presidente da mtv, estava no microfone, anunciando os bons ventos que sopravam CONTOS DE THUNDER   243

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nas velas da empresa. A situação estava tão boa que haveria até 14o salário pra todos! Depois dessa notícia, dada no Museu de Arte Moderna, com brunch, pompa e circunstância, Flavinha Boggio se levantou do meio da plateia do auditório e perguntou: — Tá, mas quando vão trocar as cadeiras dos estagiários? A genial Flavinha, que ficaria famosa por fazer a voz da Funérea, personagem de desenho animado que virou talk show na mtv.

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Novo século, milênio, velho verão vendo coisas estranhas. Não se vendo mais. E querendo ver o que podia do pai até janeiro de 2001… Só. Didi pra levantar o astral no Supernova. Tiozão de gêmeas. Pela TV, vendo as Torres do 11 de Setembro, pouco antes de correr por Nova York a maratona com a poeira ainda no chão para ser levantada e reerguida. Como ele. Contra tudo e contra quem só quer derrubar a casa.

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19. SABOTAGEM, EU QUERO QUE VOCÊ SE… TOP TOP TOP UH!*

Na mtv, o ano sempre começava com a edição do verão. Em 2001 não foi diferente. Mas, pra mim, foi estranho. Fomos pra várias praias: Ubatuba (sp), Lauro de Freitas (ba), Jurerê Internacional (sc) e Torres (rs). Pelo menos eu acho que eram essas as praias ocupadas pela mtv naquele verão. Fui, fiz minha parte, bati o ponto, mas eu estava mesmo com a cabeça em outro lugar. Meu pai estava cada vez pior, ainda internado no hospital Albert Einstein, sofrendo com a luta contra o câncer. Ele resistiu até 16 de janeiro de 2001. Fiquei arrasado. E só. Muito sozinho. Perder o pai foi um dos maiores baques da vida de Thunder. É para todo filho, mas ele, lembra Adriana, sofreu mais por um motivo. “Meu irmão não lida bem com despedidas. Foi um câncer cuja degradação foi visível, e para ele foi muito complicado. Ele se afastou do processo, não teve estrutura.” Reações absolutamente humanas e compreensíveis, mas que causam seus efeitos colaterais. “A gente ficou mais ou menos um ano sem se falar muito depois que nosso pai morreu, mas era só um período de dor em que ele precisava ficar longe, ou então também um período de um pouco de culpa por ele ter se ausentado do processo final da vida do nosso pai. Não sei.” Todo mundo enfraquece numas horas, mas se agiganta noutras. Na memória da irmã Adriana, Thunder foi fundamental na fase de sua separação, deu toda a força de um irmão. Mas as participações

* Trecho de “Top Top” dos Mutantes. CONTOS DE THUNDER   247

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de Thunder nos casamentos da irmã não são apenas no campo da proteção — passam, pois, pelo humor. “No meu primeiro casamento, ele era meu padrinho, mas simplesmente não apareceu! Não chegou ao casamento. Quer dizer, chegou, mas às duas da manhã, já na festa, e sem a roupa adequada. A madrinha acabou sendo a namorada dele, como era o previsto, e o padrinho substituto foi um amigo que coloquei no improviso. Casei preocupada com ele, por não saber onde ele estava, pensando no que tinha acontecido. No meu segundo casamento, aí sim, ele foi padrinho e estava lá”, recorda a irmã, que se diverte, também, quando lembra da cena enérgica de Thunder com a família do segundo noivo, cuja mãe estava distribuindo os presentes antes da hora. No fim das contas, a troca entre esses dois não tem fim, e é assim que gostam de viver. “Quando acabou a internação dele, eu prometi a ele que dali em diante eu não vivia mais a vida dele e não faria mais o que fiz naquele tempo todo. Mas é claro que ainda hoje, quando o cachorro espirra, é pra mim que ele telefona.”

Os amigos de na se solidarizaram, a família estava presente no velório, mas não recebi nenhum telefonema da mtv. De ninguém. Nenhuma pessoa sequer mencionou o fato quando voltei das férias. Percebi que as relações eram agora apenas profissionais. As amizades eram superficiais. Acho que muitas vezes eu também não facilitei a aproximação. Passei pelo luto sem ninguém comentar o acontecido. Resolvi ser forte e encarar o ano com coragem. Pronto para as atribuições que me dariam. E elas vieram. Eu faria o programa Supernova com a Didi Wagner. Um programa de segunda a sexta, ao vivo, às nove da noite. Todos os lançamentos seriam feitos nesse programa, além das notícias e entrevistas internacionais. Escolheram o Zé Antonio pra dirigir. Na verdade, ele havia dirigido uma versão menor desse programa no ano anterior, com a Didi e o Mion. Dessa vez, haveria um estúdio grande, o estúdio S, com palco pra apresentações ao vivo. O programa Jô Soares Onze e Meia, do sbt, era gravado nesse estúdio nos anos 1990. Fiquei bem feliz com o projeto. O rock internacional dava sinais de recuperação com The Strokes, White Stripes, Kings of Leon, The Hives, Weezer. A Viviane Pari (ou Vivis), que dirigia o Disk MTV na época, me emprestou o disco verde do Weezer. Fui pro Rio de Janeiro de carro, para fazer a

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meia maratona, e levei esse cd. Ouvi o danado indo e voltando. Fiquei fã da banda. O Radiohead tinha se tornado a maior banda do rock, o Foo Fighters já era gigante. No cenário nacional, as coisas continuavam nas mesmas mãos. Charlie Brown Jr. era o topo, mas Los Hermanos tinham emergido também. Eles lançaram o disco Bloco do eu sozinho no Supernova. O Ira! recebeu o disco de ouro pelo lançamento do MTV ao Vivo, projeto que ajudei a realizar. Eu tinha certeza de que o Ira! se daria bem na mtv. Até então, a banda nunca estava por lá. Apresentei esse show, gravado no Memorial da América Latina. Fiquei bem feliz pelos amigos da banda. Ana Carolina apareceu no programa, Daniela Mercury, Barão Vermelho. Caetano Veloso foi também. Teve entrevista e show ao vivo, com as músicas do disco Noites do Norte. Ian McCulloch, da banda Echo & The Bunnymen, também deu o ar da graça. Ele passou a tarde entre o estúdio, levantando o som, e a Real, tomando todas as caipirinhas possíveis. Na hora do programa, ele estava bastante apaixonado pelo drink nacional. Seu inglês de Liverpool, somado ao fator etílico, não ajudou em nada na entrevista. Nem a Didi, que estudou nos Estados Unidos, conseguia entender o que ele falava. Mesmo assim, ele mandou algumas músicas acompanhado de um guitarrista da banda que veio com ele pra uma série de shows no Brasil.

Parceria

Minha relação com a Didi sempre foi legal. Ela se revelou uma ótima parceira no ar. A gente se entendia e respeitava o espaço um do outro. Isso é primordial numa dupla que atua no mesmo programa. Trabalhei com outras pessoas, dividindo a atenção das câmeras, mas Didi foi a melhor delas. Ela me ouvia nos intervalos, sabia da minha sobriedade e me ajudava nisso também. Acho que a Didi nunca chegou perto de um baseado. Ela me dava a maior força, inclusive quando uma fã se aproximou de mim no programa. Eu estava sozinho havia algum tempo, não tinha pressa de arranjar uma namorada. Mas apareceu essa garota, Monique, bonitinha, inteligente, que gostava de rock e não forçava a barra. A gente conversou algumas vezes e fiquei impressionado com ela. Didi logo se manifestou a favor de uma aproximação entre eu e ela. Eu só a achava um pouco jovem demais, eu tinha acabado de completar quarenta anos, mas Didi garantiu que isso não devia ser um CONTOS DE THUNDER   249

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problema. Ela aparentava ter uns 23 anos, estimativa confirmada por Didi. Mas ela sumiu. Depois me escreveu dizendo que estava na Inglaterra aperfeiçoando sua fluência na língua inglesa. Nos intervalos comerciais do programa, Didi e toda a equipe corriam pro monitor para acompanhar a primeira temporada de Casa dos Artistas, no sbt, enquanto eu ficava fuçando na internet. Foi naquela época que a Didi me ajudou a abrir minha primeira conta de e-mail. Vejam só! Dois mil e um e nem e-mail eu tinha! Eu era o bugado do milênio. “A gente teve uma dinâmica de trabalho muito prazerosa e construtiva. Nós ficamos contentes de fazer o Supernova juntos, e não havia nenhum tipo de conflito ou rivalidade, éramos tipos diferentes que se complementavam muito bem. Thunder é muito carismático, delicado e com uma alma muito sensível. Tem senso de humor muito peculiar, e um coração com a pureza de uma criança.”

No mais, minha vida era correr. Treinava para fazer a maratona de Nova York, portanto, a carga de quilometragem tinha que ser alta. Pelo menos quarenta quilômetros por semana. Cheguei a uma fase que eu corria dezoito quilômetros no sábado, mais seis no domingo, “pra soltar a musculatura”, mais oito na segunda, treino variado na terça e na quinta, fazendo por volta de dez quilômetros nesses dias. Era uma coisa de louco! Para um cara que nunca praticou nenhum esporte, a perspectiva de correr uma maratona era assustadora. Me dediquei muito pra conseguir. Comprei as passagens, reservei o mesmo hotel onde estariam o Fred, marido da Didi e o Alan Terpins, todos nessa missão da primeira maratona da vida. Às terças e quintas, eu acordava cinco e meia da manhã para treinar com o Marcos Paulo no Ibirapuera. Voltava pra casa, tomava café da manhã, dormia até as onze, acordava, almoçava e esperava a Manu, também da equipe do Marcos Paulo, pra uma hora de alongamentos radicais. Tudo bem planejado, mas eu precisava renovar meu passaporte e conseguir o visto na Embaixada norte-americana, sem os quais não sairia do Brasil. Pedi pra uma pessoa da mtv que, entre outras funções, resolvia isso pros vjs. Isso foi em julho, mais ou menos. Os treinos prosseguiam, meu trabalho também, tudo certo. Numa manhã de treinos, fiz a mesma rotina. Acordei, treinei, me alimentei e tirei a soneca pra esperar a Manu pros alongamentos. Dormi com a tv ligada e, quando acordei, no meio da manhã, percebi que tinha um filme de

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catástrofe na tela. Achei estranho, pois sempre colocava na espn, naqueles torneios de golfe, maravilhosos pra indução do sono. Mudei de canal, e o mesmo filme estava passando. Fui zapeando até perceber que não era um filme. Um avião tinha atingido uma das Torres Gêmeas em Nova York. Eu ainda estava saindo do transe, quando surgiu outro avião e atingiu a segunda torre. Entrei em choque. Fiquei na frente da tv, incrédulo, até a Manu tocar a campainha. Daí ficamos os dois assistindo àquilo sem dizer muita coisa naquele 11 de Setembro de 2001.

Tiozão

A relação com minha família tinha azedado. Depois da morte do meu pai, as coisas ficaram estranhas. Eu acompanhei o nascimento das minhas sobrinhas, Julia e da Dani, de perto. Estava bem próximo durante a gravidez da minha irmã. No dia do nascimento das gêmeas fui à Pro Matre, mesma maternidade onde eu havia nascido, na região da avenida Paulista. Lembro que meu ex-cunhado estava lá com uns amigos e eles estavam tomando uísque pra comemorar. Aquilo só me deixou mais indisposto com ele. Na verdade, nunca gostei muito dele. Quando eles se separaram, era eu que descia na portaria com minhas sobrinhas pra ele levá-las pro passeio de domingo. Eu adoro elas, desde sempre, com todo o meu coração. Ficava muito preocupado com a relação ruim que se estabeleceu após a separação dos pais. Hoje, eu fico tranquilo. São duas garotas incríveis, inteligentes, lindas, encaminhadas em suas futuras carreiras. Muito orgulho delas. Realmente, fiquei pra titio. Mas o clima ruim permaneceu entre eu e meus irmãos por mais de um ano, até que não aguentei e dei um ultimato na minha irmã. A gente se abraçou, chorou junto e ficou tudo bem. Com meu irmão demorou um pouco mais, muito mais, na verdade. Coisa de irmãos, né?

Run, Thunder, run!

Em 2001, eu estava bem isolado. Sozinho. Estava pra poucos amigos na tv, batendo mais ponto que papo. Isolado nos treinos. Só pensava em completar aquela maratona. Uma semana antes da minha viagem pra Nova York, CONTOS DE THUNDER   251

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comecei a ficar preocupado com o tal passaporte e visto. Se já não era fácil conseguir isso, depois dos atentados do 11 de Setembro ficou quase impossível. Mas a vida é mesmo muito louca. Eu tinha passagem marcada para uma quarta-feira. Na segunda-feira, a tal pessoa da mtv disse que, infelizmente, não teve tempo de ver a renovação do passaporte nem o visto. Agradeci, joguei-lhe uma praga fulminante e corri para a Polícia Federal. Na mesma segunda-feira, consegui o passaporte. Na manhã de terça, fui à Embaixada dos Estados Unidos e, após um verdadeiro show de simpatia, consegui o visto na mesma hora. Sabe aquelas coisas impossíveis? Pois é, aconteceu. Embarquei no dia seguinte, sozinho, apavorado com a perspectiva de chegar a Nova York com a missão de completar a maratona. Fiquei num hotel sensacional, o Hudson, bem próximo do Central Park. Devido aos atentados, os preços dos hotéis estavam muito baixos, senão jamais poderia ter ficado ali. Ele era antigão, mas fora reformado pelo designer Philippe Starck, tudo muito funcional, muito bonito. Comprei uma série de cds do Ben Harper e o clássico Kind of Blue, do Miles Davis. Essa foi a trilha sonora dos dias que passei lá. No dia seguinte, chegou o Fred Wagner. Ele foi o meu cicerone na cidade que ele já conhecia muito bem. Me levou a uma loja de computadores em que todos os vendedores usavam trajes e barbas judaicas. Dali, pelo correio, viria meu primeiro Mac, no ano seguinte. Depois chegaram o Alan, sua esposa e a Didi. A gente passeou pela cidade juntos, mas arrisquei uns passeios solo também. Fui à First Avenue pra comprar um violão usado. Grande erro! As lojas dali vendiam violões usados, porém vintage. Caríssimos, dedilhei algumas joias e deixei pra algum milionário. Fui à hoje extinta Virgin Records, na Times Square, e comprei uns trinta cds. Saí com o Fred pra uma corridinha de oito quilômetros no Central Park também. Foi tudo muito agradável. No dia da corrida, fomos os três de madrugada pegar os ônibus para Staten Island, onde seria a largada. Passamos por inúmeros caminhões de entulho dos destroços do World Trade Center. Já na ilha, aguardamos a largada ao lado de uns argentinos. Comecei a cantar “México lindo” do Joelho de Porco, acompanhado timidamente pelo Alan, filho do autor da música. Acho que os argentinos se sentiram ofendidos. Conseguimos detectar o mau humor deles. Mas com o Alan não tinha tempo ruim. Ele entrava no táxi no banco da frente e já ficava amigo do motorista, que em sua maioria usavam turbante indiano. Na hora da largada, teve uma esquadrilha de jatos que sobrevoou a ponte que ligava ao continente. Rudolph Giuliani, prefeito de Nova York, fez um discurso 252  Lui z

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emocionante. Muita gente ainda estava no clima dos atentados. Afinal, era 4 de novembro, menos de dois meses depois dos atentados. Tiros, e lá fomos nós. Fui muito precavido e fiquei no pelotão de trás. Claro, eu preferia ultrapassar os mais lentos do que ser atropelado pelos mais preparados. A cada milha tinha uma banda tocando, a primeira fazia uma cover de “You Really Got Me”, dos Kinks. E assim foi até a chegada. O clima estava ótimo, tipo uns dez graus, ideal pra prática da corrida. As pessoas nas calçadas lotadas nos davam muita força. Fred preparou uma camiseta com os dizeres “Say Go Thunder!”, e as pessoas gritavam isso o tempo todo. As crianças esticavam a mão pros tapinhas e todo mundo se divertiu muito. Tem um lance na maratona, uma barreira, que quando se chega no quilômetro trinta muita gente quebra e desiste. Sabendo disso, Marcos Paulo deixou o Cesar, que treinava com a gente, nessa altura pra nos dar batatas cozidas no sal. Eu estava cumprindo o protocolo de ingestão de carboidratos em gel, água, isotônicos e cheguei bem até aquele ponto. Pra minha surpresa, a Didi estava lá também. Peguei duas batatas, dei um abraço na Didi e continuei pela maior avenida de Nova York. Aquilo não terminava nunca, mas eu estava indo bem. Depois de umas curvas, fiquei com vontade de urinar. Mas onde? Passei alguns quilômetros procurando um banheiro público e não vi nenhum. Não tive dúvida! Fui pra uma calçada e despejei um litro ali mesmo. Quando olhei pros lados, tinha uma turma enorme fazendo a mesma coisa. Acho que quebrei um tabu nessa maratona. Mais adiante, já meio sem noção de onde eu estava, olhei pro lado direito e vi umas árvores. Perguntei ao sujeito mais próximo se aquele era o Central Park, o alemão pareceu dizer que sim. Eu estava muito inteiro, com muita energia. Quando entrei no parque, a poucos quilômetros da chegada, bateu uma adrenalina muito forte. Acelerei ao máximo. Vi o quilômetro 42 e, quando passei por ele, parei e comecei a festejar. Eu estava tão louco que esqueci que a maratona tem 42 quilômetros e 145 metros. Alguém me avisou, e continuei até a linha de chegada. Ao cruzá-la, me deram um cobertor de astronauta e entrei em êxtase. Peguei minha medalha e fui caminhando lentamente para o hotel, que era ali perto (e para quem correu 42 quilômetros, mais perto ainda). Sim, amiguinhos. Um sedentário até outro dia como eu correu uma maratona. Um cara que havia se recuperado apenas quatro anos antes de tudo que quase o matou. Não lembro quem foi o ganhador da maratona. Mas vocês imaginam quem foi o maior vencedor. CONTOS DE THUNDER   253

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Sinto informá-los, amiguinhos, mas Thunderbird não ganhou a maratona de Nova York de 2001. O vencedor foi o etíope Tesfaye Jifar, que, ao que consta, não reconheceu o Thunder. Didi Wagner me põe a pensar: “Imagina o Thunder correndo uma maratona?”. E quem imaginaria, Didi? “Eu já conhecia bem Nova York, e ele estava lá pela primeira vez, então fiz as vezes de guia. Fui como torcedora dele e do meu marido. Me recordo de um café pequenininho, que eu gostava de ir, e levei o Thunder, que adorou um cappuccino que indiquei a ele. Lembro disso com carinho.” Ele também, Didi, até porque o muffin, que ele também adorou, estava liberado para atletas, né? “Thunder estava em uma fase boa, engajado em saúde e esportes, e isso fez nossa amizade se desenvolver para fora das câmeras.” Viagem emotiva, Nova York se refazendo da tragédia do 11 de Setembro, e a amizade entre Thunder e Didi — embora não fizesse propriamente calor naqueles dias — se aqueceu desde então.

Mais tarde, um amigo do na que estava morando lá passou pra me levar a uma lanchonete famosa — Jackson Hole —, onde serviam um dos maiores hambúrgueres de Nova York. Voltei pro hotel e dormi o sono dos justos. No dia seguinte, saí pra caminhar por Manhattan pra me livrar do acúmulo de ácido lático, passei pelo teatro em que David Letterman gravava seu Late Show, fui até a Times Square e voltei pro hotel. Havíamos combinado de almoçar todos juntos e fomos de novo à lanchonete Jackson Hole. Depois das despedidas, fui sozinho pro aeroporto e embarquei rumo a São Paulo.

Ovos mexidos

Na semana seguinte, retomamos a rotina com o Supernova. Minha relação com a Didi estava ainda mais sólida. A gente já tinha uma amizade consolidada. Não sei se foi o caso, mas acho que talvez isso tenha incomodado alguém da produção. A comunicação comigo ficou difícil, eu não entendia o que me pediam, tentava esclarecer, mas não conseguia chegar a uma solução. Alguém me dizia que o problema era a Didi, que não estava indo bem, que o problema não era eu. Nunca dei ouvidos pra esses comentários, mesmo porque essa pessoa devia dizer a mesma coisa pra ela. Parecia que existia uma intenção de atrapalhar 254  Lui z

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em vez de ajudar. Isso ficou evidente quando o Lema, gerente que comandava aquele núcleo, resolveu mudar parte da equipe. Nunca tive a intenção de prejudicar ninguém, mas Miguel Sokol foi fundamental pra terminarmos o ano tranquilamente. Ficou um clima bem ruim, nunca esclarecido. Nunca me disseram qual foi o motivo disso tudo, mas o Lema resolveu isso como chefe mesmo. De qualquer forma, eu tentaria entender no decorrer do ano seguinte. Mas não foi assim. Nunca consegui esclarecer essa sombra soturna que pairou ao meu redor. Esse mal-estar levaria uns dez anos pra passar. (E passou, passou muito bem.) Chegou a época do Verão MTV e fomos pra diversas praias de novo. Salvador, Ubatuba, Floripa e Atlântica, no Rio Grande do Sul. Talvez tenha sido a edição que mais curti de todas de que participei. Tinha o Edgard, a Thati Mancini, a Didi, o Levy e a Fernanda Lima, que fazia o Luau MTV. O Julio Piconi foi o diretor com quem mais gravei e a gente se divertiu muito. Minha interação com a Thati foi natural e muito legal. Eu estava precisando disso, depois da tensão no Supernova. Mais de quinze anos depois, o Julio me contou uma lenda que rolou em Ubatuba. Lembro que a Didi disse que iria para casa dos pais numa praia ali perto e me convidou pra ir junto. Já tínhamos terminado as gravações e aceitei o convite. Saímos juntos do hotel na van da mtv até a tal casa de praia da família dela. Foi muito legal conhecer os pais da Didi. O irmão dela também estava lá. Mas o Julio disse que, depois que eu fui embora, o pessoal do hotel comunicou que meu quarto estava todo sujo de ovos pelas paredes. Eu não fiz isso, mesmo porque onde eu conseguiria ovos no hotel? Correu essa lenda de que eu havia ficado puto com alguma coisa e fiz essa lambança. Isso nunca aconteceu. Ou foi um boato, ou uma tentativa de me dar algum trote, sei lá. Ninguém sabia que eu e a Didi já tínhamos ido embora do hotel. Mais curioso é que essa lenda na época nem chegou até mim. Coisas do lado obscuro da força da mtv. Entrei em férias, viajei bastante, estava muito esperançoso de que no ano de 2002 eu subiria mais um degrau na minha carreira. Isso aconteceu. Mas de uma maneira que eu nunca poderia ter imaginado.

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Pelos ares antes de entrar no ar. MTV despede, mas prepara uma caça a VJs que emociona tanto quanto o penta em 2002. Thunder apresenta o programa que busca novos caras como ele. Nasi e o novo disco dos Devotos. Rola o rock e novos projetos no Brasil, que elege o PT presidente pela primeira vez. Academia pra malhar. Rádio para distrair. Nike para pagar as contas.

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ROCK ‘N’ ROLL

Volta às aulas! Primeiro dia depois das férias que dignificam o homem. Estávamos todos no prédio da mtv, aguardando uma reunião com Zico Goes e Cris Lobo. Era uma sexta-feira, e eu ainda não sabia o que eles tinham reservado pra mim. Ficamos reunidos no quinto andar, aguardando a vez de cada um falar com os chefes. As reuniões individuais estavam acontecendo no nono andar — ou seja, o papo era sério. O primeiro a subir foi o Levy. Não demorou nem quinze minutos e ele desceu muito triste, dizendo que havia sido demitido. Ficamos todos chateados. Na sequência, a Thati Mancini subiu. Não demorou quinze minutos, e ela desceu putíssima da vida, também demitida. Ficamos todos mais tristes. Então, chegou a minha vez. Peguei o elevador, entrei na grande sala de reuniões, água, cafezinho, e começou a conversa: — Thunder, a gente estudou a nova grade e não conseguimos ver você nela. — Cris, muito séria. — Como assim? Eu não iria estrear nesta segunda-feira? — Eu, consternado. — Não, a gente não conseguiu achar um bom lugar pra você na grade. — Cris, respeitosa. Aí eu explodi! — Mas é muita incompetência de vocês! — Eu, descontrolado. — Calma, Thunder. Vai ficar tudo bem. — Zico, na maior tranquilidade. — Como assim? Incompetência?! Que absurdo! — Cris, indignada. — Se você não conseguiu achar um lugar pra mim na grade, eu só posso concluir que você não teve competência pra formatar a nova grade! — Eu, indignado. — Thunder, a gente tem planos pra você… — Zico, percebendo que eu estava mesmo muito puto da vida. CONTOS DE THUNDER   257

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— Olha, eu acho absurdo é vocês me chamarem aqui hoje pra dizer que daqui a dois dias eu não vou entrar no ar. Por que não me avisaram antes? — Eu estava inconformado. Eu já tinha visto esse filme na Globo. E reagi da mesma forma. Indignado. Só que, dessa vez, eu estava sóbrio, cumprindo o combinado, fazendo tudo certo, sem atrasos, sem loucuras incontroláveis. Ou seja, sem a menor sombra de culpa. Portanto, cheio de confiança e de razão. Cris ficou calada o restinho da reunião. Acho que ela não esperava a minha reação. Zico deixou claro que eles tinham um plano pra mim e seria muito legal. Agradeci, saí e desci direto pro primeiro andar. Encontrei o Eriko Prado, falei com ele, que ficou visivelmente consternado. Lalo Amaral, que organizava as festas da mtv, veio me consolar e me levou para a Real, para tomarmos um café. Na portaria, dei de cara com o Cacá Marcondes. Déjà-vu! A sensação foi a mesma de quando eu havia saltado de paraquedas e ele surgiu diante de mim e me deu um abraço. Com a diferença que, dessa vez, o paraquedas não abriu e eu estava ali, despedaçado. Na mesma hora, liguei para um amigo e fomos para a casa de campo do tio dele. Passei alguns dias à beira da piscina, correndo ao redor da represa, “invadindo” a casa do Tutinha da Rádio Jovem Pan para usar a esteira moderna que ele tinha. Eu sempre achei que ele soubesse disso, mas quando comentei o fato, há uns dois anos, ele ficou bem surpreso. A primeira coisa que fiz voltando pra São Paulo foi me inscrever na Fórmula Academia. Eles tinham um sistema de cotas pra celebridades e me aceitaram como convidado vip. Se minha saúde mental estava abalada, minha confiança física passou a ser espetacular. Continuei correndo e passei a fazer academia quase todos os dias da semana. Os professores eram muito legais e, com a frequência, ficamos amigos. Mauro Célio foi o cara que me acompanhou em todos os anos que frequentei a Fórmula. Ele fazia as planilhas e me monitorava de perto, corrigindo a postura, regulando os intervalos. A gente conversava muito. Futebol (ele é muito corintiano), política, música, mas eu desabafava com ele também. Era um terapeuta mesmo. Tinha o Marcos César, figura, sempre com bom humor e excelentes piadas. O mestre mor da academia, sempre com histórias espetaculares, era o Marcelo Aló. Ele era halterofilista e treinava os pesos-pesados da Fórmula. A gente sempre conversava e ele me contava dos campeonatos de que tinha participado no Leste Europeu e na América Latina. Como eu ia quase todos os dias, fiz muitas amizades ali. Tinha um dentista,

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Renato Canciani, baixista e roqueiro, que ia aos meus shows. Tinha o Marco Bianchi, que ainda fazia o RockGol da mtv. O dono da academia, Mané, estava sempre por perto, olhando tudo. Cuidava muito daquele empreendimento. Me convidava para as inaugurações de outras unidades. Era uma família mesmo. E foi muito importante pra mim nessa fase em que eu tentava manter a sanidade em dia. Fui frequentador por uns oito anos, até a venda da Fórmula para um grupo de investidores. Dentre eles, diziam, o Bernardinho, técnico da seleção brasileira de vôlei. Quando ocorreu essa fusão, as cortesias acabaram. Obrigado, Bernardinho! A Monique voltou da Inglaterra e entrou em contato comigo. Combinamos de ir ao teatro ver um musical sobre os Beatles. Ela me trouxe uma caneca da coleção deles que tenho até hoje. A peça foi bem medíocre, mas foi ali que a gente se pegou pela primeira vez. Então, começamos a nos ver frequentemente. Ela trabalhava num lugar ao lado da loja da Thati Mancini, que deu a maior força para gente ficar junto. Monique saía do trabalho e ia almoçar comigo no Shopping Eldorado, depois que eu terminava minha rotina de exercícios. Foi bacana encontrar alguém com quem eu podia falar de tudo. Música, recuperação, trabalho, planos. E a gente se divertia muito. Depois de um tempo, ela me disse que seu pai queria me conhecer. Eles moravam em Pirituba, e lá fui eu conhecer o sogro. Ao chegar, ele me esperava na mesa de jantar, muito sério. Ficamos os dois sozinhos e ele começou: — Você está namorando a minha filha, né? — Sim, a gente tem se visto com frequência. Ela é muito legal, obrigado. — Mas você sabe que ela é menor de idade? — Como assim? Eu sempre pensei que ela tinha uns 23 anos. — Lembrei da Didi fazendo essa estimativa. — Não, ela tem dezessete anos! — Poxa, o senhor deve ter muito orgulho dela, né? — Sim, mas saiba que ela já teve uns problemas com o namorado anterior. — Olha, seu Maion, eu gosto da sua filha. Eu tenho certeza de que, comigo, ela não vai ter esses problemas! — Tudo bem, mas estarei de olho. — Claro, eu também estaria, se estivesse no seu lugar. Não demorou nem um mês para ser recebido como o genro bacana, pelo menos pela minha sogra. Ele, corintiano da facção do Antonio Roque Citadini (então vice-presidente de futebol do clube), sempre foi mais resistente. CONTOS DE THUNDER   259

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Arremesso de disco

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No meio do ano, eu estava na academia e recebi um telefonema do Nasi. (Sempre o Nasi!) Ele me falou que iria gravar um disco na Sum Records, e havia me indicado lá pra gravar o dos Devotos dnsa. A banda precisava muito disso, só tínhamos um punhado de demos e o primeiro disco de 1994. Fiz uma reunião na Sum e eles estavam realmente interessados. Eu pedi que o Nasi fosse o produtor desse disco. Ele tinha estofo e merecimento, já que tinha ajudado tanto a banda desde que nos conhecemos. Flipi e Gustavo ficaram bem empolgados, talvez empolgados demais. Antes mesmo de assinar o contrato ou entrar em estúdio, eles já estavam mais preocupados com o sucesso do que com o conteúdo desse disco. A gente tinha umas músicas, mas não o suficiente pra um cd inteiro. Eu controlei bem minhas expectativas. Era só um disco numa gravadora pequena. Assinei o contrato, tinha prazo pra terminar o disco e eu não tinha controle nenhum sobre a produção. O pessoal da gravadora se propôs a bancar tudo. Chamei o Jimmy Leroy, que cuidava do departamento de promos da mtv, pra fazer a capa, a Fabiana Figueiredo pra fazer as fotos, o Arthur Veríssimo pra escrever o release. Estava tudo certo, até o dia em que o Nasi me ligou enfurecido, dizendo que tinha brigado com os diretores da Sum e estava tudo cancelado. — Mas, Nasi, o que houve? — Eles são uns filhos da puta! Mandei todos à merda e espero que você faça o mesmo. — Caralho, eu assinei o contrato no começo dessa semana! — Vai lá e cancela tudo! — Mas, cara, o que aconteceu? — Não importa! Vai lá e rompe o contrato! — Mas o que eu falo pra banda? Pro Jimmy, pra Fabiana, pro Arthur? Não posso bancar isso. Vamos lá conversar com eles… Ele desligou na minha cara. A primeira coisa que fiz foi ligar para a gravadora. Eles disseram que não concordaram com a produção, estúdio, detalhes importantes para eles e pediram mudanças. Segundo eles, o Nasi foi intransigente e agressivo, ameaçando o diretor da Sum. Não havia a menor possibilidade de voltarem atrás. Já estavam falando com outro produtor e que a gente tinha um mês pra entregar o 260  Lui z

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disco gravado, mixado e masterizado. Fiquei completamente louco com isso. Tentei ligar para o Nasi, buscando ajeitar a situação. Nada! Tentei propor uma reunião entre todos. O tal diretor disse que se o Nasi se aproximasse, ele chamaria a polícia. No fim de semana, eu estava treinando na usp e dei de cara com o Nasi, caminhando com o cachorro dele. Parei, fui cumprimentá-lo e ele não disse uma palavra. Me deixou falando sozinho. — Nasi, vamos conversar… Vamos dar um jeito nessa bagunça. Vale a pena a gente se entender e propor uma solução pra esse impasse… Ele nem olhou pra trás. Foi horrível! Tive que ir em frente, me entender com um produtor que eu não conhecia. Começar tudo de novo. Não foi bom para ninguém. A ira de Nasi… Amigos com laços tão importantes uma hora fazem as pazes, mas o próprio Nasi reconhece que naquele tempo andava com o pavio meio curto. “Meio, não: eu andava sem pavio nenhum.” Não foi tão imediato, portanto, que a parceria Thunder e Nasi foi retomada. “Tivemos essa briga por que era um selo muito estranho, atitudes estranhas em relação ao orçamento, fiz um orçamento que era algo normal, mas eles mudaram, trocaram de produtor, e eu acabei ficando puto com o Thunder, que não comprou a briga, e misturei pessoal com profissional. Por um tempo ficamos rompidos.” Thunder acabou de contar do encontro na usp, por acaso e coincidência, mas ele também fez esforço real para reatar a amizade, como conta Nasi: “O Thunder tentou algumas aproximações comigo, como em um show no morro da Urca em que ele apareceu, e eu não cumprimentei ele, não dei espaço para a aproximação que ele tentou”.

O dia da caça

Só as corridas me davam equilíbrio pra não entrar em desespero. Eu me inscrevi para a meia maratona do Rio de Janeiro. É uma prova bem difícil, pois a temperatura é alta, a gente larga em uma subida de São Conrado, e quando chega na praia do Flamengo, parece que está acabando, mas ainda tem muito asfalto fumegante por vir. A Vivis me emprestou um cd da banda Weezer, aquele de CONTOS DE THUNDER   261

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capa verde, de 2001. Eu fui e voltei ouvindo esse disco em meu carro, que acabou se refletindo em algumas músicas e arranjos do disco que viria a gravar. Se você passa pela experiência de uma maratona, completar metade disso pode parecer fácil, mas a dificuldade é outra. Eu nunca me preparei para uma meia maratona. Fiz a do Rio, mas a de São Paulo abandonei na metade. Essa foi a única prova que não terminei. Depois de uns dez quilômetros, comecei a passar mal, talvez desidratado. Todas as outras, finalizei bem. Tenho as medalhas de participação até hoje, e são muitas! Outra maratona se anunciava pra mim. O novo projeto que o Zico havia me prometido era gigantesco. O programa Caça VJ tinha o objetivo de descobrir e revelar um novo vj pra mtv. Seria a extensão do VJ por um Dia, só que, neste caso, o vencedor assinaria um contrato e se tornaria mesmo vj. Montaram uma tenda gigante, onde eu faria os testes com os candidatos pré-selecionados. Algumas pessoas fariam as avaliações numa cabine separada. O número de inscritos era absurdo, todo jovem queria ser vj da mtv, e essa seria a melhor oportunidade de conseguir isso. Eram dois dias de testes com presença do público em Belo Horizonte, Salvador, Rio de Janeiro, Porto Alegre e São Paulo. Os participantes estavam mesmo envolvidos nessa história. Foram milhares de inscritos, centenas de testes nessas arenas. A segunda fase do Caça VJ tinha cinco finalistas: Leo Madeira, Denis Wilson, Carol, Cher e Rafa Losso. Nessa fase, as gravações eram em São Paulo. Foram vários programas desvendando minuciosamente cada um deles. Alguns tinham mesmo potencial para se consagrar. Deixei claro que minha preferência era pelo Denis Wilson. Baiano, dono de uma calma muito louca, filósofo, artista por natureza, podia ter se tornado um vj emblemático na mtv. Mas uma das tarefas dadas aos candidatos era fazer um vídeo caseiro, mostrando seu lado mais pessoal. Denis estudava medicina e me disse que, caso se formasse, seguiria a especialização em medicina legal. Ele fez um vídeo cortando os braços e enviou pros diretores. Todos ficaram apavorados! Certamente se esqueceram ou nunca conheceram Iggy Pop. Isso foi determinante para eliminar qualquer chance de Denis Wilson, mesmo nome de um cofundador da banda The Beach Boys. Ele foi cortado sem anestesia do programa e selou seu destino na medicina. Foi até a final do Caça VJ, mas hoje é médico legista, eu acho… No programa decisivo, transmitido ao vivo do estúdio S da mtv, com plateia ao nosso redor e diretoria na minha orelha, via ponto eletrônico, a emoção tomou conta de todos. Acho que faziam parte dessa comitiva, que tinha a função 262  Lui z

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de escolher o vencedor, o Zico, a Cris Lobo e a Lilian Amarante, que dirigiu boa parte dos programas. A Lilian é daquelas diretoras duronas, muito firmes, sanguíneas, sérias e focadas na dinâmica que consideram ideal pra tv. Na hora de revelar o vencedor, ela estava aos prantos. Eu, olhando para os cinco finalistas, para as câmeras, para a plateia, aguardando o veredito final e… — Vamos revelar o vencedor ou vencedora do Caça VJ… — Calma, Thunder! A gente ainda não chegou a uma conclusão! — avisou a Lilian no ponto eletrônico. — Foi um processo seletivo muito difícil, ao mesmo tempo, muito emocionante… — falei, enrolando a audiência, enquanto eles se decidiam. — Ai, Thunder… a gente tá na maior dúvida aqui… — Lilian, de novo me contaminando. Eu já estava me controlando também pra não cair no choro. Explico. A última etapa, que durou mais de um mês, foi de muita proximidade com os cinco finalistas. A gente se via muito, nasceu uma amizade, eles eram muito unidos, estávamos todos muito emocionados com aquela final. Seria também o final daquela convivência, e todos sabiam disso. — Thunder, chama o intervalo! — pediu Lilian, deixando claro que não havia uma unanimidade entre o júri. Durante o intervalo, falei com a Lilian no microfone, mas não podia entregar o que estava acontecendo. Os cinco estavam ali, na minha frente, a plateia e a torcida ligadas em qualquer coisa que eu dizia. Perguntei se estava tudo bem. A resposta foi… — A gente não sabe o que fazer aqui… voltando em 5… 4… 3… 2… 1… — Lilian, recuperando a calma. Eu não sabia mais o que dizer, então veio o resultado via ponto eletrônico. E abri a boca e o coração: — O Caça VJ é o programa mais emocionante que já fiz na minha vida! Eu queria dar cinco crachás pra vocês. Eu queria contratar todos eles. — Eu tenho o maior orgulho de estar ao lado de vocês. Vocês já são meus colegas. Eu estava quase chorando mesmo. E dei a notícia igual ao que a Lilian me passou pelo ponto: — Não temos um vencedor. Temos dois! Serão dois vjs da mtv! Quando anunciei o primeiro, o Rafa, ele meio que desmaiou, caiu no chão. A Sarah, a Didi e a Fernanda Lima ficaram com as fotos dos megacrachás, CONTOS DE THUNDER   263

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também emocionadas. Então anunciei o Leo. Ele e o Rafa foram abraçados pelos outros três. Ali não havia perdedores. Todos saíram ganhando. Abri o microfone para o Leo falar algo: — É só ir atrás de um sonho e não desistir. O Rafa não conseguiu dizer nada. E eu terminei dizendo que foi o “melhor programa que fiz na minha vida”. Foi uma choradeira incontrolável. Foi bonito pacas! E aquilo tudo revelou dois vjs que trabalhariam na mtv por vários anos.

É penta!

Quando o Zico Goes falou no começo de 2002 que tinha muita coisa pra mim, ele estava falando a verdade. Ano da Copa do Mundo no Japão e na Coreia do Sul. Zé Wilson era o diretor de marketing e fez uma parceria com a Nike. O Nike Park aconteceu em São Paulo, no Espaço das Américas. Era uma disputa entre jovens praticantes de futebol, em que o vencedor iria disputar o mundial nessa categoria de confronto homem a homem. E havia umas meninas muito boas de bola também. Isso aconteceu um mês antes da abertura da Copa. Lembro que o meia Ricardinho estava arrebentando no Corinthians e foi até lá. Falei pra ele que estranhava o Felipão não o ter convocado. Ele respondeu que a hora dele iria chegar. No dia seguinte, o volante Emerson machucou o ombro e foi cortado. Ricardinho viajou pra encontrar a seleção que um mês depois seria pentacampeã mundial. Minha relação com a Nike foi adiante em outras ações legais, principalmente no âmbito financeiro. Eu não era mais vj, mas as contas estavam em dia. Passei a ser o vj que fazia as ações off-air. Trabalhava diretamente com o Zé Wilson e sua equipe. A Crô, que eu convenci a começar a correr, o Lalo Amaral, corintiano muito chato, gente fina toda vida, que preparava as arenas, Eriko Prado, que cuidava de todas essas campanhas e seu assistente Caju. Eriko sempre foi um amigão. A gente se conheceu num show do Júpiter Maçã em 2000, no Sesc Ipiranga. Desde então, nos tornamos amigos. O Caju era uma figura sensacional. Ex-futebolista, passou a ser produtor desses eventos na mtv, sob a tutela do Eriko. Depois, chegou a trabalhar com os Devotos dnsa como roadie. Teve um show no Blen Blen Club que o Caju preparou um baixo de cinco cordas pro Lee Marcucci dar uma canja com a gente. Ele teve a manha de 264  Lui z

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afinar a corda mais grave, em B (si) com a afinação uma oitava acima. O Lee chegou pra mim e falou: — Puta que pariu, Thunder… esse baixo tá estranho. Vou usar seu Rickenbacker, tá? No dia seguinte fui descobrir a trapalhada do Caju. A gente deu muita risada daquilo. Cajun, como o chamávamos, era parte da turma na banda. Mas era bem confuso também. Lembro que a mtv me escalou para ser o mestre de cerimônias do festival João Rock em Ribeirão Preto. Teve O Rappa, Ira!, Cidade Negra e cpm 22. Nessa noite, o Nasi não aguentou um puta chato que ficou provocando ele, dizendo que ele estava doidão, imagina, ele estava tão limpo quanto eu. Chegou o momento clássico da cabeçada calabresa do Nasi. O sujeito foi para a enfermaria, o Nasi foi para a van. Coisas do rock. Era ano de Copa. Eu assisti à maioria dos jogos naquelas madrugadas na casa da minha irmã. Mas, aparentemente, só eu estava ligado nisso. Lembro da encenação de agressão do Rivaldo no primeiro jogo contra a Turquia, aquilo foi feio pacas! Mas o jogo com a Inglaterra, nas quartas de final, foi muito emocionante. Kiko Zambianchi estava lançando um disco novo e o Flipi estava tocando bateria na banda dele. Fui ao lançamento e, após o show, fomos todos à casa do Kiko, no bairro do Pacaembu. Ele havia ressurgido no cenário do pop rock em 2000 como produtor do Acústico MTV da banda Capital Inicial, que incluía uma versão de “Primeiros erros”, um dos seus maiores sucessos. O jogo começa, a Inglaterra faz um gol com a ajuda do zagueiro Lúcio, mas o Brasil empata antes do intervalo. Eu, em Copas, fico bem empolgado. Mas, nesse dia, contra a Inglaterra, estávamos muito envolvidos. O pessoal queimava um baseado atrás do outro. O Flipi ficava lançando baforadas na minha direção. Ele não era o Juventus, mas também era um moleque travesso. Tinha um inglês na turma e a gente ficava zoando ele o tempo todo. Quando saiu o segundo gol do Brasil, aquela falta absurda batida pelo Ronaldinho Gaúcho, todo mundo foi pra cima do tal inglês. Os jogos eram na madrugada, então saí de lá bem tarde. Foi legal pacas! O jogo da final, contra a Alemanha, foi espetacular. Ronaldo estava endiabrado e Rivaldo também. Eu assisti sozinho a esse jogo, de novo, na casa da minha irmã. Depois do tetra na Copa de 1994, quando eu nem assisti à final contra a Itália, vencida nos pênaltis, foi muito bacana ver o Brasil campeão em 2002 jogando bem. CONTOS DE THUNDER   265

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Rock ‘n’ roll

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Voltando ao disco, a gravadora me pediu pra indicar um novo produtor pro novo álbum dos Devotos. Cheguei a falar com o Edu K, mas ele estava ocupado fazendo seu próprio disco. Daí eles vieram com a sugestão de um produtor que trabalhava com o Rick Bonadio, o Rodrigo Castanho. Eu não conhecia nada do trabalho dele, mas estávamos em cima da hora pra entregar o disco pronto. Topei e a banda também. Rodrigo compareceu a uma semana seguida de ensaios, num estúdio na rua João Moura, no bairro de Pinheiros. A gente tinha umas oito músicas preparadas. Ele trouxe uma de amigos dele e eu fiz a letra. Fomos ao estúdio Midas num sábado e gravamos todas as baterias e baixos no mesmo dia. No seguinte, o Gustavo gravou todas as guitarras. Na outra semana, gravei os vocais, chamei o Luiz Carlini para o solo em “Minha fama de mau”, parceria de Roberto e Erasmo Carlos — que surpreendentemente liberou a composição pra gente. A coisa ficou estranha na hora que chamei meu amigo Ricardo Feltrin pra tocar um órgão Hammond em “Estupenda gulosa”. Rodrigo ficou contrariado com isso. Foi muito frio com meu amigo, mas deixei claro que eu queria que ele participasse da gravação. Não pude acompanhar as mixagens, feitas a toque de caixa, nem mesmo a masterização. Ou seja, tenho pouca participação na sonoridade daquele disco. Rodrigo é um cara legal, mas a dinâmica do trabalho foi meio estranha pra mim. A gente ficou amigo, ele deu canja nuns shows, tocando guitarra muito bem, nos vimos por um bom tempo. A capa do disco e do single ficaram lindas. A gravadora me deu a chance de escolher esse single. Eu achava que a “música de trabalho” tinha que ser “Motoboy”. Mas o diretor da gravadora veio com uma ideia arrojada. Ele achava que a gente tinha que lançar “A namoradinha”. Ele disse que faria um acerto com a rádio Transamérica para tocar a música duas vezes por dia por um mês. Eu achei aquilo pouco produtivo. Aquela música em uma rádio popular como a Transamérica iria assustar a audiência. “Seu cheiro que me excitava, agora me dá nojo, porque meu coração está cheio de rancor.” Esse era o primeiro verso da música. “Eu quero arrancar seus olhos, morder seu pescoço com toda a força até o sangue jorrar… Jorrar, até o sangue jorrar!!!” era o refrão. Romântico, né? Sei lá, eu não fiz oposição a isso. A gente fez o lançamento num bar de Pinheiros, o Morrison, no dia 28 de novembro de 2002. A promoção era da 89 fm. Daí não entendi mais nada… 266  Lui z

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Pedi para gravar um clipe, eles concordaram e me deram 20 mil reais pra isso. Eu pensava, “Caramba! Que fácil!”. Chamei o Raul Machado, que tinha feito o clipe de “Maracatu Atômico” de Chico Science & Nação Zumbi, pra dirigir o clipe. Ele chamou meu velho amigo Zé Carratu para fazer a direção de arte. Gravamos tudo numa noite. Daí saímos fazendo entrevistas para o lançamento, alguns shows promocionais, junto com outra banda que lançara disco na mesma gravadora, a Ultramen. A gente fez um show no estúdio Transamérica juntos. Ficamos amigos desde então. O disco deles, produzido pelo Daniel Ganjaman, ficou bem bacana. Nem assim Rock ‘n’ roll, vendeu pacas. Nenhum dos nossos discos foi sucesso de vendas. Um mistério! Depois, outra banda de Porto Alegre, de amigos também, lançou um disco pela Sum Records. Não deu em nada. A gente tinha uma assessora de imprensa muito legal, Alexandra Swerts. Ela fez o possível pra nos ajudar, mas parecia que a gravadora não fazia questão de que as coisas dessem certo. Sei lá. Quando essa gravadora fechou as portas, todos sumiram, inclusive os discos que estavam num depósito. Cheguei a localizar o sujeito que passou a cuidar desses discos encalhados. Ele me atendeu como se estivesse fugindo da máfia russa. Muito assustado, foi sucinto: — Alô, tudo bem? Aqui é o Thunderbird. Eu soube que você está com os discos da Sum Records que eu gravei lá. — Não sei de nada. Não fui eu. Não me procure mais. Eu não quero saber de nada daquela gravadora! E desligou. Achei muito suspeito. Tudo isso meio que deixou o Flipi muito desesperado. Ele achava mesmo que a gente ia virar o Charlie Brown Jr. ou algo assim. Ele passou a apresentar um comportamento agressivo. Agressivo demais, na verdade. Isso foi determinante para o seu afastamento. Ele não ia ficar na mão. Estava tocando com o Kiko e tinha montado uma banda com a namorada. O Gustavo ficou comigo e chamei o Paulo Zinner pra tocar bateria, mas depois eu conto essa.

Rádio!

Foi em 2002 que voltei pro rádio. Já tinha apresentado aquele programa no Rio, em 1994. Mas, dessa vez, o programa seria gravado no estúdio A Voz do Brasil. Depois da maratona de Nova York, eu e o Alan Terpins nos tornamos bons CONTOS DE THUNDER   267

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amigos e eu propus que a gente ocupasse o estúdio uma vez por semana pra fazer o Tapa na Orelha. O Cristiano Pi, que me ajudava na Venice Mag, passou a vender meus shows, fazer minha assessoria de imprensa e produzir o programa pra mim. Com uma hora e meia de duração, a gente entrevistava convidados como Bruna Surfistinha, Pitty, Jairo Bouer, Didi Wagner, Fernando Meligeni. Mas o dia mais emocionante foi quando entrevistei o ator Jorge Loredo, que desde os filmes do Rogério Sganzerla fazia o personagem Zé Bonitinho, inclusive na Escolinha do Professor Raimundo, do Chico Anysio, na Globo. Ivo Barreto era o engenheiro de som do estúdio. Eu já o conhecia desde os comerciais que havia gravado nos anos 1980. E os Devotos dnsa tinham gravado uma demo no estúdio A Voz do Brasil em 2000. Dom Ivo, como passou a ser conhecido desde então, tinha um cuidado absurdo com a produção técnica do programa. A gente gravava e o Cris levava o conteúdo gravado em cdr pra 98 fm de Santos, uma subsidiária da 89 fm de São Paulo. Esse programa durou uns seis anos. A gente nunca ganhou dinheiro com ele, mas era uma delícia gravar n’A Voz. O disco estava finalmente pronto. Escolhi o nome Rock ‘n’ roll pra ele. Lembro que, enquanto gravávamos o álbum, me aproximei mais da Monique. Tinha uma padaria ao lado do estúdio Midas, onde comprei uma cesta cheia de delícias da padoca. Levei de presente pra mãe da Monique. Ganhei a sogra pelo estômago. Dali em diante, me senti parte da família. A gente passou a se ver com frequência, Monique começou a correr, e ela me mostrou o caminho do vegetarianismo. Eu estava feliz e animado com o lançamento do disco. Essa festa aconteceu no Morrison, mandamos bem, estávamos muito bem ensaiados. A gente participou de um programa de tv e um dos convidados era o produtor Arnaldo Saccomani. Ele nos cobriu de elogios e vaticinou: — Eles são excelentes! Se continuarem assim, serão sucesso no Brasil! Mais uma vez, a empolgação tomou conta da banda. E arrisco dizer que, se o clima entre nós fosse de união e plena amizade, talvez conseguíssemos chegar perto desse sucesso. Mas, pelo contrário, o clima estava bem pesado. No ano seguinte, isso se resolveria.

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Devotos de novo pelos ares em 2003. Novo baterista, de três pra quatro no palco. Novas bandas e novos sons para novos sonhos na música, já que na televisão estava cada vez mais osso e menos colosso. Mas ainda com muita história com Catifunda e seu charuto, Teleton e o nosso tonto preferido. Mas as ondas do rádio mereciam ser surfadas para evitar o lodaçal e o lamaçal dos tubos catódicos que ainda não começariam a entrar pelo YouTube, a partir de 2005.

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VOLTAS, REVOLTAS E REVIRAVOLTAS

O ano de 2003 me trouxe alguns desafios. O primeiro deles era resolver como ficaria a banda. Estávamos na fase de divulgação do disco Rock ‘n’ roll, a gravadora nos colocou ao lado da Alê Swerts, que até viajava conosco pra divulgar o lançamento. Mas o clima estava muito ruim. Eu não aguentava mais os ataques nervosos do Flipi, apesar de ele ser um bom baterista. O Gustavo fazia parte disso, mas também não se apresentava exatamente como parceiro. Lembrei do Paulo Zinner, que antes de gravarmos, o Nasi (de novo!) tinha sugerido como substituto do Gigante Brazil, lá atrás, em 1997. Consegui o telefone dele, mas não conseguia contato. Não tive dúvida, descolei o endereço do Paulo e fui à casa dele, no bairro de Santa Cecília, em São Paulo. Cheguei lá e a mãe dele me recebeu. Passei a tarde conversando com ela, na esperança de que ele chegasse. Nada! Mas foi o tempo de eu chegar em casa e ele me ligou. — Minha mãe disse que você estava aqui em casa. — É verdade. Fui até aí pra te convidar pra entrar nos Devotos dnsa. — Poxa, que legal. Mas e o Gigante? — Longa história. Preciso saber se você está disponível pra tocar comigo. Te admiro desde um show em 1988 do Golpe de Estado no Ginásio Meninos Futebol Clube, em Rudge Ramos. Te conheci naquela vez no CEP MTV e você é foda! Topa? — Topo! — Tem ensaio amanhã às dezoito horas, em Pinheiros. — Mas eu não conheço as músicas… — Isso não é importante. O importante é você ser um grande baterista! Tenho certeza de que vai dar certo! — Tá bom. CONTOS DE THUNDER   271

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O Filipi já estava longe, o Gustavo resolveu ficar na banda. Fizemos um ensaio e percebi alguma indiferença da parte dele. Eu precisava de amigos ao meu lado. Amigos de verdade! Não tive dúvida, liguei pro George e o intimei. — George, tudo bem? Volta pra banda agora! — Oi? Como assim? Quando? — Amanhã tem ensaio. Você tem um monte de músicas pra tirar na guitarra. — Mas o que houve? — Uma banda precisa ter equilíbrio, disposição, comprometimento, amizade. Venha, por favor! — Tô dentro! Foi assim que os Devotos voltaram a ser um quarteto. Nessa época, eu soube que seria o mestre de cerimônias de um grande festival, via mtv. Era o VibeZone, patrocinado pela Coca-Cola. Aceitei o convite, afinal, era um festival de música e eu precisava pagar as contas. Foi mais uma ação off-air com a mtv. Os organizadores souberam que eu tinha lançado um disco novo com a banda, e escalaram os Devotos para tocar na etapa carioca. A gente teria um mês pra ensaiar um repertório de uma hora.

VibeZona

A mtv continuava me proporcionando trabalho. O Festival VibeZone foi bem grande e divertido. Fomos pra Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro. Bandas consagradas se apresentavam num palco gigante, ao ar livre, com uma tenda com dj e interações com o público. A gente gravava uns vídeos que iam ao ar na emissora, e um jornalístico sobre o que estava rolando no festival. As viagens levavam uma equipe de tv e outra do departamento de marketing (que tinha a Crô, o Lalo e o Eriko Prado). Eu e o Eriko nos aproximamos muito desde então. Nossa admiração comum ao trabalho do Júpiter Maçã era sempre o assunto nas vans que nos transportavam. Foram feitas umas sessões de VJ por um Dia no Salão do Automóvel. As pessoas ainda estavam nesse lance de participar do que havia sido um programa de sucesso até 2001. Aliás, essa febre durou muito mais tempo. Todas as ações off-air acabavam incluindo essa atividade. Depois, começaram a gravar em fita os testes, e as pessoas levavam suas gravações como presente. A gravadora ainda estava dando algum apoio pra gente, então nos arrumaram um agente pra vender shows. Não foi a melhor ideia do mundo, visto que o 272  Lui z

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sujeito não vendeu nada expressivo. Mas a Sum Records bancou a estadia dos Devotos no Rio pra apresentação no VibeZone. A gente ensaiou por um mês, levamos um técnico de som pra fazer o pa. Mas não tomamos o cuidado de levar um técnico de palco. Entramos depois do Capital Inicial, que estava lançando o disco Rosas e Vinho Tinto. Lembro de encontrar nosso antigo roadie amigo, o Pedrão, e constatar que ele estava colocando taças de vinho de verdade para os músicos no palco. Zoei muito ele, dizendo que ele havia sido promovido de roadie para garçom. Depois do nosso show, viria a banda Charlie Brown Jr. Ou seja, estávamos fodidos nessa ordem. Ninguém conhecia nossas músicas, o público estava lá para ver ou o Capital ou o Charlie Brown. Muito nervosos, afinal era a estreia do Zinner na bateria e a reestreia do George na guitarra base, fizemos o que podíamos. O técnico de palco ficava mexendo no som dos retornos, e só não aconteceu um desastre porque o Paulo fez sua parte direitinho, sem ouvir a banda. E, no final, o Gustavo pegou o pedestal de microfone e começou a esfregar no braço da guitarra. Não demorou muito pra ver o microfone sem fio caindo lá embaixo, na plateia. Quando terminamos, saímos do palco. Depois de um tempo, vi o George lá embaixo, pegando a estante de guitarra que um dos técnicos arremessou, na sede por vingança. Foi bem esquisito.

Dance

Enquanto isso, a mtv pensava em mais um programa em parceria com o marketing da emissora. E esse projeto veio com um grande patrocínio, o que me permitiu juntar um dinheirinho na caderneta de poupança. O programa era o Dance o Clipe, em que os candidatos — de novo — dançariam sobre o chroma-key que projetaria o clipe de escolha desse candidato. Uma ideia divertida, que trouxe pessoas — novamente — para serem integradas ao métier televisivo. De novo, etapas para escolher os melhores, ou mais bizarros, uma grande final, gravada num bar do litoral norte paulista, gritos histéricos da Lilian Amarante no ponto eletrônico. Estresse desnecessário, pelo menos pra mim. Não sei o que estava acontecendo com a Lilian, mas ela gritava com todo mundo. Muito inconveniente! Bom, passei por aquilo e o programete fez tanto sucesso que entrou na grade no ano seguinte. E foi a vez de uma nova celebridade entrar no hall dos vjs da mtv. Daniella Cicarelli ficou encarregada de apresentar o Dance o Clipe na programação. Participei de um dos primeiros episódios. Lembro como se fosse hoje. Eu já conhecia CONTOS DE THUNDER   273

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a Daniella dos treinos com o Marcos Paulo Reis. Até corremos uma maratona de revezamento juntos em São Paulo. Também lembro de, após a prova, irmos (a equipe toda, umas cinco pessoas) a uma sorveteria. No dia seguinte, tinha uma nota nesses sites de fofoca insinuando que eu e Daniella havíamos corrido juntos e “esticamos a aventura para um romântico sorvete vespertino”. Que doideira! Isso nunca chegou perto de acontecer. Deve ser difícil ser celebridade. Mas o engraçado nisso é que, durante a gravação do Dance o Clipe que fiz com ela, uma vez ela reclamou de uma “música irritante” que estava tocando no intervalo. Consegui ouvir os berros da Lilian Amarante, explicando que a “música irritante” era do disco da minha banda. Eu só pude rir daquilo. Essa era a Daniella. Iria vivenciar muito mais disso em 2012, quando fizemos juntos o programa Provão MTV. O fato é que a Fernanda Lima tinha ido para Globo e a mtv precisava de um mulherão para apresentar os programas populares. Naquela época, a mtv era praticamente um sbt de piercing. Namoro na TV, Qual é a Música, O Céu é o Limite eram transformados em Fica Comigo, Dance o Clipe e Quiz MTV. Até o programa Mesa Redonda, da tv Gazeta, tinha seu correspondente na mtv, o RockGol, cada vez menos rock, cada vez mais mainstream. Mesmo porque o rock nacional, nessa fase, estava na meia-idade. Só se ouvia rock nos clubes. A emissora queria ser grande, e isso justificava acabar com a música e os videoclipes. Especialmente com os videoclipes, claro! A luta pela permanência da música como o fundamento básico da mtv ainda continuaria nas trincheiras do quinto andar. Em dezembro de 2006, Zico Goes declarou que “o videoclipe não pertence mais à televisão”. O YouTube havia chegado, e a mtv não soube lidar com ele. Houve até a tentativa de fazer do site da emissora uma alternativa. Mas nunca chegou lá, nunca entendi o porquê. Mas sempre haveria uma turminha de guerrilheiros na mtv, lutando pela música, pelo rock, pela essência daquela casa. A turma que eu tinha em alta consideração!

“It’s only rock ‘n’ roll, but I like it”*

Enquanto isso, eu precisava me manter ocupado. Andreas Kisser tinha uma banda com o Paulo Zinner, a Brasil Rock Stars. Eles faziam shows com covers * Trecho da música dos Rolling Stones. 274  Lui z

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de rock clássico e me convidaram para fazer uma participação. Ensaiamos em um estúdio na avenida Indianópolis, e foi nessa ocasião que conheci o Daniel Latorre, que tocava órgão Hammond. No dia do show foi incrível, era uma superbanda. E os Paralamas também participaram. Na última música, “Lucille” do Little Richard, tocamos todos juntos e eu fiquei ao lado do Herbert gritando: — É rock ‘n’ roll, Herbert! Rock ‘n’ roll!! Ele ficou me olhando, meio assustado. Depois desse show, convidei o Daniel para entrar na banda. Éramos, pela primeira vez, um quinteto. Teria sido espetacular, se não fosse o fato de o Gustavo estar cada vez mais distante da gente. Fizemos alguns shows nessa formação. O Zinner dizia que éramos a família monstro do seriado genial Os Monstros dos anos 1960. Eu era o Herman, o George era o vovô, o Gustavo era o Eddie, o Daniel era a Marilyn e o Zinner era a Lily. A gente chegou a abrir alguns shows com o tema do seriado. O George começou a ficar incomodado com a situação dele na banda. Ele fazia as bases, mas se sentia aquém tecnicamente com a gente. Um dia, ele me ligou e disse: — Pô, Luizão! Tô saindo da banda. — Nossa! Por quê? — Eu fico lá tentando acompanhar vocês e não consigo. Não estou me sentindo bem com isso. — Nada a ver, George! Tá tudo bem. — Pra ficar tudo bem, prefiro ser só seu amigo. Não quero mais tocar guitarra. — Poxa, então tá. Voltamos a ser um quarteto.

Bye, bye

Conheci um ex-músico (sim, eles existem) que veio com uma proposta de fazermos umas camisetas com meu nome. Escolhi fazer temas ligados à marca Rickenbacker. Eu tinha um contrabaixo da marca, uma tatuagem, eu adorava, idolatrava a Rickenbacker! Meu cachorro se chama Rickenbacker. Fizemos as camisetas com os logos antigos das guitarras e baixos, chamei o Rui Mendes pra fazer as fotos de divulgação, e organizei um show no Blen Blen Club pra lançar a coleção. Os Devotos tocariam com a nova formação, com convidados CONTOS DE THUNDER   275

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especiais. Chamei alguns vjs, Didi Wagner e Marina Person fizeram backing vocals, Kid Vinil cantou “Motoboy” com a gente, Edgard, Zé Antonio, Luiz Carlini, Lee Marcucci, tinha muita gente ali. Foi bem legal, lotamos o lugar. Mas foi o último show do Gustavo com a gente. Ele passou do limite e, naquela papagaiada de ficar fingindo destruir sua guitarra, ficou batendo com ela nos pratos do Zinner. Nunca vi o Paulo com raiva, mas eu agi rápido, peguei o Gustavo pelo braço e interrompi a palhaçada. No dia seguinte, ele já sabia que estava fora da banda. Fiquei preocupado com isso e pedi ajuda pro Carlini. Ele me disse que seu filho, Roy, podia encarar o desafio. Nunca havia tocado numa banda, mas ele tinha o dna do pai. Topei na hora! Os primeiros shows com o Roy foram em eventos da prefeitura, organizados pela Soninha, então vereadora pelo pt. Fizemos uns quatro shows em praças públicas para públicos bem diferentes, e o Roy foi aprovado. Isso foi no final de 2003, começo de 2004. Dali pra frente eu começaria a montar outras bandas. E foram muitas!

Catifunda

Eu estava aproveitando todas as oportunidades de me manter em evidência. Algumas vezes, me diverti com isso. Um dia me convidaram pra participar do programa A Praça é Nossa. Esse programa existe desde sempre nas minhas lembranças. Eu topei, claro! Eu estava lá, na coxia, esperando pra entrar em cena e gravar com o Carlos Alberto da Nóbrega, quando percebi uma senhora bem atrás de mim. Era a Dona Catifunda! Fiquei paralisado, com um sorriso besta na cara. A personagem espetacular de Zilda Cardoso, um petardo do humor nacional! — Oi, meu filho, tudo bem? — Caceta! Dona Catifunda! — Eu mesma! — Poxa, sou seu fã! — Ah, meu filho, foi-se o tempo de dar importância pra essas coisas. — Que isso, Dona Catifunda, a senhora é espetacular! — Eu soube que você teve uns problemas, né? — ela disse, com o charuto na mão, um olhar malicioso e, ao mesmo tempo, maternal. — É, mas agora eu estou bem. 276  Lui z

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— Isso aí, meu filho. Eu gosto de você e quero te ver bem, viu! — continuou, com uma expressão séria de tia preocupada. — Obrigado, Dona Catifunda! A senhora é demais! Quando entrei para gravar, fiquei ali pensando naquela personagem me dizendo aquelas coisas. Foi difícil me concentrar no roteiro. Mas o seu Carlos foi muito gente fina. Ganhei até um cachê pela participação. Valeu, seu Carlos! Outra vez foi um pouco antes, quando o Homero Salles estava dirigindo a Escolinha do Barulho, na tv Record. Tinha uns figuras muito loucos ali. E, entre as mulheres-frutas da época, tinham todos aqueles personagens históricos. Homero me colocou como o professor, e adivinha quem era o aluno mais fodão de todas as cocadas… Zé Bonitinho! Isso mesmo, o personagem de Jorge Loredo. Viajei tanto naquela gravação! Na hora em que ele dominava a cena, uma coadjuvante pegou na peruca dele. Ele parou a cena e pediu alguns minutos. O Homero falou no monitor… — Seu José, está tudo bem? — Sim, preciso de um instante pra me concentrar de novo — muito sério, deixando claro que a menina tinha passado dos limites. Não se mexe na peruca do maior galã da tv brasileira! — Isso ficou evidente naquele instante. Eu pelo menos teria dito isso se fosse o Zé Bonitinho. Ele respirou fundo e bradou: — Vamos gravar! Daí, deu um show, um espetáculo, ali na minha frente, com todos os bordões possíveis. — Câmeras, close… Vou dar um tostão da minha voz… Foi um dia muito especial para mim.

Teletonto

Inesquecível, também, foi a edição do Teleton, quando fui parte do júri que escolhia as melhores performances das celebridades que se arriscavam nas artes, no sbt. Numa dessas participações, eu estava ao lado do Cacá Rosset, uma grande figura do teatro brasileiro. Eu assisti a Mahagonny Songspiel, com o Teatro do Ornitorrinco. Cida Moreira estava nessa montagem de Bertolt Brecht e Kurt Weill. Bom, estávamos lá, avaliando as apresentações, tudo ia muito bem, até que anunciaram o ex-boxeador Éder Jofre. Eu via o cara lutando na tv, ele CONTOS DE THUNDER   277

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foi o maior boxeador brasileiro no seu tempo! Muito simpático, anunciou que iria cantar uma música. Surpreendente! Assim que começou, percebi que ele estava totalmente fora do tom. Comentei com o Cacá: — Nossa, ele é muito desafinado! — falei, com certo constrangimento. — Ele levou muita porrada. — Cacá sendo Rosset. — Mas Cacá, acho que isso não tem a ver com educação musical. — Imagina ele levando uma porrada agora! — Rosset na veia! Comecei a rir, primeiro discretamente. Cacá continuou: — Imagina um cruzado agora! Não consegui disfarçar e comecei a rir muito. Depois de um minuto, eu já estava chorando de rir. Cacá não recuou: — Thunder, ele vai terminar de cantar e vai te encher de porrada! A cada sussurro do Cacá, eu ria mais alto, estava descontrolado, as lágrimas escorriam no meu rosto. Cacá se aproveitou… — Você tá rindo agora, mas eu vou rir daqui a pouco… — Cala a boca, Cacá! Eu vou me mijar aqui. — Ah, que delícia. Já posso imaginar as manchetes: “Thunderbird vai pro hospital todo mijado após levar uma surra do ex-campeão Éder Jofre”. Eu não conseguia me segurar, fingi um espirro e me abaixei atrás da bancada. No final, na hora de dar as notas, dei dez pro campeão, enquanto Cacá emulava o Pai Ubu.* Sacanagem! Mas teve o guru do amendoim, que conheci no programa da Rosana Hermann. Ela apresentava um programa na Rede Mulher, “o canal da mulher brasileira”. Sempre achei esse slogan impróprio. Numa das vezes em que fui ao programa, o outro convidado era um guru, que havia sido entrevistado pelo Jô Soares. Ele afirmava que comia um amendoim por dia. Então, estávamos lá, eu e Rosana, ouvindo aqueles absurdos que o “mestre” tentava vender pras donas de casa. Rosana tem o melhor humor judaico brasileiro. Uma olhada dela, pra mim, vale como uma piada perfeita. Dessa vez, consegui disfarçar as risadas, claro, a Rosana foi parceira. Depois do programa, discutimos a tal dieta do guru. Daí as risadas correram soltas com as possibilidades de ingestão do amendoim. — Ah, Thunder, deve ser um amendoim especial de 25 quilos, né? * Protagonista da peça Ubu rei, do escritor francês Alfred Jarry (1873-1907), conhecido pela irreverência e pelo mau comportamento. 278  Lui z

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— Será que ele usa uma seringa de óleo de amendoim com administração parenteral? E assim foi por pelo menos meia hora de risadas.

No rádio

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O meu programa de rádio me ocupava às terças-feiras à noite. E o Alan Terpins estava criando família, correndo maratonas como um super-herói, cuidando dos negócios da produtora dele. Um dia, ele chegou pra mim e disse que não faria mais o programa, mas que eu continuasse com o projeto, o estúdio estaria à minha disposição. Chamei a Joana Ceccato pra fazer dupla comigo no Tapa na Orelha. Ela tinha aquela voz-padrão das chamadas da mtv, era linda, brilhante, entusiasmada, conhecia muita gente do underground musical. Foi uma nova fase do programa que duraria mais uns cinco anos. Toda terça, a gente se encontrava, fazia um setlist, às vezes levava convidados, começou a fazer discotecagens juntos. Foi uma delícia! Rádio sempre foi ótimo. Televisão, nem sempre.

Com a palavra, Joana Ceccato: “O Thunder não faz distinção na forma de abordar um punk ou uma senhorinha que passe por ele na rua. Me dei conta disso certa vez em que peguei uma carona com ele para ir a um evento da mtv. Ele estacionou, mas não sabíamos ao certo onde era a festa. Aí ele pediu informação para uma velhinha que evidentemente não saberia o local, mas em sua cabeça livre de registro de estereótipos, isso era absolutamente possível”. Daquele tipo de gente que Joana queria estar perto, e ela gamou. “Na época do Tapa na Orelha, antes das gravações, ele sempre me pagava um café num restaurante que tinha na frente do estúdio, e falava da vida, ficava pirando em novas pautas, ideias, e o Thunder se divertia com o meu jeito.” E uma boa lembrança de Joana sobre o Tapa na Orelha, no ar, tem? “Tenho. Uma bola fora que dei foi ter perguntado a Sérgio Dias, dos Mutantes, o que ele achava da biografia escrita por Carlos Calado. Ele ficou exaltado e detonou o livro. Disse que o autor tinha inventado várias histórias, inclusive uma que ridicularizava sua CONTOS DE THUNDER   279

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mãe. Nesse momento, não aguentei e soltei uma risada porque achei cômico o episódio que ele descreveu, mas tive que engolir o riso de imediato quando ele me repreendeu.”

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Ele namorava sério. Ele corria sério. Ele se cuidava sério. Ele investia sério. Fazia música sério. Sério?! Mas sem perder o sorriso e o ritmo. Música no ar! E subindo pelas paredes e subindo pelo edifício do Banespa. A ponto de pilotar programa para a ESPN. Maratona e decatleta polivalente. Fascinado por bandas. Muitas bandas! Conectado nas bandas largas da internet. Ascendente em Júpiter. Atirando para todos os lados e ateando todos os fogos antenado nas tendências supernovas. Trilegal. Tricolor tri da América e Mundial.

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SEI LÁ, MIL BANDAS

Os próximos anos seriam de muita música. E algumas decisões importantes também. Eu estava trabalhando e, surpresa, não estava torrando tudo com drogas! Em 2003, eu tinha uma namorada, corria, ia às reuniões de na eventualmente, ensaiava com os Devotos, fazia as coisas que a mtv me pedia. Resolvi comprar um apartamento! Foram meses de busca com um amigo em comum com o Gastão, o Flávio Brito. Ele tinha uma imobiliária e me acompanhava nas visitas aos imóveis. Flávio Brito andava com a gente no começo da mtv. Voltei a vê-lo depois que fiquei sóbrio. Quando me inscrevi na “Corrida dos Degraus” do edifício Banespa, prédio icônico no centro de São Paulo, Flávio Brito me levou ao prédio da mãe dele para treinar as subidas nas escadas. Eu levava as corridas muito a sério! Lembro que no dia da prova subi bem os 35 andares do prédio. O Denilson também estava lá, mas só pra fazer uma reportagem. Denilson apavorava na época, já campeão do mundo pela seleção em 2002, mas nesse dia ele subiu de elevador, malandrão! Lá em cima, na chegada da prova, tinham vários tanques de oxigênio pros atletas. Ainda tenho a camiseta e a medalha dessa prova. Vendo a classificação final, eu fui muito bem. Pra um roqueiro que havia passado por tanta loucura, melhor ainda. As provas da Corpore também me ocupavam os finais de semana. Lembro de uma prova na usp, quando o Marcos Paulo chegou pra mim antes da largada e vaticinou: — Thunderrrrr, você vai terminar aos 43 minutos essa prova! No final, quando cruzei a linha de chegada, a usp inteira ouvia o Marcos Paulo gritando: — Eu falei! Eu te falei! Aos 43 minutos, porra!! 43 minuuuutooooss!! CONTOS DE THUNDER   283

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Eu adorava treinar com o Marcos Paulo, com o Fabio Rosa, o Cesar, o Fabio Costa, a Manuela, o Pita, enfim, uma turma muito legal.

Maratona Thunder

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Eu estava tanto nessa onda e nesse pique que resolvi fazer um piloto para um programa pra espn. Chamei o Alê Primo pra dirigir e rodamos o Corra, Thunder! Corra!, que a equipe de marketing da espn adorou, mas não teve coragem de apresentar pro José Trajano, diretor-geral da emissora, conhecido por seu mau humor em relação a outros esportes que não se relacionassem com futebol. Lastimável, pois o programa ficou bem legal, a corrida de rua era um fenômeno em São Paulo, e cresceria no Brasil inteiro nos próximos anos. Finalmente achei um apartamento bacana, no bairro do Morumbi. Ele ficava de frente pra uma fazenda, ou seja, de manhã eu ouvia as vacas mugindo, e de noite, os sapos coaxando. Curti muito aquele apê, muita coisa aconteceu ali, vocês verão! A empolgação de estar num imóvel novo durou um ano, até eu perceber que levava uma eternidade pra chegar aos lugares onde tocava. Resisti por uns cinco anos ali. Mas era um problema pra gravar os programas de rádio, ensaiar, passar o som e fazer os shows, ir ao aeroporto, visitar a família, receber visitas dos amigos. Não era simples dizer “passa lá em casa”. Era um prédio pequeno, as reuniões de condomínio eram muito chatas, o síndico tinha dado um golpe nas contas, essas coisas me enchiam o saco. Mais uma ação de marketing da mtv com a Nike me levou pro Rio de Janeiro. Era o Panna K.O., um desdobramento do Nike Park. Lembro que sempre tinha um show no final. Em São Paulo, esse show foi com a Pitty. No Rio, quem encerrou foi o Detonautas Rock Clube. Mas o barato era ficar vários dias no Rio. Levei raquetes de tênis e, nas horas vagas, eu e o Caju íamos pra quadra do hotel. A gente corria na praia, quanta saúde! Eu e o Caju assistindo à desclassificação do São Paulo contra o colombiano Once Caldas, na semifinal da Libertadores de 2004, balançou o hotel. Nós dois são-paulinos, ficamos importunando os hóspedes até a madrugada. Toda essa atividade esportiva me trouxe uns problemas. Três fraturas por estresse me incomodavam muito. O Caju me levou ao estádio do Morumbi, pra me apresentar ao departamento de fisioterapia do São Paulo Futebol Clube. 284  Lui z

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Me receberam muito bem e passei uns três meses indo ao estádio pro tratamento. Lembro que numa dessas idas parei no farol e vi no carro ao lado o tenista Flávio Saretta. Desci do carro e dei um disco dos Devotos dnsa pra ele. Naquela época ele estava em alta, ganhando torneios e tal. Eu sempre assistia às transmissões dos Grand Slams na espn. A minha frequência no spfc me proporcionou algumas experiências interessantes. Comecei a me enturmar com o pessoal da diretoria. Ganhava ingressos, ia aos jogos. Mas teve um dia mais especial, quando o time foi treinar no Morumbi, um dia antes de uma partida. Subi ao gramado com um disco dos Devotos na mão. Rogério Ceni estava treinando. Aguardei o final do treino e, antes de ir na direção dele, ele veio ao meu encontro. Dei o disco pro m1to e ele me deu sua camisa autografada! O goleiro goleador roqueiro tem meu disco! Anos depois, dona Cida lavou a camisa, apagando parcialmente o autógrafo do Rogério. Usei todo o meu zen-budismo antes de proibi-la de se aproximar do presente que o maior goleiro da história do futebol mundial havia me dado. Entrevistei o Rogério Ceni no Tapa na Orelha. Lembro que foi bem rápido e formal, pelo telefone. Foi na mesma época em que tinha acontecido aquele lance entre ele e a Milly Lacombe, no Arena SporTV. Eu estava assistindo ao programa quando aconteceu o lance. Fiquei na pior bronca com a Milly. Ela se precipitou e anunciou algo em relação a uma possível transferência do Rogério Ceni pro futebol inglês. Foi só em 2016 que pude entender aquela coisa toda. Convidei a Milly pro Thunder Radio Show e, em determinado momento, perguntei a ela sobre o episódio. Ela foi maravilhosamente humilde e grandiosa, admitindo que tinha sido tola, confiando numa fonte, sem apurar devidamente os fatos. Eu me apaixonei ainda mais pela Milly. Depois, só conseguia pensar no quanto fui babaca na época. Sim, eu fui um tremendo babaca! Você já foi babaca hoje? Lembra da última vez que você foi babaca? Então, eu me sinto muito mal quando lembro das vezes em que fui um completo babaca. Se você nunca foi babaca nenhuma vez na vida ou você sabe se enganar muito bem, ou você nem devia estar lendo essa biografia. Pode parar por aqui. Este livro é pra pessoas que experimentaram a babaquice pelo menos uma vez na vida, desculpe. Outra coisa, você já comprou este livro. Então, se você nunca foi babaca, dê este exemplar pra alguém que você conheça que já foi babaca. Se você não conhece ninguém que se encaixe nesse perfil, você é um tremendo babaca! CONTOS DE THUNDER   285

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Música, maestro!

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Eu precisava ocupar meu tempo com música. Isso sempre me fez muito bem. Os Devotos dnsa faziam shows em festivais de rock, a gente encarava umas viagens por cidades do interior de São Paulo, pelo país, isso era muito divertido. Tocamos algumas vezes em Londrina, no festival Demo Sul. Numa dessas vezes, convidei o Paulo Barnabé pra cantar “Chapeuzinho Vermelho” com a gente. Ele nasceu em Londrina, estava com saudades da cidade e topou viajar uns quatrocentos quilômetros pra fazer esse show com a gente. Teve a turnê pelo Rio Grande do Sul, onde fizemos nove apresentações em sete dias. Dessa vez, nos juntamos a uma banda que estava começando na estrada, Identidade. Eles tinham lançado o primeiro disco e tinham aquela disposição de se jogar, dar cambalhotas e sair num rolamento judoca. Imagine duas bandas, nove pessoas dentro de uma van, tocando todos os dias. Ficamos muito amigos, tanto que mais tarde nos encontraríamos várias vezes.

Júpiter

O Tapa na Orelha prosseguia levando artistas que considerávamos bacanas pra gente entrevistar. Em 2004, convidei o Flávio Basso, conhecido como Júpiter Maçã. Ele foi com a Talitha, sua namorada na época. Depois do programa, combinamos de nos encontrar pra conversar mais. Ele morava no edifício Copan e nossa amizade evoluiu para uma banda rapidamente. Eu dizia que ele precisava tocar, que seria legal montar uma banda para acompanhá-lo e teria o maior prazer em ser o baixista dessa banda. Assim foi. Clayton Martin na bateria, Ray Z na guitarra, Pinguim no teclado, eu no baixo, Júpiter no vocal, Talitha no backing vocal. Fizemos shows em São Paulo, num festival em Goiânia, em Brasília. Eu sou um grande fã do Júpiter, estar no palco com ele me trazia felicidade. Mas os problemas com o álcool já se manifestavam fortemente nele. Em 2005, as coisas iam mal. A gente fez uma apresentação no teatro do Sesi na avenida Paulista, e ele não conseguiu fazer o show direito. Eu, pelo contrário, estava muito sóbrio. Depois de muitas conversas sobre o tema, ofereci auxílio da melhor forma possível. Fui até a Vila Serena e pedi ajuda. Uma internação na Vila custava muito caro. Mas eu já havia ajudado a Vila, divulgando o bom 286  Lui z

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trabalho realizado ali em várias ocasiões. Eles ofereceram uma internação gratuita pro Júpiter. E ele topou encarar o desafio. Foram 28 dias no mesmo lugar onde eu me tratei, onde o Nasi se tratou no mesmo ano de 1997, onde o Raul Seixas tentou e não conseguiu. O mesmo violão do Raul que me ajudou na Vila, agora estava na mão do Júpiter. A gente ia visitá-lo todos os fins de semana, e parecia que ele estava muito bem. Todos na clínica adoravam o Flávio. No dia em que ele teve alta, eu estava lá, com a Talitha, pro ritual de entrega da chave da Vila. Eu tinha certeza de que a vida dele iria mudar, que a carreira dele iria decolar, que eu teria mais um amigo que entenderia o meu processo de recuperação. Saímos da Vila, deixei ele e a Talitha no Copan e fui pra casa. No dia seguinte, Talitha me ligou dizendo que o Flávio tinha descido pra comprar cigarros e voltou completamente bêbado. Ele não havia se rendido, talvez ainda não estivesse pronto pra encarar os desafios na rua, não sei. Ele estava quebrado financeiramente, e eu montei a Orquestra Jupiteriana pra fazer um show no Blen Blen Club pra arrecadar uma grana, pra que ele se mantivesse por alguns dias, pelo menos. O Zé topou, ensaiou, mas não fez o show. O Clayton tocou bateria no lugar dele. A Joana Ceccato participou, o Ray Z, a Talitha, o Tatá Aeroplano, o Wander Wildner (que era dos Replicantes), o André Peticov, que pintou uma tela ao vivo, seguida de um leilão em que ninguém deu nem um lance sequer. Acabei comprando a tela e dando o dinheiro pro Flávio. Um dos músicos que participou desse show foi Charles da Flauta. Sim, ele era conhecido pelo instrumento que tocava. Ele começou com os irmãos, tocando no centro da cidade, arrecadando grana pra família. Alguém descobriu o Charles e ele começou a ser convidado pra shows de grandes artistas. Chegou a tocar com o grupo Fundo de Quintal. Mas, como eu, ele era dependente químico e isso foi determinante pra sua caminhada no mundo da música. Conheci Charles no grupo de recuperação. Nós estávamos limpos, e quando falei pra ele do show pro Júpiter, ele fez questão de participar. Depois de um tempo soube que ele estava doente, tinha tropeçado na recuperação, tentei achá-lo sem êxito. Os amigos do Flávio fizeram o possível por ele, mas dependeria dele mesmo, com uma nova tentativa de se manter sóbrio. Isso viria a acontecer anos mais tarde. O Zé, na época liderando a banda Borderlinerz, era versátil. Tocava bateria muito bem, guitarra, cantava dentro do tom, era espirituoso e animado. Depois desse encontro com a Orquestra Jupiteriana, convidei o Zé pra entrar nos CONTOS DE THUNDER   287

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Devotos dnsa. Ele topou e passamos a fazer shows com dois guitarristas. Isso deu uma animada na banda, a gente tocava nos clubes de rock da cidade, cb Bar, na Barra Funda; e Astronete, Inferno e Outs, na Augusta. Foi um período de muita efervescência musical roqueira em São Paulo. Mas eu queria mais!

Bandas, bandas! Eu quero bandas!

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A ideia de montar uma banda com a geração roqueira dos anos 1990 começou a me perseguir. Foi assim que nasceu a banda Pork-a-Light. O nome veio numa festa do vmb, quando encontrei o John e a Fernanda Takai. A gente estava no bar e o John perguntou o que eu queria beber. — Coca light, por favor! — O quê? Porca light? — Caramba, John! Que nome louco pra uma banda! — Qual? Coca light? — Não. Pork-a-Light! Valeu, mano! A banda começou com Rodrigo Carneiro, que era da banda Mickey Junkies e depois trabalharíamos juntos no Showlivre; o Pedrinho Rosas, que era da Killing Chainsaw; e o Zé Antonio, que era do grupo Pin Ups. Era o encontro de velhos amigos dos anos 1980, no antigo Espaço Retrô, onde nossas bandas tocavam o tempo todo. Começamos a ensaiar pelo menos uma vez por semana, no sp Studio, na rua João Moura, em Pinheiros. A gente chegava no estúdio, começava a tocar um tema, ele ia evoluindo, e o Rodrigo só escutando. Ele compôs todas as letras durante os ensaios. Era muito legal ver as músicas se formando daquele jeito. Não eram dias fáceis para Rodrigo Carneiro. “Tive um piripaque de estresse, estava num péssimo momento, e me foi receitado ter atividades lúdicas.” Não que Thunderbird seja a resposta para todas as aspirações lúdicas que um analista indica, mas a música realmente transforma. “Encontrei o Thunder em um show, e ele me disse que estava encontrando um pessoal, Zé Antonio, Otávio, Pedro, senti que estava me abrindo a porta também. Não demorou para eu ir encontrá-los, e começamos a fazer umas coisas.” Essas coisas atendem por Pork-a-Light, banda que, se não ganhou nenhum desses

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Grammy que o Thunder adora assistir, deixou bons frutos pelo caminho, e o Carneiro concorda: “Gosto das letras e do resultado que a gente conseguiu com o Pork-a-Light. Até acho que podíamos ter encarado mais a estrada, mas tudo bem também, foi como tinha que ser”.

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Mas o Zé apresentava uns problemas e isso foi dificultando a dinâmica da banda. Logo ele foi substituído pelo Otavio, que trabalhava na mtv como produtor. Ele era o jovem da banda, nada virtuoso, mas com muito bom gosto pra riffs e efeitos. Em menos de um ano, tínhamos repertório pra um disco. As músicas ainda estão no MySpace, o site daquela época pra disponibilizar os trabalhos das bandas independentes. Fizemos alguns shows memoráveis. Num deles, num festival de Cubatão, fomos os headliners. Era um festival de heavy metal e nosso som era pós-punk. Mas posso afirmar que impressionamos a molecada. Nosso cover de “Damaged Goods”, dos ingleses Gang Of Four, ganhavam a plateia. Quando acertamos de gravar o disco no estúdio Wah-wah do guitarrista Michel Kuaker, levei o Paulo Barnabé pra ser o produtor musical do disco. Ele foi muito tranquilo com a gente. “E algo escapa a todos os jornais” foi lançado de forma independente. O desastre começou pelas mãos do produtor Rick Bonadio. Ainda estávamos terminando as mixagens do disco, quando o Pedrinho recebeu um telefonema do sr. Bonadio, convidando-o pra ser o substituto do Japinha, baterista do cpm 22 e da banda Hateen. Acontece que Japinha tinha prioridade com o cpm 22 e não poderia fazer todos os shows com as duas bandas. Pedrinho seria seu sub no Hateen. A possibilidade de ganhar uma boa grana era grande e Pedrinho aceitou o convite. Ele não ganhou tanta grana assim, o Hateen voltou a seu lugar no underground, Pedrinho saiu do Pork-a-Light e a banda ficou meio capenga. Chamei o Zé pra tocar bateria na banda. Logo depois, o Otavio entrou numas de ser fotógrafo e acompanhar o cpm 22 nas turnês. Ele foi substituído pelo Kuaker, que era o técnico de som do cpm 22. Fizemos alguns shows com essa formação. Lembro bem de um especial, na Outs, quando o Kuaker fez uma manobra de retorno na rua Augusta e fechou um valentão. O sujeito parou o carro no meio da rua e ameaçou o Kuaker. Fui pro lado do Kuaker e espantamos o nervosão. Aquele show foi mais punk que o usual. O Zé tinha começado com o Holly Tree, banda que fez sua imagem no Hangar 110, reduto do hardcore melódico. A banda fez mais alguns shows até CONTOS DE THUNDER   289

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percebermos, eu e o Carneiro, que aquilo não iria a lugar nenhum. Até hoje fico pensando em todas essas associações com aquela onda pré-emo e na maldição Emo/Bonadio, que foi fatal pro Pork-a-Light.

Mundial! Sim, tricampeões mundiais!

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Em 2005, depois da dolorida eliminação na semifinal de 2004 na Colômbia, o São Paulo estava indo muito bem na Copa Libertadores da América. Era um time muito bom, liderado pelo Ceni. Um amigo, também são-paulino, resolveu bancar um documentário sobre a campanha do time. Pediu que eu fizesse uma música pra Torcida Independente e participasse de uma gravação no jogo entre o São Paulo e o River Plate, no Morumbi, a primeira partida da semifinal. Compor, arranjar e gravar a música foi fácil. Chamei o Clayton Martin e o Pinguim e gravamos no estúdio do Clayton. Lembro que saí do estúdio direto pro show da Patife Band do Paulo Barnabé no teatro do antigo Hotel Crowne Plaza, na rua Frei Caneca. O teatro ficava no subsolo e quando estava descendo, dei de cara com o Jô. Não, não Jô Soares. O Jô, atacante do Corinthians. Nos cumprimentamos e perguntei se ele gostava de rock. Ele respondeu que não. — Ah, que pena! Senão ia te mandar a música que gravei agora há pouco. Chegou o dia do jogo e fui com uma equipe reduzida pro estádio do Morumbi. Conheci a diretoria da Independente, e eles me convidaram pra assistir ao jogo com eles, junto à bateria que dava o clima festivo pro jogo. Aceitei, claro. O jogo foi muito tenso. No intervalo, o clima estava bem pesado. O juiz deu o apito pro início do segundo tempo quando o presidente da torcida, um sujeito bem grande, se desequilibrou e caiu em cima de mim. Rolamos uns dois lances de arquibancada. — Segura o Thunder! — berrou alguém. A animação virou consternação. Chegou um momento em que se ouvia que talvez o cameraman fosse corintiano, essas coisas. Ouvi coisas do tipo “Acho que esse Thunder é pé frio…”. Eu só pedia um gol. Um golzinho apenas. De lá da arquibancada deu pra ver aquela cena do argentino enfrentando os pms. Depois, na tv, vi que ele usou um pm de escudo, enquanto socava os que se aproximavam. As coisas estavam esquentando até o momento do gol do Danilo, aos trinta minutos do segundo tempo. Foi uma loucura. Todo mundo à nossa volta enlouqueceu. Depois teve o gol do Ceni, e a festa foi completa. A gente 290  Lui z

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saiu do estádio na maior euforia. Naquele ano, o São Paulo seria campeão da Libertadores e ganharia mais um campeonato mundial no Japão, em cima do Liverpool, com outro show do Rogério.

Os fab four do Mussum

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Então foi a vez de montar uma banda pra tocar o repertório dos Beatles. Já havia várias bandas que faziam isso, que até se vestiam como os caras, usavam perucas, imitavam os Beatles de verdade. A minha ideia era fazer uma banda que tocasse as músicas sem essa preocupação de ser uma cópia. Chamei o Jeff Molina, o Zé e um amigão do na, o Fabinho. Juntos formamos a banda Los Beatles Forevis, um jeito Mussum de homenagear os fab four. Começamos num bar no Itaim, de propriedade do filho do João Armentano. A ideia era um show informal. Nós ficávamos numa sala, com sofás, como se estivéssemos em casa, tocando pra nós mesmos. Numa dessas apresentações, Junior Lima estava lá. Não me arrisquei em chamá-lo para uma canja. Mas, pensando bem, deveria ter feito isso. A gente ficou com medo de ele cantar com vibrato. O estigma de criança filho de sertanejo ainda assombrava o Junior, irmão da Sandy. Eu não sabia, mas ele queria justamente se afastar disso, tanto que montou a banda Nove Mil Anjos, com o Peu e o Champignon um tempo depois. Lembro que eles ensaiavam no estúdio do Showlivre. Eu editava o meu programa e eles ficavam os três trancados no estúdio. Mas depois eu conto essa. Los Beatles Forevis fazia sucesso nos clubes de rock. Sempre que a gente tocava no cb a casa ficava lotada. Fizemos um barulho em São Paulo e começaram a nos contratar para shows fora do estado. Numa dessas viagens, fomos pra Santa Catarina. Tocamos em Blumenau e fomos pra Camboriú. Ficamos no apê da família do Fabinho, e o Zé estava apaixonado pela ex-namorada de um antigo integrante dos Devotos e que, naquela época, namorava um músico conhecido. Falei pra ele que isso era um lance bem errado e perigoso. Ele não me ouviu. Isso traria problemas pra ele num futuro próximo, quando tive que protegê-lo no camarim do Astronete. Nesse dia em Camboriú batemos nosso recorde. Fizemos mais de trinta músicas, sem parar, com mais de três horas de show. A banda ia bem, mas o Fabinho estava pirando com aquilo. A gente sabia que era uma coisa passageira, logo estaríamos fartos das músicas dos Beatles. Ele entrou numas de contratar assessoria de imprensa, então chamei a Marilda pra isso. Ela era demais! Eu CONTOS DE THUNDER   291

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brincava com ela, dizendo que a dupla Marilda & Marildo, seu esposo, eram como Lennon & McCartney dos assessores. O fim da banda foi num show no cb Bar, sempre lotado, quando convidei o Serginho Serra pra dar uma canja com a gente. Eu havia conhecido o Serginho no cb, quando ele fez um show com Wander Wildner e ficamos amigos. Bem, o Serginho subiu no palco, esmerilhou na guitarra e provavelmente intimidou o Fabinho. Ele era tão doido que tinha contratado um personal photographer pra essa noite. Aquilo tinha ficado muito chato. Eu estava mesmo de saco cheio de ficar cantando “She Loves You”. Foi o fim! O sonho tinha acabado, não pra nós, mas pro Fabinho.

O sonho começou

Depois do mencionado show no cb do Wander com o Serginho, fui convidado pra formar o trio Sub Versões com eles. Dois violões, um baixolão, três vozes, ou seja, muito simples, muito fácil, muito prático. Fizemos vários shows, temporadas inclusive. Numa dessas temporadas, no Bar Geni, ficamos mais de um mês como residentes. O repertório tinha versões em português de clássicos do rock, músicas do Wander, minhas e uma do Ultraje a Rigor, “Ciúme”. Serginho Serra ainda tocava no Ultraje nessa época, ele é um guitarrista espetacular. Ele respira rock, blues e seus derivados. Tê-lo no palco ao meu lado foi uma honra e um prazer. Era evidente o prazer que ele tinha de estar tocando. Tanto que convidei o Serginho pra fazer parte de outra banda: Oldsmobile Special Edition, com a Monique nos vocais, o Ricardinho Kriptonita na guitarra, eu no baixo e vocais e Serginho como megaguitarrista. Fizemos poucos shows, mas ganhamos uns trocados e nos divertimos muito juntos. Sub Versões acabou de forma melancólica. A gente tinha um show no Centro Cultural São Paulo e o Serginho se mudou para Petrópolis. Ou seria Teresópolis? Nem lembro, mas me vi numa situação difícil, pois já havia assinado um contrato para esse show. Liguei pro Wander e propus que fizéssemos a apresentação só nós dois, como já havíamos feito em Belo Horizonte, mas o Wander não topou. Isso foi muito ruim pra mim, pois tive que justificar a quebra do contrato. Nunca mais toquei com o Wander. Nunca mais! A Clara Averbuck tinha me avisado sobre essas coisas, mas não dei atenção. Bem-feito pra mim. 292  Lui z

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Eu não ia ficar lamentando essa parada. Em vez disso, montei outra banda: Fuck Berry, que fazia versões das músicas do Chuck Berry em português. Chamei o Ricardinho Kriptonita, que já estava comigo nos Devotos dnsa, pra guitarra, o Zé pra bateria, o Gaspa, que tinha saído do Ira!, pra tocar baixo, e eu fiquei com a guitarra base, vocais e letras. A gente se divertia muito com essa banda. Com o tempo, acrescentei clássicos da Jovem Guarda e umas músicas do Eddy Teddy. Era um show dançante, as pessoas curtiam pacas. Mas o Zé não durou muito tempo nessa banda, logo foi substituído pelo Felipe Maia na bateria. Essa banda teve sua correspondente em Porto Alegre, Flaming Birds, que fazia o mesmo repertório, mas com músicos gaúchos. Lucas Cabelo Hanke no baixo, Maurício Fuzzo na guitarra solo, Julio Sasquatt na bateria. Eu ia pra Porto Alegre, a gente entrava no Fiat Uno do Julio, lotado de instrumentos, e percorríamos cidades do Rio Grande do Sul. Foram duas turnês com essa turma. Ótimos músicos, grandes parceiros. Aquele Fiat nos levou pra todos os lados. Ganhávamos uma grana, dávamos muitas risadas na estrada, eu não via a hora de repetir a dose.

É fogo

No dia 16 de agosto de 2008, Júpiter, que havia se mudado pra Porto Alegre, estava em São Paulo pra fazer um show no cb. Ele me convidou pra tocar baixo e, claro, aceitei. Fui ao cb pra passar o som e o Júpiter não apareceu. Perguntei pro pessoal da banda se estava tudo bem, e eles me contaram que meu amigo estava abusando do álcool descontroladamente. Fiquei preocupado, mas, naquele dia, não tinha o que fazer. Era esperar pela chegada dele e fazer o show. Casa cheia, quase na hora de entrarmos em cena, aparece o Júpiter, meio cambaleante. Lucas me avisou que ele estava bem mal e teríamos que improvisar um pouco. Começamos o show, Lucas na guitarra, Sasquatt na bateria e eu no baixo. O camarim do cb ficava ao lado do palco, no segundo andar. Consegui ver o Júpiter tentando descer a escada, com muita dificuldade. Depois de um improviso de uns dez minutos, ele chegou ao microfone, completamente bêbado. O show foi um desastre. Ele não conseguia cantar. O Lucas e eu e fizemos as vozes, cortamos parte do repertório e o público se dividiu entre a decepção e o escárnio. Dava pra ver algumas pessoas rindo da situação. Os donos da casa, meus amigos e fãs do Júpiter, foram muito bacanas e entenderam que a coisa CONTOS DE THUNDER   293

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fugiu do controle. Ali, tomei a decisão de conversar com meu amigo. Saímos todos do cb, na Barra Funda, em direção ao hotel em que eles estavam hospedados, na rua Augusta. Era madrugada e, no caminho, passamos pelo Teatro Cultura Artística, em chamas! O teatro nunca se recuperou desse incêndio. Já no hotel, tive uma conversa séria com toda a banda e com o Júpiter. Deixei claro que, daquele jeito, ele estaria em apuros, comprometendo sua carreira, sua saúde, nossa amizade. Não sei se ele entendeu, mas no dia seguinte, Claudia, a irmã dele, passou no hotel e o levou para mais um período de tratamento. Nos meses seguintes, ele se tratou, depois ficou na casa da Claudia por um bom tempo. Eu e o Tatá Aeroplano fizemos algumas visitas a ele nesse período com a irmã, e o Flávio Basso estava de volta. Parecia bem, no caminho da reconstrução. Foi um alívio pra todos — pra todos os amigos, pois sempre tinha alguém querendo puxar o Flávio de volta pro desastre. Gente baixa, mesquinha, de caráter duvidoso, aproveitadora da situação, que preferia o Júpiter Maçã doidão pra poder se aproveitar disso.

Thundernet

Meu programa no rádio estava chegando ao fim. A Joana tinha se afastado pra cuidar das locuções na mtv e de sua banda — Biônica. Depois de mais um ano, resolvi que não dava mais. Só voltaria pro estúdio A Voz do Brasil em 2009, pra gravar o terceiro disco dos Devotos dnsa. Ainda em 2008, resolvi fazer um programa na internet. Gravei dez edições do Thundervox numa produtora, com a ajuda do Ralf, filho do meu amigo André Peticov. Foi o esboço do que viria a ser o Thunderview, que estreou no mesmo ano. Esse sim, um programa muito bacana, exibido no site Showlivre. Hoje todas as entrevistas estão no canal deles no YouTube. Os próximos anos seriam de voltas, revoltas e reviravoltas. Anos terríveis, mas absolutamente necessários para a retomada da minha carreira na música e na tv.

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Dando vez e voz ao amor. Produzindo disco da namorada, montando banda de covers, desfazendo relacionamento… Foguete sem escala pra Júpiter. Maçã tentadora do paraíso. Tragando charuto, cigarrilha, cigarro. Largando tudo e voltando. Todo largado e se levantando. Apaixonando-se e decepcionando-se em 78 RPM até se atirar no novo disco dos Devotos. Atuando no cinema com craques. Aturando game show do Justus. Atacando Tarantino nas trilhas. Atracado com novo amor. E voltando, no final das contas que não fechavam, pra televisão de casa…

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DISCOS, CINEMA, PEDALADAS, CORAÇÃO DESPEDAÇADO E A VOLTA PRA CASA

Os Devotos dnsa precisavam de uma mudança de novo. E ainda teriam outras. Éramos um quinteto com três guitarristas. Mas a gente não chegava a lugar algum. Comprometimento é um dos fatores mais importantes numa banda. Chegou um momento em que o Roy Carlini não parecia mais interessado em contribuir. Os Devotos levaram o filho do Luiz Carlini para viver o rock ‘n’ roll e estava na hora de ele alçar outros voos. Ele saiu dos Devotos para tocar na banda Velhas Virgens. Eu sabia que a gente não precisava de três guitarristas, mas sim de um amigo, um parceiro, um cara que gostasse de estar com a gente e contribuísse com a banda. Eu tinha me reaproximado do Marcelo Binaghi havia pouco tempo. A gente se conhecia desde os anos 1980, quando ele era da banda Intervenção e eu já estava com os Devotos. Tocamos juntos em diversas ocasiões. O Bina foi um dos amigos que se afastaram de mim na época das loucuras extremas. Nos reencontramos em 2008, no show da banda francesa Nouvelle Vague, no Sesc Pinheiros, e a partir disso passamos a nos ver bastante. Ele tinha formado uma banda de hardcore melódico, Houdini, em 1998, que teria feito muito sucesso. Era da mesma geração do cpm 22, Sugar Kane, Street Bulldogs, nx Zero, Hateen, mas o grupo sucumbiu perante as expectativas de fazer o que era necessário para chegar lá. Só posso agradecer por isso, pois, caso contrário, ele não viria a ser o mais novo integrante dos Devotos, em 2009. Eu precisava de um grande amigo ao meu lado. A coisa era mais ou menos assim: o Roy saiu da banda sem dizer tchau, o Ricardinho dizia “tchau” mas não ia embora, e o Zé parecia que nem estava lá. Aliás, o Zé seria o próximo a deixar os Devotos, um ano depois. Com o Bina na banda, eu podia CONTOS DE THUNDER   297

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revezar o baixo com ele e ficar mais livre com a guitarra base e me desenvolver mais nos vocais.

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“O Thunder queria alguém para dividir um pouco o baixo com ele, e como eu toco baixo e guitarra, começamos a dividir essas funções. Aceitei na hora, mesmo numa época sem muito tempo para me dedicar à banda. Essa divisão foi importante para ele evoluir na criação e nos vocais, o que foi notável para todo mundo”, comenta Marcelo Binaghi sobre o amigo.

Carreira sem solo

A Monique, minha namorada, decidiu que queria tentar a carreira musical. Ela tinha uma voz linda, um gosto musical apurado, tocava piano, dominava a língua inglesa, tinha tudo para ser musicista. Eu achei a ideia ótima, tinha certeza de que ela ficava incomodada de ser reconhecida apenas como “a namorada do Thunder”. Nos eventos, os fotógrafos vinham com suas máquinas e a pergunta a ela sempre era “Quem é você?”. Estava mesmo na hora de ela realizar seu sonho de se tornar uma artista. Os Devotos estavam em marcha lenta, o Pork-a-Light tinha acabado, o Los Beatles Forevis estava me saturando… Resolvi ser o produtor musical dela. Era um trabalho difícil, pois eu participava da escolha dos músicos, do repertório, dos arranjos. Eu me envolvi completamente nisso, por amor mesmo. Já que ela tinha se decidido, eu queria que tudo fosse o mais espetacular possível. A gente não estava muito bem, até nos separamos, mas foi por pouco tempo, coisa de um mês. Montamos uma banda de covers, Oldsmobile Special Edition, que fez alguns shows. Mas Monique já tinha repertório para um disco, e corremos atrás desse projeto. Depois de algumas apresentações com uma banda ordinária, chegamos a uma formação razoável. Meu erro foi abandonar meu trabalho nos Devotos e tentar ser produtor dos shows e do disco. Isso me desgastou muito. Com a minha banda, eu tinha autonomia e sabia lidar com os problemas e as dificuldades. Para a Monique, eu enquanto produtor tinha que fazer com que tudo saísse perfeitamente, o que é impossível. A cada obstáculo, eu me jogava de cabeça, e ficava mal quando as coisas não saíam nos trinques. Foi um período muito difícil pra mim. Nosso relacionamento se destruiu nessa fase. Mas, se a prioridade passou a ser o disco 298  Lui z

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de estreia dela, que acontecesse de qualquer forma. A gente passou semanas ensaiando, escolhendo as músicas. Pedi pro Júpiter ceder “A Lad & a Maid in Bloom”, uma das minhas músicas preferidas nesse disco. James Miller se dispôs a fazer as percussões nas faixas, Paulo Zinner topou gravar duas músicas tocando a bateria. Gravamos as faixas no estúdio dos irmãos Garbato. Guilherme Garbato, o Garnizé, que eu conhecia da banda Os Abimonistas, foi um grande parceiro nesse disco. Tive muito trabalho nas mixagens, pois o único músico da banda que era profissional era o baixista Maurício Biazzi, que tocava também na Patife Band, do Paulo Barnabé. A essa altura, eu e a Monique já havíamos nos separado, dessa vez sem volta. Foi horrível, pois tínhamos tentado uma reaproximação dois meses antes, quando até fomos a um cartório e registramos nossa “relação estável” oficialmente. Eu nem sabia que ela já estava com outro cara quando o Garnizé me contou. Fiquei bastante indignado e furioso. Cheguei a procurar o novato pra um acerto de contas. Foi ridículo pra todas as partes. Eu intimando o sujeito pra um “papo sério”, ele se esquivando, a Monique tentando evitar o confronto. Hoje eu dou risada daquilo, mas no dia eu queria deixar claro que não gostei da talaricagem do rapaz. Fiquei na porta do Berlin, casa noturna de jazz e rock na Barra Funda, esperando a oportunidade de extravasar meus “sentimentos”, até que alguém chamou a polícia. Mesmo assim, prossegui mixando o disco. Garnizé me disse que a Monique ligou para ele, preocupada que eu boicotasse o álbum de alguma forma. Era uma indignação após a outra. Terminei a mixagem, depois acompanhei a masterização, entreguei a máster e caí na real. Se aquilo tudo tinha que terminar, eu pelo menos faria a coisa certa. E estava lançado o Lola. Não ouvi o disco depois disso. Demorou uns bons anos para voltar a falar com ela. Hoje está tudo bem. Mas, na época, foi um golpe duro e inesperado. Fiquei mal por alguns meses.

Levanta a poeira

Sempre surge alguma coisa para nos tirar dessas fases bravas. E veio na forma de música! Música e charutos. Meu amigo Cassiano foi um dos que me socorreram. Ele sempre fumou charutos. Começamos a fumar charutos finos, eu precisava de alguma mudança na vida. Dos charutos, fui para as cigarrilhas. CONTOS DE THUNDER   299

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Quando percebi que estava tragando as cigarrilhas e fumando até a bituca, passei pros cigarros. Depois parei. Voltei e depois parei de novo. E voltei de novo. Ainda paro com essa bobagem, tenho pensado nisso. Meu programa na internet, Thunderview, estava a todo vapor. Eu entrevistava músicos que achava relevantes e me divertia muito com isso. Uma dessas entrevistas foi com Arrigo Barnabé. Abri o programa tocando piano, com uma escala dodecafônica. Foi só uma frase, mas acho que ele curtiu a parada. A melhor coisa num talk show é quando existe sintonia entre as partes. Sempre fui muito fã do Arrigo, ganhar o respeito dele era uma tarefa séria. Acho que sempre que entrevistei o sr. Clara Crocodilo fui feliz. E outras figuras incríveis. Seu irmão, Paulo Barnabé, participou do Thundeview também. A gente gravou no Instituto Tomie Ohtake e até comentou sobre as carambolas gigantes que ladeiam o edifício, falamos da no wave que ele trilhava com a Patife Band. Ele sabia que eu era fã da banda. Tanto que, em 2011, me chamou para tocar baixo. Foram dois meses de ensaio na minha casa. O Paulo chegava, a gente tomava café e começava a estudar as músicas. Eu ficava desesperado, pois não escrevo partitura. Ele me acalmava: — Calma, Thunder. São módulos, eles se repetem… — Sim, eu sei disso, mas você tinha que fazer os módulos mais difíceis da face da Terra? Ele ria e a gente ficava lá, por horas, ensaiando. No dia do show, estava estabelecido que seríamos um trio, sem bateria. Paulo Barnabé na guitarra, Paulo Braga no piano e eu no baixo. Pra mim, a ausência de bateria dificultava ainda mais. O show foi no Sesc Consolação e foi tenso! Inclusive, tocamos a música “Tô tenso”… Tô tenso. Tô tenso. Tô tenso. Tô travado. Propenso. Propenso. Propenso… ao suicídio!

Eu suava que nem as típicas fontes luminosas das cidades do interior paulista. Ao término do show, pedi ao Paulo pra nunca mais tocar aquelas músicas com ele. Só voltei a fazer isso em 2012, no aniversário de 25 anos do lançamento do disco Corredor Polonês da Patife Band, no Sesc Belenzinho. Mas o Paulo foi bacana e toquei as três músicas mais fáceis. Lembro que, quando saí do palco, Arrigo Barnabé falou: 300  Lui z

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— Que beleza, hein, Thunder… estudou direitinho, né? — Com aquele sorriso Clara Crocodilo dele.

Paixões

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Voltando ao Thunderview, eu gravava o programa e acompanhava a edição. O editor era um cara sério, meio enfezado, atleticano de Minas Gerais, competente, mas eu era implacável com os detalhes. Frames me incomodavam. Ele foi muito paciente comigo. Aprendi bastante com o Thunderview, principalmente sobre o fator “liberdade editorial”. O editor-chefe do Showlivre era Rodrigo Carneiro. Nos conhecíamos desde o começo dos anos 1990, tocamos juntos com nossas bandas e formamos a Pork-a-Light, uma das minhas bandas preferidas. “No Showlivre eu estava super-realizado profissionalmente. Quando soube da chance de ter o Thunder conosco, me esforcei para acontecer, e foi maravilhoso. É difícil você cercar um sujeito como esse, comunicador nato que é, e eu lembro de entrevistas excelentes dele por lá, com o Arrigo e também o Paulo Barnabé, por exemplo. Tenho muito orgulho desse período e daquela parceria.”

Ainda tinha a Naty, repórter, o Clemente, da banda Inocentes, que também apresentava um programa no Showlivre. E tinha o Walter, dono do negócio, que se divertia como cameraman com a gente. Teve a entrevista que fiz com a Clara Averbuck numa galeria de arte em Pinheiros. Clara é daquelas pessoas que dominam o ambiente. Enquanto eu a entrevistava, fui me apaixonando por ela. Eu estava machucado, clamando por alguém que me tirasse da depressão. Enquanto eu editava esse programa, fui tomando coragem de chegar nela e confessar a minha repentina paixão. Certo dia, liguei pra casa dela e disse que iria pra lá pra conversar com ela. Ao chegar, a surpresa! Quem atendeu a porta foi meu amigo, baixista da banda Vanguart: — Reginaldo, você por aqui? — Disfarcei minha cara de susto. — É, eu tô com a Clara. — Sério? Que legal… — Não sei se consegui disfarçar minha expressão de descontentamento. CONTOS DE THUNDER   301

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— Thunder! — Clara, com cara de satisfeita com a vida. — Oi, Clara. Pelo jeito está tudo bem, né? — Tudo ótimo! — Com seu sorriso maroto, olhando pro Reginaldo. Ainda bem que nunca rolou nada entre a gente. Fico imaginando nós dois tentando não atropelar um ao outro, depois de uns meses de relacionamento. Fato é que eles foram felizes por um bom tempo, nós três somos bons amigos até hoje, e ficou tudo bem. Outra paixão que conheci no Thunderview foi a atriz, diretora e cineasta Helena Ignez. Eu adoro a Helena desde os tempos dos filmes do Rogério Sganzerla. Considero O Bandido da Luz Vermelha um dos maiores clássicos do cinema mundial. E tem A mulher de todos, também escrito e dirigido pelo Sganzerla, em que Helena contracena com Jô Soares. Assisto a esse filme de seis em seis meses. Helena está linda, sedutora, alucinante. Jô Soares está brilhante, hilário, espetacular. A entrevista com ela, mais de quarenta anos depois desses filmes, foi uma delícia. Mais uma oportunidade de conhecer uma pessoa maravilhosa. Acho que isso até rendeu o convite que viria pouco tempo depois pra atuar no longa Luz nas trevas, roteiro original do Sganzerla, dirigido pela Helena e por Ícaro Martins. Certa vez, a Francine Ramos, que era minha parceira na assessoria de imprensa e me ajudava com os convidados, conseguiu uma entrevista com o Zé Celso Martinez Corrêa. Zé Celso é uma das figuras mais importantes do teatro brasileiro, dono do Teatro Oficina, um gênio. Fomos até o apartamento dele, no bairro do Paraíso, em São Paulo. Chegamos, subimos e alguém nos recebeu. Montamos o set junto ao piano, na sala, e ficamos aguardando o Zé Celso. Depois de algum tempo, ele saiu do quarto com um copo de vinho numa mão e um baseado na outra. Um gole, um trago, frases loucas para nosso deleite. Sentados ao piano, começamos a entrevista. Ele respondia às minhas perguntas ao seu estilo. Por várias vezes, em vez de responder, ele dedilhava o piano, improvisando a resposta. Surreal! Num determinado instante, ele olhou para a lente da câmera do Walter e mandou: — Você está me filmando ou me hipnotizando? Walter corou, mas manteve o foco. Zé Celso também. Nele! Assim, toda semana eu tinha alguém para entrevistar. Bandas, músicos, poetas, atores e atrizes, artistas, formaram uma série de entrevistas bacanas que estão disponíveis até hoje. A mágica da internet proporciona essa longevidade.

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Bombardino

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O que me salvou mesmo naquele período foi a resolução de gravar um disco novo com os Devotos dnsa. Falei com o Alan Terpins, que liberou o estúdio A Voz do Brasil pra gente. Minha proximidade com Dom Ivo Barreto, o engenheiro de som do estúdio, ajudou muito. Ivo é aquele cara que já fez de tudo na música. Foi braço direito do Tico Terpins nos estúdios Áudio Patrulha e A Voz do Brasil. Fez a mesa de pa nas duas edições do São Paulo-Montreux Jazz Festival, em 1978 e 1980. Ficou amigo de Claude Nobs, o espetacular curador das edições brasileiras e suíças desse que é um dos maiores festivais de música do mundo. Ivo trabalhou com Egberto Gismonti, Milton Nascimento, Joelho de Porco, Kid Vinil, todos os nomes do rock dos anos 1980. O cara é um mestre! Conhecido pelo seu mau humor, Dom Ivo nunca perdeu a calma comigo. Acho que a gente sempre se entendeu e se respeitou. E ele sempre curtiu meu som com os Devotos dnsa. O processo de composição das músicas pro disco Bombardino foi rápido. Nada como uma decepção amorosa para inspirar a gente, né? As letras fluem naturalmente. Mas nesse disco, que considero o melhor que fiz com a banda, voei alto! Alguns temas instrumentais deliciosos estão ali. Júpiter me deu uma música inédita, “Kendish girl”. Ele gravou a voz deitado no chão do estúdio. Dom Ivo adorava essas coisas. Chamei o citarista Alberto Marsicano pra uma das faixas, que ainda teve o Tatá Aeroplano nos assobios e o trompetista Guizado. Lee Marcucci, Luiz Carlini, Clara Averbuck com sua voz de jazz singer, Roy Carlini, que tinha deixado a banda um ano antes, Hugo Hori (o saxofonista mais espetacular que conheço), Tiquinho (o trombonista que leva adiante a arte desse instrumento), James Miller (percussionista dos mais relevantes no Brasil e no exterior), uma turma da pesada! Músicas como “Eu não gosto mais de você”, referência clara ao rompimento recente, ganharam videoclipe dirigido pelo Andre Peniche, com participação da atriz Julia Bobrow, a essa altura grande amiga. A capa ficou pra designer Carolzinha Shimeji, do Shimeji Studio. A gente é parceiro até hoje. Ela também fez a capa do último álbum dos Devotos dnsa, Audio Generator. A banda lançou o disco Bombardino nas unidades do Sesc e em todas as casas de rock de São Paulo, no começo de 2010. Tocamos em outras cidades também. Festivais em Goiânia, Londrina, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, onde tocamos n’A Obra, casa noturna underground da cidade. CONTOS DE THUNDER   303

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A essa altura, tudo que eu não precisava era ter um colega de banda distante, desinteressado, quase aproveitador. O Zé, já havia algum tempo, estava nessa onda. Chegava atrasado aos ensaios, sumia quando o show não era bem pago, se ausentou nas gravações do disco e começou a apresentar um comportamento bem desagradável. Eu não sabia de nada, mas o Ricardinho veio me dizer que estava rolando certa desconfiança da parte do Zé. Eu tinha percebido a afobação dele quando os shows terminavam, queria saber sempre o valor do cachê e receber sua parte logo após a apresentação. Pegava a grana e saía correndo. Isso me incomodou muito. Quando eu ia falar com o contratante, muitas vezes acontecia de me dizer que já tinha dado o cachê na mão do Zé. Eu fechava todos os shows, produzia tudo, cuidava dos releases, dos horários, do repertório, de tudo! O Zé chegava, quando queria fazer o show, ligava sua guitarra, tocava e em seguida saía, sem nem dizer “até mais”. A gota d’água foi quando o Ricardinho chegou pra mim e desabafou, dizendo que o Zé ficava falando que eu pegava uma parte do cachê escondido, sem a banda saber. Ele disse isso depois de um show no Astronete, que pagava uns quatrocentos reais por apresentação. Seria ridículo pegar uma parte maior daquela mixaria para mim. E eu era conhecido justamente por dividir os cachês igualmente entre os músicos da banda. Sempre foi assim, em todas as bandas. Nem me preocupei em desmascarar a situação. Liguei pro Zé na hora, com o Ricardinho na minha frente, e disse que ele não era mais parte da banda. Eu sempre ajudava o Zé com as bandas dele. Divulgava, anunciava, indicava pra programas de tv, dava mesmo a maior força. Cheguei a protegê-lo no camarim do Astronete, quando um guitarrista queria enchê-lo de porrada, por questões íntimas envolvendo determinada garota. O Supla ficava me contando histórias sobre o Zé sempre que a gente se encontrava, e eu sempre defendia o cara. Quando soube dessa desconfiança absurda dele, não tive dúvida. Valeu, obrigado por nada! A banda voltou a viver um clima bacana, algo fundamental para conseguir conquistar alguma coisa no meio underground. Felicidade de estar com amigos, tocando rock ‘n’ roll, se divertindo, ensaiando, gravando, fazendo música. O Zé se mudou pros Estados Unidos e hoje eu o entendo. Ele queria cuidar da própria banda. O objetivo era o sucesso. Acho que quando ele percebeu que com os Devotos ele não conseguiria mais do que já havia alcançado, se desinteressou. E se perdeu nisso. A gente ia acabar brigando feio se continuássemos juntos. Foi bom para mim, ele foi viver o seu sonho com seu trabalho e, hoje em dia, até conversamos, às vezes, por WhatsApp.

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Thunder, o ator

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Helena Ignez estava preparando o elenco pra rodar o longa-metragem Luz nas trevas. Toca o telefone e era o assistente de direção, Guilherme Marback, me dizendo que ela queria que eu participasse do filme. Entrei em pânico antes de me sentar e ficar ali, curtindo aquele momento por pelo menos meia hora. Depois liguei pros meus melhores amigos pra contar a novidade. Quando fiquei sabendo do elenco, entrei em pânico de novo. Sérgio Mamberti, Paulo Goulart, Arrigo Barnabé, Mário Bortolotto, Bruna Lombardi, Ney Matogrosso, entre outros atores e atrizes espetaculares. Mas o que me deixava mais nervoso era pensar que seria dirigido pela Helena Ignez. Cinema é coisa muito séria! Tudo é difícil, complicado, caro, demorado, desafiador. Durante as gravações, aproveitei cada minuto que passava nos sets de filmagem. Lembro que minha primeira cena era com o gigante Sérgio Mamberti. Ele fazia o papel de um político corrupto e eu era um repórter que o entrevistava. Mas havia um problema ali, uma das minhas falas tinha pelo menos cinco linhas no roteiro. Fiquei apavorado, pois não decoro nem as letras das minhas músicas! No desespero, fui até a Helena: — Helena, tem essa cena aqui… — falei, mostrando o script a ela. — Essa cena é importantíssima, Thunder — disse Helena com aquela calma, me olhando no fundo dos olhos. — Então, tem essa fala aqui… Será que eu posso improvisar um pouco? — Absolutamente não! Rogério escreveu essas palavras e você é perfeito pro papel. Vamos nos ater ao texto. — Ah, claro que sim… — falei, desesperado por dentro. Depois dessa, como eu ousaria mudar o texto do Sganzerla? Fiquei num canto, decorando as falas. Eu olhava para o Mamberti e tremia de medo. Ele olhava pra mim e ria baixinho. — Atenção! Som, luz, câmera… Ação! A coisa começou bem. Fizemos nossas falas até o momento das cinco linhas gigantes e… esqueci parte do texto. — Corta! Eu suava como um bacon. Mamberti chegou para mim e sussurrou… — Calma, filho. É assim mesmo. Vamos lá, agora você vai conseguir. Começamos de novo e tudo ia bem até a tal fala. Errei de novo. Tudo o que vinha na minha cabeça é que tinha uma equipe gigantesca ali, a Helena estava CONTOS DE THUNDER   305

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me olhando, o Sérgio Mamberti estava ao meu lado, e eu pisando na bola. Ficou evidente o meu nervosismo. Sérgio pôs sua mão no meu ombro e disse: — Agora vai dar certo, tenho certeza! Começamos, fomos indo, indo, fiz minha fala inteira direitinho e pow! Sérgio Mamberti errou a fala dele. Ele olhou pra mim rindo e disse: — Viu, acontece… — Com aquele sorriso no rosto. Na sequência, fizemos a cena toda e eu me senti um calouro recebendo o trote de um dos maiores atores do cinema nacional. Outra cena da qual participei foi rodada na Galeria do Rock durante a madrugada. Essa era com o Mário Bortolotto, que fazia um delegado violento que estava perseguindo o Bandido da Luz Vermelha. Cinema é assim: você chega no set de filmagem, coloca seu figurino, vem a maquiagem, daí você espera a sua vez de entrar em cena. Isso pode demorar horas. Eu não saía de perto da ação, acompanhando aquilo tudo. Era fascinante! Minha cena não demorou nem um pouco, pois o Guilherme escreveu minhas falas numa dália. Explico! Dálias são aqueles cartazes em que se escrevem as falas para o apresentador não esquecer nada. Nos anos 1980, veio o teleprompter, que através de um espelho reflete o roteiro na frente da lente das câmeras. Recurso inviável no cinema. Dália é um recurso que David Letterman usou até seu último Late show. O “cara das dálias” passou a ser personagem do programa. Claro que isso me deixou muito relaxado. O último dia de filmagens foi na Penitenciária Feminina, próxima do Carandiru, Zona Norte de São Paulo. Eu iria contracenar com Sérgio Mamberti, Paulo Goulart e Ney Matogrosso. Mas, àquela altura, eu estava tranquilo. Nesse dia aconteceu de tudo. Até vimos um carro da polícia chegando com a dona da butique Daslu, levando a empresária para o cárcere. Ela entrou pela manhã e saiu no fim da tarde. Nunca me explicaram o motivo. Estávamos num dos pátios onde aconteceriam várias cenas, quando chegou Paulo Goulart, simpaticíssimo. Cumprimentou a todos efusivamente, enquanto algumas detentas se acumulavam nas janelas das celas acima da gente. Quando viram o Paulo, elas começaram a gritar: — Paulo Autran, sou sua fã! — Paulo Autran, me dá seu autógrafo… As filmagens foram temporariamente interrompidas para que todos recuperassem o fôlego das gargalhadas, inclusive o sr. Goulart. 306  Lui z

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Pausa para o almoço. Me sentei ao lado do Ney Matogrosso. Eu já o tinha encontrado uma vez na mtv, mas foi muito rápido. Durante esse almoço, conversamos bastante. Grande figura, de uma humildade impressionante, falamos de música, cinema, rock, Secos & Molhados, foi incrível. Depois do almoço, iniciamos minha sequência com o Ney. Ele fazia o bandido mais velho. O bandido jovem era interpretado pelo André Guerreiro. Eu era o mesmo repórter, entrevistando o Bandido da Luz Vermelha, que cumpria pena no presídio. Foi quando o Ney Matogrosso começou a esquecer todas as falas. A cada fala minha, ele esquecia a próxima dele. E xingava. Xingava do fundo do coração. Eu ria por dentro, porque me via na situação dele. Mas a gente conseguiu terminar a cena, não sem antes o diretor de fotografia, Zé Bob, se estranhar com o codiretor do filme, Ícaro Martins. Rolou um “Faz assim!”, seguido de um “Assim é impossível, ou você não sabe o que está pedindo?”. Foi estranho, mas acho que isso acontece no cinema, né? Tinha uma última cena em que eu participava, pois meu personagem ajudava na fuga do Bandido. Foi aí que notei um erro de continuidade. Fui contar pra uma das assistentes de direção: — Olha, eu acho que teria que ser assim… — falei, tentando explicar a sequência lógica dos fatos. — Eu não vou dizer nada. Se você quiser, vai lá e fala com o Ícaro. Fiquei na dúvida se eu poderia fazer isso. Mas não resisti e contei a ele do erro que havia percebido. Ele agradeceu e corrigiu a cena. Foi ali que percebi que havia um clima estranho mesmo na equipe. Depois do lançamento, soube que havia uma discordância entre os diretores. Depois teve uma festa para a equipe toda, parte do elenco, numa casa no Alto de Pinheiros. Eu fui, encontrei as pessoas que participaram do filme e discotequei na festa. Eu estava realmente feliz de ter feito parte daquilo tudo. Foi uma experiência sensacional.

Contas

Eu estava em casa, pensando que as contas estavam se acumulando. Eu ganhava muito pouco para fazer o Thunderview. E veio a notícia de que um site iria se unir ao Showlivre e eles não poderiam continuar me pagando. Eu teria continuado a produzir e apresentar o programa se as contas não continuassem chegando para serem pagas. Mas o destino foi muito favorável nesse período. CONTOS DE THUNDER   307

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Recebi um convite para participar de um programa do Roberto Justus. Era um jogo de conhecimento entre o convidado e outros cem participantes. Sim, o programa se chamava 1 Contra 100. Mas seria uma edição especial anos 1980. Uma não, duas edições. Na plateia, tinha Mara Maravilha, Fofão, Banda Viva Noite, Simony… Nem sei como eles acharam tanta gente dos anos 1980. O primeiro programa foi com o Kid Vinil contra os tais “ícones” oitentistas. Fiquei no camarim esperando ele voltar e dizer que tinha conseguido alguma coisa. Quando entrou no camarim, estava com uma cara de incrédulo e foi dizendo… — Thunder, acabo de ganhar 100 mil reais! — Caramba, Kid! Eu estava aqui torcendo por você. Eu vou lá agora, vou me estrepar e depois você me paga um jantar pelo menos. — Combinado! Eu entrei no palco, fui até o púlpito eletrônico do Roberto Justus, com seu terno reluzente. Um breve bate-papo com o apresentador e começamos. Pensei que fosse sobre conhecimentos gerais de cultura, música, política, sei lá. Mas as perguntas eram sobre bizarrices dos anos 1980. — Thunderbird, qual era a raça de cavalinho que não estava no carrossel do programa X? — Sei lá, caramba! — Quer ajuda da nossa espetacular plateia? — Acho que é minha única chance. — Pra quem você pede ajuda? — Pro Fofão! Orival Pessini tinha se consagrado fazendo o programa O Planeta dos Homens com Jô Soares, na Globo. O bordão dele era “O macaco tá certo!”. Não tinha como dar errado, portanto. Mas, na hora, olhei pro Pessini fantasiado de Fofão e achei que devia acabar logo com aquele sofrimento e escolhi a resposta oposta da recomendada por ele. E não é que deu certo! E segui assim, acumulando a cada rodada uma grana. Quando atingi numa quantia razoável, pedi pra parar. Teria acertado a próxima resposta, mas sabe como é. Pensei que aquela grana iria salvar minha vida. E continuei duro por mais alguns meses, até receber esse dinheiro. Enquanto isso, eu havia me livrado da deprê da separação. Conheci a Renata, figura elegante, ligada à moda, nos demos bem rapidamente. Ela foi a um show meu no Inferno, casa de rock da rua Augusta, e deixou claro que queria me conhecer melhor. Nos conhecemos melhor no dia seguinte. E ficamos nos 308  Lui z

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conhecendo melhor por algum tempo. O problema era que ela morava em Los Angeles… Isso foi determinante para o nosso relacionamento não ter ido adiante. Eu sempre ia no supermercado de madrugada, num que ficava na marginal Pinheiros, perto do meu apê, no Morumbi. Sempre gostei de fazer as compras de madrugada. Num desses dias, Renata me ligou se queixando de que eu não demonstrava meu amor por ela, pois nunca ia visitá-la. Imaginem eu no estacionamento daquele supermercado na maior “dr” com a namorada se queixando que eu nunca ia para Los Angeles num fim de semana qualquer… De Los Angeles, ela me acusava; eu me defendia no meio de um estacionamento gigante e deserto, ao som dos carros que passavam na marginal Pinheiros. Não fomos adiante.

Manu

Mas então a Carolzinha me apresentou a Manu. Linda, inteligente, artista, tinha uma banda de blues moderno, uau! A gente se apaixonou em quinze minutos. Eu adorava ficar com ela, passear com ela, comer com ela, ouvir música com ela, estar com ela. O pai dela, ao contrário, me odiava. Azar dele. Foi bem na época em que vendi meu apê no Morumbi. Não aguentava mais morar ali. Além das lembranças ruins, era muito longe de quase tudo. Só não era longe do estádio do Morumbi. Eu até ia ao parque correr e dava umas pedaladas até a casa do Renato, no Capão Redondo. Era uma pedalada bem arriscada, não por qualquer perigo de assalto, mas pela atitude dos motoristas de lotação, que pareciam se divertir jogando os micro-ônibus em cima de mim. Eu insistia em andar na rua, pois esse é o lugar da bicicleta. Manu me ajudou a procurar um novo apê, mais próximo do centro da cidade. Procuramos a valer e achamos um prédio antigo no bairro do Paraíso. Depois, descobri que era vizinho do futuro prefeito paulistano Fernando Haddad, vejam só. Mudança é sempre chato, mas contava sempre com a ajuda do Renato e seus irmãos, Emerson e Cleiton, os irmãos Coutinho. Manu veio com a notícia de que iria fazer um curso de cabeleireira em Nova York. Ela tinha um cãozinho pug, o Tofu. Manu se foi, fiquei com o Tofu. Nos tornamos grandes amigos, apesar dos roncos e das flatulências características dos pugs. Depois de mais de um mês, Manu voltou de Nova York. Apareceu em casa, passamos a noite juntos e, no dia seguinte, ela disse que não queria continuar CONTOS DE THUNDER   309

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nosso relacionamento. Ela era muito amiga da Carolzinha, a quem recorri para entender o que se passava na cabeça da Manu. Carol também não conseguiu explicar. O que eu podia fazer? Ficar em casa lendo Batman e Mad, escutando só Ramones e Motörhead? Não! Eu tinha planos!

Tarântulas & Tarantinos

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Karen Cunha, gestora cultural, propôs que eu fizesse um show para homenagear Quentin Tarantino. Montei uma banda para fazer o repertório das trilhas sonoras dos filmes do cineasta. O nome Tarântulas & Tarantinos veio da Karen. Chamei o Felipe Maia para a bateria e o Felipe Pagani, marido de Liria Pristine, que faz umas roupas loucas, amiga da Manu. O casal mora até hoje em Londres, mas isso não era um problema, pois passariam algum tempo em São Paulo. Fizemos o show e foi bem legal. Na sequência, fomos convidados pra tocar no Bar Secreto, famoso por ter sediado o romance de Madonna com o dj brasileiro Jesus. Pagani, excepcional fotógrafo, fez uma foto na sala privê onde Madonna pegou Jesus de jeito. Uma bela foto, sem dúvida! Fizemos uns três shows ali. O louco era que a Manu ia e ficava hostilizando qualquer garota que se aproximasse de mim. Depois me ligava doidona. Eu não entendia nada que ela falava ao telefone. Daí eu pedia para ela escrever uma mensagem de texto. E eu não entendia nada do que ela escrevia. Acabamos nos reaproximando de novo, porém não deu certo. Eu estava limpo, ela estava bem doida. Não dava para segurar essa onda, mesmo que eu ainda estivesse apaixonado por ela. A retomada da carreira do Flávio Basso, A.K.A. Júpiter Maçã ou Jupiter Apple, aconteceu depois de seu retorno a São Paulo, no começo de 2009. Eduardo Beu, ativista cultural de São Paulo, foi importantíssimo nesse processo, pois ajudou a nova banda do Júpiter a se conhecer e a se desenvolver. Júpiter me chamou para tocar baixo e o Pinguim para tocar teclado. Nós três já havíamos tocado juntos. A novidade foi a chegada de Felipe Maia, baterista, e Dustan Gallas, guitarrista. Eu já conhecia o Dustan, pois ele havia produzido um disco da Karine Alexandrino. Eu tinha entrevistado a cantora cearense na galeria de arte da Núria, mãe da Carolina Mendes. Em menos de um mês, a banda tinha repertório para o show de estreia, que aconteceu no Berlin. O som do Júpiter estava mais tranquilo, mais jazzy, mais cool. Daí para frente, começamos a fazer shows em vários lugares de São Paulo. Tocamos no Recife, no 310  Lui z

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Marco Zero, no Memorial da América Latina. Curioso que nesse dia aconteceu o primeiro show profissional da cantora paulistana Tulipa Ruiz. Ela me contou essa história quando foi gravar meu podcast na Central 3.

Concorrendo no vmb

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Fizemos uma série de apresentações no Studio sp, na rua Augusta. Num desses shows, conheci Andre Peniche. Fotógrafo, se propôs a fazer uma série comigo e com o Júpiter. Eu ia muito ao apê do Júpiter, na rua Oscar Freire. A gente se encontrava num café, tomava vários e ia para lá conversar muito. Foi nesse apartamento que abrimos nossas contas no Twitter, no mesmo dia. Numa dessas vezes, começamos a compor uma música juntos. Talvez tenha sido a primeira vez que o Flávio fez uma música em parceria com outra pessoa, depois que se tornou Júpiter. A música “Modern Kid” ficou bem bacana e passamos uns poucos ensaios desenvolvendo o tema. O próximo passo seria transformá-la na primeira composição dessa nova fase dele. A ideia era gravar um single desse som no estúdio do Garnizé, um dos irmãos Garbato, no bairro de Higienópolis. O mesmo estúdio onde eu havia gravado o disco da Monique. Foi o que fizemos. Produzi a faixa, mixei com o Garnizé e a música estava pronta para rodar o videoclipe, que foi gravado num brechó da rua Cardeal Arcoverde em um dia. Dustan estava em turnê com alguém e substituímos o guitarrista por um manequim. O Peniche correu com a edição e ficou pronto para concorrer no vmb 2009 como melhor videoclipe do ano. Chegamos lá, mas quem ganhou foi o Skank. Lembro bem desse vmb, pois eu estava lá como músico e não como vj. Foi quando conheci o Emicida, que ganhou na categoria revelação. Teve show da banda Franz Ferdinand e, na festa pós-vmb, trocamos uma ideia com o vocalista da banda, Alex Kapranos. Achei legal ele ficar na festa, longe da área vip. Todo mundo estava feliz. O Gabriel Thomaz veio me dizer que ouviu o disco Bombardino e elogiou muito. Eu estava feliz com tudo o que tinha conseguido naquele ano. Produzi o disco da Monique, gravei o melhor disco dos Devotos dnsa, compus uma música com meu ídolo, que chegou ao vmb. Que ano! Depois do vmb, a gente ainda fez uns shows, mas daí veio aquela turnê pelo Sul com o Júpiter que foi um desastre. Em janeiro de 2010, eu saí da CONTOS DE THUNDER   311

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banda do Júpiter, mas eu já tinha um trabalho novo pra desenvolver: a banda Tarântulas & Tarantinos. Estava no apê novo, perto da minha família, conheci o Daniel Guth, que foi meu padrinho de bicicleta. Comecei a usar a bike como transporte, estava tudo indo muito bem. Eu tinha certeza de que alguma coisa ia acontecer. Enquanto isso, eu fazia shows com a banda Tarântulas & Tarantinos. Felipe Pagani voltou pra Londres, mas havia um ex-dentista como eu, discípulo de Lanny Gordin, que seria perfeito para banda: Guilherme Held. O Held tem uma qualidade especial, o bom gosto, a acuidade musical, o ouvido quase absoluto, a dedicação à arte de tocar guitarra. A banda fez muitos shows em 2010.

Guilherme Held também tem boas impressões do Thunder: “Eu estava indo tocar com Lanny Gordin no festival em Goiânia, encontrei Thunder no aeroporto e pegamos o mesmo voo, no qual conversamos bastante. Quando eu estava passando o som ao lado de Lanny, Fábio Sá e Zé Aurélio, o Thunder chegou e sentou no palco entre a gente e ficou observando a gente passando o som. Então, talvez devido ao horário, não fomos informados, mas de repente abriram uma grande porta e entraram umas trezentas pessoas no salão e, quando olhamos, o Lanny transformou a passagem de som no começo do show e tudo ficou emendado, inclusive o Thunder, que continuou sentado no mesmo lugar no meio do palco com a gente e ficou até o final do show. Pra mim foi muito especial toda situação. Sabia que tudo aquilo era histórico. Em seguida, entrei para os Tarântulas e ficamos muito próximos”.

Pedalando para casa

Nas horas vagas, eu pedalava. Pedalava muito! Aos domingos, São Paulo já tinha as ciclofaixas e eu me jogava nelas. Saía do Paraíso, atravessava o Parque Ibirapuera e chegava à ciclovia da marginal do rio Pinheiros. Eu ia até o bairro do Grajaú, cerca de quinze quilômetros de ciclovia. Ao todo, ida e volta, eu rodava em torno de cinquenta quilômetros aos domingos. Todos os domingos! Durante a semana, saía de bike pelas ruas, não havia ciclovias em São Paulo. Fiz a rota Márcia Prado, que descia para Santos. Márcia Prado foi uma das 312  Lui z

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ciclistas vítimas do trânsito em São Paulo, atropelada na Avenida Paulista. A “ghost bike” em homenagem a ela está lá, na avenida que hoje possui uma ciclovia. Foi um total de 105 quilômetros num dia. Saí de casa às seis da manhã, cheguei na ciclovia da marginal, encontrei a turma da bike e fomos pra rodovia dos Imigrantes pela Zona Sul de São Paulo. Atravessamos a represa Billings duas vezes por balsa, chegamos à rodovia, a polícia rodoviária nos levou até a estrada de serviço da Imigrantes e descemos até Cubatão. Fizemos a volta para evitar o trecho final da rodovia Anchieta, famosa pelos assaltos. Chegamos a Santos no fim da tarde. Eu e o Guth invadimos uma cantina, comemos como Asterix e Obelix e voltamos de ônibus para São Paulo. Desembarcamos na estação Jabaquara do metrô. Pelo metrô, cheguei ao Paraíso. Dormi como um monge tibetano. Esses passeios eram maravilhosos. Continuei pedalando até 2016, quando me mudei para um bairro distante das ciclovias. Sinto saudades disso. Acho que vou retomar as pedaladas. No fim de 2010, liguei pro Zico Goes. Ele estava na direção do canal gnt, da Globosat. Me encontrei com ele, acompanhado pelo Lecuk, que estava muito próximo durante o ano, me ajudando a bolar um plano de voltar à tv. Essa reunião me deixou animado. Zico disse que entraria em férias e me ligaria assim que voltasse. Foi um final de ano muito animado. Senti firmeza no Zico e achei que realmente ia rolar um lance pra mim no gnt. Mas, na primeira semana de 2011, li num jornal que Zico Goes tinha deixado a direção do canal. Fiquei desolado. Quando consegui falar com ele, fiquei sabendo que ele havia mesmo deixado o gnt pra assumir a direção da mtv. — Calma, Thunder! Vai ficar tudo bem. Tenho planos pra você. Certa vez, encontrei o Lima Duarte na banca do Alê, ao lado da mtv. Isso foi em 2001. A primeira coisa que me ocorreu foi dizer a ele que meu nome era Luiz Fernando Duarte. Ele fez um quase imperceptível “hummm…” e continuou a folhear uma revista qualquer. Depois de uns segundos ele virou pra mim e disse… — Você trabalhou na Globo, né? — Sim, mas agora estou de volta à mtv. — Ah, e como foi na Globo? — Estranho. Aqui na mtv eu me sentia meio dono do pedaço, sabe? Eu entrava onde queria, conhecia todo mundo, sabia exatamente onde estava pisando. — Não foi assim na Globo? — indagou, arqueando as sobrancelhas. CONTOS DE THUNDER   313

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— Não… sabe, eu tinha meu próprio programa, apresentava o TV Zona no Teatro Fênix, com dois palcos para os músicos tocarem de verdade, três plateias, três diretores, o exclusivíssimo Camarim 100. — Hummm, bastante coisa! — É, mas lá eu não me sentia dono de nada. Eu me sentia mesmo um inquilino. Os vizinhos me olhavam com estranheza ou medo. Pareciam dizer que não ia demorar pra ser despejado. Ele riu lindamente e acrescentou… — Ou você aprende, ou repete de ano. — É… — Pelo jeito, você foi jubilado! — E gargalhou sonoramente. Mas 2011 ficaria marcado como a minha terceira volta à minha casa. Sim, a mtv sempre foi minha casa. Dessa vez, ficaria até a família ser despejada. Foi emocionante. Curti cada momento, cada programa, cada conquista, até o último instante.

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Pedalando e andando na MTV vinte e poucos anos. Novos projetos atirando pra todos os lados no faroeste do calabouço da mídia. Osciloscópio na vitrola que também volta. Mais clipe, mais humor em sua vida. Thunder & Adnet & Tatá & Dani e a nova geração genial lançada pela emissora. Sem furo. Mas e o futuro da TV e da MTV? YouTube curtindo a vida. A visão de Thunder compartilhando e enxergando longe. Mas o amor nem sempre correspondido e compreendido.

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A VOLTA PARA OS CLIPES

O ano de 2011 começou e, apesar de o Zico ter me dado esperanças de que voltaria pra mtv, eu precisava me mexer. As pedaladas ainda me ajudavam a manter a sanidade, eu andava pela cidade o tempo todo. Eu havia me cansado de correr e a bicicleta tomou espaço nas minhas atividades de rotina. Ainda volto a correr um dia. É muito legal. Minha relação com a família estava em dia, não tinha compromisso com nenhuma namorada. Karima tinha voltado pra São Paulo para visitar a família, a gente se encontrou, eu a convidei para participar de um show com a banda Tarântulas & Tarantinos no Studio sp, ficamos juntos por alguns dias. Eu adoro a Karima, mas não queria me envolver seriamente com ninguém. Ela voltou para a Alemanha e eu voltei para o rock ‘n’ roll. Já estava na hora de gravar um disco novo com os Devotos dnsa. Se tem alguma coisa que me deixa feliz é estar no estúdio, gravando um disco. Mesmo a preparação que antecede o momento de gravar é bacana. Compor, arranjar, ensaiar, convidar parceiros para o projeto, tudo isso é muito bacana. Eu não queria mais cuidar de agendamento de shows, burocracias com documentação, negociações com contratantes. Trabalhei com muita gente, muita gente legal, algumas nem tão legais assim. A procura por uma pessoa honesta, competente, dedicada, gente fina sempre foi uma tarefa difícil. Em 2010, me aproximei do Lecuk, que tinha trabalhado na mtv e tinha agenciado a banda Massacration, dos caras do grupo Hermes e Renato. Eu, Lecuk e João Daniel (um gênio da internet), começamos a pensar numa retomada da minha carreira na tv. Fizemos várias reuniões no meu apê, no Paraíso, em São Paulo. A ideia era me descolar da imagem de ser “a cara da mtv”. A conclusão CONTOS DE THUNDER   317

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a que chegamos era de que na mtv eu não teria mais espaço. A emissora tinha se afastado da música e havia boatos de que a diretoria da época não me queria ali. Boatos nunca confirmados. Cogitamos outras possibilidades, como a Mix tv e o Multishow, mas nunca houve um contato deles. Você pode sair da mtv, mas a mtv nunca sai de você. Por isso procurei o Zico no canal gnt. Ele estava dirigindo o canal e marcamos um papo pra ver quais seriam as possibilidades por ali. Mas a mtv deu uma volta no seu direcionamento, o mercado sentia falta da música na programação, em 2010 alguns novos vjs já estavam priorizando a música. Foi o caso do China, por exemplo. Músico, com experiência na tv no Recife, chegou pra essa nova fase musical da Music Television Brasil. Quando fui convidado pro aniversário de vinte anos da mtv, em 2010, pensei muito se iria à festa, realizada no Rio de Janeiro. Ainda bem que aceitei o convite. Foi uma celebração bacana. Até encontrei o Zeca Camargo, muito simpático, nos abraçamos, e eu, pelo menos, deixei para trás nossas diferenças. Teve show do Planet Hemp e um encontro da velha geração de vjs, foi mesmo bom ter ido. Ali, já havia percebido que a música estava em pauta. Passei os primeiros meses de 2011 preparando as músicas para gravar o quarto disco dos Devotos dnsa, Osciloscópio. Mas eu queria gravar uma versão em português, que compus em 2009, de uma música do Tom Waits, “I Don’t Wanna Grow Up”. Pensei num arranjo mais hillbilly, e precisava de uma cantora pra fazer esse arranjo em dueto. Num estalo, liguei para a Pitty e perguntei: — Oi, Pitty. Tudo bem? O que você está fazendo agora? — Oi, Thunder, tô em casa de bobeira. — Topa gravar uma música comigo? Tô aqui no estúdio A Voz do Brasil e achei que essa parada tinha a sua cara… — Poxa, tô indo praí! Foi assim, de supetão, que gravamos “Eu não quero crescer”. A música nunca entrou num disco, porque me avisaram que a esposa do Tom Waits, que cuida legalmente das coisas dele, é muito complicada e seria difícil conseguir combinar tudo a tempo de o disco ser lançado. A gravação foi extraordinariamente rápida. Pitty chegou no estúdio, ouviu as bases que eu tinha gravado, entrou comigo na sala, Dom Ivo ligou o gravador e a gente mandou de primeira. Foi bem impressionante! Lembro que o Martin Mendonça, guitarrista que toca com a Pitty, inclusive no projeto Agridoce, foi junto. Eu tinha gravado um solo minimalista e ele falou: 318  Lui z

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— Quem gravou esse solo? — Putz! Fui eu. — É… ficou bonitinho… Demorou mais cinco anos para o Martin participar de um disco dos Devotos dnsa, mas valeu a pena esperar. Ele gravou as guitarras de “Átomo”, composição minha com Lee Marcucci, no disco Audio Generator. Mas depois eu conto essa, que foi espetacular! Foi nesse ano de 2011 que conheci um diretor de cinema, Giuliano Saade, que veio com a ideia de gravar um videoclipe pros Devotos. Como não havia disco novo, propus que fizéssemos o clipe de “Eu não quero crescer”. Marcamos as filmagens pro dia do meu aniversário, 8 de abril, na casa do Binaghi. Grande festa, convidei uns amigos para participar do videoclipe. Estavam lá a Mendes, o Jeff Molina, que havia tocado comigo no Los Beatles Forevis; o Helio Flanders, da banda Vanguart; Roberta Youssef, amigona das noites no Studio sp; e a Pitty, claro! Foi um plano sequência muito legal, que terminava num close de um bolo de aniversário, comigo soprando as velinhas. Até hoje, não lancei essa música num disco, só no YouTube mesmo. “Eu não quero crescer” era o nome da música. Casa do Binaghi era o cenário do clipe. Boas recordações, Bina? “Boas, claro. A ideia era um clipe divertido, então fizemos uma festa de verdade, com cervejas, convidamos uns amigos animados, chamamos a Pitty, e o resultado foi o esperado mesmo, o pessoal breaco, uma zona, e o clipe acabou sendo um pedaço da festa, um retrato da festa, um clipe realístico.” Como a gente conhece as festas que Thunder e seus amigos fizeram por aí, a gente supõe que foram todos embora e deixaram bastante sujeira pra trás. Certo? “Foi uma destruição da minha casa, demorou para tudo voltar ao lugar. Eu não faria de novo, mas tudo bem, valeu a pena.” É bom que Binaghi goste das duas faces de Thunderbird. A festiva, como descrito acima, mas também a silenciosa, que o amigo conheceu com mais intimidade com o pé na estrada. “Quando fomos tocar em Goiás, ele levou no voo a biografia do Jimi Hendrix. Ele mergulhou naquela leitura. Foi destrinchando o livro inteiro, metade na ida, metade na volta, e depois vinha contar, dividir com a gente a história que tinha lido. Era tranquilo viajar com ele.” CONTOS DE THUNDER   319

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Thunder ator — Parte 2

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Fazer um videoclipe, pra mim, é muito tranquilo. Acho que a intimidade com o assunto me deixa muito seguro na hora de participar das gravações. Muito diferente da vez que fui convidado para atuar numa peça de teatro. Isso aconteceu em 2010. Julia Bobrow, atriz do grupo Satyros, tinha gravado o videoclipe da música “Eu não gosto mais de você” naquele mesmo ano, mais um dirigido pelo Andre Peniche. Ela topou fazer o clipe, desde que eu participasse da Semana Satyrianas, uma maratona de teatro que acontece todo ano na região da praça Roosevelt, em São Paulo. Topei o desafio. O teatro é muito diferente da televisão. Mesmo quando fazemos transmissões ao vivo, a reação da audiência, do público, é distante. Hoje, ficamos sabendo da repercussão pelas redes sociais, medições de ibope, críticas especializadas. No teatro, a reação é imediata, bem na sua frente. A primeira diferença, para mim, é a quantidade e intensidade dos ensaios. Com a banda, a gente também ensaia e, com isso, vai melhorando e apurando performance e arranjos. Com um grupo, isso também acontece, mas nunca ensaiei tanto para um show como ensaiei para essa montagem de Da Marginal pra rua Augusta. O texto, de João Fábio Cabral, retrata a relação estranha entre um grupo de pessoas comuns. Os personagens, aparentemente normais, começam a exibir comportamentos esquisitos, misturando drama e comédia. No dia da apresentação, estava tudo bem, até a hora de entrar em cena. Senti a adrenalina tomando conta de mim. O receio maior era de que eu esquecesse o texto, mas estávamos tão ensaiados que me saí melhor que esperava. A foto que uso no Twitter, Instagram e Facebook é de uma cena da peça. Ficou a vontade de um dia repetir a experiência. Cheguei a conversar sobre isso com o Mário Bortolotto, pensei numa ópera rock muito louca, com banda tocando ao vivo. Quem sabe ainda fazemos essa parada.

Back to mtv

Em março de 2011 recebi notícias do Zico. Sim, ele tinha mais uma missão para mim na mtv. Pelo que se dizia, a emissora sentia falta de música na programação. Mais que isso, o mercado publicitário queria a mtv que eles haviam visto quando eram adolescentes. Que beleza, eu estava de volta! Houve um momento em que achei que isso nunca mais aconteceria. Pelo menos, era o 320  Lui z

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que ouvia das pessoas que trabalhavam lá. Mas aconteceu uma mudança na direção em vários níveis. A ideia era que eu fizesse o Programa do VMB, contando a história da premiação, preparando a audiência para o maior vmb de todos os tempos. Achei a ideia ótima, pois o vmb sempre foi o maior sucesso de público da mtv. Eu estava pronto pra voltar. Cheguei ali e encontrei uma turma muito legal. Havia alguns núcleos na programação. No núcleo musical tinha a MariMoon, a Titi Müller, o China, o Chuck Hipolitho, a Gaía Passarelli, o Didi Effe, a Ellen Jabour e a Penélope Nova. No núcleo de comédia, o Marcelo Adnet, a Dani Calabresa, o Bento Ribeiro, o Paulinho Serra, a Tatá Werneck, o Rodrigo Capella e o Rafael Queiroga. Havia uma dupla que falava de tendências da moda: Caroline Ribeiro e Jana Rosa. Ainda tinha o Edu Elias e Paulo Tiefenthaler no RockGol, e Lucas e Deco no MTV Sports. E a mtv tinha descoberto o maior talento da internet, o genial pc Siqueira. Uma turma da pesada! MariMoon já estava na mtv havia algum tempo e seguia uma linha mais pop. Eu a entrevistei no Thunderview, quando ela se destacava como digital influencer. Ela ocupava o lado mais pop da audiência. Titi Müller eu conheci naquele ano, uma figura espetacular, com um humor incrível. Ela estava ao lado da MariMoon no Acesso MTV. China eu conheci no Recife, quando me apresentei no Marco Zero ao lado do Júpiter Maçã. No fim de 2010, eu entrevistei o China no Thunderview, em virtude de sua caminhada musical ao lado da banda Sheik Tosado e seu programa na tv pernambucana Estereoclipe. Chuck estava na emissora desde o começo dos anos 2000. Ele era músico da banda Forgotten Boys, produtor de programas de tv, depois até dirigiu uns programas. Viajou pros Estados Unidos e voltou em 2011 pra se tornar vj. Tinha intimidade com a música, conhecia o mecanismo da televisão, era inevitável que ele se tornasse vj. Gaía também chegou em 2011 para apresentar o Goo, uma versão nova do Lado B, apresentado no passado por mim, Fabio Massari e Kid Vinil em diferentes épocas. Ela tinha se destacado na mídia impressa falando de música eletrônica. Goo foi dos meus programas prediletos naquele ano. Penélope Nova era a que estava há mais tempo no ar. Filha do cantor Marcelo Nova, da banda Camisa de Vênus, ela trabalhava no departamento de relações artísticas. Era natural que um dia viesse a ser vj. Era inteligente, tinha carisma, não fugia de uma opinião, toda tatuada, passava uma sinceridade CONTOS DE THUNDER   321

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verdadeira. Trabalhei com ela nas ações de marketing em 2003 e 2004, nos divertíamos bastante. Lembro de uma vez dessa época em que fomos pra Brasília fazer uma ação de marketing pra mtv, eu estava ouvindo Teenage Fanclub no discman. Ela me perguntou o que eu estava ouvindo, passei os fones pra ela, ela ouviu a música e logo começou a chorar baixinho. Mais que seu jeito espalhafatoso, ela não escondia suas emoções. Lembro do seu último dia na mtv, exatamente no dia do vmb 2011, quando ela chegou pra mim e disse que estava saindo. Fiquei triste de perder Penélope como colega de emissora. Ela fazia a diferença! Marcelo Adnet era o vj da vez, tudo que ele fazia era bacana. Ele tem aquela capacidade de improvisar incrível, que te deixa à vontade pra programas ao vivo. Ele tinha começado no 15 Minutos e conquistou a audiência ao lado de Felipe Ricotta, mais conhecido pelo apelido de Kiabo. Muito gentil e simpático, Adnet tinha aquela generosidade de dividir o espaço na tela. Foi assim todas as vezes que estivemos juntos. Tinha sido assim no vmb 2010, em comemoração aos vinte anos da emissora no Brasil. Foi tudo emocionante. Como a pergunta da Penélope no “tapete vermelho”: — E, aí, Thunder, o que você está usando? E eu, meio desconcertado: — Terno! Adnet falou que eu era o Peter Pan do vmb. — Sim. Eu não quero crescer…

Furo!

Dani Calabresa era assim também. Ela apresentava o Furo MTV e eu era grande fã do programa. O Furo era como aquele quadro do programa Saturday Night Live, o “Weekend Update”, em que dois supostos jornalistas discorriam sobre as notícias da semana, só que o Furo era quase diário. De segunda a quinta, Dani e Bento Ribeiro faziam um programa de trinta minutos sobre as notícias do dia. Bento tinha aquele humor misturado com um ar de galã de novela. Era uma dupla perfeita! Sempre vi a Dani como a Dona Catifunda da Praça da Alegria, mesmo antes de ela interpretar o papel na Escolinha do Professor Raimundo – louca, escrachada, sagaz e, às vezes, mordaz. Para mim, 322  Lui z

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Dani é a maior comediante que a mtv já teve em mãos. Fora do ar, uma pessoa maravilhosa, verdadeira, inteligente, leal, adorável. Ela foi ao show do ThunderStandards, uma das minhas bandas, no Riviera, com o Péricles, ou Boss in Drama, dj e produtor musical. Achei sensacional ter a Dani ali, fazendo festa com ele. Sabe quando a gente está no palco e procura um grupo para olhar e se inspirar? Pois foi para ela que eu olhei. A noite foi uma delícia! Paulinho Serra é aquele louco sensacional. Ele tem a capacidade de te fazer rir instantaneamente. Eu o conheci melhor em 2012, quando comecei a participar mais do Furo MTV e do Comédia MTV. Uma vez perguntei sobre seu trabalho anterior à tv. Ele sempre trabalhou com comunidades carentes, com oficinas de teatro. Certa vez, no Furo MTV, ele disse que faria um texto e choraria no final. Era um texto cômico, sem a menor chance de envolvimento dramático. Pois, no final da cena, escorriam lágrimas dos olhos dele. Em 2012, convidei o Paulinho pra um show com minha banda Tarântulas & Tarantinos. Ele foi o narrador do espetáculo. Foi lindo em cena, foi sensacional na van, no camarim, que sujeito gente fina! Tatá Werneck é hilária e aterrorizante. No ar, nos bastidores ou tomando um café na Real. Ela é assustadoramente engraçada, chega a dar medo! Como da vez que gravamos um piloto de um programa que nunca foi ao ar. Ela foi terrível comigo. Inesquecível. Mas a gente se deu muito bem num programa que iria ao ar em 2012, o Provão MTV, em que ela exercia a função de jurada. Rodrigo Capella fazia o Quinta Categoria com a Tatá e o Paulinho. Um dos caras mais gente fina da turma, ficou na mtv até 2012. Convivi pouco com ele, mas foi um dos convidados do Thunder Radio Show em 2014, quando descobri que ele é paraquedista. Na verdade, eu tinha visto uma matéria em que ele pulava de um prédio no vale do Anhangabaú, em São Paulo. Depois, descobri que ele é fanático pelo esporte. No lançamento de uma edição do Acústico MTV, Capella estava com os convidados no Terraço Itália, um dos prédios mais altos de São Paulo. De repente, ele foi pro terraço e disse: — Aí, pessoal, eu já volto! E saltou, sem avisar ninguém que estava com paraquedas acoplado. Imagine se eu estivesse lá nesse dia! Eu certamente teria ânsia de vômito ao ver um amigo se jogando do alto de um prédio. Carolina Ribeiro era a vj mais bonita, simpática, elegante e fina daquela época. Numa festa de aniversário da Dani Calabresa, conversamos bastante sobre Belém do Pará, as comidas, os passeios, o clima da cidade. Isso nos CONTOS DE THUNDER   323

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aproximou e, muitas vezes, trocamos ideias na frente da mtv sobre o futuro da emissora, fumando uns cigarrinhos. Quando a vejo nas premiações do Oscar, Emmy, bate uma saudade desses papos. Ela continua linda, simpática, maravilhosa. Jana Rosa, a menina maluquinha da moda, era encantadora. A gente atuou junto numa transmissão do vma em 2011. Foi nessa ocasião que descobri que Lady Gaga era uma artista fantástica. Jana já sabia, claro! Depois teve a viagem para Bonito, no Mato Grosso do Sul, onde encaramos aventuras, peixinhos e muita bossa nova. Ellen Jabour era a supergata da vez. Modelo consagrada, ela gostava de rock ‘n’ roll e tinha uma capacidade impressionante de hipnotizar seres humanos. Sério, vi isso acontecendo na minha frente. Eu mesmo fui hipnotizado. A gente gravou a vinheta do Verão MTV de 2011/12 e um programa especial que nunca foi ao ar, uma edição especial do Provão MTV. Eu participei dos programas dela também, o Luv MTV e o Top 10 MTV. Aliás, foi nesse programa que conheci a banda Restart. Eles estavam no auge da popularidade e lembro de dar um conselho pra eles: — Hey, moleques! Vocês gostam da sua banda? — Sim! — falaram em uníssono. — Então cuidem bem dela. Vocês não querem ser um fenômeno passageiro, né? — Não! — respondeu a banda em uníssono, de novo. Conselhos às vezes ajudam, né? Às vezes! O mundo pop era especialidade do Didi Effe. Ele tinha conhecimento, intimidade e presença de espírito. Eu poderia afirmar que ele era o melhor vj daquela fase. Tinha uma tremenda capacidade de lidar com textos, situações inusitadas, sempre muito bem-humorado. Ele era impagável em festas e em encontros casuais em bares da Vila Madalena. Uma pequena bomba atômica. Edu Elias era meu velho companheiro de corridas. Fizemos várias provas juntos e foi legal encontrá-lo na mtv apresentando o RockGol com Paulo Tiefenthaler. Fiz poucas participações no programa, que ainda contava com participações especiais do Nasi, do Estevan Tavares e Toni Platão. O MTV Sports era apresentado por uma dupla do barulho. Lucas Stegmann e Deco Neves colocaram esse programa no hospício. Completamente alucinados, eles levaram o MTV Sports pra outro patamar. Eu iria conviver com esses rapazes malucos algumas vezes. Inclusive em aniversários, visto que Deco comemora no mesmo dia que eu. Foram duas festas juntos. Uma no Astronete, bar da rua 324  Lui z

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Augusta, onde eles subiram ao palco e improvisaram um karaokê alcoólico, e outro no Grazie a Dio!, bar da Vila Madalena que rendeu muitas polêmicas. pc Siqueira havia concorrido a webstar no vmb e o vencedor foi Felipe Neto. Mas a mtv contratou o pc, levando um dos gigantes da internet pra apresentar o PC na TV. Acho que foi o pulo do gato da emissora. pc se revelou um apresentador antenado, provocador, inteligente, um sucesso. No vmb 2011, subiu ao palco com a banda de vjs para cantar “Aluga-se”, do Raul Seixas. Acho que foi no Furo MTV que surgiu a lenda de que ele era meu filho. A gente brinca com isso até hoje. Se um dia eu tivesse um filho que fosse como ele, estaria muito orgulhoso. Encontrei um ambiente de trabalho muito saudável, amigável, agradável. Isso já tinha acontecido em 1990, no começo da mtv, quando os vjs eram mais que colegas, eram amigos, e os produtores e diretores formavam um time muito unido. Nessa última fase da emissora, as coisas corriam muito bem, era uma retomada da música. Não duraria muito tempo, mas o período que durou foi maravilhoso.

Osciloscópio

Eu já estava compondo, arranjando e ensaiando as músicas pro disco novo dos Devotos dnsa. Já havia falado com o Alan Terpins, o Ivo Barreto, e o estúdio A Voz do Brasil estava pronto pra gente começar o trabalho. Lee Marcucci estava no elenco de convidados, sempre o Lee, o professor/baixista adorador de Rickenbacker. Xico Sá tinha feito uma carta pro jornalista Vitor Angelo, amigo nosso em comum, sobre a reação dos habitantes do bairro de Higienópolis ao saberem da intenção de se construir uma estação de metrô no bairro. Claro que as pessoas também reagiram, organizando o famoso “churrasco diferenciado” nas imediações da futura estação. Xico me contou que chegou em casa e escreveu a carta pro Vitor, como num desabafo. Publicou, e me veio a ideia de musicá-la. Foi minha oportunidade de propor a parceria com ele. A música se chama “Rock diferenciado” e abre o disco Osciloscópio. André Abujamra me ofereceu a música “Se eu fosse ela”, uma viagem maluca que só ele conseguiria colocar num rock. O André sempre esteve presente musicalmente na minha carreira. Sempre como um exemplo de músico trabalhador, incansável, talentoso. CONTOS DE THUNDER   325

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Gravar foi fácil, algumas músicas foram compostas durante o período de gravação. Não sei o que acontece, mas quando entro em estúdio, sempre vêm umas músicas novas, às vezes, irresistíveis. Elas acabam entrando no disco, claro. O período de gravação é relativamente rápido. Depois vem a mixagem, e aí a coisa fica deliciosamente trabalhosa. Algumas composições ganham corpo na mixagem. E, muitas vezes, as vozes adicionais, guitarras, percussões vão se somando ao corpo da música. Costumo fazer a primeira mixagem, ouvir por alguns dias, voltar e mexer de novo. O Ivo me ajuda muito nessas horas. Ele conhece rock ‘n’ roll e, especialmente, aquele estúdio. A gente sempre passa várias noites nessa fase. Uma música, um cafezinho, um cigarrinho, uma nova audição, a gente costuma começar lá pelas seis da tarde e acaba saindo do estúdio depois das cinco da manhã. Se bobear, a gente passa meses fazendo isso. Pelo resultado e pela diversão. As histórias do Ivo são bárbaras, a vontade dele de fazer tudo certo é impressionante. Quando estamos chegando ao fim, a gente já combina de voltar o quanto antes para gravar um disco novo. Depois da mixagem, vem a masterização. Uma audição, correções possíveis e o disco está pronto. Tem que ter coragem para fechar o trabalho. O problema com esse disco, Osciloscópio, foi a capa, a arte e a concepção do encarte, a parte gráfica mesmo. A Carolzinha tinha se comprometido com essa parte. Mas ela estava com problemas pessoais e recorri a uma pessoa que conheci na mtv. Bia Bittencourt era do departamento de promos e a gente tinha viajado para gravar a campanha de Verão 2011 da mtv. O disco já estava muito atrasado e ela resolveu as artes todas muito rapidamente. Ela é uma grande artista. O problema sério foi com a gráfica, indicada pela Livia Salles — a essa altura, minha empresária tanto com as bandas como com meus trabalhos profissionais em vídeo, palestras etc. Depois de tudo isso, o disco saiu em 2012. Foi um parto bem trabalhoso. Mas a criança ficou linda!

vmb

Em março de 2011, eu fui até a mtv para saber qual era o projeto que me levaria de volta à emissora. O Programa do VMB contaria a história da premiação, com seus melhores e piores momentos, numa preparação para o maior e mais audacioso vmb de todos os tempos. Para minha surpresa, Zico designou o Zé Antonio para dirigir o programa. Já tínhamos trabalhado juntos em 2001, no 326  Lui z

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Supernova, e as coisas não tinham terminado muito bem. Dez anos depois, seria uma ótima oportunidade pra gente se entender. E nós aproveitamos a chance. Tudo correu muito bem, nos aproximamos novamente, trabalhamos como equipe. Equipe que contava com dois assistentes: Steffanie e Murilo, bravos guerreiros que levantavam arquivos, acompanhavam as gravações, essenciais para que o resultado fosse bacana. As gravações eram realizadas no Clube Lions, onde funciona a boate do Facundo Guerra, na avenida Brigadeiro Luís Antônio, no centro de São Paulo. Foi assim até o meio do ano, quando o Zé Antonio saiu da mtv. O programa ficou nas mãos da Steffie e do Murilo e eles deram conta do recado. O vmb se aproximava e eu tive a ideia de formar a Banda dos vjs para se apresentar no dia da festa. Eu sempre queria formar uma banda nova, e essa seria a oportunidade de juntar aquela turma toda no palco pra mostrarmos que a música fazia parte da vida da gente. O núcleo da banda era formado por mim, Chuck, China e um baterista convidado, Pindé, da banda Sugar Kane. A gente escolheu umas músicas para cada um cantar. O Chuck veio com uma música do Skank: — Vou deixar… a vida me levar… — cantava o Chuck, felizão. Eu, com uma do Júpiter: — Fica comigo… deixa eu te mostrar que eu posso ser seu novo namorado… — eu cantava a todo o volume. China cantava todas as outras. Uma do Roberto Carlos, uma do Planet Hemp, repertório bacana. Os vjs convidados eram Caroline Ribeiro, cantando Secos & Molhados; pc Siqueira cantando Raul Seixas; Tatá Werneck com uma música do Roupa Nova, e assim por diante. A banda tocou no VMB do B, no segundo palco da premiação. Foi uma loucura, com direito a Helena Bagnoli, presidente da mtv, no palco e a inusitada invasão de Seu Jorge para cantar uma música do Tim Maia com a gente. Ainda teve Guilherme Held e seus pedais psicodélicos, depois de tocar com Criolo e Caetano Veloso.

“Esta noite foi uma noite muito especial. Era o início da tour e explosão nacional do Criolo, com o Caetano nos apadrinhando no palco, e mais tarde fui para o outro palco já desnorteado com a apresentação que acabara de acontecer. Passamos o som da banda dos vjs e o show foi uma grande festa de confraternização final, com muitos artistas no CONTOS DE THUNDER   327

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palco e eu totalmente livre com meus pedais, colocando muito psicodelismo em tudo. No ano seguinte já não existiria mais a mtv e o Universo preparou toda aquela despedida sem sabermos. Magia geral.”

A banda até fez um show depois, numa casa noturna de São Paulo, e ganhamos um belo troco! Por mim, a gente tocaria até hoje. Puta clima legal entre a gente, era muito divertido, sem dúvida!

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Livia Salles

Um artista precisa de alguém para cuidar de agenda, compromissos, contratos. Eu tive empresários canalhas que me roubaram muito, tive sujeitos bacanas que eram honestíssimos, mas pouco competentes. Depois de anos lutando para achar alguém que estivesse disposto a trabalhar e em quem eu pudesse confiar, surgiu a Livia Salles. A gente se conheceu num micro-ônibus, indo para o Rio de Janeiro. Eu estava acompanhando Júpiter Maçã e ela estava com a banda Cidadão Instigado. As duas bandas fariam um show no Circo Voador. As apresentações foram ótimas, e aquela garota me deixou bem impressionado. Nosso empresário, pelo contrário, sempre pisava na bola com a gente. Depois de um ano, encontrei a Livia no escritório dela, a lp Produções. Ela ainda trabalhava com a Priscila, que cuidava do Cidadão Instigado. Livia já tinha trabalhado com a Nação Zumbi e estava procurando novos artistas pro seu cast. Ela foi fundamental para que eu conseguisse lançar o disco Osciloscópio com os Devotos dnsa. Ela cuidou das minhas coisas até uns dois anos atrás. Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar, já dizia Paulinho da Viola. Eu adoro a Livia e um dia a gente vai trabalhar de novo juntos. Pelo menos dar muitas risadas, afinal, nossa amizade foi construída com bases sólidas.

Love, love, love

No quesito amor, as coisas ficaram bem confusas. Conheci mulheres espetaculares que poderiam estar comigo até hoje. Eu sou um cara de sorte. Teve ocasiões em que amigas quase viraram namoradas, mas isso sempre me deixava 328  Lui z

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tenso. Muitas vezes me afastei pra preservar a amizade. Conheci algumas garotas com quem me envolvi nos últimos anos, mas nada sério. Uma dessas garotas foi Paulinha. Linda, esperta, bem-humorada, nos encontramos muitas vezes durante algum tempo. Fizemos várias loucuras juntos. Foi divertido demais enquanto durou. E tem sido assim. Ainda aguardo aquela mulher pra minha vida. Foram muitas mulheres incríveis ao meu lado. Ainda falo com muitas delas. Todas muito marcantes e importantes.

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Mais vmb

O vmb 2011 foi um projeto audacioso. Além de lançar novos artistas, promoveu a integração entre estrelas consagradas e novos talentos. Tinha muita gente envolvida nessa superprodução. Lema, Camila Cecchi, Lilian Amarante, Miranda, Zico Goes e Helena Bagnoli, que topou a empreitada. Tinha o Valtinho, nosso chefe de operações, que cuidou para que tudo fosse preciso e espetacular. Eram três palcos num estúdio gigantesco, os estúdios da Quanta, que estariam no ar simultaneamente. O palco principal era comandado pelo Marcelo Adnet, o melhor apresentador que essa premiação já teve. Uma capacidade de entretenimento absurda, poder de improvisação, um showman de primeira. Tinha o VMB do B, apresentado pelo Bento Ribeiro, que contava com esquetes humorísticas e elenco igualmente interessante. Um terceiro palco apresentava músicos concorrentes e participantes que, em determinado momento, interagiam com os outros três palcos. Detalhe que eram três estúdios diferentes! Tudo isso era um prato feito pra dar merda. Nos ensaios, fiz algumas entrevistas, entre elas, com Caetano Veloso. Inesquecível a apresentação dele no vmb 2004, quando ele e David Byrne tiveram problemas com o sistema de som e ele mandou no microfone pra todo o Brasil: — Emetevê, vergonha na cara! Bota essa porra pra funcionar! Não resisti e acabei perguntando se ele achava que aquela porra toda funcionaria. — Fique tranquilo, Thunder. Vai ficar tudo bem… — assegurou Caetano, com voz tranquila. E foi tudo perfeito mesmo. Depois da premiação que consagrou Criolo, juntou Marina Lima, Karina Buhr, Bárbara Eugênia com Edgard Scandurra, colocou Marcelo D2 com a banda do filho, Lucas Peixoto, Start em outro palco, CONTOS DE THUNDER   329

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para tocarem juntos, foi a vez da Banda dos vjs entrarem no palco para fazer um show inesquecível — para a gente, pelo menos. Esse show foi transmitido pela internet. Depois, eu ainda fui para o palco três, onde discotequei para os convidados. Num determinado momento, olhei pra trás e a Ellen Jabour estava no palco dançando lindamente ao som de Blur. Foi uma noite e tanto!

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Restart Acabou o Programa do VMB, acabou o vmb 2011 e eu continuei na mtv. Um dos programas mais legais que deram sequência na minha participação naquele ano foi o Para gostar de música, em que no primeiro episódio fiz um “roteiro turístico musical” pelo mundo. Esse programa está disponível no YouTube e, ainda hoje, assisto e me encho de orgulho. Eu participava do Furo MTV sempre que podia. Adorava o programa, sempre fui fã da Dani e do Bento. Nas férias deles, substituía um ou o outro. E, no final do ano, teve uma série de programas Red Bull Culture Clash, com participação de duas bandas. O mais legal deles foi em Porto Alegre, com Marcelo D2 versus Cachorro Grande. Num local onde havia dois palcos, um de frente pro outro, os dois artistas tocavam suas músicas, com um convidado especial, e a plateia escolhia a banda vencedora. D2 fez um showzaço, mas Cachorro Grande chamou o Júpiter Maçã e foi uma covardia. O público enlouqueceu naquele dia, e eu também. O ano de 2011 também foi meu retorno à Real, ao lado da mtv, no Sumaré, que sempre frequentei, mas, dessa vez, ia todos os dias. A Real foi um porto seguro para muita gente. Lá fiz reuniões, assinei contratos, dei entrevistas, e até gravei programas. Os novos donos, dois irmãos muito gente fina, continuaram com a tradição de acolher os funcionários da mtv e da espn. Ali, eu encontrei muita gente legal. Lembro de bater papo com Nelson Motta, quando falei para ele que ele tinha sido o primeiro vj do Brasil, na época em que apresentou o programa Sábado Som na tv Globo, nos anos 1970. Miele, um dos maiores humoristas da tv brasileira, apresentou um programa no sbt nos anos 1990, o Cocktail. Certa vez, perguntei a ele sobre aquele lance das garotas dançando seminuas em copos de martíni. Ele virou pra mim e disse: — Thunder, eu não bebo mais, se é que você me entende… 330  Lui z

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E deu aquela piscada com um olho só, característica dele. Sacou a sutileza? Eu rachei o bico, primeiro pela elegância dele em dizer que ele nem olhava para aquelas modelos, segundo, por ele ter usado o meu bordão pra fazer a piada. Outro encontro inusitado na Real foi com Jô Soares, em 2012, quando ele me convidou para voltar ao seu programa pra divulgar meu disco. O Jô ficou por ali, conversando comigo, com o João, com quem chegasse na mesa. Zé Trajano estava sempre por lá, cercado de vários apresentadores da espn, tomando cerveja, falando de futebol e música. Todo fim de tarde, estavam lá o Trajano e seus blue caps. E foi ali que conheci o João Carlos Albuquerque, o João Canalha. Ficamos amigos instantaneamente. A gente nem falava de futebol, apesar de ser sua especialidade na espn. O rock era nosso assunto nas mesinhas da Real. Isso se tornou uma rotina muito legal. Terminar as gravações, descer pra Real e ficar de papo furado com o João. Depois montamos uma dupla, João Canalha e Thunder Biltre. Nos apresentamos diversas vezes em casas noturnas de São Paulo e em Campinas, no icônico Bar do Zé. O João é tão louco que, certa vez, estava tocando em Ribeirão Preto com os Tarântulas & Tarantinos e liguei para ele. Ele estava em São Carlos no fim de semana. Falei que se ele estivesse a fim, que aparecesse pra uma canja. Não é que o cara pegou o carro e nos encontrou no show, cantou duas músicas e voltou para São Carlos?! Fiz outras amizades ali na Real com o pessoal da espn. Ari Aguiar, Antonio Martoni, Celso Anderson, Everaldo Marques, Paulo Calçade, uma turma muito bacana com que tenho contato até hoje.

Sonhos de uma noite de verão

Final de 2011, veio a ideia de gravar umas vinhetas para o Verão MTV. A Bia Bittencourt levou a gente para Bonito, Mato Grosso do Sul, pras gravações. Antes, eu dei aquela ideia de gravar uma música para a campanha. Fiz uma bossa nova pós-tropicalista psicodélica, que gravei no estúdio do Arthur Joly, tocando violão de náilon. No dia da viagem, a gente se encontrou no aeroporto de Guarulhos. Estávamos eu, Didi Effe, Jana Rosa e os dois moleques do MTV Sports, Lucas e Deco. A viagem até Campo Grande correu na normalidade, mas de lá para Bonito, fomos numa vanzinha minúscula, todos amontoados. Jana, a menina da turma, virou nossa tia louquinha, controlando os ânimos. Didi ficava CONTOS DE THUNDER   331

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provocando o Deco o tempo todo, enquanto o Lucas segurava o colega para não abusar das brincadeiras físicas com o Didi. Foi hilário! Em Bonito, a cidade nos recebeu muito bem por onde passávamos. Fizemos um passeio de bicicleta, marcamos presença na rua principal, num boteco, foi tudo lindo. Nos dias de gravação, íamos a uma daquelas reservas com rios límpidos, para cenas. Eu, vestido de capitão de navio, num bote, ouvia um canto de sereia, e caía do barquinho com violão e tudo. A sereia era Ellen Jabour. E a musiquinha… … O barquinho vai rio acima, rio abaixo, quem viver… Verão! E eu caía na água, com os peixes lambendo meus óculos. Foi espetacular, inesquecível! E, no verão daquele ano, apresentei o Quiosque do Thunder, dirigido pelo Róger Carlomagno. Róger dirigiu outro sucesso daquele ano, o Grêmio Recreativo MTV, apresentado por Arnaldo Antunes. Nesse programa, o apresentador formava uma banda base que acompanharia vários artistas, fazendo um encontro de gerações. O Quiosque do Thunder me levou pra uma praia do Guarujá, e a ideia era que eu entrevistasse alguns músicos e tocasse com eles. Estiveram comigo Karol Conka e Fióti, Marcelo Jeneci e Laura Lavieri, Gabriel Thomaz, Rodolfo (ex-Raimundos), Leoni, Gabi Amarantos e Félix Robatto, entre outros. Aquilo foi um desafio, pois os músicos chegavam, a gente se reunia à beira da praia, ensaiava as músicas, e eu sempre tocando baixolão. Foi uma delícia! Róger foi o diretor mais tranquilo e seguro com quem já trabalhei. O último episódio foi gravado num fim de tarde, com Jeneci e Laura. Ao fundo, raios e trovões decoravam o azul do mar. Que cena! O ano de 2012 prometia um presente especial. Lema e Camila Cecchi me chamaram pra uma reunião no nono andar. — Thunder, eu consegui escrever um programa que era um sonho antigo meu… — falou Lema, o cara da música na mtv. — Poxa, o que eu tenho a ver com isso? — falei, ansioso pela resposta. — Esse programa é pra você. É a sua cara! — disse Camila, sorrindo. Fui para as férias sonhando com essa parada!

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Garoto de programa na televisão. No ar e fora dela. Na frente e atrás das câmeras. Apertando botões e parafusos. E temendo que o controle remoto deixasse a MTV Unplugged. O VMB de 2012 foi um barato. Sempre foi. Mas ainda seria?

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COMEMORAÇÕES

Voltamos do Verão MTV de 2012 com muitas novidades. Novos vjs, novos programas, novos rumores sobre a venda da mtv. Os boatos vinham dos jornais. As colunistas começaram a falar de vez em quando sobre o assunto. Lembro que, quando se perguntava sobre isso para a diretoria, as negativas eram enfáticas. Para mim, pelo menos, a emissora estava a todo vapor. Já haviam dispensado alguns funcionários no meio do ano anterior para os ajustes financeiros. Tudo corria bem, aparentemente. Continuei a participar do Furo MTV nas férias do Bento e da Dani. Passei a fazer parte do elenco. Fazia aparições em todos os programas, participava da reunião de pauta, estava felizão por fazer parte daquilo. Foi assim durante o ano todo. Camila Cecchi veio com mais um programa bacana, o MTV Clássica. A cada programa, eu abordava um tema diferente, falando dos vários estilos da história da música. Um especial sobre as cantoras pop mundiais, hard rock, eletropop. Era o cardápio eclético do Clássica. Adorava fazer esse programa. Contávamos com duas redatoras excepcionais, Renata Corrêa e Manne Neumann que desenvolviam as histórias com textos excelentes. Outra novidade vinha do núcleo de comédia: o Razzle Dazzle, uma sitcom falada em inglês, com legendas em português. Participei do terceiro episódio, como o personagem Guillermo, pai da Consuelo, interpretada pela Tatá Werneck. Nesse episódio, eu me envolvia romanticamente com a personagem da Dani Calabresa. Foi uma ideia espetacular, dirigida pelo Rafael Queiroga. No elenco ainda tinha Marcelo Adnet, Paulinho Serra e Bento Ribeiro. O mesmo elenco do Comédia Ao Vivo, do qual participei algumas vezes, tocando baixo CONTOS DE THUNDER   335

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com uma banda. Tudo isso iria acabar com as saídas do Adnet, da Dani e da Tatá no fim do ano. Eu estava quase todos os dias na mtv. Foi o ano dos retornos de Julio Piconi e do Bruno Sutter, ambos desligados do programa Legendários, apresentado por Marcos Mion na tv Record. Bruno, mais conhecido como Detonator, vocalista heavy metal farofa da banda Massacration, do grupo cômico Hermes e Renato. Ele levou seu personagem de volta para fazer um programa na mtv. Com o tempo, passou a fazer participações como jurado pirado no Provão MTV. Julio Piconi havia começado na mtv nos anos 1990. Trabalhamos juntos no verão de 2002. Ele chegou a dirigir a Daniella Cicarelli no programa Beija Sapo e foi mais um que acompanhou Marcos Mion para dirigir o Legendários. Ele voltou pra assumir a segunda temporada do Provão MTV em 2012. Voltamos a trabalhar juntos no meu programa do YouTube, Music Thunder Vision, em 2018.

51, uma boa ideia?

Abril estava chegando, e meu aniversário também. A ideia era comemorar durante um show com a dupla João Canalha & Thunder Biltre no Grazie a Dio!, bar da Vila Madalena. João Carlos Albuquerque e eu ensaiamos no meu apartamento. O João curte umas músicas do rock americano bem populares, eu já gosto das mais estranhas. O show que fazíamos juntava as duas coisas e agradava a plateia. O Bina, que ainda tocava nos Devotos dnsa, queria tocar percussão. Topamos. Seria o segundo ano seguido que eu comemoraria meu aniversário com o Deco Neves, que fazia dupla com Lucas Stegmann no MTV Sports. Deco é muito louco, mas bêbado, é um alucinado completo. Eu e o João chegamos ao local, passamos o som, jantamos num restaurante ali perto e voltamos para o bar. Estava ainda tudo muito bem, até a hora em que o Deco invadiu o palco, exigindo que tocássemos “Tudo pode mudar”, hit oitentista da banda Metrô. Ele e o Lucas têm uma fixação por essa música. Ele havia me pedido pra gente tocar esse som para que eles cantassem. Conforme o combinado, chamamos os dois para o palco. Eles estavam bem chapados e começaram a alucinar no palco. Eu estava achando aquilo um barato, tudo desafinado, o Lucas doidão, o Deco descontrolado, mas o João começou a ficar meio puto com aquilo. Tinha uma turma de amigos do Deco, uns moleques dos esportes 336  Lui z

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mais radicais, que acompanharam a loucura. Acabou a música e o Deco não queria mais descer do palco, começou a zoar tudo. Eu tentava ser o diplomata de plantão, dizendo ao Deco que o João queria cantar outras músicas, e o João com aquela cara de “vou dar uns tapas nesse moleque travesso”, o Lucas só ria daquilo tudo. Depois de algum esforço, o Deco sossegou um pouco, mas a cada música ele vinha até o palco e balbuciava alguma coisa perto do microfone. Encerramos a apresentação e fomos todos, todos mesmo, para o camarim. A festa continuou ali. Todo mundo chapado, o gerente da casa vindo me falar para que eu controlasse a situação. Eu queria me divertir, tinha um monte de amigos ali, não era um show normal mesmo. Mas houve um momento em que evitei uma catástrofe. Saí do camarim pra ver se estava tudo bem e dei um flagrante no Deco com um extintor de incêndio na mão. — Deco, larga esse extintor! — falei, tiozão sério. — Ah, Zaaaannnderrr… — Deco, com um sorriso torto de goró no rosto. — Deco, não faça isso! — Mas Zaaaandeeeerrrr… — respondeu, com o dedo no gatilho do aparato. — Deco, se é pra zoar, larga essa merda e vamos botar fogo em tudo, caralho! E depois você paga todas as fianças! — eu, esboçando meu olhar lsd 25. — Tá bom… De repente, baixou o sr. Neves, Deco se acalmou e resolvemos sair todos dali. Ainda fomos a um restaurante ali perto para fazer um último brinde. Alta madrugada, chamei um táxi para a Carolzinha e a acompanhei até o carro. A gente se beijou apaixonadamente e eu passei o restante da noite pensando naquele beijo. Foi um lindo aniversário.

“Esta é uma prova de fogo, você vai dizer se gosta de mim”* (disse O Rock)

A reunião no fim do ano de 2011 foi animadora. O Provão MTV iria reunir duas escolas que disputariam entre si mostrando seus conhecimentos sobre a história do rock. Além disso, cada escola levaria uma banda pra representá-los. Um game show musical envolvendo jovens estudantes, trazendo o rock como

* Trecho de música de Erasmo Carlos, famosa na voz de Wanderléa. CONTOS DE THUNDER   337

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parte do currículo escolar. Dois palcos, duas plateias, rock ‘n’ roll. Mas o departamento de marketing e publicidade queria ir além, trazendo alguém que fosse um ímã de merchandising. Então Zico me ligou dizendo que Daniella Cicarelli faria dupla comigo no programa. Seria a volta da apresentadora à mtv. Como já comentei, eu conhecia a Daniella dos treinos com Marcos Paulo Reis. Já havíamos corrido na mesma equipe, nossa relação pessoal era muito boa. Mas era um programa sobre o rock! Acertada sua contratação, na coletiva de imprensa veio a pergunta: — Thunder, qual seu disco preferido? — Acho que se tivesse que escolher apenas um disco importante, seria o Sgt. Pepper’s, dos Beatles. — E pra você, Daniella? — Hummm… É o Tchan na selva! Não entendi nada! Fiquei ali, perplexo com a distância musical declarada. Não houve nenhuma repercussão na imprensa. Zico me falou que o importante era que eu daria credibilidade ao programa e Daniella seria um atrativo para as ações de publicidade. Gravamos o piloto, com muita dificuldade, dirigido por Leo Longo. Conheci o Leo na tv Cultura, quando ele dirigia o programa Login, apresentado pela minha amiga Roberta Youssef. Na mtv, Leo montou uma equipe de produção, que incluía Rafael Opípari, que depois viria a me dirigir no programa Caçadores de Mitos, na tv Cultura, em 2013. Também escolheram para o Provão uma assistente de palco costa-riquenha, Silvana Cedeño. Ela era ótima! Simpática, parecia entender, às vezes, o que se passava à sua volta. O caos fazia parte do programa. O sotaque dava um charme especial também. Muitas câmeras, muita informação no cenário, com imagens icônicas do rock, todos aqueles jovens enlouquecidos por estarem representando suas respectivas escolas na mtv, era um paraíso para quem conhecia a matéria. Mas foi difícil terminar a gravação desse piloto. Dois apresentadores, três jurados, duas escolas, duas bandas, plateia, muitas provas, performances, tudo isso exigia muita concentração e algum conhecimento sobre o tema. Depois de editado, assistimos ao piloto e percebi que não havia fluidez, naturalidade, interação entre as partes. A melhor coisa, a meu ver, era gravar um novo piloto, depois de alguns ensaios. Mas não havia tempo — nem dinheiro — para isso. A próxima gravação já iria ao ar. A gente gravava uns três programas num dia. Isso era relativamente cansativo, mas estava dando o meu 338  Lui z

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máximo para que tudo saísse conforme o combinado. Dava para ver que os participantes, os alunos das escolas, estavam muito felizes, se divertindo com o Provão. Da nossa parte, a diversão estava em segundo plano. Era uma luta terminar um programa. Depois da estreia, veio o primeiro baque. Uma crítica do Mauricio Stycer dizia que o programa era uma gincana com excesso de informação que resultou numa “edição soluçante”. Mencionava ainda que eu e a Cicarelli parecíamos estar pouco à vontade juntos. Me chamava de vj e a Daniella de modelo, criticando a mtv por insistir em colocar essa categoria de celebridade no ar, desde os anos 1990, com a Adriane Galisteu. Mauricio terminava o texto dizendo “Superadas as dificuldades iniciais, normais numa estreia, Provão MTV tem tudo para engrenar. Thunder domina o assunto, a plateia e o palco da mtv como poucos na emissora”. Tudo bem, ele me poupou, me elogiou, mas a matéria, publicada no portal Uol, causou estragos. No dia seguinte, fizemos uma reunião com Leo Longo, Zico Goes e a Daniella, eu ainda tentando entender como resolver aquilo tudo na minha cabeça. Afinal, tínhamos que engrenar de qualquer jeito. Os jurados ajudavam bastante. Tatá Werneck e Bruno Sutter eram os mais constantes, mas alguns vjs da casa e vários músicos também faziam parte do corpo de jurados que ajudavam a escolher os vencedores das provas. Estiveram por lá Dani Calabresa, Titi Müller, Paulo Ricardo, Gabriel O Pensador, Projota, MariMoon, todos no espírito de ajudar as escolas. A primeira temporada se arrastou entre os esforços para terminar um episódio e o alívio no fim das jornadas de mais de doze horas de trabalho. A Dani tomava umas três latinhas de energético e eu acabava acompanhando com pelo menos uma dose de Red Bull. Não sei se isso ajudava ou acabava acelerando ainda mais a ansiedade pela interação entre nós. Eu saía de lá e ia direto para a Real. Ficava numa das mesinhas, batendo papo com o João Canalha, com parte da equipe, tentando aterrissar no planeta Terra. Thunderbird e Daniella Cicarelli, não vamos dourar a pílula aqui, não foram feitos um para o outro. Mas também não vamos alimentar a cizânia: deram certo enquanto juntos. Quem atesta isso foi quem os dirigiu, Zico Goes. “Eram dois estilos diferentes e dois carismas muito grandes. Thunder era o pioneirismo da mtv, e a Cicarelli representava uma nova mtv. Ela mandava bem em programas de auditório. CONTOS DE THUNDER   339

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Mas dividir o programa sempre foi uma questão, não só com essa dupla. A Daniella não era fácil de lidar, e Thunder tinha muita resiliência, topava tudo que propúnhamos, embora não quisesse sempre ceder também. Acho que ele se sentiu, talvez, diminuído pelo jeito agressivo dela nos bastidores, e meu papel era tentar a mediação, pois precisava dos dois.” Um ponto fundamental nessa relação, para Zico, estava no formato, no jeito com que Thunder lidava com as tensões. “Diga-se sempre, por justiça, que o Thunder sempre quis saber onde ele se encaixava na dupla. Sempre foi elegante no que pretendia falar, nunca esbravejou, nunca veio com aquele papo de ou eu ou ela, sempre estava preocupado com o resultado final, não em prejudicar alguém. Sempre foi ético sobre isso.” Ficam as memórias de corridas, e, na frente da telinha, as memórias éticas, então.

Parte 2

A segunda temporada foi dirigida pelo Julio Piconi. A gente já tinha trabalhado no Verão MTV em 2001 e 2002. Ele mudou a dinâmica do Provão. Não eram mais dois apresentadores falando de rock com os alunos da escola. O programa virou mesmo uma gincana, como previra Mauricio Stycer, em que cada apresentador adotava uma escola e competia um contra o outro. A única certeza que tenho é de que os participantes vão se lembrar para sempre da experiência de defender suas escolas com música. A esperança é que alguém tenha se apaixonado por música e seguido o sonho de montar uma banda, estudar o assunto, escrever sobre o tema. Isso aconteceu! Em 2019, recebi uma banda no meu podcast, o Thunder Radio Show, cujo baixista tinha se apresentado no Provão. No final do ano, fizemos um episódio especial do Provão MTV. A Cicarelli já havia se afastado da mtv e minha parceira foi Ellen Jabour. Apaixonada por rock ‘n’ roll, ela foi muito bem. Além de absolutamente linda, encantadora, carismática, sabia do que estava falando. Até pensei que já estava certa a terceira temporada com ela, mas a Abril tinha outros planos. Só a gente que não sabia disso. O ano de 2012 ainda teve o MTV Clássica, dirigido por Renata Correa e Manne Neumann. Lembro do último episódio, gravado no pico do Jaraguá, em que eu e a Manne colocamos o show do Tame Impala como um dos mais 340  Lui z

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importantes do ano. Camila Cecchi, que apresentava comigo, se mostrou contrariada com isso. Mas acho que, depois, ela entendeu que era o nosso lado indie se manifestando. Anos mais tarde, posso afirmar que estávamos certos. Kevin Parker, o vocalista, evoluiu com o Tame Impala e participou do álbum Uptown Special (2015) de Mark Ronson e do Joanne (2016), de Lady Gaga. Em 2012 ainda fizeram o especial do Dia do Rock. Bruno Sutter ficava no estúdio, com uns artistas cover de Kiss, Mick Jagger, Raul Seixas, enquanto eu ficava na porta da mtv, num palco montado para o show principal com a banda Brothers of Brazil, dos irmãos Supla e João Suplicy. Em determinado momento, vi Eduardo Suplicy com o neto no colo, dançando e cantando junto da escada do prédio. Uma pequena multidão se espremia à nossa frente, transformando a avenida Alfonso Bovero num grande palco de celebração do rock. A Real ficou lotada de jovens vestidos de preto, a banca de jornal do Alê também lotada, a gente movimentou o quarteirão. Lembro que saí de lá no fim da tarde, meio cansado, pra discotecar numa loja de bicicletas na Vila Madalena. Eu só queria continuar a festa.

O começo do fim

O último vmb da história da mtv teve seus momentos. Tinha o pessoal do Cone Crew fumando toda a maconha do mundo o tempo todo. Fui até o camarim deles e estavam em meio a uma espessa nuvem canábica. Lembro de ter dividido o camarim com a Monica Iozzi, divertida, bem-humorada, muito alto-astral. Tinha o Planet Hemp se reunindo para o show de abertura, Criolo como artista do ano, Gaby Amarantos como artista feminina do ano, Emicida tocou com Rashid, Lúcio Maia e Igor Cavalera. Eu estava lá aguardando minha vez, quando chegaram para mim e disseram que eu iria entrevistar Gal Costa. Gelei na hora. Lembrei das duas vezes em que pisei no pé dela no camarote da Globo, em 1994. Fiquei na maior paranoia. Poderia ela se lembrar daquilo? E se fosse fria comigo? Foi o oposto disso tudo. Gal foi maravilhosa, simpaticíssima, um amor mesmo. Estava muito empolgada com o álbum que havia acabado de lançar, Recanto, uma virada espetacular no seu estilo, com canções do Caetano Veloso, incorporando elementos da música eletrônica, rock, um discão! No final da entrevista, eu estava feliz de ter superado aquele trauma de anos atrás. Ela cantou “Neguinho”, música desse disco, na premiação. CONTOS DE THUNDER   341

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Outro momento louco foi quando encontrei a banda Restart. Eles estavam ali pelos votos da audiência, mas sentia-se certa animosidade pelo grupo na mtv. Lembro que em 2010 participei do programa Lobotomia, do então vj Lobão, onde ele afirmou que queria quebrar o cd da banda teen. Lembrei a ele que quebrar discos era uma prática fascista e reacionária de Flávio Cavalcanti, apresentador de televisão de sucesso dos anos 1960 a 1980. Voltando ao vmb, os rapazes do Restart me cercaram e me deram um abraço da “família Restart”. Eles acabaram ganhando o prêmio de Hit do Ano, com a música “Menina estranha”. A banda não duraria muito tempo. O produto tinha mesmo uma data de validade. E, passados vinte anos, reencontrei o Mano Brown, depois daquele episódio nas escadarias da mtv. kl Jay já era meu amigo, mas tinha ficado uma impressão estranha daquela vez. Foi muito legal. Mano Brown chegou, veio me cumprimentar, me convidou pra ficar com a família Racionais no camarim deles. Foi mesmo um vmb de famílias. E eles fizeram o show de encerramento do vmb, depois de terem ganhado o prêmio de melhor videoclipe do ano com a música “Mil faces de um homem leal”, sobre Marighella. Poucas pessoas sabiam que aquele seria o último vmb. Depois que a mtv foi devolvida para a Viacom, soube que o Roberto Civita havia se encontrado com a diretoria da bbc em Londres. Zico Goes me falou sobre essa história e Titti confirmou. Toda a estrutura da mtv Brasil seria transferida para a emissora inglesa, que se instalaria no Brasil. Tudo acertado na Inglaterra, menos no Brasil. O acordo não foi adiante. Na época, eu assistia à bbc Brasil com frequência. Jools Holland, Top Gear, The Graham Norton Show eram alguns dos programas que chegavam pra gente no canal. Teria sido incrível se o negócio tivesse dado certo. O fato é que a mtv Brasil foi para as mãos da Viacom, a bbc Brasil encerrou suas atividades depois de alguns anos. Eu me sinto num orfanato duplo. Na verdade, triplo, pois ainda falarei da minha experiência na tv Cultura.

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Thunder aparecia em todos os programas e em todas as emissoras. Mas onde era o berço e o lar, no Sumaré, estavam desligando os aparelhos. Não era eutanásia. Nem pra ganhar saúde. Só saudade. O último programa do mundo da My MTV entrava pelos ares. Eles perderam. O sinal estava fechado para nós, que fomos jovens. O cheiro de nova estação ninguém sabia na ferida viva da nossa MTV.

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O FIM É O COMEÇO DO REINÍCIO

O ano de 2013 começou num clima estranho… Mas eu estava muito feliz com minha vida, tudo ia bem profissionalmente. Minhas bandas tocavam bastante, havia um novo projeto, ThunderStandards, em que interpretava desde sambas dos anos 1930 até bossa nova, do rockabilly brasileiro dos anos 1960 até rocks clássicos oitentistas. ThunderStandards era formada por Gaspa no baixo acústico, Felipe Maia na bateria e Ricardinho Kriptonita na guitarra, que permanece na formação atual dos Devotos. Contava com participações especiais de Juliana R. e alguns amigos, como Carlos Careqa. Um dos melhores shows foi no Riviera, antigo restaurante dos anos 1960, reformado pelo Facundo Guerra, com curadoria da Roberta Youssef. Fizemos alguns shows ali, com a ilustre presença de Carlos Caruso, que ficava me olhando aparentemente incrédulo, enquanto eu cantava “Águas de março” em dueto com a Ju. Dani Calabresa foi com o Péricles, mais conhecido por Boss in Drama, e uma turma enorme. Fizeram a maior festa! Os Devotos estavam fazendo shows de lançamento do disco Osciloscópio. A gente tocava nas unidades do Sesc, em clubes noturnos paulistanos e do interior de São Paulo, fizemos um circuito de apresentações nos ceus, na periferia da cidade. Andre Peniche fez mais um videoclipe pros Devotos com a música “Jovem Guarda”. A banda Tarântulas & Tarantinos continuava realizando shows pelo Brasil em festivais de cinema, unidades do Sesc e casas noturnas. Enfim, eu estava me mexendo. Um dia, encontrei o Jô Soares na padaria Real. Ele estava lá com o João Canalha e batemos um papo. Perguntei se ele pensava no que faria depois da Globo — onde tinha seu programa desde 2000, que apresentaria até CONTOS DE THUNDER   345

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2016 —, se ele toparia fazer um programa na mtv. Ele disse que não descartava essa possibilidade e me perguntou quanto tempo fazia que eu não ia ao seu programa, respondi que não havia participado desde que ele tinha se transferido pra Globo. Dei o disco dos Devotos dnsa pra ele, e me convidou pra tocar no programa. Fiquei impressionado com aquela produção. Fiz duas pré-entrevistas pra colaborar com o roteiro, coisa impensável em qualquer outro talk show no Brasil. No dia da gravação, passamos o som, tocamos “Mulher peixe”, do disco Osciloscópio, e a plateia curtiu bastante. Antes da entrevista, fui dar um passeio pelo prédio. Fui até a redação do Altas Horas para falar com o Serginho Groisman. Naquela simpatia de sempre, Serginho me perguntou por que eu estava ali. Expliquei que iria participar do Programa do Jô. Ele me disse que, como ainda estava na mtv, seria impossível me levar ao programa dele. Essa era uma prerrogativa exclusiva de Jô Soares. Agradeci a atenção e fui até a redação do Fantástico dar uma olá pro editor-chefe, Álvaro Pereira Júnior. A última vez que tinha o visto foi no show da banda Sub Versões, com Wander Wildner e Serginho Serra, no Astronete. Foi nessa noite que rolou a cusparada nele. Lembro que na semana seguinte ele descreveu o show com todo o ressentimento em relação ao Wander. Quando cheguei à redação, ele estava sozinho, de olho na tv. Havia acabado de acontecer o atentado na maratona de Boston, minutos antes, naquele 15 de abril de 2013. Trocamos uma ideia rápida e voltei para o estúdio. Gravamos o musical e fui para a entrevista no sofá. O Jô sempre foi legal comigo, todas as vezes em que estive nos seus programas. Começou a entrevista e estavam na pauta as minhas aventuras com corridas de rua. Ele mencionou a minha participação na maratona de Nova York em 2001, e percebi que ele ainda não estava sabendo do atentado em Boston. Eu não sabia se contava pra ele sobre o ocorrido ou simplesmente fugia do assunto. Essa parte do papo foi editada, claro. Teve a apresentação com a banda, mas cantei mais uma música no sofá. Falamos da minha viagem pelo Nordeste, quando vendi calcinhas pintadas à mão e a minha aventura em Olinda, no bar conhecido como Maconhão, quando experimentei um drinque local chamado de retetéu, que é uma mistura de várias bebidas estranhas, muito popular naquela época. No final do programa, ele me chamou de volta pra fazer o tal retetéu com o Alex, o barman do programa. O drinque ficou horrível, mas o programa foi sensacional! 346  Lui z

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Desmonte da mtv

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Na mtv, as coisas começaram a ser desmontadas. Mais demissões, boatos na imprensa sobre a venda da concessão, dificuldades em manter os programas no ar. O Clássico MTV, por exemplo, foi deixado de lado. Dani Calabresa se foi, Tatá Werneck também, China se despediu, meu contrato ia até fevereiro e eu já me preparava para a despedida também. Continuei no elenco do Furo MTV, ao lado do Bento Ribeiro e do Paulinho Serra. Bruno foi integrado e somou com o recém-chegado Daniel Furlan. Marcelo Botta e Gabriel Di Giacomo se revezavam na direção do programa. Chay Suede foi contratado pra fazer uma espécie de Vídeo Show da mtv. Ele rodava pelos corredores do prédio descobrindo vjs, funcionários, particularidades da emissora. Daniel Furlan e Juliano Enrico faziam O último programa do mundo. O Acesso, que era apresentado até então pela MariMoon e Titi Müller, passou para o Juliano, que passou para o Chuck, que passou de novo para a Titi, que passou para a Pathy Dejesus. Chegou fevereiro e meu contrato terminou. Eu me despedi durante a gravação do Furo MTV. Saí do estúdio e me pediram para ir falar com o Zico Goes. Ele já estava numa maratona de demitir pessoas diariamente. Para minha surpresa, ele me pediu que eu ficasse mais um mês. E assim foi. Por mais duas vezes! Me despedi três vezes da audiência. Após cada uma, eu voltava com uma prorrogação de contrato no dia seguinte. Na última vez, falei logo para o Zico que ficaria até o fim, mesmo que ele não tivesse mais dinheiro para pagar o meu salário. Já que eu tinha feito parte da inauguração da mtv, que eu estivesse lá na hora do seu sepultamento, de desligar os aparelhos. Resolvi comigo mesmo que iria curtir cada momento daqueles últimos dias. Eu já estava prevendo uma mudança e tive uma ideia. Eu acompanhava muito a bbc Brasil e assistia sempre ao programa Top Gear, apresentado por Jeremy Clarkson, James May e Richard Hammond. O João Carlos Albuquerque (o Canalha) tinha se tornado um dos meus melhores amigos e a ideia de fazer o Top Gear Brasil começou a me perseguir. Precisaria de mais um apresentador, e só poderia ser o Flavio Gomes, na época da espn Brasil, que, além de ter uma coleção incrível de carros antigos, era piloto de corridas. Sempre fui apaixonado por automóveis. Isso vem de família. Meu avô paterno corria de carreteira em CONTOS DE THUNDER   347

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Interlagos, meu pai cuidava dos seus carros nos detalhes. Lembro que, nos finais de semana, a diversão dele era regular carburadores e platinados do carro, lavar, encerar, regular, desmontar e remontar as peças do motor. Falei com o Guilherme Pinheiro, produtor de cinema, que nos levou à produtora em que ele estava trabalhando. A gente precisava de um diretor, e indiquei o Julio Piconi. Eu já conhecia o Julio há tempos e ele gostou da ideia. Muitas reuniões depois, descobrimos que o programa seria muito caro, caríssimo, inviável para a tv brasileira. Existem alguns programas sobre o tema, mas são todos medíocres. A gente queria fazer acontecer o projeto no mesmo nível da bbc. Locações, aeroportos, helicópteros, automóveis caríssimos, independência editorial sem compromisso com uma montadora de veículos… Aquele projeto só nos deixou com água na boca. O programa se mostrou inviável.

Chorão

No dia 6 de março de 2013 eu acordei com a notícia da morte do Chorão. Você, leitor, sabe que tínhamos nos aproximado bastante depois dos anos 1990. Charlie Brown Jr. tinha passado por várias mudanças na formação. Depois de uma fase com novos integrantes, Marcão e Champignon voltaram para o grupo. Para mim, parecia que eles haviam se entendido e que tudo caminhava bem. cbj chegou com tudo no final dos anos 1990, arrancando os Raimundos do topo das paradas. Na primeira metade dos anos 2000, já era a maior banda de rock do Brasil. Eles haviam conquistado um fã-clube gigantesco, portanto teriam garantido sucesso por muitos anos. A morte de Chorão foi da mesma magnitude. Muitos músicos mandaram mensagens, gravaram depoimentos, manifestaram seus pêsames durante o dia seguinte. A comoção foi gigantesca e a mtv produziu uma programação especial em homenagem a ele. À noite, havia uma multidão na porta da emissora, ocupando parte da rua, invadindo a escadaria do prédio, onde fechamos essa homenagem com Teco Martins cantando com os fãs algumas músicas da banda. Outro momento emocionante de 2013 foi a última edição do Yo! MTV. Desde o começo do ano, um grupo estava colhendo depoimentos e imagens de arquivo para um documentário sobre o programa. Eu fazia parte disso, pois havia apresentado a atração em 1992 e 1993. Mas o grande momento final foi mesmo esse especial, apresentado pela Pathy Dejesus. Eu estava lá também, ao 348  Lui z

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seu lado, assistindo às participações dos grandes representantes do gênero no Brasil: Thaíde, kl Jay, Kamau, Rashid, Emicida, Rael, Sandrão, Rappin’ Hood, entre tantos outros, com show de Tony Tornado e sua banda. Foi lindo, especial e realmente emocionante pra todos que estavam ali.

Contagem regressiva

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O Furo MTV foi até o último dia da mtv. Mas, com a demissão da maioria dos funcionários, a equipe técnica estava reduzida ao mínimo. A gente gravava o programa e os diretores tinham que descarregar os cartões das câmeras para dar tempo de editar o episódio do dia. Não havia mais equipe no switcher, onde se opera o áudio e o corte de imagens durante as gravações. Era uma loucura. Mesmo assim, os redatores, elenco, diretores do programa e o editor continuaram trabalhando com condições mínimas. Foram todos heróis! O meu personagem preferido, entre minhas participações, era o Arnaldo Jabird. Uma sátira em cima dos editoriais do cineasta Arnaldo Jabor no Jornal da Globo. Nas manifestações do “Não é só por 20 centavos”, contra o aumento das tarifas de transporte público em São Paulo, Arnaldo se pronunciou no jornal global criticando os jovens presentes no ato público. Depois ele voltou atrás e pediu desculpas. Esse era o mote do meu personagem, que sempre criticava alguma coisa e voltava atrás, pedindo desculpas. Aliás, na maior dessas manifestações, eu estava no apartamento da Carolzinha, em frente ao largo da Batata, em Pinheiros, numa espécie de bunker, onde teve transmissão de rádio pela web, projeções espetaculares nas paredes dos prédios, por vjs anônimos, com as palavras de ordem da manifestação. O My MTV era uma ideia interessante, em que a audiência escolhia seus clipes para uma faixa determinada da grade. Daí veio outra ideia, de chamar os vjs e ex-vjs para falar e mostrar suas participações na mtv. A emissora estava mesmo contando seus últimos dias, portanto, todos que passaram por ela poderiam contar suas histórias pessoais no ar. Em aproximadamente dois meses, todos os dias tinha um My MTV com algum vj, mostrando o que ele tinha feito por ali. Todo mundo gravou, de graça, o seu programa, numa celebração emocionada, dirigida pelo Julio Piconi. Lembro que eu estava gravando o meu My MTV e acabei tendo que continuar a gravação no dia seguinte. Era muita coisa desde 1990. Meu programa CONTOS DE THUNDER   349

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foi ao ar no último dia de atividades na mtv. A repercussão foi muito grande, tanto que André Rizek, apresentador do programa Redação SporTV, pediu que eu fosse ao Rio de Janeiro para explicar esse fenômeno. As pessoas estavam espantadas com o fato de que ex-apresentadores se dispuseram a gravar gratuitamente um programa para a mtv. E isso explica o quanto essa emissora foi importante para cada um de nós. Eu ainda tinha que lidar com os encontros nos corredores, a famosa escada-fumódromo, as ilhas de edição, onde reencontrava meus amigos muito queridos. Maria Paula, Gastão, Cuca, Rodrigo, Astrid, Fernanda Lima, Didi Wagner, tanta gente que fez parte do meu dia a dia, num trabalho que eu amava muito. Muitos dos que se tornaram vjs começaram como estagiários ou produtores de programas. Foi o caso da Soninha, do André Vasco, da Marina Person, da Sarah Oliveira, da Penélope Nova. Todo dia eu encontrava com alguém que já tinha passado pela mtv, nos corredores, na Real ou na escada fumódromo. Todos estavam ali para se despedir, para valorizar suas participações na história da emissora, para deixar clara a importância que a mtv teve. Não só em suas carreiras, mas também nas suas vidas.

Menos uma atração na tv brasileira

Os últimos dias de mtv foram de tristeza. Para mim, pelo menos. Eu estava lá desde a primeira festa de anúncio da emissora no Projeto sp, na Barra Funda. Eu nem pensava em ser vj e, sem saber, já estava escalado pra trabalhar na emissora. Passei pelo galpão da rua Coropés, estava na inauguração no prédio da antiga tv Tupi, fui e voltei muitas vezes. Estava se aproximando o dia 26 de setembro, quando faríamos uma transmissão por todo o prédio, com a presença de vjs, ex-vjs, músicos, artistas, jornalistas, funcionários. E esse dia chegou. Durante aquele 26 de setembro de 2013, Dia Z do canal, o My MTV que gravei foi ao ar. Mas a coisa ficou emocionante às seis da tarde, quando fiz um discurso de encerramento. Julio Piconi preparou o texto, aliás, o mesmo texto que Lolita Rodrigues fez na inauguração da tv Tupi, no mesmo prédio, no dia 18 de setembro de 1950. Lolita Rodrigues, esposa de Airton Rodrigues, que juntos apresentaram o programa Almoço com as Estrelas por tantos anos na tv brasileira. Dizem que Hebe Camargo faria esse discurso, mas ela passou mal. Consigo imaginar a loucura que foi aquilo, nos primórdios da comunicação televisiva. 350  Lui z

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Julio chegou em cima da hora com aquele texto gigante, me pedindo para reproduzi-lo ao vivo em meia hora. Claro que isso seria impossível, mas me lembrei de um artifício televisivo muito utilizado antes do surgimento do teleprompter: a dália! Lembram da Dália? Aquela cartolina com texto escrito com marcador de texto? Um produtor escreveu o texto em cartolinas e foi tudo bem. Uma hora, o tal produtor se distraiu e não trocou a dália. Não tive dúvida, agarrei o braço do cameraman, pedi para ele focalizar no prédio, enquanto eu pedia para mudar a dália. Foi tudo de improviso, emocionante e perfeito. O prédio estava lotado, num clima de festa mesmo. Lembro de alguns flashes daquela noite. Eu e Chuck Hipolitho tocando violão enquanto João Suplicy cantava com a gente. Tinha um “ponche vermelho” tal qual em Woodstock. Eu provei o tal ponche, muita gente provou. Havia dois estúdios com imagens ao vivo, um deles com o Furo MTV, outro com vjs e ex-vjs falando alguma coisa, se despedindo. Marcelo D2 fez um show com o grupo Cone Crew num dos estúdios. Guilherme Arantes tocou no saguão do prédio. Eu me aproximei dele, Luiz Carlini estava tocando guitarra na banda que o acompanhava, dei um abraço nos dois e Guilherme mandou: — Eu queria dizer que nunca fui convidado para aparecer na mtv — falou, meio magoado. — Mas, Guilherme, você veio no CEP MTV comigo em 1992, lembra? — Não lembro muito bem, mas se você está dizendo… — Veio, e a gente estava loucão! Risadas generalizadas e o clima voltou a ser de festa. Dentro do switcher, o sistema nervoso de uma emissora de tv, ainda mais excitado naquela noite, Romi Atarashi, Cacá Marcondes e Camila Cecchi se revezavam no comando da transmissão ao vivo. As pessoas que estavam na “festa” pilharam o prédio. Levaram as coisas mais absurdas, entre elas, as placas dos estúdios, dos departamentos, lembranças em geral. No dia seguinte, fui até os escombros e a única placa que havia sobrado era a “Departamento Jurídico”. Eu trouxe ela para casa! Aquela noite terminou na Real, a padaria companheira de todos os dias, com as pessoas superlotando a calçada. Claro que, em determinado momento, ouvi o Izac, famoso balconista da Real, me chamando pra dentro do balcão, pra ajudar a servir as pizzas para as pessoas. O ponche batendo forte e CONTOS DE THUNDER   351

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o coração também. Eu me encontrava entre a alegria de poder estar ao lado de tanta gente querida e a tristeza de saber que aquele seria o último dia de atividades da mtv Brasil.

Desligando os aparelhos

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Mas ainda teria o último dia de transmissão para valer. Dia 30 de setembro de 2013 ficou marcado como aquele em que nos reunimos no quinto andar para assistir aos últimos suspiros da mtv. Estavam lá Zico Goes, Camila Cecchi, Julio Piconi, Daniel Furlan, Rafael Opípari, Luana, Stephanie, Nathalia, Didi Effe, Romi, e uma turma de mais ou menos vinte pessoas, entre funcionários, estagiários e equipe de exibição. Eu me despedi com um vídeo. Daí entrou a Cuca e apresentou o último clipe da história da Music Television Brasil. A escolha foi “Maracatu atômico”, do Chico Science & Nação Zumbi, de 1994, quando a mtv já era tudo isso e o Chico só não foi ainda mais além por causa de um acidente. Do mesmo modo que a gente não conseguiu ir ainda mais além por causa de vários acidentes, menos trágicos, claro, mas que levaram a emissora até seu limite. Quando acabou o clipe, entraram umas “interferências” no sinal de transmissão. Chegava então a Astrid, que havia acendido as luzes da mtv em 1990 e as desligou, em 2013. Ela falou que aquilo era natural. “Quero ser a última a apagar. Sem lamento. Mas com muito orgulho. Foram 23 anos debochando da gente mesmo. Foram 23 anos botando essa porra pra funcionar direito sim! Do nosso jeito.” Tudo estava gravado. Entrou um clipe com a nossa festa de despedida pelo prédio. A música era “Orra meu”, da Rita Lee. Terminou com o logo da mtv se afastando e esvanecendo. Aí o sinal mudou para a tv Ideal, antigo projeto da Abril. Saímos do ar. Acabou. Foi horrível. Subimos todos para o topo do prédio, no décimo andar, onde se apoia a antena que está lá até hoje. Alguns fumaram um baseado, outros choraram, eu me segurei para manter a compostura. Que dia triste! 352  Lui z

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Fui muito mimado na mtv. Eu precisava de colo, às vezes. Eu me diverti muito. A mtv mudou a minha vida pra sempre. Ela me deu turbinas e asas. Me tornei um superjato naquele aeroporto no bairro do Sumaré! Eu fiz o melhor que podia, assim como muita gente ali. E isso marcou nossa vida e a de muitas pessoas também. Estamos na história da tv brasileira. E isso ninguém tira. Nem mesmo a gente.

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Ensaio, Fábrica do Som, Boca Livre, Som Pop. Ele cresceu vendo e ouvindo e respirando Cultura. Foi pra Fundação caçar mitos. Do Furo MTV ao programa do Faro na Cultura. Encontrara uma nova casa pra chamar de sua. Mas a televisão já não tinha mais dono. Nem controle remoto. A tela se dividia. Já tinha a segunda que virava cada vez mais a primeira. A turma que sempre foi de ponta buscava novos fatos para evitar micos.

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O SONHO DA CULTURA

O fim da mtv Brasil, como era conhecida, foi difícil de assimilar. Desde antes do término das suas atividades, em 2013, eu já ouvia comentários de fãs da emissora de que algo tinha que ser feito. A transição da Abril para a Viacom foi traumática, um rompimento mesmo. Segundo relatos dos corredores do prédio, a Viacom não queria os arquivos, os programas, as reportagens, os registros dos 23 anos da mtv Brasil. Pelo contrário, queria se afastar radical e imediatamente de tudo que havíamos feito. Todo esse arquivo ficou guardado no antigo prédio, numa fitoteca, aos cuidados do Valtinho, que digitalizava pouco a pouco o que tinha sobrado da história da mtv. Eu encontrava as pessoas na rua e era constante o sentimento de perda, de desolação pelo destino de um trabalho de tantos anos de amor à música. Muita história foi feita naquele prédio, e a possibilidade de tudo ser perdido e esquecido deixava todo mundo apavorado. Esse imbróglio dura até hoje. Mas eu precisava ir em frente, e surgiu uma oportunidade de curar as feridas numa emissora que também sempre admirei, a tv Cultura, em São Paulo. Eu tinha preparado um projeto de um programa musical para a televisão que julgava interessante. Não conseguiria me afastar desse assunto tão cedo. Isso faz parte de mim, não tenho que lutar contra essa minha natureza. Numa reunião com o presidente da Cultura, Marcos Mendonça, em seu escritório, lotado de estátuas e esculturas, mostrei o tal projeto e ele me pediu que comparecesse na sede da emissora. Claro que fiquei animado com a possibilidade de emplacar o tal programa em questão, mas a ideia dele era outra: queria que eu apresentasse o programa Caçadores de Mitos. O programa australiano fazia CONTOS DE THUNDER   355

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sucesso no canal Discovery e a tv Cultura queria reapresentar os episódios na versão dublada. Precisavam de alguém que fizesse as vezes de apresentador brasileiro desses episódios. Basicamente, eu apresentaria o programa dublado. Achei aquilo bem estranho, mas, como sempre, daria um jeito de colocar a música no meio. Chamei Rafael Opípari para dirigir o programa. Rafa tinha trabalhado comigo na mtv e bolamos um quadro que encerrava cada episódio da série: “Esse é mito!”. Nesse quadro, eu falava dos mitos musicais, dos grandes músicos do mundo, desvendava supostas lendas como a de que Neil Peart, baterista da banda Rush, conseguia segurar uma moeda na parede tocando-a rapidamente com suas baquetas. Fizemos a primeira temporada, com meu projeto musical descansando na gaveta de alguém. Foram duas temporadas gravadas na sequência, eu vestindo um macacão amarelo idêntico ao de Walter White, o químico produtor de metanfetamina de Breaking Bad. A série estava no seu auge, e eu era obcecado pelos personagens e pela trama. Fui muito bem recebido na tv Cultura. As pessoas eram todas amáveis, eu sentia uma alegria de estar ali, em meio aos estúdios, lembrando dos tempos em que frequentava a emissora nos anos 1980 com minha banda, os Devotos dnsa. Programas como Panorama e Boca Livre tinham sido muito importantes para o começo dos Devotos. Foi na Cultura que Tadeu Jungle apresentou Fábrica do Som, musical com bandas de rock no começo dos anos 1980, direto do Sesc Pompeia. Boca Livre, apresentado pelo Kid Vinil, era gravado no Teatro Franco Zampari, já no final dos anos 1980, também com a proposta de mostrar o cenário da música jovem. Na mesma tv Cultura, Fernando Faro fez um dos programas musicais mais importantes de todos os tempos, o Ensaio, que antes era chamado de MPB Especial. Todos os grandes artistas já tinham passado por ele. De Caetano Veloso a Gal Costa, de Elis Regina aos Originais do Samba. Na primeira semana em que cheguei por ali, conheci o Baixo, como era conhecido o Fernando. Uma figura ímpar, já muito velhinho, mas com um brilho fantástico nos olhos. Pedi para o Rafael convidá-lo para participar do quadro “Esse é mito!” do Caçadores. Esse material nunca foi ao ar. Teve uma ocasião em que eu estava nos jardins entre os estúdios da Cultura, quando avistei Angela Ro Ro. Não tive dúvida, fui ao encontro dela e a gente conversou loucamente. Na hora, localizei o Rafael e pedi uma equipe para gravar aquele encontro. No meio daquilo, vi o Fernando Faro caminhando lentamente em direção ao prédio das produções 356  Lui z

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dos programas. Fomos Angela e eu ao encontro dele. Nos sentamos num dos bancos, eu de um lado, Angela do outro, Fernando no meio. Angela abraçava e se declarava ao mestre, ele sorria, eu paralisado com aquela cena espetacular. Essa gravação também nunca foi ao ar. Eu adorava passear pelas instalações da tv Cultura. Os estúdios, as ilhas de edição, as editorias, era tudo muito interessante pra mim.

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Ensaio Depois de algum tempo, gravei com os Devotos o Ensaio com o Fernando Faro. Todos da banda estavam muito emocionados com aquilo. O programa mantinha a mesma linha, ou seja, a banda num cenário de estúdio, com luz de teatro, Fernando fazendo as perguntas sentado à nossa frente, o espectador sem ouvir as perguntas, apenas imaginando o que Fernando nos perguntava, ouvindo as respostas dos entrevistados. Foi muito emocionante. Levei um amplificador de contrabaixo, que apresentou algum problema, mas corremos atrás de outro e tudo se resolveu. Sempre fico tenso com apresentações ao vivo na tv. Muitas vezes, o som que vai ao ar é ruim. Esse é um fator que tem melhorado muito no Brasil. Nos anos 1980, as bandas preferiam fazer um playback a tocar ao vivo, pois o som da tv era péssimo. Mas na tv Cultura esse cuidado sempre foi importante. Ali, nunca tive qualquer problema com isso. A banda chegou, montou o equipamento, a Gabi (nosso produtora na época) cuidou de todos os detalhes, passamos o som, a luz, fomos comer algo e a expectativa só aumentava. Eu sabia da importância de gravar o Ensaio com o professor Fernando Faro. Estávamos no estúdio prontos pra começar a gravação, aguardando a presença dele. Ele chegou, cumprimentou a todos, banda, equipe técnica, e se sentou bem na minha frente. A cada música ele fazia uma ou duas perguntas, com sua voz baixinha, tirando detalhes das composições. A banda estava muito à vontade com aquilo tudo. Foi mesmo especial! No final, ele sussurrou: — Baixo, toca aquela música antiga de vocês. — Qual música, Fernando? — Aquela do “Pau no seu cu”. — Mas, Baixo, tem certeza? A gente não toca mais essa música. Não é problema a gente mandar essa aqui? CONTOS DE THUNDER   357

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— Nada, eu quero ouvir essa mesmo… Enquanto a gente entoava o refrão, ele ria muito da letra, se divertindo com o tema. O programa foi ao ar e ninguém teve coragem de dizer nada, afinal, era Fernando Faro, o maior de todos.

Abu

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Outro grande mestre que encontrei na Cultura foi Antônio Abujamra. Mestre-monstro, pai do meu amigo André, Abu era um dos mitos dali. Seu programa Provocações era das atrações mais instigantes da televisão brasileira. Veio o convite dele para me entrevistar e fiquei apavorado. Já tinha assistido ao programa e notado como ele era um provocador de primeira classe. Ícone do teatro envolvido com o Teatro Brasileiro de Comédia (tbc), também fez sucesso na tv, atuando em novelas da Rede Globo. O grande destaque foi na novela Que rei sou eu?, em que encarnava o personagem Ravengar. Cinema também era uma de suas áreas, com mais de vinte filmes na carreira, incluindo Festa, do Ugo Giorgetti. Mas ele também trabalhou com Julio Bressane, Alain Fresnot e Rogério Sganzerla. Ou seja, dava medo! Foi nessa ocasião que ele me entrevistou e aconteceu o episódio das luzes que já mencionei alguns capítulos atrás. No fim, veio uma pergunta para a qual eu não estava preparado: — O que é a vida? Eu não lembrava dessa pergunta, não me preparei pra ela e tentei explicar alguma coisa em vão. Acho que falei algo como “viver é sobreviver dia a dia”, ou algo assim. — Thunderbird, o que é a vida? — insistiu. De novo, fui pego com a veemência do Seu Abu. — Acordar com a sensação de ter uma nova oportunidade de viver um pouco melhor que no dia anterior — respondi, ou algo assim. No final, ele vem para uma foto — sempre fazia isso —, dizendo: — Vamos fazer uma foto, que é a única coisa verdadeira desse programa! Mais risadas e a sensação de que eu tinha passado por algo único, histórico, valioso, ou seja, tinha passado mais de uma hora sendo entrevistado por um monstro maravilhoso, um artista completo.

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Caçando mitos

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As gravações do Caçadores de Mitos aconteciam num galpão improvisado, ao lado do pessoal que fazia os cenários da Cultura. Eu passava pelas maquetes dos programas, uma coleção de lembranças das antigas produções. Fiz uma foto ao lado do Garibaldo, personagem da Vila Sésamo, para comemorar o aniversário da tv. Garibaldo foi um dos vários apelidos que tive — esse, no colégio. Vila Sésamo foi um programa infantil muito legal do começo dos anos 1970. Era uma produção da tv Cultura que trazia um elenco incrível: Armando Bógus, Aracy Balabanian, Sonia Braga. Toda criança que tinha uma tv em casa assistia a Vila Sésamo. Lembro que Marina Person gravou um episódio de Caçadores de Mitos comigo. Na época, ela ainda estava na tv Cultura. Rivellino, grande figura do futebol, também participou de uma edição do programa. Eu conhecia o craque desde a Copa de 1970. Muito bem-humorado, ele trocou a maior ideia comigo. Ficou tirando um sarro de mim, quando chamei o Rogério Ceni de mito. O maestro Júlio Medaglia gravou comigo também. A entrevista foi longa, e perguntei sobre a influência da Tropicália na mpb. Ele ficou muito empolgado com o assunto. A coisa esquentou quando falou de Tom Jobim: — Tom Jobim… superestimado! Pensa bem, ele vem com “É pau, é pedra, é o fim do caminho”, são três notas! Não contive o riso quando ele cantarolou “Águas de março”. Ficou claro que a Tropicália tinha realmente um antagonismo com a Bossa Nova. Pelo menos pro maestro. Mais que isso, que Medaglia tinha um lance estranho com o outro maestro. Mas o mais louco foi quando falei da influência dos Beatles no cenário da música mundial. Ele foi veemente quanto a isso. — Os Beatles foram fundamentais! — Mas, maestro, e o Silver Apples? — Sim, os Beatles foram muito importantes! — Mas o Silver Apples também, né? — Sim, tudo dos Beatles foi muito importante! — Mas o Silver Apples… — A Tropicália foi o grande movimento dos anos 1960 no Brasil! — Rafael interveio, para amenizar o questionamento. CONTOS DE THUNDER   359

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— Sim, sem dúvida! — falamos eu e o maestro em uníssono. E esquecemos os Beatles e os Silver Apples. Depois a gente riu pacas da situação. O Rafa e eu, claro!

Projetos, projetos

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A gente gravava por muitas horas naquele “laboratório”, com muito gelo-seco, vidros coloridos, objetos esquisitos na bancada. Era verão e eu suava muito naquele macacão. Foram diversas temporadas dubladas da edição australiana até março de 2014, quando me ligaram dizendo que eu tinha que assinar o contrato de renovação com a tv Cultura. Assinei, enviei para a pessoa encarregada disso. Sem o contrato assinado, não receberia meu salário mês a mês. Foi aí que começou a dar tudo errado por lá. Primeiro, que eles aguardavam as dublagens dos novos episódios para o reinício das gravações. Enquanto isso não acontecia, Rafael Opípari tinha ideias para outros projetos comigo na Cultura. Meu projeto musical continuava numa gaveta qualquer. — Thunder, vamos contar a história da tv Cultura! — falou Rafael, empolgado. Começamos a visitar os arquivos, a conhecer as pessoas que cuidavam disso. Estávamos empolgados, nós dois. Mas, aparentemente, só a gente mesmo. O marasmo tomava conta do ânimo dos nossos superiores imediatos. Era sempre difícil avançar em alguma direção. Chegou junho, eu ainda não tinha recebido o salário de março, e me convidaram para gravar o Cartãozinho Verde, programa sobre futebol similar à emblemática mesa-redonda esportiva Cartão Verde, só que apresentado por crianças. Fui lá, gravei, um dos moleques morava no mesmo prédio que eu no bairro do Alto da Lapa, para onde eu tinha me mudado no ano anterior. Todo fim de mês eu perguntava sobre meu contrato e meu salário e as respostas variavam entre “o presidente está em férias”, “o presidente ainda não assinou, fique tranquilo”, “o presidente viajou para o exterior, calma”. Pedi uma reunião com o presidente, mas ele não estava no Brasil. A tal reunião foi com a diretora de produção e o braço direito do presidente, José Roberto Walker. Ele cobrou sobre as novas gravações do Caçadores de Mitos, pediu que resolvessem de vez a questão dos meus pagamentos em quinze dias e que seguíssemos em frente. Não resolveu nada, continuei sem receber. 360  Lui z

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A essa altura, eu havia recusado uma proposta de programa no sbt. Seria um programa sobre futebol, em que eu tocaria com minha banda e participaria como apresentador também. Algo a ver com a Copa do Mundo de 2014. Outra proposta veio da tv Record, onde eu participaria do programa O aprendiz de celebridades, apresentado por Roberto Justus. Eu já tinha feito um programa com o Roberto e, sem a menor dúvida, faria mais esse. Conversei com a tv Cultura sobre essas propostas e a resposta era sempre a mesma: — Acreditamos em você e queremos você com a gente. Temos planos aqui para você! Indiquei meu amigo Kid Vinil pro Aprendiz. Ele acabou fazendo o programa.

O golpe de 2014

Em julho, surgiu outro projeto, envolvendo a Barbara Thomaz e eu. Ela também era contratada da tv Cultura. O projeto reunia outro diretor vindo da mtv, Lucas Rochetti, e o Rafael. A ideia era que a Barbara e eu fôssemos apresentadores de um programa com plateia, números musicais, curiosidades culturais, matérias sobre os arquivos da tv Cultura, tudo gravado num estúdio grande, que estava abandonado nas dependências da Fundação Padre Anchieta. Muitas reuniões de produção, provas de figurino, iluminação, textos, tudo indicava que aquilo iria adiante. Eu pacientemente aguardava que desse tudo certo, inclusive os pagamentos atrasados, afinal, as contas não paravam de chegar. Gravamos o piloto do Na fábrica, e fiquei aguardando os próximos passos. Segundo tinham me dito, o programa tinha agradado a direção, mas eles estavam indecisos sobre a estreia. Enquanto isso, a grade da emissora reapresentava todos os episódios de Caçadores de Mitos de segunda a sexta. O Na fábrica ficou aguardando aprovação, e eu fiquei aguardando meu salário até novembro de 2014, quando me disseram que a tv Cultura estava sem dinheiro para renovar meu contrato. Quando perguntei dos salários atrasados desde março, responderam que eu não receberia essa parte também. Quando questionei sobre o cumprimento do contrato assinado em março, me disseram que, depois que eu devolvi o tal contrato assinado, o presidente não o assinou… Ou seja, para mim estava tudo certo, confiei que eles me pagariam pelo contrato por mim assinado. Eles CONTOS DE THUNDER   361

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nunca assinaram esse contrato e me enrolaram por nove meses, para me dizer que eu não poderia fazer nada… Eu assinei o contrato, eles não. Eu nunca havia passado por tamanha confusão em toda a minha carreira na tv. Trabalhei em outras emissoras que cumpriram com o combinado todas as vezes. Na mtv, cheguei a assinar contratos depois de um ano do trabalho realizado. Tudo na confiança de que estava lidando com gente séria, honesta, verdadeira. Esse foi o maior golpe que sofri na minha vida profissional. Aliás, golpe já estava no vernáculo do Brasil, se é que você me entende. Até hoje fico pensando em alguma razão para as coisas terem caminhado daquela maneira. No final das contas, acho que havia mesmo um grau de incompetência da parte de alguém na cadeia de comando. Um dia ainda esclareço isso. Ou não.

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Não tem ponto-final nem reticências. O último capítulo da saga não tem heróis nem final feliz. Nem final tem. Levou mais tempo para contar este que os demais, que foram muitos. Porque a gente sabe como a história começa. E ele ainda não sabe como vai terminar. O cara que abriu o sinal e desligou a tomada de uma TV que foi mais dele do que de todos não sabe encerrar suas páginas. Mas dá mais uma aula de como virá-las. Como virou símbolo de inquietação. Ele agita o mundo trabalhando como um cão. E faz como seu Rickenbacker. Pode estar parado, mas não sossega o rabo. Preso em casa, bagunça. Solto sem coleira, ladra, mas não morde. E é o mais leal dos amigos. Conta os pecados, mas não dá nome aos santos e aos bois, só aos bons. Como ele.

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28. PONTO E VÍRGULA

Toda aquela minha história com a tv Cultura teria sido o suficiente pra me ocupar bastante. Mas não! Eu sempre quero mais. Em janeiro de 2014, conheci Xico Pati. Xico, assim com X, tinha a vida programada. Certo dia, ele disse pra si mesmo: “Chega disso! Vou fazer algo interessante, só pra variar um pouco!”. Juntou uma turma da pesada, que montou uma central de podcasts, a Central 3. Quando conheci o Xico, a Central 3 já tinha um ano de caminhada. Num restaurante qualquer ele propôs que eu fizesse um programa do jeito que eu quisesse, no horário que eu escolhesse, sobre o que achasse legal. Eu já tinha pensado nisso, na falta que me fazia um programa de rádio, um talk show, em que eu pudesse entrevistar, interagir, divulgar as coisas que julgasse importantes. A diferença na proposta do Xico era que aquilo não seria um programa de rádio, seria um podcast. Ou, como explicaria meu futuro parceiro no programa, Leandro Iamin, “a Netflix do rádio”. — Você ouve o podcast na hora que quiser, onde quiser, sem custo algum, sem problemas com grade de programação — disse o Xico, com os olhos brilhando. Não entendi muito bem a parada, mas sabe quando a gente olha no olho de alguém e vê verdade? Vê empolgação, respeito, vontade, tudo de verdade? Pois é, não demorei muito pra responder ao Xico: — Vamos nessa! Vai ser legal pacas! Escolhi as terças-feiras às nove da noite pra gravar o tal podcast, que foi batizado de Thunder Radio Show. Mas é rádio ou podcast? Nasci em 1961, portanto, se eu falo num microfone pra me ouvirem à distância, na essência, é rádio. Claro, demorei um tempo pra entender as vantagens do podcast. Até CONTOS DE THUNDER   365

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hoje, dependendo do convidado, eu tenho que explicar a diferença entre um programa de rádio e um podcast. A televisão passou por um processo semelhante. Os serviços on demand são mais populares hoje em dia, e a mesma coisa aconteceu com o rádio. Até as rádios tradicionais já entenderam a revolução do podcast, disponibilizando seus programas via internet e transformando algumas de suas edições pra esse formato nos respectivos sites. O poder do podcast cresce a cada ano. Já virou assunto na grande mídia, já é respeitado como veículo de divulgação pra artistas, é foro de discussão entre políticos, jornalistas, artistas. O Thunder Radio Show (ou trs) já recebeu músicos, artistas plásticos, escritores, políticos, atrizes e atores, dramaturgos, comediantes, esportistas, apresentadores de rádio e tv. Conheci o estúdio da Central 3 numa segunda-feira, enquanto acontecia um dos programas, o Titulares. Ali estavam o Xico, o Leandro Iamin, o Matias Pinto, o Fernando Toro, o Vitor Birner e o Diguinho Coruja, que operava a mesa de mixagem e gravação e, de longe, o mais experiente dessa turma incrível. Diguinho tem o próprio programa de rádio há muitos anos e entrou no The Noite com Danilo Gentili desde que o polêmico apresentador se transferiu para o sbt. Mas a turma da Central era maior. Outros podcasts eram gravados ali e traziam pessoas muito legais na esteira. Conheci melhor essa turma durante a Copa do Mundo de 2014, quando assistíamos juntos aos jogos do Brasil na sede da Central 3. Cabe aqui uma descrição dessa “sede”. Tratava-se de um escritório de arquitetura e artes, capitaneado pela Renata Pati, esposa do Xico, e um estúdio da Central 3 no segundo pavimento. A tal casa, antiga moradia de Oswald de Andrade, tinha sido completamente reconstruída e era espetacular. Digo que era porque hoje em dia estamos num estúdio independente na rua Augusta. Mas não houve um convidado que não ficasse impressionado com aquele lugar. As festas de fim de ano eram realizadas ali também. Superfestas, superfodas, super! De cara ficou decidido que eu teria alguém na mesa comigo. O primeiro foi Lucas Gin, um jovem que ajudou na instalação dos equipamentos da Central. Depois, me ocorreu chamar uma pessoa que interagisse mais comigo. Como o foco principal seria música, pensei no Luciano Malásia, percussionista da banda Ultramen, que conhecia desde 2002. O cara sempre foi muito gente fina e poderia somar nas entrevistas, desde que dominasse as gravações e transmissões. A primeira parte rolou lindamente, mas a segunda, a parte técnica, foi mais complicada. A decisão de colocar outra pessoa que dominasse o equipo 366  Lui z

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foi coletiva. Foi assim que nasceu a parceria entre eu e Leandro Iamin. E é assim até hoje!

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“Eu, Leandro Iamin, dirijo o conteúdo da Central 3 e a noite de terça, pra mim, era de folga, mas queria fazer o programa do Thunder, óbvio. E o Thunder queria na mesa de som alguém em quem confiasse. Lembro de quando fui ensinar uns detalhes da temperamental mesa de som ao Malásia, o técnico escolhido. Tenho pra mim que o Thunder gostou de eu estar passando conhecimento mesmo querendo estar no lugar do rapaz. Ganhei a confiança dele naquele momento, e em pouco tempo estava na mesa às terças, e dane-se a folga.”

Desde 2014, passaram pelo programa convidados muito legais. Geralmente amigos ou pessoas que eu admiro, novos artistas, outros consagrados, fizemos de tudo. O programa de estreia foi com Esteban Tavares, ex-Fresno, que conhecia da mtv. O segundo foi Edgard Scandurra. Entre papos, tocamos e cantamos juntos uma música da banda Smack — uma das minhas preferidas, da qual Edgard fez parte — e “I Want to go Back to Bahia”, do Paulo Diniz. Chay Suede, meu colega de mtv participou do terceiro episódio. Falamos de sua carreira como ator e músico. Ele cantou e tocou ao vivo pra gente. Dali em diante, eu estava à vontade pra fazer o que quisesse, com quem eu quisesse, sem medo de nada. E foi assim mesmo! Nesse espaço, bem pequeno, recebemos uma banda inteira tocando ao vivo. Vocais, guitarra, baixo, bateria e o escambau! Era The Great Munzini & The Astonishing Sotos, uma banda indiana de garage rock, com um brasileiro, um uruguaio e um holandês. Bizarro, mas muito legal! Marina Lima fez um dos episódios mais interessantes. Ela cantou ao vivo, ao lado de Esteban Tavares, um dos amigos que mais esteve conosco no trs. Quando a convidei, propus música ao vivo e adiantei que conseguiria um músico para acompanhá-la. Depois de ela topar, liguei pro Tavares, que ficou emocionado com o convite. Ele adora o som da Marina. Foi tudo lindo! kl Jay, Kid Vinil, Lourenço Mutarelli, tantos outros, fizeram participações muito especiais também. O ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, também participou de uma edição do trs em 2017. Falei pro Xico Pati que o Haddad viria ao programa, CONTOS DE THUNDER   367

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e ele preparou toda uma recepção. Fiquei preocupado também com algum protocolo a ser seguido, ainda que já não estivesse na prefeitura. Mas quando faltava meia hora pra começar o programa, toca a campainha, o Matias abre a porta, e lá está o Haddad, sozinho, sem entourage, assessor, segurança, apenas ele mesmo. — Fernando, que legal que você veio! — falei, empolgado, ainda sem saber direito como tratar o cara. — Thunder, eu que agradeço o convite — ele respondeu, na maior simpatia. — Toma alguma coisa, um vinho, talvez? — Tem refrigerante diet? E assim foi. Quem quiser conferir o podcast, é só entrar na página da Central 3 e procurar por Thunder Radio Show. Colocamos no começo do programa uma música do Led Zeppelin pra tocar, e nisso Haddad contou que conheceu o Jimmy Page, guitarrista da banda lendária, e tem essa história espetacular do ex-prefeito em Londres: — Eu estava no palácio de Buckingham na comitiva do presidente Lula. Estavam presentes a rainha Elizabeth, políticos, artistas. — Fernando começou. — Poxa, todo aquele protocolo, né — lembrei dos Beatles aprontando no banheiro depois de receber as condecorações nos anos 1960. — De repente chegou um cara pra mim, que eu não reconheci quem era, e perguntou se eu era o ministro de Educação do Brasil. Eu disse que sim. Então, ele me pediu que lhe apresentasse o ministro da Cultura, Gilberto Gil, que estava com a gente. Falei “Claro!”, e perguntei a quem eu apresentava — continuou, fazendo um mistério. — Nossa! Que turma da pesada, hein! — eu, aguardando a revelação. — A surpresa foi quando eu perguntei qual era o nome dele. — Quem era a figura? — Era o Jimmy Page!— Todos no estúdio caíram na gargalhada imaginando a cena. Tem outras histórias legais nessa edição do trs. Dá pra ouvir quando você quiser. Essa é a vantagem do podcast! Lourenço Mutarelli, um dos papos mais legais que tive na Central 3, chegou com um presente. Depois de recebê-lo, ele sacou um queijo da mochila. — Poxa, que legal! É a primeira vez que um convidado traz um queijo pra animar a conversa — agradeci. — Na verdade, trouxe esse outro, mas é pra você levar pra casa. 368  Lui z

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— Uau! Obrigado… Kleber, ou kl Jay, o mitológico dj do Racionais mc’s, foi duas vezes ao trs. Em ambas, nos divertimos muito. Falamos de rap, cultura, política, séries, automóveis, o que nos veio à mente. Nos tornamos ainda mais amigos. Ele até tocou numa das festas de fim de ano da Central 3. O bailão foi arrasador! Depois, Kleber participou de meu programa de YouTube. Mas conto isso melhor daqui a pouco.

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Deu pra sentir a empolgação do Thunder com seu podcast. E para a Central 3, o que Thunder trouxe? “É nosso maior parceiro”, frisa Xico Pati, o dono da empreitada. “A mtv foi uma das grandes novidades da minha geração e tinha espaço cativo na televisão de casa. A Central 3 me proporcionou fatos inimagináveis, e ter o Thunder conosco foi uma dessas coisas. Thunder foi um dos divisores de águas da Central 3, pois abriu as portas pra muita gente importante conhecer o nosso trabalho.”

Kid eterno

Kid Vinil foi ao trs. Kid é e sempre será um dos meus ídolos. A ideia era convidá-lo pra participar e, posteriormente, chamá-lo pra fazer um programa comigo na Central 3. Chegamos a falar sobre isso. Ele foi ao programa no dia do seu aniversário, e foi sensacional. A gente sempre se falava sobre esse futuro podcast, já tinha conversado com o Xico Pati sobre o assunto. Não deu tempo de o projeto amadurecer e acontecer. Meu amigo, ídolo e herói Kid Vinil morreu em maio de 2017. Mas não se entregou facilmente. Na verdade, Kid passou mal depois de um show em Minas Gerais. Ele teve que ficar na cidade por alguns dias, aguardando um meio de transporte para voltar para São Paulo. Houve uma grande mobilização pra arrecadar fundos para trazê-lo por via aérea. Quando chegou aqui, consegui visitá-lo no hospital e ele ainda lutou por alguns dias, mas não resistiu. Foi uma perda irreparável. Perdemos todos nós, amigos, fãs, amantes do rock. Rock que ele ensinou por tantos anos. Fica a lembrança de um professor genial, de mente aberta, incansável na busca por novidades, generoso com seu conhecimento.

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Odair José e mais, muito mais

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Outro que nos visitou no Thunder Radio Show no dia de seu aniversário foi Odair José. Eu tinha encontrado com ele pelo menos duas vezes antes. A primeira delas foi casualmente, no caixa de uma casa de material de construção na marginal Pinheiros, em 2005. Em 2016, apresentei um festival de rock em Presidente Prudente, numa unidade do Sesc. Entre as atrações do festival estavam The Baggios, Nação Zumbi e Odair José. Eu cheguei ao Sesc a tempo de assistir a palestra do amigo produtor e músico Carlos Eduardo Miranda. Havíamos nos encontrado de manhã e passamos horas almoçando numa churrascaria. Ele estava muito empolgado com o lançamento do disco da sua banda, La Cumbia Negra. Depois da palestra, fui ao backstage pra me inteirar da programação do festival. Conversei com os amigos da Nação, conheci os rapazes do The Baggios, que tinham feito um show espetacular, e fui apresentado ao Odair. Muito simpático, disse que estava com um pouco de sono, pois havia acordado muito cedo. Aos 69 anos, o ídolo máximo da mpb tinha viajado de van de São Paulo até Presidente Prudente. Já enxerguei seu heroísmo nessa revelação. Pois Odair passou o som, aguardou seu momento do show, entrou em cena e ganhou a plateia inteira. Os jovens roqueiros que estavam lá se entregaram tanto quanto suas antigas fãs dos tempos de “Eu vou tirar você desse lugar”. No final, ele ainda me convidou pra cantar a música da pílula com ele. Foi uma noite inesquecível. Não perdi tempo em convidar o mestre do entretenimento pra participar do trs. Todos na Central 3 ficaram empolgados com sua presença e emocionados com o fato de que Odair tinha saído de sua casa, numa cidade depois de Cotia, na rodovia Raposo Tavares, para conceder a entrevista no nosso talk show. Depois da gravação, cantamos parabéns, com bolo e refrigerante. Esse encontro rendeu uma amizade que, em 2019, resultou numa parceria incrível. Mas eu conto isso daqui a pouco. Aconteceram encontros inusitados também. Como no dia em que reuni Casagrande, Moacyr Franco e seu filho, Johnny, no mesmo programa. Ou quando levei Gerd Wenzel ao trs, e ele acabou fazendo parte da família Central 3. Outro que, a partir de uma entrevista no trs, se tornou podcaster na Central 3 foi o José Trajano. Quando rolou a Copa do Mundo no Brasil, em 2014, eu era um recém-chegado na Central 3. Xico Pati convidou a todos para que assistissem os jogos do Brasil na sede da Central. Foi assim que conheci a maioria dos participantes 370  Lui z

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daquele grupo de jovens revolucionários. Todos muito ligados em futebol, com opiniões muito diferentes do brasileiro comum. Era bem divertido, uma turma bacana na Central 3. E então chegou o dia do jogo com a Alemanha no Mineirão. A gente assistiria ao jogo e entraria ao vivo em seguida, numa edição do Central na Copa — aliás, nome tomado de forma abrupta por uma rede televisiva posteriormente. Veio o 7 × 1, e eu, o Leandro Iamin e mais alguém fizemos o único programa do qual não lembro de nada. A gente nunca voltou a ouvir esse podcast. Ficou marcado como o dia do estarrecimento futebolístico nacional. Um horror… O horror…

De Tarântulas, para Tarântulas & Tarantinos e, enfim, Elektromotoren

Desde 2014, passei a me encontrar com Guilherme Held para compor. Nosso trabalho com a banda Tarântulas & Tarantinos já não era o suficiente. Queríamos mais. A ideia de músicas autorais no repertório era inevitável. Depois de quase um ano compondo e gravando no estúdio em sua casa, decidimos incluir essas músicas no setlist. Passamos a ensaiar esse repertório com Felipe Maia, com a intenção de gravarmos um disco. Já era final de 2015, quando o produtor musical Eduardo Bidlovski, o BiD, nos ajudou com as três primeiras músicas. Eu conhecia o BiD desde quando ele fazia parte da banda Professor Antena, ao lado de Rodrigo Leão. BiD também produziu Chico Science & Nação Zumbi nos anos 1990. Nos encontrávamos às vezes na Real e trocávamos umas ideias, mas nunca imaginei que trabalharia com ele. O Held estava gravando uma trilha sonora produzida pelo BiD, como músico convidado. Ele me disse que o BiD sugeriu uma de nossas músicas para a trilha do filme O escaravelho do diabo, dirigido por Carlo Milani, e entramos nela com “Temper”. Acabamos gravando três músicas em seu antigo estúdio, no bairro dos Jardins, em São Paulo. Ficamos bem animados com a ideia de um show com nossas músicas autorais. Começamos a ensaiar esse repertório e estreamos no Centro Cultural São Paulo, com o nome reduzido para Tarântulas. Passamos a incluir algumas músicas autorais nas apresentações da banda Tarântulas & Tarantinos, e o público curtiu. Tive a ideia de conversar com o velho amigo Arthur Joly, que eu conhecia desde 2000 dos Verões MTV, em que ele atuava como dj nas gravações da praia. Também produtor musical, Joly gravou aquela trilha sonora do Verão MTV em 2011, composição minha, que conduziu os vídeos promocionais da emissora CONTOS DE THUNDER   371

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naquele período. Ele topou gravar mais duas músicas com os Tarântulas e lançamos um compacto com essas duas faixas. Tudo ia bem; nossas músicas estavam sendo bem recebidas no Spotify, até que recebemos um e-mail de um sujeito que tinha uma banda cujo nome tinha “tarântulas”. O cara não devia ter muito que fazer, pois, em vez de cuidar da própria banda, ficava incomodando músicos ao redor do mundo, alegando ter o registro do termo. Nós estávamos apenas como Tarântulas e, numa breve busca, vi que havia meia dúzia de bandas no Spotify que, de alguma forma, tinham o nome “tarântulas”. O Arthur ficou apavorado com esse possível processo e retirou nossas músicas das plataformas digitais. Depois, quando consultamos um advogado foda, descobrimos que na verdade a multinacional Turner havia reservado e registrado o nome “Tarântulas” pra quase tudo. Banda, seriado de tv, cinema, delivery de comida, loja de automóveis, o diabo! O tal sujeito que intimidou o Arthur estava apenas blefando, talvez atrás de um dinheirinho fácil. Mas já era meio tarde. Passamos a procurar um novo nome, e isso deu uma dispersada nas atividades da banda. Sabe como é, eu estava trabalhando na Central 3, preparando o disco novo dos Devotos, o Maia tinha montado uma banda que estava gravando, Held tocava com o Criolo o tempo todo. Só em 2018 retomamos nossas atividades de composição novamente. Estamos preparando mais músicas para, finalmente, lançar o disco de estreia da banda, provisoriamente rebatizada de Elektromotoren, nome que retirei do seriado Breaking Bad. Depois do macacão amarelo de Walter White que usei na tv Cultura, Vince Gilligan viria me inspirar de novo.

Devotos dnsa

Enquanto eu gravava as primeiras músicas dos Tarântulas, daqui pra frente chamada Elektromotoren, recebi um telefonema do Bina dizendo que estava desanimado com a música, que queria sair dos Devotos. Eu já havia notado esse estado de espírito nele, o Paulo e o Ricardinho também tinham sacado esse desânimo. Bina estava chegando atrasado nos ensaios, não contribuía com as composições ou os arranjos, estava com zero envolvimento. Teve uma ocasião, num show no Centro Cultural São Paulo, que ele sumiu, não apareceu pra passagem de som. Foi ali que eu tive certeza de que as coisas não estavam bem. Claro que fiquei abatido e chateado com a vontade dele de sair da banda. Passei uma semana mal, sem saber o que fazer a respeito. Mas achei muito honesto da parte dele chegar 372  Lui z

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e abrir o jogo. Na verdade, foi importante pra manter nossa amizade, que perdura até hoje. Mas eu não queria voltar à formação antiga, em trio, com a banda. Foi o Guilherme Held que veio com a solução. — Mano, eu sei quem pode entrar na banda e resolver o problema! — ele disse. — Sério? Eu não vejo qualquer opção! — respondi, desanimado. — Você conhece o Zé Mazzei? — Claro! O Zéma!!! Liguei pra ele na mesma hora, ainda ali na entrada da vilinha onde morava o Held. Ele topou a parada imediatamente. Conhecia o Zéma como baixista dos Forgotten Boys. Perguntei se ele topava dividir os baixos e as guitarras comigo, e ele pareceu gostar ainda mais da ideia. Em seguida, liguei pra todos da banda anunciando que gravaríamos um disco novo. Já tinha falado com o Alan Terpins, que liberou o estúdio A Voz do Brasil. Eu também já tinha conversado com Dom Ivo Barreto, nosso engenheiro de som nos dois últimos discos, estava tudo certo. Começamos a preparar o repertório do disco novo. Lee Marcucci foi em casa pra compormos “Átomo” juntos. Ele ainda tocou baixo na gravação, e Martin Mendonça tocou umas quatro guitarras nessa música. Fui à casa do Jajá Cardoso, da banda Vivendo do Ócio, pra gente fazer uma parceria. Eu tinha conhecido a banda no clube Inferno em 2011, e o Jajá foi jurado do Provão MTV. Depois da gravação, passamos um tempão falando de Billy Bragg & Wilco e Woody Guthrie. Jajá tinha que estar nesse disco de alguma forma. Toby, percussionista espetacular, toca congas em “Suas regras”. A voz de Jajá está tão parecida com a de Raul Seixas que chegaram a perguntar se era um áudio antigo com o rei do rock brasileiro. Claro que André Abujamra contribuiu com mais esse disco. Liguei pra ele um dia de manhã e perguntei se ele tinha uma música pro álbum. — Thunder, estou entrando no banho. Te ligo em trinta minutos. — Opa! Desculpe te incomodar. Boa faxina, mano! Passada uma hora, liga o André. — Thunder, seguinte! Compus a música durante o banho, chama “Sujo”. Estou gravando um áudio aqui e te mando em trinta minutos! — Mas André! Como assim? — Ficou bacana, você vai gostar! — E desligou o telefone. Foi a primeira música que gravamos pra esse disco. Acrescentei uma parte da letra, fazendo referência ao ciclismo. André veio com o arranjo pronto. No CONTOS DE THUNDER   373

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dia, Felipe Pagani — meu amigo cofundador dos Tarântulas — estava no Brasil e participou da faixa tocando uma das três guitarras. Foi uma festa! André é uma festa! Adoro o André! Esse disco ainda teve parceria com o Ricardinho e com o Zéma. Depois que começamos a gravar, me mudei pra uma casa, e minha irmã e sobrinhas fizeram uma tremenda campanha pra que eu adotasse um cãozinho. Foi o que eu fiz, e assim pintou Rickenbacker na minha vida. Mas eu conto isso melhor no próximo tópico. Acontece que ele chegou tão carismático que já ganhou uma música no disco novo. O nome do disco é Audio Generator, e a faixa que o abre se chama “Rickenbacker”, claro! A música que fecha o disco é uma composição minha, do China e do Cazé. Nos encontramos os três na casa do China, na Vila Romana. Eu estava procurando uma casa pra morar por ali, e a letra fala exatamente disso. Ainda tem uma frase em espanhol do Tavares, que morava no bairro. No final da música, tem um áudio de uns trezentos cachorros latindo. Essa gravação foi feita no dia em que fui ao abrigo onde conheci e adotei o Rickenbacker. O ritual de gravação foi o de sempre; eu chegava às oito da noite, encontrava com o Ivo, a gente ligava as turbinas, a banda ia chegando, gravando, os convidados também. Depois de tudo gravado, eu e Dom Ivo passamos uns dois meses mixando as músicas. Por mim, estaria lá até hoje. Eu adoro mixar e depois mudar algum detalhe. Se não fosse o Ivo, eu nunca terminaria nenhum disco.

Pequena Minoria de Vândalos

A ideia de gravar um disco solo me perseguia há muito tempo. Fui o bandleader dos Devotos dnsa, o front-man dos Tarântulas, ou seja, eu acabava assumindo um papel de liderança embora tivesse exceções – poucas – perto do número de bandas que participei. Muitos amigos músicos me cobravam um trabalho mais personalizado, o tal disco solo. Isso se transformou em realidade no final de 2019. Decidimos que Os Devotos dnsa só voltarão a lançar um disco em 2021, quando completaremos 35 anos de existência. O Elektromotoren precisava de um filme novo do Tarantino e ele até nos ajudou com Era uma vez em Hollywood, então prevejo os antigos Tarântulas fazendo shows novamente. Mas, por enquanto, estaríamos à espera de uma janela na agenda dos integrantes para terminar o disco de estreia. Então era o momento ideal para o meu disco solo. 374  Lui z

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O nome Pequena Minoria de Vândalos veio de tanto ouvir o William Bonner e outros apresentadores usarem a expressão para se referir a um grupo que se deixava entusiasmar desde as manifestações de 2013. Acontecia um tumulto e lá vinha a tal “pequena minoria de vândalos”. Achei o nome muito interessante e condizente com esse período que estamos passando no Brasil. Escolhido o nome, chegou o momento de convidar amigos músicos, compositores e produtores que admiro para me ajudar a gravar e a lançar o trabalho. Róger Carlomagno – que me dirigiu no Quiosque do Thunder, em 2012 – já havia me chamado de gregário. Sou mesmo! Adoro juntar novos e velhos bons amigos pra trabalhar e se divertir. Passei por algo semelhante ao me juntar ao Zé Mazzei para dirigir o documentário sobre Lucinha Turnbull, uma encomenda do portal uol. Fiz bons amigos nesse trabalho, e sinto que é sempre assim, adoro trabalhar em equipe. O resultado está disponível no site. Enquanto escrevo este capítulo, estou com algumas músicas gravadas, outras em processo de gravação, outras mixadas, aguardando o final dessa etapa para lançar o disco, ainda sem nome. A Pequena Minoria de Vândalos já está quebrando tudo no estúdio (no bom sentido, claro)! Imagina minha ansiedade!

Rickenbacker

Em 2016, me mudei para uma casa no bairro Siciliano, ao lado da Vila Romana. Foi a oportunidade de ter um cachorro de volta ao meu convívio diário. Desde criança, os cães fizeram parte da família: Bolinha, Pombinha, Candy, Lelo, Dolly, Dorinha, Chester (o poodle mau), Luan, e Amora foram os dogs que habitaram a casa dos meus pais. É uma tradição familiar nossa criar esses bichos. Ao me mudar pra minha atual casa, minha irmã sugeriu que eu adotasse um cãozinho e a ideia foi reverberada por minha sobrinha Julia. Nem deu tempo de terminar a frase “É uma boa ideia…”, e nós três estávamos na estrada pra Ribeirão Pires, a caminho de um abrigo de animais abandonados ou resgatados. O lugar era impressionante. Ao chegarmos, cerca de trezentos cães começaram a latir, que é o som que está no final do disco Audio Generator dos Devotos dnsa. Daí, olho pra uma baia aqui, outra ali, cachorro pequeno, cachorro grande, cachorro agressivo, cachorro deprimido, tinha de tudo. Vi todos os cães do abrigo e fiquei na dúvida. Estava prestes a desistir, quando minha irmã perguntou sobre determinado cachorro que ela tinha visto numa foto do site do abrigo. CONTOS DE THUNDER   375

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Surpresa pra todos, foram atrás do tal sumido. Acharam o sujeito tímido no fundo de uma baia, meio escondido. Quando ele entrou na sala onde eu estava, rolou aquele olhar do tipo “Poxa, cara, você nem imagina pelo que eu passei”. Me contaram a história do resgate dele. Uma acumuladora de animais doente da cabeça já tinha levado dois cães à morte quando seus vizinhos chamaram a polícia. Chegaram ao local dois policiais e a turma do resgate. A tal senhora fugiu com um cãozinho e um papagaio. Deixou o meu amigo, a mãe dele, que morreu dias depois, e sua irmã, que também foi pro abrigo. O suposto pai dele havia morrido de sede dias antes. Vi muito sofrimento nos olhos dele. Na hora, decidi que ia levá-lo, mas demorei uma semana pra tomar coragem. É uma responsabilidade enorme e eu não sabia se teria condições de arcar com ela. Tomada a decisão, liguei pro abrigo e eles cuidaram de tudo: vacinação, castração, quarentena numa clínica parceira, documentação, foi tudo muito bem. Eles chegaram em casa, o amiguinho entrou na sala e depois de dez minutos estava no meu colo, sendo um anjo. Resolvi batizá-lo de Rickenbacker. Eu tenho adoração por essa marca, tenho um baixo e uma tatuagem do instrumento no meu braço esquerdo. Achei que tinha tudo a ver batizar o moço com aquele nome bacana. Ele pareceu ter gostado do novo nome. Claro que ele chegou a uma casa onde era amado, respeitado, alimentado e curtiu muito aquilo tudo. Os primeiros sintomas de abandono vieram na sequência. Rodrigo Rodrigues, apresentador do Sportv, me convidou para gravar um vídeo sobre uma banda cover dos Beatles. Não era apenas mais uma banda cover dos Beatles, tratava-se de um maluco que tinha todos os instrumentos deles, os equipamentos, amplificadores, microfones, as roupas, uma loucura das grandes. Achei aquilo sensacional. A gravação foi na semana seguinte à chegada do Rickenbacker. Ele ficou sozinho em casa durante umas oito horas e, ao voltar, notei que ele tinha ficado inquieto. Marcas na parede e na porta, os brinquedos dele intactos, no mesmo lugar em que eu havia deixado. Depois veio a apresentação num festival e ele ficou, de novo, por algumas horas sozinho. Ao retornar, já apreensivo, notei que ele tinha bagunçado a casa radicalmente. Havia inclusive se machucado, deixando marcas de sangue na parede. Fiquei obviamente desesperado, sem saber o que fazer. Vieram os conselhos mais absurdos. Uma pessoa chegou a sugerir que eu devolvesse o cachorro. Não preciso dizer que essa pessoa passou a ser bem desconsiderada dali em diante. Eu tinha que trabalhar, ir pra Central 3, ensaiar, gravar participações em programas de tv e rádio. A solução: Rickenbacker passou a me acompanhar em tudo. Virou atração no Thunder 376  Lui z

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Radio Show, todos da Central 3 se apaixonaram por ele. Fui gravar um programa com os Devotos dnsa e ele foi junto e participou da entrevista. Ensaiava toda semana com os Devotos e lá estava ele, encarando o Paulo Zinner, curioso sobre como aquele cara produzia aquele batuque louco. A recomendação de que ele não ficasse sozinho em hipótese alguma veio de uma terapeuta veterinária, que passei a chamar de doutora Psicão. Foi ideia da minha irmã recorrer a um tratamento mais radical. E foi isso o que aconteceu, a doutora Psicão prescreveu prozac pro Rickenbacker. Uma dose bem grande, por sinal. Quando ia viajar, ele ficava com a minha irmã, e a doutora prescreveu frontal na hora de dormir. Aquilo me pareceu muito radical. Mas, como diria minha amiga Flora, se você não sabe o que fazer, pergunte a quem sabe. Algumas pessoas ficavam atordoadas ao saberem que o Rickenbacker estava tomando aquelas drogas, e eu comecei a ficar inquieto com aquilo, mesmo porque ele não apresentava nenhuma mudança de comportamento. Depois de nove meses daquilo, depois de ouvir várias vezes que eu tinha que controlar minhas expectativas, que a dra. Psicão entendia minha frustração, mandei todos às favas! Rickenbacker fez uma desintoxicação e um demorado desmame do prozac que durou dois meses. Passado esse período, notei que ele passou a latir, reagir, interagir. Claro, voltou a ser cachorro. Antes estava totalmente dopado, zumbi, anestesiado. Que loucura! Desde então, Rickenbacker se tornou uma celebridade. Aparece nos meus programas no YouTube, já fez amizade com Eduardo Suplicy, Marina Lima, Edgard Scandurra, José Trajano, Gerd Wenzel, toda a turma da Central 3, toda a equipe da Latitude Filmes e do Canal Azul, produtora associada à Latitude, onde faço o Music Thunder Vision. A gente chega pra editar e todos fazem festa pra ele. Rickenbacker é um sucesso! Ah, Rickenbacker, que cãozinho adorável. “É impressionante como ele é igual ao dono”, diz Adriana, a irmã que tem também a tutela do animalzinho mais bacana do pedaço. “Rick foi um marco na vida do meu irmão, que nunca teve ninguém pra cuidar, se dedicar, abrir mão de coisas, e esse cachorro veio para isso, trouxe isso para ele.” Mas no que, então, eles são tão parecidos? “É difícil meu irmão admitir que está em alguma dificuldade, seja ela qual for. Nega até as últimas evidências, e sempre foi assim. O Rick passou muita dificuldade, mas só nos dá amor.” CONTOS DE THUNDER   377

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Music Thunder Vision

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Assim como o podcast, o YouTube era um universo ainda pouco explorado por mim. Sim, o fato de me tornar um podcaster antes de ser um youtuber é estranho. É uma plataforma que tomou corpo há muito mais tempo, mas quando me falavam de YouTube eu só lembrava do pc Siqueira. Ele foi pra mtv graças ao vlog e ao YouTube, e seu programa na mtv tinha a estética de cortes rápidos e secos dos youtubers. pc é um dos gigantes do gênero, me chamou para participar em vários de seus programas. Ele é o cara mais legal que conheço da plataforma. A imagem que formei de quem tem um canal foi muito positiva. Parece que os primeiros youtubers começaram com seus vlogs e ocuparam lugares de destaque. As pessoas me perguntavam por que eu não tinha um programa na internet. Eu explicava que já havia feito isso em 2008, com o Thundervox e depois com o Thunderview, que fiz de 2008 a 2010 e recentemente o Thunderview foi disponibilizado lá, no canal do Showlivre. Estavam sempre em sites que não tinham a mesma popularidade, tampouco davam oportunidade para qualquer um fazer seu programa. YouTube, ou “Você na tv”, na minha tradução livre, dava essa chance de todo mundo se mostrar e dizer o que quisesse. Isso cresceu, e com esse crescimento muita coisa legal foi produzida, mas bastante coisa de baixa qualidade também! Foi em 2017 que o professor Celso Unzelte me convidou para participar do seu programa no YouTube. Ele, Marcelo Duarte e pvc, ou Paulo Vinícius Coelho, haviam migrado o programa Loucos por Futebol, apresentado na espn, para o YouTube com o canal 3Loucados. Quando cheguei para gravar, encontrei um velho amigo da mtv, Fernando Patah, que trabalhou comigo na antiga emissora desde sua fundação, em 1990. Patah, ou marinheiro, como o chamava, foi muito receptivo. Um cara muito gente fina, trabalhador, honestíssimo, cheio de histórias pra contar. Daí vem o lance do marinheiro, pois nos anos 1980 ele trabalhou num veleiro como tripulante e desse período vieram as primeiras histórias que ele me contava no começo dos anos 1990. Todas as vezes em que trabalhamos juntos em comerciais produzidos na mtv a coisa fluiu muito bem. Tinha uma lembrança ótima do meu amigo. Depois da gravação, ele propôs uma conversa informal para falarmos de fazer algo juntos de novo, quem sabe. Marcamos uma reunião na Latitude Filmes, produtora de vídeos com seu sócio, Kiko Bresser Pereira. 378  Lui z

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Passei uns dias pensando na possibilidade de fazer um programa no YouTube. Queria falar de música, claro! Da mesma forma como falei no começo da mtv. A liberdade editorial seria total, eu escolheria um tema, ainda não sabia o que fazer. A primeira ideia era falar sobre discos em vinil. Foi com essa abordagem que cheguei a tal reunião. Patah, sempre animado, me apresentou ao Kiko. Também muito simpático, me pareceu empolgado com uma parceria entre nós. Saindo de lá, pensei em chamar alguém para dividir o programa comigo. A única pessoa que me veio à mente foi Gaía Passarelli. Conheci a Gaía na mtv, ela apresentava o Goo, um desdobramento do Lado B, meu primeiro programa na tv. Já havia trabalhado com ela em 2012 no Summer Soul Festival em São Paulo, fizemos a cobertura ao vivo e no último dia da mtv, foi a Gaía que me deu um presentinho psicodélico durante as transmissões da festa de encerramento. Só guardava boas impressões dela. Liguei pra ela e expliquei tudo. Teríamos uma produtora, liberdade total, faríamos um programa semanal. Gaía se mostrou interessada e fomos juntos na segunda reunião com Patah e Kiko. Pra minha surpresa, no dia seguinte, ela me disse que estava em dúvida se ainda queria falar sobre música, que tinha a intenção de escrever mais um livro. Aliás, foi a Gaía quem me apresentou à equipe da Globo Livros. — Thunder, liga pra essa pessoa. Já falei do seu projeto da biografia e eles se mostraram bem interessados! E aqui estamos, contando minhas histórias de vida neste livro. Então, decidi que eu faria o programa sozinho, falaria sim de música, gravaríamos na casa do Patah, teria um editor pra me ajudar a finalizar o programa. Eu escolheria o tema, escreveria o roteiro, apresentaria o programa e editaria o material com alguém da produtora. O primeiro tema que escolhi foi psicodelia. Eu sou fascinado pelos anos 1960 e toda a efervescência política, musical, literária, cinematográfica, comportamental dessa década. Eu tinha a ideia de fazer uma ponte entre as primeiras ondas psicodélicas musicais dos anos 1960 com as novas manifestações da última década. Fazer uma ligação entre Pink Floyd e Tame Impala, por exemplo. Gravamos aleatoriamente o que me vinha à cabeça. Acabei falando do novo movimento psicodélico brasileiro. Eu estava assistindo com avidez à terceira temporada de Twin Peaks. A obsessão era tão grande que, na segunda-feira pela manhã, eu ficava trocando impressões por WhatsApp com outro fã de David Lynch: Edgard Scandurra. Era inevitável fazer menções à série no programa. O oitavo episódio da terceira temporada está na abertura do programa até hoje. Obrigado, David Lynch! CONTOS DE THUNDER   379

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Esse primeiro episódio, publicado em agosto de 2017, demorou umas três semanas pra ficar pronto. Eu não tinha um formato, um desenho de edição. Fiquei testando, ilustrando tudo o que eu havia falado. O André Curti, editor que me acompanhou pelos dois primeiros anos do Music Thunder Vision, também me ajudou muito, com paciência e disposição. Depois de alguns programas, senti falta de um diretor que cuidasse de todos os detalhes, desde sugestões de temas, textos, direção de fotografia, apoio geral na hora de gravar. Pensei em alguns nomes e acabei ligando pro Julio Piconi, o mesmo Julio que já havia me dirigido tantas vezes na mtv. Estava formada uma equipe bacana! A produção virou realmente uma família. Os programas repercutiram bem, ganhamos views e assinantes rapidamente, os convidados ajudaram, claro! pc Siqueira, kl Jay, João Gordo, Lucas Silveira, Ronald Rios foram alguns dos que alavancaram a audiência. Passei a ser reconhecido como youtuber na rua, em shows, em eventos. No Lollapalooza 2018, em que trabalhei na cobertura, os jovens frequentadores vinham falar comigo, não mais sobre a mtv ou a Globo, mas sobre o Music Thunder Vision. Teve outro projeto de YouTube que não foi adiante, o Protesthunder. A ideia era antiga, que tentei viabilizar com o pessoal do estúdio A Voz do Brasil em 2015. Na época, a intenção era levar o projeto pra alguma rádio. Em 2018, uma produtora me convidou para fazer um programa com eles. Sugeri o Protesthunder e gravamos dois episódios. A ideia é ótima, mas eu estava mesmo sem tempo de escrever, dirigir e apresentar outro programa. Um dia eu volto a pensar nisso. Julio foi trabalhar na tv Cultura, e eu passei a dirigir o Music Thunder Vision novamente. O programa, semanal, passou a trazer convidados, abordar os temas com uma visão pessoal, longe da mesmice de repetir os dados da Wikipédia. Surgiram convites de emissoras a cabo para exibir os episódios nas suas grades de programação. Foi também em 2019 que a tv do Trabalhador (tvt) propôs colocar o Music Thunder Vision no ar. Ela tem sinal digital e atinge um público diferente do YouTube. Toda sexta-feira às dez da noite, um episódio é apresentado na tvt. O sucesso foi enorme e veio a proposta de apresentá-lo na tv Educativa da Bahia (tve) às segundas-feiras, nove da noite. As duas emissoras reapresentam os episódios em outros horários, com ótimos índices de audiência.

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Projetos, projeções; o presente, o futuro

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Já disse aqui e repito que adoro fazer televisão. Fiz quase tudo na telinha. Ainda não fui o homem do tempo, algo que pensei num passado próximo. Houve época em que eu tinha quatro projetos diferentes, ideias desenvolvidas para apresentar em vídeo, aliás, ideia é o que não falta. O que falta muitas vezes é dinheiro para a execução do projeto. Desenvolvi junto à Latitude Filmes um programa, um talk show, para uma emissora por assinatura. Foram meses de estudos, reuniões com toda uma equipe de cenógrafos, roteiristas, trilheiros, cerca de trinta pessoas apenas pra iniciar a ideia. O canal aprovou, estava tudo certo. Mas a política nacional para a cultura congelou qualquer possibilidade de viabilizar a ideia. Muito frustrante. Daí me veio outra ideia, envolvendo Mauro Beting, o meu parceiro neste livro. O piloto ficou uma loucura! Pode ser que isso dê certo, mas não há garantia de ser aprovado. Enquanto isso, vou em frente. É assim mesmo. Acho que a ideia mais viável e interessante é um documentário que penso em produzir há anos sobre o rock nacional. Foi numa edição do Thunder Radio Show que conheci Dandara Ferreira, diretora e documentarista, autora de O nome dela é Gal, de 2017, sobre a cantora Gal Costa. Eu a convidei para falar sobre o doc, que achei espetacular, e acabamos nos tornando amigos. O projeto sobre o rock está em desenvolvimento e acho que vai ser bem bacana. Se vai acontecer é outra conversa. Enquanto isso tenho trabalhado com Odair José. Ele se mostrou um grande sujeito, um artista de respeito. Participei do seu último disco, Hibernar na casa das moças ouvindo rádio, me apresentei no show de lançamento e no show especial da Virada Cultural, quando cantei ao seu lado, interpretando na íntegra sua famosa ópera rock “O filho de José e Maria”. Que cara legal! Ainda faremos mais coisas juntos, se Deus quiser, e o diabo deixar.

Bicicleta

A primeira bicicleta, como já contei, foi uma Monareta, da fábrica brasileira Monark. Isso aconteceu no Natal de 1969 ou 1968? Só lembro que no primeiro dia sofri meu primeiro acidente ciclístico, num terreno da rua Coronel Oliveira Lima, no Cambuci, bairro em que me criei em São Paulo até a segunda metade CONTOS DE THUNDER   381

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de 1970. Ainda estava sentindo como funcionavam os freios e tal. Nessas, fui ao solo sem antes deixar de passar pela borboleta de plástico da roda, que fez minha primeira cicatriz na perna esquerda. Um rasgo de uns vinte centímetros, que não impediu que no dia seguinte eu estivesse em cima da magrela, me divertindo muito. Acho que foi o melhor presente que ganhei num Natal. Sim, houve um Natal em que eu e meu irmão dividimos um autorama, pista oval, com dois carrinhos com carroceria de Puma, o automóvel esportivo da época. Em 1971, ganhamos uma mesa de bilhar, que me garantiu algumas dezenas de amigos em Rudge Ramos, bairro de São Bernardo do Campo, pra onde nos mudamos depois da Copa do Mundo de 1970, causando aquele auê na família do meu pai. E foi naquele bairro sem luz elétrica nas ruas nem asfalto que pude pedalar com minha Monareta à vontade. Foi o que fiz e foi o que me aproximou dos vizinhos da minha idade. Com o tempo, tirei os para-lamas, comprei pneus-balão, pintei a bike de verde-água — um erro clássico, que adicionou pelo menos quinhentos gramas ao peso da coitada. Usei essa bike até o osso. Num determinado momento, consegui quebrar o quadro dela, que exigiu destreza profissional dos japoneses proprietários da única bicicletaria do bairro, na avenida Caminho do Mar. Eu era um cliente contumaz daquele estabelecimento, consertando freios, trocando suas sapatas, os cabos, comprando penduricalhos inúteis, enfim. O cheiro de graxa e o sonho de chegar a adquirir uma Caloi 10 estava a caminho. Depois que minha Monareta se desmanchou, passei uns dois anos sem bike, até que avistei uma Peugeot de quadro grande usada numa lojinha. Ela parecia uma Caloi 10, mas a nano tinha marcha. Comprei a danada por uma bagatela e voltei a circular pelo bairro. Acho que a faculdade acabou por me afastar da francesinha. Passaram-se muitos anos até que voltei a ter empolgação com o pedal. Foi em 2003, numa prova de aventura, em Brotas. O Fabio Costa, que era da equipe do Marcos Paulo Reis, foi o capitão de uma equipe que fez essa prova de aventura comigo. Teve natação em lago (que preferi fazer a volta correndo), caminhada por um rio de pedras, rapel (que preferi evitar, pois acrofobia é coisa séria) e a etapa final, de bicicleta, quando me senti muito bem pedalando. Foi um reinício muito prazeroso na prática do ciclismo. A mtv havia presenteado seus funcionários com uma Caloi de passeio, e eu ia pra cima dela sempre que podia. Depois dessa prova de aventura, a Caloi me presenteou com um Caloi Strada de competição. Passei a treinar corrida e ciclismo na usp. O problema era que o quadro dessa Strada era pequeno, dificultando a prática do ciclismo 382  Lui z

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com aqueles malucos da usp. Digo malucos porque ciclista é muito louco. Forma-se um pelotão e mandam brasa não só na usp, mas em rodovias e marginais de São Paulo. Lembro de fazer alguns treinos perto do aeroporto de Guarulhos com o avô do Fabinho, um senhor de uns noventa anos, que pedalava desde criança. Ele era um apaixonado pela bicicleta. Fez uma volta de centenas de quilômetros no Chile com outros dois amigos na casa dos noventa anos. Grande figura! Morar no Morumbi dificultava muito o uso da bicicleta, mas em 2010 me mudei pro bairro do Paraíso. Por um série de circunstâncias, acabei conhecendo Daniel Guth, um ciclista dos mais apaixonados pela modalidade. Passei a correr no Ibirapuera e a pedalar com a velha Caloi que havia ganhado da mtv. Mas, em 2010, Guth conseguiu um novo brinquedo: uma Caloi Easy Rider! Montei naquela bike e não desci mais. A bateria do carro arriou, eu passei a pedalar na ciclofaixa da marginal Pinheiros aos domingos e nas ruas de São Paulo quase todo dia. Me envolvi muito com o ciclismo como opção de transporte. Foi justamente o ano de implantação das primeiras ciclofaixas em São Paulo. Me sentia muito bem pedalando. Participei de bicicletadas no dia mundial sem carro, fiz a pedalada da Virada Cultural, em que saímos do Parque Ibirapuera e rodamos pela cidade na madrugada até o amanhecer. Fiz a Rota Marcia Prado no final do ano. Desde então, a bicicleta passou a fazer parte da minha vida. Mas houve uma interrupção com a chegada do Rickenbacker. Ele não podia ficar sozinho e isso me afastou por três anos do ciclismo. Voltei há pouco, com dificuldade. Mas já estou pedalando todo fim de semana e usando a bike para ir trabalhar, ensaiar, visitar os amigos. Eu sou um típico ariano com ascendente em leão, que se entrega apaixonadamente àquilo em que acredita. Inevitável levar adiante um projeto de tv, ou YouTube, ou podcast sobre bicicleta. Já estou cuidando disso!

A família, os romances, as paixões, a destruição, a livre evaporação

Depois da morte de meu pai, a família ficou meio capenga. Ele sempre dava a última palavra. Pelo menos pra mim. Mesmo depois de adulto, com toda a experimentação da adolescência, e se eu fosse no caminho contrário do que ele me indicava, meu pai sempre estava presente nas minhas escolhas. Tocar um instrumento, fazer odontologia, escolher ser músico, tentar a publicidade, fazer CONTOS DE THUNDER   383

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o que eu achasse certo, correto. Minha mãe sempre foi daquele tipo de me pegar no colo, de me incentivar, de me pedir cuidado com tudo. Meus irmãos sempre foram o outro lado, a outra margem do rio, às vezes um riacho, às vezes um braço de mar intransponível. Na maioria das vezes, eu atravesso o rio para estar com eles. Com um ou com outro, com os dois raramente. Família é tão bom, mas é tão complicado. A gente vai vivendo e aprendendo. Com as minhas paixões é igual. Faz um tempo que não me apaixono loucamente. Sabe aquela coisa de querer estar junto o tempo todo, de dividir cada momento, cada instante com alguém? Mas isso já aconteceu comigo no passado. Cheguei a ficar mal por isso, de me obrigar a achar alguém pra ficar comigo. Aprendi que não é assim que funciona. Entendi que eu não preciso apressar as coisas, e que elas acontecem por si mesmas. Prefiro não construir um relacionamento para ter que destruí-lo e sofrer ou fazer sofrer por isso. De novo, vivendo e aprendendo. Lembra da minha relação com as drogas? Destruição inevitável? Essa necessidade, obrigação, esse compromisso de brincar e desafiar a morte, tudo isso já era. Lembro quando, em 1989, junto com uma turma da pesada, começamos a tomar lsd em grupo, com o objetivo de “derreter” até o final. Hoje em dia, não quero mais isso. As drogas passaram. Pelo menos, as destrutivas e inconvenientes pra mim. Álcool nunca me trouxe problemas. Isso chega a irritar algumas pessoas, sinto muito. Não é que eu evite o álcool. Ele simplesmente não me faz a cabeça. Meu relacionamento com a maconha está resolvido. Não condeno quem fuma, mas não fumo mais. Eu respeito ela. A gente se entendeu por muito tempo, até a relação se tornar (com o perdão do trocadilho) tóxica. Convivo com fumantes de maconha numa boa. Já a cocaína me deixa mal. Não curto, não quero estar perto, tentei resolver isso inúmeras vezes, não deu certo. Pura destruição. As drogas lisérgicas me atraem muito. Chega a ser terapêutica a minha relançar com elas. Eventualmente, muito raramente, uso lsd ou cogumelos mágicos. Daí não tem destruição. É a pura e agradável evaporação. Recentemente parei de fumar cigarro de novo. Havia ficado dez anos sem fumar. O final de um relacionamento que se tornou tóxico me levou de novo ao tabaco. Desde então, parei uma vez por alguns meses. Mas já estava há uns oito anos queimando os Marlboros. O plano era voltar a pedalar, fazer exercício físico, coisas que aprendi muito tardiamente que me fazem muito bem. Pois no dia do aniversário de São Paulo, 25 de janeiro de 2019, após um show com amigos, fumei meu último cigarro. Por enquanto, está tudo bem. Daquela vez, em 1998, eu saí correndo do cigarro. Cheguei a correr uma maratona em Nova 384  Lui z

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York. Dessa vez, subi na bicicleta. Quem sabe eu faça uma pedalada masterblaster pelo continente…

Planos

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“Eu não posso parar. Se eu paro, eu como. Se eu como, eu bebo. Se eu bebo, eu faço xixi na cama!” Sempre que me perguntam por que eu não dou um tempo com as coisas, cantarolo essa musiquinha. É disco, show, podcast, YouTube, tv, livro sobre rock, livro sobre a tv brasileira, palestra, curta-metragem, o que vier, eu faço! Tenho o privilégio de poder fazer coisas que gosto. Não tem combustível melhor pra continuar me movimentando. Escrever esta biografia deu muito trabalho. A primeira vez que essa ideia me ocorreu foi em 2002. Eu tinha me desiludido com a mtv e não conseguia ver um futuro pra mim. Demorou mais de quinze anos pra entender que, no fim das contas, foi muito bom que as coisas tenham acontecido daquele jeito. Ainda bem que não fui em frente com o projeto de escrever minhas memórias naquela época. Tudo tem seu tempo. Foi em 2009 que conheci Mauro Beting, ele estava começando a escrever a biografia do Nasi com a ajuda de Leandro Iamin. Firmamos o compromisso de cuidar da minha biografia também. Demos início às entrevistas em 2013. Isso durou alguns anos, até 2016, quando o Mauro perdeu as gravações. A essa altura, Leandro já estava colhendo depoimentos para enriquecer o livro. Quando o Mauro me disse que havia perdido tudo, resolvi escrever eu mesmo o livro, desde a minha infância até os dias de hoje. Contei com a ajuda de algumas pessoas: meus irmãos, minha mãe, parentes, amigos, pesquisas, foi bem trabalhoso. No caminho, foi minha vez de perder tudo, com o colapso do meu computador. Retomei o trabalho pela segunda vez e, pensando bem, foi até bom que tenha sido dessa forma. Tomei muito cuidado pra não comprometer ninguém. Por ter reescrito essa história várias vezes, pude resolver todos os conflitos pelos quais passei. Meus editores foram muito pacientes comigo. Me deram todo o tempo que precisava para ficar à vontade com o texto. Este último capítulo já dura duas semanas, e nada de eu conseguir terminar o livro. Este inventário foi muito salutar pra mim. Me perdoar, perdoar as pessoas, entender por que estou aqui, por que as coisas aconteceram do jeito que aconteceram. Eu vivi uma vida boa, com percalços. Cheguei perto da morte várias CONTOS DE THUNDER   385

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vezes, mas sobrevivi. Eu era parte da estatística, mas fugi dela. Conheci pessoas maravilhosas que são esmagadoramente mais importantes e numerosas que as outras pessoas nem tão bacanas assim. Ninguém é perfeito. É assim mesmo. Luiz Fernando, se preferir, Luiz Thunderbird, ou Thunder, ou Luizinho, você escolhe, está sempre pronto pra mais uma história. Pra mais uma música, pra mais uma aventura. E pra mais um livro!

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Agradecimentos

Agradeço aos meus pais, Álvaro e Mirian, que me deram sempre tudo e mais um pouco. Me deram o primeiro violão e compreenderam quando me apaixonei pela música e que esse seria meu destino. Como músico, vj, radialista, podcaster e youtuber. Sempre música! Aos meus irmãos, Adriana e Neto, que sempre me ajudaram e me aceitaram do jeito que eu sou. Às minhas sobrinhas, Julia e Dani, ao meu sobrinho Leo. Eu me vejo um pouquinho em cada um de vocês. Ao Rickenbacker, o cão mais legal do mundo e ao Rickenbacker, o melhor contrabaixo do mundo. Ao Fabio e ao Antonio, meus cunhados do rock, fãs de Beatles e do São Paulo Futebol Clube, companheiros de ponderações nos almoços de domingo. Aos Devotos Danny Hotten, Roberto Diez, Claudio Baqueta, Braulius Terrificus, Nivaldo Le Mutley, Marcopolo Pan, Betinho Morais, João Louco, Claudio Beethoven, George “Johnson” Germano, Zeca Cortizona, Andrés Speed Gonzáles, Victor Leite, Gigante Brazil, Flipi Basei, Gustavo X, Paulo Zinner, Daniel Latorre, Roy Carlini, Zé Derliner, Marcelo Binaghi, Ricardinho Kriptonita, Zé Mazzei, Dom Ivo Barreto e Alan Terpins. Uma vez Devoto, sempre Devoto! Aos músicos que me acompanharam nas bandas Aerozów, Devotos de Nossa Senhora Aparecida, Honesto Geisel, Vôngole, Pork-a-light, Los Beatles Forevis, Fuck Berry, Flaming Birds, ThunderStandards, Oldsmobile Special Edition, Subversões, Piece of Cake, Júpiter Maçã, Tarântulas & Tarantinos, Elektromotoren e Pequena Minoria de Vândalos. Aos amigos que fiz na mtv, na Globo, na Manchete e na Cultura. CONTOS DE THUNDER   389

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Aos amigos que brigaram comigo quando eu estava no caminho da morte; àqueles que tentaram me ajudar e aos que conseguiram, vocês sabem quem são. Aos companheiros que me ajudaram na minha recuperação e na compreensão do significado da frase “só por hoje”. Aos professores que me ensinaram coisas que não constavam no currículo, especialmente os que demonstravam prazer em ensinar. Foram muitos, obrigado. Aos professores que me mostraram que eu podia praticar alguma modalidade esportiva, eles sabem de quem eu estou falando. Para mim, parecia impossível, pra eles não. Às amigas e aos amigos, às parceiras e aos parceiros da Central 3 e da Latitude Filmes. Vocês me ajudam a continuar fazendo aquilo que eu amo. Aos fãs, que são poucos, mas os mais bacanas desse planeta. Aos amigos e fãs dos outros planetas. Ao meu amigo e parceiro Leandro Iamin, ao meu lado há sete anos no Thunder Radio Show e repórter neste livro. Ao meu amigo, parceiro e confidente Mauro Beting, por ter me ouvido, lido, compreendido e nunca ter me julgado. Sem o Mauro, este livro não existiria. Aos amigos da GloboLivros, que foram persistentes em alcançar o nível máximo com essa obra, me apoiando sempre.

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Blues, soul, rockabilly e rock ‘n’ roll Luiz Thunderbird

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Sempre acordo cantando um blues Às vezes, me pego cantando um soul Meu coração é rockabilly Minha vida é o rock ‘n’ roll Slade, AC/DC Jimi Hendrix, James Brown Gravações da Sun Records E os discos da Motown Os Stones e os Beatles Esses, os preferidos Punk rock, pós-punk E rock nacional Eu ouvia Mutantes Incríveis, Made in Brazil Rita Lee & Tutti-frutti Tudo em vinil Joelho de Porco Aos poucos me ensinou Casa das Máquinas O puro rock ‘n’ roll

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D G ivu lo lg bo a ç Li ão vr os Este livro, composto na fonte Fairfield, foi impresso em papel pólen soft 70 g/m 2, na gráfica R. R. Donnelley. São Paulo, abril de 2020.

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