Como Criar Personagens Inesquecíveis [1 ed.] 9780805011715

Neste livro, Linda Seger mostra como criar personagens fortes e multidimensionais na ficção; cobrindo todo o processo: d

375 122 2MB

Português Pages 256 [228] Year 1990

Report DMCA / Copyright

DOWNLOAD FILE

Polecaj historie

Como Criar Personagens Inesquecíveis [1 ed.]
 9780805011715

Table of contents :
Prefácio
1. Pesquisando o personagem
2. Definindo o personagem: Coerências e contradições
3. Criando a história pregressa (Backstory)
4. Entendendo o psicológico do personagem
5. Criando relacionamentos entre personagens
6. Personagens secundários e personagens menores
7. Escrevendo diálogos
8. Criando personagens não-realistas
9. Para além do estereótipo
10. Resolvendo problemas no personagem
Epílogo

Citation preview

voltar ao índice

Índice Prefácio 1. Pesquisando o personagem 2. Definindo o personagem: Coerências e contradições 3. Criando a história pregressa (Backstory) 4. Entendendo o psicológico do personagem 5. Criando relacionamentos entre personagens 6. Personagens secundários e personagens menores 7. Escrevendo diálogos 8. Criando personagens não-realistas 9. Para além do estereótipo 10. Resolvendo problemas no personagem Epílogo

voltar ao índice

Prefácio Há alguns anos, fui chamada por uma produtora de televisão que enfrentava um problema com um personagem em seus roteiros. Um ator bem conhecido e respeitado já tinha sido escolhido pro papel, mas era um papel limitado na essência. Nós fizemos um brainstorm pra aprofundar a camada emocional e dar mais dimensão, além de potenciais transformações no personagem. Mais tarde, o ator foi nomeado pro Emmy pela performance. Meses depois, fui chamada pra fazer uma consultoria pra uma série em apuros. As avaliações estavam baixas, a rede estava ameaçando cancelar. Apesar da atuação ser excelente, e as linhas gerais dos personagens estarem bem definidas, existia pouca expansão do personagem. Num seminário matinal nós tentamos pensar em potenciais conflitos, pontos na história que poderiam dar dimensões pros personagens; relações dinâmicas que já existiam, mas foram pouco exploradas na narrativa; e possíveis motivos para a audiência se envolver com esses personagens semanalmente. Os produtores estavam entusiasmados e prontos pra dar uma reviravolta no programa. Mas era tarde demais. A rede já tinha decidido cancelar. Desde então, a estrela polivalente e popular não conseguiu encontrar outra série, apesar de inúmeros sucessos do passado. Nas duas situações, personagens foram a chave de uma história funcional. Personagens incríveis são essenciais se você quer criar uma grande ficção. Se os personagens não funcionarem, a história e o tema serão insuficientes pra envolver a audiência ou os leitores. Pense na personagem

voltar ao índice

memorável de “O vento levou”, “O sol é para todos”, “Jane Eyre”, “As aventuras de Tom Jones”, ou da peça Amadeus, Ligações Perigosas, À Margem da Vida, os filmes Casablanca, “Noivo neurótico, Noiva Nervosa”, “Cidadão Kane; séries de televisão “I Love Lucy”, “All in the Family”, “The Honey-mooners”. Até mesmo filmes de ação/aventura como “48 horas”, “Máquina Mortífera”, “Duro de Matar”, e filmes de terror como “A Hora do Pesadelo” onde o sucesso foi devido a personagens fortes e bem desenhados. Criar personagens inesquecíveis é um processo. Apesar de alguns disserem que isso não pode ser ensinado, como uma consultora de roteiro, aprendi que existem processos e conceitos que podem melhorar efetivamente os personagens. Conversando com muitos roteiristas aclamados, aprendi técnicas e métodos que grandes escritores usam pra criar grandes personagens. Também sei que os mesmos problemas dos escritores também são enfrentados por produtores e atores. Essas pessoas são as que mais precisam definir os problemas do personagem, fazer as perguntas certas, e mostrar soluções possíveis. Os conceitos desse livro servem para a criação de todo tipo de personagem de ficção e são baseados em conceitos que descobri como professora e diretora de teatro e, durante os últimos dez anos, como consultora de roteiros. Pra esse livro, entrevistei mais de cinquenta escritores que vêm confirmando e articulando esses conceitos; incluindo romancistas e roteiristas de filme, televisão, peças e comerciais. Desde que meus negócios se focaram em roteiros, muitos dos exemplos são do cinema e da TV. Muitos dos exemplos literários vem de romances e peças que se transformaram em filmes, partindo da premissa que são bem conhecidos pelo público. Durante minhas conversas com romancistas, eles afirmaram que todos os conceitos de personagem que discutimos em relação a cinema e TV, também são aplicados no romance. Já que meu livro anterior “Como Aprimorar um Bom Roteiro”, lida com personagens em relação à história

voltar ao índice

e estrutura, preferi não repetir essa informação. Irei me concentrar no processo de criar um personagem “redondo” tanto sozinho como se relacionando com outros personagens. Se você é um roteirista novato, entender esse processo pode te ajudar a saber pra onde olhar quando a inspiração parecer perdida. Se você for um roteirista experiente, você pode ter descoberto que talvez um de seus personagens simplesmente não funciona. Rever esses processos pode ajudar a entender o que você faz instintivamente. Personagens são criados através da combinação de conhecimento e imaginação. Esse livro foi pensado para estimular seu processo criativo e te levar através de um método que culminará em personagens fortes, dimensionais e inesquecíveis.

voltar ao índice

1 Pesquisando o Personagem Há algum tempo, uma das minhas clientes chegou com um conceito incrível para um roteiro. Ela tinha trabalhado e retrabalhado ele por um ano inteiro. Seu agente estava empolgado e ansioso por uma nova história. Apesar de ser avisada que alguns dos roteiros não estavam fortes o suficiente pro mercado nacional, aquele em questão estava empolgante e sólido. É o tipo de história que muitos produtores chamam de “High-Concept” (com um gancho forte e uma abordagem única pra história, um conflito claro e personagens distintos uns dos outros). Seu primeiro filme tinha acabado de ser produzido e ela estava contando com esse roteiro pra chegar a um novo patamar. Ela precisava finalizar rápido, mas os personagens não estavam funcionando. Ela estava completamente travada. Quando analisei o roteiro, percebi que ela não tinha conhecimento suficiente do contexto, do mundo daqueles personagens. Algumas cenas se passavam num centro pra desabrigados. Apesar dela ter passado um tempo servindo sopa no lugar e conversado com desabrigados, ela nunca tinha passado pela experiência de dormir lá ou viver o stress do lugar. O resultado foi a perda de detalhes e emoções. Era evidente que só havia um jeito de resolver o problema dos personagens: ela tinha que voltar pra pesquisa. O primeiro passo na criação de qualquer personagem é pesquisa. Já que a maior parte das obras são buscas pessoais

voltar ao índice

num território novo, isso exige alguma pesquisa pra garantir personagens e contextos coerentes e realistas. Muitos escritores amam o processo de pesquisa. É como uma aventura, uma exploração, uma oportunidade pra aprender sobre mundos e pessoas diferentes. Eles adoram ver personagens ganhando vida depois de passarem dias aprendendo mais sobre seus mundos. Quando suas pesquisas comprovam algo que já sabiam intuitivamente, eles ficam radiantes. Cada nova percepção conquistada por causa da pesquisa é uma sensação de dar grandes passos em direção a personagens empolgantes. Outros acham a pesquisa intimidadora, a parte mais difícil do trabalho. Muitos escritores resistem a ela, ficam ressentidos passando horas em ligações ou devorando informações na biblioteca. Pesquisar pode ser frustrante, um devorador de tempo. Você pode perder muito tempo andando em círculos antes de chegar em algum lugar; mas a pesquisa é o primeiro passo no processo de criar um personagem. A profundidade de um personagem é como um iceberg. O público ou leitor vê apenas a ponta do trabalho do escritor (talvez só 10% de tudo que o escritor sabe sobre o personagem. É preciso confiar que todo esse trabalho aprofunda o personagem, mesmo que muitas dessas informações não apareçam diretamente no roteiro). Quando a pesquisa é necessária? Pense nisso: Você está escrevendo um romance. Todos que leem concordam que seu protagonista, um cara branco com seus trinta e sete anos, tem uma personalidade fascinante, mas existem certas motivações que os leitores não entendem. Você decide que precisa aprender mais sobre os mecanismos internos do seu personagem. Um amigo sugere que você leia “Seasons of a Man’s Life” de Daniel Levinson, sobre a crise de meia-idade masculina. Você também arruma uma vaga num grupo de estudos sobre homens. Você espera aprender, através dessa pesquisa, o que acontece com um homem na transição para a meia-idade e como isso influencia no seu comportamento.

voltar ao índice

Ou, você acabou de terminar um roteiro, mas o personagem de apoio do advogado negro não parece tão realista quanto os outros. Você liga para a NAAPC pra ver se algum advogado negro gostaria de conversar. Você precisa ter uma compreensão de como a bagagem étnica afetaria esse personagem nessa função específica. Ou, você foi chamado pra escrever um filme sobre a expedição de Lewis e Clark. Você é esperto: pede dinheiro ao estúdio para a pesquisa, pro transporte, e um prazo de oito meses. Sabe que precisará entender a experiência dessa expedição e como a época afetará os personagens e seus diálogos. PESQUISA GERAL VS. PESQUISA ESPECÍFICA Por onde começar? Primeiro, entenda que não se começa do zero. Você já está pesquisando enquanto vive, então já tem um bom material pra se debruçar. Você faz a tal “pesquisa geral” o tempo todo. É através da observação, da perspicácia, que se inicia a estrutura da base de um personagem. Você provavelmente é um observador nato de pessoas. Observa como elas andam, agem, se vestem, o modo que falam, até seus padrões de pensamentos. Se você tiver alguma profissão além de escritor (talvez médico, corretor de imóveis, professor de história) tudo que você absorver nessas profissões pode ser aplicado, por exemplo, na escrita de uma série médica, ou sobre imobiliárias, ou um romance ou peça que se passa na Inglaterra medieval. Você faz pesquisa geral quando vai numa aula de psicologia, arte ou ciência. O que você aprende pode prover detalhes pra sua próxima história. Muitos professores de escrita dizem, e com razão, “escreva sobre o que você conhece”. Eles sabem que esse ato constante de observar a vida e essa pesquisa geral dão muitos detalhes que poderiam levar meses ou anos pra que uma pessoa sem essas experiências conseguisse adquiri-las.

voltar ao índice

O escritor Carl Sautter, escritor de “Classe Operária” e autor do “How to Sell Your Screenplay: The Real Rules of Film and Television”, conta como foi escolhido para trabalhar numa história que se passava em Fort Lauderdale. “Ele queria um filme sobre quatro garotas que iam a Fort Lauderdale pra umas férias de primavera. Era uma ideia legal, mas descobri que ele nunca tinha ido a Fort Lauderdale durante as férias de primavera. Então ele disse ‘é uma pena não poder ir pra lá essa semana, será a semana da panqueca’. Essa cidadezinha estava no festival anual de panqueca. Ele começou a descrever todas as coisas que as pessoas de lá fazem com panquecas, todos os detalhes do festival. E eu disse, ‘Ai está a história. É um cenário incrível pra um filme. Por que escrever uma história que duas mil pessoas poderiam escrever melhor que você? Escreva sobre algo que você conhece”. A criação de personagem começa com o que você já conhece. Mas a pesquisa geral nem sempre nos dará informações suficientes. Será preciso fazer pesquisas específicas para preencher detalhes no personagem que talvez ainda não façam parte da sua experiência e observações pessoais. O romancista Robin Cook (Coma, Mutation, Outbreak, etc) é médico, mas faz suas pesquisas específicas para seus livros de ficção médica. “A maior parte da pesquisa está na leitura”, afirma ele, “mas falo com doutores especializados no tema da minha obra. Na verdade, vou trabalhar naquele campo específico por algumas semanas. Quando escrevi o livro Brain, que lida com um neuro radiologista, passei duas ou três semanas com um neuro radiologista. Para Outbreak, que é sobre uma doença contemporânea, falei com o pessoal do Centro de Controle de Doenças em Atlanta e pesquiseis vírus. Para Mutation, pesquisei sobre engenharia genética. As mudanças nessa área são tão rápidas que muito do que aprendi na faculdade não é mais válido. Lanço um livro por ano. Costumo gastar seis meses na pesquisa, dois meses criando a “outline”, dois meses escrevendo o livro e dois meses fazendo outras coisas como publicidade e trabalhando no hospital.”

voltar ao índice

O CONTEXTO Personagens não existem no vácuo. São produtos de seus entornos. Um personagem francês do século XVII é diferente de um texano da década de 80. Um personagem médico de uma cidade pequena em Illinois é diferente de um patologista no Hospital Geral de Boston. Alguém que cresce na pobreza, numa fazenda de Iowa será diferente de quem cresceu na riqueza em Charleston, na Carolina do Sul. Um negro, hispânico, ou euro-americano será diferente de um sueco de St. Paul. Entender um personagem começa por entender o contexto que o cerca. Qual é o contexto? Há uma excelente definição no livro de Syd Field “Roteiro, os fundamentos do roteirismo”. Ele compara contexto com um copo vazio de café. O copo é o contexto, o redor do personagem que será preenchido com especificidades da história de outros personagens. Os contextos que mais influenciam o personagem incluem a cultura, período histórico, localização geográfica e profissão. INFLUÊNCIAS CULTURAIS Todo personagem tem contextos étnicos. Se você é a terceira geração de americanos originários da suéciaalemanha (como eu), a influência desse contexto talvez seja mínima. Se você é a primeira geração de negros jamaicanos, o contexto étnico pode determinar comportamentos, posturas, expressões emocionais e filosofia de vida. Todos os personagens tem experiências sociais prévias. Existem diferenças entre alguém que veio da classe média agrícola de Iowa e alguém de uma família rica de São Francisco. Todos os personagens possuem contextos religiosos. São católicos, judeus, testemunhas de Jeová, agnósticos ou ateus?

voltar ao índice

Todos os personagens possuem experiências prévias de educação. A quantidade de anos na escola, bem como áreas específicas de estudo, mudarão o jeito do personagem. Todos esses aspectos culturais terão grande influência sobre o jeito dos personagens, determinarão seu modo de pensar e falar, seus valores, preocupações e vida emocional. John Patrick Shanley (Feitiço da Lua) veio de um lar Hibérnico-Americano mas absorveu coisas de seus vizinhos italianos. Ele dizia, “Eles se alimentam melhor. Tem uma conexão com seus corpos. Quando falam, eles falam com o corpo todo. Existem coisas que eu gosto nos Irlandeses. Eles podem falar mais que os Italianos. Eles têm um tipo diferente de charme. Então levo comigo o melhor dos dois... na minha escrita e na minha vida”. William Kelley pesquisou durante sete anos para escrever “A testemunha”. Estudando a cultura Amish, tentando saber mais de pessoas que não se interessavam em falar com estranhos como ele. “Eles eram bem desconfiados de Hollywood então eu passei sufoco até encontrar o Bispo Miller (Um construtor de carroças) que mencionou que precisaríamos de cinquenta carroças para gravar o filme. Miller as construiu e tive uma brecha para mergulhar no ponto de vista dos Amish. Bispo Miller foi o modelo inicial para Eli no filme “A testemunha”. Através dessa parceria Kelley aprendeu que os Amish eram um tanto obscenos, sabiam “identificar bons cavalos”, tinham bom senso de humor, e que as mulheres poderiam ser tímidas e sedutoras. A cultura determina o ritmo de fala, gramática e vocabulário. Leia em voz alta o diálogo a seguir, para ouvir a voz dos personagens. Em “Amor a segunda vista”, de Susan Sandler, o linguajar do lado oeste contrasta com o baixo leste. Nesse caso, todos os personagens (exceto o poeta) tem um contexto judeu e vem de uma localidade distinta de Nova Iorque. Ambos os contextos influenciam suas falas.

voltar ao índice

Izzy (do lado oeste) descreve sua situação: “Conheci alguém. Foi um encontro arranjado com um casamenteiro. Vovó que arrumou”. Bubba, a avó, fala em outro ritmo: “Quem quer pegar macaco no mato, tem que subir em árvore. Cachorro é que vive sozinho, não gente”. Sam, do baixo leste, tem um estilo diferente: “Tô bem feliz, cara. Curto acordar de manhã, ouvir os canarinhos. Boto uma camisa, vou na igreja, faço as preces. As nove o portão abre” E o poeta diz: “Você possui uma quietude esquisita, Izzy”. Ouça os ritmos da peça Riders to the Sea, de John Millington Synge: “Estão todos juntos dessa vez, e o fim se aproxima. Que Deus tenha piedade da alma de Bart-Ley e Michael, das almas de Sheamus e Path e Stephen Shawn, e que Ele tenha piedade de minha alma, Nora, e das almas de todos que vivem no mundo”. Ouça a diferença na fala de Eli, o homem Emish e John Book, o policial da Filadélfia. Esses ritmos são bem sutis, mas se você ler em voz alta, ouvirá a diferença entre a melodia no discurso de Eli e a franqueza na fala de John. Eli: Seja cuidadoso com aqueles ingleses. John Book: Samuel, sou um policial. Meu trabalho é investigar esse assassinato. Muitas vezes, suas histórias terão personagens de diferentes culturas. Os que forem da sua cultura, é possível usar suas próprias experiências para encontrar o ritmo e a postura. Quanto aos personagens de outras culturas, será preciso pesquisa extra pra garantir que o jeito deles soe legítimo, além de garantir que sejam genuínos e não meros nomes diferentes. O PERÍODO HISTÓRICO É especialmente difícil situar uma história em outra época. Geralmente a pesquisa é indireta. Um escritor não

voltar ao índice

consegue informação direta andando pelas ruas de Londres do XXI quando sua história se passa no século XVI. Ouvir o discurso de um inglês moderno lança uma leve luz no discurso de centenas de anos atrás. O vocabulário é diferente, os ritmos são diferentes, e até mesmo a maneira que as palavras são usadas, já que muitos significados perdem o uso. O romancista Leonard Tourney, professor de história da Universidade de California, em Santa Bárbara, escreveu alguns livros sobre a Inglaterra do século XVI, incluindo “Old Saxon Blood” e “The Players Boy is Dead”. Seu contexto profissional deu a ele o conhecimento da época, ainda assim ele teve de pesquisar detalhes específicos enquanto escrevia o livro. Leonardo afirma, “Posso saber das hospedagens da corte e o histórico e práticas durante o final do século XVI ou início do século XVII. Uma dos meus romances trata do julgamento de uma bruxa. Tive que descobrir se a acusada era representada por um advogado no início do século XVII. A resposta foi “não” (o que fazia o julgamento soar estranho. Tive que descobrir quantos juízes ficavam na tribuna, se havia um júri, e quantas pessoas compunham o júri. Eu tinha uma noção de que qualquer comportamento suspeito naquela época seria evidência suficiente para enquadrar o suspeito em feitiçaria. Tive de descobrir qual punição que as bruxas recebiam.” Recentemente fui consultora de um projeto sobre a caminhada Mormon para Salt Lake City por volta do século XIX. Kieth Merrill, escritor e diretor, forneceu material de pesquisa sobre discursos da época e detalhes da jornada. A escritora Victoria Westermark, que escreveu alguns roteiros situados no século XIX, fez a reescrita e o polimento. Explicou como criou uma sensação de época enquanto definia características e linguajares daqueles tempos para o roteiro de Legacy. “Normalmente busco por diários, cartas, discursos que a pessoa possa ter escrito. Apesar da fala escrita ser diferente da cotidiana, as pessoas se revelam através de diários, as

voltar ao índice

cartas podem ser bem rígidas. Outra forma de captar a sensação de determinado tempo, foi ler jornais da época. Lá encontrei o ritmo do público geral, aquilo que gostavam ou não gostavam, e até mesmo juramentos. “Também pesquisei na biblioteca de Hunting, em Passadena, onde pude ler diários originais. Fazia listas com palavras ou frases que não eram comuns mas adicionavam sabor ao roteiro, sem que soassem muito ultrapassadas.” Mesmo depois de uma longa pesquisa, você provavelmente terá que imaginar detalhes que não foram encontrados na pesquisa. Tudo que você encontrou servirá como base para que a época soe legítima em seu roteiro. LOCALIZAÇÃO Muitos escritores situam suas histórias em locais familiares. Se você cresceu em Nova Iorque, muitas das suas histórias ocorrerão lá. A indústria hollywoodiana produz centenas de histórias sobre pessoas que chegaram para conquistar seu espaço em Hollywood. Escritores também situam suas histórias em lugares que visitaram ou viveram por um período de tempo. Quanto mais familiar for o local, menos pesquisa será necessária. Contudo, escritores que conhecem o lugar, frequentemente descobrem que precisam retornar para fazer pesquisas específicas. William Kelley vive em Lancaster County, na Pensilvânia. Ele já tinha um bom começo para a pesquisa de local para o filme “A testemunha”. Contudo, continuava visitando a região para observar modelos para seus personagens e expandir seu conhecimento sobre os Amish (que serviriam para o projeto em questão). James Darden, escritor de “Atração Fatal”, é britânico, mas passou um tempo considerável em Nova Iorque (o local da sua história). Dois dos romances de James Bond “007 Contra o Satânico Dr. Não” e “007 Viva e Deixe Morrer” e outras de

voltar ao índice

suas histórias curtas se passam na Jamaica, onde o autor mantém o Hotel Goldeneye. Ele visitou Tokyo antes de escrever “007 Só se Vive Duas Vezes” e viajou no Orient Express para escrever “Moscou Contra 007”. A localização afeta diferentes aspectos do personagem. No filme “A Testemunha” o ritmo frenético da Filadélfia é diferente do ritmo pacato da fazenda dos Amish. No filme “O Cavaleiro Elétrico” o ritmo do oeste é diferente do ritmo de Nova Iorque no filme “Uma secretária de Futuro”. Cada ritmo terá um efeito sobre os personagens. Se você estivesse escrevendo “Rain, O Pecado da Carne”, de Smerest Maugham (transformado posteriormente em dois filmes), ou “A noite do Iguana”, de Tennessee Williams, ou “O Poder e a Glória”, de Graham Greene, você iria querer transmitir a sensação opressiva do calor e humidade ou a sensação claustrofóbica da chuva constante nos trópicos. Se você estivesse escrevendo um livro como “In God We Trust” de Jean Shepherd, ou o roteiro para “Os Lobos Nunca Choram”, de Curtis Hanson, Sam Hamm e Richard Kletter, você precisaria saber como temperaturas negativas afetam o estilo de vida e o comportamento das pessoas. Dale Wasserman, escritor da peça baseada no romance de Ken Kesey “Um Estranho no Ninho”, teve que fazer um estudo do local para compreender seus personagens. “Como parte da minha pesquisa, visitei manicômios: um de luxo e outros precários. Depois negociei com um psiquiatra para passar um tempo como paciente de um dos manicômios. No começo pensei em ficar por dez dias. Não por ser assustador ou desconfortável, pelo contrário, era muito confortável. Aprendi algumas coisas que não esperava. Número 1: Se você entrega suas forças e vontades a uma instituição a vida se torna muito simples e é tentador simplesmente seguir assim. Aprendi sobre a grande diversidade de pacientes, as articulações, as várias habilidades que possuem.”

voltar ao índice

Quando Kurt Luedtke escreveu a peça “Entre dois Amores”, ele precisou saber tudo sobre o mundo de Karen Blixen na África dos anos 1920/1930. “Posso olhar pra minha prateleira agora e achar pelo menos cinquenta livros sobre o Oeste Africano. Minha pesquisa revelou que a fronteira africana sequer havia sido aberta em 1982, as pessoas viviam no limite do mundo conhecido.” Seus livros eram suficientes para a pesquisa geral, mas Kurt precisava fazer uma pesquisa específica, para responder questões que iam surgindo enquanto escrevia o roteiro. “Eu precisava aprender como o café florescia, como se opera uma plantação. Descobri entrevistando um cafeicultor. “Precisava entender como era a relação entre brancos, essencialmente britânicos, e os negros quenianos. Entender as tribos africanas, pois Blixen provavelmente não se valia dos quicuios como empregados domésticos, provavelmente eram somalianos. “Precisava entender quantos homens brancos viviam da caça de marfim naquela época. Sobre a situação política: era uma colônia ou um estado parcialmente soberano? Quem tinha autoridade pra fazer o quê? E qual era a relação entre governo e colonos? Eu precisava saber a história da primeira guerra mundial no Leste Africano. Normalmente achamos que a primeira guerra não teve algum efeito na África, mas teve. “ Todos esses detalhes (o ritmo pacato de vida, onde longas histórias eram parte do entretenimento matinal; a relação entre colonos e nativos; animais silvestres soltos, e a instabilidade econômica numa plantação de café) mostram a importância da pesquisa específica para que os personagens funcionem.

voltar ao índice

O IMPACTO DA PROFISSÃO Às vezes o contexto pode ser a profissão do personagem. Uma pessoa de Wall Street tem um ritmo e um estilo de vida diferente de um fazendeiro de Iowa. Um analista de computador tem habilidades diferentes de um corredor olímpico. Um jardineiro e um pediatra têm posturas, valores e preocupações diferentes. James Brooks se atraiu pela ideia que usou no filme “Nos bastidores da Notícia” por ser um fã de notícias. Apesar do tempo que passava nas redes de notícias, do seu contexto ele ainda teve que se dedicar a um ano de pesquisa para escrever o roteiro. Como parte de sua pesquisa, ele passou um bom tempo conversando com âncoras e observando estações de notícias. “Me interessava pelo assunto”, ele relata “tive que passar os primeiros meses me livrando desse interesse (desaprendendo tudo que eu achava que sabia) para conseguir ser o mais objetivo possível. Comecei a pesquisa falando com muitas mulheres. Com duas em especial: uma repórter de Wall Street e uma repórter. Estava interessado nas mulheres que conquistaram um lugar ao sol rapidamente, logo depois de sair da faculdade. Com a boa educação de colégios prestigiados. “De alguma forma, as perguntas que eu fazia se pareciam muito com perguntas que se faria para vários estágios de um relacionamento, mas parecia algo mais clínico.” Além de falar com pessoas, James Brooks se instruía academicamente. “Eu lia a longa biografia de Murrow, alguns ensaios sobre noticiários e programas de rádio e devorava tudo que me falavam que poderia ser interessante. Passava muito tempo na cidade, conversando com pessoas da área. E se você passa tempo suficiente pesquisando, suas chances de estar no lugar certo e na hora certa aumentam”. James Brooks via muitos detalhes que poderia incorporar no filme simplesmente “dando uma volta”. “Eu via alguém

voltar ao índice

correndo, literalmente correndo, quando algo dava errado com uma fita de gravação”. Perguntei para Kurt Luedtke como ele faria a pesquisa pra certos personagens, por exemplo, pra um arrombador de cofres. Já que Kurt já foi um jornalista, ele está muito habituado com o processo de pesquisa. Ele explicou como faria pra conseguir informações tanto pro personagem quanto pra história. “A primeira coisa que eu faria seria procurar por policiais e perguntar: ‘você prendeu alguém recentemente que é alfabetizado, meio idiota e que ficaria doido pra falar comigo?’. Talvez depois de cinco ou seis tentativas alguém diria ‘Sim, tem um cara que talvez goste de falar com você. Provavelmente vai querer algum dinheiro, mas se você pagar, ele vai adorar falar com você’. “Mas veja, eu não procuro por informação de personagem, mas por informação sobre essa profissão, informação pra cena. Certamente pediria que me conte sobre as cinco vezes que um esquema deu errado, o que aconteceu, pelo simples lado cômico de entender como as coisas podem dar errado. Provavelmente eu procuraria por todas as coisas que não sejam detalhes do personagem, pois provavelmente o cara é realmente um criminoso e provavelmente eu estaria escrevendo sobre um criminoso menos realista e mais simpático ao público”. Algumas perguntas que Luedtke faria seriam: “Como você escolhe o lugar pra assaltar?” “Pra quem você trabalha? E se trabalha sozinho, qual o motivo?” “Quais são os problemas da profissão?” “Por que escolheu arrombar cofres ao invés de tantas outras possibilidades de ganhar a vida?” “Onde aprendeu a arrombar cofres?” “O que fazia quando criança?” Através dessas perguntas (Quem, o quê, onde, quando, por quê), Luedtke começaria a formar algumas conclusões sobre o tipo de pessoa que se torna um arrombador de cofres, e como difere de outros criminosos. “Presumo que os arrombadores de cofres tenham algum respeito pelas autoridades, uma certa abordagem conservadora no crime,

voltar ao índice

o oposto de um assassino ou um assaltante onde é preciso apontar uma arma pra alguém e lidar com a possibilidade das pessoas estarem armadas. Arrombar cofres é um tipo de serviço bem tranquilo. Você não se depara com ninguém e seu objetivo é fundamentalmente financeiro. Você não é um sociopata, é só alguém que quer viver fora das regras. Simplesmente precisa de dinheiro.” Kurt procuraria por vocabulário específico. Quais são as expressões que os arrombadores usam? Isso não dá pra se achar numa livraria. “Um livro publicado em 1970 pode ter uma coisa ou outra, mas provavelmente está desatualizado”. Kurt chegaria em outras conclusões com essa informação. “Se ele é cuidadoso, provavelmente não ficaria se exibindo, ele não iria querer ser lembrado. Provavelmente não iria atuar nas redondezas de onde mora, mas iria até St. Louis fazer seu trabalho e sair fora.” A partir dessas informações, Kurt começaria a traçar pontos na história que seriam coerentes com o personagem: “Se ele for cuidadoso, provavelmente não vai confiar em muitas pessoas. Um erro que ele poderia cometer na história: ser avisado para não se envolver demais com alguém, mas acabar se envolvendo. Então acabaria caindo em todo tipo de problemas”. Através desse tipo de entrevista, o escritor começa a pegar informações básicas para um contexto que torne o personagem mais realista. Isso também pode estimular o processo criativo, fazendo a história surgir de forma natural e verdadeira. EXERCÍCIO: Se você estiver entrevistando um arrombador de cofres, quais outras perguntas você faria? Alguma sobre família? Estilo de vida? O psicológico daquela pessoa? Suas motivações? Objetivos? Valores?

voltar ao índice

CRIANDO UMA PESQUISA ESPECÍFICA ATRAVÉS DE UMA PESQUISA GERAL Às vezes a pesquisa geral faz os escritores a criar um personagem baseado em alguém que eles conheceram. Quando William Kelley fez a pesquisa para o filme “A testemunha”, ele encontrou modelos tanto para Rachel quanto para Eli. William afirma que “O próprio bispo Miller se tornou o Eli (apesar de eu nunca ter contado isso pra ele). Estudei o personagem olhando com muita atenção pro rosto (o rosto é o espelho da alma) e ouvindo atentamente as entonações, sotaques, senso de humor... Eu não podia tirar uma foto dele, então eu decorei seu jeito. “O modelo pra Rachel veio da cunhada do bispo Miller. Certo dia ela saiu de casa, veio vindo de um jeito charmoso, com um balançar de cabeça e um olhar tímido ela disse ‘Então você vai fazer um filme e eu vou participar?’ Eu respondi ‘Bem, se você continuar a falar comigo eu quase posso garantir que sim’. Ela era muito bonita, parecia a Ali McGraw e era fácil prestar atenção nela, tinha uns 27 ou 28 anos”. Para o filme “Nos bastidores da notícia”, James Brooks usou quatro ou cinco mulheres para escrever Jane. Tom foi baseado num correspondente que ouvia falar. “Alguém me contou uma história sobre esse homem. Ele seria mandado pro Líbano e então disse ‘Sem chance; prefiro me demitir. Sou casado e tenho um filho. Não vou arriscar meu pescoço lá.’ Brooks sentiu que havia um personagem interessante ali, muitos do ramo dariam tudo pra ir ao Líbano, mas aquele homem colocou sua família como prioridade. Se você encontrar um modelo pro seu personagem durante uma pesquisa, isso é um bônus, mas não uma exigência. Depois que você conseguir entender o contexto do seu personagem, ele pode perfeitamente sair da sua imaginação.

voltar ao índice

DICAS PARA A PESQUISA ESPECÍFICA Em todos esses relatos, uma coisa fica muito clara: Todos esses roteiristas sabem para onde olhar e o que perguntar. Fazer as perguntas certas é uma habilidade que pode ser aprendida. Gayle Stone, escritora de suspenses tecnológicos (A Common Enemy, Radio Man), é também professora de escrita. Ela diz “Há pessoas passam a vida perdendo 90% do que está acontecendo ao redor. Todos somos capazes de prestar atenção. Algumas pessoas prestam atenção mais fácil, talvez por incentivo dos pais. Essas terão mais informações em suas recordações. Se alguém te mostrar que você é uma dessas pessoas que não prestam atenção, então aproveite a oportunidade. Não existe razão pra não começar agora. Nunca é tarde pra observar a vida. Enquanto você respirar você poderá fazer. Você ficará surpreso no quanto pode saber, no quanto seu inconsciente tem guardado até aqui”. Muitas pessoas estão morrendo de vontade, até mesmo ficariam lisonjeadas de serem questionadas sobre seus trabalhos. Seja um agente do FBI, um psicólogo especializado em transtornos obsessivos, ou um carpinteiro mostrando o nome e a utilidade de cada ferramenta. Quem, o que, aonde, quando e Por quê? São perguntas que trarão as informações necessárias. “Conheça seu bibliotecário” é um conselho valioso para qualquer escritor que precise de acesso rápido a informação. Bibliotecários sabem as respostas ou têm alguma ideia de onde encontra-las. QUANTO TEMPO LEVA? A pesquisa pode demorar tanto quanto qualquer parte da escrita de um roteiro. O tempo necessário depende do seu conhecimento prévio, e das dificuldades encontradas para criar o personagem e a história.

voltar ao índice

James Brooks: “Pesquisa nunca acaba. No filme ‘Nos bastidores da Notícia’ precisei de um ano e meio de pura pesquisa e quatro anos com o restante do processo, pois a pesquisa continuou ao longo das filmagens”. William Kelley: “Pesquisei os Amish por sete anos, eu e Eral escrevemos o roteiro durante a greve dos roteiristas de 1980, que durou cerca de três meses”. Dale Wasserman: “O roteiro de ‘Um estranho no Ninho’ levou três meses de pesquisa, comecei lendo um livro muito interessante. Levei seis semanas pra escrevê-lo”. Sem a pesquisa adequada, o processo da escrita geralmente demora mais e pode ser bem frustrante. Apesar da pesquisa continuar durante o processo de escrita, existem momentos que você sente que já está familiarizado o suficiente com certos assuntos. Jamos Brooks diz que esse ponto é atingido quando “as pessoas acabam confirmando o que você já sabia, e você é capaz de conversar tranquilamente com peritos da área que você está explorando”. ESTUDO DE CASO: A MONTANHA DOS GORILAS Em fevereiro de 1989, Anna Hamilton Phelan foi indicada a um prêmio da Academia por melhor adaptação com o filme “A montanha dos gorilas”. Esse estudo de caso mostra as várias formas que a pesquisa pode ser usada para criar um personagem, até mesmo (como é o caso) quando um personagem é baseado numa pessoa real. “Comecei a pesquisar a vida de Dian Fossey no meio de Janeiro de 1986, poucas semanas depois dela ser assassinada. Terminei a pesquisa dia 1 de Junho, comecei a escrever o roteiro um mês depois e o entreguei dia 1 de Setembro. Levou cerca de cinco meses de pesquisa e oito semanas de escrita. Foi tão rápido porque eu tinha tudo que precisava. Estava tão segura com as informações que recolhi que não demorou quase nada pra botar tudo no papel. “Tive que fazer diferentes tipos de pesquisa pra essa história. Consegui as informação de primatologia nos

voltar ao índice

livros. Lia tudo que podia sobre o gorila da montanha (Todos os artigos da National Geographic, tudo que encontrava na Biblioteca de UCLA sobre gorilas da montanha de Ruanda. Aprendi sobre seus ninhos noturnos, que se tornou uma cena do filme. Aprendi que não se deve fazer contato visual porque isso os provoca. “Aprendi como gorilas sobre enxergam suas famílias e grupos. Deve haver um gorila (um jovem macho) que guardará o resto do grupo. Isso foi conveniente pois Digit, que era um jovem macho, era o gorila preferido da Dian Fosseys. Ele coloca suas mãos sobre as dela no filme. “Durante meu tempo na África, eu buscava pelo cheiro, a sensação, as impressões que o ambiente me causava. Apesar de não ser possível sentir o cheiro de um personagem ou ambiente num filme, você pode alcançar isso por entre as linhas. Eu procurava essa sensação de quão perigosa a região era para viver. Muito do perigo vinha do desconforto de estar a dez mil metros acima do mar. Dian tinha enfisema (que ficava mais severo por causa do clima frio e úmido e por fumar dois maços de cigarro por dia). A caminhada, as trilhas pelas montanhas e os deslizamentos me fizeram pensar “Que tipo de mulher gostaria de viver num ambiente desses por cinquenta anos?” É muito tempo para viver na lama e no frio congelante. Um frio de rachar os ossos. O mais frio mais intenso de toda minha vida. É úmido e você fica molhada o tempo todo. Nenhuma parte de você fica seca ao sair de casa. “Fiquei numa pequena cabana há alguns metros da que Dian foi assassinada, já que não tínhamos permissão de entrar na que ela morou. A cabana foi incinerada depois de seu assassinato. Queria entrar para tocar as coisas. Às vezes tocar objetos que foram manipulados pela pessoa pode trazer sensações que você pode usar no seu trabalho. Se eu tivesse conseguido entrar lá e tocado suas coisas, aquilo teria sido benéfico. Eu podia olhar pelas janelas da cabana dela e ver como era no interior... Foi tão bizarro ver aquela cabana de lata com objetos de valor: toalhinhas de mesa, vasinhos com flores secas, porta retratos de prata, porcelana

voltar ao índice

boa, prataria boa. Isso foi o que me intrigou sobre aquela mulher. “A primeira vez que vi os gorilas pensei: não são de verdade. Eram tão gentis e dóceis cuidando da própria vida que sequer me inspirava receio. Mas não tive aquela sensação sobre eles que eu sabia que Diana tinha (aquela sensação de temor e admiração). Então eu tive que fabricar aquele sentimento. Apesar disso, foi útil ver os gorilas. “A época em que se passava a história foi mais difícil de pesquisar pois a guerra civil, que formou uma subtrama forte na época de Diana, já havia terminado quando eu fazia as pesquisas. Encontrei algumas informações no livro de Diana Fossey, onde ela mencionou brevemente, num dos capítulos, sua breve visita à fronteira. Haviam outros livros que li, outros registros históricos sobre o conflito no Congo. “A população local tinha grande admiração e carinho por Dian Fossey e por sua proteção. Os que nunca a conheceram tinham grande carinho por ela. Ela era chamada de Niramachebelli, que significa “uma mulher que vive sozinha na floresta”. Mas as pessoas que conversei que a conheciam de fato, não gostavam dela. Apenas uma (das quarenta pessoas que entrevistei) simpatizava com ela. Era Ross Car (interpretada por Julie Harris no filme). Ela tinha muitos inimigos. Você poderia apontar pra qualquer direção e encontrar um assassino”. APLICAÇÃO Enquanto você reflete durante a pesquisa, pense nas seguintes questões sobre seus personagens: ■■ O que preciso saber sobre o contexto do meu personagem? ■■ Eu compreendo sua cultura? ■■ Entendo o ritmos, a crenças, as atitudes que são parte de sua cultura? ■■ Já conheci, conversei, e passei algum tempo com pessoas dessa cultura?

voltar ao índice

■■ Consegui entender a maneira que ele se assemelha ou se diferencia da maneira que eu sou? ■■ Passei um tempo com um número de pessoas diferentes dessa cultura, para que não acabe estereotipando o personagem, baseando ele em uma ou duas experiências que testemunhei? ■■ Estou familiarizado com a profissão do meu personagem? ■■ Eu tenho uma noção da profissão, do vínculo, de como esse personagem se sente no trabalho que atua? ■■ Tenho uma boa noção de vocabulário para usá-lo naturalmente num diálogo? ■■ Sei onde meu personagem mora? O jeito do lugar, a sensação de andar pelas ruas? ■■ Tenho uma noção do clima, das atividades de lazer, dos sons e dos cheiros do local? ■■ Como esse local se difere da minha região? Que efeito isso pode ter no meu personagem? ■■ Se minha história se passa em outra época, tenho o conhecimento histórico suficiente em termos de linguagem, condições de vida, vestimenta, relacionamentos, posturas e influências? ■■ Lí diários e outras fontes literárias da época para ter uma noção de como as pessoas falavam e que palavras usavam? ■■ Pesquisando meus personagens, pedi ajuda para fontes confiáveis? (seja o bibliotecário ou pessoas com conhecimento específico da área.)

voltar ao índice

RESUMO Quase todos os personagens exigem certa pesquisa. Existe mais de uma razão para que escritores novatos escrevam sobre o que conhecem. A pesquisa pode ser demorada e onerosa. Muitos escritores iniciantes não podem pagar por um mês na África, ou encontrar um arrombador de cofres, ou fechar negócio com um construtor de carroças Amish. Entender a importância da pesquisa e entender o que pesquisar são passos importantes no processo de criar personagens fortes. Quando os roteiristas vencem o medo de pesquisar, muitos descobrem que pode ser a parte mais empolgante, criativa e estimulante do processo de escrita. A pesquisa facilita o caminho da imaginação e dá vida ao personagem.

voltar ao índice

2 Definindo o personagem: Consistências e Contradições Pense numa pessoa que você goste muito – amigo, esposo, professor, parente. As primeiras qualidades que vierem a cabeça, talvez sejam o que existe de mais forte em suas personalidades. Pode ser aquela amiga sempre empática e compassiva, enquanto um outro adora uma boa festa; talvez um professor conhecido por sua lógica analítica, ou um parente movido por um senso de vitória nos esportes e na vida. Mas, os próximos pensamentos que você tiver sobre a pessoa podem ser surpreendentes, ilógicos, contraditórios. Seu amigo mais sensato adora vestir aqueles chapéus horríveis. Ou aquele amigo mais emocional que lê livros de astronomia no tempo livre. Sua amiga compassiva odeia insetos e joga inseticida assim que ouve ou vê algum pela casa. O processo de definição de personagem é um processo de vai e vem. Você faz perguntas; observa; pensa nas suas experiências pessoais e cria as experiências dos seus personagens. Você testa a consistência do seu personagem. Pensa nos detalhes que são únicos e imprescindíveis. Esse processo pode parecer banal e, de alguma forma, ele é. Mas existem certas qualidades que são encontradas em todos os personagens dimensionais. Quando seu personagem se recusa a ganhar vida, entender essas

voltar ao índice

qualidades pode te ajudar a expandir, enriquecer e aprofundar esse personagem. COMO COMEÇAR? Seja modelando um personagem usando como base alguém que você conhece intimamente, ou em alguém que você observa, ou usando a si mesmo, ou num conjunto de características reunidas; criar um personagem começa com um forte impacto. Aquela imagem impactante que transmite a sensação de quem seu personagem é. Talvez você o veja fisicamente: Como ele é? Como ele se move? Talvez você queira explorar um personagem abatido numa crise. Como ele irá se comportar ou reagir? Você provavelmente começará com uma sensação visceral, com algo que realmente importa praquela pessoa. Existem estágios de criação do personagem. Apesar de não necessariamente nessa ordem: 1. Ter a primeira ideia baseada em observação ou experiência própria. 2. Criar as impressões mais gerais. 3. Encontrar o cerne do personagem para fazê-lo coerente. 4. Encontrar as contradições do personagem para torna-lo complexo. 5. Adicionar emoções, posturas e valores para dar profundidade. 6. Adicionar detalhes para fazê-lo único, singular. OBSERVAÇÃO Muito do material usado para criar personagens virá de pequenos detalhes.

voltar ao índice

Carl Sautter fala sobre observar personagens incomuns num restaurante. Essa cena da vida real ajuda a demonstrar como observação e imaginação trabalham juntos: “Estava dando um seminário em Washignton e falávamos sobre a construção de personagem. Os estudantes chegavam com todo tipo de personagem que você possa imaginar: A prostituta com se bom coração, o gordinho feliz que é miserável por dentro, etc. Então fui almoçar e tinha um rapaz na cafeteria que segurava uma cumbuca de sopa e uma faca. Fiquei observando ele, tentando descobrir no que diabos ele estava pensando tão profundamente. Ele segurava um prato com um pãozinho e um tablete de manteiga (que obviamente estava muito frio e bem duro). Ele desembrulhou a manteiga com todo o cuidado, pegou um pouco com a faca e a mergulhou na sopa para que derretesse. Então passou a manteiga amolecida no pão. Aquilo ganhou sentido: um cara usando a sopa quente pra amolecer a manteiga e passa-la no pão. Isso me deixou pensando: Como será a personalidade desse homem? O que aquela atitude diz sobre ele? Quando voltei pra classe, falei disso com eles. Montamos o cenário e fizemos perguntas sobre aquele rapaz. Os personagens que surgiram dali (quem poderia ser o rapaz, seus motivos e sua idade) foram dez vezes melhores que as ideias que eles estavam dando antes de começarmos aquela especulação”. Na criação de personagens para publicidade, observar é particularmente importante. Joe Sedelmaier, um dos melhores criadores de personagens para publicidade, observa atentamente detalhes nas pessoas que encontra. Ele geralmente escolhe atores pelas peculiaridades que encontra nas suas personalidades, normalmente escolhe nãoprofissionais pois os acha mais interessantes e mais reais. Primeiro ele observa, depois ele transforma aquilo que observou em um personagem. Quando ele escolheu Clara Peller pro comercial “Where’s the Beef?” da rede Wendy’s, ele simpatizou com detalhes que notou nela: “Precisávamos de uma manicure pra um comercial que estávamos gravando. Atravessamos a rua e encontramos Clara. Ela não tinha falas no papel, ela veio até mim e falou com

voltar ao índice

aquele vozerão “Oi querido, como está?” E eu achei incrível. Comecei a usá-la numa série de comerciais. Quando me chamaram pra fazer o comercial da Wendy’s, senti que a ideia original estava toda errada, eles usavam um casal de jovens em frente a um grande pão e diziam “Cadê o Bife?”. Então pensei que seria bem mais engraçado com duas velhinhas. Surgiu-me a ideia da Clara vindo até mim igual um touro numa loja de porcelana. Podia ouvir ela dizer “Bom, e cadê o resto do bife!?” Começamos a filmagem mas, por causa do enfisema, ela tinha dificuldades com a parte “cadê o resto do...” então pedi pra ela simplesmente dizer “Cadê o bife?” INTEGRANDO EXPERIÊNCIA Não importa de onde você vai começar a criar seu personagem, no final você vai ter que confiar na sua própria experiência. Não existe outro lugar pra você saber se acertou. Ninguém pode falar se você criou ou não um personagem crível, realista, consistente. Você deve confiar na sua percepção de como as pessoas são. Escritor após escritor enfatiza esse aspecto da escrita: “Seja lá o que eu saiba, eu sei através da minha própria experiência”, afirma James Dearden. “No fim das contas, o escritor desenha por cima de si mesmo. Eu tinha a Alex e o Dan dentro de mim. Se você não vivenciou a experiência, então vá lá e viva aquilo. Todos os personagens que escrevo vêm de mim. Eu olho pra dentro de mim. Sempre penso ‘Como eu reagiria nessa situação?” Carl Sauter concorda “Acho que você precisa achar o elemento nos personagens que é você. Não é que todo personagem seja autobiográfico, mas você deve se perguntar ‘Qual personagem eu gostaria de ser? Com qual eu escolheria fugir?’ Quando você começa a escrever histórias que só você poderia escrever, você eleva-se a um patamar inédito. Portanto, não importa o que ele seja, mesmo que seja um personagem de apoio, eu tento achar uma parte que eu realmente me identifique”.

voltar ao índice

Barry Morrow, que escreveu o roteiro original de “Rain Man”, diz “Os filmes precisam ser de coisas que você tem interesse ou não será divertido escrevê-los. Em “Rain Man”, Raymond gosta das coisas que eu gosto. Gosta de baseball e panquecas. E Charlie gosta do que eu gosto: dinheiro, carros e mulheres”. Ron Bass, que fez a reescrita de Rain Man, completa “Eu levava Charlie e Raymond comigo. Tinha todos os seus defeitos e suas qualidades na minha personalidade. Certamente existe um lado em mim que não gosta de contato humano e tenta compensar isso de forma exagerada; e certamente eu tenho aquelas defesas do Charlie. Existe uma parte em mim que é muito afável e quer ser amada. Escrever é um processo muito íntimo, e eu sei quando consigo ou não captar o personagem.” Na televisão, é comum ter um roteirista da série que representa o personagem. Essa pessoa se torna um termômetro de como o personagem funciona. Coleman Luck, co-produtor executivo da série “The Equalizer” de 1980, e escritor de uma série de programas e séries, se identifica com McCall. Ele permaneceu na produção por quatro anos (quase do início) e se tornou referência para várias decisões sobre o personagem. “Alguns roteiristas da série se tornaram os personagens”, ele relata. “Tinha que haver uma empatia entre o roteirista e o personagem. Não vejo como poderia ser diferente. Existe algo em mim que gosta do McCall. Não sou McCall, não fui da CIA, mas já tive certa vivência. Por alguns anos fui soldado no Vietnam, e estive em combate com 22 anos de idade. Passei por muita coisa, posso entender suas preocupações, seu remorso, sua necessidade de perdão, a vontade de se redimir. Se você não tiver um bom autoconhecimento e auto análise, conhecer-se em certo ponto, você definitivamente não será capaz de conhecer seu personagem.”

voltar ao índice

DESCRIÇÃO FÍSICA Leitores irão imaginar a aparência física dos personagens que encontram nos romances. Muitos romances dão descrições muito vivas dos personagens para que os leitores tenham uma sensação imediata de como são. Algumas vezes um romance, como “Ordinary People”, evita descrições físicas, preferindo detalhes da vida pessoal dos personagens. Mas os leitores ainda imaginarão algo, transformarão os detalhes psicológicos numa aparência visível. Peças quase sempre dão uma ou duas linhas de detalhes físicos importantes, para fisgar o leitor ou atores em potencial. O que faz uma descrição física? Antes de mais nada, ela é evocativa; sugere outros aspectos do personagem. O leitor começa a associar outras qualidades e imagina detalhes adicionais das poucas linhas descritivas que o escritor deu a ele. Deixe a imaginação rolar na descrição a seguir, de um roteiro chamado “Fire -Eyes” de um dos meus clientes, Roy Rosenblatt: “Um doce rapaz que provavelmente trabalhou por tempo demais”. Que outras características vêm à sua mente? Provavelmente você pensou no cansaço dele. Te passou a suspeita dele ser pessimista? Provavelmente você o sentiu simpático, por causa de seu rosto. Mas chegou a pensar se ele tem conflitos no trabalho por ter trabalhado tempo demais? Talvez ele sofra de Burnout, talvez você sinta pena dele, ou até mesmo solidariedade. Consegue imaginar seu jeito de andar ou falar? Às vezes, em romances, os personagens recebem características que os fazem reconhecíveis instantaneamente. Veja a descrição de quatro detetives

voltar ao índice

famosos: Sherlock Holmes, Father Brown, Hercule Poirot e Miss Marple. Sherlock é descrito por Arthur Conan Doyle como alto, magro, com um rosto de falcão um chapéu de feltro e uma longa capa de viagem. Ele é frio e preciso, com extraordinários poderes de observação. Father Brown, criado por G. K. Chesterton, é um padre baixo e gordinho, sempre carregando pacotes de papel pardo e um grande guarda-chuva. Tem bastante humor, sabedoria e reflexões sobre a natureza humana. Hercule Poirot de Agatha Christie é um pequeno detetive belga com uma cabeça ovalada e uma paixão por organização; enquanto Miss Marple é uma senhora de idade, “tão charmosa, inocente, uma coisinha rosa, branca e fofa, com um blazer de Tweed antiquado, uma saia, um par de cachecóis e um chapeuzinho de feltro com uma asa de pássaro”. Especificamente em roteiros, características físicas podem ser fortalecidas se puderem ser interpretadas pelo ator (como uma noção de movimento do personagem, um jeito de olhar, uma maneira de curvar os ombros, de menear a cabeça, um jeito de caminhar). Essas descrições dão dicas pro ator encarnar o personagem. “Bonita” é difícil de interpretar; “forte” e “belo” também não ajuda muito. Em “Atração Fatal”, Alex Forrest é descrita na aparência, o tipo de roupas que escolhe, uma noção de postura pra sua idade: “Naquele instante, uma garota loira, extremamente atraente passa... Ela vira e lança um olhar de tirar o fôlego... Tem uma aparência sensacional. Deve estar na casa dos trinta, mas se veste como se fosse mais nova, na moda, parece mais jovem.” Veja a descrição do protagonista do filme “Dança Macabra”, escrito, dirigido e produzido por dois dos meus clientes, Katt Shea e Andy Rubin. Note quantos detalhes que podem ajudar o ator (detalhes de movimento, sensações,

voltar ao índice

e intenção). A descrição dá uma noção de desejo que irá ressoar ao longo do filme: “Ele se afasta do próprio reflexo – seu rosto é incrivelmente bonito: etéreo, triste, com uma ingenuidade infantil. E existe algo na maneira que ele se move, o menear de cabeça, uma distinção, uma tentativa felina, uma graça predatória.” Sandi Steinberg (outro cliente meu), escreveu uma das minhas descrições favoritas, que dá uma ideia de dimensão cômica. Está no roteiro de Curses: “Maria-Theresa, 50, acorda num sobressalto, uma mulher grande com pequenas ilusões – 180 quilos guatemaltecas espremidos numa camisola rosa de ursinho. Ela pega um dente de alho do decote e começa a cantarolar.” Ao escrever descrições que podem ser dramatizadas é importante ser genérico para que um número de atores possam interpretá-las, mas ao mesmo tempo devem ser específicas para formar um personagem bem definido. Uma descrição que evoca outras qualidades e associações pode inspirar uma imaginação dramática, convencer o ator ou a atriz que aquele personagem vale a pena. O CERNE DO PERSONAGEM Personagens precisam ser coerentes. Mas isso não significa que eles sejam previsíveis ou estereotipados. Mas que, assim como pessoas reais, eles precisam ter um cerne de personalidade que defina quem são e dê expectativas ao público sobre como irão agir. Quando saem desse eixo, os personagens podem parecer incríveis, incoerentes ou com mais camadas. Barry Morrow explica “Parte do apelo de um personagem num filme é sua previsibilidade. Você entende quem ele é, seu histórico, código de honra, ética e sua visão de mundo. O personagem terá de fazer certas escolhas que o público pode prever e gostar de presenciar.”

voltar ao índice

O executivo de publicidade Michael Gill concorda e complementa: “Vejo os personagens como vejo os amigos: quero uma certa coerência. Você não quer ver seus amigos mudando toda vez que você vai falar com eles. Você não quer ver uma mudança radical para cada situação, nem emocional, tão pouco psicológica. “Você criar personagens com personalidades que soem familiares. Depois de criar um personagem bem feito, o segredo é mantê-lo realista e, ao mesmo tempo, preservar as sensações específicas e detalhes no personagem que o público aprecia”. Qualidades do personagem não existem sozinhas. Um personagem coerente possui certas qualidades que levam a outras. Por exemplo, digamos que você esteja escrevendo o próximo Indiana Jones. Um dos seus personagens é um professor de religião (um expert dos primórdios do cristianismo que leva a chave para encontrar um artefato importante. O que esperamos desse personagem? Se esse professor de religião tem PHD, esperaríamos que ele fosse um perito em pesquisas e soubesse encontrar todo tipo de informação obscura em bibliotecas e livrarias. Seria coerente que ele fosse interessado em áreas relacionadas, como filosofia, história da igreja, sociologia, antropologia. Muitos professores de religião, particularmente aqueles com formação acadêmica ou seminários, possuem conhecimento de artes-gerais. Fizeram cursos de artes plásticas, literatura, provavelmente uma ou duas aulas de ciências. Não seria estranho que um professor desses amasse literatura, música, arte, arquitetura; ou entendesse dessas áreas. Esse interesse na arqueologia e história da Igreja pode levar a um amor em viajar. Talvez ele possa ter feito alguns estudos arqueológicos na Turquia, Israel ou Egito. Não seria de se espantar que soubesse alguns idiomas, talvez grego, latim e hebraico.

voltar ao índice

Veja como um conjunto de características leva a outras. Uma pessoa sofisticada o suficiente para conhecer as músicas de Mendelssohn pode também conhecer as pinturas de Vermeer e Rambrandt. Alguém que cresceu numa fazenda provavelmente conhece algo sobre consertar tratores, carros e como prever o tempo. Alguém bem sucedido em operações financeiras, provavelmente sabe algo sobre os padrões econômicos no Japão. Apesar disso parecer muito óbvio, muitos personagens são feitos de tal forma que não parecem possuir nenhuma qualidade que se poderia esperar daquele tipo de pessoa. Personagens que são mães e não se preocupam com o choro de uma criança do outro lado da rua. Personagens que cresceram no Brasil mas não reagem ao ouvir alguém falando em português num restaurante em Amsterdã. Em séries de TV, vi personagens que supostamente tinham memória fotográfica e mesmo assim não se lembravam de datas importantes ou do autor de uma música conhecida. Existem inconsistências nesses personagens. Se, por alguma razão, o escritor as fez propositalmente, isso precisa ficar óbvio. Caso contrário, irá parecer que o escritor não percebeu essas inconsistências. EXERCÍCIO: Pense em quais qualidades você espera de um negociante de arte, um assassino, um frentista de posto. As primeiras qualidades que você pensar serão as mais óbvias. Pense por um tempo até que apareçam qualidades que são coerentes, mas não tão óbvias para um observador distraído. Se você só encontrar uma ou duas características, corre o risco de criar um estereótipo. Um personagem consistente não pode ser tão restrito. Pensando nas características, você pode encontrar muitas conexões que não são estereotipadas. Ainda será necessário escolher o que mostrar na história, mas para o leitor ou público, ficará

voltar ao índice

claro que você conhece e entende o cerne desse tipo de pessoa. ADICIONANDO CONTRADIÇÃO A natureza humana é o que é, e um personagem sempre será mais que um conjunto de coerências. As pessoas também são ilógicas e imprevisíveis, fazem coisas que nos surpreendem, chocam, que mudam tudo o que pensávamos sobre elas. Muitas dessas características nós só chegamos a conhecer em pessoas que já temos contato há muito tempo. São detalhes que não estão facilmente evidentes, mas que atraem nossa atenção intensamente. Essas contradições muitas vezes são a base para a criação de personagens únicos e fascinantes. Contradições não anulam as coerências, elas simplesmente se somam a elas. Já tive um professor de religião, por exemplo, que era especialista no novo testamento. Ele era reservado, tímido, modesto, com um grande conhecimento na sua área. Escreveu muitos livros e, apesar de modesto em suas aulas, ele tinha uma boa noção do próprio conhecimento. Ele tinha um posicionamento enfático do que acreditava e não se importava em deixar que os alunos soubessem de suas opiniões nas questões religiosas. Ele seria um bom exemplo de personagem consistente que mencionei. Mas esse professor também foi um cowboy e era um expert no laço. Uma vez a cada três ou quatro anos, alguém pedia pra ele mostrar seus truques com o laço, que sempre incluía laçar a perna de um voluntário. Além disso, também foi conhecido por corridas de velocidade nas planícies salgadas de Utah. Todas essas características faziam do professor um personagem fascinante. O romancista Leonard Tourney diz que as contradições são a chave de personagens fascinantes: “Personagens são mais interessantes se feitos de misturas, de elementos contraditórios. Para criar elementos contraditórios, escolha

voltar ao índice

uma característica e se pergunte ‘Que tipo de característica poderia existir nessa mesma pessoa que criaria algum tipo de conflito?’ Pense numa pessoa bem caseira, por exemplo. Isso não é um elemento conflitante, mas e se nos fins de semana ela faz algo claramente oposto com seus amigos? Isso é realmente fora do que seria esperado. Com essa característica, você se aproxima de um personagem que inspira interesse.” Anna Phelan fala sobre algumas contradições que descobriu escrevendo a personagem Dian Fossey. Apesar de algumas terem sido cortadas do filme, Anna considera essas contradições uma parte fascinante da personagem. “Dian era viciada em cigarros e chocolate. Às vezes ela comia quinze barras da Hershey num dia só. Logo depois do seu assassinato, enquanto eu tentava conseguir esse filme, descobri que no closet daquela cabana de lata, horrível e apertada, no meio das profundezas da África que ela vivia; havia um vestido de festa de cetim verde da Bonwit Teller. É isso que me faz escrever um roteiro: a contradição. O que essa mulher fazia com um vestido de cetim naquele lugar? No filme “E o Vento Levou”, vemos Scarlett como um flerte. Esperamos que ela seja sedutora e manipuladora (é coerente com seu personagem). Mas ficamos surpresos que sua matéria preferida na escola era matemática, que ela estava serena no meio de uma crise, é forte, determinada e astuta. Otto (Um peixe chamado Wanda), é colocado como um pateta impulsivo e ciumento e, ao mesmo tempo, é um leitor de Nietzche e pratica meditação. Jane (Nos Bastidores da Notícia) que é extremamente competente, chora por cinco minutos todas as manhãs. Essas contradições rondam os personagens. EXERCÍCIO: Pense nas suas próprias coerências e contradições pessoais. Quais são as coerências e contradições de seus amigos? Dos seus parentes mais queridos e menos queridos?

voltar ao índice

ADICIONANDO VALORES, ATITUDES E EMOÇÕES Se você criar um personagem estritamente coerente, ainda assim ele pode ter profundidade. Mas se você colocar algumas contradições, seu personagem será mais singular. E, caso queira aprofundá-lo ainda mais, existem outras qualidades que você pode adicionar: expandir suas emoções, posturas e valores. Emoções aprofundam a humanidade do personagem. Em “Uma Secretária de Futuro” nós simpatizamos com Tess McGill, a secretária oprimida. Quando descobriu que seu chefe mentiu pra ela, dá pra sentir seu desânimo, seu sentimento de traição, sua tristeza e desilusão. Num momento emocional breve, nos conectamos com Tess e entendemos melhor aquilo que a motivava. Em muitas das melhores histórias, simpatizamos com o personagem. Podemos sentir a frustração de Rocky (Rocky, Um Lutador). Podemos sentir a felicidade de Ben (“Carruagens de Fogo”) quando ganha a corrida. Podemos sentir a vontade de Shane; a depressão de Conrado em “Gente como a Gente”; o desgosto de Sally (Harry e Sally - Feitos Um para o Outro) quando se encontra com Harry pela primeira vez; e a auto aversão de Valmont (Ligações Perigosas). O tipo de emoção que pode ser dramatizada e compreendida pode ser definida de várias formas. Já ouvi alguns psicólogos classificando humoradamente as emoções assim: Furioso, triste, grato e assustado. Nada mal para uma lista inicial, pois leva a outras emoções. Furioso implica nervosismo, repleto de raiva, frustração, stress, algo fora de controle. Triste implica depressão, desesperança, desencorajamento, autodestrutivo, melancólico. Grato implica alegria, felicidade e êxtase. Assustado implica medo, terror, horror e ansiedade.

voltar ao índice

O romance “Gente como a Gente” adiciona camadas emocionais quando descreve a depressão de Conrad: “Para ter um motivo pra se levantar da cama, é preciso ter um propósito de vida. Algum tipo de crença, um adesivo de para-choque, que seja... Deitado de barriga pra cima, ele encara as paredes do quarto, imaginando onde foram parar sua coleção de declarações oficiais. Foram embora... As paredes estão vazias. Foram pintadas recentemente. Azul claro. Uma cor angustiante. Angústia é azul; o fracasso é cinza. Ele conhece esses tons. Ele disse a Crawford que voltariam a sentar ao pé da cama, paralisando e constrangendo ele...” Nas minhas consultorias, quando sinto a falta de uma camada emocional num personagem, normalmente recomendo que o escritor reveja a história perguntando-se o que o personagem está sentindo em cada cena. Apesar de não ser necessário que todas as respostas estejam no texto, entender as emoções pode produzir um personagem muito mais rico e cenas bem mais profundas. Posturas transmitem opiniões, ponto de vista, a inclinação de um personagem em certa situação. Elas aprofundam e definem o personagem, mostram como o personagem vê a vida. Especialmente nos romances, que naturalmente têm um foco mais subjetivo, é possível trabalhar com posturas/atitudes. O escritor consegue observar o mundo através dos personagens, dos seus pontos de vista. No romance “A testemunha”, podemos ver a postura de Rachel no funeral de seu marido, Jacob. Rachel Lapp, sentada numa cadeira, encarando o caixão, de costas para o padre. Ouvindo atentamente e tentando se consolar no sermão. “Um funeral Amish deveria ser um tipo de celebração, outra vitória cristã. Mas Rachel tinha dificuldade de viver esse sentimento. Mesmo o falecido tendo vivido uma vida longa e feliz, como normalmente é a vida entre os Amish, aquela morte ainda era muito sombria para Rachel, e nenhum sermão poderia remediar aquilo.”

voltar ao índice

A atmosfera do funeral estava sendo vista através do ponto de vista da Rachel, dando ao leitor uma visão do interior de Rachel diante da morte. Esse pequeno parágrafo também evoca um espírito de rebeldia, já que Rachel não vê a morte da mesma forma que os Amish veem. Essa rebeldia a fará tomar algumas decisões contrárias à sua religião; como visitar a irmã em Baltimore, numa tentativa de atrasar um novo casamento. Até mesmo dançar no celeiro com John Book. Personagens têm posturas entre si, bem como em relação a uma situação, um assunto específico e até posturas direcionadas si próprios. No episódio “Mama Said” da série “Murphy Brown”, de Diane English; a mãe de Murphy chega na cidade e todos os personagens reagem a isso. Quando Murphy apresenta sua mãe à equipe, eles reagem com uma postura de surpresa. FRANK Sua mãe? Caramba, Murphy! Você tem mãe! A mãe de Murphy (Avery), tem uma postura em relação ao ex-marido. JIM Me conta, Sra. Brown. O Sr. Brown está aqui também? AVERY Não. Ele está em Chicago com uma mulher que tem metade da idade dele. Somos divorciados há 15 anos. Peguei a casa e um bocado de dinheiro. Ele pegou a cueca e o asfalto da entrada da garagem. Murphy tem uma postura sobre a visita da mãe. MURPHY Se nós duas escrevêssemos uma lista de atividades favoritas, “fazer uma visita pra outra”

voltar ao índice

ficaria perto de “comer linguiça de cérebro”. Corky tem uma opinião/postura sobre como mãe e filha devem se tratar. CORKY Mas me conta, quais são seus planos pra essa primeira noite de reencontro? AVERY ... Pensei em jantar com a Murphy... e depois voltar pro hotel. CORKY Hotel? Murphy! Você tá deixando sua mãe ficar num hotel? O bartender (Phill) tem uma postura/opinião em relação a Avery Phill Cara, que mulher linda! Ela tem umas panturrilhas bonitas. E, Avery tem uma postura sobre sua filha e sobre si mesma. AVERY Você é minha maior conquista. Mas em algum momento eu te perdi e não consegui mais recuperar. Sei que você deve estar surpresa de ver sua mãe admitindo o fracasso. Diane English diz que posturas/atitudes são a chave da graça (e do drama) de uma situação. “Sempre nos perguntamos que tipo de postura/atitude o personagem traz praquela cena. Se elas não ficarem claras, o roteiro pode ficar fraco. A graça mora nas reações cada vez mais intensas a situações que, por sua vez, vão ficando mais intensas por causa dos acontecimentos.”

voltar ao índice

“Escrevemos uma cena envolvendo Miles e Murphy. Miles precisava convencê-la a usar os advogados da FYI ao invés de lidar com o assunto diretamente. Quando escrevemos a cena pela primeira vez, ficou meio tedioso. Miles não tinha atitude. Era um simples mensageiro e isso não tinha graça. Não conseguíamos encontrar uma atitude/ postura praquela situação, então fizemos ele aparecer com um corte de cabelo novo. Ele chega em cena tentando convencê-la de usar os advogados e ela fica olhando o tempo todo pro cabelo dele. “Ele sabia que precisava convencê-la e também sabia que o cabelo estava horrível, mas tentava fingir naturalidade. Isso fez ele ganhar uma postura diante da situação e, por causa disso, nós conseguimos atingir a comédia. Ficou mais que um personagem simplesmente jogando uma informação na mesa” EXERCÍCIO: Pense nas posturas e perspectivas dos personagens do último filme que assistiu ou do último livro que leu. Você entendeu com clareza as opiniões dos personagens sobre as ideias, visões filosóficas ou situações da história? Pense em outros filmes. Você entendeu como Karen Blixen se sentia em relação aos africanos em “Entre Dois Amores”? Você entendeu a noção de justiça de James Bond? Ou a perspectiva de amor e amizade de Harry e Sally? Você entendeu o que Rhett Butler pensa sobre a guerra civil? Mesmo sem mostrar a postura dos personagens de maneira direta, a história tem o dever de insinuar isso, para que o público sinta a perspectiva do personagem. Nessa cena do filme “A Testemunha”, veja como Rachel não só carrega um valor pessoal consigo (nesse caso, sobre armas dentro de casa) mas também um valor Amish sobre violência: Rachel vai atrás de John Book, que estava mostrando uma arma para Samuel.

voltar ao índice

RACHEL John Book, enquanto estiver nessa casa, insisto que respeite nossos valores. JOHN Certo. Tome. Coloque num lugar seguro onde ele não encontre. Essa cena vem depois de uma outra entre Samuel e Eli. Na cena, Eli leva consigo os valores da comunidade: ELI A arma. Aquela arma é pra tirar uma vida humana. Você mataria um homem? (Samuel olha pra ela, sem encarar os olhos do avô. Eli se inclina e estende as mãos cerimonialmente) ELI O que você leva nas mãos, também leva no coração. (uma pausa e então Samuel é provocativo) SAMUEL Eu só mataria um homem ruim. ELI Apenas um homem ruim. Entendo. E você sabe identificar um homem ruim à primeira vista? Consegue olhar em coração dele e ver a maldade? SAMUEL Posso ver o que fazem. Tenho visto. ELI E vendo, você se tornaria um deles? E assim esse vai atras daquele e de outro e de outro...?

voltar ao índice

(Ele se interrompe, inclina a cabeça por um momento e então olha seriamente pro garoto. Coloca a palma da mão com firmeza sobre a mesa, com grande intensidade diz: ELI (contiuando) “Portanto, saí do meio deles e separai-vos, diz o Senhor!” (aponta pra arma, continuando a citação religiosa) “E não tocai em coisas impuras!” Muitos filmes partem da ideia de que vale pena lutar e morrer por certos valores. Os filmes “Silkwood”, “A síndrome da China” e “Indiana Jones” têm personagens movidos por aquilo que acreditam. Muitos filmes falam sobre personagens passando por uma crise, que precisam fazer escolhas morais, confrontar ideais e fazer escolhas. O filme “O Clube dos Cinico” mostra quatro pessoas lidando com suas identidades. “Viagem Clandestina” aborda uma crise que leva uma garota a procurar do pai. Tanto no filme “Ausência de Malícia” quanto em “Acusados” vemos um personagem aprendendo sobre integridade. Em “A Sociedade dos Poetas Mortos”, aprendemos sobre Carpe Diem “aproveite o dia” e sobre “sugar o tutano da vida”. Além desses temas, existem outras forças que movem os personagens. Podemos ver em vários filmes a busca por perdão, o desejo de reconciliação, a saudade de um amor ou de um lar. Indo de “Os Brutos Também Amam”, “Um peixe chamado Wanda” até “E.T”. Incorporar valores em personagens não significa fazêlos verbalizar o que acreditam. Pelo contrário, comunicase valores através do que os personagens fazem, através de conflito, através de posturas/atitudes.

voltar ao índice

DETALHANDO O PERSONAGEM Se você mergulha seu personagem numa vida emocional com posturas e valores específicos, ele terá profundidade. Mas existe outro passo que você pode dar para torna-lo legítimo, único: adicionar manias e detalhes externos. Comportamento (a maneira que as pessoas fazem as coisas), traça a diferença entre duas pessoas que talvez sejam semelhantes externamente. As pessoas têm características que as distinguem. Pequenos detalhes que as fazem especiais. Se eu fizesse uma lista de detalhes que notei nos meus amigos e conhecidos, ficaria assim: ■■ Uma pessoa que diz “entende?” e “claro que” em cada frase. ■■ Uma mulher de trinta anos que leva dois animais gordinhos na bolsa e presenteia as pessoas que conhece com Origamis Tsurus. ■■ Uma mulher de quarenta anos com vive num clipe de jazz. ■■ Uma mulher bem sucedida, conhecida pelos brincos exóticos (que só usa entre amigos) de bananas, flamingos, cacatuas e bumerangues. Muitos dos personagens tornam-se memoráveis por causa de detalhes assim. Murphy Brown quebra um lápis toda vez que fica estressada; Indiana Jones odeia cobras e sempre veste aquele chapéu; o apelido carinhoso do enteado de Archie Bunker é “Cabeçudo”. Detalhes podem ser ações, comportamentos, modo de falar, gestos, estilo de roupas, a maneira de rir, um jeito incomum de lidar com uma situação. Esses detalhes frequentemente vêm das imperfeições de alguém. Em “O Poder do Mito”, o autor Joseph Campbell diz: “O escritor deve ser honesto com a verdade.

voltar ao índice

E ele é um assassino, pois a única maneira de descrever verdadeiramente um ser humano é através de suas imperfeições. O ser-humano perfeito é desinteressante... As imperfeições da vida é que são apreciáveis... Perfeição é um saco, não é humano. O ponto chave, aquilo que te faz humano e não sobrenatural ou imortal... a imperfeição, se esforçar, viver... isso que é apreciável.” Podemos ver essas imperfeições humanas em filmes aclamados como “Um Peixe Chamado Wanda” (Ken é gago) “Sexo, Mentiras e Videotape” (a protagonista pensa obcessivamente nos malefícios do lixo produzido pela sociedade), e “Harry e Sally – Feitos um Para o Outro” (Harry fala sobre os detalhes peculiares que formam a personalidade da Sally.) INTERIOR FESTA DE ANO NOVO – NOITE HARRY O negócio é que eu te amo... Eu amo o jeito que você fica resfriada quando faz 40 graus. Amo você levar uma hora pra pedir um sanduíche. Amo essa ruga de expressão quando você olha pra mim como se eu fosse doido. Amo passar o dia contigo e depois ainda sentir seu perfume na minha roupa. Amo que você seja a última pessoa que eu quero falar antes de ir dormir. Não é porque é Ano Novo. Vim aqui porque quando você percebe que quer passar o resto da vida com alguém, você quer que esse “pelo resto da vida” comece o quanto antes.

EXERCÍCIO: Pense nos seus amigos e conhecidos. Quais são os pequenos detalhes que fazem deles únicos e memoráveis? Quais detalhes são cativantes? Quais são irritantes? Como você colocaria esses detalhes num personagem?

voltar ao índice

ESTUDO DE CASO: MIDNIGHT CALLER “Midnight Caller” estreou no final de 1988. O criador da série Richard DiLello, discute sobre a criação do personagem complexo Jack Killian: “Costumo começar pelo nome do personagem. Passei uns dias escrevendo uma lista de nomes. Descobri que Jack Killian tinha uns 30 anos. Queria um evento marcante no seu passado que o fez deixar a profissão de policial pra acabar virando o apresentador Ave Noturna. Pensei que matar o próprio parceiro seria o mais extremo. Tinha medo disso ser pesado demais pra audiência tolerar. Então entendi que era preciso um pouco daquele “momento sem volta”. “No piloto existem duas cenas breves que mostram ele se afundando na bebida e fugindo do mundo. Devon King aparece e o redime. É ela quem dá a chance dele “descer da cruz” que ele mesmo se pregou. “Em alguns pontos, Jack é um policial bem típico. Um peão, não tem educação formal. Vamos ser sinceros: ninguém sai de Harvard pra ser policial. Ele gosta de esportes e rock’n roll. “Ele é um leitor eclético e isso faz dele uma pessoa sensível. Ele lê ficção contemporânea (sempre achei que ele seria um grande fã de Jack Kerouac e Raymond Carver. Killian tenta encontrar sua própria filosofia de vida. Age por instinto, é impulsivo e comete muitos erros. Mas, diferente da maioria dos policiais ele não se tornou pessimista. A maioria vive o lado sombrio da profissão, deixa a própria humanidade. Mas ele se mantém vivo e preocupado com as pessoas. Talvez ele não consiga lidar com a maioria dos próprios problemas então prefira ajudar os outros. Ele não consegue ajeitar a própria vida, não consegue manter uma relação com outra pessoa, mas consegue te ajudar a encontrar alguém e te falar o que fazer. “Acho que ele sabe o quanto da vida acabou deixando pra trás e quantas oportunidades ele perdeu de conhecer alguém. Ele é mais emocional que a maior parte dos

voltar ao índice

policiais (não é estoico nem reprimido), e ele não gosta disso em si mesmo; ele preferiria ser um pouco mais frio. Mas é reativo, fica bravo com a arrogância dos outros, a hipocrisia e diante de injustiças. Fica frustrado por ter que lidar com a burocracia. Ele gosta das coisas simples: uma boa refeição, ouvir Elvis Presley, assistir jogo de futebol. Ele é tem uma vida solitária, mas gostaria que fosse diferente. O grande amor de sua vida tem AIDS e ele tem raiva do homem que, propositalmente, passou isso pra ela. Sua vida emocional ainda cresce. “Killian segue seus próprios princípios morais, seu conjunto de valores. A humanidade dele é a coisa mais importante na série. Sua postura é sempre humana, mas às vezes ele disfarça isso com toques de humor negro. Jack ajuda o público a entender aquele mundo. No fim de cada episódio, quando Jack bate o ponto, ele faz um pronunciamento do que aprendeu durante aquela hora. Sempre foi minha intenção fazê-lo heroico, mas um tipo diferente de herói. No final, sempre se mostra um homem de reflexão e ação.” APLICAÇÃO Já que grande parte da criação de um personagem vem da observação, um escritor está em treinamento constante. Pra se exercitar, estude uma pessoa no mercado, na padaria, no seu ambiente de trabalho. Faça as seguintes perguntas: ■■ Se eu tivesse que descrevê-la de forma rápida e marcante, como seria essa descrição? ■■ Quais expectativas esse personagem inspira dado o seu contexto? Consigo imaginar contradições que possam torna-lo interessante? Ao buscar pelos personagens principais da sua história, pergunte-se: ■■ Meus personagens fazem sentido? Listei um bom número de qualidades que seriam possíveis?

voltar ao índice

■■ O que torna meus personagens interessantes, fascinantes, chamativos, diferentes, imprevisíveis? Eles fazem o inesperado de vez em quando? Essas contradições acabam trazendo inconsistências com alguma das qualidades, ou elas de fato expandem meus personagens? ■■ Meus personagens estão preocupados com o quê? Esses valores são compreensíveis? Meus personagens estão tendo postura e tomando atitudes ao invés de gerar longos monólogos? ■■ Fica claro como eles se sentem? Cada personagem individual tem uma boa variedade de emoções ao invés de repetir as mesmas? ■■ Eu uso as posturas/atitudes dos meus personagens para defini-los? O processo para criar um personagem é contínuo. Mesmo quando não se está escrevendo, você precisa guardar detalhes, se inspirar na realidade. Como o diretor de publicidade Joe Sedel-maier diz: “Sempre comece na realidade. Se for pra copiar, que seja da realidade.” RESUMO Barry Morrow diz que o processo de criação de um personagem é semelhante ao processo de modelgem: “é como modelar um pedaço de argila ou talhar a madeira. Não se pode chegar na coisa refinada sem antes tirar a casca dura.” Modelar seu personagem é um processo de seis etapas: 1. Através da observação e das suas experiências vividas, você inicia a ideia do personagem. 2. As primeiras ideias gerais começam a defini-lo. 3. Você cria as coerências do personagem, para que ele tenha sentido.

voltar ao índice

4. Adiciona peculiaridades, o ilógico, o contraditório faz o personagem fascinante e chamativo. 5. Os valores e a profundidade de suas emoções valorizam o personagem 6. Adicionar pequenos detalhes externos (manias e jeito de se vestir) torna o personagem único e especial.

voltar ao índice

3 Criando a História Pregressa Quando você conhece alguém, você se interessa pelo passado dessa pessoa? Já fez algumas dessas perguntas? ■■ De onde você veio? Por que se mudou pra cá? ■■ Por que decidiu trabalhar nessa função? Quais foram seus outros empregos? ■■ Por quanto tempo você ficou casado? Onde se conheceram? Somos curiosos pelo passado, pois sabemos que existem histórias interessantes por detrás de cada decisão. Algumas podem envolver intrigas (“Ela foi forçada a sair da cidade”), ou romance (“Eles se encontraram no topo da torre Eiffel quando estudavam na França”), ou corrupção (“O político usava dinheiro público pra pagar sua casa em Bel Air”). A situação atual é o resultado de acontecimentos do passado e as decisões feitas no presente determinarão as escolhas do futuro. Toda obra de ficção foca no que chamamos de História Principal. Essa é a história que o escritor realmente quer contar. Porém, um personagem fez o que fez e é o que é por causa do seu passado. Esse passado possui traumas e crises, pessoas importantes que chegaram em sua vida, coisas boas e ruins que recebeu, sonhos e objetivos e, claro, influências culturais e sociais.

voltar ao índice

A história pregressa (do passado) oferece dois tipos de informação. 1. Eventos passados 2. Influências que afetam diretamente a construção da história. Filmes e livros como “Sybil”, “As Três Faces de Eva”, “Hamlet”, “Gente como a Gente” e “Cidadão Kane” todos têm histórias pregressas fundamentais para formar a história principal. Tanto os leitores/espectadores quanto o escritor precisa saber das histórias pregressas pra entender a história principal. Algumas informações pregressas são parte da biografia do personagem. Essas informações podem nunca chegar ao público, mas o escritor precisa dessa informação para construção do personagem. Personagens nascem na mente do escritor e recebem um conjunto específico de posturas e experiências. A história pregressa ajuda a desvendar quais dessas posturas e experiências são importantes para criar um personagem completo. QUE INFORMAÇÕES PREGRESSAS VOCÊ PRECISA SABER? Muitos atores trabalham bastante em cima da história pregressa do personagem antes de interpretar o papel. Constantin Stanislavski, um famoso ator, diretor e professor, recomenda aos atores que escrevam biografias exclusivas de seus respectivos personagens. Lajos Egri, em seu livro “The Art of Dramatic Writing”, recomenda ao escritor a mesma coisa. A biografia de um personagem pode ser: FISIOLÓGICA: Idade, gênero, postura, aparência, anomalias físicas, ascendência (hereditariedade). SOCIOLÓGICA: Classe social, Profissão, Educação, Vida Privada, Religião, Ideologia Política, Hobbies, lazer.

voltar ao índice

PSICOLÓGICA: Padrões morais e vida sexual, Ambições, Frustrações, Temperamento, Posturas na vida, Complexos, Habilidades, Q.I, Personalidade (extrovertido, introvertido, etc). Carl Sautter comenta: “Existe um perigo de fazer três páginas de biografia do personagem. Eu encorajo que os estudantes façam, mas peço para que joguem fora depois. Faça a lista mas deixe que os elementos se desenvolvam a medida que seu personagem se desenvolve. Esse personagem nasceu na sua frente de muitas maneiras diferentes. Qualquer um pode chegar com uma história pregressa de três páginas sobre um personagem, e vai surgir coisas muito úteis desse exercício. Mas não se limite a isso”. Frank Pierson (“Um dia de Cão”, “Rebeldia Indomável”, “Fantasmas da Guerra”) diz: “O que o escritor precisa saber sobre os personagens é o mesmo que o ator precisa saber para atuar nas cenas. O que importa são as memórias emocionais. Não se trata do que aconteceu com eles, mas como eles se sentiram com isso. Se você quiser fazer perguntas, não faça aquelas do tipo ‘Em qual escola estudavam?’, ‘Algum dia já trabalharam numa fábrica?’, ‘A mãe era dominadora?’... O que você deve perguntar é: ‘Qual foi seu momento mais constrangedor?’, ‘Ele já se sentiu um trouxa?’, ‘Qual foi a pior coisa que aconteceu com ela?’, ‘Ele já vomitou em público?’. Você precisa trazer essas emoções pra fora, porque são elas que o personagem vai levar para as cenas e que irão colorir tudo que ele fizer.” A história pregressa será diferente pra cada personagem. A biografia em si nem sempre te dará informações relevantes. Se você estivesse escrevendo Hamlet, não importaria saber quais brincadeiras o menino Hamlet gostava, ou quem foi seu amor de infância. Se você estivesse escrevendo “Um Violinista no Telhado” essa informação poderia ser essencial. Pra muitos escritores, o processo de criar o passado começa na criação do personagem e segue enquanto vão criado a história. A medida que escrevem, vão notando que faltam algumas informações necessárias pro personagem,

voltar ao índice

ou descobrem que os personagens estão tendo reações inesperadas diante de acontecimentos e pessoas. Talvez não saibam como o personagem reagirá em certas circunstâncias. O passado é descoberto por um processo de perguntar “Por que” e “O quê?” para seus personagens. ■■ Por que Karen Blixen foi pra África? O que aconteceu na Dinamarca (onde vivia) que a motivou a isso? ■■ Por que Alex no filme “Atração Fatal” estava tão desesperada pra se casar com Dan e ter um filho? O que a levou (aos 36 anos) ao ponto da loucura? ■■ Por que Beth no romance “Gente como a Gente” tinha tanto medo de sentimentos? O que ela fazia quando seu filho era mais novo e ela não podia controlar tudo? ■■ O que aconteceu no passado de Murphy pra ela se tornar uma alcoólatra? ■■ Por que Bruce Wayne virou o Batman? Saber a história do passado de um personagem é como conhecer o passado de um amigo. Saber do seu passado aprofunda o relacionamento. Coleman Luck descreve a história pregressa da seguinte forma: “É como descobrir quem foi seu avô. Você vai preferir se sentar e ouvir tudo a respeito ou vai fazer perguntas-chave pra descobrir a essência de quem ele foi?” Encontrar a história pregressa é um processo de descoberta. Começamos fazendo perguntas sobre o personagem. Depois voltamos e tentamos descobrir o que aconteceu no passado que possa ter influenciado as decisões e atitudes do presente. Quando Bill Kelley e Earl Wallace escreviam “A Testemunha”, Bill ficou se perguntando o motivo de John não ter uma mulher. Ele perguntou pro Earl e, juntos, tentaram construir uma resposta. “John Book era um enigma”, diz Bill. “Ele não parecia ter tido sorte no amor; então perguntei pro Earl ‘ Por que será?’ e Earl disse ‘Bem, ele não teve tempo – ele é ocupado’. E eu

voltar ao índice

disse ‘Fala sério, Eral! Eu conheço dois dos mais ocupados policiais de Los Angeles e eles tem tempo pra um romance e são casados.’ Então ele disse ‘Ele não é muito amável’, aquilo me ajudou a defini-lo pra mim mesmo. Earl fez a maior parte do trabalho sobre John Book no roteiro, mas quando comecei a escrever o romance, eu tinha que defini-lo ainda mais. Gradualmente eu fui transformando ele num tipo durão, não muito disposto ao romance, o tipo de pessoa que faz perguntas diretas e assustam as mulheres. Talvez a Rachel tenha sido a terceira mulher a entrar na sua vida, isso já contando com a irmã.” James Dearden explica a personagem Alex Forrester: “Alex teve um caso de longa data com um homem mais velho e casado. O caso terminou seis meses antes da história do filme começar. Ela pensou que ele ia se casar com ela, mas não casou. Ela estava reativa. Originalmente tinha uma cena sobre sua solidão e sobre seu caso, mas nós tiramos”. História pregressa não precisa aparecer na história do seu filme ou livro. Nos exemplos dados, o escritor precisava da informação do passado para entender o personagem, mas não era necessária no enredo. Kurt Luedtke explica: “Acho que nunca será necessário tanto trabalho na história pregressa. Nunca vi uma situação onde a história pregressa foi completamente feita antes de se escrever o roteiro. Você acha que está pronta até ver uma atitude vinda do personagem que você não faz ideia de onde veio. Às vezes uma cena parecerá rasa, talvez porque fica muito óbvio o que o personagem vai fazer. Às vezes me pergunto “E se ele não fizer essa atitude em específico que a maioria das pessoas fariam? E se, ao invés dela dizer o que você espera, ela fale o oposto? E às vezes, (uma vez em quatro) fica interessante. E isso exige que se explore mais a história pregressa.”

voltar ao índice

O QUE A HISTÓRIA PREGRESSA REVELA? A história pregressa nos ajuda a entender o motivo do personagem se comportar daquela forma. As vezes nos dá informações que nos ajudam a entender o psicológico atual do personagem. Em “Atração Fatal”, quando Alex corria com Dan no parque, Dan cai e finge ter morrido. Essa ação traz à tona uma informação do passado de Alex: ALEX Isso não se faz! DAN Desculpa. Eu só tava brincando. ALEX Meu pai morreu de infarto. Eu tinha sete anos. Aconteceu bem na minha frente. Saber esse fragmento de informação nos ajuda a entender muito da reação de Alex na situação. Como resultado da morte da figura masculina mais importante da sua vida, ela desconfia dos homens, mas ainda se sente dependente deles. O trauma (principalmente se ele morreu na frente dela) contribuiu com seu medo e insegurança. Apesar de Alex (minutos depois) negar que o pai morreu, Dan descobre que era verdade. Esse evento importante na infância responde à pergunta do motivo de Alex ter reagido daquele jeito. Na peça “Les Liaisons”, o Marquise explica como o contexto de sua vida social determinou sua postura: VALMONT Fico me perguntando como você faz pra se inventar.

voltar ao índice

MERTEUIL Não tive escolha, não é? Sou mulher. Mulheres são obrigadas a ser bem mais habilidosas que os homens... Vocês podem nos deflorar a hora que quiser. Tudo que conseguiríamos denunciando seria aumentar o prestígio de vocês. (...) Então é claro que preciso inventar, não só a mim mas também maneiras de escapar que ninguém jamais pensou, nem mesmo eu. Pois tive que ser ligeira pra saber como improvisar. E consegui, porque sempre soube que nasci pra dominar seu sexo e lavar minha própria honra... Quando cheguei na alta sociedade já sabia do papel que eu estava condenada a estar. Ficar calada e só falar quando permitida me deu a oportunidade perfeita para prestar atenção: Não no que me falavam, o que naturalmente era desinteressante, mas tudo que eles pudessem estar escondendo. Eu treinei a indiferença... Ensinei os moralistas mais rigorosos a fazer pose; filósofos a encontrar no que pensar, e romancistas a ver o que eu poderia fazer passar desapercebido. E finalmente estava bem acomodada para aperfeiçoar minhas técnicas. No romance “Gente como a Gente” de Judith Guest, nós recebemos uma dica sobre essa necessidade de controle da Beth através do seu passado (história pregressa). Isso nos ajuda a entender a dificuldade dela em lidar com a morte trágica do filho. A informação vem através do ponto de vista de Calvin: “Calvin lembrava da época em que Beth se sentia presa. Jordan tinha dois anos e Connie engatinhava. Os dois fazendo bagunça naquele apartamento minúsculo. ‘Aqueles primeiros cinco anos foram bem nebulosos!’ Ele a ouvia dizer isso alegremente nas festas. Mas ele se lembrava com clareza daqueles anos, lembrava da cena: a figura da mãe tensa, limpando com raiva as marcas de dedos nas paredes.

voltar ao índice

Beth caia em pranto subitamente quando via um brinquedo fora do lugar, ou porque atiravam uma colher de comida no chão. Ele não se sentia melhor por agora ficar nervoso com ela. Já havia feito isso. Gritou com ela por ter esquecido do dia da limpeza. Ela ficou furiosa, o insultou e se jogou na cama, histérica. Tudo tinha que ser perfeito, não importasse as consequências disso contra ela, contra qualquer um; não importava a profunda falta de sentido daquele tipo de perfeição”. O passado pode dizer o motivo de um personagem ter medo de amar (talvez uma ferida emocional), ou porque se tornou uma pessoa desiludida (talvez pela morte de um ente querido). Pode dar dicas sobre os motivos, posturas e reações do personagem. Influências específicas criam personagens únicos no presente. QUANTA INFORMAÇÃO DO PASSADO VOCÊ PRECISA? Muitos escritores cometem o erro de incluir muita informação do passado. Usando flashbacks, narração, sonhos, eles sobrecarregam o roteiro com o passado ao invés de focar no presente. Aquilo que é dramático está no presente, no agora. Aquilo que está no passado nunca será tão dramático, mesmo que impacte o comportamento presente. Carl Sautter diz, “O que precisamos ver é como o personagem reage no agora, e se você como escritor sabe o motivo dele reagir assim; se for por algum evento do passado, tudo bem. Mas você não precisa explicar isso pro público.” Falar pro público tudo do passado do personagem pode atrapalhar o que realmente importa: As revelações do personagem no presente. Não é preciso falar muito sobre seu passado. Personagens que normalmente fazem isso tendem a ser maçantes e sem dinâmica. Monólogos longos, flashbacks e exposições que entregam muita informação do passado podem ser fatais, empurrando a história pro passado ao invés de leva-la pro futuro.

voltar ao índice

Lembra da metáfora do iceberg? 90% do passado do personagem não precisa constar no roteiro, mas precisa ser conhecido pelo escritor. O público só precisa saber o necessário pra entender o que motiva o personagem e também para ter uma sensação de que algo do passado influencia no seu comportamento no presente. Quanto mais rica a história pregressa (do passado), mais rico será o personagem. Geralmente a história pregressa funciona melhor quando vem aos poucos, em pequenos pedaços de diálogos. Assim como no exemplo acima, a incorporação da história pregressa precisa ser sutil, concisa, e trabalhar cuidadosamente para iluminar e expandir a história presente. HISTÓRIA PREGRESSA NOS ROMANCES Ela funciona de forma parecida, apesar de ser possível incorporá-la de diferentes maneiras. Fazendo a pesquisa pra esse livro, levei quatro romancistas de Santa Bárbara para almoçar e conversamos sobre maneiras de trabalhar com história pregressa nos romances. Já que eles também são professores de escrita, podem dar dicas específicas para novatos e escritores veteranos. Leonardo Tourney: “Os romances do século XIX quase sempre colocavam a história pregressa primeiro. Começavam com a infância do personagem. Tinham todo o tempo do mundo pra explorar o personagem, é por isso que os romances eram tão longos. É difícil encontrar um romance contemporâneo que seja assim. Eles são carregados da história central e funcionam como um filme: a história começa antes dos créditos iniciais. O romance contemporâneo é cinematográfico.” Dennis Lynds, autor de “Castrata” e “Why Girls Ride Sideseaddle”, que escreve com o pseudônimo de Michael Collins afirma: “O que importa é a história que você está contando. A história pregressa tem que se adaptar a história central. Enquanto vou escrevendo , sei como foi o passado

voltar ao índice

do personagem, mas se algo acontecer no presente eu direi “Tenho que mudar o passado. Às vezes quando falamos de história pregressa, nós agimos como se ela de fato existisse. Mas ela foi inventada, saiu da nossa imaginação. Como escritores, nós simplesmente colocamos as coisas no papel e as manipulamos. É como modelar argila para dar textura e camadas ao personagem. Nós moldamos isso. Não será dramático até que seja necessário, será importante no momento certo (nem antes e nem depois).” Sheley Lowenkopf, escritora de mistérios e suspenses como “City of Hope” e “love of the Lion” comenta: “Depois que você descobre como os personagens são e o que querem, é preciso decidir como é a relação uns com os outros; só então você pode começar a trabalhar na história pregressa. Ela precisa entrar pela porta dos fundos. Quando trabalho com história pregressa vou preenchendo o passado dos personagens a medida que avanço na história central. Informação pregressa não é importante até que você precise dela! É pertinente entender que algo aconteceu anteriormente, que alguns acontecimentos do passado explicam os motivos do presente; mas não se faz isso de forma cronológica.” Gayle Stone relata “Quando começamos a escrever, pode ser bem confuso pois há muito pra se descobrir. Você pode se sentir frequentemente sem controle da história, desiludido. Por isso você deve saber o máximo possível do passado do personagem, pois esse conhecimento será a muleta psicológica que te dará segurança. À medida que você se torna mais experiente, não será preciso saber tanto. Como um escritor em desenvolvimento, você precisa saber algumas coisas sobre o personagem antes de começar, mas só se descobre um personagem jogando ele (ou ela) nas situações. Eu não quero saber do meu personagem antes de começar, pois eu preciso dessa faísca, esse elemento surpresa que aparece no processo.”

voltar ao índice

HISTÓRIA PREGRESSA EM SÉRIES Algumas séries de televisão “Dear John”, “Ilha dos Birutas”, “O Fugitivo”, “The Beverly Hillbillies”, entre outras, começam com um tipo de sequência pregressa, já que o público precisa saber do que houve no passado pra entender a situação; Outras séries olham pra história pregressa para ter ideias para a narrativa e desenvolvimento dos personagens. Em alguns episódios, uma pessoa do passado é o foco da história. Assim como nos filmes, algumas vezes o personagem reage de maneira peculiar, como resultado de alguma experiência passada. Quanto mais informação do seu passado houver, mais potencial haverá para criar um personagem mais complexo que pode instigar o interesse do público (semana após semana). Coleman Luck fala do motivo de Robert McCall, da série The Equalizer, ser um personagem tão complexo: “Quando se cria um personagem pra série, você precisa criar alguém que tenha o potencial para encontrar algo novo com frequência. Robert McCall foi da CIA. Ele foi um agente de alto escalão ao redor do mundo. Ele saiu desse posto e está totalmente desiludido agora, está revoltado. Esses fatos criam todo um cenário de motivos e esses motivos precisam ser explicados pelo roteirista. Isso forma uma trilha pro roteirista desvendar a série”. Esses “motivos” foram explorados com profundidade na série através de um personagem que fez parte do passado de McCall. Control, o arqui-inimigo de McCall, dá oportunidades pra explorar a complexidade do personagem: “McCall e Control tem um relacionamento multifacetado. Quando temos um personagem profundo e multifacetado como McCall, fica incrível trazer esses detalhes à tona através de outro personagem que revive todo um mundo de experiências passadas dos dois. Eles se conheciam de longa data, então você pode explorar a raiva,

voltar ao índice

o cuidado carinhoso e todos os muitos sentimentos que criam conflitos e relacionamento. “ Em “Moonlighting”, os roteiristas mergulham na parte desconhecida do passado de David para expandir mais profundamente o personagem. Carl Sautter explica: “Numa temporada nós descobrimos que David foi casado. Era uma descoberta coerente e que foi útil pra construir um episódio em específico. Muito da história pregressa se desdobrou enquanto trabalhávamos na história central. Essa informação surgiu como uma ideia interessante de história. Ficamos surpresos por descobrir que ele tinha uma ex-mulher. Nas nossas conversas descobrimos que foi um término muito doloroso, por isso David lidava com o fato fingindo que ela não existia. Ter uma ex-esposa “repentina” se tornou uma história incrível sobre o David; com um bom motivo de não termos ouvido falar dela antes.” QUAIS SITUAÇÕES PRECISAM DE INFORMAÇÃO PREGRESSA DO PERSONAGEM? Apesar de não ser preciso saber tudo sobre o passado do personagem, existem certas situações que é preciso incorporar algumas informações pregressas. Se o personagem está passando por grandes mudanças no presente, normalmente será preciso alguma informação do passado pra ajudar a esclarecer essas ações e decisões. Em muitos filmes de Charles Bronson, a história pregressa explica o motivo do personagem buscar vingança, normalmente por causa de algum crime no passado que não foi resolvido pelas autoridades competentes. Em muitos dos filmes de Sylvester Stallone ou Chuck Norris, história pregressa explica o motivo desses homens estarem arriscando suas vidas numa missão específica. Em filmes como “Karate Kid” e “O Romance de Murphy”, aprendemos através da informação pregressa o motivo dos personagens decidirem se mudar. No episódio piloto da série “The Equalizer”, a história pregressa explica porque Robert McCall decide mudar de emprego.

voltar ao índice

Mudanças de vida não vêm do nada, são motivadas por certas situações do passado. Se um personagem faz algo incomum, incrível, ou que pareça fora do seu perfil; a história pregressa pode explicar esse comportamento. Se uma dona de casa subitamente, sem explicação, decide passar os próximos meses resolvendo um crime, é melhor ter alguma explicação no passado dessa personagem que esclareça não só motivo dela estar fazendo isso, mas como ela se acha capaz de solucionar um crime que sequer a polícia está conseguindo. É claro que você pode mostrar o crime na história principal, e mostrar o marido ou filhos como vítimas, estabelecendo assim, um motivo pessoal do seu envolvimento. Mas você também pode inserir na história pregressa que ela foi uma estudante de direito; ou que ela é uma fã de longa data de histórias de detetives, ou que ela é um membro da Anistia Internacional e tem um senso forte de justiça, ou talvez seu pai tenha sido um policial, ou a mãe tenha sido uma vítima de um crime que nunca foi resolvido. Todas essas informações pregressas podem ajudar a explicar um comportamento que não seria típico daquele personagem. Um detetive que investiga um crime, precisa de pouca informação pregressa pra justificar tal coisa. Uma dona de casa precisaria de bem mais informação que motivasse e explicasse essa tomada de decisão. EXERCÍCIO: Tente criar um personagem que, no começo da história, decide fazer uma jornada para a Índia em busca de um artefato raro hindu. Que informações você gostaria de saber sobre o passado desse personagem? Que informações o público precisaria saber? O que você precisaria saber sobre a motivação? Foram interesses de profissão ou espiritual? Ele detém habilidades especiais ou talento inato? Ele passou por alguma situação especial, como uma crise, uma competição ou uma missão? Por que esse personagem fez essa jornada logo agora? Como a informação pregressa mudaria se a história se passasse em 1920 ou 1820?

voltar ao índice

ESTUDO DE CASO “Murphy Brown” série lançada em 14 de novembro de 1988. As primeiras palavras ouvidas sobre Murphy Brown no episódio piloto foram todas sobre seu passado (a história pregressa). Descobrimos que Murphy está voltando de uma internação no Betty Ford Center. Numa entrevista recente, Diane English explicou sua intenção com essa informação do passado: “Murphy ter ficado no Betty Ford Center, somando o fato dela ter uma personalidade de uma viciada explica muito sobre ela. Significa que ela será compulsiva, até mesmo rabugenta às vezes. Ao conhece-la no dia que voltou do Betty Ford Center, nós a vemos como uma interrogada que está sendo testada, sem nada que pudesse se apoiar. Era disso que se tratava o episódio piloto: a personagem estar sendo testada e tentando redefinir a si mesma”. Então a primeira informação sobre Murphy remete imediatamente ao seu passado (a história pregressa). Essa informação ambienta a situação, mas também ajuda a expandir a personagem. “Nesse primeiro episódio, descobrimos que ela era muito bem-sucedida. Antes mesmo que ela entrasse na sala, eu queria dar um pouco de informação pregressa sem que essa informação saísse diretamente dela. Então ouvimos alguns personagens falando sobre ela: certa vez deixou Warren Beatty mofando; é uma ex-fumante e não bebia mais. Eu queria causar a impressão de uma pessoa extremamente famosa, mas que não aceitasse conselho de ninguém, uma pedra no sapato de muita gente, mas uma pessoa querida. Isso mostrava que ela era um personagem que simpatizaríamos e torceríamos por ela. “No piloto descobrimos que ela é filha única, que não sabia compartilhar, que se garantia. Sentíamos que precisávamos criar algo sobre os pais dela, já que todos estávamos ansiosos por saber de onde essa pessoa veio. Quando apresentamos a mãe dela, aquilo falou tanto sobre Murphy e de onde veio aquele jeito dela. Sua mãe era um personagem muito mais cheio de vida que ela. Murphy

voltar ao índice

se sentia tão pequena e antiquada perto da mãe. E o mais importante: ela nunca disse “eu te amo” pra mãe depois de adulta. Esse era o cerne da história. “Certo episódio trouxemos de volta seu ex-marido, ela foi casada com ele por cinco dias. Isso ajudou a revelar mais sobre a vida de Murphy nos anos sessenta, quando conheceu esse cara e ambos eram radicais, impulsivos. Se casaram e em cinco dias estava tudo acabado. Desde então, nunca mais apareceu esse tipo de pessoa na vida dela, e só a possibilidade de talvez vê-lo depois de vinte anos já a deixava completamente zonza. Aquela situação provocou todo tipo de pergunta em Murphy: Ainda sou atraente? Ele ainda é atraente? O que ele vai pensar da minha vida presente? Eu me corrompi com o tempo?” Em certo episódio, uma sequência em flashback mostra Murphy conseguindo seu emprego: “Esse episódio se passa em 1977 quando ela e Frank faziam um teste para a FYI. Podíamos vê-la no limite emocional – estava fumando, bebendo e com o cabelo bagunçado. Estava com um chapéu da Annie Hall e tênis. Dizia que não queria realmente o emprego e se recusava a fazer as coisas do jeito apropriado”. Mas a história pregressa é útil não apenas para o protagonista. Em “Murphy Brown”, a história pregressa é também usada pra expandir outros personagens: “Acho que gostaríamos de ver mais sobre Jim Dial (como era seu casamento, se tinha filhos, como é sua vida fora do escritório, e como ele é quando deixa o cabelo solto). O mesmo pro Corky. Suas raízes sulistas (queríamos saber mais sobre isso). Gostaríamos de saber mais do passado de Miles. Como ele conseguiu aquele emprego aos 25 anos? De que tipo de família ele veio? Essa família tinha orgulho daquela conquista ou não? Ele tinha irmãos? Pensamos em trazer um irmão em algum episódio, que fosse um ano mais velho que Miles e que começasse a sair com Murphy. “Nós também queremos conhecer o pai de Murphy. Ele é divorciado da mãe e se casou com uma mulher bem

voltar ao índice

mais nova; agora tem um bebê de oito meses de idade. Esperamos que tenha um episódio que eles visitem um ao outro. Já que Murphy era filha única, isso traria uma dinâmica interessante. Ela agora tem um meio-irmão, e a esposa de seu pai provavelmente tem a mesma idade que ela ou é mais nova. “Acho que a melhor forma de delimitar personagens é colocando eles em situações que os forcem a abrir novas dinâmicas emocionais ou sociais. Não se deve colocar um personagem no palco e deixar que ele decida tudo sozinho, isso seria uma simples externalização. Um jeito mais interessante de desenvolver personagens é criar situações que forcem o personagem a reagir àquilo, observar as reações de um personagem é a melhor forma de conhecelo.” No caso de “Murphy Brown”, a história pregressa (a história do seu passado) ajudou a definir e expandir a protagonista, mas também ajudou a criar relações entre os personagens. APLICAÇÃO Faça as seguintes perguntas enquanto desenvolve a história pregressa do seu personagem: ■■ Meu trabalho com a história pregressa é um processo de descoberta? Estou tomando o cuidado de deixar a história pregressa aberta ao invés de impor fatos que não são relevantes pra história? ■■ Quando uso informações pregressas na história central, estou tendo cuidado de contar apenas o necessário, o que é de fato relevante? Estou mesclando essas informações com camadas de história central, pra não ficar cansativo? ■■ Estou contando a história pregressa da maneira mais curta e concisa possível? Estou tentando resumir a informação que importa numa frase só? Ela deve revelar algo importante em termos de motivação, postura, atitudes, emoções e decisões.

voltar ao índice

RESUMO Criar o passado de um personagem é um processo de descoberta. O escritor precisa ir e vir nesse constantemente: fazer perguntas sobre o passado para compreender melhor o presente. O processo segue enquanto se escreve a história central. A história pregressa enriquece e aprofunda continuamente o personagem. É a chave para criar um personagem consistente/crível.

voltar ao índice

4 Entendendo o Psicológico do Personagem Não é preciso um psicólogo pra entender o que influenciou seu personagem a fazer algo. Judith Guest é uma romancista conhecida pela perspicácia psicológica, mesmo tendo pouca base técnica na psicologia: “Minha conhecimento formal em psicologia é mínimo. Fiz um curso na faculdade sobre desvios sexuais e, como resultado, fiquei fascinada pelo comportamento humano. Queria observá-lo de todas as formas possíveis e encontrar o motivo das pessoas fazerem o que fazem e o que pode estimular esse ou aquele comportamento”. Da mesma forma que construímos personagens com características externas (aparência física e comportamento prático), é igualmente importante que o escritor compreenda o uninverso interno do personagem, o seu psicológico. Um escritor precisa entender como as pessoas funcionam, entender por que fazem o que fazem, desejam o que desejam. “Metade da escrita é psicologia”, Barry Morrow afirma. “Existe um cerne coerente. As pessoas não agem por mera aleatoriedade. Para criar um comportamento humano consistente, é preciso saber o que as pessoas fariam na maior parte das situações. As pessoas não agem sem motivo. Toda ação tem uma motivação e intenção.”

voltar ao índice

Quando se pensa sobre o lado psicológico de um personagem, normalmente já se pensa em personalidades anormais do tipo “Sybil”, “As três faces de Eva”, “David e Lisa”, “Nunca te prometi um jardim de rosas”, “Rain man”. Mas os motivos ocultos e forças inconscientes são importantes pra qualquer personagem que você venha a criar. Vamos ver mais de perto os personagens de “Rain Man” pra entender como o psicológico do personagem pode ser construído: Charles Babbitt e Raymond Babbitt. Mesmo Raymond sendo o personagem que exige mais pesquisa específica, entender o psicológico de Charlie é igualmente importante, já que ele era a força motriz da história. No decorrer desse capítulo, ouviremos os roteiristas Barry Morrow (que criou a história) e Ron Bass (que fez a reescrita). “Quando Steven Spielberg entrou no projeto (ele era um dos diretores cotados pro filme antes de Barry Levinson), nós tratamos Charlie como tendo uma personalidade análoga a um autista”, relata Ron Bass. “Nós buscávamos um filme sobre dois irmãos autistas, um que tinha o diagnóstico clínico e o outro que tinha um nível de autismo considerado dentro da normalidade. A história geral de Rain Man gira em torno da dificuldade de criar conexões humanas, ao mesmo tempo que mostra como elas são necessárias. Costumamos falar que podemos viver sem isso, que estaríamos melhor sem isso, que estamos mais seguros atrás das nossas defesas, mas estamos enganados.” Podemos entender melhor o psicológico de Charlie e Raymond olhando pra quatro áreas psicológicas chave: O passado emocional, o inconsciente, qual é o arquétipo do personagem, e o psicológico anormal. Essas são as coisas mais importantes na criação de qualquer tipo de personagem. Talvez você já esteja familiarizado com a maior parte do conteúdo apresentado nesse capítulo, seja por intuição

voltar ao índice

ou por estudar psicologia. Entender essas categorias é importante, mas também é essencial lembrar-se que personagens não são apenas seus psicológicos. Eles são construídos pela criatividade e pelo rigor clínico. Estar familiarizado com essas áreas da psicologia pode jogar uma luz no personagem. Pode te ajudar a resolver problemas no personagem, dar dimensão, responder perguntas “Meu personagem faria isso? Diria aquilo? Reagiria assim?” COMO O PASSADO PSICOLÓGICO DEFINE O PERSONAGEM No capítulo 3 olhamos algumas circunstâncias externas que influenciam o personagem, incluindo eventos passados; a maneira que internalizam esses eventos (às vezes reprimindo ou ressignificando eles, dependendo do efeito positivo ou negativo que essas coisas tiveram em sua vida). Todos esses elementos devem ser analisados. Normalmente não é um acontecimento concreto que determina a configuração psicológica de um personagem; mas como ele reagirá a essa situação. Freud descobriu a grande influência que eventos do passado têm sobre a vida presente. Eles moldam nossas posturas, ações, e até mesmo nossos medos. Para Freud, os eventos traumáticos do passado são a causa de complexos e neuroses do presente. Quando esses acontecimentos são reprimidos, surgem os comportamentos mais anormais. Carl Jung descobriu que as influências do passado podem ser uma fonte positiva de saúde mental, ao invés de sementes de doenças mentais. Algumas vezes nós recuperamos nossa saúde mental quando redescobrimos os valores da nossa infância. Muitos escritores usam seus entendimentos sobre as influências da infância como suporte para criar seus personagens. Coleman Luck relata: “Na época que eu ensinava a escrever roteiros só existia uma área da psicologia que era importante pra mim: entender a criança

voltar ao índice

interior. Se existe uma coisa mais importante que qualquer outra é entender que dentro de todo adulto existe uma criança interior do seu passado. E se você conseguir entender essa criança, você pode criar os eventos críticos que ela vivenciou e que influenciaram seu personagem a ser quem é”. Em seus estudos sobre a infância, o psicanalista Erik Erikson encontrou pontos importantes que as pessoas precisam confrontar em certa idade para se tornarem indivíduos saudáveis, completos e bem ajustados. Enquanto essas questões não forem resolvidas, elas continuarão exercendo controle sobre o desenvolvimento dessas pessoas, algumas vezes de forma prejudicial. Uma das primeiras questões que a criança enfrenta é a confiança. Um bebê precisa se sentir seguro no mundo, e isso começa confiando nos pais. Se a confiança for frágil, a criança seguirá pela vida sem confiar nos outros. Em “Rain Man”, vemos eventos positivos e negativos do passado de Charlie. Ron Bass conta sobre essas primeiras influências que mudaram a capacidade de Charlie em confiar: “Quando tinha dois anos, Charlie vivia na casa onde o pai (um homem de negócios de sucesso e muito atarefado) não dava atenção a ele. Porém isso não impactou tanto Charlie, já que ele tinha uma mãe carinhosa e cuidadosa, além do Rain Man, esse irmão que tinha dezesseis ou dezoito anos, que vivia em casa, sem nunca sair, que adorava o irmão, cuidava dele e o ninava. “Mas, subitamente sua mãe morreu, algo que já seria muito traumático pra qualquer criança de dois anos, mas foi pior especialmente para aquele menino que não tinha um pai carinhoso. Foi somado ao evento, a despedida de seu amigo: “Tchau-tchau, Rain Man, Tchau-tchau, Rain Man”. Temos aqui uma criança que teve todo seu suporte emocional retirado bruscamente aos dois anos de idade”.

voltar ao índice

Charlie se lembrava de pouca coisa do seu amigo especial “Rain Man”. Já adulto, quando voltar do funeral do pai, ele lembra-se subitamente do amigo especial. Fala para Susan CHARLIE Eu tive um flash na minha memória. Sabe quando você é criança... Você tem esse tipo de... amigos imaginários? Sabe, o meu tinha nome... Como era mesmo? Rain Man. Isso. O Rain Man. Se eu ficasse com medo de qualquer coisa, era só eu me enrolar com o lençol que o Rain Man cantaria pra mim... Cantava por uma hora inteira. Agora pensando nisso, eu devo ter ficado com medo frequentemente. Caramba, faz bastante tempo. SUZAN Quando ele desapareceu? Seu amigo. CHARLIE Não sei, eu acho que só cresci... Se a criança não encontrar um lugar seguro ainda pequena, essa questão permanecerá em outros relacionamentos de vida. Caso aconteça alguma instabilidade na vida adulta dessa pessoa, a questão da insegurança pode ressurgir. Anna Hamilton Phelean, enquanto escrevia “A Montanha dos Gorilas”, viu que era preciso entender mais sobre transtornos compulsivos, já que muitos comportamentos de Dian Fossey pareciam compulsivos. Ela falou com um psicólogo que perguntou “Onde ela estava quando tinha onze anos de idade? O que ela fazia nessa época?” Quando Anna pesquisou mais a fundo a vida de Dian, descobriu que a mãe da menina havia se casado novamente naquela época; e que esse casamento mudou sua capacidade de confiar no seu núcleo familiar. “Dian foi deixada sozinha quando tinha onze anos. Acho que foi a primeira vez que ela foi rejeitada e teve que ficar sozinha. Comer sozinha na cozinha. Acho que de algum modo ela era constrangida a ficar mais no quarto, pra se manter

voltar ao índice

distante da mãe e do padrasto. Ela aprendeu a ficar sozinha. Aprendeu a desconfiar de seres humanos. Aprendeu a se sentir mais confortável com animais. Ela ficou receosa de seres humanos até o dia de sua morte”. Se não houver segurança, amor e confiança na primeira infância; a criança se sentirá sem apoio, acabará tendo pouca autoconfiança. Numa família, a crítica pode acabar substituindo o carinho. Quando a criança começa a ir pra escola, é possível que use essa crítica contra si mesma, tornando-se rígida, controladora, obcecada em seguir regras, ou se torne competitiva, numa tentativa de se sentir boa o suficiente. Essa raiva pode ser introspectiva (“Não sou boa o suficiente”) ou externalizada (“eu te odeio”). A falta de autoestima ou autoconfiança afetará a identidade. Se a criança é criticada constantemente, ela terá a tendência de ser o que os pais querem que ela seja e não aquilo que ela realmente poderia ser. A questão da identidade se torna mais grave especialmente no ensino médio, quando os adolescentes se preparam para entrar na fase adulta e tomar decisões como adultos. Muitos filmes adolescentes focam nessa questão da identidade. “Negócios Arriscados, “Karate Kid”, “Clube dos Cinco”, “A Garota de Rosa Shocking”, todos lidam com jovens que tentam descobrir suas próprias ideias e opiniões, geralmente em contraste com valores e ideias dos pais ou da sociedade convencional/conservadora. Erikson diz que crianças com um passado sadio são mais propensas a se tornarem independentes. Enquanto as demais serão crianças (e mais tarde adultos) com menos liberdade de tomar decisões por medo de serem criticadas ou rejeitadas. Em “Rain Man”, a questão central foi a busca de Charlie pelo afeto do pai. Durante seus primeiros anos de vida, Charlie foi muito controlado, tentando agradar o pai para ganhar seu amor. Ron Bass explica: “A resposta do pai em relação à criança autista foi afastá-la e trata-la como um tipo de aberração

voltar ao índice

que não merecia um tratamento normal. Porém ele tratava seu outro filho quase da mesma forma. Nada que Charlie fizesse era bom o suficiente. Charlie não conseguia ser perfeito. O pai tinha um filho que era imperfeito, autista, então o segundo teria que ser perfeito e preencher sua vida (mas esse segundo filho não era perfeito). É verdade que o filho era incrível: tinha boas notas, era bonito, mas não era bom o suficiente. Nada que ele pudesse fazer seria bom o suficiente, pois o pai sentia que o mundo estava devendo algum tipo de perfeição para ele. “Não acho que Charlie tenha sido um rebelde na juventude. Ele sentia tanta necessidade do amor e afeto do pai, que quanto menos amor paterno recebia, mais buscava por isso. Acho que Charlie passou a infância se esforçando pra ser perfeito e nada era bom o suficiente pro seu pai.” Quando Charlie tinha dezesseis, ele teve um momento de rebeldia: pra testar se o pai ainda o amaria, mesmo se ele fosse “mau”. Charlie falou desse momento com a namorada, Susan. CHARLIE Te contar uma história, só uma. Sabe aquele conversível ali fora? Era o xodó dele. Aquilo e a porcaria das rosas. O carro tava fora dos meus limites. ‘É um clássico’, ele diria. ‘Impõe respeito. Não é pra criança.’ Eu tava no segundo colegial, tinha dezesseis. E uma vez cheguei com o boletim cheio de A... Fui até meu pai. ‘Posso sair com meus amigos no Buick?’ Tipo um passeio do campeão. Ele disse não. Mas fui mesmo assim. Roubei as chaves. Saí na surdina. SUSAN Por que logo naquela ocasião? CHARLIE Porque eu merecia. Fiz algo incrível. Ele mesmo disse, mas não era homem suficiente pra fazer o certo. Então fomos pela via Lakeshore Drive. Quatro jovens sarados. A polícia nos pegou. Ele

voltar ao índice

fez uma denúncia de roubo. O próprio filho não pegou o carro sem permissão... simplesmente roubou. (beat) Prisão de Cook County. Os pais dos outros caras tiraram eles de lá em uma hora. Ele me deixou lá por duas... noites. Bêbados vomitando. Malucos em volte de mim. Um cara tentou me estuprar duas vezes. Foi a única vez na minha vida que eu tava apavorado. Cagando nas calças, sem ar, com o coração na mão. Um cara me apunhalou nas costas, essa foi a... SUZAN ...cicatriz. No seu ombro. CHARLIE Saí de casa e nunca voltei. Esse acontecimento fez Charlie entender que seu pai nunca o amou. Ron explica, “Ele desafia seu pai e faz uma quebra muito clara na própria vida. É um momento crucial de sua vida: aos dezesseis anos se afasta pra sempre do pai. E, fazendo isso, ele desiste de todas as coisas que tanto se esforçou pra alcançar (a faculdade, por exemplo). Charlie é um cara brilhante, poderia ser um executivo promissor em algum lugar, mas se rebelou contra o pai e se vingou negando o sucesso que o pai tanto queria dele. No processo de rebeldia contra o pai, ele destruiu a própria vida. “O que dizer pra si quando se é brilhante e se deseja as coisas mais refinadas da vida? Seu pai é um milionário bem sucedido, e você passa dezesseis anos buscando por isso. Não é que você estivesse sempre querendo se rebelar contra isso. O tempo todo você estava querendo alcançar isso e fazer seu pai ficar orgulhoso de você. Então o que dizer

voltar ao índice

quando você desiste de tudo? Não dá pra falar que você tá se destruindo pra atingir seu pai, seria aburdo demais pras pessoas. Ao invés disso você diz: ‘Meu pai era um babaca, e tudo que eu queria da vida eram coisas superficiais, materialistas, falsas... quem precisa desse caminho robotizado de sucesso? Estou melhor do que meu pai já esteve, vou viver melhor e com menos custos. Vou sair por aí contando só comigo mesmo. Eu posso fazer isso.’ “E foi isso que ele fez e se tornou um vendedor de carros. Ele era esperto, e seus negócios atuais provavelmente vinham de uma lista de várias outras tentativas. Ele não está indo bem e também não está falindo pois, apesar de não fazer as coisas da forma ideal, ele é muito esperto e consegue algum êxito. Ele é um cara que quer falhar. Lá no fundo sempre acreditou que seu pai tinha razão. Por mais que ele odiasse seu pai na superfície, ele sabia em algum lugar lá dentro que seu pai tinha razão, e quando seu pai dizia que ele era um perdedor, ele precisava ser um perdedor”. Essa falta de confiança na infância impediu que Charlie fosse capaz de amar na fase adulta. Erikson diz que a fase adulta é o momento de resolver conflitos entre ter intimidade e se isolar. Para aprender a relacioná-los de forma a criar amizades, matrimônios e alianças. Se essas questões não forem resolvidas (problemas de desconfiança, dúvida, culpa) elas podem vir à tona num relacionamento, minando o potencial de ser íntimo. “Charlie está num relacionamento sem compromisso com Susan”, Ron Bass explica “com alguém que ele não precisa se preocupar em magoar pois ela pode cuidar de si. Ela não pede pra ele se casar com ela. Ela é legal, e ambos seriam capazes de deixar um ao outro. Isso é um relacionamento que não exige nada comprometedor. Ele é sorridente, charmoso. Ele a convence que realmente se importa com ela e é isso que importa pra ela. Se fosse um tempo atrás (antes do incidente com Raymond) ele poderia perfeitamente perdê-la sem sentir falta. Foi a mudança que ocorreu enquanto viajava pela estrada com o irmão que

voltar ao índice

o fez perceber a mulher incrível que perdeu e o quanto gostaria de reatar com ela. Ele liga, e isso a desarma pois nunca tinha visto ele daquele jeito”. A transformação de Charlie o ajudou a se reconectar com uma influência positiva do seu passado: seu irmão. Uma das surpresas do filme, foi Charlie descobrir que Raymon era seu amigo imaginário (Rain Man), que havia um elo emocional sadio entre eles. Na verdade, a história é sobre essa transformação. Ron explica “Você leva uma esperança ao sair do cinema. A esperança de que Charlie será capaz de amar Susan, as pessoas e ter um filho e aproveitar um mundo de pessoas carinhosas por causa do que aprendeu na sua jornada com seu irmão”. Se esses problemas não fossem resolvidos em Charlie, ele acabaria em outra crise que Erik Erikson chama de “generatividade vs. Estagnação”. Ela ocorre quando alguém não viveu aquilo que ama fazer. Às vezes isso se torna a crise de meia idade, onde as pessoas tem que encarar o rumo que deram para suas vidas e o que conquistaram. Quando alguém chega nos quarenta pra cima, existe outra crise: “integridade vs. Desespero”. Essa crise não tem a ver só com conquistas e contribuições profissionais, mas sobre significado e valor do que fez. Nesse ponto, as pessoas questinam se suas vidas tiveram algum valor, alguma profundidade. As consequências de não resolverem essas questões podem leva-las ao desespero, alcoolismo, depressão e até suicídio. “O Veredito”, “Uma Cilada Para Roger Rabbit”, apesar da grande diferença de gênero, ambos os filmes são sobre resolver questões do passado, confrontar uma crise no presente, e aprender a ser uma pessoa mais envolvida, e carinhosa. EXERCÍCIO: Imagine-se criando uma história sobre um futuro de Charlie Babbitt. Como ele seria na crise de meia idade, com uns quarenta anos ainda falhando por sentir

voltar ao índice

inconscientemente que seu pai estava certo sobre não ser bem-sucedido? O que Charlie faria pra compensar? Como Charlie seria aos sessenta, tentando achar significado na vida enquanto ainda é controlado pela figura do pai? Como ele expressaria seu desespero? Como ele seria se tivesse resolvido sua crise da meia idade? Como você acha que seria sua relação com o irmão se o filme continuasse? COMO O INCONSCIENTE AFETA O PERSONAGEM? Muitos psicólogos acreditam que nosso consciente é só 10% da nossa psiquê. O que nos move e nos motiva vem mais do inconsciente, que consiste em sentimentos, memórias, experiências, e impressões que foram impressas em nossas mentes desde o nascimento. Esses elementos, normalmente reprimidos por causa das associações negativas, guiam nosso comportamento, nos fazendo agir de maneiras que talvez contrariem nossas crenças conscientes ou o entendimento que temos de nós mesmos, podem até mesmo contradizer nossa identidade. Todos nós já ouvimos pessoas falando como enxergam a si mesmas. Na medida que vamos ouvindo, sentimos que a imagem que têm de si mesmas é um pouco diferente da que temos sobre elas. Uma mulher talvez diga que é uma pessoa aberta, quando na verdade ela é defensiva, fechada, relutante. Um homem pode parecer gentil, mas pode revelar uma natureza violenta que nem mesmo ele sabia ter. Essas pessoas podem ser guiadas pelo poder do inconsciente ou desejo de controle ou crueldade/má fé. As pessoas costumam ter pouco conhecimento de como essas forças inconscientes influenciam seus comportamentos. Normalmente são elementos negativos que negamos ou racionalizamos. Psicólogos chamam de “a sombra” ou “o lado sombrio da personalidade”.

voltar ao índice

Já vimos vários exemplos no noticiário de como esse lado sombrio opera na vida das pessoas. Jimmy Swaggart é um “moralista” que foi desmascarado pela “sexualidade não assumida”. Nixon, um presidente da “lei e da ordem”, foi desmascarado pelas ilegalidades cometidas no seu mandato. Junto do lado sombrio do inconsciente pode-se encontrar muitas forças reprováveis. Essas forças inconscientes alcançam maior poder quando estão reprimidas ou quando são negadas. A falta de conhecimento delas, pode nos levar a falar e fazer coisas contrárias a nossa vontade. Reprimidas, elas têm um potencial de levar pessoas a problemas. As vezes escritores decidem que esse lado sombrio é o lado que querem explorar. Barry Morrow diz: “Minhas histórias ‘Bill’ e “Bill on His Own’ exploram o lado positivo da humanidade. Queria que o filme Rain Man falasse sobre o oposto: O lado sombrio nas motivações da vida (ganância, avareza, a visão limitada de mundo, a impaciência). Charlie é meu lado sombrio, o lado sombrio de todo mundo. Tive uma sensação de que Madre Teresa ficava nervosa de vez em quando. Aposto que o Papa ficava impaciente com aquelas reverências. Sei que todos temos o lado bom e o ruim, a luz e a sombra, o yin e o yang dentro de si. Bill foi sobre luz e esperança. Rain Man foi sobre o oposto”. Explorar o lado sombrio não significa que sua história irá acabar num tom negativo. “Eu me desafiei a acreditar que a história iria acabar da mesma forma que meus dois primeiros filmes. É uma sensação de criar conexões humanas e também de juntar os pedaços, peneirar a dor e seguir em frente.” Barry conclui. Charlie não tinha lucidez que seus atos eram direcionados por sua necessidade de aprovação e o amor do pai. De acordo com Ron Bass “ Charlie era mais reservado para se proteger do sentimento de rejeição. O que guia Charlie é querer o amor do pai, sabendo que não terá, sabendo que o pai pode estar certo sobre ele ser um fracasso. Os maiores problemas nas nossas vidas são aqueles

voltar ao índice

que insistimos, na esperança que será diferente da próxima vez, que vamos fazer melhor. Seu maior objetivo é provar que o pai estava errado, mas lá no fundo ele se mantém provando que o pai está certo. Ele poderia provar que o pai estava errado, era só se tornar um homem bem-sucedido, da sua própria maneira e termos, sem a ajuda ou conselhos do pai. Isso provaria que ele não precisava do amor do pai.” O inconsciente se manifesta nos seus personagens através dos comportamentos, gestos e discursos. Toda essa camada interna, esses significados desconhecidos irão afetar o que os personagens dizem e fazem. COMO AS DIFERENÇAS NA PERSONALIDADE CARACTERIZEM O PERSONAGEM? Apesar de sermos da mesma espécie, não somos o mesmo tipo de pessoa. Cada um vive de um jeito. Temos várias percepções de vida. Por séculos os escritores vêm usando um entendimento de temperamentos para desenhar as linhas gerais de seus personagens. Na idade média e na renascença, os escritores acreditavam que, assim como o mundo se dividia em quatro elementos (terra, ar, fogo e água) o corpo poderia ser dividido em quatro elementos ou humores: Bile negra, sangue, bile amarela e fleuma. Um temperamento (ou tipo de personagem) era determinado pela predominância de um humor sobre os outros. A personalidade controlada pela bile negra era melancólica, pensativa, sentimental, afetada, pouco dinâmica. A indecisão triste de Hamlet e o taciturno Jacques são exemplos de temperamentos melancólicos. Uma personalidade dominada pelo sangue será acolhedora (beneficente, alegre, amoroso. Falstaff se encaixa nesse temperamento). O temperamento colérico, dominado pela bile amarela, é facilmente irritado, impaciente, obstinado e vingativo.

voltar ao índice

Tanto o ciúme de Otello quanto a imprudência de Lear mostram uma cólera extremada. A personalidade fleumática é composta com uma solidez calma e fria, como por exemplo Horácio, em Hamlet. O temperamento perfeito é aquele onde os quatro humores são balanceados. O desequilíbrio pode causar desajustamento e loucura. Brutus em Júlio César possuía um temperamento quase ideal. Marco Antônio o chamava de “O mais nobre romano de todos”: ... os elementos são tão misturados nele que a natureza pode se levantar e dizer ao mundo: Isso sim foi um homem!” Ian Fleming, em “007 contra Octopussy”, atualiza esses quatro elementos na sua descrição de um bêbado. “O bêbado sanguíneo fica radiante ao ponto da histeria, a pele fleumática em um pântano de escuridão sombria; o colérico é o bêbado brigão dos cartunistas que passa grande parte da vida na prisão para esmagar pessoas e coisas; e o melancólico sucumbe à autopiedade, rabugice e lágrimas” Shakespeare era interessado na relação entre os personagens. Alguns tipos se davam bem pois viam o mundo de formas compatíveis. Mas outras relações causavam conflitos. Por exemplo, alguém que é colérico, que exige atitudes e respostas rápidas, ficará louco com alguém que é fleumático e quer pensar nas coisas. Alguém que é sanguíneo vai achar deprimente estar perto de um melancólico. Nos últimos cem anos, houveram muitas reinterpretações desses tipos de personalidades e, estar familiarizado com essas teorias pode te ajudar a diferenciar seus personagens, além de dar mais força aos conflitos vividos por eles. Carl Jung diz que a maior parte das pessoas vão para a extroversão ou para a introversão. Extrovertidos sociais focam no mundo externo, enquanto introvertidos focam na realidade interna. Extrovertidos tendem a se sentir confortáveis em multidões, se relacionar com facilidade,

voltar ao índice

amar festas e pessoas. Introvertidos são mais solitários, buscam por atividades solitárias como ler ou meditar. O fundamento de suas vidas se encontra para dentro, ao invés de para fora. Nos dramas, assim como na vida real, a maioria dos personagens são extrovertidos. Eles movem a ação e produzem o conflito e a dinâmica do filme. Eles funcionam “pra fora” e possuem uma dinâmica boa com os outros e uma interatividade com a vida. Mas “Rain Man” prova que um introvertido pode ser um personagem poderoso quando somado a um personagem mais ativo para mover a ação. Ron Bass explica “Raymond é certamente introvertido. O autista clássico não vê muita diferença entre pessoas e árvores (ou objetos). Não entendem que pessoas são pessoas.” “Charlie é um introvertido em roupas chamativas. Sentese confortável numa multidão porque sente que pode lidar com ela. Ele é bonito e charmoso, mas não acho que ele realmente curta ficar na multidão. Está sempre pensativo ‘O que eles querem de mim? O que eu quero deles?’ Ele é o tipo de solitário que dá a sensação de nunca compartilhar o que está realmente sentido. Ele é tão deslocado, sua raiva fica na superfície, ele é comunicativo, agressivo, dominador, mas não consegue partilhar verdadeiros sentimentos, estão escondidos tanto dele próprio quanto dos outros.” Carl Jung adiciona quatro outras categorias ao introvertido e extrovertido para uma compreensão mais profunda dos tipos de personalidades: O tipo sensorial, o tipo pensativo, o tipo sensitivo, o tipo intuitivo. O tipo sensorial experimenta a vida pelos sentidos. Estão conectados em seu redor físico (cores, cheiros, formas, gostos). Tendem a viver no presente, reagir ao redor. Muitos do tipo sensorial sabem cozinhar bem, construir casas, são médicos, fotógrafos, qualquer ocupação que é física e voltada às sensações.

voltar ao índice

James Bond provavelmente seria considerado o tipo sensorial: sensual, amante de carros velozes, atividades físicas e mulheres bonitas. O tipo pensativo é o oposto. Eles pensam na situação, resolvem problemas, tomam controle para trazer uma solução. Fazem decisões baseadas em princípios não em sentimentos. São lógicos, objetivos, metódicos. Tendem a ser bons administradores, engenheiros, mecânicos, executivos. Personagens que possuem forte função pensativa: Perry Mason, Jessica Fletcher, MacGyver e Marquise em “Ligações Perigosas”. O tipo sensitivo tem uma tendência de se conectar aos outros. Ele se importa, é empático e afetuoso. Seus sentimentos estão sempre acessíveis e estão acima de qualquer coisa. Professores, assistentes sociais e enfermeiros são normalmente do tipo sensitivo. Nos filmes e novelas: Madame de Torville em “Ligações Perigosas”, Eriksson em “Pecados da Guerra”, Tess McGill em “Uma Secretária de Futuro”. O tipo intuitivo se interessa em possibilidades futuras. São sonhadores, visionários, com novos planos e ideias. Eles dão palpites, tem premonições, e vivem antecipando o que acontecerá. Normalmente são empreendedores, inventores, e artistas que recebem uma súbita inspiração de uma ideia completa. Alguns assaltantes de bancos e jogadores são intuitivos, buscando uma vantagem para sua fortuna. ObiWan-Kenobi de Star Wars é um intuitivo que reconhecia a natureza invisível da Força. Sam em “Cheers” é também intuitivo: ele sempre tem uma intuição de que vai conseguir qualquer mulher que desejar. Even Gordon Gekko em “Wall Street” parece ter uma intuição forte ao fazer planos e esquemas. Essas funções nunca existem sozinhas. Muitas pessoas têm duas funções dominantes e duas funções auxiliares (podem também serem chamadas de “Funções sombra”). Muitas pessoas e personagens tenderão a obter informações do mundo tanto pela sensação (experiências diretas) tanto

voltar ao índice

pela intuição. E eles tenderão a processar a informação tanto pelo pensamento quanto pela sensação. “Charlie é um pensador e um cara intuitivo”, Ron Bass explica. “Aquele tipo de pessoa que vive pelo passado e pelo futuro. Apesar dele parecer ser do tipo que vive o momento de um jeito meio hedonista, ele é bastante movido pelos fantasmas do passado e é cheio de sonhos de um dia ficar rico e se dar bem. Então ele acaba nessas confusões: Colocando dores do passado nas glórias do futuro. Não tenho certeza se ele vive o momento.” Entender essas categorias pode ser útil para criar personagens mais singulares, pra criar relações mais dinâmicas. As pessoas normalmente têm grandes conflitos com seus opostos. O detetive sensitivo pode ter problemas com o detetive intuitivo que dá palpites sem base em evidências sólidas. O tipo pensador pode não gostar do emocional que parece muito sentimental e ignora os fatos. Outros admiram pessoas que são fortes naqueles pontos em que elas são fracas. Se a pessoa é fraca em intuição talvez ela procure o guru intuitivo para suprir esse sentimento nela. Mulheres que são fracas no lado sensitivo são particularmente simpáticas aos homens afeminados, ou intensos. Dependendo da história que você quer contar, pode ser útil tentar encontrar outras formas de definir os tipos de personagens. No livro “O Despertar do Herói Interior”, Carol Person descreve os “cinco arquétipos que vivemos” como o ofrão, o inocente, o sonhador, o mártir, o guerreiro e o mágico. Mark Gerzon, no livro “A Choice of Heroes”, discute alguns tipos de personagens masculinos, como o soldado, o homem que vive nas fronteiras distantes, o provedor/nutridor. Jean Shinoda-Bolen, em seus livros: “As Deusas e a Mulher: Nova Psicologia das Mulheres” e “Os Deuses e o Homem: uma Nova Psicologia da Vida e dos Amores Masculinos”, usa a imagem de deus e deusa para compreender a natureza humana. Qualquer um desses

voltar ao índice

livros pode ajudar a expandir algum personagem e entender como construir as diferenças entre os personagens. EXERCÍCIO: Escrever é um ato de explorar seu interior. Muitos escritores entrevistados pra esse livro dizem que cada personagem é, de algum modo, parte de quem são. Pense em qual tipo de temperamento você se identifica: pensador, intuitivo, sensorial, emocional. Imagine que você responde isso para criar seu opositor. Se você é do tipo sensorial, imagine ser intuitivo. Se você é do tipo pensador, imagine-se do tipo emocional. Como que a ênfase nessas características modificam seu personagem? Pense nos seus conhecidos. Que tipo de temperamento eles têm? De que forma são diferentes de você? COMO COMPORTAMENTOS ANORMAIS DEFINEM UM PERSONAGEM Tenho certeza que você conhece o velho ditado “Todo mundo é um pouco doido, mas você é mais que eu”. Muitos psicólogos reconhecem que a linha entre o normal e o anormal não é tão fácil de traçar. Se você está escrevendo um roteiro sobre personalidades anormais, seja sobre esquizofrenia, maníaco-depressivo, um paranoico ou um psicótico, você precisará fazer uma boa pesquisa específica sobre as complexidades desses transtornos de personalidade. Para criar o personagem Raymond Babbit, Barry Morrow precisou conhecer as características de um autista (o autista savant e o retardado mental). Barry relata como ficou interessado pelo autista savant: “Me voluntariei algumas vezes na Associação para Cidadãos com Retardo. Numa manhã estávamos numa pausa e senti um toque no ombro e ali estava o nariz do Rain Man. Kim era seu nome. Ele inclinou a cabeça com um jeito questionador e me disse ‘Pense nisso, Barry Morrow’. Dei um bom passo pra trás, inclinei minha cabeça e pensei no que ele tinha dito. Ele me

voltar ao índice

olhou como um mestre Zen de um jeito peculiar e, ainda bem, seu pai chegou pra explicar aquilo. “Ele me apresentou pra Kim e disse que ele estava empolgado pra me conhecer por isso tinha misturando as palavras. O que Kim queria dizer era “Eu penso em você, Barry Morrow”. Ele olhou pro outro lado e começou a grunhir e mover as mãos muito rápido, e começou a dizer alguns nomes. “Não sabia o que estava acontecendo, mas reconheci um nome que parecia familiar e então outro. Percebi que o que ele estava fazendo era recitar os créditos dos meus filmes, ‘Bill’ e ‘Bill on his own’ na ordem certa. Então começou de novo com números, mas iam tão longe que ficava sem sentido. Seu pai pediu pra ele desacelerar pois eu não entendia. Então eu percebi que ele estava falando meus números de contato dos últimos oito ou dez anos. Seu pai disse que ele decorava listas telefones como passatempo. Ele normalmente decorava só as páginas amarelas, mas no meu caso ele abriu uma exceção. Ele decorava tudo que lia. Quanto mais perguntas eu fazia, mais admirado eu ficava com as respostas. Parecia não haver limites de coisas incríveis naquela pessoa. Voltei pra casa e minha cabeça girava com tudo aquilo. Eu sabia que tinha conhecido uma das criaturas mais incríveis e como eu tive sorte.” de acordo com Ron Bass, Kim era o modelo original para o Raymond, mas Dustin Hoffman escolheu alguém diferente. “Dustin fez uma pesquisa tremenda sobre a personalidade clássica do autismo. Modelou seu personagem de acordo com um cara bem peculiar. Essa pessoa tinha um irmão que não era autista. Então fizemos um acordo com o irmão não-autista. Ele imitaria seu irmão autista para que eu pegasse o jeito do rapaz. Precisava ver o jeito estranho que o rapaz fazia as coisas, mas transmitir isso de alguma forma cativante. Por isso usamos o conceito de “lista de agressões graves”. É universal, todos nós fazemos isso de alguma maneira. É bem familiar. Nós adicionamos uma forma de ritual (podem haver rituais

voltar ao índice

desagradáveis, mas também rituais muito adoráveis). Com apenas duas horas de filme, escolhemos o que seria charmoso e interessante e o que seria desconfortável”. Entender comportamentos anormais é essencial quando escrevemos personagens como aqueles. Mas esse conhecimento não serve só para personagens com deficiências. Todos nós temos alguns desses elementos conosco. Dar algumas dessas características a um personagem normal pode adicionar conflito e interesse. David Williamson, o escritor australiano de “Gallipoli” e “Phar Lapp”, tem mestrado em psicologia. Ele acha útil pensar nos personagens como modelos de personalidades anormais. Apesar de não ser o jeito que ele os cria, ele retorna a esse modelo frequentemente durante a fase de reescrita, empurrando levemente seus personagens para fora do limite da normalidade para criar mais drama e interesse. A psicologia clínica identifica alguns tipos de temperamentos que dificultam o funcionamento psicológico das pessoas. Williamson esquematiza esses temperamentos da seguinte forma:

Um personagem com algum transtorno nem sempre vai caber perfeitamente num tipo de categoria. Os maníacos depressivos flutuam entre Extrovertidos e Introvertidos, bem como os esquizofrênicos-paranóicos. Você pode usar esse esquema na criação de personagens comuns, para fazer um rascunho rápido e dar consistência a eles. Também é possível usá-lo para criar uma dinâmica mais forte entre os personagens. Indivíduos maníacos acham que podem fazer qualquer coisa. Parecem otimistas e demonstram uma certa

voltar ao índice

euforia emocional (muito empolgados e frequentemente sociáveis). Maníacos são facilmente suscetíveis a explosões emocionais, podem ser fúteis e muito falantes. A atenção deles é muito curta e não demoram a ficar entediados. Por outro lado, quando perseguem o que desejam, não ligam de pisar nos outros. Personagens que são normais, possuem traços maníacos, podem se transformar em pessoas viciadas no trabalho, obcecadas em serem bem sucedidas. Podem ser gananciosos, como é Gordon Gekko em “Wall Street”, ou por uma crença de que tudo vai dar certo e que podem construir um mundo novo, como é Allie em “A Costa do Mosquito”, ou convictos de que podem fazer qualquer coisa, como os vilões em “Super-homem”. Charlie Babbitt é um pouco maníaco as vezes. Ron Bass diz, “Charlie é muito frenético, muito defensivo, autocontrolado demais pra ficar deprimido. Charlie não faz o tipo de cara que se senta, cruza os braços e faz caras e bocas.” Depressivos são o outro lado da moeda. Tendem a represar a energia emocional. Tem um clima pesado, sentimento de inferioridade, pouco valor. Alguns tendem a ser hipocondríacos, ou a culpar a si mesmos mesmo quando não têm culpa. Personagens que são considerados normais, mas que têm algum traço disso são: Hamlet, Martin Riggs em “Máquina Mortífera”., e David da peça “Strange Snow” (transformada mais tarde no filme “Jacknife”). Personagens esquizofrênicos aparecem em vários filmes de sucesso: “Nunca te Prometi Um Jardim de Rosas”, “David e Lisa”, e o filme para televisão “Promise”, entre outros. Esquizofrênicos tendem a ser tímidos, constrangidos, muito sensíveis, e se envergonham com facilidade. Protegem seus egos evitando confrontos abertos. Eles se retraem, ficam de mau humor e geralmente têm dificuldades de comunicação. Arthur “boo” Radley em “O Sol é Para Todos” pode ser considerado um esquizofrênico com boderline, e Macon “O turista acidental” pode ser considerado uma personalidade

voltar ao índice

normal com algum traço de esquizofrenia, gerada pela tristeza da morte do filho. Paranoicos acreditam que os outros estão perseguindo eles. Por isso tendem a ser agressivos. Querem ser líderes, ter poder e prestígio em cima dos outros. Eles são decididos, insistentes, opinativos, defensivos, competitivos, arrogantes, vaidosos e orgulhosos. Frequentemente guardam rancor irracional, se ofendem com facilidade, são muito sensíveis a qualquer crítica pessoal, o que reforça a crença de que os outros não gostam deles. Muitos personagens dos filmes de Charles Bronson e Sylverster Stallone demonstram essas características. Neuróticos ansiosos se preocupam e temem qualquer coisa. Se preocupam com a segurança pessoal, ataquesterroristas, efeito estufa, camada de ozônio, chuva ácida, estupro, e outros aspectos da vida. Para eles, o desastre está sempre à espreita. Passam a vida tentando evitar a ansiedade. O neurótico ansioso favorito dos cinéfilos é Woody Allen, nos filmes “Hannah e suas irmãs”, “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa” e Zelig. O obsessivo compulsivo também é neurótico. A obsessão de Alex pelo relutante Dan em “Atração Fatal” e a compulsividade de Raymond Babbitt, que tinha que ver o programa “People’s Court” todos os dias, são exemplos de comportamento obsessivo que influenciam esses personagens. Vemos o sociopata (que é antissocial) ou psicopata (que também é mentalmente desequilibrado) em muitos filmes e também nos jornais. Normalmente são os vilões das histórias, “criminosos endurecidos”, pessoas sem princípios morais, destemidos, indignos de confiança, buscando vantagens e autopreservação, sem nenhuma empatia pelos outros. Como antagonistas, um sociopata ou psicopata fará de tudo para impedir as boas intenções do protagonista. Esses personagens não mudam. Se você decidir ter personagens psicopatas ou sociopatas na sua trama, lembrese que eles não podem se tornar normais (mentalmente sadias) ao final do filme.

voltar ao índice

Quase todos os filmes famosos de Edward G. Robinson e James Cagney focam no sociopata. O sociopata também aparece no “O Poderoso Chefão”, “Helter Skelter” e “Bonnie and Clyde”. Drama e conflito podem surgir na relação entre esses personagens. Paranoicos precisam de alguém para prossegui-los e para eles a agressividade do maníaco é vista como uma ameaça. Para o maníaco, a falta de vida e energia do indivíduo depressivo é frustrante. E o psicopata não entende os medos do neurótico ansioso. Se você estiver criando um personagem anormal, provavelmente terá de fazer uma pesquisa psicológica mais exaustiva. Aqui vai alguns passos que você pode seguir nessa pesquisa: Ler revistas especializadas em temas médicos e livros de psicologia, entrevistar psicólogos, além de conhecer e observar pessoas que tenham traços de personalidade anormal. Mesmo que toda essa análise técnica intimide, escolher personagens anormais pode adicionar conflito e complexidade ao seu roteiro. Alguns escritores tentam criar personagens legais demais, muito amáveis, muito sóbrios, destruindo possibilidades de torna-los interessantes. Olhar pra essas categorias que foram citadas, pode ajudá-lo a delinear seus personagens, mostrar que até personagens bacanas podem ter um pouco de loucura. Barry Morrow diz: “Seja fazendo um estudo convencional de psicologia, ou observando o comportamento humano, você precisa ter um conhecimento sólido pra escrever sobre isso. Precisa ter contato o suficiente com pessoas estranhas para entender o comportamento humano.” O romancista Dennis Lynds concorda: “Um escritor é certamente alguém interessado no psicológico e no lado sociológico do personagem. Assim como é melhor que um pintor se interesse em teoria cromática ou ele não será um bom pintor, nós escritores precisamos nos interessar por psicologia.”

voltar ao índice

James Dearden adiciona: “Nós não aprendemos psicologia enquanto escrevemos um personagem. Você espera ter uma noção de como as pessoas funcionam, mas qualquer parte da psicologia que você aprenda, você tenta aprender de maneira geral, não de uma forma específica. Você não está ali pra aprender psicologia só porque está criando um personagem específico. Com sorte você terá uma ideia geral de psicologia, o que te permitirá criar um personagem. Sempre temos alguma base elementar de psicologia. Talvez não saibamos nomes sofisticados pra comportamentos e motivações, mas sabemos que se você maltratar uma criança, existem chances dela maltratar pessoas quando crescer. Não precisa ser um gênio pra entender isso. Esse conhecimento é parte da nossa experiência. Creio que é por isso que sempre acabo voltando ao autoconhecimento. Se você conhece bem a si mesmo, poderá conhecer aos outros. Enquanto você não se conhecer, não poderá conhecer aos outros”. ESTUDO DE CASO: GENTE COMO A GENTE Esse é um romance psicológico sobre um menino atormentado pela culpa da morte do irmão. Um romance sobre identidade, transformação e mudança. A versão cinematográfica, escrita por Alvin Sargent, ganhou alguns prêmios. Para o propósito desse livro, vamos tratar do romance, mas talvez os leitores queiram ver o filme para observar como as informações psicológicas foram adaptadas para o cinema. A romancista Judith Guest aborda a psicologia través da sua própria experiência, mergulhando em si para entender o cerne do personagem. “Apesar de só ter tido uma aula de psicologia na faculdade, eu coleciono artigos de jornais e leio vários livros de psicologia. Não li muitos livros de Jung, mas decidi que a teoria jungiana é a que mais me alinho. “Faço uma pesquisa inconsciente para entender psicologia. Sou uma esponja absorvendo todo tipo de

voltar ao índice

informação de todos os lados, mas nem sempre tenho consciência disso. Por ser um tema que me interessa, meus ouvidos, olhos, e mãos estão sempre abertos pra isso o tempo todo.” Judith molda o psicológico de seus personagens, seus comportamentos, suas relações mútuas e seus potenciais para se transformarem. Muitos dos traços que dá aos personagens vêm de um entendimento intuitivo do motivo das pessoas agirem como agem. Note que quando ela fala sobre seus personagens, ela fala sobre seu universo interior. Seu interesse não é somente o comportamento externo, mas como pensam, como veem o mundo, como se relacionam com a realidade interior e exterior. “A maioria dos personagens foram desenvolvidos com minha intuição de como deveriam ser. Quando desenvolvi Burger, queria criar o melhor psiquiatra para Conrad (o filho suicida). Pensei “Que tipo de cara ele seria?” Ele teria de ser tão perspicaz quanto seu filho e ter um bom senso de humor, pois essa era a forma que Conrad enfrentava o mundo. Eu queria um cara que usasse esse mesmo método para lidar com o mundo, mas usar o humor de forma mais construtiva do que seu paciente. Queria um homem que fosse capaz de olhar pra vida de um jeito esperançoso, acolhedor. Não um sujeito que segregou parte da realidade e ignora os próprios sentimentos a respeito do que acontece com o mundo. “Beth (a mãe) é muito parecida com várias pessoas que conheço. Queria criar uma personagem que estivesse muito ferida e o único modo de lidar com isso fosse negar e se afastar cada vez mais da realidade. Ela tinha medo das próprias emoções, de lidar com elas. Acho que ela tinha medo de não suportar, caso tentasse lidar com a situação. Esse era seu modo de se manter firme, o que não a faz muito diferente de tanta gente por aí.” Judith Guest foi aprendendo uma parte do interior dos personagens à medida que escrevia sobre eles. Por exemplo, sua postura em relação a Beth mudou à medida

voltar ao índice

que a observava. “Acho que quando comecei a escrever a Beth, eu a odiei. Culpava ela pelo que aconteceu com Conrad. Quanto mais escrevia, mais complexa a situação ficava e cada vez menos eu a culpava. Ela era do jeito que era. Ele também era do jeito que era, mas ele aprendeu a ser diferente, já ela não. Ela não era capaz de superar aquela situação.” Para um romancista, comunicar a psicológico do personagem deixa aberta a possibilidade de entrar em sua mente; deixar o leitor ciente de como o personagem sente e pensa. Com os personagens Calvin (o pai) e Conrad, Judith escolhe fazer isso. Mas escolheu propositalmente não mostrar a mente de Judith para o leitor. “Não acho que seria difícil entender a mentalidade de Conrad ou Calvin. Por isso explorei a mente dos dois e escolhi não entrar na mente de Beth pois senti que seria difícil demais. A verdade é que eu não entendia aquela personagem. Sei que existem pessoas assim e que existem razões de serem como são, mas entrar na mente dela e tentar retratá-la, parecia muito difícil pra mim”. Judith precisava entender a relação e uma potencial transformação de uma pessoa em outra (e como isso alteraria o que se passava em suas mentes). Perguntei se ela achava que Beth era transformável. “Com certeza. Apesar de precisar de tempo. O que aconteceu naquela família foi que dois de seus membros estavam preparados e o outro não estava. Quando isso acontece, você tem que escolher entre ficar e se modificar ou ir embora. Ela escolheu ir embora. “Calvin era capaz de se modificar pois era menos defensivo. Suas defesas foram superadas quando Conrado tentou suicídio. Sua determinação principal era de que aquilo não aconteceria de novo e ele faria de tudo para se assegurar disso. Calvin percebeu que a tentativa de suicídio de Conrad foi por causa da incapacidade de conversar sobre seus sentimentos. Ele não deixaria aquilo acontecer de novo, nem que ele precisasse sentar na soleira da porta todo santo dia para importunar o menino.

voltar ao índice

“Na minha opinião, Conrado se parecia muito mais com sua mãe do que com o pai. Creio que isso era o que os mantinha distantes: os dois tinham medo da vida. Ambos eram típicos perfeccionistas e o fracasso em suas vidas (o irmão de Conrad ter se afogado) era demais para eles. Além disso, perfeccionistas são invadidos por um forte sentimento de culpa. Conrado, apesar de não ter sido sua culpa, sentia-se culpado e via a própria incapacidade de enfrentar as coisas como prova de sua culpa. Não acho que Beth o odiava ou o culpava pelo acidente. Mas acho que nenhum deles foi capaz de lidar com o luto, tentaram enterrar esse luto, mas ele reaparecia de outras formas. Quando Conrado tentou deixar esses comportamentos destrutivos, ele não conseguia mais suportar os que sua mãe ainda tinha. “Acho que a maneira de Conrado lidar com os problemas era brincando e tirando a importância deles. Ao invés de enfrentar a hostilidade de Stillman (o atleta), ele reage com algumas piadas, mas não soluciona nada com isso. Para mim, ao se meter numa briga com Stillman, ele demonstra estar melhorando sua saúde mental. Ele já estava cansado de Stillman. Foi uma reação bem direta.” O movimento no romance “Gente como a Gente” é um movimento em direção tanto a saúde mental e transformação de Conrad e Calvin, quanto de encontrar um sentido pra vida. “Existem coisas na vida que não tem sentido” Diz Judith “Você pode enlouquecer tentando entender o motivo de alguma coisa. Quando Conrado diz para Burger na cena final deles “Não vê? Tem que haver um culpado, ou qual seria o sentido pra tudo isso?’ Burger diz: ‘Não existe sentido, só acontece. É verdade que as pessoas buscam por explicações, mas quando acontece uma tragédia, essa busca pode ser fatal”. “Tanto Calvin quanto Conrado reforçam suas identidades. Ao final do livro, se tornam pessoas com mais desenvoltura, mais profundas, mais sociáveis e sensíveis. Tornaram-se mais atentos e acredito que também mais honestos.

voltar ao índice

Eles se conectaram com suas essências, com o tipo de pessoa que realmente eram e deixaram de ser críticos. “No final, algo de bom veio disso tudo”. APLICAÇÃO Conhecer o universo interno do seu personagem pode te ajudar a criar um personagem mais forte e compreensível. Pra começar, pergunte a si mesmo ■■ Quais acontecimentos traumáticos do passado do meu personagem podem afetar seu comportamento presente? Existem boas influências no passado que podem influenciar uma transformação no presente? ■■ Quais forças inconscientes influenciam meu personagem? Como elas afetam as motivações, ações e objetivos dele? ■■ Quais tipos de temperamentos usei de modelo para o meu protagonista e coadjuvante? Criei contraste e conflito no relacionamento deles? ■■ Será que criei personagens muito bonzinhos, muito superficiais, muito normais? Existe algo anormal neles? Como as anormalidades deles poderiam causar conflitos com outros personagens? RESUMO As pessoas são mais que sistemas. Mas existem certos padrões de comportamento e posturas que são governadas pelo psicológico delas. Entender que as pessoas se parecem em certos desejos básicos, mas são diferentes na maneira de reagir à vida, pode ser a chave para criar personagens dimensionais com riquezas de detalhes da vida externa e interna.

voltar ao índice

5 Criando Relacionamentos entre Personagens Raramente um personagem existe isoladamente, mas em relacionamentos. Com exceção de uma história de apenas um personagem (por exemplo, “A Última Gravação de Krapp”, escrito por Samuel Beckett, ou “Encurralado” de Steven Spielberg), muitas histórias são sobre a interação entre pessoas. Em muitas obras, a dinâmica entre os personagens pode ser tão importante quanto qualquer qualidade individual de um personagem. O romancista Leonard Tourney enfatiza que a mudança é o foco do século XX. “Os casais têm se tornado cada vez mais importantes na ficção. Existem inúmeras histórias com parceiros (equipe policial ou de marido e mulher). Isso introduz um tipo de química na história, cria uma nova pessoa, uma nova identidade, algo novo. Quando colocamos duas coisas ou pessoas juntas, você gera algo novo. Casais acabam gerando algo diferente do que se fossem duas pessoas separadas. Não é algo consciente, mas casais tendem a se comportar de maneira diferente.” Alguns dos filmes e séries de maior sucesso são estrelados por duas pessoas, não uma. Uma lista parcial incluiria: “Cheers”, “Kate and Allie”, “ A Gata e o Rato”, “Mork and Mindy”, “Starsky and Hutch”, “Cagney and Lacey”, “Jogo Duplo”. Muitos filmes de sucesso também enfatizam relacionamentos de personagens: “Uma Aventura na Africa”, “Butch Cassidy”, “A Costela de Adão”, “48 HRS.”, “Máquina Mortífera”, e Rain Man.

voltar ao índice

As histórias de relações focam na química entre personagens. Cada indivíduo ganha elementos na personalidade que gerem as maiores “faíscas” no relacionamento. Essas são as combinações que geram as maiores faíscas: 1. Personagens que tenham coisas em comum que os façam ficar sempre unidos. Isso gera atração entre personagens. 2. Criar conflito persistente que tenda a afastar os personagens. Isso gera muito drama (as vezes comédia) no roteiro. 3. Personagens com qualidades contrastantes (são opostos). Esse contraste cria novos conflitos e fortalece os personagens através da oposição. 4. Personagens que tenham o potencial de transformar um ao outro: para o melhor ou para o pior. COMO BALANCEAR ATRAÇÃO E CONFLITO? Conflito é um elemento essencial em quase toda escrita de ficção. Muitas histórias dependem do conflito para que as cenas nos deixem positivamente tensos, cause interesse e drama à história. Mas muitas histórias são também histórias de amor, retratando a atração entre pessoas. Nos filmes e romances é relativamente fácil encontrar o equilíbrio entre conflito e atração. Conflito inicia a história mas é resolvido ao final, normalmente levando a finais felizes. Mas em séries de televisão existe um problema especial. Uma serie pode rodar por cinco ou dez anos, atrasando a resolução de um relacionamento. Se a atração se sobrepõe ao conflito, e os personagens ficam juntos cedo demais, a faísca pode se apagar do programa. Se houver muito conflito, mas pouca atração; os personagens podem se tornar desagradáveis e o público irá se desconectar deles. É mais complicado do que parece pois não é natural manter personagens separados, particularmente quando a força da série depende do interesse mútuo dos personagens.

voltar ao índice

Encontrar esse equilíbrio é um desafio para produtores e escritores. James Burrows (criador de “Cheers”) explica como a equipe lidou com esse dilema no começo da série: “Nosso programa está em evolução. A crítica não estava apaixonada pelo desenvolvimento de Diane e Sam. Sentimos que se Sam e Diana ficassem sempre se alfinetando isso invalidaria Sam. Você só pode mantê-los afastados por algum tempo. Claro que se ele é um mulherengo, ele teria que acertar com Diane em algum momento, ou ele não seria um mulherengo. No fim das contas, gostamos do resultado da união desses personagens e a nova configuração que essa união proporcionou. Depois, pareceu interessante separálos de novo.” Em programas como “Quem é o Chefe?”, “A Gata e o Rato”, e “Cheers”, a atração e até mesmo a amizade entre esses personagens é real. É evidente que eles gostam de verdade uns dos outros em diferentes níveis. Os criadores Marty Cohan e Blake Hunter de “Quem é o Chefe” descrevem as semelhanças entre Ângela e Tony: “Tanto Tony quanto Ângela são conservadores na maneira de ver a vida. São pessoas bem simples, ligadas a família e ao lar. Eles prefeririam ver televisão e comer pipoca em casa do que sair pra passear. Eles apoiam muito um ao outro”. O diálogo entre Maddie e David em “A Gata e o Rato” e suas fantasias um com o outro, revelam sentimentos que eles seriam incapazes de expressar diretamente. No episódio chamado “Um Serviço Maravilhoso”, escrito por Carl Sautter e Debra Frank; Maddie é um fantasma vendo como sua vida teria sido se ela tivesse fechado a agência há dois anos. Albert é seu anjo guardião vai acompanhando Maddie pela experiência. David está pronto pra casar com Cheryl Tiegs, mas não consegue esquecer Maddie (mesmo sem poder vê-la ou ouvi-la, ela responde às reflexões de David.

voltar ao índice

DAVID Eu estava pensando... Maddie Hayes... É um nome que não ouço há algum tempo. Ela me esbofeteou uma vez. Ela sabia dar um tapa... Tinha algo, ela tinha classe, força. Eu a admirava, de verdade. FANTASMA MADDIE Você admirava? DAVID Talvez tivesse sido ótimo nós dois. FANTASMA MADDIE Mas nós éramos ótimos juntos... não se lembra daqueles casos? O disco jockey, o tocador de piano, meu retrato idiota. Você me seguiu até Buenos Aires... Te segui até Nova Iorque. Como você se esqueceu disso? Você até me beijou uma vez na garagem. ALBERT Não, ele não beijou, Maddie. FANTASMA MADDIE O quê? ALBERT Nada disso aconteceu FANTASMA MADDIE Hum? ALBERT Tudo que aconteceu depois que você fechou a agência, esses dois anos, tudo se foi

voltar ao índice

DAVID Ah, que doideira. Olha eu aqui comparando a Cheryl com uma mulher que eu nem conheço. Em outra situação, essa atração seria o foco do programa, você veria uma história de amor digna de 1950 com personagens se apaixonando, casando e tendo filhos. Mas foram criadas barreiras para manter os personagens afastados de um jeito convincente. Normalmente a barreira vem de alguma situação (tipo um relacionamento trabalhista, onde o relacionamento se dá num coleguismo de trabalho (como em “A Gata e o Rato”), ou numa relação patrão-empregado (como em “Cheers” ou em “Quem é o Chefe?”), a barreira funciona já que pelo menos um dos personagens reconhece que pode haver problemas ao misturar amor e trabalho. Construir a barreira pode ser difícil. Precisa ser fraca o suficiente pra que o amor possa ir e vir, mas forte o suficiente pra que pelo menos um dos personagens entenda a importância de não ceder. Em “Quem é o Chefe?” os dois personagens têm o mesmo pensamento. Eles têm uma atração recíproca, mas enquanto vivem com as crianças na mesma casa, não dormem juntos. Em “Cheers”, Diane (e depois Rebecca) estão duplamente determinadas a não ceder às investidas amorosas de Sam. Nesse tipo de série o roteirista sempre joga com essas barreiras. Normalmente as variações nesses limites são consequência desse jogo. Se isso mexer demais com as paixões dos personagens, o público pode não gostar da indecisão deles. Por outro lado, se não surgir nenhuma atração entre os personagens, a audiência pode não gostar; pois não verá sentido em duas pessoas tão atraentes que, de alguma forma, não provocam nada uma na outra. Tanto em “A Gata e o Rato” quanto em “Cheers” essa linha é eventualmente cruzada. David e Maddie, e Diane com Sam, de vez em quando dormem juntos.

voltar ao índice

Em 1985, na terceira temporada de “Quem é o Chefe?” houve uma oscilação de limites e retorno ao equilíbrio: ÂNGELA Não vai acontecer nada porque somos pessoas adultas e porque... TONY E porque as coisas estão bem como estão ÂNGELA Isso. Mas poderia ficar bem do outro jeito também, né. TONY Seria incrível, Ângela. ÂNGELA É, seria. TONY Mas não seria a mesma coisa, e eu não quero arriscar perder o que temos. ÂNGELA Nem eu. Apesar da situação servir para mantê-los distantes, as características individuais dos personagens também contribuem. O decoro de Ângela, por exemplo, a obriga a questionar até onde deveria ir com Tony. O intelectualismo esnobe de Diane a faz pensar que não cairia no papo de Sam. E o medo de compromisso de Maddie a impede de se entregar a David. CONTRASTE DE RELAÇÕES ENTRE PERSONAGENS O contraste, mais que qualquer outra qualidade, define os casais de personagens. Os opostos de fato se atraem e, através do contraste entre dois personagens, dinâmicas

voltar ao índice

muito fortes são alcançadas. “Máquina Mortífera”, “48 hrs.”, “The Odd Couple”, “Atirando para Matar”, “Perigo na Noite”, quase toda história que envolve um relacionamento (seja romance, parceria ou amizade) provavelmente terá personagens contrastantes. Através do contraste é possível refletir comportamento e posturas. No filme “Fuga à Meia-Noite” escrito por George Gallo, o comportamento e modo de viver de Jack (o caçador de recompensas) e Jonathan (o Contador) são diametralmente opostos. Suas qualidades contrastantes incluem o tipo de trabalho, relacionamento com as esposas, escolhas morais e até mesmo a alimentação. JONATHAN Você conhece o termo “Arteriosclerose”? Se quiser posso te passar umas dietas balanceadas. Por que você come essas coisas? JACK Por que? Porque é gostoso! JONATHAN Mas não é saudável. JACK Eu sei. JONATHAN Por que faz o que não te faz bem? JACK Porque não fico pensando nisso. JONATHAN Mas isso é viver em negação. JACK Eu sei. JONATHAN Então mesmo sabendo, você continua fazendo...

voltar ao índice

Isso parece meio idiota, não acha não Jack? JACK Roubar 15 milhões de dólares do Jimmy Serrano parece idiota... JONATHAN Pensei que não me pegariam. JACK Isso sim é viver em negação. JONATHAN Eu sei. Algumas vezes o contraste é estabelecido através da origem étnica, da classe social e da forma que os personagens escolhem pra resolver problemas. Marty Cohan e Blake Hunter descrevem esse tipo de dinâmica: “Na série ‘Quem é o Chefe?’ existem muitas inversões de papéis: entre o operário e o executivo; a mulher independente e o homem dono de casa, toda uma série de contrastes entre Nova Iorque e Connecticut; a branquitude protestante e os italianos, etc. Tony é muito honesto, sincero, meio rude às vezes. Pode ser temperamental, propenso a excessos de raiva. Tony pode sair do prumo mais rápido que Ângela, que tenta dizer ‘Vamos ficar em paz’. Ângela tenta amenizar as coisas, reprimir, ficar meio tensa as vezes; enquanto Tony é direto e vai no coração do problema. Ângela, como a típica executiva controlada, tenta manter a calma, sem explodir em frente ao cliente ou chefe. Já o Tony é bem diferente. Ele não fica tomando esse cuidado. Ambos são muito ligados à família, mas Ângela é meio estabanada na cozinha, provavelmente tem dificuldade de manter o jogo de cintura que a maternidade exige. Tony é direto, sem noção, é duro com as crianças. Ângela é mais conservadora, mais tensa, permissiva com as crianças. Ela

voltar ao índice

tem mais condições de escalar posições sociais e possui mais ambições pessoais; enquanto Tony só tem ambições para a filha. Podemos dizer que existe um contraste de ambições, objetivos e atitudes em direção aos filhos.” Às vezes o contraste é psicológico. Em “A Gata e o Rato”, o contraste entre Maddie e David pode ser descrito como medos e características externas. Olhando superficialmente eles são bem diferentes. Carl Sautter explica: “Ela é fria, ele é quente. Maddie fica numa bolha longe das próprias emoções, enquanto David vive a flor da pele. Ele é um homem impulsivo. O maior medo deles é se apaixonar, serem expostos. Mas eles lidam com isso de formas diferentes. Maddie se protege com sua beleza estonteante e sua frieza exterior. David se protege falando muito rápido. À primeira vista temos dois personagens com muita coisa em comum e fica aquele empurra-empurra no relacionamento dos dois. “Muito dos contrates que eles têm são inesperados. Fizemos um episódio que eles discutem sobre Deus. A escolha mais óbvia, olhando pros personagens, seria Maddie tendo uma visão bem formal e apropriada de Deus enquanto David teria uma visão mais irreverente. Glenn Caron (o criador da série) disse ‘Vamos dimensiona-los dando o exato oposto a suas posturas’. Então ele inverteu as posturas e fez de David o detentor de crenças bem religiosas em Deus, e Maddie aquela que é muito cética. Isso funcionou bem melhor que a outra opção, pois era algo inesperado. “Você vê a as diferenças de como reagem na frente do cliente. Num episódio que eu e Debra Frank escrevemos, uma mulher fala que é um leprechaun. David imediatamente quer acreditar nela, enquanto Maddie acha que ela é maluca. Eles têm atitudes diferentes na vida. Nesse episódio, Maddie diz pra David, ‘Você não tem poesia na alma. Você é estúpido e analfabeto’. E a resposta de David foi basicamente ‘O que você tem é uma noção artificial de poesia, exposição artística, e o lado formal disso. Sua noção

voltar ao índice

de romance e poesia é artificial. Você é o tipo de pessoa que não aplaudiria Tinker Bell.’ “ Aqui o contraste se estende até chegar no lado psicológico que os direciona. Para revelar um personagem para o público é preciso mostrar sua vida emocional, seus medos e vulnerabilidades. Ajudar o público a ver para por detrás da máscara/persona. Talvez mostrar alguma dor, alguma ternura te faça chegar em camadas mais profundas do personagem. Mesmo num comercial curto, os personagens normalmente são criados pelo contraste. Às vezes esses contrastes são relacionados a aparência física e a função. Nos comerciais da bartles & Jaymes para colecionadores de vinhos, escrito por Hal Rainey, vemos dois agricultores, Ed e Frank. São descritos através de seus contrastes. Frank fala pelos cotovelos, Ed é um ajudante silencioso. Ed é conhecido como o cérebro da equipe. Ele é mais inteligente que Frank (Ed usa a palavra “insípido”, e Frank admite não entender). Ele também é o cara dos experimentos. Num dos comerciais, “Ele se engaja numa empreitada científica para descobrir que tipo de comida poderia ser cultivada em climatizadores de vinhos. Até o momento, Ed tinha achado só duas comidas que não funcionavam: o nabo alemão e o milho doce. Até fisicamente eles são diferentes. Ed é alto e magro, enquanto Frank é um fortão de suspensórios. Esses comerciais, que ganharam o prêmio Clio (o óscar dos comerciais), fizeram de Bartles & Jaymes os climatizadores de vinhos mais vendidos; e Frank e Ed os garotos propaganda mais conhecidos do país. ONDE ACHAR CONFLITO? Conflito vem do contraste entre personagens. Pode vir de diferentes ambições, diferentes motivações, histórias de vida, diferentes objetivos e desejos, posturas, de valores totalmente opostos entre si. Às vezes esses conflitos são psicológicos. As qualidades mais irritantes que um personagem encontra, são aquelas

voltar ao índice

que ele reprime dentro de si, mas que estão expostas no outro personagem. Qualidades opostas ora atraem, ora repelem esses personagens. Às vezes o conflito ocorre por falta de franqueza. Desentendimentos levam a conflitos. Na série “Cheers”, até o primeiro beijo entre Sam e Diane é cheio de conflito: SAM O que você quer Diane? DIANE Quero que você me diga o que você quer SAM Vou te falar o que quero. Quero saber o que você quer DIANE Não vê? Esse é o nosso problema o tempo todo. Nenhum de nós dois é capaz de se abrir e falar o óbvio SAM Tá certo. Vamos falar o óbvio. DIANE Ok. Você primeiro. SAM Por que eu primeiro? DIANE Estamos fazendo de novo SAM Diane, só me fala uma coisa: por que você não está com o Derek? DIANE

voltar ao índice

Porque gosto mais de você. SAM Sério? Bom, eu gosto de você mais do que o Derek também. DIANE Sam... SAM Todo ciúme que já senti do meu irmão não foi nada comparado ao que senti nos últimos cinco minutos. DIANE Ai, Sam. Acho que estamos prestes a começar algo que pode ser incrível, né? SAM É, é. Você tem razão. Acho que a gente devia tipo, se beijar, né? E porque nada é direto com Sam e Diane, o beijo ainda demora mais sete páginas de diálogo e discussão antes de finalmente acontecer. COMO OS PERSONAGENS MUDAM UM AO OUTRO? Não é difícil ouvir um executivo ou produtor perguntar: O personagem se modifica e cresce ao longo da história? Algumas das histórias mais fortes mostram o impacto que um personagem pode ter sobre o outro. Carl Sautter explica, “A Maddie (que é fria) se permite ser espontânea por causa da influência de David. Ele a ensina algo sobre calor humano, e ela o ensina algo sobre disciplina. Maddie faz David ser menos superficial, mais maduro. David dá senso de humor pra Maddie”.

voltar ao índice

Em “Quem é o Chefe?” Ângela deixa de ser tão arrogante por causa da influência do Tony, e Tony ganha mais segurança por causa do apoio de Ângela. De acordo com o criador da série, “Tony foi pra faculdade no começo do ano. Isso nunca teria acontecido se ele não tivesse conhecido Ângela. Acho que lá se soltou um pouco. Aprendeu a relaxar um pouco, se tornar uma pessoa mais calorosa”. Nas séries, se os personagens passassem por uma grande mudança, a dinâmica da série seria destruída. Por isso mudam o mínimo possível. Em filmes ou romances, conflitos podem ser resolvidos e transformações podem ser completas ao final da história. Rain Man é uma história sobre dois personagens que transformam um ao outro. Raymond era muito limitado emocionalmente. O desafio na criação desses personagens era descobrir quão radicais seriam as mudanças num filme como esse. O filme usa todos os elementos que mencionamos nesse capítulo: atração, conflito, contraste e transformação. Barry Marrow revela: “Uma das escolhas foi fazê-los irmãos. Isso os manteria juntos. A relação que ambos têm com a herança os une. Qualquer outra característica deles os afastaria: Idade, altura, inteligência, a maneira que andam e falam. Qualquer parte deles desejaria ir em direções opostas. Acho que atração e repulsa é uma dinâmica em constante movimento e o contraste é o resultado dessa dinâmica. A transformação acontece porque Charlie fica desgastado... São seis dias num carro, quase dois dias a mais do que ele aguentaria, e esses dois dias tornam ele humano. “Uma coisa curiosa acontece durante o arco do filme. Raymond, daquele jeito único, começa a vencer o lado desagradável de Charlie através de algo simples como a linguagem. No começo do filme, Charlie xinga muito mas, ao ver-se forçado a se importar com alguém e, graças às surpresas que cruzam seu caminho, se torna uma pessoa civilizada. Grande parte de sua aspereza de desfaz e ele se torna uma pessoa sensível.”

voltar ao índice

EXERCÍCIO: Pense nos relacionamentos com seus amigos, namorados, cônjuges e familiares. De que forma seus relacionamentos preenchem os critérios de atração, conflito, contraste e transformação? Você tem um relacionamento com alguém onde a dinâmica dos dois é tão forte que poderia ser a base pra criação de uma história? CRIANDO PERSONAGENS USANDO ATRAÇÃO, CONFLITO, CONTRASTE E TRANSFORMAÇÃO Podemos aplicar esses elementos a qualquer tipo de relação que exista entre personagens. Em “Cagney e Lacey”, os vários contrastes entre os personagens davam vida à série. Alguns desses contrastes nascem das linhas gerais das personagens: Chris Cogney

Mary Beth Lacey



Ela é solteira e sem filhos



Ela é casada com filhos



Sua vida gira entorno dos amigos •

Sua vida gira em torno da família



Ela foca na carreira

Ela foca na família e vida pessoal



Alguns desses contrastes surgem das posturas diferentes em certos assuntos: •

Ela é mais do tipo “lei e ordem”



Ela é mais humana, direitos individuais



Ela acredita no direito da escolha, porém não abortaria



Ela acredita no direito da escolha e fez um aborto, por isso defende fortemente o direito da escolha



Ela é contra a censura e nunca censuraria a pornografia



Ela é contra o que a pornografia propaga, não gosta de ser bombardeada por imagens que difamam as mulheres.



Ela é contra greves.



Ela nunca participaria de uma greve.

E alguns dos contrastes vem da diferença de seus temperamentos e emoções:

voltar ao índice •

Ela acha a convivência difícil e por isso prefere morar sozinha.



Ela vive uma relação acolhedora e íntima com seu marido



Ela tem pavio curto



Ela é paciente.



Ela é viciada em trabalho e bebe demais



Ela é equilibrada em sua vida

Note nesses exemplos de conflitos e contrastes, que muitas possibilidades de história surgem quando a dinâmica dos personagens é clara e forte. Só de olhar pra essa lista é possível ver o potencial de interrelações entre as personagens quando, por exemplo, encaram a notícia de um atentado contra clínicas de aborto, ou da indústria pornográfica, ou sobre abuso infantil e por aí vai. Ao começar a criação de um personagem que irá interagir dinamicamente com outro, é possível fazer um brainstorm baseado nos quatro princípios do início desse capítulo. Isso funciona com qualquer tipo de história (num romance, numa peça, num filme, em programas de televisão), mas pode ser particularmente importante nas séries já que elas dependem do máximo de material possível pra seguir contando histórias (semana após semana). Esse brainstorm também pode ser útil na criação de personagens de apoio (coadjuvantes), já que eles normalmente interagem com os personagens principais. Usei essa técnica quando me pediram pra dar uma aula para a equipe de produção e roteiro da série “MacGyver”. Parte do nosso objetivo foi desenvolver um personagem que já havia passado pela série, mas parecia ter potencial para expandir seu papel. Os produtores sentiram que esse personagem ajudaria a dar mais profundidade ao protagonista (MacGyver), até porque tinha o risco de MacGyver acabar se tornando um personagem solitário demais. O personagem analisado foi Colton, o caçador generoso. Queríamos gerar contraste entre Colton e MacGyver, além de estabelecer uma amizade que se consolidasse depois de um certo número de episódios. O ator que fazia Colton (Richard Lawson) se juntou a nós.

voltar ao índice

Usando os conceitos desse capítulo, decidimos jogar ideias dos possíveis contrastes e conflitos entre os dois personagens. Nossa lista ficou assim: MacGyver

Colton



Gosta do campo



Prefere a cidade



É responsável



Despreocupado e independente



Vive num barco



Vive num furgão



Solitário



Solitário por ser inseguro



Pondera e age



Age primeiro, pondera depois



Estratégico, não-violento



Acredita na abordagem direta e armada



Introspectivo



Falante, extrovertido



Se preocupa com os meios



Se preocupa com os fins



Vegetariano



Come bobagem



Preocupado com o ambiente



Joga lixo na rua



Diplomático



Rude

Quanto mais discutíamos os personagens, ia ficando mais importante entender o passado de Colton. Parte disso foi modelado usando Richard de modelo, já que ele se sentia à vontade com todos do grupo. Colton foi um médico no Vietnam, como Richard. Richard descreve como os soldados se sentem muito próximos do médico que cuida das suas feridas. Pedem conselhos, compartilham medos ou simplesmente batem um papo. Quando Colton deixou o Vietnam, decidiu nunca mais depender de ninguém e se tornou um cara solitário. Expandimos algumas das ideias de nossa lista. Colton não iria gostar do barco de MacGyver. Ele não se sentia seguro numa casa fora da terra firme. Teria problema com o senso de responsabilidade de MacGyver, e questionaria o motivo de MacGyver assumir os problemas dos outros. Ele é hostil com um cachorro feio que MacGyver herdou depois da morte de um amigo. Apesar de Mac particularmente não gostar do cachorro, ele se solidariza com o animal. A discussão sobre o

voltar ao índice

cachorro nos leva a tratar sobre o arco de transformação dos dois. À medida que analisamos o efeito que um personagem tem sobre o outro, nossa nova lista ganha características de peso: 1. MacGyver aprende que, às vezes, é melhor seguir o coração e instintos do que a razão. 2. Colton aprende a ser paciente, a esperar antes de atirar e, em alguns casos, a ponderar antes de agir. 3. MacGyver ganha conselhos amorosos de Colton. Alguns são bons. 4. Colton aprende a confiar de novo. Aprende a trabalhar em equipe e que, às vezes, existem coisas que não podem ser feitas sem ajuda. Quanto mais trabalhávamos com aquele personagem, mais nosso entendimento sobre Macgyver se aprofundava. Sua postura, vulnerabilidades e história de vida, tudo ficava mais claro quando contrastávamos com o Colton. As ideias que colocamos na mesa, certamente foram apenas os primeiros passos para um desenvolvimento profundo que os escritores fariam; mas descobrimos que dar ênfase ao personagem secundário estimulou novas ideias sobre o protagonista e a relação entre eles. Isso poderia expandir a série como um todo. Quanto mais forte a dinâmica entre os personagens, mais sucesso a série pode ter (e mais possibilidades de permanecer no ar por muitos anos). COMO CRIAR UM TRIÂNGULO Normalmente dois personagens formam um relacionamento. Ocasionalmente um trio (o triângulo) é o foco. Tais relacionamentos são dinâmicos, às vezes assustadores, e normalmente muito difíceis de se trabalhar. Eles seguem muitos dos conceitos já discutidos, mas com alguns outros elementos.

voltar ao índice

“Atração Fatal” e “Nos Bastidores da Notícia” giram em torno de um trio. Analisando esses filmes, é possível conseguir uma visão geral de como trabalhar com esse tipo de relacionamento. Em ambos os filmes os relacionamentos são construídos em cima de contrastes. Em “Atração Fatal”, Beth e Alex são personagens contrastantes: Uma é leve a outra é depressiva; uma é a esposa carinhosa, a outra é a amante manipuladora; uma é engajada na família, a outra é solteira; uma é otimista sobre a própria vida, a outra é pessimista e desesperada sobre a direção que a vida está tomando. Em “Nos bastidores da Notícia”, Tom, o garoto bonito que não é lá muito esperto, contrasta com Aaron, o cara esperto que não é muito atraente para Jane. Tom é mais seguro, Aaron mais inseguro. Tom é bem sucedido e consegue o que quer, enquanto Aaron falha miseravelmente quando alcança seus planos de curto prazo de ser um âncora. No triângulo, o homem ou a mulher solitária é confrontada por uma escolha. O drama de um triângulo pode vir tanto da dificuldade da decisão quanto das consequências da decisão. Em “Atração Fatal”, o Ato Um foca na escolha de Dan. Ele começa escolhendo se deitar por uma noite com Alex. No final do Ato Um ele decide não vê-la de novo. As consequências de sua escolha são a base do Ato Dois e Três. Em “Nos bastidores da Notícia”, Jane tenta escolher entre Tom e Aaron durante o filme. A história é sobre a dificuldade dessa decisão. James Brooks explica: “Queria escrever um verdadeiro triângulo, e pra mim isso significa não dar todas as cartas. Geralmente, num triângulo, há pelo menos um cara mau ou imperfeito ou não-atraente (uma escolha fácil). Eu decidi que não determinaria no começo do filme com quem ela ficaria no final (a obra por si não determinaria a decisão). Quando ela se aproximava de um,

voltar ao índice

eu a jogava em direção ao outro. Nunca imaginei que, no final das contas, ela não conseguisse decidir com quem ficar. Mas foi assim que aconteceu”. O principal desafio do escritor é explorar a dificuldade da escolha e os possíveis atrativos das opções amorosas disponíveis. Apesar de Dan ter elegido muito rapidamente a Alex em “Atração Fatal”, desde o Primeiro Ato ficou evidente que era uma mulher atraente e inteligente, tinha energia e parecia mais divertida que Beth, era obviamente mais acessível sexualmente que sua esposa. No Ato 1 existia a possibilidade de Dan iniciar uma relação duradoura com Alex. Porém, ele não escolheu isso e Alex decidiu lutar pelo homem que era obcecada. As escolhas não devem ser óbvias nem pender exageradamente para um dos vértices do triângulo, caso isso aconteça o triângulo será prejudicado. Se a escolha também for uma escolha moral, a dinâmica ganha força. Em “Nos bastidores da Notícia”, Jane sente sua integridade seria posta em jogo caso escolhesse Tom, especialmente depois que ela descobriu que ele manipulou uma matéria jornalística. Em “Atração Fatal”, Dan encara o dilema moral: quando contar para a esposa? Como ser justo com Alex? Quais são suas responsabilidades com ambas as mulheres? Os triângulos mais efetivos são aqueles onde cada personagem exercita sua vontade e intenção. Se um dos personagens fica estagnado e se nega a agir ou reagir, o triângulo é prejudicado. Um Triângulo só alcança seu potencial quando são três (não dois) personagens que criam reviravoltas e fazem a dão força para a história. Em “Atração Fatal”, a decisão de Dan dá movimento à história. Parecia que seu desejo seria facilmente alcançado (ter um caso de uma noite). Mas ele não contava com a obsessão de Alex. A intenção dela é que dá movimento ao Segundo Ato, tecendo uma teia que Dan tenta escapar.

voltar ao índice

Nesse ponto, a ênfase do relacionamento foi em Dan e Alex. Mas Beth é uma personagem com profundidade e que tem suas ideias e reações aos eventos. No começo do Terceiro Ato, quando Dan revela seu caso, a intenção dela é que guia a ação, forçando Dan e Alex a resolver essa relação. A intenção leva ao conflito. Em cada dupla de personagens existe potencial para dois conflitos: o ponto de vista que cada um tem daquele relacionamento. Com um triângulo, isso se transforma subitamente em seis conflitos. Em Atração Fatal, várias vezes Dan tem um conflito com Alex e um com Beth. Beth tem um conflito com Dan e um com Alex. Alex tem um conflito com Dan e com Beth. A natureza desses conflitos, é ligeiramente diferente de acordo com o ponto de vista de cada personagem. Alex quer afastar Dan da Beth. Beth quer preservar sua vida familiar estável e a própria autoestima, o que não permitiria que ela vivesse com um homem que a traiu. Dan quer preservar o “Status Quo” (algo que ele já não pode fazer). Cada um desses conflitos é bem complexo e instável de acordo com o ponto de vista de cada personagem. Pelo fato do escritor ter explorado as dinâmicas internas e externas de cada personagem, a história se torna um crescendo contínuo de intensidade com cada reviravolta na trama. Cada conflito revela inseguranças, falhas, más escolhas e emoções desesperadas de cada personagem. Nenhum dos personagens é perfeito (todos são guiados pelo próprio psicológico e pelos problemas não resolvidos de suas vidas).

voltar ao índice

Em “Nos Bastidores da Notícia”, Jane nunca foi capaz de entender o que realmente queria. Ela era teimosa, obsessiva no trabalho, demasiadamente sagaz para seu próprio bem. Aaron passa por uma crise de identidade, sem entender que seu sucesso não depende de ser um âncora. Ele algumas vezes é petulante, inseguro, até mesmo contraditório. Já Tom desistiu da angústia de tentar a perfeição, é menos esperto, menos alerta, menos preocupado que Jane e Aaron. Como James Brooks explica “Trabalhei duro pra criar três pessoas com defeitos e que soassem realistas. Eu sabia dizer os problemas internos de cada personagem, o que precisava ser consertado no âmago deles. Tom não tem qualificação pro trabalho, não tem ideais que não sejam para o próprio benefício. Mas ele sabe se portar, tem boa intuição, decência, uma noção de que a vida deve ser divertida e que a responsabilidade começa e termina no seu lar. Aaron é brilhante, dedicado, tem um grande senso de integridade, mas tem uma pitada de arrogância intelectual nele. Ele alfineta as pessoas. Janes beira ao comportamento compulsivo. Mas ela é uma idealista, sempre luta pelas pessoas. Ela é tão correta, tão especial, que acaba sendo vítima do seu cérebro ao invés de ter controle sobre ele (um sinônimo de comportamento compulsivo). Pensei nos personagens através das falhas. Mas eu constantemente tento descobrir o que faz de alguém um herói (quais são as qualidades especiais?) Acho que todo mundo sabe falar sobre fraquezas. Podemos pegá-las de nós mesmos e da nossa imaginação. Mas entender o que existe de heroico no ser humano, isso exige um tempo de reflexão. “ As falhas dos personagens podem ser catalizadores da história. Certamente a decisão de Dan em ter um caso discreto pode ser visto como uma falha de caráter. Jane tem dificuldades de tomar decisões por causa de suas próprias imperfeições. Esses dois triângulos são mais fortes pois os personagens são complexos, com suas próprias lutas, suas próprias direções emocionais, suas obstinações.

voltar ao índice

Frequentemente, falhas e imperfeições internas ocorrem quando pelo menos um dos personagens é guiado pelo lado sombrio de sua personalidade. Dan, em “Atração Fatal” é um tradicional e feliz homem casado (um cara bacana). O lado sombrio da sua personalidade é dissimulado, luxurioso. É esse lado sombrio que atrai Alex e não o lado “casado, fiel, homem de família”. Por fora, Alex é uma mulher atraente e bem sucedida. Mas por dentro, seu inconsciente é guiado pela insegurança e desespero causados por sua má interpretação sobre como Dan a tratou. Quando se cria um triângulo, geralmente um dos personagens (talvez mais de um) será guiado por sua sombra. Apesar de não ficar tão claro no filme “Nos Bastidores da Notícia”, é evidente que em vários triângulos, como no “Fantasma da Ópera” e em“Ligações Perigosas”. Em “Ligações Perigosas” Madame de Torville é tremendamente virtuosa, mas seu lado sombrio (sensualidade e desejo) a leva a ter um caso com Valmont. Surpreendentemente, o lado sombrio de Valmont é virtuoso. Isso é raro, já que o lado sombrio geralmente segue pelo lado obscuro e negativo da personalidade. Mas a sombra, tecnicamente, significa “o que está encoberto”, ou o lado reprimido da personalidade. No caso de Valmont, ele tem uma decência inata. Foi sua capacidade de amar e sentir que foi reprimira e que despertou por causa de Madame de Torville. O lado consciente da personalidade dele é traiçoeira, manipuladora; o lado inconsciente tinha empatia e afeto. O triângulo é fortalecido se algo é escondido dos outros personagens.

voltar ao índice

Alguns exemplos dos motivos foram escondidos: Beth não sabe que Alex está ativamente a procura do seu marido para tirá-lo dela. Alguns exemplos de ações que foram escondidas: Jane não sabe que Tom adulterou uma notícia. Alguns exemplos de inclinações pessoais que foram ocultas: Beth não sabe da atração de Dan por Alex. Jane não sabe que Aaron está apaixonado por ela. O que é escondido pode ser algum traço psicológico do personagem que guiará a história e o próprio personagem, mesmo que nem a própria pessoa tenha conhecimento disso. Alex provavelmente não sabe do poder do seu desespero. Ela não tem consciência da projeção que faz em cima de Dan, da sua confusão sobre o relacionamento que eles têm. Seu inconsciente complica profundamente a história. As qualidades ocultas (sejam internas ou externas) têm potencial de direcionar o personagem a uma crise. Um momento importante nesse tipo de história é a revelação, o momento em que aquilo que estava oculto se externaliza. Quando Beth fica sabendo sobre Alex, suas ações criam uma crise no casamento. Quando Jane fica sabendo sobre a desonestidade de Tom, o relacionamento entre eles entra numa crise. Trabalhar em triângulos é como fazer malabarismo com vários objetos e não deixá-los cair. O desafio mais complicado que já encontrei num roteiro foi relacionado à criação de um triângulo entre personagens. Existe muita coisa pro escritor organizar e resolver. Apesar da complexidade, as relações mais poderosas vêm de relações complexas. ESTUDO DE CASO: CHEERS “Cheers” é um exemplo de uma série que explora várias dinâmicas novas entre personagens, desde seu começo houveram muitas mudanças no seriado. Sua estreia foi em setembro de 1982. Na temporada de 1984, um dos

voltar ao índice

atores principais, Nicholas Colasanto, que interpretava Coach, morreu. Os atores tiveram que decidir que tipo de personagem o substituiria da melhor forma, um personagem que mantivesse a mesma dinâmica. Em 1987, Shelley Long, que interpretou Diane, deixou a série. Os autores tiveram que decidir quem a substituiria para criar uma nova dinâmica. James Burrows, um dos criadores (junto de Glen e Les Charles) e diretor de muitos episódios, explica o processo: “Queríamos fazer um seriado sobre um bar de esportes e o relacionamento entre Tracy e Hepburn. Gostamos do contraste desse relacionamento: Senhor “subúrbio” e senhora “do centro da cidade”; o pragmático e a idealista; o cara que diz “não vai dar certo” e a mulher que diz “pode dar certo!”. É um embate conhecido, cria casamentos incríveis. Então a ideia original era ser uma série sobre uma garota que tinha um bar e um cara que trabalhava pra ela. Mas os escritores vieram com uma ideia de colegas de faculdade sonhando em ter um bar para ex atletas. “À medida que modelávamos mais profundamente os personagens, fizemos Sam um ex-alcoólatra, e demos a Diane um pai e um gato que morreram. Criamos novas dinâmicas aos personagens ao aproximá-los ou afastá-los. “O desafio foi manter Diane elevada e empática enquanto Sam permanecesse um atleta mas sem deixá-lo muito idiota. “Outra coisa que decidimos foi que essa série seria uma sitcom que teria uma evolução ao longo do tempo, os personagens iriam se transformar durante a série. Os críticos não acharam não gostaram, a maioria das sitcons não possuem evolução de personagens, mas nós gostamos, parecia que os personagens seriam melhor definidos e nos dariam mais material para explorar. “Então escrevemos um roteiro. Foi incrível, tivemos sorte de termos dois atores com uma boa química para interpretar os papeis. Foi isso: tivemos sorte no elenco.

voltar ao índice

Aquelas duas pessoas vieram e deram vida aos personagens, tornaram eles mais importantes que o bar. “Tentamos criar relações fortes com personagens secundários (coadjuvantes). Sempre sentimos que Carla tinha um tesão por Sam, e que agia de um jeito esquisito com Diane por ciúmes do Sam. Carla criticava muito Diane, mas você sentia pena dela e isso a livrava do rótulo de hostil. Com o passar dos anos, essa dinâmica evoluiu e o resultado foi incrível. Acho que Carla inconscientemente se deu conta que Diane foi mais esperta do que ela. Diane podia ser mais esperta no nível intelectual, mas Carla tinha a esperteza das ruas. A vida familiar de Diane era feliz, da Carla não. Carla era sobrecarregada com filhos, Diane era livre. “A sitcom é movida pelo conflito de personagem. No começo, era a química entre Sam e Diane que guiava a série (e como Carla reagia a Sam, como todos reagiam ao Cliff e como ele era boca suja). Com esses tipos de personagens nós poderíamos fazer uma série simples do tipo: Diane pegando dinheiro emprestado do Sam e, mais tarde, ao invés de pagá-lo primeiro, ela prefere comprar roupas; e Sam tendo uma reação do tipo “Por que ela não me pagou?” “Quando Shelley deixou a série, voltamos à premissa original, que era sobre uma mulher que tinha um bar. Todos amavam Sam, ele era a cara da série. Se perdêssemos ele, não poderíamos continuar. Era o bar do Sam e era com ele que as pessoas se sentiam confortáveis. Com a entrada de Kirstie (que interpretava Rebecca), todos os personagens voltaram a ser importantes e a série se tornou algo mais coletivo. “Quando criamos Rebbeca, pensamos numa personagem que fosse uma completa cretina. Decidimos não ir pelo lado comediante, pois ninguém seria mais engraçado que Shelley. Decidimos não fazer mais uma loira, mais uma garçonete. Kirstie foi a primeira atriz que vimos. Jeff Greenberg, nosso diretor de elenco, disse ‘Tenho a pessoa certa pra vocês’. Então Kirstie fez o teste. Ela tinha jeito vulnerável, e ninguém tinha pensado no papel com aquela

voltar ao índice

perspectiva. Depois do teste, Teddy disse que queria ela no papel. Pensamos a respeito, seria um caminho diferente do que planejávamos, mas achamos que seria uma boa escolha. “Kirstie adicionou à personagem um jeito neurótico e desmiolado. Funcionou. A série ganhou uma nova vida. “Quando vimos essa direção pra Rebecca, começamos a criar seu passado. Descobrimos que ela foi pra Universidade de Connecticut e tinha um apelido, era um fracasso nos antigos empregos. “Com essa nova personagem, existia todo um conjunto de dinâmicas para serem criadas entre Rebecca e Sam. Decidimos que seria engraçado que ela fosse uma mulher sem qualquer atração por Sam e ele ficasse perplexo com isso. Ele obviamente reagiria como normalmente faz com qualquer garota: ‘Eu posso tê-la quando eu quiser’. Não progredimos com isso tanto quanto fizemos com Sam e Diane (seus personagens não se moveram muito nesses dois anos), apesar de terem virado amigos. “Rebecca também mudou a dinâmica com outros personagens. Ela e Norm tem um relacionamento incrível. Eles se importam um com o outro. Sentimos num dos episódios, que Rebecca precisava falar um pouco de si mesma. Se usássemos Sam pra isso, ele iria querer levar ela pra cama. Então fizemos Norm ouvi-la falar. Ele não tinha nenhuma segunda intenção. Era um ouvinte. Assim conseguimos mais informações sobre sua vida. “Carla sofreu um pouco pois Rebecca foi sua chefe e não podia provoca-la. Então a relação delas não era muito dinâmica como a que Carla tinha com Diane. Mas demos a Carla um marido, pra que ela pudesse descontar nele. “Tivemos que substituir Nick Colasanto ao final da terceira temporada. Já sabíamos há um ano que ele estava doente. Tivemos algum tempo pra descobrir o que fazer antes dele falecer. Precisávamos de um bartender, isso não havia escolha. Queríamos alguém jovem. ‘Caras e Caretas’ estava fazendo bem mais sucesso com o público jovem que a gente. Tínhamos que colocar um pouco de jovialidade

voltar ao índice

na série. Queríamos alguém mais sóbrio, pois Nick fazia as piadas bobas. Na comédia é sempre bom ter alguém que não é muito vibrante pra que possamos ir explicando a trama para os espectadores através de piadas bobas com aquele personagem. É uma boa estratégia de escrita. Decidimos que ele seria um cara mais rural. Woody não se encaixava no estereótipo. Pensamos num rapaz mais magro com dentes grandes, mas Woody apareceu como um cara másculo da fazenda e histérico. Foi a melhor solução. “Woody e Coach eram bem parecidos (faziam o mesmo tipo de piada). Woody tinha um ar de filho e com isso se perdia a “figura paternal” que Nick representava, mas Woody fazia um pouco mais que isso. “A verdade é que fizemos várias mudanças e revisões na serie. Foi quase um milagre que tantas mudanças tenham funcionado.” APLICAÇÃO Os conceitos que abordamos podem funcionar em qualquer tipo de relacionamento. Sejam personagens principais ou secundários, criar uma dinâmica de relacionamento forte pode trazer vida e empolgação a sua história. Enquanto pensa em seus personagens faça as seguintes perguntas: ■■ Existe conflito entre meus personagens? Isso é expressado através de ação, posturas, valores? ■■ Contrastei meus personagens pra criar diferenças entre eles? ■■ Existe potencial nesses personagens para que mudem um ao outro? O público irá entender o motivo dessas duas pessoas estarem juntas? A atração entre eles é clara? O impacto que um tem sobre o outro também é claro?

voltar ao índice

RESUMO Drama é essencialmente relacionamento. É raro que se resuma a pessoas. São pessoas interagindo, influenciando e sendo influenciadas. Sofrendo mudanças por causa dessas interações. Sem a dinâmica dos relacionamentos, os personagens podem ficar desinteressantes. São os conflitos e contrastes que geram drama entre os personagens, que provam que relacionamentos podem ser tão cativantes e memoráveis quanto qualquer personagem singular.

voltar ao índice

6 Personagens Secundários e Personagens Menores Adicionar personagens secundários expande a paleta da história. Assim como um pintor que continua adicionando detalhes para aprimorar a pintura, o escritor adiciona personagens secundários para dar mais profundidade, cor e textura à história. Muitos princípios para criar personagens principais são usados nos personagens secundários. Eles precisam ser consistentes, ter posturas, valores e emoções, além de ter suas contradições. Mas existem diferenças importantes. Imagine uma fotografia de um casamento. Existem vários detalhes ao redor das duas figuras principais (a noiva e o noivo). E existem várias figuras, muitas delas são indistintas umas das outras. Mas algumas delas são bem definidas na multidão: uma jovem de vermelho, por exemplo, ao fundo, brincando com um filhotinho que estava passeando pelo cenário; o padre, com ar presunçoso. Na visão panorâmica, onde o padre está ao topo da escadaria, a mãe da noiva em seu vestido amarelo de laço, chorando de alegria, próxima à filha. Nessa cena, os personagens secundários são tão memoráveis quanto os principais. Apesar de existir alguns sem muita distinção (os convidados extras), existem outros rondando a história, que expandem a premissa de amor e matrimônio.

voltar ao índice

Muitas vezes, personagens secundários roubam a cena, tornando-se mais importantes do que o escritor pensava que seriam. Às vezes isso aprimora a história. Nas séries, os personagens secundários às vezes tornam-se os favoritos do público, como aconteceu em “Dias Felizes” e “Caras e Caretas” quando Fonz e Alex se destacaram. James Burrows diz, “Se você tem um bom personagem secundário, faça uso dele até o talo. Não o dispense. O namorado da Diane (Fraiser) inicialmente era um mero pretexto para colocar Diane de volta no bar. Mas ele se tornou algo maravilhoso e continuamos a usá-lo.” Dale Wasserman explica: “Às vezes personagens secundários são mais interessantes que os principais, pois os principais carregam o fardo de mover a história adiante; já os secundários não e, consequentemente, podem ter mais liberdade.” Às vezes esse “roubo de cena” pode ser perigoso. A história pode ficar desbalanceada se os personagens secundários não tiverem seus lugares. Para uma melhor compreensão sobre que lugar seria esse, vamos olhar para o processo de criação de personagens secundários. Esse processo inclui: ■■ Decidir que função esse personagem precisa ter. ■■ Fazer desse personagem alguém que contraste com os outros personagens para preencher essa função ■■ Preencher esse personagem com detalhes A FUNÇÃO Para começar, pergunte-se: Além do meu protagonista, quem seria necessário para contar essa história? Quem meu/minha protagonista principal precisa por perto? Ao esclarecer isso, você evita criar personagens desnecessários e começa a entender quem é necessário de fato. O objetivo é achar o equilíbrio entre personagens principais e personagens secundários, além de não deixar a história confusa por excesso de personagens.

voltar ao índice

Um personagem secundário pode ajudar em várias funções: definir o papel do protagonista, ajudar no desenvolvimento da história, além de transmitir o tema principal. O personagem secundário ajuda a definir a importância e o papel do protagonista. Se um personagem é definido por seu papel ou ocupação (como uma mãe, um presidente de empresa, o caixa de um restaurante), você precisa criar personagens ao redor dele que ajude a esclarecer esse papel. Mães precisam de crianças ao seu redor para mostrar que são mães. Presidentes de empresas precisam ter vices, secretários, motoristas e seguranças. Caixas de restaurante são cercados de garçonetes, garçons, cozinheiros, ajudantes e clientes. Quantos desses personagens usar, quanta ênfase dar a eles, tudo vai depender das necessidades da história. Mas, seja como for, sem os personagens secundários o lugar do seu protagonista não será claro. Quando “Midnight Caller” foi criada, os roteiristas já notaram que Jack Lillian dependeria de personagens para exercer sua profissão. Richard Dilello, criador da série explica: “Criamos três personagens secundários. Ele precisava de um engenheiro (uma espécie de operador que atendia as ligações), esse personagem era Billy Po. Claramente era necessário um tipo de “infiltrado” na polícia para ajudar nas histórias mais criminais. O que poderia ser mais convincente do que seu comandante aposentado, Lieutenant Zymak? Devon é a produtora, o anjo salvador. Ela precisava ser cheia de vida, atraente e inteligente, alguém que já foi tão forte quanto ele um dia foi.” Note nessa cena como Devon, o produtor, e Po, o engenheiro, exercem suas profissões e dão sustentação ao personagem principal.

voltar ao índice

Killian está revisando sua cópia. Ele olha pra Billy Po na sala de controle. Billy liga o computador. Jake pega sua cópia e joga na lata de lixo. DEVON O que você tá fazendo? KILLIAN Não consigo ler essa porcaria. DEVON Como assim não consegue ler? KILLIAN Me deixa improvisar... DEVON Não. Desculpa. Eu escrevi isso pra você. KILLIAN Você acha mesmo que a gente tem tempo pra discutir isso agora? Killian balança a cabeça para o aviso de “AO VIVO” que acende. Devon suspira fundo e com resignação. Se inclina em direção ao microfone. DEVON Essa é a Midnight Hour, eu sou Devon King na Rádio KJCM, 98.3 FM --- Essa noite, na KJCM, temos o prazer de anunciar o nascimento da Midnight Caller. Um programa que põe você no comando... Jack Killian, recentemente retornou à vida civil. Ele atenderá suas ligações e responderá perguntas sobre o trabalho policial e procedimentos... Contudo, é importante frisar que as opiniões de Jack Killian não refletem necessariamente a opinião do Departamento de Polícia de São Francisco. DEVON ...nem as opiniões e políticas internas da KJCM.

voltar ao índice

PO KJCM, Midnight Caller. Obrigado pelo contato. Qual seu nome e de onde fala? DEVON Agora, sem mais demora, temos o prazer de apresentar Jack Killian KILLIAN A ave noturna! Devon lança um olhar pra Jack, mas continua sem perder a pose. DEVON Nosso convidado no Midnight Caller. (mais tarde)... O sinal “AO VIVO” se apaga. Devon vira-se para Jack. DEVON A ave noturna? KILLIAN É. Você gostou? DEVON Não muito. Personagens secundários ajudam a transmitir o tema principal da história. A maioria dos escritores tem algo importante e significativo que desejam comunicar com suas histórias e personagens. Os personagens secundários são uma oportunidade de transmitir o tema, sem que a história fique muito pedante ou com diálogos demais.

voltar ao índice

Para isso, o escritor precisa primeiro pensar no tema. Pode ser sobre identidade, integridade, comunidade, tirania, fama, amor, ou outras ideias. Então, cada personagem pode começar a expressá-lo. “Gente como a Gente” é uma busca por significado e identidade. Judith Guest explica, “Conrado e Calvin conseguem se modificar com os desafios de suas vidas, mas outros personagens permanecem numa vida superficial (eles representam a vida “não experienciada”). Cada personagem serve para mostrar uma das faces desse tema. O psiquiatra Burger, Calvin, Conrad, Jeanine e Carole, expandem a ideia de “vida experienciada”, são os que vivem a vida mais profundamente. Stillman, Ray, e Beth mostram a face das pessoas que vivem superficialmente, e que não tem vontade (ou capacidade) de se modificar.” “Um estranho no ninho” explora o tema da relação de um rebelde com a autoridade. Temas relacionados: repressão, tirania e empoderamento. Os personagens secundários dessa peça representam o medo, o desejo de segurança, a repressão, e o anseio de serem fortes. Aqui estão três declarações de três personagens secundários que expandem esses temas. Dr. Spivey representa as regras repressivas, mas também um peão da tirania da Enfermeira Ratched.

DR. SPIVEY Comunidade terapêutica. Significa que essa ala é uma sociedade em miniatura e, já que a Sociedade decide o que é ou não sadio, é preciso medi-la. Nosso objetivo aqui é uma ala completamente democrática, governada pelos pacientes – trabalhando para reintegrar vocês na vida lá fora. O importante é não deixar que nada apodreça dentro de vocês. Falar. Discutir. Confessar. Se você ouvir algum paciente falar

voltar ao índice

algo importante, escreva no Livro de Registros para todos verem. Sabem como isso se chama? MCMURPHY Dedurar. O paciente Heading reconhece sua fraqueza, mas não pode fazer nada a respeito. HARDING O mundo pertence ao mais forte, amigo. O coelho reconhece a força do lobo, por isso cava e se esconde quando o lobo se aproxima. Ele não desafia o lobo. Sr. McMurphy, meu amigo. Não sou uma galinha, sou um coelho. Todos aqui somos coelhos, saltitando pro nosso mundo da Disney! Billy pula em volta do Sr. McMurphy aqui. Chesqick, mostre pra ele como você é peludo. Ah, ele é tímido. Não é meigo? O índio do rio Columbia, Chief Bromden, vê claramente a repressão, mas não se considera suficientemente “forte” pra lutar. CHIEF BROMDEN Não posso te ajudar, Billy. Nenhum de nós pode. Quando um homem vai ajudar alguém, ele se torna vulnerável. É isso que McMurphy não consegue entender em nós: queremos ficar seguros. É por isso que ninguém reclama da neblina. Por pior que seja, você pode se esconder nela e se sentir a salvo. Cada um desses personagens representa uma parte diferente do tema (repressão). Dr. Spivey é o porta-voz da autoridade, que limita as respostas alheias, sempre pronto para delatá-los. Harding e Bromden representam a falta de ânimo para lutar contra a repressão e o desejo de se sentirem a salvo.

voltar ao índice

Personagens secundários podem ser elementos catalizadores, externalizando informações que movem a história adiante. Samuel, em “A Testemunha”, dá informações que John Book precisa para o trabalho.

BOOK Sou policial. Samuel, quero que me fale tudo que viu quando estava lá. SAMUEL Eu o vi. BOOK Quem? SAMUEL O homem que matou ele. BOOK Certo, Sam. Pode me dizer como era a aparência dele? SAMUEL Era igual a ele (Samuel aponta pra Carter, o parceiro de John) BOOK Era um homem negro? De pele escura? SAMUEL Mas não era mirradinho. BOOK Não era o quê?

voltar ao índice

RACHEL Na fazenda, o menor porco da ninhada é mirradinho. Pequenininho. PERSONAGENS SECUNDÁRIOS ADICIONAM COR E TEXTURA O tipo de personagem que você vai criar pra uma função na história não pode ser uma escolha aleatória. O primeiro passo é saber o que você precisa, o próximo é decidir que cores e texturas poderiam ser usadas para definir ainda mais os contornos da sua história. Existem várias decisões possíveis. Contrastar seus personagens te proporcionará traços mais fortes. Pode significar contrastar o personagem secundário com o protagonista, ou contrastar personagens secundários entre si. Esse tipo de contraste pode ser físico: claro/escuro, pesado/magro, rápido/vagaroso. Pode ser em posturas: pessimista/otimista, ingênuo/ articulado, reativo/despreocupado, apaixonado/frio. Contrastar personagens é especialmente importante nas series. Bill Finkel, escritor e produtor de “L.A Law”, fala dos contrastes construídos nos personagens da série. Apesar de alguns personagens serem considerados personagens principais, Bill diz que não saberia fazer uma distinção exata. Eis sua opinião: “Existem contrastes nas posturas deles em relação ao trabalho. Brackman é do tipo administrativo, ele dá prioridade ao financeiro da firma, enquanto Kuzak é mais ideológico, dá prioridade a uma agenda mais política, ativa, moral. Becker é muito materialista, mais do tipo

voltar ao índice

egoísta, de autopromoção (mais que qualquer outro da firma). Markowitz dá mais importância pros resultados, devido a sua profissão de contador e de assessor fiscal. Kelsey, por sua vez, tem uma grande consciência social e inclinações feministas. Também existem contrastes na origem étnica e classe social. Victor Sisifuentes é um hispânico do leste de Los Angeles. Seu considerável sucesso no âmbito legal trouxe alguns problemas para ele. É solteiro e bonito, tem consciência social e ideias de cunho progressista. Markowitz é um judeu de classe média-alta, mais velho (por volta de quarenta anos), casado e no processo de começar uma família. Ele é do tipo controlador, detalhista, é meio sufocante no jeito de lidar com uma situação, define compulsivamente as opções e alternativas. McKenzie é o sócio sênior, provavelmente nos seus sessenta anos, num estágio de vida onde outras coisas ganham certa importância. Ele também tem poder na firma por ser um sócio sênior. Jonathan Rollins é um negro de classe média, o que diz alguma coisa sobre a diferenciação entre ele e outros negros que cresceram em Compton. Roxanne, a secretária, é desesperada por algum tipo de relacionamento seguro e significativo. Ela ganha bem menos que os advogados, portanto está numa situação material e numa classe social diferente deles. Existe um contraste entre casados/solteiros. Rollins e Sisifuentes são solteiros; Kelsey e Markowitz são casados; Abby e Brackman são divorciados. Abby é mãe solteira, Kelsey e Markowitz estão no processo de começar uma família. Existe contrastes de valores, como a consciência

voltar ao índice

social versus materialismo. Kuzak trabalha no sistema criminal de justiça. Ele e Sisifuentes podem representar um estuprador condenado, enquanto Becker, que é um advogado matrimonial, não teria o menor interesse em representar alguém assim. Existe também contraste no estilo. Seja no que vestem (Becker é bem estiloso), no tipo de carro que dirigem (Grace Van Owen dirige uma BMW), o tipo de casa que moram, o tipo de mobília do escritório (Sisifuentes tem posters de Diego Rivera no escritório, Becker tem uma mobília fria, de impacto dramático; Kelsey tem um escritório mais confortável”. Personagens de menor importância podem ser apresentados ao público através do contraste. No filme “Jogos de Guerra”, de Lawrence Lasker e Walter Parkes, existem dois personagens menores que dão informações para David (personagem principal), sobre como invadir um computador. Eles poderiam ser tediosos e sem graça, mas pequenos detalhes contrastantes e ritmos são adicionados para criar uma cena interessante. Malvin é descrito como um “cara magro, exagerado e que se comporta como um adolescente”, e Jim é descrito como “obeso, mal vestido, com ar de arrogante”. O nervosismo de Malvin contrasta a premeditação de Jim. DAVID Deixa eu ver uma coisa. MALVIN O que é isso? Onde conseguiu? DAVID Tava tentando invadir a Protovision... Queria pegar os programas pros novos jogos deles. Jim pega uma cópia impressa

voltar ao índice

MALVIN Espera. Não terminei de ler. Jim pega mesmo assim. Olha com atenção, meio pelo canto dos óculos fundo de garrafa. JIM Guerra termonuclear global... Isso não é da Protovision. MALVIN Eu sei que não. Pergunta pra ele onde conseguiu. DAVID Já te disse. MALVIN Parece coisa militar. Definitivamente militar. Provavelmente sigilosa. DAVID Se for militar, por que eles teriam jogos tipo 21 e damas? JIM Talvez porque são jogos de estratégia básica. Jennifer olha curiosa pro grupo de esquisitos. MALVIN Quem é ela? DAVID Ela tá comigo. MALVIN Por que ela tá ali? Ela tá perto do drive. Não deixa ela tocar naquilo. Tô tendo um monte de problema com aquela unidade. JIM Se você quiser mergulhar nisso, descubra tudo

voltar ao índice

sobre o cara que desenvolveu o sistema... DAVID Fala sério. Como eu vou achar esse cara? Jimi pondera o problema. Mas Malvin o interrompe impaciente. MALVIN Vocês são tão idiotas. Nem acredito. Aposto que eu consigo, eu consegui descobrir. DAVID Ah é, Malvin? Como você faria? MALVIN Primeiro jogo da lista, espertões. Vou entrar usando o nome Falken’s Maze. Apesar da cena ser curta e Malvin e Jim não aparecerem mais, veja como eles são claramente diferentes. A cena por si só é simples. Feita para dar uma informação que permitirá que a história continue. Mas esses personagens transformaram uma cena previsível, numa cena intrigante e cativante. EXERCÍCIO: Pense em como contrastar dois advogados, dois policiais, dois trapezistas, dois carpinteiros, dois irmãos gêmeos. Às vezes os personagens são propositalmente parecidos. Ao invés de usar cores e texturas contrastantes, os personagens funcionam de maneira parecida. Por exemplo, “E o Vento Levou”, os pretendentes de Scarlet são indistintos, para que Rhett Butler consiga se destacar deles.

voltar ao índice

Vilões e guarda-costas normalmente são parecidos, bem como dançarinos próximos ao coro, marinheiros ou funcionários de escritório, isso acontecerá sempre que você quiser personagens que não chamem muita atenção pra si. Às vezes uma característica se desenvolve, até mesmo é exagerada, ao ponto de definir um personagem por completo. Isso é particularmente presente em personagens de quadrinhos. Wendy, esposa de Achrie, no filme “Um Peixe Chamado Wanda”, é apresentada como alguém que está sempre vivendo uma grande frustração. Tudo dá errado pra ela: O pneu do carro fura, a filha tem acne, os pratos estão trincados, problemas numa partida de bridge, a bebida vem sem gelo (a vida dela é cheia de pequenos problemas). Uma característica exagerada pode ser física. Em “Platoon”, Barbers (Tom Berenger) é definido fisicamente pela sua cicatriz, que denota uma série de experiências negativas. O temperamento desse personagem transmite dureza, vingança, distorção e corrupção de alma. Às vezes personagens secundários são definidos pelos contrastes e contradições nas suas próprias personalidades. Isso pode adicionar um toque memorável que dará uma dimensão extra ao personagem. Em “007, Marcado Para Morrer”, o vilão, um grandalhão interpretado por Joe Don Baker, amava brincar com bonequinhos. Esse detalhe o tirou do estereótipo comum de um vilão. Em “Loucademia de Polícia” existe um capitão de polícia que ama seu peixinho dourado. Em “Apertem Os Cintos, O Piloto Sumiu” existe uma mulher de classe média que sabe falar de um jeito malandro e uma freira que não hesita em

voltar ao índice

dar umas bordoadas para recobrar o bom senso de uma mulher em pânico. Esses toques, apesar de sutis, acrescentam tanto humor como dimensões a personagens que talvez só tenham alguns instantes em cena. Existe certo perigo ao fazer isso. Já vimos personagens com algum tique ou característica física que, ao invés de criar interesse e profundidade, acabam deixando confuso e limitando tanto o personagem quanto a história. Tornam-se uma caricatura. Trejeitos e características funcionam melhor quando realmente contribuem com a história ou quando existe ao menos uma boa razão de existir. Em “Um Peixe Chamado Wanda”, Otto lê Nietzsche para provar que não é burro. Em “Apertem Os Cintos, O Piloto Sumiu”, a situação perigosa causa pânico e confusão. Tanto a mulher das gírias quanto a freira espancadora estão ali para solucionar o problema. Às vezes, a cor ou a origem do personagem cria um personagem-tipo. Personagem-tipo não significa estereótipo. Não são definidos por seu papel, gênero ou etnia (a “secretária burra” ou o “negro maneiro”, por exemplo), mas são definidos por suas ações. Eles estão caracterizados de uma forma tão característica que o público os reconhece imediatamente. Ao longo da história da escrita de ficção os escritores têm usado os personagens-tipo. Nas peças romanas, os tipos utilizados eram: soldado braggadocio, o estudante pedante, o parasita, o pai tolo, a megera, o almofadinha, o escravo astuto, o bufão, o trapaceiro, o rústico. Nas últimas peças, notamos a donzela intrigante, o rapaz apaixonado, e o louco. Por último, o melodrama levou o tipo a limites inéditos. Como o vilão que enrola o bigode, o herói bonitão, e a jovem bela.

voltar ao índice

Nesses casos, as características definidoras (tolo, pedante, etc) nunca significavam que “todos os pais são tolos” ou “todos os estudantes são pedantes”, mas que dentro do prisma de pais e estudantes, uma parte deles é tola e pedante. Enquanto o personagem-tipo pode ser um elemento importante na história, o estereótipo simplesmente limita a história. (O estereótipo será discutido com mais detalhes no Capítulo 9). Às vezes é importante usar um personagem-tipo. “Quando se está criando personagens menores pra séries...”, explica James Burrows, “você tenta deixar a coisa evidente. Se você tem um valentão, você tenta escolher um ator que pareça ser assim. Se você escolher alguém que é, mas não parece, você vai perder muito tempo fazendo o público entender seu personagem. Porém, se você escolher um cara que pareça valentão, pode aproveitar o tempo para deixa-lo mais interessante, engraçado”. O personagem-tipo pode ser desenhado de forma mais genérica (sem tantos detalhes), ou pode ser feito com atenção extra aos detalhes. Tartuffe (da peça Moliere) é um personagem-tipo, um hipocondríaco; Polonius de Hamlet é um pai manco, mas ambos detém detalhes consideráveis. Quando o professor de atuação e diretor Constantin Stan-islavski, trabalhou com atores, ele os encorajou a adicionar detalhes aos seus personagens continuamente. A descrição do processo pode te ajudar a criar um personagem-tipo. “É possível interpretar um personagem no palco de forma genérica – como um soldado. Normalmente ele mantém uma postura ereta, marcha de lá para cá ao invés de caminhar, bate continência, fala alto... Mas isso é muito genérico... É aceitável pra uma impressão, mas não pra um personagem... Fica muito sem vida, tradicional, um retrato banal. Não passa a impressão de uma pessoa, mas de uma simples figura num ritual. Outros atores, que possuem um poder mais apurado de percepção, são capazes de escolher sutilezas dessa figura. São capazes de fazer distinções no

voltar ao índice

corpo militar, entre um soldado raso e da mais alta patente, entre a cavalaria e a infantaria. Eles conhecem soldados, oficiais, generais... Outros atores adicionam detalhes ainda mais sofisticados, uma observação ainda mais apurada. Agora temos um soldado com um nome, Ivan Ivanovich Ivanov, com características únicas que se sobressaem de um soldado qualquer.” Apesar de não ser a função do escritor colocar pausas, gestos, troca de olhares (isso é trabalho do ator), ainda é necessária alguma definição específica da essência do personagem, aquilo para além dos traços genéricos. Atores não conseguem interpretar coisas genéricas (e um personagem genérico não atrai um ator para o papel, nem um leitor para um livro). PREENCHENDO UM PERSONAGEM Ao entender a função, adicionar cor e textura, você estará perto de criar um personagem completo. Mas talvez também seja necessário adicionar detalhes que você tire da sua própria observação e experiência. Às vezes isso pode significar se colocar na pele do personagem. Seth Werner, criador dos comerciais da California Raisins comenta “ Muitos dizem que os personagens que coloco nos comerciais têm um pouco de mim. Alguém disse que dá pra me achar na fila de uvaspassas dançantes. É o jeito que eu ando e é o jeito que eu dançaria. O comercial é um pouco fora do normal. E é isso que gera um pouco de personalidade e magia. Mesmo quando os animadores faziam as uvas-passas de modelar, dava pra ver eles olhando para o espelho e copiando as próprias expressões para o rosto das uvas-passas. Quando o trabalho é feito com coração, as pessoas sentem isso. Isso as toca. Talvez sejam esses pequenos detalhes, essas sutilezas que deixam a coisa especial. Robert Benton criou uma série de personagens do “Um Lugar no Coração” usando lembranças e observações de pessoas que já conheceu. “Eu tinha um tio-avô que era cego.

voltar ao índice

Estava sentado com minha família falando sobre o roteiro quando alguém me lembrou do meu Tio Bud. Começamos a contar histórias sobre ele e ele se tornou o base para Mr. Will. Queria criar um homem bem inteligente, que perdeu a visão, que se isolou da vida e que acaba voltando a viver ao longo do filme. Queria um tipo de inteligência, um tipo de raiva a respeito da sua vida. Meu tio tinha a inteligência, mas não a raiva. Eu quis mostrar que Will se dava bem com as pessoas, que era um pouco mais sofisticado, um pouco mais neurótico que os demais. Will gera contraste e uma textura diferente pra história. Nem todo mundo ali poderia ser uma pessoa legal de cidade pequena. Alguém tinha que ser diferente. “Margaret e Vi são uma mistura de duas ou três pessoas que conheci no ensino médio. Eu particularmente amo a personagem Wayne. Cresci no sudoeste, nos anos 30 e 40, com música hillbilly (que fala sobre grandes paixões). Eu queria alguém com uma grande paixão e um conjunto de problemas incomuns para uma pessoa do interior, temente a deus. Música country fala sobre “Não roube o castelo de outro homem”. E sobre ir em botecos, sobre paixões arrebatadoras, no sentido mais comum possível”. Personagens secundários são feitos de pequenos detalhes tanto quanto os personagens principais. Mesmo que sejam menos importantes, eles podem ser desenhados com precisão. CRIANDO O VILÃO Tudo que já foi mencionado até aqui será útil para crialo. Mas o vilão tem alguns problemas incomuns. Por definição, ele é o personagem maligno que se opõe ao protagonista. Vilões normalmente são antagonistas, apesar de nem todos os antagonistas serem vilões. Por exemplo: Antagonistas não são vilões quando se opõe ao protagonista por mera função na história, sem que exista alguma má intenção.

voltar ao índice

Se o protagonista quer passar em Harvard, mas não tem pontuação suficiente pra isso; os avaliadores da instituição serão os antagonistas já que acabarão recusando a entrada do protagonista, mas não serão violões. O papel do vilão sempre significa maldade. Sejam vilões que vestem chapéus negros (como nos filmes de faroeste), ou voam em jatinhos cometendo crimes corporativos, eles colocam problemas no caminho do “mocinho”, normalmente causando estragos sociais e pessoais. Num nível bem simplista, histórias com um vilão normalmente são histórias sobre o bem contra o mal. Normalmente o protagonista luta pelo bem e o vilão se opõe ao bem. A maioria dos vilões são orientados pela ação: roubam, matam, traem, ferem, e trabalham contra o bem. A maioria deles são parecidos. Existe uma tendência de terem uma motivação fraca, serem unidimensionais. O motivo de serem maus é raramente justificado, é como se as pessoas fossem más porque gostam de ser. Porém, é possível criar um violão mais profundo. Dependendo do estilo da história, e da profundidade que você queira atingir, vilões podem ser tão inesquecíveis quanto qualquer outro personagem. Quando se trata de violões bem desenhados, esses com certeza serão lembrados: Capitão Blich em “O Grande Motim”, Salieri em “Amadeus”, ou os violões bem dimensionados na minissérie “Holocausto”. Para entender o vilão, é importante entender a relação entre o bem e o mal que existe na maioria das histórias. M. Scott Peck, no seu livro “O Povo da Mentira”, define o mal (evil) como a palavra “vivo” dita ao contrário (live). Usando essa definição, o personagem bom defende uma afirmação da vida (live). Luta pra salvar o rancho (Os Brutos Também Amam e Um Lugar No Coração), para superar abusos (Filha de Ninguém, Cama Ardente), pela auto estima (A Cor Púrpura), para florescer o potencial de alguém (Karate Kid, “Heart Like a Wheel”), para alcançar o outro (Rain Man), para reconhecer a humanidade naqueles

voltar ao índice

diferentes de nós (Bell, E.T.), para promover o crescimento e a transformação (Momento de Decisão). O mal se opõe ao bem. Ele tiraniza, restringe, reprime, deprecia, desafia, põe limites aos outros. Seja fazendo maldades óbvias, como o assassinato e outras formas de violência, seja em formas mais sutis de abusos, o vilão tem a mesma função: jogar contra o bem. Quais são as abordagens diferentes para criar vilões dimensionais? Antes de mais nada, é preciso se perguntar o porquê eles agem assim. Seus motivos podem ser esclarecidos quando tentamos enxerga-lo como uma vítima, ou como alguém egoísta. No primeiro caso (vítima), ele é definido pela reação; no segundo caso (egoísta), pela ação. Na maioria dos violões, os atos de maldade são resultados de influências negativas nas suas vidas. Caso você esteja criando um personagem assim, é preciso explorar o passado do personagem, olhar pros fatores sociais e pessoais que tenham criado essas características negativas. Você verá que ninguém é totalmente mal, e irá deixa-lo “redondo” mostrando pontos positivos, complexos psicológicos e emoções como medo, frustração, raiva, ódio, e/ou inveja. Muitas análises de crimes violentos da vida real, focam no vilão como uma vítima, buscando motivos, poréns. Qual o motivo de um cara quieto e modesto matar alguém? As ênfases normalmente vêm de uma vida familiar difícil e instável, frequentemente abusos e pobreza, repressão dos sentimentos, um estilo de vida solitário, sem relacionamento humano. Se você escolher criar um vilão ativo ao invés de reativo, você pode dimensiona-lo explorando os fatores inconscientes complexos que motivaram suas ações. Como dizem “Ninguém se acha o vilão”. Ninguém acredita que está fazendo o mal. A maior parte dos vilões acredita que está agindo pelo bem maior. Essas pessoas costumam ter mecanismos fortes de defesa. Não estão cientes das forças inconscientes que as direcionam. Geralmente são movidas pelo lado sombrio, e ficam continuamente justificando suas ações.

voltar ao índice

Don Corleone em “O Poderoso Chefão” é parcialmente motivado pelo amor à família. Apesar de Gordon Gekko (em Wall Street) admitir ser movido pela ganância, na visão dele “ganância” é uma palavra positiva, conota sucesso e ambição. Se você estiver criando vilões, tente descobrir o bem maior, ou o que eles acham que é o bem maior que os move. É um desejo por segurança? Amor à família? Proteção para si e para as pessoas próximas? Um mundo melhor (talvez um onde haja apenas uma classe social e uma cor)? Mesmo que haja aspectos positivos nessas motivações, elas serão praticadas com ações negativas (por causa do desejo do vilão de impor seu sistema de valores aos outros). De forma última, resultará em algum tipo de repressão. É possível que vilões desconheçam o que fazem. Me atreveria a afirmar, e não pretendo justificar seus atos com isso, que suas ações malignas são fruto das forças inconscientes que eles não compreendem. A violência e a repressão vindas desses personagens tendem a ser mais sutis, mas continuam sendo efetivas. Esses vilões negam suas ações e motivações, uma forma de negação que pode ser encontrada em comportamentos compulsivos, vícios e abusos. São o tipo de personagem que diz “Foi só uns tapas; isso não machucou meu filho”, ou “só tomei uns copos, não foi tanto pra ficar bêbado e violento”, ou “Amo minha esposa, tenho certeza que ela não tem medo de mim”. Os violões de “Cama Ardente” e “Filha de Ninguém” desconhecem os efeitos negativos de suas ações. Qualquer tipo de vilão sofre de algum tipo de narcisismo, uma incapacidade de ver e respeitar a realidade do outro. É a incapacidade de reconhecer a humanidade da outra pessoa, ou de respeitar o direito dessas pessoas serem quem são. EXERCÍCIO: Você já se sentiu oprimid_? O que seu opressor fez pra te fazer se sentir assim? Foram métodos passivos ou diretos? Imagine as respostas que seu opressor daria pra justificar essas ações. Você conseguiria criar um vilão usando essa pessoa como modelo?

voltar ao índice

ESTUDO DE CASO: UM ESTRANHO NO NINHO Um Estranho No Ninho começou como um romance de Ken Kesey, foi desenvolvido pra ser uma peça de Dale Wasserman, e então se tornou um filme em 1975, com os créditos pela escrita dados a Bo Goldman e Lawrence Hauben. Quando Dale Wasserman escreveu a peça, ele recriou os personagens secundários. Eles eram memoráveis por seus traços gerais, sua função temática e por sua relação com o personagem principal, McMurphy. Dale Wasserman vê cada personagem como um efeito colateral do tema. “O romance de Ken Kessey lida com o significado de um rebelde na sociedade. É o protótipo de um rebelde contra a autoridade e o que acontece com ele. Curiosamente, Man of La Mancha (também escrito por Wasserman) e Um Estranho No Ninho, que são drasticamente diferentes, são considerados quase a mesma peça pois cada qual lida com um rebelde, um abandonado pela sociedade, um homem que não se adequa. E em ambos os casos, a sociedade se dedica a reprimir ou exterminar esse homem. “O argumento que fiz na peça era sobre a padronização da sociedade e a supressão do indivíduo. O argumento girava em torno de que vivemos numa sociedade que precisa reprimir e disciplinar o indivíduo para preservar a si mesma. Protegendo-se das aberrações dos indivíduos ela preserva seu poder, pois pessoas indisciplinadas significam uma ameaça ao poder. “Pra dar esse sentido, tive que mostrar a relação entre a repressão e as vitimas da repressão. Então todos os personagens secundários são vítimas de alguma forma. Era necessário diferenciar cada personagem com precisão, pois vítimas em massa (feito um campo de concentração) são bem desinteressantes. Elas precisavam representar algo, mas não seriam personagens bem desenhados. Entendi que não funcionaria fazê-los um grupo uniformizado; seria um

voltar ao índice

grande problema individualiza-los o mais precisamente possível. “Cada um deles era uma vítima de um jeito ligeiramente diferente. O indiano era uma vítima, pois indianos são vítimas nos Estados Unidos. O homem com tendências homossexuais (Harding) é uma vítima pois a sociedade ri e despreza esse tipo de pessoa, então ele voluntariamente se retirou da sociedade. O garoto gago foi vítima de uma mãe monstruosa. O homem que fica sentado fazendo bombas foi vítima do exército norte americano, que destruiu sua capacidade de viver em sociedade. O homem que parece crucificado na parede é vítima da sociedade médica, que fazia lobotomias para tentar criar comportamentos aceitáveis. Até mesmo a enfermeira Ratched é uma vítima da sociedade disciplinar e padronizadora que a transformou num monstro.” Para iniciar o preenchimento dos personagens, Dale passou dez dias num sanatório. “Uma das coisas que eu procurava era o nível de inteligência, educação e articulação dessas pessoas. Queria observar padrões peculiares que faziam essas pessoas serem tidas como insanas. Existia uma grande variação nisso. Em alguns, você quase não notava a diferença de uma pessoa normal, mas era por causa das drogas que eles tomavam. “Observando antes e depois de serem medicados, consegui ver toda uma variação de comportamento. Depois de tomar as drogas, existe pouca tonalidade em suas falas. É o que se chama de discurso utilitário. Antes de tomarem as drogas a fala se revelava em padrões selvagens, até mesmo fascinantes. Eles têm uma lógica própria, maluca. Às vezes eu ficava impressionado com a beleza de articulação nessas pessoas. Não era convencional, coerente ou gramaticalmente correta.” Dale cria interesse trabalhando contra a lógica dos personagens. “É sem graça a lógica perfeita na maneira que os personagens falam e agem. Normalmente é mentira. Então

voltar ao índice

busquei pelo inconsistente, o ilógico, a coisa deslocada no personagem, pois essas coisas são mais reveladoras do que personagens alinhados. Por exemplo, se tiver alguém de natureza violenta, eu também observo atentamente ela revelar atributos completamente inconsistentes e, às vezes, esses atributos revelarão verdadeiramente o personagem. “McMurphy parece ser um homem duro e violento, mas ensina os colegas a dançar e faz isso com delicadeza. Ele também recita poesia. Às vezes cita errado, mas em algum lugar lá dentro, existe amor pela poesia. Quando busco por personagens, faço isso partindo da premissa que a lógica perfeita é sem graça.” Dale também analisa os aspectos ocultos dos personagens: “Busco pelas forças ocultas e então tento encontrar maneiras de deixar o público ver o que o próprio personagem não sabe sobre si. Acontece com aquelas pessoas que parecem agir guiadas por um suposto conjunto de motivos mas que, na realidade, agem com base em impulsos totalmente diferentes. “Billy Bibbit não entende o que sua mãe fez com ele. Ele protege a mãe, que é de fato a influência destrutiva em sua vida. Harding se culpa pelo que não é de fato sua culpa: sua sexualidade. A enfermeira Ratched é de fato uma mulher poderosa e artificialmente reprimida que representa o modelo perfeito de um membro do exército. A repressão a fez odiar os homens mas, curiosamente, ela é cordial e decente. Essas são as contradições interessantes. Ela age daquela forma por boas razões, mas não muda o fato de que faz coisas bem ruins. “Existe um elemento que amo enfatizar que é o elemento surpresa. Personagens principais raramente têm isso, mas personagens secundários sim. Isso desperta o público e o mantém alerta. Em “Um Estranho no Ninho”, Candy Starr era o elemento surpresa. Quem imaginaria encontrar uma prostituta bonita num lugar como aquele? Até mesmo quando ela traz sua amiga é uma surpresa. Não só uma prostituta, mas duas. E, além disso, eram mulheres bem divertidas.”

voltar ao índice

Perguntei a Dale quais os problemas podem surgir com personagens secundários. “Um dos piores problemas é não os preencher o suficiente. Existe tempo na história pra preencher seu personagem principal. Mas normalmente personagens secundários interessantes acabam sendo deixados incompletos. E eu acredito que, a audiência notando isso ou não, é bem frustrante. Houveram casos que quis desesperadamente saber o que aconteceu com personagens secundários e não havia tempo. “Existe também a tendência de fazer um esboço simplificado, só pra fazer o personagem funcionar, mas isso deixa ele meio sem brilho. Nos filmes isso é quase necessário, já que você não quer dar muito destaque para personagens de apoio. Isso me incomoda pois todos os personagens deveriam ser interessantes e não deixar ninguém perplexo ou insatisfeito. APLICAÇÃO Olhe para os personagens secundários no seu roteiro e se pergunte: ■■ Meus personagens possuem uma função na história? Qual é? ■■ De que forma cada um dos meus personagens ajuda a expandir o tema da minha história? ■■ Tomei a devida atenção na criação dos meus personagens menores? Caso eu tenha utilizado “personagens-tipo”, me certifiquei de que não são estereótipos? ■■ Contrastei os personagens? De que formas eles adicionam cor e textura à história? ■■ Quais os traços gerais que usei para definir meus personagens secundários e menores? Esses traços têm relação com a história ou com o tema? (caso contrário irão soar desnecessários ou forçados)

voltar ao índice

■■ Tenho vilões na minha história? Qual é o passado deles e as forças inconscientes que os motivam? Existe algum bem perceptível que perseguem através de suas maldades? RESUMO Muitas das melhores histórias são memoráveis por causa dos personagens secundários. Eles podem mover a história, esclarecer o papel do personagem principal, adicionar cor e textura, aprofundar o tema, expandir a atmosfera, adicionar detalhes até na menor cena, no menor momento. James Dearden resume da seguinte forma: “Dentro do plausível, sem exagerar, você pode deixar seus personagens menores interessantes. Entretenimento é o elemento mais importante numa história. Não num sentido cabal, mas é sobre manter os olhos das pessoas em movimento, suas orelhas em pé e seus cérebros funcionando. São esses pequenos detalhes que dão vida pra algo.

voltar ao índice

7 Escrevendo Diálogos Muitos escritores e professores de escrita têm me dito “Não dá pra ensinar como escrever diálogos. Ou você tem jeito pra isso ou não tem”. Concordo que diálogos incríveis, assim como pinturas incríveis, músicas incríveis, não podem ser ensinadas. Mas diálogos bons podem. Existem métodos de pensar uma cena e um personagem que podem melhorar o diálogo. Os escritores podem treinar seus ouvidos pra ouvir ritmos e padrões de fala assim como músicos podem treinar para ouvir melodias e ritmos musicais. Primeiro você precisa entender o que é um diálogo bom e um diálogo ruim. Um diálogo bom: ■■ É como uma boa música. Tem uma batida, um ritmo, uma melodia. ■■ Tende a ser curto e econômico. Nenhum personagem costuma falar mais que duas ou três linhas. ■■ É como uma partida de tênis. A bola vai e vem entre os jogadores, representando a constante troca de poder (sexual, físico, político ou social). ■■ Carrega conflito, posturas, intenções. Ao invés de falar sobre o personagem, ele revela o personagem. ■■ É fácil de ser lido, graças ao seu ritmo. Ele transforma qualquer um num grande ator. Existem vários escritores incríveis de diálogos. Um deles é James Brooks. Leia em voz alta e ouça os ritmos dos

voltar ao índice

diálogos a seguir do filme “Nos Bastidores da Notícia”. Veja que cada linha revela algo sobre os personagens. Note a diferença entre as falas. O assistente diz pra Jane: ASSISTENTE Você é um modelo que me espelho em todos os aspectos, menos no social. A Conversa entre Jane e Tom: JANE Vi as gravações da entrevista com a garota. Sei que você fingiu uma reação depois da entrevista. Fez com que vissem você chorando pelo set de notícias. Você perdeu a linha... TOM É difícil não perder a linha; eles sempre promovem os puxa-sacos, não é? Ou a conversa entre Aaron e Jane: AARON Você poderia pelo menos fingir que essa é uma situação constrangedora? Eu te encontrar se arrumando pra um encontro. JANE Não é um encontro. São apenas colegas indo a um compromisso profissional. Sem ser notada, Jane vai até a sacola de papel, pega uma caixinha de preservativos, e deixa escorregar para dentro da bolsa que irá usar pra sair.

voltar ao índice

Vendo os elementos contidos nesses exemplos. O diálogo do assistente contém uma postura em relação à Jane. O diálogo de Tom mostra tanto emoção (frustração) quanto conflito de valores, já que ele luta para ser íntegro numa área profissional onde esse conceito de integridade muda constantemente. O diálogo de Aaron mostra conflito e postura. O diálogo de Jane mostra um conflito interno enquanto tenta balancear seus relacionamentos com Tom e Aaron. Dos exemplos acima, podemos ver que bons diálogos têm conflitos, emoções, e posturas. Também há um outro componente essencial: o subtexto. O QUE É SUBTEXTO? Subtexto é o que o personagem está dizendo nas entrelinhas. Normalmente os personagens não compreendem a si mesmos. Não costumam falar abertamente aquilo que realmente querem dizer. Podemos dizer que subtexto é todo o instinto e propósitos ocultos que não são óbvios para o personagem, mas que ficam nas entrelinhas para o espectador/leitor. Um dos exemplos mais encantadores de subtexto é do filme “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa”, escrito por Woody Allen. Quando Alvie e Annie se encontram pela primeira vez, ficam se observando dos pés à cabeça. O diálogo é uma discussão intelectual sobre fotografia, mas o subtexto deles está escrito nas legendas do filme. Ela divaga no subtexto se ela seria suficientemente inteligente pra ele. Ele divaga se está sendo superficial, ela divaga se ele é um babaca igual o outro homem que saiu, ele divaga sobre como ela seria pelada. Em “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa”, tanto Annie quanto Alvie entendem o subtexto daquela conversa. Mas normalmente os personagens estão inconscientes do subtexto. Não sabem o que realmente estão dizendo, o que realmente estão querendo expressar.

voltar ao índice

Na peça de Robert Anderson “I Never Sang for My Father”, existe uma cena de subtexto forte no primeiro ato. Se passa num restaurante e parece ser sobre um filho levando o pai para jantar. O subtexto da cena é bem diferente disso. É sobre a falta de comunicação e sobre a tensão entre pai e filho. Sobre a raiva reprimida do filho que não supriu as expectativas do pai. Apesar do subtexto depender parcialmente da interpretação do ator, eu destaquei o que deveria ser o subtexto de várias linhas de diálogo. A cena na peça ocorre entre o pai (Tom), a mãe (Margaret), e o filho (Gene), mas para o objetivo dessa discussão, resumi a cena e foquei na relação entre Tom e Gene. A garçonete chega para anotar o pedido: GARÇONETE Dry Martini? TOM (um olhar malicioso) Você me pegou. Faça um seis pra um. (SUBTEXTO: Sou muito homem e vou beber um Martini bem seco) Do que você gosta, Gene? De um Dubonnet? (SUBTEXTO: Na visão de Tom, Gene definitivamente não é tão viril quanto ele. Por isso provavelmente não beberia Martini; mas Dubonnet.)

GENE Vou pegar um martini também, por favor. TOM Mas não vai ser seis pra um.

voltar ao índice

GENE Sim, será o mesmo! (SUBTEXTO: Te desafio a achar que sou menos do que você!) TOM Tudo bem! (SUBTEXTO: Mas que arrogante!) TOM Mas o jantar é por minha conta, certo? GENE Não, eu te convidei. TOM Uh-uh, você já teve todo esse gasto para vir até aqui. (SUBTEXTO: Veja que pai justo e generoso eu sou! Lembre-se, você não ganha o suficiente para pagar essa viagem e ainda pelo jantar!) GENE Não, deixa comigo. E peça o que quiser. Não vai ficar vendo o preço primeiro... Sempre que eu te levo pra jantar você fica vendo o preço antes. (SUBTEXTO: Deixa eu dar isso a você. Quero aproveitar o jantar e eu posso pagar sim por ele.) TOM Não faço isso. Mas acho ridículo pagar, veja só, $3,75 por um camarão ao curry. GENE Você gosta de camarão. Peça o camarão. TOM Se você me deixar pagar por ele.

voltar ao índice

GENE Não! Vai, vamos logo. (SUBTEXTO: Pelo amor de deus, me deixa pagar esse camarão pra você, por favor!) TOM Olha, eu admiro isso, Gene, mas no que você trabalha... (SUBTEXTO: Você não é tão bem sucedido quanto eu ou o quanto eu gostaria que você fosse.) GENE Eu posso pagar. Não vamos discutir. A raiva cresce antes mesmo que consigam pedir algo pra comer. Tom declara: “Acho que nada me apeteceu. Estou sem fome”. O QUE É UM DIÁLOGO RUIM? Os elementos que fazem um bom diálogo incluem conflito, posturas, emoções e subtexto. Então o que faz um diálogo ruim? ■■ É travado, difícil de falar. ■■ Faz os personagens ficarem parecidos entre si, ninguém soa realista. ■■ Narra o subtexto. Ao invés de revelar o personagem, ele recita cada pensamento e sensação. ■■ Simplifica as pessoas, ao invés de revelar suas complexidades. Então como melhorar um diálogo quando ele está achatado, sem graça, empolado? Comecemos com uma cena que vemos em muitos roteiros. Um Roteirista é chamado para uma reunião com o produtor, que está interessado em produzir algo. O que

voltar ao índice

virá a seguir foi pensado para parecer o pior diálogo já escrito (Sou totalmente responsável por ele. Foi escrito especialmente pra esse livro). PRODUTOR Bem, entre. É um prazer encontrar você. Sabe, eu gostei bastante do roteiro, é algo tão bom. JOVEM ESCRITOR Oh, obrigado. É meu primeiro roteiro, eu estava com muito medo de que você não gostasse dele. Sou do Kansas, nunca estive numa cidade grande, me sinto muito sortudo de encontrar uma pessoa como você. Admiro seu trabalho há muitos anos. PRODUTOR Ah, foi muito gentil da sua parte dizer isso. Vamos conversar sobre fechar negócio. Bem desagradável, né? É desajeitado, é chato (nenhuma vida ou energia no roteiro). Os personagens simplesmente falam o que pensam e o que sentem. Eles soam de maneira idêntica. Pra começar, esse diálogo pode ser melhorado em 5% escrevendo contradições ao invés de “é...” “eu tenho”. Podemos substituir por “bem”, “hum...”, “sabe...”. Simplesmente deixando o roteiro mais coloquial ele começa a melhorar. Mas pra fazer o diálogo funcionar, a cena precisa ser repensada. Pedi ajuda pra uma das minhas clientes, a escritora Dara Marks, que sabe fazer diálogos com energia e ritmo. Trabalhamos nesse processo da mesma forma que eu faria numa consulta profissional para aprimorar um diálogo. Fiz as perguntas, conversamos; ela reescreveu. Começamos observando diferentes aspectos da cena. Primeiro perguntamos “Quem são essas pessoas?”

voltar ao índice

Sabíamos que o escritor é do Kansas, novo em Los Angeles e que admira o produtor. Não sabemos nada sobre o produtor. Como produtores são? O estereótipo de produtor é de um negociante frenético, que está a solta pra fazer muito dinheiro, ou um cinquentão fumante, doido pra explorar um jovem talento. Dara e eu concordamos que, mesmo que um estereótipo leve alguma verdade consigo, muitos produtores são bem diferentes disso. Falamos sobre produtores que já conhecemos: Aqueles que são bem tranquilos ou descontraídos (ou chapados), aqueles que jogam tênis toda tarde, aqueles que são nervosos, aqueles presunçosos, aqueles que entendem bem dos aspectos de um filme. Falamos das vários cenários que já encontramos produtores: no escritório deles, em restaurantes, num quarto de hotel se fossem de outra cidade, em home office, em festa, numa quadra de raquetebol. Já que ambas já tiveram reuniões num barco, decidimos que a cena se passaria em um. Criamos um produtor nos seus cinquenta anos, bem sucedido, que toca o negócio de um salão amplo, e arejado, do seu iate de 28 metros. Escolher um cenário incomum (mas que seria crível em Hollywood) nos deu a oportunidade de nos afastar do tradicional e previsível (e criar personagens mais reais e interessantes). Depois pensamos sobre as posturas dos dois personagens. Decidimos que o produtor estaria cochilando no topo da cena e o jovem escritor estaria extremamente empolgado e ansioso. Com esses três elementos em mente, nós refizemos a cena desse jeito:

voltar ao índice

INT. IATE – DIA SUPER CLOSE um lápis vai pra lá e para cá no topo da escrivaninha com o movimento suave do iate em sua escotilha. A CAMERA AFASTA e primeiro revela as solas de sapatos apoiados um sobre o outro em cima da escrivaninha. Logo a figura do PRODUTOR é FOCADA. Feito um bebê no berço, ele balança suavemente de lá para cá com um roteiro semifinalizado deitado sobre o peito. O JOVEM ESCRITOR aprece na porta da cabine, meio sem equilíbrio, e bem desconfortável de estar num barco (provavelmente sua primeira vez fora de terra firme). Meio sem jeito, ele olha em volta e vê que o produtor está dormindo. Ele não sabe muito bem como lidar com isso. JOVEM ESCRITOR (pigarreia) Ah-ham! O PRODUTOR não se move JOVEM ESCRITOR (mais alto) Ah-ham... O PRODUTOR abre os olhos casualmente e olha pro relógio. PRODUTOR Você tá atrasado JOVEM ESCRITOR Desculpa, senhor. Mas o ônibus... PRODUTOR (se sentando) Você veio de ônibus? JOVEM ESCRITOR (meio inquieto) Ah, sim senhor...

voltar ao índice

PRODUTOR Nunca conheci ninguém que andasse de ônibus. (faz uma anotação pra si mesmo). Preciso experimentar isso. O PRODUTOR acende um cigarro, o que só deixa o JOVEM ESCRITOR ainda mais enjoado pelo movimento do mar. PRODUTOR Então, criança. O que posso fazer por você? JOVEM ESCRITOR (surpreso) É meu roteiro, senhor. Você pediu pra me ver. PRODUTOR Pedi? JOVEM ESCRITOR faz que sim. PRODUTOR Qual é o nome? JOVEM ESCRITOR “Todos vêm correndo”, senhor. O PRODUTOR vasculha pela escrivaninha. PRODUTOR Deixa-me ver... correndo... sarrento... O JOVEM ESCRITOR vê seu roteiro e aponta. JOVEM ESCRITOR Aquele ali. PRODUTOR Ah é, o roteiro da corrida. JOVEM ESCRITOR Não é bem sobre corrida, Sr. Dinglemy. É sobre o Kansas, sou de lá.

voltar ao índice

PRODUTOR Kansas, ein? Tipo milharal e coisa modesta? (pensa por um instante) Pode começar uma nova tendência. Gostei! Certo, garoto, você conseguiu um acordo! Nessa remodelagem do diálogo, veja que a postura do produtor está movendo a cena. Ele tem um posicionamento sobre novas experiências (ele vai tentar pegar um ônibus um dia desses), sobre Kansas (é um milharal modesto), e um posicionamento sobre tendências comerciais (ele é bem sucedido porque tem um “faro” pro que é “quente” e pro que não é). O diálogo agora tem certo ritmo, um cenário incomum que pode ser usado pelo ator e diretor, uma certa personalidade e uma certa postura no produtor. Mas continuamos sem ter muito o que transmitir do jovem escritor. Para desenvolver esse personagem, começamos com seu passado. Nós decidimos que ele veio pra Los Angeles decidido que tinha um ano pra vender um roteiro. Aquele era o último dia do ano, e a essa altura, ele já não tinha o que perder. Ele estava nervoso, frustrado e meio sem esperança com a situação toda. Já que o produtor guiou a cena com sua postura, decidimos que o jovem escritor guiaria a cena com conflito e emoção. Então remodelamos a cena, mantendo a maioria dos elementos que gostamos do último tratamento, mas agora focando na contribuição do personagem do jovem escritor pra cena:

voltar ao índice

INT. IATE – DIA O JOVEM ESCRITOR mete a cabeça pela porta, e fica bem aborrecido ao achar que o PRODUTOR está dormindo. JOVEM ESCRITOR (pigarreia)Ah-ham O PRODUTOR não se move. JOVEM ESCRITOR (bem alto) AH-HAM... O PRODUTOR acorda subitamente, constrangido por ter sido pego dormindo. PRODUTOR (tentando se arrumar, meio atrapalhado) Você tá atrasado! JOVEM ESCRITOR (impressionado) Eu tava aqui desde às 9 da manhã. PRODUTOR Bom, sou um homem ocupado. (remexe nuns papéis pela escrivaninha). O que você conseguiu? JOVEM ESCRITOR Cerca de seis horas atrás consegui pegar um ônibus de volta pra Wichita. PRODUTOR Você anda de ônibus? JOVEM ESCRITOR Alguma coisa errada com isso? PRODUTOR Não, eu só nunca conheci alguém que faz isso

voltar ao índice

JOVEM ESCRITOR Bom, são as pessoas que assistem seus filmes. Deveria tentar um dia desses. PRODUTOR Não tô gostando dessa postura JOVEM ESCRITOR (respira fundo) Não tô vendendo minha postura, senhor! Tô vendendo meu roteiro, então ou você compra ele ou eu vou voltar pra fazenda. PRODUTOR Que fazenda? Que roteiro? JOVEM ESCRITOR (exasperado) O roteiro que você queria falar a respeito. PRODUTOR Eu queria? Como se chama? JOVEM ESCRITOR “Eles vêm correndo” O PRODUTOR vasculha pela escrivaninha. PRODUTOR Já foi o tempo dessas histórias de corridas. JOVEM ESCRITOR Não é exatamente sobre corrida. Pelo amor de deus, é sobre a situação do agricultor no Kansas. PRODUTOR Terra, ein? Quem se importa com terra? JOVEM ESCRITOR (levanta a mão pro alto) Eu desisto! Vou voltar pra casa... PRODUTOR Espera um pouco! (pensando alto), Terra, planeta-terra... Simplicidade, gostei. Pode

voltar ao índice

começar uma nova tendência. Certo, trato feito! O JOVEM ESCRITOR está espantado. Ele para no meio do caminho e dá meia volta. JOVEM ESCRITOR (empolgado) Tá falando sério? PRODUTOR Claro, garoto... Mas temos que mudar o título! Agora temos dois personagens de igual pra igual, cada um contribui pra cena através de postura, conflito, história passada e intenção. Com personagens fortes, o diálogo se torna mais forte. Se continuarmos trabalhando na cena, existem várias direções que poderíamos tomar. Talvez você note que a cena é muito “ácida” e que os personagens parecem nervosos demais e conflitantes. Talvez você decida dar essa “acidez” pra um deles, mas não pro outro. Talvez o escritor esteja bravo, mas o produtor se recuse a cair nesse tipo de atmosfera. Talvez você decida adicionar um ar de “técnico” na cena. Detalhando a atividade profissional de cada personagem. Pense por um momento nas reuniões mais curiosas que você já teve. O que aconteceu nelas além de uma mera conversa? Uma vez eu estava numa reunião onde o empresário tinha mais de cinquenta bonecos do Mickey na sua mesa. Se você usasse isso no roteiro, poderia colocar o produtor tirando pó deles durante a reunião. Já estive em reuniões onde o empresário jogava dardos na maior parte do tempo. Ou quando o produtor passava a maior parte do tempo no telefone, enquanto ficava me medindo do outro lado da mesa. Talvez algo possa estar acontecendo na outra sala que contribua com o “profissionalismo” da cena. Dara e eu

voltar ao índice

consideramos criar uma esposa para o produtor. Ela estaria criando uma grande escultura fora do deck, usando todo tipo de equipamento. Durante a cena, o escritor tentaria identificar sons que lembrassem metralhadoras, britadeiras, ou um motor com problemas. Isso poderia levar a uma postura de medo, curiosidade ou uma simples incapacidade de focar em qualquer coisa que o produtor estivesse dizendo. Qualquer uma dessas sugestões para uma atmosfera mais profissional poderia ser usada para revelar o personagem, e comunicar subtexto para que a cena não ficasse óbvia. Você pode explorar a atmosfera da cena criando outras direções para os diálogos. A sala é quente ou fria? Clara ou escura? Tem alguém fumando? A sala tem um cheiro estranho? Como é a mobília? Existem muitos livros e roteiros espalhados de um jeito que nem dá pra se sentar? Você pode mudar a raça, sexo, idade ou peso de um dos personagens. Qualquer uma dessas mudanças pode mudar o diálogo. Uma vez tive uma conversa alguém (não era produtor) que pesava uns 200 quilos. Ele se sentou numa cadeira bem larga e não se moveu. Minha surpresa com sua aparência deixou os primeiros instantes bem desconfortáveis, e tudo que foi dito no começo da reunião foram balbucios. As expectativas que alguém tem sobre uma reunião afetará o diálogo. Se o seu personagem espera ver um produtor que tem cinquenta anos, e o produtor na verdade tem vinte e cinco, a situação inesperada pode mudar o diálogo. Se algum dos personagens estiver usando um tapa olho, um colar cervical, tiver um tique no olho, ou esteja tentando esconder uma espinha bem pequena no queixo. Tudo isso pode afetar o diálogo. O vocabulário, o linguajar usado também mudará o diálogo. Se um personagem tem um sotaque, usa palavras muito rebuscadas que outros personagens não entendem, ou fala de uma maneira pouco clara; o tipo de comunicação entre os personagens irá mudar.

voltar ao índice

O contexto da cena também pode impactar no que está sendo dito. Talvez o produtor estivesse passando por um divórcio, ou o jovem escritor tivesse acabado de voltar do funeral de um amigo próximo. Essas situações afetarão a direção da cena. Outros contextos possíveis: A cena é o começo de um caso amoroso, ou o fim de um longo relacionamento profissional entre produtor e escritor, ou o produtor havia acabado de contratar outro escritor, mas se sentiu na obrigação de aceitar aquela entrevista. A cena do produtor e do escritor já foi escrita várias vezes ao longo da história. Um dos cenários mais inusitados ocorre na autobiografia de Moss Hart “Ato Um”. Esse livro foi adaptado para um filme de um dos meus clientes, Treva SIlverman (“The Mary Tyler Moore Show”), produzido por Laurence Mark (Working Girl) e Scott Rudin (Mrs. Soffel). A cena se passa em Nova Iorque. Moss Hart, um escritor novato, tinha acabado de terminar uma peça, e tinha a palavra do grande produtor de teatro Jed Harris, de que queria encontra-lo pra falar sobre o roteiro. Veja como o diálogo parece simples mas, combinado com negociações e posturas, comunica muito sobre os dois homens. INTERIOR MADISON HOTEL – DIA É meio dia e Moss está ansioso e empolgado, no balcão do recepcionista MOSS É Moss Hart para ver Jed Harris. RECEPCIONISTA Suba. Suite 1201. Senhor Harris está a sua espera. MOSS (sorri) Obrigado CORTA PARA:

voltar ao índice

INT. HOTEL MADISON, 12º ANDAR – DIA Moss sai do elevador, segue bem humorado pelo corredor. Vai até a suíte 1201, bate suavemente na porta. Está meio aberta. Sem resposta. Ele bate novamente, então toca a campainha. VOZ (abafada, distante) Entre, entre. CORTA PARA INT. SUITE 1201 – DIA Moss entra hesitante na suíte. Passa do pequeno trocador para a sala de estar. Está impecavelmente limpa, quase como se não estivesse habitada. Nenhuma bituca de cigarro ou jornal ao redor. Será o lugar certo? MOSS (fala suavemente) Com licença.... Moss Hart, vim falar com Jed Harris. VOZ Sim, entre. Ele segue a voz, hesitante. Atravessa a sala de estar para o quarto. CORTA PARA: INT. QUARTO – DIA Uma cama está bagunçada, sem os cobertores. A outra está empilhada de roteiros. Dois cinzeiros cheios com cigarros meio-usados. A persiana está abaixada, o lugar está a meia-luz. Moss está bem confuso, assustado de ter cometido algum engano. MOSS Olá?

voltar ao índice

VOZ (do banheiro) Entre. Entre. Ele se aproxima do banheiro e dá alguns passos. A expressão de Moss: Assustado, impactado. CORTA PARA Vemos JED HARRIS de costas, de frente pra pia, se barbeando. Está nu. JED HARRIS (casualmente) Bom dia. Sinto muito, eu não pude te ver antes. MOSS (totalmente perplexo, trêmulo) Tudo... tudo bem. Moss olha ao redor, procurando algum lugar pra focar. JED HARRIS Na verdade, queria ler seu roteiro mais cedo, mas sabe como essa temporada tem sido... MOSS (arrumando o sapato) Ah sim, sim. JED HARRIS De noite teve uma festa em comemoração aos Lunts... Parece que todo mundo gosta dos Lunts. Se quer saber, um Lunt já tá de bom tamanho. Moss ri, de um jeito breve e sem jeito. Jed Harris começa a enxugar o rosto. JED HARRIS Mas fui à festa por causa daquela atriz italiana baixinha. Tem tido muito burburinho sobre ela e eu queria checar. Uma toalha cai da pia ao chão. Moss olha pra ela, sem saber se deveria pegar. Ele decide não pegar. Jed Harris continua a conversa, pisca pra Moss. Moss tenta se lembrar do que Jed Harris estava falando.

voltar ao índice

JAD HARRIS A fofoca acabou sendo mais verdadeira do que eu esperava. Ele ri presunçoso para Moss. Moss tenta sorrir, mas não consegue. Acaba saindo uma espécie de tique facial. A cena, em muitos sentidos, é bem simples. Mas veja quantas camadas são adicionadas através do diálogo e da “negociação” na cena. A postura de Moss inclui antecipação, choque, constrangimento. Existem insinuações de conflito: entra ou não entra; pega ou não pega a toalha, falar ou não falar. Jed demonstra indiferença e alegria sobre a aventura noturna com a atriz italiana. Treva criou essa conversa pois, como ela disse, “Moss Hart escreveu seu livro de memórias em 1950, num tempo mais inocente. Eu tinha que despistar qualquer suspeita da nudez de Jed Harris soar como uma brecha homossexual.” A cena no livro de Moss Hart inclui o mesmo cenário e circunstâncias: A nudez de Jed Harris e Moss constrangido, mas o foco é diferente. Hard relata essa cena da obra original: Não resta a menor dúvida que Jed harris é um dos conversadores mais refinados na questão do teatro... Mesmo no meu estado desorientado, poderia dizer que aquela era um tipo de conversa sobre teatro que nunca havia testemunhado e, à medida que meu desconforto ia diminuindo, à medida que ele botava a roupa, comecei a ouvir atentamente. Sua crítica de “Once in a Lifetime” foi afiada, penetrante, cheia de rápidas notas sobre suas potencialidades e falhas, incluindo um entendimento surpreendentemente profundo da literatura satírica em geral. Ele passava num piscar de

voltar ao índice

olhos da peça Ocen in a Lifetame, para Chekhov, e então para a produção de Uncle Vanya que ele ponderava a crítica mordaz de seus colegas, e uma rápida classificação de certos autores norte-americanos indignas das folhas em que estão escritas. Voltando a “Once in a Lifetime”, numa cascata fascinante de palavras argutas e articuladas, que me deixaram meio sem fôlego. Converter esse parágrafo num diálogo de roteiro pode facilmente se tornar uma cena carregada de falas. Treva diz “Para recriar essa cena, teria que incluir informação obscura, exotérica que seria extremamente exaustiva para o público.” Eu era a consultora do projeto, e decidimos cortar a cena já que o filme era sobre a relação de Moss com George Kaufman e não com Jed Harris. Contudo, essa cena é minha favorita, por sua clareza de emoções e um certo charme silencioso. TÉCNICAS PARA CONDUZIR DIÁLOGOS Muitos escritores adoram os sons, ritmos e cores de um bom diálogo. O dramaturgo Robert Anderson diz, “Me apaixonei por diálogos quando meu irmão trouxe da faculdade o livro da peça de Noel Coward. Perguntei pra minha mãe do que se tratava e ela disse que era uma peça. Desde então fiquei fascinado. Sempre escrevo diálogos em romances. Quando leio romances, pulo direto para os diálogos, o que é um erro, já que os romances são conduzidos na narrativa, não nos diálogos. “Acho que você sequer deveria começar na dramaturgia se não tiver uma sensibilidade para o diálogo. Penso que um dramaturgo deve ter o dom pra situações dramáticas e para diálogos dramáticos.” Escritores possuem vários modos de se preparar para a escrita de diálogos. O primeiro passo pra a maioria deles é

voltar ao índice

passar um grande tempo esculpindo/trabalhando a história, antes de sequer escrever os diálogos. Robert Anderson continua, “Penso muito bem nas dinâmicas da história, na estrutura, nos personagens, no que estão fazendo, no subtexto, no que está acontecendo em cada cena e na progressão de cada cena. Passo meses tentando definir o tema da peça. Chamo isso de pescaria: Toda manhã, sento-me em frente à escrivaninha e jogo minha ideia geral como se fosse um anzol. Faço anotações, mas não guardo nenhuma. Então, no dia seguinte, jogo o mesmo anzol e espero algo ser fisgado. Sinto o tema ganhando forma: consigo ver aonde os personagens estão, para onde se direcionam e tenho uma noção geral da história. Puxo o anzol rapidamente, escrevo o primeiro tratamento em duas ou três semanas mais ou menos. Vou escrevendo no impulso, sem ler nada até finalizá-lo. É uma espontaneidade dentro daquela forma que consegui fisgar na pescaria (que ainda está em formação). “Desenho a estrutura da cena, passo seis ou sete meses (talvez mais) estudando minhas anotações. Conheço bem os personagens. Podem falar de qualquer coisa que quiserem, contanto que cumpram com o propósito da cena. Escrever diálogos me lembra de uma conversa que tive com meu amigo e dramaturgo Sidney Kingsley. Sidney estava escrevendo uma peça e perguntei como andava. Ele disse “estou quase terminando, começo a escrever os diálogos amanhã”. Portanto, o diálogo vem depois de mapearmos todo o resto.” Dale Wasserman aborda o diálogo analisando primeiro o assunto e a intenção de cada cena. “Pra mim, o diálogo vem por último. Quando sei pra onde minha história vai e quando sei a ideia e o propósito de cada cena. Só então adiciono os diálogos. A essa altura o diálogo e seu conteúdo se tornaram quase inevitáveis. Claro, a cor e estilo do diálogo não é algo fácil de se fazer. É bem difícil passar a simplicidade e estilo necessário.”

voltar ao índice

Muitos escritores treinam para ouvir cuidadosamente a fala das pessoas em várias situações diferentes: John Millington Synge diz que foi ouvindo a conversa das copeiras que ele aprendeu a ter uma noção de diálogo. Robin Cook diz que ama ficar ouvindo a conversa das pessoas no avião, jogar basquete no parque para ouvir as crianças provocando umas as outras. Robert Benton às vezes grava um diálogo para ouvir o ritmo. “No filme Um Lugar No Coração, Margaret Sarling foi baseada numa amiga minha. Sentei-me com ela e a gravei por dois dias. Nós simplesmente conversamos e conversamos até eu captar o jeito dela falar.” Mas conversas reais não são iguais a diálogos. Desenvolver a audição pra ouvir diálogos é só o primeiro passo. O próximo é traduzir conversas reais em diálogos de ficção. “Eu nunca uso palavras que as pessoas normalmente usariam”, afirma Robert Anderson. “Se você ouvir uma gravação de pessoas conversando, verá como é ridículo. Diálogos são estilizados. São verossímeis, não puramente realistas. É preciso ouvidos pra preencher essa lacuna. Anos atrás, quando escrevia pra um programa de rádio chamado “The Theatre Guild no Ar”, fiz uma adaptação de “A Farewell to Arms” para que Humphrey Bogart estrelasse. Pra minha desilusão, descobri que poderia usar bem poucos diálogos de Hemigway, já que ele não movia a história ou desenvolvia os relacionamentos dos personagens. Quando o programa foi ao ar a crítica disse “Os diálogos de Hemigway moveram a história”. Fiquei lisonjeado que consegui escrever diálogos de um jeito “Hemigwayano”, que movessem a história”. Robin Cook relata, “Sempre que escrevo um diálogo, leio em voz alta. Busco uma semelhança. Quero que soe como duas pessoas conversando. É tão óbvio pra mim ler um livro com um diálogo que não soa realista. Uma das partes mais incríveis de diálogos realmente bons é que te dá a sensação

voltar ao índice

de estar lendo o âmago da linguagem, quando na verdade não se está”. De acordo com Shelley Lowenkopf,”O diálogo num romance nunca tem a intenção de ser a exata representação da realidade; ele representa a postura dos personagens. Você deve ser capaz de identificar quem está falando só de escutar o desejo oculto naquela fala. Portanto o diálogo é uma forma de transbordar a parte secreta do personagem. Parte da construção de um bom diálogo é pensar através do personagem e entender o que ele quer manter em segredo”. Leonard Tourney complementa: “Diálogos realistas não são falas reais, são um artifício. Diálogos devem caracterizar, ser bem compactos. Dar um sabor de realidade.” Existem exercícios e processos para ajudar na escrita de um bom diálogo. Treva Silverman começa gravando a si mesma e depois ouvindo a gravação no dia seguinte. “A essa altura já me esqueci de 90% do que disse, então consigo ouvir como se fosse pela primeira vez. Nesse estágio do processo, procuro por alguma dica de como o personagem soa. Quando eu consigo captar a voz dele posso finalmente relaxar, mas é infernal até isso acontecer. É bem mais fácil usando um gravador, intimida menos, pois não estou olhando pra uma página ou uma tela em branco.” Robert Anderson explica, “Muitos escritores começam escrevendo o diálogo primeiro, ao invés de deixa-lo por último. Uma vez, Neil Simon me disse que trabalhava dessa forma: descobrindo os personagens e o fio da história através dos diálogos. Depois de tentar isso várias vezes (afinal, eu amava diálogos, não a história) descobri que isso me deixava em vários becos sem saída após quarenta páginas. Não descobria nada. Descobria coisas que eu não sabia sobre mim mesmo, coisas que eu não sabia que sabia, mas não conseguia descobrir a história em si. Eu precisava saber qual seria meu final.

voltar ao índice

“O diálogo não irá fluir se você estiver com a situação errada. Se não houver pessoas numa situação interessante (interessante no sentido de progressão de cena), isso será fatal. “O dramaturgo John Van Druten às vezes diz que não consegue fazer o personagem falar adequadamente até mudar o nome do personagem. Eu mesmo digo isso. Digo que Laura falará de um jeito diferente de Hazel. O diálogo não vai funcionar até você conseguir o nome certo. “Costumava dar exercícios de diálogo pros meus alunos. Num dos exercícios, eu dizia que alguém encontrava uma nota de dez dólares e essa pessoa discutia as possibilidades com a família de como esses dez dólares seriam gastos. O movimento da cena está em quem irá gastar o dinheiro e como ele será gasto, porém o subtexto pode iluminar as tensões geradas na família com aquele evento. “Na minha peça ‘You Know I Can’t Hear You When the Water’s Running’, existe uma cena onde duas pessoas de meia idade discutem se vão comprar duas camas de solteiro ou uma de casal. Eles estão discutindo sobre as camas, mas o casamento inteiro é revelado naquela discussão. O subtexto é sobre o que aconteceu na vida deles, sobre o amor deles, sobre a meia idade.” Quando Jules Feiffer deu uma aula de dramaturgia na Escola de Arte Dramática de Yale, ele ensinou os estudantes a melhorar o diálogo “deixe de lado sua presunção e sentimentos semelhantes. Decida qual é o sentido daquela cena (o objetivo dela), corte tudo que não seja esse sentido (esse objetivo). Corte as firulas que especialmente jovens escritores gostam de colocar pra mostrar como são requintados (deixe de lado sua presunção).” A chave para escrever um bom diálogo começa em aprender a ouvir os ritmos e nuances. “A coisa mais importante”, afirma Robert Anderson “é desenvolver a voz do personagem. Não é só um diálogo, é uma postura, uma personalidade. Se você tiver a voz, os diálogos funcionarão corretamente”.

voltar ao índice

ESTUDO DE CASO: JULES FEIFFER Muitos estão familiarizados com os cartoons semanais de Jules Feiffer. Seu filme (e mais tarde a peça) Carnal Knowledge tem sido frequentemente comentado por causa de seus diálogos brilhantes. Ele também adaptou Popeye para o cinema, escreveu Little Murders e Elliott Loves. Seus apontamentos sobre diálogos são relevantes para todos os formatos de ficção. Nessa entrevista, ele fala sobre a diferença na escrita de diálogos para cada meio. “Quando me mudei dos cartoons para o teatro e depois para os filmes, aprendi que os diálogos são bem diferentes. No teatro e no cinema, quando você lida com relacionamentos, é preciso mostrar o começo, o meio e o fim, que é o que eu faço nos quadrinhos. O que as pessoas conversam nos quadrinhos é bem direto e suscinto. É preciso ser assim, por causa do espaço disponível. No palco, você consegue adicionar mais nuance, uma quantidade bem maior de coisas indiretas. Diálogos de palco podem ser mais completos e mais expositivos (mais gratificantes pro ego) do que em diálogos de filmes. Nos filmes você investe bem mais em comunicação não verbal (troca de olhares, movimentos físicos, etc).” Perguntei a Jules sobre seu processo de criar diálogos. “Antes de mais nada, não vejo como diálogo. Diálogo é algo que vem naturalmente depois que você captura o personagem, depois de colocar o personagem na situação. Uma vez que você coloca duas ou mais pessoas em algum tipo de situação (e já decidiu quem e o que elas são), eles vão automaticamente dizer certas coisas. Uma coisa vai levar a outra e você descobrirá com seu público do que é que eles estão falando. Sempre fico surpreso com o que meus personagens terão que dizer um pro outro. Você coloca eles pra seguir uma trilha e eles próprios saem dela e é aí que as coisas ficam divertidas. Descobri que se eu seguir a outline (o rascunho geral da história), não vou conseguir nada muito interessante ou muito vívido. O que os personagens têm a dizer um pro outro é o que dá (em

voltar ao índice

grande parte) a energia para a história. Quando falamos de relacionamentos, a energia é o que importa. Mesmo quando a situação é essencialmente passiva, é necessário haver uma presença real de energia. “Essa energia vem do subtexto. É o conflito oculto/ subjacente que está em guerra com a superfície da peça, então o único conflito real será entre esse personagem com ele mesmo. Não se constrói subtexto a partir de várias anotações. É uma questão de compreender perfeitamente o que está e o que não está acontecendo, os motivos do que está ou não acontecendo e o quanto disso virá à tona. O grande esforço de uma história é segurar até o último segundo, quanto todas as coisas começarão a explodir, criando o clímax dramático. “Em algum momento o subtexto virá à tona, mas não acho vantajoso que todo o subtexto seja revelado. Alguma parte dele deve surgir, mas você não pode abrir mão de todos os seus segredos. Deixe alguns pra audiência desvendar. Quero que o público seja um personagem no filme, seja ativamente envolvido. Se você colocar todos os pingos nos i’s, tratar a audiência igual uma batata, não restará energia fluindo entre o filme/o palco e a audiência. Eu sei que eu, como parte do público, amo ser forçado a pensar, ser desafiado pela obra que se apresenta diante de mim, por isso quero proporcionar o mesmo com meu trabalho. “Se o cartoon é mais pessoal, frequentemente uso o subtexto. Se for político, farei um roteiro mais direto; porém, como normalmente são irônicos, tenho que fazer com subtexto. No meu trabalho ao menos, a maior parte das pessoas que falam não querem se abrir muito. As pessoas normalmente dirão o oposto do que querem realmente dizer ou disfarçam o verdadeiro significado usando todos os tipos de rótulos (seja na vida pública ou privada). Esse tem sido o foco do meu trabalho desde o começo: despir esses rótulos e mostrar do que realmente se trata a coisa.

voltar ao índice

“Se eu estiver tendo problemas pra conseguir a situação ideal, normalmente me ajuda começar com um diálogo do tipo ‘Olá, como vai. Vou bem. O que você tá fazendo hoje? Nada demais. Bem, eu tô com um problema...’, e vou seguindo por páginas de puro papo furado até que eu consiga uma situação. Outas vezes eu consigo captar a coisa da metade em diante, então completo a parte que ficou faltando. Às vezes fico travado por dias, até semanas. Uma peça me levou seis anos porque eu não conseguia entender pra qual direção eu estava indo. “Se você conseguir pegar o espírito desse processo e colocar tudo de uma forma cotidiana (numa linguagem que usaria no cotidiano), você vai chegar longe. Então, no próximo tratamento, revise com uma maneira diferente de falar, que dê personalidade aos personagens. Em muitas peças e roteiros, os personagens soam parecidos. Gosto que meus personagens sejam tão peculiares que nem precisem de nomes para que os leitores reconheçam quem está falando. Você precisa treinar seus ouvidos pra captar tiques comportamentais numa conversa. Mas a coisa mais importante é ouvir sua voz interior.” APLICAÇÃO O diálogo é a chave da escrita na dramaturgia, mas também é essencial para qualquer tipo de obra de ficção, seja drama, romance ou uma história curta. Olhe pros seus personagens e pergunte-se: ■■ Eu defini o personagem usando ritmo de diálogo, vocabulário, sotaque (se necessário), e até mesmo na extensão das falas? ■■ Existe conflito nos diálogos? O diálogo contrasta a postura dos personagens? ■■ Meu diálogo contém subtexto? Consegui expressar de alguma forma o que meus personagens querem dizer, mesmo diante do que realmente disseram?

voltar ao índice

■■ É possível sentir a etnia ou o contexto cultural daquele personagem nos diálogos dele/dela? E o nível de educação? A idade do personagem? ■■ Se eu não visse o nome dos personagens, seria possível identificar os personagens que estão conversando? O diálogo está diferenciando o personagem? RESUMO Um escritor está sempre em treinamento. Aprender a escrever diálogos inclui: ouvir, escrever e declamar bons diálogos para internalizar como soam e seus ritmos. Alguns escritores fazem aulas de teatro para entender mais profundamente o que um ator precisa deles. Diálogo é a música da escrita de ficção (com ritmo e melodia). É possível pra qualquer escritor desenvolver um ouvido pra isso; escrever diálogos que transmitem posturas e emoções, além de expressar as complexidades do personagem.

voltar ao índice

8 Criando Personagens Não realistas Até agora, discutimos personagens realistas: aqueles que são como nós. Nos identificamos com eles por dividirem as mesmas falhas, os mesmos desejos e metas. Eles não são super-heróis, não têm características subumanas, ou falhas exageradas. Mas o mundo da ficção é também repleto de personagens não realistas. Pense na grande variedade de personagens que vieram de um mundo especial da imaginação: E.T, Mr. Ed, sereias, monstros do pântano, tomates assassinos, Super-homem e Batman, King Kong, Bambi, Dumbo, Jolly Green Giant, California Raisins. Nesse capítulo, veremos os quatro tipos diferentes de personagens não realistas. Personagens que você, como escritor, talvez crie. São eles: personagem simbólico, personagem não-humano, personagem de fantasia e, personagem mítico. Os personagens em cada categoria são determinados por seus limites, contexto, associações e respostas que o público pode trazer para cada um deles. O PERSONAGEM SIMBÓLICO Personagens realistas são os mais dimensionais, são definidos por coerências/paradoxos, por seu psicológico complexo, posturas, valores e emoções. Se você estiver

voltar ao índice

escrevendo uma lista de qualidades de um personagem realista, você acabará tendo uma lista bem longa. Personagens simbólicos são unidimensionais. Não foram pensados para ter dimensionalidade. Eles personificam uma qualidade, normalmente baseada num conceito tal como o amor, a sabedoria, a piedade, a justiça. Eles funcionam melhor em histórias não-realistas; em mitos, fantasias, ou até mesmo em quadrinhos exagerados como os de superheróis. As raízes dos personagens simbólicos vêm da tragédia grega e romana. Os deuses e deusas eram normalmente definidos por um atributo. Athena/Minerva era a deusa da sabedoria, Afrodite/Venus era a deusa do amor, Hades/ Plutão era o deus do submundo, Poseidon/Netuno o deus do mar, etc. Apesar de limitados na dimensionalidade, eles não são desinteressantes ou superficiais, pois aquela qualidade possui uma série de outras qualidades relacionadas. Por exemplo, Marte (ou Ares) era o deus da guerra. Odiado por seus pais, Zeus e Hera, ele era implacável, assassino, sanguinário. Discórdia e Conflito o acompanham, bem como Terror e Pânico. Na mitologia romana, ele usa uma armadura brilhante, os soldados “se apressam para a morte gloriosa” quando veem que irão morrer no campo de batalha de Marte. Sua ave é o abutre, a ave da morte. Tudo que é relacionado à guerra pode ser encontrado no contexto de Marte. Os sons da guerra, as vestes da guerra, as qualidades da guerra; são todas partes desse personagem. Tudo que não é guerra, não é parte dele. Ele não possui nenhuma ambivalência realista sobre guerra e paz. Não existe nenhuma alegria nele, nenhuma incerteza, nenhuma contradição. Poderíamos traçar uma linha de continuidade entre o personagem simbólico e o realista.

voltar ao índice

Se você colocar Marte nessa linha, ele seria um personagem simbólico unidimensional. Existem vários personagens multidimensionais que você pode colocar na outra extremidade: Rick de Casablanca, Scarlett O’Hara, Shane, ou Rose de “Uma aventura na África”. À medida que você classifica os personagens (indo de unidimensional até multidimensional), é possível encontrar personagens que ficam em algum lugar entre esses dois polos. “As Mulheres Perfeitas” são personagens simbólicas que representam a esposa perfeita. Tudo que é associado a esse conceito é parte do que as compõe, incluindo submissão aos seus maridos, um comprometimento com casa limpa, comida boa, e manter as crianças felizes. Elas não possuem nenhuma característica que não seja relacionada a esse papel ou qualquer traço negativo da vida de casada que interfira em suas personalidades. Outros exemplos são “O Homem Comum” em “O Homem que Não Vendeu Sua Alma” de Robert Bolt, e “Todo Homem” da peça medieval de mesmo nome, que representa a frivolidade das pessoas. Muitos vilões, assim como muitos super-heróis, também são personagens simbólicos. O Coringa do Batman representa o mal, enquanto o Super-homem luta pela “verdade, justiça e o jeito americano de viver”. Os criadores de personagens simbólicos propositalmente não adicionam muitos detalhes, apenas o suficiente pra transmitir a ideia. Ao colocar esses personagens na linha contínua, talvez você decida de Clark Kent e Bruce Wayne são intencionalmente mais dimensionais que suas personas Super-homem e Batman, e também propositalmente menos

voltar ao índice

dimensionais que personagens como Rick, Scarlett, Shane, ou Rose. A ordem pode ficar assim:

EXERCÍCIO: Crie um personagem que represente a Justiça. Comece listando as qualidades da justiça. Uma lista parcial deve incluir: equidade (incluindo de cor e gênero), neutralidade, uma noção de moral e entendimento concreto da lei. Você deve ser capaz de criar doze ou cinquenta características da justiça. Para desenvolver essa ideia, pense sobre quem seriam os pais da Justiça. Talvez um seja advogado, representando a Legalidade, e o outro um filósofo, representando a Sabedoria. Se você estiver criando um deus ou uma deusa, você poderia parar aqui. Agora comece a dar mais dimensionalidade a esse personagem. Acrescente qualidades relacionadas que não sejam contraditórias. Compaixão, sabedoria, perspicácia, e a capacidade de negociar são algumas possibilidades. Pense nas diferenças entre Justiça (como um personagem simbólico) e um personagem realista que tenha a justiça como qualidade dominante. Um personagem realista também terá contradições, ambivalências e paradoxos que são parte de uma pessoa totalmente dimensional. Personagens simbólicos podem ser úteis para expressar o tema da sua história (por transmitir uma ideia muito clara). Porém é preciso tomar cuidado para que essas limitações não os façam parecer personagens planos. O PERSONAGEM NÃO-HUMANO Muitos de nós crescemos lendo histórias com personagens não-humanos, como “Beleza Negra: A Autobiografia de um Cavalo”, Lassie, A Teia de Charlotte, Bambi, Dumbo, O Corcel Negro. Mas personagens não-humanos não se limitam às histórias infantis. Nos

voltar ao índice

fascinamos com “A Revolução Dos Bichos” de George Orwell, o Caliban em “A Tempestade” ou Harvey da peça com o mesmo nome. Ocasionalmente personagens não-humanos são humanos com alguma característica animal: um latido, um jeito de morder, um rabo peludo. São animais antropomórficos. Apesar dos personagens em “A revolução dos Bichos” não serem tão dimensionais quanto os personagens humanos, eles são propositalmente pensados para lembrar humanos. Podemos dizer que são gente em pele de bicho. A criação de um personagem não-humano deve começar enfatizando o lado humano do animal. Lassie é muito leal e gentil. Rin Tin Tin é muito esperto. Napoleão, o porco de “A Revolução dos Bichos”, manipula e tiraniza os outros. Mas essas características ainda não são suficientes para formar os personagens. Não adianta ficar observando um cachorro inteligente por uma semana ou um cavalo meigo. É preciso uma técnica diferente para criar personagens não humanos possíveis de serem trabalhados. Um personagem humano atinge dimensionalidade através da ênfase e acréscimos em suas características humanas. Mas enfatizar os aspectos não-humanos de um personagem, raramente fortalecerá um personagem nãohumano. Enfatizar as características de um cachorro (latido alto, correr pra tigela de comida) não o fará mais cativante aos humanos. Portanto, uma personalidade precisa ser criada para o personagem. Esse processo de construção de identidade pode incluir: 1. Escolher cuidadosamente um ou dois atributos que começarão a identifica-lo. 2. Enfatizar as associações que a audiência projeta no personagem para expandir sua identidade 3. Criar um contexto forte para aprofundar o personagem

voltar ao índice

Personagens realistas são mais difíceis de categorizar do que personagens não-humanos. Personagens realistas podem ser leais, mas sob certas circunstâncias (um perigo de vida talvez enfraqueça essa lealdade); podem parecer otimistas, mas uma situação trágica talvez mude isso. Já os personagens não-humanos têm atributos bem claros e imutáveis. Apesar desses atributos se basearem em qualidades humanas, eles não terão o lado sombrio, ou a variação que os personagens humanos possuem. Lassie sempre será leal, Rin Tin Tin sempre será inteligente. Al Burton, produtor da nova série “Lassie”, relata: “Existe uma constância na Lassie que é rara nos humanos. Ela é protetora, leal, confiável, corajosa, um cobertor seguro para uma criança”. Somente esses atributos não darão diversidade e interesse suficientes. O público precisa fazer associações. Como elas funcionam? Vejamos o método usado pelo mundo publicitário para criar personagens para produtos como carros, vegetais, cervejas. Michael Gill, vice presidente da agência J. Walter Thompson, explica como eles fazem para criar uma identidade para a marca, que também pode ser usada para criar a identidade de um personagem. “Muitos consumidores não conseguem diferenciar cervejas, detergentes, até mesmo Pepsi e Coca-Cola. Então o trabalho da publicidade é deixar a marca com personalidade, uma identidade, torna-la distinta. É como marcar o gado: você vê aquela marca e instantaneamente reconhece. Aquela marca é usada pra diferenciar tudo que pode ser semelhante. Por isso Mercedes se tornou o carro da engenharia, Ford luta pela qualidade. Certos caminhões lutam pelo poder e durabilidade. Esses personagens nãohumanos (seja um carro ou um computador) se tornam a personificação de certas qualidades. Ao associar um carro (uma coisa física) com um valor (a qualidade, por exemplo), você consegue criar uma atmosfera para o produto (efeito halo)”.

voltar ao índice

Na propaganda, essa atmosfera causa o desejo de adquirir o produto. Quando aplicada à criação de personagens não-humanos, isso fortalece o elo de identificação com o público. Às vezes a personalidade do personagem do comercial vem de uma análise das propriedades do produto. O Pillsbury Doughboy nos faz pensar no processo de sovar e crescer da massa. Snap, Crackle e Pop (personagens da Kellogg’s) vêm do som que o Rice Krispies faz. Spuds Mackenzie (personagem não-humano da cerveja Bud Light) investe na nossa associação de que cachorros são os melhores amigos do homem, e nesse caso, um animal ousado, engraçado e festeiro. Outras vezes a identidade do personagem vem das associações extras. As uvas-passas que dançam no comercial da California Raisins tem pouca relação com as características e propriedades desse alimento. O criador não enfatiza suas rugas, ou o tamanho diminuto, ou as propriedades benéficas pra saúde. Foi feito um grande salto. O criador Seth Werner, explica o começo daquela ideia: “O cliente nos disse: ‘quero uma campanha de celebração, que seja maior do simples uvas passas. Acho que uma celebridade poderia dar personalidade e uma presença marcante que não o produto isolado não conseguiria atingir’. Dissemos que poderíamos criar uma celebridade vinda das próprias uvas passas, dando personalidade a elas. A ideia original (com meu parceiro Dexter Fedor), era um bando de passas dançando ao som de “I Heard It Thorugh the Grapevine”. Pensamos na aparência delas. Decidimos que seriam maneiras e um pouco intimidadoras. Em contraste, outros aperitivos seriam menos maneiros, com menos gingado. Criamos um relacionamento entre as passas e outros alimentos (uma batata frita que murcha, doces que derretem, uma bala que fica grudada na mesa, enquanto as passas permanecem elegantes em seus ternos e óculos escuros. Os pretzels tinham sapatos antiquados, os doces tinham botas antiquadas – tudo para dar um aspecto menos estiloso em relação às passas).

voltar ao índice

“Queríamos que o consumidor acreditasse no realismo desses personagens. Precisa estar ancorado na realidade ou o público não é persuadido. Isso significa que tínhamos que criar, não só os traços gerais, mas as sutilezas e detalhezinhos que tornasse a coisa especial”. Todos esses personagens ganham personalidade através das associações que surgem à partir de certos sentimentos que despertamos com o personagem. Essas associações podem ser fortalecidas se esclarecermos o contexto do personagem. Lassie é definida pelo contexto familiar. Ela existe num relacionamento. O coprodutor Steve Stark afirma “Consideramos a cachorra como parte da família. Ela realmente é a melhor amiga de todos da casa. A nova série da Lassie não é só um programa infantil, mas para toda a família pois Lassie participa da família como um todo. Quando ela fica doente, a família fica ao seu lado, e viceversa (igual uma família de verdade. Rin Tin Tin era um cão de resgate, Lassie é a confidente e a amiga”. O produtor Al Burton diz, “O contexto familiar é a herança do antigo programa, e é enfatizado nessa série. Acrescentamos uma garota ao programa que tem relação com Lassie. Lassie sabe que é importante na família, que precisam dela. A família não faz muito sem que o público sinta “Caramba, ainda bem que eles têm a Lassie”. Lassie é um animal muito mais sensível que Rin Tin Tin, mais racional, ela parece estar conectada automaticamente ao espírito daquela família. “Lessie é uma companhia incrível, uma amiga maravilhosa e, nessa época de relações ruins (eu acredito que vivemos numa época de realções ruins) é incrível ter uma cachorra que traga aquele relacionamento tranquilo que não existe mais hoje em dia”. Compare o contexto da Lassie com outro personagem não-humano: King Kong. Ele veio dos mares do sul, de um contexto primitivo, sombrio, misterioso e assustador. As associações que ele inspira são: um vago conhecimento de rituais antigos, sacrifícios humanos, uma sexualidade

voltar ao índice

sombria e irreprimível. Suas origens são desconhecidas, o que o acalma ainda é desconhecido. Temos ainda mais medo de King Kong por ele nos fazer associá-lo ao nosso medo pelo desconhecido. EXERCÍCIO: Crie uma criatura escamosa de outro planeta através do processo: 1. Escolha um atributo Que qualidades você dará para essa criatura? Ela será mais defensiva, mais amedrontada, mais manipuladora? Ou será mais piedosa, companheira e leal? 2. Expanda esse atributo usando associações Que associações você tentará inspirar? As associações mudarão dependendo do lado que você escolher. Serão atributos humanos positivos ou negativos? 3. Crie um contexto claro Qual será o contexto dessa criatura? Ela mora nas profundezas da terra (enfatizando o lado primitivo, sombrio?) Virá do céu (enfatizando algo do outro mundo, talvez até um contexto mais bondoso?) É uma criatura que vive na superfície da terra (deixando-a mais fácil de relacionar com nosso mundo?) O PERSONAGEM DE FANTASIA Personagens de fantasia vivem num mundo romântico, mágico, estranho. Habitado por criaturas como os duendes, gigantes, goblins, trolls, e bruxas. Pode haver os sombrios e malvados, mas nunca é algo cabal. Os personagens podem ser perigosos, mais não horripilantes. Podem ser malvados, mas o bem sempre triunfa. Personagens de fantasia podem até mesmo se redimir no final. Personagens com esse contexto mágico têm um número limitado de qualidades. Às vezes são definidos por exageros

voltar ao índice

físicos, gigantescos como Paul Bunyan ou diminutos como Liliputians (Viagens de Gulliver). Outros são definidos por seus poderes mágicos (Merlin do Rei Arthur ou a bruxa má do Mágico de Oz). Alguns são definidos por serem super-bondosos, supergeniais, ou super-malvados. Quase todas as heroínas, heróis e vilões de contos de fadas se encaixam numa dessas descrições. Apesar da maioria dos personagens de fantasia ter suas raízes nos contos de fadas e no folclore, novos personagens tem sido criados. Alguns deles incluem a sereia em “Splash”, o garoto preso no corpo de um adulto em “Quero Ser Grande”, e os anterianos em “Cocoon”. Na série de televisão “A Bela e a Fera”, um personagem de fantasia (Vincent) é colocado com uma personagem realista (Catherine). O contexto de Vicent: submundo, grosseiro, primitivo, sempre intimidado pelas luzes. Ele contrasta com Catherina no seu apartamento alto e moderno. Assim como um personagem realista, ela tem uma abrangência muito maior de emoções. Ela pode ficar deprimida, triste, frenética, desgastada, bem como amar, ser gentil, compreensiva, ter compaixão. As qualidades de Vicente são mais limitadas. Ele não é um personagem realista vestindo a cabeça de um leão. Ele permanece nos limites da fantasia. Apesar da aparência disforme, as qualidades de Vicente são positivas. Ele é gentil, tem compaixão, é carinhoso. Às vezes existe uma ânsia, mas isso nunca compromete a bondade de sua alma. Na verdade, bondade é sua característica dominante. O estilo do programa é romântico, e Vicente é heroico (fazendo desse programa um conto de fadas moderno). Nas propagandas, um dos personagens de maior sucesso é Jolly Green Giant. A história da sua criação mostra como a escolha cuidadosa de atributos podem produzir um personagem claro e memorável. Em 1924, uma nova marca de ervilha foi lançada no mercado. Por causa da sua grande lata ela foi chamada de

voltar ao índice

“Gigante Verde”(Green Giant). A agência Leo Burnett foi contratada pra desenvolver o personagem. Eles começaram desenvolvendo o contexto positivo do gigante colocando-o num Vale Verde e criando uma associação de saúde e abundância. Huntley Baldwin da agência Leo Brunett relata: “Lá no fundo, no coração do que sentimos pela comida está a sobrevivência. Em quase toda cultura primitiva, grandes deuses guiaram a caça e garantiram a colheita. Um panteão de deuses garantiu que tudo fosse abundante, fresco e saudável. O Gigante Verde (Green Giant) é um descendente direto desses deuses. Assim como outros personagens de fantasia, existem alguns detalhes conhecidos sobre ele. Ele vive num vale de onde todas as coisas boas vêm. Ele guia o destino daqueles que vivem e trabalham lá. Ele cuida pessoalmente de cada detalhe, do plantio, colheita até envase”. Certas qualidades especificas foram criadas para expandir o personagem. “O Gigante Verde é a ‘estrela’ do comercial”, Baldwin explica, “mas visualmente ele faz um papel de apoio. Ele é mais uma presença para ser sentida do que um personagem para ser visto. Ele é sério, mas não sisudo. Ele é amigável e acolhedor (por isso o “ho-ho-ho”). Mas essa coisa discreta contribui pra sua fantasia. Ele é o que todos imaginam que ele seja, não o que o artista ou o cameraman determinam.” Baldwin enfatiza que o gigante precisa ficar no contexto de fantasia. Em certo comercial eles colocaram o Gigante Verde entre as pessoas reais. Não funcionou. “Pessoas reais podem destruir o clima e a fantasia nos lembrando que o Gigante é de faz de conta. A fantasia dá às pessoas a permissão de ‘acreditar’ no que, em outras situações, seria rejeitado, tido como exagero. A animação estende a fantasia e permite ao espectador lidar com as histórias num nível simbólico ao invés de racional”.

voltar ao índice

O PERSONAGEM MÍTICO Cada um dos três tipos de personagens não realistas que discutidos possuem atributos enfatizados, contexto e/ou associações. Para criar um personagem mítico usaremos esses mesmos elementos, mas adicionaremos um outro: o conhecimento do público. A diferença entre uma história comum e um mito depende de como a audiência irá se conectar com a obra. A maior parte da ficção nos comove de alguma forma, seja em lágrimas, risos ou nos fazendo pensar. Mas a maioria dos filmes e romances terminam assim que a história acaba. Talvez lembremos de uma cena ou um personagem por algum tempo, mas não nos manteremos na experiência. Porém, quando terminamos de ler ou assistir uma história mítica, nós adicionamos um processo de reflexão duradoura nessa experiência. A cena ou o personagem retornam, nos perseguem. Não nos deixam ir embora. Uma história mítica representa o significado das nossas próprias vidas. Transmite uma história que pode nos ajudar a entender melhor nossa própria existência, nossos próprios valores e anseios. A maioria assiste um filme (ou lê um romance) projetando sua própria história naquela que está sendo contada. Às vezes mitos e personagens míticos nos encorajam, nos motivam ou nos empurram para novos comportamentos ou compreensões. Nos tornamos, de certo modo, pessoas melhores à medida que nos identificamos com o heroísmo dos personagens míticos. Histórias míticas são normalmente histórias sobre um herói mítico, contendo uma figura heroica que supera obstáculos e permanece em sua jornada para atingir um objetivo ou tesouro. Como regra, o herói se transforma ao longo da jornada. À medida que vemos o desdobramento da história, talvez pensemos nas nossas próprias jornadas heroicas. Pode ser aqueles obstáculos que um escritor tem que superar para vender o roteiro ou o romance, ou

voltar ao índice

problemas na busca de um amor, num trabalho, num estilo de vida significativo. A jornada da história pode também nos lembrar das nossas jornadas interiores, já que buscamos valores e significados em nossas vidas. Muitos filmes contêm elementos míticos, como um personagem heroico que supera obstáculos pela jornada. Porém, se eles não inspirarem reflexão ou identificação, não serão um mito verdadeiro. O teste é ver o que a audiência projeta na história, e se a história e os personagens ajudarão a audiência a entender suas próprias vidas num nível mais profundo. Por exemplo, no filme “Indiana Jones e a Última Cruzada”, existe um herói que supera todos os obstáculos enquanto busca pelo Santo Graal. Superficialmente, isso pareceria um mito já que contém a maioria dos elementos necessários. Olhando mais profundamente para o filme, vamos fazer algumas perguntas míticas: ■■ A jornada de Indiana Jones para encontrar o Santo Graal se parece com nossas próprias jornadas em direção à realização? ■■ A história nos encoraja a encontrar os obstáculos em nossas próprias vidas? ■■ Esse filme nos proporciona uma relação mais profunda com nossa própria história de vida? Pra maior parte do público, as respostas dessas perguntas provavelmente seriam “não”. Isso não prejudica a diversão e aventura do filme, mas significa que o filme provavelmente não está operando como um mito. Você pode fazer as mesmas perguntas para outro filme que foi considerado mítico, como “E.T”, “Contatos Imediatos do Terceiro Grau”, “Blade Runner”, “Star Wars”, ou “Robocop”. Vejamos outro personagem, um dos maiores sucessos na propaganda, que é considerado um personagem mítico: O Homem Marlboro.

voltar ao índice

“Na propaganda, assim como na maior parte da ficção”, diz Michael Gill da J. Walter Thompson, “você precisa tocar no subconsciente do público. O homem Marlboro parece ter conseguido isso. Nos estudos de Joseph Campbell sobre mito, ele menciona que, desde os tempos em que cavalo e homem estão por aí, existe o mito do homem montado a cavalo. Normalmente esse homem é um grande rei, um deus, um cavaleiro, um guerreiro. E é claro que o homem Marlboro é o símbolo do oeste (o cowboy). As pessoas respeitam e idolatram essa figura. Quando fumam ou bebem não estão fazendo por fazer, estão fazendo por causa das associações emocionais que melhoram o que sentem sobre si mesmas. “Quanto mais realizado o personagem é, mais as pessoas conseguem fazer associações e gostar do personagem. Nas propagandas da Marlboro existe o bigode, a tatuagem, o chapéu branco (um chapéu negro daria uma interpretação diferente). Normalmente ele está montado a cavalo, num espaço aberto e selvagem, não em cidades. Cidades são malignas, arriscadas, perigosas. O campo é bom. Nós sempre o colocamos cercado de coisas bonitas e animais belos (um animal é a expressão primordial de liberdade, indulgência e prazer). Ar fresco e saúde são muito importantes. Existe um sentimento de confiança, que aquele homem está no controle. Ele ou está sozinho ou, às vezes, com outro homem (mas nunca com uma mulher. Isso não é parte do mito). Tocar na dimensão mítica num comercial é muito raro, mas o homem Marlboro parece ter conseguido isso.” Muitos consumidores de Marlboro provavelmente passam pouco tempo longe da cidade, e talvez nunca tenham montado um cavalo. Mas eles projetam um significado no homem Marlboro. Esse personagem representa o desejo deles por ar fresco, espaços abertos e a sensação de auto confiança. Cabe mencionar o caso de Vicent de “A Bela e a Fera”, que é tanto personagem fantástico quanto mítico. Superman também pode ser considerado um personagem mítico. Batman também parece ser mítico, já que a história

voltar ao índice

de Batman fala sobre escuridão e psicoses da nossa sociedade. Michael Besman, vice-presidente de produção da GuberPeters Entertainment, nos fala sobre o desenvolvimento do Batman: “Batman é meio vingador (é como o Robocop). Bruce Wayne é o milionário, o personagem com uma dupla personalidade. Atormentado pela morte dos pais, ele está a solta para se vingar. Ele se sente desconfortável por ter crescido sendo herdeiro rico, obrigado a lidar com a imprensa e com o público. Porém, quando se torna o Batman, não precisa camuflar sua raiva, pode exteriorizala. Bruce Wayne se vê obrigado a viver cercado pelo mundo. Bruce Wayne tem identidade. Batman não”. Bruce Wayne precisa lidar com sua identidade humana. Ele é um personagem realista que escolhe se tornar nãorealista por ser mais simples e direto assim. Perdendo sua dimensionalidade, ele também pode perder a dor dessa humanidade (a qual é muito difícil de lidar). Bruce Wayne criou o Batman por desejar que ele estivesse lá para salvar seus pais. Besman contrasta a diferença entre Super-homem e Batman: “Clark Kent é bem mais ciente da identidade secreta. Quando vem pra terra, ele cresce dentro do papel de super-herói, quase como uma extensão dos seus poderes. Mas Batman veio da dor, raiva e da necessidade de expressar isso. “A reação da audiência é bem diferente pra cada um desses personagens. Eu era um grande fã dos quadrinhos do super-homem. Lembro de pensar que seria incrível realmente ter um Super-Homem no mundo. É quase como saber que Deus existe. É seguro. Eu não queria ser o SuperHomem. Eu gostaria de ser amigo dele. Batman, contudo, é uma escalada íngreme, ele teve que passar por tantas dificuldades. Existe mais do que uma conexão emocional. Ele é como nós, menos mágico que Super-homem. SuperHomem é muito puro. Batman é como o outro lado da moeda”.

voltar ao índice

O contexto que Batman vive também determina quem ele é. Em alguns desses heróis dos gibis, o contexto é bem sombrio. Michel Basman continua: “A forma que Gothan City é retratada é bem realista, corajosa, sombria e psicológica. É um exagero de um lugar pro público entender o que leva um homem a se tornar um Batman.” Um recente sucesso de bilheteria apresenta outro personagem mítico, “O Fantasma da Opera”, que simboliza a vítima ferida. James Dearden, que escreveu o roteiro adaptado, enfrentou o desafio de fazer esse personagem mítico. “No roteiro, o que tentei foi criar um fantasma. Mas como tentar escrever sobre um cara que é horrivelmente deformado, que vive numa caverna subterrânea por toda a vida e que, ao mesmo tempo, tem uma alma bonita, e é capaz de sentir amor? Claramente esse não é um personagem realista, pois um personagem real nessas circunstâncias seria fedorento, e deformado tanto por fora quanto por dentro. Porém o que temos é algo baseado no mito. Acho que criamos um personagem que foi, dentro do contexto do filme, consistente. Um personagem simbólico que você poderia acreditar. O ponto inicial na sua criação foi o valor ou a ideia. A ideia, nesse caso, é esse pária horrivelmente mutilado com uma alma linda e generosa dentro de si. ‘A Bela e a Fera’ era minha referência para o Fantasma. “ Personagens míticos tendem a ter certas qualidades específicas. Eles normalmente são heroicos. Muito é cobrado deles, e eles são capazes de encarar o desafio. No decorrer de uma história, os personagens míticos mudam, ficam mais fortes ou mais sábios. A figura mítica frequentemente tem um passado misterioso e sombrio. Existe uma sensação de que parte do seu passado não foi revelado pro público, apesar de estar implícito. Às vezes o escritor e o personagem sabem do passado, mas mantém em segredo por ser muito doloroso contar. O personagem talvez seja incapaz de lidar com isso. O passado nesse caso é uma parte essencial do personagem, mas por ser misterioso, o público cria sua própria interpretação do

voltar ao índice

que aconteceu. Shane, que se adequa parcialmente ao mito do Velho Oeste, pode se encaixar nessa categoria. Às vezes o passado é conhecido ou revelado durante a história. O terrível acontecimento que motivou e obcecou Batman toca em nossa compreensão sobre o poder da vingança e da obsessão. Toda época cria novas histórias míticas para nos ajudar a entender nossas vidas. Nos anos 30, Charlie Chaplin em “Tempos Modernos” expressou a sobrecarga e o desamparo que muitos trabalhadores sentem numa sociedade super industrializada. Mais recentemente, Blade Runner nos mostra as consequências naturais da corrupção irrefreável e do superpovoamento. Oliver Stone explica personagens míticos em seu conto de ganância em “Wall Street” e na história sobre o bem, o mal e a inocência perdida no filme “Platoon”. “Campo dos Sonhos” explora nossa nostalgia pelo passado e pela resolução, enquanto “Vítimas de uma Paixão” e “Atração Fatal” exploram a solidão e o perigo de muitos relacionamentos modernos. Personagens míticos podem ser difíceis de criar. Além de ter um certo mistério, eles precisam de alguma dimensão para soar com seres humanos reais. Mas, ao mesmo tempo, não podem ser tão específicos (devem ser mais que uma individualidade, precisam representar uma certa ideia). São humanos e simbólicos, sem deixar que uma coisa se sobreponha à outra. O teste cabal para ver se o personagem possui características míticas, é ver se ele se conecta com a vida do público. Além das vantagens citadas, trazer alguma dimensão mítica ao seu personagem pode aprofundá-lo e fortalecer a conexão entre a história e a vida pessoal do público. Na reunião com a equipe da série “MacGyver”, nós discutimos maneiras de acrescentar dimensões míticas ao personagem. O executivo da rede ABC, William Campbell III, disse que seria muito importante que MacGyver continuasse de alguma forma misterioso para

voltar ao índice

ainda ser heroico. Ao mesmo tempo, a força da série vinha da combinação de ação, inteligência e emoção. Sugeri discutirmos um novo tipo de herói e que talvez pudéssemos expandir o personagem e a relação com o público através de uma perspectiva mítica. O modelo de herói vai mudando sutilmente através do tempo. Heróis tradicionalmente são definidos como guerreiros, conquistadores, competidores (como homens de ação). Certamente Macgyver é um homem de ação. Mas ele é um tipo diferente de herói. Ele reage de maneira nãoviolenta e não-competitiva às situações. O herói do passado partiu para conquistar a vastidão; MacGyver quer proteger a terra. O herói do passado era um individualista grosseiro; MacGyver é humanista, alguém que trabalha em equipe. Ele pode ser um novo tipo de herói para a juventude. Nesses tempos que muitos jovens sucumbem às drogas, depressão, e ao sentimento de impotência, MacGyver representa uma alternativa, respostas e posturas. Expandir o MacGyver de uma maneira mítica poderia tomar duas direções diferentes: 1. Poderiam criar mais histórias sobre os problemas mais sérios da nossa época (corrupção, ecologia, engenharia genética) mostrando esse herói reagindo a essas questões e encontrando soluções não-violentas. 2. Poderiam investir em algo misterioso ou mal resolvido em seu passado. Isso permitiria que o público projetasse suas próprias interpretações do passado do personagem. Contudo, já que grande parte da força do personagem (e do ator) está na sua dimensionalidade, na capacidade de transmitir emoção e cuidado (qualidades que nem sempre encontramos em personagens míticos), talvez fosse um erro torna-lo um herói mítico clássico. MacGyver é um personagem claramente emocional, sem mistérios reais do seu passado. Ao invés disso, seria possível inserir suas qualidades numa sociedade tecnológica. Se o contexto e associações

voltar ao índice

fossem expandidos, a relação com o público poderia ser pensada em termos míticos, sem comprometer as qualidades humanas e dimensionais do personagem. ESTUDO DE CASO: A HISTÓRIA SEM FIM II No primeiro trimestre de 1989, trabalhei como consultora para o filme “A História Sem Fim II” (a sequência) que foi filmada a partir do segundo semestre daquele ano para ser lançada no final de 1990. A história em si começa com personagens realistas (Bastian e seu pai), e então vai para o mundo de fantasia chamado “Fantasia”, onde encontramos personagens fantásticos não-humanos, simbólicos, e/ou míticos. Nesse filme, muitos personagens se encaixam em mais de uma categoria. Alguns personagens exclusivamente não-humanos: Nimbly duas caras, Falkor o dragão e Rockbiter (que também está no primeiro filme). Personagens que, além de não-humanos, são personagens simbólicos: Wambos, Wind Bride, Lava Man e Mud Wart. Karin Howard, a roteirista, nos explica como os criou: “Alguns dos personagens foram baseados na obra original de Michael Ende de 1979. Já os Wambos (as criaturas que ajudam a invadir o castelo) foram inspiradas nos posters do Rambo. Já que a realidade deles é parecida, ao invés de chamá-los de Rambo, chamei de Wambos. Pensei no que existe num exército (tipo barulho e poeira), então essas criaturas criam a ilusão de batalha sem realmente fazer nada mais que barulho e poeira. “Os personagens da nave das tramas secretas – Terra, Ar, Vento e Lava – foram criados para fazer a parte da exposição. No primeiro filme, existe um patriarca que faz essa função. Mas um patriarca pode ficar muito verbal e filosófico demais. Eu queria algo mais visual. Esses mensageiros explicam a situação a Bastian. Me baseei em terra, vento e fogo, e fiz a criatura de lama, a criatura de vento, a criatura de fogo. Para expandi-los dei nomes pra

voltar ao índice

eles. Assim que ganharam os nomes, comecei a pensar nas associações que poderiam ser feitas com esses nomes. A criatura dos instrumentos parecia meio chata e solitária, então a transformei na solitária dos instrumentos que representa o som. O Mud Wart é obviamente algo que grunhe e representa a terra. O Lava Man é o fogo, e a Wind Bride é o vento. “Na obra original de Michael Ende, há um parágrafo que descreve os Ninblies: os mensageiros têm uma certa semelhança com coelhos. Essas criaturas estão entre os corredores mais velozes de Fantasia. Peguei a ideia e criei um personagem chamado Ninbly que tem calçados de corrida e um boné de baseball. Percebi que se ele estiver correndo muito rápido, acabaria fazendo aterrissagens estranhas, talvez até tropeções. Dei a ele uma função: ele estaria a serviço da bruxa, provavelmente um espião. Fiquei pensando no termo “vira-casaca”. O departamento de produção teria que pensar numa maneira literal de transmitir esse termo. Nós concretizamos isso o transformando numa criatura que poderia dobrar suas plumas pra trás (mostrando seu lado ruim quando está com a bruxa, mas quando está com os mocinhos (Bastian e Atreyu) ele coloca suas penas pra frente e mostra seu lado bom. “Nimbly trabalha com Três-Faces, o cientista meticuloso que anseia ser a ferramenta perfeita. Ele é a combinação de um gênio maluco, com Frankenstein e o porteiro da cidade da Velha Imperatriz. “Originalmente eu o imaginava num corpo de resina (daria pra ver todos os canos passando pelo corpo, ele seria mais um robô). Agora ele é mais como um mágico de chapéu branco e três olhos. “Minha criatura favorita no primeiro filme foi Rockbiter. Ele come pedras, é grande e desajeitado, tem olhos pequenos e uma cabeça engraçada e pontuda. Depois de fazermos brainstorm tivemos a ideia de um bebê Rockbiter. No primeiro filme, Fantasia foi ameaçada pelo Nothing. Mas no segundo filme ela é a ameaçada pela Emptiness.

voltar ao índice

Junior está com fome, já que as pedras em Fantasia eram vazias, assim sua função amplia a ideia de Emptiness. “Falkor o dragão já veio muito bem definido do primeiro filme. Ele é o favorito do diretor de da equipe de marketing. Falkor é o personagem que mais se relaciona, o melhor amigo. Ele tem um entendimento incrível da natureza humana e um humor refinado, pois entende as fobias humanas e sempre vê as coisas de uma maneira positiva”. Cada um desses personagens não-humanos têm uma função diferente. Nimbly e os Wambos têm uma função na história, as Criaturas estão lá pra fazerem a parte da exposição, e os Rockbiters ampliam o tema. No filme, existem vários personagens humanos. Bastian e seu pai são personagens realistas, da terra. Os outros são personagens fantásticos vindos de Fantasia. Bastian e os personagens fantásticos de Xayide (a bruxa), a Imperatriz infantil, Atrayu, o guerreiro de Fantasia são personagens míticos também, tendo parte na jornada de salvar Fantasia da Emptiness. Karin continua: “Bastian é o personagem humano e, apesar de ter o maior livre-arbítrio e ser o mais imprevisível, ele pode fazer as escolhas mais erradas ou mais certas. Ele e seu pai são os personagens mais dimensionais. “Atreyu, o guerreiro de Fantasia, era um problema pois ele poderia acabar ficando chato, muito tacanha. Na obra original, Atreyu tinha inveja de Bastian; mas os produtores sentiram que os garotos precisavam ser amigos no filme. Nós insinuamos alguma inveja por interesse, mas essa relação era apenas uma história menor (a história C) então era importante que ela não dominasse o filme. “Xayide é a bruxa de Fantasia. Eu queria fazê-la sexy, uma mulher muito obstinada, bem moderna, cantando na sala do trono, batendo o pé e sendo bem impaciente quando as coisas não estão indo ao seu modo. A imperatriz infantil era muito tacanha e eis que chega Xayide, aquele mulherão e finalmente diz “Já chega! É minha vez de brilhar. Quero dominar Fantasia e caramba eu vou fazer isso!”. Foi bem

voltar ao índice

chato quando todos os seus tanques e gigantes deram defeito. Então criei bastante humor com o incidente. Xayide pirou quando as coisas não aconteceram do seu jeito. Ela é uma representante de Emptiness, é uma personagem contra as histórias e a imaginação. “A imperatriz infantil foi outro importante personagem fantástico. Passei um bom tempo trabalhando nela. Ela era claramente definida no primeiro filme, mas teve um papel que durou apenas um dia de filmagem. Ela é uma menininha linda com uma voz meiga, linda demais para desperdiçar com qualquer palavra. Então tentamos criar palavras lindas para colocar em sua boca. Ela não conhecia o bem ou o mal. Tudo era igual pra ela, ela não julgava. Na Alemanha, nós diríamos que ela é cafona/brega, mas por alguma razão funcionou.” APLICAÇÃO Se o seu roteiro possui personagens não realistas, pergunte-se: ■■ Qual ideia está sendo comunicada por esse personagem? ■■ Que associações essa ideia inspira? Eu testei essas associações para garantir que são coerentes com meu personagem? ■■ Qual o contexto do meu personagem? Se eu mudar ou expandir o contexto, isso ajudará a fortalecer o personagem? ■■ De que maneira o personagem se conecta com a história pessoal do público? Se o meu personagem é mítico, eu explorei as várias dimensões do mito pra deixa-lo claro?

voltar ao índice

RESUMO Os personagens não realistas estão determinados por quatro critérios: 1. Até que ponto eles exemplificam uma ideia? 2. Como o contexto do meu personagem ajuda a definilo (como o contexto o influencia)? 3. Quais associações o público faz com o personagem? 4. Esse personagem ajuda o público a entender o significado de suas próprias vidas e histórias pessoais? Personagens não realistas têm feito sucesso nos romances, filmes e séries (“Alf ”, “Lassie”, “Rin Tin Tin”). Os recentes sucessos de bilheteria (“Batman, Super-homem”, “Uma Dupla Quase Perfeita” e “Fantasma da Opera”) criaram mais mercado. Isso significa mais necessidade de escritores que sabem escrever histórias com personagens não realistas.

voltar ao índice

9 Para além do Estereótipo A ficção pode ser poderosa. Personagens podem afetar nossas vidas em muitos níveis. Eles nos inspiram, motivam comportamentos, ajudam a entender a nós mesmos e aos outros, expandem nossa percepção da natureza humana, e até mesmo são modelos para novas decisões em nossas vidas. Mas, assim como eles podem ser influências positivas, também podem nos afetar negativamente. Existem fortes evidências que comportamentos criminosos são, algumas vezes, copiados de programas de televisão. Vários estudos têm mostrado um elo entre violência televisiva e violência entre crianças e adultos. Existem evidências que estereótipos colaboram para uma visão negativa do público a respeito de uma série de pessoas. Como escritor criando personagens dimensionais, é sua obrigação entender o que é estereótipo para desconstruí-lo. Podemos definir estereótipo como uma representação continua de certas pessoas, com o mesmo conjunto superficial de características. Normalmente um estereótipo é negativo, mostra um viés cultural preconceituoso, pintando um personagem de fora da cultura dominante de maneira limitada e até desumanizada. Quem é estereotipado? Qualquer um diferente de nós. Qualquer um que não entendemos. Podemos incluir

voltar ao índice

minorias étnicas, como negros, asiáticos, hispânicos, índios (no caso de você ser um escritor branco), ou pode incluir brancos, se você é um escritor de algum grupo minoritário. Pessoas com deficiências físicas frequentemente são estereotipadas, bem como os deficientes mentais, ou que sofrem transtornos psicológicos. Grupos religiosos são frequentemente estereotipados, sejam muçulmanos, católicos, judeus, fundamentalistas, protestantes, hindus ou budistas. O sexo oposto pode ser estereotipado, seja homem ou mulher. Pessoas com orientações sexuais diferentes das nossas também (até mesmo os heterossexuais). Pessoas mais velhas ou mais novas são estereotipadas, assim como aqueles vindos de outras culturas. Estereótipos variam em diferentes grupos. Mulheres e minorias são frequentemente retratadas como vítimas. Em muitos filmes, esses grupos particularmente, tendem a ser descartáveis. Seja como as primeiras a morrer, ou salvas por um homem branco. Pessoas com deficiências normalmente são retratadas como “deficiente do horror”, com certa deformidade no corpo que simboliza uma deformidade na alma. Ou são retratadas como vítimas dignas de pena, ou então como “super deficientes”, pessoas que conseguem fazer coisas inacreditáveis, superando aquela deficiência de maneiras miraculosas. Negros são normalmente retratados como pessoas engraçadas, ou como alvo da piada, ou como criminosos. Mulheres asiáticas normalmente são retratadas como exóticas/eróticas, enquanto os homens asiáticos são massas estúpidas ou, algumas vezes, até mesmo como modelo minoritário: bem de vida e comportado. Apesar desse último caso não parecer negativo, é limitado e estereotipado uma vez que não reconhece que asiáticos sofrem dos mesmos problemas que qualquer outro grupo. Pense em quantas vezes os índios foram retratados como selvagens sanguinolentos ou como bêbados, covardes fora

voltar ao índice

da lei. Nas tantas vezes que hispânicos são retratados como integrantes de gangues ou bandidos, ou como Luiz Valdez diz “A premissa é que as histórias hispânicas só podem ocorrer no sudoeste, atrás das paredes feitas de tijolo de argila, debaixo de um telhado de telha”. Até o homem branco não escapou do estereótipo. Ele é enfatizado como um homem da ação, seja do tipo forte silencioso ou o super macho. Isso nega todo um grupo de homens: aqueles que são donos de casa, massagistas, professores... Essas pessoas podem se sentir desvalorizadas na sociedade. O homem pensador ou o homem que tem compaixão raramente encontra obras que refletem sua realidade. Secretárias, loiras, jogares de basquete, “WASPS”, veteranos de guerra, advogados, já foram retratados de uma maneira estereotipada. Poucos grupos são imunes ao nosso desejo natural de simplificar personagens humanos complexos. Ninguém está a salvo. Um personagem tipo não é o mesmo que estereótipo. O pai vacilante ou o soldado fanfarrão são personagens tipo, pois o retrato é equilibrado com outros conceitos de pais e soldados. Os leitores e o público não chegam a conclusões como “todos os pais são vacilantes” ou “todos os soldados são fanfarrões”. O personagem tipo não resume um certo grupo a mesma característica. O estereótipo sim. SUPERANDO O ESTEREÓTIPO Apesar das boas intenções de muitos escritores, os personagens de ficção são predominantemente brancos e não retratam a realidade. A população dos Estados Unidos consiste de 12% de negros, 8.2% hispânicos, 2.1% de asiáticos, 2% de índios, 20% de pessoas com algum tipo de deficiência física. Porém, a maioria das histórias de ficção retrata uma realidade um tanto diferente. Numa análise recente de programas de televisão, um estudo da Comissão De Direitos Civis Norte Americana descobriu que apesar de 39% da população dos EUA ser

voltar ao índice

de homens brancos, personagens assim ocupam 62% dos personagens na televisão. Enquanto 41,6% da população dos EUA consiste em mulheres brancas, e 9.6% da população ser de minorias femininas, elas são sub representadas nos dramas de TV. Numa análise, apenas 24,1% da totalidade de personagens eram mulheres brancas, e apenas 3,6% eram mulheres de grupos minoritários. Num país onde 95% de todas as mulheres trabalham fora, o estereótipo da “mulher dona de casa” não é mais verdadeiro. Num país onde 40% dos estudantes de teologia e direito são mulheres, é equivocado retratar apenas ocasionalmente as mulheres como advogadas, juízas ou pastoras nos filmes ou na televisão. Num país onde as mulheres são pilotas, mecânicas, técnicas de reparo telefônico e rabinas; um retrato mais preciso da sociedade mostraria personagens femininas nesses papéis. Reproduzir exclusivamente esses papeis no homem branco, ignora uma variedade de pessoas na nossa cultura. Tais estatísticas podem ser úteis para um escritor decidir que tipo de personagens adicionar numa história. É um bom ponto de partida, até mesmo com as diferenças sociais de cidade pra cidade. Se você quiser verdadeiramente representar a realidade na sua história em São Francisco, você terá uma boa porcentagem de asiáticos e gays. Se você estiver escrevendo uma história que se passa em Los Angeles, uma quantidade de hispânicos seria incrível. Uma história passada em Detroit ou Atlanta terá uma grande porcentagem de negros. Superar o estereótipo significa treinar nossas mentes para ver para além da branquitude. A criação de personagens é parte da reeducação do nosso poder de observação. Em qualquer cenário, estamos acostumados a primeiro ver o grupo dominante. Por exemplo, se você visitasse minha cidade natal Wisconsin (2,504 habitantes) na década de 50, você facilmente a estereotiparia como uma comunidade branca, classe média, de protestantes e católicos e algumas pessoas do tipo “Não vamos à igreja”.

voltar ao índice

Mas, se você olhar com mais atenção, começará a notar a diversidade dentro da comunidade. Naquele tempo, a cidade tinha uma família judia dona de uma loja de eletrodomésticos, uma família que fugiu da Letônia depois da guerra, alguns mexicanos que colhiam pepinos para a fábrica de picles no verão; um índio menominee da reserva próxima que, ocasionalmente, comprava na drogaria do meu pai. Uma pessoa de baixa estatura que ajudava as crianças a atravessar a rua depois da escola; uma menina da quinta série com retardo mental, uma outra da oitava série que perdeu um braço por causa do câncer, quatro famílias muito ricas e outras três muito pobres. Alguns anos mais tarde, se você olhasse novamente, você veria outros detalhes que quebrariam o estereótipo: três ladrões de banco que foram pegos seis horas depois de roubarem o Banco Estadual de Peshtigo (eles pegaram a única via sem saída da cidade!), um pastor antiguerra que (pro desgosto de sua congregação) liderou marchas de protesto locais durante a Guerra do Vietnã. Nos últimos anos, houve a adição de três figuras de renome nacional: o advogado F. Lee Bailey, que tem uma segunda casa na cidade vizinha; Sargeant Medina, que era associado com o incidente My Lai no Vietnam, e o mercenário Eugene Hasenfus. Como pode notar, muitas dessas pessoas não são definidas pela sua etnia: “a família judia”, “o protestante”; mas pelo papel que desempenham: “o dono de uma loja”, “o pastor antiguerra”. Como ponto inicial, olhar para a diversidade dentro do seu contexto pode ajudar a consolidar a pesquisa geral que você já tinha feito. Qualquer pessoa da sua história de vida pode ser um excelente modelo para um personagem minoritário. Adicionar minorias a um romance ou história curta pode ser relativamente fácil: você simplesmente os coloca na história. Para roteiros, pode parecer uma coisa simples escolhê-los para o elenco, um indiano para fazer um médico ou uma coreana para fazer a mecânica. E

voltar ao índice

normalmente é simples, o problema é que os diretores e produtores de elenco não são de pensar sobre colocar minorias na história. Mas existem atitudes que podem ser tomadas pelo escritor. Shelley List, ex produtora e principal criadora de “Cagney & Lacey” diz: “por eu me importar que as minorias sejam retratadas, eu normalmente as adiciono. Ao invés de deixar algo vago, ou deixar que o diretor de elenco resolva, eu especifico que a escola é composta de asiáticos, negros e brancos. Ou menciono o juiz negro, o engenheiro negro, ou a âncora asiática. A equipe normalmente não questiona, ou nota. Os roteiros vão pro diretor de elenco, que simplesmente segue as descrições.” Um dos artistas mais aclamados dos últimos anos vêm de grupos minoritários e interpretou papéis que não eram especificamente minoritários, papéis que poderiam ter sido interpretados por brancos. O papel de Eddie Murphy em “Um Tira da Pesada” foi originalmente pensado para Sylvester Stallone. O papel de Lou Gosset em “A Força do Destino” foi pensado para uma pessoa branca. O papel de Sigourney Weaver em Alien foi originalmente escrito para um homem. Muitos dos papeis recentes da Whoopi Goldberg não são específicos para minorias, e alguns deles sequer foram escritos para uma mulher. Em cada personagem desses o ator acrescenta algo especial por causa do seu contexto cultural, apesar do papel não ser definido por gênero ou etnia. Muitos membros de minorias preferem ser escolhidos dessa forma, ao invés de ser um negro interpretando um negro, ou uma pessoa com deficiência interpretando uma pessoa com deficiência. EXERCÍCIO: Imagine-se criando uma cena num hotel de uma grande cidade. Estatisticamente falando, o hotel possui a mesma porcentagem de minorias que a cidade. Que tipos de personagens negros você colocaria? E quanto aos hispânicos? Pessoas com deficiências? Que profissões essas pessoas poderiam ter? Qual seria o gênero dessas pessoas? E quanto a idade? E a religião?

voltar ao índice

COMO VOCÊ DIMENSIONALIZA ESSES PAPÉIS? Criar um personagem de uma cultura diferente daquele que escreve inclui: 1. Criar o personagem como um ser humano completo, com toda a gama de sentimentos, posturas e ações como qualquer pessoa teria. 2. Entender a influência que aquela cultura específica na composição do personagem. Assim como qualquer personagem, um personagem de outra cultura terá coisas parecidas e diferentes de você. Ir além do estereótipo exige uma certa quantidade de pesquisa específica da parte do escritor. Às vezes a informação que um escritor traz de um passado recente, já não é mais relevante para o presente. Mulheres, homens, pessoas com deficiências, minorias étnicas têm definido a si mesmos nos últimos anos à medida que lutam pelos seus direitos dentro da sociedade. É importante ter alguma vivência com os grupos que você está escrevendo a respeito (e/ou pedir conselhos). Várias organizações, incluindo o NAACP, Nosotros (um grupo hispânico), a Aliança dos Artistas Gays e Lésbicas, Asian-Pacific Americans, e o California Governor’s Committee for the Emplyoment of Disbled Persons, podem ser fontes se você tem perguntas ou precisa de um conselho. Muitos contam com pessoas que podem te aconselhar sobre os personagens retratados na sua história. Você também pode pedir a alguém da minoria que você está retratando para ler o roteiro ou romance. Para uma escritora mulher, pode ser útil ter um homem para olhar seu roteiro. Escritores homens podem pedir para que mulheres leiam as histórias que escreveram. Os detalhes do personagem devem ser bem sutis, e normalmente é necessário alguém que entenda muito do personagem para delineá-lo, criar uma realidade que soe verossímil. Alguns anos atrás, William Kelley (roteirista do filme “A Testemunha”) me chamou para ajudá-lo com um

voltar ao índice

personagem religioso que ele estava criando. Sabendo que eu sou uma Quaker, ele queria checar alguns detalhes sobre uma personagem feminina Quaker. Os detalhes que ele me mostrou pareceram bem embasados e genuínos. Então ele me mostrou a oração que escreveu para sua personagem. Eu disse “Bill, você criou uma oração metodista, não uma oração quaker”. Nossa conversa confirmou a direção da sua personagem e também esclareceu um importante detalhe. EXERCÍCIO: Imagine-se escrevendo uma cena de funeral. Como seria se fosse um funeral da sua cultura? Pense sobre os funerais que você já participou de outras culturas. Como eles diferem? Como você faria pra descobrir a diferença entre um funeral judeu, um funeral sul-africano e um funeral quaker? Pense sobre os casamentos que você participou. Qual a diferença entre eles? Como os vários casamentos expressam o contexto cultural da noiva e do noivo? ESTUDO DE CASO: THE WOMEN IN FILM LUMINAS AWARDS Muitos grupos, cientes do estrago que estereótipos podem fazer, começaram a falar cada vez mais da necessidade de retratar as mulheres e as minorias de maneira mais realista. Em 1983, num esforço para mudar a maneira que as mulheres são retratadas na mídia, uma organização internacional chamada “Women in Film” criou um prêmio, o Luminas Award, para prestigiar retratos positivos, não estereotipados de mulheres. Eu fui a presidenta do comitê, designada para criar o critério que nos ajudaria a identificar estereótipos, bem como personagens femininas construtivas. Escritores, produtores e diretores podem se beneficiar do critério para superar qualquer estereótipo que esteja emanando dos seus personagens. Originalmente, existiam oito critérios. Nesse estudo de caso focarei nos cinco mais aplicáveis tanto para mulheres

voltar ao índice

quanto para minorias. (A lista com todos os oito aparecerá logo à frente). 1. Personagens não-estereotipadas são multidimensionais. Personagens estereotipadas geralmente só possuem uma dimensão. São sexys, ou violentas, ou gananciosas, ou manipuladoras. Personagens dimensionais contém valores, emoções, posturas e contradições. Superar um estereótipo significa humanizar a pessoa para mostrar a profundidade e extensão do personagem. 2. Personagens não-estereotipadas são vistas em vários papéis sociais diferentes e em variados contextos. Frequentemente personagens estereotipadas são definidas em papeis e contextos limitados. Uma mulher pode ser vista simplesmente como a esposa do patrão, ou como mãe, secretária, ou ela pode ser vista como uma vice presidente. Personagens dimensionais atuam em diferentes papéis e podem estar em diferentes contextos. Não são limitados, são pessoas com individualidade e também com relações interpessoais. São produtos de suas culturas e profissões; da sua localidade e de sua história de vida. Acrescentar outros papéis e contextos expandirá a personagem e quebrará o estereótipo. 3. Personagens não-estereotipadas refletem a abrangência de idade, raça, classe, aparência física e profissões presentes na sociedade. Para superar estereótipos, as histórias precisam retratar mais verdadeiramente a configuração de nossa sociedade. Na televisão, a maior parte das mulheres são jovens, belas e ricas, o que desqualifica as importantes contribuições das mulheres acima dos quarenta, assim como mascara a realidade social de que mulheres ganham menos que homens. Em muitas histórias as minorias são colocadas em poucas funções e em classes socioeconômicas baixas, o que deturpa suas influências e contribuições. Entender a representação estatística da sociedade em sua história e

voltar ao índice

representa-la de forma realista, expandirá a paleta de sua história. 4. Personagens não estereotipados ajudam a mover a história (afetarão o que irá acontecer) com atitudes, comportamentos e propósitos pessoais. Personagens estereotipados normalmente são reativos ao invés de ativos. Eles são controlados pela história e são vítimas de personagens mais fortes. Já personagens dimensionais são direcionados pela vontade interior e não exterior. Eles influenciam a história, movem a ação e afetam o desenlace. Dar aos personagens vontade própria os fortalece, os retira do lugar de vítimas e os coloca como influências poderosas na história. 5. Personagens não-estereotipados refletem suas culturas e fornecem novas percepções e novos modelos de papel por causa da influência de suas histórias de vida. Muitos personagens estereotipados são personagens genéricos. Eles atuam igual ao homem branco, mesmo que o passado de cada um insinue outras perspectivas. Muitas vezes uma mulher ou um membro de uma minoria terá uma postura diferente diante de um problema, ou uma ideia diferente ou sugestão de como resolver esse problema. Essas novas perspectivas de uma situação podem acrescentar detalhes criativos e reviravoltas incomuns para sua história. Reviravoltas que você não atingiria usando apenas personagens de uma única cultura. Quebrar estereótipos significa reconhecer as contribuições que pessoas de outros cenários culturais podem dar. Valorizando o que eles têm a oferecer, esses personagens de fora da sua própria cultura podem acrescentar cor, textura e tornar suas histórias únicas. O Luminas Award foi feito pela primeira vez em 1986. No momento em que este artigo foi escrito, essa premiação foi interrompida com algumas ideias de reinstituí-lo em uma data posterior. Mas os critérios continuam sendo

voltar ao índice

usados por alguns membros da indústria na criação de personagens. APLICAÇÃO Pense por um momento sobre as pessoas que você conhece que são negras, hispânicas, índias, asiáticas, etc. Pense em como a mídia costuma retratá-las e como difere da sua própria experiência. Existe alguma pessoa desses grupos que você nunca conheceu? O que você pensa sobre elas é realmente verdade? Tente encontrar a verdade, principalmente se você decidiu usar um desses grupos étnicos na sua história. Aplique o critério do estudo de caso em alguns filmes que você assistiu ano passado. Onde cada filme errou? Onde cada filme acertou? Como poderia melhorar sem comprometer a história? Pense na sua cidade natal. Quais diversidades existiam entre as pessoas de onde você cresceu? Existiam pessoas de certas culturas que você não tinha contato? Você tinha ideias estereotipadas dessas pessoas? Como você começou a desconstruir esses estereótipos? Pense no contexto dos personagens do seu roteiro. Você explorou a diversidade dentro da localidade de cada um? Você precisa fazer pesquisas mais a fundo sobre algumas dessas pessoas para retratá-las com precisão? Quem você conhece de grupos minoritários que poderia ler seu roteiro e dar sugestões para dimensionar melhor o personagem?

voltar ao índice

RESUMO Desconstruir estereótipos não é um processo que o escritor precisa fazer sozinho. Todos os grupos mencionados possuem materiais publicados que podem ajudar a entender mais profundamente algum personagem de alguma minoria específica. Muitos deles também possuem outras fontes disponíveis para o escritor, tais como pessoas para serem consultadas sobre personagens no roteiro. Adicionar representações positivas de mulheres e minorias no seu roteiro pode expandir a paleta da sua história, criar personagens mais fortes, definidos e dimensionais.

voltar ao índice

10 Resolvendo Problemas no Personagem Escritores ficam travados e personagens também. Às vezes as ideias simplesmente não vêm. Às vezes o personagem parece que não vai chegar a lugar nenhum, e todas as perguntas básicas (O que o personagem quer? Quem é o personagem? O que ele/ela está fazendo na história) parecem não entregar nenhuma resposta. Para alguns escritores, esses momentos os enchem de pavor. Outros simplesmente veem como parte do processo. Às vezes isso acontece por cansaço. Os escritores estão tão exaustos que suas mentes não estão funcionando bem. Às vezes é por falta de pesquisa. Se você não entende o contexto do personagem, o personagem não vai funcionar. Outro problema ocorre porque escritores passam tanto tempo escrevendo, que não param pra viver. Carl Sautter alerta, “Você precisa tentar ter uma vida, perceber que é mais que um escritor e que existe um mundo lá fora. Se você não estiver no mundo, não escreverá tão bem pois você estará perdendo o que está acontecendo.” Não existe nada de estranho em enfrentar problemas com o personagem. Todo escritor passa por isso. Normalmente os problemas estão nos seguintes tópicos:

voltar ao índice

PROBLEMAS COM PERSONAGENS DESAGRADÁVEIS Quando Judith Guest estava escrevendo “Gente Como a Gente”, ela teve dificuldades para entender Beth. Ela relata “Beth funcionava bem para definir melhor o roteiro e mover a história adiante. Mas para meus propósitos como autora, ela me parecia um fracasso. Muitas pessoas me diziam que a odiavam. Isso me parecia ser minha culpa. Eu não queria que as pessoas a odiassem, mas acho que eu a odiava no começo do livro. Quando comecei a escrever esse livro, eu a culpava pelo que aconteceu com Conrad. Quanto mais eu escrevia, mais complexa a situação ia se revelando e menos eu a culpava. Decidi não entrar na cabeça de Beth porque tinha medo de mostrar o quão pouco eu sabia sobre seu interior. Naquela época falei pra minha amiga e colega Rebecca Hill, que eu não conseguia entrar naquela personagem e ela disse ‘Vou te dizer o porquê: você odeia ela e ela não irá se revelar pra você’. “Às vezes escritores não entendem um personagem porque a parte que eles odeiam é, de alguma forma, uma parte que eles odeiam em si mesmos. Penso que se você puder abraçar essa parte de si mesmo, isso te ajudará a encontrar uma forma de lidar com o personagem. Acredito sinceramente que existe crueldade em todos nós, estupidez, obstinação. Todos os traços de personalidade que você não gosta em si, que tenta corrigir e reprimir, que tenta negar pra si mesmo que existem; quando você os vê nas outras pessoas isso te deixa furioso. Então talvez uma forma de acessar o interior do personagem seja aceitar essas partes que você odeia em si mesmo e até amá-las pois são parte de você.” Robert Benton concorda. “Já aconteceram situações que eu precisava escrever um personagem mas não conseguia por não gostar dele, então tinha que procurar por outro personagem. Aconteceu também de eu escrever um personagem que não deveria ter escrito. Nunca funciona.” Se um personagem é o reflexo do seu próprio lado sombrio, ele ou ela serão difíceis de gostar. Através do

voltar ao índice

entendimento e aceitação do seu próprio psicológico, você conseguira ser mais capaz de escrever personagens que você possa considerar negativos. PROBLEMAS NA COMPREENSÃO DO PERSONAGEM Existem vezes que os escritores não conseguem entender seus personagens. Não importa quanto trabalho tenha sido feito, o personagem continua os iludindo. Frank Pierson recomenda aprender mais sobre o personagem criando cenas que nunca aparecerão no roteiro. “Talvez você não saiba o suficiente sobre ele/ela, sobre como se relaciona com outros personagens... uma forma de lidar com isso é colocando essas pessoas numa situação que não tenha nada a ver com o roteiro, exemplo: um deles pede um lanche e depois recusa o pedido, o que seria bem constrangedor pro outro personagem. O que aconteceria nessa situação? Como eles conversariam sobre isso? Como discutiriam? Eles brigariam? Como esses personagens trocariam um pneu na rodovia de Santa Monica na chuva? Como eles conseguiriam troco pra $ 100 em Detroit depois da meianoite? Escreva essas cenas e você aprenderá mais sobre esses personagens do que de qualquer outra maneira. “ PROBLEMAS COM PERSONAGENS VAGOS Personagens, assim como pessoas, são únicos, detalhados e específicos. Às vezes os personagens não funcionam porque estão muito generalizados ou vagos. Robert Benton relata “Se eu não tomar cuidado acabo escrevendo personagens que são muito vagos. Não vão além das necessidades da trama. Se os personagens são bons, eles irão se impor à trama e forçar que ela os acomode. Eles não são ferramentas da trama ou de um conceito moral que você quer transmitir. Algumas vezes já criei personagens consistentes demais ou que comentam muito sobre si mesmos. Já fiz personagens que pareciam ideias abstratas também. Quando isso acontece, dou um passo pra trás, jogo eles fora e repenso do início. Tento encontrar

voltar ao índice

alguém que conheço ou que já conheci como modelo pro meu personagem. Se você pegar alguém que você conhece bem, terá mais chances de ter alguns vislumbres a partir dessa pessoa. Fica difícil pra mim quando escrevo um personagem que é baseado num personagem de algum outro filme. Nunca funciona quando tento escrever um personagem tipo John Wayne, como em Rio Bravo. Tentei várias vezes. Só funciona quando pego um personagem da minha vida e uso como modelo pra um personagem que estou criando. Uso certas pessoas várias e várias vezes (focando em diferentes aspectos). Já usei minha esposa nuns vinte enfoques diferentes em vários roteiros. “Quando trabalhávamos no filme ‘Kramer vs. Kramer’, Dustin Hoffman me ensinou muito sobre escrita. Cada personagem, a todo instante, precisa ser específico. O personagem não podia se dar ao luxo de ser genérico.” PROBLEMAS COM A COMERCIALIDADE Muitos produtores americanos e atores querem personagens positivos, que gerem empatia. Isso pode criar problemas de personagem, principalmente quando o escritor desenhou um personagem bem redondo, fascinante, mas de ênfase negativa que não é compatível com o mercado nacional. Kurt Luedtke relata: “Estou enfrentando um problema com um personagem. Não é por estar travado. Conheço ele bem, talvez bem até demais. Mas ele foge do padrão do herói de filme comercial. Se eu não tivesse que me preocupar com isso, poderia fazer coisas interessantes com ele. Mas parte do trabalho é tentar encontrar um personagem que 50 milhões de pessoas vão querer ver”. Num caso como esse, o escritor talvez precise repensar o personagem, ou começar a adicionar atributos positivos para balancear suas falhas.

voltar ao índice

PROBLEMAS COM PERSONAGENS SECUNDÁRIOS Às vezes um personagem secundário rouba a cena. Escritores têm dois pontos de vista sobre o que fazer quando isso acontece. Dale Wasserman diz, “Isso é problemático. Se um personagem secundário começa a tomar o controle, considero que existe algum problema com a ideia principal, com a estrutura, ou que eu não pensei direito antes de começar. Isso acontece com frequência. Normalmente indica que você foi improvisando ao invés de planejar sua história. No processo de improvisação os personagens ficam desbalanceados na história”. Porém, isso pode ter suas vantagens algumas vezes. Robert Benton relata “no filme Um Lugar no Coração, Edna Spalding dominou a história. Originalmente a história era sobre contrabandistas no Texas. Edna veio como um personagem menor e ela simplesmente empurrou todos os outros personagens. A situação que mais amo escrever é quando um personagem toma o controle. Não gosto de escrever quando tenho que arrastar o personagem comigo. Significa que estou fazendo algo errado. Um personagem tomando o controle pode ser a melhor coisa pra história”. Alguns personagens são obedientes demais. É como se o escritor estivesse manipulando marionetes, ao invés de entrar num relacionamento dinâmico com os personagens, permitindo que eles também tenham voz na história. Shelley Lowenkopf diz, “Algo que um escritor iniciante pode fazer é afastar-se e dar espaço para que os personagens cresçam na história. Às vezes é vital que os personagens tomem vida por conta própria para gerar tensão e suspense”. PROBLEMAS NA HISTÓRIA VS. PROBLEMAS NO PERSONAGEM Às vezes um personagem não vai ganhar vida por um problema na história. Kurt Luedtke comenta: “Quando existe de fato um problema com um personagem, o primeiro pensamento que me passa não é consertá-lo, mas

voltar ao índice

abrir mão dele. É possível fazer coisas pra deixa-lo mais interessante, mas é algo bem artificial. Não é difícil pensar num comportamento, ou num tic, num passado, numa roupa, num estilo. Não estou falando que não funcione como entretenimento, mas me incomoda. Acho que é meio chinfrim tirar soluções baratas da cartola quando outro personagem poderia começar a ganhar vida e ser bem mais interessante. Prefiro perder um personagem que se recusa a ganhar vida e tentar encontrar outro que queira. “Pode acontecer algum motivo bem específico na história pra que você não possa perder o personagem (apesar de que a história pode ser bastante maleável). Se o personagem sem vida parece necessário pra um certo ponto de vista da história, você provavelmente descobriu uma falha na história. Não é um problema de personagem, é um problema na história pois, se o seu personagem é vital e sua história funciona, porque não ganham vida? Minha suspeita é que você está forçando a trama. Pode ser necessário que alguém apareça na trama, provoque uma mudança e desapareça. Você pode achar que fez um bom movimento, mas se não funcionar, eu tentaria olhar a história primeiro. “Se eu não conseguir me livrar de um personagem por precisar dele pra algo na história, eu pensaria que é uma história frágil que depende de um personagem que não vai servir pra mais nada; então é melhor olhar com mais cuidado. Existem problemas que parecem ser do personagem, mas na verdade é um problema na história”. TÉCNICAS PARA SUPERAR PROBLEMAS Problemas com personagens podem ser resolvidos. Escritores experientes têm muitas técnicas que podem ajudar a trabalhar personagens que estão travados. Gayle Stone: “Às vezes pode ser útil uma técnica chamada ‘escrita livre’. Basicamente, você escreve qualquer coisa possível sobre pessoas que você conhece, pessoas que você consegue imaginar, cenas que você vê, talvez apenas olhar pela janela e descrever a vista. Isso normalmente

voltar ao índice

ajuda a começar a fazer conexões entre o que está saindo da sua cabeça e a solução pro seu problema na trama, na história ou no personagem.” Shenlley Lowenkopf: “Quando fico travado, eu consulto as pretensões secretas dos personagens principais, o que eles realmente querem. Descobrir as pretensões secretas ajuda a entender o personagem novamente”. Kurt Luedtke: “Se você ficar travado com um personagem, chame alguém pra ler as páginas do seu roteiro. A pessoa dirá ‘não entendo porque ele/ela fez isso e aquilo’, isso pode clarear sua visão. Pode te tirar da linha de raciocínio que você estava. “E, se você continuar a ter problemas, faça as perguntas ‘E se tal coisa acontecesse’. ‘E se esse cara não tiver o pé esquerdo?’, ‘e se algo tivesse acontecido com esse personagem quando ele/ela tivesse quinze anos? ‘ “Se um personagem principal não estiver funcionando, você tem um problema sério. Um personagem secundário com problemas, é mais fácil de ser consertado. Você pode pesquisar, procurar outro personagem que faça as mesmas coisas importantes na história. “Se eu tivesse que escolher apenas uma coisa pra fazer, seja com personagens principais ou secundários, faria uma troca de sexo. É incrível as possibilidades que se abrem quando você diz, “Bem, e se José agora fosse Maria...”. Existe um conjunto diferente de atitudes e uma nova empolgação em relação aos personagens pois pode nos libertar o estereótipo que inevitavelmente temos do homem e da mulher.” Karin Howard: “Às vezes você tem um nome e nada acontece. Acho que nomes são bem importantes. Muitos nomes geram associações psicológicas em nós. Conseguir o nome certo que gere a associação certa pode dar vida ao seu personagem.” James Dearden: “Se eu fico travado, eu simplesmente falo com minha esposa. É uma questão de arejar o problema, tocar a bola e recebe-la de volta, tentar conversar a respeito.

voltar ao índice

É por isso que existem editores incríveis na vida de grandes escritores. Os escritores mandam seus manuscritos pra seus editores e eles retornam com anotações, dicas e sugestões. Isso não significa que o escritor não sabe trabalhar. Apenas que às vezes não conseguimos ver o óbvio por estarmos muito envolvidos”. Conseguir uma visão mais ampla num problema com o personagem ajuda o escritor a ver o que não deve ser sobrecarregado. Problemas com personagens é parte natural do processo de encontrar um caminho (tanto para o personagem quanto para o escritor). ESTUDO DE CASO: DENYS FINCH-HATTON EM ENTRE DOIS AMORES Ocasionalmente, existem problemas de personagem que nunca serão resolvidos pelo escritor (pode acontecer com os melhores). Pode ser mais difícil quando se trata de um personagem baseado numa pessoa real. Às vezes é uma pesquisa insuficiente sobre a pessoa, ou talvez não exista conflito suficiente, desejos claros o suficiente, objetivos que façam dele um personagem dramático funcional. As soluções para certos problemas de personagem continuarão a falhar não importa quão habilidoso esse escritor/escritora seja. Em 1985, Entre Dois Amores ganhou o prêmio de melhor adaptação, melhor diretor e melhor fotografia. Ainda assim a crítica sentiu que havia uma falha na construção do personagem Denys Finch-Hatton. Kurt Luedtke, o roteirista, concordaria. Decidi usar Finch-Hatton como um estudo de caso pois o processo que Kurt passou diz muito sobre o processo de ir trabalhando um personagem. Kurt Luedtke: “Denys nunca foi resolvido. A pesquisa não ajudou. Ele foi de fato alguém que não queria ser conhecido e realmente tomou as providências pra isso acontecer. Tentou cobrir seus rastros pedindo para os amigos queimassem as cartas que enviava. As pessoas

voltar ao índice

o descrevem como um dos gatos da Líbia (feito um leopardo que se move apenas quando há um motivo muito específico). Até mesmo os nativos não o compreendiam. Então nunca consegui tirar nada muito dramático desse personagem. Todos os pontos que eu descobria sobre ele tendiam a ser negações e eu nunca encontrava um bom jeito de transformá-las em afirmações. É um tipo de problema estranho na escrita. Acho que a verdade é que ele não queria ser controlado, desejava poucas coisas. Era muito rigoroso quanto a não desejar coisas. Nunca consegui encontrar um jeito realmente interessante de dramatizar esse “não querer”. “Acho que se eu tivesse ficado um pouco mais tranquilo com isso, descartado o que eu sabia sobre o real Denys, eu poderia ter escrito um personagem que diria ‘não ligo pro quão inteligente você é, pra qualquer coisa dessas, nós temos escassez de mulher nesse país e o que amo em você é sua pele suave e isso é tudo que quero.” Eu poderia ter escrito um personagem com um conjunto bem específico de atitudes que pelo menos daria ao ator possibilidades mais ativas pra fazer. “Mas, como escritor, pensei que seria bem difícil lidar com um personagem real falando coisas que eu sabia que não eram verdadeiras. Eu teria uns dilemas éticos. Me sentiria bem constrangido pois eu estava trabalhando com material verdadeiro e uma figura real que eu me importava. Se eu tivesse que trapacear dessa forma, eu simplesmente não faria o filme. Se fôssemos fazer mesmo essas coisas, poderíamos mudar o nome do filme, chamar a personagem de Shirley e ele de Bill. Eu só acho que não faria sentido fazer o filme “Entre Dois Amores” se não seguíssemos até onde a realidade permitisse. Se for pra inventar, então que seja com tudo.” Existe uma série de qualidades que um personagem precisa ter pra ser essencialmente dramático. Uma delas é intencionalidade. “O que o personagem quer?”, é uma pergunta feita por muitos produtores e executivos. Para Denys, a resposta parecia ser “Nada”.

voltar ao índice

Kurt continua, “Eu nunca sabia quem era o real FinchHatton, mas pelo pouco que sabia sobre ele, suspeitava e acreditava que ele foi um cara bem contido que realmente não queria muita coisa, que já tinha o que queria. Ele é um personagem essencialmente não dramático. Você pode fazer um filme sobre seus atos externos, já que ele viveu aventuras dignas de cinema, mas as qualidades internas são desconhecidas. Por isso usei a Karen. São suas vontades, necessidades, motivações e sua situação que tornam FinchHatton interessante. O ponto é: se realmente quiséssemos tornar Finch-Hatton algo fictício, esse personagem não seria o personagem ideal pra Karen Blixen. E, por outro lado, se seguíssemos algo mais baseado na verdade, Bror seria bem mais interessante para ela. Eu poderia escrever um filme inteiro sobre o casamento deles”. Mas o filme focou na história de amor. Então Kurt tentou definir Denys de outras formas. “Tentamos insinuar ligeiramente que ele tinha algum problema por ser tão contido. Há uma cena inventada (mas não inconsistente), quando seu amigo Berkley Cole está morrendo. Descobriram que Berkeley manteve um relacionamento com uma mulher somaliana por muitos anos. Denys fica surpreso ao descobrir e diz: ‘Por que você não me contou?’ e Berkeley responde: ‘Achei que você não fosse tão próximo’. Estávamos tentando transformar nosso problema num personagem. Talvez nós e o personagem Berkley compartilhássemos dessa sensação de não conhecelo.” Em retrospecto, Kurt considerou mudar alguns diálogos. Originalmente, foram escritos pra terem um jeito britânico. “Acho realmente que algumas dessas cenas funcionam melhor com um sotaque. Se eu soubesse que não colocaríamos o sotaque, eu teria aceito a chance de escrever alguns diálogos, mas ainda assim não resolveria o problema. Continuaríamos tendo um personagem que ninguém conhece muito bem.” Perguntei pra Kurt o que ele faria de diferente. O que poderia ser aprendido dessa situação e o que ele

voltar ao índice

aconselharia para um escritor que estivesse passando por algum problema. “Acho que eu diria, num nível bem prático, para ser cuidadoso com a não-ficção, e ter consciência do quanto você está disposto a transformar alguém em ficção. Não acho que deva haver regras pra isso. Tenho grande respeito pela pessoa que diz ‘meu trabalho não é narrar fatos históricos, mas entregar o melhor filme dramático e é isso que vou fazer’. Se alguém me pergunta o que acho sobre o filme Patton, eu diria ‘Acho um bom filme, mas não é compatível com minha visão histórica de quem foi Patton. Mas é um bom filme e eu não tenho nenhuma ressalva quanto a isso’, mas sinceramente, da próxima vez (se eu acabar me envolvendo com material biográfico de novo) eu analisarei com cuidado para ver se os fatos estão lá e se são bons o suficiente do jeito que são. Se vou ou não ficar desapontado com a verdade. “E, ao lembrar dessa situação, eu diria que existem problemas que a gente resolve e outros não”. APLICAÇÃO Quando você encontra um problema de personagem, primeiro pense nos conceitos centrais abordados nos capítulos anteriores. Se você conseguir apontar exatamente onde está o problema (o personagem não ser consistente, falta de dimensionalidade, sem vivacidade emocional, valores pouco claros, etc), muitos dos exercícios que foram passados até aqui podem ajudar a resolver o problema. Se não funcionar, pergunte o seguinte: ■■ Meu personagem soa como uma pessoa específica, ou ficou muito generalizado? ■■ Eu gosto dele, eu o compreendo? ■■ Meu personagem secundário está dominando a história? Essa dominação prejudica ou existe algo interessante se desenvolvendo? Estou com vontade de

voltar ao índice

seguir esse personagem por um tempo, só pra ver o que vai acontecer? ■■ Já fiz as perguntas “e se...” para meu personagem? Tentei mudar o sexo, o passado, a aparência física? ■■ Será que estou tão sobrecarregado que minha mente parou de funcionar? Minha vida tem sido apenas trabalho? Estou reservando um tempo para experimentar a vida, para que consiga ter mais para ser escrito? RESUMO Escrever bons personagens é um processo complicado. É natural encontrar alguns problemas pelo caminho. Ficar travado é parte natural do processo. Acontece até com os melhores escritores. Usar algumas dessas técnicas de solução de problemas pode ajudar na sua frustração, direcionando você para soluções que podem fazer seu personagem funcionar.

voltar ao índice

Epílogo Escrever esse livro foi uma aventura. Falar com esses escritores talentosos expandiu minha consciência sobre as habilidades sutis necessárias para criar personagens incríveis. Iniciei cada entrevista com respeito pelo trabalho do escritor e terminei com um igual respeito pela pessoa por detrás da obra. Ficou evidente pelas percepções, apontamentos e eloquência que essas pessoas eram especiais. Muitos dos escritores enfatizaram os mesmos pontos: ■■ A importância de observar a vida ■■ Refletir a partir das próprias experiências para melhor compreender seus personagens Contudo, o que mais me impressionou é que cada um deles pareceu ter encontrado sua própria voz interior. Cada um possui algo valioso para dizer, uma certa perspectiva sobre a vida que comunicam em seus trabalhos. Seja falando do que é necessário para superar barreiras que separam as pessoas, seja sobre redenção, ou pessoas confrontando escolhas morais. Em todas existe certo ponto de vista único que se enreda no meio de suas escritas. Por meio do meu trabalho como consultora de roteiros, vi que os escritores podem aprender a acreditar e a nutrir essa voz interior. Apesar do talento ser parte importante da escrita, raramente aparece de uma só vez na vida de alguém. Talento normalmente inclui trabalho duro, algum treinamento técnico, muita prática e aprender a acreditar e articular um ponto de vista único. Espero que esse livro te ajude a encontrar sua voz interior e reconhecer que seu autoconhecimento é um bom ponto de partida para qualquer criação de personagem.

voltar ao índice

Também espero que ele encoraje seu processo criativo e que, através disso, te ajude a dar vida a personagens e tornalos inesquecíveis.

voltar ao índice

OS CRITÉRIOS DO ‘WOMEN IN FILM LUMINAS AWARD As personagens femininas A. São multidimensionais e podem estabelecer uma grande variedade de relações sociais e pessoais. B. Refletem uma extensão de idades, raças, classes, aparências físicas e profissões presentes na sociedade. C. Ajudam a mover a história com posturas, comportamentos e propósitos pessoais, afetando o que irá acontecer. D. Superam situações difíceis através da própria ação e vontade. A obra como um todo E. Fornece ideias, modelos e novas formas de entender aquelas mulheres (seja do passado ou do presente) que contribuíram de forma exemplar para a sociedade. F. Reconhece a importância que certas questões (poder, classe social, política e guerra) têm para as mulheres, bem como as contribuições que elas tem dado a essas questões com seus pontos de vista singulares. G. Admite a importância universal de temas como o planejamento familiar, o cuidado dos filhos e a igualdade de oportunidades profissionais; como também problemas sociais como o abuso sexual e psicológico. H. Demonstra que sexualidade e carinhos implicam intimidade, afeto, preocupação. Que todas as mulheres podem desfrutar disso.