China: Socialismo e Desenvolvimento – Sete Décadas Depois
 9788572772099

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ELIAS JABBOUR Apresentações: Armen Mamigonian e Luiz Gonzaga Belluzzo Prefácio: Renato Rabelo Posfácio: Alberto Gabriele e Francesco Schettino

hina C SOCIALISMO E DESENVOLVIMENTO SETE DÉCADAS DEPOIS

hina C SOCIALISMO E DESENVOLVIMENTO SETE DÉCADAS DEPOIS

70o aniversário da fundação da República Popular da China

EDITORA E LIVRARIA ANITA LTDA. Endereço: Rua Rego Freitas, 249 - República São Paulo – SP – CEP 01220-010 Tels.: (11) 3129-3438 e 3129-4586 [email protected] www.anitagaribaldi.com.br

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FUNDAÇÃO MAURÍCIO GRABOIS Endereço: Rua Rego Freitas, 192 – Sobreloja Centro – São Paulo – SP – CEP 01220-010 Tels.: (11) 3125-1578 e 3337-1578 [email protected] www.grabois.org.br

ELIAS JABBOUR Apresentações de Armen Mamigonian e Luiz Gonzaga Belluzzo Prefácio de Renato Rabelo Posfácio de Alberto Gabriele e Francesco Schettino

CHINA:

SOCIALISMO E DESENVOLVIMENTO Sete décadas depois

São Paulo 2019 2ª Reimpressão 2020

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CHINA: Socialismo e Desenvolvimento – sete décadas depois Organização e edição: Elias Jabbour Revisão: Maria Lucília Ruy Tradução do posfácio: Paula Priscila Arone Projeto gráfico, diagramação e capa: Cláudio Gonzalez Imagens de capa: fotomontagem com cartaz de propaganda chinês retratando Mao Tsé Tung jovem, à frente da Grande Marcha (autor desconhecido). Ao fundo, foto do distrito de Pudong, Xangai, China (acervo depositphotos).

Administração: Laercio D’Ângelo Impressão: Forma Certa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD J11c

Jabbour, Elias China Socialismo e Desenvolvimento – sete décadas depois / Elias Jabbour. - São Paulo, SP : Anita Garibaldi ; Fundação Maurício Grabois, 2019. 244 p. ; 16cm x 23cm. ISBN: 978-85-7277-209-9 1. China. 2. Socialismo. 3. Comunismo. 4. Economia. 5. Desenvolvimento. 6. Capitalismo. 7. Política. 8. Revolução chinesa. I. Título. CDD 321.0940951 CDU 323.2(510)

20192214 Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410

Índice para catálogo sistemático: 1. China : Ciências políticas 321.0940951 2. China : Ciências políticas 323.2(510)

• CONSELHO EDITORAL Ana Maria Prestes Augusto Cesar Buonicore Cláudio Gonzalez Fábio Palácio de Azevedo Fernando Garcia de Faria João Quartim de Moraes Júlio Vellozo Manuela D’Ávila Mariana de Rossi Venturini Nereide Saviani Nilson Araújo Osvaldo Bertolino 6

Para Armen Mamigonian, Renato Rabelo e Haroldo Lima, Michelle Diniz, Lara Menezes e o pequeno Khalil

DIRETORIA EXECUTIVA José Renato Rabelo - Presidente Júlio Cesar de Oliveira Vellozo - Secretário Geral Leocir Costa Rosa - Diretor Administrativo e Financeiro Nilson Araújo - Diretor de Publicações Rubens Diniz Tavares - Diretor de Políticas Públicas Luciano Rezende Moreira - Diretor de Temas Ambientais Francisco Ulpiano Javier Alfaya Rodriguez - Diretor de Cultura Aloísio Sérgio Rocha Barroso - Diretor de Estudos e Pesquisas Nereide Saviani - Diretora de Formação

CONSELHO CURADOR Walter Natalino Sorrentino - Presidente Adalberto Alves Monteiro Rosanita Campos Eustáquio Vital Nolasco José Carlos Ruy Ana Maria Prestes Rabelo Fábio Palácio de Azevedo Elisangela Lizardo de Oliveira Nivaldo Santana Silva CONSELHO FISCAL André Bezerra Rodrigues - Presidente Júlia Maria Santos Roland Pedro de Oliveira

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SUMÁRIO P. APRESENTAÇÕES

13 • URSS e China na transição para o socialismo (por Armen Mamigonian) 19 • Um oxímoro para inteligências binárias (por Luiz Gonzaga Belluzzo) PREFÁCIO

23 • A questão nodal de nossa época (por Renato Rabelo) ENTREVISTA COM O AUTOR

29 • O socialismo de mercado chinês é resultado da fusão entre a economia monetária, o keynesianismo e a planificação soviética

INTRODUÇÃO

37 • “Não se trata de um milagre; muito menos um acaso” ARTIGOS

45 • Ciclos econômicos, desenvolvimento e mercado: anotações sobre o socialismo e a etapa primária

57 • A China, a crise e o socialismo de mercado 61 • “A China e o socialismo de mercado. O que realmente é o socialismo?” 73 • A Economia Política das reformas e a presente transição chinesa 95 • Emerge na China uma Nova Formação Econômico-Social 127 133 137 165



Qual o paradigma moderno? “Sinomics” ou o Socialismo de Mercado?



Xi Jinping, a China recentralizada e a nova formação econômico-social



A China e seu Catching Up: Uma abordagem desenvolvimentista clássica



A China e a “socialização do investimento”: uma abordagem KeynesGerschenkron-Rangel-Hirschman

185 • Irracionalismo e evolução sistêmica (uma resposta) POSFÁCIO

191 • O socialismo de mercado como uma distinta Formação Econômico-

Social interna ao Moderno Modo de Produção (por Alberto Gabriele e Francesco Schettino)

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APRESENTAÇÕES

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URSS e China na transição para o socialismo ARMEN MAMIGONIAN*

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lias Jabbour tem se dedicado com afinco a decifrar o socialismo chinês desde os anos de sua graduação em Geografia na USP. Para isto fez várias viagens à China, bem como defendeu mestrado e doutorado nesta temática tão importante. Há alguns anos, trabalha na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), no Departamento de Evolução Econômica, dirigido por Alexis Dantas, com quem tem publicado textos sobre a China. Vale lembrar que outros pesquisadores brasileiros se dedicaram a estudar a China, como A. Porto de Oliveira e A. Barros de Castro. É importante estudar a China não simplesmente por causa de seu crescimento espantoso, e não apenas por ter tirado milhões de pessoas da miséria e da pobreza, como aconteceu anteriormente na União Soviética, mas também por ela ter assumido a tarefa de conduzir a humanidade a superar o capitalismo decadente e destrutivo. Com a queda da URSS, numerosos intelectuais marxistas e mesmo dirigentes comunistas do mundo ocidental se amedrontaram e se esqueceram que a experiência soviética teve lados altamente positivos, ao demonstrar a possibilidade de rápido crescimento econômico, superando atraso de séculos, ao erradicar a miséria e a pobreza de milhões de pessoas, ao realizar avanços impressionantes na ciência, na tecnologia e na cultura em geral, ao derrotar o monstro nazista na guerra de 1941-1945, sofrendo milhões de mortos e ao estimular os povos coloniais e semicoloniais à independência, como a China e a Índia principalmente. 1. O marxismo tem capacidade para interpretar o capitalismo e o socialismo Os intelectuais que reduziram o marxismo e a União Soviética a simples idolatrias não perceberam que Marx e Engels, na verdade, deram sequência à sabedoria que a humanidade foi obrigada a criar e a recriar, de tempos em tempos, nas diferentes culturas. Podemos acrescentar que toda sabedoria tem também uma dose de profecia, como em Amós e Jeremias entre os judeus, Confúcio 13

e Lao-Tsé entre os chineses, Sócrates e Platão entre os gregos, São Francisco de Assis e Lutero entre os cristãos, Kant e Hegel entre os iluministas europeus. Marx e Engels foram os principais discípulos do iluminismo europeu do século XVIII e apontaram o caminho que deveria ser trilhado pelo proletariado e pelas nações proletárias; como Li Dazhao indicou para a China. As previsões que fizeram sobre as revoluções na França, na Inglaterra e na Alemanha, e a consequente criação de um centro gravitacional socialista no mundo, estiveram na ordem das possibilidades, como demonstrou a Comuna de Paris de 1871, diante da traição da burguesia francesa durante a guerra franco-prussiana. Entretanto a Europa ocidental passou por grandes mudanças nos fins do século XIX e inícios do século XX. Entre parênteses, gostaria de lembrar que o socialismo vitorioso na União Soviética criou a sua “Igreja quadrangular”, composta por Marx, Engels, Lênin e Stálin, todos com seus méritos. A minha simpatia vai para Engels, sem o qual não teria existido Marx, de quem foi amigo e colaborador indispensável e discreto. E a minha maior admiração vai para Lênin, sem o qual não teria sido possível a Revolução bolchevique que abriu o caminho para o socialismo no mundo. Fechado o parêntese, é bom lembrar que Lênin, o maior discípulo de Marx e Engels, foi o autor da melhor análise das mudanças ocorridas nos fins do século XIX e inícios do século XX. Percebeu que, acima da luta de classes no interior dos países, surgiu uma contradição maior ainda, decorrente do choque de interesses entre os imperialismos nascentes e suas colônias e semicolônias, submetidas a enorme exploração, sobretudo na Ásia e na África. Assim, soube caracterizar o nacionalismo no centro do sistema capitalista como reacionário e o nacionalismo na periferia explorada como progressista e passou a apostar na revolução nos países coloniais e semicoloniais. Por tudo isto, conseguiu criar discípulos brilhantes, como A. Gramsci e G. Lukács, na Europa, Mao Tsé-Tung e Ho Chi Minh, na Ásia, e outros pelo mundo todo, como Ignácio Rangel no Brasil. 2. A União Soviética tornou-se a primeira experiência socialista do mundo Como se sabe, a morte do irmão mais querido direcionou a vida de Lênin ainda adolescente, tornando-o o revolucionário mais brilhante que a Rússia produziu, sem medo de apontar o aburguesamento das lideranças operárias na Europa ocidental. Deu especial atenção ao estudo do capitalismo nascente sob o czarismo, como também do esquerdismo infantil, além da experiência da Comuna de Paris, que o levou a apontar a necessidade de construir um partido político de novo tipo, o partido bolchevique. 14

Com a vitória da Revolução de Outubro, suas tarefas aumentaram e foram enfrentadas com a clareza e a coragem de sempre: 1) Abandonar a guerra interimperialista, 2) distribuir terras aos camponeses, 3) vencer a guerra civil (1918-1921) imposta pela Inglaterra, 4) estatizar indústrias, bancos, transportes e comércio exterior, 5) organizar as empresas, adotando o modelo alemão, o mais avançado da época, 6) criar a URSS e a 3ª Internacional Comunista e 7) implantar a NEP, estimulando pequenos e médios negócios privados. Diante do atraso econômico da Rússia e das destruições brutais daqueles anos, o PCUS estava sendo forçado a assumir a direção de um novo tipo de via prussiana, implantando medidas revolucionárias de cima para baixo, visando à sobrevivência da Revolução de Outubro. Paradoxalmente a Europa ocidental estava preparada economicamente para o socialismo, mas não politicamente, enquanto a Rússia não estava preparada economicamente, mas sim politicamente. Nos anos 1930, foram necessárias novas medidas impostas de cima para baixo, como a coletivização das terras e a industrialização acelerada, por conta da aproximação da Segunda Guerra Mundial. Nada disto se fez sem divergências, como nos meses de 1917, quando Lênin sofreu ataques ferozes de M. Gorki, amigo de longos anos, além das divergências dos dirigentes bolcheviques. Discordâncias que reapareceram diante das tarefas gigantescas após a tomada do poder, que relacionamos linhas acima, além da pouca importância demonstrada diante das advertências contidas na carta-testamento sobre o conflito entre Stálin e Trotsky. Deve-se dizer também que, diante da emersão da via prussiana, Lênin provavelmente se equivocou ao discordar das propostas de liberdade sindical defendidas pela Oposição Operária. De qualquer modo, mesmo excessivamente sanguinário, Stálin liderou a vitória na guerra de 1941-1945, que estimulou a luta anti-imperialista no mundo inteiro. Assim sendo foram erros grosseiros dos dirigentes soviéticos criminalizar Stálin, dividir o PCUS e não restabelecer as práticas leninistas na vida soviética. É útil lembrar que, naquela ocasião, os chineses foram mais felizes ao inserirem os abusos de Stálin em um contexto maior: o complexo de superioridade de grande potência, que tomou conta da URSS e foi seguido por um crescente desligamento do PCUS de suas bases no chão das fábricas, que a KGB demorou a constatar, além do aumento do consumismo de sua hierarquia. Tudo isto foi conduzindo à resistência dos trabalhadores, sobretudo passiva em relação ao trabalho, ao alcoolismo e ao complexo de inferioridade em relação ao Ocidente capitalista. Diante dessa crise econômica, política e moral, caberia ao PCUS batalhar por estender a automação às indústrias e a outros lugares de trabalho, diminuindo paulatinamente a jornada de trabalho em direção à autogestão no chão 15

de fábrica, combinada com o planejamento central, avançando nas relações socialistas na URSS. Entretanto, as experiências fantasiosas de Gorbachev e Yeltsin, dirigentes apodrecidos, levaram o PCUS – anteriormente o “príncipe moderno”, na expressão de A. Gramsci – a abdicar desta tarefa, que acabou assumida pelo PC Chinês, em escala mundial, e pela KGB, filhote do PCUS, na Rússia pós-soviética. Tinha razão, portanto, o genial Lênin ao lembrar que as apostasias na história da humanidade duravam pouco tempo, como aconteceu com o imperador Juliano, na Antiguidade. 3. A China assume a liderança da luta pelo socialismo no mundo Tive a oportunidade de visitar a URSS e a China simultaneamente em 1984, tentando entender melhor suas realizações revolucionárias. Naquela época não havia intelectuais de esquerda ou de direita que duvidassem de que se tratasse de duas experiências socialistas. Por terem sido semicolônias do capitalismo, foram mantidas atrasadas e subjugadas e por isto tiveram que construir com muito sacrifício as bases materiais para a sobrevivência de suas revoluções. Comparando a União Soviética e a China, foi fácil perceber que a primeira era uma superpotência econômica, enquanto a China socialista estava muito atrasada. A Armênia soviética, por exemplo, era abastecida de eletricidade nuclear, fabricava computadores, como em outras repúblicas pequenas, e Yerevan dispunha de dois aeroportos, com dezenas de aviões da Aeroflot; possuía várias linhas de metrô, hotéis com elevadores de última geração e na pré-escola as crianças eram alfabetizadas em armênio, russo e inglês. Na China o único aeroporto moderno era o de Pequim e o único hotel moderno encontramos em Shenzhen, junto a Hong-Kong. A iluminação em Pequim era precária, o acesso à Muralha contava com rodovia esburacada, os trens tinham locomotivas a vapor, não havia metrô em nenhuma cidade chinesa e os automóveis eram muito raros. O avanço econômico chinês é amplamente conhecido, pela maior rede ferroviária do mundo, com trens de alta velocidade e pelo primeiro lugar do mundo na produção e no consumo de automóveis, para ficar apenas em dois exemplos. A primeira reação dos economistas e dos sociólogos no mundo todo foi surpreendente: os primeiros entusiasmados e os segundos furiosos. Depois disto, novos modismos se sucederam, envolvendo inclusive intelectuais marxistas oscilantes, que passaram a interpretar a China como capitalismo de Estado ou mesmo neoliberal. Na verdade, para decifrar a realidade concreta é preciso entender a formação econômico-social, como Ignácio Rangel aprendeu com Lênin. Aliás, deve-se lembrar que Trotsky se aproximou desse caminho ao vincular a industria16

lização da Rússia aos bancos da Europa ocidental, mas o poder principal era do czarismo feudal. Assim, o socialismo ou o capitalismo são definidos por quem está no poder, como na Revolução puritana inglesa ou na Inovação Meiji japonesa, que tomaram a iniciativa de “fabricar fabricantes” na expressão de Marx. Nos países socialistas grandes ou pequenos, todos atrasados economicamente, os partidos comunistas foram obrigados a fabricar o socialismo. As ideias de Rangel estão sendo muito úteis a Elias Jabbour. Também vale a pena lembrar a importância das ideias na realidade social: 1) As de Aristóteles na Europa ocidental, 2) as de Sócrates na Rússia, como apontou N. Berdiaev (Esprit et Realité, 1992), que explicam a grandeza da literatura russa no século XIX e “a alma profunda e indisciplinada do povo russo” na visão de Clarice Lispector (Atualidades de Gorki, 1968), 3) as de Confúcio e Lao-Tsé na China, onde a sabedoria nasceu de várias fontes: do espírito associativo e individualista dos camponeses e do entendimento de que a hierarquia não é subordinação, pois todo chefe deve ser um santo (taoísmo) ou um sábio (confucionismo), como anotou M. Granet (O pensamento chinês, 1997). O modo de produção asiático foi importante para o avanço do socialismo com características chinesas, pois tinha na base as comunidades de milhões de camponeses igualitários e no alto a administração imperial, responsável pelas obras públicas de irrigação principalmente. De séculos em séculos, a administração imperial foi derrubada por não cumprir suas obrigações com a base camponesa, e a última das revoluções camponesas foi liderada por Mao Tsé-Tung. A realidade histórica acabou obrigando Stálin a ser o último czar da Rússia, com méritos e deméritos, da mesma forma que levou Mao a ser o último imperador da China. Coube a Deng Xiaoping restabelecer o leninismo na China: 1) restabelecer a pequena produção camponesa, 2) implantar as zonas econômicas especiais, aproveitando a experiência japonesa no setor industrial, 3) tornar os bancos estatais em poderosos financiadores na China e no mundo inteiro, 4) substituir a corrida armamentista imposta à URSS pela disputa comercial e tecnológica, 5) democratizar o PC Chinês, com alas divergentes, assim como a sociedade chinesa, começando pelas eleições nas milhares de aldeias. É provável que a China se torne pioneira na diminuição da jornada de trabalho e em poucas décadas implante a autogestão dos trabalhadores, e assim seu poder de gravitação mundial será imbatível.

* Armen Mamigonian Professor Livre-Docente do Departamento de Geografia da FFLCH-USP e do Instituto Ignácio Rangel

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Um oximoro para inteligências binárias LUIZ GONZAGA BELLUZZO*

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stado e mercado são entes opostos? Ou instituições com alto grau de complementaridade? Qual a relação entre a etapa primária do socialismo e a constituição do socialismo de mercado? Seria o socialismo de mercado a própria etapa primária? São a essas as intricadas questões que Elias Jabbour se propõe a responder. As indagações e as respostas não são tratadas de forma abstrata, mas desenvolvidas em um esforço de investigação cuidadosa a respeito da historicidade da construção chinesa do socialismo de mercado. Nas últimas décadas, a China executou políticas nacionais de desenvolvimento e industrialização ajustadas ao movimento de expansão da economia “global”. As lideranças chinesas perceberam que a constituição da “nova” economia mundial passava pelo movimento da grande empresa transnacional em busca de vantagens competitivas, com implicações para a mudança de rota dos fluxos do comércio. Os chineses ajustaram sua estratégia nacional de desenvolvimento acelerado às novas realidades da concorrência global e às vantagens domésticas da oferta ilimitada de mão de obra. Entenderam perfeitamente que as políticas liberais recomendadas pelo Consenso de Washington não deveriam ser “copiadas” pelos países emergentes. Também compreenderam que a dita globalização incluía oportunidades para o seu projeto nacional de desenvolvimento. Ao longo dos últimos 30 anos, a China tirou proveito da “abertura” da economia ao investimento estrangeiro. No entanto, foram as estratégias nacionais que definiram as políticas de absorção de tecnologia com excepcionais ganhos de escala e de escopo, adensamento das cadeias de valor e crescimento das exportações. Os chineses jamais imaginaram que sua escalada industrial e tecnológica pudesse ficar à mercê de uma abertura sem estratégia. 19

A China apostou no controle de capitais, para administrar uma taxa de câmbio real competitiva, sustentou a dominância dos bancos estatais na oferta de crédito, manteve os juros baixos para “carregar” as reservas trilhionárias e empreender um gigantesco programa de investimento em infraestrutura, incentivando a absorção de tecnologia, com excepcionais ganhos de escala e de escopo. O Estado planeja, financia em condições adequadas, produz insumos básicos com preços baixíssimos e exerce invejável poder de compra. Na coordenação entre o Estado e o setor privado, está incluída a “destruição criativa” da capacidade excedente e obsoleta mediante reorganizações e consolidações empresariais, com o propósito de incrementar a “produtividade” do capital. A iniciativa privada dá vazão a uma voraz sede de acumulação de capital através de investimentos em ativos tecnológicos, produtivos e comerciais. Em discurso de abertura ao 19º Congresso do Partido Comunista da China, o presidente XI Jinping anunciou as políticas de “ampliação do papel do mercado” e de reforço às empresas estatais. Um oximoro para inteligências binárias. O projeto 2025 está empenhado em assegurar políticas de apoio financeiro para impulsionar avanços tecnológicos em dez áreas estratégicas, como tecnologia de informação, máquinas inteligentes e robótica, equipamento espacial e aviões, veículos movidos a energia alternativa, biomedicina e aparelhos médicos de alta performance. Nessas áreas prioritárias, o projeto 2025 estimula a associação entre os fundos de investimento públicos (Government Guidance Funds, GGFs) e fundos privados de venture-capital e private-equity. *Luiz Gonzaga Belluzzo Professor titular do Instituto de Economia da Unicamp

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PREFÁCIO

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A questão nodal de nossa época RENATO RABELO*

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lias Jabbour expõe nesta edição uma agenda de pesquisas, um roteiro de seu trabalho atual referente à questão na qual se empenha, relativa à Nova Formação Econômico-Social na China contemporânea. Nesse sentido, sua atividade exploratória tem origem em duas obras focadas nas reformas introduzidas por Deng Xiaoping, a partir de 1978, que se desenvolve nesses últimos quarenta anos: China hoje: Projeto nacional, desenvolvimento e socialismo de mercado (Anita Garibaldi/EDUEPB, 2012) e China: infraestruturas e crescimento econômico (Anita Garibaldi, 2006). São cada vez mais exigentes e candentes o estudo e a pesquisa empírica do que vem ocorrendo desde a promulgação da República Popular da China há sete décadas. Uma discussão que se estende e galvaniza atenção crescente de acadêmicos, economistas, cientistas, amantes do progresso social. Elias Jabbour vem se dedicando nesses últimos 25 anos ao estudo do que se passa nesse gigantesco país asiático. E, como ele o observa, não se trata de um simples “milagre” ou uma “casualidade”, mas como “parte da história da civilização humana”, como uma rica experiência de transformação econômicosocial de nosso tempo, que vai além desse significativo desempenho. Eleva a China ao âmbito de uma grande potência mundial, prevendo tornar-se, em mais uma década, a maior economia do mundo, sendo essa a dimensão do que está em tela no estonteante curso mudancista nesse extenso país e o mais populoso do planeta. Esse processo de transformação inaudita da China, no contexto global de mudanças de vulto, define um balanço de forças em movimento: tendência de um declínio relativo da hegemonia dos EUA e ascenso de novos polos de poder, primordialmente da China, e crescente multipolarização. Assim se atinge uma nova etapa histórica no sistema internacional marcada por um acirramento da disputa pela hegemonia mundial entre as duas grandes potências, EUA e China. É aparente a intensa guerra comercial em curso, sendo o centro real da disputa a conquista do predomínio tecnológico da nova era. 23

Elias, em seu estudo, vai adiante, acentua uma dimensão maior do curso histórico em movimento na China, a perspectiva perseguida pelo Partido Comunista da China, tendo como caminho, da sua Revolução Nacional-Popular, iniciada há 70 anos, a construção da sociedade socialista moderna e avançada, prevista em termos de longo prazo – na sequência efetiva dos seus Ciclos Decenais –, para ser alcançada em 2049, após cem anos da proclamação da República Popular da China. Desse modo, trata-se do que é escasso em nossa época: A esperança de uma nova sociedade, uma alternativa concreta que pode estar em andamento na China. “Se observamos o socialismo como o futuro historicamente construído, não se trata de exagero titular a presente experiência chinesa como um marco fundamental da história humana”. Acredito que a questão nodal de nossa época, já na segunda década do século XXI, é a refrega por uma alternativa ante a continuidade do capitalismo, que se debate em uma crise estrutural, ao cabo de seus 600 anos na cena da história, ancièn regime de nosso tempo; por outro lado, o mais decisivo, uma definição da alternativa para se superar o capitalismo e o descortinar do avanço civilizacional no curso atual da história, nos marcos de uma nova luta pelo socialismo, sendo concretizada por uma nova formação econômico-social, com seu advento político. Quanto ao capitalismo contemporâneo, o fato é que, nos marcos do sistema, ele não conseguiu superar a grande crise iniciada em 2007-2008. O problema de fundo é que esse sistema vive uma crise estrutural, porquanto falta uma solução estrutural para resolvê-la que, por sua vez, aumenta a crise social que acirra a disputa política, projetando saídas imediatas para soluções autoritárias, neofascistas, resultando num aprofundamento do impasse de caráter sistêmico. Em tais situações, exemplificadas pela história, as saídas de fato aconteceram pela via transformadora, revolucionária. A luta pelo socialismo e sua construção irrompe desde o início do século XX em sociedades capitalistas relativamente atrasadas. Este é o caso da China que contava inclusive com regiões onde prevaleciam uma relação de produção pré-capitalista. Na atualidade, sua experiência se distancia do “modelo soviético” de um período excepcional, abrindo o caminho na transição socialista, incorporando formas contemporâneas. Elias Jabbour salienta no exemplo chinês, quando o processo se acelera a partir das reformas de 1978, a adoção de uma combinação do desenvolvimentismo de tipo asiático em fusão com o Estado revolucionário fundado em 1949. No desbravar do que seja a alternativa chinesa – a experiência socialista recente e as dinâmicas do Estado desenvolvimentista –, Elias soube reunir talentosos parceiros – dentro e fora do país, economistas marxistas e keynesianos – e buscar nos “clássicos do desenvolvimento” destrinchar o peculiar “socialismo de mercado” como uma Nova Formação Econômico-Social (NFES); “tema de fronteira” 24

que está no centro de grande parte de seus artigos exploratórios. Essa nova formação econômico-social, no desenvolvimento do seu estudo, tem na sua complexidade o principal atributo, “pois se ocupa de uma formação marcada pela convivência de diferentes estruturas/formações sociais”. Fora disso o processo chinês incorre em formulações que podem ser vistas de forma estática, instantânea, modelar, como uma simples “restauração capitalista” ou um “capitalismo de Estado”. Desse modo não dá conta da distinta formação econômico-social em evolução, da abordagem dos fenômenos com suas singularidades e da sua relação com o processo histórico do capitalismo financeirizado e do rápido avanço tecnológico. A China na complexidade de sua formação econômico-social, oriunda do seu nível primário de desenvolvimento, determinou como sua principal tarefa o crescimento das forças produtivas, colocou o socialismo com suas próprias características na vanguarda do processo de desenvolvimento e crescimento na época em que vivemos. O seu Estado é conduzido por forças políticas e sociais que desde a instauração da República Popular mantém a perspectiva socialista e se instrui na base teórica do marxismo. O trabalho exploratório de Elias e parceiros, nessa relevante empreitada, situa na experiência chinesa o curso dos ciclos decenais em movimento e inovações institucionais necessárias. Dessa dinâmica desponta uma poderosa estrutura estatal constituída por grandes corporações empresariais e financeiras, em lugares-chave da economia e da sociedade; a rápida incorporação de inovações tecnológicas tem permitido o surgimento de novas e superiores formas de planificação econômica, dando nitidez ao rumo estabelecido. A sua coragem de pensar e perscrutar, como ele afirma, baseada nos clássicos do materialismo histórico e no leito da heterodoxia econômica leva-o a uma ousada agenda de pesquisa sobre a China, quando ele assevera: “O controle crescente, por parte do Estado [chinês] dos fluxos nacionais de renda, desde 2012 dá forma à face da Nova Formação Econômico-Social que surge e que poderá conceber o próximo modo de produção dominante na esfera mundial”. Hoje Elias Jabbour é um estudioso persistente, dedicado a um trabalho meritório, que tem um papel relevante na linha de pesquisa da Fundação Maurício Grabois para os dois grandes temas de nossa época: 1) as tendências do capitalismo contemporâneo; e 2) a conformação do socialismo contemporâneo nas experiências revolucionárias remanescentes do século passado, sobretudo o exemplo mais avançado que vem sendo desenvolvido na República Popular da China. *Renato Rabelo Presidente da Fundação Maurício Grabois

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ENTREVISTA

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O socialismo de mercado chinês é resultado da fusão entre a economia monetária, o keynesianismo e a planificação soviética ENTREVISTA ESPECIAL COM ELIAS JABBOUR1

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ompreender o protagonismo dos países asiáticos, em especial o da China, no cenário econômico global é “o maior desafio intelectual do momento presente”, diz o geógrafo Elias Marco Khalil Jabbour, autor do livro China Hoje: Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado” (São Paulo: Anita Garibaldi, 2012). Ao fazer o exercício de analisar a ascensão e o papel da China na geopolítica internacional em contraposição aos países ocidentais, Jabbour diz que o crescimento do país nos últimos 40 anos indica uma “capacidade de flexibilização ao longo dos tempos”, enquanto o “Ocidente caminha para uma estagnação secular”. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Jabbour afirma que a China é a “primeira experiência de uma nova classe de formações econômico-sociais”, o chamado “socialismo de mercado”, em desenvolvimento no país desde 1978. Segundo ele, esse tipo de socialismo é resultado da fusão entre a economia monetária, o keynesianismo e a planificação soviética. “Na verdade, ‘socialismo de mercado’ seria o nome fantasia do que eu chamo de Nova Economia do Projetamento, em alusão à Economia do Projetamento pensada por Ignácio Rangel para designar o modo de produção que surgia da fusão entre a economia monetária, o keynesianismo e a planificação soviética. O surgimento de novas e superiores formas de planificação econômica na China dão margem para dizer que por lá está surgindo uma “Nova Economia do Projetamento”, explica. Segundo ele, ao mesmo tempo em que a China avança na fronteira tecnológica, “novas e superiores formas de planificação econômica surgem no país com a aplicação direta à ‘economia real’ de instrumentos como o Big Data, a Inteligência Artificial e a Plataforma 5G”. Elias Marco Khalil Jabbour possui graduação em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP) e mestrado e doutorado em Geografia Humana também pela USP. É professor adjunto da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas. Foi assessor econômico da Presidência da Câmara dos Deputados. 1 Entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos a 16 de outubro de 2019.

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Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que ordem são os desafios à ciência social contemporânea para compreender o protagonismo chinês e asiático no cenário econômico global? Elias Jabbour – Trata-se do maior desafio intelectual do momento presente. As razões são múltiplas, mas o fato é que a China cresce há 40 anos seguidos, enquanto o Ocidente caminha para uma estagnação secular. O sistema político chinês tem demonstrado capacidade de flexibilização ao longo dos tempos e mantido o país em relativa estabilidade social, enquanto as democracias ocidentais foram capturadas por uma cleptocracia financeira que abriu espaço para o surgimento de líderes protofascistas nos EUA e no Brasil. O fascismo é um fenômeno mundial e as “eleições livres” no Ocidente são cada vez mais manipuladas, conforme os escândalos em torno da Cambridge Analytica, e a viralização de fake news nos processos eleitorais estão em processo de naturalização. A ordem “globalizada” e a entrada do capitalismo em uma era finan­ ceirizada não somente dão conta das imensas contradições sociais que nos cercam, como as mesmas têm-se aprofundado, criando no mundo capitalista uma massa de “indesejáveis” cujo destino são as cadeias, o subemprego ou mesmo o limbo completo. A China faz uma trajetória oposta. Também com suas contradições. Mas está na completa contramão da decadência humana e social que percebemos no chamado “mundo livre”. A China tem se transformado em um espelho para quem busca uma alternativa ao neoliberalismo e às ditaduras dos mercados financeiros. IHU On-Line – Por que as categorias econômicas e sociológicas hegemônicas no Ocidente não ajudam a compreender o crescimento econômico da China e da Ásia-Pacífico? Elias Jabbour – A questão não está no fato de as categorias criadas no Ocidente em si não ajudarem a entender a China e a Ásia do Pacífico. A questão é que o processo de desenvolvimento daquelas sociedades não seguiu os padrões que percebemos ao analisar a trajetória ocidental. Economias de mercado surgiram naquela parte do Globo há pelo menos 3.500 anos; um poderoso e estruturado Estado Nacional surgiu na China há 2.500 anos. O concurso público, na mesma China, seleciona as melhores cabeças do país para ingressar no aparelho do Estado há 1.500 anos. O confucionismo e o taoísmo são contemporâneos da filosofia clássica grega. Porém, enquanto na China o confucionismo e o taoísmo continuam a formar subjetividades civilizatórias e tolerantes, no Ocidente a filosofia clássica grega perde espaço em prol de ideologias nascidas no Mediterrâneo Oriental e que dão base a ideologias do tipo “destino manifesto” e outras aberrações. Entender a Ásia, partindo dessas premissas históricas, é um caminho muito mais sofisticado do que relacionar o crescimento chinês com a oferta ili30

mitada de mão de obra barata ou mesmo “trabalho escravo” como muitos intelectuais repetem com muita tranquilidade. O que ocorre na Ásia é um reencontro de determinadas sociedades com suas profundas origens estatizantes e mercantis, gerando formações econômico-sociais capitalistas e socialistas dinâmicas. A China se encaixa como a primeira experiência de uma nova classe de formações econômico-sociais — o “socialismo de mercado”. IHU On-Line – Como se caracterizou historicamente o desenvolvimento das formas mercantis na Ásia? Elias Jabbour – São sociedades de mercado que surgem às margens de vales férteis irrigados por grandes rios onde o excedente econômico e a troca surgiram de forma precoce dando margem ao surgimento de um modo de produção muito específico, o “modo de produção asiático”. Foi este modo de produção que deu contorno ao surgimento de estruturas estatal-mercantis que não necessariamente desembocaram em sociedades industriais como a Inglaterra, mas que foram suficientes para manter a China na dianteira das inovações tecnológicas no mundo por alguns séculos. A necessidade de construção de grandes obras hidráulicas para contenção de enchentes e a formação de grandes cidades administrativas e comerciais deram sentido a formas precoces de planificação econômica. É com essa construção histórica, e amplamente pacifista, que a China tem se reencontrado. IHU On-Line – Como o sistema econômico chinês, em perspectiva histórica, se diferencia do caso ocidental, marcado por revoluções industriais, e quais suas implicações políticas? Elias Jabbour – Historicamente a Revolução Nacional-Popular de 1949 se assemelhou a uma rebelião contra a “lei das vantagens comparativas” elaboradas por David Ricardo. O que acorre em 1949 é uma transformação que intentou com sucesso o direito da China de desenvolver-se e planificar seu desenvolvimento. Gramsci de forma muito feliz classificou o Partido Comunista como o “Príncipe Moderno”, o modernizador. E o Partido Comunista da China tem sido, de fato, este “Príncipe Moderno”. Por outro lado, tenho defendido que o sistema econômico chinês passou por transformações profundas não somente após 1949 e, de forma mais intensa, a partir de 1978. Na verdade, de um lado, ao permitir o surgimento e o florescimento de um nada pequeno setor privado, e, de outro, reformas institucionais aceleradas desde a segunda metade da década de 1990, levaram ao surgimento tanto de um ambiente propício ao que Keynes chamou de “socialização do investimento” quanto de cerca de 100 grandes conglomerados empresariais estatais e um robusto e capilarizado sistema financeiro também estatal como o núcleo duro, ao lado do poder político de novo tipo exercido pelo Partido Comunista da China, do “socialismo de mercado”. 31

A implicação política de todo esse processo é que o capitalismo ocidental se vê diante de um concorrente estratégico nada modesto e pronto a se tornar o centro dinâmico da economia internacional. Em grande medida, a humanidade, nas próximas décadas, terá à sua disposição a alternativa que vem da China e o caos em que o Ocidente está envolvido. Eis aí a grande implicação política: após proclamarem o “fim da história” em 1991, um regime nascido das entranhas da Revolução Russa de 1917 está a desafiar e reverter uma ordem global nascida há mais de 500 anos... IHU On-Line – De que forma poderíamos caracterizar o socialismo de mercado? Elias Jabbour – O socialismo de mercado como uma nova classe de formações econômico-sociais é algo em desenvolvimento na China desde 1978 e no Vietnã desde 1986. Cuba dá passos iniciais nesse sentido, mas muito lentos. Na China, pesquisas que tenho desenvolvido demonstram que, no concreto, desde a crise de 2009 ficam mais evidentes os contornos desta nova formação econômico-social quando o Estado demonstrou imensa capacidade de coordenação para colocar suas dezenas de conglomerados e sistema financeiro a executar imensas obras de infraestruturas que amorteceram os efeitos da crise financeira desde então. Esta formação econômico-social de novo tipo é caracterizada pela coexistência em uma mesma formação econômico-social de modos de produção distintos. Na China existe um setor estatal na economia que é o dominante e único capaz de irradiar efeitos de encadeamento para toda a economia chinesa, inclusive ao setor privado. A agricultura está em processo de transição de modo de produção em que a “pequena produção mercantil” está dando lugar a formas superiores de propriedades não capitalistas. O Partido Comunista, além de exercer o poder político, espalha seu poder sobre toda a economia não somente através de empresas públicas, mas também com os comitês de fábrica que se capilarizaram e passaram a ter voz, inclusive no setor privado em um processo que se acelera desde 2012. É muito complicado falar na existência de um “socialismo puro”; porém, a China certamente é a forma de engenharia social mais avançada que existe no mundo, mais distante de um capitalismo, seja liberal ou de Estado e mais próximo de formas socializantes, o que não encerra as imensas contradições existentes por lá, ao contrário: são as contradições o principal motor das transformações do país. Interessante notar que o setor público na China detinha o controle de 77% das forças produtivas no país em 1978 e hoje diminuiu para 30%. Porém a capacidade de realização do Estado é muito maior. Na mesma medida em que a China vai tocando na fronteira tecnológica, novas e superiores formas de planificação econômica surgem no país com a aplicação direta à “economia real” de instrumentos como o Big Data, a Inteligência Artificial e a Plataforma 5G. 32

Ampliando o campo de abstração, tenho colocado que a China está moldando um novo modo de produção. Na verdade, “socialismo de mercado” seria o nome fantasia do que eu chamo de Nova Economia do Projetamento, em alusão à Economia do Projetamento pensada por Ignácio Rangel para designar o modo de produção que surgia da fusão entre a economia monetária, o keynesianismo e a planificação soviética. O surgimento de novas e superiores formas de planificação econômica na China dão margem para dizer que por lá está surgindo uma “Nova Economia do Projetamento”. Neste sentido, como Marx nos lembrava, quando muda o modo de produção, deve-se mudar suas teorias correspondentes. A maxirracionalização da economia promovida pelo socialismo na China é a chave para concluirmos que ou dominamos a ciência da planificação econômica ou não entenderemos nada. Enquanto isso no Brasil economistas ortodoxos propõem retorno a relações de produção do século XIX... IHU On-Line – Voltando um pouco na linha do tempo, o que foram as Reformas de 1978 na China e como elas reorganizaram o mercado interno e externo? Como isso se conecta às formas milenares de trocas comerciais da China? Elias Jabbour – As reformas de 1978 foram uma solução chinesa aos impasses gerados pela adoção de um determinado modelo socialista que foi eficiente para um período histórico e que deixou de ser diante de desafios que iam além da instalação de uma poderosa indústria de base. É certo que Mao Tsé-tung apoiou-se nos camponeses pobres para fazer sua revolução e que Deng Xiaoping percebeu a capacidade comercial milenar dos camponeses médios para promover a modernização do país. Acredito que 1978 marca a fusão do Estado Revolucionário fundado por Mao Tsé-tung com o Estado Desenvolvimentista asiático internalizado por Deng Xiaoping. O mercado interno se rearticulou com as reformas na agricultura em que o Estado ao permitir trocas mercantis produziu elevações de produtividade e aumento do consumo rural, logo fazendo florescer indústrias rurais precocemente ligadas ao mercado tanto interno quanto externo. Para termos uma ideia, o Estado fabricou o mercado por onde o sistema socialista pode se reinventar e “fabricou fabricantes” com o surgimento de oito milhões de empresas familiares. A abertura ao investimento estrangeiro permitiu a absorção de capitais chineses ultramarinos via Zonas Econômicas Especiais que foram sendo instaladas ao longo de toda a década de 1980, linkando a China com a economia internacional. A China beneficia-se de toda uma reorganização geográfica da grande indústria localizada na América do Norte e no Japão que se deslocaram para a China. Ou seja, percebemos que o mercado, uma instituição tão cara à China milenar, foi a operadora do reordenamento das relações da China consigo mesma e dela com o resto do mundo. Vejamos o profundo significado do projeto “Um cinturão, uma rota” lançado por Xi Jinping em 2013. 33

IHU On-Line – O que foram as reformas realizadas nas indústrias estatais chinesas na década de 1990? Como isso abriu caminho para a entrada do país na Organização Mundial do Comércio – OMC em 2001? Elias Jabbour – As reformas nas estatais iniciaram-se muito antes da entrada da China na OMC. As empresas estatais passaram por sucessivas reformas desde o início da década de 1980, sobretudo no sentido gerencial. As empresas estatais perderam muito market share para empresas privadas e as rurais (Township and Village Enterprises – TVEs). Expostas pouco a pouco ao mercado, foram ganhando alguma capacidade de caminhar sem subsídios, mas muito aquém das formas modernas de gerenciamento. Porém, somente na segunda metade da década de 1990 é que as empresas estatais passaram por um processo profundo de mudanças que passou pela fusão de milhares de empresas e privatização de outras tantas. Ao fim desta reforma, surgiram 149 conglomerados empresariais estatais com crescente capacidade de atuar no mercado. Separação entre a gestão e a propriedade, maior qualificação de quadros administrativos e completa orientação ao mercado transformaram muitas dessas empresas em gigantes globais. Em 2003, o Conselho de Estado forma uma instituição única no mundo, a Comissão de Supervisão e Administração de Ativos do Estado (SASAC, sigla em inglês), substituindo um emaranhado burocrático ineficiente por uma instituição ligada diretamente ao Conselho de Estado. É a instituição cuja tarefa, além de garantir que essas empresas atuem em concordância com os objetivos do Estado, é modernizar continuamente todo o corpo empresarial estatal chinês. Eu chamaria essa instituição de a “manager” do socialismo de mercado chinês. Não é à toa que as empresas estatais chinesas são o maior alvo de Trump no momento. IHU On-Line – É possível pensar, de alguma forma, um modelo econômico no Ocidente capaz de unir instituições públicas e grandes corporações empresariais em um projeto de crescimento econômico? Elias Jabbour – Cada país deve encontrar seu próprio caminho ao progresso social e econômico. É evidente que esse caminho na atualidade demanda desarmar a bomba-relógio da crescente financeirização das economias. Num país como o Brasil, os bancos registram recordes de lucro enquanto o setor industrial privado sofre um verdadeiro bullying, seja por operações irresponsáveis — e comandadas externamente — como a conduzida por procuradores e um juiz até então sediado em Curitiba, seja pela proibição de o Estado gerar demanda efetiva, pois a lei do “teto de gastos” criminaliza a possibilidade de o Estado fazer política fiscal. O problema do Brasil e do Ocidente é político. A desregulamentação dos sistemas financeiros soltou para fora da garrafa algo que para voltar ao estágio anterior demandaria muita força política. Cromwell, quando percebe que o rei da Inglaterra era um empecilho ao progresso do país, ordenou a decapitação do mesmo. Quem será o Cromwell do século XXI? Quem colocará o setor financeiro em seu devido lugar? Eis o “x” da questão. 34

INTRODUÇÃO

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“Não se trata de um milagre; muito menos um acaso”

A

celebração dos 70 anos da Revolução Nacional-Popular que levou o Partido Comunista ao poder na China é um momento ímpar para se discutir o que ocorreu no gigante asiático desde então. Não fosse somente por isso, dada a dimensão territorial e populacional do país, já é fato que antes de 2030 a República Popular da China deverá sobrepor os Estados Unidos no posto de primeira economia do mundo. Neste contexto, ocorre outra tentativa de recomposição do poder americano no mundo. O alvo não é mais o Japão, a Alemanha ou a União Soviética. O alvo agora é a China e sua crescente influência sobre a periferia do sistema. Como se sabe, a China já é o maior credor líquido do mundo. Conta com capacidade produtiva instalada suficiente para promover a conexão física de todos os continentes, via projeto Um cinturão, uma rota. Seu sistema financeiro estatal de longo prazo tem alcance e capilaridade suficientes para tornar possível esse grande projeto. Na verdade, o país alcançou policy space e soberania monetária para fazer seu catching up1, retirar quase 800 milhões de pessoas da linha da pobreza nos últimos 40 anos e apontar ao restante da humanidade o caminho a ser seguido no rumo da soberania e mesmo de estratégias de caráter socializante. Em grande medida, nos artigos reunidos neste livro o leitor poderá encontrar pistas no sentido de um caminho não convencional de compreensão desse fascinante processo histórico. Os estudos que fiz ao longo dos últimos 25 anos me convenceram de que de que esse gigantesco processo em andamento na China deve ser observado como parte da história da civilização humana; não se trata de um milagre, muito menos um acaso”. Por outro lado, se observamos o socialismo como o futuro historicamente construído, não é exagero tratar a presente experiência chinesa como um marco fundamental da história humana, continuidade e ruptura de ao menos duas grandes revoluções: a Francesa (1789) e, principalmente, a Rus1 Em Economia, designa-se por convergência (catching up) o processo em que um país mais atrasado tende a alcançar o nível de desenvolvimento dos países centrais. Para muitos trata-se de uma tendência. A nós esta tendência se confirma somente por meio de um projeto nacional e uma estratégia de desenvolvimento com esta finalidade. Para isto, uma série de políticas devem ser lançadas ao longo do tempo com o Estado elevando quantitativamente seu papel, principalmente no que tange à coordenação da estratégia de desenvolvimento. Essa atuação estatal varia de país a país, mas no essencial é um pré-requisito fundamental ao sucesso do catching up

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sa de 1917. Sob o ponto de vista da dinâmica interna, o que assistimos hoje é parte da retomada dos espaços perdidos pelo país desde o início do “século das humilhações”, iniciado com as guerras do ópio (1839-1842) e a divisão do país em áreas de influência das potências imperialistas ocidentais e o Japão. O marxismo, transformado em arma de luta dos povos coloniais, chega à China como expressão da influência internacional da Revolução Russa e a fundação da 3ª Internacional em 1919. Em 1921 é fundado o Partido Comunista da China (PCCh). Em 1949 alcança o poder político, mudando a sua história e a do mundo desde então. Entre contradições de múltiplas formas e a construção de uma sólida base industrial nos primeiros 25 anos de existência, desde o final da década de 1970 o país encontra – definitivamente – um rumo particular que lhe permitiu, não somente resistir aos ventos contrarrevolucionários que levaram de roldão as primeiras experiências socialistas, mas também, viabilizar a transformação da Ásia em novo centro dinâmico da economia internacional. Curiosamente, esse processo é acelerado a partir do momento em que o país internaliza, desde as reformas econômicas de 1978, o desenvolvimentismo de tipo asiático, fundindo-o com o Estado Revolucionário fundado em 1949. Percebendo o socialismo como uma face da mesma moeda da luta anticolonial e anti-imperialista, trabalho com a convicção de esta perspectiva – política, social e civilizacional – se tratar de um grande projeto de caráter desenvolvimentista. A modernização e o catching up são o objetivo primário das forças políticas que alçaram o poder de Estado em países como China e Vietnã. Ou se alcança o nível de desenvolvimento dos países capitalistas centrais ou esse tipo de experiência pode tender à estagnação, e mesmo ao desaparecimento. Neste sentido, este livro tem dois eixos de análise. Um relacionado diretamente com a experiência socialista chinesa recente e outro mais voltado à busca de uma abordagem heterodoxa sobre as dinâmicas e variáveis anexas ao Estado Desenvolvimentista chinês, capaz de nos situar entre tantas abordagens – ortodoxas ou heterodoxas – sobre aquele fenômeno. Faz-se necessário fazer justiça sobre os coautores de grande parte de minhas análises e sínteses contidas neste livro. Destaco a contribuição e parceria, na maioria dos artigos aqui reunidos, de Alexis Dantas, economista marxista que tem sido um parceiro inestimável na troca de ideias e realização de análises sobre qual a verdadeira face do socialismo na China. Juntos, acredito, chegamos próximo de uma síntese sobre a emersão de uma Nova Formação Econômico-Social (NFES) na China sob o acicate do “socialismo de mercado”. O socialismo de mercado como uma NFES é tema de fronteira explorado em grande parte de nossas análises. Neste tema, em artigo que abre 38

esta publicação, contamos, eu e Alexis, com o auxílio do amigo e historiador Alexandre Belmonte. Também discorrendo sobre o socialismo de mercado, tive a honra de ter a companhia, em um artigo publicado no Le Monde Diplomatique, do italiano Alberto Gabriele, economista marxista que inaugura essa abordagem da NFES durante a primeira década dos anos 2000. No outro eixo de análise do livro, contei com a parceria de Luiz Fernando de Paula, professor titular da FCE-UERJ e atualmente no IE-UFRJ. Grande economista keynesiano, Paula nos coloca no debate sobre o desenvolvimento chinês com uma contribuição original: buscar nos clássicos do desenvolvimento (A. Lewis, A. Hirschman, A. Gerschenkron e R. Prebisch) uma forma diferenciada e heterodoxa de explicação do processo. Seus ensinamentos têm sido fundamentais em minha evolução intelectual. Como poderão perceber – ao longo de dois artigos voltados a esta abordagem –, iniciamos com uma abstração lewisiana até chegarmos a dois pontos interessantes e inter-relacionados (socialização do investimento e os ciclos de inovações institucionais): a indicação de construção de instituições que possibilitaram à China construir mecanismos avançados de socialização do investimento. Este processo ocorreu de forma cíclica, via introdução de ondas de inovações institucionais. É irresistível e perceptível a presença de John Maynard Keynes e Ignácio de Mourão Rangel nesta abordagem. Por fim, cabe registrar que a presente publicação não intenta reduzir-se a si mesmo como uma demarcação de fronteira entre esta ou aquela abordagem. Acredito que a contribuição do livro está na consolidação de uma contribuição assentada nos clássicos do materialismo histórico e no campo da heterodoxia econômica. Os dois assentos podem ser muita “coisa”. De forma mais detida, sinto-me signatário da abordagem centrada na categoria de formação econômico-social (ou simplesmente formação social ou formação socioespacial, na feliz abordagem de Milton Santos) tão presente nos trabalhos de Lênin, Mao Tsé-tung, Ignácio Rangel e de meu mestre Armen Mamigonian. Distancio-me assim de outras abordagens, dentre as quais as relacionadas com a Teoria da Dependência e o Sistema-Mundo. Sendo o fenômeno chinês intrínseco às complexidades inerentes à convivência entre atrasado x dinâmico, e mesmo de diferentes modos de produção no mesmo concreto objetivo, somente algo que tome a dinâmica em sua totalidade pode servir de instrumento de análise. A essa exigência de método e episteme é que se ajusta a abordagem da categoria de formação econômico-social. Fora dela, o processo chinês corre o risco de ser visto – como a maioria das abordagens pela direita, e também pela “esquerda” – de forma estática, modelar e “fotográfica”. Esta forma de perceber o fenômeno tem sido responsável pelo 39

espraiamento de pesquisas com forte viés eurocêntrico, ênfase excessiva na contradição em detrimento da síntese. Algo próximo a um mix de neopositivismo pós-moderno e igualitarismo metodológico com passe franco na universidade e no grande balcão que se transformou o debate de ideias no Brasil e no mundo. Nessa perspectiva que relaciona o processo chinês com a emergência de uma NFES, reconheço a importante crítica do filósofo hegeliano-marxista Cristiano Capovilla. O trabalho que apresento pode ser percebido em duas dimensões: uma científica, combinando Economia Política, planejamento e suas ciências correlatas; a outra, mais filosófica, pois implica uma visão acerca da dialética, do socialismo e das macrotendências da história. Capovilla tem razão: no trabalho que ora apresento ainda falta um melhor balanceamento entre duas tendências, sendo a primeira bem desenvolvida e a segunda ainda refletindo uma tensão entre ciência e filosofia. Sendo objeto do livro (partindo da tipologia conceitual utilizada por Hegel em sua Ciência da Lógica) a tentativa de elevar ao caráter de “conceito” o socialismo de mercado, pode-se concluir que um longo caminho ainda cabe palmilhar. Esta tentativa que exploro geram grandes implicações ao materialismo histórico; algo que combina necessidade de nosso tempo com a afirmação dos critérios de validação teórica que tornam o marxismo atual. Ou, nas palavras do próprio Capovilla: “O que está vivo de Marx não são as particularidades do seu tempo, mas justamente o que transcendeu a esse mesmo tempo”. A China, na busca por um caminho fiel às suas particularidades, colocou seu socialismo na vanguarda do processo de crescimento e desenvolvimento do mundo em que vivemos. A nós, esse processo, notadamente após 1978, projetou um socialismo com características chinesas, onde ciclos decenais de acumulação convergem entre si por meio de inovações institucionais que ao longo das últimas quatro décadas tem dado ao Estado um caráter cada vez mais qualitativo, enquanto o setor privado cresce de forma quantitativa. Esse processo, imerso e que tem em suas imensas contradições seu motor primário, concebeu o surgimento de uma NFES que se materializa com força desde a crise financeira internacional de 2009. Essa NFES é composta por modos e formas de produção que convivem entre si, em unidade e luta, tendo o setor socialista da economia sua força dominante ao lado de um Estado comandado por forças que advogam o horizonte socializante da experiência. Dentre ciclos decenais e novas instituições, surgiu um poderoso setor estatal composto por mais de uma centena de corporações empresariais e financeiras localizadas nos setores estratégicos da economia e sociedade chinesas. A rápida incorporação de inovações tecnológicas, notadamente as relacionadas com o desenvolvimento da Inteligência 40

Artificial, tem sido a base ao surgimento de novas e superiores formas de planificação econômica. O controle crescente, por parte do Estado, dos fluxos nacionais de renda, desde 2012 dá forma à face da NFES que surge e que poderá conceber o próximo modo de produção dominante em esfera mundial. É o desenvolvimento dessa agenda de pesquisa que o leitor poderá testemunhar nesta publicação. Agradeço ao meu mestre Armen Mamigonian cada passo de minha evolução, à qual ajudou a moldar e construir desde meus 18 anos de idade. A Renato Rabelo, meu carinho filial e minha principal referência humana. A Haroldo Lima, o responsável por muita coisa. A Carlos Espíndola, amigo e companheiro e suporte intelectual às minhas ideias mais ousadas e heterodoxas. A Alexis Dantas e Luiz Fernando de Paula, amigos aos quais devo o meu porto seguro no Rio de Janeiro; coisas que vão além de pesquisas e artigos. É amor de amigo o que sinto por vocês dois. O mesmo digo, amor de amigo, a Fernanda Feil e Luciana Dias. A Márcio Ayer e Isaac Ricalde, pelo permanente auxílio nos momentos difíceis e impossíveis. A Adalberto Monteiro, Alexandre Belmonte, Ticiane Alvares (Titi), Carla Santos, Carlos Eduardo Martins, Joana das Flores, João Batista Lemos, Sérgio Barroso, Jandira Feghali e André Toríbio, figuras humanas que seria difícil não citar por aqui. A Ângela Albino e Júlio Filgueira, minha eterna gratidão. Aos meus alunos da FCE-UERJ aos quais tento dedicar o melhor de mim, o tempo todo. A Michelle, algo que em algumas palavras seria impossível de explicar. Aliás, o pequeno Khalil explica... ELIAS MARCO KHALIL JABBOUR Rio de Janeiro, 20 de julho de 2019.

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ARTIGOS

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Ciclos econômicos, desenvolvimento e mercado: anotações sobre o socialismo e a etapa primária*

INTRODUÇÃO

1. É indiscutível a oportunidade aberta pelo centenário da ocorrência da Revolução Russa no sentido de perceber, historicamente, seu significado e legado. Sua importância para o movimento comunista internacional, nascido ainda com Marx em vida, só pode guardar paralelo histórico se comparada ao papel que as revoluções Puritana (1640) e Francesa (1789) cumpriram na transição do feudalismo ao capitalismo na Europa ocidental. É neste contexto que é válido afirmar que a Revolução Russa é o ponto de partida de um longo, tortuoso e rico processo histórico cujo objetivo de longo alcance está na possibilidade da superação do capitalismo pelo socialismo em âmbito mundial.

2. São muitos os campos de análise e discussão suscitados pela ocasião. No campo da economia, não são poucas as polêmicas, sendo a principal delas o papel (ou não) do mercado e da iniciativa privada no processo de construção do socialismo. No imaginário de muitos advogados da causa, não é incomum a identificação do socialismo como uma economia estatizada e mediada por uma férrea planificação central, enquanto a ação do setor privado e do mercado é vista como sinônimo de capitalismo. 3. É verdade que o modelo soviético1 logrou – em seu tempo – um rápido desenvolvimento das forças produtivas, cujos feitos históricos vão desde a vitória soviética na Segunda Guerra Mundial até a vanguarda da exploração espacial por parte da União Soviética. A generalização da planificação possibilitou grandes aportes em todas as esferas da atividade econômica. 1 Sobre o modelo soviético, ler Domar (1972).

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4. Por outro lado, o modelo foi perdendo dinamismo com a reprodução de uma dinâmica extensiva na economia, cujas causas podem estar na ausência de mecanismos de mercado e competição. Assim sendo, a ineficiência e a tendência de aumento dos custos de produção tendiam a ser ou remetidas aos preços internos ou corrigidas pela via dos subsídios2. A insustentabilidade do sistema estava na ordem quase natural dos acontecimentos3. 5. O final da experiência soviética e as presentes experiências em curso no mundo reacenderam as possibilidades de aprofundamento da questão sobre a construção econômica do socialismo e suas etapas4. As anotações que seguem são uma tentativa de contribuição a esse debate. Longe de demarcar algum campo na polêmica, nossa preferência recaiu sobre a exposição de algumas categorias de análise que acreditamos ser de fundamental importância, como, por exemplo, a abordagem sobre os ciclos longos, a propriedade privada, o mercado e o planejamento.

6. A exposição de algumas noções, categorias de análise, a nosso ver, é de fundamental importância para a compreensão tanto da etapa primária quanto do que se convencionou chamar de socialismo de mercado. Pontuar a experiência chinesa e algumas de suas características é um necessário pouso no concreto. DOS CICLOS ECONÔMICOS À ETAPA PRIMÁRIA

7. A tarefa de se discutir, e elaborar, sobre as etapas da construção econômica do socialismo requer determinado grau de abstração, tendo como ponto de partida a não realização da tendência original marxiana. O socialismo não irrompeu em sociedades capitalistas desenvolvidas. Ao contrário, sua ocorrência incidiu sobre sociedades agrárias, de rarefeita industrialização e onde mesmo a propriedade privada e o mercado não estavam em pleno funcionamento, recaindo, assim, sobre as forças políticas no comando de estratégias de caráter socializante a tarefa primária não de socializar a riqueza material existente, e sim de criar riqueza material. Daí a centralidade do desenvolvimento das forças produtivas nas experiências socialistas.

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Uma boa e rápida discussão sobre o problema da formação de preços no modelo soviético pode ser encontrada em Gutiérrez (2003).

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Tendo em vista que as primeiras experiências socialistas, notadamente a URSS, importaram o sistema de produção em massa desenvolvido por Ford, a insustentabilidade do sistema tem relação, também, com a própria decadência do fordismo na década de 1970 concomitante ao surgimento de um novo paradigma industrial/tecnológico no Japão (toyotismo).

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Esta discussão sobre as etapas não é nova e já estava presente nos clássicos do marxismo desde o Manifesto Comunista de Marx e Engels. Novos aportes podem ser percebidos em Engels (1847 [1969]) e Lênin (1921 [1964]). No caso das contribuições de Lênin, uma competente sistematização pode ser vista em Cliff (1978).

8. Por outro lado, ao analisar o socialismo como um processo histórico, portanto não imune a fluxos e refluxos, avanços e retrocessos, faz-se necessária a percepção de que o capitalismo se tem mostrado muito mais resiliente do que se imaginou à época da grande crise econômica de 1929. Não somente aquela crise não se transmutou numa crise geral, como o próprio sistema, desde então, tem mostrado grande capacidade de reprodução e reinvenção cíclicas5. 9. É

pertinente abordar a problemática dos ciclos econômicos para além da dinâmica capitalista. A apreensão dos ciclos econômicos, sua periodicidade e alcance podem ser elemento interessante à análise das determinantes à derrocada de algumas experiências, notadamente aquelas – como Polônia e Iugoslávia – em que o comércio com o Ocidente constituía-se em forte elemento de demanda. Quanto maior a integração comercial de um país com o resto do mundo, maior a vulnerabilidade ao ciclo econômico6.

10. Ao lado da dinâmica dos ciclos, o estudo da saga das atuais e pretéritas experiências socialistas deve ser um empreendimento que combine a percepção das vicissitudes de cada experiência com uma percepção geral das leis de funcionamento do modo capitalista de produção, notadamente seus ciclos de acumulação e sua presente forma financeirizada. A importância deste aporte reside no fato de o socialismo existir e operar dentro dos marcos de uma economia internacional hegemonizada pelo capitalismo e seus monopólios produtivos e financeiros. 11. Posta a questão dos ciclos econômicos, salientamos que as etapas de construção do socialismo são demarcadas em concordância com as exigências históricas do processo de desenvolvimento. Não se trata de um esquema rígido que funciona como um modelo válido a todas as experiências e épocas. Porém, analiticamente, sendo a construção do socialismo um longo e tortuoso processo histórico, é de forma histórica que determinadas categorias devem ser tomadas.

12. No original marxiano, o socialismo seria o processo de superação da divisão social do trabalho e de suas diferenças anexas às relações entre campo

5 O economista russo Nikolai Kondratiev foi pioneiro na sistematização de dados estatísticos que comprovaram uma certa rationale cíclica do sistema capitalista, indo além do próprio Marx nesta matéria. Segundo Kondratriev, cada ciclo de acumulação tem duração de 50 a 60 anos mediado por uma fase expansiva (A) e outra recessiva (B). Escrito em meio à certeza de que o sistema capitalista estava diante de uma crise final e geral, a obra de Kondratiev foi esquecida em seu próprio país. De sua pena surge o paradigma das Ondas Largas ou Ciclos Longos de Kondratiev. Sobre as ondas largas da conjuntura, ler Kondratieff e Stolper (1935). 6 Daí, no socialismo, a centralidade da transformação do comércio exterior em bem público, planificado e de Estado.

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e cidade, agricultura e indústria e trabalho manual e intelectual7. A divisão social do trabalho desenvolve-se sob o capitalismo a partir da expansão da economia de troca, gerando interdependência entre indivíduos e mercados e amplificando – via espraiamento da técnica – a tendência à especialização produtiva e a urbanização.

13. Fica evidente que, onde o socialismo se defronta com baixos graus de complexidade da divisão do trabalho, sua expansão (da divisão social do trabalho) transforma-se em tarefa histórica, certamente a primeira etapa da construção econômica do socialismo. E a possibilidade de planificação desta expansão foi um grande legado da Revolução Russa, em detrimento do “crescimento por espasmos” típico do capitalismo desregulado. Esse legado é de tamanha importância que é muito justo afirmar que, em grande medida, as revoluções socialistas, em sua totalidade, foram movimentos políticos nacionais em torno da bandeira do direito ao desenvolvimento e sua planificação. 14. O reconhecimento da necessidade de etapas de construção do socialismo deve-se combinar com as tarefas postas ao poder político socialista, incluindo a superação da chamada etapa primária do socialismo8. Etapa esta que corresponde ao processo histórico de instalação de instituições políticas e econômicas com vistas a um rápido desenvolvimento das forças produtivas. A história recente da experiência chinesa lança luz ao desbravamento desta etapa. 15. A relação entre o baixo nível de desenvolvimento de determinadas sociedades e as tarefas históricas da etapa inicial da construção socialista remete são somente – e de forma direta – ao papel da propriedade privada e do mercado no processo. Também devemos ser mais claros neste ponto, priorizando a abstração (visão de processo histórico) ante o abstrato (visão dogmática, “ideologizada”). Estado, mercado, planejamento, propriedade estatal e propriedade privada são categorias históricas. E é historicamente que devemos perceber a historicidade intrínseca a cada uma dessas categorias. ETAPA PRIMÁRIA E SOCIALISMO DE MERCADO

16. A história pretérita e presente do socialismo e a realidade do próprio capitalismo nos defrontam com novas questões. São questões que vão além da utilização ou não de mecanismos de mercado numa economia socialista. Determinadas polêmicas devem ser superadas, ou postas em patamar de solu7 A tarefa histórica do socialismo em superar a divisão social do trabalho é descrita em Marx (1891 [2012]). 8 O economista russo Eugeni Preobrazhenski (1886-1937) foi o primeiro intelectual a se referir a uma chamada etapa primária do socialismo. Sobre isso, ler Preobrazhenski (1973) e Day (1975).

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ção histórica9, sendo a principal delas a referente ao alcance do setor privado e sua relação de cooperação/competição com o setor estatal (dominante)10.

17. Estado e mercado são entes opostos? Ou instituições com alto grau de complementaridade? Qual a relação entre a etapa primária do socialismo e a constituição do socialismo de mercado? Seria o socialismo de mercado a própria etapa primária?

18. A resposta à primeira pergunta é negativa. A nosso ver, Estado e mercado não são entes opostos e sim instituições com alto grau de complementaridade. O Estado é o aparato político, jurídico e institucional a serviço da classe dominante. No socialismo, este aparato, a serviço da estratégia socializante, por um lado, alça o planejamento econômico ao grau de essência do sistema. Por outro lado, o mercado é um verdadeiro elemento de ação coletiva cuja regulação por parte do Estado planificador garante plena coordenação das ações econômicas entre as diferentes e múltiplas formas de propriedade presentes no sistema socialista11.

19. O processo de desenvolvimento nada mais é do que a combinação da expansão tanto da economia de mercado quanto da divisão social do trabalho12. A etapa primária do socialismo corresponde à necessidade historicamente posta do desenvolvimento das forças produtivas e da expansão da economia de mercado.

20. Sendo assim, sugerimos que a constituição de uma economia socialista de mercado seria a própria etapa primária do socialismo. Etapa essa dividida em duas fases distintas. UMA ETAPA, DUAS FASES

21. A divisão em duas fases faz-se necessária; o que não significa que outras fases não possam existir. A extensão e a existência de cada fase dependem de cada particularidade nacional e de seu nível de desenvolvimento. Por exem9 Patamar de resolução histórica refere-se ao fato de que determinadas questões devem ser respondidas em seu devido tempo histórico, cabendo, portanto, somente indicações gerais não conclusivas. 10 Engels (1847 [1969]) e Lênin (1922 [1973]) lançam necessária luz sobre a relação de concorrência entre os setores estatal e privado nas fases iniciais do socialismo. 11 Essa visão de complementaridade entre Estado e mercado não anula a supressão do mercado e da propriedade privada numa fase de alto desenvolvimento das forças produtivas socialistas. Estamos tratando aqui da materialidade do socialismo na atual quadra histórica internacional. 12 Lênin (1893 [1964]) disserta genialmente sobre o papel da economia de mercado ao processo de desenvolvimento. Suposições que certamente foram base teórica à elaboração da NEP.

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plo, a primeira fase não se aplica a realidades que combinam alto grau de urbanização, indústria com certo grau de concentração e agricultura submetida ao capital industrial.

22. Se observarmos o modelo soviético como uma dinâmica adequada às exigências de uma realidade excepcional13, a primeira fase da etapa primária (partindo de estado mínimo de normalidade) demandaria a combinação de algumas políticas e estratégias: a) implantação da planificação em larga escala de toda atividade econômica; b) estatização do sistema financeiro, grande indústria e comércio exterior; c) recomposição da agricultura comercial de forma a estabilizar o abastecimento alimentar e acelerar as trocas comerciais entre campo e cidade; e d) incentivo à formação e à unificação de um grande mercado nacional, partindo-se de induções à formação de complexos mercantis regionais.

23. Uma grande política deve ser perseguida nessa fase e está relacionada à intensificação do comércio exterior via à vis com o processo interno de industrialização. A importância – e centralidade – do comércio exterior ao projeto socialista está relacionada diretamente à construção de condições materiais à superação da restrição externa ao crescimento econômico, notadamente a escassez de divisas14. 24. Ainda sobre o comércio exterior15: a nosso ver, os Estados desenvolvimentistas do Sudeste asiático surgidos na segunda metade do século XX são referências a serem estudadas, mais bem interpretadas e adaptadas a determinadas realidades que encetam o desenvolvimento e o socialismo. Evidente que cada realidade encerra complexidades e desafios políticos e sociais diversos. Porém, a percepção da industrialização como base do enfrentamento dos grandes desafios externos e a adoção de políticas comerciais agressivas têm grande similaridade com as grandes questões que assaltam as experiências socialistas, incluindo o cinturão bolivariano de nosso continente. 13 Excepcionalidade marcada pelo cerco político, militar e econômico e comercial do mundo capitalista ao socialismo recém-surgido. 14 A formação de grandes reservas cambiais é uma questão de ordem estratégica a ser perseguida. Sobre a relação entre o processo de industrialização e a restrição externa, ler Prebisch (1951 [2000]). Aceitamos a tese Prebisch-Thirlwall que disserta sobre a baixa elasticidade-renda dos produtos de menor valor agregado exportado por países em desenvolvimento, comparada com a maior elasticidade-renda das importações produzidas pelos países desenvolvidos, que gera déficits de caráter estrutural no balanço de pagamentos nos primeiros. Esses déficits crescentes podem resultar em um obstáculo significativo ao crescimento econômico em países em desenvolvimento, uma vez que a manutenção de um déficit em conta-corrente não explosivo requer que a taxa doméstica de crescimento seja mantida abaixo da taxa de crescimento mundial, de modo que as importações e exportações se equilibrem. Ver a respeito Thirlwall (2002). 15 A centralidade que conferimos ao comércio exterior não é algo novo. Sobre tal centralidade, ler Lênin (1922 [1977]) e (1922 [2004]).

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25. O socialismo não se defronta somente com as possibilidades negativas de restrição externa. A tarefa do desenvolvimento acelerado das forças produtivas conta com um elemento de vantagem a ser explorado: o atraso econômico e a tendência de espraiamento da técnica produzida no centro do sistema à periferia, diminuindo assim mais rapidamente a distância em relação aos países desenvolvidos. O atraso é um atributo a ser explorado pela via de estratégias de recepção e associação com o capital estrangeiro detentor de tecnologias de ponta16. O processo de reforma e abertura da China é pródigo de exemplos nesta matéria17. 26.

Nesse sentido, sugerimos que a primeira fase do socialismo tem responsabilidade pela construção de mecanismos institucionais com vistas à implantação de uma dinâmica mista de crescimento. Esta dinâmica deverá combinar substituição de importações com promoção de novas exportações, especialmente de origem industrial. Dentre tais mecanismos, o controle sobre o fluxo de capitais é vital ao isolamento da política monetária em relação tanto aos fluxos externos quanto ao ciclo econômico e suas fases descendentes. Administrar a taxa de câmbio em correspondência aos objetivos da modernização é outro mecanismo de fundamental importância.

27. Ao final da primeira fase, determinados contornos econômicos/institucionais desenvolvidos estarão prontos ao seu próprio desenvolvimento e aperfeiçoamento diante dos novos desafios impostos pela realidade. Uma economia de mercado razoavelmente desenvolvida já é perceptível com a convivência e competição entre si de diferentes setores, e com níveis de planificação da grande atividade econômica atingindo patamares não imaginados no período do modelo soviético18. 28. O setor privado da economia de variado tamanho, desde a pequena produção mercantil até a produção capitalista em larga escala, existirá. Porém, em comparação com as economias de mercado de tipo capitalista, o setor estatal é predominante. O comércio exterior é um setor à parte, onde pre16 Gershenkron (1952) analisa os atributos, vantagens e possibilidades do atraso econômico. Além disso, trata-se de um autor pioneiro no que concerne à análise das especificidades históricas distintas do processo de industrialização retardatária, no qual o sistema financeiro e o Estado desempenham um papel fundamental. 17 O desenvolvimento das Empresas de Cantão e Povoado (ECP’s) e a implantação gradual de Zonas Econômicas Especiais (ZEE’s) são exemplos de uma estratégia bem-sucedida de inserção externa que envolveu a elaboração de políticas com vista à recepção e à associação de empresas locais com o capital estrangeiro. 18 O exemplo é a China, pois é a experiência onde a economia de mercado socialista tem avançado de forma mais nítida. Esses “patamares não imaginados no modelo soviético” podem ser resumidos, por exemplo, na planificação da estratégia de inserção externa do país e seus rápidos resultados.

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dominam relações de novo tipo em relação ao comércio externo típico do mundo capitalista19. ALGUMAS INDICAÇÕES SOBRE A FASE SUPERIOR DA ETAPA PRIMÁRIA

29. O intento de dar cabo à construção de uma poderosa economia de mercado – regulada pelo Estado socialista –, nas condições de uma economia com setores e instrumentos de planificação já definidos20, reside na ampliação da centralização do setor estatal e na construção de mecanismos de coordenação e socialização do investimento21. Trata-se de construir as bases que capacitarão o Estado a planificar o processo de desenvolvimento em outro patamar, superior em relação à primeira fase.

30. Nesse sentido, pode-se falar em uma recomposição estratégica do Estado em comparação com o seu papel na primeira fase.

31. Por exemplo, a centralização do capital estatal em grandes conglomerados empresariais é um passo decisivo na construção das forças produtivas socialistas durante a etapa primária do socialismo. Esta centralização será mediada por um planificado processo de fusões e aquisições dentro do próprio setor estatal da economia22. A importância desse passo estratégico reside na formação de um núcleo na economia capaz de ser o executor direto de grandes políticas de Estado23. 32. Se esse núcleo de grandes conglomerados for os executores de grandes políticas de Estado, é de se supor que a iniciativa privada é um ente ancilar da economia estatal e beneficiário das possibilidades abertas pelos investimentos “na frente” executados pelas empresas estatais. A complementaridade entre os setores estatal e privado é alçada a um novo patamar. 19 Sobre o caso da China, acerca dessa dinâmica de convivência e competição entre diferentes formas de propriedades, ler Jabbour (2012). 20 Inclui-se nesses instrumentos de planificação a existência de um aparelho de intermediação financeira, sob a forma de bancos comerciais e de desenvolvimento controlados pelo Estado. 21 Sobre a coordenação e a socialização do investimento, temos pleno acordo com a seguinte citação de Keynes (1936 [1996], p. 345): “O Estado deverá exercer uma influência orientadora sobre a propensão a consumir, em parte, através de seu sistema de tributação, em parte por meio da fixação da taxa de juros e, em parte, recorrendo a outras medidas. (...). Eu entendo, portanto, que uma socialização algo ampla dos investimentos será o único meio de assegurar uma situação aproximada de pleno emprego, embora isso não implique a necessidade de excluir ajustes e fórmulas de toda espécie que permitam ao Estado cooperar com a iniciativa privada”. 22 Esse processo na China é descrito por Gabriele (2009) e Jabbour; Dantas (2016). 23 Os 149 conglomerados empresariais estatais chineses foram os executores diretos do programa de investimentos de US$ 600 bilhões lançado pelo governo em 2009.

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33. Assim sendo, uma ampla e complexa economia de mercado socialista estaria em vias de existência e composta por um setor estatal (concentrado, centralizado e onde se localiza a fina flor da ciência e tecnologia nacionais), um largo e amplo setor privado (capaz de atender às demandas abertas pelos efeitos de encadeamento provocados pelos investimentos do setor estatal) e aparelhos institucionais avançados (que dotam o Estado socialista de condições de intervenção sobre o ciclo econômico). CONSIDERAÇÕES FINAIS

34. As presentes anotações têm caráter inicial, demandando novos aportes e avanços. Trata-se de algumas conclusões a partir da história das experiências socialistas, do modelo soviético e da atual experiência chinesa de socialismo de mercado.

35. Em princípio, classificaríamos as experiências de modelo soviético como excepcionalidades históricas, enquanto o socialismo de mercado se enquadraria numa função de “quase normalidade sistêmica”24, com a participação ativa da experiência em questão (China e Vietnã, por exemplo) na divisão internacional do trabalho.

36.

Não se trata de experiências sob cerco, porém o peso do comércio internacional ao próprio sucesso dessas experiências as coloca exposto às fases dos ciclos econômicos; daí a ênfase dada à centralidade da planificação do comércio externo.

37. Com esse plano de fundo, tentamos aqui lançar uma noção que tem na constituição de sólida economia de mercado socialista a própria etapa primária do socialismo. E a dividimos em duas fases, sendo a primeira aplicável somente a países com nível muito baixo de desenvolvimento das forças produtivas. 38. A separação da etapa primária em duas fases obedeceu a uma percepção clara e presente nos países capitalistas desenvolvidos: a criação de condições institucionais prontas a dotar o Estado de capacidade de controle e a intervenção sobre a economia de mercado. Em outras palavras, isso significa a elaboração contínua de novas formas de planificação. 24 “Quase normalidade sistêmica” no que se refere à participação plena de determinados países socialistas no mercado internacional, significando relações comerciais ativas com os países capitalistas centrais.

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39. A essência da fase superior da etapa primária está na junção de dois processos: 1) centralização do grande capital estatal em grandes conglomerados empresariais prontos à tarefa de execução de grandes empreendimentos de Estado; e 2) criação de mecanismos de coordenação e socialização do investimento. 40. Esperamos ter lançado alguns apontamentos importantes a este debate que não é novo, mas que demanda novos aportes e mais profundidade. ----------* Artigo em coautoria com Alexis Dantas, professor associado da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCE-UERJ), e Alexandre Belmonte, professor adjunto da Faculdade de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IFCH-UERJ). Publicado originalmente no livro, organizado por Adalberto Monteiro e Osvaldo Bertolino, 100 Anos da Revolução Russa – legados e lições (Anita Garibaldi, 2017).

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A China, a crise e o socialismo de mercado*

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s explicações variam desde o “esgotamento” de um modelo aos modismos etapistas/rostowianos que relacionam a queda da performance chinesa a uma tal de “armadilha da renda média” e do surgimento de um “novo normal”. Autores mais sérios tratam a questão, por exemplo, como um preço pago pelo país por reformas internas recentes visando à maior liberalização financeira (1). Neste sentido é evidente que a ampliação do escopo de ação internacional de sua moeda, o reinminbi, não ocorreria sem traumas: crises financeiras atingiram os mercados financeiros do país em agosto de 2015, ocasionando perda de mais de US$ 1 trilhão de suas reservas cambiais desde então. Porém, por um lado, o trauma serviu para a afirmação do gradualismo que acompanha as reformas econômicas com as contradições sendo enfrentadas com ação estatal objetiva do Estado; nesse caso, com clara intervenção sobre a política cambial e de gestão das reservas. Na China, o custo da liberalização não é pago com mais mercado, ao contrário. Por outro lado, a combinação de alguns dados pode nos dar alguma luz sobre os rumos do gigante asiático: 1) mantidas as atuais médias anuais de crescimento, poderemos concluir como espetacular o desempenho econômico do país; 2) sua atual contribuição à recuperação da demanda em escala internacional pode ser resumida tanto nos 13 milhões de empregos urbanos gerados no país em 2016 quanto na previsão de investimentos imediatos da ordem de US$ 1 trilhão somente no Projeto Um cinturão, uma rota. Neste aspecto, vale um importante parêntese: interessante notar que o problema da falta de crescimento no Brasil e no mundo não deve ser analisado – somente – à luz da elasticidade-demanda da economia chinesa. O baixo crescimento mundial, apesar de também determinado pelo menor crescimento da economia chinesa, decorre dos efeitos fundamentais das próprias políticas de recuperação que foram implementadas, sobretudo nos países centrais. Um monetary easing que teve pouco efeito sobre crescimento de renda e emprego, determinando, ao contrário, uma retomada dos níveis de operações financeiras, principalmente de derivativos, ao momento pré-crise. 57

Voltando, o que será da China e do mundo demanda analisar a conjugação de dois níveis de transição. Primeiro: a transformação da China em uma potência de tripla condição (comercial, industrial e financeira). Segundo: a conjunção deste processo com a transição interna de dinâmica de acumulação pela qual o país tem passado juntamente com o papel do Estado e de sua força política dirigente (o Partido Comunista da China, PCCh). A transformação da China em uma potência de tripla condição não ocorreu por uma propensão genética à poupança. Trata-se de um processo marcado por escolhas ativas de um Estado Nacional decidido a recuperar sua condição de grande potência perdida desde as Guerras do Ópio (18391842). As reformas econômicas reafirmam e reorientam uma estratégia nacional consagrada desde os eventos de outubro de 1949. Desde então, os comunistas chineses passaram a apostar em uma inserção soberana no mundo, internalizando o desenvolvimentismo de tipo asiático e aproveitando-se de mudanças na geografia econômica internacional inauguradas desde o início do processo de financeirização, além de preparar seu território à recepção de gigantescas unidades produtivas provenientes tanto do Atlântico Norte quanto de seus vizinhos (Hong-Kong, Taiwan, Coreia do Sul) e do Japão pós-Acordos de Plaza (1985). Ao longo das reformas econômicas, foi sendo consolidado um grande setor privado, até então inexistente, que avançou inclusive sobre ativos estatais. Porém, é equivocado falar em diminuição do papel do Estado na China. Ocorre um processo onde o Estado foi reorganizando-se a si mesmo e encerrando, processualmente, novas e superiores formas de atuação. A trajetória chinesa, que nos obriga a estudar e a responder determinadas questões postas pelo presente, é a história do surgimento de ondas de inovações institucionais, explicando, em parte, as “soluções de continuidade” do processo de desenvolvimento. Percebe-se que, a cada onda de inovações institucionais, surgem novos parâmetros de atuação entre os setores estatal e privado da economia. Por exemplo, a preparação do próprio território à recepção desde a implantação gradual das Zonas Econômicas Especiais (ZEE`s) até o lançamento em 1999 do Programa de Desenvolvimento do Grande Oeste constituiu-se em desenvolvimentos de elevação da ação do Estado em relação ao avanço, por baixo, do setor privado. A articulação destes ciclos institucionais com as dinâmicas internas de acumulação dá conta de um processo que tem capacitado o Estado Nacional chinês à intervenção rápida e direta sobre a realidade – conforme a própria resposta estatal à crise desde 2008 tem demonstrado. Vejamos a seguir. 58

Ganha forma o socialismo de mercado Desde o início da década de 1990, sucessivas mudanças institucionais foram essenciais:1) à emersão de uma moderna economia monetária (fortalecimento e capilarização de uma imensa rede de bancos públicos voltados ao crédito de longo prazo), substituindo uma rede de financiamento dependente do orçamento estatal e das empresas; 2) a mecanismos de controle macroeconômico (maxidesvalorização cambial em 1994 e instituição de controle sobre os fluxos de capitais); 3) a um processo de fusões e aquisições no setor estatal da economia, dando margem à formação de 149 conglomerados empresariais localizados nos setores estratégicos da economia; e 4) à formação, em 2003, da State-owned Assets Supervision and Administration Commission of the State Council (SASAC), responsável pela observância quanto à execução das políticas de Estado por parte dos citados conglomerados estatais (um claro órgão moderno de coordenação do investimento). Esse interessante processo interno, com gigantescas implicações internacionais, logrou o desenvolvimento de um poderoso Estado Nacional que não somente detém o controle dos instrumentos cruciais do processo de acumulação e formação de policy space à execução de políticas monetárias propícias à socialização do investimento. Em outras duas pontas, o Estado – através de seus bancos de desenvolvimento – tanto financia o longo prazo quanto se utiliza de seus conglomerados estatais para a execução de grandes empreendimentos internos e externos. Investimentos estes (“na frente”) geradores, nos lembrando A. Hirschman, de efeitos de encadeamento que – em primeira instância – beneficiam diretamente seu braço ancilar, o setor privado (2). Por fim, não estaríamos longe da verdade ao afirmarmos que a expansão do setor estatal na economia chinesa pós-crise pode ter gestado uma nova formação econômico-social, o chamado socialismo de mercado. Longe de ser uma economia mista, dado o poder de encadeamento do setor estatal. Algo muito diferente dos capitalismos de Estado clássicos, dado o peso real do próprio setor estatal na China: a estrutura de propriedade chinesa ainda é muito diferente da de outras partes do mundo. Esse processo reflete-se diretamente em um aumento contínuo, desde a segunda metade da década de 1990, do controle governamental sobre os fluxos da renda nacional: de 13,5% do PIB em 1996 a 37,3% em 2015 (3). Esse socialismo de mercado nasce na interseção entre um poder político de novo tipo gestado nos acontecimentos de 1949 e a fusão do grande banco e da grande indústria, ambos estatais. Trata-se de um processo fasci59

nante. Uma construção eivada de limites e contradições explosivos. Algo que deveríamos – o pensamento progressista em geral – olhar com mais atenção, mais profundidade, e principalmente menos preconceito. ----------* Artigo em coautoria com Alexis Dantas, Professor Associado da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCE-UERJ). Artigo originalmente publicado na edição 337 (setembro/2017) do Jornal dos Economistas.

REFERÊNCIAS (1) LO, D. China confronts the Great Recession: “rebalancing” neoliberalism, or else. In: ARESTIS, P.; SAWYER, M. Emerging Economies During and After the Great Recession. New York: Palgrave Macmillan, 2016. (2) Sobre este processo cíclico interno, ler: PAULA, L. F.; JABBOUR, E. A China e seu catching up: uma análise desenvolvimentista clássica. In: Prêmio ABDE-BID, Edição 2016 (coletânea de trabalhos). Rio de Janeiro: ABDE-BID, 2017. (3) NAUGHTON, B. Is China Socialist? Journal of Economic Perspectives, (31) 1, 2017, p. 3-24.

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A China e o socialismo de mercado. O que realmente é o socialismo?* *Transcrição de apresentação na mesa de debates intitulada “Socialismo hoje – Cuba, Vietnã, China”. Debate ocorrido a 12 de junho de 2017, em Porto Alegre, durante o Seminário “100 anos da Revolução Russa”, promovido pela seção gaúcha da Fundação Maurício Grabois.

Eu fico muito feliz não somente por tratar da China, sobre questões que nos tocam, como a questão do socialismo, a construção do socialismo, mas também por encontrar pessoas com as quais de certa forma cruzamos pelo caminho, na militância, e que ajudaram a nos formar ao longo do tempo. Se eu for falar o nome de todas as pessoas aqui, posso correr o risco de esquecer alguém e ser injusto. Mas fica aqui o meu registro. Quero agradecer pela presença – esse eu vou falar porque eu não o conhecia pessoalmente, estou vendo aqui hoje e estou muito grato de tê-lo aqui assistindo a nossa apresentação – do nosso governador Olívio Dutra. É uma das figuras, vamos dizer assim, um monumento moral da esquerda brasileira. E eu gostaria muito de deixar clara aqui essa minha opinião sobre a sua pessoa. Tenho uma profunda admiração e fico muito feliz de vê-lo aqui conosco. O nosso amigo cubano, Juan Poso Alvarez. O papel da revolução cubana na nossa vida é muito impressionante. Dificilmente alguém aqui vai falar por que é comunista, sem se referir à revolução cubana. Então acredito que a revolução cubana ajudou a salvar uma geração, e a criar uma geração de militantes na América Latina. A Rússia e a China são muito distantes da gente. Já a revolução cubana, é aqui do lado. Então dificilmente eu seria comunista, ou muitos aqui seriam comunistas, se não fosse a revolução cubana. E é isso que faz que a revolução cubana seja não somente um patrimônio da América Latina. A revolução cubana é um patrimônio da humanidade. Eu tenho alguns amigos americanos com os quais me comunico, economistas, junto aos quais um dos comentários que eu faço é “como que os Estados Unidos, que é o país mais rico do mundo, criaram um dos povos mais idiotizados do mundo, apesar da sua riqueza, enquanto Cuba, um país pobre, foi capaz de criar o povo mais culto do mundo?” Acredito que não existe no mundo hoje povo mais culto do que o povo cubano. E isso é um patrimônio do socialismo, é uma vitória do socialismo. E, portanto, uma vitória da humanidade. 61

Eu gostaria de deixar isso registrado aqui ao meu querido companheiro cubano. E Raul Carrion, nosso líder revolucionário, professor. Vejo que essa oportunidade do centenário da revolução russa como uma oportunidade para discutir não somente o próprio legado da revolução. Acho que aqui existe uma ansiedade muito grande nossa de falar do legado, das lições. Mas vejo pessoalmente, até por conta das minhas pesquisas sobre essa questão do socialismo, que esse momento atual é um momento de nós nos perguntarmos e nos aprofundarmos sobre o que é, de fato, o socialismo. E o que significa construir o socialismo atualmente. Acredito essa questão está muito forte dentro da gente, do socialismo como um projeto de sociedade, como um projeto de humanidade. Muitas vezes um projeto de destruição do capitalismo e construção da nova sociedade. Eu particularmente não vejo dessa forma. Acho que o socialismo é um projeto de superação do capitalismo e não de construção de um outro mundo possível. Eu particularmente tenho dificuldade de lidar com isso de “vamos construir um outro mundo”. Não, vamos construir um mundo em cima desse que está aí. E objetivamente acredito que temos que ter clareza sobre o que o socialismo nos trouxe. Muito do que nós percebíamos como socialismo, como princípios socialistas, mostrou-se inviável na vida real. Aí já desço aqui meu pé na realidade. Muito do que nós – isso há cinquenta anos atrás, quarenta, trinta, até vinte anos atrás, até um pouco hoje – falamos que é socialismo, do que nos propomos que seja socialismo, tornou-se um tanto quanto inviável na vida real. Falo aqui, por exemplo, de algumas polêmicas que o movimento comunista internacional enfrenta ao longo de anos e que somente hoje nós estamos começando a olhar para essa realidade. Por exemplo, a superação rápida da forma do mercado e da propriedade privada. Nós acreditávamos, durante muito tempo, que o socialismo havia instaurado um poder de novo tipo, e o passo seguinte da instauração desse poder de novo tipo seria a supressão completa da economia de mercado e a supressão completa da propriedade privada. Nós nos esquecemos, muitas vezes, de que tanto o mercado como a propriedade privada são categorias históricas e que, portanto, devem ser vistas historicamente. Eu pessoalmente – aqui colocando uma ponta de polêmica – acho que a economia de mercado é uma das principais, vamos dizer assim, conquistas da humanidade e que a planificação econômica, a superação do mercado pelo planejamento econômico, vai demorar durante muito tempo. E, portanto, acho que temos de ser muito generosos ao olhar o papel da economia de mercado no socialismo. 62

Mesma coisa em relação ao setor privado: nós até hoje quando falamos de setor privado no socialismo a gente faz aquela…Temos que conviver com o setor privado. Parece que nós vemos isso como uma concessão do socialismo: vamos combinar planejamento, combinar mercado e vamos combinar setor privado e setor estatal da economia. A meu ver, também é um equívoco que cometemos. O socialismo vai ser construído com mercado, vai ser construído com o setor privado da economia. Ainda mais em socialismos que ocorrem, vamos dizer assim, em sociedades atrasadas. Acho que é uma visão muito particular minha. Tenho muita dificuldade de trabalhar hoje com visões de socialismo estatizantes, com visões de socialismo, vamos dizer assim, pautadas e centradas nessa questão da socialização dos meios de produção. Eu tenho muita dificuldade de enxergar o socialismo dessa forma hoje. Tenho hoje uma clareza de que existe essa coisa do Marx – que é correta – de que o socialismo é o projeto estratégico da superação da propriedade privada e pela socialização dos meios de produção. Mas vejo também, trabalho muito com uma noção.... Espero que ninguém me xingue agora pelo que vou falar, mas é opinião. Acredito que o momento é esse, a visão que Schumpeter desenvolve de socialismo, num desses livros que ele escreveu, Capitalismo, Socialismo e Democracia, e que ele coloca como o socialismo possivelmente vai superar o capitalismo, e uma visão de socialismo economicista, evidente. Mas eu trabalho com economia, então não tenho como fugir dessas definições, como o sistema socioeconômico em que a economia se torna algo público. Ou seja, as decisões de investimento, as decisões de política macroeconômica etc. etc. Então não vejo, vamos conviver com o mercado, vamos conviver com o setor privado. Acho que é complexo, é histórico e é essencial termos uma visão mais histórica e de processo histórico do setor privado e do mercado. E vou além ainda: uma coisa é falar, por exemplo, de que “olha, nós somos contra o igualitarismo”. Acho que o problema é muito mais complicado. O igualitarismo metodológico, pessoal, está entranhado, vamos dizer assim, nas nossas concepções de sociedade. Muitas vezes nós carregamos dentro da gente a ideia de que o socialismo vai superar a própria contradição. Então é nesse sentido que a meu ver precisamos ter mais coragem do que nós temos. Ou seja, temos que sacudir princípios, inclusive, até para que possamos avançar. É difícil falar essas coisas num ambiente, um comunista falando para outros comunistas, mas acho que a gente tem que colocar o dedo na ferida de algumas questões.

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Por outro lado, esse centenário da revolução russa é uma oportunidade única também de demonstrar que o socialismo foi capaz de, vamos dizer assim... Aliás, os grandes saltos que a humanidade deu nos séculos XX e XXI tem no socialismo o seu principal responsável. Por exemplo, a experiência dos planos quinquenais soviéticos. É uma experiência fantástica para economistas, para não economistas, porque pela primeira vez na história se propuseram, ou seja, o homem se propôs, a planificar o seu próprio destino: a experiência da revolução russa, que foi a grande experiência de planificação, de planejamento do próprio destino que ocorre a partir da revolução russa. Isso é um fato objetivo. Outro fato objetivo, ligado a esse, é a vitória da União Soviética na Segunda Guerra Mundial. Eu digo que talvez seja um dos feitos mais profundos do século XX. Falo isso porque possivelmente não existiria revolução chinesa, ou não existiria essa experiência chinesa atual hoje, que nós vemos na China, sem a vitória da União Soviética na Segunda Guerra Mundial. Nem muito menos o Estado de bem-estar social do capitalismo etc. etc. A vanguarda assumida pelos soviéticos na corrida espacial também é outro feito impressionante. Já falei da revolução cubana como patrimônio da humanidade. Também se insere nesse contexto. E particularmente acho que a atual experiência de socialismo de mercado na China é o que há de mais interessante no mundo hoje em nível de socialismo, em nível do que se tem que estudar. No final da década de 1990, antes de morrer, um economista norte-americano, pelo qual tenho uma profunda admiração, John Kennedy Galbraith, foi um think tank do Partido Democrata norte-americano. Ele, um dos economistas keynesianos mais brilhantes do século XX, dizia que a grande novidade no final do século XX não era o fim do socialismo na União Soviética, e sim o surgimento do socialismo de mercado na China. Eu concordo com ele. Pois bem, eu, indo diretamente ao assunto China, coloco aqui uma questão: Como situar historicamente a revolução chinesa em seu atual estágio? Não é algo menor que o país que mais cresce no mundo – o país que desafia estrategicamente o poder imperialista, o país que, vamos dizer assim, hoje é o principal responsável pelo restante da economia mundial – seja um país gerido e administrado por um partido comunista. Tem amigos meus da economia que, mesmo sendo de esquerda, não concordam que a China seja um país socialista mais. Aquela coisa que vocês sabem, esse debate fica até registrado etc. Eu acho que a China é uma grande experiência socialista ainda, mas é. Uma grande experiência. 64

Acho que esse final de século XX... Vinte anos atrás nós estávamos discutindo o quê? Vendo o final da União Soviética, um palavrório imenso sobre o fim do socialismo, uma conversa retumbante de que aquilo tinha acabado. Mas vinte anos depois, o país que mais cresce no mundo, o país que tem ditado rapidamente os destinos da humanidade de hoje é um partido da terceira internacional, um partido comunista fundado na época da terceira internacional. E classificar a revolução chinesa a partir da noção de imperialismo de Lênin é algo interessante. Por exemplo, eu vejo a revolução chinesa como um capítulo, vamos dizer assim, no âmbito das revoluções nacionais e populares ocorridas no âmbito da radicalização das relações centro x periferia. O que é imperialismo para Lênin? Imperialismo traz um ingrediente novo quando surge, no final do século XIX, início do século XX: a cooptação da classe operária europeia pelo capital financeiro recém-surgido; que a chamada aristocracia operária inviabiliza, de certa maneira, a revolução na Europa ocidental. E, por outro lado, o imperialismo radicaliza as relações centro/periferia. Ou seja, o imperialismo desloca o eixo das revoluções do centro do sistema para a periferia do sistema. Não é à toa, por exemplo, que O Capital demora para ter uma segunda edição na Europa. Ou seja, onde ele foi lançado primeiro? Na Europa Ocidental. Enquanto na Rússia, no final do século XIX, O Capital foi lançado e editado várias vezes em poucos anos. Ou seja, a aceitação d’O Capital, livro de Karl Marx, na Rússia, foi muito mais rápida do que na Europa Ocidental. Na China, o Manifesto Comunista é traduzido ao mandarim em 1919. Em 1921, é fundado o Partido Comunista da China e em 1949 esse partido comunista chega ao poder. É uma questão interessante de se responder: Por que chega ao poder tão rapidamente aquele partido comunista? Qual é a resposta que pode ser dada? Existe a questão da adaptação do marxismo às condições chinesas, tudo isso. É fato. Agora, o que eu tenho na minha cabeça é o seguinte: o socialismo como projeto vence. Ele vence em locais em que as burguesias nacionais foram incapazes de levar o processo de modernização. Em outras palavras aqui: onde não houve, por exemplo, Bismarck; onde não houve, Getúlio Vargas; onde não houve a inovação Meiji, como no Japão; ou seja, onde não houve a revolução burguesa de cima para baixo, os partidos comunistas foram levados a assumir esse papel. Ou seja, onde Xiang Kai-Chek foi incapaz de levar a modernização à China, assim como Kerensky na Rússia. Nesses lugares os partidos comunistas assumem os seus papéis. Assim como Fulgêncio Batista foi incapaz de modernizar Cuba. Muito pelo contrário. Submeteu Cuba a uma... afundou Cuba. Ou seja, são locais em que o partido comunista passa a ser o quê? O que Gramsci chamou de o príncipe moderno. 65

Ou seja, o modernizador. Não é à toa que até hoje Vietnã, China e Cuba vão passar por isso também. Os partidos comunistas no poder estão levando adiante tarefas da revolução burguesa. Reforma agrária não é papel do socialismo, a industrialização não é papel do socialismo, a inclusão social não é papel do socialismo. Ou seja, não existe nenhuma grande tarefa de caráter socialista, vamos dizer assim, como a socialização dos meios de produção em larga escala, os quais esses partidos comunistas estão tendo de enfrentar agora. Eles estão até hoje tocando tarefas da revolução burguesa. E isso é essencial. E eu vou além: as revoluções socialistas do século XX foram revoluções nacionais. Só foram capazes de chegar ao poder os partidos comunistas que tomaram para si bandeiras de caráter nacionalizante. Não é à toa que você anda na China e vê bandeira chinesa em tudo quanto é lado. Quando fui a Cuba, por exemplo, em 2012, não vi bandeiras de foice e martelo, mas vi bandeiras cubanas na rua. Os partidos comunistas vão se tornando cada vez mais forças nacionais, capazes de unir os mais amplos espectros da sociedade em torno de um grande objetivo nacional. Ou seja, o partido comunista... o socialismo é a alternativa que leva esses países ao processo de desenvolvimento negado pelo capitalismo. O capitalismo foi negado à China, o capitalismo foi negado a Cuba. O capitalismo que eu falo é industrial, as forças produtivas se desenvolvendo. O Vietnã, a mesma coisa. Então os partidos comunistas nesses países são muito mais forças políticas. Chegaram ao poder mais por conta de uma promessa de desenvolvimento do que uma outra coisa. E isso é essencial, sob o meu ponto de vista. Pois bem, é evidente que existe o caráter socialista; não tenho a menor dúvida disso. Mas acredito que essa questão do nacional seja essencial para se compreender por onde andam esses países. E aqui no Brasil é a mesma coisa. Mesma coisa. Aqui existem discussões, por exemplo, sobre o caráter do socialismo brasileiro, sobre o caráter da revolução brasileira. São questões que se colocam para nós o tempo inteiro e eu me junto àqueles que têm aquelas noções da década de 1970 em relação a isso. A revolução brasileira, ou seja, o processo de transição ao socialismo no Brasil, vai ser obra de uma grande frente política, pela qual o Partido Comunista e outras forças, como o Partido dos Trabalhadores, vão colocar para si grandes tarefas nacionais. Eu vejo que o socialismo vem a solucionar uma natureza xis de problemas. Não sei se essa natureza xis de problemas se coloca no Brasil hoje. Eu acho que existe uma questão nacional imposta, que é anterior ao socialismo e que é a própria antessala do socialismo.

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Pois bem, em relação a essa questão das reformas econômicas chinesas, a partir da década de 1970, quero colocar algumas questões porque envolve reformas econômicas/socialismo de mercado. A China faz suas reformas econômicas justamente no momento em que o socialismo real – é um termo bem feio, o socialismo realmente existente, aquela coisa de livro didático, mas vamos usar esse termo por enquanto aqui, porque não consigo ver outro –, as primeiras experiências socialistas, passou por uma dura crise de realização. Desde a década de 1970, por exemplo, os países socialistas – notadamente a União Soviética, a própria China, Leste Europeu – passaram a viver uma crise de realização, ou seja, agricultura, queda de produtividade; indústria, queda de produtividade. Tudo isso que já foi dito aqui mais ou menos. E é uma crise de produtividade que tem muito a ver com a crise do próprio fordismo, porque não dá para não relacionar a crise do socialismo como a face de uma outra moeda da crise do fordismo. Ou seja, o socialismo vai ao encontro do fordismo. As experiências socialistas e os seus processos de industrialização são clones do modelo fordista que, quando entra em crise, leva o socialismo junto. Ao lado disso também vem o quê? O surgimento de um novo paradigma tecnológico no Japão. Isso vem de forma casada. Afora a entrada da União Soviética no Afeganistão, porque aquilo acelera também a derrota moral da União Soviética, que é uma coisa muito impressionante. A década de 1970 passa uma imagem de uma ampliação geopolítica do socialismo na África, uma ampliação na área de influência da União Soviética no Terceiro Mundo. Enquanto, dialeticamente, o socialismo ia mostrando cada vez mais as suas vulnerabilidades internas. Então os chineses têm o mérito de começar suas reformas econômicas justamente no momento em que o socialismo começa a entrar em crise. Os vietnamitas fazem as reformas econômicas em 1986, eles começam. A União Soviética começa em mil novecentos... Aliás, a Perestroika e a Glasnost são duas tragédias combinadas. Somente na década de 1980, ou seja, na segunda metade da década de 1980; e os chineses começam antes, em 1978. E começa por onde, necessariamente? Existe uma crise que quase leva o partido comunista da China para fora do poder, que quase o deslegitima. Que é o quê? Uma crise do pacto de poder. Todos aqui sabem, por exemplo, que as revoluções da periferia têm uma ampla base camponesa: a revolução cubana é uma delas, a revolução russa, e a revolução chinesa em particular. A grande base social do regime chinês até hoje é essa massa camponesa. E não sei se foi dito aqui antes, em outras falas, sobre o modelo soviético de desenvolvimento. 67

Alguém falou sobre isso aqui? O modelo soviético de desenvolvimento era pautado, ou seja, era uma forma de financiamento daquele modelo e estava justamente em relações desiguais entre campo e cidade. Aqui teria que ficar uma meia hora tratando sobre o modelo soviético, a forma de financiamento da economia no modelo soviético. Mas no essencial é uma forma de financiamento da economia muito pautada por relações desiguais entre campo e cidade, ou seja, o excedente econômico da agricultura financiava a industrialização. E isso foi criando um problema político insuportável para o socialismo de uma maneira geral. Do caso soviético a gente pode falar noutro momento. Essa questão da queda na produtividade da agricultura soviética como um elemento que demonstrava esse limite, e no caso da China é uma questão explosiva. Os camponeses chineses financiaram o processo de industrialização, então, tem a industrialização pesada, o lançamento de satélites da China na década de 1970, tem a bomba nuclear chinesa, o teste de 1962. Tudo isso. Alguém financiou isso, não é verdade? Alguém financiou esses empreendimentos. Em grande medida, o excedente camponês foi o responsável por esse financiamento, ou seja, no final da década de 1970, o pacto de poder entre camponeses e operários que leva o partido comunista ao poder estava rachado. Não é à toa que o primeiro passo das reformas econômicas chinesas se dá a partir do quê? Da permissão para os camponeses comercializarem o seu excedente agrícola. Então, passado o final da década de 1970, inverte-se a lógica. A permissão ao enriquecimento. Eu vou além, pessoal, eu vou além. A partir dessas reformas na agricultura chinesa na década de 1970, ocorre uma institucionalização e um incentivo e uma permissão clara e objetiva ao enriquecimento na China. Ao enriquecimento privado na China. Vamos admitir que essas reformas do campo no Vietnã e na China são uma forma peculiar de privatização? Peculiar. Não é uma privatização completa, mas é uma forma peculiar de privatização. Então a partir disso coloco aqui essa questão do setor estatal e do setor privado na economia. Essas reformas econômicas iniciam-se no campo, cria-se um caldo de cultura, acúmulo privado, logo em seguida uma miríade de formas de propriedade surge na China. Hoje existem umas sete, oito formas de propriedade diferentes – inclusive uma chamada forma de propriedade coletiva, que são essas empresas de Cantão que, na prática, são hoje empresas privadas em grande medida privatizadas. Na década de 1980 na China, assiste-se a um avanço do setor privado, quase impetuoso, inclusive sobre ativos estatais. O que não significa, por exemplo, 68

que existiu na China, da década de 1980 para cá, uma diminuição do tamanho do Estado, vamos dizer assim, de importância do Estado na economia. O que eu vejo que acontece na China a partir da década de 1980? Uma constante recolocação do papel estratégico do Estado. Então muita gente coloca que a China avança porque permitiu o capitalismo, permitiu o setor privado, permitiu essa coisa toda. Mas poucos dizem, pouco se coloca, que no setor estatal da economia chinesa existe uma recolocação estratégica. Por exemplo: essa permissão, essa política de atrair o capital estrangeiro. Os chineses percebem, no final da década de 1970, começo da década de 1980, que não entregariam a mercadoria que prometeram em 1949. Qual era essa mercadoria? A reunificação com Taiwan, Hong Kong e Macau. Essa reunificação ao longo do tempo foi se tornando muito difícil por quê? Porque Hong Kong e Taiwan, por exemplo, passaram a ser países. Países não, passaram a ser locais de alta produtividade capitalista. Taiwan tinha uma renda per capita, no final da década de 1970, dez vezes maior do que a do resto da China. Hong Kong tinha uma renda per capita 17 vezes maior do que a do restante do país. E dentre os capitalismos mais dinâmicos, vamos dizer assim, daquela época estava justamente o capitalismo de Estado asiático: Coreia, Taiwan, Singapura e outras experiências. Então existe uma sensação de que a China está ficando para trás naquela corrida pelo desenvolvimento no sudeste asiático. Pois bem, essa é uma constatação. A outra constatação: os objetivos estratégicos chineses não seriam passíveis de realização sem a absorção da tecnologia mais avançada criada pelo capitalismo, assim como o acesso às fontes de financiamento ao capitalismo no capitalismo ocidental. Então a noção de absorção de capital estrangeiro, a noção de participação via joint venture de capital estrangeiro foi absorvida rapidamente pela China. E isso quer dizer o quê? Que o Estado chinês passa a cumprir outros papéis no processo de desenvolvimento. Por exemplo: se o Estado, por um lado, privatizou largamente a partir das reformas econômicas do campo, e a partir da privatização de ativos estatais, por outro, passou a se responsabilizar pela preparação do seu território a esse processo. Alguns exemplos: aqui todos já ouviram falar em zonas econômicas especiais. As quatro primeiras delas foram criadas em 1982. Quatro zonas econômicas especiais. Em 1987, outras 14 cidades foram formadas, e foram preparadas no litoral, para receber esse capital estrangeiro. Ao final de 1987, todo o litoral chinês havia se transformado numa zona econômica especial. Em 1992 – vejam só, pessoal, o gradualismo disso –, 52 cidades de fronteira foram alçadas à condição de zonas econômicas especiais. Em 1999, fora lançada a pedra fundamental da expansão a oeste, programa de desenvolvimento do Oeste. O que eu quero 69

dizer com isso, camaradas? É que, se de um lado existiu um avanço do setor privado na economia, sobre ativos estatais, por exemplo, inclusive privatização das empresas coletivas, de outro, o Estado passou a ser responsável por grandes questões que envolviam planificação em um nível superior. Essa é uma questão. Outra questão: formação do sistema financeiro capaz de financiar a mudança estrutural da economia chinesa. Isso aqui é mais para encerrar esta apresentação sobre a questão do socialismo de mercado: os bancos chineses, camaradas, na década de 1970 eram bancos de depósito retirável, como os soviéticos. Existiu uma mudança fundamental na economia chinesa que foi a formação, durante a década de 1980, de um sistema financeiro capaz de financiar o processo de desenvolvimento do longo prazo na economia chinesa. A meu ver, esse é o aspecto fundamental. Ao lado disso, esse novo sistema financeiro que surge na década de 1990. Aliás, hoje os chineses estão investindo um trilhão de dólares a partir da nova rota da seda. Esses investimentos são feitos por esses bancos estatais chineses. Um outro movimento que acontece na década de 1990, que eu acredito ser de fundamental importância, é qual? O processo de fusões e aquisições envolvendo o setor privado da economia. Durante a década de 1980, eu falei desse processo de privatização em larga escala, do Estado como condutor de um processo de preparação e planificação de nível superior no seu território, da formação do sistema financeiro de longo prazo. Agora vou falar rapidamente sobre as empresas estatais que surgem na década de 1990. Existiam na China no final da década de 1980 cerca de 50 mil empresas estatais. Cinquenta mil empresas estatais: pequena, média, grande, de tudo quanto é tipo, tudo quanto é jeito, para várias tarefas. Na década de 1990, ocorre um processo de fusões e aquisições no setor privado da economia que leva, no ano de 2002, ao surgimento de 149 conglomerados empresariais estatais na economia. Então pode-se perceber ao longo do tempo um processo que privatiza uma larga margem da economia chinesa, enquanto se estatiza outros setores da economia chinesa. Um processo de privatização sendo acompanhado por um processo de estatização por cima da economia. Particularmente, eu vejo inclusive o socialismo de mercado chinês como a fusão de dois elementos: um, esse sistema financeiro estatal de longo prazo que surge na década de 1990, em substituição àquele de tipo soviético. Esse entendo como o coração do socialismo de mercado. E o outro, a outra ponta desse socialismo de mercado, são esses conglomerados empresariais estatais, que hoje são 149. 70

É que hoje por exemplo nós falamos na reação dos chineses à crise de 2008, por exemplo. Trata-se de um investimento da ordem de um trilhão de dólares, 1,2 trilhão de dólares, a partir de 2008. E quais empresas são a ponta de lança dessa reação chinesa à crise de 2008, pessoal? Essas empresas estatais situadas nos setores estratégicos da economia. Hoje, por exemplo, esse mesmo avanço impetuoso, comercial chinês, e essa diplomacia da infraestrutura têm nessas empresas estatais o seu principal elemento. Isso é uma questão fundamental. Esse sistema financeiro. Para encerrar, trago aqui para vocês uma necessidade de reflexão, de abordagem de socialismo noutro patamar. Então, quando se fala em setor privado da economia, quando se fala em setor estatal da economia, quando se fala em sistema financeiro da economia, quando se fala em setor estatal oligopolizado da economia, quero trazer essa discussão a outro patamar para vocês. Encerro minha fala aqui em cima dessas polêmicas colocadas no começo: o papel do setor estatal na economia, o setor privado.

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A Economia Política das reformas e a presente transição chinesa* INTRODUÇÃO Em uma trajetória semelhante com a norte-americana entre a segunda metade do século XIX (unificação territorial) e o final da Segunda Guerra Mundial, o crescimento econômico robusto, contínuo, e o consequente aumento de influência da República Popular da China no mundo contemporâneo talvez sejam o fato político e econômico mais relevante da época que vivemos. Ao circunscrevermos a análise somente aos anos pós-reformas (1978)1, a taxa média do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) aproxima-se de 10% anuais com renda per capita (por Paridade de Poder de Compra), saindo de US$ 250 dólares em 1980 para US$ 9.040 em 2014. Desde 2013, a China é o país de maior volume de comércio exterior, provocando efeitos tanto de demanda quanto de estrutura sobre praticamente todas as economias nacionais, tornando-se – também – grande exportador de capitais com IED`s, passando de US$ 0,8 bilhão em 1990 para US$ 140 bilhões em 20142. Como receptor, os IED`s saíram de US$ 1,4 bilhão em 1984 para US$ 119,6 bilhões em 2014. Retornando à variável comércio exterior, o peso de sua influência internacional e a percepção de uma combinação entre um modelo export-led, com traços de mercantilismo moderno, podem ser notados na evolução desta pauta. Em 1978, as exportações/importações foram da ordem de US$ 9,75 bilhões/US$ 10,89 bilhões, respectivamente. Em 2014, os mesmos agregados alcançaram US$ 2,34 trilhões/US$ 1,96 trilhão. A formação das maiores 1 O desenvolvimentismo chinês não pode ser observado como uma tendência inaugurada com as reformas econômicas de 1978. Neste mister, é mais prudente tipificar as reformas econômicas como o processo de internalização do desenvolvimentismo de tipo asiático em substituição a um modelo de crescimento historicamente determinado, que penalizava o campo em detrimento da cidade, evitando assim a simples negação do período anterior tão prejudicial a análises de fundo sobre processos históricos complexos. Bom assinalar que, entre 1953 e 1978, a taxa média de crescimento do PIB foi de 6,6% ao ano, atrás apenas da de seus vizinhos do Sudeste Asiático. Neste período lançou-se as bases à consecução de grandes projetos hidráulicos (Ertan), a confecção da bomba nuclear (1964), o lançamento de satélites artificiais (1971) e a construção do metrô de Pequim (1975) dotado de equipamentos exclusivamente chineses. Ignácio Rangel, em desconhecido artigo escrito em 1952, já apontava a confirmada tendência de a China conter o paradoxo de um país agrícola, porém exportador de produtos manufaturados. Sobre isto ler: RANGEL, I: Prossegue a recuperação chinesa. Cadernos do Nosso Tempo, (1), 1952, 1: 59-64. 2 A América Latina é um caso de combinação entre efeitos de estrutura e demanda com a elevação da participação chinesa em suas pautas exportadoras e importadoras. Sobre isto, ler: MEDEIROS, C. A; CINTRA, M. R. V. P. Impacto da ascensão chinesa sobre os países latino-americanos”. Revista de Economia Política, 35, 1 (138), 2015, p. 28-42.

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reservas cambiais do mundo obedeceu a mesma lógica quantitativa do comércio externo, saltando de US$ 1,6 bilhão em 1978 para US$ 3,84 trilhões em dezembro de 20143. Entre as TOP 500 da revista Forbes, estão presentes 43 empresas chinesas, e 20 conglomerados estatais estão situados nas primeiras 250 posições do ranking de 2013. O desenvolvimento recente chinês é história de grandes saltos, de um desequilíbrio a outro. O surgimento de um largo setor privado e a própria sofisticação e diversificação da manufatura demandaram uma reorganização de atividades entre os setores estatal e privado da economia4. Ao Estado passou a caber maior protagonismo nas esferas das políticas econômica, monetária e fiscal, no âmbito do comércio exterior, e principalmente no lançamento de novas e superiores formas de planificação econômica (JABBOUR, 2012) adjacentes ao gerenciamento de maciças e rápidas intervenções sobre o território e margem de manobra ao giro de compasso do externo ao interno em momentos de relativo fechamento de mercados externos. Manutenção de altas taxas de investimentos e, consequentemente, aumento “na frente” de capacidade produtiva instalada que, somados ao alcance de um moderno sistema financeiro, garantiram ao país condições para a construção de “diques contra marés históricas desfavoráveis” (KISSINGER, 2011, p. 446), conforme percebido na resistência aos primeiros anos da crise financeira internacional pela via de um programa de investimentos em infraestruturas da ordem de US$ 600 bilhões. Curiosamente, a extensão da dinâmica de acumulação centrada pelo investimento, como recurso à resistência à crise internacional, foi motivo de maior esgarçamento da própria dinâmica e a consequente urgência de transição a um padrão centrado na mobilização de recursos para fins de consumo. Eis um traço, sob forma de desequilíbrio estrutural, que se intercala com uma conjuntura interna de formação de bolhas financeiras e alto nível de endividamento provincial – prenúncios de uma crise que, antes de ser financeira, é expressão de um longo processo interno de transição. Além desta introdução, este artigo está dividido em quatro seções. A segunda seção discutirá a Economia Política das reformas com o objetivo de caracterizar o padrão de acumulação inaugurado com as reformas econômicas em 1978, o papel do inner catch up (potencial de acumulação encerrado 3 4

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Chinability, China Statistical Yearbook. A percepção acerca da necessidade de reorganização de atividades entre o Estado e a iniciativa privada, em concomitância com determinados níveis de desenvolvimento de um país, é muito presente na obra de Ignácio Rangel, com consequências virtuosas nas elaborações de Bresser Pereira sobre o tema. A nosso ver, essa reorganização dinâmica de atividades funciona como uma lei objetiva do processo de desenvolvimento a ser observada sob o risco da dogmatização e da adoção de formas rígidas e ideologizadas de abordagem. Sobre isto ler: RANGEL, I. A questão financeira. Revista de Economia Política, (1) 1, 1981, p. 31-39. BRESSER PEREIRA, L. C. O caráter cíclico da intervenção estatal. Revista de Economia Política, (9) 3, 1989, p. 28-42.

nos camponeses) anterior à internalização do modelo pautado pela combinação entre export led e altas taxas de investimento. Além da (re)construção do pacto de poder essencial ao andamento das reformas econômicas, expressada na subversão do modelo soviético de industrialização pelo privilégio à agricultura e aos camponeses em relação às cidades, o consequente reordenamento das empresas rurais à estratégia de conexão de mercados regionais, e mesmo à inserção internacional chinesa, ao papel da China na nova divisão internacional do trabalho surgida com a financeirização e a mobilização financeira do círculo internacional chinês para a captação de investimentos e criação de condições para a reunificação territorial do país. A terceira seção analisa a macrodinâmica do processo das reformas com cotejamento de dados e dinâmica macroeconômicos capazes de evidenciar o processo de mutação do centro de gravidade, na década de 1990, de uma industrialização pressionada por novos hábitos de consumo, à configuração de um centrum investidor e exportador; além da transformação do desenvolvimento econômico em desenvolvimento territorial como expressão da estratégia nacional definida e do papel do próprio Estado e da grande finança nacional no processo. Na conclusão buscaremos sintetizar pontos importantes de nossa análise, além, claro, de dar maior contorno aos principais desafios da governança chinesa na atualidade. O IMPULSO PRIMÁRIO A inauguração das reformas econômicas em 1978 coincide com uma série de eventos cujo sentido tem expressão numa nova divisão internacional do trabalho inaugurada desde então. A perda de espaço econômico e político norte-americano (ascensão econômica alemã e japonesa, derrota militar no Vietnã e crescente perda de influência no Terceiro Mundo) encetaram uma contraofensiva em escala internacional. Fator determinante para a realização das reformas econômicas residia, também, na percepção de atraso do país em relação aos Estados Desenvolvimentistas de seu redor, incluindo as duas grandes pendências históricas da China pós-1949, Hong Kong e Taiwan5, e o próprio surgimento de um novo paradigma tecnológico em seu rival histórico, o Japão. No campo do socialismo realmente existente, é irresistível interligar a decadência do fordismo com a própria perda de dinamismo econômico da URSS e de seus sócios do COMECON, alguns deles atraídos à própria órbita da fase b do Ciclo Longo inaugurado em 1973 com cataclismos políticos amplificados pela crise da dívida mexicana em 1982, notadamente os casos de Polônia e Iugoslávia. 5 Em 1978, Taiwan detinha uma renda per capita 19,7 vezes maior que a verificada na China continental (JABBOUR, 2006, p. 57); o que tornava insustentável qualquer intento político no sentido da reunificação do país.

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Do ponto de vista da grande política interna, o principal fator para a modernização residiu na recomposição do pacto de poder inaugurado em 1949, porém praticamente desmantelado em função da lógica da chamada acumulação primitiva socialista e do radicalismo antimercantil anexos a campanhas como O Grande Salto Adiante (1956-1961) e a Revolução Cultural (19661976)6. Deng Xiaoping percebeu, com sagacidade, que as mesmas forças (camponeses) que levaram o Partido Comunista da China (PCCh) ao poder em 1949 seriam o motor de arranque de suas reformas econômicas, concentradas, em princípio, no restabelecimento de um sistema interno de abastecimento alimentar capaz de superar a era da escassez na produção de alimentos, ao mesmo tempo que garantisse condições mínimas ao surgimento de um amplo mercado interno ao consumo de bens manufaturados. Política, estratégia e economia deveriam se fundir – inicialmente – numa reversão da lógica de relações campo-cidade intrínsecas ao modelo soviético, desfavoráveis à agricultura7. Padrões clássicos de divisão social de trabalho urgiam a instalação em um processo, de início caracterizado por uma liberalização sem privatização. Pela lógica da grande estratégia e do peso político das zonas rurais, as reformas econômicas buscaram seu primeiro tento com a implantação dos contratos de responsabilidade entre as famílias camponesas e o Estado, numa instituição de cotas de produção a serem entregues – pelas famílias – ao Estado, seguida da permissão de comercialização do excedente produzido8. Como resultado desta política, em 1984 a produção de cereais alcançou o recorde de 407,3 milhões de toneladas com aumento de 33,6% em relação à colheita de 1978 (RONG et al, 1992, p. 375). Neste sentido, a caracterização dos primeiros anos de reformas econômicas na China, talvez um exemplo de “crescimento fora do plano” (NAUGHTON, 1996), é expressão da recomposição da pequena produção mercantil numa espécie de laissez-faire camponês, gerando desenvolvimento econômico em relação de causa e consequência da expansão da economia de mercado. Expansão que não ocorreu somente em detrimento das estáticas e rústicas formas de planificação características do complexo agroindustrial das comunas instituídas na era Mao Tsé-tung, mas

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O pacto de poder que levou o PCCh ao poder em 1949 tinha nos camponeses ampla maioria da população, a principal base apoio.

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Sobre o modelo soviético de desenvolvimento/acumulação primitiva socialista, ler: DOMAR, E. A Soviet Model of Growth. In: NOVE, A.; NUTI, D. M. Socialist Economics. Penguim, 1972.

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Não é incomum associar os contratos de responsabilidade instituídos na China pós-reformas com os mecanismos de acumulação inseridos na curta experiência russa da Nova Política Econômica (NEP), proposta por Lênin em 1921. Domenico Losurdo (2004, p. 57) chega a classificar as próprias reformas chinesas como uma “grande NEP”. A nosso ver, a existência de recursos ociosos é um pressuposto básico ao desenvolvimento, sendo que numa sociedade agrária a própria agricultura é fonte de recursos ociosos, cuja plena utilização demanda mudanças institucionais como ponto de partida ao processo de acumulação, atingindo qualitativamente a economia como um todo. Eis o caso da China nos estertores das reformas econômicas. Sobre a NEP, ler: LÊNIN, V. The Tax in Kind (The Significance Of The New Policy And Its Conditions). In: LÊNIN, V. Collected Works. Moscow: Progress Publishers, vol. 32, (1964 [1921]), p. 326-365.

também da pressão exercida por essa novel economia de mercado sobre a economia natural com efeitos expansivos à própria economia de mercado. O aquecimento do setor primário da economia nos primeiros anos das reformas fora um feito com repercussões políticas e estratégicas, pouco percebidas. Difícil não relacionar o amplo respaldo das bases rurais ao regime com a manutenção e legitimação do PCCh durante o processo de dissolução da URSS, do final das experiências do Leste Europeu, e as agitações que sacudiram Pequim entre maio e junho de 1989. As reformas rurais criaram um contorno político, até o momento, inconteste ao projeto estratégico inserido nas Quatro Modernizações (agricultura, indústria, ciência e tecnologia e defesa nacional) anunciadas por Zhou Enlai em 1974, sob ideia-força do Socialismo com Características Chinesas, lançada por Deng Xiaoping em 19829. Aspecto essencial à compreensão das reformas econômicas chinesas reside no particular do processo de desenvolvimento do país. A China pós1978 pode ser percebida como uma variante de via americana, ou seja, um processo de industrialização apoiado numa ampla economia de mercado que se expande do campo às cidades, cujas induções de tipo institucional potencializam a transformação de pequenos e médios produtores em potenciais industriais, numa espécie de acumulação sem desapropriação; causa e consequência da própria natureza gradualista das reformas chinesas. Este gradualismo tem expressão na combinação dos seguintes processos encabeçados pelo Estado: 1) de domínio do mercado pelo Estado; 2) que por sua vez liberaliza o comércio a seu contento, abrindo possibilidades de aprofundamento de formas superiores de divisão social do trabalho, e em concomitância com o plano; 3) direciona energias à formação de um mercado de consumidor interno; 4) enceta a industrialização baseada no próprio empreendedorismo camponês; 5) induz a ampla concorrência entre pequenas, médias e grandes empresas e estimula a educação como base atenuante dos efeitos do próprio mercado sobre o corpo social; e 6) planifica saltos, primeiro à própria indústria e em seguida ao comércio exterior, não tradicional e sim como bem público, planificado e de Estado. 9

XIAOPING, Deng. Opening Speech at the Twelfth National Congress f the Communist Party of China. In: XIAOPING, D. Selected Works. Beijing: Foreign Language Press, 1992, p. 13-17. Não iremos discutir neste artigo a conceituação ou mesmo a validade teórica do socialismo de mercado como categoria de análise. Observamos a categoria como uma formação socioeconômica distinta ou Moderno Modo de Produção (GABRIELLE; SCHETTINO, 2012). Além disso, o socialismo de mercado deve ser observado como um modo de produção complexo que espelha, de um lado, sobrevivência e fortalecimento de instituições de tipo socialista tradicional sob o escopo de uma estratégia nacional de caráter socializante, operando e dirigindo o corpo nacional e social numa formação social, também, complexa onde diferentes modos de produção não coetâneos convivem em contemporaneidade territorial e social sob a hegemonia da grande propriedade estatal socializada, espinha dorsal da economia e da própria sociedade chinesa. Neste caso a visão de totalidade histórica, muito cara à ciência da Economia Política, pode substituir determinado grau de primarismo e vícios neoclássicos que caracterizam a experiência chinesa de desenvolvimento como mais uma transição em linha reta do socialismo ao capitalismo ou uma variante asiática, “sustentável” ou não, de Estado Desenvolvimentista ou um simples exemplo de capitalismo de Estado.

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Este processo, na China, tem intimidade com o próprio andar das reformas rurais, anabolizadas por duas elevações nos preços agrícolas e o consequente aumento de produtividade e renda, além da autorização – desde 1983 – de busca de mercado, pelos camponeses, fora de suas aldeias (ARRIGHI, 2007, p. 366-367). Eis o start a uma nova configuração da divisão social do trabalho, assim como de esquemas regionais articulados tanto com a economia nacional, quanto com a internacional. O principal exemplo desta dinâmica está inserido na transformação da natureza do emprego no país e sua relação direta com o maior poder de decisão econômica às províncias e às empresas, a liberação da mão de obra excedente da agricultura e o fortalecimento de indústrias de caráter rural conhecidas como Townships and Village Enterprises (TVE`s). Uma das características fundamentais do processo de desenvolvimento recente chinês está no caráter rural da grande manufatura expandida na década de 1980. As elevações da renda e da produtividade do trabalho agrícola – e o consequente aumento da demanda por bens industriais – foram fator de deslocamento de mão de obra sobrante não às grandes cidades litorâneas e sim ao próprio entorno, no chamado vilarejo, conformando, assim, uma mais ampla divisão social/regional do trabalho fundada na transferência de atividades industriais outrora localizadas no complexo comunal, ao âmbito do próprio vilarejo, abrindo relevo às três principais características da expansão da economia de mercado, a saber: 1) especialização produtiva; 2) diferenciação entre agricultura e indústria; e 3) superação das barreiras inibidoras à conexão de mercados regionais em um único e integrado mercado nacional. A expansão das TVE’s dá guarida à tomada da divisão social do trabalho como uma das categorias nodais de análise à compreensão do desenvolvimento chinês. Em 1978, o número total de empregados nas TVE`s era de 28,265 milhões de trabalhadores, triplicando nos dez primeiros anos de reformas econômicas para 93,667 milhões e chegando a 138,661 milhões de empregados em 200410. Entre 1978 e 2004, a queda da participação do emprego agrícola no China foi de 242%, enquanto o emprego rural não agrícola elevou-se em 471% na indústria, 582% na indústria de construção e acima de 3.000% no setor de serviços (KANG, 2006, p. 291). Essa transferência de atividades teve incidência direta na estrutura de renda camponesa: em 1978, 7,92% da renda provinham de atividades não agrícolas, saltando a 30,61% em 1996 com consequente queda de renda via atividades agrícolas, caindo de 90,08% em 1978 para 69,39% em 199611. Cabe destacar que, concomitante a esta expansão industrial no campo, a produção de cereais tem tido cresci10 National Bureau of Statistics of China: China Statistical Yearbook. 11 Ministry of Agriculture: Agriculture Development in China, 1995-1996.

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mento contínuo desde 2004, fruto de reformas institucionais que incluíram a abolição de todos os impostos sobre a renda e a produção agrícolas, além de um claro processo de alta mecanização e especialização produtiva12. A produção de cereais em 2014 alcançou o recorde de 607,1 milhões de toneladas13. O reordenamento da divisão social do trabalho e o rumo da unificação do mercado nacional chinês tiveram nas TVE`s um elemento essencial. Porém, seu raio de ação acompanhou a própria estratégia de Estado, passando a ser ponte da inserção internacional do país, sobretudo a partir da década de 1990, sendo que, no final da citada década, as TVE`s eram responsáveis por 40% de toda produção industrial (MASIERO, 2006, p. 432) e 27% das exportações do país (KANG, 2006, p. 137). Em 1989, a exportação de têxteis e calçados pelas TVE`s correspondeu a 47,7% das exportações deste produtos, número que caiu a 29,1% em 2002 e 23% em 2007; enquanto a participação nas exportações de bens duráveis de consumo saiu de 14,4% em 1989, chegando a 29,1% em 2002 e 30,3% em 200714. Exemplos de expansão global de TVE`s são inúmeros, entre eles pode-se citar a Haier com 50% do mercado de pequenos frigoríficos dos EUA; a Galanz, com 33% do mercado mundial de micro-ondas; a Legend, com 20% do mercado mundial de placas para computadores; e a China International Marine Containers com 40% do mercado internacional de contêineres refrigerados (MASIERO, 2006, p. 441). Os primeiros passos das reformas econômicas criaram condições materiais e políticas a passos estratégicos condicionadores de escolhas ativas do país ante a crescente integração produtiva e financeira global. Se os bancos norte-americanos passaram a acumular poder de gestão da moeda de reserva internacional com musculatura crescente diante da tarefa de capitanear intenso processo de liberalização financeira, notadamente nos países de moeda não conversível (BELLUZZO, 2012, p. 130), esta mesma mobilidade foi conferida ao capital produtivo de buscar melhores condições de reprodução além-fronteiras da América do Norte, em movimento de causa e efeito de políticas monetaristas com impactos no custo da moeda e na crescente valorização cambial. Importante lembrar que, no início da década de 1980, as taxas de juros atingiram níveis sem precedentes nos EUA, na casa dos dois dígitos (GALBRAITH, 1987, p. 247). Além disso, a ofensiva norte-americana sobre as condicionantes macroeconômicas da economia japonesa (Acordos de Plaza de 1985) acelerou o processo de reconfiguração da divisão internacional do trabalho sob comando da grande finança, promovendo rearranjos geográficos 12 Sobre o processo de especialização produtiva e mecanização na agricultura chinesa, ler: ESPÍNDOLA, C. Notas sobre o agronegócio de carne na China. Revista de Geografia Econômica, Edição Piloto, 2007, p. 210-219. 13 National Bureau of Statistics of China: China Statistical Yearbook. 14 Idem.

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que, em última estância, beneficiaram a mediação entre os objetivos estratégicos chineses e a própria política de internalização de tecnologias e métodos avançados de gestão da produção. As reformas econômicas na China e sua Economia Política são, também, a história da criação de condições objetivas à solução de pendências históricas, notadamente Hong-Kong, Macau e Taiwan. Não é de se surpreender que o alvo primordial ao financiamento de projetos e formação de grandes joint ventures estava na mobilização de imensos recursos financeiros de chineses ultramarinos. Um círculo internacional chinês formado tornou-se externalidade virtuosa anterior ao afluxo de IDE`s dos EUA, União Europeia e Japão, como o primeiro passo à própria integração produtiva asiática centrada na China, num movimento de deslocamento do antigo centro japonês. Entre 1990 e 2008, 45% dos IED`s realizados na China tinham origem no complexo Hong-Kong/Macau; em segundo lugar os EUA, empatados com Taiwan, com 9%; seguidos por Singapura com 6%. Alemanha e França correspondiam a 2% e 1%, respectivamente (JABBOUR, 2012, p. 238). Se tomarmos, no conjunto, o complexo Hong-Kong/Macau, Taiwan e Singapura, conclui-se que mais de 60% dos IED`s na China são executados por chineses. Tratam-se de aspectos fundamentais de análise antecessores tanto do boom das exportações quanto da alta relação investimento x PIB ocorridos a partir da segunda metade da década de 1990. E, principalmente, é após a visita histórica de Deng Xiaoping, em 1992, às províncias prósperas do sul, que este movimento de captação financeira e produtiva da diáspora se efetiva, de fato. A inexorabilidade das reformas econômicas, ameaçadas após o fim da URSS, torna-se fato político e estratégico com a proclamação do socialismo de mercado como objetivo mater do regime em 1993. A MACRODINÂMICA E A FORMAÇÃO DE UMA POTÊNCIA FINANCEIRA Os primeiros estágios das reformas econômicas caracterizaram-se por um aumento da renda camponesa, acompanhada por aumento de demanda por bens de consumo. A elevada taxa de crescimento ocorrida entre 1978 e 1984 foi acompanhada por mudanças estruturais nos padrões de consumo (MEDEIROS, 1999, p. 96), com ampliação de horizonte consumista que passou a ser pautado pela aquisição de televisores, geladeiras, relógios e máquinas de lavar, com consequente explosão da produção interna desses produtos, notadamente nas TVE`s15. 15 Esta discussão sobre a mudança dos padrões de consumo e consequente elevação da produção interna de bens destinados ao consumo de massa é muito bem-feita em: SING, A. The Plan, The Market and Evolutionary Economic Reform in China. UNCTAD: Discussion Papers, 76, 1993.

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Assim, a participação do setor primário na composição do PIB passou de 28,2% em 1978 para 32,1% em 1984, enquanto o setor secundário caiu de 47,9% para 43,1%, havendo um pequeno crescimento do setor terciário de 23,9% para 24,8%. O empuxe do setor primário ao restante da economia perdurou ainda até o ano de 1990, cuja contribuição ao crescimento geral do PIB foi de 41,7%, enquanto a indústria acrescida do setor de construção teve participação de 41%, e o setor de serviços de 17,3%. Esta tendência somente é superada após 1995, quando a contribuição da agricultura à elevação do PIB caiu de forma acentuada para 9,1%; a indústria mais o setor de construção chegou a 64,3%; e os serviços a 26,6%. Em 2007, a clareza da primazia dos investimentos sobre a demanda total fica evidente com a participação da agricultura caindo ainda mais a 3,6%; a indústria (mais construção) alcançando 54,1%; e os serviços 48,2%16. A transição entre um padrão de crescimento baseado no consumo (a partir do início da década de 1980) a outro combinando aumento rápido do produto pela via das exportações e do investimento consolida-se na metade da década de 1990. A formação bruta de capital fixo, na década de 1980, teve média de 35,7%, alcançando o atual patamar – acima de 45% – somente em 1995 e o pico de 48,7% em 2011. As exportações saíram de 10% do PIB, em 1978, chegando a 17% em 1984 e a 45% em 1995. Em nível internacional, o peso das exportações chinesas em relação às mundiais – que em 1978 fora de 0,75% – em 1995 alcançou 3% (MEDEIROS, 1999, p. 96); 6% em 2007; e 11,3% em 201317. O comportamento da inflação nos primeiros 15 anos das reformas acompanhou a tendência de uma economia de consumo em expansão mediada por baixo controle oligopólico, liberalização de preços e utilização de capacidades produtivas instaladas (TVE`s). A inflação sofreu fortes oscilações entre 1978 e 1995, com picos em 1981, 1985, 1988 e 1994, quando chegou a 24% a.a. (NONNEMBERG, 2010. p. 207). A alta taxa de investimentos foi fator de grande importância para um equilíbrio dinâmico inflacionário médio abaixo dos 4% entre 1996 e 2014, inclusive para a atual possibilidade de tendência desinflacionaria. Voltemos ao comportamento da taxa de investimentos. Sua ascensão coincide com dois movimentos. O primeiro é função da própria mudança de padrão de acumulação consagrado na década de 1990 (export-led). O segundo decorrente da continentalidade e da consequente necessidade de integração de pequenos mercados ao todo complexo regional que, por sua vez, avança no rumo de um grande mercado nacional ainda em vias de consolidação; elemento quase ausente nos congêneres desenvolvimentistas do Leste Asiático cujos 16 National Bureau of Statistics of China: China Statistical Yearbook. 17 World Trade Organization.

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picos na relação entre investimento e PIB não passaram de 39% (Coreia do Sul em 1991). Neste sentido, o desenvolvimentismo e sua adaptação a uma economia continental, e vice-versa, devem ser observados ao longo do tempo e percebidos como parte da estratégia cujo movimento expressa a própria estratégia; como mostraremos a seguir. Estratégia e dinâmica regional A liberação de forças de mercado engendrava, em seu conteúdo, novas configurações em matéria de planificação econômica, que somente ganham forma e conteúdo no início da década de 2000 com um intenso processo de fusões e aquisições no setor estatal da economia e a formação de um ambiente institucional, e principalmente financeiro, capaz de cimentar uma estratégia de inserção internacional e saltos internos de um desequilíbrio a outro. Novas e superiores formas de planejamento foram engendradas no processo crescente de tomada pelo mercado de crescente papel, notadamente na alocação de recursos e fatores de produção. Preparar o território chinês para aproveitar a tendência de as grandes corporações obterem ganhos crescentes em escala e redução de custos foi o primeiro grande teste de preparação do país para a admissão soberana nas cadeias globais de valor. Parte de um todo complexo que relaciona o indigenização de um modelo export-led com a necessária construção de soberania financeira (reservas cambiais) central para a consecução de uma política de longo alcance, baseada em mecanismos de socialização do investimento que se revela ao longo dos últimos 30 anos como pilar central de coordenação entre capital estatal, concentrado e centralizado, e intensa capilaridade e importância do setor privado da economia chinesa. Trata-se de uma virtuose que explica o dinamismo econômico chinês na maximização dos setores estatal e privado e da relação de unidade de contrários entre o planejamento de nível superior e o crescente papel do mercado nas decisões no nível da firma. A instituição das Zonas Econômicas Especiais (ZEE´s) atendiam a uma estratégia de inserção econômica mundial do país, da mesma forma que iam ao encontro da criação de uma zona de convergência econômica entre a China-Hong-Kong e a China-Taiwan; passo primeiro à reunificação do país sob o acicate da política de “um país, dois sistemas”. As cinco primeiras experiências instituídas entre 1982 e 1984 foram escolhidas estrategicamente: Shantou, Shenzen e Zhuhai, na província fronteiriça com Hong-Kong, e Xiamen, na província de Fujian (de “frente” a Taiwan), e toda a ilha de Hainan, mais ao sul e próxima dos chineses étnicos fixados principalmente em Singapura e Indonésia. Xangai foi restabelecida como a cabeça do dragão, 82

novo centro industrial e financeiro do país e sede da Zona Econômica Especial de Pudong, localizada à margem oriental do rio Pudong, formada para abrigar os escritórios de P&D das maiores corporações industriais chinesas e do mundo (OLIVEIRA, 2003, p. 9). A concepção dessa dinâmica territorial gradual está nos degraus de desenvolvimento vis–à-vis com a lei de desenvolvimento desigual, onde se verifica a formação de um centro dinâmico e posterior incorporação da periferia a este centro – comum a países de nível médio de desenvolvimento e alto grau de catch up. Tal é a política regional oficial do Estado chinês desde o VII Plano Quinquenal (1986-1990), engendrando – sequentemente – imensa concentração territorial de renda como substituinte à duplicidade de mundos entre o urbano e o rural mediado pelo sistema de controle de migração interna (Hukou) da época maoísta. As ZEE`s tiveram sua experiência prolongada a todo o litoral (1987), além de 2.000 cidades de fronteira em 1992, além da autorização a 30 províncias para elaboração de suas próprias políticas de abertura (DEMURGER et al, 2002, p. 157). O primeiro grande movimento de reversão de políticas positivas ao litoral foi a assunção de Chongqing, situada no meio-oeste, e bifurcação/entroncamento do rio Yangtsé à condição de municipalidade, como Pequim, Xangai e Tianjin. Este movimento é similar ao verificado na segunda metade do século XIX nos Estados Unidos e sua estratégia de expansão ao oeste centrada na cidade de Chicago, meio-oeste do país e ponto de entroncamento ferroviário e rodoviário. Entre janeiro de 2001 e dezembro de 2010, US$ 1,8 bilhão mensal fora alocado na municipalidade de Chogqing sob a clara estratégia de transformá-la na “Chicago Chinesa”, incluindo a formação e o desenvolvimento de instituições similares às criadas nos EUA no último terço do século XIX, a saber: Tenesse Valley Authority, Civilian Conservation Corps e a Interstate Hoghway System (JABBOUR, 2006, p. 78). Sob a ideia-força do Programa de Desenvolvimento do Grande Oeste (1999), intenta-se a consolidação de um grande mercado nacional e a viabilização de conectar a economia continental chinesa aos seus vizinhos, sob o escopo de transferência de renda do litoral em troca de matérias-primas abundantes no centro e no oeste do país. Cerca de US$ 100 bilhões foram alocados somente entre 1999 e 2005 em grandes projetos infraestruturais de longo alcance, sendo os dois principais o gasoduto Oeste-Leste (Xinjiang-Xangai) e a ferrovia Qinghai-Tibet (JABBOUR, 2006, p. 60). Objetivamente, os investimentos em ativos fixos com relação ao PIB na região leste do país caíram de 54% a 41%, entre 1998 e 2013; enquanto nas regiões Nordeste, Oeste e Central saíram do patamar de 8%, 18% e 17%, em 1998, para 10%, 25% e 83

24%, respectivamente18. A renda per capita do Oeste, em proporção à nacional, sai do patamar de 90%, em 1990, para 81,3%, em 1998, e iniciando tendência de aproximação com a nacional, alcançando 84,2% em 2013 (MORAIS, 2015, p. 247). Do pacote de investimentos anunciado em novembro de 2008, de US$ 600 bilhões, 73% foram alocados nas regiões interioranas do país. Da implementação das primeiras ZEE`s litorâneas ao ambicioso Programa de Desenvolvimento do Grande Oeste, em 1999, seguido por programas similares de investimentos com vista à quebra de bloqueios de mercado lançados em direção ao Nordeste (2002) e ao Centro (2004) do país, a configuração de uma economia continental sob as hostes da formação de um grande mercado nacional unificado guarda correspondência com o aumento da influência chinesa no mundo, e principalmente sobre seus vizinhos a oeste. A presença continental chinesa, além de suas fronteiras, é clara no ambicioso projeto lançado pelo atual presidente chinês, Xi Jinping, de reconfiguração de uma Nova Rota da Seda (REN, 2015), com investimentos previstos até 2020 de US$ 2,5 trilhões (TIEZZI, 2015): cinturão econômico conectando o mercado chinês desde a costa até o conjunto da Ásia Central, em clara resposta às objeções norte-americanas no Oriente Médio e antigas repúblicas da extinta União Soviética. Eixos regionais de desenvolvimento foram estimulados, institucionalizados e principalmente planificados desde 1982. A concepção de degraus de desenvolvimento guarda objetividade na tendência de dispersão regional de investimentos e industrialização, após a segunda metade da década de 1990. Trata-se, também, de um processo de transformação do desenvolvimento econômico em desenvolvimento territorial; ademais, forma de execução de uma grande estratégia nacional e de constante legitimação do próprio poder político instalado em outubro de 1949. Neste sentido, a crescente demanda chinesa por hidrocarbonetos coincide com a descoberta de grandes reservas de petróleo e gás natural em Xinjiang19, tornando estratégica esta região autônoma tanto como supridora de energia, quanto de cabeça de ponte entre a China e suas cercanias petrolíferas da Ásia Central. Tensões étnicas nesta região huigur recrudesceram a partir da década de 1990 e início do presente século, momentum histórico de simultaneidade com investimentos de – entre 1990 e 2001 – US$ 15 bilhões em infraestruturas, além do movimento de transformar Xinjiang no maior complexo petroquímico da Ásia até 2020 (BANDEIRA, 2013, p. 125). 18 National Bureau of Statistics of China: China Statistical Yearbook. 19 Estas reservas são estimadas em cerca de 3 bilhões de toneladas de petróleo e 1,3 trilhão de metros cúbicos de gás natural comprovados, porém estimados entre 20 e 40 bilhões de toneladas de petróleo e 12,4 trilhões de metros cúbicos de gás natural (BANDEIRA, 2013, p. 125).

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A dinâmica e o papel do Estado A nosso ver, não restam dúvidas sobre a centralidade do papel do Estado no esforço concentrado de modernização e admissão plena da China no rol das grandes potências econômicas mundiais. Porém, esse papel pode ser analisado de forma estilizada, com base em noções estáticas do processo. Neste particular reiteramos a ciclicidade do papel do Estado na China, assim como – em dinâmica – a percepção de diferentes papéis conferidos a este ao longo do processo, encaminhando à elaboração/execução de novas e superiores formas de planificação econômica vis-à-vis como o núcleo gerenciador de mecanismos de socialização do investimento. O argumento ortodoxo sugere uma dinâmica liberalizante, como segue: desmonte dos complexos comunais rurais, concessão de terras às famílias camponesas e consequente recomposição da pequena produção mercantil (laissez-faire camponês). Liberalização esta que se espraia à indústria e aos serviços até atingir o próprio sistema de formação de preços. Abertura do país a IED`s e admissão plena na Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001. Privatizações massivas de ativos estatais ocorridas entre 1994 e 2000, e a propriedade privada reconhecida, legitimada e sustentada por leis e regulamentos (NAUGHTON, 2006, p. 2). Concomitantemente, o número de falências no setor estatal atingiu 1.232 empresas, em 1995; 4.198 em 1998; e 5.429 no ano de 2001 (IMAI, 2006, p. 5). Entre 1998 e 2007, o total de empresas estatais na China caiu 39,2% do total das empresas, chegando a 6,1%, enquanto o setor privado saiu, no mesmo período, de 6,5% do total para 52,6%20. O caráter intensivo em trabalho de muitas empresas estatais levou a uma não completa proporcionalidade de queda em relação à verificada no número de empresas de tipo industriais/ urbanas. No período indicado, a queda do número de trabalhadores no setor foi de 168%, passando, assim, a responder por 29,5% do total dos postos de trabalho; enquanto o setor privado sai de 2,6% em 1998 para 28,6% em 2007 (JABBOUR, 2012, p. 238). Não resta dúvidas de que, sob um escopo puramente hipotético-dedutivo, estes dados dão pleno contorno, e argumento, diante do grande número de falências de empresas estatais e do aumento de importância do setor privado, para a ortodoxia. O processo de aumento de importância absoluta do setor privado guarda grande consequência, e mesmo imperativo, à conformação de uma larga economia de mercado. Crescentes excedentes na agricultura serviram de nicho mercantil rapidamente ocupado pelas TVE`s, cujo dinamismo produziu forte impacto negativo sobre principalmente as pequenas e médias empresas esta20 Tratamos aqui somente das empresas com capital total estatal ou privado. Uma outra característica chinesa é a multiplicidade de formas de propriedade, notadamente mistas.

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tais ocupadas na produção de bens de consumo. Estas estatais, por um lado, foram desenvolvidas distantes de métodos modernos de gerenciamento e subordinadas a um esquema central e débil de planificação de produção de tipo soviético, caracterizadas por métodos rústicos e ineficientes de substituição do cálculo econômico e inexistência de relações upstream e downstream entre a própria empresa, suas ancilares e os consumidores. Por outro lado, a diminuição quantitativa do setor estatal teve compensação social nada modesta de criação de milhões de empregos nas zonas rurais e urbanas, além de uma dinâmica classe de capitalistas domésticos de imensa funcionalidade para a estratégia nacional e internacional chinesa. E o ator-chave desta estratégia de desenvolvimento, neste caso, é o próprio Estado. A combinação entre concentração de mercados e descentralização do plano (MEDEIROS, 1999, p. 109) tem inúmeras facetas, sintetizadas numa combinação única entre mercado e planejamento, que caracteriza a via chinesa de desenvolvimento até os dias atuais, conformando novas e profundas formas de divisão social do trabalho. O maior poder de decisão conferido às províncias e a liberdade quase completa de ação conferida às TVE`s foram causa e consequência de uma política fiscal, inaugurada em 1980, marcada justamente por renúncias fiscais em prol da retenção de receita ao nível provincial, acarretando em crescentes déficits fiscais até 199421. A transição de uma economia centralmente planificada a outra mais flexível, com tendência estratégica de fusão entre grandes empresas e grandes bancos, demandou reformas, encetando a otimização de mecanismos de controle macroeconômicos (KI; YUK-SHING, 1994, p. 769). Estas reformas na China antecederam as transformações necessárias ao setor estatal industrial, criando condições institucionais para o enfrentamento da atual crise financeira internacional, por exemplo. Neste sentido, a elevação do papel do mercado e a maior participação do setor privado, inclusive substituindo o setor estatal em determinadas áreas, passaram a ter forte contrapartida no anúncio, em 1994, de reformas no sistema tributário que apontaram na direção de um forte processo de recentralização e concentração. Recentralização fiscal e maior poder estatal sobre os mecanismos macroeconômicos essenciais tornaram-se o passo primário para a instituição de mecanismos de coordenação e socialização do investimento. A China 21 É temeroso não relacionar esta maior autonomia local com a luta entre reformistas e conservadores no seio do PCCh encerrada com a completa vitória da ala reformista liderada por Deng Xiaoping e consagrada no 14º Congresso Nacional do PCCh (1992). Maior autonomia às lideranças locais para tocarem adiante reformas e experimentos econômicos fora de amarras ideológicas, além do apoio do Exército de Libertação Popular (ELP) em troca de maior autonomia empresarial ao ELP, constituíram-se nos dois pilares políticos que tornaram possível a manutenção e o aprofundamento das reformas econômicas no início da década de 1990. Sobre este instigante processo politico, ler: MARTI, M. E. China and the Legacy of Deng Xiaoping – From Communist Revolution to Capitalist Evolution. Lincoln: Potomac, 2002. Sobre os déficits fiscais acumulados entre 1979 e 1994, ler: KI, S.; YUK-SHING, C. China’s Tax Reforms of 1994: Breakthrough or Compromise?, Asian Survey, (34) 9, 1994, p. 769-788..

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dava um passo decisivo à internalização de uma moderna economia monetária. A exposição à dura concorrência diante das TVE`s e a um pujante setor privado emergente expôs a demanda urgente de reformas profundas nas empresas estatais, de forma a legitimar seu papel de espinha dorsal do todo complexo sistema empresarial, já desenhado em meados da década de 1990 no bojo do estabelecimento como objetivo estratégico do regime, de uma economia de mercado socialista. Ao menos dois grandes movimentos neste sentido devem ser destacados: 1) o de centralização e concentração do grande capital estatal, e 2) o aprofundamento do processo de separação entre gestão e propriedade, abrindo caminho a diversas modalidades de propriedade pública. O setor estatal industrial da economia acumulou perdas anuais, entre 1991 e 1999, da ordem de 0,6% do PIB; quadro este completamente invertido em 2007 com ganhos que corresponderam a 4,2% do PIB (GABRIELE, 2009, p. 7). A comparação da produtividade do trabalho/rendimento por trabalhador entre as empresas estatais e privadas é sugestiva. No ano de 2007, esta relação22 nas empresas estatais fora de 58,3/84,7; nas TVE`s, de 41,2/24,8; nas empresas privadas de 48,1/32,5 e nos conglomerados estatais de 68,7/90,8; nas empresas de capital misto com participação estatal majoritária, de 88,0/99,2; e nas empresas de capital misto, sob controle privado, de 41,6/90,8 (JABBOUR, 2012, p. 190). Afora isto, amiúde a imensa maioria das empresas chinesas estar sob controle do setor privado, o poder econômico encontra-se continua firmemente concentrado nas mãos do Estado. Exemplo disso está na íntima relação entre grandes empresas privadas e sua relação próxima com o Estado, através de participação acionária do próprio Estado, crédito e completo aporte estatal às suas estratégias de inserção internacional. A transição, já aludida, de uma economia de comando a outra – com maior papel conferido ao mercado e onde Estado passa a ser o núcleo gerenciador de políticas de socialização do investimento – ganha corpo com a formação, em 2002, da SASAC23, criada no sentido de representar os interesses do Estado, e de suas ações nas 149 principais companhias do país, concentradas nos setores com alto grau de oligopólio/monopólio24. Isto significa, na ponta do processo, a transformação dessas corporações no núcleo-duro executor das políticas oficiais de Estado, conforme o grande papel conferido a essas companhias nos imensos programas de investimento executados no bojo da resistência aos efeitos da crise financeira internacional25. 22 10.000 yuan’s por unidade. 23 State-Owned Assets Supervision and Administration Commission. 24 Um rápido e largo processo de centralização e concentração no âmbito do grande capital estatal ocorreu, principalmente após a reforma fiscal promulgada em 1994. A formação de 149 conglomerados empresariais estatais foi o ponto culminante deste processo. 25 Sobre os princípios e ação da SASAC, ler: NAUGHTON, B. Claiming Profit for the State: SASAC and the Capital Management Budget. China Leadership Monitor, 2006.

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A grande finança nacional A crescente influência política e econômica da China sobre o mundo guarda grande evidência na relação entre grandes reservas cambiais e a atual posição de maior credora líquida do mundo no valor de US$ 1,97 trilhão, o equivalente a 20,8% de seu PIB (CINTRA; SILVA FILHO, 2015, p. 426). O país transformou sua estratégia internacional em uma questão que envolvia a fusão entre a grande empresa com a grande finança, explorando o grau de maturidade atingido pelo seu sistema financeiro, alçando o país ao patamar de potência financeira. Colocar-se no mundo como uma potência financeira foi consequência lógica de um processo mercantilista moderno de transformação tanto em potência comercial quanto em uma grande fábrica do mundo. A remodelação de funções entre Estado e iniciativa privada forjou instituições do nível da própria SASAC, cuja contraparte financeira foi a constituição de uma moderna economia monetária em substituição a rústicas formas bancárias, inerentes ao modelo soviético, mediadoras de poupança forçada, num processo de contínua evolução institucional que moldou uma grande finança funcional a objetivos estratégicos de Estado. A combinação entre coordenação do investimento (SASAC) com um sistema estatal de intermediação financeira conforma patamar superior de atuação estatal, tanto como emprestador de última instância quanto como o próprio investidor de primeira instância (BURLAMAQUI, 2015, p. 47), parte essencial ao surgimento, contínuo, de novas e superiores formas de planejamento. Trata-se, portanto, de elemento com graus variados de funcionalidade que se entrecruzam, a saber: 1) impacto decisivo sobre as condições cada vez mais complexas de financiamento da economia e, consequentemente, sobre o nível de gastos dos agentes e afetando as variáveis reais da economia, como produto e emprego (PAULA, 2014, p. 2); e 2) elemento com papel crescente diante do grau de intervenção do Estado em uma economia continental, sujeita a surgimentos constantes de bloqueios de mercado que, por sua vez, têm na transferência intersetorial de recursos o principal meio de enfrentamento aos constantes desequilíbrios de variada monta, sejam sociais ou regionais, e entre os diferentes setores da própria economia. Outro ponto de desequilíbrio reside nas contradições relacionadas com a própria evolução do sistema financeiro, entre as quais, o espraiamento de uma finança paralela, não regulamentada, fora dos balanços de bancos comerciais e com certa capacidade de aprofundar desequilíbrios em uma economia ainda fortemente pautada pelo investimento com premente necessidade de mudança de dinâmica interna de acumulação26. 26 Referimo-nos ao chamado sistema financeiro sombra (Shadow Banking).

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A evolução institucional acompanhou, e mesmo antecipou-se, as exigências do processo de reformas econômicas, incluindo a superação do alto grau de repressão financeira. Entre 1978 e 1984, o Banco Popular da China elevou seu papel à própria regulação financeira, enquanto quatro bancos setoriais foram formados (Big Four), atendendo as exigências anexas a agricultura, construções urbanas, infraestruturas e financiamento de exportações e importações27. O avanço da urbanização – incluindo o financiamento de grandes eventos como os Jogos Olímpicos de 2008, as políticas de desenvolvimento do Oeste e a reação coordenada entre o governo central e as províncias diante da crise de 2008 – demandou a formação, ex ante, de grandes bancos provinciais e municipais de desenvolvimento forjados concomitantemente com o processo de fusões e aquisições de pequenas e médias empresas na década de 1990 e o surgimento, neste bojo, de 149 conglomerados estatais. Ainda sobre a evolução institucional acelerada na década de 1990, é mister notá-la como parte da própria antecipação de fatos que iriam ocorrer no bojo dos acordos comerciais China-Estados e da admissão do país na OMC, em 2001. Provas desta antecipação de fatos estão nas sucessivas rodadas de capitalização sobre os bancos comerciais estatais, mediadas pela emissão de títulos e compra, por companhias recém-criadas, de créditos podres tendo em vista sua gestão e recuperação28. Ambos movimentos que anunciavam o lento processo de abertura do sistema financeiro chinês à concorrência e à própria abertura de capital. Afora isso, a crise financeira asiática chamou a atenção das autoridades do país para os próprios limites da grande finança interna, prontamente enfrentados. Em 2015, o sistema financeiro passou por um grande teste, com quedas acentuadas verificadas nas Bolsas domésticas, acelerando as especulações acerca de uma crise financeira que bateu às portas do país com efeitos, até então inimagináveis ao resto do mundo. Teria sido um grande canto de réquiem a um modelo insustentável e esgueirado na fragilidade de uma finança interna susceptível a injunções políticas, não técnicas? Sustentamos ser de 27 Como descrito, o Banco Popular da China é o responsável pela regulação do sistema financeiro e rege ainda comissões como a de Regulação Bancária da China (CBRC), de Regulação dos Valores Mobiliários da China (CSRC) e a de Regulação de Seguros da China (CIRC). Sobre a natureza institucional e política do Banco Popular da China, segundo BURLAMAQUI (2015, p. 50): “(...) é uma administração com status ministerial, que opera sob a liderança do Conselho de Estado. (...) não há independência do Banco Central, mas articulação institucional com outros órgãos políticos, sob uma agência-piloto, o Politburo, que por sua vez está subordinado ao PCC”. 28 Segundo CINTRA (2015, p. 404): “De fato, as sucessivas rodadas de capitalização operadas pelo Estado prepararam os big four para a abertura de capital – o que aconteceu a partir de meados dos anos 2000 (...). Em 2005, o CCB abriu seu capital e captou US$ 9,23 bilhões. Em 2006, o BOC captou US$ 11,2 bilhões, e, em outubro de 2006, o ICBC realizou sua oferta pública inicial de ações, no valor de US$ 19,1 bilhões”. Maiores detalhamentos deste interessante e planificado processo podem ser encontrados em: ALLEN, F.; QIAN, J.; ZHANG, C.; ZHAO, M. China’s financial system: oportunities and challenges. NBER Working Paper 17828, 2012; e BRILLANT, G. Systeme bancaire chinois: entre controle de l`Étatet adaptation aux normes internationales. Revue d´Economic Financière, 102, 2011, p. 43-56.

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grande superficialidade esse tipo de narrativa, preferindo situar a questão no campo, como posto no início do artigo, do esgarçamento de uma dinâmica de acumulação pautado por baixas taxas de juros e maior papel conferido às províncias para a execução de amplos programas de infraestruturas em meio à crise internacional, expondo – assim – as próprias fragilidades da dinâmica de acumulação e de seu grande braço financeiro, também influenciado por agentes privados – causa e consequência do processo de liberalização recentemente observado. É sugestivo situar o problema no próprio campo do desequilíbrio estrutural e na necessária junção de interpretação de fenômenos complexos. Por exemplo, a visão que percebe o desequilíbrio como pressuposto à principal variável/categoria de validação teórica no campo das ciências econômicas, a saber, o planejamento. Sob este prisma, novas mudanças institucionais – como as que sempre antecederam mudanças recentes sobre a base econômica do país – já não estariam em curso como pode-se perceber na própria rapidez com que entrou e saiu dos noticiários a entrada do país em uma “crise financeira”? CONSIDERAÇÕES FINAIS À luz do exposto, da história recente do processo de desenvolvimento chinês, o que dispor com a finalidade de sugerir o próprio futuro imediato do país e seus desafios? Este artigo buscou expor que a história das reformas econômicas chinesas tem como característica fundamental a capacidade do Estado, e de sua força política governante (PCCh), de operar as transformações político-institucionais necessárias à consecução de uma estratégia nacional de longo prazo. A principal transformação foi a transmutação de uma base econômica moldada por instituições típicas do modelo soviético para a formação de uma economia monetária moderna capaz de prover ao Estado e seus agentes (SASAC, por exemplo) ampla capacidade de coordenação e socialização do investimento e, por conseguinte, margem de manobra política e financeira ao lançamento de novas e superiores formas de planejamento econômico; como as verificadas – por exemplo – nas políticas de desenvolvimento e expansão regionais e nas grandes medidas de coordenação sobre os mecanismos de controle da grande finança e suas fragilidades expostas recentemente. O país vive atualmente uma transição de dinâmica de desenvolvimento que traz consigo não somente as vicissitudes de um processo desta monta. Absorve também uma plêiade de contradições e desequilíbrios, sob forma de crise ambiental, desigualdades sociais, territoriais e de renda ainda explo90

sivas, índices de consumo muito abaixo do nível dos países desenvolvidos, assim como os desafios externos inerentes à lenta internacionalização de sua moeda e de uma política externa ativa e baseada em imensos investimentos em infraestruturas pelo mundo afora, notadamente em seu entorno asiático (incluindo a Nova Rota da Seda), África e América Latina. O novo Plano Quinquenal (13º) em andamento deverá ensejar respostas a esta gama de desequilíbrios. Em questão o próprio destino da Revolução Chinesa e o futuro da sua economia. ----------* Artigo em coautoria com Alexis Dantas, professor associado da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCE-UERJ). Publicado originalmente em inglês sob o título The political economy of reforms and the present Chinese transition na Revista de Economia Política, vol. 37, n. 4 (149), p. 789-807, October-December/2017.

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HOMENAGEM A IGNÁCIO RANGEL E ARMEN MAMIGONIAN

Emerge na China uma Nova Formação Econômico-Social Pondo de parte o primeiro e o último dos modos fundamentais de produção, dado que em ambos o corpo social comanda todos os fatores de produção, nos demais a hegemonia cabe à classe detentora do domínio do fator objetivamente estratégico. E é isso o que caracteriza o modo de produção e a formação social que sobre ele se edifica. (RANGEL, Ignácio, 1978) É fato curioso que Deng tenha recebido Gorbachev em Pequim na época dos protestos estudantis da Praça da Paz Celestial, no emblemático ano de 1989, quando o russo decretava o fim do século soviético, enquanto Deng estava conduzindo a China à cena mundial do século XXI. A apostasia do socialismo soviético estava sendo corrigida pelo PC Chinês, o verdadeiro «Príncipe moderno» na expressão de A. Gramsci, enquanto o PCUS desaparecia melancolicamente. (MAMIGONIAN, Armen, 2017) Even if it offends our post-communist conventional wisdom, I think we have to begin accepting the notion that Xi Jinping actually believes in Marx and Marxism. (BLANCHETTE, Jude, consultora da Crumpton Group, 2018)

1. INTRODUÇÃO É famosa a resposta, da parte de Ignácio Rangel, à crítica feita por Jacob Gorender1 ao seu “dualismo”2. Por seu turno, dentro do escopo da citada resposta, Rangel não omite que sua referência – em relação à categoria marxista de modo de produção – seria a sequência por Stálin sugerida, como segue: o comunismo primitivo, o escravismo, o feudalismo, o capitalismo e 1 Gorender (1978). 2 Rangel (1978).

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o socialismo (1938 [2013], p. 18). Tratava-se, segundo o líder soviético, dos chamados cinco modos de produção fundamentais. Segundo Rangel, a “dualidade brasileira”, assim como o “modo de produção asiático” não eram modos fundamentais de produção. Vejamos (Rangel, 1978, p. 73), (...) dado que pode ser estudado como uma formação complexa, que associa no mesmo modo de produção relações de produção de vária etiologia, isto é, não homogêneas”. (...) estudar esses modos de produção significava captar “a natureza dessas combinações e, se possível, classificá-las e pôr em evidência as leis que governam seu nascimento e desenvolvimento, seu princípio e seu fim.

Desta forma, para Rangel (IDEM, IBIDEM, p. 83): (...) O Sr. Gorender admite, por certo, que uma mesma formação social pode conter “vários modos de produção” (...), mas parece excluir a possibilidade de que esses múltiplos modos de produção possam coexistir estavelmente (...). Por outro lado, rebela-se contra a sequência histórica dos cinco modos de produção citados. Noutros termos, perde-se o fio de Ariadne da história, que julgávamos haver recebido de Marx, já que os modos de produção não podem ter sua ordem alterada ao acaso, como que o próprio conceito de modo de produção se torna nebuloso, agora que podemos ir inventando novos modos3.

É válido questionar qual a relação entre uma polêmica ocorrida em 1978 com um modelo de desenvolvimento capaz de explicar o intenso processo de crescimento da China? É fato que o processo de desenvolvimento econômico chinês é um dos fenômenos mais impressionantes do mundo em que vivemos. Vejamos: seu crescimento médio do Produto Interno Bruto (PIB) nos últimos 35 anos foi de 9,5% a.a., ao mesmo tempo em que a renda per capita no período passou de US$ 250, em 1980, para US$ 9.040, em 2014 (JABBOUR; PAULA, 2018, p. 14). A nossa questão é buscar a essência do fenômeno em sua totalidade, algo mais próximo de se descobrir a gênese do processo em detrimento de um modelo explicativo em si. A polêmica não é o “modelo” e sim o fato de esse processo ocorrer negando a deus ex machina que condiciona o dinamismo econômico à existência 3

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Jacob Gorender prometeu uma resposta aos ataques de Ignácio Rangel, mas infelizmente não chegou nunca a produzir tais respostas. Mamigonian (1997, p. 139) afirma: “A defesa que Rangel fez, corajosa e seguidamente, da inflação, recebeu críticas apenas de G. Mantega e P. Sandroni, os quais após as respostas desistiram do debate e Jacob Gorender “criticou” a dualidade e, diante da réplica, prometeu resposta, que nunca aconteceu (...). Rangel foi pioneiro em assinalar as qualidades e os defeitos do pensamento cepalino, quando toda a esquerda vivia, nas décadas de 50 e 60, em lua de mel com a CEPAL, mas, quando os ex-cepalinos resolveram renegá-la, usaram a sua crítica, sem apontar o crédito intelectual.”

de instituições que garantam a primazia da propriedade privada4. Ao contrário, sua especificidade está – por exemplo – na existência de um Estado que toma a si mesmo o papel tanto “de emprestador de última instância quanto de investidor de primeira instância” (BURLAMAQUI, 2015, p. 737). O objetivo deste artigo passa por desenvolver o argumento já trabalhado anteriormente onde demonstramos que (JABBOUR; PAULA, Ibidem): Um amplo avanço de setor privado na economia não prescindiu da formação de um novo e poderoso setor estatal, notadamente a partir da década de 1990. Em tese, isso significa que a estrutura de propriedade chinesa ainda é muito diferente de outras partes do mundo. Esse processo reflete-se diretamente em um aumento contínuo, desde a segunda metade da década de 1990, do controle governamental sobre os fluxos da renda nacional: de 13,5% do PIB em 1996 a 37,3% em 2015 (NAUGHTON, 2017, p. 5). É impactante a tendência crescente de “estatização” sobre a estrutura de propriedade chinesa. Trabalhos recentes5 mostram a grande diferenciação entre a estrutura de propriedade chinesa em comparação com outras partes do mundo (grandes conglomerados estatais, empresas de capital misto, propriedade dividida por ações). Esse processo reflete-se diretamente em um aumento contínuo, desde a segunda metade da década de 1990, do controle governamental sobre os fluxos da renda nacional: de 13,5% do PIB em 1996 a 37,3% em 2015. Percebe-se, também, na queda do aumento da taxa de investimentos do setor privado (de 34,8% em 2011 para 2,8% em junho de 2016). No mesmo período, os investimentos estatais cresceram de 15,2% para 23,5%. Logo, nosso trabalho buscará demonstrar não somente que o avanço do setor estatal na economia chinesa, acelerado desde 2009, abre condições para concluir que o “modelo chinês” é algo que vai se distanciando – historicamente – de um modelo típico de capitalismo de Estado; e mais longe ainda de ser um capitalismo liberal. Vamos além: estaríamos (ou, estamos) sendo impelidos a admitir o socialismo de mercado não mais como uma 4 O sucesso das Townships and Village Enterprises (TVE`s), baseado em direitos de propriedade de difícil compreensão, demonstra que a propriedade privada per si não garante dinamismo econômico. Sobre esse debate sobre as TVE`s e os chamados direitos de propriedade, ler: Harry (2001). 5 Nesse sentido, ainda segundo Piketty et al (2017, p. 4-5), (...) China has moved a long way toward private property between 1978 and 2015, but the property regime of the country is still very different than in other parts of the world. In most developed countries, the share of public property in national wealth used to around 15-25% in the 1960s-1970s and is now close to 0 (...). China has ceased to be communist, but is not entirely capitalist. In effect, the share of public property in China today is somewhat larger than – though not comparable to – what it was in West during the “mixed economy” regime of the post-World War 2 decades (30% in China`s mixed economy seems to have strengthened since 2008 financial crises, while it has dropped again in rich countries. Nesta mesma linha de raciocínio indicamos o recente trabalho de Naughton (2017).

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mera abstração, e já como uma nova formação econômico-social. A nós esse fenômeno já é fato consumado. Em paralelo, trabalhamos com a hipótese de, como o modo de produção asiático e as dualidades brasileiras, classificar essa nova formação econômico-social nos marcos de também se tratar de um modo de produção complexo. A grande tarefa, logo, é descobrir, estudar a natureza da combinação que tem no socialismo de mercado sua derivação e as lógicas que governam seu desenvolvimento. Além desta introdução, o artigo se divide em outras cinco seções. Na seção 2, apresentamos a categoria marxista de formação econômico-social como o principal elemento de validação teórica que utilizamos no sentido tanto de compreender o fenômeno chinês quanto de demarcar fronteira com as visões hegemônicas reinantes tanto nos debates sobre a natureza do sistema chinês quanto em relação aos postulados pós-modernos. Na seção 3, iniciamos expondo nossa base de interpretação sobre a natureza do socialismo para, em seguida, expor as evidências que sustentam nossa percepção do socialismo de mercado como um modo de produção não fundamental, como consequência de se tratar de um modo de produção assentado sob uma formação social complexa, ou seja, uma formação que associa no mesmo modo de produção relações de produção de diferentes épocas históricas. Na seção 4, serão expostas as cinco lógicas gerais da formação histórica e de funcionamento da economia chinesa, descrevendo o processo de desenvolvimento do país, no campo da Economia Política. Na seção 5, buscaremos justificar a necessidade de se construir uma nova teoria econômica6, capaz de desvendar um processo histórico onde a economia da nova formação econômico-social está sendo desenhada a partir da síntese entre o processo de financeirização, agressividade imperialista, novos paradigmas produtivos e tecnológicos e das novas e superiores formas de planificação, sendo gestadas e executadas em larga escala na China. Ao final apresentaremos algumas conclusões. 2. SOBRE O SOCIALISMO DE MERCADO: A EPISTEME E OS CRITÉRIOS DE VALIDAÇÃO TEÓRICA O ponto central de nossa discussão não está em responder se a China é, conforme sua constituição e dirigentes, um Estado socialista ou não, trata-se – no mais generoso juízo de valor – de uma variante asiática de capitalismo de Estado. Nesse tocante, infelizmente, a hegemonia encontra-se na noção segundo a qual o que ocorre na China é uma “restauração capitalista” sob a forma de um capitalismo de Estado com características chinesas. Não é de se surpreender que um badalado intelectual marxista como David 6

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Teoria econômica, cujo ponto de partida é o materialismo histórico de Marx e Engels, acrescido de todo acervo teórico já existente elaborado ao longo do tempo pelo campo da heterodoxia econômica.

Harvey (1992, p. 121) – que não somente alça Deng Xiaoping ao mesmo altar neoliberal de Reagan e Thatcher – ainda “constate” que: A espetacular emergência da China como uma forma econômica global pós-1990 foi uma consequência não intencional do rumo neoliberal no mundo capitalista avançado. Trata-se de uma observação típica de um esquema pronto, modelar e fotográfico da realidade, que guarda muita proximidade com um determinado relativismo pós-moderno em detrimento da objetividade histórica característica de análises baseadas no materialismo histórico (JABBOUR, 2012, p. 78). Abrindo necessário parêntese, em verdade, no campo do debate de ideias, situamo-nos no campo oposto ao dos postulados atualmente hegemônicos das ciências sociais – entre eles o positivismo clássico, que se expressa sob a forma de certo modismo intelectual pós-moderno – que concebe a teoria social como mera narrativa com propósito moral (FERNANDES, 2000, p. 17). Passam a ser colocadas no centro do processo de construção da subjetividade humana a teoria e a prática do relativismo como fio condutor e norte da teoria do conhecimento (JABBOUR, Ibidem, p.81). De nossa parte, contra tanto o modismo intelectual citado quanto qualquer princípio de “neutralidade” na prática científica, acreditamos que a objetividade e, consequentemente, a visão de processo histórico ainda são os critérios cruciais de validação teórica. No concreto, dentro dos marcos epistemológicos acima expostos, se admitimos a China, e seu socialismo de mercado, como um modo de produção complexo, para Harvey, serve a relação feita por Marx (e perfeitamente compreendida por um marxista radical da estatura de Ignácio Rangel) entre o desenvolvimento das formações geológicas e o processo de desenvolvimento da sociedade, conforme sugerido em carta enviada a Vera Zasulich, datada de 16 de fevereiro de 1881 (1982, p. 118). A formação arcaica ou primária de nosso mundo contém em si uma série de camadas de diversas idades, na qual uma está sobreposta a outra; da mesma maneira, a formação arcaica da sociedade [(la formation archaïque de la société)] nos revela uma série de tipos diferentes , marcando épocas progressivas [(marquant dês époques progressives)]. A comuna rural russa pertence ao tipo mais recente dessa cadeia. O lavrador possui agora a propriedade privada da casa que habita e do quintal que forma o complemento. Eis aí o primeiro elemento dissolvente da forma arcaica [(forme archaïque)], desconhecida aos tipos antigos