Caravaggio (1571-1610) [1 ed.]
 9783822856727

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Gilles Lambert

CARAVAGGIO 1571-1610

Editado por Gill es Néret

TASCHEN

-a CA.'A:

O Amor Triu11ja11te, cerca de 1601- 1602 Óleo sobre tela, !56 l\ 113 cm Berlim, Gcmãldegalcrie, Staatliche Museen zu Berlin - Stiftung Preussischer Kulturbesitz IL USTRAÇÃO PÁCõi NA 1:

Anónimo Retrato de Curuvaggio reali'l.JldO a partir do desenho de Ottuvia Leoni (ilusl. p. 92} Séc. XVII, Milão, Collczione Bcrtarelli Il-U ST RAÇÃO I'ÁGII\'A 2:

Pequeno Baco Doente (pormenor}, cerca de 1593- 1594 Óleo sobre tela, 67 x 53 cm Roma, Galleria Borghese Auto-retrato do artista convalescente CONT RACAPA:

Concerto de Jovens ou Os Músicos (pormenor). cerca de 1595- 1596 Óleo sobre tela, 92 x llS,S cm Nova Iorque, The Metropolitan Museum of.M

Cubeça de Medusa, cerca de 159&-1599 Óleo sobre tela colada sobre uma rodela de madeira de choupo, 60 x 55 cru Florença, Galleria degli Uffizi

~ 200 I Taschen GmbH Hohenzollernrir,g 53, D- 50672 Kõln www.taschen.com Texto: Gilles Lambert, Paris Capa: Angelika Taschcn. Colónia Tmduçào portugue~a: Zita Morais, Lisboa Revisão: António Rocha, Lisboa Fuwcomposição: Américo Silva, Lisboa

Printed in Germany ISBN 3- 8228 5672- X

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Indice

6 Um proscri to da arte 18 Um revolucionário através dos caminhos

1571-1592

46 O mestre das trevas

1592-1606

80 Os anos de errante ou a serenidade inacessível 1606-1610

92 Vida e obra

6

Um proscrito da arte

A sua pintura era escandalosa e a sua vida não o foi menos. Michelangclo Merisi, conhecido como Caravaggio (do nome da sua aldeia natal perto de Bérgamo), foi um celerado. Antes dele, outros artista de génio tinham tido contas a ajustar com a justiça: Duccio era bêbedo c zaragateiro. Perugino gostava de rixas e lutas de rua, tendo sido preso na juventude. O ourives Bcnvenuto Cellini foi acusado de burlas, assassínio e sodomia tendo sido enclausurado no Palácio do Santo Anjo, em Roma. O próprio Caravaggio foi preso e encarcerado muita vezes c chegou a confessar ter assassinado um adversário do jogo de péla por achar que ele fazia batota. Havia ainda rumores de que teria praticado outros crimes. Este pintor de génio, que trabalhava a uma velocidade incrível dircctameme na tela, sem mesmo ter esquema:izado os seus personagens, passou a vida de calabouço em calabouço, de onde foi sendo arrancado por protec tores poderosos, cada vez com maior dificuldade. Da sua última prisão, na ilha de Malta, evadiu-se correndo grandes riscos, tal como Cellini do palácio do Santo Anjo. Dessa vez, tinha sido encarcerado, presumívclmente, por aquilo a que hoje chamamos de pedofilia. Proscrito, procurado, perseguido, Caravaggio desapareceu numa praia ao sul de Roma. talvez assassinado como o cineata Piero Paolo Pasolini. Não contava ainda q uarenta anos. Caravaggio é o pimor mais misterioso e, sem dúvida, o mais revolucionário da história da arte. Em Roma, trinta e quatro anos após a morte de Miguel Ângelo, ele esteve n~ origem de uma reacção violenta contra « O Maneirismo», ou seja, a forma de pintar dos mais velho~. que ele considerava limitados, afectados e académicos. Impôs uma nova linguagem, realista. teatral, escolhendo em cada tema o instante mais dramático. recrutando os modelos na rua, mesmo para as cenas mais sagradas corno A Morre da Virgem, não hesitando em pintá-los de noite, o que poucos artistas, antes dele, tinham ousado. Ele proclamou o primado da natureza e da verdade. Foi, para a pintura, a apoteose do que veio a ser chamado, mais tarde, de arte barroca A época. na charneira dos séculos xvt e xvn, está repleta de furores, de excessos e de êxtaes. Do concílio de Trento saiu a Contra-Reforma: ao rigor de Lutero e de Calvino, que baniram os quadros e esculturas dos santuários, os papas e os Jesuítas opunham uma abundância de . imagens, de ornamentos, de cores, de contrastes, de decorações com vista a deslumbrarem os fiéis c aftrrnar a supremacia de Roma. Claudio Monteverdi acabara de inventar a ópera. A obra de Caravaggio explode nesta tormenta e amplifica-a. Cada uma das sua obras é um escândalo e alguns indignam-se.

Miguel Ângelo Ign11di. 1509 Pom1enor do fresco da Capela Sistinn. próximo do Dilâvia e por cima da Sibila da Eritreia

PÁGL'IA6:

São João Baptista. 1599- 1600 Óleo ~bre tela. 129 x 94 cm

Roma. Museu Capitolino, Pina>. Os comentadores que citam o se u nome, como Joachim Winckclmann, em 1750, não lhe atribuem qualquer imporLância. As trevas, que ele introduziu na pintura, envolvem a sua memória. Desapareceu das listas, das cronologias -da história da arte. O abade Lanzi, na sua monumental História da Pintura lwliana, seis volumes publicados em 1820, onde Stendhal foi beber insistentemente. maltrata o seu nome: c hama-lhe o Michelangelo Amerighi ou Morigi e não lhe consagra mais que dois parágrafos. Stcndhal, grande admirador de Guida (que considera mesmo superior a Rafael) cita-o apenas duas vezes na sua Hisrória da Pintura Italiana; nos Passeios em Roma recomenda os frescos da igreja de S. Luigi dei Francesi de Domenichino mais do que os de Caravaggio, onde ele via somente «Camponeses grosseiros, mas enérgicos>>. Curiosamenle, 1am hérn os românticos passam ao largo de Caravaggio. Balzac não o invoca na Comédia Humana e Théophile Gautier limita-se a este

Pormenor do Grande Baco PÁGINA 10:

Grande Baco, cerca 1596-1597 Óleo sobre leia. 95 x &5 cm Florença, Oalleria dcgli Uffi:ó PAGL~U:

Santa Carari11a de Alexandria, cerca t598 Óleo sobre 1ela. 173 x 133 cm Madrid, M u~eo Thyssen-Bomemisza PÁG~A I3:

Ponnenor de O Tocador de Lira (p. 14)

ll

13

O Tocador de Ura. 1596- 1597 Óleo sobre teln, 100 x 126,5 cm Nova Iorque, colecção particular cedido ao Thc Mctro(l, escreveu Longhi. «É uma cena de asilo para pernoitar. Mas a angústia dos presentes parece ter um sentido infmito e eterno, através desta explosão devastadora de luz que surge da esquerda e, lutando com a sombra, pára sobre as cabeças calvas, sobre os pescoços que palpitam c sobre as mãos abandonadas.» Como é evidente, as Carmelitas recusam o quadro. Não se murmura que Michelangelo de Caravaggio tomou por modelo uma cortesã? O corpo evoca a doença. A bacia de vinagre, no primeiro plano, que se destina à higiene do corpo, 6 uma espécie de blasfémia: não será ela uma testemunha da falta de fé na Ressurreição? A obra é perigosa. No ano anterior, Giordano Bruno tinha sido queimado vivo, em Roma, por os seus escritos contestarem o Dogma e por se ter recusado a retractar-se.

i'omlcnordcA Conver· são de :ião Paulo (segunda versão)

' A Morte da Virgem não encontra comprador. Finalmente entrará na colecção de Vincent Gonzague, duque de Mântua, a conselho de Pictcr-Paul Rubens que, vindo de Antuérpia, chegou a Roma após uma passagem por Veneza. Rubens ficou fascinado pela força, pela audácia e pelo claro-escuro de Caravaggio. (De qualquer forma recrimina-o por não fazer um desenho preliminar). A Mor1e da Virgem será vendida, cm 1628, ao rei Carlos I de Inglaterra, juntamente com uma grande parte da colecção do duque de Mânrua. Por morte do rei, pertencerá durante algum tempo ao banqueiro parisiense Jabach, antes de ser adquirida por Luís XTY. O comrato para a Sama Maria dei Popolo arrasta-se. Para grande inquietação de Valentin, Miche langelo reencontra os seus amigos dos bairros ordinários de Roma, a~ suas lutas e as suas bebedeiras e desaparece sem dizer uma palavra. No entanto, aceita pintar para o marquês e banqueiro Giustiniani. cujos negócios estão florescentes, uma Coroação de Espinhos de formato vertical. A versão original, que passou por ser uma cópia de época, foi identificada como tal cm 1974. Encontra-se na Cassa di Risparmio (Caixa Económica) de Prato. O rosto e o olhar doloroso do Cristo são pungentes. O carra~co é um modelo conhecido, companheiro de libertinagem do pintor. Pinta também, muito rapidamente, A Deposição no Túmulo (ilust. p. 74), um grande quadro onde o tratamento da luz é notável e as cores vivas surpreendentes. É a única obra devota de Caravaggio que foi acolhida e aceite sem hesitação pelos clientes, os herdeiros de monsenhor Vitrici, para a Igreja de Santa Maria de Vallicella. Rubens fez uma cópia (ilust. p. 75) suprimindo, sem que se saiba porquê, o personagem de Maria Cleophas. Finalmente Valentin conseguiu obter o grdnde contmto da Igreja de Santa Maria dei Popolo, quatrocentos écus, que irão permitir a Caravaggio pagar as dívidas e asscgumr-lhc um cc11o desafogo. (0 contrato foi encontrado em 1920 por Denis Mahon c publicado na Burlington magazine). Trata-se de

Alessandro Bonvicino li Morerto A Com·ersão de São Paulo (ponnenor), 1529- 1539 Milão. S. Maria prcsso S. Celso

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Ponncnor de A Converslio deSiíoPaulo (primeira ve!'l